UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DOUTORADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
Marcos Vinícius da Costa Meireles
Filosofia e Psicoterapia no projeto da Análise Existencial de Viktor Frankl:
a compreensão da pessoa espiritual a partir da transcendência
Juiz de Fora
2019
Marcos Vinícius da Costa Meireles
Filosofia e Psicoterapia no projeto da Análise Existencial de Viktor Frankl:
a compreensão da pessoa espiritual a partir da transcendência
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião, da
Universidade Federal de Juiz de Fora
como requisito parcial a obtenção do grau
de Doutor em Ciência da Religião. Área
de concentração: Filosofia da Religião.
Orientador: Dr. Paulo Afonso de Araújo.
Juiz de Fora
2019
Ficha catalográfica elaborada através do programa de geração
automática da Biblioteca Universitária da UFJF,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Meireles, Marcos Vinicius da Costa.
Filosofia e Psicoterapia no projeto da Análise Existencial de
Viktor Frankl : a compreensão da pessoa espiritual a partir da
transcendência / Marcos Vinicius da Costa Meireles. -- 2019.
154 f.
Orientador: Paulo Afonso de Araújo
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Juiz de Fora,
Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião, 2019.
1. Viktor Frankl. 2. Logoterapia. 3. Análise Existencial. 4.
Antropologia filosófica. 5. Psicoterapia. I. Araújo, Paulo Afonso de,
orient. II. Título.
À minha saudosa mãe, Maria Aparecida Costa (in memoriam)
AGRADECIMENTOS
A Deus, por sempre me conduzir por suas veredas e dotar minha vida de sentido
e esperanças.
Ao Prof. Dr. Paulo Afonso de Araújo por ter aceito orientar esta tese e sempre
se mostrar tão solícito e compreensivo.
À Profa. Dra. Maria Glória Dittrich por despertar em mim o desejo pela pesquisa,
por me iniciar nos estudos de Viktor Frankl e por ter aceito participar da banca de defesa.
Ao Prof. Dr. Thiago Antônio Avellar de Aquino por aceitar participar da banca
de defesa e pelo seu incansável trabalho de pesquisa e divulgação do pensamento de
Frankl.
Aos professores, Dr. Antônio Henrique Campolina Martins e Dr. Humberto
Araújo Quaglio de Souza, pela generosidade em aceitar a avaliação desta pesquisa.
A CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento em Nível Superior, pelo
financiamento desta pesquisa.
Aos amigos do CMJF por possibilitarem que essa pesquisa acontecesse.
Ao amigo Marcos Alfonso Spiess pelo incansável incentivo e por me inspirar na
busca pelo conhecimento.
Ao amigo Márcio Marcelo Sabino pelas partilhas de vida e debates filosóficos.
À Elisângela Aparecida de Souza pela amizade sincera e incansáveis
motivações.
À Edna Lira do Nascimento Araújo pela cuidadosa revisão do texto e,
principalmente, pela presença maternal e conselhos preciosos.
À Estela Maris Medeiros Jardim pela presença amiga, sincera e confortante.
Aos meus familiares e principalmente aos amigos que se fizeram minha família,
especialmente Luara Gonçalves, Antônio Sérgio, Daniel Simão, Júlio Carvalho e Marcos
Almeida, por terem tornado minha estada em JF mais divertida.
“Este é o sentido final do sacrifício: o que sacrifica dá ao sacrificado sentido,
valor, preço. Dar sentido quer dizer entregar-se. Não é o que eu guardo comigo que
retém valor; é o que eu sacrifico que adquire valor”
Viktor E. Frankl (1905-1997)
RESUMO
Esta tese, de caráter epistemológico, tem como objetivo demonstrar como a relação entre
filosofia e psicoterapia contribui com o empreendimento da Análise Existencial
frankliana, permitindo vislumbrar uma concepção de ser humano desde uma dimensão
existencial. A relação com a filosofia se deu principalmente a partir das obras de Martin
Heidegger, em especial Os fundamentos metafísicos da lógica (1928) e Seminários de
Zollikon (1987). No tocante à bibliografia de Frankl, destaca-se Logoterapia e Análise
Existencial (1967). Esta pesquisa teórico-bibliográfica está dividida em três momentos.
No primeiro, buscou-se tematizar a relação entre filosofia e psicoterapia, a fim de
compreender a Análise Existencial. O segundo capítulo, partindo de uma crítica à
epistemologia psiquiátrica moderna, buscou perscrutar a antropologia filosófica proposta
por Frankl com vistas ao itinerário de reabilitação da dimensão espiritual. Por fim,
buscou-se explicitar o fenômeno da transcendência como constituição essencial do ser
humano.
Palavras-chave: Análise Existencial. Logoterapia. Transcendência. Antropologia
filosófica. Viktor Frankl.
ABSTRACT
This epistemological thesis aims to demonstrate how the relationship between Philosophy
and Psychotherapy contributes to the Existential Analysis proposed by Frankl, allowing,
thus, a glimpse on the conception of being human from an existencial perspective. Such
relationship has been built since the works of Martin Heidegger, notably The
Metaphysical Foundations of Logic (1928) and Zollikon Seminars (1987). Concerning
Frankl’s bibliography, Logotherapy and Existential Analysis (1967) are remarkable. This
theoretical bibliographic research is divided in three different parts. Firstly, the main goal
was to determine the relationship between Phylosophy and Psycotherapy in order to
understand the Existencial Analysis. The second chapter stems from the criticism to the
modern psychiatric epistemology, aiming to explore the philosophical anthropology
proposed by Frankl in order to discuss the rehabilitation itinerary of the spiritual
dimension. Lastly, it pursues to clarify the phenomenon of transcendence as an essential
part of being human.
Keywords: Existencial Analysis. Logotherapy. Transcendence. Philosophical
anthropology. Viktor Frankl.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
2 FILOSOFIA E PSICOTERAPIA PARA A FUNDAMENTAÇÃO DE UMA
ANÁLISE EXISTENCIAL ..................................................................................... 17
2.1 O EMPREENDIMENTO DE FRANKL ................................................................. 17
2.2 FILOSOFIA E PSICOTERAPIA ............................................................................ 20
2.2.1 A filosofia como sujeito da psicoterapia ......................................................... 22
2.2.2 A psicoterapia como sujeito da consideração teórica da filosofia ................ 28
2.2.3 Filosofia como instrumento pragmático da psicoterapia .............................. 35
2.3 A ANALISE EXISTENCIAL FRANKLIANA ...................................................... 39
2.4 A ANÁLISE EXISTENCIAL EM SUAS DISTINÇÕES ...................................... 46
3 POR UMA MUTAÇÃO DA COMPREENSÃO DA ESSÊNCIA DO HOMEM 52
3.1 A PROPOSTA DESCONSTRUTIVA HEIDEGGERIANA .................................. 55
3.2 DESCONTRUÇÃO DA CONCEPÇÃO NATURALISTA DE SER HUMANO .. 57
2.2.1 A crítica da compreensão da psiquê de Freud .................................................. 65
2.2.2 A crítica ao psicologismo..................................................................................... 68
3.3 O INTENTO DE UMA ONTOLOGIA DIMENSIONAL ...................................... 76
4 A COMPREENSÃO DA PESSOA ESPIRITUAL A PARTIR DA
TRANSCENDÊNCIA .............................................................................................. 93
4.1 APORIA EM TORNO DO CONCEITO DE TRANSCENDÊNCIA ................... 100
4.2 O SENTIDO DE TRANSCENDÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DE UMA
ONTOLOGIA EM HEIDEGGER ......................................................................... 103
4.2.1 Sentido histórico do conceito de transcendência.......................................... 103
4.2.2 O sentido transcendental da transcendência ................................................ 106
4.2.3 Transcendência a partir do fenômeno do mundo ........................................ 110
4.3 O ENTE HUMANO A PARTIR DA TRANSCENDÊNCIA EM FRANKL ....... 116
4.3.1 A compreensão da liberdade como possibilidade originária do
enriquecimento ................................................................................................ 121
4.3.2 Sentido ............................................................................................................. 125
4.4 O SER-RESPONSÁVEL DA PESSOA ESPIRITUAL ........................................ 131
4.5 A CONSCIÊNCIA EM UMA PERSPECTIVA TRANSCENDENTE ................ 135
4.5.1 Análise Existencial da consciência moral ..................................................... 136
4.6 A RELIGIOSIDADE INCONSCIENTE .............................................................. 139
5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 146
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 151
11
1 INTRODUÇÃO
“A ex-sistência acontece no espírito”. Essa afirmação presente no Compêndio de
Análise Existencial e Logoterapia expressa sinteticamente, por meio dos conceitos ali
empregados, o empreendimento ao qual Frankl se propõe e que, nesta tese, se busca
evidenciar, quais sejam: a elaboração de uma antropologia filosófica e o combate ao
psicologismo da época. Tais objetivos apresentam uma íntima relação, pois, a partir da
reapropriação da dimensão do espírito, Frankl elabora uma concepção de ser humano
distinta daquela reducionista de tipo psicologista. O conceito de existência estabelece uma
nova ordem na compreensão do modo de se relacionar do ser humano, que, ao contrário
de uma vivência nos termos do solipsismo, passa a ser entendido como uma relação
recíproca com o mundo de significados e valores a realizar. O mundo, compreendido
enquanto condição de possibilidade da experiência do ser humano, expressa, de modo
patente, que a realização almejada não se dá na acepção de uma autorrealização, mas de
uma autotranscedência. É dessa forma que o modo distintivo da vivência humana é
compreendido enquanto “ex-sistir”. Tal compreensão só encontra guarida se ela for
concebida enquanto liberdade. Nesses termos, para além da compreensão do ser humano
a partir da díade corpo e psíquico, Frankl postula a existência da dimensão do espírito.
Esse conceito não está relacionado diretamente a uma acepção religiosa, mas remonta à
tradição clássica, entendendo-o como dimensão noética. É a partir do espírito que Frankl
elaborará sua antropologia, compreendendo o ser humano enquanto unidade bio-
psíquico-espiritual.
Dentre os vários temas abordados nas obras de Frankl, a filosofia pode ser
percebida como um marcador importante, tanto na compreensão do ser humano, quanto
no combate ao psicologismo. Essa proposta efetivar-se-á pelo que Frankl denomina de
Análise Existencial (Existenzanalyse). Longe de uma análise que almeja a decompor o
ser humano em partes a fim de o compreender, a proposta frankliana tem em vista resgatar
a unidade perdida, introduzindo, na psicoterapia, a dimensão existencial. Esse modo
oportunizado por Frankl de entender a análise insere-se em um contexto notadamente
científico-natural. Caracteriza-se como a recusa em conceber, como objetivo das ciências
da alma, a decomposição de um fenômeno, a fim de encontrar uma chave explicativa para
sua compreensão. Consiste em oferecer a essas ciências uma análise mais condizente e
sem prejuízos para o seu objeto.
12
A partir disso, percebe-se que o tema o qual estabelece o plano de fundo desta
tese é delineado pela relação entre filosofia e psicoterapia. Tal relação é tratada de modo
mais explícita por Frankl em uma seção da obra Logoterapia e Análise Existencial, a qual
é basilar nesta pesquisa. Ali o vienense buscará confrontar as duas áreas com o intuito de
verificar a possibilidade de contribuição entre elas. Para ele, há uma exigência inequívoca
de que o médico não trate do paciente passando ao largo das questões ideológicas e
valorativas que o paciente possui, pois defende que as neuroses surgem e são mantidas
por essas posições. Com isso, fica patente a exigência de um tratamento integral do ser
humano e não apenas da neurose em si, devendo o terapeuta preocupar-se com a visão de
mundo trazida até ele pelo paciente.
É referente a Weltanschauung que a filosofia poderá contribuir com a
psicoterapia sem que, com isso, haja uma extrapolação de competências. A partir dos
escritos de Frankl, deduz-se dois contributos principais provenientes dessa relação, quais
sejam: o de elaborar uma teoria crítica do conhecimento oriundo de uma Weltanschauung
moderna e o de oferecer uma visão de mundo mais abrangente. A proposta de uma visão
de mundo mais ampla tem o intuito de promover tanto uma compreensão do ser humano
em sua integralidade, quanto repensar a prática clínica em relação ao seu objeto.
A relação entre filosofia e psicoterapia nas obras de Frankl é tratada de modo
mais usual a partir de Max Scheler e Nicolai Hartmann, pois esses autores destacam-se
pela influência que tiveram na elaboração da ontologia dimensional frankliana. Contudo,
esta pesquisa busca trilhar uma vereda distinta. Busca-se estabelecer tal relação a partir
de um outro nome da filosofia, que, apesar de aparecer com frequência nas obras de
Frankl, não possui a mesma notoriedade nos círculos de estudos franklianos do que
aqueles. Trata-se de Martin Heidegger, filósofo alemão que viveu no mesmo contexto de
Frankl. A justificativa em realizar a pesquisa por esse viés dá-se, primeiramente, pelo
interesse em explorar a relação pouco tematizada entre Heidegger e Frankl. Como já dito,
embora haja acenos de Frankl ao pensamento heideggeriano, essas questões são ainda
pouco tematizadas, possivelmente pelo quadro conceitual empregado por Heidegger que
requer uma compreensão prévia antes de buscar relações externas, ou mesmo pelo fato
de que estabelecer tal relação tenderia mais para temas de interesse da filosofia do que dá
prática clínica. Nesse sentido, temas ainda pouco trabalhados a respeito da
Existenzanalyse encontram terreno fértil para florescer. Esse é outro argumento que se
desvela, a fim de justificar este trabalho. Ao se utilizar do empreendimento heideggeriano
para pensar a relação entre filosofia e psicoterapia, outros relevos são dados ao ser
13
humano além da compreensão que esse possui a partir da tríade corpo-psíquico-espírito.
Possibilita pensar sobre o caráter existencial e transcendente que integra tais dimensões,
dando legitimidade a fenômenos e a manifestações humanas, como é o caso de temas
ligados à religião. Devido ao grande interesse dos que circundam o pensamento frankliano
estarem mais ligado à clínica, são mais recorrentes pesquisas ligadas a métodos e práticas
qualitativas. Ao priorizar a Análise Existencial, esta pesquisa busca dar relevo àquilo que
possibilita tal prática, o fundamento teórico frankliano. Nesse aspecto, o diálogo com a
tradição filosófica, mediada por Heidegger, viabiliza uma postura crítica em relação às
concepções que o ser humano foi recebendo ao longo da história e pela adoção de métodos
que lhe são incompatíveis.
Embora Heidegger realize uma distinção de especificidades entre sua analítica
existenciária e as demais análises do ser humano, salvaguardando-a de uma possível
identificação com a elaboração de uma antropologia filosófica, é inegável o fato de que
haja um grande interesse, por parte do filósofo de Messkirch, em temas ligados às ciências
da alma, do mesmo modo como também há um interesse das psicoterapias em relação a
uma possível contribuição oportunizada pelo seu pensamento. Tal fato confirma-se pelas
inúmeras psicoterapias de base fenomenológico-existencial que utilizam, principalmente
de Ser e Tempo, como embasamento teórico. O recorte utilizado nesta pesquisa para as
obras de Heidegger é o dos anos vinte. Mesmo Ser e Tempo (1927) ocupando um papel
importante na discussão, a obra que se destaca é Os fundamentos metafísicos da lógica
(1928) devido ao tema da transcendência. Além de considerar as obras compreendidas
nesse período, esta pesquisa não poderia se furtar de considerar a discussão presente em
Seminários de Zollikon (1987), que, em certa medida, retoma o que anteriormente foi
tematizado nos anos vinte, em uma estrita relação com as ciências da alma.
Da aproximação realizada entre os dois autores, a filosofia assumirá um papel
preliminar de sujeito na crítica à epistemologia psiquiátrica, entendida enquanto
psicopatologia. A partir daí, possibilitará que a psicoterapia assuma o papel de sujeito na
elaboração de uma antropologia psiquiátrica mais condizente com o ser humano. Com
isso, evidencia-se que a relação entre filosofia e psicoterapia trazidas à baila passa,
primeiramente, por uma etapa destrutiva das considerações sobre o homem, para, a partir
daí, elaborar a sua reconstrução antropológica. O progresso da ciência não se efetiva na
simples acumulação de resultados e conceitos, mas é preciso se perguntar por seus
fundamentos e reagir a eles, a fim de os tornar mais condizentes com a realidade. Na
lógica da existência humana, de modo algum o acesso a essa realidade se dará a partir de
14
investigações das relações causais, pela mensuração e/ou previsões. De dentro das
ciências da alma, Frankl percebe que, por necessidade epistemológica, essas tendem a
buscar uma objetivação do ser humano, mas que se as ciências vocacionadas a tratarem
da existência dela se furtarem, correm o sério risco de sucumbirem a uma positividade
determinista.
A Existenzanalyse frankliana consistirá na tentativa de Frankl de estabelecer, por
vias de uma antropologia filosófica, os fundamentos do ser humano, a fim de evitar tais
reducionismos. Portanto, a análise empreendida por Frankl não tem a intenção de se
assemelhar à analítica existenciária proposta por Heidegger, nem a suplantar, pois
possuem finalidades distintas, da mesma forma que não visa a se sobrepor, pois a hipótese
é de que a analítica heideggeriana trará elementos existenciários a partir dos quais a
antropologia frankliana poderá compreender o ser humano, como é o caso dos conceitos
de mundo e de transcendência.
Essas considerações colocam em evidência um dos principais objetivos desta
tese. Como observado, o empreendimento de uma análise do ser humano passa a ser um
tema comum aos autores que buscavam se distanciar de uma perspectiva positiva,
devedora das ciências naturais. Esse será um tema comum a Jaspers, Heidegger, Frankl,
Binswanger, Boss, dentre outros. É em um período herdado, caracterizado pela
Metodenstreit, que essa pesquisa se situa e busca demonstrar como a relação entre
filosofia e psicoterapia contribui com o empreendimento da Análise Existencial
(Existenzanalyse) frankliana.
Para atingir seu objetivo, esta tese estrutura-se em três momentos. No primeiro,
o intuito é mostrar o empreendimento de Frankl na elaboração de sua Análise Existencial.
Para isso, filosofia e psicoterapia são confrontadas a fim de aferir em que medida uma
pode contribuir com a outra. Além dos resultados anteriormente apresentados, oriundos
dessa relação, destaca-se um terceiro, que é a possibilidade de um fundamento axiológico
na prática clínica a saber: o da responsabilidade. Como anteriormente explicitado, Frankl
considera que o terapeuta não pode se omitir diante da visão de mundo trazida pelo
doente, necessitando de uma confrontação. Contudo, surge daí um dilema: se há a
impossibilidade de que a psicoterapia assuma uma tutela valorativa, em que termos a
psicoterapia pode assumir uma valor referencial que, no ato de ajuizar a visão de mundo
trazida pelo doente, possa se tornar uma orientação na prática clínica. A partir disso,
Frankl busca saber em que medida uma psicoterapia valorativa é possível. A resposta ele
irá buscar na filosofia. Ao refletir sobre a Análise Existencial frankliana, esse capítulo
15
também realizar uma breve distinção entre a proposta de análise feita por Frankl e as
demais análises de seu período.
Ao colocar as bases da Análise Existencial e realizar as suas distinções, cabe ao
momento seguinte perscrutar a antropologia filosófica frankliana com o objetivo de
reabilitar a dimensão espiritual. Para alcançar esse intento, o segundo capítulo busca
realizar uma mutação na compreensão da essência do ser humano. Frankl defende que
toda teoria psiquiátrica trabalha com uma Weltanschauung específica, da qual emerge
uma determinada imagem de ser humano. Nesse sentido, esse momento se caracteriza
como etapa desconstrutiva da concepção naturalista que o ser humano recebeu ao longo
da tradição. Busca apresentar o embate de Frankl com o psicologismo, em especial com
as escolas vienenses que o antecederam – psicanálise e psicologia individual. Isso
oportunizará uma crítica à concepção de psiquê freudiana, particularmente em sua
primeira fase. Para Frankl, o ser humano não tem, na dimensão psíquica, a sua distinção,
muito menos seu inconsciente pode ser visto a partir de uma impulsividade. O
contraponto a essas perspectivas é apresentado por Frankl com a elaboração de sua
ontologia dimensional, a partir da qual o ser humano é entendido enquanto ser bio-psico-
espiritual.
O ser humano, pela ótica psicologista, é caracterizado como um ser fechado que
tem, na homeostase, o seu princípio de satisfação. Ao realizar a desconstrução da
compreensão naturalista, Frankl elabora uma imagem de ser humano enquanto pessoa
espiritual. O relevo dado à dimensão noética consiste em entendê-lo enquanto ser que ex-
siste, isso é, que tem na insistência em ser para fora a sua essência. Nesse sentido, é por
meio da transcendência que a pessoa espiritual desvela seu modo próprio de ser, pois,
enquanto ser aberto, a sua satisfação se efetivará no direcionamento para fora de si, e não
por meio de uma pretensão de equilíbrio interno. Esse é o objetivo do terceiro capítulo no
qual se busca explicitar o fenômeno da transcendência enquanto constituição essencial do
ser humano no pensamento frankliano.
O capítulo é subdividido em dois momentos. No primeiro, tem-se a intenção de
realizar uma reflexão sobre o conceito de transcendência. Esse conceito, em sua acepção
original, está ligado à epistemologia moderna, sendo compreendido enquanto
ultrapassamento de um determinado espaço. Contudo, a reapropriação realizada por
Heidegger torna esse conceito mais condizente com o pensamento frankliano. Assim,
compreende-se ser o que é ultrapassado o próprio ser humano em direção àquilo que é
desvelado de si. Portanto, não se trata de um ultrapassamento espacial, mas das suas
16
possibilidades enquanto ser-no-mundo as quais se relacionam consigo e com os outros.
Essa elaboração conceitual abre espaço para o segundo momento do terceiro
capítulo que consiste em compreender o ser humano a partir da transcendência. O objetivo
da análise empreendida por Frankl é o de colocar a perspectiva da dimensão existencial
do ser humano na psicoterapia. Em última instância, isso implica em o desvelar como um
ser-responsável. Sendo a transcendência considerada essencial na constituição do ser
humano, ele não pode deixar de transcender e a direção para a qual a transcendência
aponta é a de um mundo de sentido, clamando por efetivação. Diante desse, o ser humano
deve responder, assumindo o escolhido. É nesse momento que a perspectiva
psicoterapêutica abre as portas para o campo da religiosidade, pois ser responsável
implica um “perante quem” se é responsável. Essa reposta em hipótese alguma deverá ser
dada por outrem, pois consiste em algo pessoal. Coube à Logoterapia a manutenção de
uma visão de mundo em que tal resposta possa ser dada com legitimidade. O que a Análise
Existencial frankliana revela é que, além de um inconsciente espiritual, há também um
relacionamento igualmente inconsciente com o divino. Contudo, cabe a cada um nomear
essa instância última perante a qual se é responsável.
Cabe ressaltar que são poucos os estudos que tratam dessa temática e que
realizam tal aproximação entre Frankl e Heidegger. Esta pesquisa buscou tratar essa
aproximação com o máximo cuidado, pois tal contato se deu principalmente por obras
traduzidas para o português. Como consideração preliminar, é importante frisar que o
intento desta tese é o pensamento frankliano, sendo o empreendimento de Heidegger
utilizado como contributo para aquele. Nesse sentido, esta pesquisa buscou, por opção,
aproximar os dois autores, ainda que isso implique em flexibilizar o léxico heideggeriano.
A fim de corroborar a hipótese do Metodenstreit, do qual essas análises do ser humano
são herdeiras, após o título das obras é indicado entre parênteses o ano da primeira
publicação.
17
2 FILOSOFIA E PSICOTERAPIA PARA A FUNDAMENTAÇÃO DE UMA
ANÁLISE EXISTENCIAL
O título deste capítulo toma de empréstimo de Viktor Frankl aquele de seu artigo
publicado na revista Schweizerische Medizinische Wochenschrift, no ano de 1939. A
filosofia sempre esteve presente como área de interesses e foi utilizada por ele para
contribuir com a psicoterapia. O ponto de partida dessa contribuição é o combate ao
psicologismo1 imanente a uma Weltanschauung científico-natural adotada pelas
abordagens psicopatológicas da época ao considerarem o ser humano. O combate será
oportunizado por meio da inserção de uma compreensão antropológica no bojo das
psicoterapias. A partir de uma Análise Existencial, o ser humano passa a ser considerado
para além de sua constituição material.
Esta seção busca mostrar o empreendimento de Frankl na elaboração de sua
Análise Existencial (Existenzanalyse). A parte introdutória dessa compreensão consiste
em apresentar o sistema psiquiátrico de Frankl, situando-o no hall dos sistemas
psicoterapêuticos. O segundo momento traz-se à baila a confrontação entre filosofia e
psicoterapia iniciada por Frankl, buscando evidenciar o intercâmbio dessas duas áreas
para a fundamentação da Existenzanalyse. Por fim, pretende-se compreender, de modo
mais pormenorizado, a Análise Existencial frankliana, por meio da distinção entre a
análise empreendida por Frankl e os demais movimentos que buscam tal intento.
2.1 O EMPREENDIMENTO DE FRANKL
O próprio Viktor Frankl denomina seu sistema psiquiátrico de Logoterapia e
Análise Existencial. O primeiro termo é usado publicamente em 1926, quando o austríaco
ainda fazia parte do grupo de Adler. A segunda expressão - Análise Existencial - passa a
ser usada a partir de 1933. Como justificativa para usar uma expressão complementar,
1
A crítica de Frankl ao psicologismo será tratada no capítulo seguinte. De início cabe ressaltar
que Frankl busca combater todos os sistemas que visam a compreender o ser humano de modo mecânico,
que encontram no princípio homeostático a solução para uma possível satisfação, desconsiderando, assim,
a singularidade oportunizada pela dimensão espiritual. A esse respeito ele defende: “O psicologismo
também concebe o homem como um aparelho e se refere a ‘mecanismos psíquicos’. Atentar, porém,
exclusivamente ao automatismo do aparelho psíquico, significa deixar de perceber a autonomia da
existência espiritual. A vida psíquica dará a impressão de ser um jogo de forças impulsoras de
funcionamento automático, e o homem, um feixe de impulsos. No contexto do psiquismo, faz-se menção a
‘impulsos parciais’ e ‘componentes de impulsos’ como se, com tais componentes, fosse possível obter uma
resultante, a exemplo do que ocorre com o paralelogramo de forças” (FRANKL, 1978, p. 188).
18
Frankl comenta: “nessa época, eu tinha sistematizado meu conjunto de ideias até um
determinado grau” (2010, p. 75; 1990, p. 119). No esboço biográfico de A questão do
sentido em psicoterapia (1981)2, Frankl comenta que essas duas expressões começam a
aparecer em suas publicações científicas somente a partir de 1938 (1990, p.120).
No conjunto dos sistemas psiquiátricos, a Logoterapia de Frankl é considerada
por W. Soucek (1948) como a “terceira escola vienense de psicoterapia”, precedida pela
psicanálise de Freud e pela psicologia individual de Adler. Essa definição de Soucek não
deve levar ao entendimento de uma evolução linear das chamadas “escolas vienenses”,
pois cada uma conserva sua singularidade no que tange aos métodos empregados e à visão
de ser humano adotada, implicando, com isso, distinções. Trata-se de uma classificação
que leva em consideração o desenvolvimento histórico de acordo com o surgimento de
cada uma.
Para Frankl, as escolas predecessoras à sua conservam em comum uma visão
redutora de realidade e dos transtornos psíquicos, fato agravado pela adoção de métodos
incompatíveis com uma compreensão genuína do ser humano. É a partir de um contexto
cronológico que a Logoterapia deve ser compreendida: trata-se de uma postura
historicamente combativa ao psicologismo daquelas que a antecederam.
Compartilham dessa insatisfação em relação às concepções psicopatológicas da
época outros pensadores europeus e norte-americanos, sendo que, nesse último contexto,
a partir de uma classificação mais ampla, a Logoterapia se insere na third force em
psicoterapia, juntamente com as demais abordagens psiquiátricas de base existencial.
Essa terceira força ficou conhecida na Europa como psicologia humanista, termo criado
por Bühler (LUKAS, 1989, p. 20).
Em sentido estrito, o humanismo constitui um movimento intelectual, cultural e
artístico na Europa do século XIV, intimamente ligado à Renascença. Como comenta
Amatuzzi (1989, p. 90), esse movimento precisa ser compreendido em seu contexto,
estando de algum modo relacionado a uma reação ao sobrenaturalismo medieval,
sinônimo de desprezo pelo que é humano. Sob influência desse pensamento, a psicologia
humanista passa a designar uma concepção de mundo que o tem como o próprio centro
de interesses. Assim, existem tantos humanismos quanto concepções de ser humano. Esse
fato caracteriza a psicologia humanista, que se apresenta mais como um movimento
congregador de profissionais da psicologia (ou de outras áreas) que se opõem à abordagem
2
Como indicado na introdução desta pesquisa, o ano apresentado entre parênteses corresponde à
data da primeira publicação da obra que o antecede.
19
behaviorista ou psicanalítica, do que um grupo em defesa da abordagem homogênea, com
um nome fundador. Mesmo por trás de interesses em temas comuns, tais como a
autorrealização, a intencionalidade e a existência, as várias orientações humanistas
apresentam fundamentações teóricas distintas.
Em síntese, a Logoterapia é classificada dentro das categorias da psiquiatria
existencial e da psicologia humanística. Contudo, ao invés de se abrigar à sobra de um
desses sistemas, Frankl faz reparos críticos, tanto ao chamado existencialismo, quanto ao
humanismo, garantindo a distinção de sua abordagem. Para citar uma distinção em
relação a psicologia humanista, em Um sentido para a vida: Psicoterapia e humanismo
(1978), por exemplo, o neuropsiquiatra questiona quanto a psicologia humanista é, de
fato, humanista. A conclusão à qual chega, analisando principalmente o conceito de
encontro, é que ela estaria ligada a uma psicologia do “velho estilo”, pois, mesmo a partir
de novos enfoques de interesses, não se distingue daquelas às quais se opunha, pois vê o
ser humano como uma mônada, sem janelas que lhe permitam a autotranscedência.
Embora seja este o caso mormente dos Estados Unidos, ela [a
Logoterapia] se distingue fundamentalmente, num ponto essencial de
sua conceituação, de todas as técnicas da “psicologia humanística”,
como vem sempre sublinhado por Frankl. A saber, ela não reconhece a
autorrealização como a meta mais alta da existência humana, conforme
foi declarado unanimemente pelos defensores da “psicologia
humanística”, mas contrapõe-lhe a autotranscedência do homem
(LUKAS, 1989, p. 21).
Frankl estabelece que o pináculo da realização pessoal não consiste em uma
postura que almeja satisfazer os próprios interesses, mas naquela que busca ir além desses,
abrindo-se à autotranscedência. É nesse sentido que um dos conceitos mais caros a Frankl,
o da “vontade de sentido”, se desponta. Diferentemente da hierarquia de necessidades
elaborada por Maslow, Frankl postula como interesse primário do ser humano, a
necessidade de sentido. Ele defende a tese de que não é encerrado na individualidade que
o ser humano alcança sua realização, mas sim no trasbordamento de si em direção a algo
ou a alguém a que se dedica. Não é uma vontade de prazer ou poder que impulsiona o ser
humano, mas a busca por um sentido na vida.
Frankl também realiza críticas quanto à classificação da Logoterapia no bojo das
psiquiatrias existenciais, especialmente em virtude da adoção incorreta de termos
filosóficos pela psiquiatria. Para ele, há uma incompreensão por parte dessas psiquiatrias
principalmente em relação à categoria heideggeriana de ser-no-mundo. Para Frankl, o
emprego de conceitos oriundos dessa corrente filosófica não deveria configurar critério
20
para que alguém se denomine um existencialista. “Na maioria dos casos, o conceito
heideggeriano de ser-no-mundo é mal interpretado, na direção de um mero subjetivismo,
como se o ‘mundo’, no qual o ser humano ‘é’, nada mais fosse do que uma mera expressão
de seu si-mesmo” (2013, p. 12).
Os reparos críticos, tanto à psicologia humanista, quanto à psiquiatria existencial
convergem na mesma direção da crítica realizada à psicanálise e à psicologia individual.
Frankl almeja uma compreensão do ser humano que se afaste daquelas as quais chama de
psicologia do “velho estilo”, isto é, aquelas que compreendem o ser humano como sistema
homeostático rígido, sem abertura para o mundo e para as outras dimensões que o
compõem. O mote de tais críticas se dá pelo fato de as abordagens de tratamento do
paciente não levarem em conta a totalidade que o compõem, realizando, assim, uma
secção da realidade.
Essas críticas endereçadas à psicanálise e à psicologia individual não
representam invalidação das descobertas sérias dos grandes pioneiros, mas que cada uma
delas têm sua palavra a dizer (FRANKL, 2005, p. 11). Do mesmo modo, a crítica em
relação à psicologia humanística e à psiquiatria existencialista não significa que Frankl
as negue em seu sistema psiquiátrico. Os “reparos críticos” empregados por ele consistem
mais em uma intercessão a propósito da totalidade do ser humano, distinguindo-se, com
isso, desses sistemas. Ao ressaltar essas distinções, singulariza a Logoterapia enquanto
psicoterapia antropológica. Aliás, essa é uma característica essencial da Logoterapia: tem
o entendimento de que não é uma panaceia, por isso, deve permanecer aberta à
cooperação de outras abordagens e aberta a sua própria evolução (FRANKL, 2005, p. 10).
Essa tentativa de mapeamento do lugar da Logoterapia e Análise Existencial no
hall das abordagens psicoterapêuticas traz à luz a exigência inequívoca da consideração
do ser humano em sua totalidade, além de uma confrontação da psicoterapia com uma
perspectiva mais ampla que lhe sirva de base. A partir do encontro com a filosofia, a
Análise Existencial realizar-se-á como método especulativo disposto a cooperar com uma
visão de ser humano mais genuína.
2.2 FILOSOFIA E PSICOTERAPIA
A primeira obra em que Frankl emprega o termo Análise Existencial
(“Existenzanalyse”) é em Filosofia e psicoterapia para a fundamentação de uma análise
existencial (1939). O intento de Frankl é confrontar essas duas áreas, a fim de verificar a
21
possibilidade de contribuição entre elas. É notório o interesse de Frankl pela filosofia, a
ponto de a considerar, em um esboço autobiográfico, um fio vermelho que permeia todo
seu trabalho. A inserção da filosofia na psicoterapia tem como objetivo a superação do
psicologismo (1990, p. 116). Ao cotejar filosofia e psicoterapia, Frankl (2014, p. 33s)
realiza quatro análises: 1) filosofia como sujeito e psicoterapia como objeto de
consideração; 2) filosofia como objeto e psicoterapia como sujeito; 3) filosofia como
sujeito pragmático e, por fim, 4) psicoterapia como avaliadora da contribuição filosófica
à psicoterapia.
O ponto de partida das análises é a psicopatologia da época, definida como
estudo das causas e da natureza das doenças mentais. A psicopatologia, introduzida ao
mote psiquiátrico no século XIX, equivale à psiquiatria clínica. Enquanto filha de seu
tempo, a psiquiatria figura dentro das ciências naturais e, por isso mesmo, vale-se do
modelo causalista-explicativo como único método viável para a compreensão dos
fenômenos. Contudo, a psicopatologia se desenvolveu enquanto método e disciplina no
início do século XX, com o filósofo Theodule Rebot, empreendedor de uma abordagem
científica que se diferenciava da psicologia experimental e da psicologia genética
(MOREIRA, 2011).
As análises de Frankl se caracterizam como movimento reacionário à
compreensão do ser humano a partir do pathos. A primeira consiste em uma crítica à
possibilidade do conhecimento oriundo da psicopatologia da época. A segunda análise
está em sintonia com um movimento psiquiátrico estimulado por Jaspers. Frankl se
questiona sobre a possibilidade de uma psicopatologia a partir de uma “visão de mundo”
(Weltanschauung) científico-natural. Isso equivale a refletir sobre a possibilidade de uma
psicoterapia antropológica que leve em consideração a totalidade do ser humano. É nesse
sentido que, em um primeiro momento, a filosofia se torna sujeito da psicoterapia. Em
decorrência da crítica à epistemologia psicoterapêutica, a segunda análise pretende
fundamentar, a partir de uma compreensão filosófica, a psicoterapia. A filosofia se torna,
assim, objeto da psicoterapia. A terceira e quarta análises serão tratadas neste capítulo
conjuntamente, pois correspondem a uma temática comum, a saber: a possibilidade de
uma perspectiva ética na psicopatologia.
Desde o primeiro uso público do termo por Frankl, em 1926, a Logoterapia deu
passos evolutivos no desenvolvimento enquanto terapia. Principalmente quando práticas
fenomenológicas revelaram uma psicoterapia com bases mais amplas do que as
oportunizadas pela psicopatologia de bases naturais. É nesse aspecto que a filosofia se
22
insere, propiciando à Logoterapia uma abordagem com base fenomenológica, entendida
como Análise Existencial. A análise frankliana se estrutura a partir da compreensão da
existência em termos amplos, elaborando uma psicopatologia coerente com sua teoria da
personalidade. Dessa forma, será possível compreender o intercâmbio entre filosofia e
psicoterapia na perspectiva frankliana.
2.2.1 A filosofia como sujeito da psicoterapia
A análise realizada por Frankl em Filosofia e psicoterapia para a
fundamentação de uma análise existencial (1939) tem por objetivo imputar à filosofia o
papel de sujeito da psicoterapia a fim de possibilitar a crítica do conhecimento em
psicopatologia. Segundo o austríaco, ao adotar um modelo causalista-explicativo na
compreensão dos fenômenos humanos, as ciências da alma se tornam psicologizantes.
Em tal crítica, Frankl parte de dois grandes sistemas psiquiátricos da época – a psicanálise
e a psicologia individual, pois considera que, nessas duas perspectivas tradicionais em
psiquiatria, a compreensão do ser humano em sua integralidade não seria satisfeita, pois,
traspondo para o plano das projeções, o psicologismo ofereceria uma imagem parcial da
realidade humana. Ambas incorreriam no erro de reduzirem uma imagem abrangente da
realidade a uma realidade patológica (2014, 34s).
Frankl (2014, p. 34) compreende que, enquanto a psicanálise explica a neurose
como o produto de um processo de recalque - nesse sentido ela reduziria tudo à energia
pulsional derradeira, a libido -, a psicologia individual, ao lado das aspirações sexuais,
considera os sintomas das neuroses como meios para fins. Nessa segunda perspectiva há
uma tentativa de desoneração da responsabilidade por algo. Ao assumir uma postura
crítica diante dessas concepções epistemológicas, Frankl questiona se esses sistemas, a
partir da visão rudimentar e esquematizante da qual estão imbuídos, possuiriam condições
de oferecer uma imagem abrangente da realidade psíquica desde seus pressupostos e
fundamentos.
Tomada por objeto da análise filosófica, exige-se da psicoterapia que
compreenda o ser humano para além unilateralidade. Frankl traz à baila o fato de que o
ser humano, incluído o psiquicamente doente, deve ser compreendido em sua totalidade,
pois o humano não é apenas algo psiquicamente doente, mas uma unidade corpóreo-
psíquico-espiritual, devendo essa unidade ser considerada no e como modo de tratamento.
Ao desconsiderar o ser humano em sua integralidade constitucional, a psicanálise e a
23
psicologia individual dissolvem a dimensão existencial expressa pela tríade Eros, Logos
e Ethos, incorrendo no erro psicologista.
De modo implícito à crítica epistemológica está a crítica quanto ao método
empregado por esses sistemas psiquiátricos. Frankl defende que a prática clínica sempre
é, ainda que de modo inconsciente, influenciada e determinada por uma concepção
antropológica (2014, p. 58). Em contraposição a uma visão patológica do ser humano, ele
busca fornecer as bases para o aclaramento das estruturas que tornem visíveis o que é o
ser humano. Somente a partir de uma clarificação adequada sobre o objeto de estudo –
que também implica a adoção de um método adequado - é que se pode adotar um método
próprio para o tratamento das neuroses. Ao visar a totalidade do ser humano, essa postura
demonstra por si, uma tendência filosófica. Nesse sentido, a filosofia, como sujeito da
análise do conhecimento psicoterapêutico, revela a incompatibilidade do modelo positivo
adotado pelas ciências da alma na compreensão de seu objeto.
Essa crítica se torna imprescindível, pois, ao refletir sobre o modus operandi da
psicoterapia, é trazida à luz a apreensão prévia da regionalidade adotada por aqueles
sistemas psiquiátricos, chamando a atenção para o modo imediato contido na
consideração de seu objeto e a cegueira frente a totalidade do ser humano. Nesse viés, a
perspectiva de Frankl parece estar em consonância com aquela trazida alguns anos antes
por Heidegger, em Ser e Tempo (1927).
No §3 dessa obra, o filósofo de Messkirch apresenta uma hierarquia que garante
o primado ontológico da questão do ser em relação as ciências positivas (ônticas). Conclui
que por ser mais originário do que a pesquisa ôntica das ciências positivas, o
questionamento ontológico deve ser levado em conta em tais perspectivas. É o primado
ontológico a condição de possibilidade tanto do esclarecimento do ser de um ente em
determinada região quanto para o próprio procedimento inerente às ciências positivas.
Com essa hierarquia, Heidegger não pretende negar a cientificidade ou a própria
possibilidade do conhecimento positivo. O problema em que essas ciências incorreriam
reside no interesse por uma análise exclusivamente objetiva. Por sua peculiaridade, as
ciências positivas não se perguntam pela totalidade de seu próprio domínio.
O todo do ente pode se tornar o campo em que se põem-em-liberdade e
se delimitam determinados domínios-de-coisa, segundo seus diversos
âmbitos. Domínios-de-coisa que de sua parte, por exemplo, história,
natureza, espaço, vida, Dasein, linguagem etc. podem ser tematizados
como objectos (Gegenständen) das correspondentes investigações
científicas. A pesquisa científica efetua, ingênua e toscamente, a
demarcação e a primeira fixação dos domínios-de-coisa. A elaboração
24
do domínio em suas estruturas-fundamentais já é levada a cabo de certo
modo pela experiência e pela interpretação pré-científica do âmbito-do-
ser dentro do qual o domínio-de-coisa é ele mesmo delimitado. Os
“conceitos-fundamentais” que surgem dessa maneira permanecem de
imediato os fios-condutores para a primeira abertura concreta do
domínio. Mesmo que o peso da pesquisa resida sempre nessa
positividade, seu verdadeiro progresso, porém, não se efetua tanto em
juntar resultados e guarda-los em “compêndios” quanto, a partir de tal
crescente conhecimento das coisas, reagir no mais das vezes se
contrapondo a eles e perguntando pelas constituições-fundamentais do
domínio correspondente (HEIDEGGER, 2012, p. 51).
Heidegger parece evidenciar um dilema inerente às ciências positivas. Para se
distinguir de outros domínios, tais ciências pressupõem a delimitação da constituição de
seu campo de atuação. Contudo, a constituição dessa porção de entes, denominada de
domínio-de-coisa, parece inacessível ao cientista, pois o todo desse campo posto em
liberdade não significa considerar a sua unidade. A ciência positiva, ao não se perguntar
pelas constituições-fundamentais do domínio que a ela própria corresponde, corre o risco
de se tornar um aglomerado de práticas e conceitos.
A partir de Heidegger, Duarte (2004) ressalta a distinção entre a peculiaridade
filosófica e a científica. As ciências positivas teriam por tema os entes em sua diversidade
a partir do que previamente foi manifestado ou compreendido do ser-aí. Já a filosofia não
seria caracterizada como a “ciência dos entes”, mas como a “ciência do ser”. É
interpretação teórico-conceitual do ser, de suas estruturas e possibilidades. Em síntese, a
distinção categórica de Heidegger entre filosofia e ciência natural consiste no fato de que
a primeira é investigação ontológica, questionamento do ser e, a segunda, enquanto
investigação ôntica, é investigação do ente.
Essa diferenciação não significa que a filosofia, enquanto perguntar originário,
tenha a missão de meramente complementar as ciências ônticas, questionando suas
perspectivas epistemológicas e metodológicas como se essas ciências não pudessem fazer
por si. A contribuição da filosofia às ciências positivas é a de oferecer uma interpretação
clarificadora e sistemática do ser dos entes com os quais se ocupam. Isso porque as
ciências positivas encontram seu limite naquilo mesmo que as possibilita. A positividade
de um domínio de entes específico inviabiliza atingir o ente em seu todo, entretanto
somente nessa inviabilidade a ciência pode pesquisar e progredir.
Com respeito às ciências que tomam o homem como seu objeto de
análise, como a psicologia, a psiquiatria, a psicopatologia, a
psicossomática, a antropologia etc., uma das possíveis conseqüências
derivadas da cegueira ontológica apontada por Heidegger, isto é, do fato
de elas não reconhecerem os fundamentos ontológicos que já estão
25
sempre em operação quando os cientistas procedem à análise do ente
em questão, é que tais ciências acabam por conceber o homem da
mesma maneira como procederiam se analisassem um animal, as
plantas ou qualquer outro ente. Em outras palavras, elas o analisam
tomando-o como um ser meramente presente, que ocorre no mundo e
que é dotado de tais e tais propriedades determinadas, que os cientistas
buscam descobrir e enunciar em um sistema de proposições
verdadeiras, passíveis de obter comprovação. Não é por acaso que tais
ciências caracterizam o acontecente humano (Loparic) como um ente
determinado por relações causais, passível de mensuração, previsão e
manipulação, chegando-se até ao ponto em que “não se pergunta mais
quem é e como é o homem; em vez disso, ele é representado a priori a
partir da manipulabilidade técnica do mundo” (Heidegger 1987, p. 185;
tradução brasileira p. 167) (DUARTE, 2004, p. 40).
O que está em questão é o fato de que o modo de proceder a análise do ser
humano3 deve ser distinto daquele utilizado com os demais entes. O modo de acesso à
compreensão desse “acontecente” não se dá a partir de relações causais, mensurações e
ou previsões, mas por um método que se caracteriza pela constante abertura. Na
perspectiva trazida por Duarte, destacam-se ainda duas categorias na consideração da
possibilidade de uma antropologia existencial. Trata-se da distinção na consideração do
ser humano compreendido a partir da categoria de objeto científico e da categoria de
presença. Heidegger avalia que as ciências que tematizam o ser humano, tais como a
antropologia, psiquiatria, psicologia, dentre outras, estão contaminadas por uma
“cegueira ontológica”, pois consideram o ser humano como algo simplesmente presente
(Vorhandenheit), isto é, como totalidade daquilo que é verificável de acordo com a
experiência (HEIDEGGER, 2009, p. 192). Portanto, a crítica em si não é por se considerar
o ser humano como objeto de análise (Objekt), mas por considerá-lo como as demais
coisas, passível de manipulabilidade.
Essas duas categorias - Vorhandenheit e Objekt- estão fundadas na estrutura do
ser-no-mundo, pois esse dado, o de ser-em-o-mundo, é considerado o a priori de qualquer
objetivação possível. Contudo, a categoria de presença (Vorhandenheit) desloca o quadro
conceitual epistemológico para uma perspectiva que pensa a relação entre o ser humano
e os demais entes a partir do isolamento, isto é, como algo que está simplesmente
presente. Como dito, a ciência encontra na objetividade o que a possibilita, mas também
o que a limita. Na compreensão de Duarte, Heidegger não pensa a atividade positiva das
ciências como algo nos termos de uma apreensão teórica da mera presença de um ente
3
Rigorosamente, o termo apropriado para Heidegger é o ente humano, contudo, nesta tese, optou-
se por traduzir na forma ordinária.
26
subsistente, pois a consequência dessa consideração é a inviabilidade de uma ciência
ôntica existencialmente fundada, como aquela introduzida no §69b. O que está em
questão, é a possibilidade de uma objetividade não coisificante do ser humano.
À essência da pessoa pertence o seu existir somente na execução dos
atos intencionais; e, assim, ela, por essência, não é objeto. Toda
objetivação psíquica e, portanto, toda apreensão dos atos como algo
psíquico é identicamente uma despersonalização (HEIDEGGER, 2012,
p. 155).
Isso equivale a conferir àquelas ciências positivas, que têm o ser humano como
objeto, uma abordagem que considere o seu caráter existencial. Não se trata da
consideração de duas ciências, mas de duas perspectivas distintas na consideração
possível da ciência. Essas abordagens são expressas por Heidegger no §69b. Trata-se dos
conceitos existenciário e lógico de ciência. Enquanto a perspectiva lógica entende a
ciência como sistema de proposições válidas, a partir de seus resultados, a perspectiva
existenciária compreende a ciência como possibilidade de um comportamento teórico
enquanto ser-no-mundo.
Permite a observação detida do ente e garante que ele se manifeste em
seu aspecto, isto é, nas suas qualidades e propriedades passíveis de
predicação. A partir de então, o ente não é mais encontrado como
instrumento disponível, isto é, em seu caráter ontológico de
manualidade, mas como coisa corpórea ou como pontos de massa,
podendo tornar-se tema de proposições teóricas (DUARTE, 2004, p.
44).
No §5 de Ser e Tempo, Heidegger aponta como importante para a análise do ser
humano, não só a pergunta ontológica que põe em liberdade determinada região de entes,
o perguntar originário do Dasein, mas também uma expressa apropriação e segurança do
correto modo-de-acesso ao ser humano. Esse acesso não deve impor categorias
previamente delineadas coercitivamente, a partir de uma dada concepção de ser humano,
mas “o modo-de-acesso e o modo-de-interpretação devem ser escolhidos de forma que
esse ente possa se mostrar em si mesmo a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 2012, p.
73). Heidegger elege a mediana cotidianidade como momento expressivo para pôr em
relevo as estruturas essenciais do modo-de-ser do ser humano.
A cotidianidade é o ponto de partida para uma análise do ser humano, mas não
deve se limitar a ela, deve buscar, a partir dessa, o modo-de-ser mais fundamental. Não
se trata de um perguntar pelo ente como tal, mas pelo sentido do ser geral, pela
manifestação do ser possível (HEIDEGGER, 2009, p. 158). A analítica existenciária do
Dasein oportuniza uma consideração do ser humano, não apenas em sua facticidade, mas
27
também põe em relevo, por meio de uma estrutura essencial do ser-em-o-mundo, as
possibilidades desse acontecente. Logo se percebe que as ciências do homem são
vocacionadas a uma perspectiva existencial, por isso mesmo, ao se furtar dela, a ciência
corre o risco de sucumbir a uma positividade reducionista. Inserido nessa discussão,
Heidegger, em Seminários de Zollikon (1987), denuncia:
Até agora, a psicologia, a antropologia, a psicopatologia consideram o
homem como objeto num sentido amplo, como algo simplesmente
presente, como uma área do ente, como a totalidade do que é verificável
no ser humano de acordo com a experiência.
Com isso negligencia-se a pergunta de como e o que é o homem como
homem e o fato de que, na verdade, ele se relaciona fundamentalmente
de acordo com seu ser com outros entes e consigo mesmo, e de que isso,
por sua vez, só é possível por ele compreender o ser (HEIDEGGER,
2009, p. 193).
Conforme essa sintomática concepção das ciências do homem e da busca por um
método que atenda as peculiaridades desse objeto, persegue-se uma compreensão mais
originária do ser humano. Tal busca, contudo, não se realiza com a colocação de um novo
paradigma. Ela se manifesta, de modo concreto, na destruição histórico-espiritual do que
foi herdado das ciências naturais, ou seja, pela adoção de uma abordagem mais
fundacional, em que o ser humano não é algo simplesmente presente ou verificável, o
resultado de uma série de coisas, mas o contrário: o iniciante de uma série de coisas, que
é interpelado, desafiado e está sempre em movimento na direção de suas questões de
sentido. É um indivíduo inserido no mundo e na história.
O embate travado por Frankl do interior das ciências da alma reside justamente
no fato de que, por necessidade epistemológica, essas ciências tendem a buscar uma
objetivação do ser humano. Em vez de reagirem na direção de uma imagem abrangente,
sucumbem na direção oposta. No caso da psicanálise e da psicologia individual, Frankl
revela a despersonalização oriunda do acento dado à realidade patológica. De modo
contrário a essas concepções, ao considerar o ser humano enquanto ser que existe, Frankl
elabora uma antropologia com vistas a uma ciência existencialmente fundada.
Como defende Längle (2014/2015, p. 67), a Logoterapia, ao surgir, percebe que
as causas das desordens psíquicas são muito mais amplas que os efeitos que produzem.
As causas da falta de sentido, por exemplo, não são meramente oriundas de uma
insatisfação libidinal ou de poder, mas se estendem pela dimensão existencial. Diante
disso, a Logoterapia é obrigada, por sua própria prática, a desenvolver métodos adicionais
àqueles tradicionais em psicopatologia, por exemplo, da homeostase. Essa percepção
28
acarreta na fundação de uma nova psicoterapia de base fenomenológica, a Análise
Existencial (Existenzanalyse).
Aquela distinção realizada por Heidegger no §3 de Ser e Tempo contribui, do
ponto de vista heurístico, para pensar o desenvolvimento interno da Logoterapia. Como
dito anteriormente, o sistema psiquiátrico de Frankl é definido como Logoterapia e
Análise Existencial, embora esses termos sejam tratados como sinônimo pelos
logoterapeutas. A criação e inserção, em1938, da Existenzanalyse no bojo da prática
clínica representa uma resposta a insuficiência teórico-conceitual na psicoterapia,
instaurando uma preocupação com a compreensão ontológica do ser humano (FRANKL,
1976, p. 43). Nesse sentido, a Logoterapia, como ciência ôntica, representa uma
perspectiva mais descritiva da teoria e do método terapêutico. A análise existencial por
sua vez, vocacionada à perspectiva ontológica, é mais indicativa da direção antropológica
da teoria. Essas duas perspectivas se coadunam a fim de oferecer uma consideração
adequada do objeto e do método nas ciências da alma. Isso porque o ser humano não é
algo simplesmente presente. Reduzir seu estatuto existencial à mera subsistência é
promover a sua despersonalização.
2.2.2 A psicoterapia como sujeito da consideração teórica da filosofia
Enquanto na primeira análise, a filosofia se tornou sujeito da crítica ao
conhecimento psicopatológico, nesta segunda análise a filosofia é tomada como objeto
pela psicoterapia. A intenção de Frankl é de que a filosofia contribua com a
fundamentação da visão mais abrangente da vida psíquica. A análise à qual Frankl se
dedica é a da possibilidade de uma psicopatologia que leve em consideração a totalidade
do ser humano, mesmo diante de uma Weltanschauung científico-natural. A
psicopatologia da época investigava as causas e natureza das doenças mentais de modo
restritivo, no sentido de que não se perguntava para além da doença. A partir do método
fenomenológico, psiquiatras procuram dar à psicopatologia novos influxos, sendo que a
categoria de mundo4 se torna central na compreensão do ser humano.
O mundo representa uma referência primária da experiência imediata. É antes
de tudo o mundo do indivíduo humano, a dimensão das significações vividas por ele em
sua unicidade a partir da familiaridade. O mundo é o lugar da experiência, não só de si,
4
A categoria de “mundo” será trabalhada de modo mais detido no terceiro capítulo desta tese.
29
mas também dos outros, por meio da historicidade e intersubjetividade. Frankl afirma que
essa categoria, importante na análise do ser humano, especialmente do doente, é
desconsiderada pela psicopatologia. E denuncia: “Quem recusa a visão de mundo de um
neurótico eo ipso, fala sem entendê-lo, por mais que se empenhe em ‘reconduzir’ essa
visão de mundo a complexos ou sentimentos de inferioridade” (FRANKL, 2014, p. 36).
O empenho de Frankl em possibilitar a inserção de uma visão antropológica
abrangente na Weltanschauung redutora corresponde a uma forma de questionar e de
compreender o neurótico em sua totalidade. Essa perspectiva se efetiva por meio de uma
distinção entre os fenômenos e os sintomas das neuroses, buscando despertar a
consciência do doente para a importância de seu modo de ser-em-o-mundo. Frankl
considera que o desinteresse pela “visão de mundo” do neurótico leva à sua
incompreensão, pois há vezes em que a neurose surge pelo fato de que a categoria de
mundo - correspondente às suas perspectivas e possibilidades de uma existência singular
– mostra-se frustrada, e não necessariamente por uma causa fisiológica e ou material.
Assim, mais do que reconduzir aos complexos ou sentimentos de inferioridade, a “visão
de mundo” do neurótico contribui para descrever sua experiência de mundo e as
condições de existência ao modo singular como se dão.
Ao colocar em questão a possibilidade de uma “psicopatologia da visão de
mundo”, em Filosofia e psicoterapia para a fundamentação de uma análise existencial
(1939), o estudioso parece estar se perguntando sobre quais condições uma psicopatologia
da visão de mundo se torna possível para a psicoterapia. Com isso, Frankl deixa claro seu
diálogo com a tradição que almeja compreender o ser humano em termos mais amplos.
Embora ele não explicite a quem faz referência, o contexto deixa transparecer. Mesmo
não sendo objetivo deste capítulo, faz-se necessário adentrar um pouco mais, ainda que
de modo incipiente, no contexto em que Frankl se insere, a fim de compreender a busca
por legitimar uma psicoterapia existencial, a da visão de mundo.
Karl Jaspers, com quem Frankl manteve contato, publicou, em 1913, a obra
Psicopatologia Geral, dando início a um movimento que vislumbrava a psicopatologia
como campo distinto daquele que, influenciado por uma psicologia e psiquiatria com
ambições científicas, coadunavam esforços em favor de uma abordagem somática dos
distúrbios mentais. Rodrigues (2005, p. 755) chama a atenção para o momento em que a
obra é escrita. O tempo de Jaspers é marcado pelo Metodenstreit, debate filosófico com
o objetivo de definir a metodologia a ser empregada nas ciências humanas.
30
Jaspers tem um pensamento crítico em relação à psicologia objetiva, que, ao se
dedicar a elementos sensíveis e mensuráveis, permite que o psíquico fique excluído. Ele
também faz advertências a uma tendência subjetiva em psicologia predisposta a fornecer
informações que não podem ser caracterizadas como científicas, já que, ao se restringir
aos fenômenos psíquicos, não os associam às causas externas, como faz a psicologia
objetiva, mas conduzem os fenômenos para a empatia.
Para Jaspers, a tarefa inicial da “psicologia subjetiva” deveria consistir
precisamente em distinguir os fenômenos subjetivos, descrevê-los e
nomeá-los. Somente assim, a abordagem à subjetividade deixaria de ser
um mero compartilhamento de experiência para se tornar conhecimento
sistematizável, comunicável e testável. Isto caracterizaria a própria
fenomenologia, como concebia. Nesse texto, realçando as poucas e
desarticuladas ações neste sentido, Jaspers sugere a psicopatologia
descritiva ou fenomenologia como um programa frutífero e convoca às
explorações na área (RODRIGUES, 2005, p. 758).
Embora Jaspers sugira à psicopatologia um papel descritivo, isso não
corresponde a mera análise, enumeração e sistematização de modo consciente dos
fenômenos. Essa compreensão bastante difundida sobre sua proposta gera uma
incompreensão e insuficiência de seu método. Ainda que alguns profissionais se
satisfaçam e legitimem a apreensão imediata e intuitiva dos fenômenos psicológicos, estes
não proveriam conhecimento adequado sobre o ser humano. Nesse sentido, faz-se
necessária a elucidação trazida por Rodrigues da compreensão jasperiana de empatia.
Neste sentido, uma importante distinção que se precisa reconhecer é a
feita por Jaspers – tal qual por Weber – entre “empatia” e “compreensão
empática”. Enquanto a primeira consistiria numa “compreensão da pura
experiência” (algo como dizer: “Uhm... entendo o que você está
passando”), não sendo derivada de uma captura deliberada nem do
processamento consciente e programado das informações provindas da
interação entre os indivíduos; a última seria a “compreensão da
experiência tornada cognoscível” – delimitada, descrita e nomeada
(Walker, 1995b) (RODRIGUES, 2005, p. 757).
Apesar de Psicopatologia Geral (1913) não se constituir como uma obra de
psicopatologia fenomenológica propriamente, é a obra de Jaspers mais difundida nessa
perspectiva. O tema central da obra é o ser humano em sua totalidade psiquicamente
determinado. Buscando integrar as ciências do espírito e as ciências da natureza, Jaspers
desenvolve o modelo descritivo-compreensivo, que lançará as bases para uma
psicopatologia fenomenológica.
O objeto da psicopatologia é o acontecer psíquico realmente consciente.
Queremos saber o que os homens vivenciam e como o fazem.
Pretendemos conhecer a envergadura das realidades psíquicas. E não
queremos investigar apenas as vivências humanas em si, mas também
31
as condições e causas de que dependem os nexos em que se estruturam,
as relações em que se encontram e os modos em que, de alguma
maneira, se exteriorizam objetivamente (JASPERS, 1987, p. 13).
Jaspers defende que, por se tratar de um modelo compreensivo, abarcando tanto
o método tradicional, quanto o fenomenológico – entendido prioritariamente como
descritivo – o acontecer psíquico pode ser preservado e não se converter a uma mera
fisiologia, o que também não excluiria as limitações desse método. Ele considera que o
ser humano é distinto dos animais, pois o psíquico e o espiritual atuam sobre as
enfermidades psíquicas. Nesse sentido, o fenomenológico corresponderia a análise
subjetiva do mundo do paciente, descrevendo seu funcionamento, suas manifestações e
ações.
Em 1919, Jasper publica Psychopathologie der Weltanschauung, empreitada
analisada por Heidegger em Notas sobre a “Psicologia das visões de mundo” de Karl
Jaspers (1919/1921). O filósofo de Messkirch considera o esforço de Jaspers em elaborar
uma psicologia disposta a compreender os limites da vida psíquica como um caminho
válido para dar suporte a apreensão da totalidade psíquica, contribuindo para tornar
visível quem é o ser humano.
Este trazer-à-compreensão e tornar-visível, pela observação, as forças
de fundo e as tendências da vida psíquico-espiritual como um todo, ao
modo como é conduzido aqui – e sem ser avaliado segundo seu objetivo
próprio -, já traz consigo um significado cognitivo estimulante tanto
para a psiquiatria como para as ciências do espírito, na medida em que
enriquece a compreensão psicológica “natural”, tornando-a mais aberta
e mais flexível, mais sensível às nuanças, às dimensões e distinções dos
níveis do ser psíquico (HEIDEGGER, 2008, p. 12).
Para além dessa consideração, as “notas” de Heidegger lançam uma reflexão
mais radical sobre o método empregado por Jaspers. Considera que há a necessidade de
um “método originariamente próprio, que não é imposto de fora” (HEIDEGGER, 2008,
p. 20). Nesse sentido, Heidegger parece apontar para a incompatibilidade do método das
ciências naturais, conservado por Jaspers em seu modelo descritivo-compreensivo. Pois
ainda que haja uma preocupação em oferecer uma compreensão para além do modelo
causalista-explicativo, a descrição dos fenômenos vividos é realizada por meio de
parâmetros externos, suscetíveis a recortes e compreensões generalistas, de acordo com
os padrões científicos.
Além da crítica à abordagem objetiva do método de Jaspers, Heidegger faz uma
importante consideração sobre a dimensão subjetiva daquele método. Para ele, a mera
observação da descrição não assegura uma concepção originária, visto que a observação
32
sempre se efetiva por uma concepção prévia. Embora a intenção de Jaspers seja a de
elaborar uma abordagem descritiva, pré-teórica e livre de pressuposições, ele próprio
sabia das limitações de seu método. Diante da multiplicidade de recortes possíveis sobre
um mesmo fenômeno, Heidegger chama a atenção para a impossibilidade de uma
observação neutra. Ao adotar uma postura para a análise de um fenômeno, essa poderá
ser a científica, o que não asseguraria uma adequada compreensão do fenômeno.
Heidegger compreende que todo ato de visualização vive dentro de uma
determinada orientação. As ciências, ao se fecharem em seus estatutos, correm o risco de
ficar na imediatidade do que observam, não buscando sua originariedade. A ideia de
originariedade para Heidegger não é considerada como algo supra histórico, mas passa
por uma crítica própria, ocasionada pelos próprios fatos e pela história (HEIDEGGER,
2008, p. 14). O todo da psicologia, ou mesmo do ser humano, por exemplo, sempre opera
com um certo aspecto de fundo. Heidegger considera importante a investigação sobre a
concepção prévia subjacente ao se buscar a totalidade.
O que importa é muito mais destacar de modo ainda mais nítido essas
concepções prévias, avançar aprofundando a motivação, o sentido e o
alcance dos direcionamentos tomados, trazer à consciência suas
exigências de sentido talvez não expressas e propriamente co-
compreendidas, julgando-as finalmente segundo a relevância e
originariedade filosófica de suas intenções imanentes (HEIDEGGER,
2008, p. 19).
Com essa consideração, Heidegger aponta para uma questão fundamental. O
problema relacionado com as concepções prévias que direcionam as pesquisas na
compreensão do toda da vida psíquica como um problema de método. Nesse sentido
Heidegger menciona um “fracasso filosófico” de Jaspers. Justamente pelo fato de que, na
compreensão de Heidegger, Jaspers buscou tomar posse do fenômeno da existência a
partir de concepções prévias advindas do âmbito científico (HEIDEGGER, 2008, p. 26).
Assim, tanto a perspectiva de Jaspers quanto as críticas de Heidegger marcarão
o início de uma contribuição histórica na discussão em prol da elaboração de uma
antropologia fenomenologicamente fundamentada em psicoterapia. Além de Frankl, a
perspectiva inaugurada por Jaspers seduzirá outros psiquiatras. Como L. Binswanger,
que, insatisfeito com a compreensão científica da psiquiatria da época, buscou se apartar
da psicanálise durante o IV Congresso Internacional de Psicoterapia, ocorrido em 1958
em Barcelona. A partir de então, Binswanger desenvolveu um método contraposto ao
psiquiátrico tradicional. Surgiu, assim, a análise existencial (Daseinsanalyse). Tanto
33
Jaspers quanto Binswanger buscavam especificar a psicopatologia como área distinta das
ciências da natureza.
Na apropriação que Binswanger faz do pensamento heideggeriano, para
aplicá-lo à sua Daseinsanalyse no campo da psicopatologia, o emprego
do método fenomenológico não visa apenas descrever as vivências
mórbidas e os encadeamentos psíquicos ou naturais que levaram a seu
surgimento – como faz Jaspers – mas, antes, de apreender as condições
particulares de existência de um indivíduo singular, em relação aos
existenciais descritos por Heidegger no plano ontológico. O método
psicopatológico de Binswanger visa descrever a experiência de mundo
e as condições de existência tal como estas se dão nas circunstâncias
particulares de cada Dasein. Trata-se de uma abordagem
fenomenológica, no sentido de que depende da abertura à experiência
concreta do outro, mas, ao mesmo tempo, volta-se às estruturas priori
e transcendentais da existência, visando situar a organização específica
daquele indivíduo, enquanto Dasein, face a seus existenciais. Trata-se,
portanto, de descrever o mundo a partir da perspectiva e das
possibilidades daquela existência singular (PEREIRA, M., 2001, p.
140).
O criador da Daseinsanalyse, ao empreender a compreensão do ser humano a
partir da ontologia fundamental de Heidegger, tem em vista a totalidade do humano e é a
ela que ele se dirige. Seu intento psiquiátrico migra de um projeto científico com vistas à
compreensão da psyché doente e dos transtornos que dela decorrem para aquela
totalidade. Ao caracterizar o ser humano sob a ótica das suas possibilidades de ser, a
presença perturbada é compreendida, por Binswanger, como extravio ou malogro da
realização ontológica. Logo, aquele que sofre uma perturbação psíquica, apreende, dentre
suas várias possibilidades, apenas uma categoria como fio-condutor em seu projeto de
ser-no-mundo.
Outro psiquiatra que se insere nessa discussão, contribuindo com a antropologia
psiquiátrica, é M. Boss com sua análise existencial (Daseinsanalyse). Estimulado
inicialmente pelo trabalho de Binswanger, Boss se aproxima de Heidegger e de sua
analítica do Dasein, principalmente por meio dos seminários que ocorreram em Zollikon.
Confiante no enriquecimento da psicopatologia para além da cisão sujeito-objeto, Boss a
compreende como uma abordagem do conjunto dos fenômenos normais e patológicos do
existir humano.
Com base no existencial ser-com-o-outro a Daseinsanalytik de
Heidegger, retomada por Boss, entende a existência humana como uma
abertura estendida e transparente, tanto no sentido temporal quanto
espacial, para tudo aquilo que vem ao seu encontro no mundo. A
essência do existir humano é ser esta “clareira”, que consiste meramente
em um poder “ver”, experienciar, o que vem ao seu encontro
(MOREIRA, 2011, p. 178).
34
Ao compreender a existência do ser humano enquanto abertura, Boss contribui
com a perspectiva desde um ser humano sadio, distinta daquela cujo foco era o meramente
patológico. Ao considerar como constituição fundamental do ser humano a sua relação
de abertura livre de seu mundo, o modo de ser doente se caracteriza como o malogro
dessa abertura. Trata-se de uma limitação na compreensão das possibilidades. A
perspectiva de Boss contribui com uma mudança de paradigma, pois o modo de ser doente
só poderá ser compreendido a partir do modo de ser sadio.
Nesse debate, Frankl intenta contribuir com a compreensão do ser humano e com
a prática clínica. Ele chama a atenção para a importância em considerar a “visão de
mundo” do neurótico em seu tratamento. Frankl compreende que é a partir do logos que
a “visão de mundo” neurótica poderá ser contraposta de modo crítico. Contudo, essa
postura crítica depende do empenho do psiquiatra em não adotar uma posição confortável,
concluindo, através do surgimento de um ato, a validade de seu conteúdo. A postura
psicologista se efetiva quando o psiquiatra se refugia em posições confortáveis, pré-
estabelecidas, que lhe dão segurança em um diagnóstico de acordo com padrões gerais e
científicos.
Para Frankl, é muito mais confortável desmascarar uma expressão religiosa, por
exemplo, encaminhando-a para uma questão sexual, do que se empenhar em sair do plano
material e debater filosoficamente na dimensão do logos com o paciente. Nesse sentido
ele afirma:
Conhecemos há décadas a postura espiritual que nunca procura
empreender outra coisa senão desmascaramentos, que jamais tem em
vista senão desbaratar, que sempre se restringe ou está pronta a
apresentar tudo o que há de espiritual e criativo como “não sendo em
última instância senão mera” sexualidade ou aspiração de poder ou
coisas do gênero; aquela corrente de pesquisa que vê nada de próprio,
mas sempre, por fim, apenas algo que se encontra “por detrás daí”:
libido, sentimentos de inferioridade, aspiração à validade etc. Como se,
pelo fato de em algum momento ou em algum lugar (em tempos de
crítica cultural ou em casos de neurose) uma realização ou configuração
psíquica qualquer ter se mostrado como máscara ou como meio para
fins, essa realização ou configuração nunca pudessem ser autênticas,
imediatas e originárias (FRANKL, 2014, p. 37).
Para Frankl, tanto a psicanálise quanto a psicologia individual são símbolos da
representação de uma psicopatologia tradicional. Na tentativa de desmascarar os
fenômenos espirituais, por considerá-los como não sendo essenciais e genuínos,
promovem a despersonalização do ser humano. Diante do descontentamento com essa
35
perspectiva, Frankl defenderá que a psicoterapia deve garantir o respeito pela autarquia
de tudo o que há de espiritual, evitando sobreposições psicologistas pelo psicoterapeuta.
Nesse sentido, a psicopatologia da visão de mundo se torna possível quando o
psicoterapeuta não reduz o sujeito ao fenômeno, nem lhe impõe uma visão de mundo
geral, distinta da apresentada, pois essas atitudes corresponderiam a uma prática
psicologista. Ele defende que, na prática clínica, a “visão de mundo” que está em questão
é a pessoal, a particular, a do doente. “E diante desse elemento pessoal, único, diante
desse elemento concretamente espiritual, uma postura humanista do médico precisará
assumir com maior razão ainda a posição contraposta com atenção, discrição, tolerância
e correção” (FRANKL, 2014, p. 38). Essa postura do psicoterapeuta implica em não
esquecer que o doente é alguém que sofre, por isso o melhor a fazer é reconfortá-lo,
corrigir sua “visão de mundo” obnubilada, em vez de promover a elaboração de hipóteses
sedutoras, mas pouco úteis na prática clínica cotidiana.
2.2.3 Filosofia como instrumento pragmático da psicoterapia
A confrontação antecedente entre filosofia e psicoterapia desvelou a necessidade
de uma análise adequada do ser humano por parte das ciências da alma. Isso implica
considerar que tal análise não se reduza a mera descrição a partir de parâmetros gerais,
mas aluda a uma compreensão mais atenta dos fenômenos subjetivos, preservando as
manifestação da pessoa espiritual em sua dimensão originária. Ao postular a necessidade
de colocar a “visão de mundo” pessoal do neurótico em consideração, Frankl tem por
objetivo contrapor uma visão obnubilada com uma visão saudável e não simplesmente
relegar aquela a complexos inferiores. Essa pretensão revela não só a necessidade de
complementação antropológica da psicoterapia, mas também uma prática valorativa dela.
Perscrutando desde um viés axiológico, Frankl busca um valor referencial que,
no ato de ajuizar a “visão de mundo” do doente, além do valor da saúde, possa se tornar
uma orientação na prática clínica psiquiátrica, sem com isso deixar de garantir a
neutralidade necessária de uma imposição do terapeuta para o paciente e que, ao mesmo
tempo, contribua com uma efetiva contraposição da “visão de mundo” neurótica.
A análise realizada pelo terapeuta sempre estará imbuída de concepções
valorativas subjacentes. A questão a saber é se esse referencial valorativo deve vir da
psicoterapia ou de uma instância externa a ela. Se os valores ajuizados na prática clínica
devem ser trazidos pelo médico, isto é, de uma concepção de mundo particular, ou se
36
deveriam ter suas bases em uma concepção axiologia mais geral. Ao tratar da
possibilidade da psicoterapia como instrumento da filosofia, Frankl quer saber em que
medida uma psicoterapia valorativa seria possível, pois sendo a neutralidade impraticável,
qual o valor balizador da psicopatologia possibilitaria um parâmetro para a análise da
existência, sem com isso impor uma visão de mundo singular determinada.
A partir de sua experiência com a prática clínica, Frankl compreende que as
algumas das neuroses estão, em última instância, relacionadas com a dimensão espiritual.
Isso não significa dizer que a dimensão espiritual é que adoece, mas sugere que, diante
da não realização dessa dimensão genuinamente humana, as neuroses podem se efetivar.
Por esse motivo, uma contraposição à “visão de mundo” particular do doente se torna
necessária ao tratamento, pois as neuroses surgem ou são mantidas a partir de
determinadas posições ideológicas (FRANKL, 2014, p. 39). Frankl postula que na prática
clínica concreta, o doente impõe ao médico a sua indigência espiritual, exigindo dele
soluções. Um médico consciencioso não se furtará de tentar promover o bem-estar do
doente, e isso implica que a avaliação e contraposição de uma visão pessoal neurótica não
podem ser deixadas de lado no tratamento.
[...] o médico não pode de maneira alguma ultrapassar a sua
competência enquanto tal, o fato de ele não ter o direito de, como o faz
conselheiro de almas que tem legitimidade para tanto, simplesmente
transportar uma ordem hierárquica de valores previamente dada para o
doente, inserindo-a no tratamento psiquiátrico e, com isso, realizando
uma imposição ideológica (FRANKL, 2014, p. 39).
Ao contrário de uma “salvação da alma”, o sistema psiquiátrico frankliano
trabalha para restituir a “cura da alma”. Essa distinção estabelece competências diversas,
pois a primeira representa um atributo da religião, cabendo a “cura da alma” à
psicoterapia. Contudo, no lugar de um abismo intransponível entre essas duas áreas,
Frankl estabelece uma larga ponte entre elas, pois considera que, ao manterem suas
respectivas competências, uma área contribuirá por efeito com a outra (FRANKL, 2017,
p. 74). É necessário manter a distinção, pois, enquanto a prática do diretor espiritual ou
do agente religioso exige a adoção de uma “visão de mundo” confessional, à prática
clínica compete apenas a avaliação da visão pessoal do neurótico, sem lhe imputar uma
determinada “visão de mundo”.
Nesses termos, a prática psicoterapêutica se mostra um dilema, no qual há a
necessidade de pressupor valores para a avaliação da visão de mundo do doente e, ao
mesmo tempo, existe a impossibilidade ética de estabelecer uma tutela valorativa, já que
37
o terapeuta não pode transgredir sua competência. Frankl soluciona o dilema ao
estabelecer um valor referencial na psicoterapia. “Há claramente um valor formalmente
ético, que é ele mesmo condição de todas as valorações ulteriores, mas que não determina
por isso a sua escala hierárquica: a responsabilidade! Ela representa, por assim dizer,
aquele valor limite de uma neutralidade ética” (FRANKL, 2014, p. 39).
Além do valor da saúde, a responsabilidade é garantia da neutralidade ética para
a psicoterapia, pois até esse ponto a psicoterapia pode e deve avançar como ação
valorativa. Para Frankl, a psicoterapia deve levar o neurótico à consciência profunda de
sua responsabilidade. Como traço essencial da existência, ao ser despertada, ela viabiliza
no ser humano uma autoavaliação da própria personalidade e de seu lugar no mundo. A
atribuição da psicoterapia em despertar o paciente para a sua responsabilidade, não
consiste, como já dito, em uma imposição de valores, porque não lhe compete a indicação
sobre o “diante de quem” – por qual instância ele se sente responsável – nem “pelo que”
– por quais valores ele é responsável. Assumir uma dessas duas dimensões seria uma
extrapolação da competência psiquiátrica.
Nesse sentido, a psicoterapia contribui de modo pragmático com a filosofia ao
se tornar instrumento da ética. Frankl demonstra a possibilidade de um tratamento
psiquiátrico sem abandonar a recusa por uma imposição de valores. “A questão é que o
fato de ele se decidir por valores, de ele vivenciar uma responsabilidade, é essencial”
(FRANKL, 2014, p. 40). Enquanto a decisão por valores possui um caráter objetivo, a
vivência da responsabilidade representa o lado subjetivo das escolhas. A psicoterapia tem
por competência estimular e aprimorar a responsabilidade do neurótico, mas nunca
poderá interferir na dimensão objetiva da responsabilidade. De modo mais claro: a
psicoterapia deve e pode levar o ser humano à consciência profunda de sua
responsabilidade, mas nunca poderá apontar para “o que” ou “quem” o paciente deve se
responsabilizar, pois em nada pode interferir na dimensão objetiva da responsabilidade.
Dessa forma, a neutralidade ética segue assegurada.
Nas análises antecedentes, exigiu-se da psicopatologia algo além da
unilateralidade, levando em consideração a totalidade do ser humano. Para Frankl, o
acesso a essa totalidade se viabiliza pela consideração da dimensão espiritual no
tratamento terapêutico. A dimensão espiritual representa, na estrutura antropológica do
sistema frankliano, o aspecto pessoal do humano. Ao avançar pela responsabilidade, essa
abordagem assegura um acesso mais genuíno à subjetividade humana. Ao resgatar a
responsabilidade, ao ser humano é assegurando o desvelamento de um modo próprio de
38
ser e, consequentemente, a cura em sua totalidade. Ao ressaltar essa dimensão, exige-se
que o psicoterapeuta, em vez de recair no erro psicologista de reduzir tudo a impulsos
neuróticos, estime a normatividade própria que advém do elemento espiritual.
Essas análises correspondem a um caminho trilhado por Frankl com o objetivo
de viabilizar a última exigência da Logoterapia. Trata-se de compreender a possibilidade
terapêutica da ética. Como dito, Frankl postula a necessidade de um valor referencial na
psicoterapia que não exceda os seus limites. O autor tinha consciência das possíveis
confusões que poderiam surgir entre a “cura da alma” – de natureza médica – e a
“salvação da alma” – de natureza confessional – ao adotar valores oriundos de uma
realidade externa a do doente. Ao buscar na filosofia um valor garantidor de neutralidade,
Frankl oferece uma psicoterapia alicerçada na responsabilidade.
A filosofia se torna um instrumento para a psicoterapia à medida que promove
uma compreensão do ser humano em sua totalidade e o revela como ser-responsável por
meio de confrontações de uma “visão de mundo” neurótica. Assim a psicoterapia se
converte em uma Análise Existencial. A Existenzanalyse representa a inevitabilidade da
filosofia no tratamento terapêutico. É uma análise em duplo sentido: trata-se de uma
análise da existência como um todo, indo além da realidade psicofísica e desvelando a
existencialidade do ser humano que se expressa pela tríade Eros, Logos e Ethos; e é
também uma análise com vistas à existência, despertando o ser humano para o seu ser-aí
enquanto ser-responsável.
A exigência para que a psicopatologia avance para além do âmbito psíquico, em
direção à totalidade da existência, revela a finalidade da Análise Existencial: “colocar a
essência da existência humana – ser responsável, ter uma missão – no ponto central da
psicoterapia” (FRANKL, 2014, p. 42). Essa finalidade é oriunda de uma fórmula de sua
antropologia filosófica: “ser um eu significa ser consciente e ser responsável” (FRANKL,
2014, p. 40). Para Frankl, o “ser-eu” não se dá com a conscientização pura e simples de
si, mas com a consciência da responsabilidade pessoal. Não se constituem dois momentos
estanques, como se a pessoa primeiramente se tornasse consciente de si, para só depois
se tornar responsável. O valor terapêutico da análise existencial reside no fato de despertar
no neurótico a vivência de sua missão particular, vivenciar a sua responsabilidade
específica em relação a tarefas específicas.
[...] somente no momento em que ele tiver vivenciado sua disposição
interna e externa, por conseguinte, toda a sua disposição no mundo
como a única e singular, a consciência de sua responsabilidade o levará
ao desdobramento mais elevado possível de suas forças – e contraforças
39
em relação à neurose: a partir da vaga consciência da responsabilidade,
a vivência de sua inserção no mundo é acompanhada por uma tarefa
pessoal totalmente determinada. Nada, contudo, arrebata o homem e o
lança para além de si, nada consegue ativá-lo tanto, nada faz com que
ele supere dores ou dificuldades tão intensamente quanto a consciência
da responsabilidade pessoal, a vivência de sua missão particular
(FRANKL, 2014, p. 41).
É desse modo que Frankl se coloca em oposição à psicopatologia da época,
revelando que as neuroses não se arraigam em complexos psíquicos, mas vão além,
estendem-se até uma dimensão mais profunda, a espiritual. A Existenzanalyse oportuniza
uma análise orientada para a existência, desvelando-a como ser-responsável. Revela que
o tratamento do neurótico não deve se pautar em um método causalista-explicativo
caracterizado pela unilateralidade, cujo foco é a doença, mas em um método que viabilize
uma compreensão do ser humano em sua totalidade, que possibilite o confronto com uma
“visão de mundo” neurótica e que o coloque na perspectiva da responsabilidade.
O avanço pela dimensão espiritual do doente se dá por meio das confrontações
ideológicas sobre a realidade de existência. Para Frankl, pela conscientização de sua
responsabilidade pessoal o neurótico tem condições de sair de suas dificuldades. Para ele,
nada tem o poder de arrebatar e lançar o ser humano para além de si, superando dores e
dificuldades de modo intenso, quanto a conscientização da responsabilidade pessoal e a
vivência do caráter de missão de sua vida (FRANKL, 2014, p. 41).
Ao cotejar a relação entre psicoterapia e filosofia, Frankl promove uma
aproximação entre essas duas áreas a propósito do ser humano. A inevitabilidade da
filosofia se expressa com a necessidade de complementar a prática psiquiátrica com a
análise existencial do ser humano. Cabe, com isso, a necessidade em clarificar o que
Frankl compreende por tal análise e a distinção da análise existencial frankliana em
relação as demais análises do ser humano.
2.3 A ANALISE EXISTENCIAL FRANKLIANA
O Leitmotiv das obras de Frankl é a afirmação de que toda teoria psiquiátrica
trabalha, ainda que de modo velado, sobre uma Weltanschauung específica, da qual
emergem uma determinada imagem de ser humano. É a partir disso que se pode perceber
a grande importância que a Existenzanalyse ocupará nas ciências da alma. Ela tem por
objetivo trazer à luz uma análise consciente sobre as características da existência, a fim
de possibilitar uma orientação saudável para aqueles que buscam auxílio. Nesse sentido,
40
a Logoterapia não consiste apenas em um método de tratamento. Ela é e oferece à
psiquiatria uma abordagem antropológica que a embase. Equivale a uma mudança de
postura, principalmente da relação entre paciente e psiquiatra, pois até então se tratava a
doença e não o doente.
Em Homo patiens (1950), Frankl esclarece que “a finalidade do que chamamos
de logoterapia é incluir o ‘logos’ na psicoterapia; a finalidade do que denominamos
Análise Existencial é incluir a existência na psicoterapia” (1978, p. 197). A Logoterapia,
abordagem distinta das que compreendem o logos como razão, coloca, no centro do
conceito de motivação, a “vontade de sentido”, opondo-se à “vontade de poder” e à
“vontade de prazer”. A Análise Existencial traz à baila, na consideração antropológica,
um modo de ser particularizante do ser humano. Consiste na necessidade de colocar, no
centro da existência humana, o ser-responsável.
Quando se impôs a necessidade de criar o conceito de análise
existencial, achava-se disponível para designar este ser-responsável,
que colocamos no centro da existência humana, um termo já utilizado
pela filosofia contemporânea para esta maneira característica e singular
de ser do homem: justamente a palavra existência (FRANKL, 2017, p.
16).
A Análise Existencial está relacionada com o existencialismo, mas apenas em
certa medida. Frankl considera que o conceito de existência corresponde a um modo
específico de ser. O existir é fazer juízos e compromissos decisivos. Assim, o ser humano
é aquele ser capaz de escolher por si mesmo e a si mesmo e assumir o escolhido. No
entanto, a Análise Existencial se diferencia de muitas filosofias existencialistas,
especialmente do existencialismo francês. Os filósofos existencialistas franceses,
segundo Frankl, realizam uma valorização desproporcional entre a liberdade e a
responsabilidade. Para ele, a liberdade não é “liberdade de”, é sempre uma “liberdade
para”. Para Tweedie (1961, p. 35), Frankl tem consciência dos movimentos psicológicos
“existenciais” e pretende uma correção. Por isso afirma que a Análise Existencial está
pronta para cooperar com outras correntes.
Sob o olhar de Frankl, a existência não é algo que está diante do ser humano
como um objeto que está diante dos olhos, ela é antes disso um mistério, pois não é
passível de divisão a fim de se tornar clara e evidente, não é adicionável e sintetizável,
como dito, a existência é o próprio ser humano. Assim, a existência é sempre o sujeito de
uma síntese, nunca o seu objeto (FRANKL, 1978, p.128).
41
Nesses termos, por meio de uma concepção antropológica distinta do binômio
mente-corpo comumente aceita nas abordagens tradicionais, a Análise Existencial traz à
psiquiatria novos influxos. Para Frankl, o ser humano é uma unidade bio-psico-espiritual.
Além de possuir as dimensões corpórea e psíquica, o ser humano é espírito. Essa última
dimensão garante a unidade antropológica e a distinção. Em defesa dessa unidade Frankl
argumenta que “a característica da existência humana é a coexistência entre a unidade
antropológica e as diferenças ontológicas, entre o modo de ser unitário da realidade
humana e as modalidades diversas em que ela se divide” (FRANKL, 1978, p. 139).
Embora a vivência cotidiana demande um acento a uma ou outra dimensão, é
para a totalidade do ser humano que ela se dirige. As diversas modalidades devem ser
consideradas a partir do caráter unitário da realidade humana, pois um fenômeno não toca
o ser humano de modo unidimensional, mas o afeta em sua totalidade, isto é, em sua
existência. Instaura-se, portanto, a primeira acepção da Existenzanalyse de Frankl. Não
se trata de uma análise da existência, mas uma análise orientada para a existência. Isso
porque, a existência não é analisável, por ser o próprio sujeito da síntese.
Isso conflui para a própria distinção que se deve ter quando se emprega o termo
análise. A Análise Existencial nada tem a ver com a análise no sentido psicanalítico.
Como lembra Stein (2012, p. 21), o termo analysis remete a um processo de separação e
decomposição de elementos. “Essa desmontagem de elementos representaria, portanto, a
ideia de que em algum lugar há a chave explicativa daquilo que deve ser analisado,
daquilo que deve ser decomposto”. Para aquele autor, não ao acaso Freud criou o termo
Psycho-analyse. Como herdeira de um fisicalismo das teorias causalistas da época, a
análise, no sentido freudiano, representa um processo de decomposição das sínteses não
sustentáveis, falsas, até os últimos elementos.
A defesa de Frankl em afirmar o caráter unitário da existência se situa em
oposição a esse modo de entender e aplicar a análise. Diferentemente da apreensão
moderna do termo, que converge para uma análise da existência com vistas a explicá-la,
a Análise Existencial frankliana, ao revelar a impossibilidade de dividir e decompor,
apresenta-se como meio auxiliar para aclarar a existência, buncando descrevê-la.
No Compêndio de Análise Existencial e Logoterapia (1959) Frankl afirma:
A análise existencial é uma explicação da existência. Com a única
diferença de que nós não deixamos de considerar o fato de a existência,
de a pessoa, também explicitar a si mesma: ela se explicita, ela se
desdobra, ela se desenrola, e, em verdade, na vida em seu transcurso.
Tal como um tapete desenrolado revela seu padrão inconfundível,
42
deduzimos do curso da vida, do devir, a essência da pessoa (FRANKL,
2014, p. 57).
O emprego do termo análise na Existenzanalyse parece estar mais próximo
daquela direção apontada por Heidegger em sua analítica do Dasein (Daseinsanalytik).
Em Seminários de Zollikon (1987), o filósofo de Messkirch traz à baila o uso mais antigo
daquele termo. Remonta a Odisseia e é empregado por Homero para se referir à atividade
de Penélope, esposa de Ulisses, que desfazia durante a noite a trama que tecia durante o
dia. Com essa figura mítica, o termo grego Analisein passa a ter o sentido de uma desfazer
de uma tessitura, soltar as algemas de um preso, libertar alguém da prisão e, até mesmo,
o desmontar os pedaços de uma construção (HEIDEGGER, 2009, p. 152).
Em Heidegger, a expressão análise não é a tentativa de decompor algo com o
objetivo de chegar a seus últimos elementos, mas é a tentativa de buscar uma unidade
original. A fim de evitar uma incompreensão de sua proposta, Heidegger (2009, p. 152)
substituirá o termo análise por analítica. A origem desse termo é precisa, remete a Kant
em sua Crítica da Razão Pura (1781). No empreendimento de sua filosofia
transcendental, o filósofo de Königsberg, ante ao problema do conhecimento, busca uma
decomposição da faculdade do entendimento. O que marcará Heidegger é o fato de que
essa decomposição empreendida por Kant não promove uma redução a elementos, mas a
recondução a uma unidade.
A finalidade da analítica é, pois, evidenciar a unidade original da função
da capacidade de compreensão. A analítica trata de um retroceder a uma
“conexão em um sistema”. A analítica tem a tarefa de mostrar o todo
de uma unidade de condições ontológicas. A analítica como analítica
ontológica não é um decompor em elementos, mas a articulação da
unidade de uma estrutura (HEIDEGGER, 2009, p. 154).
A proposta instaurada é de uma análise que não conduza à desintegração do
fenômeno por meio de um processo de decomposição, mas que possibilite uma
recondução do fenômeno à sua condição de possibilidade, à sua originalidade e ao seu
sentido. Assim como na atividade de Penélope, a análise deve possibilitar um tecer e
destecer com vistas a libertar o sentido de tal tessitura. Para Stein (2012, p. 23), esse
desatar das algemas não se dá por meio de processos cognitivos-explicativos, mas
mediante a processos descritivos determinados.
Heidegger irá introduzir esse processo da análise existencial, porque ele
tem muito presente a tradição de toda Escola História Alemã, na qual
se busca uma especificidade para as Ciências Humanas, onde ela não
deve ser do mesmo tipo das ciências empíricas e matemáticas. O foco
surge de sua concepção hermenêutica (STEIN, 2012, p. 23).
43
Como fica posto, a análise que estaria mais condizente com o objeto das ciências
da alma não deve ter como objetivo a decomposição de um fenômeno a fim de buscar
uma possível chave explicativa. Ao iniciar um processo de decomposição até os últimos
elementos, por exemplo, aqueles desmascaramentos, no sentido freudiano, corre-se o
risco de tratar como epifenômenos genuínas manifestações de humanidade. Nesse
sentido, a análise própria de uma abordagem do ser humano não deve conduzir à
fragmentação, como fazem as ciências naturais com seus objetos, mas à unidade
indissolúvel.
Retomando a análise frankliana, cabe recordar a distinção do termo Logoterapia.
Em Homo patiens (1950), Frankl defende que uma abordagem centrada no logos é
diferente de uma abordagem centrada na lógica, pois a Logoterapia não consiste em um
método de persuasão. Nesse sentido, a formulação dos termos Logoterapia e Análise
Existencial devem ser entendidas historicamente a partir de sua posição crítica em relação
às concepções antropológicas vigentes nas ciências da alma. A antropologia constitui a
base do sistema psiquiátrico frankliano. A visão de ser humano elaborada por ele consiste
em um esforço em reunir, na compreensão conceitual, tanto dados empíricos que
satisfaçam a pesquisa psiquiátrica, quanto as necessidades teóricas da saúde mental. Ele
dará grande acento a questão antropológica pelo fato de que, somente ao compreender o
que é o ser humano, pode-se cumprir com efetividade o papel terapêutico. Por esse
aspecto, a pergunta sobre quem é o ser humano é diretriz.
Em relação a esse caráter antropológico de sua psicoterapia, no Compêndio de
Análise Existencial e Logoterapia (1959), Frankl sublinha que:
[A]nálise existencial não designa apenas uma explicação da existência
ôntica, mas também uma explicação ontológica daquilo que é a
existência. Nesse sentido, a análise existencial é a tentativa de uma
antropologia psicoterapêutica, de uma antropologia que é anterior a
toda psicoterapia, não apenas à logoterapia; pois, se podemos acreditar
em F. W. Foerster, a análise existencial “não é apenas um complemento
à psicoterapia, não, ela é a sua base espiritual imprescindível”
(FRANKL, 2014, 57).
Por essa definição se percebe o duplo aspecto da Existenzanalyse. Para que o
logoterapeuta auxilie o paciente por um aclaramento do sentido de sua existência pessoal,
isto é, realize uma análise orientada para a existência ôntica, deverá buscar os parâmetros
que lhe permitam ajuizar em tal análise. Esses parâmetros são estabelecidos pela Análise
Existencial em sua dimensão ontológica. Essa dimensão oferece à análise singular o
caráter geral da existência em seu caráter unitário. Não significa dizer que a Análise
44
Existencial determine a essência – Ousia – do ser humano, mas que busque estabelecer
princípios existenciais5 que garantam uma visão de mundo positiva. Em Teoria e terapia
das neuroses (1956), Frankl define de forma mais evidente o objetivo da Existenzanalyse:
O objetivo da analise existencial é retornar consciente a imagem que a
psicoterapia faz do homem e que é inconsciente, implícita. Explicá-la,
abri-la e revelá-la, assim como uma fotografia, tirando-a da latência.
Pois a imagem do homem formada pelo psicoterapeuta pode, sob
determinadas circunstâncias, ser tal que alimente a neurose do paciente.
Ela pode ser uma imagem completamente niilista (2016, p. 231).
A indagação apresentada inicialmente sobre a necessidade em adotar um outro
conceito além de Logoterapia deixa patente, a partir do percurso trilhado até aqui, o
grande esforço de Frankl em corrigir, situar e complementar a prática psicoterapêutica
com uma Weltanschauung condizente com a totalidade do ser humano. Com isso, Frankl
coloca, no centro da terapia, a perspectiva antropológica.
Ao observar a insatisfação de Frankl em relação a visão de ser humano dos
sistemas psiquiátricos de sua época, principalmente quanto à psicanálise e à psicologia
individual, o que se revela é a postura adotada por esses sistemas em destacar determinado
espectro do ser humano a partir de designações realizadas ao longo da história e as revestir
de conceitos contemporâneos, para que sejam mais condizentes com o mote científico.
Esses espectros são trazidos por Tweedie em Logotherapy and Christian Faith (1961).
Trata-se quatro teorias centrais, dentre as inúmeras variações nas concepções
antropológicas. De modo sintético, as ideias centrais, sobre as quais as críticas de Frankl
se realizam, são as que concebem o ser humano como: 1) sistema mecânico, 2) modelo
filogenético, 3) animal racional e, 4) imagem de Deus.
A primeira daquelas ideias corresponde a uma visão fisicalista. O ser humano se
assemelharia a uma máquina, cujas funções podem ser entendidas como movimento de
matéria no espaço e no tempo. Essa visão foi bastante difundida no século XX com o
Behaviorismo, que, diante de um fatalismo inexorável compreende que todo objetivo e
aspiração, toda alegria e tristeza são apenas exemplos de ação e reação, atração e repulsa,
isto é, dados exemplares de leis físicas.
5
No prefácio de A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia (1969), Frankl
fundamenta seu sistema em três conceitos: 1) a liberdade da vontade; 2) a vontade de sentido; e 3) o sentido
da vida (2013, p. 7). Além desses conceitos, a partir de Peter (2005), pode-se entender como existenciais
da Logoterapia que 1) o ser humano é ser espiritual-pessoal; 2) que é capaz de autodeterminar-se; 3) que o
ser humano se orienta primária e originalmente para o significado e para os valores; e 4) que a
transcendência pertence de maneira essencial ao ser-homem.
45
O segundo espectro na visão de ser humano seria aquele que o compreende
enquanto um organismo biológico complexo. A partir de um modelo filogenético, o
acento está na distinção entre o orgânico e o inorgânico. Apesar dos avanços científicos
oriundos da relação entre Biologia e Psicologia, principalmente por meio da psicologia
da Gestalt, o ser humano é compreendido de forma truncada. Suas aspirações e
realizações são reduzidas aos planos da atividade celular e suas realizações sociais são
apenas acidentes do impulso instintivo em direção à finalidade biológica.
O terceiro espectro antropológico é o que vê o ser humano como animal racional.
Essa visão clássica do ser humano sobreviveu ao período medieval e floresceu na
renascença, mas, na modernidade, não encontra guarida. Principalmente pela aceitação,
quase universal, de um inconsciente primário. Contudo, no campo da saúde mental,
ocasionalmente se adota uma postura terapêutica de fazer o paciente entender sua própria
dinâmica na esperança de que fique bem.
A última visão de ser humano é aquela que enfatiza a sua natureza religiosa. O
ser humano enquanto imagem de Deus é um aspecto importante ao longo da história.
Enquanto criatura de um ser divino, a mais alta função do ser humano é a de adorar seu
criador e servi-lo. Para Tweedie (1961, p. 21), o último século testemunhou um repúdio
progressivo da natureza espiritual do ser humano. Esse fato levou Allport a constatar uma
secularização da cultura, a ponto de as pessoas conversarem com franqueza sobre detalhes
íntimos da experiência sexual, mas se enrubescerem para confessar impulsos religiosos.
Ao examinar o material de ofício psicoterapêutico, Frankl constata que o ponto
de partida dos problemas na ciência da alma se refere a uma compreensão antropológica
ineficiente. Aí está implicado não só a falta de um questionamento sobre o objeto dessa
ciência, mas também a adoção de métodos que não favorecem sua compreensão. É a partir
disso que Frankl buscará complementar e preencher a imagem mutilada do humano por
meio de uma perspectiva mais abrangente.
Em síntese, além do que do que já foi considerado anteriormente sobre os termos,
em A psicoterapia na prática (1947), Frankl comenta que “análise existencial e
logoterapia são, no fundo, a mesma coisa, pois cada uma delas representa uma faceta da
mesma teoria” (1976, p. 43). Essa distinção é explicitada por Frankl em Compêndio de
Análise Existencial e Logoterapia (1956): “a logoterapia é um método de tratamento
psicoterapêutico, enquanto a análise existencial representa uma corrente antropológica de
pesquisa” (2014, p. 55).
46
2.4 A ANÁLISE EXISTENCIAL EM SUAS DISTINÇÕES
Frankl foi o primeiro a utilizar o conceito de Análise Existencial como forma de
designação para o seu sistema psiquiátrico. Como dito, ele passa a empregá-lo a partir de
1933. Contudo, com a tradução de Existenzanalyse para outras línguas, surgiu uma série
de equívocos em relação a esse termo. A Análise Existencial passou a ser usada para
designar toda psicologia que tenta ser filosoficamente autoconsciente. As confusões se
intensificam quando a Daseinsanalyse, termo utilizado por Binswanger a partir de 1958,
foi traduzido também como análise existencial. Tal fato levou à identificação entre as
teorias de Frankl e Binswanger (TWEEDIE, 1961, p. 36). Além dos conceitos de
Existenzanalyse de Frankl e Daseinsanalyse de Binswanger, o desenvolvimento da
análise existencial também se deu com a “Daseinsanalyse” de Boss em 1947, a partir do
contato com Heidegger nos seminários ocorridos em Zollikon.
Isso explica a recorrência, nas obras de Frankl, da diferenciação entre a Análise
Existencial utilizada em seu sistema psiquiátrico e as demais elaborações, principalmente
quanto àquela desenvolvida por Binswanger. A insistência de Frankl não significa que
ele desconsidere as demais análises. Ao contrário, elas se tornam complementares diante
da complexidade da existência humana. A busca por tal distinção consiste mais na
perscrutação em prol de um estatuto próprio do que de um isolamento entre elas.
Assim sendo, as análises de Frankl e Binswanger, influenciadas por uma
iluminação da existência (Existenzerhellung) como Jaspers a compreendia, buscam
combater o psicologismo, mas por vias distintas. A primeira distinção é quanto ao
direcionamento dessas análises. Como dito anteriormente, o objetivo da Existenzanalyse
é a análise orientada para a existência. Já por Daseinsanalyse, Frankl compreende o
empreendimento de Binswanger que visa a análise da existência. Na segunda edição de
A psicoterapia na prática (1961), Frankl esclarece que a análise de Binswanger busca um
aclaramento da existência a partir de um aclaramento do ser. A Existenzanalyse vai além
disso. Acima de todo aclaramento do ser, a Análise Existencial busca um aclaramento do
sentido (1976, 43).
Para M. Pereira (2001, p. 138), a análise existencial de Binswanger consiste em
novo método de pesquisa, tendo a preocupação de lançar as bases científicas para a
psicopatologia. Ela consistiria em uma tentativa de aprimorar a psicanálise, submetendo-
a, com isso, às exigências de uma antropologia fenomenológica. Em consonância com
essa consideração, Frankl comenta:
47
Afinal, o tema da Daseinsanalyse não é terapêutico; pelo menos é o que
afirma M. Boss: “A Daseinsanalyse não tem nada que ver com a prática
psicoterapêutica”. Enquanto a análise existencial tenta servir ao
tratamento das neuroses, a Daseinsanalyse contribui para a
compreensão das psicoses. (Nesse sentido, a Daseinsanalyse não é
contrária à análise existencial, mas complementar.) (FRANKL, 2016,
p. 79).
A Daseinsanalyse é complementar a análise empreendida por Frankl, pois
primariamente não consistiria em uma proposta de tratamento, mas em uma proposta de
aclaramento da existência. Já a Análise Existencial, buscando se afastar completamente
da psicanálise, pretende iluminar não somente a realidade ôntica da existência, mas
também a sua realidade ontológica. A partir de então, almeja-se aclarar as possibilidades
de significado, ou seja, a análise frankliana pretende ser mais que mera análise, pretende-
se uma terapia.
O esforço de Binswanger é por demonstrar que a psicopatologia possui uma
visão de ser humano enquanto organismo físio-psíquico, um sistema de funções orgânicas
ligados a processos naturais. É buscando fundamentar a psicopatologia como campo
distinto das ciências da natureza que ele se aproximará da analítica existenciária do
Dasein, proposta por Heidegger em Ser e Tempo (1927), portanto, posterior à primeira
edição de Psicopatologia Geral de Jaspers (1913).
Binswanger compreenderá como fundamento essencial da psicoterapia a
estrutura do ser humano enquanto ser-no-mundo, ser com e pelo outro. Apoiando-se na
Daseinsanalytik heideggeriana, a temporalidade e historicidade serão decisivas para a
compreensão do ser humano enquanto continuidade histórica e finitude. Nesse sentido,
comenta M. Pereira (2001, p. 139): “a antropologia fenomenológica – segundo seu ponto
de vista, a disciplina que deveria fundar a psicopatologia e a psiquiatria – vê no homem
‘um ser pessoal que vive sua vida e cuja continuidade (...) se desdobra em história’ (Kuhn
& Maldiney, 1971: 12)”.
Para Binswanger, o patológico será o afastamento dessa estrutura apriorística de
ser-no-mundo, de formar comunidade. O indivíduo mentalmente perturbado é aquele que
assume um único fio condutor como projeto de mundo, o que se torna restritivo e limitado
mediante o fato de ser com e pelo outro, ser no mundo. Por meio dessas categorias –
mundo, temporalidade e historicidade – Binswanger busca superar a cisão sujeito-objeto,
compreendendo a patologia como possibilidade restritiva da existência.
Seu método psicopatológico visará à descrição e à experimentação de mundo e
às condições de existência tal como se dão nas circunstâncias particulares de cada ser
48
humano (PEREIRA, M., 2001, p. 140). Cabe lembrar aqui a crítica feita por Frankl às
psicoterapias existenciais que realizam uma compreensão subjetivizante do conceito
heideggeriano de ser-em-o-mundo6.
A empreitada de Binswanger a partir de Ser e Tempo (1927) será objeto de
análise por parte de Heidegger. Em Seminários de Zollikon (1987) ele declara:
Mas o mal-entendido de Binswanger não consiste tanto em que ele quer
complementar o “cuidado” com o amor, mas sim no fato de que ele não
vê que o cuidado tem um sentido existencial, isto é, ontológico, que a
analítica do Dasein pergunta pela sua constituição fundamental
ontológica (existencial) e não quer simplesmente descrever fenômenos
ônticos do Dasein (HEIDEGGER, 2009, p. 154s).
Para Heidegger, há uma incompreensão na análise realizada por Binswanger
pelo fato de que o ser-em-o-mundo é constituição fundamental do Dasein. Enquanto
existencial primário, esse não aponta para uma exclusividade, mas para a essência do
modo específico de ser. Ao colocar o cuidado (Sorge) ao lado do amor (Liebe) ele
promoveria uma eliminação da ontologia fundamental para uma ontologia regional. Em
vez de promover uma análise fundamental, Binswanger isolaria o ser humano em uma
representação antropológica do ser humano enquanto sujeito (HEIDEGGER, 2009, p.
227). A compreensão ontológica do cuidado (Sorge) deve remeter à condição de
possibilidade dos diversos matizes ônticas do cuidado, sejam elas as amorosas, as de
indiferença ou de aversão.
O caminho oposto ao de Binswanger parece ter sido trilhado por Frankl, pois a
Existenzanalyse criada por ele não pretende ser apenas uma explicação da existência
ôntica, isto é, uma análise particular de pacientes ou entidades individuais, mas se
empenha em ser também uma análise ontológica da existência humana, uma revelação da
essência do existir pessoal como ser espiritual (FRANKL, 1976, p. 43). Frankl
compreende que a Análise Existencial não é uma análise da existência, mas direcionada
a ela, pois considera que a existência individual não é analisável ou sintetizável. A
6
Em Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins (1942), Binswanger descreve três modos
simultâneas de ser no mundo: Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt. O Umwelt corresponde ao mundo natural. É o
mundo ao redor, mundo biológico caracterizado pelo ambiente. Desse mundo participam os seres humanos
e animais. É caracterizado pela necessidade biológica, pelos impulsos e instintos. Já o Mitwelt corresponde
à dimensão social. É o mundo da inter-relação, do estar com o outro e todos os sentimentos que envolvem
tal relação, tais como amor/ódio, aceitação/rejeição, cooperação/competição dentre outros. É, portanto, um
mundo exclusivamente humano. O último modo de ser no mundo, o Eigenwelt, corresponde à dimensão
psicológica. É o mundo da relação consigo próprio. Pressupõe uma autoconsciência e auto relacionamento.
Importante destacar que essa dimensão não corresponde a uma vivência da mera subjetividade, mas é a
base a partir da qual se dá a percepção do mundo (MOREIRA, 2011, p. 176).
49
existência não está diante do ser humano como um objeto está diante do sujeito, pois
enquanto núcleo da personalidade, não é demonstrável.
Em A presença ignorada de Deus (1948), Frankl definirá a existência como um
fenômeno primário, não analisável e irredutível, assim como todos os aspectos
elementares da existência: a consciência e a liberdade, por exemplo. Esses fenômenos são
irredutíveis no plano ôntico, podendo ser esclarecidos apenas no plano ontológico, por
meio da transcendência (2017, p. 26).
Nesse sentido, percebe-se que a Logoterapia é complementar à Daseinsanalyse
porque ambas confluem para a elaboração de uma antropologia mais fundacional do ser
humano. O ponto de partida de ambas é a oposição ao psicologismo no interior da
psicopatologia. Por isso, oferecem à prática psicoterapêutica uma fundamentação
antropológica de validade científica, sem se utilizar de métodos advindos das ciências
naturais. Para além dessa possível complementariedade, Daseinsanalyse e
Existenzanalyse se opõem quanto ao objetivo, visto que uma pretende ser uma análise da
existência, e a outra, uma análise orientada para a existência. Além disso, a análise
frankliana busca se apartar cada vez mais da psicanálise, tornando-se terapia, uma
Logoterapia. Ela busca ser uma análise ontológica, enquanto Binswanger em seu
empreendimento, ao buscar um aclaramento da existência subjetiva, transforma-o em
uma análise ôntica.
Diante das diferentes concepções de análise existencial, Frankl, em A vontade
de sentido (1969) comenta: “A expressão ‘análise existencial’ tem se tornado bastante
ambígua. Logo, para evitar o fomento de mais confusão conceitual, nesse estado de
coisas, decidi abster-me, cada vez mais, de usar o termo análise existencial nas minhas
publicações de língua inglesa” (2013, p. 14). No Brasil, o sistema psiquiátrico frankliano
é comumente conhecido como Logoterapia. Ao levar em consideração o comentário de
Frankl, percebe-se que o principal caminho para o acesso a suas obras são traduções para
as línguas inglesa e espanhola, o que talvez tenha contribuído para essa definição
corriqueira. Contudo, deve-se ter em mente que a abstenção propositada realizada por
Frankl, em nada diminui a importância da Análise Existencial, apenas tem o objetivo de
a libertar de equívocos.
Em síntese, a Análise Existencial consiste na tentativa de construir uma
antropologia psicoterapêutica mais fundacional, que preceda toda a psicoterapia e não
apenas a Logoterapia. Isso porque, “toda psicoterapia transcorre sob um horizonte a
priori. Já se encontra sempre na sua base uma concepção antropológica, por menos que
50
essa concepção seja consciente para a psicoterapia” (FRANKL, 2014, p. 58). A Análise
Existencial frankliana surge por perceber o caráter de missão e de dever da vida, que
simultaneamente conclama à existência, à perspectiva da resposta diante das situações.
A Existenzanalyse prossegue em direção à dimensão espiritual do ser humano,
desvelando sua natureza enquanto existência. Assim a Logoterapia pode avançar desde a
dimensão espiritual. Ela procede da dimensão noética para compreender e tratar a
existência adoecida. É a partir dessa dinâmica que o existir poderá ser compreendido.
Para Frankl, o “ex-sistir significa sair de si e se apresentar ante si mesmo, uma dinâmica
na qual o homem sai do plano corpóreo-psíquico e chega a si mesmo atravessando o
espaço do espiritual. A ex-sistência acontece no espírito” (FRANKL, 2014, p. 59).
O objetivo da Análise Existencial frankliana é trazer à consciência do ser
humano, especialmente do neurótico, o caráter de responsabilidade da existência. Pois “a
análise existencial (Existenzanalyse) vê na responsabilidade a essência do Dasein
humano, a essência da Existenz” (FRANKL, 1976, p. 55). Essa, enquanto modo
específico de ser do humano, caracteriza-se por um modo de habitar o mundo distinto de
seres fáticos, pois se é facultativo. Nesse sentido, a existência é o que sempre-pode-vir-
a-ser-de-outro-modo (FRANKL, 2014, p. 59).
Diante do itinerário deste capítulo, cujo objetivo focalizou a compreensão da
Análise Existencial frankliana, foi possível diagnosticar a Weltanschauung cientificista
da qual a imagem de ser humano, presente nos vários sistemas psicoterapêuticos, são
oriundas. Nesse sentido, a Logoterapia pôde ser caracterizada enquanto movimento
reacionário à compreensão do ser humano a partir do pathos. O confronto entre filosofia
e psicoterapia, oportunizado por Frankl com o intento de fundamentar a Existenzanalyse,
evidenciou o combate à possibilidade do conhecimento oriundo de uma psicopatologia
da época, revelando-a como compreensão seccionada da realidade. Em lugar de uma
visão fechada, Frankl reflete sobre a possibilidade de uma psicoterapia antropológica que
leve em consideração a totalidade do ser humano.
Dentre as várias contribuições possíveis do confronto entre filosofia e
psicoterapia, a que se sobressai, inclusive fundamentando as demais, é aquela da
antropologia filosófica, que servirá de base para a elaboração de uma psicoterapia
antropológica por parte de Frankl. Como já salientado, é a atenção dada a essa questão
uma das principais distinções entre a Análise Existencial frankliana e as demais análises
do ser humano. A importância de considerar a antropologia filosófica aparece em Stein
enquanto mediação.
51
O importante, que talvez nem Heidegger nem Binswanger levaram
suficientemente em consideração, é aquilo que costumo chamar de
mediação antropológica. Nenhum dos dois autores levou
suficientemente em consideração, nas avaliações mútuas, o fato de que
não existe passagem entre Filosofia e qualquer campo do conhecimento
das Ciências Humanas, sem que se leve em contar[sic.] a questão que a
Antropologia filosófica nos põe no âmbito da condição humana
(STEIN, 2012, p. 121).
A temática deste capítulo traz à baila a importância dessa mediação
antropológica oportunizada pelo confronto entre filosofia e psicoterapia. A crítica de
Stein à insuficiência da mediação antropológica por parte de Heidegger e de Binswanger
deve ser analisada como uma carência das respectivas investigações adotadas por cada
um deles. Contudo, diferente deles, Frankl irá adotar a antropologia filosófica como
posição na construção de sua psicoterapia. O segundo capítulo terá como mote perscrutar
a concepção antropológica desenvolvida por Frankl.
52
3 POR UMA MUTAÇÃO DA COMPREENSÃO DA ESSÊNCIA DO HOMEM
Como assinalado anteriormente, este capítulo perscruta a antropologia filosófica
proposta por Viktor Frankl, com o objetivo de identificar o itinerário de reabilitação da
dimensão noética presente na imago hominis e a sua relação com a compreensão do ser
humano em sua totalidade. Nesse percurso que visa à retomada do nível estrutural mais
elementar, a noção de homem passa, necessariamente e em primeiro plano, pela crítica às
concepções antropológicas vigentes. Essa empreitada crítica e a proposta de uma
compreensão mais fundacional aqui se denominará por mutação da essência do homem.
O termo mutação (Wendel)7 não é próprio de Frankl. Pertence ao vocabulário
heideggeriano. Haar comenta que Heidegger desempenha uma tarefa ambiciosa com seu
legado filosófico: “mudar a essência do homem e, por isso, compreendê-lo diferentemente
de toda tradição até ele” (1990, p. 93)8. Consiste em que a pergunta sobre quem é o
homem não deve buscar como resposta uma saída à procura de outra essência, isto é, uma
busca pela projeção, mas se dirigir para ultrapassar a própria questão. Visa a um
aprofundamento dos traços essenciais do homem. A proposta heideggeriana de uma
mutação não tem como objetivo uma reflexão para além do propósito: o próprio ser
humano. Consiste em um voltar aquém das concepções tradicionais na procura daquilo
que há de mais característico no ser humano. No pensamento heideggeriano, o “elemento
do homem, o seu solo abissal, é o ser, estranho meio que não contém, mas que o transporta
e o exporta. Regressar ao elementar é regressar à situação fundamental do homem com o
ser, com o seu ser” (HAAR, 1990, p. 94).
Heidegger, em um dos seminários apresentados em Zollikon, a convite do
psiquiatra suíço Medard Boss, declara: “O começo de todo o meu pensamento origina-se
numa frase de Aristóteles que diz que o ente é expresso de muitas maneiras. Na verdade
essa frase foi a faísca que provocou a pergunta: qual é a unidade destes significados
múltiplos de ser; na verdade, o que significa ser?” (2009, p. 158). Essa pergunta será o
leitmotiv consagrado em toda a empreitada filosófica heideggeriana, consistindo em uma
denúncia ao esquecimento da pergunta diretriz da filosofia. Tal feito é considerado por
7
A proposta de mutação se dá no pensamento heideggeriano em decorrência do seu propósito
central, o Ser. É nesse sentido que não se considera que Heidegger tenha uma preocupação antropológica,
pois sua preocupação passa, em primeiro plano, por uma destruição da ontologia. O aspecto da destruição
da ontologia será tratado no tópico seguinte.
8
“Desde a analítica do Dasein até às últimas meditações sobre os “mortais”, Heidegger atribui ao
pensamento uma tarefa singularmente ambiciosa e desconcertante: mudar a essência do homem e, por isso,
compreendê-lo diferentemente de toda tradição até ele” (HAAR, 1990, p. 93).
53
Heidegger como um erro fundamental, persistindo desde a antiguidade até seus dias. A
estratégia de Heidegger se expressa no §6 de Ser e Tempo (1927). Para que a mutação da
essência do homem seja erigida, faz-se necessário uma destruição fenomenológica
(phänomenologische Destruktion) da história da ontologia tradicional, isto é, aquela das
representações, com vistas à “certidão de nascimento” (HEIDEGGER, 2012, p. 87) dos
modos de ser do ser humano.
Ante ao desaparecimento do ser como questão efetiva, o projeto de Heidegger
em Ser e Tempo (1927) tem como tarefa inicial a elaboração de uma ontologia
fundamental, estabelecendo as condições de possibilidade de qualquer investigação
ontológica. O modo de acesso será viabilizado por um ente assinalado capaz de colocar a
questão de modo efetivo. Assim, Ser e Tempo elabora uma analítica existenciária desse
ente, o Dasein, a fim de explicitar suas estruturas existenciais. Essa analítica consiste na
dimensão primordial da hermenêutica, servindo como objeto de avaliação e correção de
qualquer hermenêutica particular nas ciências humanas.
Tinha de se tornar de grande significado o escrito de Heidegger Ser e
Tempo no ano de 1927, já que nele não se tratava apenas de uma
reabilitação de uma ingênua imagem de mundo e de uma vivência
originária, mas de uma análise ontológico-fundamental do modo de ser
no mundo e do Dasein pré-científico e exterior a ciência. O Dasein é
interpretado como cuidado e é analisado profundamente do ponto de
vista fenomenológico e ontológico em todas as suas articulações e
estruturas. Nessa obra se recorre sistematicamente a dimensões que
ficam atrás da análise intencional, fundando-se uma pura analítica
existencial ontológica, combatendo-se ao mesmo tempo, e superando-
se, a ontologia de Descartes, tão extraordinariamente prejudicial à ideia
de psicologia (KREUZLINGEN, 1941 apud STEIN, 2012, p. 12).
A elaboração em Ser e Tempo de uma analítica preparatória com vistas à questão
do ser do ente viabiliza uma compreensão profunda do ser humano do ponto de vista de
suas articulações e estruturas. Como comenta Pasqua, Heidegger tinha o cuidado de se
afastar da problemática antropológica e se virar decididamente para a questão do ser. Ser
e Tempo “estuda o comportamento existencial do Dasein para melhor se interrogar sobre
a sua dimensão ‘Existential’” (1993, p. 8). Para além da postura metodológica adotada
em sua obra, Heidegger tem o interesse pela aplicabilidade de suas reflexões, postura que
se faz notar especialmente no empreendimento de Zollikon que, segundo Stein, “lhe era
muito importante e representava a janela que se abria das concepções de Ser e Tempo
para os campos da Psiquiatria, da Psicanálise e da Psicologia” (2012, p.13).
Embora haja uma diferença de mais de três décadas entre a obra de 1927 e a os
seminários que ocorreram entre 1959 e 1969, Heidegger retoma os conceitos elaborados
54
em Ser e Tempo (1927) com os convidados de Boss, conferindo a atualidade do caminho
percorrido e assegurando sua possível aplicabilidade. Essa é a justificativa por incluir no
percurso deste trabalho a obra gestada em Zollikon. Como comenta Duarte, o que unifica
esses dois períodos é a reflexão sobre a ciência em particular e a possibilidade de uma
ciência ôntica do humano filosoficamente fundada que se dá por meio da “[...]
persistência de uma análise desconstrutiva dos pressupostos ontológicos da ciência
moderna” (2004, p. 33).
O esforço, cuja intenção é compreender o ser humano desde suas estruturas e
articulações, principalmente a que parte de uma análise desconstrutiva do modelo de
ciência moderna para uma compreensão do objeto próprio das ciências do humano, passa
a não ser uma atividade isolada que se origina na filosofia para as ciências ônticas.
Consiste também em um movimento dentro da própria ciência da alma em despertar de
seus sonhos e abrir, para o ser do ente, olhos que investiguem sem circunscreverem
exclusivamente os resultados objetivos de tal análise. Esse despertar foi viabilizado por
Ser e Tempo, que, segundo Stein, representou, nos anos vinte, uma das bases teóricas
mais importantes para tendências da psiquiatria, além de contribuir como instrumento de
renovação e de aprofundamento de categorias centrais na ciências da alma, ou como um
instrumento importante de correção de conceitos psiquiátricos e de refutação de
determinadas posições (2012, p. 11).
Esta seção pretende aproximar Heidegger e Frankl. Em comum, esses
pensadores apresentam uma crítica à Weltanschauung moderna, principalmente quanto à
imagem de ser humano, forjada pela visão de cunho científico-natural. Para além de uma
crítica à concepção de subjetividade, própria desse período, esses pensadores elaboram
uma crítica à teoria psicanalítica. Essa crítica os aproxima. Preliminarmente, destroem
essas concepções gestadas no psicologismo, para daí elaborarem uma apropriação de um
ser humano em sua totalidade.
A analítica existenciária do ser humano é, para Heidegger, um meio para
alcançar o pretendido: uma ontologia fundamental. É uma análise provisória que tem em
vista o ser do humano. Embora a estratégia do filósofo de Messkirch se concentre em
torno da ontologia fundamental, a estratégia dessa analítica corrobora a crítica à
metapsicologia freudiana (STEIN, 2012, p. 11). Para Loparic (2001, p. 121), essa crítica
equivale a uma operação que não faz mais do que empregar, na teoria da subjetividade
psicanalítica, a crítica à teoria moderna da subjetividade. Nesse sentido, essa perspectiva
crítica contribuirá com a análise existencial frankliana porque aprofunda categorias
55
existenciais comuns a Frankl e Heidegger. Além disso viabiliza a refutação do aparelho
psíquico e de toda estrutura especulativa da psicanálise que impede um modo de
compreensão do ser humano por meio de suas estruturas e articulações.
3.1 A PROPOSTA DESCONSTRUTIVA HEIDEGGERIANA
A proposta de uma mutação da essência do ser humano nasce de uma perspectiva
crítica sobre as várias concepções que esse recebeu ao longo da tradição. Tais concepções
são fruto, principalmente, de conceitos representacionais enrijecidos, caracterizados por
uma perspectiva mecanicista e devedora das ciências naturais. O que se compreende por
tal mutação não consiste na substituição de uma essência por outra. Antes, o que se requer
é uma recondução da teoria da subjetividade às suas fontes.
Dito de outro modo: a proposta de uma mutação da essência do homem exige
“diagnóstico e superação do império da subjetividade, da relação sujeito-objeto, dos
modelos objetivistas ou empiricistas da representação” (STEIN, 2014, p. 51),
considerando essência diferentemente como a tradição a concebeu, ou seja, não em
termos de uma ousía, mas pela “compreensão de si do Dasein, que, de qualquer modo,
põe-se a compreender o ser a partir de uma determinada região dos entes, no seio de uma
relação privilegiada de si mesmo com o ente e seu ser” (DUBOIS, 2004, p, 22).
Haar considera que a destruição não é, de modo algum, uma postura de negação
da tradição, mas uma apropriação positiva dela. A desconstrução não consistiria em um
desmantelamento, uma colocação de peças sem finalidade, como algo meramente
herdado, pois isso a tornaria banal (1990, p. 120).
O essencial da des-construção – sem a qual ela se reduziria a tornar a
atravessar as sedimentações dos sentidos – consiste na conquista duma
experiência originária do ser, quer dizer, numa descoberta
fenomenológica, pela qual é possível ver de novo uma estrutura
elementar esquecida do ser-no-mundo. Esta mostração
fenomenológica deve ser expressamente cumprida, mesmo correndo o
risco de explicar, deste modo, coisas óbvias (HAAR, 1990, p. 121 –
Grifo meu).
Araújo (2014, p. 15) corrobora essa temática. Para ele, a crítica ao passado não
tem como finalidade o colocar à parte, mas se respalda em colher as modalidades
concretas e pressupostos que guiaram uma particular investigação filosófica, cujo escopo
circunscreve suas possibilidades e individualiza seus limites.
56
Inspirado pela obra de Heidegger, Loparic sugere que o acesso à estrutura
elementar do ser-no-mundo, a partir de sua singularidade, só se efetiva com um
empreendimento de dupla tarefa desconstrutiva: a crítica à metafísica da subjetividade e
à metafísica da natureza (2001, p. 104). Para esse autor, essas tarefas gerais estão
intimamente ligadas, pois “a metafísica da subjetividade contém, enquanto teoria da
representação, os elementos fundamentais de uma objetivação da natureza” (LOPARIC,
2001, p. 104).
Como fica patente, a mutação da essência do ser humano enquanto destruição
fenomenológica não tem por objetivo a negação da tradição. O que se pretende é uma
apropriação positiva dessa. Isso porque a mutação de uma essência não poderá deixar de
se constituir enquanto destrutiva. Portanto, trata-se de uma empreitada destrutiva
(destruktiv) e não destruidora (zerstörend) (FRANCO DE SÁ, 2008, p. 6). A proposta de
destruição não tem como intento uma superação, negação ou aniquilação da tradição, no
sentido da Zerstörung, mas implica um “voltar a trazer à luz a mostração de novo duma
experiência do ser que foi dissimulada, soterrada, encoberta pelos próprios conceitos
graças aos quais devia ser exibida” (HAAR, 1990, p. 120).
Para Haar, uma mutação da essência do ser humano requer uma empreitada de
dupla tática (1990, p. 120): genealógica e apropriativa. Enquanto a empreitada
genealógica está para a história do ser humano, a dimensão apropriativa incide sobre um
retorno à tradição desde uma experiência originária, não com vistas à transposição da
essência do ser humano para algo díspar dele, mas um voltar a trazer à luz a experiência
originária. Isso porque a empreitada genealógica não possui aquele sentido empregado
por Nietzsche, mas o proposto por Husserl, o de um retorno a uma experiência originária
fenomênica do sujeito. Além disso, Haar considera que é o próprio ser humano quem
deve fundamentar, não apenas a etapa destrutiva, mas também sua etapa construtiva.
Quando o eu sou é assim descontruído não é para ser arruinado,
restringido, mas aberto a uma dimensão mais ampla, que é a da
dispersão original do Dasein, numa multiplicidade de relações espaciais
e temporais, de actividades, de assuntos, de preocupações... Esta
descrição tem por único objectivo mostrar que o sum não é
originalmente uma substância encerrada sobre si, um ente posto à frente
– que somente em seguida entraria em relação com o mundo – mas é
logo relacional (HAAR, 1990, p. 121).
Assim, a crítica desconstrutiva pretende uma abertura da Weltanschauung
imputada ao ser humano, como um polo díspar da realidade, em sua ipseidade. A
recondução dessa subjetividade aos seus aspectos originários faz emergir a concepção de
57
que o ser humano é, de per si, relacional. Essa concepção da existência está na base da
imago hominis plasmada por Frankl, alicerçando sua concepção psicoterapêutica. Isso
porque, na base de qualquer teoria psicológica, encontra-se uma concepção antropológica
precisa e determinada (FRANKL, 2014, p. 58). Daí a importância de alçar a compreensão
sobre o ser humano ao patamar ontológico, a fim de evitar a compreensão antropológica
com prejuízos para ele.
Ao relacionar esses termos do vocabulário heideggeriano ao pensamento de
Frankl, não se considera que ele utilize esses conceitos em suas obras ou mesmo que essa
perspectiva apareça de modo claro na elaboração da análise existencial. Todavia, ao se
valer do empreendimento heideggeriano na leitura da proposta de Frankl, os objetivos
deste último se tornam mais evidentes. Ao perscrutar as concepções antropológicas da
psicoterapia de seu tempo, Frankl se depara com uma Weltanschauung na qual a
compreensão do ser humano é pautada pelo psicofísico. Com a postura destrutiva do
homem bidimensional, Frankl não pretende suplantar teorias vigentes, como é o caso da
psicanálise ou da psicologia individual, mas desvelar a realidade existencial do ser
humano como ser corpóreo-psíquico-espiritual. Frankl almeja promover a abertura
daquelas para uma concepção mais originária do ser humano, contribuindo para
reconstrução própria da destruição.
Assim, a crítica de Frankl, que aqui se denomina de destruição, não está
endereçada às dimensões corpórea e psíquica do ser humano, mas à concepção de unidade
psicofísica. Esta, ao privilegiar apenas alguns aspectos do sujeito em detrimento de sua
unidade, deixa escapar o que lhe personifica. Para Frankl, “somente colocando o olhar no
ser espiritual, na sua tensão fundamental aos valores e ao significado, é que se poderá
desvendar a significatividade do real e poderá aparecer, em toda sua plenitude, o
significado do ser” (FRANKL, 1978, p. 200).
3.2 DESCONTRUÇÃO DA CONCEPÇÃO NATURALISTA DE SER HUMANO
O ser humano, enquanto objeto de reflexão, sempre esteve presente nas teorias
de filósofos, historiadores, moralistas, teólogos e literatos. A partir do século XVII as
Geisteswissenschaften iniciam um empreendimento de busca por um estatuto próprio,
alcançando seu auge durante o século XIX, quando diversos âmbitos dessa reflexão
visaram transformá-la em pesquisa científica. A partir da atmosfera do “espírito positivo”,
essas teorias se emanciparam. Contudo, deram origem ao estatuto epistemológico das
58
ciências humanas sob o enfoque naturalista. A abordagem naturalista se reporta às
tentativas de organizar, à semelhança das ciências naturais, a pesquisa dos fenômenos
humanos. Esse modo de proceder se alicerça na abundância de provas para se constituir
como um modo confiável de obtenção do conhecimento. Por esse estatuto
epistemológico, as ciências nascentes devem eliminar especulações metafísicas,
restringir-se a teorias que possam ser testadas e procurar regularidade que permitam
prever, de modo adequado (objetivo), o domínio de seus objetos (CUPANI, 2009).
Nas atas do Seminários de Zollikon (1987), Heidegger comenta que a tendência
em compreender o ente como um objeto não é próprio de um pensamento antigo ou
medieval, mas peculiar à concepção moderna que trata a natureza como representações.
A objetivação, imbuída no processo representativo, é dirigida pela intenção de mensurar
e controlar a natureza.
A objetivação da natureza assim determinada seria então o projeto da
natureza como de um âmbito objetivo que pode ser dominado. Os
passos decisivos para o desdobramento deste projeto da natureza para a
dominabilidade foram realizados por Galilei e Newton. O termo
dominante é como a natureza é representada, e não o que ela é. O
desenvolvimento da ciência assim aplicada leva ao fato de que a
maneira de proceder contra a natureza define a ciência de modo cada
vez inequívoco (HEIDEGGER, 2009, p.174).
Heidegger deixa evidente, em sua crítica, que a tese central da objetificação da
natureza herdada da ciência natural se faz cada vez mais expressa pelo seu modo de ação:
a intenção de dominação. No empreendimento que visa a levar a cabo tal intenção, o
pressuposto para a determinação da natureza é aquele que a vê do ponto de vista da
calculabilidade. Ao reduzir a natureza a sua representação objetiva, desconsiderando o
que ela realmente é, as ciências da natureza efetivam seu intuito de a dominar. Para
Loparic, a “representidade (“Vorgestelltheit”), ainda quando meramente ficcional,
assegura a mensurabilidade e a manipulabilidade por operações de cálculo” (2001, p.
107). Assim, os métodos empregados por essas ciências têm como base uma atitude
positiva.
O sucesso obtido pelo modo como as ciências naturais trataram de seu objeto,
avançando em suas pesquisas, fez com que as ciências do homem procedessem da mesma
maneira. Entretanto, em vez de buscarem um método compatível com seu objeto, optaram
pela adoção do modelo galileano na compreensão do ser humano. A atitude científica de
Galileu que coincide com a atitude científica moderna é a busca, na natureza, de
regularidades matematicamente expressáveis, as leis da natureza, por meio do método
59
capaz de certificar a verdade através da realização de experimentos, apontando para as
verossimilhanças.
Para Heidegger, tal concepção constitui uma modificação na consideração da
presença, pois o ente não é mais entendido pela possibilidade de representação. Isto é, o
ente não é tomado a partir de si mesmo, mas só adquire certa validade quando considerado
a partir de um sujeito que o representa, passando a presença a constituir a própria
representação. A compreensão do ser humano dentro desse paradigma é a de um “um
ponto de massa espaço-temporal em movimento” (HEIDEGGER, 2009, p. 194). É nesse
topoi que as ciências pertinentes ao ser humano, tais como a psicologia, a antropologia, a
psiquiatria, dentre outras, se situam. Consideram-no como um objeto em sentido lato, isto
é, como algo simplesmente presente, como a totalidade do que é verificável a partir da
experiência (HEIDEGGER, 2009, p. 192s).
Na contramão dessa compreensão, Heidegger busca distinguir o modo de ser do
ente humano dos demais entes naturais, tema recorrente nos Seminários de Zollikon.
Heidegger relembra que, em Ser e Tempo (1927), o vocábulo “Da-sein” designa o ser-aí.
Não consiste em uma simples presença, como a de um livro sobre a mesa, pois, nesse
caso, eles não se relacionam. O ser-aí do Dasein implica desde sempre a abertura. Não se
trata de uma abertura física, como a de um copo, por exemplo. A abertura do ser humano
pertence à clareira (Lichtung). Essa não se refere a luz, mas a um tornar livre, um demorar.
Ao se encontrar nessa clareira, o ser humano se ocupa com as coisas, com os outros e
consigo próprio. Ele é logo relacional. Nesse sentido, o relacionar do ser humano
pressupõe um ter visto. Ser consciente alude, sempre e em primeiro lugar, ao ser-o-aí e
não o contrário. Com isso, Heidegger chama a atenção para o fato de que o saber, o ter
visto e o ser consciente se dão na e pela condição fundamental da abertura que é o ser-
em-o-mundo.
Dada a importância desse existencial, no §12 de Ser e Tempo, Heidegger
apresenta como ponto de partida para a analítica existenciária a constituição de ser que é
denominada de ser-em-o-mundo9. Ao se dedicar a uma análise do modo de “ser-em”,
deixa evidente que se trata de uma constituição do ser do Dasein, portanto não tem sentido
categorial (uma remissão às coisas), mas é existenciário (permite ao Dasein compreender-
se enquanto tal). Nesse sentido, o “ser-em” do ser humano não implica, de modo algum,
uma relação entre dentro e fora, interior e exterior, sujeito e objeto. O ser humano e o
9
Como relembra o tradutor de Ser e Tempo, Fausto Castilho, a tradução por “ser-no-mundo” é uma
forma simplificada de “ser-em-o-mundo” p. 169.
60
mundo não se dão como o estar-um-ao-lado-do-outro, mas como estrutura de fundo da
relação habitual do ser humano. Essa perspectiva traz à baila aquelas considerações sobre
o ser humano nos termos de um objeto, sublinhando, com o §12, a estrutura unitária do
ser-em-o-mundo.
A proposta heideggeriana de uma analítica mais fundacional do ente humano se
torna polo de interesse daqueles que buscam uma interpretação alternativa àquela das
ciências naturais. Contudo, antes de transportar para as ciências do humano os resultados
de tal analítica, deve-se levar em conta a delimitação realizada por Heidegger logo no §10
de Ser e Tempo. Há nessa seção uma distinção da analítica do Dasein em relação a outras
análises do ser humano, tais como as realizadas pela antropologia, psicologia, psiquiatria
ou pela biologia. De modo geral, Heidegger compreende que a análise antropológica
tradicional gira em torno de dois fios condutores: a definição de homem como um
subsistente racional, próprio da metafísica grega, e a definição do ser e da essência do
homem pela teologia cristã. O que há em comum entre essas duas perspectivas e a crítica
heideggeriana é a determinação essencial do ser humano como “algo-que-se-entende-a-
si-mesmo” (2012, p. 159). Para o autor, esses fios condutores são o ponto de partida para
a concepção antropológica moderna enquanto “res cogitans”. A concepção moderna em
cuja tendência antropológica a psicologia se assentará será influenciada por uma
apreensão e interpretação da biologia geral como ciência da vida (2012, p. 161).
Heidegger ressalta que, embora na idade moderna se privilegiasse o sujeito, ele era
concebido enquanto subiectum, isto é, como substrato de possíveis atribuições. A partir
de então, as perspectivas antropológicas não fazem a pergunta pelo sentido de ser do
humano.
Em referência a M. Scheler, Heidegger sustenta em sua analítica que a pessoa
não é uma coisa, nem uma substância ou mesmo um objeto. A essência da pessoa pertence
ao existir enquanto execução dos atos intencionais, sendo esses ligados pela unidade de
um sentido. Sendo unidade, a pessoa não é passível de objetivação, pois a objetivação e
apreensão dos atos intencionais como psíquicos é despersonalização. Ao interpretar a
existência do ser humano como não causada, mas ocasionada, assegura-se ao humano a
complexidade do existir, a imprevisibilidade de ser todo, isto é, um modo distinto de toda
perspectiva objetificante.
O que está em questão é o ser do homem todo, que se costuma apreender
como unidade de corpo-alma-espírito. Por sua parte, corpo, alma,
espírito podem designar âmbitos de fenômenos que, no propósito de
determinadas investigações, podem ser tematicamente separados;
61
dentro de certos limites, sua indeterminação ontológica pode não ter
muito peso. Mas na pergunta pelo ser do homem, o ser não pode ser
calculado pela soma de modos-de-ser do corpo, da alma e do espírito
(HEIDEGGER, 2012, p. 157).
A consideração heideggeriana de uma unidade do ente humano em detrimento
de uma visão fragmentária deixa patente que, no âmbito de uma análise dirigida à
compreensão desse ente, o que deve fundamentar tal análise é a remissão a uma
compreensão da experiência mais originária das estruturas ontológicas fundamentais
genuínas. As ontologias regionais devem ter em conta o ser do homem em sua totalidade,
e não apenas as análises efetivadas no campo de fenômenos particulares, tais como a do
corpo, a da alma e a do espírito. O humano também não é resultado de uma compreensão
dessas três dimensões a ermo. A possibilidade de uma compreensão efetiva do ser
humano se dá, única e exclusivamente, por uma perspectiva com vistas a sua unidade.
Nesse sentido, a análise do ser humano no campo ôntico, ainda que não seja sua
especificidade, devido a peculiaridade de seu objeto, reclama um olhar adiante, isto é,
para além das dimensões a ermo. Requer uma consideração ontológica.
A crítica heideggeriana às concepções antropológicas tradicionais, cuja analítica
pretende delimitar, é basicamente decorrente de substancialismo e antropocentrismo. Faz-
se necessário explicitar a teoria antropológica de Frankl, a fim de verificar se ela não
incorreria em tal crítica.
O problema do substancialismo é que o ser humano deve ser visto de modo
diferente de um composto de alma e corpo ou como um “vivente dotado de palavra”, um
zoon logon échôn, que a técnica transformará em um “vivente que calcula” ou “que
trabalha”. Na concepção de Haar (1990, p. 94), “o homem não é primeiramente uma
substância corporal animada, ou unidade de suas substâncias, mas ek-sistência, quer
dizer, abertura, transcendência, relação ex-tática com o ser”. Em relação ao
antropocentrismo, Nietzsche já diagnosticava, no §12 de sua Genealogia da Moral
(1887), uma necessidade de mutação, pois estava fatigado do homem prometeico ou
triunfante do século XIX. Para Heidegger, o homem se tornou demasiadamente penetrado
na certeza de si, ilusoriamente mestre do universo (HAAR, 1990, p. 94). Heidegger
procurará retirá-lo dessa ilusão: ele não é o centro dos entes, mas se mantém no meio dos
entes sem ser o meio desses. A tarefa heideggeriana será a de “reencontrar o elemento do
homem [...] o que o torna possível aquém da própria biologia, ou a partir do que ele é. Ser
seu elemento é ser si-mesmo” (HAAR, 1990, p. 94).
62
Essa insatisfação está expressa na consideração de Frankl quanto às teorias
psiquiátricas vigentes. Para ele, o problema essencial delas não está para além do ser
humano, mas o evidenciam de modo específico, a partir da concepção naturalista que
fundamentam tais teorias. A proposta de Frankl não tem como objetivo a saída do ser
humano para outra essência, mas um aprofundamento em relação as suas estruturas
essenciais. Consiste em desvelar um nível estrutural já antes tematizado pela tradição,
mas que permaneceu esquecido: o do espírito. É essa perspectiva que o leva a afirmar que
“a dimensão do espiritual constitui pela primeira vez o espaço do humano” (FRANKL,
2014, p. 69).
Resta saber: a constatação de que a dimensão espiritual constitui o espaço
humano não levaria Frankl a incorrer em um substancialismo do tipo espiritualista? Em
sua defesa, ele continua: “dizemos expressamente ‘pela primeira vez’, mas não ‘apenas’!”
(FRANKL, 2014, p. 69). Nesse sentido, não se poderá lhe imputar uma espécie de
espiritualismo, pois o noético não consiste em “uma”, mas em “a” dimensão, sem,
contudo, ser a única. Ao caracterizar a existência humana a partir da dimensão espiritual,
Frankl desvela o modo de ser ontologicamente próprio do ser humano que, compreendido
como existência espiritual, representa no pensamento de Frankl, uma problemática de
central importância, tanto em termos ontológico, quanto psicoterapêutico. (FRANKL,
1997, p. 20). A retomada da dimensão espiritual viabiliza uma compreensão, na e pela
terapia, da unidade dimensional. Essa promoção não diz respeito apenas a termos
quantitativos – pertinentes a uma constituição física –, mas principalmente qualitativos.
A análise, desde o espiritual, desvela à realidade humana a sua existencialidade, isto é,
manifesta tudo aquilo que o ser humano ainda não é, mas pode vir a ser.
A tridimensionalidade promovida pela concepção antropológica frankliana não
consiste na soma de modos de ser, suprimindo dimensões em vista de uma unidade, pois,
nesse caso, pode-se decorrer em substancialismo. Ao afirmar que o ser humano é
somático-psíquico-espiritual, o próprio uso do hífen já remete à concepção unitária, sem
o abandono da especificidade nas dimensões que a compõem. Embora Frankl insista que
o ser humano tenha corpo e psíquico, mas seja espiritual, e que essa última dimensão é a
propriamente distintiva, não há a possibilidade de uma concepção espiritualista, pois as
três dimensões exercem o mesmo grau de importância na constituição do humano. Não
há espírito, se não houver corpo e psíquico, do mesmo modo, não há humano, se houver
apenas o psicofísico. Isso porque é a dimensão espiritual a garantidora da totalidade do
63
ser humano, sendo compreensível somente através de uma amplitude transcendental.
Nesse sentido, Lima Vaz corrobora:
com a categoria do espírito ou com o nível estrutural aqui designado
como noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser
humano. É nesse nível que o ser homem abre-se necessariamente para
a transcendência: trata-se de uma abertura propriamente
transcendental, seja no sentido clássico, seja no sentido kantiano-
moderno, que faz do homem nesse cimo do seu ser que é também, para
usar outra metáfora, o âmago mais profundo de sua unidade, um ser
estruturalmente aberto para o Outro. (1991, v. 1, p. 201).
Outra delimitação para a perspectiva das concepções antropológicas tradicionais
é a do antropocentrismo, decorrência natural de uma concepção espiritualista. Confere ao
ser humano um nível privilegiado em relação aos outros entes, visto que somente essa
espécie seria a possuidora de tal essência. Assim como Frankl se posiciona contrário ao
substancialismo, também o será em relação ao antropocentrismo. Em Homo patiens
(1950), ele defende que a tendência antropocêntrica tem início quando o ser humano não
apenas se situa no primeiro plano de observação, mas no ponto central de valorização.
Isso equivale a dizer de sua absolutez como medida de toda valoração.
A consideração de um ser humano como pessoa espiritual não lhe confere um
status de completude, mas lhe implica uma permanentemente abertura (é ex-sistência). A
dimensão espiritual representa o desvelamento qualitativo de suas potencialidades. Nesse
sentido, essa estrutura primigênia seria apenas o solo elementar sobre o qual o ser humano
se constrói a partir de suas escolhas. Essas são possibilitadas pelo mundo que o integra e
o interpela. Na lógica da realidade proposta por Frankl, o mundo não exerce um papel
passivo frente ao ser humano. Como exemplo, tem-se a temática do sentido da vida, na
qual não é o ser humano que dota as coisas de sentido, do mesmo modo que não é ele
quem questiona o sentido da vida. Nessa lógica, mundo (com toda sua complexidade) e
ser humano são coparticipes no processo de vir-a-ser da pessoa espiritual.
Em decorrência dessas análises, percebe-se que a crítica heideggeriana às
concepções antropocêntricas não se aplica a Frankl, visto que esse concebe o ser humano
de modo aberto ao mundo, valendo-se dele na sua própria constituição. Nesse sentido, a
concepção de uma essência como ponto de partida na compreensão do ser humano não
tem como intuito uma concepção estática do mesmo, o que lhe imputaria um destino
inapelável. A essência não corresponderia a uma quididade, no sentido da apropriação
escolástica da concepção aristotélica enquanto forma – aquilo pelo qual uma coisa é.
Corresponderia, portanto, a algo pertinente a toda a espécie, ou seja, aquilo pelo qual um
64
ser humano pode vir a ser. A compreensão a partir de uma essência, isto é, a partir do ser
espiritual, não tem em vista um ser fechado, absoluto, mas em constante mudança a partir
de escolhas que o próprio indivíduo faz de si e de seu mundo. A compreensão dessa
dimensão como a mais própria não resulta em uma posse, no sentido de algo apartado do
ser humano. Em termos lógicos, se assim fosse, pertenceria a algo ou alguém, autorizando
a falar de “minha pessoa” ou “meu eu”. É nesse sentido que a proposta de mutação não
visa a uma saída para além do ser humano, pois para Frankl a dimensão espiritual é o si
mesmo do ser humano.
Essa perspectiva de Frankl, além de possibilitar uma compreensão antropológica
em geral, tem como objetivo principal o embate com a visão naturalista adotada pelas
ciências da alma, isto é, com a questão do psicologismo. Esse, a partir do
desenvolvimento da teoria psicanalítica freudiana é um dos exemplos da reflexão sobre o
ser humano compreendido a partir do paradigma galileano. Freud desenvolve a teoria
psicanalítica com o objetivo de resolver os problemas do estudo empírico e do tratamento
das neuroses. Na conferência A questão de uma Weltanschauung, presente na obra Novas
conferências introdutórias à psicanálise (1933), Freud esclarece que a psicologia do
inconsciente é um ramo da psicologia que compartilha a “visão científica do mundo” com
as de outras ciências. Sobre o conceito de Weltanschauung, ele esclarece:
Em minha opinião, a Weltanschauung é uma construção intelectual que
soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com
base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não
deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa
encontra seu lugar fixo. Facilmente se compreenderá que a posse de
uma Weltanschauung desse tipo situa-se entre os desejos ideais dos
seres humanos. Acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida,
pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as
emoções e interesses próprios da maneira mais apropriada (FREUD,
1933, p. 93).
A consideração de Freud deixa patente que a “visão de mundo psicanalítica” não
é própria dela nem adequada ao seu objeto. Ela é compartilhada pela ciência à qual adere,
tendo como intenção a de dar segurança ao seu constructo teórico. Nesse sentido, a
explicação do ser humano é dada a partir de uma hipótese científica, considerada por ele
como superior, o que corrobora para pensar o ser humano a partir do prisma dos
fenômenos psíquicos. O lugar fixo ao qual Freud recorre para dar respostas sobre como
lidar com as emoções e interesses é o aparelho psíquico, parte integrante de seu edifício
teórico. Pela compreensão uniforme do profundo, isto é, do inconsciente, o ser humano
encontraria, de modo objetivo, o modo de lidar com suas questões vivenciais.
65
2.2.1 A crítica da compreensão da psiquê de Freud
A teoria psicanalítica foi desenvolvida por S. Freud como meio para resolver
problemas de estudo empírico constatados na clínica psicológica e no tratamento das
neuroses. A psicanálise é composta por ciências de tipos diferentes: empírico e
especulativo. A primeira corresponde à psicologia dos fatos clínicos; a segunda, à
metapsicologia. Suas “fantasias metapsicológicas” começam a nascer em 1915, ano em
que ele publica O inconsciente na Internationale Zeitschrift für Ärztliche Psychoanalyse.
Esse escrito busca justificar a suposição, a partir de provas, do inconsciente como
necessário e legítimo na compreensão do ser humano. Tais provas se dão com a
observação da existência de lacunas, tanto em pessoas sadias – por meio de ações falhas
e sonhos –, quanto por meio de sintomas e fenômenos obsessivos de pessoas consideradas
doentes (FREUD, 1915, p. 75). A metapsicologia é a psicologia do inconsciente
elaborado por Freud. O conceito de inconsciente é criado para dar conta dessas lacunas,
conduzidas por trás da consciência. Em O ego e o id (1923), a introdução do inconsciente
é justificada de forma similar: explicar fenômenos observados na consciência.
Para Stein (2012), a metapsicologia consiste em uma teoria da psicanálise, cujo
desenvolvimento a diferencia e, ao mesmo tempo, a aproxima da psicologia da época.
Isso porque explora um universo que exige não apenas um método, mas a abordagem de
aspectos que a psicologia natural não tinha sensibilidade até então. No aspecto de sua
psicologia clínica, a psicanálise estuda os distúrbios psíquicos. Ao pesquisar esses
distúrbios, hodiernamente chamados de neuróticos, Freud percebe, no aspecto
sintomatológico, uma regularidade de fenômenos básicos, tais como os da repressão, da
resistência e da transferência. Para ele, há uma conexão regular entre esses fenômenos
com a questão da sexualidade e as diferentes fases do desenvolvimento do ser humano,
principalmente as da infância, da qual emerge a gênese do paradigma edipiano. Esse
complexo não é apenas o fator central na etiologia das neuroses, mas também o centro
em torno do qual se organizam a sexualidade, as relações sociais e a própria subjetividade.
Freud enfatiza as técnicas psicanalíticas em Recordar, repetir e elaborar (1914).
Para ele, “o objetivo dessas técnicas permaneceu inalterado, sem dúvida. Em termos
descritivos: preenchimento das lacunas da recordação; em termos dinâmicos: superação
das resistências da repressão” (1914, p. 147). Esse duplo aspecto ressalta o objetivo das
66
técnicas psicanalíticas no material metapsicológico e os elementos para a elaboração de
uma teoria rigorosa, que, para conseguir dar consistência às especulações no campo
científico, articula-se a uma metabiologia, por meio da relação entre causa e efeito na
explicação dos enigmas do objeto abordado.
A dimensão empírica da psicanálise almeja, a partir da clínica, a compreensão
dos processos mentais por meio de explicações. Buscam-se a compreensão e a
interpretação dos processos psíquicos como causas dos sintomas que emergem. A
interpretação da doença psíquica por uma concepção naturalista leva ao problema de
como encontrar as causas desses elos faltantes entre as “cadeias” da consciência
neurótica. Por essa perspectiva, a saúde e a doença no ser humano seriam uma questão de
ordenamento externo, já que os distúrbios psíquicos são compreendidos como
perturbações das relações externas – espaço-temporais e causais – com os conteúdos
internos. O guia teórico-metodológico para a elaboração dessa metapsicologia é a
concepção dinâmica do psiquismo de tipo especulativo.
Se de um lado Freud inicia o desenvolvimento desse conjunto de temas por meio
das ciências naturais, o método especulativo metapsicológico se caracteriza como um
projeto teórico provisório e supletivo, apresentando considerações de possíveis soluções
para as questões abordadas. Enquanto não houver solução no âmbito da ciência natural,
a psicologia clínica experimental se mantém de pé mediante um edifício metapsicológico,
construído mediante andaimes de uma construção provisória (STEIN, 2012, p. 38). Freud
entendia que essa característica supletiva da metapsicologia seria solucionada no
momento em que a ciência físico-química tivesse avançado ao ponto de dar respostas
empíricas à psicanálise.
Embora a metapsicologia represente uma tentativa de fazer uma ponte entre as
ciências naturais e as ciências da cultura (STEIN, 2012, p. 40), a construção teórica
oriunda do método especulativo consiste em uma “supraestrutura” especulativa que se
caracteriza por um conjunto de “convenções”, isto é, de construções auxiliares,
introduzidas com o objetivo de uma utilidade metodológica e heurística na busca de novos
resultados clínicos e na organização desses materiais factuais. A especulação psicanalítica
se vale de três grandes eixos como modelos auxiliares das explicações sobre os processos
psíquicos: o tópico (espacial), o dinâmico (forças) e o econômico (energia) (FREUD,
1915, p. 90).
Ainda que não seja passível de hierarquização, o eixo dinâmico tem uma
precedência didática. Isso porque ele é caracterizado a partir de pulsões concebidas como
67
forças de natureza psíquica. Assim como os físicos supõem que há uma força que age
sobre a matéria, as forças psíquicas são tomadas como fundamento estrutural capaz de
organizar e de relacionar fatos, garantindo assim, a busca pelas explicações dos
fenômenos observados. Não obstante, assim como em outras teorias oriundas das ciências
da natureza, essas forças físico-químicas que agem sobre a matéria não são realidades
empíricas, mas se caracterizam como construtos teóricos especulativos, cujos valores são
meramente heurísticos. Mesmo tendo ciência de que o conceito de pulsão é uma ideia
abstrata, uma convenção sem conteúdo empírico, Freud a considera imprescindível à
psicologia.
A suposição de que o psiquismo é como um aparelho passível de ser
figurado espacialmente, no qual circula uma energia psíquica de
natureza sexual, a libido, também faz parte das hipóteses
metapsicológicas. Esses conceitos fornecem, respectivamente, três
grandes eixos da metapsicologia, eles servem como modelos ou
conceitos auxiliares para que se possam buscar explicações sobre os
processos psíquicos (FULGÊNCIO, 2003, p.144).
O eixo dinâmico, como já dito, corresponderia à suposição de pulsões, isto é, de
forças psíquicas em conflito. As pulsões seriam a causa motriz do funcionamento do
psíquico. Nesse viés, o eixo dinâmico seria impulsionado pelo eixo econômico a investir
afetivamente em objetos de desejo. O eixo econômico, correspondente à suposição de
uma energia psíquica de natureza sexual, a libido, pode ser avaliada quantitativamente.
Essas forças e energias especulativas são passíveis de serem identificadas, pois, a partir
de uma especulação topológica, o psíquico é compreendido como passível de ser
visualizado e representado espacialmente. É como se fosse um aparelho microscópio ou
qualquer objeto similar com o qual lidamos, sendo passível de diferenciar as instâncias
psíquicas que o compõem, sem jamais corresponder a uma localização anatômica.
Ao compreender que há, no pensamento freudiano, uma tensão permanente entre
as ciências naturais e as ciências da cultura, em sentido amplo, Stein (2012, p. 39)
compreende que Freud é filho do seu tempo, na medida em que não consegue superar, no
plano da teoria, os fundamentos da psicanálise – sua metapsicologia – dos fundamentos
empíricos ligados às ciências naturais. Isso porque a psicologia empírica freudiana é a
teoria das neuroses, o estudo da sexualidade em geral, da constituição do sujeito e da
ordem social e cultural. Esse estudo se consolida pela facticidade do psiquismo. Loparic
(2001, p. 97) compreende o psiquismo freudiano como “um conjunto de fenômenos ou
processos mentais, conscientes ou inconscientes, de um indivíduo ou de um grupo de
indivíduos, sediados em ou produzidos por uma psique (‘Seele’)”. O psiquismo é um
68
processo natural e a psicologia uma ciência natural que, como as demais gestadas no
paradigma galileano, obedecem às relações espaço-temporais e causas externas, o que faz
com que os fenômenos psíquicos sejam compreendidos como “correntes” ou “cadeias”,
cujos elos são atos mentais singulares (LOPARIC, 2001, p. 97).
Principalmente por esses fatos, acontecem as críticas à metapsicologia freudiana
pelos pensadores em questão. Ao articular as estruturas do ser humano por meio de uma
ciência que não é própria ao objeto da psicologia, busca-se uma explicação para as lacunas
patológicas a partir de forças que sejam quantificáveis, formuladas por uma linguagem
devedora da metafísica da subjetividade objetivante. Ao não ir além do biologismo e do
fisicísmo da época, Freud compreende o ser humano como um sistema fechado, um
aparelho psíquico que age de acordo com leis deterministas, ou seja, uma máquina
(mecanismo) capaz de produzir todos os fenômenos neuróticos, tratados como
perturbação das relações externas. Em síntese:
Freud coisifica a subjetividade humana, o que significa que ele aceita,
por um lado, o pressuposto da psicologia do seu tempo, herdado da
teoria metafísica da subjetividade, de que o ser humano realiza atos de
representação afetivamente carregados e, por outro, a suposição,
herdada da teoria metafísica da natureza, de que o homem é uma
entidade situada no tempo e no espaço objetivos, externos, em suma,
uma máquina movida a forças que obedecem ao princípio de
causalidade (LOPARIC, 2001, p. 101).
Embora a metapsicologia represente a base teórica da psicanálise, não constitui
seu fundamento. Por isso, a crítica endereçada à metapsicologia não é uma crítica ao
empreendimento freudiano como um todo, mas às teses e métodos de sua parte
especulativa. Talvez seja oportuna a ilustração utilizada por Frankl para situar sua
logoterapia diante do empreendimento freudiano. Ele se considera um anão diante do que
Freud representou para a psicologia. Contudo, sendo anão, estaria sentado nos ombros do
gigante, o que lhe permitiria enxergar um pouco mais adiante. Essa consideração
respeitosa de Frankl sobre Freud efetiva sua abordagem de forma supletiva, e não
“suplantiva”.
2.2.2 A crítica ao psicologismo
Assim como Freud, Frankl também é filho de seu tempo. Como comenta no
esboço autobiográfico de A questão do sentido em psicoterapia (1990), ele foi
influenciado por seu pai, que o levou a se interessar pela medicina desde os três anos de
69
idade. Além dessa formação no âmbito das ciências naturais, Frankl se dedicou à leitura
de filósofos da natureza e de Freud. Como comenta, tais obras lhe despertaram grande
interesse, levando-o a optar, ainda estudante de medicina, pela psiquiatria. Foi
introduzido na psicanálise por discípulos diretos de Freud. Os mesmos que facilitaram
correspondências entre ele e Freud. Aos 19 anos de idade, um dos anexos enviados a
Freud, quando Frankl ainda estava no colegial, foi encaminhado para publicação na
Internationale Zeitschrift für Ärztliche Psychoanalyse. Embora, em um encontro casual,
Frankl tenha-se impressionado muito com Freud, relacionou-se de forma mais próxima
com Adler, a ponto de fazer parte da Sociedade de Adler e ser o editor do periódico de
psicologia individual.
Em 1927 a relação com Adler se agravou. Rudolf Allers e Oswald Schwars
influenciaram Frankl de forma permanente. Diante do anúncio da saída desses da
sociedade de Adler, ele buscou mediar a situação, em um discurso no qual argumentou
em que medida a psicologia individual poderia superar o psicologismo. Poucos meses
depois, Frankl também foi expulso da sociedade de Adler.
Se, durante o período do colegial, Frankl se considera “imaturo para resistir à
tentação do psicologismo” (1990, p. 116), alguns anos mais tarde, aquela sensibilidade
despertada já aos quatro anos de idade sobre a transitoriedade da vida, tornou-se o fiel da
balança para superação daquela forma de reducionismo perante a qual, outrora, se
considerava imaturo. Enquanto Freud buscava se afastar de teorias filosóficas na
elaboração de sua psicoterapia, Frankl se enveredou sempre mais por elas, tendo um
propósito claro de compreender o ser humano e, com isso, superar o psicologismo. “Devo
dizer que quase não conheço ninguém que tivesse lutado tanto com essa problemática,
como eu o fiz por toda minha vida. Esse é o tema principal que está na base de todos os
meus trabalhos” (FRANKL, 1990, p. 117). Pereira comenta sobre um dos princípios
basilares da logoterapia:
A formulação a respeito da “vontade de sentido” (Der wille zum sinn)
deve ser entendida historicamente, no sistemático descontentamento de
Frankl com seus primeiros mentores. Tanto em Sigmund Freud, quanto
em Alfred Adler, a pergunta radical sobre uma orientação última, ou
uma motivação primeira para a vida humana parece insuficiente. Em
ambas as escolas, permanecia um conteúdo central inaceitável para a
visão de homem da logoterapia: um psicologismo desnorteador da
díade ontológica liberdade-responsabilidade e uma visão antropológica
estritamente solipsista no âmbito motivacional. (2009, p. 66).
Como já salientado, Frankl não considera as perspectivas de Freud e Adler como
equivocadas, mas incompletas. Tal incompletude se dá especialmente pela representação
70
de ser humano construída pela psicologia até então. A superação do psicologismo implica
repensar todo o conceito sobre o humano construído até então e pela defesa de uma visão
de mundo em que seja preservada a humanidade do homem em seu caráter real. Como
dito, na filosofia Frankl buscará os elementos teóricos para superar essa modalidade
acadêmica de reducionismo, própria da ciência da alma.
Em Psicoterapia e Sentido da vida (1946), Frankl define por psicologismo
“aquele processo pseudocientífico que, partindo da origem anímica de um ato, tenta
concluir a validade ou invalidade do seu conteúdo espiritual” (1989, p. 32). Para ele, a
identificação e compreensão do ser humano a partir dos fenômenos psíquicos,
circunscrevendo-os às relações espaço-temporais e justificando o comportamento do ser
humano pelas relações causais, consistiria em uma postura niilista. Em Homo patiens
(1950), Frankl explica que a essência do niilismo não está na negação da existência, mas
na negação do sentido necessário à existência. Para ele, há três variantes principais de
niilismo: o fisiologismo, o sociologismo e o psicologismo. Frankl compreende esse
último como a redução da realidade à dimensão psíquica:
O psicologismo também concebe o homem como um aparelho e se
refere a “mecanismos psíquicos”. Atentar, porém, exclusivamente ao
automatismo do aparelho psíquico, significa deixar de perceber a
autonomia da existência espiritual. A vida psíquica dará a impressão de
ser um jogo de forças impulsoras de funcionamento automático, e o
homem um feixe de impulsos. No contexto do psiquismo, faz-se
menção a “impulsos parciais” e “componentes de impulsos” como se,
com tais componentes, fosse possível obter uma resultante, a exemplo
do que ocorre com o paralelogramo de forças (FRANKL, 1978, p. 188).
A representação da vida psíquica a partir de um jogo de forças autômatas
consiste em uma perspectiva em que o sentido da existência não é considerado. Restringe-
se a vida, nessa visão de mundo, a uma camada determinada em que a existência
propriamente dita, por meio da qual se pode desvelar algo como intencionalidade, é
deixada de lado. Ou seja, negligencia-se a existência a partir do espírito e,
consequentemente, a questão fundamental sobre quem e como é o ser humano de fato, o
que ele é no mundo e como se relaciona com os outros e consigo mesmo.
A tese heideggeriana de que a estrutura do ente humano se fundamenta enquanto
ser-em-o-mundo configura sua crítica às teorias da subjetividade, ou seja, às psicoterapias
que preconizam a dimensão psíquica como único fundamento na compreensão do
humano. Loparic (2001, p. 105) comenta que os “conceitos fundamentais da ciência
factual do ser humano não devem ter os seus significados determinados no campo dos
71
fenômenos da consciência (o psiquismo), mas no das estruturas ontológicas fundamentais
genuínas, estabelecidas pela analítica existencial”.
Essa consideração contribui para a compreensão de que nem o psiquismo nem
as representações da realidade produzidas pela consciência fundamentam o ser humano,
pois ele só pode ser colhido coerentemente a partir de uma unidade categorial. As
representações do ser humano só são possíveis, porque primeiramente há essa unidade
mais fundacional enquanto ser-em-o-mundo e, só a partir dela, as visões segmentadas são
possíveis. Assim, a vida do ser humano, incluindo aí tanto a saúde quanto as suas
patologias, deve ser compreendida não como cadeias de atos psíquicos, fruto de uma
conexão interna e causal, mais precisamente como acontecenciais (LOPARIC, 2001, p.
106).
Como fica patente, a visão antropológica que fundamenta determinada
abordagem e a adoção de um método pertinente ao objeto são extremamente importantes
para a compreensão adequada do ser humano. Frankl, em Logoterapia e Análise
existencial (1967), defende que existem dois pontos delicados em uma antropologia
orientada de modo unilateral e exclusivamente psicodinâmica e psicogenética: a
compreensão de uma aspiração ao prazer no lugar de uma aspiração aos valores; e o
desconhecimento da orientação primária pelo sentido. Nesse contexto, ele compreende
por psicodinâmica a perspectiva que reduz tudo e cada coisa ao acontecimento pulsional,
e por psicogenética, a consideração que reduz tudo e cada coisa à história pulsional
(FRANKL, 2014, p. 105).
Essas perspectivas psicologistas revelam justamente o seu caráter reducionista.
Para Frankl, o prazer se torna um resíduo logo que um ato é privado de sua dimensão
intencional. Nesse sentido, o psicologismo deduziria a atividade psíquica daquilo que se
encontra contraposto, isto é, da pulsionalidade. O sujeito dessa atividade, isto é, a pessoa
espiritual, seria transformada em mera coisa. Isso o leva a afirmar, tanto em Homo patiens
(1950) quanto em Logoterapia e Análise existencial (1967), que o psicologismo peca
contra o espiritual em dois aspectos: “primeiramente, ao deixar de lado a existência da
pessoa espiritual, peca contra o ‘espírito subjetivo’; em segundo lugar, ao não levar em
conta a intencionalidade dos atos espirituais, peca contra o ‘espírito objetivo’”
(FRANKL, 1978, p. 196). Ao negar a dimensão espiritual do ser humano e, com isso, a
dimensão dos valores, o psicologismo objetifica não só a pessoa espiritual, mas também
os atos espirituais, revelando-se cego diante dos valores e dos fenômenos espirituais. A
decorrência dessa incompreensão é que no lugar da intencionalidade espiritual, passa a
72
restar só a facticidade psíquica (FRANKL, 1978, p. 204). No momento em que o ser
humano é reificado, a existência é objetivada e o sentido é subjetivado, o mundo perde
seu relevo valorativo, vítima desse nivelamento.
Em A vontade de sentido (1969), Frankl tece duras críticas à psiquiatria
existencial. Para ele, o fato de se valerem de alguns conceitos oriundos da filosofia não
as torna existencialistas, principalmente pela incompreensão dos conceitos utilizados.
Nesse hall está o conceito de “ser-em-o-mundo”. Para Frankl, na maioria dos casos, há
má interpretação do conceito heideggeriano, fundamental na crítica às teorias da
subjetividade. Em vez de se distanciarem de uma perspectiva reducionista, vão “na
direção de um mero subjetivismo, como se o ‘mundo’, no qual o ser humano ‘é’, nada
mais fosse do que uma mera expressão de seu si-mesmo” (FRANKL, 2013, p. 12).
Na medida em que ser-homem significa “ser-no-mundo”, o mundo
contém uma enormidade de valores e de sentido. O sentido e os valores
são “motivos” que acionam o homem. Quando interpretamos o homem
como um sistema fechado, banimos do campo visual justamente o
mundo aberto do sentido e dos valores que constituem possíveis
“motivos de ação” para o homem. Afastados os motivos e as razões,
restam as causas e os efeitos. Estes, conforme o caso, são representados
como processos condicionantes, instintos ou “mecanismos disparadores
automáticos”. Os instintos são algo que me empurra, ao passo que o
sentido e os valores algo que me puxa, me atrai (FRANKL, 1978, p.
180).
Frankl coloca em questão aquele aspecto pragmático da psicoterapia tratado no
capítulo anterior: a exigência ética. Ao considerar o ser humano como um sistema
fechado, restando apenas causas e efeitos, as perspectivas psicologistas veem o
apaziguamento dos conflitos internos por meio da homeostase ou da busca pelo
autopreenchimento e autorrealização. Já as perspectivas que o compreendem como um
ser-em-o-mundo, isto é, em sua abertura existencial, preservam aquele caráter
transcendente de ir além de si, em direção aos sentidos e valores que se precisa dar à vida,
cuja realização se dá por meio de uma autotranscedência.
Em Psicoterapia e Sentido da Vida (1946), Frankl denuncia que, desde o fim do
século XIX e início do século XX, a imagem de ser humano é paulatinamente deformada,
pois a compreendem, de modo predominante, a partir de um estado de sujeição. Na
concepção antropológica oriunda desse estado, o ser humano é concebido a partir de uma
hipotética impotência em face aos liames que o atam, como por exemplo, o biológico, o
psicológico e o sociológico (FRANKL, 1989, p. 49). Isto é, o ser humano é compreendido
pela sua representação. A esse respeito, Frankl esclarece:
73
Há projeções necessárias; sim, toda ciência ôntica está como tal – em
oposição a todo saber ontológico – em uma relação de dependência com
o empreendimento de projeções; em uma relação de dependência com
a abstração do caráter dimensional de seu objeto – com o afastamento
de dimensões. Exatamente isso, porém, não significa outra coisa senão:
projetar o respectivo objeto. Assim, a ciência tem a necessidade de
anular a estrutura plenamente dimensional da realidade: a ciência
precisa obscurecer e suspender – ela precisa fingir e fazer tudo “como
se...” (2014, p. 71).
Frankl denomina as representações de lógica das projeções, aludindo a figuras
de objetos que, colocadas contra a luz, projetam uma imagem distinta de sua matriz. A
crítica presente nessa consideração é de que, ao paradigma naturalista, interessam as
projeções ou representações do objeto, não o objeto em si. Nessa lógica das projeções, as
várias ciências, cada uma em sua especificidade, compreendem o ser humano a partir de
uma determinada representação, retirando-lhe tudo o mais. Nessa abstração estruturante
em detrimento da totalidade do ser humano, a imagem de ser humano é cindida,
obscurecendo sua unicidade. Age-se “como se...” o ser humano fosse só seu aparato
psíquico, ou “como se...” fosse meramente uma realidade social ou biológica. Frankl
compreende que, por mais que se busque enfocar as capacidades humanas, sempre algo
escapará de uma abordagem naturalista, visto que essa não constitui o método apropriado
ao objeto da psicologia.
Na estratégia de afastar tudo o que não pode ser quantificável e passível de
determinações matemáticas, a projeção de ser humano da ciência moderna anula a
dimensão humana propriamente dita. Amatuzzi (1989) afirma que, em termos dos
binômios − causa e efeito, parte e todo −, por mais cabível, correto ou verdadeiro que seja
a imagem de ser humano que a ciência possa oferecer, não dará conta de sua completude.
Nos moldes científicos terão condições de explicar o comportamento, mas escorrerão por
entre os dedos a questão do sentido que se precisa dar a vida.
O que se acha na base de tudo isso em última instância e propriamente
é a concepção, ou dito melhor, a compreensão equivocada da psique
humana como algo, que é essencialmente dominado por um princípio
de equilíbrio e de balanço, em uma palavra, a estipulação do princípio
da homeostase como um princípio regulativo (FRANKL, 2014, p. 106).
A fim de legitimar o status quo como ciência, as ciências da alma, sob o enfoque
naturalista, têm no psíquico o ordenador da vida do ser humano. Na concepção
antropológica aí imbuída está como fundamento o princípio da homeostase,10 base para a
10
O termo “homeostase”, desenvolvido pelo fisiologista Walter B. Cannon (1871-1945), foi
publicado pela primeira vez em 1929, no volume 9 da Physiological Reviews. Sobre a etimologia desse
74
elaboração dos métodos específicos à psicologia nascente. Por esse princípio, todo
comportamento humano se orienta para a satisfação das necessidades, compreendidas
como pacificação e tranquilização internas, as quais visam reestabelecer um equilíbrio
entre “dentro” e “fora”. No sentido da psicologia dinâmica, a realidade seria apenas um
instrumento para a satisfação dos instintos ou do ganho de prazer. Contudo, as críticas em
relação a essa visão de homem não tardam a aparecer. A esse respeito, vale a observação
de Bühler, citada por Frankl:
As tendências fundamentais da motivação concebidas por Freud em
termos de homeostase, considerando todo comportamento como
servindo à restauração de um equilíbrio alterado. No entanto, o
crescimento e a reprodução evidentemente não admitem uma
interpretação baseada apenas no princípio de homeostase. A hipótese
de Freud, inspirada na Física de seu tempo, e segundo a qual o
relaxamento das tensões constitui a única tendência primária da vida,
não corresponde à realidade (1978, p. 26).
Em uma visão rígida de ser humano, como Cannon propõe e a psicologia
dinâmica faz ecoar, a motivação é tida como um estado de tensão, tendo o ser humano
como única finalidade a obtenção de equilíbrio, sossego, adaptação, satisfação ou
homeostase. A partir desse ponto de vista, a personalidade humana seria apenas o modo
habitual cujo objetivo consiste em reduzir as tensões internas. Por que essa concepção
não corresponderia à realidade do ser humano? A resposta de Frankl já foi introduzida.
Para ele, a realidade do ser humano, isto é, sua totalidade e unicidade, consiste em uma
compreensão desde a dimensão espiritual, a qual lhe pertence como característica mais
específica (1997, p. 21).
Ao compreender o ser humano pelo princípio homeostático, as ciências naturais
obscurecem e suspendem a estrutura dimensional da realidade, anulando a estrutura mais
específica do ser humano: a espiritual. O resultado das projeções ônticas é um ser humano
mutilado em sua existencialidade. O pano de fundo da crítica frankliana se refere à pergunta:
o ser humano, quem ele é? Frankl procura salientar que as ciências naturais respondem a esse
questionamento partindo da objetividade que as caracteriza, concebendo-o como um ser
conceito Cannon esclarece: “Pode ser oferecida objeção ao uso do termo estase, como implicando algo
posto e imóvel, uma estagnação. Estase significa, contudo, não só isso, mas também uma condição; é nesse
sentido que o termo é empregado. Homeo, a forma abreviada de homoio, é prefixado em vez de homo,
porque o primeiro indica ‘semelhante’ ou ‘similar’, e admite alguma variação, ao passo que o último,
significando o ‘mesmo’, indica uma constância fixa e rígida. Tal como no ramo da mecânica chamado
‘estática’, o conceito central é o de um estado de equilíbrio produzido pela ação de forças; homeostática
pode assim ser considerada como preferível à homeostase’ (BRITO, Ivana; HADDAD, Hamilton. A
formulação do conceito de homeostase por Walter Cannon. Filosofia e História da Biologia. v. 12. n. 1.
p. 104, 2017).
75
herdado geneticamente, ou ainda, fruto do meio que o circunda. “O homem aparece como
uma marionete movimentada ora por fios internos, ora externos. Em lugar de uma
autêntica pintura do homem, temos uma caricatura; em lugar do homem autêntico, um
homúnculo (FRANKL, 1978, p. 189).
A grande decisão é: será que podemos, a partir desta forma da
representação científico-natural, que foi projetada sem consideração ao
ser homem específico, observar o homem no horizonte desta ciência,
com a pretensão de que com isso conseguiríamos determinar o ser
homem? Ou devemos nos perguntar, de acordo com este projeto da
natureza: como se mostra o ser homem e que espécie de acesso e de
observação ele exige a partir de sua singularidade? (HEIDEGGER,
2009, p. 57).
O questionamento de Heidegger pode ser transportando, sem prejuízo, para um
questionamento da ciência psicológica. Com o método homeostático é possível
determinar o ser humano? A partir desse modo de acesso, Frankl já revelou como o ser
humano se mostra: uma marionete, um homúnculo. A pintura autêntica do homem só será
plasmada a partir do momento em que ele for concebido em sua existência. Mesmo advindo
de uma formação científica, reinante no século XX, Frankl pôde testemunhar com a
própria vida que o ser humano vai além de binômios, conseguindo apreender o que
escorre entre os dedos da ciência moderna e, com isso, ir além dela. Compreende que o
modo de estar no mundo do ser humano é completamente diverso de como as coisas estão.
Ou seja, o vê para além de sua projeção.
A decorrência de uma compreensão do ser humano a partir de sua representação
é a adoção de métodos que pretendem a objetivação do ente subsistente (Vorhandenheit),
fundado em sua facticidade. Heidegger expressa, em Seminários de Zollikon (1987), a
impropriedade do modo de acesso na compreensão do ser humano, pois é análogo ao
modo de acesso das ciências naturais. A impropriedade apresentada por Heidegger se
justifica pelo fato de que, nessa última perspectiva, só se leva em conta aquilo que pode
ser mensurável e quantificável (2009, p. 55). Sob essa ótica, uma definição de natureza
humana só tem validade a partir de sua mensurabilidade, deixando de lado tudo o mais.
A esse respeito Heidegger denuncia:
A ciência natural só pode observar o homem enquanto algo
simplesmente presente na natureza. Surge então: seria possível atingir
desta forma o homem? Dentro deste projeto científico-natural só
podemos vê-lo como ente natural, quer dizer, temos a pretensão de
determinar o ser homem por meio de um método que absolutamente
não foi projetado em relação à sua essência peculiar (HEIDEGGER,
2009, p. 57).
76
Importante atentar para o fato de que Heidegger, assim como Frankl, de modo
algum rejeita a ciência. O que está em jogo é a pretensa intenção absolutizante, inerente
à objetivação do molde empregado pela ciência moderna e adotado pelas ciências da
alma. A adoção de um prestigioso paradigma na compreensão de objetos que se
singularizam pela complexidade e imprevisibilidade de suas ações revela como impróprio
a utilização do método científico natural para a compreensão do ser humano. No mote de
uma ciência reinante, não se atenta para o projeto epistemológico da qual está imbuída,
não se atenta à distinção entre o representar e o interpretar. Por estar devotada à
calculabilidade, a própria ciência não se coloca em questão, sendo a única instância da
verdade. Com isso, não se trata de um sujeito que interpreta desde si, colocando-se em
questão, mas de um sujeito (consciência) que representa o polo diverso de si.
Na pretensão da ciência moderna, colocada dessa maneira, fala uma
ditadura da mente que se rebaixa a operadora da calculabilidade e só
deixa valer seu pensamento como um manipulador de conceitos
operativos e representações de modelos de representações – não só
deixa valer, mas ousa apresentar a consciência reinante nessa ciência
até mesmo como consciência crítica numa cegueira monstruosa
(HEIDEGGER, 2009, p. 144).
No embate contra uma visão de ser humano a partir do princípio de homeostase,
Frankl postula o primado do sentido da vida. Para além de uma concepção de homem
enquanto corpo e psíquico, Frankl defende uma imagem tridimensional do ser humano.
Pois, para ele, as várias concepções de ser humano, fruto do pluralismo das ciências, têm
como pretensa intenção a representação da realidade, cada uma a sua maneira, sendo
diferentes das demais e, por vezes, contradizentes entre si. Todavia, mesmo havendo uma
pluralidade contradizente do real, Frankl afirma que a unidade do real não se contradiz
(FRANKL, 1989). Assim, o que se pretende com esse capítulo, em suma, é a busca por
“reencontrar a unidade, perdida por tradição, do ser-no-mundo” (HAAR, 1990, p. 119).
3.3 O INTENTO DE UMA ONTOLOGIA DIMENSIONAL
A prática filosófica se caracteriza pela pergunta diretriz: o que é? Além de
contribuir com o seu conteúdo, essa postura limita o campo investigativo e ilumina o
caminho daquilo que se busca, impedindo o risco de se perder por inúmeras veredas ou
até mesmo de se passar desatento por aquilo que se almeja. Nesse sentido, o intento de
uma ontologia dimensional não deve apenas pretender descrevê-la, mas passa
primeiramente pela questão mais básica: o que é a ontologia dimensional?
77
Entende-se por ontologia, ainda que sumariamente, “a consideração de cada
ente, do ente na totalidade (‘Seiendes im Ganzen’), não em relação ao seu estatuto de ente,
não em relação à sua proximidade e distância relativamente a outros entes, mas em relação
ao seu modo de ser” (FRANCO DE SÁ, 2008, p. 5). Nesse sentido, a compreensão
ontológica visa ao ente determinado, não em referência a suas particularidades, mas em
seu genuíno modo de se relacionar com o seu ser mais próprio, em sua unidade. Para
Molinaro (2000, p. 94), a ontologia revela o nexo existente entre o ente e o logos, esse
último entendido como o espírito. O logos é o lugar da manifestação do ente como tal,
isto é, seu ser. “Consequentemente ontológico é o termo que indica o ser como tal em sua
coincidência com a verdade, uma vez que esta é o ser em seu logos”.
A abordagem de uma ontologia dimensional em um trabalho que considera o
pensamento de Frankl e Heidegger contribui de modo preliminar para resguardar a
questão da diferença ontológica postulada pelo filósofo de Messkirch, evitando o possível
equívoco de uma identificação entre o ser, heideggeriano, e o espírito, frankliano. Ainda
que a pergunta pelo ser seja atinente à ontologia fundamental, Frankl busca deixar claro
que a elaboração de uma ontologia regional não deve se furtar a colocar a questão do ser
como diretriz. Guiando-se pela conceituação sumária antes apresentada, uma ontologia
dimensional consiste na consideração, não de dimensões a ermo, mas da relação entre a
totalidade dimensional com o modo de ser do ser humano. Para Frankl, é a dimensão
espiritual o elo a partir do qual a totalidade se efetiva. Nesse sentido, ele afirma: “Somente
colocando o olhar no ser espiritual, na sua tensão fundamental aos valores e ao
significado, é que se poderá desvendar a significatividade do real e poderá aparecer, em
toda sua plenitude, o significado do ser” (FRANKL, 1987, p. 200).
A ontologia dimensional proposta por Frankl intenciona buscar a unidade
fundamental do ser humano por meio das estruturas que o compõem, isto é, pelas
dimensões somática, psíquica e espiritual. A ontologia dimensional se constitui como
uma estratégia de Frankl de trazer a discussão antropológica para um terreno mais
fecundo, evitando o problema do reducionismo e todos os outros decorrentes desse. A
ontologia dimensional se dirige para a unidade do ser humano, evitando e combatendo a
unilateralidade, pois, ao considerar o ser humano em sua tridimensionalidade − somático-
psíquico-espiritual −, a totalidade do ser humano é preservada. Logo, a realidade humana
é ampliada, não permitindo que seja nivelada pelas dimensões mais baixas, mas a partir
78
de uma altura11. A dimensão espiritual restitui o âmbito da existencialidade, por meio da
qual emerge o modo de ser específico do ser humano.
Em relação às dimensões que compõem o ser humano, Lukas, em Logoterapia:
a força desafiadora do espírito (1989), apresenta a dimensão somática como aquela que
abrange a estrutura vital do ser humano: desde o aparato fisiológico, processos químicos
e físicos do ser humano, até o fundamento celular e orgânico. A autora define dimensão
psíquica como as disposições do ser humano, tais como suas sensações, os impulsos, os
instintos e os desejos. Configuraria a dimensão de onde emergem os padrões de
comportamento e costumes sociais adquiridos ao longo da vida. Contudo, é preciso ter
em mente que são três dimensões que propositalmente se unem por “hifens” com objetivo
de indicar, também de modo gráfico, a unidade interna entre elas. Frankl considera que,
apenas por medidas didáticas, essas três dimensões podem ser tratas separadamente.
A temática da tridimensionalidade sob o olhar de Frankl revela uma postura
opositiva importante em relação àqueles sistemas que deduzem o psicofísico como a
unidade do ser humano. Ao tomar essas dimensões apartadas da dimensão noética, o ser
humano tem sua realidade representada como um simples processo de combustão e
oxidação. Nada mais lhe resta do que ser um processo químico, um receptáculo de
sensações, impulsos e instintos. Em síntese, uma existência condicionada e reduzida.
Nas atas de Zollikon, Heidegger reflete sobre a possibilidade de explicações
fisiológicas se constituírem como explicações fundamentais do humano.
A partir do fato de que o ser humano corporal seja interpretado como
algo químico e como algo que pode ser afetado quimicamente, deduz-
se que o “químico” (Chemismus) do fisiológico é o fundamento e causa
do psíquico humano. Esta é uma condução errada: pois algo que é
condição, quer dizer, aquilo sem o que a relação existencial não pode
se dar, não é causa, não é causa originária e, portanto, também não é
fundamento. A relação existencial não consiste de moléculas, não é
originada por elas, mas não existe sem aquilo que pode ser
reinterpretado como processo fisiológico-molecular (HEIDEGGER,
2009, p. 195).
11
Viktor Frankl cunha o termo “Psicologia das Alturas” com o objetivo de integrar e não de suplantar
a chamada “Psicologia do profundo” (psicodinâmica). “A análise existencial estende à análise a totalidade
do homem que não é só psicofísica, mas também espiritual. E este aspecto espiritual é indagado por ela em
toda sua profundidade inconsciente. E nesse sentido emerge a qualificação de psicologia das alturas. [...] E
seria esta, propriamente falando, a verdadeira ‘psicologia do profundo’, enquanto ela trata – como faz a
análise existencial, que analisa o inconsciente emocional e espiritual – a profundidade inconsciente ‘da
pessoa autêntica’ a pessoa profunda; com todo o respeito para a ‘psicologia do profundo’ só a altura do
homem é o homem” (FRANKL, 1962, p. 201-202 apud XAUSA, 2012. p. 63).
79
Compreende-se que as dimensões somática e psíquica podem até se constituírem
enquanto uma unidade psicofísica, mas não correspondem à totalidade do ser humano.
Assim como Heidegger ressalta, e Frankl defenderá, à totalidade do ser humano pertence
a existencialidade, composta pelos aspectos fáticos, mas não determinada por eles. Ao
contrário, é a existência em sua totalidade a causa originária de todas as dimensões. Em
uma explicação do ser humano na qual se assume o psicofísico como unidade, nada capta
de seu aspecto vivencial. Resta-lhe apenas a mensurabilidade própria de uma perspectiva
representacional, uma exigência do paradigma científico-natural.
Como fica posto, o fundamento e causa da existencialidade do ser humano não
são passíveis de mensurabilidade, mas possíveis de uma compreensão a partir da
tridimensionalidade. O ser humano não apenas tem o somático e a psique, mas é espírito.
Lukas (1989) considera essa última dimensão como a postura livre frente às condições
psicofísicas da existência. O noético se caracteriza como a dimensão das decisões
pessoais, da vontade, da intencionalidade, dos pensamentos criativos e artísticos, da
religiosidade, do senso ético e da valoração, ou seja, a dimensão dos fenômenos que
extrapolam a ordem lógica e mecânica, assim como o puramente empírico da existência.
Na busca por preservar a humanidade do homem, Frankl mostra que N.
Hartmann e M. Scheler contra-argumentaram fortemente a esse respeito, defendendo a
unidade do ser humano face ao pluralismo da ciência, solo fértil sobre o qual o
reducionismo florescia (FRANKL, 2013, p. 33). Esses autores apresentam em comum,
não só uma estrutura que preserva as dimensões do ser humano, mas principalmente a
defesa da dimensão espiritual enquanto dimensão propriamente humana.
Em sua ontologia, Hartmann destaca as categorias do ente real, estratificadas em
quatro camadas de grau ou níveis de ser: espiritual, psíquica, orgânica e inorgânica.
Tomadas como princípios de ser, as camadas estão hierarquicamente estruturadas, sendo
o plano inferior a condição preponderante na constituição de uma plano superior, o
espiritual. Esses graus acentuam o caráter independente das camadas ao passo que
também ressaltam a interdependência das camadas superiores em relação às camadas
inferiores, pois, para que haja o espiritual, é necessário que primeiramente haja a vida.
Cada estrato constitui uma síntese estrutural original, que se configura
com e a partir de elementos provenientes de níveis inferiores, sem
nunca se reduzir a um simples agregado destes, pelo que composta de
novidade e de maior coesão, assistindo-se assim a uma progressiva
emergência da liberdade, à medida que se avança para as camadas
superiores da realidade (BLANC, 2011, p. 28).
80
Como entendido por Blanc, na ontologia de Hartmann as categorias inferiores
participam das categorias superiores, mas o contrário não ocorre. Isso porque o todo do
ser implica um novo momento categorial, não redutível aos elementos mais baixos ou a
sua síntese. Hartmann desvela a peculiaridade do ser humano em relação aos demais
seres, pois o considera como o único participante do cimo dos estratos, isto é, da camada
espiritual. Assim, concebe o ser humano dotado de uma maior liberdade em relação aos
demais entes. Contudo, essa dimensão mais abrangente não se constitui a única. Para
Hartmann, “o homem contém em si todos os estratos ontológicos, e seria uma abstração
vazia considerá-lo unilateralmente como se se tratasse somente de um ser espiritual”
(1954, p. 134). A partir dessa perspectiva que ressalta os diversos níveis de ser, o nível
corporal, por ser o nível mais baixo, participa do psíquico, integrando-o. O psíquico, por
sua vez, integrará o espiritual. Todos os níveis antecedentes ao espiritual participarão
dele, mas o contrário não ocorre. O nível espiritual é o nível mais alto, e, por vezes, mais
compreensivo. Ele é capaz de abarcar os níveis mais baixos, formando uma unidade.
Sobre a dinâmica dos estrados Hartmann esclarece:
Sua unidade [do mundo e seus quatro estratos] não é a unidade da
uniformidade, senão a unidade da superposição e sobrepujamento de
multiplicidades diversamente conformadas. Estas se fazem, por sua
vez, colocadas umas em relação às outras de tal forma que, aquelas de
tipo inferior e tosco são também as básicas e sustentantes, enquanto as
superiores, descansando nas anteriores, se elevam sobre elas. Assim se
eleva a natureza orgânica sobre a inorgânica. Aquela não flutua livre
por si, senão que supõe as condições e leis do material físico,
descansando nelas, embora elas não bastem, em absoluto, para
constituir o vivente. Igualmente estão condicionados o ser psíquico e a
consciência pelo organismo sustentante, unicamente no qual e com o
qual aparecem no mundo. Não de outra forma, permanecem ligados os
grandes fenômenos históricos da vida do espírito e da vida psíquica dos
indivíduos que são seus portadores em cada caso [...]. De estrato em
estrato, passando por cima de cada corte, encontramos a mesma relação,
o descansar num e no outro, o estar condicionados “desde baixo”, e, por
sua vez, o ser independente, em sua conformidade e leis próprias no
qual descansa o outro. (HARTMANN, 1939, p. 220).
Mesmo que não se constitua como um simples agregado de estratos, Frankl
compreende que a concepção de Hartmann se mostra, em certa medida, insuficiente.
Trata-se de uma consideração de grande importância para afirmar a diferença ontológica
da existência, levando em conta a multiplicidade dimensional, mas que não supera o risco
do reducionismo, visto que não ressalta suficientemente a unidade entre tais estratos. Ao
não sublinhar a unidade categorial, um estrato pode ser tomado em separado como síntese
estrutural do ser humano, como ocorre no psicologismo. Para Frankl, as dimensões
81
ontológicas não são consideradas hierarquicamente estruturadas, pois o que caracterizaria
a possibilidade de uma unidade assim compreendida é a mera sobreposição de um estrato
em relação aos demais.
A fim de suprir a falta de unificação na consideração dos níveis de ser propostos
por Hartmann, Scheler dá passos decisivos resguardando a unidade entre as várias
dimensões que compõem o ser humano. No pensamento scheleriano, a pessoa é
compreendida como “centro ativo no qual o espírito aparece no interior das esferas finitas
do ser. Em uma diferença incisiva em relação a todos os centros vitais funcionais”
(SCHELER, 2003, p. 36). Scheler concebe a pessoa como núcleo espiritual, ao redor do
qual se situam as demais camadas: a orgânica e a psíquica.
Em A posição do homem no Cosmo (1928), Scheler pretende uma análise
filosófica que priorize a essência do ser humano. Ele tem a pretensão de fundamentar a
posição distintiva do ser humano em relação aos demais seres vivos. Então Scheler
apresenta uma estrutura hierárquica do cosmo, dividido basicamente em dois tipos: o dos
viventes e o dos não viventes. Essas duas divisões são graduadas. Na esfera dos não
viventes está o primeiro grau, denominado de inorgânico. Já na esfera dos viventes, estão
o segundo e terceiro graus. O segundo grau é constituído pelo mundo orgânico, e o
terceiro grau, pelo mundo supra orgânico. Esse último grau corresponde exclusivamente
ao ser humano na qualidade de pessoa (KLAUS, 2014 p. 25).
A partir do mundo orgânico, Scheler desenvolve a ontologia da vida geral. O
mundo orgânico seria possuidor de quatro níveis bem definidos. O nível mais baixo é o
do impulso afetivo. Embora esse já represente um salto em relação ao inorgânico, por ser
dotado de vida, é um nível considerado privado de consciência, pois se caracteriza pelo
impulso para o crescimento e para a reprodução. O segundo nível do mundo orgânico é o
do instinto. Esse possui como característica uma estrutura inata que não pode ser alterada,
independentemente do número de vezes que é executada. Scheler identifica essa
característica como uma ação em prol da conservação da espécie, de modo que o instinto
seleciona o que é importante ver ou sentir para, então, agir. Uma liberdade em relação ao
instinto vem com o terceiro nível dos viventes, a memória associativa, marcada pelo
reflexo condicionado. Mesmo com rigidez própria do princípio conservador, o instinto, a
memória associativa tende para o hábito, ou seja, depende mais do que a estimula do que
de algo fixado por uma espécie. O último nível do mundo orgânico se baseia na
inteligência prática. A peculiaridade desse em relação aos níveis anteriores está na
liberdade e na capacidade de escolha. Scheler compreende que o vivente desse nível não
82
age conformado a um instinto, mas de acordo com um sentido. A inteligência prática o
capacita a perceber, por antecipação, um fato novo e jamais experimentado.
De acordo com o empreendimento de Scheler, é possível perceber que o ser
humano assume o cosmo com uma posição distinta dos demais viventes. Contudo, o que
o diferencia propriamente? Seria o último nível, a inteligência prática? Sabe-se que até
alguns animais possuem tal inteligência. Na perspectiva dessa ontologia, todos os
viventes participam, em maior ou menor grau, da esfera biopsíquica, que corresponde às
competências e aptidões psíquicas de todos os seres vivos. Então a distinção essencial
não estaria na inteligência, na capacidade de escolha ou no fato de ter psique. Para
Scheler, o que atribui essência ao ser humano não deve estar entre o nível psicofísico,
mas fora dele, um novo princípio que realmente seja especificamente da pessoa humana.
O princípio novo se encontra fora de tudo aquilo que possamos definir
no sentido mais lato como “vita”. Aquilo que faz com que o homem
seja verdadeiramente “homem”, não é um novo estágio da vida [...],
mas é um princípio oposto a toda forma de vida em geral e também à
vida do homem [...]. Já os gregos afirmavam a existência de tal
princípio, chamando-o “razão”. Nós preferimos usar a propósito deste
X, um termo mais vasto [...], a saber, preferimos usar o termo Geist
(SCHELER, 1970, p. 181).
Ao postular o espírito (Geist) como o princípio distintivo do ser humano, a
empreitada antropológica scheleriana se coloca em oposição às várias tentativas de
definições ao longo da história que não o consideraram. Desaprova a teoria cartesiana, a
qual concebe uma dissociação entre corpo e consciência, bem como as concepções
naturalistas, que veem o ser humano como homo naturalis, reduzindo-o às camadas mais
básicas. Refuta também as teorias evolucionistas, principalmente as das escolas
darwiniana e lamarckiana, que concebem o ser humano como homo faber, negando que
haja diferença entre o ser humano e os demais viventes. Nesse sentido, a inserção do
conceito de espírito na antropologia filosófica representa um salto na medida em que há
uma concepção de ser humano para além de uma inteligência racional. É uma concepção
que preserva a realidade orgânica do ser humano, mas que também lhe restitui a dimensão
transcendental. Isso porque:
A característica fundamental de um ser espiritual, qualquer que possa
ser a sua constituição psicofísica, consiste na sua emancipação
existencial daquilo que é orgânico, na sua liberdade, na capacidade que
ele, ou melhor, o centro de sua existência, tem de desvincular-se do
poder, da pressão, do liame com o quanto é orgânico, do liame com a
“vida” e com o quanto ela abraça e, portanto, igualmente do liame com
a própria inteligência, ainda submissa à tendência (SCHELER, 1970, p.
181s.).
83
A essência do ser humano postulada pela antropologia scheleriana não é
caracterizada por uma estrutura biopsíquica, mas por um princípio que vai de encontro a
toda essa pretensa intenção de unidade mutilada. Como ressaltado anteriormente, “é um
princípio oposto a toda forma de vida em geral e também à vida do homem [...]”
(SCHELER, 1970, p. 181), isto é, a todo liame que ata o ser humano, seja por meio de
sua estrutura orgânica ou de uma consciência calculante. Tal esfera confere ao ser humano
uma emancipação existencial, uma liberdade perante o que o constitui e o condiciona. A
partir desse princípio, o ser humano, enquanto ser espiritual, por mais que esteja ligado
ao seu mundo ambiente (Umwelt), assim como os demais viventes, diferencia-se por ser
livre, aberto ao mundo (Weltoffenheit).
O empreendimento que tem por objetivo estabelecer a posição do homem no
cosmo, ao perscrutar desde sua essência, tem sua preposição: o ser humano, enquanto
aberto ao mundo, diferencia-se radicalmente dos demais viventes. Essa distinção não é
meramente quantitativa, ou seja, não está relacionada meramente a uma bagagem
estrutural, mas a algo que que vai além. Pois, enquanto o animal é ekstático, vivente de
uma ancoragem ambiental, guiado pela gama de instintos e dependente do mundo, o ser
humano se vê desancorado de um ambiente preciso, transcendendo o centro da vida,
podendo dispor de si mesmo de forma livre.
Em Compêndio de Análise Existencial e Logoterapia (1959), Frankl entende que
a interpretação de Hartmann e Scheler dos diversos âmbitos ontológicos − o fisiológico,
o psicológico e o noológico − a partir de uma construção de níveis ou camadas deveria
ter priorizado o caráter unitário e total de tais dimensões, não apenas a multiplicidade. Ele
compreende que, por mais que seja importante tal distinção, os âmbitos ontológicos
pertencem ao ser humano, isto é, são antropologicamente inseparáveis (FRANKL, 2014,
p. 64s).
Certamente, tanto Hartmann quanto Scheler fizeram jus às diferenças
ontológicas entre corpo, mente e espírito, ao concebê-los
diferentemente em termos não meramente quantitativos, mas
qualitativos. Contudo, nenhum dos dois pareceu levar suficientemente
em conta o que se opõe às diferenças ontológicas, a saber, o que eu
gostaria de chamar de unidade antropológica (FRANKL, 2013, p. 33).
Ao associar tais perspectivas, Frankl considera ter superado o obstáculo. Seu
intento em resgatar a unidade e totalidade da imagem de ser humano se traduz na
84
“ontologia dimensional”. Trata-se de uma ordine geometrico demonstrata12 que opera
sob duas leis. A primeira postula que “um só e idêntico fenômeno, projetado para fora de
suas dimensões em dimensões inferiores às suas, dá origem a figuras diversas em nítido
contraste entre elas” (FRANKL, 1977, p. 52). Tal lei deixa expresso que o importante é
estabelecer a unidade do ser humano, não obstante a multiplicidade das suas dimensões.
Ao perceber o ser humano a partir de suas projeções, sejam elas biológicas ou
psicológicas, não se chegará a compreender a unidade e totalidade que o caracterizaria
(AQUINO et al, 2010, p. 22). Frankl ilustra essa lei com base na geometria espacial:
Imaginemos um cilindro. Por exemplo, um copo. Projetado de sua
representação tridimensional para os planos bidimensionais das linhas
horizontal e vertical, teremos, no primeiro caso, um círculo e, no
segundo, um retângulo. Tais figuras são contraditórias entre si. É até
mais importante perceber que o copo é um vasilhame aberto, ao
contrário do círculo e do retângulo, que são figuras fechadas. Outra
disparidade! (FRANKL, 2013, p. 35)13.
As representações obtidas por meio das projeções são imagens que estão
contidas no real, mas que nada dizem sobre a totalidade desse objeto. Embora se trate de
um objeto caracterizado pela facticidade, o copo não é usado por Frankl
despretensiosamente. Para além de um círculo ou um retângulo, a realidade desse ente se
caracteriza por sua abertura. De modo similar ocorre com o ser humano. Ao levar em
conta suas dimensões a ermo, nada se diz sobre sua totalidade. Somente ao levar em
consideração a unidade estruturante do ser humano, pode-se compreender algo como o
estar aberto.
Quanto à segunda lei, Frankl formula: “não apenas um só e idêntico fenômeno,
mas sim diversos fenômenos, projetados para fora de suas dimensões, não para dimensões
diversas, mas para uma mesma dimensão inferior à própria, dão origem a figuras que não
estão em contraste entre elas, mas parecem ambíguas” (FRANKL, 1977, p. 52).
Geometricamente essa segunda lei se utiliza de três objetos distintos com o intento de
ilustrar as dimensões do ser humano.
12
Opera com analogias geométricas
13
Ilustração da primeira lei da ontologia dimensional proposta por Frankl.
85
Imaginemos um cilindro, um cone e uma esfera. As sombras que eles
projetam no plano horizontal formam três circunferências
intercambiáveis entre si. Não podemos, a partir da projeção, saber o que
há sobre elas: um cilindro, um cone ou uma esfera (FRANKL, 2013, p.
35) 14.
Essa lei busca fixar que a unidade pretendida do ser humano é viabilizada não
pelo obscurecimento dimensional, mas pela projeção, em uma mesma direção, a partir de
uma dimensão mais ampla, das estruturas que o compõem. Entende-se que, apenas
compreendendo o ser humano por meio da dimensão espiritual, conseguem-se evitar as
contradições e os equívocos. A espiritual é considerada como a mais ampla das dimensões
e, por isso, pode abarcar as demais. Para Frankl, a humanidade do homem só pode ser
compreendida quando esse é considerado em sua totalidade, integrada pela multiplicidade
dos fatores que o envolvem (AQUINO et al, 2010, p. 23).
Pela analogia com as formas geométricas, fica patente que Frankl não tem o
intuito de nivelar o ser humano por suas dimensões mais baixas, e sim compreendê-lo a
partir de sua dimensão mais elevada. Desse modo, o que se viabiliza por meio da projeção
geométrica não são as distinções estruturais de cada forma geométrica, mas o fato de, ao
serem projetadas de cima, na mesma direção, produzirem uma imagem una. Igualmente
ocorre com o ser humano. A imagem produzida a partir da dimensão mais abrangente, a
espiritual, viabiliza uma compreensão para além dos condicionamentos psicofísicos.
Compreendê-lo desde sua altura é perceber uma dimensão que integra e perpassa as
demais dimensões, manifestando-se através delas, tornando-o livre.
Essas leis têm o intuito de trazer à baila o que constitui a base do pensamento
antropológico frankliano, aquele da unitas multiplex. Ao projetar as figuras geométricas
distintas – o cilindro, o cone e a esfera –, as imagens resultantes não permitem distinguir
de qual objeto se trata. Ao compreender os fenômenos do ser humano a partir de sua
dimensão unificante e mais abrangente, a espiritual, não se poderá definir se tais
fenômenos brotaram do corpo ou do psíquico. Serão caracterizados, portanto, como
14
Ilustração da segunda lei da ontologia dimensional proposta por Frankl.
86
emanantes do ser humano em sua totalidade, inclusive sem prejuízos aos próprios
fenômenos.
A concepção de uma unitas multiplex encontra sua gênese em Tomás de Aquino
(1225-1274), que, diferentemente de uma concepção dualista do psicofísico, concebe uma
unidade estruturada, a qual corresponderia a um transcendental. Para o doutor angélico,
dizer sobre a unidade de algo não é só considerar, de modo intrínseco, que não se trata de
algo contraditório e diviso. A unitas corresponderia também ao grau de ser: quanto maior
o grau, maior a unidade. Desta forma, um monte de areia, por exemplo, teria uma unidade
menor do que a unidade de João. Ambas teriam uma unidade inferior a Deus, que é a
unidade da simplicidade, um ser total. A unidade do ser humano corresponderia a uma
unidade da composição, isto é, essência e actus essendi15.
Assim Tomás de Aquino estabelece uma diferenciação quanto à unidade. Existe
a unidade numérica e a unidade transcendental. A primeira corresponderia aos entes
mensuráveis, já a segunda, ao âmbito metafísico. Outro pensador que desenvolveu a
perspectiva de uma unitas multiplex é Edgar Morin. Em O método (1997), Morin
apresenta o conceito de unitas multiplex como uma unidade da e na diversidade. Teórico
da complexidade dos fenômenos, ele postula que unidade e diversidade são
interdependentes, vindo a perceber que não existem fenômenos isolados e singulares no
mundo.
Na perspectiva frankliana, a ontologia dimensional é responsável por postular o
ser humano como unitas multiplex. Tão importante quanto resgatar e apresentar as
dimensões que o compõem é ressaltar a unidade antropológica de tais dimensões. Implica
realçar que o ser humano é, ao mesmo tempo, unidade e diversidade. Para Frankl, o ser
humano só pode ser compreendido em sua integralidade desde uma visão das dimensões
que o compõem, bem como das escolhas que faz de si, isto é, em toda a sua complexidade.
Portanto, o intento de uma compreensão do ser humano como unitas multiplex consiste
em uma dupla estratégia: ressaltar as dimensões constituintes do ser humano, visando à
contestação de uma perspectiva psicofísica e, com isso, assegurar uma compreensão do
ser humano em sua unidade tridimensional. Ao resgatar a dimensão que possibilita a
unidade, o humano poderá ser compreendido sem prejuízos em seu existir.
Como Frankl defende fortemente, se a compreensão do ser humano não passa
por unidade e totalidade, as dimensões que o constituem podem ser facilmente cindidas.
15
Ato de existir.
87
A compreensão de unidade, apesar da multiplicidade (FRANKL, 2005, p. 41), consiste
na impossibilidade de homogeneizar ou reduzir o ser humano. Nesse viés, a unidade
preconizada na imago hominis frankliana é a da coincidentia oppositorum. Essa
terminologia medieva, que caracteriza a unidade para além da relação dimensional,
remonta a Nicolau de Cusa (1401-1464), cardial e filósofo que viveu no século XV,
período renascentista. O princípio da coincidência dos opostos é o cerne da filosofia do
cusano, sendo mais recorrente na obra “A douta ignorância” (1440), na qual desenvolve
uma teoria dos opostos alicerçada na teoria da harmonia dos contrários baseada no
filósofo pré-socrático, Heráclito de Éfeso (535 a.C a 475 a.C).
A concidentia oppositorum do renascentista centra-se em dois conceitos
principais: o da complicatio e o da explicatio. Para o cusano, o ser máximo que é Deus,
encerra em si todo vir-a-ser. Os seres, o mundo das coisas múltiplas, são considerados
contingentes e por isso se conflitam quando estão fora de Deus. Quando os seres estão
em Deus, estão em harmonia. A harmonia existe na vivência com o uno, tendo nesse a
identificação com o infinito (complicatio). O uno é anterior a todas as outras coisas, e não
se conceberia nada dos contingentes se eles não tivessem origem no máximo (explicatio).
Em síntese, pode-se compreender que tudo está em Deus e que Deus está em tudo, não
no sentido de um panteísmo.
O Infinito em Deus é unidade e ao mesmo tempo é trindade: o Deus uno
e trino foge ao domínio da “explicação” (explicatio) da razão e da
ciência, e só começa a ser intuído a partir da abertura do espírito ao
reconhecimento da “complexidade” (complicatio) que abre espaço para
uma atitude de respeito à infinitude. Deus é recebido no modo e
segundo o grau permitidos pela “contingência” (CUSA, 1979, p. 111).
Esse máximo, que é Deus para o cusano, é o a priori de tudo. Sendo a
possibilidade de tudo, visto que tudo deriva Dele, torna-se o princípio e o fim das coisas.
Segundo Aquino (2012), Frankl compreende o ser humano assim como Nicolau de Cusa
compreende Deus: como a coincidência de todos os contrários. Contudo, a perspectiva
teológica de Nicolau é transportada para uma perspectiva antropológica em Frankl, visto
que a dimensão espiritual seria a coincidência das dimensões somática e psíquica. Assim
como postulado na primeira lei da ontologia dimensional, se a projeção for feita a partir
das dimensões inferiores, e não a partir da mais ampla, serão produzidas várias figuras
distintas, talvez até contrastantes entre si. Ao evocar o princípio da coincidência dos
opostos, Frankl elabora uma imagem de ser humano que leva em conta a complexidade
que caracteriza as estruturas dimensionais e que, principalmente, evidencia a unidade,
88
apesar da diversidade dimensional. A unidade ou coincidência dos opostos se efetiva com
a devida consideração da dimensão capaz de tornar isso possível, a espiritual.
No entanto, como sabemos, até agora ninguém conseguiu transformar
um círculo em um quadrado, do mesmo modo ninguém conseguiu
lançar uma ponte entre os aspectos físicos e os psicológicos da realidade
humana. E mais, podemos juntar, ninguém tem probabilidade de
consegui-lo, e isso porque a coincidentia oppositorum, como a chamou
Nicolau de Cusa, não é possível no âmbito de uma secção qualquer, mas
só além de todas as secções, na dimensão mais alta imediatamente
sucessiva. A mesma coisa vale também para o homem. A nível
biológico, no plano da biologia, nós lidamos com os aspectos físicos do
homem e a nível psicológico, no plano da psicologia, com seus aspectos
psicológicos. Assim, no âmbito de cada uma das abordagens científicas,
nós lidamos com a diversidade mas perdemos a unidade do homem,
porque esta unidade é acessível somente na dimensão humana
(FRANKL, 2005, p. 40).
Como dito ao longo desse capítulo, a questão do psicologismo se caracteriza
historicamente como a principal contenda de Frankl. Por meio do percurso que ele realiza,
podemos perceber que o seu intento na elaboração de uma ontologia dimensional não é a
promoção de um ser humano em termos meramente quantitativos, mas principalmente
qualitativos. Ante ao fundamento psíquico do ser humano, Frankl preconiza a retomada
do espiritual como dimensão genuína. A ontologia dimensional não se configura apenas
como a ampliação de uma bidimensionalidade para uma compreensão tridimensional do
ser humano. Mas em termos qualitativos, essa ontologia aponta principalmente para a
ultrapassagem da condicionalidade em defesa de uma compreensão existencial do ser
humano. Embora possa ser considerada como propedêutica, a ontologia dimensional não
resulta em um corpo de conceitos periféricos, mas se constitui como a base sobre a qual
a teoria frankliana se edifica e pode frutificar.
Nesse sentido, a contestação das representações no plano das figuras
geométricas deixa evidente uma outra disparidade com a realidade. Como já
exemplificado por Frankl em A vontade de sentido (2013, p. 35), ao tomar um objeto
como um copo, a representação que se tem dele em uma perspectiva horizontal ou vertical
não leva em conta a abertura que o caracteriza. Em Um sentido para a vida: psicoterapia
e humanismo (1978), ele retoma a perspectiva geométrica da ontologia dimensional e a
transporta em benefício de uma perspectiva existencial. Em relação ao ser humano,
declara: “o que é valido para a unicidade do homem, é verdadeiro também para o fato que
ele é um sistema aberto” (2005, p. 41). Assim ele considera:
Tornando ao cilindro, imaginemos agora que não seja um sólido, mas
um recipiente aberto, um copo, por exemplo. Neste caso, que formato
89
terão as secções? Enquanto na horizontal é ainda um círculo fechado,
na vertical o copo apresenta-se agora como uma figura aberta. Mas logo
que nos damos conta que as duas figuras são secções, o fechamento de
uma torna-se perfeitamente compatível com a abertura da outra.
Qualquer coisa de análogo vale também para o homem. Também ele é
as vezes representado como se fosse simplesmente um sistema fechado
no qual agem relações de causa e efeito como reflexos condicionados
ou incondicionados (FRANKL, 2005, p. 41).
Frankl leva a efeito a questão de que o real pode ser tomado sob vários aspectos.
Assim como um objeto pode ser visto horizontalmente ou verticalmente, o ser humano
pode ser visto como um ser aberto ou um sistema fechado. Frankl compreende que
vivemos em um pluralismo das ciências que representam uma secção da realidade, cada
uma a sua maneira (2005, p. 40). De acordo com as várias teorias psicológicas e a intenção
que se tem em relação ao ser humano, ele é representado de várias maneiras. Mesmo
havendo essa pluralidade, Frankl afirma que “as contradições não contradizem a unidade
do real. Isto é verdade também para a realidade humana” (2005, p. 40). Por isso Frankl
buscará a compreensão do ser humano, desde a sua unidade. Quando trata da imago
hominis, em Psicoterapia e Sentido da Vida (1946), é possível obter, a partir daquelas
duas leis, uma representação gráfica da ontologia dimensional concebida por ele desde o
ano de 1953.16 A importância dessa perspectiva se dá em função do rompimento com uma
representação naturalista e cientificista.17
Com efeito, sucede no caso do homem exatamente o mesmo que no
caso do recinto aberto, ao ser projetado nos planos longitudinal e
horizontal de um quadro fechado. O homem é representado no plano
biológico como um sistema fechado de reflexos fisiológicos, e no plano
psicológico como um sistema fechado de reações psicológicas. Mas
uma vez, portanto, a projeção tem por resultado uma oposição. Mas
porque pertence à essência do homem o ser ele, em todo caso, aberto, o
ser aberto ao mundo, ser homem significa, já de si, ser para além de si
mesmo (FRANKL, 1989, p. 44s).
16
Até onde se pesquisou, a ontologia dimensional aparece pela primeira vez no pensamento
frankliano com a publicação de “Dimensionen des Menschseins” no Anuário de Psicologia e Psicoterapia
(vol. I, 1953, p. 186). Esse tema será retomado em outros escritos de Frankl, como é o caso do Compêndio
de análise existencial e logoterapia (1959), Imago hominis (1965), Implicações Metaclínicas da
Psicoterapia (1969), Determinismo e Humanismo (1977).
17
Imagem de ser humano a partir da ontologia dimensional.
90
A representação gráfica extraída de Frankl se aproxima daquela elaborada por
Heidegger nos seminários que ocorreram em Zollikon. A imagem do ser humano
representado por ocasião do primeiro encontro com os convidados de Boss é de uma
parábola cuja característica é estar parcialmente aberta. O desenho ainda inclui uma seta
que antecede tal parábola, na direção do horizonte do vértice, sem o encontrar.18
Heidegger explica a motivação para escolha de tal imagem:
A finalidade deste desenho é apenas mostrar que o existir humano em
seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente
presente num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado
em si. Ao contrário, este existir consiste de “meras” possibilidades de
apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser
apreendidas pela visão ou pelo tato. Todas as representações
encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um
eu, uma consciência, usadas até hoje na psicologia e na psicopatologia
devem desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma
compreensão completamente diferente. A constituição fundamental do
existir humano a ser considerada daqui em diante chamará Da-sein ou
ser-no-mundo. Entretanto Da deste Dasein não significa, como
acontece comumente, um lugar no espaço próximo do observador. O
que existe enquanto Da-sein significa é um manter aberto de um âmbito
de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe
fala a partir de sua clareira. O Da-sein humano como âmbito de poder-
apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele
não é de forma alguma e, em nenhuma circunstância, algo passível de
objetivação (HEIDEGGER, 2009, p. 33).
Como se trata do mesmo contexto, o que teria motivado esses dois pensadores a
fazerem uma representação gráfica do ser humano segundo seus empreendimentos e a se
posicionarem de modo veemente a favor de uma abertura do ser humano? Anos antes, em
18
Desenho do Dasein elaborado por Heidegger em 1959.
91
192319, Freud realizara uma representação gráfica de seu empreendimento psíquico, a
partir do qual o ser humano seria compreendido. Loparic comparou as imagens elaboradas
por Freud e Heidegger e constatou a diferença radical entre elas.
A simples comparação visual dessas imagens permite concluir que, nos
retratos traçados por Freud, o ser humano possui uma forma fechada,
representada por algo como uma caixa ou uma vesícula, enquanto que,
no retrato de Heidegger, o homem aparece como uma seta vinda de um
espaço aberto, vazio, e dirigida para um horizonte semifechado. É
plausível pensar que Heidegger, ao fazer aquele desenho no quadro
negro em 1959, já no primeiro seminário com o grupo de Boss, tinha
em vistas os desenhos de Freud e quis tornar gráfica a diferença
conceitual entre sua ontologia do ser humano e a suposta por Freud
(LOPARIC, 2001, p. 103).
Assim como Heidegger teve interesse em se opor ao aparelho psíquico
freudiano, Frankl, sempre ligado a essas perspectivas, pode ter sido influenciado na
mesma direção. A representação gráfica dos dois pensadores pode ser entendida como
um histórico combate às representações do ser humano imbuídas pelas perspectivas
naturalistas e cientificistas. Na compreensão do ser humano como um ser aberto, as
perspectivas de Heidegger e de Frankl estão tacitamente em oposição às concepções que
o compreendem como um sistema fechado, em um império da subjetividade. Para Frankl,
“o ser humano é profundamente caracterizado como um ser aberto à realidade externa,
como foi demonstrado por Max Scheler, Arnold Gehlen e Adolf Portmann. Ou ainda,
como disse Martin Heidegger, o ser humano é um ‘ser no mundo’” (FRANKL, 2005,
p.41).
Desse modo, a antropologia filosófica viabilizada por uma desconstrução da
concepção naturalista do ser humano, primou, a partir da ontologia dimensional, pela
reabilitação da dimensão espiritual. Longe de uma concepção solipsista, a dimensão
noética visa promover um ser humano facultativo, relacional em suas possibilidades de
ser. Ao combater o reducionismo psicologista, o ser humano pode ser compreendido em
19
Imagem do aparelho psíquico elaborado por Freud em 1923.
92
sua abertura transcendental, pois, como já dito, o humano se caracteriza por abertura e
direcionamento para além de si.
93
4 A COMPREENSÃO DA PESSOA ESPIRITUAL A PARTIR DA
TRANSCENDÊNCIA
O conceito de transcendência ocupa posição central no pensamento de Viktor
Frankl. Não são raras as obras em que a transcendência é tratada como um fenômeno
tipicamente humano. Mais do que isso: a transcendência é considerada como parte
essencial na constituição do ser humano. Apesar de ocupar posição privilegiada, o
fenômeno da transcendência não é tratado à exaustão na bibliografia frankliana. A
hipótese é de que esta temática está, de certa forma, subentendida na análise existencial
do ser humano. Este capítulo tem como objetivo explicitar o fenômeno da transcendência
como constituição essencial da pessoa espiritual no pensamento frankliano.
A partir do conjunto das obras de Frankl, Peter defende que a transcendência
pode ser compreendida a partir de dois níveis: o horizontal e o vertical. No primeiro nível,
há uma transcendência imanente, que consiste na consideração do ser humano em sua
abertura em direção ao mundo. No segundo nível, a transcendência é compreendida de
modo mais abrangente, a partir de uma altura. Trata-se da premissa básica de que o ser
humano não se dirige apenas em direção ao mundo, mas de que ele busca um sentido em
sua vida e que, em tal busca, pode se elevar a um Ultimate Meaning. A busca por um
significado último ainda poderá alçar maior abrangência, quando se traduzir em
relacionamento com o absoluto. Esse último aspecto da busca por um sentido consiste em
uma perspectiva metaclínica, o que faz com que a Logoterapia não a assuma como
posição de análise, embora isso não signifique que ela abandone a perspectiva do sentido
absoluto enquanto um objeto possível. A busca pelo significado absoluto (Uber-Sinn)
será tema da última seção deste capítulo.
A compreensão antropológica da pessoa espiritual pela transcendência está
claramente em oposição às visões de homem baseadas no princípio homeostático, pelo
qual se vê o ser humano como um sistema fechado, e a autorrealização, como um fim em
si mesmo. Em uma compreensão fundada na satisfação homeostática, todas as criações
culturais da humanidade são tidas como instinto, com única finalidade da satisfação
individual. Ao se opor a essa perspectiva, Frankl defende que a realização se dá pelo fato
de existirem propósitos na e para a vida.
Na compreensão de Economi (2000, p. 18), a transcendência enquanto abertura
do homem ao mundo, reforçada por Frankl, contradiz de pronto o princípio da
homeostase. Isso porque a transcendência é vista, não nos termos de uma autorrealização,
94
mas como autotranscedência. Para Economi, o homem é “uma personalidade que
realmente amadurece quando se realiza, não segundo um processo de autorrealização,
mas, ao invés, segundo um itinerário de autotranscendência” (2000, p. 18). Nesse sentido,
o conceito de transcendência no pensamento frankliano deverá ser compreendido como
autotranscendência20.
Logo, pode-se compreender o nível horizontal da transcendência. De forma
diversa de uma mônada fechada em si, Frankl compreende o ser humano como um ser
totalmente aberto ao mundo. Contrariamente à realidade do animal, que está determinado
por um mundo (Umwelt), o ser humano está em o mundo (Welt). O modo de ocupação e
de relação dessas duas espécies com o mundo é diverso, pois, enquanto o animal encontra,
no meio ambiente, os elementos constitutivos de sua instintividade e, por meio deles, a
vida animal é forjada, o ser humano tem por característica traspassar as barreiras do meio
que são impostas pela sua espécie. Nessa ultrapassagem, o ser humano se acha à deriva
de um mundo denso de seres a encontrar e significados a realizar como formas
constitutivas de sua existência.
Na compreensão de Frankl, a procura pelo sentido da vida não está na busca pela
realização interior, mas na pura abertura do ser humano ao mundo, em uma procura para
além de si. No relacionamento e concretização de um sentido lá fora, no mundo, isto é,
para além de uma preocupação com sua autorrealização, o ser humano se realiza a si
mesmo. Essa questão evidencia a centralidade do conceito de autotranscendência no
pensamento frankliano, pois os princípios basilares da Logoterapia aqui tangenciados –
vontade de sentido e liberdade da vontade – trazem em seu bojo a concepção de
autotranscendência.
A “vontade de sentido” ocupa o centro do conceito logoterapêutico de
motivação. Os aspectos de que a vida tem um sentido incondicional e de que o ser humano
se orienta primariamente para esses significados e valores são muito caros a Frankl. Disto
resulta a compreensão de que a vontade de sentido é inerente a todo ser humano. Essa
tendência para o sentido possui duas realidades: uma interior e outra exterior. A
orientação interior consiste na tendência para a realização do sentido como necessidade
20
Além da compreensão do conceito de transcendência e autotranscedência, Frankl trabalha com o
conceito de Transcendente. Nesse nível, pode-se dizer de uma relação com o absoluto. Uma
autotranscendência tão extrema (abrangente) a ponto de ir em direção ao significado último da existência,
o sobre significado da transcendência. “Nesse nível de autotranscendência para o absoluto – que apenas o
homem religioso chama explicitamente como Deus, teologicamente entendido, o sujeito vive um nível real
e próprio de segurança” (ECONOMI, 2000, p. 168). Esse tema será trabalhado a diante.
95
mais elementar do ser humano. Já a orientação exterior consiste no caráter significativo
ou de sentido de uma dada situação (LUKAS, 1989, p. 24). Trata-se de um apelo à
resposta que a vida costumeiramente nos faz. As orientações, interna e externa, para o
sentido, não acontecem dissociadas, mas em mútua interdependência de convocar o
sentido para a vida e de ser convocado por ele por meio das situações.
A vontade de sentido é entendida como um princípio de coerência que
ordene a transcendência horizontal do homem (sua relação com os
outros, com a vida e consigo mesmo). Este pode buscar um princípio
de coerência que lhe permita ordenar a sua relação com o universo e o
mundo dos valores. Assim, a vontade de sentido permite ao ser humano
descobrir a coerência interna de sua existência (AQUINO, T. A. A.;
DAMÁSIO, B. F.; SILVA, J. P., 2010, p. 27).
Ao desvelar a orientação primária pelos sentidos e valores e postular que a vida
tem sentido incondicional, Frankl dá um novo influxo à compreensão antropológica na
psicoterapia. Como defendido no capítulo anterior, o ser humano é composto de corpo e
psíquico, mas é espiritual. Essa perspectiva ressalta o poder de autodeterminação do
sujeito a partir da autotranscedência. Se o corpo e a psique são compreendidos enquanto
dimensões passíveis de determinação, de maneira oposta é o espírito humano, pois
consiste naquela dimensão capaz de se elevar acima dos condicionamentos, libertando-o.
Essa capacidade de autotranscedência do ser humano está em oposição ao determinismo
e àquilo que Frankl denomina de “pandeterminismo”. Enquanto o determinismo reduz o
ser humano ao psicofísico, desconsiderando a dimensão espiritual, o pandeterminismo se
ocupa da anterioridade, pois, ao despojar o ser humano de sua autonomia, tirando-lhe os
existenciais de liberdade e de responsabilidade, deixa aberto o caminho para que o
reducionismo ocorra.
Diante dos desafios na compreensão do ser humano o segundo princípio se
efetiva, postulando a incondicionalidade humana. A partir da “liberdade da vontade”,
Frankl pretende restituir ao ser humano a liberdade e a responsabilidade para que possa
decidir mediante as possibilidades que a vida lhe oferece. É importante a consideração
que Frankl faz sobre a liberdade do ser humano, pois essa não implica o fato de
meramente estar livre de condições, mas antes, é um estar livre para tomar posições em
quaisquer condições que porventura o cerquem (FRANKL, 1970, p. 16). Nesse sentido,
são combatidos todos os sistemas que pretendem nivelar o ser humano pelas camadas
inferiores – corpo e psíquico –, pois isoladamente essas camadas não garantem à
compreensão do ser humano em uma autonomia e liberdade. Restituindo a compreensão
de um ser humano em sua totalidade bio-psico-espiritual, sendo a última dimensão o elo
96
entre as demais dimensões, dá-se o ponto de partida para a compreensão de um vivente
que ultrapassa seus condicionamentos e se apropria de sua liberdade.
O reducionismo é o niilismo de hoje. É verdade que para ficarmos na
moda, os eixos sobre os quais gira o existencialismo de Jean Paul Sartre
são - o ser e o nada. Mas a lição a ser aprendida do existencialismo é
que o ser humano não participa da qualidade que faz as coisas serem
coisas. O ser humano não é uma coisa entre outras. As coisas são
determinadas umas pelas outras. O homem, ao contrário, determina-se
por si mesmo. Ou melhor, ele escolhe deixar-se ou não determinar-se
pelas suas pulsões e pelos instintos que estimulam, ou então pelas
razões e pelos significados que o atraem (FRANKL, 2005, p. 49).
A liberdade é uma característica propriamente humana e, como a definição de
humano já pressupõe, de natureza limitada. Frankl defende que o ser humano é
determinado por certas condições. Contudo, em uma medida ainda maior, ele defende
também que o ser humano é livre para tomar posições diante desses condicionamentos.
A última palavra perante a própria vida do ser humano, isto é, a última atitude perante si,
será sempre a dele próprio. Nesses termos, Arnold, citada por Frankl, defende o fato de
que todas as escolhas têm uma causa, mas a atitude perante elas é efetivada por aquele
que escolhe (ARNOLD aput FRANKL, 2005, p. 43). No fazimento de sua própria vida,
diante das escolhas que lhe são possíveis, o ser humano deve decidir se sucumbirá e se
deixará limitar pelas condições ou se elevará perante elas.
O fato de o ser humano escolher uma, dentre outras possibilidades, não deve
levar a um juízo de valor sobre qual postura ou possibilidade seria a mais adequada de
ser adotada, pois cada um responde às questões que a vida coloca de uma determinada
maneira. Frankl pretende ressaltar a liberdade incondicional do ser humano de fazer
escolhas, bem como a capacidade de autodistanciamento. A responsabilidade se efetiva
pelo autodistanciamento, visto que o que passa a importar diante de uma data situação
não são temores, ansiedades, condicionamentos, mas a atitude que se adota diante dela,
isto é, o caráter de missão de uma dada situação. A atitude livremente escolhida é a
resposta ao apelo situacional.
Assim, a grande crítica inerente ao pensamento frankliano não se refere apenas
ao reducionismo do ser humano à unidade psicofísica, ou ao tolhimento de sua liberdade.
A crítica reside num momento anterior, o da desconsideração da dimensão distintiva do
ser humano, que, ao ser negligenciada, oportuniza a sua redução, o tolhimento de sua
liberdade e a justificação de sua irresponsabilidade. A desconsideração da dimensão
espiritual faz com que fenômenos como a arte, o amor, os valores e a religiosidade, por
exemplo, sejam encarados como mecanismos de defesa ou fenômenos subumanos. Além
97
do mais, outro fenômeno que escaparia e que possibilitaria a manifestação da abertura da
pessoa à transcendência seria perdido. O ser humano, como já dito, não é uma mônada
fechada em si, mas uma realidade aberta, caracterizada e concretizada pela
transcendência, por meio da qual os reducionismos são superados pela autonomia.
Esses princípios trazem à baila o Leitmotiv implícito do pensamento frankliano,
o da “unidade apesar da diversidade”. Como visto no capítulo antecedente, a consideração
da dimensão espiritual na compreensão do ser humano oportuniza uma unidade
antropológica em totalidade. Entende-se o espírito como unitas multiplex, o elo em torno
do qual se agrupam as dimensões inferiores – a somática e a psíquica. Há aqui uma
apropriação do conceito medievo de Tomás de Aquino, o da “unidade na diversidade”.
Na apropriação frankliana, o acento está na unidade, mais do que nas diversas partes que
a compõem. É, portanto, uma unidade apesar da diversidade.
A expressão “unidade apesar da diversidade” tem sua inspiração em uma
máxima do pensamento de N. Hartmann, aquela da “autonomia apesar da dependência”.
Tais concepções não estão de modo algum em oposição, mas são complementares na
compreensão antropológica postulada por Frankl. A partir do momento em que se
compreende o ser humano como uma unidade bio-psico-espiritual, pode-se falar de uma
pessoa com autonomia, para além de seus condicionamentos. Ou seja, mesmo
determinado pela sua dimensão psicofísica, o ser humano tem a autonomia de se elevar
acima delas pela escolha. A unidade conferida a ele pelo espiritual o impulsiona a uma
vida autônoma, apesar da diversidade que pode lhe causar a dependência.
Pode-se inferir que tanto a partir dos pilares do pensamento frankliano – o da
vontade de sentido e o da liberdade da vontade – quanto do Leitmotiv apresentado, a
consideração da transcendência se mostra de modo essencial, ainda que não
explicitamente tematizada. A “unidade apesar da diversidade” ocorre quando a
compreensão sobre o ser humano não está devotada ao reducionismo, mas se encontra
aberta a transcender o psicofísico até a dimensão mais alta, a espiritual. Ressalta-se que
essa forma de compreensão da pessoa possui ao menos duas facetas: a forma de ver o
homem das ciências que lhe são pertinentes e a forma como ele próprio se vê, isto é, sua
autocompreensão.
No âmbito das ciências do homem, se o foco estiver exclusivamente na secção
da realidade a partir da facticidade, a diversidade será levada em conta, mas ficará à deriva
a unidade do ser humano. A ciência feita aos moldes do retalhamento de uma porção de
entes, no sentido heideggeriano, contribui para que a pessoa não seja vista como pura
98
expressão de si, de suas potencialidades. Além do mais, fenômenos genuínos, como é o
caso da religiosidade, são compreendidos como epifenômenos.
Quanto à autocompreensão do homem, podendo ser esta também um produto da
visão científica, ao negligenciar a dimensão transcendente, o princípio da realização
estará frustrado, pois, como dito anteriormente, a realização não é efeito de uma vivência
a ermo, mas de ir além de si em direção ao mundo. Como afirma Frankl, “a
autorrealização, se transformada num fim em si mesmo, contradiz o caráter
autotranscendente da existência humana” (2013, p. 52). A vontade de sentido, mais do
que uma autorrealização, é a efetivação de um sentido.
No empreendimento realizado até aqui, que intenta qualificar a transcendência
como fenômeno essencial na constituição do ser humano, recorreu-se aos conceitos e
axiomas basilares do pensamento de Frankl a fim de corroborar a hipótese e perceber o
fenômeno da transcendência, ainda que pressuposto. Do que ficou demonstrado, percebe-
se que a autotranscendência se identifica com a vivência pelo espírito da pessoa espiritual.
Como ficou patente, a dimensão espiritual não se apresenta como uma
característica adicionável ao ser humano, mas como algo que o distingue. O ser humano
se torna integrado somente pelo fato de estar centrado como indivíduo, como centro de
atos espirituais. Para Frankl, a pessoa espiritual estabelece a unidade e totalidade do ser
humano (1997, p. 21). Sob a influência de Mounier e Scheler, Frankl adota a categoria de
pessoa.
Xausa ressalta que o personalismo de Mounier, caracterizado pela valorização
da pessoa, do exercício da liberdade e da responsabilidade, além do comprometimento
com a comunidade e um comportamento antipositivista, encontra na perspectiva
frankliana muitos pontos de identificação (1988, p. 73). O personalismo dá ao homem,
com a categoria de pessoa, um relevo intenso na distinção dos demais entes. Para Frankl,
por meio da dimensão espiritual, o ser humano estabelece a unidade e totalidade em si.
Compreendê-lo como pessoa espiritual é delinear uma vivência a partir do núcleo
espiritual.
Ressaltou-se de modo pujante o axioma frankliano de que toda teoria psicológica
possui uma imagem de ser humano pressuposta. A imagem pressuposta de Frankl é esta:
o ser humano é pessoa espiritual-existencial; de modo resumido, é pessoa espiritual. Essa
perspectiva não consiste apenas em dar relevo à dimensão espiritual, mas de trazer à baila
a questão da transcendência. Como ressalta Mounier, “a pessoa é um dentro que tem
99
necessidade de estar fora” (1962, p. 20. apud XAUSA, 1988, p. 72). A concepção que
Frankl tem de pessoa vai nessa direção, como aponta Miguez:
Em suas “Dez teses sobre a pessoa”, Frankl (2008, pp. 106-129) explica
que a pessoa espiritual acha-se em contraposição heurística facultativa
com o organismo psicofísico. Essa propriedade de “sair de si” para que
possa confrontar-se e livremente tomar posição frente aos
condicionamentos pessoais ou situacionais é o que constitui a dimensão
noética como tal, circunscrevendo o âmbito do humano como âmbito
do espiritual (2015, p. 67).
Somente o ser humano participa da categoria de pessoa, pois somente ele pode-
se colocar em questão, ou seja, pode-se distanciar de si e ir para além de si, pode-se
direcionar rumo ao sentido e precisa fazê-lo. A pessoa espiritual possui uma exigência
ética de confrontar tudo que lhe causa condicionamentos, sejam sociais, corporais ou
psíquicos. O espírito é a liberdade do ser humano, tornando-o incondicionado. Isso não
significa que não tenha limites ou que seja onipotente, mas que, antes de ser fático, ele é
facultativo. Portanto, o ser humano não se compreende a si enquanto não sai de si e
transcende em direção aos outros, as coisas, ao mundo, isto é, enquanto não transforma o
projeto de sua existência espiritual em um ato de execução.
Em O homem incondicionado (1949), Frankl faz uma afirmação que deixa
patente a importância da consideração da autotranscendência na compreensão do ser
humano e da relação desse conceito com a vivência pelo espírito. Para ele: “na medida
em que o espírito não está no corpo e também em parte alguma do espaço e em toda a
parte (pois que ambos estão, por si mesmos, eliminados), ele está tanto dentro como fora
do corpo; ‘fora’, no exterior, no ambiente exterior, numa palavra: o espírito está (‘é’) nas
coisas” (1978, p. 94). E assim conclui: “o ente espiritual ‘é’, em realidade, ‘em’ outro
ente espiritual – eis a nossa tese” (1978, p. 94). Essa tese demonstra, de modo indubitável,
a compreensão da capacidade do ser humano de ir além de si, de estar (ser) nas coisas e
com os outros. Contudo, esse modo de transcendência deve ser explicitado, a fim de não
se confundir com o uso adotado pela tradição.
Dessa capacidade de o espírito estar em tudo que eventualmente presenteia, isto
é, em tudo que pensa e “toca”, resulta uma problemática em torno da temática da
transcendência: (1) Ao considerá-la, trata-se de uma questão espacial a afirmação de que
o ser humano tem a possibilidade de encontrar outros entes? (2) A relação presente na
transcendência é aquela que opera sob a dicotomia entre sujeito e objeto?
100
4.1 APORIA EM TORNO DO CONCEITO DE TRANSCENDÊNCIA
Para Frankl, essa capacidade humana de estar “em” – outro ente – não se dá
espacialmente, pois, se assim fosse, seria inviabilizada de pronto. A capacidade de ir além
de si e estar junto aos demais parte da consideração de que o “ser em” do espírito, isto é,
a possibilidade de ser em outro ente distinto de si, de sua consciência, consiste em um
fato ontológico e não em uma realidade ôntica. Essa perspectiva implica eliminar a cisão
entre sujeito e objeto, assim como a relação espacial inerente a ela. Portanto, o espírito
pode ser compreendido em sua atividade de ir além, de estar “em” outro ente, pois
enquanto dimensão distinta das demais, não está sujeito à categoria de espaço.
O ente espiritual não “é”, conseqüentemente, em outro ente em termos
de espaço. Temos, portanto, o direito de nos chocarmos diante das
expressões comumente usadas nesse terreno. A menos que “fora”,
“exterior”, “em” sejam concebidas imagisticamente, alegoricamente, e
que tenhamos consciência desse uso. Aí não cometeríamos o menor
erro. Onticamente, o espírito não está jamais “fora”; contudo,
ontologicamente, ele está, em cada caso “quase fora”. Onticamente,
nunca é espacial; ontologicamente, sempre o é (FRANKL, 1978, p. 94).
Assim, ao tematizar a dimensão espiritual puramente ôntica da realidade, Frankl
postula a inviabilidade de localizar o espírito, pois entende que essa categoria não está no
corpo, nem no espaço ou em qualquer outra parte do ser humano. Contudo, se a
compreensão dessa dimensão for ontológica, postula-se a capacidade de o espírito estar
tanto “dentro” quanto “fora”, pois o espírito “é” nas coisas. Dito de outra forma: pode-se
dizer que a dimensão espiritual do ser humano não é nem fora, nem dentro, ela é aí; o
ente espiritual é naquilo que presenteia (FRANKL, 1978, p. 94).
Frankl irá dizer de uma relação recíproca entre mundo e consciência. Para ele, o
mundo não é somente na consciência, como um conteúdo dentro de uma caixa, mas a
consciência é também no mundo (FRANKL, 1978, p. 95). Contudo, por mais que haja
um esforço na tradição em ressaltar a reciprocidade dessa relação, a essência do “estar
em” não é alcançada. A única coisa que a ontologia do conhecimento21 pode afirmar é
que o ente espiritual é, de qualquer modo, em outro ente.
O conhecimento existencial se caracteriza, contudo, pelo fato de ser
mais do que o ter da simples essência do simples ter – mais do que a
sua simples “presença”: o conhecer existencial não significa a presença
21
Frankl se utiliza desse termo – ontologia do conhecimento – a fim de promover uma distinção
com o que nomeia de metafísica do conhecimento. No entendimento de Frankl, a metafísica promove uma
cisão entre sujeito e objeto, sendo próprio das teorias do conhecimento moderno. Ao promover uma
ontologia do conhecimento, cumpre ressaltar que Frankl também está em oposição à perspectiva
fenomenológica, no que tange a possibilidade de apreensão da essência das coisas.
101
do que é conhecido, mas o “ser em” daquele que conhece. De modo que
podemos dizer: a diferença entre o conhecimento essencial e o
existencial é a seguinte: essentia (conhecida essencialmente pelo ente
espiritual) “manifesta” existentia; existentia (aquele que conhece
existencialmente outro ser) “é” (está) nele (“em” ele) (FRANKL 1978,
p. 98).
O conhecimento existencial constitui outra categoria de apreensão. Frankl
ressalta a capacidade de “ser em” outro ente, visto que, enquanto o conhecimento
essencial manifesta a presença de outro ser, o existencial não apenas a manifesta como
“é” naquele que conhece, possibilitando uma apreensão do outro e de si mesmo, pois o
“ser em” do ente espiritual em outro ente espiritual é denominado de “ser-um-no-outro”
(FRANKL, 1978, p. 98).
Nesse sentido, “[t]oda nossa percepção, todo o nosso conhecimento perceptível
é somente esse “ter” – não o ter da existência, mas precisamente o do ser-assim, da
essência” (FRANKL, 1978, p. 90). O austríaco argumenta sobre a possibilidade de
apreensão da essência pelo conhecimento cognitivo, considerando que esse conhecimento
não é o da qualidade existencial das coisas, mas o da facticidade da essência. Assim, para
que haja algo como representação, percepção, recordação e o tornar presente, por
exemplo, que são realidades posteriores à existência, é necessário, anteriormente, algo
como condição de possibilidade, isto é, o “estar em”.
A partir do diagnóstico desse estado de coisas da compreensão antropológica,
Frankl, em sintonia com sua tradição, irá buscar uma compreensão do ser humano a partir
de um novo fundamento, pois pensá-lo a partir da transcendência é galgar uma
compreensão desde uma anterioridade fundadora. Compreender o ser humano pela
transcendência é possibilitar a manifestação da relação de “ser em”, na qual há o primado
da escolha autônoma e a consideração do outro e das coisas como integrantes de seu
mundo, e não concebidas de forma isolada. O ente espiritual é em-si, isto é, é ser-
consciente, ao passo que é (está) em outro ente, à medida que tem consciência de outro
ente. Nesse sentido, a intencionalidade do “ser em” do ente espiritual é ressaltada, pois
sua capacidade de conhecer existencialmente só “tem” o outro ente se está nele, é “em
ele”.
Considerar a capacidade do ser humano de “ser em” outro ente é desvelar a
capacidade de transcendência do indivíduo e assegurar que essa capacidade não seja
compreendida de modo espacial. Como dito, o ser espiritual não está em outro ente de
modo físico, mas intencionalmente, não tem o outro de modo espacial, mas
102
existencialmente. Essas considerações a respeito da aporia do conceito de transcendência
levam à segunda consideração: a de que tal relação não opera sob a dicotomia entre sujeito
e objeto.
Frankl considera o modo de pensar baseado na oposição entre sujeito e objeto
como o “pecado original” da filosofia. Compreende que os pensadores, principalmente
os da tradição epistemológica, ao indagarem como pode um sujeito do conhecimento
chegar ao objeto do conhecimento, partem de uma nítida separação entre ambos. Para ele,
tais considerações “baseiam-se na concepção de que entre sujeito e objeto existe uma
fissura inextinguível, um abismo intransponível, um precipício inacessível” (FRANKL,
1978, p. 92).
Ao considerar tal separação, a relação estabelecida entre ambos será espacial.
Ao projetar essa espacialidade e cisão ente sujeito e objeto para todas as áreas do
conhecimento, as considerações ontológicas são transformadas em ônticas. Há um
nivelamento das dimensões, sacrificando as camadas do ser humano, pois, ao considerar
tal cisão, já se parte de uma teoria do conhecimento na qual se privilegia apenas os
aspectos ônticos, isto é, a dimensão psicofísica. Contrariamente a essa posição
epistemológica, Frankl ressaltará que a possibilidade do ente espiritual “ser” (estar) em
outro ente é uma capacidade primitiva, é a essência do ser espiritual, da realidade
espiritual, sendo necessário às teorias epistemológicas “retroceder até antes dessa divisão
da existência em sujeito e objeto” (FRANKL, 1978, p. 92).
Diante do que já foi apresentado, levanta-se a hipótese de que o fenômeno da
transcendência tenha condições de deixar transparecer essa anterioridade, contudo, as
considerações a respeito desse conceito não são originárias de Frankl. Remontam a uma
tradição histórico-filosófica que a caracteriza e investiga sob múltiplos enfoques. Ao
buscar um diálogo com tal tradição, tendo em vista investigar as estruturas da concepção
frankliana de transcendência, uma perspectiva que parece contribuir bastante com o
propósito desse trabalho é aquela desenvolvida por Heidegger, principalmente em Os
fundamentos metafísicos da lógica (1928)22.
A apropriação heideggeriana do conceito de transcendência tem uma intenção
bastante clara: tornar patente a questão da analítica do Dasein, isso porque “o problema
da transcendência depende de como se determina a subjetividade do sujeito, quer dizer, a
constituição fundamental do Dasein” (HEIDEGGER, 2007, p. 190). Dito de outro modo,
22
Não há a versão em língua portuguesa de Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang
von Leibniz, sendo utilizada para este trabalho a versão em língua espanhola.
103
a apropriação feita por Heidegger desse conceito não consiste na compreensão de uma
dimensão que se adiciona ao ser humano, mas o como se compreende o Dasein. Dessa
forma, a transcendência desvela o modo como se compreende o ser humano, auxiliando
em uma nova compreensão a partir de um novo fundamento.
4.2 O SENTIDO DE TRANSCENDÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DE UMA
ONTOLOGIA EM HEIDEGGER
Heidegger trata, no §11 de seu último curso como professor na Universidade de
Marburgo23, sobre a transcendência do Dasein. Tal conceito não é originário do filósofo
de Messkirch, no entanto, a apropriação lhe garante uma formulação própria. Tanto no
curso de 1928 quanto na preleção A essência do fundamento (1929), a transcendência é
tratada como ultrapassagem. Resta saber em que termos ela se efetiva? Quem ultrapassa?
O que é ultrapassado? Em qual direção?
Inicialmente, em Os fundamentos metafísicos da lógica (1928), Heidegger
identifica dois sentidos do conceito de transcendência: um pertinente ao conceito verbal
e outro ao uso terminológico. O primeiro trata da variação conceitual; o segundo, refere-
se àquele que transcende enquanto tal. Quanto ao uso terminológico, Heidegger distingue
duas interpretações: uma epistemológica e outra teológica.
4.2.1 Sentido histórico do conceito de transcendência
O conceito de transcendência remete à etimologia latina transcendere, tendo o
seu sentido na perspectiva platônica do mundo das ideias, de um ir além de...
(HEIDEGGER, 2007, p. 213). Nesse sentido, o uso corriqueiro, segundo Heidegger,
significa 1) um fazer; 2) do ponto de vista formal, uma relação; 3) uma fronteira, um
limite, um estar entre. Pode-se inferir que o conceito abarca um transcender (1), aquele
que transcende (2) e o que, por sua vez, é transcendido (3).
Um ano mais tarde, em A essência do fundamento (1929), essa tríade é retomada.
Todavia, Heidegger não visa apresentá-la em seu uso vulgar, mas na perspectiva de
23
Conforme nota do editor na versão germânica, Klaus Held, a obra Metaphysische Anfangsgründe
der Logik im Ausgang von Leibniz, volume 26 das Gesamtausgaben de Heidegger, aqui traduzida por Os
princípios metafísicos da lógica refere-se a um curso proferido pelo filósofo, no verão de 1928, intitulado
“Lógica”. Foi o último trimestre de Heidegger como professor da Universidade de Marburgo/Lahn, pois,
com a aposentadoria de Edmund Husserl, Heidegger assume a cátedra de seu mestre em Friburgo.
104
elementos estruturantes. Considera como o transcendente aquele que realiza a
ultrapassagem, isto é, o Dasein. Esse se dirige para algum lugar, o transcender é para o
mundo. O que é ultrapassado na transcendência são os entes e o Dasein mesmo
(HEIDEGGER, 2008, p. 149). Tais pontos servirão de guia na reflexão do conceito
transcendental da transcendência que será desenvolvido ao longo deste capítulo.
Após a apresentação do conceito verbal da transcendência, Heidegger, em Os
fundamentos metafísicos da lógica (1928), inicia um processo de desconstrução do uso
terminológico que a transcendência recebeu ao longo da história. Chega à conclusão de
que tal conceito possui um nexo, ora com a imanência, ora com a contingência, ou ainda
uma compreensão simultânea entre essas. A grande questão explicitada por Heidegger é
de que, em seus usos, a transcendência é compreendida enquanto relacional.
Em relação ao nexo que a transcendência possui com a imanência ao longo da
história, Heidegger qualifica o transcendente como o que permanece externo ao sujeito,
visto que se considera como imanente o que concerne ao seu interior, isto é, sua alma, sua
consciência. Há, portanto, uma representação do sujeito como uma cápsula, ou seja, como
um interior. Nesse sentido tradicional, o transcender consiste em uma ultrapassagem
espacial por meio da qual se realça uma distinção entre o ente que ultrapassa e o que é
ultrapassado. Nessa perspectiva epistemológica, aquilo que ultrapassa traz do
ultrapassado uma representação, nada sabendo de como um já estaria aberto para o outro.
Desse modo, o transcender é pertinente à superação de um limite entre o interior e o
exterior, de um sujeito e um objeto.
Da oposição entre imanência e transcendência pode surgir um problema: como
algo interno – assim como a consciência ou a alma – pode romper suas fronteiras a fim
de alcançar o que lhe está alheio? Surge dessa concepção o problema da intencionalidade:
explicar de maneira causal o que está para além da cápsula. O mestre de Heidegger,
Husserl, demonstra, por meio de sua doutrina da intencionalidade24, que tal pergunta é
inapropriada, pois a consciência é sempre consciência de algo, isto é, a transcendência já
está implícita na consciência. Todavia, mantém-se a concepção da transcendência na
perspectiva de um interior e exterior. A atribuição do uso terminológico em relação ao
conceito verbal, na perspectiva epistemológica, aponta o fazer como a superação de um
24
Não é objeto desta tese a discussão sobre o problema da intencionalidade. Com isso, não se
pretendeu apresentar uma análise aprofundada desse conceito, restringindo-se apenas a uma definição
genérica, a fim de situar o problema da transcendência.
105
limite, sendo a relação estabelecida entre um interior e um exterior, cuja fronteira é entre
o objeto e o sujeito concebido enquanto cápsula.
Quanto à segunda compreensão, o conceito de transcendência se relaciona com
a contingência. “A contingência é aquilo que nos toca, que nos afeta diretamente, com o
que estamos em pé de igualdade, o que é nossa classe e origem” (HEIDEGGER, 2007, p.
190). Nesse viés, o contingente refere-se ao conjunto de entes mais próximos do Dasein,
àquilo que o condiciona. A transcendência, por sua vez, é compreendida nesse nexo como
a ultrapassagem ao outro lado, por cima do ente condicionado. Identifica-se com o
incondicionado, compreendido também como o inalcançável, o que excede.
Tal compreensão, assim como a epistemológica, também é considerada
relacional. Contudo, o nexo não é entre um sujeito e um objeto, mas entre o condicionado
e incondicionado, entre o sujeito e possíveis objetos e Deus. Trata-se, portanto, de um
conceito teológico em sentido amplo de transcendência. Importante destacar que o sentido
epistemológico de modo algum se opõe ao teológico. Ao contrário, eles podem possuir
um sentido comum, originando um terceiro sentido para a transcendência:
O transcendente, nesse duplo sentido, é o eminente, o ente que supera,
excede toda experiência. Desse modo, a questão da possível apreensão
do transcendente em sentido epistemológico se entrecruza com a
questão da possibilidade do conhecimento do objeto transcendente em
sentido teológico (HEIDEGGER, 2007, p. 191).
Trata-se do entrecruzamento da possibilidade da cognoscibilidade e existência
de um mundo externo com o problema de Deus e a possibilidade de demonstração da
existência desse ente eminente. O transcendente, nesse caso, é o que ultrapassa toda
experiência possível, inclusive a epistemológica. Para Heidegger, a compreensão da
transcendência em Kant vai nessa direção. Acena para o duplo significado do termo “fora
de nós” presente na Crítica da razão pura (1781). O “fora de nós” pode significar o ente
independente, isto é, a coisa mesma, como um ente que existe por si e se mostra ao sujeito
finito, ou então, pensado como objeto independente, fora de uma possibilidade de
apreensão. (HEIDEGGER, 2007, p. 192). Dessa forma, o problema do transcendental em
Kant é o problema de um conhecimento a priori.
Heidegger apresenta, em seu curso de Lógica, usos terminológicos da
transcendência e conclui que não há uma relação entre esfera externa e interna, cujo limite
a ser superado é pertencente a um sujeito entendido enquanto cápsula. A transcendência
também não deve ser compreendida como relação cognoscível, uma ultrapassagem do
sujeito em vista de um objeto, uma relação que pertenceria unicamente à subjetividade.
106
E, por fim, a transcendência não é o que excede ao conhecimento finito, o inacessível, o
ente supremo. Ante essa desconstrução, em que consiste, então, a transcendência?
4.2.2 O sentido transcendental da transcendência
Em A essência do fundamento (1929), Heidegger define a transcendência como
a “constituição fundamental desse ente, uma constituição que acontece antes de todo
comportamento” (HEIDEGGER, 2008, p. 149). Ora, se a transcendência é a constituição
fundamental do Dasein, pode-se inferir que o Dasein é a transcendência. Nesse sentido,
contrariamente a uma concepção vulgar, não é o transcendente que se coloca para além
da subjetividade, isto é, não são os objetos que são compreendidos como transcendentes,
mas sim o próprio sujeito. Sendo a transcendência sua constituição fundamental, não pode
o Dasein não transcender. Existir, já é de per si ultrapassar. Ou seja, “ser sujeito quer
dizer transcender” (HEIDEGGER, 2007, p. 195).
Dessa concepção pode-se aduzir a duas considerações: a transcendência não é
um comportamento que se adiciona, isso porque o Dasein não é um ente subsistente.25
Transcender não é uma ação voluntária possível ao Dasein, mas, como já dito, trata-se de
sua constituição fundamental. E, em não sendo um ente subsistente, no sentido de
Vorhandenheit, a transcendência não constitui uma propriedade que pode ser conferida a
este ente subsistente. O ‘Dasein’ não existe primeiramente para só depois transcender.
Existir é “ser um ente na e como transcendência” (HEIDEGGER, 2008, p. 149).
Um animal, por exemplo, mesmo percorrendo um espaço, tendendo para alguma
direção, não se compreende como animal, não se atenta como aquele que vai ao encontro
de outro ente para ultrapassá-lo, nem mesmo compreende o “ir além de” como ultrapassar.
É nesse sentido que Heidegger compreende que a transcendência:
Refere-se àquilo que é próprio do ser-aí [Dasein] humano; e isto não,
por certo, como um modo de comportamento entre outros possíveis, de
vez em quando posto em exercício, mas como constituição fundamental
que acontece antes de todo comportamento. Não há dúvida, o ser-aí
humano, enquanto existe “espacialmente”, possui, entre outras
possibilidades, também a de “ultrapassar” um espaço, uma barreira
física ou um fosso. A transcendência, contudo, é a ultrapassagem que
possibilita algo tal como existência em geral e, por conseguinte também
um movimentar-“se”-no-espaço (HEIDEGGER, 2008, p. 149).
25
Trata-se da premissa básica desenvolvida por Heidegger no §9 de Ser e Tempo.
107
Portanto, a transcendência, tal como Heidegger a concebe, não é mero
comportamento possível ao Dasein, mas a sua constituição formal, isto é, trata-se de algo
anterior e a condição de possibilidade de todo comportar-se – transpor barreiras, buscar
por sentido etc. Trata-se do como o Dasein acontece em seu ser enquanto aí.
Como assinalado inicialmente, a problemática suscitada pela compreensão do
conceito de transcendência desvela o modo como se compreende o Dasein, contribuindo
com sua analítica. Do que até aqui foi exposto, percebe-se que o decisivo na clarificação
desse conceito em Heidegger é a compreensão do ente humano, não como um sujeito
díspar do objeto, que existiria independente dele e que, no encontro com o objeto, traria
consigo, na mente, uma representação objetiva. Ao contrário, ser transcendente é já estar
previamente junto ao ente, é ser o horizonte de sentido de todo e qualquer ente. Esse ser
junto a, possibilitado pela transcendência, constitui o espaço ontológico em que todas as
relações sempre acontecem e são possíveis. O Dasein não cria o ente, mas, somente no
horizonte de doação de sentido, que é o “Da” (aí) do Dasein, algo como “ente” tem seu
significado.
Desse modo, a compreensão ontológica do conceito de transcendência aponta
alguns caminhos: 1) ela é a constituição originária da subjetividade de um sujeito; 2) não
se refere à superação de um limite; 3) o “aonde” o sujeito transcende não é um objeto e,
4) não se trata de um comportamento adicionado.
Existir significa, originariamente, superar. Enquanto constituição originária da
subjetividade de um sujeito, a transcendência constitui a própria superação. Já em Ser e
Tempo (1927),26 quando o Dasein era compreendido como Sorge,27 Heidegger afirma que
“a essência do ‘Dasein’ reside em sua existência” (HEIDEGGER, 2012, p. 139). Tais
conceitos, essência e existência, não representam uma dualidade, visto que o Dasein não
tem uma essência contraposta a sua existência, ou que uma preceda a outra. O Dasein não
existe primeiramente para só depois ir se modulando, pois sua essência reside em seu ter-
de-ser (HEIDEGGER, 2012, p. 139).
Em A essência do fundamento (1929), Heidegger afirma que “a transcendência
designa a essência do sujeito, ela é a estrutura básica da subjetividade” (HEIDEGGER,
2008, p. 149). Nesse sentido, a ideia apresentada na preleção de 1929 não representa uma
26
Mais especificamente no §9 de Ser e Tempo.
27
Heidegger identifica no §12 o Dasein como preocupação, na tradução do vocábulo Sorge, por
Castilho: “entendido ontologicamente o Dasein é preocupação. Porque pertence essencialmente ao Dasein
o ser-no-mundo, seu ser em relação ao mundo é essencialmente ocupação” (HEIDEGGER, 2012, p. 181).
108
mudança em relação à concepção de Ser e Tempo (1927). Heidegger não redefine a
essência do Dasein, pelo contrário, reforça a ideia inicial, pois compreende a existência
enquanto Existenz. Isso porque a existência (Existenz) não é considerada como
subsistência (Vorhandenheit), visto que o prefixo “ex” implica um movimento de saída,
de ir para fora; já o verbo sistere se refere a uma tomada de postura, a um permanecer
firme. Nessa lógica, a existência seria uma insistência em estar para fora, em permanecer
fora.
A definição da existência como constituição fundamental do Dasein,
caracterizada pela insistência em permanecer fora, apresentada nos anos vinte, é retomada
por Heidegger ao escrever a introdução de O que é metafísica? (1949). Ali ele garante
atualidade à concepção de existência, já era presente desde Ser e Tempo (1927).
Aquilo que deve ser pensado sob o nome “existência”, quando a palavra
é usada no interior do pensamento que pensa na direção da verdade do
ser e a partir dela, poderia ser designado, do modo mais belo possível,
pela palavra “in-sistência”.
[...] O ente que é ao modo da existência é o homem. Somente o homem
existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O
cavalo é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não
existe. A frase: “Somente o homem existe”, não significa de modo
algum que apenas o homem seria um ente realmente efetivo e que todos
os entes restantes seriam irreais e somente uma aparência ou uma
representação do homem. A frase “O homem existe” significa: o
homem é aquele ente, cujo ser é assinalado pela in-sistência que se
encontra aberta no desenvolvimento do ser a partir do ser e para o ser
(HEIDEGGER, 2008, p. 386-387).
A caracterização do Dasein como existência, isto é, de seu modo de ser como
“ser para fora”, não deve ser compreendida como mera exterioridade. Tal equívoco pode
levar a confundir o Dasein com os demais entes que são, mas não existem, perdendo de
vista sua constituição fundamental, que é a transcendência. Entretanto, a diferença do
Dasein em relação aos demais entes não se limita a poder “ser para fora”, como um
comportamento possível. O modo de ser que de fato o caracteriza é a insistência em sê-
lo.
E insistência não significa teimosia. A insistência se refere, primeiramente, ao
seu modo constantemente aberto, o espaço em que os entes vêm a ser com sentido. É o
lugar da distinção entre ser e ente para poder distinguir cada ente como sendo isto ou
aquilo, ou ainda, como não ser. A árvore, por exemplo, não dá sentido ao solo, muito
menos à floresta. Ela está simplesmente ao lado desses, nem mesmo sabendo sobre o estar
ao lado de. O Dasein, ao contrário, não só está simplesmente ao lado da árvore, do solo e
109
da floresta, mas se relaciona com eles. O Dasein se relaciona com tudo e consigo mesmo,
pois a sua insistência se refere, também, em continuar sendo o mesmo (Selbest).
Nesses termos, a transcendência não pode ser entendida como superação de
limite posto previamente ao sujeito em um espaço interior, pois a transcendência supera
o ente mesmo. Tomando como referência A essência do fundamento (1929), Blanc aborda
esse tema. Para ela,
embora pertencendo à “natureza” (ente em totalidade), o homem está já
sempre, ao mesmo tempo e pelo seu modo de ser, fora dela, junto ao
mundo, que é isso para o qual o ser-aí transcende. E enquanto
transcende para o mundo, que o ser-aí se diferencia para o ente
(natureza) e se constitui como ipseidade, ou seja, como lugar de relação
à totalidade do ente transcendido (BLANC, 1984, p. 74-75).
A partir desse excerto algumas características se destacam no modo da
transcendência: 1) O Dasein transcende a natureza; 2) A transcendência constitui a
ipseidade; 3) A ipseidade não se confunde com uma atitude egoica.
A característica da natureza é a facticidade na qual os entes estão presentes e
pela qual, rodeados. O Dasein, todavia, mesmo estando na facticidade, em meio aos
demais entes, se mostra estranho a uma natureza (HEIDEGGER, 2007, p. 195). Desse
modo, a superação do Dasein não corresponde a um limite, mas a esse seu estado fático.
Para Heidegger, “O que é ultrapassado é precisa e unicamente o ente mesmo, e, na
verdade, cada ente que pode tornar-se ou já está desvelado para o ser-aí; por conseguinte,
também e justamente o ente que “ele mesmo” é enquanto existe” (HEIDEGGER, 2008,
p. 150).
A transcendência não pode ser pensada como superação de um limite, pois há
uma anterioridade dessa forma de transcendência em relação aos entes tornados objetos.
O que vem ao encontro do Dasein, não são, por primeiro, esses objetos, mas aquilo que
ele é. A “transcendência constitui a mesmidade (ipseidade)” (HEIDEGGER, 2008, p.
150). O encontro do Dasein consigo mesmo possibilita também, ao mesmo tempo, uma
distinção com aquilo que não se é.
Na medida, contudo, em que o ser-aí existe como si mesmo – e somente
nesta medida -, ele pode ter um comportamento (relacionar-“se”) para
com o ente que, entretanto, deve ter sido ultrapassado antes disso. Ainda
que sendo em meio ao ente e por ele cercado, o ser-aí enquanto existente
já sempre ultrapassou a natureza (HEIDEGGER, 2008, p. 150).
Nesses termos, a transcendência – enquanto essência do Dasein – exerce uma
anterioridade fundadora. O lugar possibilita o relacionar-se, tanto com aquilo que o
Dasein é, quanto com o que não é, e ainda com o que pode ser (possibilidades). Somente
110
o Dasein é “si mesmo”, somente ele pode falar em um “si”, isto é, estabelecer uma relação
consigo e com outros; somente o Dasein é um “mesmo”, pois um ente simplesmente dado
não decide sobre si, muito menos sobre outros.
Contudo, a compreensão do Dasein a partir da mesmidade não deve suscitar um
argumento solipsista ou uma compreensão egoica do mesmo, visto que, à medida que o
Dasein existe, já é ser-em-um-mundo, isto é, encontra-se saltando sobre os entes. Nesse
saltar próprio do Dasein, os entes alcançam a possibilidade de se mostrarem. Ele existe
como um ser em si-mesmo, mas não como um ser em-si. Ele é um ente que, mesmo sendo
si-mesmo, encontra-se, desde sempre, fora (ex-sistência). Essa insistência em ser fora
configura a tarefa do Dasein, não só da compreensão de seu ser, mas a do ser dos outros,
pois, conforme ele se relaciona consigo mesmo, tendo como possibilidade a de ser de
diversos modos, já está implícita a possibilidade de escolha, não só sobre si, mas também
a que ele faz sobre os outros.
Para Heidegger, há distintos graus de possibilidades em que as coisas são
desveladas. Nunca, no entanto, essas possibilidades estão desconexas de uma rede de
referências, sempre fazendo parte de um solo que lhes garante sentido. “O que, entretanto,
é a cada vez ultrapassado do ente em um ser-aí não se ajunta simplesmente por acaso. Ao
contrário, como quer que venha a ser determinado e articulado, o ente já foi sempre
previamente ultrapassado em direção a uma totalidade” (HEIDEGGER, 2008, p. 151).
Portanto, a ultrapassagem acontece na totalidade, não sendo a totalidade um ente, uma
coisa ou um vivente de qualquer classe. “O objeto, o ente que pode ter o caráter de ser
encontrado é o que se supera, não o lugar. O lugar onde o sujeito transcende é o que
chamamos mundo” (HEIDEGGER, 2007, p. 195).
4.2.3 Transcendência a partir do fenômeno do mundo
O empreendimento realizado até aqui buscou trazer à baila questões
anteriormente suscitadas sobre o emprego do conceito de transcendência na tradição e a
apropriação heideggeriana desse termo. Como ficou demonstrado, o conceito de
transcendência remete à ultrapassagem. Por um processo de desconstrução, a acepção
heideggerina indica não ser espacial essa ultrapassagem, como a superação de um limite
entre um interior e um exterior. Entendeu-se a transcendência como desprovida de aspecto
relacional, seja entre sujeito e objeto, ou entre o imanente e transcendente. A
transcendência, sob o olhar de Heidegger, também não corresponderia à coadunação
111
dessas perspectivas, vindo a ser compreendida como uma experiência (ou um ente) que
extrapola os limites cognoscitivos. A transcendência não consistiria também em um
comportamento que pode ser adicionável ao ente assinalado. Nesse percurso, a
transcendência se mostrou como constituição originária do Dasein: O Dasein é o
transcendente. Embora já se tenha tangenciado, resta discorrer sobre a última questão
inicialmente posta: em qual direção o Dasein transcende?
A proposição: o Dasein tem como constituição fundamental de seu ser
o ser-em-o-mundo, deve ser, portanto, um enunciado sobre a essência.
Isso quer dizer: o Dasein “tem”, de acordo com sua essência, algo assim
como mundo e consegue mundo não apenas porque facticamente existe,
nem tampouco porque com ele existem facticamente outros entes de sua
classe e de outras classes (e também está entre eles), senão o contrário:
pode existir em cada caso como está determinado, na medida em que,
como Dasein, tem algo assim como mundo (HEIDEGGER, 2007, p.
200).
Na proposição enunciada, pelo menos dois elementos se sobressaem a fim de
elucidar a compreensão do fenômeno de mundo: 1) a compreensão do mundo como um
transcendental e, 2) como se dá mundo, o mundanizar-se. Sobre o primeiro elemento, em
Os princípios metafísicos da lógica (1928), Heidegger é enfático ao afirmar que mundo
é um conceito transcendental em sentido estrito (HEIDDEGER, 2007, p. 200). Contudo,
não se deve compreender por transcendental a concepção de Kant a esse respeito, que
relaciona termo com o ontológico, embora esse último se refira à natureza em sentido
amplo. Para Heidegger, o conceito transcendental equivale ao ontológico fundamental.
Em A essência do fundamento (1929), essa ideia é reforçada. Heidegger clareia
o que se deve entender por transcendental: “mundo é um conceito transcendental. Com
este termo é denominado tudo aquilo que faz parte espacialmente da transcendência e
dela recebe de empréstimo sua possibilidade interna” (HEIDEGGER, 2008, p. 151).
Ressalta-se, assim, a grande importância que o fenômeno do mundo ocupa no pensamento
heideggeriano,28 pois, se o Dasein é o transcendente e o mundo pertence à transcendência,
o Dasein só pode ser compreendido enquanto ser-em-o-mundo.
Aqui reside o problema: o modo como a tradição compreendeu a relação do ser
com o mundo (ou como a tradição compreendeu o ser). Em Os princípios metafísicos da
28
Diante da polissemia em relação ao conceito de mundo, ressaltam-se aqui algumas das abordagens
exploradas por Heidegger em sua investigação. Para Stein, são principalmente três análises: 1) análise
ontológica-compreensivo-estrutural, desenvolvida em Ser e Tempo; 2) análise da gênese histórico
filosófica, desenvolvida em Sobre a Essência do Fundamento; e 3) análise comparativo diferencial,
desenvolvido em Conceitos fundamentais da metafísica (STEIN, 2004, p. 141). No intento dessa tese se
atém exclusivamente à gênese histórico filosófica, não só presente em A essência do fundamento, mas antes,
em Os princípios metafísicos da lógica, como anteriormente assinalado.
112
lógica (1928), Heidegger apresenta as equivocidades do conceito de fenômeno do mundo.
Para ele, duas concepções tendem a ser refutadas: o mundo como um ente subsistente; e
o mundo como uma reunião de todos os entes.
Partindo do conceito de κόσμος dos pré-socráticos, Heidegger traça uma
incursão do uso do conceito de mundo ao longo da história, passando por pensadores
como Parménides e Heráclito, Paulo de Tarso, Agostinho, Tomás de Aquino, Baumgarten
até Kant. Não trataremos pormenorizadamente dessas concepções, visto que o conceito
de mundo em Heidegger já exige um trabalho à parte. Apresentamos, portanto, a
conclusão a que chega o filósofo de Messkirch.
Resumamos esta introdução sobre a história do conceito de mundo:
“Mundo” como conceito do ser dos entes caracteriza a soma total dos
entes na totalidade de suas possibilidades, porém, esta mesma está
referida à existência humana, tomada em sua intenção final
(HEIDEGGER, 2007, p. 211).
Ao longo da tradição, o conceito de mundo é caracterizado como 1) o modo de
ser do Dasein, 2) a forma como esse ente existe e, ou 3) a relação dos seres humanos com
o ente na totalidade. O ponto central das definições do conceito de mundo ao longo da
tradição é seu caráter peculiarmente universal, porém tal conceito se relaciona
essencialmente com o Dasein, isto é, “mundo significa primária e propriamente o como
do ente e, às vezes, o ente mesmo” (HEIDEGGER, 2007, p. 203). Não se trata de um
conceito de mundo propriamente, mas antes, de um mundanizar-se.
Do ponto de vista ôntico, compreender o mundo como hipótese da situação na
qual o Dasein se encontra lançado em meio aos outros entes, isto é, na facticidade, não se
mostra incorreta, contudo, essa perspectiva não contribui para a definição ontológica
desse fenômeno. Isso porque, naquela compreensão, o mundo não seria nada mais que a
totalidade dos entes subsistentes. Nesse sentido, o Dasein, a exemplo dos demais entes
inseridos no mundo, seria um ente subsistente, cuja transcendência se tornaria um
atributo. Enquanto ente subsistente, o Dasein não seria necessário na constituição do
mundo, mas considerado como um ente dentre os demais.
Da acepção na qual o mundo se constituiu reunião de todos os entes, totalidade,
pode surgir outra: a que considera a totalidade mesma do mundo como um subsistente.
Heidegger também refuta essa definição. Um traço comum a essas duas acepções é a
pretensão de totalidade, contudo, por mais que, na tradição tenha-se buscado elevar o
fenômeno de mundo, por se restringir a um âmbito ôntico, ao ente subsistente, esse
fenômeno não se configura como transcendental.
113
Enfim, o que essa abordagem panorâmica dos diversos conceitos de
mundo tentou mostrar? Que as noções de mundo desenvolvidas na
história não são arbitrárias. Elas buscavam elevar um fenômeno
existencial – mas não captado em sua unidade nem de maneira
propriamente ontológica – à categoria de problema. O conceito
transcendental de mundo mantém certa relação com essas concepções
anteriores. No entanto, nenhuma das três acepções é capaz de esgotar o
que se entende por mundo (PIRES, 2013, p. 113).
Embora, na obra de 1927, objetivasse a descrição fenomenológica do existir
cotidiano no “mundo ambiente”, Heidegger já antecipava equivocidades do conceito de
mundo que seriam desenvolvidas em Os princípios metafísicos da lógica (1928). São
quatro as concepções de mundo apresentadas em Ser e Tempo e retomadas no curso de
Lógica: 1) Conceito ôntico: é o subsistente. 2) De certo modo ontológico: como totalidade
do que pertence, em geral, à natureza. 3) Conceito ôntico: não se refere à natureza, como
no primeiro, mas aos seres humanos enquanto existentes. 4) Conceito ontológico: a
transcendência (HEIDEGGER, 2007, p. 211).
As três primeiras acepções constituem equivocidades, já a última revela o
conceito ontológico propriamente. Sob outra perspectiva, a da gênese histórico-filosófica,
Heidegger analisa as acepções do fenômeno do mundo. No curso de 1928, diferentemente
de sua obra principal, Heidegger nomeia a última, a concepção de mundo ontológica,
como transcendência. A retomada de Ser e Tempo no curso de 1928 demonstra a
continuação de um caminho (Denkweg).
Quanto ao segundo elemento que elucida o fenômeno do mundo, qual seja, o
como se dá mundo, Heidegger deixa claro que “o Dasein tem como constituição
fundamental de seu ser o ser-em-o-mundo, deve ser, portanto, um enunciado sobre a
essência” (HEIDEGGER, 2007). Isto é, o ser-em-o-mundo pertence à natureza do Dasein.
Isso significa que a anterioridade não é quanto ao existir faticamente, mas ao possuir
mundo. Isso porque a ultrapassagem não é posta em marcha por uma classe de ente
específica. A transcendência não é um comportamento ou dimensão adicionada, mas é a
própria essência do Dasein. Nesse sentido, o transcender se torna inevitável (ek-sistir) e
a direção que aponta é o mundo, isto é, o Dasein é ser-em-o-mundo. Desse modo, o
mundo se apresenta enquanto possibilidade da experiência em geral, o horizonte que
possibilita a marcha do Dasein em direção a si mesmo.
Para dizer com maior precisão: esse saltar sobre faz possível que o
Dasein possa ser algo como ele mesmo. Apenas saltando sobre si
mesmo se abre o abismo que o Dasein é, em cada caso, para si e
unicamente porque este abismo da mesmidade se abre mediante a
114
transcendência e nela pode cobrir-se ou se fazer invisível
(HEIDEGGER, 2007, p. 213).
Como já dito, não é porque o Dasein existe faticamente que ele consegue mundo,
mas o contrário: só pode existir na medida em que tem mundo. O mundo faz parte do
Dasein, da possibilidade interna da transcendência, pois, nesse saltar sobre, no ultrapassar
do Dasein, está o mundo. Sendo este a condição de possibilidade da experiência em geral,
a partir dele o abismo da mesmidade se abre. Desse modo, assim como em relação à
transcendência, o problema do conceito de mundo está totalmente entrelaçado com o
problema da subjetividade. Dito de outro modo: a compreensão que se tem do fenômeno
do mundo determina a compreensão que se tem do ser humano.
No curso de Lógica, Heidegger não apresenta de maneira evidente o que seja o
fenômeno do mundo, restringe-se a relacioná-lo com a transcendência a fim de esclarecê-
la. Contudo, a preleção A essência do fundamento (1929) dá subsídios para que se
compreenda o mundo. Blanc ressalta da preleção de 1929 três significações na estrutura
formal desse fenômeno como explicação do seu significado transcendental, isto é,
ontológico: 1) a estrutura formal do mundo; 2) a significação filosófica primordial do
mundo e, 3) a natureza da relação do ser-aí com o mundo.
Na primeira apreensão, o mundo é um “sistema de referências (Verweisungen),
todo de conformidade (Bewandtnis)” (BLANC, 1984, p. 85). Como elemento estruturante
a priori, o mundo possibilita o o-quê e como do aparecer. A partir do mundo os entes
podem se manifestar. Contudo, o mundo não revela os entes, apenas desvela o seu
mostrar-se. Ou seja, o mundo possibilita um modo de acesso aos entes, um presentar dos
entes em um horizonte no qual o Dasein se encontra desde sempre.
A segunda estrutura formal do mundo é entendida como totalidade de
significação. Heidegger pressupõe uma relação entre os entes, pois estes não se dão de
maneira isolada no mundo, ao contrário, remetem-se a uma rede de referência. Nessa
totalidade de significação os entes se remetem, em última instância, ao Dasein a partir de
seu para quê (Wozu), isto é, seu emprego. Os instrumentos, nesse sentido, têm sua
referência para além de si, seja com outros instrumentos ou mesmo na tarefa a ser
desempenhada, cujo derradeiro em prol de (Worumwillen) está em o Dasein. Esse, na
totalidade de significação, não tem uma referência para além de si, mas refere-se a si
mesmo (Selbstheit). O Dasein é o único ente com relação intencional a si mesmo, aos
outros e às coisas.
115
O que anteriormente foi dito a respeito da questão da ipseidade, aqui também
tem sua atualização. Quando se diz que o Dasein existe em virtude-de-si-mesmo, não se
está fazendo nenhuma afirmação ôntico-egoística. A esse respeito Heidegger esclarece
que “não reside nem um isolamento solipsista do ser-aí, nem uma afirmação egoística do
mesmo. Mas, pelo contrário, a proposição dá a condição de possibilidade para que o
homem ‘se’ comporte quer ‘egoística’, quer ‘altruisticamente’” (HEIDEGGER, 2008, p.
170).
O mundo está essencialmente em referência ao Dasein, não consiste só no espaço
onde as coisas se dão, mas no horizonte compreensivo que precede o encontro com os
entes. Desse modo, a mesmidade é própria do mundo. Sendo ser-em-o-mundo o Dasein
pode se abrir para se relacionar com os demais entes.
A última estrutura formal do mundo ajuda a elucidar a questão da mesmidade.
Como dito, o derradeiro “por meio de”, a última referência a que os entes se encaminham
é o próprio Dasein. Nesse sentido, o mundo se apresenta como um espaço de jogo
(Spielraum) no qual o Dasein, inserido em meio aos entes, é o resultado das escolhas que
faz a partir de suas possibilidades. Nesse sentido comenta Heidegger: “Este trazer-para-
diante-de-si-mesmo do mundo é o projeto originário das possibilidades do ser-aí, na
medida em que, em meio aos entes, se deve poder assumir um comportamento em face
dele” (HEIDEGGER, 2008, p. 171).
Pires, ao comentar essa mesma passagem de A essência do fundamento (1929),
faz uma relação com o que se encontra no §28 de Ser e Tempo (1927), contribuindo com
a explicação não só do lugar (Da) do Dasein, mas também do comportamento que esse
ente assinalado tem diante do mundo. Compreende-se o Dasein como a própria claridade
da clareira (Lichtung). Isso implica afirmar que o Dasein é a abertura do mundo (por meio
do qual os entes podem se mostrar) e a abertura ao mundo (enquanto condição de
possibilidade da experiência do próprio Dasein).
É a unidade que estabelece entre o desvelamento do mundo e o Da (a
luminosidade que permite que os entes apareçam) que constitui o
fenômeno do mundo. Melhor dizendo, é isso que significa para o
Dasein ser-no-mundo. Aqui o mundo como tal é trazido para diante
dele. Como estrutura unitária, no fenômeno do mundo é o próprio
Dasein que se vê e é visto. Por isso, pelo desvelamento do mundo se
configurar como desvelamento do ser, pode Heidegger, em A essência
do fundamento, concluir: “somente quando acontece essa história
primordial, a transcendência, isto é, quando o ente com o caráter de ser-
no-mundo irrompe para dentro do ente, existe a possibilidade de se
manifestar”. Em outros termos, a manifestação do ente depende do ente
116
na totalidade, cuja essência é a existência, isto é, transcendência em
direção ao mundo (PIRES, 2013, p. 116).
A partir do caráter unitário do fenômeno do mundo, um elemento antes não
tematizado, embora circundado, manifesta-se: trata-se da questão da liberdade.
Considerar o caráter primário do mundo como fundamento é considerar a existência do
Dasein determinada por um por-meio-de. O ser e o poder ser do Dasein, ou seja, o mundo
trazido para diante dele é o sentido por meio do qual ele próprio existe, sendo o fim
último. Nessa perspectiva, o saltar sobre si mesmo implica a liberdade, pois nela se dá a
possibilidade intrínseca a si mesmo. Nesse sentido, Heidegger considera idênticas a
liberdade e a transcendência, pois um ente livre é um ente que transcende (HEIDEGGER,
2007, p. 217). O conceito de liberdade, presente no curso de Lógica, será tratado adiante.
4.3 O ENTE HUMANO A PARTIR DA TRANSCENDÊNCIA EM FRANKL
Da análise feita até aqui, percebe-se a aproximação do pensamento de Frankl
com o de Heidegger, especialmente quanto ao conceito de transcendência. Sem fazer
juízo sobre o valor das perspectivas apresentadas até então, mesmo porque isso se
inviabilizaria em função própria intenção e objetivo para a qual foram elaboradas, e sem
tentar aproximar tacitamente os autores, esta tese pretende ser um espaço dialógico a
propósito do ente humano.
Percebemos o grande esforço dos dois teóricos em plasmar uma análise do ser
humano sob novo fundamento, garantindo-lhe nova consideração. Nesse sentido, o
conceito de transcendência ocupa posição central, pois o problema em torno da
compreensão do fenômeno da transcendência evidencia o “como” se determina a
subjetividade.
Embora o objetivo de uma nova compreensão na constituição da subjetividade
do ser humano esteja presente também no pensamento de Frankl, como pode ser
percebido por meio das bases de seu sistema psicoterapêutico apresentadas neste capítulo,
deve-se ter em conta que o objetivo de Frankl não é elaborar uma ontologia fundamental
do Dasein, mas seu interesse consiste em uma compreensão existencial da pessoa
espiritual. Portanto, a relação entre os conceitos de transcendência desses autores, embora
situados em níveis distintos de compreensão, pode contribuir na análise do ser humano.
Dentre as várias contribuições do pensamento heideggeriano sobre o conceito de
transcendência, tem-se a destruição terminológica que esse conceito recebeu ao longo da
117
tradição. A investigação presente no curso de Lógica aponta que há uma tendência em
compreendê-la enquanto relacional. O que há de comum nas perspectivas históricas é a
consideração de que a transcendência consiste na superação de um limite espacial.
Como desenvolvido anteriormente, a compreensão do conceito de
transcendência enquanto constituição fundamental do ser humano representa o modo
como ele é compreendido. Embora Frankl não se dedique a uma crítica terminológica
explícita referente ao conceito de transcendência, percebe-se uma discordância de sua
parte em relação à concepção de ser humano ao longo da tradição, isto é, Frankl se atém
mais ao como o ser humano é compreendido. Para ele, considerar a transcendência a partir
da espacialidade é considerar o ser humano de forma isolada, desprezando sua dimensão
espiritual. Ao afirmar que o ser humano é espiritual, Frankl também afirma que ele é
transcendência, pois é a partir dela que o homem pode ser compreendido em sua abertura.
Nesse sentido, o fenômeno da transcendência se mostra de suma importância,
posto que não se pode chegar de modo fático ou cognitivo à dimensão espiritual, como já
assinalado no segundo capítulo. Contudo, por meio de uma análise ontológica do
fenômeno da transcendência se percebem os rastros daquilo que não é meramente
psicofísico. Assim, do mesmo modo que Heidegger compreende que a transcendência
não é algo isolado do ser humano, um comportamento que se possa adicionar a esse,
Frankl também o compreenderá. Atesta que a condicionalidade faz parte da realidade
fática do sujeito. Contudo, de modo mais genuíno o ser humano pode se elevar acima dos
condicionamentos por meio da tomada de decisão. É o que Frankl define como a “poder
opositor do espírito”.29 Isso só é possível porque se compreende que a transcendência não
é o que está fora, como um atributo do ser humano, mas constitui a própria essência.
Essa consideração contribui fortemente para a nova determinação da
subjetividade. Frankl defende que a “autotranscendência constitui a essência da
existência. Ser humano é ser direcionado a algo que não a si mesmo” (2013, p. 67). Dois
pontos se destacam desse excerto. O primeiro atesta a transcendência como constituinte
essencial da existência. Corresponde a dizer que a incondicionalidade não está fora do ser
humano, mas lhe pertence de modo peculiar. É a realidade fundamental do espírito.
Por conseguinte, ao dizer que o ser humano tem como direção algo diverso de si
mesmo, deixa patente o movimento da transcendência. Na concepção tradicional não é o
ente que transcende, mas é transcendido, visto que a transcendência não é algo que lhe
29
Para Frankl o “poder consolador do espírito, que coloca o homem em condições de se afirmar em
sua humanidade apesar das situações corpóreo-psíquicas e de circunstâncias sociais” (2014, p. 95).
118
pertença. Contudo, pode-se perceber, pela afirmação frankliana, que a transcendência é
restituída enquanto característica humana, isto é, como parte integrante do ser humano,
pois se realiza a partir dele.
Desse modo, pode ser percebido de per si, por meio da apreensão positiva do
conceito de transcendência, que ela faz parte da constituição fundamental do ser humano.
O modo como se compreende o fenômeno da transcendência possibilita desvelar a
imagem de homem subjacente nas compreensões que se tem dele. Na investigação até
aqui realizada se percebe uma promoção na compreensão do ser humano, posto que, para
os autores em questão, a transcendência não é uma mera qualidade das coisas, mas
constituição fundamental do próprio ser humano, sendo ele próprio quem ultrapassa.
Frankl e Heidegger consideram a transcendência como constituição originária
do ser humano, pois ela designa a estrutura básica da subjetividade e, enquanto
constituição fundamental dessa, acontece antes de qualquer comportamento, visto que,
para ultrapassar espacialmente (onticamente), o ser humano já deve, de pronto, ter
ultrapassado ontologicamente, isso é, ter ido além de si, embora sempre em referência a
si.
A perspectiva heideggeriana aponta outra característica essencial da
transcendência, que a possibilita e a mantém. O acento recai sobre a abertura, pois para
que haja a transcendência, a estrutura básica da subjetividade deve ser designada a partir
daquela. Como visto, Heidegger compreende que a qualidade do ser humano não está em
ser para fora, mas na insistência em sê-lo, na insistência em manter o espaço de jogo
enquanto abertura do e ao mundo.
Nessa mesma direção, ao contrariar a tendência homeostática, Frankl também
acentua a visão de ser humano como abertura. Ao considerar o ser-junto-a como
peculiaridade genuína, ressalta-se a insistência em ser para além de si, em continuar sendo
aberto ao mundo. Essa insistência em manter aberto o espaço de jogo e eleição pode ser
caracterizada em Frankl como a busca de sentido da vida. Para ele, essa busca constitui
uma expressão do que há de mais humano no homem. Em Psicoterapia e sentido da vida
(1946), Frankl defende que:
O problema do sentido da vida quer se apresente quer não
expressamente, cumpre defini-lo como um problema
caracteristicamente humano. Por conseguinte, o pôr-se em questão o
sentido da vida não pode nunca, de per si, expressão do que por ventura
o homem tenha de doentio; é antes e sem mais, para falar com
propriedade, expressão do ser humano – expressão precisamente do que
de mais humano há no homem (FRANKL, 1989, p. 56).
119
Pôr-se em questão, insistir na abertura e eleição de possibilidades não é uma
atitude doentia, mas essencialmente humana. Assim, o ser humano neurótico não é aquele
que busca explicações e sentido para vida, abrindo-se, mas aquele que se fecha diante das
possibilidades, buscando se eximir de sua liberdade e de sua responsabilidade. No
Compêndio de Análise Existencial e Logoterapia (1959) Frankl sustenta que:
Sempre que o neurótico fala de sua pessoa, de seu modo de ser pessoal,
ele tende a hipostasiá-los e a agir como se esse modo de ser contivesse
um não-pode-ser-de-outro-modo. Em realidade, contudo, vale o
seguinte: o ser-aí jamais se esgota em um modo de ser qualquer. A
existência ‘é’ a cada vez ‘em’ sua respectiva facticidade, mas ela não
imerge da facticidade. Ela ex-siste justamente, e isso significa: ela
sempre se encontra para além de sua própria facticidade (2014, p. 96).
Para os autores em questão, essa abertura vai de encontro às concepções
solipsistas do ente humano, uma vez que esses consideram que aquele que ultrapassa já
está previamente junto ao ente. Assim, a transcendência pressupõe um relacionamento,
não num sentido ôntico, como a tradição o compreendeu, mas um relacionamento
compreendido como antecedente de toda e qualquer compreensão relacional fática, sendo
condição de possibilidade para que qualquer outro relacionamento se efetive.
Algo que não deve passar desapercebido na consideração desses autores é o fato
de que tal insistência em ser para fora não consiste em uma ação voluntariosa, uma
possibilidade, mas na essência mesma do ser humano. Isso porque a ultrapassagem, na
visão desses autores, não diz respeito à superação de um limite, mas à projeção do próprio
ser humano diante de suas possibilidades. Compreendem que o que vem ao encontro da
ultrapassagem realizada por aquele que transcende não são primariamente os objetos, mas
ele próprio. Para Frankl, o ser humano se realiza, pois “é ‘junto a si’ à medida que ‘é’
junto a um outro ente – à medida que ‘se conscientiza’ de outro ente. Com isso, o
espiritualmente ente se realiza no ser-junto-a, assim como esse ser-junto-a do ser
espiritual é a sua possibilidade mais originariamente própria, sua capacidade
propriamente dita” (2014, p. 75).
Nesse viés, pode-se dizer que a capacidade do ser humano “ser-em” outro ente,
como Frankl a compreende, consiste nessa busca por sentido. Tal busca é um relacionar-
se com as possibilidades, que, por meio da transcendência, exercem uma anterioridade
fundadora. Tal busca constitui o âmbito por meio do qual o ser humano se relaciona, tanto
com aquilo que “é” – o mesmo – quanto com aquilo que não “é” e com o que “pode vir a
ser”. Assim, pode-se perceber que a imagem de ser humano aqui postulada é alheia a
120
qualquer concepção que compreenda a natureza de forma rígida, pois mesmo Frankl, ao
definir o ser humano enquanto espírito, compreende que esse tem a liberdade como um
atributo existencial que o possibilita a se configurar segundo as escolhas disponíveis.
Nesse relacionamento com as possibilidades, Heidegger considera que o que
vem ao encontro do ser humano é o próprio Dasein. Para ele “a transcendência constitui
a mesmidade (ipseidade)” (2008, p. 150), pois o Dasein, sendo nesse espaço ontológico
onde as coisas continuamente se dão, é considerado o único ente que pode decidir sobre
si, pode falar de si. A busca insistente em continuar sendo o mesmo por parte do Dasein
não pode ser compreendida como uma atitude egóica, pois a ipseidade não constitui uma
espécie de solipsismo.
Nesse sentido, a compreensão de Frankl vai na mesma direção da compreensão
apontada por Heidegger, para o qual a ipseidade não consiste em uma atitude egóica
devido à preocupação do ser humano consigo mesmo. Quando Frankl tematiza sobre a
necessidade e a busca pelo sentido da própria vida, esse pôr-se em questão do ser humano,
não consiste em um isolamento ou na tendência de uma autorrealização. O ser-em é
compreendido enquanto si-mesmo, mas nunca poderá ser compreendido enquanto em-si.
Afirmou-se de modo pujante neste capítulo que a transcendência é constituição
fundamental do ser humano e que, sendo constitucional, não é facultado ao ser humano a
escolha por transcender. Isso porque a transcendência é sua postura genuína. A saída de
si do ser humano (ser-em) pode ser vista como uma postura de doação de sentido. Desse
modo, relacionada à temática da transcendência está a do sentido.
Para Frankl o sentido se mostra de modo incondicional, não sendo a sua
existência mera criação do ser humano. Buscando uma distinção entre a transcendência e
o sentido da vida, nota-se que este último é o único facultado ao ser humano. Frankl
postula que o sentido da vida existe independentemente da crença em sua existência,
contudo, a aceitação ou não de um sentido para a vida consiste em uma postura pessoal
(FRANKL, 2013, p. 48). O ser humano está sempre para além de si, faz-se necessária uma
visão positiva para perceber, nas situações cotidianas, as oportunidades de realização,
fazendo da transcendência uma autotranscendência.
Para erigir uma ponte sobre o pensamento dos autores em questão a respeito da
transcendência, a seção anterior introduziu a temática que aqui será desenvolvida.
Heidegger, em Os princípios metafísicos da lógica (1928), utiliza-se do fragmento 115
de Heráclito (“O logos da alma é crescimento para si mesmo”) para afirmar que o Dasein
é o ente que se enriquece a si mesmo a partir de si mesmo no modo do compreender. No
121
próprio Dasein se encontra essencialmente a intrínseca possibilidade originária de
enriquecimento, tem sempre o caráter de ser-mais-rico-que, de superação (2007, p. 245).
Podem-se eleger alguns pontos importantes na interpretação heideggeriana do
fragmento do pré-socrático que corroboram com a perspectiva da antropologia frankliana.
Heidegger considera que 1) no Dasein se encontra a possibilidade originária do
enriquecimento. Deduz-se com isso que 2) o Dasein enriquece a si mesmo, a partir de si
mesmo, no modo do compreender, isto é, o Dasein, enquanto projetar, abre um espaço de
eleição. Nota-se que a preocupação do filósofo de Messkirch não é tanto com o
fundamento, mas com o acontecer do fundar.
4.3.1 A compreensão da liberdade como possibilidade originária do
enriquecimento
Ao considerar a possibilidade intrínseca do ser humano de enriquecimento
originário de si, percebida desde Heráclito, Heidegger leva em conta como pressuposto
desse enriquecimento a questão da liberdade enquanto condição de possibilidade para que
essa configuração aconteça. O fundar do sujeito realizado com a transcendência só pode
ocorrer a partir de um horizonte livre. Em seu curso de Lógica, ele afirma que: “Somente
a partir da liberdade, apenas um ser livre, enquanto ser que transcende, pode
compreender; e deve fazê-lo para existir como tal, isto é, para ser ‘entre’ e ‘com’ os entes”
(2007, p. 222).
Contudo, a liberdade não deve se referir a um tipo de capacidade racional ou a
um tipo de vontade ôntica humana, pois a liberdade não é considerada por Heidegger
como uma propriedade humana. Compreendê-la dessa forma coadunaria com a
consideração e manutenção de uma relação entre sujeito e objeto. Como assinalado por
Heidegger, em A essência do fundamento (1929), a origem da possibilidade em geral é a
liberdade. É somente a partir de uma consideração de um ser livre que se poderá falar,
posteriormente, de liberdade enquanto capacidade humana. Nesse sentido, a liberdade
assume um status ontológico, pois ela, considerada a partir da transcendência, não se
constitui como um tipo particular de vivência, mas como o fundamento da existência.
Para Heidegger, a “liberdade como transcendência não é, contudo, apenas uma ‘espécie’
particular de fundamento, mas a origem do fundamento em geral. Liberdade é liberdade
para o fundamento” (HEIDEGGER, 2008, p. 177).
122
Como visto neste capítulo, o mundo se mostra ao Dasein como totalidade que
tem nele a referência última. Essa totalidade de significação se efetiva por meio da
ultrapassagem do Dasein em relação a si mesmo e aos demais entes. Nesse transcender
em direção ao mundo, o que possibilita tal ultrapassagem é a liberdade. Ou seja, se o
mundo se forma na ultrapassagem, e essa acontece na liberdade, é a liberdade o
fundamento da transcendência.
Enquanto fundamento da possibilidade essa concepção de liberdade não se
circunscreve de modo primário a um âmbito especificamente humano, mas se relaciona
com o ente na totalidade. Não se entende com isso que o filósofo de Messkirch considere
o ser humano livre apenas em um âmbito ontológico, afinal, sua preocupação não é
antropológica. Ao invés, considera-se que esse autor, ao garantir um fundamento a partir
da liberdade, deixa em aberto o campo para que as ciências particulares possam
compreender o ser humano enquanto ser livre desde o seu fundamento.
Nessa direção, apesar do intento antropológico, pode-se perceber no pensamento
frankliano uma aproximação com a perspectiva que compreende a liberdade enquanto
fundamento da possibilidade em geral. Mesmo que comumente a liberdade se mostre de
modo ôntico nessa perspectiva, assumindo uma espécie de espontaneidade, haverá, por
parte de Frankl, um olhar retrospectivo, buscando a compreensão de liberdade em termos
mais fundamentais. Para esse autor, pela dimensão espiritual se pode falar em liberdade,
pois ela está em relação com a autonomia do ser humano e em contraste com a
compreensão de um ser humano a partir do que lhe causa a dependência. Para ele, “o
homem enquanto tal está sempre para além das necessidades – ainda que aquém das
possibilidades. O homem é essencialmente um ser que transcende as necessidades. Ele só
‘é’, em verdade, em relação às necessidades, mas em uma relação livre com elas”
(FRANKL, 2014, p. 88).
Frankl estabelece que necessidade e liberdade se encontram em planos distintos
de consideração, pois a dependência é atributo das camadas que o ser humano tem, quais
sejam, o corpóreo e o psíquico. Embora a dimensão psicofísica constitua o ser humano,
ele é, em essência, espiritual. A liberdade é atributo dessa dimensão existencial do ser
humano, pois só a partir da dimensão espiritual se pode considerar um ser livre. É nesse
sentido que, no Compêndio de Análise Existencial e Logoterapia (1959), Frankl afirma
que o ser humano é livre perante as pulsões, perante a herança e perante o mundo
circundante, pois para ele “a liberdade ultrapassa e reestrutura muito mais toda
necessidade” (2014, p. 88).
123
De modo sucinto: Frankl considera que, contrariamente aos animais, o ser
humano pode ter o domínio e a vigência de suas pulsões. Compreende que essas fazem
parte da realidade humana, mas contesta que elas determinem a existência, pois a
pulsionalidade passa antes pela dimensão da liberdade. Isto é, primeiramente o ser
humano é livre, faz parte de sua constituição fundamental esse dado. Só posteriormente
o ser humano é condicionado. Do mesmo modo, a liberdade exerce uma anterioridade em
relação às disposições física e social, pois há o primado da dimensão espiritual em relação
às dimensões psicofísicas. A posição pessoal é fruto desse primado. Consiste em um
posicionamento essencialmente livre, sendo que, perante as pulsões, a herança e o mundo,
o ser humano é, anteriormente, decisão.
A condicionalidade do ser humano está radicada nessa secção da realidade e,
somente quando o ele transcende em direção à totalidade, ultrapassando os
condicionamentos, a pessoa espiritual como tal pode ir se dando. Isso porque Frankl
compreende que o mundo circundante representa um aspecto de mundo, isto é, representa
uma seleção do espectro do mundo. Nesse sentido, o conhecimento é seletivo, mas não
produtivo, pois não cria um mundo, apenas o seleciona.
Para Frankl, “meu ser pessoa significa liberdade – liberdade para ‘vir a ser’ uma
pessoalidade. Ela é liberdade ante a própria facticidade e liberdade para o vir a ser
diverso” (2014, p. 96). Frankl entende a facticidade a partir de um binômio com a
existência, sendo que essa corresponde ao modo de ser próprio do ser humano, e a
facticidade, por sua vez, àquilo que existe de um determinado modo e que o ser humano
se confronta, seja em si ou distinto de si. Contudo, mesmo estando em uma relação de
dependência “existência-facticidade”, o modo de ser do ente humano não é o fático, mas
o facultativo, é sempre-poder-vir-a-ser-de-outro-modo, conservando em si a possibilidade
originária de enriquecimento, de vir a ser diverso.
Pode-se perceber, assim, que o conceito de liberdade será basilar na consideração
da imago hominis elaborada por Frankl, pois ele compreende a liberdade também como
um existencial, isto é, não caracteriza apenas o ser-aí humano enquanto tal, enquanto algo
humano, mas antes o constituem (FRANKL, 2014, p. 72). Ainda que na consideração
frankliana da liberdade haja uma preocupação prioritária com a perspectiva
antropológica, ao considerá-la enquanto um existencial, Frankl legitima a dimensão
ontológica da liberdade na análise psicoterapêutica, pois ela não é compreendida em
referência a uma mera capacidade humana, mas como constitucional do ser humano.
124
Desse modo, mesmo que o condicionamento faça parte da realidade do ente
humano, será apenas a posteriori, pois primariamente o ser humano é livre, visto que seu
modo de ser é a existência, cuja essência não é de ser fático, mas facultativo (FRANKL,
2014, p. 59). Dito de outro modo: sendo a essência da existência a liberdade, a
condicionalidade do ser humano lhe pertence enquanto possibilidade. Somente um ser
humano que se compreende enquanto livre poderá se confrontar com sua facticidade.
O elemento espiritual já é por definição justamente apenas o elemento
livre no homem. Só denominamos desde o princípio “pessoa” em geral
aquilo que pode se comportar livremente – sem levar em conta que
estado de coisa está em jogo. A pessoa espiritual é aquilo no homem
que pode se opor sempre e em cada momento! (FRANKL, 2014, p. 96).
Como sabido, Frankl se opõe às perspectivas de nivelamento do ser humano
pelas dimensões mais baixas. Nesse sentido, a dimensão espiritual, considerada como a
garantidora da liberdade, lhe é tirada. Buscará, assim, um conceito de pessoa que assuma
um status de compreensão integral do ser humano: é a pessoa espiritual, em oposição ao
ao “homúnculo”. Somente as teorias que compreendem a pessoa a partir da liberdade – e
a própria pessoa que se compreende desse modo – poderão compreender a capacidade do
ser humano de se libertar e de se opor aos condicionamentos.
Em relação ao pensamento heideggeriano, o comentário de Pires sobre liberdade,
transcendência e fundamento oferece uma sintonia com o que até aqui tem-se discutido.
Segundo ele, “Heidegger entende que liberdade é dar forma (bilden). Nesse sentido, é um
libertar-se de. A liberdade, nessa acepção, possui conotação negativa, afinal ele intenta
se livrar de alguma coisa” (PIRES, 2013, p. 122).
A primeira coisa de que o ser humano se livra é do fechamento de si mesmo,
afinal, ex-sistir é saída, somente um ser livre pode transcender. Frankl, além de tratar da
necessidade de transcendência do ser humano, também fala de um autodistanciamento. É
a partir disso que se compreende o “poder consolador do espírito”, pois um ser humano
que se compreende a partir de um distanciamento de si se compreende como mais do que
um organismo psicofísico e pode se contrapor.
Assim, Frankl pensa que o ser humano não está contraposto apenas ao mundo
circundante e a um mundo interior, mas também toma posição em relação a ele. O ser
humano toma posição a cada instante da sua existência. Tal postura consciente pode ser
um eleger, um contrapor, um comportar. Esse posicionamento é sempre enriquecimento,
pois, como não se trata de um ente fechado, mas de um projeto, sempre traz a possiblidade
de algo novo.
125
Desse modo, a perspectiva de Frankl se aproxima da análise heideggeriana,
contribuindo fortemente ao propósito do ser humano na medida em que reforça o primado
da liberdade enquanto fundamento. A compreensão do mundo como totalidade originária
de significância permite entender o Dasein, enquanto livre, como projeto originário do
que ele mesmo pode fazer possível. Nesse sentido, afirma que “o Dasein dá vínculo
originário. A liberdade faz o Dasein, no fundamento de sua essência, vinculável consigo
mesmo; com maior precisão: dá a si mesmo a possibilidade de vínculo” (HEIDEGGER,
2007, p. 224).
Após compreender a liberdade como origem da possibilidade em geral do
enriquecimento de si, temos condições de compreender como o Dasein enriquece a si
mesmo, a partir de si mesmo, no modo do compreender. O diálogo entre os autores nesse
ponto contribuirá com a perspectiva do sentido em Frankl. Trata-se da temática da
ipseidade em Heidegger.
4.3.2 Sentido
A compreensão do ser humano a partir de sua abertura e transcendência em
direção ao mundo, isto é, da ultrapassagem de um isolamento rumo a outros entes, só foi
possível mediante a compreensão de um direcionar-se antecedido pela liberdade. Do que
ficou dito, concluímos que Heidegger valoriza determinada concepção dinâmica de
vontade. Essa vontade seria aquilo que instaura a projeção das possibilidades da própria
relação intencional. Nesse sentido, a liberdade diz respeito a um movimento originário
que projeta e revela a vontade. Essa intencionalidade do Dasein é em-virtude-de si-
mesmo, e “o ser e o poder ser do Dasein é aquilo em virtude do qual existe. Contudo – se
imediatamente nos questionarem – teremos dado uma determinação com conteúdo do em-
virtude-de e fixado o fim último do Dasein: este é o Dasein mesmo” (HEIDEGGER,
2007, p. 218).
Como já desenvolvido anteriormente, o interesse particular do Dasein, cuja
finalidade é ele mesmo, não deve suscitar a compreensão de um egoísmo existencial ou
ético, pois não se trata de um discurso solipsista, mas de uma caracterização ontológica
da mesmidade do Dasein em geral. Por estar determinado pela ipseidade, o Dasein pode
faticamente existir. Dito com outros termos, o Dasein não possui uma natureza
determinada a ponto de ser identificado a partir dela, ao contrário, a sua essência reside
em sua existência, em seu ser e em seu poder ser. Heidegger compreende que o Dasein
126
conserva em si a possibilidade originária do enriquecimento, pois é a ipseidade a condição
originária da possibilidade de que exista um Dasein e de que exista uma relação com os
demais entes.
Ser-em-virtude de si é uma determinação essencial do ser do ente que
denominamos Dasein. Esta constituição que agora brevemente
chamamos em-virtude-de, proporciona a possibilidade intrínseca para
este ente poder ser ele mesmo, isto é, para que a mesmidade pertença
ao seu ser. Ser no modo de um mesmo, quer dizer ser-para-si-mesmo
em um sentido por essência fundamental. Este ser-para-si-mesmo
constitui o ser do Dasein e não algo como uma capacidade adicional
para observar-se além da existência e aparte dela. Ser-para-si-mesmo é
precisamente o existir, somente este para-si-mesmo deve ser
compreendido na amplitude metafísica originária e não pode ser
reduzido a nenhum comportamento ou capacidade ou a um modo de
apreensão tal como o conhecimento e a apercepção (HEIDEGGER,
2007, p. 221).
Nesses termos, a questão da ipseidade advinda pela liberdade põe às claras a
questão do “eu” enquanto possibilidade (poder-ser) de si mesmo. Enquanto
intencionalidade (em-virtude-de) o Dasein se direciona para si, isto é, em-vista-de-ter-
que-ser-si-mesmo (Zu-sich-selbst-sein). No entanto, o fato de ter que ser si mesmo não
consiste em um comportamento adicional ou fruto de um juízo ético, mas de uma
determinação essencial do Dasein.
Com o objetivo de que essa compreensão não aduza ao isolamento do Dasein,
Heidegger, em A essência do fundamento (1929), esclarece que esse “em-virtude-de” um
ente carrega uma co-originariedade, visto que é ser-junto-ao (puramente subsistente), ser-
com (outros) e ser-para (si mesmo). “Dessa maneira, o ser-aí só pode ser para si como
para si mesmo, se ele ‘se’ ultrapassa no em-virtude-de” (HEIDEGGER, 2008, p. 176). A
possibilidade de o Dasein ser ele mesmo não reside em um isolamento, pois a totalidade
de significação, isto é, o mundo, forma-se na ultrapassagem do Dasein de si mesmo e dos
demais entes que se constituem como totalidade no em-virtude-de. Essa pressupõe o ser-
junto, o ser-com e o ser-para. É somente a partir daí que o ser humano poderá optar por
si (solipsismo) ou por outros (altruísmo).
Frankl defende que toda psicoterapia, de modo consciente ou não, possui uma
concepção determinada e precisa de ser humano. Nesse viés, percebe-se uma tentativa de
elaborar uma consideração do ente humano em geral, por meio da antropologia filosófica,
que não ceda espaço aos reducionismos e o compreenda em sua totalidade. Assim, Frankl
qualificará a essência do ser humano como existência, pois considera ser ela o modo de
127
ser especificamente humano, isto é “o ser cujo modo de ser consiste no fato de que o que
está em questão no homem não é um ser fático, mas facultativo” (FRANKL, 2014, p. 59).
Frankl entende o ex-sistir como saída de si, e essa abertura pode ser
compreendida não só pela intencionalidade, mas também pela transcendência. Para ele,
ser humano é ser direcionado a algo que não a si mesmo, pois, assim como a liberdade
constitui o ser do homem, a transcendência constitui a essência da existência. Sobressai
aqui um distanciamento entre ele e Heidegger. Este vislumbra a dinâmica da vontade sem
qualquer relevo ético, compreendendo o ter-de-ser como possibilidade originária. Frankl
concebe a intencionalidade em vista de valores, pois além de livre, o ser humano é
responsável. Assim, o ser humano é compreendido face a sentidos a serem preenchidos e
valores a concretizar.
Mesmo havendo peculiaridades entre os conceitos de vontade e
intencionalidade, o que assegura uma originalidade dessas perspectivas, percebe-se que
elas conservam uma intenção comum: instaurar as possibilidades do ser humano. É nesse
sentido que pode haver um enriquecimento a si mesmo do Dasein, a partir dele mesmo,
no modo do compreender, pois é compreendendo suas possibilidades e as elegendo que
o Dasein enriquece a si enquanto existe.
Na perspectiva frankliana, o sentido da vida constitui uma abordagem específica
do propósito da temática do enriquecimento. Sob essa ótica, o ser humano está sempre se
movendo na busca de um sentido para o seu viver (2005, p. 23). Ao invés de reagir e
obedecer, o ser humano responderia às questões colocadas pela vida e, deste modo,
realizaria os significados e valores. Neste sentido, como já dito em outros momentos, o
conceito de autotranscedência se constitui como essência na consideração do ser humano.
Sempre está direcionada para algo além de si mesmo (FRANKL, 2013, p. 67).
De modo contrário às perspectivas que concebem o sentido como mecanismo de
defesa, Frankl (2013, p. 72). argumenta que ninguém estaria disposto a morrer por tais
mecanismos, mas sim por ideias e valores. É nesta perspectiva que o sentido não se
apresenta como um mecanismo de defesa rígido, mas como uma busca pessoal, uma
resposta única da existência. O caráter de algo único de cada momento confluirá para a
construção do caráter único da existência, já que essa se constitui como uma sequência
de possibilidades efetivadas.
Contudo, essa consideração sobre o sentido e o enriquecimento do ser humano a
partir de si mesmo não deve suscitar a compreensão de que o sentido seja algo subjetivo,
um mero constructo do ser humano, pois, na acepção de Frankl, o sentido é objetivo. Não
128
é um objeto, pois não é o ser humano quem o cria, nem consiste em algo que preexista.
Para Frankl, o ser humano é ser-no-mundo, isto é: “deve-se reconhecer que ser humano
significa estar profundamente enredado em uma situação e confrontado com um mundo
cuja objetividade e cuja realidade não são prejudicados por esse ‘ser’ que é ‘no mundo’”.
(FRANKL, 2013, p. 68).
Nesse enredamento de significância no qual o ser humano está inserido e que
tem nele a referência última – visto que ele é o único ser capaz da possibilidade –, o
sentido emerge, plasmando a existência. Ao intencionar para algo, isto é, ao transcender
rumo à eleição de tais possibilidades, dotando-as de sentido, o ser espiritual se
personaliza, ou seja, assume um compromisso consigo. Frankl afirma que “apenas quando
o homem preenche um sentido lá fora, no mundo, é que ele realizará a si mesmo”
(FRANKL, 2013, p. 53).
Heidegger, em seu curso de Lógica, caracteriza o mundo como totalidade
originária. Diz que, enquanto livre, o Dasein se dá a entender. O Dasein advém por meio
daquilo que ele compreende. Da liberdade é projeto originário que pode fazer possível. A
fim de viabilizar a aproximação com a perspectiva frankliana, é importante atentar para
o sentido de logos utilizado por Heidegger em referência ao enriquecimento do Dasein.
A acepção heideggeriana do termo logos a partir do fragmento de Heráclito
corresponde à compreensão (Verstehen)30. Contudo, é necessário ter presente o esforço
realizado, desde a publicação de Introdução às Ciências do Espírito (1883) de Dilthey,
para distinguir conhecer de compreender. Já em Ser e Tempo (1927), Heidegger trata da
compreensão como um existencial que estrutura a abertura do Dasein. Para Dubois (2004,
p. 37), o ser em função de si remete a duas coisas de modo simultâneo: estar aberto para
si, isto é, conhecer-se em termos de ser-no-mundo; e ser fim para si mesmo. Logo,
compreender consiste em uma estrutura da existência do Dasein como poder-ser, como
abertura de si como possibilidade.
Em seu poder-ser ele está, por conseguinte, entregue à possibilidade de
se reencontrar somente em suas possibilidades.
O entender é o ser existenciário do poder-ser próprio do Dasein ele
mesmo e isso de tal maneira que este ser abre em si mesmo o que lhe
toca (HEIDEGGER, 2012, p. 411).
30
Na edição bilíngue de Ser e Tempo, Fausto Castilho traduz o termo Verstehen por entender.
Optou-se por acompanhar a tradução desse vocábulo presente em Principios metafísicos de la lógica, obra
principal nesse trabalho.
129
No §31 de Ser e Tempo (1927), Heidegger deixa claro que compreender é um
encontrar-se, pois o Dasein, enquanto ser possível, entregue a responsabilidade de si
mesmo, é a possibilidade para seu poder-ser mais próprio. No compreender, o Dasein
sabe o que lhe diz respeito, ou seja, o que abarca o seu poder-ser.
As considerações de Heidegger configuram uma contribuição no aclaramento do
conceito do logos. Embora seja fundamental na sua abordagem, a logoterapia, o termo
não é abordado com profundidade por Frankl. Em Homo Patiens (1950), ele se expressa:
“A análise existencial, por sua vez, não se limita a apontar o logos, entendido como aquilo
que ‘se deve’ em cada caso; vai mais longe: o que lhe importa é evocar a existência,
definida como aquilo que sempre ‘se pode’” (FRANKL, 1978, p. 198).
Nesse texto, fruto dos cursos de 1949/50, Frankl apresenta dois equívocos,
coadunando com o caminho apontado por Heidegger. O primeiro seria confundir o logos
com a lógica e adotar essa perspectiva como método terapêutico. Frankl salienta que, se
assim fosse, a logoterapia seria um “método de persuasão”, cuja finalidade é dissuadir o
paciente de alguma noção que esse mentalizou. Portando, o logos não diz respeito a uma
modalidade gnosiológica. O segundo equívoco possível seria compreender a análise
como análise da existência. Como já dito no primeiro capítulo, a análise existencial é uma
análise direcionada à existência. Isso porque a existência não é nem analisável, nem
sintetizável. A existência mesma é o sujeito de qualquer síntese e nunca seu objeto.
Defende Frankl que “a análise existencial coloca em primeiro plano do seu
campo visual a orientação no rumo do sentido e a aspiração aos valores” (FRANKL,
1978, p. 202). Isso não consiste em afirmar que o método logoterapêutico aponta ao
paciente esses sentidos e valores, pois esses são exclusivos de cada pessoa, em cada
momento. Assim, ao afirmar que a análise existencial coloca o ser humano em seu
primeiro plano do campo visual, não se refere a uma afirmação ôntica. Como exemplo,
em uma conferência em 1985,31 em que trata da questão do vazio existencial, Frankl dirá
que a manifestação concreta da ausência de sentido se dá pelo tédio e pela indiferença,
sendo o tédio considerado como uma falta de interesse, e a indiferença uma falta de
iniciativa. Assim, desvela ao ser humano um campo visual de valores e sentido e o
confronta com a postura que ele adota perante si mesmo e que configura sua existência
ante suas possibilidades.
31
Frankl e o chanceler alemão Dr. Bruno Kreisky debatem em um painel dobre “A fome no Terceiro
Mundo e a crise do sentido no Primeiro Mundo”, publicado por Frankl como “Fome por pão – e fome por
sentido” em Logoterapia e Análise Existencial: texto de seis décadas (1998).
130
Coadunando com essa perspectiva do pensamento frankliano, tem-se no §31 de
Ser e Tempo (1927), que a compreensão (Verstehen) não se trata de uma capacidade
teorética (da razão) do Dasein, mas sim de um estado-de-ânimo. Compreender constitui
existenciariamente o que Heidegger denomina de visão do Dasein, isto é, aquilo que se
dá conjuntamente com a abertura do mundo e do Dasein em seus distintos modos de ser
fundamentais e igualmente originários: a ocupação e a preocupação (2012, p. 417).
Para Heidegger, essa visão não consiste em uma consideração de um si mesmo
pontual, trata-se de um conhecimento de si na plena abertura do ser-no-mundo. É o que
ele denomina de transparência (Durchsichtigkeit), pois o Dasein só se vê à medida que se
torna transparente em seu ser junto ao mundo. “Encontrar-se e entender como
existenciários caracterizam a abertura originária do ser-no-mundo. No modo do ser do
estado-de-ânimo, o Dasein “vê” possibilidades a partir das quais ele é” (HEIDEGGER,
2012, p. 419).
Nesse sentido, quando Heidegger afirma em seu curso de Lógica que a liberdade
é a origem do em-virtude-de, pode-se considerar essa dimensão de transparência do
compreender, pois, segundo ele, a liberdade dá a possibilidade de vínculo do fundamento
da essência do Dasein consigo mesmo. E é de acordo com esse vínculo que “o Dasein se
vincula a um poder-ser a respeito de si mesmo como um poder-ser-com outros no poder-
ser em meio aos subsistentes” (HEIDEGGER, 2007, p. 224).
O vínculo do Dasein com suas possibilidades a partir do compreender só pode
se dar no mundo. O mundo compreendido como totalidade das possibilidades do Dasein
excede todo ente subsistente. Enquanto projeto livre, o ente humano se mostra
superabundante de possibilidades, é sempre uma possível realização do possível. “O
Dasein é em si superabundante, isto é, determinado mediante uma insaciabilidade
primária em relação a todos os entes; tanto metafisicamente em geral, como também
existencialmente, na individualidade fática” (HEIDEGGER, 2007, p. 225).
Essas considerações encaminham para a afirmação do que foi dito sobre a
“vontade de sentido”, entendida no pensamento frankliano como uma tendência primária
do ser humano, pois ele está sempre se movendo em busca de um sentido de seu viver
(FRANKL, 2005, p. 23). Em A vontade de sentido (1969), Frankl chega à conclusão do
que se deve entender por sentido: “meaning is what is meant”. No português, traduziu-se
“meant” como tencionado. Assim, o “sentido é o que se tenciona” (FRANKL, 2013, p.
81). “Tencionar” corrobora com o que se refletiu até aqui, pois denota “ter intenção de”,
“projetar”. Contudo, outra tradução possível para o verbo “to mean” contribui fortemente
131
com o que foi dito até aqui: trata-se do entender/compreender. Desse modo, o sentido é o
que se entende, no sentido do que até aqui foi exposto: como abertura do ente humano
para suas possibilidades.
Como dito, o ser humano não é concebido de forma isolada, mas enredado em
um mundo, no qual se confronta sempre com outros e com as coisas. Enquanto projeto
que sobrepassa a realidade fática, o ser humano é sempre insaciável, pois constantemente
está se movendo em direção a algo ou alguém, em busca de efetivar suas possibilidades.
Assim, o sentido da vida corresponde à necessidade primária do ser humano, pois, se
sendo suas possibilidades, é necessário anteriormente que essas se abram a ele. O sentido
abre essa insaciedade primária do ser humano que poderá se mostrar como satisfação ou
insatisfação consigo mesmo. Nesse viés, a falta de sentido e o vazio existencial
corroboram com o interesse primário, pois consistem, não na negação do sentido ou do
tender para ele, mas na ausência de compreensão dessas possibilidades.
4.4 O SER-RESPONSÁVEL DA PESSOA ESPIRITUAL
Antes de passar a uma análise do fenômeno da transcendência na constituição
essencial da pessoa espiritual no pensamento frankliano, faz-se necessário uma síntese do
que até aqui foi colhido. Como dito, a temática da transcendência põe em relevo o modo
“como” o ser humano é compreendido. Na concepção tradicional, o vínculo entre homem
e transcendência se dá de modo relacional, seja entre um interior e um exterior (concepção
epistemológica), ou em relação com o incondicionado (concepção teológica). Diante da
incompatibilidade entre o conceito de transcendência tematizado por Frankl e a
apropriação moderna desse conceito, esta pesquisa buscou em Heidegger a possibilidade
de contribuição. Mesmo estando em níveis distintos de consideração, as perspectivas
desses autores se coadunam à propósito do ser humano.
O diálogo entre esses autores aponta para a importância de abarcar a
transcendência como elemento essencial na caracterização do ser humano. Em Frankl, tal
caracterização está relacionada de modo íntimo com a compreensão da categoria de
realização. A partir de seu contexto, Frankl entende a realização como aspiração ao
prazer, reduzindo tudo ao equilíbrio pulsional. Essa compreensão encontra guarida na
visão de ser humano a partir do princípio homeostático (FRANKL, 2014, p. 105). A
elaboração de uma imago homini a partir da transcendência, ou seja, enquanto pessoa
espiritual que tem na transcendência sua essência, não um polo díspar dele, dá à
132
psicoterapia novos influxos, passando a compreendê-lo a partir de um princípio
noodinâmico. Para Lukas, enquanto o princípio homeostático da psicodinâmica se mostra
redutor, pois apela para o nível bidimensional do ser humano, justificando a satisfação
por meio dos impulsos e das necessidades como meta do equilíbrio interno (1989, p. 53),
o princípio da noodinâmica apresenta uma tensão entre o ser e o dever-ser do ser humano,
evidenciando o primado da liberdade. Em uma comparação entre esses dois princípios,
Lukas comenta:
E interessante que ambos colocam no homem um tipo de aspiração: no
plano psíquico, a aspiração ao prazer e o equilíbrio de impulsos no
“mundo interior”; no plano espiritual, a aspiração ao sentido e a
realização de valores no “mundo exterior”. Segundo a concepção da
logoterapia, no homem são, na verdade, a última instância é a decisão;
a “vontade de sentido” é a sua motivação mais originaria, sua motivação
primeira (1989, p. 55).
A categoria de realização da pessoa espiritual se mostra em uma tendência para
fora, para a aspiração ao sentido e para a realização de valores que não se circunscrevem
na interioridade do sujeito, mas em um mundo externo a ele. Como visto, é por meio do
espírito que o ser humano tem a capacidade de ser nas coisas e com os outros. Nesses
termos, a existência é caracterizada pela insistência em ser para fora, de “ser-em-outro-
ente”. Nisso se mostra de modo explícito a categoria de transcendência enquanto
exigência de realização. Como explicitado por Lukas, a motivação primeira do ser
humano é referente ao sentido, e é em direção a essa motivação originária que ele
transcende, pois o ser humano só tem o ente à medida que está (é) nele, isto é, que tende
para algo, que transcende a si em direção àquilo que ele próprio elegeu.
Portanto a existência se trata de uma vivência em termos de insistência, seja em
ser para fora (intencionalidade em ser para além de si) seja na insistência em continuar
sendo o mesmo (ipseidade). Não há aqui qualquer antagonismo, pois a pessoa espiritual,
enquanto projeto, tem em sua essência a tendência em ser para além de si, em direção aos
significados e valores e, somente na efetivação de suas possibilidades, a pessoa se torna
o mesmo, não mais como projeto, mas como “realidade de execução”32.
A apropriação do conceito de transcendência presente em Os fundamentos
metafísicos da lógica (1928) contribui para entender que a transcendência do único ser
32
Frankl compreende que a busca pelo sentido caracteriza uma forma de atualização da pessoa
espiritual. A vivência a partir da espiritualidade põe em marcha uma vivência absorvida pela vontade de
executar os atos espirituais, deixando em segundo plano uma racionalização sobre si. “Neste sentido, a
existência espiritual, ou seja, o próprio eu, o eu ‘em si mesmo’ é irreflexível e, assim, somente executável,
‘existente’ somente em suas execuções, somente como ‘realidade de execução’” (FRANKL, 2017, p. 26).
133
capaz de transcender não é em vistas de uma sobressalto entre um dentro e um fora, em
direção ao objeto do conhecimento, mas o primeiro passo da transcendência é em relação
a sua natureza, pois, ainda que o ser humano participe da natureza, pode ir além dela.
Nesse sentido, o que é ultrapassado é o ser humano mesmo, a sua facticidade em direção
ao que é desvelado para si, ou seja, ele mesmo. A transcendência constitui a mesmidade
(ipseidade), pois o ser humano é um ser em si-mesmo, numa relação intrínseca enquanto
unidade e totalidade, não apenas do que é, mas também de seu projeto.
Enquanto no entendimento de Heidegger o conceito de transcendência e de ser
em-si não possuem qualquer relevo ético, para Frankl eles estão intimamente ligados à
perspectiva axiológica. A pessoa espiritual não apenas pode ir além de si, mas tem o dever
de o fazer. Tem o dever de se opor ao seu próprio fechamento. Diante disso, a temática
da busca por sentido desvela essa abertura insistente. Como dito, a busca por sentido se
traduz em uma necessidade, caracterizada de modo originário, enquanto abertura do ser
humano ao mundo. O mundo, tradicionalmente tido como o somatório de todos os entes,
é aqui entendido como o derradeiro “por meio de”, ou seja, constitui-se enquanto
horizonte no qual se estabelece o espaço de jogo em que a pessoa espiritual, convivendo
em meio aos demais entes, torna-se resultado das escolhas que faz a partir de suas
possibilidades. Na perspectiva frankliana, a escolha não representa um mero preferir, mas
consiste em uma eleição daquilo perante o qual se torna responsável, pois a pessoa
espiritual é responsável perante aquilo que se apresenta à sua face.
O que torna o ser humano verdadeiramente precioso é a realização de
sentidos na vida, os quais seriam descobertos na sua relação com o
mundo; mais especificamente, ao responder às questões que o mundo
lhe coloca no cotidiano. Esse movimento interior que o leva para o
mundo foi denominado como noodinâmica, uma tensão entre o que o
ser humano é e aquilo que ele pode vir a ser, o que resultaria em uma
ascese (AQUINO, 2014, p. 41)
Portanto, se a busca por sentido consiste em uma necessidade primária do ser
humano, e o fenômeno da transcendência, uma exigência que o caracteriza, a recusa de ir
além de si, em direção aos sentidos, é vista por Frankl de forma negativa, não apenas do
ponto de vista ético, mas também da saúde. Trata-se de um estado patológico, pois o
modo próprio da pessoa espiritual não é o do fechamento em-si, mas da sua abertura.
As análises precedentes levaram a cabo o fato de que, para que a pessoa espiritual
possa ser compreendida a partir de suas escolhas, no comprometimento com aquilo que é
escolhido, é preciso que anteriormente ela seja concebida a partir da liberdade. Se o
fundamento da pessoa espiritual é a transcendência, ela só pode transcender se for livre.
134
A liberdade constitui a origem desse fundamento como tal. É a liberdade a essência da
possibilidade em geral da transcendência. Para Frankl, a liberdade não apenas caracteriza
o ser humano, mas, antes, o constitui, corresponde a um existencial (2014, p. 72). Ser
pessoa significa ser livre, pois a pessoa espiritual tem na liberdade o vir-a-ser de sua
pessoalidade.
A imago hominis da pessoa espiritual não consiste em um ser fático, mas
facultativo. Pelo fato de sempre estar além de suas necessidades, ainda que aquém das
possibilidades, a pessoa espiritual se enriquece. Como apontado anteriormente, a
liberdade possui uma conotação negativa, no sentido de um esforçar-se para se livrar de
algo. Por meio da liberdade, o ser humano se livra de suas determinações e de uma
vivência meramente factual.
Como dito, a Logoterapia compreende a pessoa espiritual a partir do princípio
noodinâmico, qual seja, uma tensão entre o ser que é e o ser que deveria ser. A partir de
Heidegger ficou patente que o ser e o poder ser do ser humano é aquilo em virtude do
qual ele existe. A liberdade, além do caráter negativo do livrar-se, diz respeito a um
momento originário que projeta e revela a vontade para a qual o ser humano tente. Dessa
forma, pode-se compreender a afirmação de Frankl de que “o sentido é o que se tenciona”
(2013, p. 81). Sentido não é uma ideia abstrata, mas se mostra como aquilo para o qual a
pessoa espiritual tende, tem a intenção de..., é o que a puxa e a arrasta nessa dinâmica
entre aquilo que é e o que deve se tornar.
Esse tender para algo e a possibilidade de escolher a si mesmo não seriam
possíveis se anteriormente a pessoa espiritual não os compreendesse. A partir de Os
fundamentos metafísicos da lógica (1928), trata-se o logos como compreensão
(Verstehen). Esse modo não consiste em uma capacidade cognitiva, mas de um estado-
de-ânimo. Como a pessoa espiritual não possui uma essência determinada, sua vivência
a partir do logos dependerá de sua compreensão, ou seja, conforme se torne transparente
em seu ser junto ao mundo e execute suas possibilidades. Enquanto projeto livre, a pessoa
espiritual é superabundante de possibilidade.
Contudo, o dito até aqui suscita questionamentos sobre esse estado-de-ânimo.
Como a pessoa espiritual compreende e, com isso, tende para aquilo que tem sentido?
Quais são os parâmetros adotados por Frankl para compreender a valoração da pessoa?
Essas questões encontrarão respostas com a revitalização do inconsciente.
135
4.5 A CONSCIÊNCIA EM UMA PERSPECTIVA TRANSCENDENTE
No intento de sua antropologia filosófica, Frankl pretende uma revisão de
limites, não entre aquilo que é consciente ou inconsciente, pois para ele esses conteúdos
são muito fluidos e a linha que os divide, tênue. O que pretende é demarcar a distinção
entre o inconsciente instintivo e o inconsciente espiritual. Com isso, Frankl promove uma
ampliação na compreensão da dimensão inconsciente do ser humano em relação à
compreensão freudiana. Enquanto, para Freud, o inconsciente é caracterizado por uma
instintividade reprimida, Frankl o concebe enquanto espiritualidade. Esse processo de
reabilitação do inconsciente, restituindo a dimensão existencial do ser humano, não
consiste em um esforço novo. Frankl comenta que anteriormente já se falava em “forças
criadoras” do inconsciente, ou forças “prospectivas” (FRANKL, 2017, p. 19). Para ele, o
problema dessas concepções que buscaram uma reapropriação do inconsciente está na
distinção pouco nítida entre o instintivo e o espiritual, ou seja, entre o determinismo e a
liberdade. A esse respeito, ele declara:
Com efeito, o verdadeiro ser humano, totalmente ao contrário da
concepção psicanalítica, não é um ser impulsionado; trata-se muito
mais, de acordo com Jaspers, de um “ser que decide”, ou no sentido de
Heidegger e também de Binswanger, de um “estar aqui”. No sentido
analítico-existencial que nós lhe damos constitui um “ser-responsável”,
portanto um ser existencial (FRANKL, 2017, p. 21).
A consequência de uma antropologia aos moldes psicanalíticos é a de um
automatismo da existência, oriundo de uma imagem de ser humano desprovida de sua
dimensão existencial. Assim o homem aparece aprisionado aos seus instintos, sendo as
suas ações, fruto de uma impulsividade. Além da liberdade, despreza-se outro existencial,
a responsabilidade. Para Frankl, o ser humano é ser-responsável, pois o inconsciente não
se constitui apenas de instintividade, mas, principalmente, de espiritualidade. Em A
presença ignorada de Deus (1943), Frankl argumenta que o instintivo e o espiritual
correspondem a campos distintos. É o que ele define como “hiato ontológico” entre a
facticidade e a existência. Enquanto a facticidade se compõe, tanto de elementos
fisiológicos, quanto de elementos psíquicos, a existência é essencialmente espiritual
(FRANKL, 2017, p. 21).
Na contramão de uma visão de homem psicanalítica, caracterizada pela
facticidade, a logoterapia oferece à psiquiatria uma imagem de ser humano enquanto ser
espiritual-existencial. Isso corresponde a uma perspectiva antropológica que defende uma
136
visão de ser humano como um ser separado, integrado e que decide. A caracterização do
ser humano enquanto ser separado remete ao fato de que é “in-divíduo”, isto é, não admite
cisão em relação às suas dimensões. É um indivíduo centrado em sua dimensão espiritual,
a partir da qual se poderá dizer da pessoa espiritual.
A compreensão do ser separado dá relevo ao caráter unitário das dimensões. A
perspectiva da integralidade apela para a consideração da realidade tridimensional do ser
humano com o claro objetivo de que nenhuma dimensão seja preterida na compreensão
do caráter unitário.
Resta, agora, a compreensão do ser humano enquanto ser que decide. O projeto
de reabilitação do inconsciente visa a levar a cabo a concepção do ser humano enquanto
ser-responsável e, justamente por compreender a pessoa espiritual-existencial, a temática
da religiosidade alcança a psicoterapia. Com a reabilitação do inconsciente freudiano, o
que tradicionalmente se compreende como pessoa profunda nada tem a ver com o modo
de ser pessoal defendido por Frankl. Para ele, a pessoa profunda é a espiritual-existencial,
não passível de análise, pois o inconsciente espiritual será sempre irrefletido, existindo
enquanto execução. Para Frankl, a existência propriamente dita é irrefletida.
Resumindo, podemos dizer que a pessoa profunda, a saber, a pessoa
profunda espiritual, aquela e somente aquela que merece ser chamada
assim, no verdadeiro sentido da palavras, é irreflexível por não ser
passível de reflexão e, neste sentido, pode ser chamada também de
inconsciente. Desta forma, enquanto a pessoa espiritual pode,
basicamente, ser tanto consciente quanto inconsciente, podemos dizer
que a pessoa profunda espiritual é obrigatoriamente inconsciente, não
apenas facultativamente. Em outras palavras, na sua profundeza, “no
fundo”, o espiritual é necessário por ser essencialmente inconsciente
(FRANKL, 2017, p. 27).
Se a pessoa profunda espiritual será sempre irrefletida, como a pessoa espiritual
porá em marcha sua realidade de execução sendo inconsciente? Frankl pretende distinguir
inconsciente instintivo de inconsciente espiritual. Sendo o inconsciente não passível de
reflexão ou análise, Frankl realizará uma análise da consciência, pois, segundo ele, a
distinção entre consciência e inconsciência é tênue.
4.5.1 Análise Existencial da consciência moral
No pensamento frankliano, a consciência é apresentada como um fenômeno
primário. Ao lado dos conceitos de existência e responsabilidade, ela é conceituada como
algo próprio do ser humano, como um “elemento existencial”, um atributo básico que
137
sempre esteve contido no ser existencial (FRANKL, 2017, p. 27). Ao considerá-la como
um fenômeno primário, Frankl remete a íntima ligação entre a consciência e a dimensão
espiritual. Além de reafirmar o caráter único das dimensões do ser humano, essa
concepção traz em seu bojo a temática atinente à origem da consciência. Para Frankl, está
patente que a origem da consciência não é a facticidade, mas suas raízes são de origem
espiritual, assim como o são as da responsabilidade e da existência.
Se a consciência corresponde a um existencial, a sua compreensão não se dará
em um plano imanente, mas ontológico. Para Frankl, a consciência é irracional, alógica e
pré-lógica (2017, p. 29). Ele a considera irracional, não de acordo com padrões
cognitivos. Porque, enquanto fenômeno primário de execução, impele o ser humano a
agir de determinado modo, sendo a racionalização sobre essas motivações possíveis
somente em um segundo momento. A análise da consciência realizada por Frankl
demonstra que: “À consciência (Bewusstsein) torna-se acessível um ser que é (Seidndes);
à consciência moral (Gewissen), ao contrário, não um ser que é, mas um ser que ainda
não é, ou seja, um ser que deveria ser (Sein-sollendes)” (FRANKL, 2017, p. 30).
Bewusstsein e Gewissen não correspondem a duas consciências distintas, mas a
níveis distintos de profundidade da própria consciência. Enquanto a primeira corresponde
ao sentido literal do termo, conhecimento do que se passa em nós, tornando acessível um
ser que é, a Gewissen remete à raízes profundas da dimensão espiritual. É por isso que a
consciência moral é capaz de apontar aquilo que se deve. Se a pessoa espiritual é
compreendida essencialmente como ser-responsável, é por meio dessa ligação intrínseca
com a sua dimensão profunda que se poderá efetivar seu próprio caráter existencial de
pessoa que ainda não é, mas que deve ser, que está continuamente sendo.
A consciência moral aponta para uma exigência, para algo que se deve efetivar.
Por não se tratar de algo ainda concreto, esse dever-ser vem à consciência por meio de
uma antecipação, um ato de “visão” denominado por Frankl de intuição (2017, p. 30).
Esse ato de “visão”, apontado pela consciência ética (Ethos), por ser necessariamente
irracional, isto é, inconsciente, deixa evidente que o que a consciência intui não tem,
necessariamente, uma relação direta com a exigência de realização de um dever abarcado
por um imperativo categórico geral. O inconsciente reabilitado como espiritual garante a
primazia do caráter existencial da inconsciência. Portanto, o que a consciência intui e para
o que ela o impele é a realização de um dever, não a partir de uma lei geral, mas de uma
exigência de caráter individual, diante de uma situação concreta.
138
Por isso a consciência moral pode ser considerada como um “órgão de sentido”.
Em A presença ignorada de Deus (1943), Frankl defende que é “tarefa da consciência
revelar ao ser humano ‘aquele único necessário’, o que é sempre algo exclusivo. Trata-se
daquela possibilidade única e exclusiva de uma pessoa concreta numa situação concreta”
(2017, p. 31). Por ter as raízes na dimensão propriamente humana, a consciência revela
ao ser humano o caráter de algo único em uma dada situação.
Assim, uma vida a partir da consciência é sempre uma vida
absolutamente pessoal dirigida a uma situação absolutamente concreta,
àquilo que possa importar em nossa existência única e individual: a
consciência considera sempre o “aqui” (“Da”) concreto do meu “ser”
(“Sein”) pessoal (FRANKL, 2017, p. 32).
Por apontar aquilo que se deve, o modo de operar da consciência não deve ser
interpretado como um instinto vital, que se dirige a algo genérico através de uma lei
universal. Pelo contrário, pode-se dizer que a intuição da consciência opera como um
instinto ético, por ser o seu alvo, não algo genérico, mas o caráter individual e concreto
das situações. Além disso, diante do instinto vital, os animais não possuem uma liberdade
de se opor, muito menos problematizar sobre aquilo que os impele. Já o instinto ético, por
estar relacionado à liberdade, possibilita ao ser humano escolher efetivar ou não o seu
dever-ser. A liberdade do ser humano pressupõe não apenas dar ouvidos à consciência ou
rejeitar a sua advertência, mas também nomear o que (ou quem) o impele por meio da
consciência.
De toda esta análise, percebe-se que a Gewissen é, na antropologia frankliana,
geradora de responsabilidade. Com isso não se deve interpretar que a consciência cria os
sentidos, pois, sob o prisma ético, a responsabilidade é um conceito formal, e não de
conteúdo. Portanto, por meio da capacidade de compreensão (Verstehen), a consciência
torna transparente a relação do ser humano com o mundo, de onde emergem suas
possibilidades de sentido perante as quais se torna responsável.
Levando em consideração o caráter de conclamação individual das situações e o
apelo por realizá-las, como legitimar o papel da consciência no apontamento desse algo
único e necessário à pessoa espiritual? Frankl responde: “para explicar a condição
humana de ser livre é suficiente basear-nos na sua existencialidade; porém, para explicar
a condição humana de ser responsável, precisamos recorrer à transcendentalidade de ter
consciência” (2017, p. 50).
Para fundamentar a compreensão do ser humano a partir da liberdade, recorreu-
se ao conceito de existência. Ser pessoa significa estar sempre se movendo, trata-se de
139
um polo de tensão entre o ser e o dever-ser. Já o fato de que, para explicar o ser-
responsável da pessoa espiritual, faz-se necessário recorrer à transcendência da
consciência consiste em uma estratégia que deve ser entendida dentro de seu contexto
histórico. Nas críticas tecidas por Frankl à compreensão da psique de Freud e Jung, figura
o fato de terem utilizado a imanência como argumento, preferindo ficar no souterrain de
suas compreensões. Para Frankl, a consciência não se constitui apenas da imanência, mas
possui uma realidade transcendente. É por meio dessa última que o primado da
responsabilidade é garantido e a partir da qual pode-se compreender a perspectiva da
religiosidade.
4.6 A RELIGIOSIDADE INCONSCIENTE
O intento da Análise Existencial frankliana é o de desvelar a essência da pessoa
espiritual como ser-responsável. Contudo, o objetivo da Existenzanalyse não se restringe
a isso, mas senão em tornar o ser humano consciente desse seu peculiar modo de ser
(FRANKL, 1989, p. 307). Em A presença ignorada de Deus (1943), ao realizar uma
síntese dos resultados colhidos com tal análise, Frankl comenta: “O ponto de partida foi
o fato fenomenológico primário de que ser humano significa ser consciente e
responsável” (2017, p. 57). Como salientado por ele, esse axioma da logoterapia consiste
em um ponto de partida, sendo seu objetivo explicar a transcendência da consciência. A
partir disso, considera que a vivência conscienciosa de um ser responsável pressupõe um
“de quê” e um “para quê” de suas ações. “O ‘de quê’, do qual o ser humano pode se
libertar, está em seu ser impulsionado; seu eu, então, tem liberdade diante de seu id. O
‘para quê’ da liberdade humana é sua responsabilidade” (FRANKL, 2017, p. 48).
Com a investida pelo campo da espiritualidade inconsciente, Frankl livra o ser
humano de uma “id-ificação”. Em lugar de um inconsciente instintivo, ele desvela um
inconsciente espiritual, a partir do qual são tomadas as grandes e autênticas decisões,
restituindo ao ser humano, a sua liberdade. Contudo, essa liberdade não é nada se não for
vivenciada em seu “para quê”. Assim, com o desvelamento do inconsciente espiritual,
Frankl também descobre uma responsabilidade inconsciente, pois o fato psicológico da
consciência é apenas o aspecto imanente de um fenômeno transcendente. A pessoa
espiritual é livre para ser responsável (FRANKL, 2017, p. 48).
A consciência, para o austríaco, representa posição-chave a partir de onde a
transcendência essencial do inconsciente espiritual se revela (FRANKL, 2017, p. 51). Ao
140
questionar sobre o “para quê” da liberdade, a irredutibilidade ôntica se torna inevitável,
pois o ser humano, na visão de Frankl, não é o seu próprio legislador ético. A consciência
de ser-responsável, a perspectiva do dever, precede ontologicamente ao querer (2017, p.
55). Nesse sentido, ressalta-se não apenas o “para quê” da consciência, mas também o
“perante quem”. Da mesma forma que o “de quê” pressupõe um “para quê”, o “perante
quem” já está pressuposto no “para quê”. Dito de outra forma: Do mesmo modo que a
liberdade pressupõe a responsabilidade, diante de um dever o ser humano se compromete
em face daquilo perante o qual se sente responsável.
Responsabilidade é, sob o prisma ético, um conceito formal; não
encerra ainda, de per si, quaisquer determinações de conteúdo. É, além
disso, um conceito ético neutro e, nesta medida, no plano ético, um
conceito-limite, pois nada nos diz sobre o “perante quem” (das Wovor)
e o “por que” (das Wofür) da responsabilidade (FRANKL, 1989, p.
307).
A Análise Existencial considera a responsabilidade como um conceito ético
neutro. Trata-se de um conceito limite, pois é até esse ponto, o de ser-responsável, que a
Análise pode encaminhar o ser humano, nada dizendo a respeito de seu conteúdo. O
“perante quem” se é responsável é escolha pessoal. Em Psicoterapia e Sentido da Vida
(1946), Frankl diz que o ser humano escolhe se é perante Deus, a sua própria consciência,
perante a comunidade ou qualquer outra instância (1989, p. 307). A questão importante é
que a pessoa que pretende viver uma vida fiel a sua essência de ser-responsável não pode
deixar de dar ouvidos à sua consciência, independente do “perante quem”.
Em A presença ignorada de Deus (1943), a partir do prisma da irredutibilidade
ôntica, Frankl compreende que, para dar ouvidos à consciência, a existência precisa ser
vista em uma perspectiva transcendente, e a consciência entendida como um fenômeno
que transcende a mera condição humana (FRANKL, 2017, p. 49). A partir disso se
compreende que a pessoa espiritual, na concretização da humanidade que lhe é própria,
dá ouvidos à sua consciência. Contudo, nessa escuta, a voz que se ouve não é considerada
proveniente da dimensão psíquica, pois a consciência é a própria voz, a voz de uma
instância extra-humana (FRANKL, 2017, p. 49).
Pelo exposto, a consciência não poderia “ter voz”, porque ela própria
“é” a voz, a voz da transcendência. Essa voz somente é ouvida pelo ser
humano, ela não provém dele; ao contrário, somente o caráter
transcendente da consciência faz com que possamos compreender o ser
humano, e especialmente sua personalidade, num sentido mais
profundo (FRANKL, 2017, p. 49).
141
Para Frankl, a consciência está enraizada no inconsciente espiritual. Trata-se de
uma instância imanente, proveniente de uma realidade transcendente. Se a consciência é
a própria voz da transcendência, seria ela oriunda do inconsciente espiritual? Frankl
compreende que através da consciência se faz ressoar uma instância extra-humana (2017,
p. 49). Não cabe à logoterapia concluir qual seja essa instância. Como já dito, o que a
Análise Existencial revela é o aspecto formal da responsabilidade. Contudo, esse aspecto
formal aponta para o fato de que a consciência não é a última instância perante a qual o
ser humano torna-se responsável, mas a penúltima (FRANKL, 2017, p. 52).
Por esse caminho a Análise Existencial leva à problemática dos valores. Em
Homo Patiens (1950), Frankl defende que os valores não são relativos ao sujeito que
valoriza, mas a um valor absoluto. “O ato de valorizar só é possível a partir de um valor
absoluto, um valor máximo, que confere às coisas, aos objetos” (FRANKL, 1978, p. 261).
É por isso que se compreende que a “voz da consciência” não provém do ser humano,
mesmo estando enraizada em sua dimensão mais profunda. A voz transcendente que fala
na imanência provém de um “Deus inconsciente”.
Nossa formulação de um Deus inconsciente não significa, porém, que
Deus, em si mesmo e por si mesmo, seja inconsciente; ao contrário,
quer dizer que, às vezes, Deus permanece inconsciente para nós, que
nossa relação com ele pode ser inconsciente, ou reprimida, e, assim,
oculta para nós mesmos (FRANKL, 2017, p. 59).
Por isso se pode dizer de uma religiosidade inconsciente, pois a Existenzalyse
descobre dentro do inconsciente espiritual um relacionamento inconsciente com Deus. A
perspectiva frankliana de uma “fé inconsciente”, em hipótese alguma visa divinizar o
inconsciente, compreendê-lo como onisciente ou considerar a relação entre o inconsciente
e Deus como um impulso.33 Na perspectiva que compreende o humano enquanto ser-
responsável, Deus aparece como valor absoluto, o summum bonum. A consciência é
considerada como penúltima instância, pois todo ato de valorizar pressupõe um valor
33
“Frankl ressalta a importância de se precaver contra possíveis interpretações. A primeira seria
uma interpretação panteísta: Frankl não pretende afirmar que o inconsciente seja divino, que Deus esteja
dentro de nós, que ele habite o inconsciente. Também não pode ser considerado no sentido ocultista
assumindo um paradoxo de um saber inconsciente, estipulando que o inconsciente seria onisciente, ou pelo
menos saberia mais que o eu. Não sendo o inconsciente divino, não podemos atribuir-lhe nenhum atributo
divino: no caso, a onisciência. O primeiro erro corresponderia, segundo Frankl, a uma teologia diletante ao
invés de uma tese, e o segundo, constituiria uma metafísica imanentista. O terceiro e mais importante erro
possível é uma id-ficação de um Deus inconsciente. Frankl diz que este foi o grande erro de Jung. Este
esvaziou a religiosidade inconsciente para a região do id. Deu ao Deus inconsciente uma localização falsa
(FRANKL, 1997, p. 49); desta forma, o religioso não pertenceria à responsabilidade e decisão do eu,
chegando a falar de um impulso religioso. A verdadeira religiosidade para Frankl, não tem caráter de
impulso, mas de decisão” (MEIRELES, 2015, p. 91).
142
supremo. Assim, ainda que apenas inconscientemente, o ser humano pressupõe um
relacionamento com Deus. A partir disso, torna-se explícita a perspectiva de Frankl de
considerar que sempre houve no ser humano uma tendência em direção a Deus, pois o ser
humano, sob sua ótica, está sempre se movendo em direção aos sentidos e valores. Ainda
que não se dê conta, é nessa busca que ele encontra Deus.
Reiteremos: somente de um valor máximo absoluto, de uma pessoa de
valor absoluto – Deus – recebem as coisas um valor. Somente quando
convocamos ao tribunal divino, ainda que inconscientemente, somos
capazes de dar valor às coisas, dar-lhes o valor que a elas corresponde.
Sem sabê-lo, inconscientemente, pressupomos em todo ato de valorar,
a pessoa de valor absoluto, o árbitro divino (FRANKL, 1978, p. 262).
Os sentidos correspondem a uma exigência da situação de uma pessoa concreta.
Isso faz transparecer o caráter relativo e determinado das coisas. Para Frankl, esse caráter
relativo é importante por testemunhar a exigência de um valor absoluto perante o qual os
demais valores se tornam relativos, pois, diante das situações, o absoluto não caracteriza
apenas a condição prévia de valoração, mas principalmente, torna perceptível os valores
intrínsecos a ela.
As coisas são, pois, relativas, mas não no sentido advogado pelos
seguidores do relativismo. São relativas ao não-relativo. E o sistema de
relações das relações de valor é Deus. Daí resulta que Deus mesmo
não pode ser um fator qualquer, nem sequer um fator infinito da ordem
das coisas [...]. Deus não se encontra em nenhuma dimensão,
simplesmente porque Ele é a dimensionalidade de qualquer relação de
valores (FRANKL, 1978, p. 263).
A Análise Existencial, ao compreender a pessoa espiritual a partir de sua
transcendência, desvela um ser-responsável. A responsabilidade do ser humano não
provém de sua consciência, mas de sua profundeza inconsciente. Frankl conclui que a voz
que impele o ser humano à liberdade é de origem extra-humana, de Deus. A formulação
de um “Deus inconsciente” remete, portanto, ao fato de que, ainda que apenas na mais
profunda inconsciência, o ser humano tem uma relação com Deus.
Mas, se Deus é o fundamento último do sistema ético frankliano, como o
irreligioso é compreendido pela logoterapia? A partir desse fundamento o irreligioso não
pode ser considerado como um ser-responsável? De pronto, é preciso considerar que essa
relação não se constitui preliminarmente no plano teológico, mas teleológico, no plano
ético. Mediante a definição da consciência como uma voz que guia o ser humano na
atualização de sua essência enquanto ser-responsável, pode-se compreender que, na
143
escolha ou recusa por aquilo que o instinto ético lhe prescreve, o ser humano se põe a
dialogar.
Em A presença ignorada de Deus (1943), Frankl define o irreligioso como
aquele que ignora a transcendência da consciência. Não significa que o ser humano
irreligioso não tenha responsabilidade, apenas que não se questiona para além daquela,
não se perguntando sobre o “perante quem” é responsável. “O ser humano irreligioso é,
portanto, aquele que aceita sua consciência na sua facticidade psicológica, [...];
poderíamos dizer que ele para antes do tempo, pois considera a consciência como algo
último, a última instância perante a qual tem que se sentir responsável” (FRANKL, 2017,
p. 52). Na perspectiva do diálogo, o ser humano irreligioso se compreende em um
solilóquio, considera que fala consigo mesmo, com a sua consciência.
Se o ser humano irreligioso é aquele que não considera a transcendência da
consciência, o ser humano religioso é o que leva em conta tal perspectiva. Como já dito,
a perspectiva ética da logoterapia é formal, não de conteúdo. Não cabe ao psicoterapeuta
apontar com quem se dá o diálogo, sua atividade clínica se restringe apenas em apontar o
ser-responsável do sujeito, isto é, deve apontar o que se deve, mas não o perante quem se
deve. Mesmo considerando o solilóquio como um caso especial, sendo o original e
genuíno o diálogo, Frankl compreende que o ser humano não deve ser impelido à
religiosidade, pois ela só é genuína se for vivenciada em sua espontaneidade, ou seja, se
a pessoa espiritual escolher livremente o “tu” como o parceiro de seus diálogos. A esse
respeito Frankl comenta: “A verdadeira religiosidade não tem caráter de impulso, mas,
antes, de decisão. A religiosidade se mantém pelo seu caráter de decisão, e deixa de sê-la
quando predomina o caráter de impulso. A religiosidade ou é existencial ou não é nada”
(2017, p. 61).
Da análise antropológica levada a cabo, percebe-se que Frankl defende um ideal
de dever-ser que extrapola a consciência moral e se funda em outro plano, distinguido-se,
dessa forma, da concepção psicanalítica que compreende as implicações morais a partir
de um superego. Na perspectiva frankliana, a pessoa espiritual se desenvolve como sujeito
ético, pois uma vida significativamente vivida, corresponderá a uma existência
moralmente justificada. Nesses termos, a busca do ser humano por um sentido na vida se
traduz em uma tendência à realização moral. Ao tratar dessa imbricação entre concepção
antropológica e perspectiva ética no pensamento de Frankl, Pereira argumenta:
O que queremos, de antemão, defender e que Frankl desenvolveu uma
escola de psicoterapia a partir de um projeto antropológico que se liga,
144
irrecusavelmente, a problemática ética. Trata-se de uma via dialética
nessa relação: não há ideia de homem sem uma concepção valorada de
agir humano nem vice-versa; elas constituem categorias reflexivas,
mutuamente necessárias (2009, p. 106).
Da relação posta como necessária entre antropologia e ética, o fundamento da
antropologia não precisa ser a ética, mas o contrário: a ética só é possível a partir de um
fundamento antropológico. Ao desvelar a profundeza da pessoa espiritual, de onde brota
uma voz transcendente, Deus se torna inevitável como o fundamento de valor absoluto, a
partir do qual todas as coisas são valoradas. Ao invocar um árbitro divino, Frankl não
estabelece uma ética confessional, mas dá à religiosidade uma primazia antropológica.
Como tematizado por Aquino (2014), foi uma constante na abordagem
frankliana a questão da religiosidade, identificada com a busca de sentido último da vida.
Por isso podemos fazer coro com Aquino sobre a afirmação de que, nas obras e na vida
de Frankl, há A presença não ignorada de Deus. Aquino revela que essa opção pela
religiosidade se origina da cultura religiosa de Frankl. A esse respeito, são bastante úteis
as análises de Gesché (2004) sobre a relação entre Deus e a ética.
Para Gesché, a relação entre o homem e deus no paganismo se estabelece a partir
de um caráter cultural e cívico, sem um relacionamento com o ser profundo do ser
humano. As ofensas ao deus pagão não estão relacionadas a faltas morais do homem em
relação a si mesmo, mas a transgressões de honrarias e etiquetas (2004, p. 80).
Completamente distinta será a concepção da relação entre o homem e Deus na tradição
judaico-cristã, que, para Gesché, será essencialmente ética.
O homem é aquele que, na criação, não recebe simplesmente o ser
(como o recebe o resto da criação, não “moral”), mas ele também o
conquista: ele é aquele que diz sim, “ratifica seu ser”, merece-o, ganha-
o. O homem dá continuidade ao seu ser (inacabado) mediante escolhas
morais: “Hoje eu te coloquei diante da vida e da morte, da maldição e
da benção. Tu escolherás a vida, [...] amando ao Senhor seu Deus” (Dt
30, 19). O homem é chamado a edificar o seu ser. Essa metafísica ética
é uma ontologia de consentimento ativo ao ser, de coragem (virtus) de
ser, uma metafísica do coração corajoso (cf. Mt 15, 11ss; Mc 7,15). Aí
está o lugar régio do homem (GESCHÉ, 2004, p. 85).
Ao promover o aniquilamento do imanentismo e a consequente inclusão da
transcendência, Frankl desenvolve uma antropologia em harmonia com algo que é
inerente ao ser humano. De modo algum o ser humano se fecha em um ambiente restrito
à espécie, mas é complemente aberto ao mundo. Assim como a pessoa espiritual pode
romper o ambiente em direção ao mundo, pela sua escolha também pode transcender o
mundo, alcançando o transmundo (1978, p. 261). Herdeiro da tradição judaico-cristã,
145
Frankl compreende que não só o ser humano deve permanecer aberto, mas também as
ciências que pretendem compreendê-lo. Sendo a relação com o divino inevitável, nem o
irreligioso pode eliminar essa relação, pois o ateísmo consiste na negação de um Deus
pessoal, não na negação do sentido último. Assim, deixando a porta aberta ao sentido
último, mesmo sem que se dê conta, passará por ela a sombra do absoluto.
146
5 CONCLUSÃO
A precursora da Logoterapia no Brasil afirma: “Uma antropologia, ou seja, a
teoria da existência humana, não poderá deter-se apenas na existência e no imanente ao
homem e não deverá prescindir da ideia de transcendência humana, pois, para a elevação
do humanismo, só é preciso ir além do sentido, em busca do super-sentido” (XAUSA,
1986, p. 209). O pensamento de Xausa está em profunda sintonia com o empreendimento
frankliano que se buscou evidenciar nesta pesquisa. Trata-se daquele aclaramento trazido
por Frankl de que a realidade não consiste apenas dos aspectos fáticos e imanentes, mas
que apela sempre para um ir além, a partir do qual o humano do homem encontra sua
genuína expressão. Na obra A presença não ignorada de Deus, ao relacionar o
pensamento frankliano com a religião judaica, da qual é herdeiro, Aquino cita uma
sabedoria do Talmude. Para essa tradição, o ser humano não vê a realidade como ela é de
fato, mas como ela parece a ele (2014, p. 29). Ele usa essa estratégia como forma de
apresentar a finalidade da Logoterapia que consiste em ampliar o campo perceptivo da
pessoa a fim de que ela capte as possibilidades de sentido presentes nas situações. Pode-
se dizer que essa vocação da Logoterapia em ampliar o campo perceptivo vale também
para a Análise Existencial. Contudo, o campo visual a ser alargado não corresponde ao
do indivíduo, mas ao da psicoterapia em relação a ele. Nesse sentido, podem-se
compreender a Logoterapia e a Análise Existencial como empreendimentos, que, de
dentro das ciências da alma, pretendem ampliar a percepção em relação ao ser humano,
ao mundo e ao sentido último da existência.
Nesse ponto, vale retomar, em linhas gerais, a trajetória a qual se fez até aqui e
que se constituiu a partir de três momentos. Buscou-se, no primeiro capítulo, mostrar o
empreendimento de Frankl na elaboração de sua Existenzanalyse. Esse termo é cunhado
em 1933, a partir da necessidade percebida por Frankl de complementar a prática clínica
com uma perspectiva antropológica saudável, condizente com o ser humano em sua
integralidade. Isso se dá a partir do diagnóstico de uma concepção antropológica
insuficiente, no sentido de uma falta de questionamento sobre os fundamentos do homem
e da adoção de métodos que sejam adequados às ciências da alma. O embate travado por
Frankl, do interior dessas ciências, reside no fato de que, por necessidade epistemológica,
elas tendem a buscar uma objetivação do ser humano, isso porque o embasamento
utilizado pelas ciências da alma é devedor das ciências naturais. Nessa forma de
compreender a psicoterapia, entendida por Frankl como uma perspectiva do “velho
147
estilo”, o ser humano fica preso dentro de um sistema mecânico rígido, buscando, na
autorrealização, a sua satisfação. Nesse sintomático período em que o ser humano é
compreendido a partir do pathos, a função da psicopatologia reside no estudo das causas
e da natureza das doenças mentais, valendo-se do método causalista-explicativo. A partir
da pesquisa realizada, pode-se perceber que o empreendimento da Análise Existencial
levado a cabo é com vistas a combater o psicologismo reinante. Esse empreendimento se
efetiva a partir de um combate à visão de mundo científico-natural e da reapropriação da
dimensão existencial do ser humano, ambos oportunizados pelo diálogo com a filosofia.
O que a Existenzanalyse revela é o fato de que o problema não reside em considerar o ser
humano enquanto objeto da análise, mas na sua objetificação. A pessoa espiritual
desvelada pela análise, em essência não é objeto, pois não pode ser compreendida
apartada de seu mundo, sendo necessário considerá-la a partir de sua relação fundamental
com o seu ser e com o dos demais. Assim, enquanto as perspectivas psicologistas dão
relevo à estratégia da decomposição em vista de uma chave explicativa, Frankl defende
que a compreensão do ser humano só se efetiva a partir da busca pela unidade das suas
múltiplas formas de ser.
O segundo capítulo buscou perscrutar a antropologia filosófica frankliana. Como
ficou patente, o objetivo da Análise Existencial é a inclusão da existência na psicoterapia,
e isso se efetivou com um itinerário de reabilitação da dimensão noética. De maneira
esquemática, esse itinerário parte de uma proposta de mutação na compreensão da
essência do ser humano para, enfim, compreendê-lo desde sua dimensão espiritual. A
mutação não teve o objetivo de comutar uma essência por outra, mas o de buscar os traços
fundamentais do ser humano. Nesse empreendimento, a analítica existenciária
heideggeriana auxiliou na avaliação e na correção das compreensões particulares,
oriundas das ciências da alma. Como ficou evidente, a proposta de uma mutação levada
a cabo não teve como meta a negação da tradição, mas tal postura crítica, essência da
etapa desconstrutiva, buscou colocar em evidência a existência humana em sua unidade.
O nível estrutural designado como espiritual representa o ápice da unidade do ser humano,
a partir da qual as concepções particulares podem se dar, pois, para que o ser humano seja
compreendido de modo fragmentário, é necessário que anteriormente tenha sido
concebido em sua unidade. É a partir desse nível que o ser humano se abre à
transcendência e se torna um ser estruturalmente aberto ao outro. Destituir o ser humano
desse nível de compreensão é considerá-lo como algo simplesmente presente (subiectum).
O que a antropologia filosófica frankliana intenta é demonstrar que o ser humano não é
148
primeiramente uma substância corporal animada, mas ex-sistência. Nesses termos, o
combate ao psicologismo significa impedir que o ser humano seja nivelado pelas
dimensões mais baixas, o que lhe destituiria da transcendência. Com isso, fica evidente
que a ontologia dimensional, mesmo ressaltando a tríade corpo-psíquico-espírito que
compõe o ser humano, não tem em vista as particularidades dimensionais. O intento de
Frankl, com essa estratégia, é o de garantir o genuíno modo de se relacionar do humano
em sua unidade o qual se efetiva pela preservação da dimensão espiritual, a existencial.
As análises precedentes contribuíram para que a transcendência fosse
compreendida enquanto constituição essencial do ser humano. O terceiro capítulo deixou
evidente que a transcendência a qual aqui se refere, não está relacionada com a
perspectiva da epistemologia moderna, pois essa compreende tal conceito como a
superação de um limite entre o interior e o exterior, sendo oriunda de uma perspectiva
que privilegia a superação espacial entre sujeito e objeto. O modo como a Análise
Existencial frankliana compreende a transcendência está estritamente relacionado à
categoria de realização. Trata-se de um tender para. Ao inquirir sobre o que é ultrapassado
e em qual direção, a análise revelou ser o que é ultrapassado com a transcendência o ser
humano mesmo, em direção ao que é desvelado para si, ou seja, ele mesmo. Isso porque,
ao ser compreendido enquanto ser-em-o-mundo, a pessoa espiritual se acha inserida em
meio aos entes, sendo resultado das escolhas que faz a partir de suas possibilidades. Esse
tender para, ou seja, a intencionalidade que acontece com a transcendência, além de
assumir um aspecto “horizontal” no pensamento de Frankl – o relacionamento com as
coisas e pessoas que tem na pessoa espiritual sua referência última -, pode assumir
também uma “altura”, que consiste na busca por um sentido último, um relacionamento
com o absoluto, como revela a Análise Existencial da consciência moral.
De maneira sucinta, este estudo pretende trazer algumas modestas contribuições
no viés interpretativo do pensamento frankliano, gestados a partir da aproximação entre
filosofia e psicoterapia. Em primeiro lugar, destaca-se a importância que a Análise
Existencial assume no pensamento frankliano, contribuindo com uma análise mais
integral do ser humano a partir da dimensão existencial. O foco dessa perspectiva não
está nas dimensões que o compõe, mas na unidade estruturante que a dimensão espiritual
oportuniza. Realizar uma caracterização da Existenzanalyse de Frankl possibilita, ainda,
a sua distinção em relação as demais análises gestadas nesse contexto.
Em segundo lugar, pode-se destacar o relevo dado à dimensão crítica da
epistemologia psiquiátrica. A crítica apresentada por Frankl em suas obras aparece de
149
modo bastante concisa, referindo-se principalmente à psicanálise e à psicologia
individual. Entende-se essa postura de Frankl como uma estratégia, cuja finalidade é de
contextualizar e situar seu empreendimento, sendo que seu objetivo principal é o de
apresentar e defender suas descobertas e métodos. Ao perceber que Frankl deixa esses
aspectos subtendidos, essa pesquisa buscou realizar uma inserção maior em seu contexto,
a fim de a psicoterapia cunhada por ele se tornar mais evidentes. O que se pôde evidenciar
foi o grande embate travado por Frankl com o psicologismo.
Sublinha-se, ainda, o desenvolvimento do conceito de transcendência. A
elucidação desse conceito aponta para uma melhor compreensão da categoria de
realização no pensamento frankliano. Ao elaborar uma imago homini a partir da
transcendência, ou seja, enquanto pessoa espiritual que tem na transcendência sua
essência, a psicoterapia ganha novos influxos, pois passa a compreender o ser humano a
partir de um princípio noodinâmico. Como ficou evidente, a noodinâmica frankliana está
em oposição ao princípio homeostático, próprio de uma concepção psicodinâmica que
tem a satisfação como equilíbrio interno dos impulsos e necessidades. Tanto a
psicodinâmica, quanto a noodinâmica sublinham a aspiração humana. Contudo, enquanto
para a primeira, a realização se dá a partir de um mundo interno, oriundo de uma visão
fechada de ser humano, considerando-o como polo díspar da realidade; a noodinâmica
estabelece a satisfação na tensão entre o ser e o dever ser. Nesse viés, a “vontade de
sentido” é legitimada como motivação originária, pois é na insistência em ser para fora
que o ser humano encontra um mundo de significado e valores a realizar, sendo a
transcendência essencial na compreensão desse genuíno modo de ser.
Por fim, pode-se destacar a relação do empreendimento frankliano com a questão
da religiosidade que se dá pela via ética. A temática da transcendência põe em evidência
o modo “como” o ser humano é compreendido. Da importante contribuição de Heidegger
a esta pesquisa pôde se aferir que uma genuína compreensão do ser humano não o
identifica com uma natureza determinada, mas com a efetiva abertura às suas
possibilidades. Essa abertura dá-se, porque a pessoa espiritual é caracterizada pela
insistência em ser para fora e em continuar sendo o mesmo (ipseidade). Em Frankl, essa
perspectiva revelou uma estrita relação entre antropologia e ética, pois a Análise
Existencial não se limita a conceber o ser humano como ser-responsável, mas também a
conscientizá-lo desse fato. Nesse sentido, essa insistência em ser para fora apresenta, em
Frankl, uma tonalidade ética, estando relacionada à perspectiva do dever. Embora a
responsabilidade seja compreendida enquanto um conceito formal e não de conteúdo, o
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ato de ajuizar uma ação só é possível a partir de um valor absoluto. É nesse sentido que o
“perante quê” se é responsável demonstra sua irredutibilidade ética, apontando para um
“perante quem”. É nesses termos que a Análise Existencial desvela que a consciência não
é necessariamente a última instância diante da qual o ser humano se depara, mas a
penúltima, garantindo uma abertura à perspectiva da religiosidade.
No percurso que esta pesquisa se propôs a trilhar, muitas foram as veredas que
surgiram e, ainda que tentadoras, não foram percorridas para se ater à delimitação
estabelecida pela problemática central. No entanto, tendo em vista futuras pesquisas,
esses temas podem ser retomados. É o caso de temas como a repressão religiosa e a sua
manifestação nos sonhos.
“Filosofia e Psicoterapia no projeto da Análise Existencial de Viktor Frankl” –
o que isso quer dizer? Em síntese, buscou-se realizar uma análise da relação entre filosofia
e psicoterapia como constituintes fundamentais no empreendimento da Existenzanalyse.
A ideia de projeto a que se refere não consiste apenas no ato de planejar uma determinada
estratégia. Antes, o projeto que se intentou evidenciar remete ao projetar-se, ao extrapolar
possibilidades e mudar paradigmas. É isso que se expressa pelo conceito de
transcendência desvelado pela Análise Existencial frankliana, permitindo problematizar
uma imagem de ser humano enquanto pessoa espiritual, distinta do homo natura.
151
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