ONDE ESTÁ DEUS QUANDO CHEGA A DOR?
Philip Yancey
Editora Vida, 2005.
PRIMEIRA PARTE – POR QUE A DOR EXISTE?
Um problema que permanece
Enquanto isso, onde está Deus? Esse é um dos problemas mais
inquietantes. Quando a pessoa se sente feliz, tão feliz que nem parece
precisar dele, e a ele se chega a fim de louva-lo, é recebida de braços
abertos. Mas o que acontece quando a ele se dirige em situação
desesperadora, a despeito de todos os seus esforços? A porta se lhe fecha
e, por dentro, é duplamente aferrolhada. Depois, silencia. Daí parece
melhor se afastar.
C. S. Lewis, Análise de Uma Aflição (A grief observed).
Há alguns anos, atendi a um desesperado pedido de socorro de
amigos muito íntimos, John e Claudia Claxton. Recém-casados, ambos com
pouco mais de vinte anos, começavam a vida no Centro-Oeste norte-
americano.
Em uma carta, John escreveu: “Queira desculpar minha maneira de
escrever [...] não sei o que dizer. Nem consigo achar as palavras”. O casal
enfrentava um problema maior do que podia suportar. Claudia tinha
desenvolvido a doença de Hodgkin, câncer das glândulas linfáticas, e os
médicos diziam que sua chance de vida era de apenas 50%.
Em uma semana, os cirurgiões fizeram um corte em seu corpo
desde a axila até o abdome e removeram todo e qualquer traço visível da
doença. Fraca e aturdida, ela jazia numa cama de hospital.
Na ocasião, ironicamente, John trabalhava como assistente de
capelão num hospital local. Sua compaixão por outros pacientes declinou
perigosamente. “A doença de Claudia”, contou-me ele, “fazia com que eu
entendesse melhor a situação de outros pacientes, mas não mais me
interessava por eles; pensava somente em Claudia. Tinha vontade de
gritar: ‘Parem com essas lamúrias, seus idiotas! Vocês pensam que estão
cheios de problemas, mas minha esposa pode estar morrendo neste
momento!’”.
Embora John e Claudia fossem cristãos, a revolta contra Deus
avolumou-se: revolta contra um parceiro que eles amavam e que se tinha
virado contra eles. “Ó Deus, por que nós?”, clamavam. “Deste-nos, só
para nos provocar, apenas um curto ano de casamento feliz preparando-
nos para esta dor?”
O tratamento com cobalto arruinou o organismo de Claudia. Ela
perdeu a beleza quase da noite para o dia. Sentia-se constantemente
cansada, sua pele tornou-se escura, o cabelo começou a cair, a garganta
estava sempre inflamada e ferida. Vomitava quase tudo o que comia. Os
médicos precisaram suspender o tratamento por algum tempo, pois a
garganta havia inflamado de tal maneira que ela não conseguia engolir.
As visitas a Claudia.
No princípio, Claudia esperava consolo e conforto de seus amigos
cristãos. Suas visitas, porém, tornaram-se desconcertantes, não
consoladoras.
Um diácono da igreja aconselhou-a solenemente a refletir sobre o
que Deus estava procurando ensinar-lhe.
- Certamente deve haver alguma coisa em sua vida que desagrada a
Deus – disse ele. – Você deve ter deixado de fazer a vontade dele em
algum ponto. Essas coisas não acontecem por acaso. Deus utiliza as
circunstâncias para nos alertar e punir. O que será que ele está querendo
lhe dizer?
Dias depois, Claudia ficou surpresa ao ver uma senhora da igreja
que mal conhecia. Era evidente que aquela viúva gorducha e um tanto
desmiolada pensava que sua vocação era ser “chefe de torcida” das
visitas aos doentes. Trouxe flores, cantou hinos batendo palmas e recitou
alegres salmos sobre lindos riachos e montanhas. Sempre que Claudia
tentava falar de sua doença ou do prognóstico, a mulher rapidamente
mudava de assunto. Queria afastar o sofrimento com entusiasmo e boa
vontade. Ela, porém, fez apenas uma visita. Depois de um tempo, as flores
murcharam, os hinos pareceram dissonantes e Claudia ali estava face a
face com outro dia de dor.
Veio outra mulher, fiel seguidora dos pregadores da televisão que
curam pela fé. Irradiando confiança, assegurou a Claudia que a única
solução era buscar a cura divina. Quando Claudia lhe contou sobre o
conselho do diácono, a mulher quase explodiu.
- A doença jamais é da vontade de Deus! – exclamou ela. – É o que a
Bíblia diz. O Diabo nos rodeia, como leão que ruge, mas Deus a livrará, se
você tiver fé suficiente para acreditar que será curada. Lembre-se,
Claudia, de que a fé pode remover montanhas, inclusive a doença de
Hodgkin. Simplesmente nomeie sua promessa, com fé, e então reivindique
a vitória.
Nas manhãs seguintes, Claudia tentou “aumentar” sua fé enquanto
permanecia deitada na estéril sala de tratamento de cobalto. Ela se
perguntava se havia entendido o procedimento. Não questionava o poder
sobrenatural de Deus, mas como convence-lo de sua sinceridade? A fé não
era como um músculo que pudesse ser aumentado pelo exercício. Era algo
escorregadio, teórico, difícil de alcançar. A questão de aumentar a fé
pareceu-lhe terrivelmente cansativa, e jamais conseguiu descobrir como
empreender tal tarefa.
Outra senhora, talvez a mais “espiritual” da igreja de Claudia, trouxe
alguns livros sobre louvar a Deus por tudo o que acontece.
- Claudia, você precisa chegar ao ponto de poder dizer: “Deus, eu te
amo por me fazeres sofrer desta maneira. É a tua vontade. Tu sabes o que
é melhor para mim. Eu te louvo por me amares de tal modo que permites
esta experiência. Agradeço-te todas as coisas, inclusive esta”.
Ao meditar sobre o que a senhora dissera, a mente de Claudia
encheu-se de imagens horríveis e cruéis de Deus. Imaginou um gigante,
tão grande quanto o Universo, que tinha prazer em esmagar entre os
dedos as pobres criaturas humanas, pulverizando-as com os punhos e
arremessando-as contra pedras pontiagudas. Esses seres humanos
continuavam a ser torturados até que gritassem: “Deus, eu te amo por
estares fazendo isso comigo!”. Essa idéia lhe era repulsiva. Claudia não
podia adorar nem amar um Deus assim.
Outro visitante, o pastor de sua igreja, fez com que ela sentisse que
estava cumprindo uma missão. Ele lhe disse:
- Você, Claudia, tem o privilégio de sofrer por Cristo, e ele a
recompensará. Deus a escolheu por causa de sua grande força e
integridade, assim como escolheu Jó. Ele a está usando como exemplo. A
fé que outros têm pode aumentar por causa de sua atitude. Deve sentir-se
privilegiada, não amargurada. O que vemos como adversidade, Deus vê
como oportunidade.
Ele lhe disse que pensasse em si como uma estrela do atletismo e
encarasse a adversidade como uma série de obstáculos que deveria saltar
em seu caminho para a vitória numa corrida.
Eu também visitei Claudia e a encontrei desesperadamente confusa
com todas essas palavras contraditórias.
Tive poucos conselhos a dar a Claudia naquele dia. Na verdade, saí
com mais perguntas ainda. Por que Claudia se lastimava numa cama de
hospital, enquanto eu estava de pé, saudável, a seu lado? Algo dentro de
mim se perturbava ao ouvi-la repetir os prontos comentários de seus
visitantes. O cristianismo deveria fazer quem sofre sentir-se ainda pior?
Uma abordagem pessoal.
Perguntei a alguns universitários o que tinham contra o cristianismo,
e a maioria repetiu variações sobre o mesmo tema do sofrimento: “Não
posso acreditar num deus que tenha permitido Auschwitz e Camboja”;
“Minha irmão adolescente morreu de leucemia, apesar de todas as
orações dos cristão”; “Ontem à noite, um terço da humanidade foi para a
cama com fome; isso faz sentido no contexto do amor cristão?”.
Curiosamente, não ouço ninguém debater “o problema do prazer”.
Por que achamos que as sensações de prazer são tão naturais, mas
reagimos violentamente contra a dor?
Pesquisando livros sobre o problema da dor, descobri que diversos
grandes filósofos, embora favoráveis à ética e aos princípios cristãos,
tropeçaram ao se defrontar com o problema da dor e do sofrimento,
acabando por rejeitar o cristianismo. C. E. M. Joad escreveu: “Quais são,
pois, os argumentos que, para mim, desfazem o ponto de vista religioso
do Universo? [...] Primeiro, a dificuldade apresentada pelo fato de existir a
dor e o infortúnio”.
Como na batalha de Hércules contra Hidra, todas as nossas
tentativas de derrubar argumentos agnósticos esbarram em exemplos de
sofrimento bastante constrangedores. O romancista Peter Der Vries
chamou o problema da dor de “ponto de interrogação invertido, como um
anzol no coração humano”. Geralmente, a explicação cristã soa como uma
desculpa falsa, confusa e mal-articulada.
Ao preparar este livro, conversei com cristãos que sofrem, bem mais
do que qualquer de nós. Para muitos deles, a dor faz parte da vida. É a
primeira sensação da manhã que se prolonga até o último momento antes
do sono, se tiverem a sorte de conseguir dormir. Também passei uma
temporada entre leprosos, pessoas que não sentem dor física, mas que,
ironicamente, gostariam de sentir. Com tais pessoas como minhas
referências, entrei no mundo dos que sofrem para descobrir que diferença
faz ser cristão.
A dádiva desejável
Os sintomas e a doença não são a mesma coisa. A doença existe bem
antes dos sintomas. São os sintomas, não a doença, o começo da cura. O
fato de serem indesejáveis faz de todos eles mais um fenômeno da graça,
um dom de Deus, uma mensagem do inconsciente para, se quiser, iniciar o
auto-exame e o restabelecimento.
M. Sott Peck, Formação da Personalidade.
Marcas de um projetista.
Apesar de seu óbvio valor como dispositivo de proteção ao
organismo, o sistema nervoso e seus milhões de sensórios de dor são,
entre as funções do corpo, as menos apreciadas.
Os cristãos, que crêem num Deus amoroso, realmente não sabem
como interpretar a dor. Muitos deles, se colocados contra a parede numa
hora difícil, provavelmente admitiriam que a dor é um erro de Deus.
Achariam que ele deveria ter tido mais cuidado e inventado uma maneira
melhor de enfrentarmos o perigo.
Se fizermos um exame realmente acurado, veremos a estrutura da
dor por um prisma completamente diferente. Minha discussão sobre a dor,
então, deve começar examinando o corpo humano. Por que necessitamos
da dor? O que ela tenta transmitir?
Tenho lido muitos livros filosóficos e teológicos sobre “o problema da
dor”, mas estes atribuem, na melhor das hipóteses, reconhecimento
simbólico ao fato de que a dor pode ter algum propósito biológico útil. O
sistema nervoso merece muito mais que reconhecimento simbólico.
Representa a marca da genialidade inventiva.
Considere apenas um dos órgãos do corpo humano: a pele, órgão
flexível e resistente que se estende sobre o corpo todo como uma defesa
avançada contra os perigos do mundo. A pele é aquinhoada de milhões de
sensórios de dor espalhados por sua superfície. Entretanto, não estão
espalhados a esmo; são distribuídos cuidadosamente nos lugares de maior
carência. De fato, o corpo não parece ter quaisquer “células de dor”
exclusivas, pois a sensação de dor está ligada a um elaborado sistema de
sensórios que também apresentam informações sobre pressão, tato, calor
e frio.
Cientistas vendaram os olhos de seus objetos de pesquisa e
mediram a sensibilidade de sua pele. Por exemplo, quanta pressão é
necessária para que uma pessoa perceba um objeto em contato com sua
pele? A escala, chamada limiar absoluto do tato, é medida em gramas (por
milímetro quadrado de superfície da pele). Os pesquisadores descobriram
o seguinte:
- ponta da língua: sensível a 2g de pressão;
- dedos da mão: sensíveis a 3g de pressão;
- dorso da mão: sensível a 12g de pressão;
- parte posterior do antebraço: sensível a 33g de pressão;
- sola do pé: sensível a 250g de pressão.
A pele, um único órgão, apresenta uma vasta variedade de
sensibilidade à pressão. Usamos a língua para atos complexos, como
articular palavras e pegar partículas de comida entre os dentes. Usamos
os dedos para tocar violão, escrever com caneta de ponta porosa e
acariciar. Essas áreas da pele requerem uma sensibilidade com diferenças
mínimas.
Áreas menos críticas, entretanto, não necessitam tal sensibilidade.
Ficaríamos cansados demais se nosso cérebro tivesse de escutar todos os
relatórios das mínimas pressões exercidas sobre o pé, que se defronta
diariamente com o pisar, a compressão e o peso do corpo. Portanto,
enquanto os dedos da mão e a língua são capazes de detectar o toque de
uma pena, outras partes do corpo precisam de uma bela batida para
transmitir ao cérebro uma atividade não-costumeira.
Essas medidas de pressão necessárias para provocar uma reação
mal atingem a superfície das maravilhas do sistema nervoso. Por exemplo,
a sensibilidade à pressão varia de acordo com o contexto. Posso distinguir
uma carta que pesa 35g de outra que pesa 15g apenas segurando-a em
minha mão. Se estivesse segurando um pacote de 4,5Kg, no entanto, não
seria capaz de discernir essa diferença. Precisaria de uma variação de pelo
menos 85g para notar.
Outro teste determina o limiar absoluto da dor. Nele, o cientista
mede o grau de pressão que precisa ser aplicada a uma agulha bem
pontuda para que a dor seja sentida:
- córnea: 0,2g produzem sensações doloridas;
- antebraço: 20g produzem sensações doloridas;
- dorso da mão: 100g produzem sensações doloridas;
- sola do pé: 200g produzem sensações doloridas;
- ponta do dedo: 300g produzem sensações doloridas.
Repare o contraste que há entre esses números e os limites da
pressão. Há uma diferença estarrecedora na ponta do dedo, por exemplo.
É capaz de perceber uma pressão de 3g apenas, mas, para que sinta
alguma dor, é necessário haver uma pressão de 300g! Por quê? Pense nas
atividades dos dedos. Os dedos do violinista sofrem enorme extensão de
pressões para produzir som e volume perfeitos. Um padeiro hábil, ao
mexer a massa de pão, pode notar variações de até 2% na aderência ou
consistência da massa. Nas indústrias têxteis, apalpadores de pano
comparam a qualidade dos tecidos pelo tato. As pontas dos dedos,
portanto, precisam ser incrivelmente sensíveis a ínfimas diferenças no
toque.
Mas não é só isso. As pontas dos dedos também precisam ser
resistentes para suportar atividades pesadas. Repare na mão calejada de
um carpinteiro ou de um jogador profissional de tênis. A vida seria
insuportável se a ponta do dedo mandasse ao cérebro uma mensagem de
dor todas as vezes que a mão apertasse uma raquete de tênis ou batesse
um martelo. O projeto do corpo inclui pontas de dedos com sensibilidade
extraordinária à pressão, mas com relativa insensibilidade à dor. As mãos
e as pontas dos dedos são as partes mais usadas de nosso corpo.
A córnea, entretanto, tem uma vida bastante diferente. Sendo
transparente – essencial para deixar entrar raios de luz –, é muito frágil e
tem um suprimento limitado de sangue. Um pequeno ferimento ou
qualquer intrusão, como a de uma ínfima farpa de madeira ou partícula de
pó, é um problema muito sério. Portanto, os sensórios de dor da córnea
têm uma linha eletrônica direta com o cérebro.
Cólicas, pedras no rim e dores de cabeça
Internamente, o corpo apresenta mais evidências do inteligente
projeto do sistema nervoso. Picadas de alfinete ou aplicações de calor,
técnicas favoritas dos cientistas para medir a dor sobre a superfície da
pele, não funcionam nos órgãos internos, os quais simplesmente não
respondem a esses estímulos. Por que deveriam? Uma vez que a pele foi
designada, no corpo, para identificar o choque de cortes, queimaduras e
pressões, os órgãos internos não têm necessidade de tais sistemas
elaborados de alarme.
Depois de ultrapassar as defesas da pele, coma a ajuda de um
anestésico local, é possível queimar o estômago com um fósforo, inserir
uma agulha através do pulmão, cortar o cérebro com uma faca, esmagar o
rim num torno ou ainda perfurar o osso, e o paciente não sentiria dor
alguma. Sinais internos de dor seriam redundantes, pois a pele e o
esqueleto protegem os órgãos internos de tais perigos.
Entretanto, os órgãos protegidos do corpo possuem jogos únicos de
receptores de dor específicos para os perigos que enfrentam. Se um
médico inserir um balão dentro do estômago e enche-lo de ar, dilatando-o
ligeiramente, sinais urgentes de dor alcançarão o cérebro: cólicas de dor
motivada por gases. A estrutura nervosa do estômago foi planejada para
protege-lo de perigos específicos. Do mesmo modo, o rim solta um alarme
de dor excruciante quando uma pedrinha de 4 mm de diâmetro acha-se
presente. As bordas das juntas, insensíveis a uma agulha ou faca, são
muito sensíveis a certas químicas.
Em raras ocasiões, um órgão interno deve informar o cérebro sobre
uma emergência para a qual seus sensórios de dor não foram preparados.
Como alertar o cérebro da lesão que sente? O órgão utiliza, nesse caso, o
notável fenômeno da dor reflexa. Empresta sensórios de dor vizinhos para
soar o alarme. Por exemplo, a vítima de um ataque de coração pode notar
um aperto ou dor intensa no pescoço, no peito, na mandíbula ou no braço
esquerdo. As células da pele dali, embora perfeitamente saudáveis,
enviam prestativas mensagens de alarme ao cérebro como se elas
estivessem lesadas, quando, na verdade, o problema está em seu vizinho,
o coração.
Bibliotecas de medicina contêm maciços volumes cheios de fatos
surpreendentes sobre o funcionamento do sistema nervoso do corpo.
Fatos como a distribuição exata das células de dor necessárias, os limites
de dor e de pressão e o sistema de suporte da dor reflexa convencem-me
de que, qualquer que seja, a estrutura da dor não aparece por acidente.
A dor não é um erro de Deus, tampouco um planejamento malfeito.
Pelo contrário, revela um projeto maravilhoso que serve ao nosso corpo
muito bem. Pode-se argumentar que a dor é tão essencial ao
funcionamento normal da vida como o sentido da visão ou até mesmo a
boa circulação do sangue. Como veremos, se não houvesse dor, nossa
vida estaria cheia de perigo e privada de usufruir muitos prazeres básicos.
Mas é preciso doer?
Minha apreciação pelos aspectos engenhosos do sistema da dor
remonta ao início de minha amizade com o dr. Paul Brand.
Sem hesitação, o dr. Brand declara: “Sejamos agradecidos a Deus
por ter inventado a dor. Ele não poderia ter feito coisa melhor. É algo
maravilhoso!”. Como uma das maiores autoridades mundiais em lepra,
doença que ataca o sistema nervoso, está qualificado a fazer tal
julgamento.
De fato, certa vez o dr. Brand recebeu uma enorme verba para
projetar um sistema artificial de dor. Ele sabia que uma pessoa portadora
de doenças como lepra e diabetes corriam o sério perigo de perder dedos
da mão, do pé e até braços e pernas porque seu sistema de alarme de dor
havia sido silenciado. Estavam literalmente destruindo a si mesmas sem
perceber. Talvez pudesse projetar um substituto simples que as alertasse
dos piores perigos.
Nesse projeto, o dr. Brand tinha de pensar como o criador, prevendo
as necessidades do corpo. Para ajuda-lo, contratou três professores
catedráticos de engenharia eletrônica, um biotécnico e diversos
bioquímicos especializados em pesquisa. A equipe decidiu concentrar-se
nas pontas dos dedos da mão, a parte do corpo usada mais
frequentemente e, portanto, mais vulnerável. Desenvolveram uma espécie
de nervo artificial que podia ser colocado na ponta do dedo como uma
luva. O nervo eletrônico reagia à pressão por intermédio de uma corrente
elétrica que estimulava um sinal de aviso.
O dr. Brand e seus assistentes enfrentaram problemas técnicos
desencorajadores. À medida que se aprofundavam no estudo dos nervos,
mais complexa tornava-se a tarefa. Quando deveria o sensório dar o
aviso? Como distinguir a pressão normal de segurar um corrimão da
pressão inaceitável de segurar uma planta com espinhos? Como ajustar
isso para atividades rigorosas, como jogar tênis?
Brand observou também que as células nervosas mudam sua
percepção de dor para atender às necessidades do corpo. Quando o dedo
sofre uma infecção, torna-se dez vezes mais sensível à dor do que em
estado normal. Essa é a razão de um dedo inchado incomodar e
atrapalhar: seu corpo está dizendo que precisa de tempo para se curar. As
células nervosas “aumentam de volume”, exagerando as reações às
pancadas e aos arranhões que normalmente nem seriam notados. Os
cientistas, embora muito estudiosos, não encontraram meios para
reproduzir tal proeza divina com a tecnologia atual.
No início, o dr. Brand procurou um meio de fazer seu sistema
artificial de dor funcionar sem de fato machucar o paciente. Havia lido as
reclamações de vários filósofos contra o mundo criado. Por que Deus não
havia projetado um sistema nervoso que nos protegesse sem o
desagradável aspecto da dor? Aqui estava a chance de melhorar o projeto
original com um sistema protetor que não doesse.
Primeiramente, tentaram usar um sinal audível produzido por um
aparelho de audição. Mas o sinal não era suficientemente desagradável. O
paciente era capaz de tolerar o forte ruído se quisesse fazer algo como
apertar uma chave de fenda com muita força, mesmo que o sinal lhe
avisasse que isso lhe era prejudicial. As pessoas que não sentiam dor não
podiam ser persuadidas a confiar nos sensórios artificiais.
Depois, a equipe médica tentou usar luzes cintilantes, que não
funcionaram pela mesma razão. Finalmente, recorreram a choques
elétricos, fixando eletrodos em alguma parte do corpo ainda sensitivo,
como a axila. As pessoas tinham de ser forçadas a reagir; não era
suficiente apenas alerta-las do perigo. O estímulo tinha de ser tão
desagradável quanto a dor.
“Descobrimos também que o sinal tinha de estar fora do alcance do
paciente”, disse Brand. “Até pessoas inteligentes, quando queriam fazer
algo que sabiam que resultaria no choque, desligavam o sinal, faziam o
que tinham em mente e religavam o sinal quando não mais havia o perigo
de receber um desagradável choque. Isso me fez lembrar da sabedoria de
Deus ao colocar a dor fora de nosso controle”.
Depois de cinco anos de trabalho, milhares de horas de empenho
individual e de uma despesa de alguns milhões de dólares, Brand e seus
sócios abandonaram o projeto. Um sistema de alarme que se ajustasse a
apenas uma das mãos alcançaria um preço exorbitantes, estaria sujeito a
freqüentes avarias mecânicas e ainda seria irremediavelmente
inadequado para interpretar tão grande número de sensações. O sistema
chamado, às vezes, de “o grande erro de Deus” era demasiadamente
complexo para ser reproduzido até mesmo pela tecnologia mais
sofisticada.
Por isso, Brand diz com absoluta sinceridade: “Sejamos agradecidos
a Deus pela dor!”. Por definição, a dor é desagradável o suficiente para
forçar-nos a retirar os dedos de um fogão quente. Mas é justamente essa
característica que nos livra da destruição. Se não fosse um sinal de alerta
que exigisse pronta reação, não prestaríamos a devida atenção.
Dando atenção à dor
A dor não é o grande erro de Deus. É uma dádiva que ninguém
deseja. Mais do que qualquer outra coisa, a dor deve ser compreendida
como uma estrutura de comunicação. Um notável sistema de sensórios de
dor mantêm vigilância, com o extraordinário propósito de impedir que me
machuque.
Longe de mim afirmar que toda dor é boa. Algumas vezes, ela torna
a vida completamente miserável. Para os que sofrem de artrite
deformadora ou de câncer em estado terminal, a dor é tão terrível que
qualquer alívio, especialmente um mundo sem dor, pareceria o próprio
céu. Mas, para a maioria das pessoas, a estrutura da dor funciona
diariamente como proteção. É planejada de modo para que a vida seja
possível neste planeta hostil.
O inferno indolor