© Rachel Gouveia Passos, Rosane de Albuquerque Costa e Fernanda Gonçalves da Silva
Gramma Livraria e Editora
Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo Tadeu Monteiro, Gláucio
Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha, Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria
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Produção Editorial
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constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Prefácio
De forma preliminar, cabe expressar a alegria e a honra de receber este convite
das organizadoras desta coletânea, Rachel Gouveia, Rosane de Albuquerque Costa e
Fernanda Silva e Silva que, em trajetórias distintas no campo da saúde mental,
parecem convidar o leitor para uma aproximação de temas atuais e controversos na
sociedade brasileira.
Do primeiro ao último artigo, o leitor é tensionado a transbordar seu
conhecimento do campo da saúde mental, mesmo para aqueles que já o tomam
como campo transdisciplinar. O que podemos nos apropriar neste livro são das
conexões entre as lutas sociais civilizatórias em curso no País com as que a saúde
mental vem sendo provocada a incorporar, revisar, negar e a reconstruir no seu
cotidiano e, de forma simultânea, também a influenciar nas lutas gerais democráticas
em curso. Cada artigo da coletânea tem a potência de convocar o leitor para um
rompimento entre um “dentro” e um “fora” da saúde mental, pois o movimento
ético-político da Reforma Psiquiátrica comparece como partícipe de um projeto
civilizatório.
Portanto, a problematização de diferentes temas, como a construção da agenda
política e clínica da autonomia; do acompanhamento terapêutico na clínica da
convivência; da relação entre o cuidado em saúde mental e o da rede de urgência e
de emergência no Sistema Único de Saúde; das concepções e do manejo da
agressividade e da violência nos serviços antimanicomiais; da atenção com lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais na agenda da saúde e da saúde mental; do
cuidado com mulheres, usuários de drogas, institucionalizados de longa permanência
e tantos outros sujeitos, expressa o compromisso dessa coletânea em reunir autores e
leitores interessados na matéria-prima do cotidiano no trabalho dos profissionais da
saúde mental, sem descuidar dos compromissos éticos com a liberdade e com a
participação singular do louco na urbe. São textos que partem da matéria-prima,
viva e relevante no cotidiano da clínica, para nos brindar com reflexões interteóricas
extraídas das distintas disciplinas das Ciências Humanas e do conhecimento teórico e
militante acumulado na saúde mental.
Nesta direção, os contributos presentes se inserem numa trajetória de articulação
entre teoria e prática que convidam o leitor para uma práxis, ampliando seu
conhecimento e sua implicação com a transformação das práticas institucionais e
social mais ampla.
Chamou atenção a presença de autores de tempos e percursos distintos na luta
antimanicomial e na formação em saúde mental. São profissionais, militantes,
professores, pesquisadores, que problematizam seus objetos de análise a partir das
responsabilidades de cuidado que o compromisso com uma radical
desinstitucionalização provoca na história, na política e na assistência recentes em
saúde mental brasileira.
No entanto, em tempos desafiadores de defesa cega da austeridade econômica e
de processos recorrentes de (re)institucionalização, a coletânea Saúde Mental e os
desafios atuais da atenção psicossocial contribui para os trabalhadores de outros
campos das políticas sociais. Parte significativa dos artigos tratam de temas e da
agenda ético-política transversais às políticas de educação, da assistência social, da
saúde pública dentre outras, que reivindicam uma sociabilidade humana
radicalmente democrática.
Resta, no momento, desejar aos leitores persistentes e participantes da construção
de projetos profissionais e societários que se debrucem sobre as pistas contidas nesta
inquietante coletânea. Um bom exercício da práxis!
Rio de Janeiro, 10 de outubro de 2016
Rita Cavalcante
Assistente Social e Professora Adjunta da Escola
de Serviço Social – UFRJ
Militante da Frente Estadual Drogas
e Direitos Humanos – FEDDH-RJ
Sumário
Prefácio
Apresentação
Capítulo 1 – Mapeando Sentidos: A Construção da Autonomia na
Reforma em Saúde Mental brasileira
Beatriz Adura Martins
Capítulo 2 – O acompanhamento terapêutico como dispositivo clínico
na internação psiquiátrica
Ana Carolina Feitosa
Capítulo 3 – “Por que a crise não cabe no Sistema? ” Divagações sobre a
interface entre a Rede de Saúde Mental e a Rede de Urgência e
Emergência
Katita Jardim
Capítulo 4 – Agressividade e saúde mental: como profissionais de um
CAPS lidam com atos agressivos e violentos dos pacientes
Paula Santos Ferreira
Capítulo 5 – Internação a céu aberto: que corpo então?
CatarineVenas
Capítulo 6 – Diversidade sexual e de gênero e saúde mental: Enlaçando
políticas e direitos
Marco José de Oliveira Duarte
Capítulo 7 – Mulheres, Loucura e Patologização: desafios para a luta
antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica Brasileira
Melissa de Oliveira Pereira e Paulo Amarante
Capítulo 8 – Caminhos e tropeços na atenção aos usuários de álcool,
crack e outras drogas: breve consideração sobre o cuidado e a
internação compulsória
Juliana Desiderio Lobo Prudêncio
Capítulo 9 – (Des) Institucionalização
Renata Andrade Santos Pereira; Amanda Milani de Oliveira Araújo e Rosane Albuquerque da
Costa
Capítulo 10 – Relato de uma experiência em saúde mental: o consórcio
em questão
Anastácia Mariana da Costa Melo
Capítulo 11 – O Residencial Stella do Patrocínio: a experiência do
condomínio de residências terapêuticas no Instituto Municipal de
Assistência à Saúde Juliano Moreira
Débora Lima
Capítulo 12 – Os “usos” de substâncias psicoativas na adolescência: o
relato de uma experiência intrasetorial
Kelly ChristianeV. B. S. Porto e Rachel Gouveia Passos
Capítulo 13 – Consciência antimanicomial em tempos democrático-
populares: caminhos de um movimento
Daniela Albrecht Marques Coelho
Sobre os autores
Apresentação
Saúde Mental e os Desafios Atuais da Atenção Psicossocial é resultado do esforço
coletivo de diversos pesquisadores e profissionais. A obra reúne artigos que
apresentam reflexões acerca das configurações atuais do campo da saúde mental e
atenção psicossocial.
Sua importância encontra-se por agregar assuntos que ainda não estão abordados e
que pulsam no cotidiano da prática profissional, o que afirma a importância da
coletânea. Além disso, agrega a produção de pesquisadores, docentes e estudantes
que estão voltados para a temática, proporcionando a inovação intelectual e a
perpetuação dos estudos sobre a reforma psiquiátrica e seu emergente modelo de
cuidado.
Assim, o leitor que busca melhor aproximação e aprofundamento acerca desta
temática encontrará nesta obra inovações sobre as diversas questões que perpassam a
atenção psicossocial na contemporaneidade. Nesse sentido, ultrapassamos fronteiras
e inauguramos assuntos que antes não eram problematizados passando a dar-lhes
visibilidade.
Agradecemos especialmente a todos os autores que colaboraram para que esta
obra pudesse ser viabilizada e, assim, enriquecer ainda mais o campo da saúde
coletiva e da saúde mental e atenção psicossocial.
As autoras
CAPÍTULO 1
Mapeando sentidos: a construção da autonomia na reforma em saúde mental
brasileira
Beatriz Adura Martins
Do tema da Autonomia. Da Reforma em Saúde Mental brasileira
Em “História da Loucura”, Foucault (2000), nos mostra que a loucura tal qual a
concebemos e vivenciamos hoje, uma doença mental, tem história. Ou seja, em
outros momentos, em outros lugares a loucura não encontrava na doença mental um
correspondente. Nesse gesto desnaturalizador da experiência da loucura como
doença, Foucault nos faz ver uma rede de teorias e práticas compondo nossa, já tão
naturalizada, maneira de pensar e viver a loucura.
O lugar do “louco” enquanto pessoa impossibilitada de travar contratos sociais e,
consequentemente, de submeter-se aos planos e regras sociais, se institucionalizou
com a Revolução Francesa, na medida em que foi considerado incapaz de participar
da mesma ordem contratual e da mesma legalidade jurídica instaurada a partir deste
período. Destacamos a participação ativa de Philippe Pinel naquela transformação
social, e por que não, em certa fundação do Homem Racional Moderno.
(...) a loucura se tornou independente e singular no mundo confuso em que estava
encerrada; novas distâncias vão permitir-lhe ser percebida agora ali onde só se
reconhecia o desatino. E enquanto todas as outras figuras encerradas tendem a escapar
ao internamento, só ela ali permanece, última ruína, último testemunho dessa prática
que foi essencial para o mundo clássico, mas cujo sentido nos parece agora bem
enigmático. (Foucault, 2000, p. 414)
A posição de doente da mente, e que, portanto, não submetido às mesmas
condições jurídicas do “homem racional”, naturalizou o louco como sujeito da tutela
social, condição enraizada e amplamente difundida pelo saber médico-cientificista.
Sabe-se que, o final do século XVIII consolidou a pessoa do médico como única
capaz de salvar da alienação e da vontade irracional o ser humano “despossuído de
razão”. Para Foucault, “esse jogo de uma relação de poder que dá origem a um
conhecimento que, por sua vez, funda os direitos deste poder, caracteriza a
psiquiatria “clássica” (Foucault, 1998, p. 127).
Foi só na década de 1940, período conhecido como Pós-Guerra, que a Europa
lançou um amplo questionamento sobre o manicômio que colocou no centro do
problema a função social de controle exercida por esse estabelecimento, bem como a
relação médico-paciente, como um âmbito dessa dimensão de poder e a lógica de
isolamento e de exclusão social. Inaugurou-se dessa forma, um outro modelo de
cuidado, dando à pessoa a tarefa e o direito de realizar sua loucura levando-a até o
fim, em uma experiência em que os outros podem contribuir, porém jamais em
nome de um poder que lhes seria conferido por sua razão.
No Brasil, o questionamento dos manicômios e de todas as possíveis formas de
exclusão do louco tomaram força a partir do final da década de 1970 e início da de
1980. Nesse período, surgiu o Movimento Trabalhadores da Saúde Mental,
denunciando uma crise política que se instalava na Saúde, sem se limitar a
reivindicações corporativas. Pelo contrário, denunciavam não só as péssimas
condições de trabalho como também o descaso e os maus-tratos sofridos pelos
pacientes das instituições onde trabalhavam, principalmente em algumas unidades da
DINSAM do Rio de Janeiro.
Paulo Amarante (1995) refere-se a tal movimento como fundamental no projeto
da Reforma em Saúde Mental brasileira: “é o ator a partir do qual originalmente
emergem as propostas de reformulação do sistema assistencial e no qual se consolida
o pensamento crítico ao saber psiquiátrico” (p. 51). Não levou muito tempo para essa
movimentação ser ouvida e vista em praticamente todo o país; outros Estados como
Bahia e Minas Gerais, por exemplo, também se organizaram. As universidades foram
amplamente denunciadas “pela perda do caráter crítico para o utilitarismo, advindo
das pressões do mercado da saúde” (Amarante, 1995, p. 51).
O movimento se consolidava e aparecia cada vez mais forte. Começavam a ser
organizados encontros regionais e nacionais de coordenadores de saúde mental. Essa
organização foi essencial para que, em 1987, ocorresse a I Conferência Nacional de
Saúde Mental. No relatório final deste encontro nota-se o quanto a discussão sobre
cidadania e autonomia aparece como uma temática necessária do campo da saúde
metal e da militância.
Isto é relevante, pois veremos que naquele momento o debate sobre a organização
do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental passou a ser pensado junto a
questões da assistência ao chamado “louco”. Fez-se presente na discussão da
organização do movimento a necessidade de o louco ter direitos e deveres e, mais do
que isso, a possibilidade de ele próprio lutar pelas “bandeiras” político-assistenciais.
Neste sentido, naquele momento, lutar por outra condição de cuidado e respeito era
lutar por autonomia.
A síntese de todo esse cenário foi o II Congresso Nacional dos Trabalhadores de
Saúde Mental, que considerou a possibilidade da participação aberta no congresso
como a melhor forma de organização. Segundo Amarante:
Em dezembro de 1987, no Encontro dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru,
surge uma nova e fundamental estratégia. O movimento amplia-se no sentido de
ultrapassar sua natureza exclusivamente técnico-científica, tornando-se um movimento
social pelas transformações no campo da saúde mental. O lema “Por uma Sociedade Sem
Manicômios”, construído neste contexto, aponta para a necessidade do envolvimento da
sociedade na discussão e encaminhamento das questões relacionadas à doença mental e à
assistência psiquiátrica. (Amarante, 1995, p. 493)
Assim, foi garantida a presença do maior número de pessoas e opiniões.
Acreditava-se que este Encontro representaria um avanço na história do Movimento
de Trabalhadores de Saúde Mental, como de fato ocorreu: no final do evento
aprovaram o “Manifesto de Bauru” e, desde 1987, podemos dizer que temos um
Movimento Nacional de Luta Antimanicomial no Brasil.
Dado esse contexto, o movimento começou a pensar um conjunto de estratégias e
serviços, a elaborar políticas e a realizar outras ações que deram origem ao que hoje
chamamos de Reforma em Saúde Mental. Entendemos como Reforma em Saúde
Mental um conjunto de estratégias e ações ético-políticas que buscam a superação do
modelo asilar / hospitalocêntrico e a implementação de uma atenção psicossocial ao
“usuário de saúde mental”.
Esta conceituação não é simples; o próprio termo Reforma em Saúde Mental
apresenta-se como algo problemático. O termo “Reforma”, segundo Paulo
Amarante, “indica um paradoxo – pois foi sempre utilizada relativa às transformações
superficiais, cosméticas, acessoriais, em oposição às “verdadeiras’ transformações
estruturais, radicais e de base” (1995, p. 87); e a expressão “Saúde Mental” será
adotada em detrimento do uso de “Psiquiátrica”, indicando uma transformação
ampla da saúde e não específica de uma especialidade.
Neste artigo, buscou-se mapear e entender os caminhos de produção dos sentidos
que a noção de autonomia ganha na Reforma em Saúde Mental no Brasil por meio da
análise de documentos referentes às três primeiras conferências de saúde mental
realizadas entre meados dos anos 1980 e o início dos 2000 (1987, 1992 e 2001);
relatórios dos Encontros de Coordenadores de Saúde Mental; os relatórios dos
Encontros Nacionais da Luta Antimanicomial e de bibliografia que contextualizasse
temporal e conceitualmente o tema.
As conferências e os encontros retratam a história viva das utopias, teses e
diretrizes construídas pelo coletivo, dentre as quais, a preocupação com a
autonomia, muitas vezes aparece com destaque. Nesse sentido, esses documentos
foram fundamentais para pensarmos como surgiu a preocupação com a questão da
autonomia e verificarmos o modo como essa questão foi pensada, ganhou espaço e
recebeu críticas.
A Autonomia do movimento e o movimento pela autonomia
O período entre 1979 a 1987, pode ser considerado como o “período germinativo”
da Reforma em Saúde Mental brasileira (Delgado, 1992). Tal delimitação é atribuída
ao marcante acúmulo de discussões e práticas ao redor da temática. Este período foi
crucial para a política geral da Nação. Foi justamente ao longo daqueles anos que
tivemos o início a uma tímida redemocratização do país: nesse período sindicatos,
partidos e entidades políticas, no geral, lutavam com veemência pelo direito à voz,
cidadania e autonomia.
Naquele contexto, ao movimento de saúde uniram-se outros movimentos sociais,
ampliando sua bandeira de luta, além disso, foi também o momento em que
começou a se manifestar contra a “indústria da loucura”. Manifestar-se contra esta
“forma de industrialização” era mostrar para todos como a loucura, no Brasil, era
lucrativa. Com isso, denunciava-se, por exemplo, os donos de hospitais psiquiátricos
e o Ministério da Saúde, que destinava, praticamente, toda verba pública da saúde
mental a leitos conveniados, ou seja, a hospitais psiquiátricos privados, que
priorizavam formas coercitivas e autoritárias de lidar com a loucura.
A organização do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental era cada vez
mais ampla e se aprofundava a compreensão de que a saúde tem uma dimensão de
produção coletiva e social, que supõe a participação ativa da população:
A atual situação política do país não permite a participação da população na elaboração
de planos e políticas de saúde. No momento em que vários setores da população
brasileira reivindicam alteração desse quadro, lutando por seus direitos políticos, os
trabalhadores da área de saúde mental exigem também a participação ativa da
população, que é a real mantenedora dos serviços-assistenciais (V congresso brasileiro
de psiquiatria, 1978).
Em 1979, o médico italiano Franco Basaglia trouxe ao Brasil a experiência da
intervenção triestina, deixando forte influência no processo de Reforma em Saúde
Mental brasileiro. Na conferência proferida naquele ano em São Paulo, Basaglia,
entre outros assuntos, falou a respeito de uma nova integração social:
Certamente a pessoa que toma consciência da causa de seu internamento terá
possibilidade de uma nova integração social. Não penso que o internado no manicômio
deva ser um revolucionário e sim uma pessoa que procura expressar sua subjetividade na
sociedade. (Basaglia, 1979, p. 20)
Nesse mesmo ano ocorreu o I Encontro Nacional dos trabalhadores de Saúde
Mental, em que se discutiu a organização do movimento, mas também já foi exposta
a necessidade de modificar de imediato a assistência psiquiátrica no país, conforme o
relatório deste encontro:
O modelo asilar vigente não permite uma atenção adequada à doença mental, sua
estrutura rígida burocratizada repressiva e de exclusão concorrem para o agravamento
das condições dos pacientes que buscam o tratamento (...). (I Encontro Nacional de
Trabalhadores em Saúde Mental, 1979)
Como vimos, o movimento segue pensando sua organização e uma outra forma de
atenção à Saúde Mental: Atenção Psicossocial. Na década de 1990, já com alguns
serviços do novo modelo funcionando e alguns manicômios sendo desativados, a
Reforma em Saúde Mental passou a ser política oficial do Estado brasileiro. É desse
período a portaria 224 e o projeto de lei do deputado Paulo Delgado, fundamentais
na Reforma em Saúde Mental.
A Portaria 224, de 1992, que estabeleceu algumas diretrizes para uma nova forma de
assistência em saúde mental, bem como a regulamentação das normas para o
funcionamento dos CAPS, NAPS, Hospital-Dia, entre outros equipamentos que se
estruturavam no que chamamos hoje de rede de serviços substitutivos em saúde mental.
Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado foi um marco dentro das políticas em saúde
mental. No projeto está expressa a necessidade da extinção progressiva dos manicômios
e sua substituição por outros recursos assistenciais e também uma regulamentação mais
eficaz do problema da internação compulsória. Depois de tramitar quase treze anos na
Câmara Federal, o projeto tornou-se lei (Lei 10.216), com muitas conquistas, porém o
parágrafo relativo à extinção progressiva dos manicômios vetado.
É também nesse período que nas Conferências, Congressos e planos políticos
estatais temos a prática da atenção psicossocial e consequentemente a noção de
autonomia sendo pautadas. Umas das diretrizes aprovadas na Conferência de 1992
foi: “criar normas, leis e regulamentos que exijam das instituições prestadoras de
serviços de saúde a garantia de respeito aos direitos dos pacientes psiquiátricos (...)”
(II Conferência Nacional de Saúde, 1992).
Vemos dessa forma como a organização do Movimento da Luta Antimanicomial
pode ter influenciado às Políticas de Saúde Mental. Nota-se ainda que a autonomia
política do movimento – que traz a discussão da horizontalidade das relações e a
participação de todos os atores do campo da saúde mental – possibilitou pensar um
conjunto de políticas que visassem a dimensão da autonomia do chamado “louco” em
suas elaborações.
Este tema é tão atual que o Encontro Nacional do Movimento da Luta
Antimanicomial em 2014, realizado na cidade de Niterói, nomeado “Os
Encarceramentos e Restrições da Liberdade na Atualidade: Desafios para o
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial”, teve na apresentação do seu relatório
final o tema da autonomia em destaque. Certamente não abordaremos
profundamente, neste artigo, a complexidade deste debate no presente, mas a
indicação deste relatório nos ajuda a afirmar que o tema da autonomia na Reforma
em Saúde Mental não pode ser desatrelado de uma dimensão coletiva e atravessa pela
militância no movimento social.
(...) durante quatro intensos dias, militantes do Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial [MNLA] se reuniram e compartilharam análises sobre a conjuntura da
luta antimanicomial e das lutas populares no Brasil de hoje, atualizando posições e
estratégias nesta luta por uma sociedade sem manicômios. Foi momento sobretudo de
estarmos juntxs e nos fortalecer, compartilhando e renovando afetos antimanicomiais!
Nesse processo, debateu-se intensamente no Núcleo Estadual do Movimento Nacional
da Luta Antimanicomial do Rio de Janeiro, responsável pela realização do Encontro, a
respeito das parcerias que seriam buscadas para viabilizar financeiramente a sua
realização. A discussão girava em torno da necessidade apontada por parte dos militantes
de afirmar uma autonomia para o movimento, e de debater mais profundamente sobre
as implicações envolvidas nas parcerias construídas e nas articulações políticas.
(Movimento Nacional do Movimento Antimanicomial, 2014)
A luta legalista: a autonomia pensada como direito a ter direitos
Segundo Castel (1978, p. 21), a primeira medida legislativa que pensa
especificamente a assistência aos chamados doentes mentais data de 1838. Essa
medida inicia um novo campo de saber especializado nesses “insanos” e junto a ele
inaugura-se um novo espaço para acolher essas pessoas: o Asilo. Como vimos
anteriormente, foi só a partir da Revolução francesa-burguesa que esses “insanos”
passaram a ter um status patológico, ou diferirem pela sua condição mental e,
portanto, passíveis de tratamento. Mas já no período apresentado por Castel, a
sociedade vigente precisava dar um destino para aqueles que antes eram os
mensageiros de Deus, os oráculos divinos.
A interdição aparece como um dos procedimentos judiciários dessa nova forma de
assistência e essa medida só poderia ser usada após demanda da família ou de uma
“ordem do rei”. Segundo o autor, “a pessoa reconhecida insana podia, então (mas isso
não era obrigatório), ser sequestrada em uma casa de detenção e seus bens eram
colocados sob tutela” (Castel, 1978, p. 23).
A posição de sujeito tutelado, maciçamente encontrada nos hospitais psiquiátricos
até hoje, consiste na colocação de uma pessoa numa posição infantilizada, passiva e
incapaz. Com o argumento de proteger os “loucos”, a Justiça e a Psiquiatria fundam
o direito de interditá-los. Assim, lhes são retirados desde seus bens materiais até seu
corpo, ficando minimizada a possibilidade do “louco” travar contratos sociais, afetivos
e de se relacionar de um modo geral.
Ao levantar a discussão sobre a questão da tutela (curatela) do “louco”, a Reforma
em Saúde Mental coloca, em oposição a esta prática, o argumento da produção de
autonomia, como uma coprodução de responsabilidades e dependências. Mais à
frente, veremos quais são os desafios dessa discussão nos tempos de hoje.
A superposição dos conceitos de incapacidade laboral e incapacidade civil- ‘se a pessoa
não pode trabalhar claro que não pode também cuidar de seus interesses’, espécie de
senso comum entre peritos, familiares, juízes e pacientes – produz interdições com a
única finalidade de instrumentalizar o recebimento de benefícios previdenciários,
confusão que se sustenta em normas abusivas a serem imediatamente saneadas. A
reforma psiquiátrica, introduzindo o tema da autonomia pessoal e da vida civil ativa
como critérios de eficácia terapêutica, produzirá fatalmente mudanças práticas na
cultura da tutela. (Delgado, 1992, p. 110)
Como vimos nas Conferências e Encontros da Luta Antimanicomial, a discussão
legislativa sobre o “louco” está sempre acompanhada das discussões sobre direitos e
deveres dos usuários e da cidadania dos mesmos. Isso nos faz pensar que a noção de
autonomia pautada pela Reforma em Saúde Mental carrega em si esses elementos.
Não podemos nos ausentar de colocar um nó paradigmático nesta perspectiva, posto
que como buscamos afirmar, a mesma lógica que funda o Direito como “direitos e
deveres”, ou seja, a lógica burguesa, é que trancafiou a loucura num corpo único (do
doente mental) e de um saber único (o saber assistencial-psiquiátrico).
Voltando aos nossos documentos e em tempos que a luta pela implementação de
políticas procurou ampliar os direitos dos usuários e, consequentemente, dar fim aos
manicômios, tomou força em espaços institucionais como, por exemplo, o
Ministério da Saúde, que passou a pensar em leis com essa finalidade.
Tais leis baseavam-se na ideia de que o usuário de saúde mental não deveria ser
tratado de forma diferente, em seus direitos, que uma pessoa tida como razoável.
Um outro exemplo desse processo, é a Declaração da Organização das Nações
Unidas (ONU) que diz: “toda pessoa acometida de transtorno mental terá o direito
de exercer todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais
reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem” (CRP, 1997, p.
31).
O fato de reservarmos nesse texto um espaço específico para a questão jurídica do
“louco” deve-se, também, aos preconceitos que ainda sobrevivem nesse campo. Na
mesma declaração da ONU, ainda vive a possibilidade do louco perder sua
capacidade civil, caso seja considerado, por um tribunal ou por uma corte,
incapacitado de garantir seus próprios assuntos.
Desde a primeira Conferência de Saúde Mental, o tema da legislação tem grande
destaque. Abaixo, selecionamos algumas partes dos relatórios finais dessas
conferências que consideramos expressivos para mostrar quais eram os interesses em
jogo e como o avanço do movimento e, consequentemente, da discussão foram
refinando as reivindicações legislativas:
Deve ser assegurada constitucionalmente a condição de cidadania plena ao indivíduo
considerado doente mental. Tal garantia pressupõe uma legislação ordinária que
disponha sobre a especificidade da doença mental e coloca a necessidade de revisão de
toda legislação em vigor. (I Conferência Nacional de Saúde Mental,1987)
Rever a legislação concernente à tutela e a curatela, no sentido de garantir os direitos de
cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais (...). (II Conferência Nacional
de Saúde Mental, 1992)
Combater a concepção do Código Civil segundo a qual “os loucos de todo o gênero” são
considerados absolutamente incapazes para a vida civil. Questionar, portanto, a
interdição dos direitos civis do portador de transtorno mental em todas as instâncias.
Fomentar uma revisão dos critérios de interdição do código civil, privilegiando a
vontade e autonomia do sujeito e o caráter temporário da medida (...). (III Conferência
Nacional de Saúde Mental-2001)
A discussão em relação à extinção do termo “loucos de todo o gênero” aparece
como uma importante reivindicação do corpo social:
Modificação da legislação que regula as questões relativas às interdições e aos estados de
incapacidade civil (“aos loucos de todo o gênero”). A interdição deve estar restrita
quando haja ameaça aos bens públicos, aos bens próprios e perigo de agressão física. (I
Conferência Nacional de Saúde Mental, 1987)
Encaminhar ao Congresso Nacional a proposição de ementa ao Código Civil, suprindo a
expressão “loucos de todo gênero”, entre os “incapazes para os atos da vida civil”. (II
Conferência Nacional de Saúde Mental, 1992)
Adequar a Previdência Social e o Código Civil à lei 10.216/01 de modo a suprir
expressões como “loucos de todo gênero”, assegurando ao portador de transtorno
mental uma legislação que o reconheça como sujeito de direitos. (III Conferência
Nacional de Saúde Mental, 2001)
Hoje, no Código Civil Brasileiro encontramos uma área para a questão da curatela
que deixa claro quem são os possíveis curatelados ou, ainda, podemos ver no artigo
3o a presença do louco como absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos
da vida civil:
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I – os menores de dezesseis anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para a prática desses atos;
III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
(...)
Art. 1.767. Estão sujeitos à curatela:
I – aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para os atos da vida civil;
II – aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade;
III – os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos;
IV – os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;
V – Os pródigos” (Código Civil Brasileiro).
Mesmo superado o termo “louco de todo o gênero” em nosso Código Civil, de
certa forma, ainda está presente essa ideia quando nos referimos à enfermidade ou
deficiência mental daqueles “que não podem exprimir sua vontade”. Essa questão é
um dos paradoxos que envolvem a noção de autonomia da Reforma em Saúde
Mental brasileira. A questão jurídica vem se apresentando ser um grande nó das
práticas que afirmam que autonomia é uma dimensão coletiva e não adquirida
solitariamente. Não é um poder que precisamos alcançar e, muito menos, algo que
precisa ser adquirido pela aprendizagem racionalista.
Seja pela desinformação, ou interesse seletivo, de nossos juristas, seja pela
formação ainda centrada no “louco” como um desviante da razão, ainda não estamos
conseguindo afirmar a condição jurídica da autonomia na Reforma em Saúde Mental
brasileira. Quem sabe quando superarmos o polo “direitos e deveres” como direitos
naturais, ou quando superarmos as amarras de um direito que desde seus primórdios
inclui a loucura no rol dos direitos especiais, logo dos não humanos, dos não
racionais.
A rede de atenção psicossocial: tramando autonomias
Quando falamos em um modelo psicossocial para a atenção à loucura, estamos de
imediato nos contrapondo a um modelo asilar de tratamento. Em linhas gerais, o
modelo asilar consiste em olharmos para a doença através do determinismo
orgânico, por isso a ênfase do tratamento é a medicação; pouco se olha para o sujeito
como um sujeito que tem desejos. Os estabelecimentos asilares são organizados de
maneira piramidal, geralmente no topo dessa pirâmide temos a figura do médico; o
trânsito pelos espaços é restrito, fechado e proibido.
Essa forma de tratamento cristaliza o lugar do louco como incapaz e a finalidade
do tratamento é justamente que ele possa ser capaz. Por esse motivo, muitos autores
(Basaglia, 2005, Costa-Rosa, 2000, Saraceno,1998, entre outros) afirmam que esse
modelo está a serviço do modelo capitalista de produção e seu tratamento é a
reprodução em série de sujeitos a-sujeitados e “produtivos”. Em outras palavras:
Do ponto de vista da produção de subjetividade. Pode-se dizer que no modo asilar estão
dadas as condições ótimas para a reprodução das relações intersubjetivas verticais que
são típicas do modo capitalista de produção. (Costa-Rosa, 2000, p. 161)
Em contrapartida a esse modelo temos o modo psicossocial de atenção. Aqui o
sujeito é um sujeito desejante, sendo o desejo, em certa radicalidade, o dispositivo de
seu cuidado e assistência. Deve-se levar em conta, no processo de atenção
psicossocial, o contexto da assistência, a família, os amigos e a rede social. Há uma
ênfase que a vida acontece na cidade, com seus ruídos, seus coletivos, seus perigos e
alegrias e é nesta cidade que a loucura precisa ser possível.
Neste modelo, não se está interessado na reconstrução de um sujeito que falta à
completude e muito menos numa readaptação ou reabilitação. Os termos como
“índice de autonomia” não caberiam às práticas psicossociais, posto que o cuidado é
coletivo e busca não uma readaptação social, mas transformações sociais capazes de
garantir diversos modos de existência.
a loucura e o sofrimento psíquico não têm mais de ser removidos a qualquer custo, eles
são reintegrados como partes da existência, como elementos componentes do
patrimônio inalienável do sujeito. (Costa-Rosa, 2000, p. 155)
Temos registro de que foi em São Paulo, em 1986, a implantação do primeiro
equipamento substitutivo de atenção a saúde mental no Brasil: o CAPS (Centro de
Atenção Psicossocial) Itapeva. Segundo Ana Pitta (professora, pesquisadora e
militante da Reforma em Saúde Mental):
uma casa tornada aconchegante, alguns móveis, alguns materiais para se ter o que fazer,
e uma equipe fortemente engajada para fazer acontecer esse tempo e espaço
possibilitador de trocas, tem sido receita para se iniciar Centros de Atenção Psicossocial.
(Pitta, 1994, p. 648)
O CAPS, como foi pensado, pretende-se um espaço propício para a prática de
produzir sentidos, com isso podemos dizer que o usuário assistido no CAPS é
produtor, “delírio é produção de sentido, alucinação é produção de sentido, a
cooperativa é produção de sentido, as relações são produtoras de sentido” (Saraceno,
1998, p. 30). No contexto de atenção psicossocial o usuário perde seu lugar de
sujeito passivo, sendo convocado a participar de sua assistência, é dessa forma que se
torna produtor. É “um processo articulado de práticas (sustentada por uma trama de
conceitos), que não se deteria até que a pessoa acometida por problemas mentais,
pudesse sedimentar uma relação mais autônoma com a instituição.” (Goldberg, 2001,
p. 34)
Vemos aparecer na discussão sobre a assistência o tema da autonomia como
dimensão da relação do sujeito com o Equipamento de Saúde e Assistência e com a
sociedade, isto é, com o plano das relações intersubjetivas e de produção de
subjetividade. A ampliação e as modulações das noções de autonomia aparecem
claramente nas Conferências. Na primeira, o questionamento ainda é centrado na
desospitalização, que se baseia na humanização/reformulação das organizações
hospitalares (Rotelli,1990). Já na III Conferência, o acúmulo político e de “cuidado”
possibilita pensarmos numa modificação qualitativa da reivindicação de autonomia e
cidadania do “louco”, o que se propõe desde então é a desinstitucionalização, mesmo
com termos como “reabilitação” e “níveis de autonomia” ainda aparecendo.
Reversão da tendência hospitalocêntrica e psiquiatrocêntrica priorizando o sistema
extra-hospital ar e multiprofissional com referência assistencial ao paciente, se inserido
na estratégia de desospitalização. (I Conferência Nacional de Saúde Mental, 1987)
Desinstitucionalização: superação do modelo asilar (...). Garantir que o processo de
reabilitação psicossocial contemple ações destinadas à clientela com níveis de autonomia
e contratualidade reduzido (...). Os dispositivos de saúde devem realizar a
intermediação desta clientela com o social (e devem primar pela diversidade de atores,
inscrevendo-se no âmbito da cidade). As atividades realizadas por esses dispositivos
devem ser estruturadas e desenvolvidas na dimensão do quotidiano pessoal e social. (III
Conferência Nacional de Saúde Mental, 2001)
Como dissemos, enquanto na I Conferência pedia-se a reversão da tendência
hospitalocêntrica, na III Conferência já temos a desinstitucionalização pautada como
a superação do modelo asilar. Isso é de grande relevância, pois a
desinstitucionalização (indício da influência triestina na nossa reforma) propõe não
uma reformulação, mas uma desmontagem e uma desconstrução radical das práticas
asilares:
Nosso discurso anti-institucional, antipsiquiátrico (isto é, antiespecialístico), não pode
restringir-se ao terreno específico de nosso campo de ação. O questionamento do
sistema institucional transcende a esfera psiquiátrica e atinge as estruturas sociais que o
sustentam, levando-nos a uma crítica da neutralidade científica (...). (Basaglia, 1991, p.
9)
Logo, desospitalização implica em questionarmos a estrutura manicomial, seus
maus tratos, a verticalização, o abuso de autoridade da equipe técnica etc. Já a
desinstitucionalização é o questionamento não só do espaço, mas da ideologia
manicomial, da mesma ideologia de “direitos e deveres”. A desinstitucionalização
coloca o problema em suas raízes e seus tentáculos contemporâneos. Nesse sentido é
radical, eleva o problema não em nossas ações imediatas de “fazer viver e deixar
morrer” (Foucault, 2002). A desinstitucionalização ao afirmar a autonomia como
práticas coletivizantes e não individualizantes coloca em questão o modelo burguês
de relação e produção.
Considerações finais: práticas autonomistas, um desafio para a reforma em saúde mental
a Reforma em Saúde Mental pode ser considerada como o conjunto de práticas que
procura produzir um contexto para que a autonomia seja possível. É nesse sentido
que alguns militantes e pesquisadores da Reforma em Saúde Mental colocam a
atenção psicossocial como estratégia e a autonomia como um dos seus aspectos
fundamentais.
Vivemos no “período germinativo” um acúmulo de críticas ao manicômio e à
ideologia psiquiátrica vigente. Foram anos lutando com base em bandeiras quase
consensuais de humanização e universalização, entre outras coisas. Porém, a partir da
década de 1990, as práticas “antimanicomiais” exigiram que tais bandeiras fossem
concretizadas.
A discussão sobre a autonomia do “louco” é, nesse momento, crucial, pois corre-
se o risco de encarar a rede de serviços substitutivos aos manicômios apenas como
uma ação burocrática de passar o sujeito de um ambiente hostil para um ambiente
dócil. Pensar dessa forma seria resumir as críticas revolucionárias da Reforma em
Saúde Mental a uma mera “racionalização de lugares”.
Pensar a Reforma em Saúde Mental para além de seus espaços é justamente a
discussão que torna a noção de autonomia mais complexa. Precisamos olhar a
conjuntura em que se insere a Saúde Mental no Brasil, pois esta chegou a um grau de
complexidade (também em termos quantitativos) que, para pensar suas práticas,
torna-se necessário pensar os caminhos das políticas de assistência em saúde mental:
Nesse sentido, a superação do manicômio não representa a modernização de uma forma
antiga de gestão, nem a exportação da mesma lógica para o território, mas sim a
penetração sistemática de uma profunda crise em todos os aparatos de controle e da
sanção: é a ruptura do complexo mecanismo de distribuição da clientela na sua dosagem
equilibrada de sanção. (Basaglia, 2005, p. 257)
É necessário entrarmos num campo árido, mas inevitável: como pensar a
autonomia “do louco” na mesma sociedade que o impôs a tutela naturalizada e,
praticamente, uma condição congênita? Nesse sentido, Ana Pitta traz a necessidade
de pensarmos nossas práticas de forma crítica:
O homem moderno, acriticamente, persegue formas de inclusão social pelo trabalho,
desconsiderando o fato desse trabalho não ser nem tão disponível nem tão flexível para
suportar as diferentes demandas individuais e coletivas que a sociedade moderna impõe.
(2001, p. 24)
Com isso, devemos compreender a autonomia do usuário do serviço público de
saúde mental e sua complexa vida em sociedade de uma forma crítica. Afinal,
estamos falando de um sujeito inserido em uma sociedade desigual e usuário do
serviço público precarizado, não pelas práticas de seus trabalhadores, mas,
sobretudo, pela crescente privatização do público e os alarmantes salários indignos
que dificultam a autonomia até desses operadores. Essa reflexão é importante para
não reproduzirmos uma relação de tutela dentro de práticas declaradas
autonomistas.
Quer dizer, ao pensar a autonomia do “louco” devemos pensar também a
autonomia do chamado normal. Chamamos atenção para o fato de que tanto os
“loucos” como os normais podem estar sendo afastados de seus desejos, e assim
impossibilitados de se constituírem sujeitos ativos e autônomos. Neste sentido,
passamos a pensar sobre a autonomia e também sobre as formas de agenciamento
dessa autonomia não com o foco único no “louco”.
A autonomia hoje é proposta como prioridade por muitas pessoas que lidam com
a loucura. Porém, é importante notarmos qual o entendimento que se faz de
autonomia pelos diferentes campos de atuação. A autonomia pode ser entendida, e
muitas vezes é exercida, como uns dos critérios do louco poder ser “reinserido” na
sociedade. Daí a crítica que Saraceno (1999, p. 113) faz ao “mito da autonomia”.
Como mito, a autonomia passa a ser agenciada como um critério para se selecionar
os usuários que poderão participar dos programas de atenção psicossocial, como por
exemplo, o acesso a um residencial terapêutico, ou mesmo algumas oficinas
realizadas dentro dos serviços de saúde.
Parece-nos que a há algo fora da ordem, pois o sujeito assistido só poderá
participar de programas de atenção psicossocial se estiver com seu “nível de
autonomia” preservado. Para falarmos da autonomia na Reforma em Saúde Mental,
devemos considerar a loucura não mais como uma deficiência ou uma dificuldade da
pessoa em não se “individualizar”, mas, justamente, pensar em um
processo radicalmente singular que não se constitui ao modo daquilo que se espera ser
uma singularização-padrão (...) o que acontece nesse caso é que o sujeito nesse estado
de não singularização-padrão, não é aceito e nem se quer acolhido pela sociedade e pelos
grupos, sendo estranhado, separado deles e por eles. Assim, (...) não é propriamente a
alienação de um indivíduo, de um sujeito, mas uma alienação operada pelos grupos e
pela sociedade (...). (Moura, 2003, p. 55)
Nesse sentido é que devemos ser críticos e atentos com a forma que encaramos a
noção de autonomia na Reforma em Saúde Mental, pois é muito mais simples “dar” a
autonomia a alguém pronto para entrar no mundo das trocas inegociáveis, ou seja,
alguém “readaptado” ao modo de produção vigente, do que construir um processo
possível de autonomia daquele que se mostra numa produção radical de não
singularização padrão. A autonomia não pode ser a chave do portal que dá acesso à
sociedade.
O que está em questão não é um conceito abstrato de explicação do grau da
doença, mas um processo de múltiplos encontros entre nós e o mundo. É a partir
deste mundo que precisamos afirmar a autonomia: “a tarefa de uma programação de
saúde que deseje responder às necessidades reais é, portanto a de identificação e
crítica do uso que explicitamente se faz da doença” (Basaglia, 2015, p. 233).
Com isso, devemos pensar em novos dispositivos que produzam não só assistência
ao chamado “louco”, mas que afirme diversos modos de existências ao mesmo tempo
que produzam tensionamentos em cidades cada vez mais normativas. Se a bandeira é
“por uma sociedade sem manicômios”, a intervenção precisa externalizar a loucura e
não trancafiá-la em um corpo doente que precisa de tutela. O cuidado é na cidade e
com a cidade. Afirmar uma “sociedade sem manicômios” é explodir o binômio saúde-
doença, direito-dever, poluir os binarismos naturalizados. Autonomia entendida
como encontro de corpos e não uma busca desesperada pela readaptação de um
suposto doente produzido por um saber que enfraquece as forças produtivas.
Autonomia para atrapalhar e bagunçar a engrenagem da fabricação em série do
“homem padrão”.
Referências
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1985, Vitória/ES.
I Conferência Nacional de Saúde Mental, junho de 1987, Rio de Janeiro/ RJ.
Relatório da primeira reunião preparatória ao II Encontro Nacional de Trabalhadores
de Saúde Mental, agosto de 1987. (nesse documento fica explicita a discussão sobre a
forma de organização dos trabalhadores e também a organização do Encontro, que
nos faz afirmar que é nesse momento que cruzam a horizontalidade na organização
dos trabalhadores e a horizontalidade na relação com a loucura)
II Conferência Nacional de Saúde Mental, dezembro de 1992, Brasília/DF.
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Relatório do II Encontro Nacional
do Movimento da Luta Antimanicomial. 1995: Belo Horizonte/MG.
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Relatório do IV Encontro Nacional
do Movimento da Luta Antimanicomial.1999: Paripuera/AL.
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Relatório do V Encontro Nacional
do Movimento da Luta Antimanicomial. 2001: Miguel Pereira/RJ.
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Relatório do VI Encontro Nacional
do Movimento da Luta Antimanicomial. 2005: São Paulo.
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Relatório do X Encontro Nacional
do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. 2014: Niterói.
CAPÍTULO 2
O acompanhamento terapêutico como dispositivo clínico na internação
psiquiátrica
Ana Carolina Feitosa
Os textos mais frequentes sobre a prática do AT geralmente abordam as experiências
desenvolvidas em espaços externos, a clínica da rua, mas também práticas de
acompanhamento dentro das enfermarias ou espaços de internações pode ter esta
direção (FERREIRA, 2005). Aqui vamos enfocar a função do AT na internação
psiquiátrica, apontando a importância da clínica psicanalítica para seu
desenvolvimento. Com isso, a opção pelo aprofundamento da análise deste tema é
consequência da prática de Acompanhante Terapêutico desenvolvida no Serviço de
Internação Masculina (SIM), do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ), instituição
pública, localizado na cidade de Niterói (RJ).
Na medida em que lidamos com psicóticos em uma situação de internação, temos
que estar cientes da função de tal intervenção para cada um, pois, diferente do
passado, quando a clínica não tinha lugar e a função da internação era basicamente
excluir o sujeito do seu âmbito social, hoje percebemos que este dispositivo faz parte
da rede de saúde mental e suas atribuições concernem em auxiliar o sujeito em uma
situação de crise.
A ideia primeira com a qual justificamos a importância desta proposta teórico-
clínica é a constatação da necessidade de sustentar práticas de tratamento voltadas
para a clínica da psicose na internação psiquiátrica, onde a ferramenta de trabalho do
Acompanhante Terapêutico caracteriza-se pela acolhida e escuta cuidadosa a partir da
clínica da convivência.
Observações sobre a Internação em tempos de Reforma Psiquiátrica
Quando nos deparamos com as alterações psicóticas na sua forma mais aguda,
podemos observar sua dificuldade de frequentar o laço social. Esta constatação é
importante quando se pensa a questão da internação em tempos de reforma. Sendo a
internação mal vista pelos ideais reformistas, devido a sua tradição manicomial que
marcou intensamente o Brasil, a internação psiquiátrica, atualmente, convida-nos a
pensar sobre seu lugar diante da clínica da psicose.
O tratamento psiquiátrico a cada dia demanda de nós uma profunda reflexão sobre suas
práticas, suas teorias e sua ética. Exigência essa que se faz a partir desse vasto campo de
exclusão, criado historicamente para dar conta de uma problemática social por via
higienista, através de uma visão do controle pela segregação. Os grandes hospícios de
“alienados mentais” cada vez mais superlotados, antes de terem qualquer semelhança
com hospital ou lugar de tratamento, passaram a ser identificados como “depósitos” de
seres humanos despojados de qualquer direito de cidadania (FERREIRA, 1993, p. 106).
Se um dos objetivos da reforma, além de acabar com os asilos psiquiátricos, é o de
reduzir e controlar o fluxo de internações, isto não pode implicar na sua eliminação,
pois “há situações e momentos em que a internação entra como exigência de limite,
de lei, de lugar intermediário que garanta uma distância e uma mediação para o
desatino do sujeito” (FERREIRA, 2002). Para o sujeito atormentado, poderá
funcionar como um recolhimento e suporte contra as invasões alucinatórias e
delirantes. Desta forma, em determinados casos, pode ser um lugar importante para
o psicótico no momento da crise.
Reprovar o tirocínio indiscriminado das internações impensadas defendidas pelo
modelo asilar dos antigos manicômios significa ultrapassar a ideia da internação pela
internação, espaço de isolamento e não de tratamento, o que não podia ser visto
como recurso terapêutico.
Hoje, quando nos contrapomos ao antigo modelo manicomial, fundamentado pela
internação automática, estamos optando por outro modelo de assistência. Uma
assistência criteriosa, orientada não apenas pela perspectiva de refletir sobre a função
da internação, mas principalmente pela preocupação em acolher o sujeito no
momento de seu maior sofrimento. Trata-se de pacientes no auge de uma crise
aguda, assolados por alucinações, submergidos e ameaçados pela alteridade, que
pode ser terrivelmente invasora.
Pontuar o lugar terapêutico da internação é ressaltar a importância de ofertar ao
psicótico um lugar de trabalho subjetivo, um espaço com oferta de atividades
terapêuticas, de recursos expressivos, de fala e de construção de sentido. A
internação, como afirma BEZZ (2008, p. 43), “deve ser tratada como um dispositivo
clínico de fundamental importância no tratamento de muitos casos de psicose em seu
estado agudo e que, por isso mesmo, necessitam do maior cuidado na abordagem...”.
Diante disso, do mesmo modo que investem nos dispositivos extras hospitalares,
ao proporcionar a rede da atenção psicossocial, constituída por diferentes serviços
capazes de sustentar uma proposta de assistência e cuidados adequados para as
condições graves de sofrimento psíquico, é importante que o projeto da reforma dê
atenção ao dispositivo da internação como mediador de um projeto terapêutico,
como parte da clínica das psicoses ou dos quadros agudos de alterações psíquicas. O
movimento da Reforma implicou num questionamento amplo do lugar social
ocupado pela loucura e do empreendimento de ações políticas visando a
transformação da prática asilar dominante, através da desconstrução do manicômio e
da convocação de mudanças de atitudes e das representações sociais vigentes. A
Reforma é entendida, aqui, como abertura dos espaços de reclusão e do rompimento
com o modelo vigente da internação automática e da assistência centrada no leito
hospitalar (FERREIRA, 2002).
A psicanálise nasceu a partir da atribuição de valor ao que fala o paciente. Desta
fala emerge um saber singular, a verdade subjetiva. Essa posição radical centrada nas
construções subjetivas e na história do drama de cada um, implica uma posição de
defesa do sujeito. Neste sentido, quando o projeto da Reforma defende a clínica do
sujeito, temos aí uma direção que o aproxima da posição da clínica psicanalítica. Ao
considerarmos a internação como um dos dispositivos da reforma capaz de intervir
em um momento determinado, estamos apostando na contribuição da clínica
psicanalítica para esta praxes. Como afirma Tenório (TENÓRIO, 2001, p. 94),
(...) o manicômio ao qual a reforma se opõe são instituições de abandono, sem nenhum
investimento terapêutico, onde a clínica não tem lugar e onde os sujeitos são induzidos à
internação mais ou menos permanente e à demissão subjetiva.
A internação creditada pela psicanálise procura incluir um discurso próprio que,
ao apostar na oferta da escuta, possibilita uma clínica focada no sujeito, permitindo,
deste modo, a emergência de um espaço potencial, no sentido de poder
proporcionar ao paciente algum trabalho subjetivo.
O sujeito em crise deve ser acolhido. Quando submerso pela invasão psicótica, o
sofrimento é intenso, é avassalador. O paciente fica totalmente a mercê de sua
própria loucura, mas de forma despedaçada e fragmentada, necessitando de ajuda e
cuidado. Para tal, a internação deve servir como espaço de acolhimento e de
recolhimento do sujeito. Nos dizeres de Zenoni (ZENONI, 2000, p. 14-15),
(...) Porque antes de existir para eventualmente tratar do sujeito, a instituição existe
para acolhê-lo, colocá-lo ao abrigo, colocá-lo a distância, assisti-lo. Antes de ter um
objetivo terapêutico, a instituição é uma necessidade social, é uma necessidade de uma
resposta social a fenômenos clínicos, a certos estados da psicose, a certas passagens ao
ato, a alguns de depauperamento físico, que podem levar o sujeito à exclusão social e até
à morte.
De fato, há uma responsabilidade social nossa para com o paciente psicótico. No
entanto, tendo em vista a condição subjetiva da psicose, é possível observar como
essa mesma responsabilidade encontra-se inerente ao trabalho clínico realizado pela
internação. Não se trata somente de assinalar condições para sustentar uma posição
referente ao contexto social, mas de possibilitar condições mínimas ao sujeito para
barrar o real do gozo do Outro. A internação psiquiátrica, nesse momento, propõe a
anuência entre o social e a dimensão subjetiva do sujeito para, exatamente, pensar
um lugar para a loucura, uma vez que a clínica é intrínseca ao laço social. É somente
a partir da clínica que a responsabilidade social da internação pode advir.
A proposta de tratamento, então, deve basear-se no “fazer em equipe”, cabendo a
internação posicionar-se como um serviço organizado por uma multiplicidade de
saberes. Cada técnico com seu referencial profissional, mas voltado para um mesmo
objetivo: acolher o singular. Acolhimento esse que, ao considerar a dimensão
particular de cada sujeito internado, compromete-se em não somente valorizar sua
singularidade, mas também sustentar intervenções clínicas a partir daquilo que o
próprio paciente produz.
O objetivo deve ser exatamente o de compartilhar os elementos que cada
membro pôde recolher ao escutar o paciente. São as falas do sujeito e o que ele
constrói os balizadores capazes de nos mostrar qual caminho seguir, remetendo-se ao
fato de colocarmos em questão os significantes do psicótico, suas construções e os
efeitos das intervenções de cada técnico diante do que se disponibilizou em escutar,
no intuito de delinear o caso a partir das falas do próprio sujeito. É fundamental que
haja um projeto terapêutico traçado em equipe, onde esta possa entender as possíveis
amarrações de cada sujeito para, consequentemente, com ele construir outras
formas de produção menos invasivas.
Sendo, precisamente, orientada pelo trabalho em equipe, a internação
psiquiátrica, enquanto instituição de tratamento, deve estabelecer ferramentas que
possam não somente interrogar suas intervenções, mas também reorientá-las em
prol da clínica do sujeito. Questionar, portanto, o trabalho para revê-lo no a
posteriori torna-se necessário, uma vez que é função da instituição caminhar de
acordo com a clínica de cada paciente.
Com isso, se “(...) a clínica se faz do que emerge, a clínica de certo modo está
sempre lidando com uma emergência que se renova” (FIGUEIREDO, 2000, p. 129),
percebemos como não temos um conhecimento à priori. O tratamento constitui-se
no caso a caso, a partir das produções da fala de cada um e nunca orientado por um
saber universal. Como afirma Figueiredo (FIGUEIREDO, 1999, p. 130), “(...) é só
sobre os efeitos que podemos trabalhar, já que não devemos tentar prever ou
prevenir os acontecimentos. Neste sentido, psicanálise e prevenção não combinam”.
Também Zenoni (2000) ressalta-nos a importância de cada membro da equipe
técnica colocar-se numa posição de aprendiz da clínica. Devemos ser orientados
pelas produções delirantes do próprio paciente, e assim direcionar seu tratamento a
partir de suas próprias construções.
É a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela
mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da
psicose que nós nos colocamos para aprender como praticar. Colocar-nos numa posição
de aprendizagem em relação à clínica, posição de aprendizagem na qual nos coloca a
psicose, (...), tem uma primeira consequência sobre a estrutura da própria equipe,
porque ela leva a uma des-hierarquização do saber prévio (ZENONI, 2000, p. 19).
Exatamente por ser tão repentina e inesperada, que nós, aprendizes da psicose,
não podemos, de forma alguma, construir um saber que tenha o objetivo de recobri-
la, pois, é inegável: a psicose está constantemente nos ensinando, nos formando,
desde que sustentemos um vazio de saber.
Este posicionamento é o ponto principal para um bom trabalho em equipe, ainda
mais quando nos referimos àquele dentro de uma internação psiquiátrica. Ao
preponderar o desejo de tratamento, a posição de aprendiz enfatiza o saber da
equipe. Ou seja, a prática, quando realizada por profissionais investidos, garante uma
internação sustentada pela clínica, convocando cada técnico a se responsabilizar
perante uma única proposta: indicar uma única direção de tratamento para aquele
sujeito acolhido pela instituição.
Ser aprendiz, como postula FIGUEIREDO (2004),
sintetiza a posição da equipe em formular as boas questões, verificar os efeitos de suas
intervenções, tomar novas decisões ou dar novo rumo a cada caso a partir das indicações
do sujeito que, convém lembrar, não são tão óbvias ou intencionais, mas estão dadas de
algum modo no seu sintoma, em suas diferentes manifestações.
Problematizar esta questão do saber prévio é pensar numa estratégia outra de
acolhimento e traçar um caminho para viabilizar as intervenções por meio da
construção do caso clínico. Ou seja, trata-se de uma aposta da equipe no inesperado,
no singular, para, a partir de uma escuta, saber como e de que lugar intervir, onde a
construção do caso é trabalho coletivo e debatido em equipe. As palavras ditas, os
gestos esboçados, os interesses despertados precisam ser acolhidos. Pensar não
somente em relação aos motivos que acarretaram a internação, mas também sobre
aqueles que sustentam sua duração. Trata-se de uma construção que,
(...) surge como possibilidade de indicar a direção deste tratamento, onde a história
clínica que justificou a internação possa se transformar em um espaço especial de
acolhida, de fala e de ação que favoreçam a produção de sentidos e de singularidades.
(FERREIRA, 2005, p. 206-207)
Considerar, portanto, a experiência da construção do caso clínico como
importante ferramenta para a toda equipe equivale sustentar intervenções clínicas a
partir daquilo que o próprio paciente produz. É reconhecer o caso como um
instrumento de formação, pois ao mesmo tempo em que considera a dimensão do
psicótico a partir de sua inscrição como sujeito da linguagem, autoriza a equipe a
sustentar uma posição ética diante do delírio.
Se na crise o Outro sabe, dita as regras, impõe-se de forma imperativa e
inflexível, escutar a forma como o sujeito coloca-se perante as imposições do Outro
é não somente considerar a estrutura subjetiva da psicose, como também
proporcionar condições, mesmo que mínimas, para o sujeito barrar esse real do gozo
do Outro através de suas produções. Em suas falas, sobretudo durante o surto, o
paciente apresenta fragmentos referentes a sua posição como sujeito da psicose. Cabe
à equipe trabalhar por esse viés, dar um contorno para aquilo que está
desorganizado, sempre na posição de escuta, guiada pela loucura do paciente, por sua
verdade, e, por fim, ter a sensibilidade de perceber até onde ele pode caminhar, o
que o organiza e, principalmente, reconhecer os significantes que o fazem emergir
como sujeito.
A discussão dos direcionamentos em equipe é o que permite a construção do caso
clínico. As manifestações do sujeito poderão fornecer os elementos indicadores para
as possíveis intervenções terapêuticas, sendo a construção do caso o delineador da
proposta terapêutica de equipe. Como diz Figueiredo,
O que se partilha é o que se recolhe de cada caso, a cada intervenção, para se tecer um
saber. Como mais uma indicação da psicanálise, o que se recolhe são os elementos
fornecidos pelo sujeito como pistas para a direção do tratamento, para o chamado
“projeto terapêutico”. Essa tessitura é que aponta o caminho a seguir a cada caso, a cada
tempo. Pois há retificações a fazer de tempos em tempos, dependendo do rumo do caso,
a partir de novas indicações do sujeito (FIGUEIREDO, 2005, p. 47).
A principal finalidade da construção do caso seria então recolher as observações e
ações realizadas por toda equipe técnica no cotidiano da enfermaria psiquiátrica e
fazer circular os efeitos de cada intervenção, visando um único projeto terapêutico,
podendo ser feitas ofertas no intuito de engajar o sujeito em algumas oficinas
terapêuticas ou em outras atividades que, igualmente, possam auxiliar o sujeito na
sua desorganização psicótica. É através desta construção, a partir de uma leitura
sobre o particular de cada paciente, que a psicanálise permite elaborar o diagnóstico
estrutural do sujeito, ou seja, uma tentativa de designar a clínica do paciente ao
diagnóstico para, em seguida, se pensar em um possível tratamento. Segundo
Figueiredo,
(...) Trata-se de cernir os significantes do sujeito recolhidos no um a um, reduzir as
narrativas e as situações a um denominador comum a esses significantes que insistem
fazendo função de S1, significantes que representam o sujeito, para avançar na oferta de
algo que possa afetá-los e produzir algum efeito, seja como suplência ou elemento
estabilizador (...). (FIGUEIREDO, 2005, p. 47)
Todavia, o trabalho não vem pronto, precisa ser constantemente discutido e
construído. A equipe tem uma função singular na instituição, pois é quem deve
sustentar a clínica dentro de um dispositivo de internação através de uma transferência
de trabalho, onde seu principal norteador é o objetivo comum que há nas diferentes
profissões que podem compor a equipe técnica.
O movimento deve ser de cada um da equipe em direção ao trabalho realizado
dentro da instituição. A partir do momento em que a equipe concorda em se colocar
na posição de aprendiz da psicose, vislumbra a importância de se abster de qualquer
saber prévio sobre o sujeito. Orientação que concerne à construção do caso clínico o
recurso adequado para não somente oferecer os subsídios clínicos à construção do
diagnóstico estrutural, como também os elementos norteadores para o projeto
terapêutico do paciente durante a internação. Contudo, se a equipe não estiver
transferida pelo trabalho, os encaminhamentos tornam-se fragmentados, incapazes de
atingirem um objetivo comum. Não se trata de homogeneidade, mas da aposta do
coletivo no projeto terapêutico.
Assim, na medida em que propomos uma discussão sobre a internação em tempos
de reforma psiquiátrica, reconhecemos no trabalho de equipe a responsabilidade
com a clínica, e mais, com o paciente que se encontra internado. Observação
importante capaz de mostrar a grande diferença que há entre um hospital
psiquiátrico voltado para a produção da equipe, onde a internação tem como
referência o acolhimento da clínica, para uma instituição manicomial, onde o
resultado acaba sendo a falência subjetiva do sujeito.
A partir da confiança no trabalho de equipe e na sustentação da internação como
um importante recurso oferecido pela rede de saúde mental, o Hospital Psiquiátrico
de Jurujuba vem conduzindo o serviço de Acolhimento à Crise. Uma direção que, ao
se preocupar com a dimensão terapêutica da internação, pôde proporcionar o
exercício do trabalho conhecido como AT.
A Presença Organizadora
Como vimos, a prática do AT hoje, atravessada pelos ideais da Reforma, visa
acompanhar o sujeito fora dos espaços institucionais, totalmente coerente com a
proposta de outras formas de tratamento para o paciente psicótico. Diante disso,
como podemos explicar o exercício desta função na internação psiquiátrica?
Ao entendermos o surto psicótico como um momento de desamarração, na qual o
sujeito apresenta-se inteiramente exposto e totalmente a mercê de sua própria
loucura, percebemos tratar-se de casos em que a intervenção institucional coloca-se
como imprescindível. Seguindo esta direção no tratamento clínico da psicose dentro
da internação, o psicanalista Sergio Bezz, em 1998, criou, nas enfermarias de agudos
do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, a função do Acompanhante Terapêutico.
A orientação é acompanhar o sujeito no seu momento mais difícil, quando está
totalmente deteriorado, fragmentado, atormentado, perseguido, ou seja, no auge da
crise, no momento agudo da sua loucura. Neste sentido, a proposta do AT, a partir
de uma presença organizadora, visa à criação de condições para o exercício da clínica
dentro deste espaço, propondo uma forma outra de tratar a psicose durante a
internação, muito distante do cotidiano observado pelo cotidiano manicomial.
Em 1998, quando a proposta foi aceita pela direção do hospital, o formato dos
Acompanhantes Terapêuticos era bem diferente do modelo atual. Inicialmente, os
ATs ingressaram na escala da enfermaria uma vez por semana, num plantão de 24
horas, participando de todas as rotinas, que incluíam as reuniões com a equipe, a
responsabilidade por algumas oficinas terapêuticas e a circulação com os pacientes
fora dos espaços institucionais.
Contudo, como a clínica sempre nos instiga a pensar sobre nossa prática, este
formato primeiro de Acompanhantes Terapêuticos teve que ser repensado. Em seu
lugar, quatorze ATs, sete por semana, distribuídos pelas duas enfermarias de agudos:
a Feminina (Serviço de Internação Agudo feminino – SIAF) e a Masculina (Serviço
de Internação Masculino – SIM). Cada um responsável por um plantão diurno
corresponde a uma carga horária de 12 horas semanais. Pensando ainda na posição de
acompanhar cada paciente internado no momento de sua alta, nos seus primeiros
passos fora do hospital, no retorno ao lar e, consequentemente, nas suas idas ao
CAPS. O acompanhamento incidia sobre um paciente, sendo que os demais ficavam
horas na enfermaria sem a presença do AT.
A decisão de que os Acompanhantes não mais poderiam fazer tantas saídas
externas ocasionou um problema em toda a rede, pois alguém teria que se
comprometer com esse trabalho. A mobilização gerou esforços. Esse
acompanhamento extra-hospitalar iniciado pelos ATs das enfermarias passou a ser
feito pelos Acompanhantes Domiciliares, profissionais dos CAPS e ambulatórios que
hoje são responsáveis pelo acompanhamento dos pacientes fora do espaço hospitalar.
Todavia, o trabalho ainda merecia algumas mudanças. Além de haver ATs que já
estavam um excessivo tempo desempenhando a mesma função, as saídas fora do
hospital ainda continuavam muito frequentes e as coordenações das oficinas
terapêuticas estavam, gradativamente, sendo colocadas sob responsabilidade dos
Acompanhantes. Foi então que, em junho de 2006, um novo formato do AT foi
colocado em prática. Com um trabalho supervisionado, foram selecionados oito
novos Acompanhantes, todos psicólogos: quatro em cada enfermaria, cada um
responsável por um plantão de 6 horas por três dias da semana e um domingo por
mês em forma de rodízio.
Assim, acreditando no bom atendimento e numa assistência clínica articulada,
cada enfermaria possui uma equipe técnica. A SIAF, comportando trinta e três
pacientes do sexo feminino, e a SIM, com vinte e nove pacientes do sexo masculino,
contava com uma equipe composta por coordenador, dois médicos psiquiatras, um
médico clínico, dois psicólogos, um assistente social, um terapeuta ocupacional, um
enfermeiro, dois técnicos de enfermagem, mais um diarista e, ainda, o
Acompanhante Terapêutico no período diurno, tratando-se, deste modo, de um
dispositivo hospitalar comprometido em acolher com acuidade as exigências
impostas pela psicose.
Entretanto, mesmo possuindo uma direção única, na qual o trabalho em equipe é
o primeiro ponto a ser considerado, ainda é possível observar espaços vazios dentro
das enfermarias, impossíveis de serem ocupados pelos demais membros da equipe,
pois, cada um possui diferentes funções a serem realizadas em seus respectivos
settings de atuação. O exercício de reconhecer esses espaços concerne ao
Acompanhante Terapêutico. Sua posição na “circulação” permite uma presença
disponível para escutar o que cada um tem a dizer sobre aquilo que os acomete,
viabilizando a organização dos pacientes pela palavra.
Sendo, portanto, uma função extremamente importante dentro desse espaço
totalmente tomado pela desorganização psíquica, o AT coloca-se na posição de
possibilitar alguma integração daquilo que está completamente fragmentado. Uma
função de fundamental importância, pois se não concerne ao AT um setting
terapêutico definido aprioristicamente, podemos pontuar aí uma posição no trabalho
totalmente peculiar. Como o lugar do AT presentifica-se pelos espaços de circulação
dos próprios pacientes, podemos dizer que o AT possui uma visão clínica privilegiada
de cada um que se encontra internado, o que lhe possibilita recolher informações
precisas e muito valiosas para a equipe de referência.
Esta posição abaliza a particularidade do AT dentro do trabalho de equipe no
tratamento da psicose. Ao procurar continuamente estar em acordo com o projeto
terapêutico, ao intervir, através da escuta, a função clínica se legitima na medida em
que o AT autoriza-se em ajudar o paciente na sua reorganização psíquica durante o
período da internação. Tal proximidade permite ao AT ser o principal vínculo
estabelecido devido a sua forma de se posicionar dentro da instituição, visto que sua
presença não se restringe somente aos espaços físicos da enfermaria, mas também
aos espaços de circulação dos pacientes por toda instituição, inclusive, fora dela,
quando recomendado. Como pontua Bezz (BEZZ, 2008, p. 46),
ali é um lugar de tratamento da psicose em seu estado de crise. Na agudização, laços
sociais são rompidos fora do hospital de forma radical, mas internados, esses
rompimentos devem estar em trabalho nos laços que se estabelecem com as referências
disponíveis no contexto da internação, demandando acolhimento, contenção, atenção e
acompanhamento.
Esta análise nos permite afirmar que, mesmo sendo realizado dentro da
instituição, o trabalho do AT não deixa de operar no laço social. Isto porque a
presença do AT propõe a construção de um ambiente coletivo e compartilhado
chamado por nós de Convivência. Uma direção de trabalho que possibilita sobrepor
os isolamentos advindos da psicose apostando sempre no sujeito. Desafio este, cuja
prática procuramos sustentar junto ao paciente, constituindo-se uma verdadeira
práxis clínica que assiste o sujeito em uma situação de intenso sofrimento psíquico.
Como descreve Bezz,
as rotinas nas enfermarias são instituídas visando uma ordem. O acompanhante mantém
uma relação mais próxima com os pacientes diante de tais rotinas, sempre se oferecendo
como uma presença mediadora entre a rotinização necessária e esperada, e as
impossibilidades, ansiedades e sofrimentos próprios da crise psicótica, regulando
relações com espaço, tempo, objetos, medicações, familiares e membros da equipe em
seus diferentes lugares. É nesse entre que estará o acompanhante e é onde eles poderão
estar em boa posição. (BEZZ, 2008, p. 46)
A clínica da convivência
Como a função do Acompanhante Terapêutico configura-se na Convivência, um
espaço de circulação dos pacientes pelo hospital, não utilizamos salas de
atendimentos, oficinas terapêuticas e nem saídas externas prolongadas. O trabalho é
orientado a partir da clínica da convivência. Uma clínica exercida na práxis do AT,
uma vez que trabalhamos a partir das produções de falas dos pacientes e,
consequentemente, apostando sempre no vínculo transferencial. E a convivência, na
medida em que proporcionamos tanto nossa condição de escuta, como também de
intervenção, na própria circulação destes sujeitos, que pode ocorrer nos bancos do
jardim do hospital, no pátio interno das enfermarias e até mesmo pelos corredores
da instituição.
Portanto, cabe ao AT acompanhar o paciente pelos diferentes espaços da
instituição que favoreçam, mesmo que minimamente, sua circulação. Um trabalho
que não depende apenas de ofertas das oficinas ou dos grupos terapêuticos. Ao criar
a circulação no tempo e espaço da internação, produz-se um ambiente qualificado
pela vivência comum e a presença do AT favorece o encontro do psicótico com
aquilo que lhe é ofertado. Para Bezz (op. bcit. p. 46), “(...) escutar os pacientes de
maneira alguma deve significar uma posição passiva de ouvir, mas de intervir em
torno do que se escuta com atos objetivos, coerentes com a definição do AT como
uma prática (...)”.
Da mesma forma que o analista, a especificidade do AT está em permitir um
espaço onde possa existir um lugar tanto para a palavra quanto para a escuta. As
intervenções constituem-se através de cada encontro, a partir das produções de fala
de cada paciente e jamais guiadas por um saber apriorístico, uma vez que fazer falar é
uma condição da escuta e que é pela escuta que a fala se constitui. É nesse espaço
clínico da convivência que localizamos o efetivo lugar do AT. Procuramos incluir um
discurso próprio, autorizando uma clínica que aposta no sujeito. Sempre orientando
nossas intervenções para aquilo que realmente pode promover efeitos clínicos, de
forma a oferecer estratégias de aproximação do sujeito psicótico com o laço social.
Trata-se de um investimento onde o trabalho do AT dentro de uma situação de
internação, visa mediar a construção de meios de estabilização para que o sujeito
psicótico suporte uma proximidade com o laço social. O saber fazer em detrimento
da clínica da convivência, conforme a psicanálise lacaniana, não é uma tarefa fácil.
Em primeiro lugar trata-se de manejar o lugar ocupado pelo AT dentro da própria
instituição. Ao procurar direcionar seu trabalho de acordo com o projeto terapêutico
estabelecido por toda equipe, o AT, ao assumir uma postura de aprendiz da psicose,
fundamenta suas intervenções pelo “saber-não-saber”. Se é o próprio sujeito
psicótico que detém o saber, cabe ao AT acompanhar as suas produções,
“secretariando” e sendo testemunho de seus arranjos para lidar com o real.
Secretariar implica escutar, fazer valer as construções do psicótico para que,
consequentemente, haja a possibilidade de significação, e assim atingir os efeitos
terapêuticos esperados.
Na medida em que consideramos a psicose como uma estrutura clínica específica,
se “na psicose é a própria estrutura da linguagem do inconsciente que é revelada e o
Outro do sujeito aparece desvelado, consistente e absoluto” (QUINET, 2006, p. 27),
trabalhar a partir de uma orientação analítica possibilita-nos entendê-la como uma
posição subjetiva. Posição esta que, ao se revelar na fala do sujeito como uma
estrutura da linguagem, mostra tanto sua relação com o significante quanto seu
modo particular de existir. Assim, é ocupando o lugar de “secretário” do psicótico
que o AT sustenta seu trabalho na convivência.
Se durante a crise o sujeito psicótico encontra-se totalmente tomado pelo Outro,
compete ao AT trabalhar exatamente esta relação através de amparos e barragens,
pois, ao se apresentar de forma avassaladora e imperativa, o Outro atribui uma
imposição tão severa ao sujeito que este se vê impossibilitado de contestar, momento
este em que o sujeito se afirma como objeto de gozo do Outro, rompendo de forma
radical com o laço social.
É neste momento de puro corte que a função do AT opera numa situação de
internação. Por se tratar de uma clínica diferenciada, sustentada pelo princípio ético
de que é possível oferecer tratamento aos psicóticos, o AT aposta na clínica da
convivência como forma de proporcionar recursos, mesmo que mínimos, para o
sujeito poder frequentar o laço social. Para exemplificá-los citarei os grupos
conhecidos como “Bom-Dia” e “Boa-Tarde” e as saídas pelos espaços externos à
enfermaria.
As Saídas como Forma de Intervenção Clínica
Através da clínica da convivência, é possível justificar a importância de promover a
circulação dos pacientes internados pelos espaços da instituição, na medida em que a
noção de saída pode ser trabalhada visando efeitos clínicos. Ao proporcionar espaços
heterogêneos que favoreçam a circulação do sujeito pelo espaço institucional do
hospital, a aposta não passa pela oferta de simplesmente sair da enfermaria
propriamente dita, é mais do que isso. É criar um território institucional capaz de
não somente oferecer um contorno para aquilo que da loucura deriva do
insuportável, como principalmente oferecer condições de tratamento à demanda
especifica da psicose.
O objetivo das saídas externas da enfermaria é o de poder oferecer um ambiente
em que os pacientes possam falar, experimentar cenas passíveis de algum tipo de
intervenção clínica e, principalmente, disponibilizar uma possibilidade de encontro
do psicótico com o laço social. Nesta relação de alternância interno-externo,
trabalha-se também o projeto de saída da internação.
Se cada intervenção consiste na construção do caso clínico e das discussões em
reunião de equipe, a proposta às saídas externas deve, indubitavelmente, estar
relacionada ao projeto terapêutico proposto ao paciente em questão. A orientação é a
de continuamente pensar a partir da clínica, e assim tentar novas estratégias
referentes ao dispositivo de internação, a fim de tentar oferecer ao paciente uma
possibilidade de tratamento através da clínica do conviver que rompa com a
necessidade da internação.
Neste contexto, podemos nomear as saídas da seguinte forma: liberadas e
acompanhadas em grupo ou individual. Conforme dito, a função do AT está atrelada
ao trabalho da equipe, em que a especificidade e responsabilidade de cada técnico são
independentes, mas complementares e responsáveis pelos encaminhamentos
propostos pelo projeto terapêutico.
Como a convivência é o lugar onde a presença do AT opera por excelência, não
vejo como não relacionar as saídas externas à sua função. É o Acompanhante
Terapêutico o profissional da equipe apto a ir, diariamente, ao encontro do paciente,
de tal modo que seu trabalho também se circunscreve à aposta da internação se
prolongar até os espaços de circulação do paciente fora do espaço físico da
enfermaria, oferecendo o suporte necessário para que o sujeito sinta-se acolhido pela
instituição. Na decisão pela saída liberada, sem acompanhante, a equipe visa a
produção de autonomia. Ao poder sair da enfermaria desacompanhado, nos horários
determinados pela instituição, tem-se mudanças importantes, Além de se apresentar
como possibilidades de se organizar, é também uma forma de responsabilizar o
sujeito pelo seu tratamento durante a internação.
Ao proporcionar ao psicótico, durante a crise, a circulação pelos espaços
institucionais, sejam eles o campo de futebol, o pátio externo e até mesmo o hall do
hospital, apresenta-se para ele uma possibilidade de escolha e de experiência de
liberdade de circulação que se contrapôe ao isolamento asilar. Abrem-se perspectivas
do sujeito despertar para a construção de redes, mesmo que seja institucional, de
poder frequentar a cantina, de encontrar seu companheiro de CAPS ou de
ambulatório que fora para uma consulta na emergência, de poder percorrer pelos
espaços outros da instituição e até mesmo de observar a rotina da portaria, quem
chega e quem sai. É algo que convoca o sujeito no sentido de impor a dimensão do
que seriam as trocas sociais.
Sair da inércia, da acomodação, pode ameaçar. É neste momento que a presença
do AT torna-se imprescindível. Mesmo não precisando estar ao lado do paciente no
que diz respeito à saída liberada, é a ela que o sujeito recorre quando algo não vai
bem, pois é o AT esse alguém próximo, capaz de auxiliar o sujeito psicótico em suas
ações cotidianas, sendo a presença apropriada para sustentar uma aproximação entre
o agudo da psicose e as possibilidades de trocas sociais.
Na medida em que o AT estabelece um contato de proximidade com a loucura a
partir da clínica da convivência, o que sustenta suas intervenções, sem dúvida, é o
vínculo transferencial estabelecido entre paciente e AT. Para que o AT disponibilize-
se a fazer uma saída externa acompanhada, primeiramente ele precisa se autorizar. Se
o objetivo desta intervenção é necessariamente promover o encontro do paciente
internado com as convocações, mesmo que mínimas, das trocas estabelecidas pelo
social, é preciso que a relação entre AT e paciente esteja ancorada pelo vínculo da
transferência, ou seja, a indicação para as saídas externas seja o ponto principal para
o manejo transferencial na clínica da convivência. Escutar o paciente ou os pacientes
quando estão em grupo, pelos espaços externos da instituição, é um dos principais
desafios colocados à função do AT.
A proposta das saídas acompanhadas é intervir exatamente naqueles pacientes que
precisam de uma presença mais intensiva. É poder cuidar clinicamente das
problemáticas impostas ao sujeito pelo difícil exercício da convivência. Deste modo,
a contribuição da função clínica do AT através das saídas externas durante a
internação representam mais do que simplesmente sair dos espaços concernidos à
enfermaria. É ampliar as possibilidades de intervenção clínica para o tratamento
possível da psicose, para, consequentemente, criar circunstâncias que possam
aproximar o sujeito psicótico de um convite proveniente da cidade, de uma oferta de
laço social.
Os Grupos “Bom-Dia” e “Boa-Tarde”
A constância de um grupo, no que se refere à clínica da Convivência, mostra-se
como ponto importante para a condução do processo de tratamento numa situação
de internação psiquiátrica. Os grupos aqui mencionados ocorrem em ambas
enfermarias sob a coordenação do AT. O “Bom-Dia” às 08h30min o “Boa-tarde” às
17h30min.
Estes funcionam como plenárias diárias, em que cada paciente pode se colocar
para reclamar se algo não ocorreu bem, dizer sobre as vozes que escuta e até mesmo
propor determinados assuntos para que sejam discutidos no grupo. É um espaço
onde temos a oportunidade de escutar o que eles têm para nos dizer e,
principalmente, para se dizerem, o que implica criar diferentes possibilidades para o
surgimento de uma possível convivência.
Os exemplos são muitos. Não é raro ouvir falas como: “nossa! Eu também escuto
isso! O que você faz nessas horas? ”, “estou sentindo muito sono com a minha
medicação, alguém mais está sentindo isso? ”, “o meu companheiro de enfermaria
não me deixa dormir à noite, ele fala o tempo todo. O que está acontecendo com
ele? ”, “hoje é dia das mães! Vamos falar sobre esse tema hoje? ”.
A proposta dos grupos, portanto, condiz com o propósito de promover o convívio
e, consequentemente, a possibilidade de acolhimento da psicose. Sendo um lugar
fecundo de fala, a ênfase está posta na oferta preciosa de laço social, em que se abre a
possibilidade de encontro não só entre os próprios pacientes, mas também com a
convocação do “saber esperar” o outro falar, do poder “suportar” estar presente ali
para ouvir e ser ouvido.
Nestes grupos, portanto, o trabalho opera do que advém da clínica. Com os
grupos o AT procura favorecer que outras relações possam ser produzidas, trabalhar
conflitos e diferenças presentes no cotidiano da enfermaria, visando sempre uma
convivência, onde cada paciente sinta-se incluído, podendo fazer determinadas
escolhas. Há uma valorização das falas destes sujeitos e a discussão do cotidiano de
cada um e, como resultado, a interação através dos assuntos abordados.
Tanto no “Bom-Dia” quanto no “Boa-Tarde” estão presentes a oferta de laço, uma
possibilidade de trabalhar em prol da organização do sujeito psicótico, porque o
convite à participação prescinde das exigências colocadas ao paciente de responder
aos chamados dos outros participantes e, também, de responder aos olhares atentos
do AT como coordenador do grupo. Tarefa nada fácil de ser realizada, pois os grupos
também possuem a função de recepcionar quem chega. Como faz parte da função do
AT receber, a participação no grupo é a oportunidade que o paciente tem de se
colocar como sujeito, de falar sobre os motivos que acarretaram sua internação,
dividindo com os outros participantes sua história. Um momento único e
importante. Compete ao AT acolhê-lo na enfermaria, abrir um espaço de fala para
que o paciente possa utilizar seus próprios recursos para dizer o que está incidindo
sobre ele.
(...) A matéria prima do trabalho é o sujeito da palavra. O grupo opera como um lugar
de circulação de fala e deve tirar consequências desse coletivo de modo a convocar todos
e cada um em sua responsabilidade no laço social. Aqui, o enlaçamento do sujeito ao
Outro se reitera e se reafirma das mais variadas maneiras, bem como suas modalidades
de gozo no laço social. (FIGUEIREDO, 2005. p. 53)
Desse modo, cabe ao Acompanhante Terapêutico, como coordenador dos grupos,
não se colocar numa posição de “saber absoluto”. Podemos até afirmar que a
presença do AT, no “Bom-Dia” e no “Boa-Tarde”, é organizadora, imprescindível para
que os grupos ocorram, mas é preciso que ele sempre se coloque na posição de
aprendiz da clínica, nunca orientado por um saber ideal responsável por ditar a
maneira correta de coordenar os grupos.
O que pudemos observar é que o efeito terapêutico, de mudanças subjetivas, que
esses grupos produzem nos pacientes é bastante significativo. O que tínhamos no
modelo das grandes internações eram espaços fechados, onde as pessoas não tinham
o mínimo de individualidade e possibilidade de falar em nome próprio, pois mesmo
este era apagado ao ser tratado por rótulos psicopatológicos. Tocado pela experiência
de ouvir e falar no “Bom-Dia” ou no “Boa-Tarde”, o sujeito posiciona-se, mesmo que
minimamente, disponibilizando-se para o outro, abrindo-se para o laço social, o que
permite um processo terapêutico através da convivência.
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CAPÍTULO 3
“Por que não cabe no sistema? ” Divagações sobre a interface entre a Rede de
Saúde Mental e a Rede de Urgência e Emergência
Katita Jardim
Nesse capítulo, objetivamos discutir a lógica biomédica das urgências e a sua
interface controvertida com a saúde mental. Para além de respostas prontas para um
tópico tão delicado, queremos levantar pontos críticos, traçar paralelos,
problematizar as aproximações e vislumbrar algumas pistas para a construção de uma
interface mais consistente e possível. Nesse ínterim, na primeira parte, discutiremos
a lógica da urgência, o seu cotidiano e a formação de seus profissionais. Na parte
seguinte, problematizaremos as portarias que entrelaçam a rede de urgência e
emergência e a rede de saúde mental; falaremos sobre o nó da atenção urgente à
pessoa em crise, os impasses dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ante esses
atendimentos e sobre a importância da constituição de uma rede transversal para dar
conta desses atravessamentos.
Sob o signo das urgências
Antes de aprofundar a discussão, é importante frisar que existe uma diferenciação
entre as demandas de urgência e de emergência, como já tratamos em outro
momento (Jardim, 2008), a urgência é uma ocorrência imprevista de agravo à saúde
com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata;
como ataques de asma e fraturas que precisam de imobilização. Já a emergência é a
constatação de condições de agravo à saúde que implicam em risco de morte ou
sofrimento intenso e lesões irreparáveis; como fraturas expostas, empalações,
grandes traumas e acidentes cardiovasculares. A diferenciação entre elas diz respeito
à gravidade e ao tempo de espera antes do atendimento. O componente crucial na
urgência é a otimização da utilização do tempo, afinal de contas, tempo é vida.
Antes de qualquer coisa, a urgência busca ser resolutiva e seguir a proposta
biomédica de curar doenças, de restaurar o funcionamento ótimo do indivíduo. A
demanda dos serviços de saúde, sendo eles de urgência ou não, é sempre de
resolução de algum problema, é pela busca de cura para as suas enfermidades. Lá, as
respostas são rápidas e a lógica é clara: a crise precisa ser suprimida, contida,
debelada.
O que se espera da medicina moderna é o apagamento de sintomas, o
estabelecimento da saúde como ausência de doença. A formação dos profissionais
que atuarão na urgência e emergência vem carimbada por esse funcionamento. Além
disso, a Rede de Urgência e Emergência (REUE) é, talvez, a rede mais medicalizada
de todas e funciona com base em protocolos específicos, que visam o melhor
atendimento para cada situação.
O protocolo é um documento que descreve todas as etapas previstas de um
determinado caso, desde a identificação até a finalização do procedimento realizado
na urgência/emergência. O Ministério da Saúde buscando facilitar o funcionamento
da REUE lançou em 2002, a 10ª edição do livro Protocolos da Unidade de
Emergência (Brasil, 2002). Essa publicação traz, de forma clara e direta, a
esquematização dos protocolos que devem ser utilizados em todos os serviços da
REUE. Para exemplificar, trazemos abaixo o protocolo contido no livro sobre os
procedimentos adotados em caso de dor pélvica:
Figura 1: protocolo de dor pélvica espontânea
Fonte: Protocolos da Unidade de Emergência (Brasil, 2002)
O que queremos ilustrar com isso é que a REUE tem um funcionamento muito
próprio e uma linguagem difícil de absorver outras demandas que não aquelas para as
quais foi preparada. E é nesse ponto que queremos destacar uma constatação feita
por Deslandes (2002). Segundo ela, um dos problemas mais comuns aos hospitais de
emergência é o crescimento significativo da utilização dos serviços de emergência
por pacientes com demandas não-urgentes, uma invasão de demanda ambulatorial.
A maioria dos atendimentos realizados nessas unidades de urgência corresponde a
situações que deveriam, pela lógica do SUS, estar sendo assistidos nas unidades
básicas de saúde (UBS) ou nos ambulatórios. Isso deixa claro, a inadequação das
ofertas dos serviços básicos às necessidades reais e simbólicas da população
(DESLANDES, op. cit.). Porém, não sem consequências, uma vez que a superlotação
dos prontos-socorros e dos hospitais de grande porte engendra uma lógica perversa.
Impedidos de atender a todos que chegam por falta de recursos, de espaço físico e de
pessoal; os profissionais da urgência trabalham ignorando parte da demanda.
Segundo Giglio-Jacquemot (2005), o fato de existirem duas naturezas de
ocorrências, umas mais graves (as emergências) e outras menos graves (as
urgências), faz com que as emergências sejam mais valorizadas em detrimento das
urgências. Conjugando isso aos problemas estruturais/funcionais dos serviços, o que
vemos é uma desvalorização das urgências que acabam por se fundir ao conjunto dos
casos não-urgentes, sendo muitas vezes negligenciadas. Ou seja, dentro de um
pronto-socorro, somente as emergências são vistas como demanda própria. Nesse
ínterim, existem sinais que mobilizam de forma mais significativa a atenção dos
profissionais e fazem com que estes “leiam” o caso como necessitando de
atendimento imediato. São eles: chegar ao serviço inconsciente ou deitado, estar
com um problema repentino, estar com um trauma físico visível. Andar, ficar em pé
e falar são “lidos” como indícios de um caso que pode esperar. Estar com dor é
tratado com certa indiferença e, para os profissionais, o paciente barulhento mostra
pela própria extroversão que não está tão mal assim, porque se estivesse, não teria
tanta energia1.
O que observamos é que o trabalho passa por um processo de desumanização e o
profissional é convertido a um apêndice do sistema, funcionando para minimizar o
seu sofrimento diante de um trabalho que lhe expõe a situações-limite com poucos
recursos para resolvê-los. Muitos profissionais reclamam que, por conta dos
problemas funcionais/estruturais da urgência, são impedidos de trabalharem da
forma que sabem ser o certo. Acabam deixando a desejar porque não têm suporte
para tanto (DESLANDES, 2002). Isso causa um profundo sofrimento ao profissional,
que para se proteger a situação patogênica, ergue suas defesas, despersonalizando o
paciente, desumanizando a si mesmo e as suas ações no contexto das urgências. Se
eles não podem fazer nada mais do que o possível, se não podem dar conta de uma
demanda sobre-humana e sofrem diariamente com mortes e com a situação
lamentável das pessoas dentro dos prontos-socorros, com o tempo, acontece algo
muito conhecido pelos profissionais de saúde: eles acostumam com a rotina.
Acostumar-se com a rotina subentende lidar melhor com a situação, não se abalar
mais com a morte de alguém ou com a criança que passa mal em um hospital que
tem médicos, mas, naquele momento, não há nenhum pediatra. Para continuarem
trabalhando respeitando a organização do trabalho e no mesmo ritmo que lhes é
imposto, vivendo a impossibilidade de mudança organizacional, o trabalhador muda a
si mesmo, alienando-se por conta do seu sofrimento (DEJOURS, 1992). As
consequências negativas para o funcionamento dos serviços são incalculáveis. São
profissionais adoecidos, convivendo com processos lastimáveis de trabalho; e pessoas
sem atendimento, tratadas como coisas, sofrendo descaso e negligência.
A lógica de funcionamento das urgências, que envolve a organização em forma de
protocolos e a necessidade de apresentar determinados sinais específicos para um
atendimento mais rápido, nos suscita uma questão: como estes profissionais lidam
com demandas que não estão especificadas nos protocolos e não correspondem aos
sinais anteriormente descritos?
Resgatando nosso tema, como estes profissionais lidam com pessoas em
sofrimento psíquico intenso? Aqui, abriremos um parêntesis.
Entre parêntesis: os entrelaçamentos da Política Nacional de Atenção às Urgências
A Política Nacional de Atenção às Urgências tem como seu marco inicial a
promulgação da Portaria GM 2048 de 05 de novembro de 2002, que dispõe sobre a
criação e o funcionamento dos serviços de urgência e emergência no país2. Dentre as
suas várias atribuições, define o que são urgências psiquiátricas e atesta que estas são
de competência técnica dos serviços de urgência, conforme explicitado a seguir:
Urgências Psiquiátricas: são as que circunscrevem as psicoses, tentativa de suicídio,
depressões, síndromes cerebrais orgânicas. Procedimentos: reconhecer sinais de
gravidade das patologias psiquiátricas em situações de urgência na cena das ocorrências.
Descrever ao médico regulador os sinais observados nos pacientes em atendimento.
Reconhecer necessidade de acionar outros atores no atendimento às urgências
psiquiátricas, quando implicar a segurança das equipes de APH3 (vítimas agressivas em
situações de risco para si e para os outros); adotar medidas no manejo dos pacientes
agressivos, psicóticos e suicidas. (BRASIL, 2006, p. 168-169)
Já a Portaria GM 1864/03, aponta que existem
sete núcleos prioritários de promoção da qualidade de vida e saúde (...): traumatismos
não intencionais, violências e suicídios; urgências cardiovasculares; urgências
ginecológicas e obstétricas; urgências pediátricas, urgências psiquiátricas; urgências
metabólicas; urgências respiratórias. (Brasil, 2006, p. 42. Grifo meu).
A Portaria GM 1863/03, no seu Art. 2 §1, atesta que a Política Nacional de
Atenção às Urgências deve ser organizada de forma que permita
garantir a universalidade, equidade e integralidade no atendimento às urgências clínicas,
cirúrgicas, gineco-obstétricas, psiquiátricas, pediátricas e as relacionadas às causas
externas (traumatismos não-intencionais, violências e suicídios). (op. cit, p. 17. Grifo
meu).
Esses são alguns dos vários excertos contidos nas Portarias, que atestam que o
atendimento às urgências psiquiátricas também é de responsabilidade da Rede de
Urgência e Emergência (REUE). A partir disso, objetivamos analisar com mais
minúcia a lógica que atravessa a produção do cuidado nesses espaços e quais as suas
implicações.
O Protocolo da Unidade de Emergência (BRASIL, 2002) traz também um
protocolo que recebe o nome de Emergências Psiquiátricas, Avaliação do Paciente
Violento:
Figura 2: protocolo de emergências psiquiátricas.
A partir desses excertos nos ficam claras duas coisas: a primeira é que a REUE,
além da Rede de Saúde Mental (RSM), também é responsável pelos atendimentos às
pessoas com sofrimento psíquico agudo. A segunda é que a definição de crise está
associada diretamente à periculosidade. O indivíduo violento é o paciente
psiquiátrico por definição e as contenções físicas e químicas são as formas unânimes
de se lidar com ele. Suprimir a crise através da tríade
contenção/medicação/internação, em busca de um reequilíbrio perdido do sujeito é
o grande objetivo. Essas são as premissas da urgência psiquiátrica.
Envolto em paradoxos: a realidade da Rede de Saúde Mental
A Política Nacional de Saúde Mental foi oficializada pela Lei 10.216 de 06 de abril de
2001 (Brasil, 2001), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O
redirecionamento do modelo assistencial diz respeito à diminuição de leitos
psiquiátricos, visando a estruturação de uma rede de serviços substitutivos que
oferte cuidado a essas pessoas em liberdade.
A Reforma Psiquiátrica, movimento social que embasa a nossa atual política de
saúde mental, foi inspirada a partir da experiência da Psiquiatria Democrática
Italiana de Franco Basaglia. Consiste em um movimento que reivindica uma
profunda mudança no modelo, envolvendo as ciências, as técnicas e a própria cultura
vigente em relação ao louco e à loucura, tendo em foco a instauração da cidadania do
louco. Imbuído de um processo histórico de formulação crítica e prática, tem com
um de seus direcionadores a desinstitucionalização. Seus objetivos são o
questionamento e a elaboração da transformação do modelo manicomial, o que
implica na superação do paradigma clínico-técnico-psiquiátrico. Afinal de contas, a
loucura é também uma questão política e social, não cabendo exclusivamente à
técnica as respostas aos seus questionamentos. A delegação dessa responsabilidade ao
tecnicismo perpetua a violência simbólica logo no seu primeiro ato de
problematização (TENÓRIO, 2002; BARROS, 2002).
No Brasil, essa movimentação começa na efervescência política, com uma
ditadura militar instalada, uma resistência armada sendo dissipada e uma resistência
ética em construção. É fato que a Reforma Psiquiátrica foi muito influenciada por
esse panorama, visto que o que a coloca como revolucionária, não é a mera recusa ao
aparato manicomial, mas a sua intensa problematização e crítica. Fatores que foram
para além do mero desejo de tomada de poder, mas que buscou discutir a
micropolítica, nos interstícios entre o moralismo político epistemológico, que acaba
com os manicômios, mas reforça a difusão da cultura manicomial, e a
problematização ético-política, que busca de fato transformar a realidade
(ALARCON, 2005).
Inspirados nos avanços italianos, profissionais brasileiros viram a possibilidade de
cuidar sem excluir. A cidade de Santos no estado de São Paulo foi a primeira cidade
que teve seu hospital psiquiátrico fechado e isso propiciou o desenvolvimento de
projetos inovadores como a Rádio e da TV Tam Tam, produzidas por ex-internos da
Casa de Saúde Anchieta, e a República Manequinho, que ganhou esse nome em
homenagem a seu primeiro morador, com o objetivo de acolher ex-internos sem
casa ou família. Em 1989, o Deputado Paulo Delgado (PT-MG) apresentou o Projeto
de Lei 3.657, que apontava a necessidade de modernização da legislação e propunha
a extinção progressiva dos hospícios. Somente depois de 12 anos, foi aprovada uma
lei substitutiva, formulada pelo senador Sebastião Rocha (PDT-AP). E foi esta Lei, a
10.216 de 2001, que deu subsídios jurídicos para a criação e implantação do modelo
de serviços substitutivos, porém, a espinha dorsal da proposta original lhe foi
retirada (BRASIL, 2001). Da Lei 10.216 foi removida a cláusula que defendia o fim
dos manicômios, aprovando uma ambígua reorientação do modelo assistencial, o que
não garante o fim dos manicômios (BRASIL, op. cit., MACHADO, 2005).
Com a Política Nacional de Saúde Mental oficializada, o processo de
desinstitucionalização ganha forma e a sujeito precisa de serviços que o acolham nas
suas necessidades. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)4 são serviços
substitutivos de média complexidade, que funcionam com o sistema de portas-
abertas, agregando os valores da integralidade do sujeito, equidade e universalidade
na assistência à Saúde Mental. Além dos CAPS existem outros dispositivos, como os
hospitais-dia, residências terapêuticas, leitos psiquiátricos em hospitais gerais e
serviços de urgências psiquiátricas.
Ao contrário dos grandes hospitais e suas complexas máquinas, como bem discute
Lancetti (2006), quando tratamos de saúde mental, a grande complexidade se
encontra no território. No lugar onde a pessoa vive, no seu relacionamento com a
família, com os vizinhos, nas estratégias criadas por ela para lidar com uma forma
diferente de existir em um mundo que tende à pasteurização. Neste contexto, a
complexidade está para além da técnica.
Os profissionais de saúde mental devem ser, antes de tudo, militantes da causa,
com uma sólida formação ético-estético-política, tendo como alguns dos principais
norteadores o cuidado no território, a problematização da ciência psiquiátrica, a
tomada de responsabilidade, a negação do construto de doença mental, a
desconstrução da lógica manicomial, a humanização e a desinstitucionalização. Ou
seja, é importante contextualizarmos as histórias de vida, criarmos vínculos de
confiança e amizade, acolhermos o sofrimento e construirmos juntos estratégias de
enfrentamento para a vida. E para isso, precisamos de tempo, um longo tempo até.
Diferente da urgência, a lógica do cuidado em saúde mental prevê um tempo
relativo às necessidades subjetivas do usuário do serviço. O que podem significar
algumas horas ou mesmo alguns meses. Nessa lógica, a produção de vida se dá com o
tempo e com o afinamento das relações.
Como aborda Abou-Yd (2010) de forma brilhante, é imperativo retirar o Projeto
Antimanicomial do lugar-comum que alguns insistem em lhe endereçar. Tratar tal
projeto como um mero rearranjo do poder que, secularmente, sufocou a loucura é
um engano fatal que despotencializa a força disruptiva entranhada em suas diretrizes.
Como bem enfatiza ela,
para desconforto das belas almas e consciências apaziguadas pela posição politicamente
correta – a que tolera incômodo em nome dos bons modos –, é preciso dizer de
maneira clara que este é um projeto revolucionário, e enquanto tal, não produzirá
calmaria e consensos (ABOU-YD, op. cit, p. 92).
Um projeto revolucionário questiona os sistemas já estabelecidos e desconstrói
conceitos muito arraigados nas ciências e na cultura. Enquanto tal, busca esfacelar a
lógica que constitui a urgência psiquiátrica, pautada no conceito de periculosidade e
vista como atribuição estritamente médica que implica em internação. A revolução
está atrelada à recriação da intervenção no momento da crise como atenção à pessoa
em crise. Para tanto, é imprescindível desconstruirmos a ideia de crise associada à
periculosidade e colocarmos a pessoa e suas singularidades no centro da intervenção
(JARDIM & DIMENSTEIN, 2007). A crise não é um diagnóstico com terapêutica
delimitada previamente, é fundamental enxergarmos a sua potencialidade e
procurarmos o sentido que a pessoa em questão lhe confere e a partir daí,
pactuarmos as estratégias de cuidado (JARDIM, 2008).
É importante abrirmos um parêntesis para discutir uma questão, que se apresenta
hoje como um dos maiores nós da Reforma Psiquiátrica no Brasil: a atenção à pessoa
em crise nos CAPS (AMARANTE, 2007). Por que vários CAPS continuam
funcionando como meros ambulatórios distribuidores de receitas e de cuidados
diários para pessoas estáveis, excluindo aquelas que estão em crise como se estas
também não fossem de sua inteira responsabilidade?
Para uma desinstitucionalização efetiva a demanda não pode ser selecionada e nem
fragmentada por diagnósticos, isso reconstruiria a cronicidade manicomial fazendo
os objetivos da Reforma fracassarem. Ao invés disso, é necessário assumir a demanda
com uma totalidade indivisível, é preciso reavivar a definição de tomada de
responsabilidade que diz respeito à atuação do serviço em toda a área territorial de
referência e pressupõe um papel ativo na promoção da saúde mental para aquela
população (DELL’ACQUA & MEZZINA, 2005). A desinstitucionalização representa
um trabalho complexo, cheio de nuances e sinuosidades para os técnicos,
administradores, usuários, familiares e precisa de uma participação essencial da
comunidade e uma intensa mobilização cultural e política. A desinstitucionalização
requer uma relação estreita com um território e todas as nuances que ele compõe
(ROTELLI, LEONARDIS & MAURI, 2001).
A ineficiência das respostas aos episódios de crise por parte dos CAPS (dos seus
próprios usuários e de outros cidadãos não vinculados aos serviços) é, atualmente,
um dos principais fatores que contribuem para o fortalecimento da lógica
manicomial. Tendo em vista que o CAPS não consegue dar conta de uma pessoa em
crise, ele direciona essa demanda para os hospitais psiquiátricos. Estes ainda se
mantêm fortes por serem consagrados todos os dias pela própria rede substitutiva,
como os serviços indicados para dar suporte à crise do usuário através das
internações e intervenções medicamentosas.
Alguns ainda defendem o hospital psiquiátrico como local propício para o
acolhimento de pessoas em crise. Baseado nas nossas reflexões anteriores
discordamos completamente; defendendo radicalmente a complexificação do
cuidado que tem por objetivo abordar as várias facetas da pessoa que está em crise e
evitar a sua redução a um sintoma psicopatológico. Como diria Lancetti (2006),
invertemos a pirâmide de complexidade do sistema, colocando o território na base
virada para cima e o hospital, no seu vértice oposto, virado para baixo. A mais alta
complexidade está no território e não entre quatro paredes. Lidar com pessoas em
crise envolve lidar com todo um contexto que as faz serem quem são. Ignorar isto é
um ato arbitrário e inócuo.
Existe uma crença que paira sobre a Rede de Saúde Mental e que poucos ousam
questionar. Lá, acredita-se que o médico é, sem dúvida, o profissional mais
capacitado para atender às pessoas em crise. Aqui, questionamos: por quê? É o
conhecimento de psicopatologia que faz a diferença? Seria o manejo de substâncias
psicotrópicas? O que seria?
Como bem sabemos, o estudo de psicopatologia não é atribuição específica do
profissional médico; ao contrário da prescrição de medicamentos. Quando
delegamos somente ao médico a responsabilidade pela atenção à crise, estamos
desconsiderando as diretrizes do cuidado integral, as considerações da Reforma
Psiquiátrica e principalmente, estamos ignorando a construção, feita há séculos atrás,
que dá a loucura a identidade de doença mental. Foucault (1972) explicita que, com
o advento da Modernidade, a loucura, vista de outras formas em outros períodos
históricos, foi travestida de doença para caber na lógica da razão como seu
contraponto. Assim, os loucos que já foram vistos como sábios e visionários,
passaram a ficar à margem da sociedade, desacreditados, marginalizados, adoecidos e
aprisionados nos grandes asilos.
Nascida na tradição asilar, abrigada em um hospital, a psiquiatria parece livre de
ambiguidades e problemas em seu discurso de base. Porém, são essas fragilidades que
se evidenciam quando o psiquiatra se desloca de dentro da segurança das paredes de
pedra dos asilos, para a expansividade dos territórios vivos e imprevisíveis
(MENEZES & YASUI, 2009). Queremos apontar com isso é que, em primeiro lugar,
os medicamentos receitados pelos psiquiatras não são a resposta para os nossos
problemas e; que, não, a loucura não é uma doença e sim, uma forma de
funcionamento diferenciado de alguém que demandará um cuidado integral visando
não só o seu corpo físico, mas tudo aquilo que envolve o conceito ampliado em
saúde (CZERESNIA, 2003): por que a intervenção para o cuidado da pessoa em
crise é vista somente como administração de medicações? O silenciamento
proporcionado pelos remédios serve verdadeiramente a quem? Para acalmar o nosso
medo diante do desconhecido? Para as indústrias farmacêuticas? Para reforçar a
supremacia da psiquiatria sobre a loucura? Para quem esse tipo de intervenção serve?
Como bem aponta Santos (2010), a medicação deve ser vista como mais um
instrumento possível no cuidado e não como a única solução de todos os problemas.
Exatamente porque viver é correr riscos, que podemos desconfiar das sagradas
escrituras das bulas, das prescrições técnicas travestidas de assepsia e neutralidade, dos
saberes cuidadosamente embalados com papel de presente científico, das teorizações
totalizantes e totalitárias. Podemos nos arriscar a inventar lugares onde a vida não seja
mera retórica ou vocábulo démodé, mofando na prateleira tecnocrática de algum saber
fora do mundo (SANTOS, op. cit., p. 175).
Entretanto, a fé cega nos saberes do médico tem causa identificada. A falta de
preparo dos profissionais para lidarem com esses momentos de sofrimento intenso é
indiscutível, costumam se colocar na defensiva, com medo do que pode acontecer.
Isso fortalece a ideia de que nessa situação o melhor a se fazer é conter o usuário.
Além do mais, a grande centralização que o CAPS tem em si mesmo, já que com
pouca abertura para o território acaba por viciar o serviço, se destinando a abarcar
momentos pontuais da vida de seus usuários correndo o risco de descontextualizá-
los e sobrecarregar os técnicos.
A institucionalização fica clara na seleção da demanda a ser atendida, na
“rotinização” dos procedimentos, na criação de padrões rígidos para atividades que
deveriam ser flexíveis. A rigidez rouba a autonomia do técnico e do usuário,
favorecendo a institucionalização que desmotiva, aprisiona, assessorando todo tipo de
adoecimento. Porém, mesmo esse adoecimento traz um importante fator para
análise. Pelbart (2000) afirma que esse estado pode trazer uma impotência e
fragilidade que deve ser usada como condição e possibilidade para efetivar mudanças.
A maneira de lidar com a situação é que a transforma em incapacitante ou
emancipadora.
Lancetti (2006) aponta que qualquer instituição que trabalha com pessoas com
algum sofrimento mental tende a se cronificar, criando coletivos repetitivos. Ou
seja, organizam as oficinas terapêuticas, levam os usuários a passeios, fazem do CAPS
um lugar acolhedor e interessante, porém, quando alguém entra em crise busca-se
logo o psiquiatra para que ele “resolva” a questão.
Um modelo substitutivo precisa ter claro que seu funcionamento é distinto do
funcionamento do hospital psiquiátrico e seus técnicos precisam ter exímia clareza
das razões que sustentam a crítica à instituição psiquiátrica – sob pena de confundir-
se com ela. A obrigação é aquilo que define o hospital psiquiátrico, força os internos
a usar uniforme, a permanecerem trancafiados em seus muros, a rigidez identifica os
procedimentos; as marcas da “normalidade” imposta à loucura ficam à mostra. Um
verdadeiro massacre da diversidade, que transforma pessoas em números, ambientes
em prisões, invenção em monotonia. E o princípio da distância entre os técnicos e
pacientes é escavado todos os dias, fortificando o monólogo da razão diante da
loucura (COORDENAÇÃO DE SAÚDE MENTAL/SMSA/SUS-BH, op. cit.;
FOUCAULT, 2006).
Se enquanto técnicos nos colocarmos acima dos usuários, nos vangloriando de
uma determinada sabedoria, sustentando uma certeza de que somos nós que temos a
verdade sobre eles, será muito mais difícil nos comunicarmos durante uma crise. O
acolhimento da pessoa em crise pode gerar uma cooperação mútua para que
profissional e usuário juntos possam produzir sentido para àquele momento. É
provável que se estivermos presos às regras e condutas pré-estabelecidas, tentando
aplicar os mesmos moldes a todas as pessoas, teremos problemas em estabelecer a
comunicação, o que impossibilitaria a formação de vínculo.
Isso mostra como a crise é o ponto central da captura da loucura. A crise é o
momento que a Rede de Saúde Mental, muitas vezes, se desresponsabiliza por aquele
usuário e o deixa a cargo da Rede de Urgência e Emergência que, mais do que
qualquer outra rede, dá respostas objetivistas e simplificadoras para uma questão tão
complexa quanto é a crise.
Costa (2007) alerta para a cronicidade da crise como um fenômeno que está se
consolidando, tendo em vista que lidar com a crise desperta procedimentos
peculiares dos manicômios, não apresentando resolutividade, mas consistindo em
violência e tentativa de normalização. Admitindo, implícita ou explicitamente, que a
intervenção adotada durante a crise se dá através da sua supressão, se contribui
diretamente para um circuito eterno que alimenta a dependência que a rede tem dos
hospitais psiquiátricos. Os CAPS não deveriam ser aparelhos para suprimir à crise,
mas para se trabalhar com ela de maneiras singulares, espaços para fazerem parte do
cotidiano da pessoa e de onde ela não deveria ser retirada quando não estivesse
“bem”.
Costa (op. cit.) aponta também que uma boa saída para esse dilema é a valorização
das estratégias da própria pessoa para lidar com a sua crise. Não é de supressão que
alguém em crise precisa, mas de espaço e vínculos que possam lhe proporcionar
acolhimento e uma certa dose de autoconfiança.
Dell’Acqua e Mezzina (2005) afirmam que a crise é a simplificação da própria
existência-sofrimento da pessoa atendida e os serviços espelham isso. Precisamos
quebrar os tradicionalismos que ligam a crise aos hospitais, enfermarias psiquiátricas
e aos próprios psiquiatras. Precisamos ampliar o sentido da crise, vê-la como um
momento potencial, um momento da vida que pode se transformar e se reinventar
de milhares de formas.
Pistas no ar: um grito de transversalidade
Para não concluir, defendemos que, certamente, existem várias formas de resolver o
dilema da atenção à pessoa em crise no SUS. Acreditamos que existem tantas formas
quanto pessoas que entram em crise todos os dias, quanto serviços substitutivos,
quanto profissionais de saúde mental ou de urgência. Porém, uma pista que nos
aponta inquieta mais adiante, diz respeito à importância de uma articulação Inter
redes para a efetivação do cuidado integral no território. Prescindir das internações
requer tecer uma rede transversal que interligue várias formas de cuidado, requer a
comunicação ativa e a construção efetiva de interfaces entre lógicas que hoje são
discrepantes. E para tal empreitada, precisamos do comprometimento de todos, não
só dos profissionais da saúde mental, não só dos gestores do SUS, mas de toda a
sociedade.
Além de coletivo, esse projeto é audacioso e sem precedentes, porém, como bem
defende Yassui (2010), a Reforma Psiquiátrica é um projeto civilizador, para tanto
não deve se restringir às salas de aula das universidades e nem ao interior dos
serviços de saúde mental. Precisa extrapolá-los, ocupar a rua, tomar parte da cultura
e ajudar a construí-la. Amarante (1999, 2003) aponta que a Reforma Psiquiátrica é
constituída por quatro dimensões constitutivas. Uma delas é a dimensão
sociocultural definida como conjunto de práticas sociais que tem o objetivo de
transformar o imaginário social relativo à loucura. Um dos dispositivos utilizados
para propiciar essa transformação é, sem dúvida, a arte, que media discussões sobre a
alteridade radical, relativiza a normalidade e descarta óbvio.
Certamente, revoluções como essas foram encampadas por pessoas que ousaram
acreditar, e por isso, convoco todos a travarmos mais esse caminho, que certamente
não é fácil, mas, é ladrilhado por esperança, bons encontros, possibilidades e por
muita vida que escapa e sempre transborda.
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2 A Política Nacional de Atenção às Urgências é composta por sete portarias. Para melhores informações, consultar Brasil (2006).
Política Nacional de Atenção às Urgências. 3 ed. Brasília: Editora MS. (Série E. Legislação de Saúde).
3 Atendimento Pré-Hospitalar.
4 São subdivididos em cinco tipos: CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes, funciona das 8 às 18 horas de
segunda a sexta-feira; CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes, funciona das 8 às 18 horas de segunda a
sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas; CAPS III – municípios com população acima de 200.000
habitantes, funciona 24 horas, diariamente, também nos feriados e fins de semana; CAPS infantil (CAPSi) – municípios com população
acima de 200.000 habitantes, funciona das 8 às 18 horas de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21
horas; CAPS Álcool e outras drogas (CAPSad) – municípios com população acima de 100.000 habitantes, funciona das 8 às 18 horas de
segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas (Brasil, 2004).
CAPÍTULO 4
Agressividade e saúde mental: como profissionais de um CAPS lidam com atos
agressivos e violentos dos pacientes
Paula Ferreira
A agressividade que cria o mundo, e também cria a destrutividade, não pode ser
categorizada como saúde e doença e, sim, como um deslizar entre saúde e doença. A
agressividade que destrói, destrói dependendo dos olhos de quem a vê. (VILHENA
& MAIA, 2002, p. 42)
Introdução
Esse capítulo analisa resultados de uma pesquisa de mestrado sobre agressividade e
violência em um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS – do estado do Rio de
Janeiro. A autora estudou a percepção dos profissionais de saúde mental sobre
violência e agressividade quando praticadas por pacientes de saúde mental e a forma
com que lidam com essas questões. Escolheu analisar neste livro as ações relatadas
pelos profissionais como potentes para enfrentar esse tipo de situação. Entretanto,
para compreender a maneira como esses profissionais têm podido trabalhar mediante
um cenário como tal, houve um entendimento de que era primeiramente necessário
esboçar o que os profissionais apreendem em termos dos significados dos atos, sejam
nomeados como agressivos ou como violentos.
Diante da premissa de que o CAPS possui função central na rede de saúde mental,
entende-se que esse dispositivo precisa se ocupar de atos agressivos e violentos. A
diferenciação entre os termos agressividade e violência pode parecer trivial, contudo
o referencial teórico aqui utilizado, a teoria psicanalítica, sustenta uma diferença
entre os referidos termos. Mas seria possível extrair dessa teoria recursos para lidar
com as explosões de raiva em atos dos pacientes que perpassam o dia a dia do
trabalho na saúde mental? E os profissionais, principais interessados na temática,
percebem alguma diferença entre a violência e a agressividade? A proposta focada na
compreensão dos termos agressividade e violência tem aqui o fito de auxiliar os
profissionais de saúde mental que atuam nos CAPS na construção de recursos para
lidar com tais situações. As políticas públicas atuais pouco abordam a questão dos
pacientes de saúde mental quando agem como agressores. O relatório final da
Conferência Nacional de Saúde Mental de 2010 (Ministério da Saúde, 2010), por
exemplo, aborda os temas violência e saúde na agenda da saúde mental, mas a
maioria de seus tópicos refere-se aos pacientes com transtornos mentais
exclusivamente como vítimas de violência. Segue essa abordagem a maior parte do
material bibliográfico existente sobre a temática, mas se sabe que os pacientes não
ocupam exclusivamente o lugar de vítimas, eles também agridem. Há de se
questionar como e por quê.
Comecemos compreendendo melhor o primeiro termo foco do estudo: a
violência. A Organização Mundial de Saúde afirma que a violência constitui o “uso da
força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa,
ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de
desenvolvimento ou privação” (KRUG, DAHLBERG, MERCY, ZWI e LOZANO,
2002). O complexo fenômeno da violência em suas multifaces revela que os seres
humanos costumam ter duas posições possíveis perante o ato considerado violento:
ser vítima, quem recebe a violência; e ser agressor, quem comete a violência.
Birman (2009) contribui com ampla revisão teórica da obra freudiana, lembrando
que a complexidade da violência exige esforço teórico de todos para a realização de
um trabalho interdisciplinar e que a psicanálise precisa se inserir, respondendo às
questões impostas pela violência; considera que “a problemática da agressividade em
psicanálise se impõe hoje de maneira insistente e irrevogável” (p. 46).
Mas como evitar tomar um termo pelo outro, se tanto nas definições sobre
violência quanto nas sobre agressividade uma palavra costuma substituir a outra? A
resposta possível é abordada pela teoria psicanalítica.
Freud teoriza sobre agressividade desde os primeiros casos clínicos no registro do
sintoma pelo viés da questão da resistência. Na obra freudiana chamamos de
primeira tópica suas produções no contexto dinâmico de um par de forças
antagônicas, uma primeira mais obediente ao Ego, que se submete às normas
culturais; e uma segunda mais livre, fortemente atrelada à libido que evita se curvar
às amarras das regras. O autor contrapõe pulsão de autoconservação versus pulsão sexual,
e merece destaque o fato de que utiliza somente o termo agressividade. Se
primeiramente Freud ligou impulsos agressivos a componentes sádicos da pulsão
sexual, em seguida situou a agressividade como originada também na pulsão de
autoconservação (MELLER, 2005). Encontra-se na teoria freudiana evidências de que a
agressividade não é fiel a qualquer dos polos pulsionais – sexual ou de
autoconservação.
Avançando na obra de Freud, estão situadas outras pulsões: de vida e de morte. A
importância das conceituações sobre agressividade é ressaltada em “Pulsões e suas
Vicissitudes” (Freud, 1915), pois a função da agressividade aparece como estratégia
para manter a vida, ou seja, afirma-se que sem a agressividade a pulsão de morte
dominaria o psiquismo. Contudo, em um movimento para evitar a própria morte, a
pulsão de vida se faz presente na pulsão de morte, na manifestação de um ato
agressivo. Aqui já consta uma conclusão que torna qualquer tratamento sobre a
agressividade no mínimo menos pessimista do que o usual.
Para desenvolver essa questão, há de se recordar de dois fatos que marcaram os
anos de 1920: o foco na questão da agressividade e a grande virada na teoria
psicanalítica, com o início da conceituação sobre pulsão de morte. Mas, afinal, de
que se trata a chamada pulsão de morte? Não há como citá-la sem falar da pulsão que
acaba sendo uma espécie de parceira sua: a pulsão de vida. Freud postula uma tensão
entre a chamada pulsão de vida –força criativa, construtiva que mantém a vida
humana – e outra força igualmente humana, porém destrutiva que, ao invés de unir,
trabalha destrutivamente para que o psiquismo atinja tensão zero – rumo à morte
(Meller, 2005), e que consiste na chamada pulsão de morte.
Freud afirma ser a agressividade uma parcela da pulsão de morte, que fica a
serviço da pulsão de vida e é desviada para o exterior. Resta falar da outra parte da
pulsão de morte, que fica retida no interior e se articula à pulsão sexual, construindo
dessa maneira o que chama de masoquismo erógeno (Freud, 1924). Adiante, Freud
(1930) enfatiza a dificuldade humana que é abdicar de sua agressividade para viver
em sociedade e ressalta a imbricação entre pulsão de vida e pulsão de morte.
É possível finalmente esclarecer a diferença proposta pela teoria sobre
agressividade e violência. Freud se refere à pulsão de morte como dirigida para fora
e para dentro do sujeito, e relaciona a pulsão de morte voltada para dentro com a
agressividade. Já violência é mencionada quando acontece o desintrincamento entre
pulsão de vida e pulsão de morte no sujeito e ocorre que a pulsão de morte se
exacerba.
No contexto dinâmico da teoria freudiana, pode-se concluir que a violência
poderia ser um ato no qual há um desintrincamento entre pulsão de vida e pulsão de
morte, prevalecendo aí a segunda; ao passo que a agressividade ainda é uma tentativa
construtiva da pulsão de vida no percurso da sobrevivência. Em outras palavras,
temos na agressividade uma ação dirigida pela pulsão de vida ao invés da exacerbação
da pulsão de morte, por sua vez presente no ato violento. Logo, parece possível ao
trabalhador da saúde mental lidar com ela a fim de construir algo. Mas para
sabermos melhor “como” fazê-lo, o caminho foi escutar os profissionais de uma
equipe de saúde mental. Com tal intuito, foi realizado um estudo qualitativo
descritivo-analítico, cuja abordagem foi a análise de caso de uma instituição de saúde
mental no estado do Rio de Janeiro.
Desenvolvimento
Para o desenvolvimento deste trabalho, foram feitas entrevistas semiestruturadas em
profundidade com profissionais que atuavam no CAPS estudado. Tais entrevistas
elucidaram o que eles têm podido fazer a respeito dos atos agressivos e violentos
praticados por pacientes no campo da saúde mental.
As atitudes potencialmente eficazes relatadas pelos profissionais podem ser
divididas de acordo com a conceituação que fazem sobre os referidos atos ou forma
como lidam com os mesmos. Inicialmente abordaremos que significados os
profissionais atribuem aos atos para depois enumerarmos as atitudes que foram
elencadas como potentes.
A respeito dos significados atribuídos, um primeiro ponto destacado é que a ação
agressiva é vista sempre dirigida ao outro; ela seria intencional; visaria a lesar
fisicamente; contudo além de manifestada física pode ser expressa também
verbalmente. Esse direcionamento do ato agressivo ou violento de forma intencional
pode ser interpretado tal qual uma mensagem que pede de quem o assiste uma
resposta. Alguns entrevistados lembraram que os atos podem ser autodirigidos – no
caso da autoagressão por exemplo –, mas sempre são executados com um
endereçamento para que alguém os veja e de alguma forma apresente uma reação.
Consta na fala dos entrevistados uma primeira articulação com a teoria freudiana,
já nesse começo da análise. Freud indica que a pulsão de morte, quando voltada para
dentro, deve ser chamada de agressividade. Os entrevistados disseram que a
agressividade é dirigida ao mesmo tempo para dentro e para fora do sujeito,
agressividade essa interpretada pelos mesmos como ato construtivo e, nessa leitura,
dotado de pulsão de vida.
Assim como os profissionais podem perceber algo positivo na agressividade, a
teoria psicanalítica aponta nela pulsão de vida. Ressalte-se que, em um ato agressivo,
a pulsão de morte pode também se fazer presente, seja um ato direcionado para fora,
seja direcionado para dentro do sujeito. Mas, se nas falas dos entrevistados a menção
marcante foi a positividade do ato agressivo, pode ter sido pelos atos representarem
uma resposta às situações insuportáveis vividas pelos pacientes, como uma forma de
defesa frente ao sofrimento psíquico que clama por ajuda. Desse modo, é importante
relembrar que a agressividade faz parte do processo de constituição da subjetividade
e o sujeito, ao dela fazer uso, organiza seu percurso identitário.
Seguindo o que fora apontado por Vilhena & Maia (2002), Souza afirma a
possibilidade de um ato agressivo poder “ter muitas faces e disfarces, seria
simultaneamente uma resistência do Eu tentando marcar seus contornos identitários
justamente quando o objeto (o outro) ameaça o seu lugar, mas também um pedido
de reconhecimento e endereçamento de uma mensagem a esse outro” (p. 35).
As falas dos entrevistados enfatizaram objetivo de prejuízo ao mencionar violência
e agressividade. Costa (2003) afirma que a violência “é o emprego desejado da
agressividade, com fins destrutivos” (p. 39). O mesmo autor disserta sobre as
percepções daqueles que observam o ato serem bem semelhantes às dos
entrevistados.
A respeito da percepção do agredido, a agressividade é percebida por quem a
presencia como algo intencional. Pois é essa percepção em si que traz ao ato a
qualidade de violência, diz o autor, que transforma o que se viu em uma “ação
violenta”. Nas palavras de Costa (2003), “quando a ação agressiva é pura expressão
do instinto ou quando não exprime um desejo de destruição, não é traduzida nem
pelo sujeito, nem pelo agente, nem pelo observador como uma ação violenta” (p.
40). É interessante essa conclusão por parecer demarcar os limites entre o que pode
ser considerado violento ou não, pois, segundo o autor, para ser violento, um ato
tem de ter intencionalidade – e o mesmo foi dito por entrevistados.
Pode-se ir além, ao analisar a intencionalidade de se atingir o corpo, se for
considerado ainda que o corpo agredido, tal qual postura a psicanálise, é sempre
simbólico – é um corpo que serve apenas como suporte material da subjetividade e
há nele um sofrimento subjetivo para além do físico, sob a ótica de quem sofre os
atos violentos dirigidos ao corpo. Apresenta-se aí uma troca simbólica para além de
ações-reações de uma biologia meramente concreta. Nesta troca, o que é atingido
dependerá da representação que o sujeito que sofre a violência faz do seu corpo e de
forma geral de si. Segundo os entrevistados, a afetação que um ato agressivo provoca
pode estar mais intimamente ligada a algo em nível emocional e psicológico e,
portanto, independe de haver registro corpóreo.
Há no ato agressivo alguma coisa que pede um registro psíquico via linguagem,
ainda em uma tentativa de simbolização. De acordo com Ferrari (2006): “existe a
agressividade, mas ela pode ser sublimada, pode ser recalcada, não precisa ser
atuada, pois o humano conta com o recurso da palavra, da mediação simbólica” (p.
51-52).
Houve colocações dos entrevistados tentando diferenciar violência de
agressividade, associando os termos às suas respectivas formas de manifestação:
verbal ou física. Entretanto, a hipótese de a manifestação verbal ou física servir para
diferenciar agressividade de violência se sustentou por pouco tempo nos discursos
ouvidos. Em psicanálise, podem-se interpretar essa comparação entre verbal e físico,
tomando o verbal como tentativa construtiva de simbolização e o ato físico como
aquilo que não foi simbolizado e é passagem ao ato, tendendo à destruição.
Houve distintos conteúdos nas interpretações desses atos por parte dos
profissionais. Eles transpareceram ter escuta clínica livre de pré-conceitos e estar
interessados nas singularidades das motivações de atos agressivos ou violentos. De
tudo o que fora apontado pelos entrevistados, o ponto central que coaduna com a
teoria psicanalítica é o fato de os atos serem percebidos como um pedido de ajuda ou
um alívio de ansiedade.
Merece destaque o reincidente discurso dos profissionais que acreditam que os
pacientes manifestam alguma intenção. Entendem que aquele ato está direcionando à
equipe, representando um pedido de ajuda, não se esgotando em si de forma alguma.
De acordo com Vilhena & Maia (2002), pode-se dizer que “agressividade opera,
portanto, quando há reconhecimento pelo sujeito do objeto a quem endereça sua
reivindicação agressiva” (p. 35).
É importante retomar aqui o que fora dito acima sobre certa desarticulação entre
um comportamento que extrapola a palavra e a possibilidade de simbolização.
Segundo Ferrari (2006), para Lacan, o que é da ordem da agressividade pode chegar
a ser simbolizado, mas o mesmo não ocorre com aquilo que é da ordem da violência,
pois há aí impossibilidade de acesso à dimensão simbólica. Aquilo que o sujeito não
consegue expressar pela via da palavra está na ordem do Real. Esse, para Lacan, é o
que escapa via linguagem, tal qual um excesso não passível de simbolização (Lacan,
1999).
Outro importante achado no discurso dos entrevistados foi a desvinculação de
atos agressivos ou violentos com a condição de ser paciente de saúde mental. Nesse
ponto a nomenclatura – utilizar a palavra agressividade ou a palavra violência – deve
vir em segundo plano. Esses seriam atos praticáveis por qualquer ser humano,
portanto não patologizáveis porque são advindos de pacientes psiquiátricos. O fato
pode parecer trivial para os trabalhadores da saúde mental em sua maioria, mas peca-
se pelo excesso de sua repetição, uma vez que os estereótipos do senso comum
caminham no sentido inverso, defendendo que portadores de transtornos mentais
são agressivos por causa da doença mental.
Se há uma máxima psicanalítica nas discussões sobre agressividade é a de que a
agressividade é inerente ao homem. Mas isso não é tão simples. Ferrari (2006), em
artigo sobre agressividade e violência, reforça a ideia ao afirmar que a agressividade
está historicamente registrada nos documentos da humanidade. “Com referência à
agressividade, tanto Freud quanto Lacan situam-na como constitutiva do eu, na base
da constituição do eu e na sua relação com seus objetos. Não negam sua existência,
ao contrário, afirmam a agressividade na ordem humana, ordem libidinal” (p. 51). É
mesmo Freud (1930) que considera a dificuldade da humanidade em admitir tal fato:
“que outros tenham demonstrado, e ainda demonstram a mesma atitude de rejeição,
surpreende-me menos, porque “as criancinhas não gostam’ quando se fala na inata
inclinação humana para a “ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e também
para a crueldade” (p. 124).
Na medida em que qualquer humano pode executar algo agressivo, foi evidente
no discurso de alguns entrevistados que não se deve tomar agressividade como fruto
de uma doença ou indício de alguma crise. Implica incorrer em risco falas de outros
entrevistados que mencionaram atos violentos e agressivos como sendo
independentes da vontade dos pacientes e apontando a patologia como uma possível
causa dos acontecimentos, ou ao menos como fato fortemente relacionado aos
mesmos.
Para a psicanálise, parece um grande perigo afirmar que atos agressivos e violentos
são inteiramente desprovidos de responsabilidade ou de um desejo (ainda que
inconsciente) dos sujeitos que o praticam. Costa (2003) reforça essa linha de
pensamento, afirmando ter a violência um caráter irracional, ainda que seja diferente
de qualquer agressividade animal. Ele afirma que as ações humanas, mesmo sendo
destrutivas e irracionais, portam sempre a marca de um desejo, em suas palavras:
“violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutitvos” (COSTA,
2003, p. 39).
Por parte dos entrevistados, houve ainda uma referida compreensão sobre os
termos agressividade e violência que funde tais noções. Eles defenderam tratar-se de
uma só atitude, com dosagens e intensidades diferentes. Se for levado em
consideração que agressividade e violência estão em certo contínuo gradual, os
entrevistados localizam na violência mais intensidade. Freud parede se aproximar
dessa argumentação quando fala nitidamente em exacerbação da pulsão de morte
sobre a pulsão de vida, ao se referir à violência. O autor menciona um ato violento
como exacerbação da potência destrutiva de uma pulsão, ou exacerbação da “pulsão
de morte”.
Freud (1920) expõe que as duas pulsões andam juntas, são fusionadas de maneira
que muitas vezes se torna difícil reconhecê-las isoladamente. Ainda ressalta que
nenhuma das pulsões é menos essencial que a outra e diz que “os fenômenos da vida
surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambas” (p. 252). Ao citar as
dosagens e intensidades nos atos estudados, os entrevistados revelam onde percebem
a diferença “presentificada” entre um ato agressivo e um ato violento, estando
presente no último um aumento da potência humana em destruir, se comparado ao
primeiro.
Uma questão recorrente na temática desse estudo é que todo paciente em crise
apresenta atos violentos e/ou agressivos. É importante frisar que a articulação entre
crise e agressividade e/ou violência no CAPS deve ser vista com cautela. Defende-se
a compreensão e interpretação desses atos sempre em um movimento polissêmico. A
preocupação aqui é a de não supervalorizar certa relação de causalidade que
comumente se ouve nos serviços de saúde mental, entre crise psíquica e os tipos de
atos visados em análises.
Ainda se faz necessário expor um outro tipo de crise, citada pelos profissionais
como causa dos atos agressivos e violentos dos pacientes: a crise institucional do
próprio CAPS. Foram apontadas várias dificuldades pelas quais os profissionais estão
submetidos ao trabalhar na instituição CAPS II estudada. Correa (2011), ao avaliar
CAPS II no estado do Rio de Janeiro, confirmou que havia muitos indícios de
precariedade da rede de saúde mental e, em especial, nesses serviços. Nos discursos
dos entrevistados foram citados vínculos de trabalho precários e estrutura física
inadequada do serviço.
Uma vez analisados os significados que os profissionais atribuem aos atos,
finalmente se pode expor o objetivo central deste capítulo: discorrer sobre o que foi
apontado como manejo potente para atos agressivos e violentos. Intervenções de
diferentes tipos e por vezes contraditórias foram mencionadas. Selecionamos aquelas
eleitas pelos entrevistados como as que apresentam melhores resultados e estas
seguem enumeradas abaixo:
1. Intervenções diretas por meio da fala: essas intervenções parecem óbvias, mas
não necessariamente têm sido praticadas nos dispositivos de saúde mental, onde
muitas vezes a medicação faz a função de tamponar qualquer discurso. Na prática,
correspondem principalmente a três ações: questionar o porquê do ato; utilizar o
espaço da Assembleia para discutir sobre as ações violentas e agressivas por parte dos
pacientes e evitar rotular pacientes durante as reuniões de equipe. Esse tópico inteiro
é uma espécie de resumo da estratégia de intervenção mais adotada pelos
profissionais do CAPS aqui estudado. A primeira atitude pôde ser mais detalhada
quando os entrevistados apontaram como recurso primordial para lidar com atos
agressivos e violentos tentar falar com os pacientes, questionar sobre o que está
acontecendo, intervir em um ato fazendo uso diretamente da via simbólica da
palavra. Essa estratégia de trabalhar via linguagem mediante um ato agressivo ou
violento responde à necessidade apontada anteriormente, a de dar uma resposta a
uma mensagem endereçada.
Outra forma potente de fazer a palavra circular parece ser o espaço da Assembleia
dos usuários do CAPS. São espaços, que possibilitam falar com os pacientes de
maneira diferenciada. Lá não se direciona uma fala a um sujeito específico, pois o
receptor é sempre algum grupo, dentro da tentativa de fortalecer o contrato social.
Aqui lembramos a pontuação de Freud (1936) para Einstein, ao se questionar sobre
o porquê de a guerra entre os povos. Ressalta-se nesse texto a importância do
contrato social uma vez que sua existência é justificada pela necessidade de os
homens se unirem em comunidade para se fortalecerem.
Outro ponto levantado refere-se ao que é falado sobre o paciente. Para os
entrevistados existe um cuidado a ser tomado para que o paciente não seja rotulado
como “violento”. O procedimento é feito no intuito de mostrar a todos – sejam
outros pacientes ou membros da equipe – o potencial de um paciente, independente
de sua ação violenta ou agressiva. Dessa maneira, o paciente não é referido como “o
violento”, mas o fulano que teve um ato de violência, mas que cuida bem do filho,
que cultiva rosas lindas na oficina de jardinagem, que ajuda outro paciente etc.
2. Solicitar intervenção de um terceiro: consiste pedir ajuda a uma instituição
externa ou mesmo aos colegas no próprio serviço. Essa última foi mencionada como
imprescindível por defender a denominada “prática entre vários”, noção inicialmente
formulada por Jacques-Alain Miller (1997), que concerne a nenhum membro da
equipe acreditar que pode sozinho deter um saber concluído sobre a melhor forma
de tratar um paciente. Miller endossou sobre uma práxis que, em suma, reflete um
trabalho pautado na clínica psicanalítica em instituições que tratam pacientes
psicóticos, nas quais não se deve eleger ninguém para o lugar de um saber mestre,
restando, assim, um lugar vazio – é uma prática que suporta a incompletude.
Foram mencionados também casos que carecem de chamar instituições externas,
como o Corpo de Bombeiros e até a polícia – nesse caso mencionada apenas como
um recurso último. Seria essa transferência da responsabilidade para um terceiro
externo à equipe uma forma de lidar com a própria impotência? A proposta desta
análise é encontrar uma resposta pertinente para lidar com os próprios limites dos
membros da equipe, alguns carentes de formação profissional específica em saúde
mental. O que não parece pertinente é o fato de órgãos governamentais estarem
pouco estruturados para lidar com situações extremas vividas pelos profissionais nos
serviços de saúde mental, que lidam com falta de recursos de todo tipo.
3. Regras e outros limites: representam um grupo de atitudes que tem tido efeitos
positivos de acordo com os entrevistados. Nesse intuito, os entrevistados afirmaram
que sinalizam para os pacientes sobre seus limites pessoais ou providenciam a
retirada deles do serviço. As estratégias que expressam limites coadunam com a
premissa psicanalítica de que a cultura e suas leis se inserem necessariamente na vida
do homem em sociedade para impedir que vivam em um gozo pleno da realização de
desejos. Para Freud (1913), isso ocorre em qualquer organização social, pois, em
sociedade, um tabu representa para o homem a criação de um conjunto de
mecanismos e estratégias incluindo a ética, para lidar até mesmo com a dimensão
fisiológica dos sujeitos. A regra é necessária para vivermos em sociedade inclusive e
não deveria ser diferente para a viabilidade do convívio em um serviço de saúde
mental.
Alguns entrevistados falaram sobre a necessidade de demonstrar seus próprios
limites para os pacientes na tentativa de buscar interromper a ação violenta dos
últimos. Para tal diziam, por exemplo, que “se sentiam mais fracos do que o
paciente”, “que eram muito menores” ou “mais idosos”, por exemplo.
Expondo limites a um paciente que age com violência ou agressividade, tais
profissionais podem apontar para sua própria falta. Neste ponto cabe recorrer à
teoria psicanalítica da castração. Este conceito freudiano relaciona-se diretamente
com a incompletude humana e constitui uma noção fundamental na psicanálise de
Freud e de Lacan. Consiste na noção de falta, que é estruturante do ser humano
desde os textos de Freud nos quais se localiza a ideia de que o bebê teria uma
experiência de satisfação primeira, a qual jamais conseguiria vivenciar novamente
(Freud, 1926 e 1933). Efetivamente essa experiência não se daria de fato na
realidade. Aí consta o núcleo daquilo que foi interpretado a partir de Freud, como
“objeto mítico”, pois o objeto revela-se inexistente e as satisfações possíveis são
apenas parciais. Há claramente um limite de até onde os profissionais podem
responder à demanda de seus pacientes.
Não foi sem polêmica que, neste contexto, alguns entrevistados citaram “botar o
paciente para fora do serviço”. Tal ação foi explicada como não equivalendo ao ato de
expulsar. Aqui o profissional acompanha o paciente fora do serviço e por lá
prossegue com tentativas de intervenções pela via simbólica, porém fora do espaço
físico do serviço – atentem que o paciente parece seguir sendo tratado por seus
profissionais.
4. Troca de informações. Alguns entrevistados se referiram à necessidade de haver
“comunicação constante entre a equipe” para todos poderem “estar sempre alertas”.
Trata-se de esforço para evitar a perda de informações sobre situações de
agressividade e violência no CAPS. Os aplicativos de celulares como WhatsApp têm
sido ferramentas essenciais para informar aos que estão fora do serviço sobre o que
acorre lá dentro.
A tentativa de saber sempre o que está acontecendo pode trazer sensação de
controle que é, de acordo com Bauman (2008), essencialmente vinculada à
necessidade de compreensão humana. A capacidade de compreensão está
diretamente relacionada com a capacidade de lidar com a situação. No entanto, vale
frisar que a preparação é essencial, mas está também submetida a limites.
5. Reações subjetivas são as estratégias que falam mais fundo no emocional dos
profissionais: uns improvisam diante de imprevistos; outros fingem não sentir medo;
neutralizam-se; ou fazem o oposto, demonstram sentir medo. Destaca-se a referência
aos sentimentos de medo. Houve relato recorrente sobre a necessidade de esconder
o sentimento: tentar fingir não sentir medo. Mas demonstrar medo também foi
apontado como estratégia e parece harmônico à necessidade de expressar as
limitações referidas anteriormente. A expressão “neutralizar-se” foi mencionada
como tentativa de “não reação”, ou “ficar quieta”, atitude passiva que parece
contrastar com a ação ativa de encarar o paciente.
Segundo Bauman (2008), o medo atinge todos aqueles que estão vivos e é “o outro
nome que damos à nossa indefensabilidade” (p. 125). O que causa reações
assustadoras é justamente o desconhecido. Para esse autor, o enfrentamento de uma
ameaça pode se dar por fuga ou agressão nos humanos. Logo, é importante que a
angústia dos profissionais nessas situações possa sempre ser falada em vez de
reprimida. Para a psicanálise, o medo está intimamente ligado à angústia. Segundo
Vanier (2006), o termo angústia, em alemão, também pode designar medo. O autor
defende que, desde 1890, a angústia para Freud corresponde a uma tensão física que
não pode ser elaborada psiquicamente. Se é um excesso impassível de elaboração
psíquica, é do mesmo excesso da violência, nomeado pelos profissionais como medo.
Mas assim como a falta move o desejo, o medo falado nas entrevistas pode mover os
profissionais ao trabalho ou até mesmo paralisá-los, principalmente se silenciado.
Não é possível ensinar atitudes de improviso diante do imprevisto, mas há que se
constatar que o improviso demonstra certa capacidade a ser desenvolvida por aqueles
que já conhecem as técnicas e as balizas teóricas que orientam o trabalho no CAPS.
O improviso pode ser compreendido como utilização da criatividade para lidar com
situações imprevistas relacionadas a atos agressivos e violentos. O improviso
contrasta com qualquer ilusão de que há uma maneira de se preparar completamente
ou de se capacitar plenamente para lidar com o inusitado.
Concluindo, de maneira geral os profissionais se referiram à importância do
manejo no “caso a caso”, ressaltando que a imprevisibilidade dos atos em questão
aponta sempre para algo da ordem do inesperado.
Um último registro importante para fomentar reflexões nesse capítulo: os
profissionais deram duas sugestões para melhorar situações de agressividade e
violência no CAPS: contratar a figura de um guarda capacitado para contenção de
pacientes e oferecer mais atividades no CAPS.
Enfim, a produção de significados alcançada foi feita por deslizamentos de
significados, processo no qual sempre escapam sentidos à percepção da pesquisadora,
pois como analista do discurso a mesma só pode executar mais uma ação de
simbolização humana sujeita à incompletude.
Considerações finais
Os resultados da pesquisa de mestrado, que originou esse capítulo, foram analisados,
demonstrando ter a teoria psicanalítica instigado a autora a reforçar uma
diferenciação conceitual sobre violência e agressividade. Contudo, a autora operou
análise fazendo uso dos conceitos e podendo ultrapassá-los no intuito de evidenciar o
caráter construtivo presente em um ato agressivo.
O fato da diferenciação dos tipos de atos nem sempre se encontrar no discurso
dos entrevistados não representou exatamente uma contradição com a proposta do
trabalho, pois se verificou que os profissionais percebiam uma intenção construtiva
em atos de explosão, tanto nos casos nomeados como de agressividade como nos
nomeados de violência.
Existe uma espécie de intensidade do ato considerado violento, percebida pelos
profissionais entrevistados como superior à do ato considerado agressivo, indo ao
encontro da teoria psicanalítica com relação à exacerbação da pulsão de morte
descrita especificamente na violência, mas não predominante na agressividade.
As entrevistas demonstraram que o conhecimento dos profissionais sobre o tema
carece de espaço para ser mais bem elaborado. A tão valorizada via simbólica –
recurso primordial utilizado na teoria psicanalítica – demonstra ser muito potente,
segundo relato dos profissionais que as têm utilizado, para lidar com situações de
agressividade e violência.
Um desafio para o serviço estudado é que se pratique uma reflexão sobre o fato de
a violência e a agressividade poderem estar se transformando em casos de polícia.
Em tempos anteriores à Reforma Psiquiátrica, a saúde dos portadores de transtorno
mentais recebia tratamento moral. É considerado perigoso qualquer retorno nesse
sentido.
Por fim, a interpretação pelos profissionais dos atos agressivos e violentos como
uma mensagem – podendo ser um pedido de ajuda com intuito construtivo – se dá
como principal contribuição dessa produção teórica. Na equipe estudada, estava
presente uma forte direção clínica que permitia manter uma visão polissêmica dos
profissionais com relação aos atos agressivos e violentos. Assim, os atos parecem
sempre se fazer aos olhos de quem os vê.
Ao entender que a agressividade carrega mensagem que demanda uma resposta,
torna-se possível escutar no ato agressivo uma mensagem transmitida e talvez assim
se viabilize a interrupção de uma intenção que era inicialmente destrutiva.
Referências
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CAPÍTULO 5
Internação a céu aberto: que corpo então?
Catarine Venas
“Vivo em um mundo onde muitas coisas que
supunha impossíveis são possíveis.
Guillaume Dustan. Dans ma chambre, Paris: POL, 1996.
Deslizando entre nossas internações em manicômios e a céu aberto, os corpos se
borram apontando as camisas de força nas vitrines da cidade. Aqui, convidamos as
provocações de Beatriz Preciado, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari,
Judith Butler e Donna Haraway a pensar conosco tecnologias de gênero e, não mais,
sexo; narrativas em cenas de experiências da loucura. As relações estabelecidas entre
gênero, sexo e desejo foram interrogadas à medida que nos é interessante colocar em
xeque o corpo orgânico e imaculado de sempre. Entre linhas e costuras, os
desacordos entre corpos. Apostou-se nos rasgos que costuram corpos de densidades
intensivas.
Este estudo propõe o pensamento como estranhamento, não somente para uma
análise crítica da produção cultural do gênero e produção de corpos, mas também
para apontamento da implicação com o tema, evidenciando, assim, onde reproduzo e
afirmo a mesma lógica que pretendo questionar. As camisas de força que guardo no
armário, sendo igualmente penduradas, sujeitando um corpo doméstico esvaziado
dos tantos que poderia criar; os dispositivos de produção de subjetividade sexual que
me arquitetam semelhantes à prisão, impedindo saídas e encurralando a vida em
ortopedias políticas baseadas em regimes jurídicos, científicos, farmacológicos que
aniquilam a plasticidade no modelo ideal/normal a ser seguido; as tecnologias que
controlam meu corpo e de que faço uso, como o banheiro feminino com o batom
desenhado na porta; e as substâncias que ingiro (pílulas, medicamentos para
emagrecer, para controle dos hormônios, analgésicos, etc.) diluindo-se no corpo que
leva até esse mesmo banheiro, e assim, defecando e limpando o meu gênero.
No endurecimento de um texto formatado para o entendimento, eis a apropriação
e desapropriação dessa escrita. Neste ponto, o de fazer sentido, um dos conceitos de
Haraway (1991), o de conhecimento situado ou saber localizado, será uma ferramenta
fundamental para a compreensão de pontos valiosos aqui. A autora trata do objeto de
estudo dando visibilidade ao lugar do qual sua análise parte, pois em sua perspectiva
o pesquisador tem como ponto de partida sua própria subjetividade e seu contexto
cultural. Resta saber: onde então me localizo nisso tudo?
Percorro corredores repletos de vozes, retiro os sapatos e começo então a
transitar junto com os 230 pés descalços; alguns corpos gritam e outros, de tão
silenciosos, ensurdecem. Sou também essa multidão em voz, silêncio e corpo. Desde
que possamos entender esse corpo não mais como corpo humano, não sendo
somente de natureza biológica. Donna Haraway (1985) acredita que a natureza é
feita como fato e como ficção, o que já bastaria para deslocarmos noções como
corpo natural, ser humano, corpo humano, identidade, etc. Organismos não seriam
objetos naturais, não nascem, são produzidos nas e pelas práticas. Sendo assim, o
corpo referido não é feito exclusivamente de cabeça, tronco e membros. No
mínimo, diríamos: cabeça, tronco, membros e próteses. Corpos próteses aleijados
vivendo em velocidades complexas que achatam o cuidado de si; próteses para suprir
as adaptações necessárias; para o alcance de altas performances, etc.
O cyborg5 retrata esse outro olhar para o que chamamos de corpo, que não é
definido pela soma das próteses e nem pelos membros que tem, mas sim por essa
fusão homem/máquina. Clones que nos embaralham a visão entre o natural e o
artificial, enxertos, anabolizantes, estimulantes farmacológicos que intensificam a
imaginação, a percepção, em outras palavras, o tesão guardado no bolso; basta uma
pílula e as funções corporais até então involuntárias são acionadas. É o social fundido
com o biológico, estimulando funções não meramente orgânicas, mas criando
verdadeiros organismos sociais complexos. Haraway complementa:
[...] De um lado, a mecanização e a eletrificação do humano; de outro a humanização e a
subjetivação da máquina. É da combinação desses processos que nasce essa criatura pós-
humana a que chamamos cyborg. (HARAWAY, 1985, p. 12)
A noção de cyborg nos parece interessante acompanhada de outro conceito
chamado de espécies companheiras. Haraway (2008) traz com este conceito o
esforço para não reduzir a discussão às máquinas ou algo do pós-humano, meramente
utópico e fictício. A ideia de espécies companheiras borra a noção de sujeito ou
subjetividade fora da história, dos contextos e transformações culturais à medida que
considera os encontros entre as espécies. Isto quer dizer que embora trabalhe com
categorias construídas e por isso a palavra espécies, o que se destaca é a não evidência
prévia da forma que virá de um encontro. Ou seja, o conceito nos serve para
colocarmos em questão a construção da nossa própria espécie. As categorias
existem, como por exemplo, animal e humano; entretanto, o que mais?! Carregamos
as formas bem definidas e chamamos isso de encontro. Um gato andando que passa
na nossa frente é um gato andando. Nesse extermínio que herdamos de outras
passagens, o olhar desse gato vira gato, o rabo desse gato vira gato, temos um gato
passando à frente e nada mais passa nesse encontro. As espécies companheiras
propõem justo o contrário, o encontro dará a forma, o gato não será somente um
bichano peludo. É no encontro com o gato que não se sabe o que desdobrará,
colocando em desmonte a construção tanto de gato quanto de humano.
É no mínimo curioso que a imagem imaculada do sujeito venha sendo em grande
parte colocada em questão justamente pelos processos de transformação no corpo
humano. A ontologia humana é posta em xeque nesse híbrido que extrapola o
contorno corporal, tendo fluxo na corrente sanguínea da cidade. A cidade cheia de
cyborgs e espécies companheiras que referimos é composta por fluxos diversos,
acomodações e desacomodações, inquietações de diferentes ordens, bem como as
subjetividades, inventadas ou reproduzidas nas experiências. A perspectiva da
metrópole congelada desmorona junto com a subjetividade centralizada no
indivíduo. Uma cidade que se apresenta em suas prateleiras de onde compramos o
que comer, nas receitas médicas feitas sob medida, nos tênis de última geração em
nossos trânsitos, na veiculação da mídia, etc. A ideia desse corpo máquina nutrido
por largas produções industriais e tecnológicas, ainda assim, nos parece o corpo
humano e natural de sempre.
Esses 230 pés que aqui conto e que também me aproprio como sendo meus nem
sempre foram os membros que promoveram deslocamento. Olhando para o chão
facilmente os “vigilantes de gênero” (PRECIADO, 2012) se equivocariam com
aquelas solas dos pés mais grossas do que o piso áspero do território6. Não seria
diferente olhando para aquelas cabeças raspadas. Mulheres?! Homens?! Loucos e por
isso tal coisa?! Ainda não estou certa de tais lugares. Mantemos assim por enquanto.
Pintando as unhas de Gênero
Unidade de longa permanência psiquiátrica – era o que dizia a placa fora do portão
trancado. A fotografia daquele funcionamento revelava o que Foucault, em 1975,
descrevia, como:
[…] instituições de sequestro... São aquelas instituições que retiram compulsoriamente
os indivíduos do espaço familiar ou social mais amplo e os internam, durante um
período longo, para moldar suas condutas, disciplinar seus comportamentos, formatar
aquilo que pensam […] (FOUCAULT, 2007, p. 35)
O funcionamento manicomial já existia desde o final do século XVII no Brasil,
tendo sua proliferação de manicômios também no séc. XVIII e XIX. A docilização
daqueles corpos, sendo passíveis aos moldes que chegavam, chamava a atenção. Tinha
hora do banho, hora de cortar o cabelo, hora de desenhar, dentre tantas outras, e a
hora de pintar a unha. Atenção para esta última atividade! Talvez agora
conseguíssemos dizer que, se pintavam as unhas, sem dúvida eram mulheres. É
importante ressaltar a palavra feminino compondo o final da mesma placa que
identificava a unidade hospitalar. Retomando as atividades mencionadas, na sala de
desenho a própria equipe doava revistas, geralmente de moda, revistas com vestidos
longos, curtos, páginas que levavam retratos de modelos maquiadas usando os
vestuários. Zilá – chamaremos assim uma das internas – tinha o cabelo
cortado/recortado bem rente à cabeça e frequentemente recortava os vestidos das
revistas, gesticulando qual queria e andando nua pelo hospital procurando o vestido.
Um recorte do recorte. Zilá era sempre motivo de discussão nas reuniões, pois se
recusava a usar os vestidos da instituição, permanecendo nua. Queria os nossos
vestidos.
A instituição total7 anunciava a vida fechada e administrada pelos profissionais que
ali trabalhavam; assim, o feminino escrito na placa era reescrito naquelas vidas
mediante a representação que tínhamos do que é ser-mulher. Feminino seria o
gênero, então, mas o gênero, afirmado por Judith Butler (1998), não é algo que
somos, e sim que fazemos. E se aquelas pessoas não eram mulheres dentro dos papéis
sociais que desempenhamos e como os entendemos, certamente fazíamos com que
fossem! A noção de gênero não mais será pensada como algo natural e aleatório;
Judith Butler atenta:
O gênero é contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de
um quadro regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para
produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de ser.
(BUTLER, 2013, p. 23)
Um esforço intenso pelo resgate de uma vaidade que se contrapunha ao
funcionamento da instituição total. O cabelo raspado para facilitar a higiene contra
os piolhos e os pés descalços recusando a sandália eram pintados de gênero sempre à
tarde, hora de fazer as unhas. Diante dessa dinâmica, no enfileiramento para pintura
das unhas, encontros no mínimo curiosos se davam. O braço tão rígido quanto os
anos ali internada parecia afrouxar e era estendido para a pintura acompanhado de
um sorriso. Poucas vezes vi, mas havia também quem se recusava e rapidamente era
convencido. E havia também aquela “mulher”, difícil esquecer seu nome
emblemático, chamaremos aqui de Socorro. Socorro xingava todo mundo que via
pela frente com o convite de pintar as unhas, e com ela não havia muita insistência da
equipe. Ainda me pergunto: de onde vinham tantos esmaltes? Diante de toda
precariedade da saúde pública, posso afirmar que esmalte nunca faltou...
Na ferrugem que escorre da palavra feminino na placa do manicômio lotado, a
produção de subjetividade dita feminina será um dos disparadores que utilizaremos
para provocação de inquietações, justamente por também se tratar de um dos lugares
do qual também vivencio e que produz determinados modos de corpos; entretanto,
este não será nosso objeto de estudo e, sim, o analisador8 privilegiado dos efeitos de
práticas discursivas nos corpos. Ou seja, o entendimento do gênero/sexo que temos
como sendo reduzido, por exemplo, ao que é ser-mulher e que cotidianamente nos
conduz a certas escrituras corporais será posto em evidência no contraponto desse
dito feminino. Se a ideia que temos de feminino vem encharcada de modelos de
mulher ou do modelo identitário, podemos dizer assim, este nos servirá somente
enquanto imagem de muitos outros corpos paralíticos que poderíamos aqui discorrer.
E, por que não, colocar a movimentar.
O que nos é fundamental não é tornar a mulher sujeito decisivo desta discussão,
mas fazer dessa inscrição corporal que tem representações sociais tão entranhadas,
apontamentos e deslocamentos mais amplos. E, neste sentido, ampliar seria partir de
um lugar socialmente investido como natural, no qual aparentemente não tem
nenhuma relação com sexualidade, sexo, gênero, desejo e potência de vida. Isto só
nos servirá para, por fim, não estarmos falando da mulher, do homem, do louco, do
travesti, do negro, do pobre, mas das relações sociais e seus efeitos no que
entendemos por corpo. Logo, poderemos repensar os corpos que estão sendo
produzidos em um sistema constante de operações que reinscrevem as relações
através de seus códigos, seja masculino, feminino ou outros. Nesta produção de
corpos, não só a exclusividade da mulher é desmanchada e, sim, o que se afirma
nesta discussão são quantos corpos mais poderíamos diante das chamadas identidades
sexuais.
Qual a relação dos discursos da identidade sexual, tecnologias de gênero com os
corpos produzidos e as internações a céu aberto? Estivemos interrogando quando as
práticas sexuais e de gênero são cerceadas pela ideia que se tem de identidade,
definindo precisamente o que pode ou não pode ser feito, visto, dito, praticado, etc.
Dentre os diversos efeitos, este cerceamento por muitas vezes constrange a
multiplicidade da vida, marginaliza afirmações de outros possíveis. São imagens
corriqueiras que vão tecendo um corpo passivo, recatado e omisso.
O gênero que serviu nos anos 1980 para fundar a diferença histórica e cultural da
identidade sexual, dando origem a uma matéria passiva que escorre no
essencialismo, é visto atualmente como o conjunto de dispositivos sexo-políticos
reapropriados por minorias. Ou seja, o gênero não representa somente ser mulher
ou homem, mas também um sistema complexo que vai desde os saberes
normatizantes científicos, como medicina, até representação pornográfica, passando
pelas instituições tradicionais, como a família. Pensarmos alguns desses dispositivos
tecnológicos legitimadores de discursos de verdade, regras de conduta, formas de
pensar, sentir e agir que se apresentam no cotidiano enquanto meras máquinas
inofensivas nos faz problematizar a escassez de possíveis que está dada. Sucede que
tais modelos de ser foram tão profundamente enraizados que passaram a ser
vivenciados como naturalmente próprios das mulheres, logo, também, próprios dos
homens, dentre tantos mais atores, como se estes também não fossem produzidos na
construção social. A identidade fixada na ideia que temos de gênero faz com que
ainda hoje nos vemos vagar por territórios encharcados de modelos femininos,
masculinos etc. a serem seguidos, formas identitárias de ser. As tecnologias
contemporâneas de sujeição do gênero vêm operando cada vez mais sub-
repticiamente.
Recentemente se mostrou que a docilização de um corpo pode recorrer a tecnologias
mais suaves, dispensando até mesmo a violência direta, física [...] Novas maneiras de
moldar o corpo, modelá-lo, marcá-lo, excitá-lo, erotizá-lo, obrigá-lo a emitir signos,
etc. (PELBART, 2000, p. 13).
Posto isso, retornamos então à instituição total que de tanto parir seus corpos
dóceis nos remete quase a uma fotografia congelada, revelando em seu negativo
tantas outras. Gênero, identidades, práticas sexuais, papéis sociais, capacidade de
reprodução... O enquadramento do núcleo psiquiátrico em seu portão fechado não
me pareceu ser único, colocando em xeque as nossas passagens interditadas. No
tempo lento e arrastado, a segunda-feira poderia ser quarta, e por que não um
sábado?! Lá, a rotina pouco era quebrada, e o dia que fosse não me parecia muito
diferente do outro. Esse tempo que estourava o relógio em sua lentidão também
enrugava a tinta, as mãos, caducando a vida naqueles cinquenta, sessenta anos de
internação. O equívoco, nesse cenário todo que aqui apresento, foi achar que tudo
estava no olhar – do especialista – remetido a cada pessoa internada, sem nos dar
conta da internação do corpo que carregamos a céu aberto.
A adequação de cada corpo aos códigos vigentes da masculinidade e da
feminilidade, inclusive do meu, era em certo grau impresso nos empréstimos caros
que fazíamos dos nossos corpos vestidos de mulher. O cenário que teimava em
contrapor nossos modelos se tornava interessante de pensar à medida que o cabelo
grande alisado e perfumado se contagiava com o piolho, não permitindo a nossa
estética. Cabeça raspada, sola dos pés raspada; raspar, verbo que significa tirar da
superfície. E, na superfície, o que víamos como qualquer ambiguidade de gênero era
raspado, e logo, quando perguntado o sexo daquelas pessoas, vinha o retorno do
esmalte, da revista de moda e das nossas mulheres que levávamos todos os dias.
Há uma interrogação que surge em toda essa dinâmica: se o sexo, como visto no
senso comum, é algo aleatório e natural, fundador do gênero, correspondendo
apenas ao cálculo da regulação das condições de reprodução da vida e dos processos
biológicos, como pensar a territorialização daquelas bocas, vaginas e ânus de outros
modos? O empobrecimento dos encontros daqueles corpos restritos ao espaço do
manicômio, onde mulheres se encontram somente com mulheres, nos força a
perceber que a sexualidade dessas pessoas não deixa de existir por isso, por não
haver o sexo oposto para empenhar o modelo heterossexual de reprodução. A
sexualidade daquelas “mulheres” não deixou de existir por não haver o contato mais
próximo com homens, nem mesmo o modelo da heterossexualidade que
carregávamos prontos para usar como manual de intervenção deixou. Qualquer
combinação que escape à norma, como quando duas internas são flagradas tendo
relações sexuais, aponta o poder do discurso da identidade sexual calcada numa
heteronormatividade. A heterossexualidade como tecnologia biopolítica produz a
governabilidade desses corpos, segundo Beatriz Preciado, destinando a produção de
corpos straight: No manicômio, lugar de excelência do não acontecimento, o que
acontece é esta governância, de novo não tem nada.
[...] O pensamento straight assegura o lugar estrutural entre a produção da identidade de
gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e reprodutores. Capitalismo
sexual e sexo do capitalismo. O sexo do vivente revela ser uma questão central da
política e da governabilidade. [...] (PRECIADO, 2014)
Beatriz Preciado (2002) chama de contrassexualidade uma política do desejo
capaz de sexualizar todo o corpo, esse corpo não é mais encarnado nas funções
delimitadas a cada órgão. Quer dizer, o prazer não estará localizado tão somente nos
órgãos sexuais ou outros; e isso não é o mesmo que dizer que os desconsideramos. O
corpo que aqui falamos não é tão somente passível de compreensão, mas de sua
própria invenção na experimentação das práticas.
O desejo não recai mais, portanto, na gênese e, sim, na processualidade. Ter uma
origem para o desejo traria concepções imaculadas como, um desejo espontâneo e
natural a cada um, fadado à falta que o acompanha; um corpo em busca do desvelar
da sua verdade suspenso de qualquer contexto histórico-político. O corpo não
carrega o desejo a ser suprido, ele mesmo se põe em funcionamento enquanto
produção desejante. A princípio, a palavra produção é usada para designar um corpo
produzido constantemente e, não mais pronto, à medida que os agenciamentos do
desejo se fazem ou desfazem. Chamamos de agenciamentos os fluxos que põem
determinados dispositivos em funcionamento. É o caso do dispositivo da sexualidade
que esmaga as pontas de conexão do agenciamento do desejo a outras
potencialidades quando a sexualidade acaba por repousar sobre o sexo. A leitura
dessa sobreposição deságua nas inscrições das identidades sexuais a cada corpo. É a
imposição de um corpo, de um desejo, um prazer. Uma medida: a falta no desejo e a
norma do prazer sempre bem localizada. Sinta-o, desde que não extrapole as
limitações ou seja potencialmente perturbadora a estabilidade.
Se o desejo existe enquanto fluxo, ele mesmo não pode recorrer à noção de estar
sendo carregado por um corpo que o supri. O corpo e a produção desejante estão
emaranhados no plano de imanência, onde nesse campo de intensidades, ambos são
lançados às conexões ininterruptas. O corpo e a produção desejante têm suas
atualizações e suas virtualidades em movimento nas conexões do agenciamento do
desejo. Falamos de corpos tão orgânicos e biológicos quanto políticos!
Dos esmaltes das nossas unidades hospitalares a outras pinturas
Setembro de 2002, quatro usuários do serviço de saúde mental após longo tempo
internados recebem alta e a proposta de habitar a cidade depois de anos lhes é feita.
Logo, os moradores vão para uma residência terapêutica9, participam da escolha da
casa, da compra dos seus móveis, do cuidado consigo e com o espaço de moradia,
assim como, construção da própria relação com a rua e rede na cidade. Então, um
dos futuros moradores pergunta: “na casa tem vigia?”. É uma pergunta sem dúvida
intrigante, ainda mais se tratando de alguém saindo de uma internação de longa data.
A resposta rápida e óbvia seria dizer não, não tem vigia em uma casa. Talvez, mas a
pergunta não me pareceu nada simples: “vigia?!”. Aparecida diz: “É, vigia. Aqueles
que ficam em pé parados do lado da geladeira”. A explicação bastante original não
me fez esquecer até agora a pergunta inicial. Retomaremos o “vigia” mais à frente.
Nesse caso, essas pessoas não necessitavam de acompanhamento intensivo, tendo
autonomia para gerir a própria vida desde a ida a padaria, ao trabalho, até
organização financeira e outros projetos de vida que queiram fazer.
Acompanhávamos se aproximando da potência e delicadeza de cada um. Atualmente,
nessa casa moram dois homens e duas mulheres e uma das questões principais no
convívio é o desentendimento de um dos moradores com as duas moradoras. A
queixa constante de Aparecida e Constantina é que Justino não ajuda nos afazeres
domésticos. Come e não lava a louça que usa; se recusa a varrer sequer seu quarto e
exige por muitas vezes que Aparecida ou Constantina tenham feito a comida. As
brigas são frequentes, por vezes ambas moradoras chegam a ser ameaçadas por
Justino e acabam realizando tais atividades exigidas; entretanto, facilmente o que é
respondido por parte das moradoras diante das exigências de Justino é muita
irritação e indignação. As moradoras pedem a ajuda da equipe para fazê-lo entender
que elas “não são empregadas”, fala da própria moradora. Justino após conversa com
a equipe fica muito aborrecido chamando as moradoras de mentirosas por
inventarem que ele as chamou de empregada. O morador então afirma não as ver
como empregadas e, sim, “são mulher”.
As brigas perduram por um bom tempo sendo um desafio para todos mediar a
relação diante dessa verdade inventada de anos, não a verdade de Justino, mas da
história de um sistema educacional e social que se utiliza da intimidação para
qualquer discordância aos códigos vigentes. O morador nasceu nos anos 50, início da
Guerra Fria, período de disputa entre o que seria o melhor modo de vida:
capitalismo x socialismo. Dentre tantas transformações da sociedade, nos ateremos
ao conforto dado às mulheres ocorrido na época de Justino. Esses chegam em forma de
máquina de lavar, aspirador de pó, liquidificador e outros eletrodomésticos, de uso
exclusivo feminino. Justino continua a exigir o uso desses aparelhos por Constantina
e Aparecida até os dias de hoje, tendo brigas sérias na casa por isso. Agora, a
preocupação da pergunta lá em cima quando se quis saber se havia vigia na casa é
retomada. Dessa vez, tomo a preocupação como minha. A patrulha vigilante estaria
então com cada um ali, moradores e equipe, internalizada junto com nossas normas
sexuais e de gênero?
Certo dia Justino diz querer tratar de assunto sério, solicitando nossa ajuda. O
morador em tom baixo de voz diz que as demais moradoras não têm sexo, pedindo
insistentemente para verificarmos o que ele estava falando. Relata ainda que as
mesmas não têm nada na área onde deveria haver a genitália, nem pênis, nem vagina.
O que tem é um “enorme buraco” na região. Completa ainda dizendo que não são
normais. Independente da ordem da construção do morador, até então inédita, não
nos interessa fazer uma análise dos sintomas, diagnóstico ou qualquer cunho
patológico que possa nos distrair. Sendo um delírio ou não, o que nos interessou foi
ver que após esta construção o morador não queria mais que nenhuma das duas
fizessem os afazeres da casa, não aceitava de jeito nenhum a comida que elas faziam
afirmando que as mesmas não eram mulheres. Justino hoje em dia não mantém esta
ideia do buraco na região; todavia, ainda que por vias de uma construção delirante há
um correlato social ao lugar da mulher, permanecendo a mesma lógica anterior ao
delírio. Quer dizer, se antes lugar de mulher é na cozinha; com o delírio a lógica
permanece a mesma, as mulheres só saíram da cozinha por não serem mais
mulheres. Os papéis não entram no delírio. São constructos poderosíssimos.
O corpo sem genitália, sem as próteses de gênero sistematicamente associadas ao
feminino não retira o suposto feminino de cena, não desconstrói a identidade
engessada da mulher, mesmo distanciado da zona dos “gêneros inteligíveis”. O que
vira questão é a qual categoria arraigada pelo plano social dominante pertence estas
duas pessoas que não tem pênis, nem vagina. A essa violência gerada pela ordem
sexual chamamos de heteronormatividade. A desnaturalização de tal ordem será
intentada através de uma análise crítica da heterossexualidade, não como uma
origem natural, mas como um sistema que protocola cada gênero: homem e mulher.
Em uma cadeia estável e oposicional, a heterossexualidade dirige ao homem e à
mulher moldes únicos. Nesse binarismo de gênero, a orientação sexual assinalada
opera tecnologias sociais de produção de corpos, gênero, desejo, órgãos sexuais,
práticas sexuais. Diz Preciado:
[..] O sistema heterossexual é um aparato social de produção de feminilidade e
masculinidade que opera pela divisão e fragmentação do corpo: recorta órgãos e gera
zonas de alta intensidade sensitiva e motriz (visual, tátil, olfativa…) que depois
identifica como centros naturais e anatômicos da diferença sexual. (PRECIADO, 2002,
p. 22)
Da gestação à gestão
A roupa vinha com o nome escrito de outra pessoa, os chinelos postos por debaixo
do colchão era a tentativa de tê-los no dia seguinte; ali, quanto mais silenciosa fosse,
mais chances teria de se calçar. O que estava em jogo era como resistir ou se desviar
de um regime tão brutal de controle. Os rituais repetidos inúmeras vezes durante o
dia com medicações, eletrochoques, quarto forte, os discursos médicos de
tratamento em meio a música que vinha da sala distante, eram práticas que apagavam
o documento de identidade com seu nome e fotografia, dando lugar a outros
documentos que também curiosamente fazem parte da construção da sua identidade.
Da foto na carteira de identidade para o corpo sem rosto, tanto fazia, o uniforme a
todos já era o suficiente para dizer quem era. Versar sobre essa produção de
subjetividade implica em abordar a temática da identidade, a qual Guattari & Rolnik
(1986) definem como:
[...] um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de
referência, quadros estes que podem ser imaginários (e, por conseguinte, idealizados)
[...] Em outras palavras, a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de
diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável
[...]. (GUATTARI E ROLNIK, 1986, p. 68-69).
Agora, doente mental. Posta nos prontuários e laudos, esta não mais precisaria de
qualquer documento que a identifique, o registro torna-se outro, tudo é marcado no
corpo. A estratégia da invisibilidade fora durando 50 anos, tanto tempo que não se
sabe ao certo quando passou de silenciosa a silenciada.
O pátio estava cheio de internas, todas mulheres, inclusive ela. Fazia tempo que
não a lembravam disso, ser mulher parecia bem menos urgente que sair dali. A noite
estava tumultuada, uma interna teria fugido. A orientação era que ninguém saísse da
enfermaria, do pavilhão; aos que descumprissem a punição era imediata. Dolores
então é chamada ao consultório do médico de plantão, um movimento quase que
automático é feito em direção a sala. Lá estava a música que ouvira tocando de longe,
o profissional tranca a porta e passa a ter relações sexuais com a mesma. Seria ali a
primeira vez vista enquanto mulher? Que constructo de mulher seria esse?
Num lugar onde gritos são naturais e o silêncio pode ser resistência, é difícil fazer
o cálculo inverso desta estratégia. Dolores sem muito questionamento após repetidos
atos sexuais, permanece em silêncio. O corpo da interna então vai se modificando e
com isso certos afazeres por ela na instituição vão deixando de ser feitos, como
capinar. Parece que o acontecimento por vir dá passagem a outros funcionamentos; a
medicação parece pesar mais do que antes, o corpo lentificado que vivia arrastado se
desdobra em outro.
Ano de 1981, dia 03 de julho, a instituição que aborta a vida promove dois
nascimentos no mesmo dia. O parto que pari a filha também pari a mãe, ali naquele
útero não havia um instinto materno a ser desvelado. O choro da criança quebra
então o silêncio de anos, Dolores torna-se mãe. A maternidade! O cuidado e
preocupação nunca vivenciado vai se dando com a filha, vai se dando com a mãe. A
maternidade não projetada ou desejada, o não comparecimento do instinto materno,
tudo foi sendo construído em relação com os encontros. Aqueles encontros. O choro
e o seio ofertado, os braços que ao segurar foram aos poucos abraçando também, o
silêncio enquanto conversa, etc. Logo, pouco tempo passa e como de praxe, a filha
de Dolores é dada de modo não desejado pela mãe para a adoção. Lembramos que
embora mulher, o manicômio trazia outras identidades em urgência; a de doente
mental. A interna era desqualificada de qualquer capacidade de exercer a
maternidade. Hoje, a usuária de alta vive em busca da sua filha, afirmando ser mãe.
Dolores não consegue relatar o porquê foi internada, apenas repete por muitas
vezes a história contada aqui. Peço então permissão para olhar seu prontuário e a
autorização é concedida. A mesma relata que era chamada de paciente 328, por vezes
se referiam a ela como “braba”. Nos escritos encontro que sua internação foi feita
pelo marido, onde há relatos da época ditos por ela que o cônjuge a traía e com isso
passou também a ter relações extraconjugais. No mínimo, além de tal registro
colocar em xeque o critério de internação da época, evidencia o poder da figura
masculina. Ao ponto de determinar a sanidade mental ou não da mulher.
As portas e suas passagens
O portão se abria todos os dias às 15hs. Em lugar onde as passagens têm hora, no
mínimo devemos pensar a respeito. O ferro, então, era puxado para a abertura da
passagem; o barulho do metal enferrujado e grudado rente ao portão anunciava que
o movimento de abrir não era frequente. No toque da ferrugem gelada, ainda
fazendo força para arrastar o portão pesado, o gosto metálico chegava à boca. O
molho da chave refletia o raio que passava fugidio pela brecha do portão. A cabeça
raspada, a força, vinha se aproximando... E lá vínhamos nós com os interrogatórios.
É impressionante como sempre estamos querendo entender e isso necessariamente
ativa certa lógica; para toda pergunta uma resposta, para toda resposta uma errância
ou não. As vozes dispersavam no pátio enorme; não paravam de dizer alguma coisa
que pouco podia entender, se é que se podia. Parecia que todas comentavam ao
mesmo tempo dos diversos eventos que ocorria ali e não podíamos... Além das 230
internações, não podíamos dizer quantos corpos internados carregávamos conosco
porta adentro.
A porta se abria todos os dias, 24hs por dia. As passagens eram muitas, mas bem
menos do que imaginávamos. A maçaneta dourada deslizava na mão e o cheiro dos
temperos no salão era o primeiro a entrar. No espelho a multidão, que com
frequência ajeitava os cabelos e passava o batom, reflexo das diversas vozes em uma
só expressão. Os sussurros diziam o que claramente se podia entender, mesmo sem
uma palavra em voz alta. Parecia que todos comentavam ao mesmo tempo o que
ocorria ali e, não podia ocorrer... A cabeça raspada dessa vez veio acompanhada de
uma calça larga. Diferente do manicômio, não foi raspada a força. O interrogatório
fora iniciado. Os códigos vigentes da masculinidade não deveriam estar inscritos no
corpo que atravessava aquela porta, sem dúvida houve algum engano. A ambiguidade
de gênero provocava uma inspeção minuciosa dos pés à cabeça; a conferência ocorria
não só pelo fato de ter havido um equívoco do outro, mas da necessidade do próprio
inspetor de gênero conferir seu não equívoco em um lugar que não é o seu. E que fique
claro, não é! Os olhos corriam pela arquitetura da cabine de gênero até chegar à
placa pendurada na porta, ali estava a confirmação, o desenho de uma dama. E nessa
hora evacua-se gênero: “aqui é o banheiro das mulheres”. Podemos, assim, continuar
a ver o banheiro enquanto apenas uma porta onde vamos deixar nossos excrementos,
ou então, colocar a pensar que a arquitetura de cada espaço na cidade, o desenho seja
pendurado na porta que indica um gênero ou estampado no corpo que arrastamos,
são todos tecnologias de gênero.
Da placa escrita Hospital Psiquiátrico as placas com desenhos de batons, bengalas,
damas, gravatas etc. As internações contadas e recontadas nessa escrita não apontam
um espaço entre muros para que estas ocorram. Muito menos temos a intenção de
legitimar os nossos locais de internação, como é o caso do manicômio. A internação
que discorremos perpassa pelo corpo que está anestesiado de suas potências. Essa
internação até a alta médica não desfaz. Falamos do corpo internado que deixamos
preso a portas abertas nos banheiros da cidade e de tantos outros que imobilizamos
em nossas camisas de força. Não queremos categorizar em mulheres femininas,
homens masculinos, não nos interessa se usam o batom desenhado na porta ou se
colocam a gravata no pescoço todo dia pela manhã. O ponto é que há tantos possíveis
a se inventar com esse corpo, contudo, não podemos dizer aqui que estas passagens
estão para todos. É preciso interrogar a realidade que nos foi dada de um corpo
chapado. Esse corpo bem desenhado, sem espaço para a experimentação.
Dentre as experiências que tiveram suas linhas borradas em outras histórias tão
embaralhadas quanto afirmadas nas minúcias do entre, cabe indagarmos onde nossas
manicures andam fazendo unhas, ou então, em quais situações nossos gritos de
Socorro tem sido arrancados e se nossas recusas às roupas (a)Zilá tem acontecido. Não
nos enganemos de novo, as camisas de força estão penduradas nas vitrines da cidade
e não só no hospício.
A observação de que tais capturas são constantes faz sentido somente em
imanência, na qual a vida transpira poros de possíveis. São os estados de corpos que
fazem uso de suas identidades de modo tão potente quanto abrem mãos delas; mãos
abertas que em suas elasticidades desdobram corpos inenarráveis. Nesse artigo, a
insistência no rasgo incosturável de tantos corpos foi o detalhe que fez sentido à
pesquisadora que vos fala.
Ao longo do percurso os conceitos utilizados foram sendo pinçados à medida que
os rasgos foram entremeando nos espaços da circulação de determinado corpo e seus
acessos: o meu corpo. Inicialmente o que facilmente indicava para uma temática da
discussão de gênero vai compondo novas paisagens ao estranhar os rastros dos
vestígios corpóreos. Nos híbridos acoplamentos, os ruídos que chegam aos ouvidos
como ensurdecedores vão permitindo, junto com o texto, ensurdecer uma infinidade
de órgãos e corpos há tempos ouvidos. Escapar da ideia de uma discussão de gênero
como tema central pareceu interessante, não para furtar a discussão que aqui
ocorreu e nem diminuir sua importância, mas pelo perigo de afirmar justo o que
gostaríamos de problematizar: a naturalização do modelo que é o corpo orgânico. O
gênero enquanto produto do contrato social de uma heteronormatividade não vem
destacado do corpo como artefato biopolítico que garantirá a normalização.
Com as apostas estabelecidas, não foram aleatórias as cenas escolhidas
acontecerem dentro e fora do manicômio. O manicômio enquanto dispositivo social
legitimado a internar fotografa não apenas a estrutura hospitalocêntrica da qual
fazemos uso, mas as incontáveis internações que não aparecem nos rostos de quem
vaga por ali, nem de quem vaga do outro lado do portão. Falamos dos tantos e tantos
corpos de traçados inalterados que arrastamos pela cidade e, que também, impomos
ao outro no que muitas vezes chamamos de cuidar. A lógica manicomial da vida, das
nossas incontáveis instituições e não só da experiência da loucura; também do fino
gesto, do rosto que não apresenta ausência de expressão, da mão firme que não
treme, do grito ponderado e comedido. As nossas internações a céu aberto!
No desacordo, eis o colorido de um corpo que pode se decompor em linhas. O
cheiro do corpo total parece entranhar, o rasgo afrouxa; no entanto, se repete a
costura que os liga incessantemente. Em imanência – e sempre estamos – esse
movimento repetirá por incontáveis vezes. É a revolução de afectos10,
transformações que nem se pretende dizer as quais. A aposta de escrita inacabada
torna difícil o corte no fluxo, portanto, seguimos sem tornar as narrativas desse
artigo reparadoras das quedas, nem fazedoras de cimento, mas de criar sentidos para
perdermos. Nesse (a)rriscar indago o óbvio: que corpo então?
Referências
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mijarcagarmasculinofeminino-por-beatriz-preciado/ . Acesso em: 27 jul. 2014.
5 Donna Haraway, 1985, p. 11.
6 Território – A partir de Deleuze e Guattari, “o ambiente de um grupo que não pode por si mesmo ser objetivamente localizado, mas
que é constituído por padrões de interação por meio dos quais o grupo ou coletivo assegura uma certa estabilidade e localização”. E
acrescentam: “exatamente no mesmo sentido o ambiente de uma única pessoa (ambiente social dele ou dela, espaço de vida pessoal,
hábitos dele ou dela) pode ser visto como um ‘território’, no sentido psicológico, a partir do qual a pessoa age ou para o qual se volta”
(DELEUZE E GUATTARI, 1997, p. 219).
7 Segundo Goffman (1974, p. 11), “uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande
número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida
fechada e formalmente administrada”.
8 Os analisadores produzem desordem naquilo que parece naturalmente existente e estático. Por expor funcionamentos a partir de
situações, saberes até então coerentes e inquestionáveis, podemos dizer que catalisam sentidos desestabilizando o que então era
naturalmente visto. O conceito se origina da socioanálise, tendo contribuições de Guattari (1986).
9 O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) – ou residência terapêutica ou simplesmente “moradia” – são casas alugadas pela prefeitura e
localizadas na cidade, podendo ser no meu prédio, no seu ou em qualquer espaço urbano. São constituídas para responder às
necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais, institucionalizadas por longo período ou não.
10 Deleuze (2004) faz a distinção de afeto para afecto. Ao afecto não há falta e não é pessoal, diferente do afeto.
CAPÍTULO 6
Diversidade sexual e de gênero e saúde mental: Enlaçando políticas e direitos
Marco José de Oliveira Duarte
Introdução
O presente texto tem como objetivo problematizar elementos históricos e
contemporâneos que construíram no campo da psiquiatria e atualmente na saúde, a
atenção e cuidado com lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT,
tendo como referência os marcos jurídico-legais de cidadania e direitos de LGBT, no
que tange a saúde e diversidade sexual.
Essa questão coloca em cena diferenças e significados que vão, por um lado, desde
as potencialidades desses espaços como produtores de sentidos e direitos, até, por
outro, as resistências, conflitos e preconceitos pelos seus trabalhadores, no cotidiano
desse mesmo cuidado, quando referenciados pela temática da diversidade sexual e
das identidades e expressões de gênero.
Este estudo tem como aspecto metodológico uma análise de conteúdo a partir da
revisão da literatura e de documentos legais, bem como de impressões e
interpretações a partir da sistematização das observações nos cenários de prática e de
pesquisa no campo da saúde mental em diversas inserções na rede de atenção
psicossocial.
Sobre loucos e degenerados: A questão médico-moral
Em História da Loucura, Michel Foucault (1978) nos relata a respeito das técnicas de
punição jurídico-penal, como forma de disciplinamento dos corpos dos sujeitos
homossexuais, como o internamento, o confinamento e o isolamento social, para fins
de correção desses e de suas práticas sexuais degeneradas (CAPONI, 2012).
A 24 de março de 1726, o tenente de polícia Hérault, assistido pelos “senhores que
constituem o conselho de direção de Châtelet de Paris’, torna público um julgamento ao
final do qual “Etienne Benjamin Deschauffours é declarado devidamente culpado de ter
cometido os crimes de sodomia mencionados no processo. Como reparação, e outros
casos, [o mesmo] é condenado a ser queimado vivo na Place de Greve, suas cinzas
jogadas ao vento, seus bens confiscados pelo Rei (...) Foi, na França, uma das últimas
condenações à pena máxima por sodomia. Mas a consciência da época já se indignava
bastante contra essa severidade, a ponto de Voltaire tê-la na memória ao redigir o
verbete “Amor socrático’. Na maioria dos casos, quando a sanção não é o exílio em
alguma província, é o internamento no Hospital, ou numa casa de detenção
(FOUCAULT, 1978, p. 88).
Não obstante afirmar, não só na França, mas em boa parte da Europa, a sodomia
deveria ser punida com a morte na fogueira, podendo ser confiscadas as
propriedades e bens dos culpados por tal ato.
Em Portugal, por exemplo, segundo Green (2000) “entre 1587 e 1794, a
Inquisição portuguesa registrou 4.419 denúncias (...) do total, 394 foram a
julgamento, dos quais trinta acabaram sendo queimados: três no século XVI e 27 no
século XVII” (Op., cit., 56).
Como nos aponta Foucault (1978), “o que dá significação particular a essa nova
indulgência para com a sodomia é a condenação moral e a sanção do escândalo que
começa a punir a homossexualidade” (Op. cit., 89), e neste contexto, emerge o
internamento e/ou o enclausuramento como práticas de retirar, extinguir e castigar
esses sujeitos e seus desatinos da sociedade para ser corrigido e/ou curado. Essa
lógica do tratamento moral veio a se constituir como modelo de assistência médico-
psiquiátrica dominante a todos os loucos de todas as espécies e aos degenerados,
encerrados nos manicômios mundo afora.
Afinal,
A causa da loucura é a “imoralidade’, entendida como excesso ou exagero. Daí a terapia
ser chamada de tratamento moral, de “afecções morais’ ou “paixões morais’. A loucura é
excesso e desvio, a ser corrigido pela mudança de costumes, mudança de hábitos (que
lembra, forçosamente, a“modificação de comportamento’ enquanto projeto de condutas
inadequadas) (PESSOTTI, 1994, p. 156).
Miskolci (2007), em Pânicos Morais e Controle Social, apontar o triplo estigma da
identidade homossexual, associado e marcado por uma sexualidade desviante-
degenerada, pela loucura, por ser essa mesma prática considerada uma patologia e
por fim, pelo crime. Na medida em que essas práticas sexuais eram consideradas
ilegais, é afirmado também na Alemanha,
em 1869, quando, diante da iminente criminalização das relações sexuais entre homens
na Alemanha, o médico húngaro Karoly Maria Benkert escreveu uma carta-protesto na
qual empregou pela primeira vez o termo homossexual. No ano seguinte, o psiquiatra
alemão Carl Westphal publicou o texto As Sensações Sexuais Contrárias, no qual
descrevia esta nova identidade social a partir da “inversão” que definiria sua sexualidade
e, a partir dela, seu comportamento e caráter. Dessa forma, o homossexual passou a ser
visto como uma verdadeira “espécie” desviada e passível, portanto, de controle médico-
legal. Em 1871 o código penal alemão condenou a homossexualidade e outras formas de
sexualidade consideradas “bestiais” em seu parágrafo 175 (WESTPHAL, 1870). Desde
sua invenção médico-legal em fins do século XIX, a homossexualidade representou uma
suposta ameaça à ordem. Uma prática sexual estigmatizada, a sodomia, passou a ser
encarada como o cerne de um desvio da normalidade e o recém-criado homossexual
tornou-se alvo de preocupação por encarnar temores de uma sociedade com rígidos
padrões de comportamento. Por trás dos temores de degeneração sexual residia o medo
de transformações profundas em instituições como a família (...) Essas razões levaram os
saberes psiquiátricos e as leis a colocarem o homossexual no grupo dos desviantes, ao
lado da prostituta, do criminoso nato e daquele que talvez fosse seu parente mais
próximo: o louco (Op. cit. p. 104-5).
Em toda a Europa foram criados estabelecimentos não só para receber os loucos,
mas “todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão
mostras de ‘alteração’” (FOUCAULT, 1975, p. 78). Incluíam-se aí, por exemplo,
“inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos,
os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a
família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família
dissipadores, eclesiásticos em infração” (Op. cit.). Percebemos, portanto, que o que
se buscava nesses lugares do aprisionamento não era uma cura médica ou reabilitação
psicossocial-moral desses indivíduos, incluindo os homossexuais, mas uma exclusão
social.
Neste sentido, tanto a ordem psiquiátrica (FOUCAULT, 2006) como a pedagogia
se confundem na lógica de uma reeducação dos corpos desses sujeitos. Para atingir a
“normalidade das funções mentais”, seria necessária uma reeducação dos costumes,
uma reeducação moral, essencialmente repressiva, que restabeleça a norma da
razão.
Mesmo com o passar desse tempo histórico, vemos continuidades e
descontinuidades presentes, e uma se destaca nesse processo de transição para uma
nova ordem social que se emerge, a eugenia e seus processos de assujeitamento dos
corpos e de controle da população. A medicina, a psiquiatria e a pedagogia, assim,
tomaram como referência ideo-política a teoria da degenerescência de Morel
justamente para moldar os sujeitos e suas práticas higiênicas sobre os corpos,
gêneros, sexualidades, raças, como processo de subjetivação, fazendo emergir
sujeitos dóceis e disciplinados, úteis para o novo mundo pós-colonial, moderno,
portanto, mas com resquícios do patriarcado (COSTA, 1979), como do machismo e
do sexismo.
A partir da metade do século XIX, a homossexualidade deixa de ser uma questão
de repressão do regime jurídico-policial, ou seja, o sodomita, sujeito jurídico
definido por um ato criminoso, transforma-se ou é tomado e circunscrito, por conta
do processo social, histórico e complexo de mudança na ordem política e
econômica, como homossexual, objeto da ordem médica, submetido ao seu controle
social, como um indivíduo de personalidade desviante que não deve ser julgado por
um crime, mas definido e tratado por sua natureza anormal e pela prática da
perversão sexual, na medida em que não reproduzia mais nova força de trabalho.
Nada daquilo que ele [o homossexual] é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela
está presente nele todo subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio
insidioso infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo
já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado
habitual, porém, como natureza singular (FOUCAULT, 1985, p. 43).
Neste sentido, se no século XVIII os médicos passaram a poder se pronunciar
sobre a saúde da população urbana, a partir do XIX e metade do XX esse mesmo
saber médico faz emergir uma produção de discursos normativos que definiriam a
identidade homossexual, na medida em que esse passou a ter uma certa autoridade,
legitimada histórico-socialmente, em pronunciar sua verdade sobre o sexo e a
sexualidade na sociedade e nas famílias (COSTA, 1979).
Assim, o corpo homossexual foi cercado, definido e materializado pelo saber
médico e a sua identidade domesticada e julgada por esse sistema de verdade, a
emergência do homossexual, antes livre pela lógica do desejo e sem capturas
identitárias, é aprisionado, agora, pela ordem médico-moral burguesa.
Desta forma, em território brasileiro, essa influência europeia foi notória e
pública. Podemos enumerar um conjunto de obras, narrativas com forte conteúdo
conservador e moral, que compreende e define a homossexualidade a partir da
disfunção psíquica, somática, moral, de causas congênitas ou adquiridas, entre outros
fatores biologizantes. Portanto, seja pelo aspecto médico-legal, da criminologia e da
sexologia, a lógica é do enquadramento moral. Neste acervo de estudos sobre o
tema, é pioneiro o trabalho de Hernani Irajá, intitulado, Psicoses do amor: estudos sobre
as alterações do instinto sexual (1918), que considerava a homossexualidade decadente e
as pessoas envolvidas, corrompidas. Outro de sua autoria é sexo nu: formação e
deformação: inversão sexual (1966), onde define a homossexualidade como perversão
moral.
Outro autor que se destaca no campo médico e que considera a homossexualidade
uma doença é Afrânio Peixoto, dentre suas obras, destacam-se, Sexologia Forense
(1934) e a que escreveu com Estácio de Lima, intitulada, Inversão dos sexos (1935).
Neste mesmo período, surge a obra de Leonídio Ribeiro, Homossexualismo e
endocrinologia (1938), que influenciou a produção médico-legal sobre a
homossexualidade, desde os anos de 1930 até os anos de 1970 do século XX, em que
defende que a homossexualidade é causada por um desequilíbrio hormonal.
Pereira (1994) analisou em seu trabalho os escritos de médicos e criminologistas
no Brasil dos anos 1920 e 1930, mostrando o trato com a homossexualidade e, em
particular, a influência do eugenismo. A guisa de exemplo sobre esse estudo temos as
obras de Aldo Sinisgalli, Considerações gerais sobre o homossexualismo (1938-1940) e
Observações sobre os hábitos, costumes e condições de vida dos homossexuais (pederastas passivos)
de São Paulo (1938-1940), em que defende a patologização da homossexualidade,
identificando os que praticam como degenerados e salientando que o mero
encarceramento desses indivíduos não elimina sua anormalidade.
Toda essa compreensão e emergência da identidade homossexual, medicalizada,
patologizada e criminalizada foi reforçada por uma força ideo-política de direita,
radical e totalitária, o nazi-fascismo. Desta forma, os ditos sujeitos difusos,
inferiores, degenerados, pederastras, abjetos, doentes, sem-vergonha, obscenos,
pecadores, anormais e imorais foram aprisionados, identificados com um triangulo
rosa 11 , quando homossexuais masculinos e com um triangulo negro, quando
homossexuais femininos e outros tipos de comportamentos anti-sociais não aceitos
socialmente para as mulheres, todos levados e confinados nos campos de
concentração e assassinados. Nesse genocídio, denominado de holocausto, também
foram levados judeus, ciganos, feministas, prostitutas, comunistas, negros,
criminosos, imigrantes e opositores em geral ao governo. Reforçando as matizes
desta ideologia racista, nacionalista, anti-comunista, anti-capitalista e liberal,
eugênica e intolerante.
No entanto, cabe uma ressalva, no campo da esquerda, com hegemonia do
marxismo de cunho stalinista, o trato com os sujeitos homossexuais não era tão
diferente assim, na medida em que o fenômeno da homossexualidade seria resultado
da decadência e desintegração moral das sociedades capitalistas e burguesas.
Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, escrita em 1884, ao tratar
sobre a emergência da homossexualidade na Grécia Antiga, afirma Engels (1984, p.
103), “mas a degradação das mulheres refluiu sobre os próprios homens e também os
degradou, levando-os às repugnantes práticas da pederastia e a desonrarem seus
deuses e a si próprios, pelo mito de Ganímedes12.
Borrillo (2010) brinda-nos com um fragmento de uma carta de Engels à Marx,
datada de 22 de junho de 1869, impregnada de moralismo quanto aos ditos
pederastas e suas práticas sexuais, avaliadas como obscenidade, e de certa forma,
demonstra uma organização política por parte desses sujeitos.
Se por um lado as perspectivas críticas são tímidas ou quase nulas, foi com Freud,
segundo Foucault (1988), que se altera e se rompe com o triplo do estigma sobre o
sujeito homossexual na relação perversão-hereditariedade-degenerescência,
anteriormente estabelecida pela ordem médica-psiquiátrica.
Cabe salientar que Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, escrita em
1905, dialogou com diversos autores de sua época que explicavam a
homossexualidade pelo paradigma da inversão sexual13. Para ele, a homossexualidade
não se configura como degenerescência, como doença e nem mesmo como
hereditariedade, mas enquanto perversão, pela exclusividade de objeto e fixação
libidinal. Afirma Freud (1985, p. 151), “quando a perversão (...) suplanta e substitui
o normal em todas as circunstâncias, ou seja, quando há nela as características de
exclusividade e fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la
como um sintoma patológico”.
Vieira (2009) relata que Freud ao responder a uma carta de uma mãe norte-
americana, tendo em vista o relato da mesma sobre as condutas anormais de seu
filho, disse:
Creio compreender após ler sua carta que seu filho é homossexual. Eu fiquei muito
surpreso pelo fato que a senhora não mencionou esse termo nas informações que deu
sobre ele. Posso eu, vos perguntar por que evitou esta palavra? A homossexualidade não
é evidentemente uma vantagem, mas não há nada do que sentir vergonha. Ela não é nem
um vício, nem uma desonra e não poderíamos qualificá-la de doença. (...) Muitos
indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram homossexuais
(Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a
homossexualidade como crime e também uma crueldade (FREUD, 1935/1967, p. 43
apud VIEIRA, 2009, p. 497).
Uma síntese interpretativa e reflexiva de todo esse período marca a emergência da
homossexualidade pela medicalização e pela criminalização, mas a mesma, embora
vista como uma expressão perversa e dissidente da sexualidade humana hegemônica,
a heterossexualidade, não se enquadra pelo crivo da invisibilidade, particularmente,
entre os homens do que entre as mulheres, apesar da captura normativa-moral que
tomava a ordem sexual e higiênica da dita prática sexual normal, portanto,
reprodutiva.
Direitos e cidadania: O reconhecimento da diversidade sexual
Mesmo situando-se no começo do século XX, em conjunto com outros movimentos
sociais, em particular, dos operários e seus partidos de esquerda, como o movimento
feminista, com a singularidade do protagonismo das mulheres operárias, destacaram-
se, influenciaram e foram influenciados com tantos outros movimentos sociais que se
eclodiram na conjuntura do pós Segunda Guerra Mundial, no contexto da luta por
direitos civis e individuais e por bandeiras democráticas e libertárias que emergiram
com tantos outros movimentos, como os de cunho antirracistas, os de homossexuais,
de juventude etc.
É neste contexto que se situa a Revolta de Stonewall, em New York, em 28 de junho
de 1969 e posteriormente as Paradas do Orgulho Gay que se emergiram
mundialmente em diversas cidades e países. Esse marco histórico é um divisor de
águas entre o captura médico-moral-policial e a resistência na luta por um estatuto
de cidadania demonstrada pelo movimento de homossexuais americanos que se
espalha internacionalmente.
Apesar do Brasil se encontrar sob o regime ditatorial militar-civil (1964-1985), foi
nesse mesmo período, na resistência, que surgiram militâncias, contos literários,
produções teóricas, artísticas e culturais sobre a experiência homossexual, embora
restrita em volume e em espaços públicos, os/as entendidos/as e bonecas14 da
época, sob uma perspectiva de contestação crítica, faziam embates, debates e
tensionamentos políticos e públicos em relação a ordem médico-legal-moral que
ainda prevalecia, inclusive enfrentando polícia e manifestações públicas.
Esta questão se apresenta com continuidade e descontinuidade, a depender dos
lugares sociais e desses mesmos sujeitos, introduzindo alguns novos contornos e
outros nem tanto, mas ainda se mantém, mas em outros aspectos, com visíveis
rompimentos e embates. Neste cenário, emergem as novas expressões identitárias de
gays e lésbicas, mantendo as/os bissexuais, bem como as novas identidades de
gênero, tanto na afirmação da travestilidade, e, mais recentemente, das/os
transgêneros e transexuais.
Destacam-se nesse período obras de intelectuais e ativistas do movimento
homossexual brasileiro (MHB)15, tais como Hiro Okita, Homossexualismo: da opressão à
libertação (1980), pertencente a fração da Convergência Socialista (CS), tendência
marxista-trotskista do interior do Partido dos Trabalhadores (PT) e presente no
então fundado, em 1978, Grupo Somos de São Paulo; Leila Miccolis e Herbert
Daniel, Jacarés e lobisomens: dois ensaios sobre a homossexualidade (1983), do mesmo
autor, um ano antes, Passagem para o próximo exílio e João Antônio de Souza
Mascarenhas, A tríplice conexão: machismo, conservadorismo político e falso moralismo
(1997), referenciados pelo Grupo Triangulo Rosa, fundado em 1977, do Rio de
Janeiro16.
Sugere, nessa insurgência de contestação homossexual, em diversos espaços da
vida social, o surgimento de novas formas de subjetividades constituídas pela estética
da existência de LGBT ou dos sexos-diversos, apesar do governo do biopoder, na
medida em que esses se afirmam como sujeitos e entram na cena da esfera pública
como reivindicantes de direitos e políticas, principalmente, no campo da saúde em
decorrência da epidemia da AIDS.
No cenário internacional, portanto, enumeram-se as rupturas com a lógica
médica-moral por parte de associações científicas médicas ou mesmo da saúde.
Neste sentido, temos, de forma pioneira, em 1973, quando a Associação Americana
de Psiquiatria (APA) deixa de considerar a homossexualidade como doença mental.
No entanto, dezessete anos depois, em 17 de maio de maio de 1990, a Organização
Mundial de Saúde segue essa mesma posição ao retirar o homossexualismo da
Classificação Internacional de Doenças (CID), localizado no Capítulo V: Transtornos
Mentais, com a identificação 302.0, quando da revisão para sua 10ª edição (CID 10).
Diversidade sexual, cuidado e saúde: a questão a orientação sexual e identidade de
gênero como determinação social da saúde
É necessário contextualizar, a partir de uma análise histórica da legislação das novas
políticas públicas de saúde e saúde mental, para observarmos como se situa a
transversalidade do tema da diversidade sexual para o referido campo da produção
de cuidado em saúde e saúde mental.
Desta forma, nosso recorte inicial tem como parâmetro e como referência
legislativa, a Constituição Federal de 1988 e as Leis 8.080/90 e 8.142/90 que
instituem, no âmbito do Estado brasileiro, o Sistema Único de Saúde, com seus
princípios e diretrizes. Neste bojo a institucionalidade da Lei 10.216/01 que
formaliza a nova política de saúde mental, que antes do aparato legal já vinha sendo
desenvolvida no campo prático e político da saúde mental em diversas cidades e
estados.
Em todos os documentos acima o conceito de saúde não se opera pelo modelo
biomédico nem mesmo corrobora pela definição veiculada pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) – agência subordinada à Organização das Nações Unidas
(ONU) criada no final da Segunda Guerra Mundial, em 194817 – que no seu
documento de fundação afirma que saúde é “um completo estado de bem-estar
físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.
Mesmo que possa parecer um salto conceitual romper com a leitura biologista,
medicalizante, prescritiva e curativa que tem como foco a “ausência de doença ou
enfermidade” no corpo, o “completo estado de bem-estar físico, mental e social” é
idealista, utópico e inatingível.
Por pressupor uma existência sem angústias ou conflitos inerentes à própria
história de cada ser humano e de cada sociedade e por outro, ao reforçar a ordem
médica em tudo que é considerado perigoso, indesejável e desviante se torna passível
de intervenção e cuidado médicos para se restabelecer a normalidade e a
normatização do corpo assujeitado do outro, como vimos acima, justificando práticas
arbitrárias de controle e exclusão sociais, tais como medicalização, psiquiatrização e
psicologização das relações sociais.
O conceito de saúde, todavia, está intrinsecamente articulado a produção de
subjetividade, sendo que esta é inerente e inseparável à definição do processo saúde-
doença ou saúde-sofrimento-cuidado, seja historicamente, na concepção restrita
acima, ou mesmo no seu sentido ampliado contemporâneo, como
resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente,
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos
serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização
social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida
(BRASIL, 1986: 4)18.
Posteriormente, essa definição embasou o processo constituinte na elaboração da
Constituição Cidadã, e na seção II (da Saúde), no Art. 196, entendida como “a saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”.
Já no Art. 198, dentre as três diretrizes do sistema, destacamos apenas duas para
esse trabalho, o “atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”; e a “participação da
comunidade”. Acrescenta que a Carta Magna tem como princípio basilar a dignidade
humana e a pluralidade (CF, artigo 1º, III e V).
No sentido de regulamentar o capítulo constitucional da saúde foram promulgadas
as Leis 8.080/90 e a 8.142/90 que afirmam tais diretrizes, o conceito ampliado de
saúde e conformam diversos princípios, com destaque para o exposto no Cap. II,
Art. 7º, alínea IV, sobre a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie” (grifos nossos).
Neste sentido, todos os documentos acima, no seu estatuto legal, tratam das
seguintes temáticas: a saúde como direito social, a universalidade do acesso, a
igualdade e equidade do acesso e do tratamento, redução de danos e riscos, a
integralidade do cuidado e a participação social. No entanto, pressupõe que esses
temas se fazem presentes na construção desta política pública e na realidade concreta
do SUS, de forma contraditória, ou seja, no encontro entre seus trabalhadores e
usuários nos serviços de saúde e na gestão participativa e democrática entre os
agentes que implementam, avaliam e controlam as ações planificadas do setor saúde.
Afirmando as mesmas diretrizes e princípios do SUS, a política pública de saúde
mental, expressa na Lei 10.216/01, em seu Art. 2º registra os diversos direitos dos
seus usuários, destacamos o que se coloca na alínea II, quando afirma “ser tratada
com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando
alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade”
(grifos nossos) e da alínea VIII, quando o mesmo deve “ser tratada em ambiente
terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis”.
No entanto, cabe salientar que a referida Lei da Saúde Mental é a primeira, de
forma inaugural, que ao abordar sobre os direitos e proteção das pessoas acometidas
de transtorno mental, incluindo as de uso prejudicial de álcool e outras drogas,
destaca, pelo princípio da não-discriminação, a questão da orientação sexual em seu
Art. 1º.
A partir deste quadro comparativo e complementar das políticas públicas de saúde
e saúde mental, a temática da diversidade sexual, como expressão das singularidades
de sujeitos autoidentificados como lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
(LGBT) surgem neste contexto, tanto de forma transversal até a configuração de
uma política nacional de saúde integral de LGBT pelo Ministério da Saúde.
A aparição desde segmento na população usuária do SUS, durante muito tempo e
ainda é, restringiu-se ao campo da AIDS/HIV. Primeiro pela necessidade de
organização dos movimentos sociais LGBT emergidos na década de 1980 em
responder prioritariamente a epidemia da AIDS, e segundo, por ocupar a gestão,
pela forma da participação e controle social, desde 1986, com a criação do Programa
Nacional de DST e Aids– hoje, Coordenação Nacional de DST/Aids, reforçado
como espaço privilegiado de intervenção e militância, muito mais, pela constituição
do SUS a partir de 1990.
Cabe registrar que a década de 1990 é de reflorescimento de grupos de LGBT, em
particular pelo financiamento internacional em resposta a epidemia da AIDS,
impulsionando o movimento social LGBT. Nesse período, tem-se a fundação da
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) como a primeira Parada
do Orgulho Gay do Brasil, no Rio de Janeiro (1995), o PL 1151 de autoria da
Deputada Federal Marta Suplicy que propõe a legalização da união civil entre pessoas
do mesmo sexo, que marca o primeiro debate nacional sobre o tema dos direitos, o
Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) e a Articulação Nacional de Travestis
(ANTRA, que mais tarde incorpora os outros T´s, transgêneros e transexuais).
Desta primeira década dos anos 1990 para os anos 2000, aponta-se uma maior
visibilidade do movimento social LGBT, bem como a estreita ligação destes, ainda,
como a epidemia da AIDS. No entanto, ressalta-se sobre esta questão, o
financiamento governamental junto aos antigos e novos grupos, de certa forma,
fortalecendo-os mas transparecendo uma certa cooptação por parte da gestão
pública, tanto de ativistas para a função de determinados cargos, como de parte do
movimento LGBT, com explícita vinculação orgânica e comprometedora da
autonomia desses.
Neste sentido, observa-se uma institucionalização do movimento LGBT, mas com
uma agenda voltada mais para as políticas públicas e reivindicações legislativas, sob a
égide do contraditório e da ambiguidade desses mesmos indivíduos que ocupam
determinados lugares de gestão na esfera pública (DUARTE, 2015).
Portanto, e principalmente, partindo desta hipótese acima é que em 2004, o
governo federal lança o Programa Brasil Sem Homofobia (BSH), mas sem
financiamento público, no sentido de atender as demandas dos movimentos sociais
LGBT, com relação as suas vulnerabilidades específicas desse segmento populacional,
submetidos ainda às diversas formas de preconceito, discriminação e marginalização,
inclusive nos territórios dos serviços técnico-assistenciais de saúde, nos seus diversos
níveis de atenção e cuidado.
Não podemos esquecer das diversas resistências dos trabalhadores da saúde com
relação aos atendimentos e procedimentos técnico-operativos com LGBT,
principalmente, por conta do HIV/AIDS, em particular, por veicular a expressão
“peste gay” e toda uma gama de preconceitos, violências e mortes que esses sujeitos
foram tratados historicamente pela sociedade em geral.
No respectivo programa BSH, no campo da saúde, há sinalizadas três ações, e
talvez, a principal delas seja
a formalização do Comitê Técnico de Saúde da População de Gays, Lésbicas,
Transgêneros e Bissexuais, do Ministério da Saúde19, com o objetivo de estruturar uma
Política Nacional de Saúde para essa população. As outras duas reportam-se à produção
de conhecimentos sobre saúde da população LGBT e à capacitação de profissionais de
saúde para o atendimento a essa população (BRASIL, 2004a)20.
Entretanto, cabe destacar uma série de Portarias do Ministério da Saúde que são
lançadas em seguida e que colocam esse segmento populacional como portadores de
direitos e cidadania no campo da saúde, tais como a Portaria GM Nº. 426, de 22 de
março de 2005, que institui, no âmbito do SUS, a Política Nacional de Atenção
Integral em Reprodução Humana Assistida, a Portaria GM N° 675, de 30 de março
de 2006, que aprova a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, que consolida os
direitos e deveres do exercício da cidadania na saúde em todo o país e a Portaria GM
Nº. 1.707, de 18 de agosto de 2008, que instituiu, no âmbito do SUS, o Processo
Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as
competências das três esferas de gestão, em decorrência, tardiamente, da Resolução
do Conselho Federal de Medicina Nº. 1.652/2002, que em maio de 2002 permitiu a
realização de cirurgia de resignação sexual do/a transexual ou transgenitalização, já
em curso no país de forma clandestina.
Em 2008, portanto é realizado a I Conferência Nacional LGBT, e “das 559
propostas consolidadas no Relatório Final, 167 correspondem à área da saúde. No
referido documento, temos um total de 166 estratégias de ação, destas, 48 dizem
respeito ao campo da saúde” (DUARTE, 2011, p. 90).
Oriundo deste produto final da Conferência, o governo federal, em 2009, institui
o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT através da
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Mas somente
em 2010 temos aprovado a versão final da Política Nacional de Saúde Integral LGBT
(BRASIL, 2010), depois de um processo longo e demorado de debates e
compactuações entre os atores necessários, inclusive com o Conselho Nacional de
Saúde, que tem, segundo Mello (2012), “uma ausência de referência explícita a
transexuais” (Op. cit.; 16) em sua Comissão Intersetorial de Saúde da População
LGBT e a retomada e reestruturação do Comitê Técnico de Saúde da População de
LGBT no âmbito do Ministério da Saúde.
No entanto, a despeito dos ditos avanços no campo dos direitos sexuais para
LGBT na saúde e não exclusivamente neste setor, mas a construção de uma política
pública para a população LGBT, no tocante ao reconhecimento dos efeitos da
discriminação, do preconceito e da exclusão destes sujeitos em diversos segmentos
sociais e, em particular, no processo saúde-doença, ainda nos deparamos nos serviços
de saúde, em geral, e de saúde mental, em particular, principalmente com resquícios
da lógica manicomial, com determinados discursos e práticas que colocam uma
distância e um hiato entre o que está no papel, como vimos anteriormente, e o que
se efetiva e concretamente se faz no cotidiano do cuidado à saúde de LGBT.
Cabe destacar que muitos insistiram em enquadrá-los no lugar próprio da
patologia, do desvio e da segregação social, mesmo que não o fossem21. Desde que a
questão da orientação sexual foi retirada da tutela policial por afetar à ordem
pública, um discurso de forte conteúdo higiênico, normatizador e moralista foi
imposto não só pelo víeis do conservadorismo da ordem médica-psiquiátrica, de um
passado recente, mas também, pela esquerda stalinista. Sob esse regime, muitos
homossexuais foram exilados, mortos ou presos e torturados, sob o rótulo que se
enquadravam no “desvio pequeno burguês”, e mesmo enquadrados como
“pecaminosos” (SEFFNER, 2011, p. 67), pelo víeis de um certo fundamentalismo
religioso presente na sociedade e consequentemente pelo credo de alguns
profissionais da saúde.
Por outro lado, essas ambiguidades veem à tona quando temos recursos
normativos e tecnológicos como as políticas de educação para o trabalho em saúde,
de educação na saúde e da educação permanente em saúde. No entanto, apesar da
existência das mesmas não se vê capacitação nem para as equipes da atenção básica,
incluindo os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e mesmo os profissionais nos
Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF), como os trabalhadores dos novos
modelos de atenção psicossocial, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
em suas diversas modalidades, quiçá no território em que se dá a articulação com as
diversas redes de atenção e cuidado à saúde que se encontram. Isso demonstra a
ausência de efetivação dessas políticas para com os seus trabalhadores/as no âmbito
do SUS.
Infelizmente, sabemos que as situações de descriminação e preconceito
institucional, bem como o despreparo e a falta de conhecimento sobre identidade ou
expressão de gênero (transfobia institucional) e orientação sexual (homofobia
institucional), o completo descaso e ignorância formam o cerne da questão e que
muito ainda há que ser feito para reverter minimamente os efeitos de anos de
exclusão, invisibilidade e sofrimento psíquico pelos quais passam e submetem esses
sujeitos em suas diferenças e práticas sexuais sob a ordem hétero-cis-sexista-
normativa e binária.
Ao longo dos anos, desde 1988 e da implantação do SUS, houve muitos acertos em suas
ações, mas também muitos obstáculos demarcados por cenas e discursos
preconceituosos que, de acordo com níveis de intensidade distintos, discriminam,
estigmatizam, violentam e excluem pessoas pelas mais variadas categorias, seja classe
social, raça, etnia, identidade de gêneros, orientação sexual, relação intergeracional ou
estética corporal (PERES, 2010, p. 309).
Apesar dos relatórios das duas últimas Conferências Nacionais de Saúde e da
última de Saúde Mental apontarem para necessidade da formação/capacitação
continuada, como propiciadora de acesso ao conhecimento sobre a temática da
diversidade sexual (DUARTE, 2011), e apesar de alguns Conselhos Profissionais da
saúde, como o de Medicina, Psicologia e Serviço Social terem deliberações próprias
para a inibição das práticas discriminatórias sobre a população LGBT, e,
particularmente, os dois últimos, terem, normativas próprias para o uso do nome
social entre os profissionais destas categorias e junto as/os usuárias/os dos serviços
públicos e privados, compete ao Ministério da Saúde, como sinalizado no Plano
Operativo da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (2012 – 2015) essa tarefa
institucional (BRASIL, 2011b), deliberada pelo conjunto da população LGBT na I
Conferência Nacional LGBT, de 2008, e reafirmada, por sua lacuna ainda existente,
na II Conferência, em 2011, quando da sistematização das suas diretrizes (BRASIL,
2011a).
Apesar desse vazio, houve um oferecimento pelo Ministério da Saúde, de um
módulo de Educação a Distância (EAD) pela Universidade Aberta do SUS (UnaSUS)
sobre a Política de Saúde LGBT, de forma autoexplicativa com carga horária mínima,
sem tutoria, promovida por uma universidade pública estadual no Rio de Janeiro, e,
que vem sendo reeditado pela demanda que se apresenta em nível nacional para toda
a rede do SUS e aberta a sociedade em geral e a outras políticas públicas.
Embora seja verdade que a ausência da temática da diversidade sexual é presente
em muitos outros setores da saúde, se articulada com a perspectiva dos direitos
sexuais no campo dos direitos humanos em saúde, o tema, portanto, continua visível
e operativo, reincidentemente, para a capacitação dos profissionais da área e nas
campanhas de prevenção de HIV/AIDS, em decorrência dos efeitos acumulativos da
presença da militância LGBT desde os anos 1980, tendo em vista ser o “grupo de
risco” mais enfocado por conta das suas práticas sexuais discriminadas, incluindo aí
HSH.
Mas se por um lado, foi nesse campo que a temática da diversidade sexual estreou
no cenário das práticas de saúde em geral, hoje, ele se amplia junto com o processo
transexualizador do SUS, apesar de se limitaram nestes escopos, mas também se
associam de forma transversal, as outras políticas nacionais do Ministério da Saúde,
como jovem e adolescente, da mulher, do homem, de humanização e da população
negra, bem como, estrategicamente, no Programa de Saúde na Escola, na Estratégia
de Saúde da Família/Atenção Básica, para citar algumas. O que já é um avanço, mas
tímido, no que concerne à temática da orientação sexual e as expressões das
identidades de gênero.
Desta forma, a experiência acumulada muito mais em decorrência da epidemia do
HIV/AIDS, e recentemente, com o processo transexualizador, vem possibilitando a
quebra de paradigmas biomédicos na abordagem à saúde da população LGBT,
fazendo com que muitos profissionais refaçam em outro patamar a relação com seus
pacientes, repensem a inter-relação entre promoção da saúde e outros direitos
humanos, incluindo os direitos sexuais e reprodutivos, introduzindo outros
determinantes socioculturais no processo saúde-doença-cuidado, como da orientação
sexual e identidade de gênero, e mesmo o estigma e o preconceito resultantes, e em
decorrência destes, o enfrentamento à iniquidade em saúde, podendo produzir novas
tecnologias e linhas de cuidados à saúde deste segmento, levando em consideração o
conceito ampliado de saúde e sua clínica ampliada, ao perceber que o adoecimento e
o sofrimento de LGBT podem ser agravados quando correlacionados ao seu modo de
vida.
O direito à saúde integral para essa população requer o redimensionamento dos direitos
sexuais e reprodutivos, demandando a desnaturalização da sexualidade e de suas formas
de manifestação, bem como a recusa à medicalização da sexualidade, que tende a
normatizar as expressões da sexualidade humana segundo a lógica heteronormativa e da
linearidade na determinação do sexo sobre o gênero. Isso implica considerar outros
discursos sobre a sexualidade humana como legítimos, inclusive como ferramenta crítica
ao saber/poder médico que tende a patologizar e medicalizar as diferenças que
denunciam a não naturalidade, no humano, dos processos constitutivos e das práticas
sociais e relacionais vinculadas à sexualidade (LIONÇO, 2008, p. 18).
Considerações finais
No entanto, sinalizamos alguns desafios encontrados quanto ao rompimento com
certos tabus presentes no cotidiano das instituições de saúde, e particularmente, um
deles se coloca na ordem do medo. Tanto do lado do profissional quanto dos
usuários, quando se tem que dizer alguma informação quanto a determinados
assuntos ligados ao corpo, ao sexo e a sexualidade. É observável que impera um
silêncio ou mesmo um interdito sobre o tema das práticas sexuais.
A nosso ver, isso demonstra que mesmo que o cuidado em saúde e saúde mental
esteja intrinsecamente ligado ao contato interpessoal entre o profissional e o/a
usuário/a, há um encontro intercessor, já que o processo de trabalho em saúde
depende desses dois sujeitos, na perspectiva da integralidade. Observa-se que não é
em qualquer lugar que se fala sobre isso, nem é para qualquer um que se permite
essa abertura de diálogo, exceto para os campos de HIV/AIDS e no processo
transexualizador.
Por outro lado, e frisamos, que há uma ignorância ou preconceito por parte dos
profissionais da saúde, independente de sua área de conhecimento, em abordar
questões ligadas à sexualidade revelada ou em lidar com um “corpo diferente”. O
estranhamento, muitas vezes, cria resistência e repulsa em ambos os agentes na
atenção à saúde, quando não há omissão ou indiferença. E isso interfere, em muito,
na produção do cuidado, no projeto terapêutico singular, na conduta terapêutica. As
situações vexatórias, os olhares curiosos, certas brincadeiras de mau-gosto, atitudes
preconceituosas e discriminatórias são reais e presentes no contexto assistencial em
saúde.
O lidar com a diferença e a singularidade dos sujeitos LGBT não se limita aos
muros das instituições da saúde, no entanto, promover o respeito à diversidade é
orgânico aos padrões civilizatórios de uma sociedade democrática. Assim, todas as
profissões da saúde, mesmo aquelas que até agora não se pronunciaram quanto a isso,
em seus fóruns de deliberação, devem assumir coletivamente o compromisso de
contribuir com essa mudança, no caso, a partir da saúde, compreendendo a diferença
como uma pluralidade enriquecedora das relações sociais.
Essas diferenças não podem continuar sendo usadas como instrumento para
perpetuar tratamentos hierárquicos, desiguais e discriminatórios e sim a
emancipação humana, a partir da alteridade. A existência das mais variadas formas de
diversidade, portanto, deve ser vista e trabalhada como própria da condição humana.
Somos diversos e plurais e nisso reside à democracia e o exercício dos direitos
sexuais e humanos.
Por fim, quando tomamos as discriminações e preconceitos por orientação sexual
e identidade de gênero, ainda hoje, traduzido como homofobia e transfobia,
incluímos esse fenômeno como elemento histórico na determinação social do
processo saúde-doença-cuidado, reforçando mais sofrimento e adoecimento no
conjunto de outras vulnerabilidades que as pessoas LGBT são geralmente mais
acometidas.
Desta forma, temos que salientar a necessidade urgente de operar, por um lado,
esse debate e a implantação estratégica no SUS da Política Nacional de Saúde Integral
LGBT (BRASIL, 2011c) em todos os níveis de atenção e cuidado no campo da saúde
e por outro, uma ruptura contra todas as diferentes formas de fascismos, racismos,
sexismos e fundamentalismos religiosos, que foram e ainda são estruturados no
regime de verdade calcados em moralismos e conservadorismos de séculos atrás e
que insistem em se prevalecer, perseguir, insultar, calar e até matar, mas por outro
lado, há uma força contrária, que resiste, luta e aposta em formas singulares de andar
a vida e desejar.
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11 Símbolo mais antigo existente que representa a comunidade homossexual, institucionalizado durante o nazismo para identificar os
homossexuais no período do Holocausto, assim como o triangulo castanho para os ciganos, o amarelo sobrepostos para os judeus, o
triangulo preto para as mulheres ditas como anti-sociais, lésbicas, feministas etc.
12 Ganímedes (mortal) era um príncipe de Tróia que pastorava e Zeus (deus grego) quando o viu se apaixonou e o raptou, tornando-se
um pássaro levou-o para viver com ele no Olímpio, mantendo assim com ele sua prática homossexual, fazendo-o assumir uma função de
servir, até então exercida por outra deusa. Esse é o primeiro registro de “amor entre iguais” no mito grego.
13 Destaque para Richard von Krafft-Ebing, Havelock Ellis e Magnus Hirschfeld (FREUD, 1985, p. 127).
14 Expressões brasileiras para identificar homossexuais masculinos (entendidos) e femininos (entendidas), contraponto as outras
expressões com verniz preconceituoso, como bicha, veado, sapatão, maria-joão, que mais recentemente foram apropriadas e
resignificadas de forma a positivar esses sujeitos. Por outro lado, as travestis ou mesmo artistas que se montavam de mulheres eram
considerados bonecas. Não se tem registro de transgêneros ou transexuais nesse momento, com essa ou outra nomenclatura.
15 Para fins desse trabalho, dado o limite de sua exposição e dos objetivos do mesmo, privilegiamos no corpo do texto os que tivemos
mais contato, mas perfilam ainda nessa lista, Peter Fry, Edward MacRae, Nestor Perlonger, João Silvério Trevisan entre tantas/os
outras/os.
16 Cabe sinalizar que Herbert Daniel veio candidato a Deputado Estadual no Rio de Janeiro, representando o movimento homossexual
da época, embora tenha perdido as eleições em 1986, continuou sua militância política-afetiva-sexual com a criação de um grupo de
discussão sobre a sexualidade masculina e mais tarde, junto com Herbert de Souza, o Betinho, à frente da Associação Brasileira
Interdisciplinar de AIDS (ABIA), focando sua luta em torno da AIDS que envolviam nesse momento diversos gays e bissexuais, levando-
os a morte. João Mascarenhas, por outro lado, protagonizou a luta pela inclusão, no rol das discriminações, da orientação sexual, na
Constituição brasileira, no processo da Assembleia Constituinte (1987-1988). Embora não tenha passado, o debate se seguiu mais
adiante com novos personagens na cena da luta por cidadania de LGBT mais contemporânea.
17 Cabe sinalizar que neste mesmo ano, 1948, obtivemos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela mesma ONU.
18 Definição deliberada na VIII Conferência Nacional de Saúde em Brasília, em 1986 (BRASIL, 1986).
19 Ver detalhadamente a esse respeito: BRASIL (2004b).
20 Cf. em MELLO (2011; 2012) e DUARTE (2011; 2014).
21 Salientamos que tanto no CID 10, como no DSM-IV e DSM-IV-RT, o desaparecimento do homossexualismo enquanto categoria de
patologização médica, embora, encontrem-se ainda no CID 10 as categorias transexualismo (F64.0) e travestismo (F64.1) como
transtorno de identidade sexual, que nos DSM-IV são tratados como transtorno de identidade de gênero (F64) e que é assim
comumente tratado nas instituições médicas, como do consenso na área quanto aos mesmos critérios diagnósticos tanto pela CID-
10 quanto dos DSM-IV a esses usuários quando do processo terapêutico (compulsório) e transexualizador do SUS. No entanto, emerge
um movimento internacional de despatologização das identidades trans (transexualidade etravestilidade) para o reconhecimento dos
direitos e cidadania desses segmentos “T´s” pelas expressões da identidade de gênero, no campo da saúde coletiva e da saúde mental.
CAPÍTULO 7
Mulheres, loucura e patologização: desafios para a luta antimanicomial e a
Reforma Psiquiátrica Brasileira
Melissa de Oliveira Pereira e
Paulo Amarante
”Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos
quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou
mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. [...] Nós,
mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades– em excesso de liberdade”.
Maura Lopes Cançado em Hospício É Deus, 1965.
Este é um trabalho sobre algo que não está dado e resiste a formatos prévios, apesar
das diversas tentativas de nominação, formatação e classificação ao longo da história.
Este é um trabalho sobre mulheres. E sobre suas loucuras. Interessa-nos aqui as
histéricas, as depressivas, as nervosas, as ansiosas, as maníacas, as perversas,
pervertidas, “doidas varridas”.
Já consideradas mágicas, bruxas, feiticeiras, certamente encontraríamos uma
gama de outras nomeações às mulheres que rompem com padrões preestabelecidos.
Poderíamos fazer essa discussão a partir de vários caminhos, tomando como foco as
instituições jurídicas, asilares, educacionais, religiosas, entre outras. Neste momento,
porém, nos voltamos a algumas construções científicas que nos parecem centrais
para essa discussão, por terem, estas, servido de subsídio, ao mesmo tempo em que
eram fortemente influenciadas pelos valores e ideais morais de cada época, para uma
nova categorização e entendimento das mulheres desviantes.
À luz da medicina ocidental moderna a elas é atribuído o estatuto de doentes
mentais. Diferentemente dos demais alienados, o que veremos é que às mulheres
loucas são reservados alguns olhares, afirmações e métodos científicos mais
particulares, com especial consequência para os tratamentos, as instituições, a vida
social e, mesmo, a definição do que deve ser a mulher.
Do orgânico nervoso à patologização das mulheres
A Psiquiatria se instaura como campo de saber classificando, agrupando e nomeando
certas experiências. Submetida ao poder médico, a então doença mental ganha a
cena e o doente é despido de histórias e particularidades, passando a estar vinculado
a diagnósticos e conjecturas científicas (FOUCAULT, 1978).
Acompanharemos, em alguns recortes, como a medicina mental, a partir de uma
importante trama com outras disciplinas médicas, afirmou, ao longo dos anos, uma
certa condição biológica das mulheres que justificaria e naturalizaria certas
desordens como femininas. Considerando o conjunto de saberes articulados, não
falaremos em psiquiatrização, mas em patologização do corpo e da subjetividade das
mulheres, em um processo que não encontra paralelo no caso dos homens.
Entre os escritos que fundam a Psiquiatria, publicações como Système Physique et
Moral de la Femme, de Roussel, de 1755, Rapports du Physique et du Moral de
L’Homme, de Cabanis, de 1803, e Histoire Physiologique de la Femme, de Lachaise,
de 1825, aparecem como importantes textos que se dedicam diretamente aos corpos
das mulheres como o nervoso per se. Para os autores, as diferenças entre homens e
mulheres se expressariam organicamente e apontariam para uma inferioridade
feminina, marcada pela predisposição para a passividade, a maternidade, a fragilidade
moral e o enlouquecimento (ROHDEN, 2001).
Intervenções cirúrgicas e morais se seguiram baseadas no escopo de uma medicina
que cientificamente afirmava uma fraqueza do corpo feminino representada por um
certo relaxamento, uma moleza e uma umectação próprias. A noção de que “na
medida em que são mulheres, são também doentes e são doentes porque são
mulheres” (ROHDEN, 2001, p. 30) ocupou os tratados psiquiátricos e médicos em
geral do século XVIII e especialmente do XIX.
Nesses dois séculos se fizeram presentes estudos diversos de análise de ossos,
sangue, fibras, cérebro, músculos e peles. Estes constatavam que o esqueleto
feminino materializava a fragilidade, a beleza e a delicadeza. A confirmação científica
se dava através de crânios pequenos, ossos mais finos e pélvis mais largas (que
evidenciavam a função natural da maternidade), além de músculos atrofiados (com
exceção dos da bacia e da coxa, também voltados para a reprodução) e sangue
inferior ao dos homens, por sua vez dotados de mais força física e moral. O interesse
no orgânico louco das mulheres se dirigiu também ao cérebro e a cirurgias de
reparação não apenas voltadas para a cura, mas para a comprovação da alteração
cerebral devido à loucura feminina (MARTINS, 2004; ROHDEN, 2001).
No século XIX, ganha o interesse da medicina o campo da sexualidade e da
reprodução, com o consequente desenvolvimento da Obstetrícia e da Ginecologia,
não havendo até aí, e por muito tempo, especialidades masculinas. Neste momento, a
medicina estava às voltas com as teorias organicistas e vitalistas e mergulhada na
incompreensão da doença mental. No caso da mulher, porém, a resposta elaborada
articulou diretamente sexualidade e loucura, baseada em um biológico que se
detinha não apenas ao físico e ao anatômico, mas ao moral e ao social (MARTINS,
2004; ROHDEN, 2001; TARSO, 2009).
Tornada a mulher objeto de estudo por natureza, os médicos se dirigiam para o
útero, os ovários, a vagina; lançavam luz sob a puberdade, a gravidez e a menopausa,
afirmando diferenciações entre homens e mulheres. Conformam-se padrões de
normalidade, uma mescla de noção de beleza e representação de boa mãe e esposa,
do formato ideal de curvas, do tamanho dos seios e das “ancas” como definição do
saudável. Funda-se uma imagem científica moralmente superior da mulher que pode
oferecer ao seu corpo as funções do casamento, da maternidade e da criação dos
filhos, longe da masturbação, da homossexualidade e da prostituição (MARTINS,
2004; ROHDEN, 2001; TARSO, 2009).
Ao relacionar sexo e gênero, pelo viés dos órgãos genitais, a medicina da mulher
passou a definir cientificamente a lógica cisgênera. Ou seja, o padrão de normalidade
passou a ser restrito às pessoas que se identificam com o gênero a elas designado,
numa relação entre vagina e sexo feminino, assim como pênis e sexo masculino
(MURTA, 2014; V., 2015).
A medicina do século XIX criou uma correlação entre o que seria um travestismo
feminino com uma “inversão sexual”, marcando a ciência e o senso comum até os
dias atuais. Na segunda metade do século XIX, a patologização da homossexualidade
e da transexualidade ganhou o olhar dos médicos e passou a ser estudada e
classificada como desvio sexual e distúrbio mental (MURTA, 2014).
Desde então, muito foi escrito em Psiquiatria, Ginecologia e Obstetrícia sobre a
totalidade psicológica e fisiológica da mulher baseada na lógica cisgênera, esta
considerada em constante mutação e propícia às desordens sociais. Não por acaso,
como resgatam Rohden (2001), Martins (2004) e Tarso (2009) em suas pesquisas, as
teses de medicina dos séculos XIX e XX guardavam um campo potencial para a
sexualidade e reprodução femininas.
As autoras constatam uma importante permeabilidade com valores culturais de
cada época, ganhando centralidade o rompimento dos limites sociais das mulheres,
sendo a histeria, a ninfomania, a masturbação e a erotomania objetos de destaque, o
que aproximava a Psiquiatria e a medicina da mulher como ciências de regramento
de uma certa feminilidade. Esta, por sua vez, era marcada pelo sistema nervoso, tal
como podemos acompanhar na tese de Firmino Junior:
As mulheres são mais sensíveis, mais impressionáveis, menos aptas para a meditação,
volúveis, inconstantes, extremosas em tudo, dadas as coisas de pouca ou nenhuma
consideração, mais eloquentes, mais sujeitas a serem vencidas, graciosas em todos os
seus atos; finalmente, é no sistema nervoso que reside toda a vida da mulher. (JUNIOR
apud ROHDEN, 2001)
Sobre esse sistema nervoso facilmente irritável se debruçavam as investidas mais
moralizantes da Psiquiatria e da medicina da mulher. Para os médicos era quase
impossível que a menarca não fosse atrelada a perturbações mentais diversas, o que
podemos acompanhar com Engel (1991). A autora pontua que a menstruação era um
momento central para os diagnósticos, não apenas pelas mudanças fisiológicas, mas
porque o próprio sangue menstrual conservou para a medicina, durante séculos,
características mágicas e perigosas, sendo enfim considerado como fator
determinante para a doença mental.
Para as moças, eram receitadas distância de ambientes e de atividades que
afetavam seu “estado moral”, assim como de livros de romance, espetáculos teatrais
dramáticos, bailes e até colégios, sob o risco de aceleração da primeira menstruação
e mesmo do desejo da masturbação. Frente ao estado nervoso e moral já alterados
investia-se na regulação do temperamento frente à constituição física inconstante da
mulher: banhos de mar, sangrias, passeios, viagens, habitação longe da umidade,
vinhos generosos para excitar o sangue (MARTINS, 2004; ROHDEN, 2001).
Considerada pela medicina uma das causas mais proeminentes de perda de beleza
e saúde, a masturbação era tomada como um dos motivos para as perturbações
mentais e até mesmo a loucura. Não à toa os médicos defendiam medidas drásticas
como artefatos que impedissem o acesso à região genital, choques, intervenções
químicas e cirúrgicas, a fim de afastar as moças desse costume perigoso para sua
saúde e sanidade (MARTINS, 2004; ROHDEN, 2001).
O prazer erótico devia voltar-se para a reprodução dentro do casamento. Neste
caso, havia, inclusive, incentivos médicos para uma vida sexual regular, tanto em
benefício dos homens – considerados pela medicina como tendo um instinto sexual
mais “forte” – quanto para as mulheres, a fim de evitar a masturbação, o onanismo e
mesmo doenças e distúrbios mentais. Nesse contexto, muitas vezes, o casamento e a
gravidez eram indicados como possibilidade terapêutica na cura de distúrbios
psíquicos, em especial para as diagnosticadas como histéricas (ENGEL, 2004;
ROHDEN, 2001).
Se os primeiros ciclos menstruais e a puberdade representavam a chegada da
beleza, a menopausa dizia da perda de todos os atributos e de sentido da vida,
restando apenas a velhice, a tristeza e a mágoa. A menopausa aparecia para os
médicos como “outono da existência”, que “escravizaria a razão” e localizaria a
mulher, “rainha destronada”, entre a sanidade e a loucura. Chegada ao fim sua missão
de procriação e criação dos filhos, esse era então um momento propício para o
desenvolvimento de doenças mentais (ROHDEN, 2001; TARSO, 2009).
Propagandas de fármacos no início do século XX confirmam a imagem da mulher
atrelada à geradora e cuidadora do lar, e sua sanidade física e mental relacionada com
o útero e os ovários sadios. O tônico “A Saúde da Mulher” prometia a ação contra
doenças uterinas, ovarianas, a rápida suspensão da menstruação e a regulação dos
ciclos menstruais. Os anúncios garantiam, inclusive, que crises conjugais poderiam
ser amenizadas, uma vez que atitudes intempestivas, típica das mulheres, estariam
estabilizadas graças ao controle de seu corpo feminino. O organismo vulnerável e a
ciência como moderadora dessas apreensões era a ideia a ser vendida:
Mas esquecem as Senhoras de que si por um lado a Natureza estabeleceu para a Mulher
um organismo delicado, sujeito permanentemente a complicações de toda a sorte, a
Sciencia põe a seu alcance os meios de corrigir-lhe as irregularidades e prevenir os
sofrimento. Um dos meios, por exemplo, que está ao alcance de todas as mulheres, de
todas as edades: o uso d’ A Saúde da Mulher (A SAÚDE DA MULHER apud CUNHA;
NASCIMENTO, 2007).
Vale pontuar que os métodos que definiam a normalidade e a anormalidade
femininas pela ciência sexual, assim como pela medicina psiquiátrica, aproximavam-
se em muitos aspectos da ciência racial, tanto em relação aos seus recursos quanto às
conclusões hierarquizadas em relação ao corpo não só do homem, mas também do
branco. Durante alguns séculos craniologistas, patologistas e anatoministas se
dedicaram a explicar as hierarquias raciais, em especial baseados no corpo feminino,
construindo e reforçando estereótipos de lascívia, perversão e desordem mental
relacionados às mulheres negras. As categorias biológicas resultantes destas
afirmavam lógicas e medidas sexistas e racistas que basearam e legitimaram práticas,
leis e políticas de Estado (MARTINS, 2004).
Dessa maneira, se as síncopes nervosas e instabilidades emocionais eram
relacionadas às fases da vida e as soluções geralmente voltadas para ações
moralizantes, medicações mágicas ou mesmo ao casamento e à maternidade, algumas
medidas mais drásticas eram também consideradas, em especial para determinadas
mulheres da sociedade. A partir daí, uma vez que o comportamento desviante era
explicado pelo mau funcionamento dos órgãos reprodutivos femininos, considerava-
se, também, intervenções diretas sobre estes, como cirurgias de extração dos
grandes lábios, clitóris, útero e ovários (CUNHA, 1989; ROHDEN, 2001).
Voltada para a coibição de desejos sexuais tidos como excessivos e para o
tratamento de perturbações mentais, a ovariotomia ganhou destaque no século XIX
e se perpertuou como terapêutica reconhecida mundialmente, sendo um dos temas
principais em publicações médicas e considerada o futuro da Psiquiatria. Rohden
(2001) apresenta diversos casos de internas da Casa de Saúde Dr. Eiras, de
Paracambi, no Rio de Janeiro, nos quais a cirurgia era o procedimento mais indicado.
A autora resgata histórias de mulheres internadas por tentativa de suicídio, abuso de
álcool, irritabilidade ou sexualidade desviante e que, após o procedimento, passavam
por longos períodos de estabilidade ou eram consideradas curadas.
Cirurgias e medidas como essas se fizeram presentes durante muitas décadas do
século XX e ganharam força sob influência de ideais eugênicos, fundamentados de
maneira importante pela Liga Brasileira de Higiene Mental. Como um de seus
valores centrais, ganhava destaque a importância dada à função procriadora da
mulher, abnegada, voltada para os filhos e o marido e inteiramente dedicada à
felicidade da família como base estrutural da sociedade. Exames pré-nupciais que
intentavam avaliar a sanidade física e mental das mulheres se faziam presentes, e,
logo, a indicação de esterilização era fomentada por políticas públicas de Estado
preocupadas em garantir o desenvolvimento do país (CUPELLO, 2012).
Alguns grupos mais voltados ao higienismo, mesmo incentivando essas
intervenções em alguns casos, organizaram abaixo-assinados e protestos quando a
situação se referia às “mulheres de família”. Nestes, explicitava-se que apenas o medo
da concepção mantinha as mulheres casadas e que a prática de sexo sem esse “risco”
poderia apontar para o fim da sociedade (ROHDEN, 2001).
Fica claro o caráter social da maternidade e sua importância para a manutenção da
ordem social vigente como centrais na contestação dos procedimentos médicos para
um grupo específico de mulheres, sendo neste contexto que também a classe médica
inicia os questionamentos sobre esse procedimento durante o século XX. Teses
científicas passam a condenar em especial a ovariotomia ao considerarem que o
órgão condensaria a feminilidade, além de garantir a capacidade reprodutora. É neste
momento que se desenvolvem as descobertas endocrinológicas, que continuam por
atrelar doença mental e órgãos reprodutivos, mas agora a partir de uma inversão
(ROHDEN, 2001).
Se antes era destacado um excesso relativo à sexualidade, a endocrinologia se
dirigiu a uma falta, uma insuficiência que apontaria para a falta de desejo sexual e
para a justificativa de certos distúrbios psíquicos. Saiu-se da retirada dos ovários para
a reposição de substâncias a fim de um equilíbrio. Ganham a cena os hormônios, em
relação aos quais não nos aprofundaremos neste estudo, mas que se apresentam
como mais um capítulo importante da conformação médica de um orgânico
feminino relacionado à sanidade mental (ROHDEN, 2001).
Do isolamento à manicomialização das loucas e mulheres de honra duvidosa
Entre medidas e terapêuticas, o isolamento marca a constituição da Psiquiatria
enquanto saber e instituição. Reclusões em domicílio, asilamento em hospitais
psiquiátricos por períodos curtos, longos ou por toda a vida ganharam centralidade
na ciência alienista. A Psiquiatria nasceu e se conformou tendo como base o hospital
enquanto espaço terapêutico por excelência (FOUCAULT, 1978). Neste sentido,
vale voltarmo-nos a estes espaços, e nos dirigirmos às mulheres e às relações
consequentes em seus cotidianos atravessadas pelas internações e manicomializações.
Esse cenário ganha rosto em estudos de pesquisadoras que vão até os hospícios
brasileiros, vasculham prontuários, esmiúçam informações, anotações e seus dados.
Assim nos aproximamos da pesquisa de Cunha (1989), que resgatou histórias de
mulheres internadas na Colônia do Juquery, de Fachinetti e Cupello (2011), que se
dedicaram ao processo diagnóstico das psicopatas do Hospital Nacional de Alienados,
assim como de Engel (2004), que reuniu histórias de mulheres criminosas
consideradas loucas devido a seus delitos.
Nessas pesquisas, que recuperam muito da realidade das instituições psiquiátricas
no final do século XIX e início do XX, as pesquisadoras entram em contato com
aquilo que representa o asilamento de mulheres, na maioria das vezes compulsório,
sob justificativa médica. Nestes espaços, aquilo que era lido enquanto “sintoma” nos
prontuários de mulheres – independência nas escolhas pessoais, interesses sexuais,
“hiperexcitação” intelectual e dedicação à carreira profissional -, eram destacados nos
prontuários de homens como qualidades positivas. As autoras perceberam uma clara
vinculação dos diagnósticos das mulheres à sexualidade, enquanto os dos homens, ao
trabalho e ao papel de provedores. Critérios como a beleza e a feiura das mulheres, o
não desejo pelo matrimônio ou pela maternidade eram centrais nas avaliações
médicas tanto para a internação quanto para a continuidade das mulheres nessas
instituições (CUNHA, 1989; ENGEL, 2004; FACHINETTI; CUPELLO, 2011).
Às mulheres mais pobres somavam-se a essas considerações o fato de serem
trabalhadoras, sua etnia e raça, como características que, de antemão, as localizavam
como anormais e desajustadas, uma vez que seu estado moral era naturalmente e/ou
socialmente alterado segundo a medicina da época, como vimos anteriormente a
partir das construções das medicinas sexuais e raciais (CUNHA, 1989).
Cunha (1989) constata que os saberes e práticas do hospitais psiquiátricos da
época claramente se baseavam em uma certa inferioridade biológica da mulher
negra. A autora constata que:
Na base da pirâmide, ocupando a posição de mais radical aniquilamento, estão as
mulheres negras. Portadoras desta dupla condição são vistas e tratadas pela medicina
alienista como portadoras de uma dupla inferioridade que as torna mais próximas da
natureza que da condição humana (CUNHA, 1989, p. 124)
Dessa maneira, no interior das instituições psiquiátricas asilares as diferenças
sociais e raciais continuavam sendo também definidoras da forma como eram
percebidas e tratadas as mulheres. Cunha (1989) narra o cuidado diferenciado com
as “mulheres de boa família”, que não tinham seus cabelos raspados, não eram
obrigadas ao trabalho forçado e tinham direito a alojamentos individuais.
Chama-nos atenção, por exemplo, que os relatos de mulheres que passaram por
ovariotomia ou cirurgias de retirada de útero e pequenos e grandes lábios como
terapêutica de desordens mentais são ou de mulheres libertas recentemente da
escravidão ou de classe mais baixa, tanto na pesquisa de Cunha (1989) quanto na de
Rohden (2001). Talvez isso não diga respeito a uma certa “coincidência”, uma vez
que, ao mesmo tempo que a retirada dos órgãos e a consequente esterilização se
apresentavam como terapêuticas para algumas mulheres, houve importante
resistência de alguns setores da sociedade em relação a esses procedimentos voltados
para as mulheres de classe social mais alta, como vimos anteriormente (ROHDEN,
2001).
A lógica científica hegemônica, porém, nunca se asilou nos hospícios e sempre
ganhou as ruas como local de intervenção primordial (FOUCAULT, 1978). Damos
destaque ao trabalho de Padovan (2009), que se dirige à cidade de Recife entre as
décadas de 1930-1945, período de modernização dessa capital. Neste contexto, a
Psiquiatria serviu de saber e tecnologia de Estado para a reorganização do espaço
urbano, em especial sob as bases eugênicas e morais da época.
O cenário é um período em que as dificuldades de transição da economia
agroexportadora para a industrial fizeram com que um grande número de mulheres
buscassem trabalho para complementar a renda dos maridos ou mesmo sustentar a
família sozinhas. Neste contexto, a cidade como “potencial superfície de emergência
da loucura” de mulheres era afirmada em documentos e jornais da época, assim
como em publicações científicas que determinavam comportamentos adequados e
locais e trajetos propícios às mulheres, a fim de proteção de uma certa sanidade. Não
foram raras as prisões, seguidas de internações curtas e longas, daquelas que
“perambulavam pelas ruas”, frequentavam espaços de lazer, andavam em companhia
de homens que não eram da família ou faziam uso de álcool, ficando claro que a
doença mental não era a justificativa essencial para tais medidas (PADOVAN, 2009).
O controle médico-policial das ruas se agravava no caso de operárias, negras e
mulheres pobres em geral, por serem estas consideradas “mulheres de honra
duvidosa” e mais propícias às influências perigosas da cidade, sendo suas internações
muito mais frequentes (PADOVAN, 2009). Para estas, as categorias de moralidade e
feminilidade da época não se adequavam e, em um período em que cada vez mais
mulheres estavam nas ruas e nos espaços ditos masculinos, seja pelo trabalho, lazer
ou mesmo luta política – vale lembrar que esse é um momento de intensificação das
lutas pelos direitos da mulher -, o sentimento de culpa da Psiquiatria e do Estado já
não era suficiente para a adequação. Restou, mais uma vez, às desobedientes (e não
apenas aquelas em sofrimento psíquico) a taxação de loucas, sendo dirigidas às
prisões e aos hospitais psiquiátricos.
Da permanência de uma lógica: a medicalização da vida cotidiana
A partir de uma complexa gama de críticas e questionamentos aos saberes e
instituições asilares em geral, uma série de processos denominados de Reformas
Psiquiátricas têm alcançado diversos países desde a década de 1960. No Brasil,
disparado por denúncias de torturas e maus tratos em espaços psiquiátricos, este
processo se desdobrou desde movimentos sociais de luta antimanicomial, passando
por construções teóricas e acadêmicas e mesmo movimentos institucionais, se
conformando um projeto político por uma sociedade sem manicômios
(AMARANTE, 2007).
A Reforma Psiquiátrica se constitui em um processo social complexo que abarca
diversas dimensões sociais, desde paradigmas e críticas científicas, mudanças
jurídico-políticas, reformulações na assistência e na rede de serviços até intervenções
socioculturais que, ao se voltarem para a sociedade, visam à construção de outras
lógicas de entendimento sobre a loucura (AMARANTE, 2007).
Todas essas dimensões têm igual importância para o processo de Reforma
Psiquiátrica Brasileira (RPB) e, de alguma forma, estão atreladas em fluxos e
conexões dependentes entre si. Entre elas, podemos dizer que o fechamento
progressivo de leitos em hospitais psiquiátricos e a construção de uma rede de
atenção psicossocial composta por serviços territoriais de saúde, assistência social,
educação, cultura e lazer, voltada para a realidade das pessoas e suas comunidades,
têm se apresentado como um importante diferencial na construção de novos
cotidianos e lógicas de assistência (AMARANTE, 2007).
Dessa maneira, se por um lado são presentes avanços e mudanças importantes na
assistência em saúde mental no país, por outro é preciso considerarmos a
permanência de lógicas patologizantes e tuteladoras mesmo nos novos serviços e na
rede de atenção psicossocial como um todo (AMARANTE, 2007). Por este motivo,
a questão que guia este artigo se mantém e se faz ainda mais necessária neste
contexto.
Apesar da diminuição do número de leitos, os hospitais psiquiátricos ainda
existem em nosso país. Zanello e Silva (2012) resgataram prontuários em duas destas
instituições, nos quais constataram uma prevalência de mulheres, sendo estas em sua
maioria negras, pobres e domésticas.
As autoras notaram que alguns “sintomas” registrados nos prontuários de homens
não apareciam no de mulheres, tais como “insegurança sexual” e “dificuldades ou
preocupação em ter relações sexuais”. O “ócio” também estava restrito aos
prontuários deles e, mesmo quando as mulheres estavam há tempos sem trabalhar,
este aspecto não ganhava essa conotação tão rápida quanto nos primeiros. Este fato
fez as autoras suporem um certo valor do trabalho atribuído a uma capacidade
produtiva e laboral dos homens (ZANELLO; SILVA, 2012).
Alguns “sintomas” se faziam presentes também nos prontuários dos homens,
porém ganhavam maior destaque no prontuário de mulheres: “frustação em não ser
amada”, “sensibilidade histérica”, “frustração com a carga familiar”, “falta de apoio
emocional”, “personalidade narcísica”, “desapego das tarefas domésticas”, “falta de
confiança no marido”, “fragilidade emocional”, “sobrepeso”, “falta ou diminuição da
libido”, “ciúmes”, “culpa”, “amarguras”. Para algumas mulheres eram consideradas
características como “manipuladora”, “rebelde”, “mãe solteira”, “controladora nos
relacionamentos afetivos”. “Sintomas” como “choro imotivado” apareciam de maneira
resumida: “melhora quando o marido viaja” ou “piorou depois do casamento”
(ZANELLO; SILVA, 2012).
Concordamos com as autoras que há nos prontuários analisados padrões médicos
atravessados por ideais sociais, em especial o tipo “esposa-mãe-dona de casa”. Além
disso, nos chama atenção a predominância de mulheres pobres e negras internadas, o
que nos faz pensar não apenas na patologização das mazelas sociais, como pontuam
Zanello e Silva (2012), mas também que recortes de classe e raça continuam a traçar
o perfil da anormal, da louca e da mulher que deve ser institucionalizada ainda nos
dias atuais.
Da mesma maneira, ainda a partir de determinações científicas psiquiátricas, ações
públicas e normas jurídico-políticas encontram escopo para a afirmação do modelo
de mãe ideal e da definição de quais mulheres podem criar seus filhos. Um exemplo
é que apenas no primeiro semestre de 2015, em Belo Horizonte, cento e vinte
crianças foram “sequestradas” pelo Estado das suas mães, por serem estas usuárias de
drogas. Falamos aqui de uma política baseada em critérios psiquiátricos de
“vulnerabilidade” que reduzem a experiência da maternidade ao uso de substâncias
psicoativas (R7 NOTÍCIAS, 2015).
Podemos dizer que a lógica médica hegemônica sobre a mulher se faz presente
também nos cotidianos, através do que alguns autores chamam de medicalização.
Este é um processo amplo no qual situações cotidianas, dificuldades econômicas e
sociais, questões próprias da vida individual ou coletiva passam a ser definidas e
tratadas como condições médicas. A redução dos sofrimentos, queixas e demandas
sociais à medicalização têm sido um processo de grande alcance social
(AMARANTE; FREITAS, 2015).
No caso das mulheres, a medicalização pode se traduzir na patologização de
sofrimentos cotidianos ou mesmo referentes às dificuldades econômicas e sociais,
muitas vezes ainda baseados em certos padrões relacionado ao “feminino”. Esta lógica
vai muito além da rede de atenção psicossocial, alcançando ainda, e cada vez mais, a
rede básica de saúde, assim como os ambulatórios de ginecologia e obstetrícia.
Apesar de ser um processo que se sobrepõe ao uso de medicamentos, podemos
dizer que a medicalização ganha corpo no fetiche do diagnóstico e nas altas dosagens
de medicação psiquiátrica receitadas às mulheres. Este tem sido o tema de vários
estudos nos quais fica claro que ser mulher tem sido um importante motivo para a
prescrição de medicação psiquiátrica.
Essa problematização ganha eco em diversas pesquisas que, ao se voltarem para
mulheres atendidas em serviços da rede pública de saúde brasileira, encontraram
dados sobre o alto uso de psicotrópicos entre estas. Oliveira et al. (2011) investigou
o uso de Diazepam por mulheres da rede pública de saúde do Ceará e constatou que
72% dos consumidores de ansiolíticos e antidepressivos eram mulheres. Carlini et al.
(2006), em inquérito realizado em 108 cidades brasileiras, verificou alto consumo de
medicamentos benzodiazepínicos por parte de mulheres, sem prescrição médica,
sendo que 69% das pessoas que faziam uso eram mulheres. Já Rabelo (2011), em
duas cidades de Goiás, observou que, nos serviços pesquisados, às mulheres eram
receitadas 2,07 vezes mais ansiolíticos do que aos homens, uso que se mantinha por
volta de 9 a 10 anos, tendo a maioria destas a faixa de 55 anos. Da mesma maneira,
na pesquisa de Mendonça et al. (2008), as mulheres consumiam duas vezes mais
ansiolíticos que os homens, consumo que aumentava conforme o avanço da idade.
Os autores se aproximaram também da concepção dos médicos que atendem essas
mulheres e receitam as medicações. Para os profissionais entrevistados por Oliveira
et al. (2011), a medicação era entendida como “coisa de mulher”, e como aquilo que
pode manter o equilíbrio emocional e a tranquilidade que as mesmas necessitam,
chegando mesmo à conclusão de que: “a cachaça está para o homem assim como o
Diazepam está para a mulher”. Já na pesquisa de Mendonça et al. (2008) os médicos
associavam a velhice das mulheres a uma fragilidade emocional, sendo o remédio
necessário para que a vida doméstica fosse mantida e se evitassem rancores,
ressentimentos e se promovesse a harmonia familiar.
Atentos para o tema, Gilbert et al. (2006) se voltaram especificamente a
residentes de Obstetrícia e Ginecologia, pesquisa que nos faz presentificar a relação
desses saberes com a Psiquiatria, num contínuo da noção médica de mulher associada
ao orgânico nervoso, em especial à histeria. Na pesquisa podemos acompanhar um
importante foco na exacerbação do conteúdo sexual no corpo da mulher e deste
atrelado à instabilidade emocional.
Para muitos, as mulheres utilizariam dos sofrimentos mentais ou “adoeceriam” o
próprio corpo para fugir de obrigações sociais e familiares ou mesmo como
simulação para obter atenção, seja da família ou dos profissionais de saúde. Se por
um lado algumas mulheres apareciam em suas falas marcadas por um “drama”,
tatuadas pelo estereótipo da mulher “histérica”, também foi usual a figura da mulher
“promíscua”. Nos dois casos, seria papel do médico manter a sexualidade das
mulheres sob controle, a partir de um equilibro hormonal, medicação psiquiátrica
ou mesmo conselhos sobre a vida sexual (GILBERT et al., 2006).
Importante também é nos aproximarmos das mulheres e suas relações com a
medicação. Na pesquisa de Rabelo (2011) as mulheres afirmaram a mesma como
necessária para toda a vida e a relacionaram com a garantia de uma normalidade. Na
pesquisa de Mendonça et al. (2008) as mulheres idosas associaram o uso do calmante
à tranquilidade e paz, assim como à garantia de suas tarefas domésticas: “tenho
certeza que sem os calmantes podem me internar. Porque agora eu trabalho, eu faço
comida certinho, cozinho pra muita gente”, pontuou uma das mulheres.
Muitas vezes, as mulheres que buscam os serviços de saúde em busca de
medicação têm demandas graves de emprego, moradia, salário justo, educação
(Oliveira et al., 2011), assim como procuram o setor médico com queixas relativas a
conflitos e questões cotidianas e familiares. Em muitos casos, a medicação acaba
sendo uma resposta rápida e superficial a problemas como a relação com os maridos,
as dificuldades financeiras, a falta de lazer nas relações comunitárias, o desemprego,
o preconceito por serem pobres ou sofrerem racismo e as desigualdades sociais em
geral (RABELO, 2011).
Essas pesquisas nos aproximam de um importante processo de medicalização
como fio condutor de uma lógica de atenção tecnicista dicotomizada e fragmentada.
No caso das mulheres, porém, o orgânico feminino que justificaria certas
inconstâncias e instabilidades, seja pelos hormônios ou pelo sistema reprodutivo, se
mantém. Na prática médica a noção de estabilidade emocional ainda está vinculada à
manutenção de um ideal de mulher ligada ao cuidado, à casa e à família (CARLINI et
al. 2006; GILBERT et al., 2006; MENDONÇA et al., 2008; OLIVEIRA et al., 2011;
RABELO, 2011).
Além disso, não podemos esquecer que, ainda hoje, a transexualidade é
considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e agências internacionais de
peso como a APA (Associação Americana de Psiquiatria) como transtorno mental.
Neste bojo, as novas versões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM) e do Código Internacional de Doença (CID) ainda identificam as
mulheres (e homens) trans com o Transtorno de Identidade de Gênero (BENTO;
PELÚCIO, 2010).
A identificação de suas identidades como transtornos mentais tem sido hoje o
único caminho possível para que mulheres (e homens) transexuais e travestis tenham
acesso ao “processo transexualizador” pelo SUS. O acesso aos serviços de saúde e de
saúde mental através do diagnóstico de gênero, ao contrário de garantir direitos,
acaba por patologizar, catalogar e anormalizar a transexualidade, baseado ainda em
saberes científicos de corpo-gênero que se baseiam em padrões de mulher vinculados
a uma visão cultural hegemônica. Tal condição faz com que mulheres transexuais e
travestis tenham que exercer uma forma caricatural de ser mulher para que sejam
aceitas como tal pelos serviços de saúde (BENTO; PELÚCIO, 2010; MURTA,
2014).
Como vimos até aqui, a patologização do feminino, em suas múltplias formas e
justificativas científicas, acabou por medicalizar as experiências de loucura ou
sofrimento psíquico de mulheres e, para fazê-lo, intentou definir o que é ser mulher.
Não podemos deixar de salientar, a partir disso, o papel da ciência médica nas
justificativas de exclusão e subjugação social das mulheres, assim como da construção
e afirmação de valores muitas vezes misóginos, racistas, homofóbicos e transfóbicos.
Ao se consolidar enquanto discurso normativo eficiente, a Psiquiatria e a medicina da
mulher estendem seus saberes na epidemiologia, demografia, Pedagogia, Psicologia,
no planejamento e gestão de políticas públicas diversas, entre tantos outros, e parece
ganhar caráter e formatos diversos ao longo dos tempos.
Uma outra mirada sobre as mulheres
Sabemos que o inventário de escritos e documentos de homens sobre mulheres
remonta a Antiguidade e perpassa desde a Igreja às organizações políticas e
instituições em geral, sendo a especificidade da medicina a base científica que lhe dá
o lugar, muitas vezes, de inquestionável na fixação da imagem “mulher-corpo-
loucura” (MARTINS, 2004). Vale-nos aqui subverter esse caminho e nos dirigirmos a
outras verdades, convocando para esta conversa as verdadeiras interessadas. Afinal,
quem são as mulheres consideradas loucas, como foram suas experiências
atravessadas pelas instituições psiquiátricas e médicas?
Essa aposta não se apresenta como uma resposta ou solução frente a uma forte e
antiga trama, mas possibilita a aproximação da realidade, do cotidiano das
instituições, das cidades, das relações, daquilo que se “resolve”, independentemente e
apesar dos saberes científicos e dos serviços de saúde. É a valorização de cenas que
tomam outros rumos, a partir da reinvenção de experiências de vida como expressão
de diferentes formas de apropriação dos acontecimentos e das possibilidades de ação
sobre estas. Nessa lógica, o que essas mulheres podem contar, escrever, representar
de diversas maneiras constitui-se como base de um processo de cultura
antimanicomial que supera o campo médico e alcança outras áreas do saber e das
práticas.
Essa proposta faz eco às bases da Reforma Psiquiátrica, que fundamenta-se na
importância de outros saberes para a superação da lógica biomédica clássica e para a
construção de outros saberes sobre a loucura (AMARANTE, 2007). Nesse sentido,
podemos já convidar autoras, poetas, pintoras, escritoras, musicistas, militantes. São
muitas as histórias, são muitas as mulheres já conhecidas e outras anônimas. Loucas,
doidas, patologizadas, medicalizadas, muitas vezes asiladas. Mas afirmando, entre
furos e fluxos, outras conexões, outras histórias e outros lugares.
É
É o caso de Maria do Socorro, pintora e militante antimanicomial, que ainda hoje
é inspiração para os movimentos sociais que lutam por uma sociedade sem
manicômios. Podemos conhecer algumas de suas pinturas através do Projeto Maria
do Socorro. A também pintora Adelina Gomes, uma das primeiras artistas do Ateliê
Imagens do Inconsciente, teve suas obras expostas em museus e centros culturais de
diversos países. Sobre ela, Léon Hirszman dirigiu o documentário “No Reino das
Mães”, de 1986.
Outros documentários, filmes e peças também se dedicaram à vida de mulheres
que tiveram suas histórias atravessadas pelos hospitais psiquiátricos, revelando que há
muito mais a ser contado sobre elas. É o caso de Estamira e do documentário de
mesmo nome, do diretor Marcos Prado, de 2004, assim como a peça apresentada em
diversos estados do país “Estamira na Beira do Mundo”, com a atriz Dani Barros e a
diretora Beatriz Sayad, de 2010.
Como não falar também de Jardelina da Silva, que por anos tomou as ruas com o
“jornal do planeta” e as mensagens de Deus, além de diversas intervenções pela
cidade. Sobre ela, e com ela, Cristiane Mesquita e Lucas Mabozzi realizaram o
documentário “Jardelina da Silva: eu mesma”, de 2006. Também sobre sua vida e
histórias o artista plástico Rubens Pileggi Sá criou o Museu Jardelina.
Stela do Patrocínio, que passou grande parte da sua vida em hospitais
psiquiátricos, também marcou a muitos com suas palavras resistentes, perfurantes,
quase que dilaceradoras sobre o cotidiano dos asilos e da ciência psiquiátrica.
Algumas de suas falas foram organizadas no livro “Reino dos bichos e dos animais é o
meu nome”, organizado por Viviane Mosé, em 2001. Sua vida convocou Luciana
Tanure a realizar o documentário “Procurando Falatório”, de 2003, e Márcio de
Andrade a dirigir o documentário “Stela do Patrocínio – A mulher que falava coisas”,
de 2006. A tentativa de retratar Stela deu origem também à peça “Entrevista com
Stela do Patrocínio”, de Georgette Fadel, Lincoln Antonio e Juliana Amaral, de 2005.
Aproximamo-nos dessas mulheres, muitas vezes, ainda, pelo que diretoras e
diretores, escritoras e escritores, dramaturgas e dramaturgos, acadêmicas e
acadêmicos resgataram de suas histórias e transformaram em peças, filmes, livros,
teses. Entre essas mulheres e essas produções reside um hiato, tal qual pontua Mosé
(2009). Esses materiais são transposições, interferências, inspirações livres de
pessoas contagiadas por essas mulheres, suas loucuras, suas vidas.
Em primeira pessoa, porém, Maura Lopes Cançado, importante jornalista e
escritora, aproximano-nos dos anos em que passou internada em hospitais e
manicômios judiciários através de “Hospício é Deus”, de 1965. No livro, Maura traz
importantes relatos sobre aquilo que foi considerado sua doença mental, assim como
sobre suas experiências nas instituições de asilamento em uma obra que, sem dúvida,
representa um dos maiores clássicos brasileiros.
Atualmente, temos tido a oportunidade de contato com muitos escritos e
construções de mulheres transexuais, problematizando a patologização de suas
identidades e corpos. Mulheres como Maria Clara Araújo (2015), Viviane v. (2015),
Hailey Kaas, Daniela Andrade, Indianara Siqueira, entre tantas outras pesquisadoras e
militantes, têm contribuído para a produção de conhecimento sobre a patologização
das mulheres trans, assim como diversas problemáticas econômicas e sociais impostas
por uma sociedade baseada em valores transfóbicos amparados por saberes médicos e
científicos.
Considerações e desafios para a Luta Antimanicomial e a Atenção Psicossocial
A produção de conhecimento que patologiza e conforma o feminino compõe uma
teia de saberes e instituições influenciados por diversas relações sociais. Estas não
estão deslocadas de uma assistência em saúde que centra-se numa lógica biologizante
e psicofarmacológica, marcando suas construções na medicalização do sofrimento
psíquico da mulher, podendo os serviços e instituições, assim como as políticas
públicas em geral, estarem ao serviço da manutenção desta perspectiva.
É urgente que a luta antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica tomem para si o
desafio desta problematização e se posicionem frente à patologização e
institucionalização de mulheres. Este tema não pode mais estar restrito aos estudos
temáticos de gênero e deve ser tratado não mais como especialidade, e sim como
complexidade necessária. Apenas assim podemos de fato falar na transformação de
paradigmas e em uma lógica de atenção psicossocial atenta às opressões de gênero,
classe, raça e normatividades sexual e heterossexual na nossa sociedade.
Neste sentido, faz-se importante a aposta no resgate das experiências e
considerações das próprias mulheres consideradas loucas ou que tiveram suas vidas
atravessadas pela patologização ou instituições psiquiátricas, em especial as mulheres
transexuais, tão invisibilizadas até mesmo nas pesquisas e formulações da Reforma
Psiquiátrica Brasileira. O protagonismo dessas mulheres pode ser fundamental para
os movimentos sociais, para a elaboração de novas construções teóricas e
acadêmicas, assim como de políticas públicas e planejamento e gestão de serviços de
saúde e de saúde mental mais voltados para suas realidades e problemáticas e menos
atravessados por estereótipos moralizantes e biológicos.
Referências
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em BH. R7 Notícias, 23 mai. 2015. Disponível em: <http://
noticias.r7.com/minas-gerais/adocao-obrigatoria-de-bebes-de -usuarias-de-drogas-
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CAPÍTULO 8
Caminhos e tropeços na atenção aos usuários de álcool, crack e outras drogas:
breve consideração sobre o cuidado e a internação compulsória
Juliana Desiderio Lobo Prudêncio
Introdução
Este artigo visa contribuir com o debate sobre a atenção aos usuários de álcool, crack
e outras drogas, com ênfase nos usuários de crack, através da reflexão sobre a
internação psiquiátrica compulsória. Demonstra, por meio de uma análise sócio-
política, como vem sendo configurada a atenção em saúde mental, para a questão do
usuário de drogas e remonta o debate sobre as configurações atuais de cuidado.
Apresenta o debate sobre a Política de Redução de Danos, como estratégia de
atenção importante, a Política de Atenção aos Usuários de Álcool e Outras Drogas
do Ministério da Saúde – Portaria nº 336/GM/2002 – e a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) – Portaria nº 3.088/2011.
Os referidos dispositivos políticos apresentam o tratamento aos usuários de droga
na lógica do território, fortalecimento de vínculos, participação social e estado de
direitos, na perspectiva da inclusão social dos usuários de drogas.
Sendo assim, traz a preocupação com o olhar sobre o atual modelo da rede de
atendimento aos usuários de drogas, atrelado ao foco da proposta de atendimento da
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), através da ação estatal, a partir do princípio da
intersetorialidade e integralidade do cuidado em saúde.
A lógica de atenção citada apresenta uma prática contraditória à internação
compulsória junto aos usuários de crack, no qual a ordem do “tratamento” se coloca
pela opressão, imposição e confinamento, configurando-se um terreno fértil para a
legitimação da “guerra às drogas” e não do cuidado em saúde.
Com isso, o trabalho que ora apresentamos visa fomentar o debate pautado nas
indagações acerca do fenômeno devastador da droga, apresentando uma reflexão
sobre a intervenção estatal na questão, através da rede de atenção psicossocial,
entendo que o caminho do cuidado deve se dá através do fortalecimento dos sujeitos,
garantia de direitos, participação social, atendimento adequado e igualitário – com
Ú
base no que preconiza o Sistema Único de Saúde e a legislação atual para a atenção
aos usuários de drogas.
Sendo assim, nota-se que a oferta de uma atenção favorável ao tratamento dos
usuários de drogas perpassa a formação de um aparato público adequado, que vá
além de medidas repressivas e compulsórias e atuem de acordo com o referencial
legal brasileiro, marco do avanço da Reforma Psiquiátrica22. Faz-se necessário um
aprofundamento da reflexão sobre a maneira como o Estado está organizado e
preparado para o atendimento em saúde mental, em especial ao tema crack. Diante
disso, o presente artigo aponta, algumas reflexões sobre a rede de atenção aos
usuários de crack, álcool e outras drogas e permite uma aproximação à referida
temática.
Nesta direção, o artigo que ora se apresenta é fruto de indagações pertinentes à
atuação estatal sobre a questão da droga, através da política de saúde mental na
perspectiva da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
A política de saúde mental na atenção aos usuários de drogas
É na década de 1970 que temos dois processos de fundamental importância para o
reconhecimento da política de saúde como política universal e de dever do Estado,
conhecidos como Movimento da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica. Ambos
significaram um olhar mais cuidadoso para o processo de adoecimento da população,
tendo como novo olhar a priorização da saúde coletiva, a equidade na oferta de
serviços e a luta pelo controle social.
Como aponta Vasconcelos (2008, p. 32), “o novo paradigma da
desinstitucionalização em saúde mental” ou a Reforma Psiquiátrica acontece num
contexto internacional de mudanças para a superação da violência asilar, por meio da
transformação interna dos asilos e/ ou hospitais psiquiátricos, tendo em vista a
humanização e a eficácia do tratamento. Buscava, ainda, uma política
desconstrucionista, que questionasse o saber e o poder psiquiátrico que,
historicamente, influenciaram a assistência prestada nessa área.
Ao longo da construção e da desconstrução da Reforma Psiquiátrica, ela passa a
ser compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores
culturais e sociais formatados no cotidiano das instituições, dos serviços e das
relações interpessoais marcadas por impasses, tensões, conflitos e desafios.
Para isso, propõe a substituição do modelo hospitalar pela criação de uma rede
ampla de serviços de atenção psicossocial. Logo, propõe romper com o modelo
assistencial em saúde mental e construir um novo estatuto social para os sujeitos: o
de pessoa portadora de direitos – cidadão.
Apesar do debate inicial, muitas vezes, ter um olhar voltado apenas para o sujeito
com transtorno psíquico grave, a reforma vem ampliar e qualificar o cuidado em
saúde mental. Logo, vem também possibilitar uma atenção aos usuários de
substâncias psicoativas. Diante disso, a questão da droga, na última década, ganha
espaço na agenda política, torna-se questão obrigatória da política de saúde mental e
é salientada na Política de Atenção aos Usuários de Álcool e outras Drogas, do
Ministério da Saúde.
Sendo assim, é notório o debate que circunscreve a questão da droga às críticas
tecidas ao “deslocamento da coerção para o da coesão” (ASSIS, 2004, p. 93). A
história nos mostra que a perspectiva da “guerra às drogas”, ou seja, do
proibicionismo, apresentou uma ação coercitiva e repressiva no trato ao uso e abuso
de drogas, fazendo com que a criminalização da droga fosse o caminho do cuidado.
Logo, seu objetivo era a promoção da abstinência de drogas ilícitas e sua extinção da
sociedade. Ou seja, é “uma prática moral e política que defende que o Estado deve,
por meios de leis próprias, proibir determinadas substâncias e reprimir seu consumo
e comercialização” (RODRIGUES, 2008, p. 91).
Diante disso, a prática proibicionista, a qual legitima o trato ao usuário de drogas
no século XX e vigente no século XXI, apresenta uma intervenção de base moral e
sanitária, justificada na preservação da saúde e bem estar dos usuários, no entanto a
prática em saúde mental mostra que tal fato não alterou as condições de saúde dos
sujeitos que usavam ou usam drogas. O que avançou graças à lógica da repressão e
opressão foi a fabricação, comercialização e uso de forma clandestina de drogas;
impedindo o controle da produção e medidas de cuidado aos usuários de drogas.
O Estado, ao assumir a postura de “guerra às drogas”, direciona sua intervenção de
base ao controle social, através do “rastreamento de hábitos e na disciplinarização de
conduta” (LIMA; TAVARES, 2012, p. 8). Portanto, sua prática se dá de forma
focalizada, reducionista e reforça o controle e manutenção da ordem, mas não trata
da questão da droga e volta seu olhar para quem a utiliza, de forma criminalizadora.
A literatura apresenta que tal repressão é marca do século XX. No entanto,
episódios recentes como as internações compulsórias de usuários de crack,
conhecidas como “as operações de combate ao crack”, ocorridas em 2010 na cidade
de São Paulo e em 2012 na cidade do Rio de Janeiro, mostram ações de intervenção
e “enfrentamento ao usuário de crack” e não à droga. Tal ação remete à infestação das
cidades pelos pobres, no século XVII, que Foucault citou como “pragas atropelando-
se e perturbando a ordem pública”. (FOUCAULT, 1997, p. 35).
Com isso, cabe pensar sobre o avanço da política de saúde mental e o cuidado aos
usuários de crack, álcool e outras drogas na contemporaneidade. É notório o avanço
no trato da questão da droga, no marco dos anos 1990, mas tal avanço não marca
profunda mudança no trato da questão, diante da repressão citada ao usuário de
crack no parágrafo anterior. Logo, ainda vivenciamos experiências de opressão,
segregação, violência e criminalização.
A realidade aponta que, no decorrer da história, a proibição sempre esteve muito
presente, porém as drogas ilícitas nunca deixaram de ser consumidas, ao contrário,
ganharam valor de mercadoria de troca e se inseriram na lógica do mercado ilícito. É
possível afirmar que o proibicionismo contribui para o fortalecimento da
marginalização, marginalização esta que possui um corte de classe e raça.
No entanto, a proibição do comércio e consumo das drogas ilícitas surge também
no discurso da motivação de ações de proteção à saúde. A construção de ações e
promoção de saúde através de uma política de saúde mental voltada para a atenção
aos usuários de crack, álcool e outras drogas tem em seu marco o pensamento
construído a partir do Programa de Redução de Danos (PRD), o qual tem como
objetivo “reduzir os danos e os riscos relacionados ao uso de drogas” (ANDRADE,
2011, p. 4667). O PRD foi uma estratégia adotada pelo Ministério da Saúde e não
visa apenas a distribuição ou substituição de insumos, mas sim ampliar o olhar sobre
o fenômeno da droga e pensar uma intervenção através da redução de riscos sociais e
à saúde.
A referida estratégia surge na contramão da proposta repressiva de intervenção,
com o olhar voltado para a DST/AIDS, onde iniciou-se intervenções através da troca
de seringas entre usuários de drogas injetáveis, em 1989. Nesse momento, diversos
países, incluindo o Brasil, voltam-se para a política de saúde e retomam o debate
sobre a questão da droga.
No Brasil, a primeira iniciativa de redução de danos se deu em São Paulo, na
cidade de Santos, escolhida, dentre outras coisas, por ter sido ponto de tráfico de
drogas nacional e internacional, bem como, por possuir, em 1989, 51% de usuários
de drogas portadores de HIV/AIDS.
Logo, as intervenções estatais no campo da drogadição, baseavam-se, inicialmente,
no controle do HIV/AIDS, devido ao aumento no risco de contaminação, em
decorrência do uso de drogas injetáveis. Nesse momento, havia uma enorme
preocupação de que a epidemia de HIV/AIDS saísse do controle. Com isso, o
discurso da redução de danos foi ganhando espaço no Brasil, ampliando o público-
alvo das ações (presidiários, meninos em situação de rua, profissionais do sexo,
usuários de crack e anabolizantes) e possibilitando iniciativas favoráveis aos usuários
de drogas.
No entanto, em um espaço de luta, resistência, estigma, avanços e retrocessos, o
Programa de Redução de Danos marca, nos anos de 1990, uma ineficiência estatal na
resposta adequada à questão das drogas, através de ações frágeis, ambivalentes e
descontinuadas. Tal fato pode ser comprovado pela ação da Coordenação Nacional de
DST/AIDS (CN-DST/AIDS), realizada em 2003. Transferir a responsabilidade pela
execução das ações do Governo Federal para o Municipal, apesar de correta, foi
equivocada, pois muitos estados e municípios não possuíam o conhecimento e a
cultura da redução de danos, ocorrendo a descontinuidade e a retração dessas ações.
O resultado foi a desarticulação do já construído e acentuada redução do número de
PRD no Brasil. Um verdadeiro retrocesso do que vinha sendo conseguido através de
trabalho árduo e de negociações políticas que possibilitaram o avanço das ações de
Redução de Danos para grande parte do território nacional. (ANDRADE, 2011, p.
4667).
Cabe destacar que a estratégia de Redução de Danos trouxe benefícios no cuidado
e assistência aos usuários de crack, álcool e outras drogas, no que tange a uma prática
em saúde que vá além da internação e abstinência total. Neste sentido, podemos
afirmar que a Redução de Danos é uma mudança no olhar e, mais que isso, uma
ampliação de práticas que rompam com a cultura proibicionista.
As tentativas de intervenção já apresentadas vieram da fragilidade e ineficiência
estatal em atender a questão da droga e a preocupação com o alarde que o aumento
do uso e abuso de drogas poderia causar. No entanto, a ausência de iniciativa pública,
através da garantia de uma política de saúde adequada e da expansão da cobertura de
atendimento, mostra um frágil atendimento de saúde aos usuários de drogas. Outro
ponto a se destacar é que muitos desses sujeitos vivem em risco social e são
residentes das favelas, locais onde a política pública não habita (DELGADO, 2005).
Porém, apesar da fragilidade e ineficiência da ação estatal, nota-se um esforço para
a ampliação de serviços públicos que atendam aos usuários de drogas, de forma
integral, através de uma ampla rede de serviços, que ultrapassem os muros
hospitalares, possibilitando formação para as equipes de trabalho, avanço legal e
definição de políticas públicas de atenção aos sujeitos que façam uso de drogas.
Tal iniciativa tem como um dos marcos legais a Portaria nº 336/GM/2002, que
institui a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de
Á
Álcool e Outras Drogas e a Portaria nº 3.088/2011, que institui a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS).
A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e a rede de
atenção psicossocial (RAPS)
A Portaria nº 336/GM/2002, que institui a Política do Ministério da Saúde para a
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, surge no cenário de luta por
melhor qualidade no atendimento ao usuário de substâncias psicoativas e traz uma
excelente reflexão sobre o uso e abuso de substancias psicoativas. A partir da
constatação da proporção tomada pelo consumo e agravos sociais decorrentes do uso
de álcool e outras drogas e a estratégia de Redução de Danos.
Apesar do álcool e o tabaco apresentarem as substâncias que estam no ranking das
estatísticas em consumo. O crack tem chamado mais atenção, possivelmente porque se
tornou um fenômeno para uso político, em face aos efeitos sobre a população usuária,
fragilizando a vida orgânica, mental e social do usuário. As cracolândias têm chocado a
população de todas as grandes capitais brasileiras sem que chame atenção o nível de
desigualdade social que esses territórios expressam. As cenas parecem apenas serem
efeitos do uso do crack, dissociando-as da produção das expressões da questão social.
(LIMA, 2015, p. 28)
A referida política também apresenta a afirmação da necessidade de uma mudança
no paradigma do cuidado em saúde mental aos usuários de drogas. Balizada na
redução do estigma, desmistificação da loucura, atenção psiquiátrica com o apoio na
atenção básica de saúde e valorização dos serviços comunitários. Destaca-se, ainda, a
importância de uma atenção de cunho preventivo e educativo, no caminho de uma
atuação voltada para a redução de riscos sociais e de saúde.
Diante disso, a política traz como cerne do debate a relevância da
transversalização, ou seja, da possibilidade do atravessamento de saberes no campo
da saúde pública, o que direciona o olhar integral sobre o sujeito. Através de práticas
individuais e coletivas permeadas pela lógica da intersetorialidade.
Sendo assim, a referida política legitima o papel do Centro de Atenção
Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad), como o principal serviço de organização,
estruturação e fortalecimento de uma rede de assistência aos usuários de álcool e
outras drogas associada à rede de serviços de saúde e assistência social, respeitando a
lógica de redução de danos (BRASIL, 2004).
Diante disso, os princípios e as diretrizes norteadoras da Política do Ministério da
Saúde para a Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas pregam que a
atenção a esses sujeitos deve acontecer em seu território, respeitando a sua história,
sua cultura e seus vínculos. Através de uma atenção adequada, com ações de
prevenção e educação em saúde, profissionais qualificados e com a participação
social, logo, o controle social. Desse modo, é possível pensar intervenções com base
na transversalização e no respeito aos usuários, baseando-se na construção de um
serviço que atenda as demandas dos mesmos.
Sendo assim, a atenção ao usuário de álcool e outras drogas avança com os
seguintes objetivos: fortalecimento da atenção psicossocial; promoção do acesso à
política de saúde, descentralização do cuidado em saúde mental, reabilitação e
reinserção social.
Logo, a política aponta a necessidade de uma intervenção que possibilite uma
reflexão sobre o olhar atual para o usuário de drogas, mas que principalmente
vislumbre uma mudança nesse olhar. É importante compreender a relação existente
entre usuário e droga, mas também é preciso entender o estigma carregado por esse
sujeito. Nesse sentido também é necessário que se ampliem os espaços de debate
sobre o significado da droga na sociedade capitalista contemporânea, com o intuito
de fortalecer o cuidado aos usuários de drogas, assim como possibilitar a
conscientização sobre o que é a droga, a prevenção e o controle social.
Portanto, avançar no debate sobre a atenção integral é elevar a reflexão acerca da
prevenção, promoção e proteção à saúde, os modelos de atenção e o controle de
entorpecentes e substâncias psicoativas, através de uma intervenção em rede,
entendendo rede como algo “(...) que cria acessos variados, acolhe, encaminha,
previne, trata, reconstrói existências, cria efetiva alternativa de combate do que, no
uso das drogas, destrói vidas” (BRASIL, 2002, p. 11).
A construção de uma rede de atenção ao usuário de drogas, vem na compreensão
da relevância de uma rede articulada na atenção à saúde, na perspectiva de um
conjunto de elementos que precisam atuar no território e de forma articulada
(BRASIL, 2011).
Sendo assim, a Portaria nº 3.088/2011, que institui a RAPS para pessoas com
transtornos psíquicos e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, surge com o olhar voltado para a construção do cuidado em rede,
através de 7 níveis de atenção: atenção básica de saúde, atenção psicossocial, atenção
de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção
hospitalar, estratégia de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial.
A atuação através desses sete níveis de atenção vem da luta pela legitimação de
uma atenção integral do cuidado, entendendo a importância da atenção em rede para
o usuário de drogas também. Na garantia de uma articulação contínua e estratégica
da atenção através de dois princípios: a intersetorialidade e a integralidade.
Podemos dizer que, através da intersetorialidade, é possível olhar o sujeito em sua
totalidade, não deixando de considerar suas particularidades, ou seja, é possível uma
atenção às necessidades individuais e coletivas. Logo, “para a obtenção de resultados
mais efetivos, uma articulação intersetorial é imprescindível para incidir sobre os
determinantes sociais do uso de drogas e promover a saúde” (COSTA, 2015, p. 56).
E o princípio da integralidade mostra a importância de ações conjuntas, articuladas e
contínuas, sofrendo mudanças de acordo com as características do território e
serviços prestados. Cabe pontuar que tais princípios aqui destacados estão em
consonância com os pressupostos e diretrizes do SUS e das políticas decorrentes do
Movimento de Reforma Psiquiátrica.
A RAPS é pautada pelos princípios do respeito aos direitos humanos; pela garantia de
autonomia e liberdade; pela promoção da equidade, do exercício da cidadania e da
inclusão social; e pelo enfrentamento de estigmas e preconceitos. Dentre as diretrizes e
os objetivos propostos destacam-se, também: a garantia do acesso e da qualidade dos
serviços e, no que se refere à problemática relacionada à dependência de álcool e
drogas, a perspectiva de redução de danos, com cuidado territorial, humanizado,
integral e multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar e intersetorial, com
participação e controle social de usuários e de familiares. É importante destacar o
caráter territorial da rede, centrada nas necessidades concretas das pessoas, sendo
responsável pelo cuidado continuado e pela promoção de reinserção social pelo
trabalho, pela renda e pela moradia solidária. (BRASIL, 2011a)
Entretanto, é notório que os avanços mostram a importância do CAPS ad para a
legitimação dos princípios da intersetorialidade e da integralidade, bem como sua
responsabilidade no desenvolvimento das ações em rede, no que se refere ao suporte
técnico para a qualificação das ações e direcionamentos da atenção através do
fortalecimento de redes formais e informais23 de base territorial. Porém, a
observação do andamento da ação em rede e os autores aqui apresentados mostram
uma total desassistência aos usuários de crack, álcool e outras drogas, pois as ações
previstas não existem, não chegam e/ou não atendem aos princípios da RAPS. Logo,
observa-se uma cobertura frágil do CAPS ad, se “reduzindo ao próprio serviço”, pois
não está apto a acessar as demandas dos usuários de drogas (ANDRADE, 2011).
Diante disso, apresentam-se práticas fragmentadas, que sustentam intervenções
não integrais e intersetorias, assim como a ausência de diálogo entre os diferentes
atores, serviços e setores que compõem as redes. Com uma cobertura inexistente ou
pequena, com fortes problemas estruturais e de qualificação das equipes, reforçando
práticas estigmatizadoras, criminalizadoras e opressoras.
Pode-se afirmar que tais enfrentamentos estão articulados a alguns pontos que
precisam ser repensados, como a prioridade no empenho da formação e formatação
da RAPS, a qualificação das equipes, o fortalecimento da organização em rede, a
ampliação da formação em redução de danos e o protagonismo dos usuários,
familiares e da sociedade na construção do cuidado em saúde mental. Apenas com tal
empenho será possível uma atuação que vá além da repressão ao tráfico de drogas e
ao usuário de drogas. Ou seja, serão fortalecidas ações de atenção ao uso e abuso de
drogas como questão de saúde pública e não apenas de segurança pública.
Diante do que foi exposto, fica clara a preocupação de que o problema da droga
precisa ser pauta constante na arena política e dos fóruns de debate, na perspectiva
de se romper com a lógica reducionista e criminal da relação sujeito e substância,
devendo avançar na leitura da droga a partir de suas implicações sociais, psicológicas,
econômicas e políticas.
A internação compulsória de usuários de crack
A literatura mostra o passado de confinamento vivenciado pelo louco, miserável e
deficiente, ou seja, a medida de reclusão dos “desajustados” sociais. Por outro lado, o
avançar dos anos 2000 aponta saídas de atenção que avançam na lógica da liberdade e
legitimação dos direitos humanos, conforme apresentada anteriormente. No
entanto, apesar da organização da atenção aos usuários de drogas pós anos 2000, a
internação psiquiátrica compulsória se apresenta como “tratamento” aos usuários de
crack.
No entanto, cabe sinalizar que a internação compulsória como tratamento nos
sugere a reflexão sobre o final dos anos 30, através do Decreto-Lei 891/38. Tal
decreto pontuava que para os “dependentes químicos” doentes, o tratamento
domiciliar não seria o caminho da cura, logo se indica a internação como
intervenção.
Art. 27 – A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é
considerada doença de notificação compulsória, em caráter reservado, à autoridade
sanitária local. Art. 28 – Não é permitido o tratamento de toxicômanos em domicílio.
(BRASIL, 1938)
Com a Lei 10.216/01 observam-se avanços no olhar aos usuários de drogas e
medidas de atenção diferenciada das colocadas pelo Decreto-Lei 891/38. A referida
lei traz mudanças na atenção aos sujeitos com transtornos mentais e também para os
usuários de drogas. No entanto, o caso do usuário de drogas se atende para os que
desenvolverem quadros patológicos em decorrência do uso da droga. Outro ponto a
ser destacado é que a lógica de atenção apresentada pela Lei 10.216/01 é entendida
pelo reconhecimento dos sujeitos, usuários de drogas ou não, como sujeitos de
direitos e dignos de respeito e cuidado em saúde, independente da patologia e/ou
relação com a droga.
A lei, em seu artigo 6º, também compreende e desmistifica a lógica asilar como o
único caminho de tratamento e apresenta outra via de cuidado, reforçando a lógica
da desinstitucionalização, caracterizando a internação psiquiátrica, através de três
modalidades24, como algo excepcional e, no caso dos usuários de drogas, como a
última alternativa de tratamento.
Ao pensar na internação psiquiátrica compulsória dos usuários de crack, é notório
que ela não apresenta uma intervenção adequada de tratamento, ao contrário,
observa-se que tal internação apenas se insere na lógica da privação de liberdade e da
repressão. Logo, não pode ser entendida como tratamento e cuidado em saúde
mental.
Sendo assim, a compreensão a partir dos avanços legais sobre a lógica do cuidado
aos usuários de drogas em contraposição as medidas dos atuais governos,
especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, no que tange a internação
compulsória, mostra total retrocesso ou desconhecimento da Portaria nº
336/GM/2002 e da Portaria nº 3.088/2011, assim como da construção histórica e
política realizada pela “luta antimanicomial”. Ou seja, é possível ousar em dizer,
afirmam o caminho como sendo o de “guerra às drogas”.
Entendendo internação compulsória por: “modo de eliminação dos indesejados,
constituindo-se em prática higienista violadora de direitos humanos” (COELHO;
OLIVEIRA, 2014, p. 359), observa-se que avanços aconteceram, no entanto, as
atuais intervenções reafirmam práticas do passado.
Cabe destacar que a medida de internação compulsória reforça e não resolve o
problema do uso de drogas, reafirma o estigma do usuário de droga como um
doente mental, potencializa a violação do direito à saúde e delega ao juiz, através de
um laudo médico, a responsabilidade por julgar uma intervenção na área da saúde
mental. Diante disso, a internação compulsória sinaliza: a ausência de uma prática
emancipatória, de compreensão do fenômeno droga e de sua relação com o usuário
de drogas. Assim como coloca o usuário de drogas na situação de
“marginal/criminoso”, portanto, em conflito com a lei.
A saída para a atenção aos usuários de crack apoia-se na lógica do confinamento,
do proibicionismo e afirma um Estado ausente de medidas permanentes de atenção
ao tema crack, e para além disso, reforça um Estado atuante através de medidas
ineficazes e paliativas diante de uma profunda desigualdade e assertiva injustiça
social. Logo, a internação compulsória é apresentada como a salvação para a questão
das crackolândias, quando, na verdade, se faz necessária ações de valorização e
proteção à pessoa humana.
A disseminação do “cuidado” pela lógica da internação compulsória toma
proporções nacionais, inicialmente na cidade de São Paulo, em 2010; após no Rio de
Janeiro, em 2012 e posteriormente no Espírito Santo, também em 2012. Porém,
cabe sinalizar que em todos os estados citados a internação compulsória aparece
como medida de atenção em saúde mental aos usuários de crack, porém, tal prática é
disseminada a partir da lógica higienista para a limpeza urbana, como o exemplo da
Copa do Mundo na cidade do Rio de Janeiro.
Entretanto, tal medida tem na mídia o grande aliado para a apresentação da
salvação dos usuários de drogas e fim das drogas, reafirmando o olhar distorcido
sobre o usuário de drogas, a perpetuação da violência, a violação do direito à
liberdade e a preocupação individualista da classe média.
É cristalino que o objetivo não é dar o melhor tratamento àquelas pessoas – sim, são
pessoas! , mas “higienizar” a cidade para os futuros eventos internacionais, tal como vem
fazendo na “revitalização”, i.e., “pintura com cores vibrantes”, de áreas degradadas e
abandonadas por anos pelo próprio poder público. (COELHO; OLIVEIRA, 2014, p.
364)
Sendo assim, como afirma Lima (2012, p. 21) “não nos parece estar em curso um
retorno à cultura manicomial, mas um fenômeno anterior a própria modernidade”.
Observa-se que o Estado inviabiliza a possibilidade de tratamento, seja através da
RAPS, seja através da liberdade de escolha pelo uso, redução ou não uso da droga, no
momento em que legitima a internação psiquiátrica compulsória como única saída
de tratamento.
Considerações finais
A política de atenção aos usuários de álcool e outras drogas nos apresenta a profunda
dificuldade na compreensão de intervenção em saúde mental através de práticas
emancipatórias e inclusivas.
Nota-se um avanço significativo no trato ao usuário de álcool, crack e outras
drogas que tem como marco os avanços da estratégia de redução de danos e sua
entrada na questão dos usuários de drogas injetáveis, até a legitimação de uma
atenção através de uma rede de atenção psicossocial.
O cenário epidêmico colabora para a entrada da estratégia de redução de danos na
agenda pública, pois se torna favorável diante do número elevado de pessoas sendo
contaminadas por HIV/AIDS devido ao uso de drogas injetáveis. Atrelado ao
movimento feito pela “luta antimanicomial” pelo fim do confinamento e a favor do
tratamento ambulatorial.
A Política de Redução de Danos possibilitou um novo olhar sobre o trato do tema
droga, avançando no caminho da igualdade de atendimento e inclusão social,
balizados pelos princípios do SUS e fortalecidos na Política de Saúde Mental. Com
isso, observam-se ações de cunho normativo e diretivo na condução da atenção
norteadas pelos princípios da intersetorialidade e integralidade do cuidado em
saúde.
A Política de Atenção aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, afirma o espaço do
CAPS e no CAPS ad como o caminho para o tratamento aos sujeitos com transtorno
psíquicos e/ou usuário de drogas, com base na lógica educativa e preventiva
permeada pelo olhar da saúde coletiva. A Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, que
apresenta caminhos para uma atenção em rede de cuidado, em que os sujeitos
deverão ter seu cuidado feito pelo olhar integral e com a construção de um
atendimento atrelado à sua relação com a droga, no caminho da compreensão do uso
da droga e não na repressão à droga.
No entanto, o estudo apresentou que, mesmo diante de marcos “legais”
importantes para um novo caminho no cuidado aos usuários de drogas, ainda é
notório na sociedade brasileira o viés do confinamento, o qual se reafirma e se
reapresenta através da internação psiquiátrica compulsória aos usuários de crack.
A internação compulsória marca o caminho da opressão, repressão e asilamento
no trato do crack e se mostra saída cruel para o “tratamento”. Também se posiciona
como medida governamental e afirma uma postura de governo diante do trato do
crack, a partir da lógica da intervenção pontual, focalista e segregadora.
Contudo, pensar a questão da droga no Brasil é pensar um espaço de avanços e
retrocessos, em que já é possível observar avanços no que tange à: ampliação na
oferta de serviços públicos de cuidado, qualificação profissional e pesquisas sobre o
tema. E como retrocesso, a internação compulsória e a lógica proibicionista, que
ainda paira sobre os serviços de cuidado em saúde mental de atenção aos usuários de
álcool e outras drogas, em especial aos usuários de crack.
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22 A Lei 10.216 /01.
23 Entende-se rede formal a composta por política sociais, instituições privadas, ONGs e etc que atuam na lógica da legitimação do
direito. E rede informal aquela que se apresenta no território como potencializadoras de cuidado: familiares, amigos, vizinhos,
comércio, espaços de lazer e cultura, e etc.
24 Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III – internação compulsória:
aquela determinada pela Justiça.
CAPÍTULO 9
(DES) INSTITUCIONALIZAÇÃO
Renata Andrade Santos Pereira, Amanda Milani de Oliveira Araujo e Rosane Albuquerque da Costa
Introdução
Segundo Lougon (1993), Martinhago e Oliveira (2015) o processo de exclusão da
pessoa em sofrimento psíquico já começou desde a Idade Média, no qual a mesma
ficava institucionalizada nos Hospitais Gerais que tinham a função de receber todos
os excluídos da sociedade: mendigos, vagabundos, deficientes, pessoas com desvios
comportamentais, pobres, desabrigados e doentes em geral. Os Hospitais Gerais
tinham a finalidade de proteger a população contra essas pessoas que desviavam do
padrão de normalidade da época e eles eram administrados por entidades religiosas.
Nesse contexto, a psiquiatria foi inaugurada por Pinel e acreditava que a doença
mental, ou alienação mental – como foi chamada na época por ele -, deveria ser
tratada através do isolamento terapêutico (QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL,
2013). O alienado perdeu sua cidadania e foi retirado do seu ambiente natural, já
que Pinel acreditava que esse era o causador da doença (CASTEL, 1978). A tutela
médica era comum sobre as pessoas em sofrimento psíquico que permitia aos
médicos aplicarem o chamado tratamento moral que foi criado por Pinel com a
finalidade de alterar o conteúdo dos pensamentos e comportamentos vistos como
patológicos (PINEL, 1800). Para Foucault (1973), o tratamento moral era uma
forma de dominar o louco e privá-lo de sua cidadania, sendo assim, uma forma de
poder disciplinar.
Goffman (1996) chamou os manicômios de instituições totais, que é o lugar no
qual sujeitos com experiências semelhantes, são levados a vivenciarem uma vida sem
liberdade e completamente controlada, os deixando excluídos da sociedade. Quando
o indivíduo fica institucionalizado, ele perde seus vínculos afetivos com seus
familiares e com as pessoas da comunidade a sua volta. Ocorre uma mortificação do
eu, afastando cada vez mais a pessoa de sua individualidade e negando sua
subjetividade.
Na década de 1970, começaram os movimentos que lutavam contra a prática
manicomial, porém apenas em 1989 foi criado o primeiro projeto de lei nº 3.657,
pelo deputado Paulo Delgado, que buscava legalizar a Reforma Psiquiátrica no Brasil.
No entanto, apenas em 6 de abril de 2001 o projeto foi aprovado virando a Lei
10.216 que dispõe sobre a saúde mental, proteção e direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial (BRASIL, 2001).
A partir da lei 10.216/01, ocorreu uma redução significativa no número dos
leitos psiquiátricos, assim como o compromisso de que nenhum leito novo poderia
ser aberto, acarretando em uma redução gradativa até o fechamento das instituições
psiquiátricas. A internação de pessoas em sofrimento psíquico passou a ser admitida
somente quando os dispositivos extra-hospitalares não conseguissem suprir a
demanda do sujeito, tendo em vista que a direção atual do cuidado na saúde mental é
baseada na Reabilitação Psicossocial dentro da Rede de Atenção Psicossocial
(SOUZA, 2010).
A Reforma Psiquiátrica brasileira sofreu grande influência da Psiquiatria
Democrática Italiana, que se baseou na ideia de desinstitucionalização colocada por
Franco Basaglia (SOUSA et. al, 2013) que buscava uma transformação política e
ideológica da loucura (AMARANTE, 2000). Para ele, os hospitais isolavam as
pessoas e dissolviam suas identidades, que, em conjunto com a condição psicossocial
da mesma assumiam um caráter cronificador das doenças mentais. Sendo assim, ele
defendia a extinção de todos os manicômios (LOUGON, 1993). Basaglia defendia a
ideia de colocar a doença mental entre parênteses e dar ênfase ao sujeito em toda sua
complexidade psicossocial (FUZETTI; CAPOCCI, 2003).
Segundo Lougon (1993), foi após as denúncias do caráter unicamente
disciplinador das instituições psiquiátricas que o modelo de atenção psicossocial
começou a ser empregado. Porém, essa mudança na modalidade de atendimento
contava com diversos obstáculos, não bastava dizer que as instituições não eram
terapêuticas e agravavam o sofrimento do indivíduo, era preciso realizar um trabalho
de conscientização com a sociedade e com os familiares que irão conviver com essas
pessoas que eles haviam retirado antes do seu convívio por serem desviantes de um
comportamento socialmente aceito, para que se pudesse desconstruir o modelo de
exclusão social existente.
A desinstitucionalização é considerada a principal ferramenta para a reconstrução
da cidadania e o resgate da subjetividade das pessoas em sofrimento psíquico, no
entanto, seu início se deu por questões políticas e econômicas da época, tendo em
vista, que ela visa desconstruir um processo de exclusão que existe na sociedade e
que era anterior aos muros dos manicômios (LOUGON, 1993; QUINTELLA;
FERREIRA; AMARAL, 2013).
Desospitalizar, desinstitucionalizar ou transinstitucionalizar?
A institucionalização destrói a singularidade e a individualidade da pessoa em
sofrimento psíquico, pois ela fica rendida ao discurso médico e suas práticas
disciplinares que tentam realizar a normatização da vida do sujeito, ao tempo que,
acaba por impossibilitar que o mesmo tenha responsabilidade sobre sua vida e seu
tratamento (FRANCO; STRALEN, 2015). Em consequência disto, indivíduos que
tiveram internações muito longas quando são convocados a sair do hospital
psiquiátrico sentem- se inseguros e desejam permanecer na instituição. Todos aqueles
anos internados os fizeram perder as habilidades essenciais para conviver em
comunidade, se relacionando com os demais (FASSHEBER; BARRETO; VIDAL,
2007).
Assim surge a desinstitucionalização como prática que visa reconstruir a cidadania
da pessoa em sofrimento psíquico, substituindo a lógica manicomial por um modelo
no qual o cuidado é oferecido na comunidade com serviços extra-hospitalares. Essa
prática não só quer devolver a liberdade e individualidade aos sujeitos, mas também
desconstruir o saber psiquiátrico e os estereótipos que a sociedade detém sobre a
loucura (QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL, 2013). A questão da loucura e do
cuidado da pessoa em sofrimento psíquico não pode ser controlada apenas por um
saber (médico), ela precisa ter uma abordagem multidisciplinar que faz articulação
entre vários setores para que de fato o aparato manicomial seja derrubado
(SARACENO, 1999).
O processo de desinstitucionalização teve interpretações e consequências
diferentes em alguns países. Por exemplo, nos Estados Unidos quando esse processo
foi colocado em prática, foram dadas altas para a grande maioria das pessoas
internadas em hospitais psiquiátricos para que elas fossem reinseridas na
comunidade. No entanto, na prática o que ocorreu foi uma desospitalização, essas
pessoas foram retiradas do hospital e jogadas na rua sem nenhum acompanhamento
ou preparação prévia, levando pacientes crônicos e não crônicos a ficarem sem
tratamento adequado e continuou os excluindo da comunidade apesar de estarem
transitando por ela (LOUGON, 1993; FUZETTI; CAPOCCI, 2003).
Já na Itália a desinstitucionalização teve um caráter mais político, trazendo uma
reformulação para as leis vigentes no país. Em 1978 foi promulgada a lei nº 180, que
ficou conhecida como Lei Basaglia e garantia o direito de cidadania das pessoas em
sofrimento psíquico. Segundo Lougon (1993), o modelo que entrou em vigor em
Trieste foi visando desconstruir de forma gradual todos os asilos, dando espaço a
construção de dispositivos que funcionassem em lógica inversa à manicomial
(ROTELLI, 1999).
No Brasil, a luta Antimanicomial que ganhou força no século XXI foi influenciada
pela Psiquiatria Democrática Italiana e pelos conceitos de desinstitucionalização de
Franco Basaglia. Tinha por finalidade devolver o poder de contratualidade e os
direitos como cidadão às pessoas em sofrimento psíquico, desarmando a lógica
manicomial e transferindo o cuidado para os novos dispositivos extra-hospitalares
como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as Residências Terapêuticas
(QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL, 2013). Esse poder contratual que antes lhes
eram negados se refere segundo Tikanori (1996) as relações de trocas que são
estabelecidas, trocas de afetos e de bens materiais.
Segundo Rotelli, Leonardis e Mauri (2001) o conceito de desinstitucionalização é
uma crítica epistemológica às diversas relações institucionalizadas existentes, que
perpassam pela comunidade, família, trabalho e lazer, não se restringindo à pessoa
internada e à instituição. Este é um processo que busca políticas públicas incisivas e
com financiamentos adequados, assim como transformações nas relações sociais. O
sistema de saúde mental passa a ter que oferecer apoio familiar, reinserção social e
não apenas tratamentos medicamentosos. Para que isso fosse possível a Rede de
Atenção Psicossocial precisou se articular com outras redes e outros dispositivos da
sociedade para possibilitar que as pessoas regressas dos hospitais psiquiátricos fossem
acolhidas pela sociedade (MARTINHAGO; OLIVEIRA, 2015).
Segundo Fuzetti e Capocci (2003), no Brasil existem três tipos de
desinstitucionalização, são elas: desinstitucionalização como desconstrução, é o
processo de desconstrução da lógica manicomial, fazendo um trabalho entre as
comunidades terapêuticas e os serviços territoriais, para não apenas substituir os
asilos, mas sim, a forma de cuidado para com a pessoa em sofrimento psíquico;
desinstitucionalização como substituição das Instituições Psiquiátricas por
dispositivos dentro da comunidade, é um processo que envolve a busca pela extinção
dos leitos psiquiátricos, um maior envolvimento da família nos cuidados do sujeito e
a criação de novos serviços especializados inseridos na comunidade;
desinstitucionalização como humanização da assistência, é um processo realizado
dentro do próprio hospital psiquiátrico, visando incluir novas abordagens
terapêuticas, trabalhando a conscientização dos pacientes internados e seus
familiares, além de sua reinserção no meio social.
A desinstitucionalização abrange todo o trabalho realizado dentro e fora do
hospital psiquiátrico, englobando desde a desospitalização até as oficinas terapêuticas
oferecidas pelo CAPS. São ações macro e micropolíticas que levam em consideração
o discurso e a singularidade de cada indivíduo. Essas ações precisam ser realizadas de
maneira articulada com o território que o sujeito habita (QUINTELLA; FERREIRA;
AMARAL, 2013).
Todo trabalho de saída das pessoas em sofrimento psíquico das instituições
psiquiátricas realizados pelos técnicos, necessita de uma escuta clínica que vai além
do trabalho de reabilitação psicossocial. Para que a desinstitucionalização tenha
efetividade, é preciso perceber em que momento aquele sujeito se encontra e quais
as suas possibilidades de inclusão social, possibilitando assim uma construção de vida
independente da instituição (OLIVEIRA, 2006). Para que o profissional consiga
exercer esse papel precisa se abster da sua posição de poder e se colocar como
ferramenta que potencializa a autonomia, criação e cidadania do sujeito
(QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL, 2013).
Segundo Foucault (1973-1974), caso os técnicos não trabalhem nessa direção de
promover autonomia para os usuários, os novos serviços de saúde mental vão acabar
funcionando com a lógica manicomial que eles tanto tentam combater, se tornando
mais um braço de poder disciplinar. Já podemos observar esse tipo de modelo em
alguns CAPS, nos quais os profissionais ficam preocupados em desenvolverem
atividades de reabilitação para os usuários sem antes terem ouvido quais eram as suas
demandas, e não tendo os incluído na construção do seu projeto terapêutico
singular, assumindo uma postura de poder com relação às direções do tratamento do
indivíduo (QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL, 2013).
Seguindo o novo modelo de cuidado baseado na clínica ampliada, os territórios
devem se responsabilizar pelo cuidado e acompanhamento das pessoas e seus
familiares de seu município de abrangência. No entanto, os profissionais encontram
bastante dificuldade em realizar essa articulação pois é difícil encontrar e resgatar o
vínculo com as famílias, visto que alguns municípios ainda não possuem Residências
Terapêuticas e o Estado não disponibiliza incentivos financeiros para os dispositivos
alternativos que promovem a reinserção social e o desenvolvimento da autonomia
(MARTINHAGO; OLIVEIRA, 2015).
Pode-se observar que o processo de desinstitucionalização requer um longo
tempo e que se deve respeitar o tempo de cada pessoa. Sabe-se que a saída do
hospital e a construção de novas moradias trazem à tona muitas fantasias e angústias.
Estas necessitam de serem trabalhadas colocando o usuário como responsável da
construção da sua própria vida, seu projeto terapêutico e os cuidados de si
(FRANCO; STRALEN, 2015).
A aceleração do fechamento dos hospitais psiquiátricos sem que se haja tempo
suficiente para se realizar a desinstitucionalização de cada sujeito pode acabar
trazendo duas consequências. Uma delas é o excesso de usuários nos serviços de
saúde mental extra-hospitalares que ainda são incipientes para oferecer assistência
para toda demanda que chega até eles. A outra é a transferência dessas pessoas para
outras instituições psiquiátricas, ocorrendo assim uma transinstitucionalização.
Com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, percebeu-se que na maioria dos
casos não havia um trabalho clínico que caracterizasse uma desinstitucionalização de
fato dos sujeitos antes ali internados. Muitos estavam sendo apenas realocadas em
outras instituições, caracterizando um processo de transinstitucionalização, que
continua privando-os de liberdade, impedindo sua autonomia e a expressão de sua
subjetividade (TEIXEIRA, 2006). De acordo com Priebe e Turne (2003), a
transinstitucionalização entra em cena na saúde mental como uma forma velada de
continuar exercendo o controle social, tendo em vista que pessoas em sofrimento
psíquico grave podem causar alguns transtornos à ordem pública se forem retiradas
das instituições, principalmente nos casos no qual o sujeito não tem nenhum familiar
que se responsabilize por seus cuidados.
Deste modo, Martinhago e Oliveira (2015) questionaram se é possível falar em
desinstitucionalização de forma absoluta. São as instituições que constituem o apoio
social, logo, viver em sociedade é viver institucionalizado. Nesse contexto, pode-se
pensar a desinstitucionalização como uma busca por uma sociedade justa e plena de
direitos, no qual são eliminadas todas as formas de institucionalização que oprimem a
singularidade do sujeito ou que o exclua do convívio social.
Discussão
No Brasil, as pessoas com doenças crônicas, após o fechamento das instituições
psiquiátricas, foram transferidas para hospitais de curta permanência, no entanto,
esses leitos que teoricamente seriam para o momento de agudização dos quadros da
doença durante internações curtas, foram se transformando em residência para os
doentes crônicos pois muitos não tinham para onde ir caso recebessem alta
(LOUGON, 1993). Isso ocorreu devido à conjuntura social e política do país, no
qual a saúde tem recebido pouco investimento financeiro, precarizando o
funcionamento dos serviços.
Novas práticas de cuidado dentro da saúde mental precisam urgentemente serem
empregadas para que as pessoas regressas de instituições psiquiátricas possam se
tornar ativas dentro da comunidade, desconstruindo preconceitos e impedindo a
repercussão da lógica manicomial dentro dos serviços extra-hospitalares (SOUZA,
2010). A Reforma psiquiátrica é um processo que trouxe importantes ganhos para as
pessoas em sofrimento psíquico, porém é necessário que ela seja sempre repensada e
contextualizada com a situação atual do país por seus autores para que continue
trazendo ganhos reais para todos os envolvidos. Existem equipes de
desinstitucionalização que trabalham na saída do hospital de pessoas há muitos anos
internadas e em sua inclusão na rede de saúde mental territorial. Esse trabalho foi
instituído a partir da Portaria nº 2.840, porém observa-se que ele ainda encontra
muitas dificuldades para sua realização, sendo feito em alguns momentos de uma
maneira muito fragmentada (QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL, 2013).
Atualmente tem se pensado em ações de desinstitucionalização também dentro
dos CAPS, pois apesar de eles terem se tornado o dispositivo de saúde mental de
maior importância na substituição dos modelos asilares e terem a função de
desinstitucionalizar, ele pode ser atingido de alguma forma por essa lógica
manicomial, contribuindo para a institucionalização de seus usuários
(MARTINHAGO; OLIVEIRA, 2015). Observa-se que alguns CAPS, não produzem
estratégias voltadas para a inclusão do usuário no território, ofertando todas as suas
atividades dentro dele mesmo, o que faz com que os usuários tenham suas
necessidades atendidas sem precisar sair do serviço (QUINTELLA; FERREIRA;
AMARAL, 2013).
Quando o serviço de saúde mental tenta suprir sozinho toda a demanda do
sujeito, dificulta que o mesmo se implique em buscar outras possibilidades fora
daquele espaço. O ideal é que o CAPS possa oferecer atividades que articulem seus
usuários com a comunidade, fazendo com que eles transitem pela quadra de
esportes, a praça, o mercado e todos os demais locais de sua região. Para que a partir
disso, frequentem cada vez menos os serviços de saúde mental e se tornem mais
autônomos com vínculos afetivos pela cidade.
Segundo Oliveira (2006), o CAPS pode assumir efeito cronificador quando os
usuários o frequentam sem haver um sentido definido em seu tratamento para isso e
sem a implicação do sujeito na construção de seu projeto terapêutico singular. Essa
tem sido uma grande dificuldade dos profissionais que trabalham nos CAPS, uma vez
que o serviço tem funcionado com superlotação de usuários, impossibilitando em
alguns momentos o acolhimento de qualidade de cada um em sua singularidade.
Além da dificuldade de articulação e encaminhamento desses usuários para a rede de
saúde do território, ainda existe baixa inserção da pessoa em sofrimento psíquico no
Programa Saúde da Família, das unidades psiquiátricas nos hospitais gerais e os
ambulatórios especializados em saúde mental estão ficando cada vez mais escassos. A
Reforma Psiquiátrica Brasileira propõe que o CAPS seja o articulador entre a pessoa
em sofrimento psíquico e a sociedade, no entanto nem sempre o usuário aceita fazer
seus tratamentos em outros serviços da rede, pois foi naquele lugar que ele
estabeleceu seu vínculo transferencial, assim como com seus profissionais.
Diante disto, a desinstitucionalização atravessa diversas barreiras e desafios para
sua efetivação como desconstrução da lógica manicomial, dos estigmas da doença
mental, reinserção social, desenvolvimento de autonomia e exercício de cidadania.
Dentre esses desafios pode-se destacar: a vulnerabilidade dos sujeitos, que os tornam
suscetíveis a novas reinternações hospitalares; o isolamento social a que eles são
submetidos pela dificuldade da inclusão; as condições precárias sob as quais essas
pessoas vivem; o vínculo enfraquecido ou inexistente com as famílias e a falta de
atividade laboral (FUZETTI; CAPOCCI, 2003).
Devemos levar em consideração também que da mesma forma que a instituição
retirou a pessoa em sofrimento psíquico da sociedade o excluindo do convívio social,
agora está o devolvendo para essa mesma comunidade sem dar importância aos
desejos desse sujeito (LOUGON, 1993). Segundo Oliveira (2006) quando se
pretende fazer com que o psicótico tenha um funcionamento socialmente aceito pela
população, acredita-se que dessa maneira se obterá a cura de sua doença. No
entanto, é preciso levar em consideração, também, a singularidade de cada sujeito, o
que significa que nem todos conseguirão se ajustar na estrutura social vigente. Para
Viganó (1999), quando impomos um tipo de tratamento ao sujeito sem realizar um
trabalho de construção subjetiva, estamos contribuindo para sua exclusão e
cronificação, o que afirma a necessidade de que seja realizado um trabalho que leve
em consideração a subjetividade e demanda de cada indivíduo ao se trabalhar com
pessoas regressas de instituições psiquiátricas. Dessa forma, estaremos realizando
uma desinstitucionalização com maior cuidado e efetividade.
Outra grande dificuldade para a efetivação da desinstitucionalização é a atual crise
nos serviços de saúde mental, os quais se organizam de forma segmentada, não
promovendo a continuidade terapêutica dos casos, e, portanto, não representam a
necessidade real dos usuários com quadros psicopatológicos mais agravados. Os
serviços, ainda, oferecem atividades desnecessárias, utilizam uso abusivo de
medicações; não se responsabilizam plenamente pelos usuários, fazendo com que os
mesmo transitem entre os serviços, ou sejam transinstitucionalizados. Observa-se
que eles não ampliam a política territorial e não possuem projetos concretos de
reinserção do usuário no trabalho (MÂNGIA; MURAMOTO, 2006). Em
consequência disto, alguns autores defendem que ainda existe a necessidade da
internação em alguns casos específicos em que o paciente se encontra em um quadro
mais agudo, se colocando em risco e oferecendo riscos a terceiros (FUZETTI;
CAPOCCI, 2003).
No entanto, não se pode permitir nenhum tipo de retrocesso, como seria permitir
que as internações fossem realizadas em função de dificuldades estruturais dos
serviços e do país. É necessário que novas ações sejam pensadas com a finalidade de
evitar a precarização dos serviços.
A desinstitucionalização trouxe humanização ao tratamento e possibilidade de
qualidade de vida para as pessoas em sofrimento psíquico, e essa importante
conquista não pode ser perdida devido às dificuldades encontradas para sua
efetivação.
A Reforma Psiquiátrica e seus dispositivos não estão finalizados, trata-se de um
processo continuo e que deve sempre ser repensado (OLIVEIRA, 2006). A
desinstitucionalização deve trabalhar desenvolvendo autonomia e cidadania, para que
ela não vire apenas outro modo de poder disciplinar dentro da sociedade
(QUINTELLA; FERREIRA; AMARAL, 2013).
Considerações finais
A desinstitucionalização veio com a proposta de desconstruir os estigmas da loucura
e extinguir os hospitais psiquiátricos que já se mostraram ineficazes no tratamento da
pessoa em sofrimento psíquico, por negar a subjetividade destas e possuir um caráter
cronificador. Porém quando se fala na extinção das instituições psiquiátricas, é
necessário ter cautela para que a saída destes indivíduos por hora internados seja
feita de forma cuidadosa a fim de que não ocorra apenas uma desospitalização. Isso
também não significa que se possa adiar esse processo por falta de recursos ideais.
O trabalho de desinstitucionalização é baseado na Reabilitação psicossocial que
visa cuidar do sujeito em toda sua complexidade, favorecendo sua reinserção social,
o fortalecimento dos seus vínculos familiares e com as demais pessoas da
comunidade, o inserindo em atividades laborais e oferecendo tratamento em
serviços extra-hospitalares articulados com o território. As ações de
desinstitucionalização foram viabilizadas principalmente pelas Residências
Terapêuticas e pelo Programa de Volta Para Casa que oferece consecutivamente
moradia e uma quantia em dinheiro para as pessoas regressas de longos períodos de
internação que não possuem nenhum vínculo familiar. No entanto, esses programas
contemplam ainda um número pequeno de usuários e não existem em todos os
municípios.
O serviço substitutivo ao manicômio que teve maior importância para o processo
de desinstitucionalização foram os CAPS, que ficaram responsáveis pela maior
demanda de usuários por se tratarem de um dispositivo de base territorial, porém
muitas questões vêm impedindo que os CAPS exerçam de maneira satisfatória suas
funções. Isso ocorre devido à alta demanda de usuários e baixa quantidade de
serviços disponíveis na rede, assim como de profissionais especializados. Além da não
adesão de outros serviços de saúde ao tratamento das pessoas em sofrimento
psíquico, como a atenção básica que ainda coloca muitas barreiras para realizarem o
acompanhamento dessas pessoas, e a baixa adesão dos hospitais gerais aos leitos
psiquiátricos. Tal quadro demonstra que muito trabalho ainda precisa ser feito, seja
através de aumento dos financiamentos para a construção de mais unidades de
CAPS, seja com capacitação dos profissionais de saúde de uma maneira geral.
Observa-se que uma das maiores dificuldades da desinstitucionalização é
descontruir os estigmas e preconceitos, estes existem não só na sociedade leiga como
também dentro dos próprios serviços de saúde, e que leva, muitas vezes, à exclusão
das pessoas em sofrimento psíquico mesmo dentro da comunidade na qual ela
transita. O trabalho de reinserção desses usuários deve se dar não apenas com os
mesmos, mas também com a sociedade, através de esclarecimentos sobre as doenças
mentais e atividades de construção de vínculos. Percebe-se uma reinserção social
mais satisfatória quando se consegue incluir o sujeito em atividades laborais, pois o
mesmo começa a exercer uma outra função social diferente da de doente mental.
Não se pode esquecer que a Reforma Psiquiátrica é um processo que vem se
construindo e conquistando de maneira gradativa, porém que ainda não está pronta,
pois ainda há muito a se construir e reconstruir. Atualmente, a saúde mental está
vivendo um momento de muita tensão, falta a criação de novos dispositivos, falta
financiamento para os já existentes, falta profissionais e medicação para os usuários.
O que leva a uma precarização do serviço que reflete muitas vezes de maneira
negativa na evolução dos quadros psicopatológicos.
Outra coisa que requer atenção é que com a alta demanda do CAPS ele tem
encontrado dificuldades de fazer articulação com o território e por isso tenta suprir
todas as necessidades dos usuários dentro do seu espaço, o que leva aos mesmo a
criarem um vínculo apenas com as pessoas que ali frequentam. Percebe-se também
que quando as pessoas não participam das construções dos seus projetos terapêuticos
singulares, combinando com a equipe quais atividades serão realizadas e quantos dias
frequentarão ao serviço, o CAPS perde um pouco de sua proposta de incitar a
autonomia de seus usuários, o que pode refletir de forma negativa para cada
indivíduo. Levando a reprodução da lógica manicomial para dentro de um serviço
substitutivo, no qual os profissionais exercem um poder sobre os usuários que se
encontram institucionalizados ali, o dispositivo é capaz de suprir todas as suas
necessidades.
Em consequência disto, os profissionais de saúde mental tentam promover uma
articulação entre o CAPS e a comunidade, para que este serviço funcione de maneira
transitória no tratamento de seus usuários. A partir do momento que os mesmos
fossem reinseridos na sociedade, eles teriam mais autonomia, podendo seguir seu
tratamento em um serviço de saúde menos especializado, se tornando cada vez
menos dependente do CAPS.
A Reforma Psiquiátrica foi um marco na mudança do tratamento e da visão das
pessoas que possuem algum tipo de sofrimento psíquico, contudo devido a situação
crítica que o Brasil vem enfrentando, deve-se tomar muito cuidado para que o novo
modelo de tratamento possa atender de fato todas as demandas de seus usuários e
não se torne uma ideia utópica que na prática não considera a subjetividade destes.
Sendo assim, convida-se a reflexão de que tipo de desinstitucionalização estamos de
fato oferecendo às pessoas em sofrimento psíquico e principalmente, se estas pessoas
estão tendo voz ativa para decidirem sobre seus projetos terapêuticos. E a partir
desta reflexão, reconstruirmos e construirmos novas formas de cuidado.
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CAPÍTULO 10
Relato de uma experiência em saúde mental: o consórcio em questão
Anastácia Mariana da Costa Melo
Introdução
O paradigma da saúde mental, as formas históricas de lidar com a loucura e os
dispositivos de tratamento a essa população vêm sofrendo grandes mudanças desde o
seu surgimento até os dias atuais.
A partir do movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, iniciado na segunda
metade dos anos 1970, o lugar ocupado pelo sujeito em sofrimento psíquico25 e por
aqueles que desejam atuar sobre esse campo vem modificando significativamente o
imaginário social em torno da loucura no Brasil e no mundo.
Os serviços substitutivos são considerados como aqueles capazes de fornecer
assistência integral e tratamento diferenciado em relação ao oferecido pelo hospital
psiquiátrico clássico, também conhecido como manicômio ou hospício. Esses
serviços integram a rede de saúde mental e de atenção psicossocial do Sistema Único
de Saúde (SUS).
Segundo Amarante (2009), os serviços substitutivos são aqueles que, além de
oferecer uma assistência integral e tratamento diferenciado à população que
necessita de atendimento em saúde mental, é capaz de substituir em sua totalidade a
lógica manicomial, na qual o manicômio e o saber da psiquiatria clássica são
considerados como as únicas estratégias de tratamento e intervenção na vida desses
sujeitos.
Ao compreender a saúde como fruto das condições de vida de cada sujeito
inserido na dinâmica de reprodução social capitalista, os autores, escritores,
acadêmicos e todo o conjunto de sujeitos da área da saúde puderam realizar um
rompimento com as teorias conservadoras e “higienistas”, que dominavam o campo
da saúde coletiva no Brasil até meados dos anos de 1970. Assim foi possível lançar
mão de uma teoria que levasse em conta os fatores socioeconômicos na compreensão
e determinação da condição de saúde e de existência concreta de vida de cada
população. Para compreender melhor essa ótica de análise o campo da saúde mental
assim como a própria saúde coletiva, utilizou ao longo de sua existência o suporte
teórico-metodológico da tradição marxista.
Assim sendo, utilizamos uma abordagem qualitativa para essa pesquisa, pois
acreditamos que a mesma pode oferecer instrumentos de conhecimento da realidade
que desejamos alcançar, e que são mais apropriados para “desvendar” os significados
das ações em saúde mental e seus impactos da vida dos sujeitos inseridos no universo
da pesquisa.
Optamos então pela observação participante e a utilização da técnica do grupo
focal como parte do processo de conhecimento dessa experiência política em saúde
mental, pois acreditamos que dessas formas não somente dessas, mas também e
através dessas – seria possível observar com maior rigor os detalhes que surgem no
cotidiano da instituição e de seu fazer em saúde.
Portanto se faz necessário ainda que de forma breve situar o leitor do contexto
histórico, social e institucional de onde falamos. Por isso a necessidade de descrever a
localidade e os dispositivos de saúde mental que compõe essa rede de saúde mental.
A escolha do universo de pesquisa, a experiência de um Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) consorciado entre dois municípios Quatis e Porto Real,
localizados na região do Médio-Paraíba no Estado do Rio de Janeiro”, deve-se ao fato
de ser no Estado26 dois dos poucos municípios que vivenciam essa estratégia política
de assistência em saúde mental sob a perspectiva da Reforma Psiquiátrica.
No município de Quatis o programa de Saúde Mental municipal foi criado no ano
de 2002. Inicialmente suas ações eram centradas em atividades ambulatoriais de
psiquiatria e de dependência química. Atualmente o programa se encontra vinculado
a uma Unidade Mista de Saúde estabelecendo parceira com as Unidades de Saúde da
Família, no âmbito municipal.
A cidade de Porto Real possui uma rede de saúde mental composta por: um
ambulatório municipal voltado para o atendimento a pessoas que vivem com
HIV/AIDS, um CAPS I27 e um ambulatório de dependência química vinculado a
Secretaria Municipal de Assistência Social.
Entre as duas pequenas cidades existe uma clínica psiquiátrica privada, Clínica Vale
do Paraíba (CLIVAPA), que existe há mais de 30 anos e realiza um número grande de
internações, sendo uma referência de internação para alguns municípios do Estado
do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, ambos que fazem divisa geográfica com
a região.
A CLIVAPA foi criada nos anos1970 tendo como objetivo atender usuários da
saúde mental da região do Médio – Paraíba28 que necessitavam de internação.
Historicamente, a atenção destinada ao sujeito em sofrimento psíquico reconhecido
como aquele perigoso para o convívio social era a internação, sendo as clínicas e
hospitais psiquiátricos os únicos dispositivos de tratamento e assistência.
Em Quatis e Porto Real a história não foi diferente: até começo da década de
1990, com o início das atividades mais ampliadas do processo da Reforma
Psiquiátrica no Brasil, a forma predominante até então de compreender a loucura era
através do isolamento e do convívio social pela via da internação de longa
permanência na CLIVAPA.
Assim, desde sua criação, a CLIVAPA se comporta como um dispositivo de
internação que atende uma demanda grande em saúde mental da região do Médio-
Paraíba. Sendo essa clínica um local de internação de longa permanência, muitos
usuários estão à espera de ações que possam viabilizar a sua volta ao convívio social e
comunitário, ou seja, ações e estratégias de desintitucionalização.
O consórcio em Saúde Mental: um breve resgate histórico
É a partir da perspectiva da descentralização defendida pelo SUS, que define a
autonomia dos municípios em formular, organizar e programar as ações de saúde
mental em cada território específico, que o número de serviços substitutivos em
saúde mental vem crescendo a cada dia.
Mapear essas experiências de ampliação da rede de saúde mental e seus
respectivos equipamentos é de suma importância para criar indicadores de como se
configura a saúde mental no país após 40 anos de início de Reforma Psiquiátrica, por
isso a importância de conhecer estratégias políticas e sociais que visam à garantia de
um atendimento para além dos hospitais psiquiátricos.
A experiência29 na qual nos debruçamos nesse trabalho consiste em uma prática
política de assistência em saúde mental pautada nos moldes da Reforma Psiquiátrica;
ou seja, trata-se de uma experiência inovadora e avançada, que reflete um
compromisso social e político dos gestores, dos trabalhadores e dos usuários com os
princípios mais amplos do processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
O movimento pela construção do consórcio teve início em 2002, através de
profissionais da rede de saúde dos dois municípios que se mobilizaram e, através de
contato com gestores do Estado, enviaram um projeto de ampliação da rede de saúde
mental de ambos os municípios que até o presente ano, era composta apenas por um
ambulatório em cada cidade.
Esse movimento feito pelos municípios de Quatis e Porto Real surgiu a partir da
necessidade de regulação das internações que ocorriam de forma indiscriminada na
CLIVAPA. Os profissionais envolvidos nesse movimento acreditavam que a regulação
e a dinimuição dessas internações poderia ocorrer a partir da existência do serviço
tipo CAPS, visando a substituição da lógica manicomial.
Quatis e Porto Real são dois municípios pequenos e possuem características bem
distintas no que tange à sua cultura política e seus aspectos populares, embora se
localizem praticamente dentro do mesmo território geográfico. Apesar dessas
diferenciações políticas, culturais e sociais os gestores em saúde dessas duas
localidades se organizaram da seguinte maneira: Porto Real sediaria o CAPS e
receberia o financiamento do Governo Federal destinado para esse serviço, ficando
responsável pelo repasse das verbas ao outro município, assim como organização da
equipe técnica e recursos estruturais. Quatis por sua vez ficou responsável pela
oferta de dois profissionais de nível superior para compor a equipe do CAPS e
também com a tarefa de atender e acompanhar somente os usuários da cidade que
apresentassem demanda para o tratamento em dependência química.
O movimento pela abertura desse modelo durou alguns anos e somente em 2005
o projeto foi aprovado pelo governo do Estado com a abertura do CAPS Sonho Real,
que ficou responsável pelo atendimento da população usuária da Saúde Mental de
Quatis e Porto Real com transtornos mentais graves e persistentes. O atendimento
voltado à questão da dependência química ficou de responsabilidade de cada
município.
A partir desse reconhecimento histórico sobre o objeto de pesquisa, algumas
indagações foram surgindo: como essa experiência em saúde mental vem sendo
conduzida? ela é relevante ou não para a existência do CAPS Sonho Real enquanto
um serviço de atenção Psicossocial? os profissionais e usuários possuem noção dessa
experiência política no campo da Reforma Psiquiátrica? Essa experiência possui real
impacto na vida soa sujeitos usuários desse serviço?
Não encontramos respostas prontas para nenhuma dessas perguntas, através do
contato intenso com os profissionais da equipe em seu momento de diálogo e através
da realização do grupo focal, foi possível encontrar reflexões, ideias, conceitos e
posicionamentos que se entrelaçam ao nosso objeto de pesquisa. E que são
apresentados nos eixos a seguir.
A rede de saúde intersetorial e o lugar do encaminhamento
Os encaminhamentos no campo da saúde fazem parte de uma dinâmica estabelecida
ao longo do processo de tratamento e do cuidado em saúde, na qual os usuários
circulam pelos equipamentos e serviços na busca de um atendimento de qualidade.
Pensar os encaminhamentos e a rede de serviços de saúde que perpassam essa
jornada traçada pelos usuários requer um esforço de pensar o contexto mais geral
em que estão inseridos os serviços de saúde, como eles se organizam e para quais
tarefas são destinados.
O debate em torno da rede de serviços de saúde, ou até mesmo em torno da rede
intersetorial, é assunto polêmico desde a sua existência, concentrando um discurso
unânime da necessidade de diálogo entre os dispositivos, para a conformação da tão
falada rede intersetorial.
O campo da atenção psicossocial constituído a partir do movimento pela Reforma
Psiquiátrica é essencialmente um campo dentro da saúde coletiva que se considere
interdisciplinar. Pensar a saúde mental no contexto atual descolada da
interdisciplinaridade é pensá-la nos modelos do manicômio, centrado em um único
saber, o da psiquiatria, e em uma única figura, a do médico.
Nessa lógica de reflexão, o Ministério da Saúde, no ano de 2011, através da
portaria GM/SM 3.088, instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como mais
um instrumento legal na luta por uma saúde mental para além dos muros do
manicômio.
A RAPS tem como objetivos: a ampliação do acesso a rede atenção psicossocial e
intersetorial; o fortalecimento dos princípios do acolhimento, cuidado contínuo e
atenção a crise; a garantia do atendimento em rede no território de base comunitária
e a promoção do acesso aos usuários que possuem necessidade de atendimento
específico por conta do uso abusivo do álcool, outras drogas e o crack (Ministério da
Saúde, 2013).
Segundo o documento oficial do Ministério da Saúde, a RAPS se organiza nos
seguintes eixos: atenção básica; atenção de urgência e emergência; atenção
residencial de caráter transitório; na atenção hospitalar; nas estratégias de
desinstitucionalização e nas estratégias de reabilitação psicossocial (Ministério da
Saúde, 2013).
Assim, compreendendo a RAPS como instrumento legal de suma importância
para o cotidiano de um serviço como o CAPS, e sendo ela um marco no avanço da
política de saúde mental no país, é que o tema da rede de serviços torna-se relevante
em diversos espaços de discussão.
Os caminhos interligados aos serviços da rede intersetorial nos quais circulam os
usuários do CAPS Sonho Real são um ponto de suma importância para a reflexão do
objeto de conhecimento; pensar um consórcio em saúde mental requer a tarefa de
compreender o entorno desse território, lugar concreto de existência desse serviço.
Sabemos que o CAPS possui uma função central na rede de serviços em saúde
mental. A própria legislação que descreve um serviço de atenção psicossocial o
coloca como ordenador da rede de serviços do seu território. Essa função de
ordenador muitas vezes é vista como o único serviço responsável pelo tratamento e
acompanhamento de um usuário da saúde mental, fato que dificulta o atendimento
integral a esse sujeito.
“as pessoas pensam a rede como um simples encaminhamento né, ela não tem um lugar
de entrada e de saída, ela é uma interconexão de pessoas, de serviços, de saberes, mas é
muito difícil porque as pessoas, os profissionais sempre tentam colocar o CAPS nesse
lugar de dar uma resposta às questões, de dizer o que tem que fazer, até mesmo por
questões diversas eles acham que o CAPS tem que dar respostas. É muito comum
alguém ligar pra cá sempre que algum paciente diz que é do CAPS ou é da saúde
mental” (técnica).
É preciso compreender a rede de serviços como uma rede que não acaba em si,
nela não existe um começo, um meio e um fim; ela está posta para as políticas sociais
e seus equipamentos devem estar interligados, a fim de garantir a produção de saúde
para além do ideal de saúde como única e exclusivamente ausência de doenças.
A rede de serviços de saúde existente em um território quando vinculada aos
princípios das políticas sociais e sendo fruto de uma luta cotidiana, é capaz de
produzir saúde de forma diferenciada do modelo centrado no médico, somente para
obter a cura. Desta forma é preciso caminhar na direção de construir espaços de
diálogo, afinidades e compromissos que devem ser compartilhados entre
profissionais e usuários no cotidiano dos serviços de saúde.
O compromisso profissional com a proposta da atenção psicossocial
Pensar a proposta da atenção psicossocial é tarefa de grande importância para a
compreensão de um serviço como o CAPS, assim como para a compreensão de sua
dinâmica, seus profissionais e seus usuários.
Historicamente o lugar destinado ao sujeito supostamente louco dotado de uma
periculosidade social e sem razão era o manicômio, hospital psiquiátrico. A partir de
todo o movimento em torno da Reforma Psiquiátrica, de todas as mudanças que
ocorreram na psiquiatria e no campo da saúde mental, o CAPS assumiu esse lugar de
centralidade, tomou para si o lugar daquele serviço que apresenta o “tom” da saúde
mental.
Esse novo tom que o movimento pela Reforma Psiquiátrica deseja produzir até os
dias atuais, tem suas raízes no cuidado e no compromisso com o outro a sua maior
potencialidade, é o ato de se implicar no cuidado do sujeito que sofre que vai nortear
a prática profissional nessa área.
Para além dos equipamentos de saúde mental que acreditam nessa nova relação, é
preciso investir em profissionais que também defendam um novo modelo de relação
entre os sujeitos e a loucura. Assim, se faz necessário promover o debate nas
formações acadêmicas e no exercício profissional cotidiano, dando ênfase na ideia de
que uma nova maneira é possível. É preciso caminhar para aceitação das diferenças e
para desconstrução de posturas sociais ditas normais, para relacionamentos mais
flexíveis, frutíferos e duradouros e que têm em sua base o cuidado.
Nesse sentido, parece-me que o ato de cuidar será sempre uma busca em produzir bons
encontros. O ato de cuidar deve ser uma produção regida pela alegria, pela beleza, pela
poesia. São os afetos alegres que produzem os bons encontros, que produzem
potencialidade, que produzem vida. (YASUI, 2010, p. 123).
Foi possível observar durante o grupo com os profissionais do CAPS Sonho Real,
que eles se identificam com essa proposta e acreditam nesse trabalho, na qual a
valorização do outro, do seu modo de ver o mundo e das múltiplas possibilidades de
habitar essa sociedade é possível.
“Eu acho o trabalho extremamente importante, eu gosto do trabalho com os pacientes
psicóticos, eu acho que ele têm muito a ensinar, eles têm muito a dizer sobre uma outra
maneira de ver o mundo que não é a nossa, eu acho isso fantástico. Falando da saúde
mental como um todo, do modo como ela é organizada, que trouxe os dispositivos da
reforma psiquiátrica, são importantes para os pacientes pelo lado da cidadania, de
enxergá-los como sujeitos e cidadãos. Então eu acho que o trabalho também gira em
torno dessa ótica de análise, por conta da luta que esse trabalho representa de tentar dar
voz a essas pessoas, que são sempre mais excluídas que tem mais dificuldades.” (
técnica).
Ao longo do processo de observação participante e durante a realização do grupo
focal com os profissionais, a questão da articulação com os hospitais gerais das
cidades de Quatis e Porto Real se mostrou recorrente nos debates. Acreditamos que
o surgimento dessa questão está intimamente ligado à noção de rede e território que
é absolutamente necessária para a compreensão da proposta da atenção psicossocial,
e mais especificamente no que tange ao processo de acolhimento em crise nos leitos
de hospitais gerais localizados no território, como recomenda a RAPS, pautada na
portaria GM/SM 3.088 de dezembro de 2011.
Sabemos que para a questão do atendimento em crise em um território pequeno,
que não possui a população destinada a obter um serviço tipo CAPS III, a criação de
leitos em hospitais gerais deve ser encarada como o grande instrumento de
fortalecimento do vínculo que deve existir entre os profissionais dos equipamentos
extra-hospitalares (os CAPS, as Residências terapêuticas, os Centros de Convivência
e até mesmo outros serviços da rede intersetorial) com as unidades de internação,
fortalecendo assim e consolidando os princípios norteadores da Reforma
Psiquiátrica. Observamos então que de forma bastante comum alguns técnicos do
CAPS- Sonho Real se manifestaram durante as reuniões de equipe sobre a
necessidade de realizar um acompanhamento mais cauteloso com a equipe de saúde
do hospital municipal de Porto Real e de Quatis, a fim de que as necessárias
internações sejam acompanhadas de fato.
Acreditamos que a postura dos técnicos em demonstrarem a necessidade de
articulação afinada com as unidades hospitalares, para garantia do atendimento em
uma rede aberta, é de fundamental importância para a continuidade do trabalho
ampliado em saúde. O tema da internação em hospital psiquiátrico e neste caso
específico na CLIVAPA, pela proximidade da localidade e pela oferta de serviços,
sempre é assunto polêmico nas reuniões, bem como no cotidiano dos profissionais e
usuários do CAPS.
“eu fiquei internado na CLIVAPA antes de vir pro CAPS, fiquei lá 6 anos e 8 meses, já
tinha ficado internado, mas não lembro onde, só na Clivapa mesmo, mas eu já trabalhei
muito, de pedreiro, no mercado, mas meu pai morreu e minha mãe também, lá a gente
toma remédio todo dia, todo dia tem que tomar muito remédio né, aqui eu também
tomo, o azul, cor de rosa, amarelo”. ( usuário).
De acordo com a Lei n 10.216/2001 a internação deve ser acionada como ultimo
recurso para a proteção da vida do sujeito quando o mesmo ou outros a colocam em
risco. Mas deve seguir algumas normas, vejamos:
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento
do usuário;
II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento
do usuário e a pedido de terceiro; e
III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Evitar a internação é um processo que possui reflexo nesse trabalho que tem por
objetivo o cuidado e o tratamento para além dos equipamentos de internação e
intervenção medicamentosa e curativa. Alguns profissionais e usuários falam
abertamente sobre a questão da internação e demonstram a importância que esse
momento possui no decorrer do seu processo de tratamento e sofrimento psíquico.
“eu acho que o atendimento aqui por ser uma cidade pequena, um CAPS tipo 1 é
diferente se fosse um CAPS tipo 2 de uma cidade maior sabe, é bem mais difícil
trabalhar a emergência de uma cidade grande do que trabalhar a emergência de uma
cidade pequena sabe, tem todo um jogo de pré-conceito que rola em torno do paciente,
pelo medo do próprio hospital não saber o que fazer com o paciente, e tem insegurança
de ficar com eles no leito geral, e isso é tudo pela falta de conhecimento das pessoas que
lidam com eles, pela falta de preparo técnico sabe, e tem o pré-conceito as vezes por
morar perto né, as vezes você pega um paciente que você conhece bem , as vezes vê que
é um vizinho, e finge que não conhece ou então critica sabe, eu já vi casos aqui que o
próprio paciente não gosta de ficar se expondo sobre a internação, porque tem vergonha
( técnico)”.
Sabemos que em localidades muito pequenas os sujeitos estão envolvidos em redes
de conhecimento pessoal que são muito próximas, o que pode ser encarado como
fator positivo, no momento da construção de vínculos e alternativas solidárias para o
enfrentamento da crise, ou pode ser visto como ponto negativo, sendo alvo de pré-
conceito e discriminação.
Portanto, acreditamos que os técnicos do CAPS Sonho Real precisam estar
atentos a esses condicionantes que perpassam o trabalho em saúde mental em dois
municípios muito pequenos, assim como a percepção de como cada sujeito vai lidar
com a necessidade de uma internação ou não.
A expressão política no território
A ideia de organizar os serviços de saúde da população a partir das necessidades de
cada território – como sendo o lugar de existência concreta de vida a fim de garantir
uma saúde que possa atender as necessidades da população – é o grande diferencial
do modelo ampliado de saúde amplamente defendido pela Reforma Sanitária, em
contra partida ao modelo restrito de saúde, centrado na figura do médico com ações
medicamentosas e de cunho curativo.
Para fazer a correlação com o objeto desta pesquisa – o consórcio em saúde
mental – optamos por lançar mão da compreensão de uma parte da Lei 8.080/1990
no que tange ao Art.10. qual seja:
Art. 10. Os municípios poderão constituir consórcios para desenvolver em conjunto as
ações e os serviços de saúde que lhes correspondam.
§ 1º Aplica-se aos consórcios administrativos intermunicipais o princípio da direção
única, e os respectivos atos constitutivos disporão sobre sua observância.
§ 2º No nível municipal, o Sistema Único de Saúde (SUS), poderá organizar-se em
distritos de forma a integrar e articular recursos, técnicas e práticas voltadas para a
cobertura total das ações de saúde.
A experiência do consórcio em saúde mental existente entre as cidades de Quatis
e Porto Real, situadas no interior do Estado do Rio de Janeiro, explicita um grande
avanço no processo de descentralização da saúde na perspectiva da territorialização.
Cabe a direção municipal “formar consórcios administrativos intermunicipais” (Lei
8.080, art. 18 inciso VII), podendo esta estabelecer consórcio para execução de ações e
serviços de saúde, remanejando, entre si, parcela de recursos previstos” para a cobertura
daquelas ações e serviços a serem implementados pelos municípios, estados e Distrito
Federal (Lei 8.148/90, art.2º e 3º). (BRAVO, 2007, p. 118).
As ações de saúde que vêm sendo colocadas em prática a partir da constituição
desse movimento e da união de dois territórios em torno desse consórcio, diz
respeito a uma “estratégia para que os municípios consigam resolver seus problemas,
não só da saúde e também para outros setores.” (BRAVO, 2007, p. 118).
Segundo a legislação os consórcios podem se organizar de duas maneiras
principais: eles podem ser monofinalístico, que diz respeito a uma forma que se
destina à solução de um problema específico, ou pode assumir a forma polifinalística,
quando é direcionado a organizar um conjunto de serviços para atender a diversas
questões, e que são os mais comuns. (Bravo, 2007). A proposta de consórcio aqui
analisada se encaixa na primeira forma, pois se destina a atender a demanda de saúde
mental daquela localidade, sendo duas cidades pequenas que se localizam
praticamente dentro do mesmo território geográfico.
O conhecimento da proposta do consórcio que envolve essas duas cidades e da
importância dele para a existência do CAPS fica inegável na fala dos profissionais e
dos usuários.
“aqui a gente tem uma facilidade que a cidade é uma do lado da outra, é praticamente
junto no mesmo território, mas eu já vi consórcio em cidades que têm uma distância
maior 20 a 30 km de distância, e eu acho que tem as suas vantagens na hora de garantir
um atendimento, então se não fosse o consórcio não teria um serviço como esse aqui.”
(técnico).
O movimento social e político que gira em torno desses serviços é saída do
manicômio, da vida em clausura, para a vida em liberdade, ampliando os horizontes,
estabelecendo laços sociais e usufruindo o direito de ser livre. A ideia é simples:
abandonar o manicômio como lugar zero de possibilidade de vida para se aproximar
de um lugar capaz de cuidar e produzir vivência.
No caso brasileiro o movimento foi bem parecido com o que aconteceu na Itália.
Na literatura referenciada ao tema sabemos que as experiências que ocorreram em
Santos-SP deram origem aos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e aos CAPS
serviram de referência para todo país na abertura de serviços desse tipo.
Em Santos, o pontapé inicial também foi a desconstrução de um manicômio, a
antiga Casa de Saúde Anchieta, que após denúncias teve o seu fechamento ordenado
pela justiça. Após esse momento o processo de desintitucionalização foi iniciado,
dando origem a uma série de serviços de saúde mental de base territorial e abertos à
comunidade.
Sabemos que as conjunturas políticas e sociais em que aconteceu o movimento da
Reforma Psiquiátrica tanto no Brasil como na Itália foram conjunturas sociais de
mudanças que favoreceram esse processo. Conjuntura política de mudanças radicais
no que diz respeito a todos os aspectos sociais.
Não é possível aqui afirmar nenhum tipo de suposição a respeito do movimento
que levou os trabalhadores de Quatis e Porto Real a buscar a abertura de um serviço
substitutivo ao manicômio (CLIVAPA) sem substituí-lo de fato. Mas há que se
perceber que a experiência do consórcio assume de fato na rede de atenção
psicossocial do território que estamos a conhecer, diz respeito a uma estratégia
ousada e comprometida politicamente com a Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Durante o processo de observação participante e no processo de realização dos
grupos focais, algumas questões relacionadas ao descaso com a saúde pública levaram
a reflexão sobre a política macro que perpassa o campo da saúde e a constituição do
Sistema Único de Saúde (SUS)
Não é novidade para ninguém que o SUS, como grande bandeira do movimento
Sanitário no Brasil e a luta por uma saúde pública de qualidade e de dever do Estado,
ainda necessita de grandes avanços para se concretizar. Assim como temos a clareza
do grande descaso que o Estado brasileiro possui com a situação de saúde-doença dos
sujeitos que recorrem ao uso dos serviços públicos de saúde.
Durante o processo de pesquisa de campo foi possível observar na fala de
profissionais e usuários uma necessidade grande de maiores investimentos em saúde
e em ações que possam de fato garantir uma saúde de qualidade.
“Tudo no CAPS pode melhorar, poderia ter uma piscina pra nóis, eu quero um CAPS
novo, com espaço maior, um novo CAPS. Aqui é muito pequeno né poderia ter uma
horta também, sinto saudade da horta” (usuário).
Algumas questões foram apontadas pelos profissionais e que dizem respeito ao
cotidiano micro do trabalho no CAPS, porém algumas falas levam a pensar na
conjuntura atual da política de saúde na sociedade brasileira, principalmente com a
desvalorização do profissional da saúde.
“então eu também vim pelo concurso de 2009, eu não vim direto pro CAPS, eu fui para
o hospital primeiro. Na época que eu cheguei o hospital ainda era o hospital antigo, não
era o hospital novo que temos agora, ele era muito pequeno, quase que de um tamanho
de um posto de saúde, com um atendimento muito precário. Eu fui a primeira psicóloga
do hospital, daí eu fui tentando ocupar algum tipo de lugar no hospital, mas não deu
muito certo naquela época, acabou que eu fiquei sendo jogada de um lado pelo outro” (
técnica).
Esse quadro de descaso com as ações de saúde que necessitam de transporte de
qualidade para serem efetivadas não é um privilégio da Prefeitura Municipal de
Porto Real, mas sim diz respeito a uma falta de compromisso ético e político dos
gestores da saúde com as ações e serviços que podem garantir um SUS de verdade.
Frente a esse quadro atual na saúde pública brasileira cabe uma pergunta: como
garantir um atendimento em saúde mental de qualidade e comprometido com os
princípios do SUS e com a luta pela Reforma Psiquiátrica em tempos tão adversos,
com condições de trabalho tão precárias, onde o Estado vem sendo cada vez mais
desresponsabilizado de suas funções no que tange ao direito a saúde e a políticas
sociais diversas?
Considerações finais
O objetivo principal desse artigo foi contribuir para a reflexão sobre a experiência
em saúde mental que vem sendo constituída a partir de um consórcio de saúde entre
dois municípios localizados no interior do Estado do Rio de Janeiro, a saber, Quatis e
Porto Real que se referenciam ao CAPS- Sonho Real.
Foi possível ao longo dessa trajetória observar que a presença de um serviço
substitutivo como o CAPS é capaz de produzir tamanha diferença no que diz respeito
ao tratamento com o sujeito em sofrimento psíquico, assim como sua interface com
a produção cotidiana de um novo lugar para a loucura.
Reconhecemos que a existência de um serviço como o CAPS- Sonho Real é fruto
de um processo histórico e político daquele território, onde os trabalhadores da
saúde mental dos dois municípios, envolvidos em momentos de mobilização política
e profissional na busca por outro fazer em saúde, deram início à história que
abordamos ao longo desse trabalho.
A mobilização dos trabalhadores e a responsabilização dos gestores nos anos de
2002 a 2007 com o processo de trabalho em saúde mental, e com a assistência
prestada aos usuários, foram os elementos norteadores do surgimento CAPS- Sonho
Real.
Observamos ao longo desse trajeto que o movimento pela Reforma Psiquiátrica
no Brasil, iniciado em meados dos anos de 1970, juntamente com a conjuntura de
redemocratização da sociedade brasileira na luta por uma saúde pública de qualidade
e como dever do Estado, deu frutos em diversos e pequenos espaços do país. A
experiência que analisamos pode ser considerada como um fruto positivo desse
processo.
A experiência de saúde mental orientada pela existência de um serviço como o
CAPS no território pesquisado por nós é fruto desse processo, de conscientização e
mobilização na luta por uma sociedade diferente daquela pautada pela lógica dos
manicômios. Entretanto, os processos históricos nem sempre acontecem de acordo
com a vontade dos sujeitos atuantes na luta por uma sociedade justa e igualitária,
como é o caso dos princípios norteadores da Reforma Psiquiátrica.
Sabemos que as lutas políticas e a organização dos trabalhadores de saúde também
acompanham o movimento real da luta de classes, e que possui interface com a
política social no interior da dinâmica da sociedade capitalista.
Em Quatis e Porto Real existe no território hoje três serviços de referência para
os sujeitos em sofrimento psíquico que são: o CAPS- Sonho Real, o Ambulatório de
Saúde Mental de Porto Real e o Programa de Saúde Mental de Quatis. Estes serviços
realizam suas atividades ora de forma em conjunto ora de forma isolada, o que
representa uma diversidade de compreensões a respeito do que seria uma rede de
Atenção Psicossocial e o trabalho em Saúde Mental.
Diferentemente de algumas experiências históricas já citadas ao longo desse
trabalho, como Santos – SP, a destruição do manicômio (CLIVAPA) não se constitui
como o centro do processo de mudanças em saúde mental do território destinado
como Quatis e Porto Real, pois o mesmo existe até os dias atuais e se coloca ainda
como referência para internações de curta, média e longa permanência.
Reconhecemos todo o processo de construção dessa rede ampla de serviços que
compõe esse território que foi objeto de nossa pesquisa; entretanto é possível
observar que a lógica manicomial ainda se faz presente em muitos momentos no
decorrer do trabalho em saúde mental e no cotidiano dos usuários do serviço CAPS.
A conjuntura atual acerca do processo mais amplo da Reforma Psiquiátrica
Brasileira é diversa. Nos últimos dez anos a política de saúde mental apresentou
muitos aspectos de retrocessos no que diz respeito à construção de novos serviços
tipo CAPS e na fomentação da Rede de Atenção Psicossocial no território.
Esse momento de retrocesso no campo da saúde mental vem acompanhado por
um momento de precarização, focalização e privatização em larga escala dos serviços
de saúde como um todo. As políticas sociais, e entre elas a de saúde mental,
encontram-se em um processo de desfavorecimento por parte do próprio Estado, no
qual são relegadas à privatização, como é o caso do Rio de Janeiro, com a
organização da gestão dos serviços de saúde mental gerida e comandada por
Organizações Sociais.
No universo de pesquisa em que se situa o CAPS- Sonho Real foi possível
observar duas conjunturas políticas de saúde mental: a primeira diz respeito a Porto
Real que se apresenta como uma cidade com poder econômico grande, fato que o
coloca como o segundo melhor município em serviços de saúde do Estado do Rio de
Janeiro, com uma cobertura de 100% de PSF e com grande parte de seus
funcionários públicos concursados, e a segunda que se refere a Quatis e apresenta um
contexto diferenciado, com sua fonte de renda praticamente Estatal, onde serviços
de saúde ainda são de baixa cobertura e as fontes de trabalho da população são
basicamente o comércio e o Estado, havendo um grande número de profissionais
precarizados ingressos nos serviços através de contratações e processos seletivos.
A rede de serviços existente em volta do CAPS- Sonho Real é perpassada pela
dificuldade de articulação, fortalecimento e organização como em qualquer rede de
serviços intersetoriais. Porém, é possível perceber diferenças no que tange à rede de
cada município, sendo essas diferenças reconhecidas pelos profissionais e pelos
usuários.
No processo de análise de dados foi possível observar, no que tange ao trabalho
realizado pelos profissionais do CAPS- Sonho Real, que todos possuem uma
identificação pessoal e profissional com o serviço, fato que é possível enxergar na no
discurso dos mesmos. Observamos também que a proposta Antimanicomial se
coloca como norte do trabalho a ser desenvolvido, porém os mesmos reconhecem a
dificuldade de implementação e solidificação dessa proposta no campo da saúde
mental, assim como na teia de relações políticas, econômicas, sociais e culturais.
Com relação aos usuários observamos que o CAPS- Sonho Real, enquanto um
serviço substitutivo ao manicômio e que se propõe a ser o organizador da sua rede
de serviços no território, é capaz de produzir uma assistência em saúde mental de
forma bastante diferenciada daquela oferecida pelos dois municípios até o momento
de implantação do CAPS.
Durante esse processo a ideia de um serviço como o CAPS sendo o ordenador da
rede de saúde mental daquele território, é bastante defendida pelos profissionais e
usuários que fazem uso desse serviço. Acontece de fato um reconhecimento da
importância do consórcio para a existência do CAPS nos dias atuais, assim como o
reconhecimento da importância dele na vida dos usuários.
Porém, frente à conjuntura atual de precarização da saúde pública, se faz
necessário o fortalecimento de serviços como os CAPS-entendidos ainda como
estratégicos na implementação da Reforma Psiquiátrica – sendo reconhecidos como
serviços que propõe uma nova lógica de serviços de saúde e por consequência
apontam para a construção de uma nova lógica societária.
Os interesses éticos, políticos, sociais e econômicos vigentes na sociedade
brasileira no campo da saúde mental – mesmo após o movimento da Reforma
Psiquiátrica – ainda se articulam aos princípios norteadores de uma sociedade
marcada pela desigualdade desde a sua constituição. Sendo assim acreditamos na
necessidade de fortalecer os espaços de participação social e mobilização popular,
sejam na luta por políticas sociais e entre elas a de saúde, sejam pela qualidade dos
serviços prestados à população, ou seja, pela garantia da via Estatal pública
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25 Sujeito em sofrimento psíquico é um termo utilizado por alguns autores, profissionais, usuários e familiares, para diferenciar a
utilização do termo doente mental, por considerar que a loucura não é um fardo que se carrega, pois a mesma é capaz de produzir
sofrimento para aqueles que a vivenciam. É também um termo utilizado na desconstrução do imaginário social em torno da loucura.
26 No estado do Rio de Janeiro existem outras experiências de CAPS consorciado, quais sejam: os municípios de Sapucaí e Chiador
/MG, localizados na Região Centro-Sul, são referenciados aos CAPS I Heloisa Orichio, caracterizando uma modalidade de Consórcio
Interestadual; na Região Noroeste do Estado existem duas experiências distintas, Italva e Cardoso Moreira, que se referenciam ao CAPS
I, funcionando como um consórcio intermunicipal, e Porciúncula e Antônio Prado-MG, que se referenciam ao CAPS I, caracterizando
um consórcio interestadual; e por fim, na Região Serrana, os Municípios de Santa Maria Madalena e Trajano de Moraes se referenciam
aos CAPS I, configurando um consórcio intermunicipal.
27 A Secretaria Municipal de Saúde através do Programa de Saúde Mental está vivenciando o processo de implementação de um serviço
substitutivo tipo Residência Terapêutica, devido à necessidade de alguns usuários da cidade com essa demanda.
28 Segundo o Centro de Informações de Dados do Rio de Janeiro (CIDE), os 92 municípios estão divididos em nove regiões geográficas
que são: Região Metropolitana (subdividida em Metropolitana I e Metropolitana II), Baía de Ilha Grande; Baixada Litorânea; Centro-
Sul; Médio-Paraíba; Norte; Noroeste e Serrana. A região do Médio-Paraíba é composta por 10 municípios que são: Barra do Piraí, Barra
Mansa, Piraí, Pinheiral, Porto Real, Quatis, Resende, Itatiaia, Valença e Volta Redonda.
29 Tratamos aqui especificamente do modelo de CAPS consorciado no qual dois municípios se referenciam a um único serviço para a
garantia dos atendimentos de suas demandas de saúde mental. Essa experiência pode ser considerada como uma prática “extra oficial”,
pois ainda não há legislação específica em saúde mental que determine essa prática. Porém, a própria legislação do SUS – lei 8.8080/90
– fala da existência de consórcios em saúde para o atendimento de questões mais específicas de cada território e orienta como os
municípios podem se organizar para a resolução das situações de saúde de cada localidade.
CAPÍTULO 11
O residencial Stella do Patrocínio: a experiência do condomínio de residências
terapêuticas no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira
Debora Lima
O presente capítulo tem como objetivo relatar a experiência realizada no Instituto
Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMAS/JM). Destinaram um
espaço em sua extensão para construção de novos Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRT), direcionado àqueles que, durante décadas, foram destituídos de suas
subjetividades por anos de exclusão e segregação, dentro da perspectiva clínica e
política da Reforma Psiquiátrica.
O projeto ocorreu a partir de uma parceria entre o IMAS/JM, antigo Hospital
Colônia Juliano Moreira situado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, e o
Programa Residencial Terapêutico do mesmo município.
A Colônia Juliano Moreira foi considerada no auge de sua lotação, um dos maiores
manicômios do país. E ao longo do processo de Reforma no país foi sendo
desmontada, e em um de seus espaços foi construído o condomínio composto por
dez casas que recebeu o nome da poetisa e ex-interna Stella do Patrocínio.
Os ensejos
A Reforma psiquiátrica no Brasil se iniciou no final da década de 1970, mais
precisamente, com o movimento dos trabalhadores de Saúde Mental em 1978,
motivado pela insatisfação destes que conviviam com as péssimas condições a que
eram submetidos os pacientes internados nas instituições psiquiátricas. Diante disso
e, ao interrogar esta a lógica manicomial de tratamento, outras alternativas capazes
de substituir este modelo asilar foram pensadas.
Uma rede de atenção formada por serviços direcionados para outro cuidado com
a loucura, começou a surgir, a hoje conhecida Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Essa mudança paradigmática, de uma perspectiva hospitalocêntrica para uma Rede
de Serviços Substitutivos, inicia com a desinstitucionalização como sua principal
proposta, a qual, por sua vez, sustenta uma posição clínica e um compromisso
político com pessoas que tiveram suas histórias abatidas por anos de internação. A
concepção da desinstitucionalização, norteada pelos princípios éticos da Reforma
Psiquiátrica, propõe outros encontros com a loucura que passa a ser considerada
como um modo de existência, abrindo espaço para diversidade social, o habitar e
circular pela cidade. E o Serviço Residencial Terapêutico surgiu a partir do cuidado
em liberdade e da circulação pelos espaços abertos da cidade como uma forma
clínica de intervenção, e assim, se tornou um dos principais dispositivos da Rede de
Atenção Psicossocial postulada pela Reforma Psiquiátrica.
As legislações
As legislações foram e são fundamentais para a sustentação dos processos de retorno
das pessoas para a comunidade, principalmente, as legislações que trouxeram
benefícios financeiros aos usuários, pois estes são fundamentais para a cidadania e
organização da vida dos usuários, seja em RT, morando sozinho ou em um retorno
para a família.
Mais de dez anos após o início do movimento dos trabalhadores da Saúde Mental,
em 1989, o deputado Paulo Delgado dá entrada no Congresso Nacional o projeto de
lei que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com sofrimento psíquico
grave. É o início das lutas da Reforma no campo legislativo. A partir de 1990,
inspiradas no projeto de lei do deputado Paulo Delgado, surgiram portarias para
regular e financiar a assistência da atenção psicossocial, são elas: Portaria 189/1991 e
224/1992, porque a política pública se concretiza quando se define o financiamento
e a regulação para designação dos recursos e sustentação serviços. E mesmo antes do
projeto da lei 10216 ser votado e aprovado em abril de 2001, muitos estados já
haviam aprovado leis para a redução dos leitos em hospitais psiquiátricos e a abertura
de serviços substitutivos e de base territorial (BRASIL, 2004a, 2004b).
A Portaria 106 regulamentou os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) veio um
ano antes da Lei 10216/01, após várias experiências de lares abrigados, separando a
moradia do tratamento. A Portaria 336 foi publicada um ano depois da Lei Paulo
Delgado, ela define a constituição e organização dos Centros de Atenção
Psicossocial, ordenando o cuidado no território.
E em 2003 a Portaria 10.708, que regulamentou o recebimento do benefício “De
volta para casa” aos internados há mais de dois anos até a data da aprovação da
portaria, possibilitando a construção da autonomia financeira. O “De Volta Para
Casa”, o LOAS, os benefícios municipais e os programas de bolsas de trabalho dos
próprios hospitais, que passaram a repensar o uso dos seus recursos, juntos passaram
a promover a desinternação e desinstitucionalização.
Em 2011, depois de muitas discussões e propostas de revisão da legislação dos
SRT, foi publicada a Portaria 3.090, que estruturou o serviço em dois tipos, tipo I e
II. Segundo o tipo I, descrito no artigo 2º, inciso 1º: “são definidos como SRT tipo I
moradias destinadas a pessoas com transtorno mental em processo de
desinstitucionalização. Esta modalidade de moradia deve acolher até 8 (oito)
moradores” (BRASIL, 2011).
O avanço desta legislação deu-se por sua reavaliação e atualização, que trouxe
novas possibilidades para os usuários com necessidades na saúde geral, em sua
maioria idosos com necessidades específicas, como fala o inciso 2º, do mesmo artigo:
São definidos como SRT tipo II as modalidades de moradia destinadas àquelas pessoas
com transtorno mental e acentuado nível de dependência, especialmente em função do
seu comprometimento físico, que necessitam de cuidados permanentes específicos.
(BRASIL, 2011 p. 3)
Este campo de trabalho é desafiador e demanda sempre reavaliação, criação de
novas tecnologias e formas produzir o cuidado.
E ainda em 2011, para consolidar a Rede de Atenção Psicossocial foi publicada a
portaria 3.088 instituindo-a, indicando suas diretrizes, os serviços que a compõe e os
pontos de atenção que convertem com as demais Redes do SUS.
Este processo foi democraticamente construído, com a participação dos diversos
atores envolvidos em espaços deliberativos onde foram discutidas as direções e
organização dos serviços e da forma de cuidado com a loucura no país, o mais
importante destes espaços foram as Conferências Nacionais de Saúde Mental, de
onde saíram as propostas de leis e portarias. (BRASIL, 2005).
O movimento de Reforma Psiquiátrica é contínuo, e apresenta novas necessidades
no processo que demandam noções e construções. Sendo assim, “um percurso
complexo de desconstrução a partir do interior da instituição psiquiátrica, e por ser
um processo, ao mesmo tempo prático e teórico, que insere transformações no
campo do saber e das instituições” (AMARANTE, 1996, p. 24)
Nesse sentido, é possível perceber a importância desse processo de
desconstrução, pois é algo que transcende o fechamento do aparato asilar que
perpassa uma ética em que desluz não só a internação integral como forma
terapêutica, mas, principalmente, que desacredita de qualquer intervenção
manicomial, por ser o manicômio o local onde não há trocas sociais. Apostar no
processo de desinstitucionalização torna-se algo imprescindível no campo da saúde
da mental, pois se trata de um movimento que subverte as propostas instituídas por
tal modelo asilar, apostando, em seu lugar, numa rede de atenção capaz de ofertar
serviços substitutivos, locados na cidade, longe da vida manicomial.
A importância dos lares e pensões protegidos já na década de 1970, sobre a
reinserção social das pessoas com longas internações psiquiátricas, porque, antes
mesmo das regulamentações, as experimentações residenciais aconteceram com a
aposta dos profissionais, usuários e familiares, e as leis regulamentaram as
experiências.
Os Serviços Residenciais Terapêuticos são importantes na estratégia de
desinstitucionalização, pensados para os pacientes-moradores das longas internações
com vínculos sociais e familiares deteriorados ou inexistentes. A
desinstitucionalização não se trata somente da passagem do hospital à moradia na
cidade, torna-se algo mais minucioso, um cuidado em liberdade, tendo a cidade
como o seu principal setting de escuta e intervenção (DELGADO, 2006).
Os SRT de Jacarepaguá
O Programa de Residências Terapêuticas (PRT) de Jacarepaguá nasceu no IMAS/JM
por volta do ano 2000, mas há relatos de experiências anteriores sustentadas pelo
próprio IMAS/JM junto aos ex-internos em espaços desativados da própria
instituição. A criação do PRT tinha o intuito de promover a desospitalização e
desinstitucionalização dos pacientes-moradores do IMAS/JM e de outros hospitais
psiquiátricos conveniados ao SUS, como Dr. Eiras, Clinica Valência, Fazenda Modelo,
dentre outros.
O Programa se constituiu a partir de um acordo entre o nível central de gestão da
saúde mental da cidade do Rio de Janeiro e o IMAS/JM, através de um convênio que
foi gerenciado pela Associação de Parentes e Amigos do Complexo Juliano Moreira
(APACOJUM), que tinha como função a contratação dos trabalhadores, pagamento
dos aluguéis e taxas das casas. A gestão do programa ficou, durante 12 anos, a cargo
do IMAS/JM. O projeto foi construído com base em modelos internacionais de
moradias para pessoas egressas de longas internações com a proposta de
acompanhamento territorial atendendo a complexidade de cuidados demanda por
cada morador. Houve várias experimentações iniciais até se chegar a uma forma de
funcionamento que aperfeiçoasse o acompanhamento do morador.
O programa divide-se em seguimentos, seguimentos no sentido de continuação de
cuidado no território. Esta proposta tem como objetivo limitar o tamanho das
equipes para que a dimensão favoreça a proximidade entre moradores e
trabalhadores, sempre com o limite máximo de 80 moradores por seguimento. Na
época, o programa estava dividido em três seguimentos, sendo que o seguimento I
atendia, em média, 80 moradores; o seguimento II, cerca de 40; e o seguimento III,
que seria composto somente pelo Residencial Stela do Patrocínio, que também tinha
capacidade máxima para 80 moradores. Juntos, os seguimentos atendiam, na época,
33 residências terapêuticas e 13 moradias assistidas, totalizando cerca de 200
moradores.
O programa trabalha com a lógica de demanda de cuidado, o que significa pensá-
lo a partir da demanda do morador, ou seja, a partir da avaliação de sua autonomia e
seu quadro saúde clínica geral e de saúde mental. A autonomia passa pela avaliação da
possibilidade de o morador gerenciar as atividades da vida cotidiana, como:
autocuidado, cuidado com o próprio espaço, alimentação, circulação no território e
condições de construir redes de apoio. Erotildes Leal em seu texto sobre autonomia
assinala:
Será considerado mais autônomo aquele que depender do maior número de relações
com pessoas e coisas. É isso que lhe garantirá possibilidade de escolha e lhe dará
capacidade de gerar novas normas, ampliando o seu repertório para lidar com o meio no
qual está inserido. Neste caso, o indivíduo é considerado autônomo quando não está
refém de determinações únicas, absolutas e totalizantes. (LEAL, 2001, p. 77)
Cada Residência Terapêutica é pensada a partir da lógica de complexidade de
cuidado pelo grau de autonomia e necessidade de cada morador. As complexidades
foram divididas em: baixíssima, baixa, média e alta. As casas com baixíssima
complexidade são chamadas de moradias assistidas, nelas o cuidado é realizado
pontualmente e quando o morador tem dificuldade em alguma tarefa específica, seja
em alguma tarefa cotidiana ou em alguma relação que precise de mediação. As casas
de baixa complexidade têm de quatro a oito horas de cuidados, de segunda a sexta.
As casas de média complexidade têm 12 horas de plantões diários e as de alta
complexidade, 24 horas de plantões.
Os profissionais que compõem as equipes são: cuidadores, técnicos de
enfermagem, acompanhantes terapêuticos, coordenador de seguimento e auxiliar
administrativo. Os cuidadores e os técnicos de enfermagem são os profissionais com
grau de escolaridade fundamental e médio. Eles são mais presentes no SRT e o
tamanho desta equipe varia pela complexidade de cada casa. Esses profissionais, mais
presentes nas casas, têm o papel fundamental de mediar e “fazer com” o morador a
organização e a execução das suas tarefas de autocuidado e cuidados com seu espaço,
como: preparação da alimentação, limpeza da casa, cuidados com seus objetos
pessoais, etc. O “fazer com” sempre foi um conceito de orientação do trabalho nas
reuniões de equipe para o trabalho com os moradores. Ele se refere ao estar junto,
acompanhar, ajudar a fazer, ele é o fundamento do trabalho. O que se difere do “fazer
por” que retira o protagonismo do morador frente a sua autonomia e sua casa,
considerando que o morador está readquirindo suas habilidades cotidianas. E o “fazer
por”, muitas vezes se mostra mais fácil de ser realizado por ser é mais rápido e gera
menos ansiedade na finalização adequada da tarefa dentro das expectativas criadas a
partir de padrões.
Além dos cuidadores fixos nas casas há também os cuidadores de território que,
como o nome já sugere, trabalhavam com os moradores a circulação na cidade, na
construção de redes de apoio, em locais como mercado, farmácia, em atividades que
são nada corriqueiras e fácies de serem realizadas por aqueles que passaram anos
institucionalizados. Este trabalho é muito sensível e refinado, com detalhes
imprescindíveis para sua realização, porque a institucionalização gera desabilidades
pelo fato do manicômio ser uma instituição totalizante.
Os acompanhantes terapêuticos (AT) são profissionais de nível superior, com
diferentes formações na área da saúde e com especialização no campo da Saúde
Mental de Atenção Psicossocial. O acompanhamento terapêutico, além de uma
profissão é uma função clínica, realizada por todos os profissionais do programa de
residência. O trabalho do profissional AT é de direcionar os casos e as casas,
organizar os projetos terapêuticos de cada morador e das casas, planejar os processos
de trabalho e acompanhar a avaliação dos casos encaminhados para as casas. Cada
acompanhante terapêutico assiste um número máximo de 16 moradores, residentes
em diferentes casas e o número de cuidadores que compõe sua equipe varia pelo
grau de complexidade das casas.
O coordenador de seguimento tem função de gerenciar as ações junto aos demais
dispositivos da rede, organizar o trabalho junto aos AT, avaliar as demandas de
encaminhamento e planejar a expansão do seguimento. O auxiliar administrativo,
por sua vez, atua como colaborador nas demandas administrativas das casas,
intermediando o trabalho junto à APACOJUM e às casas.
A sede do programa até 2012 foi no prédio do IMAS/JM e no Centro de
Reabilitação e Integração Social (CRIS). O CRIS funcionava como uma casa de
passagem, recebia pessoas oriundas de longas internações em hospitais e clínicas
psiquiátricas conveniadas do SUS em processo de fechamento dos leitos e do próprio
IMAS/JM para o trabalho de preparação de sua ida para Residência Terapêutica.
Até 2012, praticamente todos os SRT da cidade do Rio de Janeiro eram
vinculados aos Institutos Municipais, como Juliano Moreira, Philippe Pinel e Nise da
Silveira. No processo de mudança de gerenciamento do Programa de Residências
Terapêuticas na cidade do Rio de Janeiro dos Institutos Municipais para os Centros
de Atenção Psicossocial(CAPS), as ações foram reprogramadas e as vinculações
foram repensadas, atendendo a previsão das Portarias 106/2000 e 336/2002, as
quais indicam que os SRT devem estar vinculados ao CAPS e o CAPS deve ser o
ordenador da Rede. A partir desta mudança, todos SRT já existentes passaram aos
CAPS mais próximos do território onde estavam e os novos SRT já foram
organizados a partir dos CAPS, com isto, todos os CAPS passaram a ter equipes de
seguimento, sendo de responsabilidade as equipes de trabalho dos CAPS e toda
retaguarda necessária para garantir a continuidade do cuidado.
Com isso, foi disparado o processo de transição dos SRT’s de Jacarepaguá para o
CAPS Artur Bispo do Rosário, localizado também na área do bairro Colônia. Refiro-
me a um processo, pois, apesar de estarmos próximos, Residências Terapêuticas e
CAPS Bispo, nem todos os moradores do programa tinham vinculação com o CAPS
e o número de moradores das Residências Terapêuticas era significativamente grande
para esta transição. Vale destacar, que o convênio do Programa dispunha de
profissionais lotados no IMAS/JM para assistência médica, de enfermagem e
medicamentosa dos moradores para atendimentos emergências até que pudessem
acessar o a Rede de Saúde. E as atividades terapêuticas, os moradores realizavam em
outros locais no território. O Programa era robusto, bem organizado e articulado
em diferentes aspectos para o atendimento das demandas.
O modelo e a tecnologia desenvolvida e organizada no Programa de Residencial
Terapêutico de Jacarepaguá foram aproveitados para organização dos seguimentos
em todos os CAPS da cidade do Rio de Janeiro.
No nosso território, importante ressaltar, que o CAPS Artur Bispo do Rosário era
o único para atendimento de transtornos graves e persistentes do território da área
programática 4.0, referente aos bairros da Barra da Tijuca, Camorim, Cidade de
Deus, Grumari, Itanhangá, Jacarepaguá, Joá, Recreio dos Bandeirantes, Vargem
Grande e Vargem Pequena, de mais um milhão de habitantes, por isso, nos referimos
à realização do trabalho como um processo, pois, além de prestar a assistência aos
moradores das RT’s, o CAPS passaria a gerenciar administrativamente um Programa
de Residências Terapêuticas com doze anos de funcionamento e com, na época, cerca
de 200 moradores e 70 trabalhadores, dentre eles cuidadores, técnicos de
enfermagem, acompanhantes terapêuticos, coordenadores e auxiliares
administrativos. O processo não se deu facilmente, foi construído através de
discussões entre coordenação e supervisão, e reuniões de equipe para decidir os
fluxos do trabalho, a alocação da equipe, a matrícula dos moradores no serviço e
clínica operada no trabalho. No mesmo período, o CAPS passava da modalidade de II
para III porque diante das discussões sobre a necessidade de retaguarda para o
Programa de SRT, foi compreendido que, para dar cobertura e prosseguir assistindo
_à população sem que isto gerasse processos iatrogênicos, era necessária esta
ampliação.
Residencial Stalla do Patrocínio: o processo
A construção do Condomínio Residencial Stela do Patrocínio foi impulsionada pela
desativação de uma das unidades assistenciais do IMAS/JM, o Núcleo Ulisses Viana,
em uma negociação de cessão deste espaço à Secretaria de Habitação para construção
de casas populares financiadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
feita na gestão anterior do IMAS/JM ao período de construção, em que o bairro
Colônia foi escolhido para receber as obras. Em contrapartida, foi construído o
condomínio com dez casas, com capacidade habitacional semelhante ao núcleo
desativado.
Inicialmente, o projeto pretendia oferecer um modelo mais adequado de moradia
para os internos deste núcleo e a obra seria entregue ao IMAS/JM, mas com o
entendimento da necessidade de ampliação dos SRT, da mudança da lógica
manicomial para comunitária e do processo de desinstitucionalização em curso, a
gestão do IMAS/JM destinou as casas ao Programa de Residências Terapêuticas e
com o acordo que o trabalho de desinternação e desinstitucionalização fosse
realizado com os internos do próprio IMAS/JM. O Condomínio, como preferimos
chamá-lo, por ser o que mais se aproxima de um espaço de moradia, tem 10 casas e
mais um prédio na entrada, no qual, seria o lugar de gerenciamento das casas, na
planta do projeto inicial, onde transformamos na administração, portaria e em uma
área de lazer com salão de festas e churrasqueira para os moradores.
O trabalho se iniciou com uma avaliação dos cerca de quatrocentos internos do
IMAS/JM no ano de 2011. Eles tinham em média 40 anos de internação e 78 anos
de idade. Estavam divididos em cinco núcleos assistenciais, sendo dois masculinos,
dois femininos e um misto. Como estratégia de trabalho, cada núcleo assistencial
passou a contar com um profissional da equipe de seguimento, especificamente, um
Acompanhante Terapêutico de nível superior do Programa de Residência,
responsável pela avaliação e acompanhamento dos futuros moradores do
Condomínio junto às equipes assistenciais de cada núcleo.
O processo de avaliação para saída da longa internação foi realizado em três
etapas: contato com a equipe de referência, leitura do prontuário e entrevista com o
interno. Consideramos na avaliação as habilidades para a vida cotidiana e social, que
correspondem ao autocuidado, cuidados com o espaço que habita e seus objetos,
vínculos familiares e sociais, circulação na cidade, quadro clínico e o desejo de saída.
Esse processo foi feito a partir do preenchimento de um formulário de avaliação de
todos os internos do IMAS/JM, e o critério principal da avaliação era o desejo de ter
alta e viver em uma casa. Antes de iniciarmos o processo, foram realizadas reuniões
para traçamos as estratégias de trabalho junto com as equipes do Núcleos de onde
sairiam os futuros moradores do condomínio.
Em seguida, analisamos o material coletado através dos questionários, leituras de
prontuários, entrevistas com os internos e suas referências. Organizamos uma
planilha que continha três cores para classificar o grau de autonomia a partir dos
critérios determinados, o desejo e o cuidado necessário a cada futuro morador.
Fizemos a planilha com cores, que eram: verde para baixa complexidade, amarela
para media e vermelha para alta complexidade, e a quantidade de cada cor
representava um indicativo para pensarmos a complexidade, servindo como
instrumento para qualificar o trabalho. A partir disso, foram feitas discussões dos
casos, encontros com os futuros moradores para conhecer os laços que já haviam sido
construídos e o que pensavam para sua nova moradia.
Após a conclusão da avaliação, seguia-se a segunda etapa do processo: a formação
de grupos. Esses grupos são chamados “porta de saída”, marcando assim a mudança
na lógica da vida, de manicomial para comunitária. Os grupos eram montados a
partir do encontro polifônico das demandas pessoais, do desejo, das necessidades de
cuidado dos futuros moradores e dos recursos disponíveis para manutenção das
Residências Terapêuticas.
Ao final de um ano de trabalho, o Residencial Stella do Patrocínio foi ganhando
forma. O condomínio foi organizado com quatro casas de baixa complexidade,
quatro de média complexidade e duas de alta complexidade. As casas de baixa
complexidade são assistidas por dois cuidadores que oferecem oito horas de
supervisão nos dias úteis. As casas de média complexidade são assistidas por três
cuidadores, que oferecem supervisão de 12 horas todos os dias. As casas de alta
complexidade são supervisionadas por cinco cuidadores que se revezam no cuidado
por 24 horas, em uma assistência integral. Além da equipe de cuidadores, seis
profissionais de nível superior com formações distintas, cinco AT e uma
coordenadora, trabalhando sob a lógica do acompanhamento terapêutico, integram
as equipes de cuidado.
A última casa do condomínio foi ocupada no início de setembro de 2012, após um
ano do início do processo de saída das pessoas. O condomínio de Residências
Terapêuticas foi batizado como Condomínio Residencial Stella do Patrocínio,
homenageando uma antiga interna poetiza de um dos núcleos, falecida no IMAS/JM.
O morar e o território
A proposta de cuidado no território é de construir com cada morador um projeto de
vida. Dentro deste projeto de vida, nos direcionamos para o território, para
comunidade para os dispositivos e locais para atender e dar acesso aos desejos e
necessidades de cada morador que incluía: saúde, lazer, trabalho, dentre outras
demandas.
Antes da mudança para as casas, durante o processo de passagem do hospital para
a residência terapêutica, foram feitas as inscrições de todos os moradores no CAPS,
por compreendermos que ele está como regulador da rede e orientador do cuidado
no SRT e pela nova organização do Programa junto ao CAPS, apesar de nem todos
frequentarem ou demandarem o cuidado do serviço, mas por motivo político,
clínico, administrativo, de suporte e retaguarda.
Um dos dispositivos presentes no território do Condomínio Stela do Patrocínio é
a Estratégia de Saúde da Família Mata Atlântica, uma equipe constituída a partir de
uma parceria do campus da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) na Colônia e a
Prefeitura do Rio de Janeiro. Além da assistência e do acompanhamento próximo do
agente comunitário de saúde, foi possível uma parceria com toda a equipe para
formação continuada dos cuidadores, colaborando assim para continuidade do
cuidado aos moradores. Preparamos, junto à coordenação e à equipe de ambos os
serviços, um ciclo de palestras para tratar de questões de saúde geral, aplicação de
terapias alternativas, como reich e reflexologia podal. E ainda oferecemos assistência
aos cuidadores e encaminhamento para outros cursos de formação oferecidos pelo
campus da FIOCRUZ.
As pessoas em sofrimento psíquico grave encontram com frequência, dificuldades
para ter garantida sua assistência integral a saúde, pois, em geral, seus sintomas são
atribuídos a uma possível crise psíquica. O modelo da medicina social, tendo o
hospital como local de intervenção e formação, passou a ver a pessoa por partes e
não como um todo, e a situação da pessoa em sofrimento psíquico é ainda mais
grave, por passar pelo preconceito que se manifesta também nos profissionais da
saúde, um preconceito construído socialmente pelos anos de isolamento da loucura
perigosa (FOUCAULT, 1979).
A articulação do contato com a comunidade e a vizinhança do SRT também é um
trabalho realizado pelas equipes junto aos moradores, encontramos em AMARANTE
(2007), quando ele organiza as estratégias e dimensões do processo social complexo
da atenção psicossocial, a cultura como principal e mais difícil alvo a ser atingido pela
Reforma Psiquiátrica, e a cultura entende-se como o olhar da sociedade sobre a
loucura.
E na Colônia, apesar da proximidade e um discurso de tolerância presente na fala
dos moradores pelo fato de residirem no bairro marcado pelo hospital psiquiátrico, e
pela maioria dos moradores serem ex-funcionários ou familiares de ex-funcionários,
também apresentaram resistência e estranhamento com os novos vizinhos. Em um
dispositivo da proporção de um condomínio de 10 casas com 80 moradores egressos
dos núcleos hospitalares do IMAS/JM, o cerceamento não seria lógica reguladora da
vida e que a liberdade seria a forma de cuidado presente naquele espaço. Com isto,
as autorizações de entrada e saída do condomínio não eram para seus moradores e
sim para as pessoas que desejavam visitá-los em suas casas, estas eram anunciadas
pelo porteiro e cada um tinha a chave do portão de entrada do condomínio.
Importante destacar, que os moradores que solicitavam ou demandavam uma
liberdade assistida, contavam com a presença da equipe.
Além de atividades externas, e pelo fato da maioria dos moradores serem idosos e
apresentarem alguns problemas clínicos organizamos uma ginástica para idosos no
espaço do salão de festas do próprio condomínio. A Educadora Física, profissional
autônoma, comparecia nos dias e horários marcados e os moradores apresentavam-se
para se exercitar, produzindo seu autocuidado em atividades leves de alongamento e
fortalecimento para uma melhor qualidade de vida.
Construímos parcerias com espaços de trabalho assistido e geração de renda no
IMAS/JM e outros locais do bairro, e tivemos o caso de um dos moradores que já
produzia cestas de palito de picolé antes de sua mudança e pode prosseguir
trabalhando e vendendo sua produção.
Foram verificados e retirados os documentos e os benefícios que ainda não tinham
para dar a eles o direito à liberdade e acesso aos locais que desejavam acessar. Os
benefícios financeiros também possibilitaram que eles escolhessem trabalhar, ou
apenas passear e aproveitar a vida que perderam cerceados por décadas de internação
e considerando que a maioria, por serem idosos, já estavam em período de
aposentadoria.
A convivência entre eles também foi promovida, porque, por vezes, observamos
que muitos apesar de terem permanecido décadas juntos em um mesmo local não
apresentavam uma relação afetiva e outros nem se conheciam. Disparamos uma
movimentação da vida, quebrando a marcação do tempo através dos horários das
refeições, do banho, da medicação e da hora de dormir. Organizamos passeios
coletivos e individuais como idas a clubes, teatro, cinema, shows e saídas noturnas
para dançar. Com o tempo passaram a ir sozinhos, pedir táxi e se sentirem seguros
em viver a liberdade. Passaram a realizar as festas de aniversário no salão de festas,
nas quais, cada um podia ter seus convidados; festa junina com a participação de
todos na organização, desde o planejamento, ornamentação, curtição e trabalho no
dia, além dos churrascos nos fins de semana.
Importante destacar que a construção coletiva desse espaço, que poderia
facilmente se tornar um espaço manicomial, se deu através de assembleias de
condomínio para discutirmos cada decisão a ser tomada sobre os espaços em comum
e as todas as ações através da participação dos moradores. E sempre que surgia
alguma dúvida de como agir nos orientamos pelo cuidado em liberdade e no que
mais se aproximaria de uma casa para apenas se morar. A desinstitucionalização
nunca chega a um ponto ideal, ela é feita em um processo no qual qualquer descuido
pode causar um retrocesso e voltar a reproduzir a lógica totalizante.
Considerações finais
Com essa experiência, percebemos a importância do processo de
desinstitucionalização como desconstrução e a efetivação das Políticas Públicas de
Saúde Mental propostas pela Reforma psiquiátrica. Produzir a partir do trabalho de
desinstitucionalização a tão importante mudança na cultura, mediando encontros
políticos e transformadores, dando abertura para outras possibilidades de lugar para
as pessoas com sofrimento psíquico, quebrando os preconceitos.
Percebemos a diferença de construir o cuidado e a complexidade das residências
terapêuticas a partir da escuta da demanda do futuro morador, para favorecermos o
desenvolvimento de sua autonomia.
Os serviços residenciais terapêuticos são um constante desafio para a Reforma
Psiquiátrica e as Políticas de Saúde Mental, foram instruídos para saída dos
moradores dos grandes manicômios e, após cumprir essa tarefa, novos desafios se
apresentam, como o envelhecimento dos moradores residentes nos serviços e a
produção de novos usuários não egressos de longas internações, mas com demanda
de moradia, com isto, a revisão das propostas sempre se fazem necessárias.
Referências
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BAPTISTA, T. W. F. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à
saúde. In: MATTA, G. C; PONTES, A. L. (Org.). Políticas de saúde: a
organização e a operacionalização do sistema único de saúde. Rio de Janeiro:
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––––––. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 224, de 29 de janeiro de 1992.
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Portaria que institui a Rede de Atenção Psicossocial. Brasília, 2011.
DELGADO, P. G. G. Instituir a desinstitucionalização. CADERNOS DO IPUB nº
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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto
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CADERNOS IPUB, nº 22. Desinstitucionalização: A Experiência dos Serviços
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CAPÍTULO 12
Os “usos” de substâncias psicoativas na adolescência: o relato de uma
experiência intersetorial
Kelly Christiane V. B. S. Porto e Rachel Gouveia Passos
Introdução
Pensar em um lugar de cuidados para adolescentes que consomem álcool e/ou
outras drogas, pressupõe um desafio dada a complexidade “dos assuntos” –
adolescência e uso prejudicial de substâncias psicoativas – principalmente, quando se
considera enquanto critério de avaliação, indicadores comumente utilizados pela
Saúde Mental, – em especial, em uma clínica “ad” pautada na avaliação do público
adulto -, como “comprometimento com as drogas” e “demanda para tratamento”.
Propor que essa atenção seja ofertada também por um CAPS ad30 requer a quebra de
um paradigma, visto o lugar privilegiado do CAPSi31 quanto ao atendimento de
crianças e adolescentes.
De acordo com a Portaria 3088/2011, o CAPSi “atende crianças e adolescentes
com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e
outras drogas (...)”. Destaca-se neste ponto do texto citado, a diferença quanto ao
termo “e os que fazem uso”, uma vez que aponta para a possibilidade de uma
segregação, não sendo este o público-alvo com maior representação no serviço.
Todavia, a proposta do CAPS aqui referido, dá um lugar de destaque quanto ao
trabalho conjunto – denominado aqui de intrassetorial – dos dispositivos CAPS ad e
CAPSi, que tomam a responsabilidade de um cuidado compartilhado quanto aos
casos de adolescentes usuários de substâncias psicoativas em duas áreas
programáticas da zona oeste do município do Rio de Janeiro.
Para tratar como esse trabalho vem se construindo, entende-se a importância de
contextualizar seu início. O CAPS ad “X” 32 , localiza-se em um bairro da Zona
Oeste, permeado por comunidades, algumas conhecidas como “crackolândias”. Nas
mesmas, a oferta de drogas ilícitas ocorre de forma mais “acessível”. Também neste
território, destaca-se a existência de instituições cujo o trabalho é voltado para o
atendimento de adolescentes, seja em caráter de medida protetiva ou sócio-
educativa. A aproximação destes jovens com as conhecidas “crackolândias” da região,
dar-se através de amigos, principalmente nas escolas, tornando-se comum a
utilização de substâncias psicoativas por essa faixa etária. Logo, as equipes destes
espaços, vislumbram, através do CAPS ad a possibilidade de intervir face a
“problemática” por eles identificada.
Frente a tal cenário, o CAPS ad “X” vem se constituindo como referência para os
principais dispositivos assistenciais da rede local, como Conselhos Tutelares, escolas,
CRAS, CREAS e principalmente, unidades de acolhimento institucional (abrigos).
Portanto, vinha recebendo um volume significativo de adolescentes, em especial,
devido a função do número de instituições presentes no território.
Nesse caminho, com o intuito de pautar a presente análise, buscou-se literaturas
que pudessem relatar acerca de outras experiências de trabalho com adolescentes
usuários de substâncias ilícitas. Tomou-se enquanto base, um estudo que parte da
realidade do município de Niterói (VIEIRA, 2015) e que trata sobre a caracterização
dos adolescentes usuários de crack. O que nos chamou atenção foi o fato desse
público ser identificado primeiramente pelos equipamentos da Secretaria de
Assistência Social, para posteriormente serem encaminhados aos serviços de Saúde
Mental, o que faz questionar sobre os fatores de vulnerabilidade que, possivelmente
antecedem o uso prejudicial, e sugerem o acesso a outros serviços evidenciando
assim, o lugar secundário das drogas na vida destes sujeitos.
Refletindo acerca do estudo apontado e a experiência quanto ao atendimento
desse público, face a “demanda” presente, não por “tratamento” especificamente, mas
por cuidado, aponta-se dois questionamentos sobre o assunto: como e onde “tratar”
adolescentes usuários de substâncias psicoativas? Nesse caminho, assinala-se sobre a
importância do CAPSi nesse lugar, enquanto dispositivo estratégico de saúde mental
voltado ao cuidado do público infanto-juvenil. Tais questionamentos deram margem
para o presente estudo que parte da problematização do tema mediante os
atendimentos realizados no CAPS ad “X” e a formação acadêmica no Curso de
Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Enquanto proposta para
esses questionamentos, aponta-se para um trabalho intrassetorial, cuja proposta é
compartilhar o cuidado a um público comum – o adolescente – a partir do olhar dos
dispositivos CAPS ad e CAPS i.
Portanto, pretende-se chamar a atenção acerca do adolescente usuário de
substâncias psicoativas na rede de saúde mental, tendo como base a experiência
institucional do CAPS ad em tela e a análise de literatura especializada. Objetiva-se
problematizar acerca do uso de substâncias psicoativas na adolescência; a atenção
dispensada pela Saúde Mental para este público e o trabalho, em construção, dos
serviços aqui apontados, dando destaque as ações intrassetoriais.
Os “usos” de substâncias psicoativas na adolescência
Estudos publicados pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), retratados em
especial, por Assis e Ribeiro (2015), destacam que o início do consumo de drogas
por parte de adolescentes tem ocorrido cada vez mais cedo – por volta de 12 anos –
em se tratando de drogas lícitas. Entretanto, questiona-se acerca do que tem levado
tais jovens a recorrerem aos múltiplos “usos” enquanto possível fonte de prazer ou
promessa de felicidade.
O prazer invade o adolescente na descoberta da sexualidade, da afetividade, das
amizades e também no compartilhamento do uso de drogas. Essa é uma experiência que
geralmente se dá em grupo, ou com um amigo. Os adolescentes estão em busca de
novas sensações e não têm, muitas vezes, noção dos perigos que rondam a busca dos
resultados almejados. Fato é que, ao consumirem drogas, eles buscam prazer,
extroversão, compartilhamento grupal, diferenciação, autonomia e independência de
sua família. (ASSIS, 2015, p. 15)
Na tentativa de responder por tal questionamento, remete-se ao período de vida,
conhecido por adolescência, concebido aqui, conforme definição do Estatuto da
Criança e do Adolescente, pela etapa entre 12 e 18 anos incompletos33. É na
adolescência, que as principais modificações físicas (principalmente relacionadas a
peso, altura e hormônios) e cognitivas (como maior capacidade de pensamento
abstrato e formação do pensamento moral) acontecem.
Pinsky e Pazinatto (2014, p. 11) afirmam que a adolescência se inicia com o
princípio da puberdade e divide-se em duas fases. A primeira, até os quatorze anos, é
marcada pela puberdade em si, que aponta para as principais mudanças no corpo,
assim como para o maior desenvolvimento cognitivo e mudanças sociais e
emocionais, “preocupação central de se enquadrar em um grupo, a percepção mais
clara das imperfeições dos pais e o início do afastamento deles, até por conta da
necessidade do adolescente em formar uma identidade própria”.
Já a segunda fase, inicia-se a partir dos quinze anos, e, para o público masculino,
continua sendo assinalado pelas mudanças físicas, mediante ganho de massa muscular
e altura. Pensando nas mudanças cognitivas, tanto para o sexo masculino quanto para
o sexo feminino, destacamos a possibilidade de construção de perspectivas futuras,
para além de uma concentração imediata.
Do ponto de vista emocional e social, os amigos geralmente têm seu papel ampliado e a
vida afetiva, como direito a namoro, paixão e sexo, começa a entrar em pauta. Aqui no
Brasil esse é um período bastante exigente porque se espera que o adolescente decida
seu futuro profissional e tenha capacidade e maturidade para lidar com uma série de
fatores significativos (vestibular, estágio, trabalho) e com um maior grau de
independência (permissão para dirigir e votar, maior independência para ir e vir, assumir
as consequências de seus erros e acertos). (PINSKY; PAZINATTO, 2014, p. 11)
Nesse período, fatores sociais e emocionais também influenciam quanto ao
comportamento de adolescentes, pois apontam para um momento de descobertas,
com uma maior fragilidade emocional, além de um tensionamento, devido a
aproximação da maioridade civil. Nesse sentido, o uso de substâncias psicoativas tem
sua relevância a medida que, do ponto de vista biológico, o sistema de recompensa e
busca pelo prazer se desenvolve.
O cérebro humano apenas se desenvolve inteiramente por volta dos 20 e poucos anos. A
área do córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento, habilidade de tomar decisões
informadas, autopercepção do controle da impulsividade (chamadas de funções
executivas) é a que leva mais tempo para completar seu desenvolvimento. Por outro
lado, a área cerebral que governa o sistema de recompensa, o apetite e o
comportamento de busca do prazer, se desenvolve muito antes. Pesquisas mostram que a
maior disparidade no desenvolvimento desses dois sistemas ocorre entre a primeira e a
segunda fase da adolescência. (PINSKY; PAZINATTO, 2014, p. 18)
Pensando nesses efeitos para o público adolescente, os autores destacam ainda:
(...) comportamentos frequentemente guiados pelas emoções e por recompensas
imediatas serão favorecidos em detrimento daqueles norteados por decisões mais
racionais. A mesma disponibilidade de correr riscos e apostar em novas experiências
pode significar uma mente mais aberta e criativa que a dos adultos ou o envolvimento
em situações de grande risco e consequência prejudiciais, como o consumo de drogas.
(PINSKY; PAZINATTO, 2014, p. 19)
Até aqui discutiu-se, principalmente, acerca da vulnerabilidade dos adolescentes
face ao ponto de vista biológico, no que tange ao desenvolvimento peculiar da idade,
mas as possibilidades dos “usos”, passam por questões culturais, familiares, sociais e
econômicas. Ressalta-se que relações familiares conflituosas, por vezes permeadas
por violência doméstica, ausência de um lugar de limites, cultura de consumismo
exacerbado, vivência de rua, desemprego, entre outros fatores, são de grande
relevância quanto à iniciação e manutenção do uso prejudicial de substâncias
psicoativas entre este segmento. Mas o que nos chama a atenção é a presença de um
cenário onde a vulnerabilidade social se apresenta de forma ainda mais expressiva,
somando-se ao uso de substâncias psicoativas. Vieira (2015), relata frente a realidade
do município de Niterói, como parte deste contexto de múltiplas vulnerabilidades,
que:
(...) muitos pais negligenciam o cuidado com suas crianças por causa dos efeitos
negativos provocados pelo uso contínuo da substância. Também são comuns os casos de
violência física e psicológica em indivíduos em que o uso de crack faz parte do histórico
familiar (VIEIRA, 2015, p. 85)
A situação acima descrita, evidencia o contexto onde fatores de vulnerabilidade se
fazem presentes, podendo influenciar na escolha de amenizar o sofrimento existente
a partir dos “usos” que o contexto quase lhe impõe. O estudo aqui comentado,
destaca o cenário onde a “fragilidade” de uma estrutura sócio-familiar se coloca de
forma relevante.
De modo geral, (...) este estudo revela a existência de uma série de vulnerabilidades
presentes na história de vidas dos adolescentes, muitas anteriores ao uso de crack.
Alguns entrevistados, por exemplo, já relatavam uma vivência de rua e de acolhimento
institucional ainda na infância, quando nem sequer havia o envolvimento com drogas.
Em outros relatos, foi possível perceber que a própria história familiar já dava indícios
de fragilidades, com relatos de violência intrafamiliar, envolvimento com tráfico, uso de
drogas e vivência de rua pelos pais. (VIEIRA, 2015, p. 92)
Pensando nesta conjuntura de múltiplas “fragilidades”, Assis e Ribeiro (2015)
apontam para a presença recorrente da aplicação de medidas de acolhimento
enquanto tentativa de minimizar os danos provocados pelo consumo de drogas, seja
por parte de responsáveis, ou pelos próprios adolescentes. Na situação específica de
crianças e adolescentes e das situações de vulnerabilidade que os envolvem, “por
vezes são utilizadas medidas extremas de proteção que os afastam provisória ou
definitivamente de suas famílias, como é o caso do encaminhamento para Serviços de
Acolhimento Institucional (SAIs)” (ASSIS; RIBEIRO, 2015, p. 21).
Em documento oficial, produzido pelo Ministério da Saúde (2005b), que trata da
saúde do adolescente, no tocante ao conceito de vulnerabilidade, o mesmo sinaliza
acerca da importância de se perceber o sujeito na sua diversidade, ou seja, a partir de
suas diferenças. Cabe assinalar que, neste contexto, ações engessadas e mecanizadas a
partir da generalização de uma condição de “vulnerabilidade” não são cabíveis, sendo
necessário a compreensão dos diferentes vieses de adolescências, onde cada uma se
define a partir do seu contexto particular. Sendo assim, são necessários
questionamentos acerca de cada indivíduo, assim como as próprias estratégias
interventivas e que devem ser construídas a parte do “caso a caso”.
Nesse sentido, as diferentes formas onde os “usos” se estabelecem, também devem
receber ações individuais, que são concebidas mediante o cenário apresentado, mas
deixando claro, que as intervenções não devem focar na substância enquanto objeto
central e, sim, pensar o sujeito a partir do seu lugar no mundo, respeitando sua
singularidade e subjetividade.
Atenção Psicossocial e o cuidado dos adolescentes na Saúde Mental
A reflexão sobre o modo de Atenção Psicossocial só é possível dado aos avanços do
campo da Saúde Mental, oriundos e estabelecidos pela Reforma Psiquiátrica. Dessa
forma, inaugura-se um modelo de cuidado que implica não só familiares e
profissionais, mas a sociedade como um todo enquanto responsável pela execução de
uma nova forma de estar e se relacionar com a loucura e com o uso do álcool e das
substâncias psicoativas.
A partir da vigência da Lei 10.216/2001, que “dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e direciona o modelo
assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2001), criou-se um esforço em multiplicar
informações quanto a mudança no modelo de “tratamento” aos usuários de saúde
mental que recebiam, a partir de então, incentivo para que o cuidado fosse ofertado
principalmente, em serviços de saúde mental comunitários, estabelecendo
juridicamente o modelo da atenção psicossocial.
Já a RAPS, Rede de Atenção Psicossocial, que foi implementada a partir da
Portaria GM/MS 3.088/2011, “prevê a criação e a articulação de pontos de atenção
à saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014, p. 20), para o público de saúde mental. A
mesma organiza-se enquanto rede, e dispõe serviços de atuação face a necessidade
dos sujeitos.
Os CAPS, a partir da instituição da RAPS, enquanto modalidade de Atenção
Psicossocial Estratégica, constituem-se enquanto serviços de saúde aberto e
comunitário, presentes no SUS. Atuam como dispositivos prioritários e ordenadores
do território. Privilegiam o cuidado ao sujeito, como parte de sua proposta
terapêutica, considerando as peculiaridades do “caso-a-caso”. Possuem como objetivo
maior, a contribuição para o processo de reinserção social, a partir do incentivo ao
acesso nos campos de moradia, trabalho, lazer e cultura, para além do investimento
no campo da autonomia e da família, de modo a preservar tal convívio, quando
possível.
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS): é constituído por equipe interdisciplinar e
realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtornos mentais
graves e persistentes, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e
outras drogas ou outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e
realizar projetos de vida. Atua de forma territorial, seja em situações de crise, seja nos
processos de reabilitação psicossocial. Os CAPS são serviços estratégicos para agenciar e
ampliar as ações de saúde mental e contra os efeitos do uso de álcool e outras drogas. Os
serviços devem se organizar para ser uma porta aberta às demandas de saúde mental do
território e também deve identificar populações específicas e mais vulneráveis que
devem ser objeto de estratégias diferenciadas de cuidado. (MINISTÉRIO DA SAÚDE;
2014, p. 34)
Ressaltamos que os CAPS, apesar de atenderem um público em comum – pessoas
com sofrimento ou transtornos mentais graves e persistentes – sua atuação
diferencia-se quanto ao número populacional, que prevê atendimentos em CAPS I, II
e III34 e público-alvo para o atendimento, usuários de álcool e outras drogas e público
infanto-juvenil, respectivamente em CAPS ad e CAPS i. É importante salientarmos
que, independente do dispositivo que o indivíduo se “trata”, a atenção psicossocial
prevê, com prioridade, a produção de cuidados, que são compartilhados pelos
profissionais de saúde, pela família, pela comunidade e pelo próprio usuário da saúde
mental. Cardoso e Galera (2010, p. 688), tratam da produção de cuidados
destacando que:
Atualmente, o cuidado envolve também questões pessoais, sociais, emocionais e
financeiras, relacionadas à convivência com o adoecimento mental. Tal cuidado é
cotidiano e envolve uma demanda de atenção nem sempre prontamente assistida devido
a inúmeras dificuldades vivenciadas tanto pelos pacientes e seus familiares, quanto pelos
profissionais e a sociedade em geral, tais como: escassez de recursos, inadequação da
assistência profissional, estigmatização, violação de direitos dos doentes, dificuldade de
acesso a programas profissionalizantes, etc.
Esse contexto se afina quando se pensa a atenção psicossocial na adolescência, uma
vez que a demanda, nem sempre, ou na maioria das vezes, não está “pronta”. Ela vem
“diluída” em meio a outras situações de vulnerabilidade/sofrimento, quase que tendo
de ser garimpada nesse cenário. Entendendo esse fato, destaca-se que “não há
produção de saúde sem produção de saúde mental” (MINISTERIO DA SAÚDE,
2013 p. 23) e, ao debruçar-se nos cuidados em saúde mental, considera-se os
aspectos físicos, psíquicos e, essencialmente, o social. Sendo assim, os investimentos
no campo da atenção psicossocial, devem considerar as diretrizes, previstas pelo
Ministério da Saúde e que se pautam pelos princípios da desinstitucionalização.
A primeira diretriz enfatiza a autonomia do sujeito, que apesar de ser considerado
em “desenvolvimento”, torna-se responsável por sua “demanda”, logo, o importante
é respeitar sua fala, sabendo ouvi-la. Toda proposta terapêutica deve considerar a fala
deste sujeito, sendo construída coletivamente e não, de forma homogênea.
O mesmo também deve ser acolhido sempre que chegar a um serviço de saúde,
ainda que não seja aquele o espaço que melhor se adéque à necessidade do sujeito. Se
for o caso, o mesmo deverá ser encaminhado, de forma implicada a outro
dispositivo. O encaminhamento implicado requer um contato prévio com o serviço
acionado, o compartilhamento do caso, a prestação de informações consideradas
pelo sujeito acolhido como suficientes para o conhecimento do campo para o qual
será encaminhado e o acompanhamento do caso, de forma a saber acerca do
atendimento já realizado e as intervenções quanto à situação em questão.
Por fim, mas não menos importante, cabe a atenção psicossocial, o investimento
no trabalho de rede, a partir de ações interssetoriais. A criança e o adolescente, dada
a complexidade do período de vida, perpassam por diferentes serviços e políticas,
logo, esse acompanhamento deve ocorrer de forma compartilhada.
Educação, Esporte e Lazer, Assistência Social, são esferas que se complementam
face as vulnerabilidades que se apresentam e beiram a dicotomia entre normalidade e
patologia. Cabe assinalar que algumas ações vêm aparecendo de forma mais incisiva
no município do Rio de Janeiro, a medida que investimentos no campo da Assistência
Social, em especial, as unidades de acolhimento institucional (abrigos), vem sendo
privilegiadas enquanto recursos públicos. Já, as Unidades de Acolhimento da saúde
(UA), mais especificamente as UAi35, criadas e justificadas pela portaria 121/2012,
não passam de uma hipótese, que até então integra uma rede “fictícia” no município
do Rio de Janeiro36.
Apesar de todo esse discurso, a atenção psicossocial ao segmento infância e
adolescência está longe de um ideal, sendo pouco presente nas agendas políticas,
principalmente, no campo da saúde mental. Mesmo assim, caminha a curtos passos
em uma proposta de atenção integralizada.
A experiência do CAPS ad “X”
O CAPS ad “X”, presente há pouco mais de três anos na Zona Oeste do Rio de
Janeiro, sempre atendeu prontamente ao público que chega no serviço, inclusive
adolescentes, do território. Território este, que a nível de informação, não conta com
dispositivo assistencial infanto-juvenil.
A gestão atual da unidade, vinha se questionando quanto a falta de um trabalho
específico com adolescentes (dada a ausência de um CAPSi no território), que se
desdobrava na falta de adesão ao “tratamento” por parte deste público. Esse
questionamento, também ocorrera em pesquisa a um CAPS ad do interior de São
Paulo retratada por Vasters e Pillon (2011). Os referidos autores destacam quanto a
particularidade deste tema:
Mediante os diferentes modelos de tratamento especializados para a questão das drogas,
em todos se observa que o indivíduo pode se envolver com o tratamento proposto ou
abandoná-lo, isto é, não aderir ao tratamento. Apesar de alguns autores definirem
“adesão” como se manter abstinente em relação a substância utilizada, pode-se ir além e
sugerir que a adesão a um tratamento envolve o estabelecimento de vínculo entre
usuário do serviço e equipe de saúde, de forma que haja compromisso mútuo nas
atividades integradas ao tratamento e, decorrente disso, o favorecimento de mudanças
no comportamento em relação ao uso da droga. (VASTERS; PILLON, 2011, p. 03)
Nessa perspectiva, partindo da preocupação quanto à necessidade de um trabalho
com adolescentes – fora adotado pela gestão do CAPS ad, um novo modelo de
acolhimento e acompanhamento dos casos, baseado no cuidado por equipes de
referência, sendo proposto a existência de uma equipe voltada para este segmento.
A “equipe 4”, como é conhecida no serviço, específica para atendimento de
adolescentes, é composta por uma Assistente Social, um Técnico em Redução de
Danos, uma Técnica em Enfermagem e uma Médica Psiquiatra.
Dois foram os principais questionamentos feitos por esta equipe: onde e como
“tratar” adolescentes nessa perspectiva do uso prejudicial de substâncias psicoativas?
Buscando respostas quanto ao primeiro questionamento na legislação de saúde
mental, nos deparamos com possibilidades de cuidados tanto no CAPSi quanto no
CAPS ad.
Retomando mais uma vez a Portaria 3.088/2011, a mesma afirma que o CAPSi
“atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os
que fazem uso de crack, álcool e outras drogas”, enquanto que o CAPS ad, “atende
adultos ou crianças e adolescentes, considerando as normativas do Estatuto da
Criança e do Adolescente, com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas”.
Entretanto, buscou-se outras referências que pudessem embasar tais
questionamentos, sendo possível localizar duas experiências sobre atendimento de
adolescentes usuários de substâncias psicoativas na rede de saúde mental. Identificou-
se a narrativa de Vasters e Pillon (2011), que pesquisam sobre atendimentos em um
CAPS ad do interior de São Paulo e a descrição de Vieira (2015), que trata acerca da
experiência do município de Niterói, a partir de uma equipe de saúde mental que
articula de uma forma mais próxima com o CAPSi do território. Experiências
distintas, mas que falam de um mesmo sujeito – o adolescente usuário de álcool,
crack e/ou outras drogas.
No caso de São Paulo, identificou-se dois pontos em comum com o público
atendido no CAPS ad “X”. O primeiro diz respeito a forma como os adolescentes
chegam a unidade, geralmente encaminhados por outros órgãos. E também em
relação a ausência de motivação para “tratamento” que se assemelha com a vivência
da unidade aqui referenciada:
O início do tratamento especializado se deu essencialmente por encaminhamentos,
sejam eles judiciais (associados a atos infracionais ou acompanhamento por Conselho
Tutelar) ou realizados por familiares. Dos quatorze adolescentes entrevistados, apenas
três buscaram o tratamento espontaneamente. Tais fatos remetem à discussão anterior
sobre as percepções de danos (ou ausência dessas), ou, ainda, a identificação da
necessidade por auxílio especializado para a questão das drogas. A não observação desses
aspectos pode ser prejudicial ao bom êxito do tratamento devido à ausência de
motivação ou disponibilidade para mudança. (VASTERS; PILLON, 2011, p. 05)
Face a realidade de Niterói,
Em geral, esses casos são atendidos primariamente por equipamentos da rede sócio-
assistencial (Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, Centro
de Referência de Assistência Social – CRAS, Centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua – Centro Pop, Casa de Passagem) ou conselhos tutelares,
e demonstram grande dificuldade de vinculação ao tratamento ofertado pelos serviços
de saúde mental. (VIEIRA, 2015, p. 86)
Em relação ao município de Niterói, a semelhança se refere a forma como o
adolescente chega ao CAPS, geralmente encaminhado por terceiros. No território
de referência do CAPS X“”, é bem comum receber encaminhamentos de unidades de
acolhimento, de Conselhos Tutelares ou de unidades de saúde da atenção básica. A
demanda espontânea é quase que inexistente.
Outro ponto em comum com o trabalho apresentado, é a dificuldade de aderência
dos adolescentes com a proposta de cuidados a partir da lógica da saúde mental.
Ainda conforme o texto tratado, mas já considerando o segundo questionamento
apontado, que fala sobre como “tratar”, destaca-se a importância de se pensar em que
contexto os usos“” fazem parte da história do sujeito, e qual a função da droga em sua
vida. Vieira (2015, p. 86) destaca:
Em suma, diante das dificuldades e especificidades que envolvem o trabalho com o
adolescente usuário de crack, parece imprescindível compreender os mecanismos e
contextos que têm favorecido a disseminação do uso dessa substância por essa
população, a fim de que se possa também oferecer respostas mais eficazes ao problema
que ora se coloca.
Nesse sentido, a proposta de trabalho que vem sendo construída pela equipe de
adolescentes do CAPS “X”, vislumbra a não redução do adolescente ao seu vínculo
com a droga, mas considera-se acima de tudo, o sujeito nesse processo.
Compreende-se as relações desse sujeito na vida e em diferentes campos, como
escola, família, comunidade, trabalho, entre outros. Logo, não se pode dizer que o
lugar de “tratar” adolescentes é em um CAPS ad – como na experiência de São Paulo
–, mas também não se afirma aqui, que o melhor dispositivo de atenção para
adolescentes usuários de substâncias psicoativas é o CAPSi.
Entende-se que a soma de diferentes olhares e saberes, dentro do campo da saúde
mental, agregam uma melhor qualidade no serviço prestado ao público adolescente,
sendo assim, conclui-se que não é necessário questionar “aqui ou lá”, mas, sim,
utilizar-se de um trabalho conjunto, onde dispositivos como CAPS ad e CAPSi
integram um cuidado construído coletivamente.
Portando, o CAPSi, que chamaremos de “Y”, localizado também na Zona Oeste
do Rio de Janeiro, foi convidado a participar de forma essencial para a garantia de
um cuidado compartilhado. Nessa proposta de cuidados não serão privilegiados os
conhecimentos sobre “drogas” ou sobre “psicopatologia da infância e adolescência”,
mas sim o sujeito, em sua totalidade, como parte de um lugar no mundo, de uma
família ou instituição, parte de uma escola e de um meio social.
Considerando os discursos já apresentados em outras experiências (de São Paulo e
Niterói), principalmente no que se refere aos desafios postos pelo trabalho, quanto a
motivação e adesão, a construção desse processo de trabalho visa favorecer a
presença/participação dos adolescentes em uma proposta de cuidados a partir do
fortalecimento do vínculo com os serviços aqui representados.
No que concerne a esse assunto, tem-se duas preocupações principais: não reduzir
o adolescente ao uso e não favorecer uma identificação deste adolescente com o
serviço, no sentido de não promover a estigmatização deste sujeito, uma vez que o
próprio período do uso pode ser transitório e passageiro.
Logo, os serviços envolvidos, a partir da lógica intrassetorial, articularam-se junto
a um Centro de Convivência da Zona Oeste37, para que parte dos atendimentos e
atividades ocorram nesse espaço, considerado enquanto um lugar de certa
“neutralidade”, onde o mesmo deixa de ser “paciente” e passa a ser, conforme a visão
da gestora do espaço: “aluno” em atividades comunitárias. A ideia é promover o
cuidado, a partir da articulação entre serviços de saúde, sem fixá-lo ao rótulo de
“dependente químico”.
Por fim, destacamos a importância de ir além da atenção intrassetorial,
promovendo também trocas entre a rede intersetorial, avançando quanto as
discussões e compartilhamento dos casos na rede, compondo assim o cuidado ao
adolescente usuário de substâncias psicoativas, que por si só, já é rejeitado em
espaços de convívio comum na adolescência.
Considerações finais
No presente artigo, pretendeu-se apresentar conceitos relevantes como adolescência
e uso de substâncias psicoativas na intenção de elucidar o leitor acerca de uma nova
lógica de cuidar no campo da saúde mental. Conclui-se que no período de vida onde
as experiências podem ser consideradas como passageiras ou não, um trabalho
específico no campo da adolescência ganha corpo e importância. Logo, seu foco
principal é alcançar um público cuja demanda e motivação são quase que
inexistentes, não havendo assim, adesão quanto as propostas de cuidados.
O compartilhamento dos casos pelos serviços CAPS ad e CAPSi tem sido de
extrema importância quanto a construção de novas perspectivas na atenção ao
adolescente. Atividades lúdicas, mas que privilegiam a fala de um outro lugar,
despido de moralismo e pré-conceitos, a começar pelo local da escuta que tem
favorecido experiências muito positivas quando se pensa na “adesão ao tratamento”.
A ligação entre serviços de saúde mental com atenção para adolescentes,
juntamente com a construção de estratégias para articulação intersetorial, nos
campos da saúde, de uma forma mais geral, educação, assistência social, justiça e
direitos, tem feito a diferença na vida desse público, que passa a sentir a integralidade
do cuidado.
Portanto, pretendeu-se apresentar de forma breve, a presente experiência que
vem sendo construída mediante muitos desafios, entretanto, buscando trazer
contribuições para a construção de um cuidado que supere os muros institucionais.
Além disso, houve a pretensão de fomentar a criação de novas estratégias para que
este público seja alcançado face as políticas públicas, tanto no âmbito da saúde, como
também na educação e na assistência social.
Por fim, destaca-se a necessidade de seguir trilhando na construção de caminhos
alternativos que superem o manicômio social e moral propagando o cuidado e a
liberdade enquanto valores fundamentais na utopia da construção de uma outra
sociedade. Sigamos na luta por uma sociedade sem manicômios e antiproibicionista!
Referências
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Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma Política de Saúde Mental
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de Niterói. IN: FREIRE, M.F. S. C.; PASSOS, R. G. Políticas Públicas, Gênero e
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30 Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas.
31 Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil.
32 No presente artigo não será identificado os serviços de saúde mental e os profissionais que desenvolvem esta experiência.
33 Conforme o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), em seu artigo 2º, considera-se criança, a pessoa até 12 anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.
34 Conforme a portaria 336/2002, CAPS I, CAPS II e CAPSS III, são definidos por ordem crescente de porte/complexidade e
abrangência populacional. As três modalidades se serviços cumprem a mesma função no atendimento ao público em saúde mental,
distinguindo-se pelas características descritas no Art. 3º desta Portaria, e deverão estar capacitados para realizar prioritariamente o
atendimento de pacientes com transtornos mentais graves e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo,
semi-intensivo e não intensivo.
35 Unidades de Acolhimento da Saúde Infanto-Juvenil.
36 Para maior aprofundamento acerca desta temática buscar Porto e Passos (2016).
37 A portaria 396/2005 do Ministério da Saúde define Centro de convivência como: “dispositivos públicos componentes da rede Saúde
mental e de atenção substitutiva em Saúde Mental, onde são oferecidos às pessoas com transtornos mentais espaços de sociabilidade,
produção e intervenção na cidade”.
CAPÍTULO 13
Consciência antimanicomial em tempos democrático-populares: caminhos de um
movimento38
Daniela Albrecht Marques Coelho
“Quando dizemos não ao manicômio, estamos dizendo não à miséria do mundo, e nos
unimos a todas as pessoas que no mundo lutam por uma situação de emancipação”.
Franco Basaglia
Este artigo resgatará a trajetória do Movimento Antimanicomial brasileiro à luz do
debate crítico sobre a Estratégia Democrática Popular, que tem ganhado volume e
densidade no terreno da teoria e prática política da esquerda marxista no Brasil nos
últimos anos. Entendemos que, de forma particular, o movimento popular que se
aglutinou em torno da luta “por uma sociedade sem manicômios”39, se insere no
processo de luta da classe trabalhadora no Brasil, incorporando, assim, elementos da
estratégia que a orientou hegemonicamente neste período. Buscaremos, então,
estabelecer algumas mediações pelas quais a Estratégia Democrática Popular, se
expressa através deste movimento em particular40.
Algumas considerações preliminares se fazem logo necessárias. Em primeiro lugar,
em relação ao que aqui estamos tratando por Movimento Antimanicomial, já que tal
denominação não nos leva a um movimento social especifico, um sujeito político
determinado e inequívoco. Ademais, o movimento experimentou diferentes
configurações ao longo de seu desenvolvimento histórico, tanto em relação às suas
formas organizativas quanto a constituição de um conjunto de atores sociais que se
aglutinaram, pelo menos desde os anos 70, na luta por um mesmo projeto.
Referimo-nos, assim, a um conjunto amplo da luta de um campo cuja expressão
mais evidente do seu êxito, em que pese as intenções de transbordá-lo, se deu nas
transformações da assistência pública à saúde mental, que tomaram corpo no
processo da “Reforma Psiquiátrica Brasileira’. Por vezes fez parte no movimento
constitutivo deste campo um corpo ainda mais disperso de trabalhadores e agentes
públicos atuantes no aparelho de Estado, através de suas políticas públicas, que
mantiveram certa identidade enquanto “campo da saúde mental”41. A opção
prioritária pela denominação “Movimento Antimanicomial” deve-se a ter sido esta a
formulação mais geral a que chegou em sua história; também por isso, a que melhor
expressa o movimento que analisaremos42.
Vale esclarecer também que por certo não tomamos o Movimento
Antimanicomial aqui como espaço central em que o debate sobre a Estratégia
Democrático-Popular é traçado. O estudo de sua trajetória pode guardar interesse
particular, no entanto, pelo fato de se tratar de um setor em que êxitos importantes
foram alcançados. É preciso partir do reconhecimento de que tratamos de um
movimento em importante medida bem-sucedido em suas reivindicações, tanto em
sua versão brasileira, quanto na versão italiana que lhe serviu de referência e
inspiração – processo que também será trazido para o nosso campo de análise, dadas
as conexões que guarda com o brasileiro. Em que pese as ameaças que sofre hoje, a
Reforma Psiquiátrica Brasileira foi formalmente reconhecida enquanto política de
Estado, através de um denso conjunto de leis e portarias que deram sustentação para
a implementação de medidas que redirecionaram substancialmente a atenção em
saúde mental no Brasil no horizonte de sua territorialização e humanização,
refletindo pautas colocadas pelo movimento. A análise da trajetória do Movimento
Antimanicomial, cujas propostas e afirmações em larga medida se plasmaram no
processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira, como estudo de caso, pode contribuir
assim para a reflexão crítica a respeito da Estratégia Democrática Popular.
Convém precisar melhor, – e assim passamos à segunda consideração de caráter
preliminar – onde nos localizamos no debate estratégico das lutas da classe
trabalhadora hoje. Entendemos que, em certos períodos de agudização da luta de
classes, a estratégia de transição socialista predominante de um determinado ciclo
histórico é aquela que orienta de maneira geral o comportamento da classe
trabalhadora, que ganha expressão, assim, a despeito de uma intenção mais ou menos
explícita, nas ações dos diferentes sujeitos políticos vinculados de distintos modos as
organizações dos trabalhadores. Isto não significa, é claro, que a classe só se paute
por uma ou outra estratégia em períodos de ascenso das lutas: só que nestes períodos
as estratégias hegemônicas se consolidam, se tornam força material. Em tempos de
refluxo, as remissões a tal ou qual estratégia se darão de modo transformado, não
apenas quantitativamente, mas também qualitativamente. No sentido como
empregamos aqui, uma estratégia não se resume ao modo como originalmente é
formulada – ainda que este seja certamente um momento constitutivo importante
de seu movimento -; ela constitui, antes, uma espécie de síntese do comportamento da
classe naquele período. A leitura deste comportamento não deve reduzi-lo a seus
aspectos meramente subjetivos nem objetivos, por isso, nas palavras de Iasi (2012),
quando falamos de um determinado comportamento da classe trabalhadora, devemos
relacioná-lo a uma estratégia determinante em um certo período histórico, não como
uma escolha arbitrária de uma certa direção ou vanguarda, mas como uma síntese que
expressa a maneira como uma classe buscou compreender sua formação social e agir
sobre ela na perspectiva de sua transformação. (p. 188)43
Situamo-nos, assim, junto com o campo no pensamento marxista contemporâneo
para a qual no que se refere à estratégia de transição para o socialismo no Brasil, o
atual ciclo histórico – sintetizado na Estratégia Democrática Popular (EDP)44, cuja
principal expressão se deu no Partido dos Trabalhadores (PT) – encontra-se em
processo de fechamento. É quando se fecha um período histórico que a estratégia
que lhe foi hegemônica se revela, aquela que orientou predominantemente o
conjunto da classe em sua ação durante este período. Tal estratégia tem expressão
necessariamente particular nos diferentes campos, setores e sujeitos políticos45 de
um período, mas acaba por se atualizar em cada um deles diferenciadamente, na
articulação das várias diversas ações táticas, que só podem ser compreendidas,
portanto, em relação dialética com a dimensão estratégica. Como este ciclo está se
encerrando é agora possível caminhar no sentido de seu estudo aprofundado46.
Um novo partido, nova estratégia: movimentos na luta por reformas democráticas
É durante os anos que antecedem e culminam com o fim da ditadura empresarial-
militar que são gestadas as condições para a criação do PT no Brasil. Os processos de
luta da classe trabalhadora, intensificados diante da crise econômica destes últimos
anos e sufocados parcialmente pelos mecanismos autoritários da forma ditatorial
assumida pelo Estado burguês, eclodem e se somam àqueles de ordem política,
envolvendo diferentes setores. O ano de 1978 foi marcado pela irrupção de
inúmeras greves no ABC paulista, processo em que Luís Inácio Lula da Silva desponta
como liderança sindical. Os anos seguintes seguem aquecidos pela intensa
mobilização em torno das Diretas já (1983/84). A transição para uma forma
democrática da gestão do Estado torna-se uma exigência ampla e também uma
necessidade objetiva. A forma autoritária já dava sinais de desgaste quanto às
possibilidades de administração das contradições da luta de classes, deixando de
apresentar-se como a melhor alternativa do ponto de vista dos interesses do próprio
capital e de sua classe dominante47.
É
É como produto deste processo que desponta um partido de base trabalhadora,
dando unidade e direção política a esse conjunto de lutas. Afluem para esta
experiência, ainda, militantes ligados à Igreja Católica, referenciados teoricamente
pela Teologia da Libertação; militantes de organizações da esquerda que se
mantiveram clandestinos durante a ditadura empresarial-militar instaurada pelo
golpe de 1964, além de intelectuais da esquerda marxista. É no caldo deste mesmo
processo histórico que se formam também aqueles que seriam outros dois
importantes instrumentos da classe trabalhadora, uma Central Única dos
Trabalhadores, e um Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra. Com vocação
anticapitalista e recolocando o socialismo como horizonte estratégico imediato
(IASI, 2006), o PT torna-se confluente e catalisador do conjunto das lutas do
período.
Acompanhando as questões e dilemas enfrentados pela classe trabalhadora
internacionalmente, o tema da democracia torna-se também no Brasil um dos
centros do debate estratégico a partir de meados dos anos 1970. O gás inflamado das
lutas democratizantes, conjugado com o esforço (necessário) de diferenciação das
experiências do chamado “socialismo real”, e à influência do processo de renovação
do comunismo no plano internacional, alçaram a questão democrática ao centro do
debate estratégico, ganhando expressão na experiência petista.
A EDP é formulada na intenção de superação da Estratégia Nacional e
Democrática (END), que foi predominante nas lutas da classe trabalhadora brasileira
entre os anos 1930 e o golpe empresarial-militar e teve o Partido Comunista
Brasileiro como maior expressão. Recusando qualquer aliança com a burguesia para a
efetivação de uma suposta etapa nacional e democrática (anterior à socialista, na
formulação estratégica capitaneada pelo PCB48), mas supondo também que o
socialismo não estaria na ordem do dia, este caminho, para a nascente EDP, se daria
através de um acúmulo de forças no interior da ordem burguesa. Conjugando
ocupação tática de espaços do Estado à pressão exercida pelos movimentos sociais,
propunha-se radicalizar a democracia; esta ação combinada possibilitaria a promoção
de certas reformas, que levariam a uma transformação desta ordem na direção do
socialismo, a partir de seu interior. A progressiva democratização da sociedade e do
Estado não pretendia representar assim, na formulação petista, uma “nova teoria de
etapas”, que estava a priori descartada, mas já seria, em si mesma, o caminho ao
socialismo.
É
É dentro desse contexto e nessa perspectiva que ganham força no Brasil as lutas
por reformas democráticas e populares. E no bojo deste processo que começa a
ganhar corpo o incipiente Movimento Antimanicomial, bastante ligado ao também
nascente movimento sanitarista, que aglutinava um conjunto de demandas de
transformação no campo da saúde49.
No plano internacional, já desde o final da Segunda Guerra Mundial, movimentos
de questionamentos à instituição psiquiátrica começaram a se constituir. As
prementes necessidades de reabilitação da força de trabalho fruto da guerra colocam
os grandes manicômios em contradição com o novo momento do desenvolvimento
do capital, e é nesse contexto que ganham expressão relevantes experiências
reformadoras50, que confrontam o asilo como resposta massiva, além de afirmarem a
necessária humanização destes espaços – reabilitando-os, de quebra, na sua função
social, atualizada51. Foi neste contexto que se deram as reformas do campo
psiquiátrico em diversos países do ocidente, como a Psiquiatria Preventiva nos EUA,
a Psiquiatria de Setor e a Psicoterapia Institucional francesas, e as comunidades
terapêuticas ligadas à Psiquiatria Comunitária na Inglaterra52.
Ainda que estes processos tenham tido importância ao chamar atenção para a
tragédia humana que representavam os grandes hospícios, fortalecendo sua crítica,
tais experiências não chegaram a questionar sua existência. Foi na Itália dos anos
1960 que se gestou o movimento de crítica institucional que colocava no centro a
própria psiquiatria. Questionando a existência do manicômio, a partir da análise de
sua função social, a crítica agora preconizava o saber psiquiátrico enquanto
instituição, sendo os muros do asilo apenas sua identificação mais concreta. Franco
Basaglia foi o principal ator político e teórico, expressão e motor, portanto, deste
movimento, batizado como Psiquiatria Democrática Italiana.
O movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira, como mencionamos, se
constituiu em importante diálogo com o pensamento de Basaglia e com a Psiquiatria
Democrática, fazendo desta experiência importante referência teórica e inspiração
programática. Interessa então trazê-la também para o nosso cenário, bem como
compreender o contexto mais geral em que se insere dentro do processo da luta de
classes na Itália. Destacaremos neste caminho os lugares onde na Psiquiatria
Democrática italiana se expressam os elementos estratégicos mais gerais da luta da
classe trabalhadora no período, bem como seus dilemas – importantes, assim, para a
compreensão desta experiência em particular53.
Basaglia e a Psiquiatria Democrática, numa Itália eurocomunista
As condições para o desenvolvimento da crítica à psiquiatria na experiência italiana
começam a ser gestadas no pós-guerra, quando a sociedade industrial se desenvolvia
e, consequentemente, uma classe operária se fortalecia. Lutas sindicais se aqueciam
no país, como em grande parte do continente. No início dos anos 1960, Basaglia
assume a direção do Ospedalle Psichiatrico Provinciale54 de Gorizia e inicia um
processo de transformação baseado na alteração das relações de poder na instituição.
Partigiano55 preso pelo regime fascista até o final da guerra, o psiquiatra se confronta
com a realidade do manicômio pela primeira vez ao assumir sua direção, e inicia um
processo de humanização e reestruturação, inspirado no modelo anglo-saxão da
Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones.
A história de Gorizia foi fundamental para propiciar as reflexões acerca da
experiência da Comunidade Terapêutica, evidenciando seus limites. No caminho da
ruptura com o aparato institucional psiquiátrico, esta experiência demonstraria
grande importância como um primeiro passo, mas, esgotando-se nele, manteria suas
contradições fundantes no interior do manicômio, cujo fundamento cada vez mais se
revelava estar na própria ordem social.
Suprimidas as contradições que eram vividas no interior da instituição, uma nova
camada se apresentou – contradições que eram da sociedade, e que pareciam
justificar a própria existência daquele espaço. A Comunidade Terapêutica passa a ser
compreendida por Basaglia como uma fase importante, mas necessariamente
transitória – não a meta final. Como tal, ela pode ser incorporada ao sistema geral,
pois não coloca em cheque a finalidade da instituição psiquiátrica, sua função social e
política. Esta finalidade começa a ser então revelada nos caminhos da Psiquiatria
Democrática italiana:
(...) desbastado o paciente das superestruturas e das incrustações institucionais,
percebe-se que ele ainda é objeto de uma violência que a sociedade usou e continua a usar em
seu caso, na medida em que – antes de ser um doente mental – é um homem sem poder social,
econômico, contratual [a] (...) mascarar a contraditoriedade da nossa sociedade. (...).
Portanto, se o primeiro momento dessa ação reversiva pode ser emotivo (no sentido de
que se recusa a considerar o doente um não-homem), o segundo não pode deixar de ser
a tomada de consciência de seu caráter político, no sentido de que cada ação desenvolvida
perante o doente continua a oscilar entre a aceitação passiva e a recusa à violência, na qual
nosso sistema sócio-político se baseia. (BASAGLIA, 2005a, p. 108, grifos nossos)
Assim, Basaglia apresenta as bases da Psiquiatria Democrática italiana. A natureza
da violência do manicômio é encontrada na própria violência da sociedade
capitalista, mediada pela roupagem técnica do saber psiquiátrico. Sua função social e
política é encobrir parte das contradições entre capital e trabalho, pela ocultação no
interior de seus muros de certo contingente da classe trabalhadora, aquela parcela
que, temporária ou definitivamente, está impossibilitada de manter-se (ou inserir-se)
na esfera produtiva. Impossibilidade cujas margens de definição são funcionalmente
estabelecidas pelo próprio saber psiquiátrico, mediante as necessidades colocadas
pelo momento do desenvolvimento do capital56.
A passagem de Basaglia pelos EUA se soma à experiência vivida em Gorizia e
acelera o amadurecimento da crítica da natureza da instituição psiquiátrica, bem
como a inviabilidade da sua mera reorganização. A funcionalidade da ciência
psiquiátrica enquanto ideologia57 é revelada na análise do problema do desviante
(BASAGLIA, 2005d), tal como é produzido no capitalismo, sob a chancela do saber
psiquiátrico.
O que a experiência de Gorizia havia revelado é que a classe trabalhadora italiana
estava destinada ao manicômio caso adoecesse. O conjunto dessas experiências vive
um salto de qualidade a partir de 1971, naquela que ganha vida na cidade de
Trieste58. A direção do Ospedalle Psichiatrico Provinciale é assumida para se
trabalhar pelo seu fim. A abertura da instituição se inicia desde a chegada da equipe,
e as soluções começam a ser construídas junto à comunidade. Em conferência no
Brasil, Basaglia (1979) narra o início do processo:
Começamos, por exemplo, discutindo quando poderíamos dar alta a um paciente. A
discussão não era mais entre nós, os médicos, mas com as pessoas do bairro onde o
doente ia morar. Então o cidadão do bairro se dava conta de que as suas necessidades
eram as mesmas do doente. Quando levantávamos o problema de dar alta a uma pessoa
pobre que não tinha dinheiro, não tinha casa nem família, muitas pessoas percebiam que
estavam nessas mesmas condições: sua situação era igual à do doente mental. (...)
tínhamos frente a nós não mais uma doença, mas uma crise. (p. 19, grifos nossos)
A crise parece se libertar da psicopatologia pra ganhar lugar na cidade, entre as suas
contradições. De vivência individual a problema comum, partilhado, a expressão de
uma crise ganha aqui um sentido outro – bastante concreto, cotidiano, social. A
atuação no interior da instituição psiquiátrica, para sua abertura e destruição, teria
que se dar, assim, através da recusa do mandato técnico – bem compreendido como
social e político – pelos operadores do saber psiquiátrico. A partir do terreno
institucional, a “ciência’ seria subvertida como instrumento de libertação, ao
permitir a consciência da opressão – de seus operadores, objetificados como
empreiteiros da violência, e dos oprimidos, sobre sua própria opressão.
A cidade, com seus habitantes e organismos, precisaria estar envolvida neste
processo. Ao acabar com o manicômio, as contradições que ali tinham abrigo
ganhariam expressão no seio da própria comunidade, que passa a ter que se deparar
com elas. A conquista da liberdade do “doente’ deveria coincidir com a conquista da
liberdade pela própria comunidade, pressupondo, assim, o envolvimento de outras
tantas organizações, associações, movimentos sociais. As transformações no campo
psiquiátrico, se dariam então, num mesmo compasso de transformação da sociedade,
de modo também inextrincável, portanto, do conjunto das lutas sociais e dos
trabalhadores.
Pelo modo como passa a se compreender e a conduzir o processo de mudanças
que almeja, o setor da classe trabalhadora italiana que aqui se movimenta parece
querer romper o ciclo de uma consciência de classe em si e se movimentar em
direção à formação de uma consciência de classe para si, descobrindo-se parte de
uma totalidade maior59. Pelos caminhos por onde amadurece, tal projeto não podia
se destacar de uma transformação societária mais amplo, tomando parte, portanto,
no projeto de emancipação da classe trabalhadora italiana. Assim, a Psiquiatria
Democrática Italiana e a experiência de Trieste podem ser compreendidas como uma
das veredas da luta socialista na Itália da segunda metade do século XX; como
expressão setorial, portanto, de um projeto estratégico60.
O Partido Comunista Italiano (PCI), no pós-guerra, despontava em movimento
ascendente francamente contrário ao dos partidos comunistas da maior parte dos
países europeus, ganhando grande expressão política. Ao lado dos PCs francês e
espanhol, o PCI afirmou-se como força determinante para o fenômeno que ficou
conhecido como eurocomunismo, importante marco da história do movimento
comunista internacional, que influenciou também os partidos de esquerda brasileiros
neste mesmo período61.
O projeto estratégico da luta de classes na Itália que se afirmava no momento de
que estamos tratando conectava-se a este fenômeno. A realização de amplas reformas
no seio do Estado, provenientes de demandas dos movimentos das massas
organizadas, fundamentava a concepção de democracia eurocomunista. Também não
é casual que seja democrática a qualificação da psiquiatria em sua versão reformada, tal
qual propunha o movimento em que se encontrava Franco Basaglia. Tal referência
torna-se útil, então, para apreendermos como este projeto ganha expressão na
experiência italiana de reforma – desdobrando possíveis nexos entre o Movimento
Antimanicomial e o Democrático-Popular.
A busca por reformular as relações entre socialismo e democracia marca
constitutivamente o desenvolvimento do eurocomunismo. Sob impacto dos famosos
crimes de Stalin divulgados pelo relatório Kruschev no XX Congresso do PCUS em
1956, o VI Congresso do PCI, que aconteceria no mesmo ano, foi marcado pela
afirmação de um “caminho italiano ao socialismo”. A autonomia perante a
experiência soviética e diferenciação dos caminhos do chamado “socialismo real”
seria a busca permanente dos eurocomunistas, que tendo também como fermento os
processos de luta contra o fascismo, propunham uma via democrática para o
socialismo. As novas experiências em marcha também recusavam os rumos da Social-
Democracia, por não terem ultrapassado os marcos de uma experiência reformista
no interior do capitalismo62.
A noção de democracia progressiva, de Palmiro Togliatti63, ganha centralidade no
nascente eurocomunismo, propondo um regime democrático aberto e plural, onde
conviveriam as mais diversas forças e partidos políticos – à margem da qual estariam
apenas os fascistas. Altamente permeável às demandas sociais, tal regime se fundaria
na participação ampla das massas organizadas. Na construção do caminho ao
socialismo, a disputa no Estado não seria suficiente, este deveria refletir o conjunto
do país, pela incidência direta das massas organizadas, aptas a disputar concretamente
o exercício do poder. Assim organizada, a classe operária poderia alçar o estatuto de
classe dirigente (tal qual formula Gramsci), sendo a democracia, em seu caráter
progressivo, o instrumento para alcançar esta posição.
O fortalecimento e a evolução da democracia facultariam a realização de
profundas reformas sociais, fruto de conquistas produzidas por lutas de bases, a
incidir diretamente sobre a estrutura do Estado. Com o acúmulo de reformas, e a
transformação progressiva do ordenamento jurídico-político, consolidar-se-ia uma
revolução processual, pela via democrática. A superação do capitalismo dar-se-ia assim
por uma via pacífica: ao “extremo’, o desenvolvimento da democracia levaria ao
socialismo. A via pacífica também se fortalecia como contraponto à experiência
soviética, dada a associação comum entre via revolucionária, explosiva, e os caminhos
autoritários que se desdobraram no devir histórico desta experiência.
A democracia progressiva de Palmiro Togliatti parece desaguar ou pavimentar a via
(DANTAS, 2014) para a operação que absolutizaria a democracia como um valor
universal, assim expressa pela primeira vez por Enrico Berlinguer. Figura central do
PCI durante as décadas de 70 e 80, Berlinguer destaca-se na liderança do partido no
período em que o eurocomunismo se consolida na história do movimento
comunista, com forte expressão na Itália e Europa, e vasta interlocução no cenário
internacional. Berlinguer reafirma Togliatti na visão do socialismo como o próprio
desenvolvimento pleno da democracia, amplificando-o. A afirmação da democracia
como valor universal ganha ampla repercussão internacional, assim como a
proclamação de que os diferentes países deveriam buscar caminhos próprios para a
construção do socialismo. No Brasil, tais noções ganharam eco por meio das
formulações teóricas de Carlos Nelson Coutinho, importante intelectual orgânico da
classe trabalhadora brasileira, declaradamente atravessado pela experiência
eurocomunista.
A questão democrática no Brasil. Em meio a um poderoso campo democrático e popular, um
movimento
É em 1979 que Carlos Nelson Coutinho publica o texto homônimo à expressão de
Berlinguer, que viria a consagrar a questão democrática também no contexto da luta
de classes no Brasil64. Apesar de apenas em 1989 entrar para o PT, uma década antes
o intelectual lançava formulações teóricas que viriam a ser incorporadas à Estratégia
Democrática Popular65.
Também no Brasil a proposta de uma “democracia pluralista de massas” ganha
centralidade, onde “a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores representados
através da pluralidade dos seus organismos (partidos, sindicatos, comitês de empresa,
comunidades de base, etc.)” (COUTINHO, 1980, p. 40) (grifo nosso). Forjada na busca
por unidade política junto a estas bases plurais, esta democracia substantiva deveria
ser construída de baixo para cima; no processo de redemocratização multiplicavam-se
numerosos sujeitos políticos coletivos, cuja articulação deveria consolidar um poderoso
bloco democrático e popular. Tal bloco unitário constituiria instrumento de pressão e
controle sobre os mecanismos institucionais do aparelho democrático. A democracia
ganhava centralidade assim, no caminho ao socialismo. De mera tática, passava a
estratégia.
Entre o poderoso bloco democrático e popular, também o nascente Movimento
Antimanicomial tomava corpo, sendo já a partir do final dos anos 1970 que se dá o
primeiro tempo desta movimentação política. Assumindo como primeira forma
organizativa a de um movimento de trabalhadores de saúde mental, o MTSM é o primeiro
sujeito político do campo da saúde mental no Brasil66.
Com a efervescência política do fim do regime militar, certas concepções
formuladas pelo movimento sanitário se tornam bandeiras e são incorporadas ao
conjunto das demandas sociais expressas pelas lutas da classe trabalhadora, sobretudo
nos movimentos de trabalhadores da saúde, trazendo uma dimensão política nova
para o movimento sanitário67. No ano de 1976, o Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde (CEBES) é criado. Espaço central de articulação teórica e política do
movimento sanitário, o CEBES se tornou referência para as lutas em curso no campo
e o principal canal de divulgação de uma “nova consciência sanitária”68.
O MTSM destaca-se, então, como um dos movimentos emergentes neste cenário.
No ano de 1978, a chamada “crise da DINSAM”69 e a “tomada de assalto” do V
Congresso Brasileiro de Psiquiatria demarcaram os primeiros momentos de
aglutinação do movimento. O I Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental é
realizado no ano seguinte, e o movimento segue crescendo e dando sinais de
amadurecimento. A crítica ao modelo asilar dos grandes hospitais psiquiátricos –
encarados como verdadeiros redutos dos marginalizados – se solidifica, seguindo as
trilhas de Basaglia. O MTSM afirma que
a luta pela transformação do sistema de atenção à saúde está vinculada à luta dos demais
setores sociais em busca de uma democracia plena e de uma organização mais justa da
sociedade pelo fortalecimento dos sindicatos e demais associações representativas
articuladas com os movimentos sociais. (AMARANTE, 1995, p. 55)
1979 também foi o ano de uma das vindas de Franco Basaglia ao Brasil, em que o
psiquiatra italiano participou de um longo ciclo de conferências e debates com
sindicatos e outras entidades profissionais em alguns estados (BASAGLIA, 1979). A
visita consolida a importância que a trajetória italiana e suas ideias teriam no Brasil.
Nos anos subsequentes novos encontros regionais e nacionais seguem acontecendo e
o movimento passa a incorporar entre as suas pautas a defesa dos direitos dos
“pacientes”. A manutenção de uma indústria da loucura começa a ser compreendida
como determinante para a força do aparato manicomial.
No início dos anos 1980, com a vitória de partidos de oposição nas eleições para
governador em diversos estados e com o estabelecimento da cogestão
interministerial70, inicia-se um debate sobre o movimento ocupar espaços na direção
de unidades e em órgãos estatais. Para Amarante (1995), a cogestão representa um
marco no processo da constituição das políticas públicas de saúde, por ser o
momento em que o Estado passa a incorporar setores críticos da saúde mental. A
validade da ocupação tática de espaços no interior do aparelho de Estado é
contraposta pela defesa da resistência por fora deste aparelho. Bezerra (1994) traduz
parte do dilema nos seguintes termos:
De um lado a dúvida quanto à tentativa de transformar o asilo de dentro de suas
entranhas: não seria mais proveitoso, mais correto, mais revolucionário construir
caminhos alternativos a ele? Haveria como evitar a neutralização e pasteurização das
propostas de renovação realizadas no interior de uma instituição tão aniquiladora quanto
o asilo? (p. 177)
O embate dividiria o movimento nos anos subsequentes. Na segunda metade da
década de 1980, o aparelho de Estado já está fortemente ocupado por militantes do
MTSM que assumem cargos de coordenação das políticas de saúde mental. É
notadamente aí que se deram certos embates travados nestes anos71. Também foi
neste período que ocorreram a 8a Conferência Nacional de Saúde (1986) e a I
Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), momentos de ampla participação
social e relativa abertura do Estado (em que pese também serem espaços
marcadamente institucionais), onde amplos debates em torno da participação
popular e da necessidade de autonomia do movimento foram travados72.
No final de 1987, também é realizado o II Congresso Nacional do MTSM, em
Bauru, cidade escolhida “pelo fato de estar sob uma administração progressista, inclusive com
expressivas lideranças do Partido dos Trabalhadores à frente da Secretaria Municipal de Saúde,
o que facilitava (...) a realização do evento” (idem, p. 81). O II Congresso nos parece
apresentar um ponto culminante no processo de consciência do movimento. Vejamos
o que diziam os trabalhadores ao seu final, no texto que foi divulgado como Manifesto
de Bauru (1987):
Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública
organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde
mental presentes ao II Congresso Nacional dão um passo adiante na história do
Movimento, marcando um novo momento na luta contra a exclusão e a discriminação.
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e da
violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana,
inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e
modernizar os serviços nos quais trabalhamos.
O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de
exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido
pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora
organizada.
O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo
de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a
discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de
cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus
direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.
Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação
nacional. Tal articulação buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde
Mental, aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.
Contra a mercantilização da doença!
Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e
autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana;
pela organização livre e independente dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos
serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988!
Por uma sociedade sem manicômios! (grifos nossos).
O manifesto dos trabalhadores de saúde mental reunidos em Bauru não apenas
revela uma mudança de patamar no seu processo de consciência, mas parece
reconhecê-la como um salto de qualidade, um passo adiante na sua história. Sua
atitude diante de desafios radicalmente novos é de ruptura, a partir da ampliação de sua
compreensão sobre os mecanismos de exclusão e violência do manicômio, expressão
particularizada de uma opressão que é mais geral. De uma estrutura que ali se
atualiza, mas que se impõe ao conjunto da sociedade, cuja superação não se dá,
portanto, através de uma ação isolada, mas de uma luta que deve ser integrada à de
todos os trabalhadores.
O MTSM parece mover-se na direção de uma expressão bastante radicalizada da
consciência de classe em si – típica de um movimento particular –, se deparando com
a necessidade de construção de um projeto emancipatório, que não pode se esgotar na
sua própria particularidade. Neste caminho de radicalização, evidentes traços
democrático-populares se apresentam, explicitamente expressos, inclusive, na defesa
de uma reforma sanitária democrática e popular73. A relação que aqui supomos entre a
trajetória deste processo de lutas e a EDP parece, assim, assumir contornos bastante
claros74.
“Por uma sociedade sem manicômios” torna-se a partir deste momento a consigna
do movimento; o manicômio passaria a simbolizar o conjunto de opressões desta
sociedade. Nos anos que se seguem o movimento incorpora também usuários e
familiares entre seus sujeitos políticos, através de suas associações. O MTSM se torna
Movimento Antimanicomial, e a luta pela cidadania dos loucos toma parte em um
projeto emancipatório maior, que quer mudar o lugar social da loucura. O período
subsequente é marcado pela reverberação deste processo, que vai se ampliando com
relação ao número de participantes, aspectos organizativos e ações.
Certas expressões começavam a ganhar corpo também no plano institucional. Os
primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são abertos, intervenções em
grandes asilos ganham ampla repercussão. Em 1989 é apresentado o Projeto de Lei
3.657/89, pelo deputado Paulo Delgado (PT/MG), que seria aprovado em 2001,
com alterações significativas. A lei 10.216, como ficou conhecida, busca assegurar os
direitos das pessoas com sofrimento mental e reorientar o modelo assistencial em
direção à comunidade. Durante os doze anos de sua tramitação diversas leis e
portarias estaduais são criadas, com propósito semelhante75.
A esta altura grande, parte das áreas técnicas de saúde mental estavam afinadas
com os princípios da reforma, inclusive no Ministério da Saúde, onde a pasta passaria
a contar a partir daí com a presença de gestores que ao longo de sua trajetória foram
militantes do movimento antimanicomial, em fases distintas do mesmo. Lideranças
do movimento passaram a assumir então cada vez mais cargos, o que não era
encarado como uma contradição, mas percebido, de modo geral, como consequência
positiva e natural, um desdobramento de um único processo – afinal, quem melhor
para implementar o projeto da reforma psiquiátrica que seus próprios idealizadores?
A resposta que confirma o caminho é quase inescapável.
Consciência antimanicomial em tempos democrático-populares: momentos finais
Os movimentos da Luta Antimanicomial brasileira que narramos a partir daqui nos
conduzirão para nossas últimas considerações. A hipótese que nos guia é a de que o
Movimento, sendo parte integrante daquele da classe trabalhadora neste período,
também expressa elementos de sua estratégia hegemônica, a Democrática Popular.
Se correta, tal hipótese poderá contribuir para esclarecer o quanto os caminhos do
desenvolvimento da consciência de classe na Luta Antimanicomial também se
entrelaçaram, em importante medida, inexoravelmente, àqueles operados pelo
conjunto da classe trabalhadora, em seu processo histórico. Cumpre recuperar o
foco então para os rumos da consciência da classe trabalhadora no desenvolvimento
da EDP, nos marcos de sua realização.
Em períodos de refluxo da luta de classes, como assinalado no início deste texto, a
efetivação de uma determinada estratégia se dará de modo transformado, não apenas
quantitativamente, mas também qualitativamente – a cautela se transformando em
acomodação, a coragem em oportunismo, a luta pela emancipação humana se
convertendo em luta pela “emancipação possível” etc. Em última análise, as coisas se
tornando seus contrários... Partilhamos da hipótese, a que aqui passamos
expressamente, então, de que a realização da EDP tem se dado no Brasil nos marcos
de uma democracia de cooptação76, em um caminho de conciliação de classes que,
não levando a um projeto de transição ao socialismo, tem representado o seu
apassivamento no interior da ordem burguesa, e o amoldamento às suas instituições
(IASI, 2006, 2012; DANTAS, 2014).
Um processo não deve nunca ser julgado pelo que se apresenta como seu produto
final. A história não pode ser encarada mecanicamente, como se a origem de um
transcurso pudesse conter um fim pré-determinado. O problema das leituras
mecanizadas e deterministas não é apenas a medida em que se tornam empobrecidas
nas análises da realidade, mas no quanto enfraquecem as alternativas de superação do
real que buscam apreender. Assim sendo, acabando reduzindo a crítica a conteúdos
meramente morais. Não pretendemos negar aqui, portanto, que o objetivo
emancipatório estivesse presente nas origens do projeto democrático-popular –
ainda que seu desenvolvimento tenha demonstrado limites intrínsecos à maneira
como se realizou, representando o amoldamento da classe à ordem que pretendia
negar. A radicalidade inegavelmente presente nos processos de luta antimanicomial,
tanto na Itália quanto no Brasil, também parece expressar o que aqui tentamos
assinalar.
A radicalidade da reforma italiana – a própria medida em que foi bem-sucedida –
não se fez acompanhar por um projeto emancipatório do conjunto da classe
trabalhadora. Isso não se dá sem efeitos. O descolamento entre a proposta de
transformação das relações sociais em torno da loucura e este projeto emancipatório
– alertado como impossibilidade estrutural pela Psiquiatria Democrática, vale
lembrar – terminou recolocando novos limites às experiências no próprio campo,
constrangidas aos marcos da ordem. Se a natureza da violência psiquiátrica foi
encontrada por Basaglia na natureza do próprio capitalismo, se a “solução” para este
“problema”, nos seus termos, não poderia estar encerrada no manicômio, ela
igualmente não caberia nas transformações internas ao campo. Por isso, apenas a
tomada de consciência da opressão permitiria a emancipação do louco.
Que caminhos tomou a consciência dos movimentos antimanicomiais em seu
devir histórico, inseridos, como estavam, num projeto estratégico que pretendia a
democratização do Estado capitalista, nas condições em que se realizou? Cumpre
retomar, a partir de tais questões, o curso das conquistas antimanicomiais. Falávamos
de um momento em que a Reforma se consolidava na direção das políticas públicas
em saúde mental, com a crescente ampliação da rede substitutiva ao hospital
psiquiátrico e uma gestão afinada com a direção reformista.
Também os espaços de formação em sintonia com a luta antimanicomial
começavam a se multiplicar; chegam ao novo e estimulante campo trabalhadores já
identificados com o projeto, muitas vezes atraídos por ele – independente de terem
participado do movimento de sua produção. O próprio cotidiano de trabalho passa a
ser compreendido como espaço da militância antimanicomial. Processo que parece
se fazer acompanhar, porém, de um esvaziamento do espaço de luta política, de
construção cotidiana do movimento social, cujo caminho começa a se dar no sentido
oposto, de crescente esvaziamento e fragilização. Se no âmbito das políticas estatais o
projeto da Reforma Psiquiátrica caminhava a notáveis passos largos, com relação ao
Movimento outras contradições se colocavam. Os últimos anos haviam sido
marcados por dificuldades importantes. Parte delas assim relatadas por uma
militante:
Na carta de Piatã, do encontro de Salvador [I Encontro], afirmava-se claramente o
princípio da autonomia do Movimento Antimanicomial diante do Estado, dos partidos,
das administrações; da mesma forma, estabelece-se a diferença entre o que são os
serviços substitutivos – órgãos do poder público, mais ou menos afinados com a lógica
antimanicomial, e os núcleos, organizações autônomas de um movimento social. (...)
Contudo, essa distinção frequentemente se dilui. (...) De algo podemos estar certos: esses
núcleos, embora certamente existam, estão longe de serem numerosos o suficiente para
ocupar o lugar fundamental que lhes atribuímos (...) (LOBOSQUE, 2003, p. 27-28,
grifos nossos)
O texto revela dificuldades que vinham sendo enfrentadas pelo movimento, face
ao crescente processo de institucionalização das políticas de saúde mental
identificadas com a Reforma Psiquiátrica. Por um lado, o esvaziamento (ainda relativo)
diante do número de equipamentos estatais, que não se acompanhava pela ampliação
da participação, como projetado. Por outro uma certa diluição frente ao aparelho de
Estado, uma aparente dificuldade em diferenciar-se dele. O V Encontro do
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA), realizado em 2001 (Miguel
Pereira/RJ), assiste a um drástico agravamento das dificuldades, culminando com o
abandono de uma das plenárias por parte dos militantes. O grupo que se retira
termina por fundar uma nova articulação antimanicomial, consolidando um racha.
No mesmo ano em que é aprovada a Lei da Reforma Psiquiátrica, o já fragilizado
Movimento Antimanicomial divide-se em dois, acentuando uma curva que já
descendia.
Chegamos assim a um aparente paradoxo. O que seria, por suposto, precisamente
o êxito das lutas do movimento, as inúmeras conquistas no plano institucional –
legislativas, nas políticas públicas, construção de rede substitutiva etc. – parece
processar num mesmo compasso a fragilização de sua força política e da capacidade
de manter-se como motor de um processo de transformações. Uma certa drenagem
para o aparelho de Estado, em seus diversos dispositivos, parece subtrair do
movimento sua condição de organismo vivo na luta, comprometendo sua capacidade
de ação. A consolidação da Reforma como direção da política pública de saúde
mental parece se afirmar, assim, em um vetor contrário ao que acompanha o
movimento social que a impulsionou, que míngua dramaticamente a partir de então.
A história do Movimento Antimanicomial parece confirmar que não é de modo
linear que se move a consciência (IASI, 2006). O que se apresenta como uma relativa
ampliação da consciência antimanicomial (expressa também na materialização de
demandas e bandeiras do Movimento) parece ser também a um só tempo o seu
constrangimento (aos mesmos limites institucionais que materializam esta
ampliação). Todos são e não são militantes antimanicomiais. No desenrolar do
processo histórico do Movimento Antimanicomial, parecemos assistir a uma
reinstitucionalização da sua consciência, em uma nova qualidade.
Se tanto para a Psiquiatria Democrática quanto para o Movimento
Antimanicomial, nos momentos iniciais de seu curso, a dimensão estratégica da
construção de um projeto emancipatório estava claramente colocada, nos anos que
se seguiram esta dimensão parece gradativamente se esvair ou no mínimo ter seus
tons desbotados. A “dimensão cultural”, pertinentemente valorizada enquanto parte
de um projeto de transformações societário, tanto em escritos italianos quanto
brasileiros, parece ganhar uma certa autonomia com relação aos mecanismos que lhe
produzem, em sentido aparentemente diverso daquele que havia sido descrito por
Basaglia, quando analisa a psiquiatria enquanto ideologia. Se o debate estratégico se
desbota neste momento, quinze anos depois ele sugere ter desaparecido quase por
completo. O movimento parece retornar, assim, à sua particularidade, a uma
dimensão particular de ser movimento. Movimento que reflete um recuo da consciência
que é do conjunto da classe trabalhadora, presente tanto no devir histórico a partir
da experiência eurocomunista, como, em nosso caso, no desenvolvimento e
realização da EDP.
O caráter militante se acentua como marca do cotidiano no trabalho das políticas
públicas, diante do avanço da precarização da rede de saúde mental, que não raro
torna a sustentação de uma direção antimanicomial de trabalho verdadeiramente
voluntarista, solitária, inviável. Evitar a internação passa a depender do empenho
individual de técnicos e equipes muitas vezes adoecidas e despotencializadas. Não são
raros os CAPS que não conseguem sustentar essa direção, ambulatorizando-se ou
terminando por banalizar o recurso à internação. A sobrevivência do manicômio, na
convivência com uma rede substitutiva precarizada e privatizada, leva o horizonte
antimanicomial a retroceder cada vez mais ao seu programa mínimo – resistir aos
asilos concretos, em meio a resignadas apostas na sua humanização.
Chegando ao final deste trabalho, difícil evitar a questão: se o manicômio não é
reformável, seria o capitalismo? Um processo de reformas que passe exclusiva ou
centralmente pelos espaços do Estado pode conduzir ao projeto emancipatório que a
classe trabalhadora almeja construir, enquanto classe independente do capital? Tais
questões não devem induzir respostas fáceis. Se hoje são colocadas, elas só o são
porque partem dos acúmulos históricos desta classe em seu processo de luta; no
último período, de seus embates em torno das experiências democráticas. Longe de
presumir uma resposta definitiva, o mapeamento que aqui trazemos, ainda de forma
inicial, serve antes para abrir caminhos e ajudar a colocar questões que consideramos
fundamentais para o debate do presente.
Os resultados produzidos ao longo da história dos movimentos antimanicomiais,
assim como do conjunto da classe trabalhadora, não esgotam necessariamente as
possibilidades que estavam contidas em gérmen nas lutas onde foram formuladas;
mostram, antes, o modo como se desenvolveram nas condições próprias da luta de
classes. Inventariá-las e fazer a sua crítica, compreendendo seus limites e
possibilidades, em movimento, torna-se indispensável, contudo, se pretendemos
seguir (re)construindo os caminhos que nos levarão a uma sociedade sem manicômios,
livre de quaisquer opressões. Nos marcos de Basaglia,
nós queremos ser psiquiatras, mas queremos ser sobretudo militantes. Ou melhor,
queremos transformar, mudar o mundo. E podemos transformar, mudar o mundo,
através da nossa especialidade, através da miséria dos nossos pacientes, que são uma
parte da miséria do mundo. (BASAGLIA, 1979, p. 29)
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38 Este trabalho foi originalmente apresentado para ingresso no Programa de Doutorado da Escola de Serviço Social da UFRJ
(PPGSS/UFRJ). Sua escrita, aqui revisada e adaptada, foi privilegiada, em diferentes momentos, pela leitura e contribuições de alguns
companheiros e professores aos quais aproveito para agradecer: Mauro Iasi, Isabel Mansur, Victor Neves, Beatriz Adura e Mavi
Rodrigues. Aproveito para agradecer também aos companheiros do Núcleo de Educação Popular 13 de maio, espaço fundamental na
minha formação teórico-política onde germinou grande parte das reflexões críticas que aqui serão trazidas e sem o qual esse trabalho
não existiria. A responsabilidade por possíveis insuficiências ou deficiências do texto, contudo, decerto é exclusivamente da autora.
39 Lema que ficou consagrado na história do movimento, como será melhor contextualizado no desenvolvimento.
40 Dado o caráter inicial deste estudo, desde já sinalizamos a necessidade de ampliar as mediações aqui estabelecidas, visando seu
desenvolvimento e aprofundamento.
41 Esse aspecto da caracterização antecipa uma consequência do próprio processo histórico do movimento, por isso deixamos aqui
apenas apontado, deixando para deslindá-lo em momento mais oportuno, no desenvolvimento do texto.
42 Em certos momentos, contudo, poderemos nos referir ao mesmo processo, sem prejuízo, como “movimento pela Reforma
Psiquiátrica”, ou ainda como “Luta Antimanicomial”.
43 Aqui Iasi sistematiza os principais elementos para a compreensão do modo como trata a questão da estratégia. Mas é em “As
metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento” que o autor, partindo da trajetória do Partido dos
Trabalhadores, “caminhando pra todos os lados do finito”, procura acompanhar o movimento da consciência da classe trabalhadora
brasileira em seu último período, buscando-o em suas oscilações e compreendendo-o em sua singularidade. Tomamos tal estudo como
referência no que se refere às suas hipóteses centrais com relação ao ciclo democrático-popular.
44 A partir deste momento nos referiremos à Estratégia Democrático-Popular como EDP, a título de abreviação, como tem se
convencionado.
45 Ainda que por formas não declaradas de adesão, por esforços de diferenciação ou mesmo por oposição.
46 Dizemos que ele está “em processo de fechamento” ou “se encerrando” (por oposição a “fechado” ou “encerrado”) porque o
encerramento definitivo só se dá com o surgimento e a transformação em “força material que se apodera das massas” de outra estratégia
que suplante a anterior. Enquanto o novo não surge, o velho não termina de perecer – e este perecimento envolve os processos de
transformação os mais diversos, de desenvolvimento de certas potencialidades regressivas em lugar de outras progressivas.
47 Para aprofundamento, ver A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes (FERNANDES, 2005).
48 A END enraizava-se nas formulações da Internacional Comunista, que definiu diretrizes político-revolucionário para os países
coloniais, semicoloniais e dependentes, tomando por base a leitura de Lênin sobre a Revolução Russa, o que acabou ficando conhecido como
uma aplicação mecânica de certas experiências em países com formações sociais muito distintas. Partia-se da compreensão de que um
desenvolvimento prévio do próprio capitalismo teria que preceder o processo revolucionário. A revolução socialista precisaria ser
antecedida assim por uma etapa nacional-democrática, que teria caráter anti-imperialista e anti-feudal. Uma etapa nacional, pois a uma
burguesia nacional também interessaria impulsionar esse desenvolvimento e amadurecer o capitalismo no Brasil. A aliança com essas
forças realizaria uma etapa burguesa da revolução, à qual se sucederia a etapa socialista. Para o aprofundamento sobre a END ver
Figueiredo (2014).
49 Ver Dantas (2014).
50 Em Carta de Nova York. O doente artificial, Basaglia (2005b) analisa de forma contundente as novas “instituições da tolerância” que se
forjam no convívio com as já conhecidas “instituições da violência” nos EUA. No centro do desenvolvimento do grande capital, as
demandas colocadas pelo novo ciclo produtivo são respondidas, no âmbito da ciência psiquiátrica, com significativas renovações técnicas
humanizadoras, prontas a reabilitar ao trabalho faixas menos dispensáveis na nova conjuntura – no bojo do conjunto de respostas na
mesma direção produzidas pelo Welfare State. É como resultado de uma práxis imersa no desenvolvimento das experiências históricas
que narraremos a seguir, que Basaglia pôde formular a compreensão que antecipadamente apresentamos.
51 A próxima sessão abordará de modo mais detido aquilo que Basaglia revela como função social do manicômio,
vinculada às demandas do capital no estágio de desenvolvimento que analisa.
52 Para aprofundamento sobre essas experiências, ver Nicácio (2001), Basaglia (2005a), Amarante (1995).
53 A principal referência aqui serão os escritos de Basaglia. O autor não será trazido aqui, contudo, no plano de uma produção teórica
destacada apenas, mas compreendendo-o enquanto intelectual orgânico de sua classe. O que tentamos capturar, neste sentido, é como o
movimento da classe, em seu processo de luta, ganha expressão na formulação unitária e coerente de um de seus principais teóricos –
cientes, entretanto, dos limites aí colocados em relação ao estudo do próprio movimento da classe.
54 A experiência de Gorizia é contada em diversos escritos de Basaglia (1979, 2005a).
55 Como eram conhecidos os guerrilheiros envolvidos na resistência contra o fascismo.
56 A exemplo da Psiquiatria Preventiva, como já referido, experiência americana de reestruturação da assistência.
57 Através do conceito de ideologia, Marx revela como o conjunto das relações materiais que estão na base do funcionamento da
sociedade de classes se expressa também na forma de ideias. O conjunto das relações sociais estabelecidas, e as ideias que delas fazemos,
são vividas como se “naturais”. O fato de tais ideias aparecerem invertidas, como descrito em A ideologia Alemã (MARX, 1984), tem
origem na inversão real operada no processo de produção da vida nos marcos do capitalismo.
58 E indissociavelmente do conjunto de lutas sociais que se intensifica na Itália neste então.
59 Utilizamos como fundamento os estudos sobre o processo de consciência de Iasi (2006; 2007).
60 Não negligenciamos aqui o fato de ser o partido a principal forma coletiva de expressão da consciência de classe. Contudo, como
ficará mais claro no decorrer do texto, tanto para o eurocomunismo quanto para a então nascente EDP, os movimentos sociais são
tomados como importante componente da formulação estratégica, de tal modo que, neste ciclo histórico, é possível apreender o
desenvolvimento do seu processo de consciência no escopo daquele mais global da classe trabalhadora.
61 As referências adotadas para esta parte do texto são os trabalhos de Dantas (2014) e Motta (2014).
62 Os esforços de diferenciação que a movem são relevantes se desejamos compreender os caminhos da classe trabalhadora em suas
lutas e buscas teóricas na Europa do pós-guerra; buscar compreendê-los em suas sinceras intenções pode servir de vacina contra leituras
mecânicas e deterministas acerca de seus rumos e desfechos, hoje facilmente criticáveis. A crítica fácil, contudo, pode reduzir-se a mera
crítica moral, pouco ajudando a compreender os movimentos que aqui buscamos capturar.
63 Destacado militante e intelectual do PCI até os anos 70, com grande influência para as formulações eurocomunistas.
64 Vale assinalar que para a “A Democracia como Valor Universal”, de CNC, assim como seus desdobramentos teóricos e políticos,
também afluíram o debate em torno da experiência soviética, bem como o germinal processo de redemocratização.
65 Para uma análise mais aprofundada das relações entre o intelectual e a EDP, ver o artigo de Souza (2014).
66 As referências históricas aqui serão Amarante (1995) e Bezerra Jr (1994), integrantes dos movimentos que analisam.
67 O movimento sanitário até então se mantinha circunscrito predominantemente a espaços acadêmicos e de formulação teórica. O
surgimento e trajetória do MTSM não podem se destacar, como já mencionado, deste campo setorial de escopo mais amplo que se
consolidava no mesmo período. O também nascente movimento sanitário aglutinava aqui o conjunto do setor saúde. A abordagem mais
pormenorizada da trajetória sanitarista não poderá ser feita aqui, dado os limites deste artigo, mas o leitor pode encontrá-la em Dantas
(2014).
68 Através de inúmeras e fecundas publicações, organização de encontros e conferências, entre diversas atividades.
69 Fruto de uma greve seguida da demissão de 260 profissionais de unidades psiquiátricas do Rio de Janeiro. A Divisão Nacional de
Saúde Mental, órgão federal responsável pela assistência psiquiátrica no país, torna-se alvo das mobilizações de trabalhadores, que
encontram eco no sindicato dos médicos e no CEBES, fortalecendo e se incorporando às críticas ao modelo sanitário brasileiro. O
episódio ganha destaque na imprensa e alcança repercussão nacional: a violência e o descaso no cuidado aos internos das unidades
psiquiátricas mobiliza a opinião pública e é emparelhada à violência e autoritarismo do regime militar, engrossando o coro pela
democratização.
70 Modalidade de convênio que estabelece a gestão compartilhada das unidades hospitalares do Ministério da Saúde (MS) entre este e o
Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS).
71 Também neste momento, o movimento sanitário vinha enfrentando dilemas semelhantes, quando alguns de seus intelectuais,
identificados com o projeto de reforma, são chamados a ocupar postos na Previdência Social, face à crise financeira, diante da falência
do modelo privatista. O movimento sanitário apostou hegemonicamente na via institucional como tática principal durante seu
desenvolvimento histórico. Dantas (2014) analisa pormenorizadamente este processo.
72 Tais Conferências foram momentos de intenso debate que mereceriam atenção mais detida, o que não será possível nos marcos deste
trabalho. A leitura de Amarante (1995) é profícua para um panorama deste momento.
73 Fato de o evento ser realizado numa cidade de administração petista, pelas facilidades aí encontradas, também não é secundário; revela,
antes, a existência de uma articulação política, a despeito de não haver um vínculo mais formal.
74 Vale lembrar que 1987 também é o ano em que o PT realiza o seu 5o Encontro, onde, segundo Iasi (2012), a EDP ganha expressão
em sua forma mais acabada, pela formulação programática. Ano de intensas mobilizações sociais, mas que também demarca uma
inflexão na dinâmica da luta de classes no Brasil, inaugurando um momento de longo recuo e defensiva.
75 Não por acaso, este também é o período em que o PT começa a eleger bancadas parlamentares e a conquistar as primeiras
experiências de administração municipal, afirmando-se como principal força política de oposição, no plano institucional.
76 A categoria “democracia de cooptação” é cunhada por Florestan Fernandes ao estimar possíveis caminhos da burguesia para
consolidação de sua hegemonia (IASI, 2013). Tratar-se-ia de um “cenário [em que] a ordem poderia oferecer pouco aos trabalhadores
em troca de sua aceitação da ordem burguesa, mas mesmo este pouco seria considerado muito pelos setores burgueses no controle do
Estado” (p. 10), pensada por Florestan como caminho pouco provável, considerando a conjuntura que analisava (meados da década de
70). A categoria parece mostrar-se relevante, contudo, para a compreensão do presente.
Sobre os autores
Amanda Milani de Oliveira Araujo
Graduanda de Psicologia da Universidade Estácio de Sá.
Ana Carolina de Lima Jorge Feitosa
Psicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense; especialista em Saúde
Mental e Atenção Psicossocial pela Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ;
mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; Psicóloga no Serviço de Internação Masculino do Hospital Psiquiátrico de
Jurujuba; Psicóloga no Sistema Prisional do Estado do Rio de Janeiro; Professora da
Universidade Veiga de Almeida e do curso de Pós Graduação em Saúde Mental e
Atenção Psicossocial na Universidade Estácio de Sá.
Anastacia Mariana da Costa Melo
Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-
UFRJ/2008; Mestrado em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro UERJ/2013 e atualmente é Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui experiência
na área da saúde mental e atenção psicossocial com atuação voltada para os serviços
substitutivos. Atualmente é professora no curso de Serviço Social do Centro
Universitário Geraldo di Biase e Assistente Social do Centro de Atenção Psicossocial
de Itatiaia/RJ.
Beatriz Adura Martins
Militante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Doutora em
Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Supervisora Clinico-Institucional
da Rede de Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro. Possui graduação em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006), Especialização
em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Escola Nacional de Saúde Pública
[ENSP/Fiocruz] e Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense
(2009).
Catarine Venas Rodrigues
Psicóloga. Doutoranda em curso do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense. Possui Mestrado em Psicologia na linha de
pesquisa Política, Subjetividade e Exclusão Social pela Universidade Federal
Fluminense (2015), Especialização em Filosofias da Diferença pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (2011). Professora colaboradora na Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/ FIOCRUZ ministrando a disciplina
Acompanhamento Terapêutico (2014). Percurso profissional na área de Saúde
Mental, tendo trabalhado em Hospital Psiquiátrico de Longa Permanência, CAPS,
acompanhante terapêutico e atual Coordenadora no Programa de Residências
Terapêuticas.
Daniela Albrecht Marques Coelho
Psicóloga. Servidora da prefeitura do Rio de Janeiro, atualmente na direção do
Núcleo de Articulação e Intervenções Culturais do IMAS Nise da Silveira. Mestre em
Políticas Públicas e Formação Humana pelo PPFH/UERJ. Doutoranda do
PPGSS/UFRJ. Militante do Núcleo Estadual do Movimento da Luta Antimanicomial
do Rio de Janeiro (NEMLA/RJ) e do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.
Monitora do Núcleo de Educação Popular 13 de Maio.
Débora Bastos De Lima
Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(2007). Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/FIOCRUZ.
Pesquisadora pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB) pelo método Critical
Time Intervention (CTI) visando a desinstitucionalização de pacientes egressos de
Instituições Psiquiátricas. Supervisora clínico-institucional dos Núcleos de Longa
Permanência dos Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira
(IMAS/JM).
Fernanda Gonçalves da Silva (Organizadora)
Atualmente no Estágio Probatório do Doutorado – IPUB/UFRJ Laboratório de
Tanatologia e Psiquiatria em outras condições medicas – UFRJ. Mestre em avaliação
psicológica e construção de instrumentos pela Universidade Salgado de Oliveira
(2011). Especialização em Gestão de pessoas (PUC/RJ), Especialização em Teoria
Cognitiva Comportamental (UFRJ), Extensão em Neuropsicologia (PUC/RJ).
Atualmente, é professora do Curso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. Tem
experiência na área de Psicologia, atuando principalmente em psicodiagnóstico
clínico e organizacional.
Juliana Desiderio Lobo
Assistente Social formada pela UFF, especialista em administração e planejamento
pela UNIGRANRIO, mestre e doutoranda em Política Social pela UFF. Docente da
Universidade Estácio de Sá e Faculdade Duque de Caxias. Realiza pesquisa e estudos
individuais na área de saúde mental com ênfase em álcool e outras drogas e atuação
profissional em Serviço Social.
Katita Figueiredo de Souza Barreto Jardim
Doutora em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz. Mestre em Psicologia pela UFRN.
Colaboradora do Laboratório de Pesquisas e Estudos em Saúde Mental e Atenção
Psicossocial – LAPS/Fiocruz.
Kelly Porto
Assistente Social, Especialista em Formulação e Gestão de Políticas em Seguridade
Social pela UFRJ e Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial com ênfase
em Álcool e Outras Drogas pela Faculdade Governador Ozanam Coelho.
Marco José de Oliveira Duarte
Professor Adjunto da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Saúde Mental e Saúde Coletiva, Mestre e
Doutor em Serviço Social. Coordenador do NEPS/UERJ, do PROAFRO/UERJ, do
Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da UERJ e do PET-
Saúde-Redes-Rede de Atenção Psicossocial da UERJ/MS. Pesquisador do
LIDIS/UERJ, Supervisor Acadêmico do CAPS/UERJ, Conselheiro do Conselho
Estadual LGBT-RJ e do CONSUN/UERJ.
Melissa de Oliveira Pereira
Psicóloga. Mestre e Doutoranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca ENSP/Fiocruz. Professora do Curso de Especialização em
Saúde Mental e Atenção Psicossocial CESMAP/ENSP/FIOCRUZ.
Paula Santos Ferreira
Psicanalista com experiência na área de saúde mental. Graduada em Psicologia
pela UFRJ. Pós-graduada em gestão de pessoas pela UCAM. Mestre em Saúde
Pública na área de violência e saúde pela ENPS/FIOCRUZ. Atuou como psicóloga
concursada do município de Angra dos Reis – CAPS II. Atua em consultório
particular. Professora do curso Escola Preparatório do Rio de Janeiro. Pesquisadora
em saúde mental na EPSJV/ FIOCRUZ. Analista em formação permanente na escola
de psicanálise Corpo Freudiano – Rio.
Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Médico Psiquiatra. Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca ENSP/Fiocruz. Doutor Honoris Causa pela Universidad
Popular Madres de la Plaza de Mayo. Professor e Pesquisador Titular do Laboratório
de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da ENSP/Fiocruz.
Vice-Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Presidente
de Honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME). Diretor de Política
editorial do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e editor da Revista Saúde em
Debate.
Rachel Gouveia Passos (Organizadora)
Assistente Social. Pós-doutoranda em Serviço Social e Política Social pela
UNIFESP. Doutora pelo Programa de Estudos de Pós-Graduados em Serviço Social
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo realizado estágio doutoral na
Universidade de Coimbra. Possui Mestrado em Política Social pela Universidade
Federal Fluminense, Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela
Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ.
Renata Andrade Santos Pereira
Psicóloga. Especialista em Clínica Psicanalítica no Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rosane de Albuquerque Costa (Organizadora)
Possui mestrado em Educação pela Universidade Estácio de Sá (1999) e
especialização em prevenção de violência doméstica e abuso sexual (PUC/RJ).
Atualmente, é professora do Curso de Psicologia e Coordenadora do Curso de
Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Universidade Estácio de
Sá, além de ser psicóloga hospitalar. Tem experiência na área de Psicologia, atuando
principalmente nos seguintes temas: subjetividade, fracasso escolar, cidadania,
dificuldades de aprendizagem e psicologia hospitalar.