Realidade: uma razão que não se explica, mas se crê
Izabel Cristina de Souza Azzi
É acreditando que o sujeito garante uma verdade de realidade. A constituição da
realidade psíquica ampara-se na entrada do sujeito na linguagem. É na perda do referente real
que o sujeito pode então, criar: “O relato do sonho e outros testemunhos de ruptura do
sentido permitem recolher o que se inscreve como perda na fala dos analisantes, fazendo com
que se confronte com uma realidade outra, diferente da que se articula como sentido na
consciência” (247).
“O limite entre a realidade chamada material e a realidade psíquica é tênue. Freud usa dois
termos em alemão para nomear a realidade: Realität e Wirklichkeit. Segundo Lacan, no
Seminário 7, Freud não os utiliza de forma indiferenciada. Por Realität designa a realidade
psíquica que é definida desde o “Projeto” (1895) como a realidade regida pelo princípio de
prazer e seu correlato princípio de realidade. Com Wirklichkeit, Freud se refere a uma
realidade do externo, do “forarepresentação”, realidade que, inicialmente, se apresenta em
sua teoria como traumática, mas que pouco a pouco vai sendo assimilada ao funcionamento
da estrutura como aquilo que aponta algo da verdade do sujeito e da qual ele não quer saber.
A Wirklichkeit é da ordem de uma efetividade muito mais do que uma correspondência com o
externo.” (247)
Já em Freud, a dicotomia entre realidade externa ou material e realidade interna ou
psíquica vai perdendo lugar de importância ao concluir que o que interessa à psicanálise é a
segunda realidade, já que esta é efeito da articulação do sujeito no laço social, “do modo como
ele se dirige ao Outro, efeito, portanto, da forma como esta alteridade se apresenta a ele.”
(247). A realidade é sempre precária, atravessada pelo desejo que tem em seu cerne uma
impossibilidade de objeto que satisfaça totalmente. A busca por esse objeto perdido cria
distinções entre realidades que se apresenta em dicotomias como interno/externo,
mesmo/diferente, bom/ruim, referentes à relação de alteridade do sujeito com o Outro.
[O que denominamos linguagem aqui limita-se apenas à espécie humana. Ao perder
seu objeto de entrada na linguagem, os seres de linguagem também puderam falar de coisas
que não estavam presentes em sua realidade material empírica, isso é, puderam falar de algo
sem mesmo que houvesse a presença de seu referente. Os seres de linguagem também
puderam falar de coisas de outros tempos – passado e futuro – e com isso determinar o
destino de tantos corpos a partir de regras e condutas, das quais vemos na política e na
religião -> discursos de segregação pautados numa moral – moral sexual civilizada].
“para Freud há uma possibilidade de fragmentação da realidade; dividida, podemos nos
relacionar com partes dela. Em A interpretação de sonhos demonstra que se pode “brincar
com a realidade”, tomando partes aqui e acolá dela, para compor um sonho e realizar o
desejo, ou seja, construir uma realidade de acordo com os processos imperiosos do Isso, que
recebem a regência do Eu e da censura.” (249). A censura da realidade não se dá de forma
total, mas de pequenos pedaços dela, evitando assim o que toca na dimensão conflituosa para
o sujeito. A realidade psíquica de cada sujeito, então, não é correlata à realidade exterior. O
que faz o neurótico é impor uma significação particular sobre esse pedaço evitado.
“Assim, a prova de realidade ganha um estatuto mais preciso, na medida que não se trata de
uma correção (julgamento) ou controle da realidade psíquica pela material, mas ela se
constitui como a própria prova do inconsciente, pois é a operação que revela a ausência da
experiência de satisfação e a necessidade de sua presença no campo da representação.” (251)
“Assim, a realidade é abordada com os aparelhos do gozo, aparelho que não há outro senão a
linguagem, pois, “no ser falante, o gozo é aparelhado” (LACAN, 1972-73/1985, p.75). O
inconsciente insiste, não importa o que se faça, é algo que se repete: instância (insistência) da
letra, o inconsciente entrega algo do gozo, mas não tudo. Lacan marca em seu ensino que o
discurso analítico situa-se na fronteira entre verdade e saber, mas do saber como fato
correlato da ignorância.” (258).
“Esta questão é relevante quando pensamos a clínica psicanalítica como uma clínica sob
transferência. Se a realidade não se constitui como algo que tem existência ontológica comum
a todos os indivíduos pertencentes a um grupo, mas, ao contrário, vem atingir o sujeito no
ponto mesmo em que uma determinação ligada a ele emerge como verdade, ela só será
reconhecida como sua realidade, sustentáculo de sua fantasia, se ele estiver assentido nessa
determinação que exerce sobre ele um poder” (260). [E que políticas estão sendo praticadas
acerca dessas determinações? Qual verdade segue sendo sustentada?]
Chamamos de significante fálico esse efeito ordenador que cumpre ao sujeito seu
sustentáculo, a partir de uma fantasia. Essa fantasia tem valor de apelo, ao fazer do
significante sua própria referência. Tal ordenação só funciona ao seguir um princípio de não
questionamento do sujeito. Se p sujeito só pode crer na sua fantasia, na sua particular
realidade psíquica, que valor tem perante o social a sua razão? Tal princípio de não
questionamento: “trata-se de um princípio que deve ter inquestionavelmente razão, por ser a
própria possibilidade de julgamento factual sobre verdade e erro, o que torna a realidade uma
razão que não se explica” (261).