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MAINGUENEAU, Dominique. A Cena Da Enunciação

O documento discute a análise de textos de comunicação, focando na cena de enunciação e como diferentes contextos influenciam a interpretação do discurso. A obra explora a relação entre cenografia e gênero de discurso, destacando como a publicidade utiliza essas dinâmicas para persuadir o público. Exemplos práticos, como anúncios e discursos políticos, são utilizados para ilustrar a complexidade da comunicação escrita.
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MAINGUENEAU, Dominique. A Cena Da Enunciação

O documento discute a análise de textos de comunicação, focando na cena de enunciação e como diferentes contextos influenciam a interpretação do discurso. A obra explora a relação entre cenografia e gênero de discurso, destacando como a publicidade utiliza essas dinâmicas para persuadir o público. Exemplos práticos, como anúncios e discursos políticos, são utilizados para ilustrar a complexidade da comunicação escrita.
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Dominique Maingueneau

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Maingueneau, Dominique
A nálise de textos de com unicação / Dominique Maingueneau ;
tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. - 3. ed. - São Paulo :
Cortez : 2004. ANÂUSE DE TEXTOS
Título original: Analyser les textes de communication.
Bibliografia. DE COMUNICAÇÃO
ISBN 85-249-0778-9

1. Análise do discurso 2. Comunicação de massa e linguagem


3. Lingüística I. Título. T R A D U Ç Ã O DE
C e cília P. d e S o u z a -e -S ilv a e
D é c io R o cha
01-0838____________________________________________________ CD-401.41

índices para catálogo sistemático:


3ã edição
1. Análise do discurso : Comunicação : Linguagem 401.41

€DITORA
7
A CENA DE ENUNCIACÃO a

1. As três cenas

Uma tripla interpelação

Um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro dei­


xado por um discurso em que a fala é encenada.
Voltemos à nossa publicidade de produtos para emagrecer (ver
capítulo 6, item 2). Junto ao texto aparece, no canto esquerdo, uma
pequena foto: a de uma jovem de terninho no momento em que, sen­
tada no braço de uma cadeira de escritório, fala ao telefone:
Que reunião! Esses cafés da manhã de negócios, todos aqueles
croissants, aqueles pãezinhos, era tanta tentação que não pude resistir...
Mas eu vou dar um jeito nisso. Ao meio-dia, vou reagir. Um encontro com
a boa forma: somente Week-end e eu.
Práticos, esses saquinhos que a gente carrega aonde vai. Sabor de
baunilha ou de legumes, meus quilinhos a mais vão logo desaparecer. Os
intervalos para a boa forma Week-end e seus cardápios equilibrados, isso
conta muito na agenda de uma gulosa.

Qual é a cena de enunciação desse texto? Três respostas são pos­


síveis, dependendo do ponto de vista que se assuma:
• a cena de enunciação é a de um anúncio publicitário (tipo de
discurso);

á
A CENA DE ENUNCIAÇÃO 87
86 ANÁLISE DE TEXTOS DE COMUNICAÇÃO

° a cena de enunciação é a de um anúncio de produtos para ema­ Essas duas “cenas” definem conjuntamente o que poderia ser
grecer, numa revista feminina (gênero de discurso); chamado de quadro cênico do texto. E ele que define o espaço estável
no interior do qual o enunciado adquire sentido — o espaço do tipo
° a cena de enunciaçao é a de uma conversa ao telefone em que,
e do gênero de discurso. O leitor da publicidade dos produtos Weclc-
do escritório, uma mulher, vestindo um terninho, fala com uma pes­
End só poderá ler a referida publicidade com esse quadro cênico na
soa conhecida.
mente.
A leitora da revista em que é apresentado o anúncio encontra-se
simultaneamente envolvida nessas três cenas. Ela é interpelada ao mes­
mo tempo como consumidora (cena publicitária), como leitora de revista 2. Â cenografia
— uma leitora preocupada em manter a forma (cena do gênero de dis­
curso) e como interlocutora e amiga de uma mulher ao telefone (cena Um enlaçamento paradoxal
construída pelo texto). Falaremos de cena englobante para nos refe­
rirmos ao primeiro caso; com relação ao segundo, falaremos de cena Não é diretamente com o quadro cênico que se confronta o leitor, mas
genérica e, com relação ao terceiro, de cenografia. com uma cenografia. Os autores dessa publicidade teriam perfeita-
mcnte podido apresentá-la por intermédio de cenografias bem diver­
sas: uma poesia lírica, instruções de uso, uma charada, uma descrição
Cena englobante e cena genérica científica etc. A cenografia leva o quadro cênico a se deslocar para o
segundo plano; a leitora de nossa publicidade, por exemplo, cai numa
A cena englobante é a que corresponde ao tipo de discurso. espécie de cilada, pois recebe o texto inicialmente como uma conversa
Quando recebemos um folheto na rua, devemos ser capazes de deter­ telefônica, e não como uma propaganda de um gênero determinado.
minar a que tipo de discurso ele pertence: religioso, político, publicitá­ Todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer
rio etc., ou seja, qual é a cena englobante na qual é preciso que nos instituindo a cena de enunciação que o legitima. A marca que dá a
situemos para interpretá-lo, em nome de quê o referido folheto inter­ palavra a uma funcionária de escritório que fala ao telefone impõe tal
pela o leitor, em função de qual finalidade ele foi organizado. Uma cenografia de algum modo logo de saída; por outro lacio, e por inter­
enunciação política, por exemplo, implica um “cidadão” dirigindo-se a médio dessa enunciação mesma que ela pode legitimar essa cenografia
outros “cidadãos”. Uma caracterização mínima, certamente, mas que que ela impõe finalmente, se ela atingir seu público, se conseguir fazer
nada tem de intemporal, pois é ela que define a situação dos parceiros com que as leitoras aceitem o lugar que lhes é consignado na cenogra­
e um certo quadro espaço-temporal. Em numerosas sociedades do pas­ fia. Com efeito, tomar a palavra significa, em graus variados, assumir
sado, não existia cena englobante especificamente política. Não se pode um risco; a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário,
tampouco falar de cena administrativa, publicitária, religiosa, literária como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um es­
etc., para qualquer sociedade e em qualquer época. paço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se de­
Dizer que a cena de enunciação de um enunciado político é a senvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio
cena englobante política, ou que a cena de um enunciado filosófico é a dispositivo de fala.
cena englobante filosófica etc. é insuficiente: um co-enunciador não A cenografia implica, desse modo, um processo de enlaçamento
está tratando com o político ou com o filosófico em geral, mas sim paradoxal. Logo de início, a fala supõe uma certa situação de enunciação
com gêneros de discurso particulares. Cada gênero de discurso define que, na realidade, vai sendo validada progressivamente por intermédio
seus próprios papéis: num panfleto de campanha eleitoral, trata-se de da própria enunciação. Desse modo, a cenografia é ao mesmo tempo a
um “candidato” dirigindo-se a “eleitores” ; numa aula, trata-se de um fonte do discurso e aquilo que ele engendra^ ela legitima um enunciado
professor dirigindo-se a alunos etc. que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que essa cenografia
88 89
ANÁLISE DE TEXTOS DE COMUNICAÇÃO A CENA DE ENUNCIAÇÃO

onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar falado” (ver capítulo 6, item 2) de um enunciador jovem que se dirigi-
como convém, segundo o caso, a política, a filosofia, a ciência, ou para ria a um co-enunciador jovem:
promover certa mercadoria... Quanto mais avançamos na leitura da
propaganda “Week-End”, mais nos convencemos de que o telefonema Tate Gallery: Milbank, SW1. M. Pimlico (mapa II, C3). Aberta das 10 h
às 17h50 durante a semana e das 14 h às 17h50 aos domingos. Entrada
de uma amiga constitui a melhor via de acesso a esse produto. O que
gratuita. Seguramente, um de nossos museus preferidos em Londres.
diz o texto deve permitir validar a própria cena por intermédio da qual Realmente delirante. Grosso modo, o museu pode-se dividir em duas
os conteúdos se manifestam. Por isso, a cenografia deve ser adaptada grandes seções: 1/3 mostra a pintura inglesa dos séculos XVI, XVII e
ao produto: deve existir uma afinidade entre telefonar a uma amiga no XVIII e 2/3 apresentam um grande leque da pintura e da escultura
intervalo de dois compromissos e as características atribuídas aos sa­ mundial do século XX. Um montão de obras-primas [...]
quinhos de Week-End.
,
Le guide du routard Grã-Bretanha ,
Uma cenografia só se manifesta plenamente se puder controlar o 1994-1995, Hachette, p. 107.
próprio desenvolvimento, manter uma distância em relação ao co-
enunciador. Já num debate, por exemplo, é muito difícil que os parti­ Um enunciado como esse segue as normas impostas pelo gênero
cipantes possam enunciar por intermédio de suas próprias cenografias: “guia turístico” : ele define os lugares dignos de interesse para o turista,
eles não têm o controle da enunciação e precisam reagir imediatamen­ dá informações práticas de acesso ao local... Mas isso é feito com uma
te a situações imprevisíveis suscitadas pelos interlocutores. Em situa­ cenografia que o distingue dos demais textos do mesmo gênero. Em
ção de interação viva, o que freqiientemente passa ao primeiro plano é, vez de se contentar com a cena genérica de tipo didático, habitual nos
então, a ameaça sobre as faces (ver capítulo 2, item 3) e o ethos (ver guias em que o enunciador apaga as marcas de sua presença, o Guide
capítulo seguinte). du routard desenvolve uma cenografia original, uma outra encenação
de sua fala (“ realmente delirante” , “grosso modo”, “um montão de” ...).
Essa cenografia não foi definida ao acaso: ela pretende harmonizar-se
Cenografia e gênero de discurso com o perfil do “mochileiro” e assemelha-se em muitos aspectos, às
cenografias privilegiadas pelo jornal Lihémtion.
Tomando como exemplo um texto publicitário, escolhemos um Visto que os gêneros do discurso não são todos igualmente pro­
gênero de discurso que, do ponto de vista da cenografia, tem um estatu­ pícios ao desenvolvimento de cenografias variadas, podemos distribuí-
to privilegiado. O discurso publicitário é, com efeito, daqueles tipos los numa linha contínua que teria como pólos extremos:
de discurso que não deixam prever antecipadamente qual cenografia • de um lado, os gêneros, pouco numerosos, que se limitam ao
será mobilizada. Em compensação, há tipos de discurso cujos gêneros cumprimento de sua cena generica, não sendo suscetíveis de adotar ceno­
implicam cenas enunciativas de algum modo estabilizadas: a correspon­ grafias variadas (cf. a lista telefônica, as receitas médicas etc.);
dência administrativa ou os relatórios de peritos se desenvolvem, geral­ • de outro, os gêneros que, por natureza, exigem a escolha de
mente em cenas bastante fixas, obedecendo às rotinas da cena genérica. uma cenografia: é o caso dos gêneros publicitários, literários, filosófi­
Outros gêneros de discurso são mais suscetíveis de inspirar ceno­ cos etc. H á publicidades que apresentam cenografias de conversas, ou­
grafias que se afastam de um modelo preestabelecido. Assim, num gê­ tras, de discurso científico etc. Existe também uma grande diversidade
nero que poderiamos considerar como bastante estabilizado, o guia de de cenografias que permitem apresentar-se como narrador de um ro­
turismo Guide du routard* decidiu inovar, colocando em cena o “estilo mance e construir o perfil de seu leitor. O discurso político é igual­
mente propício à diversidade das cenografias: um determinado candi­
dato poderá falar a seus eleitores como um jovem executivo, como
O Guide du routard é um guia de turismo que privilegia as informações práticas, ofere­
cendo sugestões para facilitar e baratear a viagem. Ao routard (de route, estrada) corresponde a
tecnocrata, como operário, como homem de grande experiência etc., e
imagem do jovem que parte em viagem, cm busca de aventuras. (N.T.) atribuir os “lugares” correspondentes a seu público;
90 ANÁLISE DE TEXTOS DE COMUNICAÇÃO 91
A CENA DE ENUNCIAÇÃO

• entre os dois pólos estão situados os gêneros suscetíveis de ce­ 3. Cenas validadas
nografias variadas, mas que, na maioria das vezes, limitam-se ao cum­
primento de sua cena genérica rotineira. É o caso do guia turístico.
A " Carta a todos os franceses"
Essa variação parece estar muito ligada à finalidade dos gêneros
de discurso. A lista telefônica, que não fornece uma cenografia, é um Esses três planos da cena de enunciação podem ser vistos em ação
gênero puramente utilitário. Em compensação, o discurso publicitário na “Carta” escrita por François Mitterrand por ocasião da campanha
ou o discurso político mobilizam cenografias variadas na medida em presidencial de 1988. Para favorecer sua reeleição, foi publicada na
que, para persuadir seu co-enunciador, devem captar seu imaginário e imprensa e enviada pelo correio a um certo número de eleitores a “Carta
atribuir-lhe uma identidade, por meio de uma cena de fala valorizada. a todos os Franceses” .
O sentido desse enunciado político não se reduz unicamente ao
Cenografias difusas e específicas seu “conteúdo”, sendo, antes, inseparável de sua encenação epistolar,
enfatizada pelo fato de que o vocativo inicial (“Meus caros compatrio­
Na publicidade dos produtos Week-End tratamos de uma ceno­ tas”) e a assinatura (“François Mitterrand” ) são manuscritos. A pagi-
grafia especificada de forma precisa pelo texto: uma conversa ao tele­ nação reforça esse aspecto de correspondência privada: à esquerda do
fone com uma amiga. Mas nem sempre é esse o caso. Vejamos uma texto é deixada uma margem separada por um traço vertical, como nos
outra publicidade para os produtos Week-End: cadernos escolares.
Meus caros compatriotas,
Vocês o compreenderão. Desejo, nesta carta, falar-lhes da França. Gra­
Week-end é uma nova refeição emagrecedora que lhe permite dosar
ças à confiança que depositaram em mim, exerço há sete anos o mais
seus esforços.
alto encargo da República. N o final desse mandato, não teria concebido
Conforme os quilos que você precisa perder e a rapidez com que o projeto de apresentar-me novamente ao sufrágio de vocês se não tives­
deseja perdê-los, você escolhe um regime de um, três ou cinco dias. se tido a convicção de que nos restava ainda muito a fazer juntos para
Week-end existe em duas versões: salgada (sabor legumes) e doce assegurar a nosso país o papel que dele se espera no mundo e para zelar
(sabor baunilha). pela unidade da Nação.
Mas quero também falar de vocês, de suas preocupações, de suas espe­
Week-end contém fibras e todos os elementos nutritivos necessários ranças e de seus justos interesses.
à sua saúde, por isso seu médico ou seu farmacêutico não hesitarão em
Optei por escrever-lhes uma carta para me expressar sobre todos os gran­
recomendá-lo.
des temas que merecem ser tratados e discutidos entre Franceses, uma
espécie de reflexão cm comum, como acontece quando a família se reú­
ne à noite, em volta da mesa.
O enunciador começa introduzindo o produto numa categoria
(“uma nova refeição emagrecedora”), depois explica como usá-lo (“con­ A cena englobante é a do discurso político, cujos parceiros se en­
forme os quilos...”) e, por fim, sua composição (“Week-End existe em contram reunidos no espaço-tempo de uma eleição.
duas versões...”). Esse esquema lembra simultaneamente o estilo das
A cena genérica é a das publicações por intermédio das quais um
instruções de uso, do artigo de enciclopédia, de uma aula etc. Observa-
se, aliás, que o texto termina com a evocação do “médico” e do “farma­ candidato apresenta seu programa a seus eleitores.
cêutico”, figuras por excelência do detentor do saber em matéria de saú­ A cenografia é a da correspondência particular, que põe em conta­
de. A cenografia desse texto é difusa: ela remete a um conjunto vago to dois indivíduos que mantêm uma relação pessoal.
de cenografias possíveis de ordem científica e didática, e não a um Ora, essa cenografia invoca, no terceiro parágrafo, a garantia de
gênero de discurso preciso. uma outra cena de fala: “uma espécie de reflexão em comum, como
93
A CENA DE ENUNCIAÇÃO
92 ANÁLISE DE TEXTOS DE COMUNICAÇÃO

o texto procura atenuá-las, fazê-las serem esquecidas. É o que se vê na


acontece quando a família se reúne à noite, em volta da mesa” . Desse última frase, que introduz a cena validada para justificar a conversão
modo, o eleitor não é convidado apenas a ler uma carta: ele deve par­
da cena política em cena epistolar:
ticipar imaginariamente de uma reflexão em família, em torno da mesa,
com o presidente assumindo implicitamente o papel de pai e atribuin­ Optei por escrever-lhes uma carta para me expressar sobre todos os gran­
do aos eleitores o papel de filhos. Esse exemplo ilustra um procedi­ des temas que merecem ser tratados e discutidos entre Francesas uma
mento muito freqiiente: uma cenografia pode apoiar-se em cenas de espécie de reflexão em comum, como acontece quando a família
fala que chamaremos de validadas, isto é, já instaladas na memória ne à noite, em volta da mesa.
coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam ou de modelos que se
N a realidade, essa resolução da contradição é puramente verbal.
valorizam. A conversa em família durante a refeição é o exemplo de
O grupo nominal “reflexão em comum” congrega duas posiçoes anta­
uma “cena validada”, instalada positivamente na cultura francesa. O
gônicas: “ reflexão” vai no sentido do pensamento pessoal e em co­
repertório das cenas disponíveis varia em função do grupo visado pelo
mum” , no sentido da discussão. Mas como pode uma carta ser uma
discurso: uma comunidade de fortes convicções (uma seita religiosa,
“ reflexão em comum” ? É, pois, o movimento do texto, a dinamica da
uma escola filosófica etc.) possui sua memória própria; mas, de modo
leitura que resolve pmticamente a dificuldade. Como se ve, enunciar
geral, podemos associar a qualquer público, por vasto e heterogêneo
não é somente expressar idéias, é também tentar construir e legitimar
que seja, uma certa quantidade de cenas supostamente compartilha­
das. Se falamos de “cena validada” e não de “cenografia validada” é o quadro dc sua enunciação.
porque a “cena validada” não se caracteriza propriamente como dis­
curso, mas como um estereótipo autonomizado, descontextualizado,
disponível para reinvestimentos em outros textos. Ela se fixa facilmen­
te em representações arquetípicas popularizadas pelas mídias. Pode-se
tratar de acontecimentos históricos (o apelo de 18 de junho)* ou de
cenas genéricas (o cartão-postal, a conferência etc.).

A s tensões entre as cenas

Desse modo, o leitor da “Carta a todos os franceses” recebe ao


mesmo tempo uma amostra de discurso político (cena englobante), um
programa eleitoral (cena genérica) e uma carta pessoal (cenografia)
que se apresenta como uma discussão em família (cena validada). Mas
as relações entre essas diversas cenas podem ser potencialmente
conflituosas. Assim, a cena genérica do programa eleitoral se harmoni­
za apriori insatisfatoriamente com uma correspondência privada; quan­
to à cena validada da discussão em família, trata-se de uma interação
viva entre vários enunciadores, enquanto um programa eleitoral e uma
carta supõem enunciações monologais (= nas quais há somente um
cnunciador). Essas tensões não podem ser totalmente resolvidas, mas

“ Discurso pronunciado cm Londres pelo general Charles de Gaullc, convocando os fran­


ceses à resistência contra a ocupação alemã na última guerra mundial. (N.T.)

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