A Sombra Do Torturador - Gene Wolfe
A Sombra Do Torturador - Gene Wolfe
Impresso no Brasil — 1a Edição, 2025 — Edição revisada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
2009.
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Sumário
Início
Gene Wolfe: uma sombra passou por aqui
I. Ressurreição e morte
II. Severian
III. A face do Autarca
IV. Triskele
V. O limpador de quadros e outros
VI. O mestre dos curadores
VII. A traidora
VIII. O conversador
IX. A Casa Azul-Celeste
X. O ano passado
XI. O banquete
XII. O traidor
XIII. O Lictor de Thrax
XIV. Terminus Est
XV. Baldanders
XVI. O belchior
XVII. O desafio
XVIII. A destruição do altar
XIX. O Jardim Botânico
XX. Os espelhos do Padre Inire
XXI. A cabana na selva
XXII. Dorcas
XXIII. Hildegrin
XXIV. A flor da dissolução
XXV. A estalagem dos amores perdidos
XXVI. Sennet
XXVII. Ele está morto?
XXVIII. Carnifex
XXIX. Ágilus
XXX. Noite
XXXI. A sombra do torturador
XXXII. A peça
XXXIII. Cinco pernas
XXXIV. Manhã
XXXV. Heitor
Apêndice: Nota sobre a tradução para o inglês
Sobre o autor
Gene Wolfe:
uma sombra passou por aqui
Fábio Fernandes
Conta Josué Montello em seu Pequeno Anedotário da Academia Brasileira
que, certo dia do século XIX, sentado a um canto da redação da Revista
Brasileira, o Visconde de Taunay, autor de Inocência, lia absorto um livro
(cujo título não se sabe) quando Machado de Assis, que havia acabado de
chegar, foi cumprimentá-lo. “Que está lendo?”, perguntou Machado.
Taunay lhe mostrou o livro, ao que Machado franziu a testa em sinal de
desaprovação. “Não gosta?”, perguntou o Visconde. E Machado respondeu:
“Detesto o escritor que me diz tudo.”
Machado teria gostado dos livros de Gene Wolfe. Apesar da grande
distância no tempo que separa os dois escritores — Machado faleceu em
1908 e Wolfe só nasceria em 1931 — ambos gostavam do estudo da história
da humanidade e da mitologia, que figuram ao longo de suas obras, e
escreveram narrativas que não diziam tudo ao leitor.
Ambos escreveram literatura fantástica: o brasileiro Machado, com
diversos contos como Uma Visita de Alcibíades, em que o protagonista
recebe o fantasma do velho general ateniense, e o clássico Memórias
Póstumas de Brás Cubas, romance cujo protagonista-narrador está morto.
Já o estadunidense Gene Wolfe é um especialista em escrever narrativas de
memórias, embora não exatamente póstumas. Em Peace, um de seus
primeiros romances, o protagonista conta sua biografia, cercado de
fantasmas do passado, a tal ponto que não sabemos direito se ele (assim
como o defunto autor de Machado) está morto ou não. Em The Fifth Head
of Cerberus, um livro composto por três novelas interligadas, a coisa é
ainda mais complexa: um dos personagens conta a história dos nativos de
um planeta colonizado por humanos que têm a estranha habilidade de
assumir a forma que quiserem. Na terceira história, já não sabemos se o
narrador é um colono da Terra, ou se ele é um nativo que assumiu a forma
de um humano há tanto tempo que já se esqueceu de quem realmente era, e
acredita ser um terráqueo.
O livro que você tem em mãos, A Sombra do Torturador, apresenta outro
narrador não confiável: Severian, um jovem órfão adotado pela Guilda dos
Buscadores da Verdade e da Penitência e treinado para ser um torturador.
Não sabemos em que ano a história se passa, mas somos informados de que,
apesar do cenário de aparência medieval, estamos num futuro distante,
provavelmente um milhão de anos à nossa frente. A Terra é um mundo que,
social e politicamente, se reverteu a uma condição mais “primitiva”,
embora os soldados possuam armas de raios e alienígenas (ou melhor
dizendo, cacogênios; depois você entenderá o porquê dessa palavra)
caminhem entre os humanos. Nosso planeta teria sido o centro de um
grandioso império galáctico e se deteriorado a ponto de mal conseguir reger
a si próprio, através da figura misteriosa do Autarca, líder supremo da
Terra, ele próprio aparentemente subordinado a forças extraterrestres além
da nossa compreensão.
Nesse cenário quase surreal, acompanhamos Severian, desde um episódio
de sua adolescência, quando ele salva da morte o rebelde Vodalus, uma
espécie de Robin Hood do futuro a quem ele admira e acaba por prestar
obediência, até algum tempo mais tarde, quando se envolve com a cortesã
Thecla, presa não se sabe por que motivo e que deve ser torturada por ele. É
depois de se apaixonar por ela e cometer um ato proibido para os membros
de sua guilda (calma, não darei spoilers aqui) que Severian é mandado para
fora da Cidadela a fim de se tornar um carrasco na cidade de Thrax.
Começam então as aventuras do jovem torturador nesse mundo fantástico,
onde ele encontrará saltimbancos charlatães, mutantes, belas e estranhas
mulheres e um artefato de enorme poder, a Garra do Conciliador.
Mas o maior poder de Severian é a sua memória prodigiosa. Segundo o
próprio aprendiz de torturador, ele carrega o fardo de se lembrar de
absolutamente tudo em sua vida — o que rapidamente se prova não ser
verdade, pois em poucas páginas ele já deixa claro que sua memória pode
até ser muito boa, mas ele não se lembra de tudo. Severian, portanto, é o
que na literatura chamamos de narrador não confiável.
O começo do livro já nos diz que ele não sabe tanto quanto dá a entender.
A primeira frase do romance é tão agourenta quanto o início de outras
grandes histórias sobre memória e nostalgia, como Cem Anos de Solidão e
Crônica de uma Morte Anunciada, ambas de Gabriel García Márquez:
“É possível que eu já tivesse algum pressentimento do meu futuro.”
Parece uma frase simples, boba, quem sabe, mas rapidamente percebemos
que ela contém até mesmo um pouco de ironia, pois quem nos escreve é um
Severian já velho e cansado, recordando suas muitas aventuras.
Não é fácil classificar a obra de Wolfe. Talvez seja mais importante
ressaltar que seus livros têm como tema geral a memória — e seu oposto, o
esquecimento. Em Soldier of the Mist, o personagem Latro, um soldado
grego da Antiguidade, é o oposto exato de Severian, um homem que perdeu
a memória e não se lembra de absolutamente nada que lhe aconteceu antes,
durante sua vida inteira. Memória e esquecimento andam de mãos dadas
nos livros de Wolfe. A Sombra do Torturador trata, o tempo todo, desses
dois polos.
E, no entanto, o livro não tem nada de cansativo ou chato. A escrita de
Wolfe é tão envolvente que nos sentimos compelidos a continuar lendo,
nem que seja para tentar pegar o protagonista na mentira.
O que também se prova muito difícil: afinal, se é uma história ambientada
no futuro, como saber o que é ou não verdade em tudo o que ele nos conta?
Primeiro, o futuro no qual se passa o livro é tão longínquo que
aparentemente nada se sabe a respeito de nossa época. Existem referências
a dois santos da Igreja Católica, Santa Catarina e Santo Amândio. A
primeira é a padroeira da guilda de Severian, e em sua festa, descrita no
capítulo XI, o leitor é apresentado a uma parte da história real da santa,
nascida em Alexandria em 287 d.C. e executada em 305, depois de sofrer
torturas após tentar converter o imperador romano Maximino, que
perseguia os cristãos.
Mas a descrição da história de Catarina no livro só abarca sua tortura e
morte: curiosamente, não há nenhuma referência a Jesus Cristo. Nem nessa
passagem, como, aliás, em momento nenhum do livro, nem direta, nem
indiretamente. O poder superior mencionado é o Incriado. Aparentemente
(e neste livro, tudo é aparência), a figura cristã foi esquecida na poeira do
tempo, bem como as viagens espaciais, embora Severian e seus amigos
saibam muito bem o que é uma nave espacial, além de alguns artefatos de
alta tecnologia, e também conheçam o conceito de viagem entre as estrelas.
Gene Wolfe teve uma vida que, pelo menos no começo, foi quase tão
atribulada (e talvez estranha para nós, brasileiros do século 21) quanto a de
seu personagem mais famoso. Nascido em Nova York no começo da
Grande Depressão, se mudou com a família para o Texas aos seis anos.
Enquanto cursava a universidade, publicou seu primeiro conto de ficção
especulativa numa revista literária estudantil, e nesse período chegou a
trocar cartas com ninguém menos que J. R. R. Tolkien, autor de O Senhor
dos Anéis. Interrompeu a faculdade e se alistou voluntariamente para lutar
na Guerra da Coreia. Ao retornar, terminou o curso de engenharia industrial
e se casou com Rosemary, amor da sua vida, com quem teve quatro filhos.
Foi editor sênior da revista Plant Engineering por anos, mas ficou mais
famoso por uma coisa que nada tem a ver com literatura: é graças a uma
máquina desenvolvida por ele que a empresa Pringles conseguiu fazer suas
famosas batatas chips onduladas.
Nada disso afetou o ego de Wolfe. Assim que começou a ganhar dinheiro
com a literatura, largou a engenharia sem pensar duas vezes para se dedicar
de corpo e alma à escrita de ficção.
E compensou: numa carreira de seis décadas, Gene Wolfe escreveu nada
menos que trinta e três romances e dezesseis coletâneas de contos, pelos
quais ganhou uma série de prêmios. Todos os livros da série do Novo Sol
foram agraciados com algum louro. A Sombra do Torturador, publicado
originalmente em 1980, ganhou o British Science Fiction Award e o World
Fantasy Award, dois dos mais importantes prêmios do gênero. O crítico
John Clute, criador e editor da Encyclopedia of Science Fiction, disse o
seguinte a respeito de Wolfe, em 2021: “Embora não seja o autor mais
popular nem o mais influente no campo da FC, Gene Wolfe é hoje,
possivelmente, o mais importante. A estatura inerente ao seu trabalho é
profundamente impressionante e ele veste os mundos ficcionais da ficção
científica como um casaco de muitas cores.”
Uma dessas cores era a religião. Uma curiosidade é que Wolfe era um
católico praticante, e muitas de suas obras contêm elementos místicos
cristãos. Mas se engana quem pensa que ele era um proselitista: Wolfe não
queria converter ninguém. Sua escrita trazia elementos mais mitológicos, e
no sentido dos grandes místicos católicos, como Santa Teresa D’Ávila ou
São João da Cruz, e também elementos literários, como no conto The
Detective of Dreams, inspirado no detetive C. Auguste Dupin, de Edgar
Allan Poe, com o adicional de conter uma forte carga visual cristã e um
final surpreendente, ainda que anticlimático. Contudo, o cristianismo aí age
mais como inspiração literária do que como forma de convencimento do
leitor.
O Livro do Novo Sol também está repleto dessas imagens. A própria
expressão Novo Sol se refere a Jesus Cristo na Bíblia, em passagens do
Evangelho de João e de Malaquias. Entretanto, nesse estranho mundo do
futuro muito distante vislumbrado por Wolfe, não é mais a figura de Cristo
que é lembrada — e sim o que ele representa. Mais ou menos como o leão
Aslan nas crônicas de Nárnia, que C. S. Lewis, outro católico praticante,
insere na narrativa como uma representação crística, quase uma
reencarnação.
Mas Wolfe é muito mais críptico do que crístico: o que se vê nos livros da
série do Novo Sol são alusões a uma figura potente que trará a ressurreição
não às almas, mas a todo um planeta moribundo, fazendo com que o sol da
Terra (que, nesse momento, um milhão de anos distante no futuro, é uma
gigante vermelha, logo, uma estrela com menos potência do que sua versão
amarela de nossa época) volte a ser o que era antes, ou seja, um sol
amarelo, fonte de luz e energia, e, portanto, de renovação. Essa figura, que
Severian relata de modo meio velado ao longo do livro, seria o próprio
Autarca, que seria julgado por um tribunal alienígena e, se considerado
digno, ganharia o poder de despertar o sol novamente.
É preciso explicar ainda que Severian nos conta essa história de um futuro
mais distante ainda, no qual — ao que tudo indica, embora não com certeza
— o jovem torturador cresceu e se tornou, ele próprio, o Autarca. Isso tudo
vai sendo explicado de modo explícito ao longo dos cinco volumes da série:
os quatro propriamente ditos e um volume extra que fornece explicações
finais e serve como um encerramento adequado à saga, The Urth of the New
Sun.
Portanto, A Sombra do Torturador não vai explicar toda a jornada, mas
apenas o suficiente para atrair você, leitora, leitor, a seguir junto com
Severian em suas aventuras. O que não é explicitado pode muito bem ser
imaginado, mas não é fundamental para se entender a ação. Até porque,
como mencionado mais acima, Severian não é um narrador confiável, e não
sabemos até que ponto tudo o que ele nos conta é verdade.
Contudo, em várias entrevistas ao longo da vida, Wolfe fez questão de
explicar algumas coisas que lhe pareciam mais importantes. Por exemplo,
numa entrevista concedida ao escritor Lawrence Person, em 2009, ele deixa
muito claro que Severian não é uma representação de Cristo: “Ele é uma
figura cristã, o que é diferente. Ele está tentando se tornar semelhante a
Cristo. Ele é, basicamente, o que quase todos nós, que somos homens,
somos; ele é um homem mau tentando ser bom. Ele progride à medida que
os livros progridem. Ele se torna uma pessoa melhor e uma pessoa maior no
sentido espiritual. Mas não, ele não é uma figura de Cristo. Pelo menos ele
nunca foi para mim.”
Com relação ao grande panorama da literatura fantástica, a série O Livro
do Novo Sol pertence a uma subcategoria muito específica, pouco
comentada no Brasil, chamada Dying Earth — literalmente, Terra
Moribunda. Esse subgênero, que trata justamente de histórias num futuro
muito distante onde o sol está morrendo e com ele também a Terra, nasceu
ainda no começo da ficção científica, em contos como The World of the
Red Sun, de Clifford D. Simak, publicado em dezembro de 1931 na revista
Wonder Stories. Mas também poderíamos dizer, sem muito problema, que
uma possível origem estaria ainda mais longe, no final de A Máquina do
Tempo, de H. G. Wells, publicado em 1895. Quando o Viajante de Wells
deixa o futuro do ano de 802.701 dos Eloi e Morlock para avançar milhões
de anos e descobrir uma Terra quase morta sob um sol vermelho. Para os
fãs de gênero, as histórias de Dying Earth são mais conhecidas pelas obras
de Jack Vance, escritas entre as décadas de 1950 e 1980.
Nessa série, a lua desapareceu e o sol corre o risco de se apagar a
qualquer momento, muitas vezes piscando como se estivesse prestes a
apagar-se, antes de voltar a brilhar. As várias civilizações da Terra entraram
em colapso, sendo dominadas pelo fanatismo religioso, e o planeta é quase
todo árido e frio, infestado por monstros predadores que teriam sido criados
por um mago em uma época anterior. Na mesma entrevista a Lawrence
Person, Wolfe confirma que Vance e suas histórias da Terra moribunda
foram uma grande inspiração para a saga do torturador Severian. A série de
Vance, entretanto, apresenta mais elementos de magia do que de ficção
científica, e isso inexiste na série de Wolfe.
O mais interessante em A Sombra do Torturador e nos demais livros da
série talvez seja o estranhamento que o texto de Wolfe provoca. Como o
narrador é um homem do futuro distante, é natural que o leitor espere
neologismos, ou seja, palavras novas, termos inventados para dar conta de
um cenário inteiramente diferente do nosso. Mas aí é que está a genialidade
de Wolfe: não existe uma só palavra inventada em toda a série do Novo Sol.
Ao invés disso, ele optou por arcaísmos, ou seja, o oposto exato de
neologismos: como a sociedade dos tempos de Severian reverteu a um
ponto que poderíamos chamar de medieval (como, além de Jack Vance,
outros autores mais recentes por ele inspirados, como Brandon Sanderson
em Mistborni), nada mais lógico do que usar palavras de tempos idos.
Mas Wolfe fez questão de não deixar nenhum glossário explicativo: seu
desejo era que os leitores experimentassem um certo estranhamento, como
se estivessem realmente percorrendo um mundo estranho ao lado do
protagonista — mas a personagem não se sentiria obrigada a explicar nada
para o viajante, como se ele ou ela pertencessem ao mesmo mundo. É este
estranhamento, que talvez o nosso Machado de Assis apreciaria, que
constitui uma das principais características do que chamamos ficção
científica. O Livro do Novo Sol, portanto, é uma série de FC (ou scifi, como
preferirem), com uma capa de fantasia medieval.
O mundo criado por Gene Wolfe não se parece com o nosso em nada, e
pelo menos duas imagens nos ganham logo no começo da narrativa pelo seu
impacto de estranhamento: a torre dos torturadores, que fica dentro de uma
antiquíssima nave espacial sem que a maioria de seus habitantes se dê conta
disso (Severian parece saber que a torre teria sido outrora uma nave, mas
não se interessa por isso porque já faz muito tempo desde que ela foi usada,
pela última vez, como tal), e a lua, que é verde: Severian menciona até
mesmo que ela tem ar respirável e que pessoas moram lá como quem mora
na Terra. Isso poderia parecer magia, mas para todo fã atento de ficção
científica significa outra coisa: que o satélite natural do nosso planeta foi
terraformado, isto é, transformado num ecossistema adequado para os seres
humanos da Terra. Mas isso nunca é explicado. Wolfe nunca dá aos leitores
algo fácil.
O que não quer dizer que ele não seja generoso para com os leitores. No
final deste volume, vocês vão ter a oportunidade de ler um pequeno
apêndice onde ele explica o motivo de usar arcaísmos, e a explicação por si
só é um primor de narrativa metaficcional.
A tradução de A Sombra do Torturador também não foi fácil, mas foi
bastante prazerosa. Entrei em contato com a obra de Gene Wolfe no final da
década de 1980, através de um amigo, Pedro Ribeiro. Nós dois estávamos
começando no ofício da tradução, e ele, que já era um leitor ávido de
fantasia (e que hoje é tradutor, entre outros, de Brandon Sanderson), me
apresentou a Wolfe dizendo o seguinte: “Eu sei que você é fã de ficção
científica e não lê muita fantasia, mas este livro aqui se passa num futuro
muito distante, então acredito que você vá gostar.” Eu já conhecia Jack
Vance e a série Dying Earth, mas nada me preparou para o impacto que foi
ler A Sombra do Torturador. Pedro tinha razão: a história se assemelhava
em termos de cenário aos livros de fantasia, mas só o fato de se passar no
futuro me atraiu imensamente. E as cenas que já descrevi acima, como a da
torre-nave e a lua verde, além de muitas outras que você, leitora, leitor, vai
descobrir agora, me marcaram para sempre, como leitor, escritor, e agora
como tradutor dessa série fantástica.
Para terminar este prefácio, uma dica de outro escritor, D.H. Lawrence,
que se aplica muito bem a este livro e a seu narrador, Severian: “Não confie
em quem conta a história. Confie na história.” E esta história vai abrir,
literalmente, todo um mundo novo para você.
Fábio Fernandes é jornalista, escritor e pesquisador. Traduziu mais de
120 livros e HQs, entre os quais Salmo Para um Robô Peregrino e
Herdeiros do Tempo, ambos pela Morro Branco. É líder do grupo de
pesquisa Observatório do Futuro, da PUC-SP, onde investiga narrativas de
ficção científica e seu impacto no mundo real. Seu livro mais recente é o
romance steampunk O Torneio de Sombras (AVEC Editora).
Ressurreição e morte
É possível que eu já tivesse algum pressentimento do meu futuro. O
portão trancado e enferrujado que se erguia diante de nós, com fiapos de
neblina do rio entrelaçando as pontas de suas grades, como se fossem os
tortuosos caminhos da montanha, permanece agora, em minha mente, como
o símbolo do meu exílio. Foi por isso que comecei este relato com o que
aconteceu depois que fomos nadar, ocasião em que eu, Severian, o aprendiz
de torturador, por um triz não me afoguei.
— O guarda foi embora. — Assim disse meu amigo Roche para Drotte,
que já havia constatado o mesmo por conta própria.
Inseguro, o menino Eata sugeriu que contornássemos. Seu braço magro e
sardento levantado apontava para os milhares de passos de muralha que se
estendiam ao longo do cortiço, e que subiam a colina até finalmente
encontrarem a muralha-cortina que cercava a Cidadela. Era uma caminhada
que eu faria, muito mais tarde.
— Tentar atravessar a barbacã sem salvo-conduto? Eles mandariam
chamar o Mestre Gurloes.
— Mas por que o guarda iria embora?
— Não importa. — Drotte sacudiu o portão. — Eata, veja se você
consegue deslizar por entre as barras.
Drotte era nosso capitão. Eata enfiou um braço e uma perna por entre as
estacas de ferro, mas logo ficou óbvio que seria impossível fazer com que
seu corpo fosse junto.
— Alguém está vindo — sussurrou Roche. Drotte puxou Eata para fora.
Olhei para a rua. Ali, lanternas balançavam entre os sons de pés e vozes
abafados pela neblina. Eu teria me escondido, mas Roche me segurou,
dizendo:
— Espere, estou vendo lanças.
— Você acha que é o guarda voltando?
Ele balançou a cabeça.
— São muitas.
— Pelo menos uma dúzia de homens — disse Drotte.
Ainda molhados do mergulho no Gyoll, esperamos. Nos recônditos da
minha mente ainda estamos ali, parados, tremendo. Tal como tudo o que
parece imperecível tende à sua própria destruição, aqueles momentos que,
na época, parecem os mais fugazes, recriam-se — não apenas na minha
memória (que na contabilidade final, nada perde), mas no latejar do meu
coração e no arrepiar dos meus cabelos, fazendo-se novos, assim como
nossa Comunidade se reconstitui todas as manhãs nos tons estridentes de
seus próprios clarins.
Os homens não vestiam armaduras, como logo pude perceber pela luz
amarelada e doentia dos lampiões; mas tinham lanças, como Drotte havia
dito, e bordunas e machadinhas. O líder deles trazia uma faca longa de dois
gumes no cinto. O que mais me interessou foi a enorme chave presa a um
cordão em volta de seu pescoço; pelo jeito, parecia se encaixar na fechadura
do portão.
Nervoso, o pequeno Eata não parava de se mexer; logo o líder notou
nossa presença, erguendo o lampião ao alto.
— Estamos esperando para entrar, bom homem — gritou Drotte. Ele era o
mais alto, mas assumiu uma expressão humilde e respeitosa no rosto negro.
— Não antes do amanhecer — disse o líder rispidamente. — É melhor
vocês, jovens, irem para casa.
— Bom homem, o guarda deveria nos deixar entrar, mas ele não está aqui.
— Esta noite vocês não entram. — O líder levou a mão ao punho da faca
antes de dar um passo mais para perto. Por um momento, tive medo de que
ele soubesse quem nós éramos.
Drotte se afastou, e o resto de nós permaneceu atrás dele.
— Quem é você, bom homem? Vocês não são soldados.
— Somos os voluntários — disse um dos outros. — Viemos para proteger
os nossos mortos.
— Então, vocês podem nos deixar entrar.
O líder havia nos dado as costas.
— Não deixamos ninguém entrar além de nós mesmos. — A chave dele
rangeu na fechadura e o portão se abriu, rangendo de volta. Antes que
alguém pudesse impedir, Eata disparou para dentro. Alguém praguejou, e o
líder e outros dois correram atrás de Eata, mas ele era ligeiro demais para
eles. Vimos seu cabelo ruço e sua camisa remendada ziguezaguearem por
entre os túmulos afundados de indigentes, depois desaparecerem no matagal
de estátuas mais acima. Drotte tentou persegui-lo, mas dois homens o
agarraram pelos braços.
— Temos que encontrá-lo. Não vamos roubar seus mortos.
— Então por que querem entrar? — perguntou um dos voluntários.
— Para colher ervas — disse-lhe Drotte. — Nós as coletamos para os
médicos. Você não quer que os enfermos sejam curados?
O voluntário o encarou. O homem que estava com a chave havia deixado
o lampião cair quando saiu correndo atrás de Eata, restando apenas dois
deles. Naquela penumbra, o voluntário parecia estúpido e inocente; suponho
que fosse algum tipo de trabalhador braçal.
Drotte continuou:
— Você deve saber que, para certas ervas medicinais obterem suas
virtudes mais elevadas, elas precisam ser arrancadas do solo do túmulo ao
luar. Logo vai congelar e não restará mais nada, mas nossos mestres
precisam de suprimentos para o inverno. Os três providenciaram para que
entrássemos esta noite, e eu peguei aquele rapaz emprestado de seu pai para
me ajudar.
— Você não tem nenhum recipiente para guardar as ervas.
Ainda admiro Drotte pelo que fez a seguir. Ele disse:
— Precisamos amarrá-las em molhos para secarem. — E, sem a menor
hesitação, puxou um pedaço de corda do bolso.
— Entendi — disse o voluntário. Estava nítido que ele não tinha
entendido. Roche e eu nos aproximamos de mansinho do portão.
Mas Drotte, ao contrário, recuou.
— Se você não for nos deixar colher as ervas, é melhor partirmos. Acho
que nunca conseguiríamos encontrar aquele garoto lá dentro agora.
— Vocês não vão embora, não. Temos que tirá-lo de lá.
— Está certo — disse Drotte com relutância, e nós entramos, os
voluntários seguindo nossos passos. Certos mystes asseveram que o mundo
real foi construído pela mente humana, uma vez que nossos caminhos são
governados pelas categorias artificiais nas quais colocamos coisas
essencialmente indiferenciadas, coisas mais fracas que as palavras que
usamos para elas. Entendi esse princípio intuitivamente naquela noite,
quando ouvi o último voluntário fechar o portão atrás de nós.
Um homem, que até então não havia falado, disse:
— Vou montar guarda para minha mãe. Já perdemos tempo demais. Eles
podem estar com ela a uma légua daqui a esta altura.
Vários dos outros murmuraram em concordância, e o grupo começou a se
dispersar, uma lanterna se movendo para a esquerda e a outra para a direita.
Nós seguimos pelo caminho do meio (aquele que sempre tomávamos ao
retornar à seção caída da muralha da Cidadela) com os voluntários
restantes.
Lembrar de tudo é minha natureza, minha alegria e minha maldição. Cada
corrente que chacoalha e vento que assobia, cada visão, cheiro e sabor
permanecem imutáveis em minha mente, e embora eu saiba que nem todas
as pessoas funcionam assim, não consigo imaginar como seria viver de
outra forma, como se algo estivesse adormecido, quando, na verdade, é
apenas uma experiência distante. Aqueles poucos passos que demos no
caminho embranquecido surgem diante de mim agora: estava frio e ficava
cada vez mais frio; não tínhamos luz, e a neblina havia começado a vir do
Gyoll para valer. Alguns pássaros tinham pousado para ciscar nos pinheiros
e ciprestes e voejavam inquietos de árvore em árvore. Lembro-me da
sensação das minhas próprias mãos enquanto esfregava os braços, e do
lampião balançando entre as estruturas monolíticas a certa distância, e de
como a neblina destacava o cheiro da água do rio na minha camisa e a
pungência da terra recém-revirada. Eu havia quase morrido naquele dia, me
engasgando com as raízes reticuladas; a noite marcaria o início da minha
vida de homem adulto.
Houve um disparo, uma coisa que eu nunca tinha visto antes, o raio de
energia violeta cindindo a escuridão como uma cunha, de modo tal que ela
se fechou com um som de trovão. Em algum lugar, um monumento caiu
com um estrondo. Depois, um silêncio… nele, tudo ao meu redor pareceu
se dissolver. Começamos a correr. Ao longe, os homens gritavam. Ouvi o
retinir do aço na pedra, como se alguém tivesse golpeado uma das lápides
com uma espada badelaire. Disparei por um caminho que era (ou pelo
menos assim me pareceu na hora) completamente desconhecido, uma faixa
de ossos quebrados larga o suficiente para duas pessoas caminharem lado a
lado, que descia serpenteando até um pequeno vale. Na neblina, eu não
podia ver nada além da massa escura dos memoriais de ambos os lados.
Então, tão subitamente quanto se tivesse sido arrancado dali, o caminho não
estava mais sob meus pés — suponho que eu tenha ignorado alguma curva.
Virei-me para desviar de um obelisco que apareceu diante de mim de
repente e colidi a toda velocidade com um homem de casaco preto.
Era rígido como uma árvore; o impacto me levantou do chão e tirou meu
fôlego. Eu o ouvi murmurando maldições, depois, no momento em que
balançou algum tipo de arma, um sussurro. Outra voz gritou:
— O que foi isso?
— Alguém deu de cara comigo. Já foi embora, quem quer que fosse.
Fiquei imóvel.
Uma mulher disse:
— Abra o lampião. — Sua voz era como o arrulhar de uma pomba, mas
com uma certa urgência.
O homem com quem eu havia trombado respondeu:
— Eles cairiam em cima de nós como um bando de dholes, Madame.
— Em breve cairão, de qualquer maneira: Vodalus disparou. Você deve
ter ouvido.
— É mais provável que isso os mantenha afastados.
Com um sotaque que, naquele momento, eu era muito inexperiente para
reconhecer como o de um exultante, o homem que havia falado primeiro
disse:
— Seria melhor não ter trazido nada. Não deveríamos precisar usá-la
contra esse tipo de gente. — Ele estava muito mais perto agora, e por um
instante pude vê-lo entre a névoa, muito alto, esbelto e sem chapéu, parado
perto do homem mais robusto, ao qual eu havia dado o encontrão. Envolta
em preto, uma terceira figura, aparentemente, era a mulher. Ao perder o
fôlego, também perdi a força dos meus membros, mas consegui rolar para
trás da base de uma estátua e, uma vez protegido ali, dei uma espiada neles
novamente.
Meus olhos se acostumaram com a escuridão. Pude distinguir o rosto em
forma de coração da mulher e reparei que era quase tão alta quanto o
homem esguio que ela havia chamado de Vodalus. O homem robusto havia
desaparecido, mas eu o ouvi dizer:
— Mais corda. — Sua voz indicava que ele não estava a mais de um ou
dois passos de distância do local onde eu estava agachado, mas ele parecia
ter sumido, tal qual água jogada num poço. Então vi algo escuro (devia ser
a coroa de seu chapéu) se aproximar dos pés do homem esguio e entendi
que, muito provavelmente, isso era o que tinha acontecido: havia um buraco
ali, e ele estava dentro.
A mulher perguntou:
— Como ela está?
— Fresca como uma flor, Madame. Praticamente não fede, e não há nada
com que se preocupar. — Mais ágil do que eu teria pensado ser possível, ele
saltou para fora. — Agora me dê uma ponta e o senhor pega a outra,
Suserano, e nós a arrancamos dali feito uma cenoura.
A mulher disse algo que não consegui ouvir, e o homem esguio
respondeu:
— Você não precisava vir, Thea. O que os outros vão pensar se eu não
correr nenhum risco? — Ele e o homem robusto grunhiram enquanto
puxavam, então vi algo branco surgir aos pés deles. Eles se curvaram para
levantá-lo. Como se um amschaspand os tivesse tocado com sua varinha
radiante, a neblina rodopiou num turbilhão e se afastou para deixar cair um
raio de luar verde. Eles estavam com o cadáver de uma mulher. Os cabelos
dela, que antes haviam sido escuros, estavam agora um pouco desgrenhados
em torno de seu rosto lívido; ela usava um vestido longo feito de tecido
claro.
— Vejam — disse o homem robusto —, exatamente como lhes falei,
Suserano, Madame, em dezenove a cada vinte casos, não é nada de mais. Só
precisamos agora levá-la para o outro lado da muralha.
Assim que as palavras saíram de sua boca, ouvi alguém gritar. Três dos
voluntários vinham descendo o caminho que margeava o vale.
— Mantenha-os longe, Suserano — rosnou o homem robusto, colocando
o cadáver sobre os ombros. — Eu cuido disto aqui e levo a Madame para
um local seguro.
— Leve com você — disse Vodalus. A pistola que ele entregou capturava
o brilho da lua como se fosse um espelho.
O homem robusto ficou boquiaberto.
— Eu nunca usei uma, Suserano…
— Pegue, você pode precisar. — Vodalus se deteve, depois se levantou
segurando o que parecia ser um bastão escuro. Houve um chacoalhar de
metal na madeira, e no lugar do bastão havia uma lâmina brilhante e
estreita. Ele gritou:
— Protejam-se!
Como se uma pomba tivesse comandado momentaneamente um arctótero,
a mulher pegou a pistola brilhante da mão do homem robusto e juntos
recuaram na neblina.
Os três voluntários hesitaram. Agora, um se movia para a direita e outro
para a esquerda, de modo a atacar por três lados. O homem no centro (ainda
no caminho branco de ossos quebrados) tinha uma lança e um dos outros
um machado.
O terceiro era o líder com quem Drotte havia conversado do lado de fora
do portão.
— Quem é você? — gritou para Vodalus. — E, que poder de Érebo lhe dá
o direito de vir aqui e fazer algo assim?
Vodalus não respondeu, mas a ponta de sua espada relanceou, como um
olho, de um para o outro.
O líder rosnou:
— Agora, todos juntos e o pegaremos. — Mas eles avançaram com
hesitação e, antes que pudessem se aproximar, Vodalus atacou. Vi sua
lâmina brilhar sob a luz fraca e a ouvi raspar a ponta da lança — um
deslizamento metálico, como se uma serpente de aço deslizasse sobre um
tronco de ferro. O lanceiro gritou e pulou para trás; Vodalus também saltou,
afastando-se (acho que por medo de que os outros dois ficassem nas suas
costas), então pareceu perder o equilíbrio e caiu.
Tudo isso aconteceu na escuridão e na neblina. Eu vi, mas, na maior parte
do tempo, os homens não passavam de sombras na paisagem — como a
mulher com o rosto em forma de coração havia sido. No entanto, algo me
comoveu. Talvez tenha sido a disposição de Vodalus em morrer para
protegê-la que fez a mulher parecer preciosa para mim; certamente foi essa
disposição que despertou minha admiração por ele. Muitas vezes desde
então, sempre que me encontrei sobre uma plataforma balouçante, em uma
praça qualquer, com Terminus Est repousando diante de mim e um
vagabundo miserável ajoelhado aos meus pés… quando ouvia em sussurros
sibilantes o ódio da multidão e sentia neles algo que me era ainda mais
desagradável — a admiração de quem encontra uma alegria impura em
dores e mortes que não são suas —, eu me lembrava de Vodalus ao lado do
túmulo e levantava minha própria espada, meio fingindo que, quando ela
caísse, eu estaria fazendo aquilo por ele.
Ele tropeçou, como eu disse. Naquele instante, acredito que toda a minha
vida oscilou na balança junto à dele.
Os voluntários dos flancos correram em sua direção, mas ele continuava
segurando firme a arma. Vi a lâmina reluzente faiscar, embora seu dono
ainda estivesse no chão. Lembro-me de pensar que teria sido maravilhoso
ter uma espada como essa no dia em que Drotte se tornou capitão dos
aprendizes, e então, com ela, poder me comparar a Vodalus.
O homem do machado, contra quem ele havia investido, recuou; o outro
avançou com sua faca longa. Eu já estava de pé, observando a luta por
sobre o ombro de um anjo de calcedônia, quando vi a faca descer, errando
Vodalus pela largura de um polegar. Ele se contorceu para desviar e a arma
foi enfiada até o cabo no chão. Então, Vodalus atacou o líder, mas ele estava
perto demais para o comprimento de sua lâmina. O líder, em vez de recuar,
soltou a arma e o agarrou como um lutador. Os dois estavam bem na beira
da sepultura aberta — imagino que Vodalus tenha tropeçado na terra
retirada dela.
O segundo voluntário ergueu o machado, mas hesitou. Seu líder estava
mais próximo de Voladus; ele ficou circulando para conseguir desferir um
golpe direto, até parar, a menos de um passo de onde eu me escondia.
Enquanto mudava de posição, vi Vodalus arrancar a faca e enfiá-la na
garganta do líder. O machado se ergueu para o golpe; eu agarrei a haste logo
abaixo da cabeça quase por reflexo, e quando dei por mim, entrei
imediatamente na peleja, chutando e depois golpeando.
De repente, tudo acabou. O voluntário, cuja arma ensanguentada eu
segurava, estava morto. O líder dos voluntários se contorcia aos nossos pés.
O lanceiro havia desaparecido; sua lança estava caída inofensiva no meio
do caminho. Vodalus recuperou uma varinha preta da grama próxima e
embainhou sua espada nela.
— Quem é você?
— Severian. Sou torturador. Ou melhor, sou aprendiz dos torturadores,
Suserano. Da Ordem dos Buscadores da Verdade e da Penitência. —
Inspirei fundo. — Sou um Vodalarius. Um dos milhares de Vodalarii de cuja
existência o senhor nem desconfia. — Era um termo que mesmo eu mal
tinha ouvido falar.
— Aqui. — Ele colocou algo na palma da minha mão: uma moeda
pequena, tão lisa que parecia untada com graxa. Fiquei ali, segurando a
moeda, ao lado do túmulo violado e o vi se afastar. A neblina o engoliu
muito antes que chegasse à margem, e, alguns momentos depois, um voador
prateado, afiado como um dardo, passou gritando sobre nossas cabeças.
De algum jeito, a faca havia caído do pescoço do morto. Talvez, em sua
agonia, ele a tivesse puxado. Quando me abaixei para pegá-la, descobri que
a moeda ainda estava na minha mão e a meti no bolso.
Nós acreditamos que inventamos símbolos. A verdade é que eles nos
inventam; nós somos criaturas deles, moldadas por suas arestas duras e
definidoras. Quando soldados prestam juramento, eles recebem uma moeda,
um asimi com o perfil do Autarca estampado. A aceitação dessa moeda é a
aceitação dos deveres e fardos especiais da vida militar — a partir daquele
momento eles passam a ser soldados, embora possam nada saber sobre o
uso de armas. Eu não sabia disso naquela época, mas é um erro profundo
acreditar que devemos saber de tais coisas para sermos influenciados por
elas, e de fato acreditar nisso é acreditar no tipo mais degradado e
supersticioso de magia. Somente o pretenso feiticeiro tem fé na eficácia do
conhecimento puro; pessoas racionais sabem que as coisas agem por si
mesmas ou então não agem.
Portanto, eu nada sabia, quando a moeda caiu no meu bolso, sobre os
dogmas do movimento que Vodalus liderava, mas logo aprendi todos eles,
pois estavam no ar. Com ele, eu odiei a Autarquia, embora não tivesse ideia
do que poderia substituí-la. Com ele, eu desprezei os exultantes que não
conseguiam se insurgir contra o Autarca e uniam as mais belas de suas
filhas a ele, em concubinato cerimonial. Com ele, eu detestei o povo pela
sua falta de disciplina e de um propósito comum. Daqueles valores que
Mestre Malrubius (que havia sido mestre de aprendizes quando eu era
menino) tentara me ensinar, e que Mestre Palaemon ainda tentava me
transmitir, eu aceitava apenas um: lealdade à guilda. Nisso eu estava
bastante correto — era, para mim, como eu sentia, perfeitamente viável
servir Vodalus e permanecer sendo torturador. Foi assim, com esse
pensamento, que dei início à longa jornada pela qual acabei chegando ao
trono.
Severian
A memória me oprime. Tendo sido criado entre os torturadores, nunca
conheci meu pai ou minha mãe. Tampouco meus irmãos aprendizes
conheceram os seus. De tempos em tempos, particularmente quando o
inverno se aproxima, os pobres miseráveis vêm clamando à Porta do
Cadáver, na esperança de serem admitidos em nossa guilda ancestral. Com
frequência, regalam o Irmão Porteiro com relatos dos tormentos que
infligirão voluntariamente, em troca de calor e comida; ocasionalmente,
trazem animais como amostras de seu trabalho.
Todos são rejeitados. Tradições dos nossos dias de glória, anteriores à
presente era degenerada, e a que veio antes dela, e a que veio antes ainda,
uma era cujo nome os estudiosos de hoje mal conseguem lembrar, proíbem
o recrutamento de pessoas como eles. Mesmo na época sobre a qual
escrevo, quando a guilda havia encolhido para dois mestres e menos de
vinte oficiais, essas tradições eram honradas.
Desde a minha memória mais antiga, lembro-me de tudo. Essa primeira
lembrança é a de empilhar seixos no Pátio Velho, que fica a sudoeste do
Fortim das Bruxas e separado da Grande Quadra. Mesmo naquela época, a
muralha-cortina que nossa guilda deveria ajudar a defender já estava em
ruínas, com uma grande lacuna entre a Torre Vermelha e a do Urso, onde eu
costumava escalar as lajes caídas de metal cinza indestrutível para olhar a
necrópole que desce por aquele lado da Colina da Cidadela.
Quando fiquei mais velho, aquele lugar se tornou meu território de
brincar. Os caminhos sinuosos eram patrulhados durante o dia, mas as
sentinelas estavam muito preocupadas com os túmulos mais recentes no
terreno mais baixo, e sabendo que pertencíamos aos torturadores, raramente
tinham estômago para nos expulsar de nossos esconderijos nos bosques de
ciprestes.
Dizem que nossa necrópole é a mais antiga de Nessus. Isso certamente é
falso, mas a própria existência do erro atesta uma antiguidade legítima,
embora os autarcas não fossem enterrados ali, nem mesmo quando a
Cidadela era o reduto deles, e as grandes famílias — naquela época, como
agora — preferissem enterrar seus mortos esticados em criptas em suas
próprias propriedades. Os armígeros e optimates da cidade, no entanto,
favoreciam as encostas mais altas, perto da muralha da Cidadela; e o povo,
os mais pobres, ficavam abaixo delas até os confins das terras baixas,
fazendo pressão contra os cortiços que se alinhavam ao longo do Gyoll,
abrigando campos de oleiros. Quando menino, eu raramente ia sozinho
assim tão longe, não percorria sequer metade do caminho.
Éramos sempre nós três: Drotte, Roche e eu. E mais tarde Eata, o segundo
mais velho entre os aprendizes. Nenhum de nós nasceu entre os
torturadores, pois ninguém nasce assim. Diz-se que nos tempos de outrora
havia tanto mulheres quanto homens na guilda, e que filhos e filhas nasciam
deles e eram criados nos mistérios, como acontece hoje entre os fabricantes
de lampiões, os ourives e muitas outras guildas. Mas Ymar, o Quase Justo,
observando quão cruéis eram as mulheres e com que frequência excediam
as punições que ele havia decretado, ordenou que não deveria mais haver
mulheres entre os torturadores.
Desde aquela época, nossos números têm sido restaurados apenas pelos
filhos daqueles que caem em nossas mãos. Na nossa Torre Matachin, uma
espécie de barra de ferro se projeta de um anteparo na altura da virilha de
um homem. Crianças do sexo masculino, pequenas o suficiente para ficar
de pé embaixo dela, são criadas como se fossem nossas; e quando nos é
enviada uma mulher com criança no bucho, nós a abrimos e, se o bebê
respirar e for um menino, mandamos trazer uma ama de leite. Se o sexo for
feminino, são entregues às bruxas. Assim tem sido desde os dias de Ymar, e
esses dias estão agora há muitos séculos esquecidos.
Portanto, nenhum de nós conhece sua descendência. Todos seríamos
exultantes, se pudéssemos, e é fato que muitas pessoas de alta linhagem nos
são entregues. Quando meninos, cada um de nós formou suas próprias
conjecturas, e cada qual tentou questionar os irmãos mais velhos entre os
oficiais, embora estes, trancafiados em sua amargura, pouco nos contassem.
No ano de que falo, Eata, acreditando ser descendente de tal família,
desenhou as armas de um dos grandes clãs do norte no teto acima de seu
catre.
De minha parte, eu já havia adotado os desenhos gravados em bronze
acima da porta de um certo mausoléu. Neles via-se uma fonte se elevando
acima das águas, um navio volant, e abaixo destes, uma rosa. A porta em si
havia sido arrombada muito tempo antes; dois caixões vazios jaziam no
chão. Mais três, pesados demais para que eu pudesse mover, ainda intactos,
aguardavam nas prateleiras ao longo de uma das paredes. Nem os caixões
fechados, nem os abertos, constituíam a atração do lugar, embora eu, às
vezes, repousasse sobre o que restava do estofamento macio e desbotado
destes últimos. Em vez deles, era a pequenez da sala, as grossas paredes de
alvenaria e a janela estreita com sua única tranca, junto com a porta infiel
(tão maciçamente pesada), eternamente entreaberta, que fascinavam.
Através da janela e da porta, eu podia ver, sem ser visto, toda a vida
esfuziante das árvores, arbustos e grama lá fora. Ali, os pintarroxos e
coelhos que fugiram quando me aproximei, não podiam me ouvir,
tampouco sentir meu cheiro. Eu assisti à papa-lagarta-de-asa-vermelha
construir seu ninho e criar seus filhotes a dois côvados de minha face. Vi a
raposa trotar com a cauda de pincel levantada; e um dia essa raposa gigante,
mais alta que todos, exceto os mais altos cães de caça, que os homens
chamam de lobos-guarás, veio galopando ao entardecer em alguma missão
inimaginável dos bairros em ruínas do sul. O carcará perseguiu víboras para
mim, e o falcão ergueu as asas ao vento no topo de um pinheiro.
Um momento é o que basta para descrever essas coisas, às quais dediquei
tanto tempo observando. As décadas de um saros não seriam longas o
suficiente para que eu pudesse escrever tudo o que elas significavam para o
menino aprendiz esfarrapado que eu era. Dois pensamentos (que eram
quase sonhos) me deixavam obcecado e as tornavam infinitamente
preciosas. O primeiro era que, em algum tempo não distante, o próprio
tempo pararia… os dias coloridos que tanto duraram, estendidos
infinitamente como uma fileira de lenços de mágico, chegariam ao fim, o
sol taciturno finalmente se apagaria. O segundo era que existia, em algum
lugar, uma luz miraculosa — que às vezes eu concebia como uma vela,
outras como um flambeau — que engendrava vida em quaisquer objetos
sobre os quais recaísse, de modo que, em uma folha arrancada de um
arbusto cresceriam pernas delgadas e antenas ondulantes, e um arbusto
áspero e marrom abriria os olhos pretos para subir correndo em uma árvore.
E, no entanto, algumas vezes, especialmente nas horas de sonolência por
volta do meio-dia, havia pouca coisa a que assistir. Então, eu me voltava
novamente para o brasão acima da porta e me perguntava o que um navio,
uma rosa e uma fonte tinham a ver comigo, e fiquei olhando para o bronze
funerário que eu havia encontrado, limpado e colocado em um canto. O
morto jazia inteiramente estendido, seus olhos de pálpebras pesadas
fechados. Na luz que atravessava a janelinha, examinei seu rosto e meditei
sozinho enquanto o via refletido no metal polido. Meu nariz reto, olhos
profundos e bochechas encovadas eram muito parecidos com os dele, e
ansiei por saber se ele também tinha cabelos escuros.
No inverno, eu raramente ia à necrópole, mas, no verão, aquele mausoléu
violado e outros similares me proporcionavam locais de observação,
repouso e frescor. Drotte, Roche e Eata também vinham, embora eu nunca
os tivesse guiado até meu refúgio favorito, e eles, eu sabia, também
tivessem seus próprios lugares secretos. Quando estávamos juntos,
raramente entrávamos em tumbas. Em vez disso, forjávamos espadas com
pedaços de pau e travávamos batalhas, ou jogávamos pinhas nos soldados,
ou arranhávamos tábuas no solo de novas sepulturas e jogávamos damas
com pedras, cordas e caracóis e jogo dos bugalhos.
Nós também nos divertíamos no labirinto que era a Cidadela e nadávamos
na grande cisterna sob a Torre do Sino. Lá era frio e úmido mesmo no
verão, sob seu teto abobadado ao lado da piscina circular de águas
infinitamente profundas e escuras. Mas não era muito pior no inverno, e
ainda tinha a vantagem incontestável de ser proibida, de modo que
podíamos mergulhar nela com deliciosa discrição quando se supunha que
estivéssemos em outra parte, e não acendíamos nossas tochas até depois de
fechar a escotilha gradeada atrás de nós. E então, quando as chamas subiam
do piche incendiado, era incrível como nossas sombras dançavam naquelas
paredes pegajosas!
Como já mencionei, nosso outro local de nadar era o Gyoll, que
serpenteia por Nessus como uma enorme cobra cansada. Quando chegava o
tempo quente, nós marchávamos pela necrópole a caminho de lá —
primeiro passando pelos velhos sepulcros exaltados mais próximos da
muralha da Cidadela, depois por entre as vangloriosas casas da morte dos
optimates, depois pela floresta pedregosa dos monumentos dos comuns
(tentávamos parecer altamente respeitáveis quando tínhamos que passar
pelos guardas corpulentos apoiados nas hastes de suas armas). E finalmente,
através da planície, montes nus que marcavam os enterros dos pobres,
montes que afundavam em poças depois da primeira chuva.
Na margem mais baixa da necrópole ficava o portão de ferro que já
descrevi. Por ele eram transportados os corpos destinados ao campo do
oleiro. Quando passávamos por aqueles portais enferrujados, sentíamos que
estávamos pela primeira vez verdadeiramente fora da Cidadela e, portanto,
em inegável desobediência às regras que deveriam governar nossas idas e
vindas. Acreditávamos (ou fingíamos acreditar) que seríamos torturados se
nossos irmãos mais velhos descobrissem a violação; na verdade, não
teríamos sofrido nada pior que uma surra: tal era a bondade dos
torturadores, os quais eu posteriormente trairia.
Quem nos oferecia maior perigo eram os habitantes dos cortiços de
muitos andares que margeavam a rua imunda por onde caminhávamos. Às
vezes, penso que a razão pela qual a guilda durou tanto tempo é que ela
serve como foco para o ódio do povo, deslocando-o do Autarca, dos
exultantes e do exército, e, até mesmo, em certa medida, dos pálidos
cacogênios que, às vezes, visitam Urth vindos das estrelas mais distantes.
O mesmo pressentimento que revelou aos guardas a nossa identidade,
muitas vezes parecia também informar os moradores dos cortiços; de
tempos em tempos, resíduos eram jogados em nós das janelas de cima, e um
murmúrio furioso nos acompanhava. Mas o medo que gerava esse ódio
também nos protegia. Nenhuma violência real era cometida contra nós, e
uma ou duas vezes, quando souberam que algum tirânico vildgraf ou
burguês venal havia sido entregue à mercê da guilda, recebemos aos gritos
sugestões de como deveríamos tratá-los — a maioria delas obscenas e
muitas, impossíveis.
Centenas de anos antes, o local onde nadávamos, o Gyoll, havia perdido
suas margens naturais. Ali, o que restava era uma extensão de nenúfares
azuis com duas correntes de largura, cercada por paredes de pedra. Degraus
destinados ao desembarque de barcos desciam até o rio em vários pontos;
em um dia quente, cada lance seria controlado por uma gangue de dez ou
quinze jovens baderneiros. Nós quatro não tínhamos forças para afastar
esses grupos, mas eles não podiam nos negar a admissão (ou, pelo menos,
não o fariam), embora qualquer um deles a quem decidíssemos nos juntar
nos ameaçasse à medida que nos aproximávamos, e nos provocasse quando
estávamos entre seus pares. Logo, porém, todos acabavam se dispersando,
nos deixando com a posse exclusiva até o próximo dia de natação.
Optei por descrever tudo isso agora porque, depois do dia em que salvei
Vodalus, nunca mais voltei lá. Drotte e Roche acreditavam que era porque
eu tinha medo de ficarmos trancados do lado de fora. Eata adivinhou, eu
acho: antes de chegarem perto demais de se tornar homens, meninos muitas
vezes têm alcançam uma revelação quase feminina. Foi por causa dos
nenúfares.
A mim, a necrópole nunca me pareceu uma cidade de morte; sei que suas
rosas roxas (que outras pessoas acham tão horríveis) abrigam centenas de
pequenos animais e pássaros. As execuções que vi serem realizadas, e que
eu mesmo realizei, muitas vezes não passam de um comércio, uma
carnificina de seres humanos que são, em sua maior parte, menos inocentes
e menos valiosos que gado. Quando penso na minha própria morte, ou na
morte de alguém que foi gentil comigo, ou mesmo na morte do sol, a
imagem que me vem à mente é a do nenúfar, com suas folhas claras e
brilhosas e sua flor azul-celeste. Sob flores e folhas se encontram raízes
pretas, finas e fortes como cabelo, descendo até as águas escuras.
Quando jovens, não nos importávamos nenhum pouco com essas plantas.
Nadávamos com estrépito e flutuávamos entre elas, as empurrávamos de
lado e as ignorávamos. O perfume delas anulava, até certo ponto, o mau
cheiro da água. No dia em que eu salvaria Vodalus, mergulhei sob suas
almofadas lotadas, como já havia feito mil vezes.
Não voltei à superfície. De alguma forma, havia entrado numa região
onde as raízes pareciam bem mais espessas do que as que eu já havia
encontrado antes. Cem redes, de uma só vez, me capturaram. Meus olhos
estavam abertos, mas eu não conseguia ver nada — apenas a teia negra das
raízes. Nadei e pude sentir que, embora meus braços e pernas se movessem
entre seus milhões de finos tentáculos, meu corpo não acompanhava. Eu as
agarrei aos punhados e as despedacei, mas mesmo depois de tê-las
destruído, eu continuava imobilizado. Meus pulmões pareciam subir pela
minha garganta para me sufocar, como se fossem irromper e explodir na
água. A vontade de respirar, de sugar o fluido escuro e frio ao meu redor,
era esmagadora.
Eu não sabia mais em que direção estava a superfície e havia perdido a
consciência da água enquanto água. A força abandonou meus membros. Eu
não tinha mais medo, embora soubesse que estava morrendo, ou, talvez, até
já estivesse morto. Escutava um zumbido alto e muito desagradável em
meus ouvidos, e comecei a ter visões.
Mestre Malrubius, falecido vários anos antes, nos acordava tamborilando
no anteparo com uma colher: era esse o barulho metálico que eu tinha
ouvido. Eu estava deitado na minha cama, incapaz de me levantar, embora
Drotte, Roche e os meninos mais novos estivessem todos de pé, bocejando
e procurando suas roupas. O manto do Mestre Malrubius estava jogado para
trás; eu podia ver a pele solta de seu peito e barriga, onde músculo e
gordura tinham sido destruídos pelo tempo. Havia um triângulo de pelo ali,
cinza como mofo. Tentei chamá-lo para dizer que eu estava acordado, mas
não conseguia emitir nenhum som. Ele começou a andar ao longo do
anteparo, ainda batendo nele com sua colher. Depois do que pareceu um
tempo muito longo, ele chegou ao porto, parou e se inclinou para fora. Eu
sabia que ele estava lá embaixo, me procurando no Pátio Velho.
No entanto, ele não conseguia ver longe o suficiente. Eu estava em uma
das celas abaixo da sala de exame. Fiquei ali, deitado de costas, olhando
para o teto cinza. Uma mulher chorava, mas eu não conseguia vê-la e estava
menos consciente de seus soluços que do timtim-timtim-timtim da colher. A
escuridão se fechou sobre mim, mas da escuridão surgiu o rosto de uma
mulher, imenso como a face verde da lua. Não era ela quem chorava — eu
ainda conseguia ouvir os soluços, e esse rosto permanecia imperturbável e,
na verdade, repleto daquele tipo de beleza que dificilmente admite
expressão. Suas mãos se estenderam em minha direção e me tornei,
imediatamente, o filhote de pássaro que eu havia tirado do ninho no ano
anterior, na esperança de domesticá-lo para pousar em meu dedo, isso
porque as mãos da mulher eram tão compridas quanto os caixões nos quais,
às vezes, eu repousava em meu mausoléu secreto. Elas me agarraram, me
puxaram e me jogaram para baixo, para longe de seu rosto e do som de
soluços, para dentro da escuridão, até que finalmente atingi o que considerei
ser a lama do fundo e explodi através dela para um mundo de luz cercado
de preto.
Ainda assim, eu não conseguia respirar. Já nem desejava mais isso; meu
peito já não se movia por conta própria. Eu estava deslizando pela água,
embora não soubesse como (mais tarde soube que Drotte tinha me agarrado
pelos cabelos). Na mesma hora, deitei-me nas pedras frias e viscosas do
chão com Roche, depois Drotte, depois Roche novamente, respirando em
minha boca. Eu estava envolvido em olhos como alguém se envolve em
padrões repetitivos de um caleidoscópio, e pensei que algum defeito em
minha própria visão multiplicava os olhos de Eata.
Então, por fim, me afastei de Roche e vomitei grandes quantidades de
água preta. Depois disso, melhorei. Consegui me sentar e respirar
novamente de um jeito entrecortado, e embora eu não tivesse forças e
minhas mãos tremessem, conseguia mover os braços. Os olhos ao meu
redor pertenciam a pessoas reais, os habitantes dos cortiços às margens do
rio. Uma mulher trouxe uma tigela com alguma bebida quente — eu não
tinha certeza se era sopa ou chá, só sabia que estava escaldante e um tanto
salgado, e tinha cheiro de fumaça. Fingi beber e depois descobri que tinha
leves queimaduras nos lábios e na língua.
— Você estava tentando fazer aquilo? — Drotte perguntou. — Como você
subiu?
Eu balancei a cabeça.
Alguém na multidão disse:
— Ele saiu disparado para fora da água!
Roche me ajudou a firmar a mão.
— Achamos que você iria aparecer em outro lugar. Que estava pregando
uma peça na gente.
Eu disse:
— Eu vi Malrubius.
Um velho, provavelmente um barqueiro, a julgar pelas roupas manchadas
de alcatrão, agarrou Roche pelo ombro.
— Quem é esse?
— Costumava ser Mestre de Aprendizes. Morreu.
— Não é uma mulher? — O velho agarrava Roche, mas olhava para mim.
— Não, não — Roche disse a ele. — Não existem mulheres em nossa
guilda.
Apesar da bebida quente e do calor do dia, eu estava com frio. Um dos
jovens com quem às vezes brigávamos trouxe um cobertor empoeirado e eu
me enrolei nele; mas demorou tanto até eu me sentir forte o bastante para
andar novamente que, quando chegamos ao portão da necrópole, a estátua
da Noite no topo do khan, na margem oposta, era um minúsculo arranhão
preto contra o campo de chamas do sol, e o próprio portão estava fechado e
trancado.
A face do Autarca
A manhã do dia seguinte já ia pela metade quando pensei em olhar a
moeda que Vodalus havia me dado. Depois de servir os oficiais no
refeitório, fizemos o nosso desjejum como de costume, encontramos Mestre
Palaemon na sala de aula, e depois de uma breve palestra preparatória, o
seguimos até os níveis inferiores, para ver o trabalho da noite anterior.
Mas, talvez, antes de continuar escrevendo, eu deva explicar algumas
outras coisas sobre a natureza da nossa Torre Matachin. Ela está situada na
parte dos fundos da Cidadela, no lado ocidental. No térreo ficam os estúdios
dos nossos mestres, onde consultas com os oficiais de justiça e os chefes de
outras guildas são realizadas. Nossa sala comum fica acima deles, de costas
para a cozinha. Acima dela fica o refeitório, que nos serve de salão de
reuniões, bem como de lugar para nos alimentarmos. No andar superior
ficam as cabines privadas dos mestres, que, em dias melhores, já foram
muito mais numerosas. Acima destas se encontram as cabines dos oficiais, e
logo acima delas o dormitório e a sala de aula dos aprendizes, e uma série
de sótãos e cubículos abandonados. Perto do topo fica a sala de armas, cujas
peças remanescentes nós, da guilda, somos encarregados de disponibilizar
caso a Cidadela sofra um ataque.
O verdadeiro trabalho da nossa guilda é executado abaixo de tudo isso.
Logo no subsolo fica a sala de exames; abaixo dela e, portanto, fora da torre
propriamente dita (pois a sala de exame era a câmara de propulsão da
estrutura original), se estende o labirinto do ergástulo. Existem três níveis
utilizáveis, alcançados por uma escadaria central. As celas são simples,
secas e limpas, equipadas com mesinha, cadeira e cama estreita fixadas no
centro do piso.
As luzes do ergástulo são daquele tipo antigo que dizem queimar para
sempre, embora algumas já tenham se apagado. Na sombra desses
corredores, naquela manhã, meus sentimentos não eram sombrios, mas
alegres — era ali que eu iria trabalhar quando me tornasse um oficial, era
ali que eu praticaria a arte antiga e me elevaria ao posto de mestre, era ali
que eu estabeleceria as bases para a restauração de nossa guilda à sua antiga
glória. O próprio ar do lugar parecia me envolver como um cobertor que
havia sido aquecido próximo a algum fogo de cheiro agradável.
Paramos diante da porta de uma cela e, com um chacoalhar, o oficial de
plantão meteu a chave na fechadura. Lá dentro, a cliente ergueu a cabeça,
arregalando bastante os olhos escuros. Mestre Palaemon usava o manto
debruado em zibelina e a máscara de veludo de sua posição; suponho que
esses trajes, ou o dispositivo ótico saliente que lhe permitia enxergar, devam
tê-la assustado. A mulher não falou nada e, claro, nenhum de nós falou com
ela.
— Aqui — Mestre Palaemon começou a dizer em seu tom mais seco —
temos algo fora da rotina da punição judicial e bem ilustrativo da técnica
moderna. A cliente foi interrogada ontem à noite; talvez alguns de vocês a
tenham ouvido. Vinte minims de tintura foram dados antes da excruciação,
e dez depois. A dose foi apenas parcialmente eficaz na prevenção do
choque e da perda de consciência, então o processo foi encerrado após o
esfolamento da perna direita, como vocês verão. — Ele gesticulou para
Drotte, que começou a desembrulhar as bandagens.
— Meia bota? — Roche perguntou.
— Não, bota inteira. Ela era uma criada, e Mestre Gurloes diz ter
percebido que a pele deles é dura. Neste caso, ele provou estar correto. Uma
simples incisão circular foi feita abaixo do joelho, e sua borda afastada com
oito pinças. O trabalho cuidadoso de Mestre Gurloes, Odo, Mennas e Eigil
permitiu a remoção de tudo entre o joelho e os dedos dos pés, sem que a
faca fosse mais necessária.
Nós nos agrupamos em torno de Drotte, os garotos mais novos avançando
aos empurrões enquanto fingiam saber quais pontos procurar. As artérias e
veias principais estavam todas intactas, mas havia um afloramento lento e
generalizado de sangue. Ajudei Drotte a aplicar bandagens novas.
Justo quando estávamos prestes a sair, a mulher disse:
— Não sei. Só que, ah, vocês não conseguem acreditar que eu não
contaria se soubesse? Ela fugiu com Vodalus do Bosque, não sei para onde.
— Lá fora, fingindo ignorância, perguntei ao Mestre Palaemon quem era
Vodalus do Bosque.
— Quantas vezes já expliquei que nada do que é dito por um cliente sob
interrogatório é ouvido por vocês?
— Muitas vezes, Mestre.
— Mas sem nenhum efeito. Em breve, será o dia do mascaramento, e
Drotte e Roche serão oficiais, e você, capitão dos aprendizes. É este o
exemplo que dará aos meninos?
— Não, Mestre.
Pelas costas do velho, Drotte me lançou um olhar que significava que ele
sabia muito a respeito de Vodalus e me contaria em um momento
conveniente.
— Antigamente, retirávamos a audição dos oficiais de nossa guilda. Você
gostaria que esses tempos voltassem? Tire as mãos dos bolsos quando eu
estiver falando com você, Severian.
Eu as havia enfiado lá porque sabia que isso distrairia sua raiva, mas, ao
retirá-las, percebi que brincava com a moeda que Vodalus havia me dado na
noite anterior. No terror relembrado da luta, tinha me esquecido de sua
existência; agora fiquei em agonia para contemplá-la — mas não podia,
com as lentes brilhantes do Mestre Palaemon fixadas em mim.
— Quando um cliente fala, Severian, você não ouve nada. Absolutamente
nada. Pense nos ratos, cujos guinchos não transmitem nenhum significado
aos homens.
Apertei bem os olhos para indicar que estava pensando em ratos.
Durante todo o longo e cansado caminho, escadaria acima, até a nossa
sala de aula, eu ansiava por olhar para o fino disco de metal que agarrava;
mas sabia que, se fizesse isso, o garoto atrás de mim (por acaso, um dos
aprendizes mais jovens, Eusignius) veria. Na sala de aula, onde Mestre
Palaemon murmurava sem parar sobre um cadáver de dez dias, a moeda era
como um carvão em brasa, e, ainda assim, não ousei olhar.
Já corria a tarde quando encontrei privacidade, escondendo-me nas ruínas
da muralha-cortina entre os musgos brilhantes. Depois, com o punho
fechado posicionado em um raio de sol, hesitei, porque tive medo de que,
quando finalmente a visse, a decepção fosse maior do que poderia suportar.
Não porque eu me importasse com seu valor. Mesmo que já fosse um
homem, tinha tão pouco dinheiro que qualquer moeda me teria parecido
uma fortuna. Pelo contrário: a moeda (tão misteriosa naquele momento,
mas que, provavelmente, não continuaria assim) era meu único elo com a
noite anterior, minha única conexão com Vodalus e a bela mulher
encapuzada, e com o homem corpulento que me bateu com sua pá, meu
único saque da luta na sepultura aberta. Minha vida na guilda era a única
que eu conhecia, e parecia tão sem graça quanto minha camisa esfarrapada
em comparação com o brilho súbito da lâmina da espada do exultante, e o
som do tiro ecoando entre as pedras. Tudo isso poderia ter desaparecido
quando abrisse a palma da minha mão.
No fim das contas, olhei, depois de já ter sorvido até a borra daquele
pavor agradável. A moeda era um criso dourado, e fechei a mão mais uma
vez, por medo de tê-la apenas confundido com um oricalco de latão, e
esperei até encontrar coragem novamente.
Era a primeira vez que eu tocava numa peça de ouro. Já tinha visto
oricalcos aos montes e até possuía alguns. Asimis de prata, havia
vislumbrado uma ou duas vezes. Mas crisos conhecia apenas da mesma
maneira vaga que sabia da existência de um mundo fora da nossa cidade de
Nessus, e de outros continentes além do nosso, estivessem eles a norte, a
leste ou a oeste.
Aquele ali tinha o que, a princípio, pensei ser um rosto de mulher: uma
mulher coroada, nem jovem, nem velha, mas calada e perfeita no metal
citrino. Por fim, virei meu tesouro e aí, de fato, foi que prendi a respiração;
carimbado no verso, estava o mesmo navio voador que eu tinha visto no
brasão acima da porta do meu mausoléu secreto. Isso parecia além de
qualquer explicação: tanto que, naquele momento, nem me dei ao trabalho
de especular a respeito, tão certo estava de que qualquer especulação seria
infrutífera. Em vez disso, enfiei a moeda de volta no bolso e fui, numa
espécie de transe, me juntar aos meus colegas aprendizes.
Carregar a moeda comigo estava fora de questão. Assim que tive
oportunidade de fazê-lo, esgueirei-me sozinho necrópole adentro e procurei
meu mausoléu. O tempo havia mudado naquele dia — abri caminho por
entre arbustos encharcados e marchei pesadamente pela grama comprida e
envelhecida que havia começado a se achatar por conta do inverno. Quando
cheguei ao meu refúgio, ele não era mais a caverna fresca e convidativa do
verão, mas uma armadilha gelada onde senti a proximidade de inimigos
vagos demais para serem nomeados, oponentes de Vodalus que, àquela
altura, certamente sabiam que eu era seu apoiador juramentado; assim que
eu entrasse, eles avançariam e empurrariam a porta preta em suas
dobradiças recentemente lubrificadas para fechá-la. Eu sabia que isso era
um absurdo, claro. No entanto, também sabia que existia verdade naquilo,
que o que eu sentia era apenas uma questão de tempo para acontecer. Em
poucos meses ou alguns anos, eu poderia chegar ao ponto em que esses
inimigos esperariam por mim; quando tivesse brandido o machado que
escolhera para lutar, coisa que um torturador normalmente não faz.
Havia uma pedra solta no chão, quase ao pé do meu bronze fúnebre. Eu a
levantei e coloquei o criso embaixo dela, depois murmurei um
encantamento que tinha aprendido anos antes com Roche, alguns versos
para proteger objetos escondidos:
“Onde eu te pus, permaneça,
Que um estranho nunca veja,
E que seu olho não cresça,
Que assim seja.
Aqui fique seguro, nunca saia,
Se uma mão vier, se proteja,
A um olho estranho não caia,
Até que eu veja.”
Para que o encantamento fosse realmente eficaz, era preciso dar a volta no
local à meia-noite carregando uma vela de cadáver, mas me peguei rindo ao
pensar nisso — o que me fez lembrar aquela encenação de Drotte sobre
ervas medicinais que cresciam de seus túmulos à meia-noite — e decidi
confiar apenas nos versos, embora tenha ficado um pouco surpreso ao
descobrir que já tinha idade suficiente para não me envergonhar disso.
Dias se passaram, e a lembrança da minha visita ao mausoléu permaneceu
vívida o suficiente para me dissuadir de voltar lá, por mais que, às vezes, eu
desejasse repeti-la para verificar se meu tesouro estava realmente seguro.
Então, veio a primeira neve, transformando as ruínas da muralha-cortina em
uma barreira escorregadia quase intransponível, e a necrópole familiar em
uma estranha selva de montículos enganosos, na qual os monumentos
subitamente ficavam grandes demais sob seus mantos de neve recente e as
árvores e os arbustos eram esmagados até ficarem na metade de seu
tamanho original.
É da natureza do aprendizado de nossa guilda que os fardos fiquem cada
vez maiores à medida que os aprendizes cheguem à idade adulta, apesar de,
no início, tudo ser mais fácil. Os meninos menores não trabalham. Aos seis
anos, quando o trabalho começa, ele nada mais é do que subir e descer as
escadas da Torre Matachin com mensagens, e o pequeno aprendiz,
orgulhoso de ter sido encarregado delas, quase não sente o esforço. Com o
passar do tempo, porém, sua tarefa se torna cada vez mais onerosa. Seus
deveres o levam a outras partes da Cidadela — aos soldados na barbacã,
onde ele descobre que os aprendizes militares têm tambores, trompetes,
oficleides e botas e, às vezes, couraças douradas; à Torre do Urso, local em
que vê garotos da mesma faixa de idade aprendendo a lidar com
maravilhosos animais de combate de todos os tipos, cães mastins com
cabeças grandes como as de leões, diatrymas mais altas que um homem,
com bicos revestidos de aço; e a uma centena de outros lugares semelhantes
nos quais ele descobre, pela primeira vez, que sua guilda é odiada e
desprezada até por aqueles (na verdade, sobretudo por aqueles) que utilizam
seus serviços. Pouco tempo depois, começam os trabalhos de limpeza e
cozinha. O Irmão Cozinheiro cozinha coisas que podem ser muito
interessantes ou prazerosas, e ao aprendiz cabe descascar legumes, servir os
oficiais e descer as escadarias até o ergástulo carregando uma sucessão
interminável de pilhas de bandejas.
Na época, eu ainda não sabia, mas em breve essa minha vida de aprendiz,
que ficava cada vez mais dura desde que eu me entendia por gente,
reverteria seu curso e se tornaria menos penosa e mais agradável. Um ano
antes de se tornar um oficial, um aprendiz sênior faz pouco além de
supervisionar o trabalho de seus juniores. Sua comida e até mesmo suas
roupas melhoram de qualidade. Os oficiais mais jovens começam a tratá-lo
quase como um igual, e ele tem, acima de tudo, o peso da responsabilidade
pela elevação, e o prazer de emitir e fazer cumprir ordens.
Quando chega o momento de sua elevação, ele já é um adulto. Não faz
nenhum trabalho a não ser aquele para o qual foi treinado; e é livre para
deixar a Cidadela quando suas obrigações terminam, recebendo, ainda,
fundos generosos para tal recreação. Se acabar por ascender à maestria
(uma honra que requer os votos afirmativos de todos os mestres vivos), ele
será capaz de escolher as tarefas que bem lhe interessarem ou divertirem, e
dirigir os assuntos da própria guilda.
Mas você deve entender que, no ano sobre o qual estou escrevendo, o ano
em que salvei a vida de Vodalus, eu não tinha consciência de tudo isso. O
inverno (assim me disseram) havia encerrado a temporada de campanhas no
norte, levando, em consequência, o Autarca e seus oficiais-chefes e
conselheiros de volta às sedes da justiça.
— E por isso — explicou Roche — temos todos esses novos clientes. E
ainda virão mais… dezenas, talvez centenas. Talvez tenhamos que reabrir o
quarto nível. — Acenou com uma mão sardenta para mostrar que, pelo
menos ele, sentia-se pronto para fazer o que fosse necessário.
— Ele está aqui? — perguntei. — O Autarca? Aqui na Cidadela? No
Grande Fortim?
— Claro que não. Se ele viesse, você saberia, não saberia? Haveria
desfiles, inspeções e toda sorte de acontecimentos. Há uma suíte para ele lá,
mas a porta não é aberta há cem anos. Ele vai ficar no palácio oculto, a
Casa Absoluta, em algum lugar ao norte da cidade.
— Você não sabe onde?
Roche ficou na defensiva.
— Não se pode dizer onde ela fica porque não há nada lá a não ser a
própria Casa Absoluta. Ela fica onde fica. Ao norte, na outra margem.
— Além da Muralha?
Ele sorriu com a minha ignorância.
— Muito além dela. Semanas, se você fosse a pé. Naturalmente, o
Autarca poderia chegar aqui de voador num instante, se quisesse. É ali, na
Torre da Bandeira, que o voador pousaria.
Mas nossos novos clientes não chegavam em voadores. Os menos
importantes chegavam em pelotões de dez a vinte homens e mulheres,
acorrentados um atrás do outro pelo pescoço. Eram guardados por dimarchi,
soldados cruéis em armaduras que pareciam ter sido feitas para uso, tendo
sido, de fato, usadas. Cada cliente carregava um cilindro de cobre
supostamente contendo seus documentos e, portanto, seu destino. Todos
haviam rompido os selos e lido aqueles documentos, é claro; e alguns os
destruíram ou os trocaram pelos de outros. Aqueles que chegavam sem os
papéis ficariam retidos até que alguma notícia adicional sobre sua
disposição fosse recebida — provavelmente pelo resto de suas vidas.
Aqueles que trocaram documentos com outra pessoa trocaram destinos; eles
seriam mantidos ou libertos, torturados ou executados em lugar de outrem.
Os mais importantes chegavam em carruagens blindadas. As laterais de
aço e as janelas gradeadas desses veículos não eram tanto para impedir a
fuga, mas sim para impedir o resgate, e assim que a primeira delas chegou
trovejando pelo lado leste da Torre das Bruxas e entrou no Pátio Velho, a
guilda inteira se encheu de rumores de ataques ousados contemplados, ou
tentados, por Vodalus. Pois todos os meus colegas aprendizes e a maioria
dos oficiais acreditavam que muitos desses clientes eram seus capangas,
confederados e aliados. Eu não os teria libertado por esse motivo — isso
teria trazido desgraça para a guilda, o que, apesar de todo o meu apego a ele
e seu movimento, não me sentia preparado para fazer, e, de qualquer modo,
teria sido impossível. Mas esperava fornecer os pequenos confortos que
estivessem em meu poder àqueles que considerava meus camaradas de
armas: comida extra roubada das bandejas de clientes menos merecedores e,
ocasionalmente, um pedaço de carne contrabandeado da cozinha.
Num dia tempestuoso, tive a oportunidade de saber quem eles eram. Eu
estava esfregando o chão do escritório do Mestre Gurloes quando ele foi
chamado para alguma tarefa, deixando sua mesa repleta de dossiês recém-
chegados. Assim que a porta bateu atrás dele, eu corri e consegui passar os
olhos rapidamente pela maioria deles antes de ouvir seus passos pesados na
escada novamente. Nem um — nem sequer um — dos prisioneiros cujos
documentos eu li era adepto de Vodalus. Havia comerciantes que tinham
tentado obter grandes lucros com os suprimentos necessários para o
exército, seguidores do acampamento que espionaram para os ascianos, e
uma pitada de criminosos civis sórdidos. Nada mais.
Quando levei meu balde para esvaziá-lo na pia de pedra do Pátio Velho, vi
uma das carruagens blindadas parada ali com sua parelha de crina longa
fumegando e batendo os cascos, e os guardas com seus capacetes forrados
de pele timidamente aceitando nossas taças fumegantes de vinho quente.
Captei o nome Vodalus no ar; mas, naquele momento, parecia que eu era o
único a tê-lo ouvido, e, de repente, senti como se Vodalus tivesse sido tão
somente um eidolon criado pela minha imaginação a partir da neblina, e
como se apenas o homem que eu havia matado com seu próprio machado
fosse real. Os dossiês que eu havia folheado um momento antes pareciam
soprados como folhas contra meu rosto.
Foi nesse instante de confusão que percebi, pela primeira vez, que estou,
em algum grau, louco. Pode-se argumentar que esse foi o momento mais
angustiante de minha vida. Menti muitas vezes para Mestre Gurloes e
Mestre Palaemon, para Mestre Malrubius enquanto ele ainda vivia, para
Drotte, porque ele era o capitão, para Roche, porque ele era mais velho e
mais forte que eu, e para Eata e os outros aprendizes menores, porque
esperava fazer com que me respeitassem. Agora, eu não podia mais ter
certeza de que minha própria mente não estava mentindo para mim; todas
as minhas falsidades me tomavam de assalto, e eu, que me lembrava de
tudo, não podia ter certeza de que essas lembranças fossem mais do que
meus próprios sonhos. Lembrei-me do rosto enluarado de Vodalus; mas era
o que eu havia desejado ver então. Lembrei-me de sua voz enquanto ele
falava comigo, mas era o que eu havia desejado ouvir, e a voz da mulher
também.
Numa noite gelada, voltei me esgueirando ao mausoléu e tirei o criso
novamente. O rosto desgastado, sereno e andrógino em seu anverso não era
o rosto de Vodalus.
Triskele
Eu estava enfiando um pedaço de madeira em um ralo congelado como
punição por alguma infração mesquinha e o encontrei onde os guardiões da
Torre do Urso jogam seu refugo, os corpos dos animais dilacerados mortos
nos treinos. Nossa guilda enterra seus próprios mortos ao lado da muralha e
os clientes nas partes mais baixas da necrópole, mas os guardiões da Torre
do Urso deixam os seus serem levados por outros. Entre aqueles mortos, ele
era o menor.
Há encontros que não mudam nada. Urth vira sua face envelhecida para o
sol e ele brilha sobre as neves dela; elas cintilam e coruscam até que cada
pontinha de gelo pendente nas laterais inchadas das torres se pareça com a
Garra do Conciliador, a mais preciosa das joias. Então todos, exceto os mais
sábios, acreditam que a neve deve derreter e dar lugar a um verão
prolongado além do verão.
Nada disso ocorre. O paraíso dura uma vigília ou duas, e depois sombras
azuis como leite aguado se alongam sobre a neve, que se move e dança sob
o impulso de um vento leste. A noite chega, e tudo fica do mesmo jeito que
estava antes.
Minha descoberta de Triskele aconteceu assim. Sentia que poderia, e
deveria, ter mudado tudo, mas o episódio durou apenas alguns meses, e
quando acabou, e ele partiu, foi só mais um inverno que havia passado.
Então, já era a hora da Festa da Sagrada Catarina de novo, e nada mudou.
Adoraria poder lhe contar o quão deplorável e o quão alegre ele parecia
quando o toquei.
Ele estava deitado de lado, coberto de sangue. Duro como alcatrão
naquele frio, e ainda vermelho vivo, porque o frio o havia preservado. Eu
coloquei a mão na cabeça dele — não sei por quê. Parecia tão morto quanto
os outros, até que abriu um olho e o revirou para mim, e nele havia uma
confiança de que o pior havia passado — eu cumpri minha parte, ele
parecia dizer, e suportei o fardo, e fiz tudo o que pude; agora é sua vez de
cumprir seu dever para comigo.
Se fosse verão, acho que o teria deixado morrer. Mas naquele momento,
já fazia um tempo desde a última vez que eu vira um animal vivo, não
avistara sequer um tilacodonte comedor de lixo. Acariciei-o novamente e
ele lambeu minha mão, e não consegui lhe dar as costas depois disso.
Eu o peguei (surpreso com o quão pesado era) e olhei em volta tentando
decidir o que fazer com ele. Eu sabia que ele seria descoberto em nosso
dormitório antes que a vela tivesse queimado a extensão de um dedo. A
Cidadela é imensa e imensamente complicada, com salas e passagens pouco
visitadas em suas torres, nos edifícios que foram erguidos entre as torres e
nas galerias embaixo deles. No entanto, eu não conseguia pensar em
nenhum lugar aonde pudesse chegar sem ter sido visto meia dúzia de vezes
no caminho, e, no fim das contas, acabei carregando o coitado do
brutamontes até os aposentos de nossa própria guilda.
Eu tinha então que o fazer passar pelo oficial que montava guarda à frente
da escada que leva aos andares das celas. Minha primeira ideia foi colocá-lo
na cesta que usamos para retirar a roupa de cama limpa dos clientes. Era dia
de lavanderia, e teria sido fácil fazer uma viagem a mais do que era
realmente necessário; a chance de que o guarda-oficial notasse algo errado
parecia remota, mas teria envolvido esperar mais de uma vigília para a
roupa lavada secar e arriscar as perguntas do irmão de plantão no terceiro
nível, que me veria descendo para o quarto nível deserto.
Em vez disso, coloquei o cachorro na sala de exames — ele estava fraco
demais para se mover — e me ofereci para ocupar o lugar do guarda no
topo da rampa. Ele ficou muito feliz em aproveitar a oportunidade para se
aliviar e entregou sua espada carnificial de lâmina larga (que eu, em teoria,
não deveria tocar) e seu manto fuligem (que eu era proibido de vestir,
embora já fosse mais alto que a maioria dos oficiais), de modo que, à
distância, pareceria não ter havido nenhuma substituição. Vesti o manto e,
assim que ele saiu, coloquei a espada em pé num canto e peguei meu
cachorro. Todos os mantos de nossa guilda são volumosos, e esse era ainda
mais do que a maioria, já que o irmão que substituí era bastante corpulento.
Além disso, a tonalidade fuligem, que é mais escura que o preto, apaga
admiravelmente todas as dobras, embolamentos e aglomerações no que diz
respeito aos olhos, deixando ver apenas um escuro inexpressivo. Com o
capuz levantado, devo ter parecido para os oficiais em suas mesas nos
níveis (se eles olhassem para a escadaria e me vissem) um irmão um pouco
mais corpulento que a maior parte daqueles que desciam aos níveis mais
baixos. Nem mesmo o homem de guarda no terceiro, onde os clientes que
haviam perdido toda a razão uivavam e sacudiam suas correntes, poderia ter
visto nada de incomum em outro oficial descendo para o quarto quando
havia rumores de que ele estava prestes a ser reformado — ou em um
aprendiz descendo às pressas logo após o oficial ter subido novamente: sem
dúvida ele havia esquecido alguma coisa ali e o aprendiz havia sido enviado
para buscar.
Não era um lugar impressionante. Cerca de metade das luzes antigas
ainda queimava, mas a lama se infiltrara pelos corredores até atingir a
espessura de uma mão. Uma mesa de serviço estava onde fora deixada,
talvez, duzentos anos antes; a madeira havia apodrecido e o móvel inteiro
caíra com um toque.
No entanto, ali a água nunca foi alta, e a outra extremidade do corredor
que eu havia escolhido estava livre até mesmo da lama. Coloquei meu
cachorro na cama de um cliente e o limpei o melhor que pude com as
esponjas que tinha trazido da sala de exames.
Sob a crosta de sangue, seu pelo era curto, duro e castanho-amarelado.
Sua cauda havia sido cortada tão curta que o que restou era mais largo que
longo. Suas orelhas haviam sido quase completamente cortadas, deixando
apenas pontos rígidos mais curtos que a primeira junta do meu polegar. Em
sua última luta, seu peitoral tinha sido aberto. Pude ver os músculos amplos
como sonolentas jiboias de um vermelho pálido. Sua pata dianteira direita
havia desaparecido — a metade superior foi esmagada até virar polpa.
Cortei-a fora após suturar seu peito da melhor maneira que pude, e ela
começou a sangrar novamente. Achei a artéria e a amarrei, depois dobrei a
pele por baixo (como Mestre Palaemon nos ensinara) para fazer um coto
bem-feito.
Triskele lambia minha mão de vez em quando enquanto eu trabalhava, e
no momento em que dei o último ponto, ele começou a lambê-lo
lentamente, como se fosse um urso e pudesse lamber até formar uma perna
nova. Suas mandíbulas eram tão grandes quanto as de um arctótero e seus
caninos eram compridos como meu dedo indicador, mas suas gengivas eram
brancas; agora, elas tinham tão pouca força quanto as mãos de um
esqueleto. Seus olhos eram amarelos e continham uma certa loucura
límpida.
Naquela noite, troquei de tarefas com o garoto que deveria levar as
refeições aos clientes. Sempre havia bandejas extras, porque alguns clientes
não comiam, e, por isso, levei duas para Triskele, imaginando se ele ainda
estaria vivo.
Estava. De algum modo, tinha saído da cama onde eu o colocara e
rastejado — não conseguia ficar de pé — até a beira da lama, onde um
pouco de água havia empoçado. Foi onde o encontrei. Eu tinha levado sopa,
pão escuro e dois jarros com água. Ele bebeu uma tigela de sopa, mas
quando tentei alimentá-lo com pão, descobri que ele não conseguia mastigar
o suficiente para engolir; mergulhei o pão na outra tigela de sopa para ele,
depois fui enchendo a tigela repetidas vezes com água até ambos os jarros
estarem vazios.
Quando me deitei no meu catre, quase no topo da nossa torre, achei que
conseguia ouvir sua respiração laboriosa. Várias vezes me sentei, apurando
o ouvido; a cada uma dessas vezes, o som desaparecia, apenas para retornar
quando eu me deitava novamente por um tempo. Talvez fossem apenas as
batidas do meu coração. Se eu o tivesse encontrado um ano, dois anos
antes, ele teria sido uma divindade para mim. Eu teria contado a Drotte e
aos outros, e ele teria sido uma divindade para todos nós. Agora eu o
conhecia como o pobre animal que era, e ainda assim não podia deixá-lo
morrer, porque teria sido um ato de quebra de fé com alguma coisa em mim
mesmo. Eu era um homem (se é que eu era realmente um homem) fazia
muito pouco tempo; não suportava pensar que havia me tornado um homem
tão diferente do menino que eu tinha sido. Conseguia me lembrar de cada
momento do meu passado, de cada pensamento e visão ordinários que me
atravessavam, de cada sonho. Como poderia destruir esse passado? Ergui
minhas mãos e tentei olhar para elas — eu sabia que as veias se destacavam
nas costas delas agora. É quando essas veias se destacam que a pessoa se
torna um homem.
Em um sonho, passei pelo quarto nível novamente e encontrei um grande
amigo lá, com mandíbulas pingando. Ele falou comigo.
Na manhã seguinte, servi novamente os clientes e roubei comida para levar
ao cachorro, embora torcesse para que ele estivesse morto. Não estava. Ele
ergueu o focinho e pareceu sorrir para mim com uma boca tão aberta que
parecia que sua cabeça poderia cair dividida em duas metades, mas não
tentou ficar de pé. Eu o alimentei e, quando estava prestes a sair, me
impressionei com a miséria de sua condição. Ele dependia de mim. De
mim! Ele tinha sido valorizado; os treinadores o haviam treinado como
corredores são treinados para uma corrida; ele havia caminhado orgulhoso,
seu peito enorme, tão largo quanto o de um homem, apoiado em duas
pernas grossas como pilares. Agora vivia como um fantasma. Seu próprio
nome havia sumido, lavado em seu próprio sangue.
Quando eu tinha tempo, visitava a Torre do Urso e fiz amizades, dentro do
possível, com os treinadores de feras de lá. Eles têm sua própria guilda e,
por mais que seja menor que a nossa, possui muitas tradições estranhas. Em
um grau que me surpreendeu, descobri que eram as mesmas tradições,
embora eu, claro, não tivesse penetrado em seus segredos arcanos. Na
elevação de seus mestres, o candidato fica sob uma proteção metálica
pisada por um touro sangrando; em algum momento da vida, cada irmão se
casa com uma leoa ou uma ursa, logo depois passa a rejeitar mulheres
humanas.
Tudo isso é apenas para dizer que, entre eles e os animais que levam para
os poços, existe um vínculo muito parecido com aquele que há entre nossos
clientes e nós mesmos. Hoje, já viajei para lugares muito mais distantes de
nossa torre, mas percebo, toda vez, que o padrão de nossa guilda é repetido
de modo irrefletido (como as repetições dos espelhos do Padre Inire, na
Casa Absoluta) nas sociedades de todos os ofícios, dessa forma, todos eles
acabam sendo torturadores, assim como nós. Sua presa está para o caçador,
como nossos clientes estão para nós; aqueles que compram, para o
comerciante; os inimigos da Comunidade, para o soldado; os governados,
para os governadores; os homens, para as mulheres. Todos amam aquilo
que destroem.
Uma semana depois de tê-lo carregado para baixo, encontrei apenas as
pegadas mancas de Triskele na lama. O cão havia ido embora, mas fui atrás
dele, certo de que um dos oficiais teria me dito se ele tivesse subido a
rampa. Dali a pouco, as pegadas levaram a uma porta estreita que se abria
para um emaranhado de corredores sem luz, cuja existência eu desconhecia
totalmente. No escuro, eu não poderia mais o rastrear, mas continuei mesmo
assim, pensando que ele poderia captar meu cheiro no ar abafado e vir até
mim. Logo eu estava perdido e só segui em frente porque não sabia como
voltar.
Não tenho como saber a idade desses túneis. Suspeito, embora
dificilmente possa dizer o motivo, que são anteriores à Cidadela acima
deles, por mais antiga que ela seja. Eles datam do fim da era em que o
desejo intenso de fugir, o desejo intenso de escapar à procura de novos sóis
que não os nossos, permanecia, embora os meios para alcançar essa fuga
estivessem afundando como incêndios moribundos. Por mais remoto que
seja esse tempo, cujo nome mal conseguimos lembrar, nós ainda nos
recordamos dele. Antes disso, deve ter havido outro tempo, um tempo de
escavação, de criação de galerias escuras, que agora foi totalmente
esquecido.
Seja como for, fiquei assustado ali. Saí correndo — e várias vezes dei de
cara com paredes — até que finalmente vi um ponto de pálida luz do dia e
escalei para fora através de um buraco por onde mal passavam minha
cabeça e meus ombros.
Dei por mim rastejando sobre o pedestal coberto de gelo de um daqueles
velhos e multifacetados mostradores, cujas múltiplas faces dão a cada
pessoa um tempo diferente. Sem dúvida porque a geada dessas últimas eras,
entrando no túnel abaixo, havia soerguido sua fundação, ele havia
escorregado lateralmente até ficar em um ângulo tal que poderia ter sido um
de seus próprios gnômons, desenhando a passagem silenciosa do curto dia
de inverno através da neve sem marcas.
O espaço ao redor tinha sido um jardim no verão, mas não como a nossa
necrópole, com árvores semisselvagens e gramados ondulados e cuidados.
Rosas tinham florescido ali em crateras colocadas sobre um pavimento com
um mosaico. Estátuas de feras se erguiam de costas para as quatro paredes
do pátio, os olhos voltados para observar o mostrador inclinado:
barilambdas gigantescos; arctóteros, os monarcas dos ursos; gliptodontes;
esmilodontes com presas do tamanho de gládios. Todas estavam polvilhadas
de neve agora. Procurei rastros de Triskele, mas ele não tinha estado ali.
As paredes do pátio tinham janelas altas e estreitas. Eu não conseguia ver
nenhuma luz através delas, e nenhum movimento. As torres em forma de
lança da Cidadela se erguiam de cada lado, de tal modo que percebi que não
a havia deixado — em vez disso, eu parecia estar em algum lugar próximo
do seu coração, onde jamais havia estado. Tremendo de frio, atravessei o
pátio até a porta mais próxima e bati nela. Tive a sensação de que poderia
vagar para sempre nos túneis abaixo sem nunca encontrar outro caminho
para a superfície, e estava decidido a quebrar uma das janelas se preciso
fosse, em vez de voltar por ali. Nenhum som se ouvia lá dentro, por mais
que eu batesse o punho contra os painéis da porta sem parar.
Realmente, não há como descrever a sensação de estar sendo observado.
Ouvi dizer que chamam isso de formigamento na nuca, e até mesmo uma
consciência de olhos que parecem flutuar na escuridão, mas não é nenhuma
das duas coisas — pelo menos, não para mim. É algo semelhante a um
constrangimento sem origem, junto com o sentimento de que não devo me
virar, porque me virar será o mesmo que parecer um tolo, respondendo às
sugestões de uma intuição infundada. Mas às vezes, é claro, isso acontece.
Eu me virei com a vaga impressão de que alguém havia me seguido pelo
buraco na base do mostrador.
Mas o que vi foi uma jovem envolta em peles parada diante de uma porta,
no lado oposto do pátio. Acenei para ela e comecei a caminhar em sua
direção (às pressas, porque sentia muito frio). Então, ela avançou em minha
direção e nos encontramos no lado mais distante do mostrador. Ela
perguntou quem eu era e o que estava fazendo ali, e lhe contei tudo da
melhor maneira que pude. O rosto circundado pelo capuz de pele era
primorosamente moldado, e o próprio capuz, e seu casaco e suas botas com
acabamento em pele, eram de aparência suave e rica, de modo que fiquei
miseravelmente consciente, enquanto falava com ela, da minha própria
camisa e da minha calça, remendadas, e dos meus pés sujos de lama.
O nome dela era Valeria.
— Seu cachorro não está aqui conosco — disse ela. — Pode procurar, se
não acredita em mim.
— Nunca achei que ele estivesse com vocês. Só quero voltar para meu
lugar, para a Torre Matachin, sem ter que descer lá de novo.
— Você é muito corajoso. Eu vejo esse buraco desde que era uma
garotinha, mas nunca ousei entrar nele.
— Eu gostaria de entrar — falei. — Quero dizer, lá dentro.
Ela abriu a porta por onde havia saído e me conduziu para uma sala
forrada de tapeçarias, onde cadeiras antigas e rígidas pareciam tão fixas em
seus lugares quanto as estátuas no pátio congelado. Um fogo diminuto
fumegava numa grelha contra uma parede. Fomos até lá e ela tirou o casaco
enquanto eu estendia as mãos para o calor.
— Não estava frio nos túneis?
— Não tão frio quanto lá fora. Além disso, eu estava correndo e não havia
vento.
— Entendi. Que estranho que eles surjam no Átrio do Tempo. — Ela
parecia mais jovem que eu, mas havia um toque antigo em seu vestido com
detalhes de metal e na sombra de seu cabelo escuro, que a fazia parecer
mais velha que Mestre Palaemon, uma habitante de ontens esquecidos.
— É assim que vocês o chamam? O Átrio do Tempo? Por causa dos
mostradores, suponho.
— Não, os mostradores foram colocados lá porque o chamamos assim.
Você gosta de línguas mortas? Eles têm lemas. “Lux dei vitae viam
monstrat”, ou seja, “O raio do Novo Sol ilumina o caminho da vida”.
“Felicibus brevis, miseris hora longa.” “Os homens esperam muito pela
felicidade.” “Aspice ut aspiciar.”
Tive que dizer a ela, com certa vergonha, que não conhecia outra língua
além daquela em que falávamos, e, mesmo assim, pouco.
Antes de eu partir, conversamos por uma vigília de sentinela ou mais. A
família dela ocupava aquelas torres. Eles haviam esperado, em princípio,
para deixar Urth com o autarca de sua época, então passaram a esperar
porque não havia mais nada para eles, além disso. Tinham dado muitos
castelões à Cidadela, mas o último morrera havia gerações; agora, eram
pobres e suas torres estavam em ruínas. Valeria nunca tinha ido além dos
andares inferiores.
— Algumas das torres foram construídas de forma mais robusta que
outras — falei. — A Fortaleza das Bruxas também está deteriorada por
dentro.
— Existe realmente tal lugar? Minha ama-seca me contou isso quando eu
era pequena, para me assustar, mas achei que fosse apenas uma história. Era
para haver uma Torre do Tormento também, onde todos que entram morrem
em agonia.
Eu disse a ela que isso, pelo menos, era uma fábula.
— Os grandes dias dessas torres são mais fabulosos para mim — disse
ela. — Hoje, ninguém do meu sangue carrega uma espada contra os
inimigos da Comunidade, nem ficam como reféns para nós no Poço das
Orquídeas.
— Talvez uma de suas irmãs seja convocada em breve — eu disse, pois
não queria, por algum motivo, pensar que ela mesma fosse ser.
— Eu sou todas as irmãs que criamos — respondeu ela. — E todos os
filhos.
Um velho criado nos trouxe chá e bolos pequenos e duros. Não era chá de
verdade, mas mate do norte, que às vezes damos aos nossos clientes porque
é muito barato.
Valeria sorriu.
— Veja, você encontrou algum conforto aqui. Você está preocupado com
o seu pobre cachorro porque ele é manco. Mas ele também pode ter
encontrado hospitalidade. Você o ama, então outro pode amá-lo. Você o
ama, então também pode amar outro.
Concordei, mas pensei, secretamente, que nunca mais teria outro
cachorro, o que se provou ser verdade.
Não voltei a ver Triskele durante quase uma semana. Então, um dia,
enquanto eu levava uma carta até a barbacã, ele veio correndo até mim.
Tinha aprendido a correr com sua única perna dianteira, como um acrobata
que faz parada de mão em cima de uma bola dourada.
Depois disso, eu o vi uma ou duas vezes por mês enquanto a neve durou.
Nunca descobri quem ele havia encontrado, quem o alimentava e cuidava
dele; mas gosto de pensar que foi alguém que o levou consigo na
primavera, talvez para o norte, para as cidades de tendas e para as
campanhas entre as montanhas.
O limpador de quadros e outros
A Festa da Sagrada Catarina é o dia mais esperado para nossa guilda, o
festival através do qual nossa herança nos é lembrada, o momento em que
os oficiais se tornam mestres (quando se tornam) e em que os aprendizes se
tornam oficiais. Reservarei minha descrição das cerimônias daquele dia
para quando tiver a oportunidade de contar sobre minha própria elevação;
mas no ano que reconto aqui, o ano da luta à beira do túmulo, Drotte e
Roche foram elevados, deixando-me como capitão dos aprendizes.
O peso total desse ofício não se impôs a mim até que o ritual estivesse
quase concluído. Eu estava sentado na capela em ruínas apreciando a
pompa e apenas levemente consciente (da mesma maneira agradável pela
qual vinha ansiando o banquete) de que seria sênior em relação a todos os
demais quando a cerimônia chegasse ao fim.
Aos poucos, porém, uma sensação de inquietação tomou conta de mim.
Eu me sentia infeliz antes mesmo de saber que não estava mais feliz, e me
curvei sob o peso da responsabilidade quando ainda não entendia
completamente que o carregava. Lembrei-me da imensa dificuldade que
Drotte havia encontrado para nos manter em ordem. Agora, eu teria que
fazer isso sem a sua força, e sem ninguém que fosse para mim, o que Roche
havia sido para ele — um tenente da sua idade. Quando o último cântico
chegou ao fim e o Mestre Gurloes e o Mestre Palaemon, em suas máscaras
com contornos dourados, avançaram a passos lentos pela porta, e os velhos
oficiais içaram Drotte e Roche, os novos oficiais, sobre seus ombros (já
mexendo nos sabretaches em seus cintos para os fogos de artifício que
lançariam lá fora), eu já tinha me preparado e até bolado um plano
rudimentar.
Nós, aprendizes, deveríamos servir o banquete e, antes de fazê-lo, retirar
as roupas relativamente novas e limpas que havíamos recebido para a
cerimônia. Depois que a última bombinha havia estourado e os matrosses,
em seu gesto anual de amizade, haviam rasgado o céu com a maior peça de
artilharia do Grande Fortim, apressei meus pupilos — já, ou assim pensei,
começando a olhar para mim com ressentimento — de volta ao nosso
dormitório, fechei a porta e empurrei um catre contra ela.
Eata era o mais velho, sem contar comigo, e, para minha sorte, eu sempre
fui amigável o suficiente no passado para não despertar nenhuma suspeita,
até que fosse tarde demais para qualquer resistência efetiva. Eu o peguei
pelo pescoço e bati sua cabeça meia dúzia de vezes contra o anteparo,
depois lhe dei uma rasteira.
— Agora — falei —, você vai ser meu aliado? Responda!
Ele não conseguia falar, mas assentiu.
— Ótimo. Vou pegar Timon. Você pega o maior depois dele.
No espaço de cem respirações (e foram respirações muito rápidas), os
meninos foram chutados até se submeterem. Passaram-se três semanas
antes que qualquer um deles ousasse me desobedecer, e então não houve
rebelião em massa, apenas um ou outro fingindo doença.
Como capitão de aprendizes, tive novas funções, bem como uma liberdade
maior do que jamais havia desfrutado antes. Era eu quem cuidava para que
os oficiais de plantão recebessem suas refeições quentes, e supervisionava
os meninos que trabalhavam sob as pilhas de bandejas destinadas aos
nossos clientes. Na cozinha, obrigava meus pupilos a fazerem suas tarefas,
e na sala de aula os orientava nos estudos; fiquei encarregado, em um grau
muito mais sério do que antes, no transporte de mensagens para partes
distantes da Cidadela, e até mesmo, em pequena escala, na condução dos
negócios da guilda. Assim, me familiarizei com todas as vias e com muitos
cantos não frequentados — celeiros com silos imensos e gatos demoníacos;
muralhas varridas pelo vento com vista para favelas gangrenadas; e as
pinacotecas, com seu grande salão encimado por um teto abobadado de
tijolos perfurados por janelas, com piso de lajes coberto por tapetes, e
delimitado por paredes das quais se abriam arcos escuros para fileiras de
câmaras revestidas — como o próprio salão — com inúmeros quadros.
Muitos deles eram tão velhos e sujos de fumaça que eu não conseguia
discernir seus temas, e havia outros cujo significado não conseguia
adivinhar — uma dançarina cujas asas pareciam sanguessugas, uma mulher
de aparência silenciosa que segurava uma adaga de lâmina dupla sentada
sob uma máscara mortuária. Certo dia, após ter caminhado pelo menos uma
légua entre essas pinturas enigmáticas, deparei-me com um velho
empoleirado em uma escada alta. Queria perguntar o caminho, mas ele
parecia tão absorto em seu trabalho que hesitei em incomodá-lo.
O quadro que ele estava limpando mostrava uma figura de armadura
parada em pé numa paisagem desolada. Não tinha arma, mas segurava um
cajado com uma bandeira estranha e rígida. A viseira do capacete dessa
figura era inteiramente dourada, sem fendas para os olhos, nem ventilação;
em sua superfície polida, podia-se ver o deserto mortal no reflexo e nada
mais.
Esse guerreiro de um mundo morto me afetou profundamente, embora eu
não soubesse dizer por que, nem sequer que emoção senti. De alguma
forma obscura, queria pegar aquele quadro e levá-lo comigo — não para
nossa necrópole, mas para uma daquelas florestas montanhosas das quais
ela era (como, mesmo naquela época, eu já entendia) uma imagem
idealizada, porém, viciada. Era ali, entre as árvores, que o quadro deveria
ficar, com a borda de sua moldura apoiada na grama nova.
— … e então — disse uma voz atrás de mim —, todos escaparam.
Vodalus recebeu aquilo que veio buscar, percebe?
— Você — retrucou o outro. — O que está fazendo aqui?
Eu me virei e vi dois armígeros vestidos com roupas de cores vivas que se
assemelhavam, o máximo que se atreviam, a dos exultantes. Respondi:
— Tenho uma correspondência para o arquivista. — E ergui o envelope.
— Muito bem — falou o armígero que havia antes me dirigido a palavra.
— Você sabe a localização dos arquivos?
— Estava prestes a perguntar, sieur.
— Então, você não é o mensageiro adequado para levar a carta, é? Dê-me
isto e eu a entregarei a um pajem.
— Não posso, sieur. É minha tarefa entregá-la.
O outro armígero disse:
— Não precisa ser tão duro com esse jovem, Racho.
— Você não sabe o que ele é, sabe?
— E você, sabe?
O homem chamado Racho assentiu.
— De que parte desta Cidadela você é, mensageiro?
— Da Torre Matachin. Mestre Gurloes me mandou ao arquivista.
O rosto do outro armígero se contraiu.
— Você é um torturador, então.
— Apenas um aprendiz, sieur.
— Não me admira então que meu amigo queira você longe das vistas
dele. Siga a galeria até a terceira porta, faça a curva e continue cerca de cem
passos, suba a escada até o segundo patamar e siga pelo corredor sul até as
portas duplas no final.
— Obrigado — respondi, e dei um passo na direção que ele havia
indicado.
— Espere um pouco. Se você for agora, teremos que olhar para você.
Racho disse:
— Prefiro tê-lo logo à nossa frente a tê-lo atrás de nós.
Mesmo assim, esperei, com uma mão apoiada na perna da escada, que os
dois fizessem uma curva.
Como um daqueles amigos quase espirituais que, em sonhos, se dirigem a
nós das nuvens, o velho senhor disse:
— Então, você é um torturador, não é? Sabe, nunca estive na sua casa. —
Ele tinha um olhar fraco, me lembrando das tartarugas que, às vezes,
espantávamos nas margens do Gyoll, e um nariz e um queixo que quase se
encontravam.
— Certamente, nunca o vi lá — falei com educação.
— Não há nada a temer agora. O que você poderia fazer com um homem
como eu? Meu coração pararia assim! — Ele jogou a esponja no balde e
tentou estalar os dedos molhados, embora nenhum som tenha sido emitido.
— Mas eu sei onde ela fica. Atrás do Fortim das Bruxas. Não é isso?
— Sim — respondi, um pouco surpreso pelo fato de as bruxas serem mais
conhecidas que nós.
— Imaginei. Mas ninguém nunca fala a respeito. Você está com raiva
daqueles armígeros e eu não o culpo. Mas deveria saber o que se passa com
eles. Eles deveriam ser como exultantes, só que não são. Têm medo de
morrer, medo de se machucar e medo de agir como tais. É difícil para eles.
— Eles deveriam ser eliminados — eu disse. — Vodalus os colocaria para
trabalhar carregando pedras. São apenas uma herança de alguma época
passada… que ajuda possível eles podem dar ao mundo?
O velho inclinou a cabeça.
— Ora, de que ajuda eles seriam, para começar? Você sabe?
Quando admiti que não, ele desceu da escada como um macaco idoso,
parecendo só braços e pernas e pescoço enrugado; suas mãos eram tão
compridas quanto meus pés, os dedos tortos rendilhados de veias azuis.
— Eu sou Rudesind, o curador. Você conhece o velho Ultan, presumo?
Não, claro que não. Se conhecesse, saberia o caminho para a biblioteca.
Eu disse:
— Nunca estive nesta parte da Cidadela antes.
— Nunca esteve aqui? Ora, esta é a melhor parte. Arte, música e livros.
Temos um Fechin aqui que mostra três meninas vestindo uma quarta com
flores, que é tão real que você fica esperando as abelhas saírem de dentro
dele. Um Quartillosa também. Não é mais popular, Quartillosa, ou não o
teríamos aqui. Mas, no dia em que ele nasceu, já era um desenhista melhor
que os gotejadores e cuspidores pelos quais o pessoal é tão aficionado hoje
em dia. Mas, ficamos com o que a Casa Absoluta não quer, sabe? Isso
significa que ficamos com os antigos, e eles são os melhores, na maioria das
vezes. Chegam aqui sujos por ficarem pendurados por tanto tempo, e eu os
limpo. Às vezes os limpo novamente depois que ficam pendurados aqui por
um tempo. Temos um Fechin aqui. Essa é a verdade! Ou você leva este aqui
agora. Gosta?
Parecia seguro dizer que sim.
— É a terceira vez que limpo este. Quando eu era recém-chegado aqui,
fui aprendiz do velho Branwallader e ele me ensinou a limpar. Este foi o
que ele usou, porque disse que não valia nada. Ele começou aqui neste
canto. Quando fez o máximo que podia com uma das mãos, passou-o para
mim, e eu fiz o resto. Quando minha esposa ainda era viva, eu o limpei
novamente. Isso deve ter sido depois que nossa segunda filha nasceu. Não
estava tão escuro assim, mas eu estava com umas caraminholas e queria
algo para fazer. Hoje, meti na cabeça que devia limpá-lo novamente. E ele
está precisando — viu que beleza que está ficando, todo brilhoso? Aí está a
sua Urth azul surgindo por cima do ombro dele novamente, fresca como o
peixe do Autarca.
Durante todo esse tempo, o nome de Vodalus ecoava em minha mente. Eu
tinha certeza de que o velho descera da escada só porque eu o havia
mencionado, e queria perguntar a ele sobre isso. Mas, por mais que tentasse,
não consegui encontrar nenhuma maneira de direcionar a conversa. Quando
fiquei em silêncio por um momento a mais, e tive medo de que ele estivesse
prestes a subir a escada para começar a limpar novamente, consegui dizer:
— Essa é a lua? Me disseram que ela é mais fértil.
— Agora é, sim. Isso foi feito antes da irrigação. Está vendo esse marrom
acinzentado? Naquela época, era isso que você veria se levantasse a cabeça
e olhasse para ela. Não verde, como ela é agora. Também não parecia tão
grande, porque não estava tão perto: era o que o velho Branwallader
costumava dizer. Agora, existem árvores suficientes para esconder
Nilammon, como diz o ditado.
Aproveitei minha oportunidade.
— Ou Vodalus.
Rudesind gargalhou.
— Ou ele, isso é certo. Seu bando deve estar esfregando as mãos
esperando para pegá-lo. Vocês têm algo especial planejado?
Se a guilda tinha torturas específicas reservadas para indivíduos
específicos, eu não sabia nada a respeito; mas me esforcei para parecer
sábio e disse:
— Vamos pensar em algo.
— Suponho que pensarão, sim. Há pouco, porém, pensei que você
estivesse do lado dele. Ainda assim, você vai ter que esperar se ele estiver
escondido nas Florestas de Lune. — Rudesind olhou para o quadro com
apreciação óbvia antes de se voltar para mim. — Já ia me esquecendo. Você
quer visitar nosso Mestre Ultan. Volte para aquele arco pelo qual acabou de
passar…
— Eu sei o caminho — falei. — O armígero me explicou.
O velho curador soprou a orientação ao vento com uma lufada de hálito
ácido.
— O que ele disse só levaria você até a Sala de Leitura. De lá, você
levaria uma vigília para chegar a Ultan, se é que chegaria. Não, volte para
aquele arco. Vá até o final da grande sala e desça a escada. Você chegará a
uma porta trancada — bata com força até que alguém o deixe entrar. É no
fundo das pilhas, e é ali que Ultan tem seu escritório.
Já que Rudesind estava olhando, segui suas instruções, embora não
tivesse gostado da parte sobre a porta trancada, e descer sugeria que eu
poderia estar me aproximando daqueles túneis antigos por onde eu vagara à
procura de Triskele.
De modo geral, me sentia muito menos confiante do que quando estava
nas partes da Cidadela que conhecia. Aprendi, desde então, que estranhos
que a visitam ficam impressionados com seu tamanho; mas ela é apenas um
cisco se comparada ao tamanho da cidade, e nós, que crescemos dentro da
grande muralha cinza, e aprendemos os nomes e relações dos cerca de cem
pontos de referência necessários para aqueles que querem se localizar
dentro dela, ficamos, por dotarmos tal conhecimento, desconcertados
quando nos encontramos distantes das regiões familiares.
Foi o que aconteceu comigo enquanto atravessava o arco que o velho
havia indicado. Como o resto daquele salão abobadado, ele era de tijolos
foscos e avermelhados, mas era sustentado por dois pilares cujos capitéis
exibiam rostos de pessoas adormecidas, e achei os lábios mudos e os olhos
pálidos e fechados, mais terríveis que as máscaras agonizantes pintadas no
metal da nossa própria torre.
Cada quadro na sala adiante continha um livro. Às vezes, eles eram
muitos ou proeminentes; outros, eu tive que estudar um pouco antes de ver
a ponta de uma encadernação despontando para fora do bolso da saia de
uma mulher, ou perceber que um carretel estranhamente trabalhado
continha palavras que se desenrolavam como fios.
Os degraus eram estreitos e íngremes, e não havia corrimão; eles faziam
curvas ao descer, de modo que eu não tinha descido mais de trinta deles
antes que a luz da sala acima tivesse praticamente desaparecido. Por fim,
fui forçado a colocar as mãos à frente do corpo e tatear o caminho, com
medo de bater a cabeça na porta.
Meus dedos questionadores nunca a encontraram. Em vez disso, os
degraus terminaram (e eu quase caí ao descer um degrau que não estava lá),
e fiquei sozinho ali, tateando um chão irregular na escuridão total.
— Quem está aí? — uma voz chamou. Era uma voz estranhamente
ressonante, como o som de um sino dobrando dentro de uma caverna.
O mestre dos curadores
— Quem está aí? — ecoou no escuro.
Com o máximo de ousadia que pude, respondi:
— Alguém que traz uma mensagem.
— Deixe-me ouvir então.
Meus olhos estavam finalmente se acostumando com a escuridão, e eu
conseguia distinguir uma silhueta vaga e muito elevada, movendo-se entre
formas escuras e irregulares ainda mais altas.
— É uma carta, sieur — falei. — O senhor é Mestre Ultan, o curador?
— Ele mesmo. — Ele estava diante de mim agora. O que eu pensei, a
princípio, que fosse uma vestimenta esbranquiçada, agora parecia ser uma
barba que chegava quase até a cintura dele. Eu já era tão alto quanto muitos
homens que honram as calças, mas ele era uma cabeça e meia mais alto que
eu, um verdadeiro exultante.
— Então aqui está, sieur — falei e estendi a carta.
Ele não a pegou.
— Você é aprendiz de quem? — Novamente achei ter ouvido o soar do
bronze, e, de repente, senti que ele e eu estávamos mortos e que a escuridão
que nos cercava era a terra de um túmulo pressionando nossos olhos, terra
de um túmulo através da qual o sino nos chamava para a adoração em
quaisquer santuários que pudessem existir no subsolo. A mulher lívida que
eu tinha visto ser arrastada de seu túmulo apareceu diante de mim tão
vividamente que foi como se eu visse o rosto dela na brancura quase
luminosa da figura que falou. — De quem? — ele tornou a perguntar.
— De ninguém. Quero dizer, sou aprendiz da nossa guilda. Mestre
Gurloes me enviou, sieur. Mestre Palaemon é quem costuma ensinar a nós,
aprendizes.
— Mas não gramática. — Muito lentamente, a mão do homem alto tateou
em direção à carta.
— Ah, sim, gramática também. — Eu me senti como uma criança
conversando com aquele homem, que já era velho quando nasci. — Mestre
Palaemon diz que precisamos ser capazes de ler, escrever e calcular, porque
quando formos mestres em nosso tempo, teremos que enviar cartas e
receber instruções dos tribunais, e manter registros e contas.
— Como esta — entoou a figura indistinta na minha frente. — Cartas
como esta.
— Sim, sieur. Isso mesmo.
— E o que esta aqui diz?
— Não sei. Está selada, sieur.
— Se eu a abrir… — Ouvi a cera quebradiça estalar sob a pressão de seus
dedos. — … você lerá para mim?
— Está escuro aqui, sieur — respondi, em dúvida.
— Então teremos que ter Cyby. Com licença. — Na escuridão, mal
consegui vê-lo se virar e levantar as mãos para formar uma trombeta. —
Cy-by! Cy-by! — O nome ecoou pelos corredores escuros que eu sentia me
espreitarem, enquanto a língua de ferro atingia o bronze ecoante de um
lado, depois do outro.
Houve um chamado em resposta vindo de longe. Por algum tempo,
esperamos em silêncio.
Logo depois, vi um ponto de luz num beco estreito, delimitado (era o que
parecia) por paredes íngremes de pedra irregular. Ele se aproximou — um
castiçal carregado por um homem atarracado e muito ereto, de cerca de
quarenta anos, de rosto achatado e pálido. O homem barbudo ao meu lado
disse:
— Aí está você finalmente, Cyby. Trouxe uma luz?
— Sim, Mestre. Quem é este?
— Um mensageiro com uma carta.
Num tom mais cerimonioso, Mestre Ultan disse para mim:
— Este é o meu próprio aprendiz, Cyby. Temos uma guilda também, nós,
curadores, dos quais os bibliotecários são uma divisão. Sou o único
bibliotecário mestre aqui, e é nosso costume atribuir aprendizes aos nossos
membros seniores. Cyby é o meu já há alguns anos.
Eu disse a Cyby que estava honrado em conhecê-lo e perguntei, um tanto
timidamente, qual era o dia da festa dos curadores — uma questão que
provavelmente foi suscitada pelo pensamento de que muitas deles devem
ter se passado sem que Cyby fosse elevado a oficial.
— Já passou — disse Mestre Ultan. Ele olhava para mim ao falar, e, à luz
das velas, pude ver que seus olhos eram da cor de leite aguado. — Acontece
no início da primavera. É um belo dia. O tempo em que, na maioria dos
anos, as árvores já puseram suas folhas novas.
Não havia árvores na Grande Quadra, mas assenti; então, percebendo que
ele não podia me ver, falei:
— Sim, belo com brisas suaves.
— Precisamente. Você é um jovem dos meus. — Ele pôs a mão no meu
ombro: não pude deixar de notar que seus dedos estavam escuros de poeira.
— Cyby também é um jovem dos meus. Ele será o bibliotecário-chefe aqui
quando eu me for. Nós temos uma procissão, você sabe, nós, curadores.
Descendo a rua Iubar. Ele caminha ao meu lado, então, nós dois trajando
um manto cinza. Qual é a tonalidade da sua guilda?
— Fuligem — respondi. — A cor que é mais escura que o preto.
— Existem árvores, plátanos e carvalhos, bordos rochosos e pés de pato,
que dizem ser as mais velhas de Urth. As árvores espalham sua sombra em
ambos os lados da rua Iubar, e há mais delas nas esplanadas no centro. Os
comerciantes vêm até suas portas para ver os curadores singulares, você
sabe, e, claro, os livreiros e antiquários nos aplaudem. Suponho que
sejamos uma das vistas primaveris de Nessus, à nossa modesta maneira.
— Deve ser muito impressionante — eu disse.
— É sim, é sim. A catedral também é muito bonita quando chegamos lá.
Existem bancadas de pavios acesos, como se o sol brilhasse no mar
noturno. E velas em vidros azuis para simbolizar a Garra. Envoltos em luz,
conduzimos nossas cerimônias perante o maior dos altares. Diga-me, sua
guilda também vai à catedral?
Expliquei que usávamos a capela ali na Cidadela e expressei surpresa de
que os bibliotecários e outros curadores saíssem de seus muros.
— Temos direito, sabia? A própria biblioteca o tem, não é mesmo, Cyby?
— Tem mesmo, Mestre. — Cyby tinha uma testa alta e quadrada, da qual
seus cabelos grisalhos batiam em retirada. Isso fazia seu rosto parecer
pequeno e um pouco infantil; eu podia entender como Ultan, que
ocasionalmente deve ter passado os dedos neles, como Mestre Palaemon às
vezes passava nos meus, poderia pensar que ele ainda era quase um menino.
— Vocês estão em contato próximo, então, com suas contrapartes na
cidade — eu disse.
O velho cofiou a barba.
— O mais próximo possível, pois nós somos eles. Esta biblioteca é a
biblioteca da cidade e também a biblioteca da Casa Absoluta, por sinal. E
muitas outras.
— O senhor quer dizer que a ralé que vive na cidade tem permissão para
entrar na Cidadela e usar sua biblioteca?
— Não — disse Ultan. — Quero dizer que a própria biblioteca se estende
além das paredes da Cidadela. E, penso eu, não é a única instituição aqui
que o faz. É assim que o conteúdo da nossa fortaleza é muito maior que o
seu contentor.
Ele me pegou pelo ombro enquanto falava e começamos a caminhar por
uma das trilhas compridas e estreitas entre as imponentes estantes. Cyby
nos seguiu segurando seu candelabro — suponho que fosse mais para o
benefício dele, do que para o meu, mas isso me permitiu ver bem o
suficiente para não colidir com as prateleiras de carvalho escuro pelas quais
passamos.
— Seus olhos ainda não lhe falharam — disse Mestre Ultan depois de um
tempo. — Você percebe algum fim neste corredor?
— Não, sieur — respondi, e, na verdade, não percebia mesmo. Até onde a
luz das velas alcançava, havia apenas fileiras e mais fileiras de livros que se
estendiam do chão até o teto alto. Algumas prateleiras eram desalinhadas,
outras retas; uma ou duas vezes vi evidências de que ratos faziam ninhos
entre os livros, reorganizando-os para fazer casas confortáveis de dois e três
andares para eles próprios, e espalhando esterco nas capas para formar os
caracteres rudes de seu discurso.
Ainda assim, sempre havia livros e mais livros: fileiras de lombadas em
pelica, marroquim, tecido para encadernação, papel e uma centena de outras
substâncias que não consegui identificar, uns reluzindo dourado, muitos
escritos em preto, alguns com etiquetas de papel tão velhas e amareladas
que estavam marrons como folhas mortas.
— “O rastro de tinta não tem fim” — disse Mestre Ultan. — Ou foi o que
disse um sábio homem. Ele viveu há muito tempo: o que diria se pudesse
nos ver agora? Outro disse: “Um homem dará a sua vida para escrever uma
coleção de livros”, mas eu gostaria de conhecer o homem que poderia
escrever este, sobre qualquer tema.
— Eu estava olhando as encadernações — respondi, sentindo-me um
tanto tolo.
— Que sorte você tem. No entanto, estou feliz. Não consigo mais os ver,
mas me lembro do prazer que já senti em fazer isso. Isso foi logo depois
que me tornei bibliotecário-mestre. Acredito que eu tinha cerca de
cinquenta anos. Sabe, eu havia sido um aprendiz por muitos e muitos anos.
— É mesmo, sieur?
— Por certo que sim. Meu mestre era Gerbold, e durante décadas pareceu
que ele nunca morreria. Os anos se seguiram arrastados para mim, e durante
todo esse tempo eu li: suponho que poucos jamais leram tanto. Comecei,
como a maioria dos jovens, lendo os livros de que gostava. Eventualmente,
com o tempo, descobri que isso reduzia o meu prazer, até que passei a
maior parte das minhas horas procurando por esses livros. Então, elaborei
um plano de estudo para mim mesmo, rastreando ciências obscuras, uma
após a outra, desde o amanhecer do conhecimento até o presente. Um dia,
esgotei até mesmo isso e, começando pelo grande estojo de ébano que fica
no centro da sala que nós, da biblioteca, guardamos há trezentos anos contra
o retorno do Autarca Sulpicius (e na qual, em consequência, ninguém nunca
entra), fui lendo de dentro para fora ao longo de um período de quinze anos,
muitas vezes terminando dois livros em um dia.
Atrás de nós, Cyby murmurou:
— Maravilhoso, sieur. — Eu suspeitava que ele já tivesse ouvido a
história muitas vezes.
— Então, o inesperado me agarrou pelo casaco. Mestre Gerbold morreu.
Trinta anos antes, eu seria ideal por razões de predileção, educação,
experiência, juventude, conexões familiares e ambição de sucedê-lo. Mas,
no momento em que efetivamente o sucedi, ninguém poderia estar menos
apto. Eu havia esperado tanto tempo que esperar era tudo o que entendia, e
minha mente estava sufocada sob o peso dos fatos inúteis. Apesar disso, me
forcei a assumir o controle e passei mais horas do que, agora, poderia
querer que você acreditasse, tentando relembrar os planos e máximas que
tinha estabelecido havia tantos anos para minha eventual sucessão.
Ele fez uma pausa, e eu sabia que estava mergulhando novamente em uma
mente maior e mais sombria do que, até mesmo, sua grande biblioteca.
— No entanto, meu antigo hábito de ler ainda me perseguia. Eu gastava
dias nos livros, e até semanas, durante os quais deveria estar considerando
as operações do estabelecimento que recorria a mim como liderança. Então,
de modo tão repentino quanto o soar das horas de um relógio, uma nova
paixão tomou conta de mim, deslocando a antiga. Você já deve ter
adivinhado o que foi.
Eu disse que não.
— Eu estava lendo, ou era o que pensava, no assento daquela janela em
arco, no quadragésimo nono andar, com vista para… esqueci, Cyby. Ela tem
vista para o quê?
— O jardim dos estofadores, sieur.
— Sim, lembro-me agora: aquele pequeno quadrado verde e marrom.
Acredito que eles secam alecrim ali para colocar nos travesseiros. Eu estava
sentado ali, como falei, e ali fiquei por várias vigílias, quando me dei conta
de que não estava mais lendo. Por algum tempo, tive dificuldade de dizer o
que estava fazendo. Quando tentava, só conseguia pensar em certos odores,
texturas e cores que pareciam não ter conexão com qualquer coisa discutida
no volume que eu segurava. Finalmente percebi que, em vez de lê-lo, eu o
observava como um objeto físico. O vermelho de que me lembrava vinha da
fita costurada na borda do cabeçalho, para que eu pudesse marcar onde
tinha parado. A textura que fazia cócegas nos meus dedos ainda era a do
papel no qual o livro havia sido impresso. O cheiro em minhas narinas era
de couro velho, ainda com os vestígios de óleo de bétula. Foi somente
então, quando vi os próprios livros, que comecei a entender seus cuidados.
Sua mão apertou meu ombro com mais força.
— Temos livros aqui encadernados em couro de equidnas, krakens e
animais há tanto tempo extintos que aqueles que os estudam são, em sua
maior parte, da opinião de que nenhum vestígio deles, que não seja
fossilizado, tenha sobrevivido. Temos livros inteiramente encadernados em
metais de liga desconhecida e livros cujas encadernações estão incrustadas
de pedras preciosas enormes. Temos livros embalados em madeiras
perfumadas, transportadas através do abismo inconcebível entre criações…
livros duplamente preciosos, porque ninguém em Urth consegue lê-los.
“Temos livros cujos papéis são emaranhados de plantas das quais brotam
curiosos alcaloides, de modo que o leitor, ao virar as páginas, é pego de
surpresa por fantasias bizarras e sonhos quiméricos. Livros cujas páginas
não são de papel, mas delicadas lâminas de jade branco, marfim e concha;
livros também cujas páginas são as folhas desidratadas de plantas
desconhecidas. Também temos livros que não são enxergados como tais:
rolos de pergaminho, tabuinhas e gravações em cem substâncias diferentes.
Há um cubo de cristal aqui, embora eu não consiga mais lhe dizer onde, que
não é maior que a ponta do seu polegar, e que contém mais livros do que a
própria biblioteca. Embora uma prostituta possa pendurá-lo em uma orelha
à guisa de ornamento, não há volumes suficientes no mundo para
contrabalançar a outra. Todos esses eu vim a conhecer e fiz da tarefa de
protegê-los a devoção de minha vida.
“Durante sete anos, eu me ocupei disso; e então, justamente quando os
problemas tanto superficiais quanto prementes de preservação foram
resolvidos, e estávamos a ponto de iniciar o primeiro levantamento geral da
biblioteca desde a sua fundação, meus olhos começaram a se apagar em
suas órbitas. Aquele que concedeu a guarda de tantos livros me cegou a fim
de que eu soubesse quem guarda os guardiões.”
— Se não consegue ler a carta que eu trouxe, sieur — comentei —, terei
prazer em lê-la para o senhor.
— Tem razão — Mestre Ultan murmurou. — Eu tinha esquecido. Cyby a
lerá: ele lê bem. Aqui, Cyby.
Segurei o candelabro para ele, e Cyby desdobrou o pergaminho
crepitante, ergueu-o como uma proclamação e começou a ler, nós três
parados em um pequeno círculo de luz de velas enquanto todos os livros se
aglomeravam ao redor.
— “Do Mestre Gurloes da Ordem dos Buscadores da Verdade e da
Penitência…”
— O quê? — disse Mestre Ultan. — Você é um torturador, meu jovem?
Eu disse que sim, e houve um silêncio tão longo que Cyby começou a ler
a carta uma segunda vez:
— “Do Mestre Gurloes da Ordem dos Buscadores…”
— Espere — disse Ultan. Cyby fez uma nova pausa; fiquei onde estava,
segurando a luz e sentindo o sangue subindo às minhas bochechas.
Finalmente, Mestre Ultan falou novamente, e sua voz era tão prosaica
quanto ao me dizer que Cyby lia bem. — Eu mal consigo me lembrar de
minha própria admissão em nossa guilda. Você está familiarizado, suponho,
com o método pelo qual recrutamos nossos números?
Admiti que não.
— Em cada biblioteca, por preceito antigo, há uma sala reservada às
crianças. Nela são mantidos livros ilustrados coloridos, do tipo que encanta
as crianças, e alguns contos simples de maravilha e aventura. Muitas
crianças frequentam essas salas, e enquanto permanecem dentro de seus
limites, nenhum interesse por elas é demonstrado.
Ele hesitou e, por mais que eu não conseguisse discernir nenhuma
expressão em seu rosto, tive a impressão de que temia que o que estava
prestes a dizer pudesse causar dor a Cyby.
— De tempos em tempos, entretanto, um bibliotecário observa uma
criança solitária, ainda de tenros anos, que sai da sala das crianças… e
finalmente a abandona por completo. Tal criança eventualmente descobre,
em alguma prateleira baixa, porém obscura, O Livro de Ouro. Você nunca
viu esse livro e nunca o verá, pois já passou da idade na qual ele é
encontrado.
— Deve ser muito bonito — comentei.
— De fato, é. A menos que minha memória me traia, a capa é de entretela
preta, consideravelmente desbotada na lombada. Várias das palavras estão
descascando, e algumas das placas com ilustrações foram roubadas. Mas é
um livro extraordinariamente adorável. Gostaria de poder encontrá-lo
novamente, embora todos os livros estejam fechados para mim agora.
“A criança, como eu disse, com o tempo descobre O Livro de Ouro.
Então, os bibliotecários vêm, como vampiros, dizem uns, mas outros
preferem dizer, como fadas madrinhas em um batizado. Eles falam com a
criança, e a criança se junta a eles. Doravante, ela está na biblioteca onde
quer que esteja, e em pouco tempo seus pais não o conhecem mais.
Suponho que seja bem parecido entre os torturadores.”
— Pegamos as crianças que caem em nossas mãos — falei — e são muito
pequenas.
— Nós fazemos o mesmo — murmurou o velho Ultan. — Portanto, temos
pouco direito de condenar vocês. Continue lendo, Cyby.
— “Do Mestre Gurloes da Ordem dos Buscadores da Verdade e da
Penitência para o Arquivista da Cidadela: Saudações, Irmão.
“Pela vontade de um tribunal, temos sob nossa guarda a exultante pessoa
da Castelã Thecla; e por sua vontade adicional forneceríamos à Castelã
Thecla, em seu confinamento, confortos tais que não estejam além da razão
e da prudência. Para poder passar os momentos até que chegue a sua hora
conosco — ou melhor, como ela me instruiu a dizer, até que o coração do
Autarca, cuja tolerância não conhece muros nem mares, se abrande em
relação a ela, como ela reza —, ela pede que o senhor, de acordo com seu
cargo, forneça certos livros, que são…”
— Pode omitir os títulos, Cyby — disse Ultan. — Quantos são?
— Quatro, sieur.
— Não há problema, então. Prossiga.
— “Por isso, Arquivista, lhe somos muito gratos. Assinado, Gurloes,
Mestre da Honorável Ordem comumente chamada de Guilda dos
Torturadores”.
— Você conhece algum dos títulos da lista do Mestre Gurloes, Cyby?
— Conheço três, sieur.
— Muito bem. Vá buscá-los, por favor. Qual é o quarto?
— O Livro das Maravilhas de Urth e do céu, sieur.
— Cada vez melhor: existe um exemplar a menos de duas correntes
daqui. Quando pegar seus volumes, pode nos encontrar na porta por onde
este jovem, que temo que já tenhamos detido por muito tempo, penetrou nas
estantes.
Tentei devolver o candelabro para Cyby, mas ele indicou com um gesto
que eu deveria mantê-lo comigo, e desceu apressado por um corredor
estreito. Ultan estava se afastando na direção oposta, movendo-se tão
seguramente quanto se enxergasse.
— Eu me lembro bem dele — disse. — A encadernação é de cordovão
marrom, todas as bordas são douradas e há gravuras de Gwinoc, pintadas à
mão. Está na terceira prateleira debaixo para cima e apoiado em um fólio de
tecido verde… acredito que seja o livro de Blaithmaic, Vidas dos dezessete
megatérios.
Principalmente para que soubesse que eu não o havia abandonado
(embora, sem dúvida, seus ouvidos aguçados tivessem percebido meus
passos atrás dele), perguntei:
— O que é, sieur? O livro de Urth e do céu, quero dizer.
— Ora — disse ele —, você não sabe que é melhor não fazer essa
pergunta a um bibliotecário? Nossa preocupação, meu jovem, é com os
livros em si, não com seus conteúdos.
Percebi a diversão em seu tom de voz.
— Acho que o senhor conhece o conteúdo de cada livro aqui, sieur.
— Dificilmente. Mas Maravilhas de Urth e do céu era uma obra clássica,
três ou quatro séculos atrás. Ele relata a maior parte das lendas familiares
dos tempos antigos. Para mim, a mais interessante é a dos Historiadores,
que fala de uma época em que toda lenda poderia ser atribuída a um fato
meio esquecido. Você vê o paradoxo, presumo. Essa lenda existia naquela
época? E, se não, como veio a existir?
— Não existem grandes serpentes, sieur, nem mulheres voadoras?
— Ah, sim — respondeu Mestre Ultan, curvando-se enquanto falava. —
Mas não na lenda dos Historiadores. — Triunfante, ele ergueu um pequeno
volume encadernado em couro esfarelento. — Dê uma olhada nisto, meu
jovem, e veja se peguei o livro certo.
Tive que colocar o candelabro no chão e me agachar ao lado dele. O livro
em minhas mãos era tão velho, rígido e bolorento que parecia impossível
que tivesse sido aberto em um século, mas a página de título confirmou a
afirmação orgulhosa do velho. Um subtítulo anunciava: “Sendo uma
coleção de fontes impressas de segredos universais de uma era tão antiga
que seu significado ficou obscurecido pelo tempo.”
— Bem — perguntou Mestre Ultan —, eu estava certo ou não?
Abri o livro aleatoriamente e li:
— “… por cujo meio uma imagem pode ser gravada com tal habilidade
que ela inteira, caso fosse destruída, poderia ser recriada a partir de uma
pequena parte, e essa pequena parte poderia ser qualquer parte.”
Suponho que foi a palavra gravada que me remeteu aos acontecimentos
que eu havia testemunhado na noite em que recebi meu criso.
— Mestre — respondi —, o senhor é fenomenal.
— Não sou, mas raramente me engano.
— O senhor, dentre todos os homens, vai me desculpar quando lhe digo
que demorei um momento para ler algumas linhas deste livro. Mestre, o
senhor certamente conhece os comedores de cadáveres. Ouvi dizer que,
devorando a carne dos mortos, junto com um certo pharmacon, eles são
capazes de reviver as vidas de suas vítimas.
— Não é sensato saber muito sobre estas práticas — o arquivista
murmurou —, ainda assim, quando penso em como seria compartilhar da
mente de um historiador como Loman ou Hermas… — Em seus anos de
cegueira, ele devia ter esquecido de quão abertamente nossos rostos podem
trair nossos sentimentos mais profundos. À luz das velas, vi o dele retorcido
em tal agonia de desejo que, por decência, lhe dei as costas; a voz dele
permaneceu calma como um sino solene. — Mas, pelo que li um dia, você
está correto, embora eu não me lembre agora de que o livro nas suas mãos
trate disso.
— Mestre — falei —, eu lhe dou minha palavra de que jamais suspeitaria
de que o senhor fizesse tal coisa. Mas me diga: suponha que duas pessoas
colaborem no roubo de um túmulo e uma delas pegue a mão direita como a
parte que lhe cabe, e a outra, a esquerda. Será que quem comeu a mão
direita tem apenas metade da vida do morto, e a outra pessoa, o resto? E, se
for assim, e se um terceiro vier e devorar um pé?
— É uma pena que você seja um torturador — disse Ultan. — Poderia ter
sido um filósofo. Não, pelo que entendo desse assunto nocivo, cada um tem
a vida inteira.
— Então, toda a vida de um homem está em sua mão direita e também em
sua esquerda. Em cada dedo também?
— Acredito que cada participante deva consumir mais que um bocado
para que a prática seja eficaz. Contudo, suponho que, pelo menos em teoria,
o que você diz está correto. A vida inteira está em cada dedo.
Já estávamos voltando na direção pela qual havíamos chegado. Como o
corredor era estreito demais para passarmos um pelo outro, agora eu
carregava o candelabro diante dele, e um estranho, ao nos ver, certamente
pensaria que eu iluminava seu caminho.
— Mas, Mestre — continuei —, como pode ser? Pelo mesmo argumento,
a vida deve residir em cada junta de cada dedo, e certamente isso é
impossível.
— Qual é o tamanho da vida de um homem? — perguntou Ultan.
— Não tenho como saber, mas não é maior que isso?
— Você a concebe a partir do início e a antecipa muito. Eu,
rememorando-a a partir de seu fim, sei quão pouco se passou. Imagino que
seja por isso que as criaturas depravadas que devoram os corpos dos mortos
busquem mais. Deixe-me perguntar uma coisa: você está ciente de que um
filho frequentemente se parece muito com o pai?
— Ouvi dizer, sim. E acredito — respondi. Não pude evitar pensar então
nos pais que nunca conheceria.
— Então, é possível, você concordará, já que cada filho pode se parecer
com seu pai, que um rosto perdure por muitas gerações. Isto é, se o filho se
assemelhar ao pai, e o filho dele se parecer com ele, e o filho desse filho se
parecer com ele, então o quarto na linhagem, o bisneto, se parecerá com o
bisavô.
— Sim — concordei.
— No entanto, a semente de todos estava contida em uma dracma de
fluido pegajoso. Se eles não vieram de lá, de onde vieram?
Não consegui responder a isso e fui caminhando perplexo até chegarmos
à porta pela qual eu havia entrado naquele nível mais baixo da grande
biblioteca. Ali encontramos Cyby carregando os outros livros mencionados
na carta de Mestre Gurloes. Eu os peguei, me despedi de Mestre Ultan e foi
com muita satisfação que deixei a atmosfera sufocante das estantes da
biblioteca. Aos níveis superiores daquele lugar, voltei várias vezes; mas
nunca mais entrei naquele porão tumular, nem jamais desejei fazê-lo.
Um dos três volumes que Cyby trouxera era tão grande quanto o tampo de
uma mesa pequena, de um côvado de largura e uma escassa vara de altura;
pelas armas impressas em sua capa de couro saffiano, imaginei que fosse a
história de alguma antiga família nobre. Os outros eram muito menores. Um
livro verde, pouco maior que a minha mão e não mais grosso que meu dedo
indicador parecia ser uma coleção de devoções, cheia de imagens
esmaltadas de pantocratores e hipóstases ascetas com halos pretos e vestes
semelhantes a pedras preciosas. Parei um pouco para observá-los,
compartilhando com uma fonte seca, um pequeno e esquecido jardim
tomado pelo sol de inverno.
Antes de abrir qualquer um dos outros volumes, senti aquela pressão do
tempo que, talvez, seja a indicação mais segura de que deixamos a infância
para trás. Eu já havia gastado pelo menos duas vigílias em uma tarefa
simples, e logo a luz desapareceria. Recolhi os livros e, apesar de ainda não
saber, me apressei para encontrar meu destino e, finalmente, a mim mesmo,
na Castelã Thecla.
A traidora
Já era hora de levar as refeições aos oficiais de plantão no ergástulo. Drotte
estava encarregado do primeiro nível, e, como queria falar com ele antes de
subir novamente, deixei a sua por último. A verdade é que minha cabeça
ainda nadava em pensamentos gerados pela visita ao arquivista, e eu queria
conversar a respeito disso.
Ele não estava em lugar nenhum. Coloquei a bandeja e os quatro livros
em cima de sua mesa e gritei, chamando pelo seu nome. Logo depois, ouvi
um grito de resposta vindo de uma cela não muito distante. Corri até lá e
espiei pela janela gradeada instalada na porta, na altura dos olhos; a cliente,
uma mulher de meia-idade e aparência esgotada, estava esticada sobre o
catre. Drotte estava inclinado sobre ela, e havia sangue no chão.
Ele estava ocupado demais para virar a cabeça.
— É você, Severian?
— Sim. Trouxe seu jantar e livros para a Castelã Thecla. Posso fazer algo
para ajudar?
— Ela vai ficar bem. Arrancou os curativos e tentou sangrar até a morte,
mas eu a peguei a tempo. Deixe minha bandeja na minha mesa, sim? E
pode terminar de colocar a comida para o resto por mim, se tiver um
momento livre.
Hesitei. Aprendizes não deveriam lidar com aqueles que estão sob os
cuidados da guilda.
— Pode ir. Tudo o que você precisa fazer é enfiar as bandejas nas fendas.
— Eu trouxe os livros.
— Enfie-os na fenda também.
Por mais um momento, fiquei observando-o se curvar sobre a mulher
lívida no catre; depois me virei, encontrei as bandejas que não tinham sido
distribuídas e comecei a fazer o que ele havia pedido. A maioria dos
clientes nas celas ainda tinha força o suficiente para se levantar e pegar a
comida quando eu a passava pela porta. Alguns não, então deixei suas
bandejas do lado de fora para que, mais tarde, Drotte pudesse entrar com
elas. Havia várias mulheres de aparência aristocrática, mas nenhuma que
parecesse ser a Castelã Thecla, uma exultante recém-chegada que — pelo
menos por ora — deveria ser tratada com deferência.
Como eu poderia ter adivinhado, ela estava na última cela. O lugar era
mobiliado com um tapete, além das habituais cama, cadeira e mesinha; no
lugar dos trapos costumeiros, a mulher usava um vestido branco de mangas
largas. As extremidades das mangas e a bainha da saia estavam agora muito
sujas, mas o vestido ainda preservava um ar de elegância tão estranho para
mim, quanto para a própria cela. Quando a vi pela primeira vez, ela bordava
à luz de uma vela, cujo brilho era intensificado por um refletor prateado;
mas deve ter sentido meus olhos sobre si. Hoje, eu ficaria feliz de dizer que
não havia medo em seu rosto, mas não seria verdade. Havia terror ali,
embora controlado até quase se tornar invisível.
— Está tudo bem — eu disse. — Trouxe sua comida.
Ela assentiu e me agradeceu, depois se levantou e foi até a porta. Era mais
alta do que qualquer expectativa minha, quase alta demais para ficar de pé
na cela. O rosto dela, embora fosse triangular e não em forma de coração,
me lembrou o da mulher que estava com Vodalus na necrópole. Talvez
fossem seus grandes olhos cor de violeta, com as pálpebras sombreadas de
azul, e os cabelos pretos que, ao formar um V que se alongava por sua testa,
assemelhavam-se ao capuz de um manto. Fosse qual fosse o motivo, eu a
amei imediatamente — amei-a, pelo menos, na medida em que um garoto
tolo pode amar. Mas, sendo justamente um garoto tolo, eu desconhecia essa
parte.
Sua mão branca, fria, ligeiramente úmida e inacreditavelmente fina tocou
a minha quando ela pegou a bandeja de mim.
— É uma comida comum — falei. — Acho que você consegue coisa
melhor se pedir.
— Você não está usando máscara — disse ela. — Seu rosto é o primeiro
rosto humano que vejo aqui.
— Sou apenas um aprendiz. Não vou usar máscara até o ano que vem.
Ela sorriu e eu me senti igual ao momento em que estive no Átrio do
Tempo, e entrei numa sala quente e com comida. Seus dentes eram estreitos
e muito brancos numa boca larga; os olhos, ambos tão profundos quanto a
cisterna abaixo da Torre do Sino, brilharam quando sorriu.
— Desculpe — falei. — Não ouvi o que você disse.
O sorriso voltou aos seus lábios e ela inclinou a linda cabeça para o lado.
— Eu estava falando como fiquei feliz em ver o seu rosto e perguntei se
você traria minhas refeições no futuro, e o que é isso que me trouxe hoje.
— Não. Não, não vou trazer. Só hoje, porque Drotte está ocupado. —
Tentei me lembrar o que era a refeição dela (ela havia colocado a bandeja
em sua mesinha, onde eu não conseguia ver o conteúdo através da grade).
Não consegui, por mais que meu cérebro tenha quase explodido com o
esforço que fiz. Por fim, falei, sem muita convicção:
— Acho que é melhor você se alimentar. Mas é bem provável que você
consiga uma comida melhor se pedir a Drotte.
— Ora, eu pretendo comer. As pessoas sempre me elogiaram pela minha
figura esbelta, mas pode acreditar em mim, eu como que nem um lobo-
terrível. — Ela pegou a bandeja e a estendeu para mim, como se soubesse
que eu precisaria de toda ajuda para desvendar o mistério do seu conteúdo.
— Isso é alho-poró, Castelã — concluí. — As coisas verdes. As marrons
são lentilhas. E isso é pão.
— “Castelã”? Não precisa ser tão formal. Você é meu carcereiro e pode
me chamar do que quiser. — Havia divertimento nos olhos fundos agora.
— Não tenho nenhum desejo de insultá-la — respondi. — Prefere que eu
a chame de outra coisa?
— Chame-me de Thecla, é o meu nome. Títulos são para ocasiões
formais, nomes para as informais, e essa só pode ser isso. Mas suponho que,
quando eu receber minha punição, haverá uma formalidade, não?
— Normalmente, para exultantes, sim.
— Haverá um exarca, eu acho, se vocês o deixarem entrar. Todo vestido
de retalhos escarlates. Vários outros também… talvez o Starost Egino. Tem
certeza de que isto aqui é pão? — Ela o cutucou com um dedo comprido,
tão branco que, por um instante, pensei que o pão poderia sujá-lo.
— Sim — respondi. — Decerto, a Castelã já comeu pão antes?
— Como este aqui, não. — Ela pegou a magra fatia e rasgou-a com os
dentes, de modo rápido e limpo. — Mas não é ruim. Você disse que, se eu
pedir, eles vão me trazer uma comida melhor?
— Acho que sim, Castelã.
— Thecla. Eu pedi livros. Há dois dias, quando cheguei. Mas não os
recebi.
— Estou com eles — falei. — Bem aqui. — Corri de volta para a mesa de
Drotte, os peguei e passei o menor pela fenda.
— Ah, que maravilha! Há outros?
— Mais três. — O livro marrom também passou pela abertura, mas os
outros dois, o livro verde e o fólio com armas na capa, eram grossos demais
para isso. — Drotte vai abrir sua porta mais tarde e irá entregá-los a você.
— Você não pode? É terrível olhar daqui e conseguir vê-los, mas sem ser
capaz de tocá-los.
— Eu nem deveria estar lhe dando sua refeição. Era Drotte quem deveria
fazer isso.
— Mas você o fez. Além disso, trouxe os livros. Não deveria entregá-los
a mim?
Não tive convicção para argumentar, sabendo que, em princípio, ela
estava certa. A regra contra o trabalho de aprendizes na masmorra tinha
como objetivo evitar fugas; e eu sabia que, por mais alta que ela fosse, essa
mulher esbelta nunca poderia me dominar, e se o fizesse, não teria chance
de sair sem ser contestada. Fui até a porta da cela onde Drotte ainda
trabalhava com a cliente que tentara tirar a própria vida e voltei com as
chaves dele.
De pé diante dela, com a porta da cela fechada e trancada atrás de mim, eu
me vi incapaz de falar. Coloquei os livros na mesa ao lado do castiçal, da
panela de comida e da jarra de água; mal havia espaço para eles. Quando
terminei, fiquei esperando, sabendo que deveria ir embora, e, no entanto,
incapaz de ir.
— Não quer se sentar?
Sentei-me na cama dela, deixando-lhe a cadeira.
— Se esta fosse minha suíte na Casa Absoluta, eu poderia lhe oferecer
mais conforto. Infelizmente, você nunca apareceu enquanto eu estive lá.
Balancei a cabeça.
— Aqui não tenho nenhum refresco para lhe oferecer, exceto isto. Gosta
de lentilhas?
— Não vou comer isso, Castelã. Em breve, comerei meu próprio jantar, e
quase não há o suficiente para você.
— Verdade. — Ela pegou um alho-poró e, então, como se não soubesse
mais o que fazer com aquilo, deixou-o escorrer pela garganta como se fosse
um saltimbanco engolindo uma víbora. — O que você vai comer?
— Alho-poró e lentilha, pão e cordeiro.
— Ah, os torturadores ganham cordeiro: essa é a diferença. Qual o seu
nome, Mestre Torturador?
— Severian. Não vai ajudar, Castelã. Não fará nenhuma diferença.
Ela sorriu.
— O que não vai ajudar?
— Fazer amizade comigo. Eu não poderia lhe dar sua liberdade. E não a
daria, mesmo que não tivesse nenhum amigo além de você em todo o
mundo.
— Não achei que pudesse, Severian.
— Então, por que se dá ao trabalho de falar comigo?
Ela suspirou e toda a alegria desapareceu de seu rosto, como a luz do sol
que deixa a pedra onde um mendigo procura se aquecer.
— Quem mais eu tenho para conversar, Severian? Pode ser que eu
converse com você por um tempo, por alguns dias ou por algumas semanas
e depois morra. Eu sei o que você está pensando: que, se eu estivesse de
volta na minha suíte, nunca daria sequer uma olhada em você. Mas você
está errado. Não se pode conversar com todo tipo de gente porque existem
muitos tipos de gente, mas, um dia antes de me levarem, conversei por
algum tempo com o homem que segurava minha montaria. Falei com ele
porque tinha que esperar, sabe, e então ele disse algo que me interessou.
— Você não vai me ver novamente. Drotte vai trazer sua comida.
— E você não? Pergunte a ele se ele deixaria você fazer isso. — Ela
pegou minhas mãos, e as dela eram como gelo.
— Vou tentar — respondi.
— Sim. Tente. Diga a ele que quero refeições melhores do que esta e que
também quero que você me sirva… espere, eu mesma peço a ele. A quem
ele responde?
— Mestre Gurloes.
— Vou dizer ao outro… é Drotte? Vou dizer que quero falar com ele.
Você tem razão, eles terão que fazer isso. O Autarca pode me libertar… eles
não sabem. — Os olhos dela faiscaram.
— Vou dizer a Drotte que você deseja vê-lo quando ele não estiver
ocupado — eu disse, e me levantei.
— Espere. Não vai me perguntar por que estou aqui?
— Eu sei por que você está aqui — falei ao abrir a porta. — Para ser
torturada, em algum momento, como os outros. — Era uma coisa cruel de
se dizer, e eu falei sem refletir, como os jovens costumam fazer, apenas
porque era isso que estava em minha mente. Mas era verdade, e, de alguma
forma, ao virar a fechadura, fiquei feliz por ter dito aquilo
Já havíamos recebido exultantes como clientes muitas vezes antes. A
maioria, quando chegava, tinha alguma compreensão de sua situação, como
a Castelã Thecla tinha agora. Mas depois que alguns dias se passavam e
eles não sofriam tormentos, sua esperança tomava a frente da razão e logo
começavam a falar de libertação: de como amigos e familiares fariam
manobras para conceder-lhes sua liberdade e do que fariam quando
estivessem livres.
Um deles afirmava que não incomodaria mais a corte do Autarca,
recolhendo-se em suas propriedades. Outro se oferecia para liderar uma
reunião de lansquenetes no norte. Então, no ergástulo, os oficiais de plantão
ouviriam as mais diversas histórias de cães de caça e charnecas remotas, e
jogos campestres, desconhecidos em outros lugares, disputados debaixo de
árvores imemoriais. Entre os exultantes, as mulheres eram, em sua maioria,
mais realistas, mas, com o tempo, mesmo elas falavam sobre amantes em
altos cargos (deixados agora de lado por meses ou anos) que jamais as
abandonariam, e depois que engravidariam ou adotariam crianças
abandonadas. Todos sabiam que, quando esses filhos que nunca nasceriam
ganhavam nomes, então seria a vez de pensar nas roupas: no guarda-roupa
novo que teriam quando libertadas e nas roupas velhas que seriam
queimadas; elas falavam de cores, de inventar novas modas e reviver
antigas.
Finalmente chegava o momento, tanto para homens quanto para mulheres,
em que, em vez de um oficial trazendo comida, Mestre Gurloes apareceria
arrastando três ou quatro oficiais e, talvez, um examinador e um fulgurador.
Se tivesse ao meu alcance, eu queria preservar a Castelã Thecla de tais
esperanças. Pendurei as chaves de Drotte em seu prego habitual na parede,
e quando passei pela cela em que ele agora limpava o sangue do chão,
disse-lhe que a castelã desejava falar com ele.
Dois dias depois, fui convocado pelo Mestre Gurloes. Eu esperava ficar de
pé, como nós, aprendizes, costumamos fazer, com as mãos atrás das costas
diante de sua mesa; mas ele me mandou sentar e, removendo sua máscara
com fios dourados, inclinou-se em minha direção de um jeito que implicava
que tínhamos uma causa comum e uma base amigável.
— Há uma semana, ou pouco menos, mandei você ao arquivista — disse
ele.
Assenti.
— Quando você trouxe os livros, presumo que os tenha entregado à
cliente você mesmo. Isso está certo?
Expliquei o que havia acontecido.
— Nada de errado aí. Não quero que você pense que vou pedir fadigas
extras pelo que você fez, muito menos mandar você se curvar sobre uma
cadeira. Você já é quase um oficial: quando eu tinha a sua idade, eles me
mandavam acionar a manivela do alternador. A questão é, Severian, que a
cliente é de posição elevada. — Sua voz se transformou em um sussurro
áspero. — E tem contatos muito elevados.
Eu disse que entendia.
— Não apenas uma família de armígeros. Sangue nobre. — Ele se virou
e, depois de procurar algo nas prateleiras desordenadas atrás de sua cadeira,
apanhou um livro grosso. — Você tem alguma noção de quantas famílias
exultantes existem? Este tomo aqui lista apenas aquelas que ainda existem.
Um compêndio das extintas tomaria uma enciclopédia, suponho. Eu mesmo
extingui algumas delas.
Ele riu, e eu ri com ele.
— Neste volume há cerca de meia página para cada uma. Tem setecentas
e quarenta e seis páginas.
Assenti para mostrar que entendia.
— A maioria delas não tem ninguém na corte: não têm dinheiro para isso
ou têm medo. Essas são as pequenas. Já as famílias maiores precisam ter: o
Autarca quer uma concubina em quem possa colocar as mãos caso elas
comecem a se comportar mal. Agora, o Autarca não pode dançar quadrilha
com quinhentas mulheres. Há, talvez, vinte. O resto conversa entre si, e
dança, e não o vê mais perto do que uma corrente de distância uma vez por
mês.
Perguntei (tentando manter a voz firme) se o Autarca realmente levava
essas concubinas para a cama.
Mestre Gurloes revirou os olhos e puxou o queixo com a mão enorme.
— Bem, nos dias de hoje, pelo bem da decência, eles têm essas khaibits,
que chamam de mulheres-sombra, que são garotas comuns que se parecem
com as castelãs. Não sei onde as arrumam, mas a função delas seria ficar no
lugar das outras. Claro que elas não são tão altas. — Ele riu. — Mas quando
estão deitadas, a altura provavelmente não faz muita diferença. Dizem,
porém, que muitas vezes a coisa funciona de maneira diferente do que
deveria. Em vez dessas garotas-sombra cumprirem o dever no lugar de suas
senhoras, as senhoras fazem isso para elas. Mas o atual Autarca, de quem
cada ato, eu diria, é mais doce do que mel na boca desta honorável guilda, e
não se esqueça disso… No caso dele, posso dizer, pelo que entendi, é mais
que um tanto duvidoso se ele tem prazer com qualquer uma delas.
O alívio inundou meu coração.
— Eu nunca soube disso. É muito interessante, Mestre.
Mestre Gurloes inclinou a cabeça para reconhecer que de fato era mesmo
e entrelaçou os dedos sobre a barriga.
— Um dia pode ser que você mesmo dê as ordens na guilda. Vai precisar
saber essas coisas. Quando eu tinha a sua idade… ou era um pouco mais
jovem, suponho… costumava imaginar que tinha sangue exultante. Alguns
têm, sabia?
Ocorreu-me, e não pela primeira vez, que Mestre Gurloes e Mestre
Palaemon também deviam saber de onde vinham todos os aprendizes e
jovens oficiais, por terem aprovado suas admissões originalmente.
— Se tenho ou não, não sei dizer. Tenho o físico de um cavaleiro, acho, e
estou um pouco acima da média em altura, apesar de ter tido uma infância
difícil. Pois, há quarenta anos, vou lhe contar, era mais difícil, muito mais
difícil.
— Foi o que me disseram, Mestre.
Ele suspirou, o tipo de chiado que uma almofada de couro às vezes faz
quando alguém se senta em cima dela.
— Mas com o passar do tempo passei a entender que o Incriado, ao
escolher para mim uma carreira em nossa guilda, estava agindo em meu
benefício. Sem dúvida, eu adquiri mérito em uma vida anterior, como
espero ter adquirido nesta.
Mestre Gurloes ficou em silêncio, olhando (me pareceu) para a confusão
de papéis em sua mesa, as instruções dos juristas e os dossiês dos clientes.
Finalmente, quando eu estava prestes a perguntar se ele tinha mais alguma
coisa para me contar, ele disse:
— Em todos os meus anos, nunca soube de um membro da guilda que
tivesse sido torturado. Entre os exultantes, várias centenas, suponho.
Arrisquei o lugar-comum, dizendo que era melhor ser um sapo escondido
debaixo de uma pedra do que uma borboleta esmagada por ela.
— Nós, da guilda, somos mais que sapos, eu acho. Mas eu deveria ter
acrescentado que, embora eu tenha visto quinhentos ou mais exultantes em
nossas celas, nunca, até agora, estive encarregado de alguém desse círculo
íntimo formado pelas concubinas mais próximas do Autarca.
— A Castelã Thecla pertencia a ele? O senhor deu a entender isso há
pouco, Mestre.
Ele assentiu, lúgubre.
— Não seria tão ruim se ela fosse torturada de uma vez, mas não é assim
que acontece. Pode levar anos. Pode ser que nunca aconteça.
— O senhor acredita que ela pode ser libertada, Mestre?
— No jogo do Autarca com Vodalus, ela é um peão: até eu sei disso. A
irmã dela, a Castelã Thea, fugiu da Casa Absoluta para se tornar leman
dele. Eles negociarão com Thecla pelo menos por um tempo, e, enquanto o
fizerem, nós devemos alimentá-la bem. Mas não tão bem assim.
— Entendo — eu disse. Fiquei extremamente desconfortável por não
saber o que a Castelã Thecla havia contado a Drotte, e o que Drotte contara
ao Mestre Gurloes.
— Ela pediu uma comida melhor e eu tomei providências para fornecê-la.
Também pediu companhia, e quando lhe dissemos que visitantes não seriam
permitidos, ela insistiu que pelo menos um de nós deveria às vezes lhe fazer
companhia.
Mestre Gurloes fez uma pausa para limpar o rosto reluzente com a ponta
de seu manto. Eu disse:
— Entendo. — Tinha quase certeza de que realmente entendia o que viria
em seguida.
— Como viu seu rosto, ela perguntou por você. Eu lhe disse que você se
sentaria com ela durante as refeições. Não peço sua concordância, não só
porque você está sujeito às minhas instruções, mas porque sei como você é
leal. O que peço é que você tome cuidado para não desagradar e também
não agradar demais.
— Darei o melhor de mim. — Fiquei surpreso ao ouvir minha própria voz
firme.
Mestre Gurloes sorriu como se eu o tivesse acalmado.
— Você tem uma boa cabeça, Severian, embora ainda seja jovem. Já
esteve com uma mulher?
Quando nós, aprendizes, conversávamos, era costume inventar fábulas
sobre esse assunto, mas eu não estava entre os aprendizes agora, e balancei
a cabeça em negativa.
— Você nunca foi às bruxas? Pode ser melhor assim. Elas forneceram
minha própria instrução no comércio da carne, mas não tenho certeza se
enviaria a elas algum rapaz parecido comigo mesmo, naquela época. É
provável, porém, que a Castelã queira sua cama aquecida. Você não deve
fazer isso por ela. Uma possível gravidez não seria algo banal: poderia
forçar um atraso em seu tormento e trazer desgraça para a guilda. Você me
entende?
Assenti.
— Os rapazes da sua idade são problemáticos. Vou mandar alguém levá-
lo onde tais males são rapidamente curados.
— Como desejar, Mestre.
— O quê? Você não me agradece?
— Obrigado, Mestre — respondi.
Gurloes foi um dos homens mais complexos que já conheci, porque era um
homem complexo tentando ser simples. Não apenas simples, mas a ideia
que um homem complexo tem da simplicidade. Assim como um cortesão
vai se transformando em algo brilhante e complexo, a meio caminho entre
um mestre de dança e um diplomata, com um toque de assassino se
necessário, Mestre Gurloes se moldou para ser a criatura tediosa que um
passavante ou meirinho esperava ver quando convocasse o chefe da nossa
guilda, e essa é a única coisa que um verdadeiro torturador não pode ser. A
tensão era visível; embora cada parte de Gurloes estivesse em seu devido
lugar, nenhuma das peças se encaixava. Ele bebia muito e sofria com
pesadelos, mas os tinha quando bebia, como se o vinho, em vez de trancar
as portas de sua mente, as escancarasse e o deixasse cambaleante nas
últimas horas da noite, tentando vislumbrar um sol que ainda não havia
aparecido, um sol que baniria os fantasmas de sua grande cabine e
permitiria que ele se vestisse e logo mandasse os oficiais trabalharem. Às
vezes ele ia até o alto da nossa torre, acima dos canhões, e ficava ali,
esperando e falando sozinho, espiando por um vidro considerado mais duro
que a pederneira, para ver os primeiros raios de sol. Ele era o único em
nossa guilda — contando com Mestre Palaemon — que não tinha medo das
energias daquele espaço e das bocas invisíveis que às vezes falavam aos
seres humanos e, ocasionalmente, a outras bocas em outras torres e
fortalezas. Ele adorava música, mas batucava no braço de sua cadeira e
batia com o pé, e fazia isso de forma um tanto vigorosa com o tipo de que
mais gostava, cujos ritmos eram sutis demais para qualquer cadência
regular. Comia muito e muito raramente, lia quando pensava que ninguém
sabia disso e visitava alguns de nossos clientes, inclusive um do terceiro
nível, para falar de coisas que nenhum de nós, escutando no corredor lá
fora, conseguia entender. Seus olhos eram refulgentes, mais brilhantes que
os de qualquer mulher. Pronunciava incorretamente palavras bastante
comuns: urticar, salpinx, bordereau. Não consigo dizer ao certo o quão mal
ele aparentava estar recentemente, quando voltei para a Cidadela; o quão
mal ele aparenta estar agora.
O conversador
No dia seguinte, pela primeira vez, levei o jantar para Thecla. Por uma
vigília, permaneci com ela, sendo frequentemente observado por Drotte,
pela fresta da porta da cela. Jogamos jogos de palavras, nos quais ela era
muito melhor do que eu, e depois de um tempo começamos a falar das
coisas que, dizem, aqueles que retornaram afirmam existir além da morte,
ela recontando o que havia lido no menor dos livros que eu lhe trouxera —
não apenas as opiniões aceitas dos hierofantes, mas várias teorias
excêntricas e heréticas.
— Quando estiver livre — disse ela —, vou fundar minha própria seita.
Vou contar a todos que sua sabedoria me foi revelada durante minha estada
entre os torturadores. Isso eles hão de ouvir.
Perguntei quais seriam seus ensinamentos.
— Que não existe agathodaemon ou pós-vida. Que a mente se extingue na
morte, como no sono, porém ainda mais.
— Mas você dirá que quem lhe revelou isso?
Ela balançou a cabeça em negativa, então apoiou o queixo pontudo em
uma das mãos, numa pose que exibia admiravelmente a linha graciosa de
seu pescoço.
— Ainda não decidi. Um anjo de gelo, talvez. Ou um fantasma. Qual
você acha melhor?
— Não há uma contradição nisso?
— Precisamente. — Sua voz estava repleta do prazer que a pergunta lhe
proporcionava. — Em tal contradição residirá o apelo dessa nova crença.
Não se pode fundar uma nova teologia sobre o Nada, e nada é um
fundamento tão seguro quanto uma contradição. Veja os grandes sucessos
do passado: eles dizem que suas divindades são os mestres de todos os
universos, e ainda assim exigem que suas avós os defendam, como se
fossem crianças que se assustam com galinhas. Ou então que a autoridade
que não pune ninguém, enquanto ainda existe uma chance de reforma,
punirá a todos quando não houver possibilidade de alguém se tornar melhor.
Eu disse:
— Essas coisas são complexas demais para mim.
— Não são, não. Acho que você é tão inteligente quanto a maioria dos
jovens. Mas suponho que vocês, torturadores, não tenham religião. Eles
fazem você jurar abandoná-la?
— De jeito nenhum. Temos uma padroeira celestial e rituais, como
qualquer outra guilda.
— Nós não — disse ela. Por um momento, pareceu refletir sobre isso. —
Apenas as guildas têm, sabe, e o exército, que é uma espécie de guilda.
Estaríamos melhor, acho, se tivéssemos uma. Mesmo assim, todos os dias
de festa e as noites de vigília se tornaram espetáculos, oportunidades de
usar vestidos novos. Gosta deste? — Ela se levantou e esticou os braços
para mostrar o vestido sujo.
— É muito bonito — arrisquei. — O bordado e a forma como as
pequenas pérolas estão costuradas.
— É a única coisa que tenho aqui: o que eu vestia quando fui levada. Isso
é para jantar, na verdade. Depois do final da tarde e antes do início da noite.
Eu disse que tinha certeza de que, se ela pedisse, Mestre Gurloes
mandaria buscar outros.
— Já pedi, e ele disse que mandou algumas pessoas à Casa Absoluta a
fim de buscá-los para mim, mas não conseguiram encontrá-la, o que
significa que a Casa Absoluta está tentando fingir que eu não existo. De
qualquer forma, é possível que todas as minhas roupas tenham sido
enviadas para o nosso castelo no norte ou para uma das mansões. Ele vai
mandar o secretário escrevê-los em meu nome.
— Você sabe quem ele enviou? — perguntei. — A Casa Absoluta deve
ser quase tão grande quanto a nossa Cidadela, e acho que seria impossível
alguém não conseguir encontrá-la.
— Pelo contrário, é muito fácil. Já que ela não pode ser vista, você pode
estar lá e nunca saber, se não tiver sorte. Além disso, com as estradas
fechadas, tudo o que eles têm que fazer é alertar os espiões para dar
instruções incorretas a um grupo específico, e eles têm espiões por toda
parte.
Comecei a perguntar como era possível que a Casa Absoluta (que eu
sempre imaginei ser um vasto palácio de torres reluzentes e salões
abobadados) fosse invisível; mas Thecla já estava pensando em outra coisa,
acariciando um bracelete em forma de kraken, um kraken cujos tentáculos
envolviam a carne branca de seu braço; os olhos da criatura eram
esmeraldas cabochões.
— Eles me deixaram ficar com isto, e é muito valioso. Platina, não prata.
Fiquei surpresa.
— Não há ninguém aqui que possa ser subornado.
— Ele poderia ser vendido em Nessus para comprar roupas. Algum dos
meus amigos tentou me visitar? Você sabe, Severian?
Balancei a cabeça em negativa.
— Eles não seriam recebidos aqui.
— Entendo, mas alguém poderia tentar. Você sabia que a maioria das
pessoas da Casa Absoluta não sabe que este lugar existe? Vejo que você não
acredita em mim.
— Você quer dizer que eles não conhecem a Cidadela?
— Eles estão cientes de que ela existe, claro. Partes dela estão abertas a
todos, e de qualquer forma, não há como não ver as torres se a pessoa
descer até o extremo sul da cidade viva, não importa de qual lado de Gyoll
esteja. — Ela deu um tapa na parede de metal de sua cela com uma das
mãos. — Eles não sabem é disto — ou, pelo menos, muitos negariam que
ainda existe.
Ela era uma grande, grande castelã, e eu era algo pior do que um escravo
(quero dizer, aos olhos das pessoas comuns, que não entendem realmente as
funções da nossa guilda). No entanto, quando o tempo passou e Drotte
bateu na porta que retiniu, fui eu que me levantei, saí da cela e logo subi
para o ar límpido da noite, e foi Thecla quem ficou para trás, ouvindo os
gemidos e gritos dos outros. (Embora a cela dela estivesse a uma certa
distância da escada, a risada do terceiro nível ainda era audível quando não
havia ninguém lá para falar com ela.)
Naquela noite, em nosso dormitório, perguntei se alguém sabia os nomes
dos oficiais que Mestre Gurloes havia mandado em busca da Casa
Absoluta. Ninguém sabia, mas minha pergunta provocou uma discussão
animada. Embora nenhum dos meninos tivesse visto o lugar ou sequer
conversado com alguém que tivesse, todos tinham ouvido histórias. A
maioria era de riquezas lendárias: placas de ouro, mantas de sela de seda,
coisas assim. Mais interessantes eram as descrições do Autarca, que teria de
ser uma espécie de monstro para caber em todas elas; ele era considerado
alto quando em pé, de tamanho comum quando sentado, idoso, jovem, uma
mulher vestida de homem, e assim por diante. Mais fantásticas ainda eram
as histórias de seu vizir, o famoso Padre Inire, que parecia um macaco e era
o homem mais velho do mundo.
Mal tínhamos começado a compartilhar todas essas maravilhas quando
ouvimos uma batida na porta. O mais novo a abriu e vi Roche, vestido não
com o calção e o manto fuligem que os regulamentos da guilda decretam,
mas com calça, camisa e casaco comuns, ainda que novos e elegantes. Ele
fez um gesto para mim e quando cheguei à porta para falar com ele, indicou
que eu deveria segui-lo.
Depois de termos descido um pouco a escada, ele disse:
— Receio ter assustado o garotinho. Ele não sabe quem eu sou.
— Não com essas roupas — respondi. — Ele se lembraria de você se o
tivesse visto vestido do jeito que você costuma se vestir.
Isso o agradou, e ele riu.
— Sabe, foi tão estranho ter que bater naquela porta. Hoje é o quê? Dia
dezoito… menos de três semanas se passaram. Como vão as coisas para
você?
— Até que boas.
— Você parece ter a gangue sob controle. Eata é seu padrinho, não é? Ele
ainda vai levar quatro anos para se tornar um oficial, então será capitão por
três anos depois de você. É bom para ele ter a experiência, e sinto muito que
você não tenha podido ter mais dela antes de ter que aceitar o trabalho. Eu
fiquei no seu caminho, mas nunca pensei sobre isso na época.
— Roche, para onde estamos indo?
— Bem, primeiro vamos até minha cabine para você se vestir. Está
ansioso para se tornar um oficial, Severian?
Essas últimas palavras foram jogadas por cima de seu ombro enquanto
descia os degraus à minha frente, e ele não esperou por uma resposta.
Meu traje era muito parecido com o dele, embora de cores diferentes.
Havia sobretudos e bonés para nós também.
— Você me agradecerá por isso — disse ele enquanto eu colocava o meu.
— Está frio e começando a nevar. — Ele me entregou um lenço para o
pescoço e me disse para tirar meus sapatos gastos e calçar um par de botas.
— São botas de oficial — protestei. — Não posso usar isso.
— Pode colocar. Todo mundo usa botas pretas. Ninguém vai notar. Elas
servem?
Eram muito grandes, então ele me fez colocar um par de meias dele por
cima das minhas próprias.
— Agora, eu deveria ficar com a bolsa, mas como sempre há uma chance
de nos separarmos, seria melhor se você tivesse alguns asimi. — Ele deixou
cair moedas na palma da minha mão. — Pronto? Vamos. Eu gostaria de
voltar no tempo para dormir um pouco mais se pudéssemos.
Saímos da torre e, envoltos em nossas roupas estranhas, demos a volta na
Fortaleza das Bruxas para pegar o caminho coberto que passava pelo
Martello até a quadra chamada Quebrada. Roche estava certo: começava a
nevar, flocos fofos do tamanho da ponta do meu polegar peneirando o ar tão
lentamente que parecia que vinham caindo fazia anos. Não havia vento, e
podíamos ouvir o ranger das nossas botas rompendo o novo e fino disfarce
do mundo que nos era familiar.
— Você está com sorte — Roche comentou. — Não sei como você
conseguiu isso, mas obrigado.
— Consegui o quê?
— Uma viagem à Ecopraxia e uma mulher para cada um. Eu sei que você
sabe: Mestre Gurloes me disse que já havia lhe notificado.
— Eu tinha esquecido e, de qualquer forma, não tinha certeza se ele
estava falando sério. Nós vamos andar? Deve ser um longo caminho.
— Não tanto quanto você provavelmente está pensando, mas eu disse que
temos fundos. Haverá fiacres no Portão Amargo. Sempre há: as pessoas
estão continuamente indo e vindo, embora lá no nosso cantinho, nem dê
para imaginar isso.
Para puxar conversa, contei-lhe o que a Castelã Thecla havia dito: que
muita gente na Casa Absoluta não sabia de nossa existência.
— É isso mesmo, tenho certeza. Quando você é criado na guilda, parece
que ela é o centro do mundo. Mas quando você fica um pouco mais velho…
foi isso que eu mesmo descobri, e sei que posso confiar em você para não
ficar por aí contando histórias… algo estala na sua cabeça e você descobre
que, afinal, a guilda não é o eixo deste universo, mas só um negócio bem
pago e impopular no qual, por acaso, você caiu.
Como Roche previra, havia coches à espera na Quadra Quebrada, três
deles. Um era de um exultante, com brasões pintados nas portas e
palafreneiros em librés extravagantes, mas os outros dois eram fiacres,
pequenos e simples. Os condutores, com seus bonés achatados de pele,
curvavam-se sobre uma fogueira que haviam acendido nas pedras do
calçamento. Vista à distância através da neve que caía, ela não parecia
maior que uma faísca.
Roche acenou com o braço e gritou, e um condutor saltou para o banco,
estalou o chicote e veio ao nosso encontro, sacolejando. Quando estávamos
lá dentro, perguntei a Roche se aquele homem sabia quem éramos, e ele
respondeu:
— Somos dois optimates que tinham negócios na Cidadela e agora estão
indo para a Ecopraxia em busca de uma noite de prazer. Isso é tudo que ele
sabe e tudo que precisa saber.
Perguntei-me se Roche teria muito mais experiência em tais prazeres do
que eu mesmo. Parecia improvável. Na esperança de descobrir se ele tinha
visitado nosso destino antes, perguntei onde ficava a Ecopraxia.
— No Bairro Algedônico. Já ouviu falar?
Assenti e disse que Mestre Palaemon havia mencionado uma vez que ele
era uma das partes mais antigas da cidade.
— Não exatamente. Há partes mais ao sul que são ainda mais antigas,
uma vastidão desolada de pedra onde vivem apenas omófagos. A Cidadela
costumava ficar a alguma distância ao norte de Nessus, sabia?
Balancei a cabeça em negativa.
— A cidade continua subindo o rio. Os armígeros e optimates querem
água mais pura: não que eles a bebam, mas a querem para seus viveiros de
peixes, e para tomar banho e fazer passeios de barco. Além disso, qualquer
pessoa que viva perto demais do mar é sempre um tanto suspeita. Assim, as
partes mais baixas, onde a água é pior, são gradualmente abandonadas. No
fim, a lei vai embora e quem fica para trás tem medo de acender fogo por
medo do que a fumaça pode atrair para eles.
Eu estava olhando pela janela. Já havíamos passado por um portão
desconhecido para mim, passando em disparada por guardas com capacetes;
mas ainda estávamos dentro da Cidadela, descendo por um estreito entre
duas fileiras de janelas fechadas.
— Quando você é um oficial, pode ir à cidade a qualquer hora que quiser,
desde que não esteja em serviço.
Eu já sabia disso, é claro; mas perguntei a Roche se ele achava isso
agradável.
— Não agradável, exatamente… só fui duas vezes, para falar a verdade.
Agradável, não, mas interessante. Eles sabem quem você é, naturalmente.
— Você disse que o condutor não sabia.
— Bem, ele provavelmente não sabe. Esses condutores trafegam por toda
Nessus. Ele pode viver em qualquer lugar, e não ir à Cidadela mais de uma
vez por ano. Mas os habitantes locais sabem. Os soldados contam. Eles
sempre sabem, e sempre contam, é isso que todo mundo diz. Eles podem
usar seus uniformes quando saem.
— Essas janelas estão todas escuras. Acho que não há ninguém nesta
parte da Cidadela.
— Tudo está ficando menor. Não há muito o que alguém possa fazer
sobre isso. Menos comida significa menos pessoas até que o Novo Sol
chegue.
Apesar do frio, eu me sentia sufocado no fiacre.
— Ainda está muito longe? — perguntei.
Roche riu.
— É normal ficar nervoso.
— Eu não estou.
— Certamente está. Só não deixe que isso o incomode. É natural. Não
fique nervoso por estar nervoso, se é que você me entende.
— Estou bastante calmo.
— Pode ser rápido, se for esse o seu desejo. Não precisa falar com a
mulher, se não quiser. Ela não se importa. Claro, ela vai falar, se for disso
que você gostar. Você está pagando: neste caso, eu estou pagando, mas o
princípio é o mesmo. Ela vai fazer o que você quiser, dentro do razoável. Se
você bater nela ou agarrá-la com força, ela vai cobrar mais.
— As pessoas fazem isso?
— Você sabe, amadores. Não achei que você fosse querer, e acho que
ninguém na guilda faz isso, a menos, talvez, que esteja bêbado. — Ele fez
uma pausa. — As mulheres estão violando a lei, então não podem reclamar.
Com o fiacre deslizando de forma alarmante, saímos da área fechada e
entramos em uma ainda mais estreita que corria tortuosamente para o leste.
A Casa Azul-Celeste
Nosso destino era uma daquelas estruturas de acumulação vistas nas partes
mais antigas da cidade (mas até onde sei, apenas lá), em que a sobreposição
e a interconexão do que originalmente eram edifícios independentes produz
uma confusão de alas protuberantes e estilos arquitetônicos, com picos e
torres onde os primeiros construtores haviam apenas pretendido fazer
telhados. Ali, a neve havia caído mais pesadamente — ou, talvez, tivesse
caído somente durante o nosso percurso. Ela cercava o alto pórtico com
montes disformes de cor branca, suavizava e borrava os contornos da
entrada, fazia travesseiros nos parapeitos das janelas e, mascarando e
vestindo as cariátides de madeira que sustentavam o telhado, parecia
prometer silêncio, segurança e sigilo.
Havia fracas luzes amareladas nas janelas de baixo. Os andares superiores
permaneciam às escuras. Apesar da neve acumulada, alguém lá dentro deve
ter ouvido nossos pés do lado de fora. A porta grande, velha e já não meio
deteriorada, se abriu antes que Roche pudesse bater. Entramos e nos
encontramos em uma salinha estreita parecida com uma caixinha de joias,
porque as paredes e o teto eram cobertos com colchas de cetim azul. A
pessoa que abriu a porta para nós usava sapatos de sola grossa e um manto
amarelo; seu cabelo curto e branco estava penteado para trás, mostrando
uma testa larga, porém arredondada, acima de um rosto sem barba e sem
rugas. Quando passei por ele, descobri que olhava em seus olhos como
quem olha por uma janela. Aqueles olhos poderiam realmente ser de vidro,
de tão sem veios e polidos que pareciam ser… um céu de seca de verão.
— Vocês estão com sorte — disse ele, e entregou uma taça a cada um de
nós. — Não há ninguém aqui além de vocês.
Roche respondeu:
— Tenho certeza de que as meninas estão se sentindo sozinhas.
— Estão. Você sorri… Vejo que não acredita em mim, mas é verdade.
Elas reclamam quando muitos comparecem à corte delas, mas também
ficam tristes quando ninguém aparece. Cada uma vai tentar encantá-los esta
noite. Vocês vão ver. Quando vocês forem embora, as escolhidas vão querer
se gabar pela conquista. Além disso, vocês dois são moços bonitos. — Ele
fez uma pausa e, embora não encarasse, pareceu olhar Roche mais de perto.
— Você já esteve aqui, não esteve? Eu me lembro de seus cabelos ruivos e
de sua cor intensa. Muito ao sul, nas terras estreitas, os selvagens pintam
um espírito do fogo muito parecido com você. E seu amigo tem cara de
exultante… é disso que minhas jovens mais gostam. Entendi por que você o
trouxe aqui. — A voz dele poderia ter sido o tenor de um homem ou o
contralto de uma mulher.
Outra porta se abriu. Tinha um vitral embutido mostrando a Tentação.
Entramos numa sala que parecia mais espaçosa do que seria possível caber
ali dentro (em parte, sem dúvida, por causa da constrição daquela que
acabávamos de deixar). O teto alto estava enfeitado com o que parecia ser
seda branca, dando-lhe o ar de um pavilhão. Duas paredes eram revestidas
com colunatas: estas eram falsas, as pretensas colunas sendo apenas
pilastras semicirculares pressionadas contra suas superfícies pintadas de
azul, e a arquitrave nada além de uma moldura; mas, desde que
permanecêssemos perto do centro, o efeito era impressionante e quase
perfeito.
No outro extremo da câmara, em frente às janelas, havia uma cadeira de
espaldar alto que parecia um trono. Nosso anfitrião sentou-se nela e quase
imediatamente ouvi um soar de carrilhão em algum lugar no interior da
casa. Em duas cadeiras menores, Roche e eu esperamos em silêncio
enquanto os ecos límpidos morriam. Não havia som vindo lá de fora, e, no
entanto, eu podia sentir a neve caindo. Meu vinho prometia manter o frio
longe, e, em alguns goles, vi o fundo da taça. Era como se eu estivesse
aguardando o início de alguma cerimônia na capela em ruínas, mas, ao
mesmo tempo, menos real e mais séria.
— A Castelã Barbea — anunciou nosso anfitrião.
Uma mulher alta entrou. Era tão altiva, tão linda e atrevidamente vestida,
que levei vários minutos até perceber que ela não poderia ter mais do que
dezessete anos. Seu rosto era oval e perfeito, com olhos límpidos, um
narizinho reto e uma boca minúscula pintada para parecer ainda menor. O
cabelo chegava tão perto da cor de ouro polido que poderia ter facilmente
sido uma peruca de fios dourados.
Ela se posicionou um ou dois passos diante de nós e lentamente começou
a girar, fazendo uma centena de poses graciosas. Até então, eu nunca tinha
visto uma dançarina profissional; ainda hoje, não creio ter visto uma pessoa
tão bonita quanto ela. Não consigo transmitir, então, o que senti ao observá-
la naquela sala estranha.
— Todas as beldades da corte estão aqui para vocês — disse nosso
anfitrião. — Aqui na Casa Azul-Celeste, à noite, trazidas das paredes de
ouro para encontrar a dissipação no prazer de vocês.
Meio hipnotizado como estava, pensei que essa afirmação fantástica
tivesse sido feita a sério. E disse:
— Isso certamente não é verdade.
— Você veio em busca de prazer, não foi? Se um sonho aumenta sua
diversão, por que contestá-lo? — Durante todo esse tempo, a garota de
cabelos dourados continuava sua dança lenta e desacompanhada.
Um momento fluía para outro.
— Gosta dela? — nosso anfitrião perguntou. — É a sua escolhida?
Eu estava prestes a dizer — ou melhor, a gritar, sentindo, naquele
momento, tudo o que em mim já havia ansiado por uma mulher, retornando
em sua ânsia — que sim. Antes que eu pudesse recuperar o fôlego, Roche
disse:
— Vamos ver algumas das outras. — A garota terminou a dança
imediatamente, fez uma reverência e saiu da sala.
— Vocês podem ter mais de uma, sabem? Separadas ou juntas. Temos
algumas camas bem grandes. — A porta se abriu novamente. — A Castelã
Gracia.
Embora essa garota parecesse bem diferente, havia muito nela que me
lembrava a “Castelã Barbea”, que viera antes. O cabelo era branco como os
flocos que flutuavam pelas janelas, fazendo seu rosto jovem parecer ainda
mais novo e sua tez morena ainda mais escura. Tinha (ou parecia ter) seios
maiores e lábios mais generosos. No entanto, senti que era quase possível
que, afinal, fosse a mesma mulher, e que tivesse apenas trocado de roupa,
trocado de asas, coberto o rosto com cosméticos nos poucos segundos entre
a saída da outra e sua entrada. Era absurdo, mas, assim como tantos outros
absurdos, havia um quê de verdade naquilo. Havia algo nos olhos de ambas
as mulheres, na expressão de suas bocas, em seu porte e na fluidez de seus
gestos, que era um só. Isso me fazia lembrar de algo que eu tinha visto em
outro lugar (não conseguia lembrar onde), e, ainda assim, era novo, de
alguma forma, porém, eu senti que a outra coisa, aquela que eu tinha
conhecido antes, era melhor.
— Para mim, esta serve — disse Roche. — Agora precisamos encontrar
algo para o meu amigo aqui. — A morena, que não dançara como a outra,
mas havia apenas ficado de pé, sorrindo levemente, fazendo uma reverência
e virando-se no centro da sala, agora permitiu que seu sorriso se alargasse
um pouco, foi até Roche, sentou-se no braço de sua cadeira e começou a
sussurrar para ele.
Quando a porta se abriu pela terceira vez, nosso anfitrião disse:
— A Castelã Thecla.
Parecia realmente ela, tal como eu me lembrava — como havia escapado,
eu não fazia ideia. No final, foi a razão, e não a observação, que me disse
que eu estava enganado. Que diferenças eu poderia ter detectado com as
duas em pé, lado a lado, não sei dizer, embora certamente essa mulher fosse
um pouco mais baixa.
— É ela que você deseja, então — disse nosso anfitrião. Eu não conseguia
me lembrar de ter falado.
Roche deu um passo à frente com uma bolsa de couro, anunciando que
pagaria por nós dois. Observei as moedas enquanto ele as tirava, esperando
para ver o brilho de um criso. Não havia nenhum ali — apenas alguns
asimis.
A “Castelã Thecla” tocou em minha mão. O perfume que ela usava era
mais forte do que o leve perfume da verdadeira Thecla; ainda assim, era o
mesmo aroma, um que me fazia pensar numa rosa queimando.
— Venha — ela disse.
Eu a segui. Havia um corredor mal iluminado e não limpo, depois uma
escada estreita. Perguntei quantos membros da corte havia ali, e ela fez uma
pausa, olhando para mim de modo oblíquo. Havia algo em seu rosto que
poderia ter sido descrito como vaidade satisfeita, amor, ou aquela emoção
mais obscura que sentimos quando, o que antes foi um concurso, se torna
uma performance.
— Esta noite, muito poucas. Devido à neve. Eu vim de trenó com Gracia.
Assenti. Achei que sabia muito bem que ela vinha apenas de uma das ruas
secundárias ao redor da casa em que estávamos naquela noite, e
provavelmente a pé, com um xale nos cabelos e o frio penetrando nos
sapatos velhos. No entanto, o que ela disse me pareceu mais significativo
do que a realidade: pude sentir os destriers suarentos saltando pela neve que
caía mais rápido do que qualquer máquina, o vento assobiando, as mulheres
jovens, bonitas e cansadas, embrulhadas em zibelina e lince, escuras contra
almofadas de veludo vermelho.
— Você não vem?
Ela já havia chegado ao topo da escada, quase fora de vista. Alguém falou
com ela, chamando-a de “minha querida irmã”, e quando subi mais alguns
passos, vi que era uma mulher muito parecida com aquela que havia estado
com Vodalus, aquela do rosto em formato de coração e capuz preto. Essa
mulher não prestou atenção em mim, e assim que lhe dei espaço para fazê-
lo, desceu apressada a escada.
— Agora você vê o que poderia ter tido, caso tivesse esperado mais uma
aparecer. — Um sorriso que, em outro lugar, eu aprendera a reconhecer,
espreitava num canto da boca da minha pafiana.
— Eu ainda teria escolhido você.
— Ah, isso realmente me diverte: vamos, venha comigo, você não vai
querer ficar neste salão frio para sempre. A cara que você manteve foi
perfeitamente séria, mas seus olhos reviraram feito os de um bezerro. Ela é
bonita, não é?
A mulher que se parecia com Thecla abriu uma porta, e entramos num
quarto pequeno com uma cama imensa. Havia um turíbulo frio pendurado
no teto por uma corrente prateada; em um canto, uma luminária alta
sustentando uma lâmpada rosada. Havia ali uma pequena penteadeira com
espelho, um guarda-roupa estreito e quase não sobrava espaço para nos
movermos direito.
— Você gostaria de me despir?
Assenti e estendi as mãos para ela.
— Então devo avisar, tome cuidado com as minhas roupas. — Ela me deu
as costas. — Isto aqui prende nas costas. Comece por cima, na parte de trás
do meu pescoço. Se você ficar excitado e rasgar alguma coisa, ele fará você
pagar pela peça. Não diga que não avisei.
Meus dedos encontraram um ganchinho e o soltaram.
— Eu achava, Castelã Thecla, que você teria muitas roupas.
— E tenho. Mas você acha que eu quero voltar para a Casa Absoluta com
um vestido rasgado?
— Você deve ter outros aqui.
— Alguns, mas não posso guardar muita coisa neste lugar. Quando saio,
alguém pode pegá-las.
O tecido entre meus dedos, que parecia tão brilhante e rico no salão azul
com colunatas lá embaixo, era fino e barato.
— Nada de cetim, suponho — falei enquanto soltava o gancho seguinte.
— Nem zibelina, nem diamante.
— Claro que não.
Dei um passo para longe dela. (Quase dei com as costas na porta.) Não
havia nada de Thecla nela. Tudo aquilo tinha sido uma semelhança casual,
uns gestos, uma semelhança no vestuário. Eu estava em pé, parado numa
sala pequena e fria, olhando para o pescoço e os ombros nus de alguma
pobre jovem cujos pais, talvez, aceitavam com gratidão a sua parte da
escassa prata de Roche e fingiam não saber para onde a filha ia à noite.
— Você não é a Castelã Thecla — eu disse. — O que estou fazendo aqui
com você?
Certamente, havia mais na minha voz do que eu pretendia. Ela se virou
para me encarar, o tecido fino do vestido deslizando dos seios. Eu vi o
medo passar de relance pelo rosto dela, como se estivesse sendo
direcionado por um espelho; ela já devia ter passado por aquela situação
antes, e devia ter acabado mal para ela.
— Eu sou Thecla — ela disse. — Se você quiser que eu seja.
Levantei a mão e ela acrescentou rapidamente:
— Há pessoas aqui para me proteger. Eu só preciso gritar. Você pode me
bater uma vez, mas não vai bater duas.
— Não — eu disse a ela.
— Há, sim. Três homens.
— Não há ninguém. Este andar inteiro está vazio e frio: você acha que eu
não reparei em como é silencioso? Roche e a garota dele ficaram lá
embaixo, e talvez tenham conseguido um quarto melhor, porque ele pagou.
A mulher que vimos no alto da escada estava saindo e queria falar com
você primeiro. Olhe. — Eu a peguei pela cintura e a levantei no ar. — Grite.
Ninguém virá. — Ela ficou em silêncio. Eu a deixei cair na cama e, depois
de um momento, me sentei ao seu lado.
— Você está com raiva porque eu não sou Thecla. Mas eu teria sido
Thecla para você. Vou ficar quieta. — Ela tirou aquele casaco estranho dos
meus ombros e o deixou cair. — Você é muito forte.
— Não sou, não. — Eu sabia que alguns dos garotos que tinham medo de
mim já estavam mais fortes que eu.
— Muito forte. Você não é forte o suficiente para dominar a realidade,
mesmo que por pouco tempo?
— O que você quer dizer?
— Pessoas fracas acreditam no que lhes é imposto. Pessoas fortes
acreditam no que desejam acreditar, forçando-o a ser real. O que é o
Autarca senão um homem que acredita que ele próprio é o Autarca, e, com
sua força, faz os outros acreditarem?
— Você não é a Castelã Thecla — falei.
— Mas você não vê que ela também não é? A Castelã Thecla, em quem
duvido que você tenha posto os olhos… Não, vejo que estou errada. Você já
esteve na Casa Absoluta?
Suas mãos, pequenas e quentes, seguravam a minha mão direita,
apertando-a. Eu balancei a cabeça em negativa.
— Às vezes os clientes dizem que sim. Sempre tenho prazer em ouvi-los.
— Eles foram lá? Mesmo?
Ela deu de ombros.
— Eu estava dizendo que a Castelã Thecla não é a Castelã Thecla. Não a
Castelã Thecla da sua mente, ela que é a única Castelã Thecla com quem
você se importa. Nem eu. Qual é, então, a diferença entre nós?
— Nenhuma, eu acho.
Enquanto me despia, falei:
— No entanto, todos nós procuramos descobrir o que é real. Por quê?
Talvez nos sintamos atraídos pelo teocentro. Isso é o que dizem os
hierofantes, que só essa é verdade.
Ela beijou minhas coxas, sabendo que havia vencido.
— Você está mesmo pronto para descobrir? Deve estar vestido de
privilégio, lembre-se. Caso contrário, será entregue aos torturadores. Você
não gostaria disso.
— Não — respondi, e tomei a cabeça dela entre minhas mãos.
O ano passado
Acho que era intenção do Mestre Gurloes que eu fosse levado para aquela
casa com frequência, a fim de que não me sentisse muito atraído por
Thecla. Na verdade, permiti que Roche embolsasse o dinheiro e nunca mais
voltei lá. A dor tinha sido prazerosa demais, o prazer doloroso demais; de
modo que temi que, com o tempo, minha mente não fosse mais ser a coisa
que eu conhecia.
E também, antes de Roche e eu sairmos da casa, o homem de cabelos
brancos (que havia chamado minha atenção) havia tirado do peito de seu
manto, o que, a princípio, eu tinha pensado ser um ícone, mas que logo
descobri se tratar de um frasco dourado em forma de falo. Ele sorriu e,
como não havia nada além de amizade em seu sorriso, aquilo me assustou.
Alguns dias se passaram antes que eu pudesse livrar meus pensamentos
sobre Thecla, de certas impressões pertencentes à falsa Thecla, que me
iniciara nas diversões e fruições anacreônticas de homens e mulheres. Pode
ser que o efeito surtido tenha sido oposto ao pretendido por Mestre Gurloes,
mas creio que não. Acredito que nunca estive menos inclinado a amar a
infeliz mulher do que quando carreguei na minha memória as impressões
recentes de tê-la desfrutado livremente; foi como se, guiado pela inverdade
daquela situação, eu a visse de modo cada vez mais claro, e me sentisse
compelido a reparar o fato, e atraído por intermédio dela (embora, naquele
momento, eu mal tivesse consciência disso) ao mundo de conhecimento e
privilégios antigos que Thecla representava.
Os livros que eu levara para ela se tornaram minha universidade; ela, meu
oráculo. Não sou um homem culto: com Mestre Palaemon, aprendi pouco
mais que ler, escrever e calcular, além de alguns fatos relativos ao mundo
físico e aos requisitos do nosso mistério. Se, por vezes, homens cultos
pensaram que eu fosse, se não seu igual, pelo menos aquele cuja companhia
não os envergonhava, isso se deve exclusivamente à Thecla: a Thecla de
que me lembro, a Thecla que vive em mim, e aos quatro livros.
O que lemos juntos e o que dissemos um ao outro, não contarei; recontar
o mínimo que fosse dissiparia essa breve noite. Durante todo aquele
inverno, enquanto a neve embranquecia o Velho Pátio, eu saía do ergástulo
como se estivesse dormindo e me espantava ao ver as pegadas que meus pés
deixavam atrás de mim, e minha sombra na neve. Thecla estava triste
naquele inverno, mas tinha prazer em falar comigo sobre os segredos do
passado, as conjeturas formadas das esferas superiores e as armas e
histórias de heróis mortos há milênios.
A primavera chegou, e com ela, os lírios listrados de roxo e pontilhados de
branco da necrópole. Eu os levava para Thecla, e ela dizia que minha barba
tinha brotado como eles, e eu ficaria com a bochecha mais azulada do que a
maioria dos homens comuns, e, no dia seguinte, ela implorava meu perdão
por ter dito aquilo, dizendo que eu já era assim antes. Com o clima quente e
(acho eu) as flores que eu levava, seu ânimo melhorou. Quando
rastreávamos a insígnia das casas antigas, ela falava de amigas de sua
própria posição e dos casamentos que elas haviam feito, bons e ruins, e de
como uma delas havia trocado seu futuro por uma fortaleza em ruínas
porque a tinha visto num sonho; e de como outra, que brincava de boneca
com ela quando eram crianças, era agora a senhora de tantos milhares de
léguas.
— E, em algum momento, deve haver um novo Autarca e talvez uma
nova Autarquia, você sabe, Severian. As coisas podem continuar como têm
sido por um longo tempo. Mas não para sempre.
— Da corte conheço pouco, Castelã.
— Quanto menos souber, mais feliz você será. — Ela fez uma pausa,
dentes brancos mordiscando o lábio inferior delicadamente curvado. —
Quando minha mãe estava em trabalho de parto, ela fez com que os servos a
levassem à Fonte Vática, cuja virtude é revelar o que está por vir. A fonte
profetizou que eu deveria me sentar em um trono. Thea sempre me invejou
por isso. Ainda assim, o Autarca…
— Sim?
— Seria melhor se eu não falasse muito. O Autarca não é como as outras
pessoas. Não importa como eu fale às vezes, em toda Urth não há ninguém
como ele.
— Eu sei.
— Então, isso é o suficiente para você. Olhe aqui. — Ela ergueu o livro
marrom. — Aqui diz: “Era o pensamento de Thalelaeus, o Grande, que a
democracia” — que significa o Povo — “desejava ser governada por algum
poder superior a si mesma, e de Yrierix, o Sábio, e que a comunalidade
jamais permitiria que alguém que diferisse deles mesmos ocupasse altos
cargos. Apesar disso, cada um deles é chamado de O Mestre Perfeito”.
Não entendi o que ela queria dizer e nada falei.
— Ninguém realmente sabe o que o Autarca vai fazer. Tudo se resume a
isso. Ou, tampouco, o que Padre Inire fará. Quando cheguei à corte pela
primeira vez, disseram-me, como um grande segredo, que era o Padre Inire
quem realmente determinava a política da Comunidade. Quando eu estava
lá há dois anos, um homem de posição muito elevada — nem sequer posso
dizer o nome dele — disse que era o Autarca quem governava, embora para
aqueles na Casa Absoluta parecesse que era o Padre Inire. E, no ano
passado, uma mulher em cujo julgamento confio mais do que no de
qualquer homem, me confidenciou que, na verdade, não fazia diferença,
porque ambos eram tão insondáveis quanto as profundezas pelágicas, e se
um decidisse as coisas enquanto a lua crescia, e o outro quando o vento
soprava do leste, de qualquer maneira ninguém conseguiria perceber a
diferença. Eu achei que aquilo havia sido um conselho sábio, até que
percebi que ela estava apenas repetindo algo que eu mesma havia dito a ela
meio ano antes. — Thecla ficou em silêncio, reclinando-se na cama estreita,
os cabelos escuros espalhados no travesseiro.
— Pelo menos — comentei — você estava certa em confiar nessa mulher.
Ela obteve as opiniões dela de uma fonte confiável.
Como se não tivesse me ouvido, ela murmurou:
— Mas é tudo verdade, Severian. Ninguém sabe o que eles podem fazer.
Podem me libertar amanhã. É bem possível. Eles já devem saber que estou
aqui. Não me olhe assim. Meus amigos falarão com o Padre Inire. Talvez
alguns possam até mencionar meu nome para o Autarca. Você sabe por que
fui levada, não sabe?
— Algo sobre sua irmã.
— Minha meia-irmã Thea está com Vodalus. Dizem que ela é o paramour
dele, e eu acho que é extremamente provável.
Lembrei-me da linda mulher no topo da escada da Casa Azul-Celeste e
disse:
— Acho que vi sua meia-irmã uma vez. Foi na necrópole. Havia um
exultante com ela que carregava uma espada de bengala e era muito bonito.
Ele me disse que era Vodalus. A mulher tinha o rosto em formato de
coração e uma voz que me fez pensar em pombas. Era ela?
— Imagino que sim. Eles querem que ela o traia para me salvar, e eu sei
que ela não vai fazer isso. Mas quando eles descobrirem isso, por que não
deveriam me deixar ir embora?
Falei de outro assunto, até que ela riu e disse:
— Você é tão intelectual, Severian. Quando virar oficial, você será o
torturador mais cerebral da história: um pensamento assustador.
— Eu tinha a impressão de que você gostava desse tipo de discussão,
Castelã.
— Só agora, porque não posso sair. Embora possa ser um choque para
você, quando estava livre, eu raramente dedicava tempo à metafísica. Em
vez disso, saía para dançar e caçar caititus com sabujos leopardinos. O
aprendizado que você admira foi adquirido quando eu era menina e me
sentava com meu tutor sob a ameaça da vara.
— Não precisamos falar dessas coisas, Castelã, se preferir que não
falemos.
Ela se levantou e enfiou o rosto no centro do buquê que eu havia colhido
para ela.
— As flores são uma teologia melhor do que os fólios, Severian. É bonito
na necrópole? Lá, onde você conseguiu isso. Você não está me trazendo as
flores das sepulturas, está? Flores cortadas dos ramos que alguém levou?
— Não. Estas foram plantadas há muito tempo. Elas brotam todo ano.
Na fresta da porta, Drotte disse:
— Hora de ir. — E eu me levantei.
— Você acha que pode vê-la novamente? A Castelã Thea, minha irmã?
— Acho que não, Castelã.
— Se por acaso isso acontecer, Severian, você contaria a ela sobre mim?
Eles podem não ter conseguido se comunicar com ela. Não haverá traição
nisso… você estará fazendo o trabalho do Autarca.
— Eu contarei, Castelã. — Já estava passando pela porta.
— Ela não vai trair Vodalus, eu sei, mas pode haver algum acordo.
Drotte fechou a porta e girou a chave. Não me passou despercebido que
Thecla não perguntou como sua irmã e Vodalus surgiram em nossa antiga
— e, por pessoas como eles próprios, esquecida — necrópole. O corredor,
com suas fileiras de portas de metal e paredes que suavam frio, parecia
escuro depois da lâmpada na cela. Drotte começou a falar de uma expedição
que ele e Roche haviam feito até uma cova de leões do outro lado do Gyoll;
por cima do som de sua voz, ouvi Thecla chamando bem ao longe:
— Lembre-a de quando costuramos a boneca de Josepha.
Os lírios murcharam como costumam murchar, e as rosas escuras da morte
floresceram. Eu as colhi e as levei para Thecla, roxos nigrescentes
salpicados de escarlate. Ela sorriu e recitou:
— “Rosa, a Agraciada, e não Rosa, a Casta, aqui repousa.
O perfume que daqui sobe não é perfume de rosa.”
— Se o odor delas a ofende, Castelã…
— De jeito nenhum, é muito doce. Eu estava apenas citando algo que
minha avó costumava dizer. Essa mulher era terrível quando menina, ou,
pelo menos, era o que me dizia, e todas as crianças cantaram esses
versinhos quando ela morreu. Na verdade, suspeito que isso seja muito mais
antigo e que tenha se perdido no tempo, como o início de todas as coisas
boas e ruins. Dizem que os homens desejam mulheres, Severian. Por que
eles desprezam as mulheres que obtêm?
— Não acredito que todos façam isso, Castelã.
— Aquela linda Rosa se entregou e, até onde sei, sofreu tanto escárnio
por isso, embora há muito tempo seus sonhos tenham, junto com sua carne
macia, se transformado em pó. Venha aqui e sente-se ao meu lado.
Fiz o que me foi pedido, e ela deslizou as mãos sob a parte inferior
desgastada da minha camisa e a puxou pela minha cabeça. Protestei, mas
não consegui resistir.
— Do que você tem vergonha? Você que não tem seios para esconder. Eu
nunca vi uma pele tão branca combinada com cabelos escuros… Você acha
que minha própria pele é branca?
— Muito branca, Castelã.
— Os outros também, mas ela é parda perto da sua. Você deve fugir do
sol quando for um torturador, Severian. Vai se queimar terrivelmente.
Seus cabelos, que muitas vezes ela soltava e deixava cair, hoje estavam
presos na cabeça em uma auréola escura. Ela nunca se parecera tanto com
sua meia-irmã, Thea, e senti tamanho desejo por ela que parecia que estava
derramando meu sangue no chão, ficando cada vez mais fraco a cada
contração do meu coração.
— Por que você está esmurrando minha porta? — Seu sorriso me disse
que ela sabia.
— Preciso ir.
— É melhor você colocar a camisa de volta antes de sair… você não iria
querer que seu amigo o visse assim.
Naquela noite, embora soubesse que era em vão, fui à necrópole e passei
várias vigílias vagando entre as casas silenciosas dos mortos. Voltei na noite
seguinte e na seguinte, mas na quarta Roche me levou para a cidade, e, em
um bar, ouvi de alguém que parecia saber das coisas, que Vodalus estava
bem ao norte, escondendo-se entre as florestas geladas e atacando cáfilas.
Os dias se passaram. Thecla agora tinha certeza, já que estava sendo
mantida em segurança havia tanto tempo, de que nunca seria torturada, e
conseguiu que Drotte levasse seus materiais para escrever e desenhar, com
os quais planejou uma mansão que pretendia construir na margem sul do
lago Diuturna, que dizem ser a parte mais remota da Comunidade, bem
como a mais bonita. Eu levava grupos de aprendizes para nadar, pensando
que esse era meu dever, apesar de jamais conseguir mergulhar em águas
profundas sem medo.
Então, de um modo que me pareceu repentino, o tempo ficou frio demais
para nadar; numa manhã, havia geada cintilante nas lajes gastas do Velho
Pátio, e carne de porco fresca apareceu em nossos pratos durante o jantar,
um sinal claro de que o frio havia chegado às colinas abaixo da cidade.
Mestre Gurloes e Mestre Palaemon me convocaram.
Mestre Gurloes disse:
— De vários lugares, temos recebido bons relatórios a seu respeito,
Severian, e agora seu aprendizado está quase concluído.
Quase sussurrando, Mestre Palaemon acrescentou:
— Sua infância ficou para trás, sua vida masculina adulta está à sua
frente. — Havia afeição em sua voz.
— Exatamente — continuou Mestre Gurloes. — A festa da nossa
padroeira está chegando. Suponho que você tenha pensado nisso?
Assenti.
— Eata será capitão depois de mim.
— E você?
Não entendi o que isso significava; Mestre Palaemon, vendo isso,
perguntou gentilmente:
— O que você será, Severian? Um torturador? Você pode sair da guilda,
se preferir, sabe?
Eu disse a ele com firmeza — e como se estivesse um pouco chocado
com a sugestão — que nunca tinha pensado nisso. Era mentira. Eu sabia,
como todos os aprendizes sabiam, que alguém não se tornava final e
firmemente um membro da guilda até que, como um adulto, consentisse a
essa ligação. Além disso, embora eu amasse a guilda, também a odiava: não
por causa da dor que infligia aos clientes que, algumas vezes, deveriam ser
inocentes e que, muitas vezes, a punição ultrapassava qualquer coisa que
pudesse ter sido justificada pelas suas ofensas; mas porque me parecia
ineficiente e ineficaz, servindo a um poder que não era apenas ineficaz, mas
também remoto. Não sei qual a melhor forma de expressar meus
sentimentos a respeito, além de dizer que a odiava por me matar de fome e
me humilhar e a amava porque era minha casa; eu a odiava e a amava
porque era o exemplar das coisas antigas, porque era fraca e porque parecia
indestrutível.
Naturalmente, não expressei nada disso ao Mestre Palaemon, embora
pudesse tê-lo feito se Mestre Gurloes não estivesse presente. Ainda assim,
parecia incrível que minha profissão de lealdade, feita em farrapos, pudesse
ser levada a sério; e, no entanto, foi.
— Quer você tenha considerado nos deixar ou não — disse Mestre
Palaemon —, essa é uma opção aberta para você. Muitos diriam que só um
tolo serviria os difíceis anos de aprendizagem e se recusaria a se tornar um
oficial de sua guilda quando seu aprendizado terminasse. Mas você pode
fazer isso se desejar.
— Para onde eu iria?
Esse, mesmo que eu não pudesse dizer a eles, era o verdadeiro motivo
pelo qual eu ficaria. Eu sabia que havia um vasto mundo fora dos muros da
Cidadela: na verdade, fora dos muros da nossa torre. Mas não podia
imaginar que teria algum lugar nele. Diante de uma escolha entre a
escravidão e o vazio da liberdade, acrescentei:
— Fui criado em nossa guilda. — Disse isso por medo de que eles
respondessem à minha pergunta.
— Sim — disse Mestre Gurloes em sua maneira mais formal. — Mas
você ainda não é torturador. Ainda não vestiu fuligem.
A mão do Mestre Palaemon, seca e encarquilhada como a de uma múmia,
tateou até encontrar a minha.
— Entre os iniciados na religião, se diz: “Você é sempre um epopta”. A
referência não é apenas ao conhecimento, mas à sua crisma, cuja marca,
sendo invisível, é inerradicável. Você conhece nossa crisma.
Assenti novamente.
— Menos ainda que a deles, a nossa pode ser lavada. Caso você saia
agora, os homens apenas dirão: “Ele foi criado pelos torturadores”. Mas,
quando você tiver sido ungido, eles dirão: “Ele é um torturador”. Você pode
seguir o arado ou o tambor, mas ainda assim ouvirá: “Ele é um torturador”.
Você entende isso?
— Não desejo ouvir mais nada.
— Muito bem — disse Mestre Gurloes, e, de repente, ambos sorriram,
Mestre Palaemon mostrando seus poucos dentes tortos e Mestre Gurloes,
seus dentes quadrados e amarelos, como os dentes de um cavalo morto. —
Então é hora de explicarmos a você o último segredo. — (Enquanto
escrevo, ainda ouço a ênfase que sua voz dava às palavras enquanto.) —
Pois seria bom que refletisse sobre ele antes da cerimônia.
Então, ele e Mestre Palaemon me explicaram o segredo que jaz no
coração da guilda e é tanto mais sagrado porque nenhuma liturgia o celebra,
e jaz nu no colo do Pancriador.
E me juraram que nunca o revelaria, exceto — como eles fizeram — a
alguém prestes a entrar nos mistérios da guilda. Desde então, quebrei esse
juramento, assim como quebrei muitos outros.
O banquete
O dia da nossa padroeira cai no finzinho do inverno. Nesse momento, nos
divertimos: os oficiais executam a dança da espada em procissão, saltitantes
e fantásticos; os mestres iluminam a capela em ruínas da Grande Quadra
com mil velas perfumadas, e preparamos nosso banquete.
Na guilda, o ritual anual é considerado elevado (no qual um oficial é
elevado a mestre), menor (em que ao menos um aprendiz é tornado oficial),
ou inferior (em que nenhuma elevação ocorre). Como nenhum oficial
ascendeu à maestria no ano em que me tornei oficial — o que não é de se
admirar, uma vez que tais ocasiões são mais raras do que as décadas —, a
cerimônia do meu mascaramento foi uma festa menor.
Mesmo assim, foram gastas semanas em preparação. Ouvi dizer que nada
menos que cento e trinta e cinco guildas têm membros trabalhando dentro
das muralhas da Cidadela. Alguns deles (como vimos entre os curadores)
estão em um número demasiado pequeno para celebrar a festa dos seus
padroeiros na capela, mas devem juntar-se aos seus irmãos na cidade. Os
mais numerosos celebram com toda a pompa que podem para elevar a
estima com que são tidos. Desse tipo são os soldados no dia de Adriano, os
matrosses no de Bárbara, as bruxas no de Mag e muitos outros. Por meio de
ostentação e maravilhas, e da distribuição gratuita de comida e bebida, eles
tentam captar o máximo possível de membros externos às suas guildas para
participar de suas cerimônias.
Não é assim entre os torturadores. Ninguém de fora da guilda janta
conosco na festa da Sagrada Catarina há mais de trezentos anos, quando um
tenente da guarda (é o que dizem) ousou vir por conta de uma aposta.
Existem muitas lendas inúteis sobre o que aconteceu com ele — entre elas,
que fizemos com se sentasse à nossa mesa numa cadeira de ferro
incandescente. Nenhuma delas é verdade. Pelas histórias que ouvimos de
nossa guilda, ele foi bem-vindo e bem banqueteado; mas como, enquanto
comemos nossa carne e nosso bolo de Catarina, não falamos da dor que
infligimos, nem confabulamos novas modalidades de tormento, tampouco
amaldiçoamos aqueles cuja carne rasgamos por morrerem cedo demais, ele
ficou cada vez mais ansioso, imaginando que procurávamos acalmar seus
medos para que pudéssemos aprisioná-lo posteriormente. Pensando assim,
comeu pouco e bebeu muito, e de volta em seus próprios aposentos, caiu e
bateu a cabeça de tal modo que, de tempos em tempos, e cada vez mais
frequentemente, perdia o juízo e sofria dores intensas. Com o tempo ele
colocou o cano de sua própria arma na boca, mas não foi obra nossa.
Desde então, ninguém, exceto torturadores, vem à capela no dia da
Sagrada Catarina. No entanto, a cada ano (sabendo que somos vigiados de
janelas altas), nos preparamos como todos os outros, e ainda mais
grandiosamente. Fora da capela, os nossos vinhos ardem como pedras
preciosas na luz de cem flambeaux; nossos bifes fumegam e chafurdam em
lagos de molho, olhos revirados de limões assados; capivaras e cutias,
colocadas em poses como se ainda estivessem vivas, e ostentando pelagens
em que o coco torrado se mistura com a própria pele esfolada, sobem em
toras de presunto e escalam pedregulhos de pão recém-assado.
Nossos mestres, dos quais, quando fui nomeado oficial, havia apenas dois,
chegam em liteiras cujas cortinas são tecidas de flores e caminham sobre
tapetes estampados com areias coloridas, tapetes estes que contam as
tradições da guilda e são depositados, grão por grão, pelos oficiais em dias
de trabalho e imediatamente destruídos pelos pés dos mestres.
Dentro da capela, aguardam uma grande roda com espinhos, uma donzela
e uma espada. Essa roda eu conhecia bem, pois várias vezes, quando era
aprendiz, ajudei em sua montagem e depois a retirá-la dali. Nos momentos
em que não era usada, ela ficava guardada na parte mais alta da torre, logo
embaixo da sala de armas. A espada — embora, a um ou dois passos de
distância, parecesse uma verdadeira lâmina do carrasco — não passava de
um sarrafo de madeira com punho velho e enfeitado com fitas coloridas.
Da donzela não posso contar nada. Quando era muito jovem, eu nem
sequer me perguntava a seu respeito; isso, nas primeiras festas de que me
lembro. Depois, um pouco mais velho, quando Gildas (que, na época sobre
a qual escrevo, havia muito era um oficial) era capitão dos aprendizes,
pensei que, talvez, ela fosse uma das bruxas. Um ano mais velho, logo
soube que tal desrespeito não seria tolerado.
Talvez ela fosse uma serva de alguma parte remota da Cidadela. Talvez
fosse moradora da cidade, que seja por ganho ou por algum tipo de ligação
antiga com a nossa guilda consentira em desempenhar tal papel; não sei. Só
sei que a cada banquete a encontrava em seu lugar e, até onde pude julgar,
inalterada. Era alta e esbelta, embora não tão alta nem tão esbelta quanto
Thecla; de tez negra, olhos escuros, cabelos pretos. O rosto dela era um
rosto como nunca vi em parte alguma, como uma piscina de água pura
encontrada no meio de uma floresta.
Ela ficou parada em pé entre a roda e a espada enquanto Mestre Palaemon
(como o mais velho de nossos mestres) nos contava sobre a fundação da
guilda e os nossos precursores nos anos anteriores à chegada do gelo: essa
parte era diferente a cada ano, conforme sua sabedoria escolástica decidisse.
Em silêncio, ela também ficou parada enquanto cantávamos a Canção
Temerária, o hino da guilda, que os aprendizes devem decorar, mas que é
cantado apenas naquele único dia do ano. Enquanto nos ajoelhávamos entre
os bancos quebrados e rezávamos, a mulher permanecia em silêncio.
Então Mestre Gurloes e Mestre Palaemon, auxiliados por vários dos
oficiais mais velhos, começaram a contar a lenda dela. Em alguns
momentos, alguém falava sozinho. Em outros, todos cantavam juntos. Em
outros ainda, dois falavam com efeitos diferentes, enquanto os demais
tocavam flautas esculpidas em fêmures, ou a rabeca de três cordas que grita
estridente como um homem.
Quando chegaram àquela parte da narrativa em que nossa padroeira é
condenada por Maxêncio, quatro oficiais mascarados correram para prendê-
la. Tão silenciosa e serena antes, agora ela resistia, esperneava e gritava.
Mas, quando eles a levaram em direção à roda, esta pareceu ficar embaçada,
aquietando-se. À luz das velas, a princípio parecia que serpentes, pítons
verdes com cabeças de joias escarlates, citrinas e brancas, se contorciam
nela. Então se via que estas eram flores, rosas em botão. Quando a donzela
estava apenas a um passo de distância, elas floresceram (eram de papel,
escondidas, como eu bem sabia, dentro dos segmentos da roda). Fingindo
medo, os oficiais recuaram; mas os narradores, Gurloes, Palaemon e os
outros, falando em uníssono como Maxêncio, incitaram-nos a seguir em
frente.
Então eu, ainda desmascarado e vestido de aprendiz, dei um passo à frente
e disse:
— Resistir de nada adianta. Você há de ser quebrada na roda, mas não lhe
faríamos mais nenhuma indignidade.
A donzela não respondeu, mas estendeu a mão e tocou a roda, que no
mesmo instante caiu, rompendo-se em pedaços, desabando com estrondo no
chão, sem mais nenhuma rosa.
— Decapite-a — exigiu Maxentius, e eu peguei a espada. Era muito
pesada.
Ela se ajoelhou diante de mim.
— Você é uma conselheira da Onisciência — falei. — Embora eu precise
matá-la, imploro que poupe minha vida.
Pela primeira vez, a donzela falou:
— Golpeie e não tema.
Ergui a espada. Lembro-me que, por um momento, temi que ela fosse me
desequilibrar.
Quando penso naquela época, é desse momento que me lembro primeiro;
para lembrar mais, preciso avançar ou recuar a partir dele. Na memória, me
parece que sempre estive daquele jeito, ali parado, de camisa cinza e calças
esfarrapadas, com a lâmina erguida acima da minha cabeça. Enquanto a
levantava, eu era aprendiz; quando ela descesse, eu seria um oficial da
Ordem dos Buscadores da Verdade e da Penitência.
É nossa regra que o carrasco se coloque entre a vítima e a luz; a cabeça da
donzela estava em cima do bloco, na sombra. Eu sabia que a espada, ao
cair, não faria mal a ela — eu a direcionaria para o lado, acionando um
engenhoso mecanismo que elevaria uma cabeça de cera manchada de
sangue enquanto a donzela cobriria a sua própria com um pano cor de
fuligem. Mesmo assim, hesitei em dar o golpe.
Do chão, ela falou novamente aos meus pés, e sua voz pareceu retinir em
meus ouvidos.
— Golpeie e não tema. — Com toda a força de que fui capaz, desci a
lâmina falsa. Por um instante me pareceu que ela encontrava resistência;
então ela bateu com um estrondo no bloco, que se rompeu em dois. A
cabeça da donzela, toda ensanguentada, rolou em direção aos irmãos que
assistiam. Mestre Gurloes a levantou pelos cabelos e Mestre Palaemon
dobrou a mão esquerda em concha para receber o sangue.
— Com esta, nossa crisma — disse ele —, eu unjo você, Severian, nosso
irmão para sempre. — Seu dedo indicador traçou a marca na minha testa.
— Assim seja — disse Mestre Gurloes, e também disseram todos os
oficiais, exceto eu.
A donzela se levantou. Eu sabia, enquanto a observava, que sua cabeça
estava apenas oculta sob o pano; mas parecia que não havia nada ali. Fiquei
tonto e cansado.
Ela pegou a cabeça de cera do Mestre Gurloes e fingiu recolocá-la sobre
seus ombros, deslizando-a com algum truque para dentro do pano fuligem,
depois levantando-se diante de nós, plena e radiante. Ajoelhei-me diante
dela e os outros se retiraram.
Ela ergueu a espada com a qual eu havia recentemente cortado sua
cabeça; a lâmina estava ensanguentada por algum contato com a cera.
— Você é dos torturadores — disse ela. Senti a espada tocar um dos meus
ombros e, imediatamente, mãos ansiosas colocaram a máscara da guilda
sobre meu rosto e me levantaram. Antes que eu soubesse o que havia
acontecido, estava montado nos ombros de dois oficiais. Só depois descobri
que eram Drotte e Roche, embora eu devesse ter adivinhado. Eles estavam
me levando pelo corredor da procissão passando pelo centro da capela,
enquanto todos aplaudiam e gritavam.
Assim que saímos, os fogos de artifício começaram: estalinhos em nossos
pés e até mesmo perto de nossos ouvidos, torpedos batendo contra as
paredes milenares da capela, foguetes vermelhos, amarelos e verdes
saltando no ar. Um canhão do Grande Fortim partiu a noite ao meio.
Todas as carnes selvagens que descrevi estavam nas mesas da corte; eu
me sentei à cabeceira entre Mestre Palaemon e Mestre Gurloes, e bebi
demais (para mim, muito pouco sempre foi demais), e fui aplaudido e
brindado. O que aconteceu com a donzela, eu não sei. Como sempre
desaparece em cada dia de Catarina de que me lembro, ela desapareceu.
Não voltei a vê-la.
Não faço ideia de como cheguei à minha cama. Quem bebe muito já me
contou que, às vezes, esquece-se de tudo o que lhe aconteceu na última
parte da noite, e talvez tenha sido assim comigo. Mas acho mais provável
que eu (que nunca esqueço nada, e que, se for para confessar a verdade pelo
menos uma vez, embora pareça me gabar com isso, não entendo
verdadeiramente o que os outros querem dizer quando dizem esquecer, pois
a mim me parece que toda experiência passa a integrar o meu ser) apenas
dormi e fui carregado para lá.
Seja como for, não acordei no familiar quarto baixo que era nosso
dormitório, mas em uma cabine tão pequena que era muito mais alta do que
larga, a cabine de um oficial, e como eu era o mais jovem entre eles, logo
aquele era o cubículo menos desejável na torre, sem janela e não maior do
que uma cela.
Minha cama parecia balançar debaixo de mim. Agarrei as laterais, me
sentei e ela parou, mas assim que minha cabeça tocou o travesseiro mais
uma vez, o balanço voltou. Senti que estava completamente acordado;
então, em seguida, que tinha acordado de novo, mas que havia estado
dormindo apenas um momento atrás. Eu estava consciente de que havia
alguém na minúscula cabine comigo, e, por algum motivo que eu não
conseguia explicar, pensei que fosse a jovem que assumira o papel de nossa
padroeira.
Sentei-me na cama que balançava. Uma luz fraca passava por baixo da
porta; não havia ninguém ali.
Quando me deitei novamente, o quarto estava repleto do perfume de
Thecla. A falsa Thecla da Casa Azul-Celeste havia chegado, então. Saí da
cama e, quase caindo, abri a porta. Não havia ninguém na passagem do lado
de fora.
Havia um penico debaixo da cama, e eu o puxei para fora e o enchi com
meu vômito, carnes ricas nadando em vinho misturado com bile. De alguma
forma senti que o que havia feito era traição, como se, ao expulsar tudo o
que a guilda me dera naquela noite, eu tivesse expulsado a própria guilda.
Tossindo e soluçando, ajoelhei-me ao lado da cama e, por fim, depois de
limpar a boca, deitei-me novamente.
Sem dúvida, eu dormi. Vi a capela, mas não era a ruína que eu conhecia.
O telhado estava inteiro, alto e reto, e dele pendiam lampiões de rubi. Os
bancos estavam inteiros e brilhavam com polimento; o antigo altar de pedra
estava recoberto por um pano tecido com ouro. Atrás do altar se erguia um
maravilhoso mosaico azul; mas vazio, como se um fragmento de céu sem
nuvem ou estrela tivesse sido arrancado e espalhado pela parede curva.
Caminhei em direção a ele pelo corredor e, ao fazê-lo, fiquei
impressionado com o quanto era mais claro que o verdadeiro céu, cujo azul
é quase preto mesmo no dia mais claro. No entanto, quão mais bonito
aquilo era! Fiquei emocionado ao olhar para ele. Sentia como se flutuasse
no ar, erguido por sua beleza, olhando para o altar abaixo, bem dentro da
taça de vinho carmesim, no pão da proposição e na faca antiga. Sorri…
E acordei. Durante o sono, tinha ouvido passos no corredor lá fora e sabia
que os havia reconhecido, embora não conseguisse me lembrar naquele
momento de quem eram. Com dificuldade, trouxe de volta o som; não era
nenhum passo humano, apenas a pisada acolchoada de pés macios e um
som de raspagem quase imperceptível.
Ouvi o som de novo, tão fraco que por um tempo pensei ter confundido
minha memória com a realidade; mas era real, subindo lentamente a
passagem, lentamente voltando. O mero levantar de minha cabeça provocou
uma onda de náusea; deixei-a cair novamente, dizendo a mim mesmo que
quem quer que andasse de um lado para o outro ali não era da minha conta.
O perfume havia desaparecido e, por mais enjoado que eu estivesse, senti
que não precisava mais temer a irrealidade: eu estava de volta ao mundo
dos objetos sólidos e da luz pura. Minha porta se entreabriu e Mestre
Malrubius olhou para dentro como se quisesse ter certeza de que eu estava
bem. Acenei para ele e ele fechou a porta novamente. Passou algum tempo
antes que eu me lembrasse de que ele havia morrido quando eu ainda era
menino.
O traidor
No dia seguinte, minha cabeça doía e eu estava enjoado. Mas como fui
poupado (por uma tradição antiga) da limpeza da Grande Quadra e da
capela, onde a maioria dos irmãos se encontrava, eu era necessário no
ergástulo. Por alguns momentos, pelo menos, a calma matinal dos
corredores me tranquilizou. Então vieram os aprendizes descendo
ruidosamente (o menino Eata, já não tão pequeno, de lábio inchado e um
brilho de triunfo nos olhos), trazendo o desjejum dos clientes — frios, na
maior parte, restos das ruínas do banquete. Tive que explicar para vários
clientes que aquele era o único dia do ano em que teriam carne, e segui
garantindo um após o outro que não haveria excruciações: o dia da própria
festa e o dia seguinte são isentos delas, e mesmo quando uma sentença
exige tormento nesses dias, ele é adiado. A Castelã Thecla ainda dormia.
Não a acordei, mas destranquei sua cela, levei sua comida para dentro e a
pus em cima da mesa.
Por volta da metade da manhã ouvi novamente o eco de passos. Chegando
ao patamar, vi dois catafractários, um anagnosta lendo preces, Mestre
Gurloes e uma jovem. Mestre Gurloes perguntou se eu tinha uma cela vazia,
e comecei a descrever as que estavam vagas.
— Então aceite esta prisioneira. Eu já assinei por ela.
Assenti e agarrei a mulher pelo braço; os catafractários a libertaram e
deram meia-volta como autômatos prateados.
A elaboração de seu traje de cetim (agora um tanto sujo e rasgado)
mostrava que ela era uma optimate. Uma armigete teria usado materiais
mais finos em linhas mais simples, e ninguém das classes mais pobres
poderia ter se vestido tão bem. O anagnosta tentou nos seguir corredor
abaixo, mas Mestre Gurloes o impediu. Ouvi os pés calçados de aço dos
soldados nos degraus.
— Quando eu vou…? — A voz tinha uma inflexão crescente e, de certa
forma, aterrorizada.
— Ser levada para a sala de exame?
Ela se agarrava ao meu braço agora como se eu fosse seu pai ou seu
amante.
— Eu vou ser?
— Sim, Madame.
— Como você sabe?
— Todos os que são trazidos aqui o são, Madame.
— Sempre? Ninguém nunca é libertado?
— Ocasionalmente.
— Então eu também poderia ser, não poderia? — Nesse ponto, a
esperança na voz dela me fazia pensar em uma flor crescendo na sombra.
— É possível, mas é muito improvável.
— Você não quer saber o que eu fiz?
— Não — respondi. Acontece que a cela ao lado da de Thecla estava
vaga; por um momento me perguntei se deveria colocar aquela mulher ali.
Ela seria companhia (as duas podiam falar pelas frestas das portas), mas as
perguntas dela e o abrir e fechar da cela poderiam acordar Thecla agora.
Decidi fazer isso mesmo assim: a companhia, senti, mais do que
compensaria um pouco de sono perdido.
— Eu estava noiva de um oficial e descobri que ele mantinha uma jade.
Como ele não desistiu dela, eu paguei a bravos para que ateassem fogo à
cabana de palha da mulher. Ela perdeu um colchão de plumas, uns
moveizinhos e algumas roupas. Esse é um crime pelo qual eu deveria ser
torturada?
— Não sei, Madame.
— Meu nome é Marcellina. Qual é o seu?
Virei a chave da cela dela enquanto pensava se iria responder. Thecla,
cuja agitação eu conseguia ouvir agora, sem dúvida contaria a ela de
qualquer maneira.
— Severian — falei.
— E você ganha seu pão quebrando ossos. Isso deve lhe dar bons sonhos
à noite.
Os olhos de Thecla, bem espaçados e profundos como poços, estavam na
fenda de sua porta.
— Quem é essa com você, Severian?
— Prisioneiro novo, Castelã.
— Uma mulher, sei que sim: ouvi a voz dela. Da Casa Absoluta?
— Não, Castelã. — Sem saber quanto tempo levaria até que as duas
fossem capazes de ver uma à outra novamente, fiz Marcellina parar diante
da porta de Thecla.
— Outra mulher. Não é incomum? Quantas você tem, Severian?
— No momento, oito neste andar, Castelã.
— Achava que teria mais que isso com frequência.
— Raramente temos mais de quatro, Castelã.
Marcellina perguntou:
— Quanto tempo terei que ficar aqui?
— Não muito. Poucos ficam aqui por muito tempo, Madame.
Com uma seriedade que não era saudável, Thecla disse:
— Estou prestes a ser libertada, entende. Ele sabe.
A nova cliente da nossa guilda olhou com mais interesse para o pouco que
podia ser visto da outra.
— A senhora está realmente prestes a ser libertada, Castelã?
— Ele sabe. Ele enviou cartas para mim. Não foi, Severian? E ele tem se
despedido nos últimos dias. Ele realmente é um rapaz muito doce, à sua
própria maneira.
Eu disse:
— A senhora precisa entrar agora, Madame. Podem continuar a
conversar, se quiserem.
Fui liberado depois de servir o jantar aos clientes. Drotte me encontrou
nas escadas e sugeriu que eu fosse dormir.
— É a máscara — eu disse a ele. — Você não está acostumado a me ver
com ela.
— Eu consigo ver seus olhos, e isso é tudo o que preciso ver. Você não
consegue reconhecer todos os irmãos pelos olhos e dizer se estão com raiva
ou inclinados à uma piada? Você deveria ir dormir.
Eu disse que tinha algo para fazer antes, e fui ao estúdio do Mestre
Gurloes. Ele estava ausente, como eu esperava que estivesse, e entre os
papéis em sua mesa encontrei, de uma forma que não consigo explicar, o
que sabia que estaria lá: uma ordem para a excruciação de Thecla.
Não consegui dormir depois. Em vez disso, fui (pela última vez, embora
não soubesse) ao túmulo onde eu brincava quando era menino. O bronze
fúnebre do velho exultante estava fosco por falta de fricção, e mais algumas
folhas haviam caído pela porta entreaberta; tirando isso, ele permanecia
inalterado. Certa vez eu havia contado a Thecla a respeito desse lugar, e
agora eu a imaginava ali comigo. Ela havia escapado com minha ajuda, e eu
prometera a ela que ninguém a encontraria ali, que eu levaria comida para
ela, e quando a caçada tivesse esfriado eu a ajudaria a garantir passagem em
uma caravela, na qual ela poderia passar despercebida pelas espirais
sinuosas do Gyoll até o delta e o mar.
Se eu fosse um herói como aqueles sobre os quais lêramos juntos em
romances antigos, eu a teria libertado naquela mesma noite, dominando ou
drogando os irmãos que estivessem de guarda. Mas eu não era, e não tinha
drogas nem armas mais formidáveis que uma faca tirada da cozinha.
E, verdade seja dita, entre o meu ser mais íntimo e a tentativa desesperada
estavam as palavras que eu tinha ouvido naquela manhã: a manhã seguinte
à minha elevação. A Castelã Thecla dissera que eu era “um rapaz muito
doce”, e alguma parte já madura de mim sabia que, mesmo que eu tivesse
sucesso, contra todas as probabilidades, ainda seria um rapaz muito doce.
Na época, pensei que isso importasse.
Na manhã seguinte, Mestre Gurloes me ordenou que o ajudasse a realizar a
excruciação. Roche veio conosco.
Destranquei a cela dela. Ela não entendeu a princípio por que estávamos
ali e me perguntou se tinha visita ou se ia ser solta.
Quando chegamos ao nosso destino, ela soube. Muitos homens desmaiam,
mas ela não desmaiou. De modo cortês, Mestre Gurloes perguntou se ela
gostaria de uma explicação sobre os vários mecanismos.
— O senhor se refere àqueles que vai empregar? — Havia um tremor em
sua voz, mas não era marcante.
— Não, não, eu não faria isso. Apenas as máquinas curiosas que a
senhora verá ao passarmos. Algumas são bastante antigas, e a maioria quase
nunca é usada.
Thecla olhou ao redor antes de responder. A sala de exame — nossa sala
de trabalho — não é dividida em celas, mas é um espaço unificado,
sustentado por pilares que são tubos dos motores antigos e atulhados de
ferramentas do nosso mistério.
— Aquela à qual estarei sujeita… também é assim tão antiga?
— A mais sagrada de todas — respondeu Mestre Gurloes. Ele esperou
que ela dissesse algo mais e, como ela não o fez, prosseguiu com as
descrições. — A pipa, a qual tenho certeza de que a senhora deve estar
familiarizada: todos a conhecem. Ali atrás… se der um passo para cá,
conseguirá ver melhor… é o que chamamos de aparato. Ele supostamente
escreveria qualquer slogan que fosse exigido na carne do cliente, mas
raramente está em condições de funcionamento. Vejo que está olhando o
poste antigo. Não é mais do que parece, apenas uma estaca para imobilizar
as mãos e um flagelo de treze pontas para correção. Costumava ficar no
Velho Pátio, mas as bruxas reclamaram, e o Castelão nos fez transferi-lo
aqui para baixo. Isso foi há cerca de um século.
— Quem são as bruxas?
— Receio que não tenhamos tempo para discutir isso agora. Severian
pode lhe contar quando a senhora estiver de volta à sua cela.
Ela olhou para mim como se questionasse “Mas será que vou mesmo
voltar em algum momento?”. Aproveitei minha posição do lado oposto a
Mestre Gurloes para segurar sua mão gélida.
— Além disso…
— Espere. Eu posso escolher? Existe alguma maneira de persuadi-lo a…
fazer uma coisa em vez de outra? — Sua voz ainda era corajosa, mas agora
mais fraca.
Gurloes balançou a cabeça.
— Não temos autoridade sobre o assunto, Castelã. Tampouco a senhora.
Cumprimos as sentenças que nos são entregues, não fazendo mais, nem
menos, do que nos mandam, e não realizando alterações. — Envergonhado,
ele pigarreou. — Esta próxima é interessante, eu acho. Nós a chamamos de
Colar de Allowin. O cliente é amarrado naquela cadeira e a almofada é
ajustada contra o esterno. Cada inspiração aperta a corrente, de modo que,
quanto mais ele respira, menos consegue respirar. Em teoria, pode durar
para sempre, com respirações e apertos muito pequenos.
— Que horrível. O que é aquilo por trás? Esse emaranhado de arame e o
grande globo de vidro sobre a mesa?
— Ah — disse Mestre Gurloes. — Chamamos esta aqui de
revolucionária. A pessoa se deita nela. Pode se deitar, Castelã?
Por um longo momento, Thecla permaneceu parada onde estava. Ela era
mais alta do que qualquer um de nós, mas com aquele medo terrível no
rosto, sua altura havia deixado de ser imponente.
— Se não fizer isso — continuou Mestre Gurloes —, nossos oficiais terão
de forçá-la. A senhora não gostaria disso, Castelã.
Thecla murmurou:
— Achei que o senhor fosse me mostrar todos.
— Só até chegarmos a este local, Castelã. É melhor se a mente do cliente
estiver ocupada. Agora deite-se, por favor. Não vou pedir de novo.
Ela se deitou na mesma hora, rápida e graciosamente, como muitas vezes
eu a vira se alongar em sua cela. As correias que Roche e eu afivelamos
nela eram tão velhas e rachadas que me perguntei se aguentariam.
Havia cabos para serem enrolados de uma parte da sala de exame até a
outra, reostatos e amplificadores magnéticos a serem ajustados. Luzes
antigas como olhos vermelhos de sangue brilharam no painel de controle, e
um zumbido parecido com a canção de algum inseto enorme encheu toda a
câmara. Por alguns momentos, o antigo motor da torre voltou a funcionar.
Um cabo se soltou, e faíscas azuis, como algo flambado em conhaque,
brincaram ao redor dos acessórios de bronze.
— Relâmpago — disse Mestre Gurloes enquanto prendia o cabo solto. —
Existe outra palavra para isso, mas esqueci. De qualquer forma, a
revolucionária aqui funciona com relâmpago. Não é como se você fosse
levar um golpe, é claro, Castelã. Mas o relâmpago é o que a faz funcionar.
— Severian, empurre aquela alavanca ali, até que a agulha esteja neste
ponto. — Uma bobina que tinha estado fria como uma cobra, um momento
antes, quando eu a tocara, agora estava quente.
— O que isso faz?
— Eu não conseguiria descrever, Castelã. De qualquer forma, sabe, eu
nunca fiz isso. — A mão de Gurloes tocou um botão no painel de controle e
Thecla foi banhada por uma luz branca que roubava a cor de tudo que
iluminava. Ela gritou; ouvi gritos durante toda a minha vida, mas aquele,
ainda que não o mais alto, foi o pior; parecia continuar indefinidamente,
como o grito agudo de uma roda de carroça.
Ela não estava inconsciente quando a luz branca se apagou. Seus olhos
estavam abertos, olhando para cima; mas ela não pareceu ver minha mão,
nem a sentir quando eu a toquei. Sua respiração era superficial e rápida.
Roche perguntou:
— Devemos esperar até que ela consiga andar? — Pude ver que ele
estava pensando em como seria complicado carregar uma mulher tão alta.
— Levem-na agora — disse Mestre Gurloes. E desempenhamos nosso
trabalho árduo.
Quando todos os meus outros trabalhos terminaram, entrei na cela dela
para vê-la. Ela estava plenamente consciente àquela altura, embora não
conseguisse ficar de pé.
— Eu deveria odiar você — disse ela.
Tive de me inclinar sobre ela para captar as palavras.
— Está tudo bem — eu disse.
— Mas não odeio. Não é por sua causa… se eu odiar meu último amigo,
o que me resta?
Não havia nada a dizer sobre isso, então eu não disse nada.
— Você sabe qual foi a sensação? Demorou muito para que eu
conseguisse pensar nisso.
Sua mão direita subia devagar, em direção aos olhos. Eu a peguei e a
forcei de volta.
— Pensei ter visto meu pior inimigo, uma espécie de demônio. E era eu.
O couro cabeludo dela estava sangrando. Coloquei bandagens limpas ali e
prendi com fita adesiva, embora eu soubesse que elas logo sairiam. Cabelos
escuros e cacheados estavam emaranhados em seus dedos.
— Desde então, não consigo controlar minhas mãos… até consigo, se
pensar bem, se souber o que elas estão fazendo. Mas é tão difícil, e estou
ficando cansada. — Ela virou a cabeça de lado e cuspiu sangue. — Eu me
mordo. Mordo o interior das minhas bochechas, e minha língua e meus
lábios. Houve um momento em que minhas mãos tentaram me estrangular e
eu pensei, ah, que bom, vou morrer agora. Mas apenas perdi a consciência,
e elas devem ter perdido a força, porque acordei. É como aquela máquina,
não é?
Eu disse:
— Colar de Allowin.
— Mas pior. Minhas mãos estão tentando me cegar agora, arrancar
minhas pálpebras. Vou ficar cega?
— Sim — eu disse.
— Quanto tempo até eu morrer?
— Um mês, talvez. O que há em você que a odeia enfraquecerá à medida
que você enfraquecer. A revolucionária deu vida a essa coisa, mas a energia
dela é a sua energia, e, no final, vocês morrerão juntas.
— Severian…
— Sim?
— Entendo — disse ela.
E então:
— É uma coisa de Érebo, de Abaia, um companheiro adequado para mim.
Vodalus…
Inclinei-me mais para perto, mas não consegui ouvir. Por fim, falei:
— Eu tentei salvar você. Eu queria. Roubei uma faca e passei a noite
esperando uma chance. Mas apenas um mestre pode tirar um prisioneiro de
uma cela, e eu teria que matar…
— Seus amigos.
— Sim, meus amigos.
As mãos dela estavam se movendo novamente, e sangue escorria de sua
boca.
— Você poderia me trazer a faca?
— Está aqui comigo — eu disse, e a tirei de sob a capa. Era uma faca de
cozinheiro comum com cerca de um palmo de lâmina.
— Parece afiada.
— E é — eu disse. — Eu sei como tratar uma lâmina, e afiei-a com
cuidado. — Foi a última coisa que eu disse a ela. Coloquei a faca em sua
mão direita e saí.
Por um tempo, eu sabia, a vontade dela a impediria. Mil vezes um único
pensamento me ocorria: eu poderia entrar novamente na cela, pegar de volta
a faca, e ninguém saberia. Eu seria capaz de viver minha vida na guilda.
Se a garganta dela fez barulho, eu não ouvi; mas, depois que fiquei
olhando para a porta da cela por um bom tempo, um pequeno riacho
carmesim surgiu debaixo dela. Então fui ver Mestre Gurloes e contei-lhe o
que eu tinha feito.
O Lictor de Thrax
Durante os dez dias seguintes vivi a vida de um cliente, numa cela do mais
alto nível (não muito longe, na verdade, daquela que fora de Thecla). Para
que a guilda não fosse acusada de ter me detido sem processo legal, a porta
foi deixada destrancada; mas havia dois oficiais com espadas do lado de
fora da porta, e nunca saí dela, exceto por um breve período no segundo dia,
quando fui levado ao Mestre Palaemon para contar minha história
novamente. Esse foi o meu julgamento, se quiserem pensar assim. Ao longo
do restante do tempo, a guilda ponderou sobre minha sentença.
Dizem que é uma qualidade peculiar do tempo conservar os fatos, e que
ele faz isso tornando verdadeiras nossas falsidades do passado. Foi assim
comigo. Eu tinha mentido quando disse que amava a guilda, que não
desejava nada além de permanecer em seu abraço. Agora, eu descobria que
aquelas mentiras tinham se tornado verdades. A vida de um oficial e até
mesmo a de um aprendiz pareciam infinitamente atraentes. Não só porque
eu estava certo de que iria morrer, mas verdadeiramente atraentes em si
mesmas, porque eu as havia perdido. Eu passei a ver os irmãos do ponto de
vista de um cliente, e então os via como poderosos, os princípios ativos de
uma máquina inimiga e quase perfeita.
Sabendo que não havia esperança para mim, aprendi na pele o que Mestre
Malrubius uma vez me ensinara quando eu era criança: que a esperança é
um mecanismo psicológico não afetado por realidades externas. Eu era
jovem e estava alimentado adequadamente; tinha permissão para dormir e,
portanto, tinha esperança. Incontáveis vezes, acordado e dormindo, sonhava
que, no momento em que ia morrer, Vodalus chegava. Não sozinho, como
eu o vira lutar na necrópole, mas à frente de um exército que varreria a
decadência de séculos e nos tornaria mais uma vez os senhores das estrelas.
Muitas vezes pensei ouvir os passos daquele exército ressoando nos
corredores; às vezes, eu carregava minha vela até a pequena fresta da porta
porque pensava ter visto o rosto de Vodalus lá fora, no escuro.
Como disse, imaginei que seria morto. A questão que mais ocupava minha
mente durante aqueles dias lentos era a dos meios. Eu havia aprendido todas
as artes do torturador; agora pensava nelas — em alguns momentos, uma
por uma, como nos havia sido ensinado, em outros todas juntas numa
revelação de dor. Viver, dia após dia, numa cela subterrânea, pensando no
tormento, é o próprio tormento.
No décimo primeiro dia fui convocado por Mestre Palaemon. Voltei a ver
a luz vermelha do sol e respirei aquele vento úmido que, no inverno,
anuncia que falta pouco para a chegada da primavera. Mas, ah, quanto me
custou passar pela porta aberta da torre e, olhando para fora, ver a porta dos
mortos na muralha-cortina e o velho Irmão Porteiro, descansando lá.
O escritório do Mestre Palaemon me pareceu muito grande quando entrei
e, ainda assim, muito precioso para mim — como se os livros e os papéis
empoeirados fossem meus. Ele pediu que eu me sentasse. Não estava
mascarado e parecia mais velho do que eu me lembrava.
— Nós discutimos seu caso — disse ele. — Mestre Gurloes e eu. Tivemos
que confiar nos outros oficiais e até mesmo nos aprendizes. É melhor que
eles saibam a verdade. A maioria concorda que você merece a morte.
Ele esperou que eu comentasse, mas não o fiz.
— E, no entanto, muito foi dito em sua defesa. Vários dos oficiais
insistiram em reuniões privadas, comigo e também com Mestre Gurloes,
que lhe fosse permitido morrer sem dor.
Não sei dizer por quê, mas tornou-se muito importante para mim saber
quantos desses amigos eu tinha, então perguntei.
— Mais de dois e mais de três. O número exato não importa. Você não
acredita que merece morrer dolorosamente?
— Pela revolucionária — eu disse, esperando que, se pedisse aquela
morte como um favor, ela não me seria concedida.
— Sim, isso seria apropriado. Porém…
E aqui, ele fez uma pausa. Um momento passou, depois dois. A primeira
mosca de costas de latão do novo verão zumbia contra a janela. Eu queria
esmagá-la, pegá-la e soltá-la, gritar para que Mestre Palaemon falasse, fugir
da sala; mas não consegui fazer nenhuma dessas coisas. Em vez disso,
sentei-me na velha cadeira de madeira ao lado de sua mesa, sentindo que já
estava morto, no entanto, que ainda deveria morrer.
— Sabe, não podemos matar você. Tive muita dificuldade em convencer
Gurloes disso, mas é assim. Se o matarmos sem ordem judicial, seremos
equivalentes: você foi falso para conosco, mas nós teremos sido falsos para
com a lei. Além disso, estaríamos colocando a guilda em perigo para
sempre: um Inquisidor chamaria isso de assassinato.
Ele esperou que eu falasse alguma coisa, e eu disse:
— Mas pelo que eu fiz…
— A sentença seria justa. Sim. Entretanto, não temos o direito legal de
tirar a vida de alguém, por nossa própria autoridade. Aqueles que possuem
esse direito têm dele um ciúme apropriado. Se fôssemos até eles, o
veredicto seria certo. Mas, se fôssemos, a reputação da guilda seria pública
e irrevogavelmente manchada. Grande parte da confiança agora depositada
em nós desapareceria, e permanentemente. Poderíamos certamente esperar
que, no futuro, nossos assuntos fossem supervisionados por outros. Você
gostaria de ver nossos clientes guardados por soldados, Severian?
A visão que eu tivera no Gyoll quando quase me afoguei surgiu diante de
mim, e tinha (como naquele momento) uma atração taciturna, porém forte.
— Eu preferiria tirar minha própria vida — falei. — Fingirei que estou
nadando e morrerei no meio do canal, longe de ajuda.
A sombra de um sorriso amargo cruzou o rosto arruinado do Mestre
Palaemon.
— Fico feliz que você tenha feito essa oferta apenas para mim. Mestre
Gurloes teria tido um prazer grande demais em ressaltar que, pelo menos
um mês deve se passar, antes de nadar poder ser considerado crível.
— Estou sendo sincero. Procurei uma morte sem dor, mas foi a morte que
procurei, e não um prolongamento da vida.
— Mesmo que estivéssemos no meio do verão, o que você propõe não
poderia ser permitido. Um Inquisidor ainda poderia concluir que
planejamos a sua morte. Felizmente para você, concordamos com uma
solução menos incriminatória. Você conhece alguma coisa da condição do
nosso mistério nas cidades provinciais?
Balancei a cabeça em negativa.
— Ela é quase inexistente. Em nenhum lugar, exceto em Nessus… em
nenhum lugar, exceto aqui na Cidadela, existe um capítulo da nossa guilda.
Lugares menores não têm mais do que um carnifex, que tira vidas e executa
as excruciações que os juízes ali decretam. Tal homem é universalmente
odiado e temido. Você entende?
— Tal posição — respondi — é elevada demais para mim. — Não havia
falsidade no que eu disse; eu me desprezava, naquele momento, bem mais
do que desprezava a guilda. Desde então, lembrei-me dessas palavras com
frequência, embora fossem apenas minhas, e elas têm sido um conforto para
mim em muitos apuros.
— Há uma cidade chamada Thrax, a Cidade das Salas Sem Janelas —
Mestre Palaemon continuou. — O arconte de lá, seu nome é Abdiesus,
escreveu para a Casa Absoluta. Um marechal de lá transmitiu a carta ao
Castelão, e eu a recebi por intermédio dele. En Thrax, eles estão em
extrema necessidade de um funcionário como o que acabei de descrever. No
passado, perdoavam-se homens condenados com a condição de que
aceitassem o cargo. Agora, o campo está podre de tanta traição, e já que o
cargo implica um certo grau de confiança, eles estão relutantes em fazê-lo
novamente.
— Entendo — eu disse.
— Duas vezes antes, membros da guilda foram enviados para cidades
remotas, mas, se foi em casos como este, as crônicas não dizem. No
entanto, elas fornecem agora um precedente e uma fuga do labirinto. Você
deve ir para Thrax, Severian. Preparei uma carta que irá apresentá-lo ao
arconte e seus magistrados. Ela descreve você como altamente qualificado
em nosso mistério. Para tal lugar, não será uma falsidade.
Assenti, já conformado com o que deveria fazer. No entanto, enquanto eu
estava sentado ali, mantendo o rosto inexpressivo de um oficial cujo único
desejo é obedecer, uma nova vergonha queimou em mim. Embora não fosse
tão quente quanto a da desgraça que eu levara para a guilda, ainda assim era
mais recente e doía mais, porque eu ainda não estava acostumado com tal
mal-estar, como estava com a outra vergonha. Foi isto: eu estava feliz em ir
— meus pés já ansiavam por sentir a grama, meus olhos as paisagens
estranhas, meus pulmões o ar novo e claro de lugares distantes e não
governados.
Perguntei ao Mestre Palaemon onde poderia ficar a cidade de Thrax.
— Descendo o Gyoll — disse ele. — Perto do mar.
Então ele parou, como os velhos param, e disse:
— Não, não, o que é que eu estou pensando? Subindo o Gyoll, claro. —
E, para mim, centenas de léguas de ondas marchando, a areia e o grito das
aves marinhas se desvaneceram todos. Mestre Palaemon pegou um mapa de
seu gabinete e o desenrolou, curvando-se sobre ele até que a lente pela qual
via essas coisas quase tocasse o pergaminho. — Aqui — ele disse, e me
mostrou um ponto na margem do rio jovem, nas cataratas inferiores. — Se
você tivesse fundos, poderia viajar de barco. Como não tem, precisa ir a pé.
— Entendo — falei, e embora me lembrasse da fina peça de ouro que
Vodalus me dera, segura em seu esconderijo, eu sabia que não poderia tirar
vantagem de qualquer riqueza que ele pudesse representar. Havia sido a
vontade da guilda me exilar sem mais dinheiro do que se poderia esperar
que um jovem oficial possuísse, e por uma questão de prudência e também
de honra, assim eu devia partir.
No entanto, eu sabia que era injusto. Se eu não tivesse vislumbrado a
mulher com rosto em formato de coração e ganhado aquela moedinha de
ouro, era mais do que possível que eu jamais tivesse levado a faca para
Thecla e perdido meu lugar na guilda. Em certo sentido, aquela moeda
havia comprado minha vida.
Muito bem: eu deixaria minha antiga vida para trás.
— Severian! — Mestre Palaemon exclamou. — Você não está me
ouvindo. Você nunca foi um aluno desatento em nossas aulas.
— Desculpe. Eu estava pensando em muitas coisas.
— Sem dúvida. — Pela primeira vez, ele sorriu de verdade, e, por um
instante, se pareceu com seu antigo eu, o Mestre Palaemon da minha
infância. — Porém, eu estava lhe dando conselhos muito bons para sua
jornada. Agora você deverá passar sem eles, mas, sem dúvida, você teria
esquecido tudo de qualquer maneira. Você conhece as estradas?
— Eu sei que elas não devem ser usadas. Nada mais.
— O Autarca Maruthas as fechou. Isso foi quando eu tinha a sua idade.
Viagens incentivavam sedição, e ele desejava que as mercadorias entrassem
e saíssem da cidade através do rio, onde poderiam ser facilmente tributadas.
A lei permanece em vigor desde então, e há um reduto, pelo que ouvi, a
cada cinquenta léguas. Ainda assim, as estradas permanecem existindo.
Embora estejam em mau estado, dizem que há quem as use à noite.
— Entendo — falei. Fechadas ou não, as estradas poderiam tornar a
passagem mais fácil do que viajar pelo campo, como a lei exigia.
— Duvido que você entenda. Minha intenção é alertar você contra elas.
Elas são patrulhadas por ulanos com ordens de matar qualquer um que seja
encontrado nelas, e como eles têm permissão para saquear os corpos
daqueles que matam, não estão muito inclinados a pedir motivos.
— Entendo — repeti, e em particular me perguntei como ele passara a
entender tanto de viagens.
— Ótimo. O dia já vai pela metade. Se quiser, pode dormir aqui esta noite
e partir pela manhã.
— Dormir na minha cela, o senhor quer dizer.
Ele assentiu. Embora eu soubesse que ele mal conseguia ver meu rosto,
senti que algo nele estava me estudando.
— Vou sair agora, então. — Tentei pensar no que teria que fazer antes de
virar as costas à nossa torre para sempre; nada me ocorria, mas parecia que
decerto devia haver algo. — Posso ter uma vigília para me preparar?
Quando o tempo acabar, partirei.
— Isso se concede facilmente. Mas antes de partir, quero que volte aqui:
tenho algo para lhe dar. Você fará isso?
— Claro, Mestre, se é o que o senhor quer.
— E Severian, tenha cuidado. Há muitos na guilda que são seus amigos:
estes gostariam que isso nunca tivesse acontecido. Mas há outros que
acham que você traiu nossa confiança e merece agonia e morte.
— Obrigado, Mestre — eu disse. — O segundo grupo está com a razão.
Meus poucos pertences já estavam na minha cela. Eu os empacotei e achei
o embrulho tão pequeno que poderia colocá-lo no sabretache que pendia de
meu cinto. Movido pelo amor e arrependido do que havia acontecido, fui
até a cela de Thecla.
Ela ainda estava vazia. O sangue dela tinha sido limpo do chão, mas uma
mancha ampla e escura de sangue enferrujado havia gravado o metal. As
roupas dela haviam sumido, e seus cosméticos também. Os quatro livros
que eu havia levado para ela um ano antes permaneciam lá, empilhados
com outros em cima da mesinha. Não pude resistir à tentação de pegar um;
eram tantos na biblioteca que não dariam falta de um volume apenas. Minha
mão se estendeu antes que eu percebesse que não sabia qual deles escolher.
O livro de heráldica era o mais bonito, mas era grande demais para carregar
território afora. O livro de teologia era o menor de todos, mas o livro
marrom não era muito maior. No final, foi esse que eu levei, com seus
contos de mundos desaparecidos.
Subi então a escada da nossa torre, passando pelo depósito até a sala de
armas onde as peças de cerco repousavam em berços de pura força. E
depois mais alto ainda, até a sala do telhado de vidro, com suas telas
cinzentas e cadeiras estranhamente contorcidas. Subi uma escada estreita
até chegar às próprias vidraças escorregadias, onde minha presença
espalhou melros pelo céu como manchas de fuligem e nossa flâmula
fuliginosa drapejava, estalando, do mastro sobre minha cabeça.
Abaixo de mim, o Pátio Velho parecia pequeno e até apertado, mas
infinitamente confortável e acolhedor. A brecha na muralha-cortina era
maior do que eu jamais havia percebido, por mais que em ambos os lados a
Torre Vermelha e a Torre do Urso ainda se destacassem, orgulhosas e fortes.
Mais perto da nossa, a torre das bruxas era fina, escura e alta; por um
momento, o vento soprou um fragmento de sua risada selvagem para cima
de mim e eu senti aquele antigo medo, embora nós, os torturadores, sempre
cultivássemos os termos mais amigáveis com as bruxas, nossas irmãs.
Além da muralha, a grande necrópole descia a longa encosta em direção
ao Gyoll, cujas águas pude vislumbrar entre os edifícios meio apodrecidos
às suas margens. Do outro lado da cheia do rio, a cúpula arredondada do
khan não parecia mais do que uma pedra, com a cidade ao seu redor como
uma extensão de areia multicolorida pisada pelos mestres torturadores de
antanho.
Vi um caíque, de proa e popa altas e afiadas, e uma vela abaulada,
rumando ao sul com a corrente escura; e contra a minha vontade o segui por
um tempo: até o delta e os pântanos, e finalmente ao mar reluzente onde
aquela grande fera Abaia, transportada das costas mais distantes do
universo em dias pré-glaciais, chafurda até que chegue o momento no qual
ele e sua espécie devorarão os continentes.
Então abandonei todos os pensamentos sobre o sul e seu mar sufocado
pelo gelo e me virei para o norte, para as montanhas e a nascente do rio. Por
muito tempo (não sei quanto, embora o sol parecesse estar em um novo
lugar quando notei sua posição novamente) fiquei olhando para o norte. As
montanhas eu podia ver com os olhos da minha mente, mas não com os do
corpo: apenas a extensão ondulada da cidade com seus milhões de telhados.
E, para dizer a verdade, as grandes colunas de prata da Fortaleza e as torres
ao seu redor bloqueavam metade da minha visão. No entanto, eu não me
importava em nada com elas, e, aliás, quase não as vi. Ao norte ficavam a
Casa Absoluta e as cataratas, e Thrax, a Cidade das Salas sem Janelas. Ao
norte também ficavam os amplos pampas, uma centena de florestas sem
trilhas e as selvas apodrecidas na cintura do mundo.
Depois de ficar pensando em todas essas coisas até quase enlouquecer,
tornei a descer para o escritório de Mestre Palaemon e disse-lhe que estava
pronto para partir.
Terminus Est
— Tenho um presente para você — disse Mestre Palaemon. —
Considerando sua juventude e sua força, acredito que não o achará muito
pesado.
— Não sou merecedor de presentes.
— Isso é verdade. Mas você deve se lembrar, Severian, de que quando um
presente é merecido, não é um presente, mas um pagamento. Os únicos
presentes verdadeiros são como o que você recebe agora. Não posso
perdoá-lo pelo que fez, mas não posso esquecer o que você foi. Desde que
Mestre Gurloes ascendeu a oficial, não tive melhor aluno.
Ele se levantou e caminhou rigidamente até a alcova, onde o ouvi dizer:
— Ah, ela ainda não é pesada demais para mim.
Ele estava levantando algo tão escuro que era engolido pelas sombras. Eu
disse:
— Deixe-me ajudá-lo, Mestre.
— Não há necessidade, não há necessidade. Leve ao erguer, pesada ao
descer. Essa é a marca de uma das boas.
Sobre a mesa, ele colocou uma caixa preta, quase comprida o suficiente
para caber um caixão, mas bem mais estreita. Quando abriu as travas
prateadas, elas retiniram como sinos.
— Não vou lhe dar a caixa, ela só iria atrapalhar você. Aqui está a lâmina,
sua bainha para protegê-la quando estiver viajando e um talabarte.
Ela estava em minhas mãos antes que eu entendesse completamente o que
ele havia me dado. A bainha de pele de zibelina a cobria quase até o punho.
Eu a puxei (era macia como couro de luva) e contemplei a espada
propriamente dita.
Não vou lhe entediar com um catálogo das virtudes e belezas dela; você
teria que vê-la e segurá-la para julgá-la com justiça. A lâmina amarga tinha
uma vara de comprimento, era reta e de ponta quadrada como uma espada
deveria ser. A borda masculina e a borda feminina podiam separar um fio
de cabelo até um palmo da guarda, que era de prata espessa com uma
cabeça esculpida em cada extremidade. O cabo era de ônix com faixas de
prata de dois palmos de comprimento e finalizadas em opala. Era
generosamente decorada; mas é função da arte tornar atraentes e
significativas as coisas que sem ela não o seriam, e nesse sentido, a arte não
tinha mais nada a acrescentar. As palavras Terminus Est tinham sido
gravadas em sua lâmina em letras belas e curiosas, e desde que eu deixara o
Átrio do Tempo havia aprendido o suficiente sobre línguas antigas para
saber que elas queriam dizer Esta é a Linha de Divisão.
— Ela está bem afiada, prometo — disse Mestre Palaemon, vendo-me
testar a borda masculina com meu polegar. — Pelo bem daqueles que lhe
forem entregues, cuide para que continue assim. Minha dúvida é se ela não
é uma companheira muito pesada para você. Levante-a e veja.
Agarrei Terminus Est assim como tinha agarrado a espada falsa em minha
elevação e a ergui acima da cabeça, tomando cuidado para não bater no
teto. Ela se deslocou como se eu estivesse lutando contra uma serpente.
— Você não sente dificuldade?
— Não, Mestre. Mas ela se contorceu quando eu a firmei.
— Há um canal na espinha da lâmina dela, e nele corre um rio de
hydrargyrum: um metal mais pesado que o ferro, embora flua como água.
Assim, o equilíbrio é deslocado para as mãos quando a lâmina está alta, mas
para a ponta quando ela cai. Muitas vezes você terá que esperar a conclusão
de uma prece final ou um sinal da mão do quesitor. Sua espada não deve
afrouxar ou tremer… mas você sabe disso tudo. Não preciso lhe dizer para
respeitar tal instrumento. Que a Moira o favoreça, Severian.
Tirei a pedra de amolar do bolso da bainha e a coloquei no meu
sabretache, dobrei a carta que ele me dera para entregar ao arconte de
Thrax, embrulhei-a em um pedaço de seda oleada e a entreguei aos
cuidados da espada. Então pedi licença a ele e me retirei.
Com a lâmina larga pendurada atrás do ombro esquerdo, passei pela porta
dos mortos e saí para o jardim ventoso da necrópole. A sentinela no portão
mais baixo, aquele mais próximo do rio, permitiu-me passar sem desafio,
embora com muitos olhares estranhos, e segui pelas ruas estreitas até o
Caminho da Água, que corre junto com o Gyoll.
Agora preciso escrever algo que ainda me envergonha, mesmo depois de
tudo o que ocorreu. As vigílias daquela tarde foram as mais felizes da
minha vida. Todo o meu antigo ódio pela guilda havia desaparecido, e meu
amor por ela, pelo Mestre Palaemon, por meus irmãos e até mesmo pelos
aprendizes, meu amor por suas tradições e seus usos, meu amor que nunca
morrera totalmente, era tudo o que restava. Eu estava deixando todas
aquelas coisas que amava depois de tê-las desonrado completamente.
Deveria ter chorado.
Mas não chorei. Algo em mim se elevou, e quando o vento fez minha
capa esvoaçar atrás de mim como asas, senti que poderia voar. Somos
proibidos de sorrir na presença de qualquer um, exceto nossos mestres,
irmãos, clientes e aprendizes. Eu não queria usar minha máscara, mas tive
que puxar o capuz e abaixar a cabeça para que os transeuntes não vissem
meu rosto. Erradamente, pensei que iria morrer no caminho. Erradamente,
pensei que nunca mais voltaria à Cidadela e à nossa torre; mas
erroneamente também acreditei que haveria muitos outros desses dias por
vir, e sorri.
Na minha ignorância, eu supunha que antes de escurecer eu já teria deixado
a cidade para trás e que seria capaz de dormir em relativa segurança sob
alguma árvore. Na verdade, eu não tinha sequer ultrapassado as partes mais
antigas e mais pobres antes que o oeste se elevasse para cobrir o sol. Pedir
hospitalidade em um dos edifícios cambaleantes que margeavam o
Caminho da Água ou tentar descansar em algum canto teria sido um convite
à morte. E assim fui me arrastando sob estrelas iluminadas pelo vento, não
mais um torturador aos olhos dos poucos que passavam por mim, mas
apenas um viajante vestido de forma sombria que carregava nos ombros
uma paterissa escura.
De tempos em tempos, barcos deslizavam pelas águas sufocadas por ervas
daninhas enquanto o vento extraía música de seus cordames. Os mais
pobres não exibiam nenhuma iluminação e pareciam pouco mais que
escombros flutuantes; mas várias vezes vi talamegos ricos com lanternas de
proa e popa para exibir suas douraduras. Estes se mantinham no centro do
canal por medo de ataques, mas eu podia ouvir a música de seus remadores
através da água:
Rema, irmão, rema!
Que a corrente está contra nós.
Rema, irmão, rema!
Mas Deus é por nós.
Rema, irmão, rema!
Que o vento está contra nós.
Rema, irmão, rema!
Mas Deus é por nós.
E assim por diante. Mesmo quando as lanternas não passavam de faíscas
de uma légua ou mais rio acima, o som vinha com o vento. Como eu veria
mais tarde, eles puxam o remo com o refrão e o colocam de volta com as
frases alternadas, e desse modo fazem seu caminho, vigília após vigília.
Quando pareceu que logo raiaria o dia, vi na larga faixa preta do rio uma
fileira de fagulhas que não eram luzes de embarcações, mas fogos fixos se
estendendo de uma margem a outra. Era uma ponte, e depois de muito
cambalear na escuridão, eu a alcancei. Deixando as línguas do rio que
lambiam as margens, subi um lance de degraus quebrados do Caminho da
Água até a rua mais elevada da ponte, e imediatamente me senti como um
ator em uma nova cena.
A ponte estava tão bem iluminada quanto o Caminho da Água estivera
envolto em sombras. Lá havia flambeaux em postes trêmulos a cada dez
passos ou mais, e, em intervalos de cerca de cem passos, guaritas cujas
janelas da sala da guarda brilhavam como fogos de artifício agarrados aos
pilares da ponte. Carruagens com lanternas chacoalhavam, e a maioria das
pessoas que lotavam a passarela estava acompanhada por garotos com
archotes ou carregavam elas próprias seus lampiões. Havia vendedores que
gritavam anunciando os produtos que exibiam em bandejas penduradas no
pescoço, externos que tagarelavam em línguas rudes e mendigos que
mostravam suas feridas, fingiam tocar flajolés e oficleides, e beliscavam
seus filhos a fim de fazê-los chorar.
Confesso que tudo isso me interessou muito, embora meu treinamento me
proibisse de ficar boquiaberto. Com o capuz bem puxado sobre a cabeça e
os olhos resolutamente voltados para a frente, passei entre a multidão como
se lhe fosse indiferente; mas, ao menos por um curto período, senti o
cansaço se dissipar e meus passos eram, creio eu, mais longos e mais
rápidos porque eu desejava permanecer onde estava.
Os guardas das guaritas não eram da ronda da cidade, mas peltastas com
meia armadura, ostentando escudos transparentes. Eu estava quase na
margem ocidental quando dois deles avançaram para barrar meu caminho
com suas lanças flamejantes.
— É um crime grave usar o traje que você exibe. Se pretende alguma
brincadeira ou artifício, está se colocando em perigo por causa disso.
Respondi:
— Tenho direito ao hábito da minha guilda.
— Você afirma seriamente que é um carnifex, então? Isso que você
carrega é uma espada?
— É, mas eu não sou tal coisa. Sou oficial da Ordem dos Buscadores da
Verdade e da Penitência.
Houve silêncio. Cerca de cem pessoas nos haviam cercado nos poucos
momentos necessários para que eles perguntassem e eu respondesse as
perguntas. Vi o peltasta que não havia falado nada olhar para o outro como
se quisesse dizer ele está falando sério, e então olhar para a multidão.
— Entre. O lochage deseja falar com você.
Eles esperaram enquanto eu os precedia pela porta estreita. O interior
ostentava apenas uma pequena sala com uma mesa e algumas cadeiras. Subi
uma pequena escadaria muito desgastada por pés calçados em botas. Na
sala acima, um homem de couraça escrevia sob uma mesa alta. Meus
captores me seguiram e, quando paramos diante dele, aquele que havia
falado anteriormente disse:
— Este é o homem.
— Estou ciente disso — respondeu o lochage, sem erguer os olhos.
— Ele se autodenomina um oficial da guilda dos torturadores.
Por um momento, a pena, que antes deslizara firmemente, parou. —
Nunca pensei que encontraria tal coisa fora das páginas de algum livro, mas
ouso dizer que ele não fala mais que a verdade.
— Devemos libertá-lo, então? — O soldado perguntou.
— Ainda não.
Agora o lochage limpava a pena, areava a carta sobre a qual havia
trabalhado e olhava para nós. Falei:
— Seus subordinados me pararam porque duvidaram do meu direito à
capa que visto.
— Eles pararam você porque eu pedi, e eu pedi porque você estava
criando uma perturbação, de acordo com o relatório das torres orientais. Se
você é da guilda dos torturadores… que, para ser honesto, eu supunha ter
sido desfeita há muito tempo… você passou a vida na… como você chama
aquilo?
— Torre Matachin.
Ele estalou os dedos e pareceu sentir ao mesmo tempo alegria e decepção.
— Eu me referia ao lugar onde fica sua torre.
— A Cidadela.
— Sim, a Velha Cidadela. Ela fica a leste do rio, pelo que me lembro, e
bem no extremo norte do Bairro Algedônico. Fui levado lá para ver o
Donjon quando eu era cadete. Com que frequência você saía para a cidade?
Pensei em nossas expedições de natação e disse:
— Com frequência.
— Vestido como está agora?
Balancei a cabeça em negativa.
— Se vai fazer isso, tire o capuz. Só consigo ver a ponta do seu nariz
mexendo. — O lochage deslizou de seu banquinho e caminhou até uma
janela com vista para a ponte. — Quantas pessoas você acha que há em
Nessus?
— Não faço ideia.
— Eu também não, Torturador. Nem ninguém mais. Cada tentativa de
contá-las fracassou, assim como todas as tentativas de tributá-las
sistematicamente. A cidade cresce e muda todas as noites, como a escrita de
giz numa parede. As casas são construídas nas ruas por pessoas inteligentes
que pegam as pedras no escuro e reivindicam o chão — você sabia disso? O
exultante Talarican, cuja loucura se manifestou como um interesse
devastador pelos aspectos mais baixos da existência humana, afirmava que
as pessoas que vivem devorando o lixo dos outros chegam a dois milhares
brutos. Que há dez mil mendicantes acrobatas, dos quais quase metade são
mulheres. Que, se um indigente saltasse do parapeito desta ponte cada vez
que respiramos, viveríamos para sempre, porque a cidade gera e destrói
homens mais rápido do que respiramos. Entre tal multidão, não há
alternativa à paz. Perturbações não podem ser toleradas, porque
perturbações não podem ser extintas. Você me entende?
— Existe a alternativa da ordem. Mas sim, até que ela seja alcançada,
entendo.
O lochage suspirou e se virou para me encarar.
— Se você entende pelo menos isso, que bom. Será necessário, então, que
consiga roupas mais convencionais.
— Não posso voltar para a Cidadela.
— Então saia de vista esta noite e compre algo amanhã. Você tem fundos?
— Alguns, sim.
— Ótimo. Compre algo. Ou roube, ou tire a roupa do próximo infeliz que
você encurtar com essa coisa. Eu pediria a um dos meus colegas que o
levasse a uma hospedaria, mas isso significaria mais olhares e sussurros
ainda. Tem havido algum tipo de problema no rio, e eles estão contando
muitas histórias de fantasmas uns aos outros por lá. Agora, o vento está
morrendo e há uma neblina chegando, o que vai piorar as coisas. Aonde
você está indo?
— Fui nomeado para a cidade de Thrax.
O peltasta que antes havia falado, disse:
— Você acredita nele, Lochage? Ele não mostrou nenhuma prova de que é
o que afirma.
O lochage estava olhando pela janela novamente, e naquele ponto eu
também via os fios de neblina ocre.
— Se não pode usar a cabeça, use o nariz — disse ele. — Que odores
entraram com ele?
O peltasta sorriu, em dúvida.
— Ferro enferrujado, suor frio, sangue putrescente. Um impostor teria
cheiro de roupa nova ou trapos colhidos de um baú. Se você não despertar
para o seu trabalho logo, Petronax, vai para o norte lutar contra os ascianos.
O peltasta disse:
— Mas Lochage… — E lançou um olhar de tamanho ódio para mim que
pensei que ele poderia tentar me causar algum mal quando eu deixasse a
guarita.
— Mostre a esse sujeito que você realmente é da guilda dos torturadores.
O peltasta estava relaxado, então não houve grande dificuldade. Derrubei
seu escudo de lado com meu braço direito, colocando o pé esquerdo à sua
direita para prendê-lo enquanto esmagava aquele nervo do pescoço que
provoca convulsões.
Baldanders
A cidade na extremidade ocidental da ponte era muito diferente daquela
que eu havia deixado. Logo na entrada, havia flambeaux nos cantos e quase
a mesma quantidade de carruagens e carroças indo e vindo quanto na
própria ponte. Antes de sair da guarita, pedi indicações ao lochage sobre
lugares onde pudesse passar o que restava da noite; agora, sentindo o
cansaço que me abandonara apenas por um momento, caminhava com
dificuldade procurando a placa da hospedaria.
Depois de um tempo, a escuridão parecia aumentar a cada passo que eu
dava, e devo ter tomado o caminho errado em algum ponto. Não querendo
refazer todo o trajeto, tentei manter, geralmente, uma rota rumo ao norte,
consolando-me com o pensamento de que, embora pudesse estar perdido,
cada passo me levava para mais perto de Thrax. Por fim, descobri uma
pequena estalagem. Não vi nenhuma placa, e talvez não houvesse nenhuma,
mas senti cheiro de comida e ouvi o tilintar de copos, então entrei,
escancarando a porta e tombando em uma cadeira velha que estava perto
dela, sem prestar muita atenção onde eu tinha ido parar ou na companhia de
quem eu estava agora.
Quando já estava sentado ali pelo tempo suficiente para recuperar o
fôlego, e ansiava por um lugar onde pudesse tirar as botas (por mais que
ainda estivesse longe de me levantar para procurar um), três homens que
bebiam em um canto se levantaram e saíram; e um velho, assumindo,
suponho, que eu seria ruim para o seu negócio, veio e me perguntou o que
eu queria. Eu disse a ele que precisava de um quarto.
— Não temos nenhum.
Eu disse:
— Tudo bem… de qualquer maneira, não tenho dinheiro para pagar.
— Então você terá que sair.
Balancei a cabeça.
— Ainda não. Estou cansado demais. (Outros oficiais me contaram como
haviam usado esse truque na cidade.)
— Você é o carnifex, não é? Você arranca a cabeça deles.
— Traga-me dois desses peixes cujo cheiro estou sentindo, e tudo que
sobrará serão as cabeças.
— Posso chamar a Guarda da Cidade. Eles vão tirar você daqui.
Eu sabia pelo tom de voz dele que ele não acreditava no que dizia, então
falei para ele chamar mesmo, mas que me trouxesse o peixe enquanto isso,
e ele saiu resmungando. Sentei-me mais ereto então, com a Terminus Est
(que tive que tirar do ombro para me sentar) ereta entre os joelhos. Ainda
havia cinco homens no aposento comigo, mas nenhum deles olhou nos
meus olhos, e dois logo saíram.
O velho voltou com um peixinho passado sobre uma fatia de pão grosso e
disse:
— Coma isto e vá embora.
Ele se levantou e me observou enquanto eu comia. Quando terminei,
perguntei onde poderia dormir.
— Não há quartos. Já falei.
Se um palácio estivesse com portas abertas a meia corrente de distância,
não creio que eu teria conseguido me forçar a sair daquela estalagem para ir
até lá. Falei:
— Vou dormir nesta cadeira então. De qualquer forma, não é provável
que você tenha mais fregueses esta noite.
— Espere — ele disse e me deixou sozinho. Eu o ouvi conversando com
uma mulher em outro cômodo.
Quando acordei, ele estava me sacudindo pelo ombro.
— Você aceita dormir com mais dois numa cama?
— Com quem?
— Dois optimates, juro. Homens muito simpáticos, viajando juntos.
A mulher na cozinha gritou algo que não consegui entender.
— Ouviu isso? — o velho continuou. — Um deles ainda nem chegou. A
esta hora da noite, provavelmente nem virá. Haverá apenas vocês dois.
— Se esses homens alugaram um quarto…
— Eles não vão se opor, eu prometo. A verdade, Carnifex, é que eles
estão devendo. Três noites aqui e só pagaram pela primeira.
Então, eu seria usado como aviso de despejo. Isso não me perturbava
muito, e, na verdade, parecia até um tanto promissor: se o homem que
dormia lá naquela noite fosse embora, eu teria o quarto só para mim.
Levantei-me cambaleante e subi uma escada torta atrás do velho.
O quarto em que entramos não estava trancado, mas era escuro como uma
tumba. Pude ouvir uma respiração pesada.
— Bom homem! — gritou o velho, esquecendo que tinha dito que seu
inquilino era um optimate. — Como você se chama? Baldo? Baldanders?
Trouxe companhia para você. Se não paga sua taxa, precisa aceitar
pensionistas.
Não houve resposta.
— Aqui, Mestre Carnifex — o velho me disse. — Vou providenciar uma
luz para você. — Ele soprou um pouco de madeira podre até iluminar o
suficiente para acender um toco de vela.
O quarto era pequeno e não tinha outros móveis além de uma cama. Nela,
dormindo de lado (ao que parecia), de costas para nós e com as pernas
puxadas para cima, estava o maior homem que eu já tinha visto: um que
bem poderia ser chamado de gigante.
— Não vai acordar, Bom Homem Baldanders, e ver quem é seu colega de
quarto?
Eu queria me deitar e disse ao velho que nos deixasse. Ele se opôs, mas
eu o empurrei para fora do quarto e, assim que ele saiu, me sentei no lado
desocupado da cama e tirei minhas botas e meias. A luz fraca da vela
confirmou que agora tinham diversas bolhas em meu pé. Tirei a capa e a
estendi sobre a colcha gasta. Por um momento fiquei pensando se deveria
tirar o cinto e as calças ou dormir com eles; prudência e o cansaço somados
incentivaram a última opção, e notei que o gigante parecia totalmente
vestido. Com uma sensação de exaustão e alívio inexprimíveis, apaguei a
vela e me deitei para passar a primeira noite fora da Torre Matachin, desde
que podia me lembrar.
— Nunca.
O tom era tão profundo e ressonante (quase como as notas mais graves de
um órgão) que eu não tinha certeza, a princípio, qual era o significado da
palavra, ou sequer que ela havia sido uma palavra. Murmurei:
— O que você disse?
— Baldanders.
— Eu sei, o estalajadeiro me contou. Sou Severian. — Estava deitado de
costas, com a Terminus Est (que havia levado para a cama por segurança)
entre nós. No escuro, não sabia se meu companheiro havia se virado para
me encarar ou não, mas tinha certeza de que teria sentido qualquer
movimento daquela enorme estrutura.
— Vá embora.
— Você ouviu quando chegamos, então. Pensei que estivesse dormindo.
Meus lábios se moldaram para dizer que eu não era um carnifex, e sim um
oficial da guilda dos torturadores. Então me lembrei da minha desgraça e de
que Thrax havia mandado chamar um carrasco. E disse:
— Sim, sou um carrasco, mas você não precisa temer. Só faço o que me
pagam para fazer.
— Amanhã, então.
— Sim, amanhã será tempo suficiente para nos conhecermos e
conversarmos.
Então sonhei, ainda que fosse possível que as palavras de Baldanders
também tivessem sido um sonho. No entanto, penso que não, e se foram,
aquilo foi um sonho diferente.
Eu cavalgava uma grande criatura de asas de couro sob um céu pesado.
Mal equilibrados de modo equidistante entre o banco de nuvens e uma terra
crepuscular, descemos deslizando por uma colina de ar. Pareceu-me a mim
que, em quase nenhum momento, o planador com asas nos dedos bateu seus
longos pinhões. O sol moribundo estava diante de nós e parecia que
estávamos na mesma velocidade de Urth, pois ele permanecia imóvel no
horizonte, embora voássemos sem parar.
Por fim, vi uma mudança na terra e, a princípio, pensei que fosse um
deserto. Ao longe, não aparecia nenhuma cidade, nem fazenda, nem
floresta, nem campo, mas apenas uma vastidão nivelada, de um roxo
escuro, inexpressiva e quase estática. A criatura com asas de couro também
viu isso, ou talvez tenha captado algum odor do ar. Senti os músculos de
ferro abaixo de mim se tensionarem e então três batidas de asa.
A vastidão roxa apresentava manchas brancas. Depois de um tempo, me
dei conta de que sua aparente quietude era uma farsa nascida da
uniformidade: era a mesma coisa em toda parte, mas em toda parte em
movimento — o mar — o Rio-do-Mundo Uroboros —, embalando Urth.
Então, pela primeira vez, olhei para trás, vendo todo o território da
humanidade sendo engolido pela noite.
Quando tudo passou, e, só havia a imensidão da água que passava abaixo
de nós e nada mais, a fera virou a cabeça para me olhar. Seu bico era o bico
de uma íbis, seu rosto, o de uma bruxa; em sua cabeça, havia uma mitra de
osso. Por um instante, nos olhamos, e foi como se eu soubesse o que ela
estava pensando: Você sonha; mas, se acordasse do seu sonhar, eu estaria
lá.
Seu movimento mudou, como o de um lugre quando os marinheiros
conseguem fazer com que mude de curso para a direção oposta. Um pinhão
mergulhou, outro subiu até apontar em direção ao céu, e eu tentei me
agarrar à pele escamada enquanto mergulhava na direção do mar.
O choque do impacto me acordou. Estremeci em cada junta e ouvi o gigante
murmurar enquanto dormia. De modo muito parecido, murmurei também,
tateei para descobrir se minha espada ainda estava ao meu lado e tornei a
dormir.
A água se fechou sobre mim, mas não me afoguei. Senti como se pudesse
respirar água, e, no entanto, não a respirava. Tudo estava tão claro que senti
como se tivesse caído num vazio mais translúcido do que o ar.
Ao longe, assomavam grandes formas: coisas centenas de vezes maiores
do que um homem. Algumas pareciam navios, outras, nuvens; uma era uma
cabeça viva sem corpo; outra tinha cem cabeças. Uma névoa azul as
obscurecia, e vi abaixo de mim um país de areia esculpido pelas correntes.
Ali ficava um palácio que era maior do que a nossa Cidadela, mas estava
em ruínas, seus salões tão desenraizados quanto seus jardins; por eles se
moviam figuras imensas, brancas como lepra.
Já mais perto eu caí, e elas viraram seus rostos para mim, rostos como eu
tinha visto uma vez abaixo de Gyoll; eram mulheres, nuas, com cabelos
verdes como a espuma do mar e olhos de coral. Rindo, elas me viram cair e
suas risadas vieram borbulhando até mim. Seus dentes eram brancos e
pontiagudos, cada um com o comprimento de um dedo.
Caí mais perto ainda. Suas mãos me alcançaram e me acariciaram como
uma mãe acaricia o filho. Os jardins do palácio continham esponjas,
anêmonas do mar e inúmeras outras belezas às quais não conseguia nomear.
As grandes mulheres me cercaram, e eu era apenas uma boneca diante
delas.
— Quem são vocês? — perguntei. — E o que fazem aqui?
— Somos as noivas de Abaia. Suas namoradas e joguetes, os brinquedos e
as preferidas de Abaia. A terra não conseguiu nos conter. Nossos seios são
aríetes, nossas nádegas quebrariam as costas de touros. Aqui nos
alimentamos, flutuando e crescendo, até que sejamos grandes o suficiente
para acasalar com Abaia, que um dia haverá de devorar os continentes.
— E quem sou eu?
Então elas riram todas juntas, e suas risadas eram como ondas quebrando
numa praia de vidro.
— Vamos lhe mostrar — disseram elas. — Vamos lhe mostrar! — Cada
uma me pegou por uma mão, como irmãs que pegam o filho de sua irmã,
então me levantaram e saíram nadando comigo pelo jardim. Seus dedos
tinham nadadeiras e o comprimento do meu braço, do ombro ao cotovelo.
Elas pararam, acomodando-se na água como naus afundando, até que seus
pés e os meus tocaram a margem. Diante de nós havia um muro baixo, e
sobre ele um pequeno palco e uma cortina, como aqueles usados para o
entretenimento infantil.
Nossa turbulência na água parecia agitar o pano do tamanho de um lenço.
Ele ondulou e balançou, começando a recuar como se fosse provocado por
uma mão invisível. Imediatamente apareceu a minúscula figura de um
homem de varetas. Seus membros eram gravetos, ainda apresentando casca
e botão verde. Seu corpo tinha um quarto de palmo do tamanho de um
galho, era grosso como meu polegar, e sua cabeça era um nó cujas espirais
formavam os olhos e a boca. Carregava uma clava (que brandiu para nós) e
se movia como se estivesse vivo.
Quando o homem de madeira saltou sobre nós e bateu com sua arma no
pequeno palco para mostrar sua ferocidade, apareceu a figura de um menino
armado com uma espada. Essa marionete era tão bem-acabada quanto a
outra era tosca — como se fosse uma criança de verdade reduzida ao
tamanho de um camundongo.
Depois que ambos se curvaram diante de nós, as pequenas figuras
lutaram. O homem de madeira dava saltos prodigiosos e parecia encher o
palco com os golpes de seu porrete; o menino dançava como uma partícula
de poeira sob um raio de sol quando quer evitá-lo, disparando em direção
ao homem de madeira para enfiar sua lâmina do tamanho de um alfinete.
Por fim, a figura de madeira desabou. O menino se aproximou como se
fosse colocar o pé no peito dele; mas, antes que pudesse fazê-lo, a figura de
madeira saiu flutuando do palco e, virando-se mole e preguiçosamente,
subiu até desaparecer de vista, deixando para trás o menino, além do porrete
e da espada — ambos quebrados. Pareceu-me ouvir (sem dúvida, era
realmente o barulho das cambalhotas na rua lá fora) um floreio de
trombetas de brinquedo.
Acordei porque uma terceira pessoa entrou no quarto. Era um homenzinho
ríspido de cabelos ruivos, bem-vestido, até com uma certa afetação. Quando
me viu acordado, abriu as venezianas que cobriam a janela, fazendo entrar a
luz vermelha do sol.
— Meu parceiro — disse ele — dorme profundamente o tempo todo. Seu
ronco não ensurdeceu você?
— Eu dormi bem — respondi. — E, se ele roncou, não ouvi.
Isso pareceu agradar ao homenzinho, que exibiu muitos dentes de ouro ao
sorrir.
— Ele ronca, sim. Ronca para sacudir Urth, garanto. Feliz que você tenha
conseguido seu repouso, de qualquer maneira. — Estendeu uma mão
delicada e bem cuidada. — Sou o Dr. Talos.
— Oficial Severian. — Tirei as cobertas finas e levantei-me para apertar a
mão dele.
— Vejo que veste preto. Que guilda é essa?
— Visto a fuligem dos torturadores.
— Ah! — Ele inclinou a cabeça para o lado, como um tordo e pulou, de
um lado ao outro, para olhar para mim de vários ângulos. — Você é um
sujeito alto… uma pena… mas toda essa coisa fuliginosa é muito
impressionante.
— Achamos prático — falei. — O ergástulo é um lugar sujo, e fuligem
não denuncia as manchas de sangue.
— Você tem senso de humor! Excelente! Há poucas vantagens, vou lhe
contar, que beneficiam mais um homem que o humor. O humor é capaz de
atrair uma multidão. De acalmar uma turba ou tranquilizar uma creche. O
humor excita e desanima as pessoas, e atrai asimis como um ímã.
Eu tinha apenas uma vaga ideia do que ele estava falando, mas vendo que
ele demonstrava um temperamento afável, arrisquei:
— Espero não ter deslocado você. O senhorio disse que eu deveria dormir
aqui e que havia espaço para outra pessoa na cama.
— Não, não, de forma alguma! Eu não voltei… encontrei um lugar
melhor para passar a noite. Durmo muito pouco, preciso dizer, e também
tenho sono leve. Mas tive uma boa noite, uma excelente noite. Aonde você
vai esta manhã, optimate?
Eu estava procurando minhas botas debaixo da cama.
— Primeiro, procurar um desjejum, acho. Depois disso, sair da cidade,
rumo ao norte.
— Excelente! Sem dúvida meu parceiro apreciaria um desjejum: isso lhe
fará um bem enorme. E estamos viajando para o norte. Depois de uma turnê
de muito sucesso pela cidade, sabe? Voltando para casa agora. Nós nos
apresentamos descendo a margem leste e subindo a oeste. Talvez façamos
uma parada na Casa Absoluta no caminho para o norte. Esse é o sonho da
profissão, sabe? Apresentar-se no palácio do Autarca. Ou voltar, se você já
tiver se apresentado lá. Crisos aos montes.
— Conheci uma outra pessoa que sonhava em voltar.
— Não faça essa cara feia: um dia desses você precisa me contar sobre
ela. Mas agora, se formos ao desjejum… Baldanders! Acorde! Vamos,
Baldanders! Acorde! — Ele foi dançando até os pés da cama e agarrou o
gigante pelo tornozelo. — Baldanders! Não o pegue pelo ombro, optimate!
(Eu não havia feito nenhum movimento nesse sentido.) — Ele se debate às
vezes. Baldanders!
O gigante murmurou e se mexeu.
— Um novo dia, Baldanders! Você ainda está vivo! Hora de comer,
defecar e fazer amor: tudo isso! Levante-se agora ou nunca chegaremos em
casa.
Não havia sinal de que o gigante o tivesse ouvido. Era como se o
murmúrio do momento anterior tivesse sido apenas um protesto expresso
em um sonho, ou seu estertor de morte. O Dr. Talos agarrou os cobertores
imundos com as duas mãos e os puxou.
A forma monstruosa de seu parceiro foi revelada. Ele era ainda mais alto
do que eu supunha, quase alto demais para a cama, apesar de dormir com os
joelhos dobrados praticamente até o queixo. Seus ombros eram largos, altos
e curvados. Seu rosto eu não conseguia ver; estava enterrado no travesseiro.
Havia cicatrizes estranhas em seu pescoço e em suas orelhas.
— Baldanders!
Seu cabelo era grisalho e, apesar do suposto erro do estalajadeiro, muito
espesso.
— Baldanders! Com licença, optimate, mas posso pegar emprestada esta
espada?
— Não — respondi. — Não pode.
— Ah, eu não vou matá-lo nem nada desse tipo. Só quero usar a parte
achatada.
Balancei a cabeça em negativa e, quando o Dr. Talos viu que eu ainda
estava inflexível, começou a vasculhar o quarto.
— Deixei minha bengala lá embaixo. Costume vil, eles vão roubá-la. Eu
deveria aprender a mancar, realmente deveria. Não há nada aqui.
Ele saiu correndo pela porta e logo voltou carregando uma bengala de
pau-ferro com castão de latão dourado.
— Agora sim! Baldanders! — Os golpes caíram sobre as costas largas do
gigante como as grandes gotas de chuva que precedem uma tempestade.
De repente, o gigante se sentou.
— Estou acordado, Doutor. — Seu rosto era grande e grosseiro, mas
também sensível e triste. — O senhor finalmente decidiu me matar?
— Do que está falando, Baldanders? Ah, você quer dizer o optimate aqui.
Ele não vai te fazer mal algum, ele dividiu a cama com você e agora vai se
juntar a nós no desjejum.
— Ele dormiu aqui, Doutor?
Dr. Talos e eu assentimos.
— Então já sei de onde surgiram meus sonhos.
Eu ainda estava saturado com a visão das mulheres enormes sob o mar
monstruoso, então perguntei quais tinham sido seus sonhos, embora
estivesse um tanto admirado por ele.
— Cavernas abaixo, onde dentes de pedra pingavam sangue… Braços
desmembrados encontrados em caminhos arenosos e coisas que balançavam
correntes no escuro. — Ele se sentou na beira da cama, limpando dentes
esparsos e surpreendentemente pequenos com um dedo enorme.
O Dr. Talos disse:
— Vamos, vocês dois. Se quisermos comer, conversar e conseguir fazer
qualquer coisa hoje… ora, devemos nos adiantar. Muito a dizer e muito a
fazer.
Baldanders cuspiu no canto do cômodo.
O belchior
Foi naquela caminhada pelas ruas de uma Nessus ainda adormecida que
meu luto, que tantas vezes viria a me atormentar, me agarrou com toda a
sua força pela primeira vez. Quando eu estava preso em nosso ergástulo, a
enormidade do que eu tinha feito e a enormidade da reparação que, em
breve, eu tinha certeza, aconteceria sob as mãos do Mestre Gurloes, havia
entorpecido esse sentimento. No dia anterior, quando eu descera o Caminho
da Água, a alegria da liberdade e a pungência do exílio o tinham posto de
lado. Agora me parecia que nenhum fato poderia existir no mundo, além da
morte de Thecla. Cada mancha de escuridão entre as sombras me lembrava
dos cabelos dela; cada brilho branco me lembrava a sua pele. Por muito
pouco não corri de volta para a Cidadela a fim de conferir se ela não estaria
ainda lá, sentada em sua cela, lendo à luz do lampião prateado.
Encontramos um café cujas mesas estavam dispostas à margem da rua.
Era ainda cedo o suficiente para que houvesse muito pouco tráfego. Um
morto (que havia sido, penso eu, sufocado com um lambrequim, pois havia
quem praticasse tal arte) estava caído na esquina. O Dr. Talos vasculhou os
próprios bolsos, mas voltou de mãos abanando.
— Agora, então — ele disse —, precisamos pensar. Precisamos elaborar
um plano.
Uma garçonete trouxe canecas de mocha, e Baldanders empurrou uma
para ele. Ele a mexeu com o dedo indicador.
— Amigo Severian, talvez eu deva elucidar nossa situação. Baldanders…
ele é meu único paciente… ele e eu viemos da região próxima ao Lago
Diuturna. Nosso lar pegou fogo e, por precisarmos de um pouco de dinheiro
para consertar tudo novamente, decidimos nos aventurar fora do território.
Meu amigo aqui é um homem de uma força incrível. Eu reúno uma
multidão, ele quebra algumas toras e levanta dez homens ao mesmo tempo,
e eu vendo minhas curas. É pouco, você dirá. Mas tem mais. Tenho uma
peça de teatro e montamos adereços. Quando a situação é favorável, ele e
eu encenamos certas cenas e até convidamos a participação de parte do
público. Agora, meu amigo, você diz que está indo para o norte, e pelo seu
leito de ontem à noite presumo que não tenha fundos. Posso propor um
empreendimento em conjunto?
Baldanders, que parecia ter compreendido apenas a primeira parte do
discurso de seu companheiro, disse lentamente:
— Não foi totalmente destruído. As paredes são de pedra muito grossa.
Alguns dos arcos escaparam.
— Corretíssimo. Planejamos restaurar aquele lugar antigo que nos é caro.
Mas, veja nosso dilema: estamos agora na metade do caminho de volta da
nossa turnê, e nosso capital acumulado ainda está longe de ser suficiente. O
que proponho…
A garçonete, uma jovem magra de cabelos desgrenhados, veio carregando
uma tigela de mingau para Baldanders, pão e frutas para mim e um doce
para o Dr. Talos.
— Que garota atraente! — disse ele.
Ela sorriu para ele.
— Você pode se sentar? Parece que somos seus únicos clientes.
Depois de olhar na direção da cozinha, ela deu de ombros e puxou uma
cadeira.
— Pode aproveitar um pouco disto… estarei muito ocupado conversando
para comer uma mistura tão seca. E um gole de mocha, se você não se
opuser a beber depois de mim.
Ela disse:
— Você pensa que ele nos deixaria comer de graça, não é? Mas não vai.
Cobra o preço integral por tudo.
— Ah! Você não é filha do dono, então. Tive medo de que fosse. Ou
esposa. Como ele poderia ter permitido que tal flor florescesse sem ser
colhida?
— Só trabalho aqui há cerca de um mês. O dinheiro que deixam na mesa
é tudo o que recebo. Vocês três, por exemplo. Se não me derem nada, terei
servido vocês à toa.
— É verdade, é verdade! Mas e quanto a isso? E se tentarmos dar a você
um presente precioso e você o recusasse? — Dr. Talos se inclinou em
direção a ela ao dizer isso, e me ocorreu que seu rosto não era apenas o de
uma raposa (uma comparação que, talvez, fosse fácil demais de ser feita,
porque suas sobrancelhas avermelhadas e eriçadas, e seu nariz adunco,
imediatamente sugeriam isso), mas o de uma raposa empalhada. Ouvi dizer
que aqueles que cavam para seu sustento dizem não haver terra em qualquer
lugar onde possam cavar sem desenterrar os fragmentos do passado. Não
importa onde a pá revire o solo, ela revela pavimentos quebrados e metais
corroídos; e estudiosos escrevem que o tipo de areia que os artistas chamam
de policromada (porque partículas de todas as cores estão misturadas com
sua brancura) na verdade não é areia, mas o vidro do passado, agora moído
em pó por eras de queda no mar clamoroso. Se existem camadas de
realidade abaixo da que vemos, assim como existem camadas da história
sob o solo sobre o qual caminhamos, então, em uma daquelas realidades
mais profundas, o rosto do Dr. Talos era uma máscara de raposa na parede,
e fiquei maravilhado ao vê-la se virar e se curvar agora em direção à
mulher, conseguindo, por meio desses movimentos — que faziam a
expressão e pensamento parecerem brincar com as sombras do nariz e das
sobrancelhas —, uma aparência de vivacidade incrível e realista. — Você
recusaria? — perguntou novamente, e eu me sacudi, como se estivesse
despertando.
— Como assim? — Quis saber a mulher. — Um de vocês é um carnifex.
Você está falando sobre o dom da morte? O Autarca, cujos poros ofuscam
as próprias estrelas, protege a vida de seus súditos.
— O dom da morte? Oh, não! — O Dr. Talos riu. — Não, minha querida,
você teve isso durante toda a sua vida. Ele também. Não fingiríamos lhe dar
o que já é seu. O presente que oferecemos é a beleza, com a fama e a
riqueza que derivam dela.
— Se você está vendendo alguma coisa, não tenho dinheiro.
— Vendendo? De jeito nenhum! Muito pelo contrário, estamos lhe
oferecendo um novo emprego. Eu sou um taumaturgo e esses optimates são
atores. Você já desejou algum dia subir no palco?
— Bem que eu achei vocês engraçados, vocês três.
— Precisamos de uma jovem ingênua. Você pode reivindicar a posição, se
assim desejar. Mas precisa vir conosco agora: não temos tempo a perder e
não voltaremos por aqui novamente.
— Tornar-me atriz não vai me deixar bonita.
— Vou deixar você bonita porque precisamos de você como atriz. É um
dos meus poderes. — Ele se levantou. — Agora ou nunca. Você vem?
A garçonete também se levantou, ainda olhando para o rosto dele.
— Preciso ir ao meu quarto…
— O que você possui senão porcarias? Eu preciso lançar o glamour e lhe
ensinar suas falas, tudo em um só dia. Não vou esperar.
— Dê-me o dinheiro do seu café da manhã e eu direi a ele que estou indo
embora.
— Absurdo! Como membro de nossa companhia, você precisa ajudar na
conservação dos fundos de que precisaremos para suas fantasias. Sem falar
que você comeu meu doce. Pague você mesma.
Por um instante, ela hesitou. Baldanders disse:
— Pode confiar nele. O doutor tem seu jeito de ver o mundo, mas mente
menos do que as pessoas imaginam.
Aquela voz profunda e lenta pareceu tranquilizá-la.
— Tudo bem — disse ela. — Eu vou.
Em poucos minutos, nós quatro nos encontrávamos a várias ruas longe
dali, passando por lojas que ainda estavam, em sua maioria, fechadas.
Quando tínhamos percorrido já uma certa distância, o Dr. Talos anunciou:
— E agora, meus queridos amigos, devemos nos separar. Eu dedicarei
meu tempo ao aprimoramento desta sílfide. Baldanders, você precisa reaver
nosso proscênio desmontável e as outras propriedades da estalagem onde
você e Severian passaram a noite. Imagino que isso não apresentará
dificuldades. Severian, nós vamos nos apresentar, eu acho, na Cruz de
Ctesifonte. Você conhece o local?
Assenti, embora não tivesse noção de onde poderia ser. A verdade era que
eu não tinha intenção de me juntar a eles.
Então, enquanto o Dr. Talos se afastava rapidamente com a garçonete
trotando atrás dele, fiquei sozinho com Baldanders na rua deserta. Ansioso
para que ele também fosse embora, perguntei-lhe para onde pretendia ir. Foi
mais como conversar com um monumento do que falar com um homem.
— Há um parque perto do rio onde se pode dormir durante o dia, mas não
à noite. Quando estiver quase escuro, vou acordar e recolher nossos
pertences.
— Receio não estar com sono. Vou dar uma olhada na cidade.
— Vejo você depois então, na Cruz de Ctesifonte.
Por alguma razão, senti que ele sabia o que estava em minha mente.
— Sim — respondi. — Claro.
Os olhos dele estavam opacos como os de um boi quando se virou para
andar lentamente e com passos largos em direção ao Gyoll. Como o parque
de Baldanders ficava a leste e o Dr. Talos havia tomado o caminho para o
oeste com a garçonete, resolvi caminhar para o norte e assim continuar
minha jornada em direção a Thrax, a Cidade das Salas sem Janelas.
Enquanto isso, Nessus, a Cidade Imperecível (a cidade na qual eu vivera a
vida toda, embora dela conhecesse tão pouco), estava toda ali ao meu redor.
Andei ao longo de uma ampla avenida pavimentada com sílex, sem saber
ou me importar se era uma rua lateral ou a principal do bairro. Havia
caminhos elevados para pedestres de cada lado, e um terceiro no centro, que
servia para dividir o tráfego norte do sul.
À esquerda e à direita, edifícios pareciam brotar do solo como grãos
plantados muito próximos, empurrando uns aos outros na disputa por um
lugar; e que edifícios eles eram: nada tão grandioso quanto o Grande Fortim
e nada tão antigo; nenhum, pensei, com paredes como as de metal da nossa
torre, de cinco passos de largura; e, no entanto, a Cidadela não tinha nada
que se comparasse a eles em cor ou originalidade de concepção, nada tão
novo e fantástico como cada uma dessas estruturas, embora cada uma se
encontrasse no meio de cem outras. Como era moda em alguns pontos da
cidade, a maioria desses edifícios tinha lojas nos seus andares mais baixos,
apesar de não terem sido construídas para esse fim, mas como salões de
guildas, basílicas, arenas, conservatórios, tesourarias, oratórios, martellos,
asilos, manufaturas, conventículos, hospícios, lazaretos, moinhos,
refeitórios, asilos, matadouros e teatros. A arquitetura delas refletia essas
funções e os milhares de gostos conflitantes. Torretas e minaretes se
eriçavam; lanternas, cúpulas e rotundas acalmavam; lances de degraus tão
íngremes quanto escadas retas que subiam por paredes íngremes; e varandas
embrulhando fachadas e as abrigando na privacidade de parterres de limões
e romãs.
Fiquei pensando nesses jardins suspensos em meio à floresta de mármore
rosa e branco, sardônix vermelho, tijolos cinza-azulados, cremes e pretos; e
azulejos verdes, amarelos e púrpura tíria, quando a visão de um lansquenete
guardando a entrada de uma caserna me lembrou da promessa que eu fizera
ao oficial dos peltastas, na noite anterior. Como eu tinha pouco dinheiro e
sabia que precisaria do calor da capa da minha guilda à noite, o melhor
plano parecia ser comprar um manto volumoso de algum tecido barato que
pudesse ser usado por cima. As lojas estavam abrindo, mas aquelas que
vendiam roupas pareciam vender o que não caberia ao meu propósito, e a
preços maiores do que eu poderia pagar.
A ideia de trabalhar na minha profissão antes de chegar a Thrax ainda não
havia me ocorrido; se tivesse, eu a teria descartado, supondo que haveria
tão pouca necessidade dos serviços de um torturador que seria impraticável
procurar aqueles que deles necessitassem. Eu acreditava, em suma, que os
três asimis, bem como os oricalcos e os aes no meu bolso, teriam que me
sustentar por todo o caminho até Thrax; e eu não tinha ideia do valor das
recompensas que me seriam oferecidas. Assim, olhei para balmacaans e
sobretudos, dólmãs e gibões de paduasoy, matelassê e uma centena de
outros tecidos caros sem nunca entrar nos locais que os exibiam, ou sequer
parando para examiná-los.
Logo minha atenção foi seduzida por outros bens. Por mais que, naquela
época, eu nada soubesse a respeito disso, milhares de mercenários estavam
se equipando para a campanha de verão. Havia capas militares brilhantes e
mantas de sela, selas com pomos blindados para proteger os lombos, gorros
vermelhos de forrageiro, khetens de cabo longo, leques de folhas de prata
para sinalização, arcos curvos e recurvados para uso da cavalaria, flechas
em conjuntos combinados de dez e vinte, caixas de arcos de couro fervido,
decorados com tachas douradas e madrepérola, além de guardas de arqueiro
para proteger o pulso esquerdo da corda do arco. Quando vi tudo isso,
lembrei-me do que Mestre Palaemon havia dito, antes de meu
mascaramento, sobre seguir o tambor; e embora eu tivesse praticamente
desprezado os matrosses da Cidadela, agora parecia ouvir o longo
chacoalhar da chamada para o desfile, e o brilhante desafio que as
trombetas enviavam dentre as ameias.
Justamente quando eu estava totalmente distraído da minha busca, uma
mulher esbelta de vinte anos ou pouco mais, saiu de uma das lojas escuras
para abrir as grades. Usava um vestido de brocado pavonino incrivelmente
rico e rústico, e diante dos meus olhos o sol tocou um rasgão logo abaixo de
sua cintura, transformando a pele dali, no ouro mais pálido.
Não consigo explicar o desejo que senti por ela, naquele momento, nem
depois. Das muitas mulheres que conheci, ela era, talvez, a menos bonita:
menos graciosa do que a que mais amei, menos voluptuosa do que uma
outra, menos régia do que Thecla. Tinha estatura média, nariz curto, maçãs
do rosto largas e olhos castanhos alongados que muitas vezes as
acompanham. Eu a vi levantar a grade e a amei com um amor mortífero e
que, ainda assim, não era sério.
Claro que fui em sua direção. Não conseguiria ter resistido a ela mais do
que conseguiria resistir à ganância cega de Urth se tivesse caído de um
penhasco. Não sabia o que dizer a ela, e tive medo de que ela recuasse
horrorizada com a visão da minha espada e da capa fuligem. Mas ela sorriu
e, na verdade, até pareceu admirar minha aparência. Depois de um
momento, como não falei nada, ela perguntou o que eu queria; perguntei se
ela sabia onde eu poderia comprar um manto.
— Tem certeza de que precisa de um? — Sua voz era mais profunda do
que eu esperava. — Você tem uma capa tão linda agora. Posso tocá-la?
— Por favor. Se quiser.
Ela pegou a borda e esfregou o tecido suavemente entre as palmas das
mãos.
— Nunca vi um preto tão preto: tão escuro que você não consegue ver
dobras nele. Parece até que minha mão desapareceu. E essa espada. Isso é
uma opala?
— Gostaria de examiná-la também?
— Não, não. De jeito nenhum. Mas se você realmente quer um manto…
— Ela apontou para a janela, e vi que estava cheia de peças de roupa usadas
de todo tipo, jelabs, capotes, batas, simars e assim por diante. — Muito
baratas. Preços realmente razoáveis. Se você entrar, tenho certeza de que
encontrará o que deseja. — Entrei por uma porta que tilintava, mas a jovem
não me seguiu para o interior (como eu tanto esperava que fizesse).
Lá dentro estava escuro, mas assim que olhei em volta pensei ter
entendido o motivo pelo qual a mulher não ficara perturbada com minha
aparência. O homem atrás do balcão era mais assustador do que qualquer
torturador. Seu rosto era o de um esqueleto, ou quase isso, com buracos
escuros no lugar dos olhos, bochechas afundadas e uma boca sem lábios. Se
ele não tivesse se movido e falado, eu não teria acreditado que era um
homem vivo, mas imaginaria, em vez disso, que era um cadáver deixado
ereto atrás do balcão em cumprimento ao mórbido desejo de algum antigo
proprietário.
O desafio
No entanto, o homem se moveu, virando-se para me olhar quando entrei; e
falou.
— Muito bem. Sim, muito bem. Sua capa, optimate, posso vê-la?
Atravessei um chão de azulejos desgastados e irregulares até ele. Um
rasgão de luz solar vermelho, vivo com poeira fervilhante, pairava rígido
como uma lâmina entre nós.
— Sua roupa, optimate. — Peguei minha capa e estendi a mão esquerda;
ele tocou o tecido da mesma forma que a jovem havia feito lá fora. — Sim,
muito fina. Macia. Semelhante à lã, mas mais macia, muito mais macia.
Uma mistura de linho e vicunha? E que cor maravilhosa. As vestes de um
torturador. Seria de se duvidar que as verdadeiras fossem sequer tão finas
assim, mas quem pode contestar um tecido como esse? — Ele se abaixou
sob o balcão e voltou com um punhado de trapos. — Posso examinar a
espada? Serei extremamente cuidadoso, prometo.
Desembainhei a Terminus Est e a coloquei sobre os trapos. Ele se inclinou
sobre ela, sem tocá-la nem falar. Àquela altura, meus olhos já estavam
acostumados com a escuridão da loja, e notei uma estreita fita preta que se
estendia para a frente, a largura de um dedo do cabelo acima das orelhas.
— Você está usando uma máscara — falei.
— Três crisos. Pela espada. Mais um pela capa.
— Não vim aqui para vender — respondi. — Tire a máscara.
— Se lhe apraz. Tudo bem, quatro crisos pela espada. — Ele ergueu as
mãos e a caveira caiu em cima delas. Seu verdadeiro rosto, bronzeado e de
bochechas achatadas, era notavelmente parecido com o da jovem que eu
tinha visto lá fora.
— Quero comprar um manto.
— Cinco crisos por ela. Essa definitivamente é minha última oferta. Você
terá que me dar um dia para juntar o dinheiro.
— Já disse, a espada não está à venda. — Peguei a Terminus Est e voltei a
embainhá-la.
— Seis. — Estendendo a mão por cima do balcão, ele me pegou pelo
braço. — Isso é mais do que ela vale. Escute, é sua última chance. Estou
falando sério. Seis.
— Vim comprar um manto. Sua irmã, o que suponho que ela seja, disse
que você teria um a um preço razoável.
Ele suspirou.
— Está certo, vou lhe vender um manto. Pode me dizer antes onde
conseguiu essa espada?
— Ela me foi dada por um mestre da nossa guilda — Vi em seu rosto uma
expressão que não consegui identificar com precisão, então perguntei:
— Não acredita em mim?
— Acredito, esse é o problema. O que você é, exatamente?
— Um oficial dos torturadores. Não andamos com frequência para esta
banda do rio, nem tanto ao norte quanto aqui. Mas você está realmente tão
surpreso assim?
Ele assentiu.
— É como encontrar um psicopompo. Posso perguntar o que você está
fazendo nesta parte da cidade?
— Pode, mas esta é a última pergunta que vou responder. Estou a
caminho de Thrax, para assumir uma missão lá.
— Obrigado — disse ele. — Não vou mais bisbilhotar. Nem preciso.
Agora, uma vez que você pretende surpreender seus amigos quando tirar
seu manto… Estou certo? Ele deve ser de alguma cor que contraste com sua
vestimenta. Branco pode ser bom, mas é uma cor bastante dramática e
terrivelmente difícil de manter limpa. Que tal um marrom opaco?
— As fitas que prendiam sua máscara — eu disse. — Ainda estão aí.
Ele estava arrastando caixas de trás do balcão e não respondeu. Depois de
um ou dois instantes, fomos interrompidos pelo tilintar do sino acima da
porta. O novo cliente era um jovem cujo rosto estava escondido num
capacete fechado com incrustações, entre elas, chifres curvados para baixo
e entrelaçados formando uma viseira. Ele usava uma armadura de couro
laqueado; uma quimera dourada com o olhar vago e fixo de uma mulher
louca, tremulava em seu peitoral.
— Sim, hiparca. — O lojista deixou as caixas para fazer uma reverência
servil. — Como posso ajudá-lo?
Uma mão enluvada se estendeu em minha direção, os dedos comprimidos
como se estivessem prestes a me entregar uma moeda.
— Aceite — sussurrou o lojista, assustado. — O que quer que seja.
Estendi a mão e recebi uma semente preta e brilhante do tamanho de uma
uva-passa. Ouvi o lojista suspirar; a figura blindada se virou e saiu.
Quando ele se foi, coloquei a semente no balcão. O lojista deu um grito
agudo:
— Não tente passar isso para mim! — E recuou.
— O que é isso?
— Você não sabe? A pedra do averno. O que você fez para ofender um
oficial das Tropas Domésticas?
— Nada. Por que ele me deu isso?
— Você foi desafiado. Foi chamado.
— Para monomaquia? Impossível. Não sou da classe rival.
Seu dar de ombros foi mais eloquente que palavras.
— Você terá que lutar, ou eles mandarão assassiná-lo. A única questão é
se você realmente ofendeu o hiparca ou se existe algum funcionário de alto
posto da Casa Absoluta por trás disso.
Tão claramente quanto via o lojista, vi Vodalus na necrópole se
defendendo dos três guardas voluntários; e embora toda a prudência me
dissesse para jogar fora a pedra do averno e fugir da cidade, eu não
conseguiria. Alguém — talvez o próprio Autarca ou o obscuro Padre Inire
— havia descoberto a verdade a respeito da morte de Thecla e agora
buscava me destruir sem desonrar a guilda. Muito bem, eu lutaria. Se saísse
vitorioso, ele poderia reconsiderar; se fosse morto, não seria mais do que
justo. Ainda pensando na lâmina esguia de Vodalus, falei:
— A única espada que entendo é esta.
— Você não vai lutar com espadas: na verdade, seria melhor se a deixasse
comigo.
— De jeito nenhum.
Ele suspirou outra vez.
— Vejo que você não sabe nada desses assuntos, mas vai lutar pela sua
vida no crepúsculo. Muito bem, você é meu cliente e eu nunca abandonei
um cliente. Você queria um manto. Aqui. — Ele caminhou até os fundos de
sua loja e voltou carregando uma roupa da cor de folhas mortas. —
Experimente este. Serão quatro oricalcos se couber.
Um manto tão grande e solto não poderia deixar de servir, a menos que
fosse grosseiramente curto ou comprido. O preço parecia excessivo, mas
paguei, e ao vestir o manto dei um passo adiante para me tornar o ator que,
pelo visto, aquele dia queria me forçar a ser. Na verdade, eu já participava
de mais dramas do que imaginava.
— Agora — disse o lojista —, preciso ficar aqui para cuidar das coisas,
mas vou mandar minha irmã para ajudá-lo a conseguir seu averno. Ela tem
ido muitas vezes para o Campo Sanguinário, então talvez também possa lhe
ensinar os rudimentos do combate com ele.
— Alguém falou de mim? — A jovem que eu conhecera na frente da loja
agora vinha de um dos depósitos escuros nos fundos. Com o nariz
arrebitado e os olhos estranhamente inclinados, ela se parecia tanto com o
irmão que tive certeza de que eram gêmeos, mas a figura esguia e os traços
delicados que nele pareciam incongruentes, nela eram atraentes. O irmão
deve então ter lhe explicado o que havia acontecido comigo. Não sei,
porque não ouvi. Estava olhando só para ela.
Agora, começo de novo. Já faz muito tempo (duas vezes ouvi a troca da
guarda do lado de fora do meu estúdio) desde que escrevi as linhas lidas por
você há apenas alguns momentos atrás. Não tenho certeza se é correto
registrar essas cenas, que talvez só sejam importantes para mim, com tantos
detalhes. Eu poderia facilmente ter condensado tudo: vi uma loja e entrei;
fui desafiado por um oficial dos Setentriões; o lojista mandou sua irmã me
ajudar a arrancar a flor envenenada. Passei dias cansativos lendo as
histórias de meus antecessores, e elas consistem somente em tais relatos.
Por exemplo, o de Ymar: