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Sobre Eres: Genealogia

O estudo analisa a genealogia das tradições cosmológicas dos erês na umbanda fluminense, destacando a influência das encantarias do Norte/Nordeste do Brasil após 1888. Os erês são situados na linha do mar e possuem conexões com tradições africanas, especialmente com voduns do Daomé, enquanto a pesquisa explora a formação das bases cosmológicas da umbanda ao longo do século XX. O artigo também discute a performance social dos erês em comparação com outras tradições africanas, enfatizando suas características únicas e a relação com a devoção popular a Cosme e Damião.
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Sobre Eres: Genealogia

O estudo analisa a genealogia das tradições cosmológicas dos erês na umbanda fluminense, destacando a influência das encantarias do Norte/Nordeste do Brasil após 1888. Os erês são situados na linha do mar e possuem conexões com tradições africanas, especialmente com voduns do Daomé, enquanto a pesquisa explora a formação das bases cosmológicas da umbanda ao longo do século XX. O artigo também discute a performance social dos erês em comparação com outras tradições africanas, enfatizando suas características únicas e a relação com a devoção popular a Cosme e Damião.
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Sobre erês:

genealogia das tradições na umbanda fluminense


dos atuantes cosmológicos infantes
ALEXANDER MARTINS VIANNA*

Resumo: Depois de 1888, aumentou o contato da umbanda antoniana do Rio de Janeiro com as
encantarias do Norte/Nordeste, disso redundando as noções de linhas cosmológicas de umbanda
a partir das noções de famílias cosmológicas das encantarias do Norte/Nordeste. No Rio de
Janeiro, os infantes cosmológicos erês são geralmente situados na linha do mar, o que nos fez
pensar numa possível conexão com a tradição dos voduns torroçus da realeza do Daomé no século
XVIII. Considerando isso, este estudo pretende desenvolver uma análise histórico-cosmológica
comparativa sobre as tradições de matrizes religiosas bantu-jeje no Brasil que, em contato com o
catolicismo popular ibérico, formaram as bases cosmológicas da tradição dos infantes
cosmológicos erês das umbandas fluminenses ao longo do século XX.
Palavras-chave: Umbanda; História; Cosmologia; Erês.
On Erês: a genealogy of comological traditions of the infant spirits in fluminense Umbanda
Abstract: After 1888, the contact of fluminense anthonian Umbanda with the encantarias of the
North/Northeast of Brazil increased, resulting in notions of Umbanda cosmological lines from the
notions of cosmological families of the encantarias. In Rio de Janeiro, the Umbanda’s Erês are
generally located at the sea line, which made us think of a possible connection with the Torroçus’
tradition of Dahomey royalty in the 18th century. Considering this, my study intends to develop a
comparative historical-cosmological analysis on the traditions of Bantu-Jeje religious matrices in
Brazil which, in contact with Iberian popular Catholicism, formed the cosmological bases of the
tradition of Erês – the cosmological infants of the Umbandas of Rio de Janeiro throughout the
20th century.
Key-words: Umbanda; History; Cosmology; Erês.

*
ALEXANDER MARTINS VIANNA é Mestre e Doutor em História Social pelo PPGHIS-
UFRJ. Professor Associado IV de História lotado no Departamento de Educação do Campo, Movimentos
Sociais e Diversidade (DECMSD) do Instituto de Educação da UFRRJ. Atualmente, é docente da
Licenciatura de Educação do Campo no campus de Seropédica da UFRRJ. Desde 2018, desenvolve
pesquisa comparativa sobre terreiros de matrizes africanas no Brasil, com foco no trânsito de espécies
botânicas nos espaços litúrgicos, nas práticas e tradições de cura, na materialidade litúrgica, na
comensalidade litúrgica, na convivialidade litúrgica, nos enredos dos agentes cosmológicos e sua relação
social, física e cosmológica com a trajetória social e familiar de médiuns, ponderando também os padrões
de territorialização e desterritorialização de seus familiares e antepassados no presente e no passado.

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Introdução pessoas cosmológicas e heranças
Há vários modelos de atuantes cosmológicas de médiuns (no caso, de
cosmológicos infantes nas religiões de umbanda) e a genealogia de divindades
matrizes africanas amalgamadas pela ou entidades; (c) “orixás” ou “voduns”,
diáspora da escravidão no Brasil. Há dispositivos conceituais mobilizados
conotações diversas a depender dos como categorias analíticas agregadoras e
campos litúrgico e cosmológico da localizadoras de redes cosmológicas,
tradição de cada terreiro, mas a sua não se confundindo com a definição ou
performance social depende não apenas entendimento específico de nenhuma
da tradição cosmológica, mas da visão matriz de terreiro, mas sim tendo-as
social de infância e infante como referências-modelo recorrentes de
correspondente a cada época e lugar. enredos de pessoas divinizadas de
Digo isso porque o infante cosmológico matrizes africanas cosmologicamente
erê das umbandas fluminenses não distintas de entidades (umbanda) e
necessariamente performam puerícia encantados (encantaria) na formação das
como estado de inocência ou de religiões de matrizes ibero-afro-
ignorância. Erê tem muito mais algo de indígenas do Brasil (ASSUNÇÃO, 2010;
liberdade, avidez e frenesi do que de AUGRAS, 2008; FERRETTI, 2000;
anjinho inocente passivo. Este artigo é, PARÉS, 2007; PARÉS, 2016; PRANDI,
portanto, sobre os infantes cosmológicos 2011; VIANNA, 2022a; VERGER,
erês e seus truques de reexistência na 2012); (d) virada ontológica, que
diáspora, com o destaque sobre a impactou originalmente a antropologia
singularidade da condição erê nas indígena no Brasil, mas já interfere nos
umbandas fluminenses1. estudos de arqueologia religiosa da
diáspora africana no Brasil, porque se
Ao longo do artigo, alguns dispositivos baseia nos efeitos críticos dos trabalhos
conceituais foram desenvolvidos à luz do antropológicos no Brasil que
campo de observação de minhas privilegiaram os estudos das
pesquisas participantes em terreiros, no cosmologias indígenas em tudo aquilo
Rio de Janeiro, entre 2020 e 2024: (a) que desmontam (i) o hábito epistêmico
concomitância cosmológica, do correlacionismo antropocêntrico na
mobilizado no lugar de sincretismo, explicação das culturas e (ii) as
mestiçagem ou miscigenação, para se teleologias narrativas de modernidade,
referir ao sistema-inquice ou lógica- que são objetificantes dos seres animais,
inquice de agregação de númens para vegetais, minerais e atmosféricos do
configurar pessoas cosmológicas nos mundo (SÁ JUNIOR, 2014: p.13;
campos litúrgicos observados AGOSTINI, 2012).
(IYANAGA, 2023; MENEZES et al.,
2020); (b) redes cosmológicas Embora seja potencialmente redutor,
(VIANNA, 2022b), mobilizado para se pretendo, inicialmente, apresentar uma
referir à conexão entre enredos vegetais, tipologia provisória do que defino como
minerais, animais, sociais, culturais, atuantes cosmológicos infantes na forma
topografias e atributos que formam as de erês e suas diferenças e pontos de
contatos com outros modelos de infantes
1
Na língua suméria antiga, na Mesopotâmia, o madeira, o duplo de madeira do gêmeo morto) da
cinturão do ventre da deusa laterítica Inanna – matriz iorubana. Há registros arqueológicos de
que protege, portanto, o seu princípio gerador culto a esta deusa no vale do Ur que remontam a
animal e vegetal – tem um som equivalente a 3000 a.C.. (BRANDÃO, 2019).
“erê”(brincar, brincadeira) ou “êre”(imagem de

63
cosmológicos de matrizes africanas cosmológico próprio, ou seja, não eram
oriundos das concomitâncias de matrizes manifestações sucessivas ao transe com
cosmológicas amalgamadas pelas o vodun. Além disso, as tobôssi comiam
conjunturas locais de diáspora da o que lhes era de preceito e, durante o
escravidão africana no Brasil. Por fim, a transe de possessão, as médiuns faziam
segunda parte do artigo se dedica a uso de banheiro para suas necessidades
explicar como essas diferentes matrizes fisiológicas. O estado de erê no
africanas convergem para nossa candomblé das casas de matrizes
compreensão histórico-cosmológica dos africanas iorubás perfaz, por outro lado,
erês de umbanda fluminense do século o momento de transição entre o fim do
XX e sua associação iconográfica, nas transe de possessão com orixá e o retorno
devoções populares, a versões da consciência plena do médium. Por
infantilizadas dos santos católicos isso, o erê assume características da
Cosme e Damião. personalidade do médium com
Estado de erê no candomblé nagô, caracteres relativos ao enredo do orixá,
Ibejis e a apropriação afro-baiana dos geralmente revelados na forma como se
Santos Cosme e Damião dá um nome cosmológico. Embora a
função cosmológica seja distinta, a
Nas casas religiosas de matrizes performance social dos erês de umbanda
africanas iorubás do Brasil, erê não é no Rio de Janeiro pouco se diferencia da
“espírito de criança”, mas a voz do orixá performance do estado de erê das casas
manifestada em performance infante, de matrizes africanas iorubás –
quando o orixá consegue falar na língua praticantes do candomblé nagô. E esta
local da audiência, pode agir linha de diferença fica ainda mais tênue
curativamente e passar os recados do no caso de casas de candomblé de
orixá do médium para o próprio médium matrizes congo-angola.
ou para as chefias das casas de axé.
Nesse estado, o erê fala a língua do O estado de erê também não deve ser
médium e come normalmente o seu confundido com os orixás Ibejis da
alimento de preceito, mas o médium, Nigéria, que ainda hoje estão ligados ao
durante o transe com o orixá ou em equilíbrio cósmico entre vida e morte, à
estado de erê, não faz uso de banheiro justiça universal, à luta contra doenças, à
para suas necessidades fisiológicas. dualidade cosmológica, à segurança no
parto, à prosperidade, ao nascimento de
O estado de erê não deve ser confundido gêmeos e às fertilidades animal e
com as tobôssi da Casa das Minas do vegetal, como já acontecia com as
Maranhão, que tinham dificuldade de se figuras de devoção popular dos santos
expressar em português e lugar Cosme e Damião na Europa medieval2

2
Os santos-referência árabes e gêmeos Cosme e século XIII, os santos gêmeos se tornaram
Damião (Acta et Passio, na tradição latina) foram padroeiros dos médicos, enfermeiras, cirurgiões,
martirizados adultos jovens no final do século III. farmacêuticos, dentistas, barbeiros e
Foram médicos na Cicília, platô central da confeiteiros, mas já havia capela dedicada a eles
Anatólia, atual Turquia. O culto popular aos em Portugal no final do século XII (atual distrito
gêmeos mártires começou em Milão, século IV, do Porto: Matriz de São Cosme e Damião de
mas foram canonizados somente no século VI. Godomar, fundada em 1193). No Brasil colonial,
São enfatizados em sua hagiografia católica por a primeira igreja devotada aos santos gêmeos foi
terem praticado medicina gratuitamente para em Igarassu, na Capitania de Pernambuco,
pessoas e bichos, se manterem constantes na fé fundada em 1535. Contudo, não se pode dizer
cristã e insubornáveis contra a vontade do que houvesse em Portugal ou no Brasil uma
imperador bizantino Dioclesiano. A partir do grande devoção popular a Cosme e Damião, algo

64
(MENEZES et al., 2020: p. 335-340). reprodutivo das espécies animais
Embora o nome “ibeji” tenha (VERGER, 2012).
sobrevivido no Brasil e seja usado na Saindo dessa esfera culturalmente
umbanda (por exemplo, ibejada ou ibejis específica de gemelaridade divina, há
para se referir ao coletivo cosmológico várias tradições de gêmeos sagrados ou
infante de uma casa), os orixás Ibejis não ameaçadores da ordem cósmica que
têm culto próprio e individualizado que percorrem povos de matrizes religiosas
tenha efetivamente vindo e sobrevivido tradicionais na África no período
do período colonial no Brasil, também colonial. Então, é razoável a hipótese de
não atuam em transe de possessão e não que a devoção afro-baiana aos santos
têm iconografia infantilizada. Se alguma Cosme e Damião no século XIX poderia
casa tiver culto a Ibejis, é tradição funcionar como uma espécie de devoção
recente, pós-Abolição, decorrente de agregadora da crença de vários grupos
viagens de sacerdotes e sacerdotisas de étnicos africanos (IYANAGA, 2023: p.
candomblé para a Nigéria ou Benin, ou 226), em vez de haver um culto
por meio do contato com a literatura específico a orixás Ibejis sincretizados
antropológica. com Cosme e Damião (IYANAGA,
Embora possam ser agregados a enredos 2023: p. 444-451). Em todo caso, o fato
de outros orixás, os Ibejis são atuantes é que a palavra de origem iorubá entrou
divinos com cosmologia própria e não se no vocabulário litúrgico da umbanda,
manifestam em corpo humano – logo, subjacente ao culto de Cosme-Damião-
não equivalem cosmologicamente a erês, e-Doum na primeira metade do século
seja na umbanda, seja no candomblé XX.
nagô. São equivalentes aos voduns Hoho Diferentemente das divindades Ibejis,
da etnia fongbé do atual Benin (PARÉS, Doum não é orixá ou o “terceiro gêmeo”
2001: p. 202), mas não exatamente dos Ibejis, mas um espírito ainda não
equivalentes a Nvunji (originalmente nascido que funciona como apaziguador
divindade da justiça e dos lagos) de cósmico da aberração que seria o
matriz bantu. Os Ibejis na Nigéria não nascimento de gêmeos humanos: é o
têm propriamente uma referência emblemático terceiro ocluso, o fator
clânica, porque o culto aos gêmeos ternário de equilíbrio, figurado como
cosmológicos sagrados atravessa várias protetor-criança dos gêmeos nascidos,
etnias, assumindo ênfases locais sobre mas também espírito brincante, traquina,
um ou mais de seus aspectos e atributos, espertalhão, guardião e ameaçador.
por exemplo: onde havia centralidade do Como Exu, nas festas, come primeiro,
culto a Xangô, como em Oyó, os gêmeos segundo a tardia tradição iorubá na
cosmológicos eram a base de seu Bahia. Doum é um sinalizador
machado da justiça, a qual, para documental de nova concomitância
acontecer, não poderia assumir lados, cosmológica que transformaria Cosme e
sendo os gêmeos cosmológicos o próprio Damião em santos-criança. A primeira
eixo de equilíbrio do machado de duas evidência documental de Doum (na
faces de triângulos equiláteros, ou seja, verdade, “Dohú” ou Doú) conhecida na
dois feito de três, o equilíbrio dinâmico, cultura impressa baiana é da década de
mas também o próprio princípio 1830, mas somente na década de 1930 há

que apenas aconteceu na Bahia do século XIX contra fome, epidemias e partos gemelares (ou
por iniciativa afro-baiana, que se apropriou da pela saúde de gêmeos recém-nascidos e suas
devoção portuguesa que os relacionava à luta mães).

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evidência documental de sua associação século XIX, o uso do termo “mabaça”,
com os santos Cosme e Damião na Bahia de origem quimbundo, aplicado aos
e Rio de Janeiro (IYANAGA, 2023: santos Cosme e Damião, já implicava em
p.443). Portanto, a configuração fazer uso africano dos santos turco-
cosmológica de Cosme-Damião-e-Doum árabes como dispositivos de agregação
não tem equivalência com os orixás transétnica das cosmologias de
Ibejis. gemelaridade africanas. “Mabaça”
Na hagiografia de milagres dos santos significa “dois-dois”, sentido em
Cosme e Damião na Europa tardo- português transferido para pontos
medieval, observamos ambos entrarem cantados de umbanda fluminense,
na seara do Santo Antônio franciscano mesmo que o termo quimbundo não
dos voos noturnos de cemitério e das tenha sobrevivido no uso social dos
festas de fertilidade. Numa das histórias, terreiros.
os jovens santos médicos vão ao Ao longo do século XIX, o Santo-
cemitério para pegar uma perna de etíope Cosme-Damião (singular) dos afro-
de morte recente para trocar pela perna baianos se tornou uma espécie de ponto
com câncer do cristão europeu resiliente de convergência transétnica das diversas
moribundo. Quando este acorda curado, tradições de gemelaridade sagrada ou
percebe que não era mais um, tampouco ameaçadora que percorriam as etnias
dois, mas um terceiro, liminar, nem africanas formativas da Bahia, cujo perfil
etíope, nem europeu, mas mesmo assim mudou em Salvador a partir do século
cristão. O miraculado ficou com a perna XVIII: a maioria bantu do século XVII
boa do preto morto, e este com a perna (de onde veio o termo “mabaça”) tornar-
podre do vivo branco, posto num corpo se-ia minoria nos séculos XVIII e XIX,
que logo-logo viraria mineral com alta incidência de escravizados
(MENEZES et al., 2020: p.330-331). vindos do golfo do Benin3.
Um vivo que carrega um não-vivo traz Doum, deriva do iorubano Idowu, o
alguma fração do espírito que foi para o terceiro filho ainda não nascido depois
além-mundo-físico (orun iorubano)? dos gêmeos nascidos. Era visto como um
Como podemos perceber neste exemplo, reparador cósmico da aberração que era
não faltariam enredos para os santos o nascimento de gêmeos para os povos
turco-árabes se tornarem agregadores de iorubanos até o século XIX. Doum não
cosmologias da gemelaridade dos afro- tinha relação com as divindades Ibejis,
baianos e, como notamos, havia uma mas com a cosmologia reparadora do
lógica-Doum subjacente no exemplo nascimento de gêmeos humanos. Por
tardo-medieval de milagre dos jovens isso, a categoria sincretismo não
santos gêmeos. Na Bahia de meados do funciona para falar em Cosme-Damião-

3
No século XVIII, em função da expansão da agroexportação de derivados de cana e fumo nos
mineração de ouro no Brasil, o tráfico de séculos XVIII e XIX, com o marcante aumento
escravizados já consolidado com a África Central demográfico de escravizados do Daomé,
tende a se concentrar nas rotas para as Minas Senegal, Gambia, Guiné, Gana, Costa do Marfim
Gerais, encarecendo o acesso a escravizados de e Nigéria. Há, portanto, em Salvador, recuo
matrizes bantu no Norte/Nordeste do século demográfico das matrizes bantus da África
XVIII. Como alternativas, as elites de Recife, Central e um aumento expressivo de africanos do
Olinda e Salvador consolidaram entrepostos na Golfo do Benin: etnias de línguas fongbé (ewe,
África Ocidental ao longo do século XVIII, o que fon, aladá) e iorubá. (IYANAGA, 2023: 425-
explica a mudança étnica da população das áreas 426)
rurais e urbanas crescidas em torno da

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e-Doum, porque não se trata de uma É com sentido de “mabaça” (“dois-
roupagem católica de culto aos orixás dois”) que o termo “ibeji” se descola dos
Ibejis. Como bem caracteriza Iyanaga orixás gêmeos iorubanos para se tornar
(2023), Cosme-Damião-e-Doum é um “ibejada” ou “ibejis” na umbanda
agregador cosmológico transétnico de fluminense do começo do século XX,
várias tradições africanas de com a associação ternária Cosme-
gemelaridade sagrada ou ameaçadora. Damião-e-Doum, coerente com as várias
Ao final do século XIX, o termo tradições africanas de gemelaridade
iorubano “ibeji” era recorrentemente cosmológica que têm o “3” como
utilizado no lugar antes ocupado pelo reparador do equilíbrio cósmico. Assim,
quimbundo “mabaça” (“dois-dois”)4 vemos as festas fluminenses de umbanda
empregado para os santos Cosme e para erês serem chamadas de Festa de
Damião em meados do século XIX, Cosme-Damião-e-Doum, Festas de
segundo a história documental da Cosme e Damião ou simplesmente Festa
imprensa baiana dessa época. Logo, a da Ibejada, que manteve o sentido de
associação significante entre “doum” e festa de cura, fertilidade, fartura,
“ibeji” tem mais relação com “mabaça” proteção no parto (particularmente no
do que com a referência a orixás Ibejis. caso de nascimentos múltiplos), proteção
Por isso, concordo com a revisão contra epidemias, feitiçaria, mau-olhado
histórica da literatura antropológica etc.
proposta por Iyanaga (2023: p. 409-426; Até hoje, a Festa da Ibejada de umbanda
447-450) quando critica toda a literatura é precedida pela “esmola” ou pedido de
antropológica que, repetindo Nina doação para os “santos-gêmeos” (ou para
Rodrigues, estabeleceu um vínculo a “ibejada”), tal como faziam as afro-
implicativo simples entre os santos baianas para seus santos “mabaça”
Cosme e Damião e os orixás Ibejis, (Cosme-e-Damião) em meados do
porque com isso houve um apagamento século XIX, sendo que nas festas
do precedente centro-africano na forma fluminenses de umbanda haveria a
de abordar os santos Cosme e Damião manifestação de infantes cosmológicos
como protetores no caso de nascimentos erês sem uma vinculação explícita direta
de “mabaça”, ou para evitar o com “orixá” (i.e., atuavam com
nascimento de “mabaça”, uma independência cosmológica, como as
preocupação cosmológica, jurídica e tobôssi da Casa das Minas, e não como
sociológica que também era dos manifestações sucessivas àquelas de
europeus até o final do Antigo Regime. orixás), além de cantos, danças, jogos,
brincadeiras, distribuição de brinquedos,
alimentos e dinheiro5.

4
Mabaça refere-se aos próprios gêmeos (mabaça); a deusa aquática Mawu (Iemanjá), por
humanos, que são considerados entes sagrados outro lado, recebia e regenerava espiritualmente
ou ameaçadores em si: liminares entre vivo e os recém-nascidos natimortos, os gêmeos
morto, entre o humano e o animal, entre infância rejeitados ou os recém-nascidos deficientes da
e velhice, entre dano e propiciação. A realeza do Daomé do século XVIII. Portanto, há
cosmologia bantu dos mabaça é convergente uma recorrência de enredos cosmológicos
com os enredos dos voduns torroçus da realeza africanos que estabeleciam vínculos implicativos
do Daomé do século XVIII num aspecto: entre sacrifício ou regeneração aquática,
sobreviveu no Brasil a associação do inquice liminaridade e infantes estranhos e rejeitados.
5
Nvunji (originalmente divindade da justiça e dos Na minha infância, década de 1980, em Duque
lagos) à proteção e ao acolhimento dos gêmeos de Caxias/RJ, algumas casas distribuíam

67
Talvez de matrizes bantus tenha “espírito de criança” que viveu e morreu
derivado o hábito de oferecer caruru de numa época e lugar, é assim que ele vai
quiabo para os santos gêmeos na Bahia se apresentar – nisso ecoando a tradição
e, por extensão, aos infantes ibérica de culto às almas (AUGRAS,
cosmológicos erês, mas, no Rio de 2013) e os calundus centro-africanos do
Janeiro, a umbanda tende mais aos Brasil Colonial (FERREIRA, 2016).
doces, estabelecendo uma analogia Digo isso porque pode acontecer de um
culinária com festas de aniversários atuante cosmológico infante na umbanda
infantis. Contudo, a escolha de doces e ser uma pessoa cosmológica ainda não
frutas não é aleatória, porque segue o nascida, ou seja, não concebida para
fundamento alimentar de cada erê, sobre nascer por ventre humano, ficando na
o qual me debruçarei adiante. órbita dos gênios naturais e elementais.
Condição erê na umbanda fluminense O erê de umbanda é um tópico muito
amplo que nos exige um percurso à parte
Dependendo da tradição da casa, o erê mais ampliado.
pode ser entendido como “espírito de
criança” que viveu numa época e lugar, Em minha pesquisa de campo no Rio de
geralmente com alguma história de Janeiro entre 2019 e 2024, percebi que
sofrimento, provação, privação e mesmo que o erê de umbanda não
superação disso por meio da morte, da funcione cosmologicamente como no
qual se tira uma lição, habilidade ou candomblé nagô, mas sim de forma igual
princípio cosmológico de atributos. O performaticamente, é inegável que há
erê de umbanda come normalmente o um vínculo implicativo entre as
seu alimento de preceito, geralmente características e atributos do(s) erê(s)
algum tipo de doce, mas o médium não “do médium” de umbanda e sua
usa banheiro para suas necessidades configuração de herança quando a
fisiológicas durante o transe de codificamos por meio de númens e
possessão com erês de umbanda. Erê de números correspondentes à tradição dos
umbanda, no Rio de Janeiro, não toma enredos de “orixás” do sistema oracular
bebidas escuras gaseificadas como coca- de diáspora nigeriana que repertoria
cola, geralmente oferecidas para os enredos cosmológicos de divindades por
infantes cosmológicos exus mirins. meio do jogo de 16 búzios, ou
merindilogun (OXOSSI, 2020).
Pode ocorrer de a condição erê na
umbanda ser apenas uma performance a A forma como uma casa configura a
partir de um enredo para estabelecer concomitância de númens, nomes e
conexão psíquica organizada com o atributos de “santos”, “anjos” e “orixás”
médium segundo a liturgia da casa, ou (AUGRAS, 2006; VIANNA, 2022b) de
seja, se uma casa entende que o erê é seu panteão guarda uma coerência

sacolinhas de doces e brinquedos feitas de papel esperar a reunião de crianças (mas também
impresso com a imagem dos santos, havendo adultos e adolescentes) na frente de suas casas, e
também a prática de distribuição prévia de jogarem para a multidão moedas e balas, prática
convite impresso que se comprava em papelaria que levava muitas crianças a serem empurradas
para organizar hora e forma de acesso das pelas outras e se machucarem. Em função da
crianças às casas doadoras. Também havia a expansão das seitas neopentecostais, a horizontal
prática social de algumas casas e pessoas – não prática social fluminense de distribuição de
necessariamente relacionadas a casas de “Doces de Cosme e Damião” está praticamente
umbanda ou candomblé – jogarem na rua, na extinta, porque os pais neopentecostais não
frente de suas casas, “moedas avanço” ou “balas permitem que seus filhos aceitem doces
avanço”, ou seja, anunciar a distribuição de doce, devotados a “demônios”.

68
cosmológica que se traduz na forma Os erê de umbanda agregam múltiplas
como o(s) erê(s) de cada médium tradições. Uma delas é a tradição do
vai(vão) se nomear, vestir e escolher culto às almas do catolicismo popular
instrumentos litúrgicos na forma de medieval ibérico, do qual vem a prática
roupas, brinquedos, cores e alimentos, de evocar “espíritos auxiliadores” do
por exemplo: na constituição de heranças “purgatório”, parentes ou não,
cosmológicas de um médium de particularmente nas segundas-feiras,
umbanda, um erê ligado ao feminino das sem qualquer conotação de culto claro a
águas de “Oxum/Dandalunda” (águas antepassado: envolvia ofertar alimentos
fluviais claras de superfície, águas ou outros recursos em túmulos do morto
solares) pode se apresentar como uma do qual se esperava algum auxílio, ou se
criança loura, cacheada e de pele branca, fazia o mesmo em lugares liminares,
mesmo que o médium seja preto retinto, como encruzilhadas, bordas de matas,
e comer o doce suspiro, que é feito de bordas de rios, bordas de pastos, praias
clara de ovo e açúcar, ou seja, elementos ou bordas de cemitérios (AUGRAS,
da rede cosmológica de 2013; FERREIRA, 2016; SOUZA,
“Oxum/Dandalunda”. Enfatizo este 1994; VIANNA, 2022a). Embora as
exemplo para não se cair na referências sejam “espíritos auxiliadores
simplificação sociológica de afirmar que de morto” em contextos rurais de
um atuante cosmológico infante “branco cristianismo popular, era universal no
e louro” de uma pessoa preta seja apenas Mediterrâneo Antigo pré-cristão a
sintoma de imaginário racista. A forma tradição de evocar manes de mortos ou
como o infante cosmológico se apresenta númens de gênios naturais ou elementais
conta o enredo de sua rede cosmológica em lugares liminares, passagens entre-
para a casa e para o médium onde se mundos (OGDEN et al., 2004).
apresenta. Não deve causar estranhamento a
Um atuante cosmológico erê na diversidade de agregações de enredos
umbanda jamais é aleatório na escolha de cosmológicos de númens que existem,
alimentos ou de quaisquer outros comparativamente, nas encantarias do
instrumentos litúrgicos aparentemente Norte e Nordeste, uma das bases da
brincantes ou infantes: o que ele come, umbanda de linhas cosmológicas da
como e com que brinca, o que veste, as primeira metade do século XX no Rio de
cores escolhidas, o que diz, como diz, Janeiro (ASSUNÇÃO, 2010;
assuntos recorrentes de sua esfera, FERRETTI, 2000; PARÉS, 2001;
comportamento social etc, falam muito PRANDI, 2011). Há cosmologias de
sobre o lugar cosmológico que ele ocupa matrizes pré-cristãs não-monoteístas
segundo a cosmologia da casa e a precariamente cristianizadas na Idade
herança do médium. Por isso, quando Média nos rincões rurais da Europa
uma casa tem uma tradição de (PAIVA, 1992; AUGRAS, 2006),
cosmologia que restringe demais as facilmente agregáveis no Brasil colonial
opções de manifestação de herança de às matrizes indígenas e africanas de culto
um médium, impondo sempre um único a antepassados, gênios naturais, espíritos
modo de a performance acontecer territoriais e divindades, como
anualmente para todos os médiuns, a demonstram fartamente os estudos sobre
tendência social é este abandonar a casa denúncias ao Santo Ofício de práticas
depois de algum tempo. religiosas divergentes do catolicismo
papal (FERREIRA, 2016; SOUZA,
1994).

69
Tratam-se de cosmologias de formam os povos das diásporas
concomitância e, portanto, não africanas, sendo isso um traço marcante
respondem ao monoteísmo oficial papal. das etnias de matrizes bantus da África
Falam da inteligência de povos ágrafos Central e fongbés da África Ocidental.
ou orais de perceber camadas As matrizes bantus foram
cosmológicas pré-cristãs no código demograficamente hegemônicas no
cristão papal, igualmente úteis e potentes Sudeste do Brasil, mas, por outro lado,
de se conhecer e dominar conforme as houve a tendência à queda demográfica,
necessidades de sobrevivência num entre 1750 e 1850, em Salvador, Recife
mundo de endemias, epidemias e e Olinda, onde a cultura do inquice
deslocamentos territoriais forçados. As recuou em relação à memória das
agregações de enredos cosmológicos não culturas de orixás e voduns.
são fortuitas, meramente pragmáticas ou Nesse universo de agregações
apenas disfarces para evitar perseguições cosmológicas no Brasil, o vodun
religiosas do passado. Isso não Elegbara, por exemplo, poderia se tornar
explicaria, por exemplo, porque Légua Bogi, chefe de caboclos, tanto
quilombos dos séculos XVIII-XIX quanto o lusitano rei Sebastião poderia se
recorrentemente levantaram igrejas para tornar chefe de caboclo e vetorizar
Santo Antônio e Bom Jesus da Lapa em cosmologicamente Omolu (FERRETTI,
concomitância com outros cultos 2000). Tudo isso dentro das
(COSTA; GOMES, 2016; IYANAGA, possibilidades abertas pelas
2023). No século XVIII, por exemplo, os concomitâncias cosmológicas ibero-
próprios reis do Daomé, que viam grande bantu-jeje-indígenas do Maranhão.
utilidade no comércio com os europeus, Outro exemplo eloquente de giro
solicitavam padres para serem instruídos espiralar na história das matrizes
no cristianismo, não porque queriam se africanas do Brasil na configuração de
converter ao monoteísmo cristão, mas tradições litúrgicas de diáspora: o
porque não achavam pareamento cosmológico entre Lisa
cosmopoliticamente inteligente ignorar o (Oxalá) e Mawu (Iemanjá) foi costume
poder do “vodun” dos europeus (PARÉS, conservado em algumas casas de
2016; MENEZES et al., 2020: p. 335- candomblés nagôs da Bahia (MOURA et
336). al., 2011; PARÉS, 2007). Tal
A sua intenção era agregar mais um deus pareamento de divindades foi uma
estrangeiro ao culto público seriado em invenção cosmológica e política
sua capital, tal como fizera com o setecentista da realeza sagrada do
pareamento cosmológico entre Lisa Daomé, de onde vieram as matrizes
(Oxalá) e Mawu (Iemanjá), que vinham fongbés dos candomblés jejes da Bahia e
de regiões de cultura ioruba: Ifé e Maranhão. Não havia correspondente na
Abeokutá, respectivamente. Os padres Nigéria de tal pareamento cosmológico.
católicos logo perceberam que os reis do É uma invenção cosmológica e política
Daomé não respondiam propriamente às eminentemente da realeza sagrada do
suas expectativas cosmológicas cristãs Daomé setecentista.
monoteístas de conversão. Usamos o Frente a tais exemplos, fica bem claro
exemplo da realeza do Daomé porque por que prefiro pensar em cosmologias
desmonta qualquer chave de de concomitância mais do que em
simplificação sobre as possibilidades sincretismo ou miscigenação: não se
adaptativas e agregadoras das trata apenas de
cosmologias de concomitâncias que

70
paralelismo/disfarce/sobreposição que esteve sob minha observação entre
(sincretismo) ou mistura 2020 e 2024. Em Cuba, por exemplo, faz
(miscigenação), mas da operação da todo sentido o modo como o travesso
dinâmica inquice de agregação por infante cosmológico Elegguá (vodun
concomitância que está na base das Elegbara no Benin) foi associado às
matrizes bantu-jeje que formaram as visões populares do Menino Jesus dos
cosmologias de umbandas fluminenses evangelhos apócrifos.
no pós-Abolição, decorrentes do contato “Ventos” de calundus, “anjinhos” de
entre tradições de encantarias no Norte- cemitério e “crianças-peixe”
Nordeste e a umbanda fluminense com
centralidade no culto ao inquice Santo O calundu colonial centro-africano é
Antônio de meados do século XIX. importante para entendermos a tradição
umbandista de evocação de infantes
Dessa convergência de matrizes cosmológicos erês. A sua liturgia
redundou a ideia das linhas envolvia o culto ou evocação a ventos
cosmológicas da umbanda da primeira (lundus) de parentes (crianças, adultos
metade do século XX, que sofreram ou anciãos) de morte recente como
também, a partir de 1908, uma leitura espíritos auxiliadores para curas, ganhos,
purgatorial evolucionista kardecista fertilidade e oráculos (FERREIRA,
quando apropriadas pela tradição de 2016). Neste caso, tratam-se de espíritos
Zélio Fernandino de Moraes (1891- de pessoas que nasceram e morreram –
1975), da qual se desdobrou, na década antecessores (pais e avós) ou
de 1940, a noção de “umbanda branca” e descendentes (filhos adultos, jovens ou
sua específica tradição lítero-oral, que crianças) –, não podendo ser
não comportava todos os caracteres confundidos com divindades, gênios
processuais, sujeitos cosmológicos e naturais ou elementais.
materialidades litúrgicas da predecessora
umbanda antoniana do pré-Abolição. Tanto na tradição medieval ibérica de
culto às almas do “purgatório” quanto no
Quando observamos os enredos dos calundu colonial centro-africano havia
nomes dos sujeitos cosmológicos de um ponto de convergência cosmológica:
linhas, o que carregam de histórias, não pressupunha-se que o sofrimento em
apenas o que se diz, mas os números, vida que a alma teve conferia-lhe uma
datas, topografias, atributos, conexões habilidade, carisma ou conhecimento
vegetais, animais e minerais, especial de cura sobre aquilo que
performance, alimento, vestimenta, superou de sofrimentos físicos e
instrumentos, etc, tudo demonstra que há psíquicos por meio da morte. É como se
uma coerente rede cosmológica a história de vida e de morte lapidasse
(VIANNA, 2022b), por exemplo, entre alguma habilidade especial no morto que
Rei Sebastião ser Omolu (Tambor de poderia ser solicitada por meio de
Mina), São Sebastião ser Oxossi agrados (VIANNA, 2022a), gesto que se
(umbanda fluminense) e haver um Pai mantém até hoje nas segundas-feiras da
(sebas)Tião das Encruzas (umbandas hora das almas (18h), em que pessoas
fluminense e paulista) que, em deixam presentes (geralmente pão) nos
concomitância cosmológica, agrega velários das igrejas católicas, ou
atributos de Exu, Omolu e Oxossi brinquedos em tumbas de crianças
relativos à configuração de cabeça de um (AUGRAS, 2013), abordadas como
dos médiuns da umbanda praticada na “anjinhos” ou “santinhos” de cemitério.
Casa Luz da Manhã em Vila Isabel/RJ,

71
Já expliquei anteriormente que nem todo regente da Casa das Minas no Maranhão
atuante cosmológico infante de umbanda (PARÉS, 2001; MOURA, 2011;
ou candomblé necessariamente nasceu e FERRETTI, 2009), quando recebi o
morreu, mas pode se figurar como tal enredo de um erê manifestado na Casa
para a organização psíquica do médium. Luz da Manhã, em setembro de 2022,
Por isso, para ser mais abrangente em que disse que as crianças com alguma
relação à variedade de casos observados, deficiência física são peixes que saíram
prefiro falar em dispositivo cosmológico muito cedo do mar. Seriam crianças-
de enredo de “morte”, o qual serve para peixe. Ele disse isso para eu lembrar que
contar, alegórica ou enigmaticamente, os fui uma criança-peixe e quase morri.
atributos do atuante cosmológico e suas Em paralelo, eu estava resgatando minha
afinidades com a herança, personalidade história familiar sobre como foi ter
e história do médium, segundo o campo nascido com as pernas tortas (joelhos
cosmológico na casa em que o médium convergentes, que deixam, de fato, a
esteja disponibilizando suas heranças e criança com uma silhueta de peixe) e ter
habilidades. Daí, não deve estranhar que quase morrido antes dos sete meses de
a mudança de casa e território possa vida, ponderando o papel de minha mãe,
implicar também numa mudança de que é de Iemanjá, na minha recuperação
comportamento dos atuantes física por meio de trabalhos espirituais
cosmológicos, por exemplo: se um com benzedeiras e centro de umbanda
médium tem na herança mestre de em Duque de Caxias (Baixada
jurema, tendo vindo da encantaria em Fluminense), o extinto Centro de
Pernambuco, este pode tomar a Caridade São Francisco de Assis, assim
roupagem cosmológica de malandro como, na sua insistência de que eu usasse
numa umbanda fluminense que não dê bota ortopédica até acertar
passagem para a roupagem cosmológica completamente a ossatura das pernas.
do mestre. Ela teve êxito nisso tudo. Posso dizer que
E fico aqui matutando que cara tomaria a fala do erê foi a resolução de um
Malunguinho numa umbanda enigma que devolveu o movimento para
fluminense: Se não dá para ser mestre, minhas pernas cosmológicas e
seria exu ou caboclo? Tais exemplos são epistemológicas de pesquisa.
hipotéticos, mas servem para ilustrar o Não estou autorizado a dizer o nome do
mecanismo cosmológico das heranças erê. Digo apenas que o seu nome é uma
quando um médium muda de casa e onomatopeia brincante que me remete ao
estranha a mudança de comportamento nome Antônio quando diminuído pelo
das “suas” entidades. Voltemos aos jeito de falar o português em
infantes cosmológicos. Fortaleza/CE, de onde vem minha
Outra tradição que configura os erês de herança de avô materno. Dito isso,
umbanda se refere historicamente ao gostaria de falar de Daomé e do papel da
culto anual aos voduns torroçus da pesquisa de Luís Nicolau Parés nessa
realeza do Daomé dos séculos XVIII- história pessoal que revelou para mim
XIX. Descobri isso por meio de uma outra tradição subjacente de erê de
convergência de situações: eu tinha umbanda, mas, desta vez, em conexão
acabado de ler os estudos de Luís com os voduns da realeza do Daomé. No
Nicolau Parés (2001; 2016) sobre os seu artigo sobre as tobôssi, Parés (2001)
torroçus do Daomé dos séculos XVIII- foca nos candomblés e, aparentemente,
XIX e sobre o vodun torroçu Zamadonu não tinha trânsito de pesquisa com as

72
cosmologias de umbanda, donde insiro a umbandas antonianas do começo do
minha contribuição pessoal a partir do século XX) que carregava um duplo
caminho já percorrido por ele nos sentido de proteção e propiciação para a
candomblés do Norte/Nordeste, mas não realeza do Daomé: boca-estômago que
nas umbandas do Sudeste. comia os corpos e almas dos inimigos
Erê e a regeneração aquática de sacrificados em terra para favorecer o
matriz fongbé comércio com os europeus; leito-útero
regenerativo do espírito dos
No século XVIII, consolidando sua descendentes régios, porque entregar à
centralização política na interface com a deusa-mar, ainda vivos ou natimortos, os
ampliação do comércio com os europeus, filhos deficientes ou gêmeos recém-
a realeza do Daomé configurou um culto nascidos era uma forma de resgatá-los
público do par cosmológico de voduns para um novo nascimento e um corpo
Lisa (Oxalá) e Mawu (Iemanjá), melhor. Contudo, nem todos
enquanto perseguia recorrentemente os regenerados por Mawu desejavam
sacerdotes de Obaluaê/Sapatá, proibindo nascer de novo, tornando-se, portanto, os
o culto na capital, e enviava muitos deles voduns torroçus.
para o comércio americano de
escravizados (MOURA et al., 2011; No Brasil, o único culto a torroçu da
PARÉS, 2016; FERREIRA, 2016; REIS, realeza do Daomé se refere ao vodun
1988). No Daomé, Mawu deixou de ser Zomadonu. Decorreu da escravização de
uma divindade lacustre-fluvial apenas uma das esposas do rei Agonglo
iorubana para ser celebrada como vodun (reinado: 1789-1797) do Daomé depois
do mar (Atlântico), ligada, portanto, da luta intradinástica que levou ao poder
diretamente ao comércio com os o rei Adanuzan (reinado: 1797-1818). A
europeus. tradição oral da Casa das Minas
(Querebentã Toi Zomadonu), talvez
À deusa-mar eram entregues todos os interferida pelas pesquisas de Pierre
descendentes da realeza que nasciam Verger das décadas de 1950 e 1960,
com alguma deficiência, ou nascimentos atribui à fundadora Maria Jesuína a
estranhos, como gêmeos, coletivamente identidade da rainha destronada Nã
nomeados de torroçus quando deixavam Agontimé (PARÉS, 2001).
de renascer, tornando-se voduns da
realeza. Contudo, os torroçus (de tohosu, No Maranhão, a Casa das Minas era a
“príncipe das águas”) não se única casa de tradição jeje (fongbé) no
apresentavam em transes de possessão Brasil que mantinha culto a famílias
como infantes, mas como jovens ou cosmológicas de voduns por linhagem
adultos, mesmo que tivessem morrido biológica direta, sendo as tobôssi as
como crianças recém-nascidas entidades infantis femininas que
deficientes entregues ao mar. Além performavam danças e brincavam com
disso, até o século XIX, havia no Daomé bonecas, como as erês de umbanda, mas
o sacrifício anual de presos de guerra não eram vestidas de forma infantilizada.
que, numa grande festa pública, eram As tobôssi não se manifestam desde a
sacrificados em honra ao rei e entregues década de 1970 e estavam ligadas às
ao mar para propiciar bom comércio. mulheres da casa de alta hierarquia
cosmológica da linhagem de sangue de
A deusa-mar Mawu era, portanto, um Maria Jesuína; e não devem ser
grande cemitério (deusa-calunga para os confundidas com a vodun Aziri Tobosi
bantus no Brasil; calunga-grande para as dos terreiros jeje-mahi de Cachoeira,

73
Recôncavo da Bahia, que guarda, no presente, principalmente relacionado à
Brasil, uma equivalência cosmológica alimentação (PARÉS, 2001: 201).
com a divindade Oxum, não se Obaluaê foi também vodun originário do
performando de modo infante. Daomé com roupagens locais
Na Casa das Minas, as tobôssi não (SANTOS, 2014) cujos itãs
devem ser confundidas com o estado de sobreviveram na tradição de terreiros
erê do candomblé nagô porque nagôs no Brasil (PRANDI, 2001) e que
compunham uma linha cosmológica remetem a enredos de regeneração
própria (PARÉS, 2001: 197) e, nesse aquática semelhantes aos voduns
sentido, tinham mais semelhança torroçus. Num desses itãs de diáspora no
cosmológica com erês de umbanda do Brasil, Obaluaê foi uma criança
que com o estado de erê do candomblé defeituosa (e gêmea) que foi abandonada
nagô – até porque, na Casa das Minas, as perto do mar, no mangue, e foi resgatada
tobôssi precediam a manifestação de e regenerada por Iemanjá, ou seja, o
voduns, com exceção da festa de mesmo enredo-base sobre entrega de
pagamento e, mesmo que os sucedessem, torroçus às águas regeneradoras, com
não eram como transição de estado entre exceção do fato de não ser vodun da
vodun e consciência da médium realeza do Daomé, muito pelo contrário:
(PARÉS, 2001: 198), como seria o caso o culto a Obaluaê/Sapatá foi perseguido
do estado de erê no candomblé nagô. com muita violência pela realeza do
Por outro lado, como princesas infantes, Daomé, que chegou a proibir o toque de
as tobôssi tinham um comportamento tambor para ele na capital (MOURA et
sóbrio e digno, o que não era al., 2011)6 durante o século XVIII.
necessariamente o comportamento dos Assim, podemos aferir como uma
erês de umbanda ou candomblé no singularidade de agregações
Brasil. As tobôssi, tais como os erês de cosmológicas de diáspora que a Casa das
umbanda e candomblé, podiam comer e Minas do Maranhão, supostamente
beber (exceto álcool), mas, fundada por uma descendente da realeza
diferentemente dos erês, dos demais do Daomé, tenha acolhido
voduns e dos orixás, as médiuns cosmologicamente uma família de
incorporadas com tobôssi conversavam voduns da terra (chamada Dambirá) no
normalmente (do jeito próprio das seu panteão, ligada a doenças e curas, ou
tobôssi: infantilizado, mas sóbrio e seja, o mesmo campo cosmológico do
digno, com dificuldade de falar Obaluaê/Sapatá perseguido pela
português), seguiam incorporadas por setecentista realeza do Daomé. Esta
várias horas em dias sucessivos das temia o poder de os sacerdotes de
festas e tinham necessidades fisiológicas Obaluaê/Sapatá romperem a sacralidade
normalmente, como ir ao banheiro, régia com a varíola: se sua maldição
durante o transe mediúnico, mas havia “pega”, isso significa, na prática, a
um comportamento das tobôssi preeminência sagrada dos sacerdotes de
semelhante àquele dos erês de umbanda: Obaluaê/Sapatá em relação à sacralidade
batiam palma para agradecer um da realeza do Daomé. Para esta, mais do
que longe da capital, era importante

6
Tal perseguição redundou numa grande intra-africano das rotas comerciais muçulmanas,
incidência de escravização de seus sacerdotes, mas para o desterro total: o comércio europeu de
com o requinte de crueldade política e escravizados para a América. (REIS, 1988;
cosmológica de vendê-los não para o comércio MOURA et al., 2011)

74
extinguir a linhagem de sacerdotes de mineral das pembas de evocação de
Obaluaê/Sapatá do reino. A sua espíritos por meio de pontos riscados em
perseguição política e religiosa no umbandas fluminenses. Em algumas
Daomé do século XVIII cria um vínculo casas de umbanda fluminense, Obaluaê é
implicativo causal com a preservação de situado como chefe da linha das almas
seus preceitos de culto no Brasil: se (i.e., linha cosmológica da terra), da
poderia dar muito azar sacrificar mesma forma que Dambirá da Casa das
sacerdotes de Obaluaê/Sapatá, remetê- Minas no Maranhão é o chefe da família
los escravizados para o outro lado do da terra.
Atlântico (o desterro absoluto) era uma Aqui, é inevitável não perceber ecos
violência cosmológica e política dessa tradição na forma como algumas
alternativa para romper seu poder casas de umbanda fluminense entendem
mágico sobre as terras recém- ou situam os erês na órbita cosmológica
conquistadas dos clãs desses sacerdotes. das divindades fluviais ou marítimas,
De certo modo, sendo mas há uma tendência muito grande em
Iemanjá(Brasil)/Mawu(Daomé) o leito- casas de umbanda mais antigas do Rio de
útero para a regeneração físico-espiritual Janeiro de deixar os erês na órbita
de infantes cosmológicas rejeitados ou cosmológica de Iemanjá. Os nomes
dos filhos da realeza do Daomé nascidos arquetípicos mais antigos e recorrentes
deficientes ou gêmeos, disso decorre a no Rio de Janeiro de erês de umbanda
alegoria de mais de dois séculos que têm relação com o mar: “Pedrinho”
resgatei de um enredo contado por erê de (decorre de apóstolo Pedro do “Mar da
umbanda em setembro de 2022: cada Galileia”, pescador de peixes e de
alma infante no mar (útero) é como almas); “Mariazinha da Praia”;
peixe; caso se apressasse de sair do mar- “Conchinha do Mar”; “Estrelinha do
útero, vem com “defeito”, mais “peixe” Mar”; “Rosinha”(rosa é flor votiva de
que “gente”. E se não quiser nascer, fica Afrodite urânica, deusa que nasce do mar
na barra da saia da grande mãe-mar, em contato com o esperma do céu,
como príncipes (torroçus) ou princesas Urano7); etc.
(tobôssi) das águas. Outro detalhe importante dessa conexão
Obaluaê, por exemplo, recebeu da mãe- com o Daomé: a concomitância
mar a saúde de volta e todas as pérolas, cosmológica de Iemanjá com Nossa
segundo itãs ainda contados no Brasil Senhora dos Navegantes (ligada à
(PRANDI, 2001), o que não deixa de ser proteção nas travessias e comércios
significativo: além de representar marítimos de Portugal, tal como a deusa
riqueza, um meio de troca, a pérola Afrodite para os marinheiros helênicos
resulta de um incômodo superado pela de outrora), de onde veio a sua tendência
ostra; é um testemunho cosmológico e ao azul e à prata na umbanda, sendo que
biológico de superação de adversidade e Iemanjá era originalmente uma deusa
êxito de regeneração. Além disso, a fluvial calcolítica, ou seja, como tantas
pérola é calcária, base mineral outras deusas fluviais de origem
importante para a saúde dos ossos dos iorubana, estava associada ao metal
filhos de Obaluaê e a mesma base cobre. A associação entre Iemanjá e

7
Há, aqui, uma similaridade cosmológica de sacrifícios e presentes para haver proteção dos
topografia e enredos: Urano equivale a Lisa, navios mercantes e marinheiros) equivale a
deuses celestes; Afrodite (mar e fontes de água Mawu (deusa-mar no culto da realeza do Daomé
para os gregos antigos, sendo propiciada com setecentista).

75
prata se manteve no candomblé nagô e infantes cosmológicos erês de umbanda
na umbanda. A mesma Iemanjá também fluminense percorrem os seguintes
se articula com o branco, porque é no enredos histórico-cosmológicos:
Daomé setecentista que veio o seu (1) os “espíritos
pareamento cosmológico com Oxalá e auxiliadores” parentais dos
com os mortos entregues ao mar8, calundus coloniais centro-
enquanto em Abeokutá a tendência seria africanos;
o pareamento cosmológico com a
divindade Ogun. (2) o culto popular ibérico, no
Brasil, às almas (infantes) do
Aliás, “Ogun” é também topografia: purgatório, parentais ou não,
alusão ao rio bifurcado em Abeokutá, com toda a tradição cemiterada
carregando, portanto, o sentido de extraoficial dos inocentes ou
“dois”, o que significa, na tradição do santinhos infantes
merindilogun da diáspora afro-ocidental miraculadores, mobilizados por
no Brasil, a partilha de númen e número meio de brinquedos e alimentos
com a cosmologia da gemelaridade para se tornarem “espíritos
sagrada iorubá e fongbé, claramente auxiliadores”, geralmente
expressa nos pontos cantados de escolhidos por conta de seus
umbanda em que “Cosme-Damião-e- enredos de morte, que lhes
Doum” (singular) tem enredos dariam proficiência para certos
cosmológicos agregadores das tradições milagres;
de Ogun/Nkosi/Mangaaka “quebrador-
de-demanda”, “justiceiro” e “abre- (3) a santificação afro-baiana
caminho”, divindade guerreira do ferro, agregativa e multiétnica da
da forja, da fertilidade animal masculina, cosmologia da gemelaridade por
da agricultura, da justiça (casuística), da meio do culto-inquice ternário de
tecnologia e da brota vegetal9. Cosme-Damião-e-Doum,
apropriados como santos infantes
Conclusão da “linha das crianças” pela
Nessa grande concomitância umbanda antoniana fluminense
cosmológica de matrizes africanas e já configurada em linhas
ibéricas no Brasil, percebemos que os

8
Em várias culturas africanas da costa atlântica decoro social serve para expressar o “branco” dos
colonial, havia o entendimento de que os mortos, mortos da esfera cosmológica da mãe-mar.
9
na forma de espectros, se diferenciam dos vivos “Mariwô”, atribuído a Ogun, não é apenas a
por se apresentarem “brancos”. Para as matrizes “folha do dendezeiro”, mas o broto, o início, o
culturais bantu, isso materialmente se traduz na abre-caminho que articula num todo o caminho
argila branca (mpemba) que expressa o conjunto do corpo botânico das plantas. Portanto, trata-se
dos ancestrais. Daí, na umbanda fluminense, a do meristema apical, ou promeristema, a origem
tradição de representar antropomorficamente dos tecidos primários germinantes que formam o
Iemanjá como “mulher branca” não se deve corpo primário ou estrutura primária do vegetal.
apenas ao processo de santificação ibérica com Os meristemas apicais estão localizados no ápice
Nossa Senhora dos Navegantes, mas por ser a do eixo vegetal (caule e raiz), assim como, em
deusa da calunga grande, acolhedora dos mortos todas as suas ramificações. O meristema é o
no mar ou entregues ao mar. Disso também ponto de regeneração permanente do caminho
decorre a roupagem branca das entidades que a planta busca em direção à luz que a
cosmológicas “marinheiros”, os quais, num alimenta e transforma. É o "guerreiro por luz"
primeiro nível, parecem apenas uma alusão que garante a sobrevivência, a renovação e a
estereotípica aos marinhos vestidos de branco regeneração permanente de um corpo inteiro
conforme o decoro da Marinha do Brasil, mas tal vegetal.

76
cosmológicas no começo do cosmológica na forma como os santos
século XX; gêmeos médicos Cosme e Damião foram
(4) os voduns torroçus, incorporados como “mabaça” (“dois-
oriundos das crianças da realeza dois”) nas devoções populares
do Daomé setecentista nascidas afrobaianas oitocentistas. Nessa afro-
deficientes, gêmeas ou mortas, baianização dos santos gêmeos, o
sendo rejeitadas e entregues à quimbundo “mabaça” perdeu uso social
deusa-mar Mawu (Iemanjá) para e foi substituído por ibejis ou ibejada na
renascerem regeneradas, mas segunda metade do século XIX, o que
que deixaram de renascer para se coincide com o efeito sociocultural da
tornarem príncipes das águas, transformação étnica da população
conselheiros miraculadores de africana na Bahia com o aumento
seus parentes vivos; demográfico do contingente iorubá.

(5) o ternário reparador O uso social de ibejis ou ibejada


cósmico do nascimento de aplicado a Cosme-Damião-e-Doum
gêmeos da matriz iorubana, continuou carregando o sentido centro-
Doum, o não-nascido ainda, o africano de “mabaça”, agregando, no
ocluso, afro-baianamente entanto, o sentido iorubá de Doum como
agregado a Cosme-Damião, do reparador cósmico da gemelaridade. Por
qual os erês de umbanda todo esse acúmulo sociocultural,
fluminense herdaram o concluímos defendendo a tese de que
comportamento exuísta Cosme-Damião-e-Doum não é uma
imprevisível, casuístico, roupagem afrocatólica para os orixás
benfazejo ou malfazejo, Ibejis, mas um agregador cósmico de
passando na frente até em gira de várias tradições africanas de
preto-velho para primeiro comer gemelaridade sagrada ou ameaçadora,
o seu bolo de fubá. base central da configuração dos infantes
cosmológicos erês da umbanda
Os enredos cosmológicos africanos e fluminense e da infantilização
europeus envolvendo gemelaridade iconográfica ternária na devoção
sagrada ou ameaçadora, assim como, popular aos santos católicos no Brasil do
infantes cosmológicos miraculares século XX.
encontraram uma espécie de língua geral

77
À direita, vemos uma das muitas expressões tradicionais das divindades gêmeas Ibeji do sudoeste da
Nigéria (Madeira, 25 cm, Museu Nacional da Escócia), que são adultos jovens em idade reprodutiva. A
tradição iconográfica da cabeça em forma de ogiva passou para a tradição do estatuário de gesso de “Cosme-
Damião-e-Doum” (20 cm, Imagens Bahia, São Paulo/SP) da umbanda fluminense quando os santos
ternários infantes são representados com “capacetes” que os conectam com enredos soldadescos de “Ogun”.
Seguram a pluma que remete ao enredo dos santos médicos e o báculo de sua santidade-guia-protetora.
Nascimentos humanos de gêmeos são encruzilhadas de ordem e caos nas cosmologias tradicionais africanas
nos períodos colonial e imperial do Brasil. São difíceis e perigosos em sentido jurídico, cosmológico e
biológico. Daí, é importante que os santos ternários garantam caminhos seguros e protejam o corpo de
ameaças, tal como um pastor cuida de seu rebanho. O Elegguá cubano (Elegbara no Benin) também tem
báculo, estando cosmologicamente implicado com a tradição popular do Menino Jesus dos Evangelhos
Apócrifos, que vivia entre melancolia, traquinagem e descoberta de seus potenciais diferenciados de
nascimento enquanto encruzilhada entre vivos e mortos, “terra” e “céu”, tal como o Dohu/Doum iorubano,
que empresta o seu humor traquina para os erês de umbanda.

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