Arquitetura no Brasil
de Cabral a Dom João VI
Chico Mendes Chico Verissimo William Bittar
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IMPERIAL
NNOvO MILNIO
PRODUÇÃO EDITORIAL
Susi B. Sert
Nádia Megale
PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO ECAPA
Saul André
IMAGEM DACAPA
Chafariz de Tiradentes
ilustração de Francisco Veríssimo
IMAGEM DAQUARTA CAPA
Vila Rica
ilustração de Francisco Veríssimo
Chico Mendes, Francisco Veríssimo e William Bittar, 2007
autores.
As opiniões contidas nesta obra são de responsabilidade exclusiva dos
CIP Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
M491a Mendes, Francisco Roberval, 1949
no Brasil: de Cabral a D. João VI/ Chico Mendes,
Arquitetura
Francisco Veríssimo, William Bittar. - Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio,
2009.
il. (Coleção Arquitetura no Brasil; v.1)
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-99868-11-9
1 edição 2007
impressão: revisado conforme Novo Acordo Ortográfico da Lingua
2Portuguesa / 2010.
Brasil- História Periodo colonial,
1. Arquitetura Brasil História. 2.
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Estado- Brasil. 5. Planejamento
1500-1822. 3. Arquitetura e história. 4.Arquiteturae 1951-. II. Bitta,
Brasil História. I. Veríssimo, Francisco Salvador,
urbano IV. Série.
William Seba Mallmann, 1955-. Ill. Titulo.
CDD 720.981
CDU 72(81)(091)
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Arquitetura no Brasil
de Cabral a Dom João VI
Chico Mendes Chico Veríssimo - William Bittar
INANova MILËNIo
IMPERIAL
Rio de Janeiro - 2010
2 Dos núcleos urbanos
*
Após as três primeiras décadas de ocupação extrativista, constatou-se
que a defesa daquele novo território, que tantos lucros poderia fornecer ao
governo absolutista português, se definia como prioritária. As primitivas
feitorias, muitas abandonadas ou destruídas por invasões estrangeiras ou pelos
próprios nativos, eram substituídas porvilas e cidades quereproduziam modelos
utilizados na Metrópole
Assim, paulatinamente, as_principais embocaduras de rios e baías
estratégicas, capazes de oferecer seguros portos, foram sendo ocupadas por
assentamentos dotados de maior complexidadeconstrutiva, mesmo diante das
dificuldades materiais.
"Indo nóspela costa cerca de 10 léguas donde nos levantamos acharam
Os ditos navios pequenos recifes com um porto interno, muito bom e muito
seguro, com uma entrada bem larga".
2.1 Dos muros
Antes mesmo da implantação oficial das vilas na Colônialusa,os muros
foram definidos como legítimas de posse e defesa, protegendo as
formas
primeiras feitorias contraos ataques indigenas e possíveis invasões de outros
povos interessados nas riquezas da nova terra.
primeiro núcleo implantado com o fórum de cidade no Brasil, São
O
Salvador da Baía de Todos os Santos, em 1549, representava ideal de
o
cidade-fortaleza'", junto auma grandebaía que lIhe serviu de porto. Cuidava-se,
não apenas da defesa, como em diversas outras vilas lusas tanto
portanto, Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha
ao Rei D. Manuel, datada de 1 de maio
na América quanto na Africa e Asia, mas com as características propícias de 1500.
dos
do sítio, "tendo atenção à capacidade do ancoradouro, à bondade Extraído do Regimento de Tomé de Sou-
za, de 1548, quando da fundação de
ares e águas".2 Salvador.
Dos núcleos urbanos (45
Salvador, portanto, acumulava as vantagens: uma área de moradia no
platô, protegida por muros e portðes e um espaço junto ao mar para as
atividades
portuárias.
No entanto, o século XVI já assistia :à derrocada das muralhas no
continente europeu devido ao desenvolvimento das armas de guerra, que
definitivamente incorporaram a pólvora ao seu repertório. Os muros,
responsáveis por heroicos episódios de resistência, tornavam-se vulneráveis
diante do poderdos novos engenhos.
Outra usual estratégia de defesa, a implantação em sítio elevado tão
eficiente para os núcleos medievais,tornava-seinócuaa partir das novas técnicas
e armamentos. Urgia o surgimento de novas táticas diante de uma artilharia
mais poderosa e certeira.
Chamavam-se traças os planos
referentesà implantação dascidades. Os assentamentos intramuros, encastelados nos morros, abandonavam
tanto em relação ao traçado quanto aos
elementos defensivos. gradativamente seu sítio original, expandindo-se ladeira abaixo, para a orla,
sébastien le Prestre, senhor de Vauban, aproximando-se do porto. Fortes e fortins, dispostos em estratégicas posições,
foi um militar francês especialista na
organização de diversas praças-fortes substituíam os muros que, pouco a pouco, eram desmontados, tornando-se
e fortificações no final do século XVII,
participando pessoalmente de vários apenas referências das traças originais', como ocorreu com Salvadore Rio de
cercos bem- sucedidos. Seu trabalho
influenciou toda uma geração de Janeiro. Ambas dirigiram-se para avárzea, junto ao mar, incluindo fortes no
engenheiros militares. (n.a.)
seu mapeamento defensivo
(fig. 41).
Fig. 41. O núcleo original da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1567, foi transferido para baía adentro, implantando-se no
morro do Castelo.
Diante das dificuldades surgidas durante a União Ibérica (1580-1640), a
Coroa precisou contratar novos
profissionais para combater os inimigos herdados
da Espanha, que se dirigiram com avidez para invasões e butins no litoral aa
Colônia. Engenheiros militares, aptos para construção de fortalezas capazes de
resistir fogo dos canhðes e combater o invasor d'além-mar surgiram como
ao
indispensáveis para reforçar as defesas e implantar novos modelos de fortificações
em estratégicas
posições, inspirados nos trabalhos de Vauban.
46) Arquitetura no Brasil
As vilas e povoações fundadas no Brasil, a partir das últimas décadas do
século XVI, já não incorporaram muralhas como defesa de seu sítio principal,
substituindo-as por fortins ou baluartes dispostos em locais invisíveis ao
inimigo,
camuflados na paisagem, como na baía de Paraty (fig.42).
Fig. 42. Localização provável de alguns fortins da baía de Paraty, RJ.
O grande contingente necessário para a defesa das muralhas, além do
risco direto para toda a população, era substituído por um número menor de
combatentes treinados que poderiam, inclusive, promover recuos estratégicos
diante da invasão direta do núcleo urbanizado.
A imagem das cidades coloniais brasilciras que povoa nosso imaginário,
um discreto conjunto decasas balizado portorres de igrejas, recortando seu
perfil contra a paisagem agreste ou exuberante vegetação, sem a presençade
muros ou portões, é herança direta deste tempo quando as muralhas foram
abandonadas por outras formas de proteção (fig. 43).
Fig. 43. Porto de Paraty, com armazéns e torre da igreja de Santa Rita, contrastando com a
paisagem tropical, sem a presença de muralhas.
Dos núcleos urbanos (47
2.2 Dos traçados
Embora existissem algumas normas referentes å organização das vila
ilas
medievais europeias, não estava consolidada uma regulamentação urbanístic
a.
Geralmente, igreja e casteloem posição de destaque, em pontos mais elevados,
enquanto os outros edificios esgueiravam-se morro abaixo, em vias sinuosa
revelando sua herançamuçulmana, ainda presente no bairro lisboetade Mourario
(fig. 14).
Diversas vilas e cidades brasileiras, por todo o Período Colonial.
receberam influência direta desta forma de ocupação, arraigada na memória de
seus ocupantes, nem sempre com formação erudita.
Com a aproximação do ideal renascentista, resgatando valores da
Antiguidade clássica, os traçados regulares voltaram à ordem do dia,
chegando a integrar códigos mais complexos como as Leyes de Indias.
A disposição de ruas em quadras recebeu influência direta da tradição
romana, responsável pela adoção de um partido semellhante a um tabuleiro de
xadrez, com quarteirões quadrados (insulae) com cerca de setenta metros de
lado. Consolidavam-se, em alguns núcleos, determinações das Leyes de Indias
que indicavam:
Quando fizerem o plano do
lugar, distribuam em praças, ruas e
parcelas, com cordãoe régua, a
partir da praçaprincipal em direção
às entradas e
VR NOTE caminhos principais,
deixando território suficiente para o
crescimento da cidade. Esta sempre
deverd poder seguir o seu
Crescimento de acordocom omesmo
Este conjunto de leis era constituído por
Fig. 44. Traçado reticulado de Mendoza, modelo, se dilatar, apesar do grande
códigose diretrizes para o planejamen-
to, implantação e desenvolvimento dos Argentina, em 1562, adotando a geometria aumento da população" (fig.44).
novosassentamentos e povoações. Leis rigorosa, disposta nas Leyes de Indias.
de urbanismo (decretos, alvarás e medi-
das reais), ditadas pelas províncias
hispano-americanas, foram criadas para
determinar o traçado das cidades fun- Tais determinações eram cumpridas de forma rigorosa na Amer
dadas pelos espanhóis na ocasião da
conquista das Américas. Não se limitam hispânica, mas no Brasil tal regularidade não foi adotada de forma incondiciona.
apenasà concepção formal, reticulada,
Afinal, o colonizador português não era o militar espanhol
mas também a elaborar o zoneamentoe
uso dosolo.
cumprindo ordeis,
mas camponeses, mercenários, galés, degredados, homens sem
VERÍSSMO, F.; BITTAR, .s.M.;
comum apenas a memória de
disciplina, em
ALVAREZ, J.M. Vida Urbana, p.50.
suas aldeias ou vilas d'além-mar.°
48) Arquitetura no Brasil
Além disso, não havia equipamentos
de precisão ou profissionais suficientes
demarcação de ruas ou locação de edificações no lote, gerando
para a
em provável planejamento do
distorções
traçado.
Ainda assim tal implantação foi
tentada em algumas situações, procurando
adaptar-se condições geográficas locais, fisicas ou militares. Salvador
às
originalmente, obedeceu a traços regulares por determinação real, mas o
enxadrezado de ruas e praças foi flexível, permitindo a adaptação de terrenos
disponíveis entre o mar, as encostas e lençóis d'água, às ruas das extremidades,
determinando quarteirões de formas, tamanhos eproporções diversas. No início
da ocupação da várzea no Rio de Janeiro, ao final do século XVI, o
traçado
romano também se fez presente," situação discretamente
do arruamento de Paraty, com
compartilhada quando
ruas dispostas nos eixos Norte-Sul, paralelas ao
mar ou Leste-Oeste,
perpendiculares à orla.
2.3 Dos lotes
As muralhas
gradativamente desapareciam dos cenários coloniais, mas os
lotes permaneceram com a mesma configuração dos primeiros tempos,
mantendo-se semelhante até as décadas iniciaisdo século XIX. Tratava-se de
retângulos alongados, com pouca largura voltada para o logradouro principalelongas
faceslateraiscoladasàs divisas,queaindapersistem em diversas cidades brasileiras.
A solução não era original, pois, assim como na
antiga Mesopotâmia,
permitia uma maiorconcentração de habitantes em menor espaço, que poderia
ser facilmente protegido, com economia de tempo e material.
No entanto, ao longo de sua história, a implantação da casa no temeno apresentou
variações decorrentes de múltiplos fatores como o clima e formas de produção. Na
Antiguidade, o edificio ocupavatodo olote,efetuando-se aventilaçãoeiuminação
através de páios intemos, cujo partido proporcionava a amenizaçãodo climaquente
VERÍSSMO, F.; BITTAR, W.S.M.
e seco, para seus habitantes, em regiões de reduzida precipitação (fig. 45). ALVAREZ; J.M. Vida Urbana, p.50.
A
Fig. 45. Em áreas adensadas, o
pátio interno tornou-se um
fator condicionador do clima,
amenizandoo calor.
Dos núcleos urbanos(49
O europeu medieval perpetuou olote apreendido do conquistador roman
mas, devido às necessárias adaptações climáticas, alterou a relação de
implantação da casa. Sua área foi reduzida, favorecendo as possibilidades de
aquecimento, pois o calor e aridez da região asiática eram substituídos pela
frio e umidade de um clima temperado.
A área livre do terreno era
****
destinada à plantação eàpequena
criação, elementos de subsistência
inclusive para períodos de inverno
e escassez ou diante de cercos
prolongados de possíveis
invasores (fig.46).
Fig. 46. A aparente densidade de edificações não se confirmava numa Tal modelo foi também
mais atenta. observação
Os fundos dos lotes eram livres para o plantio e criação.
adotado em Portugal e trazido
para o Brasil, incluindo algumas
inovações, principalmente rela-
cionadas com aspectos climáticos
tropicais: já não se fazia neces-
sário um ponto elevado para os
telhados,
aguardando-se a neve.
A cozinha, elemento gerador de
**-
***
calor e fumaça, dirigiu-se para o
exterior da habitação, junto ao
quintal e à criação. Mas a
disposição principal apresentou
Fig. 47. Nos trópicos brasileiros, foram necessár+as algumas poucas alterações em relação å
adaptações como a redução do
ponto do telhado e a extroversão da cozinha. -sua matriz (fig.47).
2.4) Das praças
Desde ágora grega, o espaço da praça
a
é inseparável do imaginario
urbano. Aobucólico romantismo da
memória, agregam-se as festas, a>
quermesses, as proCisSões, as
Trecho de O Povo ao Poder, de Castro execuções, o protesto, o clamor popular. Afinal,
as praças são "do povo como o
ALVES, num improviso durante conflito
republicano em 1864, no Recife. cria
céu é do condor: Eo antro onde a liberdaue
águias em seu calor!'"8
50) Arquitetura no Brasil
No Brasil colonial, assim Europa, a praça definia um espaço
como na
público aberto principalmenteao comércio, à políticae às atividades religiosas,
eventos que representavam as relações sociais. Não incluíam, como ocorreu a
partir do século XVIl, equipamentos urbanos que modificaram suas
características originais, acrescentado-lhes a função do lazer.
"A cada canto um grande conselheiro,
que a vida do vizinho e da vizinha,
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
para levar à praçae ao terreiro.
Tal importância que muitas foram definidas nas traças originais,
era sua
como em Salvador, projetada por Luiz
Dias", ou Ribeirão do Carmo, no sertão
das Gerais.
Apartirdo século XVIL, as praçaseuropeias foramdefinidas porelementos
perimetrais padronizados de arquitetura, alguns transpostos para o Brasil
pombalino e implantados no Rio de Janeiro, capital do vice-reinado a partir de
1763, Belém,no Grão-Pará ouSão Luiz, no Maranhão.
Mais uma vez, como nas fortificações, osprojetos de remodelação urbana
eramimplantados por engenheiros militares, como Alpoim, no Rio de Janeiro,
Vila Rica e Mariana.
No caso do Largo do Paço, futura praça XV de Novembro, no Rio de Gregório de MATTOS, poeta baiano
do século XVII.
Janeiro, as grandes obras que o definiram completamente foram realizadas
Regimento de Tomé de Souza.
pelovice-rei D. Luís de Vasconcelos e Souza (1779-1790), com diretrizes quando da implantação do Governo
Geral no Brasil e a fundação da cida-
igualmente aplicadas noantigoterreiro do Paçolisboeta,transformado na Praça de de Salvador. (n.a.)
do Comérciol' (figs. 48 e 49). Vida Urbana, p. 47
ig. 48. Largo do Paço, Rio de Janeiro, retratado por Barat. Fig. 49. Painel de
azulejos registrando o antigo Terreiro do
Paço de Lisboa, séc. XVIII.
Dos núcleos urbanos (51)
A semelhança entre o Largo carioca e o
Rossio
deLisboa foi registrada por versos observadores, como
Vahia Monteiro (1725-1732): "a fortaleza de
São
Sebastião (situada no morro do Castelo]fica iminent
sobre esta cidade da mesma sorte que o
Castelo nesta
Lisboa] fica sobre o Rocio " (fig. 50).
Corte
O Passeio Público do Rio de Janeiro, naraus
implantado pelo mesmo vice-rei sobre um atero gue
Fig. 50. O Rossio lisboeta também foi uma
sepultou a Lagoa do Boqueiro da Ajuda, vazadouro de
definição do partido para Largo do Paço doreferência
o
para a
Rio de Janeiro.
lixo e águas serVidas, fo1
projetado pelo Mestre
Valentim, fora dos limites da área urbanizada. Asseme-
lhava-se em espaço e nome a elemento
urbanístico
lisboeta, pós-terremoto, integrante da estratégia pedagógica
e lúdica das
Luzes.120 jardim carioca, de concepção francesa, incluía aleias de árvores
dispostas de forma regular, ao longo de alamedas
um
retilíneas. Junto ao mar,
pequeno terraço como cenário para artística fonte, ornada
de jacarés e palmeiras de bronze, com esculturas
(figs. 51 e 52).
precedido por duas pirâmides de granito
Fig. 51. Passeio Público de Lisboa, séc. XVII.
Fig. 52. Portão do Passeio
Público do Rio de Janeiro, final séc.
A
XVI
praça central da antiga Vila Rica
simbólicos deste espaço ainda consegue sintetizar os
urbano, pois ali se destacavam aspec da
administração colonial na região, dois icon
Metrópole com atestando a
conciliação dos interesses da
os das elites
fortaleza e paço, projetado porcoloniais. O Palácio dos Governadores, mis de
12
FRANÇA, José Augusto. Lisboa:
oposto, idealizada pelo Alpoim, ocupa a área mais alta da praça. ado
Urbanismo e Arquitectura. Lisboa:
governador Luiz da D01
Biblioteca Breve, 1989, p 51.
Cadeia. Entre ambos, no coração do Cunha Menezes, a Casa
de Ca
espaço público, havia um
o
pelourinho
(52) Arquitetura no Brasil
chafariz. Naquele espaço, pela primeira vez a Coroa portuguesa revelava seu
caráter dominador, inclusive em relação àigreja, que nesta praça
desempenhava
papel secundário, po1s as duas matrizes localizavam-se relativamente afastadas,
nos núcleos dos antigos arraiais do Pilar e
Antonio Dias (fig.53).
1. Palácio dos Governadores -
2. Casa de
Câmara e Cadeia - 3. Pelourinho -4. Chafariz 5.
-
Igreja
S
Fig. 53. Praça Tiradentes, em Ouro Preto, MG, no final do século XVI
Desde os primeiros assentamentos humanos, a praça revelou-se como
principal elemento urbano, definindo o local onde os habitantes se reuniamn
para a realização de todo ato comunitário: pregões, leitura de resoluções
camarárias, reuniões para procissöes ou festejos, feiras, cavalhadas,
execuçoes.13
No Brasil, não houve exceções, pois também as praças se constituíam
em pontosde reunião, congregandoatividades oficiais, leigas, religiosas, pags, $BARRETO, Paulo Thedim. Casas de
Câmara e Cadeia. In: Arquitetura
sob atutelaetestemunho da Igrejae da Câmara. Oficial I (textos escolhidos da Revista
Os rossiosl5, onde a população adquiriu o costume de plantar do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional). São Paulo: FAU-USP/
comunalmente, pavimentação de terra batida, formas irregulares ou planejadas, MEC-IPHAN, 1978. p. 156-157.
14SANTOs, Paulo Ferreira dos.
despojadas de equipamentos ou com vistosos chafarizes, enfim, coração das Formação de Cidades no Brasil
Villas que, com a chegada da Revolução Industrial,abandonaram a função Colonial. Coimbra: V Colóquio
Internacional de Estudos Luso-Brasileiros,
Paincipal de ponto de ajuntamentose de feiras, transformando-se em rótulas
de 1968, p. 64
ransito ou imperfeitas áreas de lazer, distanciando-se da sua concepção e rossio era uma reservadeterra urbana
para futura expansão da cidade,
significados originais. geralmente disposta em quadra e de
domínio publico.(n.a.)
Dos núcleos urbanos (53)
2.5) Dos núcleos na Colônia
2.5.1 Os primeiros assentamentos - as feitorias
Acudirampelapraia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira
que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens,
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas
(...) Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de
proveito, por o mar quebrar na costa"l6 (fig.54).
Ali estavam os donos da terra e o invasor branco, porém sem
aparente hostilidadeno primeiro contato. Ao contrário, mesmo sem
uma comunicação formal, a troca de presentes, sugeria umn
relacionamento tolerante.
Seria possível avaliar, sem derramamento de sangue, a
potencialidade da nova terra, cuja fama já chegaraà Europa, repleta
de lendas e mistériOS.
Fig. 54. Primeiros assentamentos, na visão de Hans
Vieram as expedições marítimas para reconhecimento do litoral,
Staden
a escolha de nomes para os acidentes geográicos e, graças à habilidade lusa,
fundiam-seatoponímia tupi com opanteão desantosdocalendário católico.
A cartografiae descrições do séculoXVIrevelavam florestas, animais estranhos,
selvagens, conforme o jesuíta Fernão Cardim, no início do século XVI "Em Porto-
Seguro se vêem alguns, ejá tem morto alguns indios. O modo que têm em matar
he: abração-se com a pessoa tão fortemente beijando-a, e apertando-as comsigo
que a deião feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta dão
alguns gemidos comno de sentimento, e largando-a, fogem; e se levão alguns
comem-lhes somente os olhos, narizes e pontas dos dedos dos pés e mão, e as
17
genitáias, e assi os achão de ordinário pelas praias com estes cousas menos.
Registrava-se, por escrito, vocábulos de uma manifestação linguística
exclusivamente oral. E São Vicente passaria a conviver com Ubatuba, Itapoa
com São Salvador,São Tomé com Reritiba, uma babel cultural completando
festival de frutas tropicais, mulheres nuas, animais estranhos, águas tépidas e
cristalinas, matas exuberantes, talvez uma materialização dos jardins do Eden
16CARDIM Fernão. Tratados da Ter-
ra e Gente do Brasil. Belo Horizonte: abrigando o fruto proibido, pronto para ser degustado.
Itatiaia; Sáo Paulo: EDUSP 1980. p. 50.
Trecho da Carta de Pero Vaz de Cami-
Papagaios e abacaxis, saguise mandioca, corpos pintados, pau-brasil.
nha, datada de 01 de maio de 150o. Enfim surgia algo que recompensasse o esforço da travessia transatlântica
(54) Arquitetura no Brasil
como o contato inicial fora amistos0, pouco a pouco as naus abarrotavam-se
da madeira vermelha-ibirapitanga colorindo as terras europeias.
Para assegurar o controle do novoempreendimento,surgiram as feitorias,
Osprimeiros assentamentos coloniaislusosem terras brasileiras.
Sempadrdo detinido, as feitorias eram compostas defrágeis construções,
paliçadas e algumas bocas de fogo, em média com vinte habitantes que
viviam ansiosos pelas idas e vindas das embarcações, cujas viagens poderiam
levar meses.
Durante os primeiros trinta anos de ocupação lusa, por questões estratégicas,
as feitorias quase sempre foram implantadas junto ao mar, próximas a umn
embarcadouro natural e algum manancialde água potável,como aconteceu nos
atuais estados de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Ali, seus
ocupantes poderiam melhor se defender, vigiar o território e,em última instância,
empreender uma rápida fuga em direção ao mar, escapando de ataques dos
nativos.
E provável que algumas das primeiras feitorias tenham originado
arraiais e vilas que adquiriram, com a afirmação do processo de ocupaçãão,
importäncia econômica para a Metrópole a partir da exploração das riquezas
coloniais, mas de sua concepção original praticamente nada ficou para um
registro mais preciso.
2.5.2 Os primeiros núcleos -
século XVII
São Vicente
A expressiva quantidade do pau-brasil e as possibilidades de novas
riquezas atraíam a cobiça de estrangeiros por motivos diversos que variavam
da simples pilhagem à possibilidade de reconhecimento da nova terra para
uma futura ocupaç o.
Afinal, o Tratado de Tordesilhas não fora aceito de formaincondicional
por todos os povos europeus, e invasoresrondavam, ininterruptamente, o extenso
e despovoado litoral. As feitorias não dispunham deestrutura defensiva para
impedir os ataques e futuras invasões e, além disso, um novo fator entrava no
cenário, possibilitandoa implantação de uma economia organizada e certamente
muito lucrativa: o cultivo da cana-de-açúcar.
Em1531, cumprindo determinaçöes de D. João I1, Martim Afonso de
Sousa chegou à região sudeste e promoveu a fundação das duas primeiras vilas
brasileiras: São Vicente, na atual baixadasantista, junto ao mar e Piratininga,
Dos núcleos urbanos (55)
acima da Serra do Mar,por possibilitar a penetração no sertão.
Os pontos escolhidos não foram aleatórios, mas a consolidacão de
povoadosexistentes sem organização formal, ocupados por figuras quase
lendárias como João Ramalho e o Bacharel da Cananeia.18
Da vila de Piratininga pouco se registrou ate a chegada dos jesuítas, na
segundametade doséculo XVI, originando Santo Andréda Borda do Campo,
São Vicente original se situava numa
ilhaporém, segundo frei Gaspar da Madre de
5Vinó
Deus, devastada pelo mar, foi reconstruída
próximadoseu sítio atual,entre 1542 e1546,
mas legou poucos vestigios que permitam
uma segura reconstituição° (fig. 55).
São Vicente promoveu o progresso da
região, principalmente pela introdução da
cultura da cana, criação de animais, vinda de
Fig. 55. Vila de São Vicente nos primeiros anos do século XVII. colonos e mão de obra africanae construção
do primeiro engenho d'água no Brasil: São
Jorge dos Erasmos.
Quanto ao traçado, a reduzida quantidade de edificios não era suficiente
para definir um plano estabelecido. Como diversas outras vilas da Colônia, as
principais construçõescomo aigreja Matriz e a Casa de Câmara,inicialmente
tambémedificadas demaneira precária, estabeleciam-sejunto agrandeterreiro
-a praça central enm torno do qual espalhava-seo reduzido casario, partido
que se reproduziu quando a vila foi reconstruída.
Olinda
180 Bacharel da Cananeia é uma figura
singular nos primórdios da ocupação do
território brasileiro. Não há registros efe- Após trinta anos de posse, a Coroa portuguesa constatou que a extensão
tivos de sua origem e sua chegada, mas do litoral era uma grande barreira para manutenção de uma
presume-se que ele já estivesse na região posse hegemônica
desde o final do século XV, portanto antes Isso sem considerar as possibilidades da ocupação dos sertões.
do descobrimento oficial. Sua identidade
seria Cosme Fernandes Pessoa, europeu Para tentar minimizar prováveis prejuízos decorrentes de invasões ou
diplomado em Coimbra, daí seu apelido
de "bacharel". Segundo o historiador ocupações indiscriminadas,D. João II decidiu adotar uma solução já empregaua
Hernani Amaral Xavier, da APORVELA,
em depoimento ao Globo Ecologia, em
1998, existem registroS sobre o contato
em outras possessðeselusas,como Açores eMadeira:dividir para governar.
futuro
estabelecido entre o espanhol Pinzon e o
povoamento respectiva colonização foram entregues à iniciauva
Bacharel, em 1501, quando este teria in-
formado ao espanhol que estava naque
particular através do sistema de Capitanias Hereditárias.
la região há 31 anos, portanto desde
ASsim, apósprotestos espanhóis em relação ao limite do Meridiano de
1470.
A obra de frei Gaspar, Memórias
Tordesilhas,o território lusitano, compreendidoentre os atuaisMaranhão eSanta
para a História da Capltania de Catarina, foi dividido em quatorze capitanias,distribuídas por doze donataro
São Vicente, foi publicada em 1797.
sendo a de Pernambuco doada a
Duarte Coelho.
(56) Arquitetura no Brasil
EmPernambuco duas vilas conseguiram
se destacar: Igaraçu, local do assentamento
original do donatário ealitorânea Olinda.
Para construir Olinda, Coelho escolheu
umacolina de fácil detesa, juntoaorio Beberibe,
muito próxima ao litoral. Como porto, distante
poucos quilometros, surgiria Recife (fig. 56).
Voltada ainda para a tradiçãourbanística
medieval, Olinda não se caracterizou pelo
traçado reticulado, mas por implantação em
elevação, ruas estreitas e sinuosas, vias de
ligaçãoentre marcos e equipamentos urbanos,
como igrejas ou a Casa de Câmara (fig. 57).
Fig. 56. Configuração urbana de Olinda, c. 1630.
Fig.57. Vista geral de Olinda, c. 1630.
Da mesma forma desenvolveu-se Igaraçu, apesar das recomendações
dasLeyes de Indias quanto ao planejamento das novas vilas._
Amemória do colonizador tornava-se elemento definidor, muito mais
do que qualquer recomendação oficial. Afinal, o modelo de cidade
conhecido e sedimentado pelo ocupante luso remetia a Lisboa, Porto ou
Evora (fig. 58 e 59), e ali buscavam-se elementos para as traças de Olinda
ou os outros poucos núcleos implantados nestes quinze anos iniciais de
capitanias (fig. 60).
Dos núcleos urbanos (57
Fig. 58. Vista geral de Evora, Portugal. Fig. 59. Vista geral da Mouraria, bairro lisboeta.
PHARNAMBUCI
dinisy
.M co c. LoNa.
Fig. 60. Vista das cidades de Recife e Olinda, cerca de 1630.
Salvador
Fracassada a iniciativa de dividir para governar, a Coroa portuguesa
procurou uma outra solução para manutenção da posse do territorio,
principalmente devido ao aumento das ameaças de invasões estrangeiras e a
valorizaço expressiva do comércio do açúcar produzido na Colônia
58) Arquitetura no Brasil
Ao decidir pela construção de
uma fortaleza no centro do litoral, para
sediar o Governo Geral, D. João III procurava criar instrumentos para não
nerder o que já fora conquistado, além de proporcionar um apoio efetivo para
Os núcleos que sobreviveram à derrocada do sistema anterior.
De direito, as capitanias ainda existiam, mas gradativamente perdiam
suas características or+ginais até sua extinção noséculo XVII. Porém, de fato,
járefletiam ocontrole direto dos agentesreais,iniciadocom a vinda de Tomé
de Souza e seu regimento.
Entre as diversas recomendações e obrigações dispostas no Regi-
mento de Tomé deSouza, consideradaa primeira Carta Magna do Brasil,
dispunham-se recomendações sobre a cidade a ser fundada para abrigar
o Governo Geral.
"Todavia como consta que este local não é dos mais apropriados, o
estabelecimento que se fizer nele será de natureza provisória - edeve
escolher outro mais pela baia dentro, tendo atenção à capacidade do
ancoradouro, à bondade dos ares e águas, e abundância dos provimentos,
com que pelo tempo adiante venha a povoação a ser cabeça de todas as
capitanias."20
Fundadaoficialmente em 1549, acidade São Savadormarcaria o início de
umanova fase dourbanismo colonial.Para projetar e implantar a cidade-sede
do Governo Geral, Tomé de Sousa trouxe o mestre de obras Luís Dias, cujas
traças e descrições foram encaminhadas à Sua Majestade para devida
aprovação. Tais documentos, arquivados na Torre do Tombo (Portugal), revelam
que Dias acumulou funções de arquiteto e urbanista, e foi responsável pela
tentativa de atribuir à nova cidade um traçadoregular, conforme recomendavam
as Leyes de Indias.
Pelo resultado original, que ainda pode ser observado na região mais
elevada de Salvador, é possível perceber a habilidade de Dias adaptando
umtabuleiro de xadrez a um suporte irregular, trapezoidal, com algumas
ruas cruzadas ortogonalmente, porém_gerando quadras com formato de
polígonos irregulares. o núcleo original,
Mapas do início do século XVII revelavam que
devidamente amuralhado e com portões, jáhavia rompido os limites dos
se localizavam
muros, se dirigindo à área mais baixa, junto ao mar, onde
as instalações portuárias. A denominada Cidade Alta, mais antiga, abrigava
elas o
OS
principais edifícios consagrados às ordens religiosas, entre
de Câmara Trecho do Regimento de Tomé de
Colégio dos Jesuítas e o Convento de São Francisco e a Casa Souza, Governador do Brasil. Biblioteca
e Cadeia Nacional, 1548.
(fig. 61).
Dos núcleos urbanos (59)
Fig. 61. Planta da cidade de Salvador, século XVII
Oséculo XVIII iria encontrar um resultado híbrido no traçado da cidade,
incluindo a tentativade planejamentoreticuladono platô,ruas acompanhando
a orla nacidadebaixa eotradicional modelo de influência do medievo na área
deligação entre estes dois pontos, permitindo associações com cidades lusas
como Lisboa ou o Porto (figs. 62 e 63).
HHsir
Fig.62. Região do Pelourinho, Salvador, BA. Fig. 63. Casario da cidade do Porto, Portugal.
(60) Arquitetura no Brasil
Rio de Janeiro
Diante do conhecido abandono das novas terras até a
implantação das
Capitanias, havia constante presença de navegadores estrangeiros no litoral
brasileiro procurando produtos lucrativos como o pau-brasil.
Travando um contato amistoso com os nativos, conseguiam, através do
escambo, a madeira como também outros produtos exóticos, de grande aceitação
no mercado internacional.
No entanto, o cenário religioso se modificava na Europa, comocrescimento
do protestantismo reformista, gerando conflitos e verdadeiros massacres.
Influenciado por Calvino, com quem se correspondia, e apoiado por
Gaspar Coligny, almirante e líder protestante ftancês, Nicolas Durand de
Villegagnon, vice-almirante da Bretanha, desenvolveu o projeto da França
Antártica, com objetivos claramente definidos: exploração comercial
sistematizada, implantação da soberania francesa no Brasil através de uma
colônia protestante.
Para implantação do núcleo gerador foi escolhida ailhade Sirijipe (atual
Villegagnon), dentro da baía, com boa visibilidade da entrada da barra. Ali
construiu o forte Coligny, estabelecimento inicial antes da ocupação do
continente,onde seria erguida a cidade de Henriville
A permanência francesa na região foi um empreendimento repleto de
dificuldades, agravadas pelo conservador puritanismo do comandante que
vedava qualquer contato com as indias daterra,ávidas por deitarem-se com
aqueles homens brancos, filhos da mandioca, de armaduras reluzentes ao sol.
Villegagnon esperava que "como as mulheres só vinham a nós com seus
maridos, a oportunidade de pecar contra a castidade se achava afastada"
Frustrada esperança! O calor dos trópicos exaltando os hormônios, índios e
indias nus, as águas tépidas da baía, um convite sensual.. Afinal,os jesuitas
Jaavisaram que não havia pecado ao sul do Equador._
Após algumas lutas, com vitórias parciais dos portugueses, em 1563
as posições francesas ainda estavam estabelecidas. Para empreender uma
atitude definitiva, Mem de Sá articulou uma estratégia que envolveria
portugueses, jesuitas e oauxílio dos nativos locais, inimigos naturais dos
índios aliados aos franceses.
Em 1° de março de 1565, na Praia de Fora, na entrada da baía, Estácio
de Sáfundava a cidade de São Sebastião doRio de Janeiro, "não maisque
Ama cerca de pau a pique e casas de palha", segundo descrição do padre
Carta de Villegaignon a Coligny, de 31
Pero Rodrigues. de março de 1557.
Dos núcleos urbanos
(61)
Gradativamente, o núcleo foi reforçado com pedta ee
RIO GE NERO. cal e agenciou reforços suficientes para expulsar
um invasor
iá debilitado, em janeiro de 1567. Imediatamente o govemador
geral, sem sobrinho Estácio, que havia sucumbido naa
o
batalha,
transferiu o núcleo para um local estrategicamente
mais seguro, baía adentro: o morro do Castelo.
Esta ocupação inicial manteve a tradição medieval
comdestaque para os edificios religiosos, o Colégio dos
Jesuitas, a Sé e o Castelo, localizados no cimo da elevação.
enquanto o casario descia por vielas Sinuosas na direcão
da várzea, procurando um port0 que deveria
ser
implantado em região protegida, uma praia entre morros,
com boa visibilidade da navegação na baía.
Já no início do século XVII, a cartografia holandesa
registra uma vila cujo traçado procurava alguma organização,
certamente influenciado pelas Leyes de Indias,
esgueirando-se entre acidentes naturais como morros e
lagoas, situação que perdurou até os primeiros anos do século
XIX, quando chegou a Corte portuguesa (fig. 64).
Por três séculos o núcleo urbanizado
Fig. 64.
ficou limitado ao
Mapa holandês de 1624, registrando primeiras vias
de ocupação da cidade
as Norte pelos morros de São Bento e Conceição; a Leste pela
junto mar, baía adentro.
ao
baía de Guanabara; ao Sul, pelos morros do Castelo e
Antônio ea Oeste pela antiga rua da Vala, atual Santo
Definia-se o perímetro pelos Uruguaiana.
onde partiam caminhos
quatro morros que balizavama área edificada, de
para regiðes rurais ou ainda
inexploradas (fig. 65).
2.5.3 Núcleos no século XVII
Devido a União Ibérica, a primeira metade dos
registrou uma significativa implantação de seiscentos nao
novas vilas ou
algumas ocasiðes, o motivo gerador de cidades. Em
preocupação defensiva, jáque, com o domíniocriação estava associado
sua a
inimigos que também espanhol, foram herdaao
Fig. 65. Mapa do Rio de Janeiro, demarcando
ambicionavam
território luso-hispânico. a
ocupação ou exploraçao
a
ocupação da várzea limitada
morros.
pelos quatro Considerando ainda a influência
adotaram os
princípios espanhola, os principais nucle
expressos nas Leyes de Indias, que
o
reticulado dos traçados, determinava m
como São
das tradições dos Luiz ou Recife, herdeiros nat urais
invasores.
62) Arquitetura no Brasil
São Luiz
Existem registros que indicam a presença francesa no
Maranhão. Antes das iniciativas oficiais e após o fracasso da
França Antártica, o rei Henrique ITV empreendeu esforços para
ocupar uma área compreendida entre a foz do rio Amazonas e
o cabo de São Roque, abandonada pelos donos da terra já que,
aparentemente, não apresentavam potencial agricola (fig. 66).
Em 1612, Danielde la Touche, comandando três navios
ocupados franciscanos, alguns fidalgos e soldados,
por
aportava na Ilha do Maranho, onde construíramoforte de
São Luiz, em homenagem ao rei LuizXII. Surgiao embrião
dafutura França Equinocial.
O local fora determinado, considerando-se as
necessidades de defesa e a natureza do sítio para uma
provável expansão urbana, impedida em 1615 quando os
franceses foram expulsos pelos portugueses.
Mesmo comsua curta permanência, os invasores
legaram
ummodelo de traçado, inspirado nas Leyes de Indias, apro-
veitado e ampliado, principalmente pela posição estratégica em Fig. 66. Rua Estrela, século XVII, São Luis, MA.
relação à ocupação do eixo nordeste-norte, na direção do Pará.
Surgiu um plano deurbanização quechegou a incluir a VRBS S. LODOVICCI
Construção de uma casa comomodelo para as demais, IN MARAG NON .
conforme disposto nos novos regulamentos e nas traças
atrbuidas ao engenheiro Francisco Frias de Mesquita, O
projeto estabeleceu ruas regulares, ortogonais, definindo o
tabuleiro de xadrez (fig. 67).
Pldes
Recife
Noinício do séculoXVII, mesmo com a emergente
produção de açúcar na região de Pernambuco, Recife era
ummodestoarraial povoado por pescadores. Igaraçu
Também não apresentava grande ocupação, enquanto Olinda
Fig. 67. Mapa de São Luís do Maranhão, século XVII, com
Centralizava os interesseslocais (fig. 68).
Aposse da região pelosholandeses, que jáadministravam_
a definição de um traçado regular, em tabuleiro de xadrez.
O comércioeorefino da produçãoaçucareira, seria a definição 2SANTOs, Paulo. Formação de
Cidades no Brasil Colonial. Rio
e u monopólio gerador delucrosdesmedidos. deJaneiro: UFRJ, 2001. p.104.
Dos núcleos urbanos (63)
MARIN D OLINDA 4Penma
T'RECIF & PERNAMBVCco
A
Fig. 68. Vistas gerais de Olinda e Recife, séc. XVII.
Após a firustrada invaso da Bahia,a novaempreitada foi preparada com
muito cuidado, inclusive utilizando a correspondéncia interceptada durante as
lutas anteriores. Havia informações sobre a potencialidade da produção
açucareira etambém sobre a fragilidade de suas defesas.
Em fevereiro de 1630,uma esquadracomposta por 77navios, com mais
desetemil homens,chegouao porto do Recife.Ainda que recebido com alguma
resistência por Matias de Albuquerque, esta não foi suficiente para impedir o
desembarque e a tomadade Olinda. Em curto tempo, já que os homens da terra
se retiraram para o sertão, os holandeses ocuparam Olinda, Recife e a ilha de
Antonio Vaz,de onde se expandiram para todo o Nordeste, ali permanecendo
porvinte e quatro anos.
Os invasores optaram, diferente dos portugueses, por um sítio plano,
juntoao mar,porvezes alagado pelos rios Beberibe e Capibaribe, um cenaro
°A expressão "boi voador", associada aos
nolandeses, deve-se ao desafio do prazo
paraconstruçãoda ponte. Dizia-se que era
uitoPara
próximo a Amsterda e sua relação como oceano.
minimizar a condição dos alagados litorâneos, os holandeses se
mais fácil um boi voar que a ponte ser
construída no prazo, oquefoi logrado por
Nassau e comemorado com festa popular expandiram pelailha de Antonio Vaz,que dispunhade água potável,ligada ao
na qual um grande boiempalhado,com o continente por
auxílio de cordas e roldanas, "voou" sobre uma ponte, símbolo da capacidade empreendedora do invas
as ruas do Recife. que poderia, inclusive, fazer bois voaremn.23
(64) Arquitetura no Brasil
A cidade edificada na ilha foi batizada de Mauritiopolis,
enquanto Recife ficou para o antigo araial. O assentamento
contava com umaplanta de traçado erudito,baseado nas Leyes
de Indias, atribuído ao arquiteto Pieter Post.24 Por questöes denberc
defensivas, o núcleo povoado contava com cortinas fortificadas
Demus Comatis.
e baluartes, além da implantação de_pequenos fortes nas
extremidades (fig. 69). CAPIBARIB
Os canais,elementosde drenagem e navegação,serviam
como diretrizes para a implantação das ruas, longitudinais ouu
obliquas.
ORecife holandës não contribuiu apenas com seu traçado
reticulado, mas com a inserção de diversos elementos na malha
AVRITIoPOLIS
urbana, pouco comuns na iniciativa lusa: criação de áreas
verdes,pomares urbanos, palácios e uma arquitetura muito
particular, denominada flamenga'pelos locais. lran . Henrici.
Não fossem as intenções veladas de Nassau em criar um
reino próprio e as necessidades holandesas
decorentes da Guerra
dos Mares contra aInglaterra, aexperiênciaa retomada
frutos, eliminados gradativament com
poderiagerar mais
lusa e a Fig. 69. O plano para Mauritiopolis
restauração do trono portugues. Contrariavam-se os interesses (Recife), no sec. XVII.
daCompanhiadasÎndias,talvezcriando uma nova futura possessão
holandesa sem futuro.
Ficaram os descendentes, umanovacontribuiçãoétnica à nossa formação
cultural, ao lado de novas técnicas construtivas, tolerância religiosa, bois
voadores, prostitutas importadas, uma festa que frequentemente ressurge nos
becos pernambucanos.
2.5.4 Núcleos no século XVII
Após a expulsão dos holandeses, não tardou o declínio do açúcar
nordestino. Afinal, a técnica de cultivo fora apreendida pelosinvasores, os
engenhos devidamente detalhados nos desenhos de Franz Post e as mudas de
ana brevemente se aclimatariam em possessoes holandesas, longe da colônia
usa, nas Antilhas.
No Brasil, a
matéria-prima, a garapa da cana,eraespremida nasmoendas
COloniais até a produção do melaço que, cristalizado,tornava-se o pão deaçúcar
Ste produto era negociado e transformado, pelas mãos das companhias SANTOs, Paulo. Formação de Ci-
dades no Brasil Colonial.
Cstrangeiras,no ouro branco. Janeiro: UFRJ, 2001. p. 111.
Riod e
Dos núcleos urbanos (65)
Com produção própria holandesa, a cana brasileira ou mesmo o pão de
açúcar tornavam-se mais caros do que o produto retinado estrangeiro, caminho
direto para estagnação e decadência, atirando por terra toda a esperança ibérica
de recuperação econômica. O resultado era um país-canavial abandonado,
casas-grandes vazias, povoadas de espectros, engenhos de fogo morto.
Como opçãoa médio prazo, a Coroa retomava a antiga ideia da busca de
metais e pedras preciosas. Havia a campanha espanhola bem-sucedida nas
minas deprata.
Sertanistas, homens marginalizados pelo poder por sua ocupação
contraventora
no tráfico de indígenas, gradativamente, tornaram-se cada vez mais requisitados,
não raro guindados à condiçãodeheróis,apesar de seushábitos rudese leis próprias,
por vezes cruéis e violentos. Rasgavam os sertões, afogavam-se nos rios, eram
ceifados pelas febres, envenenados pelas peçonhas, mas conseguiram seu objetivo.
Até1711,ano da fundação oficial das vilas mineiras, arraiais nasceram,
progrediram ou simplesmente desapareceram semrastros.Nasciam junto aos
córregos, próximos ao ouro de aluvião, esgueirando-se dos vizinhos ambiciosos.
Choupanasde peça única,
sem organização de traçado, nenhuma roça para
extrair alimentos. Afinal, todos os braços eram importantes para violar as
entranhas da terra e extrair a riqueza. Incrivelmente, no interior da colônia em
que "se plantando,tudo dá", eratantaa febre de ouro que grassou a fome por
falta de oferta de alimentos. A inexistente agricultura de subsistência gerou
apelidos como "tatu com repolho"ou "sabiácom farinha", que revelam os
frugais hábitos alimentares dos mineradores.
Surgiam núcleos nômades,abandonados à medida que oouroescasseava
ea busca desenfreada seguia rio acima, procurando catas mais generosas.
A fartura de ouro atraiu gentes de todas as origens,detodos os credos,
de todas as raças. O apogeu dos metais não apenas enriqueceu e transtormou
os sertöes das Gerais como também resgatou do esquecimento ou da decadência
vilas abandonadas ao longo dos caminhos,antigosnúcleos portuários,simples
entrepostos que se tornaram prósperas cidades, como Paraty. Cidades
estagnadas que se tornaram capitais, como o Rio de Janeiro.
Paraty
Considerando-se que a Vila de S.Vicente foi fundada em 1532, podemos
afirmar que a região sudeste da costa brasileira era conhecida e povoada desac
o início da colonização por portugueses ou invasores, principalmente francese>
em suas constantes viagens e incursões para o contrabando do pau-brasi.
(66) Arquitetura no Brasil
Ainda no século XVI, o alemão Hans Staden já
suas anotações: "Quando nos aproximamos, vimos
mencionava Ubatuba em
umapequena aldeia de sete
choças. Chamavam-na Ubatuba."25
veio noticia de que os tupiniquins,
a
e
Mambucaba -"No dia seguinte
-
após sua retirada de Ubatuba, onde
eu me achava aprisionado, tinham
assaltado a aldeia de Mambucaba."26
comentando detalhes sobre a vida dos nativos da
região e seu contato com
brancos europeus, além de registros e
ilustrações sobre a fauna e a flora, não
esquecendo impressionantes relatos sobre os rituais de antropofagia.
Do século XVII, em 1630, já existe
referência a um povoado erigido por
JoãoPimenta de Carvalho, com "casacoberta de sapê" e uma capela dedicada
a São Roque,
provavelmente construída à margem esquerda do rio Perequê-açu,
em local sujeito a constantes cheias.
Após a morte deste
povoador, foi o núcleo transferido para sítio mais
seguro, sujeito a alagamentos, em terrenos doados por uma benfeitora,
menos
D. Maria Jácome de Mello, em
ponto estratégico, com bom porto e junto ao
início de antiga trilha guaianá que cruzava a Serra do Facão em
direção ao Vale
do Rio Paraíba do Sul, a "Toca da Onça"
para nativos.
os
Neste novo local, em 1660, mesmo antes da elevação do povoado à condição
devila, o que ocorreu em 1667, já os habitantes ergueram seu pelourinho e a
capela em devoção à Nossa Senhora dos Remédios", que se tornaria sua padroeira.
Porto já estabelecido, e ponto de passagem obrigatório no caminho marítimo
entre Rio de Janeiro e S.Vicente, a vila entrou no século XVIII como importante
parada no trajeto para as minas recém-descobertasnos sertões das Gerais.
As rotas e caminhos eram conhecidos por sertanistas e guias indios,
o que facilitava a criação de um corredor serra acima,por onde cireulava
o ouro que seria trocado pelos refinados produtos europeus que chegavam
ao porto.
Para controlar o ouro e ratificar a importância adquirida pela vila, esta
recebeu, em 1703, uma Casa de Quinto ou de Fundição, para fiscalizar o
Comércio do metal, cada vez mais em ascensão, gerando o progresso do núcleo
que se desenvolvia física e socialmente, atraindo mercadores, aventureiros,
contrabandistas, salteadores e até mesmo piratas ávidos de riquezas que
encontraram nas águas tranquilase povoadas de ilhas, esconderijos ideais para
Suas pilhagens e acúmulo de tesouros. 4 Hans STADEN. Duas viagens ao
Com a criação do Caminho Novopara as minas,em 1725, uma via terrestre Brasil. p. 87.
20idem. op. cit. p. 104.
que procuravamelhorar o controle sobre a circulaçãodo ouro, minimizando os Conta a tradição local que o nome de
asaltos e desvios da produção, Paraty enfrentou sua primeira grande crise Nossa Senhora dos Remédios teria
Surgido da corruptela do nome em latim
econômica, estagnando o próspero povoado porcerca deum século. Nossa Senhora do Reino de Deus.
Dos núcleos urbanos (67)
da cafecira no Vale do
Após a instituição do Império e a explosão produção
Seu
Paraiba, mais uma vezavila vislumbrou momentos de glória. porto abarrotou-se
das sacas que desciama serra para exportação e das finas iguarias europeias que
seguiam o caminho serra fazendas dos Barões do
acima para abastecer as Café
da ferrovia.
prólogo de uma nova decadência advinda com a implantação
O traçado
Do núcleo original, com a singela capela dedicada a São Roque, pouco
se tem notícia. Apenas sabemos de "casas de esteios cobertas de sapê", sugerindo
modestíssimo povoado.
No séculoXVII, acredita-se existir uma maior preocupação nas edificaçðes
e mesmo na criação de uma praça junto a uma igreja dedicada a Nossa Senhora
dos Remédios, sobre esteios de madeira, coberta de sapê, matriz da nova vila,
agora instalada em local mais propício, às margens do rio Perequê-açu.
E possivel que nesta época tenha se desenvolvido uma rua junto ao mar, a
Rua da Praia, facilitando o acesso e ligação entre o pequeno cais e alguns armazéns
que ali estavam estabelecidos. Perpendicularmente
ao
mar e paralela ao rio, uma via seguiria em direção àserra,
passando pela atual localidade de Cunha.
A definição de um traçado e desenvolvimento
da vila ocorreu, provavelmente, ao longo do século
XVII,impulsionada pelo ciclo do ouro.
Sobre estes aspectos é possível o estabele
a
cimento de algumas hipóteses para explicar
de um
implantação em terreno plano, junto ao mar,
reticulado "entortado", à feição de um leque, muito
próximo de modelos utilizados com frequência pelos
espanhóis, baseadosnas Leyes de Indias (fig. 70).
Há ahipótese de um traçado que utilizaria como
diretriz o Curso Solar e a direção de ventos dominantes
mais frescos, pois sete ruas correm do nascente (Leste)
comno
para o poente (Oeste) e seis no eixo Norte-Sul,
atestava o Almanak Administrativo da Corte, de 1851
fig.71). a
Atradição já atribui o "entortamento" das ruas
Fig. 70. Traçado de Paraty, no final do século XVII.
umatática de defesa,pois possibilitariaconter invasões,
recuando-se quarteirão a quarteirão.
68) Arquitetura no Brasil
Já as Atas da Câmara comentam que o arruador Antonio Fernandes da
Silva,tendo sido intimado para prestar contas do referido "entortamento", alegou
que entortara de fato algumas ruas para retirar delas o vento que
prejudicava a saúde dos moradores com constantes resfrios"(fig. 71).
HI
Fig. 71. Rua de Paraty, perpendicular ao mar.
E desta ocasião a preocupação com asmarés eáguas
pluviais, surgindo o caimento das ruas para o centro,
facilitando o escoamento das chuvas para o rio ou mar e a
entrada das águas domarpelasruasmaisaolitoral.Segundo
a tradição,noaugedociclo do ouro,canoas ebarcosentravam
pelas ruas até as Casas deFundição, através de falsos
canais que secavam na maré baixa,transformando-se em
armadilhas para ossaqueadores (fig. 72).
Qualquer que seja a versão correta, ou a fusão delas,
Paraty conseguiu resumir a capacidade do colonizador
português em se relacionar como o trópico, seja nos
amplosbeirais ecaimentospara escoaraabundante chuva
Ouna integração plena entre um núcleo urbanizado e o_
mar que lambe sensualmente os pés da cidade a se
debruçar sobre as águas esverdeadas e tépidas, refletindo
Fig. 72. Rua D. Geralda, em Paraty, tomada pela maré alta.
a floresta que recobre o paredäo da serra do Mar.
Dos núcleos urbanos 69
As vilas e cidades mineiras
Fig. 73. Mapa de Vila Rica, sec. XVIII.
Vila Rica de Albuquerque, atual Ouro Preto, surgiucomo fuso de alguns
arraiais dispostos nos vales, às margens dos córregos e ribeiröes, onde bateias
ávidas revolviam suas outrora límpidas águas, então manchadas de barro e de
sangue,desde aúltima década do séculoXVII.
Com a diminuição do ouro de lavagem, incrementavam-[e
as minas ou grupiaras, transformando os arraiais móveis no fundo
dos vales, junto às bocas das minas, em fixos, com edificações
mais duradouras, com a capelajá inserida em um polígonoirregular
debaixos muros de pedra seca, associando ao caráter religioso
umafeição militar, defensiva,um misto de igreja-associação-fortim,
sede do núcleo, como pode ser observado na Capela do Padre
Faria ounas modestas edificações no Morro da Queimada.
Este desenvolvimento espontâneo, associado às caracteristicas
do relevo local, acabou por gerar um traçadoirregular que, à primeira
vista, assemelhava-se às cidades medievais. No entanto, diferente
destas, os núcleosmineiros desenvolveram-se de baixo para Cima, a-
partir dos rios, dos vales, dos locais de extração (fig. 73).
Em Vila Rica a ocupação aconteceu de forma longilinea,
subindo e descendo morros, com alguns becos convergindo para
um eixo principal (fig. 74). A velocidade de ocupação não permitiu
Fig. 74. Santa Efigênia do Alto da Cruz, Ouro a definição de qualquer planejamento, ainda que existissem
Preto, MG. profissionais capazes de executá-lo,como ocorrera em Mariana,
(70) Arquitetura no Brasil
antiga Vila de Ribeiro do Carmo. Esta, quando esco-
T
lhida como sede dobispado, fora elevada à cidade.
Pela importância que adquiriu e as características
topográficasmenos acidentadas, recebeu um traçado
baseado no tabuleiro de xadrez,recomendado pelas
Leyes de Indias, pelo menos em parte de seu núcleo
(fig.75).
Uma outra forma de ocupação foi adotada nas
vilas de SãoJoão del Rey e São José del Rey (atual
Tiradentes). Como o relevo local permitia e a riqueza
nãoera tão exuberante, seus fundadores optaram pela
implantaçãonas curvas de nível, em tabuleiros,evitando
as grandes ladeiras de Vila Rica. Aqui associava-se
alguma racionalidade ao diálogo com a paisagem local Fig. 75. Cidade de Mariana, em mapa do séc. XVIII.
(figs. 76 e 77).
Fig. 76. Rua da Matriz, Fig. 77. Panorama do núcleo histórico de Tiradentes, MG
Tiradentes, MG
Dos núcleos urbanos (71)
Das obras públicas
s obras públicas, projetos e construções, em sua maioria absoluta,
eram responsabilidades dos engenheiros militares, religiosos ou mesmo
oficiais" de obras, pois não fazia parte da qualificação profissional
do arquiteto lidar com edificações de caráter tão especifico. Entre os
engenheiros, indispensável citar JoséFernandes Pinto Alpoim
notáveis
e JoséCustódio de Sáe Faria. Atribuem-se a Alpoim obras notáveis
comoo Paço dos Vice-Reis, o Palácio dos Governadores de Vila Rica,
a Casa do Bispo do Rio de Janeiro e a inclusão de detalhes signifi-
cativos, como as vergas de arco abatido na arquitetura colonial.
Com muita frequência, projetos vinham prontosda Europa oueram
edificados nos próprios locais, supervisionados, semtraças originais. Ali
trabalhavam padres, soldados, escravos, mão de obra livre, um
movimentado canteiro de obras à mercêê da disponibilidade econômica
dos governantes.
Este conjunto de obras pode ser agrupado conforme suas funções
principais. Para o abastecimento das vilas: aquedutos, fontes e chafarizes;
melhorando as condições de circulação: pontes e muros de arrimo; a
Segurança da Colônia era responsabilidade de fortins fortalezas, enquanto
e
Câmara Cadeia.
cargo das Casas de
e
o Controle social ficava a
41Aquedutos, fontes e chafarizes
sobre a
presença
Ainda que houvessesignificativa preocupação
uma povoação, por
vezes
de água potável no sítio onde se implantaria deixando o transporte
& questão defensiva superava este conforto,
vezes de mananciais
mais distantes,
u a para os escravos, muitas
como no caso do Rio de Janeiro.
como este, outras soluções foram
r a r a minimizar problemas
Das obras públicas 101
implementadas. "Foram os romanos que efetivamente resolveram o problema
de abastecimento, captando a água pura das nascentes e, com a
construção de eficientes aquedutos, levando-a por quilómetros até os locais
de distribuição com grande eficácia e qualidade"
(fig. 139).
Fig. 139. Sistema de captação, carreando a água em canaletas dispostas sobre as arcadas.
Alguns núcleos coloniais foram dotados de aquedutos, nem sempre tão
imponentes como o da Lapa, no Rio de Janeiro, mas eficientes para o
abastecimento, inclusive em propriedades rurais
Antes do fenômeno d a urbanização, agravado no século X V I l com a
descoberta do ouro nas Gerais, pequenos córregos ou poços eram suficient
paramatar a sede da população. Porém, como abrupto crescimento dos núcleo
VERÍSSIMO, Francisco S., BlTTAR,
William S.M. e ALVAREZ, José Maurício. sudestinos, houve uma necessidade imediata de água limpa para consumo,
Vida Urbana A evolução do cotidia-
grave problema a ser resolvido pelas autoridades constituídas pela Cord
no da cidade brasileira. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001.p. 87.
portuguesa.
102) Arquitetura no Brasil
No caso do Rio de
Janeiro, brevemente transformada em capital do
Vice-Reino, desde o início da ocupação, no Morro do Castelo, o abastecimento
de água era deficiente. Quando o povoamento desceu para a várzea, a água
dos poços era salobra, restando aos moradores recorrer
às águas do rio Carioca,
fora dos limites da cidade." Para resolver o problema, o governador-geral Aires
Saldanha canalizou a água deste rio desde sua nascente até a cidade,
distribuindo-a por uma rede de chafarizes interligados, obra iniciada em 1719
e concluída em 1750.3
Estava concluído o Aquedutoda Carioca, os
populares Arcos da Lapa.
A maior construção do Período Colonial,
executada de pedra, cal e barro,
eracomposta de duas séries de quarenta e dois arcos plenos, com 18m de
altura e 270m de extensão, atravessando o vale _compreendido entre os
morros de Santa Tereza e Santo Antonio (fig. 140).
lltititiba
Fig. 140. Aqueduto da Carioca, destacando-se no cenário do Rio colonial.
Esta exuberante obra de engenharia era responsável por conduzir um
ilete d'água de 0,50m de largura e pouca profundidade, guiando o líquido até
um chafariz no Largo da Carioca, contando ainda com algumas derivações
para particulares ouestabelecimentos religiosos, como o Conventoda Ajuda.
O sistema construtivo aqui utilizado foi amplamente reproduzido em
aquedutos menores ou pontes, sobre rios e córregos, que utilizavam o arco
pleno como elemento estrutural para distribuir os esforços das pedras ou
1dem.p. 91.
peças de barro. 1dem
Das obras públicas (10s)
Em alguns casos, como a Ponte dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, havia
uma conjugação técnica notável entre ponte e comporta, o que permitia irigar
a área plantável, em períodos de seca, através do fechamento dos vãos que
passavam sobre o rio Guandu (fig. 141).
RJ. Aarcada, responsável
Fig. 141. Ponte dos Jesuítas, no bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro,
pela sustentação do conjunto, poderia ser fechada, atuando como comporta.
Os chafarizes já contam tipo de formulação, pois podem se
com outro
se constituírem
apresentar comosimples fontes parietais, juntoao manancial, ou
de complexas construções com plenos conhecimentos da engenharia sobre
mecânica dos fluidos.
Diferente do que atribui a memória popular, estes elementos não se
tratavam de meros ornamentos de praças, apenas de conotação estética.
o
sua aparência não era
Imprescindíveis peças de abastecimento da população,
fator preponderante, mas sua eficiência, capacidade e pureza de águas.
exemplares de partidos diferentes, incluindo
A Colônia registra diversos
obras referenciais como o Chafariz de São José, em Tiradentes ou o grande
de
edificio atribuído ao Mestre Valentim, na Praça XV de Novembro, no Rio
Janeiro, ambos do século XVIII.
porem
Alguns elementos são comuns em sua execução, como as bicas e bacias,
outros incluem um perfeito complexo de abastecimento e limpeza, com tanques para
Eventualmente, artistas
bebedourode animais ou lavagem de roupas e utensílios.
colaboraram em suas composiçõões, incluindo esculturas e cartelas conforme
ogosto
da época, destacando as composições depedra dos frontispícios caiados, enegrecidos
(104) Arquitetura no Brasil
Escala gráfica
Muro Bebedouro de animais
3m
Passa um
Aqueduto
Bacia
174
Atrio
Tanque
3m
Fig. 143. Elevação e planta baixa do Chafariz de São
Escala Gráfica José, 1742, Tiradentes, MG.
Fig. 142. Chafariz de São José, 1749,
Tiradentes, MG.
Ouesverdeados pelo limo daságuas(igs.142 e 143).
O chafariz da Praça XV
O chafariz do Largo do Paço, construídopelo
Mestre Valentim einaugurado em 1789,é uma obra
de grandes dimensões que associa esmerado apuro
formal à complexidade técnica, com tanques de
decantação para limpeza da água proveniente de
manancial distante.
Sua localização foi importante, agregado ao
novo cais, este composto por uma espessa parede
depedras aparelhadas, à feição de Lisboa. Ali
disposto, suas bicas poderiam abastecer barcaças
e faluas junto à amurada como também os
Fig. 144. Refrescos no Largo do Paço: o chafariz no
habitantes da cidade, pelo lado da praça (fig.144). cotidiano da cidade, registrado por Debret.
Com o crescimento da nova capital do
Vice-Reino e o aumento do número de habitantes,
a falta de água
passou a ser constante,
principalmente em um período crítico em 1782, o Tipo de embarcação usada para
transportar mercadorias e pessoal.
Das obras públicas (105)
da nova fonte.
as obras
que acelerou Luiz de Vas
nas paredes perimetrais, D. asconcell
Nas ovais dispostas
entre outras palavras, um
elogio à rainha e a eu próprio
mandou gravar, em latim,
com ignifero carro os povOs queima, Vascomncelos
trabalho: "Enquanto Febo
Fig. 146. O farol de Alexandria. Fig. 145. O chafariz, disposto to à amurada, de composição e implantaçãdo
semelhantes ao Farol de Alexandria, a quem faz alusão em suas
inscrições, quando
as mesmas referem-se a Febo, deus do Sol.
com as
águas da cidade expele a sede."
Analisando a iconografia, a
denominação e opartido formal é posivel
estabelecer uma correspondência com um
dos mais importantes monument08
da
Antiguidade -o Farol de Alexandria. Nas figuras 145 e 146, podemos
constatar asimilaridade entre a massa do chafariz e o coroamento aayu
farol. Ambos, além disso,
RE localizavam-se à beira-mar, sinalizando a
do porto. As inscrições inclusas prese
em suas faces referem-se à antiguiaa
greco-romana citando Febo, o deus do
sol, portanto a luz do farol.
A Construção é composta de um corpo de base m
faces
ligeiramente recurvadas quadrangular,
à
pirimide envolta por balaústres. Na altura
uma
das bacias, coroado pur
uma porta de acesso fachada, voltada para o contra-se
mar,
en
para it
discreto terraço de ondemanutenção dos tanques, tingir
o
se
lança o
possibilitanu
niunto
junto
predomina o granito corpo piramidal. Em
Fig. 147. Chafariz do Largo do Paço, gnaiss, decorado toao em
registrado por Debret no séc. XIX. lioz (fig.147) por peças
confecciona
106) Arquitetura no Brasil
Outros exemplares:
Até a inclusão do abastecimento regular de água pelo poder público, os
chafarizes, poços, fontes e bebedouros cumpriram bravamente seu papel.
Diversosexemplares chegaram aos tempos atuais, a maioria sem manter
sua função original, sequer simbolicamente.
Suas bicas estão secas, carrancas
destruídas, bacias obstruidas (fig. 148). Alguns poucos ainda ostentam a
delicadeza da composição enquanto outros estão esquecidos pelo tempo, nos
becos e vielas coloniais, lembrando que em muitos logradouros do Brasil, mesmo
dentro das metrópoles, bicas ainda abastecem a sede da população,enquanto
outros lugares, e são muitos, nem água têm (figs. 149 e 150). Fig. 148. Chafariz de Antonio
Dias, Ouro Preto, MG
Fig. 149. Chafariz das Saracuras,
Fig. 150. Chafariz do Aragão, no
originalmente construído para abastecer o
Convento da Ajuda, Rio de Janeiro, RJ, Engenho Velho, Rio de Janeiro, RJ,
séc. XVIII.
séc. XVII, atribuído ao Mestre Valentim.
4.2) Fortes e fortificações
A posse da terra fora implementada através de feitorias, arremedos de
fortins construídoscom materiais locais, sem adoção de qualquerpadrão culto.
foram
Com a continuidade da colonização, alguns núcleos murados ainda
tornava obsoleta. As novas
edificados, num momento em que esta prática se
considerando a
fortificações foram implantadas, apartadas do local povoado,
evolução dos engenhos de guerra com a utilização mais frequente da pólvora.
mestres de obras ou soldados
Gradativamente, engenheiros militares,
iniciaram a construção de fortins, fortes e fortalezas, o novo modelo de proteção
era substituída
defesa, inspirado nas propostas de Vauban. A solução empírica
e
de materiais
porcriteriosa escolha de local estratégico para implantação, definição
Das obras públicas (107
adequados, espessura e inclinação de paredes, disposição de
baluartes, tudo decorrente das manobras e novas armas
utilizadas nas batalhas.
As construções precárias de taipa foram substituídas
por
complexos defensivos capazes de sustentar ataques e cercos
prolongados de inimigos melhor armados e com esquadras mais
poderosas, fossem eles invasores ou simplesmente corsários
Fig. 151. Reconstituição do antigo forte francês, na
Baía de Guanabara, construído em taipa de pilão, em suas pilhagens (figs. 151 e 152).
reflete as modificações nas técnicas construtivas. situaçöes, a implantação de fortificações
Em diversas
acabou por_originar vilas ou cidades responsáveis pela
expansão da ocupação colonial, como o forte dosReis
Magos, em ponto avançado no Atläntico, gerador da futura
cidade de Natal.
Estes novos núcleos já não contavam com muralhas,
transferindo seu poder defensivo para fortins, estrate-
gicamente instalados, ocultos na floresta tropical, à espera do
inimigo desprevenido. Mesmo no caso da queda do forte,
haveria tempo para retirada dos moradores ou adoção de um
possível esquema defensivo.
Dependendo da importância da vila, a pequena
fortificação tornava-se um complexo defensivoem constante
Fig. 152. Forte de São Mateus, Cabo Frio, RJ,
edificado em pedrae cal. expansão, a guarnecer núcleos de vital interesse econômico ou
militar, como a entrada da baía de Guanabara, com a fortaleza
de Santa Cruz, os fortes do recôncavo baiano ou o Principe da
Beira, no atual estado de Rondônia, nos limites da América
hispânica (fig.153).
4.3 Casas de Câmara e Cadeia
Descendente direta do Paço do
Conselho português, a Casa de Câmara e
7 Cadeia foi, por três séculos, o edificio
representativodo poder real sobre a Colônia,
acumulando funções administrativas,
judiciárias e penitenciárias.
Independente de seu partido
Fig. 153. Forte do Príncipe da Beira, RO, na margem direita do rio arquitetônico, a edificação estava
Guaporé, fronteira entre o Brasil e a Bolívia.
implantadana praça principal do povoado,
09) Arquitetura no Brasil
ostentando a presença do colonizador. Conforme as disponibilidades doscofres
públicos, quase sempre alquebrados por transferir seus recursos diretamente
para a Europa, os administradores poderiam construir prédios imponentes, com
pórticos no térreo, dois pavimentos e uma torresineira, como a Câmara de
Salvador (fig. 155), ou modestos edif+cios de taipa, com escadas externas de
madeira, como a Câmara de Pilar de Goiás (fig. 156).
Mesmo com a variação de partidos, o programa básico permanecia. No
pavimento térreo, as cadeias e enxovias, enquanto no superior permaneciam
08 responsáveis pela administração municipal, juízes e vereadores e toda a
-máquina burocrática colonial composta por funcionários da vila como
meirinhos, arruadores, almotacéss, aferidores, a discutir pendengas com
ouvidores, procuradores ou corregedores. Apenas os cargoseleitos pelos homens
bons não deveriam ser remunerados, já que eram honoríficos. Os demais
sangravanm as parcas finanças públicas, além das generosas propinas recebidas.
O corpo da Câmara ocupava salas e salões,
por vezes com requintado
acabamento nas vilas mais promissoras. As cadeias ficavam
à própria
sorte, às expensas da caridade pública, com seus detentos quase todos
oriundos das camadas mais pobres ou escravos. Os demais poderiam
"trocarsua sentença de prisão por penas pecuniárias ou doações
generosas ao poder.
Em algumas praças o
pelourinho marcava sua
presença, atestando a autono-
mia da vila (fig.154). Ali,
representação jurídica da
administração, infratores pode
riam ser punidos exemplar-
mente, expostos à execraçao
pública en vergonhosas
camisas de onze varas". Nos
balcões da Câmara, em frente,
asleis eram promulgadas
Antigo funcionário da Câmara, que
oralmente, juízes tomavam corresponde ao atual oficialde justiça.
posse ou eram substituídos, Funcionário responsável pela fiscaliza-
gão de pesos, medidas e taxas dos pro-
decisões eram tomadas
pelos dutos alimentícios.
"cavaleiros vilðes", os homens O termo "vara" refere-se a uma medida
antiga de comprimento e utilizava-se a
bons da vila, sem qualquer expressão "camisa de onze varas" para
referir-se a camisolas mais longas que o
participação popular. Fig. 154. Pelourinho de Mariana, MG habitual.
Das obras públicas (109
Dependendo das necessidades administrativas
locais e da extensão dos domínios, o programa
arquitetonico poderia ser muito extenso, incluindo sala
de audiência, sala do juiz, plenario, gabinetes, arquivos,
secretarias, arsenal da milícia, espaços referentes aos
assuntos camarários. No térreo, tipos diferenciados
de prisões: cadeias simples, enxovias, casas_para
presos, sala do corpo da guarda,solitáriase atémesmo
salasd e tortura - os segredos - conforme registrado
nas Câmaras de Salvador e Vila Rica, oratórios e
simulacros de enfermarias.
Fig. 155. Antiga Casa de Câmara e Cadeia de Salvador, BA. Empequenas vilas, aguardando o progresso que
nunca chegou, duas salas acumulavam todas as
funções, resumindo o programa básico em Câmara
e Cadeia.
Externamente, também, as diferenças se fizeram
notar. Alguns edificios monumentais, como na Bahia, com
dois pavimentos,torre sineira, requintado acabamento,
pórticos voltados para a praça, abrigando o comércio,
principalmente da carne (fig. 155). Obras mais simples
contrastavam com a opulência de regiões prósperas:
dois modestos pavimentos sem sineira, paredes de taipa,
non grades duplas nas janelas das celas, alçapões de acesso
às enxovias (figs. 156 e 157).
Fig. 156. Antiga Casa de Câmara e Cadeia de Pilar, GO.
Escala Gráfica
Fig. 157. Planta da Câmara e enxovia de Pilar, GO.
110) Arquitetura no Brasil
Fig. 158. Casa de Câmara e Cadeia de Mariana, MG, séc. Fig. 159. Casa de Câmara
XVIII, atual e Cadeia de Mariana,
Paço Municipal. pavimento superior.
FL
Escala Grática
Fig. 160. Casa de Câmara e Cadeia de Mariana,
pavimento térreo (cadeias) e detalhe de uma enxovia,
com pia, secreta e lareira.
Em diversos casos, tal era a importância destas edificações que tratados
eramencaminhados aos seus construtores, indicando medidas, materiais e
elementos desegurança para evitar a evasão dos detentos.
A Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica tornou-se um símbolo do poder
destas construções. Mesmo com as dificuldades financeiras, decorrentes da
exaustão das jazidas auríferas, o governador local, Luiz da Cunha Menezes,
em1784, desenvolveu um projeto sofisticado, claramente inspirado no Capitólio
de Michelangelo,com mesmo partido e implantação, mas não logrou êxito emn
Sua conclusão ( figs. 161 e 162).
Das obras públicas (111
n
Câmarae Cadeia de Vila Rica, atual
Fig.161. Capitólio de Michelangelo iniciado em
Fig. 162.Antiga Casa de MG
1537, em Roma. Museu da Inconfidência, Ouro Preto,
OLIVEIRA, Tarquínio J.B. de. As Cartas
"Pretende Dorotheo, o nosso Chefe
fontes textuais. São Paulo:
Chilenas
Referëncia, 1972.p.90.
Erguer uma Cadeia majestosa,
Idem. Que possa escurecer a velha fama
Da Torre de Babel, e mais dos grandes
Custosos edificios que fizeram
Para sepulcros seus os Reis do Egito."(..F (tig.
162)
Devido ao seu simbolismo, implantava-se em um dos raros
espaços públicos planejados, onde a perspectiva das edificações
vizinhas contribuía para exaltar sua magnitude.
"Em cima de espaçosa escadaria
se forma do edificio a nobre entrada
pordoissoberbos arcos dividida:
levantam
por fora destes arcos se
três jônicas colunas, que se firmam
sobre quadradas bases, e se adornam
de lindos capitéis aonde se assenta
uma formosa varanda."" (fig. 163)
tornou-se
A obra que seria o coroamento de sua administração
marca de sua vergonha e incapacidade. Nunca
foi concluída segundo
a
iniciais. Tornou-se isoladamente Câmara,
penitenciarnd
seus objetivos
abriga importante acer
Fig. 163. Portada da Casa
de Câmara de Vila Rica. e finalmente Museu da Inconfidência, que
112)Arquitetura no Brasil
da arte colonial, além do magnífico panteão onde repousam os restos dos
inconfidentes, um espaço de simples e bela composição.
"Um soberbo edificio levantado
sobreossos de inocentes, construido
com lágrimas dos pobres, nunca serve
de glória ao seu autor, mas sim de
opróbrio."0
Com aIndependência e a nova constituição,as atribuições municipais se
compartimentaram, e as cadeias foram transferidas para Casas de Correção,
enquanto a administração pública foi encarregada aos Intendentes.
ITIELIL
*
****
******
T IIIII
--
Fig. 164. Projeto original da Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, MG, séc. XVIL
10 bidem.
Das obras públicas(113
Outros exemplares:
Incluem-se ainda públicas os palácios para
como obras
governadores, projetados pelo Brigadeiro Pinto Alpoim -
engenheiromilitarradicado no Brasil-em Vila Ricae Rio de
Janeiro,no séc. XVIII. Edificações de cuidadoso acabamento,
inclusive no tratamento às superficies e enquadramento dos
vãos comarcos abatidos,o que, para alguns autores, teria gerado o
modismo para oarremate de envasaduras, antes tratado de forma
retilinea (figs. 165 e 166).
****
* *
***
****
Fig. 165. Palácio dos Governadores de Vila Rica, antes dos acréscimos
queo descaracterizaram.
114) Arquitetura no Brasil
A
ITmTTITN
iiliii
Fig. 166. Paço dos Vice-Reis, no Rio de Janeiro, quando
chegou a Família Real, em 1808.
Das obras públicas (1159
5 Da arquitetura civil
5.1 A família brasileira e a moradia colonial
A familia brasileira, contingente
básico da célula de morar, é
um produto da
miscigenação branca, índia e africana, responsável
por sentimentos perceptiveis e outros sequer imagináveis, geradores
de seu próprio espaço de permanência, local de realização de toda
sorte de atividades: abrigo, alimentação, educação, trabalho, repouso,
religião, lazer, sexo.
De tudo um pouco, a casa é o reduto da família e, portanto, seu
próprio espelho, refletindo também, numa maneira mais abrangente,
a sociedade da qual essa família faz parte, ao mesmo tempo que é
sua geradora.
Assim, comentar o espaço de morar colonial é percorrer os
corredores da família brasileira ao longo destes três séculos e, de uma
forma particular, entrever o papel da mulher nesta sociedade.
A familia brasileira, não só a família portuguesa transferida
para o Brasil, assim como a casa, não podem ser limitadas
culturalmente. O colonizador aqui encontrou o habitante da terra, o
indio, do qual incorporou tradições desconhecidas, fossem hábitos
alimentares ou construtivos. 0 africano, trazido como escravo para
substituir o nativo, trouxe um arsenal de conhecimentos composto
por deuses, hábitos, mezinhas - para curar cobreiro, mau-olhado,
nervo torcido, quebranto cantigas de ninar e formas ancestrais
que correm nas artérias e veias brasileiras.
Tudo foi amalgamado e reinterpretado, inicialmente conforme as
condições materiais para, num segundo estágio, ajustar-se socialmente.
Eomomento da definição de um modelo familiar que surge no núcleo
rura, esteio econômico da Colônia, num patriarcalismo latifundiário onde,
(1
Da arquiteturacivil
nais do quue chete de lamilia ou
de la, o homem é o dono: dono
la terra, dos eseravos, da vida un
e da morte de seus subordinados
tig. l67)
Mesmo transferindo essa
tamila paraa cilade em ocasiðes
espiais, as relaçdes pemmanecem
nalteradas, com a mulher
desempenhando praticamente
nenhum papel social, exceto a de
mera reprodutora dos herdeiros
multiplicadores do patrimônio
familiar Fig. 167. Alegoria representando
Aqui, mais do que apenas senhor na sociedade
o
papel do
patriarcal.
a
tradição lusa, impðe-se uma clausura feminina quase mulçumana,
inclusive a área de circulação das mulheres a restringindo
espaços pequenos
Apenas existe a relação de mando e obediência sem reflexão ou (fig. 168).
raramente atenuada por contestação,
demonstraçðes de afeto. Quando isto
provavelmente é dirigido às escravas femininas, que podem e devem ocorre,
prestar
alguns favores, principalmente sexuais, ao nhônhô,
O senhor,
garantindo algumas regalias.
no sentido lato e estrito, tudo
podia. Desde lidar com os negócios
e com a
produção gestos
a mais simples, como autorizar a primeira barba do
filho. Casamentos das filhas
arranjados com proprietários vizinhos, os
eram
proprios descendentes, em lucrativas negociações que envolviam posse
ou seus
de terra, de escravos e de
gado. Era uma forma de suprir, com o dote, a falta ud
herança destinada à prole feminina. Nenhuma
conhecimento prévio levava meninas de
relação afetiva, nennm
doze anos ao matrimônio com homes
mais velhos, até mesmo
cinquentenários, com hábitos sexuais incompreensiv e1s
para aquelas que ainda brincavam com
bonecas de pano.
O resultado
espacial dessas condicionantes é a de uma
arquitetura para a casa-grande do
definiçao
imeira fornma
consolidada de moradia do
engenho monocultor, primei
a
colonizador. De partido variado, conror
geografia, mantinha em comum a a de
presença da varanda como
Fig. 168. A presença dos vigilia, controle e amenização
muxarabis nas fachadas Como esta estrutura social
climática.
estável durante mais
principais revela a intenção
SéCulos, por toda a Colônia, as permaneceu ciclos
para a clausura feminina. sedes de fazenda, associadas a
economicos, apresentaram g u m a s
poucas alterações em suas A
plan
(118)
Arquitetura no Brasil
do
exceções puderam ser detectadas, fossem nos engenhos policultores
sudeste, no século XVII, nas fazendas de criação bovina, no Norte ou na
instigante morada paulista, produto híbrido da miscigenação étnica que
caracterizou aquela região.
5.2) As casas no Brasil Colônia: características gerais.
Decorridostrintaanosapósa descoberta, quando efetivamente se iniciou
a colonização do Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha concretizava sua
profecia quando previa que a ocupação desta Terra de Santa Cruz se faria pela
agricultura, pois Em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem."
Diante da imensidão do território da Terra de Santa Cruz, não mais a
idealizada Ilha de Vera Cruz, Portugal buscava
fontes alternativas para colonizar o país, ou pelo
menos torná-lo menos deficitário. Não seria
possível desenvolver a agricultura de subsistência,
como aquela praticada no velho continente.
Atendendo às demandas de mercado, **
Portugal inaugurava um n o v o modelo de
agricultura -plantation'- que décadas mais
tarde inspiraria outras nações europeias em suas
***
colonizações (fig. 169).
A plantação de cana-de-açúcar definiu-se
como a opção mais adequada, considerando os diversos itens desta equação
Fig. 169.O modelo "plantation"
produtiva, conforme anteriormente explanado. refletia-se nas grandes propri-
edades concentradas nas mãos
Na segunda metade do século XVII, com um modelo agroindustrial depoucos senhores. Naquela
núcleos urbanos
monocultor da cana-de-açúcar em plena atividade, incipientes imensidão de terras desta-
distribuídos pela faixa litorânea, a casa no Brasil começou a estabelecer a sua cava-se a sede do engenho com
sua produção agroindustrial.
forma definitiva.
tais como o
Varios fatores concorrerampara a gênese dessa moradia,
Chima tropical e úmido, a flora, o gentio da terra, a principio fäcil e dócil,
Submisso à nova ordem europeia, em que o mais importante de todos esses
elementos foi o colonizador portugues.
Este europeu -o português - amálgama do Oriente com Ocidente,foi
o termo plantation refere-se ao
paz de criar uma cultura surpreendente nos trópicos: não apenas enfrentou sistema de exploraço baseado na
grande propriedade monocultora, com
resolveu-as, criando uma nova
agoes tão adversas, mas compreendeu-as e mão de obra escrava e produção para
o mercado externo.
forma cultural sem perder a sua identidade original.
Da arquitetura civil (119)
Com estas qualidades, português foi espécie de
o uma
coordenador,
orientador e homogeneizador dessa moradia. Com o índio aprendeu que cozinhar
era uma tarefa a ser realizada do lado de fora, no terreiro, numa varanda ou
num puxado do lado da casa. Afinal, o clima não mais sugeria o calor dentro da
própria casa, advindo de uma lareira (fig. 1 70).
Fig. 170. As lareiras europeias (dir.), utilizadas para aquecer as residéncias no clima temperado, tiveram seu fogo ou lume transferidos para o
exterior, evitandoa fumaça e minimizando o calor das regiões tropicais, incorporando hábitos nativos (esq.).
A solução para o escoamento das grandes chuvas foi retirada da
experiência apreendida no Oriente, trazendo dessas regiðes as inflexöes dos
telhados e dos beirais alongados com desenhos graciosos ou figuras fantásticas
(figs. 171 e 172).
Da terra natal trouxe as paredes caiadas e os portais coloridos, tão comuns
nas paisagens do Minho, do Alentejo e do Algarves (fig. 173), incorporadas a
luminosidade tropical (fig. 174).
120) Arquitetura no Brasil
Fig. 171. Detalhe do Templo de Noryu-ji, Nara, Japão, cerca de 610.
Fig. 172. Detalhe do beiral da fazenda do
Capão do Bispo, fim do século XVII, RJ.
L
Fig. 173. Na região do Algarve,
Portugal, registra-se a
L
influência árabe em suas
treliças coloridas sobre fundo
branco, trazida para a Colônia
pelos portugueses.
AS plantas refletiam a estrutura familiar colonial, Fig. 174. Casario em Tiradentes, MG
Cpresentada na rigida setorização segregadora.
Da arauitetura civil (121)
Devido à estrutura social mantida durante os três séculos da nossa
história colonial, as moradias pouco se alteraram neste período. As plantas
mantiveram uma uniformidade que impressionou os visitantes estrangeiros
que por aqui passaram.
Louis Vauthier, engenheiro francês responsável por obras urbanas e
arquitetônicas no Recife oitocentista, que também nos legou um vasto acervo
documental, registrou em suas' anotações uma frase que demonstra a
permanência em nossas casas coloniais "quem viu uma casa brasileira viu
quase todas".
Esta afirmação deve-se ao fato da setorização uniforme: à frente, junto à
fachada principal, sempre dispostos os setores de trabalho e social; na área
intermediária, o setor intimo e aos fundos, junto aos pátios ouquintais, 0 setor
de serviço. As poucas variações decorriam da situação econômica dos
proprietários e da localização do edificio no sítio (fig.175).
Setor trabalho / social Setor intimo Setor serviço
Fig. 175. Aresidência colonial, rural ou urbana, manteve uma uniformidade na setorização, reflexo direto da estrutura social.
5.3) A moradia rural
Mesmo considerando a importâancia doengenho monocultornordestino,
empresa estabelecida desde a segunda metade do século XVI, é neceSsarno
registrar que outras formas de ocupação rural se distribuíram geograficamen
pela Colônia, em função de atividades econômicas diversificadas. Ainda qu
122) Arquitetura no Brasil
contassem com alguns padrðes semelhantes, condições específicas,
geográficas ou econõmicas, produziram modificações singulares partidos, nos
mesmo na quantidade de componentes necessários para o
implantações ou
desenvolvimento da produção.
Além doengenho monocultor, também serão apresentados exemplares
século XVIII, a fazenda de criação
como o engenho policultor sudestino, do
a casa seiscentista do planalto
bovina nortista, também do século XVIII, e
caracterizou aquela região,
paulista, produto hibrido da miscigenação étnica que
estabelecendo um painel da ocupação rural do Brasil Colonial
5.3.1 O engenho monocultor canavieiro
custoso
A casa-de-habitação chamadapelospretos casa-grande, vasto e
estava assentada no cimo de formosa colina, donde se
edificio,
descortinava um soberbo horizonte'"2.
ato de estava diretamente associado ao trabalho
No universo rural, o morar
residencial
eà produção. Assim, o conjunto era composto pelo maior programa
da Colônia, constituído por um complexo de diversos edificios, entre os quais
três se destacavam pela função ou pela importância econômica: casa-grande,
senzala eengenho (fig. 176).
fábrica de açúcar noprimeiro plano. ALENCAR, José. o tronco do Ipê.
8176. Engenho nordestino do século XVII,
com a
p.7.
Ao fundo,
a
casa-grande e a capela.
Da arquitetura civil (123)
A implantação
Os primeiros colonizadores não relutaram quando escolheram as margens
dos rios que banhavam os vales férteis da Zona da Mata do Nordeste, do
recôncavo baiano ou daqueles que desaguavam na Baía de Guanabara, para a
implantação dos engenhos de açúcar.
A principal razão desta opção deveu-se å garantia do transporte fluvial
da produção açucareira para os nücleos mais proximos, onde o produto era
embarcado para a Europa. Outro fator decisivo para esta escolha foi a
utilização da força hidráulica, proporcionada pelos cursos de água para girar
as moendas, substituindo: força motriz dos braços escravos ou de animais
de tração (fig.177).
Fig. 177. Quando não se localizavam no litoral, os complexos canavieiros procuravam as margens dos rios para facilitar o transporte.
Na primeira metade do século XVII, conforme documentação iconogralica
produzida pelos artistas holandeses, é possível registrar que a disposição do complex
açucareiro seguiu alguns parâmetros bem nítidos para a época: a casa-grand
ea capelaassentadas em elevações do sítio,em geral distantes entresi. Entreono
eas elevações erguia-se o complexo agroindustrial composto de engenho,a ca
da depuração, senzalas, as oficinas e estrebarias (fig. 178).
124) Arquitetura no Brasil
No século XVIII, os partidos adotados para a implantação dos engenhos
de açúcar sofreram mudanças significativas: a casa-grande e a capela foram
interligadas, constituindo um único conjunto (fig.179).
Fig. 178. A documentação iconográfica produzida por artistas holandeses no s culo XVIll revela os partidos adotados na região de Pernambuco.
AM1A
v
Fig. 179. Engenho do Poço Comprido, séc. XVIII, Vicência, PE, com destaque para a capela incorporada à casa-grande.
Com a incorporação das capelas à casa senhorial, a planta baixa da
residência alterou-se do partido quadrangular, comum ao longo do século XVI
para plantas em forma de U ou mesmo retangulares, com pátios internos na
parte posterior da casa (fig. 180).
Da arquitetura civil (125)
Casas-grandes do século XVIII
Casas-grandes do século XVII
Casa-grande do Engenho
Sitio do Mandu, século XVII, SP. da Freguesia, BA.
Casa da fazenda do
Capão do Bispo,RJ.
Casas-grandes pemambucanas, retratadas por Franz Post.
Casa-grande em
Fig. 180. Com a ampliação do processo produtiv0, Os complexos
Pernambuco.
arquitetónicos apresentaram transformações em plantas, fachadas e
acabamentos, revelando novos hábitos da sociedade patriarcal.
No centro do edificações, uma transmutaçãoda
conjunto, entre as
praça urbana, acumulando, como aquela, funçöes diferenciadas: lazer,
trabalho, punições, oração, vigilia. Naquele terreiro de terra batida, por
vezes recortando a silhueta do tronco ameaçador, pulsava a vida do
engenho: o alarido dos moleques, gordas galinhas esgaravatando a terra,
à cata de alguma minhoca desavisada, um negro no tronco, com o sangue
já coagulado sobre as feridas salgadas. Em momentos mais amenos, as
fogueiras e danças para as festas dos santos padroeiros, casamentos,
batizados.
No entanto, certamente o senhor de homem católicotemente
engenho,
a Deus, não imaginaria o que de fato acontecia quando os negros entoavau
Seus tambores. Poderia sobrevir uma estranha dança, de meneios
desconhecidos, de fato um treinamento de ataque defesa da
e
capoeia
Cânticos pareciam louvar santos conhecidos dos portugueses, absorvi
muito rapidamente por
aquela gente estranha do outro lado do Atlanue
de fala grave e
sincopada.
126) Arquitetura no Brasil
Nos alpendres da senzala, um preto-velho chupava seu pito, branca carapinha,
e dizia palavras estranhas para afastar mau-olhado, rezar quebranto ou ventre
virado. Bebidas, mezinhas, benzeduras. Ecoavam sons desconhecidos paraos
brancos: Oxalá, lemanjá, lans, Oxum, Nan, Xangô, Ogum, Oxossi3..
Brevemente aquelas forças da natureza se mesclariam aos santos católicos, pelo
menos para aplacar a turia do nhonhó, e surgiriam novas invocações sincréticas,
com nossas avós católicas queimando palha benta para Santa Bárbara - lans .
A casa-grande
No Brasil Colonial rural a
casa-grande foi sede de um complexo agro- Entidades presentes no candomblé tra-
zidos para o Brasil pelos africanos, pos
industrial, cujas dependencias eram constituídas de varandas, salas, alcovas, teriormente sincretizados com santos do
Culto católico.
quartos de hóspedes, capela e cozinhas gigantescas. Estes aposentos, gerados
pelas condições sócioeconômicas da época, muitas vezes foram utilizados para
outras finalidades.
Por vezes a casa-grande serviu como fortaleza, cofre, harém do senhor
de engenho, escola, hospital, depósito e abrigo para escravos domésticos no rés
do chão ou mesmo pousada para viajantes ou comerciantes.
As varandas das fachadas principais das casas-grandes certamente se Fig. 181.A morada paulista e seu
constituíram em uma das maiores recorrências do Período Colonial. Esta alpendre entalado, com frechal
persistência é devida à sua importância climática, muito relevante em regioes elevado para permitir o
aquecimento.
de clima tropical como o Brasil.
Em regiöes de clima temperado, as paredes externas precisam ser aquecidas
para durante a noite liberar o calor protetor contra o frio intenso (fig. 181). Em
regiões quentes dá-se o inverso: o alpendre afasta o calor representado pelo
excesso de sol (fig. 182). HnH HniHnh
Além disso, este ambiente funcionava como o principal elemento filtrante Fig. 182. A fazenda fluminense
emrelação ao mundo exterior, permeando apenas o que interessava à família utiliza avarandacomo elemento
patriarcal (fig. 183). protetor contra a insolação
excessiva.
Em uma sociedade rigorosamente estruturada, o alpendre como área de transição
etetuava o trabalho de receber o elemento social externo que ficava limitado ao
espaçofronteiro, uma espécie de tribunal especial. Era ainda, principalmente, um
espaço de vigilância, lazer e filtro em relação àqueles que podem receber permissão
de entrar,
situação julgadapelosenhor-de-engenho, juiz daquele tribunal particular.
Para esta grande varanda, em geral, convergiam várias portas que davam Fig. 183. Em diversas situações,
acesso ao interior da residência, casa-grande nordestina,
à capela ou a alguns quartos para hóspedes. como na
a varanda funciona como
Est
S t e esquema constante revela que a varanda colonial era o grande vestibulo e
elemento socialmente filtrante,
verdadeiro espaço de convivência (fig. 184). evitando visitantes indesejáveis.
Da arquitetura civil (127)
Por vezes, quando aconteciam
cerimônias religiosas ou quando o público
excedia a lotação da capela, a
varanda
também servia como extensao da nave. Tal
tradição manteve constante,
se
inclusive
nas fazendas dos barões do cafë
durante
todo o século XIX.
A permanência obrigatória das
capelas na casa-grande, ou em
construção ao seu lado, deve-se ao fato
de que o portuguës religião a sua
via na
identidade nacional e o sentimento de
continuidade. Ali seriam transmitidos os
conhecimentos a todos que viviam sob
sua tutela (fig.185).
Os visitantes, que regularmente
frequentavam os engenhos, "hospedavam-se"
nas alcovas contíguas à varanda, para onde,
ao cair da noite, deveriam se recolher,
compulsoriamente, lá permanecendo até a
manhã do dia seguinte, exceção concedida
aos sacerdotes.
Devido às suas múltiplas funções, as
salas eram espaços de convivënca familiar,
C L
de costurar, tecer a roca, cuidar da
educação dos sinhozinhos, prestar osS
primeiros socorros, fazer as refeiçõese sala
Fig. 184. Cotidiano da fazenda do Viegas, séc. XVIII, RJ. Corte perspectivado
com escala gráfica.
de visitaspara os que tinham permissao
para o convívio com a família.
O setor íntimo era composto quase
Ai que unicamente por alcovas, quartos sem
janelas, principalmente aqueles destinados
às donzelas, para permanência noturna.
Mesmo em área rural, com amplas
possibilidades de arejamento, estes
ambientes mantinham aparência de
sua
seus
clausura e recolhimento, abrigando
Fig. 185. Engenho da Freguesia, séc. XVII, BA, com destaque para a capela. usuários e seus poucos pertences de
128) Arquitetura no Brasil
mobiliário ou indumentária. Não havia 3 v
banheiros ou latrinas, mas apenas urinóis,
retretas, bacias e jarras para uma pre îria
higiene íntima ou satisfação das necessidades - -
elementares do ser humano (fig.186).
A parte posterior, o setor de serviço,
AT
eracentralizada nas cozinhas, autêntica
indústria de alimentos,uma fábrica de
comida para atender a um verdadeiro
restaurante, frequentado pela imensa família
patriarcal, além dos viajantes, agregados
empregados, padres e até mesmo o
contingente escravo. Tratava-se de um
grande espaço que, em alguns casos, podia
ocupar mais de um terço da casa, repleto de
utensílios de diversos tamanhos e aplicações
gamelas, tachos, moringas, panelas de ferro,
frascos, mesas, bancos, cepos, pilðes,
prateleiras e fogões a lenha (fig. 187.
Este espaço subdividia-se entre um 5M
setor de limpeza, abate e antepreparo, e área
depreparo propriamente dita. Cozinha sujae
cozinhalimpa, respectivamente, funcionando Fig. 186. Cotidiano do Engenho da Freguesia, século XVII, BA. Corte
à custa da mão de obra escrava. O alimento perspectivado com escala gráfica
era produzido nos próprios engenhos que
possuíam galinheiro, chiqueiro, curral, horta,
pomar, tornando-os autossuficientes,
dependendo dos caixeiros-viajantes para
comprar óleo, sal de cozinha ou alguma
novidade para o uso das sinhás - um corte
de tecido, um
prendedor de cabelo, um lenço
ou um
leque, vindos com atraso da Europa
ou mesmo da cidade.
Fig. 187. Cozinha da fazenda do Viegas, RJ.
Da arquitetura civil (129
A senzala
Poucas são descrições detalhadas deste setor fundamental
as
para a
de ou conforto.
produção, porém sem qualquer preocupação higiene
E possível distingui-la em dois grupos: uma e umasenzala
senzala doméstica
de eito. A doméstica, ou de dentro, servia de abrigo para escravos responsáveis
cuidar das crianças, além de
pelas tarefas da casa, como cozinhar, arrumar, limpar,
verdadeiros haréns. Poderia
prestar favores sexuais ao senhor, constituindo, às vezes,
estar localizada no rés do chão da casa-grande, uma espécie de porão, porém
dotada de alguns apetrechos e certa liberdade de circulação para seus integrantes,
farta carnação, membros
geralmente escravas escolhidas com cuidado, traços finos,
estar abrigado o escravo selecionado
rijos e bela dentiço. Ali, também, poderia
como reprodutor, escolhido pelos seus dotes fisicos, pelo tamanho da genitália, sinal
de fertilidade e vinlidade. Uma boa prole certamente seria muito lucrativa, implicando
interna.
em menos compra de "peças", substituída pela produço
Externamente, voltada para o terreiro, dispunha-se a senzala de eito, ou
de
de trabalho, composta por mão de obra mais robusta, resistente, capaz
suportar as dificuldades da agricultura sob o cáustico sol tropical, alimentados
cachaça bacalhau.
por farinha. e
Em outros momentos, aproveitando as sobras da casa-grande, pedaços
desprezados dos porcos (cuja carne farta era devorada pelo senhor e seus
convivas) eram salgados, temperados, cozidos com feijão para dar sustância...
Surgia a feijoada que, em breve, também iria regalar o apetite do homem branco,
regada pcla cachaça de cabeça.
No século XVII, pintores holandeses registraram de maneira pouco precisa
Chama-se cachaça de cabeça.
aquela retirada da parte superior do
alambique, considerada mais
este conjunto, retratando-o como casebres construídos nas proximidades da
saborosa. casa-grande, o que, porém, não corresponde a outras descrições (fig. 188).
Fig. 188. A imagem de Franz Post
registra que, inicialmente, n o era
possivel uma clara identificação das
senzalas no complexo canavieiro,
situação que se alterou ao longo do
século XVIIlI, quando esta adquiriu
fisionomia própria.
(150) Arquitetura no Brasil
No séculoXVIII, a moradia dos escravos foi agrupada em um sóedificio,
geralmente de taipa com cobertura vegetal, cujo partido resumia-se a um
prolongado conjunto de cubículos sem janelas, sem qualquer equipamento,
com uma única porta voltada para uma galeria coberta, esta voltada para o
terreiro,centro de todos os acontecimentos do engenho fossem festas ou
suplicios no tronco (fig. 189).
******
*****
.
..
**~. **
***. **
**
***** ~
Fig. 189. No século XVI1, a senzala adquiriu caracteristicas próprias, em edificio único, agregado
Ou nas proximidades da casa-grande.
O engenho
Centro da produção da economia colonial, este edificio acabou por batizar
Lodoo conjunto.Como construção, um partido muito simples composto de um
amplogalpão onde as atividades agroindustriais se realizavam. Dependendo da
grande produtividade, poderia se subdividir por edificações especificas para
atender a cada etapa do processo: armazém, picadeiro, moenda, reservatório,
caldeiras com fornalhas, casa de purgar, seleção de pães de açúcar e
encaixotamento.
Da arquitetura civil (131)
Geralmente, localizava-se
próximo ao rio ou de algum córregodesviado, Dara
aproveitamento da força motriz daágua como tração para as moendas (fig. 190O.
A.
Fig. 190.Casa de engenho com duas moendas, segundo ilustração de Franz Post, no século XVII.
Outras edificações:
Dependendo da complexidade do engenho, algumas outras edificações podem
ser agregadas ao triângulo principal. São estábulos, cocheiras, olarias, depósitos,casas
de capatazes e de colonos, celeiros, casa da mandioca, casa do milho, alambiques,
construções simpies, nas quais a praticidade superavaqualquerpreocupaçãoestética.
5.3.2 O engenho policultor sudestino
Diferente do engenho nordestino,
este conjunto localizado no litoral da
região sudeste destinava-se não só ao
cultivo de cana para produção de
como
açucar ou aguardente, assim
visavam
outros produtos que
abastecer os viajantes e os núcleos
urbanos mais próximos.
Sua mais expressiva concentraçao
estava entre a baixada santista e a
sítios entre
regiãode Mangaratiba,em
como São
0
mar e a serra (fig.191),
Sebastião e Ubatuba, em São Paulo
dos Reis,no Rio
ou Paraty e Angra
Fig. 191. Engenho d'água, séc. XVII, Ilhabela, SP. de Janeiro.
(132) Arquitetura no Brasil
Esta ocupação decorreu do controle exercido pela Coroa, no século
XVII,
cahre a circulação serra acima, no caminho das Minas, minimizando aocupação
dos sertões. Atendia-se, portanto, a advertência do Conselho Ultramarino sobre
a efetiva possibilidade de despovoamento do Reino com a transferência de
vassalos brancos para a Colônia.
Assim, tanto os estrangeiros que viessem d'além-mar como também os
habitantes da terra que pretendessem se atirar na aventura do ouro, já em
decadência, seriam impedidos pelas ordens reais. Enquanto isso, muitos já
retornavam das minas, alforjes vazios, atestando a exaustão das jazidas, tão
grande quanto a sede pelo aumento dos impostos.
Devido à sua localização, em região de passagem entre as minas e os
portos de escoamento, seus proprietários rapidamente perceberam que a
diversificação de culturas implicaria numa ampliação de lucros, mesmo
duranteentressafras.
Surgia uma arquitetura com algumas características peculiares, ainda
que com alguns pontos de contato com seu ancestral nordestino. Aqui
plantavam-se milho, mandioca, mudas de café. Fubá, farinha, manteiga e
algumasmantas de carne poderiam ser comercializadas diretamente com
os viajantes, no próprio engenho, ou negociado com comerciantes das vilas
mais próximas.
A implantação
Sua implantação adotou alguma padronização, pois
procuravam as margens
dos rios, tanto para a utilização da força motriz da água como abastecimento.
Muitos engenhos optaram pela proximidade imediata do
litoral, das praias,
construindo pequenas pontes de atracação para embarcar a produçãoem
direção
aoRio de Janeiro.
No auge do ciclo do ouro, por ali chegavam os produtos da Europa para
subir a Serra do Mar. Por ali a produção aurífera escoava para Portugal.
Contando com um conjunto mais compacto, os principais elementos da
COnstrução agregavam-se em um único corpo: casa-grande, senzala e engenho.
Neste caso,raramente a capela ocupava edificação independente, mas estava
incluidano corpo
principal, em uma sala com tratamento adequado e oaltar
Com o orago.
Devido ao número reduzido de escravos, aqui substituídos por colonos
S Ou meeiros, as senzalas não se constituíam em grandes construções
lineares, divididas por celas.
Da arquitetura civil (133
A casa-grande
Diferente da ampla casa-grande nordestina, com partidos
diferenciados ao longo dos três primeiros séculos, a sede do engenho
policultor do sudeste contava comdois pavimentos. O térreo destinava-se
a depósitos, armazéns, nave da capela e alguns alojamentos para os
viajantes (fig. 192).
O pavimento superior, cujo acesso era efetuado por uma escada
externa ligada a amplo alpendre, mantinha os padrões tradicionais de
setorização, exceção para uma ligação necessária com a área de trabalho,
para o exercício do controle e vigília. Tal instrumento poderia ser um
palanque ou simplesmente um vão estrategicamente disposto. A
distribuição dos aposentos garantia a privacidade do setor íntimo,
destinado às mulheres, enquanto os hóspedes alojavam-se em quartos
voltados para a varanda, para a qual também abriam-se as salas. Aos
fundos, as cozinhas, algumas ligadas diretanmente
-
ao setor de produção
que fornecia farinha, fubá e banha para o preparo das refeiçðes.
Registre-se a localização da varanda frontal à casa, voltada para o
terreiro, com ampla vista para o mar, permanecendo como espaço de vigília e
controle social (fig. 193).
Fig. 192. Pavimento térreo, com escala com e s a e
Fig. 193. Pavimento superio,
gráfica, do Engenho d'água, SP.
gráfica, do Engenho d'água, SP.
(134) Arquitetura no Brasil
O engenho e a senzala
A compactação do programa reduziu sensivelmente estes dois
corpo único à casa-grande, acrescido do
componentes, agregando-os em
elemento roda-d'agua que propiciava interessante contraste e inserção
convivência entre o morar e trabalhar sob o
com a edificação principal: a
mesmo teto.
foi
Apesar da conjugação programática, o resultado plástico
satisfatório como volumetria e tratamento dos materiais, produzindo
exemplares de feição mais depurada, certamente pela proximidade de vilas
portuárias.
Com a aproximaço do século XIX e a emergente cultura docafé no Vale
do Paraíba, gerando uma nova subida da Serra do Mar, estas edificações
em relação aos partidos
influenciaram diretamente diversas fazendas cafeeiras
de suas sedes (fig. 194).
EE
Fig. 194. Fazenda Boa Vista, Bananal, SP.
5.3.3 A morada paulista
a partir da fundação
da vila de
região do planalto paulista, ocupada
A
séculos
progresso significativo pelos
Firatininga pelos jesuítas, não apresentou
do que uma vila em
Seguintes. Consistia muito mais em um marco de posse
ranco desenvolvimento, a consolidação de povoados existentes, implantados
por figuras emblemáticas como João Ramalho.do Bandeirante, registra que a
Alcântara Machado, em Vida e Morte
terminar século XVI, contabilizava cerca de mil e
Vla de São Paulo, ao o
muito tempo.° No entanto, não
mantendo-se assim durante
nhentas almas, imediatamente
MACHAD0, Alcântara. Vida e Morte
apossivel avaliar o contingente que ocupava
a região rural, do Bandeirante. São Paulo: Martins
Fontes, s.d. p. 38.
próxima aos núcleos habitados.
Da arquitetura civil (13s)
Naquela periferia habitavam agricultores, comerciantes de índios
sertanistas, bandeirantes, homens que brevemente iriam rasgar os sertöes à
procura de metais e pedras preciosas, ultrapassando asinvisiveis fronteiras de
Tordesilhas.
As roças daquelas fazendas do século XVII apresentavam trigais, cuio
produto era muito elogiado, grãoconsiderado maior e mais alvo do que o
curopeu Havia ainda algodão, que implicava nafiação local, artesanal, trabalho
desenvolvido pelas mulheres, brancas e índias. A cana-de-açúcar, introduzida
pela vila São Vicente, era utilizada para produção deaguardente. Completava
a agricultura a existência de bananeiras, limoeiros, limeiras,um canteiropara
parreiras e marmeleiros, cuja conserva tornou-se, tempos depois, artigo
importante da exportação paulista.
As fazendas ainda contavam com sua criação, predomínio para suínos,
mas tambémincluindocarneiros e ovelhas. Além da carne, algumal, havia a
banha e o aproveitamento do couro.
Devido ao isolamento, é possível considerar que a maioria destes sitios
era autossuficiente, pois também produziam o azeite eseus próprios materiais
-
de construção, telhas, algumas peças de adobe, pois a técnica predominante
eraa taipa de pilão.
A base da alimentação, apesar da procedência portuguesa ou espanhola
de seus proprietários, era de origem indigena: a canjica, o angu,a farinha de
mandioca, tudo com pouco ou nenhum sal, produto escassona regiäão
Ali surgiu um modelo singular de moradia, apresentando algumas
particularidades tanto no conjunto quanto no partido da casa-grande
(fig.195).
MACHAD0, Alcântara. Vida e morte **
do bandeirante. São Paulo: Martins
Fontes.Sd. p. 52.
1dem. P 53. Fig. 195. Sítio do Padre Inácio, Cotia, SP.
(136) Arquitetura no Brasil
A implantação
Segundo levantamento de Luís Saia, havia uma constante na
implantação das residencias. Os principais modelos inventariados
localizavam-se em um ponto situado å meia encosta, procurando beneficios
da água próxima, proteção contra os ventos e uma boa visibilidade do
entorno imediato', certamente uma preocupação
defensiva, pois alguns
nroprietários também aprisi0navam nativos para vendê-los nos
Como escravos.
povoados
As casas da fazenda
implantavam-sesobre uma plataforma de pedra,_
um platô criado, ondepoderia apiloar a taipa das paredes perimetraise
se
proteger as fundações da umidade do terreno e águas pluviais.
Diante da casa, uma clareira, em torno da qual agrupavam-se outros
pequenos edificios destinados a algumas atividades produtivas (fig.196).
=
*****
Fig. 196. Sítio de Santo Antônio, séc. XVII, São Roque, SP.
feição dos engenhos,
Nãose encontraram registros sobre senzalas, à
1ds alguns pequenos abrigos para indígenas ou parentes. Nas imediações,
umn
$SAIA, Luís. Morada Paulista. 2.ed.
, adiante, a mata e as trilhas que levavam a regiðes mais habitadas. São Paulo:Perspectiva, 1978. p.67.
Da arquitetura civil (13
A moradia
A residência principal, que abrigava homens rudes, com poucas posses
apresentava uma setorização semelhante a
outras moradias rurais
principalmente em relação ao receber e o viver.
A faixa fronteira, disposta ao longo da fachada
principal, apresentaya
três espaços dispostos lateralmente å entalada varanda central:
uma capela e
aposento para hóspedes ou viajantes. No setor seguinte desenvolvia-se uma
ampla sala, central, sem janelas, pé-direito duplo sob tellhas vs. Em torno deste
espaço alguns aposentos, quartos ou mesmo oficinas e depósitos, estes com
vãos abertos para o exterior, conforme sugere Aracy Amaral
E curioso registrar que todas pesquisas realizadas não
as
detectaram
vestigios de cozinha no corpo da casa, gerando hipóteses com0 a extroversão
deste espaço para o terreiro, à feição do indígena, ou ainda a utilização da sala
para o lume, como na Europa, durante o inverno paulista.
AMARAL. Aracy A. A Hispanidade Este exemplar poderá definir, após pesquisas mais aprofundadas, uma
em São Paulo. São Paulo: Nobel/
EDUSP 1981. p.48. das formas de nosso amálgama cultural, envolvendo portugueses, espanhóis,
padres e indígenas. Um Brasil
luso-hispânico-indígena-moçarábico.
A moradia, em diversos
aspectos, revelava introversão:
pequenos vãos abertos para o exterio,
varanda central, aposentos voltados
para uma sala central. Adistância,
uma casamata de dominante
horizontal, caiada, contrastando com
o verde da mata próxima. Afinal, 0
proprietário poderia acumular
atividades lícitas, como o comércio de
eventuais
Sua produção, com
incursoes ilegais pelo tráficode
indígenas. O isolamento era uma
necessidade de proteção, que
certamente determinou um traço de
comportamento do paulista aolongo
sua
dos séculos, influenciando
como o
Fig. 197. Reconstituição do cotidiano, arquitetura em larga escala,
com escala gráfica, do sítio do Mandu, brutalismo da segunda metadedo
séc. XVII, SP. século XX (fig.197).
138) Arquitetura no Brasil
5.3.4 A fazenda de gado do nordeste
A criação de gado bovino foi introduzida na Colônia a partir da fundação
de São Vicente, por Martim Afonso de Souza, ampliando-se com a fundação
deSalvado, como sede do Governo Geral. O gado, além da produção da
carne, era importante elemento de transporte da cana e da lenha, utilizado
ainda na tração dos engenhos antes da disseminação da água como forga
motriz das moendas.
As fazendas de gado não necessitavam de condições especiais,
equipamentos ou investimentos onerosos. Poucos homens,cerca de uma dúzia,
espaço para pastagem e algum afloramento salino na região, os lambedouros.
No entanto, com o esgotamento dos solos para agricultura da cana, os rebanhos
foramempurrados para o interior. Os vaqueiros ganhavam uma cria em cada
quatro. paulatinamente definindo sua própria criação. Como decorrência,
produtos outros surgiam, Como a carne-seca e o couro.
A expansão da pecuária nortista certamente originou-se das regiões
canavieirasde Pernambuco e Bahia, chegando ao Maranhão e Piauí, no final
do século XVII, onde se desenvolveu a "civilização do couro", baseada no
trabalho livre dos vaqueiros e seus empregados.
As fazendas piauienses destacaram-se neste contexto, abastecendo até
mesmo Salvador, distante mais de 1500 km, abrigando umasociedade de exceção
noregime escravista colonial composta por uma maioria de homens livres.
A implantação
Certamente os exemplares rurais guardam algumas diferenças
decorrentes da topografia e do clima, que influenciam sua implantação. No
entanto, edifícios devidamente inventariados por Paulo T. Barreto0,
localizados no Norte e Sudeste do atual estado do Piauí, apresentamn
Significativas semelhanças. Como o clima é quente e seco, a sede da fazenda
fartamente arborizado ao longo de toda a
mplanta-se em terreno plano,
lachada para produzir a sombra reconfortante.
Como a presença de escravosé pouco significativa,não existem as grandes
SENzalas, substituídas por alojamentos parahomens livres, os *fábricas". O
Conjunto ainda abriga, de forma espaçada, edificações para oficinas de couro,
BARRETO, Paulo T. O Piauí e sua Ar
StabuloS e casas de farinha, construídas com barro e carnauba. quitetura. In Arquitetura Civil I. Tex-
A preocupação com a ventilação determina a orientação dominante, tos escolhidos da Revista do Instituto do
Patrimonio HistóricoeArtístico Nacional.
POCurando os ventos mais refrescantes para minimizar as altas temperaturas. São Paulo: FAU-USP:; MEC-1PHAN, 1975.
Da arquitetura civil (139)
A moradia
A edificação principal do conjunto dispunha-se de forma horizontal,
protegida por generoso telhado cujas águas projetavam-se sobre uma varanda
de pé-direito muito baixo, cerca de 1,60m, que não raramente circundava toda
a casa.Afinal, este grande colchão de sombra tornava-se indispensável elemento
amenizador do calore do excesso de luminosidade, quase à linha do Equador,
além de abrigar viajantes com suas redes (fig.198).
Internamente, mantendo a setorização tradicional segregadora, aposentos
amplos sob cumeeiras elevadas (cerca de óm), divisórias internas a meia altura,
cobertura em telha v, que permitia a exaustão do ar quente. Em ambientes
sociais, poderia incluir um forro de madeira treliçada, mantendo a aeração. As
altas portas internas, com bandeiras sempre vazadas, permitiam a adequada
ventilação cruzada.
ig.198. Moradia rural do ciclo do gado, século XVIII, Piaui.
Uma solução ecologicamente correta promovia a captação das águas
pluviais para poços ou bilhas, estas dispostas em vários pontos da habitaçao,
umedecendo o ar e arrefecendo a sede de seus ocupantes.
140) Arquitetura no Brasil
Outras edificaçõses
Os demais edificios, constituintes do conjunto, eram galpôescobertoscom
amplos telhados de carnaüba ou barro, beira-e-bica, dispostos sobre paredes
troncos de carnauba preenchidos com barro.
de
Internamente, o mínimo para a realização de suas funções, sem qualquer
elemento desnecessário.
5.4 A moradia urbana: casas térreas e sobrados
No Período Colonial, as casas dos arraiais, vilas e cidades apresentavam
certa padronização, assim como os lotes, sempre de pequena testada e grande
sobre
profundidade (fig.199). Casas térreas e assobradadas eram construídas
o alinhamento do terreno, com suas empenas laterais coladas noslimites dos
lotes vizinhos (fig.200).
Fig. 200. As casas debruçavam-se sobre
199. A arquitetura colonial urbana ruas sem arborização ou pavimentação,
Fig.
implantava-se colada às divisas de sugerindo um aparente adensamento,
contavam com as áreas verdes dos
lotes estreitos e profundos. pois
quintais.
Da arquitetura civil (141)
Este modelo de implantação urbana, trazido pelo colonizador, foi adaptado
no Brasil com alterações, tais como a extroversão da cozinha e o rebaixamento
do ponto dos telhados.
Diversas circunstâncias levaram, por quasetrêsséculos, à padronização
quase uniforme de partidos adotados para as residências urbanas. Afinal
mantiveram-se a mão de obra escrava, o modelo produtivo agrário-exportador
estrutura familiar patriarcal (fig.201).
Fig. 201. A estrutura social baseada no latifündio, mäo de obra escrava e o patriarcalismo, definiu o partido adotado para a
setorização da residência urbana colonial.
Nas casas térreas ou assobradadas, no setor fronteiro à rua, destacava-se
uma grande sala alinhada com a via pública. As fachadas frontais revelavam o
compromisso com o comércio no grande número de portas. Por vezes, as janelas
eram também percebidas, mas sempre em proporções menores (fig. 202).
D
Fig. 202. Sobrados e casas térreas em Tiradentes, MG
(142) Arquitetura no Brasil
Nos sobrados, as salas da frente do piso superior tinham a função de
receber. O acesso a este aposento e ao restante dos compartimentos da casa se
ceber. Oa
aria Dor uma escada, frequentemente entalada entre paredes, cujo acesso era
ostrito por uma porta de vão variavel, mais reduzido no século XVII, alargando-se
conside
ideravelmente no século XVIII (fig. 203).
Eia 203. Fachada e plantas de sobrado localizado no antigo pátio de São Pedro, Olinda,PE,provavelmente datado doséculoXVIl._
Pavimento térreo
5
1. Loja
2. Entrada para o segundo pavimento
3. Depósitos
4. Sala de engomar
5. Quintal1
6. Area descoberta
3
1
6.
2 O
9
12
9
Pavimento superior
7. Sala da frente
8. Oratório
9.Alcovas
10. Sala dos fundos
11. Cozinha
12. Depósito
Da arquitetura civil (143
Segundo descrição de alguns visitantes e, em particular, do engenheiro
L.L. Vauthier que trabalhou no Recife dos oitocentos, na sala da frente
encontra-
remos o melhor mobiliário da casa, os utensilios mais aparatosos, o único espaço
onde se admitia o estranho.
Em geral, a decoração era complementada por um oratório, que variava
no acabamento e dimensões conforme as posses e a fé, onde celebrava-se uma
das principais atividades femininas: a oração. O local poderia ser utilizado
pelas mulheres da casa para atividades de costura, caso lá não estivessem visitas,
Janelassacadas, quase sempre guarnecidas de rótulas e muxarabis,permitiam
ventilação e vista para o exterior,mantendoa privacidade (fig. 204).
Pavimento térreo
Pavimento superior Fachada
Fig. 204. Reconstituição de sobrado pernambucano descrito por Vauthier, no século XIX.
Nas casas térreas ou assobradadas, após a sala da frente, sucediam-se
as alcovas, verdadeiras celas destinadas ao simplesrepousodiurno,sono, conviIO
entre moças ou a práticadosexo. Estes ambientes, devido à exiguidade do lote
e às restrições sociais, eram entalados no corpo da casa,raramente dotado de
aberturas paraeventuais pátiosinternos.
A alcova geralmente era um aposento de formas retangulares ou
quadrangulares, dotada de portas, sendo a principal ocasionalmente
-
voltada
paraa circulação principal. Normalmente sem forro, astelhas-vas da cobeturd
proporcionavam alguma aeração. No entanto, a ausência de janelas a tornava
sombria,úmida,mas permitia um relaxamento completo e sono reparador em
pocas de clima mais ameno, diferente dos meses abafados do ano tropical.
(144) Arquitetura no Brasil
Raramente de grandes dimensões, a alcova contava com escasso e
tosco
mabiliário, compreendido, nos primeiros tempos, por redes, baús,
mok
canastras,
urinóis ou outros recipientes para higiene e uma cadeira disposta pelos cantos.
ur
No século XVII, a riqueza, proveniente do ouro das minas, fez com que o
hábito de se dormir em redes fosse gradualmente substituído pelas camas de
fino acabamento, com dosséis (fig. 205).
Casa térrea, Cachoeira, BA. Casa térrea, Ouro Preto, MG Casa térrea, São Luis, MA.
Fig. 205. Fachadas e plantas
registrando o cotidiano das casas
térreas coloniais, com escala gráfica.
a arquitetura civil (145)
As casas urbanas não apresentavam o banheirocomo compartinmento no seeu
interior e muito raramente encontramos espaço similar em quuntais e exteriores
Havia a substituição da área por um "banheiro portátil", na forma de urinóis
e
outros recipientes, às vezes inseridos em cadeiras especCiais-as retretas -dispOstas
no setor íntimo da habitação (fig. 206). Após o uso, o conteúdo era despejado m
barris armazenados no fundo do lote, em uma discreta edicula e daí carregadno
pelos "tigres" para vazadouros, lagoas, rios, mares brejos, próximos de
ou
assentamento urbano (fig. 207). Para o banho, pouca preocupação, considerando-se
todos os preconceitos relacionados ao corpoe seus fluidos. Ahigiene era ocasional
rara, apenas exercida
em ocasiðões especiais quando toda a familia, a começar pelo
Fig. 206. Uma retreta para
utilização como latrina. senhor, utilizava a mesma água, na mesma tina, para asabluções.
Agregado à cozinha encontrava-se um espaço voltado para o quintal
urbano. Tratava-se da sala de viver, antecessora das nossas copas, o local
onde, no correr do dia, as mulheres assistiam ao trabalho das escravas, sem o
contato com a área de comércio, principalmente se por lá houvesse fregueses.
Uma espécie de claustro menos restrito ou um "gineceu", como relatou Vauthier.
Neste local era possível observar um pouco da rara descontraçãonatural
feminina, na intimidade: largos roupões entreabertos, revelando curvas dos
alvos colos, em contraste com a brejeirice das mucamas a catar piolhos das
sinhazinhas, um espaço vedado aos indiscretos olhares estranhos.
O espaço destinado ao preparo do alimento, a cozinha, praticamente
localiza-se do lado externo do corpo central da residência, um "puxado",
alterando a posição dos primeiros tempos da colonização, quando era implantada
mais ao centro, próxima à sala, de onde se afastou devido aos problemas
causados pelo excesso de calor e fumaça produzidos pelo fogão ou lareira.
A percepção lusa, quase imediata em relação ao novo clima, colocou-a
nos fundos, deixando as últimas paredes para apoiar as chaminés,liberando a
casa urbana para umasatisfatória ventilação.
Fig. 207. "Tigre" era a Diante da necessidade de armazenamento dos alimentos em sacas,barrisou
denominação atribuida aos recipientes de vidro, além do grande número de peças necessárias para o preparo
escravos que transportavam as
das refeições, as cozinhas subdividiam-se em dois setores: a cozinha suja, para o
águas servidas para despejo.
abate e limpeza dos alimentos em estado bruto e a cozinhalimpa, para o preparo
final das refeições, Afinal, a futura comida andava solta pelo quintal, como galinhas,
patos e leitöes, esperando a vontade e o apetite dos comensais.
Apenas adimensão iria diferenciara cozinha rural da urbana, pois o setor ac
preparo, abate e armazenamento na cidade poderia ser realizado na saladosfundos
Após o preparo, o cozimento seria feito no puxado da casa e os restos aru
quintal ou distribuídos entre os escravos e animais domésticos (fig. 208).
(146) Arquitetura no Brasil
T
ms
*..
Fig. 208. Reconstituição de uma cozinha colonial, com as áreas limpas e sujas, abrigadas em um "puxado" ligado diretamente ao
quintal.
No fundo do quintal, uma edícula
completava os espaços necessários para
o viver urbano colonial. Ali, em cubículos cobertos
por telhado de uma única
água, distribuíam-se abrigo para porcos e galinhas, depósito para o barril de
águas servidas e ainda um
pequeno alojamento para os poucos escravos da casa.
Pouco se deve acrescentar em relação aos sobrados, já que os mesmos se
constituíram em uma evolução natural da casa téérrea. Inicialmente, a moradia
se configurava como uma casa de quatro peças (sala fronteira, alcova, sala
posterior e cozinha), com uma fachada estreita, porta-e-janela. A partir do
discreto crescimento da vila, os lotes ampliavam-se na largura e
poderiam abrigar
umameia-morada, fachada de uma porta e duas janelas, que evoluiriam, em
algumas condições, para a morada inteira. Registre-se que as plantas apenas
alteraram-se no número de aposentos, guardandoa setorização original.
Com a maior permanência na área urbanizada, o comércio fortaleceu sua
trajetória de importância, ocupando as salas das casas térreas, junto à testada,
Como o antigo modelo romano. Esta disposição, ainda que eficiente,
comprometiao fluxo da habitação, levando o hóspede ou outro visitante a
Cruzar a loja antes de acessar a área de habitar.
Utilizando referências do Renascimento, a área de moradia transferiu-se
para o pavimento superior- o sobrado-enquanto a loja, depósitos,cocheiras e
eventuais aposentos para cavalariços, e mesmo hóspedes, ocuparam o pavimento
térreo (fig. 203).
lal apropriação foi culturalmente aceita e se perpetuou portrs séculos,
an toda a Colônia, mais uma vez ratificando os viajantes-observadores, que
atirmavam "quem viu uma casa no Brasil viu todas".
Da arquitetura civil (147
O partido apresentou uma pequena transformação ao se aproximar do
século XVIl, com o fortalecimento da burguesia. Afinal, o trabalho não
dignificava e a proximidade com o local de labuta poderia diminuir o status do
proprietário.
Surgia o sobrado sem a loja no pavimento térreo, substituída por um vestíbulo
Ou mesmo uma garagem para o coche. A mensagem era passada para a rua,
pois omorador nâo mais morava sobre o estabelecimento comercial e, além
disso, possuía seu próprio veículo, ostentando sua aparente nobreza (fig. 209).
'
de
Fig. 209. O pavimento térreo
alguns sobrados, ocupados por
sociais mais
segmentos
seu status
elevados, revelava
pela presença da garagem ou de
conforme
um elegante vestíbulo,
registro de Debret.
(148) Arquitetura no Brasil
No século XVII, com adensamento das áreas urbanas e consequente
ora na qualidade de vida, a população mais abastada deslocou-se para a
piora
neriferia imediata, ocupando as casas de chácara, um partido híbrido de casa
peri.
TIral e urbana, ampla, bom acabamento, confortável e capaz de atender à alguma
demanda de gêneros alimenticios paraapopulação crescente do núcleo próximo.
(fig. 210).
Fig. 210. Casas de chácara, século XVII|, implantadas na periferia imediata de núcleos urbanos,
proporcionando uma melhor qualidade de vida para seus ocupantes.
Da arquitetura civil (149