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(2º) O Que Faz Sintoma para Um Corpo (Eric Laurent)

O documento explora a relação entre corpo e sintoma na psicanálise, destacando a transição do conceito de sintoma freudiano para o 'sinthoma' lacaniano, que é visto como uma estrutura de gozo sem sentido. A análise do sintoma histérico, especialmente em mulheres, revela a complexidade das identificações e a importância do amor do pai na formação dos sintomas. Lacan propõe que o sintoma deve ser compreendido como uma escrita no corpo, que não se comunica através da fala, mas sim por meio de uma estrutura de gozo.
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(2º) O Que Faz Sintoma para Um Corpo (Eric Laurent)

O documento explora a relação entre corpo e sintoma na psicanálise, destacando a transição do conceito de sintoma freudiano para o 'sinthoma' lacaniano, que é visto como uma estrutura de gozo sem sentido. A análise do sintoma histérico, especialmente em mulheres, revela a complexidade das identificações e a importância do amor do pai na formação dos sintomas. Lacan propõe que o sintoma deve ser compreendido como uma escrita no corpo, que não se comunica através da fala, mas sim por meio de uma estrutura de gozo.
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O Q U E FAZ S I N T O M A P A R A U M C O R P O

o c o r p o , c o m o l u g a r d o Outro e superfície de inscrição, é igualmente


lugar vazio, seja ele vivo ou morto. Quando morto, vimos1 que o conjunto de
ossadas, vazio de gozo, figura “o elemento irredutível pelo qual se ordenam [...}
os instrumentos de gozo” (Lacan, 1970a: 410) presentes nas sepulturas antigas.
Quando o corpo é vivo, os instrumentos de gozo se dispõem segundo a lógica
da fantasia, que pode ser concebida pelos subelementos, próprios a enumerar
o gozo. Consideremos, agora, outra vertente e abordemos, na nova perspectiva
conferida por Lacan ao inconsciente, as relações do corpo e do sintoma.
A nova escrita do sintoma na lógica de sacos e de cordas* implica, com
efeito, um deslocamento de sua concepção. O sintoma, que na concepção
freudiana é fundamentalmente histérico e ligado ao sentido, transforma-se,
então, em sinthoma, fora de sentido. Este capítulo permitirá esclarecer a con­
sistência do sinthoma em relação às três dimensões da experiência: o simbó­
lico, o imaginário e o real.

SIN TO M A H ISTÉRICO , SIN TO M A DE M ULHER

O sintoma lido por Freud faz falar o corpo, mas esse sintoma fala, então, a
língua do pai: é sintoma do pai, pelo qual a histérica se interessa por amor.
0 eixo em tom o do qual gira a organização do sintoma histérico é o amor do
pai e a identificação. É o que lemos, no setímo capítulo de Massenpychologie
\“Psicologia das massas e análise do eu” j, intitulado “A identificação”, no qual

1 Ver, neste livro, p. 38-9.

2 Ver p. 20—i e 105-10.

43
Freud apresenta as três diferentes identificações sistematizadas por ele ao
longo de sua obra.

Identificações freudianas

A primeira identificação é esta:

A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de


uma ligação afetiva a uma outra pessoa. Ela desempenha um determinado
papel na pré-história do complexo de Édipo. O garoto revela um interesse
especial por seu pai, gostaria de crescer e ser como ele, tomar o lugar dele em
todas as situações. Digamos tranquilamente: ele toma o pai como seu ideal
(Freud, 1921:42).

Em seguida, Freud destaca “a identificação numa formação neurótica de


sintomas”, considerando que:

a garota pequena [...] desenvolva 0 mesmo sintoma de sofrimento que sua


mãe, a mesma tosse atormentadora, por exemplo. Isso pode acontecer por
caminhos diversos. Ou a identificação é a mesma do complexo de Édipo,
que significa um desejo hostil de tomar o lugar da mãe, e o sintoma expressa
o amor objetai ao pai; ela realiza a substituição da mãe sob a influência da
consciência de culpa: “Você quis ser a mãe, e agora o é ao menos no so­
frimento”. Este então é o mecanismo completo da formação neurótica de
sintomas. Ou, por outro lado, 0 sintoma é o mesmo da pessoa amada (como
Dora que imita a tosse do pai); então [...] a identificação tomou o lugar da
escolha de objeto, e a escolha de objeto regrediu à identificação. [... JNos dois
casos, a identificação [...] toma um único traço da pessoa-objeto (: 44-5).

O emprego de “um único traço”- amplificado por Lacan sob a forma de


traço unário - é isolado desde o caso Dora, escrito em 1901. Freud descreve o
sintoma de Dora como identificação com o sintoma do pai:

Esta [tosse foi] uma imitação de seu pai (cujos pulmões estavam afetados) e
poderia agir como expressão de sua estima e zelo por ele. [...] Evidenciava algo
[como]: “Sou filha de meu pai. Tenho um catarro, exatamente como ele. Ele
me fez ficar doente, como fez também a mamãe. É por causa dele que tenho
essas paixões selvagens, que são punidas com a doença (Freud, 1905a: 60-1).

44 O A V ESSO DA B IO P O L Í T I C A
Lacan inverte a perspectiva que consiste em tomar o fio da história da
psicanálise para definir o sintoma primeiro, fundamental. Será mesmo por­
que Freud inventou a experiência analítica a partir da análise do sintoma
histérico que este seria o sintoma por excelência? Certamente não! Freud
pôde começar a experiência por essa via, mas é preciso em seguida dar um
passo a mais para generalizar e passar do sintoma que fala ao sintoma que se
escreve em silêncio, que não é mais comunicação, porém escrita. Essa passagem
é necessária em nome da experiência do próprio tratamento analítico. No fim
de longas análises, constata-se efetivamente que o sintoma não se desvanece
depois de ter sido interpretado por múltiplos efeitos de sentido sucessivos.
Há restos sintomáticos em que se desvela a forma lógica fundamental do sinto­
ma como o que se escreve sobre o corpo e não fala, não passa pela experiência
de fala, pois deixa de interessar-se pelo sentido. Essa estrutura desvelada no fim
da experiência deve ser considerada primeira. É ela que Lacan encontra, a céu
aberto, em Joyce - que está diretamente conectada com seu gozo, tal como
veremos adiante.
Freud encontrou o sintoma histérico que lhe falou em função do interesse
que os sujeitos histéricos mulheres lhe despertaram. Ele soube transformá-lo
num desvio suplementar, graças ao artefato do discurso analítico e a seu ope­
rador, o sujeito suposto saber, que permite produzir os efeitos de sentido
tratados pela fala sob a transferência. Como a experiência analítica é também
experiência de fala, poder-se-ia dizer que ela, de início, situa o sujeito em po­
sição de fazer falar seu sintoma. Uma vez dado o passo lacaniano, o sintoma
se limita a uma pura escrita sobre o corpo, ele não fala. Abre-se na análise,
desde então, uma experiência que não passa pela fala.
O “sintoma histérico de mulher” se distingue, portanto, de uma mulher
“sintoma do corpo de um homem”. Três modos de gozo podem ser resgatados
aqui: aquele do sintoma histérico como sintoma de um outro, aquele de uma
mulher como sintoma de um outro corpo e aquele do sinthoma do falasser.

DO SIN TO M A H ISTÉRICO AO SIN TH O M A

Jacques-Alain Miller comenta assim o deslocamento do sintoma freudiano


rumo à nova perspectiva do sintoma, aquela do sinthoma:

O sintoma como formação do inconsciente estruturado como uma lingua­


gem é uma metáfora, um efeito de sentido induzido pela substituição de um
significante por outro. Em contrapartida, o sinthoma de um falasser é um

46 O A V ESSO DA B I O P O L Í T I C A
Essa identificação com o sintoma supõe um sintoma prévio no Outro,
um sintoma com o qual, em seguida, o sujeito se identifica e que quer dizer
alguma coisa, que fala. Eu, o sintoma, falo, e digo: “Sou a filha de papai. Tenho
um catarro como ele”. Freud desenvolve a mensagem do sintoma e, ao mes­
mo tempo, a face de fixação de gozo tomado do pai:

Fundamentalmente, devemos supor a presença de uma irritação real e or­


gânica da garganta provocando a tosse {...}, susceptível de fixação, pois dizia
respeito a uma parte do corpo que, em Dora, conservara acentuadamente
sua importância como zona erógena. Essa irritação, portanto, ajustava-se
para expressar os estados de excitação da libido. Tomou-se fixada devido
ao que sem dúvida foi seu primeiro revestimento psíquico: sua imitação
solidária do pai e [as] autorrecriminações subsequentes por causa de seu
“catarro” (: 61).

Após essa segunda identificação, com um sintoma como traço retirado da


pessoa amada ou detestada, Freud passa à terceira das identificações:

[um] caso de formação de sintomas [...] em que a identificação desconsidera


totalmente a relação objetai com a pessoa copiada. Se, por exemplo, uma
das garotas de um pensionato recebe carta de alguém que ama secretamente,
uma carta que lhe desperta ciúme, e à qual reage com um ataque histérico,
algumas de suas amigas que souberem do que se trata pegarão esse ataque
[...] por via da infecção psíquica (Freud, 1921:45).

Da fala ao silêncio da escrita

O sintoma histérico fala, pois passa pelo Outro, pela fala, embora seja
fundado sobre a escrita de um traço (trait). Ele supõe no horizonte, segundo
Freud, a identificação e, no fundamento desta, um amor primeiro, o amor
do pai, como laço ao Outro. Ele também se articula ao Dois. Por isso, Lacan
sublinha que a mulher histérica se mostrou necessária para que a psicanálise
fosse tomada como talking cure, “cura pela fala”: “foi a partir das histéricas -
histéricos sintomas de mulheres [.„]» foi a partir dos histéricos sintomas que
a análise pôde fincar pé na experiência” (Lacan, 1976a: 569). Mas aquém do
sintoma histérico, como falam os corpos? Falar lalíngua do corpo é procurar
saber, com Lacan, como o sintoma do Um-sozinho ( Un-tout-seul), que não fala,
pôde passar ao estatuto de sintoma articulado ao Outro, articulado ao Dois.

O Q U E FA Z S IN T O M A PA R A U M C O R P O 45
acontecimento de corpo, uma emergência de gozo. (...) Há histeria quando
há sintoma de sintoma, quando você faz sintoma do sintoma de um outro,
ou seja, sintoma no segundo grau (Miller, 2014: 26).

Essa nova definição da histeria se apoia no texto “ Joyce, o Sintoma” (1976a:


560-9), que data de 19763 e foi reescrito por Lacan com base na conferência /
que pronunciou no dia 16 de junho de 1975 no grande anfiteatro da Sorbonne,
na abertura do v Simposium International James Joyce, em cuja organização
Jacques Aubert teve papel preponderante.
Embora seja na reescrita dessa conferência que figura a passagem em que
Lacan diferencia o sintoma e o sintoma histérico, ele começa a formular sua
nova concepção de sintoma desde a conferência de junho de 1975 que conclui
“Le Séminaire, Livre xxn: r . s . i . ” - antes do início de O Seminário, livro 23.4
No prefácio do livro Joyce com Lacan, Jacques-Alain Miller evidencia a nova
concepção do sintoma e o ponto de báscula introduzido por ela no ensino de
Lacan: “a definição do sintoma pela qual Lacan encetava o último momento
de seu ensino é: ‘maneira pela qual cada um goza do inconsciente, no que
o inconsciente o determina” (Miller, 1987:11).5 O sintoma, assim, é tomado
em sua consistência de gozo. Ele é letra de gozo. Torna-se impossível “se dar
conta [dele] sem implicar a letra na estrutura do sintoma estruturado como
linguagem”, tal como Jacques-Alain Miller indica:

3 D ois textos de Lacan têm esse m esm o título e devem ser, com efeito, diferenciados por suas
datas: “ Joyce, o sintom a” (1975) é o texto pronunciado p o r ele n o dia 16 de ju n h o de 1975 e
estabelecido p or Jacques-Alain M iller com base nas notas de Éric Laurent; “ Joyce, o Sintom a”
(1976) é o texto que ele reescreveu para a publicação no ano seguinte, sim ultaneam ente a
O Seminário, livro 23:0 sinthoma. A m b os foram publicados em 1987 n o livro Joyce com Lacan,
organizado p o r Jacques Aubert, com prefacio de Jacques-Alain M iller (Paris: Navarin, 1987,
p. 21-29 e 31-36, respectivamente). O prim eiro foi novam ente publicado em 2005, com o tí­
tulo “ Joyce, o sintoma. Conferência dada n o dia 16 de ju n h o de 1975, n o grande anfiteatro da
Sorbonne, na abertura do v Sim pósio International James Joyce”, na edição de O Seminário,
livro 23: o sinthoma (Paris: Seuil, 2007, p . 157-65). O segundo, publicado a segunda vez em
1979, em Joyce & Paris, Actes du v* Symposium International James Joyce (Presses Universi-
taires de Lille/Éditions du c n r s ), foi novam ente publicado em 2001, na edição francesa de
Outros escritos, com o título “ Joyce, o Sintoma” (Paris: Seuil, 2001, p. 560-9).

4 “Esse S em inário n s .i., realizado e m 1974-1975, devia ter term inado n a con ferên cia ‘Joyce,
o sintom a” (M iller, 1987:11). la c a n , p ortanto, to m o u -a co m o p o n to de partida para sua
leitura de Joyce realizada em seu Sem inário seguinte, o vigésim o terceiro.

5 A citação de Lacan foi extraída da aula de 18 de fevereiro de 1975 de “ Le Sém inaire, Livre
x x n : R.s.1.” (1974-5), ainda inédito.

O Q U E FA Z S IN T O M A PA R A U M C O R P O 47
O àk %,-ÇOS\aSS», SKKV
sagem; mas sua consistência não é apenas semântica. [...] É por isso que
o sintoma, se suportado por uma estrutura idêntica àquela da linguagem, não é
articulado num processo de fala, mas “inscrito em um processo de escrita” (: u).6

Há, portanto, novidade e ruptura no ensino de Lacan, mas também de­


senvolvimento do que figurava como que posto em reserva, desde quando
Lacan isolara a dimensão da letra. Esta suportava, de início, a materialidade
da relação com a estrutura que determina o inconsciente. Lacan, com efeito,
se antecipou em relação ao seu desenvolvimento desde 1957, ao falar da ins­
crição do sintoma num processo de escrita:

Assim, se o sintoma pode ser lido, é por já estar inscrito, ele mesmo, num
processo de escrita. Como formação particular do inconsciente, ele não é
uma significação, mas a relação desta com uma estrutura significante que o
determina (Lacan, 1957a: 444-5).

A transposição operada por Lacan entre 1957 e 1974-5 consiste em situar o


sintoma na relação entre gozo e sentido. Ela é apresentada por Jacques-Alain
Miller nos seguintes termos:

Como o gozo e o sentido se conjugam na escrita do sintoma? Essa questão


atravessa seu ensino de uma ponta a outra [...] e é o que o conduz a “Joyce-
-o-Sintoma”, ou seja, a interrogar a psicanálise no campo da linguagem a
partir da escrita. Por isso, o próprio esquema da comunicação perde sua
prevalência; se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ele não é,
de início, o discurso do Outro: só vai se torná-lo pelo artificio da experiência
analítica. Aí onde estava o gozo sempre autístico, a análise faz advir os efei­
tos de significado [...]; mas, em si, o sintoma não diz nada a ninguém: ele é
ciffação e é gozo, é gozo puro de uma escrita (Miller, 1987:11).

A primeira consequência surpreendente que o sintoma-escrita comporta


em relação ao sintoma-mensagem é o seu silêncio. Ele não diz mais nada
aos outros. Em sua conferência de 1975, Lacan enfatiza o caráter “autista” do
sintoma, bem como o desinteresse que cada um tem pelo sintoma do outro:

6 A citação de Lacan, incluída nessa passagem d o prefácio de M iller, p od e ser encontrada


e m “A psicanálise e seu ensin o” (Lacan, 1957a: 444-5).

48 O A V ESSO DA B I O P O L Í T I C A
Se alguma coisa dá conta do fato notado por Clive Hart [importante joyceano ]
de que, no final, acabamos cansados de seguir os passos de Joyce [aque­
les de Joyce em Finnegans Wake], é o que prova que os sintomas de vocês
são a única coisa que, tanto para vocês como para qualquer um, interessa,
O sintoma em Joyce é um sintoma que não lhes concerne em nada, é o sinto­
ma na medida em que não há chance alguma de ele enganchar alguma coisa
do inconsciente de vocês (Lacan, 1975c: 165).

É um sintoma que Lacan apresenta como não enganchado à estrutura,


nem ao inconsciente mensagem. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, se
A Mulher não existe, O sintoma, em contrapartida, pode existir, ao preço de
uma consistência de Um sozinho (Un toutseul), separado.

O SIN TO M A COM O ACO N TECIM EN TO DE CORPO

Lacan explora o Um do sintoma na oposição entre sintoma e linguagem, de


um lado, e entre sintoma e lalíngua, de outro:

Eu disse que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ê estranho


que se possa também chamar de desabonado do inconsciente alguém que
joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que se sirva de uma língua
entre outras, e que é não a sua [...], mas aquela dos invasores, dos opressores,
{do senhor inglês da Irlanda] (: 166).

Lacan utiliza “a sua” num sentido que não é a língua materna, aquela de
papai e mamãe. Supõe-se que a sua fosse o gaélico, do qual Joyce conhecia
apenas algumas palavras - ele fez seus estudos em inglês e, em casa, falava-
-se inglês, mas há rumores de que os membros da família falavam um pouco
mais de gaélico. Lacan ainda acrescenta o seguinte: “É isso que se constata no
que faz de Joyce o sintoma, o sintoma puro do que concerne à relação com a
linguagem, na medida em que ela é reduzida ao sintoma” (: 166).
Se Joyce é desabonado do inconsciente, ele é diretamente conectado com
seu gozo, considerando que curto-circuita lalíngua. Seu sintoma é conectado
à linguagem, mas desconectado de lalíngua e ligado (branché) em seu gozo:
Joyce tem “uma relação com joy, o gozo, tal como ele é escrito na lalíngua in­
glesa - por ser essa gozação, por ser esse gozo a única coisa que, do seu texto,
podemos pegar. Aí está o sintoma [...], na medida em que nada o vincula ao
que constitui a própria lalíngua” (: 167). Nessa ligação (branchement) no gozo,

O Q U E FA Z S IN T O M A PA R A U M C O R P O 49
ele jubila por todos os cantos. O desligamento da lalíngua inconsciente faz
com que não se pegue a particularidade de sua relação com o inconsciente.
Em contrapartida, ele permanece conectado à linguagem e vai criar unica­
mente consigo a literatura da Irlanda, um texto que seja, para a literatura
moderna, digno do que Ibsen fez para a Noruega. Sua vontade de “forjar na
forja de [sua] alma a consciência incriada da [sua] raça” (Joyce, 1916:362) será
levada a seu termo. Ele faz existir a Irlanda como umbigo e vai revirar (boule-
verser) a literatura irlandesa e, além dela, a literatura mundial.
O desabonamento do inconsciente é igualmente desconexão com lalín­
gua. Em compensação, a conexão de Joyce, 0 sintoma se faz com a linguagem.
Lacan pôde dizer também que Lacan eleva lalíngua à potência da lingua­
gem: “o sintoma é puramente o que lalíngua condiciona, mas de certa ma­
neira Joyce o eleva à potência da linguagem, sem torná-lo com isso analisável”
(Lacan, 1975c: 167).
Lacan acabou se decepcionando com suas primeiras formulações sobre
Joyce, o Sintoma. É que colocava o nível bem alto. Ao reescrever sua confe­
rência, retoma, pois, esse ponto e precisa o caráter de gozo do sintoma fe­
chado sobre ele mesmo, “autista”, ligando-se ao corpo como acontecimento:
“Deixemos o sintoma no que eje é: um acontecimento de corpo, ligado a que:
se o tem, se tem ares de tê-lo, se o areja, desde que se o tem. Isso pode até
ser cantado, e Joyce não se priva de fazê-lo” (Lacan, 1976a: 569). Em événe-
ment (“acontecimento”), ressoam, em francês, o verbo latino e\’enire, vir de
fora, chegar, e o substantivo eventus, “procedente de” (issue) (Greisch, 2015).
O acontecimento é "tudo 0 que chega”, com uma dimensão de surpresa ou de
contingência, antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro. Apre­
sentar assim o sintoma é acentuar sua dimensão fora de sentido. Isso supõe
separar o corpo como superfície de inscrição do gozo e o corpo-Um do indi­
víduo, vindo daí a oposição entre sintoma e sintoma histérico:

Assim, indivíduos que Aristóteles toma como corpos podem não ser nada
além de sintomas, eles próprios, em relação a outros corpos. Uma mulher,
por exemplo, é sintoma de um outro corpo. Quando isso não acontece, ela
resta {reste) com o chamado sintoma histérico, com o que queremos di­
zer último. Ou seja, paradoxalmente, só lhe interessa um outro sintoma
(Lacan, 1976a: 569).

O que era sintoma primeiro em Freud, primeiro porque articulado ao


amor do pai, fundamento da primeira identificação, torna-se então último,
resto. Ele não se isola como enigma do gozo afetando um corpo, está interes­

50 O A V ES SO DA B I O P O L Í T I C A
sado apenas no sentido do sintoma e não em sua letra de gozo. Para reforçar
a surpresa e a irrupção da letra de gozo, Jacques-Alain Miller fala da “emer­
gência” do gozo traumatizando o corpo que o experimenta.

O CORPO QUE UOM TEM 7

Contrariamente ao sintoma, que, na condição de acontecimento, chega de


fora, o corpo parece impor-se como o que se tem, quanto ao sujeito, numa re­
lação de imediaticidade, A relação ao corpo do sujeito falante é marcada por
Freud com um traço passional destacado como “narcisismo”. Que seja primá­
rio ou secundário, o narcisismo impregna a relação à imagem do corpo com
uma aura irredutível. Quaisquer que sejam as variações das relações do Eu
com esse corpo-imagem, a evidência narcísica resta como um fundamento.
Lacan, do mesmo modo, não admite o narcisismo “primário”, pois ele supõe
uma operação. Esta foi de imediato articulada pela primeira estrutura lógica
que ele localizou para explorar o imaginário do corpo, apoiada nas proposi­
ções de psicólogos alemães e franceses sobre o imaginário no final dos anos
1930. Trata-se do “estádio do espelho”. Por ocasião dessa operação, um agente,
o parente que se encontra com a criança diante do espelho, deve autorizá-la
a se identificar com sua imagem apresentada a ela numa dimensão de alteri-
dade - a intervenção, com a exaltação que a acompanha, torna-se repleta dos
transtornos de humor que, assim, marcam o corpo: em júbilo ou mortificado
pelo impacto do reconhecimento ou da rejeição parental.
O estádio do espelho não deixou de ser retomado, rearranjado por Lacan
ao longo das construções e dos grafos que elaborou. Assim, em “Radiofonia”,
ele propõe um dispositivo em que o corpo vem para o sujeito sem a ação
de qualquer agente. Não há parente para vir garantir a operação pela qual
a carne, marcada (empreinte) pelo signo, desnuda, de uma parte, 0 corpo
como morto ou conjunto vazio e, de outra, o incorporai, o fora-de-corpo do
objeto a como objeto ou subconjunto de gozo. Esse órgão separado não está
de acordo com a imagem, ele é antes o que escapa ao especular.

7 n . do. t. N o original: lom , que, em francês, evoca o term o Vhomme (“o h o m em ” ). A ssim ,
sigo aqui a opção adotada em Outros escritos, p orqu e u om evoca fôn ica e coloquialm ente,
n o p ortu guês falado no Brasil, “ u o m i”. H om ofon icam en te, em francês, le corps que l o m a
(aqui trad uzid a co m o “o corp o que L O M tem ” ) tam b ém pod e ser escutada literalm ente
com o “ o corp o que se tem ” (le corps que Fon a ).

O Q U E FA Z S IN T O M A P A R A U M C O R P O 51
Enfim, em “Joyce, o Sintoma” (1976), temos de nos haver com outra con­
juntura, em que o corpo não é mais corpse, conjunto vazio, e se encontra
diretamente ligado no gozo. Pode-se dizer que o corpo é tomado, deferido
(se quiserem dizê-lo assim), pelas três dimensões, r , s e 1, como máquina de
gozo mais além do imaginário do que tem uma imagem e do que não tem,
marcado de início pela dissimetria da sexuação. Há o corpo lado homem e
aquele lado mulher; dissimetria, portanto, de suas respectivas relações com o
sintoma-escrita. O homem, quanto a ele, não pode ser o sintoma de um ou­
tro corpo, pois ele tem o seu corpo. Do lado homem - nos esquemas da sexu­
ação e, portanto, de modo algum de um ponto de vista do corpo biológico
o sintoma advém como acontecimento de seu corpo.
Desde a primeira frase de “Joyce, o Sintoma” (1976), estamos mergulha­
dos - como, aliás, em Joyce - numa certa obscenidade do sexo. O sintoma,
nesse sentido, advém ao homem como encontro com o gozo: “Joyce, o Sin­
toma, a ser escutado como Jesus, a Rola [Jésus la Caille]: é seu nome” (Lacan.
1976a: 565) - nome de gozo, poderíamos acrescentar. Por que Jesus la Caille?
Essa não é uma referência frequente em Lacan. Trata-se do título do primeiro
romance de Francis Carco - membro da mesma família de Carcopino, gran­
de latinista francês publicado em 1914. Talvez o que chamou a atenção de
Lacan tenha sido o ano de 1914, pois foi quando Joyce começou a escrever
Ulisses e publicou Dublinenses. De todo modo, Jésus-la-Caille nos conta his­
tórias muito pândegas de um proxeneta homossexual, na língua pesada e
pitoresca de Carco. Lacan condui esse parágrafo marcando o homem com
uma letra suplementar, o Z , que é a inicial de uma das gírias que (em francês
designam o falo:8“É que somos zomens”. No parágrafo seguinte, ele continua
“ u o m [ l o m ] : em francês, isso diz exatamente 0 que quer dizer. Basta escrevê-lo
foneticamente, o que lhe dá uma faunética (com faun...) à sua altura: o eic-
bsceno [eaubscène]. Escrevam isso com elob... para lembrar que o belo não e
outra coisa” (: 565). Portanto, juntemos os pontos do grafo e teremos: u o m =
z e l o b . A palavra zeb (“zezinho” ) é atestada em francês desde 1880 (Rev 1
Cellard, 1980: “zob”}; é importada do árabe, em que tem o mesmo sentic
com sua companheira de injúria, zebbi, a que se acrescenta um possessiv:
“o meu”. Notemos, brevemente, que a introdução desse termo na língua frar
cesa é contemporânea do nascimento de Joyce: 1882 (eles, portanto, passarar
a existir juntos, se posso dizer assim).

8 n . do x Trata-se da palavra zob, que, a fim de m anter a m esm a letra inicial, pode-se fc
corresponder, no Brasil, ao term o “ zezinho”, com o o qual se designa coloquialm ente o p i a i

52 O A V ESSO DA B IO P O L ÍT
Não nos esqueçamos de que “Joyce, o sintoma” (1975) também começa­
m-
va por uma evocação nua e crua do falo, por ocasião de um erro no título
m
impresso no programa do Simpósio de que Lacan participava, e que o tinha
Üo
deixado realmente fulo da vida:
fie
« 31,
Eles sequer sabem o que é Jacques Lacan, Jules Lacue também poderia lhes
se
servir - aliás, essa é a pronúncia inglesa do que chamamos, na nossa língua, la
mo
queue [o pau]. Por que eles imprimiriam Joyce, 0 sintoma? Jacques Aubert lhes
Én-
comunicou assim, e então ele meteram Jacques, 0 símbolo (Lacan, 1975c: 161).
sai-

O termo “faunesco” está ligado não ao falo, mas ao desabonamento do


inconsciente próprio a Joyce: “Há não sei que de ambíguo nesse uso fonético,
sa­
que eu escreveria igualmente como f.a.u.n.0.. O faunesco da coisa repousa
rna,
por inteiro na letra, a saber, sobre alguma coisa que não é essencial à língua,
pB-
que é alguma coisa trançada pelos acidentes da história” (: 166). A ortografia,
on,
com efeito, não é essencial à língua. As reformas de ortografia, com exceção
m
da França, onde tudo é complicado, se fazem a torto e a direito em vários
mo
países, sem que ninguém tombe no chão. Uma reforma em curso na Finlân­
pÉIl”
dia visa não apenas à ortografia, mas à letra: as letras cursivas {en attaché)
êée
não serão mais ensinadas, só o serão as letras de forma (détachées). Lacan
!0àPfer
sublinha que a ortografia não é essencial à língua, mas a letra o é. Assim, ele a
■«a his-
destaca (“ détache”), para fazer valer a oposição entre a escrita como ortogra­
s«ia e
fia, conjunto de regras comuns aplicadas à substância fonética, e a letra, que,
m :om
por sua vez, resiste às normas e as subverte: “Que alguém faça disso um uso
sscês)
prodigioso interroga por si só o que diz respeito à linguagem. Eu disse que
sesua:
o inconsciente é estruturado como uma linguagem. É estranho que se possa
ppê-lo
também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente
È : elo-
apenas com a linguagem” (: 166). Lacan justifica sua escrita f.a.u.n.o como
Íéh o é
um meio de acentuar a presença da letra, cada uma delas separada das de­
M=
mais. O faunesco se distingue do fálico, ele está aí para fazer com que se passe
. fey &
do fonético à letra, isto é, permitir que o gozo se encarne na letra.
'tido,
O desenvolvimento sobre a escrita, que faz valer a equivalência segundo
sesivo:
a qual o homem tem um corpo como ele tem um órgão, é próprio da segun­
p t tran­
da versão de “Joyce, o Sintoma” (1976). O belo é obsceno, está ligado ao que
saram
Lacan também chama de “o inchado”, termo que mistura o narcisismo do
envoltório que infla, que levanta o pescoço, e a ereção. O homem se eleva
{se hisse). Ainda aí, Lacan acentua a dimensão do sintoma como escrita,
precisando como a relação da “elevação” {hisse) e do belo deve escrever-se:
jfe«e fazer “Helessecrêbelo {Hissecroibeau), a ser escrito como hescabelo {hessecabeau),
w. Tènis.

O Q U E FA Z S IN T O M A P A R A U M C O R P O 53
. T IC A
sem o qual nãohaum que seja dingno (ding)l dunome diomem” (Lacan,
1976a: 565). O “hescabelo” condensa ele mesmo, em sua escrita, o Es (Isso)
freudiano com o qual ele homofaunisa o h de “homem” e o esse, ou seja, “ser”
em latim. O ser homem se escreve helessecrêbelo. Essa frase, que se lê ele se
crê belo, a se escrever como 0 escabelo, sem 0 qual não tem quem seja digno do
nome de homem, realiza o enodamento das três dimensões, r, s e 1: o imagi­
nário com “ele se crê belo”, o real com “das Ding” (Lacan, 1959-60:55-86) e o
simbólico com o sistema dos nomes, o “nome de homem”
Lacan insiste em seguida no real: “ u o m se lumaniza (se lomellise) cada um
mais que o Oütro” (Lacãn, 1976a: 565). O neologismo se lomelliser (“se luma­
niza” ) certamente ecoa 0 mito lacaniano da lamela (lamelle):

uma forma infinitamente mais primária da vida [...]. Ao quebrar o ovo, faz-se
o Homem, mas faz-se também a Homelete. Suponhamo-la como grande
panqueca a se deslocar qual a ameba, ultra-achatada para passar sob as por­
tas, onisciente por ser conduzida pelo puro instinto de vida, imortal por ser
cissípara. Eis aí algo que não seria bom sentir escorrer sobre o rosto, sem
ruído, durante o sonho, para lhe apor um lacre (Lacan, 1964b: 845).

Filmes populares, como Alien, muito contribuíram para imaginarizar


essa lamela, que pode deslizar por todo lugar, inclusive recobrir-nos de cola,
fechando todos os orifícios, ser aí toda uma vida eterna, embora marcada
pela morte. Com efeito, “o que representa a lamela” é “a relação do sujeito vivo
com aquilo que ele perde por ter de passar, para a sua reprodução, pelo eido
sexual”, sendo assim como Lacan explica “a afinidade essencial de toda pulsão
com a zona da morte” (Lacan, 1964a: 189). Ainda nos termos de Lacan:

Pois é possível supor que, com a ausência do aparelho sensorial na Homelete


a lhe deixar o puro real para se guiar, ela levaria uma vantagem sobre nós,
homens, que sempre temos que nos prover de um homúnculo em nossa
cabeça para fazer desse mesmo real uma realidade (Lacan, 1964b: 846).

Esse mito permite a Lacan fazer perceber o que seria um órgão libidinal
que se guiaria pelo real, que não teria necessidade nem do sujeito aristoté-
lico da percepção, nem de corpo, nem de homúnculos multiplicados pelos
mitos das neurociências como módulos que tomam a forma de zonas ce­
rebrais - cada uma percebendo e tratando a informação para nos ligar ao
real e traduzi-lo como realidade. As mais belas imagens provenientes de uma
ressonância magnética, formadas por máquinas de ponta, munidas dos mais

O A V ESSO DA B I O P O L Í T I C A
54
sofisticados algoritmos, só podem oferecer o que têm de hipóteses escondi­
das, dando consistência à forma homuncular como aparelho tradutor.
Lacan prossegue:

A não ser por seu nome, que trocaremos pelo nome mais decente de lamela
(do qual a palavra omelete [omelette], aliás, não passa de uma metástase),
essa imagem e esse mito parecem-nos apropriados tanto para representar
quanto para instaurar aquilo a que chamamos libido. A imagem que nos
apresenta a libido tal como ela é, ou seja, um órgão, o que faz com que seus
costumes a aparentem muito mais que um campo de forças. Digamos que é
como superfície que ela ordena esse campo de forças (: 846).

Não é, portanto, a libido que obedece ao princípio de energia caro a Freud,


uma vez que Lacan a transforma num órgão munido de uma topologia que
se junta ao copo. A libido assim concebida não se apoia em nenhuma for­
ma, nenhum imaginário, nenhum aparelho sensorial. Ela é experimentada e
orientada pelo real, apresentado em “Posição do inconsciente” como “puro
campo de forças”.
O mito da lamela situa a libido como órgão paradoxal e gozo não ho­
mogêneo ao gozo fálico. Ao comentar esse mito e seu surgimento na obra de
Lacan, Jacques-Alain Miller pôde opô-lo ao lugar do falo - tal como esse lu­
gar é situado em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano”, em que Lacan escreve: “é isso que predestina o falo a dar corpo
ao gozo, na dialética do desejo” (Lacan, 1960:822). A esse propósito, Jacques-
-Alain Miller diz o seguinte: “Lacan encontra-se aí diante dessa borda em que
é mesmo preciso um corpo para o gozo, mas só lhe encontra um corpo de
significante dado pelo falo” (Miller, 2004: 83). A lamela é, ao contrário, uma
espécie de corpo de gozo que não é um significante. Retornando ao u o m , em
“Joyce, o Sintoma” (1976), ele é captado em sua relação com o falo não signi­
ficante, aí onde o gozo fálico vem se inscrever diretamente sobre o corpo, tal
como o que Lacan, em “Radiofonia”, chama de subconjuntos de gozo. O gozo
se falícíza, mas ele também se lumaniza (se lomellise) ou lameliza (lamellise):
u o m se lumaniza (se lomellise) cada um mais que o outro” (Lacan, 1976a: 565).
Esse parágrafo é finalizado com uma frase que vale a pena citar: “Mo­
lhem-se (mouille), dizem, é preciso fazê-lo: porque, sem se molhar (mouiller),
não há hescabelo” (: 565). Com o molhem-se (mouille), estamos mergulhados
nos bodyfluids (“ fluidos do corpo”), tal como num quadro de David Lynch.
Temos não somente os órgãos, mas os fluidos que entram e saem por todos os
poros. E isso é corporal! Nessa frase concentrada, Lacan faz uma montagem

O Q U E PA Z S IN T O M A PA R A U M C O R P O 55
muito sofisticada e opõe o que se diz e o que é preciso fazer. “Molhem-se”
(Mouille) é um imperativo, uma ordem, tal como “Goza!” (Jouis!). Ele é dito
como imperativo “a la canquer um”9 (Lacan, 1964: 189), ao modo de um
“dizem”. Daí, a dimensão que ele implica, a resposta à ordem que não é sim­
plesmente “G’ouço!” “Goza!” (fou is/), mas também que é preciso se molhar.
Trata-se não somente do corpo como superfície de inscrição, mas do corpo
como lugar de gozo. E esse gozo é pensado em sua articulação não mais com o
falo do lado inconsciente, e sim com o Isso (o Es freudiano). Não ao erguer-se
(Hisse), mas ao es (hesse).
Depois de ter situado o falo e os lumans (lomelles) em curto-circuito do
significante, Lacan pode retornar ao corpo lumanizado, que é do registro
do ter, de um ter primeiro, e não do ser: “ u o m , u o m de base, u o m kitemum
corpo e só-só Teium (nan-na Kum). Há que dizer assim: ele teihum (ahun)...,
e não: ele éum... (corp/aninhado) (cor/niché)” (Lacan, 1976a: 565).10 O porta­
dor da mandioca (cornichon) se encontra, antes de tudo, enganado (corniché),
corpo aninhado no centro de três dimensões que o atravessam. Ele não é o
“ u o m de base” apenas porque ele é o ponto de partida dessa nova localização
da relação entre o corpo e os gozos? Do mesmo modo, em “ u o m (escrito
como u .o .m .) ” (: 567), Lacan enfatiza a dimensão da letra, de maneira muito
joyceana, com a escrita de pontos de reticência, essa figura de estilo, o despa-
recimento da palavra, a elipse ou a aposiopese, tão cara a Joyce que faz dela a
marca de seu estilo. Ela tem certamente seu avesso com o monólogo de Molly
Bloom no episódio final de Ulisses, “Penélope” (Joyce, 1922a: 1131-204), que
não comporta mais um único ponto, ao contrário da epifania. A voz da mu­
lher não é mais velada pela doçura, ela tem toda a maldade da voz feminina
do Supereu.

9 n. d o t . E m francês, “ à la caritonnade” significa “para n in guém em especial”, o u seja, “para


qualquer u m ”. C o m o Éric Laurent, ao utilizar essa expressão, destaca as letras qu e for­
m a m o n om e de Lacan, propusem os a tradução: “ a la canquer u m ”.

10 n . d o t . Segun do a N ota d o Editor, “ (corp/an inhado)” é a trad ução de “ {cor/niché)” e


que, além de “ corp o aninhado, alojado, escondido, faz lem brar ainda cornichon, term o
com que, na linguagem coloquial, faz-se referência àquele que é tolo, fácil de enganar”.
A essa nota, p orém , é preciso acrescentar que cornichon pod e ser trad uzid o p o r “ pepino”
e que, na gíria francesa, esse term o designa o órgão sexual m asculino; assim , m an tend o a
referência a um vegetal, b em com o o con texto sexual e coloquial, cornichon equivaleria ao
que, no Brasil, é designado com o te rm o “ m an dioca”. Em francês, há tam b ém ressonância
entre cor/niché e com iche (cornija, o u seja, peça qu e arrem ata a parte superior de u m edi­
fício , de u m a parede o u m esm o de u m m ó vel; p o n to culm in ante; arrem ate).

56 O A V ESSO DA B I O P O L Í T I C A
I

*-se Sobre esse “teihum” (ahun), Lacan conclui: “É o ter, e não o ser, que o ca­
|ÉtO racteriza. Há uma terência (avoiement)u no ‘que que você tem?’ com que ele
sizn se interroga ficticiamente, por ter sempre a resposta. Tenho isso, é seu único
ÜHK1- ser” (Lacan, 1976a: 565). Essa passagem é esclarecida de modo particularmente
luminoso depois do curso de Jacques-Alain Miller sobre o ser e a existência.
O ter está antes do “que que você tem?” A via do ter, entre o ladrido (aboiement)

mo e a declaração (aveu), está do lado da existência e do dizer, do lado do ser que
ip-se passa pelo dito como “interrogação fictícia”, sempre precedida pela resposta da
existência do corpo. Apenas com a filosofia como discurso sobre o saber que
s io enfatiza o ser é que se produz a inversão que faz passar o ser antes do ter:

mun O que faz a z...ona chamada epistêmica, quando se põe a sacudir todo mun­
§ do, é fazer o ser vir antes do ter, quando o verdadeiro é que u o m tem, a prin­
• " 2- cípio. Por quê? Isso se sente e, uma vez sentido, demonstra-se (: 565).

»ao Essa frase retoma e condensa o efeito que Heidegger notou quando o
* io sujeito da ciência, o sujeito cartesiano, vem estabelecer seu império sobre o
iúco mundo. Ele submete o ser à sua “vistoria” (arraisonnement), à sua possibi­
feto lidade de se reduzir a uma representação, pois “o ser do ente é desde então
M- buscado e encontrado no ser-representado do ente” (Heidegger, 1938: 81).12
.üaa Então, esquece-se de que é preciso, de início, ter um corpo, condição para que
#ei3y o gozo - a presença no corpo dos instrumentos de gozo, do objeto a - venha
1 me se inscrever nele. O gozo se experimenta; “isso se sente”. E é após essa prova
issu- pelo gozo que se produzem os efeitos de saber próprios aos efeitos sígnifican-
Hfca tes sobre o corpo. O saber inconsciente abrirá a via para a demonstração do
que é preciso entender por efeitos de saber. Lacan inverte o sentido da certeza
proveniente do cogito cartesiano. Para Descartes, o que se sente é o pensa­
mento e, daí, por demonstração (ergo), a certeza do ser se dá. Para Lacan, o
"ra
que se experimenta é o gozo a partir do fato de que o corpo o tem. Desse
* t íor- corpo marcado por acontecimentos de gozo, por traumas de lalíngua, virão,
em seguida, efeitos inconscientes de sentido, assimilados por Lacan a efeitos
4f e e de saber. Trata-se de outro tipo de demonstração, um ergo pelo gozo.
prmo

-r.no”
u n . d o t. Avoiem ent n áo é u m a palavra d icion arizada em francês e, sem dú vid a, p o r ter
®áo a
ressonância com o verbo avoir (“ ter” ), foi bem trad uzid a p o r “terência”, que ta m p o u co
sra ao
existe em português, m as evoca o que d iz respeito ao ter, o que se tem . M as é im portante
• -cia
acrescentar que avoiement evoca tam bém aboiem ent (latido, ladrid o) e aveu (declaração).
m edi-
12 Ver, tam b ém , p. 88, adiante.

: ic a O Q U E FA Z S IN T O M A P A R A U M C O R P O 57
A M U L H E R SINTOMA

Há uma inversão das relações, uma anterioridade do ter sobre o ser, que re­
siste a uma dialética.

Dialética ser / ter

A dialética entre o ser e o ter, todavia, foi longamente considerada por


Lacan. Foi em torno dela que ele reorganizou logicamente a castração freu­
diana, o que ele chamava de “heteróclito complexo de castração” (Lacan, 1960:
821), valorizando a posição feminina como encarnando o falo. Uma mulher,
nessa perspectiva da dialética do ser e do ter, é o falo para um homem que o
porta no corpo. Uma das formulações exemplares a esse respeito é encontra­
da nesta passagem de “A significação do falo”:

Dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que
a mulher vai rejeitar uma parte essencial da feminilidade, nomeadamente
todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende
ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante
de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é en­
dereçada [...]. Se de fato sucede ao homem satisfazer sua demanda de amor
na relação com a mulher, na medida em que o significante do falo realmente
a constitui, como dando no amor aquilo que ela não tem, inversamente seu
próprio desejo do falo faz surgir seu significante, em sua divergência remanes­
cente, dirigido a “uma outra mulher”, que pode significar esse falo de diversas
maneiras, quer como virgem, quer como prostituta (Lacan, 1958c: 694-5).

Essa dialética do ser e do ter articula o falo significante e o corpo, lado


mulher, de maneira complexa. Uma mulher encarna o falo, mas, ao mesmo
tempo, quer ser desejada pelo “que ela não é”, porque ela tem uma relação
particular com o ter.
Em O Seminário, livro 6, contemporâneo de “A significação do falo”,
Lacan acrescenta que, no corpo do homem, uma retirada do falo significante
se dá realmente:

Ela sem dúvida conseguirá ter esse falo que é um significante - é o que digo,
um significante - tê-lo, real, no homem. É inclusive o que faz com que ela
esteja numa posição muito privilegiada, a mulher, e com que seus problemas

58 O A V ESSO DA B IO P O L Í T I C A
afetivos tenham uma relativa simplicidade em comparaçao com os do homem,
mas essa relativa simplicidade não deve nos cegar (Lacan, 1958-9:529).

Jacques-Alain Miller acentua que Lacan apresenta isso tudo de modo


avesso à tradição psicanalítica, para a qual as mulheres sabem facilmente o
que querem, seguem diretamente nessa direção, nada as detém (Miller, 2013;
2015c: 113-4). O que Lacan enuncia é, efetivamente, alguma coisa bem dife­
rente dessa tradição: “ainda assim, no começo, esse falo que ela pode ter, real,
introduziu-se na sua dialética, na sua evolução, como um significante. Por
esse motivo, num certo nível de sua experiência, ela o terá sempre a menos”
(Lacan, 1958-9: 529).
Nesse momento de seu ensino, e contrariamente à báscula13operada mais
tarde em “Joyce, o sintoma” (1976), o que Lacan sublinha é que uma mulher
não pode chegar a fazer corpo com o falo:

É certo que sempre reservo para a mulher a possibilidade-Hmite da união per­


feita com um ser, a saber, que, no coito, haja para ela fusão completa do ser ama­
do com seu órgão. Isso não exclui que, na experiência comum, as dificuldades
que se apresentam na ordem sexual girem [...] em tomo do ponto seguinte[:]
o momento ideal [...], poético, apocalíptico até, da união perfeita, não se situa
senão no limite, ao passo que, de fato, na prova comum da experiência, a mulher
sempre tem de lidar, mesmo quando alcança a realização de sua feminilidade
[digamos, ao orgasmo], com o objeto fálico como separado (: 529).

A outra vertente da dialética do ser e do ter fálico é o estatuto da mascara­


da, que faz com que uma mulher dê corpo a ser fetiche dos objetos do desejo,
ainda que ela os capte perfeitamente como semblantes:

Para além de todas as sublimações do amor, o desejo tem uma relação com
o ser - mesmo na forma mais limitada, mais medíocre, mais fetichista e, re­
sumindo, mais estúpida - mesmo na forma-limite em que, na fantasia, [sub-
sistej um signo, o signo do a minúsculo como resto significante das relações
com o Outro. No entanto, no fim das contas, será a esse a minúsculo que a
mulher atribuirá o valor de prova última de que é realmente a ela que o Ou­
tro se dirige. Um homem pode mesmo amá-la com toda ternura e devoção
que se possa imaginar e, ainda assim, se desejar outra mulher - e mesmo que

13 Ver su pra, neste capítulo, p . 48

O Q U E FA Z S IN T O M A P A R A UM C O R P O 59
ela saiba que o que o homem deseja nessa mulher é seu sapato, ou a barra
de seu vestido, ou sua maquiagem [portanto, os elementos fetiches propria­
mente ditos] -, é desse lado que se produz a homenagem ao ser (: 531-2).

Aparente paradoxo do ciúme feminino em sua relação à “homenagem ao


ser”, esse ciúme incide sobre o fetiche do qual uma mulher pode se fazer, em
corpo, o suporte, ainda que puro semblante, pois de sua posição ela capta a !H
relação ao ter em sua consistência lógica de objeto do desejo. Ela pode, desde
então, dar corpo ao fetiche que causa o desejo. Nesse sentido, uma mulher
encarna o fetiche de outro corpo.

Ruptura com a dialética ser / ter

A partir de O Seminário, livro 10: a angústia, conforme mostrou Jacques-


-Alain Miller, uma ruptura se produz com a dialética do ser e do ter. Esse
Seminário dá corpo de outro modo à questão fálica, uma vez que Lacan parte
então do falo órgão não somente no que é recuperado do corpo do homem,
mas no que é marcado pelo

- cp sob a forma da detumescência, isto é, de um certo “não poder” [...]. É o


macho que tem que se haver com a feita [...] no nível da copulação, [...] pelo
desaparecimento do órgão instrumento. [É] no sujeito macho que a relação
com o desejo e o gozo é complicada, embaraçada. [...] Quanto [...] ao desejo,
[o] sujeito [feminino] tem uma relação direta com o desejo do Outro que
não é mediado, que não tem por intermediário - cp. [...] Ê o homem que
falta, pois na copulação ele traz o órgão e se reencontra com - cp. Apresenta
o lance (la mise) e [...] o perde. Ele só pode reparar essa perda pelo objeto
(Miller, 2004: 85-6).

Do lado mulher, existe, portanto, uma ligação (branchement) direta no


desejo do Outro e sua falta, diante do qual uma mulher é sem mediação.
Lacan extrai daí uma consequência para a posição feminina que nos faz
dar um passo diferente da mulher fetiche: “um verdadeiro desejo de homem
angustia o sujeito feminino” (: 87) ,14pois convoca uma mulher para ser, sem

14 Jacques-Alain M iller cita esta passagem de Lacan: “sua angústia [aquela da m ulher] se di
apenas diante do desejo do O u tro, que, afinal de contas, ela não sabe m u ito bem o que
encobre’* (Lacan, 1962-3: 222-3).
à oarra
nenhuma mediação, o que lhe supre sua própria falta. Lacan situa aí a pri­
rr o p r ia -
meira ligação direta da mulher no corpo do homem: uma mulher é angústia
s—*)- diante de um desejo, se ele pode ser qualificado de verdadeiro, isto é, de um
desejo que não pode ser transparente para ele mesmo.
irnagem ao
Seguindo a leitura feita por Jacques-Alain Miller, em O Seminário, livro 10:
fazer, em
a angústia, os corpos encontram-se aliviados de toda mitologia e de toda
tia capta a
dramaturgia edipianas. É o corpo como organismo libidinal que aparece
;• de, desde
em primeiro plano. Uma separação anatômica, concomitante e solidária
sasa mulher
com uma ligação, aparece primeiro, anterior à operação do Outro, à castra­
ção. Somos assim introduzidos ao corpo do mito da lamela que substitui o
falo em causa na castração. Concluamos, portanto, com Jacques-Alain Miller.
A partir de O Seminário, livro 10, não é mais o registro de um nome que
garante a cadeia significante no lugar do Outro, mas sim a libra de carne, o
órgão separado que é preciso liberar como subconjunto de gozo: “é preciso
[acques-
que o sujeito destaque [...] um órgão gozo [que vai se tomar, em Lacan, o]
: ter. Esse
mais-de-gozar, [...] o que, do gozo, não se deixa tamponar pela homeostase,
Lacan parte
pelo princípio do prazer” (: 99).
io homem,

LÓ GICAS DO ACO N TECIM EN TO DE CO RPO


. Éo

Retomemos, agora, às lógicas do acontecimento de corpo e retomemos o iní­


cio de “Joyce, o Sintoma” (1976), em que Lacan parte de um estatuto do u o m
que se situa antes mesmo do movimento de lamelização (lamellisation) ou de
lumanização (lomellisaton). Há, de início, u o m com uma consistência ligada a
seu corpo. O elobsceno (eaubscène) dá acesso a uma presença do corpo, a um ser
homem, um “somos zomens”, que não se dá numa relação ao significante fálico,
mas numa relação com as consistências do corpo. A consistência do significan­
te e do sistema de nomes não tem outra garantia além do enodamento à con­
sistência primeira do corpo como tal, misto de corpo do falo-órgão e do real.
direta no
“ u o m de base, u o m kitemum corpo e só-só Teium (nan-na Kum)” é, com efeito,
cação.
o ponto de partida. Esse corpo do u o m é a base para que venha inscrever-se
; sie nos faz
o sintoma como acontecimento de corpo. Como então se articulam o corpo
Je homem
do u o m e aquele da mulher na copulação, segundo a perspectiva de “Joyce, o
t ser, sem
Sintoma”? Se nos lembramos de O Seminário, livro 10: a angústia, ancorado no
- <p e no não poder inerente ao homem, toma-se ainda mais surpreendente que
~ . ’her] se dá Lacan sublinhe agora o seguinte: “Ter é poder fazer alguma coisa com” (Lacan,
bem o que 1976a: 566). Mas o poder não está articulado ao falo e à copulação. É poderfazer
alguma coisa com 0 impossível de escrever da relação sexual.

i O P O L ÍT IC A
O Q U E FA Z S IN T O M A P A R A U M C O R P O 6l
u o m fala com seu corpo, tomado nas consistências s, s e i: “Ele tem (in­
clusive seu corpo) por pertencer ao mesmo tempo a três... chamemo-las de
ordens” (: 565). [O termo “ordem” reforça a dimensão, primeiramente rela­
cionada ao supereu, do modo de dizer imperativo]. Testemunha isso o fato
de que ele tagarela para se azafamar com a esfera que faz para si um escabelo”
(: 565). Eis aí uma tese que retoma a fórmula canônica do corpo deferido
(corps décerné). É a incidência das ordens r , s e 1 que, sem nenhum agente
específico, toma o corpo - este, a um só tempo, pertence às três. Notemos o
quanto o falasser lacaniano se opõe, por princípio, às teses cognitivistas que
supõem uma inscrição natural de traços (traces) significantes no cérebro do
indivíduo, identificado com seu corpo. Para Lacan, trata-se do corpo como
ex-sistência, pertencente a três consistências distintas. A segunda frase da ci­
tação de Lacan - extremamente bem montada - combina, com efeito, essas
três consistências em sua própria escrita: encontram-se aí, ao mesmo tempo,
a fala (“ele tagarela” ), o é preciso fazê-lo, molhar-se etc. (“para se azafamar” ), e
a forma imaginária do corpo, o inchado (“a esfera”). Trata-se de “fazer assim
decair a esfera, até aqui indestronável em seu supremo escabelo”, e é por isso
que Lacan demonstra “que o s.K.belo é primeiro, porque preside a produção
de esfera” (: 565). A unidade é dada aqui nesse termo enigmático, “escabelo”,
escrito como “s.K.belo”, que não é o corpo e que mistura o Es, o Isso freudia­
no, na forma de duas letras fora de sentido, s.k., e o belo do inchado (subida
no escabelo). Essa novidade, “s.K.belo”, destrói 0 poder, o prestígio, o imagi­
nário do corpo e promove a escrita (s.k.).
De início, notemos a primazia da escrita do escabelo (retornaremos a esse
ponto)15 nas três dimensões r , s e 1 do nó borromeano. Não é o indivíduo
que é primeiro, mas certa ciffação (s.k.). O indivíduo, reduzido ao corpo, é
abordado antes de tudo pelo imaginário, confusão introduzida por Aristóte­
les, que se orientava pelo pensamento e sua relação com a forma do corpo:
O homem pensa com sua alma. A ciffação do sintoma nas três dimensões ou
ordens permite a Lacan atribuir ao nó borromeano as funções destinadas
ao falo na dialética do ser e do ter. No final de “A significação do falo”, Lacan,
com efeito, escreveu: “Vislumbra-se a razão desse traço (trait) nunca elucida­
do no qual, mais uma vez, avalia-se a profundidade da intuição de Freud, ou
seja, porque ele afirma que há somente uma libido [que haja somente uma
única libido já era, em 1958, um problema para Lacan, que jamais aceitou essa
questão sem procurar dar-lhe a razão lógica, o que acontecerá com as fór-

15 Ver, neste livro, p. 74,81,85-97,141-3 e 153-4

62 O A V E S S O D A B IO P O L Í T I C A
mulas da sexuação), mostrando seu texto que ele a concebe tendo natureza
masculina. A função do significante fálico desemboca, aqui, em sua relação
■ sria- mais profunda: aquela pela qual os antigos nele encarnavam o Nous e o Logos”
p á to (Lacan, 1958c: 695).
Sobre esse mesmo ponto, em “Joyce, o Sintoma” (1976), lê-se o seguinte:
“Aristóteles [...] escreve que o homem pensa com sua alma. No que se prova­
w rn te ria que u O M a tem, ela também, o que Aristóteles traduz pelo Nous. Quanto
«r ; o a mim, contento-me em dizer: nó, menos alarido” (Lacan, 1976a: 566).
I b que O nous é um termo de início atestado por Platão. Os noumena são as ideias
Ík> do que a inteligência (nous) capta, ao passo que a vista só pode atingir as coisas
Ipwno visíveis, os oromena. Os nomena são as Ideias que não podemos perceber pe­
| & ci- los sentidos, mas somente pelo intelecto (Auroux, 1990, verbete “noumène” ).
|(i«ssas No discurso filosófico, Aristóteles conecta o corpo com o logos pela inteli­
ier.po, gência, que permite apreender esse logos que não se apresenta pelos sentidos.
ir \ e No discurso psicanalítico, Lacan conecta, de início graças ao falo, o corpo e
§pám os efeitos de sentido do gozo, que não se apresentam muito pelos sentidos.
#P SSO Depois, ele dirá que o corpo se articula ao gozo pelo nó de três consistências
ffecão e a adjunção do sinthoma.
Jjfeelo” “Menos alarido”, escreve Lacan. Entretanto, sai-se aturdido da tentativa
líBÜa- de se fazer não pensar com nossa alma, mas de simplesmente falar com nosso
pbída corpo. De início, é preciso o corpo como superfície16em que vem se inscrever
Itegi- o gozo, antes da esfera. Depois, uma vez que a fala passará ao dizer, virão os
efeitos significantes, o saber que daí se resgata: “o verdadeiro é que uom tem,
tmtise a princípio. Por quê? Isso se sente, e uma vez que se sente, isso se demonstra”
m ino (Lacan, 1976a: 565). Essa mesma lógica é formulada por Lacan em O Semi­
■r-. •. é nário, livro 20: mais, ainda da seguinte maneira: “Falo com meu corpo, e isto,
• 'te­ sem o saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei” (Lacan, 1972-3:108).
mo: Três tempos, portanto, podem ser resgatados. Há, de início, uma emer­
« s ou gência de gozo, um “isso se sente”, que é traumatismo, impacto de gozo que se
.las escreve como sintoma na superfície do corpo escavado (raviné) pelas nuvens
.acan, significantes.17Em seguida, uma fala passa ao dizer, que não pode ser recolhido
ffccida- no tempo primeiro sem equívoco; portanto, sem o saber - o acolhimento
«o, ou do trauma será sempre marcado pela defasagem (écart) irredutível entre
a .ma escrita e fala que sustenta a existência dos equívocos. Depois, vem o tem­
m essa po de saber, que só pode ser deduzido no a posteriori dos equívocos da fala.
tí fór-

16 Ver, neste livro, p. 35,40,90 e 118.

17 Ver, neste livro, p. 40.

W. IIC A O Q U E FA Z S IN T O M A P A R A U M C O R P O 63
Quando se fala com seu corpo, é importante notar que é sem o saber. O saber
vem em seguida, no terceiro tempo, à medida dos equívocos de lalíngua, pois
digo sempre mais do que sei. É quando se lê O Seminário, livro 20 com “Joyce,
o sintoma” que esses três tempos se desdobram.

A C O N S I S T Ê N C I A DO “ F A Z E R S I N T O M A ”

Uma mulher pode fazer sintoma para um outro corpo, pois ela é o lugar de
um gozo Outro, que não é aquele desse outro corpo.18Isso vale para não todas
as mulheres, pois uma mulher é enigma (Outro para ela mesma) a ser deci­
frado. Essa decifração passa não pela inteligência da Ideia do feminino, e sim
pela leitura do sintoma que ela encarna como mulher em termos de conden­
sação de gozo fora do corpo para um outro corpo diferente do seu. Em con­
trapartida, uma mulher pode ter um estilo de amor erotômano, isto é, que ela
impulsione seu parceiro a lhe falar dela. Como contraponto, uma mulher se
escreve como signo ou como enigma (Lacan, 1956:31). Encontramo-nos aqui
confrontados com um quiasma inesperado entre fala e escrito que se joga nos
dois sexos e dá nova consistência ao sintoma.

18 Isso sem precon ceito quanto às anatom ias dos corpos. Se, para Freud, “ a anatom ia é o
destino” (Freud, 1924:121), não é assim para Lacan, qu e considera que os sujeitos se colo­
cam do lado hom em o u do lado m ulher com relação às suas escolhas de gozo, prestes a
interrogarem e m segu ida essa escolha.

64 O A V ESSO DA B I O P O L Í T I C A
Co p y r ig h t © 2016, Éric Laurent
2016, Navarin/Le Cham p freudien
“ L’Envers de la biopolitique.
Une écriture pour la jouissance”

IM A G E N S D A C A P A
Leila Danziger. Série um poema e um talit #2,2009.
Impressão jato de tinta sobre papel de algodão, 60 x 45 cm.
Edição: 5 +2 p .a .
Éric Laurent. Foto: Emma Barthère

C A P A , P R O JE T O G R Á F I C O E P R E P A R A Ç Ã O
Contra Capa

D ados Internacionais de C atalogação na Publicação (CiP)


A ngélica Ilacqua c r b -8/7057

r ■
Laurent, Éric
O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo / Éric Laurent ;
[tradução de Sérgio Laia, Leonardo Scofield, Vera Avellar Ribeiro]. -
Rio de Janeiro : Contra Capa, 2016.
(Coleção Opção Lacaniana, v. 13)
248 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-7740-200-7

1. Psicanálise 2. Lacan, Jacques, 1901-1981.3. Biopolítica. 4 Corpo,


i. Título. 11. Laia, Sérgio, ui. Scofield, Leonardo, rv. Ribeiro, Vera Avellar

16-0313 e c o 150.195
v ___________________________________ y
ín dices p ara catálogo sistem ático:
1. Psicanálise

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
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Tel (55 21) 2507.9448
Fax (55 21) 3435-5128
ÉRIC L A URE N T

O avesso da biopolitica
Uma escrita para o gozo

TRADUÇÃO
Sérgio Laia

com a colaboração de
Leonardo Scofield
Vera A vellar Ribeiro

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