LAC
G759.981 P248B1 1943
THE LIBRARY
OF
THE UNIVERSITY
OF TEXAS
G759.981
P248B1
1943
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DATE 2-20-67
G759.981 NEW BINDING [ x ]
P248B1 REBINDING [ 1
1943 REGULAR [ x ]
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LACED-ON [ 1
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FEB 23 1967
SPECIAL PAM. [ 1
AUTHOR AND TITLE
Parreiras , Antonio
História de um pintor , cantada
por ele mesmo .
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CARE IN TRIM : FOLD. MATTER
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1
ANTONIO PARREIRAS
( Da Academia Fluminense de Letras )
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História de um Pintor
CONTADA POR ELE MESMO
BRASIL - FRANÇA
( 1881-1936 )
2.° MILHEIRO
ANTONIO PARREIRAS
(DA ACADEMIA FLUMINENSE DE LETRAS)
HISTÓRIA DE UM PINTOR
CONTADA POR ELE MESMO
2. MILHEIRO
BRASIL - FRANÇA
( 1881-1936 )
DIARIO OFICIAL
NITERÓI - 1943
THE LIBRARY
THE UNIVERSITY
OF TEXAS
NOTA
Antônio Diogo da Silva Parreiras faleceu no dia
17 de Outubro de 1937, em sua residência á rua Tira-
dentes n.º 47, em São Domingos de Niterói.
Em o seu testamento consignou a cláusula seguin-
te : "ao meu querido amigo e afilhado Athayde Parrei-
ras deixo o encargo de fazer publicar a segunda edição
do meu livro "História de um Pintor ", acrescentando a
segunda parte que deixo escrita. Para pagar as despesas
desta publicação serão vendidas as minhas medalhas de
ouro e alguns quadros se ainda fôr necessário .
Esses livros serão distribuidos em primeiro lugar
por todas as bibliotecas , arquivos e institutos públicos,
o que restar vendidos e o produto desta venda será en-
tregue á Sociedade dos Cégos de Niterói, da qual sou
sócio ” .
― Tendo o progressista Governo do Estado do
Rio de Janeiro , por ato que muito elevou a memória
do insigne artista fluminense, feito a aquisição do pré-
dio residencial e atelier e dos quadros seus e de seus
colégas, constituindo assim o - Museu Antônio
Parreiras dirigi-me ao eminente Sr. Interventor Fe-
deral, Comandante Ernani do Amaral Peixoto , sugerin-
do a propósta abaixo enunciada : o Estado ficaria com
o encargo de publicar o livro ficando a edição, em sua
disponibilidade, apenas, condicionando uma quota rela-
tiva de lucro para ser entregue á Associação Flumi-
nense de Amparo aos Cégos , da cidade de Niterói . Para
o cumprimento desta finalidade daria as medalhas de
ouro, os máximos prêmios conferidos ao Mestre - para
que estas insignias de valimento artístico figurassem
no "Museu Antônio Parreiras", e se integrassem no pa-
trimônio do Estado do Rio de Janeiro.
Tudo fiz com aquiescência expressa dos herdeiros.
- O Exmo. Sr. Interventor Federal deferiu o pedido e
10450 9
4
deu autorização, por intermédio do Exmo. Secretário do
Governo, Dr. Heitor Gurgel para que a obra fosse
editada nas oficinas devidamente aparelhadas do “Diá-
rio Oficial" do Estado .
Realço, com verdadeira satisfação, a generosidade
do Governo do Estado, em dar para a Associação dos
Cégos, mil exemplares do livro, ora editado, e usu-
fruisse o lucro com a venda dos mesmos livros. - Mais
um florão de benemerência que o Estado faz a uma As-
sociação de tanta utilidade altruística e dignamente di-
rigida pelo ilustrado Coronel Manuel de Castro Guima-
rães .
Assim, o nosso glorioso Estado, criando o "Museu
Antônio Parreiras " muito elevou a cultura artística do
país, e divulgando o livro da vida do artista e integran-
do em seu patrimônio as medalhas de ouro , -— conquis-
ta vitoriosa do seu labor em pról da Arte, exalta,
de modo fulgurante, o Governo, que pratica tais fei-
tos, não vulgares, na órbita da política brasileira .
Não poderei encerrar essas linhas sem a declara-
ção de que no termo de acordo firmado por mim, e o
Governo do Estado, representado, no áto, pelo distinto
Sr. Tarquinio de Medeiros, diretor do "Diário Oficial ”
e o Sr. Coronel Castro Guimarães, como presidente da
Associação dos Cégos, ficou assim expresso e conven-
cionado:
O Estado fará a distribuição dos exemplares do
livro ás bibliotécas e institutos públicos, mencionados na
verba testamentária e os herdeiros não terão lucro al-
gum com a presente edição da obra, que será de pro-
priedade do Estado, fazendo déla, o Governo, o uso que
bem entender .
Desta fórma creio ter cumprido -com superiori-
dade de animo o encargo deixado em seu testamento
pelo meu saudoso e querido tio, padrinho e inolvidavel
amigo .
E, finalmente, reitero em nome da família Antônio
Parreiras, como já tive oportunidade de o fazer, na
inauguração do Museu, ao Exmo. Sr. Comandante Er-
nani do Amaral Peixoto, ilustre Interventor Federal no
Estado do Rio de Janeiro, seu imperecivel agradecimen-
to, por tudo que tem feito, em bem da glória de Antô-
nio Parreiras .
Niterói, Março de 1943 .
(a. ) ATHAYDE PARREIRAS .
Dakir Parreiras
DAKIR
Ai tens, meu filho, reunidas neste livro notas dis-
persas de um diário, que as traças e o tempo acaba-
ram por destruir .
Foi melhor assim ; muita coisa esquecí .
Ofereço-te este livro . Talvez em momento de luta,
de desanimo, ( quem o sabe ? ) encontres nele alguma
coisa que te console e encoraje para suportar os sofri-
mentos, que enchem a nossa vida de artista .
Nasceste, cresceste e homem te fizeste no meu
"atelier". Foste sempre testemunha ocular de todos
os meus atos .
Muitas vezes me viste torturado pelas injustiças,
martirisado cruelmente pelas lutas ; nunca, porém, me
viste enfraquecer, abandonar os meus pincéis, maldi-
zer a Arte . Ao contrário, sempre me viste por ela sa-
crificar tudo e a ela dedicar todas as forças de minha
alma e de minha vida . A meu lado, em nossa pátria
e no estrangeiro, acompanhando-me sempre como a
minha própria sombra, pudeste a todo instante viver
comigo na comunhão mais intima e profunda .
Pude pôr-te nas mãos os pincéis, indiquei-te o ca-
minho, formei a tua alma, moldando-a como o escul-
tor modela na cêra, e, com a alegria imensa de pai e
de irmão em arte, pude acompanhar-te no início da
tua vida artística e assistir aos teus primeiros suces-
sos . Eles me causaram infinito prazer .
6
Gozei-os como si meus fossem e hoje, já velho, no
fim da existência, de novo começo a viver, volto á mi-
nha mocidade vendo que, como eu, só tens um ideal
a Arte .
Este livro contem parte de tua vida . São os pri-
meiros capítulos dela ; que o Senhor te permita poderes
um dia, como eu, terminá-la como um trabalhador que
vai repousar de longa jornada de trabalho, corpo fa-
tigado, braços esmorecidos, mas a conciência tran-
quila .
TEU PAI.
Nasceste, cresceste e homem te fizeste no meu
"atelier"...
TRABALHAR É VIVER
De 1881 a 1926
Antônio Parreiras
AUTO-BIOGRAFIA
Meus pais eram brasileiros natos.
Nasci em São Domingos de Niterói a 21 de Janeiro.
de 1861 , à rua da Pampulha, hoje Visconde do Rio Bran-
co . A casa ficava quasi na esquina do largo, sobre uma
pequena ribanceira, que suavemente descia até à praia,
onde, entre pés de pitangueiras, havia duas grandes ár-
vores e entre estas um banco de madeira .
À tarde, minha Mãe alí costurava, enquanto eu e
meus irmãos faziamos, na areia úmida, castelos que logo
após o mar desfazia, como muitos outros que fiz depois
durante a vida ...
Meus camaradas eram numerosos .
Insubordinado, violento, robusto, era eu quem os
guiava nos assaltos aos pomares vizinhos ou aos tabo-
leiros de doces das negras que estacionavam no largo
sob tendas de algodão .
Não parava em casa .
Tinha horror aos livros e só me interessavam aque-
les em que havia gravuras .
Devia ter meus doze anos quando , aproveitando a
grande sombra das duas árvores , um pintor veiu armar
a sua tenda de trabalho e começou a pintar .
Era um homem muito grande, louro e tinha os
olhos claros e azues .
Em poucos dias a brancura da tela havia desapa-
recido e nela se via toda a Cidade do Rio de Janeiro,
desde a serra da Estrela até o morro do Pico .
O mar parecia de prata, scintilava, e naquele cha-
malotado brilhante, trêmulo, destacavam-se barcos de
velas cheias que fugiam em direção à barra .
Imovel, absorto, ficava fascinado horas e horas a
vêr trabalhar o artista .
- 12
Até hoje vejo aquela tela luminosa que me ficou
para sempre delineada ao longe, como um marco do
qual jámais pude desviar o olhar .
Deixamos São Domingos e viemos habitar Niterói ,
onde meu Pai tinha um depósito de joias . Eram nossos
vizinhos um português dono de um armarinho, Pinto
Moreira, e o alfaiate José de Castro, tambem português .
Pinto Moreira era fanático pelas Artes .
No fundo do seu negócio, no quintal, havia um bar-
racão de madeira onde pernoitavam seus empregados e
os seus freguezes do interior .
Um destes, querendo educar um filho, pediu a Pinto
Moreira que o hospedasse, no que foi atendido.
No princípio do ano, veiu José Mariano, de São
João de Itaboraí .
Reuniam-se no velho barracão, à noite, muitos
acadêmicos .
Como todo estudante, José Mariano fazia versos .
Quando, com voz sonora, lenta e triste, o ouvia recitar,
saltava o muro e ia escutá-lo de perto .
Tempos depois chegou um outro moço, alto, magro,
escaveirado, amarelo, de longos cabelos negros e lisos ,
de andar firme e compassado .
Não vinha se fazer " doutor " .
Passava diariamente pela porta de nossa casa e ía,
como um condenado , para uma casa comercial, onde
passava o dia inteiro .
Aquele moço de ar tão nobre, de maneiras tão dis-
tintas , não podia eternizar-se alí .
A centelha que ele trazia abafada na alma, tinha,
forçosamente de surgir, ampliar-se para que o Brasil
entre os seus grandes poetas, pudesse ainda se orgulhar
de — Alberto de Oliveira .
Eis aí como conhecí o primeiro pintor e o primeiro
poeta. Eis como em minha alma, pela primeira vez,
penetrou um raio de luz ... a primeira emoção de Arte.
Foi vendo um pintar, ouvindo outro ler poesias , que
deparei com a estrada ainda não vislumbrada , porém
que devia depois trilhar em toda a minha longa exis-
tência .
Abençoados sejam !
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THE UNIVERSITY
OF TEXAS
- 13
Apesar da minha pouca idade, logo que comecei a
conviver com os habitantes do vizinho Parnaso, compre-
endí que um pintor, um escultor, um poeta, não eram
homens como os outros ...
Via-os inteiramente despidos de todo interesse ma-
terial .
Ambicionavam mais um nome do que a opulência.
Via-os trabalhar sem esperança de lucro imediato ,
animados apenas pelo vislumbre de uma recompensa
problemática, toda moral, que só lhes viria talvez de-
pois da morte ...
Eram felizes , como são os verdadeiros artistas .
Não envelhecem... são eternamente moços . A exis-
tência para eles não está limitada aos gozos da vida
material, que desaparecem com a mocidade . Vivem em
uma eterna primavera porque criam um mundo para
nele viverem, onde não há trevas só luz ...
Esse mundo eles me descreveram quando era ain-
da uma criança ; e hoje, já no fim da existência, dentro
dele vivo ...
Procurei convencer os meus parentes de que para
ser feliz bastava ser um artista . Ficaram horrorizados :
médico, advogado, negociante, empregado público . Ar-
tista, nunca !
E para ser qualquer coisa destas internaram-me
no Liceu Popular, o melhor estabelecimento de ensino
que havia então em Niterói . Deixando mais tarde o
Liceu, fui matriculado no Externato Briggs.
Estudava-se então o Sistema Métrico por uns ma-
pas onde se viam os pesos e as medidas a côres .
Guilherme Briggs, que conhecia o meu geito para
pintura, deu-me para ampliar um dos tais mapas, de
modo que de todo o grande salão pudesse ser visto ni-
tidamente .
A coisa não saíu lá muito mal .
O mapa foi colocado no muro sobre a cadeira do
professor . Este fez um palavriado elogiando o traba-
lho . Foi o primeiro louro que colhí e dele nasceu a
descomedida ambição de glórias que até hoje tenho e
cada vez maior .
Do colégio Briggs fui retirado por haver falecido
meu Pai e puzeram-me no comércio .
Era um armazem de máquinas para lavoura .
Deram-me alí os mais pesados trabalhos.
BOUND MAY 1967
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Um dia, porém, não me foi possivel suportar mais
tal vida . Fiz-me sócio de uma casa comercial em Ni-
terói .
Dois anos depois, retirava-me .
Empreguei-me no escritório central da Estrada de
Ferro de Cantagalo, em Friburgo .
Alí, dispondo de algum tempo, preparei -me para
um concurso para professor público. Fui classificado .
Não tinha, porém, idade legal e fui nomeado professor
substituto . Terminada a licença do efetivo, fiquei em
disponibilidade .
Resolví então, realizar o meu ideal - ser um ar-
tista . Vendí uma das casas que meu Pai me havia legado
e entrei para a Academia de Belas Artes, para a aula
de G. Grimm ( 1882 ) . Três anos depois os meus recursos
se haviam esgotado . Não havia, porém, perdido o meu
tempo ; tinha estudado bastante .
Fiz-me scenógrafo . Trabalhava com Frederico de
Barros .
Durante o dia frequentava a Academia e a aula de
paisagem de G. Grimm .
Saindo Grimm da Academia, eu o acompanhei . Mo-
rava então em Santa Rosa, em uma casinha que ficava
entre as dunas na restinga .
De lá saía ao romper do dia e vinha para a Bôa
Viagem, onde morava Grimm .
Trabalhava sem repouso até ao meio dia . Aquel
hora, à sombra curta de um rochedo, ou na circular
projeção de uma árvore, na ofuscante e abrazadora areia
da praia, fazia uma ligeira refeição .
Mas, para que ocultar ?
Muitas vezes fiquei alí, naquelas praias desertas a
contemplar o mar sem vê-lo ... porque estava a cho-
rar ...
A minha pobreza era extrema.
Olhava com tristeza infinita para os tubos das
tintas, quasi vasios. Em pouco tempo não poderia mais
trabalhar .
Olhava para as minhas mãos descarnadas , páli-
das, para minha roupa surrada e velha, para minhas
botas a se desfazerem e sentia-me aniquilado .
Quantas vezes não almejei o tempo em que me obri-
gavam a montar pesadas máquinas de lavoura desti-
- 15 -
nadas a ser arrastadas , sulcando a terra, por possantes
bois ...
Quantas vezes não procurei a lembrança do afasta-
do passado farto e feliz para, sem arrepios de frio, po-
der contemplar, projetada na areia, a " sillouette " em
sombra da minha figura esquelética ?
Quantas vezes não parecia ouvir pausadamente
aquelas palavras que me haviam dito : - todos os artis-
tas morrem de miséria ... ?
E o espantalho de tão horrivel fim me aparecia
próximo e eu apenas começava a vida artística !
Em redor o mar scintilava, o céu se curvava numa
imaculavel gradação de azues puríssimos e pela praia
toda dourada pelo sol a descambar por trás da Ilha
da Boa Viagem, as cigarras doudamente cantavam.
COMPANHEIROS DE JORNADA
G. GRIMM
VASQUEZ
FRANÇA JÚNIOR
CARON
FRANCISCO RIBEIRO
VISCONDE DE CANTO
ESTEVÃO SILVA
THOMAZ DRIENDL
GRIMM
Grimm foi um homem forte e belo, de caráter ex-
cessivamente honesto e franco .
Dessa franqueza assás exagerada veiu-lhe a repu-
tação de mal educado e mesmo de insociavel .
Grimm era extremamente bondoso para os peque-
nos ; altivo, arrogante e até violento para os grandes .
Entrava na Academia, quando dela era o habil mestre
da aula de paisagem, com o chapéo na cabeça. Subia aos
pulos a larga escadaria, batendo ruidosamente com a
grossa bengala feita de um irregular galho de laran-
jeira .
E, não raro, esse homem assim inconveniente, mo-
mentos antes, para entrar na choupana de um pobre
pescador, havia tirado o chapéo e deixado lá o seu inse-
paravel bastão fincado na areia !
Tinha Grimm cabelos longos, alourados e finos , a
caírem-lhe sobre os hombros em desalinho e revoltos.
A barba, tambem ampla , crescia-lhe em liberdade,
espargindo-se no peito sobre grosseira camisa de al-
godão .
Vestia-se com excessiva negligência, alimentava-
se como um pastor e nunca bebera água ...
Grimm só lecionava d aprés nature.
Mestre de competência rara, era justo e severo.
Sujeitava os seus discípulos ao regime do rude tra-
balho sem repouso .
Fazia-os subir a mais escabrosa rocha , viver em
plena floresta, contornar, mesmo com risco de vida,
a mais ingreme montanha, atravessar brejais, trabalhar
em pântanos onde a água negra e parada empestava o
-- 20
ambiente . E ele a esses perigos e trabalhos tambem se
sujeitava por sua vez, pintando à sombra do seu chapéo
de campo, que rutilava ao sol, a abrir no verde da fo-
lhagem uma nota branca e vibrante .
Outras vezes, nos píncaros dos rochedos armava o
seu cavalete e, horas e horas, lá se quedava sem sentir
os raios causticantes do sol, sem ouvir o ruido do mar
que, em baixo, na grande praia, batia compassadamente,
nem o estridular constante das cigarras nas moitas
abrazadas da restinga .
Grimm não era artista, pesa-me imenso dizê-lo .
Era, no entanto, um grande pintor .
Dominava-o a preocupação única de copiar com
extrema fidelidade a natureza, sem alterar uma linha ,
sem modificar um tom .
Daí a falta frequente de emotividade, notavel nas
suas telas .
Era impecavel no desenho, justo na côr, embora
metodicamente feita, sem entusiasmos e falha de sen-
timentos poéticos .
A alma não lhe vibrava no quadro, alma inculta
onde nunca tinha entrado o amor, alma vibratil e sensi-
vel apenas à exterioridade das coisas ...
Entretanto, nestas telas assim tão pouco subjeti-
vas, encontrava-se a imensa sinceridade de seu carater
leal e simples .
Terminando Grimm o contrato de professor da
Academia, começou a vida errante de paisagista .
Abandonou os discípulos e foi para o interior de
Minas pintar paisagens na Lagoa Santa .
Um dia fui surpreendido por ele em minha aca-
nhada sala de trabalho, em pequena casa, na restinga
de Icaraí .
Concluia um quadro na ocasião em que Grimm en-
trou em meu lar modesto .
Voltava de uma longa viagem . A metamorfose era
completa . Os olhos já não brilhavam mais . Velara-os
Outras vezes, nos pincaros dos rochedos armava
o seu cavalete ...
21 -
profunda mágua . Cingira-os umas pinceladas roxas
como os tons aveludados da flor da quaresma re-
cem-desabrochada .
Sobre a larga fronte esmaecida, rugas fundas se
cruzavam . Os longos cabelos caíam empastados em
suor .
A barba, a belíssima barba, aparada rente ao quei-
xo . Os braços frouxos tombavam ao longo do corpo ,
curvado como o de um velho .
Palidez de cera cobria-lhe as faces .
O musculoso atleta, havia desaparecido, havia min-
guado dentro daquela pele baça e encarquilhada . Esta-
va tísico . Cançado, ofegante, exhausto , como se de longe
viesse, por ásperos caminhos, caíu sobre o tamborete,
tossindo desesperadamente .
Banhado em suor, lívido, a face apoiada na mão es-
palmada, ficou a contemplar o quadro em silêncio, en-
quanto eu procurava ocultar a triste impressão que
me ía nalma .
Levantou-se afinal, amparando-se nos moveis . Fi-
tou com longo olhar perscrutador a tela em que traba-
lhava . Olhos fitos nos seus olhos , trêmulo como um co-
legial, anciosamente esperava que daqueles lábios rese-
quidos pela febre surgissem as palavras de animação
de que tanto precisava naqueles tempos de luta .
E aqueles lábios ficaram mudos ... Aproximando-
se da mesa, apanhou os pincéis, e mal se sustendo nas
pernas trópegas, corrigiu os maiores defeitos do quadro .
"Caminhas, progrides, tornas-te um "indivi-
dual "; chegarás a ser um artista si nunca abandonares
a Natureza ".
Foi a sua última lição .
Meses depois morria em Palermo .
A Pátria recebeu a sua enorme babagem artística.
Não foi ingrata ; mandou-lhe erguer um modesto monu-
mento no cemitério onde repousam os seus restos mor-
tais . Lá, sob o céo azul da Itália , pouco a pouco, cons-
tatei, o tempo vai desbastando o seu busto de argila.
Alguns anos mais e desse busto desaparecerão os
traços característicos da viril e expressiva fisionomia
.
de Grimm .
Nos museus, as suas paisagens enegrecidas pelo
abuso do terrivel beinschwarz se tornarão invisiveis .
"Tudo passa sobre a terra " .
,
VASQUEZ
Domingos Vasquez, o irrequieto espanhol, o discí-
pulo amado de Grimm, aquele que, dentre todos, mais
havia lucrado com as lições do mestre, foi, incontes-
tavelmente, um artista e um habil pintor .
Em 1883 as suas paisagens eram as melhores que
apareciam nas exposições de pintura, e, embora dis-
cípulo ainda e muito modesto, a sua reputação amplia-
va-se de dia para dia . Grimm o considerava como o
seu melhor aluno .
Thomaz Driendl, o terrivel Driendl, o autor da
"Scena de Baviere ", classificava Vasquez como o me-
lhor pintor de paisagens naquela época .
Os trabalhos de Vasquez, algemados pelos preceitos
da escola realista alemã, constituiam uma cópia fiel da
"Natureza ". As suas paisagens foram sempre de uma
simplicidade extrema . Inspiradas em insignificantes
trechos, apresentavam sempre um " córte " magnífico .
Havia nos seus quadros pouca subjetividade .
O desenho, embora procurado com grande esfor-
ço e obtido com extrema dificuldade, era sempre correto.
A côr simplesmente admiravel. Mas esta pureza
de tintas, essas nuances variadas de tons transparentes .
fortes e vibrantes nas "massas", nos pormenores do
plano horizontal, eram opacas e pesadas nos céos .
Daí a deficiência de expressão, em muitas das suas
paisagens .
Vasquez partiu um dia para a Europa .
Foi estudar sob a direção de Hanateau .
Esse, que o havia atraido pela grande fama de que
então indevidamente gosava, em pouco tempo "amanei-
rou" o discículo de Grimm .
Impôs-lhe "receitas ", "trucs ", maneira acadêmica
de pintar paisagens com um convencionalismo detesta-
vel . Voltou Vasquez ao Brasil depois de alguns anos .
- 24
As novas paisagens pecavam pela falta de pespecti-
va linear e sobre tudo aérea. Os céus avançavam sobre
os primeiros planos, achatavam-se horrivelmente sobre
os "longes ".
Em tudo encontrava-se a preocupação de copiar a
Natureza mecanicamente, servilmente.
Daí a monotonia imensa existente nos quadros por
ele pintados nessa época, monotonia tão grande que,
unindo-se uma tela a outra, formariam um só quadro , tal
a igualdade de tons, tal a repetição de linhas e até mes-
mo de assuntos .
Os mesmos tons para tudo , a mesma luz, a mesma
sombra, os mesmos "toques ", os mesmos "efeitos " :
se repetirem de um modo horrivel, como se todas aque-
las produções tivessem sido pintadas no mesmo lugar,
ao mesmo tempo, sob a mesma luz, com tintas adred
preparadas .
"Quando um artista assim se " amaneira", assim se
repete, está perdido ”.
Vasquez sentio a " queda " .
Quiz salvar-se, mas a deficiência do meio artístico
retardou por longos anos a reação, e só em 1903 Vasquez
começou de novo a " ver", a " sentir ", com sinceridade e
principalmente com individualidade . O discípulo de
Grimm havia desaparecido . Havia, finalmente, esque-
cido as prejudiciais lições de Hanateau .
Mas era um pouco tarde ; a primeira mocidade ha
via passado . Já lhe apareciam alguns cabelos brancos.
Produziu, entretanto, bôas telas, ainda, cheias de
côr, de luz e de poesia .
Estava porém descrente e neurastênico .
Evitou toda a convivência, tornou-se solitário e
triste . Fugiu para o " Canto do Rio ", a esse tempo re-
moto e escondido sítio, apenas habitado por pescado-
res . E lá, num miseravel casebre, quasi a cair, deixou-
se ficar .
Abandonou-se, cresceram-lhe os cabelos , em aban-
dono a barba emaranhada e espessa contornou-lhe a fi-
sionomia pálida e alongada . Maltrapilho e descalço ,
vivia vendo pescar e pescando tambem .
De vez em quando pintava uma " telasinha ", na qual
a " feitura " era sempre bôa, o desenho correto ; mas
nesses pequenos quadros ele perdia um tempo precioso,
Canto do Rio (fusain)
25 -
que dispensado a grandes e sérias composições , teria
permitido a Vasquez produzir obras de valor .
Com o produto dessas "taboasinhas " que já haviam
estragado o infeliz Castagneto e que tantos outros ar-
tistas ainda estragam hoje, conseguiu Vasquez construir
no meio da restinga a sua casinha .
Quatro paredes apenas . Um só cômodo, que era
tudo : "atelier", quarto, cosinha, cocheira de duas ca-
bras, nicho de um cão fiel.
Alí entrei uma vez . Vasquez acocorado a um can-
to, almoçava um copo de leite de cabra e um pedaço de
pão .
A seu lado o cão fiel tinha os olhos fitos em Vas
quez que com ele repartia o jantar . Nos degráus da
rústica escada, as duas cabras sonolentas ruminavam .
Dentro, as sombras da noite já escureciam o ambi-
ente. Pelo chão telas concluidas, outras esboçadas, ca-
valetes , caixas de tinta, pincéis, pastas, roupas e velhos
tamancos . A cama suja, revolta .
Veementemente , reprovei o seu desânimo e o seu
desleixo. Procurei chamá-lo à vida e entusiasmá-lo, fa-
lando-lhe de uma nova e segunda viagem a Paris.
Tempos depois encontrei Vasquez .
Havia cortado o cabelo, raspado a barba e trajava
um nova roupa .
Pareceu-me alegre e satisfeito . Momentos houve
em que me fez lembrar o prasenteiro e loquaz compa-
nheiro dos tempos da aprendizagem. Fiquei contentíssi-
mo . Vasquez começou a frequentar a minha casa, pas-
sar horas e horas em companhia de meus filhos , & en-
xertar roseiras, pois amava loucamente as rosas .
Repentinamente deixou-nos , desapareceu .
Mais tarde, num cinema, meteu duas balas na
cabeça .
Não me surpreendeu a sua morte .
Os seus quadros foram vendidos em leilão a vinte
e a trinta mil réis .
As cabras desapareceram e o cão fiel sucumbi
de pesar .
26 -
Sómente no meu jardim há uma roseira plantada
por Vasquez . Está sempre cheia de lindos botões, rubros .
aveludados, mas não chegam jámais a desabrochar in-
teiramente . Inclinam-se nas hastes cheias de recurvos
espinhos e no dia seguinte o chão fica juncado de pé-
talas vermelhas como se fossem grandes pingos de san-
gue ...
FRANÇA JÚNIOR
Dos pobres discípulos de Grimm, o único que não
sofria falta de recurso era o Dr. França Júnior, sim-
ples amador de pintura .
Amparavam-no os proventos pecuniários de ren-
doso emprego e um nome de escritor com grande no-
meada .
Faltava originalidade nos seus quadros .
Foram aquilo que sempre é o resultado de quem
cultiva a Arte por simples distração ; não passaram
os quadros de França Júnior da imitação de outro qual-
quer trabalho de condiscípulo ou de mestre.
Não podia, portanto, progredir . Ficou estacioná-
rio . Vivia na ância de fazer o que não via, mas o que
viam os outros .
Nada deixou como pintor que possa ser comparado
ao que produziu como escritor .
França Júnior tinha a preocupação dos preconcei-
tos impostos e adquiridos no meio aristocrático em que
sempre viveu .
Vaidoso, irônico, cruelmente irônico, e chegando
mesmo, algumas vezes à perversidade, era entre nós uma
planta exótica .
Não trabalhava senão em lugares limpos e frequen-
tados .
Precisava de público para o vêr pintar, como de
espectadores para as suas espirituosíssimas comédias.
Pintava elegantemente vestido , como si estivesse em
um salão .
A blusa de brim não substituira nunca o belo fra-
que bem talhado .
Que contraste entre nós moços , fortes e simples e
aquele velho !
Um dia, em Petrópolis, França Júnior se apresentou
em minha casa para me acompanhar ao trabalho. C
- 28-
pagem trazia, elegantemente envolvido num belo saco de
couro, os apetrechos de pintura do seu fidalgo amo .
Este, alegre, cantarolando um pedaço de ópera, seguia-
me satisfeito até que ao deixarmos a larga estrada pe-
netramos no caminho estreito que descia zig-zagueando
a colina abaixo .
A aldeia se pendurava na encosta ingreme da serra.
Os tetos colmados destacavam-se, ao longe, na amplidão
azul da vargem. Pedras amontoadas, limosas, formavam
trilhos sinuosos , que desciam até ao fundo da grota onde
passava o rio . Ao lado, sobre o córte vermelho da bar-
ranca, erguia-se a floresta que se estendia, até em cime
no lombo imenso da serra . Pela encosta, as cabanas,
currais, os pequenos alpendres de sapê, os rústicos abri-
gos das vacas, tudo enfim, que caracteriza uma cêna
bucólica, e que faz, de uma simples paisagem, um qua-
dro de costumes .
Descia eu sem ligar importância às observações do
meu companheiro, que protestava veementemente pela
desigualdade do caminho .
Chegamos finalmente ao centro da pequena aldêia.
França continuava a protestar que aquilo não era lugar
para se trazer gente limpa, ― cheirava mal —- ia apa
nhar febre com certeza e lá se foi acompanhado pelo
pagem .
Fiquei, olhos embebidos no agrupamento daquelas
casas rústicas, na floresta então já completamente dou-
rada pela luz do sol . Minutos depois, já não me lem-
brava de França, não ouvia mais a canção monótona de
Miguel, curvado sobre o cepo, a fazer tamancos ...
Tudo havia desaparecido para mim.
Reinava o mais absoluto silêncio . Trabalhava .
Quando mais tarde voltei pela hora do descambar do sol
vi França a pintar na cidade um portão de ferro de uma
vivenda aristocrática .
Rodeava-o uma multidão . Era a corte de França .
Ele estava radiante . Viu-me e deixou-me passar curva-
do ao peso da minha mochila, botas enlameadas, roupa
listada pelo verde da vegetação .
Afastci-me . Deixei-o no ambiente em que preferia
viver, aquela criatura que de maneira tão cruel, diaria-
mente, lategava a multidão com a chibata do ridículo...
Que diferença profunda entre o homem e o escri-
tor !
A aldêa se pendurava na encosta ingreme
da serra
t
29 -
Como deforma, torce, deprime, amesquinha e ani-
quila o meio em que se vive !
Aquele homem altamente inteligente, espírito fino
e educado era quem mais amava o próprio meio que
mais criticava .
Fugira arrepiado de uma aldêa de tamanqueiros.
deixando pedaços belíssimos de natureza, e alí estava
a pintar a cousa mais anti-estética que se podia ima-
ginar . Satisfeito, porém exibia-se a uma multidão que
olhava sem vêr e felicitava-o sem compreender .
Assim viveu França Júnior como pintor ; enganan-
do-se a si mesmo ...
E quanta gente não anda por aí a repetir a mesma
comédia ...
CARON
Hipólito Caron, filho de um francês, padeiro em
Juiz de Fora, discípulo obediente de Grimm, mais tarde
discípulo rebelado de Hanateau, cedo se tornou uma
individualidade .
Os quadros que produziu não se podem confundir
com nenhum outro ; são positivamente dele .
Parecem pintados com um só pincel largo e chato,
fortemente embebido em tinta . Modelava com extrema
simplicidade e coloria ainda com maior espontaneidade.
Os céus das suas paisagens são amplos , movimen-
tados , cheios de uma infinidade de planos .
A distribuição das massas é sempre feita rigorosa-
mente e com justesa de valor .
Preocupava-o a silhouete, mormente quando se
projetava no espaço .
Essa silhouete estava sempre de acordo com a li-
nha geral das nuvens
O equilíbrio era perfeito e obtido sem trucs de
"massas" de igual valor e volume : a unidade era im-
pecavel ; a harmonia existia no mais insignificante " es-
tudo" e o desenho era obtido sem rebuscamento .
A côr sentida, justa, forte, vibrante, macia, deli-
cada, transparente como na soberba paisagem pinta-
da na Normândia, uma das mais belas que conheço en-
tre tantas mil que tenho visto .
Mas de todas estas excelentes qualidades , a que
mais se impunha era a da sua individualidade . Si pa-
cientemente se pudesse fazer uma comparação entre
as boas paisagens que existem dispersas pelos grandes
museus da Europa e uma pintada por Caron, verifi-
car-se-ia que nenhuma, absolutamente nenhuma seme-
lhança existiria entre elas .
Linha e côr parecem traçadas por ignoto artista
que não viu outra produção que não fosse a própria, e,
no entretanto, essas paisagens de Caron possuem todos
32
os requisitos das obras de pintura, baseadas na ciência
Há mesmo em alguns dos seus quadros cousas que
parecem se vêr pela primeira vez, mesmo quando con-
templados por aqueles que conhecem os museus dos
grandes e antigos centros da arte.
Há em algumas das produções de Caron algo de
incompreensivel, quando analisadas parcialmente . Mas
esse " incompreensivel " torna- se de um valor enorme e
de uma necessidade absoluta, quando observado em
.conjunto .
Há ainda nos trabalhos de Caron uma outra qua-
lidade que não é para desprezar : o conhecimento am-
plo e profundo da química das cores, tão raro nos novos
pintores .
Os seus quadros são inalteraveis .
Caron, se não morresse como morreu, na flôr da
idade, seria um grande paisagista .
Era um conjunto perfeito homem e artista .
Adoravel como companheiro, sincero e dedicado
como amigo . Caron era ainda de grande honestidade,
de uma pureza de carater invejavel . Tinha, porém,
esse defeito comum nos artistas : apaixonava-se facil-
mente e nesses períodos de falta de juizo tornava- se
um romântico impagavel .
As suas gavetas estavam atulhadas de cartas per-
fumadas, de flores mortas, de laços de fitas e de uma
imensidade de pequenas mechas de cabelos de todos os
tons ...
As chaves, ele as trazia sempre consigo, avara
mente guardadas , como si elas fechassem um canto do
paraiso .
Amou muito e foi amado loucamente . Mas de to-
das e muitas foram as amadas do louro Caron
nenhuma o foi mais do que a bela mascote, essa tre-
fega e "coquete " roceira que foi a " Mimi " da nossa
boemia .
Como ele a amava ! E com que orgulho e energia
ele exclamava, batendo no peito : - E' minha , ga-
nhei-a em um concurso ! " E dizia a verdade .
"Mimi " era casada com um homem que tinha
"oficio" de tocar clarineta e o terrivel defeito, a gran-
de miséria de ser ciumento .
Como inhambú selvagem, depois de muito andar,
fez o seu ninho no canto mais solitário da restinga de
Icaraí, a esse tempo imensa e deserta . De taipa e sapé
armou
deles
Um
tenda
sua
perto
da
de
casa
.M
" imi
- 33
ergueu a casinha em meio de frondosos cajueiros .
Cercou-a de cardos e lá escondeu a "Mimi " . Ao clarear
do dia partia tranquilo, pois bem escondidos ficava
os seus amores .
Fora do caminho, longe das ruas povoadas, ele ia
certo de que ninguem descobriria o ninho . Assim teria
sido se um dia os brancos chapéus de campo dos discí-
pulos de Grimm não surgissem entre as moitas da res-
tinga, no fundo silencioso do bosque, na cava fôfa das
dunas .
O conjunto grandioso, o colorido tão variado da-
quele ponto da restinga os havia atraido .
Um deles , armou a sua tenda perto da casa de
"Mimi" e pôs-se a trabalhar .
O calor, porém, produziu sêde no artista que, ven-
do ao fundo a choupana, para lá se encaminhou .
Creio que a agua era fresca e boa ...
O verão chegava ao seu extremo . A restinga abra-
zava . Dos cajueiros pendiam belos frutos que alastra-
vam depois o chão, enchendo a restinga de excitante
perfume ...
Por longos dias guardaram as sombras dos ca-
jueiros o segredo dos amores de Caron . Pouco dura,
porém, a felicidade - gota de orvalho caida das folhas
mortas dos cajueiros, na areia ardente da restinga
abrazada ...
Como as brancas asas de um grande pássaro, no
lado oposto da cancela, abriu-se outra tenda de paisa-
gista ...
Uma noite na república notamos que Caron e Vas-
quez não se falavam . Descobrimos que ambos estavam
apaixonados por " Mimi " .
E' tão facil se apaixonar aos vinte anos pelas Mi-
mís, mormente quando elas se disfarçam na simplici-
dade de uma roceira !
Foi dificil resolver-se o caso . Mimi amava com
tanto ardor que, si a cousa continuasse, com certe:
um rosário de tendas de pintores acabaria circulando a
sua rústica morada . Acabaríamos, afinal, todos rivais .
Deixaríamos de nos amar como irmãos . Repartíamos
o pão da nossa extrema miséria, as tintas, as telas, as
glórias, mas não repartiríamos , por certo, os beijos ar-
dentes de Mimi, beijos excitantes, estonteadores como
o aroma da flor do cajueiro ...
- 34
E tudo parecia encaminhar-se para esta tremenda
rivalidade . A rústica criatura já fazia parte da nossa
boemia ,nela se falava, e na alvura da parede, Ribeiro,
com rara felicidade, fizera-lhe o retrato . Quantas ve-
zes os seus olhos azuis não ficaram a fitá-lo demorada-
mente !
Perigava assim a paz da nossa república . Era pre-
ciso resolver-se o caso e resolveu-se afinal . Mimi ia ser
posta em concurso. Os candidatos : Caron e Vasquez.
Escolher-se-ia um ponto de paisagem, que seria
pintado pelos dois . Executado que fosse, seria subme-
tido ao julgamento de Grimm .
Mimi seria dada ao vencedor .
O vencido jamais deveria vê-la .
Caron ganhou o concurso .
Vasquez, fiel à sua palavra, submeteu-se ao vere-
dictum . Durante dias acabrunhou-o profundo pesar .
Uma manhã sobraçando a caixa de tintas, partiu
para o Barreto, armando a sua tenda junto aos muros
do cemitério .
Quando voltou, vimos a triste paisagem que exe-
cutára : hirtos ciprestes ; ao fundo, muros pardacentos
e o mar a estender-se em uma praia de lama, mar mor-
to, sem vagas, sem o alvo riso da espuma . Pobre
Vasquez !
Tempos depois, Caron partiu para Juiz de Fora,
separando-se para sempre de nós .
Morreu . Foi o primeiro discípulo de Grimm que
desapareceu .
Mimi, quando meses depois nos viu voltar sem
Caron e quando soube que ele não voltaria jamais,
chorou bastante . Atirou-se aos braços de Vasquez para
não morrer de dor ...
Quando morrer o Vasquez, dizia o Ribeiro, se-
rei eu quem consolará Mimi .
Mas quando Vasquez morreu, Mimi já não era a
bela Mimi . E quem a teve de consolar foi o marido...
RIBEIRO
A beleza de Caron tinha um verdadeiro contraste
na fealdade de Ribeiro, o desengonçado Ribeiro, o ma-
gro, o esquelético português que só viera a esta terra
hospitaleira e boa para sofrer .
Ângelo Agostini ao criar o tipo do Zé Caipora,
personagem popular da " Revista Ilustrada ", inspira-
ra-se na angulosa e inexpressiva figura de Ribeiro .
Ele tanto tinha de pertinaz como de infeliz .
Idólatra da Arte, ela nada mais lhe deu que atrozes
sofrimentos . No entanto, ele trabalhava sem cessar,
com enorme entusiasmo, com extremada dedicação e
ainda maior sacrifício, imposto pela extrema pobresa
a ponto de ser obrigado a trabalhar sob os raios do sol,
sem o abrigo siquer do chapéu de campo .
Durante muitos anos apenas desenhou, por não
possuir uma caixa de tintas .
Esta embaraçosa penúria, privando-o desse ma-
terial, em lugar de lhe produzir mal, só lhe proporcio-
nou bem, pois acabou desenhando tanto ou mais do
que o próprio mestre .
Esses desenhos tão justos nos seus valores , tão
característicos eram na sua feitura, que possuiam
sentimento da côr.
Poucos artistas desenham como Ribeiro .
Infelizmente, esses desenhos desapareceram e não
me consta a existência de algum na Escola de Belas
Artes .
Quando Ribeiro começou a pintar, logo nos pri-
meiros " estudos " deixou patente que o habil desenhis-
ta nunca seria pintor .
Apreendia bem a forma, mas não via ou não sen-
tia a côr . Repetia -se nele o que se dera com Gustavo
Doré .
36
Todos os discípulos de Grimm, haviam já realiza-
do as primeiras exposições , menos Ribeiro . Não tinha
recursos . Faltava-lhe até vestuário decente .
Haviam-nos, porém, encomendado algumas dú-
zias de taboletas espalhafatosas para uma fábrica de
café moido .
Metemos mãos à grande obra e em pouco tempo
Ribeiro teve o que necesitava .
Ainda me lembro do dia da sua festa artística .
Cedo partia ele para o Rio, enfiado na roupa nova . Du-
ro como um manequim de alfaiate . Tudo lhe ia mal,
até o chapéu, que fazia prodígios de equilíbrio sobre o
crâneo afunilado .
Ao vê-lo, não se acreditaria que dentro daquele
corpo quasi disforme, falho completamente de elegân-
cia, vibrava a alma de um verdadeiro artista, ampa-
rada por um espírito reto e cavalheiresco .
Muito concorreu, de certo, a antipatia emanada do
seu grotesco tipo físico para a indiferença produzida
pela sua mostra .
O mísero, depois dos muitos dias de suplício que
teve de passar, só, isolado na sala sempre deserta da
exposição, voltou aniquilado para a " república " e não
houve palavras que o animassem, consôlo que mino-
rasse a sua dôr .
Durante dias errou pelas praias . Passou horas
imovel, sobre os rochedos , a contemplar o mar . Sumia-
se por longo tempo entre os copados arvoredos da res-
tinga e lá ficava como um animal ferido, a curtir em
silêncio a sua dôr, o seu natural despeito, as ferroadas
do seu amor próprio ferido de morte em todas as ilu-
sões .
Achando-se sosinho na " república", quebrou OS
pincéis, rasgou um por um os " estudos " a óleo e nunca
mais pintou .
Para fugir à nossa convivência e poder esquecer a
Arte, mudou -se para o Rio de Janeiro, e aí se empre-
gou num escritório de engenharia .
Passaram-se anos .
Quando expuz " Sertanejas " encontrei-o . Quiz
evitar-me, mas não o deixei :
- Vem ver o meu trabalho, Ribeiro, disse aper-
tando-lhe afetuosamente as magras mãos .
Não ; isso impediria a marcha progressiva do
meu embrutecimento e eu preciso dele para ser feliz .
alma
a
invade
...
saudade
me
imensa
Então
uma
37 -
E deixou-me bruscamente. O seu martírio durou
pouco mais, e como os outros discípulos de Grimm,
partiu para não mais voltar ...
Tudo acabou . E isolado, depois de haver sofrido a
infelicidade de ver partir, um por um, os meus compa-
nheiros, fiquei sozinho .
Sou dos discípulos de Grimm, o último que resta .
Hoje, tantos anos depois, quando regresso das
minhas viagens à Europa, vou logo visitar as praias e
os rochedos da Boa Viagem, onde trabalharam os dis-
cípulos do mestre saudoso .
Lá, sobre os rochedos , deixo-me ficar horas intei-
ras completamente absorto .
Tem o mar a mesma cor, o mesmo movimento ; as
rochas, a mesma linha ; as vagas quebram-se do mesmo
modo e espraiam-se da mesma forma como nos dias
passados .
Cantam nos galhos dos ingazeiros e nas largas fo-
lhas das piteiras as alegres cigarras ; o sol é bem o mes-
mo que nos abrazava . Tudo, porem, é deserto, no verde
da vegetação . Nos cimos dos rochedos já não se vêm
mais as tendas brancas ...
Então uma saudade imensa me invade a alma . E'
a lembrança do passado que volta, que esvoaça sobre
aquelas paragens, que se desenham na poeira branca da
evaporação das vagas . E' a visão do passado, dos tem-
pos felizes que se foram , que, assim como os discípulos
de Grimm, não voltarão mais ...
1
VISCONDE DE CANTO
Volto-me para um passado remoto .
Naquele tempo a restinga se estendia desde a Ita-
puca até a subida do Cavalão ; desde a orla do mar até
Santa Rosa .
O rio, que hoje passa por baixo da ponte, corria
livremente . A princípio, entre negras e lodosas mar-
gens, depois espraiava-se num plano arenoso para se
lançar ao mar .
Um ou outro solar, muito distanciado, surgia en-
tre grandes moitas de coqueiros .
No final da praia, dependuradas nas encostas, al-
gumas cabanas de pescadores . O areal, cheio de car-
dos e pitangueiras, deserto de um extremo ao outro .
Eis o que era o sumptuoso bairro aristocrata de hoje .
No fim da praia em curva, sobre a colina, bem lá
em cima, alvejavam as paredes de uma pequena casa
cercada de roseiras .
Nenhum ruido, a não ser o das ondas a se franja-
rem lá em baixo .
A casa parecia deshabitada . Através das janelas,
guarnecidas de pesadas cortinas, divisavam-se paredes
cobertas de telas . Paisagens brasileiras, trechos da
restinga e da praia, pintados por mão de mestre .
Eram todas de uma grande suavidade, de triste
poesia, tudo iluminado pela luz enfraquecida da aurora
ainda longe, ou envolvido no tom arroxeado da tarde .
Nem uma só tinha a alegria de uma manhã de sol .
Em todas, porém, havia bem acentuada justesa de
tom local, o carater da restinga, a transparência da
atmosfera límpida, varrida pela briza do mar.
Não era só pela parede que se viam paisagens , era
por toda parte, denotando fecundidade nervosa, desco-
munal, ância de trabalho de alguem que nele procurou
esquecer grande dôr .
40
Num quarto, onde a luz de fóra entrava apenas
pela fresta da janela semicerrada, um leito de colunas
esculpidas . Em volta, numa confusão de atelier, raros
objetos de arte . Longos e fartos panos, destendendo-
se do alto dos moveis coleavam depois pelo chão . Flo-
res murchas , em vasos grandes, em forma esférica ou
longos , sinuosos como alvo pescoço de Cisne .
O silêncio era completo . A pêndula do relógio caia
vertical e imota .
Sobre o grande leito agonisava um homem .
Hirto, braços ao longo do corpo, parecia imenso .
A cabeleira negra e revolta . A barba tambem, a
emoldurar uma fisionomia lívida, esqualida, de extre-
ma belesa . Cristo de Donatello .
A imobilidade daquele homem aterrava . Dir-se-ia
um morto, se o olhar febril não se prolongasse em to-
das as direções, como à procura de qualquer cousa no
espaço .
Era ele o paisagista .
Como viera alí parar ?
De onde viera ?
Quem era ele ?
Ninguem sabia .
Recordavam-se apenas de que havia alguns anos
alí chegára, acompanhado por um criado e se instalára
na casinha do morro .
Recordavam que, nos primeiros tempos, de manhã ,
viam-no descer da montanha, embrenhar-se na restin-
ga, com a sua caixa de tintas . Lá ficava horas e ho-
ras e voltava ao entardecer . Isto mesmo, já havia
muito não fazia . Conservava-se lá em cima .
Adoecera . Vieram buscá-lo em uma rede .
E na casa do Comendador Pinto Moreira, que era
amigo e visinho de meu pai , morria ele pouco depois .
O Comendador ficou seu herdeiro . Numa mala encon-
traram-se roupas finíssimas de mulher e de uma crian-
ça . Envolta cuidadosamente como uma relíquia,
achou-se uma boneca .
Entre os quadros havia um retrato de homem .
No ângulo desta tela primorosa, um escudo de
Visconde, em cujo centro se entrelaçavam um De um
C. Esse retrato era de grande semelhança com o pai-
sagista .
Pelos papeis se veio a saber que era o Visconde de
Canto .
- 41
Foi o primeiro paisagista de real merecimento que
para a tela transportou com grande fidelidade e poesia
paisagens fluminenses .
Foi ele quem me deu as primeiras lições de dese-
nho . Quando, do jardim da casa de meu pai o via sen-
tado na porta do seu quarto, onde cedo batia o sol, ia
pedir-lhe conselhos . Isto durou alguns meses . Acom-
panhei-o depois durante a sua longa agonia .
Vi-o extinguir-se lentamente, como último clarão
do sol a sumir-se na linha interminavel do horizonte
equatoriano .
ESTE VÃO
Esse de quem fui amigo inseparavel era um negro
alto, forte, corajoso e bom .
O diamante negro, chamava-lhe Artur de Azevedo .
Estevão, foi quasi que exclusivamente um pintor
de "Natureza Morta" e de retratos .
As frutas, os pássaros, os animais, as porcelanas ,
os metais pintados por Estevão Silva, ainda hoje que
a arte tanto evoluiu, podem ser assinados por qualquer
mestre neste gênero de pintura, quer aquí, quer no es-
trangeiro .
Os quadros desse meu saudoso colega são raros
hoje .
Entretanto, ele foi de grande operosidade .
Muito pouco se pode dizer da " Natureza Morta " .
Tudo quanto há nela a notar é : extrema seme-
lhança com o modelo, boa execução e bom colorido .
Os elementos de que são compostos esses traba-
lhos são pouco variados, de modo que entre eles pouca
diferença pode haver . A composição é facil ; limita-se
ao agrupamento de objetos de forma e cor diferentes,
de modo a se obter uma linha geral agradavel .
Nesse gênero de pintura, mais forte do que foi
Estevão Silva, só conheço Pedro Alexandrino, o velho
pintor paulista, o caipira que vinte anos de París, não
conseguiram modificar .
Esta superioridade de Alexandrino não provêm
da circunstância de ser este mais talentoso do que Es-
tevão, e sim da diferença do meio em que viveram .
Alexandrino passou anos em París e conviveu com os
mestres de " Natureza Morta", ao passo que Estevão
daquí nunca saiu .
Pedro Alexandrino teve por muitos anos a prote-
ção oficial e Estevão nunca a teve .
44
Nos retratos , Estevão teve ocasião de fazer tra-
balhos bem regulares e teria feito bons se não o obri-
gassem a copiar fotografias .
Aproveito a oportunidade, já que estou a falar
desses retratos , para contar a história de um deles .
Não é de todo despida de espírito .
Um comendador encomendou a Estevão um retra-
to .
Era para a galeria dos irmãos beneméritos de uma
dessas irmandades que abundam em nossa terra .
Sentado em uma cadeira, enfiado numa berrante
opa encarnada , o comendador, que era dono de um ho-
telsinho do Mercado, se fez retratar por um fotógrafo .
Não houve meio de convencê-lo de que um retrato
feito por uma fotografia nada mais é do que a foto-
grafia ampliada e colorida, e que como obra de arte
não tem valor algum .
Positivamente negou-se a servir de modelo .
Ficou pronto o retrato . Foi exposto na rua do Ou-
vidor, na galeria Moncada , onde à tarde se reuniam os
artistas . E' claro que foi alvo de muita frase engra-
çada, e de acerba crítica . Estevão, porém, não se zan-
gava . Ria-se . Não era como são hoje os moços que
principiam a vida artística, exigentes e mestres desde
o dia que pegam em um " fusain ".
Um dos presentes achou que o comendador tinha
o nariz muito vermelho . Parecia um cajú .
Que novidade ! Pois eu não sou um pintor de
frutas ? retorquiu Estevão rindo, deixando ver os
esplêndidos dentes a se destacarem no carmesin da
boca .
- Silêncio, silêncio - segredou um colega .
Atraz, de braços cruzados , estava a contemplar o
retrato o benemérito comendador .
Tinha ouvido tudo .
Quando Estevão lhe foi levar no Mercado o retra-
to, recusou-o . Escrevendo-lhe Estevão, o comendador
respondeu :
"Não fico com o retrato . Minha cara não é
taboleiro de frutas . Ninguem, vendo o judas que
o senhor pintou , dirá que é este seu criado .
Comendador Z" ".
45
Nós, que esperávamos o pagamento para jantar
no "Renaissance ", ficamos furiosos .
Fiquem tranquilos . Não comam hoje e ama-
nhã darei a vocês um banquete .
E deixando-nos , lá foi Estevão para o “ atelier ” .
No dia seguinte, lá estavam no Moncada o retrato .
A loja estava cheia . Todos riam .
Estevão tinha acrescentado na testa do comenda-
dor, dois chifres e, saindo por baixo da cadeira, um
grande rabo .
Num pedaço de papelão, pregado na moldura , lia-
se: "Retrato do Diabo ".
Foi o artista chamado à polícia .
Exibindo, porém, a carta do Comendador,
mandado foi
em paz .
Então, Estevão ?!
O retrato continúa exposto .
Não comam hoje . Amanhã eu darei a vocês dois
banquetes
.
Dois dias depois , o retrato desapareceu, para tor-
nar passadas vinte e quatro horas .
Via-se o comendador atravez das grades de uma
prisão .
O 'cartaz havia sido substituido por outro assim
0 diabo preso por não pagar a Estevão Silva .
Realizou-se o grande banquete no Hotel do Globo .
O comendador pagou finalmente .
Enfurecido, porém, despedaçou a tela .
Vou processá-lo ! gritava Estevão .
Mas ele pagou o teu trabalho .
desapa
rec
Sim,
er omas
melhsacrificou a arte nacional, fazendo
or cajú que eu tenho pintado .
te . Esta brincadeira de Estevão prejudicou -o bastan-
Os retratos escassearam .
Ficou limitado às "Naturezas Mortas ".
pássaDe uma caçada que fizemos juntos, aproveitou os
ros e os ani
temo mai de pelo , que perversam aba-
s . Fez um magns ente
ífico quadro .
celâ
nAnimado,
ea, na qualogo após , pôs mão a uma grande mis-
velu l havia um vaso e um longo pedaço de
do bor , a d mirav pintad .
dado elmen os
te
46
Tudo, entretanto, fora feito de uma só vez, a lar-
gas pinceladas . Onde parará esta obra do malogrado
artista fluminense ? Esse trabalho foi executado jus-
tamente por ocasião de realizar-se um concurso na Aca-
demia, da qual Estevão era aluno .
Para felicidade dele, o tema escolhido era uma
miscelânea composta de panejamentos e metais .
Não podia pois haver dúvida . Estevão seria o vi-
torioso .
Era esta a previsão de todos .
O trabalho de Estevão era o melhor e assim reco-
nheceram em unanimidade os seus colegas .
Foi com a mais absoluta confiança que Estevão
esperou o dia da distribuição de prêmios, certo de que
seria dele o maior .
Essa solenidade era presidida por Pedro II .
Realizava-se num grande salão onde, em uma es-
pécie de palanque, se sentava em uma rica cadeira o
Imperador, rodeado pela congregação .
O salão em geral ficava repleto .
Os alunos tinham nele um lugar determinado .
Depois do agradecimento do diretor ao Impera-
dor, pela sua presença, começava a chamada dos alu-
nos que iam ser premiados .
Estávamos convencidos de que o primeiro prêmio
seria conferido a Estevão Silva .
Ele, trêmulo, comovido, esperava . Mas foi outro
o distinguido pela congregação .
Estevão ficou como aniquilado . A sua cabeça
pendeu, seus olhos se encheram de lágrimas .
Recuou, e foi ficar atráz de todos .
famos nos revoltar .
Silêncio ! eu sei o que devo fazer .
Tão imperiosamente foram ditas estas palavras,
por aquele homem que chorava, que obedecemos .
Um por um, foram sendo chamados outros pre-
miados .
Finalmente, o nome de Estevão Silva ecoou na
sala .
Calmo, passou entre nós . A passos lentos atraves-
sou o salão . Aproximou-se do estrado onde estava
Imperador .
Depois, belo oh ! muito belo - aquele negro er-
gueu arrogantemente a cabeça, e forte gritou :
- Recuso ! ......
DRIENDL
Esse era encarnado, como dizem que o diabo é.
Andava sempre à disparada .
Parecia constantemente zangado .
Era um bom pintor, e foi um bom artista !
Nós nos detestávamos .
Nascera essa mútua aversão de uma violentíssima
troca de palavras entre nós dois .
Não podia evitar, entretanto, o contacto quasi
diário com aquele homem áspero, cortante como a con-
cha de uma ostra . Era o amigo inseparavel do meu
professor e quem o substituia, quando havia algum
impedimento .
Ao entardecer de um horrivel dia de verão, Grimm
e seus discípulos estavam reunidos no alto da Boa
Viagem, onde a brisa do mar amenisava um pouco a
temperatura .
Conversávamos, é inutil dizê-lo, sobre arte, quan-
do, depois de ter aos pulos galgado a imensa escadaria,
lá apareceu Driendl.
Estava cor de fogo, apoplético, banhado em suor .
Os olhos injetados pareciam duas brazas ; brilha-
vam sob as espessas sobrancelhas vermelhas que se
franjavam abundantemente sobre eles .
Tomando a palavra de Grimm, começou Driendl a
falar sobre arte em geral .
A viração tinha cessado . O mar sem uma ruga
dava a impressão de uma placa de ferro em braza, re-
fletindo o ceu que parecia um vulcão .
O calor que abrazava, fazia-lhe um mal horrivel .
Irritava-o de um modo cruel .
- Isto não é terra para gente, é pior do que o Se-
—
negal . Aquí só pode mesmo viver o brasileiro . E de
novo continuava a preleção .
Do terreno universal, passou para o da arte re-
gional .
- 48
A nossa, para ele, ainda não existia . Nem um só
artista de valor achava que se pudesse encontrar no
: Brasil .
O mesmo acontecia com os outros paises, menos
com a Alemanha .
Falando, cada vez mais iritado, não atendia a que
alí estavam reunidos um português , um hespanhol ,
dois brasileiros e dois alemães .
Debalde Grimm procurava atenuar os seus insul-
tos, com palavras generosas para as outras nações .
Ele não atendia . Cada vez mais ia se deixando levar
pela fúria, chegando a um ponto tal que não me pude
conter . Explodí .
- Olha, lhe disse ― apontando a barra, onde já
fracamente brilhava o farol da Rasa - E' larga
por ela entraste empurrado pela necessidade, por ela
poderás sair ; ninguem te impedirá . Será um espolia-
dor de menos , e menos um ingrato que teremos que
suportar . Volta ao teu país, que aquí ninguem dará
por isto .
Espumando, olhos a saltarem da cara, mãos cris-
padas, ia se atirar sobre mim e o teria feito se Grimm
não se interpusesse entre nós dois .
Desde aquela tarde jamáis nos falamos .
Ao vê-lo, retirava-me da aula, mesmo quando subs-
tituia Grimm .
Uma manhã, na base esburacada da montanha
que divide a praia da " Boa Viagem" da praia " Verme-
lha ", pintava um "estudo " quando sem o perceber ele
estava perto de mim . Grimm adoecera .
Pousei a paleta sobre a tripeça . Antes , porém , que
pudesse impedí-lo ele a empunhou e pegou nos pincéis .
De um jato transformou o " estudo " .
De braço cruzado, assistia a metamorfose opera-
da pelo pincel daquele satanaz .
Acabando, voltou-se e com horrivel expressão de
despreso, e ao mesmo tempo de orgulho descomedido .
- Nunca assim pintarás .
Veremos . Dá tempo ao tempo .
E antes que ele me pudesse impedir, com a raspa-
deira despedacei a tela que rolou por terra .
49
De vermelho de fogo que ele era, ficou branco, lí-
vido .
Do canto da boca caia-lhe uma espuma esbranqui-
çada .
Eu já tinha posto o pé sobre a tela e atirado para
longe a caixa e a tripeça . Empunhava a recurva e
afiada raspadeira .
Passou-se um minuto, longo como um século .
Mediu o perigo, via reluzir na minha mão a arma
pronta a ferir .
Afastou-se . Galgou o rochedo . Desapareceu para
os lados do mar .
Passaram-se anos .
Grimm morrera .
Os seus discípulos dispersaram-se ...
Em Niterói só ficamos nós dois .
Ao amanhecer de um dia tempestuoso, na cavida-
de de uma furna, estudava ondas revoltas, bravias, que
com fragor vinham despedaçar-se de encontro às ro-
chas .
Sentia-me vencido, aniquilado .
Não achava no meu "estudo" a transparência
chamalotada daquela agua esverdeada, em convulsões,
que altaneira se erguia, formava montanhas, trans-
formava-se em planícies brancas e de novo se precipi-
tava para se desfazer em espuma .
Tudo no meu quadro era opaco, parado, morto .
Desanimado, havia atirado a tela para um lado,
abandonando os pincéis e num estado horrivel de ner-
vos perscrutava aquele mar esplêndido, do qual nem
uma só vaga tinha podido fazer.
A visão daquele conjunto soberbo, movimentado,
tenebroso, foi interceptada por uma agigantada som-
bra que se projetou no fundo plano e arenoso da gruta .
Logo após um homem surgia na entrada .
Era ele . O Satanaz !
Vendo-me, estacou .
O meu quadro de onde estava podia ser por ele
bem observado .
Isto torturava-me .
50 -
"Nunca assim pintarás ", segredava-me o passado
- e alí, ante seus olhos , ele tinha
um quadro onde
me parecia ter justificado a sua profecia .
Ele continuava a olhar a tela de longe . Depois
pegou-a nas mãos e estudou a feitura .
-Se Grimm fosse vivo, ele ficaria orgulhoso de
tí .
E tú?
Num gesto fraternal, abraçou-me .
APRENDIZAGEM
Quando me matriculei na aula de paisagem, já lá
estavam Vasquez, Caron, Ribeiro, França Júnior .
Infelizmente, um ano e oito meses depois termi-
nava Grimm o seu contrato e , não querendo a congre-
gação da Academia abrir concurso, retirou-se, e para
substituí-lo nomearam Firmino Monteiro, que pintava
tanto como os alunos de Grimm .
Este, acompanhado por todos os seus discípulos ,
retirou-se para São Domingos de Niterói , onde conti-
nuou a lecionar .
Foi alí que fiz o meu primeiro estudo a óleo .
Quando o terminei, fiquei encantado . !
Andei a mostrá-lo por toda a vizinhança !
Representava a " obra-prima " um casebre velho e
um muro ainda mais velho do qual saia um tronco de
imbaiba, que conduzia agua a um tanque .
Um dos meus vizinhos, quando lhe mostrei o " es-
tudo ", ficou embevecido . Recuava, aproximava-se ; ia
para a direita, vinha para a esquerda .
Afinal, estendendo-me a mão:
"Sim, senhor, é magnífico este naufrágio ! ...
Aquele homem sintetisava perfeitamente o públi-
co daquele tempo .
Os discípulos de Grimm eram pobres .
Somente França Júnior dispunha de grandes re-
cursos .
Quando, pois, os últimos retalhos de tela, os últi-
mos tubos de tinta fornecidos pela Academia se acaba-
ram, ficamos sem poder trabalhar .
Da herança paterna nada mais me restava . A úl-
tima casa havia vendido para poder estudar . Eram pois
52 -
minhas condições em tudo idênticas às dos meus cole-
gas, sinão piores, pois tinha família a sustentar .
Filho de um homem abastado, a minha primeira
infância fora cheia de conforto . Mesmo assim, a vida
de lutas, de privações que começava, não me atemori-
zou .
Iniciada que seja a vida artística, dificilmente po-
demos deixál-a .
Anos tive de tormentos . Cheguei à extrema mi-
séria, mas a tudo resistí .
...
velho
"
p
-"o m
casebre
u rima
abra
Representav a
RETRATO
Acossados pela necessidade, fomos obrigados
vender uns poucos de "estudos " .
Sobraçando alguns, Vasquez, o mais expedito de
todos nós, partiu para o Rio .
Anciosos, agrupados como náufragos sobre os ro-
chedos da Boa Viagem, passamos o dia a esperar .
Si ele fosse feliz, abundaria o material .
Mas quantas vezes um de nós já não havia voltado
sem nada ?
Então, sombrío nos parecia o mar batido de luz,
tenebroso o céu azul ...
Não desanimávamos entretanto ; e ao romper do
dia partíamos . No areal em fogo da restinga, desenhá-
vamos, já que, por não haver tinta, era impossivel pin-
tar .
Para maior desgraça, Grimm, que ignorava tão
angustiosa situação, resolveu partir para Teresópolis ,
onde daria as últimas lições .
Transformou-se então a pequenina “ república" em
fábrica de molduras ...
Emoldurados os "estudos ", cada um de nós pro-
curou vender os seus .
Os colegas mais fortes, conseguiram colocar al-
guns .
Os meus ninguem os queria . Eram simples "ten-
tativas " de cantos de praia, de uma nesga de mar, de
uma arruinada cabana, um velho barco . Eram máus ;
todavia, um pouco melhores do que os cromos que en-
riqueciam rapidamente o Vieitas .
Chegou finalmente o dia da partida dos meus co-
legas e do mestre para Teresópolis .
Em pé, no cais , vi-os partir .
Ao voltar para casa, atravessando a restinga, a luz
dos pirilampos me pareceu mais pálida, os gemidos do
54 -
mar, ecoando nas dunas, mais profundos ... Sentia-me
aniquilado .
Passaram-se dias de cruel expectativa .
Na "Glace Elegante " continuavam expostos os
meus "estudos " .
Ia diariamente vê-los . Lá estavam sempre, sacri-
ficados à luz forte da rua, cheios de reflexos , dentro
das pobres molduras .
Finalmente, um milionário pediu-me que os levasse
todos ao seu palacete em Botafogo para escolher al-
guns .
Fiz como a formiga : fui carregando um a um...
No fim do dia lá estavam todos eles, em um bote-
quim que ficava ao lado do palacete . Eu , porém, tinha
os braços magoados, as pernas fatigadas , pois não sei
quantas vezes fui a pé da rua do Ouvidor até Botafo-
go . Mas que fazer, si não tinha um real ? ! ...
Chegando ao luxuoso palacete encontrei o milio-
nário estirado em um divan .
Estava furioso ! Eu o havia feito esperar, perder
tempo ! ...
Ao seu lado, como uma cadela de raça estirada no
tapete, uma encantadora mulher .
Finíssimo "peignoir " de tecido transparente a en-
volvia tão mal, que se via a camisa rendada e o tom ro-
sado dos seios duros .
Nos dedos brancos e longos estrelejavam anéis .
Uma só das pedras que neles faiscavam pouparia
aos discípulos de Grimm anos de lutas .
Deixaram-me, indiferentes, alinhar os meus qua-
drinhos no chão, contra os pés das cadeiras .
O espalhafatoso ambiente ofuscava, esmagava as
minhas paisagens, que pareciam então lavadas aqua-
relas ...
Lutavam com todo aquele disparate de tons vio-
lentos .
Esmaeciam pelo ouro brilhante do teto, das sane-
fas, dos moveis, dos espelhos a multiplicarem infini-
tamente aquele bazar ...
Ela, depois de muito desdenhar, e de dizer tolices,
escolheu alguns quadros .
Deram-me por seis, trezentos mil réis .
Como recusar ? Deixei-me roubar por aquele mi-
lionário .
Pensava nos meus colegas .
55
Via-os lá, nas florestas a receberem as últimas li-
ções do habilíssimo professor .
Pagaram-me .
Ás tontas procurei, através dos aposentos, a sali-
nha onde havia deixado o meu chapéu .
Ao enterrá-lo na cabeça, casualmente me ví, pela
primeira vez, retratado em tamanho natural ...
Tinha 22 anos . Espontava-me a barba . Os cabe-
los emaranhados e anelados surgiam sob as amplas
abas do chapéu surrado .
A gravata, atada em pontas desiguais, espargia-
se sobre o peito da camisa grosseira .
O paletó, já de tão velho, modelava-se rigorosa-
mente sobre o corpo . As calças , ao contrário, apresen-
tavam a protuberância de enormes joelheiras .
Os sapatos espessos, deformados .
Essa figura assim exótica, assim pobremente ves-
tida, aparecia enquadrada no ouro ofuscante da riquís-
sima moldura do colossal espelho !
Fitei longamente os meus olhos , nos meus olhos ...
Via-me por dentro ...
Alma embalada pelos meus sonhos de artista , e a
rir e a cantar, saí .
Um raio de sol, no ocaso , batia em cheio na fa-
chada .
O palacete parecia todo de ouro ...
Alguns dias depois , reunia-me aos colegas no meio
da serra de Teresópolis .
Alí morava o caçador Palma, mateiro famoso .
Desde as margens pedregosas do " Soberbo " até
em cima da " Vargem ", desde o " Socavão " até a serra
do "Pilar ", não havia palmo de floresta que ele não
conhecesse, rio ou cascata em cuja nascente não tivesse
saciado a sede .
Deu-lhe o proprietário a guardar a velha casa on-
de então se hospedavam os discípulos de Grimm e on-
de mais tarde tanto tempo viví .
O velho casarão ficava à margem da estrada .
A floresta vinha sombrear-lhe o limoso teto .
56 -
A base de granito do " Dedo de Deus " servia-lhe
de alicerce .
Foi alí naquelas florestas silenciosas, quasi ma-
tas virgens, que recebí as últimas lições de Grimm.
De regresso ao Rio, separaram-se os seus discí-
pulos .
Nunca mais se deviam reunir...
Em pé no cáis, vi- os partir ...
...
pirilampos
l
,à
a uz
dos
r estinga
travessando
casa
para
voltar
Ao
TAREFA PENOS A
Fiquei só .
Não desanimei .
O isolamento é propício ao trabalho .
Comecei a dedicar-me a pequenos quadros de pai-
sagens .
Um "estudo " de bananeiras exposto, chamou a
atenção de um botânico inglês .
Propôs-me trabalhar para ele . Consistia esse tra-
balho na reprodução exata das árvores características
do Brasil .
Bananeiras ! Eu as pintei dezenas, de todas as ma-
neiras, em grupos, isoladas, novas, velhas, e tanto as
fiz que hoje, ao vê-las, uma porta se abre para o meu
passado ...
Vejo-me a pintá-las, como um escravo a quem se
dera rude tarefa .
Tornou-se para mim o verde luminoso e terno das
bananeiras um verde nostálgico ... Algo de sinistro
encontro no farfalhar das suas golpeadas e largas fo-
lhas ...
A noite, vendo-as paradas, hirtas destacando-se no
céu, delas desvio o olhar .
Anos depois, em Londres, visitando um museu,
tornei a vê-las ; largas folhas farfalhantes destacan-
do-se no fundo liso cinzento da tela envelhecida .
EXTREMA BONDADE
Não sem luta e sacrifícios conseguí reunir alguns
quadros e " estudos " e realizar uma exposição .
Pinto Moreira, então chefe de uma grande casa
comercial, obrigou-me a ir convidar o Imperador para
vêr os meus trabalhos . Relutei .
Mas, insistindo Pinto Moreira, fui obrigado a sa-
tisfazê-lo .
Subí com grande emoção a larga escadaria do Pa-
lácio da Boa Vista .
Penetrei no longo e estreito salão das audiências .
Estava repleto .
Não encontrei o sumptuoso Palácio que imaginava .
Umas pobres , frias e interminaveis galerias onde,
nas janelas, as cortinas se desfaziam de velhas .
Os moveis usados , despolidos, comuns, burgueses .
As librés dos criados, surradas .
Haviam-me descrito a extrema modestia de Pedro
II, o seu soberano despreso pelo luxo . Sabia que tudo
de que dispunha era para dar aos necessitados .
Mas isto não me parecia suficiente para justificar
a extrema pobresa daquele arruinado palácio, abando-
nado no meio de um parque imenso, invadido pelo ma-
to e pelas ortigas, tracejado por esburacadas alamedas ,
por onde, às vezes , o dourado e velho coche imperial,
conduzindo o Imperador, passava aos solavancos, como
um carro de bois .
Meu pai idolatrava-o .
Foi, pois , sem a menor relutância e com profundo
e sincero respeito que lhe beijei a mão .
"Majestade Perdão pela ousadia . Venho soli-
citar a honra de uma visita à minha exposição de pin-
tura" .
Sorrindo, tirou do bolso um papel . Lí : Exposição
Parreiras, sexta-feira - 6 de Junho de 1886 .
Fiquei sem saber o que dizer .
60 -
Curvei-me e beijei-lhe a mão .
Ao erguer-me, os seus olhos de uma doçura imen-
sa fitaram-se nos meus que estavam cheios dágua ...
No dia seguinte, apesar do horrivel tempo que fa-
zia, o Imperador visitou a exposição .
Durou duas horas a visita .
Ao sair, centenas de pessoas que enchiam a rua do
Ouvidor delirantemente o aclamaram até que o doura-
do carro desapareceu . E a República estava tão perto !
Do cérebro esclarecido de Benjamin Constant, ela
insuflara-se na alma magoada de Deodoro, e dentro em
pouco se aninharia na do povo e para sempre .
Logo que o Imperador partiu, a multidão, que até
então passava durante tantos dias indiferente pela
porta da exposição, invadiu-a .
O tapete da escada ficou em frangalhos ! Os qua-
dros cobertos de pó, foram todos adquiridos ! Que enor-
me prestígio tinha Pedro II ...
A sua presença na minha exposição, quando ape-
nas era encetada a minha carreira artística, foi uma
excessiva bondade de que nunca me esquecí .
Não me deixei, porém, iludir pela aceitação que
começaram a ter os meus quadros, pela facilidade que
achava em colocá-los .
Continuei a trabalhar com a mesma perseverança,
o mesmo amor e a mesma sinceridade .
Continuei a habitar a mesma casinha da restinga .
E é sempre com saudades que dela me lembro . Ela lá
está, não cercada de retorcidos cajueiros, nem rodeada
do branco areal que a fazia parecer um oasis, mas de
ricas casas que mais pequenina, mais humilde a tor-
nam .
Era dela, que, ao romper da aurora, eu saia, mo-
chila às costas, tela à mão , cigarro á boca, ébrio de en-
tusiasmo juvenil, cheio de vida, de ilusões, de sonhos
que se desfizeram, como os desenhos que traçava na
areia da extensa praia, a qual palmilhava todos os dias,
de um extremo ao outro .
E' que, naquele tempo, diante de mim, se ampliava
o porvir. Longe ainda estava o fim que "helás ! " já an-
tevejo perto, sem que tenha realizado o que no passado
anteví .
Dentro daquela casinha perdida, oculta no meio
das dunas, dos cardos, das pitangueiras, rodeada de far-
falhantes coqueiros , perfumados cajueiros , sentia a vi-
61
da não tal qual ela era, mas como me parecia ou dese-
java que ela fosse .
Não tinha estas noites de angustiosas insônias,
estas eternas lutas, entre estas quatro paredes deste
enorme "atelier " iluminado frouxamente pela luz pá-
lida do sol de París , onde me debato cada vez mais na
ânsia crescente de atingir o ideal .
Contentava-me naqueles tempos com os pequenos
quadros ; um barco velho à sombra de um curvado in-
gazeiro, um caminho que subindo, coleando se perdia
lá em cima na "massa" escura de um tamarineiro . E
hoje ?! Luta eterna, cruel, tortura-me dia e noite . De-
vora-me a desenfreada sede de perfeição inexcedivel,
nas amplas composições de vastas telas .
E, dia e noite, obcecado neste pensamento, tortu-
rado, algemado, exausto, sou condenado a lutar, e a luta
vai se prolongando eternamente .
.saia
e,aurora
daromper
au
queo
dela
Era
Contentava -me naqueles tempos com os pequenos
quadros ...
TRABALHAR PARA PODER TRABALHAR
Sempre que fazia uma exposição, insistia a im-
prensa na minha partida para a Europa . Nada melhor
me podia desejar .
Mas, como realizar essa viagem?
Mal ganhava para viver modestissimamente .
Fui, a conselho de amigos, bater às portas da As-
sembléia da ex-Província do Rio de Janeiro .
Pedí uma pensão de duzentos mil réis mensais, du-
rante dois anos para ir aperfeiçoar-me na Europa . Para
pagar esta pensão comprometia-me a lecionar desenho
durante três anos gratuitamente, em qualquer escola
da Província .
Nada obtendo, fui procurar o comendador Mafra,
secretário da Academia de Belas Artes, o homem a quem
tanto devem os artistas nacionais e a Arte brasileira .
- "A imprensa tem razão ; você precisa partir
quanto antes para a Europa " . — "Faça um quadro e
sujeite-o ao julgamento da Academia ” .
Seguí o conselho .
Pintei o quadro Expuz .
A imprensa o recebeu bem e obtive, do julgamen-
to a que o sujeitei na Academia, bom acolhimento .
Era Presidente do Conselho, o Barão de Cotegipe
que, apesar das imposições que lhe queriam fazer para
que de preferência adquirisse os quadros do pintor X,
ordenou a aquisição do meu trabalho por três contos
de réis .
Enviei imediatamente para a Itália a importância
recebida, sem retirar dela um ceitil .
Assim, ia gastar, com tintas e pincéis, o que com
tintas e pincéis havia ganho . Aliás, é o que continuo a
fazer até hoje .
Por isso, tenho podido trabalhar cercado de todos
os meios necessários, sem ter tido necessidade de ser
pensionista do Estado .
64
Aí está o segredo de haver podido produzir tanto
e feito uma vida genuinamente artística e de ter ganho
tanto dinheiro e ser pobre .
Facil me seria acumular capitais . Bastaria limitar
a minha produção a pequenos quadros de paisagem, de
assuntos locais e ao sabor do público . Para trabalho
desse gênero, não se precisa de modelos, de costumes,
de “ atelier ” em París . Com poucas tintas e pincéis,
comodamente os pintaria no meu "atelier" em S. Do-
mingos . Para colocá-los nenhuma dificuldade teria.
Mas não me fiz artista para ganhar dinheiro . Com
o hábito que tenho de trabalhar sem repouso e com
perseverança, com o horror que me causa o luxo e com
o despreso pelos gozos materiais, em pouco tempo, em
qualquer outra profissão, seria rico . Fazendo-me ar-
tista eu bem sabia que sacrificava o homem ; isto, po-
rém, não me fez jamais vacilar .
Tornei-me de uma extrema intransigência para
comigo mesmo, sem jamais desviar a minha produção
para o lado comercial.
Nunca sacrifiquei os meus ideais de Arte copian-
do fotografias de comendadores, ou decorando paredes
de casas de burguezes enriquecidos .
Nunca pintei sinão o que quiz pintar .
Este proceder proporcionou-me uma absoluta in-
dependência .
Trabalho para poder trabalhar ; e, como nada mais
ambiciono, julgo-me um homem feliz .
E como não pensar assim, si pude gozar de todas
as delícias, de todas as imensas alegrias de uma vida
de artista, em meios amplos de arte, sempre cheio de
ilusões e de sonhos ?
Que mais desejar ? Que maior riquesa do que esta
de, já velho, ter ainda a alma cheia de mocidade, e li-
vre da descrença, do desânimo, da raiva, do ódio, da in-
veja, do inverno, enfim ?...
O BARÃO DE COTEGIPE
Não devo , nem posso, sem incorrer em bem cen-
suravel ingratidão , limitar-me aquelas únicas palavras
com que me referí ao proceder do Barão de Cotegipe
para comigo. Si não fôra ele , talvez não tivesse partido
para a Europa .
O pintor X era amparado pela proteção imperial,
enquanto eu apenas tinha para recomendar-me
simples quadro .
Havendo obtido, como já disse, bom julgamento do
juri ao qual fora submetido o meu trabalho apenas
precisava, para ser adquirido, da aprovação do minis-
tro que era o Barão de Cotegipe .
Este, porém, havia recebido do governo imperial
fortes recomendações para, de preferência, adquirir os
quadros do pintor X que, sabedor do meu desejo , havia
mandado com os seus quadros, um memorial em que
desapiedadamente me deprimia, negando valor à minha
produção, comparada com as dele ; e para que mais ter-
rivel ainda fosse o golpe, atacava-me em pequenos ar-
tigos pela imprensa .
Por muitos dias lutei sem resultado, e acabei ou-
vindo de Mafra, que não devia ter mais esperanças
os quadros de X tinham já entrado para a Academia .
Porém nunca me deixei vencer : quanto mais
me ferem, tanto mais resistência ofereço .
Uma manhã dirigi-me à casa do Barão de Cotegi-
pe, no Catete . Era muito cedo ; ele, de chambre e chi-
nelos , passeiava no jardim .
Vendo-me, mandou o jardineiro abrir o portão e
levar-me à sua presença .
Contei-lhe tudo .
"Procure-me hoje na Secretaria às 11 horas " .
Ao entrar, acompanhei-o até o gabinete, e o ouví
pedir os papéis da Academia, que examinou detidamen-
te, um por um.
- 66
Não lhe perdia um gesto, um olhar . Afinal, erguen-
do na mão o meu requerimento, perguntou : - E' este
o seu papel?
Sim, senhor .
Mandou chamar o secretário ; escreveu com lapis
azul algumas palavras à margem do requerimento e o
entregou ao empregado .
Este, passando os olhos por ele, aproximou-se bem
da mesa e disse-lhe .
Mas há, antes deste, os quadros do sr . X a se-
rem adquiridos .
-
Que se cumpra já este despacho, disse o Barão,
de um modo tão imperativo que o secretário, rodando
sobre os pés, deixou rápido o gabinete .
Depois , dirigindo-se a mim com tom de voz muito
diferente :
Deferí o seu requerimento .
Quiz agradecer-lhe e ele me interrompeu :
Não lhe fiz . favor algum, e estendendo-me a
mão : estude e seja feliz . Boa viagem .
Num pulo, cheguei à Academia .
-Deferido ! Sr. Mafra, deferido !
Impossivel, você está doido ?
Sim, doido de alegria ; eu li o despacho ; ele aí
vem .
Conte-me isto . Como foi ?
Contei tudo .
Você sabe lutar meu rapaz .
- Quando, sr . Mafra, tenha a justiça de meu lado .
E, durante a vida inteira, quando procurava colo-
car um trabalho, realizar uma exposição, caminhar, se-
guir, tive sempre um obstáculo a vencer, - - X, emba-
raçava-me sempre, mas foi sempre vencido . Só me de-
fendí com uma arma, o trabalho .
ILUSÃO DESFEITA
Como disse anteriormente, fora pela Academia
adquirido o meu quadro " A Tarde " pela importância
de três contos de réis . A congregação era de opinião
que se me pagasse pelo meu trabalho o dobro desta im-
portância . Zeferino da Costa, porém, a isto se opôs te-
nazmente .
Singular procedimento de um homem que havia
vivido na Itália cerca de dez anos à custa da Nação,
que tivera por diversas vezes auxílio pecuniário dado
por ela e que até morrer jamais pôde dispensar o au-
xílio oficial ! ...
Facil é pois imaginar as apreensões que antece-
deram os preparativos de tão longa viagem e em situa-
ção tão precária .
Essa escassez de recursos a que me ia impôr o
egoista procedimento de Zeferino da Costa, me propor-
cionou na Europa uma vida cheia de privações . Era,
entretanto, indispensavel esta viagem.
Acenavam-me com tantas vantagens , que me sen-
tia deslumprado .
Mas fiz bem em realizá-la . A ilusão desfez-se .
Além disto, se ficasse no Brasil , mesmo que me
fosse possivel produzir " obras primas ", estas nunca
seriam assim julgadas por lhes faltar as lições dos
mestres estrangeiros ...
Só é bom o que vem de fóra. Só é bom o rapé via-
jado ... E eu fiz bem em viajar .
Na Itália, na Hespanha, na França, o que vi não
impôs radicais modificações no meu modo de pintar .
Os gigantes que do Brasil me diziam existir, ven-
do-os de perto muito diminuiram de grandesa ...
Essas telas de Harpignies, de Corot, de Courbet na
realidade possuem maior fama do que valor . Poucos
Pedro Américo e Vitor Meireles encontrei na Europa ...
•
CABO FRIO
Antes, porém, de deixar o Brasil, quiz primeiro
realizar uma exposição .
Para não perder tempo em caminhadas longas , sa-
bendo que Arraial de Cabo Frio era um local lindís-
simo, para lá fui .
O arraial compunha-se apenas de algumas chou-
panas de sapé, uma taverna e uma velha Igreja, cujo
sino emudecera há muito .
Hospedei-me em uma cabana de pescador .
Sempre tive preferência por elas .
Dentro daquele casebre de taipa e de sapé, onde re-
boava incessantemente a voz rouca do mar, dormia
tranquilo, certo de que, no interior, a simples criatura,
o anjo tutelar daquele rústico abrigo, não indagava ao
ouvido do marido, quando o incômodo hospede se iria ;
mas apenas concertava projetos para o tratar melhor .
E as crianças ? Agarravam-se a mim logo, como a
um velho amigo , e grupadas em redor, ouviam atentas
o velho pescador de cabelos brancos, de olhos sumidos.
em círculo de convergentes rugas, contar a triste his-
tória de todos aqueles barcos, cujas carcassas marcam,
como o emaranhado das suas ferragens , as brancas du-
nas da imensa " Marambaia " ...
Medonhas, tétricas são as noites no arraial .
O mar é sempre estrepitoso .
O seu vozear eterno parece composto de gritos
roucos, prolongados gemidos, trovões no infinito ...
A pequena população não tem outro divertimento,
outra visão que não seja aquele mar sempre convul-
sionado, sempre enraivecido, sempre varrido impetuo-
samente pelo Sudoeste em loucas correrias .
-- 70
Naquele descampado de fôfa areia branca, move-
diça ao sopro rijo do Norte, os pescadores caminham
sem ruido .
Ante aquele céu , quasi sempre tempestuoso , cheio
de pesadas nuvens fugitivas com raros rasgos de azul
• profundo, torna-se a alma presaga...
Planta-se no íntimo dela eterna dôr, saudade infin-
da ...
Sómente à tarde, quando as embarcações voltam,
há na extensa e curva praia algum movimento, algum
vislumbre de vida .
Chegam velas cheias de vento e de luz, mas sem as
alegres cantilenas langorosas das outras praias ...
Entretanto, no amplo bojo das chalupas, reluzem
escamas de prata, debate-se enorme cardume ...
E elas se aproximam docemente, vagarosamente,
silenciosamente ..
A última vaga levanta-as pela pôpa e a prôa a go-
tejar enterra-se na areia húmida, lustrosa , cheia de re-
flexos do sol a morrer no horizonte afastado .
Colhem-se as redes ; enrolam-se as velas .
Ao último clarão crepuscular, fecham-se as portas
das cabanas . A grande praia fica deserta .
Nos giráus castanholam os pingentes de cortiça
das redes .
O vento redemoinha, uivando tristemente . Es-
curece de todo .
Surgem vagalumes entre as moitas de pitanguei-
ras, entre os hirtos cardos .
Na orla do mar, de instante a instante, vem uma
vaga, estoura, recua, desfeita em arminho e esmeraldas .
Une-se a outra e de novo voltam juntas, confundindo-
se e assim eternamente .
Uma noite, despertei com o gemido prolongado de
uma "sirena ” .
Um navio em perigo pedia socorro .
Abrí a janela . Noite clara de lua cheia . Céu es-
trelado ! Mar tranquilo !
Barrando o horizonte à direita, a ilha do farol com
seus contornos de uma nitidez perfeita se destacava
no céu tranquilo .
Saí . Encontrei pescadores .
Chegamos à praia, nada !
No mar nenhum vestígio de embarcação .
Frio
Cabo
de
a
O rraial
...
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momento
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- -
71 -
Galgamos alta escarpa, atalaia imensa. Vimos en-
tão, lá em baixo, entre os rochedos, os faróis de
navio .
Que podíamos fazer ?
Era preciso contornar o " Cabo " e horas passariam .
Pela madrugada, o mar começou a enegrecer . Vie-
ram as primeiras vagas, apareceram as primeiras es-
pumas .
Formaram-se as montanhas dágua .
Vinham altaneiras umas após outras e cresciam
em oscilações de berço .
O Sudoeste anunciou-se com um silvo, fino, pro-
longado, agudo como de serpente .
Em horizonte baixo, pesada nuvem surgiu roçando
o mar .
Estendeu-se,' abriu-se, em largos panos de crepe
flutuante .
Já não se via o navio e não se ouvia a "sirena" .
Ao romper do dia, do mar emergiam de momento
a momento, duas cruzes : eram os topes dos mastros do
"Goitacás ".
Flutuavam cadáveres ao sabor das vagas .
No alto da penédia, um raio de sol dourava a cabe-
leira ondeante de um velho coqueiral .
O IMPERADOR BANIDO
Regressando de Cabo Frio, realizei a exposição à
rua do Ouvidor, na redação da " Cidade do Rio ".
Foram gerais os aplausos ; eram quadros de assun-
tos novos . A exposição foi inaugurada pela Regente, a
Princesa Isabel .
Á noite, veiu o seu mordomo adquirir para ela al-
guns quadros, que muitos anos depois tornei a vêr em
seu palacete, nos arredores de París .
Dos numerosos trabalhos que figuraram nessa ex-
posição, são estes os únicos cujo destino e lugar sei .
Propalou-se que a Princesa os havia pago genero-
samente . Não é exato . Eles foram adquiridos pelo
preço justo do catálogo .
Eu lhos teria ofertado todos , si as minhas circuns-
tâncias o permitissem . A Princesa Imperial e Pedro II
foram sempre amigos dos artistas .
Pedro Américo, Carlos Gomes e Almeida Júnior,
foram estudar auxiliados pela bolsa particular de Pe-
dro II ; e outros artistas que mais tarde, quando surgiu
a República, tanto o insultaram e molestaram com ca-
ricaturas, haviam contado sempre com o discreto e ge-
neroso auxílio do Imperador .
Mas, não falemos nisto .
Três vezes tive o prazer de estar com o Impera-
dor . A primeira, quando o fui convidar para vêr os
meus trabalhos ; a segunda, quando visitou a minha ex-
posição ; e a terceira, quando banido .
Já então o Imperador estava muito doente ; con-
servava, porém, quasi o mesmo físico, apenas a barba
e os cabelos mais alvos e mais longos .
Pediu-me notícias de todos os artistas brasileiros .
Com prodigiosa memória lembrava-se até dos mais
obscuros . Quando lhe falei de Vitor Meireles, os seus
olhos ficaram cheios de lágrimas . Ao contar-lhe o que
a esse artista haviam feito , indignou-se .
74 -
Ao terminar a entrevista, ele me disse .
Não se esqueça jamais do Brasil . Pinte sempre
cousas da nossa grande Pátria ; a sua natureza é extra-
ordinariamente bela, e a sua história é uma fonte ines-
gotavel de magníficos assuntos
Vinham do salão, em surdina, as sugestivas notas
da sinfonia do " Guaraní " .
Levantei-me . Despediu-me com um gesto triste .
MINHA LIBERTAÇÃO
Em Fevereiro de 1888 chegava à Itália .
Depois de ter estado em Lisboa, Madrid, París,
Roma, Florença, Nápoles , acabei finalmente instalan-
do "atelier" em Veneza, onde frequentei a Academia .
Na pintura, dominava a escola realista .
A paisagem devia retratar fielmente a natureza, a
figura, o modelo .
Em França, Hanoteau triunfava com suas ama-
neiradas telas ; Meissonier, vitorioso, parecia marchar a
passos de gigante para a imortalidade, à frente de seus
soldadinhos ... e Bonnat, com seus retratos acadêmi-
cos, ganhava rios de dinheiro . Entretanto, Carpeaux,
escorraçado de París , ralado de desgostos , sob teto ami-
go, morrera em Courbevoie e Millet, desprezado, em
extrema miséria, em Barbizon .
Não tive, pois, outra orientação a seguir .
Como os outros , copiava a natureza, tom por tom,
linha por linha .
Mas isto não me satisfazia ... Não podia ser uma
expressão de arte . Por toda parte, quer em figura ,
quer em paisagem dominava a "natureza morta "...
Nos quadros antigos, tão valorizados pela "patine "
dos séculos , peior ainda do que a cópia servil, o con-
vencionalismo algemara o artista .
Trabalhando em um parque, já nos últimos dias do
outono, fui surpreendido pelos primeiros frios .
Tudo desmaiava, tomando uns tons finíssimos .
muito leves , que se fundiam sem deixar contornos , nas
árvores, nas pedras e nos velhos muros do arruinado
castelo, que se desfazia entre festões de hera .
Rápida era a transformação . Copiar tudo aquilo,
minuciosamente, detalhadamente, como preceituava en-
tão a orientação artística dominante, era impossivel .
Mas como aquele conjunto era belo!
76 --
Como tudo aquilo se coloria de tons transparen-
tes, suaves, aveludados !
Quanta poesia naqueles " longes " esbatidos, vagos,
indecisos, que se afastavam envolvidos em flutuantes
gazes de neblina !
Que ruido sonoro produziam as folhas que se des-
prendiam dos altos galhos e, volteando no ar, caiam
afinal, estendendo no solo um tapete de tons admira-
veis, variados, de uma harmonia impecavel !
Quanta impressão de tristeza naquelas árvores
quasi sem folhas, pendidas, imoveis, como uma lenta
agonia de cristão antevendo o paraiso !
Mas tudo isso eu " sentia " porque entre mim e
aquela " natureza ", já prestes a se amortalhar no bran-
co e gelido lençól do inverno, havia um outro eu que
não era eu próprio
Na ânsia infrene de criar, torturado, alucinado
agarrei os maiores pincéis, largos, chatos , longos . Es-
premí fortemente de um jato, tubos inteiros de tinta
na paleta . Cerrei os olhos, deixando apenas infiltrar-se
entre as pálpebras a imagem quasi apagada do que
abrangia o ângulo visual . Ataquei a tela, frenetica-
mente, sem vacilações, como si nos meus pincéis já es-
tivessem formadas as linhas, compostos os tons .
Havia perdido a noção do tempo do local, de tudo .
Estava como isolado, insensivel .
Passou guiando manso rebanho um pastor embu-
çado em grossa e ampla capa, cabeça envolvida em fel-
pos quentes ; tiritava ...
Eu escaldava ; através da minha camisa, as pontas
finas do frio não penetravam ...
Quanto tempo se passou não sei .
A tela estava literalmente cheia . Borrão informe,
áspero, pastoso, rugoso de perto . De longe, porém, tu-
do se envolvia em tinta cinzenta, bastante transparen-
te para, através dela, se sentir vibrando o tom local.
Tudo em redor de mim se apagava dentro de um
ambiente vaporoso ... Tudo sem contornos , apenas
"massas " .
Então ví na minha tela a visão daquela natureza .
Desde este dia, deixei de copiar para interpretar ;
e, para sempre, me separei de Grimm .
UMA VITÓRIA
Cerca de três anos me demorei na Europa . Re-
gressando ao Brasil, realizei uma exposição na Acade-
mia de Belas Artes .
Justamente nessa ocasião, Firmino Monteiro tinha
em uma galeria uma grande " mostra " de seus traba-
lhos .
Firmino Monteiro era extremamente vaidoso .
Considerava-se o único artista de valor no Brasil .
Por isso mesmo não foi muito longe ...
Quando inaugurou a exposição, exigiu que a con-
gregação da Academia mandasse colocar no mastro da
fachada a bandeira , como se fazia nas datas nacionaes.
A congregação recusou-se ; Firmino foi queixar-se
à Princeza Imperial e a bandeira flutuou na sacada da
Academia !
Mandara o pretencioso "mestre " estender um
grande toldo para atenuar a luz das claraboias , que ilu-
minavam a galeria onde estabeleceu a sua exposição .
Terminada que foi ela, logo no dia seguinte come-
cei a colocar meus trabalhos , no mesmo lugar onde ti-
nham estado os de Firmino Monteiro . O toldo lá estava .
Quando, porém, a Princesa Imperial, o Conde d'Eu,
a congregação da Academia, artistas e jornalistas, no
dia da inauguração , penetraram na galeria, havia desa-
parecido .
Uma luz forte, dura, vertical, caindo sobre a su-
perfície das telas, formava desagradaveis asperezas .
Sombras se projetavam prejudicando os meus traba-
lhos .
A Princesa demorou-se um pouco mais do que 0
costume e ofereceu-me, ao sair, um belo ramo de flo-
res .
Reparei que o Conselheiro Maia , diretor da Aca-
demia, não estava satisfeito .
Indaguei : porque ?
- 78 -
- Porque o senhor mandou retirar o toldo .
Não mandei retirar toldo algum .
Foi o sr . Firmino Monteiro, disse o porteiro .
Fiquei radiante ! ...
O êxito da minha exposição grangeou -me a con-
fiança dos mestres brasileiros .
Estava sem professor a aula de paisagem da Aca-
demia, antes ocupada por George Grimm .
Por proposta da Congregação, fui nomeado para
regê-la por Benjamin Constant, então ministro .
Assim o discípulo ia, oito anos depois de iniciar os
seus estudos, ocupar o lugar do professor .
E isto eu devia aos meus velhos mestres e a todos
que faziam parte da congregação, galardão que não
solicitei e que me foi conferido espontaneamente .
Meses depois, realizou-se na Academia uma expo-
sição geral de Belas Artes . A ela concorrí com alguns
trabalhos , os primeiros que fiz figurar num certame
oficial .
Justamente ao terminar a exposição , começou a
luta entre um grupo de artistas e jornalistas e a con-
gregação da Academia .
Em desacordo com eles me afastei .
Essa luta perturbou o funcionamento regular da
Academia, ficando-se sem saber qual havia sido o jul-
gamento dos trabalhos .
Trinta e dois anos depois, deparando com a ata da
sessão relativa à exposição de 1890 , vim a saber que
nela tinha eu sido premiado com a segunda medalha
de ouro .
Pelas informações que tomei, descobrí ainda,
a medalha se achava na tesouraria da Escola de Belas
Artes havia trinta e dois anos !
Em 1918 pelo juri do " Salão ", estando eu ausen-
te, me foi conferida a Grande Medalha de ouro . Em
1922, finalmente, conferiram-me a Grande Medalha de
Honra, o maior prêmio e o último que no Brasil pode
obter um artista . Na exposição da Espanha, medalha
79
de ouro . Na Suécia-Noruega, medalha de prata . Em
França, o título de Delegado de Belas Artes de França .
No concurso Nacional, realizado em 1925, classificado
como o primeiro pintor brasileiro, por 19.827 votos .
Na exposição do Centenário, medalha de ouro .
Em 1890 foi o ensino artístico oficial sujeito a
uma nova reforma .
Estabeleceu-se uma luta entre "novos " e "velhos ".
Foram exonerados todos os "velhos " mestres .
Eu, porém, que era professor de paisagem, embo-
ra um " novo " preferí ficar com os velhos entre os
quais se achavam os imortais Pedro Américo e Vitor
Meireles . Revoltei-me contra essas exonerações injus-
tas, inqualificaveis e anti-patrióticas .
Este meu proceder custou-me uma guerra de
morte e a ela teria eu sucumbido, se não fosse dotado
de energia que não se abate com facilidade . Fiquei in-
teiramente só . Fui o único artista que se revoltou con-
tra a preterição de artistas brasileiros do valor de Vi-
tor Meireles e Pedro Américo .
Nesta luta, tive a honrosa e prestigiosa compa-
nhia de Carlos de Laet e Oscar Rosas . Como eu, eles
se bateram valentemente pela Arte, procurando dar-
lhe como guia artistas brasileiros, para que ela não
viesse a ser o que é hoje, essa cousa cosmopolita que
-
por aí anda sem nenhum carater nacional, imitação
servil de todas as escolas do velho continente .
Grande foi a recompensa que tivemos .
Não nos podem acusar de haver concorrido para
que morressem ralados de desgostos e na miséria os
dois grandes artistas nacionais, Pedro Américo e Vitor
Meireles .
Isto porém, não é bastante para me fazer esquecer
o que sofreram os dois grandes mestres sacrificados
impiedosamente .
Vejo ainda hoje o maior dos nossos artistas, que
por si só vale toda a geração passada e presente, Pedro
Américo, o autor da melhor batalha que até hoje se
tem pintado no mundo, exausto de tanto trabalhar,
olhos extremamente fatigados de tanto perscrutar, do-
ente, velho, ralado de desgostos , estendendo a mão,
essa mão que executou a batalha de Avaí, implorando
ao senador Antônio Lemos, o grande amigo dos artis-
tas nacionais , um lugar de professor de desenho, em
uma escola da cidade de Belém, no Pará .
― 80 -
Vejo Vitor Meireles, o grande, o incansavel artis-
ta invalidado pelo trabalho, torturado diariamente por
insultuosas caricaturas .
Vejo o glorioso artista sentado à porta do grande
barracão, onde estava exposto o panorama do Rio de Ja-
neiro, esperando, para poder viver, os visitantes que lá
iriam levar os seus dez tostões de entrada ...
Eu o ví morrer lentamente, já velho, e abatido .
Tinha ainda esperança de levantar-se do leito onde a
moléstia o retinha, numa pobre e humilde casinha, num
quarto que tinha uma janela que abria para o ceu azul .
Os cabelos longos, brancos, muito brancos, orna-
vam em desalinho a fisionomia ainda cheia de beleza
austera .
Os olhos conservaram a mesma extrema expres-
são de bondade .
"Como se vê, disse ele, colocando a sua mão já
muito fria entre as minhas, é chegada a hora . Eu t'a
anunciei na última carta que te escreví .
Como é triste e desolador o fim da minha vida de
artista !? Deus os perdôe ...".
Ele perdoou . Não era homem simplesmente . Era
um gênio .
VIDA PRIMITIVA
Livre do meu encargo de professor de paisagem da
Academia, afastei-me por completo do seu meio .
Isolei-me e voltei à vida livre de errante paisagista
da qual jamais devêra ter saido .
Quanto tempo perdido ? Quanta luta, desgostos,
injustiças, calúnias eu não teria evitado, si tivesse re-
cusado a cadeira de paisagem da Academia, como de-
pois recusei o lugar de professor e de diretor da Esco-
la duas vezes oferecido pelo Governo da República ?
Depois de tanta luta precisava purificar-me física
e moralmente .
De novo fui habitar as matas . Lá em cima, nos úl-
timos contrafortes da cordilheira, fiz morada à Robin-
son Crusoé ...
Um negro espadaúdo, mateiro consumado, valente
e forte, era quem me servia .
Palma, o famoso caçador de onças e de orchidéas,
era o meu companheiro .
Entrávamos nas matas sem abrir picada, como os
bandeirantes .
Lá no mais espesso da floresta, erguíamos o ran-
cho de auricana .
Foi naquele ambiente fantástico, extraordinário ,
belo, calmo, selvagem, alpestre, que me fiz pintor .
Em parte alguma aprendí mais do que alí ; jamais
ví maior variedade de efeitos, de linhas majestosas,
imponentes ; cor mais forte, mais vibrante, mais har-
moniosa .
Sob aquele "abat-jour" de entrelaçados ramos, a
luz coava-se como através de uma esmeralda . O sol alí
só penetrava em setas de ouro .
Como era feliz !
Levantava-me, quando por entre as grandes árvo-
res se estendiam as neblinas esgarçadas em longos pa-
82
nos finos transparentes , erguendo-se do leito das ca-
choeiras .
Atirava-me à agua espumante das cascatas, en-
quanto o negro preparava o café e assava o palmito,
pão do deserto .
Forte, repousado pela noite dormida sem máus
pensamentos, sob aquela imensa abóbada, de cuja rede
suspensa, pingente de epifitos pendiam, começava a
trabalhar .
Palma internava-se na mata . O estampido da sua
arma certeira ecoava de vez em quando e ia perder-se
lá por cima, nos recôncavos da serra .
Dino, o cozinheiro, apoderava-se da caça .
Finda a refeição, adormecia para depois voltar a
trabalhar em outra tela, até à tarde . ?
Arroxeava-se tudo . O sol morria por traz da serra .
Mais sonora era a voz das cascatas, mais miste-
rioso o sussurro da floresta ; lenta, escura, caia a noite .
Um galho morto desprendendo- se lá de cima da
cúpola enegrecida das árvores, caia esfacelando- se em
baixo nos limosos rochedos , que ficavam cobertos de
folhas amarelecidas .
Nos corredores da serra, o vento zunia e quando
mudava de direção, o estrepitoso desabar dos grandes
lençóis dágua, nas verticais caidas das cachoeiras, au-
mentava, estrugia como o de uma tempestade que se
aproxima .
Ás vezes, era quasi completo o silêncio ; apenas o
murmurar dos trêmulos filetes dágua caindo em pe-
quenos lagos, onde solitária se refletia uma estrela co-
mo um brilhante que, a se lapidar, viesse a cair de pe-
dra em pedra até alí .
Tudo adormecia num confuso murmurar de ruidos
misteriosos, movimentos lentos e quasi imperceptiveis
das aves sonolentas, dos galhos humedecidos que se
curvavam, de folhas que do alto se desprendiam das
ramagens envelhecidas .
Espessas trevas avançavam precedidas por um
lençól de neblina que ia destacando os planos, isolando
os troncos , tudo envolvendo como em gazes de luar .
Depois, a noite caía de todo .
Abria-se, então, na floresta, o grande clarão da fo-
gueira e nele se destacava, como em fundo douro,
enorme figura do negro, hirta, imovel, como uma es-
tátua de bronze .
Lá no mais espesso da floresta, erguíamos
o rancho de auricana ...
...
ambiente
fantástico
Foi
naquele
n
cAtirava
a
à
das
,e
o gua
e
cascatas
espumante
egro
nquanto
-mafé
o
preparava
...
Abria-se, então, na floresta, o grande clarão da fogueira e
nele se destacava, como em fundo d'ouro, c enorme figura
do negro...
- 83 -
Anos durou esta existência feliz .
Do que se passava cá fora, pouco sabia .
Aquele negro semi-selvagem, tinha a alma bran-
ca ...
Aquele velho, de longos cabelos, intensa barba de
neve, era um vencido, como eu fugido do meio social .
Que duas criaturas tão diferentes !
Uma recordava-me a pureza dos homens primiti-
vos e ingênuos .
Outra, todos os vícios, perversidades e depravações
do homem moderno .
Uma o meio em que então vivia ; outra, aquele de
onde viera .
Nos sentimentos puros, altruistas, generosos, no-
bres que existiam naquela alma de negro, estava o ho-
mem ideal sonhado por Augusto Comte, homem que
talvez existiu mas não existe, nem existirá jamais .
O outro, o velho, nada mais era que o resíduo de
uma carcassa humana corroida pela lepra dos lupa-
nares, alma descrente de tudo , cheia de ódio, vasia de
amor .
Ás vezes , sentado à beira do rancho , os ouvia con-
versar olhando a fogueira .
O velho contava ao negro o seu passado remoto ..
Descrevia-lhe a sua tempestuosa mocidade de jovem
rico .
Fazia-o sentir, com arrepios da carne, as noites de
orgia em que ele começava ébrio de amor e acabava
ébrio de champagne .
Narrava com gestos violentos o fim trágico de
aventuras amorosas, com ódio e sede ainda de vingan-
ça; as traições dos homens, as farsas das mulheres .
Depois, erguendo-se para mais livre e amplamente po-
der gesticular, pintava as cenas mais horriveis da
Guerra do Paraguai, e, cheio de orgulho, mostrava, por
um rasgão da grosseira camisa em frangalhos, a cica-
triz de um estilhaço de metralha .
Dos campos cobertos de cadáveres, sob um céu de
fumo e fogo, passava para o deslumbramento das cida-
des, dos bazares fantasticamente iluminados, dos tea-
tros onde mulheres semi-nuas, em requebros sensuais,
provocavam a bestialidade dos homens .
Por fim, falava do mar, do oceano . Agua, agua sem
fim, sempre agua e sobre a sua imensidade um céu
84
imenso, tempestuoso de um lado, azul, tranquilo de
outro .
O negro, sem perder um gesto, uma palavra, ouvia .
Calava-se o velho finalmente ; afastava-se e ia sen-
tar-se em um rochedo que ficava perto ; a sua figura
em sombra contornava-se de um lado em ouro, reflexo
da fogueira que o negro remexia para não deixar mor-
rer .
Tudo ficaria em silêncio, si de vez em quando o es-
tourar de um gomo de taquarussú, a se estorcer no
brazeiro, não estrugisse .
O negro imovel, acocorado, cabeça curvada, pernas
em cruz, parecia uma múmia selvagem .
Fechava os olhos para melhor vêr o que lhe con-
tara o velho ...
Afinal, erguia-se esticando os braços entorpecidos,
batendo com os pés regelados no solo endurecido :
Seu Parma, de tudo o que eu mais gostei foi do
"má"; do "má " que tem agua mais grande do que as
cachoeiras da serra . Das outras cousas não, seu Parma,
só deve mortificar a gente" .
A vida na floresta não é tão triste nem monótona
como em geral se imagina . Há sempre o que vêr, há
sempre o que admirar, para os que sabem vêr .
Sei bem que para muitos ela seria insuportavel ;
dentro de uma mata virgem muitos morreriam de tédio,
em uma semana .
Mas a esses, ao cabo de meia hora dentro do imen-
so museu do Louvre, seria preciso pôr na praça, sem
demora, para se não ter que chamar a Assistência ...
E essa mesma gente ficaria horas e horas, no ter-
raço dos cafés do "boulevard " a ver passarem carros !
Na realidade o que mais gostavam de vêr esses in-
felizes, é justamente aquilo em que nada há que ver…….
Alguns meses de París, me foram suficientes para
saciar a curiosidade, para me produzir a nostalgia das
matas onde jamais tal sentimento me invadiu ...
Mas para se viver mesmo dentro de uma mata, é
necessário contar com alguns recursos . Esses recursos
eu não os tinha, sendo , portanto, obrigado a vir de novo
habitar Niterói .
Ás vezes, sentado à beira do riacho ...
"SERTANEJAS "
Era enorme a quantidade de trabalhos que havia
trazido das matas . Não passavam, entretanto, de "es-
tudos " executados sem pretenção de fazer quadro .
Lembrei-me então de numa grande tela sintetisar
tudo que havia observado nas florestas e executei " Ser-
tanejas ".
Continuava, porém, a me conservar isolado para
não me envolver na luta em que se debatiam os meus
colegas .
Dois artistas apenas frequentavam o meu atelier:
Vitor Meireles, que nos domingos, infalivelmente vi-
nha passar o dia em nossa casa, e Pedro Peres que apa-
recia com menor frequência .
Quem conheceu intimamente estes dois homens,
achará que melhor acompanhado eu não podia estar .
Vitor, tratava-me como um pai carinhoso . Pedro como
um irmão afetuoso .
Além desses dois artistas, um outro comigo convi-
via intimamente . Esse era um poeta . O homem mais
puro, mais honesto, mais instruido que conhecí . Esse
homem, influiu mais na formação do meu carater do
que meu pai. Quanto tinha eu e tenho de arrebatado,
brusco e impetuoso, possuia Augusto Bastos de calma
e paciência . Só numa cousa ele se excedia e em dema-
sia ; no despreso e horror que lhe causava a sociedade,
onde ele não encontrava sinão o que reprovar . Mas não
a agredia .
Afastava-se dela inteiramente, não a vendo como
se fora um cego, não a ouvindo como se fora um surdo .
A não ser o meu " atelier", outro lugar não frequenta-
va . Ao morrer, entregou-me todos os seus papéis . Ha-
via entre eles poesias que o colocariam na primeira fila,
entre os nossos melhores poetas .
86
― Destruirás tudo isto . Publicados que fossem
esses versos, eles não adiantariam cousa alguma à poe-
sia nacional . Não pude alcançar o que queria .
E como prometi, depois de os ler e reler, destruí .
Foi um astro luminoso que passou no céu escuro do de-
serto . Não deixou vestígio a não ser em minha alma,
onde traçou um sulco profundo que distila lágrimas
amargas de uma saudade eterna . Dessa trindade nada
mais resta .
Destruiu-a a morte .
SCENARIO DO PASSADO
Comecei de novo a percorrer os logares onde, em
companhia dos meus camaradas e Grimm, tantos dias
alegres e esperançosos havia passado. Já não eram os
mesmos . A cidade, deixando o litoral avançava para
as montanhas ... Os jardins cheios de bolas de terras,
de caixões, guarnecidos de grama aparada como os ca-
belos dos condenados , substituiam os belos cantinhos de
arbustos de largas folhas, de terreno fortemente colo-
rido, de ervas variadas dentro as quaes surgiam subin-
do, estendendo-se, curvando-se, para de novo se ergue-
rem, os cajueiros em flôr . Em lugar dos regatos de
aguas quasi paradas, que refletiam o céo cheio de nu-
vens brancas, umas valas longas, imundas, cheias de
lesmas e sapos, onde boiavam moitas de agrião . Nas
margens desses canaes de agua pôdre, canteiros com
repolhos e couves entre o emaranhado dos tomateiros
cheios de frutos vermelhos . Barracas construidas de
táboas e de latas velhas com portas de lona suja e
rasgada, substituiam as cabanas de sapé, que dantes
havia entre os grupos de pitangueiras, de coqueiros, de
cajueiros . E por toda parte onde passou o homem, a
devastação, a ruina e os vestígios de carinhosa preo-
cupação de bem satisfazer o ventre...
A restinga ia desaparecendo . Ruas substituiam os
trilhos arenosos, os cômoros alvíssimos, onde, inclinado,
à tarde, a viração do mar fazia farfalhar o coqueiral .
Em vão procurava o que pintar, e quando achava
um "primeiro plano " belo, tinha que abandoná-lo por-
que, em lugar dos " longes " belíssimos de outrora, meus
olhos esbarravam nos muros brancos de um chalét de
rendilhadas abas e de janelas pintadas de verde, por-
tas azuis, varanda vermelha .
Foi preciso subir, galgar a montanha, descer do
outro lado, para achar a "natureza".
VIAGEM AO NORTE
Comecei a trabalhar sem repouso, alheiado com-
pletamente de tudo . Tive afinal o resultado que devia
ter. A minha casa ficou repleta de quadros, ao mesmo
tempo que o meu bolso se esvasiara completamente ...
Passaram-se meses .
Resolví fazer uma exposição em Belém do Pará,
e para lá partí . Logo após a minha chegada, inaugurei
a exposição no belo salão do Teatro . Era a primeira
de pintura que se realizava no Pará, como foi a pri-
meira, aquela que eu havia realizado em S. Paulo, ini-
ciando assim, nos dois Estados, o movimento artístico
que hoje é tão grande .
Em dez dias eu havia colocado todos os meus tra-
balhos .
O Dr. Augusto Montenegro, governador do Esta-
do, me encomendou um grande quadro - a " Conquis-
ta do Amazonas ", que foi a primeira tela histórica que
pintei .
Já nas vésperas de partir, fui atacado por terrivel
enfermidade . Mesmo assim doente, tive que ir a Ma-
náus fazer os "estudos " para o cenário do trabalho en-
comendado . Alí realizei, no Palácio do Governo, uma
exposição , cujos quadros ficaram todos no próprio
palácio, pois foram adquiridos pelo Estado .
Essa viagem ao Amazonas, ainda mais agravou o
terrivel impaludismo que havia contraido no Pará .
Muito mal, regressei ao Rio e, durante meses , preso pe-
la moléstia, nada pude fazer . Baldada de todo a espe-
rança de me restabelecer, num estado de nervos que
já tocava quasi à loucura, de um dia para outro resolví
deixar o Brasil . Em Março de 1905 partia para París .
Aí cheguei ainda pior . Como um louco , comecei a per-
correr a Europa . Nada absolutamente minorava os
meus crueis sofrimentos .
90 -
As maiores celebridades médicas apenas conse-
guiam aumentar os meus sofrimentos, e diminuir de
um modo espantoso os meus recursos monetários ...
Nem um só médico entre os mais célebres , soube
dizer qual a minha enfermidade ! Afinal um já muito
rico, que não precisava mais de ganhar dinheiro, foi
quem, me pôs bom . Mandou-me para Chamonix, para
uma aldêia na base do monte Branco .
Alí, vivendo entre pastores, fiquei bom e regressei
a París, onde montei o meu atelier a poucos passos dis-
tante da casa de Sarah Bernard, a quem visitava fre-
quentemente .
Do que eu havia ganho no Pará e no Amazonas já
não existia nem a metade . Os médicos e farmácias
consumiram-me contos de réis . De mais, crente de que
ia morrer, eu não poupava . Gastava à larga nos gran-
des hotéis, onde nada comia, nas casas de divertimen-
tos onde não me divertia, nas viagens através das mais
adiantadas capitais, onde perambulava a vêr tudo que
havia de bom e de belo e de mais infame . Depois de
quasi três anos, regressei ao Brasil, onde com os "es-
tudos " feitos em París, executei a " Conquista" em meu
atelier em São Domingos .
Palácio
Pará
Estado
do
Presidencial
Amazonas
Conquista
do
VISITA À ESCOLA ( *)
Ao chegar, verifiquei que o meio artístico no Rio
era cada vez mais desanimador .
Fui visitar a Escola . Dela fugí desolado . Tudo alí
dentro me pareceu envolvido por uma claridade fria e
triste, que não era nem luz, nem sombra .
Tudo alí dentro me pareceu doente, agonisante ,
prestes a ser enterrado naqueles túmulos de gessos su-
jos, enfileirados como os que estão nos longos corredo-
res do Campo Santo de Gênova .
Todas aquelas figuras brancas, lembraram-me as
do museu de Pompéa, lembraram--me as éras mais re-
motas que precederam os séculos que ela levou sepul-
tada nas cinzas .
Tudo alí me pareceu frio , imovel . Passado remo-
to ...
Nada novo, nada nosso, tudo vindo dos velhos po-
rões dos museus de antiguidades da velha Europa .
Tudo cópia do que existiu há séculos .
De modo que o jovem que alí entra para estudar,
em lugar de encontrar a vida, encontra a morte . Em
lugar de encontrar o movimento, encontra a imobilidade
eterna .
Em lugar do presente indicando o futuro , o pas-
sado .
Em lugar da arte moderna, cheia de luz, de vida ,
de movimento, de expressão, encontra cadáveres enfi-
leirados ao lado daqueles túmulos, onde estão uns san-
tos, que foram satanazes , envolvidos em longos lençóis
de arrumadas pregas .
Percorrendo todo aquele grande edifício, que tem
o ambiente das salas subterrâneas de Santa Cruz de
Florença, sentí-me envolvido por uma enorme tristeza,
por um desalento cruel .
(*) Parte deste capítulo já foi publicado na "A Notícia" de
24, de Dezembro de 1924 .
92 -
O ruido dos meus passos resôava como nos cor-
redores desertos de uma prisão .
De vez em quando, desmaiado sobre um banco, um
guarda imovel, olhos abertos sem vêr, braços caidos,
recordava-me uma das figuras de cêra do museu Gre-
vin .
Caminhei á procura dos moços , que achei, em pe-
quenos grupos .
Mas eram tristes . Falavam baixinho . Andavam
cautelosamente para não infringir o regulamento da-
quele convento de noviços .
Fugí, e só depois de algum tempo, quando cheguei
ao fim da Avenida, e o sol me aqueceu, e o mar se am-
pliou ante mim, sob o céu de um azul luminoso, é que a
sombra daquela Sé de Braga e o silêncio daquele con-
vento de Chatreuse me deixaram .
Pobres moços ! Metem-nos em um lugar sem ar,
sem luz, em um cemitério cheio de múmias pompeanas
de manipanços romanos e mitológicos, arrancados das
catacumbas, de túmulos de papas, e exigem deles que
produzam a luz, o movimento, a vida, enfim em todo
o seu esplendor !
E quando, já bem saturados de tristeza de des-
ânimo, eles deixam aquele casarão silencioso e escuro,
e chegam cá fora, os cadáveres continuam a enfileirar-
se no seu caminho, já não são de gesso, são de mármo-
re, de bronze ou granito ...
Tudo parado, imovel, anti-estético, decadente, anti-
patriótico e deslocado .
A importação foi grande . Ampliou-se, estendeu-se
por todo o Brasil .
Mandaram vir para aquí obras sem valor, repeti-
ções, plágios vergonhosos .
Quando não foi, isto foi cousa sem carater, sem
estética, sem patriotismo, sem elevação, sem mesmo a
preocupação do lugar a que se destinavam .
Os escultores aos quais encomendaram os nossos
monumentos, não conheciam o ambiente que ia ter a
obra que produziam, onde ela se destacaria, no céu ou
na massa verde de uma vegetação, num muro branco
ou na parede de um velho edificio ; se o monumento po-
deria ser visto de perto ou de longe, qual de suas faces
ficaria iluminada e qual ficaria em sombra .
De modo que aceitamos um monumento como esse
boneco de bronze que nos impingiu o Sr. Charpentier,
- 93 -
pretendendo representar o Visconde do Rio Branco, ou
essa figura de taverneiro boçal, grosso, barrigudo, que
lá está em Petrópolis , pretendendo representar Pedro
II, obra do marmorista Jean Magrou, fabricante de
túmulos parisienses, feitos por escultores que nunca
se quiseram dar ao trabalho de examinar o local onde
eternamente ficaria a fancaria que produziram .
Em tais condições, que harmonia poderá haver ?
Poder-se-há dispensar tal harmonia ?
Não .
Sem ela jámais se obterá um conjunto estético ,
como deve ser uma praça onde há um monumento .
E não é só isto ; há mais ainda .
Quando mesmo se trate de um monumento exe-
cutado por uma celebridade estrangeira, nele faltará
sempre o principal . Só haverá a se apreciar a estética
e a técnica ; quanto ao seu valor histórico como do-
cumentação, não . A esta celebridade faltará, para ins-
pirá-la, o patriotismo, a veneração, o entusiasmo, o or-
gulho pelo herói ou pelo fato histórico que o monu-
mento é destinado a comemorar .
Sem estes sentimentos não se produz obra de arte,
como aquelas que possue a França, a Alemanha, a Itá-
lia.
A história desses paises está escrita em mármore,
em bronze, em granito, em tela, mas pelos nacionais .
Sem estes sentimentos não se produzem monumen-
tos como se veem em França, onde, mesmo quando ela
é representada como vencida, ainda assim é maior,
mais sublime do que a Alemanha vencedora .
Só um francês nato poderia produzir tal obra de
arte e conceber assim ; só ele poderia fazer da França
vencida a vitoriosa .
Onde e quando um escultor estrangeiro, mesmo
genial, seria capaz de produzir a figura daquela “ Alsa-
cienne" do Quand même - de Antonin Mercié, ven-
cida é verdade, mas cheia de patriotismo, de energia,
de ódio ao inimigo, mas tambem cheia de confiança na
vitória futura, que finalmente chegou quarenta e oito
anos depois ?
Um artista estrangeiro faria aquela mulher aba-
tida pela dor, ferida de morte, agonisante, como ficou
a França, em 1870 .
O mesmo se dá com os nossos monumentos e qua-
dros de assuntos nacionais executados por estrangeiros .
94 -
No monumento a Bento Gonçalves ,no Rio Grande,
a Monarquia, representada por um leão, esmaga a Re-
pública, representada por outro, agonisante e por ter-
ra !! ... E o monumento é uma homenagem à Repúbli-
ca. O escultor porém, era um monarquista estrangeiro...
No monumento a Pedro I, adultera-se o fato his-
tórico . No alto, o Príncipe estrangeiro, em fogoso gi-
nete, no qual se transformou a mula báia que montava .
Em baixo, o Brasil, que já tinha José Bonifácio, Feijó
e outros, é representado por selvagens e por uma bi-
charia completa !
O monumento ao Visconde do Rio Branco é um
bonequinho de bronze de suiças muito bem tratadas,
sentado em uma velha cadeira . Para simbolisar tudo o
que ele fez, uma figura vulgar, banal e inexpressiva,
escreve numa placa .
No monumento a Pedro II, o Imperador, famoso,
pelos seus dotes intelectuais, pela sua alma de espar-
tano, pelo seu patriotismo, que o levou aos campos de
batalha, Jean Magrou, o escultor medíocre, apenas
achou para tudo isto simbolisar livros velhos e esfar-
rapados, calçando os pés da desconjuntada poltrona !...
Agora para aquí devia vir o Barão do Rio Branco,
em pé, entre as colunas da ponte de Alexandre III, em
París . Foi o que o fatigado cérebro de Charpentier
achou para um monumento consagrado à glória de um
dos maiores homens do Brasil!
No monumento a José Bonifácio , o verdadeiro fa-
tor da independência do Brasil, o que há que não seja
estupidamente ridículo ?
E quando alguma cousa há de nacional, é sempre
errado, sempre detestavel, como no monumento à In-
dependência, onde há uma cópia do soberbo quadro de
Pedro Américo .
Nem mesmo copiando a famosa tela do grande e
imortal mestre brasileiro, Ximenes, o escultor italiano,
poude ocultar a sua descomunal decadência, nas cou-
sas mais comesinhas de arte .
E por tão formidavel banalidade, onde tudo lem-
bra outras obras, o Brasil pagou para mais de três mil
contos , importância mais que suficiente para encher
S. Paulo de obras de escultura de real valor e que ar-
tistas brasileiros são capazes de executar, como prova-
ram com as "maquetes " que apresentaram para esse
mesmo monumento, e que mesmo em "maquetes " são
95 -
melhores do que esta intragavel macarronada do escul-
tor italiano .
Tudo no monumento da Independência é máu . E'
horrivelmente anti-estético .
O grupo que está no alto, é mais velho, como con-
cepção de arte, do que os frescos de Pompéia . São me-
donhos, aqueles cavalos inchados, exatamente iguais,
com o mesmo movimento, que puxam o carro onde se
vê um grupo, composto de figuras, onde a falta de pro-
porção é tal, que umas parecem pigmeus, outras gi-
gantes .
Nos grupos que estão na base do monumento, nem
uma só figura é corretamente construida . Tudo está
errado . Todas as personagens neles representadas teem
a cabeça pequena demais e as pernas inchadas .
Na reprodução do quadro de Pedro Américo, há
cavalos com têtas, com pernas a sair do estômago, com
cabeça desarticulada . Nem mesmo copiando de uma
obra perfeita, como é o quadro de Pedro Américo, o es-
cultor italiano fez cousa que preste .
Na obra do mestre brasileiro, há um carro de bois ;
ao lado do primeiro vem o boiadeiro . E' um dos peda-
ços mais perfeitos da grande tela . Copiando , que fez
Ximenes ?
Fez o boi tão pequeno que a linha do dorso passa
pela cintura do boiadeiro !
Não haverá na Itália um boi?
Nunca teria visto um ao pé de um homem o es-
cultor italiano, para conhecer a proporção entre eles ?
Felizmente o monumento está muito afastado da
cidade, e no meio de um grande campo . Mais tarde po-
derá o governo mandar plantar em volta dele um gran-
de bosque, para que a segunda capital do Brasil não
fique prejudicada no seu conjunto estético .
Para pendant, de tão bordalengo conjunto, não
se precisa sair de São Paulo . E' só ir ver o monumen-
to ao meu pobre amigo Olavo Bilac . Esse então é de
fazer rir até arrebentar. Por não ser muito limpo, eu
não posso dizer de onde surge o busto do Poeta ...
Mesmo no magnífico monumento de Brizzolara,
que tão belamente ornamenta o esplêndido parque que
circula o Teatro Municipal de São Paulo, onde há figu-
ras admiraveis , posso encontrar a prova mais positiva
de que é errado confiar a artistas estrangeiros a exe-
cução das nossas telas históricas e monumentos .
- 96
O monumento é uma homenagem da colônia italia-
na de São Paulo a Carlos Gomes, o tipo por excelência
brasileiro, o velho caboclo de Campinas .
Quer saber o leitor como estava ele representado
no monumento ? Por Pinheiro Machado, envolvido em
uma capa hespanhola !
Com certeza o escultor foi vítima de uma inaudita
perversidade . Não é possivel que dispondo de retratos
explêndidos de Carlos Gomes, que se encontram por
todo o Brasil, fizesse para representá-lo aquele senador
Pinheiro Machado que lá estava .
O mesmo com a figura graciosa, esguia , fina, aris-
tocrática do selvagem, onde tudo infelizmente falta pa-
ra ser um selvagem brasileiro . Com certeza, serviu de
modelo um tenor italiano .
E' pena que o monumento tenha esses dois defei-
tos e que atendendo talvez a exigências alheias, de in-
competentes, tenha espalhado por demais as figuras,
desgrupando-as de modo a tirar não só a sua unidade
como a prejudicá-lo no equilíbrio . A não ser isto, seria
uma obra de real valor artístico .
Vejamos agora as figuras decorativas que se espa-
lham pelos nososs jardins e praças . Tudo lembra pai-
zes estrangeiros. Nada, absolutamente nada, brasileiro,
e bom, que possa servir aos nossos jovens artistas co-
mo ensinamento .
Aquí, um velho de descidas nadegas, que treme de
frio . Além, uma mulher que representa a colheita de
trigo (Praça 15 Novembro . Rio ) . Mais além um leão
africano . Adiante um gato " Angorá ” . Acolá a figura
da Verdade, cujo original está no jardim real de París ;
mais além, o tigre do Luxemburgo, e, no meio desta
bicharia toda, que fez do Rio de Janeiro um jardim
zoológico, uma figura de túmulo chorando um morto,
que para cá mandou o mesmo autor do monumento a
Pedro II, o sr . Jean Magrou (Avenida Beira Mar) .
E como se tudo isto já não fosse por demais depri-
mente, ridículo, antipatriótico, vergonhoso, ao lado dos
dois monumentos que estão na Praça da Glória, no Rio, ·
consagrados a fatos gloriosos da nossa Pátria, ergue-
se um outro, em homenagem a quem ? Adivinhem !
A Osvaldo Cruz, a Pedro Américo, a Patrocínio, a
Gonçalves Dias, a Rui Barbosa, a Evaristo da Veiga, a
Felipe dos Santos, a Tiradentes, a Fagundes Varela, a
- 97
Padre Feijó ou a outro qualquer dos grandes brasilei-
ros ?
Não! ao Vinho do Porto !!!
Não será de certo com obras assim defeituosas, as-
sim falhas de preocupação de carater nacional, assim
cosmopolitas, que conseguiremos ter uma arte nossa,
exclusivamente nossa . Na arquitetura, acontece o mes-
mo .
Tudo isto cada vez mais desorientará os nossos jo-
vens artistas .
Eles não poderão ser refratários a estas produ-
ções, que são apontadas como guia, nos seus estudos
preparatórios .
Recordo-me perfeitamente de quanto me foi dificil,
quando já depois mesmo de muitos anos de tirocínio
artístico, chegando à Europa, resistir à influência das
produções que lá fui encontrar .
Felizmente, tive forças bastante para reagir con-
tra o momentâneo encanto, verificando que o que me
havia fascinado não valia o sacrifício da minha indivi-
dualidade .
E porque iria imolar essa individualidade que me
conservou artista brasileiro, embora vivendo em Fran-
ça tantos anos ?
Para que renegar, considerar nulos, tantos anos de
estudo aturado, metódico ? Para que trazer para mi-
nha Pátria produções moldadas sobre a de outros, re-
petições humilhantes do que por lá haviam tentado im-
por como novidade e modernismo, com o fim de enga-
sopar o público, para ocultar a deficiência de bons ele-
mentos indispensaveis à execução de obras sérias ?
Que importância devia ter para mim as borbulhas
luminosas de Henry Martin, as betuminosas telas de
Carrière ,atribulado pela horrivel enfermidade que
poucas horas lhe permitia de trabalho, as minúcias
chinesas de Meissonier, as brutalidades de Rodin, pre-
ocupado em imitar Miguel Ângelo, e mesmo a encan-
tadora simplicidade, a fingida e procurada ingenuidade
de Puvis copiando Gioto ? Mesmo admirando, que tinha
eu que ver com a larga feitura, a expontaneidade de
Neuville, a cor fina, delicada, vibrante das desenhadas
- 98---
figuras de Detaille, o pintor aristocrata, o porta estan-
darte do exército francês, a arrojada impetuosidade de
Cormon, a fantástica grandiosidade, a amplitude das
vastas composições de Rochegrosse, ou as sanguinosas
hecatombes de Benjamin Constant?
Tudo aquilo representava a maneira individual de
um artista . E eu não tinha ido a Europa para sentir
como o pintor A ou B, mas para lhes mostrar como
sentia eu .
Mostrei, e eles me compreenderam . Que mais que-
ria eu ?
Acharam mérito no que eu fazia, colocando as mi-
nhas telas durante sete anos ao lado das dos seus
grandes artistas , e tanto achavam o meu proceder dig-
no, não me abaixando ao servilismo de os imitar, e me
impondo, que a 12 de Fevereiro de 1911, me encarrega-
ram de zelar pela arte francesa no estrangeiro .
Depois de entregue a " Conquista ”, vendo que
meio artístico do Rio cada vez mais se tornava defici-
ente e atrofiante· devido à luta entre os artistas · resol-
ví passar alguns anos em París e para lá de novo parti,
levando comigo meu filho, que sob a minha direção ha-
via inciado a vida artística .
Ao deixar o Brasil, tinha a incumbência de exe-
cutar a tela histórica - "Fundação do Rio de Janeiro",
para a Prefeitura do Distrito Federal - trabalho este
que me foi confiado pelo dr . Serzedelo Corrêa, então
prefeito .
Fundação
Rio
do
Janeiro
de
Estácio
Morte
.Sá
de
Prefeitura
do
Federal
Distrito
MME. ESSEMEL
Em París, fui habitar um velho "atelier" na rua
Boissonade . Era uma oficina de escultor . Agradou-
me porque tinha um pequeno parque, no meio do qual
um belíssimo grupo de marronniers enchia de folhas
douradas o chão já crestado pelos primeiros frios .
Toda a rua era, de ambos os lados , ladeada de ate-
liers .
Silenciosa e quasi deserta porque acabava num
longo e alto muro de um jardim de freiras .
Só nas segundas feiras, cedo, se movimentava pe-
lo aparecimento dos modelos à procura de trabalho .
No princípio da rua , no canto do Boulevard Ras-
pail, ficava a casa da concierge, velhinha de setenta
anos . Morava naquele buraco escuro e infecto havia
cinquenta e três anos .
Quando moça se apaixonára por um pintor grego,
que tendo sido recusado pelo " Salon" metera uma bala
na cabeça .
-Morreu pela Arte, dizia sempre a velhinha, com
os olhos cheios de lágrimas .
Do outro lado do parque, que ficava no fundo do
meu atelier, habitava um velho escultor de merecimen-
to real. Da minha oficina ouvia todo o dia o ruido seco
e compassado que ele fazia desbastando um grande
bloco de mármore, do qual surgia aos poucos o monu-
mento de Strasburgo .
Fizemos logo camaradagem . O seu atelier, onde
tambem habitava sua esposa, era de uma beleza ex-
traordinária . Nunca ví um ambiente de arte mais apro-
priado . Durante o dia Essemel atravessava o parque,
enfiado numa grande túnica branca e vinha passar al-
guns momentos comigo .
Por uma coincidência singular, sempre me encon-
trava a tomar café .
-
Que diabo, você assim acaba louco !
100
Qual! Sem ele é que eu acabaria, não um louco,
mas um imbecil .
Aconteceu que um dia o velho escultor não se sen-
tiu disposto ao trabalho .
Essa indisposição prolongava-se .
Estou perdido, se isto continúa . Na minha
idade, parar é morrer .
Faça experiência Tome do meu café . E' café
de café .
Ele provou .
Delicioso ; nunca tomei um café assim .
--- Mais outro para passar a "boia" .
Pois sim .
Eram dez horas da manhã .
A uma hora, ele voltou .
Seus olhos verdes brilhavam, seus gestos eram
bruscos . Falava com grande vivacidade .
-
- Extraordinário ! Fiz um " bom pedaço " . Dê-me
outro café .
Quero aproveitar o resto do dia . Mas não quero
na chícara, enche um copo desse veneno sublime .
Lentamente, sorveu com delícia o extrato do café .
Encheu o cachimbo de fumo de Barbacena que eu
possuia, e saiu às pressas .
Mr. Parreiras !
Pode entrar, Madame Essemel!
Venho lhe pedir um favor .
Ás suas ordens .
Não dê mais café a meu marido .
Porque Mme . Essemel?
-- Não lhe posso dizer . Não me deixou dormir .
Trabalhou toda a noite na estátua, não é ver-
dade ?
Não, Mr. Parreiras, lembrou-se da sua moci-
dade ! ...
- Quer tomar uma chícara de café, Mme . Esse-
mel ?
E' muito tarde, Mr. Parreiras, disse ela sor-
rindo tristemente, e apanhando uma folha seca, que a
voltear lhe veio cair do alto dos "marroniers ", sobre a
cabeleira branca, - o Inverno já chegou ...
"SALON"
Como havia feito na primeira vez em que tinha es-
tado em París, diariamente tinha um modelo para es-
tudo, todas as manhãs .
O resto do dia dedicava à execução de trabalhos
encomendados, como então fazia com a "Fundação do
Rio de Janeiro " .
Logo ao chegar, havia começado dois nús de tama-
nho natural .
Alternadamente, iam os dois quadros sendo con-
cluidos .
Ao aproximar-se o " Salon ", estavam ambos con-
cluidos .
- Envia um deles, disse-me um dia Essemel .
- Para qual " Salon " ?
Para a "Nacional ", onde estão Rodin, Meisso-
nier, Roll, Bonnat, Lhermitte, Puvis de Chavannes , Ca-
rolus Duran e outros grandes mestres .
E se for recusado ?
Não faz mal, grandes artistas o teem sido ; Pu-
vis foi muitas vezes, Millet tambem, e outros, e outros .
Mandei emoldurar os dois nús .
Qual devo mandar, Essemel ? " Phantasia "
"Phrinéa ” ?
- Manda o pior .
- O pior ?!
- Sim Entrará com mais facilidade ...
Não compreendo .
E' bem facil . Se mandas o melhor, a inveja, o
despeito, o temor do confronto, a facilidade de ser ad-
quirido, te fecharão as portas do " Salon ".
Qual ! Pois aquí num meio tão vasto, há tam-
bem quem assim proceda ?
Tanto há que se recusaram obras que hoje es-
tão no Louvre !
- Mas afinal estão no Louvre ?!
- 102 -
Sim, porque lá se entra depois que se morre ...
Seguí o conselho . Acreditava na sinceridade do
velho artista e ainda mais na sua colossal experiência .
Enviei o " Phantasia " .
Durante longos dias, em aflitiva expectativa, es-
perei o julgamento .
O "Salon " fazia-me medo . Recusado, temia a dú-
vida que nasceria em minha alma .
Afinal, chegou o dia.
O meu quadro fora aceito, por unanimidade de vo-
tos, pelo Juri da Nacional .
Pela segunda vez, um artista brasileiro consegui-
ra a dificil entrada naquele "Salon" onde não impera-
va o empenho, onde não se impunha a proteção das Em-
baixadas . Visconti e Parreiras foram esses artistas .
Não devo ocultar que foi imenso o meu júbilo.
Deu-se ainda uma circunstância que ainda mais
justificou a minha alegria ; o meu trabalho de estréia
foi colocado na - cimaise o que só se obtinha de-
pois de anos no " Salon " .
Iniciando-me como pintor de nú, tive que conti-
nuar a expô-los e assim fiz sempre Com "Phanta-
sia" em 1907, com " Phrinéa " em 1909, "Dolorida " em
1911 , " Flor Brasileira " em 1913, " Nonchalance " em
1914, "Modelo em repouso " em 1920 .
Na Europa, ninguem me conhece sinão como pin-
tor de nú . Nunca enviei ao " Salon" uma paisagem -
a não ser "Calme du Soir " .
Calme
du
Soir Salon
" Paris
1909
- -
— M
)(Paulista
useu
1907.
P
Saris
" alon
Fantasia
- —
Frinéa P"
Saris
alon (Galeria
)1909.
Lima
Oliveira
Dr.
- -
Dolorida Paris
"
S
" alon 1911
-
Flor Brasileira. — "Salon" — Paris — 1913
"alon
S
Nonchalance 1914
Paris
-
em
repous
Modeloo P
"
S aris
1920
alon
— -
Flor
.
mal
do "
" Paris 1920
— Salon- -
VERDADES
Terminada a "Fundação do Rio de Janeiro ”, vim
expô-lo no Brasil onde pouco me demorei, regressando
à França para executar três quadros históricos, "Fun-
dação de São Paulo ", " Instituição da Câmara Munici-
pal ” para a Prefeitura de São Paulo e " Fundação de
Niterói ", para a Prefeitura de Niterói .
Ao chegar a París , deixei o atelier da rua Boisso-
nade, e me instalei em outro, de grandes dimensões, na
rua Val de Grace, onde devia permanecer nada menos
de quinze anos .
Durante todo este tempo, de dois em dois anos vi-
nha ao Brasil, onde me demorava pouco .
Quando em França , de vez em quando, principal-
mente nas proximidades do outono, deixava París e ia
respirar um pouco o ar do campo . Assim, pude conhe-
cer quasi toda a República . Outras vezes deixava Pa-
rís, e ia percorrer os paises próximos, como a Alema-
nha, Suiça, Inglaterra, Austria, Itália e Holanda .
Não vão imaginar que essas viagens eram reali-
zadas com luxo e grande conforto . Sempre viajei co-
mo um simples artista . Dos paises que percorrí, a não
ser o que de grandioso havia deixado o passado, nada
encontrei que fosse superior ao que se encontra no Rio
de Janeiro, a cidade moderna, a mais limpa, a melhor
iluminada, a que possue melhores meios de locomoção
e onde há incontestavelmente ótima educação . Como
cidade moderna, nada tem a nossa capital de invejar
das outras dos paises mais adiantados . Acresce que as
de primeira ordem se multiplicam espalhadas por um
vastíssimo território . Na Europa, em se saindo das ca-
pitais, é simplesmente pasmosa a diferença que se nota
em tudo. "Cérebro congestionado, extremidades para-
lisadas ...". Mas quando lá vamos, não saimos do cé-
rebro . Imaginamos por isso que tudo lá é bom, belo,
grandioso, adiantado . A dez léguas de distância de
― 104
qualquer capital da Europa, parece que qualquer des-
sas grandes nações está na sua primeira infância ...
Nas pequenas cidades, não há conforto de espécie
alguma .
Tudo que produz o campo vai para a capital .
O lugar onde se bebe em França o pior leite é na
Normândia !
Mas quanta cousa interessante, por essas grandes
aldêias que conservam o carater primitivo de éras re-
motíssimas !
São quadros que se multiplicam durante quatro
vezes em um ano . Um trecho de paisagem pintado no
outono, pode ser repetido na primavera, no inverno,
que ninguem imagina ser o mesmo . A Suiça, então, pa-
rece ter sido destinada aos pintores de paisagem .
Mas, que horror ! Jamais ví lugar mais imundo,
mais desprovido de conforto do que uma aldêia na alta
Suiça !
Na Córsega, deixando-se a cidade, não há necessi-
dade de procurar o que pintar .
E' arrumar o cavalete e pintar o que está na fren-
te, ou dos lados . Mas há uma grande dificuldade, prin-
cipalmente para os lados de Sartena : é poder traba-
lhar ... sem ser apedrejado pelos garotos ou maltrata-
do pelas mulheres .
Apedrejado um dia em Sartena, fui me queixar à
polícia . Fizeram-me acompanhar por um soldado .
Mesmo assim, se não fomos apedrejados, tivemos que
ouvir os mais grosseiros insultos .
Se me viam em um canto de rua, a pintar uma das
belíssimas vielas que datam do XII século, insultavam-
me lá de cima das arcadas . Os pequenos me cobriam
de lixo . No dia seguinte, quando voltava, o lugar onde
havia armado meu cavalete, estava transformado em
uma cloaca ! As crianças metem nojo ; as mulheres,
medo .
Não creio que na mais remota aldêia de selvagens
africanos se encontre gente mais perversa .
E nós ainda censuramos, as selvagerias dos nossos
roceiros . Eu viví entre eles, e nunca me hostilizavam ;
antes abrigavam-me carinhosamente sob o teto colma-
Paulis
Prefei
Paulo
São
de
Fundatatura
ção
Paulista
.P
derefeitura
Paulo
São
Municipal
Câmara
da
Instituição
A
- lpinien
.Saint— Cemitério
,Século
XIII
Casas em Piane - Córsega
Uma rua em Soterne Córsega
-105
do das suas cabanas, repartindo comigo, sem nenhum
interesse, o pouco que tinham .
Nessa existência assim passada ora no Brasil, ora
na Europa, os anos foram correndo.
REPÚBLICA RIO-GRANDENSE
Depois da execução dos quadros encomendados,
regressei à Niterói e tempos depois seguí para o Esta-
do do Rio Grande do Sul, onde fui realizar, em Porto
Alegre, uma exposição .
A população da bela cidade riograndense não esta-
va ainda habituada a estas festas de arte.
Estava em construção o Palácio Presidencial, cujas
obras foram confiadas a um brasileiro que entendia
não haver no Brasil um operário capaz de fazer uma
porta de estalagem .
O arquiteto era um meninote parisiense, que vi-
via em París, onde recebia do Brasil um fabuloso orde-
nado !
Quando pretendí fazer um quadro histórico para
ornamentar um dos salões do palácio, encontrei no tal
engenheiro brasileiro tenaz oposição .
Infelizmente para ele e felizmente para mim, ha-
via em Porto Alegre um homem que não pensava assim ,
cujo prestígio extraordinário se impuzera pelo seu real
merecimento e incontestavel honestidade . A este ho-
mem, ao qual o Estado do Rio Grande deve o seu enor-
me desenvolvimento e Porto Alegre a sua extraordiná-
ria belesa como cidade moderna, me dirigí expondo a
minha justa aspiração . E pelo Dr. Borges de Medeiros
fui atentido, a despeito da má vontade do tal secretá-
rio e engenheiro de pontes e calçadas, formado em Pa-
rís. Fui encarregado de pintar a grande tela " Procla-
mação da República Riograndense".
Concluido o trabalho, fui pessoalmente, entregá-lo
ao Dr. Borges de Medeiros, em Porto Alegre .
Encontrei o palácio ainda em construção, mas de
lá tinham saido, não só os operários estrangeiros, co-
mo o tal engenheiro . Eram brasileiros que lá estavam,
por determinação do Dr. Borges de Medeiros .
108-
Satisfeito com o trabalho por mim executado, ad-
quiriu ainda para o Palácio da Biblioteca de Porto Ale-
gre, o meu quadro histórico- "Prisão de Tiradentes",
e confiou-me a decoração do salão de festas do Palácio
Presidencial .
Embora de grande simplicidade e modestia, essa
decoração, só em París eu a poderia executar, tais as
suas grandes dimensões .
Ao terminá-la, estalou a guerra na Europa .
Do dia para noite, París se transformou . París,
sem soldados . París sem armas . París sem munições,
pois que a França não esperava ter de se bater.
Disto sabia bem a Alemanha, pois em cada canto
de França tinha um espião .
Certa de cair de surpresa sobre ela, arrogante-
mente a Alemanha avançou sobre París, para ferí-la
de morte . Esperdiçando munições, que se espalhavam
pelos campos, derrubando casebres, decepando árvores,
como um furacão, o xército alemão avançava quilô-
metros e quilômetros por dia, certo de no prazo máxi-
mo de onze dias estar Guilherme em París .
Enquanto isto, a França se armava . Tudo porém
estava por fazer, e foi preciso que as fábricas indus-
triais se transformassem, como por encanto, em usinas
de guerra.
Mas o tempo era pouco . Não se transformam
oficinas industriais em fábricas de canhões e balas , de
um dia para outro . A Alemanha, forte, armada até os
dentes, pois há quarenta anos se preparava, avançava
rapidamente .
Foi então, que, com espanto de todos, se viu este
formidavel exército parar, detido pela Bélgica . E du-
rante vinte e um dias, a Alemanha não avançou um
passo !! Quando conseguiu fazê-lo, a França já estava
de pé, e na frente dela - Joffre . De París, porém, já
se ouvia o éco dos canhões alemães ..
París às escuras, esperava a invasão . O silêncio
havia substituido o ruido e a apreensão, a alegria rui-
dosa .
Joffre, calmo, impassivel, aguardava . A Alemanha
avançava a passos de gigante. Passou como um fura-
cão . Compiègne, levantando nuvens de pó, no meio de
um formidavel ruido . Guilherme preparava-se para
entrar em París . Joffre deixava-o aproximar-se...
Quando ele, porém, já estava às portas da cidade, Joffre
Proclamação
República
da
Presi
Farrapos
dos
dencial
.P.
Grande
Rio
Sul
.do
.
Tiradentes
de
Prisão Presidencial
P.
Grande
do
.Rio
Sul
José
.Peregrino Revolução
.
1817
de .
Norte
do
Paraiba
P.
Presidencial
da
- -
Frei
Miguelino
. de
.
1817
Revolução
Republicana Norte
do
Rio
Grande
Presidencial
P.
-
109
The saiu à frente . Fê-lo recuar, fugir em debandada
pelo campo, pelos caminhos, ainda mais rapidamente
do que tinha vindo . A França estava salva da comple-
ta ruina à qual a havia condenado a ambição da Ingla-
terra, invejosa e temerosa da prosperidade da marinha
alemã (leia-se o discurso de Lloyd George, de 4 de
Agosto de 1914) .
E durante todo este tempo estive em França, ten-
do atravessado duas vezes o oceano onde, no escuro da
noite, andavam os submarinos .
Finalmente, a paz chegou e de novo París come-
çou a viver . Os " Salons" se abriram e em 1920, enviava
eu o " Modelo em repouso" e preparava-me para regres-
sar ao Brasil . Já havia executado — "José Peregrino ",
para o governo da Paraiba do Norte, trabalho que me
foi encomendado pelo Dr. Camilo de Holanda, então
Presidente daquele Estado e " Frei Miguelinho " para
o Rio Grande do Norte, que executei por encomenda
feita pelo Dr. Ferreira Chaves .
Chegando ao Brasil, recebí do Dr. Afonso de Ca-
margo a incumbência de pintar em grande tela — "As
Cataratas de Iguassú " para o Palácio Presidencial de
Curitiba .
IGUASSÚ (*)
Por enquanto não se poderá, ainda, considerar a
viagem às Cataratas do Iguassú uma excursão agra-
davel . Nada há organizado para que assim seja .
Tomando-se mesmo o caminho mais curto, aquele
que tomei, via Uruguaiana-Argentina, a viagem é pe-
nosa, incômoda .
Durante todo o percurso desta viagem, cheia de
baldeações, quer no Brasil, quer na Argentina, os ho-
téis são detestaveis .
Mas tudo que se sofre, e mais que fosse, é larga-
mente recompensado por dez minutos que sejam de
contemplação dos Saltos .
Mesmo que todo o trajeto fosse feito a pé, através
do alto sertão do Paraná, valia a pena fazê-lo, pois que
no fim, rapidamente tudo se esqueceria ante o indes-
critivel espetáculo que se depara naquele extremo do
Estado do Paraná . Nada pode haver de mais belo, mais
imponente, mais fantástico, do que os Saltos de Floria-
no, de Santa Maria e da União.
A subida do Rio Paraná é interessantíssima . Ele
é mais belo do que o Amazonas . As paisagens das suas
altas margens são de uma variedade infinita e de uma
belesa surpreedente .
Sobe-se, tendo-se sempre do lado esquerdo o Pa-
raguai e do lado direito a Argentina, até à foz do
Iguassú .
Ambas as margens estão crivadas de portos, ins-
talados em altíssimas ribanceiras . Bandos enormes
de borboletas, verdes, amarelas, vermelhas, enchem as
margens do rio ; esvoaçam em bando, pousam rente à
agua . As verdes em um grupo, as amarelas em outro,
as vermelhas em outro, unidas formam como uma
(*) Já publicado no "Jornal do Comércio".
— 112 -
grande bandeira estendida ao sol . As três cores jamais
se misturam !
Durante a noite, a viagem é cheia de uma poesia
triste . Na agua calma e brilhante do rio, miram-se as
estrelas, formando um segundo céu .
Quanto mais se sobe, o rio mais belo é.
Estreitam-se as margens, projetando na agua
sombras aveludadas, só deixando ligeiro filete claro,
onde se esmaecem as estrelas, que brilham extraordi-
nariamente na parte escurecida do rio.
Dura esta encantadora viagem, que seria uma de-
lícia si os vapores não fossem um conjunto de pran-
chas velhas, imundas, quatro dias e três noites .
Ao chegar à foz do Iguassú, veem-se a Argentina,
o Brasil e o Paraguai, somente separados por estreito
canal .
Ao ancorar-se no porto da cidade de Iguassú, o as-
pecto é desolador . Tudo deserto ; do homem apenas o
vestígio, num trilho barrento que sobe a colina e uma
lancha abandonada, meio submergida, atestando a
nossa incúria .
Subindo o íngreme e barrento caminho, ao chegar
ao alto, descortina-se todo o povoado . Os campos são
verdes, as ruas vermelhas e as casas brancas ! O as-
pecto é triste . Tem-se mais a idéa de se achar num
acampamento onde não houve preocupação de arrua-
mento, de que numa cidade .
Logo, porém, que se a deixa, começa então a parte
mais bela da viagem. A natureza em seu pleno domínio
impõe-se .
Entra-se numa imensa floresta, cujas árvores gi-
gantes são de tais dimensões, que uma só daria para
fazer com seu tronco um barco para atravessar o ocea-
no . Caminhando por entre elas o homem é ridicula-
mente pequeno .
Ví esta floresta ao cair da tarde .
Ví-a depois, já no fim da viagem, à noite .
A floresta gigante parecia sair do cháos . No pri-
meiro plano, as árvores se afiletavam de prata nos seus
rendilhados contornos . A lua enchia com sua luz clara,
branca e fria, toda aquela imensa selva de uma poesia
misteriosa .
Não era porém silenciosa a mata colossal . Ecoava
por toda ela o formidavel estourar de uma tremenda
tempestade ...
L
Floresta
virgem Alto
Paraná
-
— 113
Era o rugir dos " saltos " que ainda estavam a doze
quilômetros !
Tal era o horrivel estridor, que a todo momento eu
esperava vêr surgir na volta da picada o branco lençól
das cascatas ; e assim caminhei até que ví as últimas
grandes árvores destacarem-se no céu cheio de estre-
las e claro luar .
Cheguei então ao alto de uma colina .
Ao longe, entre as árvores, brilhava uma luz : era
o pousadouro na Argentina . Perto, um clarão ilumina-
va a estrada : era a pousada do Brasil .
Descortinei então todo o panorama das cataratas .
Imensa floresta vinha terminar em uma mura-
lha de granito de uns 40 metros de altura . O rio Iguas-
sú fragmentado em grandes lençóis de espuma, preci-
pitava-se por diversos grotões da muralha . Ao longe,
como o penacho de um vulcão, imensa nuvem se erguia
e se desfazia, lá em cima, no céu . Era a evaporação
dos saltos Floriano, Santa Maria e União .
E' claro que não pude dormir toda a noite .
A impaciência devorava-me .
Apenas clareou o dia, pude então observar o que
me cercava . Uma floresta até o horizonte, escura e gi-
gantesca . Cortando-a, duas enormes muralhas de gra-
nito perfeitamente verticais, formando um tenebroso
corredor . Lá embaixo ,entre enormes rochedos, o rio
Iguassú passando em agua volumosa, depois de haver
dado o salto descomunal .
Escorrendo pela muralha, em brancos panos de
espuma, as aguas do Iguassú branquejavam do lado da
Argentina, formando belísismas quedas .
Para poder, porém, observar toda a majestade dos
saltos , é preciso descer ao fundo do perigoso corredor,
e ficar à margem do rio .
Raros são aqueles que lá se animaram a ir . Creio
que eu fui o quarto.
Os viajantes que lá vão deixam-se arrebatar pelo
panorama, pelo conjunto visto do alto . Erram. Para
vêr o rio Iguassú desprender-se lá de cima e precipitar-
se no insondavel abismo, que há séculos cavou e cava,
fazendo tremer a terra, enchendo o ambiente de es-
pessa neblina, é preciso descer quasi ao nivel de suas
aguas, e procurar a vizinhança dos saltos até onde a
pulverização permitir (700 metros do Salto União) .
— 114 -
Para aí chegar, precisei conseguir, a alguns quilô-
metros abaixo, uma descida, por brecha da muralha .
Descendo, supunha ir encontrar caminho pratica-
vel . Puro engano . Formidaveis rochedos rolados do
alto da muralha, descobertos pelas enxurradas, mar-
geavam o rio . Nem um palmo de terreno plano . Mas
tinha projetado ir até o fim do corredor, e sem ligar
importância ao perigo que corria, de rochedo em roche-
do, caminhei durante três horas, até que pude enfim
chegar onde de mais perto se podem vêr as cataratas .
E que ví ? O que de mais belo jamais ví ou verei.
Do alto do céu azul, parecia que se desprendiam três
imensas massas dágua as quais se precipitam com a
impetuosidade de 18.000 metros cúbicos por minuto,
no abismo mais medonho, mais horrivel que a mais
fantástica imaginação poderia criar !
Das bordas deste sorvedouro, que deve ter cente-
nas de metros de profundidade, subia uma nuvem es-
pessa dágua pulverizada e efervescente, e nela se cru-
zavam arco-iris em todas as direções . Sob esta abóba-
da de tão finíssimas tintas, milhares de andorinhas
doudamente banhavam-se na chuva de rubís, de esme-
raldas, de topázios , que se formavam à luz do iris, nos
filetes coloridos da agua, que em desprendidos rosários
se destacavam das árvores, que tremulavam nas hastes
finas dos hervais que revestiam as altas penédias .
Não sei o que sentia . Não posso, e creio que nin-
guem poderá descrever ou pintar, aquilo que alí eu ví.
Era como o oceano, de cujos milhões de vagas só se
pode pintar uma só vaga e essa mesma sem a transpa-
rência, sem o movimento, sem a côr.
Era tão forte a impressão, que dos olhos, em fio,
me corriam as lágrimas .
A meu lado, aterrados, os meus três camaradas
olhavam verdadeiramente espantados .
Três horas depois , esses valentes haviam condu-
zido por um cabo todo o material de trabalho e em uma
furna improvisaram o rancho . Eu havia resolvido dalí
não sair, sem fazer um " estudo" detalhado em extre-
mo, do que tinha ante mim.
Eu não direi a luta, as dificuldades que encon
trei . Jamais e durante quasi quarenta anos de vida ar-
tística, nunca me achei ante trabalho tão dificil . E o
que fiz não passará jamais de uma pálida e deficiente
imagem do que lá está . Consola-me, porém, a certeza
115
de que ninguem tambem o conseguirá . Há cousas tão
grandes, tão extraordinárias, tão majestosas, que não
podem caber na pequenês de uma tela, no trabalho de
um homem, por mais genial que seja .
De minuto a minuto, tudo aquilo se transformava,
mudava a côr, modificava a linha . Era sempre um es-
petáculo novo, imprevisto . As neblinas, desdobrando-
se pelas encostas, formavam paisagens as mais fantás-
ticas, as mais belas, grupos estupendos de bizarras e
agigantadas figuras que lá iam voando, em bandos ,
subindo, coloridas pela luz do sol, fundidas depois nas
sombras azuladas dos grotões .
Eram chuvas de rubís, de esmeraldas, de topázios,
caindo no leito encrespado e espumante do rio, a correr
vertiginosamente pelos rochedos, pelos mármores de
todas as cores, granitos de todos os tons alí amontoa-
dos , brilhantes a escorrer agua por todos os lados .
Impotente, alucinado, intoxicado pelo café, exci-
tado pelo fumo, os meus nervos pareciam estalar . A
impaciência fazia com que o "fusain" se me quebrasse
nos dedos e áspero arranhasse a superfície branca da
tela .
Eu me sentia aniquilado . De que me serviam per-
to de quarenta anos de estudo, de observação apaixona-
da, sincera e constante da natureza ? De que me servia
o que aprendí nas academias, nos museus do velho mun-
do ? De nada, de nada ! Eu tinha na minha frente o con-
junto de todas as belesas, e a minha mão já calejada
pelos pincéis , nada produzia e os meus olhos já habitua-
dos a tanto observar, nada viam ...
O meu cérebro recusava-me luzes ... Os meus
olhos desmesuradamente abertos nada apreendiam .
Não podia interpretar o que via e, entretanto, gravada
na alma tinha a arrebatadora visão .
Sentia-me dentro de mim, integral em toda a sua
plenitude, com todos os seus encantos .
Veiu a noite e eu, exhausto e alucinado, torturado,
humilhado, continuava sobre os rochedos a observar .
Para que fiquei ? Para que não me afastei dalí?
Ensurdecido pelo rugir das cataratas, molhado pela
pulverização dágua não me podia afastar . Ví cairem
as trevas, depois ví as grandes muralhas do lado da Ar-
gentina que se ilumniaram pelos raios da lua que sur-
gia no céu do Brasil . Os camaradas haviam se acon-
chegado à cavidade das rochas e dormiam .
116 -
A fogueira pouco a pouco foi se extinguindo .
Só, já não ouvindo mais nada, isolado no meio da-
queles rochedos, sentí-me como arrebatado a novo pla-
neta . Eu não estava na terra, tinha penetrado em igno-
to paraiso .
Achava-me num ambiente todo de neblinas, onde
tudo era incorpóreo, diáfano, transparente, sutil, va-
poroso .
Os rochedos, os grandes lençóis dágua, tudo, tudo,
parecia feito de neblina. Nem um só tom forte, acen-
tuado. Somente, lá em cima, um raio de lua iluminava
a coluna formada pela poeira das aguas e um reflexo
dessa luz de prata batia sobre a cabeleira ondejante dos
Saltos . Tocadas por ela, formavam-se na neblina arca-
das de gaze finamente coloridas, para deixarem passar
sob elas o Iguassú, espumante, a rugir, maravilhoso e
sublime !
ANGELUS
Logo após a execução do quadro encomendado pe-
lo governo do Paraná, isto é, " As Cataratas de Iguas-
sú" fui encarregado pelo Governo Federal de decorações
do salão de honra do Instituto Nacional de Música, tra-
balho que me foi entregue por iniciativa do meu queri-
do e velho amigo dr . E. Cardim, que era o oficial de
gabinete do Dr. Alfredo Pinto, então ministro da Jus-
tiça .
Executadas em París as decorações do Instituto,
regressei definitivamente ao Rio de Janeiro, depois de
me ter ligado, em segundas núpcias, à D. Lucienne
Martigné .
Assim, haviam passado cerca de dezenove anos da
minha existência ora no Brasil, ora em França .
Percorrí a Europa nada menos de três vezes . Do
que observei durante tão longos anos, não posso dizer ;
é uma tarefa superior às minhas forças .
Demais, teria de desfazer muita fantasia, princi-
palmente sobre París, da qual tenho lido cousas que
estando lá tantos anos eu nunca ví . Para que destruir
essas histórias de " Mil e uma noites " ?.
Melhor será que me ocupe de cousas mais simples ,
mas verdadeiras, como de uma visita feita à Chaumiè-
re de Millet, em Barbizon .
Um dia de primavera, o Barão e a Baronesa N ...,
de sua esplêndida morada em Passy, convidaram-me
para ir à Fontainebleau , visitar o palácio onde Napo-
leão I, havia se despedido dos seus generais, quando,
próximo a ser vítima da traição da Inglaterra, partiu
para Santa Helena, e como no fim da floresta ficava
Barbizon, aceitei o convite .
Depois de visitar o histórico castelo, onde os meus
companheiros quiseram vêr até a privada de Napoleão,
pedí que, aproveitando os carros que estavam à nossa
118 -
disposição, me levassem à casa de Millet, que ficava em
Barbizon no extremo da floresta de Fontainebleau .
Rapidamente atravessámos a mata, admiravelmen-
te tracejada por esplèndidas estradas, e chegámos à
vila .
Ao penetrar na humilde " Chaumière" onde tanto
tinha Millet trabalhado, sonhado e sofrido, fiquei ex-
cessivamente comovido, principalmente quando pene-
trei na sala que servia de atelier, iluminada por uma
grande janela, externamente quasi invisivel pelos gran-
des e entrelaçados festões de uma trepadeira selvagem.
Como quem tem na sua frente relíquias, comecei
a vêr objeto por objeto, sobretudo uns "estudos" e
"apontamentos " .
Ao lado de uma grande mesa de madeira despoli-
da, rústica, como era tudo o mais, estava sobre um ca-
valete uma tela, onde apenas se via a indicação de uma
figura curvada .
Disse o guardião, velho camponês, que alí naquela
sala, tão pequena, tão pobremente provida de moveis,
Millet trabalhára por longo tempo no " Angelus " de-
pois de haver feito os " estudos " " d'après nature" .
Daquele rústico casebre, perdido no extremo de
uma floresta, saira uma das joias mais valiosas da
Arte .
Dalí sairam, das mãos de um artista supliciado pe-
las privações e repudiado pelos seus patrícios daquela
época, quatro palmos de tela que, anos depois, à França
avidamente procurou rehaver, depois de eles haverem
feito milionários ! O seu autor, no entanto, morreu na
miséria !
Vendo-me tão interessado, o guardião começou a
me falar de Millet, com quem convivera .
— Aquí eu o ví muitas vezes sentado para vêr
morrer o sol . Alí, triste e silencioso, passar horas e ho-
ras a ver o que ele só via... No jardim, sob aquela ma-
cieira, ele pintou " Angelus ". Aí está a pedra onde ele
se sentava para trabalhar, disse o velho mostrando-me
um grande bloco de granito, que se via junto ao tronco.
Deixe-me só .
E alí fiquei, sentado na mesma pedra, tendo na mi-
nha frente todo o cenário do Angelus .
A tarde morria .
O sol se ocultava já por traz do afastado campa-
nário .
119
Só faltavam as figuras contrictas, mãos em pre-
ce, a rezar baixinho ...
Mas eu as vi ...
Quanto tempo estive a vê-las ?
Não sei .
Não foi, porém, muito longo . Os meus companhei-
ros, que haviam entrado por uma porta e saido por ou-
tra, sem nada vêr, estavam impacientes .
Tive que atendê-los, morriam de fome ! Havia já
três horas que tinham almoçado fartamente !
- Que esteve fazendo nesse casebre velho ? Por-
que tem os olhos assim vermelhos como quem esteve a
chorar?
- Porque ví o Angelus .
Quem ?
O Angelus, senhora Baronesa, é um quadro .
E onde está que o não vimos ?
Nem nunca poderão vêr, mesmo vendo-o ...
Vamos jantar .
E, numa desfilada, os carros, puxados por fortes
animais, penetraram na floresta : Barbizon, triste e
isolada, perdeu-se em pouco tempo ao longe, entre as
névoas da tarde . Á direita e à esquerda, Fontainebleau
mergulhava-se nas trevas .
Maheinas
Orfeu Decoração do Inst. N. de Música ( fragmentos )
"Estudo" 4 Decoração do Inst. N. de Música
(Fusain) - Decoração do Inst. N. de Música
Estudo .N.
Inst
do
Decoração
Música
de
decoração
para
figura
de
Estudo
Música
N.
I.
do
FELIPPE DOS SANTOS
Logo ao chegar ao Rio de Janeiro, concorrí com oi-
tenta telas ao " Salão" . Indo a Belo Horizonte, pelo
meu brilhante e desventurado amigo Dr. Raul Soares
me foi encomendada a grande tela - Felippe dos San-
tos — Revolta Mineira em 1720 .
Já definitivamente estabelecido em Niterói, ape-
sar de todas as dificuldades que sabia ir encontrar, re-
solví pintar o quadro no Brasil . Não direi com que luta
conseguí arranjar modelos para poder trabalhar. Tive
que lançar mão de todos os meios para conseguir al-
guns , verdadeiros manequins que mais me embaraça-
vam do que auxiliavam . A mesma luta tive para obter
os costumes, que me custaram quantia fabulosa .
O mesmo, porém, não se deu com o cenário, pois
elementos preciosos para a sua reconstrução eu os ha-
via encontrado em Ouro Preto, onde há duzentos anos
se desenrolou a tragédia, cuja cena final me havia sido
dada para perpetuar em uma tela .
Em Ouro Preto, um artista, por mais operoso que
seja, encontra sempre cousas interessantíssimas para
pintar .
E' preciso, porém, ter boas pernas para galgar ín-
gremes ladeiras, de manhã à tarde .
Um dos pontos mais pitorescos de Ouro Preto, é
o abandonado arraial de Padre Faria . Lá fui por uma
bela manhã de sol.
Subí, subí, depois descí, descí, tornei a subir para
tornar a descer . Mas tal fadiga e esforço foram larga-
mente compensados, vendo o arraial de Padre Faria .
Do meu livro de notas e documentos para a com-
posição de meus quadros históricos, transcrevo o que
escreví para apresentar ao governo de Minas , caso fos-
se necessário justificar o cenário primitivo do meu tra-
balho .
122
66
.... ainda há, embora muito apagados, vestígios
vagos do que foi Vila Rica, em 1720 .
E' pouco, bem pouco o que resta do Calvário de
Felippe dos Santos .
Somente lá em baixo, no fundo dos grotões, nas
margens do rio, em algumas casas em completa ruina,
se encontram pedacinhos das primitivas habitações .
Esses vestígios mais se acentuam para os lados de
Padre Faria .
Positivam-se nas habitações que ladeam os cami-
nhos em rampas íngremes , os quais, outrora, depois de
derrubadas as florestas, que entre eles havia, ligavam
o arraial de Padre Faria ao de Antônio Dias .
Nesse caminho não há uma casa em plano hori-
zontal . Ou tudo sobe ou tudo desce . Parece uma rua
construida sobre uma imensa escadaria .
O calçamento dessa rua interminavel e original é
digno de admiração .
Ela começa cá em baixo, galga a montanha, desce
ao vale e termina afinal numa planície circundada por
altas serras .
Houve em quem fez este calçamento infantil a in-
gênua preocupação de arte o que se patenteia no arru-
mamento dos calháus de côres variadas, de granito, de
mármore, de argila prateada .
As aguas desceriam precipitadas em grandes len-
çóis pelas ladeiras, si previdente operário não as hou-
vesse habilmente canalisado, obrigando-as a se preci-
pitarem no rio, no fundo das grotas .
Nessa rua surge, aquí, um esteio de pedra . Alí,
um pedestal de cruzeiro, cujo braço mais longe serve
de degráu a uma cabana de sapé .
E esse caminho fatigante se prolonga, até que se
avista lá em baixo, rompendo a verdura, a esburacada
Capela de Padre Faria .
Das colinas verdejantes, da serra onde em nuvens
se embuça o Itacolomí, vem um ar puríssimo .
O ruido da cidade cessa .
O silêncio reina . Em redor da Capela, tudo em
abandono .
Nos braços do Cruzeiro, em fila, as andorinhas
quedam-se . Aquela capela fechada, esburacada e de-
negrida ; a praça invadida pelo mato ; a ponte que
desfaz, as ruinas que lá em cima negrejam e se desta-
123
cam no céu azul, amplo, infinito, teem um poder des-
comunal de subjetividade .
O passado vem ao presente .
O arraial de Padre Faria aparece naquele vale pe-
quenino, que se cava e eleva e sobe até lá em cima no
Itacolomí .
Ao lado da Igrejinha, o torreão com o sino, cujo
badalar tantas vezes ecoou pelos recôncavos daquelas
colinas, chamando os cavouqueiros à prece, ao tombar
do dia.
E eles desciam das pétreas encostas, onde passa-
vam o dia, dependurados à procura do ouro, que os sé-
culos arrancaram das entranhas da terra e com ele pol-
vilharam a face rugosa da montanha .
Na frente da Capela, o belíssimo cruzeiro, braços
abertos, como para receber a todos, braços habilmente
trabalhados em blocos de pedras do Itacolomí, precipi-
tadas do alto, a saltos de gigante, caindo com fragor no
fundo vale e de novo erguidas à custa de esforços de
dezenas de braços , fatigados de tanto esburacar roche-
dos, mas animados pela fé, que se abrigava na alma
rude daquela simples gente .
Desde 1756 que aqueles blocos de granito arroxea-
do, se transformaram em sagrado símbolo .
Dentro da Capela, tudo em ruinas !
A agua das tempestades listou as paredes de lágri-
mas longas, verdoengas .
• Mesmo assim, o ouro que reveste os altares brilha,
ofusca, como se de ontem fossem dourados aqueles
graciosos ornatos, verdadeiras maravilhas alí abando-
nadas à ação destruidora do tempo .
Ví uma preciosa lembrança de arte primitiva ati-
rada a esmo sobre a denegrida toalha rendada de um
altar . Promessa fervorosa de alguem que sofria
salvou pela fé. E' uma pequena tela pintada por mãos
inhabeis e datada de 1717. Aquela relíquia é um
documento precioso .
Guarnecem as paredes do templo, de superfície ru-
gosa, bizarros arabescos de côres desmaiadas .
Tudo alí tem o tom simpático da paleta dos sé-
culos .
- 124 1
Tudo alí se funde numa gradação de tintas suaves
misteriosas .
De vez em quando, tudo se aviva.
Um raio de sol, coado entre nuvens, entra pela abó-
bada fendida, através da qual se vê o céu alto, muito
alto, azul, muito azul, com nuvens acasteladas .
Dentro daquele santuário em ruinas, resto de um
passado que se perde, já muito ao longe, somos invadi-
dos por um estranho e piedoso sentimento .
Parece que a perversidade do homem, ficou lá fora,
apavorada pela imensa calma, pelo silêncio que reina
alí, entre aqueles altares, onde em imobilidade eterna,
estão a nos olhar umas imagens de olhos meigos e pa-
rados !
Uma piedade imensa pela humanidade surge . Tem-
se ância de perdoar a todos, esquecer todas as máguas
que fizeram sulcos profundos em nossa alma .
Sente-se a atração para junto daqueles Santos,
daquelas Virgens de manto azul estrelado, como para
um refúgio sagrado .
Cá fora, o sol ilumina uma face do cruzeiro que
se duplica na projeção da sua sombra ...
A ponte, de vez em quando, deixa cair a esfarela-
da argamassa ou uma pedra .
Pedra por pedra, voltarão assim ao leito do rio de
onde sairam há dois séculos, para formar a arcada,
sobre a qual havia um outro cruzeiro, que o tempo
derrubou ou que a mão vandálica do homem destruiu,
apenas deixando o pedestal que lá ficou agarrado des-
de 1751 .
O tempo já se assenhoreou de tudo, já começou,
como um ceifador cruel, a tudo derrubar .
A floresta já desce lá da serra . Vem pela colina
abaixo . Já transpôs o rio .
Quando o tempo tiver destruido tudo do que fez
o homem, ela finalmente se apossará de novo da terra
e vicejará de novo de onde a baniram há duzentos
anos !" .
Terminado o trabalho, o expuz no salão da Socie-
dade Brasileira de Belas Artes, como uma homenagem
aos meus colegas .
O
c
" rimeiro
Proquis
p arc
Felipe
dos
Santos
Mineiro
Congresso
.
Sant os Revoira
Mine—lução1720
dos
Feli pe
125
Eles se mostraram todos satisfeitos e por muitos
deles foi "Felippe dos Santos " classificado como o meu
melhor quadro histórico .
Depois do quadro ter estado exposto durante quin-
ze dias, sem ter sofrido o menor reparo desfavoravel
pela imprensa, fui pessoalmente entregá-lo ao Gover-
no de Minas . Já não existia Raul Soares .
Recebeu o meu trabalho o meu ilustre amigo Dr.
Melo Viana, então presidente do Estado de Minas, que
me encarregou de pintar o plafond do Palácio da Liber-
dade, para substituir outro que se havia estragado .
Pude sastifazê-lo como acontecera com "Felippe
dos Santos " . Estando em construção o Conservatório
de Música, encarregou-me de pintar o plafond da sala
de concertos e um painel decorativo .
TERRA NATAL
Oh! fantástica natureza da minha terra natal !
Contemplo-te e te bendigo oh ! Eden, onde passei
a minha mocidade .
Foi no cercado das tuas matas, nos teus despenha-
deiros, nos teus grotões, nas tuas praias banhadas de
luz, que me fiz artista .
Foi na íntima convivência contigo, ainda não pro-
fanada pelo homem, que aprendi a sintetisar-te com
teu carater selvagem, tua aparente monotônia de ver-
des ; o misterioso das tuas sombras cheias de côr, côr
sentida só pelos que estão habituados ao rápido con-
traste da luz imensamente forte e dura com o macio
aveludado das sombras transparentes .
Foi com a constante e apaixonada observação das
tuas belesas, que me tornei familiar com as tuas linhas,
como me tornára familiar com a tua côr, com essas
erectas colunas dos jequitibás , ou com os troncos tor-
tuosos, emaranhados em curva de serpente, que se
veem nas variadas ondulações dos retorcidos cajueiros .
Foi o sol das tuas praias desertas, praias imensas
de areia faiscante, que me ensinou a vêr, a sentir a tua
luz sem igual, luz tão intensa que produz a nostalgia
da sombra .
Mas tive que te deixar, num desvairamento de am-
bições e de glórias .
Do fundo dos teus grotões, do espesso das tuas
matas sem fim, saí para me encerrar em um atelier em
París !
Como custei a me habituar !
Manietavam-me, encarceravam-me aquelas qua-
tro paredes cinzentas . Entenebrecia-me a luz sempre
igual, fria, caindo do alto das grandes claraboias .
Faltava-me ar, luz, liberdade, dentro daquela am-
pla oficina, dentro daqueles muros, através dos quais,
num sussurrar contínuo, me chegavam o ruido dos car-
- 128
ros, dos caminhões pesados , gritos, vozear confuso, es-
tranhos silvos agudos e prolongados de locomotivas que
passavam bufando e escurecendo tudo com o seu pena-
cho enorme de fumaça negra .
Através dos vidros embaçados pela humidade, em
lugar das árvores de ouro dos ipés, ou arroxeadas das
quaresmas das minhas florestas, via galhos hirtos, ne-
gros, sem folhas , destacando-se num céu escuro, pesa-
do e baixo .
Do sol, às vezes, um pálido raio abria na parede
um círculo de luz, ainda mais branca, ainda mais fria .
E a saudade da mata virgem me enchia os olhos de lá-
grimas, olhos ávidos da luz de esmeralda das minhas
serras distantes .
Ás vezes, quando a luz escasseava e a neve caia
silenciosa e branca, como se desprendem os flocos as-
setinados das paineiras, sentava-me em frente à estufa .
Via então, alvas, lisas, batidas pelo sol, as imen-
sas praias do Sul ...
Ouvia o estourar das ondas franjando-se de rendi-
lhada espuma na arroxeada e chamalotada orla do mar.
Ouvia o cantar estridente das cigarras . Sentia o sol
abrazeando-me as faces, faiscando na areia, enchendo
todo o mar de escamas de prata ; e eu tiritava de frio...
Fitava tristemente o olhar no meu cavalete, no
1
meu parasol de campo .
Aproximava-me então daqueles queridos objetos,
companheiros inseparaveis de tantas viagens, de tan-
tos anos, agora inuteis e abandonados .
Acariciava-os e ficava a olhar embevecido o frag-
mento de terra que havia aderido às pontas ferradas
do cavalete ...
E não podia desprender o olhar ..
Era terra do Brasil ...
sol
Do
vezes
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pálido
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1924
Antônio Parreiras — 1924
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Salgueiros
1
Louco (D'apres nature)
Aretusa
(Fusain) Primeiros (fragmentos)
Estudo
Aventureiro espanhol - (fusain)
Evangelho nas selvas. - P. Presidencial do Estado
do Espírito Santo
Aventureiros (fusain - fragmentos)
1
Eis-me, enfim de, volta .
A primavera passou .
Passou o verão e o outono passou .
Chegou o inverno . O chão está juncado de folhas
sêcas .
Acolhe-me, oh ! minha terra natal .
Não posso determinar o número de telas que pin-
tei, nem tão pouco dizer onde elas estão .
Posso, porém, afirmar que a maior parte delas está
no Brasil .
Muitas há na América do Norte, na Alemanha, na
França, na Hespanha, em Portugal e na Argentina .
Com essas telas realizei 39 exposições no Rio de
Janeiro e 9 nos Estados do Norte e Sul .
Calculo, pelo que pude verificar nos catálogos des-
sas exposições , em 850 telas por mim pintadas, sendo
destas 720 executadas no Brasil.
Infelizmente me é impossivel dar de todas uina
reprodução .
No Brasil parecerá extraordinária tão grande pro-
dução . Na Europa não, pois muito longe fiquei de pro-
duzir em tão longa vida, toda consagrada à arte, o que
produziram dezenas de artistas na França e na Itália .
De 1926 a 1936
Na primeira edição interrompí a minha narrativa
em 1926 .
Não tinha nenhum propósito de continuá-la .
A maneira, porém, como foi aceita, os conselhos
que recebí de escritores notaveis, a edição em três me-
ses, completamente exgotada, modificaram o meu pro-
pósito .
Continuemos, pois .
Regressando ao Brasil não estranhei a mudança,
não me arrefeceu o entusiasmo como dizem que acon-
tece quando um artista, dos nossos, depois de algum
tempo na Europa, volta à pátria .
Não, não havia razão .
Em París, não fui receber lições . Não modifiquei
o hábito de viver isolado . Não me deixei atrair pela
boêmia revestida superficialmente de uma nota de arte,
que só materialisa , embrutece física e moralmente . Ti-
ve alguns camaradas em notaveis artistas .
Poucos .
Na Europa, eles não são muito familiares . Há-os
por milhares. Restringe-se a probabilidade de vitória...
As portas dos " Ateliers " não estão como as dos nos-
sos ; conservam-se mais fechadas do que abertas ... Só
mostram obra concluida . Ocultam as tentativas . Os
"croquis ", os mais vagos apontamentos, até o nome do
fabricante das tintas que empregam . Antes do "Sa-
lon" não dizem, não mostram o que vão enviar .
Esse coleguismo, essa íntima convivência tão pro-
palada pelos que aquí chegam, vindos da Europa, não
existe .
Entre homens que lutam pela glória, não é facil
encontrar tais sentimentos .
Os "Salons " se transformam em arena de lutas .
Mas, lá, como aquí se pode aplicar --
- "ôte toi de là que
je m'y mette " .
- 136 -
A guerra modificou por completo moral e mate-
rialmente o meio artístico em toda a Europa .
Desapareceram quasi por completo os fatores de
evolução artística . Os mestres sentiram-se em ambi-
entes refratários aos seus preceitos da arte . Áqueles
que possuiam algum preparo, e viam já um pouco além,
ficaram nos campos de batalhas . Os que surgiram logo
após, desorientados, falhos de conhecimentos teóricos
e técnicos quiseram impôr uma nova orientação, que
se baseava na obscuridade e incompreensão do assunto,
na incorreção da linha, na deturpação do colorido . Para
isto não precisava saber desenhar nem pintar ...
Podia dispensar-se os modelos profissionais, que
sem trabalho se foram . Do mesmo modo com a indu-
mentária, cujo rigor se tornava desnecessário onde
belesa, a correção de linha, a justesa e harmonia do co-
lorido foram banidos .
Os "Salons", fonte fecunda de ensinamentos e estí-
mulo, encheram-se de borrões detestaveis ; junte-se tu-
do isto ao meio exaustivo e intranquilo após cinco anos
de horrivel guerra, e, compreenderão que nenhuma van-
tagem poderia usufruir um artista americano em se
manter na Europa em tal momento .
Aquí podia eu contar com a esplêndida "Nature-
za", mestra, guia, manancial inesgotavel de inspira-
ções infinitas, com o inédito e originalidade dos costu-
mes, e, mais que tudo, com a calma absoluta, longe das
esmagadoras apreensões de uma guerra, ou da atrofian-
te e horrivel lembrança da que acabava de ensanguen-
tar a Europa, e a cujo princípio e termo assistí . Tinha
ainda aquí o carinho dos meus patrícios, que, na extre-
ma bondade cumularam-me de excessivas distinções, co-
mo nesses dez anos que se passaram de 1926 a 1936 .
Havia antigamente no início da praia de Icaraí um
alto cômoro de areia alvíssima e fôfa, sombreado pe-
los galhos de uma paineira em flôr .
Por alí passava diariamente, em caminho da Boa
Viagem, onde morava o meu mestre Georges Grimm.
Alí repousava, pois, era justamente meia viagem,
depois de longa caminhada começada ao fundo da res-
tinga junto aos morros onde morava .
Tudo era ainda êrmo, deshabitado .
"Busto", de Antônio Parreiras
― 137 -
Hoje do cenário antigo só se vê o mar a franjar-
se na curva da praia e no fim dele muito ao longe, as
montanhas do Rio de Janeiro .
Onde se elevava o cômoro e se aprumava a painei-
ra florida, sobre um pedestal de granito, o povo de mi-
nha terra natal mandou que se colocasse o meu busto
em bronze !
Lembro-me ainda . E como poderia esquecer-me ?
Foi no dia 23 de Janeiro de 1927, que alí estran-
gulado pela maior das emoções, ví, pela mão do prefeito
de Niterói, sr . dr . Vilanova Machado, despregar-se a
bandeira que velava o busto . Essa bandeira, suprema
glória, era a da minha grande Pátria ...
Lá fiquei cinzelado pela mão de Marc Robert a
olhar o mar .
Lá ficarei como atestado da infinita bondade, da
imensa generosidade do povo de minha terra natal .
Em Novembro de 1927, realizei uma grande expo-
sição na Escola Nacional de Belas Artes .
Foi solenemente inaugurada pelo sr. dr. Washing-
ton Luiz, presidente da República, que compareceu
acompanhado de todo o Ministério .
Entre os Ministros estava o sr . dr . Viana do Cas-
telo, que tanto trabalhou pelas artes quando Presidente
do Conselho Superior de Belas Artes . Assistiu tambem
a essa inauguração o Presidente do Estado do Rio de
Janeiro, sr . dr . Feliciano Sodré .
728
j mártires
dos
ornada
inconfidentes
partida
)(A
OS INCONFIDENTES
(Jornada dos Martires)
Em Juiz de Fora foi-me encomendado pelo sr . dr .
Luiz Barbosa Penna, um trabalho histórico para a Pre-
feitura .
O quadro representa a partida dos Inconfidentes,
que, presos em Vila Rica, pernoitaram em Matias Bar-
bosa, na fazenda da Soledade, propriedade do Coronel
Manuel do Vale Amado .
Comandava a escolta, que os conduzia o major Jo-
sé Botelho, homem perverso, que os mantinha algema-
dos até quando dormiam .
No quadro estão Gonzaga e Domingos de Abreu, a
cavalo ; áquele porque tinha elevada posição e vinha,
como todos os outros inconfidentes algemado, e, este
porque estava paralítico, ao ponto de só se conservar
sobre a sela com o auxílio de seu fiel escravo Nicoláu .
O cenário foi pintado do natural, pois ainda exis-
tia a casa e a capela onde pernoitaram os inconfidentes .
Possivel me foi, mercê de muito labôr, paciente e
demorado, determinar quais foram eles, a idade que
tinham quando se deu o fato e, ainda, de quasi todos
obter retratos, tornando assim o meu trabalho um do-
cumento raro e fiel .
Eram eles os seguintes : Paula Freire, Alvaren-
ga, Gonzaga, José Alves, Luiz Toledo, Resende Costa,
Vicente da Mota, Francisco Soares de Araujo, Cônego
Luiz Vieira, Padre Rolin, Manuel da Costa, Capanema,
Alves Maciel, Domingos de Abreu , João Dias Ribeiro,
Amaro Gurgel, Antônio de Oliveira Lopes, João Cha-
ges, Manuel José de Almeida, Domingos Fernandes
Costa .
Entregue o quadro de Juiz de Fóra, dediquei-me
exclusivamente ao trabalho encomendado para o Esta-
140 -
do da Baía, ainda ao tempo do governo do sr . dr . Vital
Soares .
O meu quadro veio restabelecer a verdade sobre a
Independência do Brasil cuja primazia se quer atribuir
a Pedro I.
O primeiro passo para a Independência no Brasil
foi dado na pequena cidade de Cachoeira na Baía, no
dia 25 de Janeiro de 1822 .
Nesse dia Rodrigues Falcão chega com sua tropa
áquela cidade, onde o dr . Antônio Rebouças, com al-
guns companheiros, havia preparado o ambiente para
proclamar a Independência .
Garcia Pacheco e outros patriotas se assembléiam
na casa de José Joaquim de Almeida e resolvem con-
vidar o povo a proclamar Dom Pedro, regente do Brasil .
Reunem-se os vereadores na Câmara, para consul-
tar o povo e a tropa que literalmente enchiam a Praça .
Chega à janela (a 1.ª do lado esquerdo) , o dr . Ma-
nuel Teixeira de Freitas que desfralda a bandeira da
comuna . E pergunta : " Se todos contentes estariam
caso se aclamasse S. A. R. -- Sim - respondem to-
dos a uma só voz .
Uma escuna portuguesa, que estava ancorada no
rio Paraguassú, começou a descarregar suas peças .
Pouco durou a ofensiva .
Foi a escuna tomada de assalto pelos patriotas .
Uma bala porém havia ferido mortalmente o tam-
bor-mór (negro) Manuel Soledade. " Foi , disse o sr. dr.
Bernardino de Sousa, secretário perpétuo do Instituto
Histórico da Baía, o primeiro sangue cachoeirano der-
ramado em holocausto à Liberdade .
No quadro, que mede vinte e quatro metros qua-
drados de superfície, quasi todos personagens são re-
tratos .
O cenário foi pintado do natural .
Para isto fui à Cachoeira .
Em deploravel decadência e pobresa imensa en-
contrei a gloriosa cidade-berço da nossa liberdade .
Lá ví, em ruinas, a casa da Comuna e o esplendido
Convento do Carmo .
Sabia que lá dentro, um homem sosinho, de ener-
gia fenomenal, lutava noite e dia para salvar aquele
141
portentoso edifício, e que ninguem mais do que ele me
poderia guiar na procura dos documentos de que pre-
cisava para compôr meu trabalho nas bases de segura
documentação .
Procurei a entrada principal do convento .
A porta estava apenas cerrada .
Entrei . Silêncio absoluto . Um jardim em abando-
no . Um grande páteo circulado de belas e carcomidas
arcadas, com listas, a limo, de um verde veronez . Por
elas andorinhas doudamente volitavam .
Atravessei salas, corredores, galerias e nem viv'al-
ma... Nenhum ruido, a não ser o produzido, pelos meus
incertos e cautelosos passos no ladrilho envelhecido, de
tons indecisos , desmaiados .
Finalmente deparei com uma porta aberta . Pene-
trei n'uma nave imensa, de um esplendor de ouro aver-
melhado, que cintilava nas arestas duras e agudas dos
arabescos .
Através de outra porta ví amplo compartimento
iluminado por grande janela rasgada alviçareira, para
o azul do céu . Um jorro potente de luz, em prolongado
facho, descia lá de cima e projetava- se sobre tudo, fa-
zendo os objetos surgirem da sombra projetada por
eles mesmos .
No ar fagulhas minúsculas de ouro esvoaçavam .
Por toda a parte um ambiente de ouro amortecido
em delicado contraste com as cavidades dos ornatos re-
vestidas de uma finíssima camada de poeira azulada .
Por todos os lados fragmentos de coluna, de capi-
téis, de painéis , de ornatos n'uma confusão de ambien-
te de "atelier" antigo quando de ouro liso e polido eram
os fundos dos quadros em que se destacavam ingênuas
imagens de virgens .
Uma enorme mesa de trabalho sobre cuja super-
fície não havia um espaço livre .
Tudo revestido de um branco imaculado . No ex-
tremo daquela mesa de trabalho , uma figura esplêndi-
da de linha, de carater, de côr e movimento . Fagulhas
de ouro haviam depois de esvoaçar no espaço, emara-
nhando-se na longa cabeleira negra, descido pelo hábi-
to esfarrapado e salpicado de gêsso .
Tão absorvido estava aquele singular obreiro que
só deu pela minha presença quando fiz um pequeno
ruido com os pés , à soleira da porta .
142
Voltou-se .
Toda a sua figura, admiravelmente bem construi-
da, destacou- se inteira do fundo escuro e movimentado
da sala .
Que admiravel e característica cabeça-erecta sobre
o pescoço esguío que surgia da túnica aberta sobre os-
sudo peito !
Olhos de um verde luminoso cintilavam naquele
semblante austéro no qual o tempo já tinha deixado os
seus sinais .
E a ação sintetisada naquele soberbo quadro ?!
Um homem só, pobre, miseravelmente pobre,
tentando salvar da completa ruina imenso templo de
mármore, de ébano e ouro erguido havia séculos !! .
- "Frei Margallo " .
JUBILEU
Como havia passado rapidamente o tempo ! ...
Como se envelhece depressa !
Cinquenta anos já decorridos do dia que n'uma
alegria douda me matriculei na Academia Imperial de
Belas Artes .
Quís festejar esse dia venturoso realizando uma
grande exposição de meus trabalhos em Niterói .
Cerca de dez mil pessoas a visitaram . Foi inaugu-
rada por uma comissão eleita pela Sociedade Brasileira
de Belas Artes , que me fez entrega de uma mensag❜m
admiravelmente aquarelada pelo meu colega Armando
Viana, assinada pelos seguintes artistas :
Rodolfo Chambelland - Henrique Bernardelli
Humberto Cozzo Álvaro Almeida ― Jurandir Pais
Leme Armando Viana Corrêia Lima Manuel
Santiago - Manuel Constantino Benjamin Portela
Sebastião Fernandes - Zacco Paraná ―― Carlos
Chambelland Evêncio Numes Francisco Manna
Edison Mota (pelo Núcleo Bernardelli ) — Odelli
Castelo Branco - Porciúncula de Morais - Haidéa
Santiago - Calmon Barreto - Nelson Neto - Arman-
do Leite - José dos Santos Oséas dos Santos
Euclides Santos - Carlos Rubens - Vicente Leite
Euclides Fonseca Gerson Azeredo Coutinho - Hé-
lios Selinger G. Wenning Albano Lopes de Al-
meida ― Luiz Kattembak - Fernando Martins - D.
Dias da Silva · Jordão de Oliveira Morel Soutello
Gastão Formenti - Mário de Queiroz Rodrigues
M. Funchal Garcia - João de Azevedo - Antonino
Pinto de Matos Hildegardo Leão Veloso Hans
Noebaner - Joaquim R. Ferreira - Giuseppe Garga .
Ihone C. Fausto - Afonso Lanza - G. Rheingantz
A. G. Girardet Heitor de Pinho Georgina de
Albuquerque -Lucílio de Albuquerque Moisés No-
gueira da Silva - J. B. de Paula Fonseca - M. Ca-
- 144 --
pellonch Luiz Fernandes de Almeida Júnior - J.
Del Vecchio - Príncipe Paulo Gargarini - Castro Fi-
lho - José Baía Campos - A. Costa - Leopoldo Go-
tuzzo - José Heitgen - Lucília Ferreira - Jaime
Ramos Anibal Matos Eugênio Latour - Manuel
Faria ― F. H. de Sousa Júnior - José Inácio - Ter-
ra de Sena - Augusto Luiz de Freitas - Honório Pe-
çanha - José Bernardo Cardoso Júnior -- M. Roque
Aluízio Vale S. U. Romano Adalberto Matos .
Na rua da Boa Viagem nos baixos de um sobrado
velho, já lá vai para muitos anos, os discípulos de
Grimm, tiveram uma " República".
O sobrado apoiava-se num morro .
Agua a filtrar-se em tempo chuvoso, de limo verde
de diversas nuances, revestia as paredes .
Quem passava pela rua, acreditava que elas esta-
vam guarnecidas por velha tapeçaria, e como alí mo-
ravam pintores, viam nos limosos muros fantásticas
figuras, paisagens singulares, antidiluvianas .
Muito tempo naquele pardieiro que ficara a dois
passos da casa de Grimm moraram os seus discípu-
los .
Partindo Caron e Vasquês para París, protegidos
por negociantes do Rio de Janeiro, e Ribeiro e Câmara
para o interior, em companhia do mestre, a " Republi-
ca" desfez-se .
Inhabitavel , que já eram os baixos do sobrado
deixaram-n'o em abandono . A rua por muitos anos
continuou esburacada, barrenta, e, pela ladeira em
curva, flamboyants , de vez em quando, a revestiam de
um vibrante tapete de vermelhas flores .
Sabia-se em Niterói que entre os " republicanos”
da rua da Boa Viagem eu me achava .
A mocidade acadêmica representada pelo Centro
Acadêmico Evaristo da Veiga, propôs à Prefeitura de
Niterói que se mudasse o nome, de tantos e tantos anos
da rua Bôa Viagem para rua Antônio Parreiras .
ociedade asteita
De Bellas Heles
A o Grande Mestre da pintura Brasileira
professor Antonio Parreiras Homenagem dos
Artistas plastics.na Commemoração do seu Jubilen Helishes.
his ens
Rio deJaneirs 13 desembes 19
Rud
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Forciuncula Morney Wenning
Calmon. GebappeCargagline?
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M.Capi
mis Pescije Paulo Gagarina
10
7932
A mensagem
145
Prontamente a Prefeitura decretou, que em no-
me da cidade, fosse assim feito, inaugurando a placa
o próprio prefeito num ambiente festivo .
Na Academia Fluminense de Letras, realizou-se
uma sessão solene e na fachada de minha residência
foi colocada, pela Sociedade Brasileira de Belas Artes,
uma placa comemorativa do Jubileu com o meu retra-
to, escultura de Humberto Cozzo .
OS MESTRES
Pronunciado na Academia Fluminen-
se de Letras, na noite de 28 de Outu-
bro de 1932 - Centenário de Vitor
Meireles .
Sempre que alguem se encarrega de uma missão
semelhante à que me foi designada por esta Acade-
mia, começa em geral dizendo ser o encargo um sacri-
fício, um dever sagrado e dificil pela falta de compe-
tência . Comigo não se dá nada disso . Estou aquí, por-
que encontro nisso prazer e não sou um incompetente,
uma vez que tenho que tratar daquilo que há tantos
anos constitue minha única preocupação . O que venho
fazer aquí não é uma conferência, um discurso ; para
isso, sim, faltam-me totalmente qualidades . Venho
conversar familiarmente tal qual converso, com a
maior naturalidade, verdade e sinceridade .
Começemos, pois :
Qual o moral, qual o físico do homem que se
chamou Vitor Meireles ?
No físico, quando pela primeira vez o ví, era um
moço bonito, de cabelos anelados, de fisionomia ex-
pressiva, de olhos claros e de estatura pequena .
Quando o ví pela última vez, ele já se ia ...
Os cabelos muito brancos, emaranhados , longos,
contornavam-lhe a fisionomia pálida e desfeita . Os
olhos conservavam a mesma expressão meiga e bon-
dosa . As mãos já frias, que carinhosamente entre as
minhas conservava, tinham o mesmo esmerado trato .
No moral era uma simples criatura, de ingenui-
dade infantil .
Altruista, como jamáis encontrei, pois até da
Glória, esse tesouro inestimavel, desprendia-se facil-
148 —
mente, para repartir com os outros, ensinando-lhes,
sem reservas, os meios de alcançá-la .
Pelas crianças, tinha carinhos de pai, ele que nun-
ca o fôra .
Aos animais votava incondicional piedade .
Perante os pequenos e humildes, desprendia por
completo da sua grande superioridade moral .
Perdoar, para ele era dever . Fosse qual fosse a
falta, sempre encontrava meios para atenuá-la, justi-
ficá-la .
Modesto, duvidava sempre do valor das suas pro-
duções, valôr que fartamente encontrava nas produ-
ções alheias .
Mestre de competência rara, julgava-se sempre
um discípulo .
Victor Meirelles
O HOMEM
No tempo em que Pedro Américo e Vitor Meire-
les eram moços e alunos da Imperial Academia de Be-
las Artes, tinham ambos uma sala de trabalho, que se
defrontavam .
Pedro Américo viéra do norte .
Do sul, Vitor Meireles .
Caminhavam a passos agigantados para a cele-
bridade procurando suplantar-se .
Esta rivalidade, porém, não passava do terreno da
arte . Davam-se às vezes, entre eles, pequenos atritos .
Durava, porém, pouco a rusga . Faziam logo as pazes ,
para rompê-la em seguida por uma futilidade qualquer.
Um dia, estavam de relações cortadas .
- Para sempre, dizia Pedro Américo, que era ge-
nioso, violento, brusco e autoritário .
Até amanhã, replicava Vitor, que era manso
como um cordeiro .
No dia seguinte chegando ao seu improvisado
"atelier" viu na porta fronteira, que era a da oficina
de Pedro, escrita a giz, em grandes letras, as seguin-
tes palavras :
- "TODOS PODEM ENTRAR, MENOS VITOR
MEIRELES " .
A porta estava fechada .
Vitor bateu delicadamente .
- Quem é? gritou de dentro, Pedro .
Vitor, sem responder, bateu de novo .
Quem é? com mil diabos ! gritou com mais vio-
lência, Pedro .
Vitor sorriu e em lugar de responder, bateu nova-
mente .
A porta escancarou-se com estrondo .
Pedro, furioso , apareceu de palêta e pincéis nas
mãos .
150 --
-- Peço perdão por incomodá-lo, privando a arte
nacional por alguns momentos do seu genial cultor .
Deixemos de histórias ! Diga, diga o que quer?
- Que me faça um favor .
Qual?
- Emprestar-me um pedaço de giz . E' por um
momentosinho .
Pedro foi ao "atelier" e de lá voltou com um giz.
Ia se retirar fechando a porta .
Mestre, tenha paciência, eu já lhe restituo o
giz .
Sem dar tempo a Pedro de retirar-se Vitor escre-
veu na porta do seu "atelier ", em letras ainda maiores
do que aquelas que no seu fizera o colega:
"SÓ O GENIAL MESTRE PEDRO AMÉRICO,
PODE ENTRAR NESTA OFICINA DE UM POBRE
E MODESTO PINTOR".
Ambos, a rir, se abraçaram .
Vitor Meireles e o pintor belga Langerok, resol-
veram pintar juntos um panorama da cidade do Rio
de Janeiro, para figurar na exposição universal de
París em 1889 .
Depois de executados no Brasil os " estudos" do
natural, partiram para Bruxelas . Lá alugaram um
edifício apropriado à execução de panoramas e um pe-
queno "atelier".
Ficou este repleto com os "estudos " feitos no Rio
de Janeiro .
Durante a noite entravam muitos ratos , que pro-
duziam estragos nos trabalhos .
Langerok, que era um homem muito alto, claro,
louro e de olhos azues, deu o desespero, quando viu
os insignificantes estragos feitos pelos ratinhos .
A praguejar, jurava que ia adquirir as mais for-
midaveis ratoeiras de afiados dentes ; venenos os mais
atrózes, e que acabaria com todos aqueles nocivos ani-
mais .
Vitor, com a calma habitual, que tanto lhe havia
de servir no fim da sua triste vida, sorria .
- Não vejo razão para você ficar assim tão de-
sesperado .
Sim, sim! Mas eu é que não pintei paisagens
no Rio de Janeiro para os ratos comê-las em Bruxelas .
- 151
Mais trabalho dás tú aos teus semelhantes para
isso . Levam anos a engordar um boi para depois re-
duzí-lo a bifes para tí . De sol a sol trabalha o lavra-
dor para no fim de teu jantar, depois de teres o estô-
mago farto, saboreares a tua salada e ainda belos fru-
tos . E tudo isto obtens sem correres o risco de seres
envenenado ou morrer estrangulado entre os dentes
serrados de infernal armadilha . Espera, meu caro, sem
cometeres a perversidade de matares estes animaiszi-
nhos, prometo-te que jamais roerão tuas telas .
Dou-te três dias . Terminado este prazo, encho
isto aquí de ratoeiras e venenos .
A noite fria e brumosa passou ... Os ratos não
produziram estragos .
Não te dizia, Langerok?
Sim, não vieram, mas voltarão quando tiverem
fome .
Assim, porém, não aconteceu .
- Que fizeste Vitor?
Aconselhei-os a respeitar o trabalho alheio .
Naturalmente a explicação não satisfez a Lange-
rok .
Uma noite ele parecia dormir profundamente. Vi-
tor levantou-se . Cautelosamente dirigiu-se ao "ate-
lier". Espiava--o Langerok . Encaminhou-se para
armário . Tirou um embrulho . Continha de tudo : pe-
daços de queijo, carne, presunto, doces, toucinho . Dis-
tribuiu-os por trás das telas . Sorrindo bondosamente,
cheio de íntima satisfação, Vitor encaminhou-se para
o quarto, muito de manso, nas pontas dos pés para não
acordar Langerok, que supunha mergulhado em pro-
fundo sono .
Entrementes abre-se a porta de par em par . Nela
se emoldura a alta figura do pintor belga, envolto num
cobertor, cujas dobras caindo verticalmente ainda
faziam parecer mais alto .
- Ora, seu Vitor, assim virão morar aquí todos
os ratos da Bélgica !
Que mal haverá nisto, se não cometerem es-
tragos ? O que lhes dou não faz falta . São restos aban-
donados pelos que já estão fartos . Se todos fizessem
que fiz, mas em relação ao homem, não haveria pelo
mundo tanta gente a morrer de fome e outros de indi-
gestão .
152
Mestre Vitor, habituara a vir todos os domingos
a minha casa . Invariavelmente chegava às dez horas
da manhã . Entrava sem bater . Dirigia-se imediata-
mente ao "atelier " . Tirava a sobrecasaca que sempre
usava abotoada até o alto do peito, onde alvejava a ca-
misa e se destacava irrepreensivelmente a gravata es-
treita de setim preto em esmerado laço . Vestia um
casaco de brim . Dirigia-se familiarmente à sala de
jantar onde cuidadosamente lavava as mãos . Minha
filha, que andava pelos seus doze anos, esperava-o .
Beijava-lhe a mão . Servia -lhe o chá com torradas pol-
vilhadas com canela e açucar . Mestre Vitor, contava-
as . Deviam ser invariavelmente cinco, nem mais nem
menos . Terminada a ligeira refeição , depois de lavar
de novo as mãos , voltava ao "atelier " e do bolso in-
terno da sobrecasaca, embrulhadinho em papel de seda,
tirava um rosário de balas .
Aí tens , não comas todas de uma vez ; é a paga
das tuas torradas . Não gosto de dever nada a ninguem.
Levava a menina até a porta e beijava-a na tes-
ta . Desses beijos do mestre eu jamais me esquecí...
Depois de vê-la desaparecer, voltava ao " atelier",
fechava a porta . Reinava então na casa absoluto si-
lêncio . Surgia então o professor .
- Que fizeste durante a semana ? Mostra-me .
Patenteava-se então o incomparavel mestre de
vastíssimos conhecimentos teóricos e técnicos . Não
transparecia nas justas e sábias observações ostensiva
intenção de sua invulgar competência . Apontando er-
ros, mesmo assim estimulava .
Um dia, como vai longe esse dia ! ... Depois de
uma excursão tive ocasião de lhe mostrar variada e
numerosa coleção de sérios "estudos " feitos do natu-
ral . Paisagens e figuras .
Escuta-me, disse-me, depois de os ter visto com
apurada atenção, fazendo rodar o tamborete
meu lado . Aí estão fartos e variados elementos para
quadros históricos , porque não os pintas ?
Desejava, Mestre, mas já não é pouco querer
ser um paisagista .
Erras meu amigo ! Um pintor não deve espe-
cializar-se . A sua inspiração será algemada se o fizer .
Em pouco tempo se repetirá . A monotonia dos assun-
tos o fatigará .
Seguí os seus conselhos e as suas lições .
-153
O que fez comigo, fez com todos os artistas moços
que dele tiveram a felicidade de se aproximar . Mas,
desgraçadamente, entre eles, houve muitos de remar-
cavel ingratidão . Quando puderam caminhar sosinhos
esqueceram-se de tudo . Apedrejaram-no . Abandona-
ram-no .,
Por ter os cabelos brancos , afastaram-no do en-
sino artístico oficial, onde ainda tantos serviços pode-
ria ter prestado à arte nacional, esquecendo-se eles
que uma das melhores obras de Ticiano executou ele
quando tinha noventa e três anos de idade, e que Leo-
nardo pintou a " Gioconda" depois dos cinquenta anos,
assim como Laurens, os célebres "Homens do Santo
Ofício ", e que Miguel Angelo tinha sessenta e seis anos
ao pintar o " Juizo Final".·
Começou então para Vitor Meireles essa luta que
surge invariavelmente, sem discrepância, no fim da
vida de um artista, sob a pressão esmagadora das exi-
gências materiais .
Em geral são elas atribuidas à imprevidência de-
les . Não é isto aceitavel . Deve refletir-se que para
produzir obra de arte é preciso esquecer, embora mo-
mentaneamente, o resultado material . Se não for as-
sim, surgirá, impondo-se, o industrial, o negociante .
Na execução de uma obra de arte jamais se pode me-
dir, regrar tempo e despesas , porque não depende isso
da vontade do artista .
Se não pode calcular nem o tempo nem o material
que terá de dispender na execução de um quadro ou
de uma escultura, como regrar-se em relação à ques-
tão financeira ?
E' preciso ainda levar em conta o peculiar tem-
peramento de um verdadeiro artista . Em geral não
sabe somar, só sabe diminuir ...
Anda sempre a sonhar e desse sonho surge a visão
fascinadora da glória ... Concebida a obra, só pensa
em executá-la . Como e com que recursos, é com que
não se preocupa .
Disto deu provas Vitor Meireles .
E não se pense que foi só ' no princípio da carreira,
quando era moço, mas tambem ao lhe baixar por sobre
a cabeça o escurecido céu do inverno .
No primeiro panorama que executou representan-
do a baía do Rio de Janeiro por ocasião da entrada da
esquadra legal, trabalhou dois anos sem repouso .
154 -
A tela onde o executou, custou-lhe dezoito contos
de réis . Media doze metros de altura por cento e vinte
metros de comprimento, isto é, mil e quatrocentos e
quarenta metros quadrados . Gastou arrobas de tinta .
A rotunda, onde foi instalado o panorama, ficou-lhe
por quatorze contos !.
Exposto em París e no Rio de Janeiro, não produ-
ziu para pagar as despesas .
O que devia fazer, se o interesse pecuniário fosse
o único fim almejado?
Não pensar jamais em executar trabalhos de tal
gênero .
Assim não foi, e resolveu pintar um segundo pa-
norama .
Quando lhe chegou da Bélgica a famosa tela, es-
tava completamente falho de recursos . Longos meses
ficou na Alfândega, porque exigiam de direitos o preço
do custo. Requereu ao Congresso, isenção deles . O que
se passou naquela casa foi simplesmente vergonhoso .
Da tribuna da Câmara Barbosa Lima, deputado nortis-
ta, famoso pela facilidade da palavra, atirou ao pobre
artista, os maiores insultos chamando-o de borrador de
trapos , dado que no seu entender o eram todos os ar-
tistas brasileiros .
Dias, semanas, perambulou pelas ruas Vitor Mei-
reles . Até que, afinal, conseguiu que lhe emprestassem
dinheiro para retirar a tela .
Com a sofreguidão de um moço, cheio de entusias-
mo juvenil, atirou-se ao exaustivo trabalho . Mil e qua-
trocentos e quarenta metros quadrados de tela para
encher de belezas incomparaveis , de arte, mas baseada
na ciência honesta e grandiosa !
Eu o ví nesse momento, dentro da imensa rotun-
da, no ambiente de uma luz pálida e coada, fitando a
brancura do tecido e cheio de indômita coragem . 0
dorso revestido de uma camiseta de mangas curtas lis-
trada de branco e azul . Largas calças de brim . Pés
enfiados em sandálias de pelica . Em volta, dezenas e
dezenas de "estudos" .
- Vais me ver começar . Presta bem atenção . Vê
e cala-te . Alí está o meu calvário, disse-me, apontan-
do-me uma enorme torre, e, pela escada acima, a foi
galgando . E lá de cima gritou-me : é alto, não é
verdade ?
155
- Pequeno pedestal para vós, meu grande mes-
tre .
E o trabalho começou . O que se passou em mim
durante aquelas horas que ele trabalhou ? Vendo-o lá
em cima, dificil é dizer-vos . Mas daquele dia em dian-
te jamais recuei ante as mais árduas tarefas . Nunca
me atemorizaram as mais ingentes dificuldades . A co-
ragem daquele homem infiltrou-se-me n'alma para sem-
pre, e, quando ela se atenua pelas desilusões, pela luta,
invoco a figura enérgica que um dia eu ví lá em cima,
de palêta em punho, enchendo cheio de energia, cen-
tímetro por centímetro a imensa tela que, rodeando-o
na sua brancura, o envolvia de luz esquisita que o
transformava numa visão .
Meses e meses, sobre a altíssima torre, da qual
descia para logo após subir dezenas de vezes por dia,
afim de ver o efeito que da plataforma fazia o que lá
em cima executava, trabalhou .
Quando lhe reprovava a nova tentativa, respon-
dia: "Pois a França me deu uma medalha com o
outro que pintei ! " .
Quando acordou , estava na miséria, mas produziu
a mais bela, a mais verdadeira, a mais extraordinária
interpretação da natureza brasileira até hoje pintada .
Pelo que acabo de vos dizer sobre mestre Vitor,
facil será compreender o seu estado moral, esmagado
pela falta, pode-se bem dizer total, de recursos mone-
tários e guerreado atrozmente por um grupo de ambi-
ciosos vulgares .
Durou pouco o seu passageiro aniquilamento .
Enfrentou galhardamente a luta.
Insistentemente se reclamava do Governador da
cidade a retirada da rotunda onde estava instalado 0
primeiro panorama, classificado por eles uma obra sem
valor .
De velho e decrépito selvagem apodavam o glo-
rioso artista .
Tão grande foi a campanha, que, apesar de encer-
rar um trabalho premiado no estrangeiro, foi a rotun-
da retirada da praça, que continuou acampamento de
ciganos abrigados em sujas barracas de lona !
Assistí a tudo isso . Inutilmente procurei fazer ou-
vir os meus protestos enérgica e violentamente pela
- 156
Imprensa . Fui amarrado ao poste da ignomínia . Mas
eu era moço, tinha na frente a vida inteira e nada con-
seguiram sou o que quiz ser .
Havia entre os que mais violentamente guerrea-
vam os precursores da arte nacional um jornalista de
grande popularidade e bastante espírito, que além de
tudo dispunha fartamente das colunas de diversos jor-
nais . Haviam -no convencido de que o ensino artístico
estava sendo prejudicado pelos velhos professores da
Academia .
Morreu arrependido . Não lhe cito por isto o nome.
Teve, embora tardiamente, de verificar o aludido
jornalista como andava errado . Um simples fato obri-
gou-o a quebrar a pena que tanto maguára o glorioso
artista, cuja obra não conhecia .
Tinha um colega e amigo gravemente doente e em
extrema penúria . Apelou para a piedade pública, para
que o afeiçoado não morresse na miséria . Uma tarde
estava o jornalista à janela da sua residência provisó-
ria, em Santa Teresa, quando reparou num velhinho
que, apoiado ao guarda-sol, com grande esforço subia
a áspera e pedregosa ladeira . Ofegante parou o ancião
em frente à casa . Tirou o chapéu e depois de haver en-
xugado o suor, disse-lhe :
Olhe sr . X. , o sr . mora bem alto . Custei a che-
gar aquí . Lí nos jornais que um intelectual, um artis-
ta, enfim, está necessitando de auxílio . Lembrei-me
de vir aquí pedir-lhe o grande favor de, sem dizer da
origem, entregar-lhe isto . E' pouco, muito pouco mes-
mo, mas foi tudo que renderam as entradas do pano-
rama esta semana .
E colocando o envelope sobre o peitoril da janela,
sem dar tempo a X. para agradecer, num desusado es-
forço para a sua avançada idade, rápido começou a
descer a ladeira parando de vez em vez para respirar
e admirar o arroxeado cenário da baía, onde já ao lon-
ge faiscava o faról da barra na intermitência da luz
vermelha e branca .
No dia seguinte, eu, que não sabia do que se havia
passado, ao aproximar-me do panorama, encontrei-me
com X. , que dele acabava de sair .
Fiquei admiradíssimo vendo-o . Jamais lá havia
estado .
Criticava a produção do mestre sem nunca a ter
visto !!!
157 --
Então ?
Deixe-me ; estou deslumbrado . Fui uma besta
escrevendo contra a soberba obra que está alí dentro
e ainda mais maguando o seu glorioso autor.
Desviou-se bruscamente e, de cabeça curvada, pe-
sadão e grosso, atravessou a praça imunda em direção
à rua do Ouvidor .
Morreu muitos anos depois . Escrevia diariamen-
te em muitos jornais . De sua pena, porém, nunca mais
saiu uma palavra contra Vitor Meireles e contra as
suas produções .
"A obra, disse-o Zola, defende-se por sí mesmo " .
O ARTISTA
Vitor Meireles nasceu em Santa Catarina no dia
1.º de Agosto de 1832, e faleceu no Rio de Janeiro a 22
de Fevereiro de 1903 .
Desde muito moço se impôs pelo talento e pela vo-
cação para a pintura .
Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Ar-
tes, aos 15 anos . Aos 20 concluia o curso, tendo obtido
todos os prêmios, inclusive o de viagem .
Doze anos depois produzia " A PRIMEIRA MIS-
SA", considerado hoje como uma das mais preciosas
obras da arte brasileira .
Professor, não foi menor do que discípulo .
Deixou patenteada a sua grande competência nos
artistas que formou, entre os quais ainda hoje alguns
se encontram entre os nossos mais notaveis pintores .
A iniciação desses discípulos começou com o apa-
recimento da " PRIMEIRA MISSA", que foi classifi-
cada por um juri de celebridades estrangeiras , obra de
extraordinário valor artístico .
Os preceitos encontrados nesta soberba concepção
estão claramente positivados em muitas outras produ-
ções suas e nas de muitos de seus discípulos , principal-
mente na "Elevação da Cruz ", de Pedro Peres e ainda
nas pinturas do escultor Eduardo de Sá .
Pouco a pouco foram estes preceitos sendo aban-
donados nas produções de outros discípulos sob a in-
fluência de escolas estrangeiras às quais se submete-
ram, quando, na qualidade de pensionistas, longo tem-
po permaneceram na Europa .
158 -
Alí, fascinados pelo esplendor da arte estrangeira,
já no apogeu, alguns sacrificaram até a própria na-
cionalidade artística !
Então, me perguntareis, devíamos ter ficado
em Vitor Meireles, na " PRIMEIRA MISSA ", não se-
ria estacionar ?
Não . O que tínhamos a fazer era continuar a
ser brasileiros, individualizando-nos .
-E teríamos evoluido ? E teríamos conseguido o
carater nacional nas nossas produções ?
Sim . Não evoluiram os outros povos conser-
vando-o ? Na arte italiana moderna ainda se encontra
Giotto . Na francesa, antigos mestres dominam ainda,
embora parcialmente se tenha exagerado alguns de
seus mais acertados preceitos .
Não se vá, porém, supor que sou contrário à per-
manência de um artista brasileiro na Europa ou que
isto lhe possa prejudicar .
Seria reprovar o que espontaneamente tenho fei-
to . Não há possibilidade de progredir em arte sem co-
nhecer profundamente as evoluções por que tem pas-
sado . E, para tal, só há um meio: -estudá-la nos
grandes museus onde está representada desde o seu
Início, acompanhar seguidamente a sua evolução, sem
prolongada intermitência, e isso infelizmente não se
pode conseguir sem ir procurá-la no lugar em que se
encontra carinhosamente arquivada . Lá não fui sinão
para isto e para aproveitar tambem os elementos im-
prescindiveis à execução dos quadros históricos .
Jamais lá estive, porém, com o objetivo preconce-
bido de filiar-me à escolas ou adaptar-me à maneira
de um outro artista, o que positivamente considero
uma indignidade .
Depois que pude dispensar as lições técnicas dos
meus professores, não admití mais que se me viesse
orientar . Bôa ou má que seja a minha orientação, pou-
co importa, uma vez que em nela me encontre . Demais,
representa meio século de acurado estudo, de ingentes
esforços, de lutas tremendas e isso me põe ao abrigo
de receber lições .
Bem sei que é muito dificil resistir à influência do
que em arte nos impressiona fortemente e que se nos
impõe pelo seu valor real .
Infelizmente não se limitaram alguns a modificar
inteiramente a técnica acompanhando a evolução . Sa-
159
crificaram até a maneira individual de sentir, isto é :
- inutilizaram-se . Deixaram de aparecer nas suas
produções para nelas outros surgirem .
Mas, dir-me-ão, vivemos num meio de arte restri-
to, onde tudo parece estar ainda por fazer . Parece
procedente tal presunção, mas não é . Reconheço que
não temos ampliado como se podia o nosso meio artís-
tico, fazendo da arte uma constante preocupação . Fal-
ta-nos um dos principais elementos para estudo: -- OS
museus . O produto dos nossos artistas andam disper-
sos por lugares não apropriados . Entregues à des-
truição lenta, mas progressiva, pela falta de conserva-
ção . A " PRIMEIRA MISSA", de Vitor Meireles e mui-
tos outros trabalhos de diversos artistas notaveis che-
garam a ficar em frangalhos e eles estavam na pina-
cotéca da Escola de Belas Artes, e imaginem o que an-
da pelos outros estabelecimentos do governo e em mão
de particulares !
Mas tudo isso não nos coloca em posição inferior
a Portugal, e, no entretanto, Portugal já tem sua ar-
te . Lá, como aquí, repito, se aprecia mais um bom
ponta-pé numa bola ou um murro bem dado por um
imbecil na cara de outro imbecil, do que uma obra de
arte .
Os bons pintores dalí não são melhores do que os
nossos . Isto se verificou cabalmente porque os mais
notaveis aquí estiveram e exibiram as suas produções
e elas não atestaram sobre as que aquí se produzem,
superioridade alguma . No entretanto repiso : - Por-
tugal já tem a sua arte firmada em preceitos que con-
servam nela o carater nacional .
Mesmo fora do país natal o artista português con-
tinua a ser português . Sousa Pinto, vive há muitos
anos em París, e sempre manteve nas suas produções
o carater nacional . Malhôa, para mim, o artista mais
português de Portugal, o guia, o mestre de um grupo
de moços de talento, goza em França de grande no-
meada e jamais obra alguma sua deixou de ser
uma expressão da alma portuguesa, um pedaço do ve-
lho Portugal . E nas nossas veias há o sangue portu-
guês : Em nossa alma há a grande sinceridade, o idea-
lismo dos nossos antepassados , que eram portugueses .
E porque conosco não se poderá obter o que consegui-
ram os artistas lusitanos ? Falta-nos porventura alen-
to ? Não . Em todos os ramos de atividade humana
160
brasileiros surgiram impondo-se à admiração univer-
sal . Pedro Américo tem o seu auto-retrato colocado en-
tre as celebridades universais pela mão da Itália, berço
de todas artes . Porque não nos acreditamos capazes
de evoluir pelos nososs esforços, de acordo com nosso
modo de sentir ? Porque nos aviltamos a copiar, a imi-
tar, a reproduzir materialmente obras de artistas es-
trangeiros, velhas e novas ? Somos filhos de um país
onde não há o velho, o decadente, o esgotamento físico
e moral . Tudo que nos cerca começou há pouco a ger-
minar .
Por toda a parte a selva mais fecunda se manifesta
impetuosamente .
Tenhamos um pouco de perseverança . Façamos um
pertinaz esforço . Tenhamos, principalmente, sincera-
mente, confiança em nós mesmo e tudo florescerá
arte como em tudo mais .
Embora a minha dificil missão seja falar de Vitor
Meireles e da sua vasta-produção, não posso deixar de
parte Pedro Américo .
A arte brasileira surgiu verdadeiramente em 1850,
com Vitor Meireles e Pedro Américo . Já vitoriosa apre-
sentava-se na exposição realizada em 1880 .
"Antes disso o que se tinha feito e o que se fazia
não passava de coisa vulgaríssima, sem nenhuma ori-
entação .
Essa tão falada missão artística trazida por D.
João VI, é de duvidosa verdade .
Esses famosos Le Breton e Debret nenhum valor
tinham nem habilitações para reger uma aula de de-
senho ou pintura . Basta ver o que eles nos deixaram ,
que é simplesmente detestavel .
O mesmo não se pode dizer de Pedro Américo e
de Vitor Meireles . Dentro das galerias da escola estão
representados todos os artistas brasileiros pelas suas
principais obras, assim é de supôr, porque foram es-
colhidas por um juri de artistas para serem adquiri-
das .
Qual delas, embora, muitas de invulgar mérito,
suplanta em valor artístico o " Avahy " de Pedro Amé-
rico, a " Primeira Missa ", de Vitor Meireles, embora a
orientação e a técnica de hoje seja outra?
Nenhuma . Eu afirmo ".
Pedro Américo além de ser um genial artista, era
um conjunto perfeito de homem ilustrado .
Pedro Américo
1
- 161
Cheio de orgulho, jubiloso, ví-o carregado, aos om-
bros dos alunos da Escola de Belas Artes de Florença,
depois de se ter feito ouvir, sem prévio aviso, em lon-
ga preleção sobre arte .
Em Bruxelas, onde ele passava dias sem comer por
falta de recursos , alcançou enorme sucesso quando de-
fendeu tese .
A sua imaginação era fantástica ; sua fecundida-
de, descomunal ; invulgar o seu saber .
Como homem era de excelsas qualidades . Em ple-
no regime republicano, no momento mais agitado da
Constituinte, cheio de coragem, num ambiente hostil
a Pedro II, propunha para o monarca decaido uma pen-
são vitalícia, mostrando assim que já no apogeu da
glória ainda não se esquecera daquele que o havia ar-
rancado da obscuridade, quando ainda menino na Pa-
raiba .
Pedro Américo é ainda hoje o primeiro pintor de
batalhas que possue o mundo .
Desafio que me apontem quem tenha realizado
obra superior à dele . Ví neste gênero, mas ví com os
olhos habituados à contemplação de pinturas de todos
os museus da Europa . Assistí a nada menos de 21
"salons ", figurando em cada um milhares de quadros
de pintores de todas as nacionalidades . Pois bem, em
quadros de batalhas, dentre muitos, nada encontrei
superior ao "Avahy ", de Pedro Américo .
Vernet, Meissonier, Delacroix, Neuville, Détaille
e outros pintores militares não produziram coisas su-
periores ao "Avahy ” .
Depois do que acabei de vos dizer acerca de Pedro
Américo, estou na obrigação de justificar o que afir-
mei . Não quero seguir o exemplo tão vulgar nos nossos
críticos de arte de jamais dar a razão porque censuram
e mesmo porque elogiam, meio facil de aparentar com-
petência .
O que eu não farei é confrontar obras de dois ar-
tista de valor destes de que me venho ocupando .
Como estabelecer paralelo, se a escola, que embo-
ra deficientemente se filiou Pedro Américo não foi a
que se apegou Vitor Meireles ?
162
O temperamento de um era diametralmente opos-
to ao temperamento do outro .
Mesmo na maneira de pintar, vivendo na mesma
época, sob o regime da mesma orientação, os métodos
seguidos não foram os mesmos .
Nestes dois geniais artistas só se pode encontrar
um ponto de contácto - o rigor na probidade artística,
Demais, o "Avahy " e os "Guararapes ", não re-
presentam na mesma amplitude igualdade de concep-
ção, embora o assunto sintétise o mesmo fato : uma
vitória pelas armas .
A produção de Pedro Américo é uma batalha -
"Batalha de Avahy " .
A de Vitor Meireles um episódio de batalha -
"Os Guararapes " .
Por não compreender isso ou por outra : porque
compreender não quiz, Bitencourt da Silva levianamen-
te, ou talvez perversamente, acusou Pedro Américo de
haver produzido confusão no primeiro plano do
"Avahy".
Para acreditar-se na procedência e asserto dessa
infundada arguição, de origem suspeita, da inveja e do
despeito de um vencido, só deixando de refletir
numa batalha a síntese não pode restringir-se a um
episódio isolado .
Na do " Avahy", o anglo visual, foi propositada-
mente ampliado . A profundidade do plano horizontal
é imensa, terminando em horizonte muito afastado .
Nos "Guararapes ", quer o ângulo visual, quer o
plano horizontal ocupado pelo episódio, foram limita-
dos de forma a dar o espaço a episódio de um grande
conjunto que não se abrange em toda sua totalidade,
mas se advinha . Se ele ocupa todo o plano horizontal,
é devido à grandesa dada às personagens que excede-
ram o natural .
Essa escala escolhida pelo mestre deu o resultado
de se sentir na sua concepção a mesma impressão de
grandiosidade que nos é imposta na batalha do
66
‘ Avahy ", e, com surpresa grande se nota que, em ne-
nhum dos dois trabalhos há um detalhe que se possa
suprimir sem a quebra fatal da unidade .
No "Avahy ", há três grupos soberbos que focali-
zam a nossa atenção ao deparar com o formidavel pai-
nel. 1
163 -
Mas esta atração sugerida pela belesa de linha, pe-
lo movimento, pelo vigor e harmonia do colorido não
se produz com um só desses grupos isoladamente .
Produz-se, quando enfeixados no ângulo visual,
uma vez que o observador se coloque no ponto de vis-
ta em que se colocou o pintor . Nesta condição não se
poderá ver um, sem simultaneamente os outros dois , e
a unidade se impõe porque além de tudo o mestre os
ligou por uma linha sinuosa movimentada, cheia de en-
canto e da qual por mais que se queira, pelo maior es-
forço que se empregue, não se pode afastar o olhar,
sem que seguidamente já se chegue ao extremo dessa
linha .
Vejamos quais são esses grupos .
O primeiro é o do oficial que simbolisa a vitória
sobraçando as bandeiras tomadas ao inimigo .
Esse grupo magnífico, sintético, extraordinaria-
mente belo como classificou Bonnat, quando lhe mos-
trei em París uma reprodução gráfica do " Avahy ", de
todos o mais bem composto, o melhor resolvido, está no
primeiro plano um pouco para a esquerda do observa-
dor .
O segundo é constituido pela cena dramática que
se desenrola no interior de um carro de bois, e onde o
grandioso e imortal mestre deixou representados todos
os gêneros de pintura de tal maneira, que não se sabe
em qual deles era maior a sua perícia, se no animalis-
ta, se no pintor de costumes, se no pintor militar e no
de naturesa morta .
O último grupo é do menino Serafim cavalgando
uma peça a dar um viva ao Brasil vitorioso .
Se ainda, como quiseram fazer supôr, esses três
grupos quebrassem a unidade e prejudicassem o equi-
líbrio da ampla composição constituindo um erro, quem
não quereria errar assim ?
Rafael, por muito menos, concientemente , errou
em perspectiva, e Rodin nas proporções das figuras dos
"Bourgeois de Calais ".
Possuí-los como possuimos esses três grupos, ge-
mas as mais preciosas que ornam a cabeça juvenil da
arte brasileira, será sempre preferivel, quebrasse ele
a unidade, tirasse mesmo do quadro o equilíbrio, sacri-
ficasse o conjunto .
Quanto heroismo, ardor, patriotismo, côr, linha,
verdade, movimento, naquele primeiro grupo !!
- 164 -
Que cavalo admiravel de desenho, de anatomia, de
movimento !
Que bela e elegante figura a do oficial !
Como ele é brasileiro !
Como faz bem no entretanto se constatar naque-
la produção os sentimentos generosos do autor no gru-
po dos paraguaios que procura arrancar das mãos do
oficial brasileiro as bandeiras da sua pátria e que ain-
da um deles impulsionado pelo seu patriotismo , já fe-
rido de morte, de rôjo descarrega sua arma pela últi-
ma vez !
Mas a fecundidade de Pedro Américo não pairou
na execução desse grupo -- o esplendor do seu talen-
to irradiou-se por toda á grande superfície daquele
Imenso painel e só se satisfez quando produziu aquela
cena que se desenrola no extremo da tela .
Tão conciente estou de vos estar afirmando uma
verdade que não temo que mais tarde se venha a ler
o que agora vos digo, pois pretendo deixar em livro o
que acabais de ouvir . Então se verá que não exagerei .
" GUARARAPES ”
Esta grandiosa produção de Vitor Meireles não
podia ter sido executada em peiores condições mate-
riais .
Nela trabalhou o mestre numa sala do antigo edi-
fício em que esteve por longos anos instalado o Museu,
à luz de uma janela e sem recuo, que obrigou a usar
constantemente de espelhos para ver o que estava fa-
ndo em condições de distância .
Não dispunha de modelos habituados a pousar .
Nada tinha para a indumentária .
No entanto tudo que se vê no " Guararapes", é ri-
gorosamente verdadeiro, como preceituava a orienta-
ção daquela época, quer nos característicos físicos dos
personagens , quer na indumentária, quer nos mais in-
significantes detalhes .
Pedro II, que visitava com frequência o artista e
com ele passava algum tempo vendo-o trabalhar, au-
xiliou-o tanto quanto possivel pedindo aos amigos que
The emprestassem armas antigas que possuiam e tudo
mais que pudesse servir para a execução do quadro .
Mesmo assim deficientes foram os elementos de que
165
dispôs Vitor Meireles . Isto não impediu que nos deta-
lhes da produção o rigor da verdade como então se exi-
gia e do carater atingissem a espantosos resultados ,
principalmente nos dois animais arrojadamente e sem
temor de dificuldades colocados no primeiro plano
servindo de ponto convergente a todas as linhas da
composição .
De um animal parado se pode fazer estudos apro-
veitaveis ; dos que estiverem em movimento só por
tentativas repetidas, repetidíssimas . Eu os ví às deze-
nas para servirem na construção dos dois animais de
quadro . Só para a cabeça do cavalo que está ferido ví
uma dezena de " estudos " que gradativamente se iam
acentuando numa admiravel perfeição .
Os dois animais dos " Guararapes " tinham "ação
determinada", afastando por completo a imprevista in-
fluência do acaso .
Foram, pois , incalculaveis ás dificuldades que o
mestre teve que vencer, e as venceu sem empregar ar-
tifícios para obtê-las, coisa aliás comum como por
exemplo no quadro de Aimé Morot, que com uma
nuvem de poeira se livrou dos embaraços que encon-
trou em determinar as extremidades dos animais de
sua soberba composição, que um dia apreciei em Ver-
sailles .
Não dispunha o mestre como hoje se pode dispôr
(na Europa) de animais mais ou menos acostumados a
servir de modelos, nem tampouco reconstituidos depois
de mortos , como um que tive em París e no qual mon-
tou Luiz Edmundo para possuir uma fotografia sua, a
cavalo, dentro de meu "atelier" .
Vitor Meireles só dispôs de manequins grosseiros ,
de alguns modelos anatômicos de animais .
E o que se fez com tão insignificantes elementos aí
está no seu quadro melhor do que fizeram muitos mes-
tres célebres, entre eles Velasquez, que, como se sabe,
desenhava com espantosa rapidês .
E' esplendido o cavalo montado por Vidal de Ne-
greiros .
E' um corcel de vitória .
Acompanha admiravelmente a arrojada ação do
herói que o cavalga .
Detido pelas rédeas, empina-se .
166
Erguendo-se sobre as patas trazeiras avança e não
recua, como em geral se produz esse movimento se não
é rigorosamente resolvido .
Sente-se o embate foguso e forte com que acaba de
atirar por terra o cavalo do inimigo vencido, como se
verifica no joelho em curva .
As cabeças desses dois animais são uma expressão
suprema da verdade .
Na do animal montado por Vidal de Negreiros está
simbolisada a vitória, o ardor da peleja , os ruidos do
ambiente .
A outra já não é do ginete vitorioso que se atira
árdego no meio da peleja, embriagado, incitado pelo
odôr forte da pólvora, enraivecido pelos dentes agudos
das espóras cravadas sobre o ventre na contração ner-
vosa das pernas do cavaleiro .
E' de animal vencido .
O grupo em que entram esses dois corcéis daria um
monumento soberbo capaz de sintetisar o final de uma
batalha .
Vejamos agora uma outra dificuldade vencida pelo
imortal autor da " Primeira Missa": - a criação dos
tipos físicos e morais das personagens e a perfeita ca-
racterização das raças que deram representantes à pa-
triótica síntese do episódio da batalha dos "Guarara-
pes ".
A negra, em Henrique Dias ; a indígena, em Feli-
pe Camarão ; a mestiça, em Cardoso ; a brasileira, já
positivada, em Vidal de Negreiros .
Chegou até o rigor na preocupação dos caracterís-
ticos das raças a que pertencia cada um dos persona-
gens e determiná-las até na maneira de empunhar as
armas e nenhuma daquelas dezenas de mãos está ocio-
sa, ao contrário, pelo movimento , positivam a ação geral.
Mas essas mãos , admiravelmente desenhadas em
relação às cabeças, a construção dos corpos e a manei-
ra espontânea com a qual o mestre resolveu tudo isto,
é maravilhoso .
Para confirmar o renome glorioso de Vitor Meire-
les "a cabeça de Felipe Camarão " é um prodígio de in-
terpretação .
E a formação dos grupos ?
Não admitem preferências . Um porém é tão ex-
traordinário que não quero deixar de citar : - o do
tambor .
- 167 ―
Em tudo estão preceituadas as regras da orienta-
ção que então dominava, e da qual não se podia afastar
o mestre sob pena de sair da sua época . E' isto que até
hoje não se quiz compreender .
Mas eu, senhores, não acabaria mais se assim con-
tinuasse a me deter, por mais sumário que fosse, em
cada palmo daquele pano pintado e que a mão e a al-
ma de um artista genial transformaram num dos maio-
res tesouros de arte que possue o Brasil . E' cedo ainda
para se avaliar o que é o " Guararapes " . O que é o
"Avahy" .
Marcam positivamente uma época na arte nacional
e o início de uma outra que vem até os nossos dias .
Vamos agora falar do cenário dos " Guararapes ",
esse cenário que lembra dias felizes, lugares queridos
onde passamos o melhor tempo da nossa existência .
Representa uma paisagem do norte ? Não E uma
paisagem do Brasil . E' uma tarde que todos nós
vimos na terra natal, quando a luz se afrcuxa , atenua-
se para deixar passar à sombra das noites estreladas
do norte os claros de lua do sul .
Quanta sugestivicade , quanta poesia, quanta am-
plitude no cenário do " Guararapes " !
Já se sente nel as primeiras sombras da noite nos
escuros transparenics .
Vé-se como a tarde tranquila e carminada numa
graduação sutil de tons se vai estendendo até ao longe,
muito ao lcage envolvida no misterioso ambiente da-
quele dia que terminou com uma grande vitória para
a Lossa Pat? la .
E a silhueta que se recorta no amplo céu ?
Mas tenho ainda de falar-vos da paisagem de Vi-
tor Meireles, do panorama que foi a última das pági-
nas que escreveu com seus pincéis e que se propalava
serem produções puramente materiais !
Perversidade ou ignorância ? Não sei . E para que
sabê-lo hoje se já nada resta dos panoramas ?
Basta dizer-se que os grandes mestres na arte
francesa, Bonnat, Neuville, Detaille, pintaram panora-
mas quando já haviam alcançado a celebridade .
A França premiou o panorama pintado por Vitor
Meireles com a grande medalha de ouro . Que melhor
atestado do seu valor?
-- 168 --
Mas era preciso depreciar a obra do mestre . Que-
riam a posse integral da Academia, para a satisfação
plena do interesse pessoal .
Demais não estava ao alcance de todos pintar uma
tela do valor artístico, tendo a superfície de 1.400 me-
tros quadrados como tinham os panoramas de Vitor
Meireles .
Quando o jovem pintor Robert Barker, encarcera-
do, procurando lêr uma carta à luz única que iluminava
o calabouço, vinda do alto verticalmente pensou em
aproveitá-la em iguais condições na pintura de vistas pa-
norâmicas, não imaginou as grandes dificuldades que
teria para conseguir o que imaginára . Foram tais que
ele morreu sem as ter resolvido .
Vitor Meireles venceu-as aquí, sosinho, com pro-
cessos seus, o que não conseguiram em 1824 , Jean Pre-
vot Roumy quando pintaram a vista geral da cidade
do Rio de Janeiro .
Vitor Meireles marcou sosinho a imensa perspecti-
va sem auxílio de um prático como fizeram todos que
pintaram panoramas inclusive os célebres artistas De-
taille e Neuville , quando executaram o panorama da ba-
talha de "Rosenville" .
Para imaginar como é dificil esse gênero de pin-
tura basta que se saiba que para obter as horizontais
só se as consegue pela projeção de uma outra artificial-
mente contruida no plano circular da imensa tela .
Durante vinte e tantos anos fui exclusivamente
um paisagista . A paisagem constituia a minha única
preocupação, estudei-a em todos os museus e as nature-
sas de todos os paises .
Pois bem .
Eu vos afirmo que nos panoramas de Vitor Meire-
les, principalmente na baía Cabrália, não havia um me-
tro de tela que não fosse um belíssimo trecho de paisa-
gem, e como já vos disse a tela media 1.400 metros qua-
drados .
Nela havia campos, florestas, praias, campinas,
mar, rochedos, montanhas, rios e no meio do colossal
flagrante conjunto da nossa estupenda naturesa, ainda
se via tal qual está no célebre quadro "A PRIMEIRA
MISSA", em grandesa superior ao natural .
O belo, o imponente contraste daquela cena com a
naturesa virgem que a emoldurava, era de arrebatar.
169 -
Para que vos dizer mais . Chego ao fim da minha
dolorosa missão . Confrange-se-me a alma ao lembrar-
me do que vou dizer-vos .
Abatido pelo sofrimento físico e moral, lutas, des-
gostos , privações, meu mestre de dia para dia se foi
definhando . Ficava cada vez mais pequeno . A cabeça
era um fôfo punhado de neve . Sentindo-se morrer, ofe-
receu à Pátria os seus dois panoramas, calvário pedre-
goso por ele galgado com imenso esforço .
Aceitaram-nos . Era de graça ! ...
Prometeram instalá-los na Quinta da Boa Vista .
Para lá foram conduzidos .
HAVIA UM BREJAL, SOBRE A TERRA EN-
XARCADA COLOCARAM-OS ENROLADOS COMO
ESTAVAM. PUSERAM-LHES EM CIMA DOS RO-
LOS PEDAÇOS VELHOS DE ZINCO . LA FICARAM.
E LA SE FIZERAM EM PEDAÇOS . E NO PANTA-
NAL, SUMIRAM-SE .
Em lenta agonia o meu mestre serenamente CO-
meçou a extinguir-se . Até que, afinal, num dia ruidoso
de festa carnavalesca, expressão bárbara de um povo
em atraso . Ele se foi...
Por entre grupos compactos de foliões mascarados,
semi-nús ou andrajosos , besuntados de berrantes tin-
tas, a berrarem como loucos, a saltar como macacos, ao
rufar dos zabumbas , chocalhar de pandeiros, roncos de
buzinas , o seu enterro passava despercebido, ofuscado
pelos fosforecentes carros em cujo cimos, entre ramos
de flores de papel e sarrafos, papelões pintados, mu-
lheres semi-núas em tregeitos lascivos atiravam beijos
à multidão morrinhenta .
:
adic
A
Fede
Distr
do ral l
ionara
-to eitu
da co
riptiito
tPref
O
HISTÓRIA DO RIO DE JANEIRO
Aproximava-se o centenário da cidade do Rio de
Janeiro, e conhecendo a intenção do benemérito Dr.
Pedro Ernesto de festivamente comemorá-lo expuz-lhe
o desejo que tinha de sintetisar num triptico a histó-
ria da cidade para ornamentar o vestíbulo da Prefei-
tura .
Fui atendido . Outorgou-me plena liberdade .
Lavrou-se o contrato, e no prazo determinado para
sua entrega, foi o trabalho colocado no local conven-
cionado .
Devia ser a tela descoberta no dia do Centenário .
Não o foi .
No dia do aniversário do Dr. Pedro Ernesto fui
levar-lhe as minhas felicitações, como fez quasi toda a
população da cidade .
O quadro estava descoberto . Abraçando-me disse :
- "Tanto me satisfez o seu trabalho que reservei
o dia do meu aniversário para inaugurá-lo " .
Quando me foi encomendado o triptico, o Dr. Pe-
dro Ernesto me encarregou de um outro trabalho :
Um Cristo curando uma criança doente .
-- " E' disse ele, para o meu Hospital de Jesús .
Será colocado na entrada principal . Mas este trabalho
tem de ser executado como eu o imaginei, acrescentou
o Prefeito . E descreveu o que tinha imaginado .
Pintei . Recusei porém qualquer remuneração . Foi
para mim bastante ter podido ser agradavel ao Dr. Pe-
dro Ernesto . O Cristo, em tamanho natural, lá está na
entrada do Hospital de Jesús .
Com os olhos fitos nele, com uma prece nos lábios ,
passam mães aflitas carregando os filhinhos doentes .
- Essas jamais se esquecerão do Dr. Pedro Ernesto .
PEDRO PERES
Quando comecei a borrar télas, Peres já era um
mestre .
Tinha o "atelier" num sobrado à Rua Sete de Se-
tembro .
Gostava de ver os seus trabalhos . Daí, embora
de temperamento diametralmente oposto nasceu a nos-
sa afeição que foi até ao " fim" e hoje se cristalisa
numa saudade imorredoura .
Muitas viagens fizemos juntos aproveitando as
férias da Escola Normal, onde Pedro era professor .
Estivemos por meses em Teresópolis, onde quasi nos
braços dos "camaradas " Pedro penetrava comigo nas
matas . Classificava-me de louco, predizia-me desas-
tres, ao rolar pelas pedras, ao ser picado pelas cobras
ou comido por onça .
Foi dificil adaptá-lo a tão selvagem vida.
Além de tudo, a indumentária de Pedro não esta-
va adequada a tão escabroso, húmido, limoso, e aci-
dentado ambiente .
Daí constantes trambulhões, escorregadelas, de-
vido aos finos sapatos que muitas vezes lá iam pela
agua abaixo .
Mas , esse homem, uma vez sentado à tripeça, de
téla em frente, de paleta em punho, era suplantado pe-
lo artista .
Pedro, era um homem de cidade .
Sí ele se tivesse dedicado exclusivamente a pai-
sagem, essa não representaria a "Natureza", sinão já
estragada pelo progresso material . Para pintá-las não
passaria muito além do fim das linhas de bondes ...
Era artista para só trabalhar dentro de cômodo e
amplo "atelier" .
174
Meticuloso, metódico, se não tinha desilusões,
tambem não tinha exaltado entusiasmo . Não se alte-
rava, pintando paulatinamente, meditando mais do que
executando . Concebido o assunto, começava por fazer
as tentativas
Escolhida entre elas a que mais lhe agradava,
tratava de positivá-la, determinando-a admiravelmen-
te em desenho correto . Depois, já senhor da composi-
ção, sem a menor sofreguidão, procurava determinar
as proporções do quadro . Achando-as, quadriculava o
“croquís ” e transportava -o para a tela definitivamen-
te indo ao extremo dos detalhes . A perfeição, o acaba-
mento do desenho no " croquís ", no entretanto, alge-
mava-o mais tarde quando trocasse o "Fusain" pelo
pincel . Tinha forçadamente que perder a expontanei-
dade na pintura e produzir dureza e secura .
Mas, era a sua — maneira de pintar .
Convidei-o para uma longa viagem, a serra dis-
tante onde tinha um amigo que possuia fazenda de
criação .
famos gozar de quasi completo isolamento, de
plena liberdade e dispôr de animais em quantidade,
para ser estudados em magníficos e característicos
cenários .
Custou a se resolver .
Começamos poucos dias depois a viagem . Tudo
foi bem até deixar-nos a estrada de ferro .
Alí, numa estaçãosinha muito suja, nos esperava
a condução . Três animais de sela, dois cargueiros e
dois " camaradas " .
Peres estava inteiramente absorvido em exami-
nar os animais .
"Qual o meu ?
Esta besta baia . Dá sela até para senhora .
"O que não impedirá que a mim me dê um
trambolhão .
"Qual seu Dr. , pode montar tranquilo . Dei-
xe-me afivelar as esporas .
- "Está doido ? Esporas ? Para que ? Eu lá sou
homem de espetar barriga de animais !
"Mas é bom, seu Dr., embora o Sr. não espete.
"Qual bom qual nada . O que é, é perigoso .
Pedro Peres
175 --
Depois de muito discutir Pedro, quasi carregado,
foi posto sobre o selim.
Estava bem com seu costume de brim, sua grava-
ta bem atada, suas botas de verniz e com o seu inaca-
bavel cigarro à boca.
De um salto o " camarada " se enganchou na sela
e a viagem começou, pela estrada larga e empoeirada,
que no princípio margeava a linha da estrada de ferro,
e depois prosseguia até desaparecer n'uma curva de
barrancos vermelhos .
Na frente o guia, eu e o Pedro, atrás, e mais os
dois cargueiros .
A besta, na qual o meu amigo viajava, conheceu
logo o cavaleiro que a cavalgava .
Passo a passo, parando aquí e alí para apanhar o
verde e cheiroso capim gordura, que revestia os bar-
rancos que margeavam o caminho, é como caminhava .
"Assim, Pedro, não chegaremos jamais lá em
cima .
"Sim, chegaremos com vida, o que não acon-
tecerá se formos em disparada por esta serra e por es-
tes caminhos, se é que a isto se pode dar esse nome .
Atravessamos um taquaral . Em curvas aquelas
grandes plumas verdes caiam sobre a estrada .
"É agora, gritou o Peres!
"Abaixa-te, segura no "Santo Antônio" e dei-
xa o animal andar!
- "Que Santo Antônio ? Estou é vendo que nem
todos os santos me salvavam desta !
E assim fomos passo a passo andando, até que o
caminho se foi estreitando mais , mais cheio de cavida-
des, com pedregulhos a rolar .
A floresta de um lado e de outro . Silenciosa, ain-
da orvalhada. Um ou outro pio de ave interrompia o si-
lêncio. Sentia-se ao longe ruido de cascata que não se
via... Cheiro adocicado do capim gordura embalsama-
va o ar. O ruido das patas dos animais, um calháu a
rolar e, de vez enquanto o grito agudo do cargueiro to-
cando os animais de carga . Atrás em curvas quasi fe-
chadas, o caminho descia, bifurcando- se .
O meu amigo tinha emudecido .
Aquele ambiente para ele estranho já o empolga-
va . Da vida material afastava-o . Sentia-se como den-
tro de uma catedral .
- 176
Chegamos ao alto do primeiro chapadão . Atravez
do rendilhado dos grandes taquarussús se via lá em-
baixo a várzea e, como uma fita embranquiçada, a es-
trada a cortar campos, subir e descer morros a sumir
de vez em quando num capoeirão serrado .
De um grupo de pedras limosas, sombreadas por
inclinadas árvores, um jôrro dágua se desprendia, en-
chendo o ar de sonoros ruidos .
Parámos .
Pedro foi apeado .
"Irra! Que estopada ! Chego lá em cima
nádegas !
"Faz como eu vou fazer, vamos tomar banho
antes de almoçarmos e toda a fadiga passa .
― "Estás doido ? Depois de tão violento exercí-
cio !
"Pois eu vou .
Puz-me nú. Atirei-me à agua corrente e cristalina.
"Que coisa boa, Pedro ! Vem experimentar este
prazer maravilhoso .
- "Vai esperando, não cometo loucuras .
Almoçamos . Depois, como de antigo hábito metí-
me debaixo de uma árvore copada de galhos quasi a
rastejar no chão e dormí durante algum tempo .
Pronto, podemos seguir . E lá fomos a subir, a su-
bir sempre .
A floresta tornava-se cada vez mais espessa , mais
grandiosa, mais sombria .
O latido nervoso de cães ecoava ao longe .
Um bracahá atravessou como um raio a estrada,
entre as patas do animal que montava Pedro .
A besta espantada, impina-se e dispara .
Passa por mim como um relâmpago . Pedro a os-
cilar na sela gritava . Cesário, o camarada, segue a
besta espavorida e consegue, emparelhando os animais,
prendê-la pelo cabresto, bem junto aos queixos . 0
animal estaca e a tremer fica pregado ao solo ainda
nervoso .
-- “Não é nada, não é nada, seu Doutor, o perigo
já passou . Isto acontece muitas vezes .
"Então, Cesário, acho melhor eu ir a pé .
"Não precisa, seu Dr.
Metemos o Pedro já de novo sobre o animal, entre
nós . Cesário na frente, eu e um camarada dos lados e
177
outro atrás . E sem mais novidades foi a viagem che-
gando ao fim .
As árvores pareciam sonolentas, os galhos pen-
diam .
Um ou outro tronco, levemente colorido de luz ar-
roxeada, surgia dos verdes escuros . No solo, as folhas
secas se adelgavam, se aplainavam, produzindo um
ruido quasi imperceptivel . Adormeciam .
Alta noite chegamos à fazenda .
Levantei -me muito cedo . Ainda apenas rompía o
dia . Para mim a cama causa horror pela manhã,
invade-me a alma tristesa imensa . Tudo de máu que
se passou, volta a me fazer sofrer . Torturam-me sen-
timentos os mais opostos . Na semi-escuridão do quar-
to, surgem fantásticas visões . Tudo parece querer
acabar-se .
Mais cedo ainda do que eu alguem se havia levan-
tado . Já havia muito que ouvia o ruido do pilão . So-
cavam café . Fui até a cozinha procurá-lo .
Encontrei uma velha muito velha . Duas mirradas
e brancas tranças de cabelo até os ombros , enrrugada
como um pássa, mas sob aquele rendilhado de téla de
aranha, sentia-se o sangue sadio e vigoroso, circular
livremente . Dos seios, nem mais leve indício . Descia-
The verticalmente a roupa . A boca ornada de todos os
dentes, vestígio de afastada mocidade . No olhar a lim-
pidês de uma gota dágua . Era uma ruina, mas , ruina
como aquelas que guardam vestígios dos tempos pas-
sados, nos lavrados e rendilhados capiteis de mármore
que às vezes se vê no alto de uma coluna carcomida e
esburacada, a custa se mantendo entre os destroços de
castelo desfeito .
"Bom dia, tão cedo de pé ! Se soubesse já lhe
tinha levado o café . Sempre aqueles que chegam lá
debaixo se levantam tarde, quasi na hora do almoço .
Ficam a cozinhar na cama, por isto é que são pálidos e
fracos .
"Como eu não é verdade ?
"Não, o senhor não é muito pálido, demoran-
do-se aquí algum tempo, ficará com bôa côr e forte .
Tudo isto em volta são pinheirais . O ar é muito puro .
178
Em toda serra, não há um brejal . Havia um açude,
mas o patrão mandou esvasiar . O leite é em tal quan-
tidade que a gente quasi não bebe outra cousa .
"Quer provar?
"Se quero .
"Beba, beba mais, aquí há tanto como agua no
rio .
"Mas não posso mais, já bebí três canecas .
Obrigado . Agora o café, sim ?
"Até logo .
"Quer mais leite ?
"Não obrigado, vou tomar banho no rio .
"Faz bem quem tem o corpo limpo e sadio, tem
a alma alegre .
-- "Desculpe-me, como se chama ?
"Flórida para servir a nosso Senhor e ao se-
nhor tambem .
- "Está muito forte . Quantos anos tem . Per-
dôe-me a indiscrição .
"Advinhe ?
"Uns cinquenta e pouco .
"Cinquenta ! Cinquenta tem Cesário meu filho.
O senhor está me adulando .
"Não, não estou, digo a verdade .
"Pois não está dizendo ; eu já tenho setenta e
oito anos .
"Possivel?
"Sim senhor .
"E sempre viveu aquí ?
"Sempre . Fora da porteira jamais saí .
"E casou-se aquí ?
"Sim senhor . O amor me veio encontrar . Mui-
tos anos vivemos juntos, sempre bons amigos. Ele,
morreu, mas está enterrado aquí . E não quero sepa-
rar-me de todo dele, não me separarei, já disse a Ce-
sário para me enterrar ao lado dele . O brilho cristali-
no dos seus olhos se velou …..
O rio muito largo e raso passava perto . Agua
transparente . Descia mansamente . Mal se percebia o
seu deslisar . Altos pinheiros pelas margens .
Dentro dágua, sentado na areia branca lisa, ma-
cia, o meu olhar estendia-se até o horizonte muito bai-
xo, devido à posição em que me achava .
- 179 -
Essa localização da prolangada horizontal aumen--
tava descomunalmente a altura dos pinheiros ,
Pareciam imensos .
A campina rasa, infinita até uma serra azulada
empenachada pelas neblinas matinais .
Imenso rebanho em linha caminhava em plano
afastado . Advinhava-se mais do que se percebia .
Atrás caminhava o campeiro e o cão . Em cima um
céu muito alto .
Encontrei Pedro na varanda . Fumava . Sentado
numa cadeira de junco, calçava umas sandálias ele-
gantes . Estava barbeado e penteado . Vendo-me qua-
si nú de pés descalços, cheio de areia e carrapichos ,
riu-se .
Sentei-me no degráu da varanda . Flórida trou-
xe-me um jarro cheio de leite . Comecei a beber e bebí
todo .
"Que diabo tu és pior do que um juvenço !
"Quero voltar daquí para fazer inveja ao Emí-
lio de Menezes, ao Artur de Azevedo . Magro, seco,
mirrado como Coelho Neto é que não .
"Lá vem o Cesário .
"Onde ?
- "A direita . Perto dos alpendres que ficam ao
lado do grupo dos pinheiros .
"Como sabes que é ele, se ainda está tão longe ?
"Porque percebo que o cavaleiro é maior do
que o animal .
"Nada te escapa .
"Pois, outra cousa não faço sinão observar .
O cavaleiro aproximava-se cada vez mais . O con-
torno externo da figura recortava-se mais duramente
no fundo liso da campina . A côr positivava-se .
- "Não te disse, é Cesário .
Robusto e grande . Inclinando-se para o lado, sal-
tou e aprumou-se em terra .
Tipo perfeito de caipira serrano .
Longos cabelos, contornava-lhe a fisionomia bron-
zeada .
Fartos bigodes . Barba criada em liberdade, limpa
preta e reluzente . Bela cabeça, como modelada por
Miguel Angelo num dos seus habituais impulsos ge-
niais .
- 180 -
Homem primitivo .
Nascido em plena "natureza ", sob a ação robus-
tecedora dos raios ardentes do sol, amenizado pela
poeira das neblinas, pelo orvalhar, banhado pelos agua-
ceiros, sacudido pelas ventanias invernais . Ora a tiri-
tar de frio, ora alagado em suor, ora faminto, ora far-
to, ora dormindo ao relento, ora agasalhado ao esbura-
cado této de sapé, ou sob os galhos folhudos de aca-
chapadas árvores .
Sadio de corpo, alma cheia de puresa .
O dorso coberto apenas por grosseiro tecido de
alvo algodão . Pernas resguardadas por mal cosidas pe-
les de cabra . Na cinta a cartucheira, o facão . No pes-
coço as pontas longas de um lenço vermelho a esvoa-
çar. O tiracolo, suspenso em corriame polido, afivelado
de prata, a arma de tiro duplo faiscando ao sol .
Amparando-se nos batentes da cancela , Sinhá
Flórida tendo avistado o filho lentamente desceu OS
degráus .
Cesário aproximou -se .
Atirou o chapéu ao chão .
Ajoelhou-se .
A velha pondo uma das mãos na cabeça curvada
do filho, deu-lhe a outra a beijar .
Da varanda Pedro e eu observamos aquela cena
antiga, antiquíssima infelizmente, desgraçadamente...
Aquele homenzarrão, que derrubava um touro pe-
los chifres e mantinha-o pelos joelhos enquanto o mar-
cavam com ferro em braza, que domava um animal
bravío, que não temia uma fera, de joelhos em terra,
queixo unido ao peito a beijar, com olhos serrados pe-
la emoção e respeito a mão daquela velhinha, pequena,
muito pequenina, que ele podia erguer nos braços co-
mo uma criança recem-nascida !!
Eu tinha um nó na garganta, Pedro os olhos
cheios dágua .
Foi Pedro Péres, o discípulo de Vitor Meireles que
mais se aproximou do mestre . Foi aquele que sempre
o seguiu fielmente em todos os seus preceitos sem ja-
mais abandoná-los, nem mesmo depois de sua viagem
à París . Entre a obra do mestre e do discípulo pode
- 181
haver confusão principalmente no " A Primeira Liber-
tação " e no "A Elevação da Cruz ” .
Tomamos estes trabalhos para algo dizer sobre o
artista . Do homem assáz já falamos .
Com o primeiro Pedro Peres saiu vitorioso, em um
concurso onde entraram os melhores pintores que vi-
viam no Rio de Janeiro, entre eles Driendl .
O assunto não podia ser mais ingrato .
A indumentária pobre, desgraciosa quer na linha
quer na côr . O motivo encarcerado entre as paralelas
de uma sala, sem comprimento para dela se poder sair
levado pela sujestividade . O agrupamento impedindo
a movimentação obrigado ainda pela convergência das
diagonais fugitivas a um determinado ponto da com-
posição .
Nada de estético .
No entretanto Peres poude tirar partido . Ampliar
o espaço . Quebrar a monotonia do preto, tom domi:
nante na indumentária, com uma nota clara, colorida
localisada no primeiro plano, sem prejudicar o grupo
central onde se concretisa a ação .
A cena amplia-se naturalmente, variada em linha,
na cor e na expressão , sem quebrar a unidade . É na
realidade um bom quadro, um valioso documento his-
tórico, principal motivo de sua execução .
Sente-se porém, na concepção o artista algemado .
Já na " Elevação da Cruz ” ele se nos apresenta de pos-
se da sua liberdade .
Não lhe impuseram o assunto . Ele o escolheu, e
nisto foi a antecipação de uma vitória .
Todo o quadro é admiravelmente bem composto .
Os preceitos técnicos alí dominam no seu rigorismo
clássico, como durante tantos anos dominaram em tan-
tas obras célebres
Não há, porém, convencionalismo a não ser na
"silhouette" formada no primeiro plano à esquerda, que
se prolonga e vai terminar no extremo à direita .
Ela, como então se preceituava destaca-se em
campo luminoso, que pelo contraste se avigora .
Não havia necessidade desta " silhouette " bitu-
minosa . Peres era um forte colorista . Não necessita-
va, pois, de bruscos raportes para a localização dos
planos . Discípulo de Vitor Meireles conhecia a fundo a
perspectiva linear e aérea .
182 -
Há na obra citada, como nas de seu mestre, peda-
ços que empolgam pela sua extraordinária belesa .
O grupo extremamente movimentado formado pe-
los descobridores que elevam o cruzeiro, é um deles .
Muito arrojo na longa diagonal por ele projetada .
Esse cruzeiro só sintetisaria o assunto .
Enfim, o discípulo é digno do seu grande mestre
porque é tambem um grande artista .
A sua obra resistirá, conservando-se sempre em
lugar de grande destaque, sejam quais forem as resul-
tantes da evolução da Arte .
É inutil procurar diminuir o mérito, o valor de
obras como estas . Elas tem a resistência dos marcos
de granito, assinalando o caminho desses bandeirantes
da Arte nacional . O que desaparece, e desaparecerão
mesmo em pouco tempo são essas balisas de taquara,
besuntadas de cores berrantes, que uns bandeirantes
de raquíticas capoeiras andam por aí a plantar ...
A PRIMEIRA PALETA
Lido na Academia Fluminense de
Letras, por Antônio Parreiras, na
sessão solene realizada em homena-
gem ao seu jubileu artístico .
Grimm fora enfim nomeado professor de aula de
paisagem da Academia de Belas Artes .
Até então vivia-se na rotina a copiar estampas,
representando cousas velhas e estrangeiras . Serviam
de modelos litografias de " vieuxchênes ", "peupliers ",
" saules " fusains de Allongé ou de Appian .
Quando não era isto, eram gravuras representan-
do ruinas romanas, ou velhos castelos da Alemanha,
milhares de vezes reproduzidas, já privadas de certo
das duvidosas qualidades artísticas que porventura,
há dezenas de anos tiveram os originais .
Estudava-se paisagem dentro de uma sala !...
Logo ao matricular na Academia, deram-me para
copiar uma grande estampa, onde se via uma limosa
"Chaumière normande".
Tudo que nela estava era-me extranho, desconhe-
cido, não me podia interessar . Impuseram-me porém
copiá-la, tal qual, até aquilo que estava errado ...
"Faz uma cousa assim . A Academia quer .
Depois vem comigo para o campo se você quer ser um
dia um paisagista" .
Imaginem-se o meu contentamento quando ouví
estas palavras de Grimm . Trabalhei como louco dias,
semanas, copiando traço por traço a grande estampa
e como tudo dependia somente de paciência a minha
cópia nenhuma diferença fazia do original . Mas, levei
mais de um mês a fazer o que a máquina fotográfica
teria feito em dois segundos .
O professor ficou satisfeito. Apresentou à congre-
gação o meu trabalho, conseguindo a minha passagem
184 -
para a aula de pintura, que já então funcionava numa
ladeira barrenta, fortemente colorida, cheia de case-
bres e lindas árvores, na base do morro de Santo An-
tônio .
Adquirí todo o material inclusive uma belíssima
caixa de tintas .
Que alegria !
Em casa, à noite, puz-me a examinar tubo por
tubo .
Aspirava-os como se contivessem deliciosos per-
fumes .
Experimentava os pincéis, de cabo envernizado ,
em cuja extremidade se adaptava num anel prateado
a seda vegetal .
Dava com eles " toques " no espaço, como se já
estivesse a pintar ao " natural ” .
Tendo caixa tão bonita, toda envernizada por fo-
ra, toda prateada por dentro, tive uma idéia ...
Se eu colocasse, no tampo , mesmo no centro, uma
grande paleta de prata, com as minhas iniciais entre-
laçadas em ramos de louros ?
Havia em casa um velho castiçal . Meu irmão era
ourives . Fundiu-o . Laminou a barra . Cortou espessa,
uma grande paleta . Poliu-a com esmero . Gravou no
centro as minhas iniciais e as entrelaçou em louros .
A paleta era tão grande quasi como o tampo da
caixa ! Brilhava de um modo ofuscante . No dia seguin-
te, logo ao alvorecer, partí para o Rio de Janeiro os-
tensivamente fazendo ver a todos a minha caixa de
tintas .
Cheguei lá em cima, no morro de Santo Antônio,
onde pouco depois apareciam os colegas e o professor .
A minha caixa fez sucesso .
Os colegas, agachados em redor dela riam . Fa-
ziam uma troça de todos os diabos .
Não me deixaram tranquilo durante todo o tempo
que durou a aula .
"Olhem, olhem a caixinha dele, tão bonitinha
com paleta de prata ...
- " Ele já começa ganhando louros, já estão no
tampo da caixa .
Até o professor, deixando o seu trabalho veio tro-
çar .
"Praia Grande", era assim que ele me chama-
va, você dá a mim esta caixinha tão bonitinha " .
185 -
Embora envergonhado da minha infantilidade não
respondia .
Sempre tive a felicidade de jamais me deixar go-
vernar .
Conservei a minha caixa de tinta com a sua pale-
ta de prata durante longos anos .
O tempo, o uso, apesar do cuidado que sempre ti-
ve com o meu material de trabalho, foi aos poucos es-
maecendo-a, tornando-a menos evidente . Afinal oxida-
da, confundiu-se com o tom envelhecido da madeira .
Um dia, dia triste como tiveram muitos os discí-
pulos de Grimm, a paleta foi retirada da caixinha e
foi parar no "monte de socorro " . Só muito tempo de-
pois, voltou a ocupar o antigo lugar . Foi porém por
pouco . Voltou a ser empenhada, e tantas vezes foi que
afinal quasi que já ia sosinha ...
E assim durante muitos anos a caixa foi minha
inseparavel companheira por montes e vales, por flo-
restas e praias .
Ás vezes, já mortos quasi todos os discípulos de
Grimm, muitos anos depois, contemplando-a aberta a
destacar-se na areia ofuscante das praias, ou sobre o
aveludado musgo das pedras húmidas das florestas,
todo o passado perecia dela surgir em diáfanas visões .
Era, porém, palidamente colorida .
Um dia a caixa, já muito velhinha, toda carcomi-
da, cheia de cicatrizes, despolida, não poude mais com
o peso das tintas, desconjuntou-se .
Amparei-a com suportes de madeira nova .
Qual, nem mesmo assim, poude acompanhar-me .
Arriscava-se a ficar no caminho em pedaços .
Cuidadosamente, como uma relíquia, guardei-a
numa prateleira do meu " atelier ", cobrindo-a com um
pedaço de veludo velho .
Deixei o Brasil .
Anos passei no estrangeiro . Tive outras, muitas
outras mais belas, mais amplas, mais aperfeiçoadas,
mas jamais me deixava de lembrar, da velha caixa que
tinha ficado no "atelier", abandonada .
Voltando ao Brasil tive que fazer reparos no "ate-
lier" .
Confesso, já não me lembrava da caixinha .
Longe dos olhos , longe do coração ...
De mais não tinha eu outras melhores ! ? ...
186
Afinal, por acaso, a ví ... Encontrei-a em frag-
mentos . Quasi toda devorada pelo cupim .
Ia atirá-la ao chão quando ví da paleta a parte su-
perior onde por longo tempo haviam permanecido as
tintas, tornando-a invulneravel à destruição do cupim .
Tirando-lhe o pó, descobrí ainda os vestígios das
côres . Pareceu então ouvir uma queixa sair daquele
fragmento de paleta .
- Até que afinal, ingrato, apareces . Como de tu-
do tu te esqueceste ?
- É incrivel !
"Supunhas, que jamais te sairiam da lembrança
aquelas caminhadas por montes e vales, ao romper do
dia, levando-me dentro da caixinha, pendurada ao teu
ombro .
"Depois no recanto de um bosque sombrío, ou nas
margens de um regato de agua transparente, tu unias-
me a teu braço presa à tua mão para eu te dar os tons .
"Depois, enquanto contemplavas a " Natureza ",
tu me deixavas repousar sobre o musgo macio ao abri-
go do sol.
"Eras todo doçura, meiguice .
"Não tiravas os olhos de mim .
"Presa a tua mão, eu te ajudava a colorir os teus
sonhos ...
"E assim, a cantares, trabalhavas todo o santo
dia, cheio de entusiasmo, de alegria, de esperanças no
porvir ...
"Depois, na hora mixta, felizes, voltávamos .
"Cuidadosamente tu tratavas de mim .
"Punhas-me dentro do estojo para repousar .
"Ao romper do dia vinhas me buscar, enfeitavas-
me com um rosário de gemas multicôres , rutilantes .
Não eram muitas, apenas oito, mas verdadeiras
inalteravel vigor e irradiação .
"Não esmaeciam com o tempo, não se apagavam
com a ação da luz .
"Despresavas as que tinha efêmera durabilidade
embora produzindo aparente encanto .
"E lá íamos . Levando-me com cuidado para que
o meu rosário não se desatasse ...
"Como eu ficava bonita quando, fora da caixa, a
luz do sol triunfante, fazia brilhar as minhas coloridas
contas !
"Mas tudo acabou-se para mim .
Primeiro
estudo
óleo
a
)(1 883
187
"Fiquei velha e tu, achando-me talvez ridícula,
não quiseste mais me enfeitar e me abandonaste".
Arrependí-me do que havia feito .
Reunia os fragmentos da caixa, quando surgia a
paleta de prata que ornava outróra o seu tampo, que
tanto fizera rir os discípulos de Grimm, naquela ma-
nhã clara, lá no morro de Santo Antônio .
O passado surgia daquela denegrida paleta e o
passado trás sempre saudades .
1
O ALEIJADINHO
Pronunciado na Academia Flumi-
nense de Letras, na noite de 30 de
Agosto de 1930 na sessão realiza-
da em homenagem a Aleijadinho no
dia que completou o seu bi-centená-
rio.
Para que prefaciar o que vos tenho de dizer, ou
vos tomar tempo com convencionais protestos de fin-
gida modéstia ? Vir para aquí vos dizer que me impu-
seram um sacrifício obrigando-me a tratar de assunto
para o qual não tenho competência, seria faltar com
a verdade . Aquí estou jubiloso pela missão que me
outorgaram . Não me falta para ela competência .
"Não é melhor ser assim franco, a esse gráu sin-
cero ?
"Creio que sim ".
Começarei pois indo direto ao assunto que, por
determinação da Academia Fluminense de Letras te-
nho que tratar, isto é : dizer-vos com verdade e since-
ridade o que penso sobre as produções de Antônio
Francisco Lisboa, mais conhecido por Aleijadinho .
De antemão, porém previno, que não aceito em
absoluto, isto que por aí anda pomposamente qualifi-
cado "Estilo Colonial " ― até hoje apregoado sem
bases, sem preceitos positivamente estabelecidos . Dos
primordiais tempos coloniais , dos quais não devemos
ter saudades , não nos podia vir estilo algum . Predo-
minava a ignorância , as ambições puramente materiais.
Como admitir-se a preocupação de um estilo arqui-
tetônico naquela remota época , no meio de selvas se
ainda hoje não o temos ?
No que se construia, com os escassos meios de que
se podia dispôr, se algo havia era a lembrança vaga do
190 -
que se fazia no país de origem dos improvisados cons-
trutores .
Isto mesmo de uma maneira mais do que deficiente.
Há apenas alguns anos que se começou a fazer
uma cousa com preocupação arquitetônica, mas isto
mesmo não passou de uma salada de todos os estilos,
imitação vulgaríssima mecânica, inconciente, procura-
da por um povo pouco cioso da sua nacionalidade.
Deixando isto, atiramo-nos aos horrendos arra-
nhas-céus, cousa no alcance de qualquer mestre de
obras comum .
A razão da falta de espaço, não é admissivel em
nosso país .
Para mim Aleijadinho merece aplausos principal-
mente pela sua preocupação de arte no que lhe era
dado executar, fosse isto embora, em muitos casos imi-
tação incipiente do que havia visto em estampas e de-
senhos alheios .
E ainda mais , pela coragem de lutar contra um
meio cuja única e exclusiva preocupação era o bem es-
tar material e ambição pela posse do ouro encerrado
nas altíssimas regiões mineiras .
Querer encontrar no primitivo escultor, o criador
de um estilo, é inadmissivel.
Criações dessa ordem não são tarefa para um só
indivíduo, ainda mesmo que possuidor de verdadeiro
gênio .
Exagerada, pois, é a pretenção de atribuir ao Alei-
jadinho a criação de um chamado estilo colonial, deco-
rativo .
O bairrismo dos mineiros, na deficiência de artis-
tas notaveis, é que quer impô-lo, para criar em torno
da cabeça disforme do Aleijadinho uma auréola fulgu-
rante de arquiteto .
Alegam, para que se aceite sem relutância, como
se a ignorância fosse uma atenuante, que Aleijadinho
não teve princípios , nem mestre .
Corriqueiro e usual meio, para dar valor o que não
o tem em absoluto .
Adequado ao caso vou citar o seguinte fáto :
"A um célebre escultor florentino, que levara to-
da a vida a estudar escultura e ainda se julgava mui-
to longe de algo fazer com absoluta perfeição , uma fi-
dalga cheia de vaidade mostrou -lhe um dia um boneco
191
de barro, aleijado, feito por um dos seus filhos, no qual
ela descobrira um novo Miguel Angelo .
- "Veja, veja eminente mestre que perfeição, e
olhe, ele nunca aprendeu nada com ninguem, nunca
teve professor ! o que ele faz é de sua cabeça .
"Pois minha Senhora, ponderou o escultor flo-
rentino, é por isto mesmo que o que ele fez não presta
para nada... ".
Estranho vos parecerá o que vos estou a dizer sa-
bendo que aquí vim encarregado pela Academia Flu-
minense de Letras, de, em seu nome, render homenagem
a Aleijadinho .
Peço porém não se esquecerem de que a Academia
Fluminense de Letras tem como dever bem orientar o
público e que embora de valor comum eu sou um pro-
fissional .
Não posso por ela, e por mim mesmo vir para aquí
repetir inconcientemente o que escrevem ou dizem lei-
gos incompetentes que com grande e prejudicial audá-
cia se arrojam à críticos de arte .
É claro que ao animar-me a falar das produções
de Antônio Francisco Lisboa, estudei-as com grande
atenção e muito interesse . A definitiva impressão que
elas me deixaram muito se assemelhou à que sentí, há
muitos anos quando, em Pádua, na Itália, estudei as
obras de Giotto .
Em Aleijadinho e Giotto , encontrei a precocidade
de grande talento, a par de espontânea intuição de ar-
te, mas sem possuir os elementos necessários para po-
der produzir com correção .
Tive que admirar ainda em ambos a coragem com
que lutaram . Em Aleijadinho mais do que em Giotto .
Sabia-o sem dedos nas mãos e andando quasi de
rastos por não poder locomover-se bem, sempre auxi-
liado pela invulgar dedicação do seu escravo e discí-
pulo Maurício .
Devo ainda acrescentar que Aleijadinho, a meu
ver, foi maior do que Giotto que tanto glorifica a Itá-
lia .
O que ele criou, no entanto, não foi um estilo, pa-
tenteou simplesmente uma -- maneira . É muito
diferente .
Procurou na "Natureza", fonte até hoje inesgo-
tavel para todas as manifestações de arte e foi nela
192
que ele achou o algo que nos deu de bom e belo em
suas produções .
Infelizmente o seu natural apego ao realismo, in-
condicional, persistente e imutavel, materialisou toda
a sua obra .
Ele não interpretou - retratou tudo : homem,
naturesa .
O homem brutal, grosseiro, deformado pelo traba-
lho rude e braçal, encarquilhado e feio, que ele via pas-
sar, rápido, fugitivo, temerário do contacto pesticante
da sua pessoa .
Este realismo, intransigente tirou todos os
racterísticos divino das suas imagens, manteve-o sem-
pre sobre a superfície da terra...
O materialismo, o real das suas figuras as pôs di-
vergentes em absoluto com o ambiente que ele as des-
tinou .
Para se verificar isto basta observar os Profetas
de Congonhas do Campo esculpidas na pedra sabão, ou
estudar, as setenta e quatro figuras dos Passos da Pai-
хао .
São tão despidas de belesa , tão horriveis de ex-
pressão, que já se quiz, o que seria imperdoavel, man-
dar modificá-las por outro artista .
Direi ainda que, inutilmente, algumas vezes, es-
forçou-se, lutou para algo produzir de ideal e não lhe
foi possivel . Procurando então o real absoluto, faltou-
lhe a técnica .
Vejamos se posso ser mais claro .
Há na Igreja de Santa Cruz de Florença duas es-
plêndidas imagens de Nosso Senhor Jesús Cristo, ago-
nisante na cruz .
Um desses Cristos , de uma belesa extrema, ago-
nisa serenamente, indiferente ao sofrimento físico,
que, como podeis bem imaginar foi atrós , horrivel .
Não há na sua fisionomia a menor contração de
dôr .
O olhar, de uma doçura, de uma suavidade imen-
sa, procura o céu ... As mãos, aquelas mãos que só
sabiam abençoar, conservam-se espalmadas, tranqui-
las, e elas gotejam sangue...
Tudo naquela imagem é resignação, abnegação,
divino .
193
O outro Cristo ao contrário . Sofre horrivelmen-
te ligado, por arroxadas cordas, à madeira áspera e
dura .
Contorce-se na agonia de uma dôr suprema .
Debate-se em horriveis convulsões .
Da boca desce, lentamente, um filete de sangue
negro, que passa entre os lábios contraidos .
Dos olhos desmesuradamente abertos , onde há re-
flexos, cintilações de ódio e de revolta, as lágrimas des-
lisam-se e somem-se na loura barba emaranhada e in-
tensa .
Os braços num grande esforço torcem-se, curvam-
se procurando despregar as mãos .
As unhas dos pés, cravam-se, como garras, a go-
tejar sangue no suporte da cruz .
Não é um Deus que alí está, é um homem sofren-
do o mais horrivel dos tormentos, sem resignação, sem
fé, sem esperança alguma .
Olhando o primeiro Cristo, aquele que morre co-
mo manso cordeiro, convencido que morre para pou-
par a humanidade todas as dôres e lhe abrir as portas
do céu, sem querer, se nos vai dobrando os joelhos, sem
querer se fica a olhá-lo , e se tem ímpetos de gritar : -
Senhor, Senhor de Misericórdia , minha culpa, minha
máxima culpa .
Olhando o segundo Cristo, a alma se nos contrai
apavorada, o horror ante tal cúmulo de dôres se apo-
dera de nós .
Em lugar de se querer aproximar dele, pedindo
perdão, misericórdia, se tem vontade de fugir, como
criminoso, ante a agonia da sua vítima .
Pois bem, Senhor Presidente, minhas Senhoras
meus Senhores, se por benevolência encontreis em mim
um pouco de relativa autoridade , acreditai-me . - "Se
Aleijadinho possuisse amplos conhecimentos e técni-
ca, ele seria capaz de nos dar uma escultura assim se-
melhante onde, atingida seria a verdade absoluta .
A divindade do outro Cristo, Jámais ! " .
A falta de estética tão notada, tão patente nas
suas esculturas e que se atenua nas graciosas linhas
das Catedrais, fontes e ornatos, não é devida à escas-
sês de conhecimentos técnicos sómente, mais da sua
194 --
visão de arte . Pudesse ele ter chegado até hoje e esta
visão seria a mesma .
Ela nasce e morre com o artista .
Não se modifica sinão com o sacrifício da since-
ridade .
Vamos deixar por alguns momentos o artista.
Vejamos o homem.
Esse possuia uma energia física e moral descomu-
nal .
Acometido de terrivel moléstia, era obrigado a
andar de rasto . Tendo em cada pálpebra uma chaga a
sangrar; a boca deformada, inchada pelo escorbuto, ele
conseguia dominar esses atrozes sofrimentos, e de fer-
ramenta aceitada às mãos mutiladas trabalhava dia
e noite, e assim fez até morrer !!
E o que produzia aquele grande infeliz, aquele lá-
zaro, aquele enfermo incuravel ?
Visões medonhas, infernais , cousas horriveis , como
lhe deviam inspirar seus padecimentos ?
Não . Enchia de ornatos . Catedrais silenciosas,
tranquilas , iluminadas suavemente, propícias à medi-
tação, a êxtases religiosos ! ...
Esculpia anjos alados entre guirlandas, flores , en-
tre palmas graciosamente, em curvas .
Cristos . Virgens . Santos e Santas . Profétas .
Apóstolos . E, admiravel, em tudo isto não deixou na-
da, absolutamente nada que lembre, mesmo indecisa-
mente, o homem mutilado, preso a uma horrivel dôr,
cada vez mais a aumentar, destruindo aos poucos o fí-
sico, exaurindo o moral .
Ante as suas produções, magníficas e singulares,
patentea-se um gigante de reforçados músculos, de
vigor e vitalidade surpreendentes .
Irrascivel pelo sofrimento contínuo, dominava-se
o mais possivel . Em todas as suas obras, deixou inde-
leveis sinais de altruismo e de uma poesia selvagem .
Em uma das suas fontes, teve a preocupação de
dar às aguas uma singular direção .
Elas correm de certa maneira, vencendo pequenos
obstáculos , voltas grandes e pequenas, que as faz mur-
murar baixinho, muito em surdina, como um violino
de sons amortecidos, canções dolentes sujestivas como
as do sertão, ouvidas muito de longe, cantadas pelos
tropeiros enternecidos pelo luar, pelo silêncio misterioso
das serras .
195
E aquelas aguas que correm noite e dia há duzentos
anos , emprestando vozes ao silêncio dos descampados ,
são cristalinas, puras, e, no entanto, elas passaram pelos
pantanais e brejos , antes dalí chegarem sem se conta-
minarem com a podridão .
Assim a alma de Antônio Francisco Lisboa.
Ele passou , permaneceu toda a vida em um ambien-
te pervertido por baixas ambições, capaz de tornar ári-
da a alma de um gênio e conservou sempre o seu es-
forço elevado, belo e civilizador .
Um homem assim, basta para dignificar um povo,
fazer uma nação .
Naturalmente Aleijadinho, como todos os verda-
deiros artistas, uma vez a trabalhar, afastava-se do pre-
sente, só divisava o futuro .
Punha-se a imaginar, já decorridos muitas dezenas
de anos, as suas produções focalizadas em plena luz,
julgadas por um povo civilizado e competente . Então
a recompensa ...
E ela veio .
Onte estão os grandes, os potentados de Vila Rica
do tempo de Aleijadinho ?
Onde estão aqueles que o apedrejavam, o insulta-
vam, o perseguiam ao ponto de só poder sair de noite
e trabalhar às ocultas como se estivesse a praticar um
crime ?
Já não se sabe se eram homens ou animais .
Enquanto isto se dá com eles, hoje em todo este
imenso Brasil, neste momento o nome do Aleijadinho
é glorificado por todos os brasileiros .
Agarradas ao solo mineiro, no alto das cordilheiras
estão ainda hoje as catedrais que ele ornamentoù, res-
peitadas carinhosamente por dois longos séculos .
Dentro delas no silencioso ambiente, frouxamente
iluminado , as suas imagens e ornatos destacam-se na
penumbra e lá encima, nas arcadas graciosas esvoaçam
os anjos que ele esculpiu .
Nas fontes que ele imaginou e construiu, as aguas
continuam a murmurar baixinho ...
Que importa que todos esses primores de arte an-
tiga estejam tão longe, tão longe de todos nós ?
196 www.m
Para fama, não há espaço e não há tempo .
Ela transpõe as mais altas serras, vales os mais
imensos .
Amplia-se, alastra-se, proclama o nome de quem a
mereceu como está fazendo agora com o pobre, o humil-
de, o mártir Aleijadinho .
De vale em vale, de montanha em montanha, do
espaço infinito das grandes campinas, até os mares, ela
de éco em éco diz o nome do artista sofredor, como
aquí está se ouvindo neste momento, por determinação
de uma ilustre Assembléia de homens esclarecidos pelo
talento e pelo estudo .
A PROCISSÃO
No tempo em que me dedicava exclusivamente a
pintura de paisagem procurava identificar-me, ao ex-
tremo, com o cenário que muito mais tarde me devia
servir para quadros históricos . Fugia tanto quanto pos-
sível do ambiente urbano, onde tudo se havia modifi-
cado .
Deixava o lar quando ainda muito faltava para
chegar o dia .
Quando, a primeira onda de luz da aurora ia tor-
nando mais distintos os contôrnos das montanhas, já
me achava no silêncio das estradas orvalhadas .
A passos largos ia deixando atrás o esbranquiçado
caminho, desigual, que ora se prolongava em rétas cur-
tas, ora descia ao vale, ora galgava colinas, até que pe-
netrava na mata .
Quando o sol se erguia no extremo das campinas,
ou anunciava-se num alaranjado fôsco por trás das
serras, já a minha tenda de trabalho alvejava nas en-
costas dos montes, ou nas margens das lagôas, ou no in-
terior das capoeiras, ou então, na cavidade formada
pelas enchurradas, onde se havia formado um espêlho
dagua refletindo as bases gigantescas e limosas dos pe-
nhascos .
Ao deixar o lar, nunca era certo e determinado o
meu regresso .
Afeito a vida simples , despida inteiramente de pre-
conceitos, acampava em qualquer rancho de roceiro ou
pescador .
197 -
Numa dessas viagens, já bem longe, deparei com
um agrupamento de cabanas de pescadores de alto mar,
dispersas sobre aprumados rochedos de uma praia .
O conjunto formado por aquelas rústicas cabanas,
pelas rochas, violentamente coloridas, que se erguiam a
prumo da praia de areia aloirada era soberbo .
Tudo em redor belo . Característico, atraente para
um paisagista .
Para ambientar-me, porém, e poder aproveitar tan-
tas belesas só permanecendo alí por algum tempo .
A "Natureza" foi, é e será sempre um inesgotavel
manancial de motivos pintóricos, seja qual fôr a orien-
tação artística .
Para tirar porém apreciavel resultado na sua in-
terpretação, é preciso, é rigorosamente indispensavel
estar com ela inteiramente identificado .
O mais simples trecho dela interpretado com sin-
ceridade permitirá a um artista produzir obra de arte
de valor . Mesmo procurando . dela se afastar, no alme-
jar de uma originalidade preconcebida , ela surgirâ e
se imporá como base de inspiração.
Mesmo apegando-se à verdade, o mais simples tre-
cho dela reproduzido com simplicidade, impressionará
agradavelmente pois será uma janela aberta para
"Natureza ".
Para provar isto, vos contarei uma pequena histó-
ria, de um simples " estudo ", que alcançou aquí e em
Paris, relativo sucesso .
Foi numa tarde de verão . Repousava, numa
praia, depois de um dia inteiro de trabalho ao sol, um
sol causticante, uma temperatura de fornalha .
O mar, movimentado pela vibração, em maré cres-
cente, havia alagado a praia e começava a descer len-
tamente com o caír da noite . Há dois metros mais ou
menos de onde me achava, uma pedra, que havia se
disprendido da próxima penedia, que a agua do mar
ainda a pouco cobria, surgia da areia úmida . O mo-
vimento das ondas no seu vai-vem produziu, bem junto
da pedrinha uma cavidade, onde o resto dagua que fi-
cára retido formava um pequenino lago que refletia
uma nesga do céu, um pouco da penedia, um grupo de
árvores que estava próximo na ribanceira.
193
Vendo aquele fragmento do amplo cenário assim
nitidamente reproduzido, comecei, para me distrair, a
copiá-lo no tampo da minha caixa de tintas .
Ao princípio sem grande interesse . Depois com
crescente boa vontade . Finalmente com entusiasmo, este
fator de sucessos grandes .
Inteiramente absorvido, não dei com a noite que
começava a escurecer o mar, as montanhas .
No dia seguinte ao abrir a caixa, agradou-me o
quadrinho . Chovia . Para não interromper o hábito,
que sempre tive, de não passar um dia sem pintar,
resolvi ampliá-lo . Assim fiz, sem nada alterar . Cons-
tituiria um bom apontamento, talvez aproveitavel para
o futuro .
Ao expô-lo foi considerado uma das melhores cousas
da mostra de arte .
Isto vem provar o que disse atrás. " Mesmo ape-
gando-se à " verdade " absoluta o mais simples trecho
de paisagem reproduzido com sinceridade impressio-
nará agradavelmente pois será uma janela aberta para
a "Natureza ", e esta é sempre bela, mesmo nos seus
detalhes os mais simples uma flôr é sempre um
cumulo de beleza -- na forma e na côr .
Instalei-me no pequeno povoado dos pescadores .
Deixavam-me em plena liberdade. Somente á noite
tinha que entretê-los, contando histórias .
Tudo me favorecia .
Sucediam-se dias lindíssimos de luz .
Vinham depois dias sombrios, em que o mar se
enegrecia, e o céu parecia muito baixo .
Aproveitava esses efeitos indecisos onde tudo se
afinava num tom levíssimo que afasta os montes para
longe, envolve tudo em um ambiente vago .
A esses dias assim amenos, que me permitiam re-
pousar os olhos fatigados da luz intensa e forte dos do
sol, seguiam-se outros tempestuosos que convulsiona-
vam o mar, movimentavam as árvores, escureciam os
verdes, creando efeitos extraordinários de forte luz, de
pesadas sombras, de bruscos contrastes .
Então não perdia um minuto . Abrigava-me nas
cavidades do rochedo, estudava o mar em vagalhões es-
pumantes . O céu onde se acastelavam nuvens formando
um ambiente de irisados montes, planícies vastas .
- 199
Num desses dias alvoroçou-se a pequena povoa-
ção.
Quando pela madrugada as embarcações deixa-
ram o porto, o mar estava calmo .
Espelhava no entretanto um céu nevoento . Mas
tarde caiu o nordeste . Incresparam-se as aguas logo
após . Intermitentes rajadas de sudoeste já no hori-
zonte encapelava o mar .
Desencadeou finalmente o temporal .
Aproximou-se a noite sem que uma só das em-
barcações chegasse ao porto .
Assustadas as mulheres dos pescadores que esta-
vam no mar impacientavam-se .
Apavorava-lhes o rugir do oceano . O negrume do
céu .
Já tarde da noite, finalmente, aos boléos vieram
os barcos chegando .
Estavam alagados como se estivessem saido do
fundo do mar .
Das vélas apenas restavam uns frangalhos .
Exaustos os homens mal podiam se manter de
pé .
Mas faltava uma embarcação .
A de Porto Real, o chefe da colônia .
Desesperançada, a mulher, sobre um rochedo, en-
xarcada pela chuva, chorava a gesticular frenetica-
mente .
Até que afinal no alto de uma vaga espumante
surgiu o barco .
Uns mulambos de lôna esvoaçavam no alto dos
mastros tudo que restava das grandes vélas, que pela
madrugada, impelidas pelo vento, como as asas de
um pássaro branco sumira-se aos poucos, já ilumina-
das pelos primeiros raios da alvorada .
Num arranco, depois de erguida pela pôpa por
uma grande vaga na praia, como um corpo que des-
maia se estendeu a embarcação .
Os pescadores saltaram .
A mulher de Porto Real depois de abraçá-lo caiu
de joelhos a gritar - Graças, graças minha Nossa
Senhora da Conceição, graças !!
200 ―
"Se lhe pedisse uma cousa o sr . seria capaz
de fazer, seu pintor ?
"Doido para lhe ser agradavel ando eu . Não
sei como poderei provar a minha gratidão pelo ca-
rinhoso agasalho que tenho aquí recebido .
"Qual, a gente não tem feito nada .
"Olá se tem ! Já lá vai para um mês que me
hospedam e não me deixam nem pagar o que como .
"Não fale nisto . São misérias . O mar tem
muito peixe . Dá para todos .
"Mas vamos lá, o que quer que lhe faça?
- "Tenho vergonha de dizer, mas fiz uma pro-
messa .
"Que promessa ?
"Não se lembra quando o Porto Real ia mor-
rendo naquela horrivel noite de sudoeste ?
- "Se me lembro .
- "Pois bem . Eu havia perdido toda à espe-
rança de tornar a ver o meu homem . Caí de joelhos
chorando e gritei para o céu : Oh ! Minha Nossa Se-
nhora da Conceição salvai meu marido e eu mandarei
pintar na pôpa da nossa embarcação a Vossa Santa
Imagem toda rodeada de rosas brancas . Pois seu pin-
tor, por nosso Senhor que está no céu eu juro , Nossa
Senhora, sua Santíssima Mãe me ouviu . Pedi com
tanta fé ! Logo depois, ao clarão de um relampago vi
ao longe aproximar-se, correndo sobre as vagas, a
canôa de meu marido e no meio de uma nuvem côr
de rosa Nossa Senhora !
Agora eu não sei como cumprir a minha pro-
messa .
"Muito simples . Pintarei Nossa Senhora da
Conceição toda rodeada de rosas brancas .
"Que bom que o sr . é seu pintor ! Olhe, eu
pedirei a Deus todas as noites para proteger o se-
nhor .
Mandarei meu marido levar a canôa á vila e seu
vigário benzerá a imagem . Então nunca mais, nunca
mais, haja o que houver, terei medo de meu marido
morrer no mar . Nossa Senhora não deixará que isto
aconteça, na pôpa a sua imagem guiará o leme e a
embarcação chegará ao porto .
201
Aproveitando um dia destinado aos reparos das
rêdes, a canôa de Porto Real, deslisando sobre páus ro-
liços foi içada para baixo de um tendal .
Alí executei a imagem de Nossa Senhora da Con-
ceição, toda rodeada por uma guirlanda de rosas bran-
cas .
Não foi sem dificuldade . Pintar um Santo é difi-
cil . Embora representado em uma figura humana, tem
que possuir algo que lhe tire este caráter . Há imagens
que se olha com indiferença, outras, porem, ao contrá-
rio inspiram fé e faz vontade de orar .
Depois a Mãe d'Aquele que foi o melhor dos ho-
mens, o único puro, o mais misericordioso, só podia ser
representada por um tipo de mulher ideal . E' o que
procurei fazer . Se não consegui como mais certo me
pareceu, ao menos, alguma cousa obtive de caráter di-
vino pois jámais pescador algum passou pela canôa
de Porto Real, que vendo a imagem, não tirasse o
chapéo .
Estava extremamente fatigado . Repousava estira-
do no fundo de uma canôa quando ouvi pronunciar meu
nome .
As mulheres dos pescadores em grupo junto a ou-
tra embarcação conversavam costurando .
Não me podiam ver e não me teriam visto se eu não
me erguesse do fundo da canôa onde me havia esti-
rado . Fiz porem que não lhes prestava atenção e me
absorvia observando o sol que desaparecia .
- "Vai você, dizia uma delas . A ocasião é bôa.
Ele não está trabalhando .
"Eu não, ele talvês fique aborrecido . Tem tra-
balhado tanto depois que aquí chegou e ainda vamos
pedir que ele trabalhe para nós .
- "Qual o que, não ficará não . Ele gosta muito
da gente .
"Não, não vou .
"Vocês não querem ir, pois vou eu .
Resoluta, uma delas se aproximou da canôa onde
eu estava .
"Seu pintor . Elas estão dizendo que ficariam
muito contentes se o sr . pintasse tambem nas canôas
delas um santo .
-- 202
"Olhe o meu é S. Pedro, que foi bom pescador
como é meu marido . O daquela é S. José, que é como
se chama o marido dela . O da outra que está ao lado
é S. Paulo, daquela que se está escondendo, S. Vicente,
daquela outra que está sentada S. Tomás .
—
"Mas são todos os santos da côrte celeste que
vocês querem que eu pinte? Pintar não me seria dificil
no meu atelier, aquí não . Todos estes santos se ves-
tiam de modo diferente e eu não sei de que maneira
pois não disponho aquí de livros para consultar .
--- "Não faz mal . O sr. vestirá eles todos com rou-
pa de sêda, de veludo, bordada a ouro, bem bonitinhos .
"Se assim se contentam pintarei .
"Como será bonito, seu pintor, a gente ver vin-
do de longe as canôas, cada uma com seu santinho na
pôpa . Até parecerá uma procissão no mar.
Consegui com um livro que mandei pedir ao vigário
inteirar-me da indumentária e aos poucos fui pintando
os Santos nas canôas .
Fiquei contente, pois pude ser util aquela gente
que, tantos e tantos anos já passados, depois que com
eles convivi, ainda de mim se recorda .
Envelheceram como eu . Tantos anos já passaram,
mesmo assim quando por lá aparece alguem de fóra vão
logo mostrar os rochedos que pintei, as pedras onde me
sentei, os santinhos que colori nas pôpas das canôas .
Descrevem-no moço, forte . Cabelos muito negros, barba
muito preta, robusto e agil " Helás !" Só lhe ficou de
mim a visão do passado .
Chegou a Semana Santa .
Na quinta-feira nem uma canôa ficou no porto .
No dia seguinte o peixe teria grande procura e seria
bem pago .
Desde pela manhã, porém, como para formar um
adequado ambiente ao dia em que morrera o Senhor,
nuvens pesadas, negras, barravam o horizonte .
Bandos de pássaros passavam voando rente as
aguas, aproximando-se da costa .
O mar tinha o tom de limo velho .
Embora tão positivos sinais de próxima tempes-
tade, partiram para o mar todos os pescadores .
203 -
Como era de esperar, pela tardinha desencadeou
o temporal . O mar parecia querer engulir a terra .
Rugia, desfazendo-se em vagalhões enormes, es-
pumantes .
Galgava aos saltos a encosta .
Cobria de espuma os tétos das cabanas .
Envergava as árvores .
Arrancava o sapé dos alpendres .
Apavoradas, as mulheres, loucas de medo, aos gri-
tos percorriam a praia arriscando-se a serem tragadas
pelas ondas, que uma após outra, em correrias loucas ,
estouravam na areia .
Uma delas , porem, conservava-se tranquila, sen-
tada á porta da cabana, amamentando um filho, ro-
deada por outras que apavoradas a ela se uniam, for-
mando um soberbo grupo de movimento e de expres-
são .
Era a mulher de Porto Real em cuja embarca-
ção figurava a imagem de Nossa Senhora da Con-
ceição .
Vendo o aflitivo estado das outras, lá do alto da
cabana gritava :
"Não tenham medo assim . Não acontecerá
nada . Nossa Senhora está com eles ".
Como se do céu a ouvisse a Imaculada Mãe do
Senhor, começaram a aparecer as canôas .
Aproximavam-se enfileiradas .
A que tinha a Imagem de Nossa Senhora, vinha
na frente, resistindo o mar cujas ondas galgava sem
parar, serena a deslisar ...
Vendo-as a mulher de Porto Real, gritava :
"Eu não lhes dizia, não lhes dizia !! Lá vem
a procissão ! Nossa Senhora da Conceição vem na fren-
te desfazendo as vagas . Abrindo o caminho!
S. José vem ao lado dela .
- A direita, S. Pedro .
Mais atrás , á esquerda, S. Paulo .
Em seguida S. Vicente e S. Tomás .
Eu não lhes dizia, não lhes dizia que Nossa Se-
nhora estava com eles ! ...
Como cedendo a um só impulso, todas elas se
ajoelharam, indiferentes ao vociferar medonho do
mar, ao vento que zunia, a evaporação das vagas, que
204
se desfaziam como nuvens de poeira, os estampidos
continuados dos trovões .
E daquele grupo sublime, estupendo, de expres-
são religiosa, de movimento adequado, de linha e de
côr em extrema harmonia com o amplo e convulsiona-
do cenário, num murmurar continuo de vozes em so-
luços, uma prece fervorosa subia ao Céu :
- "Ave Maria, cheia de Graça, Bendita sois Vós
entre as mulheres e bendito é o fruto do Vosso ventre
Jesús .
Quando me resolvi passar alguns anos em Paris,
aproveitando um período feliz de fartos recursos, pro-
curava alcançar naquele amplo e cosmopolita meio de
arte uma posição embora modesta entre os seus bons
artistas .
Desejava obter isto unicamente pelas minhas pro-
duções sem o auxilio da convivência com colégas ou re-
comendações particulares ou oficiais . Isolei -me por
completo, ao ponto de não saberem de minha perma-
nência em Paris, nem mesmo os representantes do
meu país, aos quais jamais solicitei serviço algum,
nem mesmo uma simples apresentação .
Sósinho percorri os principais paises da Europa,
visitando os museus com extremado cuidado e sem
precipitação afim de conhecer amplamente toda a
evolução da pintura, desde os mais remotos tempos
até a época em que me achava, convencido como estava
e estou ser esse o meio de se livrar um artista de se
algemar a uma escola ou fanatisar-se pelo domínio de
uma orientação ainda não consagrada pelo tempo e
definitiva e universalmente aceita .
Tive muitas decepções . Muitas celebridades vi
cairem do pedestal erguido pelo reclamo ou exagerado
e cégo patriotismo .
Tive porém momentos de deslumbramento .
Esse contraste ensinou-me a ver e a ver bem .
De regresso a Paris, onde então definitivamente
me instalei, já tinha determinado o ponto á atingir e
não me assustou a sua localisação . Tudo que havia
visto ensinou-me a conhecer a mim mesmo ...
Preparei-me para que se me abrissem as portas
de um dos grandes Salons parisienses . Antes porém,
205
como fizera com os museus, quís conhecê-los e estu-
dá-los com grande atenção .
Se me impôs na preferência, o Salon Nacional,
nele a seleção era mais rigorosa . Nele figuravam
obras de notaveis mestres franceses e estrangeiros .
Não pensei apresentar-me no Salon como paisa-
gista . Pelo que tinha observado no gênero nos Salons
antecedentes foi facil e suficiente para julgar a mim
mesmo e ter a certeza de não me ser nada dificil con-
correr com uma paisagem àquele certamem artístico .
Entendi fazê-lo com um gênero de trabalho no qual
eu não me tinha dedicado com exclusivismo como a
paisagem . Enviei, um nú.
Foi aceito por unanimidade de votos e colocado
na cimaise, lugar almejado por todos os que concorrem
aos Salons de Paris .
Estreando com um nú com outros concorri anos
seguidos :
"Inspiration", em 1909 .
"Phryné", em 1910 .
"Dolorida", e "Calme du Soir ", em 1911 .
"Fleur Brésilienne " em 1913 .
"Nonchalance" em 1914.
"Modéle em repos " em 1920 .
Esses trabalhos me tornaram conhecido em Fran-
ça, direi mesmo popular, pois foram reproduzidos em
todos os gêneros aos milhares pelos mais notaveis edi-
tores de Paris, de Inglaterra, de Espanha, de Itália :
— Levy Fils Ytelepter - Figura Studios --- A.
Saint Just Neurdein -- Noyer - Mericaut - La-
pina - Fiorillo - The antetype - Fine art - Lon-
dras - Braum .
Não me faltaram bôas ofertas para aquisição dos
nús expostos no salon. Recusei sempre por que não
queria deles me desfazer sem expô-los no Brasil .
Desses nús a Phryné foi a que maiores aplausos
recebeu, as suas reproduções, em cartões postais, tri-
comia, gravura, fotogravura já alcançaram a elevado
número de trinta quatro mil, conforme comunicação
recebida de Paris .
O representante de " The autotype Fine Arte ” e
"Figure Studios Londres" insistiram na sua posse e
como nada tinha meu em Inglaterra naquela época,
206
vacilava na resolução a tomar . Oliveira Lima nosso
embaixador na Bélgica, que estava em Paris não con-
sentiu que aceitasse a oferta . Adquiriu-o . Levou-o
para Bélgica . Depois para os Estados Unidos, onde fi-
cou para sempre .
Mais longe do que " Phryné" foi parar outro qua-
dro meu : Lembrança da visita de Oscar I, Rei da
Suecia e Noruega que está em Stockolmo no Palácio
Real, e que obteve grande medalha de prata .
O sucesso alcançado com a "Phryné" está ampla-
mente documentado numa crônica de Oliveira Lima
publicada no " Estado de São Paulo " e muitos jornais
franceses . No " Chronique de Paris " de 23 de Junho
de 1910 o grande crítico Contgival o classifica como
um dos melhores nús expostos no Salon da Nacional
em 1910 .
No ano seguinte, ao mesmo Salon enviei uma pai-
sagem "Calme du Soir", que obteve grande aceitação.
Faltava-me portanto saber o que diriam dos meus
trabalhos históricos . Não podia enviar mais de um
ao Salon e eu queria que estas minhas produções fos-
sem julgadas em conjunto . Assim algo fariam para a
divulgação de alguns fatos gloriosos da minha Pátria
no estrangeiro e das suas incomparaveis belesas na-
turais, embora dificilmente representadas nas minhas
produções . Fiz bem, muito bem mesmo , como o lei-
tor poderá por si verificar se quiser se dar ao traba-
lho de lêr alguns artigos da imprensa francesa, no
apêndice .
Não quero deixar de consignar aquí, quem me
proporcionou os meios de executar os quadros histó-
ricos que em grande parte estiveram expostos em
Paris .
O dr . Bernardino de Campos foi o primeiro que
me fez a encomenda de um trabalho deste gênero :
Suplicio de Tiradentes - Os desterrados. Esses tra-
balhos estão no edifício que era destinado ao Supre-
mo Tribunal, na rua 1º de Março .
O segundo foi encomendado pelo dr . Antônio
Montenegro, Presidente do Pará, e está no Palácio do
Governo: --- A Conquista do Amazonas.
207
O terceiro foi encomendado pelo dr . Pereira Fer-
raz: A Fundação de Niterói, está na Prefeitura de
Niterói .
O quarto me foi encomendado pelo dr. Serzedelo
Corrêa: Morte de Estácio de Sá, Fundação de Rio
de Janeiro. Está na Prefeitura Federal.
Depois executei : -- · Proclamação da República de
Piratinim, que me foi encomendado pelo dr . Borges
de Medeiros , Presidente do Estado do Rio Grande do
Sul, para o palácio do Governo, e ainda encomendado
pelo mesmo : A Prisão de Tiradentes, que está na
Biblioteca pública de Porto Alegre .
Logo em seguida, encomendados pelo Prefeito de
São Paulo, dr . Raimundo Duprat : - Fundação de
S. Paulo, e Instituição da Camara de Santo André,
estão ambos na Prefeitura Paulista e ainda encomen-
dado pelo mesmo executei : Morte de Fernão Dias
Pais Leme, que está na Biblioteca pública de São
Paulo .
O dr . Ferreira Chaves, Presidente do Rio Grande
do Norte encomendou : - Frei Miguelino, para o pa-
lácio do Governo .
O mesmo fez o dr . Camilo de Holanda, Governa-
dor do Estado de Paraiba, encomendando-me : José
Perigrino, para o palácio do Governo .
Pelo dr . Afonso Camargo, Presidente do Estado
de Paraná, foi me encomendado : As Cataratas de
Iguassú para o palácio do Governo, em Curitiba.
O dr . Bernardino Monteiro, Governador do Estado
do Espírito Santo o quadro : - Anchieta, para o pa-
lácio do Governo .
O dr . Alfredo Pinto, Ministro do Interior e Jus-
tiça encomendou-me : História da Música, para o
Conservatório do Rio de Janeiro .
O dr . Raul Soares, Presidente do Estado de Mi-
nas : Felipe dos Santos, Revolução Mineira, 1720 .
Este quadro está em Belo Horizonte e é destinado ao
Congresso .
O dr . Melo Viana, Presidente do Estado de Mi-
nas : O teto do Palácio da Liberdade A Visão
de Tiradentes Apoteóse á Música. Os dois últimos
estão no Conservatório de Música de Belo Horizonte.
208
O dr . Vital Soares, Governador do Estado da
Baía, para o Palácio do Rio Branco em São Salvador
o quadro histórico : O Primeiro Passo para a In-
dependência na Baía.
Para figurar na exposição de Sevilha, foi-me en-
comendado A Baía de Guanabara, que obteve medalha
de ouro na referida exposição .
O dr . Luiz Pena encomendou-me para a Prefei-
tura de Juiz de Fóra : A Jornada dos Martires.
Finalmente o dr . Pedro Ernesto, Prefeito do Dis-
trito Federal, para o vestibulo da Prefeitura : - His-
tória da Cidade do Rio de Janeiro.
Além desses quadros históricos, pintei, sem me
serem encomendados os seguintes que estão em meu
"atelier": Jean Hernandez, primeiro colôno de
Santa Catarina . - Os últimos momentos da Incon-
fidência. -Descoberta das Turmalinas , pelo Cap.
Dias Adorno. - Terra Flagelada. - Bechmam, Re-
volta popular do Maranhão. Frei Caneca. - Os
invasores.
Dos artistas Brasileiros até o presente fui eu
quem maior número de quadros históricos executei .
Eles deviam constituir um pequeno compêndio da his-
tória do Brasil conforme me aconselhou o meu gran-
de amigo Rocha Pombo, quando lhe mostrei os defi-
nitivos "croquís " dos quadros históricos que tinha
executado, tal o rigor da documenação que neles en-
controu . Infelizmente até hoje não me foi possivel
seguir o conselho do eminente historiador brasi-
leiro .
Acho que é chegado o momento de atirar para o
lado o meu diário até 1936. Poderia ainda dele tirar
muita cousa, devia mesmo a rigor fazê-lo . Não o quís.
Restabeleceria a verdade, muitas vezes sacrificada a
interesses pessoais, á custa mesmo da Justiça .
Diminuiria de muitos o lisongeiro conceito de que
gozam ou de que gozaram . Daria a Cesar o que é de
Cesar ...
Para que?
Uns já se foram ... Outros talvês se tenham re-
mido das culpas, outros foram castigados . Quem com
209
ferro fere, com ferro será ferido ... Querendo ser jus-
to, seria talvês injusto. Deve-se sempre perdoar.
Se pequei, que me perdôem . Se algo de mal me
fizeram, que se esqueçam, porque eu já me esqueci .
Niterói Dezembro de 1936 .
ANTÔNIO PARREIRAS
Os
invasores
"Atelier" Parreiras (casa)
O cesteiro - Niterói — 1927
costumes
brasileiros
Q
)de
D uadro
errubada
1930
(A -
Beira
à
Sudoéste
-M ar 1937
f
Oogo 1937
-
APÊNDICE
Fragmentos em críticas sobre a História de
um Pintor e da Exposição de quadros histó-
ricos em París
Opinião da Imprensa francesa
Seria em demasia longo transcrever integralmente
os artigos da imprensa francesa sobre as minhas pro-
duções. Limito-me a alguns fragmentos desses críticos , o
suficiente para provar algo que afirmei anteriormente
neste livro .
REVUE DE L'AMÉRIQUE LATINE
1º Septembre 1928
(Vol. VI — N ° 21 Pág. 71 )
LA PEINTURE BRÉSILIENNE
Par Georges Normandy
C'est autant parce qu'il a su se discipliner, en restant
le plus brésilien de tous les peintres du Brés 1 , que parce
qu'il a montré un talent universel qu' Antonio Parreiras est
une grande figure d'artiste dans sa patrie et dans le monde.
Illustre au Brésil, Parreiras est notoire à Paris où il
expose chaque année à la Société Nationale de Beaux-Arts,
dont il est le délégué pour son pays. Les amateurs, les artis-
tes, les critiques le connaissent bien, ou croient le bien con-
naltre : ils voyagent si peu, ils se renseignent si vite , ils
ont si tôt classé un talent ! ... Chez nous, donc, Parreiras est
surtout considéré comme un excellent peintre de Nu.
Une visite à son atelier de la rue du Val - de - Grâce, á
Paris, sufirait pour juger la valeur de cet artiste.
L'énergie fougeuse, l'impeccable netteté de traits que
l'on trouve sur son mâle visage, se reflètent exactement dans
son oeuvre formidable. Fils parfait du noble Brésil of trois
va'llantes races se fondirent pour créer une race superieure
qui étonne dejá et stupéfiera le monde, il a immortalisé les
fastes de sa Patrie dans ses vastes toiles historiques. C'est
dans ces oeuvres de longue haleine et dans se paisages que je
trouve les motifs qu'a Parreiras de se survivre.
- 218
Ces toiles historiques sont grandes autrement que par
les dimensions.
Devant elles les jeunes générations brésiliennes appren-
dront la glorieuse histoire de leurs ancêtres. Rien , dans ces
fortes compositions n'est négligé ou laissé au hasard : au-
cun détail n'est indifférent bien quil ne prenne jamais plus
d'importance qu'il n'en comporte. Tout y est étudié, vérifié,
rigoureusement exact.
..La laideur n'est l'oeuvre que de l'homme.
Elle résulte d'un état d'âme discordant spontanément avec
le paysage, ou bien ele est la consequence d'une mutilation
ou d'une transformation artificielle . L'oeuvre humaine a sa
beauté, une beauté que , fatalement, l'homme juge superieure.
Mais quelle que soit la grandeur triste et formidable d'un
paysage d'usines ou la joliesse maladive d'une banlieue de
grande ville, l'épanouissement libre de la nature les dépas-
sera toujours .
C'est ce qu'en cet art d'affinement et de sensibilité
qu'est le paysage, Antônio Parreiras a parfaitement compris.
Parlerai-je de Parreiras animalier? "Esperando o zagal"
suffirait là, pour le situer : soulignerai -je l'intensité du rea-
lisme dans ses toiles de genre? Voyez la tristesse écrasante
de la "Morte de Virginie" et l'horreur désespérée de "Lar
infeliz"; rapellerai -je la poésie irrésistible de son "Are-
tuza? .."
Il faut se borner et souhaiter qu'un jour prochain Par-
reiras fasse à Paris une exposition d'ensemble de sonioeu-
vre.
J'en ai dit assez pour que l'Art Brésilien retienne l'at-
tention des critiques et des amateurs européens.
Si incomplets et si sommaires qu'ils soient, les deux arti-
cles que lá Revue de l'Amérique Latine m'a rait l'honneur
de me demander auront peut-etre, en autre, cette utilité
d'établir qu'en Art comme en littérature, le Brésil occupe
une des premières places dans l'Amérique du Sud.
GEORGES NORMANDY
REVUE DES BEAUX - ARTS
Paris, 1.9 juin 1920.
LE PEINTRE BRÉSILIEN ANTONIO PARREIRAS
Parreiras occupe d'ailleurs une place enviable parmi nos
artistes. Lorsqu'il prit ses quartiers à Paris, en 1907 , au re-
tour d'un voyage d'étude en Italie, ses lettres de naturali-
sation suivirent de près: un nu admirable qu'il esposa au
Salon de la Société Nationale en 1909, attira sur lui l'atten-
tion des connaisseurs.
-219-
Puis vinrent successivement une "Phryné” en 1910,
"Dolorida" en 1911 , "Fleur Brésilienne " en 1913 , "Noncha-
lance" en 1914 , qui ont été popularisées par la reproduction.
En sorte que Parreiras est considéré chez nous comme un
merveilleux peintre de nu.
Cette "spécialisation" agace un peu le brillant artiste .
Parreiras est en réalité un peintre d'histoire . Or la peinture
d'histoire , on l'oublie trop souvent, suppose une universalité
de dons et de connaissances qui touche à la fois à la mytho-
logie, au portrait, à l'animal et au paysage . Les ateliers sont
devenus rares dans lesquels il est permis d'entrevoir ces
genres réunis ; nos contemporains n'ont guère, comme les
anciens ce qu'on pouvait appeler le pinceau encyclopédique.
Bien que son oeuvre soit toute entiére au Brésil, une
v site à l'atelier de Parreiras, rue du Val de Grâce , permet
de juger de sa belle harmonie d'ensenble. L'artiste part de
ce principe que l'art est à la nature ce que l'image est á la
réalité ; sans être un "réaliste" dans l'acceptation rigoureuse
du terme, Parreiras serre de prés la vérité, et dans toutes les
grandes compositions qui lui ont été commandées par son
gouvernement, il est parvenu à la plus parfaite unité .
Les vastes toiles auquelles je fais allusion résument
l'histoires moderne du Brésil , depuis la "Fondation de Rio
de Janeiro" et la "Conquête de L'Amazone" jusqu'a la "Pro-
clamation de la Republique de 1835 ” , en passant par les
épisodes typiques de cette histoire si riche en événements,
tels "l'Arrestation de Tiradentes" et la "Fondation de San
Paulo par les Jésuites".
Ces pages, dont certaines mesurent jusqu'à cinquante
mètres carrés, s'imposent par une grandeur d'exécution in-
comparable ; un charme puissant les relie, une pleine lu-
mière les éclaire, sans artifice de métier.
C'est que Parreiras est encore un paysagiste et par
bonheur ici encore il ne s'est point spécial sé .
Un paysagiste est trop souvent un poète agréable, in-
capable d'imaginer un drame, de pénétrer une conscience ,
de peindre un choc d'événements, la remarque - je crois
en a été judicieusement faite par Jules Claretie.
Au reste, la variété infinie de la nature, dont chaque la-
titude a sa force appropriée au climat, est un trésor inconnu
du peintre sédenta re. Parreiras a observé cette diversité ,
avec un égal bonheur , dans les magnifiques études qu'il
nous montre de ses forêts vierges et de notre vallée de Che-
vreuse, de ses plateaux rocheux et de nos bords de l'Oise.
Ici et là nous retrouvons la simplicité qu'un grand ciel met
toujours sur un paysage ( car le ciel, lui, est toujours le
même) et nul effort ne se manifeste dans les contrastes
savants des conformations intimes ou des types de races.
J'ai dit un mot de l'esthétique de Parreiras, il y aurait
des pages à écrire sur son metier, le metier si décrié de
nos jours ! En dépit des esquisses préalables, Parreiras se
garde toujours d'attaquer son tableau d'un seul coup et
dans le ton ; pour lui le camaieu reste la base de l'oeuvre.
· 220 -
c'est au camaieu qu'il doit ses ressources de couleur, et
toutes les rutilances qu'on chercherait en vain dans la
pâte.
Délégué par la "Société Nationale des Beaux Arts", où
son dernier tableau "Perverse " est très remarqué cette an-
née, Parreiras projette d'organiser à Rio de Janeiro une
grande exposition .
Entre temps, nous verrons à Paris une exposition de
l'oeuvre de Parreiras ; l'artiste compte emprunter aux col-
lectionneurs quelques unes de ses toiles, elles ont été ré-
gulièrement achetés au Brésil ; les "Paysages de France" fi-
gureront en tout cas à cas à cette exposition , le dernier,
la "Vallée de Chevreuse" ― vient d'obtenir une medaille
d'or. Et si les maquettes de ses grandes compositions histo-
riques peuvent y trouver place, on verra qu'en revenant à
la peinture d'histoire, une voie de lumière pourrait encore
se frayer dans le chaos actuel!
H. REVERS.
LA REVUE MODERNE
Paris, 15 juin 1920
ANTONIO PARREIRAS
Par Clément Morro
L'éminent artiste qu'est le peintre brésilien Antônio
Parreiras semble mettre une sorte de coquetterie à ne mon-
trer, dans ses envois à la Nationale , qu'un des aspects de
son talent; comme s'il tenait à rester, pour nous, seule-
ment un maitre du nu , jusqu'à l'heure qui, je crois est
proche où il se manifestera sous son vrai jour, c'est -
à dire où une exposition d'ensemble - dont on m'assure
qu'il réunit en ce moment même les éléments - révélera
au public français, dont la majeur partie l'ignore encore,
ce que savent bien ses compatriotes : à savoir, qu' Antonio
Parreiras n'est pas seulement le magique évocateur de l'
harmonie merveilleuse et de la grâce troublante du corps
féminin, mais qu'il excelle aussi dans la peintre historique,
dans le portrait ou dans le paysage.
Je crois même que c'est dans ce dernier genre qu'il a
obtenu, au Brésil, ses premiers succés. A Paris, où il vint
en 1907 , et qu'il n'a jamais quitté complètement depuis, c'est
comme peintre de nu qu'il s'est fait connaitre, et céest com-
me tel qu'il s'est acquis rapidement une notoriété de pre-
mier ordre, principalement par des envois successifs au Sa-
lon de la Nationale : em 1909, Fantaisie ; — en 1910, Phrynė;
en 1911 , Dolorida ; en 1913, Fleur Brésilienne; -
- 221
1914, Nonchalance, et enfin, cette année, Modèle au Repos,
l'un des meilleurs de ce genre, a mon avis.
J'ai trouvé, dans ce Modéle au Repos , tout à la fois de
la vérité d'expression, de la solidité dans le dessin , une
juste et franche tonalité, en même temps qu'une réelle sin-
cérité de sentiment.
Qu'il évoque comme dans cette toile, le calme assoupis-
sement du corps vaincu par la fatigue ; ou, comme dans
"Phryné", la tentatrice orgueilleusement provocante ; ou
bien encore la fraicheur éclatante et saine d'une chair plei-
ne de jeune sève , comme dans "Fleur Brésilienne ”, toujours,
Antônio Parreiras sait enclore , en des lignes très simples ,
toute l'élégance délicieuse du corps de la femme, cette tié-
de douceur qui en fait l'attrait mysterieux, cette flexibilité
onduleuse et palpitante d'oú nait la vie.
Mais ce n'est là, je le répète, qu'une des cordes de la
lyre ve de veritable poète, qui sait aussi chanter magnifi-
quement les grands épisodes de l'histoire de son pays. Car
la peinture historique est sa principale spécialité. Depuis dix
ans qu'il travaille pour le Gouvernement du Brésil, il a dé-
coré de toiles admirables les principaux monuments de tous
les E'tats de la grande république sud -américaine.
De cette partie la plus importante - de l'oeuvre d'
Antonio Parreiras, je me réserve de parler plus longuement
au moment de l'exposition que prépare ce peintre, et où
il placera sous nos yeux une grande collection de tableaux
historiques, ainsi que de paysages du Brésil et de France.
Une telle exposition, que l'artiste se propose d'organiser à
Paris d'abord, puis à Londres, à Rio de Janeiro et à Buenos-
Ayres, constituera un magnifique monument de propagan-
de, aussi bien de l'art brésilien que de l'art français : car,
si Parreiras a étudié à l'Académie de Rio de Janeiro et
aussi du reste a l'Academie de Vénise - la France est sa
seconde patrie ; c'est à Paris qu'il réside la plupart du temps.
S'il a remporté la grande médaille d'or au Salon de Rio de
Janeiro en 1918, il est hors- concours au Salon de Paris et
délégué de la Société des Beaux Arts de France : et nous ne
ferons pas tort à l'art brésilien , si brillament illustré par
Antônio Parreiras, en revendiquant pour l'art français, une
part dans les légitimes succés de ce bon peintre.
"BONSOIR"
Paris, 4 mai 1922 .
UNE VISITE A L' ATELIER PARREIRAS
Par Pierre Scyse
Le grande peintre brésilien Antônio Parreiras devait
convoquer la critique à une exposition de son oeuvre avamt
que la majeure partie de celle- ci , dûment emballée et protè-
222
gée, quittat, pour traverser l'océan, le vaste atélier de la
rue du Val de Grâce. Hélas ! la peinture subit une crise sin-
gulière, qui fait qu'echappant à sa véritable et primordiale
destination elle résigne son effort à ces ouvrages de che-
valet qui encombrent nos cimaises. Un peintre peut ainsi
réunir deux centes toiles dans une arrière- boutique. Mais le
peintre qui, tel Parreiras, veut unir la peinture à l'archité-
cture, qui conçoit vastement, réalise de même et cherche à
inscrire ses panneaux dans la muraille, et ne demande com-
me cadre que ces marges de granit aubére ou de pierre de
taille qui satisfaisaissient les imagiers de la Renaissance,
celui - ci ne trouve plus à Paris de salle d'exposition à sa
taille.
Parreiras expose dans son atelier les grandes composi-
tions que lui commande le gouvernement brésilien pour or-
ner le Conservatoire de Rio .
Disons-le tout de suite : ces compositions surprennent
par une sorte de fouge sensible et pourtant réfléchie, par
um gout de l'ampleur très rare aujourd'hui.
Invinciblement j'ai pensé aux fresques de Laurens au
Panthéon. Il y a là une maitrise calme, une confiance, une
probité qui doivent attirer les sufrages des artistes à cette
oeuvre.
Voilà enfin une peinture "murale"; j'entends par là une
peinture qui n'est point un jeu de mandarin ; une compo-
sition faite pour le bâtiment et que la muraille n'effraie pas.
Disons-le: ce métier semble deserter nos ateliers. Est- ce
parce qu'il demande une technique approfondie, une con-
naissance peu commune de la matière picturale? Ne deci-
dons pas de ce point délicat en aussi peu de lignes .
Toujours est- il que Parreiras, peintre de fresques, ne
dédaigne pas de brosser des toiles plus réduites, et que ee
grand ouvrier de grandes surfaces possède à merveille la
gamme plus facile de la peinture de chevalet.
Les nus de Parreiras sont célébres : - Phryné Non-
chalance Dolorida autant de morceaux savoureux qui
connurent la popularité des reproductions . Mais ce tempé-
rament multiple ne veut décidément pas se limiter. Avec
le méme bonheur qu'il apporte à traiter l'allégorie , les,
fresques historiques et les belles chairs féminines, il s'at-
taqua au paysage.
Et voici un nouvel aspect de ce talent. Grand voyageur,
Parreiras excelle à saisir l'atmosphère des lieux où l'en-
traine sa fantaisie. C'est le poète coloré de la savane, de la
forêt vierge, de la pampa . Il peint en amoureux véhement
les douceurs et les colères de sa mer océane , et telle plage
brésilienne traitée par lui imortalise une heure de soleil
lourd et d'eaux sonores.
L'eau... avec quel enchantement Parreiras a su la pein-
dre ! Je considère comme un chef- d'oeuvre la colonne for-
midable d'une cataracte . Dans l'emeraude des herbes, cette
-- 223
eau, qui est du soleil et de la poudre, de la brume et de la
fumée, possède un éclat qu'aucun vocabulaire ne saurait
qualifier .
Parreiras, qui est depuis 1907 l'hôte de Paris, va empor-
ter à Rio une oeuvre multiple , dont les divers aspects diront
mieux que tous panegyriques la force , l'abondance et la
joie.
"JORNAL DO BRASIL"
Sábado, 27 de novembro de 1926 .
HISTÓRIA DE UM PINTOR
Autor de 850 telas, da quais 720 executadas no Brasil
e as demais na Europa, onde residiu longos anos e mere-
ceu a rara distinção de ver em várias ocasiões, quadros
seus expostos no Salon de Paris ; figurando trabalhos seus
nos Estados Unidos, França , Hespanha , Portugal, Argenti-
na, e ornando outros palácios presidenciais e edifícios públi-
cos em nossa pátria ; tendo realizado 39 exposições nesta Ca-
pital e 9 em Estados do Norte e do Sul ; havendo sido pre-
miado mais de uma vez pela nossa Escola de Belas Artes,
na qual algum tempo lecionou e onde obteve o máximo
galardão : a grande medalha de honra; paisagista, pintor
de insignes cenas e vultos históricos ; é , sem dúvida, o Sr.
Antônio Parreiras, por numerosos títulos, um dos nossos
melhores,, mais operosos, mais afamados e mais gloriosos
artistas, digno de ser posto no mesmo levantado plano de
Vitor Meireles, Pedro Américo ou Carlos Gomes.
Acaba ele de mostrar que sabe manejar a pena com
tamanha segurança e galhardia quanto os vitoriosos pinceis.
Com efeito a "História de um Pintor contada por ele
mesmo", livro por ele recentemente publicado, revela um
escritor fino, elegante, não raro fogoso e eloquente, sem-
pre interessante e sugestivo .
Prestes a completar 63 anos de afanosa e acidentada
existência, durante a qual passou por acentuadas vicissi-
tudes, padecendo privações seguidas de horas triunfais, à
luz do leme, epigrafe do volume : Trabalhar é Viver ----
reuniu nessa auto- biografia o Sr. Antônio Parreiras as
notas de um diário, chelo de observações perspicazes, curio-
sas anedotas, impressões de viagens, perfis de personagens
notaveis , ou originais com as quais conviveu.
Ofereceu- as a seu filho Dakir, que nasceu, cresceu se
fez homem no atélier paterno .
Quer o pai que, na narrativa da sua vida, encontre o
filho algo que o console e encoraje para suportar os sofri-
mentos, as injustiças, as decepções, da carreira de artista.
Com efeito, encerra elevadas e proficuas lições essa nar-
rativa.
224
De família abastada, manifestando desde cedo aptidão
para a pintura, o Sr. Antônio Parreiras, exercera a sua
atividade em várias profissões antes de dedicar-se à arte:
comerciante, empregado da estrada de ferro, professor pú-
blico, cenógrafo.
Seguiu depois inteiramente a sua vocação, para aper-
feiçoar a qual dispensou todos os recursos pecuniários her-
dados, chegando a situação de premente pobreza.
Nunca desanimou, trabalhando sempre com energia,
perseverança, fé inquebrantaveis e exemplares.
Daí o haver suplantado todos os obstáculos, realizan-
do admiraveis conquistas.
Jamais foi pensionista do Estado; tirou sempre do es-
forço proprio os meios para manter-se e prosseguir.
Nas apreciações que traça de seus mestres e colegas,
procura render justiça, não denegando ou diminuindo
méritos e serviços, antes tributando os devidos encômios e
aplausos a quem de direito, confessando-se grato a todos
quantos o favoreceram.
Procede assim, por exemplo, relativamente a pessoas do
passado regime : o Earão de Cotegipe, o Imperador, a
Princeza Isabel.
A Princeza Imperial e Pedro II, afirma ele, foram
sempre amigos dos artistas.
"Pedro Américo, Carlos Gomes e Almeida Júnior foram
estudar auxiliados pela bolsa particular de Pedro II e ou-
tros artistas que mais tarde, quando surgia a República,
tanto o insultaram e molestaram com caricaturas , haviam
contado sempre com o discreto e generoso auxílio do Im-
perador" .
Três vezes, relata o Sr. Antônio Parreiras, - esteve
com S. Majestade ; a primeira quando o foi convidar para
ver os seus trabalhos ; a segunda quando o Monarcha vi-
sitou a exposição ; a terceira já no exílio.
Nesta última entrevista, enfraquecido, enfermo, pediu
notícias de todos os artistas brasileiros ; com prodigiosa
memória lembrava-se até dos mais obscuros.
Ao despedir-se do Sr. Antônio Parreiras, disse-lhe :
"Não se esqueça, jamais do Brasil. Pinte sempre cou-
sas de nossa grande Pátria ; a sua natureza é extraordina-
riamente bela e a sua história é uma fonte inexgotavel de
magníficos exemplos. "
Do primeiro encontro com o Soberano dá o Sr. An-
tônio Parreiras, sob o título - Extrema bondade -- sig-
nificativa descrição.
Tinha ele 22 anos e ia abrir a sua primeira exposição
de quadros e estudos.
Relutou em ir convidar o Imperador ; foi , afinal por
instante conselho de um amigo.
Achou, longe de suntuoso comum, modesto, bur-
guez, pobre, o palácio imperial.
Repleto o salão de audiências de facilimo acesso.
225
"Magestade , - disse o artista ao chefe do Estado -
perdão pela minha ousadia. Venho solicitar a honra de
uma visita à minha exposição de pintura".
Sorrindo, o Imperador tirou do bolso um papel e mos-
trou-o . Lia- se nele : Exposição Parreiras, sexta- feira, 6
de Junho de 1886. "
"Fiquei sem saber o que dizer, prossegue o narrador,
- curvei-me e beijei-lhe a mão. Ao erguer-me, os seus
olhos de uma doçura imensa fitaram-se nos meus que
estavam cheios d'agua . No dia seguinte, apesar do horrivel
tempo que fazia, o Imperador visitou a exposição. Durou
duas horas a visita. Ao sair, centenas de pessoas que en-
chiam a rua do Ouvidor del rantemente o aclamaram até
que o dourado carro desapareceu. E a República estava
tão perto ! ... Logo que o Imperador partiu a multidão , que
até então passara durante tantos dias indiferente pela
porta da exposição invadiu- a . O tapete da escada ficou
em frangalhos ! Os quadros cobertos de pó foram todos
adquiridos. Que enorme prestígio tinha D. Pedro II ... A
sua presença na minha exposição , quando apenas era en-
cetada a minha carreira artíst ca, foi uma excessiva bon-
dade de que nunca me esqueci ."
Alem dos louvaveis traços apontados, recomenda-se o
livro do Sr. Antônio Parreiras por ardente amôr de sua
terra natal , que constantemente enaltece e lhe inspirou
belo hino ao terminar.
Declara-se ele feliz , porque, já velho tem ainda a alma
cheia de mocidade e livre de descrença, de desânimo, de
raiva, de ódio , de inveja , de inverno enfim .
E' o operário que, após longa jornada de trabalhos, sen-
te o corpo fatigado, braços esmorecidos, mas a conciência
tranquila.
Confia ele em que os seus exemplos sejam seguidos por
seu digno filho .
Oxalá o sejam não só por todos os nossos artistas como
tambem por todos os brasileiros.
AFONSO CELSO
"O BRASIL"
20 de Fevereiro de 1927
LIVROS
POR FABIO LUZ
História de um Pintor Contada por ele mesmo
1882-1926 - Antônio Parreiras
Com este seu livro o grande artista da téla - Antônio
Parreiras se nos apresenta como escritor de largos recursos
de estilistica, manobrando a pena com a mesma elegân-
226 --
cia, a mesma precisão de tintas e de coloridos com que ma-
neja o genial pincel, tirando de sua paleta mágicos efel-
tos pinturescos e elegantes descrições, de paisagens.
Duplamente paizagista , o escritor, que historia e jus-
tifica cada téla, quer de assunto histórico, quer da paiza-
gens, ligando a produção de cada tela a um acidente de
sua vida artística, é um soberbo e desassombrado crítico
de Arte, insubmisso e rebelde aos dogmas clássicos das
academias.
, O livro começa "pianíssimo", contando-nos os modestos
princípios da vida do grande artista de hoje.
Sua infância, sua aprendizagem, as proximidades da
miséria e a confiança em si, no seu talento e no seu es-
forço que o levaram à Glória, tudo nos é relatado com sin-
ceridade. A apreciação , o elogio ou a censura dos compa-
nheiros aí se encontram sem revelarem acrimônia ou in-
vejosa competição . Cada capítulo, isto é, cada passo ou
transe de sua vida está ilustrado por nítidas reproduções
de telas já célebres ou de estudos a “fusain”, esboços de
figuras, trechos de paizagens. Que lindas descrições de
"Cabo Frio" e todo capítulo empolgante - "Iguassú", de
que não posso fugir ao desejo de transcrever alguns tre-
chos.
- "Das bordas deste sorvedouro que deve ter cente-
nas de metros de profundidade, subia uma nuvem espes-
sa d'agua pulverisada e efervescente, e nela se cruzavam
arco-iris em todas as direções . Sob esta abóbada de tão
finíssimas tintas milhares de andorinhas doudamente ba-
nhavam-se na chuva de rubis, de esmeraldas, de topazios
que se formavam à luz do iris , nos filetes coloridos da agua,
que em despreendidos rosários se destacavam das árvores,
que tremulavam nas hastes finas dos hervaes, que reves-
tiam as altas penédias.
Não sei o que sentia. Não posso e creio que ninguem
poderá descrever ou pintar, aquilo que ali eu vi ......
Era tão forte a impressão, que dos olhos em flo me
corriam lágrimas.
De minuto a minuto tudo aquilo se transformava , mu-
dava a côr, modificava a linha. Era sempre um espetáculo
novo, imprevisto. As neblinas, desdobravam paizagens as
mais fantásticas, as mais belas, grupos estupendos de bi-
zarras e agigantadas figuras que lá iam voando, em ban-
dos, subindo , coloridas pela luz do sol, fundidas depois em
sombras azuladas dos grotões."
Para esclarecimento do assunto de sua tela e do cená-
rio primitivo do trabalho que executou, ele faz minuciosa
descrição do "que resta do Calvário de Felipe dos Santos".
E é sempre o olhar educado, a visão aguda do pintor, aju-
dando nobremente a observação minudente do escritor.
227
Viva, movimentada, verdadeira, áspera e contundente
é a crítica do meio artístico no Brasil a propósito de “uma.
visita à Escola de Belas Artes", feita pelo artista.
Poucos artistas no mundo inteiro, tiveram, em vida, a
glória, o prestígio e o apreço público alcançados por A.
Parreiras cuja figura máscula já orna, no bronze , uma das
praças de sua terra natal.
"A MANHÃ❞
Domingo, 12 de Dezembro de 1927
ANTÔNIO PARREIRAS
Antônio Parreiras acaba de publicar uma coisa que de-
via ser obrigatória por lei a todos quantos tivessem uma
vida de relevo social, nas artes, na ciência, nas letras, na
indústria : as suas memórias.
A história é um processo contínuo do que se fez com
o objetivo utilitário de nortear o futuro. Si fosse apenas
recreativa, o cinema novelesco a substituiria com vanta-
gem. Só o que se fez ensina o que se deverá fazer para
a deante . Memórias são depoimentos pessoais no inter-
mino processo e valem por más testemunhas os que silen-
ciam egoisticamente sobre o que fizeram ou viram fazer.
O silêncio em tal caso corresponde a refugir ao cumpri-
mento de um dever iniludivel contribuir cada um com
o que possa para que o amanhã seja, senão melhor, pelo
menos mais esclarecido que o hontem e o hoje.
Os velhos povos europeus de cultura bem quilatada não
desdenham deste depoimento pessoal, em regra póstumos,
e que lhes permite maior independência de juizo. Todo o
mundo por lá publica memórias de Napoleão, ao seu
criado de quarto , Constant. Escrevem-nas de próprio pu-
nho, si o podem , ou de punho alheio, em caso contrário.
Entre nós não há esse hábito . Não as deixam os nos-
sos artistas nem os nossos homens públicos. Raro um ba-
rão de Drummond , em cujas memórias os nossos historia-
dores ou romancistas vão beber luzes esclarecedoras dos
ôcos escuros, das interrupções de corrente que supliciam
os estudiosos que só teem à mão documentos oficiais.
Da "História de um Pintor", que Parreiras vem de pu-
blicar, um verdadeiro jôrro de luz se projeta na história
da pintura brasileira de 50 anos a esta parte - na histó-
ria psicológica sobretudo , a mais interessante. Revela - se
alí a mentalidade de nosso povo, no que diz respeito à
arte, e a dos magnatas a quem incumbe o seu fomento.
E ressalta mais uma vez o vulto de D. Pedro II , o homem
tão superior moralmente ao meio que foi mister baní-lo
daquí . Sem isso, como elevar ao trono qualquer coisa que
se gestava ao mormaço de Viçosa ? Qualquer coisa o inver-
so de Pedro II?
- 228 --
Parreiras foi um dos discípulos de Grimm, pinter ale-
mão que vem romper com a pintura acadêmica da nossa
escola e a técnica , o receituário alí ensinados entre quatro
paredes, longe do sol e ao abrigo dos ventos. Grimm só
admitia o ar livre , o atélier- natureza . Agarrava as tintas
e saia com seus alunos pelos campos e matas e praias,
alheio ao queimar dos sóes guanabarinos, aos tropeços e ao
cansaço .
Mas Grimm copiava apenas. Fidelissimo nas reprodu-
ções, era uma ortocromática de pele côr de presunto e
olhos azues. Não um pintor na sua mais alta expressão : o
interprete da natureza, o cadinho misterioso onde se ope-
ra a maravilhosa fusão do exterior com o interior , sob
O contrôle do senso estético.
Seus discípulos, pois, aprendiam a coplar, o que já
era muito . Todo o progresso se faz por etapas e este fiel
copiar da natureza tem que vir antes da eclosão última.
Copiar cança, e, si o artista possue talento , um dia abre os
olhos e por si mesmo descobre a senda final. Den-se isto
com Parreiras, anos mais tarde na Europa. O nosso pintor
descreve com muita emoção esse momento augusto em que
aos seus olhos deslumbrados a terra de Canaan se des-
vendou .
Foi nos últimos dias de um outono grisalhento. No
campo, onde pintava, tudo eram tons levissimos, dos que
se fundem e esbatem os contornos das árvores, das pedras
e das creaturas que animam da nota humana a paizagem
exausta do fim do dia. Passava um rebanho silencioso ,
sob a guarda de um pastor friorento na sua capa de lã
grosseira tão pitoresca.
Não havia linhas. Só massa. Como reproduzir aquele
fugidio estado dalma da natureza prestes a engolfar- se
nas sombras da noite , pelo sistema de Grimm, todo resu-
mido na supersticiosa fidelidade da objetiva Zeiss ? E como
dar por esse processo tão mecânico o que mais interessava
no quadro, a poesia dos longes esvaidos, a tristeza das ár-
vores semi-nuas, o tom geral de Angelus que avioletava
tudo ? Pintá-la a Grimm seria fixar o esqueleto de áuras
macias, o arcabouço de eflúvios pertubadores. E Parreiras,
como um incubo , sentiu - se aberto para a verdade "sentiu
a paisagem outoniça como si fizesse parte dela .
E operou-se a "fiat" . Sua mão febril agarrou nervo-
samente os mais largos pinceis e seus olhos se cerraram .
A tela foi agredida com frenesi, a lambadas gordas de
tintas, sem que nenhum esboço preliminar lhes dilimitasse
os impetos.
O artista perdeu a noção do tempo . Fez-se força da
natureza , livre de peias, selvagem, léguas longe da domes-
ticação acadêmica .
Súbito, parou. A tela estava cheia e sugeria, vista de
perto, a idéia de um borrão informe, como empastado ao
acaso da louca fantasia . Recuando uns passos, porem, o
artista, radiante, viu a sua primeira grande vitória no do-
229
mínio da arte pura. A sensação que lhe dava a tela era
a mesma que lhe havia dado o entre lobo e cão do entar-
decer outoniço.
Foi nesse momento que Parreiras o glorioso discipulo
de Grimm , despediu - se para sempre do seu querido mes-
tre...
Parreiras, apesar de incorreto na linguagem, revela-se
neste livro mais escritor que muito imortal corretíssimo.
Escreve como pinta, comovido, e desse modo transmite ao
leitor as emoções que sente .
Impossivel, a quem o lê, esquecer a cena do seu pri-
meiro encontro com Pedro II, que narraremos em outro
artigo ; nem a história do seu concurso, onde lhe deu a vi-
tória o barão de Cotegipe , o estadista que enxergava loǹge .
Poucas vezes temos lido com maior encanto uma auto-
biografia. Talvez porque o escritor não passa do mesmo
pintor, apenas trocado de instrumento de expressão. Usa
da pena como do pincel, e, em tela de 130 páginas, pinta
com palavras um biorama dos que de um jato o leitor vê
com os olhos da imaginação. E como é preciosa a dose de
subsídios que nele se reune, para a história de um mo-
mento da nossa vida estética, só temos louvores, para a
sua feliz idéa de compor tal livro. Assim o imitassem ou-
tros, para que dos nossos artistas não ficassem apenas como
rastro da sua passagem pelo mundo, os palmos de tela dis-
persos por paredes das casas ricas ou museus .
Necessitamos de visão de conjunto, única que traz li-
ção, e no relativo à história das artes o meio de permití-la
aos pósteros é fazer o que Parreiras fez : depôr singela-
mente .
MONTEIRO LOBATO
"CORREIO DA MANHÔ
Terça feira, 27 de Dezembro de 1927.
ANTÔNIO PARREIRAS
Acaba o nosso querido e grande Parreiras de publicar
um livro original, e sob todos os aspetos admiravel : "His-
tória de um Pintor, contada por ele próprio . "
Sei que tem ele em preparo um outro Ivro. Desse, que há
de vir, nada direi ; nem duvido já de que nos venha dele
mais de uma surpresa . Creio, no entanto, por mim , poder
assegurar que este, de que me ocupo ficará como sendo o .
único livro da sua vida . Se o pintor já não estivesse na
história da nossa arte, e em primeira plana , passaria ago-
ra com o seu livro para a história das nossas letras.
Não vejo neste volume uma só página onde não pal-
pite a alma deste homem . Em cada linha está a sincerida-
de, a eloquência que vem do coração . E tudo tão forte, tão
230
profundamente sentido e tão humano, e tão discreto e tão
sobrio que se desejaria ver multiplicadas estas páginas.
Duvido de que se leia este livro sem chegar ao fim
muito convito de que o autor é um caso único entre nós,
e que diz de si com tanta verdade como ninguem mais sa-
beria dizer.
Ele nos impressiona e nos domina, porque se sente
que tudo lhe sai do espírito muito vivo para entrar no es-
pírito do leitor - tudo numa espontaneidade borbotoante
de cascata, em gestos que se nos transfundem na alma,
como se a nossa fosse a mesma alma dele em vibrações. E'
um artista que escreve com o mesmo entusiasmo com que
pinta. Já disse isto o Fábio Luz, e este se recordou de que já
tivera ensejo de dizer o mesmo. Não é de estranhar, pois
isso há de acontecer a quantos tiverem a surpresa de ler
este livro .
Sinto-me, pois, perfeitamente a gosto para confessar
que não sei medir a minha admiração por esta grande fi-
gura .
O que eu desejaria agora, ancioso de dizer porque é
que digo, era destacar os lances mais belos deste livro.
Como isso seria impossivel, o mais que intento é apontar
de relance alguma coisa pela qual se possa ter idéa do
espírito do artista.
O livro é dedicado a Dakir Parreiras, o filho que está
continuando a glória paterna "Nasceste, cresceste e ho-
mem te fizeste em meu atelier ..." - diz-lhe simplesmen-
te o "pae e irmão em arte" . E, disse o bastante.
Na primeira página do texto , que intitula - auto-
biografia, a primeira linha é esta declaração, caracteristi-
ca da alma com que o leitor se encontra : "Meus paes eram
brasileiros natos" .
Em seguida a data natalícia e o lugar do nascimento
(São Domingos) , e nada mais quanto ao homem.
Em menino, tendo horror aos livros sem estampas, di-
vertia-se com os irmãos, fazendo na praia castelos de areia,
que depois o mar desfazia ..." como outros que fez duran-
te a vida ...”.
Teria seus doze anos quando encontrou, à sombra de
duas árvores, um pintor que enchia uma grande tela.
Quasi ao mesmo tempo depara-se - lhe a figura de Alberto
de Oliveira. E o pintor e o poéta abriram-lhe a alma para
as primeiras emoções devinas. Com que alegria os abençoa
agora !
Os paes do mancebo não o queriam artista. O grande
amor é quasi sempre contraditório . Para ele a arte é como
um rochedo de Prometheu. Prefere não bulir com o mis-
tério e tratar a vida como companheira amiga.
Meteram-no , então em um colégio . O diretor do colé-
gio, notando no aluno um certo geito para a pintura, in-
cumbe-o de ampliar um mapa de diagramas. No momen-
to de instalar na sala de aula a grande tela, fez o profes-
231 -
sor muitos elogios à obra. "Foi ― escreve o autor — o pri-
meiro louro que colhi ; e dele nasceu a descomedida ambi-
ção de glórias que até hoje tenho e cada vez maior."
Da escola passou ao comércio ; do comércio a um es-
critório em Friburgo; e desse escritório ao magistério pú-
blico ...
E' assim mesmo que andam os que procuram o seu
ambiente.
Até que afinal entra na Academia de Belas Artes, fre-
quentando a aula de paizagem de Grimm. Este, diz, não era
artista, mas era um grande pintor ...
Só este juizo fala por todo o livro, e diz tudo de Par-
reiras, da sua alta concepção de arte . O pintor só é ar-
tista quando crea inspirado na natureza , quando põe nela
o sopro do seu gênio. Em arte, a verdade está acima da
realidade pura.
Junto do mestre, o discípulo trabalha até o meio-dia ,
sombra de um rochedo ou de uma árvore . Muitas vezes,
escreve, fiquei , alí, naquelas praias desertas a contemplar
o mar sem vê- lo ... porque estava a chorar ... A minha
pobreza era extrema. Olhava com tristeza infinita para os
tubos de tintas quasi vasios. Em pouco tempo não pode-
ria mais trabalhar" .
Vém agora as páginas em que se ocupa o autor dos
seus companheiros da primeira jornada Grimm, saindo da
Academia, foi errar pelos sertões de Minas. De lá voltou
desfeito pela tísica ; e algum tempo depois foi morrer em
Palermo.
De Vasquez diz que tendo qualidades, foi estragar- se
na Europa. França Júnior foi simples amador de pintura,
e que "viveu enganando- se a si mesmo". Caron, filho de
um padeiro francês, se não tivesse morrido na flor da
idade, "seria um grande paizagista" .
Todo este capítulo é de um colorido admiravel.
Francisco Ribeiro era tão feio e desengonçado que ser-
viu de modelo a Angelo Agostini para o tipo de Zé Caipora.
Alem de feio, infeliz. Mas poucos artistas desenharam
como Ribeiro . Só não sabia sentir a côr. Desiludido da sua
arte, preferiu embrutecer ... e logo partiu para nunca
mais.
E neste ponto escreve Parreiras : Tudo acabou . E , iso-
lado, depois de haver sofrido a infelicidade de ver partir
um por um dos meus companheiros, fiquei sózinho . Sou,
dos discípulos de Grimm, o últimó que resta. Hoje, tantos
anos depois, quando regresso das minhas viagens à Euro-
pa, vou logo visitar as praias e os rochedos da Bôa Viagem,
onde trabalharam os discípulos do mestre saudoso . Lá , so-
bre os rochedos deixo-me ficar horas inteiras completa-
mente absorto. Tem o mar a mesma côr, o mesmo movi-
mento ; as rochas, a mesma linha ; as vagas quebram-se do
mesmo modo, e espraiam-se da mesma fórma, como nos
dias passados. Cantam nos galhos dos ingazeiros, e nas
largas folhas das piteiras, as alegres cigarras ; o sol é bem
232 <
o mesmo sol que nos abrazava. Tudo, porém, é deserto no
verde da vegetação . Nos cimos dos rochedos já não se veem
mais as tendas brancas ... Então uma saudade imensa
me invade a alma".
Sobre Visconde de Canto dá- nos o autor três páginas
de evocação, maravilhosas de verdade pela sensação de
grandeza e de mistério que sugerem.
Passando a Estevão Silva de quem diz que foi amigo
inseparavel, escreve Parreiras : "era um negro alto, forte,
corajoso e bom".
Do último, Tomaz Driendl, é curioso o que diz o nosso
autor. Tinham- se , Parreiras e Driendl, tornado inimigos
por motivos de melindres patrióticos do primeiro, que o
segundo ofendera .
Uma vez pintava Parreiras um quadro, quando é sur-
preendido pelo colega alemão . Driendl ficou por algum
tempo olhando a tela de longe . Depois, chegou a tomá-la
nas mãos estudando -lhe a feitura, enquanto Parreiras ca-
lado , estuava de terror.
"Se Grimm fosse vivo disse Driendl ficaria
orgulhoso de ti".
"E tu?" - pergunta-lhe Parreiras.
O outro abriu-lhe os braços num gesto fraternal.
O Satanaz fizera-se santo .
Termina aquí esta parte.
ROCHA POMBO
"CORREIO DA MANHÔ
Terça feira, 3 de Janeiro de 1928
AINDA PARREIRAS
Parece que as primeiras telas que o jovem artista ven-
deu foram seis quadrinhos, como ele mesmo diz, a um mi-
lionário de Botafogo. O ricaço pagou- lhe 300$000 pelos seis.
Que havia de fazer senão aceitar aquela somiticaria?
"Pensava nos meus colegas" explica.
E só Deus é que sabe com que alegria , "a rir e a can-
tar "saiu ele do palacete, que lhe parecia " todo de ouro!"
Tinha então Parreiras os seus vinte e dois anos.
Logo depois , realizou , numa casa da rua do Ouvidor,
a sua primeira exposição ( 1886 ) . Teve a honra da visita, e
espontânea, do Imperador.
Bastou isso para um pleno sucesso. O público, “que até
então passava indiferente pela porta, invadiu o salão ... e
os quadros foram todos adquiridos" .
Com este forte estímulo, continua o artista a traba-
lhar na sua "casinha da restinga ", não só na ânsia de pro-
duzir, mas, principalmente na sagrada volúpia de perfei-
ção que foi sempre o suplício deste belo espírito .
233 -
Chega época de partir para a Europa . Teve de ar-
ranjar para isso os indispensáveis recursos . E arranjou- os
sem sair da sua intransigência em não pintar de enco-
menda ...
Isso de viagem à Europa já se fez um como luxo de
convenção entre os artistas. Ninguem se faz é a ilusão
de todos sem esse excurso lustral.
Mas Antônio Parreiras não se arrepende do que fez.
porque teve ao menos o proveito de sujeitar-se à prova
clássica, e desiludir-se. "Na Itália , na Hespanha , na Fran-
ça escreve - o que vi não me impôz radicais modifica-
ções no meu modo de pintar. Os gigantes que do Brasil
me diziam existir, vendo - os de perto , muito diminu ram de
grandeza ... Poucos Pedro Américo e Vitor Meireles en-
contrei na Europa ..."
Destes dois, Vitor Meirelles e Pedro Amérilo , diz , or-
gulhoso e confrangido que são os nossos "grandes artistas
nacionais”, que a geração sacrificou até deixá-los morrer
no sofrimento e na miséria .
Pedro Américo, "ainda hoje é o maior de todos". O seu
quadro Batalha de Avahy "é o maior que até hoje se tem
pintado no mundo".
Vitor Meirelles morreu mais de amargura que de velhi-
ce. A última visita que lhe fez Parreiras, ouviu daqueles
lábios já trêmulos : "Como vês, é chegada a hora . Eu t'a
anunciei na última carta que te escreví . Como é triste e
desolador o fim da minha vida ! ... Deus os perdôe ... E,
comenta o autor : "Ele perdoou. Não era homem sim-
plesmente. Era um gênio .
Deus os perdôe ! - bela frase de hora da morte . Este
os aludia aos que o haviam torturado naquele doloroso fim
de vida .
Agora, fatigado do meio, volveu Parreiras, outra vez
às matas. Sentia- se melhor no contato com a natureza . “Lá
no mais espesso da floresta - diz — erguiamos o rancho
de auricana. Foi naquele ambiente fantástico ... que me
fiz pintor . Em parte alguma aprendi mais do que ali ...”
Desta nova digressão pelas matas trouxe quantidade de
estudos, elementos "para sintetizar numa grande tela o
que havia observado"; e deu- nos o seu já célebre "Serta-
nejas".
Segue -se o momento da sua excursão ao norte do
país. Fez no Pará uma exposição que alcançou pleno su-
cesso . Havendo contratado com o governo a execução de
um quadro histórico, teve de ir a Manáos, mesmo enfer-
mo, para estudar o cenário da ação que devia fixar na tela.
Em Manáos, agravou-se-lhe o impaludismo e voltou ao
Rio . Não melhorando aquí, resolveu ir outra vez à Euro-
pa. Ao cabo de algum tempo , já restabelecido , monta o seu
atelier em Paris, "a poucos passos distante da casa de
Sarah Bernardt, a quem frequentemente visitava."
Voltando ao Brasil , vem preparado de tudo para a
execução do " Conquista do Amazonas ", o seu notavel qua-
- 234
dro que está no palácio presidencial de Belem, onde tive
ensejo de vê-lo haverá uns dez anos. E' de uma varieda-
de de aspecto e movimentação de figuras verdadeiramente
desconcertantes ! Vê-se no livro um cliché da grande tela,
onde, para além do primeiro plano tem-se a sugestão do
mundo que se vai desvendar.
E' esta uma fase de vertiginosa atividade na vida do
artista. Não se limita agora à paizagem: a natureza viva,
sob o séu pincel, não foi menos feliz que a outra, vivificada
pelo seu gênio .
E' nesse período , vivendo , ora no Brasil, ora na Fran-
ça, e sempre na mesma vertigem de trabalho , que ele nos
dá, além dos nús com que figurava no salão de Paris, as
telas históricas que se encontram em muitos dos nossos
Estados.
Entre essas telas, podem citar-se, alem da "Conquista
do Amazonas", a meu vêr das mais admiraveis : a "Morte
de Estácio de Sá", a "Fundação de São Paulo", a "Procla-
mação da República dos Farrapos", a "Prisão de Tiraden-
tes", "José Perigrino ", "Frei Miguelinho ", "Felipe dos San-
tos ", "Frei Caneca perante o tribunal", "Evangelho nas
Selvas", e muitas cenas de vida.
Para o fim do volume, dá-nos Parreiras uma visita
que fez a choupana de Millet. Este Millet (Jean François)
tem uma história muito interessante, de muitas analogias
com a do nosso artista. Foi pastor, como Giotto; mas em
vez de ser advinhado como este ele próprio se advinhou...
Cuidava mais do lapis que das ovelhas. E não tardou a
procurar os grandes mestres do dia. Aos 23 anos já era
pintor conhecido no salão. A' medida porem que avançava
na fama, ia avançando tambem para a miséria, e quasi
até a morte. Para fazer- se idéa de Millet basta referir uma
particularidade de tão caprichosa sina. O seu quadro “An-
gelus" deu-lhe 800 francos, o que decerto não seria pou-
co demais. Depois de passar por algumas mãos (que na-
turalmente não deixou vasias ...) o governo francez o
adquiriu por 600.000 francos ...
Imagina-se a religiosa alegria com que Parreiras vai
agora em companhia de um casal de barões amigos, visi-
tar Fontainebleau, e dali , ao extremo da floresta, a ca-
sinha onde tanto trabalhou e sofreu grande inditoso
antigo zagalejo .
Enquanto os companheiros se entretinham em ver
coisas por fóra , penetrava Parreiras, sabe Deus com que
emoções, no pequeno atelier, que se conserva como o dei-
xara Millet. Vai vendo tudo , e ouvindo o guardião que
convivera com o artista : “Aquí, vi - o eu muitas vezes sen-
tado para vêr morrer o sol. Alí, triste e silencioso , passava
horas e horas, a ver o que só ele via. No jardim, sob aque-
la macieira, ele pintou “Angelus”. Aí está a pedra onde ele
se sentava para trabalhar - disse o velho mostrando-me
um grande bloco de granito que se via junto ao tronco."
235
Pediu-lhe então Parreiras que o deixasse só “E alí fi-
quei escreve sentado na mesma pedra , tendo na mi-
nha frente todo o cenário de "Angelus". A tarde morria.
O sol se ocultava já por traz do afastado campanário . Só
faltavam as figuras contritas, mãos em prece a rezar bai-
xinho ..."
Faltavam , mas o visitante bem que as viu ...
E só despertou da sua visão quando os companheiros,
mortos de fome, chamaram por ele.
Ao aparecer, saindo da cabana, pergunta-lhe a baro-
neza muito curiosa : "Que esteve fazendo nesse casebre ve-
Iho? Por que tem os olhos assim vermelhos, como de quem
esteve a chorar?"
- "Porque vi o "Angelus responde Parreiras .
Os fidalgos não sabiam o que era o "Angelus"...
"DIÁRIO DE PERNAMBUCO "
5 de Julho de 1931
PARREIRAS
Do altíssimo mérito dos quadros de Parreiras não se
falará hoje sem revelar presunção ou ingenuidade.
Porque o Mestre já tem por si a consagração mundial;
poderão torcer os beiços a essa auréola os invejosos , as rapo-
sas do século XX, mais o renome obtido em todos os meios
de Arte do universo remata bem a existência de um Artista
e lhe basta.
Dessas telas, portanto, só de uma maneira poderemos
dizer alguma cousa : é admirando- as. E' indo uma vez, duas,
dez, vê- las, e cada visita trazê-las nos olhos extasiados,
como soberbas e divinas representações que são dos céos, dos
campos, das aguas, das gentes do Brasil, com toda a sua
pompa de luz, de côr , de beleza .
Mas, o grande Antônio Parreiras, que só não é maior
porque não arrevezou o nome e não nasceu em Paris ou em
Roma, não se adextrou apenas no manejo do pincel : - ele
sabe tambem manejar a pena . E , quem déra a muito entu-
siasmadozinho por esse mundo afóra poder traçar como
Parreiras páginas que são lidas com deleite , com atenção,
com encanto !
Para uns dos meus melhores minutos de leitura veio-me
às mãos, por oferta duplamente preciosa porque o livro
é de 1926 e está esgotado "A História de um Pintor -
contada por ele mesmo" - páginas autobiográficas. Porem
páginas que não pecam, por ser apenas um amontoado de
datas ou de episódios. Elas são , ao contrário, de um aroma
de pétalas velhas e de um sabor de fruta madura.
Parreiras trae-se nesse livro um outro artista o que
escreve. Que escreve depois de ter sabido observar as almas
como soube estudar as paizagens e os corpos. O seu estilo
236
é de uma notavel sugestão : quem a comece envereda até o
fim sem pausa. São capítulos cheios de calor, de vibração,
de movimentos como a própria vida que ele viveu . E vive ain-
da, Deus louvado.
Os traços psicológicos dos pintores que o cercaram,
como mestres ou colegas, no início de sua carreira no Rio,
são interessantíssimos: em rápidas pinceladas ficam-nos
para sempre na memória os tipos de Grimm - um homem
forte e belo, honesto e franco, bondoso para os pequenos e
altivo para os arrogantes; Vasquez, irrequieto ; Franca Jú-
nior, mais vaidoso que pintor ; Caron, com os seus quadros
que pareciam pintados com um pincel largo e chato ; Ri-
beiro, o desengonçado , que servira de modelo para o tipo de
Zé Caipora ; Driendl, o "encarnado como o diabo ", o cons-
tantemente zangado ...
E há, a respeito de cada um desses, um cenário, um
episódio, uma frase incisiva.
Os anos de luta , de sonhos, de injustiças , de desenganos,
de mordacidades, de invejas de vitórias, descorrem . Parrei-
ras pinta-os no seu livro mas com a pena. Há o tom som-
brio, há o tom alegre, há o tom emotivo, há o tom facêto.
Figuras, cidades, costumes, saudades, de tudo um pouco , e,
sem banalidades, e sem enfados.
Quem já um dia esteve conversando com Antônio Par-
reiras advinhará o seu livro. E' o pintor falando por escrito,
precisamente . E' a mesma palestra quente, variada, delicio-
sa, de que não nos despregamos senão com má vontade. A
mesma expontaneidade da frase, a mesma propriedade do
motivo, as mesmas nuanças do ambiente, o mesmo espírito
fino de brasileiro - artista que viveu muitos anos em Paris,
sabendo assimilar as virtudes intelectuais da França sem
prejuízo das qualidades excelentes do seu povo .
Não se tornou um pedante, nem um derrotista. Ao con-
trário, aprendeu ainda mais a amar a sua Pátria, reconhe-
cendo-lhe os méritos em confronto com os alheios. Ele pró-
prio e confessa:
"Na Itália , na Hespanha , na França , o que vi não im-
pôz radicais modificações no meu modo de pintar. Os gi-
gantes que, do Brasil, me diziam existir, vendo-se de perto
muito diminuiram de grandeza. Essas telas de Harpignies,
de Corot, de Courbet na realidade possuem maior fama do
que valor. Pouco Pedro Américo e Vitor Meirelles encontrei
na Europa ..."
A página de Parreiras que descreve sua excursão às Ca-
taratas do Iguassú é maravilhosa . Um escritor de alto nome
firmá-lo-ia sem relutar. Tem-se a impressão visual e auditi-
va dos Grandes Saltos, das imensas florestas que os rodeiam ,
das quedas formidaveis d'agua precipitando - se com a impe-
tuosidade de 18.000 metros cúbicos por minuto "no abismo
o mais medonho , o mais horrivel que a ma's fantástica ima-
ginação poderia crear" . A pulverisação dessa agua numa
altura estupenda batida pelo luar, os bandos de borboletas
verdes, amarelas, vermelhas, voando junto mas nunca se
-- 237
misturando, as árvores de troncos gigantescos, o rugir das
cascatas, o anoitecer nas matas, os efeitos de luz nas toa-
lhas espumosas, crespas, ferventes dos "saltos" de tudo
Parreiras nos dá pinceladas magníficas.
"A História de um Pintor" é ilustrada com reproduções
das telas mais famosas do Grande Brasileiro, e com alguns
desenhos alusivos às passagens mais frisantes dos seus ca-
pítulos.
Nos seus quadros Parreiras mostra-nos o seu talento de
Artista; no seu livro descobre - nos tambem a sua Alma de
brasileiro.
MARIO SETTE
"O PAÍS"
Rio, 1915
PARREIRAS
Encontro Parreiras ao sair de sua última exposição .
Vem descendo à pressa as escadas de mármore da Escola, o
sombreiro na mão , a lavalière ao vento. Talvez, com o es-
fosco que sempre dá a aplicação do lugar comum, talvez
seja possivel, vendo assim Parreiras pensar no tipo clássico
do pintor . Eu porem , tenho a violenta impressão de ver
descer a correr da Sala Vermelha , do palácio do autokrator,
um daqueles bárbaros armênios que na decadência de Bi-
záncio subiam, pela vontade de Theos , de passar bois no
vale do Taurus, a supremas dignidades de guerra . A cabe-
leira como um casco de pelos abundantes ,o queixo incisi-
vo e decidido , o olhar aceso numa chama violenta e ancia-
da de entusiasmo e ambições de vitória, a face pálida , o
dorso airoso, o gesto brandido, Parreiras era bem, a paizana ,
no mundo contemponâneo , a ressurreição de um daqueles
estratejas do império de Constantino na fúria de ser basi-
léo .
Triunfador!
---
- Deixa-me! Venho desesperado . Já viu V. cousa mais
enervante que ouvir os comentários à própria obra? Os dis-
parates, a má vontade, a ignorância, o snobismo, a perver-
sidade correm parelha . Diante do nosso esforço , esse comen-
tário ou desespera ou aniquila . A mim desespera .
- E, como acontece a todo artista V. continua ...
--- Eu, continuo há trinta anos, eu sou o eterno discípu-
lo apaixonado da Vida . Continuo sempre . A princípio o meu
sonho era fixar a natureza, descobrir- se o segredo que pa-
rece ao vulgar verdade . Bradaram : “Advinhaste o segredo ,
mas é preciso animá-lo ". Animei - o . Eles gritaram : “Não
basta; precisas dar as formas animadas". Eu, fiz. Eles in-
sistiram : "Mostra se conheces a poesia das linhas e modela
os nús e encarna- os". Eu fiz. Eles continuaram : "Tem en-
tão a coragem das grandes composições, mostra todos os
dons, sê paisagista, animalista , pintor de grandes massas,
238
fixador da confusão máxima dos momentos épicos". E eu
fiz. E eu faço . E eles querem mais!
Querem mais? Pois terão ! Eu vivo para a minha arte,
eu quero ...
E partiu na rajada da decisão.
Maravilhoso bárbaro cuja alma perenemente juvenil é
a fonte borbulhante de todas as inocências, detodas as ge-
nerosidades, de todos os ímpetos e de todas as cóleras de
todos os amores e de todas as advinhações que fazem o Ar-
tista ! Como na confissão ele se esboçara tal qual eu sem-
pre o conheci ! Como pintára a tragédia do poeta numa
terra de irreverência e de boçalidade snob ! Mas neste gesto
ardente que lição magistral ! Parreiras é , há vários lustros,
o mestre da paizagem . Uma impressão nova em certo gê-
nero basta para crear a celebridade e o respeito. A exigên-
cia da ignorância é, porem sem limite, porque ela não com-
prehende e exige tudo quanto não sabe exigir . Deante dessa
ignorância - a nossa flora d'arte é uma vasta tumba de
convicções e de esperanças. Os que nascem com o raio da
estrela na fonte, deante do muro impertinente da inveja e
da parvoice, ou abdicam ou fogem ; ou sorriem ou desapa-
recem. No verso, na prosa, na pintura, quantos sorrisos não
exprimem o desânimo total, quanta aquiescência não abas-
tarda o gênio, quanta tristeza deante da incompreensão?
Há velhices espirituais de setenta anos em vitalidades de
trinta ; há mortos que caminham por aí em corpos de qua-
renta anos. Parreiras não sorriu , não abdicou, não se abas-
tardou. O frenesi da juventude mantem a sua alma num
perpétuo inebriamento de glória. E a sua energia tem o
cunho épico da Florença do Magnífico em que os homens
até morrer faziam tudo quanto queriam , para mostrar que
a Inteligência é omnimodo e vencedora sempre . Ver Parrei-
ras tentar cada ano um maior trabalho, resistir à possibi-
lidade de envelhecer, de descrer, e responder à inconscien-
te ignorância invejosa, do meio com obras de gênio — é
pensar sem o querer nas ruas estreitas da cidade do lírio
vermelho, daquelas oficinas d'arte em que se faziam heroes
d'arte, para o mundo e na energia teimosa de que eram plas-
mados o arrebatamento épico de um Miguel Angelo, como
a primitiva inocência de um Ghirlandajo , como a violência
de Ticiano. Duvidam; e ele pega do pincel e precipita- se.
E é impossivel pensar na sua idade vendo-lhe a prodigiosa
obra esparsa, centenas e centenas de télas. Podemos ape-
nas sentir o entusiasmo revelador da Vida ...
Antônio Parreiras, com a sua cólera deante do creti-
nismo dos visitantes das exposições, não ignora, que esse en-
tusiasmo perene e a abundância da obra, se não lhe deram
no Brasil, a admiração e o respeito que outras terras lhe
teriam dado - conservam -lhe porem, o prestígio.A França
ficaria para sempre satisfeita com um artista que lhe creas-
se "As Sertanejas" . O nosso país quer télas iguais cada
mês . E como o artista , às tentativas de desrespeito e de
dúvida, responde, como um Titan, com obras de maior va-
239 -
lia tem o prestígio da própria natureza impõe-se . Eu
não o admiro entretanto apenas como o mestre da energia
entusiástica e como o trabalhador frenético e audaz . Eu,
o louvo como o Revelador.
Sim! Não sei o que os críticos teem dito durante tantos
anos de Parreiras. Mas o que senti deante da primeira téla
sua essa mesma "Sertanejas" é que ele revelava ao mun-
do e a mim a poesia, a alma da nossa natureza. Antes de
Parreiras póde ser que tivessem existido florestas brasilei-
ras . Existiram com certeza . Há disso provas na raiva com
que os habitantes cortam as árvores em redor das casas aí
pelo interior.
E há tambem a lembrança de opiniões abalisadas demons-
trando o mal da natureza luxuriante do trópico sobre o po-
bre homem nascido no trópico. Mas para que o comum pos-
sa ver a natureza, precisa não de pintor que a copie exa-
tamente, pois continuará a não compreendê-la, e sim do re-
velador, isto é do poeta que harmonisa o seu gênio, o mo-
mento e o objeto para ferir o nosso sentimento com a be-
lesa. Parreiras sentiu e sente n'alma a vibração chaótica ,
delírio orgiástico , a tragédia dessa violência da vida, ou-
viu e ouve cada árvore e o seu drama na mudez do sangue
verde, compreendeu os momentos - porque "não há pro-
priamente cousas, mas o aspecto das cousas sob momentos
diversos". As suas télas são as grandes polifônias orques-
trais da vida natural, e em cada uma , como as borboletas
na selva das "Sertanejas", o sentimento , a aspiração, a poe-
sia se acentuam como as eflorescências melódicas dessa até
então ignorada harmonia.
Dizem que amam a Natureza os filhos dos paizes de
natureza ardente. E' uma ilusão. Amar é interpretar e sen-
tir é rivelar. Eu percorrí muitos museus do mundo. A
paizagem é uma arte de afinamento da sensibilidade de as-
piração a compreender . Os pintores do Renascimento fa-
ziam-na explicativa de estados d'alma das figuras. Os pin-
tores modernos como Ruysdael, como Corot, como Salvador
Rosa, como Wisthler fazem- na estados d'alma . Não é o ex-
cesso da natureza que faz amar a natureza. Os homens nas-
cidos em terras sem orgia de selva podem estimá -la. Os
que nela sofrem, odeiam-na e não a compreendem. Nós
odiamos absolutamente a natureza, com o ódio hereditário,
o ódio que deviam ter os bandeirantes ávidos. Odiamos e
não a compreendemos . Parreiras ficou por isso mesmo ex-
cepcional, o Revelador do segredo da delirante beleza da
floresta. E quando talvez pensassemos que as suas paizagens
do Brasil fossem o prodígio limitado do espírito das selvas
rutilando nas telas de um evangelho equatorial, tivemos a
certeza de que Parreiras é o Poeta inebriante da melanco-
lia, da alegria, da dor, do sorriso , do sonho , da tristeza, da
agonia e da glória da natureza nas télas trazidas da Euro-
pa, em que há, a par da espantosa maestria e diferença de
processos técnicos, o gênio sensitivo capaz de nos dar as
240
duas mais admiraveis paizagens destes últimos cinco anos
na arte universal : a "Agua dormente" e o " Outono d'Ouro".
Claro que esse pintou assaz poeta para desconhecer-se
chegou ao momento de julgar mais ou menos crimes as suas
obras primas de paizagem.
Não pinto nunca mais paizagens ! brada com fúria.
E, no seu studio , leva meses a estudar expressões de ani-
mais ,a pintar os cavalos de um raro vigor que estão na
téla da "República Rio- Grandense" . Mas, nessa própria téla
além da alma histórica, além do bando ardente de cavalei-
ros, há a campina rasa, há o céo auroral, há as nuvens,
A natureza grita na vastidão da campina, na pureza desa-
fogada do céo , naquele ondulante vagar das nuvens — a
expressão idealista e pura da raça e do sonho que o bando
d'homens comete sobre os ginetes árdegos. E' a natureza que
explica o homem e o Poeta Pintor entrega -se a expressá-
la com a candidez forte igual à infernal luxúria que o en-
leava no sonho entre as borboletas da floresta das "Ser-
tanejas".
Sonho de quem tem muito ! Orgulho de quem se irrita
contra a promiscuidade do espírito contemporâneo, esque-
cendo que os burgueses para Gautier, como para todo ar-
tista , não passam de nadas fluidos !
A arte contemporânea chegou ao apogeu da confusão
'de tendência. Há individualidades e não há escolas. As es-
colas são absurdos de imitações e de conversas. As persona-
lidades ficam sós como os cumes. Isso em pintura e em
tudo mais. Parreiras é um cume. E como não se conhece um
país pela sua transitória miséria politica, pelas calúnias dos
réles, pelas cenas mais ou menos secundárias, mas pelas al-
titudes, pelos homens de gênio que são expoentes da sensi-
bilidade e da compreensão da raça, entre os nossos artistas
raros, verdadeiramente nossos séria preciso definir Parrei-
ras, a espantosa anomalia de um gênio plástico. Mas , a ex-
plicá- lo com detalhe, a estudar-lhe a força de projeção que
o destaca das gerações, a afirmar-lhe o encanto das fasci-
nação do pincel que o faz reproduzindo folhas e árvores, um
Klingsor diabólico, a sentir de como sem querer ele reve-
lou um mundo, a notar a capacidade de símbolo equatorial
de algumas das suas telas, a compreender a selvageria re-
finada de seu instinto que o fez agudamente moderno, aci-
ma das escolas e por conta própria . Um crítico solene che-
garia a dizer dele o que disse Bricon de Roll : "um senti-
mento domina o seu trabalho incessante e serve de unidade
única à múltipla diversidade da sua obra - o amor da
vida" . Sim! Como Roll , ele ama a vida na sua variedade e
a fixa nas formas mais diversas. Eu, prefiro, porem , não
fazer o detalhe austero da crítica analista.
Para mim , Parreiras exprime uma atitude única na arte.
Revelou a nossa paizagem. Antes dele e depois dele ela não
existe senão como um horror. Para exprimir assim o tur-
bilhão poético de uma assombrosa flora de pesadelo sob uma
― 241
luz esmagante de forja era preciso ser um bárbaro de gê-
nio, uma expressão pura da natureza. Ele é essa expressão
até na energia violenta e na eterna mocidade.
Na minha retina mental não o verei nunca senão como
naquele dia em que descia colérico as escadas de mármore
branco da Escola . Ele parecia um bárbaro de Taurus, pro-
tegido da Panaghia, prestes a cingir a coroa imperial do
Oriente pelo querer e pela força . A Panaghia projetou-o de
Byzancio pelas lagunas de Veneza à Florença enérgica dos
Medecis. Ele se fez nas télas o autokrator da natureza. E,
resurgido século depois em pleno equador, mestre da ener-
gia sem desmaios, mocidade furiosa e teimosa, orgulho que
realiza a arte sem temor do trabalho, revelador da vida das
florestas - corre pelas escadas de mármore, a cabeleira
como um casco de pêlos abundantes, o queixo decisivo , o olho
aceso numa chama violenta e anciada de entusiasmo e am-
bição de vitória, o gesto brandido a trabalhar mais para
afogar a indiferença alheia na glória de outras obras ...
JOÃO DO RIO
(PAULO BARRETO)
Estas poesias me foram ofertadas quando
expuz "Sertanejas " -- Outubro de 1896
Antônio Parreiras
P
A ANTÔNIO PARREIRAS
O' verdes, verdes horas passageiras
Do Amor! verdes planicies da Ventura!
No vosso encanto , que tão pouco dura,
Sois verdes como as serras brasileiras...
Aquí, na glória de viver, Parreiras,
Muitos, n'este infinito de verdura,
Verão que o próprio coração fulgura,
Verde, ao clarão das ilusões primeiras...
Mas, diante d'essas telas, algum dia,
Virão parar, mirando-as tristemente,
Almas defuntas, corações fanados :
E, ai! paisagens da Vida e da Alegria !
Como esse verde de Esperança ardente
Tortura as almas dos desesperados !
OLAVO BILAC
15. Outubro . 1896 .
Paquequer
Aquí, no coração desta floresta ,
N'este recanto plácido e sombrio,
Quasi em segredo, murmureja o rio ,
A' branda luz de um sol que nada cresta.
D'esta sombra não vem calor nem frio,
Aquí sonhar é tudo que nos resta,
Ouvindo, advinhando a alegre festa
Da agua, pássaros e árvores em trio.
Que paz encantadora ! Aquí nossa alma
Com Deus conversa e os homens compreende
Na mais piedosa e recolhida calma.
E sentimo-nos fortes e felizes,
Como se o mesmo amor que ao sólo prende
Estas árvores, désse - nos raizes.
GUIMARÃES PASSOS.
- 246
A Derrubada
Eis da hecatombe os horridos destroços
Onde era o bosque estende- se a clareira.
Jazem por terra os virides colossos :
- O pequiá, o ipê, o cedro, a aroeira,
A peroba, o brasil de ramos grossos ,
A cabiuna, o ferro, a gamelleira ...
Confundem -se na morte, em grandes troços,
Do sol no ocaso à chama derradeira.
Horas e horas retumbou na serra
O tredo som da vasta derrubada ,
Como se agonisasse a própria terra .
A floresta morreu. E os passarinhos
Há de vê-los a doce madrugada
Orfãos ou mortos nos tombados ninhos.
VALENTIM MAGALHÃES
- 247 ―
Piratininga
No verão, rio e mar consorciados,
Separa-os, de invejoso, o duro inverno;
Do lago o fundo e areia visitados
São do sol, e a cabana do galerno .
Assim, mudada vêdes em restinga
Formosa - Barra do Piratininga.
Imagem, por ventura, desta vida,
Nem o barco lhe falta do destino ;
Foge a agua aos vai -vens, impede a lida,
Enquanto espera o remador mofino
que a coragem de todo não se extinga
Como a corrente do Piratininga .
PEREIRA DA SILVA
--- 248
Frioleiras
Parreiras, a pôr te animas
No teu catálogo as rimas
D'esta musa aposentada ,
Que, depois de fazer versos'
E ao vento vê- los dispersos,
Agora faz ... não faz nada?
Ela há muito em tais funduras,
Em tão bonitas alturas ,
Coitadinha ! não se vê !
Musa! musa ! então? que é isso?
Deixe esse ar assustadiço !
Não me envergonhe você ! ...
Que ideia a tua, Parreiras?
E que espécie de frioleiras
Queres tu que aqui te diga?
Que tens talento? Hoje em dia
Isso aos meus versos daria
Uns ares de história antiga ...
Embora! afronto esses ares!
Tu tens talento ! não pares,
Porque não pódes parar!
Toma o pincel , móe as tintas!
Quem pinta como tu pintas
Deve morrer a pintar!
ARTUR AZEVEDO
14-10-96
249
Flores de Ipê
No rio que ermo aos pés lhes roja,
Como um mendigo aos pés dos reis,
Dos brilhos todos se despoja
O manto régio dos ipês .
Orgulho vão ! sonho do nada!
Glória, ideal , tu és talvez
Como a pirâmide formada
Da copa de ouro dos ipês.
Frazes de amor de uma alma grata,
Da boca amante caireis ,
Como o colar que se desata
Dos áureos ramos dos ipês.
Beijos que dei , beijos que guarda
O coração em viuvez!
A mesma sorte vos aguarda
Das flores murchas dos ipês.
Visão radiosa que eu abraço !
Musa! Na doce embriaguez,
Ficam do rasto de teu passo
Flores dispersas dos ipês.
A' tua voz, a alma que arqueja,
A alma que chora, quanta vez !
Toda de risos se estreleja
Como de flores os ipês .
250
Flores de luz, estrelas de ouro,
Do ceu na eterna profundez
Rolais tambem como o tesouro
Que cae dos braços dos ipês ...
Mastros ! no abismo de esmeralda,
Com seus troncos ficareis
Quando o tufão desengrinalda
A ramaria dos ipês.
Versos! meus gritos, meus delírios ,
Únicos ouros da nudez,
Laureis de fogo dos martírios
Que ardem nas frontes dos ipês ...
Almas desertas ! Refletí- os
Como na tétrica nudez ..
O espelho nú dos nossos rios
Reflete as flores dos ipês .
ALBERTO SILVA
251
N'um palmo de tela de Parreiras
Um ceu de chumbo, sem clarões , pezado ,
nuvens sem fim a nuvens encobrindo
e tempestuoso o mar, deserto , infindo,
tétrico, escuro, hiante e encapelado .
Negro, enorme, madeiro arremessado
a um vagalhão, que em fúria atroz rugindo
os novelos de espuma sacudindo
o arroja ao pego que o regeita irado.
Esta poesia que teu quadro encerra,
esta verdade , que enlevando , aterra ,
retrata mais que a imensa solidão ,
retrata a vida em luta, as amarguras
que arrancam d'alma as ilusões mais puras ,
torturando, aos baldões, o coração .
ADELINA AMÉLIA LOPES VIEIRA
Outubro, 1896
- 252
A Vaga
Oh! Bôa do alto mar ! oh! Vaga misteriosa,
Que tens como a serpente uma música estranha.
Colina de esmeralda, escalvada montanha,
A minh'alma te anhela e o meu olhar te goza.
O albatroz do alto céu contempla-te a beleza,
A cabeleira branca e a renda de escumilha ;
Tu te espraias além, saltando de ilha em ilha,
Balouçando o galeão da minha lady ingleza.
Andam corseis , por ti, correndo a toda brida,
E rola o Vendaval no teu dorso a sereia,
E, à flôr d'agua, ela canta à luz da lua cheia.
Magnética chamando ao holocausto o suicida .
E eu te sinto a berceuse e a morte que em ti mora,
Vaga, tu tens o amargo e a verde côr do absinto,
És nomade como eu, tu sentes que eu sinto,
És Campo-santo à noite e Névoa à luz d'aurora.
OSCAR ROSAS
- 253 -
Aspiração louca
Um parque secular, fantástico , selvagem,
No centro um alcaçar de maura arquitetura
E um lago imenso, azul, de linfa argêntea e pura
A refletir da móle a rendilhada imagem ;
Indo espirar alí, ao perpassar da aragem
Os écos divinais de sacra partitura,
Lá dentro o atelier, o templo da Pintura
E o gênio a debuxar estupenda miragem ...
E após a inspiração , após breve repouso,
Abrir de par em par as portas do recinto ,
E ver a multidão frenética, feliz
Aclamar o primor estática de gozo ...
Quizéra isto tal qual no centro de Paris !
Si há felicidade , assim é que eu a sinto ;
AURÉLIO DE FIGUEIREDO
Outubro, 1896
254 -
Borboletas
(Sertanejas)
Ei- las que vão e veem, do musgo emaranhado
Da crista do penedo às grutas pedregosas;
Irrompem da penumbra espêssa do cerrado,
Em volteios gentis de curvas caprichosas,
Buscam da primavera os mágicos fulgores,
Enquanto vão caindo, em lânguido abandono,
As folhas do arvoredo amarelo e sem flores,
Revoltas pelo chão , mirradas pelo outono.
Oh! levianas subtis das rútilas crisálidas ,
Oh! trêfegas visões das louras primaveras,
Descestes lá do azul, abrindo as azas cálidas
Ao sol canicular das lúcidas esferas?
Ao recanto deserto e mudo da floresta,
Como é que em caravana, aligeras viestes?
Oh! loucas ideiaes, trazeis a luz da festa
E a nota da alegria às solidões agrestes?
Aqui , não brilha o sol em azas vaporosas ;
Nos antros e covis dormem quietas as féras;
Estão velando o ninho as aves amorosas,
E os insetos subtis se ocultam pelas héras.
255
Tudo é sombra e silêncio; apenas a cascata,
Na cadência fatal, monôtona, das aguas,
Vai abrindo a garganta em ânforas de prata,
E quebra a solidão das matas e das fraguas.
Parece até que a medo é o ciciar da brisa
Nas frondes colossais desta selva gigante ;
Na floresta soturna o caçador não pisa
Nem passa destemido o intrépido viandante.
Mas, viestes sem medo , oh ! loureiras risonhas,
Voar pelos cipós de enredados contornos,
E viestes beijar essas flores tristonhas,
Que são do triste outono os últimos adornos .
Flocos brancos do ar, oh ! levianas etéreas,
Quem, soltas, vos deixou pelas selvas umbrosas?
Quem deste claro azul das paragens sidéreas
A' vós, pulverisou as azas vaporosas?
Sois dos plainos de anil, lá da savana cérula,
Almas brancas do ar em corpos de utopia;
E, como as ilusões de um sonho côr de pérola,
Fostes feitas de amor, de luz e de poesia.
Nascestes do pincel do Artista primoroso,
E agora, livres, como é livre o pensamento,
Irrequietas voaes no sertão silencioso,
Gozando mais amor no agreste isolamento.
Revoae, revoae, Sertanejas formosas,
Oh! filhas ideais de um'alma fantasista,
Revoae e trazei no dorso, gloriosas,
Os louros da vitória ao fino Paisagista.
IBRANTINA CARDONA
256 --
Em flagrante
Zenith . Arqueado azul de porcelana
Em cima; em baixo - Outubro empampanado.
E tudo escampo , e tudo atravessado
De uma luz poderosa, áurea e tirana.
La para o fundo, esconsa, uma cabana
De fulva trilha à frente ; rio ao lado
E, perto, um largo parasól armado,
Onde alguem com a palheta o quadro explana.
Porem está êrma a improvisada tenda ;
Que o estro do ar livre à rústica vivenda
Agua (deve ser agua ) pedir foi ...
Nisto, esquecido o tenro da pastagem ,
Dando tranquilidade e alma à paisagem ,
Pasmo, diante da téla estaca um boi !
B. LOPES .
Esboceto
Meio dia, grande sól de verão . O campo, ceifado de vés-
pera , n'uma tosquia rente, escalda e a agua lisa d'uma la-
gôa quieta, fulgura como uma chapa candente.
Longe uma cabana de muros brancos, colmada de sapê,
alveja n'uma sombra suave de larangeiras e parado, no,
meio da estrada arenosa e alvadia um homem, de chapéu
encostado ao peito cabeça baixa, imovel parece petrificado.
De instante a instante passa no ar socegado uma badalada
de sino .
Meio dia .
COELHO NETO
A Antônio Parreiras
Pinta-me a curva d'este céos ... Agora ,
Erecta, ao fundo , a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens , o raiar da aurora.
Sólta, ondulando, os véos de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fóra,
A correnteza túrbida e sonora
Do Paraiba em torvelins de espuma.
Pinta ; mas vê de que maneira pintas ...
Antes busques as côres da tristeza ,
Poupando o escrínio das alegres tintas :
Trinsteza singular, estranha magua
De que vejo coberta a natureza ,
Porque a vejo com os olhos rasos d'agua ...
OLAVO BILAC
MUSE U
ΑΝ ΤΟ ΝΙΟ PARREIRAS
CRIADO PELO DECRETO-LEI N.º 219
DE 24 DE JANEIRO DO ANO DE 1941
E INAUGURADO A 21 DE JANEIRO DO ANO DE 1942
PELO INTERVENTOR FEDERAL NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
EXMO. SNR. COMTE . ERNANI DO AMARAL PEIXOTO
SENDO SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE
O EXMO. SNR. DR . RUY BUARQUE DE NAZARETH
PLACA EM BRONZE, COMEMORATIVA DA INAUGURAÇÃO.
EXISTENTE NA FACHADA DO EDIFÍCIO
--
i-
:
Decreto-Lei N.° 219, de 24 de Janeiro de 1941 , criando
o Museu "Antônio Parreiras"
O Interventor Federal no Estado do Rio de Janeiro, na
conformidade do disposto no Artigo 6.º, número IV, do De-
creto-Lei Federal número 1.202 , de 8 de Abril de 1939 , e
Considerando que é dever do Estado reverenciar a me-
mória dos seus grandes filhos, daqueles que contribuiram,
por qualquer forma , para enaltecer e dignificar a terra em
que nasceram ;
Considerando que entre os nomes de seus maiores já
desaparecidos conta o Estado do Rio de Janeiro com o de
Antônio Parreiras, o pintor genial que, ainda em vida , fôra
consagrado o mais eminente dos artistas brasileiros ;
Considerando que deve ficar perpetuada na veneração
do povo fluminense a figura exemplar desse grande brasilei-
ro que tanto elevou , pelo talento artístico , pela dedicação
ao trabalho e pelo valor de suas produções o nome do Es-
tado natal e do Brasil;
Considerando que o parecer da comissão de artistas no-
meada pelo Governo para avaliar as obras do pintor patrí-
cio supera a proposta apresentada pelo inventariante do es-
pólio para a aquisição , por parte do Estado ;
Considerando que tem este por dever preservar para o
culto e a admiração dos porvindouros o patrimônio artísti-
co do grande mestre da pintura nacional, erguendo-lhe, ao
mesmo tempo, um monumento que evoque perenemente a
sua memória,
DECRETA:
Art . 1.0 -- Fica criado nesta capital, subordinado ao
Serviço de Difusão Cultural, da Secretaria de Educação e
Saúde, o Museu "Antônio Parreiras" , destinado a recolher
• conservar, para o culto e a veneração dos brasileiros , o
patrimônio artistico deixado pelo inolvidável pintor.
Art . 2.º O Museu ora criado será instalado na casa
em que viveu e morreu Antônio Parreiras , e na pertencente
ao seu filho Dak r Parreiras, aonde ainda se acham monta-
dos os "ateliers" do artista falecido .
Os Secretários de Educação e Saúde e das Finanças, as-
sim o tenham entendido e façam executar.
Palácio do Governo, em Niterói , 24 de Janeiro de 1941 .
(aa . ) ERNANI DO AMARAL
Ruy Buarque de Nazareth
Valfredo Martins
1
INDICE
1881 a 1926
Pág .
HAREHHARE78588868PPE ! 85 %8
Auto Biografia 11
Grimm 19
Vasquez 23
França Júnior 27
Caron 31
Ribeiro · 35
Visconde de Canto 39
Estevão • 43
Driendl 47
Aprendizagem 51
Retrato 53
Tarefa Penosa
Extrema Bondade 59
Trabalhar para poder trabalhar 63
O Barão de Cotegipe
Ilusão Desfeita
Cabo Frio 69
O Imperador Banido 73
Minha Libertação • •
Uma Vitória . 77
Vida Primitiva 81
"Sertanejas"
Cenário do Passado
Viagem ao Norte 9
Visita à Escola 91
Mme . Essemel • 99
"Salon" . 101
Verdades 103
República Rio- grandense 107
Iguassú 111
Angelus 117
Felipe dos Santos · 121
Terra Natal 128
1926 a 1936
Os Inconfidentes (Jornada dos Mártires) ... 139
Jubileu . 143
Os Mestres • 147
O Homem . 149
O Artista 157
"Guararapes" 164
IV
Pág .
História do Rio de Janeiro 171
Pedro Peres 173
A Primeira Paleta 183
O Aleijadinho • 189
A Procissão 196
A PENDICE
Opinião da imprensa francesa 218
"Jornal do Brasil" 223
"O Brasil" 225
"A Manhã” 227
"Correio da Manhã❞ 229
"Diário de Pernambuco" 235
"O País" 237
POESIAS
A Antônio Parreiras, de Olavo Bilac 245
Paquequer, de Guimarães Passos 245
A Derrubada, de Valetinm Magalhães 246
Piratininga, de Pereira da Silva 247
Frioleiras , de Artur Azevedo 248
Flores de Ipê, de Alberto Silva 249
Num palmo de tela de Parreiras, de Adelina Amélia
Lopes Vieira 251
A Vaga, de Oscar Rosas 252
Aspiração Louca, de Aurélio de Figueiredo 253
Borboletas, de Ibrantina Cardona .... 254
Em Flagrante, de B. Lopes 256
A Antônio Parreiras, de Olavo Bilac 258
GRAVURAS
Dakir Parreiras 4
Nasceste, cresceste e homem te fizeste em meu
atelier . 6
-- Antônio Parreiras 10
Outras vezes, nos pincaros dos rochedos armava o
22☹N
seu cavalete • 20
Canto do Rio (fusain ) 24
- A aldeia se pendurava na costa ingreme da serra 28
Um deles armou sua tenda perto da casa de "Mimi” 32
Então uma saudade imensa me invade a alma…… .. 36
8
Representava a "obra-prima" um casebre velho ... 52
Em pé no cáis, vi -os partir - Ao voltar para casa,
atravessando a restinga, à luz dos pirilampos ...... 56
- Era dela que, ao romper da aurora , eu saía - Con-
tentava-me naqueles tempos com os pequenos qua-
dros . . . 62
O arraial de Cabo Frio Hospedei -me em uma
cabana de pescador . Sempre tive preferência por
V
Pág .
Pela madrugada , o mar começou a enegre-
elas
cer . Em horizonte baixo , pesada nuvem surgiu ro-
çando o mar Ao romper do dia, do mar emer-
-- 70
giam , de momento em momento , duas cruzes ....
Lá no mais espesso da floresta , erguiamos o ran-
Foi naquele ambiente fantástico
aur
derav
choAti icana .
a-me à agua espumante das cascatas , en-
ia ão,
quanto o negro preparava o caf é. --- Abr -se , ent
na floresta , o clarão da fogueira e nele se desta-
cava, como em fundo d'ouro, a enorme figura do
82
negro 84
As vezes , sentado à beira do riacho
Conquista do Amazonas ( Palácio Presidencial do Es-
90
tado do Pará) .
Morte de Estácio de Sá (Prefeitura do Distrito Fe-
888
98
deralme
"Cal ) du Soir " ( "Salon " - Paris - 1909 ) Fan-
Museu Paulista )
tasia ("Salon " - Paris 1907 1909 ) -- Dolorida
"Phrynéa " ("Salon" - Pari s
Flor Brasileira ("Sa-
("Salon" - Paris - 1911 )"Nonchalance " ("Salon
lon" Paris 1913 ) --
Modelo em repouso ("Salon "
Paris 1914)
Flor do mal ("Salon " -- Paris
Paris - 1920) 102
1920)
Fundação de São Paulo (Prefeitura Paulista )
de São Paulo
Instituição da Câmara Municipal
tur a ta "Saint -Alpien " (Cemité-
(Pre fei Pau lis )
rio século XIII ) - Casas em Piane ( Córsega )
104
Uma rua em Sortene (Córsega )
Pro cla maç ão da Rep úbl ica dos Far rap os (Pal áci o
Presidencial do Rio Grande do Sul) - Prisão de
s
Tiradente (Palácio Presidenc ial do Rio Grande do
Sul) José Peregrino (Palácio Presidencial de Pa-
raiba do Norte ) Frei Miguelino (Palácio Presi-
108
dencial do Rio Grande do Norte)
112
Floresta Virgem ção (Alto Paraná )
Orpheu (Decora do Instituto Nacional de Mú-
sica) Estudo I (Decoração do Instituto Nacio-
nal de Música ) - "Fusain" (Decoração do Institu-
Estudo II ( Decoração do
to Nacional de Música )
tit uto ion al Estudo III (De-
Ins Nac de Música ) 120
coração do Instituto Nacional de Música ) ………….
O Primei ro s
"croqui " para Felipe dos, Santos
124
Felipe dos Santos (Congresso Mineiro ) ......
Do sol , às vezes , um pálido raio abria na parede um
Antônio Parreiras ( 1924)
circulo de luz ... --- "Atelier" Parrei-
"Atelier" Parreiras (detalhe ) -
Navio em perigo Matinal
rasr inf
La (fac z a ) Esperando o Zagal ( Palácio Presiden-
elihad
dencial do Pará) - Fim de Romance ( Museu Pau--
Minas de Prata (ro-
lista) Carnaval na roça --
VI
Pág .
teiro desconhecido) Adorno descobre as turmali-
nas Caçador de esmeralda (Prefeitura de São
Paulo) - Os burros - Frei Caneca perante o tri-
bunal Jean Hernadez (Primeiro colono de Santa
Catarina) Salgueiros (Fusain ) — Louco (D'apres
nature) Aretusa Primevos ( fusain -
— fragmen-
tos) - Estudo - Aventureiro espanhol (Fusain)
Evangelho nas selvas (Palácio Presidencial do
Estado do Espírito Santo) Aventureiros (fusain
fragmentos) 128
"Busto ", de Antônio Parreiras 136
-- A partida dos inconfidentes (jornada dos márti-
res) 138
-- A mensagem 144
- Victor Meirelles 148
Pedro Américo . 160
- O triptico da Prefeitura do Distrito Federal (Ato
adicional) 170
- Pedro Peres 174
- Primeiro estudo à óleo ( 1883) 186
- Os invasores "Atelier" Parreiras (casa) Os
cesteiros (Niterói 1927) - A Derrubada (Qua-
dro de costumes brasileiros - 1930) Sudoéste
à Beira-Mar ( 1937) O fogo ( 1937) 210
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