Tese Barbara Brunini
Tese Barbara Brunini
COMISSÃO JULGADORA
Ficha Catalográfica
Orientador: Dr. Murilo dos Santos Moscheta. Profa. Dra. Daniele de Andrade Ferrazza
Tese (Doutorado) - Universidade Paranaense – UNIPAR. PPI/Universidade Estadual de Maringá
FLORILÉGIO 228
APÊNDICES
Apêndice I: Entrevista semidirigida e dialógica com mulheres feministas 237
docentes de Psicologia
Apêndice II: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) 239
ApêndiceIII: Número do Protocolo de aprovação do Comitê de Ética 244
ANEXO
Anexo I: Legenda das obras 246
VERNISSAGE VERNISAGE
O movimento de investir em novos diálogos na formação em The movement to invest in new dialogues in Psychology training
Psicologias e ouvir narrativas de mulheres docentes feministas em and listen to narratives of feminist women teachers in their psi
suas práticas psi, justifica a busca por conversações que, quando practices justifies the search for conversations that, when tensioned
tensionadas por uma ciência ainda posta nas relações de poder/ by a science still placed in the relations of power/knowledge/being,
saber/ser, almejam ultrapassar os muros acadêmicos e anunciar aim to overcome the walls academics and advertise other gossip. It
outros falatórios. É sobre estes encontros que opto por escrever, is about these encounters that I choose to write, sharing pulsating
compartilhando acontecimentos pulsantes de afeto entre mulheres events of affection among women feminist teachers in university
docentes feministas nos entre meios universitários. Regida por environments. Governed by a certain archivist obsession of a woman
certa obsessão arquivista de mulher pesquisadora que optou pela researcher who opted for cartography as a methodological perspective,
cartografia enquanto perspectiva metodológica, as linhas desta tese the lines of this thesis extol the collection of memories revived in
enaltecem a coletânea de lembranças revividas no movimento de the movement to resume diary texts and storytelling narrated by
retomar os textos diarísticos e as contações de histórias narradas ten professors working in Psychology training from different states
por dez docentes atuantes na formação em Psicologia de diferentes Brazilians. Such conversations reinforced the need for the “exercise
estados brasileiros. Tais conversações reforçaram a necessidade do of keeping myself with” - as is required of a cartographer - and heated
“exercício de manter-me com” - como é exigido de uma cartógrafa - e up the conversations with the protagonists of this thesis during the
acaloraram as conversações com as protagonistas desta tese durante interviews/events. The narratives presented in this writing/art
as entrevistas/acontecimentos. As narrativas apresentadas nesta exhibition propose the frank speaking of women who accepted to
escrita/exposição de arte, propõem o franco falar das mulheres que collaborate with the research, committed parrhesiasts, ethically and
aceitaram colaborar com a pesquisa, parresiastas comprometidas, politically, with teaching, research and extension, teachers who fight
ética e politicamente, com o ensino, a pesquisa e a extensão. Docentes for their speaking places as women Latinos, from the South of the
que lutam por seus lugares de fala enquanto mulheres latinas, do Sul Globe. It was up to the writing of this cartographic and decolonial
do globo. Coube à escrita desta pesquisa cartográfica e decolonial, research, to leave the obligation to explain results or expose scores, its
sair da obrigatoriedade de explicar resultados ou expor escores, intention was to experience the event and transcribe counter official
sua intenção foi vivenciar o acontecimento e transcrever histórias stories about feminist teaching in Psychology, those that inaugurate
contraoficiais sobre a docência feminista em Psicologia. Aquelas que worlds and recognize the strength of the creative encounters present
inauguram mundos e reconhecem a força dos encontros criativos in this space of time that it is up to us to live. By breaking with certain
presentes neste espaço de tempo que nos cabe viver. Ao romper com academic models and relocating the desire to re-exist in an assembly,
certas modelagens academicistas e relocar o desejo de reexistir em we tone the body in the experiential flows of epiphanies of the good
assembleia, tonificamos o corpo nos fluxos vivenciais de epifanias da want and choose to reframe the present, believing in the inventive
bem querência e escolhemos ressignificar o presente, acreditando no making of futures. Thus, we reinvent new styles of life lived as works
fazer inventivo de futuros. Reinventamos, assim, novas estilísticas de of arts.
vida vividas como obras de arte.
Key words: Teaching; Feminist Psychologies; Academic
Palavras chave: Docência; Psicologias feministas; Descolonização decolonization.
acadêmica.
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VERNISSAGE VIDAS INVENTIVAS E ANÁRQUICAS: A
IMPREVISIBILIDADE DE UMA ESCRITA DESLOCANTE
El movimiento de invertir en nuevos diálogos en la formación de
Psicología y escuchar las narrativas de las profesoras feministas en Há escritas iniciadas por apresentações de um objeto de
sus prácticas psi justifica la búsqueda de conversaciones que, tensas pesquisa, dados qualitativos ou propostas quantitativas, outras por
por una ciencia todavía colocada en las relaciones de poder / saber fatos históricos do tempo presente, passado ou futuro. Ainda, aquelas
/ ser, apuntan a superar la paredes académicas y publicidad de otros referenciadas por poemas, crônicas ou mesmo relatos de experiências.
chismes. Es sobre estos encuentros que elijo escribir, compartiendo Mas também, existem as que optam por começar no entre, como
palpitantes eventos de afecto entre profesoras feministas en entornos modo de apreciação do que está por vir, tal como um passeio, sem
universitarios. Gobernada por una cierta obsesión archivista de pretensões. Sem expressão literária específica, ou justificativas de
una investigadora que apostó por la cartografía como perspectiva seus porquês. Apenas linhas e conexões, formações de parágrafos
metodológica, las líneas de esta tesis ensalzan la recopilación de que vão ganhando língua nos seus encontros, dando autoria à vida
recuerdos revividos en el movimiento para retomar los textos de diarios que deles emergem.
y cuentos narrados por diez profesores de formación en Psicología
de diferentes estados. Brasileños. Tales conversaciones reforzaron la Tais escritas não explicativas ou de convencimento teórico são
necesidad del “ejercicio de estar conmigo” - como se le exige a un aquelas que escapam da formalidade e festejam cada acontecimento
cartógrafo - y calentaron las conversaciones con los protagonistas de transgressor de epistemes. Apresentam a ortografia como mera opção
esta tesis durante las entrevistas / eventos. Las narrativas presentadas para uma possível graça expositiva e as divisões de seus capítulos,
en esta exposición de escritura / arte proponen el hablar franco de enquanto possibilidades híbridas para um passeio construído no
mujeres que aceptaron colaborar con la investigación, parresias “com”. São fragmentos capazes de expor múltiplas subjetividades,
comprometidas, ética y políticamente, con la docencia, investigación andantes, dançantes, atuantes em todo tipo de geografia, que evitam
y extensión, maestras que luchan por sus espacios de habla como um itinerário fixo e aceitam reinventarem-se em todos mirantes,
mujeres latinas, de la Al sur del Globo. Correspondió a la redacción lugares de paradas e admiração teórico/prático.
de esta investigación cartográfica y descolonial, dejar la obligación de
explicar resultados o exponer partituras, su intención era vivir el hecho
Os contornos que antecederam o pensar sobre esta tese, são
y transcribir historias contraoficiales sobre la enseñanza feminista
da ordem do acontecimento, nem sempre datados ou reconhecidos.
en Psicología, esas que inauguran mundos y reconocen la fuerza de
Por vezes, rabiscados em pequenos papéis, guardados como
los encuentros creativos presentes en este espacio de tiempo que nos
rascunhos, fotografados sem intensão aparente, refletivos em terapia,
toca vivir. Rompiendo con ciertos modelos académicos y reubicando
reconhecidos em literaturas, chorados com amigos, conversados em
el deseo de reexistir en una asamblea, tonificamos el cuerpo en los
orientações. Sentidos no estar corpo mulher, sem pretensão inicial
flujos experienciales de las epifanías del buen querer y optamos por
de pesquisa... apenas desejos. Um passado presente na necessidade
replantear el presente, creyendo en la creación inventiva de futuros.
urgente de revolução. Memórias intermináveis, materiais e imateriais
Así, reinventamos nuevos estilos de vida vividos como obras de arte.
guardadas para um dia serem revividas, festejadas na coexistência de
vidas intensas transformadas em arte na exposição desta pesquisa,
Palabras clave; Enseñando; Psicologías feministas; Descolonización
que inclui revisitar a experimentação da vida da própria pesquisadora
académica.
e de todas suas colaboradoras.
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É deste local, de apreciadora de artes narradas, que nasce passam a escrever sobre o gênero como entidade discursivamente
o desejo da pesquisa. Nela, localizo a intenção da tese: ouvir as construída ao longo da história, paixões platônicas que agradeço ter
narrativas e ad/mirar a potência dos diferentes corpos que se conhecido, com tanta intimidade, nos encontros destruidores do meu
enunciam feministas andantes de territórios universitários na eu antigo nos tempos do mestrado na UNESP/Assis: Paul Beatriz
criação do fazer docência implicada com o cuidado de si e da outra, Preciado, Sandra Harding, Sueli Rolnik, Guacira Lopes Louro, Judith
latina. São mulheres, psicólogas e docentes, as quais extrapolam os Butler, Michel Foucault, Guilles Deleuze, Felix Guattari, Joan Scott,
desígnios da ciência universal, celebram a multidão de diferenças e Rose Braidotti, Donna Haraway, Margareth Rago, Hannah Arendt,
os modos de existência ou possiblidades de vida que não param de Friedrich Nietzsche.
surgir nos espaços de formação acadêmica. Uma atitude inquieta, de
pertencimento micropolítico e minoritário, aberto em vias do fazer e É óbvio que, sendo meu corpo dependente de arte, jamais
do estar. ignorou a crítica de Simone de Beauvoir e Clarice Lispector, a
sensibilidade denunciante de Carolina de Jesus, Cecilia Meireles,
Nos passeios desejantes de estudos e teorias feministas e Rupi Kaur, os contos e hidrografias de Conceição Evaristo, as
durante a montagem desta escrita, a intenção era de refletir sobre conferências de Audre Lorde, a escrita artística de Roberta Stubs e
complexidade dinâmica que olha, pensa e sente corpos femininos as obras de arte decoloniais de Adriana Varejão. Elas precisam ser
enquanto corpos docentes, em construção por inegáveis determinantes referenciadas como atuantes nesta (des/re) construção do meu corpo
históricos, geográficos, étnicos e culturais. Foi fundamental para docente feminista, pois operaram como vetores para um campo
o lugar de ouvinte de mulheres outras, escritos que compuseram o ampliado de fazer-se, sendo constantemente reverenciadas no Grupo
cenário para as discussões sobre os corpos femininos descolonizados de Pesquisa Feminismos, Saúde e Gênero da UEM, do qual tenho o
apresentados por teóricas (os) e estudiosas (os) pós-colonialistas e prazer, a alegria e a gratidão de fazer parte.
decoloniais, como Deepika Bahri, Homi Bhabha, Frantz Omar Fanon,
Walter Mignolo, Gayatri Spivak, Ramon Grosfoguel, Boaventura de Percebo ser possível (re)criar todas estas diferentes formas
Souza Santos, Heloisa Buarque de Holanda, Maria Lugones, Aníbal de viver os feminismos, de outros lugares, outras experiências, sem
Quijano, Gloria Anzaldúa, Maria Galindo, Suely Messeder, Rita necessariamente, proibir ou aniquilar a presença de uma teoria para
Laura Segato. assumir outra, mas sentir cada uma delas ... para pensar a partir
do que tomamos como importante para uma formação feminista
Também há trabalhos realizados por escritoras negras, descolonizada em Psicologia. Desta condição encarnada, de
potências que conheci com parceiras e parceiros do Grupo DeVerso, desmontagem e conquistas, percebo ser substancial para Psicologias
nosso espaço poético e produtivo, da Universidade Estadual de Feministas fomentarem seus fazeres distante do poder do discurso
Maringá, como: Patrícia Hill Collins, Kimberly Crenshaw, Lélia colonial e possibilitar ações que vão além do caráter investigativo
Gonzalez, Dejamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Carla Akotirene, Suely e classificatório estabelecido por mecanismos disciplinares de
Messeder, Grada Kilomba, bell hooks, Angela Davis e tantas, e currículos equivocadamente, ou não, mantidos.
tantas. Quanto daquele ar invadiu meus pulmões infantis, cínicos
e hipócritas que acreditavam estar vivendo uma vida VIVÍVEL... Enquanto perspectiva metodológica, elegi a cartografia
sempre grata por esta polinização. como método o qual, de acordo com Deleuze (2002), só poderá ser
assim pensado quando entendemos método como aquilo que nos faz
Jamais poderia deixar de citar aquelas que aguçam os estudos perceber a nossa potência de conhecer, quando implica na disposição
intersecionais, pós-estruturalistas e filósofos da diferença quando para afirmar a potência da própria vida, aquele que desestabiliza o
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corpo exigindo dele processos inventivos, estéticos, outras marcas. A a pesquisa, como apresentação em congressos e publicações em
pesquisa cartográfica mergulha a pesquisadora nos entres, nos planos revistas e/ou meios eletrônicos).
experimentais vividos nos trajetos e nos afetos ali produzidos.
Considerados os prazos para viabilização da escrita, do
A cartografia diferente do mapa - que se representa em agendamento para as entrevistas/encontros com as convidadas
um plano estático - ‘[...] é um desenho que acompanha e se faz ao e respeitadas as obrigatoriedades do cumprimento nos módulos
mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem’ oferecidos durante o doutoramento, iniciei a curadoria, entrando
(Suely Rolnik, 2011, p.23)1. Deste modo, a pesquisa aconteceu no em contato com os diários, os e-mails, as mensagens por telefone
desmanchamento de certos mundos para a formação de outros, em
e WhatsApp. Todos estes momentos se fizeram exercício coletivo e
companhia das colaboradoras/artistas desta exposição sobre práticas
prazeroso durante a construção da pesquisa.
de ensino, pesquisa e extensão na formação em Psicologia, ad hoc,
constituída quando o que se pretende é acompanhar processos, em Outras autorizações foram necessárias, como aquelas
uma produção que não é individual, mas coletiva de um corpo que submetidas ao Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá
“vibra em todas as frequências possíveis” (Rolnik, 2006, p.66). e as solicitadas a cada artista/colaboradora atuante na obra exposta,
quando do envio dos documentos que autorizaram a pesquisa, dos
No tornar-se, eu cartógrafa estive inspirada a pensar com pontos disparadores de nossas conversas, das normas de respeito e
um método que não prescreve destinos, que é feito no meio, no atenção com cada gravação, a transcrição/reconto de suas narrativas
estranhar-se e deslocar-se, inclinado a uma estética dos encontros que e o reenvio às colaboradoras para que pudessem modificar, retirar ou
deseja romper a indolente reprodução colonial e se manter à deriva, acrescentar o que desejassem.
resistente às normas de controle da pesquisa (vida) e a sua obediente
apatia, modus operandi dos conhecimentos alinhavados pela pesquisa Como o texto fará uso da metáfora “pesquisa como curadoria
universal reguladora e dos jogos de fachada que escancaram a quem de obras de arte”, a leitora perceberá que existem quadros grafados
servem, incansável em sua missão de submissão dos docilizáveis e em negrito entre os parágrafos, são os afetamentos diarísticos, poções
morte dos insubmissos. mágicas que me fizeram pensar a multiplicidade da vida e livraram a
escrita de uma opressão literária qualquer.
A exposição destas expressões artísticas, tal como a
programação de um Vernissage, exigiu a verificação da viabilidade do Estes quadros em devaneio agenciam aquilo que reclamamos
espaço nos quais seriam instalados (capítulos, subtemas, entre linhas), como direito e, mesmo em espaços reduzidos ou em condições
como a conferência dos itens de segurança previstos nos trâmites da inaceitáveis para o padrão epistêmico majoritário, arrancam o silêncio
exposição (os TCLEs, os termos para uso de imagens, a certificação da vida incomodada. São línguas vibráteis, vozes que poderão ser
ética para cada publicação de imagens), e a acessibilidade do público literalmente escutadas, sendo que alguns destes sons poderão ser
ouvidos através de QRcodes (Código de resposta rápida/ Quick
visitante (desenvolvimento de outras possibilidades de acompanhar Response Code) dispostos ao lado ou sobre fotos.
Sejam bem-vindas.
Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini – Cartógrafa/Curadora.
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... Foi ali, no entre debruçam sobre o objeto da pesquisa para interpretar ou investigar,
ele se constrói com e na pesquisa. Participa da criação coletiva dos
Creio que o encontro com o feminismo, como crítica
de uma história e um pensamento masculino dogmático,
territórios por onde os corpos são tensionados, impondo a invenção
abriu-me as portas para pensar minha vida de outra maneira. de novas expressões antes inexistentes no modo de pensar e agir,
Atrevo-me a sair, não sem temor, da admirável perfeição transformando a paisagem subjetiva.
do dogmatismo filosófico e teológico masculino no qual
fui formada. Atrevo-me a sair das definições que preciso Para a cartografia, não existe um começo pré-editado para a
adaptar-me, porque, segundo dizem, elas constituem a ordem do pesquisadora, o que se tem são territórios que, mesmo conhecidos,
mundo, do mundo certo, justo, do mundo desejado por Deus. Ouso não necessariamente habitamos. Estamos no estranhamento da
duvidar do que foi proclamado como verdade e liberdade (...) sinto-
me desbravadora de um caminho (Ivone Gebara, 2005, p. 26).
irregularidade contínua do familiarizado e são estes atritos que
nos colocam em movimento, no abrir-se ao encontro, produzindo a
As novas experimentações de mim desejavam algo que relação de agenciamento entre as participantes, a composição entre
arrepiasse, que retirasse o corpo de órbita, extirpasse de mim heterogêneos (Deleuze & Guattari, 1995).
o máximo do velho, enunciando parcerias, alianças para a
movimentação eticamente implicada, que apresentasse metodologias Uma pesquisa que se propõe a surgir nos acontecimentos não
enquanto aposta esteticamente escolhida para meu devir minoritário poderia levar à formulação de regras ou protocolos pré-estabelecidos,
de pesquisadora mulher. Abandonada a intencionalidade de uma precisaria estar em sintonia com seu caráter processual, acompanhar
travessia segura, os mapas não seriam mais eficientes, não seguiria os percursos e implicações de seus rizomas, valorizar seus encontros
mais as linhas de limites territoriais, ou sinalizações de partidas e e atestar no pensamento sua força performática, inteiramente voltado
chegadas, o interessante estava na intensidade do caminho e nas para uma experimentação do/no real.
descobertas que não podem ser encontradas de antemão. A exposição
do corpo seria produzida no curso da pesquisa. Assim, o pesquisar da cartógrafa é dado pelo movimento, pela
variação contínua de sua estrutura e projeto. É desenhada por um
Nos pontos, onde o corpo pesquisadora, a pesquisa e a conjunto de linhas em conexão que possui como objetivo coletivizar
escrita se tocam, surge a necessidade da escolha de uma perspectiva a experiência do trajeto da pesquisa-intervenção, já que é no coletivo
metodológica. Desejante de encontros e de ferramentas que de forças que o plano de experiências ocorre e a cartógrafa realiza sua
possibilitem vislumbrar processos que já estão em andamento, em pesquisa. Uma pesquisa que, como escreveram Deleuze e Guattari
fluxo, esta pesquisa processual, transversal, ad hoc, encontrou-se na (1995), visa acompanhar um processo e não representar um objeto,
cartografia. um rizoma não tem centro.
A cartografia enquanto método de traçado do plano de
experiência docente, acompanha os acontecimentos e os efeitos Virgínia Kastrup e Eduardo Barros (2015) advertem que
da investigação, afirma que para conhecer, temos que intervir e os processos da pesquisa cartográfica geralmente já se encontram
mergulhar nas implicações de nossa pesquisa. Ela defende que a em curso, já possuem história anterior à chegada da pesquisadora,
intervenção e a análise estariam no plano da experimentação, na qual exigindo que os passos da pesquisa não sejam programados pelos
sempre estaríamos implicados. Sinaliza uma direção ética, política no problemas pensados, mas sim, por movimentos constantes do próprio
trabalho de pesquisa e sugere que os termos da relação de produção plano dos acontecimentos. Deste modo, cada passo deverá ser sucedido
de conhecimento se constituam no caminho da pesquisa-intervenção. pela processualidade dos dados produzidos (não coletados) durante a
viagem da pesquisa-intervenção da cartógrafa, compartilhada com
Nesta metodologia, os olhares não são aqueles que se os corpos vibráteis encontrados nos caminhos percorridos.
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de composição de forças que foge do pensamento hierárquico Clandinin e Connelly (2015) compreendem a narrativa como
do patriarcado e põe-se a mirar, como o verbo propõe, olhar com forma de entender a experiência, sendo esta, o principal objetivo a ser
atenção, contemplar (alguém ou algo) com grande prazer e interesse, captado em escritas como a que proponho. Os teóricos reconhecem
considerar (alguém, algo ou a si mesmo) com respeito, veneração, que o óbvio nunca se esgota e que surpresas podem acontecer
atitudes que reconhecem a importância do fazer de nossas ancestrais, constantemente quando misturadas às diferentes paisagens que
aquelas que nos ensinam a resistir e continuar acreditando em passamos a conhecer a convite das participantes da pesquisa. Como
feminismos plurais, que agregam todas. descrevem Clandinin e Connelly (2015),
Uma coisa que os pesquisadores narrativos fazem é aprender
O método narrativo1 em pesquisa é caracterizado pela rapidamente que mesmo se eles estiverem familiarizados com a
participação de falas, vozes e escutas com suas colaboradoras, paisagem […] há uma grande quantidade de aspectos que surgem
entendido como “[…] estratégia de escrita ou política de em diferentes momentos nos relacionamentos e acontecimentos
narratividade que deve ser coerente com a própria política de nesta paisagem que não devem ser tomados por certos[…]
pesquisa […] a narratividade do caso é, neste sentido, a expressão
de um devir ou o processo de produção de um fenômeno” A fim de fazer parte das histórias construídos ao longo da pesquisa, de se
tornar parte de uma paisagem, o pesquisador precisa se inserir nesta por
(Passos & Kastrup, 2013, p.398-399). Transporta a pesquisadora a um bom tempo, prestar atenção e questionar as situações para compreender
descentramentos, retira o objetivo da linha reta e sugere a sensação do os eventos e histórias, as muitas narrativas que se inter-relacionam a cada
escapar por entre os dedos o cronograma aparentemente estruturado, instante e que apontam, frente a seu olhar ainda inexperiente, caminhos
enriquece a experiência no mundo e aciona os fluxos de vida que na compreensão de mistérios (Clandinin & Connelly, 2015, p. 114-115).
ganham força nas audições perfiladas como um plano de imanência.
Os estudos de narrativas têm como maior interesse a história
Neste sentido, é importante trazer para a coleta das narrativas em si mesma, privilegia o caráter situado dos relatos, outorgando papel
o conceito de dissolução do ponto de vista da pesquisadora, atitude ativo e construtivo ao sujeito que narra. É espaço verbal, por onde
extremamente desafiante e eixo da pesquisa cartográfica, a qual transbordam enunciados e detalhes sobre acontecimentos e ações
solicita que aquela não se localize em uma posição de observadora localizadas, bem como todo o conjunto de reproduções discursivas
distante, nem localize uma participante como coisa idêntica a si e normativas que estão disponíveis em seu espaço existencial e se
mesma, colocando em dúvida os territórios existenciais solidificados revelam como forças que atravessam suas trajetórias.
e permitindo formas performáticas de experimentação antes, durante
e após a pesquisa. De acordo com Passos e Eirado (2009), isso não Aguçam os ouvidos para o espontâneo e criam um texto
significa deixar de existir na relação, mas investir em uma existência colaborativo, mantendo assim, a significação artística de cada vida.
afetada e sensível ao fluxo dos acontecimentos, incorporando as vozes Elas acontecem de modo quase artesanal, caseira, sem intenção de
das participantes em cada linha da escrita com o intuito de provocar transmitir informações que deverão ser interpretadas, mas contar
uma comprometida polifonia. conteúdos vividos que podem ser somados aos processos criativos
de reinvenção. Ou seja, a narratividade é um recurso que nos permite
ouvir a riqueza do detalhe e ressignificar o passado das coisas,
tornando a vivência rizomática, inacabada, infinita.
1 De autoria dos professores Jean D. Clandinin e Michael Connelly, o livro “Pesquisa
Narrativa: experiências e histórias na pesquisa qualitativa” traduzido pelo Grupo de
Outro recurso utilizado para o reconto dos encontros da tese
Pesquisa Narrativa e Educação de Professores (GPNEP) da Universidade Federal foi o ato de escrever sobre e nos acontecimentos através dos textos
de Uberlândia (ILEEL/UFU, 2015), foi instrutivo no sentido de pensar sobre uma diarísticos. Os diários estiveram presentes durante toda a pesquisa e
pesquisa contada através de histórias vividas. nela aparecem
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aleatoriamente, são íntimos, ficam à vontade. São parte das também acolhe, respeitosamente, a singularidade de todas as vidas
obras de arte desta exposição textual, são coral e teatro, são esculturas que compõem esta tese. Sua elaboração não é ação obrigatória nos
e monumentos, são desenhos e pinturas, grafites e pichações, filmes trâmites da pesquisa, mas possibilita o retorno à experiência de falar
e documentários, músicas e melodia, contos e poemas, filmagens e do lugar de dentro, onde as polifonias acontecem e a interpretação
fotografias. não se sobrepõe à novidade de cada paisagem e seus eventos. Os
diários abrem as linhas, as palavras, as letras.
Todo o material diarístico foi organizado preservando as
indicações do trabalho narrativo, de recusar que as relações entre Cada trajeto, período, encontro, evento, abriu fendas que
sujeitos e pesquisadora sejam mera produção de registros a serem liberaram este texto para ser reescrito a qualquer momento. Nele,
analisados (Luciana Kind & Rosineide Cordeiro, 2016). Fazem valer insiro a publicação das minhas cartas de navegação deslocante e viajo
a pena reviver as envergaduras do trajeto proposto e o prenúncio com as colaboradoras neste ato de pesquisa plural, movendo assim,
de desorientação que eu estava por vivenciar quando enunciei um o incessante processo de produzir pesquisas feministas e sobre todas
trabalho que elegeu a cartografia como metodologia. nós mulheres docentes em Psicologia.
Figuras 02 e 03: Sobre as linhas de vidas cambiantes e os ventos do outono. UEM, 2018.
Acervo próprio. QRcode: vivências do outono na Universidade Estadual de Maringá, Pr.
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feminismo como movimento de liberdade e autonomia na formação Acredito ter sido esta a parte mais intensa, produtiva e
em Psicologia; como analisa o que está sendo produzido de pesquisa, encarnada da pesquisa, o estar com elas em múltiplas paisagens.
ensino e extensão pela Psicologia Feminista no Brasil; quais poderão Sentir-se íntima destas mulheres sem nunca as ter visto. Receber o
ser os efeitos deste movimento de escape do colonizado pela formação apoio delas sem que fosse preciso apresentar todos os trâmites da
em Psicologia e, por fim, de que forma o feminismo também poderia pesquisa. Ser encorajada por elas e receber o aceite de sua participação
revolucionar a Psicologia influenciando as leituras, práticas e mesmo em momentos que, para elas, era tão complicado depositar
processos de militância na academia. alguns minutos para nosso encontro.
Propus que as entrevistas não fossem realizadas As mulheres colaboradoras da pesquisa são as que narram
necessariamente de forma presencial (parece que o cosmo previa sobre processos criativos, de novas possibilidades, (des) caminhos,
algo… uma pandemia), mas organizadas de acordo com suas linhas de fuga dos dispositivos disciplinares e forças discursivas,
possibilidades, sendo sugerido o envio das narrativas por meio corpos que se ocupam em ver, dizer e exigir outras modalidades de
eletrônico, caso não fossem possíveis as gravações em áudio/vídeo estar feminina/feminista, diferente daquelas instauradas a partir de
nos encontros presenciais. Confirmados os aceites da participação na edificações coloniais que defendem a essência imutável das coisas e
pesquisa, as entrevistas foram agendadas e foram enviadas as vias conferem estabilidade às ciências totalizantes.
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para serem
assinadas, convalidando eticamente suas participações e reafirmando São corpos/afetivos/afetados que nos acompanharam na
o compromisso com nossa militância. construção cartográfica da pesquisa, são aqueles que, em algum
período, foram (ou são) efeitos das relações de poder modelados
O planejado era fazer duas entrevistas piloto para analisar por saberes colonizados e, que durante sua trajetória pessoal ou/e
e aperfeiçoar o desenho do campo problemático das nossas profissional, projetam-se como corpos resistentes ao sequestro da
conversações, como também para acostumar nossos ouvidos a sentir normatividade imposta ao gênero feminino e se fazem mulheres
cada narrativa. Estas duas primeiras entrevistas comprovaram o que já docentes feministas.
se imaginava, eu seria desmontada por vivências do devir-mulher em
espaços acadêmicos. Ali estavam mulheres que, conforme vivências O projeto pretendia entrevistar dez psicólogas, docentes de
também descritas por Rago (2013. p. 34), “[…] trilharam caminhos Psicologia de diferentes estados brasileiros. Profissionais implicadas
próprios, novos, dissidentes, dissonantes, abertos com trabalho árduo com a pesquisa e escrita sobre feminismos, ou envolvidas em
e com as sofisticadas ferramentas das desbravadoras”. Novamente, as práticas de extensão ou estágio e com, no mínimo, cinco anos de
entrevistas não conseguiram respeitar o programado. experiência em docência do ensino superior privado ou público. A
opção metodológica, atrevida e desobediente, conduziu a pesquisa
Era impossível ficar com elas “até 60 minutos”, tempo para muito além do número descrito no projeto inicial da pesquisa.
esperado para cada entrevista no projeto da pesquisa. Quanta ilusão
acreditar que narrativas possuem horários previstos para iniciar ou Agora não se tratava mais de uma entrevista com dez mulheres,
acabar, ou que poderiam ser realizadas em um dia, meio dia, um estávamos vivendo a experiência da pesquisa sobre uma docência
momento! Não as entrevistas orientadas pela liberdade afetiva da feminista em assembleia, os encontros não deixavam de acontecer,
cartografia a qual desenha o seu acontecimento fora do tempo, do e só não estão todos aqui porque tornaram-se mais que pesquisa,
espaço e da ação estabelecida pela objetividade de uma pesquisa. agora são convivência, amizade, coletivos. Coube à escrita apresentar
Agimos, alegremente, na clandestinidade científica. as narrativas das dez participantes, mas também cabe ressaltar que,
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entre elas, estavam aquelas outras tantas que ampliaram nosso mapa Cada encontro e todas as narrativas se fizeram acontecimentos
e transbordaram os objetivos desta pesquisa. singulares. Eram forças que alteravam o curso da pesquisa diante a
implicação de cada mulher que historiou a sua própria experiência.
O propósito deste atrevimento foi primar pela construção Mulheres interpretando suas vidas, utilizando-se de enorme potencial
de diálogos que possibilitaram, às colaboradoras e à pesquisadora, transformador para reinventar seus diferentes modos de estar no
autonomia para explorar diferentes assuntos por vezes não mundo, reinventar-se mulher dentro e fora do espaço acadêmico.
apresentados pela entrevista, indo ao encontro ao proposto pelo
método cartográfico à cartógrafa que “[…] se interessa por acompanhar É isso que interessa, o modo como se conectam, como as
a experiência que performatiza dado sua força de pôr a realidade e narrativas passeiam por seus múltiplos fluxos e proliferam afetos
fazer-se coemergir eu/mundo” (Passos & Kastrup, 2013, p.401). No pelas suas vias. Optamos por admirá-las, apresentá-las durante os
entremeio das entrevistas, percebi que me perder seria a melhor espaços da pesquisa e referenciando sua presença como guias e não
forma de me encontrar, a intenção era modificada. Os encontros não direção para um fim, respeitando igualmente o desejo de quem estará
seriam para obter, através das entrevistas, os dados para a pesquisa. lendo, autonomia de voo.
Agora, não procurava nada em específico, estava entregue aos fluxos,
ao acontecimento e percebia que, como escreve Rolnik (2007): Depois de produzir o reconto das narrativas, a preocupação
voltava ao lugar indesejado de apresentar as conclusões de uma
[...] para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos pesquisa. As dúvidas sequestravam o desejo de desobediência
com revelar. Para ele não há nada em cima – céus da transcendência – epistêmica e exigiam algumas respostas técnicas de como estruturar
nem embaixo – brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por
a “análise dos achados das narrativas”. Minha preocupação em tratar
todos os lados são intensidades buscando expressão (Rolnik, 2011, p. 66).
as narrativas para uma possível análise foi ética: como adotar a
narrativa como processo metodológico sem retirar, de quem narra, o
Outro movimento importante para a pesquisa foi o momento direito de falar sobre a sua experiência? Como um campo de vivência
de retornar às transcrições realizadas para que as docentes pessoal pode ser interpretado por um campo de análise?
sugerissem, retirassem ou acrescentassem informações ou afetações
que considerassem importantes. A partir destes combinados, as
Estas interrogações foram regurgitadas com dificuldade,
narrativas compuseram a escrita final da tese e receberam espaços
já que era preciso reconhecer que, por alguns instantes, estava
para serem expressas sem serem governadas e sem a submissão aos
sim, sendo capturada pela perspectiva dominante de pesquisa, de
cânones docentes, uma tarefa urgente e fundamental e politicamente
ser “guiada” no caminho das possíveis ou desejáveis respostas às
indispensável, de resistência ao poder político, senão na relação de si
perguntas previamente pensadas pela pesquisadora em formato de
para consigo, como afirmou Foucault (2004).
objetivos.
No início de cada entrevista, era comunicado às mulheres
Voltei o pensamento para o lugar de cartógrafa, lembrei que
colaboradoras que a pesquisa garantiria o sigilo absoluto e que as
a metodologia sugere que a atenção da pesquisa pouse em pistas que
mesmas poderiam, inclusive, interromper o trabalho em qualquer
surgem no campo dos acontecimentos, método que exige atenção
momento, sem prejuízo algum para este. Assim, foi respeitada a
flutuante ao trabalhar com fragmentos que aguçam diferentes
produção de suas próprias subjetividades e admiradas suas práticas
modalidades sensoriais e envolvem “habilidades para lidar com metas
revolucionárias ao descobrirem saídas em territórios marcados pela
em variação contínua [...] a atenção do cartógrafo é, em princípio,
reestruturação neoliberal da educação brasileira.
aberta e sem foco, e a concentração se explica por uma sintonia fina
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com o problema” (Passos; Kastrup & Escóssia, 2015, p. 40). Seria acontecimentos de suas vidas na época dos encontros, os desabafos,
preciso evitar o predomínio pela busca de informações para que a as confissões, os desejos e desesperos, as potências. As narrativas
cartógrafa estivesse aberta ao encontro. transformaram-se em capítulo, um espaço para ad/mira/ções.
Ao estar entre as pulsações das narrativas, certifiquei que Não abri mão do rigor exigido para uma pesquisa, escolhi o
não estaria falando de uma cartografia se mantivesse a pretensão compromisso com a ética e a estilística da vida em potência, a coragem
de interpretar aquelas histórias, reduzindo sua potência a páginas da verdade vibrava na voz daquelas parresiastas... elas escolheram
lançadas no texto, necessariamente referenciadas para dar dizer a verdade sem medo, aquela verdade política que provoca e
legitimidade científica àquelas vozes. Mas eu tinha a autorização desestabiliza a verdade inventada pelo/ no discurso científico.
das colaboradoras para o movimento de reconto, aquele que daria às
vozes ouvidas por mensagens de WhatsApp, certas “entre respostas”, Em acordo com o TCLE, a anonimato das colaboradoras foi
enunciadas nas entrevistas e que davam as mãos à intimidade dos preservado, pois, mesmo que demonstrassem o compromisso ético
encontros. de seus atos docentes e militantes, traziam fatos além daqueles
pertencentes a sua intimidade, falavam de vidas outras que as afetaram
e, pontualmente, revelavam a necessidade do sigilo para preservar
A escolha por descrever processos mais do que estado das
estas outras tantas de suas histórias. Algumas das colaboradoras
coisas, indica que o procedimento de análise ou admiração das
escolheram seus nomes artísticos, afetivamente escolhidos no
narrativas, aconteceria a partir da realidade que emergia durante a
revisitar da vida durante as narrativas, outras optaram por não citar
pesquisa e na composição de suas linhas, gerando interesse e atenção
nenhuma referência, sendo seu nome nesta tese escolhido por mim.
no acompanhamento dos processos da realidade de si e do mundo. Uma
pesquisa relacional, da ordem da encantadoria, entende o conhecer
Respeitando os termos técnicos e os seus combinados, refletia
da realidade apresentada em seu constante processo produtivo de
sobre como poderia apresentá-las... óbvio... se a proposta é expor
subjetividades, acessada por movimentos que constituem cada uma
obras de arte, decidi por identificar cada qual com o nome de uma
destas narrativas.
teórica, estudiosa, ativista, artista, mulher feminista, escolhi por
representar a importância destas mulheres na pesquisa e transportar,
Pensei em trazer porções das transcrições propondo diálogos em forma de homenagem, o meu agradecimento.
de umas com as outras, inserindo entre elas, comentários sobre as
afetações que emergiam da inseparabilidade entre escutar, vivenciar,
Cada respirar, as pausas entre as falas, as risadas, a mudança
pertencer, estaria então traçado o plano de apresentação das narrativas.
de entonação, o silêncio, o dito e o não dito, estão envolvidos no
Experimentei, mas redigir um texto ordenado por uma estilística
processo de admiração das narrativas, as quais, nesta pesquisa, não
que responde a categorias de analise trairiam a sensibilidade e a
são documentais, de fontes secundárias ou entrevistas publicadas,
magnitude do encontro, eu as perdia no meio de metades.
são de psicólogas docentes que se enunciam feministas, entusiastas e
colaboradoras destas escritas, mulheres de minha ad/mira/ação.
Desejei outra apresentação, reinventada no seu processo de
encantamento pelo inesperado, emergido dos espaços onde a pesquisa
Foram momentos que, infiltrados, arrebentaram as comportas
se fizera eticamente hibridizada com a vida, das colaboradoras e
construídas pela pesquisa devido à intensidade de sua vazão afetiva
da minha própria. Onde estariam presentes os meses e anos, locais
e me permitiram assumir o lugar de espectadora de suas memórias,
de encontro, expectativas de ambas, os nomes escolhidos por elas
momentos que deram passagem aos encontros, onde a vida acontecia
ou por mim e o significado deles para o momento da pesquisa, os
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e reinventaram nas heterotopias dos percursos. Eram tantas vozes
em tantos corpos, sem interrupções. Agora, a missão era compor, no
formato de exposição de arte, estas artistas e suas estilísticas de vida.
A cada final de entrevista, eu ficava saudosa, desejava só mais alguns
instantes. Eu lembrava o Menino descrito pelo conto roseano “Os
Cimos” no seu diálogo com o tio quando a viagem acabou...
_ “Chegamos, afinal! ” – o Tio falou.
_ “Ah, não. Ainda não...” – respondeu o Menino.
Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.
(João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias).
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O povo que caminha é agora o meu Encontrei, visitei, conversei, interagi e criei com mulheres,
docentes, mães, pesquisadoras, militantes, em suas diferentes esta[r]
O povo que caminha é agora o meu. Antes, eu caminhava das da vida, nos diferentes estados brasileiros, dando sentidos ao
com outro povo e acreditava que era o meu. Não havia nascido vivido. Mulheres que experimentavam uma gestação, as surpresas
ainda. Nasci de verdade desde que ando como Machiguenga
[...] O sol não tem caído, não termina de cair. Vai e volta, como
da maternidade, outras finalizavam o processo de mestrado ou
as almas com sorte. Aquece o mundo. A gente da terra não tem doutoramento, com uma tese a ser concluída, algumas que nos
caído tampouco. Aqui estamos. Eu no meio, vocês rodeando-me. Eu acolheram entre horários de aulas quando, merecidamente, poderiam
falando, vocês ouvindo. Vivemos, caminhamos. Isso é a felicidade, descansar, até aquelas que, entre uma viagem e outra, entre aviões,
parece... (Vargas Llosa, 2013, p. 207). ônibus e trens, paravam para dar aquele estou aqui tão esperado por
mim.
Convido as visitantes deste espaço a aguçar o sentido da visão e
deixar o corpo vibrar com as possíveis sinfonias vindas do seu interior. Nos contatos e encontros, invadi, de modo consentido, algum
Apresento a narrativa como instrumento de fundamental valia para a intervalo de suas vidas, alguns momentos onde as coisas realmente
construção da escrita aqui pensada e recriada no movimento de estar importam. Estive próxima dos acontecimentos que rodeavam o
com os encantos que se fazem ação: encantadorias. cotidiano delas e, por vezes, sentia uma sensação desconfortável de
intromissão em situações tão particulares. Parecia não ser o momento
Exposição como parte de um sistema de comunicação que se propício, mas, carinhosamente, elas me acolhiam.
utiliza da lógica dos sentidos através de suas histórias e da doação
Elas me recebiam em seus territórios, em espaços dialógicos,
coletiva que transforma contações em afetações. Detalhes que tornam
em eventos e congressos, em viagens por onde as vidas, como capricho,
suave o esboço teórico da paisagem e transcendem o ato da escrita
encontraram-se, ou então por vias invisíveis, transportadas por fios
acadêmica, mergulhando em práticas corporais artísticas.
de internet quando o encontro só podia acontecer por mensagens,
vídeos ou áudios de WhatsApp. Todavia, sempre potentes. E assim,
As narrativas, aqui apresentadas como recontos, nos habitaram
no encontro, as entrevistas aconteceram, pintando telas sensíveis do
com a novidade, com o improviso e o imprevisto. Nelas, falamos sobre
estar com. De modo semelhante a descrição que Margareth Rago
a potência umas das outras, indicando o nome de mais uma, mais
(2013) faz das mulheres que apresenta em sua obra, as colaboradoras
uma, e mais uma, criamos então uma pesquisa em rede, esculpida
de minha pesquisa também podem ser descritas como,
a várias mãos, via polinização de nossos atos políticos como sugere
Margareth Rago (2013). As com/versa/ações presentes neste capítulo Mulheres ousadas, valentes, excêntricas, que fogem das normas, recusam
também são aqueles que dialogaram sobre atividades profissionais, o autoritarismo e a violência, desistem de casamentos tranquilos e da
sobre como o corpo e seus saberes blasfêmicos transitam pelas paz do lar domesticado, para descobrirem o mundo, dedicarem-se aos
atividades de pesquisa, ensino e extensão, nos entremeios acadêmicos rejeitados e marginalizados [...] ou para encontrarem-se consigo mesmas,
da formação em Psicologia. produzindo novos modos de estar no mundo (Rago, 2013, p. 311).
Mulheres dispostas a questionar, desnaturalizar valores Das parcerias que floriram durante a pesquisa, entre os
enraizados, investir em movimentos que atualizam a potência da vida em quilômetros sinalizados por placas, as viagens prazerosamente lentas
suas linhas múltiplas e as faz funcionar em formato artístico que, segundo experimentadas em trilhos, os enjoos provocados no balanço dos
Guattari (2000, p. 135), “[...] leva ao ponto extremo uma capacidade de barcos ou as milhas voadas no ir e vir, surgiram vizinhanças que
invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades evocaram as sugestões de Deleuze (1997, p.12) sobre ser no entre,
de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”, estas são elas: arte. onde realmente mapeamos a passagem e “[...], dos desvios necessários
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criados a cada vez para revelar a vida nas coisas”, locais de encontros
respiráveis, formas de viver e cartografar o mundo como lugar do
encontro.
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Figura 05: Crochê das Minas. Arte cedida carinhosamente por Luciana Kind, uma Mulher
Feminista das Minas. QRcode: I Simpósio de Narrativas, Gênero e Política. 2016, Belo
Horizonte, PUC/ Minas Gerais.
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Parecíamos um grande emaranhado de linhas afetivas, Depois de estar com as “Minas” dos Gerais, desfiei a meada
loucamente desorganizado, mas dentro de nossa organização afetiva, das linhas do crochê ... cada uma delas conduzirá a pesquisa para
“crochetamos” encontros florescentes de admiração. outros pontos do mapa brasileiro, territórios de cuidados de si que
corresponde a uma postura ética diante do mundo, o voltar-se para si
Em 2016, o crochê das “Minas” dos Gerais e os amarrados reflexivamente para então agir no mundo, atos compreendidos como
de narrativas docemente anarquistas, acalentaram as angustias de obra de arte, certa estética de existência necessariamente implicada
uma escrita de tese que ainda não tinha destinatário, era quieta, com o outro.
seca, sonsa. Foi em Belo Horizonte que o ato adocicado da escuta de
narrativas feministas reverberou a escolha de uma metodologia de As artistas/colaboradoras desta exposição de arte/tese
pesquisa e abandonou seu trajeto solitário, aquela solidão epistêmica auxiliaram a refletir sobre estas questões, narraram sobre possíveis
provocada pela ciência dominante, mas também aquela descrita por respostas não com o propósito de firmar verdades, mas de contar suas
Carlos, o mineiro: experiências, os perigos e a necessidade de atravessá-los, enfrentá-
los, e como poetiza Glória Anzaldúa (2000), compartilharam da
A solidão é niilista. Penso numa solidão total e secreta, de que a vida dificuldade de escrever longe da intelectualização academicista.
moderna parece guardar a fórmula, pois para senti-la não é preciso fugir Sendo assim, a opção era por linhas mais potentes, aquelas de suas
para Goiás ou as cavernas. No formigamento das grandes cidades, entre próprias histórias, cientes de que:
os roncos dos motores e o barulho dos pés e das vozes, o homem pode ser
invadido bruscamente por uma terrível solidão, que o paralisa e o priva Não é fácil escrever esta carta. Começou como um poema, um longo
de qualquer sentimento de fraternidade ou temor (Andrade, 2011, p. 28). poema. Tentei transformá-la em um ensaio, mas o resultado ficou áspero,
frio. Ainda não desaprendi as tolices esotéricas e pseudo-intelectualizadas
que a lavagem cerebral da escola forçou em minha escrita. Como começar
A escolha por participar de um evento que tinha como novamente? Como alcançar a intimidade e imediatez que quero? De que
propósito dialogar sobre narrativas, gênero e política, pressupunha a forma? Uma carta, claro [...] Não temos muito a perder — nunca tivemos
oportunidade de ouvir histórias produzidas no cotidiano de mulheres nenhum privilégio. Gostaria de chamar os perigos de “obstáculos”,
em suas práticas profissionais e contextos de militância, de modo a mas isto seria uma mentira. Não podemos transcender os perigos, não
estimular o pensamento crítico e as discussões teórico-metodológicas, podemos ultrapassá-los. Nós devemos atravessá-los e não esperar a
bem como repensar o meu próprio percurso enquanto pesquisadora repetição da performance (Glória Anzaldúa, 2000. p. 229).
cartógrafa. Explorar os aspectos políticos das narrativas foi também
E outros foram vários os espaços de encontros ... As
um exercício para aprender a escutar trajetórias, resistências, desafios
conversas, sempre regadas a gratidão e afetos, surgiam em chegadas
que tencionam o gênero nos espaços acadêmicos, problematizando
e despedidas, eram sempre agradáveis, comprometidas com a escrita
ainda mais o objetivo da pesquisa que eu pretendia realizar.
e manifesta em suas narrativas. Estas mulheres estenderam as suas
mãos e propuseram alianças... eu ouvia suas vozes a todo instante
O evento revelou-se como um processo de estranhamento que
e assim, escapava da “domesticação acadêmica” (Sandra Azeredo,
permitiu o meu afastamento dos métodos padronizados de pesquisa
2010, p. 175) prevista para o doutoramento.
e apresentou outras possibilidades de reconto sobre experiências
vividas/narradas promovidas pela interlocução entre as participantes A intenção da pesquisa era constantemente lembrada, fora
e a aproximação dos feminismos e das leituras feministas latinas com desenhada não para encontrar respostas, mas para promover diálogos
a Psicologia. Morava aí o desejo para uma pesquisa de doutorado, sobre nós, sobre mulheres interessadas por certa Psicologia Feminista
mas também de ponderar sobre a recriação de mim mesma como Decolonial, interessadas por escapes, ouvidas nas encantadorias
mulher, docente, pesquisadora que se enuncia feminista. desta tese.
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Jaqueline
quando sinalizado por mim
o cuidado que a pesquisa Jaqueline começou nossa conversa falando que desde a graduação
teria em relação ao sigilo das já trabalhava com questões de gênero, envolvida com o tema da
Agosto 2019/ Rio de Janeiro informações que elas estavam diversidade, mas que foi precisamente no doutorado que começou a
me oferecendo. Ela disse que estudar sobre as paradas do orgulho LGBT e decidiu dar enfoque com
era o que queria falar e como maiores dimensões nas discussões de gênero. Comenta que depois que
gostaria de ser apresentada e vivenciou seu reconhecimento como mulher trans, já no doutorado,
pronto, falou. Eu ouvia sobre percebeu que seria muito importante entender melhor o feminismo
esta mulher nos caminhos da a partir do olhar militante aplicado às questões da população trans
UNESP, ainda nos trajetos do e assim se aproximou do feminismo, começou a investigar e refletir
mestrado, quando alargava meus ouvidos sobre estudos de gênero no que é ser militante. Comenta que já estava pensando sobre outros
e perspectiva Queer. Já no doutorado, tive a oportunidade de saber feminismos no Brasil, mas no doutorado, “eu me aprofundei mesmo,
mais por onde ela transitava, para o que militava e assim a conheci como docente, pesquisadora, mulher feminista, mulher trans e negra”.
durante palestras por ela ministradas em eventos universitários, lia Relata que desde o final do mestrado, já dava aula e apresentava em
os seus textos e as pessoas perguntavam: Você conhece “A Jaque”? suas propostas docentes leituras feministas, recordando o quanto
Eu respondia: Claro. Mas era um conhecer de outra ordem…“A estas potencializaram o seu doutorado. Verbaliza que as intervenções
Jaque”, eu conheci nos contatos para entrevista, julho de 2019 no profissionais também ficaram focadas nas questões de gênero,
VI SIES – Simpósio de Educação Sexual da Universidade Estadual principalmente depois da tese de doutorado na qual trabalhou com esta
de Maringá. Antes do evento, havia conversado com ela pelo temática, quando veio a trabalhar muito mais as leituras feministas como
facebook, me apresentado, falado sobre a pesquisa e a convidado docente. Quando perguntava sobre seu conhecimento de universidades
para participar das conversações propostas pela tese, ela aceitou que apresentavam as teorias, movimentos feministas como propostas
e ficou combinado que conversaríamos naquele momento. Porém de práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica,
no evento, era tanta gente que queria a “Jaque”, eram tantos Jaqueline me contava que sabe de algumas universidades que têm
questionamentos interessantes, sua fala inundava de inquietações nos currículos essas propostas de leituras, mas não necessariamente
o auditório e eu, me alimentava esperando o momento de estar reconhecidas como uma prática do currículo de todas universidades,
mais perto. Mas ela estava em viagem, atrasada para pegar seu sendo poucas aquelas que propõe estes diálogos ou teorias, como uma
voo para os EUA, e não foi aquele o momento da nossa conversa. parte do currículo da instituição. Defende que ainda não temos esta
A entrevista aconteceu em agosto, por mensagens de WhatsApp, prática no Brasil, porém apresenta como exemplo de compromisso
quanto ainda estava nos Estados Unidos. Entre um espaço e outro político o núcleo interdisciplinar de estudo sobre a mulher da
da sua agenda, ela retomava nossas conversas e o tempo previsto Universidade Federal da Bahia, todavia lembra que ele ainda não tem
de sessenta minutos não era mais contado, pois a entrevista foi essa perspectiva para atuar com todos os graduandos e pós-graduandos,
além de um contato para a pesquisa, acontecendo durante o mês
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porém já é um espaço alternativo de formação, especificamente nessa grade curricular crítica e auxiliado a ciência a sair desse enfoque que
área. Quando questiono sobre o que pode vir a controlar nossas práticas pensa gênero apenas como sexo identificação biologista, de sexo como
e desejos de propagar o feminismo como movimento de liberdade e simplesmente uma marcação de sexo características oferecidas a priori.
autonomia na formação em Psicologia e quais as mulheres a Psicologia Ela narra que a Psicologia vem adotando uma perspectiva de gênero
Feminista se propõe a enunciar, ela responde de modo espontâneo, “Ué, estruturante como eixo fundamental da sociedade e um olhar mais
depende da própria Psicologia, como ela está construindo isso que a crítico para as construções da própria Psicologia, da crítica ao sujeito
gente chama de Psicologia”. Jaqueline comenta que na sua perspectiva, universal e as questões de posicionamento das próprias pesquisadoras e
já que podemos ter perspectivas diferentes, o que se faz Psicologia pesquisadores do campo. Ela diz acreditar que a Psicologia já avançou
depende das palavras e dos estudos que fazem dentro da Psicologia. muito, todavia que ainda tem muito a ser construído, lembra que nova,
Oferece exemplos citando que os estudos de gênero foram assumidos que tem menos de vinte anos, e por isso, muito a avançar. Nós nos
muito recentemente na Psicologia em comparação com outras áreas despedimos neste momento e ela escreve através do whats: “Espero ter
das Ciências Sociais. Logo, adianta-se em afirmar que existem aquelas respondido querida, um beijo. Desculpe mesmo a demora estupenda
que vêm sendo feitas, principalmente na Universidade de Brasília, que para responder, beijo”.
apresenta uma vertente forte na Psicologia com a perspectiva feminista,
e remetem às autoras e mulheres em seus estudos. Verbaliza sempre
lembrar de Maria Aparecida Cida Bento, como psicóloga negra que
tem trazido várias intervenções que podem ser pensadas e construídas
nesse campo epistêmico. Continuando a responder, ela analisa minhas
inquietações sobre o que está sendo produzido de pesquisa, ensino e
extensão em Psicologia Feminista e quais os efeitos deste movimento
de escape do colonizado pela formação em Psicologia. Sobre esta
questão, responde que ainda não vê uma produção tão extensa, que
gostaria de ter mais contato, acha que ainda estamos no campo restrito
de uma perspectiva feminista muito particular, reflete sobre quais as
variantes do gênero estamos trabalhando, se estamos falando de todas
as mulheres, também dos homens enquanto sujeitos de gênero, se
estamos falando de mulheres transgêneros e travestis e outras vivências
de gênero ou se estamos falando apenas mulheres cisgêneras. Jaqueline
acredita que ainda estamos no começo dessa formação em Psicologia
feminista no Brasil. Problematizo, através das perguntas disparadoras,
de que forma o feminismo também poderia ensejar leituras e práticas
para processos de militância na academia e ela verbaliza que já vê isso
acontecendo, que foi por causa do feminismo e de psicólogas que se
aproximaram do feminismo que a gente tem trazido essas categorias
para academia e mostrado o quanto elas enriquecem a nossa ação fora
da lógica masculina na academia e nas ciências. Falava sobre o quanto
a Psicologia feminista tem contribuído para a construção de uma
A
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Foi este o codinome escolhido “Eu ouvi novamente a entrevista e achei importante trazer minha
por ela: “Anita”, referenciando fala sobre militância, atuação política porque considero que essa
Anita Garibaldi, a “Heroína é minha referência, meu lattes íntimo, que me levou a ser docente
dos Dois Mundos”, mulher e feminista” Setembro 2019.
Anita
brasileira, revolucionária,
conhecida por seu envolvimento Combinamos a entrevista por chamada de WhatsApp para o dia 13 de
direto na Revolução Farroupilha setembro de 2019 e continuamos por mensagens em 16 de setembro
Setembro 2019/ São Paulo e no processo de unificação da do mesmo ano. Entre os diálogos que aconteciam por WhatsApp
Itália. Mulher que guerreava em diante a dificuldade da realização presencial, ouvia alguns gemidos
pé de igualdade com o gênero do bebê. Por vezes paramos para que ela pudesse atender o pequeno,
masculino e, mesmo grávida, outra hora retornaríamos, eram pequenos pedidos de “mãe, estou
não deixou de brigar por seus ideais, de vida e políticos. Claro, precisando de você!”, e ela comentava: “você sabe não é Bárbara, são
tinha que ser Anita. O corpo desta mulher colaboradora dança aqueles pedidos comuns e cotidianos que nós, mães mulheres,
com os assuntos relacionados aos processos de organização estamos acostumadas a ouvir quando estamos em casa, no banheiro,
do trabalho, de lutas e conquistas e traz, enquanto docente e realizando refeições, dormindo, descansando, no trabalho, ou
supervisora de estágio, a convicção sobre a importância de narrando sobre a vida de uma mulher docente, mãe, pesquisadora
diálogos feministas para e na formação acadêmica. Eu e Anita participando de uma pesquisa sobre narrativas feministas na
fizemos o mestrado na mesma instituição de ensino, porém não universidade (risos)”. Durante sua narrativa, Anita trocava de lugar
na mesma época. Não a conheci pessoalmente, mas estava atenta para o som ficar melhor e facilitar a transcrição da entrevista. Deixava
as suas escritas durante os módulos do mestrado que propunham de estar perto do filho para doar seus momentos de descanso à
discussões sobre trabalho e gênero e, ao dialogar com outra pesquisa, este movimento era entendido por mim como doação
colaboradora da pesquisa, ela me lembrou de Anita. Dizia ser uma afetiva. Anita começa nossa conversa lembrando um sentimento de
infância. Narrou que o primeiro contato com essa distinção de gênero
docente na formação em Psicologia que se enunciava feminista
foi na sua própria casa, observando a diferença entre a criação do
e apresentava em seus projetos de pesquisa e extensão, potentes
irmão e a dela. “Desde pequena eu me indagava sobre estes papéis
propostas sobre feminismos e mercado de trabalho. Encontrei
sociais que eram atribuídos. Por exemplo, na organização da casa,
Anita no facebook em 2018, me apresentei e falei sobre a pesquisa.
meu irmão ficava só com a limpeza do banheiro e eu com o resto das
Rapidamente ela respondeu, mas estava na França, realizando
coisas. Não entendia esta diferença quando ouvia que nós (mulheres)
projetos profissionais e sonhos pessoais, mas aceitou participar da tínhamos que aprender algumas atividades que não necessariamente
entrevista com a positividade de quem compartilha um propósito, os homens tinham que aprender”. Lembra que veio de uma família
de quem aceita lutar junto. Encantada, avisei que esperaria o seu patriarcal, machista, por isso consegue se ver feminista desde criança
retorno, e assim aconteceu no início de 2019. Neste entretempo, ao observar esta diferença de tratamento, e se questionar: “por que é
Anita engravidou, e estava terminando seu doutorado, como ela assim? ” Anita relata que ainda na adolescência isso esta indignação
narrava: “enlouquecida”. Mas esteve comigo. foi se intensificando, havendo necessidade de pontuar aos seus pais,
questionar este lugar social estabelecido do ser mulher. Acredita que
isso contribuiu com o ser mulher docente, porque as coisas que foi
buscar para se tornar uma docente vieram deste olhar de que a mulher
que tem várias possibilidades de inserção no mundo, na política, no
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trabalho. Ela relata que vem de uma trajetória de militância política, social do trabalho, não sabe se tem uma linha específica da Psicologia
no movimento estudantil e depois político partidário, e que essas que faça esse movimento. Ela diz que possui mais conhecimento
vivências impactaram bastante a sua carreira docente, o seu olhar. Ao sobre leituras do que mulheres docentes, psicólogas e feministas que
comentar sobre sua profissão lembra que trabalha com Psicologia do realizam sobre a questão do gênero, as pautas dos movimentos
Trabalho, e para ela, a questão de gênero é central quando a pensamos feministas nas suas pesquisas e intervenções, mas não de algo
as relações de trabalho, no capitalismo e que todo esse papel, essa específico enquanto currículo. Anita reconhece o papel fundamental
construção da mulher no capitalismo, faz com que tenham dupla, destes diálogos durante a formação, sobre as questões de gênero nos
tripla jornada e não sejam devidamente remuneradas. Isso provoca o diversos aspectos da Psicologia, já que a Psicologia é, tradicionalmente,
medo de se afastar por uma licença maternidade sem garantia que escrita por homens, que é todo um movimento de homens e acredita
vão ter um emprego quando retornarem. Também reconhece que os que hoje as mulheres lutam pela palavra e quando trazemos isso para
salários são inferiores comparados aos dos homens. São distinções academia, para as nossas aulas, para a prática, a diferença na questão
que leva Anita a ser feminista, de lutar para que tenhamos condições de gênero e trabalho que ela traz, favorecem a criação de um ambiente
equivalentes de atuação política, social, já que isso impacta sua leitura crítico, de um ambiente com leitura política assertiva e condizente
sobre trabalho e o seu cotidiano docente. Logo em seguida, comenta com a realidade. Anita afirma que para seu campo de atuação, a
que se tornou feminista antes de ser docente de Psicologia e, que questão de gênero é muito marcante. Traz para a entrevista exemplos
neste contexto acadêmico, não conhece muitas universidades que sobre as diversas profissões que são atribuídas tradicionalmente aos
apresentem as teorias e movimentos feministas como proposta de homens e sobre o papel fundamental que nós, mulheres, possuímos
práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica. na luta para conseguir ocupar esses outros espaços, na luta por
Todavia, lembra que na universidade que é docente tem uma colega salários melhores, por reconhecimento, da maternidade. No final das
que ministra uma disciplina eletiva sobre gênero e trabalho e aborda entrevistas, eu solicitava o movimento da colaboradora de pensar em
os movimentos feministas nesta disciplina. Quando eu proponho uma obra de arte, uma música, um poema, um filme, para ilustrar
uma reflexão sobre o que pode vir a controlar nossas práticas e desejos nossas conversas, e Anita lembra que gosta muito de um filme
de propagar o feminismo como movimento de liberdade e autonomia relevante na sua área de atuação e cita “O germinal” de Èmile Zola,
na formação em Psicologia, Anita reconhece que não consegue utilizado para inspiração do filme. Descreve que essa tela é a descrição
pensar nada além desse momento que estamos vivendo (setembro/2019), de uma cena onde trabalhadores de uma mina de carvão partem em
sobre esse governo que em suas palavras, “[…] é cabuloso, fascista caminhada durante uma greve e no centro existe uma mulher. Chama
mesmo, autoritário, que vem tendo uma atuação no sentido de a atenção para a única mulher presente na cena, uma mulher com
silenciar as nossas pautas que são legítimas, então quando a gente uma criança no colo, lembrando da importância desta para o filme.
ouve uma aberração como termo de ideologia de gênero, isso não Anita é pontual ao falar que acredita que o papel da mulher não está
existe, eu entendo que isso também ataca o feminismo, faz com que relacionado apenas à maternidade, lembra que mulheres não são
a professora entre sala de aula e sinta medo muitas vezes”. Diz não ter somente mães, mas que quando vê a mulher com o filho no colo
vivenciado este tipo de violência no trabalho, mas ouviu colegas se fazendo caminhada na greve, ela se identifica com esse lugar social,
queixarem de certo policiamento em sala de aula, de cerceamento da por ser trabalhadora e agora ter filho, enfim, que a maternidade é uma
liberdade. Sendo assim, acredita que se existe algo que está bem em característica que as mulheres assumem na história, mas também
voga hoje, é a tentativa de controle não só do feminismo, mas de toda algo de muita degradação, inclusive nas relações de trabalho. “Você
liberdade de pensamento, enfim, um movimento muito forte que pode não ser contratada porque você está grávida, porque você tem
exige nossa resistência, que nos convoca a fazer e ser resistência. filho, essa coisa de ter filhos e depois não saber se volta a trabalhar,
Anita comenta que desconhece alguma linha da Psicologia que vejo os impactos que isso tem na vida da mulher e não tem na vida do
apresente as mulheres que se propõe a enunciar, e que ela, psicóloga homem, nunca vi nenhum homem ser contratado ou não porque ele é
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pai”. Questões relacionadas à maternidade e trabalho mostram-se
presentes neste momento da vida de Anita onde realizamos nossos
diálogos, ela reconhece que sua militância é política, e que viveu
muito sexismo dentro da própria militância, em ambientes marcados
pelo masculino, representado igualmente pelo ambiente acadêmico
em situações de disputa por espaço, pela possibilidade de escrever. E
desabafa: “Estou vivendo agora o momento de escrever uma tese com
uma criança pequena, e as limitações que isso impõe por ser mulher”.
Anita defende que o feminismo contribui para essas reflexões, pensa
sobre estas distinções, sobre condições sociais, lugares sociais que
são indicados para mulheres, e que precisamos estar em resistência
permanente para transformar e conseguir ter uma formação mais
crítica, também do ponto de vista sobre leituras feministas.
Afetivamente verbaliza: “Não sei se eu respondi tudo, estou numa
fase um pouco difícil como eu te disse, tudo bem maluco na cabeça.
Estou fazendo as alterações da tese com criança em casa, estou
falando com você ao mesmo tempo. Sabe quando você pega para
sentar e fazer e não dá certo? Mas espero que tenha contribuído um
pouco, eu espero ter ajudado e aí se você precisar de alguma indicação.
Não sei como é que está a quantidade de sujeitos da pesquisa, eu
tenho outras colegas professoras também, que são militantes e poderia
te indicar. Mas se precisar de alguma coisa você me dá um toque e eu
tento ajudar no que for possível tá bem? Desculpa a brevidade das
respostas, mas estou com vários abacaxis ao mesmo tempo na mão,
correndo para um lado para o outro e eu espero que tenha contribuído
de alguma forma. A gente vai se falando. Beijo grande e força na
peruca aí nesse resto que falta de digitar o doutorado. Único conselho,
que não deixe para o final porque eu estou louca... deixei as entrevistas
para o final e o reescrever, mulher do céu, é um parto (risos) a gente
vai se falando, beijo grande”. Era a vida, vibrante em seus fluxos,
acontecendo durante as entrevistas realizadas nos entre espaços,
tempos e afetos.
L
68 69
Nem sequer um dia, eu abracei “[...] espera aí, não dá mais para ser assim, eu preciso dar uma
a mulher desta narrativa, não virada nesta história e preciso agir de outra forma, de outra
olhei nos seus olhos, eu não forma como mulher[...] ali eu me percebi como mulher feminista
cheguei perto, e mesmo assim, a partir da minha própria vida, a partir da minha própria
Conceição
surgiria como companheira O primeiro contato para falar sobre a pesquisa aconteceu por telefone
no processo de escrita desta em julho de 2018, quando eu ainda tateava o tema, só depois de um
Junho 2019/ Paraná tese. Como me faz falta a sua ano volto a falar com ela sobre o desejo de ouvir suas narrativas para
presença, sinto vontade de a construção da tese. Enviei os documentos necessários e, em menos
tomar cerveja com ela e ver os de dez dias, estávamos montando nossa ciranda narrativa realizada
seus lábios, desenhados por no WhatsApp, por áudio e trocas de mensagens, era 24 de julho de
batom vermelho, tagarelando 2019. Ela enviou um áudio me avisando que gravaria naquele momento
calmamente a vida em sua irreverência. O corpo dela ecoa (hora do seu almoço) porque tinha receio de não encontrar tempo de
militância, a sua vida é política. E ela esteve comigo mesmo parar novamente. Começa questionando novamente se pode ser
quando questionada sobre a importância de sua narrativa para colaboradora da pesquisa por ver o feminismo como orientação
a pesquisa: “[...] Oi Bárbara, estou lendo a apresentação e as política para sua vida e mediação dos seus estudos e prática mas de
questões da sua pesquisa, fiquei com uma dúvida: o feminismo não contemplar como centralidade de suas pesquisas, mesmo assim
para mim é uma orientação política, não é o objetivo principal enviaria sua narrativa para aproveitar a nossa conversa. Afirmo que
dos meus estudos em psicologia, também permeia a minha sim, que a narrativa dela faz parte do que pretendia cartografar, que
prática, mas não enquanto centralidade, essa condição contribui as narrativas não necessariamente precisavam ser expressas nos
para sua pesquisa? ” Claro, era com estes corpos e suas narrativas planos de ensino, e sim nas relações acadêmicas que ocorrem no
ensino, pesquisa e extensão. Conceição revela que ficou tentando
que eu gostaria de dançar cirandas teóricas e afetivas, pensar
recapitular na sua história, quando teve a certeza de ser uma mulher
em práticas feministas na formação em Psicologia. Foi com esta
feminista. Acredita que esta intersecção do feminismo com sua
pergunta feita por ela, que escolhi representá-la na pesquisa,
história veio por meio das suas irmãs e também através das relações
recordando de Conceição Evaristo, grande expoente da literatura
que elas estabeleciam com os homens, com os namorados, o que era
brasileira contemporânea, educadora, romancista, poeta, contista,
contraditório, mas eram nestes momentos que se percebia como
feminista, negra. A Conceição “dona desta narrativa”, tal como a feminista. Diz isso porque, por meio das irmãs, começou ainda
Conceição dos “Olhos D’água”, expõe suas escrevivências repleta criança, a ouvir discursos em defesa da mulher. Tinha seus dez, onze
de metalinguagens, onde a elaboração dos parágrafos vai colher anos e narra que não entendia aqueles discursos que elas defendiam.
na liberdade de se contar ao outro, os movimentos que constroem Achava até chato porque traziam certos conflitos, sobretudo com os
nossas alianças, que oferecem ao corpo o prazer de dançar e cantar pais, mas reproduzia o que as irmãs diziam mesmo sem compreender
por dentro... de fato sobre o que falavam. Conceição conta que acreditava que o
modo como elas se relacionavam com os namorados e como seu pai
se relacionava com a mãe, era aquele que entendia que amar era
deixar o homem fazer tudo que gostaria com a mulher, e isso fazia
com que Conceição não tivesse vontade de amar, de namorar,
provocava vontade de correr dali. A concepção que ela tinha de
namorar e de amar estava relacionada com a submissão plena da
mulher e ela compreendia que não queria isso. Aos quinze anos,
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encontrou com algumas amigas que compreendiam desse modo começo de suas atividades docentes em estágio específico, há quatro
também, que o amar comum, o namoro hegemônico é aquele que anos, desenvolve grupos que atendem mulheres em condições de
submete a mulher, e nestes encontros começou sua aproximação com violência em diversos espaços, em geral em políticas de saúde ou de
a perspectiva feminista. Agora conseguia visualizar a contradição assistência social e isso ocorre não porque coloca o tema norteador
das irmãs, porque diziam o que era o feminismo enquanto discurso, do projeto que apresenta, mas porque os estabelecimentos apresentam
porém na prática mantinham formas submissas de relacionamento estas demandas e as alunas que têm interesse em discutir a temática
com os namorados. Conceição conta que esta contradição ainda está proposta. Quando respondia a pergunta sobre se a docência em
presente na família, e que as suas mudanças do estar mulher docente Psicologia já era uma atividade durante a descoberta de ser mulher
feminista, que se nomeia mulher feminista, trouxe muita dificuldade feminista, lembra o que disse anteriormente, que não, já que a
de se relacionar, acreditando que até hoje existe um embaraço sobre a docência é uma atividade de apenas cinco anos, e a sua constituição
questão entre o amor e submissão. Conceição narra suas inquietações como feminista se faz presente na sua trajetória desde a adolescência
e vivências: “O que é amor, o que é submissão, isso é uma questão até a vida adulta, em alguns momentos mais próximos, outros
para mim bem enrolada, mas também por outro lado, altamente momentos mais distantes. Quando falamos sobre universidades que
libertadora, porque eu me sinto mais realizada nas minhas verdadeiras apresentam teorias e movimentos feministas como proposta de
ambições, nos meus verdadeiros motivos. Eu sou realizada por ter práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica, diz
escolhido a minha profissão, por ter escolhido as minhas relações, não ter acesso a esta informação. Pode falar da sua formação, da
por ter a possibilidade de ser também mais livre nas minhas escolhas. apresentação de algumas autoras, sobretudo Saffioti, que trata do
Por exemplo, de não seguir o mesmo rumo das minhas primas que feminismo, mas não sobre outros estabelecimentos. A quarta questão
casaram com homens ricos e que hoje em dia ficam disputando qual tinha como propósito pensar sobre o que pode ser empecilho para o
tem a casa com a porta mais bonita. Então quando eu olho para aquilo, feminismo na formação em Psicologia, Conceição diz que consegue
eu vejo que talvez a minha trajetória tenha sido mais conflituosa que pensar em dois pontos, o primeiro a própria Psicologia, por ser ainda
a delas, mas é porque eu comecei a questionar isso mais cedo, mas, ao uma ciência conservadora, uma ciência elitista, conservadora porque
mesmo tempo, é mais libertador”. Sobre o impacto de ser feminista e ela vai somar os seus esforços teóricos e técnicos, procedimentos
ser também mulher docente, Conceição diz permeando a sua prática técnicos de intervenção, para adaptação, para manutenção da
e seu posicionamento, sobretudo na questão ética e política, isso vem sociedade, com teorias e práticas voltadas para adaptação do sujeito
permeando o seu discurso, vê como se já estivesse ligado a sua figura, a essa sociedade. Continua pontuado sobre uma sociedade altamente
porque observa que as alunas que desejam debater o feminismo e tem desigual, formada pelos princípios do patriarcado, do machismo onde
interesse nas questões feministas ou mesmo os alunos mais algumas práticas e teorias da Psicologia não superam essa condição,
progressistas, sabem que ela não estuda o feminismo especificamente, nem mesmo se propõe a superar essa condição. Então acredita que o
ou tem uma prática diretamente voltada a formação feminista, porém, empecilho que temos na psicologia é a própria psicologia hegemônica,
tendem a se aproximar dela, em sala de aula, nas atividades de ensino, tradicional, acrítica, que tem a sua força justamente na adaptação do
extensão, bem como no estágio e na pesquisa pelo seu posicionamento indivíduo à sociedade. Outro empecilho citado por Conceição são as
crítico sobre o tema. Conceição narra sobre as questões de trabalho e circunstâncias históricas, o momento histórico que estamos vivendo,
gênero com que trabalha, fala de autoras com as quais dialoga, momento contra revolucionário como ela diz, um momento repressor
sobretudo nos estágios, cita Saffioti como uma autora importante que estamos revivendo. Ela narra que entende tal momento como se
para os debates propostos. Diz que ela surge como leitura necessária fosse a própria história nos cobrando aquilo que deixamos de fazer
às demandas encontradas nos espaços de estágio como tantas outras enquanto coletividade, enquanto sociedade e que, infelizmente,
que vão aparecendo com estas demandas. Ao descrever sobre tais vamos ter que encarar, “[...] vamos ter que olhar esse monstro no olho
experiências de estágio na formação em psicologia, traz que desde o e furar esse olho, matar esse bicho aí, então acho que o momento que
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nós estamos vivendo também não é propício, mas pensando o psiquismo não se explica por ele mesmo, é preciso compreender o
contraditoriamente é um momento necessário desse debate corajoso”. psiquismo na relação com a sociedade [...] mas vejo que o feminismo
Ela reconhece os perigos que a própria psicologia conservadora e o ainda não está na Psicologia”. Esta é a narrativa de Conceição, uma
momento histórico nos coloca e pontua que o feminismo não é para narrativa franca, sem pretensão alguma de agradar ou concordar,
todas, ainda é um feminismo de classe e escancara: “[...] esse porém alegre com a possibilidade de novas reflexões, novas
feminismo não me interessa, eu compartilho do feminismo que experimentações, ela continua comigo citando Cleonio Dourado...
compreende a necessidade da emancipação da mulher para todas,
como uma condição social para todas as mulheres”. Conceição “Uma hora tudo se ajeita, tudo se acalma, tudo que é bom volta. Uma
comenta que tem dificuldade de analisar o que vem sendo produzido hora o que vai te fazer sorrir bate na sua porta, pula a sua janela,
de pesquisa, ensino e extensão para a psicologia feminista, por não se invade sua casa e colore a sua vida” Cleonio Dourado.
aprofundar nas leituras e não ter muito contato com as pesquisas com
esta temática. Ela entende estas práticas como inovadoras, considera
muito pertinente e tem interesse para os temas que vem discutindo
em estágio, acredita no efeito transformador desta psicologia
feminista, efeito de formar sujeitos psicólogos capazes de lidar com o
sofrimento que o machismo causa, com a necessidade da emancipação
das mulheres. Vê que contribui para uma formação crítica e
politicamente posicionada em Psicologia, o que, infelizmente, é
atitude ideológica de uma pequena ala docente dentro da psicologia,
e faz uma ressalva: “[...] E aqui o ideológico no sentido do marxismo,
de mediar uma formação mais crítica e mais transformadora na sua
ação, na sua intervenção e isso vai impactar no serviço que a Psicologia
vai prestar à sociedade ou no impacto que a Psicologia vai provocar
na sociedade. E este impacto seria para transformação das condições
atuais não é para condição de opressão da mulher, já que a condição
de opressão da mulher atinge a todos”. Conceição alerta que não tem
como pensarmos que a Psicologia vai fazer tudo sozinha, mas se não
fizer o que pode ser feito, contribuirá para que a sociedade permaneça
como está. Para ela, a Psicologia pode contribuir para a revolução
feminista através da formação de sujeitos implicados, aqueles que
pensam criticamente sobre os feminismos, e este pode alavancar a
Psicologia, provocar essa ciência que ainda tem certos núcleos que a
consideram uma ciência neutra. “Eu acho que o feminismo dá espaço
para gente superar de uma vez por toda essa condição de neutralidade,
essa condição de acriticidade, essa condição desumana provocada
por uma psicologia que universaliza o sujeito, desumaniza a mulher,
o conjunto de relações, que compõem essa mulher. Acho que o
feminismo possibilita a abertura da psicologia, para compreender que
F
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Com o objetivo de expor “escritas “[...] Acho que tem duas coisas que a gente precisa aumentar,
com letras vivas” (RAGO, primeiro esse número de pesquisas e estudo de mulheres dentro
2013) enquanto experiência da graduação e então uma faxina epistemológica das teorias
estilística desta pesquisa, eu, clássicas que a gente conhece”.
Frida
Agosto 2019/ Brasília, Distrito Federal
curadora cartográfica (como
metaforicamente me enuncio),
iniciei a expografia buscando
Ao ouvir suas primeiras palavras, de imediato, lembrei da ousadia de
Frida Kahlo, de suas cores, expressões, daqueles corpos que optam
em meu acervo afetivo contatos pela performance sem receio dos riscos de expor-se, como em um
que indicariam as autoras das autorretrato, que defendem o franco falar, a voz eminentemente
obras de arte presentes nesta política, artística, envolvente. A Frida protagonista desta narrativa, é
exposição em formato de tese. aquela mulher que corre os riscos de abrir um diálogo refletindo
Entre corpos, fotos, filmes, viagens, músicas e poemas, a coletânea criticamente sobre o que a cultura cisheteronormativa impõe ao
se fez transgeográfica e promoveu encontros que colaboraram gênero, eletrizada pela paixão de estar mulher. Em suas primeiras
palavras, Frida já expõe suas micropolíticas ao dizer que sempre foi
para a construção de espaços comunicativos, aqueles que narram
feminista. Desde a infância, sentia um estranhamento do que era
reinvenções subjetivas, invadindo de afetos minha intenção de
esperado dela por sua família e pessoas próximas, do que era ser uma
estar colecionadora de vozes. No primeiro momento que estive
menina, o que lhe causava estranheza por ser tão diferente de seus
em contato com a artista/colaboradora desta narrativa, fevereiro
interesses, de sua curiosidade e ousadia. Ela contextualiza os
de 2019 por WhatsApp, ela viajava. Misturava-se ao céu escuro
entrecruzamentos do seu ser menina e feminista contando: “Gostava
pintado de verdes luminescentes... compunham, ela e a natureza, de ser ativa, gostava de mergulhar... quando eu era adolescente ou
auroras boreais que certamente, marcaram minhas fantasias sobre pré-adolescente fazia muitas atividades, nem tanto esporte, mais
as cores infinitas do universo das relações. Nas fotos postadas brincadeiras. Os assuntos das mulheres eu achava muito chato a
por ela no facebook, eu não conseguia diferenciar se era a Frida preocupação delas na adolescência era com roupa e maquiagem,
colaboradora da tese que pintava o mundo ou se o mundo fazia achava um saco. Eu sempre fui cientista, por exemplo, nas férias eu
dela protagonista de suas telas. No dia quatro de agosto do mesmo gostava de ver coisas no mar, mergulhar, conhecer, eu sempre gostei
ano, volto a procurá-la e convidar para participar da entrevista, muito de estudar e isso era uma coisa que todo mundo achava muito
apresentar o projeto da pesquisa e enviar o TCLE. Ela estava na estranho, porque eu senti uma cobrança até mesmo dos namorados,
correria da vida, montando cursos, com a agenda lotada de eventos por isso nunca ter sido o foco da minha vida, nunca sonhei em ser
e em processo de mudança, mesmo assim, ela aceitou estar comigo mãe”. Frida sabe que existia esse estranhamento, porém só foi
e com a pesquisa. E no dia onze de setembro, o celular literalmente entender o que era feminismo, nomear este mal-estar e politizar sua
VIBROU com os tons sonoros que chegavam por áudio de voz. ação quando adentrou na universidade. Comenta que na universidade,
quando tinha por volta de uns vinte e três anos, participou de uma
disciplina que considera muito importante para esta conscientização
que foi a de “filosofia e feminismo’’. Foi seu primeiro contato com
teóricas feministas, importante para sua formação e para o seu fazer
psicologia. Frida salienta que primeiro cursou Filosofia e depois
Psicologia, sendo que na época já estava fazendo doutorado. Mesmo
que no seu doutorado não pesquisou gênero, toda a sua atuação
profissional era para área, ela trabalhava com psicanálise e
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psicopatologia na área da saúde mental e relata que o “[...] gênero teóricas que eu precisei de um percurso de vinte anos para poder
entrou pela porta dos fundos” mesmo porque, não conseguia escutar fechar esse artigo que é uma leitura de entrada da psicanálise e é isso
as mulheres e os homens em situação de sofrimento sem entender a então que eu acho que o feminismo fez total diferença na minha vida
participação do gênero como fator fundamental. Não só na escuta e no meu percurso como professora, como pesquisadora e com a
desses sujeitos e seus sofrimentos, mas nos gatilhos que provocaram clínica”. Para além dos discursos teóricos proferidos/catequizados na
esta quebra psíquica e a necessidade de levar em consideração esses formação acadêmica, Frida relata que já no início de sua vida docente,
aspectos na intervenção. Frida complementa: “Então eu acho que os um ano depois de ter feito a disciplina de Filosofia e Feminismos,
feminismos transformam não só o próprio objeto de interesse, ou inseriu questões de gênero em seus conteúdos, não com a intensidade
seja, tem também temas que surgem como novos, temas antigos que de hoje, mas estavam presentes em seus debates. Ela remonta seu
passam a ser compreendidos numa outra perspectiva, o gênero é um percurso de apresentar na prática docente, cada vez mais esse recorte.
portal para discussões de raça. Quando a gente pensa na necessidade As lembranças remontam espaços e trânsitos acadêmicos que temos
de ser antirracista, depois que você tem um letramento racial, não em comum quando Frida responde sobre conhecer universidades que
tem como você enxergar nenhum fenômeno humano que não leva em apresentam em sua grade, temáticas e teorias de gênero. Nós duas,
consideração esses dois aspectos”. Defende que está acontecendo em épocas distintas, fizemos parte do corpo discente da Unesp de
uma transformação da visão de mundo, de ciência, uma passagem Assis/ SP, e concordamos com a intensidade a qual o tema é pesquisado
profundamente dolorosa porque resignifica tudo o que já foi e proposto nesse estabelecimento de ensino. Frida cita também a
vivenciado. Mostra o mal-estar que o sujeito sente, reforça que é uma UFBA, pois acredita serem poucas aquelas que sugerem estas
transformação dolorosa, de politização e ressignificação do sofrimento discussões de gênero e questões raciais, ainda menor o número das
e isso reflete em suas pesquisas, está presente nas orientações em que referenciam o feminismo interseccional, o que considera
grupos de estudo, de mestrado, doutorado, através de revisão da lamentável. Em uma pesquisa realizada por ela e seu grupo na
literatura sobre gênero. Frida conta que o interesse por este tema em Universidade de Brasília, citou vários psicólogos de abordagens
suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, são constantes e não diferentes, sendo a maioria profissionais que vieram de faculdades
uma exceção, mas pontua que, apesar dos processos de tornar-se particulares do Distrito Federal. Constataram que nenhum participante
homem ou mulher, de falar na academia sobre questões minoritários, verbalizou ter alguma disciplina sobre gênero, ou teorias sociais e
estigmatizados, ser uma constante em sua prática pedagógica. Sente feministas durante a formação acadêmica. Frida reforça essa falha e
tal opção como algo caro, marcado por várias micro violências, mas aponta diferenças sobre o que estava narrando: “Olha só, teoria
fenômenos que surgem para ela como uma reflexão digna de pesquisa. feminista é uma coisa e movimento feminista é outra coisa, então
Salienta a importância de uma releitura de objetos/teorias que eram quando eu respondo a pergunta anterior eu estava me referindo a isso,
vistos como universais, inclusive, as que recebeu na própria graduação: (presença de teorias feministas em grades curriculares). Agora, sobre
“[...] quem é você para questionar isso?”. Realmente, um testemunho uma Psicologia Feminista eu acho que praticamente nenhuma
sobre os dispositivos de controle realizado pela universalidade das universidade tem trabalhado com isso e a psicoterapia feminista
teorias sobre nossos corpos, da autoridade epistêmica que sequestrava menos ainda”. Ela cita uma experiência que tiveram na clínica escola
e ainda sequestra a potência da diferença, ratificada na medida que da UnB sobre Psicologia Feminista e me conta que estão articulando
nos calávamos ou ainda nos calamos. Porém, a narrativa de Frida me para virar um projeto de oferta continua para comunidade, de
conduz ao conceito foucaultiano de “escritas de si”, de construção da extensão, para atendimento à mulher. O projeto foi proposto para
subjetividade que propõe a abertura processual do ser como devir. acontecer em dez sessões, onde trabalharam o dispositivo amoroso
Inclusive, quando ela diz que a dois anos atrás, publicou um trabalho materno, as questões de violências o que se fez de maneira bem
que escreveu quando tinha vinte e três anos, contando com interessante, além da ideia de trabalhar com as interseccionalidades,
empolgação: “Foi muito legal retomá-lo para poder preencher lacunas realizando o atravessamento das questões raciais e orientação sexual,
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de diversidade e das violências existentes em nosso país. Frida reflete para o perigo da captura e esvaziamento de nosso potencial ético,
criticamente: “A questão racial tem que estar assim, talvez número estético e político. Entre estes diálogos, Frida me faz o convite para
um. O que tem sido produzido pela psicologia feminista no Brasil é conhecer o projeto de atendimento à comunidade sobre o qual falava
incipiente, praticamente inexistente, acho que está muito aquém anteriormente, me indica livros e artigos e envio o PDF da obra que
quando a gente compara com países como os Estados Unidos e havia publicado há um ano, indicando inclusive o blog do seu grupo
quando a gente pensa, por exemplo, essa influência do movimento de pesquisa, mais um canal para nossos encontros. Encerramos a
feminista nas Psicologias. Tanto que a própria psicologia é uma entrevista naquele dia, a ENTREVISTA, porque ela continua comigo.
grande tecnologia de gênero ainda no nosso país, serve para um
adestramento do desejo das mulheres. Eu acho profundamente
reacionária por exemplo a questão da maternidade, eu acho que a
gente ainda tem que andar muito, então quando você me pergunta o
que está sendo produzido, eu acho que muito incipiente. Acho que
tem duas coisas a gente precisa aumentar, e esse número de pesquisas
e estudo de mulheres dentro da graduação e uma faxina epistemológica
das teorias clássicas que a gente conhece. Mas também sair só das
federais, porque a gente também tem um papel muito grande das
faculdades particulares”. E eu concordava, movimento a cabeça
afirmativamente, olhando para aquela tela de celular como se
estivéssemos cara a cara. Frida acredita que a Psicologia precisa se
reinventar, pensar no papel dos feminismos e sobre os saberes
produzidos também na América Latina, já que os nossos problemas
são específicos daqui. São reflexo do processo de colonização, daí a
necessidade de criarmos não apenas conceitos, teorias, mas também
formas de intervenção específicas que respondam às demandas
latinas. Surgiam em nossas conversações exemplos de experimentados
no ensino, pesquisa e extensão, críticas ao sistema opressor instaurado
por lógicas masculinas as quais desejam delimitar os espaços da
mulher na família, na sociedade e claro, na universidade. Todavia, os
respiros emergiam por outras cores, desenhos, estilísticas que
promovem outros modelos de existência, múltiplos, inventivos,
libertários para as mulheres, modos específicos de escape destes
lugares hifenizados, intervenções éticas que renovam o imaginário
político e cultural de nossa época e possibilitam reflexões anunciantes
da formação feminista em Psicologia. Conversávamos sobre as
reivindicações e demandas apresentadas para a Psicologia na
contemporaneidade, as quais nos convidam a reconhecer os limites e
perigos de uma formação descompromissada com os estudos
feministas, da interseccionalidade, dos movimentos sociais, exigindo
a reelaboração de grades curriculares e planos de ensino, como alerta
S
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Suely é o nome que escolhi “[...] Talvez o nosso caminho seja de atuar em sintonia, de tornar
para apresentar a mulher esses indivíduos mais fortes, ou de descongestionar a força, no
desta narrativa. Foi pensada sentido de possibilitar que se identifiquem com a sua força, a
Suely
como homenagem à Suely reconheçam, e como essa força afetiva, que é força de vida, pode
Rolnik, psicanalista brasileira auxiliar no enfrentamento de uma situação de abuso, na situação
e grande referência quando de violência”.
busco a potência e ousadia da
Maio 2019/ Paraná perspectiva pós-estruturalista Era maio de 2019 quando mandei por e-mail as questões disparadoras
para pensar com Rolnik, Guattari da pesquisa e o TCLE para que Suely verificasse os termos da mesma
e Deleuze, as cartografias e logo em seguida, marcamos para conversar. No dia 14 de junho do
sentimentais e os processos mesmo ano, começamos nossa conversação por áudios de WhatsApp.
de rebeldia contra a vida e pesquisa cafetinadas, insurreições Sueli começou falando que quando pergunto sobre como e quando
que libertam o corpo capturado e convidam ao devir mulher. A começou a se entender feminista. Lembrou que esta pergunta a
mulher desta narrativa é parceira de longa data, trabalhamos na incomoda há um tempo, pois às vezes tem dúvidas de quando isso
mesma universidade, porém em campus de cidades diferentes, começou, porque parece que na sua história chegou um momento na
com diferentes demandas, necessidade, culturas e histórias, vida em que encontra teoria, mas que já tinha um sentimento e um
mas com mulheres, estudamos gênero, falamos da beleza da desejo muito forte por justiça e igualdade que reflete os ideais
diversidade. Nossos encontros são agendados pela vida docente, feministas antes da teoria. Conta que ao refletir sobre suas vivências,
porém engendrados por diálogos de luta, militância, dos corpos lembra que quando criança, ouviu a história de um pai que abusava
políticos que se jogam em corredores universitários e eventos da da filha, lembra de ter ficado vários dias afetada e pensando naquela
graduação e pós-graduação. Nossas linhas rizomáticas se tocam situação. Verbaliza que em outra situação, quando estava na quinta
na teoria, nos interesses sobre sujeitos, nos diálogos feministas. A série, teve um momento bem particular e que talvez seja mais
significativo de quando se entendeu feminista. Narra que ligou para
entrevista com Suely não foi nada tímida, invadiu outros espaços
uma amiga para falar sobre um trabalho escolar, na época tinha 10
além do combinado para o encontro, estendeu-se às mensagens
para 11 anos, e a colega pediu socorro, o pai dela estava ameaçando
e áudios de WhatsApp e facebook e alegrava-se a cada “fala mais
ela e a mãe de morte com arma e estava com medo de sair de casa, e
um pouco disso para mim? ”. Sua narrativa apresenta lembranças
ela falava sussurrando porque o pai estava próximo e o pavor era
de suas vivências, surge no formato de diário revisitado, conta a
evidente, como o sentimento de impotência, indignação e revolta.
vida expondo a sua intimidade nas andanças enquanto docente, Disse que nunca mais conseguiu olhar para uma situação de violência
psicóloga e pesquisadora. Acredito que a liberdade dada à língua sem remeter àquela cena, sem lembrar da sua sensação de impotência.
foi sensibilizada por nossa amizade, pelo modo como torcemos Esta lembrança a fez pensar que talvez aí esteja algo que fez ela tentar
uma pela outra, e a frequência de nossos encontros nos múltiplos lutar, para encontrar meios de ajudar essas mulheres, lutar por outras
presentes da vida docente. Nos entremeios da entrevista, ela coisas e por outras vidas possíveis, por outras formas de se
doutorava, terminava uma tese, revisitava a vida de pesquisadora relacionarem com as pessoas. Reconhece que estes pensamentos
e estava comigo... ainda ficavam no campo do desejo, nesse campo da inquietação, da
reivindicação de alguns lugares com os amigos, com a família e que
desde muito cedo começa a ser identificada como uma mulher forte,
fruto desse processo de reivindicação. Retomando todas estas
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lembranças, conta que ao adentrar na faculdade, passou por um a procura pedindo para que Suely curasse o filho dela, porque o filho
relacionamento abusivo e logo depois desse relacionamento abusivo, dela gostava de fantasias, de cor-de-rosa, e o filho dela gostava dos
teve uma disciplina de relações de gênero e sexualidade. Cita que a batons, dos saltos dela, que era divorciada, e por este fato, tinha medo
universidade na qual se formou, é uma das poucas universidades que de perder a guarda do filho, porque ele estava se tornando um gay e
oferecem disciplinas sobre sexualidade e estudos de gênero na ela foi orientada por um outro profissional da educação, que se fosse
graduação em Psicologia, e que amava aquela disciplina, achava investido na cura dessa criança antes dos 6 anos, na época o menino
interessante a discussão, achava que fazia sentido para ela, e que este tinha 4 anos, ele se recuperaria. Naquele momento, Suely diz ter
foi o primeiro momento em que se encontrou com a teoria feminista ficado afetada com a fala da mãe, porque era sobre a preocupação
propriamente. Recorda que frente ao seu contexto de vida, de viver na com filho, mas também sobre ela e do modo como essas questões
zona rural e depois em uma cidade pequena, essas teorias ficavam implicam na maternidade, na culpabilização da mãe. Suely mergulha
distanciadas, não faziam parte da sua realidade, ela não tinha o em suas lembranças e narra o que aconteceu. Neste momento, parecia
acesso. Hoje percebemos que as meninas possuem acesso aos que eu estava na cena porque ela narrava com toda a angústia da
conteúdos sobre movimentos e teorias feministas desde muito cedo. situação, trazendo para a entrevista suas respostas mais sinceras...
Fala com afeto que com essa disciplina na graduação, despertou a “Mas como eu já tinha já comentei com você, eu não tinha uma
importância de refletir sobre essas questões inclusive para a prática clareza sobre o que fazer com esse tipo de situação mesmo passando
profissional, mesmo que durante a graduação estivesse muito pelas discussões de gênero então, eu falei para ela que ainda era muito
distanciada da realidade e sendo oferecida a disciplina como optativa. cedo para dizer se o filho dela seria gay ou não seria gay até porque
Suely narra outra experiência ao descrever sua saída da graduação né ele era apenas uma criança e independente do que fosse, ela deveria
para o mercado de trabalho, quando vai trabalhar numa escola e nesse se preocupar em dar amor carinho para essa criança muito mais do
espaço começou a receber uma demanda frequente de questões de que se preocupar em o que ele seria, lógico falei isso com mais
gênero e sexualidade. Verbaliza que eram muitas meninas vítimas de detalhes, ouvir a mãe, mas a mãe não ficou satisfeita porque ela
relacionamentos abusivos, meninos gays, bissexuais, que estavam desejava uma cura. Então ela saiu da minha sala, foi para escola e
assumindo sua sexualidade para família e tinham dificuldade/sofriam proibiu a criança de brincar com tudo que fosse cor-de-rosa, com
neste processo ou se preocupavam em como fazer para ter diálogo todas as fantasias, proibiu a criança de uma série de coisas que ela
com a família. Estas questões começaram a inquietá-la, principalmente julgava que aproximariam ele do feminino e eu me senti muito
porque a sua formação como psicóloga não dava conta dessas questões fracassada. Acredito que todas essas passagens que relatei me
que se apresentavam cotidianamente. Suely lembra que ao assumir forjaram como feminista, foi das vivências como psicóloga, das
um concurso na cidade onde mora, se vê atendendo em todas as áreas, práticas profissionais que me identifiquei com o feminismo”.
apesar de ser lotada na saúde e novamente essa demanda começa a Respiramos juntas. Suely lembra que, nesse momento, ela estava
ficar muito intensa. Ela dá exemplos de como o assunto emergia em pensando em prestar mestrado e foi afetada por essas questões, já
diferentes espaços de sua atuação psi no CRAS, discorre sobre tinha um contato com o futuro orientador, pois havia sido sua
vítimas de abuso, mulheres vítimas de violência. Na educação, os monitora durante a graduação, participou de grupos de estudo, de
professores sinalizavam questões de sexualidade e gênero como: rodas de discussão, e em 2013 pensou nessas questões de gênero para
“essa menina gosta muito de jogar futebol, você precisa atender lá”, e o mestrado. Suely me conta que a primeira ideia era estudar a questão
Suely conta que não sabia muito bem o que fazer com esse tipo de da mulher, as relações entre gênero na perspectiva da violência, até
discurso, que não se sentia preparada para abordar esse tipo de porque, era maioria dos casos que chegavam até ela, mas a conversa
conversa. Fala também que na saúde, de mulheres que relatavam com aquela mãe havia sensibilizado mais e naquele instante, o
casamentos esvaziados e que todas essas questões foram se somando. orientador propôs que fizessem uma discussão sobre a formação de
Até um dia que vivenciou uma situação impactante em que uma mãe Psicologia para gênero no sentido mais ampliado, tentando investigar
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também a questão da diversidade sexual. Parecia que essas duas fazerem parte da sua história, influenciaram o seu modo de pensar e
temáticas sempre estariam relacionadas e, principalmente, na perceber dentro da Psicologia. Durante estas conversações, íamos e
formação em Psicologia. Mas Suely volta a questão de se nomear voltávamos, a história era realmente contada e, às vezes, Suely
feminista e relata que até o final do mestrado em 2013 ninguém havia sinalizava o encontro constante da docência com sua própria vida:
perguntado: você é feminista? E que esta posição não foi declarada, ‘Eu não sei se está ficando claro, que isso é um processo bem complexo
por mais que estivesse presente nas suas atitudes, no modo de conduzir para mim me tornar, que tá amarrado muitas coisas da minha história,
os atendimentos e na própria vida. Durante o mestrado, Suely e não sei se eu estou indo e voltando muito mas eu estou tentando
continuou trabalhando como psicóloga na saúde pública, e continuava resgatar esses momentos que são significativos e que vão compondo
recebendo muitos casos que exigiam estudos de gênero, percebia que minha história. Então nesse momento essa resposta ela vai falar sobre
na medida em que se aprofundava nessas discussões. Isso interferia isso sobre uma transição profissional de algumas coisas que já
diretamente em sua prática profissional e no modo como olhava estavam presentes mas que teve uma intensificação nesses últimos
diversos casos. Concluiu o mestrado e logo deu início ao processo três anos e meio, de 2016 para cá. Ela comenta que neste tempo
seletivo do doutorado, sendo também contratada pela universidade na sinalizou aos alunos que estava em transição teórica que, não se
qual atua como docente. Então, em 2016, assume como docente e identificava mais dentro da teoria familiar sistêmica e que o interesse
inicia as aulas do doutorado. Neste momento, percebeu que os alunos agora era com as teorias pós-estruturalistas e Esquizoanálise. A vida
observam que discussões feministas são sempre marcadas em sua era contada com todos os detalhes que a nossa intimidade permitia
fala e assume a necessidade de se posicionar teoricamente com acontecer. No momento da entrevista, Suely estava licenciada da
relação a militância, com o porquê do feminismo estar sempre prefeitura a um ano e meio em função da escrita da tese de doutorado
presente nas suas discussões, já que as questões de gênero e e tentando conciliar a escrita com as aulas. Mas percebe que quando
sexualidade sempre vinham como exemplos em suas aulas. “Então começa a orientar o estágio, as intervenções mudaram intensamente.
esse é o momento, até recente na minha história em que eu assumo Eram outros tipos de intervenções possíveis de leitura do mundo, de
que eu me nomeio feminista”. Aqui, Suely reconhece que este homem e mulher, a leitura ética, o posicionamento ético mudou. Que
posicionamento fica muito caro para ela, que deixa de ser uma atitude hoje ela desenvolve com os acadêmicos um processo de orientação
e passa a ser também um posicionamento político, declarado, pela experimentação, que é vinculada a Esquizoanálise, em dois
implicado e que atravessa praticamente toda a sua prática profissional. grupos, um grupo de saúde mental e um grupo de estágio de gêneros
Quando reflete sobre o seu lugar de docente, narra que teve uma e sexualidades. Ela acredita que quando retornar em novembro para
formação um tanto biomédica por trabalhar na área da saúde e isso a prefeitura, será bem diferente, porque a transição se deu com ela
também está muito vinculado quando percebe-se a transição durante afastada do trabalho e agora volta nesse outro posicionamento teórico
o mestrado, do seu descolar dessa psicologia vinculada ao modelo político de engajamento e reflete sobre como será essa volta dentro
biomédico para uma transição de uma discussão mais cultural. Uma dessas outras perspectivas. Quando fala sobre seu conhecimento de
ressignificação bem ampla da prática e do que isso implica e como ela universidades que trabalham com o feminismo em suas propostas de
se posiciona frente aos outros profissionais a partir disso. Nota que ensino, pesquisa e extensão, lembra que em sua dissertação de
esta mudança não vem sozinha, e não vem só pela teoria feminista, mestrado, pesquisou sobre a formação dos psicólogos com relação a
porque nesse movimento também se deu uma mudança de abordagem gênero e diversidade sexual, e fez um mapa das universidades públicas
teórica ao sair da graduação e se identificar com a teoria familiar que não apresentavam, em sua formação clássica, no seu projeto
sistêmica. Apesar de nunca estar totalmente vinculada a ela e quando político pedagógico, disciplinas exclusivamente de gênero e relações
chega ao doutorado, começa a discutir com outros teóricos como de gênero e sexualidade, ou não contemplavam nas ementas as teorias
Foucault, Deleuze, os quais são mais filósofos do que uma perspectiva feministas. Mesmo tendo conhecimento de que dentro dessas
que a psicologia poderia assumir e que apesar destes autores já universidades, existem coletivos feministas ativos que propiciam
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uma discussão sobre o lugar do psicólogo a partir dessas perspectivas, falando de modo geral. Suely verbaliza que no seu entendimento, a
esta é uma problemática levantada por ela, de que o fato de não ter de psicologia feminista não deve anunciar apenas as mulheres, que na
forma oficial, faz com que isso aconteça esporadicamente. Então verdade a discussão que ela vem fazendo, é que a psicologia feminista
conforme o posicionamento do professor, essa discussão pode precisa denunciar as relações machistas, mais do que o universo das
acontecer, mas ela não é legitimada, ela não é oficializada pela mulheres, precisa falar sobre como gêneros estabelecem relações uns
universidade. Continua comentando que a universidade que se formou com os outros, em uma perspectiva da relação e as questões do poder
tem uma disciplina de relações de gênero como uma disciplina que atravessam e interferem no espaço cotidiano. Ela cita que vem
optativa, mas não tinha nenhum estágio na área específica, e que tem propondo estágios de gênero e diversidade sexual no curso de
conhecimento de que mais recentemente. Quando foi aprovada a formação, mesmo entendendo que seria um risco para o curso de
licenciatura em psicologia nesta mesma universidade, foram incluídas psicologia assumi-lo nestes tempos, mas que não podemos retirar tais
duas disciplinas de diversidade sexual e se manteve relações de pautas de dentro da academia, e comenta sobre estágios que vem
gênero. Relata que sabe de universidades que também estão passando desenvolvendo na delegacia da mulher, em grupo no projeto diálogos
por um processo de reformulação do curso, colocando como pauta a LGBT, em propostas de intervenção com relação ao diálogo trans e o
possibilidade de incluir alguma disciplina que aborde estas temáticas. diálogo LGBT, que vai para comunidade, faz capacitações
Inclusive na que ela trabalha atualmente, com a presença de profissionais, fazer atendimento à população LGBT. Projeto de
professoras que compartilham dessa discussão feminista, das teorias estágio no bairro em que tem um índice de abuso e violência,
feministas e de sexualidade e gênero, com projetos interessantes nos intervenção com os homens agressores, demanda parte da polícia
estágios nessa área. Suely cita várias universidades que tem militar e intervenções de orientação a diferentes instituições com
conhecimento, tanto no Paraná, quanto em São Paulo, Rio Grande do tantas outras docentes da instituição. Foi gratificante ouvir Suely
Sul, Rio de Janeiro, privadas e públicas, porém afirma que não é toda contanto que estão conquistando aberturas para diálogos bem
faculdade de psicologia que tem possui tal visão ou proposta. Então, interessantes dentro desses projetos de extensão em uma perspectiva
começa a falar sobre o que poderia vir a controlar nossas práticas e formativa e, certa de que quando a gente começa a propor este debate,
desejos de propagar os feminismos na universidade e lembra que começamos a pensar que talvez essa psicologia feminista precisa se
estamos em um momento bastante delicado dentro dessas discussões, preocupar também com a perspectiva das relações. Suely acredita
que em 2016/2017 falava-se abertamente sobre feminismo, direitos que estamos avançando na pesquisa, no ensino e na extensão, e que o
humanos, sobre igualdade e não sentia nenhum tipo de contestação fato de pensar estas pautas na pesquisa já é um início. Apesar de, na
ou implicação, muito pelo contrário, os alunos aceitavam o debate. opinião dela, boa parte das pesquisas que nós, psicólogos, realizamos
Mas que no ano passado (2018), tinha várias disciplinas em outros dentro da psicologia feminista, são pesquisas importadas de outras
cursos e coincidiu de que a temática que era direitos humanos estava áreas. É necessário que a gente insista em produzir uma psicologia
acontecendo em pleno período eleitoral, quando a discussão ficou feminista, na criação de novas teorias e esse movimento de construir
intensa, exigindo uma aula totalmente fundamentada e ainda outras teorias faz com que possamos olhar por uma perspectiva de
cuidadosa com relação às aberturas para debate, para não virar uma descolonização, atenta ao contexto brasileiro e suas singularidades.
guerra em sala, considera ter sido um momento bem tenso e ainda é. Pontuando esta perspectiva descolonizada da Psicologia, Suely
Diz que pensava que ao passar aquele período eleitoral, poderíamos reforça que não podemos ficar amarrados e engessados na importação
voltar a discutir essas questões, mas que foi ingenuidade, por isso de teorias, já que estas falam de um contexto muito distante do nosso.
acredita que em função desse contexto político-econômico que Reflete inspirada em movimentos de ressignificação do lugar da
estamos vivendo e todo esse aproveitamento moralista, jurídico e mulher, das relações de gênero, e que as psicologias feministas podem
midiático sobre as teorias de gênero, nós ainda vamos enfrentar um contribuir muito com a Psicologia na medida em que essas relações
longo período de dificuldades em assumir realmente esse discurso, se dão, do campo micropolítico, podendo favorecer instrumentos
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para repensar algumas de suas questões. Traz também reflexões sobre processos políticos e econômicos de dominação capitalista, podem
outro movimento que é inspirado pelo modo de interrogar a teoria nos fazer construir uma vida mais digna, e uma psicologia mais
feminista, aqui pensando em Haraway, quando a teórica fala da digna, centrada aí na ética-estética-política-clínica de uma perspectiva
objetividade do conhecimento, da produção de uma pesquisa, de um que considere nossa latinoamericanisse não é Bárbara?’.
saber situado, também inspirada por esse movimento decolonial que
propõe a construção de outras possibilidades para psicologia que
sejam mais adequadas a nossa realidade latina. Suely exemplifica
suas reflexões citando estudos da psicologia do desenvolvimento
humano, quando nos propomos a discutir estas perspectivas, mas de
modo geral, inspirados em Bee, Papallia, teóricas e textos que falam
de um outro contexto, de uma outra realidade econômica e uma outra
realidade política de desenvolvimento de relações familiares, distintas
e distantes dos contextos em que atuamos enquanto psicólogas.
Também visualiza que a Psicologia Social no Brasil tem uma produção
bastante interessante nessa perspectiva, mas certa carência em outras
nas quais ainda visualiza a reprodução desses modelos de
psiquiatrização construídos a partir de estudos da população
americana e europeia. Suely insiste que precisamos construir uma
psicologia brasileira que pode ser influenciada pelas proposições
feministas. De como o feminismo poderia revolucionar, interrogar as
relações de poder, não só as relações de poder direcionadas entre os
gêneros, mas as relações com autoridade, com uma política, relações
de poder que vão contribuir de um outro modo. É potente toda esta
fala, os exemplos que Suely oferece a todo instante para representar
suas ideias, as discussões que estabelece sobre violência a partir do
feminismo e as relações envolvidas neste contexto, o como defende
um outro posicionamento, um outro olhar de como lidar com a
violência, repensando intervenções que aumentem a força e a potência
dos processos de luta, denúncia e militância. Suely vai encerrando
nossa conversação com nossas heterotopias compartilhadas: ‘Talvez
o nosso caminho seja de atuar em sintonia, de tornar esses indivíduos
mais fortes, ou de descongestionar a força, no sentido de possibilitar
que se identifiquem com a sua força, a reconheçam, e como essa força
afetiva, que é força de vida, pode auxiliar no enfrentamento de uma
situação de abuso, na situação de violência. Usei muito os exemplos
sobre mulheres vítimas de violência e a relação com o machismo,
porque são meus principais focos de luta, junto com as populações
LGBTs. Mas acredito, que essa proposta de ética ativa, que busca as
forças ativas e não as reativas, assim como a compreensão desses
C
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Não conseguia pensar em mais “[...] Eu tenho 40 anos de idade, eu sou nascida e crescida e
ninguém para representar a ainda vivo na periferia de Campinas. Meu pai pedreiro, minha
mulher desta narrativa que não mãe dona de casa, ambos apenas com o ensino fundamental [...]
fosse Carolina de Jesus. Ao ouvi- minha mãe negra com todos os desafios que a questão da raça e
Carolina
Outubro 2019/ São Paulo
la, relia as contações presentes
no “Quarto de despejo: diário
de uma favelada”, a narrativa
gênero coloca para o indivíduo. Costumo dizer que eu vivo essa
intersecção com a qual tento trabalhar hoje nas minhas aulas”.
cotidiana em forma de diário, a A narrativa de Carolina não tinha tempo para começar nem para
importância dada ao trabalho, as terminar, parávamos de conversar por telefone a qualquer momento,
marcas sociais na identificação depois chamávamos uma a outra, “[...] estava pensando aqui nas
dos sujeitos de suas relações nossas conversas e sabe o que eu lembrei? ”, “outra coisa que acho
afetivas, a potência da educação como elemento de combustão bacana falar sobre a sua pesquisa [...]”, “Bárbara você já leu a obra [...]
da vida, uma descrição direta, implicada com os acontecimentos, vai te ajudar muito a pensar nisso”...e assim, ela esteve comigo.
protagonista de cada contação compartilhada. Quando a Carolina “Bárbara eu vou começar a responder falando um pouquinho da
colaboradora desta pesquisa iniciava cada nova proposta de minha história de vida para ir marcando a minha aproximação com o
diálogo, eu sentia a Carolina escritora com sua vontade de liberdade movimento feminista. Eu tenho 40 anos de idade eu sou nascida e
e coragem para alcançar uma vida autônoma, um recontar da vida crescida e ainda vivo na periferia de Campinas. Meu pai pedreiro,
que não objetivava apenas comunicar fatos ou ilustrar cenas. Era minha mãe dona de casa, ambos apenas com ensino fundamental
a grandiosidade das “escrevivências” anunciando as intensidades sendo que ensino fundamental na época deles se referia a quatro anos
previstas para os nossos diálogos. Foram escrituras linguísticas de escolarização formal. Então eu cresci nessa realidade de periferia.
percebidas como ideológicas, que entendem seu papel social, que Minha mãe negra com todos os desafios que a questão de raça e
tomam posse do que narram. Eu não conhecia Carolina, ela foi gênero coloca para o indivíduo. Costumo dizer que eu vivo essa
intersecção com a qual tento trabalhar hoje nas minhas aulas”. Assim,
uma das mulheres inseridas na ciranda por outras mulheres da
Carolina atravessou a minha vida de pesquisadora, sempre pontual,
pesquisa, então pude sentir a alegria da surpresa, render-me aos
direta e comprometida. A sua narrativa começa com sua ideia anterior
encantos de seu aceite para participar da escrita desta tese, e isso
de uma vida considerada bem-sucedida: ser professora de ensino
aconteceu entre outubro e novembro de 2019 através de áudios,
fundamental e de ensino infantil, trabalhar com crianças ou ser
vídeos e mensagens de WhatsApp e chamadas telefônicas.
secretária. Falava que era o que tinha em seu repertório já que na sua
realidade social, a Psicologia não configurava uma possibilidade. Na
verdade, para Carolina, o ensino superior não se apresentava como
uma alternativa, lembrando inclusive de uma conversa que tivera
com sua mãe na qual perceberam que eram poucas as pessoas de seu
convívio que tinham formação escolar superior. Ela lembra que na
adolescência, era considerada uma pessoa tímida, porém que hoje
observo o quanto aquilo era silenciamento (pausa – creio que ela foi
buscar aquela menina na memória). Ao narrar sobre o início do que
seria a vida profissional, conta que, ainda jovem, iniciou um projeto
no qual dava aula para alunos das séries abaixo da que estava, isso se
fez uma forma de renda. Conta que cobrava daqueles que poderiam
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pagar e ajudava os que não podiam, sendo sua primeira fonte de discussão de gênero por uma questão pessoal, possuía uma amiga
renda. Foi dessas aulas particulares, em sua maioria como voluntária, transexual que sempre teve dificuldades no mercado de trabalho.
que observou o quanto tal atividade fazia sentido para ela. Busca na Diante deste fato e as decepções ali presentes, apresentou como
memória que devia ter uns treze ou quatorze anos e tal função durou objeto de estudo no mestrado, um projeto para estudar a inserção das
todo o ensino fundamental e ensino médio, perseguindo assim, o mulheres transexuais no mercado de trabalho. Dada a intenção de
sonho de ser professora de educação infantil. Carolina me diz que discussões de gênero, defendeu a ideia de ouvir a voz da mulher
não chegou a atuar na área, “[...] precisava me virar, nos sustentar, transexual, seus desafios, os preconceitos contra o gênero feminino,
então trabalhava em lojas no shopping, depois fui para área as dificuldades da inserção na sociedade e a necessidade da
administrativa no qual eu fiquei por alguns anos e, somente aos vinte participação social e política da mulher trans no mercado de trabalho.
e cinco anos de idade, eu consegui vislumbrar a possibilidade de Em sua tese de doutorado, foi trabalhar saúde mental no Sistema
graduação”. Carolina ressalta que, justamente neste período, surgiram Único de Saúde, e mesmo não tendo o gênero como principal foco,
as políticas públicas de bolsas de cotas e ela foi beneficiada com uma Carolina conta que tais discussões não saiam dela. Enquanto docente,
bolsa de ensino na única instituição de Campinas que tinha o curso Carolina continua com esta inquietação sobre temáticas que envolvem
de Psicologia na época, e com orgulho firma a voz ao anunciar: as discussões de gênero e diz que ministra uma disciplina eletiva que
“Instituição que eu me informei na qual hoje eu sou docente”. Óbvio, chama de “psicologia e gênero”, onde discute gênero, classe e raça,
neste momento a emoção vem em forma de tornado e precisamos corpos e sexualidade. Defende ser esta uma forma de contribuir na
respirar para continuar, a fala ficou ofegante e os olhos embebedados formação dos alunos, a qual considera extremamente deficiente no
de alegria. Ela continua contando que na época, a mensalidade do quesito de discussão sobre gênero. Acredita que tais diálogos sobre a
curso era bem maior do que o seu salário como auxiliar administrativa, contribuição da Psicologia são urgentes na formação acadêmica.
mas que foi beneficiada com 100% no valor da mensalidade. Segue Comenta também que já ministra a disciplina eletiva a três anos,
lembrando que no quarto ano do curso começou seu encontro com a sempre com bastante adesão e interesse dos alunos. Além desta
Psicologia do trabalho e a Psicologia social do trabalho, refletia sobre disciplina, é docente de outras disciplinas nas quais procura trazer
as questões de saúde do trabalhador e aqui a questão do movimento estes temas para discussão em sala de aula, mas reconhece que há
feminista começou a fazer sentido, ganhou significado. Até então, diversos desafios para “[...] plantar um olhar feminista na academia
Carolina tinha uma inquietação com os papéis de gênero, com no que diz respeito ao ensino a pesquisa e a extensão”. Recorda o
algumas limitações que eram colocadas ao gênero, porém nada momento de grande conservadorismo que estamos vivenciando, sabe
organizado, nada de militância até pela escassez de tempo e de que tal comportamento sempre existiu na nossa sociedade, porém de
possibilidades. No encontro com as disciplinas que aquela sensação uma forma mais velada e agora está explícito, e por isso, dependendo
começava a ficar organizada, a ser nomeada, a surgir como desejo de do autor que optamos para embasar o conteúdo, sofremos certas
fazer da questão da saúde do trabalhador a sua prática profissional, o represarias. Carolina lembra de uma situação de quando propôs a
que a envolveu por completo nas questões da mulher no mercado de leitura das concepções de Judith Butler. Nesta situação foi solicitado
trabalho. Foi estudando a questão do feminismo, mas a inquietação pelo conselho da universidade que alterasse a referência, que buscasse
com as questões de injustiças, com a exploração de longa data, ainda outras teorias da Psicologia para abordar o movimento feminista.
era muito vista de uma forma vitimizada. Carolina conta que não Lembra da dificuldade que teve para trabalhar um diálogo e mostrar
encontrava ali muito o que fazer e que acredita que a Psicologia, que a Psicologia, historicamente, não esteve tão presente na elaboração
ainda na graduação, mostrou gradativamente a conscientização do do material teórico como outras áreas das Ciências Sociais e o que
seu papel, das possibilidades e das limitações que tinha na sociedade auxiliou muito sua defesa foi a publicação do CRP da Bahia, onde é
enquanto mulher. Após a formação acadêmica em Psicologia, foi discutida a questão do porquê da Psicologia discutir gênero. A partir
para o mestrado direto, aproximando-se muito com a questão da de um discurso bem crítico e a partir dessa referência, o conselho
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“conseguiu/autorizou a aprovação da teórica para os estudos”, mesmo de falar”. Ríamos de nossa coragem ou falta de juízo. Ela sabe que
assim, solicitaram a alteração o título, porque gênero e sexualidade aquela situação foi uma grande decepção, uma coisa que a assustou
não eram bem vistos na universidade, ainda confessional. Além do no momento, mas trouxe muito mais segurança e certeza de que é
título, Carolina recorda que modificou alguns dos objetivos, onde isso mesmo que precisa fazer, implantar uma psicologia mais
propunha dialogar sobre o aborto e transportar autores como Judith engajada, mais feminista, mais comprometida. É necessário agir com
Butler, Michel Foucault da referência básica para a referência cautela, com estratégia sem acovardar, sem abrir mão daquilo que
complementar. “Mas eu acho que somos nós que abrimos estes acredita, encontrando formas de dizer, de trabalhar nessa questão
espaços, descobrindo brechas para ir além, plantando esse olhar com os alunos, no ensino, na pesquisa e na extensão. Um dos objetivos
diferenciado e ir fazendo essa discussão”. Quando lançou a proposta da tese era que as narrativas, depois de transcritas fossem reenviadas
aos alunos, teve como resposta o grande interesse dos mesmos, como para as colaboradoras e assim foi com Carolina. Ao retornar,
ela narra, sedentos por discutir essa questão, apontando que já comentou sobre outro pedido meu: “Oi Bárbara, boa tarde. Desculpa
estavam no último ano da graduação sem ter lido nada que embasasse pela demora no reenvio da narrativa, aqui está e fico à disposição.
as concepções de gênero. Com empolgação na fala, diz que no Você tinha falado também de um movimento de arte no qual eu me
decorrer das aulas havia um engajamento grande, muito interesse, representaria nesta pesquisa. De repente uma obra de Frida... tem um
uma satisfação, e no fim, acabou sendo feito aquilo que foi oferecido auto retrato dela com espinhos no pescoço eu acho ele bastante
no papel, “[...] mas a gente declara com outras palavras, a discussão significativo, me emociono com a história dela e com a obra, com o
crítica que era o que eu pensava desde o início acabou acontecendo e dado representado por uma dessas obras. Foi um grande prazer
procurei levar esse olhar para outras disciplinas e para outros cursos”. conhecê-la, saber da sua pesquisa no tema tão relevante, tanto foi um
Menciona que na disciplina de Psicologia Forense, que ela ministra prazer compartilhar um pouquinho da minha história. Lamento
no curso de direito, pretendia discutir sobre as diversas configurações porque foi numa jornada tão complicada para mim, mas foi com
de família, falar sobre expressões de gênero, conceituar e fazer uma grande alegria que eu compartilhei tá bom qualquer coisa é só dar
discussão sobre a transexualidade, travestilidade e homossexualidade. um toque”. Afetiva e artisticamente, ela continua comigo.
Porém, na avaliação institucional que é realizada todo final de
semestre com os alunos da universidade, foi avaliada por uma parcela
da sala de forma negativa. Recorda que pela primeira vez, havia
pouca adesão, sendo que, até aquele momento, só recebia respostas
positivas e nesse caso, as avaliações negativas e os comentários do
tipo “professora doutrinadora que prega ideologia de gênero”. Foi
surpreendida ao ser chamada na direção do curso para explicar o que
falava sobre o aborto em sala de aula, quais as teorias que utilizava,
de onde partia e que continuaria propondo na disciplina. Nesta
situação teve que apresentar partes do nosso código de ética, sobre os
princípios fundamentais, provar que suas aulas não infringem a ética
da profissão. Carolina sabe que é um campo minado, e que estas
situações fazem com que ela, em vez de desistir, estude mais, para
falar com mais segurança e mais convicção, baseada em pressupostos
científicos e alerta assertivamente: “[...] se eles tiverem pressuposto
científico para contra argumentar ótimo, o espaço acadêmico é para
isso, se for baseado em achismo ideologias em fake news, pense antes
L
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A mulher da narrativa [...] Porque eu fico pensando: do que adianta a gente ler bell
recontada nas linhas abaixo, é hooks, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, todos os outros nomes,
pura ABARICÁ, palavra que se a gente tem uma leitura feminista mas não tem uma pedagogia
Lélia
conheci lendo a escrita potente, feminista. ”
implicada, comprometida e
situada de tese de doutorado. Em 06 de agosto de 2020, entrei em contato com Lélia por facebook,
Agosto 2020/ Pernambuco ABARICÁ significa CORAGEM, ela logo me respondeu, disponibilizando o número de seu telefone
adjetivo que acredito ser o através do qual poderíamos conversar por mensagens e chamadas de
mais adequado para apresentá- vídeo pelo WhatsApp. Ao me apresentar e falar sobre a pesquisa em
la como colaboradora dos processo, Lélia concordou em participar. Enviei o TCLE e o espelho
parágrafos descritos. Mas, da pesquisa com as perguntas da entrevista narrativa. No dia 11 de
gostaria de apresentá-la como RABECA na minha vida, aquela que agosto, tivemos contato novamente. Lélia me informa que estava na
inunda tudo com o afeto de seus sons. Foi Lélia que me apresentou primeira semana de aula do segundo semestre de 2020, muito
às rabecas em nossa primeira conversa, elas decoravam a parede apurada, mas que vai participar. Em 20 de agosto me chama com um
de fundo da tela de onde Lélia surgia através das chamadas e fotos presente, comenta comigo sobre um post no Instagram, onde propõe,
enviadas por WhatsApp. Rabecas são instrumentos musicais claro, com fundamentos poéticos, sua interpretação sobre a poesia de
João Cabral de Melo Neto “A educação pela pedra”, avisando que
de origem moura (região de Portugal), enraizados no folclore
começaria sua participação do fim para o começo, iniciaria pela
brasileiro, principalmente no Norte, Nordeste, Centro-Oeste
exposição de uma obra de arte (como eu havia pedido durante as
e parte do Sudeste. É um instrumento precursor do violino,
conversações que dariam voz às escritas da pesquisa), defendendo
confeccionado por artistas populares em comunidades rurais.
que do território de onde o seu corpo emerge, da especificidade
Únicas em sua produção e sublimes em movimento, produzem
daquela região, acredita que a prática docente e teoria feminista não
sons que movem um povo de modo peculiar, é harmônica
tem como ser dissociada da vida. A teoria conversa com a vida, como
para acompanhar cantigas e enriquecer vozes. Pensando em fazendo parte de uma dimensão ainda que pequenina desta. Lélia
ABARICÁS, não existiria outro nome para representá-la nas sente que a poesia do pernambucano João Cabral de Melo Neto,
partituras da tese: Lélia! Homenagem à mineira Lélia Gonzalez, coloca-nos num lugar em comum, uma possibilidade de aprender a
mulher que confrontou a linguagem acadêmica e a gramática partir de um “entranhado da alma e não de um despejar de teoria”,
normativa por entender que a maioria de seus irmãos e irmãs de ela visualiza esta prática inspirada em Paulo Freire, em bell hooks e
cor possuíam pouco ou nenhum acesso à educação formal. A Lélia assim começa sua narrativa, apresentando a pedra não só como
da conversação presente nos parágrafos seguintes foi apresentada metáfora, mas como símbolo do que tem sido esses tempos, sobre o
por meu orientador durante as encantadorias roseanas propostas que é ser professora em um contexto agrestino. E se faz comigo, nas/
no evento “Outra era a vez”. Ao ouvi-la, entendi que a pesquisa me com/pelas Pedras, “[...]pedra como modo de resistir, não atracando a
levaria a Pernambuco, porém, a pandemia da COVID 19 impediu pedra, mas sendo também pedra, experimentando-se nessa matéria
o passeio, mas não conseguiu impedir nosso encontro. [...] mais que uma carnadura concreta, um entranhar a alma”. No dia
22 de setembro, Lélia retorna, com sua narrativa que extravasssssa
(uso proposital da hipérbole) os limites destas páginas, não conseguem
obedecer ao tempo combinado no TCLE. Até hoje, não consegui
encerrar a entrevista. Com a voz calma, aquela que aconchega, sem
pressa alguma, ela avisa que já é tarde, mas que naquele momento a
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vida silenciou e foi a hora que gostaria de começar sua narrativa subjetivação e práticas coletivas com a qual se identificou. Em um
respondendo às perguntas apresentadas como disparadora para nossa novo território acadêmico, tem como orientadora uma mulher
conversação. Começa com a contação sobre quando começou a se feminista e conta, “Minhas colegas do programa de pós-graduação,
entender como feminista, quais mudanças estas descobertas mudam as doutorandas e doutorandos eram pessoas inseridas nos movimentos
ou mudaram o seu estar mulher docente feminista. Lembra que não é sociais e eu, que já havia tido uma experiência sindical rural, além de
uma descoberta muito longa, que não é uma feminista desde ter trabalhado enquanto recém-formada com a população rural e com
adolescente, que não teve em sua família mulheres que se dissessem Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais”. Viveu a imersão
feministas, muito embora havia uma prática muito comum entre as no doutorado em tempos de muita efervescência, citando, como
mulheres da sua família, aquelas vindas, em sua grande maioria, de exemplo, suas primeiras experiências com ocupação da reitoria.
áreas rurais do interior Pernambucano, ela se referia a independência Lélia lembra dos saraus, dos movimentos coletivos e de sua chegada
financeira. Diz ter crescido vendo a avó e as mulheres mais velhas ao movimento feminista hegemônico. Até o dia que assiste uma aula
não só tendo independência financeira, como independência no doutorado e se depara com uma militante negra, uma feminista
emocional de seus cônjuges, lembrando que da geração da avó negra, chamada Vera Regina Baroni, como Lélia a descreve, “[...]
materna, ela foi a única que, de fato, permaneceu casada ao longo de uma mulher maravilhosa que questionava: porque é que você, mesmo
toda a vida com o mesmo companheiro, todas as irmãs dela se branco hegemônico, não dá conta do feminismo quando apresenta a
separaram, mesmo no contexto cultural da época marcado pelo pauta e os eixos de opressão das mulheres negras”? Naquele momento,
machismo, pela violência e pela opressão. Ressalta que por serem Lélia estava pesquisando processo de subjetivação entre usuários de
mulheres que vinham de uma tradição de independência econômica, práticas integrativas e complementares de saúde e depois deste
elas se separavam e isso gerava um desconforto enorme na comunidade contato, seu interesse se volta para a pesquisa de militantes negras,
católica da qual elas faziam parte, porém, mesmo com todo aquele conta que sentiu “uma espécie de arrebatamento nessa aula sobre o
desconforto, “mesmo com a honra manchada”, referenciando que a feminismo negro e aí eu começo a me engajar no processo de
honra nas regiões rurais é um ponto muito importante para a formação política da Primeira Marcha Nacional das Mulheres Negra”.
subjetividade das mulheres, dos homens, de todos. Elas se separaram A voz se faz mais alta, Lélia oferece outro folego à contação do
porque existe ali um princípio feminista de luta por liberdade, de luta momento, citando a importância de Vera Regina como uma das
por autonomia, empoderamento, questões pertinentes às pautas coordenadoras do comitê da marcha nacional em Pernambuco, “[...]
feministas. Inclusive, Lélia conta que na infância, ouviu relatos da se uma aula já foi arrebatadora, imagina o processo de formação
avó falando de práticas abortivas, já que o índice de mortalidade política”. Os meus ouvidos ficavam cada vez mais aguçados com
infantil e abortamentos eram elevados, comuns naquele contexto aquelas encantadorias, era como se estivéssemos cara a cara, eu
histórico/territorial. Por isso, quando pensa em sua biografia e o faz ouvia a voz que saía daquele celular e conseguia ver Lélia, sentia sua
como exercício afetivo, recorda que desde a infância e adolescência respiração. Essa sensação aumentava ainda mais quando ela começa
esteve em contato com mulheres capazes de lutar por pautas a narrar sobre o estágio sanduíche que realizou em Moçambique,
emancipatórias. Do ponto de vista de formação política, acredito que sendo orientada por uma feminista africana. Ela falava e eu me
acontece em uma fase bem adiantada da formação. Lélia narra que emocionava. Na aproximação com os movimentos feministas
fez graduação em Psicologia e o mestrado em universidades católicas, moçambicanos e em contato com uma ONG que representa 89
e aqueles contextos de graduação e pós-graduação não eram contextos organizações feministas em Moçambique, inicia a sua formação
que propunham estas pautas. Foi quando, em 2013, resolveu fazer um como feminista. Deste modo, com a transição institucional Lélia
trânsito institucional, optando por uma universidade federal para muda seu foco de pesquisa, das práticas integrativas para a narrativa
desenvolver sua pesquisa de doutorado. Neste estabelecimento esteve sobre as militâncias de feministas negras em Recife e em Maputo,
em contato com uma linha de pesquisa chamada processo de cidade em Moçambique, onde fez o doutorado sanduíche. Lélia fala
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que teve uma experiência como docente muito curta, do final do aliança institucionais sejam entre pessoas que tenham afinidade não
mestrado para o começo do doutorado. Após o mestrado, lecionou só a teoria, mas processos emancipatórios engajados com certa
por um ano na cidade do interior de Pernambuco, porém, ainda sem formação política para a docência e formação não necessariamente
uma formação política formal no campo do feminismo, o que foi feministas, mas engajadas, aqueles que, como Lélia adjetiva, são
mudado depois da sua experiência no doutorado. Conta que vinha de menos capturados pelos programas que ignoram essas causas. Lélia
uma tradição descrita pela escola francesa clássica, Foucault, Deleuze, comenta que a Universidade Federal de Pernambuco possui várias
Guattari e no doutorado se depara com uma formação política e iniciativas no campo de formação política, no feminismo, nos
intelectual diferenciada, quando questiona a própria formação movimentos sociais, no movimento de mulheres trabalhadoras rurais,
anterior sobre onde estavam os intelectuais e as intelectuais negras, as quais ofereceram acesso às formações dentro e fora da universidade.
onde estavam as intelectuais LGBT, onde estavam os intelectuais É interessante que a nossa conversação acontece de modo tão fluído
Fora do Eixo sul sudeste do Brasil. Em processo de desmoronamento que, em um determinado espaço de sua narrativa, Lélia confessa:
e construção da casa epistemológica, inicia seu comprometimento “Estava com expectativa de ser a mais poética nas respostas da
com as teorias feministas e do sul do globo. “Hoje eu posso te dizer entrevistadas (risos). Sério mesmo, estou tão interessada por essa
que nenhuma disciplina que eu lecione, mais de 50% de qualquer pesquisa que pela minha pressão interna, achei que não estava
disciplina que eu lecione, vai ter a presença de intelectuais negras, conseguindo responder as perguntas. Hoje comecei sem muita
qualquer disciplina que eu e lecione vai ter a presença de intelectuais cobrança ou expectativa, sem me cobrar. E foi muito bom olhar a
fora do eixo hegemônico, qualquer disciplina hoje que o lecione, vou trajetória. Espero que amanhã, ao despertar, não me arrependa de
estar tencionando interseccionalidade, eu vou estar tencionando tudo que falei (risos). Agradeço demais por você e essa pesquisa
gênero, classe e raça e sexualidade entre outros marcadores sociais”. existirem”. Ela estava comigo. A liberdade para o encontro era tanta
Lélia fala que muda radicalmente quando esta formação chega em que, em uma certa manhã, antes do término de suas narrativas,
sua vida, ela vai questionar a hegemonia do conhecimento que a acordo com um áudio de WhatsApp dela: “Nossa, não posso esquecer
constituiu psicóloga e a conduziu para uma graduação e mestrado em de dizer que meu itinerário até o doutorado era heterossexual, e foi a
Psicologia que não consideravam a questão racial como uma questão formação no feminismo negro, que me ajudou a ampliar minhas
importante para a Psicologia. Pontua que não estava ali se queixando lentes de alcance e de desejo. Hoje, sou casada com AMOR, me
da sua formação, mas que naquele período não haviam estes apaixonei por ela no doutorado e anos depois nos casamos. Estamos
tensionamentos, essa efervescência de pensar uma Psicologia preta juntas até hoje. Posso dizer que o feminismo negro me apresentou
decolonial, antirracista, antifascista, inclusiva. Lélia diz que passava minha esposa, uma mulher negra, linda, poeta, honesta e sensível...
pela desconstrução da moradia antiga, reconstruía uma casa dentro tudo que eu precisava como par na vida e até o encontro com ela, não
da Psicologia e dentro dessa casa estava incluindo outros cômodos, achava ... Já pensou alguém que muda os rumos intelectuais, de
outra mobília, outro modo de perceber o mundo, de perceber o ensino, ensino e de pesquisa, afetivo, sexuais depois de uma conscientização
a pesquisa, a extensão na formação em Psicologia. Todos estes marcada pelo feminismo negro? Que potência tem esse campo. Já
acontecimentos marcam o momento de seu enunciar-se feminista, dizia bell hooks em “Ensinando a transgredir”, a teoria tem que
alteram radicalmente seus compromissos éticos, estéticos e políticos. transformar, tal qual água viva ... Vou continuar a conversa amanhã”.
Narra que neste momento, todas as disciplinas ou tudo ao que estava Uma tormenta de afetos me atravessava, e ela continuou comigo no
engajada tinha um equilíbrio, um sentido, faziam dela uma mulher outro dia. Lélia começou sua fala lembrando de uma questão proposta
implicada e comprometida com uma docência feminista negra e que por mim, sobre seu conhecimento de instituições que ofereçam,
hoje, inclui estas teóricas, poetas, cientistas nas disciplinas, nas ainda na graduação, uma formação que dialogue com as epistemologias
extensões, na pesquisa. Este é o lugar da nova moradia de Lélia como feministas. Ela fala que no doutorado da Universidade de Recife,
ela descreve, considerando natural e até esperado que as políticas de quando fez a “viragem para a narrativa de mulheres negras
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feministas”, foi procurar dentro da instituição o que haveria de ameríndias, das fontes africanas. Naquela ocasião, o pensamento de
disciplinas, o que ofereciam de uma formação feminista, tanto na Lélia Gonzalez foi muito presente em seu percurso, como o
graduação como na pós-graduação, e encontrou disciplinas na pensamento de bell hooks, Grada Kilomba e uma lista das autoras
graduação do centro de Filosofia e Ciências Humanas que ela que conheceu e, desde então, ajudam a pensar em suas disciplinas,
identificou chamou de escape do colonizado. Lélia me conta que no experimentando o momento. Quando peço para Lélia falar mais de
Recife tem uma política municipal pioneira em práticas integrativas sua experiência de doutorado em Moçambique, ela lembra que muitos
que mobilizou a política pública nacional e despertou seu interesse. dos seus colegas foram viver experiências na África do Sul como ela.
Porém, na disciplina de Processos de Subjetivação e Política do Diz que optou por cursar disciplinas de gênero, de filosofia africana,
professor Jorge Lira, o grupo começou a questionar se Lélia não idiomas locais, onde conheceu duas autoras da literatura que
deveria fazer uma transição do tema de pesquisa frente ao que trazia considera fundamentais para pensar o escape colonial sobre o qual
em sua fala sobre narrativas de mulheres negras, e assim aconteceu. estávamos comentando, a autora Paulina Chiziane e a nossa Conceição
Fez um levantamento de quais eram as disciplinas disponíveis sobre Evaristo, entendendo a perspectiva das escrevivências, das dimensões
o assunto na universidade, e se depara com departamento de entre a arte, política e ciência, como vivências marcadas na nossa
Sociologia, no qual algumas professoras ofereciam disciplinas sobre história. Lélia comenta a importância destas teóricas e de tantas
feminismos, entre elas uma professora que ministrava um curso de outras quando, no término do doutorado, vai parar no interior “[...]
extensão, mais teórico do que é vivencial, ainda sobre o feminismo pois a capital está cheia de doutores” que atuam em Caruaru,
hegemônico clássico, partindo de Simone Beauvoir e da Mística Arcoverde, Serra Talhada, informando que os recém-doutores
feminina de Beth Friedman. Conta que participou do curso de recifenses vão se situar ao lado mais agreste do sertão do estado, no
extensão e depois seguiu para a sociologia, onde encontrou disciplinas seu caso foi para Caruaru. Com a empolgação própria de suas
sobre o feminismo negro. Utiliza de sua vivência para explicar que na contações, ela narra o quanto interessante foi trabalhar, mudar a
Universidade Federal de Recife, no centro de ciências humanas e dinâmica e os interesses das leituras e ao chegar em Caruaru.
sociais, existe um leque extensivo de disciplinas que propõe estes Comenta sobre as inquietações deixadas pela banca do doutorado,
debates. Lélia lembra que neste curso de feminismo negro, conheceu que já dialogavam com as epistemes decoloniais, dizendo para ela:
uma professora que acaba sendo a interlocutora importante para o “espero que quando você for dar suas disciplinas, você considere que
projeto de tese, inclusive membro da banca do projeto de qualificação. nós mulheres negras, não somos só uma maioria numérica, nós somos
Com essa professora ainda faz uma disciplina sobre Fanon e outra uma maioria também de intelectuais, nós também escrevemos, e nós
sobre relações raciais, passando, inclusive pelas perspectivas esperamos que quando você estiver trabalhando, considere equilibrar
hegemônicas do feminismo branco para depois dialogar com uma a sua oferta na disciplina”. E se questionava sobre o que seria esse
perspectiva mais contra hegemônica do feminismo negro e africano, equilíbrio teórico ao ouvir as sugestões da banca: “em vez de você
e neste momento, começa a se interessar pelo doutorado sanduíche oferecer autores do norte do Globo, autores franceses como a
em Moçambique. Durante estas disciplinas é que Lélia descobre o psicologia adora beber, que você possa olhar para estas intelectuais
núcleo de estudo de Relações Raciais e ouve sobre a oferta de psicólogas que estão em outros lugares que não é do Centro Europeu”,
disciplinas sobre feminismo negro, na Sociologia, na Antropologia, sendo proposto para Lélia a composição de suas disciplinas com
no Serviço Social, na História. Lélia narra que em 2013/2014, viviam 50%, ou mais, de intelectuais negras. Lélia defende que isso foi, em
uma espécie de explosão epistemológica contra hegemônica. Os suas palavras, arte: “[...] um ponto de viragem como docente porque
professores começaram a sentir, principalmente as professoras, uma isso me obrigou, mesmo sendo uma boa leitora e tendo escrito uma
certa inadequação teórica regional. Ela lembra que seu grupo de tese que se posicionava contra hegemonicamente, contra
doutorado formado por doze integrantes de turmas anteriores e a colonialmente, eu ainda não tinha práticas docentes condizentes com
dela, foram influenciados por essa novidade, foram beber das fontes isso. E aí o que é que vai acontecer, eu vou fazer um exercício ético-
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político e estético de compor as disciplinas que eu dava, nas coisas novas narrativas, novas epistemos, onde pudéssemos respirar. Narra
que eu fazia na universidade a partir de uma intelectualidade negra sobre a demanda dos seus alunos de Caruaru, acadêmicos da classe
feminina. A gente levou a exposição da Lélia Gonzalez para Caruaru trabalhadora, que trabalham na feira, aqueles primeiros a ingressar
pela primeira vez (muita emoção e orgulho nesta fala). E os alunos no ensino superior em suas famílias, alunos que chegam com um
questionam: quem é esta Lélia González? Quem é Bicudo? Quem são sonho muito grande (pausa). Continua falando gostar de trabalhar
estas autoras que a gente nunca falou e que não faziam parte da com os alunos que vem desse contexto, das classes trabalhadoras,
psicologia da psicanalise”? Estes novos diálogos (nem tanto), com admira a experiência de vida deles, observa a escrevivência deles
estas novas convidadas (nem tanto), vão repercutir na maneira que como riqueza material absurda, desabafa: “Hoje estou meditando em
Lélia pensa a sala de aula. Neste momento de sua narrativa, lembra suas profundas e profícuas perguntas disparadoras, acho que estou
de uma colega docente que tem uma disciplina na graduação que se falando mais hoje (risos). Estou reflexiva também com o meu
chama Psicologia e Feminismo, onde apresenta não só as bases caminhar na docência e na psicologia (...)Imagina eu estou vivendo
teóricas do feminismo branco hegemônico, como as bases teóricas e um cenário transferência com corte de carga horária que significa um
um feminismo negro contra hegemônico, contra colonial. Tais corte salarial de quase 75%, então eu acho, é claro que eu acredito, eu
encontros marcam as sugestões do que chamávamos de fugir do prevejo que o meu futuro nessa instituição privada que eu leciono é
capturado na docência, de sugerir diálogos, propor pedagogias, demissão não né”? Ela narrava de lá do nordeste, eu sentia aqui no
desenvolver planos de ensino que escapem da epistemologia única sul a navalha afiada do capital cortando nossos corpos e estilísticas
ditada pelo eixo norte do globo, sendo lembrada por Lélia da docentes. Preciso trazer a voz de Lélia na íntegra neste parágrafo, sua
importância de olhar para o espaço territorial que ela está situada, o língua é a minha língua, e não posso e nem quero retirar desta
nordeste do Brasil, nas condições problemáticas de trabalho, da narrativa as letras que transcrevem seu desgosto/tristeza, que são os
inserção destes docentes no ensino superior. Principalmente, como meus também: “Eu acho que a gente vive um cenário penoso no
Lélia narra, depois de uma crise da destituição de Dilma, do descaso sentido de que a gente não encontra um espaço de atuação digna e
do governo Temer, da retomada fascista no Brasil, todo esse cenário que inclusive fortaleça as nossas formações, porque como é que a
político. Ela conta sobre as condições de trabalho extremamente gente continua a formação da gente, uma formação que eu ainda
precárias nesta região, sobre os contratos nas instituições privadas considero muito incipiente, com déficit teórico, metodológico,
onde o docente não recebe por extensão, não recebe por pesquisa, e epistemológico muito grande, se a gente está vivendo tantos cortes,
mesmo assim a instituição cobra tais compromissos. Neste momento, se a gente não tem nenhum estímulo?”. Ela sabe que estes estímulos
Lélia desabafa: “Então a minha posição política é, eu não faço são maiores em universidades públicas, para docentes com contratos
extensão em instituição privada, eu não faço pesquisa em instituição de trabalho que financiem pesquisas e projetos de extensão. Lélia
privada, simplesmente porque eu não recebo nada por isso, não conta que no final do último ano, teve um trabalho aprovado nos
recebo financeiramente por nada”. Ela sabe que estas discussões Estados Unidos quando era professora substituta da federal e
surgem com certo nível de complexidade, que o norte e a produção conseguiu apoio financeiro para viagem. Foi para Harvard apresentar
da narrativa do Norte não vão dar conta. Reconhece estar inserida as ideias de sua tese, porém, a instituição privada a qual também
em um contexto de crise política e ética que acaba com o trabalho da estava vinculada, não movimentou nada para essa viagem, por isso,
docência, questiona a cobrança já feita aos professores concursados e se o trabalho fosse aprovado um ano depois, provavelmente não teria
as indagações feitas às escolhas epistemológicas pós-coloniais e me ido. Primeiro pela pandemia e também porque para uma docente,
convida a imaginar esta situação em relação aos professores com situada no agreste Pernambucano, mobilizar uma grana para ir até
grau elevado de precarização das relações de trabalho extremas uma universidade internacionalmente conhecida que se propõe a
como as que ela visualiza no sertão nordestino. Depois de respirar, ouvir os afro-latino-americanos, não é simples. Lélia continua sua
Lélia me faz ver que tal crise política nos obrigou a ir ao encontro de fala expressando seus sentimentos atuais sobre a docência: “Mas eu
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confesso que eu estou numa fase meio cansada disso tudo, com minha caminhada, com a minha trajetória, eu quero fazer isso, mas
vontade de brigar menos do ponto de vista política, é um tempo ruim acho que eu estou numa fase reativa, enraivecida, e uma vontade de,
então pronto, vou me dedicar aqui em outros projetos, vou caçar “ah, ok! a safra tá ruim então é seguir outros itinerários, não ficar
outras coisas para fazer na psicologia e deixar a docência de lado, já insistindo no chão seco, porque tenho sentido ultimamente essa
que eu considero que é uma safra muito ruim para docência, assim aí semente com certa dificuldade de vigorar, não sei se este é um
... eu fico até com pena de estar falando isso para quem está cursando pessimismo momentâneo, um pessimismo de uma segunda-feira,
doutorado ... mas eu não deixaria de fazer as coisas que eu fiz (risos), mas eu acho que é isso eu diria, que o momento político e econômico
olha eu voltando para trás agora (risos), com medo de te desestimular não é propício”. Mas Lélia sabe, e reforça, que nos momentos mais
neste percurso. Mas eu vou ser honesta, eu tenho sentido muita difíceis é que se criam as coisas mais interessantes, então ela também
vontade de dar um tempo nisso tudo porque exige muita energia, está articulando, pensando no seu modo de continuar docente, menos
muito esforço, muitas horas de dedicação Então, eu tenho sentido vinculada institucionalmente e mais livre para criar conteúdo e
vontade de dar um tempo, fazer umas incursões em outros aspectos declara “[...] eu fico repetindo isso sabe, fico às vezes meio fixada
na psicologia. Eu sempre tive uma caminhada na clínica então eu numa queixa, mas nem é isso que eu quero, não é isso que eu desejo
estou achando que ultimamente, como politicamente é muito ruim o para minha vida, mas eu, nas minhas condições de trabalho
cenário da educação superior no Brasil [...] acho que nesse momento, atualmente, elas não remuneram nem extensão, nem pesquisa, então
o cenário político e econômico, é o que mais paralisa as minhas se elas não remuneram, apesar de fazer uma enorme pressão para
vontades e os meus desejos, isso não quer dizer que surjam desejos e que professores mesmo não remunerados façam extensão e pesquisa.
vontades em outros campos, em outras áreas”. As encantadorias que Mas a minha decisão política é de que, se não há remuneração, eu
eu presenciava na narração de Lélia, apresentavam notas de desilusão, devo me dedicar outros aspectos na Psicologia que me remunere.
de cansaço, tristeza e revolta, todavia, buscavam na resiliência, na Mas esse é o quadro da maioria das instituições privadas no ensino
teimosia e na arte, ar para sobreviver. Ela verbaliza pensar se não é o superior no Brasil, elas são milionárias, lucram muito porque,
momento para a docência, então pode ser o momento de se dedicar à exatamente, existe uma lógica colonial da expropriação da mais-
arte de forma mais amadurecida, dedicar mais tempo, mais estudo, valia, da cafetinagem, para usar um termo da Sueli Rolnik”. Lélia
ela se vê em um campo aberto de possibilidades. Não se vê depressiva, reforça que não está querendo dizer que não exista uma produção
nem mesmo melancólica, ou uma pessoa que está se queixando da interessante na Psicologia, uma psicologia feminista, mas defende
vida, em um eros agonizante, mas sabe que o seu principal desafio é que quem está fazendo essa produção interessante, é porque tem
esse cenário que anunciam este movimento de demissão em massa condições minimamente dignas para o trabalho e para a atuação, que
até para professores que são doutores, principalmente os que insistem conhece revistas dentro e fora da Psicologia, interessadas nas
em sistemas didáticos contra hegemônicos. Ao mesmo tempo em que temáticas feministas e produzindo potentes artigos. Fala da minha
visualizamos este desmonte da pesquisa, ela lembra que enquanto pesquisa e do efeito subjetivo dentro do corpo da Psicologia. Que ela
estava fazendo de tudo para concretizar a viagem para os Estados poderá forçar as engrenagens institucionais para reconhecer uma
Unidos, com todas as dificuldades para organizar as questões de Psicologia atravessada por outros vetores, por outros marcadores,
financiamento, a instituição fez uma premiação e enviou dois além dos colonialistas. Também me alerta que o movimento de uma
professores para a Disney, dois homens, que curiosamente são os pesquisa que surge no meio de uma sessão fascista, onde todos os
privilegiados e que ganham os prêmios da academia. Lélia me campos são tomados por “esse germe” (fazendo menção à expressão
convida a pensar nesta contradição: “[...] a instituição mandou dois utilizada por Suely Rolnik na obra “Esferas da Insurreição”), esse
homens para Disney mas não mobilizou um real para um Congresso “germe fascista”, como ela enuncia o presidente da república
nos Estados Unidos, numa universidade de peso [...] Eu acho que eu antidemocrática brasileira, que está impregnado na ciência, na arte,
preciso passar também por um caminho de reconciliação com a fazer este tipo de pesquisa é uma ousadia. Uma contravenção aos
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movimentos de querer brochar a vida de todos os trabalhos que fogem poética, que abre para o sonho sabe. Eu acho que essa última questão
dos eixos centrais e apresentam a mulher protagonista de suas micro é uma questão que diz assim: o que é que você sonha para o mundo
revoluções. Lélia não sabe se estamos inventando a roda com estas e o que é que você sonha para Psicologia? E aí eu diria eu sonho
nossas pesquisas, porém acredita que uma Psicologia feminista mesmo com a sala de aula em que a gente pudesse experimentar um
precisa comungar com uma pedagogia feminista, já que, em sua exercício de liberdade, em que a gente pudesse ser livre e a gente não
opinião, não adianta ter uma leitura feminista e agir através de uma se sentisse acanhado em compartilhar o que a gente sabe, os nossos
pedagogia antifeminista, para ela, este é um ponto crucial. Lélia saberes e o que a gente pensa, porque aquele espaço estaria muito
exemplifica tal inquietação: “Porque eu fico pensando: do que adianta preservado e muito reservado e seria um espaço propício para o
a gente ler bell hooks, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, todos os compartilhamento de uma vida viva, de uma vida não apequenada,
outros nomes, se a gente tem uma leitura feminista mas não tem uma eu acho que eu sonho com isso como trabalho em que eu possa
pedagogia feminista? A gente pode ter uma leitura feminista e ser facilitar os processos para uma vida não apequenada, pronto falei”.
racista, ter uma leitura feminista e ser anti feminista, o que eu estou
querendo dizer com isso é que uma pratica feminista para a psicologia
deveria estar em comunicação com uma pedagogia feminista, uma
pedagogia que valoriza os saberes locais, valoriza a fala em primeira
pessoa, uma pedagogia que não se envergonha das experiências
pessoais para a construção do conhecimento cientifico, então é um
longo percurso”. Ela traz relatos e experiências de uma docência
feminista que, apesar do seu narrado cansaço, comprovam que
naquele corpo a pedagogia para uma psicologia feminista floresce,
distanciada da cafetinagem que qualquer fascista, governo ou crise
poderiam secar. No final de 2020, recebo um áudio de Lélia, onde ela
lembra que no começo dos nossos diálogos, eu fazia umas perguntas
que a fizeram entrar em contato com a raiva das suas condições de
trabalho, com a precarização das relações do trabalho, e que as
últimas questões a reconectava com a prática docente. Uma prática
que anda entre prática pedagogia e prática feminista, e vai
experimentando a sala de aula como um campo aberto de
experimentação, onde existem memórias, bênçãos, rezas, os banhos
de rio e as trocas de cartas (exemplos que ela trazia durante a narrativa)
onde tudo isso se faz possível. Diz que gostaria de me dizer que a
última questão foi uma questão que soprou o seguinte: “Lélia, calma,
esse tempo vai passar, e quando esse tempo passar você vai poder
olhar para todas essas memórias, para todos esses registros do teu
cotidiano como docente, e você vai entender que faz parte também da
sua missão nessa vida e que não ia ser fácil o tempo todo, e como toda
vida que vale a pena ser vivida passa por muitos desafios... Então eu
acho que é um pouco essa experiência que eu queria compartilhar
com você, em relação a essa última questão. Acho uma questão linda,
M
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A mulher que compartilha “[...] Bárbara, lembrei de você, escuta isso: Uma manhã, eu acordei,
comigo essa narrativa, E ecoava: ele não, ele não, não, não, Uma manhã, eu acordei, E
compartilha muito mais que lutei contra um opressor. Somos mulheres, a resistência, De um
falas desenvolvidas por línguas Brasil sem fascismo e sem horror, Vamos à luta, pra derrotar o
Judith
filósofa americana Judith Butler mas eu sempre fui muito questionadora em relação às questões
e seu diálogo crítico com a sociais, na relação entre homens e mulheres, nas relações de
psicanálise sobre a implicação trabalho principalmente”
da teoria na contemporaneidade
Agosto 2019/ São Paulo e as reflexões sugeridas pelos No dia 04 de agosto de 2019, ela me avisou que começaria a narrativa
movimentos feministas. Eu não por áudios de WhatsApp durante os intervalos no consultório. Avisa
conhecia Judith, ainda não havia que estava passando um café no momento deste recado, coisas da
tido acesso aos seus escritos, a sua imagem, mas as conversações intimidade da vida trazidas como afeto para a tese. Com a voz calma
propostas por esta pesquisa alcançaram espaços onde estas e doce, começa falando de como se descobriu feminista e como isso
mulheres emergiam de modo potente quando lembradas durante afetou a sua prática docente. Judith contava que, desde criança teve
as entrevistas com outras mulheres colaboradoras. Assim foi com uma formação muito crítica, principalmente por conta da sua mãe.
Fala que é nascida e criada no interior de São Paulo, que seus pais não
Judith. Meu primeiro contato com Judith foi por WhatsApp,
eram do interior, a mãe era do Rio e o pai era de São Paulo, e que
como disse, uma das colaboradoras citou seu nome e eu comentei
sempre tiveram uma preocupação muito grande de que os filhos
que procuraria no facebook, foi quando ela falou que Judith não
pudessem fazer outras coisas, além das coisas que a cidade oferecia.
pedia todo este distanciamento, que era para eu “ligar de cara para
Eu me divertia com a fala à vontade dela, com a tranquilidade e afeto
ela”. Passou o número e eu mandei mensagem, sem pestanejar,
que trazia cada lembrança: “Então, eu sempre tive um rolê de estar
apresentando-me e falando sobre a pesquisa. E Judith me viajando, visitando museu, para isso, claro devido minha condição
respondeu, e esteve comigo. Era o dia 04 de junho de 2018. Após os social e foi isso que provocou uma formação sempre crítica, meio
trâmites burocráticos de aceite do projeto de pesquisa pelo Comitê descolada mesmo do que se esperava de uma cidade pequena que tem
de Ética da UEM, retomei os contatos com as colaboradoras e mais seus 48 mil habitantes. Eu acho que sempre tive uma questão bastante
de um ano depois estávamos conversando, e ela cobrou: “pensei que crítica sobre os papéis (de gênero) de uma maneira geral, sobre fazer
você não ia mais precisar (risos), ai gente, não sei como lidar com o que se quer com responsabilidade. Então esse foi sempre um
estas expectativas (risos) ”. Neste minuto, parecia que havíamos percurso meu, eu acho que eu comecei a me entender como feminista
passado aquele ano de 2018 conversando e nos conhecendo para a na adolescência, já que eu já sabia que queria Psicologia, já sabia das
entrevista que veio acontecer em agosto de 2019. pautas feministas, eu não me nomeava a partir desse nome, não falava
que era feminista, mas eu sempre fui muito questionadora em relação
às questões sociais, na relação entre homens e mulheres, nas relações
de trabalho principalmente”. Judith lembra que um dos aspectos que
mais a interessa hoje em dia e que sempre a interessou, foram as
relações de trabalho. Considera que as relações de trabalho entre
homens e mulheres são, por vezes, até mais confusas do que as
próprias relações amorosas. Ela salienta que não entende, como
mulher heterossexual, de que modo conseguiremos trabalhar em
equipe, entre homens e mulheres, de uma maneira não ou menos
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opressora e cita sua experiência, narrando algo que observa ao ver estes diálogos de modo mais institucionalizado, em sua grade
que existe um número maior de mulheres docentes nas universidades curricular e ela comenta que a princípio não, o que percebe é que nas
privadas. Já nas universidades públicas, encontramos um número universidades que já trabalhou em duas universidades diferentes em
maior de homens docentes, pelo menos na universidade em que ela São Paulo, em uma, existia certa abertura para que estas questões
trabalha e quando as mulheres estão neste espaço docente público, fossem transversalizadas nas disciplinas, então era esperado da
lutam por relações que sejam minimamente mais transversais. Judith docente que apresentasse discussões sobre tais temáticas na disciplina,
reflete sobre o enunciar-se feminista, o que aconteceu antes de ser qualquer disciplina que ela esteja ofertando. Existia uma preocupação
docente em psicologia e acredita que esta prática feminista atravessou em abrir espaços de debate, de construção com alunas e alunos sobre
sua prática docente em tudo, na pesquisa e nas relações de trabalho. estes conteúdos e teorias. Judith disse que nessa universidade, tinha
Considera importante entender isso, que, como trabalhadora, ao um coletivo feminista formado com a participação de docentes e de
começar a vida docente, não como pesquisadora, já que este também alunas para pensar sobre estas questões dos feminismos. Na outra
é considerado por ela, como algo ainda visto com certo preconceito universidade percebia questões mais pontuais, apresentadas nas
pelos brasileiros, sobre a dimensão da pesquisa enquanto trabalho. semanas da psicologia, onde surgiam debates mais críticos, como por
Ela narra que vivenciou um impacto grande nas suas relações de exemplo, outras pautas progressistas como luta antimanicomial, a
trabalho. Relata que na docência, na prática em sala de aula, sempre psicologia preta, porém mais pontuais. Neste momento, Judith lembra
teve muita sorte de ter uma sensação de liberdade, porque sempre foi que não é mais docente destas instituições e surgem em nossa
coordenada por mulheres e que esta situação possibilitou uma conversação a preocupação com o processo de precarização e
autonomia maior para propor questões de gênero dentro da sala de conservadorismo das universidades, principalmente as privadas, o
aula e em seus planos de ensino. Ela fala que é professora na área de que ela diz sentir diferente nas universidades públicas, apesar de
psicanálise, psicopatologia, ética profissional e que na disciplina de também acontecer e onde as grades curriculares estão mais atrasadas
ética é um pouco mais fácil expor exemplos que apresentem o gênero em relação a propostas progressistas do que nas particulares. É daí
como assunto a ser debatido, e transversalizar questões a respeito de que Judith vê a necessidade das alunas em mobilizar estas discussões
raça, classe e gênero. Já quando a disciplina é psicanálise ou em sala, mesmo que as professoras e os professores não tragam o
psicopatas, disciplinas mais tradicionais, exige um esforço maior para assunto para o debate na formação. Ela acredita que nas universidades
colocar em questão tais debates e fugir da patologização. Defende privadas, apesar do modo paternalista de se fazer ensino, exista um
que o feminismo colabora nessas questões sobre a construção de uma espaço mais desenvolvido e facilitado para tais discussões, uma
formação crítica dentro da sala de aula e que tem facilidade de autonomia maior da docente para propor estes diálogos. Quando
promover diálogos sobre estas questões, porém, quando chega nas pergunto sobre quais diálogos poderiam vir a controlar nossas práticas
relações de trabalho, isso é um pouco mais complicado, o que torna e desejos de propagar o feminismo como movimento de liberdade e
extremamente necessário toda discussão e toda aplicação prática em autonomia na formação em Psicologia, Judith fala que tem certa
relação às pautas feministas que propõe, obviamente, a igualdade dificuldade de responder, porque não trabalha diretamente com as
entre os gêneros e isso vai desde pensar a forma como cada trabalhador teorias feministas dentro da psicologia, que estuda bastante a Butler
colabora com as reuniões de colegiado, a forma como muitas vezes, (mulher que referenciei como seu codinome na pesquisa) para discutir
por exemplo, nas universidades, as mulheres se propõe mais a fazer o sobre questões de gênero e tem um percurso com questões de raça
secretariado, a ata das reuniões e sua organização, e a forma como, lendo Fanon, Lélia González e algumas perspectivas do feminismo
poucas vezes, os homens se prontificam a tais funções. Inclusive não que entende como feminismo na psicanálise. Fala que lendo
esquece de citar a leitura discriminatória que as mulheres fazem psicanalistas mulheres que fazem confronto direto com a questão do
sobre outras mulheres quando estas estão em posições de poder. falo e do masculino na psicanálise, como é o caso da Françoais Dolto,
Falávamos também se Judith conhecia universidades que propõem o que ela pode dizer é que, dentro das suas aulas, a questão de gênero
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e a questão da diferença sexual no sentido da forma como era
entendida na cultura, sempre atravessam o conteúdo quando discute
tais teorias por exemplo em estudos de casos clínicos. Judith lembra
que sempre insere ali uma questão de gênero, discutindo a questão da
mulher, como é que isso é apresentado na clínica e de que forma pode
acarretar certo diagnóstico pejorativo no sentido de uma valorização
moral do diagnóstico em psicanálise, mesmo não trabalhando
diretamente com as teorias feministas. Ela acredita que precisamos
associar estas discussões às relações de poder, ao patriarcado, às
questões de raça, de classe e sobre a forma como elas são apresentadas
para nós, de modo muito naturalizado. Judith continua nossa conversa
defendendo que o feminismo, a partir das suas leituras e principalmente
a partir da prática da sua experiência, coloca em questão uma coisa
muito importante, que é jogar com o óbvio do universal que significa
a gente pensar que existe um universal da concepção de homem. Uma
concepção etnocêntrica baseada numa perspectiva que apresenta
importante crítica sobre esse universal na verdade, um falso universal.
Defende que isso é fundamental para Psicologia, já que podemos
pensar que as formas de sofrimento das pessoas, as formas como as
pessoas vivem, fazem com que a gente entenda que para pensar a
Psicologia não podemos, simplesmente, nos ater às teorias puras e a
forma como elas estão nos livros. “A gente tem que pensar nas práticas
em contextos históricos e nas suas transformações, isso faz um bom
psicólogo é uma boa psicóloga. Uma psicóloga mais estudiosa da
cultura é uma pessoa que vive a sua época e pensa criticamente sobre
ela e o feminismo se faz essencial nesse sentido”. Judith me fala que
em São Paulo está acontecendo um movimento muito interessante de
mulheres se propondo a ler mulheres, ler umas às outras. Diz ser
muito proveitoso porque conseguem perceber o quão pouco lemos
mulheres dentro da Psicologia. Com esta reflexão, terminamos nossa
conversa, lembrando o quanto é, no mínimo estranho, esta escassez
de leitura sobre mulheres, sendo a Psicologia uma profissão exercida
predominantemente por mulheres. E como nos outros encontros, a
despedida é sempre atenciosa: “Acho que é isso. Desculpa a demora e
os espaços nos intervalos grandes entre as nossas conversas. Eu
espero que eu tenha contribuído aí com o que você precisa e depois
quero ver o resultado desta pesquisa. Muito boa sorte e a gente vai se
falando. Conta comigo, um beijo”.
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Michel Foucault ao prefaciar a edição americana de “O Anti idealizadora, de viés autoritário, de precarização das condições de
Édipo” de Deleuze e Guattari em 1977, avisa: “[...] não se apaixonem ensino (notadas com maior intensidade em tempos pandêmicos pela
pelo poder [...] não procurem uma unificação”, e oferece as linhas para dificuldade dos alunos – tecnológica, física, geográfica, financeira e
o bordado deste espaço, sobre a passagem do poder para a potência. social - em acessar as aulas de forma remota e assíncrona), do trabalho
Nelas, o teórico reconhece que, a partir do momento que não nos de professores e de propostas didáticas dialógicas que reivindicam o
apaixonamos pelo poder, tomamos distância do desejo do soberano, lugar da crítica e da reflexão.
da autoridade do colonizador. Mesmo ciente de que somos sim, em
maior ou menor grau, submetidas ao movimento predatório de uma Um (des) governo, que aposta na educação domiciliar para
subjetividade servil, acredito que é possível defender um agir político retroceder ao ensino patriarcal e desvincular-se de sua obrigação
que não esteja baseado na dominação/submissão/ silenciamento do legal de educação como direito do sujeito e dever do Estado previsto
outro, inclusive quando a proposta é realizar a porção analítica de constitucionalmente, militariza escolas atualizando seu discurso
uma pesquisa. ideológico de disciplinarização dos corpos e rechaça as conquistas
dos movimentos sociais, da diversidade e minorias, reinscrevendo
Segundo o teórico, devemos escapar das paranoias totalizantes práticas neoliberais de organização social. Uma política de
e fazer proliferar o desejo, a ação e o pensamento, abrir o espaço para austeridade que gera medo, miséria e violência, que estimula em
o novo, pensar em políticas para fora das formas constituídas, pegar seus discursos internamentos, encarceramentos, exclusão dos
carona em linhas de fuga, produzir alguma coisa que ainda não existe indesejáveis, criminalização das assembleias docentes e grêmios
e que não sabemos o que será, uma maneira contrária de pensar e estudantis e incrementa currículos ultraconservadores de censura à
viver as inúmeras formas de fascismo, da ditadura da razão. formação acadêmica, perseguindo e punindo atos de protesto como
as de exigência de direitos.
Percebendo tais pistas foucaultianas e linhas deleuzianas,
entendo que as narrativas presentes nesta tese, falam do que deve Propostas extremamente temerárias, que respondem aos
ser dito, sobre o óbvio a ser relembrado constantemente e sobre a interesses de mercantilização do ensino e contribuem para aprofundar
preocupação com todas as vidas vividas, como a urgência de se as abissais desigualdades no país. Nada obstante neste momento
construir uma ética potente o bastante para ser a substituta da moral político dramático de extremo retrocesso do campo das políticas
acadêmica vigente, capaz de afirmar a si mesma e a outra, que educacionais, emerge militâncias que riscam os acabamentos
floresce nos meios dos nossos bons encontros, aqueles que pretendem tendenciosos dos sujeitos fascinados pelo poder, borram os contornos
vivenciar em vez de interpretar, como propuseram Foucault, Deleuze desenhados como limites ou fronteiras para o corpo do fora, celebram o
e Guattari em 1977. poder de resistir às colisões provocadas em nossas agendas militantes,
tornando inacabadas, nestes tempos claustrofóbicos impostos por
Em tempos políticos atuais, de apaixonamento pelo poder, diferentes pandemias, as lutas daquelas que nos antecederam.
aqueles descritos por Foucault (2004) como fascínio dos fascistas, os
processos de desconstrução da educação são acelerados, esvaziando Doravante, as narrativas apresentadas na tese são aquelas
o Plano Nacional da Educação, as matrizes curriculares, planos de que aguçaram os ouvidos para o espontâneo e constroem um texto
ensino e provocando o desmonte das políticas públicas, entre elas, colaborativo, implicado com uma série de acontecimentos evocados
as de educação em todos os seus níveis de ensino. A proposta do no momento do encontro, mantendo, assim, a significação artística
Governo Federal do Brasil, representado pela pessoa de seu presidente, de cada vida. Compõem-se na intencionalidade de perceber as vidas
Jair Messias Bolsonaro, apresenta-se com uma carga fortemente experienciadas e contadas para além das estruturas quantificáveis,
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recortadas e fechadas. Isso porque, “[...] o conhecimento que
exprimimos acerca de nós mesmos e do mundo não é apenas um
problema teórico, mas um problema político” (Passos & Barros, 2015,
p.151), ou seja, uma política da narratividade.
Figura 19: Corpos rizomáticos invadindo linhas molares. Foto de Gabriel Brunini. Maringá,
Pr., 2020.
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Isso é libertar a vida de sua cafetinagem, da apropriação da nos dizem a nossa classe, a nossa cultura e também o homem branco,
vida pelo capital, descrita nas linhas de Rolnik (2018) como processo que escrever não é para mulheres como nós? [...] Penso, sim, talvez se
formos à universidade. Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou
de invenção decorrente da inteligência coletiva mobilizada pela
tão classe média quanto pudermos. Talvez se deixarmos de amar as
urgência de enfrentar a perversão do regime em sua nova versão, mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena.
força inventiva e de reapropriação. Processo criativo que nos leva a Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o
driblar o poder do inconsciente colonial capitalístico em suas próprias touro sagrado, a forma. Colocarmos molduras e metamolduras ao redor
subjetividades, que faz com que a vida persevere e ganhe algo de dos escritos. Nos mantermos distantes para ganhar o cobiçado título
novo. Nas palavras de autora: de “escritora literária” ou “escritora profissional”. Acima de tudo, não
sermos simples, diretas ou rápidas (Anzaldúa, 2000, p. 230).
Seja qual for este algo, o que conta é que ele carregue consigo a pulsação
intensiva dos novos modos de ver e de sentir - que se produziram na teia de Trata-se então, da contestação de uma verdade antecipadamente
relações entre os corpos e que habitam cada um deles singularmente -, de enunciada e da tentativa de produzir uma ciência feminista a qual
modo a torná-los sensíveis. Em outras palavras, o que importa é transduzir sugere que os saberes devem ser localizados. Uma ciência com
o afeto ou emoção vital, com suas respectivas qualidades intensivas, em
uma experiência sensível – seja pela via do gesto, da palavra, etc. -, e que
posicionamento crítico, “ a favor de uma doutrina e de uma prática
se inscreva na superfície do mundo, gerando desvios em sua arquitetura da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as
atual [...] Nessa micropolítica, as ações do desejo consistem portanto em conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de
atos de criação que se inscrevem nos territórios existenciais estabelecidos conhecimento e nas maneiras de ver” como escreveu Donna Haraway
e suas respectivas cartografias, rompendo a cena pacata do instituído (1995, p.24), uma crítica mais política do que epistemológica.
(Rolnik, 2018, p. 61).
9 A Parresía é então [...] a coragem da verdade daquele que fala e corre o risco de
dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que ele pensa, mas é também a coragem do
interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ofensiva que ele escuta
(Foucault, 2011, p. 14).
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Linhas de alianças e encrencas anunciam as análises/ comprometimento com a garantia do direito humano à educação de
atravessamentos das sobre as narrativas das colaboradoras da tese qualidade.
quando apresentadas suas intervenções endereçadas às políticas das
ruas. Utilizo o termo que ilustra o título da obra de Butler (2018) Atitudes que minguam os investimentos em pesquisa e
para me aproximar da ideia da estudiosa e referenciar algumas “notas extensão universitárias, a capacitação de docentes, os programas
para uma teoria performática de assembleia” de corpos docentes de bolsas e incentivos educacionais, até aquelas que operam frente
feministas na formação em Psicologia, aquelas que vazam os muros aos dispositivos de conhecimento e regem a erosão dos regimes de
fronteiriços da academia e se infiltram nas ruas através das práticas sensibilidades, subtraindo, assim, a potência da vida.
de estágio, pesquisa e extensão.
As narrativas apontam para tais situações de violência ao
Ao riscar acabamentos, a análise destas linhas investe nos gênero feminino nos espaços universitários, desde o desmérito
“arremates” das narrativas, aqueles sentidos na relação dialógica às pesquisas feitas por mulheres, até a diminuição ou ausência de
entre eu e as narradoras, e ampliam a perspectiva cartográfica de que incentivo para sua participação em eventos dentro e fora do país,
experiências compartilhadas elegem fragmentos de memórias para denunciando os melindres machistas na escolha “de quem tem e quem
serem emaranhados em possíveis fluxos de trocas. não tem crédito” na universidade¹⁰.
Tais fragmentos aproximaram a vivência ao debate no São encrencas que exige destas mulheres feministas mudanças
momento da entrevista, quando comentavam sobre universidades que radicais, exigindo das mesmas que cheguem junto com o acontecimento
já apresentam as teorias e movimentos feministas como proposta de social, político, cultural. Para elas, se o problema é o corpo/gênero,
práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica, ele vira plataforma expressiva de luta e instrumento de propagação
suas discussões sobre quais acontecem na formação em Psicologia, de ideias. Sim, como afirma Frida, uma opção cara marcada por
o que está sendo produzido em pesquisa e extensão em Psicologia várias micro violências e por isso consideradas fenômenos que se
e, principalmente, quais as mulheres que os feminismos enunciam, manifestam como reflexão digna de estudo e pesquisa.
onde nos sequestram e por quais fissuras elas escapam.
Nas políticas das ruas não existe liderança, a lógica relacional
As mulheres artistas/colaboradoras desta pesquisa, representam é horizontal, de articulação e aliança, reconhecendo a importância dos
a potência de criar, ou escapar quando necessário, são corpos em movimentos políticos, incrementados com os pragmáticos. São corpos
aliança, que recuperam o conceito de Judith Butler sobre a palavra transterritorializados, figuração utópica de uma ética vivida como
que intitula sua obra “Problemas de Gênero”, quando traduzida em política estratégica, que opera contra os dispositivos de conhecimento
seu sentido original da língua inglesa, trouble: ENCRENCA. Atitude e de captura de suas potências. Reconhecem, concordando com a
pontual dos feminismos que subvertem identidades, encrenca na qual escrita de Rolnik (2018):
elas estão inseridas, de enfrentamento, de rompimento com a trama
[...] que não basta resistir macropoliticamente ao atual regime e que
cisheteronormativa, das políticas das/nas ruas. é preciso agir igualmente para reapropriar-se da força de criação e
cooperação – ou seja,
Linhas de alianças e encrencas ainda mais necessárias quando
acessam vivências marcadas pelo austericídio imposto pela política 10 Mais uma história necropolítica, caracterizada por Achille Mbembe (2014) como
educacional, econômica e cultural vigentes do Governo Federal de a capacidade do Estado – e de suas instituições, nelas incluímos as universitárias
- de engendrar mecanismos de poder, manifestando estratégias subliminares de
nosso país, ditado por processos de desregulamentação das diferentes submissão, controle, disciplinamento e seu desejo de implantar o medo, o silêncio, a
áreas do ensino, contrária a gestão democrática de controle social e morte, atitudes abominadas por nós.
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atuar micropoliticamente -, reconhecê-lo racionalmente não garante ações As colaboradoras notificam esta carência epistêmica e defendem
eficazes nessa direção [...] tal prática alimenta-se de ressonâncias¹¹ de que tal compromisso intelectual, ético e político, por vezes floresce como
outros esforços na mesma direção e da força coletiva que elas promovem
um ativismo criador de um novo possível nos fazeres pedagógicos,
– não só por seu poder de polinização, mas também e sobretudo pela
aqueles afetivos e emancipatórios, pautado no conhecimento e nas
sinergia que produzem (Rolnik, 2018, pp. 35 e 38).
experiências sociais reais, cientes de que, como falava bell hooks
(2019), não há brecha entre a teoria e a prática feminista, e elas
Não são apenas novas teorias, são movimentos da dimensão acrescentam: não existe Psicologia feminista sem uma pedagogia
utópica de resistência contra a apropriação do capital que converte feminista.
nosso destino ético em potência reativa de submissão, o qual, faz
persistir a perversão do regime colonial capitalístico na sua nova
bell hooks, tece uma crítica aos modos de como a academia
versão, e mantém as subjetividades cativas nessa redução da força
tem pensado suas regras e nos indica dispositivos para dialogarmos
criativa, portadora do perigo de desagregação eminente.
sobre assuntos que interessam às práticas por ela denominadas de
pedagogias anticolonialistas, críticas e de inscrição feminista negra.
É nisso que reside o veneno da micropolítica imanente à cultura moderna
ocidental colonial-capitalística. Seus efeitos tóxicos são a separação No entendimento de hooks, manter uma escrita (pedagogia/prática)
da subjetividade de sua força pulsional de geminação e suas sequelas: “cristalina”, “neutra”, de alcance limitado é o mesmo que reproduzir
estanca-se a potência desejante de criação de mundos nos quais se os sistemas de opressão e se distanciar de seu propósito máximo:
dissolveriam os elementos da cartografia do presente em que a vida se devolver vida a uma academia moribunda e corrupta. Deste modo:
encontra asfixiada (Rolnik, 2018. p. 76).
[...] ficará claro, infelizmente, que as parcialidades que sustentam e mantêm
Esta asfixia citada pela teórica, também pode ser escutada a supremacia branca, o imperialismo, o sexismo e o racismo distorceram
durante as narrativas, quando as docentes relatavam não conhecerem a educação a tal ponto que ela deixou de ser uma prática de liberdade.
O clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural, por repensar os
muitas universidades que oferecem em suas matrizes curriculares, modos de conhecimento e pela desconstrução das antigas epistemologias,
pautas que abarcam temáticas importantes aos feminismos, e que bem como a exigência concomitante de uma transformação das salas
quando possuem, em sua maioria, são propostas como tópicos de aula, de como ensinamos e do que ensinamos, foram revoluções
inseridos em outras disciplinas que, não necessariamente, recebem o necessárias – que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e
nome que as identifiquem. corrupta (hooks, 2019, p. 45).
Elas sabem que, assumir tal aparência explícita de atrever-se a As afirmativas sobre a necessidade do corpo reconhecer-
trabalhar nestas linhas transfronteriças e torná-las acessíveis, quentes, se politicamente situado, reforçavam uma das preocupações das
expressivas de forças livres, exige a dissolução dos planos pré- colaboradoras sobre uma docência feminista descolonizada: a questão
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do conhecimento, apresentado nas narrativas das docentes quando forças que conquistamos novas formas de ser no mundo e encorajamos
discorriam sobre a necessidade de pensar em projetos e currículos o agir onde ainda não se tem acesso. São nessas ações coletivas e
acadêmicos que desejam elucidar a historiografia da colonialidade emancipatórias que se produzem outras epistemes, outras sociedades,
do saber e propor estratégias de reler o estar mulher sem deixar de mudanças capazes de fazer nascer outro futuro.
lado seu enraizamento nas lutas políticas de resistência, militância e
conquistas de direitos. Apesar do objetivo desta tese não ser a discussão
de currículos na formação em Psicologia¹²,não
Mesmo quando verbalizam não trabalhar, diretamente, as posso e nem pretendo desmerecer a influência
teorias e movimentos feministas em suas aulas, as colaboradoras dos mesmos nas narrativas das colaboradoras ao descreverem sobre
reconhecem o quanto estas pautas já estão engendradas nos mais suas ações docentes.
diversos conteúdos programáticos na formação em Psicologia,
como se apresentam enquanto projeto teórico de intervenção sobre a Referencio esta necessidade amparada no pensamento de
realidade e não apenas um modismo acadêmico. Arroyo (2012), quando descreve o currículo como território em
disputa, elemento estruturante da função normatizadora da escola,
Todavia, admitem que não basta reconhecer a importância com potencial de forjar subjetividades e colonizar práticas, mas
destas interlocuções, ou propor suas discussões em práticas docentes também politizado, inovador e ressignificante de práticas docentes.
se a vontade política para descolonizar o corpo e os atos não se
fizer enquanto decisão a ser comungada na vida, acompanhada por As colaboradoras entendem que, assim como nossas ações, o
uma ruptura corpórea e social que precisa alcançar não apenas a currículo também deve ser dinâmico, vivo, mutável, não se constrói
produção de conhecimentos, mas abalar as estruturas aniquiladoras apenas de indicações de teorias ou assuntos pré-selecionados, é
de subjetividades e existências. passível de transformação e reformulação, de acordo com as demandas
sociais e educacionais. Lembram que o ano de 2020 foi o xeque-mate
Acredito que elas concordam com Audre Lorde (2019), quando para a revolução curricular, nele tiveram que reinventar metodologias
defende que seria uma “arrogância particularmente acadêmica iniciar de aulas on-line para responder as exigências de afastamento social,
qualquer discussão sobre teoria feminista sem examinar nossas muitas reformular práticas de estágio e repensar os projetos de ensino,
diferenças, sem uma contribuição significativa de mulheres pobres, pesquisa e extensão acadêmica, desenvolvendo novas tecnologias
de mulheres negras e do Terceiro Mundo, e de lésbicas” (Lorde, 2019, pedagógicas como forma de proteção à vida.
pp. 135-137), sem um sistema de apoio compartilhado, certa conexão
real que tanto é temida pelo poder patriarcal. Comentam que o estar on-line permitiu aos fios condutores
de diferentes conversações se misturarem a diferentes espaços e que
É nesta interdependência entre mulheres que, segundo a interconectadas, acessaram discursos não oficiais, corpos ocultados,
autora, está o caminho para uma liberdade que permite que sejamos vidas que não estão no contexto academicista. Com este propósito,
ativas às/nas causas coletivas. É dentro destas estruturas de diferentes volto a reforçar minha opção por uma escrita barroca, defendendo
que ao produzir um texto relacional/comungado, podemos alterar
12 Sugiro para leitura sobre matrizes curriculares a tese de Danielle Jardim Barreto,
defendida em 2016, pela UNESP/Assis, intitulada: “A (IN) VISIBILIDADE DOS radicalmente o compromisso de falar sobre nós mulheres e intervir
PRAZERES, DAS SEXUALIDADES E DOS GÊNEROS E A PARRESIA NA através de uma pedagogia feminista que não se envergonha de suas
FORMAÇÃO QUEERIZADA EM PSICOLOGIA: Narrativas de outras perspectivas experiências pessoais... “a teoria tem que transformar tal qual água
e experiências docentes”, a qual muito contribuiu para as reflexões das escritas da
pesquisa por mim desenvolvida, que resultaram na tese aqui defendida. viva”, assim instiga bell hooks ao ensinar a transgredir.
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Em sistemas meritocráticos, o espaço permitido às mulheres teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor,
no universo docente foi debatido por algumas colaboradoras, não teremos dificuldade para construir uma luta feminista de resistência
com base nas massas. Não haverá brecha entre teoria feminista e prática
ressaltando o discurso predominantemente masculino do pseudo-
feminista (hooks, 2019, p. 104).
consentimento sobre a inserção da pluralidade de gênero e raça nos
meios academicistas alheios à necessidade desta representatividade
política na universidade. Porém, estes sistemas estão cientes da força Quando as intervenções de extensão universitária
das assembleias. Eles temem a potência de nossas vozes, pois segundo invadem territórios antes mantidos pela colonialidade
Butler (2018), “do saber” e “do ser”¹³, adquirem matéria-prima para
a construção de pedagogias feministas e práticas
[...] o nós vocalizado na linguagem já é representado pela união dos decoloniais e comprovam o seu impacto na transformação social,São
corpos, seus gestos e movimentos, suas vocalizações e suas maneiras produções que transmutam a categorização universal do saber e
de agir em conjunto [...] e algumas vezes “o povo” age por meio do seu tomam emprestada a convicção de Maria Lugones (2014) sobre
silêncio coletivo ou do uso irônico da linguagem; seu humor e até mesmo posicionarmos na perspectiva de fortalecimento das resistências por
seu escárnio (Butler, 2018, p.173). meio da coalizão político teórica entre os múltiplos feminismos, cujas
bases epistemológicas e interventivas apresentam-se em contraposição
Outro desafio que esteve presente nas narrativas, é o de propor à colonialidade. São práticas que florescem nas escrevivências das
certa pedagogia que faça uso de diferentes linhas que almejam vias colaboradoras, rompem a passividade dos bancos universitários e
de acesso, alternativas que investem em planos de visibilidades a convidam a “exorcizar o passado, arrumar o presente e predizer a
todas as lutas feministas e aos movimentos voltados para as massas imagem de um futuro que queremos” como nos ensina Conceição
sem a intenção de ensinar macros saídas, mas de causar enojamentos Evaristo (2009).
em qualquer formação patriarcal colonialista.
Um futuro que tem início no já, que acontece justamente
Ainda, refletindo sobre uma formação em Psicologia que quando o espaço acadêmico é submetido às novas tecnologias
apresente em sua matriz práticas de ensino, pesquisa e extensão comercializadoras de diplomas e certificados, de formações rápidas
feministas, as docentes estão inspiradas por uma produção científica e nada comprometidas com a transformação social, perfeitamente
crítica de teorias e ações sobre a sociedade a partir do lugar de paralelas às oportunidades meritocráticas, inclusive de recusa ou
experimentação de mulheres, apontando para o valor da diversidade minoria da inserção profissional de mulheres em espaços universitárias
destas narrativas e a importância das (os) acadêmicas (os) serem de ensino, extensão e pesquisa.
inseridas em territórios universitários. Neste sentido, a pesquisa e a
extensão universitária, o pé no mundo, tem muito a contribuir. Esta decisão se faz compromisso além de desejo metodológico,
desafio e proposta de ação/intervenção em conversações docentes que
Refletir e agir sobre/com uma produção teórica e prática vão além da formação profissional, alcançam a responsabilidade por
feministas que não distancie psicólogas, docentes, sociedade, vem se práxis emergentes nas experiências subjetivas¹⁴. As colaboradoras
constituindo um dos maiores desafios narrados por estas mulheres, 13 Definições sobre colonialidade do saber e colonialidade do ser podem ser
como nas palavras de bell hooks (2019): encontradas com grandeza de informação em Quijano (2000) e Mignolo (2005)
respectivamente.
Fazer essa teoria é o nosso maior desafio. Em sua produção jaz a esperança 14 Expressão da angústia que me atravessava. “As linhas que se seguem nesse
artigo podem ser interpretadas como uma espécie de suicídio. Preciso então, antes
da nossa libertação; em sua produção jaz a possibilidade de darmos nome de mais nada, expressar a angústia que hoje me atravessa. Vocês compreenderão
a toda a nossa dor – de fazer toda a nossa dor ir embora. Se criarmos que, enquanto feminista, fui formada e passei a compartilhar os conceitos básicos
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percebem que não basta reconhecer a importância destas interlocuções,
ou propor suas discussões em práticas docentes se não alcançarem
todas. Defendem que a interdependência entre mulheres é o caminho
para uma liberdade que permite seu protagonismo, são diálogos
horizontais com diversas particularidades, são como as pistas afetivas
deixadas por Suely Messeder (2020) quando escreve:
Doravante, sigo o caminho didático em deslindar “o olhar, o ouvir e o
escrever” no processo de encarná-los. Declaro que, quando nos detemos
no olhar, somos levados ao sentido da modernidade cujo processo
esquadrinhou o conhecimento nas famosas caixinhas disciplinares [...]
Entretanto, quando abrimos nossos horizontes na perspectiva das relações
de gêneros e sexualidades, somos atravessadas pela interdisciplinaridade,
multidisciplinaridade ou a transdisciplinaridade (Messeder, 2020, p. 163).
que agora quero desfazer. Penso que minha angustia não deve ser menor que aquela
sentida por qualquer mulher que se autonomeie feminista. Não é fácil enfrentar o
monstro, sobretudo quando se descobre que você é parte dele” (Yuderskys Espinosa
Miñoso, 2012). a distância, outra maneira de dizer alhures, as distâncias interpostas entre diversas
15 “Não se poderia dizer melhor do enraizamento dinâmico: o espaço é como um pessoas entram em construção global, da qual os diversos elementos, do mais
fogo que anima, aquece na caminhada, também reconhece o percurso, por isso importante ao mais minúsculo, do mais habitual ao mais estranho, fazem sentido.
mesmo designa um alhures, um outro lugar. O limite só pode ser compreendido em Construção orgânica que não é plena ou positiva, mas integrante do vazio, do oco, do
função da errância, como esta tem necessidade daquele para ser significante. É aí que imaterial, do vento” (Maffesoli, 2001, p. 83).
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Ensaiar outras hipóteses para a vida talvez seja a produção mais Elas reconhecem que precisamos aceitar o modo colonizado
dolorosa de um corpo que necessita de certa reconciliação interna. de estar profissional mulher que se enuncia feminista e que tal
Dar passagem a formas libertárias de recriar-se, exige abandonar o movimento exige do corpo a ruptura com este tempo que nos
óbvio. Reinventar uma existência como obra de arte é acreditar estar toca viver para virem à tona as palavras/movimento, as escritas/
em cena a atriz, autora, agente de práticas insurgentes de resistir, de experimento, as intervenções/invenções de universos insistentemente
estar mulher. criadores/blasfêmicos17. Sem receios de escancarar a precariedade
da vida, as docentes refletem sobre práticas profissionais em tempos
Pronta, ou nem sempre, aos riscos e desafios de estar mulher politicamente sombrios, quando reivindicar a legitimidade do corpo
cartógrafa, busquei na comunhão de forças relacionais algo que cognoscente é firmar um compromisso com redes colaborativas
viesse a se compor durante os caminhos da pesquisa. Segui as pistas na produção de saberes encarnados. Assim elas se reinventam a
de Basbaum (2013, p. 41) quando escreve que, “[...] no processo de partir de uma epistemologia de fronteira, do sul do globo em ato de
descobrimento de como localizar-me neste lugar caótico e instável, temperança18.
vi-me na posição de desenvolver estratégias na direção da invenção
de meios coletivos para intervenção em um circuito particular”, para Durante suas narrativas, as docentes afirmam que a Psicologia
que deste modo a solidão da escrita fosse constantemente inundada e suas recriações decoloniais, reverberam campos plurais de produção
de vozes e se mantivesse andante. científica, cientes do quanto já foi reproduzido daquelas práticas e
teorias banalizadoras da história latina, do epistemicídio causado
Assim a pesquisa proposta por esta tese misturou o mundo pela repetição de verdades que não cabem nas realidades sul globais.
comigo, me entreguei à arte e ao ato de admirá-la em sua polissemia, Criam-se assim, entre-lugares de enunciação dos sujeitos, onde são
pequenez, miudeza como me ensinou o artista brasiliense e amigo produzidos processos permanentes de negociação e tradução do seu
Gê Orthof 16. Hoje eu sei, os corpos nômades como o meu são afeitos cotidiano, dinâmico e atento às diversidades, conectado a outros
às conexões, possuem uma vida intensamente interconectada ao modos de pensar, sentir e dialogar e inspirados no desenho de campos
acontecimento e produzem um conjunto de marcas que representam de produção, sejam epistêmicos, sejam subjetivos.
sua diversidade móvel, o que lhes confere força e potência para criar
vida em qualquer território, inclusive o da pesquisa/intervenção/arte. Referencio que o termo feminismo decolonial proposto pela
argentina Maria Lugones (2014), foi utilizado nesta pesquisa para
sugerir uma Psicologia feminista descolonizada que se apresenta como
Tendências de transformação não só no mundo acadêmico/
possibilidade de engendramentos de saberes periféricos coerentes a
científico, mas de proximidade com as teorias decoloniais, consideradas
nossa realidade cultural, econômica e geopolítica, da miscigenação
um marco de virada para despatrializar a história sobre gênero e
do povo latino, da sua ancestralidade e da história de opressão que
suas intersecções na América Latina. Esta é a uma das intenções
marcam a ação dos saberes colonizadores também na ciência psi.
decoloniais na docência feminista: discutir instituições colonizadoras,
denunciar o modo como oficializam, normalizam o preconceito, a
discriminação e o sexismo, inclusive quando pontuamos a presença 17 A ideia de blasfêmico é utilizada no texto referenciando a perspectiva de Donna
(ou ausência) de mulheres na docência do ensino superior, discussão Haraway (2009), como potente estratégica política de resistência aos regimes
regulatórios de gênero e sexualidade.
esta sempre presente nos encontros com as colaboradoras da tese. 18 “Nem tirano, nem escravo, o indivíduo deveria ser capaz de governar-se a si mesmo
para tornar-se um ser político apto a participar da vida na pólis. Na antiguidade a
vontade de ser um indivíduo ético estava ligada pois, à afirmação da própria liberdade
16 Gê Orthof artista plástico, professor de artes da UnB. Amigo que me ensinou a ver e ao desejo de construir uma vida exemplar, que pudesse ser reconhecida no presente
e sentir as maravilhas das miudezas. e na posteridade” (Foucault, 2004, p. 45).
176 177
Enquanto plataforma política, as colaboradoras percebem a teoria [...] à espreita daquilo que o saber-do-vivo nos indica, do que depende a
feminista decolonial como local de anunciação sobre a importância de força e a astúcia necessária para resistir ao poder da equipe de fantasmas
nascidos da submissão ao inconsciente colonial capitalístico, que ainda
inserir nossas pesquisas às escritas de terceiro mundo, interessadas em
hoje comanda as subjetividades e orienta as jogadas do desejo (Rolnik,
realidades transformadoras pois, mesmo quando amordaçadas, a
2018, p.92).
ciência latina, as escritas feministas e as docentes/colaboradoras
insistem em apresentar outras formas e estilísticas de existência, Apostando na crítica feminista decolonial latino-americana,
afirmando que a Psicologia pode ser nosso “lugar de fala” e subvertê- pontuo o alerta de Maria Galindo (2013), ativista feminista boliviana
la, é nosso dever ético. ao reforçar que quando a universidade se faz membro participante
de comunidades responsivas, vislumbra a formação profissional como
No esgarçamento das fissuras provocadas por resistências,
ferramenta para pertencimento e atuação social, uma relação de
encontrei com docentes sul globais desejantes de transbordamento
entremeio suficientemente potente para manter-se atenta às mudanças
das práticas psi na pesquisa, ensino e extensão e revolucionaram as
sociais.
linhas desta escrita desejante de subjetividades libertárias. Um celeiro
de recordações que mescla as memórias afetivas das andanças do Recontar estas narrativas é uma maneira de arquivar para
doutoramento com a insistência na formação acadêmica aberta, alerta si uma possibilidade de suportar o mundo, de estar encarnada para
e intrigante quanto às suas pretensões de desobediência epistêmica. modificar, ser sujeito autoral no campo problemático da ciência e de
Acredito que mesmo sem saber, elas já praticam a poesia de Carlos reversão de estereótipos e processos enunciativos sobre gênero, raça,
Drummond de Andrade: “Inventem olhos novos ou novas maneiras de etnia e suas tantas intersecções. É utilizar da experiência como recurso
olhar para merecerem o espetáculo novo de que estão participando” estético, tanto de reconstrução teórica como de apropriação de vozes
(Andrade, 1964, p. 506). enunciativas de desobediência, não apenas como contra poder, mas
como potência criativa embasada na cosmo percepção decolonial. É
Compartilhei este verso de Drummond do texto de Margareth
repotencializar os nossos atos de intervenção/criação, para um fazer
Rago (2015, p.3) e divido com a historiadora e filósofa seus
docente voltado às latinidades epistêmicas, o qual não abandona a
questionamentos: “[...] Como inventar esses olhos sem a franca
própria ética polilógica coletivamente construída. Como escreve bell
disposição de reconhecer as limitações do estudo disciplinar ou hooks (2019):
departamentalizado?”. Desta forma, percebo como as colaboradoras
evitam o comodismo/descompromisso de defender um movimento Fazer essa teoria é o nosso maior desafio. Em sua produção jaz a esperança
feminista que seja apolítico, ou uma escrita submissa às formas da nossa libertação; em sua produção jaz a possibilidade de darmos nome
monótonas de esferas científicas que minam a ação criativa de nossas a toda a nossa dor – de fazer toda a nossa dor ir embora. Se criarmos
teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor,
intervenções as quais desejam tangenciar a verdade colonial de modo
não teremos dificuldade para construir uma luta feminista de resistência
subversivo. com base nas massas. Não haverá brecha entre teoria feminista e prática
feminista (hooks, 2019, p.104).
Reafirmamos que a política feminista decolonial 19 é este
campo aberto para estudos e experiências que foram reprimidos, ato Deste modo, estas docentes defendem que a luta é pela
de recontextualização de nossas gramáticas latinas e implicação ética transformação social e não pela transformação individual, mudança
com a força contestatória dos movimentos sociais. Força esta que que acolha o feminismo para 99%, como escreve a filósofa Nancy
Rolnik (2018), nos coloca: Fraser (2019), feminismo que não aposta nas exceções, mas que acessa
espaços onde caibam todas as mulheres. Um manifesto que inicie a
19 VERGÈS, 2020. destruição, ou no mínimo, o enfraquecimento, destas instituições que
178 179
permitem o acesso de uma minoria, o 1% dos feminismos.
No desenrolar das minhas memórias, muita coisa, O texto, as imagens, as canções e poemas que ilustram
seguramente, se transformou dentro de mim. Ao narrá-las, estou estas resistências em suas múltiplas expressões, propõem jogos
expondo um mundo complexo de diversos “eus” articulados,
interdependentes, que convivem juntos em uma mesma partitura
performáticos por meio das narrativas, dão lugar a uma forma barroca²¹
musical que é a minha e a de todos que realizam a aventura de de pensamento/escrita, um maneirismo, que povoa espaços de criação
contar-se (Gebara, 2005, p. 27). e reinvenção de laços solidários, ressaltando a dimensão relacional
tão cara para mim e exercitando o narrar-se como dispositivo de
Este espaço de escrita ou arte, é aquele onde o corpo, produção de si e de alianças.
literalmente, vai passear, dançar, atuar e registrar as “aventuras de
contar-se” como convida Margareth Rago (2013), em sua obra que A escrita barroca tão comum ao meu traço, justifica-se por
leva o mesmo nome. Traz para os parágrafos da tese o movimento ser considerada popular, um engano aos olhos coloniais. Dispositivo
representado pela coletânea dos meus diários²⁰ afetivos, retratados em comunicacional da identidade brasileira e latina que faz uso do
primeira pessoa, instrumentos que nos permitem narrar a si mesmas. jogo de contrastes e valorização dos detalhes para realçar a sua
diferença em relação a escrita vertical, estática, linear e rígida das
Contar-se como ato de compromisso comigo, com o que obras academicamente disciplinadas. Escrita com objetivo relacional,
acredito e com os fazeres cotidiano de estar mulher. É inegável que de feminismos para todo mundo como escreveu bell hooks (2000),
o desânimo para doutorar surgiu em alguns momentos, acredito que parágrafos representativos do lugar da produção de conhecimento no
por ocasião do cansaço ou das obrigações do cotidiano, dos três mundo, já que o tipo de letramento na produção de conhecimento em
turnos de trabalho e daquele que, historicamente, compete, cultura e universidades não é considerado como algo palpável para todas as
historicamente ao gênero somados ao momento da pesquisa de reunir pessoas.
os diários e fazer nascer uma tese.
Para mim, a Psicologia tornou-se profissão em 1997, e
Por vezes, a escrita era mecânica e se perdia entre tantas folhas extrapolou qualquer e toda expectativa desejada pela maioria
rabiscadas e depois jogadas fora por falta de verdade. Outras vezes, daquelas formandas, todas mulheres em minha turma. Esta maioria
relia estas linhas, mas logo arrumava algo para fazer, para adiar o ato sonhava com seus consultórios, com caixas lúdicas e uma agenda de
de comprometer-me com elas. Quantas outras vezes o corpo físico pacientes afoitos por psicoterapia, eu queria multidão. Já no primeiro
assumia uma letargia que adoecia a vida em sua insatisfação ou mês de formada, pesquisei sobre municípios de pequeno número
precarização da potência.
21 Segundo a percepção barroca, a fugacidade, o jogo de palavras, os diferentes tipos
de figuras de linguagem como as metáforas e as hipérboles, são recursos a serem
Porém, a mão inchada e a visão borrada se entregavam à utilizados para chamar e prender a atenção das leitoras. Um estilo de escrita que
recalcitrância da pesquisa desenvolvida na própria vida, que não assumo enquanto entusiasta de textos utilizados como dispositivo comunicacional,
uma ferramenta estratégica de subjetivação que convida a leitora a sentir-se
deixava de acontecer, porque linhas tinham que aparecer. A escrita pertencente. Como escrevem Déia Francishetti e Gustavo de Castro, ‘(...) a partir da
era moderna, a palavra barroco passa a ser usada democraticamente como sinônimo
20 Os diários em pesquisa são um exercício inaugurado no início do século XIX, de engano (italiano: barochio), bizarro, esquisito e rebuscado, ou de forma pejorativa
como ferramenta para estudos que surgem no campo dos acontecimentos, distantes para designar algo ridículo, extravagante, grosseiro, pouco intelectualizado, popular.
dos laboratórios ou territórios formais de pesquisa, propensa, em colecionar vozes de De origem grega (barros: pesado), em português denomina rochedo ou pérola
uma escrita com letras vivas. irregular, barranco, cova, local barrento’ (Francishetti & Castro, 2014, p.40).
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populacional perto da minha cidade, os quais ainda não contavam
com a profissional de Psicologia na sua grade de funcionários.
Figura 26: Ciranda da vida. Grupo de estágio indo embora. Acervo próprio.
190 191
A teoria ganhava carne, respirava entre os livros e artigos Até mesmo as festas acadêmicas recebiam conotação social/
para desenhar as aulas a serem ministradas, produzia rearranjos política, surgiam como zonas de contestação feministas. Criavam-
mobilizadores de intervenções, de processos criativos e relações se corpos resistentes, possuidores de certa insistência interessante
nada anestesiadas, produziam coragem característica das estéticas aos estudos e movimentos feministas de onde era extraída força
feministas decoloniais de atuação, coragem de reinventar-se e para deslocar o olhar do cotidiano e, assim, tornar obsoletos alguns
subverter a lógica do apagamento do gênero em espaços da ciência. universos vigentes, abrindo, literalmente, porteiras para a exposição
de subjetividades estéticas.
As salas de aula não eram mais tão organizadas como aquelas
que um dia estive, as carteiras se aglomeravam em cirandas afetivas,
os sons multiplicavam-se em cada nova descoberta teórica/prática,
vidas respiráveis cantarolavam por corredores e eu sentia que poderia
me reinventar com aqueles espaços acadêmicos... pausa para respirar
e enxugar as minhas lágrimas... ali habitava o meu desejo.
Figuras 30: Ônibus Lilás. Grupo de estágio 2019, UNIPAR. Acervo próprio.
22 O Ônibus Lilás promove o encontro dos serviços públicos com mulheres que
se encontram distantes dos centros urbanos e possuem dificuldade de acesso aos
estabelecimentos de atenção, cuidado e denúncia. Oferece os serviços de atendimento
da rede existente, disponíveis nos casos de violência articulados com os principais
serviços do Sistema de Justiça, Saúde, Segurança Pública, Educação entre outros,
apresentando como característica um caráter permanente, o que favorece o trabalho
preventivo e o atendimento pontual às necessidades apresentadas pelas usuárias do
serviço.
196 197
A Delegacia da Mulher de Umuarama/Pr, se fez parceria para as Mas não só de batalhas se faz a formação em Psicologia ... a arte
intervenções de estágio na formação em Psicologia. Mais um espaço também surgia esnobe, profana, debochada, exigindo performances
para novos conhecimentos, termos ainda não aprendidos por serem do corpo em guerra... Respiramos fazendo arte... A interpretação,
do pertencimento de outra ciência, intervenções que assustavam por o canto, a dança foram artes feministas de existência que não se
seu teor jurídico e disciplinador. restringiram aos movimentos que se autodenominam feministas,
elas estavam sensíveis a qualquer ação social, cultural e política que
anunciassem corpos em fuga da lógica dominante, na sociedade, na
ciência e pesquisa colonizadas.
Aproveitamos as oportunidades para estar juntas, soltar a A transição das práticas ambulatórias para as práticas
língua amarrada, o corpo aprisionado e a voz silenciada. Participamos insurgentes e políticas do feminismo nas barrancas dos rios, nos
de eventos do próprio curso como Jornadas de Psicologia, Aulas barracos das mulheres dos movimentos para a terra, daquelas em
Magnas, mas também ocupando outros espaços universitários território de campo e floresta, exigem compromissos com este outro
(corredores, banheiros, escadas) para deixar recados e/ou protestos. modo de estar mulher no mundo e estendido à docência. Com essas
Ao problematizar a escrita destes encontros e seus tons artísticos, mulheres aprendemos sobre agroecologia e eco feminismo, conceitos
percebo o ato de escrever sobre eles discutido por Deleuze e Parnet encarnados que somam-se aos movimentos de contracultura e
(2004): comunidades alternativas, ampliando nosso processo de formação
política e compreendendo o protagonismo dessas mulheres nas
Escrever é simples. Ou é uma maneira de se reterritorializar, de se
conformar a um código de enunciados dominantes, a um território de
diferentes formas de luta e de enxergar a relação gênero/meio ambiente.
estados de coisas estabelecidas [...] ou, ao contrário, é tornar-se outra
coisa que um escritor, já que, ao mesmo tempo, o que se torna toma-se De acordo com Maria da Graça Costa (2020), a vivência destas
outra cosa que não a escritura. Nem todo devir passa pela escritura, mas mulheres ribeirinhas, índias, do campo, da floresta, brejeiras, vão de
tudo o que se torna é objeto de escritura, de pintura ou de música (Deleuze encontro com certa agenda feminista que, inspirada na cosmopolítica
& Parnet, 2004, p. 60). ameríndia, propõem debates pós-coloniais e decoloniais sobre a
relação natureza/cultura referenciada por epistemes contrárias àquelas
Estas pessoas tinham que aparecer aqui, não apenas como que possuem raízes nos processos colonizadores. Com elas aprendi,
descrição de acontecimentos, mas de pertencimento, de presença em persisti, renasci, porém não a mesma, não tão mansa.
minha vida, sou um sujeito de sorte.
Presentemente eu posso me
Nos colocamos como aprendizes, ouvindo sobre a importância
considerar um sujeito de sorte, destas relações com o rio, com a natureza, com a riqueza de sua
porque apesar de muito moço me ancestralidade. Não tive dúvidas, elas eram a representação mais fiel do
sinto são e salvo e forte. E tenho
comigo pensado, Deus é brasileiro termo empoderamento que eu já havia contemplado. Empoderamento
e anda do meu lado, e assim já não como,
posso sofrer no ano passado. Tenho
sangrado demais, tenho chorado [...] instrumento de emancipação política e social e não se propõe a viciar
pra cachorro, ano passado eu morri ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de dependência entre
mas esse ano eu não morro. Tenho indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de como cada um pode
sangrado demais, tenho chorado contribuir e atuar para as lutas dentro dos grupos minoritários” (Joice
pra cachorro, ano passado eu morri Berth, 2019, p. 18).
mas esse ano eu não morro.
(Sujeito de sorte. Belchior). 23 Intervenções realizadas com população ribeirinha por nossas equipes da ESF –
estratégia de saúde da família – em Porto Camargo, distrito de Icaraíma, noroeste do
Afetamentos diarísticos: para pensar Paraná.
a vida onde ela acontece.
200 201
Figura 34: Nas águas do mar eu vou me benzer, vou me banhar. Porto
Camargo, distrito de Icaraíma/ Pr. Acervo próprio. QRcode: clipe da
música “Nas águas do mar” interpretada por Criolo.
202 203
Estas histórias foram ouvidas nas reuniões acadêmicas, e
transformavam-se, automaticamente, em pauta para as discussões do
grupo da UBS onde atuo, ponto de referência no território. Era preciso
mais, era preciso empoderar os outros tantos espaços onde estavam
aquelas mulheres, não pensando em liberdades individuais, mas Figura 35: Quintas insanas, revoluções íntimas. Encontros
em estratégias para guerrilhas coletivas e ampliação das dimensões para respirar. UNESP, Assis. 2014. Acervo próprio. QRcode:
clipe da música “Revolução”, interpretado por Mulamba.
ideológicas, culturais e geopolíticas. O trajeto era outro...
Era a situação que faltava para entender o que vinha fazer ali.
Era a necessidade de ter alguém, verdadeiramente por perto, como
elo possível de vinculação do meu corpo com o desejo de pesquisa,
com aquele lugar, com todas aquelas vidas... De modo manso, mas Figura 38: Romaria das línguas, das mãos, das lutas
extremamente perspicaz, meu orientador sinalizou que, talvez, a das mulheres latinas. Por ruas de 2019. Acervo
próprio. QR Code: música “Romaria” interpretada por
opção de enxergar-se sujeito nômade nesta caminhada seria um dos Elis Regina.
meus maiores desafios. Novamente o corpo teria que se reinventar,
optar por outros contos...
208 209
Murilo me apresentou ao conjunto teórico descolonizado/
decolonial, aquele do pertencimento da vida e da escrita Sul Global.
Foi ele que, ou me levando pela mão, dividindo almoços ou povoando
as vozes dos e-mails, me convidava para viajar e ir ao encontro do que
eu mais buscava.
Figura 39: O brilho do vagalume. QRcode: Poema escrito e narrado pelo vagalume...
um presente.
210 211
O ato de perambular no tempo e no espaço, simplesmente Deleuze e Parnet (2004, p. 38): “O que conta em um caminho, o que
contemplando, manteve o corpo unido com a bagagem teórica, estética conta em uma linha é sempre o meio e não o início e nem o fim.
e relacional, povoadas pelo espaço que cheguei, fiquei ou decidi sair. Sempre se está no meio do caminho, no meio de alguma coisa”.
Algumas vezes sozinha, outras muito bem acompanhada, vagava
alegremente, enquanto os olhos atentos às miudezas encantavam-se O meio movia, aceleradamente, a vontade de continuar
com cada nova entrada, com rama, com o mínimo e o múltiplo. Tudo ganhava velocidade e intensidade, criando-se em zonas de vizinhança,
faria parte da história deslocante de uma história, não apenas de uma zonas de passagem, de potência e vibrações, experiências novas do
tese. movimento de desterritorialização disposto ao inacabado, longe de
ser signo da falta, mas da possibilidade de invenção, do pulsante
Nos locais de afetação, ou perturbação, conheci docentes fluxo nômade.
que propuseram rodas de conversa em suas participações durante
mesas de debates e conferências, contavam sobre suas experiências Ali, novamente, encontravam-se sujeitos encarnados...
na formação em Psicologia, relataram intervenções no ensino, na atuantes mesmo nos pequenos espaços, lugares de ações políticas
pesquisa e extensão e aquelas linhas faladas criavam os corpos transformadoras, resistentes às forças opressoras do Estado e aos atos
imaginários/possíveis desta pesquisa. Não era apenas curiosidade, era de violência. Afiávamos nossas línguas, todas as línguas, e o corpo
aprendizado e compartilhamento. militava coletivamente, mesmo quando não ocupavam o mesmo
pedaço de solo. Lembrava do aviso de Deleuze e Parnet (2004) ...
Entre elas estavam muitas das mulheres que aceitaram escrever devemos ser bilíngues:
esta tese em várias mãos e línguas. Criamos relações que vão além das
acadêmicas ou institucionais, eram da ordem da alegria, da esperança Devemos ser bilíngues mesmo em uma única língua, devemos ter uma
e do valor de nossas militâncias. Era onde eu queria estar e levar as língua menor no interior de nossa língua, devemos fazer de nossa própria
outras mulheres que pretendiam a experiência. Acionei expectativas, língua um uso menor. O multilinguismo não é apenas a posse de vários
sistemas, sendo cada um homogêneo em si mesmo, é, antes de tudo, a
convidei para trabalhos, fomos ouvir juntas e nos mantivemos unidas linha de fuga ou de variação que afeta a casa sistema impedindo-o de ser
umas às outras... e isso era bom. homogêneo. Não falar como um irlandês ou um romeno em uma outra
língua que não a sua, mas, ao contrário, falar em sua língua própria como
A pesquisa esticava os braços nos abraços latinos... o corpo um estrangeiro (Deleuze & Parnet, 2004, p. 12).
forasteiro foi presenteado por viagens oportunizadas pelos ensaios da
tese e os estímulos do orientador “luminescente”, que, mesmo estando Somos o menor, justamente por não ser parte do mesmo, por
do outro lado do continente, lembrava-me sobre as delícias da vida não defender os discursos pronunciados por políticas enrijecidas e
vivida, do corpo aberto ao campo, e da necessidade da pausa para da tradição hegemônica. Maior é aquele que sustenta a política de
contemplação dos mirantes... pesquisa em devaneio, em desespero, dominação e colonização. Defendemos o contrário, somos o fluxo
por vezes em arrependimento, medo e sofrimento, mas transitória, incessante e a potência de não seguir o imposto. O menor não tem
em escrevivências, sem forma definitiva... em devir. Desembestei na padrão, nem modelo, está em construção contínua.
anunciação do devir-mulher abraçadeira!
Vagando a vida ao próprio acaso, emergiu e ainda insiste
Era o devir como processo de desejo, como processo de a presença de uma pandemia, algo que veio avassalar o mundo e
aproximação, afetos e perceptos atravessadores da vida em revolução, intrigar nosso desconhecimento sobre sua velocidade de contágio e
no entre que é espaço da fronteira, acreditando que, conforme escrevem mortalidade, um vírus transformador de existências, de costumes, de
212 213
economias, de modos de estar e distintas possibilidades de sobreviver. grupo de estudo, centro de pesquisa. Não dei conta, adoeci... nada
Algo que obrigou, o ritmo da vida, a diminuir o passo, a mudar rotinas, existe fora do corpo...
descobrir outras formas de cuidar do corpo, do outro, das relações e
recriar espaços respiráveis. Eu sabia, a cura era estar com. Pensei, se a escrita desta tese
tem como proposta ouvir narrativas de outros possíveis, contações
O Coronavírus (COVID 19)²⁵ alterou, muitos dos fluxos e conversações de mulheres docentes feministas em suas práticas
desejados, para um ano que fora pensado para ser de alta produtividade, descolonizadas, apresentando estas histórias como obra de arte, são
no estar pesquisadora com as viagens, congressos e escritas de artigos nelas, nas artes e nos encontros que vou respirar. Fui atrás de sarar, de
programados para os últimos anos do doutoramento, a pandemia me benzer, de me entregar, me amparar... encontrei abrigo, repouso,
exigiu um retrocesso. Estive mais em casa... a atividade profissional afago nestes coletivos reinventivos de vidas.
continuou, mas de forma nunca pensada, eu estava atrás de uma tela,
com pequenas imagens dos rostos dos acadêmicos, imóveis, que se Agora, a ideia era desenvolver práticas vivíveis como modus
manifestavam por ferramentas eletrônicas, endereços de e-mails, operandi para sobreviver, continuar, criar trânsito livre para o
links, meets, chats... nada respirava, apenas resistiam e insistiam, exercício micropolítico dilatante de sensibilidades, potencialidades
heroicamente à consequência daquela pandemia em nossa relação. ou cura do corpo através da produção de afetos e de uma pesquisa
mais ensaística, do que uma dissertativa científica naturalizada.
O mesmo acontecia com a práxis em saúde pública da qual
tive que me afastar e realizar atendimento psicológico on-line²⁶. Era
a própria Psicologia se reinventando para intervir de modo ético e
comprometido aos acontecimentos que circundavam a vida, onde ela
precisava de atenção. Novos protocolos, outros contatos, diferente
maneira de manter o sigilo e o compromisso da profissão.
Os parágrafos finais desta pesquisa que evoca a Por isso, os diálogos que emanam destes parágrafos poetizam
valia de narrativas feministas na docência, não tendem tentativas feministas de reinventar outros modos operantes de
unicamente a propagação da afirmativa sobre a importância aprendizado e ensinamentos na formação em Psicologia, por onde a
dos estudos de gênero como categoria analítica na vida criativa sempre arruma um escape, descentralizando o sujeito
empreitada acadêmica. Muito menos a necessidade de cumprir a tarefa normativo/clássico imposto ao gênero e os argumentos colonialistas
interpretativa e de prescrição de soluções analíticas aos problemas reproduzidos por ele³⁰.
apresentados por esses debates. Pretende sim trazer os encontros
alegres como fonte de combustão dialógica em direção à vontade A formação em Psicologia Feminista pretende ser um dispositivo
coletiva de acrescentar outras dimensões ao estar mulher propostas que parte da premissa de que a experimentação extramuro extrapola
pelas teorias e estudos feministas decoloniais. ao ostracismo do excesso de aulas teóricas e intermináveis leituras
sem reflexão. Ela prima por conhecimentos produzidos a partir
Tais propostas são percebidas como um convite à recalcitrância do convívio, em luta pela preservação dos direitos das populações
(de escritas que não temem declarar o seu lugar de enunciação e identificadas como inferiores, locais de vivência de corpos psicólogas
se desdobram para além do léxico regulador da ciência), como um que permitem o ecoar dos sons emitidos por línguas desejantes
fazer de alteridades, que encontrou no fluxo dos encontros, redes de de espaços audíveis, vidas anunciantes de efeitos inspiradores de
afetos que burlam a continuidade histórica e colonial, ganham força, revoluções cotidianas.
celebram alianças, comprometendo-se com o que foi vital para a
Uma Psicologia proponente de produções científicas que acionam
pesquisa, “estar no entre” para validar a experiência como arquivo.
30 “Se a interpretação dessa realidade envolve entendermos como a matriz de opressão
Aventurou-se entre as artes, pois tinha a intenção de se atua em nossa própria vida, como somos afetadas por opressões como o racismo, a
heterossexualidade, o colonialismo e o classismo, com suas expressões estruturais,
aproximar da percepção de Conceição Evaristo sobre linhas não ideologia e aspectos interpessoais, então esse trabalho não é sobre categorias
solitárias, desejante de uma escrita onde as sensações ficassem analíticas, e sim sobre realidades vividas que precisam de uma compreensão profunda
suspensas no ar, onde a palavra nem sempre daria conta de alcançar acerca de como foram produzidas. Portanto, não é necessário dizer que somos negras,
pobres, mulheres, trata-se de entendermos por que somos racializadas, empobrecidas e
29 Concordando com Suely Messeder (2020, p. 167): “Nesse sentido, para sairmos sexualizadas. É isso que nos interessa, enquanto feministas decoloniais, porque assim
da episteme colonizada, possivelmente teremos que investir em nossos olhares conseguimos mostrar que essas condições foram produzidas pela colonialidade”
epistêmicos eurocêntricos e nos compreendermos como seres no mundo marcados, (Curiel, 2020, p. 132).
em nossa pele e sangue, por uma política do conhecimento racializadas, classista e 31 Apostando na escrita de Deleuze quando afirma que: “[...] pessoas fortes não são
heterossexista que nos invade com seus tentáculos tirando-nos a possibilidade de nos as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente” (Deleuze, 1992, p.
situarmos em saberes localizados, também comprometidos com a dignidade humana”. 63).
222 223
saberes conectados com modos plurais de existência invisibilizados aposta radical que nos leva à militância revolucionária e a práticas
no dia a dia, perspectivas que se destacam por falar sobre, com e a discursivas efetivamente comprometidas com as lutas contra toda
partir de nós. Construímos assim, outros desenhos que avisam sobre forma de opressão, violência e controle biopolítico de nossos corpos.
a importância de manter-se atenta e sensível ao caráter transitório
do acontecimento, armadas para os diálogos conflitantes entre os Estamos comprometidas a inscrever e a escrever sobre
saberes dominantes o os conhecimentos periféricos que valorizam as Psicologias destas outras diásporas, as geográficas e as militantes, as
fronteiras³¹ e suas existências mutantes. implicadas com o significado do verbo obligare... unir para nós... Haja
coragem, entrega, desobediência ... eu, ainda ensaiando tais ousadias
Reforço que não foi a intenção desta pesquisa articular a tarefa libertárias:
moral e disciplinar de oferecer as respostas sobre o como fazer uma
Psicologia transformadora, descolonizada/decolonial, de anunciar os A liberdade não é uma palavra vã. Se ela se encontra no fim do arco íris, sua
modos de intervir libertários, tidos como eficientes ou desejantes. conquista é o caminhar crítico da construção de mim, que me leva aonde
A intenção foi apostar na reflexão coletiva sobre o narrado pelas nunca fui, que me afasta daquilo que não serei nunca mais, livre, porém
colaboradoras como propostas inventivas à formação acadêmica em das servidões biossociais. É assim que concebo a estética da existência: a
Psicologia, como estas docentes que se enunciam feministas escapam produção crítica de mim, enquanto sujeito político e histórico, transitando
da ação disciplinatória e colonizante dos modelos impressos nas em temporalidades e lugares inusitados, quebrando os grilhões do natural,
da sexualidade compulsória, das novas servidões que se anunciam ao criar
matrizes curriculares, refletem sobre planos de ensino contestadores nossos corpos (Tânia Navarro Swain, 2008, p.301).
e referenciam suas teorias com a perspicácia de uma clandestina
andante em sua própria nação.
Teimo, porque sei que somos arte em ato, expomos a vida a favor
Corajosas ao nomear os incômodos da prática docente da liberdade e no ato de inscrever o corpo no plano do conhecimento,
e orgulhosas da transformação acadêmica promovida por da realidade vivida, estamos implicadas com a construção de uma
outros modos de formação atentos à vida onde ela acontece, escrita/pesquisa que atravessa a vida e nos remete ao devir. Uma vida/
as colaboradoras desta tese verbalizam uma ética peculiar pesquisa norteada pela ética da bem querência, na qual conhecimentos
contra ações de injustiça e exclusão, desbravam os caminhos são corporificados de forma generosa e sensível.
de uma viagem arriscada, desfrutando do inesperado para lidar
com os desafios de serem parresiastas. A parresiasta precisa de A sugestão do título desta tese diz sobre minha “ad/mira/ação por
certa porção de coragem, já que sua verdade responde, igualmente, mulheres docentes feministas e suas práticas descolonizadas na formação
às práticas políticas e de cuidados de si e denunciam modos cínicos em Psicologia”. Acrescentar o termo descolonizadas para enunciar
de ser, ao escolherem uma vida como “escândalo da verdade”³² os chamados da tese foi algo inquietante inicialmente. Era difícil
constituintes das artes do viver. Parresia como a verdade dita sem reconhecer os perigos de transitar por diferentes mares (perspectivas)
medo, eminentemente política. teóricos, era temerosa a ideia de abandonar conceitos íntimos de
escolhas profissionais e angustiante ler os questionamentos de Heloisa
De acordo com Foucault (2011), para que haja parresia é preciso Buarque de Hollanda (2020) na introdução de seu livro “Pensamento
que se enfrente o riso de ferir o outro, irritá-lo, deixá-lo com raiva. É feminista hoje: perspectivas decoloniais”, após conhecer de forma tão
um risco de violência contra a própria existência, mas também uma afetiva e afetante as obras de feministas latino-americanas, caribenhas,
chicanas, africanas.
32 Michel Foucault descreve parresia em “A coragem da verdade. O governo de si e
dos outros” (2011). Quero sinalizar que, quando trago o termo descolonizado,
224 225
proposto no título deste trabalho, aponto para o processo histórico versejar o âmago das coisas”, permitam-se ouvir as encantadorias
de “deixar de ser colônia”, superar o imaginário colonial e a lógica das divindades que nos antecederam e daquelas que estão na roda,
da hierarquia de saber, poder, raça, gênero, classe historicamente aquelas compartilham ensinagens do cotidiano e curam pelo afeto.
instituídas sobre nós mulheres/pesquisadoras latinas. Fazer uso do
termo descolonizar, não é excluir ou negar as participações da cultura Subverter este epistemicídio e suas estruturas opressoras é
branca e eurocêntrica, mas entender o processo de modernização uma das, entre tantas, intenções de profissionais críticas, políticas
dos povos latinos como algo urgente para sua autonomia em todas as que não devem e nem querem se furtar da tarefa de intervir a favor
experimentações da vida, inclusive da vida que acontece na ciência e destas novas Psicologias Feministas descolonizadas/decoloniais. É
na pesquisa. um andar na contramão da (re) produção de necropolítica e defender
uma ciência estética quanto ao seu compromisso e transformação
Particularmente, optei por utilizar os dois termos, descolonial/ social, aquela que retira da língua narrada e vivida o sujeito oculto
decolonial, já que, quando considerado o termo decolonial enquanto por antigas epistemes.
perspectiva teórica, este remete à inflexão de escritoras, artistas,
estudiosas, teóricas latino-americanas, que pensam na perspectiva Certa de que não há uma única forma de produção de
pós-colonial a partir da América Latina, utilizados como espaço conhecimento, mas sim, um campo multidisciplinar e diferentes
teórico dialógico para nossas conversações feministas descolonizadas. maneiras de produzi-lo e com ele se comprometer, pretendemos
Catherine Walsh (2009) sinaliza que não é a ideia de superação colonial estar engajadas com perspectivas transformadoras da realidade,
que estamos propondo, mas sim, a constatação de que o colonial ainda coreografando cirandas afetivas de nossas próprias histórias,
é atuante, pulsante em nós. Sendo assim, precisamos nos posicionar assumindo assim, a dimensão ética do cuidado de si como exercício
de modo crítico e pensar sobre epistemes em rede aberta, aquelas de vidas iridescentes.
emergentes de espaços de prática e envolvimento coletivo contínuo.
Revisitar as narrativas destas mulheres fortaleceu minha auto
Ao pontuar o interesse da pesquisa referenciando as teorias inscrição enquanto “povo no mundo”, onde transito como mulher e
pós coloniais e decoloniais, cito a argentina Maria Lugones (2014), docente feminista na formação em Psicologia. São escritas vividas,
quando escreve que o feminismo descolonial é a possibilidade de tornam a voz-escrita em voz-ação, impulsionam o corpo a “[...]
lidar com a superação da colonialidade de gênero como uma prática conhecer umas às outras como entes que são densos, relacionais, em
que nunca se finda, sendo necessário colocar em pauta as lutas de socialidades alternativas e alicerçadas nos lugares tensos e criativos
todas as mulheres, principalmente aquelas não contempladas pela da diferença colonial” (Lugones, 2014, p. 942), oferecendo fôlego
opressão colonial e, até mesmo, por certos feminismos globais. Mas extra a dimensão relacional de nossas histórias.
é preciso avisar a leitora que o objetivo não é escolher uma vertente
teórica, e sim, vislumbrar a força dos feminismos em suas múltiplas Mesmo com muito receio do que está por vir de um ano
perspectivas e interseccionalidades, desassossegar o corpo acadêmico eleitoral no Brasil, onde o atual presidente ameaça o impedimento
e produzir críticas ao status quo da ciência. de uma nova eleição – um novo golpe - caso o ato retroativo do voto
impresso não seja repensado e escolhido como método de “escolha
Portanto, agora que pretendo encerrá-la, sugiro que leiam democrática”, esta tese espera por seu momento de florescência. Ela
Conceição Evaristo (2017, p. 121) quando ela escreve: “quando eu quer ser lida e espera que o passeio entre páginas, parágrafos, fotos e
morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar poemas, propicie bons encontros e, que a cada visitação, o momento
entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim passe lento, para que a leitora possa sentir seus sons, cores e texturas,
226 227
entregar-se e estar mais próxima daquilo projetado na vida como arte
da existência em luta, de bem querência.
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Belo Horizonte: Editora UFMG. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UEM Universidade
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enquanto profissionais feministas em suas práticas de intervenção,
Vergès, Françoise. (2020). Um feminismo decolonial. UBU Editora. ensino, pesquisa e extensão.
Solicito que a entrevista seja gravada para que possa ser resgatada
Walsh, Catherine. (2009). Interculturalidad, estado, sociedad:
qualquer informação que seja possivelmente perdida apenas com a
luchas (de)coloniales de nuestra época. (Conferência apresentada
escrita, sendo destruídas após a redação das mesmas e garantindo
no Seminário “Interculturalidad y Educación Intercultural”, Instituto
total anonimato de sua pessoa e informações por você oferecidas, já
Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz). 2009.
que referenciaremos um grupo profissional, o coletivo, não apenas
Quito: Universidad Andina Simón Bolivar; AbyaYala. Disponível
um sujeito. Após serem redigidas, as entrevistas serão enviadas às
http://www.derecho.uach.cl/documentos/Interculturalidad-estado-
participantes para ampliação, sugestão ou retirada de porções do
ysociedad_Walsh.pdf
texto que considerarem importantes.
238 239
Objetivando o aprimoramento do diálogo sobre formação em 6) De que forma o feminismo também poderia revolucionar a
Psicologia, uma Psicologia feminista, crítica, reflexiva e política, Psicologia influenciando as leituras, práticas e processos de
acreditamos que as publicações de seus resultados fortaleçam os militância na academia?
dispositivos legais e éticos da prática da Psicologia. Ao me conceder
esta entrevista, preciso de sua autorização para utilizá-la em meu APÊNDICE II – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
trabalho. (TCLE)
5) Como você analisa o que está sendo produzido de pesquisa, Será realizada uma entrevista com duração média de 90 minutos. A entrevista
ensino e extensão pela Psicologia Feminista? Quais poderão não possui roteiro pré-definido e deverá seguir como um diálogo aberto para
ser os efeitos deste movimento de escape do colonizado pela explorar aspectos relacionados as suas práticas docentes de ensino, pesquisa e
extensão na formação em Psicologia. Você pode se recusar a responder a qualquer
formação em Psicologia?
pergunta. A entrevista será áudio-gravada e posteriormente transcrita na íntegra.
240 241
No ato da transcrição, informações como seu nome e outros dados que possam IV. Liberdades/Garantias
lhe identificar serão alterados de modo a preservar o anonimato de sua identidade.
Após a realização de todas as entrevistas, será composto um conjunto de narrativas Você possui total liberdade para recusar-se a participar desta pesquisa ou para
que apresentam os principais aspectos que apareceram nas entrevistas. Estas retirar o seu consentimento, a qualquer momento, sem penalização ou prejuízo
narrativas lhe serão apresentadas para leitura juntamente com a solicitação de ao seu cuidado. Você possui total liberdade de não responder às perguntas ou
duas tarefas: (1) destacar no texto os trechos que gostaria de negociar a alteração, não participar de momentos que possam causar-lhe constrangimento de qualquer
seja porque se reconheça demasiadamente vulnerável neles ou porque discorda natureza.
dos efeitos que ele produz na narrativa e (2) redigir uma resposta às narrativas
que inclua seus pensamentos, sentimentos e questionamentos suscitados pela
leitura. A partir de uma negociação com você e os demais colaboradores, suas V. Sigilo/Anonimato
respostas poderão compor o relatório final da pesquisa. Também apresentaremos
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido recolhendo para tanto sua A sua participação é sigilosa, ou seja, as informações prestadas são
assinatura e sendo entregue a você uma cópia deste termo de Consentimento Livre restritas ao desenvolvimento da pesquisa e, em hipótese alguma, sua participação
e Esclarecido. A qualquer momento estará livre para se retirar do estudo, sem na mesma será motivo de divulgação na mídia. Garantimos o sigilo das informações
quaisquer penalidades. Receberá esclarecimentos sobre a guarda e manutenção coletadas no que diz respeito a preservação de seu anonimato. Respeitamos a sua
das gravações as quais serão utilizadas apenas para releitura das entrevistas. A privacidade, mantendo em segredo as suas informações pessoais no decorrer da
entrevista semidirigida organizada por mim enquanto pesquisadora e por meu pesquisa e após a conclusão desta.
orientador tem o intuito responder as nossas reflexões sobre o tema proposto nesta
pesquisa. VI. Despesas/indenização
III. Riscos/Desconfortos e Benefícios Não haverá qualquer despesa, ônus financeiro ou risco físico aos
participantes relacionados aos procedimentos desta pesquisa. Caso o participante
A participação na entrevista pode gerar desconforto psicológico em você por apresente desconforto psicológico decorrente da abordagem do tema da entrevista,
abordar temas relacionados a sua intimidade, formação profissional e práticas a pesquisadora, que é também é psicóloga, se responsabilizará em oferecer
docentes. Caso isso aconteça poderemos interromper a entrevista. Caso o acolhimento psicológico.
desconforto permaneça a pesquisadora se responsabiliza em oferecer acolhimento
psicológico. Você pode se recusar a responder qualquer pergunta. No decorrer da
pesquisa, todos os procedimentos serão esclarecidos antes de serem realizados. VII. Publicação
Os benefícios esperados com essa pesquisa incluem três dimensões. Na primeira Informamos que o resultado final da pesquisa poderá ser publicado
delas dedica-se a reflexão sobre a possibilidade da formação de psicólogas em revistas científicas da área, ou livros, colaborando, assim, na construção
feministas. Em segundo lugar, contribui com a construção de argumentos que do conhecimento teórico-científico e na melhoria na viabilização da gestão e
problematizam o modo como o modelo colonial de formação em Psicologia, oprime assistência na área desta pesquisa.
formas diferenciadas de docência, pesquisa e extensão de mulheres feministas.
Finalmente, a discussão pretendida poderá contribuir com a reflexão acerca do
modo como, os movimentos e teorias feministas, tem construído e revisto suas
pautas em defesa de ações militantes a favor do respeito aos direitos de toda mulher,
de denúncia as diferentes formas de violência de gênero e de preocupação quanto
a formação de psicólogas feministas que resistem aos processos de colonização de
seus corpos e saberes.
242 243
CONSENTIMENTO
Eu, _________________________________________________
_________,RG: __________________, abaixo assinado, concordo em
participar voluntariamente da pesquisa intitulada “Ad/mira/ação: mulheres
docentes feministas e suas práticas descolonizadas na formação em psicologia”,
desenvolvida pela pesquisadora Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini, sob
orientação do professor doutor Murilo dos Santos Moscheta. Fui devidamente
informada e esclarecida sobre os objetivos da pesquisa, seus procedimentos,
assim como sobre os possíveis riscos e benefícios decorrentes de minha
participação. Foi-me garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer
momento, sem que isto leve a qualquer penalidade. Declaro, ainda, que ( )
concordo / ( ) não concordo com a publicação dos resultados desta pesquisa,
ciente da garantia quanto ao sigilo das minhas informações pessoais e ao meu
anonimato. Em caso de dúvida:
Quaisquer dúvidas com relação à pesquisa poderão ser esclarecidas com a pesquisadora,
Local e data: ______________, _____ de ____________ de ________. conforme os contatos abaixo informados:
E-mail: [email protected]
Quaisquer dúvidas com relação aos aspectos éticos da pesquisa poderão ser esclarecidas com
_______________________________________________ o Comitê Permanente de Ética em Pesquisa (COPEP) envolvendo Seres Humanos da UEM,
no endereço abaixo:
Assinatura do participante da pesquisa
Av. Colombo, 5790, PPG, sala 4, CEP 87020-900. Maringá-Pr. Fone: (44) 3011-4444,
e-mail: [email protected], site: http://www.ppg.uem.br/index.php/etica-biosseguranca/copep
Eu, Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini, pesquisadora, obtive de forma
voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido da profissional para a
participação na pesquisa.
______________________________________________
Assinatura do Pesquisador Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini
244 245
APÊNDICE III. Número do Protocolo de aprovação do Comitê de
Ética