DILEMAS DA MODERNIDADE TEATRAL:
RECEPÇÃO DE LUIGI PIRANDELLO NO BRASIL DOS
ANOS 1920*
Rodrigo de Freitas Costa**
Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM
[email protected]RESUMO: O amplo trabalho intelectual, literário e teatral desenvolvido pelo escritor Luigi Pirandello na
Itália possui enorme reconhecimento de público e de crítica. Esse autor teve seu nome não só relacionado
a importantes momentos e aspectos históricos e ideológicos de seu país, como também recebeu em 1936 o
Prêmio Nobel de Literatura e tornou-se reconhecido como promotor do teatro moderno italiano no início
do século XX. Suas proposições foram muito discutidas no Brasil no início dos anos 1920 e isso ocorreu
de diversas formas. Além das companhias teatrais que encenaram peças de Pirandello, sobretudo em São
Paulo, logo no início do século XX, muitos artistas e intelectuais brasileiros tomaram a obra do
dramaturgo como referência. Frente a isso, este artigo pretende discutir especificamente a releitura que o
crítico teatral Antônio de Alcântara Machado faz da obra do escritor italiano. Logo nos anos 1920,
Alcântara Machado procurava fomentar um teatro moderno no Brasil, para tanto tinha um olhar atento
para as vanguardas europeias do início do século e procurava dialogar com elas. Nesse ambiente, a sua
atenção em relação ao teatro de Luigi Pirandello foi essencial para o projeto de favorecer a modernidade
teatral em terras brasileiras.
PALAVRAS CHAVE: Modernidade Teatral – Luigi Pirandello – Antônio de Alcântara Machado.
DILEMMAS OF THEATRICAL MODERNITY:
RECEPTION OF LUIGI PIRANDELLO IN BRAZIL
DURING THE 1920S.
ABSTRACT: The ample intellectual, literary and theatrical work developed by the writer Luigi
Pirandello in Italy has enormous recognition of public and criticism. This author had his name not only
related to important moments and historical and ideological aspects of his country, but also received in
1936 Nobel Prize for Literature and became recognized as promoter of modern Italian theater in the early
twentieth century. His propositions were much discussed in Brazil in the early 1920s, and this occurred in
*
Este artigo foi produzido a partir das pesquisas desenvolvidas no interior do projeto “Circularidades
Culturais entre Brasil e Itália: estudo sobre cultura no século XX”, coordenado por mim e financiado
pelo Edital Ciências Humanas do CNPq, no período de 2014 a 2016.
**
Professor Adjunto do curso de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM-
Uberaba), professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da
Cultura (NEHAC).
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a number of ways. In addition to the theater companies that staged plays in Pirandello, especially in São
Paulo, early in the 20th century, many Brazilian artists and intellectuals took the work of the playwright
as a reference. Against this, this article intends to specifically discuss the retelling that the theatrical critic
Antônio de Alcantara Machado does of the work of the Italian writer. In the 1920s, Alcântara Machado
sought to foster a modern theater in Brazil, so he had a close eye on the European vanguards of the
beginning of the century and sought to dialogue with them. In this environment, his attention to the
theater of Luigi Pirandello was essential for the project of favoring theatrical modernity in Brazilian
lands.
KEYWORDS: Theatrical modernity – Luigi Pirandello - Antônio de Alcântara Machado.
Argumentos nacionalíssimos. Há a importar
as fórmulas, tão-somente as fórmulas. As de
hoje, as deste tempo, as fórmulas inovadoras
e moças de Romains, de Shaw, de
Pirandello, de Zimmer, de Tchapek, de
Gatillon, de tantos, de tantos. Vamos! Um
bocadinho de coragem e de mocidade! Então
temos que estacar na Flores de Sombra? É a
perfeição suprema? Não se pode fazer mais
nada?
Antônio de Alcântara Machado
A temática deste artigo se apresenta bastante ampla e, claro, não é pretensão do
autor esgotá-la ou aprofundar de maneira consistente o debate sobre a modernidade e o
campo teatral no Brasil. Encontram-se aqui percepções gerais sobre o tema, tendo como
norte interpretativo a figura do dramaturgo italiano Luigi Pirandello e sua releitura no
Brasil, conforme estamos desenvolvendo em nossas pesquisas recentemente. Desse
ponto de vista, partimos sempre de um recorte temático, temporal e bibliográfico, como
poderá acompanhar o leitor. O nosso objetivo, portanto, é levantar questões sobre uma
pequena parte da produção teatral brasileira e, por meio dela, construir um breve
itinerário de análise que permita valorizar a historicidade da produção teatral naquela
época.
Ao abordar a modernidade teatral no Brasil da década de 1920 por meio da
recepção da obra do dramaturgo Luigi Pirandello, acreditamos inicialmente ser
necessário recuperar duas constatações realçadas pelos professores e pesquisadores Jacó
Guinsburg e Rosangela Patriota no livro Teatro Brasileiro: ideias de uma história: o
processo de modernização e os projetos de modernidade não se configuram como ideias
exclusivamente teatrais, mas sim como etapas de um diálogo entre o desenvolvimento
histórico do início do século XX no Brasil e na sociedade de maneira geral. Além disso,
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pensando exclusivamente na situação brasileira, a Semana de Arte Moderna de 1922 é
uma fortíssima referência interpretativa para todo o debate sobre o tema e, no caso do
nosso teatro, ela permite a construção de interpretações que ressaltam a ausência dos
profissionais do teatro e do cinema naquele evento1.
Frente a isso, torna-se claro que trilhar o caminho da modernidade teatral no
Brasil dos anos 1920 é similar a caminhar em terrenos já sedimentados pela análise
crítica, onde nos cabe prioritariamente a busca por fissuras que possam realçar a
multiplicidade dos tempos históricos. A advertência sobre o fato de que a discussão de
modernidade não é exclusiva ao campo teatral e que existe entre nós um marco
fundador desse debate, realça o sentido de voltar ao passado com vistas a rever tal
marco, contextualizando-o e, principalmente, permitindo que novas possibilidades
interpretativas surjam. A aproximação entre modernidade teatral e o seu possível
diálogo com a obra de Luigi Pirandello no Brasil pretende minimamente seguir esse
caminho.
Consta-se que a primeira montagem de uma peça do dramaturgo italiano por
brasileiros foi realizada em 1924 pela Companhia Brasileira de Comédias Jaime Costa,
Assim é, se lhe parece.... No entanto, o impacto da obra do dramaturgo rondava o
campo de nossa crítica teatral antes disso. Em 1923, no auge do ímpeto modernista
despertado pela Semana, a Compagnia Italiana Maria Melato-Annibal e Petrone passou
por São Paulo e Rio de Janeiro e um dos mais destacados críticos teatrais do período,
Antônio de Alcântara Machado, não deixou de tecer comentários que ratificavam seu
olhar de valorização da modernidade teatral. Em crítica de 04 de julho de 1923, ele
afirma:
Guglielmo Zorzi figura na primeira plana dos escritores modernos da
Itália que põem ombros à obra de renovação do teatro. Esse
movimento magnífico, de que participam, entre outros, Luigi
Pirandello e Rosso di San Secondo, é um movimento triunfante. Para
que o fosse, uma peça, aliás, uma peça tão-somente bastaria: La Vena
d’Oro, ontem levada à cena pela Companhia Maria Melato. Trata-se,
com efeito, de uma obra-prima, de uma maravilha de concepção e
realização. [...] Maria Melato deu-nos mais uma de suas soberbas
criações. A figura nobilíssima de Maria Uberti foi vivida por ela com
uma vibração e uma verdade arrebatadoras. Ao seu lado Augusto
Marcacci fez de uma maneira inesquecível o filho amantíssimo que
sacrifica o seu egoísmo para que a mãe possa amar e viver. O poeta
1
Cf.: GUINSBURG, Jacó. PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma história. São
Paulo: Perspectiva, 2012.
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Guido Manfredi teve em Ernesto Sabbatini um intérprete fino e
consciencioso. Silvio Rizzi e Giulietta de Riso triunfaram igualmente,
aquele num velho cientista filósofo e bom, esta numa bonequinha de
salão, doidivanas e sedutora. Como sempre, excelentes a montagem e
os cenários.2
Como já mencionado, Alcântara Machado fez de seu trabalho de crítico e
escritor uma forma de valorizar a modernidade teatral, e essa só poderia ser alcançada
por meio de um “novo” teatro no Brasil, que superasse, por exemplo, as características
do Teatro de Revista e dos grandes intérpretes por meio do diálogo com as vanguardas
européias. No interior desse projeto, as circularidades culturais entre Brasil e Itália
foram importantes. A atriz italiana Maria Melato é uma referência da renovação teatral
do seu país, sobretudo porque traduzia cenicamente aqueles que eram considerados os
mais modernos dramaturgos italianos: Rosso di San Secondo, Massimo Bontempelli e
Luigi Pirandello. No conjunto desses trabalhos, Alcântara Machado localizava um
“movimento triunfante”, “uma maravilha de concepção e realização”, em suma, uma
importante inspiração para a nossa modernidade teatral, além de deixar clara a
capacidade interpretativa de alguns dos atores que naquela ocasião acompanhavam
Maria Melato no Brasil.
Uma das principais fontes do nosso debate sobre teatro moderno passa pelo
campo da crítica teatral. É por meio dela que se começa a estabelecer os marcos
interpretadores de nossa modernidade cênica e por ela também define-se o espaço social
de diálogo com as vanguardas européias. Assim, bem antes dos anos 1940 e 1950,
momento da chegada ao Brasil de importantes encenadores italianos, a dramaturgia e a
cena daquele país europeu já se tornavam referências de modernidade entre nós. Nesse
caso, o nome de Pirandello despontava com grande força.
Em 10 de julho de 1923, após assistir a apresentação de Assim é, se lhe parece,
Alcântara Machado registra primeira encenação do dramaturgo italiano em São Paulo e
considera:
A Companhia Maria Melato levou ontem à cena o poema trágico
Sogno di un Mattino di Primavera de Gabrielle d’Annunzio e Così è...
(se vi pare!) três atos de Luigi Pirandello. A primeira peça, todos a
conhecem, pelo menos de leitura. A segunda apresentou a São Paulo o
renovador do teatro italiano. Não sabemos bem por que a Companhia
2
MACHADO, Antônio de Alcântara. La Vena d’Oro, de Zorzi, no Sant’ana. In: ____. Palcos em
Foco: Crítica de Espetáculos / Ensaios sobre Teatro (1923-1933) – Tentativas no campo da
dramaturgia. Pesquisa, organização e introdução de Cecília de Lara. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2009, p. 96-97.
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Maria Melato as reuniu num só espetáculo. Talvez fosse por amor ao
contraste: uma é essencialmente poética, outra é essencialmente
dramática. Assim sendo, é justo que numa crítica teatral se ponha de
parte aquela e só se diga desta... Luigi Pirandello só depois de muito
tempo de labuta literária, que ele gastou escrevendo romances e contos
mais ou menos medíocres, descobriu – faz cinco anos – a sua
verdadeira vocação: escrever para o teatro. Como autor dramático, ele
é incontestavelmente um triunfador. Sei Personaggi in Cerca d’Autore
e La Voluttà Dell’Onore, para só citar essas, foram acolhidas na
França, na Inglaterra e na Alemanha, quando representadas, não faz
muito, como verdadeiras obras-primas, pela crítica e pelo público. Ao
lado delas pode e deve figurar Così è... (se vi pare!). Trata-se, com
efeito, de uma obra-prima, pela concepção como pela técnica. Luigi
Pirandello quis demonstrar, através de três atos, o quanto a verdade é
impalpável, misteriosa e indecifrável.3
A modernidade e, por isso, a grandeza da dramaturgia de Pirandello é
reconhecida, segundo o crítico, nos principais círculos culturais europeus (França,
Inglaterra e Alemanha) e, sem muito atraso, estava sendo apresentada nos palcos
brasileiros por meio da Companhia de Maria Melato. Novamente essa companhia teatral
serve de referência para o crítico, por isso ele recupera o projeto artístico de Maria
Melato e faz questão de ressaltar o ineditismo de Pirandello nos palcos paulistanos. O
dramaturgo, por sua vez, é visto como alguém que além de circular pelos maiores
centros europeus produtores de arte, é também capaz de tratar dramaturgicamente os
temas que apresentam os impasses da sociedade daquela época. Há um clima de
renovação e possibilidade criativa do ponto de vista do teatro que é ressaltado pelo
crítico.
Seguindo essa trilha, no mesmo momento, em meados de julho de 1923, um
grupo de atores italianos – Vera Vergani, Luigi Almirante e Alfonso Magheri – que
formava a Companhia do Teatro Argentina, apresentou no Theatro Municipal de São
Paulo a montagem de Seis Personagens em busca de um autor, o que causou forte
impacto no crítico modernista paulista que se expressou da seguinte maneira:
Luigi Pirandello não se contenta em renovar: o seu teatro é um teatro
diverso na essência e na forma. A obra do autor de Il Piacere de
l’Onestà não marca um momento de evolução: é antes o ponto de
partida de uma literatura dramática à margem da de todos os tempos,
que não conserva desta senão as linhas gerais e distintivas, que
obedece a regras inéditas de composição e técnica. Se nas suas peças o
3
MACHADO, Antônio de Alcântara. Sogno di un Mattino de Primavera e Così è... (se vi pare!), no
Sant’Ana. In: ____. Palcos em Foco: Crítica de Espetáculos / Ensaios sobre Teatro (1923-1933) –
Tentativas no campo da dramaturgia. Pesquisa, organização e introdução de Cecília de Lara. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 100.
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pensamento nem sempre é absolutamente original, a apresentação dos
personagens como o desenvolvimento da intriga, o diálogo como a
técnica aberram de todas as normas consagradas, passam por cima de
todas as convenções estabelecidas, têm muito de estranho, o que não
impede que tenham muito de maravilhoso. Uma ânsia magnífica e
audaz de independência lhe singulariza e lhe notabiliza a obra. De
uma originalidade estupenda, o engenho poderoso e profundo do autor
de La Patente é feito de contrastes, de desarmonias, de imprevistos,
amando a violência e a serenidade, misturando o dó e o sarcarmo. Sei
Personaggi in Cerca d’Autore, ontem levada à cena pela Companhia
do Teatro Argentina, é produto legítimo desse engenho formidável,
desse ‘cérebro furiosamente dinâmico’ (na expressão de Dario
Niccodemi): nessa peça curiosíssima há de tudo, desde a ironia acerba
até a análise psicológica, desde o riso até a alegria, há o normal e o
anormal, há o real e o irreal, o cômico e o patético, o superficial e o
profundo.4
O reconhecimento da originalidade da peça Seis Personagens é imenso.
Alcântara Machado enxerga no trabalho do dramaturgo um empreendimento artístico
altamente elaborado e, por isso, capaz de realizar diálogos inovadores, sejam eles do
ponto de vista formal ou temático. Aliam-se no texto do crítico brasileiro aquilo que ele
considera como “renovação” e “evolução”, o que torna a obra um marco singularizador.
Machado parece encontrar na peça de Pirandello um dos possíveis centros da renovação
do teatro europeu, o que, sem dúvidas, contribuiria para se pensar a cena teatral
brasileira da época. Ele prosseguiu:
Pirandello demonstrou até que ponto o personagem concebido por um
autor deste se distingue, se aparta, se emancipa de seu jugo. O
personagem tem vida independente, própria. Mal esboçado, adquire
logo ideias originais, fala e age muitas vezes contra a vontade daquele
que o imaginou e realizou. O criador desaparece diante da criatura,
que pode chegar a mudar de atitude, de caráter, de significação através
do tempo. Só ela é eterna: Cervantes desapareceu há muito; d. Quixote
está vivo, viverá sempre, viverá cada vez mais. Ao lado desta tese
Pirandello fez uma sátira, uma sátira tremenda, acérrima aos
dramaturgos, aos intérpretes, ao teatro, em suma, aos seus artifícios, às
suas convenções, ao absurdo de seus axiomas, à sua incapacidade de
traduzir fielmente a verdade, como pretende, de apresentar a vida na
plenitude de sua realidade, como procura. Não erraria talvez quem
visse, assim, em Sei Personaggi in Cerca d’Autore como um prefácio,
uma justificação do teatro de demolição e de reconstrução do autor de
Ma non è uma Cosa Seria. A falência da cena clássica é evidente:
criemos outra, portanto. A peça de Pirandello é qualquer coisa de
formidável e de genial. E interessa a todos, cultos ou não, interessa
4
MACHADO, Antônio de Alcântara. Sei Personaggi in Cerca d’Autore, de Pirandello, no Municipal.
In: ____. Palcos em Foco: Crítica de Espetáculos / Ensaios sobre Teatro (1923-1933) – Tentativas no
campo da dramaturgia. Pesquisa, organização e introdução de Cecília de Lara. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2009, p. 103-104.
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intensamente, empolgando aqui, assombrando acolá. O espectador não
sabe precisamente onde reside a sua sedução inelutável. Mas deixa-se
arrebatar, deixa-se levar por ela, entre curioso e surpreso.5
Clareza maior que essa não há. Por meio da crítica, Pirandello representa a
nova cena que daria sustentação para a renovação daquela que Machado chama de
clássica, pois surgia de sua própria obra teatral a crítica a todo o jogo teatral. A
“incapacidade de traduzir fielmente a verdade” é uma característica essencial realçada
pelo crítico, ela seria uma das apostas primordiais para o processo de renovação que a
modernidade artística trazia e que o dramaturgo bem traduzia para o jogo do texto
teatral e da cena. Enfim, no âmbito da crítica produzida por Alcântara Machado o tema
da modernidade era figura presente desde 1923 e a dramaturgia italiana, por meio de
Pirandello, adquiria o centro do debate. Assim se configura fortes elementos da
circularidade cultural entre Brasil e Itália no que diz respeito ao tema do teatro.
Se é reconhecida a ausência das artes cênicas durante o evento que capitalizou
para si a essência da divulgação da arte moderna em 1922, o mesmo não pode ser dito
em relação à crítica teatral da época. O tema era fonte de preocupação de nossos
profissionais, demonstrando que aquilo que se cristalizou como Semana de Arte
Moderna é, na verdade, parte de um processo histórico amplo que só pôde ser realizado
porque estava em diálogo com os debates políticos, sociais e artísticos do mundo
ocidental como um todo. Além de corroborarem para essa constatação, as palavras de
Antônio de Alcântara Machado também são capazes de indicar os sujeitos que eram
reconhecidos como fonte de modernidade cênica. Nesse campo, o nome de Pirandello
ocupava importante papel, demonstrando que esse debate era amplo, ocorreu desde os
anos 1920 e não esteve circunscrito apenas ao campo da literatura e das artes plásticas,
por exemplo.
Além disso, já que estamos nos propondo a minimamente apontar a pluralidade
do processo histórico, precisamos considerar que a figura de Alcântara Machado está
ligada ao grande centro produtor de arte do país no século XX. A cidade São Paulo se
tornou referência do debate sobre o tema, porém por mais que ela tenha se consolidado
nesse núcleo, não se pode deixar de mencionar a dimensão geográfica e a pluralidade
5
MACHADO, Antônio de Alcântara. Sei Personaggi in Cerca d’Autore, de Pirandello, no Municipal.
In: ____. Palcos em Foco: Crítica de Espetáculos / Ensaios sobre Teatro (1923-1933) – Tentativas no
campo da dramaturgia. Pesquisa, organização e introdução de Cecília de Lara. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2009, p. 104-105.
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social do país. Alcântara Machado era crítico paulistano e da cena teatral de sua cidade.
O lugar de sua produção precisa ser ressaltado, porém a recuperação de Pirandello como
sinônimo de modernidade teatral não é lembrada exclusivamente pelo crítico (apesar
dele ter sido o primeiro). Fora do eixo Rio de Janeiro - São Paulo, figuras importantes
do nosso teatro também tomaram o dramaturgo italiano como referência. Hermilo Borba
Filho, fundador na década de 1940 do Teatro do Estudante de Pernambuco, ao tratar de
Recife daquela época utiliza-se das produções de Henrik Ibsen, Federico Garcia Lorca e
Luigi Pirandello como referência teatral que se deve buscar em termos de modernidade.
Recife já comporta, sem sombra de dúvida, uma honesta companhia
profissional, ao lado dos vários grupos amadores que deram, nesta
terra, uma alta significação ao teatro. Há pouco mais de cinco anos
atrás quem se formasse no Recife, com vistas na bilheteria, pensaria,
antes de tudo, numa comediazinha para rir. Agora não. Diante dos
exemplos do Teatro de Amadores, do Teatro do Estudante e do Teatro
Universitário, o nível do repertório não pode descer aos armandos
gonzagas, porém tem que se equiparar à produção que lança Ibsen,
Lorca, Pirandello. Ótimo sintoma.6
Nesse texto de 1949 fica explícito por parte de Borba Filho que o teatro fora do
eixo também estava no registro da busca da modernidade e essa era dada, claro, pelas
matrizes interpretativas européias, sendo que o teatro de Pirandello era uma delas. Esse
tipo de constatação é importante para demonstrar que o debate sobre a modernidade
teatral envolve diferentes sujeitos, porém a referência pirandelliana permanece, mesmo
em contextos sociais e temporais distintos.
Voltando aos anos 1920, ressaltamos ainda que existem diversas experiências
teatrais realizadas por atores brasileiros que, devido à imensa força interpretativa da
Semana de Arte Moderna, ficaram esquecidas ou diminuídas pelo processo de
6
BORBA FILHO, Hermilo. Sem título. Folha da Manhã, Recife (PE), 24 fev. 1949. APUD: REIS,
Luis Augusto da Veiga Pessoa. Fora de Cena, no palco da modernidade: um estudo pensamento
teatro de Hermilo Borba Filho, tese de doutorado, Programa de Pós Graduação em Letras –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, p. 178. Nesse trabalho, o pesquisador Luis Augusto da
Veiga Pessoa Reis marca em diferentes momentos de sua análise o papel modernizador
desempenhado pelo trabalho teatral de Borba Filho, inclusive encenando dramaturgos de reconhecido
empenho moderno para o teatro mundial. Por exemplo, ao tratar do final dos anos 1950, o autor
ressalta sobre o grupo de Borba Filho: “o repertório do seu grupo revela um amplo interesse por
autores modernos, ousados, inovadores. No melhores anos do TAP [Teatro de Amadores de
Pernambuco], foram encenados textos de dramaturgos como, entre outros, Thornton Wilder, Nelson
Rodrigues, Pirandello, Georg Kaiser, Maeterlinck, Luiz Marinho, além do próprio Lorca, que, fora A
casa de Bernarda Alba, tem mais duas peças montadas pelo grupo: Bodas de sangue, em 1956, com
direção de Bibi Ferreira; e Yerma, em 1978, dirigida e protagonizada por Geninha da Rosa Borges”.
(REIS, Luis Augusto da Veiga Pessoa. Fora de Cena, no palco da modernidade: um estudo
pensamento teatro de Hermilo Borba Filho, tese de doutorado, Programa de Pós Graduação em Letras
– Universidade Federal de Pernambuco, Recife, p. 293.)
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rememorização. Patriota e Guinsburg chamam a atenção dos seus leitores para os
trabalhos de Alvaro e Eugênia Moreira, Renato Viana, Joracy Camargo e Odulvado
Viana.7 Todos eles, cada um a seu modo, no início dos anos 1920 dialogaram com a
renovação cênica e produziram trabalhos que fazem parte da chave da modernidade
teatral.
Entre esses personagens do nosso teatro, gostaria de ressaltar a interessante
figura de Renato Vianna, profissional que durante os anos 1920 fez várias tentativas
com vistas a buscar a transformação teatral. Em 1922 Vianna criou, juntamente com
Ronald Carvalho e Villa-Lobos, a companhia Batalha da Quimera, que levou ao palco
encenações que dialogavam com o expressionismo. Em 1924 ele criou o grupo A
Colmeia, que não durou muito e, em 1927, criou o grupo Caverna Mágica, também de
curta duração. A figura de Viana torna-se importante no interior deste trabalho
justamente porque ela fissura o caminho da interpretação da modernidade cênica criado
a partir da Semana de 1922. Renato Viana esteve de fora do círculo do evento e seus
trabalhos teatrais demonstram proximidade com as vanguardas européias 8. Caminhando
nesse sentido, a pesquisadora Cecília de Lara lembra que Alcântara Machado percebe a
inovação do grupo A Colmeia. Em crítica publicada em dezembro de 1924, Machado
lamenta a dissolução do grupo Colméia ressaltando que ele poderia ter produzido bons
trabalhos no sentido da formação de um teatro moderno. O uso das palavras “vespeiro”
e “colmeia” demonstram o que o crítico entendia como importante naquele momento:
No princípio, era uma colméia... Não haveria abelha-mestra; não havia
zangões... Muita ordem; muito trabalho... Fabricou-se o primeiro favo
de mel... Ainda não era de todo puro; produto de abelhas
7
Cf.: GUINSBURG, Jacó. PATRIOTA, Rosangela. “Em busca do Moderno e da Modernização: o
primado da crítica”. In: ___. Teatro Brasileiro: ideias de uma história. São Paulo: Perspectiva, 2012,
p.91-134.
8
Atualmente existem trabalhos acadêmicos publicados, principalmente artigos científicos, que vêm
recuperando a importante figura de Renato Vianna para o processo de modernização dos palcos
brasileiros no início da década de 1920. Nesse ambiente, destacamos o trabalho publicado por
Sebastião Milaré, em 2009: MILARÉ, Sebastião. Batalha da Quimera. Rio de Janeiro: Funarte,
2009. No entanto, o tema carece de maiores pesquisas e sistematização de dados. Outra questão a ser
ressaltada é o fato de Vianna ter dedicado toda a sua vida ao teatro e à sua possibilidade de renovação
no Brasil. Neste artigo estamos citando muito rapidamente apenas o trabalho por ele desenvolvido na
década de 1920, porém em anos posteriores ele continuou a divulgar suas ideias procurando formar
profissionais do teatro e público por meio de diversas viagens em diferentes regiões do Brasil. Além
de ter passado pelo nordeste, cabe lembrar que nos anos 1940 ele fundou, em Porto Alegre, a Escola
Dramática do Rio Grande do Sul e o Teatro Anchieta. Ainda foi convidado para dirigir a Escola de
Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, em 1948, e também estimulou diversos grupos amadores,
como o Teatro do Estudante do Brasil e Os Comediantes.
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inexperientes... Os que o comeram não lamberam os beiços. É verdade
que também não torceram o nariz. Não: limitaram a fazer votos para
que o segundo fabrico fosse de melhor qualidade, de mel mais
dourado, menos turvo... E toda a gente pensava que assim seria. E
toda a gente dizia: __ O amargor vai desaparecer: em breve teremos
mel bem doce, bem açucarado, bem saboroso... Mas logo, no fim de
quatro dias, as abelhas brigaram umas com as outras, e nasceram os
zangões, e surgiram os vespões, e aparecem os abelharucos... Que
desconchavo, santo Deus, que desconchavo! A abelheira. Um campo
de batalhas. As abelhas? Umas feras. E a colmeia? Transformou-se
em vespeiro, em vespeiro dividido por tremenda guerra intestina: asas
partidas, ferrões torcidos, penas rotas, ventres abertos, e nem uma
gotinha de mel... E agora? E então? Só fel! Só fel! Só fel!9
O “mel” da modernidade estava sendo elaborado na colmeia. Logo estaria
pronto e bom para ser degustado, até que o grupo se desfez. O lamento do nosso crítico
é evidente. Em seus estudos, Lara ainda ressalta que Alcântara Machado recupera
Pirandello como uma possível referência a ser seguida por grupos como o de Renato
Vianna:
A. A. Machado recomenda ao novo grupo um repertório moderno, de
dramaturgos estrangeiros como Shaw, Pirandello, Romains, A.
Salmain, Karl Tchapek, Lenormand, J. J. Bernard, M. Achard, bem
como de autor brasileiro que ‘seja bem nacional e bem moderno,
desde que reflita brasileiramente o instante soberbo e vertiginoso que
vivemos’. Autor que, concretamente, ainda não exista na época. O
grupo de A Colmeia se desfaz em seguida, após apresentação em São
Paulo, provocando um segundo comentário do crítico, “Vespeiro”,
conforme chama satiricamente ao grupo de A Colmeia, por causa dos
desentendimentos.10
Diante desses exemplos, podemos considerar que a dramaturgia de Luigi
Pirandello ocupa papel de destaque nos debates sobre modernidade teatral no Brasil da
década de 1920. Por mais que o evento ocorrido em 1922 tenha capitalizado para si uma
enorme gama de discussões sobre o tema, ele não conseguiu abarcar todas as
multiplicidades que o debate carrega. É certo que a relação do Brasil com as vanguardas
européias eram essenciais para os diferentes tipos de linguagem artística, e o teatro não
esteve de fora disso. Entre os vários nomes do teatro moderno europeu da época,
despontava o de Pirandello. Acreditamos que a força dessa dramaturgia se fez por
motivos bem conhecidos, que envolvem questões formais e temáticas.
9
MACHADO, Antônio de Alcântara. Vespeiro . In: ____. Palcos em Foco: Crítica de Espetáculos /
Ensaios sobre Teatro (1923-1933) – Tentativas no campo da dramaturgia. Pesquisa, organização e
introdução de Cecília de Lara. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 226-227.
10
LARA, Cecília de. De Pirandello a Piolim: Alcântara Machado e o teatro no modernismo. Rio de
Janeiro: Inacen, 1987, p. 120.
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O dramaturgo italiano certamente foi um dos principais nomes na virada do
século XIX para o XX que captou a complexidade do debate sobre o indivíduo frente à
modernização. Ele configurou em linguagem dramática os dilemas do sujeito e da ilusão
da aparência. Não podemos esquecer que o ensaio O Humorismo é de 1908 e nele o
intelectual Pirandello enfrenta um longo debate filosófico com o objetivo, entre vários
outros, de entender o ser humano como indivíduo inserido no turbilhão de
transformações que representava o nascer do século XX. Os embates entre o mundo e o
homem e a conseqüente forma de conceber a consciência de si mesmo em um mundo
múltiplo serviu de tema para a composição dos personagens pirandellianos. Não por
acaso, nos últimos parágrafos do texto de 1908 o intelectual siciliano ressalta a
diferença da “obra de arte em geral” e da “obra humorística”:
Na verdadeira realidade, as ações que põem em relevo um caráter se
recortam sobre um fundo de vicissitudes ordinárias, de
particularidades comuns. Pois bem, os escritores, em geral, não se
valem disto, ou pouco se importam, como se estas vicissitudes, estas
particularidades não tivessem valor nenhum e fossem inúteis e
omissíveis. O humorista, ao invés, as entesoura. Não se encontra ouro,
in natura, misturado com a terra? Pois bem, os escritores comumente
jogam fora a terra e apresentam o ouro em cequins novos, bem
coados, bem fundidos, bem pesados e com suas marcas e seus brasões
d’armas bem cunhados. Mas o humorista sabe que as vicissitudes
ordinárias, as particularidades comuns, a materialidade da vida, em
suma, tão variada e complexa, contradizem depois asperamente
aquelas simplificações ideais, obrigam a ações, inspiram pensamentos
e sentimentos contrários a toda aquela lógica harmoniosa dos fatos e
dos caracteres concebidos pelos escritores comuns. E o imprevisto que
há na vida? E o abismo que há na alma? Acaso nós não sentimos
deslizar dentro de nós, por vezes, pensamentos estranhos, quase
relâmpagos de loucura, pensamentos inconseqüentes, inconfessáveis
inclusive a nós mesmos, como que surgidos deveras de uma alma
diversa daquela que normalmente conhecemos como nossa? Daí que,
no humorismo, se apresente toda aquela busca das particularidades
mais íntimas e minuciosas, que podem inclusive parecer vulgares e
triviais se forem confrontadas com as sínteses idealizadoras da arte em
geral, e aquela busca dos contrastes e das contradições, sobre a qual
sua obra se baseia, em oposição à coerência buscada pelos outros; daí
aquilo que tem de decomposto, de desligado, de caprichoso, todas
aquelas digressões que se notam na obra humorística, em oposição à
estrutura ordenada, à composição da obra de arte em geral.11
Uma obra artística inspirada por esse posicionamento teórico só podia ser fruto
de um tempo onde os dilemas da modernização já se colocavam com evidente força. É
11
PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo. In: GUINSBURG, Jacó. (Org.). Pirandello: do teatro no
teatro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.176-177.
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claro que isso mexia e transformava os sujeitos mais atentos de nosso teatro. Antônio de
Alcântara Machado percebeu isso, tomou o dramaturgo como referência e o indicava
como um dos caminhos da renovação para grupos teatrais amadores e inovadores, como
A Colmeia, de Renato Viana.
O outro motivo que colocava bastante luz no nome de Pirandello entre nós nos
anos de 1920 diz respeito à própria característica formal da obra produzida por ele. Se o
principal tema do humorismo é o homem e seus embates, assim como a ilusão de
aparência que todos nós, homens modernos, conhecemos, deve-se destacar na obra de
Pirandello o uso do metateatro, ou o teatro no teatro. Esse recurso foi importante para
colocar em cena a própria contradição da aparência humana frente à modernização. Para
tanto, a relação, no jogo da ficção, entre personagens e atores é fundamental e isso faz a
grandeza e reconhecimento internacional de Seis Personagens em busca de um autor
(1921), Esta noite se representa de improviso (1929) e Cada um a seu modo (1924).
Sob esse aspecto, entendemos o impacto que a encenação de Seis Personagens pela
Companhia de Teatro Argentina, em 1923, causou em Antônio de Alcântara Machado.
Crítico inteligente e que falava a partir de um lugar bem definido com vistas a ajudar na
configuração de um teatro brasileiro moderno, não ficaria impassível diante de um
enredo como o de Seis Personagens. Pois ali os personagens que afrontam os atores
conseguem demonstrar a completa falta de essência dos sujeitos vivos. Aliás, Pirandello
é claro na sua peça em dizer que a única verdade que existe na vida é a verdade dos
personagens, eles são mais vivos do que qualquer um que ocupa um lugar naquele
palco, pois só eles possuem uma essência definida, o outros devem lidar com o dilema
da modernidade e a ausência de conteúdo.
Ao final do texto dramático, há uma discussão lapidar entre um dos
personagens, O Pai, e O Diretor:
O DIRETOR (virando-se, quase assombrado e ao mesmo tempo
irritado, para os Atores) – Mas vejam só, é preciso ser mesmo muito
cara de pau! Alguém que se faz passar por personagem vir aqui
perguntar, a mim, quem sou eu!
O PAI (com dignidade, mas sem arrogância) – Uma personagem,
senhor, sempre pode perguntar a um homem quem ele é. Porque uma
personagem tem verdadeiramente uma vida própria, marcada por suas
características, pelas quais é sempre “alguém”. Enquanto um homem
– não estou falando do senhor, agora – um homem assim,
genericamente, pode ser “ninguém”.
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O DIRETOR – Pois é! Mas o senhor pergunta isso a mim, que sou o
Diretor! O Diretor da Companhia! Entendeu?
O PAI (quase em surdina, com melíflua humildade) – Somente para
saber se realmente o senhor, tal como é agora, se vê... como vê, por
exemplo, na distância do tempo, aquele que o senhor era antigamente,
com todas as ilusões que o senhor alimentava então; com todas as
coisas, dentro do senhor e ao seu redor, como lhe pareciam então – e
eram, realmente para o senhor! – Pois bem – pensando novamente
naquelas ilusões, que agora o senhor já não alimenta mais; em todas
aquelas coisas que agora já não lhe “parecem” mais como “eram” em
outro tempo; não sente que lhe falta, já não digo estas tábuas do palco,
mas o chão, o chão sob seus pés, argumentando que, da mesma forma,
“este” como o senhor se sente agora, toda a sua realidade de hoje, tal
como é, está destinada a parecer-lhe ilusão amanhã?12 (Grifos nossos)
No ambiente de busca pela modernidade, certamente o impacto de uma cena
como essa é enorme, justamente porque ela traduz com perspicácia o sentimento
humano frente ao processo de modernização. Fica claro que as discussões de base de
Pirandello estão no texto O Humorismo e, como bom criador ficcional que é, ele
consegue mobilizar os recursos cênicos e dramáticos com vistas a inserir o seu
espectador no ambiente de incertezas vivido por ele na Itália da virada do século XIX
para o XX. Essa dramaturgia só poderia impactar um espírito ansioso como o de
Alcântara Machado.
Além da carreira teatral, Pirandello também levou esse debate para a literatura.
O primeiro romance do escritor O falecido Mattia Pascal (1904) já traz fortes traços da
dubiedade dos personagens, porém é em seu último romance, Um, nenhum, cem mil
(1925), que ele sintetizaria de maneira clara os dilemas do homem da modernidade.
Afinal, no mundo moderno um pode ser cem mil e, por isso mesmo, é nenhum.
Em outros termos, Pirandello constrói cênica e literariamente a dificuldade de
representar a vida humana no século XX. Raymond Williams, no belo livro Tragédia
Moderna, ao pensar a noção de tragédia e historicizá-la frente às questões da
modernidade, localiza a obra do dramaturgo italiano junto aos embates promovidos por
dramaturgos do século XX, como Ionesco e Beckett, extrapolando, dessa forma, os
limites do debate italiano e colocando-o como uma problemática para todos nós homens
e mulheres do século XX.
12
PIRANDELLO, Luigi. Seis Personagens à procura de um autor. GUINSBURG, Jacó. (Org.).
Pirandello: do teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 229.
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Ao definir os impasses e aporias trágicos Williams utiliza-se de Seis
Personagens ressaltando:
A tragédia, desse modo, reside na existência do “mundo pessoal e
impenetrável”. Esse mundo deve ser definido, e no entanto a sua
defesa destrói outras pessoas, ao destruir a realidade delas. Isso é o
que se entende por aporia, numa situação em que nenhum movimento
válido é possível. Essa é, talvez, a crise final do individualismo, para
além do impasse da tragédia liberal, em que o indivíduo podia lutar
ferrenhamente contra uma condição absoluta exterior a ele, mesmo
arriscando a sua vida. Aqui a própria instância a ser defendida, o
“mundo pessoal e impenetrável”, é, pelo fato da sua existência em
outros, aquilo mesmo que se volta sobre si, destruindo a pessoa. Por
um procedimento paradoxal, os outros indivíduos, defendendo o seu
mundo pessoal e impenetrável e o seu conseqüente modo de ver e
viver, transformam-se numa sociedade hostil, que ameaça destruir o
próprio modo de ser de alguém.13
Acreditamos que a importância de Pirandello para a discussão da modernidade
teatral no Brasil dos anos 1920 resida nesse embate que o próprio dramaturgo entendeu
e configurou na sua obra teatral tanto do ponto de vista temático e formal. E isso foi
importante para críticos teatrais que, no início da década de 1920, assumiam a função de
renovação teatral, a ponto de olharem para a cena européia e recortar os elementos que
eram vistos como essenciais para a entrada do Brasil no caminho da renovação cênica.
Como se percebe, os caminhos da modernidade são múltiplos e a crítica de arte ocupa
papel de destaque nesse ambiente do Brasil dos anos 1920 e Pirandello visto por
Antônio de Alcântara Machado é um desses capítulos.
RECEBIDO EM: 07/06/2016 APROVADO EM: 13/06/2017
13
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify,
2002, p. 197-198.