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Tese Barbara Brunini

A tese de Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini explora as práticas descolonizadas de mulheres docentes feministas na formação em Psicologia, enfatizando a importância de diálogos que desafiem as relações de poder na academia. A pesquisa utiliza a cartografia como metodologia para coletar narrativas de dez professoras, destacando a necessidade de espaços de fala para mulheres latinas no contexto acadêmico. O trabalho visa celebrar a diversidade e a criatividade na docência, propondo uma reinterpretação das experiências feministas na educação.

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Tese Barbara Brunini

A tese de Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini explora as práticas descolonizadas de mulheres docentes feministas na formação em Psicologia, enfatizando a importância de diálogos que desafiem as relações de poder na academia. A pesquisa utiliza a cartografia como metodologia para coletar narrativas de dez professoras, destacando a necessidade de espaços de fala para mulheres latinas no contexto acadêmico. O trabalho visa celebrar a diversidade e a criatividade na docência, propondo uma reinterpretação das experiências feministas na educação.

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BÁRBARA COSSETTIN COSTA BEBER BRUNINI

Ad/mira/ação: mulheres docentes feministas e suas práticas


descolonizadas na formação em Psicologia.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual
de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de
Doutora em Psicologia.

COMISSÃO JULGADORA
Ficha Catalográfica

B896a Brunini, Bárbara Cossettin Costa Beber.


Ad/mira/ação: mulheres docentes feministas e suas práticas Prof. Dr. Murilo dos Santos Moscheta
descolonizadas na formação em psicologia / Bárbara Cossettin PPI/Universidade Estadual de Maringá (Presidente)
Costa Beber Brunini. – Maringá : Universidade Estadual de Maringá
UEM, 2022.
130 f.

Orientador: Dr. Murilo dos Santos Moscheta. Profa. Dra. Daniele de Andrade Ferrazza
Tese (Doutorado) - Universidade Paranaense – UNIPAR. PPI/Universidade Estadual de Maringá

1. Docência. 2. Psicologias feministas. 3. Descolonização


acadêmica. I. Universidade Paranaense – UNIPAR. II. Título.

(21 ed) CDD: 150 Profa. Dra. Roberta Stubs Parpinelli


DFE/ Universidade Estadual de Maringá

Bibliotecária Responsável Inês Gemelli CRB 9/966

Profa. Dra. Luciana Kind do Nascimento


PUC/Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Profa. Dra. Suely Aldir Messeder


UNEB/Universidade do Estado da Bahia

Aprovada em: 18 de abril de 2022.


Defesa realizada por vídeo conferência.
17 de dezembro de 2017 ...
(DATA DA APROVAÇÃO NO DOUTORADO DA UEM)
Bem, chegou a minha vez de fazer uma carta de recomendação. Uma carta para
minha futura doutora, essa que vi tentar muitas vezes, que saiu de provas de cabeça
baixa porém nunca desistiu. Foram, literalmente, anos insistindo, anos indo para
a UEM ao ponto de que eu aposto que eles já sabem quem ela é. Pois bem, chegou
sua hora, sua aprovação e por mais curioso que seja ela chegou num momento
inesperado, contudo mais do que merecido, comemoramos nossas vitórias do ano
no mesmo dia!! Bem mãe, só tenho a dizer que desejo muita sorte nesses próximos
anos que virão, que você seja estupidamente feliz no que pesquisa, que aproveite os
descansos quando eles acontecerem, que encare cada má notícia como um desafio a
continuar, assim como você fez nesses anos (e como vimos, funciona). Recomendo
que estude muito, porém que tenha tempo para você. Que faça várias viagens a
trabalho, mas que sempre tenha uma família a quem retornar. Que conheça novas
pessoas e continue brindando com as antigas, ame, ria, chore, comemore, estude,
conquiste. Te amo muito mãe e vibrei bem mais a sua vitória do que a minha pois sei
o que você passou e o quanto isso significa para ti. Fique sabendo que estarei com
você nesses próximos anos, dessa vez até mesmo mais perto! Kkkkk te amo, mais do
que você imagina, mais do que você cogita. Beijos. Gabriel Brunini
(Filho, confidente, conselheiro).

Eu era... linha, rascunho, tinta, borrão, ensaio, corpo


solitário, vagante, entre os tantos entres daquele
lugar... mas havia uma multidão comigo, em mim...
vozes sussurrantes que moviam a carne, esquentavam
o sangue e encantavam a mente... eu sou do toda...
(desabafo em 2019).
CATÁLOGO

VIDAS INVENTIVAS E ANÁRQUICAS: A IMPREVISIBILIDADE 12


DE UMA ESCRITA DESLOCANTE
ESPAÇO I: O DESALOJAR DO CORPO E SUAS BRICOLAGENS 20
NO PROCESSO DE CRIAÇÃO CARTOGRÁFICA
... Foi ali, no entre 22
Com/versa/ações: admirando falatórios que alimentam e fazem a vida pulsar 29
ESPAÇO II: AD/MIRA/AÇÃO: HISTÓRIAS NARRADAS 42
E CONSTRUÇÕES ESTÉTICO/AFETIVAS DE VIDAS
RECALCITRANTES
O povo que caminha é agora o meu 44
Telas afetivas de onde ecoam encantadorias 56
ESPAÇO III: ARTES/EM/ATO: ALGUMAS LINHAS PARA 132
CELEBRAR E OUTRAS PARA PERTURBAR
Alegrias & Perturbações: o inesgotável do acontecimento 138
Alianças & Encrencas: políticas das ruas 158
Escrevivências & Impermanências: a celebração da docência do sul do globo 172
ESPAÇO IV: FORAGIDA E ESTRANGEIRA... PASSEIOS POR 180
ALFÂNDEGAS IMAGINÁVEIS E ESTADIAS AFETIVAS
Desejos rascunhados de anunciações artísticas: cartas de navegação deslocante 182
Epistemologias feministas insubmissas: outros espaços para respirar e criar 202
ESPAÇO V: ENCANTADORIAS: UMA POÉTICA DE VIDAS 216
IRIDESCENTES

FLORILÉGIO 228
APÊNDICES
Apêndice I: Entrevista semidirigida e dialógica com mulheres feministas 237
docentes de Psicologia
Apêndice II: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) 239
ApêndiceIII: Número do Protocolo de aprovação do Comitê de Ética 244
ANEXO
Anexo I: Legenda das obras 246
VERNISSAGE VERNISAGE

O movimento de investir em novos diálogos na formação em The movement to invest in new dialogues in Psychology training
Psicologias e ouvir narrativas de mulheres docentes feministas em and listen to narratives of feminist women teachers in their psi
suas práticas psi, justifica a busca por conversações que, quando practices justifies the search for conversations that, when tensioned
tensionadas por uma ciência ainda posta nas relações de poder/ by a science still placed in the relations of power/knowledge/being,
saber/ser, almejam ultrapassar os muros acadêmicos e anunciar aim to overcome the walls academics and advertise other gossip. It
outros falatórios. É sobre estes encontros que opto por escrever, is about these encounters that I choose to write, sharing pulsating
compartilhando acontecimentos pulsantes de afeto entre mulheres events of affection among women feminist teachers in university
docentes feministas nos entre meios universitários. Regida por environments. Governed by a certain archivist obsession of a woman
certa obsessão arquivista de mulher pesquisadora que optou pela researcher who opted for cartography as a methodological perspective,
cartografia enquanto perspectiva metodológica, as linhas desta tese the lines of this thesis extol the collection of memories revived in
enaltecem a coletânea de lembranças revividas no movimento de the movement to resume diary texts and storytelling narrated by
retomar os textos diarísticos e as contações de histórias narradas ten professors working in Psychology training from different states
por dez docentes atuantes na formação em Psicologia de diferentes Brazilians. Such conversations reinforced the need for the “exercise
estados brasileiros. Tais conversações reforçaram a necessidade do of keeping myself with” - as is required of a cartographer - and heated
“exercício de manter-me com” - como é exigido de uma cartógrafa - e up the conversations with the protagonists of this thesis during the
acaloraram as conversações com as protagonistas desta tese durante interviews/events. The narratives presented in this writing/art
as entrevistas/acontecimentos. As narrativas apresentadas nesta exhibition propose the frank speaking of women who accepted to
escrita/exposição de arte, propõem o franco falar das mulheres que collaborate with the research, committed parrhesiasts, ethically and
aceitaram colaborar com a pesquisa, parresiastas comprometidas, politically, with teaching, research and extension, teachers who fight
ética e politicamente, com o ensino, a pesquisa e a extensão. Docentes for their speaking places as women Latinos, from the South of the
que lutam por seus lugares de fala enquanto mulheres latinas, do Sul Globe. It was up to the writing of this cartographic and decolonial
do globo. Coube à escrita desta pesquisa cartográfica e decolonial, research, to leave the obligation to explain results or expose scores, its
sair da obrigatoriedade de explicar resultados ou expor escores, intention was to experience the event and transcribe counter official
sua intenção foi vivenciar o acontecimento e transcrever histórias stories about feminist teaching in Psychology, those that inaugurate
contraoficiais sobre a docência feminista em Psicologia. Aquelas que worlds and recognize the strength of the creative encounters present
inauguram mundos e reconhecem a força dos encontros criativos in this space of time that it is up to us to live. By breaking with certain
presentes neste espaço de tempo que nos cabe viver. Ao romper com academic models and relocating the desire to re-exist in an assembly,
certas modelagens academicistas e relocar o desejo de reexistir em we tone the body in the experiential flows of epiphanies of the good
assembleia, tonificamos o corpo nos fluxos vivenciais de epifanias da want and choose to reframe the present, believing in the inventive
bem querência e escolhemos ressignificar o presente, acreditando no making of futures. Thus, we reinvent new styles of life lived as works
fazer inventivo de futuros. Reinventamos, assim, novas estilísticas de of arts.
vida vividas como obras de arte.
Key words: Teaching; Feminist Psychologies; Academic
Palavras chave: Docência; Psicologias feministas; Descolonização decolonization.
acadêmica.
12
VERNISSAGE VIDAS INVENTIVAS E ANÁRQUICAS: A
IMPREVISIBILIDADE DE UMA ESCRITA DESLOCANTE
El movimiento de invertir en nuevos diálogos en la formación de
Psicología y escuchar las narrativas de las profesoras feministas en Há escritas iniciadas por apresentações de um objeto de
sus prácticas psi justifica la búsqueda de conversaciones que, tensas pesquisa, dados qualitativos ou propostas quantitativas, outras por
por una ciencia todavía colocada en las relaciones de poder / saber fatos históricos do tempo presente, passado ou futuro. Ainda, aquelas
/ ser, apuntan a superar la paredes académicas y publicidad de otros referenciadas por poemas, crônicas ou mesmo relatos de experiências.
chismes. Es sobre estos encuentros que elijo escribir, compartiendo Mas também, existem as que optam por começar no entre, como
palpitantes eventos de afecto entre profesoras feministas en entornos modo de apreciação do que está por vir, tal como um passeio, sem
universitarios. Gobernada por una cierta obsesión archivista de pretensões. Sem expressão literária específica, ou justificativas de
una investigadora que apostó por la cartografía como perspectiva seus porquês. Apenas linhas e conexões, formações de parágrafos
metodológica, las líneas de esta tesis ensalzan la recopilación de que vão ganhando língua nos seus encontros, dando autoria à vida
recuerdos revividos en el movimiento para retomar los textos de diarios que deles emergem.
y cuentos narrados por diez profesores de formación en Psicología
de diferentes estados. Brasileños. Tales conversaciones reforzaron la Tais escritas não explicativas ou de convencimento teórico são
necesidad del “ejercicio de estar conmigo” - como se le exige a un aquelas que escapam da formalidade e festejam cada acontecimento
cartógrafo - y calentaron las conversaciones con los protagonistas de transgressor de epistemes. Apresentam a ortografia como mera opção
esta tesis durante las entrevistas / eventos. Las narrativas presentadas para uma possível graça expositiva e as divisões de seus capítulos,
en esta exposición de escritura / arte proponen el hablar franco de enquanto possibilidades híbridas para um passeio construído no
mujeres que aceptaron colaborar con la investigación, parresias “com”. São fragmentos capazes de expor múltiplas subjetividades,
comprometidas, ética y políticamente, con la docencia, investigación andantes, dançantes, atuantes em todo tipo de geografia, que evitam
y extensión, maestras que luchan por sus espacios de habla como um itinerário fixo e aceitam reinventarem-se em todos mirantes,
mujeres latinas, de la Al sur del Globo. Correspondió a la redacción lugares de paradas e admiração teórico/prático.
de esta investigación cartográfica y descolonial, dejar la obligación de
explicar resultados o exponer partituras, su intención era vivir el hecho
Os contornos que antecederam o pensar sobre esta tese, são
y transcribir historias contraoficiales sobre la enseñanza feminista
da ordem do acontecimento, nem sempre datados ou reconhecidos.
en Psicología, esas que inauguran mundos y reconocen la fuerza de
Por vezes, rabiscados em pequenos papéis, guardados como
los encuentros creativos presentes en este espacio de tiempo que nos
rascunhos, fotografados sem intensão aparente, refletivos em terapia,
toca vivir. Rompiendo con ciertos modelos académicos y reubicando
reconhecidos em literaturas, chorados com amigos, conversados em
el deseo de reexistir en una asamblea, tonificamos el cuerpo en los
orientações. Sentidos no estar corpo mulher, sem pretensão inicial
flujos experienciales de las epifanías del buen querer y optamos por
de pesquisa... apenas desejos. Um passado presente na necessidade
replantear el presente, creyendo en la creación inventiva de futuros.
urgente de revolução. Memórias intermináveis, materiais e imateriais
Así, reinventamos nuevos estilos de vida vividos como obras de arte.
guardadas para um dia serem revividas, festejadas na coexistência de
vidas intensas transformadas em arte na exposição desta pesquisa,
Palabras clave; Enseñando; Psicologías feministas; Descolonización
que inclui revisitar a experimentação da vida da própria pesquisadora
académica.
e de todas suas colaboradoras.
13 14
É deste local, de apreciadora de artes narradas, que nasce passam a escrever sobre o gênero como entidade discursivamente
o desejo da pesquisa. Nela, localizo a intenção da tese: ouvir as construída ao longo da história, paixões platônicas que agradeço ter
narrativas e ad/mirar a potência dos diferentes corpos que se conhecido, com tanta intimidade, nos encontros destruidores do meu
enunciam feministas andantes de territórios universitários na eu antigo nos tempos do mestrado na UNESP/Assis: Paul Beatriz
criação do fazer docência implicada com o cuidado de si e da outra, Preciado, Sandra Harding, Sueli Rolnik, Guacira Lopes Louro, Judith
latina. São mulheres, psicólogas e docentes, as quais extrapolam os Butler, Michel Foucault, Guilles Deleuze, Felix Guattari, Joan Scott,
desígnios da ciência universal, celebram a multidão de diferenças e Rose Braidotti, Donna Haraway, Margareth Rago, Hannah Arendt,
os modos de existência ou possiblidades de vida que não param de Friedrich Nietzsche.
surgir nos espaços de formação acadêmica. Uma atitude inquieta, de
pertencimento micropolítico e minoritário, aberto em vias do fazer e É óbvio que, sendo meu corpo dependente de arte, jamais
do estar. ignorou a crítica de Simone de Beauvoir e Clarice Lispector, a
sensibilidade denunciante de Carolina de Jesus, Cecilia Meireles,
Nos passeios desejantes de estudos e teorias feministas e Rupi Kaur, os contos e hidrografias de Conceição Evaristo, as
durante a montagem desta escrita, a intenção era de refletir sobre conferências de Audre Lorde, a escrita artística de Roberta Stubs e
complexidade dinâmica que olha, pensa e sente corpos femininos as obras de arte decoloniais de Adriana Varejão. Elas precisam ser
enquanto corpos docentes, em construção por inegáveis determinantes referenciadas como atuantes nesta (des/re) construção do meu corpo
históricos, geográficos, étnicos e culturais. Foi fundamental para docente feminista, pois operaram como vetores para um campo
o lugar de ouvinte de mulheres outras, escritos que compuseram o ampliado de fazer-se, sendo constantemente reverenciadas no Grupo
cenário para as discussões sobre os corpos femininos descolonizados de Pesquisa Feminismos, Saúde e Gênero da UEM, do qual tenho o
apresentados por teóricas (os) e estudiosas (os) pós-colonialistas e prazer, a alegria e a gratidão de fazer parte.
decoloniais, como Deepika Bahri, Homi Bhabha, Frantz Omar Fanon,
Walter Mignolo, Gayatri Spivak, Ramon Grosfoguel, Boaventura de Percebo ser possível (re)criar todas estas diferentes formas
Souza Santos, Heloisa Buarque de Holanda, Maria Lugones, Aníbal de viver os feminismos, de outros lugares, outras experiências, sem
Quijano, Gloria Anzaldúa, Maria Galindo, Suely Messeder, Rita necessariamente, proibir ou aniquilar a presença de uma teoria para
Laura Segato. assumir outra, mas sentir cada uma delas ... para pensar a partir
do que tomamos como importante para uma formação feminista
Também há trabalhos realizados por escritoras negras, descolonizada em Psicologia. Desta condição encarnada, de
potências que conheci com parceiras e parceiros do Grupo DeVerso, desmontagem e conquistas, percebo ser substancial para Psicologias
nosso espaço poético e produtivo, da Universidade Estadual de Feministas fomentarem seus fazeres distante do poder do discurso
Maringá, como: Patrícia Hill Collins, Kimberly Crenshaw, Lélia colonial e possibilitar ações que vão além do caráter investigativo
Gonzalez, Dejamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Carla Akotirene, Suely e classificatório estabelecido por mecanismos disciplinares de
Messeder, Grada Kilomba, bell hooks, Angela Davis e tantas, e currículos equivocadamente, ou não, mantidos.
tantas. Quanto daquele ar invadiu meus pulmões infantis, cínicos
e hipócritas que acreditavam estar vivendo uma vida VIVÍVEL... Enquanto perspectiva metodológica, elegi a cartografia
sempre grata por esta polinização. como método o qual, de acordo com Deleuze (2002), só poderá ser
assim pensado quando entendemos método como aquilo que nos faz
Jamais poderia deixar de citar aquelas que aguçam os estudos perceber a nossa potência de conhecer, quando implica na disposição
intersecionais, pós-estruturalistas e filósofos da diferença quando para afirmar a potência da própria vida, aquele que desestabiliza o
14 15
corpo exigindo dele processos inventivos, estéticos, outras marcas. A a pesquisa, como apresentação em congressos e publicações em
pesquisa cartográfica mergulha a pesquisadora nos entres, nos planos revistas e/ou meios eletrônicos).
experimentais vividos nos trajetos e nos afetos ali produzidos.
Considerados os prazos para viabilização da escrita, do
A cartografia diferente do mapa - que se representa em agendamento para as entrevistas/encontros com as convidadas
um plano estático - ‘[...] é um desenho que acompanha e se faz ao e respeitadas as obrigatoriedades do cumprimento nos módulos
mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem’ oferecidos durante o doutoramento, iniciei a curadoria, entrando
(Suely Rolnik, 2011, p.23)1. Deste modo, a pesquisa aconteceu no em contato com os diários, os e-mails, as mensagens por telefone
desmanchamento de certos mundos para a formação de outros, em
e WhatsApp. Todos estes momentos se fizeram exercício coletivo e
companhia das colaboradoras/artistas desta exposição sobre práticas
prazeroso durante a construção da pesquisa.
de ensino, pesquisa e extensão na formação em Psicologia, ad hoc,
constituída quando o que se pretende é acompanhar processos, em Outras autorizações foram necessárias, como aquelas
uma produção que não é individual, mas coletiva de um corpo que submetidas ao Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá
“vibra em todas as frequências possíveis” (Rolnik, 2006, p.66). e as solicitadas a cada artista/colaboradora atuante na obra exposta,
quando do envio dos documentos que autorizaram a pesquisa, dos
No tornar-se, eu cartógrafa estive inspirada a pensar com pontos disparadores de nossas conversas, das normas de respeito e
um método que não prescreve destinos, que é feito no meio, no atenção com cada gravação, a transcrição/reconto de suas narrativas
estranhar-se e deslocar-se, inclinado a uma estética dos encontros que e o reenvio às colaboradoras para que pudessem modificar, retirar ou
deseja romper a indolente reprodução colonial e se manter à deriva, acrescentar o que desejassem.
resistente às normas de controle da pesquisa (vida) e a sua obediente
apatia, modus operandi dos conhecimentos alinhavados pela pesquisa Como o texto fará uso da metáfora “pesquisa como curadoria
universal reguladora e dos jogos de fachada que escancaram a quem de obras de arte”, a leitora perceberá que existem quadros grafados
servem, incansável em sua missão de submissão dos docilizáveis e em negrito entre os parágrafos, são os afetamentos diarísticos, poções
morte dos insubmissos. mágicas que me fizeram pensar a multiplicidade da vida e livraram a
escrita de uma opressão literária qualquer.
A exposição destas expressões artísticas, tal como a
programação de um Vernissage, exigiu a verificação da viabilidade do Estes quadros em devaneio agenciam aquilo que reclamamos
espaço nos quais seriam instalados (capítulos, subtemas, entre linhas), como direito e, mesmo em espaços reduzidos ou em condições
como a conferência dos itens de segurança previstos nos trâmites da inaceitáveis para o padrão epistêmico majoritário, arrancam o silêncio
exposição (os TCLEs, os termos para uso de imagens, a certificação da vida incomodada. São línguas vibráteis, vozes que poderão ser
ética para cada publicação de imagens), e a acessibilidade do público literalmente escutadas, sendo que alguns destes sons poderão ser
ouvidos através de QRcodes (Código de resposta rápida/ Quick
visitante (desenvolvimento de outras possibilidades de acompanhar Response Code) dispostos ao lado ou sobre fotos.

Lembro que as obras de arte expostas em forma de reconto, são


1 Por se tratar de uma obra sobre Feminismos, há a sugestão de teóricas feministas para das mulheres colaboradoras da pesquisa, que aceitaram a proposta e
utilizar o nome por completo na primeira vez de citação, do/a/e autor/a/e, para dar
se dispuseram a criar estes espaços inventivos, contribuindo afetiva
visibilidade às mulheres, pois os sobrenomes são, quase sempre, oriundos de
homens. e teoricamente para sua elaboração e autorizando sua divulgação. O
16 17
espaço escolhido para a apresentação das narrativas foi inaugurado pode em resistência àquilo que ele deve. Neste espaço, os textos
com as obras de arte cedidas carinhosamente pela artista Marta diarísticos somam-se à produção metodológica e sugerem a ação
Fischer, pintadas em aquarela em papel Canson Aquarela, enaltecendo de mover-se retrospectivamente e prospectivamente em complexas
a beleza das narrativas com seus os traços, cores e sensibilidade, e relações com as mulheres colaboradoras da pesquisa.
preservando os traços de identificação das faces destas colaboradoras
com o intuito de manter o seu anonimato, mas também, para que O Espaço II traz a intimidade do/para o encontro. Apresenta
cada uma delas pudesse representar as muitas outras mulheres desta ao público os corpos que narram sobre processos criativos, de novas
pesquisa. possibilidades, (des) caminhos, linhas de fuga dos dispositivos
disciplinares e forças discursivas, que se ocupam em ver, dizer e
exigir outras modalidades de estar mulher docente, feminista na
A escolha e utilização dos recursos expográficos na tese, foi
academia. Cada entrevista/encontro foi renomeada afetivamente
o modo escolhido para evidenciar a vida das colaboradoras como
como encantadorias, liberou a passagem de um falatórium de si, da
obra de arte, todavia, alerto a leitora que não sou artista, não sou
apresentação de suas trajetórias pessoais e implicações nos fazeres de
curadora ou estudiosa das artes, apenas “tomei emprestado” a beleza
suas vidas docentes. Falatórios afetivos que sugeriam certa intimidade
de seus mapas intensivos para dar movimento e vida à pesquisa. Suas
e permitiam o falar a qualquer momento, mesmo que fosse para um:
encantadorias fazem parte da multidão teórica que se desloca rumo
“logo te chamo [...] você está aí ainda?
a uma política feminista decolonial, de abertura para a vida em seus
infinitos modos de recriação, trazem toda a sonoridade dos corpos
visitados somada aquelas vidas todas que nos interessam. O Espaço III é identificado como o encontro dos nós,
amarrios bordados, recortados, costurados e desfiados, composições
analíticas que possibilitam acessar as vozes a partir do campo das
Alterada na trajetória marcada por encontros com o afetações vivenciais e teóricas que estas experiências provocam.
imprevisível, a escrita mobilizou a provisoriedade dos conceitos e Interlocuções da dimensão processual cartografadas nesta pesquisa/
ampliou a dimensão das relações na/da pesquisa, tornando-a um ato de exposição movidas por linhas de vizinhanças afetivas que emergiram
reconto de/em vida, fecunda de sensibilidades outras que possibilitam intempestivamente no inédito do acontecimento. Conjecturas que
admirar os imprevistos e os diferentes fluxos que aconteceram em garantiram o protagonismo de cada colaboradora nesta pesquisa
um espaço temporal aparentemente tão curto, que foram os quatro de partilha do sensível, enunciadora de coexistentes com a palavra
anos de uma vida em doutoramento. Seguem seus espaços. narrada da vida vivida. Histórias de corpos em aliança, (re) existências
docentes na formação em Psicologia.
O Espaço I apresenta a escolha da cartografia como perspectiva
metodológica/interventiva, defende a importância das pistas deixadas O Espaço IV apresenta os acontecimentos que emergiram
em cada encontro, percebendo que a orientação do trabalho não das encruzilhadas e bifurcações presentes nos caminhos da vida
se faz de modo prescrito, mas surge do fazer/estar, acompanha os docente da própria pesquisadora, aquelas que interessam à cartógrafa,
processos e não representa um objeto. A cartografia sente a pesquisa pois apontam para o que não é conhecido e para o que está por vir.
como ferramenta para descentralizar os mapas prontos e imaginar Vivências arquivadas cuidadosamente durante o percurso/caminhos
possibilidades de conversações narrativas consideradas como escritas da pesquisa, encontros que foram registrados em fotos, lembrados
de apropriação afetiva. Sua proposta é extrapolar as condições finitas nas músicas cantadas, ou recuperados das anotações feitas nos
do corpo e de sua potência, para experimentar encontros, construir diários. Resquícios do cotidiano de uma mulher, mãe, trabalhadora,
mundos e ir ao encontro à pergunta espinoseana sobre o que o corpo mas também pesquisadora. Atitude de deixar-se vazar, extrapolar,
18 19
intercambiar, é o que surge este espaço, com a intencionalidade de
apresentar a narrativa da pesquisadora enquanto a décima primeira
docente feminista desta pesquisa. Afirmar a potência da vida e
a porosidade do corpo cartógrafo, por onde tudo atravessa, é um
movimento de resistência contra a vida esterilizada por adestramentos
epistemológicos.

O Espaço V foi disponibilizado para a conclusão desta tese,


ou para o convite de uma escrita continuada. Aqui, o capítulo fica em
aberto, está liberto dos compromissos assumidos no doutorado. São
parágrafos que dão passagem à escrita vivida e afeita a multiplicação
de possíveis, sobre o plano de certa expressão afetiva que possa
provocar a necessidade de continuar falando de feminismos na
formação em Psicologia. Deste modo, este espaço foi escolhido como
lugar para assumir a iridescência da vida, aquela que contempla a
nossa pluralidade, a difusão de movimentos de abertura e a coragem
de vidas narradas em sua verdade. Matéria corpórea parresiasta que
estranha o acabado e propõe um franco falar, aquele destemido,
agradavelmente subversivo, ético, colorido, encantadorias furta cor.

Sejam bem-vindas.
Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini – Cartógrafa/Curadora.
20 21
22 23
... Foi ali, no entre debruçam sobre o objeto da pesquisa para interpretar ou investigar,
ele se constrói com e na pesquisa. Participa da criação coletiva dos
Creio que o encontro com o feminismo, como crítica
de uma história e um pensamento masculino dogmático,
territórios por onde os corpos são tensionados, impondo a invenção
abriu-me as portas para pensar minha vida de outra maneira. de novas expressões antes inexistentes no modo de pensar e agir,
Atrevo-me a sair, não sem temor, da admirável perfeição transformando a paisagem subjetiva.
do dogmatismo filosófico e teológico masculino no qual
fui formada. Atrevo-me a sair das definições que preciso Para a cartografia, não existe um começo pré-editado para a
adaptar-me, porque, segundo dizem, elas constituem a ordem do pesquisadora, o que se tem são territórios que, mesmo conhecidos,
mundo, do mundo certo, justo, do mundo desejado por Deus. Ouso não necessariamente habitamos. Estamos no estranhamento da
duvidar do que foi proclamado como verdade e liberdade (...) sinto-
me desbravadora de um caminho (Ivone Gebara, 2005, p. 26).
irregularidade contínua do familiarizado e são estes atritos que
nos colocam em movimento, no abrir-se ao encontro, produzindo a
As novas experimentações de mim desejavam algo que relação de agenciamento entre as participantes, a composição entre
arrepiasse, que retirasse o corpo de órbita, extirpasse de mim heterogêneos (Deleuze & Guattari, 1995).
o máximo do velho, enunciando parcerias, alianças para a
movimentação eticamente implicada, que apresentasse metodologias Uma pesquisa que se propõe a surgir nos acontecimentos não
enquanto aposta esteticamente escolhida para meu devir minoritário poderia levar à formulação de regras ou protocolos pré-estabelecidos,
de pesquisadora mulher. Abandonada a intencionalidade de uma precisaria estar em sintonia com seu caráter processual, acompanhar
travessia segura, os mapas não seriam mais eficientes, não seguiria os percursos e implicações de seus rizomas, valorizar seus encontros
mais as linhas de limites territoriais, ou sinalizações de partidas e e atestar no pensamento sua força performática, inteiramente voltado
chegadas, o interessante estava na intensidade do caminho e nas para uma experimentação do/no real.
descobertas que não podem ser encontradas de antemão. A exposição
do corpo seria produzida no curso da pesquisa. Assim, o pesquisar da cartógrafa é dado pelo movimento, pela
variação contínua de sua estrutura e projeto. É desenhada por um
Nos pontos, onde o corpo pesquisadora, a pesquisa e a conjunto de linhas em conexão que possui como objetivo coletivizar
escrita se tocam, surge a necessidade da escolha de uma perspectiva a experiência do trajeto da pesquisa-intervenção, já que é no coletivo
metodológica. Desejante de encontros e de ferramentas que de forças que o plano de experiências ocorre e a cartógrafa realiza sua
possibilitem vislumbrar processos que já estão em andamento, em pesquisa. Uma pesquisa que, como escreveram Deleuze e Guattari
fluxo, esta pesquisa processual, transversal, ad hoc, encontrou-se na (1995), visa acompanhar um processo e não representar um objeto,
cartografia. um rizoma não tem centro.
A cartografia enquanto método de traçado do plano de
experiência docente, acompanha os acontecimentos e os efeitos Virgínia Kastrup e Eduardo Barros (2015) advertem que
da investigação, afirma que para conhecer, temos que intervir e os processos da pesquisa cartográfica geralmente já se encontram
mergulhar nas implicações de nossa pesquisa. Ela defende que a em curso, já possuem história anterior à chegada da pesquisadora,
intervenção e a análise estariam no plano da experimentação, na qual exigindo que os passos da pesquisa não sejam programados pelos
sempre estaríamos implicados. Sinaliza uma direção ética, política no problemas pensados, mas sim, por movimentos constantes do próprio
trabalho de pesquisa e sugere que os termos da relação de produção plano dos acontecimentos. Deste modo, cada passo deverá ser sucedido
de conhecimento se constituam no caminho da pesquisa-intervenção. pela processualidade dos dados produzidos (não coletados) durante a
viagem da pesquisa-intervenção da cartógrafa, compartilhada com
Nesta metodologia, os olhares não são aqueles que se os corpos vibráteis encontrados nos caminhos percorridos.
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de composição de forças que foge do pensamento hierárquico Clandinin e Connelly (2015) compreendem a narrativa como
do patriarcado e põe-se a mirar, como o verbo propõe, olhar com forma de entender a experiência, sendo esta, o principal objetivo a ser
atenção, contemplar (alguém ou algo) com grande prazer e interesse, captado em escritas como a que proponho. Os teóricos reconhecem
considerar (alguém, algo ou a si mesmo) com respeito, veneração, que o óbvio nunca se esgota e que surpresas podem acontecer
atitudes que reconhecem a importância do fazer de nossas ancestrais, constantemente quando misturadas às diferentes paisagens que
aquelas que nos ensinam a resistir e continuar acreditando em passamos a conhecer a convite das participantes da pesquisa. Como
feminismos plurais, que agregam todas. descrevem Clandinin e Connelly (2015),
Uma coisa que os pesquisadores narrativos fazem é aprender
O método narrativo1 em pesquisa é caracterizado pela rapidamente que mesmo se eles estiverem familiarizados com a
participação de falas, vozes e escutas com suas colaboradoras, paisagem […] há uma grande quantidade de aspectos que surgem
entendido como “[…] estratégia de escrita ou política de em diferentes momentos nos relacionamentos e acontecimentos
narratividade que deve ser coerente com a própria política de nesta paisagem que não devem ser tomados por certos[…]
pesquisa […] a narratividade do caso é, neste sentido, a expressão
de um devir ou o processo de produção de um fenômeno” A fim de fazer parte das histórias construídos ao longo da pesquisa, de se
tornar parte de uma paisagem, o pesquisador precisa se inserir nesta por
(Passos & Kastrup, 2013, p.398-399). Transporta a pesquisadora a um bom tempo, prestar atenção e questionar as situações para compreender
descentramentos, retira o objetivo da linha reta e sugere a sensação do os eventos e histórias, as muitas narrativas que se inter-relacionam a cada
escapar por entre os dedos o cronograma aparentemente estruturado, instante e que apontam, frente a seu olhar ainda inexperiente, caminhos
enriquece a experiência no mundo e aciona os fluxos de vida que na compreensão de mistérios (Clandinin & Connelly, 2015, p. 114-115).
ganham força nas audições perfiladas como um plano de imanência.
Os estudos de narrativas têm como maior interesse a história
Neste sentido, é importante trazer para a coleta das narrativas em si mesma, privilegia o caráter situado dos relatos, outorgando papel
o conceito de dissolução do ponto de vista da pesquisadora, atitude ativo e construtivo ao sujeito que narra. É espaço verbal, por onde
extremamente desafiante e eixo da pesquisa cartográfica, a qual transbordam enunciados e detalhes sobre acontecimentos e ações
solicita que aquela não se localize em uma posição de observadora localizadas, bem como todo o conjunto de reproduções discursivas
distante, nem localize uma participante como coisa idêntica a si e normativas que estão disponíveis em seu espaço existencial e se
mesma, colocando em dúvida os territórios existenciais solidificados revelam como forças que atravessam suas trajetórias.
e permitindo formas performáticas de experimentação antes, durante
e após a pesquisa. De acordo com Passos e Eirado (2009), isso não Aguçam os ouvidos para o espontâneo e criam um texto
significa deixar de existir na relação, mas investir em uma existência colaborativo, mantendo assim, a significação artística de cada vida.
afetada e sensível ao fluxo dos acontecimentos, incorporando as vozes Elas acontecem de modo quase artesanal, caseira, sem intenção de
das participantes em cada linha da escrita com o intuito de provocar transmitir informações que deverão ser interpretadas, mas contar
uma comprometida polifonia. conteúdos vividos que podem ser somados aos processos criativos
de reinvenção. Ou seja, a narratividade é um recurso que nos permite
ouvir a riqueza do detalhe e ressignificar o passado das coisas,
tornando a vivência rizomática, inacabada, infinita.
1 De autoria dos professores Jean D. Clandinin e Michael Connelly, o livro “Pesquisa
Narrativa: experiências e histórias na pesquisa qualitativa” traduzido pelo Grupo de
Outro recurso utilizado para o reconto dos encontros da tese
Pesquisa Narrativa e Educação de Professores (GPNEP) da Universidade Federal foi o ato de escrever sobre e nos acontecimentos através dos textos
de Uberlândia (ILEEL/UFU, 2015), foi instrutivo no sentido de pensar sobre uma diarísticos. Os diários estiveram presentes durante toda a pesquisa e
pesquisa contada através de histórias vividas. nela aparecem
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aleatoriamente, são íntimos, ficam à vontade. São parte das também acolhe, respeitosamente, a singularidade de todas as vidas
obras de arte desta exposição textual, são coral e teatro, são esculturas que compõem esta tese. Sua elaboração não é ação obrigatória nos
e monumentos, são desenhos e pinturas, grafites e pichações, filmes trâmites da pesquisa, mas possibilita o retorno à experiência de falar
e documentários, músicas e melodia, contos e poemas, filmagens e do lugar de dentro, onde as polifonias acontecem e a interpretação
fotografias. não se sobrepõe à novidade de cada paisagem e seus eventos. Os
diários abrem as linhas, as palavras, as letras.
Todo o material diarístico foi organizado preservando as
indicações do trabalho narrativo, de recusar que as relações entre Cada trajeto, período, encontro, evento, abriu fendas que
sujeitos e pesquisadora sejam mera produção de registros a serem liberaram este texto para ser reescrito a qualquer momento. Nele,
analisados (Luciana Kind & Rosineide Cordeiro, 2016). Fazem valer insiro a publicação das minhas cartas de navegação deslocante e viajo
a pena reviver as envergaduras do trajeto proposto e o prenúncio com as colaboradoras neste ato de pesquisa plural, movendo assim,
de desorientação que eu estava por vivenciar quando enunciei um o incessante processo de produzir pesquisas feministas e sobre todas
trabalho que elegeu a cartografia como metodologia. nós mulheres docentes em Psicologia.

As fotos florescentes na escrita fazem parte de paisagens


Os diários foram um exercício de deleitar-se com o acaso, com irremediavelmente terceiros mundistas, nas quais eu estive e/ou estou,
o caos e com o afeto da língua solta. Lourau (1993, p.72) escreve que terras expropriadas capazes de produzir murmúrios e sarcasmos em
tais textos diarísticos “[…] revelam as implicações do pesquisador relação ao rigor dos mapas e limitações. São imagens da experiência
e realizam restituições insuportáveis à instituição científica. Falam vivida pelo corpo aprendiz de outras minhas, são saídas, planos de
sobre a vivência do campo cotidiana e mostram como, realmente, evasão, que me tornam viajante de expedições interiores.
faz-se pesquisa”. Passos e Kastrup (2015) lembram que os mesmos
eram considerados desvios metodológicos, principalmente quando
Denominados por mim como diários afetivos, a escrita
sinalizavam a necessidade de certa alteração política de pesquisa
sugere a ação de mover-se retrospectivamente e prospectivamente
exigida para investigação em outros continentes, uma escrita correlata
em complexas relações com as mulheres da pesquisa e seus espaços.
à descolonização das práticas eurocêntricas e libertas da pretensão
Ajudam a memória a suprir suas falhas e oferecem, de modo
do conhecimento descrito como produtor de absolutismos.
esquemático, um ar nostálgico a cada detalhe esboçado durante o
admirar de paisagens, o que permite revisitá-las no ato da escrita,
Também os descrevem como hipomnemata, termo citado produzindo um holograma destas vivências.
por Foucault (1992, pp. 135-136) ao apresentar as práticas de si dos
gregos, que “[…] constituíam uma memória material das coisas lidas,
Todos eles resultaram em um valioso recurso expográfico
ouvidas e pensadas […] não apenas no sentido de poderem ser trazidos
e serviram como infraestrutura técnica para a montagem de uma
à consciência, mas no sentido de que se deve poder utilizá-los, logo
escrita inventada a várias línguas, mãos, abraços e ouvidos durante a
que necessário, na ação”, possuindo o poder de captar e descrever
pesquisa narrativa. Contemplantes da certeza de que haverá sempre
tudo o que atravessa o plano intensivo das forças e dos afetos.
um sujeito para quem a exposição foi criada e certas de que, sem a
sua participação/imersão, não teria razão para existir.
A experimentação de um modo de dizer/sentir/escrever
compatível com as problematizações que nos mobilizam, pressupõem
Com/versa/ações: admirando falatórios que alimentam e fazem a
que os diários são ferramentas para uma política de narratividade
vida pulsar
que permite a escrita uníssona de nossas experiências coletivas, mas
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As imagens que inauguram os primeiros espaços da tese são provisória, exigindo da pesquisadora o questionamento constante em
manifestações corpóreas, ora solitárias ora povoadas, experimentadas si e de suas práticas.
nas ruas da Universidade Estadual de Maringá durante o processo
do doutoramento. São também território de abundância de afetos O processo de ir ao encontro dessas mulheres seria realizado,
que emergiram durante a escuta das narrativas e o que comprova em um primeiro momento, buscando nomes de prováveis docentes
minha única certeza: pesquisar também é resistir… Perdida, parada, de Psicologia, que se enunciaram feministas nos nossos contatos
podada … persistente, pulsante, pertencente… Todo este transitar profissionais e afetivos. Como também em diversos eventos e
não possuiu o objetivo único de coletar narrativas, mas de sentir-me sites onde estas mulheres assim se apresentam e através dos quais
também personagem destas contações sobre a vida. poderíamos entrar em contato anunciando a pesquisa e convidando-
as a participar de nossas entrevistas. Inicialmente, foi assim que
Pertencente à experimentação das histórias emergidas nos aconteceu, mas a atenção afetiva que emergia de cada telefonema, a
encontros com outras mulheres docentes de Psicologia, no papel de cada recado deixado em e-mails, WhatsApp ou mensagens em outras
pesquisadora cartógrafa, as transcrevo na tese, imagino desenhos redes sociais, aumentavam nosso desejo de estar contatada com
em suas linhas, anuncio o meu corpo nos vestígios de suas falas e muitas e ampliava inéditas paisagens.
flerto com seu entregar-se … estive ali, sentindo, experimentando a
vibratibilidade da vida nas conversações que se agenciam horizontal A entrevista não foi estruturada previamente, no entanto, foram
e afetivamente… daquelas da ordem da encantadoria, da experiência enviadas por e-mail ou WhatsApp, para as colaboradoras, questões
de permitir-se, encantar-se, comungar afetos em contações de disparadoras para nossas conversas, linhas que poderiam, ou não,
histórias vivíveis. ser opção para as suas contações, já que tudo o que fosse conversado
resultaria dos afetamentos e da parceria que se constituíram em cada
Entrelacei os encontros e os afetos vividos utilizando como encontro.
matéria prima as marcas feitas no corpo, poroso, por onde tudo
passa e “[…] que vibra em todas as frequências possíveis” (Rolnik, Para compor o processo da entrevista narrativa, foi importante
2011, p. 66), em espaços onde a potência e o desejo podem transitar, informar às participantes sobre o contexto da pesquisa, como
mundos plurais, onde a vida se faz criativa, se faz obra de arte. A também sobre seus procedimentos e então, expor o tópico central
escuta comprometida obteve pistas para captar estes movimentos que surgiu como linha disparadora para as conversações. O objetivo
e transcrever o deslumbre de cada conversação, sem a intenção de da pesquisa precisou fazer parte do interesse da artista/colaboradora,
esgotá-las, mas de abrir processos infinitos de anunciações sobre ter significado. Seu investimento deveria fazer sentido e permitir
tornar-se feminista docente de Psicologia. um plano afetivo amplo para que desenvolvesse a sua história ao seu
modo, ao seu tempo e desejo.
A intimidade entre as artistas/colaboradoras e a pesquisadora/
curadora, do estar entre, passageira de seus territórios, demonstrou a Eram questões sobre quando começou a se entender como
riqueza das entrevistas narrativas e permitiu o desprender-se da função feminista; se a docência em Psicologia já era uma atividade durante
de controlar, estruturar ou intervir nas conversações, mantendo-me a descoberta de ser mulher feminista; sobre o conhecimento das
participante delas. Eu lembrava da escrita de Guacira Lopes Louro entrevistadas sobre universidades que apresentem as teorias e
(2007), quando diz ser impossível fazer uma pesquisa sem vivenciar movimentos feministas como proposta de práticas e intervenções
a incerteza de que qualquer verdade está embasada naquilo que nos realizadas durante a formação acadêmica; suas opiniões sobre
é possível conhecer em um dado contexto. Assim sendo, é situada e o que pode vir a controlar nossas práticas e desejos de propagar o
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Figuras 02 e 03: Sobre as linhas de vidas cambiantes e os ventos do outono. UEM, 2018.
Acervo próprio. QRcode: vivências do outono na Universidade Estadual de Maringá, Pr.
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feminismo como movimento de liberdade e autonomia na formação Acredito ter sido esta a parte mais intensa, produtiva e
em Psicologia; como analisa o que está sendo produzido de pesquisa, encarnada da pesquisa, o estar com elas em múltiplas paisagens.
ensino e extensão pela Psicologia Feminista no Brasil; quais poderão Sentir-se íntima destas mulheres sem nunca as ter visto. Receber o
ser os efeitos deste movimento de escape do colonizado pela formação apoio delas sem que fosse preciso apresentar todos os trâmites da
em Psicologia e, por fim, de que forma o feminismo também poderia pesquisa. Ser encorajada por elas e receber o aceite de sua participação
revolucionar a Psicologia influenciando as leituras, práticas e mesmo em momentos que, para elas, era tão complicado depositar
processos de militância na academia. alguns minutos para nosso encontro.

Propus que as entrevistas não fossem realizadas As mulheres colaboradoras da pesquisa são as que narram
necessariamente de forma presencial (parece que o cosmo previa sobre processos criativos, de novas possibilidades, (des) caminhos,
algo… uma pandemia), mas organizadas de acordo com suas linhas de fuga dos dispositivos disciplinares e forças discursivas,
possibilidades, sendo sugerido o envio das narrativas por meio corpos que se ocupam em ver, dizer e exigir outras modalidades de
eletrônico, caso não fossem possíveis as gravações em áudio/vídeo estar feminina/feminista, diferente daquelas instauradas a partir de
nos encontros presenciais. Confirmados os aceites da participação na edificações coloniais que defendem a essência imutável das coisas e
pesquisa, as entrevistas foram agendadas e foram enviadas as vias conferem estabilidade às ciências totalizantes.
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para serem
assinadas, convalidando eticamente suas participações e reafirmando São corpos/afetivos/afetados que nos acompanharam na
o compromisso com nossa militância. construção cartográfica da pesquisa, são aqueles que, em algum
período, foram (ou são) efeitos das relações de poder modelados
O planejado era fazer duas entrevistas piloto para analisar por saberes colonizados e, que durante sua trajetória pessoal ou/e
e aperfeiçoar o desenho do campo problemático das nossas profissional, projetam-se como corpos resistentes ao sequestro da
conversações, como também para acostumar nossos ouvidos a sentir normatividade imposta ao gênero feminino e se fazem mulheres
cada narrativa. Estas duas primeiras entrevistas comprovaram o que já docentes feministas.
se imaginava, eu seria desmontada por vivências do devir-mulher em
espaços acadêmicos. Ali estavam mulheres que, conforme vivências O projeto pretendia entrevistar dez psicólogas, docentes de
também descritas por Rago (2013. p. 34), “[…] trilharam caminhos Psicologia de diferentes estados brasileiros. Profissionais implicadas
próprios, novos, dissidentes, dissonantes, abertos com trabalho árduo com a pesquisa e escrita sobre feminismos, ou envolvidas em
e com as sofisticadas ferramentas das desbravadoras”. Novamente, as práticas de extensão ou estágio e com, no mínimo, cinco anos de
entrevistas não conseguiram respeitar o programado. experiência em docência do ensino superior privado ou público. A
opção metodológica, atrevida e desobediente, conduziu a pesquisa
Era impossível ficar com elas “até 60 minutos”, tempo para muito além do número descrito no projeto inicial da pesquisa.
esperado para cada entrevista no projeto da pesquisa. Quanta ilusão
acreditar que narrativas possuem horários previstos para iniciar ou Agora não se tratava mais de uma entrevista com dez mulheres,
acabar, ou que poderiam ser realizadas em um dia, meio dia, um estávamos vivendo a experiência da pesquisa sobre uma docência
momento! Não as entrevistas orientadas pela liberdade afetiva da feminista em assembleia, os encontros não deixavam de acontecer,
cartografia a qual desenha o seu acontecimento fora do tempo, do e só não estão todos aqui porque tornaram-se mais que pesquisa,
espaço e da ação estabelecida pela objetividade de uma pesquisa. agora são convivência, amizade, coletivos. Coube à escrita apresentar
Agimos, alegremente, na clandestinidade científica. as narrativas das dez participantes, mas também cabe ressaltar que,
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entre elas, estavam aquelas outras tantas que ampliaram nosso mapa Cada encontro e todas as narrativas se fizeram acontecimentos
e transbordaram os objetivos desta pesquisa. singulares. Eram forças que alteravam o curso da pesquisa diante a
implicação de cada mulher que historiou a sua própria experiência.
O propósito deste atrevimento foi primar pela construção Mulheres interpretando suas vidas, utilizando-se de enorme potencial
de diálogos que possibilitaram, às colaboradoras e à pesquisadora, transformador para reinventar seus diferentes modos de estar no
autonomia para explorar diferentes assuntos por vezes não mundo, reinventar-se mulher dentro e fora do espaço acadêmico.
apresentados pela entrevista, indo ao encontro ao proposto pelo
método cartográfico à cartógrafa que “[…] se interessa por acompanhar É isso que interessa, o modo como se conectam, como as
a experiência que performatiza dado sua força de pôr a realidade e narrativas passeiam por seus múltiplos fluxos e proliferam afetos
fazer-se coemergir eu/mundo” (Passos & Kastrup, 2013, p.401). No pelas suas vias. Optamos por admirá-las, apresentá-las durante os
entremeio das entrevistas, percebi que me perder seria a melhor espaços da pesquisa e referenciando sua presença como guias e não
forma de me encontrar, a intenção era modificada. Os encontros não direção para um fim, respeitando igualmente o desejo de quem estará
seriam para obter, através das entrevistas, os dados para a pesquisa. lendo, autonomia de voo.
Agora, não procurava nada em específico, estava entregue aos fluxos,
ao acontecimento e percebia que, como escreve Rolnik (2007): Depois de produzir o reconto das narrativas, a preocupação
voltava ao lugar indesejado de apresentar as conclusões de uma
[...] para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos pesquisa. As dúvidas sequestravam o desejo de desobediência
com revelar. Para ele não há nada em cima – céus da transcendência – epistêmica e exigiam algumas respostas técnicas de como estruturar
nem embaixo – brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por
a “análise dos achados das narrativas”. Minha preocupação em tratar
todos os lados são intensidades buscando expressão (Rolnik, 2011, p. 66).
as narrativas para uma possível análise foi ética: como adotar a
narrativa como processo metodológico sem retirar, de quem narra, o
Outro movimento importante para a pesquisa foi o momento direito de falar sobre a sua experiência? Como um campo de vivência
de retornar às transcrições realizadas para que as docentes pessoal pode ser interpretado por um campo de análise?
sugerissem, retirassem ou acrescentassem informações ou afetações
que considerassem importantes. A partir destes combinados, as
Estas interrogações foram regurgitadas com dificuldade,
narrativas compuseram a escrita final da tese e receberam espaços
já que era preciso reconhecer que, por alguns instantes, estava
para serem expressas sem serem governadas e sem a submissão aos
sim, sendo capturada pela perspectiva dominante de pesquisa, de
cânones docentes, uma tarefa urgente e fundamental e politicamente
ser “guiada” no caminho das possíveis ou desejáveis respostas às
indispensável, de resistência ao poder político, senão na relação de si
perguntas previamente pensadas pela pesquisadora em formato de
para consigo, como afirmou Foucault (2004).
objetivos.
No início de cada entrevista, era comunicado às mulheres
Voltei o pensamento para o lugar de cartógrafa, lembrei que
colaboradoras que a pesquisa garantiria o sigilo absoluto e que as
a metodologia sugere que a atenção da pesquisa pouse em pistas que
mesmas poderiam, inclusive, interromper o trabalho em qualquer
surgem no campo dos acontecimentos, método que exige atenção
momento, sem prejuízo algum para este. Assim, foi respeitada a
flutuante ao trabalhar com fragmentos que aguçam diferentes
produção de suas próprias subjetividades e admiradas suas práticas
modalidades sensoriais e envolvem “habilidades para lidar com metas
revolucionárias ao descobrirem saídas em territórios marcados pela
em variação contínua [...] a atenção do cartógrafo é, em princípio,
reestruturação neoliberal da educação brasileira.
aberta e sem foco, e a concentração se explica por uma sintonia fina
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com o problema” (Passos; Kastrup & Escóssia, 2015, p. 40). Seria acontecimentos de suas vidas na época dos encontros, os desabafos,
preciso evitar o predomínio pela busca de informações para que a as confissões, os desejos e desesperos, as potências. As narrativas
cartógrafa estivesse aberta ao encontro. transformaram-se em capítulo, um espaço para ad/mira/ções.

Ao estar entre as pulsações das narrativas, certifiquei que Não abri mão do rigor exigido para uma pesquisa, escolhi o
não estaria falando de uma cartografia se mantivesse a pretensão compromisso com a ética e a estilística da vida em potência, a coragem
de interpretar aquelas histórias, reduzindo sua potência a páginas da verdade vibrava na voz daquelas parresiastas... elas escolheram
lançadas no texto, necessariamente referenciadas para dar dizer a verdade sem medo, aquela verdade política que provoca e
legitimidade científica àquelas vozes. Mas eu tinha a autorização desestabiliza a verdade inventada pelo/ no discurso científico.
das colaboradoras para o movimento de reconto, aquele que daria às
vozes ouvidas por mensagens de WhatsApp, certas “entre respostas”, Em acordo com o TCLE, a anonimato das colaboradoras foi
enunciadas nas entrevistas e que davam as mãos à intimidade dos preservado, pois, mesmo que demonstrassem o compromisso ético
encontros. de seus atos docentes e militantes, traziam fatos além daqueles
pertencentes a sua intimidade, falavam de vidas outras que as afetaram
e, pontualmente, revelavam a necessidade do sigilo para preservar
A escolha por descrever processos mais do que estado das
estas outras tantas de suas histórias. Algumas das colaboradoras
coisas, indica que o procedimento de análise ou admiração das
escolheram seus nomes artísticos, afetivamente escolhidos no
narrativas, aconteceria a partir da realidade que emergia durante a
revisitar da vida durante as narrativas, outras optaram por não citar
pesquisa e na composição de suas linhas, gerando interesse e atenção
nenhuma referência, sendo seu nome nesta tese escolhido por mim.
no acompanhamento dos processos da realidade de si e do mundo. Uma
pesquisa relacional, da ordem da encantadoria, entende o conhecer
Respeitando os termos técnicos e os seus combinados, refletia
da realidade apresentada em seu constante processo produtivo de
sobre como poderia apresentá-las... óbvio... se a proposta é expor
subjetividades, acessada por movimentos que constituem cada uma
obras de arte, decidi por identificar cada qual com o nome de uma
destas narrativas.
teórica, estudiosa, ativista, artista, mulher feminista, escolhi por
representar a importância destas mulheres na pesquisa e transportar,
Pensei em trazer porções das transcrições propondo diálogos em forma de homenagem, o meu agradecimento.
de umas com as outras, inserindo entre elas, comentários sobre as
afetações que emergiam da inseparabilidade entre escutar, vivenciar,
Cada respirar, as pausas entre as falas, as risadas, a mudança
pertencer, estaria então traçado o plano de apresentação das narrativas.
de entonação, o silêncio, o dito e o não dito, estão envolvidos no
Experimentei, mas redigir um texto ordenado por uma estilística
processo de admiração das narrativas, as quais, nesta pesquisa, não
que responde a categorias de analise trairiam a sensibilidade e a
são documentais, de fontes secundárias ou entrevistas publicadas,
magnitude do encontro, eu as perdia no meio de metades.
são de psicólogas docentes que se enunciam feministas, entusiastas e
colaboradoras destas escritas, mulheres de minha ad/mira/ação.
Desejei outra apresentação, reinventada no seu processo de
encantamento pelo inesperado, emergido dos espaços onde a pesquisa
Foram momentos que, infiltrados, arrebentaram as comportas
se fizera eticamente hibridizada com a vida, das colaboradoras e
construídas pela pesquisa devido à intensidade de sua vazão afetiva
da minha própria. Onde estariam presentes os meses e anos, locais
e me permitiram assumir o lugar de espectadora de suas memórias,
de encontro, expectativas de ambas, os nomes escolhidos por elas
momentos que deram passagem aos encontros, onde a vida acontecia
ou por mim e o significado deles para o momento da pesquisa, os
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e reinventaram nas heterotopias dos percursos. Eram tantas vozes
em tantos corpos, sem interrupções. Agora, a missão era compor, no
formato de exposição de arte, estas artistas e suas estilísticas de vida.
A cada final de entrevista, eu ficava saudosa, desejava só mais alguns
instantes. Eu lembrava o Menino descrito pelo conto roseano “Os
Cimos” no seu diálogo com o tio quando a viagem acabou...
_ “Chegamos, afinal! ” – o Tio falou.
_ “Ah, não. Ainda não...” – respondeu o Menino.
Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.
(João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias).
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44 45
O povo que caminha é agora o meu Encontrei, visitei, conversei, interagi e criei com mulheres,
docentes, mães, pesquisadoras, militantes, em suas diferentes esta[r]
O povo que caminha é agora o meu. Antes, eu caminhava das da vida, nos diferentes estados brasileiros, dando sentidos ao
com outro povo e acreditava que era o meu. Não havia nascido vivido. Mulheres que experimentavam uma gestação, as surpresas
ainda. Nasci de verdade desde que ando como Machiguenga
[...] O sol não tem caído, não termina de cair. Vai e volta, como
da maternidade, outras finalizavam o processo de mestrado ou
as almas com sorte. Aquece o mundo. A gente da terra não tem doutoramento, com uma tese a ser concluída, algumas que nos
caído tampouco. Aqui estamos. Eu no meio, vocês rodeando-me. Eu acolheram entre horários de aulas quando, merecidamente, poderiam
falando, vocês ouvindo. Vivemos, caminhamos. Isso é a felicidade, descansar, até aquelas que, entre uma viagem e outra, entre aviões,
parece... (Vargas Llosa, 2013, p. 207). ônibus e trens, paravam para dar aquele estou aqui tão esperado por
mim.
Convido as visitantes deste espaço a aguçar o sentido da visão e
deixar o corpo vibrar com as possíveis sinfonias vindas do seu interior. Nos contatos e encontros, invadi, de modo consentido, algum
Apresento a narrativa como instrumento de fundamental valia para a intervalo de suas vidas, alguns momentos onde as coisas realmente
construção da escrita aqui pensada e recriada no movimento de estar importam. Estive próxima dos acontecimentos que rodeavam o
com os encantos que se fazem ação: encantadorias. cotidiano delas e, por vezes, sentia uma sensação desconfortável de
intromissão em situações tão particulares. Parecia não ser o momento
Exposição como parte de um sistema de comunicação que se propício, mas, carinhosamente, elas me acolhiam.
utiliza da lógica dos sentidos através de suas histórias e da doação
Elas me recebiam em seus territórios, em espaços dialógicos,
coletiva que transforma contações em afetações. Detalhes que tornam
em eventos e congressos, em viagens por onde as vidas, como capricho,
suave o esboço teórico da paisagem e transcendem o ato da escrita
encontraram-se, ou então por vias invisíveis, transportadas por fios
acadêmica, mergulhando em práticas corporais artísticas.
de internet quando o encontro só podia acontecer por mensagens,
vídeos ou áudios de WhatsApp. Todavia, sempre potentes. E assim,
As narrativas, aqui apresentadas como recontos, nos habitaram
no encontro, as entrevistas aconteceram, pintando telas sensíveis do
com a novidade, com o improviso e o imprevisto. Nelas, falamos sobre
estar com. De modo semelhante a descrição que Margareth Rago
a potência umas das outras, indicando o nome de mais uma, mais
(2013) faz das mulheres que apresenta em sua obra, as colaboradoras
uma, e mais uma, criamos então uma pesquisa em rede, esculpida
de minha pesquisa também podem ser descritas como,
a várias mãos, via polinização de nossos atos políticos como sugere
Margareth Rago (2013). As com/versa/ações presentes neste capítulo Mulheres ousadas, valentes, excêntricas, que fogem das normas, recusam
também são aqueles que dialogaram sobre atividades profissionais, o autoritarismo e a violência, desistem de casamentos tranquilos e da
sobre como o corpo e seus saberes blasfêmicos transitam pelas paz do lar domesticado, para descobrirem o mundo, dedicarem-se aos
atividades de pesquisa, ensino e extensão, nos entremeios acadêmicos rejeitados e marginalizados [...] ou para encontrarem-se consigo mesmas,
da formação em Psicologia. produzindo novos modos de estar no mundo (Rago, 2013, p. 311).

Mulheres dispostas a questionar, desnaturalizar valores Das parcerias que floriram durante a pesquisa, entre os
enraizados, investir em movimentos que atualizam a potência da vida em quilômetros sinalizados por placas, as viagens prazerosamente lentas
suas linhas múltiplas e as faz funcionar em formato artístico que, segundo experimentadas em trilhos, os enjoos provocados no balanço dos
Guattari (2000, p. 135), “[...] leva ao ponto extremo uma capacidade de barcos ou as milhas voadas no ir e vir, surgiram vizinhanças que
invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades evocaram as sugestões de Deleuze (1997, p.12) sobre ser no entre,
de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”, estas são elas: arte. onde realmente mapeamos a passagem e “[...], dos desvios necessários
46 47
criados a cada vez para revelar a vida nas coisas”, locais de encontros
respiráveis, formas de viver e cartografar o mundo como lugar do
encontro.
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50 51

Uma flor nasce na rua! Passem de


longe, bondes, ônibus, rio de aço do
tráfego. Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem
os negócios, garanto que uma flor
nasceu...Do mineiro Drummond.
Afetamentos diarísticos: para pensar a vida
onde ela acontece.

Figura 05: Crochê das Minas. Arte cedida carinhosamente por Luciana Kind, uma Mulher
Feminista das Minas. QRcode: I Simpósio de Narrativas, Gênero e Política. 2016, Belo
Horizonte, PUC/ Minas Gerais.
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Parecíamos um grande emaranhado de linhas afetivas, Depois de estar com as “Minas” dos Gerais, desfiei a meada
loucamente desorganizado, mas dentro de nossa organização afetiva, das linhas do crochê ... cada uma delas conduzirá a pesquisa para
“crochetamos” encontros florescentes de admiração. outros pontos do mapa brasileiro, territórios de cuidados de si que
corresponde a uma postura ética diante do mundo, o voltar-se para si
Em 2016, o crochê das “Minas” dos Gerais e os amarrados reflexivamente para então agir no mundo, atos compreendidos como
de narrativas docemente anarquistas, acalentaram as angustias de obra de arte, certa estética de existência necessariamente implicada
uma escrita de tese que ainda não tinha destinatário, era quieta, com o outro.
seca, sonsa. Foi em Belo Horizonte que o ato adocicado da escuta de
narrativas feministas reverberou a escolha de uma metodologia de As artistas/colaboradoras desta exposição de arte/tese
pesquisa e abandonou seu trajeto solitário, aquela solidão epistêmica auxiliaram a refletir sobre estas questões, narraram sobre possíveis
provocada pela ciência dominante, mas também aquela descrita por respostas não com o propósito de firmar verdades, mas de contar suas
Carlos, o mineiro: experiências, os perigos e a necessidade de atravessá-los, enfrentá-
los, e como poetiza Glória Anzaldúa (2000), compartilharam da
A solidão é niilista. Penso numa solidão total e secreta, de que a vida dificuldade de escrever longe da intelectualização academicista.
moderna parece guardar a fórmula, pois para senti-la não é preciso fugir Sendo assim, a opção era por linhas mais potentes, aquelas de suas
para Goiás ou as cavernas. No formigamento das grandes cidades, entre próprias histórias, cientes de que:
os roncos dos motores e o barulho dos pés e das vozes, o homem pode ser
invadido bruscamente por uma terrível solidão, que o paralisa e o priva Não é fácil escrever esta carta. Começou como um poema, um longo
de qualquer sentimento de fraternidade ou temor (Andrade, 2011, p. 28). poema. Tentei transformá-la em um ensaio, mas o resultado ficou áspero,
frio. Ainda não desaprendi as tolices esotéricas e pseudo-intelectualizadas
que a lavagem cerebral da escola forçou em minha escrita. Como começar
A escolha por participar de um evento que tinha como novamente? Como alcançar a intimidade e imediatez que quero? De que
propósito dialogar sobre narrativas, gênero e política, pressupunha a forma? Uma carta, claro [...] Não temos muito a perder — nunca tivemos
oportunidade de ouvir histórias produzidas no cotidiano de mulheres nenhum privilégio. Gostaria de chamar os perigos de “obstáculos”,
em suas práticas profissionais e contextos de militância, de modo a mas isto seria uma mentira. Não podemos transcender os perigos, não
estimular o pensamento crítico e as discussões teórico-metodológicas, podemos ultrapassá-los. Nós devemos atravessá-los e não esperar a
bem como repensar o meu próprio percurso enquanto pesquisadora repetição da performance (Glória Anzaldúa, 2000. p. 229).
cartógrafa. Explorar os aspectos políticos das narrativas foi também
E outros foram vários os espaços de encontros ... As
um exercício para aprender a escutar trajetórias, resistências, desafios
conversas, sempre regadas a gratidão e afetos, surgiam em chegadas
que tencionam o gênero nos espaços acadêmicos, problematizando
e despedidas, eram sempre agradáveis, comprometidas com a escrita
ainda mais o objetivo da pesquisa que eu pretendia realizar.
e manifesta em suas narrativas. Estas mulheres estenderam as suas
mãos e propuseram alianças... eu ouvia suas vozes a todo instante
O evento revelou-se como um processo de estranhamento que
e assim, escapava da “domesticação acadêmica” (Sandra Azeredo,
permitiu o meu afastamento dos métodos padronizados de pesquisa
2010, p. 175) prevista para o doutoramento.
e apresentou outras possibilidades de reconto sobre experiências
vividas/narradas promovidas pela interlocução entre as participantes A intenção da pesquisa era constantemente lembrada, fora
e a aproximação dos feminismos e das leituras feministas latinas com desenhada não para encontrar respostas, mas para promover diálogos
a Psicologia. Morava aí o desejo para uma pesquisa de doutorado, sobre nós, sobre mulheres interessadas por certa Psicologia Feminista
mas também de ponderar sobre a recriação de mim mesma como Decolonial, interessadas por escapes, ouvidas nas encantadorias
mulher, docente, pesquisadora que se enuncia feminista. desta tese.
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Figura 06: Minha Encantada. Ancestralidade ativa, afetiva, presente em minha


vida até os seus 102 anos de florescência. Acervo próprio. QRcode com a letra
da música “Dona Cila” interpretada por Maria Gadú.
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TELAS AFETIVAS DE ONDE


ECOAM AS ENCANTADORIAS

Experimentar a poeisis é devir-mulher


Eis que n’um belo dia
Pisou no chão duro da academia
Corpo acostumado a tocar intensidades
Pisa no concreto com seu andar-flor
Sabe que toda dura erudição perde um
acriançamento das palavras
Criar como sinônimo de criançar
Ousar invenções de mundos sem negar este
Enquanto todos buscam uma finalidade
Ela busca o inacabamento
O movimento de sempre criar...
E cria sentido as miudezas
E ri digerindo sutilezas
Sai de si e inventa maneiras de danças com as
palavras
Eis a história da moça que teve noite de núpcias
com a literatura!
Orgasmando versos de arrepiar
Em transe com linhas líricas
Eis que um belo dia
E ao chão dura deu sentido de consistência
Inventou palavras, fabulações, poesias e ... e ... e ...
Uma moça foi vista dançando com as palavras
E não mais importou o lugar, pois a moça já não era
mais luz ou sombra
Era corpo feito de fluxos de prazer envolvido de
pele-letra
Conduzindo por palavras-afetos-intensidades
A moça deviu movimento...
Esquizografias, 27 de novembro de 2020. Imagens de 07 a 16. Mulheridades. Artista Marta Fischer. Tela pintada com aquarela
em papel Canson Aquarela. Umuarama, julho de 2021.
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A mulher colaboradora desta de agosto, sempre que possível para a colaboradora … e ela esteve
narrativa é daquelas que dizem: comigo, continua comigo …
“Professora Jaqueline Gomes
de Jesus – pode me apresentar “Eu estava pensando outros feminismos no Brasil, aí comecei a me
assim”! Não fez nenhuma aprofundar, como docente pesquisadora, mulher feminista, mulher
questão de anonimato, mesmo trans, negra, eu me aprofundei muito mesmo”. Agosto, 2019.

Jaqueline
quando sinalizado por mim
o cuidado que a pesquisa Jaqueline começou nossa conversa falando que desde a graduação
teria em relação ao sigilo das já trabalhava com questões de gênero, envolvida com o tema da
Agosto 2019/ Rio de Janeiro informações que elas estavam diversidade, mas que foi precisamente no doutorado que começou a
me oferecendo. Ela disse que estudar sobre as paradas do orgulho LGBT e decidiu dar enfoque com
era o que queria falar e como maiores dimensões nas discussões de gênero. Comenta que depois que
gostaria de ser apresentada e vivenciou seu reconhecimento como mulher trans, já no doutorado,
pronto, falou. Eu ouvia sobre percebeu que seria muito importante entender melhor o feminismo
esta mulher nos caminhos da a partir do olhar militante aplicado às questões da população trans
UNESP, ainda nos trajetos do e assim se aproximou do feminismo, começou a investigar e refletir
mestrado, quando alargava meus ouvidos sobre estudos de gênero no que é ser militante. Comenta que já estava pensando sobre outros
e perspectiva Queer. Já no doutorado, tive a oportunidade de saber feminismos no Brasil, mas no doutorado, “eu me aprofundei mesmo,
mais por onde ela transitava, para o que militava e assim a conheci como docente, pesquisadora, mulher feminista, mulher trans e negra”.
durante palestras por ela ministradas em eventos universitários, lia Relata que desde o final do mestrado, já dava aula e apresentava em
os seus textos e as pessoas perguntavam: Você conhece “A Jaque”? suas propostas docentes leituras feministas, recordando o quanto
Eu respondia: Claro. Mas era um conhecer de outra ordem…“A estas potencializaram o seu doutorado. Verbaliza que as intervenções
Jaque”, eu conheci nos contatos para entrevista, julho de 2019 no profissionais também ficaram focadas nas questões de gênero,
VI SIES – Simpósio de Educação Sexual da Universidade Estadual principalmente depois da tese de doutorado na qual trabalhou com esta
de Maringá. Antes do evento, havia conversado com ela pelo temática, quando veio a trabalhar muito mais as leituras feministas como
facebook, me apresentado, falado sobre a pesquisa e a convidado docente. Quando perguntava sobre seu conhecimento de universidades
para participar das conversações propostas pela tese, ela aceitou que apresentavam as teorias, movimentos feministas como propostas
e ficou combinado que conversaríamos naquele momento. Porém de práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica,
no evento, era tanta gente que queria a “Jaque”, eram tantos Jaqueline me contava que sabe de algumas universidades que têm
questionamentos interessantes, sua fala inundava de inquietações nos currículos essas propostas de leituras, mas não necessariamente
o auditório e eu, me alimentava esperando o momento de estar reconhecidas como uma prática do currículo de todas universidades,
mais perto. Mas ela estava em viagem, atrasada para pegar seu sendo poucas aquelas que propõe estes diálogos ou teorias, como uma
voo para os EUA, e não foi aquele o momento da nossa conversa. parte do currículo da instituição. Defende que ainda não temos esta
A entrevista aconteceu em agosto, por mensagens de WhatsApp, prática no Brasil, porém apresenta como exemplo de compromisso
quanto ainda estava nos Estados Unidos. Entre um espaço e outro político o núcleo interdisciplinar de estudo sobre a mulher da
da sua agenda, ela retomava nossas conversas e o tempo previsto Universidade Federal da Bahia, todavia lembra que ele ainda não tem
de sessenta minutos não era mais contado, pois a entrevista foi essa perspectiva para atuar com todos os graduandos e pós-graduandos,
além de um contato para a pesquisa, acontecendo durante o mês
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porém já é um espaço alternativo de formação, especificamente nessa grade curricular crítica e auxiliado a ciência a sair desse enfoque que
área. Quando questiono sobre o que pode vir a controlar nossas práticas pensa gênero apenas como sexo identificação biologista, de sexo como
e desejos de propagar o feminismo como movimento de liberdade e simplesmente uma marcação de sexo características oferecidas a priori.
autonomia na formação em Psicologia e quais as mulheres a Psicologia Ela narra que a Psicologia vem adotando uma perspectiva de gênero
Feminista se propõe a enunciar, ela responde de modo espontâneo, “Ué, estruturante como eixo fundamental da sociedade e um olhar mais
depende da própria Psicologia, como ela está construindo isso que a crítico para as construções da própria Psicologia, da crítica ao sujeito
gente chama de Psicologia”. Jaqueline comenta que na sua perspectiva, universal e as questões de posicionamento das próprias pesquisadoras e
já que podemos ter perspectivas diferentes, o que se faz Psicologia pesquisadores do campo. Ela diz acreditar que a Psicologia já avançou
depende das palavras e dos estudos que fazem dentro da Psicologia. muito, todavia que ainda tem muito a ser construído, lembra que nova,
Oferece exemplos citando que os estudos de gênero foram assumidos que tem menos de vinte anos, e por isso, muito a avançar. Nós nos
muito recentemente na Psicologia em comparação com outras áreas despedimos neste momento e ela escreve através do whats: “Espero ter
das Ciências Sociais. Logo, adianta-se em afirmar que existem aquelas respondido querida, um beijo. Desculpe mesmo a demora estupenda
que vêm sendo feitas, principalmente na Universidade de Brasília, que para responder, beijo”.
apresenta uma vertente forte na Psicologia com a perspectiva feminista,
e remetem às autoras e mulheres em seus estudos. Verbaliza sempre
lembrar de Maria Aparecida Cida Bento, como psicóloga negra que
tem trazido várias intervenções que podem ser pensadas e construídas
nesse campo epistêmico. Continuando a responder, ela analisa minhas
inquietações sobre o que está sendo produzido de pesquisa, ensino e
extensão em Psicologia Feminista e quais os efeitos deste movimento
de escape do colonizado pela formação em Psicologia. Sobre esta
questão, responde que ainda não vê uma produção tão extensa, que
gostaria de ter mais contato, acha que ainda estamos no campo restrito
de uma perspectiva feminista muito particular, reflete sobre quais as
variantes do gênero estamos trabalhando, se estamos falando de todas
as mulheres, também dos homens enquanto sujeitos de gênero, se
estamos falando de mulheres transgêneros e travestis e outras vivências
de gênero ou se estamos falando apenas mulheres cisgêneras. Jaqueline
acredita que ainda estamos no começo dessa formação em Psicologia
feminista no Brasil. Problematizo, através das perguntas disparadoras,
de que forma o feminismo também poderia ensejar leituras e práticas
para processos de militância na academia e ela verbaliza que já vê isso
acontecendo, que foi por causa do feminismo e de psicólogas que se
aproximaram do feminismo que a gente tem trazido essas categorias
para academia e mostrado o quanto elas enriquecem a nossa ação fora
da lógica masculina na academia e nas ciências. Falava sobre o quanto
a Psicologia feminista tem contribuído para a construção de uma
A
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Foi este o codinome escolhido “Eu ouvi novamente a entrevista e achei importante trazer minha
por ela: “Anita”, referenciando fala sobre militância, atuação política porque considero que essa
Anita Garibaldi, a “Heroína é minha referência, meu lattes íntimo, que me levou a ser docente
dos Dois Mundos”, mulher e feminista” Setembro 2019.

Anita
brasileira, revolucionária,
conhecida por seu envolvimento Combinamos a entrevista por chamada de WhatsApp para o dia 13 de
direto na Revolução Farroupilha setembro de 2019 e continuamos por mensagens em 16 de setembro
Setembro 2019/ São Paulo e no processo de unificação da do mesmo ano. Entre os diálogos que aconteciam por WhatsApp
Itália. Mulher que guerreava em diante a dificuldade da realização presencial, ouvia alguns gemidos
pé de igualdade com o gênero do bebê. Por vezes paramos para que ela pudesse atender o pequeno,
masculino e, mesmo grávida, outra hora retornaríamos, eram pequenos pedidos de “mãe, estou
não deixou de brigar por seus ideais, de vida e políticos. Claro, precisando de você!”, e ela comentava: “você sabe não é Bárbara, são
tinha que ser Anita. O corpo desta mulher colaboradora dança aqueles pedidos comuns e cotidianos que nós, mães mulheres,
com os assuntos relacionados aos processos de organização estamos acostumadas a ouvir quando estamos em casa, no banheiro,
do trabalho, de lutas e conquistas e traz, enquanto docente e realizando refeições, dormindo, descansando, no trabalho, ou
supervisora de estágio, a convicção sobre a importância de narrando sobre a vida de uma mulher docente, mãe, pesquisadora
diálogos feministas para e na formação acadêmica. Eu e Anita participando de uma pesquisa sobre narrativas feministas na
fizemos o mestrado na mesma instituição de ensino, porém não universidade (risos)”. Durante sua narrativa, Anita trocava de lugar
na mesma época. Não a conheci pessoalmente, mas estava atenta para o som ficar melhor e facilitar a transcrição da entrevista. Deixava
as suas escritas durante os módulos do mestrado que propunham de estar perto do filho para doar seus momentos de descanso à
discussões sobre trabalho e gênero e, ao dialogar com outra pesquisa, este movimento era entendido por mim como doação
colaboradora da pesquisa, ela me lembrou de Anita. Dizia ser uma afetiva. Anita começa nossa conversa lembrando um sentimento de
infância. Narrou que o primeiro contato com essa distinção de gênero
docente na formação em Psicologia que se enunciava feminista
foi na sua própria casa, observando a diferença entre a criação do
e apresentava em seus projetos de pesquisa e extensão, potentes
irmão e a dela. “Desde pequena eu me indagava sobre estes papéis
propostas sobre feminismos e mercado de trabalho. Encontrei
sociais que eram atribuídos. Por exemplo, na organização da casa,
Anita no facebook em 2018, me apresentei e falei sobre a pesquisa.
meu irmão ficava só com a limpeza do banheiro e eu com o resto das
Rapidamente ela respondeu, mas estava na França, realizando
coisas. Não entendia esta diferença quando ouvia que nós (mulheres)
projetos profissionais e sonhos pessoais, mas aceitou participar da tínhamos que aprender algumas atividades que não necessariamente
entrevista com a positividade de quem compartilha um propósito, os homens tinham que aprender”. Lembra que veio de uma família
de quem aceita lutar junto. Encantada, avisei que esperaria o seu patriarcal, machista, por isso consegue se ver feminista desde criança
retorno, e assim aconteceu no início de 2019. Neste entretempo, ao observar esta diferença de tratamento, e se questionar: “por que é
Anita engravidou, e estava terminando seu doutorado, como ela assim? ” Anita relata que ainda na adolescência isso esta indignação
narrava: “enlouquecida”. Mas esteve comigo. foi se intensificando, havendo necessidade de pontuar aos seus pais,
questionar este lugar social estabelecido do ser mulher. Acredita que
isso contribuiu com o ser mulher docente, porque as coisas que foi
buscar para se tornar uma docente vieram deste olhar de que a mulher
que tem várias possibilidades de inserção no mundo, na política, no
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trabalho. Ela relata que vem de uma trajetória de militância política, social do trabalho, não sabe se tem uma linha específica da Psicologia
no movimento estudantil e depois político partidário, e que essas que faça esse movimento. Ela diz que possui mais conhecimento
vivências impactaram bastante a sua carreira docente, o seu olhar. Ao sobre leituras do que mulheres docentes, psicólogas e feministas que
comentar sobre sua profissão lembra que trabalha com Psicologia do realizam sobre a questão do gênero, as pautas dos movimentos
Trabalho, e para ela, a questão de gênero é central quando a pensamos feministas nas suas pesquisas e intervenções, mas não de algo
as relações de trabalho, no capitalismo e que todo esse papel, essa específico enquanto currículo. Anita reconhece o papel fundamental
construção da mulher no capitalismo, faz com que tenham dupla, destes diálogos durante a formação, sobre as questões de gênero nos
tripla jornada e não sejam devidamente remuneradas. Isso provoca o diversos aspectos da Psicologia, já que a Psicologia é, tradicionalmente,
medo de se afastar por uma licença maternidade sem garantia que escrita por homens, que é todo um movimento de homens e acredita
vão ter um emprego quando retornarem. Também reconhece que os que hoje as mulheres lutam pela palavra e quando trazemos isso para
salários são inferiores comparados aos dos homens. São distinções academia, para as nossas aulas, para a prática, a diferença na questão
que leva Anita a ser feminista, de lutar para que tenhamos condições de gênero e trabalho que ela traz, favorecem a criação de um ambiente
equivalentes de atuação política, social, já que isso impacta sua leitura crítico, de um ambiente com leitura política assertiva e condizente
sobre trabalho e o seu cotidiano docente. Logo em seguida, comenta com a realidade. Anita afirma que para seu campo de atuação, a
que se tornou feminista antes de ser docente de Psicologia e, que questão de gênero é muito marcante. Traz para a entrevista exemplos
neste contexto acadêmico, não conhece muitas universidades que sobre as diversas profissões que são atribuídas tradicionalmente aos
apresentem as teorias e movimentos feministas como proposta de homens e sobre o papel fundamental que nós, mulheres, possuímos
práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica. na luta para conseguir ocupar esses outros espaços, na luta por
Todavia, lembra que na universidade que é docente tem uma colega salários melhores, por reconhecimento, da maternidade. No final das
que ministra uma disciplina eletiva sobre gênero e trabalho e aborda entrevistas, eu solicitava o movimento da colaboradora de pensar em
os movimentos feministas nesta disciplina. Quando eu proponho uma obra de arte, uma música, um poema, um filme, para ilustrar
uma reflexão sobre o que pode vir a controlar nossas práticas e desejos nossas conversas, e Anita lembra que gosta muito de um filme
de propagar o feminismo como movimento de liberdade e autonomia relevante na sua área de atuação e cita “O germinal” de Èmile Zola,
na formação em Psicologia, Anita reconhece que não consegue utilizado para inspiração do filme. Descreve que essa tela é a descrição
pensar nada além desse momento que estamos vivendo (setembro/2019), de uma cena onde trabalhadores de uma mina de carvão partem em
sobre esse governo que em suas palavras, “[…] é cabuloso, fascista caminhada durante uma greve e no centro existe uma mulher. Chama
mesmo, autoritário, que vem tendo uma atuação no sentido de a atenção para a única mulher presente na cena, uma mulher com
silenciar as nossas pautas que são legítimas, então quando a gente uma criança no colo, lembrando da importância desta para o filme.
ouve uma aberração como termo de ideologia de gênero, isso não Anita é pontual ao falar que acredita que o papel da mulher não está
existe, eu entendo que isso também ataca o feminismo, faz com que relacionado apenas à maternidade, lembra que mulheres não são
a professora entre sala de aula e sinta medo muitas vezes”. Diz não ter somente mães, mas que quando vê a mulher com o filho no colo
vivenciado este tipo de violência no trabalho, mas ouviu colegas se fazendo caminhada na greve, ela se identifica com esse lugar social,
queixarem de certo policiamento em sala de aula, de cerceamento da por ser trabalhadora e agora ter filho, enfim, que a maternidade é uma
liberdade. Sendo assim, acredita que se existe algo que está bem em característica que as mulheres assumem na história, mas também
voga hoje, é a tentativa de controle não só do feminismo, mas de toda algo de muita degradação, inclusive nas relações de trabalho. “Você
liberdade de pensamento, enfim, um movimento muito forte que pode não ser contratada porque você está grávida, porque você tem
exige nossa resistência, que nos convoca a fazer e ser resistência. filho, essa coisa de ter filhos e depois não saber se volta a trabalhar,
Anita comenta que desconhece alguma linha da Psicologia que vejo os impactos que isso tem na vida da mulher e não tem na vida do
apresente as mulheres que se propõe a enunciar, e que ela, psicóloga homem, nunca vi nenhum homem ser contratado ou não porque ele é
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pai”. Questões relacionadas à maternidade e trabalho mostram-se
presentes neste momento da vida de Anita onde realizamos nossos
diálogos, ela reconhece que sua militância é política, e que viveu
muito sexismo dentro da própria militância, em ambientes marcados
pelo masculino, representado igualmente pelo ambiente acadêmico
em situações de disputa por espaço, pela possibilidade de escrever. E
desabafa: “Estou vivendo agora o momento de escrever uma tese com
uma criança pequena, e as limitações que isso impõe por ser mulher”.
Anita defende que o feminismo contribui para essas reflexões, pensa
sobre estas distinções, sobre condições sociais, lugares sociais que
são indicados para mulheres, e que precisamos estar em resistência
permanente para transformar e conseguir ter uma formação mais
crítica, também do ponto de vista sobre leituras feministas.
Afetivamente verbaliza: “Não sei se eu respondi tudo, estou numa
fase um pouco difícil como eu te disse, tudo bem maluco na cabeça.
Estou fazendo as alterações da tese com criança em casa, estou
falando com você ao mesmo tempo. Sabe quando você pega para
sentar e fazer e não dá certo? Mas espero que tenha contribuído um
pouco, eu espero ter ajudado e aí se você precisar de alguma indicação.
Não sei como é que está a quantidade de sujeitos da pesquisa, eu
tenho outras colegas professoras também, que são militantes e poderia
te indicar. Mas se precisar de alguma coisa você me dá um toque e eu
tento ajudar no que for possível tá bem? Desculpa a brevidade das
respostas, mas estou com vários abacaxis ao mesmo tempo na mão,
correndo para um lado para o outro e eu espero que tenha contribuído
de alguma forma. A gente vai se falando. Beijo grande e força na
peruca aí nesse resto que falta de digitar o doutorado. Único conselho,
que não deixe para o final porque eu estou louca... deixei as entrevistas
para o final e o reescrever, mulher do céu, é um parto (risos) a gente
vai se falando, beijo grande”. Era a vida, vibrante em seus fluxos,
acontecendo durante as entrevistas realizadas nos entre espaços,
tempos e afetos.
L
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Nem sequer um dia, eu abracei “[...] espera aí, não dá mais para ser assim, eu preciso dar uma
a mulher desta narrativa, não virada nesta história e preciso agir de outra forma, de outra
olhei nos seus olhos, eu não forma como mulher[...] ali eu me percebi como mulher feminista
cheguei perto, e mesmo assim, a partir da minha própria vida, a partir da minha própria

Lygia ela esteve comigo. Como outras


mulheres colaboradoras da
tese, fui apresentada para Lygia
condição de mulher no mundo”. Agosto 2019.
Lygia inicia a sua narrativa contando como e quando começou a
se entender como feminista. Fala que a primeira coisa que precisa
Agosto 2019/ São Paulo e Goiás por uma amiga que havia se contextualizar para iniciar o assunto é o seu período de formação.
encontrado com ela nos “rolês Expõe que cursou Psicologia na universidade Federal do Rio Grande
acadêmicos” em tempos de do Norte no ano de 2002, até o ano de 2006. Naquele contexto a grade
doutorado sanduíche e que curricular era bastante tradicional e o foco dado às três grandes áreas
também está entre estes parágrafos. Ao procurar algum contato no tradicionais da psicologia brasileira, a psicologia organizacional,
facebook para a entrevista, eu já me encantei por ela. Lygia é arte mas aquela que não tinha uma discussão pensada através do social
pulsante/militante, é sarau… envolvida com movimentos culturais e o trabalho como temos hoje na psicologia. Outra escolar mais do
e sociais, faz de sua militância sarau na vida, mulher, psicóloga, que educacional, e a clínica apresentada por teorias dos sistemas
feminista. Lygia é uma referência a artista brasileira Lygia Clark, psicológicos, teorias de personalidade. Lembra que só veio ter uma
que propôs a desmistificação da relação entre a arte e o artista e a discussão sobre a psicologia e o contexto social brasileiro no quarto
desalienação do espectador com quem ela acreditava ser preciso ano de psicologia. Inclusive, isso foi algo marcante na sua trajetória
compartilhar a criação da obra, interessada com a participação profissional por ter sido onde, de fato, aconteceu seu encontro com
mais ativa do público em qualquer forma de exposição de arte. o que desejava da Psicologia, porque até então, não se identificava
Sinto na colaboradora desta narrativa o compromisso de Lygia muito com o que via na formação, apesar disso, queria continuar o
Clark, pois transparece o envolvimento de sua vida com trabalhos curso. Lembra que o primeiro ponto que precisa ser colocado, é o
voltados para o corpo, para o respeito às memórias, para a contexto de formação que recebeu, bastante diferente do que temos
provocação de diferentes emoções, uma canalizadora de suas a possibilidade de viver hoje. Lygia sinaliza o momento histórico
experiências. Ambas as Lygias estiveram comigo, estimulando da época, espaço onde surgiam políticas do SUAS, iniciando uma
cada órgão do sentido, provocados por tanta potência artístico/ discussão forte da atuação da psicologia nas políticas públicas,
política. Ao entrar em contato com Lygia, em 05 de julho de 2019 exigindo uma reforma curricular que é contemplada bem mais tarde.
através do facebook, contei da pesquisa, sobre o que chamava a Lembra que já tínhamos uma discussão sobre o compromisso social
da Psicologia, já que desde a década de 90 era possível ver os ensaios
minha atenção e incomodava a vida para escolher tal tema. Falei
desta discussão, mas acredita ser preciso contextualizar que também
que gostaria muito de sua participação como colaboradora das
nunca teve nenhuma discussão sobre gênero na formação acadêmica,
narrativas presentes na tese, ela aceitou de imediato, pediu para
era mantida a ideia de um sujeito universal a linguagem universal,
falar mais e já me passou o seu contato telefônico para facilitar
que era sempre posta no masculino. Reconhece que isso tem a ver
nossas conversações que aconteceram por mensagem e chamadas
com o período histórico de quando estudou. Recorda que logo após a
de vídeo por WhatsApp. Em quatro de agosto do mesmo ano, enviei formatura, foi trabalhar um ano no centro de referência especializado
os documentos referentes ao TCLE e as perguntas disparadoras de assistência social em um município do Rio Grande do Norte,
para nossas conversações, depois de vinte dias estávamos nos com o serviço de enfrentamento à violência sexual contra criança e
falando, e ela narrava com afeto e comprometimento suas adolescente e que desta experiência, surgiu a pergunta da pesquisa
andanças, descobertas, artes.
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do seu mestrado. Desejava estudar a constituição da identidade de dar aula, justamente nesse processo de elaboração, se deu conta que
crianças vítimas de abuso sexual. Depois que terminou o mestrado, o ex-namorado tinha alguns daqueles comportamentos em relação a
ingressou em uma universidade de Natal, onde foi docente por 4 ela, com exceção da violência física, mas que sofria com a violência
anos e meio e fazia ações de ensino, pesquisa e extensão. Porém o patrimonial, violência simbólica, violência psicológica, inúmeras
fato é que passou a se entender como feminista não pela docência, formas de violência e vendo a relação entre aquelas informações e
mas pela própria condição de mulher e, inevitavelmente, defende a própria história, sentiu: “[...] como se uma bigorna tivesse caído na
que não existe possibilidade de uma docência que seja imune ao minha cabeça, no sentido assim: nossa como eu nunca tinha visto
posicionamento pessoal, assim se enunciava uma docente feminista. isso... foi como se tivessem tirado um véu da minha cara e eu passei
Lygia não consegue precisar uma data, nem situar um ano, quando a enxergar a relação de uma outra forma e passei a me colocar de
começou a se entender feminista, mas precisa dizer que viveu uma uma outra forma. Eu estava em processo terapêutico, porque, como
relação abusiva de sete anos e não percebia. Conta que como toda toda relação abusiva, estava bastante esfacelada neste processo”.
relação abusiva existe uma série de mecanismos que invisibilizam Lembra que o parceiro a desautorizou como pessoa no mundo de
o nosso entendimento do que está acontecendo, pela forma como o inúmeras formas, com mecanismos abusivos, causando sérias
poder é operado, nas minúcias, algo que inicia revestido de cuidado e implicações subjetivamente falando, na forma como ela conseguia ou
que depois passa a ter contornos extremamente violentos e tudo mais. não se colocar, refletindo nas relações interpessoais gerais, não só em
Então, quando ingressou na docência, no ano de 2010, já estava com relação à docência. Lembra ter pensado: “[…] espera aí, não dá mais
essa pessoa há alguns anos e permaneceu com ela até o ano de 2012. para ser assim, eu preciso dar uma virada nesta história e preciso
Narra que durante este período, de 2010 a 2012, vivenciou uma série agir de outra forma, de outra forma como mulher. Ali eu me percebo
de transformações na vida pela própria prática docente. Ela defende como mulher feminista a partir da minha própria vida, a partir da
que o espaço da docência é um espaço muito potente no sentido de minha própria condição de mulher no mundo”. Lygia narra que não
que você está se oxigenando nele o tempo inteiro, em contato com foi a prática docente que a levou a este entendimento, não foram
muitos assuntos e o fato de ter discutido sobre violência sexual na estudos teóricos que a trouxeram a se entender como feminista, e
infância no mestrado se apresentava com frequência no relato das sim a experiência de vida que a possibilitou acessar isso. Reconhece
alunas, “[...] muitas vezes, muitas não todas as vezes que eu dei aula que não esteve sozinha neste processo, estava amparada por redes
sobre esse tema alguma aluna me procurava para relatar que tinha afetivas. Ela considera importante lembrar que a partir do ano de 2010
sofrido abuso sexual, tiveram também situações de meninas que para cá, tivemos um “bum” grande de conversações sobre o assunto
relataram na própria sala de aula e seus colegas não souberam manejar da violência contra a mulher nas redes sociais. Neste compartilhar de
a situação no sentido de não ter uma acolhimento, eu estou te dizendo, experiências, ela percebeu que sua história não era única, inúmeras
reproduziam o relato das meninas de não se sentirem acolhidas”. Nesse outras mulheres tinham vivido a mesma coisa e ela se reencontra com
processo, acaba se enveredando para as discussões sobre as interfaces muitas amigas da adolescência nessas histórias. Conversou com estas
da psicologia com os direitos humanos, com as políticas públicas e mulheres sobre uma série de homens que foram abusivos, violentos
psicologia social comunitária, quando muitas contam de violação de e elas não sabiam o que eram aquelas relações. Lygia conta que hoje,
direitos no sistema prisional, acolhimento institucional de crianças aos 35 anos de idade, lembra que sua infância foi pré Estatuto da
e adolescentes vítimas de violência, no sistema socioeducativo, Criança e do Adolescente, acredita que tal fato teve impactos sobre
questões de pobreza, temas importantes para os estudantes e para ela ser uma garota nesta época e revê como os homens se relacionavam
como docente. Descreve como quão marcante foi o momento de ser com ela desde a infância, não no âmbito familiar, mas no societário,
convidada para dar uma aula no curso de especialização de psicologia na rua, episódios corriqueiros, como ela narrava: “[...] um cara vem
jurídica sobre violência contra mulher e nesse processo de elaborar me pedir informação e me mostrou o pau dele e eu com 7 anos de
todas as aulas, acessar a Lei Maria da Penha e preparar o material para idade não sabia o que fazer, corri para casa de uma amiga contar
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isso para mãe dela e a mãe dela fica em absoluto silêncio. E aí eu ainda preciso me apropriar muito porque em toda minha formação
passei a entender que a gente não podia falar sobre isso. Eu acho que profissional isso não esteve presente e o contato que eu tenho com
eu sou de uma geração que teve que se transformar junto com essas essas discussões é um contato muito dentro da universidade, ele é
coisas, pelo menos é assim que eu avalio porque agora temos muito um contato muito recente é uma coisa de cinco anos para cá”. Lygia
acesso à informação, à experiência de várias pessoas, muito acesso narra que como o foco de suas pesquisas não era gênero, mas a arte,
para conversar com pessoas de diferentes lugares”. não havia se aprofundado em estudos que discutiam o assunto. Que
sim, teve contato com a militância feminista, mas não na formação
Por estes motivos, acredita que a internet contribuiu demais neste academia, e que agora, durante o doutorado, pode se apropriar de
aspecto de divulgação, denúncia, enfrentamento da violência, mesmo tais temas e pretende trazer estas discussões para sua prática docente
com todos os malefícios que também existem nas redes sociais, ela na formação em Psicologia. Quando começamos a falar sobre
ajuda na constituição e na sua descoberta de ser uma mulher feminista. universidades que possuem em seus currículos a disciplina de gênero,
Lygia acredita que por esta falta de oportunidade anterior, de entrar cita que em Santa Catarina, na Federal do Rio Grande do Norte estas
em contato com estes assuntos, não teve tempo hábil para incorporar propostas já estão presentes. Salienta a importância do movimento
tais discussões à docência, não lecionava perspectivas feministas, do corpo docente, que exige reformas curriculares para trazer essa
não propunha discussões a partir de perspectivas feministas, discussão, além daquelas relacionadas às questões étnico-raciais e as
justamente porque não tinha essa trajetória teórica. Em 2014, quando diferentes mudanças societárias das quais a universidade não pode
vai para Santa Catarina iniciar o doutorado, começa a ter contato com ficar alheia, apesar de ainda ser um território elitizado, embranquecido,
discussões de gênero, narra com entonação afetiva que não foram mesmo com todas as aberturas de uma série de políticas públicas
apenas discussões teóricas sobre gênero, havia naquele lugar vivências de ensino. Lygia acredita que, prospectivamente, teremos inúmeros
dos movimentos feministas, reflexões sobre os marcadores sociais efeitos destas lutas no âmbito da Psicologia, no modo de formação
que atravessam a condição de mulher. Naquele momento entende que, profissional, analisa o cenário acadêmico atual já diferente. Mas
realmente, temos estudos e teorias feministas, de gênero, reconhece teme os acontecimentos de retrocesso que estamos vivenciando, o
que estas mudaram suas intervenções profissionais, somadas as suas conservadorismo, o retorno de discursos patriarcais, os resquícios de
experiências como mulher, justamente a partir da sua corporalidade no um país colonizado, a tentativa política atual de frear ou retroceder
mundo, provocando mudanças em suas intervenções profissionais. No os avanços das intervenções da psicologia. Inclusive das disputas no
momento de nosso encontro, Lygia estava afastada da prática docente campo da psicologia, uma disputa na própria área, que apresentam-se
para o desenvolvimento da pesquisa, inclusive defendendo sua tese na como movimentos conservadores internos. Ela reconhece que ainda
semana em que conversamos, mas diz ter certeza que a partir destas temos muitos caminhos a trilhar, precisamos provocar uma série de
experiências no doutorado, todo o universo das teorias e movimentos mudanças e transformações para conseguir transformar a Psicologia
feministas expandiram seu olhar em relação ao feminismo. Acredita de fato. Desconfia da transformação na Psicologia como todo, uma
que toda a experiência vivenciada mudará o modo de se apresentar Psicologia feminista, diz que, sinceramente, não sabe se poderíamos
na docência, de trabalhar essas discussões e comprovar a maneira falar em uma psicologia feminista e que as perguntas da tese a fazem
como elas atravessam seu jeito de se colocar mundo, “[...] é como eu pensar em uma série de situações que ainda não havia refletido. Porém
te falei antes, eu não vejo uma forma da gente se colocar na prática acredita na força de pesquisas e modos de docência e extensões que
profissional, como docente, eu como psicóloga de uma instituição, certamente geram efeitos na formação em psicologia através da
sem o nosso atravessamento como sujeito no mundo, como pessoa no obrigatoriedade destas disciplinas nos currículos. Lygia comenta que
mundo. Mas a sensação que eu tenho é que eu ainda preciso estudar estas mudanças podem provocar psicólogas e psicólogos para olhar
uma série de epistemologias feministas para poder discutir este tema de forma diferente a prática em relação a questões étnico-raciais,
em sala de aula. Vejo algo como um campo de estudo que eu, de fato, sobre colonialidade e as discussões sobre os povos originários, as
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redes de saberes tradicionais, temas que vem imprimindo uma série
de mudanças na formação em psicologia. Eu ouvia com admiração
e atenção suas reflexões, desenvolvia uma única certeza, realmente
eram nestes espaços de encontro e diálogos que encontraria as linhas
para desenhar os atravessamentos desta tese. Ela encerra dizendo,
“Espero que tenha contribuído, espero que dê tudo certo na sua
pesquisa e pode contar comigo, seguimos um diálogo em momentos
posteriores”. Eu continuo, mesmo de longe, acompanhando a trajetória
política de Lygia.
C
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Conceição é uma das mulheres “[...] Eu sou realizada por ter escolhido a minha profissão, por
que eu sentia que faria parte da ter escolhido as minhas relações, por ter a possibilidade de ser
pesquisa. Suas falas estariam também mais livre nas minhas escolhas”.
entre as linhas, sua potência

Conceição
surgiria como companheira O primeiro contato para falar sobre a pesquisa aconteceu por telefone
no processo de escrita desta em julho de 2018, quando eu ainda tateava o tema, só depois de um
Junho 2019/ Paraná tese. Como me faz falta a sua ano volto a falar com ela sobre o desejo de ouvir suas narrativas para
presença, sinto vontade de a construção da tese. Enviei os documentos necessários e, em menos
tomar cerveja com ela e ver os de dez dias, estávamos montando nossa ciranda narrativa realizada
seus lábios, desenhados por no WhatsApp, por áudio e trocas de mensagens, era 24 de julho de
batom vermelho, tagarelando 2019. Ela enviou um áudio me avisando que gravaria naquele momento
calmamente a vida em sua irreverência. O corpo dela ecoa (hora do seu almoço) porque tinha receio de não encontrar tempo de
militância, a sua vida é política. E ela esteve comigo mesmo parar novamente. Começa questionando novamente se pode ser
quando questionada sobre a importância de sua narrativa para colaboradora da pesquisa por ver o feminismo como orientação
a pesquisa: “[...] Oi Bárbara, estou lendo a apresentação e as política para sua vida e mediação dos seus estudos e prática mas de
questões da sua pesquisa, fiquei com uma dúvida: o feminismo não contemplar como centralidade de suas pesquisas, mesmo assim
para mim é uma orientação política, não é o objetivo principal enviaria sua narrativa para aproveitar a nossa conversa. Afirmo que
dos meus estudos em psicologia, também permeia a minha sim, que a narrativa dela faz parte do que pretendia cartografar, que
prática, mas não enquanto centralidade, essa condição contribui as narrativas não necessariamente precisavam ser expressas nos
para sua pesquisa? ” Claro, era com estes corpos e suas narrativas planos de ensino, e sim nas relações acadêmicas que ocorrem no
ensino, pesquisa e extensão. Conceição revela que ficou tentando
que eu gostaria de dançar cirandas teóricas e afetivas, pensar
recapitular na sua história, quando teve a certeza de ser uma mulher
em práticas feministas na formação em Psicologia. Foi com esta
feminista. Acredita que esta intersecção do feminismo com sua
pergunta feita por ela, que escolhi representá-la na pesquisa,
história veio por meio das suas irmãs e também através das relações
recordando de Conceição Evaristo, grande expoente da literatura
que elas estabeleciam com os homens, com os namorados, o que era
brasileira contemporânea, educadora, romancista, poeta, contista,
contraditório, mas eram nestes momentos que se percebia como
feminista, negra. A Conceição “dona desta narrativa”, tal como a feminista. Diz isso porque, por meio das irmãs, começou ainda
Conceição dos “Olhos D’água”, expõe suas escrevivências repleta criança, a ouvir discursos em defesa da mulher. Tinha seus dez, onze
de metalinguagens, onde a elaboração dos parágrafos vai colher anos e narra que não entendia aqueles discursos que elas defendiam.
na liberdade de se contar ao outro, os movimentos que constroem Achava até chato porque traziam certos conflitos, sobretudo com os
nossas alianças, que oferecem ao corpo o prazer de dançar e cantar pais, mas reproduzia o que as irmãs diziam mesmo sem compreender
por dentro... de fato sobre o que falavam. Conceição conta que acreditava que o
modo como elas se relacionavam com os namorados e como seu pai
se relacionava com a mãe, era aquele que entendia que amar era
deixar o homem fazer tudo que gostaria com a mulher, e isso fazia
com que Conceição não tivesse vontade de amar, de namorar,
provocava vontade de correr dali. A concepção que ela tinha de
namorar e de amar estava relacionada com a submissão plena da
mulher e ela compreendia que não queria isso. Aos quinze anos,
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encontrou com algumas amigas que compreendiam desse modo começo de suas atividades docentes em estágio específico, há quatro
também, que o amar comum, o namoro hegemônico é aquele que anos, desenvolve grupos que atendem mulheres em condições de
submete a mulher, e nestes encontros começou sua aproximação com violência em diversos espaços, em geral em políticas de saúde ou de
a perspectiva feminista. Agora conseguia visualizar a contradição assistência social e isso ocorre não porque coloca o tema norteador
das irmãs, porque diziam o que era o feminismo enquanto discurso, do projeto que apresenta, mas porque os estabelecimentos apresentam
porém na prática mantinham formas submissas de relacionamento estas demandas e as alunas que têm interesse em discutir a temática
com os namorados. Conceição conta que esta contradição ainda está proposta. Quando respondia a pergunta sobre se a docência em
presente na família, e que as suas mudanças do estar mulher docente Psicologia já era uma atividade durante a descoberta de ser mulher
feminista, que se nomeia mulher feminista, trouxe muita dificuldade feminista, lembra o que disse anteriormente, que não, já que a
de se relacionar, acreditando que até hoje existe um embaraço sobre a docência é uma atividade de apenas cinco anos, e a sua constituição
questão entre o amor e submissão. Conceição narra suas inquietações como feminista se faz presente na sua trajetória desde a adolescência
e vivências: “O que é amor, o que é submissão, isso é uma questão até a vida adulta, em alguns momentos mais próximos, outros
para mim bem enrolada, mas também por outro lado, altamente momentos mais distantes. Quando falamos sobre universidades que
libertadora, porque eu me sinto mais realizada nas minhas verdadeiras apresentam teorias e movimentos feministas como proposta de
ambições, nos meus verdadeiros motivos. Eu sou realizada por ter práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica, diz
escolhido a minha profissão, por ter escolhido as minhas relações, não ter acesso a esta informação. Pode falar da sua formação, da
por ter a possibilidade de ser também mais livre nas minhas escolhas. apresentação de algumas autoras, sobretudo Saffioti, que trata do
Por exemplo, de não seguir o mesmo rumo das minhas primas que feminismo, mas não sobre outros estabelecimentos. A quarta questão
casaram com homens ricos e que hoje em dia ficam disputando qual tinha como propósito pensar sobre o que pode ser empecilho para o
tem a casa com a porta mais bonita. Então quando eu olho para aquilo, feminismo na formação em Psicologia, Conceição diz que consegue
eu vejo que talvez a minha trajetória tenha sido mais conflituosa que pensar em dois pontos, o primeiro a própria Psicologia, por ser ainda
a delas, mas é porque eu comecei a questionar isso mais cedo, mas, ao uma ciência conservadora, uma ciência elitista, conservadora porque
mesmo tempo, é mais libertador”. Sobre o impacto de ser feminista e ela vai somar os seus esforços teóricos e técnicos, procedimentos
ser também mulher docente, Conceição diz permeando a sua prática técnicos de intervenção, para adaptação, para manutenção da
e seu posicionamento, sobretudo na questão ética e política, isso vem sociedade, com teorias e práticas voltadas para adaptação do sujeito
permeando o seu discurso, vê como se já estivesse ligado a sua figura, a essa sociedade. Continua pontuado sobre uma sociedade altamente
porque observa que as alunas que desejam debater o feminismo e tem desigual, formada pelos princípios do patriarcado, do machismo onde
interesse nas questões feministas ou mesmo os alunos mais algumas práticas e teorias da Psicologia não superam essa condição,
progressistas, sabem que ela não estuda o feminismo especificamente, nem mesmo se propõe a superar essa condição. Então acredita que o
ou tem uma prática diretamente voltada a formação feminista, porém, empecilho que temos na psicologia é a própria psicologia hegemônica,
tendem a se aproximar dela, em sala de aula, nas atividades de ensino, tradicional, acrítica, que tem a sua força justamente na adaptação do
extensão, bem como no estágio e na pesquisa pelo seu posicionamento indivíduo à sociedade. Outro empecilho citado por Conceição são as
crítico sobre o tema. Conceição narra sobre as questões de trabalho e circunstâncias históricas, o momento histórico que estamos vivendo,
gênero com que trabalha, fala de autoras com as quais dialoga, momento contra revolucionário como ela diz, um momento repressor
sobretudo nos estágios, cita Saffioti como uma autora importante que estamos revivendo. Ela narra que entende tal momento como se
para os debates propostos. Diz que ela surge como leitura necessária fosse a própria história nos cobrando aquilo que deixamos de fazer
às demandas encontradas nos espaços de estágio como tantas outras enquanto coletividade, enquanto sociedade e que, infelizmente,
que vão aparecendo com estas demandas. Ao descrever sobre tais vamos ter que encarar, “[...] vamos ter que olhar esse monstro no olho
experiências de estágio na formação em psicologia, traz que desde o e furar esse olho, matar esse bicho aí, então acho que o momento que
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nós estamos vivendo também não é propício, mas pensando o psiquismo não se explica por ele mesmo, é preciso compreender o
contraditoriamente é um momento necessário desse debate corajoso”. psiquismo na relação com a sociedade [...] mas vejo que o feminismo
Ela reconhece os perigos que a própria psicologia conservadora e o ainda não está na Psicologia”. Esta é a narrativa de Conceição, uma
momento histórico nos coloca e pontua que o feminismo não é para narrativa franca, sem pretensão alguma de agradar ou concordar,
todas, ainda é um feminismo de classe e escancara: “[...] esse porém alegre com a possibilidade de novas reflexões, novas
feminismo não me interessa, eu compartilho do feminismo que experimentações, ela continua comigo citando Cleonio Dourado...
compreende a necessidade da emancipação da mulher para todas,
como uma condição social para todas as mulheres”. Conceição “Uma hora tudo se ajeita, tudo se acalma, tudo que é bom volta. Uma
comenta que tem dificuldade de analisar o que vem sendo produzido hora o que vai te fazer sorrir bate na sua porta, pula a sua janela,
de pesquisa, ensino e extensão para a psicologia feminista, por não se invade sua casa e colore a sua vida” Cleonio Dourado.
aprofundar nas leituras e não ter muito contato com as pesquisas com
esta temática. Ela entende estas práticas como inovadoras, considera
muito pertinente e tem interesse para os temas que vem discutindo
em estágio, acredita no efeito transformador desta psicologia
feminista, efeito de formar sujeitos psicólogos capazes de lidar com o
sofrimento que o machismo causa, com a necessidade da emancipação
das mulheres. Vê que contribui para uma formação crítica e
politicamente posicionada em Psicologia, o que, infelizmente, é
atitude ideológica de uma pequena ala docente dentro da psicologia,
e faz uma ressalva: “[...] E aqui o ideológico no sentido do marxismo,
de mediar uma formação mais crítica e mais transformadora na sua
ação, na sua intervenção e isso vai impactar no serviço que a Psicologia
vai prestar à sociedade ou no impacto que a Psicologia vai provocar
na sociedade. E este impacto seria para transformação das condições
atuais não é para condição de opressão da mulher, já que a condição
de opressão da mulher atinge a todos”. Conceição alerta que não tem
como pensarmos que a Psicologia vai fazer tudo sozinha, mas se não
fizer o que pode ser feito, contribuirá para que a sociedade permaneça
como está. Para ela, a Psicologia pode contribuir para a revolução
feminista através da formação de sujeitos implicados, aqueles que
pensam criticamente sobre os feminismos, e este pode alavancar a
Psicologia, provocar essa ciência que ainda tem certos núcleos que a
consideram uma ciência neutra. “Eu acho que o feminismo dá espaço
para gente superar de uma vez por toda essa condição de neutralidade,
essa condição de acriticidade, essa condição desumana provocada
por uma psicologia que universaliza o sujeito, desumaniza a mulher,
o conjunto de relações, que compõem essa mulher. Acho que o
feminismo possibilita a abertura da psicologia, para compreender que
F
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Com o objetivo de expor “escritas “[...] Acho que tem duas coisas que a gente precisa aumentar,
com letras vivas” (RAGO, primeiro esse número de pesquisas e estudo de mulheres dentro
2013) enquanto experiência da graduação e então uma faxina epistemológica das teorias
estilística desta pesquisa, eu, clássicas que a gente conhece”.

Frida
Agosto 2019/ Brasília, Distrito Federal
curadora cartográfica (como
metaforicamente me enuncio),
iniciei a expografia buscando
Ao ouvir suas primeiras palavras, de imediato, lembrei da ousadia de
Frida Kahlo, de suas cores, expressões, daqueles corpos que optam
em meu acervo afetivo contatos pela performance sem receio dos riscos de expor-se, como em um
que indicariam as autoras das autorretrato, que defendem o franco falar, a voz eminentemente
obras de arte presentes nesta política, artística, envolvente. A Frida protagonista desta narrativa, é
exposição em formato de tese. aquela mulher que corre os riscos de abrir um diálogo refletindo
Entre corpos, fotos, filmes, viagens, músicas e poemas, a coletânea criticamente sobre o que a cultura cisheteronormativa impõe ao
se fez transgeográfica e promoveu encontros que colaboraram gênero, eletrizada pela paixão de estar mulher. Em suas primeiras
palavras, Frida já expõe suas micropolíticas ao dizer que sempre foi
para a construção de espaços comunicativos, aqueles que narram
feminista. Desde a infância, sentia um estranhamento do que era
reinvenções subjetivas, invadindo de afetos minha intenção de
esperado dela por sua família e pessoas próximas, do que era ser uma
estar colecionadora de vozes. No primeiro momento que estive
menina, o que lhe causava estranheza por ser tão diferente de seus
em contato com a artista/colaboradora desta narrativa, fevereiro
interesses, de sua curiosidade e ousadia. Ela contextualiza os
de 2019 por WhatsApp, ela viajava. Misturava-se ao céu escuro
entrecruzamentos do seu ser menina e feminista contando: “Gostava
pintado de verdes luminescentes... compunham, ela e a natureza, de ser ativa, gostava de mergulhar... quando eu era adolescente ou
auroras boreais que certamente, marcaram minhas fantasias sobre pré-adolescente fazia muitas atividades, nem tanto esporte, mais
as cores infinitas do universo das relações. Nas fotos postadas brincadeiras. Os assuntos das mulheres eu achava muito chato a
por ela no facebook, eu não conseguia diferenciar se era a Frida preocupação delas na adolescência era com roupa e maquiagem,
colaboradora da tese que pintava o mundo ou se o mundo fazia achava um saco. Eu sempre fui cientista, por exemplo, nas férias eu
dela protagonista de suas telas. No dia quatro de agosto do mesmo gostava de ver coisas no mar, mergulhar, conhecer, eu sempre gostei
ano, volto a procurá-la e convidar para participar da entrevista, muito de estudar e isso era uma coisa que todo mundo achava muito
apresentar o projeto da pesquisa e enviar o TCLE. Ela estava na estranho, porque eu senti uma cobrança até mesmo dos namorados,
correria da vida, montando cursos, com a agenda lotada de eventos por isso nunca ter sido o foco da minha vida, nunca sonhei em ser
e em processo de mudança, mesmo assim, ela aceitou estar comigo mãe”. Frida sabe que existia esse estranhamento, porém só foi
e com a pesquisa. E no dia onze de setembro, o celular literalmente entender o que era feminismo, nomear este mal-estar e politizar sua
VIBROU com os tons sonoros que chegavam por áudio de voz. ação quando adentrou na universidade. Comenta que na universidade,
quando tinha por volta de uns vinte e três anos, participou de uma
disciplina que considera muito importante para esta conscientização
que foi a de “filosofia e feminismo’’. Foi seu primeiro contato com
teóricas feministas, importante para sua formação e para o seu fazer
psicologia. Frida salienta que primeiro cursou Filosofia e depois
Psicologia, sendo que na época já estava fazendo doutorado. Mesmo
que no seu doutorado não pesquisou gênero, toda a sua atuação
profissional era para área, ela trabalhava com psicanálise e
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psicopatologia na área da saúde mental e relata que o “[...] gênero teóricas que eu precisei de um percurso de vinte anos para poder
entrou pela porta dos fundos” mesmo porque, não conseguia escutar fechar esse artigo que é uma leitura de entrada da psicanálise e é isso
as mulheres e os homens em situação de sofrimento sem entender a então que eu acho que o feminismo fez total diferença na minha vida
participação do gênero como fator fundamental. Não só na escuta e no meu percurso como professora, como pesquisadora e com a
desses sujeitos e seus sofrimentos, mas nos gatilhos que provocaram clínica”. Para além dos discursos teóricos proferidos/catequizados na
esta quebra psíquica e a necessidade de levar em consideração esses formação acadêmica, Frida relata que já no início de sua vida docente,
aspectos na intervenção. Frida complementa: “Então eu acho que os um ano depois de ter feito a disciplina de Filosofia e Feminismos,
feminismos transformam não só o próprio objeto de interesse, ou inseriu questões de gênero em seus conteúdos, não com a intensidade
seja, tem também temas que surgem como novos, temas antigos que de hoje, mas estavam presentes em seus debates. Ela remonta seu
passam a ser compreendidos numa outra perspectiva, o gênero é um percurso de apresentar na prática docente, cada vez mais esse recorte.
portal para discussões de raça. Quando a gente pensa na necessidade As lembranças remontam espaços e trânsitos acadêmicos que temos
de ser antirracista, depois que você tem um letramento racial, não em comum quando Frida responde sobre conhecer universidades que
tem como você enxergar nenhum fenômeno humano que não leva em apresentam em sua grade, temáticas e teorias de gênero. Nós duas,
consideração esses dois aspectos”. Defende que está acontecendo em épocas distintas, fizemos parte do corpo discente da Unesp de
uma transformação da visão de mundo, de ciência, uma passagem Assis/ SP, e concordamos com a intensidade a qual o tema é pesquisado
profundamente dolorosa porque resignifica tudo o que já foi e proposto nesse estabelecimento de ensino. Frida cita também a
vivenciado. Mostra o mal-estar que o sujeito sente, reforça que é uma UFBA, pois acredita serem poucas aquelas que sugerem estas
transformação dolorosa, de politização e ressignificação do sofrimento discussões de gênero e questões raciais, ainda menor o número das
e isso reflete em suas pesquisas, está presente nas orientações em que referenciam o feminismo interseccional, o que considera
grupos de estudo, de mestrado, doutorado, através de revisão da lamentável. Em uma pesquisa realizada por ela e seu grupo na
literatura sobre gênero. Frida conta que o interesse por este tema em Universidade de Brasília, citou vários psicólogos de abordagens
suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, são constantes e não diferentes, sendo a maioria profissionais que vieram de faculdades
uma exceção, mas pontua que, apesar dos processos de tornar-se particulares do Distrito Federal. Constataram que nenhum participante
homem ou mulher, de falar na academia sobre questões minoritários, verbalizou ter alguma disciplina sobre gênero, ou teorias sociais e
estigmatizados, ser uma constante em sua prática pedagógica. Sente feministas durante a formação acadêmica. Frida reforça essa falha e
tal opção como algo caro, marcado por várias micro violências, mas aponta diferenças sobre o que estava narrando: “Olha só, teoria
fenômenos que surgem para ela como uma reflexão digna de pesquisa. feminista é uma coisa e movimento feminista é outra coisa, então
Salienta a importância de uma releitura de objetos/teorias que eram quando eu respondo a pergunta anterior eu estava me referindo a isso,
vistos como universais, inclusive, as que recebeu na própria graduação: (presença de teorias feministas em grades curriculares). Agora, sobre
“[...] quem é você para questionar isso?”. Realmente, um testemunho uma Psicologia Feminista eu acho que praticamente nenhuma
sobre os dispositivos de controle realizado pela universalidade das universidade tem trabalhado com isso e a psicoterapia feminista
teorias sobre nossos corpos, da autoridade epistêmica que sequestrava menos ainda”. Ela cita uma experiência que tiveram na clínica escola
e ainda sequestra a potência da diferença, ratificada na medida que da UnB sobre Psicologia Feminista e me conta que estão articulando
nos calávamos ou ainda nos calamos. Porém, a narrativa de Frida me para virar um projeto de oferta continua para comunidade, de
conduz ao conceito foucaultiano de “escritas de si”, de construção da extensão, para atendimento à mulher. O projeto foi proposto para
subjetividade que propõe a abertura processual do ser como devir. acontecer em dez sessões, onde trabalharam o dispositivo amoroso
Inclusive, quando ela diz que a dois anos atrás, publicou um trabalho materno, as questões de violências o que se fez de maneira bem
que escreveu quando tinha vinte e três anos, contando com interessante, além da ideia de trabalhar com as interseccionalidades,
empolgação: “Foi muito legal retomá-lo para poder preencher lacunas realizando o atravessamento das questões raciais e orientação sexual,
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de diversidade e das violências existentes em nosso país. Frida reflete para o perigo da captura e esvaziamento de nosso potencial ético,
criticamente: “A questão racial tem que estar assim, talvez número estético e político. Entre estes diálogos, Frida me faz o convite para
um. O que tem sido produzido pela psicologia feminista no Brasil é conhecer o projeto de atendimento à comunidade sobre o qual falava
incipiente, praticamente inexistente, acho que está muito aquém anteriormente, me indica livros e artigos e envio o PDF da obra que
quando a gente compara com países como os Estados Unidos e havia publicado há um ano, indicando inclusive o blog do seu grupo
quando a gente pensa, por exemplo, essa influência do movimento de pesquisa, mais um canal para nossos encontros. Encerramos a
feminista nas Psicologias. Tanto que a própria psicologia é uma entrevista naquele dia, a ENTREVISTA, porque ela continua comigo.
grande tecnologia de gênero ainda no nosso país, serve para um
adestramento do desejo das mulheres. Eu acho profundamente
reacionária por exemplo a questão da maternidade, eu acho que a
gente ainda tem que andar muito, então quando você me pergunta o
que está sendo produzido, eu acho que muito incipiente. Acho que
tem duas coisas a gente precisa aumentar, e esse número de pesquisas
e estudo de mulheres dentro da graduação e uma faxina epistemológica
das teorias clássicas que a gente conhece. Mas também sair só das
federais, porque a gente também tem um papel muito grande das
faculdades particulares”. E eu concordava, movimento a cabeça
afirmativamente, olhando para aquela tela de celular como se
estivéssemos cara a cara. Frida acredita que a Psicologia precisa se
reinventar, pensar no papel dos feminismos e sobre os saberes
produzidos também na América Latina, já que os nossos problemas
são específicos daqui. São reflexo do processo de colonização, daí a
necessidade de criarmos não apenas conceitos, teorias, mas também
formas de intervenção específicas que respondam às demandas
latinas. Surgiam em nossas conversações exemplos de experimentados
no ensino, pesquisa e extensão, críticas ao sistema opressor instaurado
por lógicas masculinas as quais desejam delimitar os espaços da
mulher na família, na sociedade e claro, na universidade. Todavia, os
respiros emergiam por outras cores, desenhos, estilísticas que
promovem outros modelos de existência, múltiplos, inventivos,
libertários para as mulheres, modos específicos de escape destes
lugares hifenizados, intervenções éticas que renovam o imaginário
político e cultural de nossa época e possibilitam reflexões anunciantes
da formação feminista em Psicologia. Conversávamos sobre as
reivindicações e demandas apresentadas para a Psicologia na
contemporaneidade, as quais nos convidam a reconhecer os limites e
perigos de uma formação descompromissada com os estudos
feministas, da interseccionalidade, dos movimentos sociais, exigindo
a reelaboração de grades curriculares e planos de ensino, como alerta
S
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Suely é o nome que escolhi “[...] Talvez o nosso caminho seja de atuar em sintonia, de tornar
para apresentar a mulher esses indivíduos mais fortes, ou de descongestionar a força, no
desta narrativa. Foi pensada sentido de possibilitar que se identifiquem com a sua força, a

Suely
como homenagem à Suely reconheçam, e como essa força afetiva, que é força de vida, pode
Rolnik, psicanalista brasileira auxiliar no enfrentamento de uma situação de abuso, na situação
e grande referência quando de violência”.
busco a potência e ousadia da
Maio 2019/ Paraná perspectiva pós-estruturalista Era maio de 2019 quando mandei por e-mail as questões disparadoras
para pensar com Rolnik, Guattari da pesquisa e o TCLE para que Suely verificasse os termos da mesma
e Deleuze, as cartografias e logo em seguida, marcamos para conversar. No dia 14 de junho do
sentimentais e os processos mesmo ano, começamos nossa conversação por áudios de WhatsApp.
de rebeldia contra a vida e pesquisa cafetinadas, insurreições Sueli começou falando que quando pergunto sobre como e quando
que libertam o corpo capturado e convidam ao devir mulher. A começou a se entender feminista. Lembrou que esta pergunta a
mulher desta narrativa é parceira de longa data, trabalhamos na incomoda há um tempo, pois às vezes tem dúvidas de quando isso
mesma universidade, porém em campus de cidades diferentes, começou, porque parece que na sua história chegou um momento na
com diferentes demandas, necessidade, culturas e histórias, vida em que encontra teoria, mas que já tinha um sentimento e um
mas com mulheres, estudamos gênero, falamos da beleza da desejo muito forte por justiça e igualdade que reflete os ideais
diversidade. Nossos encontros são agendados pela vida docente, feministas antes da teoria. Conta que ao refletir sobre suas vivências,
porém engendrados por diálogos de luta, militância, dos corpos lembra que quando criança, ouviu a história de um pai que abusava
políticos que se jogam em corredores universitários e eventos da da filha, lembra de ter ficado vários dias afetada e pensando naquela
graduação e pós-graduação. Nossas linhas rizomáticas se tocam situação. Verbaliza que em outra situação, quando estava na quinta
na teoria, nos interesses sobre sujeitos, nos diálogos feministas. A série, teve um momento bem particular e que talvez seja mais
significativo de quando se entendeu feminista. Narra que ligou para
entrevista com Suely não foi nada tímida, invadiu outros espaços
uma amiga para falar sobre um trabalho escolar, na época tinha 10
além do combinado para o encontro, estendeu-se às mensagens
para 11 anos, e a colega pediu socorro, o pai dela estava ameaçando
e áudios de WhatsApp e facebook e alegrava-se a cada “fala mais
ela e a mãe de morte com arma e estava com medo de sair de casa, e
um pouco disso para mim? ”. Sua narrativa apresenta lembranças
ela falava sussurrando porque o pai estava próximo e o pavor era
de suas vivências, surge no formato de diário revisitado, conta a
evidente, como o sentimento de impotência, indignação e revolta.
vida expondo a sua intimidade nas andanças enquanto docente, Disse que nunca mais conseguiu olhar para uma situação de violência
psicóloga e pesquisadora. Acredito que a liberdade dada à língua sem remeter àquela cena, sem lembrar da sua sensação de impotência.
foi sensibilizada por nossa amizade, pelo modo como torcemos Esta lembrança a fez pensar que talvez aí esteja algo que fez ela tentar
uma pela outra, e a frequência de nossos encontros nos múltiplos lutar, para encontrar meios de ajudar essas mulheres, lutar por outras
presentes da vida docente. Nos entremeios da entrevista, ela coisas e por outras vidas possíveis, por outras formas de se
doutorava, terminava uma tese, revisitava a vida de pesquisadora relacionarem com as pessoas. Reconhece que estes pensamentos
e estava comigo... ainda ficavam no campo do desejo, nesse campo da inquietação, da
reivindicação de alguns lugares com os amigos, com a família e que
desde muito cedo começa a ser identificada como uma mulher forte,
fruto desse processo de reivindicação. Retomando todas estas
90 91
lembranças, conta que ao adentrar na faculdade, passou por um a procura pedindo para que Suely curasse o filho dela, porque o filho
relacionamento abusivo e logo depois desse relacionamento abusivo, dela gostava de fantasias, de cor-de-rosa, e o filho dela gostava dos
teve uma disciplina de relações de gênero e sexualidade. Cita que a batons, dos saltos dela, que era divorciada, e por este fato, tinha medo
universidade na qual se formou, é uma das poucas universidades que de perder a guarda do filho, porque ele estava se tornando um gay e
oferecem disciplinas sobre sexualidade e estudos de gênero na ela foi orientada por um outro profissional da educação, que se fosse
graduação em Psicologia, e que amava aquela disciplina, achava investido na cura dessa criança antes dos 6 anos, na época o menino
interessante a discussão, achava que fazia sentido para ela, e que este tinha 4 anos, ele se recuperaria. Naquele momento, Suely diz ter
foi o primeiro momento em que se encontrou com a teoria feminista ficado afetada com a fala da mãe, porque era sobre a preocupação
propriamente. Recorda que frente ao seu contexto de vida, de viver na com filho, mas também sobre ela e do modo como essas questões
zona rural e depois em uma cidade pequena, essas teorias ficavam implicam na maternidade, na culpabilização da mãe. Suely mergulha
distanciadas, não faziam parte da sua realidade, ela não tinha o em suas lembranças e narra o que aconteceu. Neste momento, parecia
acesso. Hoje percebemos que as meninas possuem acesso aos que eu estava na cena porque ela narrava com toda a angústia da
conteúdos sobre movimentos e teorias feministas desde muito cedo. situação, trazendo para a entrevista suas respostas mais sinceras...
Fala com afeto que com essa disciplina na graduação, despertou a “Mas como eu já tinha já comentei com você, eu não tinha uma
importância de refletir sobre essas questões inclusive para a prática clareza sobre o que fazer com esse tipo de situação mesmo passando
profissional, mesmo que durante a graduação estivesse muito pelas discussões de gênero então, eu falei para ela que ainda era muito
distanciada da realidade e sendo oferecida a disciplina como optativa. cedo para dizer se o filho dela seria gay ou não seria gay até porque
Suely narra outra experiência ao descrever sua saída da graduação né ele era apenas uma criança e independente do que fosse, ela deveria
para o mercado de trabalho, quando vai trabalhar numa escola e nesse se preocupar em dar amor carinho para essa criança muito mais do
espaço começou a receber uma demanda frequente de questões de que se preocupar em o que ele seria, lógico falei isso com mais
gênero e sexualidade. Verbaliza que eram muitas meninas vítimas de detalhes, ouvir a mãe, mas a mãe não ficou satisfeita porque ela
relacionamentos abusivos, meninos gays, bissexuais, que estavam desejava uma cura. Então ela saiu da minha sala, foi para escola e
assumindo sua sexualidade para família e tinham dificuldade/sofriam proibiu a criança de brincar com tudo que fosse cor-de-rosa, com
neste processo ou se preocupavam em como fazer para ter diálogo todas as fantasias, proibiu a criança de uma série de coisas que ela
com a família. Estas questões começaram a inquietá-la, principalmente julgava que aproximariam ele do feminino e eu me senti muito
porque a sua formação como psicóloga não dava conta dessas questões fracassada. Acredito que todas essas passagens que relatei me
que se apresentavam cotidianamente. Suely lembra que ao assumir forjaram como feminista, foi das vivências como psicóloga, das
um concurso na cidade onde mora, se vê atendendo em todas as áreas, práticas profissionais que me identifiquei com o feminismo”.
apesar de ser lotada na saúde e novamente essa demanda começa a Respiramos juntas. Suely lembra que, nesse momento, ela estava
ficar muito intensa. Ela dá exemplos de como o assunto emergia em pensando em prestar mestrado e foi afetada por essas questões, já
diferentes espaços de sua atuação psi no CRAS, discorre sobre tinha um contato com o futuro orientador, pois havia sido sua
vítimas de abuso, mulheres vítimas de violência. Na educação, os monitora durante a graduação, participou de grupos de estudo, de
professores sinalizavam questões de sexualidade e gênero como: rodas de discussão, e em 2013 pensou nessas questões de gênero para
“essa menina gosta muito de jogar futebol, você precisa atender lá”, e o mestrado. Suely me conta que a primeira ideia era estudar a questão
Suely conta que não sabia muito bem o que fazer com esse tipo de da mulher, as relações entre gênero na perspectiva da violência, até
discurso, que não se sentia preparada para abordar esse tipo de porque, era maioria dos casos que chegavam até ela, mas a conversa
conversa. Fala também que na saúde, de mulheres que relatavam com aquela mãe havia sensibilizado mais e naquele instante, o
casamentos esvaziados e que todas essas questões foram se somando. orientador propôs que fizessem uma discussão sobre a formação de
Até um dia que vivenciou uma situação impactante em que uma mãe Psicologia para gênero no sentido mais ampliado, tentando investigar
92 93
também a questão da diversidade sexual. Parecia que essas duas fazerem parte da sua história, influenciaram o seu modo de pensar e
temáticas sempre estariam relacionadas e, principalmente, na perceber dentro da Psicologia. Durante estas conversações, íamos e
formação em Psicologia. Mas Suely volta a questão de se nomear voltávamos, a história era realmente contada e, às vezes, Suely
feminista e relata que até o final do mestrado em 2013 ninguém havia sinalizava o encontro constante da docência com sua própria vida:
perguntado: você é feminista? E que esta posição não foi declarada, ‘Eu não sei se está ficando claro, que isso é um processo bem complexo
por mais que estivesse presente nas suas atitudes, no modo de conduzir para mim me tornar, que tá amarrado muitas coisas da minha história,
os atendimentos e na própria vida. Durante o mestrado, Suely e não sei se eu estou indo e voltando muito mas eu estou tentando
continuou trabalhando como psicóloga na saúde pública, e continuava resgatar esses momentos que são significativos e que vão compondo
recebendo muitos casos que exigiam estudos de gênero, percebia que minha história. Então nesse momento essa resposta ela vai falar sobre
na medida em que se aprofundava nessas discussões. Isso interferia isso sobre uma transição profissional de algumas coisas que já
diretamente em sua prática profissional e no modo como olhava estavam presentes mas que teve uma intensificação nesses últimos
diversos casos. Concluiu o mestrado e logo deu início ao processo três anos e meio, de 2016 para cá. Ela comenta que neste tempo
seletivo do doutorado, sendo também contratada pela universidade na sinalizou aos alunos que estava em transição teórica que, não se
qual atua como docente. Então, em 2016, assume como docente e identificava mais dentro da teoria familiar sistêmica e que o interesse
inicia as aulas do doutorado. Neste momento, percebeu que os alunos agora era com as teorias pós-estruturalistas e Esquizoanálise. A vida
observam que discussões feministas são sempre marcadas em sua era contada com todos os detalhes que a nossa intimidade permitia
fala e assume a necessidade de se posicionar teoricamente com acontecer. No momento da entrevista, Suely estava licenciada da
relação a militância, com o porquê do feminismo estar sempre prefeitura a um ano e meio em função da escrita da tese de doutorado
presente nas suas discussões, já que as questões de gênero e e tentando conciliar a escrita com as aulas. Mas percebe que quando
sexualidade sempre vinham como exemplos em suas aulas. “Então começa a orientar o estágio, as intervenções mudaram intensamente.
esse é o momento, até recente na minha história em que eu assumo Eram outros tipos de intervenções possíveis de leitura do mundo, de
que eu me nomeio feminista”. Aqui, Suely reconhece que este homem e mulher, a leitura ética, o posicionamento ético mudou. Que
posicionamento fica muito caro para ela, que deixa de ser uma atitude hoje ela desenvolve com os acadêmicos um processo de orientação
e passa a ser também um posicionamento político, declarado, pela experimentação, que é vinculada a Esquizoanálise, em dois
implicado e que atravessa praticamente toda a sua prática profissional. grupos, um grupo de saúde mental e um grupo de estágio de gêneros
Quando reflete sobre o seu lugar de docente, narra que teve uma e sexualidades. Ela acredita que quando retornar em novembro para
formação um tanto biomédica por trabalhar na área da saúde e isso a prefeitura, será bem diferente, porque a transição se deu com ela
também está muito vinculado quando percebe-se a transição durante afastada do trabalho e agora volta nesse outro posicionamento teórico
o mestrado, do seu descolar dessa psicologia vinculada ao modelo político de engajamento e reflete sobre como será essa volta dentro
biomédico para uma transição de uma discussão mais cultural. Uma dessas outras perspectivas. Quando fala sobre seu conhecimento de
ressignificação bem ampla da prática e do que isso implica e como ela universidades que trabalham com o feminismo em suas propostas de
se posiciona frente aos outros profissionais a partir disso. Nota que ensino, pesquisa e extensão, lembra que em sua dissertação de
esta mudança não vem sozinha, e não vem só pela teoria feminista, mestrado, pesquisou sobre a formação dos psicólogos com relação a
porque nesse movimento também se deu uma mudança de abordagem gênero e diversidade sexual, e fez um mapa das universidades públicas
teórica ao sair da graduação e se identificar com a teoria familiar que não apresentavam, em sua formação clássica, no seu projeto
sistêmica. Apesar de nunca estar totalmente vinculada a ela e quando político pedagógico, disciplinas exclusivamente de gênero e relações
chega ao doutorado, começa a discutir com outros teóricos como de gênero e sexualidade, ou não contemplavam nas ementas as teorias
Foucault, Deleuze, os quais são mais filósofos do que uma perspectiva feministas. Mesmo tendo conhecimento de que dentro dessas
que a psicologia poderia assumir e que apesar destes autores já universidades, existem coletivos feministas ativos que propiciam
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uma discussão sobre o lugar do psicólogo a partir dessas perspectivas, falando de modo geral. Suely verbaliza que no seu entendimento, a
esta é uma problemática levantada por ela, de que o fato de não ter de psicologia feminista não deve anunciar apenas as mulheres, que na
forma oficial, faz com que isso aconteça esporadicamente. Então verdade a discussão que ela vem fazendo, é que a psicologia feminista
conforme o posicionamento do professor, essa discussão pode precisa denunciar as relações machistas, mais do que o universo das
acontecer, mas ela não é legitimada, ela não é oficializada pela mulheres, precisa falar sobre como gêneros estabelecem relações uns
universidade. Continua comentando que a universidade que se formou com os outros, em uma perspectiva da relação e as questões do poder
tem uma disciplina de relações de gênero como uma disciplina que atravessam e interferem no espaço cotidiano. Ela cita que vem
optativa, mas não tinha nenhum estágio na área específica, e que tem propondo estágios de gênero e diversidade sexual no curso de
conhecimento de que mais recentemente. Quando foi aprovada a formação, mesmo entendendo que seria um risco para o curso de
licenciatura em psicologia nesta mesma universidade, foram incluídas psicologia assumi-lo nestes tempos, mas que não podemos retirar tais
duas disciplinas de diversidade sexual e se manteve relações de pautas de dentro da academia, e comenta sobre estágios que vem
gênero. Relata que sabe de universidades que também estão passando desenvolvendo na delegacia da mulher, em grupo no projeto diálogos
por um processo de reformulação do curso, colocando como pauta a LGBT, em propostas de intervenção com relação ao diálogo trans e o
possibilidade de incluir alguma disciplina que aborde estas temáticas. diálogo LGBT, que vai para comunidade, faz capacitações
Inclusive na que ela trabalha atualmente, com a presença de profissionais, fazer atendimento à população LGBT. Projeto de
professoras que compartilham dessa discussão feminista, das teorias estágio no bairro em que tem um índice de abuso e violência,
feministas e de sexualidade e gênero, com projetos interessantes nos intervenção com os homens agressores, demanda parte da polícia
estágios nessa área. Suely cita várias universidades que tem militar e intervenções de orientação a diferentes instituições com
conhecimento, tanto no Paraná, quanto em São Paulo, Rio Grande do tantas outras docentes da instituição. Foi gratificante ouvir Suely
Sul, Rio de Janeiro, privadas e públicas, porém afirma que não é toda contanto que estão conquistando aberturas para diálogos bem
faculdade de psicologia que tem possui tal visão ou proposta. Então, interessantes dentro desses projetos de extensão em uma perspectiva
começa a falar sobre o que poderia vir a controlar nossas práticas e formativa e, certa de que quando a gente começa a propor este debate,
desejos de propagar os feminismos na universidade e lembra que começamos a pensar que talvez essa psicologia feminista precisa se
estamos em um momento bastante delicado dentro dessas discussões, preocupar também com a perspectiva das relações. Suely acredita
que em 2016/2017 falava-se abertamente sobre feminismo, direitos que estamos avançando na pesquisa, no ensino e na extensão, e que o
humanos, sobre igualdade e não sentia nenhum tipo de contestação fato de pensar estas pautas na pesquisa já é um início. Apesar de, na
ou implicação, muito pelo contrário, os alunos aceitavam o debate. opinião dela, boa parte das pesquisas que nós, psicólogos, realizamos
Mas que no ano passado (2018), tinha várias disciplinas em outros dentro da psicologia feminista, são pesquisas importadas de outras
cursos e coincidiu de que a temática que era direitos humanos estava áreas. É necessário que a gente insista em produzir uma psicologia
acontecendo em pleno período eleitoral, quando a discussão ficou feminista, na criação de novas teorias e esse movimento de construir
intensa, exigindo uma aula totalmente fundamentada e ainda outras teorias faz com que possamos olhar por uma perspectiva de
cuidadosa com relação às aberturas para debate, para não virar uma descolonização, atenta ao contexto brasileiro e suas singularidades.
guerra em sala, considera ter sido um momento bem tenso e ainda é. Pontuando esta perspectiva descolonizada da Psicologia, Suely
Diz que pensava que ao passar aquele período eleitoral, poderíamos reforça que não podemos ficar amarrados e engessados na importação
voltar a discutir essas questões, mas que foi ingenuidade, por isso de teorias, já que estas falam de um contexto muito distante do nosso.
acredita que em função desse contexto político-econômico que Reflete inspirada em movimentos de ressignificação do lugar da
estamos vivendo e todo esse aproveitamento moralista, jurídico e mulher, das relações de gênero, e que as psicologias feministas podem
midiático sobre as teorias de gênero, nós ainda vamos enfrentar um contribuir muito com a Psicologia na medida em que essas relações
longo período de dificuldades em assumir realmente esse discurso, se dão, do campo micropolítico, podendo favorecer instrumentos
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para repensar algumas de suas questões. Traz também reflexões sobre processos políticos e econômicos de dominação capitalista, podem
outro movimento que é inspirado pelo modo de interrogar a teoria nos fazer construir uma vida mais digna, e uma psicologia mais
feminista, aqui pensando em Haraway, quando a teórica fala da digna, centrada aí na ética-estética-política-clínica de uma perspectiva
objetividade do conhecimento, da produção de uma pesquisa, de um que considere nossa latinoamericanisse não é Bárbara?’.
saber situado, também inspirada por esse movimento decolonial que
propõe a construção de outras possibilidades para psicologia que
sejam mais adequadas a nossa realidade latina. Suely exemplifica
suas reflexões citando estudos da psicologia do desenvolvimento
humano, quando nos propomos a discutir estas perspectivas, mas de
modo geral, inspirados em Bee, Papallia, teóricas e textos que falam
de um outro contexto, de uma outra realidade econômica e uma outra
realidade política de desenvolvimento de relações familiares, distintas
e distantes dos contextos em que atuamos enquanto psicólogas.
Também visualiza que a Psicologia Social no Brasil tem uma produção
bastante interessante nessa perspectiva, mas certa carência em outras
nas quais ainda visualiza a reprodução desses modelos de
psiquiatrização construídos a partir de estudos da população
americana e europeia. Suely insiste que precisamos construir uma
psicologia brasileira que pode ser influenciada pelas proposições
feministas. De como o feminismo poderia revolucionar, interrogar as
relações de poder, não só as relações de poder direcionadas entre os
gêneros, mas as relações com autoridade, com uma política, relações
de poder que vão contribuir de um outro modo. É potente toda esta
fala, os exemplos que Suely oferece a todo instante para representar
suas ideias, as discussões que estabelece sobre violência a partir do
feminismo e as relações envolvidas neste contexto, o como defende
um outro posicionamento, um outro olhar de como lidar com a
violência, repensando intervenções que aumentem a força e a potência
dos processos de luta, denúncia e militância. Suely vai encerrando
nossa conversação com nossas heterotopias compartilhadas: ‘Talvez
o nosso caminho seja de atuar em sintonia, de tornar esses indivíduos
mais fortes, ou de descongestionar a força, no sentido de possibilitar
que se identifiquem com a sua força, a reconheçam, e como essa força
afetiva, que é força de vida, pode auxiliar no enfrentamento de uma
situação de abuso, na situação de violência. Usei muito os exemplos
sobre mulheres vítimas de violência e a relação com o machismo,
porque são meus principais focos de luta, junto com as populações
LGBTs. Mas acredito, que essa proposta de ética ativa, que busca as
forças ativas e não as reativas, assim como a compreensão desses
C
98 99
Não conseguia pensar em mais “[...] Eu tenho 40 anos de idade, eu sou nascida e crescida e
ninguém para representar a ainda vivo na periferia de Campinas. Meu pai pedreiro, minha
mulher desta narrativa que não mãe dona de casa, ambos apenas com o ensino fundamental [...]
fosse Carolina de Jesus. Ao ouvi- minha mãe negra com todos os desafios que a questão da raça e

Carolina
Outubro 2019/ São Paulo
la, relia as contações presentes
no “Quarto de despejo: diário
de uma favelada”, a narrativa
gênero coloca para o indivíduo. Costumo dizer que eu vivo essa
intersecção com a qual tento trabalhar hoje nas minhas aulas”.

cotidiana em forma de diário, a A narrativa de Carolina não tinha tempo para começar nem para
importância dada ao trabalho, as terminar, parávamos de conversar por telefone a qualquer momento,
marcas sociais na identificação depois chamávamos uma a outra, “[...] estava pensando aqui nas
dos sujeitos de suas relações nossas conversas e sabe o que eu lembrei? ”, “outra coisa que acho
afetivas, a potência da educação como elemento de combustão bacana falar sobre a sua pesquisa [...]”, “Bárbara você já leu a obra [...]
da vida, uma descrição direta, implicada com os acontecimentos, vai te ajudar muito a pensar nisso”...e assim, ela esteve comigo.
protagonista de cada contação compartilhada. Quando a Carolina “Bárbara eu vou começar a responder falando um pouquinho da
colaboradora desta pesquisa iniciava cada nova proposta de minha história de vida para ir marcando a minha aproximação com o
diálogo, eu sentia a Carolina escritora com sua vontade de liberdade movimento feminista. Eu tenho 40 anos de idade eu sou nascida e
e coragem para alcançar uma vida autônoma, um recontar da vida crescida e ainda vivo na periferia de Campinas. Meu pai pedreiro,
que não objetivava apenas comunicar fatos ou ilustrar cenas. Era minha mãe dona de casa, ambos apenas com ensino fundamental
a grandiosidade das “escrevivências” anunciando as intensidades sendo que ensino fundamental na época deles se referia a quatro anos
previstas para os nossos diálogos. Foram escrituras linguísticas de escolarização formal. Então eu cresci nessa realidade de periferia.
percebidas como ideológicas, que entendem seu papel social, que Minha mãe negra com todos os desafios que a questão de raça e
tomam posse do que narram. Eu não conhecia Carolina, ela foi gênero coloca para o indivíduo. Costumo dizer que eu vivo essa
intersecção com a qual tento trabalhar hoje nas minhas aulas”. Assim,
uma das mulheres inseridas na ciranda por outras mulheres da
Carolina atravessou a minha vida de pesquisadora, sempre pontual,
pesquisa, então pude sentir a alegria da surpresa, render-me aos
direta e comprometida. A sua narrativa começa com sua ideia anterior
encantos de seu aceite para participar da escrita desta tese, e isso
de uma vida considerada bem-sucedida: ser professora de ensino
aconteceu entre outubro e novembro de 2019 através de áudios,
fundamental e de ensino infantil, trabalhar com crianças ou ser
vídeos e mensagens de WhatsApp e chamadas telefônicas.
secretária. Falava que era o que tinha em seu repertório já que na sua
realidade social, a Psicologia não configurava uma possibilidade. Na
verdade, para Carolina, o ensino superior não se apresentava como
uma alternativa, lembrando inclusive de uma conversa que tivera
com sua mãe na qual perceberam que eram poucas as pessoas de seu
convívio que tinham formação escolar superior. Ela lembra que na
adolescência, era considerada uma pessoa tímida, porém que hoje
observo o quanto aquilo era silenciamento (pausa – creio que ela foi
buscar aquela menina na memória). Ao narrar sobre o início do que
seria a vida profissional, conta que, ainda jovem, iniciou um projeto
no qual dava aula para alunos das séries abaixo da que estava, isso se
fez uma forma de renda. Conta que cobrava daqueles que poderiam
100 101
pagar e ajudava os que não podiam, sendo sua primeira fonte de discussão de gênero por uma questão pessoal, possuía uma amiga
renda. Foi dessas aulas particulares, em sua maioria como voluntária, transexual que sempre teve dificuldades no mercado de trabalho.
que observou o quanto tal atividade fazia sentido para ela. Busca na Diante deste fato e as decepções ali presentes, apresentou como
memória que devia ter uns treze ou quatorze anos e tal função durou objeto de estudo no mestrado, um projeto para estudar a inserção das
todo o ensino fundamental e ensino médio, perseguindo assim, o mulheres transexuais no mercado de trabalho. Dada a intenção de
sonho de ser professora de educação infantil. Carolina me diz que discussões de gênero, defendeu a ideia de ouvir a voz da mulher
não chegou a atuar na área, “[...] precisava me virar, nos sustentar, transexual, seus desafios, os preconceitos contra o gênero feminino,
então trabalhava em lojas no shopping, depois fui para área as dificuldades da inserção na sociedade e a necessidade da
administrativa no qual eu fiquei por alguns anos e, somente aos vinte participação social e política da mulher trans no mercado de trabalho.
e cinco anos de idade, eu consegui vislumbrar a possibilidade de Em sua tese de doutorado, foi trabalhar saúde mental no Sistema
graduação”. Carolina ressalta que, justamente neste período, surgiram Único de Saúde, e mesmo não tendo o gênero como principal foco,
as políticas públicas de bolsas de cotas e ela foi beneficiada com uma Carolina conta que tais discussões não saiam dela. Enquanto docente,
bolsa de ensino na única instituição de Campinas que tinha o curso Carolina continua com esta inquietação sobre temáticas que envolvem
de Psicologia na época, e com orgulho firma a voz ao anunciar: as discussões de gênero e diz que ministra uma disciplina eletiva que
“Instituição que eu me informei na qual hoje eu sou docente”. Óbvio, chama de “psicologia e gênero”, onde discute gênero, classe e raça,
neste momento a emoção vem em forma de tornado e precisamos corpos e sexualidade. Defende ser esta uma forma de contribuir na
respirar para continuar, a fala ficou ofegante e os olhos embebedados formação dos alunos, a qual considera extremamente deficiente no
de alegria. Ela continua contando que na época, a mensalidade do quesito de discussão sobre gênero. Acredita que tais diálogos sobre a
curso era bem maior do que o seu salário como auxiliar administrativa, contribuição da Psicologia são urgentes na formação acadêmica.
mas que foi beneficiada com 100% no valor da mensalidade. Segue Comenta também que já ministra a disciplina eletiva a três anos,
lembrando que no quarto ano do curso começou seu encontro com a sempre com bastante adesão e interesse dos alunos. Além desta
Psicologia do trabalho e a Psicologia social do trabalho, refletia sobre disciplina, é docente de outras disciplinas nas quais procura trazer
as questões de saúde do trabalhador e aqui a questão do movimento estes temas para discussão em sala de aula, mas reconhece que há
feminista começou a fazer sentido, ganhou significado. Até então, diversos desafios para “[...] plantar um olhar feminista na academia
Carolina tinha uma inquietação com os papéis de gênero, com no que diz respeito ao ensino a pesquisa e a extensão”. Recorda o
algumas limitações que eram colocadas ao gênero, porém nada momento de grande conservadorismo que estamos vivenciando, sabe
organizado, nada de militância até pela escassez de tempo e de que tal comportamento sempre existiu na nossa sociedade, porém de
possibilidades. No encontro com as disciplinas que aquela sensação uma forma mais velada e agora está explícito, e por isso, dependendo
começava a ficar organizada, a ser nomeada, a surgir como desejo de do autor que optamos para embasar o conteúdo, sofremos certas
fazer da questão da saúde do trabalhador a sua prática profissional, o represarias. Carolina lembra de uma situação de quando propôs a
que a envolveu por completo nas questões da mulher no mercado de leitura das concepções de Judith Butler. Nesta situação foi solicitado
trabalho. Foi estudando a questão do feminismo, mas a inquietação pelo conselho da universidade que alterasse a referência, que buscasse
com as questões de injustiças, com a exploração de longa data, ainda outras teorias da Psicologia para abordar o movimento feminista.
era muito vista de uma forma vitimizada. Carolina conta que não Lembra da dificuldade que teve para trabalhar um diálogo e mostrar
encontrava ali muito o que fazer e que acredita que a Psicologia, que a Psicologia, historicamente, não esteve tão presente na elaboração
ainda na graduação, mostrou gradativamente a conscientização do do material teórico como outras áreas das Ciências Sociais e o que
seu papel, das possibilidades e das limitações que tinha na sociedade auxiliou muito sua defesa foi a publicação do CRP da Bahia, onde é
enquanto mulher. Após a formação acadêmica em Psicologia, foi discutida a questão do porquê da Psicologia discutir gênero. A partir
para o mestrado direto, aproximando-se muito com a questão da de um discurso bem crítico e a partir dessa referência, o conselho
102 103
“conseguiu/autorizou a aprovação da teórica para os estudos”, mesmo de falar”. Ríamos de nossa coragem ou falta de juízo. Ela sabe que
assim, solicitaram a alteração o título, porque gênero e sexualidade aquela situação foi uma grande decepção, uma coisa que a assustou
não eram bem vistos na universidade, ainda confessional. Além do no momento, mas trouxe muito mais segurança e certeza de que é
título, Carolina recorda que modificou alguns dos objetivos, onde isso mesmo que precisa fazer, implantar uma psicologia mais
propunha dialogar sobre o aborto e transportar autores como Judith engajada, mais feminista, mais comprometida. É necessário agir com
Butler, Michel Foucault da referência básica para a referência cautela, com estratégia sem acovardar, sem abrir mão daquilo que
complementar. “Mas eu acho que somos nós que abrimos estes acredita, encontrando formas de dizer, de trabalhar nessa questão
espaços, descobrindo brechas para ir além, plantando esse olhar com os alunos, no ensino, na pesquisa e na extensão. Um dos objetivos
diferenciado e ir fazendo essa discussão”. Quando lançou a proposta da tese era que as narrativas, depois de transcritas fossem reenviadas
aos alunos, teve como resposta o grande interesse dos mesmos, como para as colaboradoras e assim foi com Carolina. Ao retornar,
ela narra, sedentos por discutir essa questão, apontando que já comentou sobre outro pedido meu: “Oi Bárbara, boa tarde. Desculpa
estavam no último ano da graduação sem ter lido nada que embasasse pela demora no reenvio da narrativa, aqui está e fico à disposição.
as concepções de gênero. Com empolgação na fala, diz que no Você tinha falado também de um movimento de arte no qual eu me
decorrer das aulas havia um engajamento grande, muito interesse, representaria nesta pesquisa. De repente uma obra de Frida... tem um
uma satisfação, e no fim, acabou sendo feito aquilo que foi oferecido auto retrato dela com espinhos no pescoço eu acho ele bastante
no papel, “[...] mas a gente declara com outras palavras, a discussão significativo, me emociono com a história dela e com a obra, com o
crítica que era o que eu pensava desde o início acabou acontecendo e dado representado por uma dessas obras. Foi um grande prazer
procurei levar esse olhar para outras disciplinas e para outros cursos”. conhecê-la, saber da sua pesquisa no tema tão relevante, tanto foi um
Menciona que na disciplina de Psicologia Forense, que ela ministra prazer compartilhar um pouquinho da minha história. Lamento
no curso de direito, pretendia discutir sobre as diversas configurações porque foi numa jornada tão complicada para mim, mas foi com
de família, falar sobre expressões de gênero, conceituar e fazer uma grande alegria que eu compartilhei tá bom qualquer coisa é só dar
discussão sobre a transexualidade, travestilidade e homossexualidade. um toque”. Afetiva e artisticamente, ela continua comigo.
Porém, na avaliação institucional que é realizada todo final de
semestre com os alunos da universidade, foi avaliada por uma parcela
da sala de forma negativa. Recorda que pela primeira vez, havia
pouca adesão, sendo que, até aquele momento, só recebia respostas
positivas e nesse caso, as avaliações negativas e os comentários do
tipo “professora doutrinadora que prega ideologia de gênero”. Foi
surpreendida ao ser chamada na direção do curso para explicar o que
falava sobre o aborto em sala de aula, quais as teorias que utilizava,
de onde partia e que continuaria propondo na disciplina. Nesta
situação teve que apresentar partes do nosso código de ética, sobre os
princípios fundamentais, provar que suas aulas não infringem a ética
da profissão. Carolina sabe que é um campo minado, e que estas
situações fazem com que ela, em vez de desistir, estude mais, para
falar com mais segurança e mais convicção, baseada em pressupostos
científicos e alerta assertivamente: “[...] se eles tiverem pressuposto
científico para contra argumentar ótimo, o espaço acadêmico é para
isso, se for baseado em achismo ideologias em fake news, pense antes
L
104 105
A mulher da narrativa [...] Porque eu fico pensando: do que adianta a gente ler bell
recontada nas linhas abaixo, é hooks, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, todos os outros nomes,
pura ABARICÁ, palavra que se a gente tem uma leitura feminista mas não tem uma pedagogia

Lélia
conheci lendo a escrita potente, feminista. ”
implicada, comprometida e
situada de tese de doutorado. Em 06 de agosto de 2020, entrei em contato com Lélia por facebook,
Agosto 2020/ Pernambuco ABARICÁ significa CORAGEM, ela logo me respondeu, disponibilizando o número de seu telefone
adjetivo que acredito ser o através do qual poderíamos conversar por mensagens e chamadas de
mais adequado para apresentá- vídeo pelo WhatsApp. Ao me apresentar e falar sobre a pesquisa em
la como colaboradora dos processo, Lélia concordou em participar. Enviei o TCLE e o espelho
parágrafos descritos. Mas, da pesquisa com as perguntas da entrevista narrativa. No dia 11 de
gostaria de apresentá-la como RABECA na minha vida, aquela que agosto, tivemos contato novamente. Lélia me informa que estava na
inunda tudo com o afeto de seus sons. Foi Lélia que me apresentou primeira semana de aula do segundo semestre de 2020, muito
às rabecas em nossa primeira conversa, elas decoravam a parede apurada, mas que vai participar. Em 20 de agosto me chama com um
de fundo da tela de onde Lélia surgia através das chamadas e fotos presente, comenta comigo sobre um post no Instagram, onde propõe,
enviadas por WhatsApp. Rabecas são instrumentos musicais claro, com fundamentos poéticos, sua interpretação sobre a poesia de
João Cabral de Melo Neto “A educação pela pedra”, avisando que
de origem moura (região de Portugal), enraizados no folclore
começaria sua participação do fim para o começo, iniciaria pela
brasileiro, principalmente no Norte, Nordeste, Centro-Oeste
exposição de uma obra de arte (como eu havia pedido durante as
e parte do Sudeste. É um instrumento precursor do violino,
conversações que dariam voz às escritas da pesquisa), defendendo
confeccionado por artistas populares em comunidades rurais.
que do território de onde o seu corpo emerge, da especificidade
Únicas em sua produção e sublimes em movimento, produzem
daquela região, acredita que a prática docente e teoria feminista não
sons que movem um povo de modo peculiar, é harmônica
tem como ser dissociada da vida. A teoria conversa com a vida, como
para acompanhar cantigas e enriquecer vozes. Pensando em fazendo parte de uma dimensão ainda que pequenina desta. Lélia
ABARICÁS, não existiria outro nome para representá-la nas sente que a poesia do pernambucano João Cabral de Melo Neto,
partituras da tese: Lélia! Homenagem à mineira Lélia Gonzalez, coloca-nos num lugar em comum, uma possibilidade de aprender a
mulher que confrontou a linguagem acadêmica e a gramática partir de um “entranhado da alma e não de um despejar de teoria”,
normativa por entender que a maioria de seus irmãos e irmãs de ela visualiza esta prática inspirada em Paulo Freire, em bell hooks e
cor possuíam pouco ou nenhum acesso à educação formal. A Lélia assim começa sua narrativa, apresentando a pedra não só como
da conversação presente nos parágrafos seguintes foi apresentada metáfora, mas como símbolo do que tem sido esses tempos, sobre o
por meu orientador durante as encantadorias roseanas propostas que é ser professora em um contexto agrestino. E se faz comigo, nas/
no evento “Outra era a vez”. Ao ouvi-la, entendi que a pesquisa me com/pelas Pedras, “[...]pedra como modo de resistir, não atracando a
levaria a Pernambuco, porém, a pandemia da COVID 19 impediu pedra, mas sendo também pedra, experimentando-se nessa matéria
o passeio, mas não conseguiu impedir nosso encontro. [...] mais que uma carnadura concreta, um entranhar a alma”. No dia
22 de setembro, Lélia retorna, com sua narrativa que extravasssssa
(uso proposital da hipérbole) os limites destas páginas, não conseguem
obedecer ao tempo combinado no TCLE. Até hoje, não consegui
encerrar a entrevista. Com a voz calma, aquela que aconchega, sem
pressa alguma, ela avisa que já é tarde, mas que naquele momento a
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vida silenciou e foi a hora que gostaria de começar sua narrativa subjetivação e práticas coletivas com a qual se identificou. Em um
respondendo às perguntas apresentadas como disparadora para nossa novo território acadêmico, tem como orientadora uma mulher
conversação. Começa com a contação sobre quando começou a se feminista e conta, “Minhas colegas do programa de pós-graduação,
entender como feminista, quais mudanças estas descobertas mudam as doutorandas e doutorandos eram pessoas inseridas nos movimentos
ou mudaram o seu estar mulher docente feminista. Lembra que não é sociais e eu, que já havia tido uma experiência sindical rural, além de
uma descoberta muito longa, que não é uma feminista desde ter trabalhado enquanto recém-formada com a população rural e com
adolescente, que não teve em sua família mulheres que se dissessem Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais”. Viveu a imersão
feministas, muito embora havia uma prática muito comum entre as no doutorado em tempos de muita efervescência, citando, como
mulheres da sua família, aquelas vindas, em sua grande maioria, de exemplo, suas primeiras experiências com ocupação da reitoria.
áreas rurais do interior Pernambucano, ela se referia a independência Lélia lembra dos saraus, dos movimentos coletivos e de sua chegada
financeira. Diz ter crescido vendo a avó e as mulheres mais velhas ao movimento feminista hegemônico. Até o dia que assiste uma aula
não só tendo independência financeira, como independência no doutorado e se depara com uma militante negra, uma feminista
emocional de seus cônjuges, lembrando que da geração da avó negra, chamada Vera Regina Baroni, como Lélia a descreve, “[...]
materna, ela foi a única que, de fato, permaneceu casada ao longo de uma mulher maravilhosa que questionava: porque é que você, mesmo
toda a vida com o mesmo companheiro, todas as irmãs dela se branco hegemônico, não dá conta do feminismo quando apresenta a
separaram, mesmo no contexto cultural da época marcado pelo pauta e os eixos de opressão das mulheres negras”? Naquele momento,
machismo, pela violência e pela opressão. Ressalta que por serem Lélia estava pesquisando processo de subjetivação entre usuários de
mulheres que vinham de uma tradição de independência econômica, práticas integrativas e complementares de saúde e depois deste
elas se separavam e isso gerava um desconforto enorme na comunidade contato, seu interesse se volta para a pesquisa de militantes negras,
católica da qual elas faziam parte, porém, mesmo com todo aquele conta que sentiu “uma espécie de arrebatamento nessa aula sobre o
desconforto, “mesmo com a honra manchada”, referenciando que a feminismo negro e aí eu começo a me engajar no processo de
honra nas regiões rurais é um ponto muito importante para a formação política da Primeira Marcha Nacional das Mulheres Negra”.
subjetividade das mulheres, dos homens, de todos. Elas se separaram A voz se faz mais alta, Lélia oferece outro folego à contação do
porque existe ali um princípio feminista de luta por liberdade, de luta momento, citando a importância de Vera Regina como uma das
por autonomia, empoderamento, questões pertinentes às pautas coordenadoras do comitê da marcha nacional em Pernambuco, “[...]
feministas. Inclusive, Lélia conta que na infância, ouviu relatos da se uma aula já foi arrebatadora, imagina o processo de formação
avó falando de práticas abortivas, já que o índice de mortalidade política”. Os meus ouvidos ficavam cada vez mais aguçados com
infantil e abortamentos eram elevados, comuns naquele contexto aquelas encantadorias, era como se estivéssemos cara a cara, eu
histórico/territorial. Por isso, quando pensa em sua biografia e o faz ouvia a voz que saía daquele celular e conseguia ver Lélia, sentia sua
como exercício afetivo, recorda que desde a infância e adolescência respiração. Essa sensação aumentava ainda mais quando ela começa
esteve em contato com mulheres capazes de lutar por pautas a narrar sobre o estágio sanduíche que realizou em Moçambique,
emancipatórias. Do ponto de vista de formação política, acredito que sendo orientada por uma feminista africana. Ela falava e eu me
acontece em uma fase bem adiantada da formação. Lélia narra que emocionava. Na aproximação com os movimentos feministas
fez graduação em Psicologia e o mestrado em universidades católicas, moçambicanos e em contato com uma ONG que representa 89
e aqueles contextos de graduação e pós-graduação não eram contextos organizações feministas em Moçambique, inicia a sua formação
que propunham estas pautas. Foi quando, em 2013, resolveu fazer um como feminista. Deste modo, com a transição institucional Lélia
trânsito institucional, optando por uma universidade federal para muda seu foco de pesquisa, das práticas integrativas para a narrativa
desenvolver sua pesquisa de doutorado. Neste estabelecimento esteve sobre as militâncias de feministas negras em Recife e em Maputo,
em contato com uma linha de pesquisa chamada processo de cidade em Moçambique, onde fez o doutorado sanduíche. Lélia fala
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que teve uma experiência como docente muito curta, do final do aliança institucionais sejam entre pessoas que tenham afinidade não
mestrado para o começo do doutorado. Após o mestrado, lecionou só a teoria, mas processos emancipatórios engajados com certa
por um ano na cidade do interior de Pernambuco, porém, ainda sem formação política para a docência e formação não necessariamente
uma formação política formal no campo do feminismo, o que foi feministas, mas engajadas, aqueles que, como Lélia adjetiva, são
mudado depois da sua experiência no doutorado. Conta que vinha de menos capturados pelos programas que ignoram essas causas. Lélia
uma tradição descrita pela escola francesa clássica, Foucault, Deleuze, comenta que a Universidade Federal de Pernambuco possui várias
Guattari e no doutorado se depara com uma formação política e iniciativas no campo de formação política, no feminismo, nos
intelectual diferenciada, quando questiona a própria formação movimentos sociais, no movimento de mulheres trabalhadoras rurais,
anterior sobre onde estavam os intelectuais e as intelectuais negras, as quais ofereceram acesso às formações dentro e fora da universidade.
onde estavam as intelectuais LGBT, onde estavam os intelectuais É interessante que a nossa conversação acontece de modo tão fluído
Fora do Eixo sul sudeste do Brasil. Em processo de desmoronamento que, em um determinado espaço de sua narrativa, Lélia confessa:
e construção da casa epistemológica, inicia seu comprometimento “Estava com expectativa de ser a mais poética nas respostas da
com as teorias feministas e do sul do globo. “Hoje eu posso te dizer entrevistadas (risos). Sério mesmo, estou tão interessada por essa
que nenhuma disciplina que eu lecione, mais de 50% de qualquer pesquisa que pela minha pressão interna, achei que não estava
disciplina que eu lecione, vai ter a presença de intelectuais negras, conseguindo responder as perguntas. Hoje comecei sem muita
qualquer disciplina que eu e lecione vai ter a presença de intelectuais cobrança ou expectativa, sem me cobrar. E foi muito bom olhar a
fora do eixo hegemônico, qualquer disciplina hoje que o lecione, vou trajetória. Espero que amanhã, ao despertar, não me arrependa de
estar tencionando interseccionalidade, eu vou estar tencionando tudo que falei (risos). Agradeço demais por você e essa pesquisa
gênero, classe e raça e sexualidade entre outros marcadores sociais”. existirem”. Ela estava comigo. A liberdade para o encontro era tanta
Lélia fala que muda radicalmente quando esta formação chega em que, em uma certa manhã, antes do término de suas narrativas,
sua vida, ela vai questionar a hegemonia do conhecimento que a acordo com um áudio de WhatsApp dela: “Nossa, não posso esquecer
constituiu psicóloga e a conduziu para uma graduação e mestrado em de dizer que meu itinerário até o doutorado era heterossexual, e foi a
Psicologia que não consideravam a questão racial como uma questão formação no feminismo negro, que me ajudou a ampliar minhas
importante para a Psicologia. Pontua que não estava ali se queixando lentes de alcance e de desejo. Hoje, sou casada com AMOR, me
da sua formação, mas que naquele período não haviam estes apaixonei por ela no doutorado e anos depois nos casamos. Estamos
tensionamentos, essa efervescência de pensar uma Psicologia preta juntas até hoje. Posso dizer que o feminismo negro me apresentou
decolonial, antirracista, antifascista, inclusiva. Lélia diz que passava minha esposa, uma mulher negra, linda, poeta, honesta e sensível...
pela desconstrução da moradia antiga, reconstruía uma casa dentro tudo que eu precisava como par na vida e até o encontro com ela, não
da Psicologia e dentro dessa casa estava incluindo outros cômodos, achava ... Já pensou alguém que muda os rumos intelectuais, de
outra mobília, outro modo de perceber o mundo, de perceber o ensino, ensino e de pesquisa, afetivo, sexuais depois de uma conscientização
a pesquisa, a extensão na formação em Psicologia. Todos estes marcada pelo feminismo negro? Que potência tem esse campo. Já
acontecimentos marcam o momento de seu enunciar-se feminista, dizia bell hooks em “Ensinando a transgredir”, a teoria tem que
alteram radicalmente seus compromissos éticos, estéticos e políticos. transformar, tal qual água viva ... Vou continuar a conversa amanhã”.
Narra que neste momento, todas as disciplinas ou tudo ao que estava Uma tormenta de afetos me atravessava, e ela continuou comigo no
engajada tinha um equilíbrio, um sentido, faziam dela uma mulher outro dia. Lélia começou sua fala lembrando de uma questão proposta
implicada e comprometida com uma docência feminista negra e que por mim, sobre seu conhecimento de instituições que ofereçam,
hoje, inclui estas teóricas, poetas, cientistas nas disciplinas, nas ainda na graduação, uma formação que dialogue com as epistemologias
extensões, na pesquisa. Este é o lugar da nova moradia de Lélia como feministas. Ela fala que no doutorado da Universidade de Recife,
ela descreve, considerando natural e até esperado que as políticas de quando fez a “viragem para a narrativa de mulheres negras
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feministas”, foi procurar dentro da instituição o que haveria de ameríndias, das fontes africanas. Naquela ocasião, o pensamento de
disciplinas, o que ofereciam de uma formação feminista, tanto na Lélia Gonzalez foi muito presente em seu percurso, como o
graduação como na pós-graduação, e encontrou disciplinas na pensamento de bell hooks, Grada Kilomba e uma lista das autoras
graduação do centro de Filosofia e Ciências Humanas que ela que conheceu e, desde então, ajudam a pensar em suas disciplinas,
identificou chamou de escape do colonizado. Lélia me conta que no experimentando o momento. Quando peço para Lélia falar mais de
Recife tem uma política municipal pioneira em práticas integrativas sua experiência de doutorado em Moçambique, ela lembra que muitos
que mobilizou a política pública nacional e despertou seu interesse. dos seus colegas foram viver experiências na África do Sul como ela.
Porém, na disciplina de Processos de Subjetivação e Política do Diz que optou por cursar disciplinas de gênero, de filosofia africana,
professor Jorge Lira, o grupo começou a questionar se Lélia não idiomas locais, onde conheceu duas autoras da literatura que
deveria fazer uma transição do tema de pesquisa frente ao que trazia considera fundamentais para pensar o escape colonial sobre o qual
em sua fala sobre narrativas de mulheres negras, e assim aconteceu. estávamos comentando, a autora Paulina Chiziane e a nossa Conceição
Fez um levantamento de quais eram as disciplinas disponíveis sobre Evaristo, entendendo a perspectiva das escrevivências, das dimensões
o assunto na universidade, e se depara com departamento de entre a arte, política e ciência, como vivências marcadas na nossa
Sociologia, no qual algumas professoras ofereciam disciplinas sobre história. Lélia comenta a importância destas teóricas e de tantas
feminismos, entre elas uma professora que ministrava um curso de outras quando, no término do doutorado, vai parar no interior “[...]
extensão, mais teórico do que é vivencial, ainda sobre o feminismo pois a capital está cheia de doutores” que atuam em Caruaru,
hegemônico clássico, partindo de Simone Beauvoir e da Mística Arcoverde, Serra Talhada, informando que os recém-doutores
feminina de Beth Friedman. Conta que participou do curso de recifenses vão se situar ao lado mais agreste do sertão do estado, no
extensão e depois seguiu para a sociologia, onde encontrou disciplinas seu caso foi para Caruaru. Com a empolgação própria de suas
sobre o feminismo negro. Utiliza de sua vivência para explicar que na contações, ela narra o quanto interessante foi trabalhar, mudar a
Universidade Federal de Recife, no centro de ciências humanas e dinâmica e os interesses das leituras e ao chegar em Caruaru.
sociais, existe um leque extensivo de disciplinas que propõe estes Comenta sobre as inquietações deixadas pela banca do doutorado,
debates. Lélia lembra que neste curso de feminismo negro, conheceu que já dialogavam com as epistemes decoloniais, dizendo para ela:
uma professora que acaba sendo a interlocutora importante para o “espero que quando você for dar suas disciplinas, você considere que
projeto de tese, inclusive membro da banca do projeto de qualificação. nós mulheres negras, não somos só uma maioria numérica, nós somos
Com essa professora ainda faz uma disciplina sobre Fanon e outra uma maioria também de intelectuais, nós também escrevemos, e nós
sobre relações raciais, passando, inclusive pelas perspectivas esperamos que quando você estiver trabalhando, considere equilibrar
hegemônicas do feminismo branco para depois dialogar com uma a sua oferta na disciplina”. E se questionava sobre o que seria esse
perspectiva mais contra hegemônica do feminismo negro e africano, equilíbrio teórico ao ouvir as sugestões da banca: “em vez de você
e neste momento, começa a se interessar pelo doutorado sanduíche oferecer autores do norte do Globo, autores franceses como a
em Moçambique. Durante estas disciplinas é que Lélia descobre o psicologia adora beber, que você possa olhar para estas intelectuais
núcleo de estudo de Relações Raciais e ouve sobre a oferta de psicólogas que estão em outros lugares que não é do Centro Europeu”,
disciplinas sobre feminismo negro, na Sociologia, na Antropologia, sendo proposto para Lélia a composição de suas disciplinas com
no Serviço Social, na História. Lélia narra que em 2013/2014, viviam 50%, ou mais, de intelectuais negras. Lélia defende que isso foi, em
uma espécie de explosão epistemológica contra hegemônica. Os suas palavras, arte: “[...] um ponto de viragem como docente porque
professores começaram a sentir, principalmente as professoras, uma isso me obrigou, mesmo sendo uma boa leitora e tendo escrito uma
certa inadequação teórica regional. Ela lembra que seu grupo de tese que se posicionava contra hegemonicamente, contra
doutorado formado por doze integrantes de turmas anteriores e a colonialmente, eu ainda não tinha práticas docentes condizentes com
dela, foram influenciados por essa novidade, foram beber das fontes isso. E aí o que é que vai acontecer, eu vou fazer um exercício ético-
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político e estético de compor as disciplinas que eu dava, nas coisas novas narrativas, novas epistemos, onde pudéssemos respirar. Narra
que eu fazia na universidade a partir de uma intelectualidade negra sobre a demanda dos seus alunos de Caruaru, acadêmicos da classe
feminina. A gente levou a exposição da Lélia Gonzalez para Caruaru trabalhadora, que trabalham na feira, aqueles primeiros a ingressar
pela primeira vez (muita emoção e orgulho nesta fala). E os alunos no ensino superior em suas famílias, alunos que chegam com um
questionam: quem é esta Lélia González? Quem é Bicudo? Quem são sonho muito grande (pausa). Continua falando gostar de trabalhar
estas autoras que a gente nunca falou e que não faziam parte da com os alunos que vem desse contexto, das classes trabalhadoras,
psicologia da psicanalise”? Estes novos diálogos (nem tanto), com admira a experiência de vida deles, observa a escrevivência deles
estas novas convidadas (nem tanto), vão repercutir na maneira que como riqueza material absurda, desabafa: “Hoje estou meditando em
Lélia pensa a sala de aula. Neste momento de sua narrativa, lembra suas profundas e profícuas perguntas disparadoras, acho que estou
de uma colega docente que tem uma disciplina na graduação que se falando mais hoje (risos). Estou reflexiva também com o meu
chama Psicologia e Feminismo, onde apresenta não só as bases caminhar na docência e na psicologia (...)Imagina eu estou vivendo
teóricas do feminismo branco hegemônico, como as bases teóricas e um cenário transferência com corte de carga horária que significa um
um feminismo negro contra hegemônico, contra colonial. Tais corte salarial de quase 75%, então eu acho, é claro que eu acredito, eu
encontros marcam as sugestões do que chamávamos de fugir do prevejo que o meu futuro nessa instituição privada que eu leciono é
capturado na docência, de sugerir diálogos, propor pedagogias, demissão não né”? Ela narrava de lá do nordeste, eu sentia aqui no
desenvolver planos de ensino que escapem da epistemologia única sul a navalha afiada do capital cortando nossos corpos e estilísticas
ditada pelo eixo norte do globo, sendo lembrada por Lélia da docentes. Preciso trazer a voz de Lélia na íntegra neste parágrafo, sua
importância de olhar para o espaço territorial que ela está situada, o língua é a minha língua, e não posso e nem quero retirar desta
nordeste do Brasil, nas condições problemáticas de trabalho, da narrativa as letras que transcrevem seu desgosto/tristeza, que são os
inserção destes docentes no ensino superior. Principalmente, como meus também: “Eu acho que a gente vive um cenário penoso no
Lélia narra, depois de uma crise da destituição de Dilma, do descaso sentido de que a gente não encontra um espaço de atuação digna e
do governo Temer, da retomada fascista no Brasil, todo esse cenário que inclusive fortaleça as nossas formações, porque como é que a
político. Ela conta sobre as condições de trabalho extremamente gente continua a formação da gente, uma formação que eu ainda
precárias nesta região, sobre os contratos nas instituições privadas considero muito incipiente, com déficit teórico, metodológico,
onde o docente não recebe por extensão, não recebe por pesquisa, e epistemológico muito grande, se a gente está vivendo tantos cortes,
mesmo assim a instituição cobra tais compromissos. Neste momento, se a gente não tem nenhum estímulo?”. Ela sabe que estes estímulos
Lélia desabafa: “Então a minha posição política é, eu não faço são maiores em universidades públicas, para docentes com contratos
extensão em instituição privada, eu não faço pesquisa em instituição de trabalho que financiem pesquisas e projetos de extensão. Lélia
privada, simplesmente porque eu não recebo nada por isso, não conta que no final do último ano, teve um trabalho aprovado nos
recebo financeiramente por nada”. Ela sabe que estas discussões Estados Unidos quando era professora substituta da federal e
surgem com certo nível de complexidade, que o norte e a produção conseguiu apoio financeiro para viagem. Foi para Harvard apresentar
da narrativa do Norte não vão dar conta. Reconhece estar inserida as ideias de sua tese, porém, a instituição privada a qual também
em um contexto de crise política e ética que acaba com o trabalho da estava vinculada, não movimentou nada para essa viagem, por isso,
docência, questiona a cobrança já feita aos professores concursados e se o trabalho fosse aprovado um ano depois, provavelmente não teria
as indagações feitas às escolhas epistemológicas pós-coloniais e me ido. Primeiro pela pandemia e também porque para uma docente,
convida a imaginar esta situação em relação aos professores com situada no agreste Pernambucano, mobilizar uma grana para ir até
grau elevado de precarização das relações de trabalho extremas uma universidade internacionalmente conhecida que se propõe a
como as que ela visualiza no sertão nordestino. Depois de respirar, ouvir os afro-latino-americanos, não é simples. Lélia continua sua
Lélia me faz ver que tal crise política nos obrigou a ir ao encontro de fala expressando seus sentimentos atuais sobre a docência: “Mas eu
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confesso que eu estou numa fase meio cansada disso tudo, com minha caminhada, com a minha trajetória, eu quero fazer isso, mas
vontade de brigar menos do ponto de vista política, é um tempo ruim acho que eu estou numa fase reativa, enraivecida, e uma vontade de,
então pronto, vou me dedicar aqui em outros projetos, vou caçar “ah, ok! a safra tá ruim então é seguir outros itinerários, não ficar
outras coisas para fazer na psicologia e deixar a docência de lado, já insistindo no chão seco, porque tenho sentido ultimamente essa
que eu considero que é uma safra muito ruim para docência, assim aí semente com certa dificuldade de vigorar, não sei se este é um
... eu fico até com pena de estar falando isso para quem está cursando pessimismo momentâneo, um pessimismo de uma segunda-feira,
doutorado ... mas eu não deixaria de fazer as coisas que eu fiz (risos), mas eu acho que é isso eu diria, que o momento político e econômico
olha eu voltando para trás agora (risos), com medo de te desestimular não é propício”. Mas Lélia sabe, e reforça, que nos momentos mais
neste percurso. Mas eu vou ser honesta, eu tenho sentido muita difíceis é que se criam as coisas mais interessantes, então ela também
vontade de dar um tempo nisso tudo porque exige muita energia, está articulando, pensando no seu modo de continuar docente, menos
muito esforço, muitas horas de dedicação Então, eu tenho sentido vinculada institucionalmente e mais livre para criar conteúdo e
vontade de dar um tempo, fazer umas incursões em outros aspectos declara “[...] eu fico repetindo isso sabe, fico às vezes meio fixada
na psicologia. Eu sempre tive uma caminhada na clínica então eu numa queixa, mas nem é isso que eu quero, não é isso que eu desejo
estou achando que ultimamente, como politicamente é muito ruim o para minha vida, mas eu, nas minhas condições de trabalho
cenário da educação superior no Brasil [...] acho que nesse momento, atualmente, elas não remuneram nem extensão, nem pesquisa, então
o cenário político e econômico, é o que mais paralisa as minhas se elas não remuneram, apesar de fazer uma enorme pressão para
vontades e os meus desejos, isso não quer dizer que surjam desejos e que professores mesmo não remunerados façam extensão e pesquisa.
vontades em outros campos, em outras áreas”. As encantadorias que Mas a minha decisão política é de que, se não há remuneração, eu
eu presenciava na narração de Lélia, apresentavam notas de desilusão, devo me dedicar outros aspectos na Psicologia que me remunere.
de cansaço, tristeza e revolta, todavia, buscavam na resiliência, na Mas esse é o quadro da maioria das instituições privadas no ensino
teimosia e na arte, ar para sobreviver. Ela verbaliza pensar se não é o superior no Brasil, elas são milionárias, lucram muito porque,
momento para a docência, então pode ser o momento de se dedicar à exatamente, existe uma lógica colonial da expropriação da mais-
arte de forma mais amadurecida, dedicar mais tempo, mais estudo, valia, da cafetinagem, para usar um termo da Sueli Rolnik”. Lélia
ela se vê em um campo aberto de possibilidades. Não se vê depressiva, reforça que não está querendo dizer que não exista uma produção
nem mesmo melancólica, ou uma pessoa que está se queixando da interessante na Psicologia, uma psicologia feminista, mas defende
vida, em um eros agonizante, mas sabe que o seu principal desafio é que quem está fazendo essa produção interessante, é porque tem
esse cenário que anunciam este movimento de demissão em massa condições minimamente dignas para o trabalho e para a atuação, que
até para professores que são doutores, principalmente os que insistem conhece revistas dentro e fora da Psicologia, interessadas nas
em sistemas didáticos contra hegemônicos. Ao mesmo tempo em que temáticas feministas e produzindo potentes artigos. Fala da minha
visualizamos este desmonte da pesquisa, ela lembra que enquanto pesquisa e do efeito subjetivo dentro do corpo da Psicologia. Que ela
estava fazendo de tudo para concretizar a viagem para os Estados poderá forçar as engrenagens institucionais para reconhecer uma
Unidos, com todas as dificuldades para organizar as questões de Psicologia atravessada por outros vetores, por outros marcadores,
financiamento, a instituição fez uma premiação e enviou dois além dos colonialistas. Também me alerta que o movimento de uma
professores para a Disney, dois homens, que curiosamente são os pesquisa que surge no meio de uma sessão fascista, onde todos os
privilegiados e que ganham os prêmios da academia. Lélia me campos são tomados por “esse germe” (fazendo menção à expressão
convida a pensar nesta contradição: “[...] a instituição mandou dois utilizada por Suely Rolnik na obra “Esferas da Insurreição”), esse
homens para Disney mas não mobilizou um real para um Congresso “germe fascista”, como ela enuncia o presidente da república
nos Estados Unidos, numa universidade de peso [...] Eu acho que eu antidemocrática brasileira, que está impregnado na ciência, na arte,
preciso passar também por um caminho de reconciliação com a fazer este tipo de pesquisa é uma ousadia. Uma contravenção aos
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movimentos de querer brochar a vida de todos os trabalhos que fogem poética, que abre para o sonho sabe. Eu acho que essa última questão
dos eixos centrais e apresentam a mulher protagonista de suas micro é uma questão que diz assim: o que é que você sonha para o mundo
revoluções. Lélia não sabe se estamos inventando a roda com estas e o que é que você sonha para Psicologia? E aí eu diria eu sonho
nossas pesquisas, porém acredita que uma Psicologia feminista mesmo com a sala de aula em que a gente pudesse experimentar um
precisa comungar com uma pedagogia feminista, já que, em sua exercício de liberdade, em que a gente pudesse ser livre e a gente não
opinião, não adianta ter uma leitura feminista e agir através de uma se sentisse acanhado em compartilhar o que a gente sabe, os nossos
pedagogia antifeminista, para ela, este é um ponto crucial. Lélia saberes e o que a gente pensa, porque aquele espaço estaria muito
exemplifica tal inquietação: “Porque eu fico pensando: do que adianta preservado e muito reservado e seria um espaço propício para o
a gente ler bell hooks, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, todos os compartilhamento de uma vida viva, de uma vida não apequenada,
outros nomes, se a gente tem uma leitura feminista mas não tem uma eu acho que eu sonho com isso como trabalho em que eu possa
pedagogia feminista? A gente pode ter uma leitura feminista e ser facilitar os processos para uma vida não apequenada, pronto falei”.
racista, ter uma leitura feminista e ser anti feminista, o que eu estou
querendo dizer com isso é que uma pratica feminista para a psicologia
deveria estar em comunicação com uma pedagogia feminista, uma
pedagogia que valoriza os saberes locais, valoriza a fala em primeira
pessoa, uma pedagogia que não se envergonha das experiências
pessoais para a construção do conhecimento cientifico, então é um
longo percurso”. Ela traz relatos e experiências de uma docência
feminista que, apesar do seu narrado cansaço, comprovam que
naquele corpo a pedagogia para uma psicologia feminista floresce,
distanciada da cafetinagem que qualquer fascista, governo ou crise
poderiam secar. No final de 2020, recebo um áudio de Lélia, onde ela
lembra que no começo dos nossos diálogos, eu fazia umas perguntas
que a fizeram entrar em contato com a raiva das suas condições de
trabalho, com a precarização das relações do trabalho, e que as
últimas questões a reconectava com a prática docente. Uma prática
que anda entre prática pedagogia e prática feminista, e vai
experimentando a sala de aula como um campo aberto de
experimentação, onde existem memórias, bênçãos, rezas, os banhos
de rio e as trocas de cartas (exemplos que ela trazia durante a narrativa)
onde tudo isso se faz possível. Diz que gostaria de me dizer que a
última questão foi uma questão que soprou o seguinte: “Lélia, calma,
esse tempo vai passar, e quando esse tempo passar você vai poder
olhar para todas essas memórias, para todos esses registros do teu
cotidiano como docente, e você vai entender que faz parte também da
sua missão nessa vida e que não ia ser fácil o tempo todo, e como toda
vida que vale a pena ser vivida passa por muitos desafios... Então eu
acho que é um pouco essa experiência que eu queria compartilhar
com você, em relação a essa última questão. Acho uma questão linda,
M
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A mulher que compartilha “[...] Bárbara, lembrei de você, escuta isso: Uma manhã, eu acordei,
comigo essa narrativa, E ecoava: ele não, ele não, não, não, Uma manhã, eu acordei, E
compartilha muito mais que lutei contra um opressor. Somos mulheres, a resistência, De um
falas desenvolvidas por línguas Brasil sem fascismo e sem horror, Vamos à luta, pra derrotar o

Margarida vibráteis, ela compartilha ideais ódio e pregar o amor”.


de vida, militâncias, espaços
dialógicos, reflexões sobre Pronto, estava firmado o começo de nossa conversação. Em fevereiro
Julho 2019/ São Paulo de 2019, enviei os termos da pesquisa novamente, os objetivos da tese
enfrentamentos da violência
de gênero, e, como tantas de e solicitei que Margarida escolhesse um dia para a entrevista. Ela me
nós, docentes feministas, as avisa que está apurada com a correria para defesa do doutorado e
heterotopias de um mundo do entrando nos últimos meses da primeira gestação, mais uma de nós,
direito ao bem viver. O nome escolhido para apresentá-la nesta tese mulheres dos muitos momentos. Grande foi minha surpresa quando,
é uma homenagem a sua avó, MARGARIDA, uma referência sobre na manhã do dia 03 de julho de 2019, Margarida me chama no whats
quão valiosa é a ancestralidade, marca subjetiva que acessa lugares e sua voz me avisa: “Oi Bárbara. Tudo bem, estou te devendo a
da memória como entroncamentos hibridizados, oferecendo participação na pesquisa né? Me desculpe o tanto de tempo que eu
maior visibilidade àquilo que nos atravessa via apropriação afetiva. demorei eu espero que ainda dê para fazer alguma coisa com isto.
Demorei para marcar nossos diálogos porque foi muita coisa, fim de
Meu primeiro contato com Margarida foi por WhatsApp, no dia
doutorado, gravidez, dando aula, enfim muita coisa. Mas enfim,
02 junho de 2018. Conhecia seu envolvimento com o GENI – dá
estou de férias e de nove meses (risos) esperando essa criança nascer,
pra qualquer um/uma ⁴, sua militância feminista, sua política
essa menina...”. Arrepiei... ela parou o seu tempo, em um momento
docente e sua potência de vida. Neste primeiro contato, apenas
tão esperado, tão desejado, especial, e esteve comigo. Preocupada,
realizei o convite, falei sobre os objetivos da pesquisa, enviei TCLE
avisou que faria sua participação através de áudios de WhatsApp, o
e informei que assim que estivesse liberada pelo Comitê de Ética,
que seria mais fácil naquele momento, e assim, nossa conversação
entraria em contato para agendarmos a entrevista. Mas antes, em teve início. Margarida narra que somente em 2015, ao entrar em
20 de setembro de 2018, em pleno turbilhão político no Brasil, contato com uma aluna criadora do GENI e ser inserida no coletivo
enquanto os apoiadores do inominável presidente foram às ruas enunciou-se mulher feminista. Conta que certa aluna criou um grupo
com uma agressiva cantoria contra as mulheres, nas redes sociais no Facebook para fazer postagens sobre feminismo e colocou ali
surgia uma canção (Primavera Feminista) que prometeria ser o algumas pessoas que elas achavam que teriam interesse. Margarida
símbolo dos protestos do dia 29 de setembro de 2018, quando conta que estava fazendo a pesquisa de doutorado sobre uma
milhares de mulheres foram às ruas do Brasil e em mais 15 países, observação das redes, e que logo se interessou, gostou do conteúdo e
dizendo: #elenão! Ela me mandou a música para lembrar o começou a acompanhar. Percebeu que concordava com muito do que
compactuado entre nós, feministas ... estava sempre compartilhado, sobre modos de viver a vida, modos de
entender a mulher na vida cotidiana. Margarida diz que já aplicava
em sua vida, mas não sabia que isto levava o nome de feminismo, e,
ao se aprofundar um pouco mais nesse debate, principalmente
⁴ De autoria dos professores Jean D. Clandinin e Michael Connelly, o livro fomentado pelas redes no começo de 2015, entra em contato com
“Pesquisa Narrativa: experiências e histórias na pesquisa qualitativa” traduzido
pelo Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores (GPNEP) da conteúdos, conflitos e questões que ainda não havia pensado. Porém,
Universidade Federal de Uberlândia (ILEEL/UFU, 2015), foi instrutivo no alguns conteúdos daqueles já estavam presentes em sua vida e
sentido de pensar sobre uma pesquisa contada através de histórias vividas. estavam por conta da Psicologia. Olhar para as questões de gênero na
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formação e começar a trazer tais pautas para o debate em sala de aula, previsto nas ementas. Margarida cita a UNESP de Assis, onde fez
mudou o seu estar docente, como também a demanda que recaiu uma disciplina da pós-graduação sobre feminismo e viu isso
sobre ela para o entender da mulher a partir de uma perspectiva acontecendo e avisa que no curso em que ela trabalha, algumas
feminina, entender da produção de subjetividade da mulher a partir docentes levam essa perspectiva para as atividades acadêmicas. Ela
desse olhar feminista. Margarida acredita que isso foi o que se mesma, atualmente, orienta dois projetos de iniciação científica com
apresentou dentro do seu trabalho enquanto docente de Psicologia e a ênfase nos feminismos. Ainda conta para mim sobre sua passagem
fez estudar sobre feminismos. Ela afirma que sim, que foi esta relação pela Espanha na Universidade de Barcelona, onde foi fazer sanduíche
com as alunas na formação em Psicologia que a despertou para a do doutorado, e que lá, a questão dos feminismos, era politicamente
importância de enunciar-se feminista, mesmo porque já possuía uma muito marcada. Lembra também dos coletivos e movimentos
leitura da psicologia no âmbito social, sobre o entendimento do feministas que acontecem na UEM, onde existe um discurso de
contexto social, econômico, cultural. Reconhecia a importância da gênero construído em algumas disciplinas. Recorda que na Federal
criticidade para compreensão dos fenômenos, fossem eles: grupais, de Santa Catarina, na Federal de Minas Gerais, Federal da Bahia já
institucionais, comunitários, individuais e políticos, inclusive. Essa pode presenciar estes diálogos presentes em congressos. Como
mudança foi visualizada por Margarida como a soma de vieses, seguia a sequência de perguntas que eu havia desenvolvido para
surgindo como uma crítica ao psicologismo clínico mal utilizado, serem disparadoras de nossas conversações, Margarida me fala que
inclusive individualista, que responde ao movimento econômico considera a pergunta sobre o que pode vir a controlar nossas práticas
capitalista sem fazer a crítica, aquele que leva as questões para o e desejos de propagar o feminismo como movimento de liberdade e
individual de maneira muito pragmática. Margarida faz questão de autonomia na formação em psicologia mais complexa. Optei por
frisar que esse olhar é macrossocial e não abre espaço para as questões deixar a fala expressa aqui, em linhas, para tentar vislumbrar a força,
das minorias, e nestas minorias, as discussões sobre o feminismo, a garra, a luta de Margarida ao se expor nesta resposta: “Nossa, tem
principalmente o feminismo que ela acredita, o interseccional, o qual muitas coisas. Eu entendo o feminismo como movimento de
faz a crítica sobre a crítica, dando espaço para olhar tais questões, e resistência ao patriarcado ao machismo, a uma composição da
conclui: “Então, quando a gente vai pensar em uma intervenção, uma estrutura social que também é marcada pelo gênero, que tem uma
ação prática, uma análise teórica de algum fenômeno, essas situações história e que tem uma história de soberania, uma história de relação
começam a ficar mais evidentes. Olhamos para quem está falando, de de poder, de ideias naturalizadas, que estão padronizadas, estão
onde fala, porque está falando e principalmente, o que não está sendo normalizados e normatizadas. Falar de feminismo é falar de
dito dentro da análise destes fenômenos. Se algo não está sendo dito, rompimento, falar de rompimento de ciência, rompimento
algo que marca o lugar da mulher, se não está sendo dito algo que epistemológico, são muitos rompimentos, é um desafio. E aí são
marca o lugar da mulher trans, da mulher negra, da mulher deficiente vários níveis de enfrentamento, enfrentamento no nível mais singular,
e todas estas particularidades que compõe a sociedade da qual a gente no particular, no contato com outro que se não fizesse sentido ou se
pensa, trabalha, e intervém, diria que é isso”. Margarida comenta causa uma mudança é muito, é muito desagradável. Também vejo
sobre universidades que apresentam as teorias e os movimentos que tem a ver com os privilégios, acaba sendo mais difícil de ser
feministas como proposta de prática e intervenções realizadas durante propagado, fica parecendo uma discussão partidária e não uma
a formação acadêmica, e defende que são poucas aquelas que questão humana, e aí verificar que esses valores estão intrincados na
possibilitam uma disciplina específica, um estágio específico, que nossa sociedade por meio das instituições de todo tipo, pensando no
leva o nome de feminismo. Mas observa que tais temas acabam se ensino da psicologia feminista, nas próprias instituições educacionais.
apresentando de modo transversal, porém sobre responsabilidade e Então acho que isso pode ser considerado um problema, porque ela
comprometimento dos docentes, de trazer essa transversalidade ou traz questionamentos e as instituições não gostam de balbúrdia não é
não, já que não há uma cobrança enquanto conteúdo programático mesmo? De serem questionados quanto as suas regras e os seus
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valores, ensinamentos que se propagam e se repetem para estruturar feminista, sinalizando os efeitos deste movimento de escape do
a sociedade”. Eu respondi solitária ouvindo seus áudios: isso, isso, colonizado. Margarida vê isso com bons olhos, analisa como
isso... mantinha-me em concordância, incomodada com as verdades interessante esta proposta de trazer o movimento feminista, para que
compartilhadas com Margarida. Ela continuava com a voz rápida e a mudança seja feita. Como ela traz:“[...] como se a gente tivesse no
firme, pensando em como essa resistência em relação ao feminismo é mar de entendimento e de repente vem um tsunami que ele tá trazendo
grande, reconhecendo que tomou um viés político-partidário, uma coisa muito específica, ganhando voz de várias maneiras,
praticamente, e cita como exemplo, o (des) governo Bolsonaro. aparecendo nas artes, nos debates jornalísticos, na esquina, com
Comentava que a reação ao movimento feminista vem crescendo e grupos de adolescentes da escola pública, da escola particular, nas
aparentemente criando uma quarta onda no Brasil e na América redes sociais e nas novelas, enfim, um debate que vai crescendo e
Latina, se assim poderíamos dizer. A voz fica receosa e confessa que que, por conta da Psicologia. Também possibilita uma discussão dos
não é uma coisa muito simples de sair falando em qualquer lugar, em problemas atuais contextuais do ser humano que aparece na sua
qualquer espaço, para qualquer pessoa, precisa ser pensada pesquisa”. Margarida relata que não pensa na pesquisa em Psicologia
estrategicamente, entendido na sua profundidade e complexidade de descolada dos movimentos e teorias feministas, mas reconhece ser
um fenômeno, o fenômeno da mulher em si, a mulher enquanto uma um tensionamento diário, necessário, urgente, e que quanto mais for
pessoa integral que acontece que está na vida produzindo em lugares propagado, mais podemos nos desenvolver enquanto ser humano,
negados ao gênero. Em um áudio ela refaz a pergunta elaborada para enquanto profissionais de Psicologia. Ainda sobre os instrumentos de
a entrevista: “E aí, quais são as mulheres que a psicologia feminista trabalho, intervenção e criação da Psicologia, Margarida acredita
se propõe a enunciar? Eu acho que tem a ver com essa mulher que que deveria ter mais trabalhos, mais práticas, que pudessem ser parte
rompe esses padrões de conhecimento, de possibilidade, que rompe prevista e necessária das formações, que a Psicologia pudesse se
inclusive problemas colocados pela Psicologia do como ser mulher assumir sim, como uma Psicologia Feminista, que não dá mais para
algo natural, o que não é natural na verdade. Tem a ver com lugar, a Psicologia não ser feminista, sinalizando que entende o feminismo
com contexto que ela é colocada, que é criado para ela. E quando a não como antônimo de machismo, mas sim como resposta à maneira
gente rompe isso, muita coisa muda, inclusive nos processos teóricos como os conhecimentos por muito tempo na história da sociedade.
de compreensão dessa mulher. Enunciamos outras leituras em relação Chegando ao fim de nossa conversa, ela fala que viu que era a última
a mulher...(silêncio reflexivo, ou da ordem do inquietamento) uma pergunta, mas não a menos importante, uma pergunta que questiona
coisa que eu acho super interessante de pensar sobre isso, sobre a de que forma poderia revolucionar a Psicologia, influenciar nas
produção subjetiva de tantas mulheres, da mulher negra, sobre alguns leituras práticas e processos de militância na academia. Eufórica e
sofrimentos demandados aos psicólogos, principalmente os psicólogos em risos ela responde: “Eu adorei a pergunta, porque a gente já
clínicos, e começam a ser desmistificados, não no sentido de negar o entende que é um movimento revolucionário”. Recorda que no Brasil,
sofrimento, mas de entender que esse sofrimento é um sofrimento de a Psicologia é predominantemente desenvolvida por mulheres, assim
cunho racial, de uma mulher trans, uma travesti que terá um processo sendo, seria básico falar de feminismo, já que são mulheres que estão
subjetivo muito específico, muito próprio dessa condição de vida”. produzindo. Mas pontua que isso não significa que os homens têm
Eram tantas as suas pausas que, ao ouvi-la, ficava esperando mais um que ficar de fora destas ações. Margarida não acredita que exista um
tanto de Margarida, e este tanto chegava sempre com sua afirmativa feminismo feito só por mulheres ou só para mulheres, mesmo porque,
de propor que, inclusive, a Psicologia se aprofunde nas possibilidades se assim for, ficaríamos falando entre nós e não poderíamos
de compreensão e desenvolvimento de instrumentos para o seu desenvolver as mudanças que desejamos. Diz que precisamos dialogar
próprio trabalho. Que considera importante uma Psicologia que com os homens, precisamos dialogar com as instituições, dialogar
promova saúde e o quanto estes temas devem ser evidenciados nos com a política, ocupar os espaços e a Psicologia, precisamos
processos de produção de pesquisa, ensino e extensão pela Psicologia revolucioná-la. Margarida enxerga na militância um movimento que
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contribui muito para revolução, que é genuína em seu sentido,
envolve uma maneira própria para poder ocupar os espaços sem
tanta teoria dada à priori, e que tal ação pode ser rica e
transformadora: uma ação de alianças. Não esquece de falar, que
em sua opinião, a Psicologia também deverá ter uma certa
humildade em entender os processos de saber, de saber popular,
de respeitar a prática da militância e favorecer espaços de
construção, de revoluções. Considera necessário que a Psicologia
vá de encontro com isso, mas que ela não se aproprie, não seja
usurpadora do movimento da militância, e que possa encontrar
sua maneira de estar junto, de divulgar, de propor novos diálogos
também fora dos muros acadêmicos, dar legitimidade, abertura
a estes movimentos e teorias e fazer esse conhecimento ser
amplificado. A entrevista terminou como começou, falávamos
de nós, sobre a maternidade e a vida louca de docente, sobre a
descoberta de cada arte dos filhos, sobre os cursos que
compartilhamos pelas redes sociais, sobre nossa vida em
militância... e continuamos nos falando.
J
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Judith! É assim que enlaço “[...] Então esse foi sempre um percurso meu, eu acho que eu
o nome a um dos adjetivos comecei a me entender como feminista na adolescência, já que eu já
da mulher dessa narrativa, sabia que queria Psicologia, já sabia das pautas feministas, eu não
lembrando os escritos da me nomeava a partir desse nome, não falava que era feminista,

Judith
filósofa americana Judith Butler mas eu sempre fui muito questionadora em relação às questões
e seu diálogo crítico com a sociais, na relação entre homens e mulheres, nas relações de
psicanálise sobre a implicação trabalho principalmente”
da teoria na contemporaneidade
Agosto 2019/ São Paulo e as reflexões sugeridas pelos No dia 04 de agosto de 2019, ela me avisou que começaria a narrativa
movimentos feministas. Eu não por áudios de WhatsApp durante os intervalos no consultório. Avisa
conhecia Judith, ainda não havia que estava passando um café no momento deste recado, coisas da
tido acesso aos seus escritos, a sua imagem, mas as conversações intimidade da vida trazidas como afeto para a tese. Com a voz calma
propostas por esta pesquisa alcançaram espaços onde estas e doce, começa falando de como se descobriu feminista e como isso
mulheres emergiam de modo potente quando lembradas durante afetou a sua prática docente. Judith contava que, desde criança teve
as entrevistas com outras mulheres colaboradoras. Assim foi com uma formação muito crítica, principalmente por conta da sua mãe.
Fala que é nascida e criada no interior de São Paulo, que seus pais não
Judith. Meu primeiro contato com Judith foi por WhatsApp,
eram do interior, a mãe era do Rio e o pai era de São Paulo, e que
como disse, uma das colaboradoras citou seu nome e eu comentei
sempre tiveram uma preocupação muito grande de que os filhos
que procuraria no facebook, foi quando ela falou que Judith não
pudessem fazer outras coisas, além das coisas que a cidade oferecia.
pedia todo este distanciamento, que era para eu “ligar de cara para
Eu me divertia com a fala à vontade dela, com a tranquilidade e afeto
ela”. Passou o número e eu mandei mensagem, sem pestanejar,
que trazia cada lembrança: “Então, eu sempre tive um rolê de estar
apresentando-me e falando sobre a pesquisa. E Judith me viajando, visitando museu, para isso, claro devido minha condição
respondeu, e esteve comigo. Era o dia 04 de junho de 2018. Após os social e foi isso que provocou uma formação sempre crítica, meio
trâmites burocráticos de aceite do projeto de pesquisa pelo Comitê descolada mesmo do que se esperava de uma cidade pequena que tem
de Ética da UEM, retomei os contatos com as colaboradoras e mais seus 48 mil habitantes. Eu acho que sempre tive uma questão bastante
de um ano depois estávamos conversando, e ela cobrou: “pensei que crítica sobre os papéis (de gênero) de uma maneira geral, sobre fazer
você não ia mais precisar (risos), ai gente, não sei como lidar com o que se quer com responsabilidade. Então esse foi sempre um
estas expectativas (risos) ”. Neste minuto, parecia que havíamos percurso meu, eu acho que eu comecei a me entender como feminista
passado aquele ano de 2018 conversando e nos conhecendo para a na adolescência, já que eu já sabia que queria Psicologia, já sabia das
entrevista que veio acontecer em agosto de 2019. pautas feministas, eu não me nomeava a partir desse nome, não falava
que era feminista, mas eu sempre fui muito questionadora em relação
às questões sociais, na relação entre homens e mulheres, nas relações
de trabalho principalmente”. Judith lembra que um dos aspectos que
mais a interessa hoje em dia e que sempre a interessou, foram as
relações de trabalho. Considera que as relações de trabalho entre
homens e mulheres são, por vezes, até mais confusas do que as
próprias relações amorosas. Ela salienta que não entende, como
mulher heterossexual, de que modo conseguiremos trabalhar em
equipe, entre homens e mulheres, de uma maneira não ou menos
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opressora e cita sua experiência, narrando algo que observa ao ver estes diálogos de modo mais institucionalizado, em sua grade
que existe um número maior de mulheres docentes nas universidades curricular e ela comenta que a princípio não, o que percebe é que nas
privadas. Já nas universidades públicas, encontramos um número universidades que já trabalhou em duas universidades diferentes em
maior de homens docentes, pelo menos na universidade em que ela São Paulo, em uma, existia certa abertura para que estas questões
trabalha e quando as mulheres estão neste espaço docente público, fossem transversalizadas nas disciplinas, então era esperado da
lutam por relações que sejam minimamente mais transversais. Judith docente que apresentasse discussões sobre tais temáticas na disciplina,
reflete sobre o enunciar-se feminista, o que aconteceu antes de ser qualquer disciplina que ela esteja ofertando. Existia uma preocupação
docente em psicologia e acredita que esta prática feminista atravessou em abrir espaços de debate, de construção com alunas e alunos sobre
sua prática docente em tudo, na pesquisa e nas relações de trabalho. estes conteúdos e teorias. Judith disse que nessa universidade, tinha
Considera importante entender isso, que, como trabalhadora, ao um coletivo feminista formado com a participação de docentes e de
começar a vida docente, não como pesquisadora, já que este também alunas para pensar sobre estas questões dos feminismos. Na outra
é considerado por ela, como algo ainda visto com certo preconceito universidade percebia questões mais pontuais, apresentadas nas
pelos brasileiros, sobre a dimensão da pesquisa enquanto trabalho. semanas da psicologia, onde surgiam debates mais críticos, como por
Ela narra que vivenciou um impacto grande nas suas relações de exemplo, outras pautas progressistas como luta antimanicomial, a
trabalho. Relata que na docência, na prática em sala de aula, sempre psicologia preta, porém mais pontuais. Neste momento, Judith lembra
teve muita sorte de ter uma sensação de liberdade, porque sempre foi que não é mais docente destas instituições e surgem em nossa
coordenada por mulheres e que esta situação possibilitou uma conversação a preocupação com o processo de precarização e
autonomia maior para propor questões de gênero dentro da sala de conservadorismo das universidades, principalmente as privadas, o
aula e em seus planos de ensino. Ela fala que é professora na área de que ela diz sentir diferente nas universidades públicas, apesar de
psicanálise, psicopatologia, ética profissional e que na disciplina de também acontecer e onde as grades curriculares estão mais atrasadas
ética é um pouco mais fácil expor exemplos que apresentem o gênero em relação a propostas progressistas do que nas particulares. É daí
como assunto a ser debatido, e transversalizar questões a respeito de que Judith vê a necessidade das alunas em mobilizar estas discussões
raça, classe e gênero. Já quando a disciplina é psicanálise ou em sala, mesmo que as professoras e os professores não tragam o
psicopatas, disciplinas mais tradicionais, exige um esforço maior para assunto para o debate na formação. Ela acredita que nas universidades
colocar em questão tais debates e fugir da patologização. Defende privadas, apesar do modo paternalista de se fazer ensino, exista um
que o feminismo colabora nessas questões sobre a construção de uma espaço mais desenvolvido e facilitado para tais discussões, uma
formação crítica dentro da sala de aula e que tem facilidade de autonomia maior da docente para propor estes diálogos. Quando
promover diálogos sobre estas questões, porém, quando chega nas pergunto sobre quais diálogos poderiam vir a controlar nossas práticas
relações de trabalho, isso é um pouco mais complicado, o que torna e desejos de propagar o feminismo como movimento de liberdade e
extremamente necessário toda discussão e toda aplicação prática em autonomia na formação em Psicologia, Judith fala que tem certa
relação às pautas feministas que propõe, obviamente, a igualdade dificuldade de responder, porque não trabalha diretamente com as
entre os gêneros e isso vai desde pensar a forma como cada trabalhador teorias feministas dentro da psicologia, que estuda bastante a Butler
colabora com as reuniões de colegiado, a forma como muitas vezes, (mulher que referenciei como seu codinome na pesquisa) para discutir
por exemplo, nas universidades, as mulheres se propõe mais a fazer o sobre questões de gênero e tem um percurso com questões de raça
secretariado, a ata das reuniões e sua organização, e a forma como, lendo Fanon, Lélia González e algumas perspectivas do feminismo
poucas vezes, os homens se prontificam a tais funções. Inclusive não que entende como feminismo na psicanálise. Fala que lendo
esquece de citar a leitura discriminatória que as mulheres fazem psicanalistas mulheres que fazem confronto direto com a questão do
sobre outras mulheres quando estas estão em posições de poder. falo e do masculino na psicanálise, como é o caso da Françoais Dolto,
Falávamos também se Judith conhecia universidades que propõem o que ela pode dizer é que, dentro das suas aulas, a questão de gênero
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e a questão da diferença sexual no sentido da forma como era
entendida na cultura, sempre atravessam o conteúdo quando discute
tais teorias por exemplo em estudos de casos clínicos. Judith lembra
que sempre insere ali uma questão de gênero, discutindo a questão da
mulher, como é que isso é apresentado na clínica e de que forma pode
acarretar certo diagnóstico pejorativo no sentido de uma valorização
moral do diagnóstico em psicanálise, mesmo não trabalhando
diretamente com as teorias feministas. Ela acredita que precisamos
associar estas discussões às relações de poder, ao patriarcado, às
questões de raça, de classe e sobre a forma como elas são apresentadas
para nós, de modo muito naturalizado. Judith continua nossa conversa
defendendo que o feminismo, a partir das suas leituras e principalmente
a partir da prática da sua experiência, coloca em questão uma coisa
muito importante, que é jogar com o óbvio do universal que significa
a gente pensar que existe um universal da concepção de homem. Uma
concepção etnocêntrica baseada numa perspectiva que apresenta
importante crítica sobre esse universal na verdade, um falso universal.
Defende que isso é fundamental para Psicologia, já que podemos
pensar que as formas de sofrimento das pessoas, as formas como as
pessoas vivem, fazem com que a gente entenda que para pensar a
Psicologia não podemos, simplesmente, nos ater às teorias puras e a
forma como elas estão nos livros. “A gente tem que pensar nas práticas
em contextos históricos e nas suas transformações, isso faz um bom
psicólogo é uma boa psicóloga. Uma psicóloga mais estudiosa da
cultura é uma pessoa que vive a sua época e pensa criticamente sobre
ela e o feminismo se faz essencial nesse sentido”. Judith me fala que
em São Paulo está acontecendo um movimento muito interessante de
mulheres se propondo a ler mulheres, ler umas às outras. Diz ser
muito proveitoso porque conseguem perceber o quão pouco lemos
mulheres dentro da Psicologia. Com esta reflexão, terminamos nossa
conversa, lembrando o quanto é, no mínimo estranho, esta escassez
de leitura sobre mulheres, sendo a Psicologia uma profissão exercida
predominantemente por mulheres. E como nos outros encontros, a
despedida é sempre atenciosa: “Acho que é isso. Desculpa a demora e
os espaços nos intervalos grandes entre as nossas conversas. Eu
espero que eu tenha contribuído aí com o que você precisa e depois
quero ver o resultado desta pesquisa. Muito boa sorte e a gente vai se
falando. Conta comigo, um beijo”.
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Michel Foucault ao prefaciar a edição americana de “O Anti idealizadora, de viés autoritário, de precarização das condições de
Édipo” de Deleuze e Guattari em 1977, avisa: “[...] não se apaixonem ensino (notadas com maior intensidade em tempos pandêmicos pela
pelo poder [...] não procurem uma unificação”, e oferece as linhas para dificuldade dos alunos – tecnológica, física, geográfica, financeira e
o bordado deste espaço, sobre a passagem do poder para a potência. social - em acessar as aulas de forma remota e assíncrona), do trabalho
Nelas, o teórico reconhece que, a partir do momento que não nos de professores e de propostas didáticas dialógicas que reivindicam o
apaixonamos pelo poder, tomamos distância do desejo do soberano, lugar da crítica e da reflexão.
da autoridade do colonizador. Mesmo ciente de que somos sim, em
maior ou menor grau, submetidas ao movimento predatório de uma Um (des) governo, que aposta na educação domiciliar para
subjetividade servil, acredito que é possível defender um agir político retroceder ao ensino patriarcal e desvincular-se de sua obrigação
que não esteja baseado na dominação/submissão/ silenciamento do legal de educação como direito do sujeito e dever do Estado previsto
outro, inclusive quando a proposta é realizar a porção analítica de constitucionalmente, militariza escolas atualizando seu discurso
uma pesquisa. ideológico de disciplinarização dos corpos e rechaça as conquistas
dos movimentos sociais, da diversidade e minorias, reinscrevendo
Segundo o teórico, devemos escapar das paranoias totalizantes práticas neoliberais de organização social. Uma política de
e fazer proliferar o desejo, a ação e o pensamento, abrir o espaço para austeridade que gera medo, miséria e violência, que estimula em
o novo, pensar em políticas para fora das formas constituídas, pegar seus discursos internamentos, encarceramentos, exclusão dos
carona em linhas de fuga, produzir alguma coisa que ainda não existe indesejáveis, criminalização das assembleias docentes e grêmios
e que não sabemos o que será, uma maneira contrária de pensar e estudantis e incrementa currículos ultraconservadores de censura à
viver as inúmeras formas de fascismo, da ditadura da razão. formação acadêmica, perseguindo e punindo atos de protesto como
as de exigência de direitos.
Percebendo tais pistas foucaultianas e linhas deleuzianas,
entendo que as narrativas presentes nesta tese, falam do que deve Propostas extremamente temerárias, que respondem aos
ser dito, sobre o óbvio a ser relembrado constantemente e sobre a interesses de mercantilização do ensino e contribuem para aprofundar
preocupação com todas as vidas vividas, como a urgência de se as abissais desigualdades no país. Nada obstante neste momento
construir uma ética potente o bastante para ser a substituta da moral político dramático de extremo retrocesso do campo das políticas
acadêmica vigente, capaz de afirmar a si mesma e a outra, que educacionais, emerge militâncias que riscam os acabamentos
floresce nos meios dos nossos bons encontros, aqueles que pretendem tendenciosos dos sujeitos fascinados pelo poder, borram os contornos
vivenciar em vez de interpretar, como propuseram Foucault, Deleuze desenhados como limites ou fronteiras para o corpo do fora, celebram o
e Guattari em 1977. poder de resistir às colisões provocadas em nossas agendas militantes,
tornando inacabadas, nestes tempos claustrofóbicos impostos por
Em tempos políticos atuais, de apaixonamento pelo poder, diferentes pandemias, as lutas daquelas que nos antecederam.
aqueles descritos por Foucault (2004) como fascínio dos fascistas, os
processos de desconstrução da educação são acelerados, esvaziando Doravante, as narrativas apresentadas na tese são aquelas
o Plano Nacional da Educação, as matrizes curriculares, planos de que aguçaram os ouvidos para o espontâneo e constroem um texto
ensino e provocando o desmonte das políticas públicas, entre elas, colaborativo, implicado com uma série de acontecimentos evocados
as de educação em todos os seus níveis de ensino. A proposta do no momento do encontro, mantendo, assim, a significação artística
Governo Federal do Brasil, representado pela pessoa de seu presidente, de cada vida. Compõem-se na intencionalidade de perceber as vidas
Jair Messias Bolsonaro, apresenta-se com uma carga fortemente experienciadas e contadas para além das estruturas quantificáveis,
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recortadas e fechadas. Isso porque, “[...] o conhecimento que
exprimimos acerca de nós mesmos e do mundo não é apenas um
problema teórico, mas um problema político” (Passos & Barros, 2015,
p.151), ou seja, uma política da narratividade.

Enquanto seres viventes que estamos na atual geografia


do presente, proponho critérios de uma pesquisa cartográfica que
permitem que os diagramas de forças agenciados nos entre-vidas,
aconteçam com o intuito de apresentar de modo situado, linhas de
forças que me atravessaram intempestivamente nos encontros com
as colaboradoras para refletir sobre as inquietudes, provocações,
deboches que se materializaram durante o tempo do doutoramento.

Portanto, ressalto que não se trata de uma mera proposta


de retratar histórias, apresentar conexões com campos teórico-
metodológicos, com a intenção de problematizar certos fenômenos
psicossociais e processos de subjetivação. Trata-se de uma tentativa
de gerar incômodos, perturbações na lógica biopolítica dos
assujeitamentos das práticas e desejos, da ação colonial sobre nós
e, sobretudo, exige da Psicologia um discurso pós-disciplinar para
resistir à domesticação acadêmica.

O arcabouço teórico-metodológico elencado para a realização


da análise/atravessamentos das narrativas, acena para essa trajetória
de vidas em coletivos e vai além de suas dimensões, não se resume
às meras interpretações analíticas, pois as extrapola, promovendo
mediante um comprometimento ético e uma responsabilidade crítica
com a vida, embriões de autonomia para fazerem de/nos seus corpos
“[...] palco de práticas de liberdade que exploram a dimensão múltipla
e sensível que não se prende a essências, nem tampouco a referências
identitárias” (Roberta Stubs Parpinelli, 2015, p. 38).

Neste espaço, é possível analisá-las como é esperado de uma


cartógrafa, acompanhando os processos, os pensamentos e afetos que
estão abertos, aqueles que permitem a construção de nossos coletivos
e reforçam o poder de afetar e ser afetada, espinosamente defendendo
que, o poder de existir é uma potência.
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A primeira linha de análise/atravessamento das narrativas Enquanto pesquisadora cartógrafa que me enuncio, recorro às
foi “costurada” nos bons encontros, com a alegria potente de ser/ narrativas representadas por estes corpos agenciados por movimentos
estar afetada e então agir, mesmo que nossas práticas sejam uma - encontros e acontecimentos, em composição e decomposição -
perturbação para alguns. Neste movimento, recorro a construção não aqueles que se reinventam nas relações. Algumas que se fazem
cronológica das narrativas, aos seus enredos, oferecendo intensidade no bom encontro, permeado por afetos relativos à alegria e onde
ao seus contextos globais que adquirem vida própria, extrapolam os os corpos se compõem para formar um todo mais potente; outras,
limites do papel e da tela, são autorais. quando um decompõe o outro, destrói a sua coesão, estando a tristeza
presente, ocorrendo a subtração dos afetos, aqueles referentes ao mau
Entre linhas de alegrias e perturbações, as colaboradoras encontro.
narravam sobre o encontro com os feminismos, o momento que
sentiram sua presença/feitio, e as fizeram acreditar que são/estão Deleuze recorre a Espinosa (2009) para discutir sobre a ética
feministas. Ilustram o protagonismo dessas mulheres sobre quando e pontua tal obediência na sociedade, a reprodução de condutas
começaram a se entenderem como feministas e quais mudanças estas contraditórias intimamente ligadas às relações de poder instituídas,
descobertas interferiram e interferem no seu estar mulher docente. de obediência contornada nas noções de mérito e demérito que
denunciam valores e paixões tristes. Espinosa (2009) trabalha tal
Assim, também as colaboradoras da tese descreviam o existir como potência e, para discutir a partir da perspectiva de
acontecimento do enunciar-se feministas. Feminismos que antes de potência, propõe pensar o corpo não como substância, mas como
se fazer leitura, estudo ou prática, foi para algumas, experimentações modo, corpo que tem o poder de afetar e um poder de ser afetado,
ainda na infância ou adolescência por meio de comparações e afecções ativas e passivas, uma potência de agir e uma de sofrer.
diferenciações de criação, direitos, deveres e afazeres entre irmãos
do gênero masculino como Anita narrou. Ou em situações apontadas O filósofo escreve que a potência de padecer ou sofrer não se
durante o convívio com amigas e familiares que reproduziam relações refere à mera passividade, pode incitar também o potencial de agir,
nas quais mulheres eram subalternizadas encontradas na fala de causar rupturas, paixões alegres tomadas como uma afecção que é
Conceição ao comentar os incômodos que sentia ao acompanhar útil ao corpo, já que aumenta sua potência de ação, sendo que, quando
as relações amorosas das irmãs e primas com os namorados e seus preenchido por tal afecção positiva, o corpo desejará manter a alegria
dizeres de submissão da mulher validados posteriormente em seus ou o objeto que o fomenta. Para ele, o poder de ser afetado não tem
casamentos. nada de passividade, ou reatividade, ser afetado não corresponde a
uma permeabilidade que despotencializa, mas sim, de ser preenchido
Também na conversa franca de Lygia relatando em sua própria de afecções, ao seu grau de potência.
trajetória percebeu que se mantinha em um relacionamento abusivo
ao entrar em contato com estudos e literaturas no andar por caminhos Deste modo, quanto mais um corpo pode ser afetado, mais
universitários. Eu escutava na voz de cada uma delas a escrita de são aumentados os seus graus de afecções, sua potência de agir, ou
Guacira Lopes Louro (1997): seja, o poder de afetar de um corpo é diretamente relacionado ao
quanto pode ser afetado por outro corpo, diz sobre uma relação de
Se hoje me reconheço como uma estudiosa feminista, tenho convicções retroalimentação entre ambos, de co-dependência mútua. Situação
de que esta identidade foi sendo produzida, contestada, questionada e
assumida em múltiplas relações e práticas cotidianas, ao longo de vários
expressa com tanta intimidade por Conceição quando me questiona
anos. Tal identidade (que continua se fazendo e se transformando) também se a sua contribuição seria válida a pesquisa, já que o feminismo em
é um resultado aberto e provisório (Louro, 1997, p. 7). sua prática profissional, não se apresenta necessariamente nas leituras
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ou proposto em sala de aula como debate, mas como ato político, criação, “Criar é resistir efetivamente”, considerando que a potência
pertencente a sua vida cotidiana. está relacionada ao poder de criar, poder enquanto verbo, instituinte,
produtiva, contrária do poder relacionado ao poder de captura daquele
Já as paixões tristes são aquelas resultantes de uma relação que deseja o poder, poder enquanto substantivo, estático, em repouso,
de decomposição, diminuem o potencial de ação de um corpo, repressor e coercivo.
podendo chegar à impotência⁵. Entre os sujeitos das paixões tristes,
está o tirano que precisa da tristeza das almas para triunfar, da Quando a criação da potência fica capturada pela dominação
do poder, a linha se torna ponto e o devir se faz repouso, e então é
mesma forma que as almas tristes precisam de um tirano para se
instituído o plano macropolítico, expresso na política do medo e da
prover e propagar. Portanto, acontece uma predominância de relações
violência, que despotencializa o coletivo e mantém a vida prisioneira.
despotencializadoras e de afetos tristes como forma de domínio
e governo de uns sobre os outros, o tirano precisa deles para nos Por isso é importante lembrar da escrita de Judith Butler:
converter em escravos e nos persuadir de que a vida é pesada, nos
O que algumas vezes chamamos de um “direito” de aparecer é tacitamente
angustiando e organizando nossos pequenos terrores íntimos. apoiado por esquemas regulatórios que qualificam apenas certos sujeitos
como elegíveis para o exercício desse direito. Então não importa quão
O poder de resistir a estes afetos tristes refere-se a singularidades “universal” o direito de aparecer reivindique ser, o seu universalismo é
que não se deixam regularizar, é o que resiste às relações de forças, minado por formas diferenciais de poder que qualificam quem pode e
é o “fora”⁶, o que exige uma visita a outros territórios ainda não quem não pode aparecer. Para aqueles considerados “inelegíveis”, a luta
para formar alianças é fundamental, e envolve uma proposição plural
pensados, de singularidades, espaços onde nada é determinado, e performativa de elegibilidade onde ela não existia antes. Esse tipo de
onde está tudo por acontecer. Estas linhas de alegria estão além performatividade plural não busca simplesmente estabelecer o lugar
das relações de poder instauradas, são linhas de singularização daqueles previamente descontados e ativamente precários em uma esfera
frente às relações de força instituídas e podem, inclusive, fraturá- de aparecimento existente (Butler, 2018, p. 57).
las, transformá-las, perturbá-las. Potência presentes a todo instante
no desabafo de Lélia, ao narrar seu cansaço, até mesmo frustação As colaboradoras da pesquisa reconhecem que ao corpo foi
frente o cenário docente do Brasil, porém defendendo que se não é o dada a lógica presente na sociedade ocidental, uma vez que é alicerce
momento para a docência, então pode ser o momento de se dedicar à onde a ordem social foi fundada e mesmo quando surge no centro dos
arte de forma mais amadurecida, dedicar mais tempo, mais estudo, discursos sociopolíticos, é negada a existência de certas categorias de
a outros modos de estar docente sem, necessariamente, inserida do sujeitos, principalmente quando a diferença vem marcada pelo gênero
espaço arquitetônico das universidades. e pela raça. Carolina recorda sobre a esta imposição e constituição da
diferença na prática e no pensamento social colonizador, ao contar
Assim, Deleuze estabelece uma relação entre resistência e que durante sua infância e adolescência a formação acadêmica não
vida, aquela que escapa, uma articulação entre as forças de vida e de era algo previsto para mulheres com histórias como a sua, sendo ela
a primeira da família inserida no ensino superior.
5 “[...] momento em que estamos separados ao máximo de nossa potência de agir,
altamente alienados, entregues aos fantasmas da superstição e as mistificações do
tirano” (Deleuze, 2002, 1981, p. 34). Afirmativa ainda mais contundente quando o gênero é
6 Para Tatiana Salem Levy, em A experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze: percebido, já que rever o que mobiliza o corpo a sair da condição
“Fazer do pensamento e da arte uma experiência do fora pressupõe o contato com precária de ser mulher, precária para se referir a condição universal
uma violência que nos tira do campo da recognição e nos lança diante do acaso, onde
nada é previsível, onde nossas relações com o senso comum são rompidas, abalando de sujeito inferior exposto à necropolítica, pode ser uma estratégia
certezas e verdades” (Levy, 2011, p. 100). para descobrir-se envolvida com a ideia performática de uma política
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de existência original. Ideia formulada para sensibilizar a vida ao liberdade, uma ligação sem a qual não existe liberdade (Butler, 2018, p. 59).
pertencimento em assembleias imprevisíveis, de esperança radical
no futuro que podemos inaugurar, interligadas às multicoloridades, Agir politicamente a fim de garantir as condições de existência
culturalidades, dororidades e sororidades entre nós, mulheres, que ... Esse é o momento de enunciar-se feminista. Momento nem
enunciam-se feministas, aqui, na parte inferior do mapa mundi. sempre marcado por um acontecimento ou data expressiva, que
volta a ser da ordem do acontecimento, do sentimento de revolta,
A performatividade das colaboradoras desta tese também se está nas reflexões das colaboradoras sobre as cobranças realizadas,
apresenta como reivindicação para defender e discutir o papel do nas violências presenciadas, nas diferenças de tratamento e
ensino, da pesquisa e da extensão universitárias como ato político, reconhecimento, nas relações demarcadas do “seu lugar” enquanto
elas se enunciam docentes feministas/ ARTivistas, como Margaria mulher, nos questionamentos políticos sobre estar mulher. E sobre
em sua participação em coletivos acadêmicos, Lygia ao trazer para este acontecimento de se reconhecer feminista, bell hooks (2019)⁷
atividades culturais como saraus diálogos caros aos feminismos e adverte:
Lélia através de suas intervenções com a natureza ou na proposta
pedagógica de retomar a afetividade da troca de cartas entre Feministas são formadas, não nascem feministas. Uma pessoa não se torna
acadêmicos como experiência de aproximação de vidas. defensora de políticas feministas por ter o privilégio de ter nascido do sexo
feminino. Assim como a todas as posições políticas, uma pessoa adere às
políticas feministas por escolha e ação [...] antes que as mulheres pudessem
Elas correm o risco de tencionar os cânones e culturas mudar o patriarcado, era necessário mudar a nós mesmas; precisávamos
colonizadoras ao propor um projeto político pedagógico de ampla criar consciência (hooks, 2019, p. 25).
envergadura, objetivando restituir a fala e a produção científica aos
sujeitos destituídos da possibilidade de confrontar a formatação As narrativas traziam que os estudos e teorias feministas não
hegemônica. Sabem que o ato de se colocar a serviço da construção foram sempre o foco das propostas acadêmicas lançadas pelas docentes
do conhecimento pungente e comprometido com a superação de nos projetos de estágio, apresentadas nos tópicos dos planos de ensino
desigualdades é um projeto radical de política e justiça social, certa ou citadas nas referências bibliográficas, muito menos estudadas
pedagogia que podemos chamar de uma pedagogia feminista como na formação acadêmica de várias delas. Muitas delas surgiram
sugere a docente colaboradora Lélia, mesmo porque: sorrateiras durante a formação acadêmica, nas oportunidades de
pós-graduação, e em situações de intervenção profissional, quando
Para ser um participante da política, se tornar parte de uma ação concertada
e coletiva, uma pessoa precisa não apenas reivindicar a igualdade (direitos
iniciaram seu percurso de corpo encarnado, de saberes localizados
iguais, tratamento igual), mas agir e peticionar dentro dos termos da e feministas. As narrativas de Margarida, Carolina, Lélia e tantas
igualdade, como um ator em pé de igualdade com os outros. Dessa maneira dessas colaboradoras apresentam esse enunciar-se feminista durante
as comunidades que se unem em assembleia nas ruas começam a encenar os mestrados, doutorados e encontros acadêmicos.
outras ideias de igualdade, liberdade e justiça diferentes daquelas a que se
opõem. O “eu” é assim ao mesmo tempo o “nós”, sem estar fundido em uma
unidade impossível. Ser um ator político é uma função, uma característica
Estas mulheres relatam estar preocupadas com conceitos
de agir em termos de igualdade com outros humanos – essa importante éticos, metodológicos e técnicos, mas não esquecem a necessidade
formulação arendtiana permanece relevante para as lutas democráticas
contemporâneas. A igualdade é uma condição e uma característica da
ação política em si, ao mesmo tempo que é o seu objetivo. O exercício de 7 A teórica adotou o nome pelo qual é conhecida em homenagem à bisavó, Bell Blair
liberdade é algo que não vem de você ou de mim, mas do que está entre nós, Hooks e faz questão de afirmar que bell hooks deve ser escrito em letra minúscula
mesmo, representando seu desejo de dar destaque ao conteúdo de sua escrita e não
da ligação que estabelecemos no momento em que exercitamos juntos a à sua pessoa.
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contínua de reler padrões históricos e sociais que se modificam diante como e de que modo o público e o privado se distinguem, e como essa
o curso de formação de propostas pedagógicas da grade curricular distinção é instrumentalizada a serviço da política sexual (p.41). [...] Para
aqueles apagados ou rebaixados pela norma que se espera que incorporem,
e áreas de atuação de psicólogas, mesmo porque, de acordo com
a luta se torna uma batalha corpórea por condição de reconhecimento,
Margareth Rago: uma insistência pública em existir e ter importância. Assim, é apenas
por meio de uma abordagem crítica das normas de reconhecimento que
Nesses movimentos, também está em jogo a invenção ética e libertária
podemos começar a desconstruir esses modos mais perversos de lógica
da subjetividade, que só se torna possível a partir de experiências
que sustentam formas de racismo e antropocentrismo. E é apenas por
individuais e de formas de sociabilidade mais inteiras e mais equilibradas,
meio de uma forma insistente de aparecer precisamente quando e onde
que possibilitem a expansão dos afetos e desejos. Não se trata apenas
somos apagados que a esfera da aparência se rompe e se abre de novas
dos “sujeitos de direito” que clamam por se fazerem ouvir e serem
maneiras (p.44) [...] A performatividade de gênero presume um campo
reconhecidos perante o Estado, mas de novas subjetividades que acenam
de aparecimento no qual o gênero aparece, e um esquema de condição de
em busca da ética e do sentido de suas próprias vidas: da renúncia de
reconhecimento dentro do qual o gênero se mostra das maneiras que se
si e da culpabilização dos desejos, passa-se a afirmação de existências
mostrar; e uma vez que o campo de aparecimento é regulado por normas
estetizadas, construindo declarada ou imperceptivelmente suas artes do
de reconhecimento que são hierárquicas e excludentes, a performatividade
viver e suas heterotopias (Rago, 2015, p. 59).
de gênero está assim ligada às formas diferenciais por meio das quais
sujeitos se tornam passíveis de reconhecimento (Butler, 2018, p. 45).
No exercício de sensibilização sobre outros possíveis, elas se
propuseram a pensar em formatos interventivos que ultrapassam as Quando reconhecem as inúmeras possibilidades de estar
instruções teóricas e conduzem a Psicologia às ações de militância, mulher e a diversidade apresentada pela interseccionalidade,
de reconhecimento das nossas diferenças, o que não significa algo as estruturas universais vigentes construtoras de existências
negativo quando distinta dos atos de desigualdades. Estes sim, dóceis são abaladas e reagem violentamente contra lutas e
podem ser um problema quando legitimam discursos excludentes movimentos que anunciam histórias de resistência reveladas pela/
que invisibilizam a mulher no mundo, ignorando a existência das na interseccionalidade1, implicações presentes durante as contações
opressões em relação às inúmeras interseccionalidades e a necessidade de Jaqueline ao narrar sobre suas propostas e discussões acadêmicas
de continuar questionando seus privilégios. eticamente comprometidas com seus posicionamentos enquanto de
mulher negra e trans.
Ao permitir-se ouvir o que a lembrança evocava, as docentes
entravam em contato com histórias que invadiam a vida e buscavam Elas falam sobre histórias geralmente não são contadas,
na memória acontecimentos inaugurais de suas reflexões sobre estar desejos, pensamentos, ações desconsideradas por certa cegueira
mulher. A universalização da categoria mulher, seja pelo cristianismo, social que perpetuam práticas de desqualificação do lugar da
cultura, educação, medicina, educação ou justiça, entre tantos outros mulher e a invisibilidade de tantas outras ignoradas, inclusive, por
dispositivos de produção e reprodução de gestos e modos de ser mulher, feministas quando não apresentam em suas pautas e debates tais
apareciam em algumas narrativas e denunciavam o apagamento e a
precariedade de subjetividades subversivas. Concordando com Butler
(2018):
8 Segundo Lugones (2007): “A interseccionalidade revela o que não é visível quando
Desse modo, a precariedade está, talvez de maneira óbvia, diretamente categorias como gênero e raça são conceitualizadas separadamente. O movimento para
ligada às normas de gênero, uma vez que sabemos que aqueles que não intersectar essas categorias foi motivado pelas dificuldades de tornar visível aquelas/
es dominadas/os e vitimizadas/os nos termos de ambas categorias. Embora cada um/a
vivem seu gênero de modos inteligíveis estão expostos a um risco mais namodernidade capitalista eurocêntrica seja racializado/a e gendrado/a, nem todos
elevado de assédio, patologização e violência. As normas de gênero têm são dominados/as ou vitimizados/as com base em seu gênero ou raça” (Lugones,
tudo a ver com como e de que modo podemos aparecer no espaço público, 2007, p. 192-193).
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interseccionalidades. O ato de problematizar e desconstruir conceitos retomando a crítica de Gayatri Chakravorty Spivak (1990, p. 63)
e categorias, redefinir modalidades de vínculos intersubjetivos, e sobre a importância de evitar “[...] construir o OUTRO apenas como
inventar outras possibilidades semânticas e teóricas, auxiliaram a um objeto do conhecimento, deixando de fora os reais OUTROS por
tornar novas as produções de vida, docência e pesquisa, agregando causa daqueles que estão tendo acesso a espaços públicos devido
a subjetividade das colaboradoras, processos reinventivos de uma a essas ondas de benevolência e assim por diante”. Do contrário,
epistemologia para a próxima revolução, como escreve Linda Alcoff produziremos a inexistência da vida, da voz e do direito destas outras
(2016): tantas e retroalimentando o sexismo, “inimigo interno”, que de
acordo com bell hooks (2019), nos fez julgar sem compaixão e punir
É realístico acreditar que uma simples “epistemologia mestre” possa julgar duramente umas às outras.
todo tipo de conhecimento originado de diversas localizações culturais
e sociais? As reivindicações de conhecimento universal sobre o saber
precisam, no mínimo de uma profunda reflexão sobre sua localização
No mesmo espaço temporal, eram mulheres que sugeriam
cultural e social (Alcoff, 2016, p. 131). debates que vislumbrassem as manifestações populares, os processos
de luta contra violência, denunciassem a decadência do regime
Nesta escrita, a teórica convida à reflexão sobre outros saberes, democrático e de direitos da nação brasileira. Estavam e continuam
aqueles que estão distantes das epistemologias do Norte do Globo, as com o corpo jogado ao fogo por estrategistas do discurso neofascista,
quais não reconhecem o legado da matriz africana para nós latinas, a que ditam suposições sobre a quem cabe estar incluído ou não em
implicação de sua língua, sua terra e resiliência para a sobrevivência seus propósitos de direitos. Por isso, como narrado por Margarida,
do seu povo. Foi a provocação feita a Lélia durante o doutorado ao essas instituições educacionais podem nos consideram um problema,
ser questionada sobre o quanto das teóricas latinas ela apresenta em elas não gostam de balburdia do nosso povo.
seus planos de ensino enquanto proposta de estudo e reflexão para a
formação em Psicologia o que fez ela se comprometer a sugerir, em Elas estão cientes de que, como cita Butler (2018, p. 11),
todas disciplinas que lecione, a teoria de intelectuais fora do eixo “não existe possibilidade de o povo sem uma fronteira discursiva
hegemônico, uma ‘viragem’ como Lélia sugere. desenhada em algum lugar, traçada ao longo das linhas dos Estados-
nações existentes, das comunidades raciais ou linguísticas ou por
Bahri (2013) também escreve sobre o desafio de falar através afiliação política”, o movimento realizado para definir o que é “o
da diferença e a importância deste movimento para um todo povo” passa por intersecções que muito interessam a nós que, como a
crítico, independentemente de onde esteja localizado (gênero, raça, teórica, reconhecemos a existência de uma vasta região daqueles que
etnia, geografia, desejo, cultura), sendo igualmente narrado pelas permanecem irreconhecíveis por este Estado, não nação.
colaboradoras que, para entender como essas linhas e diferenças
atravessam sua subjetividade, foi fundamental para compreensão das Destes mirantes, somos alertadas para os riscos da ideia
ideias, perspectivas e vivencias apresentadas por outras mulheres de identidade nacional, somos tantas, e tantas são as nossas
psicólogas falantes de feminismos no contexto de formação singularidades que, ao perigo de cair na mesma lógica essencializante
acadêmica. de outras teorias, corremos o risco de ocultar a importância de nossa
diversidade, da heterogenia de costumes, crenças, idiomas de uma
A existência controvérsias e ausência de conhecimento sociedade pluri étnica, que rasuram fronteiras totalizadoras. O
quanto sobre uma formação em Psicologia Feminista narradas hibridismo cultural existente no Brasil torna possível a compreensão
pelas docentes, justificam a proposta destes diálogos, objetivando de corpos rizomáticos e a destruição de um único lugar de enunciação,
a inclusão dos saberes psi atemporais, interseccionais e relacionais, revela-se conectado a todas as construções sociais, reconhece a
150 151
cultura em movimento de favorecer a crítica pós-colonialista em o pensamento coletivo em possibilidade de prática e intervenção
novas modalidades de projetos, políticas e intervenções. acadêmica. Como o contado por Carolina sobre sua experiência ao ser
chamada pelo conselho da universidade para alterar a referência onde
Tais histórias transfiguravam no mundo como desafios aos propôs a leitura das concepções de Judith Butler no plano de ensino da
antigos interesses, e experimentam a clandestinidade, ousadias disciplina que ministra ou quando pretendia discutir sobre as diversas
que são feitos fronteiriços, libertários dos moldes excludentes da configurações de família, e na avaliação institucional realizada
tradição colonial amedrontada com seus comportamentos marginais. pela universidade, foi avaliada negativamente por uma parcela da
Para as colaboradoras, o estar docente feminista oferece ao corpo a comunidade acadêmica, tendocomo justificativa comentários como,
experiência de estar no fluxo desejante de aprender/criar/intervir com/ “professora doutrinadora que prega ideologia de gênero”.
na academia e na vida, despedem-se assim, de antigas concepções,
como aquelas descritas por bell hooks (2019): Sua insistência, convicção teórica e comprometimento, podem
ser consideradas uma poderosa arma social também na universidade,
Cheguei a teoria porque estava machucada – a dor dentro de mim era já que, como escreveu Foucault em Por uma vida não fascista (2004,
tão imensa que eu não conseguiria continuar vivendo. Cheguei a teoria s/p), “[...] não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante,
desesperada, querendo compreender – apreender o que estava acontecendo mesmo se o que se combate é abominável, é a ligação do desejo com
ao redor e dentro de mim. Mais importante, queria fazer a dor ir embora.
Vi na teoria, na época, um local de cura [...] a teoria não é intrinsecamente
a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui
curativa, libertadora e revolucionária. Só cumpre essa função quando uma força revolucionária”. Elas vivem um devir revolucionário, sem
lhe pedimos que o faça e dirigimos nossa teorização para esse fim [...] esperar por uma conjuntura política favorável aos seus objetivos, são o
por isso, nenhuma teoria que não possa ser comunicada numa conversa desejo do que escapa, aquilo que Deleuze, Guattari e Foucault (1977)
cotidiana pode ser usada para educar o público (hooks, 2019, pp. 83 seg.). chamavam de acontecimentos que rompem a linearidade da vida.

Daí a importância de nossas conversas cotidianas, aquelas que


foram além da pesquisa e que promoveram uma infinidade de conexões
nos encontros para as entrevistas, tanto naquelas presenciais, como
nas virtuais, as quais, diante a quantidade de afeto administrado,
eram vivenciadas em cada gargalhada gravada em voz, ou nas
emoções expressas durante falas embargadas por suas histórias e nos
recados de “já volto”. Ou com a minha própria demora em devolver
as narrativas para elas ao ouvir de Judith, por exemplo, “pensei que
você não ia mais precisar, ai gente, não sei como lidar com estas
expectativas - risos”, até mesmo os recados das docentes terminando
seus doutoramentos, “esqueci mesmo, mas sabe como está nossa vida
de docente doutoranda não é?”, exigindo da cartógrafa o agir ético
para se colocar como ponto aberto, sem que sua ação de pesquisadora
seja amparada em normas dadas a priori por seus objetivos.

Ao reassumir sua função docente feminista estas mulheres


narram a força para resistir, estética de existência que transforma
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Figura 19: Corpos rizomáticos invadindo linhas molares. Foto de Gabriel Brunini. Maringá,
Pr., 2020.
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Isso é libertar a vida de sua cafetinagem, da apropriação da nos dizem a nossa classe, a nossa cultura e também o homem branco,
vida pelo capital, descrita nas linhas de Rolnik (2018) como processo que escrever não é para mulheres como nós? [...] Penso, sim, talvez se
formos à universidade. Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou
de invenção decorrente da inteligência coletiva mobilizada pela
tão classe média quanto pudermos. Talvez se deixarmos de amar as
urgência de enfrentar a perversão do regime em sua nova versão, mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena.
força inventiva e de reapropriação. Processo criativo que nos leva a Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o
driblar o poder do inconsciente colonial capitalístico em suas próprias touro sagrado, a forma. Colocarmos molduras e metamolduras ao redor
subjetividades, que faz com que a vida persevere e ganhe algo de dos escritos. Nos mantermos distantes para ganhar o cobiçado título
novo. Nas palavras de autora: de “escritora literária” ou “escritora profissional”. Acima de tudo, não
sermos simples, diretas ou rápidas (Anzaldúa, 2000, p. 230).
Seja qual for este algo, o que conta é que ele carregue consigo a pulsação
intensiva dos novos modos de ver e de sentir - que se produziram na teia de Trata-se então, da contestação de uma verdade antecipadamente
relações entre os corpos e que habitam cada um deles singularmente -, de enunciada e da tentativa de produzir uma ciência feminista a qual
modo a torná-los sensíveis. Em outras palavras, o que importa é transduzir sugere que os saberes devem ser localizados. Uma ciência com
o afeto ou emoção vital, com suas respectivas qualidades intensivas, em
uma experiência sensível – seja pela via do gesto, da palavra, etc. -, e que
posicionamento crítico, “ a favor de uma doutrina e de uma prática
se inscreva na superfície do mundo, gerando desvios em sua arquitetura da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as
atual [...] Nessa micropolítica, as ações do desejo consistem portanto em conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de
atos de criação que se inscrevem nos territórios existenciais estabelecidos conhecimento e nas maneiras de ver” como escreveu Donna Haraway
e suas respectivas cartografias, rompendo a cena pacata do instituído (1995, p.24), uma crítica mais política do que epistemológica.
(Rolnik, 2018, p. 61).

Ao concordar com Haraway, elas optam por uma vida potente,


Enquanto docentes que se enunciam feministas, buscam novos focada em artes de viver que desejam modos libertários e entendem
significados ao cotidiano e exalam força produtiva na multiplicidade de o posicionamento crítico como uma alternativa luminescente para
seus corpos, são multidão com significativo coeficiente revolucionário tempos tão sombrios. Partem do entre, onde intersecções de fluxos
herdado de mulheres que nos antecederam e aquelas que nos deixaram estão em contínuo refazer, escapando de onde a vida foi rebaixada e
alertas a todo sussurro, às ressonâncias do inaudível, às fissuras recordando que:
do habitável e aos fascismos que nos circundam e limitam nossa
existência em ambiente universitário. [...] não basta chamar a atenção para os modos pelos quais a teoria é
mal usada, não basta criticar o uso conservador, e as vezes reacionário,
Porém, estão cientes que o espaço da mulher na academia não é que algumas acadêmicas fazem da teoria feminista. Temos de trabalhar
um local conquistado, é um local a ser transformado, quase invadido na ativamente para chamar a atenção para a importância de criar uma
teoria capaz de promover movimentos feministas renovados, destacando
inviolabilidade dos discursos de poder/saber, é território da tentativa de
especialmente aquelas teorias que procuram intensificar a oposição
emancipação, um cenário alternativo para novas criações e estilísticas do feminismo ao sexismo e à opressão sexista. Fazendo isso, nos
de vida. E vem a carta de Anzaldúa (2000), referenciando a captura necessariamente celebramos e valorizamos teorias que podem ser, e são,
de nossa escrita e criação em busca do status científico normatizado e partilhadas não só na forma escrita, mas também na forma oral (hooks,
moralizado ... 2019, p. 97).

Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos


escritoras, muito mais sentir e acreditar que podemos! O que temos para
contribuir, para dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. Não
156 157
A coragem da verdade⁹ faz com estas parresiastas sejam conjunto de multiplicidades singulares, articuladas, ética, política
vistas por estabelecimentos de ensino normativos como ameaça, a e didaticamente em seus espaços de resistência, uma pedagogia
sua alegriadurante suas práticas docentes como algo que perturba, feminista comprometida a fazer de sua prática de ensino um foco de
o que gera incomodo e, suas críticas sobre os processos didáticos resistência, presente na interação de diferentes lugares de oposição
pedagógicos nas universidades definidas como afrontosas, analítica, histórica e cultural.
particularmente quando apresentam em suas aulas conteúdos sobre
lutas e movimentos sociais. Resistir/existir como mulher pesquisadora já é, em ato, um
atrevimento, escrever sobre nós nestes espaços colonizados pelo
Como exemplo dessa coragem da verdade, trago a lembrança saber antropofágico, é teimosia, ouvir as narrativas de docentes em
de Margarida que antes mesmo de começar sua colaboração com a suas conversações feministas em Psicologia, quase uma subversão,
tese através da entrevista, me enviou um whats escrevendo, “Bárbara, enunciar-se feministas em períodos sociopolíticos neofascistas, é
lembrei de você, escuta isso: Uma manhã, eu acordei, E ecoava: ele reexistência. “Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de
não, ele não, não, não, Uma manhã, eu acordei, E lutei contra um não morrer” - Conceição Evaristo.
opressor. Somos mulheres, a resistência, De um Brasil sem fascismo
e sem horror, Vamos à luta, pra derrotar o ódio e pregar o amor”,
uma prévia sobre as brigas que teríamos que nos implicar com o
cenário eleitoral que surgia em 2018.

Realmente, assumir-se docente feminista e sugerir a inserção


de tais pautas em matrizes curriculares são um desafio crucial para
quem convida as (os) alunas (os) a pensar, seriamente, sobre uma
formação profissional em Psicologia como prática de liberdade distante
das zonas de conformidade do zelo messiânico. Estas docentes estão
em concordância com bell hooks quando a teórica afirma que:

[...] o entusiasmo pelas ideias não é suficiente para criar um processo


de aprendizagem empolgante. Na comunidade da sala de aula, nossa
capacidade de gerar entusiasmo é profundamente afetada pelo nosso
interesse uns pelos outros, por ouvir a voz uns dos outros, por reconhecer
a presença dos outros (hooks, 2019, p. 17).

A formação feminista em Psicologia não deve se contentar


com a miséria humana universal dos direitos dados e, ao mesmo
tempo, negligenciados. Ela almeja alternativas para construir um

9 A Parresía é então [...] a coragem da verdade daquele que fala e corre o risco de
dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que ele pensa, mas é também a coragem do
interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ofensiva que ele escuta
(Foucault, 2011, p. 14).
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160 161
Linhas de alianças e encrencas anunciam as análises/ comprometimento com a garantia do direito humano à educação de
atravessamentos das sobre as narrativas das colaboradoras da tese qualidade.
quando apresentadas suas intervenções endereçadas às políticas das
ruas. Utilizo o termo que ilustra o título da obra de Butler (2018) Atitudes que minguam os investimentos em pesquisa e
para me aproximar da ideia da estudiosa e referenciar algumas “notas extensão universitárias, a capacitação de docentes, os programas
para uma teoria performática de assembleia” de corpos docentes de bolsas e incentivos educacionais, até aquelas que operam frente
feministas na formação em Psicologia, aquelas que vazam os muros aos dispositivos de conhecimento e regem a erosão dos regimes de
fronteiriços da academia e se infiltram nas ruas através das práticas sensibilidades, subtraindo, assim, a potência da vida.
de estágio, pesquisa e extensão.
As narrativas apontam para tais situações de violência ao
Ao riscar acabamentos, a análise destas linhas investe nos gênero feminino nos espaços universitários, desde o desmérito
“arremates” das narrativas, aqueles sentidos na relação dialógica às pesquisas feitas por mulheres, até a diminuição ou ausência de
entre eu e as narradoras, e ampliam a perspectiva cartográfica de que incentivo para sua participação em eventos dentro e fora do país,
experiências compartilhadas elegem fragmentos de memórias para denunciando os melindres machistas na escolha “de quem tem e quem
serem emaranhados em possíveis fluxos de trocas. não tem crédito” na universidade¹⁰.

Tais fragmentos aproximaram a vivência ao debate no São encrencas que exige destas mulheres feministas mudanças
momento da entrevista, quando comentavam sobre universidades que radicais, exigindo das mesmas que cheguem junto com o acontecimento
já apresentam as teorias e movimentos feministas como proposta de social, político, cultural. Para elas, se o problema é o corpo/gênero,
práticas e intervenções realizadas durante a formação acadêmica, ele vira plataforma expressiva de luta e instrumento de propagação
suas discussões sobre quais acontecem na formação em Psicologia, de ideias. Sim, como afirma Frida, uma opção cara marcada por
o que está sendo produzido em pesquisa e extensão em Psicologia várias micro violências e por isso consideradas fenômenos que se
e, principalmente, quais as mulheres que os feminismos enunciam, manifestam como reflexão digna de estudo e pesquisa.
onde nos sequestram e por quais fissuras elas escapam.
Nas políticas das ruas não existe liderança, a lógica relacional
As mulheres artistas/colaboradoras desta pesquisa, representam é horizontal, de articulação e aliança, reconhecendo a importância dos
a potência de criar, ou escapar quando necessário, são corpos em movimentos políticos, incrementados com os pragmáticos. São corpos
aliança, que recuperam o conceito de Judith Butler sobre a palavra transterritorializados, figuração utópica de uma ética vivida como
que intitula sua obra “Problemas de Gênero”, quando traduzida em política estratégica, que opera contra os dispositivos de conhecimento
seu sentido original da língua inglesa, trouble: ENCRENCA. Atitude e de captura de suas potências. Reconhecem, concordando com a
pontual dos feminismos que subvertem identidades, encrenca na qual escrita de Rolnik (2018):
elas estão inseridas, de enfrentamento, de rompimento com a trama
[...] que não basta resistir macropoliticamente ao atual regime e que
cisheteronormativa, das políticas das/nas ruas. é preciso agir igualmente para reapropriar-se da força de criação e
cooperação – ou seja,
Linhas de alianças e encrencas ainda mais necessárias quando
acessam vivências marcadas pelo austericídio imposto pela política 10 Mais uma história necropolítica, caracterizada por Achille Mbembe (2014) como
educacional, econômica e cultural vigentes do Governo Federal de a capacidade do Estado – e de suas instituições, nelas incluímos as universitárias
- de engendrar mecanismos de poder, manifestando estratégias subliminares de
nosso país, ditado por processos de desregulamentação das diferentes submissão, controle, disciplinamento e seu desejo de implantar o medo, o silêncio, a
áreas do ensino, contrária a gestão democrática de controle social e morte, atitudes abominadas por nós.
162 163
atuar micropoliticamente -, reconhecê-lo racionalmente não garante ações As colaboradoras notificam esta carência epistêmica e defendem
eficazes nessa direção [...] tal prática alimenta-se de ressonâncias¹¹ de que tal compromisso intelectual, ético e político, por vezes floresce como
outros esforços na mesma direção e da força coletiva que elas promovem
um ativismo criador de um novo possível nos fazeres pedagógicos,
– não só por seu poder de polinização, mas também e sobretudo pela
aqueles afetivos e emancipatórios, pautado no conhecimento e nas
sinergia que produzem (Rolnik, 2018, pp. 35 e 38).
experiências sociais reais, cientes de que, como falava bell hooks
(2019), não há brecha entre a teoria e a prática feminista, e elas
Não são apenas novas teorias, são movimentos da dimensão acrescentam: não existe Psicologia feminista sem uma pedagogia
utópica de resistência contra a apropriação do capital que converte feminista.
nosso destino ético em potência reativa de submissão, o qual, faz
persistir a perversão do regime colonial capitalístico na sua nova
bell hooks, tece uma crítica aos modos de como a academia
versão, e mantém as subjetividades cativas nessa redução da força
tem pensado suas regras e nos indica dispositivos para dialogarmos
criativa, portadora do perigo de desagregação eminente.
sobre assuntos que interessam às práticas por ela denominadas de
pedagogias anticolonialistas, críticas e de inscrição feminista negra.
É nisso que reside o veneno da micropolítica imanente à cultura moderna
ocidental colonial-capitalística. Seus efeitos tóxicos são a separação No entendimento de hooks, manter uma escrita (pedagogia/prática)
da subjetividade de sua força pulsional de geminação e suas sequelas: “cristalina”, “neutra”, de alcance limitado é o mesmo que reproduzir
estanca-se a potência desejante de criação de mundos nos quais se os sistemas de opressão e se distanciar de seu propósito máximo:
dissolveriam os elementos da cartografia do presente em que a vida se devolver vida a uma academia moribunda e corrupta. Deste modo:
encontra asfixiada (Rolnik, 2018. p. 76).
[...] ficará claro, infelizmente, que as parcialidades que sustentam e mantêm
Esta asfixia citada pela teórica, também pode ser escutada a supremacia branca, o imperialismo, o sexismo e o racismo distorceram
durante as narrativas, quando as docentes relatavam não conhecerem a educação a tal ponto que ela deixou de ser uma prática de liberdade.
O clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural, por repensar os
muitas universidades que oferecem em suas matrizes curriculares, modos de conhecimento e pela desconstrução das antigas epistemologias,
pautas que abarcam temáticas importantes aos feminismos, e que bem como a exigência concomitante de uma transformação das salas
quando possuem, em sua maioria, são propostas como tópicos de aula, de como ensinamos e do que ensinamos, foram revoluções
inseridos em outras disciplinas que, não necessariamente, recebem o necessárias – que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e
nome que as identifiquem. corrupta (hooks, 2019, p. 45).

As docentes defendem que a proposta de práticas e intervenções


11 Rolnik (2018, p. 38): “Ressonâncias desse tipo não são apenas encontráveis em feministas realizadas durante a formação acadêmica, conferem
um campo determinado do saber que teria o suposto monopólio da expertise no centralidade à multiplicidade de vozes e os demais atravessamentos
assunto – como por exemplo os estudos culturais, pós coloniais ou Queer, que seriam
os mais óbvios. Podemos encontrá-las em vários campos da prática teórica e, mais econômicos, geográficos, culturais que propõem um currículo
do que isso, elas poder surgir da produção de pensamento em qualquer esfera da descolonizado, chamando atenção para os fluxos interseccionados
vida coletiva – da assim chamada “alta cultura” à canção popular, passando pelas por toda forma de nós, retirando os estigmas impressos à latinidade
experimentações que se fazem, entre outras esferas, nas da sexualidade, da relação
com o outro, da agricultura ou aquilo que os povos indígenas têm insistido em nos e do lugar de marginalidade epistemológica, os saberes produzidos
dizer desde que ousaram tomar a palavra publicamente em alto e bom som. Tais pelas mulheres do sul do globo.
ressonâncias e as sinergias que produzem criam as condições para a formação de um
corpo coletivo comum cuja potência de invenção, agindo em direções singulares e
variáveis, possa refrear o poder das forças que prevalecem em outras constelações – As tantas falas das mulheres colaboradoras desta pesquisa,
aquelas que se compõem em corpos que tentam cafetinar a pulsão vital alheia ou que
se entregam a sua cafetinagem”. concordam sobre o quanto somos vidas entrelaçadas às ações
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docentes de resistência, praticantes de pedagogias contrárias àquelas preparados, para que o trânsito aconteça de modo vibrátil, convidado
de cafetinagem da vida expostas à privatização e disciplinação do a atuar sensível, sensório e teoricamente engajado nos entre espaços
fazer, ou das ações panfletárias que capitalizam as lutas feministas - que estamos localizadas.
e a formação universitária - e reduzem os corpos a algo que não faz
diferença. Segundo Arroyo (2012): A composição das histórias narradas, doadas carinhosamente
a esta escrita, movimentam múltiplas aberturas à dimensão da
[...] reconhecer ou ignorar essas pedagogias de libertação, emancipação, revolução epistemológica, apontam para horizontes de variação
passa a ser uma questão político-epistemológica para as teorias do saber, fazem valer os apontamentos dos mapas que indicam
pedagógicas. Nada fácil a uma tradição pedagógica que ainda pensa os
grupos populares e seus (suas) filhos(as) como inferiores, ignorantes,
confrontos em circuitos reais e revelam o verbo insurgir, conjugado
incultos, sem valores, com problemas morais e de aprendizagem a serem como prática vital, verbo de ação, dissidência: movimento de sair de
civilizados, moralizado (Arroyo, 2012, p. 15). outros espaços, extirpando qualquer dúvida sobre a legitimidade de
suas lutas.
Como já mencionado, as docentes até citam algumas
universidades que apresentam em seus currículos projetos políticos As docentes narram a vontade de estarem engajadas para
pedagógicos e planos de ensino, pautas valiosas para as agendas dos encontrar condições para a própria preservação enquanto mulheres e
movimentos e lutas feministas, de raça, sociais, LGBTQIA+, porém para tanto, desenvolvem grupos de estudos, participam de coletivos,
de forma vagarosa, ainda tímida, ou mobilizadas em determinados vão as ruas participar de manifestações e reinvindicações ligadas
cursos e coletivos, os quais propõem práticas acadêmicas pensadas aos seus ideais. De acordo com Butler (2018), esta foi a mais famosa
para diferentes contextos. Daquelas que interessam ao encontro de afirmação arendtiana, de que a política não apenas requer um
sentidos poéticos-políticos-militantes, de todos corpos presentes no espaço, mas corpos que apareçam, já que a assembleia fala antes que
entre nós, respondendo a demanda de outras configurações da história qualquer palavra seja pronunciada, é esta pluralidade dos corpos que
real e local, delineando as margens de nossos escapes/revoluções e representam os seus propósitos. A teórica escreve:
tangenciando a ficção contada pelo projeto da colonialidade.
Acho que é isso que Arendt e outros querem dizer quando veem na
liberdade de assembleia um retorno ao direito de revolução. Ainda
Estas políticas devem estar em constante aliança com outras assim, mesmo quando um regime particular contém ou protege um
populações caracterizadas como precárias, para que suas lutas direito desse, me parece que a liberdade de assembleia deve preceder
possuam um projeto democrático radical, já que o exercício público e exceder qualquer forma de governo que atribua e proteja esse
dos direitos de gênero é um movimento social que depende fortemente direito de assembleia. Não digo isso para ratificar formas de anarquia
das ligações entre as pessoas, são direitos coletivos e corporificados, permanente, e certamente não para absolver formas de governo das
massas, mas apenas para sugerir que a liberdade de assembleia pode
em termos arendtianos, ciente de que toda ação política requer espaço perfeitamente ser uma precondição da própria política, uma condição
de aparecimento: “[...] o espaço onde apareço para os outros e onde que presume que os corpos podem se mover e se reunir de modo não
os outros parecem para mim; onde o homem exista não apenas regulado, representando suas reinvindicações políticas em um espaço
como outras coisas vivas ou inanimadas, mas assume uma aparência que, como resultado, se torna público, ou redefine uma compreensão
explícita” (Hannah Arendt, 2016, p. 199). existente sobre o público (Butler, 2018, p.177).

Elas sabem que, assumir tal aparência explícita de atrever-se a As afirmativas sobre a necessidade do corpo reconhecer-
trabalhar nestas linhas transfronteriças e torná-las acessíveis, quentes, se politicamente situado, reforçavam uma das preocupações das
expressivas de forças livres, exige a dissolução dos planos pré- colaboradoras sobre uma docência feminista descolonizada: a questão
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do conhecimento, apresentado nas narrativas das docentes quando forças que conquistamos novas formas de ser no mundo e encorajamos
discorriam sobre a necessidade de pensar em projetos e currículos o agir onde ainda não se tem acesso. São nessas ações coletivas e
acadêmicos que desejam elucidar a historiografia da colonialidade emancipatórias que se produzem outras epistemes, outras sociedades,
do saber e propor estratégias de reler o estar mulher sem deixar de mudanças capazes de fazer nascer outro futuro.
lado seu enraizamento nas lutas políticas de resistência, militância e
conquistas de direitos. Apesar do objetivo desta tese não ser a discussão
de currículos na formação em Psicologia¹²,não
Mesmo quando verbalizam não trabalhar, diretamente, as posso e nem pretendo desmerecer a influência
teorias e movimentos feministas em suas aulas, as colaboradoras dos mesmos nas narrativas das colaboradoras ao descreverem sobre
reconhecem o quanto estas pautas já estão engendradas nos mais suas ações docentes.
diversos conteúdos programáticos na formação em Psicologia,
como se apresentam enquanto projeto teórico de intervenção sobre a Referencio esta necessidade amparada no pensamento de
realidade e não apenas um modismo acadêmico. Arroyo (2012), quando descreve o currículo como território em
disputa, elemento estruturante da função normatizadora da escola,
Todavia, admitem que não basta reconhecer a importância com potencial de forjar subjetividades e colonizar práticas, mas
destas interlocuções, ou propor suas discussões em práticas docentes também politizado, inovador e ressignificante de práticas docentes.
se a vontade política para descolonizar o corpo e os atos não se
fizer enquanto decisão a ser comungada na vida, acompanhada por As colaboradoras entendem que, assim como nossas ações, o
uma ruptura corpórea e social que precisa alcançar não apenas a currículo também deve ser dinâmico, vivo, mutável, não se constrói
produção de conhecimentos, mas abalar as estruturas aniquiladoras apenas de indicações de teorias ou assuntos pré-selecionados, é
de subjetividades e existências. passível de transformação e reformulação, de acordo com as demandas
sociais e educacionais. Lembram que o ano de 2020 foi o xeque-mate
Acredito que elas concordam com Audre Lorde (2019), quando para a revolução curricular, nele tiveram que reinventar metodologias
defende que seria uma “arrogância particularmente acadêmica iniciar de aulas on-line para responder as exigências de afastamento social,
qualquer discussão sobre teoria feminista sem examinar nossas muitas reformular práticas de estágio e repensar os projetos de ensino,
diferenças, sem uma contribuição significativa de mulheres pobres, pesquisa e extensão acadêmica, desenvolvendo novas tecnologias
de mulheres negras e do Terceiro Mundo, e de lésbicas” (Lorde, 2019, pedagógicas como forma de proteção à vida.
pp. 135-137), sem um sistema de apoio compartilhado, certa conexão
real que tanto é temida pelo poder patriarcal. Comentam que o estar on-line permitiu aos fios condutores
de diferentes conversações se misturarem a diferentes espaços e que
É nesta interdependência entre mulheres que, segundo a interconectadas, acessaram discursos não oficiais, corpos ocultados,
autora, está o caminho para uma liberdade que permite que sejamos vidas que não estão no contexto academicista. Com este propósito,
ativas às/nas causas coletivas. É dentro destas estruturas de diferentes volto a reforçar minha opção por uma escrita barroca, defendendo
que ao produzir um texto relacional/comungado, podemos alterar
12 Sugiro para leitura sobre matrizes curriculares a tese de Danielle Jardim Barreto,
defendida em 2016, pela UNESP/Assis, intitulada: “A (IN) VISIBILIDADE DOS radicalmente o compromisso de falar sobre nós mulheres e intervir
PRAZERES, DAS SEXUALIDADES E DOS GÊNEROS E A PARRESIA NA através de uma pedagogia feminista que não se envergonha de suas
FORMAÇÃO QUEERIZADA EM PSICOLOGIA: Narrativas de outras perspectivas experiências pessoais... “a teoria tem que transformar tal qual água
e experiências docentes”, a qual muito contribuiu para as reflexões das escritas da
pesquisa por mim desenvolvida, que resultaram na tese aqui defendida. viva”, assim instiga bell hooks ao ensinar a transgredir.
168 169
Em sistemas meritocráticos, o espaço permitido às mulheres teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor,
no universo docente foi debatido por algumas colaboradoras, não teremos dificuldade para construir uma luta feminista de resistência
com base nas massas. Não haverá brecha entre teoria feminista e prática
ressaltando o discurso predominantemente masculino do pseudo-
feminista (hooks, 2019, p. 104).
consentimento sobre a inserção da pluralidade de gênero e raça nos
meios academicistas alheios à necessidade desta representatividade
política na universidade. Porém, estes sistemas estão cientes da força Quando as intervenções de extensão universitária
das assembleias. Eles temem a potência de nossas vozes, pois segundo invadem territórios antes mantidos pela colonialidade
Butler (2018), “do saber” e “do ser”¹³, adquirem matéria-prima para
a construção de pedagogias feministas e práticas
[...] o nós vocalizado na linguagem já é representado pela união dos decoloniais e comprovam o seu impacto na transformação social,São
corpos, seus gestos e movimentos, suas vocalizações e suas maneiras produções que transmutam a categorização universal do saber e
de agir em conjunto [...] e algumas vezes “o povo” age por meio do seu tomam emprestada a convicção de Maria Lugones (2014) sobre
silêncio coletivo ou do uso irônico da linguagem; seu humor e até mesmo posicionarmos na perspectiva de fortalecimento das resistências por
seu escárnio (Butler, 2018, p.173). meio da coalizão político teórica entre os múltiplos feminismos, cujas
bases epistemológicas e interventivas apresentam-se em contraposição
Outro desafio que esteve presente nas narrativas, é o de propor à colonialidade. São práticas que florescem nas escrevivências das
certa pedagogia que faça uso de diferentes linhas que almejam vias colaboradoras, rompem a passividade dos bancos universitários e
de acesso, alternativas que investem em planos de visibilidades a convidam a “exorcizar o passado, arrumar o presente e predizer a
todas as lutas feministas e aos movimentos voltados para as massas imagem de um futuro que queremos” como nos ensina Conceição
sem a intenção de ensinar macros saídas, mas de causar enojamentos Evaristo (2009).
em qualquer formação patriarcal colonialista.
Um futuro que tem início no já, que acontece justamente
Ainda, refletindo sobre uma formação em Psicologia que quando o espaço acadêmico é submetido às novas tecnologias
apresente em sua matriz práticas de ensino, pesquisa e extensão comercializadoras de diplomas e certificados, de formações rápidas
feministas, as docentes estão inspiradas por uma produção científica e nada comprometidas com a transformação social, perfeitamente
crítica de teorias e ações sobre a sociedade a partir do lugar de paralelas às oportunidades meritocráticas, inclusive de recusa ou
experimentação de mulheres, apontando para o valor da diversidade minoria da inserção profissional de mulheres em espaços universitárias
destas narrativas e a importância das (os) acadêmicas (os) serem de ensino, extensão e pesquisa.
inseridas em territórios universitários. Neste sentido, a pesquisa e a
extensão universitária, o pé no mundo, tem muito a contribuir. Esta decisão se faz compromisso além de desejo metodológico,
desafio e proposta de ação/intervenção em conversações docentes que
Refletir e agir sobre/com uma produção teórica e prática vão além da formação profissional, alcançam a responsabilidade por
feministas que não distancie psicólogas, docentes, sociedade, vem se práxis emergentes nas experiências subjetivas¹⁴. As colaboradoras
constituindo um dos maiores desafios narrados por estas mulheres, 13 Definições sobre colonialidade do saber e colonialidade do ser podem ser
como nas palavras de bell hooks (2019): encontradas com grandeza de informação em Quijano (2000) e Mignolo (2005)
respectivamente.
Fazer essa teoria é o nosso maior desafio. Em sua produção jaz a esperança 14 Expressão da angústia que me atravessava. “As linhas que se seguem nesse
artigo podem ser interpretadas como uma espécie de suicídio. Preciso então, antes
da nossa libertação; em sua produção jaz a possibilidade de darmos nome de mais nada, expressar a angústia que hoje me atravessa. Vocês compreenderão
a toda a nossa dor – de fazer toda a nossa dor ir embora. Se criarmos que, enquanto feminista, fui formada e passei a compartilhar os conceitos básicos
170 171
percebem que não basta reconhecer a importância destas interlocuções,
ou propor suas discussões em práticas docentes se não alcançarem
todas. Defendem que a interdependência entre mulheres é o caminho
para uma liberdade que permite seu protagonismo, são diálogos
horizontais com diversas particularidades, são como as pistas afetivas
deixadas por Suely Messeder (2020) quando escreve:
Doravante, sigo o caminho didático em deslindar “o olhar, o ouvir e o
escrever” no processo de encarná-los. Declaro que, quando nos detemos
no olhar, somos levados ao sentido da modernidade cujo processo
esquadrinhou o conhecimento nas famosas caixinhas disciplinares [...]
Entretanto, quando abrimos nossos horizontes na perspectiva das relações
de gêneros e sexualidades, somos atravessadas pela interdisciplinaridade,
multidisciplinaridade ou a transdisciplinaridade (Messeder, 2020, p. 163).

Vivemos um momento contra revolucionário, imersas em


uma reforma que visa desfazer as conquistas de longos processos de
emancipação, o que exige de nós mulheres, resistência micropolítica de
desestabilização das formas dominantes de subjetivação, lembrando
que, nos contextos político-históricos atuais do Brasil, respirar se
tornou tão difícil como conspirar. Todavia, através de certa potência
clandestina, estas docentes reapropriam-se de sua linguagem, são
impulsionadas pela urgência dos assuntos propostos nas nossas
conversações, manifestando seu desejo de estar no fluxo, entre
desterritorializações, em busca de certo enraizamento dinâmico¹⁵, tão
marcante nas contações de suas próprias histórias as quais precisam
ser apreciadas nesta tese.

Nos mantemos próximas, ensaiando outras hipóteses de vida


que não implicam certa renúncia a si, mas que valoriza o todas como
ação ética e política, reconhecendo que deste encontro proliferam
polifonias feministas latinas...

que agora quero desfazer. Penso que minha angustia não deve ser menor que aquela
sentida por qualquer mulher que se autonomeie feminista. Não é fácil enfrentar o
monstro, sobretudo quando se descobre que você é parte dele” (Yuderskys Espinosa
Miñoso, 2012). a distância, outra maneira de dizer alhures, as distâncias interpostas entre diversas
15 “Não se poderia dizer melhor do enraizamento dinâmico: o espaço é como um pessoas entram em construção global, da qual os diversos elementos, do mais
fogo que anima, aquece na caminhada, também reconhece o percurso, por isso importante ao mais minúsculo, do mais habitual ao mais estranho, fazem sentido.
mesmo designa um alhures, um outro lugar. O limite só pode ser compreendido em Construção orgânica que não é plena ou positiva, mas integrante do vazio, do oco, do
função da errância, como esta tem necessidade daquele para ser significante. É aí que imaterial, do vento” (Maffesoli, 2001, p. 83).
172 173
174 175
Ensaiar outras hipóteses para a vida talvez seja a produção mais Elas reconhecem que precisamos aceitar o modo colonizado
dolorosa de um corpo que necessita de certa reconciliação interna. de estar profissional mulher que se enuncia feminista e que tal
Dar passagem a formas libertárias de recriar-se, exige abandonar o movimento exige do corpo a ruptura com este tempo que nos
óbvio. Reinventar uma existência como obra de arte é acreditar estar toca viver para virem à tona as palavras/movimento, as escritas/
em cena a atriz, autora, agente de práticas insurgentes de resistir, de experimento, as intervenções/invenções de universos insistentemente
estar mulher. criadores/blasfêmicos17. Sem receios de escancarar a precariedade
da vida, as docentes refletem sobre práticas profissionais em tempos
Pronta, ou nem sempre, aos riscos e desafios de estar mulher politicamente sombrios, quando reivindicar a legitimidade do corpo
cartógrafa, busquei na comunhão de forças relacionais algo que cognoscente é firmar um compromisso com redes colaborativas
viesse a se compor durante os caminhos da pesquisa. Segui as pistas na produção de saberes encarnados. Assim elas se reinventam a
de Basbaum (2013, p. 41) quando escreve que, “[...] no processo de partir de uma epistemologia de fronteira, do sul do globo em ato de
descobrimento de como localizar-me neste lugar caótico e instável, temperança18.
vi-me na posição de desenvolver estratégias na direção da invenção
de meios coletivos para intervenção em um circuito particular”, para Durante suas narrativas, as docentes afirmam que a Psicologia
que deste modo a solidão da escrita fosse constantemente inundada e suas recriações decoloniais, reverberam campos plurais de produção
de vozes e se mantivesse andante. científica, cientes do quanto já foi reproduzido daquelas práticas e
teorias banalizadoras da história latina, do epistemicídio causado
Assim a pesquisa proposta por esta tese misturou o mundo pela repetição de verdades que não cabem nas realidades sul globais.
comigo, me entreguei à arte e ao ato de admirá-la em sua polissemia, Criam-se assim, entre-lugares de enunciação dos sujeitos, onde são
pequenez, miudeza como me ensinou o artista brasiliense e amigo produzidos processos permanentes de negociação e tradução do seu
Gê Orthof 16. Hoje eu sei, os corpos nômades como o meu são afeitos cotidiano, dinâmico e atento às diversidades, conectado a outros
às conexões, possuem uma vida intensamente interconectada ao modos de pensar, sentir e dialogar e inspirados no desenho de campos
acontecimento e produzem um conjunto de marcas que representam de produção, sejam epistêmicos, sejam subjetivos.
sua diversidade móvel, o que lhes confere força e potência para criar
vida em qualquer território, inclusive o da pesquisa/intervenção/arte. Referencio que o termo feminismo decolonial proposto pela
argentina Maria Lugones (2014), foi utilizado nesta pesquisa para
sugerir uma Psicologia feminista descolonizada que se apresenta como
Tendências de transformação não só no mundo acadêmico/
possibilidade de engendramentos de saberes periféricos coerentes a
científico, mas de proximidade com as teorias decoloniais, consideradas
nossa realidade cultural, econômica e geopolítica, da miscigenação
um marco de virada para despatrializar a história sobre gênero e
do povo latino, da sua ancestralidade e da história de opressão que
suas intersecções na América Latina. Esta é a uma das intenções
marcam a ação dos saberes colonizadores também na ciência psi.
decoloniais na docência feminista: discutir instituições colonizadoras,
denunciar o modo como oficializam, normalizam o preconceito, a
discriminação e o sexismo, inclusive quando pontuamos a presença 17 A ideia de blasfêmico é utilizada no texto referenciando a perspectiva de Donna
(ou ausência) de mulheres na docência do ensino superior, discussão Haraway (2009), como potente estratégica política de resistência aos regimes
regulatórios de gênero e sexualidade.
esta sempre presente nos encontros com as colaboradoras da tese. 18 “Nem tirano, nem escravo, o indivíduo deveria ser capaz de governar-se a si mesmo
para tornar-se um ser político apto a participar da vida na pólis. Na antiguidade a
vontade de ser um indivíduo ético estava ligada pois, à afirmação da própria liberdade
16 Gê Orthof artista plástico, professor de artes da UnB. Amigo que me ensinou a ver e ao desejo de construir uma vida exemplar, que pudesse ser reconhecida no presente
e sentir as maravilhas das miudezas. e na posteridade” (Foucault, 2004, p. 45).
176 177
Enquanto plataforma política, as colaboradoras percebem a teoria [...] à espreita daquilo que o saber-do-vivo nos indica, do que depende a
feminista decolonial como local de anunciação sobre a importância de força e a astúcia necessária para resistir ao poder da equipe de fantasmas
nascidos da submissão ao inconsciente colonial capitalístico, que ainda
inserir nossas pesquisas às escritas de terceiro mundo, interessadas em
hoje comanda as subjetividades e orienta as jogadas do desejo (Rolnik,
realidades transformadoras pois, mesmo quando amordaçadas, a
2018, p.92).
ciência latina, as escritas feministas e as docentes/colaboradoras
insistem em apresentar outras formas e estilísticas de existência, Apostando na crítica feminista decolonial latino-americana,
afirmando que a Psicologia pode ser nosso “lugar de fala” e subvertê- pontuo o alerta de Maria Galindo (2013), ativista feminista boliviana
la, é nosso dever ético. ao reforçar que quando a universidade se faz membro participante
de comunidades responsivas, vislumbra a formação profissional como
No esgarçamento das fissuras provocadas por resistências,
ferramenta para pertencimento e atuação social, uma relação de
encontrei com docentes sul globais desejantes de transbordamento
entremeio suficientemente potente para manter-se atenta às mudanças
das práticas psi na pesquisa, ensino e extensão e revolucionaram as
sociais.
linhas desta escrita desejante de subjetividades libertárias. Um celeiro
de recordações que mescla as memórias afetivas das andanças do Recontar estas narrativas é uma maneira de arquivar para
doutoramento com a insistência na formação acadêmica aberta, alerta si uma possibilidade de suportar o mundo, de estar encarnada para
e intrigante quanto às suas pretensões de desobediência epistêmica. modificar, ser sujeito autoral no campo problemático da ciência e de
Acredito que mesmo sem saber, elas já praticam a poesia de Carlos reversão de estereótipos e processos enunciativos sobre gênero, raça,
Drummond de Andrade: “Inventem olhos novos ou novas maneiras de etnia e suas tantas intersecções. É utilizar da experiência como recurso
olhar para merecerem o espetáculo novo de que estão participando” estético, tanto de reconstrução teórica como de apropriação de vozes
(Andrade, 1964, p. 506). enunciativas de desobediência, não apenas como contra poder, mas
como potência criativa embasada na cosmo percepção decolonial. É
Compartilhei este verso de Drummond do texto de Margareth
repotencializar os nossos atos de intervenção/criação, para um fazer
Rago (2015, p.3) e divido com a historiadora e filósofa seus
docente voltado às latinidades epistêmicas, o qual não abandona a
questionamentos: “[...] Como inventar esses olhos sem a franca
própria ética polilógica coletivamente construída. Como escreve bell
disposição de reconhecer as limitações do estudo disciplinar ou hooks (2019):
departamentalizado?”. Desta forma, percebo como as colaboradoras
evitam o comodismo/descompromisso de defender um movimento Fazer essa teoria é o nosso maior desafio. Em sua produção jaz a esperança
feminista que seja apolítico, ou uma escrita submissa às formas da nossa libertação; em sua produção jaz a possibilidade de darmos nome
monótonas de esferas científicas que minam a ação criativa de nossas a toda a nossa dor – de fazer toda a nossa dor ir embora. Se criarmos
teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor,
intervenções as quais desejam tangenciar a verdade colonial de modo
não teremos dificuldade para construir uma luta feminista de resistência
subversivo. com base nas massas. Não haverá brecha entre teoria feminista e prática
feminista (hooks, 2019, p.104).
Reafirmamos que a política feminista decolonial 19 é este
campo aberto para estudos e experiências que foram reprimidos, ato Deste modo, estas docentes defendem que a luta é pela
de recontextualização de nossas gramáticas latinas e implicação ética transformação social e não pela transformação individual, mudança
com a força contestatória dos movimentos sociais. Força esta que que acolha o feminismo para 99%, como escreve a filósofa Nancy
Rolnik (2018), nos coloca: Fraser (2019), feminismo que não aposta nas exceções, mas que acessa
espaços onde caibam todas as mulheres. Um manifesto que inicie a
19 VERGÈS, 2020. destruição, ou no mínimo, o enfraquecimento, destas instituições que
178 179
permitem o acesso de uma minoria, o 1% dos feminismos.

O fascínio destas mulheres é pela revolução, objetiva à


criação de outras narrativas, de histórias contadas sobre memórias de
militâncias, sobre as lutas de nossas ancestrais, sobre a experiência
de diversos corpos marcados de inúmeras formas, seja pela raça,
classe, desejo, localização geográfica, etnia, bem como por todos
os acontecimentos/relações nos quais estamos inseridas e somos
diferentemente afetadas, nossas escrevivências, como ensinou
Conceição Evaristo (2017).
180 181
182 183
Desejos de anunciações artísticas rascunhados: cartas de respirava em momentos de contato do corpo mulher com o cobiçado
navegação deslocante espaço de pesquisa, mas não curvava-se à produção sem sentido.

No desenrolar das minhas memórias, muita coisa, O texto, as imagens, as canções e poemas que ilustram
seguramente, se transformou dentro de mim. Ao narrá-las, estou estas resistências em suas múltiplas expressões, propõem jogos
expondo um mundo complexo de diversos “eus” articulados,
interdependentes, que convivem juntos em uma mesma partitura
performáticos por meio das narrativas, dão lugar a uma forma barroca²¹
musical que é a minha e a de todos que realizam a aventura de de pensamento/escrita, um maneirismo, que povoa espaços de criação
contar-se (Gebara, 2005, p. 27). e reinvenção de laços solidários, ressaltando a dimensão relacional
tão cara para mim e exercitando o narrar-se como dispositivo de
Este espaço de escrita ou arte, é aquele onde o corpo, produção de si e de alianças.
literalmente, vai passear, dançar, atuar e registrar as “aventuras de
contar-se” como convida Margareth Rago (2013), em sua obra que A escrita barroca tão comum ao meu traço, justifica-se por
leva o mesmo nome. Traz para os parágrafos da tese o movimento ser considerada popular, um engano aos olhos coloniais. Dispositivo
representado pela coletânea dos meus diários²⁰ afetivos, retratados em comunicacional da identidade brasileira e latina que faz uso do
primeira pessoa, instrumentos que nos permitem narrar a si mesmas. jogo de contrastes e valorização dos detalhes para realçar a sua
diferença em relação a escrita vertical, estática, linear e rígida das
Contar-se como ato de compromisso comigo, com o que obras academicamente disciplinadas. Escrita com objetivo relacional,
acredito e com os fazeres cotidiano de estar mulher. É inegável que de feminismos para todo mundo como escreveu bell hooks (2000),
o desânimo para doutorar surgiu em alguns momentos, acredito que parágrafos representativos do lugar da produção de conhecimento no
por ocasião do cansaço ou das obrigações do cotidiano, dos três mundo, já que o tipo de letramento na produção de conhecimento em
turnos de trabalho e daquele que, historicamente, compete, cultura e universidades não é considerado como algo palpável para todas as
historicamente ao gênero somados ao momento da pesquisa de reunir pessoas.
os diários e fazer nascer uma tese.
Para mim, a Psicologia tornou-se profissão em 1997, e
Por vezes, a escrita era mecânica e se perdia entre tantas folhas extrapolou qualquer e toda expectativa desejada pela maioria
rabiscadas e depois jogadas fora por falta de verdade. Outras vezes, daquelas formandas, todas mulheres em minha turma. Esta maioria
relia estas linhas, mas logo arrumava algo para fazer, para adiar o ato sonhava com seus consultórios, com caixas lúdicas e uma agenda de
de comprometer-me com elas. Quantas outras vezes o corpo físico pacientes afoitos por psicoterapia, eu queria multidão. Já no primeiro
assumia uma letargia que adoecia a vida em sua insatisfação ou mês de formada, pesquisei sobre municípios de pequeno número
precarização da potência.
21 Segundo a percepção barroca, a fugacidade, o jogo de palavras, os diferentes tipos
de figuras de linguagem como as metáforas e as hipérboles, são recursos a serem
Porém, a mão inchada e a visão borrada se entregavam à utilizados para chamar e prender a atenção das leitoras. Um estilo de escrita que
recalcitrância da pesquisa desenvolvida na própria vida, que não assumo enquanto entusiasta de textos utilizados como dispositivo comunicacional,
uma ferramenta estratégica de subjetivação que convida a leitora a sentir-se
deixava de acontecer, porque linhas tinham que aparecer. A escrita pertencente. Como escrevem Déia Francishetti e Gustavo de Castro, ‘(...) a partir da
era moderna, a palavra barroco passa a ser usada democraticamente como sinônimo
20 Os diários em pesquisa são um exercício inaugurado no início do século XIX, de engano (italiano: barochio), bizarro, esquisito e rebuscado, ou de forma pejorativa
como ferramenta para estudos que surgem no campo dos acontecimentos, distantes para designar algo ridículo, extravagante, grosseiro, pouco intelectualizado, popular.
dos laboratórios ou territórios formais de pesquisa, propensa, em colecionar vozes de De origem grega (barros: pesado), em português denomina rochedo ou pérola
uma escrita com letras vivas. irregular, barranco, cova, local barrento’ (Francishetti & Castro, 2014, p.40).
184 185
populacional perto da minha cidade, os quais ainda não contavam
com a profissional de Psicologia na sua grade de funcionários.

Elaborei projetos interventivos, prevendo as necessidades destes


municípios (comportamento próprio do colonizador, atitude herdada
da graduação), me joguei nas rodovias para a entrega das propostas
deixando em anexo, um currículo anêmico de recém-formada. Era
a vontade de trabalhar somada à necessidade de uma ocupação que
pudesse proporcionar além de experiência, remuneração, pois tinha
que sobreviver e fazer viver um filho já presente em minha história.

Após um ano, participei do concurso público de uma cidade de


pequeno porte geopolítico, desde então, mantenho-me comprometida
com aquele pedaço de terra e com as pessoas que ali habitam, transitam
e resistem. Tantos foram os sujeitos que já conversei, intervi, que
cheguei à terceira geração de algumas delas... tenho orgulho disso...
mantenho-me ética e politicamente fusionada à Icaraíma (Município
do Noroeste do Paraná).

São aproximadamente 350 quilômetros semanais somados


àqueles que se estendem às visitas domiciliares, ao contato com
as comunidades ribeirinhas, aos distritos e territórios rurais, às
fronteiras nos assentamentos do movimento pela terra. Lugares de
minhas intervenções psi que deslocam o corpo da comodidade do
ambulatório das UBSs.

Por estas andanças encontro vizinhanças que evocam as


sugestões de Deleuze (1997, p.12) sobre ser no entre, onde realmente
mapeamos a passagem “[...] dos desvios necessários criados a cada
vez para revelar a vida nas coisas”, locais de encontros respiráveis,
formas de viver e cartografar o mundo com relações que possibilitam
a recriação de possíveis.

Os diários buscam na memória tais relações e encontros com


diferentes mulheres, as colegas das equipes de ESF, funcionárias e
usuárias dos serviços públicos de saúde, amigas de grupos de estudos
e reuniões profissionais, cúmplices da vida.
Figuras 23 e 24: Corpos em cena. Campanha Outubro Rosa – Mulheridades. Equipe
ESF do Município de Icaraíma. Paraná. Acervo próprio.
186 187
Percebo que o projeto de doutoramento partiu deste local,
da prática profissional que pedia outro comprometimento, uma
atitude de recalcitrância. Quais corpos ainda cabiam em mim? De
quais vidas eu falava? Quais meus compromissos com elas? Como
a atuação profissional respondia às demandas daqueles espaços
não anunciados? Por que ainda estava tão presa às convenções da
Psicologia de ambulatório? Por que ainda hesitava em sentir/dialogar
as relações com mulheres e seus direitos ou negligência deles?

Para tentar responder a algumas destas perguntas, lembro que


ao concluir a primeira pós-graduação, fui chamada para ser docente
da universidade que me formei. A partir daquele momento, acreditei
que ousar seria verbo constantemente conjugado no presente. A
formação em Psicologia concluída em um estabelecimento privado de
educação e a rápida passagem para a vivência profissional enquanto
docente na mesma instituição de ensino superior, aguçaram minha
sensibilidade às escutas acadêmicas que ecoavam no local de corpo
mulher docente.

Desejei não apenas os sons pronunciados por falações


docentes... os quereres ouviam ruídos vindos das orientações de
estágios, verbalizações nas atividades teóricas em sala, intervalos
de aula reduzidos pela vontade de dividir descobertas e conquistas,
anunciações nas escritas de resumos expandidos em apresentações
de trabalhos e participação em eventos, regurgitamentos teóricos nos
trabalhos de conclusão de curso.

Figura 25: Corpos em cena. Campanha Novembro Azul – Masculinidades em foco.


Equipe ESF do Município de Icaraíma. Paraná. Acervo próprio.
188 189

Onde queres o ato, eu sou o espírito


E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
(O Quereres. Caetano Veloso).
Afetamentos diarísticos: para pensar a vida onde ela
acontece.

Figura 26: Ciranda da vida. Grupo de estágio indo embora. Acervo próprio.
190 191
A teoria ganhava carne, respirava entre os livros e artigos Até mesmo as festas acadêmicas recebiam conotação social/
para desenhar as aulas a serem ministradas, produzia rearranjos política, surgiam como zonas de contestação feministas. Criavam-
mobilizadores de intervenções, de processos criativos e relações se corpos resistentes, possuidores de certa insistência interessante
nada anestesiadas, produziam coragem característica das estéticas aos estudos e movimentos feministas de onde era extraída força
feministas decoloniais de atuação, coragem de reinventar-se e para deslocar o olhar do cotidiano e, assim, tornar obsoletos alguns
subverter a lógica do apagamento do gênero em espaços da ciência. universos vigentes, abrindo, literalmente, porteiras para a exposição
de subjetividades estéticas.
As salas de aula não eram mais tão organizadas como aquelas
que um dia estive, as carteiras se aglomeravam em cirandas afetivas,
os sons multiplicavam-se em cada nova descoberta teórica/prática,
vidas respiráveis cantarolavam por corredores e eu sentia que poderia
me reinventar com aqueles espaços acadêmicos... pausa para respirar
e enxugar as minhas lágrimas... ali habitava o meu desejo.

Mas a memória não esquece que foi na oportunidade de ser


orientadora de estágio, que o deslocamento teórico aconteceu. Nesta
prática psi, a relação exigia maior intimidade com as acadêmicas e com
as conversações sobre o fazer-se psicóloga no cotidiano profissional.
Agradeço principalmente às (os) alunas (os) atrevidas (os) em nossos
devaneios acadêmicos e aos espaços que aceitam a inventividade
de nós mesmas, acreditando na dimensão criativa da vida. Entedia
que não estaria sozinha, aquelas pessoas estavam comigo e éramos
acolhidos pela escrita da querida Glória Anzaldúa (2000):

Talvez hoje escreverei deste âmago profundo. Enquanto tateio as palavras


e uma voz para falar do escrever, olho para minha mão escura, segurando
a caneta, e pense em você a milhas de distância segurando a sua caneta.
Você não está sozinha (Anzaldúa, 2000, p. 232).

Então, as intervenções nos locais de estágio começaram a


ganhar estilísticas políticas, estavam atentas às violências e aos
cancelamentos de vidas encapsuladas por verdades fabricadas por
imposições sociais que ignoram o multiculturalismo de seu povo
e os mantêm no lugar de minoria. Estas acadêmicas me tocavam
continuamente acreditando que, em assembleias afetivas, partilhamos
experiências enquanto narrávamos nossas próprias vidas, longe de
qualquer bolha narcísica propagadora do lugar de saber na figura da
docente. Figura 27, 28: Festa junina amor gratuito. Festa para arrecadar doações para a Casa de
Missão Amor Gratuito (acolhimento LGBTQIA+) UNIPAR, 2018. Acervo próprio.
192 193
Os encontros acadêmicos aconteciam e nós aceitávamos
participar, o corpo estava afoito a tudo que validasse experiências
na formação em Psicologia. Participamos de eventos e campanhas
que objetivavam a disseminação do cuidado de si, de práticas
emancipatórias e empoderamento de mulheres, de todos corpos
que interessam aos movimentos feministas. As ações acadêmicas
floresciam como praga daninha, rápida, sorrateira e de difícil
eliminação... ... sim, somos pragas em florescência... Figura 29: As estradas das minas. Vivencias no Simpósio Narrativas. Belo Horizonte,
MG, 2016 Acervo próprio.
194 195

Figuras 30: Ônibus Lilás. Grupo de estágio 2019, UNIPAR. Acervo próprio.
22 O Ônibus Lilás promove o encontro dos serviços públicos com mulheres que
se encontram distantes dos centros urbanos e possuem dificuldade de acesso aos
estabelecimentos de atenção, cuidado e denúncia. Oferece os serviços de atendimento
da rede existente, disponíveis nos casos de violência articulados com os principais
serviços do Sistema de Justiça, Saúde, Segurança Pública, Educação entre outros,
apresentando como característica um caráter permanente, o que favorece o trabalho
preventivo e o atendimento pontual às necessidades apresentadas pelas usuárias do
serviço.
196 197
A Delegacia da Mulher de Umuarama/Pr, se fez parceria para as Mas não só de batalhas se faz a formação em Psicologia ... a arte
intervenções de estágio na formação em Psicologia. Mais um espaço também surgia esnobe, profana, debochada, exigindo performances
para novos conhecimentos, termos ainda não aprendidos por serem do corpo em guerra... Respiramos fazendo arte... A interpretação,
do pertencimento de outra ciência, intervenções que assustavam por o canto, a dança foram artes feministas de existência que não se
seu teor jurídico e disciplinador. restringiram aos movimentos que se autodenominam feministas,
elas estavam sensíveis a qualquer ação social, cultural e política que
anunciassem corpos em fuga da lógica dominante, na sociedade, na
ciência e pesquisa colonizadas.

Figuras 31: Intervenções do grupo de estágio da UNIPAR na Delegacia da


Mulher de Umuarama, Pr. 2019. Acervo próprio.

Figura 32 e 33: Intervenções do grupo de estágio “ela aprendeu a se amar e foi


feliz para sempre”. UNIPAR, Pr. 2019. Acervo próprio.
198 199
Por modos de existência ético/político, construímos nossas Os estágios eram propostos em diferentes espaços, mas foi
performances, artes da insubordinação voluntária e da trapaça nas barrancas do rio²³ que redescobri o encontro entre as práticas
refletida, ressignificando nossas relações com o mundo e com a docentes e o fluxo das intervenções em saúde pública... reconheci que
profissão psi, fazendo eclodir linhas sensíveis de subjetivação e ali eu perderia a tranquilidade das águas mansas e seguras para fazer
hibridismos culturais, compreendendo a vida como acontecimento, parte do redemoinho que acontece quando o corpo reconhece o saber
fractal, rizomático, lugar de anunciação de sujeitos implicados com a das pedras e ancoradouros, eu sabia disso, já havia lido Conceição
construção de um outro real. Evaristo poetizando sobre estas hidroepistemes.

Aproveitamos as oportunidades para estar juntas, soltar a A transição das práticas ambulatórias para as práticas
língua amarrada, o corpo aprisionado e a voz silenciada. Participamos insurgentes e políticas do feminismo nas barrancas dos rios, nos
de eventos do próprio curso como Jornadas de Psicologia, Aulas barracos das mulheres dos movimentos para a terra, daquelas em
Magnas, mas também ocupando outros espaços universitários território de campo e floresta, exigem compromissos com este outro
(corredores, banheiros, escadas) para deixar recados e/ou protestos. modo de estar mulher no mundo e estendido à docência. Com essas
Ao problematizar a escrita destes encontros e seus tons artísticos, mulheres aprendemos sobre agroecologia e eco feminismo, conceitos
percebo o ato de escrever sobre eles discutido por Deleuze e Parnet encarnados que somam-se aos movimentos de contracultura e
(2004): comunidades alternativas, ampliando nosso processo de formação
política e compreendendo o protagonismo dessas mulheres nas
Escrever é simples. Ou é uma maneira de se reterritorializar, de se
conformar a um código de enunciados dominantes, a um território de
diferentes formas de luta e de enxergar a relação gênero/meio ambiente.
estados de coisas estabelecidas [...] ou, ao contrário, é tornar-se outra
coisa que um escritor, já que, ao mesmo tempo, o que se torna toma-se De acordo com Maria da Graça Costa (2020), a vivência destas
outra cosa que não a escritura. Nem todo devir passa pela escritura, mas mulheres ribeirinhas, índias, do campo, da floresta, brejeiras, vão de
tudo o que se torna é objeto de escritura, de pintura ou de música (Deleuze encontro com certa agenda feminista que, inspirada na cosmopolítica
& Parnet, 2004, p. 60). ameríndia, propõem debates pós-coloniais e decoloniais sobre a
relação natureza/cultura referenciada por epistemes contrárias àquelas
Estas pessoas tinham que aparecer aqui, não apenas como que possuem raízes nos processos colonizadores. Com elas aprendi,
descrição de acontecimentos, mas de pertencimento, de presença em persisti, renasci, porém não a mesma, não tão mansa.
minha vida, sou um sujeito de sorte.
Presentemente eu posso me
Nos colocamos como aprendizes, ouvindo sobre a importância
considerar um sujeito de sorte, destas relações com o rio, com a natureza, com a riqueza de sua
porque apesar de muito moço me ancestralidade. Não tive dúvidas, elas eram a representação mais fiel do
sinto são e salvo e forte. E tenho
comigo pensado, Deus é brasileiro termo empoderamento que eu já havia contemplado. Empoderamento
e anda do meu lado, e assim já não como,
posso sofrer no ano passado. Tenho
sangrado demais, tenho chorado [...] instrumento de emancipação política e social e não se propõe a viciar
pra cachorro, ano passado eu morri ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de dependência entre
mas esse ano eu não morro. Tenho indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de como cada um pode
sangrado demais, tenho chorado contribuir e atuar para as lutas dentro dos grupos minoritários” (Joice
pra cachorro, ano passado eu morri Berth, 2019, p. 18).
mas esse ano eu não morro.
(Sujeito de sorte. Belchior). 23 Intervenções realizadas com população ribeirinha por nossas equipes da ESF –
estratégia de saúde da família – em Porto Camargo, distrito de Icaraíma, noroeste do
Afetamentos diarísticos: para pensar Paraná.
a vida onde ela acontece.
200 201

Figura 34: Nas águas do mar eu vou me benzer, vou me banhar. Porto
Camargo, distrito de Icaraíma/ Pr. Acervo próprio. QRcode: clipe da
música “Nas águas do mar” interpretada por Criolo.
202 203
Estas histórias foram ouvidas nas reuniões acadêmicas, e
transformavam-se, automaticamente, em pauta para as discussões do
grupo da UBS onde atuo, ponto de referência no território. Era preciso
mais, era preciso empoderar os outros tantos espaços onde estavam
aquelas mulheres, não pensando em liberdades individuais, mas Figura 35: Quintas insanas, revoluções íntimas. Encontros
em estratégias para guerrilhas coletivas e ampliação das dimensões para respirar. UNESP, Assis. 2014. Acervo próprio. QRcode:
clipe da música “Revolução”, interpretado por Mulamba.
ideológicas, culturais e geopolíticas. O trajeto era outro...

Epistemologias feministas insubmissas: outros espaços para


respirar e criar

A prática profissional, bem como o adentrar no Mestrado


em Psicologia na UNESP/ Assis em 2013²⁴, exigiam travessias
polissêmicas, aquelas que excedem o instituído e transcendem o
esperado, inclusive para mim. Estar mestranda me apresentou para
mim... Era contagiante, extremamente contagioso, então me permiti e
senti ser eu, surgi outra. A partir desta contaminação que transmutou
quem eu era, comecei a questionar de onde vinha a minha voz.

24 Neste encontro com o desconhecido na formação profissional, fui atravessada


por aquilo de mais importante viria a acontecer em minha vida profissional, me
ENUNCIEI feminista.
204 205
No território de pós graduação, vagavam sujeitos da estranheza, emergiu de forma tão potente nos pensamentos, atravessaram a
encontros improváveis de acontecer, teorias mais próximas de enigmas língua, deturparam os ângulos do pretendido, limitando as reflexões
de tão duras e reais, professores que faziam enxergar o quanto eu sobre ressignificar devires, dificultando a audição de novos possíveis,
não havia tido oportunidade de ser, o quanto da minha liberdade era sobre o aproveitar da viagem. Tudo provocava medo, distanciamento
fabricada por uma cultura, uma história, uma educação catequizada e não era possível entender o porquê de tanta repulsa, tudo estava
e patriarcal. formatado fora do mapa, revolto ao trajeto, não pertencia a nada
daquilo.
Segui. A vida oferecia pistas de que havia outros projetos para
o estar mulher e docente feminista na formação em Psicologia, surgiu
daqui o desafio de participar da seleção para o programa de Doutorado
em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá.

O doutorado foi inicialmente mapeado para estar integrado às


projeções do trajeto docente e às conexões realizadas nos encontros
da escrita de um projeto de pesquisa que, logo no início da viagem, foi
desmontado, reconfigurado, perdendo o ponto de partida previamente
trilhado. Nada se fez com o pronto, o corpo cartógrafa já pedia
passagem.

A falsa idealização de navegação segura obrigou os olhos,


os ouvidos, a pele (sempre ela) a se moverem por outras linhas
com diferentes desenhos, despertando sentimentos oscilantes, do
encantamento à angústia. Existia algo errado, em forma de desconforto.
Imprevistos impediam a compreensão de meu corpo estrangeiro
desorientado pela sinuosidade dos entroncamentos daquela colmeia.
Como foi ilusória a sensação de que tudo ficaria sempre bem...

Naqueles entroncamentos da UEM, a solidão maltratava o


corpo estrangeiro. A urgência da reinvenção da própria vida/história
revelava o investimento do estranhamento às situações experimentadas
(regurgitadas) durante o doutorado. A pesquisa e a escrita, pensadas
como processo de afetamento, exigiram o desligamento de algumas
de mim que foram, e estão sendo, aos poucos, vomitadas. Sem álibis,
a reticência dada a cada nova vivência neste contexto geocientífico,
alertava sobre a importância do continuar, mesmo com o corpo
desalojado pelo inesperado, pela solidão.
Figura 36 e 37: Da solidão povoada à proliferação de novas ervas. 2018.
Algumas vezes... não... muitas vezes, a palavra arrependimento Acervo próprio.
206 207
Aprendi a me defender do que ainda não enxergava e nem
entendia, tentando me convencer que tudo poderia melhorar, era só
me acostumar. Acostumar? De novo? De novo entrar no ritmo e na
verdade do outro? Não podia mais, não permitia este movimento de
desistência do que havia encontrado de potente em mim, não mais.
Segui caminhando, reforçando o tempo conjugado no gerúndio para
manter o devir.

Talvez o local de estar apenas comigo e o sentimento do


não pertencimento obrigaram a ouvir sons não identificados na
trajetória de pós graduanda... Talvez não seja só isso, o rompimento
com o familiar e o deixar-se desorientar, cartografaram passagens o
estar eu com tantas de mim. Eu, corpo atuante, afetante, andante,
falante, militante e tantos outros antes, que se observava em práticas
cotidianas de liberdade (antes), tão autônoma em seu familiarizado
ambiente (antes), murchou, aquietou, paralisou, emudeceu. Um certo
dia, o choro despencou dos olhos e a garganta apertada gritou por
ajuda...

“Deus me proteja de mim e


da maldade de gente boa, da
bondade de gente ruim”....
QR code da música “Deus me
proteja de mim”, Chico Cesar.
Afetamentos diarísticos: para
pensar a vida onde ela acontece.

Era a situação que faltava para entender o que vinha fazer ali.
Era a necessidade de ter alguém, verdadeiramente por perto, como
elo possível de vinculação do meu corpo com o desejo de pesquisa,
com aquele lugar, com todas aquelas vidas... De modo manso, mas Figura 38: Romaria das línguas, das mãos, das lutas
extremamente perspicaz, meu orientador sinalizou que, talvez, a das mulheres latinas. Por ruas de 2019. Acervo
próprio. QR Code: música “Romaria” interpretada por
opção de enxergar-se sujeito nômade nesta caminhada seria um dos Elis Regina.
meus maiores desafios. Novamente o corpo teria que se reinventar,
optar por outros contos...
208 209
Murilo me apresentou ao conjunto teórico descolonizado/
decolonial, aquele do pertencimento da vida e da escrita Sul Global.
Foi ele que, ou me levando pela mão, dividindo almoços ou povoando
as vozes dos e-mails, me convidava para viajar e ir ao encontro do que
eu mais buscava.

Hoje, ao retomar, através dos diários afetivos estes momentos,


vejo meu orientador como os vaga-lumes do conto roseano “Às
Margens da Alegria”, que estão sempre ali, iluminam caminhos,
ligam e desligam, encantam, iluminam e colorem a vida. Fazem parte
do caminho que nunca se fez tranquilo, mas com seu brilho, renovo a
fé no possível... sua luz em meio ao breu simboliza esperança.

Ele me mostrou que a solidão me salva da possibilidade de


estar só e me conecta ao múltiplo, então, encorajada, revivi e escrevi.
Era momento para novos intercâmbios, tão distantes daqueles já
estabelecidos pelos grupos do pertencimento. A pesquisa começava
ali. Ir ao encontro delas, mulheres da pesquisa, passou a ser o rabisco
do desenho rizomático da pesquisa e da minha vida.

A vida hibridava-se, era palco para eclodir movimento de


mulheres docentes, plurais e atuantes em diferentes áreas profissionais,
sociais, políticas. Esta era a intenção, estar nos entres: espaços e
elas, mulheres colaboradoras da pesquisa, suas narrativas e a minha
própria vida. Então embarquei e voltei a pulsar.

Voava, porém, a luzinha verde,


vindo mesmo da mata, o primeiro
vagalume. Sim, o vagalume, sim, era
lindo! — tão pequenino, no ar, um
instante só, alto, distante, indo-se.
Era, outra vez em quando, a alegria.
(As Margens da Alegria. Guimarães
Rosa).
Afetamentos
vida onde ela diarísticos:
acontece. para pensar a

Figura 39: O brilho do vagalume. QRcode: Poema escrito e narrado pelo vagalume...
um presente.
210 211
O ato de perambular no tempo e no espaço, simplesmente Deleuze e Parnet (2004, p. 38): “O que conta em um caminho, o que
contemplando, manteve o corpo unido com a bagagem teórica, estética conta em uma linha é sempre o meio e não o início e nem o fim.
e relacional, povoadas pelo espaço que cheguei, fiquei ou decidi sair. Sempre se está no meio do caminho, no meio de alguma coisa”.
Algumas vezes sozinha, outras muito bem acompanhada, vagava
alegremente, enquanto os olhos atentos às miudezas encantavam-se O meio movia, aceleradamente, a vontade de continuar
com cada nova entrada, com rama, com o mínimo e o múltiplo. Tudo ganhava velocidade e intensidade, criando-se em zonas de vizinhança,
faria parte da história deslocante de uma história, não apenas de uma zonas de passagem, de potência e vibrações, experiências novas do
tese. movimento de desterritorialização disposto ao inacabado, longe de
ser signo da falta, mas da possibilidade de invenção, do pulsante
Nos locais de afetação, ou perturbação, conheci docentes fluxo nômade.
que propuseram rodas de conversa em suas participações durante
mesas de debates e conferências, contavam sobre suas experiências Ali, novamente, encontravam-se sujeitos encarnados...
na formação em Psicologia, relataram intervenções no ensino, na atuantes mesmo nos pequenos espaços, lugares de ações políticas
pesquisa e extensão e aquelas linhas faladas criavam os corpos transformadoras, resistentes às forças opressoras do Estado e aos atos
imaginários/possíveis desta pesquisa. Não era apenas curiosidade, era de violência. Afiávamos nossas línguas, todas as línguas, e o corpo
aprendizado e compartilhamento. militava coletivamente, mesmo quando não ocupavam o mesmo
pedaço de solo. Lembrava do aviso de Deleuze e Parnet (2004) ...
Entre elas estavam muitas das mulheres que aceitaram escrever devemos ser bilíngues:
esta tese em várias mãos e línguas. Criamos relações que vão além das
acadêmicas ou institucionais, eram da ordem da alegria, da esperança Devemos ser bilíngues mesmo em uma única língua, devemos ter uma
e do valor de nossas militâncias. Era onde eu queria estar e levar as língua menor no interior de nossa língua, devemos fazer de nossa própria
outras mulheres que pretendiam a experiência. Acionei expectativas, língua um uso menor. O multilinguismo não é apenas a posse de vários
sistemas, sendo cada um homogêneo em si mesmo, é, antes de tudo, a
convidei para trabalhos, fomos ouvir juntas e nos mantivemos unidas linha de fuga ou de variação que afeta a casa sistema impedindo-o de ser
umas às outras... e isso era bom. homogêneo. Não falar como um irlandês ou um romeno em uma outra
língua que não a sua, mas, ao contrário, falar em sua língua própria como
A pesquisa esticava os braços nos abraços latinos... o corpo um estrangeiro (Deleuze & Parnet, 2004, p. 12).
forasteiro foi presenteado por viagens oportunizadas pelos ensaios da
tese e os estímulos do orientador “luminescente”, que, mesmo estando Somos o menor, justamente por não ser parte do mesmo, por
do outro lado do continente, lembrava-me sobre as delícias da vida não defender os discursos pronunciados por políticas enrijecidas e
vivida, do corpo aberto ao campo, e da necessidade da pausa para da tradição hegemônica. Maior é aquele que sustenta a política de
contemplação dos mirantes... pesquisa em devaneio, em desespero, dominação e colonização. Defendemos o contrário, somos o fluxo
por vezes em arrependimento, medo e sofrimento, mas transitória, incessante e a potência de não seguir o imposto. O menor não tem
em escrevivências, sem forma definitiva... em devir. Desembestei na padrão, nem modelo, está em construção contínua.
anunciação do devir-mulher abraçadeira!
Vagando a vida ao próprio acaso, emergiu e ainda insiste
Era o devir como processo de desejo, como processo de a presença de uma pandemia, algo que veio avassalar o mundo e
aproximação, afetos e perceptos atravessadores da vida em revolução, intrigar nosso desconhecimento sobre sua velocidade de contágio e
no entre que é espaço da fronteira, acreditando que, conforme escrevem mortalidade, um vírus transformador de existências, de costumes, de
212 213
economias, de modos de estar e distintas possibilidades de sobreviver. grupo de estudo, centro de pesquisa. Não dei conta, adoeci... nada
Algo que obrigou, o ritmo da vida, a diminuir o passo, a mudar rotinas, existe fora do corpo...
descobrir outras formas de cuidar do corpo, do outro, das relações e
recriar espaços respiráveis. Eu sabia, a cura era estar com. Pensei, se a escrita desta tese
tem como proposta ouvir narrativas de outros possíveis, contações
O Coronavírus (COVID 19)²⁵ alterou, muitos dos fluxos e conversações de mulheres docentes feministas em suas práticas
desejados, para um ano que fora pensado para ser de alta produtividade, descolonizadas, apresentando estas histórias como obra de arte, são
no estar pesquisadora com as viagens, congressos e escritas de artigos nelas, nas artes e nos encontros que vou respirar. Fui atrás de sarar, de
programados para os últimos anos do doutoramento, a pandemia me benzer, de me entregar, me amparar... encontrei abrigo, repouso,
exigiu um retrocesso. Estive mais em casa... a atividade profissional afago nestes coletivos reinventivos de vidas.
continuou, mas de forma nunca pensada, eu estava atrás de uma tela,
com pequenas imagens dos rostos dos acadêmicos, imóveis, que se Agora, a ideia era desenvolver práticas vivíveis como modus
manifestavam por ferramentas eletrônicas, endereços de e-mails, operandi para sobreviver, continuar, criar trânsito livre para o
links, meets, chats... nada respirava, apenas resistiam e insistiam, exercício micropolítico dilatante de sensibilidades, potencialidades
heroicamente à consequência daquela pandemia em nossa relação. ou cura do corpo através da produção de afetos e de uma pesquisa
mais ensaística, do que uma dissertativa científica naturalizada.
O mesmo acontecia com a práxis em saúde pública da qual
tive que me afastar e realizar atendimento psicológico on-line²⁶. Era
a própria Psicologia se reinventando para intervir de modo ético e
comprometido aos acontecimentos que circundavam a vida, onde ela
precisava de atenção. Novos protocolos, outros contatos, diferente
maneira de manter o sigilo e o compromisso da profissão.

A escrita da tese, os atendimentos on-line, as aulas da academia


via encontros virtuais, as orientações de estágio por meet, e muito
mais... eu também sou mãe, mulher e dona de casa neste furacão
de acontecimentos. A rotina foi redesenhada... ou não. O telefone
tocava, os filhos pediam atenção maior, a mesa da sala era dividida
para diferentes atividades escolares, profissionais e o lar, lugar de
descanso, aconchego e proteção, agora era consultório, sala de aula,

25 A Covid-19 é uma infecção respiratória aguda causada pelo Coronavírus SARS-


CoV-2, potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global
que se tornou uma pandemia a partir de 2020.
26 Nova normativa do Conselho Federal de Psicologia (CFP) para regulamentar
a prestação de serviços psicológicos por meio de Tecnologia da Informação e da
Comunicação em tempos de pandemia. A Resolução CFP nº 04/2020 reforça que
o cumprimento do Código de Ética Profissional da categoria, bem como o cadastro
prévio na plataforma e-Psi junto ao Conselho Regional de Psicologia, são prerrogativas Figura 40: Tu vens, eu já escuto os teus sinais. PsiCUS/ UNIPAR... Acervo próprio.
para o atendimento de forma remota. QRcode: Música: “Anunciação” interpretada por Alceu Valença.
214 215
Eu sabia que, “[...] ter um corpo é aprender a ser afectado, ou Para escrever sobre todos estes afetos e perceptos, seria
seja, efectuado, movido, posto em movimento por outras entidades, necessária outra tese...
humanas ou não-humanas. Quem não se envolve nesta aprendizagem
fica insensível, mudo, morto [...]” (Latour, 2008, p. 39). Respirava, Sigo, buscando mãos para novas cirandas e fortalecendo
mas sentia falta do meu povo... aquelas que já se fazem presentes ... dançantes ...

De pouco em pouco, infiltrando, a vida ressurgia...


micropoliticamente, pela aposta nos múltiplos momentos e pequenos
desvios... seja por câmeras que começaram a ser ligadas durante
as aulas da universidade e os estágios na formação acadêmica, nos
eventos que participa como ouvinte ou convidada, ou nos encontros
dos grupos de pesquisa, nossos sempre arrombadores encontros. Algo
começava a voltar, não com a mesma forma, mas em estéticas inéditas,
como a arte exige, intercambiantes.

Entre idas, estadas e vindas, viajei. Levava comigo, na


mochila, no banco ao lado, ou de mãos dadas, os corpos que sempre
habitaram em mim... gente do junto, do afeto, da companhia, do meu
sempre presente. Vidas que jamais poderiam estar escondidas nestes
parágrafos ou apagados pelo excesso de contação de histórias... esta
gente é o meu povo, personagens reais das histórias mais bonitas, da
pactuação do afeto, do respeito e da ajuda e compreensão.

Nesta parte da escrita, os livros se fecham, artigos científicos


são guardados e todo o referencial teórico é deixado, por instantes,
de lado, porque os dedos ganham maciez no teclado para falar de
assembleias afetivas. Era o momento de escrever sobre essas multidões
que me ajudaram a sobreviver às expressões mais desenfreadas dos
trâmites de uma vida em doutoramento.

A multidão continuava comigo, em seu fluxo desejante de


liberdade, uma liberdade exercida com outros e, que de acordo com
Butler (2018, p. 34), “[...] não necessariamente de uma maneira unificada
e conformista. Ela não exatamente presume ou produz ou identidade
coletiva, mas um conjunto de relações possibilitadoras e dinâmicas
que incluem, suporte, disputa, ruptura, alegria e solidariedade”, um
enunciado sobre o revolucionário, sobre o que aciona um conjunto de
efeitos e afetos da ordem da aliança.
216 217
218 219
Somos filhos da época e a época é política. Todas as tuas, de uma formação política e militante em Psicologia, poetizando
nossas, vossas coisas diurnas e noturnas, são coisas políticas. a vida em seu detalhe mais coletivo.
Querendo ou não querendo, teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político, teus olhos, um aspecto político. O que
você diz tem ressonância, o que silencia tem um eco de um jeito Escrevo a tese em um tempo que não é simples, tem
ou de outro político. Até caminhando e cantando a canção você dá configuração histórica própria e não deixa de acontecer. Justamente
passos políticos sobre um solo político. Versos apolíticos também um tempo onde o corpo dilata-se enquanto força política para suscitar
são políticos, e no alto a lua ilumina com um brilho já pouco lunar. lugares transitórios, aguardando uma revolução afetiva que se afirme
Ser ou não ser, eis a questão. Qual questão, me dirão. Uma questão
na vida cotidiana, que vaza deixando acalorar as micropolíticas em
política. Não precisa nem mesmo ser gente para ter significado
político. Basta ser petróleo bruto, ração concentrada ou matéria grupos protagonistas de suas contações. Concordo com Pellejero (s/d):
reciclável. Ou mesa de conferência cuja forma se discutia por meses
a fio: deve-se arbitrar sobre a vida e a morte numa mesa redonda Não escolhemos o tempo que nos toca viver. Estar lançados no mundo é
ou quadrada. Enquanto isso, atavam-se os homens, morriam os próprio da existência humana, conforma uma das marcas da finitude e
animais, ardiam as casas, ficavam ermos os campos, como em constitui uma das dimensões de nossa historicidade – a mais evidente, a
épocas passadas, e menos políticas (Wislawa Szymborska) . mais dura, a mais difícil de aceitar. Não escolhemos o tempo que nos toca
viver (Pellejero, s/d).
Para viver o doutorado, escolhi por uma vida aberta, uma
coletânea de devires, um modelo de fazer pesquisa/intervenção, algo Optar por fazer contrário a muito do que a prática acadêmica
que pudesse diminuir meus múltiplos analfabetismos, estratégias teima em impor, não significa perder o rigor ou a perspectiva teórica de
epistemológicas atentas às sensibilidades que mobilizam a criação uma pesquisa ou atividade profissional. É estar comprometida com o
de espaços de experimentação e instigam o que está em vias de se lugar de enunciação ontológica, política, epistêmica e poética de fazer
fazer. Desejei uma escrita mais ensaística do que dissertativa, aquelas refletir outras cores sobre uma mesma superfície científica e social,
que encorajam a continuar se reconhecendo incompleta, reinventada assumindo a iridescência da vida. Matéria corpórea transluzente
em meu corpo cênico, onde formas possíveis de existência escapam desenhada como inacabada, que propõe um franco falar, aquele que
do dogmático, possibilitando o pensamento a acontecer no fluxo, se apresenta corajoso, colorido, coexistente, misturado, esperançoso.
invadido por sensações.
O fazer desavisado destes parágrafos e toda carga semântica
Desconfiei se, em algum espaço de tempo, estes parágrafos se nele inerente, resulta da minha trajetória docente, do contato com um
fariam tese, já que as escritas narrativas, constantemente, se confundem corpo reinventado e da necessidade de refletir sobre o que pensamos,
com a vida e provocam ruídos, são nossas escrevivências²⁸ como desejamos e realizamos enquanto mulheres feministas na formação
conceituou Conceição Evaristo (2017). Elas celebraram encontros em Psicologia na América Latina. Durante as tentativas de retirar-
(im) possíveis, convites à insistência de redobrar esforços e defender se do local de sujeito do suposto saber docente, busquei em minhas
nossa luta a favor inquietações a oportunidade de ser outra em minha branquitude e
lembrei do chamado afetivo de Lélia Gonzalez (2020), quando escreve:
28 “A Escrevivência surge de uma prática literária cuja autoria é negra, feminina e
pobre. Em que o agente, o sujeito da ação, assume o seu fazer, o seu pensamento, [...] baseada nas minhas experiências de mulher negra, tratarei de evidenciar
a sua reflexão, não somente como um exercício isolado, mas atravessado por uma
coletividade”, Conceição Evaristo falando sobre o conceito descrito em sua obra Becos
da Memória de 2017. O trecho acima traduz o conceito de escrevivência inaugurado reconhecimento de toda forma de vida e promove a escrita como um direito essencial.
por Conceição Evaristo que propõe a articulação entre o fazer literário e a visão A potência das narrativas e suas escrevivências, tem viabilizado o rompimento de
de mundo de quem escreve reconhecendo que escrever é uma forma de expressão, estruturas sociais opressivas e estimulado as mulheres a se apropriarem da letra, da
um ato político. Tecer as vozes por meio da escrita nos liberta, proporciona amplo língua e da interpretação como indispensáveis lugares de fala.
220 221
as iniciativas de aproximação, de solidariedade e respeito pelas diferenças por parte parágrafos onde o sujeito se colocasse em seu espaço de florescência.
de companheiras brancas efetivamente comprometidas com a causa feminina. A
essas mulheres-exceção eu chamo de irmã (Gonzalez, 2020, p.40).
A oralidade das colaboradoras permitiu sentir os fluxos
Um status que fortalece a formação de redes afetivas e o desejantes de uma pesquisa sobre Psicologia Feminista Decolonial
respeito ao caráter multirracial e pluricultural das sociedades latinas. e, fazendo uso do entre brechas dos muros epistemológicos das
Percebo que entender o mundo, seus acontecimentos e histórias universidades, fez da escrita uma atividade para ser conjugada no
somente a partir do ponto de vista de quem é o corpo privilegiado, tempo presente, que não cabe nos parágrafos de uma tese, pois rompe
distorce e diminui as experiências históricas sobre/das mulheres, uma as gravações de qualquer entrevista e escapa do projeto, porque se faz
falta de consciência de também ser um corpo oprimido, e opressor²⁹. indefinido no futuro.

Os parágrafos finais desta pesquisa que evoca a Por isso, os diálogos que emanam destes parágrafos poetizam
valia de narrativas feministas na docência, não tendem tentativas feministas de reinventar outros modos operantes de
unicamente a propagação da afirmativa sobre a importância aprendizado e ensinamentos na formação em Psicologia, por onde a
dos estudos de gênero como categoria analítica na vida criativa sempre arruma um escape, descentralizando o sujeito
empreitada acadêmica. Muito menos a necessidade de cumprir a tarefa normativo/clássico imposto ao gênero e os argumentos colonialistas
interpretativa e de prescrição de soluções analíticas aos problemas reproduzidos por ele³⁰.
apresentados por esses debates. Pretende sim trazer os encontros
alegres como fonte de combustão dialógica em direção à vontade A formação em Psicologia Feminista pretende ser um dispositivo
coletiva de acrescentar outras dimensões ao estar mulher propostas que parte da premissa de que a experimentação extramuro extrapola
pelas teorias e estudos feministas decoloniais. ao ostracismo do excesso de aulas teóricas e intermináveis leituras
sem reflexão. Ela prima por conhecimentos produzidos a partir
Tais propostas são percebidas como um convite à recalcitrância do convívio, em luta pela preservação dos direitos das populações
(de escritas que não temem declarar o seu lugar de enunciação e identificadas como inferiores, locais de vivência de corpos psicólogas
se desdobram para além do léxico regulador da ciência), como um que permitem o ecoar dos sons emitidos por línguas desejantes
fazer de alteridades, que encontrou no fluxo dos encontros, redes de de espaços audíveis, vidas anunciantes de efeitos inspiradores de
afetos que burlam a continuidade histórica e colonial, ganham força, revoluções cotidianas.
celebram alianças, comprometendo-se com o que foi vital para a
Uma Psicologia proponente de produções científicas que acionam
pesquisa, “estar no entre” para validar a experiência como arquivo.
30 “Se a interpretação dessa realidade envolve entendermos como a matriz de opressão
Aventurou-se entre as artes, pois tinha a intenção de se atua em nossa própria vida, como somos afetadas por opressões como o racismo, a
heterossexualidade, o colonialismo e o classismo, com suas expressões estruturais,
aproximar da percepção de Conceição Evaristo sobre linhas não ideologia e aspectos interpessoais, então esse trabalho não é sobre categorias
solitárias, desejante de uma escrita onde as sensações ficassem analíticas, e sim sobre realidades vividas que precisam de uma compreensão profunda
suspensas no ar, onde a palavra nem sempre daria conta de alcançar acerca de como foram produzidas. Portanto, não é necessário dizer que somos negras,
pobres, mulheres, trata-se de entendermos por que somos racializadas, empobrecidas e
29 Concordando com Suely Messeder (2020, p. 167): “Nesse sentido, para sairmos sexualizadas. É isso que nos interessa, enquanto feministas decoloniais, porque assim
da episteme colonizada, possivelmente teremos que investir em nossos olhares conseguimos mostrar que essas condições foram produzidas pela colonialidade”
epistêmicos eurocêntricos e nos compreendermos como seres no mundo marcados, (Curiel, 2020, p. 132).
em nossa pele e sangue, por uma política do conhecimento racializadas, classista e 31 Apostando na escrita de Deleuze quando afirma que: “[...] pessoas fortes não são
heterossexista que nos invade com seus tentáculos tirando-nos a possibilidade de nos as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente” (Deleuze, 1992, p.
situarmos em saberes localizados, também comprometidos com a dignidade humana”. 63).
222 223
saberes conectados com modos plurais de existência invisibilizados aposta radical que nos leva à militância revolucionária e a práticas
no dia a dia, perspectivas que se destacam por falar sobre, com e a discursivas efetivamente comprometidas com as lutas contra toda
partir de nós. Construímos assim, outros desenhos que avisam sobre forma de opressão, violência e controle biopolítico de nossos corpos.
a importância de manter-se atenta e sensível ao caráter transitório
do acontecimento, armadas para os diálogos conflitantes entre os Estamos comprometidas a inscrever e a escrever sobre
saberes dominantes o os conhecimentos periféricos que valorizam as Psicologias destas outras diásporas, as geográficas e as militantes, as
fronteiras³¹ e suas existências mutantes. implicadas com o significado do verbo obligare... unir para nós... Haja
coragem, entrega, desobediência ... eu, ainda ensaiando tais ousadias
Reforço que não foi a intenção desta pesquisa articular a tarefa libertárias:
moral e disciplinar de oferecer as respostas sobre o como fazer uma
Psicologia transformadora, descolonizada/decolonial, de anunciar os A liberdade não é uma palavra vã. Se ela se encontra no fim do arco íris, sua
modos de intervir libertários, tidos como eficientes ou desejantes. conquista é o caminhar crítico da construção de mim, que me leva aonde
A intenção foi apostar na reflexão coletiva sobre o narrado pelas nunca fui, que me afasta daquilo que não serei nunca mais, livre, porém
colaboradoras como propostas inventivas à formação acadêmica em das servidões biossociais. É assim que concebo a estética da existência: a
Psicologia, como estas docentes que se enunciam feministas escapam produção crítica de mim, enquanto sujeito político e histórico, transitando
da ação disciplinatória e colonizante dos modelos impressos nas em temporalidades e lugares inusitados, quebrando os grilhões do natural,
da sexualidade compulsória, das novas servidões que se anunciam ao criar
matrizes curriculares, refletem sobre planos de ensino contestadores nossos corpos (Tânia Navarro Swain, 2008, p.301).
e referenciam suas teorias com a perspicácia de uma clandestina
andante em sua própria nação.
Teimo, porque sei que somos arte em ato, expomos a vida a favor
Corajosas ao nomear os incômodos da prática docente da liberdade e no ato de inscrever o corpo no plano do conhecimento,
e orgulhosas da transformação acadêmica promovida por da realidade vivida, estamos implicadas com a construção de uma
outros modos de formação atentos à vida onde ela acontece, escrita/pesquisa que atravessa a vida e nos remete ao devir. Uma vida/
as colaboradoras desta tese verbalizam uma ética peculiar pesquisa norteada pela ética da bem querência, na qual conhecimentos
contra ações de injustiça e exclusão, desbravam os caminhos são corporificados de forma generosa e sensível.
de uma viagem arriscada, desfrutando do inesperado para lidar
com os desafios de serem parresiastas. A parresiasta precisa de A sugestão do título desta tese diz sobre minha “ad/mira/ação por
certa porção de coragem, já que sua verdade responde, igualmente, mulheres docentes feministas e suas práticas descolonizadas na formação
às práticas políticas e de cuidados de si e denunciam modos cínicos em Psicologia”. Acrescentar o termo descolonizadas para enunciar
de ser, ao escolherem uma vida como “escândalo da verdade”³² os chamados da tese foi algo inquietante inicialmente. Era difícil
constituintes das artes do viver. Parresia como a verdade dita sem reconhecer os perigos de transitar por diferentes mares (perspectivas)
medo, eminentemente política. teóricos, era temerosa a ideia de abandonar conceitos íntimos de
escolhas profissionais e angustiante ler os questionamentos de Heloisa
De acordo com Foucault (2011), para que haja parresia é preciso Buarque de Hollanda (2020) na introdução de seu livro “Pensamento
que se enfrente o riso de ferir o outro, irritá-lo, deixá-lo com raiva. É feminista hoje: perspectivas decoloniais”, após conhecer de forma tão
um risco de violência contra a própria existência, mas também uma afetiva e afetante as obras de feministas latino-americanas, caribenhas,
chicanas, africanas.
32 Michel Foucault descreve parresia em “A coragem da verdade. O governo de si e
dos outros” (2011). Quero sinalizar que, quando trago o termo descolonizado,
224 225
proposto no título deste trabalho, aponto para o processo histórico versejar o âmago das coisas”, permitam-se ouvir as encantadorias
de “deixar de ser colônia”, superar o imaginário colonial e a lógica das divindades que nos antecederam e daquelas que estão na roda,
da hierarquia de saber, poder, raça, gênero, classe historicamente aquelas compartilham ensinagens do cotidiano e curam pelo afeto.
instituídas sobre nós mulheres/pesquisadoras latinas. Fazer uso do
termo descolonizar, não é excluir ou negar as participações da cultura Subverter este epistemicídio e suas estruturas opressoras é
branca e eurocêntrica, mas entender o processo de modernização uma das, entre tantas, intenções de profissionais críticas, políticas
dos povos latinos como algo urgente para sua autonomia em todas as que não devem e nem querem se furtar da tarefa de intervir a favor
experimentações da vida, inclusive da vida que acontece na ciência e destas novas Psicologias Feministas descolonizadas/decoloniais. É
na pesquisa. um andar na contramão da (re) produção de necropolítica e defender
uma ciência estética quanto ao seu compromisso e transformação
Particularmente, optei por utilizar os dois termos, descolonial/ social, aquela que retira da língua narrada e vivida o sujeito oculto
decolonial, já que, quando considerado o termo decolonial enquanto por antigas epistemes.
perspectiva teórica, este remete à inflexão de escritoras, artistas,
estudiosas, teóricas latino-americanas, que pensam na perspectiva Certa de que não há uma única forma de produção de
pós-colonial a partir da América Latina, utilizados como espaço conhecimento, mas sim, um campo multidisciplinar e diferentes
teórico dialógico para nossas conversações feministas descolonizadas. maneiras de produzi-lo e com ele se comprometer, pretendemos
Catherine Walsh (2009) sinaliza que não é a ideia de superação colonial estar engajadas com perspectivas transformadoras da realidade,
que estamos propondo, mas sim, a constatação de que o colonial ainda coreografando cirandas afetivas de nossas próprias histórias,
é atuante, pulsante em nós. Sendo assim, precisamos nos posicionar assumindo assim, a dimensão ética do cuidado de si como exercício
de modo crítico e pensar sobre epistemes em rede aberta, aquelas de vidas iridescentes.
emergentes de espaços de prática e envolvimento coletivo contínuo.
Revisitar as narrativas destas mulheres fortaleceu minha auto
Ao pontuar o interesse da pesquisa referenciando as teorias inscrição enquanto “povo no mundo”, onde transito como mulher e
pós coloniais e decoloniais, cito a argentina Maria Lugones (2014), docente feminista na formação em Psicologia. São escritas vividas,
quando escreve que o feminismo descolonial é a possibilidade de tornam a voz-escrita em voz-ação, impulsionam o corpo a “[...]
lidar com a superação da colonialidade de gênero como uma prática conhecer umas às outras como entes que são densos, relacionais, em
que nunca se finda, sendo necessário colocar em pauta as lutas de socialidades alternativas e alicerçadas nos lugares tensos e criativos
todas as mulheres, principalmente aquelas não contempladas pela da diferença colonial” (Lugones, 2014, p. 942), oferecendo fôlego
opressão colonial e, até mesmo, por certos feminismos globais. Mas extra a dimensão relacional de nossas histórias.
é preciso avisar a leitora que o objetivo não é escolher uma vertente
teórica, e sim, vislumbrar a força dos feminismos em suas múltiplas Mesmo com muito receio do que está por vir de um ano
perspectivas e interseccionalidades, desassossegar o corpo acadêmico eleitoral no Brasil, onde o atual presidente ameaça o impedimento
e produzir críticas ao status quo da ciência. de uma nova eleição – um novo golpe - caso o ato retroativo do voto
impresso não seja repensado e escolhido como método de “escolha
Portanto, agora que pretendo encerrá-la, sugiro que leiam democrática”, esta tese espera por seu momento de florescência. Ela
Conceição Evaristo (2017, p. 121) quando ela escreve: “quando eu quer ser lida e espera que o passeio entre páginas, parágrafos, fotos e
morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar poemas, propicie bons encontros e, que a cada visitação, o momento
entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim passe lento, para que a leitora possa sentir seus sons, cores e texturas,
226 227
entregar-se e estar mais próxima daquilo projetado na vida como arte
da existência em luta, de bem querência.

Encerro a escrita desta tese deixando uma sugestão a você


leitora, “Encontrem a musa dentro de vocês. Desenterrem a voz que
está soterrada em vocês. Não a falsifiquem, não tentem vendê-la por
alguns aplausos ou para terem seus nomes impressos. Com amor.
Gloria” (Anzaldúa, 2000, p. 235) ... e Bárbara.

Que venham mais escrevivências…


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Professor Orientador: Dr. Murilo dos Santos Moscheta
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Spivak, Gayatri Chakravorty. (2010). Pode o subalterno falar? Esta entrevista é parte de minha pesquisa de doutorado sobre
(Sandra R. Goulart, Marcos Feitosa Almeida, André Feitosa, Trad.). o tema da formação em Psicologia, que estou desenvolvendo no
Belo Horizonte: Editora UFMG. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UEM Universidade
Estadual de Maringá-Maringá, Paraná, Brasil. A pesquisa que
Teixeira, Cíntia Maria & Kind, Luciana. (2020). Narrativas, mulheres estou desenvolvendo tem por objetivo pensar sobre a possibilidade
e resistências. Letra e Narrativas, mulheres e resistências Voz. de uma Psicologia feminista descolonizada inserida nos currículos
de formação de psicólogas, bem como nas suas possíveis práticas
Vargas Llosa, Mario. (2013). A Civilização do Espetáculo. tradução interventivas e cartografar as desconstruções e reconstruções
Ivone Benedetti. – 1a ed. – Rio de Janeiro: Objetiva. desenhadas por mulheres docentes de Psicologia e suas narrativas
enquanto profissionais feministas em suas práticas de intervenção,
Vergès, Françoise. (2020). Um feminismo decolonial. UBU Editora. ensino, pesquisa e extensão.

Solicito que a entrevista seja gravada para que possa ser resgatada
Walsh, Catherine. (2009). Interculturalidad, estado, sociedad:
qualquer informação que seja possivelmente perdida apenas com a
luchas (de)coloniales de nuestra época. (Conferência apresentada
escrita, sendo destruídas após a redação das mesmas e garantindo
no Seminário “Interculturalidad y Educación Intercultural”, Instituto
total anonimato de sua pessoa e informações por você oferecidas, já
Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz). 2009.
que referenciaremos um grupo profissional, o coletivo, não apenas
Quito: Universidad Andina Simón Bolivar; AbyaYala. Disponível
um sujeito. Após serem redigidas, as entrevistas serão enviadas às
http://www.derecho.uach.cl/documentos/Interculturalidad-estado-
participantes para ampliação, sugestão ou retirada de porções do
ysociedad_Walsh.pdf
texto que considerarem importantes.
238 239
Objetivando o aprimoramento do diálogo sobre formação em 6) De que forma o feminismo também poderia revolucionar a
Psicologia, uma Psicologia feminista, crítica, reflexiva e política, Psicologia influenciando as leituras, práticas e processos de
acreditamos que as publicações de seus resultados fortaleçam os militância na academia?
dispositivos legais e éticos da prática da Psicologia. Ao me conceder
esta entrevista, preciso de sua autorização para utilizá-la em meu APÊNDICE II – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
trabalho. (TCLE)

Proponho diálogos sobre a formação em Psicologia, apresentando


TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
como intenção desta pesquisa refletir sobre a possibilidade de
uma Psicologia feminista descolonizada inserida nos currículos
de formação de psicólogas bem como nas suas possíveis práticas Você está sendo convidada a participar da pesquisa intitulada “Ad/mira/ação:
interventivas e cartografar as desconstruções e reconstruções mulheres docentes feministas e suas práticas descolonizadas na formação em
Psicologia”. Tal pesquisa está sob a responsabilidade da pesquisadora Bárbara
desenhadas por mulheres. A entrevista possui assim, um convite a Cossettin Costa Beber Brunini vinculada ao Programa de Pós-Graduação em
reflexões sobre a formação em Psicologia que promova novas leituras Psicologia do Departamento de Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá
de si, outras possibilidades, agregando assim a militância feminista (UEM) sob a orientação do professor doutor Murilo dos Santos Moscheta.
às nossas atuações profissionais enquanto mulheres docentes de
Psicologia. Este termo, elaborado em duas vias, deve ser lido, rubricado e assinado,
para fins de declarar o seu livre consentimento na participação da pesquisa
1) Como e quando começou a se entender como feminista? E quais e consentimento para utilização das informações disponibilizadas. Uma
via ficará em seu poder e a outra via em poder do pesquisador responsável.
mudanças estas descobertas mudam/mudaram seu estar mulher
docente e feminista?
I. A Pesquisa
2) A docência em Psicologia já era uma atividade durante a
A intenção desta pesquisa é pensar sobre a possibilidade de uma Psicologia
descoberta de ser mulher feminista? Sendo afirmativa sua feminista descolonizada inserida nos currículos de formação de psicólogas bem
resposta, como tais estudos e teorias mudaram/mudam suas como nas suas possíveis práticas interventivas e cartografar as desconstruções e
intervenções profissionais? reconstruções desenhadas por mulheres docentes de Psicologia e suas narrativas
enquanto profissionais feministas em suas práticas de intervenção, ensino,
3) Conhece universidades que apresentem as teorias e movimentos pesquisa e extensão. Corpos femininos localizados nos trâmites ainda moralmente
feministas como proposta de práticas e intervenções realizadas instituídos e socialmente esperados pela comunidade contemporânea, por relações
durante a formação acadêmica? de poder/saber, todavia, corpos também desejantes de outras leituras de si, outras
possibilidades, agregando assim a militância feminista à sua atuação profissional
4) O que pode vir a controlar nossas práticas e desejos de propagar como docente de Psicologia.
o feminismo como movimento de liberdade e autonomia na
formação em Psicologia? Quais mulheres a Psicologia Feminista
se propõe a enunciar? II. Procedimentos

5) Como você analisa o que está sendo produzido de pesquisa, Será realizada uma entrevista com duração média de 90 minutos. A entrevista
ensino e extensão pela Psicologia Feminista? Quais poderão não possui roteiro pré-definido e deverá seguir como um diálogo aberto para
ser os efeitos deste movimento de escape do colonizado pela explorar aspectos relacionados as suas práticas docentes de ensino, pesquisa e
extensão na formação em Psicologia. Você pode se recusar a responder a qualquer
formação em Psicologia?
pergunta. A entrevista será áudio-gravada e posteriormente transcrita na íntegra.
240 241
No ato da transcrição, informações como seu nome e outros dados que possam IV. Liberdades/Garantias
lhe identificar serão alterados de modo a preservar o anonimato de sua identidade.
Após a realização de todas as entrevistas, será composto um conjunto de narrativas Você possui total liberdade para recusar-se a participar desta pesquisa ou para
que apresentam os principais aspectos que apareceram nas entrevistas. Estas retirar o seu consentimento, a qualquer momento, sem penalização ou prejuízo
narrativas lhe serão apresentadas para leitura juntamente com a solicitação de ao seu cuidado. Você possui total liberdade de não responder às perguntas ou
duas tarefas: (1) destacar no texto os trechos que gostaria de negociar a alteração, não participar de momentos que possam causar-lhe constrangimento de qualquer
seja porque se reconheça demasiadamente vulnerável neles ou porque discorda natureza.
dos efeitos que ele produz na narrativa e (2) redigir uma resposta às narrativas
que inclua seus pensamentos, sentimentos e questionamentos suscitados pela
leitura. A partir de uma negociação com você e os demais colaboradores, suas V. Sigilo/Anonimato
respostas poderão compor o relatório final da pesquisa. Também apresentaremos
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido recolhendo para tanto sua A sua participação é sigilosa, ou seja, as informações prestadas são
assinatura e sendo entregue a você uma cópia deste termo de Consentimento Livre restritas ao desenvolvimento da pesquisa e, em hipótese alguma, sua participação
e Esclarecido. A qualquer momento estará livre para se retirar do estudo, sem na mesma será motivo de divulgação na mídia. Garantimos o sigilo das informações
quaisquer penalidades. Receberá esclarecimentos sobre a guarda e manutenção coletadas no que diz respeito a preservação de seu anonimato. Respeitamos a sua
das gravações as quais serão utilizadas apenas para releitura das entrevistas. A privacidade, mantendo em segredo as suas informações pessoais no decorrer da
entrevista semidirigida organizada por mim enquanto pesquisadora e por meu pesquisa e após a conclusão desta.
orientador tem o intuito responder as nossas reflexões sobre o tema proposto nesta
pesquisa. VI. Despesas/indenização

III. Riscos/Desconfortos e Benefícios Não haverá qualquer despesa, ônus financeiro ou risco físico aos
participantes relacionados aos procedimentos desta pesquisa. Caso o participante
A participação na entrevista pode gerar desconforto psicológico em você por apresente desconforto psicológico decorrente da abordagem do tema da entrevista,
abordar temas relacionados a sua intimidade, formação profissional e práticas a pesquisadora, que é também é psicóloga, se responsabilizará em oferecer
docentes. Caso isso aconteça poderemos interromper a entrevista. Caso o acolhimento psicológico.
desconforto permaneça a pesquisadora se responsabiliza em oferecer acolhimento
psicológico. Você pode se recusar a responder qualquer pergunta. No decorrer da
pesquisa, todos os procedimentos serão esclarecidos antes de serem realizados. VII. Publicação

Os benefícios esperados com essa pesquisa incluem três dimensões. Na primeira Informamos que o resultado final da pesquisa poderá ser publicado
delas dedica-se a reflexão sobre a possibilidade da formação de psicólogas em revistas científicas da área, ou livros, colaborando, assim, na construção
feministas. Em segundo lugar, contribui com a construção de argumentos que do conhecimento teórico-científico e na melhoria na viabilização da gestão e
problematizam o modo como o modelo colonial de formação em Psicologia, oprime assistência na área desta pesquisa.
formas diferenciadas de docência, pesquisa e extensão de mulheres feministas.
Finalmente, a discussão pretendida poderá contribuir com a reflexão acerca do
modo como, os movimentos e teorias feministas, tem construído e revisto suas
pautas em defesa de ações militantes a favor do respeito aos direitos de toda mulher,
de denúncia as diferentes formas de violência de gênero e de preocupação quanto
a formação de psicólogas feministas que resistem aos processos de colonização de
seus corpos e saberes.
242 243
CONSENTIMENTO

Eu, _________________________________________________
_________,RG: __________________, abaixo assinado, concordo em
participar voluntariamente da pesquisa intitulada “Ad/mira/ação: mulheres
docentes feministas e suas práticas descolonizadas na formação em psicologia”,
desenvolvida pela pesquisadora Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini, sob
orientação do professor doutor Murilo dos Santos Moscheta. Fui devidamente
informada e esclarecida sobre os objetivos da pesquisa, seus procedimentos,
assim como sobre os possíveis riscos e benefícios decorrentes de minha
participação. Foi-me garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer
momento, sem que isto leve a qualquer penalidade. Declaro, ainda, que ( )
concordo / ( ) não concordo com a publicação dos resultados desta pesquisa,
ciente da garantia quanto ao sigilo das minhas informações pessoais e ao meu
anonimato. Em caso de dúvida:

Quaisquer dúvidas com relação à pesquisa poderão ser esclarecidas com a pesquisadora,
Local e data: ______________, _____ de ____________ de ________. conforme os contatos abaixo informados:

Nome: Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini Telefone: (44) 984115330

E-mail: [email protected]

Quaisquer dúvidas com relação aos aspectos éticos da pesquisa poderão ser esclarecidas com
_______________________________________________ o Comitê Permanente de Ética em Pesquisa (COPEP) envolvendo Seres Humanos da UEM,
no endereço abaixo:
Assinatura do participante da pesquisa
Av. Colombo, 5790, PPG, sala 4, CEP 87020-900. Maringá-Pr. Fone: (44) 3011-4444,
e-mail: [email protected], site: http://www.ppg.uem.br/index.php/etica-biosseguranca/copep
Eu, Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini, pesquisadora, obtive de forma
voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido da profissional para a
participação na pesquisa.

______________________________________________
Assinatura do Pesquisador Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini
244 245
APÊNDICE III. Número do Protocolo de aprovação do Comitê de
Ética

Dados do Projeto de Pesquisa

Título da Pesquisa: AD/MIRA/AÇÃO: MULHERES DOCENTES FEMINISTAS


E SUAS PRÁTICAS DESCOLONIZADAS NA FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA
CAAE: 08925019.0.0000.0104
Submetido em: 01/03/2019
Número do comprovante: 018709/2019
Instituição Proponente: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ/ Pr.
Situação: Aprovado
Localização atual do Projeto: Murilo dos Santos Moscheta
Patrocinador principal: Financiamento próprio
246 247
ANEXOS
LEGENDA DAS OBRAS Figura 09: Telas afetivas:
mulheridades. Artista Marta
Fischer. Tela pintada com
aquarela em papel Canson
Figura 01: Linhas rizomáticas: Aquarela. Umuarama, julho
alastramentos.Universidade de 2021.
Estadual de Maringá. 2018.
Acervo próprio.
Figura 10: Telas afetivas:
Figura 06: Minha Encantada. mulheridades. Artista Marta
Ancestralidade ativa, afetiva, Fischer. Tela pintada com
presente em minha vida até os aquarela em papel Canson Figura 15: Telas afetivas:
Figuras 02 e 03: Sobre as seus 102 anos de florescência. Aquarela. Umuarama, julho mulheridades. Artista Marta
linhas de vidas cambiantes e Acervo próprio. QRcode com de 2021. Fischer. Tela pintada com
os ventos do outono. UEM, a letra da música “Dona Cila” aquarela em papel Canson
2018. Acervo próprio. interpretada por Maria Gadú. Aquarela. Umuarama, julho
QRcode: vivências do outono de 2021.
na Universidade Estadual de Figura 11: Telas afetivas:
Maringá, Pr. mulheridades. Artista Marta
Fischer. Tela pintada com
aquarela em papel Canson
Aquarela. Umuarama, julho
de 2021.

Figura 07: Telas afetivas:


mulheridades. Artista Marta Figura 12: Telas afetivas: Figura 16: Telas afetivas:
Fischer. Tela pintada com mulheridades. Artista Marta mulheridades. Artista Marta
aquarela em papel Canson Fischer. Tela pintada com Fischer. Tela pintada com
Figura 04: Tranças. Mar Aquarela. Umuarama, julho aquarela em papel Canson aquarela em papel Canson
del Plata. Argentina. 2019. de 2021. Aquarela. Umuarama, julho Aquarela. Umuarama, julho
Acervo próprio. de 2021. de 2021.

Figura 13: Telas afetivas:


mulheridades. Artista Marta
Fischer. Tela pintada com
Figura 05: Crochê das Minas. aquarela em papel Canson
Arte cedida carinhosamente Aquarela. Umuarama, julho
por Luciana Kind, uma de 2021.
Mulher Feminista das Minas. Figura 08: Telas afetivas:
QRcode: I Simpósio de mulheridades. Artista Marta Figura 17: Você é seu próprio
Narrativas, Gênero e Política. Fischer. Tela pintada com lar. Ruas de Mar del Plata.
2016, Belo Horizonte, PUC/ Figura 14: Telas afetivas: Argentina, inverno de 2019.
aquarela em papel Canson mulheridades. Artista Marta
Minas Gerais. Aquarela. Umuarama, julho Acervo próprio. QRcode:
Fischer. Tela pintada com Clipe da música “Triste, louca
de 2021. aquarela em papel Canson ou má” interpretada por
Aquarela. Umuarama, julho Francisco, el hombre.
de 2021.
248 249
Figura 18: Universidade
pintadas de todas as cores/
lutas. Argentina, 2019. Figura 26: Ciranda da vida.
Acervo próprio. Grupo de estágio indo embora.
Acervo próprio.

Figura 19: Corpos


rizomáticos invadindo linhas
molares. Foto de Gabriel
Brunini. Maringá, Pr., 2020.

Figura 20: Se a fala é ao vento,


Figura 27 e 28: Festa junina amor gratuito. Festa para
se é sem audiência, não é fala,
Figuras 23 e arrecadar doações para a Casa de Missão Amor Gratuito
é silenciamento disfarçado
24: Corpos em (acolhimento LGBTQIA+) UNIPAR, 2018. Acervo
da oportunidade de ter uma
cena. Campanha próprio.
voz, ou pregas vocais que
Outubro Rosa –
emitem um barulho sem Figura 29: As
Mulheridades.
sentido. Desabafos docentes e estradas das minas.
Equipe ESF do
discentes. Congresso em Mar Vivencias no Simpósio
Município de
del Plata, Argentina, 2019. Narrativas. Belo
Icaraíma. Paraná.
Acervo próprio. Horizonte, MG, 2016
Acervo próprio.

Figuras 30: Ônibus Lilás.


Grupo de estágio 2019,
UNIPAR. Acervo próprio.

Figura 25: Corpos


Figura 21: Poda e povoamento. Da em cena. Campanha
solidão as práticas de povoamento de Novembro Azul –
mim. Campus UEM / Maringá. Acervo Masculinidades em
próprio. foco. Equipe ESF Figuras 31: Intervenções
do Município de do grupo de estágio da
Figura 22: Mulher do Icaraíma. Paraná. UNIPAR na Delegacia da
fim do mundo: peitos, Acervo próprio. Mulher de Umuarama, Pr.
poses, protestos, potências 2016, 2019. Acervo próprio.
Performance Semana de
Psicologia. Psicologia
UNIPAR, 2019. Acervo
próprio.
250 251

Figura 32 e 33: Intervenções do grupo de estágio “ela


aprendeu a se amar e foi feliz para sempre”. UNIPAR, Pr.
2019. Acervo próprio. Figura 39: O brilho do
vagalume. QRcode: Poema
escrito e narrado pelo
Figura 34: Nas aguas do
vagalume... um presente.
mar eu vou me benzer, vou
me banhar. Porto Camargo
distrito de Icaraíma/ Pr.
Acervo próprio. QR Code
Clipe da música “Nas aguas
do mar” interpretada por
Criolo.
Figura 35: Quintas insanas,
revoluções íntimas.
Encontros para respirar. Figura 40: Tu vens, eu já
UNESP, Assis. 2014. Acervo escuto os teus sinais. PsiCUS/
próprio. QR Code Clipe UNIPAR... Acervo próprio.
da música “Revolução” QR Code Clipe da música
interpretada por Mulamba. “Tu vens” interpretada por
Alceu Valença.

Figura 36 e 37: Da solidão povoada à proliferação de Figura 41: E o que me


novas ervas. 2018. Acervo próprio. importa é não estar vencida...
meu sangue latino. Imagem:
Figura 38: Romaria das Argentina. 2019. Acervo
línguas, das mãos, das lutas próprio. QR Code Clipe
das mulheres latinas. Por da música “Sangue Latino” Diagramação:
ruas de 2019. Acervo próprio. interpretada por Ney
QR Code Clipe da música Matogrosso. Andrey melo Souza
“Romaria” interpretada por Publicitário e Designer
Elis Regina. (44) 99955-5551

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