A Universidade de Coimbra e a formação intelectual das elites mineiras coloniais
Caio C. Boschi*
Assim como em outras importantes facetas da vida colonial brasileira, o sistema educacional
vigente nos séculos iniciais confunde-se com a atuação da Companhia de Jesus. Integrados à política
colonizadora desde o momento em que a Coroa portuguesa decidiu a forma de ocupar espacialmente
sua possessão na América, ao lado de sua atividade missionária os jesuítas logo cuidaram de criar
colégios em diversos centros urbanos.
Essas escolas simbolizavam a dupla função (religiosa e regalista) delegada aos inacianos do
território ultramarino: a evangelização do gentio e a educação dos colonos. Na segunda das
atribuições, a responsabilidade não se esgotava no ensino das primeiras letras, estendendo-se a outros
níveis: progressivamente, foram sendo formados, nos colégios jesuíticos, tanto religiosos (padres e
teólogos) e civis (membros dos aparelhos judiciário e burocrático-administrativo e letrados) quanto
candidatos à complementação de estudos superiores ou a cursos destinados às profissões liberais em
universidades européias.
Ao contrário dos franciscanos, beneditinos e carmelitas, que, mantendo os mesmos cursos,
destinavam-nos basicamente à formação e à reprodução de seus próprios quadros, os jesuítas, sem
também descurarem desse propósito, se abriram a todos, isto é, buscaram ainda atender à demanda de
externos. Além disso, suas aulas constituíam “um sistema de ensino integrado, sem par no tempo da
Colônia, no qual os cursos superiores se articulavam perfeitamente com os demais e com a pregação
religiosa não escolar” (Cunha, 1980, p. 19-20). Assim constituídos, dominavam amplamente o
sistema educacional brasileiro dos primeiros séculos.
Já em 1550, instalava-se na Bahia o primeiro colégio que serviu de modelo aos demais que
lhe sucederam; 22 anos depois ali também tinham início os cursos de artes (filosofia) e de teologia e,
a pouco e pouco, até o momento da expulsão da Companhia, praticamente todo o Brasil de então
esteve pontilhado pelos referidos educandários, compreendendo 17 colégios com cursos
propedêuticos, dos quais oito mantiveram cursos de artes e, ainda que parcialmente, de teologia.
Com esses dois gêneros de cursos, instalou-se no Brasil o ensino superior orientando-se pela
proposta pedagógica da ratiostudiorum, ou seja, pelos mesmos parâmetros e rituais de congêneres
europeus administrados pelos jesuítas. Assim, “o curso de filosofia levava três anos, onde Aristóteles
era o autor estudado: no primeiro ano, lia-se A lógica, no segundo, De Coelo, De Generatione e
Meteoros; no terceiro, continuava-se com De Generatione acrescentando-se De Anima e a
Metafísica; paralelamente a essas obras principais, liam-se, nas cadeira de moral, a Ética e, na de
matemática, a Geometria e a Cosmografia. O curso de teologia era desenvolvido em quatro anos,
*
Professor de História na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
estudando-se, no primeiro, as escrituras; no segundo, o hebraico; no terceiro, a teologia especulativa
segundo Tomás de Aquino; e, no quarto a teologia prática, tratando-se dos atos, das virtudes e dos
vícios”. (Cunha, 1980, p. 25-26)
A par das semelhanças, as autoridades metropolitanas, respaldando-se em pareceres exarados
por dirigentes da Universidade de Coimbra, mostraram-se refratárias a sucessivos apelos que lhes
foram dirigidos, a partir de meados do século XVII, objetivando o reconhecimento da condição
universitária de tais cursos ou do grau de equiparação do colégio jesuítico da Bahia com o da mesma
ordem sediado em Évora. Os graus conferidos pela instituição brasileira não gozavam da chancela
legal do reino português. “Desse modo, os graduados em artes em Évora podiam ingressar
diretamente nos cursos de medicina, direito, cânones e teologia da Universidade de Coimbra,
conforme as leis civis. Para o curso de direito, a universidade requeria um ano de lógica, não todo o
curso de artes. Mas, nem mesmo esse ano de lógica cursado na Bahia era reconhecido. Os graduados
em artes na Bahia eram obrigados a repetir o curso em Coimbra ou em Évora, ou, ainda, a prestarem
exames de equivalência. (Cunha, 1980, p. 31)
Essa situação só se alterou em 1689, quando o Estado, através de carta régia, conferiu estatuto
civil aos colégios jesuítas no Brasil, eximindo os estudantes brasileiros graduados em filosofia da
freqüência em cursos complementares, bem como dispensando-os dos exames de equivalência para
os cursos de direito, cânones, medicina e teologia na Universidade Coimbra. (Cunha, 1980, p. 33)
Vê-se, portanto, que a despeito de não se configurar como universidade stricto sensu e de não
absorver um alunado tão numeroso quanto o que se constata contemporaneamente, nas instituições
universitárias da América hispânica, o ensino superior foi uma efetiva realidade na paisagem
educacional do Brasil Colônia. Perfeitamente ajustadas às diretrizes da política colonizadora do
Reino, sob predomínio quase absoluto dos inacianos, as escolas e seminários incumbiam-se da
formação das camadas sociais dominantes, formação essa caracterizada, nos seus fundamentos, pelo
ensino da teologia e das ciências jurídicas e que, mesmo distante das novas idéias que circulavam e
que já adquiriam tímida presença em algumas instituições européias, não destoava da proposta
pedagógica implementada em outras partes do Ocidente, como nas universidades espanholas e nas
suas sucedâneas da América Latina.
É bem verdade que o panorama educacional da colônia portuguesa em quase nada discrepava
do modelo metropolitano: cultura clássica e formal, sob a égide da erudição tradicionalista e do
dogmatismo escolástico, onde as ciências físicas e naturais ocupavam espaço secundário ou nenhum.
A mudança de mentalidade, como se sabe, é fenômeno setecentista, quando o progresso cultural
passou a clamar por ensino consentâneo com o avanço científico e com a nova realidade histórica.
Monolítica, estagnada e impermeável a inovações, a pedagogia jesuítica não pôde permanecer
incólume no momento em que ao Estado, seu aliado e garante, fez-se imprescindível processar
2
radicais mudanças neste e em outros setores nos quais estava evidente a forte hegemonia exercida até
então pelos jesuítas em Portugal.
Ao lado disso, para o Brasil a expulsão dos inacianos, em 1759, trouxe consigo a completa
destruição do seu sistema educacional, porquanto, à exceção de uma escola de arte e de.edificações
militares na Bahia, de outra de artilharia no Rio de Janeiro e dos dois seminários instalados em 1739
nesta última cidade, estava nas mãos da Companhia de Jesus todo o sistema de ensino da colônia,
mais precisamente 25 residências, 36 missões e os mencionados 17 colégios e seminários, além de
seminários menores e escolas isoladas de “ler e escrever” (Azevedo, 1964, p. 539). No dizer de
Fernando de Azevedo, com a expulsão dos jesuítas, “não foi um sistema ou tipo pedagógico que se
transformou ou se substituiu por outro, mas uma organização escolar que se extinguiu sem que esta
destruição fosse acompanhada de medidas imediatas bastante eficazes para lhe atenuar os efeitos ou
reduzir a sua extensão. Quando o decreto do Marquês de Pombal dispersou os padres da Companhia,
expulsando-os da colônia e confiscando-lhes os bens, fecharam-se de um momento para outro todos
os seus colégios de que não ficaram senão os edifícios, e se desconjuntou, desmoronando-se
completamente, o aparelhamento da educação, montado e dirigido pelos jesuítas no território
brasileiro”.1
Vitorioso, o reformismo pombalino tanto cria no Brasil as controvertidas, isoladas e nem
sempre operantes aulas régias, quanto favorece o advento de novos cursos superiores, a exemplo dos
que são devidos aos franciscanos, primeiramente, em 1776, no Convento de Santo Antônio, no Rio
de Janeiro, e na virada do século, em Olinda, por obra e especial empenho do ilustrado bispo local, d.
José Joaquim de Azeredo Coutinho.
Dessas duas iniciativas (se bem que a segunda seja a mais conhecida, quer pelo prestígio de
que seu autor sempre desfrutou, quer pelo acentuado traço de influência verneiana do projeto
pedagógico), há que se destacar o caráter mais progressista da realização franciscana no Rio de
Janeiro, até porque, oposta mente à pernambucana, a escola carioca não se vocacionou
privilegiadamente para a formação de clérigos, abrigando considerável número de leigos e
desenvolvendo estudos experimentais, no melhor estilo da (sua) inspiradora universidade
conimbricense reformada.
Por terem recebido apoio e estímulo da metrópole, os empreendimentos educacionais
reformistas na colônia, aqui sumariamente apontados, com todos os méritos que se lhes cumpre
conferir, não abalaram a onipresença da escola do Mondego e a sedução que esta continuou a exercer
sobre as elites coloniais. Escassas e circunstanciais iniciativas não comprometeram o lugar cimeiro
de Coimbra, do que tinham nítida consciência as autoridades portuguesas, para quem havia que não
perder o controle sobre setor tão nevrálgico para a sobrevivência do Pacto Colonial. Assim,
1
Nessa altura, segundo o pe. Serafim Leite em sua História da Companhia de Jesus no Brasil (Rio de Janeiro, INL, 1949,
t. 7, p. 218), chegava a 300 o total de estudantes nos cursos de filosofia mantidos pelos jesuítas no Brasil, com um terço
deles concentrados no colégio da Bahia. (Azevedo, 1964, p. 539)
3
compreende-se porque espíritos cultos e arejados como Ribeiro Sanches apregoavam o colonialismo
cultural, ao defenderem a necessidade e a exclusividade de o ensino superior – especialmente o
destinado a carreiras profissionais – ser ministrado no Reino.2
Esse quadro geral e simplificado da realidade educacional da colônia apresenta significativas
peculiaridades se a análise se desloca para a percepção desta problemática no interior das Minas
Gerais.
Em carta de 22 de março de 1721, dirigida a d. Lourenço de Almeida, nomeado governador
da recém-criada capitania de Minas, d. João V constatava e determinava que “nessas terras há muitos
rapazes, os quais se criam sem doutrina alguma, que como são ilegítimos se descuidam os pais deles,
nem as mães são capazes de lhes darem doutrina; vos encomendo trateis com os oficiais das Minas
desse Povo. Sejam obrigados em cada Vila a ter um Mestre que ensine a ler e escrever, contar, que
ensine latim e os pais mandem seus filhos a estas escolas”. (Carvalho, 1933, p. 347)
Ainda que o destinatário, pelo que se lê em sua pronta e preconceituosa resposta, declare seu
receio em ver cumprida eficazmente a determinação régia, em face da impossibilidade de
“aproveitamento das luzes” dos potenciais alunos, por “serem todos filhos de negras” (op. cit.), a
troca de correspondência em causa bem testemunha a preocupação das autoridades com o fenômeno
educacional nas Minas.
A propósito, destaque-se que se trata de atender um segmento social de despossuídos. Frise-
se, além disso, a atitude régia – que será uma constante no processo colonizador da região – de
transferir os ônus financeiros da educação para os senados das câmaras, ou, em última análise, para a
própria população. Com isso, toca-se em um ponto nodal para a boa compreensão do tema em
questão: é preciso não esquecer que, ao contrário do litoral, devido à proibição e ao cerceamento da
fixação de ordens e congregações religiosas na capitania de Minas Gerais, os encargos educacionais
ou foram assumidos pelas câmaras municipais ou pelas próprias famílias, esta segunda a forma mais
usualmente adotada.
Não se desconsidera a eventual existência de escolas organizadas desde os primeiros tempos
da capitania; o que se quer salientar é certo traço de originalidade que o sistema de ensino, das Minas
Gerais coloniais possui em comparação com o que se estabeleceu e vigorou na beira-mar: o de não
estar associado à ação missionária de ordens religiosas. Resulta que, em Minas; de maneira mais
evidente na primeira metade do século, a educação não se identificou implicitamente com a religião.
Por, isso mesmo, as diretrizes da ocupação territorial não trazem em seu bojo uma forma sistemática
de assistência espiritual; a ação catequético-missionária e a criação de escolas, como retaguarda
2
Nas Cartas para a educação da mocidade, Ribeiro Sanches advoga que, nas colônias, devem ser “consentidas apenas as
escolas elementares, com programa e currículo idênticos aos do Reino” a fim de impedir que “nelas os súditos nativos
possam adquirir honra e tal estado que saiam da classe dos lavradores, mercadores e oficiais (...) porque todas as honras,
cargos e empregos deviam sair somente da autoridade e da jurisdição do Soberano, para ficar dependente a dita colônia da
capital (...)”. (op. cit., edição revista e prefaciada por Maximiano Lemos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, p.
137)
4
daquela, não são tidas em conta, provocando o surgimento de um sistema educacional singular,
calcado nas escolas domésticas, o ensino sendo de responsabilidade das próprias mães; de outros
membros da família, de capelães ou, excepcionalmente, de preceptores contratados pelos pais. 3
Não surpreende que se encontrem na documentação da época, ainda no período de
consolidação da ordem social, requerimentos avulsos de solicitação de pagamento de ordenados por
serviços prestados às câmaras por professores por elas contratados para ministrar as disciplinas
básicas, como gramática e latim.
Por outro lado, alguns fatos devem ser arrolados para demonstrar que a ausência de escolas
geridas por ordens religiosas, com suas preciosas bibliotecas anexas, não impediu os habitantes de
Minas Gerais de terem acesso a atualizada literatura pedagógica. Pesquisas recentes dão ciência da
presença em Minas de um exemplar da primeira edição (1722?) da influente obra de Andrade de
Figueiredo, Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar. Lembre- se, ademais, que Minas
acolheu, por três anos (entre 1734 e 1737), inicialmente como comissário régio e depois como
governador interino, ninguém menos do que Martinho de Mendonça de Pina e Proença, cujo
Apontamentos para a educação de um menino nobre saiu publicado quando seu autor acabava de
chegar à região aurífera. Se bem que essa foi uma fase de muitas amarguras e dissabores por parte do
eminente ilustrado, não é de todo absurdo supor que, durante sua permanência em Minas Gerais,
tivesse exposto ou até procurado colocar em prática suas idéias pedagógicas. É faceta que também
demanda pesquisa.
Fosse como fosse, a história da educação em Minas Gerais colonial, especialmente quanto ao
nível superior e à formação de quadros, parece ter um de seus pontos essenciais na fundação, em
dezembro de 1750, do Seminário de Mariana, natural corolário da instituição do primeiro e único
bispado instalado nas terras mineiras no período colonial.
A criação da diocese marianense é um desses raros eventos que conseguem congregar os
interesses das variadas partes nele envolvidas. Ao Papado, atendia o deliberado empenho de Bento
XIV de, diante da crise que abalava a Igreja na Europa, constituir clero nativo nas conquistas
ultramarinas. A Coroa, talvez a maior interessada, atendia seu propósito geopolítico de, sob o
pretexto de que a nova sede episcopal fosse ponto de referência para a propagação da fé cristã na
direção de considerável faixa mediterrânea da colônia, compor os limites irreversíveis do
expansionismo territorial português, no cerne dos projetos políticos de Alexandre de Gusmão, com
vistas à futura negociação do Tratado de Madrid. À população mineira, particularmente às elites
locais, o fato novo permitia, de um lado, acesso facilitado e mais cômodo à escola superior, com
inerentes vantagens financeiras; de outro, uma melhor preparação de estudos para aqueles que
3
A respeito das escolas domésticas e da questão educacional em Minas no século XVIII, recorra-se a José Ferreira
Carrato, Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais, São Paulo, Nacional/Edusp, 1968. (Col. Brasiliana, v. 334)
5
ambicionavam cruzar o Atlântico, em direção às universidades do velho continente, seja as de Paris,
de Montpellier ou de Edimburgo, seja fundamentalmente a de Coimbra.
Importante assinalar que o Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte (assim ficou chamado
o novel estabelecimento), embora criado pelo zelo apostólico do frade Bernardo, d. Fr. Manuel da
Cruz, por decidida e enfática vontade sua, foi confiado à gestão dos jesuítas. Eram antigos os laços
que uniam o primeiro prelado marianense aos inacianos. Na diocese do Maranhão, onde o surpreende
sua remoção para as Minas Gerais, os jesuítas eram seus mais próximos colaboradores e, dentre eles,
mais particularmente, Gabriel Malagrida, reitor e mola-mestra do seminário local.
É a este malfadado sacerdote que d. Fr. Manuel da Cruz, pelo que se lê em copiosa
correspondência, insiste, sem sucesso, em entregar a direção do educandário recém-instituído. A
recusa de Malagrida não impediu, todavia, que alguns companheiros seus estabelecessem uma
residência na cidade episcopal, onde, devido ao antijesuitismo pombalino, pouco tempo
permaneceram.4
Seja porque a instabilidade de seus primórdios trazia incertezas para as famílias dos
candidatos a seus cursos, seja porque, apesar de reclamada, a nova escola não entusiasmara esta
mesma população, o fato é que o seminário marianense não estancou ou diminuiu o fluxo de
estudantes mineiros rumo às universidades da Europa. Nos anos 50, como se verá adiante, Minas
lidera a lista dos locais de proveniências dos matriculados na Universidade de Coimbra.
Além disso, a dita capitania não se constitui em exceção quando se trata de analisar as
repercussões da expulsão dos jesuítas dos domínios lusitanos. Mesmo sobrevivendo a essa ruptura, o
Seminário de Mariana, no decorrer do final da fase colonial, não alterou substancialmente o já
referido fluxo de estudantes brasileiros rumo ao continente europeu. As aulas régias, ainda que
contando com a garantia financeira do subsídio literário, se mostraram incapazes de ocupar, com
eficiência, o espaço aberto com o fato assinalado. Em suma, nesse período, mais do que nunca, as
Minas Gerais davam expressivas demonstrações da lacuna decorrente da ausência de uma instituição
de ensino superior mais sólida e menos voltada para a formação clerical, que é a ênfase assumida
pela escola marianense a partir dos anos 60.
Com uma economia nitidamente diversificada, não caudatária da mineração, com um perfil de
urbanização que não possui similitude na colônia, com uma divisão social do trabalho cada vez mais
delineada, Minas tinha as condições – e, por isso, a necessidade – de sediar escolas superiores
condizentes com seu estágio civilizatório, forma adequada para lhe permitir compartilhar as
mudanças pedagógicas e científicas que se processavam na metrópole e em outras partes da Europa
Ocidental. Assim é que, em mais de uma ocasião, torna explícita a sua vontade, como se nota na
representação que os oficiais da Câmara de Vila Real do Sabará remetem ao rei, em 1768, solicitando
4
A respeito da instalação do Seminário de Mariana e das estreitas relações de d. Francisco Manuel da Cruz a Companhia
de Jesus, consulte-se: TRINDADE, côn. Raymundo. 1951. Breve notícia dos Seminários de Mariana, Mariana, ed. Da
Arquidiocese.
6
facultar-lhes o estabelecimento naquela sede de comarca “de uma aula com Mestre para ensinar
teórica e praticamente cirurgia e anatomia”. (Revista do Arquivo Público Mineiro, 1910, p. 466-469)
É sabida a reação metropolitana. Em eloqüente pronunciamento, que pelo seu colonialismo
contundente dispensa comentários, o procurador da Coroa responde “que pedia (sic) além disso ser
questão política se convinham estas aulas de Artes e Ciências em Colônias; que se lembrava ter lido
que alguma das nações européias se arrependera mais de uma vez de artes estabelecidas nas suas
colônias da América; que lhe parecia que tudo aquilo que se podia escusar, e que, não se escusando,
podia relaxar a dependência que as colônias deviam ter do Reino, devia com efeito escusar-se: que
um dos mais fortes vínculos que sustentava a dependência de nossas colônias era a necessidade de
vir estudar a Portugal”. (op. cit., p. 468, grifos nossos).
Com o tempo, a questão, no entanto, ganhou outras conotações. Não por acaso, cabe lembrar
que, nos planos dos conjurados de 1789, a instalação de uma universidade em Minas tornou-se um
dos fortes elementos catalisadores para a adesão à causa emancipacionista. Era patente o empenho
dos sublevados no sentido de sustar a ida de estudantes para as universidades de além-mar,
projetando-se inclusive a criação de cursos de matemática e ciências naturais; para o que não faltaria
corpo docente altamente qualificado. Daí porque, uma vez abortada a aludida conspiração, não
surpreende o relato do visconde de Barbacena, dirigindo-se, em 11 de julho de 1789, ao ministro
Melo e Castro, em que declara seu temor em relação à recém-descoberta conjura: “não deixo de crer
que as ditas lembranças viessem de Coimbra, seja certo ou não o ajuste dos estudantes porque sempre
nesta matéria achei muito arriscados os sentimentos, opiniões e influência dos bacharéis brasileiros
que têm voltado à sua pátria, especialmente depois que se julgam instruídos nos direitos públicos e
das gentes, nos interesses da Europa e no conhecimento das produções da natureza; e muito mais
depois que passaram a estudar nas universidades estrangeiras, como têm feito alguns sem razão
suficiente”. (Autos da devassa da Inconfidência Mineira, 1977, v. 8, p. 198)
Eram justificáveis essas apreensões? Os ares do Mondego inspiravam planos sediciosos ou
davam alento aos sonhos nacionalistas dos colonos estudantes de sua universidade? Coimbra, celeiro
de elites revolucionárias?
No exaustivo levantamento dos estudantes na Universidade de Coimbra nascidos no Brasil a
que procedeu Francisco Morais, constata-se a matrícula, apenas ao longo do século XVIII, de 1.752
brasileiros, dos quais 347 eram mineiros, total só superado pelo número de baianos (572) e de
cariocas e fluminenses (445). Ressalve-se, porém, que, exceção feita a um duvidoso registro datado
de 1701, só em 1726 chegaram a Coimbra dois outros mineiros (Morais, 1949). Em decorrência, se
corretos os assentos, seria possível dizer que “a corrente regular terá início, de fato, em 1732, quando
se registra um quarto candidato, natural, também este, de Vila Rica. A partir de então não se passa
ano sem que compareça à Universidade algum candidato mineiro. A princípio poucos, um ou dois
anualmente, oriundos em geral de Vila Rica, mas também do Ribeirão do Carmo, do Sabará e do
7
Serro do Frio. O aumento, porém, é crescente nos anos de quarenta, embora a participação mineira
continue inferior à baiana e à fluminense, nos melhores casos a alguma das duas. Em 1750, no
entanto, ela consegue, quase repentinamente, ultrapassar uma e outra, mantendo-se no primeiro lugar,
por vezes a grande distância desses concorrentes, através de todo o decênio (apenas no ano de 1758 é
igualada pela da Bahia), e até 1762 inclusive”.
“O declínio da participação de Minas Gerais principia justamente por ocasião da transferência
da sede do vice-reinado. Com três estudantes apenas, coloca-se ela, agora, depois da Bahia (quatro
estudantes) e muito depois do Rio de Janeiro (12); São Paulo vem imediatamente em seguida, com
dois candidatos, e finalmente o Pará com um. É significativo que, nos anos seguintes de 64 e 65, não
se encontre nenhum filho de Minas nos registros de matrícula. Há apreciável afluxo em 66, mas é
superado pelo comparecimento ainda maior de estudantes baianos. Rio de Janeiro e Bahia disputam a
partir de então, e já sem esse concorrente, o primeiro lugar, salvo ligeiras interrupções na nona
década do século. A partir de 88 a contribuição de Minas passa a minguar de ano para ano e, agora,
sem sinal de recuperação”.5
Se esta é a análise da movimentação de estudantes, há que se constatar, por outro lado, a
existência de acentuada diferença nas opções de cursos pelos candidatos mineiros à vetusta
instituição. Assim é que, se antes da Reforma Pombalina a formação acadêmica desses estudantes era
essencialmente humanista e livresca, depois de 1772, embora ainda se matriculando nos cursos
voltados para a educação clássica, a notabilidade e o melhor desempenho profissional e pessoal dos
mineiros saídos da Universidade de Coimbra se dariam nos denominados estudos científicos, de que
se origina a deliberada vontade de bem conhecer e explorar o potencial natural de sua pátria.
Conhecendo-se um mínimo da trajetória histórica da instituição em foco, outra não poderia
ser a realidade. Todavia, para se perceber a função social na universidade é necessário, antes de mais
nada, entendê-la como organismo historicamente determinado, condicionado e contextualizado, na
busca de estabelecer os seus graus de dependência e de autonomia. Para ficar nos limites da temática
proposta, pode-se afirmar que, enquanto os estudantes anteriores a 1772, em suas incontáveis horas
de lazer, se entregavam muito mais a discussões literárias e exercícios poéticos, os que são
posteriores à reforma, já agora também sob outro regime disciplinar, dedicavam-se a estudos mais
utilitários e imediatistas. Aos poetas Cláudio Manuel da Costa, Santa Rita Durão e Inácio José de
Alvarenga, na primeira fase, se contrapõem os cientistas José Vieira Couto e José Álvares Maciel,
nos anos 70 e 80. Se a primeira geração, ao regressar à terra natal, continuou a cultivar saudosamente
os hábitos conimbricenses, mais pragmáticos, os da geração posterior procuraram estudar geografia e
o potencial de melhor conhecimento e exploração de seu território de origem. Se aqueles viviam
5
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1960. “Metais e pedras preciosas”, em: _____, dir. História geral da civilização
brasileira. São Paulo, Difel, t. 1, v. 2, p. 303. Em criteriosa interpretação, este autor estabelece um paralelismo entre a
variação do ingresso, na Universidade de Coimbra, de estudantes procedentes de Minas Gerais e as flutuações da
produção aurífera daquela capitania. (cf. op. cit., sobretudo p. 302-307)
8
intelectualmente abafados pela cultura jesuítica que lhes era incutida, estes se supunham mais aptos
aos debates e se abriam a uma ampla discussão sobre as novas idéias que ganhavam corpo na Europa.
Claro está que a leitura das perniciosas doutrinas não foi privilégio do período pombalino ou
lhe foi posterior. Antes disso, a despeito do aristotelismo jesuítico, o relaxamento disciplinar que
campeava na universidade beiroa abria espaço para o acesso de professores e alunos às leituras
nocivas e às conversações de natureza política e até mesmo a conspirações. Apesar de procurar
estabelecer em Portugal uma nova postura mental, Carvalho e Melo e sua reforma trouxeram maior
vigilância sobre as leituras e sobre a circulação de livros e idéias, procurando imunizar Portugal do
vírus representado pelo pensamento revolucionário da época. Não vai aí nenhum contrasenso, na
medida em que “se pudéssemos definir os propósitos de Pombal e de seus homens diríamos que, no
lugar das escolas, em grande número, dos jesuítas, procuravam pôr a escola que melhor atendesse aos
fins da política que as condições portuguesas reclamavam”. (Carvalho, 1978, p. 116)
É visível o vetor ideológico-político que subjaz à referida reforma pedagógica, posto que todo
o conjunto de idéias hoje consagrado como pombalismo tem como princípio e fim a recuperação
econômica, política e cultural da nação lusitana.
Na dimensão pombalina de que era imperioso modernizar o país, não havia lugar para a
permanência da rigidez e do formalismo aristotélico-escolástico no sistema de ensino português.
Assim, talvez a maior contribuição que essa tendência renovadora tenha trazido para os estudantes
dos cursos superiores conimbricenses foi a de introduzir e, principalmente, estimular neles o estudo
das ciências experimentais, sem prejuízo da manutenção – apesar de em plano secundário – das
ciências jurídicas e teológicas.
Note-se, a propósito, que, com o pombalismo e após ele, um expressivo número de clérigos
continuou a matricular-se na Universidade de Coimbra e a freqüentar seus cursos. Dos religiosos
procedentes de Minas, alguns se destacariam posteriormente pelos estudos e pesquisas científicas
desenvolvidas, sem considerar os que se sobressaíram na atuação eclesiástica. Nenhuma contradição
há nisso, pois é sempre oportuno lembrar que o pombalismo não se incompatibilizou com a Igreja,
mas sim com uma ordem religiosa específica. Na realidade, muitas das propostas pombalinas têm sua
origem e devem o seu êxito à estreita colaboração por ele recebida de personalidades do clero e de
congregações religiosas, o que explica o caráter cristão e católico de que, opostamente à francesa, se
revestiu a Ilustração portuguesa. (Moncada, 1941, p. 12)
Com efeito, o que se percebe é uma decidida ação do Estado visando incorporar aos seus
quadros apurada mão-de-obra que anualmente emanava dos cursos de Coimbra. Nesse aspecto, a
Universidade hoje sete vezes centenária não escondia sua condição de formadora de recursos
humanos qualificados para o aparelho estatal, isto é, de que ela era peça importante no projeto de
ação política governamental. Por conseguinte, em seu interior, eram tênues, praticamente
imperceptíveis, as diferenças a separar os estudantes reinóis dos coloniais, de vez que, no fundo, o
9
que se pretendia era a preparação e o treinamento de uma única elite luso-brasileira, modernizadora e
ilustrada, em favor de política previamente estipulada pelo Estado, cujo fim último era tirar Portugal
do lugar secundário em que se encontrava no cenário das nações européias.
Conforme destaca Laerte Ramos de Carvalho, “D. Francisco de Lemos, membro que foi da
junta de Providência Literária e Reitor da Universidade de Coimbra, no período posterior à
implantação da reforma, sabia não só que o progresso do país dependia, em grande parte, do
aproveitamento dos mais capazes entre todos os que houvessem cursado estudos universitários, mas
também que o desenvolvimento dos estudos científicos só alcançaria o objetivo almejado se os
graduados pela Universidade fossem aproveitados pelo poder público nos cargos que exigiam
qualificação universitária. Todas as ciências têm fins reais e de grande utilidade para o Estado –
dizia, na sua Relação Geral, D. Francisco de Lemos. Para se conseguir estes fins se mandam ensinar e
aprender nas Universidades. Por este motivo, insistia o Reitor, nesse documento, a necessidade de
ampararem com cargos de diversas naturezas, instituídos ou a serem criados, todos os graduados
pelas novas Faculdades da mesma forma que já se praticava com os teólogos canonistas e advogados.
E, taxativo, concluía, somente o sábio aproveitamento dos matemáticos, filósofos e médicos poderia
proporcionar à nação seguros rumos aos seus empreendimentos”. (Carvalho, 1978, p. 173)
Sentiam-se perfeitamente cônscios de seu privilegiado acesso à educação e integrados na
Metrópole, particularmente em Coimbra, os membros das elites intelectuais da colônia que para lá se
deslocavam. Na Universidade, estimulava-se um clima de entrosamento entre metropolitanos e
brasileiros, em benefício dos interesses estatais. Intelectualmente, aliás, mesmo depois de retornados
ao Brasil, os parâmetros e os padrões que seguiam eram os da urbe coimbrã, em patente evidência da
fusão de comportamento que aglutinava as elites dos dois pólos do império.
Cabe lembrar, com Antônio Cândido, que o pombalismo foi bastante simpático ao Brasil e
aos brasileiros, no que era plenamente correspondido. Nesse sentido, observe-se que algumas das
melhores produções poéticas do denominado pombalismo literário são de autores naturais de Minas,
ex-estudantes da Universidade de Coimbra, como verbi gratia, Basílio da Gama (“O Uruguai”), Silva
Alvarenga (“O desertor”) e Francisco de MeIo Franco (“O reino da estupidez”); não esquecendo uma
série de poemas ilustrados de Cláudio Manuel da Costa e de Alvarenga Peixoto, nos quais são
louvados não só o próprio marquês como outros governantes coevos.6
6
Cf. CÂNDIDO, Antônio. 1975. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 1975. 5. ed. Belo Horizonte,
Itatiaia/São Paulo, Edusp, v. 1, p. 155 e 182-183. Sobre o mesmo assunto, ainda desse mesmo autor, consulte-se: “Letras
e idéias no Brasil colonial”, em HOLANDA, Sérgio Buarque de, dir. 1960. História geral da civilização brasileira. São
Paulo, Difel, t. 1, v. 2, p. 91-105, especialmente p. 95-101. Na obra de Cláudio Manuel da Costa, Antônio Cândido
analisa a ambivalente atitude de “relativo dilaceramento interior, causado pelo contraste entre o rústico berço mineiro e a
experiência intelectual e social da Metrópole, onde fez os estudos superiores e se tornou escritor. Intelectualmente
propenso a esposar as normas estéticas e os temas líricos sugeridos pela Europa, sentia-se não obstante muito preso ao
Brasil, cuja realidade devia por vezes fazê-los parecer inadequados, fazendo parecer inadequado ele próprio”. (Cândido,
1975, p. 90)
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Registrem-se, ainda, e com o mesmo tom exemplificativo, os nomes.de alguns poucos
mineiros de nascimento que, titulados por Coimbra, estiveram a serviço do Estado no período em
foco: o já citado Cláudio Manuel da Costa, leal secretário do governo da capitania entre 1762 e 1765
e de 1769 a 1773; os naturalistas e pesquisadores de riquezas minerais Manuel Ferreira da Câmara
Bittencourt e Sá, seu irmão, José de Sá Bittencourt e Accioli e o amigo e colega deste, José Álvares
Maciel; o também cientista Antônio Pires da Silva Ponte, depois professor da Academia da Marinha
e governador do Espírito Santo; Lucas José de A1varenga, governador de Macau. Sem falar de outros
notáveis naturalistas e pesquisadores, que também compuseram o corpo docente da universidade na
qual se diplomaram, tais como: Joaquim José Vieira Godinho, fr. José de Santa Rita Durão, pe.
Joaquim Veloso de Miranda e José Vieira Couto.
No entanto, seria incorreto supor que a cooptação da intelligentsia colonial mineira se fez de
modo tão simplista e absoluto. É, no mínimo, óbvio concluir que os estudos universitários
despertavam nos antigos estudantes o senso crítico e a tomada de consciência tanto da tutela colonial
quanto no atraso do Reino, comparativamente a outros países europeus.
Por isso mesmo, habilmente, no exercício prático de seu reformismo ilustrado, o Estado
procurou amortecer nessas elites o potencial de seus representantes, ao regressarem ao seu país de
origem, se entregassem a atividades reprodutoras do saber que fossem contrárias à manutenção dos
laços de dependência que uniam essas duas partes do império português. Repetia, nesse gesto,
procedimento idêntico ao que adotara com relação às elites econômicas locais, a quem foram
destinados cargos administrativos e repassada, sob a forma de contratos, a exploração de impostos e
tributos.
Esta oficialização e a decidida busca de homogeneização intelectual determinou que o retorno
ao Brasil dos diplomados pela Universidade de Coimbra se desse, na maioria dos casos, a serviço
e/ou em proveito direto do Estado. De modo praticamente uniforme, a avidez por conhecer empírica
e objetivamente sua terra não incute nesses brasileiros a vontade de utilizarem-se do referido
conhecimento para transformar estruturalmente a situação colonial; antes, toma essa atividade
instrumento de realimentação do sistema colonial.7
Assim, na ótica dos colonos e do ponto de vista exclusivamente político, a educação
universitária na Europa resultava no fortalecimento dos privilégios de classe e da dominação
7
É importante ressalvar, voltando novamente a Antônio Cândido (Holanda, 1960, p. 100-101) que nesse particular
“ocorre então um fato ainda não bem estudado – o da quantidade de jovens bem dotados e de boa formação, que, não
obstante, se perdem para a vida científica ou não tiram dela os frutos possíveis. É que a multiplicidade das tarefas, que
então se apresenta, os solicita para outros rumos, enquanto a pobreza do meio condena a sua atividade ou ao praticismo,
ou ao abafamento pela falta de repercussão. Isto, não só para os que trabalham na pátria, mas ainda para os que servem na
Metrópole. O motivo se prende em parte à própria estrutura social, pois a inexistência de estratos intermédios entre o
homem culto e o homem comum, bem como a falta de preparação dos extratos superiores, os forçava às posições de
liderança administrativa ou profissional. Eram por assim dizer aspirados pelos postos de responsabilidade, quaisquer que
eles fossem – vendo-se o mesmo homem ser oficial, professor, escritor e político; ou desembargador, químico e
administrador. Outros, que logravam ficar nos limites da sua especialidade, viam seus trabalhos votados ao esquecimento,
inéditos por desinteresse do meio ou dispersos pela desídia e desonestidade”.
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ideológica dessas minorias de letrados e cientistas sobre a expressiva maioria da população. Pela sua
própria situação no corpo social da capitania, os egressos da Universidade de Coimbra compunham
segmentos da sociedade setecentista mineira em condição ímpar para impulsionar, junto ao restante
da população, a tomada da consciência histórica dos colonos frente ao jugo português, sem que,
necessariamente, tal comportamento significasse entrar em colisão frontal com a metrópole. Ao
contrário, no caso mineiro, ele se configurou como sendo manifestamente conciliador e reformista.
Ainda que se admitisse que essas elites almejassem a separação do Brasil, resta assinalar que,
apesar de ser composta por intelectuais que mantinham vínculos pessoais de amizade, que se
freqüentavam e se correspondiam, desarticuladas, não compuseram grupo coeso no que tange ao
encaminhamento e à constituição de um projeto político orgânico com vistas ao estabelecimento de
nova ordem. Essa ausência de consciência grupal e de formato de propostas políticas permite inferir
que, arvorando-se – e com razão – em serem tidos como elite intelectual da capitania, esses letrados e
cientistas talvez tivessem consciência de que, nem por isso, exerciam efetiva liderança espiritual
sobre o conjunto da sociedade.
Por isso, não se admira que os integrantes dessas elites intelectuais e políticas possam ser
tidos como reformistas, de vez que julgavam possível conviver com as estruturas básicas da colônia,
desde que elas passassem por oportunos aperfeiçoamentos. Intrinsecamente, o que apregoavam era a
defesa da possibilidade de mudança política (a defesa da emancipação política), sem embargo da
permanência das estruturas socioeconômicas (a preservação da ordem escravocrata), ou seja, a
libertação, mas com resguardo e continuidade da ordem social, o que permite afirmar que, se não em
toda a colônia, pelo menos nas Minas Gerais do setecentos, a Ilustração foi sinônimo de
conservadorismo, com propostas políticas de conotação essencialmente conciliadora.
Essa postura das elites intelectuais brasileiras, que com apenas raras exceções concebia seu
país apartado de Portugal, respondia plenamente aos intuitos lusitanos, pois que seria impossível para
Portugal se desenvolver e tentar acompanhar o compasso do progresso europeu sem contar com suas
colônias. A superação do atraso econômico da Metrópole condicionava-se, assim, à intensificação
dos laços coloniais, cujas potencialidades econômicas deveriam ser mais bem exploradas, mormente
diante do advento do capitalismo industrial. Mas é aqui que aflora a contradição estrutural, porquanto
a modernização do absolutismo metropolitano e o melhor conhecimento da realidade brasileira
inexoravelmente proporcionavam o desenvolvimento da colônia, tornando insustentável. a
manutenção dos laços de dependência. Como bem salienta Fernando Novais, na promoção de
reformas que visavam abrandar o sistema, a ilustração luso-brasileira fomenta o progresso dos dois
pólos e acaba por estimular as tensões estruturais inerentes ao sistema. Impossível explorar a colônia
e fazer a civilização chegar a ela sem desenvolvê-la: “É extremamente significativo que, toda esta
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política – que resultou num período de efetiva prosperidade – não abrandou, antes estimulou, as
tensões; e as inconfidências foram assinalando o inconformismo dos colonos.8
Entretanto, há que se relativizar o papel político desempenhado pelas elites aqui referidas.
Cumpre salientar que, se expressiva fração delas participou de movimentos políticos nas Minas
Gerais do século XVIII, a ela não deve ser creditado o ânimo revolucionário que, mesmo precária ou
parcialmente, presidiu os planos e as ações dos rebelados. De Coimbra, seus ex-estudantes mineiros
mais herdaram idéias e planos para o desenvolvimento de sua terra natal do que planos
revolucionários ou essencialmente políticos. Por conseguinte, e tomando a conjuração de 1789 como
evento referencial e mais expressivo, o que se nota é que conjurados convictos e consistentes, como o
cônego Luís Vieira da Silva, ou mais ardorosos e empenhados, como o Tiradentes, não passaram
pelos bancos universitários de Coimbra. Em Minas nasceram, sempre viveram e, no contato
freqüente com atualizada literatura política libertária ou pelo acesso ao noticiário das gazetas e dos
relatos dos regressados da Europa, forjaram seu pensamento e suas ações revolucionárias, cujos
contornos não são necessariamente coincidentes com os do quadro que sintética e superficialmente
se, acabou de esboçar.
Referências bibliográficas
AUTOS DA DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA. 1977. Brasília, Câmara dos Deputados.
Vol. 8.
AZEVEDO, Fernando de. 1964. A cultura brasileira; introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4.
ed. São Paulo, Melhoramentos.
CARVALHO, Feu. 1933. “Instrução pública: primeiras aulas e escolas de Minas Gerais; 1721-1860”.
Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, 24:347.
CARVALHO, Laerte Ramos de. 1978. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo,
Saraiva/Edusp.
CUNHA, Luiz Antônio. 1980. A universidade temporã: o ensino superior da Colônia à era de
Vargas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/UFC.
MONCADA, Luís Cabral. 1941. Um “iluminista” português do século XVIII: Luís Antônio Verney.
São Paulo, Acadêmica.
MORAIS, Francisco. 1949. “Estudantes da Universidade de Coimbra nascidos no Brasil”, em
Brasília, Coimbra, Universidade de Coimbra/Instituto de Estudos Brasileiros. Suplemento ao vol. 4.
REVISTA DO ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. 1910. Belo Horizonte, 15:466-9.
8
Cf. NOVAIS, Fernando A. 1984. “O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos”. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 7, n. 118, mar. Consulte-se também do mesmo autor Portugal e Brasil na crise do antigo sistema
colonial (1777-1808). São Paulo, Hucitec, 1979, e ainda o capítulo “As dimensões da Independência”, em MOTA, Carlos
Guilherme, org. 1822: Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1972. p. 15-26.
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