0% acharam este documento útil (0 voto)
2 visualizações77 páginas

De Genocidio A Mal Do Século - A Construção de Uma Memória Despolitizada Da Ais No Advento Do Neoliberalismo Estadunide

Este trabalho analisa a construção da memória da AIDS nos Estados Unidos entre 1981 e 1997, destacando a influência do neoliberalismo nesse processo. A pesquisa examina duas peças de teatro, 'The Normal Heart' e 'Rent', que representam a crise da AIDS de maneiras distintas, mostrando como a percepção da epidemia mudou de um genocídio a uma tragédia despolitizada. O objetivo é evidenciar como a ascensão do neoliberalismo afetou a forma como a sociedade se relaciona com a memória da AIDS.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
2 visualizações77 páginas

De Genocidio A Mal Do Século - A Construção de Uma Memória Despolitizada Da Ais No Advento Do Neoliberalismo Estadunide

Este trabalho analisa a construção da memória da AIDS nos Estados Unidos entre 1981 e 1997, destacando a influência do neoliberalismo nesse processo. A pesquisa examina duas peças de teatro, 'The Normal Heart' e 'Rent', que representam a crise da AIDS de maneiras distintas, mostrando como a percepção da epidemia mudou de um genocídio a uma tragédia despolitizada. O objetivo é evidenciar como a ascensão do neoliberalismo afetou a forma como a sociedade se relaciona com a memória da AIDS.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 77

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

DE GENOCÍDIO A MAL DO SÉCULO: A CONSTRUÇÃO DE UMA


MEMÓRIA DESPOLITIZADA DA AIDS NO ADVENTO DO
NEOLIBERALISMO ESTADUNIDENSE (1981-1997)

Rafaela Bello Fialho Cirne Lima

PORTO ALEGRE
2024
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

DE GENOCÍDIO A MAL DO SÉCULO: A CONSTRUÇÃO DE UMA


MEMÓRIA DESPOLITIZADA DA AIDS NO ADVENTO DO
NEOLIBERALISMO ESTADUNIDENSE (1980-1997)

Rafaela Bello Fialho Cirne Lima

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


junto ao curso de graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obtenção do título de
Licenciada em História.

Orientadora: Prof. Drª. Caroline Silveira Bauer

PORTO ALEGRE
2024
Rafaela Bello Fialho Cirne Lima

De Genocídio a Mal do Século: A construção de uma memória despolitizada da AIDS no


advento do neoliberalismo estadunidense (1980-1997).

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


junto ao curso de graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obtenção do título de
Licenciada em História.

Orientadora: Prof. Drª. Caroline Silveira Bauer

Aprovado em: 16/12/2024


Conceito: A

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Prof. Dra. Caroline Silveira Bauer – Departamento de História, UFRGS

_____________________________________________

Prof. Dra. Cássia Daiane Macedo da Silveira - Departamento de História, UFRGS

_____________________________________________

Me. Guilherme da Silva Cardoso


AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, gostaria de agradecer às várias pessoas que, de tantas formas, tornaram
possível e, apesar das tragédias enfrentadas no percurso e do aterrador tema desta monografia,
agradável a minha jornada no curso de História e a seu último ato. Primeiramente, agradeço à
minha família, em especial aos meus pais e minhas avós, que desde que eu escrevia contos
mirabolantes de poucas páginas no Ensino Fundamental, sempre me encorajaram a seguir um
caminho permeado por leituras e palavras. Ao meu primeiro (e único) orientador de Iniciação
Científica na UFRGS, Fernando Nicolazzi, que, apesar de ter trabalhado comigo um tema
completamente alheio ao que aqui escrevi, introduziu-me ao caríssimo Luppa. À professora
Caroline Bauer, minha excelentíssima orientadora que aceitou me acompanhar nesta reta final
e me indicou boa parte da bibliografia teórica que tornou isto mais do que hipóteses e
argumentos desconexos. Aos dois maiores presentes que a UFRGS me deu; Luiza, minha
grande/pequena amiga e parceira de conversas absurdas tanto na faculdade quanto na praia
(ainda vamos escrever algo juntas), e Noam, meu parceiro de curso e de vida, que me faz
sorrir mesmo quando a situação é tão pavorosa que é difícil levantar qualquer músculo. Ao
lendário Paulinho, dono do mercado que me forneceu hidratação, sustância e energia a preço
justo durante meus dias no Campus do Vale. Aos meus queridíssimos amigos de outras
esferas da vida: Luísa, Carlos, Vinícius (os dois!), Vitor, Pedro, Juma, Mia, Mel, Cris, Adara,
Artur e Miguel. Sem vocês, eu nem sei como seria depois de todos esses anos. Por último,
mas não menos importante, agradeço ao meu querido e amado companheiro Alfredo (apesar
de ser ciumento e ter o hábito de desligar meu computador enquanto estou escrevendo), que
talvez seja o primeiro cachorro que também é drag queen. Muito, muitíssimo, infinita e
plenamente obrigada por tudo.
Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que
essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica
ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode
ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos,
nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em
que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria
morrer numa cidade feliz. [Albert Camus, A Peste]
RESUMO

​ Este trabalho visa analisar a construção da memória da AIDS nos Estados Unidos
entre 1981 e 1997, e como a racionalidade neoliberal foi impactando esse processo de forma
acelerada e crescente; a ideia da pandemia de HIV/AIDS como um genocídio perpetrado
contra (principalmente) a população gay dos EUA parece ter decaído no período observado.
Para tanto, foram examinadas duas peças de teatro: The Normal Heart (Larry Kramer, 1985) e
Rent (Jonathan Larson, 1993), que representam a crise da AIDS de formas bastante distintas.
Ao longo do desenvolvimento do texto, foram apontados elementos em ambos os roteiros que
ilustram a influência do neoliberalismo na forma como se enxerga o mundo em todas as suas
esferas — neste caso específico, a pandemia da AIDS e seus desdobramentos. Busca-se
mostrar, por meio da análise dessas produções literárias, como a crise da AIDS nos EUA
deixou de ser representada como consequência de ações deliberadas das autoridades para dar
lugar a uma ideia abstrata de tragédia sem perpetradores.

Palavras-chave: AIDS; representação da história no teatro; Estados Unidos; neoliberalismo;


memória; genocídio; governo Reagan.
ABSTRACT

​ This work aims to analyze the construction of the memory of AIDS in the United
States between 1981 and 1997, and how neoliberal rationality impacted said process in a rapid
and crescent manner; the idea of the HIV/AIDS pandemic as a genocide committed against
(mainly) the USA’s gay male population seems to have decayed in the observed period. For
this purpose, two theater plays were examined: The Normal Heart (Larry Kramer, 1985) and
Rent (Jonathan Larson, 1993), which represent the AIDS crisis in very distinct ways.
Throughout the text’s development, elements that illustrate the influence of neoliberalism in
general worldview⸺in this specific case, the AIDS pandemic and its unfoldings⸺were
pointed out in both scripts. It is intended to show, through the analysis of the aforementioned
literary works, how the AIDS crisis in the USA stopped being represented as a consequence
of deliberate actions of the authorities to make room for an abstract idea of a tragedy without
perpetrators.

Keywords: AIDS; theatrical representation of History; United States; neoliberalism; memory;


genocide; Reagan administration.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACT UP ‒ AIDS Coalition To Unleash Power


AIDS ‒ Acquired Immunodeficiency Syndrome (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida)
AZT ‒ azidotimidina
CDC ‒ Center for Disease Control (Centro para o Controle de Doenças)
FDA ‒ Food and Drug Administration (Administração de Alimentos e Drogas)
GMHC ‒ Gay Men’s Health Crises (Crise de Saúde de Homens Gays)
HIV ‒ Human Immunodeficiency Virus (Vírus da Imunodeficiência Humana)
NIH ‒ National Institutes of Health (Institutos Nacionais de Saúde)
NCI ‒ National Cancer Institute (Instituto Nacional do Câncer)
PCP ‒ Pneumocystis pneumonia (Pneumonia por pneumocystis)
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 — Pôster Enjoy AZT


Figura 2 — Pôster Silence=Death
Figura 3 — Pôster AIDSGATE
Figura 4 — Pôster Dead Women Can’t Vote
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 10

2 MEMÓRIA, VÍTIMAS E GENOCÍDIO NO REGIME


NEOLIBERAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS………. 15
2.1 A MEMÓRIA COLETIVA E A SUA CONSTRUÇÃO NO
NEOLIBERALISMO………………………………………………………. 16
2.2 VITIMOLOGIA - UM IDEAL COLETIVO……………………………….. 20
2.3 DEFINIÇÕES DE GENOCÍDIO………………………………………… 22

3 A PESTE E O CAPITAL: A PANDEMIA DA AIDS, SEU


CONTEXTO HISTÓRICO E SEUS DESDOBRAMENTOS………….. 25
3.1 A NEW RIGHT, REAGAN E A ASCENSÃO DO NEOLIBERALISMO... 26
3.2 A ADMINISTRAÇÃO REAGAN E AS (NÃO-)POLÍTICAS PARA O
ENFRENTAMENTO DA AIDS…………………………………………… 32

4 A AIDS E SUA MEMÓRIA NOS PALCOS: THE NORMAL HEART


VS. RENT………………………………………………………………..… 40
4.1 LARRY KRAMER, UM INCÔMODO PÚBLICO…………………….…. 41
4.1.1 The Normal Heart: resumo, temas e personagens…………………….…. 47
4.2 JONATHAN LARSON: VIDA, MORTE E ALUGUEL…………………... 51
4.2.1 Rent: resumo, temas e personagens………………………………………. 53
4.3 KRAMER VERSUS LARSON: CORAÇÕES NORMAIS E
CONTRATOS DE ALUGUEL……………………………………………... 57

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………... 63

REFERÊNCIAS…………………………………………………………… 66
10

1 INTRODUÇÃO

O tema de estudo do presente trabalho é a construção de uma memória despolitizada


da AIDS no contexto do neoliberalismo. No semestre 2023/1, realizei a disciplina Tópicos De
História Contemporânea - Memórias Do Capitalismo, com a professora Caroline Bauer,
minha orientadora nesta última tarefa da graduação. Fomos indicados, em uma determinada
aula, a preencher uma ficha com informações e argumentos sobre algum local ou monumento
que considerássemos um lugar de memória do capitalismo. Nessa ocasião, optei por falar da
Colcha de Retalhos da AIDS, homenagem material às vítimas da doença. Essa colcha, que
conta com milhares de contribuições em forma de retalhos, não tem uma localidade fixa,
sendo transportada para diferentes cidades dos Estados Unidos e colocada periodicamente em
exposição. Meu argumento para sua definição como lugar de memória do capitalismo foi
bastante simples; hoje em dia, a proposital negligência do governo neoliberal de Reagan — e,
de forma menos escancarada, de Bush e Clinton — nos anos 80 (ROSSINOW, 2015) em
relação ao crescente número de casos de infecção pelo vírus HIV é senso comum.
Já no trabalho final da disciplina, deveríamos discorrer mais a fundo. Logo, trouxe não
o memorial, mas a memória da AIDS em si como uma memória do capitalismo. Coloquei,
além da situação de pandemia em si como consequência do neoliberalismo, a construção da
sua memória e suas representações como fator intrinsecamente ligado a esse sistema. Como
fontes para análise, selecionei duas peças de teatro, escritas no contexto da pandemia da AIDS
nos Estados Unidos. A primeira, The Normal Heart (1985), de Larry Kramer, é autobiográfica
e trata dos diversos problemas enfrentados, interna e externamente, por um ativista radical no
cenário. A segunda, Rent (1993), de Jonathan Larson, é um musical baseado na ópera La
Bohème (Puccini). O espaço de oito anos entre as duas produções é essencial para a ilustração
da rapidez com que a razão neoliberal (BROWN, 2015; DARDOT & LAVAL, 2016), em sua
vertiginosa ascensão, influenciou a construção da memória social, tornando-a
majoritariamente despolitizada e individual. Este texto, portanto, propõe-se a analisar de que
forma a ascensão do neoliberalismo e seus efeitos nas formas de se relacionar com o passado
influenciaram na construção de uma memória muito particular sobre a AIDS.
​ Como já explicado anteriormente, a ideia para o tema do trabalho surgiu de uma
atividade realizada em uma disciplina eletiva. Na busca por referências para corroborar os
argumentos elencados, foi encontrada pouquíssima bibliografia publicada a respeito da
11

memória da AIDS.1 Portanto, a escolha do assunto justifica-se pela escassez de trabalhos que
o abordem em específico.
​ Além do ponto anterior, o contexto histórico-social atual pesou na decisão do tema.
Com a recente ascensão da extrema-direita e de suas teorias da conspiração, tem-se visto certo
retrocesso discursivo e em relação às políticas que garantem os direitos de várias minorias,
dentre elas a comunidade LGBTQ+, embora saibamos que a AIDS atinge pessoas de todos os
grupos sociais. Em diversos países, como Estados Unidos, Brasil e Inglaterra, grupos de
ativistas (geralmente influenciados por doutrinas neofascistas e/ou ultrarreligiosas) têm
pressionado as autoridades, por vezes com relativo sucesso, para que sejam cerceadas
liberdades há poucas décadas conquistadas. No ano de 2023, por exemplo, um deputado
brasileiro levou à Câmara um projeto de alteração na lei que proibiria o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, citando a Bíblia e referindo-se à remoção da homossexualidade do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), ocorrida em 1973, como “o
lamentável desfecho que se deu quando a militância político-ideológica se sobrepôs à ciência”
(LOURES, 2023). Discursos como esse, que têm ganhado popularidade nos últimos anos, não
apenas ignoram a laboriosa luta pelos direitos da comunidade LGBTQ+, mas também dão
espaço para que esses direitos sejam retirados.
O que talvez seja o mesmo moralismo conservador que levava boa parte do público
geral a enxergar a pandemia da AIDS como uma espécie de punição divina permeia hoje as
pautas da direita sob o guarda-chuva da “defesa da família”. Afinal, o discurso não muda
muito desde a década de 70, se formos observar seu tom, suas referências e seus detalhes. Se
observarmos, por exemplo, o discurso de membros da atual Bancada Evangélica, como o
deputado Pastor Eurico, que se utilizou da Bíblia e de afirmações sobre a suposta natureza
humana para argumentar contra a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, suas
alusões religiosas e pseudocientíficas em muito se assemelham à posição a respeito da AIDS
do conselheiro político do Partido Republicano, aliado próximo de Reagan, Pat Buchanan Jr.:
A Revolução sexual começou a devorar seus filhos. E dentre a vanguarda
revolucionária, os ativistas dos Direitos Gays, a taxa de mortalidade é a mais alta e
crescente. [...] Os pobres homossexuais—eles declararam guerra à natureza, e agora

1
Não fui capaz de encontrar muitos trabalhos que vão além de dados, reportagens e outros textos a respeito da
Colcha de Retalhos e de outras instituições e ONGs dedicadas à memória das vítimas da AIDS nos EUA. No
âmbito acadêmico, sobre a questão do recalcamento da percepção da AIDS como genocídio, surgiu apenas o
artigo de Steven Epstein, publicado em 1997 pela revista Social Identities, intitulado Specificities: AIDS Activism
and the Retreat from the 'Genocide' Frame..
12

a natureza está exigindo uma horrível retribuição.2 (BUCHANAN, 1983, apud.


SHILTS, 1987, p. 311-312)

​ Além da questão da sorofobia, da LGBTfobia e do conservadorismo religioso


defendido por figuras políticas, a AIDS e seus desdobramentos ainda são um tema
extremamente atual. Afinal, embora haja, nos dias de hoje, uma série de possíveis tratamentos
e profilaxias contra o HIV/AIDS e que muitas pessoas consigam viver com o vírus sob
controle, indetectável e intransmissível, os dados mostram que a pandemia não acabou. Ao
redor do mundo, milhares são diagnosticados e, mesmo na atualidade, muitos acabam
morrendo por complicações oriundas da AIDS. Em entrevista concedida à Fiocruz, o
pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (INCA) Marcelo Soares explica o cenário:
HIV e AIDS nunca deixaram de ser uma pandemia. O que define uma pandemia é a
abrangência de ocorrência em termos globais e, claro, prevalência em população, em
determinados lugares, mas principalmente o quão espalhado geograficamente no
globo aquela doença está. E não tem país do mundo sem HIV/AIDS. É uma
pandemia até hoje e já matou mais de 30 milhões de pessoas. Já morreu dez vezes
mais pessoas de HIV do que de Covid no mundo até hoje e ainda vai continuar
morrendo muita gente de HIV depois até de a gente ter controlado a Covid . Lógico
que o HIV está aí há 40 anos. O HIV mata muito mais devagar. É uma doença de
ação prolongada, de desenvolvimento clínico prolongado. (SOARES, 2021)

​ O depoimento acima, além de ressaltar a relevância do tema da AIDS, justifica o uso


da palavra pandemia ao longo deste trabalho. Apesar de muito se utilizar a palavra epidemia
para se referir à situação desta doença em específico, não seria a nomenclatura correta em
termos técnicos. E, mesmo que o presente texto se trate de um recorte contido nos Estados
Unidos no final do século XX, o HIV/AIDS já estava então massivamente presente por todo o
globo. É, portanto, uma pandemia.
​ Por fim, outro cenário recente estimulou a escolha da temática deste projeto. A
pandemia da COVID-19, quiçá ainda menos cicatrizada no imaginário popular do que a da
AIDS, mostrou a capacidade de negligência criminosa das autoridades e do empresariado ao
redor do mundo. Tanto nos EUA de Donald Trump (BERGQUIST; OTTEN; SARICH, 2020;
JOHNSON-AGBAKWU, 2022) quanto no Brasil de Jair Bolsonaro (GUERREIRO;
ALMEIDA, 2021; MATOS, 2021), as políticas de enfrentamento (ou falta de) foram
insuficientes, causando milhares de mortes que não teriam ocorrido sob administrações
responsáveis competentes. No Brasil, ainda é relativamente comum que a antiga oposição se
refira a Bolsonaro como genocida.

2
Tradução própria do seguinte trecho em inglês: The sexual revolution has begun to devour its children. And
among the revolutionary vanguard, the Gay Rights activists, the mortality rate is highest and climbing. [...] The
poor homosexuals—they have declared war upon nature, and now nature is exacting an awful retribution.
13

É impossível não enxergar similaridades entre o caso da COVID-19 e o da AIDS,


especialmente no que tange à ativa negligência das autoridades, estas levantando as bandeiras
do conservadorismo cristão e do neoliberalismo (ROSSINOW, 2015). Durante o período de
2020 a 2022, foram feitas comparações entre as duas pandemias, fossem elas em tom otimista
ou pessimista. Um exemplo disso é o texto de Caitlin Wiesner, publicado em maio de 2020
pela New York Historical Society, discorrendo sobre a negligência das autoridades em relação
à AIDS, mas também sobre a importância das comunidades e do ativismo:
Diferente do altamente contagioso coronavírus que pode viajar via gotículas aéreas,
o HIV espalhou-se pelo contato direto com fluidos corporais. A AIDS se proliferam
entre usuários de drogas intravenosas que compartilhavam agulhas, hemofílicos que
dependiam de transfusões de sangue regulares, crianças nascidas de mães infectadas,
e homens que faziam sexo com outros homens. Em Nova York, como em outras
cidades atingidas, o epicentro do surto era dentro da estigmatizada comunidade gay.
Isso facilitou que líderes políticos moralizassem e ignorassem a epidemia de
HIV/AIDS. [...]
Enfrentando indiferença de funcionários estatais e desprezo de segmentos da
sociedade, homens gays em Nova York e seus aliados assumiram a responsabilidade
de conter a propagação e cuidar dos membros de sua comunidade.
[...] Ao encarar uma aterradora e nunca antes vista epidemia, nova-iorquinos gays e
aliados reagiram mudando seus comportamentos diários e garantindo cuidado para
os membros mais vulneráveis de suas comunidades. Suas ações servem de lições
para os dias de hoje: Pessoas saudáveis podem ajudar a cercear a propagação do
vírus. Elas podem divulgar as melhores práticas para parar a transmissão. E elas
podem cuidar dos doentes, dos vulneráveis, e de qualquer outro que precise do apoio
da comunidade.3 (WIESNER, 2020)

​ O texto de Wiesner, embora informativo e interessante ao traçar paralelos entre as duas


pandemias, é ingênuo. Pois é evidente que a mobilização da comunidade diante de um cenário
tão desesperador é louvável. No entanto, tamanho desespero não deveria sequer existir; a
menção à negligência proposital das autoridades é bastante secundária, provavelmente porque
o objetivo da publicação é ressaltar a importância da colaboração das pessoas. Porém, é
curioso não frisar mais essa questão, visto que os próprios ativistas citados nominalmente pela

3
Tradução própria do seguinte trecho em inglês: Unlike the highly contagious coronavirus which can travel
through aerosol droplets, HIV spread through direct contact with bodily fluids. AIDS proliferated among
intravenous drug users who shared needles, hemophiliacs who depended upon regular blood transfusions,
children born to infected mothers, and men who had sex with other men. In New York, like other affected cities,
the epicenter of the outbreak was within the stigmatized gay community. This made it easy for political leaders
to moralize and ignore the HIV/AIDS epidemic. President Ronald Reagan explicitly forbade Surgeon General C.
Everett Koop from publicly addressing AIDS, an order he finally broke in 1986. Dr. Donald C. Francis, an
epidemiologist from the Center for Disease Control (CDC) assigned to the AIDS epidemic, was instructed to
“look pretty and do as little as possible.”
Facing indifference from state officials and disavowal from homophobic segments of society, gay men in New
York City and their allies took it upon themselves to contain the spread and care for members of their
community.
[...] When staring down a frightening and unprecedented epidemic, gay New Yorkers and allies responded by
changing their daily behaviors and securing care for the most vulnerable members of their communities. Their
actions offer lessons for today: Healthy people can help curtail the virus’ spread. They can spread the word about
best practices for stopping transmission. And they can take care of the sick, the vulnerable, and anyone else who
needs the community’s support. (WIESNER, 2020)
14

autora condenavam publicamente as autoridades pela sua deliberada falta de políticas de


enfrentamento à pandemia. Ambas as organizações mencionadas, a Gay Men’s Health Crisis
(GMHC) e a AIDS Coalition To Unleash Power (ACT UP), na reflexão (WIESNER, 2020),
que terão suas trajetórias e políticas ao longo dos anos discutidas neste trabalho, foram
fundadas por Larry Kramer, que até o final de sua vida (LELAND, 2020) demonstrou furiosa
indignação4 e chamou publicamente figuras como Ronald Reagan de assassinos (SHILTS,
1987; KRAMER, 1990; MASS, 1997). É, talvez, um reflexo da construção distorcida da
memória da AIDS que medidas tomadas por um grupo marginalizado em reação à violência
que sofriam de forma institucional sejam relembradas com tamanho otimismo.
O trabalho, além de marcar a conclusão da licenciatura em História, contará com
alguns objetivos principais. Se buscará compreender como se deu a ideia das vítimas da
pandemia da AIDS como vítimas de uma política genocida — argumento defendido pelos
ativistas gays a partir da década de 1980 (FINKELSTEIN, 2017) e corroborado por registros e
documentos da época (SHILTS, 1987; KRAMER, 1990; FRANCIS, 2004; ROSSINOW,
2015; SNOWDEN, 2019). Ademais, pretende-se contextualizar a subsequente construção da
memória coletiva dessa pandemia, explicando a influência da razão neoliberal nesse processo,
dado o contexto histórico em que se deu. Com isso, procura-se entender o porquê de a AIDS
parecer ter tido sua concepção no imaginário do público transformada de projeto genocida a
tragédia abstrata em um curto intervalo de tempo.

4
Ao New York Times, dois meses antes de sua morte, Kramer novamente criticou o governo estadunidense e as
autoridades sanitárias pelas terríveis reações à AIDS, nos anos 80 e 90, e à COVID-19, em 2020 (LELAND,
2020).
15

2 MEMÓRIA, VÍTIMAS E GENOCÍDIO NO REGIME NEOLIBERAL: ALGUMAS


CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS.

A base teórica deste trabalho será composta de três “eixos” principais. O primeiro
deles se trata de literatura a respeito não necessariamente do conceito de neoliberalismo em si,
mas de sua capilar circulação por todas as esferas da vida, individual e coletiva, e de seu papel
estruturante na construção da memória. As principais obras selecionadas, com o auxílio da
orientadora, para embasar o segmento, foram o livro de Pierre Dardot e Christian Laval, A
nova razão do mundo (2016), Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution (2015),
de Wendy Brown, dois artigos publicados em 2020 por Cristian Cercel, intitulados Towards a
Disentanglement of the Links between the Memory Boom and the Neoliberal Turn e Whither
Politics, Whither Memory?, um trabalho de Enzo Traverso, De la memoria y su uso crítico
(2008) e outro de Isabel Piper-Shafir, La construcción del sujeto víctima. (2008). Também
serão bastante utilizados os artigos Sobre víctimas y vacíos; ideologías y reconciliaciones;
privatizaciones e impunidades (2011) e La privatización de la memoria en España y sus
consecuencias (2020), de Richard Vinyes. Estes dois últimos, apesar de tratarem
especificamente do caso da memória na Espanha, sobretudo a respeito do franquismo na
contemporaneidade, trazem importantes contribuições teóricas e processos comparáveis ao
tema aqui estudado.
​ A segunda parte teórica será estudada no campo da vitimologia, área sociológica
dedicada a analisar a construção da ideia da vítima. Embora The Ideal Victim (CHRISTIE,
1986), seu texto mais “emblemático”, que serviu de ponto de partida para a maior parte dos
estudos a respeito do assunto, trate da concepção da vítima enquanto indivíduo e de forma
relativamente limitada, serão utilizados, também, outros textos mais recentes. Em Being
‘ideal’ or falling short? The legitimacy of lesbian, gay, bisexual and/or transgender victims of
domestic violence and hate crime (BARNES; DONOVAN, 2018), as autoras observam a
dificuldade de se caracterizar pessoas LGBTQ+ como vítimas de violência, considerando o
impacto do conservadorismo e do moralismo na construção dessa ideia. Apesar de o artigo ser
sobre, em específico, violência doméstica e crimes de ódio, diversos pontos nele levantados
dialogam com o tema desta pesquisa. The Victimology Handbook (WALKLATE, 2017), em
alguns capítulos, eleva a ideia da “vítima ideal” e de seus desdobramentos à noção coletiva.
Constructing victims: Suffering and status in modern world order (BARNETT et. al., 2024)
analisa uma perspectiva internacional e interseccional do status da vítima, tanto individual
16

quanto coletivamente, e aprofunda-se na observação de casos generificados, hierarquizados e


dinâmicos.
Além de teoria da razão neoliberal e da vitimologia, serão exploradas algumas
definições de genocídio. Em um trabalho que analisa a passagem da concepção da pandemia
da AIDS como genocídio para uma ideia de tragédia abstrata e despolitizada, é essencial que
se discorra, pelo menos brevemente, sobre o que caracteriza um genocídio. Será utilizada,
primariamente, a definição elaborada na Convenção de 1948 sobre a Prevenção e Punição do
Crime de Genocídio, sediada em Paris. Os livros Genocide and Victimology (2022),
organizado por Yarin Eski, especificamente o quinto capítulo escrito por Heather Panter
acerca de políticas genocidas contra a população LGBTQ+, e Reports from the Holocaust: the
making of an AIDS activist (1990), de Larry Kramer (autor da peça The Normal Heart),
servirão de norteadores de um desenvolvimento mais aprofundado da teoria e da analogia.

2.1 A MEMÓRIA COLETIVA E A SUA CONSTRUÇÃO NO NEOLIBERALISMO.

Em seu desenvolvimento do conceito de biopolítica, Michel Foucault (1988; 2010)


introduz a ideia da “governamentalidade”, definindo-a como o conjunto de ações de um
governo não enquanto instituição, mas como atividade, o que permite o controle dos
indivíduos em mais aspectos da vida além das funções “clássicas” do Estado. Dardot e Laval
(2016), em A Nova Razão do Mundo, tomam os estudos de Foucault e os trazem como base
para uma reflexão a respeito do neoliberalismo do século XXI; a lógica de concorrência e de
empresa não molda apenas as práticas econômicas e institucionais, mas toda a racionalidade
dos diversos países adeptos ao modelo. Todas as esferas são permeadas pelo ideário
neoliberal. Inclusive, e talvez principalmente, embora de maneira controversa à primeira vista,
a estatal. Apesar do que pregam as definições mais simplistas, esse sistema não se trata da
minimização extrema do Estado, e sim da sua intervenção no próprio desmonte; neste caso, a
governamentalidade estrutura e desestrutura o próprio Estado. As políticas liberais, que
trazem a lógica de concorrência e o modelo empresarial, são primeiramente introduzidas de
forma estatal. Assim, o anti-intervencionismo acaba se tornando profundamente
institucionalizado. O famigerado Estado-mínimo, tão almejado pelas administrações e pelos
economistas neoliberais, é alcançável primariamente via intervenção estatal. A máquina
pública é fundamental na garantia de implantação e de reforço da privada. Ou seja, o
desmantelamento não apenas de movimentos operários oriundos da segunda metade do século
XIX e de políticas de bem-estar social, mas também do próprio Estado, vem dele próprio.
17

​ Logo no início do livro, os autores estabelecem uma comparação fundamental entre o


modelo liberal clássico, de Locke e mais pensadores de outrora, e o neoliberalismo.
Diferentemente do que observava Karl Marx em sua obra, o sistema atual não opera de
maneira tão, por assim dizer, concreta. Sua atuação sobre o sujeito se apresenta de forma
muito mais capilar e complexificada:
Portanto, é fundamental compreender como se exerce hoje a violência comum,
rotineira, que pesa sobre os indivíduos, à maneira de Marx talvez, quando observava
que a dominação do capital sobre o trabalho recorria apenas excepcionalmente à
violência extraeconômica – e exercia-se mais comumente na forma de uma “coerção
muda” inserida nas palavras e nas coisas[14]. Todavia, não se trata mais de se
perguntar como, de maneira geral, as relações capitalistas impõem-se à consciência
operária como “leis naturais evidentes”; trata-se de compreender, mais
especificamente, como a governamentalidade neoliberal escora-se num quadro
normativo global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra
concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as
práticas desses indivíduos. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 21)

Essa “coerção muda” faz com que, de forma inconsciente para o coletivo, o sujeito
passe a ser capital humano. Rótulos que outrora definiam e delimitavam funções sociais e
dinâmicas de poder, explicitando à população as nuances da sua própria realidade, deixam de
fazer sentido. Tal processo é essencial para que a governamentalidade descrita pelos autores
opere de fato. Pois ao tornar o sujeito capital, o sistema transforma tudo ao seu redor em uma
questão de investimento; o que, por sua vez, faz com que limites outrora bem definidos
tornem-se abstratos e difusos. Enquanto outrora era esperado do Estado que prestasse
assistência a um sujeito desempregado, por exemplo, um exemplar de capital humano deveria,
seguindo a lógica do mercado, investir em si mesmo e tornar-se um “autônomo”, desprotegido
por leis trabalhistas e outras medidas que garantiriam pelo menos parte de sua dignidade. Em
Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution, Wendy Brown (2015) explica essa
lógica implantada ao longo dos anos e sua importância enquanto engrenagem da máquina
neoliberal:
A negação da estratificação e das disparidades de poder no campo de análise e ação
é uma característica crucial da racionalidade neoliberal, precisamente o fator que
apaga discursivamente as distinções entre capital e trabalho, proprietários e
produtores, senhorio e inquilino, rico e pobre. Há apenas capital, e se é humano,
corporativo, financeiro ou derivativo, se é minúsculo ou gigantesco, é irrelevante
tanto para sua conduta normativa quanto para seu direito de ser livre de interferência
(BROWN, 2015, p. 161).5

5
Tradução própria do trecho em inglês: This disavowal of stratification and power differentials in the field of
analysis and action is a crucial feature of neoliberal rationality, precisely the feature that discursively erases
distinctions between capital and labor, owners and producers, landlord and tenant, rich and poor. There is only
capital, and whether it is human, corporate, financial, or derivative, whether it is tiny or giant, is irrelevant to
both its normative conduct and its right to be free of interference. (BROWN, 2015, p. 161)
18

​ É justamente essa difusão de papéis e eufemização de dinâmicas de poder que permite


que o Estado, que antes tinha como principal função garantir a segurança e o bem-estar social,
seja excluído de uma posição de responsável pela população e torne-se apenas um agente do
próprio desmantelamento descentralizante (DARDOT; LAVAL, 2016). Assim, a autoridade é
delegada a agentes cada vez menores — governos locais, grandes corporações, iniciativa
privada e, por fim, ao que era previamente um sujeito. Brown (2015) aponta dois processos
como alicerces fundamentais da governamentalidade neoliberal: a delegação do poder e a
responsabilização dos antigos sujeitos. Agora, os espécimes do capital humano têm o dever
moral de exercer uma suposta independência. Suposta porque, afinal, está completamente
emaranhada no sistema micro e macroeconômico. A responsabilidade da sobrevivência e da
prosperidade, não apenas de si mas também do mercado, torna-se profundamente
individualizada, e tanto o sucesso quanto o fracasso em todas as esferas da vida passam a ser
consequências quase divinas; resultados diretos do bom ou do mau investimento pessoal.
A delegação lança a tomada de decisões e a provisão de recursos para o outro lado
do duto de poder e autoridade. A responsabilização, por outro lado, especialmente
como política social, é o sobrecarregamento moral da entidade ao final do duto. A
responsabilização obriga o trabalhador, estudante, consumidor ou indigente a
discernir e assumir as estratégias corretas de auto investimento e empreendedorismo
para prosperar e sobreviver; é, neste sentido, uma manifestação da capitalização
humana. Porque ela discursivamente oculta a dependência e praticamente nega a
provisão coletiva para a existência, a responsabilização coloca o indivíduo como o
único agente relevante e completamente responsável. [...]

[...] Por meio dessa junção de agência e culpa, o indivíduo é duplamente


responsabilizado: espera-se que ele se defenda sozinho (e seja culpado pela sua falha
em prosperar) e que ele aja em prol do bem estar econômico (e seja culpado pela sua
falha em prosperar). [...] Talvez principalmente, mesmo quando eles [os indivíduos]
não são culpados, mesmo quando se adequaram apropriadamente às normas da
responsabilização, as medidas de austeridade tomadas em nome da saúde
macroeconômica podem legitimamente destruir seus meios de subsistência ou suas
vidas.

Logo, indivíduos responsabilizados são obrigados a prover para si mesmos no


contexto de poderes e contingências radicalmente limitando a sua capacidade de o
fazer. Contudo, a delegação e a responsabilização também tornam os indivíduos
descartáveis e desprotegidos. Essa virada na racionalidade política neoliberal
sinaliza mais do que o desmantelamento da lógica do welfare-state ou mesmo o do
contrato social liberal: mas uma vez, ela expressa precisamente a sua inversão
(BROWN, 2015, p. 132-134).6

6
Tradução própria do trecho em inglês: [...] Devolution sends decision making and resource provision down the
pipeline of power and authority. Responsibilization, on the other hand, especially as a social policy, is the moral
burdening of the entity at the end of the pipeline. Responsibilization tasks the worker, student, consumer, or
indigent person with discerning and undertaking the correct strategies of self-investment and entrepreneurship
for thriving and surviving; it is in this regard a manifestation of human capitalization. As it discursively
denigrates dependency and practically negates collective provisioning for existence, responsibilization solicits
the individual as the only relevant and wholly accountable actor. [...]

[...] Through this bundling of agency and blame, the individual is doubly responsibilized: it is expected to fend
for itself (and blamed for its failure to thrive) and expected to act for the well-being of the economy (and blamed
19

Portanto, com a transferência da autoridade a órgãos progressivamente menores e de


responsabilidades outrora estatais ao indivíduo, qualquer processo de qualquer esfera da vida
em sociedade passa a ser fiscalizado por um controle de qualidade invisível, simultaneamente
dependente e determinante de um mercado profundamente capilarizado. Tudo é capital e tudo
gira em torno do capital, como uma espécie de sistema solar financeiro. A economia
condiciona cada parte da existência, e cada parte da existência é indissociável da lógica
mercadológica. Tudo é dissolvido no corrosivo caldo do capital.
Seguindo essa lógica, é possível inferir que, dentre “as condutas, as escolhas e as
práticas desses indivíduos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 21), figure a memória. Assim como
a consciência de classe, as políticas de auxílio estatal, a educação e inúmeros outros fatores
englobados pela vivência dos indivíduos dentro da própria sociedade, a memória também se
torna vítima desse desmantelamento despolitizante. Ela se relativiza, tornando-se também
uma questão de investimento. Vale mais a pena, portanto, “investir” na construção de uma
memória que (no mínimo) não prejudique o desenvolvimento pessoal e o econômico.
Consequentemente, em vez de direito fundamental dos cidadãos enquanto coletivo e/ou
incentivo para mobilização política, ela se metamorfoseia em uma ideia simultaneamente
abstrata, vazia de significado material e individualizada. Cercel (2020) fala sobre como esse
processo transformou o Holocausto em uma história moralizante de bem versus mal,
alienando-o de sua natureza profundamente política e transformando-o em uma espécie de
modelo de maneira de se lidar com o passado. A definição de vilões e vítimas cria arquétipos
reducionistas que ignoram a série de atravessamentos sociopolíticos que envolve todos os
processos históricos. Reduzir o sujeito ao qual foi infligida alguma forma de violência ao
papel de vítima — que, na construção neoliberal da memória, torna-se mais uma identidade
difusa e fragmentada (TRAVERSO, 2008) — o torna o mero portador de um estigma,
afastando-o de se reconhecer como um cidadão de direito (PIPER-SHAFIR, 2008, p. 32).
Se esse afastamento da cidadania ocorre em processos nos quais é amplamente
reconhecida a prática de uma violência direta contra a vítima, ele se faz ainda mais intenso

for its failure to thrive). [...] Perhaps most importantly, even when they are not blamed, even when they have
comported properly with the norms of responsibilization, austerity measures taken in the name of
macroeconomic health may legitimately devastate their livelihoods or lives.
.
Thus, responsibilized individuals are required to provide for themselves in the context of powers and
contingencies radically limiting their ability to do so. But devolution and responsibilization also make
individuals expendable and unprotected. This turn in neoliberal political rationality signals more than the
dismantling of welfare-state logic or even that of the liberal social contract: once more, it expresses its precise
inversion (BROWN, 2015, p. 132-134).
20

quando a figura do perpetrador está ausente. A rápida “queda” da noção da AIDS como
genocídio não apenas afasta as vítimas do auto-reconhecimento enquanto cidadãs com direitos
fundamentais, mas impuniza aqueles que nada fizeram para combater a fatal propagação da
doença. Vinyes (2011) define a impunidade dos algozes como não apenas judicial, mas
também ética, cultural e na consciência coletiva. Se não houve qualquer reparação,
institucional ou não, e a ideia da pandemia da AIDS como genocídio parece ter sido relegada
ao discurso dos ativistas mais radicais do movimento LGBTQ+. e se as vítimas dessa situação
são até hoje culpabilizadas por discursos homofóbicos e sorofóbicos (BARBOSA FILHO;
VIEIRA, 2021), pode-se dizer que o grande resultado do horror vivido por aqueles atingidos
principalmente nas décadas de 1980 e 1990 foi nada além de impunidade para seus algozes.
Dentro desse cenário de perpetradores impunes, é difícil para que a violência dessa pandemia
se manifeste no consciente coletivo. E, se as vítimas de uma história moralizante de bem
versus mal são, até hoje, vistas como figuras maléficas e amorais por grande parte da
sociedade, esse processo toma ainda mais uma camada de complexidade.

2.2 VITIMOLOGIA - UM IDEAL COLETIVO.

Em uma descomplicada história maniqueísta, há diversos aspectos que caracterizam o


lado do “bem”, bem como o do “mal”. Assim como, em uma situação de violência, a vítima e
o perpetrador têm papéis e perfis bem definidos no imaginário popular. Todavia, nossa
realidade é muito mais complexa do que uma fábula hollywoodiana, o que torna,
consequentemente, essa definição um processo menos simples. No seu texto The Ideal Victim
(1986), Nils Christie se vale do exemplo de uma senhorinha idosa. Se uma idosa é vitima,
digamos, de um assalto, é provável que isso cause comoção na sua comunidade. Isto é, se a
idosa em questão for vista como inocente. Pois, segundo o autor, a vítima precisa ser,
necessariamente, alguém que se encontre em uma posição subordinada e fragilizada, ou seja,
parte de uma minoria social. No entanto, quando essa minoria social é vista de forma
negativa, isso lhe confere algum poder dentro da sociedade, ainda que “para o outro lado”. O
sentimento de apavoro, de desconforto, que Freud (2005) batiza de unheimlich, provoca
angústia no espectador, que, ofendido, busca se afastar. Nesse afastamento, os indivíduos
causadores da repulsa tornam-se, ao olhar do observador, independentes, podendo formar uma
comunidade relativamente autossuficiente entre pares. A angústia, de forma distorcida,
aparece como um afeto verdadeiro (LACAN, 2005), modificando a realidade material dos
21

indivíduos escanteados ao colocá-los num mesmo grupo. Isso lhes concede uma vida social
ativa, o que desmantela a sua imagem de sujeito fragilizado. Logo, enquanto não são
membros produtivos da sociedade, justamente por seu isolamento, mas receptores de
benefícios como estabilidade financeira, moradia e afeto, gerando revolta. Christie toma por
exemplo o arquétipo da bruxa, muito presente, já aponta o autor, em piadas e histórias
escabrosas de sogras megeras. Ou seja, se uma bruxa sofrer um assalto, o sentimento de pena
da comunidade se transformará em uma reação diferente. Por que uma senhora que colhe
benefícios, mas não está no rol de produtores desses benefícios, seria digna de qualquer
comoção e empatia? Qual o problema em se roubar de uma bruxa?
De maneira coletiva, podemos ver esse processo se manifestar de diversas formas.
Intersecções de gênero, classe, etnia e outros atravessamentos modificam o que pode ser
definido como a desejabilidade da vítima (CHRISTIE, 1986; BARNETT et. al., 2024). No
cenário da pandemia da AIDS nos Estados Unidos, que se deu majoritariamente durante a
administração do presidente Ronald Reagan, observamos uma situação similar àquela
hipotética proposta em The Ideal Victim. Um dos pioneiros do neoliberalismo, Reagan
também teve seu governo caracterizado por uma avassaladora onda de conservadorismo, que
pregava valores cristãos aos moldes do protestantismo norte-americano (ROSSINOW, 2015).
Portanto, considerando a lógica generalizada de concorrência e de modelo empresarial
estimulada pelas políticas econômicas e sociais do governo (DARDOT; LAVAL, 2016),
combinada à ascensão vertiginosa da moral reacionária, pode-se dizer que o “câncer gay”
(ROCHA; DIL, 2022) gerou pouquíssima empatia no grande público, cuja repulsa em relação
à unheimlich comunidade LGBTQ+, sobretudo os homens homossexuais, causava pânico
generalizado nos “cidadãos de bem”.
Não se pode deixar de fora da argumentação que outros grupos também
desproporcionalmente afetados, as pessoas negras e os imigrantes latinos (FINKELSTEIN,
2017; SNOWDEN, 2019), também não se encaixavam no protótipo WASP (sigla de White
Anglo-Saxon Protestant, expressão usada para denotar o grupo étnica e religiosamente
dominante nos EUA, os cristãos protestantes, brancos e de origem anglo-saxônica). As
vítimas da AIDS demoraram a serem vistas como vítimas, e não receptoras de alguma forma
de justiça divina. Se mesmo no século XXI há certa dificuldade de boa parte da população
em reconhecer a posição de vítima das pessoas LGBTQ+ (BARNES; DONOVAN, 2018), da
classe trabalhadora e das minorias étnico-raciais que sofrem diferentes tipos de violência
(WALKLATE, 2017; DUGGAR, 2018), a situação era ainda mais grave quatro décadas atrás.
A deliberada inação das autoridades sanitárias, orientadas a nada fazer a respeito da fatal
22

proliferação de uma doença pouco conhecida e, até então, sem tratamento (ROSSINOW,
2015; SNOWDEN, 2019; FINKELSTEIN, 2017; WIESNER, 2020), prova embasado o ponto
trazido por Christie (1986). O que dificulta ainda mais a popularização da ideia dessa situação
como um genocídio do povo gay, negro e latino (FINKELSTEIN, 2017). Mas, afinal, o que é
um genocídio?

2.3 DEFINIÇÕES DE GENOCÍDIO.

A Convenção da Prevenção e Punição do Crime de Genocídio da ONU, em 1948,


definiu uma série de critérios para enquadrar atos de violência em massa contra populações
específicas nessa categoria de delito:
De acordo com o artigo II da Convenção, genocídio significa qualquer um dos
seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso:
(a) Matar membros do grupo.
(b) Causar sérios danos físicos ou mentais a membros do grupo.
(c) Submeter intencionalmente o grupo a condições de vida destinadas a causar a sua
destruição física, no todo ou em parte.
(d) Imposição de medidas destinadas a impedir o nascimento de crianças dentro do
grupo.
(e) Transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. (ONU, 2024)

​ Podemos ver que, se seguirmos esse raciocínio, considerando a deliberação da inércia


do governo Reagan diante da alarmante crescente da pandemia da AIDS [principalmente]
entre as populações vulneráveis dos EUA, seria possível encaixar sua reação nos critérios do
crime de genocídio da ONU. Contudo, outro ponto relevante dessa convenção é o fato de ter
sido decidido que grupos políticos não seriam passíveis de vitimização genocida. Sob outra
ótica, porém, pode-se argumentar que nação, etnia, raça e religião são, na verdade, categorias
profundamente políticas. A sexualidade não é um partido político, mas também não se
encaixa em nenhum dos campos citados pela Convenção. Latinos e negros, especialmente os
haitianos (SHILTS, 1987), entretanto, cabem nas caixas étnicas e raciais.
​ No texto LGBT+ Genocide: Understanding hetero-nationalism and the politics of
psychological silence, Heather Panter (2022) discorre sobre diversas políticas genocidas
impostas ao redor do mundo com base no gênero e na sexualidade das vítimas. Panter
emprega o termo hetero-nacionalismo, inicialmente introduzido por Euan Hague em 1997,
para explicar a dificuldade do grande público em reconhecer e condenar quaisquer medidas
genocidas contra a população LGBTQ+.
Cunhado por Hague (1997), hetero-nacionalismo é um termo no qual a
heteronormatividade é aplicada a identidades nacionais. Embora Hague (1997) tenha
utilizado o termo para referenciar estupros em massa na Bósnia-Herzegovina e como
23

os perpetradores estupram e engravidam mulheres/meninas para reforçar suas


próprias percepções de poder e dominância sexual, eu acredito que o termo poderia
ser expandido para se entender como as identidades nacionais (ou aquelas que
representam o governo) são consolidadas em relação à ideologia política da
heterossexualidade. Dessa forma, a implantação do hetero-nacionalismo poderia
incluir a opressão sistemática imposta pelo governo e as eventuais mortes genocidas
daqueles que não se conformam com ideologias heteronormativas (e.g. identidades
LGBT+). Eu uso “heteronormatividade” aqui em relação à aderência sistemática e
estrutural à heterossexualidade, à conformidade de gênero e à feminilidade na
medida em que se define outras sexualidades como inferiores (vide Schilt e
Westbrook, 2009). Notavelmente, o preconceito social ativo ou a indiferença passiva
são baseados no foco religioso, legal ou científico na heterossexualidade, e nas
normas sociais esperadas (e.g. princípios hetero-nacionalistas). [...] (PANTER, 2022,
p. 69)7

​ Ou seja, o hetero-nacionalismo é fortemente ligado à própria estrutura da maior parte


das sociedades, sendo indissociável, geralmente, da religião, da legislação e da identidade
nacional. Panter (2022) reconhece que, de fato, a população LGBTQ+ não é contemplada
pelas diretrizes da ONU (2024) contra o crime de genocídio. Ela argumenta, no entanto, que
isso de forma alguma quer dizer que não tenha existido, ao longo da história e mesmo nos
dias de hoje, políticas genocidas em relação às minorias sexuais e de gênero (p. 72). Na
verdade, pode-se dizer que é justamente a presença do hetero-nacionalismo, tão encravada na
estrutura de diversas sociedades ao redor do mundo, que impede esse reconhecimento. Após
essa explicação, a autora traz diversos exemplos de casos em que foram instituídas medidas
definíveis como genocídio contra pessoas LGBTQ+. Curiosamente, Panter (2022), e nem
qualquer outro autor presente no livro, não menciona a pandemia da AIDS em momento
algum. No entanto, é discutida a inclusão dos homens homossexuais nas políticas de
extermínio da Alemanha nazista (p. 72-75), cujo imago foi fortemente evocado pelos ativistas
das organizações radicais da vanguarda do combate à AIDS.
Larry Kramer (1989), Avram Finkelstein (2017) e outros ativistas e pensadores gays
traçam, desde a década de 1980, comparações entre o Holocausto e as políticas em relação à
AIDS. Argumentos contra esse paralelo, sobretudo a respeito da reclamação do triângulo rosa
por organizações como a ACT UP em seus pôsteres (FINKELSTEIN, 2017) — símbolo

7
Tradução própria do trecho em inglês: Coined by Hague (1997), hetero-nationality is a term in which
heteronormativity is applied to national group identities. While Hague (1997) used the term to reference mass
rapes in Bosnia-Herzegovina and how perpetrators rape and impregnate women/girls to assert their own
perceptions of power and sexual dominance, I believe the term could be expanded to understand how national
identities (or those who represent the government) are asserted in respect to the political ideology of
heterosexuality. As such, the assertion of hetero-nationalism could include the systematic government-imposed
oppression and the eventual genocidal deaths of those who do not conform to heteronormative ideologies (i.e.
LGBT+ identities). I use ‘heteronormativity’ here in respect to systematical and structural social adherence to
heterosexuality, gender conformity, and femininity while defining other sexualities as inferior (see Schilt and
Westbrook, 2009). Notably, active social prejudice or passive indifference is founded upon religious, statutory or
scientific focus on heterosexuality, and expected social norms (i.e. hetero-nationalist principles). [...] (PANTER,
2022, p. 69)
24

adotado pelos nazistas para a denominação dos homens homossexuais nos campos de
concentração durante o Terceiro Reich —, afirmam que tal comparação é insensível e
despolitizante para com a luta dos judeus. No entanto, vale ressaltar que Kramer, Finkelstein e
outros ativistas eram, além de gays, pessoas judias, o que dificilmente é levantado pelos
opositores da analogia. Isso, combinado à dificultante razão neoliberal, torna extremamente
disputada a “retratação” (em inglês, chamada de frame, palavra traduzida literalmente para
“moldura” por Epstein em 1997) da pandemia da AIDS como genocídio.
25

3 A PESTE E O CAPITAL: A PANDEMIA DA AIDS, SEU CONTEXTO HISTÓRICO


E SEUS DESDOBRAMENTOS.

Apesar de o Vírus de Imunodeficiência Humano (VIH, ou, em sua sigla anglófona


pela qual é globalmente conhecido, HIV) ter se estabelecido principalmente em caçadores na
África Central no começo do século XX, adaptando-se de sua forma símia na medida em que
as interações com os macacos infectados foram aumentando por meio da caça e do consumo
de sua carne (CHITNIS et. al., 2000; KALISH et. al., 2005), o contágio massivo que viria a se
tornar a pandemia da AIDS se deu por volta da década de 70 (SHILTS, 1987). Nos anos 80,
com a chegada do HIV a outros continentes e grandes centros urbanos, o desconhecimento de
suas consequências, em específico a AIDS, e a negligência das autoridades em relação a
planos de contenção, o vírus tomaria proporções devastadoras. Proporções estas que, em seu
livro And The Band Played On, publicado em 1987, o jornalista Randy Shilts acompanha de
perto. Shilts, então repórter do San Francisco Chronicle, que credita nos agradecimentos do
livro como o único jornal diário que de fato falava sobre a pandemia da AIDS desde o início,
utiliza-se de diversas fontes—inclusive Larry Kramer, ativista ferrenho e autor de The Normal
Heart—para pintar um trágico e cru retrato do cenário entre o final da década de 70 e 1985,
quando, após o célebre ator Rock Hudson ser publicamente diagnosticado com AIDS, a
população passou a reconhecer sua existência, pelo menos parcialmente (SHILTS, 1987).
Além de And The Band Played On, o capítulo sobre HIV/AIDS nos Estados Unidos do livro
Epidemics and Society, de Frank Snowden (2019) e o volume The Reagan Era, de Douglas C.
Rossinow (2015), servirão como referências norteadoras para este capítulo, dedicado à
contextualização.
Quando Ronald Reagan derrotou o então presidente James “Jimmy” Carter na eleição
presidencial dos EUA de 1980, nem mesmo os democratas ficaram surpresos. Em meio à
crise econômica que aumentara a inflação e o índice de desemprego, Carter era
consideravelmente menos popular do que o adversário (ROSSINOW, 2015; SHILTS, 1987).
Dentre parte dos setores mais progressistas, apesar da derrota e da certeza de boa parte do
Partido Democrata de que o país seria arruinado (HEMMER, 2022, p. 21), o clima não era de
todo pessimista. O movimento gay, concentrado em dois principais “blocos” em São
Francisco e Nova York, havia majoritariamente apoiado o segundo colocado nas primárias do
Partido Democrata, Ted Kennedy, que trazia em seu projeto propostas concretas para a
garantia de direitos à população LGBTQ+. Por mais que, após muita pressão, Carter houvesse
26

incorporado as propostas de Kennedy ao próprio programa e concedido ao movimento gay


todas as demandas que condicionariam seu apoio na eleição (SHILTS, 1987), sua
impopularidade era avassaladora.
Alguns ativistas como Bill Kraus, estrategista político democrata de São Francisco,
esperavam que os avanços de seus direitos nos últimos anos e suas reivindicações não seriam
comprometidos. Apesar de figuras caricatamente homofóbicas, tal qual o televangelista Jerry
Falwell, terem afirmado em público que teriam sido as principais responsáveis pela vitória
republicana—convenientemente ignorando a situação econômica que levara à enorme rejeição
a Carter, o movimento gay não estava de todo desesperançoso. Embora fosse crescente o
conservadorismo entre boa parte da população (ROSSINOW, 2015), a ênfase de Reagan e de
seus correligionários nos cortes de orçamento não eram diretamente opostos às suas
ambições; os direitos da comunidade LGBTQ+ não seriam, em sua visão, uma ameaça ao
afinal vitorioso regime neoliberal (SHILTS, 1987, p. 11-18). Uma pandemia com milhares de
vítimas, é claro, não era esperada pela comunidade.
Enquanto isso, médicos da costa oeste e leste diagnosticavam, respectivamente, casos
graves de pneumonia pelo protozoário Pneumocystis carinii e de um câncer de pele raro
conhecido como sarcoma de Kaposi em uma alarmante quantidade de homens gays. Ambas as
doenças já eram há muito conhecidas, porém tidas como relativamente benignas; o sarcoma
de Kaposi afetava majoritariamente idosos na região do Mar Mediterrâneo e a pneumonia por
Pneumocystis (PCP) fora praticamente erradicada no início do século XX. De início, não se
enxergava relação entre as duas ocorrências, mas a comunicação entre alguns médicos os
levou à conclusão de que algo estava prejudicando o sistema imunológico dos pacientes,
fazendo com que essas enfermidades facilmente curáveis se tornassem malignas e
crescentemente fatais (SHILTS, 1987).

3.1 A NEW RIGHT, REAGAN E A ASCENSÃO DO NEOLIBERALISMO.

É impossível discutirmos a pandemia da AIDS nos Estados Unidos sem antes


analisarmos o contexto em que esta se deu. Ao final da década de 70, após sucessivas crises
econômicas e sociais, novos projetos ganhavam força ao redor do mundo. O que antes havia
sido uma mera oposição às teorias keynesianas, que acabaram por “vencer” o embate no meio
do século XX, era agora visto por muitos economistas e governantes como a grande solução
para a decadência dos regimes previamente adotados. Embora não fossem inteiramente
responsáveis pelos planos econômicos, três políticos, que assumiram a liderança de suas
27

respectivas nações entre os anos 70 e 80 (por via democrática ou não), tornaram-se uma
espécie de “faces” do crescente movimento neoliberal. Margaret Thatcher, no Reino Unido,
Augusto Pinochet, no Chile, e Ronald Reagan, nos EUA, implantaram, em suas gestões,
políticas ultraliberais que seriam indissociáveis de outros aspectos fora do âmbito diretamente
econômico. Afinal, a governamentalidade neoliberal subordina todas as esferas da vida a si
própria (DARDOT; LAVAL, 2016). E é dentro dela que o sujeito, outrora transfigurado em
mão de obra, torna-se capital humano.
O processo da implantação do neoliberalismo, tanto como regime econômico quanto
como razão de mundo, deu-se nos EUA praticamente da exata forma descrita por Dardot e
Laval (2016); o desmonte das instituições ocorreu por meio delas próprias, com intervenções
estatais instaurando o anti-intervencionismo. A drástica redução de impostos sobre a renda,
privilegiando as camadas mais abastadas da sociedade americana, a diminuição exacerbada do
investimento em políticas de bem-estar social, como a educação e a saúde públicas, surgiu da
própria administração Reagan. O foco em enviar o dinheiro público às forças militares, sob a
justificativa da ainda corrente Guerra Fria, bem como o discurso conservador e individualista
do presidente, foram também fortes “destaques” de seu governo. E, dentre a maioria da
população, isso fez com que o republicano se tornasse relativamente bem quisto.
​ Reagan, evidentemente, não é o único responsável ou idealizador da neoliberalização
estadunidense. Ao contrário do que prega o discurso que aqui brevemente analisaremos para
fins de contexto, bem como a delegação da autoridade e a responsabilização individual
essenciais para a governamentalidade neoliberal (BROWN, 2015, p. 132-134), é impossível
que um fenômeno econômico, político e social seja realizado por um único sujeito8. No
entanto, seu discurso e seu programa de governo tornaram não apenas a sua administração,
mas a sua própria figura, elementos emblemáticos e simbólicos da ascensão do
neoliberalismo. Ronald Reagan acabou por se tornar, pelo menos nos EUA, a face da New
Right.
​ Estabelecida em diferentes “ondas” (MUDDE, 2019), a New Right (Nova Direita, em
tradução literal) foi efetivamente consolidada após o final da II Guerra Mundial. As
democracias liberais e as repúblicas socialistas, depois de uma breve aliança bélica contra a
Alemanha nazista, passaram a protagonizar a grande divisão política do momento. O
antifascismo que unira as duas facções dava lugar ao embate, que já existia antes da guerra,

8
Isso não quer dizer de forma alguma, no entanto, que o ex-presidente dos EUA não tenha sido um agente
perfeitamente consciente das medidas e não-medidas tomadas em relação não somente à pandemia da AIDS, mas
à inflamação do discurso que serviu para marginalizar ainda mais as suas vítimas.
28

entre um Ocidente capitalista e “democrático” e um Oriente socialista e “autoritário”. Apesar


da vontade generalizada de jamais se repetir os horrores do Holocausto, nem todos os
fascistas e colaboracionistas enfrentaram, de fato, represálias. Enquanto os países socialistas,
em especial a União Soviética, aplicaram severas punições àqueles que capturavam e baniram
completamente quaisquer demonstrações das ideologias fascistas, as democracias ocidentais,
via de regra9, foram menos rígidas nas restrições. Tanto os Estados Unidos quanto o Reino
Unido, apesar do envolvimento direto na II Guerra Mundial, não institucionalizaram
proibições ou prisões e execuções. Essa falta de medidas punitivas na grande maioria dos
países que não chegaram a ser ocupados pelos nazistas possibilitou a fuga dos fascistas e
colaboracionistas que conseguiram escapar dos soviéticos. Notavelmente, estes acabaram se
dirigindo ao continente americano. Lá, encontraram certa simpatia por parte das facções que
já nutriam um profundo sentimento anticoumunista, como alguns imigrantes do leste europeu
e os próprios habitantes locais adeptos à ideologia da extrema direita (MUDDE, 2019, p.
10-12). Cas Mudde (2019, p. 11-23), em seu livro The far right today, divide a extrema direita
pós-guerra em quatro grandes ondas: O neo-fascismo (1945-1955), o populismo de direita
(1955-1980), a direita radical (1980-2000) e uma quarta onda (2000-presente). Mudde foca
sua análise, no primeiro segmento, nos movimentos oriundos da Europa. Entretanto, a
cronologia dessas ondas é compatível e associada, especialmente considerando a rápida
evolução dos meios de comunicação com a globalização vertiginosa que se deu a partir da
segunda metade do século XX, com a ascensão da New Right tipicamente estadunidense. Os
próprios conservadores têm definições para os próprios movimentos muito parecidas
​ Em American Conservatism: An Encyclopedia (FROHNEN, et. al., 2006), os autores
dividem a New Right entre alguns momentos principais. O primeiro, chamado de First New
Right (Primeira Nova Direita), ocorreu a partir dos anos 1950. Rompendo com os ideais da
direita pré-II Guerra Mundial, que se opunha ao New Deal e à intervenção em conflitos
externos, essa nova facção da direita estadunidense tinha como ideal econômico o liberalismo
tradicional. No entanto, era favorável a um Estado maior em prol do anticomunismo. Para
eles, era perfeitamente aceitável a intervenção do governo contra os soviéticos. Dentro desse
grupo, no entanto, havia outra divisão; enquanto a maioria pregava a liberdade individual a
nível também social, um pequeno grupo enfatizava uma suposta necessidade do retorno de
valores tradicionais cristãos. A partir da década de 1970, este segmento foi ganhando mais
força. Apesar da inicial adesão majoritária dos republicanos, muitos daqueles que se juntaram

9
A Alemanha e a Itália, com seus regimes derrotados ao final da IIGM, baniram ideais e movimentos
“neo-fascistas” (MUDDE, 2019, p. 11).
29

à Second New Right (Segunda Nova Direita), segundo os próprios conservadores, eram
democratas (WOLTERS, 2006. p. 624-625). Foi nesse cenário que surgiu a figura de Ronald
Reagan, ator transformado em governador da Califórnia pelo Partido Republicano e,
posteriormente, eleito duas vezes presidente da república. No verbete New Right,
contribuição de Raymond Wolters à enciclopédia conservadora organizada por Frohnen et. al.,
explica-se nas palavras dos próprios conservadores este fenômeno:
Esta nova nova direita era formada por conservadores sociais, muitos dos quais
haviam sido democratas no passado. Alguns se ressentiam a respeito de altos
impostos após recém terem atingido o status de classe média. Outros se opunham às
preferências raciais invertidas que haviam passado a caracterizar a esquerda liberal.
Outros, ainda, estavam insatisfeitos com suas tradicionais amarras democráticas
devido à preopcupação com o crime, o divórcio, a pornografia, e outras mudanças na
cultura.

Ronald Reagan reconheceu a oportunidade de construir uma maioria republicana.


Em um discurso de 1977 para a American Conservative Union (União Conservadora
Americana), ele explicou que queria manter o suporte da base republicana
continuando a favorecer impostos mais baixos e menos regulação governamental
dos negócios. Mas ele também pretendia utilizar “as tão faladas questões
sociais—lei e ordem, aborto, busing10 [e] sistemas de cotas” para apelar a milhões de
outros americanos “que podem nunca ter pensado em se juntar ao nosso partido
antes.” Seu objetivo era “combinar os dois segmentos majoritários do
conservadorismo americano contemporâneo em um todo politicamente efetivo.”
(WOLTERS, 2006, p. 625)11

​ Apesar do evidente teor conservador do trecho acima, que se utiliza de termos


pavorosos como “preferências raciais invertidas” e enfatiza a preocupação dos desertores do
Partido Democrata como sendo em relação a “mudanças na cultura”, a definição da própria
direita não difere muito daquela apresentada em outros trabalhos. Nicole Hemmer (2022), por
exemplo, coloca Reagan como um grande representante dessa guinada à direita. Ao
contextualizar e observar a carreira política do ex-presidente, bem como a ideologia que ficou
conhecida como Reaganismo, Hemmer descreve o seguinte:

10
Fenômeno estadunidense do transporte de crianças para escolas fora de seu bairro de residência com o
propósito de atingir um “equilíbrio racial” nas instituições de ensino.
11
Tradução própria do trecho em inglês: This new new right was made up of social conservatives, many of
whom had been Democrats in the past. Some resented high taxes after having only recently achieved
middle-class status. Others took exception to the reverse racial preferences that had come to characterize the
liberal left. Still others were disaffected from their traditional Democratic moorings because of concern about
crime, divorce, pornography, and other changes in the culture.

Ronald Reagan recognized the opportunity to build a Republican majority. In a 1977 speech to the American
Conservative Union, he explained that he wanted to maintain the support of the Republican base by continuing
to favor lower taxes and less government regulation of business. But he also wanted to use “the so-called social
issues—law and order, abortion, busing, [and] quota systems” to appeal to millions of other Americans “who
may never have thought of joining our party before.” His goal was “to combine the two major segments of
contemporary American conservatism into one politically effective whole.” (WOLTERS, 2006, p. 625)
30

Ironicamente, Reagan havia passado a primeira metade de sua vida como um


democrata do New Deal. Por mais que sua política tenha começado a se transferir
para a direita nos anos 1950, levou anos para ele desenvolver a mistura de políticas,
ideologia e retórica que o levou àquele frágil estado em 1980. A política tumultuosa
da era da Guerra Fria transformou sua visão política, que foi inicialmente moldada
pelo ansioso anticomunismo da década de 50, e depois a instabilidade doméstica dos
anos 1960, e por fim as preocupações econômicas dos anos 1970. Cada década
deixou sua marca em Reagan, transformando suas políticas em uma forma distinta
de conservadorismo da Guerra Fria, algo que comentaristas vieram a batizar de
Reaganismo. [...]

Se apenas se referisse à sua ideologia e preferências políticas, o Reaganismo seria


sinônimo do conservadorismo. Afinal, o conservadorismo de Reagan não era único.
Ele era a mesma fusão de ideologias que os conservadores do movimento haviam
costurado nas décadas anteriores: libertarianismo de Estado mínimo,
conservadorismo social e um musculoso anticomunismo. Ativistas conservadores
nunca realmente encontraram uma forma de resolver todas as contradições em seu
credo—Estado mínimo, exceto quando em relação às forças militares ou à caça de
comunistas interna; conservadorismo social, exceto quando os libertários queriam
ser deixados em paz; anticomunismo musculoso, exceto quando requiria assistência
estrangeira ou impostos mais altos. Logo, não deveria ser surpreendente que o
Reaganismo também fosse cheio de contradições, e a retórica e a realidade muitas
vezes seguiam caminhos diferentes.

Mesmo assim, havia um Reaganismo definível, formado quando o conservadorismo


da Guerra Fria era filtrado através da personalidade, da retórica e das experiências de
Reagan. Estas não eram influências superficiais, mas decisivas. Por décadas, o
movimento conservador havia sido intratavelmente ligado ao senador do Arizona
Barry Goldwater, grupos de extrema direita como a John Birch Society, e
segregacionistas que espumavam por não conseguir aceitar o sucesso do movimento
dos direitos civis. Muitos americanos o viam como severo, odioso e maluco. E
embora alguns americanos certamente enxergassem Reagan como sendo detentor de
todas essas três características, ele convenceu uma robusta maioria de eleitores de
que era algo diferente. (HEMMER, 2022, p. 22-23)12

12
Tradução própria do trecho em inglês: Ironically, Reagan had spent the first half of his life as a New Deal
Democrat. While his politics had started shifting to the right by the 1950s, it took decades for him to develop the
blend of policies, ideology, and rhetoric that led him to that rickety stage in 1980. The tumultuous politics of the
Cold War era transformed his politics, which were shaped first by the anxious anticommunism of the 1950s, then
the domestic unrest of the 1960s, and finally the economic woes of the 1970s. Each decade left its imprint on
Reagan, fashioning his politics into a distinct form of Cold War conservatism, something that commentators
came to call Reaganism. [...]

If it simply referred to his ideology and policy preferences, Reaganism would be synonymous with conservatism.
After all, Reagan’s conservatism was not unique. It was the same blend of ideologies that movement
conservatives had woven together over the previous decades: small-government libertarianism, social
conservatism, and muscular anticommunism. Conservative activists never really found a way to resolve all the
contradictions in their creed—small government, except when it came to the military or Red-hunting at home;
social conservatism, except when libertarians wanted to be left alone; muscular anticommunism, except when it
required foreign aid or higher taxes. So it should be no surprise that Reaganism was full of contradictions as
well, and rhetoric and reality parted ways plenty of times.

Still, there was a definable Reaganism, one formed when Cold War conservatism was filtered through Reagan’s
personality, rhetoric, and experiences. Those were not superficial influences but decisive ones. For decades,
movement conservatism had been intractably linked with Arizona senator Barry Goldwater, far-right groups like
the conspiratorial John Birch Society, and frothing segregationists unable to come to terms with the success of
the civil rights movement. Many Americans saw it as dour, hateful, and nutty. And while some Americans
certainly saw Reagan as embodying all three of those traits, he persuaded a hefty majority of voters that he was
something different. (HEMMER, 2022, p. 22-23)
31

É praticamente senso comum o fato de sua devoção ao tradicionalismo branco,


anglo-saxônico e protestante (WASP) ter agradado, e muito, os setores mais conservadores do
país, mas as suas promessas de prosperidade econômica e o seu estímulo ao “empoderamento
individual” via capital trouxe esperança a boa parte da parcela mais jovem. O capitalismo,
neste caso em sua encarnação neoliberal, tornava-se não apenas regime econômico, mas
também uma questão moral (ROSSINOW, 2015). Esse quase endeusamento da liberdade do
indivíduo, como nota Brown (2015, p. 132-134), viria a se tornar uma faca de dois gumes;
enquanto a delegação da autoridade causava uma ilusão de poder meritocrático, alcançável
por meio do investimento pessoal, o indivíduo acabava forçado a arcar com responsabilidades
relativas à sobrevivência de si próprio e do sistema econômico que, não fosse pelas políticas
de austeridade, seriam do Estado.
A classe trabalhadora, as minorias étnicas e a comunidade LGBTQ+, evidentemente,
passaram a ser progressivamente mais marginalizadas (ROSSINOW, 2015) e foram os
primeiros grupos a sofrerem, de fato, o baque da austeridade. Logicamente, aqueles que já
enfrentavam dificuldade para sobreviver dentro do sistema, fosse pela dificuldade de
conseguir emprego, pela disparidade salarial ou pelo próprio trauma causado pelo preconceito
enraizado na ideologia das massas, seriam imensamente prejudicados sem a devida proteção
(por menor que fosse) do Estado.13
A gradual, porém acelerada, em termos históricos, substituição do sujeito pelo capital
humano (BROWN, 2015), agravava a situação daqueles que não eram tidos como “membros
produtivos” da sociedade. E, visto que a família tradicional norte-americana (WASP), jamais
poderia incluir esses grupos, não se os via como dignos de investimento. A ideologia que
passara a dominar os Estados Unidos nas décadas anteriores era de teor profundamente
neoliberal (BROWN, 2015; DARDOT; LAVAL, 2016), conservadora (HEMMER, 2022) e
hetero-nacionalista (PANTER, 2022). O racismo, a homofobia, o preconceito de classe e
outras formas de discriminação pareciam se tornar incrivelmente explícitos mesmo em centros
urbanos das costas Leste e Oeste, outrora vistos como “bolhas progressistas” (SHILTS, 1987).
Como afirmam Christie (1986), Walklate (2017) e Panter (2022), tornava-se quase
impossível, para o público geral, enxergar essas pessoas como vítimas de preconceito ou
mesmo de crimes violentos. Não eram parte da sua comunidade. E, se uma nova pandemia
aparentasse ser endêmica a esses outros, não haveria motivo de preocupação para os membros

13
Em termos de políticas de assistência social referentes a saúde, educação, trabalho, etc.. Não havia medidas
concretas para, por exemplo, proteger a comunidade LGBTQ+ de preconceito e crimes de ódio; se hoje em dia
estas são majoritariamente regionalizadas, relativas e baseadas quase que por inteiro em precedentes jurídicos, na
Era Reagan eram inexistentes.
32

“produtivos” da sociedade americana. Até, é claro, que esse grupo demográfico também fosse
visivelmente afetado.

3.2 A ADMINISTRAÇÃO REAGAN E AS (NÃO-)POLÍTICAS PARA O


ENFRENTAMENTO DA AIDS.

Quando, em 1981, os numerosos casos de sarcoma de Kaposi e de PCP passaram a ser


“oficialmente” identificados como oriundos da mesma infecção, nomeada, finalmente, AIDS,
o cenário político certamente não era favorável à pesquisa. As organizações dedicadas, dentro
e fora dos EUA, tentavam utilizar seus escassos recursos para identificar o agente causador da
síndrome. Rapidamente ocorreu o consenso de que seria um vírus. Restava, agora, isolá-lo
(FRANCIS, 2004). Apesar de uma considerável parcela dos cientistas do Center for Disease
Control (CDC) e do National Cancer Institute (NCI) subdivisões do departamento de saúde
pública dos EUA, demonstrar grande preocupação em relação à crescente epidemia, foi
necessária uma colaboração com o Institut Pasteur, de Paris, para que o vírus posteriormente
denominado HIV fosse isolado (FRANCIS, 2004; GALLO, 1984; SHILTS, 1987;
SNOWDEN, 2019). Entre 1981 e 1984, quando foi “oficialmente descoberto”14 o vírus
causador da AIDS, à época ainda não conhecido por sua nomenclatura atual, milhares pessoas
tornaram-se vítimas fatais da doença.
Mesmo após a identificação do agente causador da AIDS, ainda não se tinha
tratamento para a doença, que matava cada vez mais pessoas em crescente velocidade. Era
necessário avisar a população e, por meio da divulgação e da educação, tentar prevenir o
contágio. No entanto, os Reaganitas estavam mais preocupados no reforço ao moralismo
cristão, e qualquer tipo de educação sexual que não se baseasse na abstinência heterossexual
era tida como abominável (ROSSINOW, 2015). Logo, os primeiros alertas acabaram tendo de
surgir no boca-a-boca, na fofoca entre os círculos sociais das costas Oeste e Leste (SHILTS,
1987). Alguns poucos jornais, como o New York Native, o San Francisco Chronicle e o Los
Angeles Times (NELSON, 1981; SHILTS, 1987), publicaram notas e reportagens sobre uma
nova doença infectando homens gays.

14
Apesar de Robert Gallo, pesquisador do NCI, ter anunciado que “descobrira” o vírus em 1984, funcionários do
CDC vazaram à imprensa a informação de que, na verdade, seu isolamento havia ocorrido primeiramente na
França, realizado pelo Institut Pasteur. Gallo tentou ao máximo, ao longo dos anos, restringir e boicotar a
colaboração internacional pois não queria que os franceses recebessem o crédito pelo trabalho, o que causou uma
série de conflitos e atrasos nas pesquisas conduzidas nos EUA (SHILTS, 1987, p. 350-420)
33

Porém, a maior parte dos jornais de grande circulação parecia desinteressada no


assunto (SHILTS, 1987; KRAMER, 1989). Pouco se falava, na grande imprensa, sobre a
doença que rapidamente se espalhava pelas veias expostas de uma sociedade desavisada.
Somente a partir de 1985, mesmo ano da divulgação do diagnóstico (SHILTS, 1987, p. 582) e
da morte de Rock Hudson por complicações decorrentes da AIDS, começou a se discutir na
mídia a doença como uma ameaça à população heterossexual. Não era novidade que o vírus
não discriminava entre aqueles que iria infectar. No entanto, era inédita a cobertura da
imprensa a respeito da AIDS como não sendo apenas um problema gay (SHILTS, 1987, p.
568).
Relatórios médicos de veículos oficiais, como o de Michael S. Gottlieb a respeito dos
crescentes casos de PCP entre os homens homossexuais (GOTTLIEB, 2005), eram não
apenas tidos como desimportantes, mas relativamente censurados. A sexualidade dos
pacientes, a pedido do próprio periódico médico, foi omitida do título, para evitar tanto
ofender a comunidade gay quanto inflamar a homofobia dos cada vez mais espaçosos
conservadores (SHILTS, 1987, p. 67-69). Afetando, até onde se sabia, praticamente apenas
homens homossexuais, hemofílicos, usuários de drogas intravenosas e imigrantes negros e
latinos, a AIDS não representava um problema real para as autoridades do governo Reagan
(SHILTS, 1987; SNOWDEN, 2019; WIESNER, 2019), e não o faria por alguns anos. Afinal,
o exacerbado hetero-nacionalismo (PANTER, 2022) da administração tornava uma pandemia
que tirava a vida de, sobretudo, homens homossexuais, uma não-questão.
Por mais que vários profissionais do CDC e do NCI, acostumados a investigar e tentar
resolver epidemias ao redor do mundo com tecnologia de ponta, estivessem determinados a
enfrentar o perigo da AIDS, o governo estadunidense deliberadamente os impedia. Com
algumas autoridades regionais e municipais, como a então prefeita de São Francisco, Dianne
Feinstein, excepcionalmente indo contra a tendência nacional e investindo no enfrentamento à
óbvia pandemia, a situação nos EUA era catastrófica (ROSSINOW, 2015, p. 132). Os
epidemiologistas não recebiam apenas recusas aos seus pedidos de investimento financeiro,
mas orientações das autoridades para que nada fizessem. Em uma entrevista concedida à PBS
em 2004, o médico Don Francis relata sua experiência no CDC durante a ascensão da
pandemia da AIDS.
A parte importante de se lidar com epidemias é lidar com elas cedo. Assim como o
corpo de bombeiros prefere entrar em um edifício quando há chamas saindo de uma
janela em vez de quando há chamas saindo de todas as janelas, porque é muito mais
fácil de se controlar o fogo logo no começo, é muito mais fácil de se controlar uma
epidemia logo no começo. A primeira aparição da AIDS, com os incríveis perigos
que ela obviamente apresentava em termos de mortalidade, deveria ter avisado, “Nós
34

precisamos enfrentar este fogo bem cedo.” A realidade foi que isso foi o que nós no
CDC recomendamos, e isso nos foi ordenado a não acontecer pelas autoridades
superiores e pelo governo dos Estados Unidos. [...] então nós tínhamos um monte de
informações. Tínhamos testes de laboratório. Vimos como o vírus havia ocorrido,
como ele era transmitido. Então, voltei-me à direção do alto escalão do CDC para
fazermos um plano de prevenção. Acho que o chamamos de Operação Controle da
AIDS, e aquele plano era terrivelmente caro -- era US$ 30 ou 40 milhões por ano a
nível federal e mais a níveis locais, estaduais e locais. Iríamos lançar programas para
testagem, aconselhamento e educação sobre HIV/AIDS. O programa foi passado a
limpo em várias páginas por mim, e várias páginas do documento foram para o
diretor do CDC… Foi a Washington, e a palavra que recebemos de volta de
Washington, até onde me lembro, foi algo como “Não, nós não vamos financiar isto,
e queremos que vocês pareçam bonitinhos e façam o mínimo possível.” [...] isso
estabeleceu um precedente para que outros governadores conservadores de alto
escalão e outras figuras similares a dizer: “Bem, as maiores autoridades da Casa
Branca não acham necessariamente que tenhamos de investir dinheiro no
HIV/AIDS; então por que deveríamos? E também é constrangedor falar sobre sexo e
compartilhamento de agulhas e agulhas e educação escolar a respeito de abstinência
e sexo e escolhas, etc., e eu não gosto disso, de qualquer jeito. E visto que Ronald
Reagan não gostou, eu também não vou fazer coisa alguma.” (FRANCIS, 2004)15

O trecho acima representa apenas uma fração da deliberada negligência das


autoridades. Francis (2004) ainda afirma que, por ser uma doença transmitida principalmente
via relação sexual e agulhas, era considerado angustiante e desagradável o simples ato de se
pensar sobre a evidente pandemia que se criava. Portanto, em vez de se valer da angústia para
a busca do conhecimento (LACAN, 2005) que poderia ser de algum auxílio, o governo
conservador decidiu simplesmente recalcá-la.
Segundo Francis, os cinco anos de atraso ocasionados pelas ordens de inércia da
administração Reagan teriam causado a morte de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Afinal, não financiar pesquisas sobre uma nova enfermidade cujo contágio aumentava em
grande velocidade apesar dos avisos de vários cientistas durante cinco anos, mesmo sabendo
que o CDC era referência mundial no combate a doenças infecciosas, e também proibir seu

15
Tradução própria do seguinte trecho em inglês: The important part about dealing with epidemics is to deal
with them early. Just like the fire department would really rather come into a building when there was smoke
coming out of one window instead of when there are flames coming out of every window, because it's a lot easier
to control the fire early on, it's much easier to control an epidemic early on. The first sight of AIDS, with the
incredible dangers that it obviously posed in terms of mortality, should have said, "We have to take this fire on
very early." The reality was that's what we at CDC recommended, and that was actually told to us not to happen
by the higher authorities and the United States government. [...] then we had a lot of information. We had
laboratory tests. We saw how far the virus had gone, how it was transmitted. It was all very clear by that time.
Then I shifted at the direction of the higher levels of CDC to make a plan of prevention. I think we called it
Operation AIDS Control, and that plan was terribly expensive -- it was $30 [million], $40 million per year at the
federal level and more at local levels, state and local. We would launch programs for testing and counseling and
education for HIV/AIDS. That program was outlined in several pages by me, and several pages [of the]
document went to the director of CDC. ... It went to Washington, and the word that we got back from
Washington, as best as I can recall, was something like, “No, we're not going to fund it, and we want you to look
pretty and do as little as you can.” [...] it set a precedent for other conservative, high-level governors and the like
to say: “Well, the highest levels of the White House don't necessarily think we should put money into
HIV/AIDS; then why should we? And it's also embarrassing to talk about sex and needle exchange and needles
and school education about abstinence and sex and choices, etc., and I don't like that anyway. And since Ronald
Reagan didn't like it, then I'm not going to do anything either.” (FRANCIS, 2004)
35

reconhecimento público e sua divulgação por canais oficiais até 1986 (FRANCIS, 2004;
SHILTS, 1987; KRAMER, 1989; ROSSINOW, 2015; SNOWDEN, 2019) seria, na melhor e
mais ingênua das hipóteses, um crime grave de responsabilidade. Na pior e
compreensivelmente defendida por grupos radicais como a ACT UP, o governo Reagan teria
submetido intencionalmente o grupo a condições de vida destinadas a causar a sua
destruição física, no todo ou em parte (ONU, 2024).
Reagan orientou C. Everett-Koop, então cirurgião-geral dos EUA, a escrever um
relatório a respeito da crise da AIDS somente em fevereiro de 1986. Segundo os C.
Everett-Koop Papers, documentos localizados na National Library of Medicine,
Everett-Koop, cristão conservador popular entre os republicanos, após encontrar-se com
diversas associações e organizações não-governamentais dedicadas ao enfrentamento da
pandemia, incluindo aquelas formadas pelos LGBTQ+, o médico reconheceu publicamente a
necessidade da educação sexual nas escolas para a prevenção do contágio. O presidente da
república ainda se recusava a, de fato, falar sobre a doença publicamente, restringindo-se a
breves e rasas menções quando muito pressionado pela imprensa. No entanto, a essa altura, os
casos de AIDS no país já chegavam às centenas de milhares. O governo agiu,
propositalmente, tarde demais (ROSSINOW, 2015; SNOWDEN, 2019). Quando Ronald
Reagan finalmente realizou um discurso a respeito da pandemia da AIDS e da ameaça que
esta representava à saúde da população, no dia 1º de abril de 1987, 36.058 cidadãos
estadunidenses haviam sido diagnosticados com a doença no total. Destes, 20.849 estavam
mortos (SHILTS, 1987, p. 596).
Dentre os ativistas e os cientistas da linha de frente, especialmente aqueles envolvidos
em organizações não-governamentais, o discurso de Reagan causou revolta. Não houve
menção às vítimas fatais que haviam dedicado suas vidas, até seu doloroso final, ao combate à
pandemia enquanto o governo se omitia. Em momento algum, Reagan falou a palavra gay,
enfurecendo desde as alas mais radicais das ONGs, como Larry Kramer e a ACT UP, até os
médicos e aliados mais moderados do movimento (SHILTS, 1987, p. 596). Afinal, mesmo
após anos de deliberada negligência, Ronald Reagan não tinha um plano para realmente
conter o avanço do HIV.
Nos vinte minutos seguintes, o presidente trouxe à tona sua visão sobre a AIDS.
Houve pouca conversa sobre educação e muita conversa sobre testagem. Não houve
menção, entretanto, a garantias de confidencialidade ou direitos civis de proteção
àqueles que testassem positivo. O programa de Reagan, é claro, faria quase nada
para de fato parar a propagação da AIDS. Por mais que testar heterossexuais em
cartórios criasse a ilusão de ação, pouquíssimas daquelas pessoas estavam infectadas
com o vírus e pouquíssimas vidas seriam salvas. Mas salvar vidas nunca fora uma
prioridade para a administração Reagan. O discurso de Reagan não tinha a intenção
36

de servir à saúde pública; era uma solução política para um problema político. As
palavras criavam uma posição que era politicamente confortável para o presidente e
seus adeptos; era também uma posição que matava pessoas. Alguns já diziam que
Ronald Reagan seria lembrado nos livros de história por uma coisa acima de todas
as outras: Ele fora o homem que deixara a AIDS devastar a América, o líder do
governo que, quando desafiado à ação, colocara politicagem acima da saúde do povo
americano (SHILTS, 1987, p. 595).16

​ Mesmo dentro da administração republicana a falta de projetos de educação sexual


não era unânime. O próprio Everett-Koop, escolhido principalmente por sua apaixonada
oposição ao aborto, buscava explicitar a importância do uso de preservativos e não temia a
palavra “gay” na hora de fazer seus discursos. Apesar disso, os EUA ainda foram o último
país industrializado do Ocidente a colocar em prática qualquer tipo de campanha educativa
(SHILTS, 1987, p. 587-589). Cada vez mais revoltada, diante de tal inércia disfarçada de
política de saúde pública, a população não reagiu com gratidão ou aprovação às propostas de
Reagan. No ano de 1987, as manifestações outrora não tão populares passaram a contar com
enorme adesão da população. Em 11 de outubro, ocorreu na capital a segunda National March
on Washington for Lesbian and Gay Rights, que contou com cerca de 750.000 participantes.
Foi um evento cuidadosamente planejado por diversas organizações LGBTQ+, com demandas
escolhidas em plenárias. Além de ter originado o National Coming Out Day, celebrado pela
população LGBTQ+ estadunidense na mesma data desde 1988, a marcha marcou a primeira
vez em que a ACT UP foi coberta pela imprensa em rede nacional (STEIN, 2013).
Não foi, entretanto, apenas a administração republicana da década de 80 como
instituição que ativamente impediu os avanços das pesquisas. Por volta de 1982, os
pesquisadores do Institut Pasteur, em Paris, conseguiram isolar, a partir dos linfócitos T de um
paciente que ainda não havia manifestado sintomas de AIDS, o vírus que hoje conhecemos
como HIV. No entanto, para alguns cientistas (principalmente os estadunidenses), era mais
importante ser creditado na descoberta do que efetivamente desenvolver tratamentos, vacinas
ou curas a partir dos avanços. Em uma carta a Don Francis, enviada em dezembro de 1984,
Gallo demonstra estar mais preocupado com a escolha da nomenclatura do vírus e como seu

16
Tradução própria do trecho em inglês: In the next twenty minutes, the president laid out his views on AIDS.
There was little talk of education and a lot of talk about testing. There was no mention, however, of
confidentiality guarantees or civil rights protection for those who tested positive. Reagan’s program, of course,
would do very little to actually stop the spread of AIDS. Though testing heterosexuals at marriage license
bureaus created the illusion of action, very few of those people were infected with the virus and very few lives
would be saved. But then saving lives had never been a priority of the Reagan administration. Reagan’s speech
was not meant to serve the public health; it was a political solution to a political problem. The words created a
stance that was politically comfortable for the president and his adherents; it was also a stance that killed people.
Already, some said that Ronald Reagan would be remembered in history books for one thing beyond all else: He
was the man who had let AIDS rage through America, the leader of the government that when challenged to
action had placed politics above the health of the American people (SHILTS, 1987, p. 595).
37

nome irá aparecer nos créditos da pesquisa, referindo-se aos pesquisadores do Pasteur como
“seus amigos fora do país” (GALLO, 1984). O tom de Gallo, na carta, pode ser lido como
competitivo e as disputas entre ele e Luc Montagnier ao longo dos anos são relativamente
conhecidas pelo público (SHILTS, 1987). Esse individualismo exacerbado é sintomático do
princípio da lógica competitiva de mercado já inconscientemente presente na razão neoliberal
(DARDOT; LAVAL, 2016). Mesmo que não possamos saber exatamente as motivações e
ideais de Gallo, sua postura diante da possibilidade de não ser individualmente reconhecido,
enquanto milhares de pessoas morriam, encaixa-se nos padrões descritos por Dardot e Laval
(2016) e Brown (2015).
Além do pouco alarde na imprensa, da competitividade individual e da negligência
deliberada do governo, outro agente foi fundamental no agravamento da crise da AIDS.
Depois de forte pressão de grupos ativistas, finalmente surgiu um tratamento “oficial”. Em
1987, apesar de outras opções terem sido apresentadas, a Food And Drug Administration
(FDA) aprovou o uso da zidovudina ou azidotimidina (AZT), e de dois tratamentos similares,
como antirretrovirais para o tratamento do HIV/AIDS. É interessante ressaltar que a AZT já
era uma droga conhecida, porém não utilizada. Apesar de ter sido desenvolvida como forma
de quimioterapia, não era tão eficaz contra o câncer, além de necessitar de uma produção
caríssima e bastante tóxica. No entanto, era produzida pela então chamada Burroughs
Wellcome, grande empresa da indústria farmacêutica cujo lobby se estendia às autoridades
sanitárias dos EUA (MARSA, 1993). Surgiu, de forma efêmera, um clima de esperança entre
a população afetada. Porém, não demorou para que maiores problemas passassem a se
manifestar. O altíssimo custo de produção da AZT levou companhias especializadas na
produção de medicamentos genéricos a entrar na justiça em busca de uma quebra de patente.
Estas alegavam que, se a Burroughs vendia o medicamento por US$ 3000, poderiam fazê-lo
por metade do preço. O pedido foi ignorado em 1992 e reavaliado em 1996, quando a
Suprema Corte dos EUA decidiu a favor da Burroughs, apesar desta não ter testado a AZT
contra o HIV, e a empresa manteve sua patente até 2005 (GREENHOUSE, 1996).
A baixa efetividade, os efeitos colaterais severos, visto que tratava-se de uma
quimioterapia, e a pouca acessibilidade da AZT rapidamente levaram os ativistas à revolta
outra vez, reivindicando seu direito a um tratamento de qualidade (MARSA, 1993). Outros
antirretrovirais passaram a ser testados e aprovados ao longo da década de 90, mas a
insistência em uma droga cara, tóxica e ineficaz foi mais um atraso no enfrentamento da
pandemia da AIDS. Abaixo, um pôster da ACT UP protestando o protagonismo da AZT e
questionando a legitimidade dos motivos para este.
38

FIGURA 1

“Enjoy AZT” (Aproveite a AZT) Pôster da ACT UP convocando pessoas para manifestação na sede dos
National Health Institutes. (FONTE: ACT UP, 1991)

Na imagem, vemos uma escolha deliberada de design. A frase “Enjoy AZT”, a paleta
de cores, a linha ondulada no centro e a fonte escolhida são referências escancaradas à
Coca-Cola, gigante da indústria alimentícia emblemática em relação à ganância corporativa.
Abaixo do slogan, um parágrafo diz o seguinte:
O governo dos EUA gastou um bilhão de dólares nos últimos 10 anos para pesquisar
novas drogas para a AIDS. O resultado, 1 droga--AZT. Ela deixa metade das pessoas
que a experimentam doentes e, para a outra metade, para de funcionar depois de um
ano. A AZT é a última e melhor esperança para as pessoas com AIDS, ou é um
atalho para o massacre que a Burroughs Wellcome está fazendo no mercado da
AIDS? Montes de drogas definham em dutos do governo, enquanto fortunas são
feitas nesse monopólio. (ACT UP, 1991)17

Por mais que houvesse, então, finalmente uma possibilidade de tratamento para os
pacientes infectados com o HIV, organizações como a ACT UP não deixaram de lutar. Nos

17
Tradução própria do texto em inglês: The U.S. government has spent one billion dollars over the past 10 years
to research new AIDS drugs. The result, 1 drug--AZT. It makes half the people who try it sick and for the other
half it stops working after a year. Is AZT the last, best hope for people with AIDS, or is it a short-cut to the
killing Burroughs Wellcome is making in the AIDS marketplace? Scores of drugs languish in government
pipelines, while fortunes are made on this monopoly. (ACT UP, 1991)
39

anos seguintes, mais milhares de pessoas morreriam por conta de complicações oriundas da
AIDS, e um remédio caro, pouco efetivo e extremamente debilitante estava longe de ser a
solução. A priorização da manutenção de uma patente, seguindo uma exacerbada lógica
mercadológica, em detrimento das vidas de milhares de pessoas que passaram a ter sua saúde
tratada como capital (BROWN, 2015), também foi agente causador dos horrores enfrentados
pelas vítimas da AIDS.
Tendo tudo isso em vista, partimos, então, para uma possível ilustração de como esses
fatos foram observados, e posteriormente, em grande parte, recalcados pela memória coletiva.
Como diferentes representações de um evento histórico não apenas recente, mas do tempo
presente, podem refletir as mudanças na razão de mundo (DARDOT; LAVAL, 2016) em um
intervalo relativamente curto? Primeiramente, voltemos ao ano de 1981.

4 A AIDS E SUA MEMÓRIA NOS PALCOS: THE NORMAL HEART VS. RENT.
40

A análise das peças The Normal Heart (KRAMER, 1985) e Rent (LARSON, 1997),
neste caso, dá-se fundamentalmente em função do contexto em que foram escritas e
inicialmente apresentadas. Kramer, líder da ACT UP e ferrenho opositor não apenas do
governo Reagan, mas também da assimilação da comunidade gay às diretrizes
heteronormativas e cristãs, publicou sua obra no auge da luta e da resistência à pandemia da
AIDS. Larson, (publicamente posicionado como) heterossexual e já mais desconectado do
ativismo de vanguarda, trouxe Rent aos palcos da costa leste dos Estados Unidos na década
seguinte, quando a ideia de genocídio já estava em desgaste diante da chegada de alguns
grupos LGBTQ+ às discussões oficiais de políticas de saúde pública (EPSTEIN, 1997).
Ambas as peças se passam durante a pandemia da AIDS nos Estados Unidos, mas a diferença
da racionalidade coletiva de uma década para a outra já modifica a forma como a situação é
retratada. Como afirma Borges (2014), a literatura “apresenta-se como uma configuração
poética do real, que também agrega o imaginado, impondo-se como uma categoria de fonte
especial para a história cultural de uma sociedade”. Ou seja, a representação literária da
história, além de buscar, de alguma maneira, retratá-la, traz sintomas socioculturais da época
em que é realizada.
Neste capítulo, iremos observar como, apesar das evidentes semelhanças — a temática
da crise da AIDS nos Estados Unidos, o “protagonismo” LGBTQ+ e os elementos
autobiográficos, sendo eles explícitos e diretos ou sutis e muitas vezes emprestados de amigos
e colegas estão presentes nas duas obras — The Normal Heart e Rent, em sua essência, são
peças completamente diferentes. Além do formato, visto que apenas uma delas é um musical,
o contexto a motivação da escrita de cada uma delas, bem como as biografias de seus autores,
tornam-as quase antagônicas nas suas representações. Enquanto Larry Kramer traz uma
perspectiva de medo e raiva diante de um problema coletivo, Jonathan Larson se utiliza do
cenário para trazer uma mensagem de esperança e empoderamento pessoal. Será analisado,
nas próximas páginas, como a comparação entre uma obra que retrata uma angústia coletiva e
outra que prega a autenticidade individual ilustra, por meio da dramaturgia produzida entre as
décadas de 80 e 90, a velozmente vertiginosa disseminação da razão neoliberal e as suas
consequências para a construção da memória da AIDS, especialmente nos Estados Unidos.
41

4.1 LARRY KRAMER, UM INCÔMODO PÚBLICO.18

​ Natural de Bridgeport, Connecticut, e criado em uma família judaica, Larry Kramer


tinha mais de quarenta anos quando efetivamente tornou-se um ativista (SHILTS, 1987;
MASS, 1997). Na década de 80, já tendo uma carreira estabelecida e renomada como escritor
e roteirista indicado ao Oscar pelo filme Women in Love (1969), Kramer vivia
confortavelmente em Nova York, num apartamento localizado na 5ª Avenida (SHILTS, p. 90).
À época, seu último trabalho publicado, o romance satírico Faggots (1978), era controverso
entre a população gay da cidade, causando certa rejeição à pessoa de Kramer—suas reflexões
e críticas acerca do estilo de vida dos homens homossexuais nova-iorquinos nos anos 70, com
ênfase no consumo de drogas e nos hábitos sexuais descompromissados, eram vistas como
moralistas e pedantes por boa parte dos seus pares. Ele também traçava, dentro e fora de seus
escritos, duras comparações entre a comunidade gay de Nova York com a da Califórnia; para
Larry Kramer, a Costa Oeste era melhor organizada e mais engajada politicamente (SHILTS,
p. 25-28).
​ Nesse cenário, em 1981, Kramer ouviu falar de um câncer de pele que andava afetando
homens gays de Nova York em quantidades peculiares. Embora infecções sexualmente
transmissíveis fossem relativamente comuns e tratáveis (SHILTS, p. 25-28), essa nova doença
era mais preocupante; não se sabia exatamente de onde estava vindo. Dezenas de pessoas já
tinham o diagnóstico, e a informação foi se espalhando entre amigos, amantes e conhecidos.
Preocupado com a situação, embora ele próprio não demonstrasse sintomas, Kramer foi ao
consultório do Dr. Alvin Friedman-Kien, responsável por estudos de epidemiologia do
sarcoma de Kaposi para o CDC, onde acabou encontrando alguns conhecidos infectados. Ao
pedir a Friedman-Kien, este frustrado com a quase certa probabilidade da inércia das
autoridades e da falta de investimento em pesquisa sobre a nova peste, informações a respeito
de profilaxia, Kramer foi recomendado a praticar o celibato (SHILTS, p. 84). Apesar da lógica
do conselho, o escritor não o considerou suficiente. Especialmente porque o número de casos
ao seu redor só aumentava.
A partir do verão de 1981, Kramer e outros que compartilhavam de sua preocupação
frente a uma epidemia que já contava com vítimas fatais passaram a organizar maneiras de
angariar fundos para as pesquisas relacionadas ao sarcoma de Kaposi, realizadas sobretudo em
hospitais universitários. Em janeiro do ano seguinte, Kramer e cinco outros colaboradores

18
Título retirado do texto de Micahel Specter, Larry Kramer, public nuisance, escrito para a revista The New
Yorker em 2002.
42

fundaram a Gay Men’s Health Crisis (GMHC), organização sem fins lucrativos dedicada a
enfrentar a pandemia da AIDS, escolhendo Paul Popham como seu presidente (SHILTS, p.
120). Oferecendo serviços como uma linha direta de auxílio e apoio comunitário, a GMHC
rapidamente se tornou referência no combate à doença. Apesar de a organização perdurar até
os dias de hoje, a jornada de Larry Kramer em seu elenco foi curta. Enquanto ele era adepto a
ações mais diretas que batiam de frente tanto com as autoridades quanto com a própria
comunidade gay, como confrontar abertamente o prefeito de Nova York sobre sua negligência,
condenar a inércia dos National Health Institutes, insistir na abstinência sexual como
profilaxia mais eficaz enquanto se tinha pouca informação e apoiar o fechamento de saunas, a
diretoria da GMHC possuía tendências mais assimilacionistas, buscando apoio com
negociações, conciliações e pacíficos eventos de caridade. Em 1983, após sucessivos conflitos
com Popham e outros em relação à sua abordagem, Kramer viu-se sem escolha a não ser sair
da diretoria da GMHC (SHILTS, p. 210).
Frustrado e excluído das grandes decisões da organização da qual ele próprio fora
cofundador, Kramer passou alguns meses na Europa em meados daquele ano. No entanto, a
viagem sem data para retorno foi abruptamente interrompida quando, durante um período em
Munique, ele leu as datas escritas na entrada de Dachau; o campo de concentração havia sido
estabelecido em 1933, seis anos antes do início da II Guerra Mundial e oito antes da entrada
dos EUA no conflito. Uma profunda fúria tomou conta de Larry Kramer, que não conseguia
aceitar que o resto do mundo não havia feito coisa alguma para impedir tamanha brutalidade:
onde estavam todos naqueles anos? Kramer lembrou-se do estado da crise da AIDS na sua
terra natal, pegou um avião de volta e começou, imediatamente, a trabalhar em uma peça
(SHILTS, 1987, p. 385).
​ Kramer, em seu retorno aos EUA, passou a dividir o tempo entre a elaboração de The
Normal Heart, cujo título referencia um poema que W. H. Auden escreveu logo após a invasão
alemã à Polônia em 1939 (AUDEN, 1939)19, e o ativismo, mesmo excluído da diretoria da
GMHC. Os ensaios se deram no início de 1985 e a peça estreou no dia 21 de abril do mesmo
ano, no Public Theater em Nova York. Apesar da reputação belicosa de Kramer, a imprensa e
a audiência geral consideraram sua peça um excelente drama político (SHILTS, 1987, p. 555).
No entanto, mesmo tendo provocado uma reação emocionada e politicamente impactada da
plateia, o autor ficou insatisfeito com a recepção, que foi mais impactada com o preconceito

19
É interessante observar que, além da peça, o poema de Auden intitulou também a biografia de Larry Kramer,
We must love one another or die, organizada pelo médico e amigo de longa data do escritor, Lawrence D. Mass,
publicada em 1997.
43

abordado no roteiro do que com a necessidade de mudanças radicais nas medidas para a
contenção de uma pandemia que ainda tirava, e tiraria, muitas vidas (p. 556). Para ele, a
explícita mensagem de alerta havia sido sufocada em meio aos assuntos mais abstratos da
trama:
[...] Até onde Kramer se preocupava, a AIDS não era a fúria de Deus mas a fúria dos
heterossexuais. Os heterossexuais haviam decretado que os gays não podiam se casar
ou mesmo viver juntos em qualquer forma de abertura sem arriscar ignomínia. O
movimento gay, na visão de Kramer, havia conspirado com os héteros ao se tornar
uma causa de libertação sexual, em vez de libertação humana. Como o alter ego de
Kramer na peça, Ned Weeks, disse, “Por que vocês não lutaram pelo direito de nos
casarmos em vez do direito de legalizar a promiscuidade?” A peça terminou com
Weeks se casando com seu amante em uma cama de hospital, momentos antes de o
amante sucumbir à AIDS.

Quanto à GMHC, Kramer definiu o grupo como um monte de “Florence


Nightingales” que haviam virado às costas de pressionar o governo por sua parte do
orçamento de pesquisa e de serviços em favor do melodrama de cenas de leito de
morte. “Eu pensei que estava iniciando um grupo de Ralph Naders ou de Boinas
Verdes,” esbravejou Weeks no segundo ato, “e no primeiro instante em que eles têm
de tomar uma posição em uma questão política e lutar, praticamente em frentes aos
meus olhos eles se transformam em um bando de aias de enfermagem.”. (SHILTS,
1987, p. 556)20

​ A luta pelo casamento, ou pelo menos pela possibilidade de parcerias domésticas, da


população homossexual, era uma prioridade para Larry Kramer. E a sua indignação com as
posições despolitizadas das organizações com maior espaço no governo e na mídia era
fumegante. Para ele, as necessidades da população gay não se tratavam apenas de acabar com
elementos complexos e abstratos como o preconceito e a falta de empatia; havia uma porção
de demandas materiais, como um maior orçamento para pesquisas sobre a AIDS, para as
possibilidades do seu tratamento e para uma possível cura. Irritava-o profundamente a falta de
um posicionamento político direto, agressivo e material. Esse sentimento, dois anos depois,
levou à fundação da ACT UP ao lado de outros que compartilhavam de suas indignações.
​ Diferentemente da GMHC, apesar dos esforços de Kramer, a ACT UP era (e ainda
declara ser) uma organização baseada em ação direta. Seus protestos eram agressivos,

20
Tradução própria do trecho em inglês: [...] As far as Kramer was concerned, AIDS was not the wrath of God
but the wrath of heterosexuals. Heterosexuals had decreed that gays could not legally marry or even live together
in any semblance of opennes without risking ignominy. The gay movement, in Kramer’s view, had colluded with
straights by becoming a cause of sexual liberation, rather than human liberation. As Kramer’s alter ego in the
play, Ned Weeks, said, “Why didn’t you guys fight for the right to get married instead of the right to legitimize
promiscuity?” The play ended with Weeks marrying his lover in a hospital bed, moments before the lover
succumbed to AIDS.

As for GMHC, Kramer decried the group as a bunch of “Florence Nightingales” who had turned away from
pressuring the government for their share of research funds and services in favor of the melodrama of deathbed
scenes. “I thought I was starting a bunch of Ralph Naders or Green Berets,” fumed Weeks in Act II, “and at the
first instant they have to take a stand on a political issue and fight, almost in front of my eyes they turn into a
bunch of nurse’s aides.” (SHILTS, 1987, p. 556)
44

consistindo de ações como um grupo se fingindo de morto em frente à sede da FDA e outro
jogando as cinzas de seus amigos que sucumbiram à AIDS no gramado da Casa Branca.
Havia, também, o segmento do “Clube da Ciência” (Science Club), que juntava pesquisadores
de diversas áreas para reunir e discutir conhecimentos médicos e consequentemente ir atrás de
mudanças concretas no sistema de saúde (STRANGE, 2022, p. 5). A divisão de artistas da
ACT UP, autointitulada Gran Fury, era composta por figuras como Avram Finklestein e Keith
Haring e foi responsável por popularizar o movimento Silence=Death, simbolizado pelo
cartaz preto com o slogan e o triângulo cor-de-rosa com o qual os nazistas rotularam os
homens homossexuais nos campos de concentração.

FIGURA 2

“SILENCE=DEATH” (SILÊNCIO=MORTE). Pôster apontando a negligência da administração Reagan e


convocando a mobilização popular contra a inação das autoridades diante da pandemia da AIDS. (FONTE: ACT
UP, 1987)

​ O icônico pôster, cujo slogan e cuja mensagem perduram até os dias de hoje,
principalmente entre os ativistas da ACT UP, tem um design simples, com um pequeno
parágrafo escrito abaixo da mensagem principal que critica não apenas Reagan, mas também
as grandes autoridades sanitárias e religiosas:
45

SILÊNCIO=MORTE: Por que Reagan está em silêncio sobre a AIDS? O que está
acontecendo no Center for Disease Control, na Federal Drug Administration, e no
Vaticano? Gays e lésbicas não são dispensáveis… Use o seu poder… Vote…
Boicote… Defendam-se… Transformem raiva, medo, luto em ação. (ACT UP,
1987)21

​ Apesar do protagonismo dos homens gays brancos na organização, não era apenas
com eles próprios a sua preocupação. Sabendo que, além deles, estavam sendo afetadas
mulheres, imigrantes latinos, pessoas negras, pessoas em situação de rua e usuários de drogas
intravenosas, seus direitos também se tornaram parte dos debates e dos protestos. Os dois
pôsteres abaixo são uma ilustração dessa inclusão.

FIGURA 3

“AIDSGATE”. Pôster do projeto Silence=Death chamando Ronald Reagan de genocida. (Fonte:


SILENCE=DEATH PROJECT, 1987)

21
Tradução própria do inglês: SILENCE=DEATH: Why is Reagan silent about AIDS? What is really going on at
the Center for Disease Control, the Federal Drug Administration, and the Vatican? Gays and lesbians are not
expendable… Use your power… Vote… Boycott… Defend yourselves… Turn anger, fear, grief into action.
(ACT UP, 1987)
46

FIGURA 4

“DEAD WOMEN CAN’T VOTE: CURE AIDS” (Mulheres mortas não podem votas: curem a AIDS) Pôster da
ACT UP exigindo uma cura para a AIDS e evitar mais mortes de eleitoras. (Fonte: ACT UP, 1992-1995)

​ O primeiro pôster (Figura 3), de 1987, faz um jogo de palavras para comparar a
deliberada inércia da administração Reagan ao Watergate, escândalo político que levou à
desgraça do então presidente Richard Nixon na década de 70. Atrás da palavra AIDSGATE, o
rosto de Ronald Reagan aparece com os olhos cobertos por um rosa neon que lhe dá um ar
sobrenatural. Abaixo, um parágrafo indica a indignação dos ativistas e chama abertamente
Reagan de genocida:
Este Escândalo Possível Deve ser Investigado! 54% das pessoas com AIDS em
NYC são Negras ou Hispânicas… A AIDS é a assassina No.1 de mulheres de idades
entre 24 e 29 anos em NYC… Até 1991, mais pessoas terão morrido de AIDS do
que em toda a Guerra do Vietnã… Qual a verdadeira política de Reagan em relação
à AIDS? Genocídio de todos os Não-Brancos, Não-homens e Não-heterossexuais?...
SILÊNCIO = MORTE. (SILENCE=DEATH, 1987)22

Considerando a data estimada da produção do segundo cartaz (Figura 4), podemos


observar que já havia um tratamento disponível para a AIDS, e o vírus HIV havia sido há
anos isolado. A demanda pela cura, invocando a indignação das mulheres junto à dos outros
grupos contaminados, já era forte entre as facções mais radicais do ativismo desde o início da
pandemia. A disponibilidade (limitada) de tratamento não satisfez a revolta dos movimentos.
Muito pelo contrário; a possibilidade de um tratamento vitalício era, na visão dos ativistas,
apenas uma maneira de conseguir lucro garantido às custas das populações marginalizadas

22
Tradução própria do inglês: "This Political Scandal Must be Investigated! 54% of people with AIDS in NYC
are Black or Hispanic… AIDS is the No. 1 killer of women between the ages of 24 and 29 in NYC… By 1991,
more people will have died of AIDS than in the entire Vietnam War…What is Reagan’s real policy on AIDS?
Genocide of all Non-Whites, Non-males and Non-heterosexuals?… SILENCE = DEATH." (SILENCE=DEATH,
1987)
47

pelas grandes corporações farmacêuticas. O próprio Larry Kramer, até o final de sua vida,
jamais deixou de lutar por uma cura.23 Em outubro de 2019, durante um evento do Partido
Democrata organizado pela CNN, Kramer enviou a seguinte demanda ao então pré-candidato
à presidência Joe Biden:
A AIDS é o presente que continua rendendo à Big Pharma e à indústria de seguros.
Truvada e tratamentos profiláticos similares NÃO são uma cura para o HIV. As
companhias farmacêuticas lucram irracionalmente em cima de americanos
HIV-positivos que dependem das medicações para sempre. Como presidente, como
você financiaria uma CURA e conteria a avareza de companhias farmacêuticas?
(KRAMER, 2019)24

​ Larry Kramer sofreu com diversos problemas de saúde a partir da década de 80, mas
continuou escrevendo; em 1992, publicou uma sequência de The Normal Heart intitulada The
Destiny of Me (MASS, 1997). Em 1988, ao ser submetido a uma cirurgia para remover uma
hérnia congênita, Kramer descobriu que possuía danos no fígado causados por hepatite B e,
consequentemente, que fora contaminado pelo vírus HIV (MASS, 1997, p. 56). Em 2001,
recebeu um transplante de fígado (LEWIS, 2020) e chegou a ter sua morte erroneamente
noticiada pela imprensa (STRYKER, 2002). Em 2013, Kramer e seu companheiro desde o
início da década de 90, David Webster, casaram-se na UTI de um hospital universitário em
Nova York (LELAND, 2020), ironicamente espelhando a cena final de sua peça de 1985. No
entanto, a cerimônia de casamento não acabou em uma trágica morte. Sete anos depois, em
maio de 2020, Larry Kramer faleceu por conta de uma pneumonia. Ele tinha 84 anos. Tendo
em vista, agora, a biografia do autor, seu trabalho no ativismo e suas motivações, vamos ao
enredo de The Normal Heart.

4.1.1 The Normal Heart: resumo, temas e personagens.

​ Ambientada na Nova York do começo dos anos 1980, The Normal Heart conta a
história de Ned Weeks, baseado no próprio Larry Kramer, um escritor gay e judeu que se vê
aterrorizado pela chegada de uma nova doença que parece afetar intensamente o seu
demográfico. Weeks tenta montar uma organização para combater essa nova epidemia. Uma
23
Considerando que, em novembro de 2024, Donald Trump foi novamente eleito presidente dos EUA e anunciou
que o responsável pela saúde pública será Robert F. Kennedy Jr., um notório negacionista anti-vacina, é difícil
que o país vá investir muito de seu orçamento em pesquisas sobre uma cura para a AIDS nos próximos 4 anos.
Especialmente considerando que, em 2023, Kennedy Jr. foi gravado afirmando que o vírus HIV não existe e que
a AIDS é contraída por meio de um “estilo de vida gay” (GLAAD, 2024).
24
Tradução própria do inglês: AIDS is the gift that keeps on giving to Big Pharma and the Insurance Industry.
Truvada and similar prophylactic treatments are NOT a cure for HIV. Pharmaceutical companies profit
irrationally from HIV-positive Americans who depend on the medications forever. As president, how would you
finance a CURE and scale back the avarice of pharmaceutical companies. (KRAMER, 2019)
48

médica com quem costuma se consultar, a Dra. Emma Brookner (versão fictícia inspirada em
Linda Laubenstein), parece ter se tornado uma das maiores especialistas na enfermidade, e
mesmo assim reclama da falta de fundos e de preocupação das autoridades com pesquisas a
respeito da epidemia, recomendando, por enquanto, a abstinência sexual. Weeks tenta
convencer seu irmão Ben, um prestigioso advogado baseado em Arthur Kramer, a contribuir
financeiramente com sua fundação, mas Ben acaba demonstrando sua homofobia de forma
velada. Na mesma época, Weeks se apaixona e se relaciona com um jornalista chamado Felix
(Larry Kramer nunca confirmou em quem o personagem foi baseado). À medida que as
contaminações vão aumentando e o caso se torna, de fato, uma epidemia, o protagonista vai
ficando cada vez mais revoltado. Ele corta relações com o irmão e busca o auxílio do prefeito
Ed Koch, que também lhe vira as costas.
​ A organização de Weeks, com mais adeptos diante do cenário desesperador, elege o
pacífico Bruce Niles (baseado em Paul Popham) como seu presidente. Niles e Weeks se
tornam forças opostas; enquanto um “está no armário” e prefere medidas baseadas na
civilidade e no diálogo, o outro é agressivo, favorável à ação direta e abertamente gay.
Enquanto as tensões dentro da organização se acirram, Felix revela que suspeita estar
contaminado com o vírus. Weeks segue tentando buscar a ajuda do prefeito, mas sua teimosia
e sua agressividade deixam seu representante horrorizado. A Dra. Emma Brookner também se
envolve com o ativismo, inclusive a respeito da epidemia no estrangeiro e da incidência da
doença entre os heterossexuais. Seu desespero diante das sucessivas rejeições de seus pedidos
de dinheiro para pesquisa culmina em uma explosão de raiva durante uma conversa com outro
médico. Niles finalmente expulsa Weeks da diretoria da organização em favor de posturas
mais diplomáticas.
​ No segmento final, Felix, já muito doente, pede a Ben que redija seu testamento e
espera que ele se reconcilie com o irmão. No leito de morte de Felix, no hospital, os três
participam de uma cerimônia encenada de casamento oficiada pela Dra. Brookner. Felix
morre e um desolado Ned Weeks, culpando a si mesmo pela morte do companheiro, pois
pensa não ter lutado o suficiente, abraça o corpo dele e chora. A peça acaba com um blecaute
e é mostrada a crescente taxa de mortalidade da AIDS.
​ O cenário da peça é simples, porém minimamente calculado e impactante. Em sua
primeira produção no New York Public Theater, consistia de paredes brancas e alguns poucos
móveis para ilustrar apartamentos, consultórios e quartos de hospital. Tanto no palco quanto
por todo o teatro, dados e reportagens sobre a doença e suas consequências e listas de vítimas
49

estavam escritas pelas paredes. Dentre estas, figuravam nomes de amigos pessoais de Larry
Kramer (KRAMER, 1985, p. 9-12).
​ Talvez por ser um trabalho autobiográfico que traz uma representação de eventos e de
pessoas reais, o elenco é relativamente limitado, trazendo apenas 14 personagens. Dentre eles,
os que mais se destacam são o protagonista Ned Weeks, seu irmão Ben Weeks, o ativista
Bruce Niles, o jornalista Felix Turner e a Dra. Emma Brookner. Os temas do enredo giram em
torno do amor, de conflitos familiares, da homofobia e dos horrores vividos durante os
primeiros anos da crise da AIDS. No entanto, dois sentimentos da esfera da angústia parecem
ser majoritariamente evocados: o medo e a raiva. Ned Weeks começa sua jornada no ativismo
por medo. Felix tem medo do que a doença possa fazer com ele. Bruce Niles tem medo de não
ter a organização levada a sério devido à postura de Weeks. Emma Brookner tem medo pela
vida de seus pacientes e da escala que a epidemia pode tomar se nada for feito. A raiva
também se manifesta, em especial no protagonista, cujos temores são negligenciados e se
transformam em indignação, e na Dra. Brookner, que, em um diálogo com um médico de alto
escalão dos NIH em seu consultório, estoura:
[...] Como é que sempre acontece de todos os idiotas estarem sempre na sua equipe?
Vocês têm todo o dinheiro, dão as ordens, isolam todo mundo, e então operam de
portas fechadas. Eu estou cuidando de mais vítimas desta epidemia do que qualquer
um no mundo. Nós temos mais resultados de exames acumulados, mais dados, mais
amostras de sangue congeladas, mais experiência! Como você pode não financiar
minha pesquisa ou me convidar para participar na sua? Um vírus promissor já foi
descoberto—na França. Por que nós estamos sendo ordenados a não cooperar com
os franceses? Só para você conseguir roubar um Prêmio Nobel? Os seus Institutos
Nacionais de Saúde receberam meu primeiro pedido de dinheiro para pesquisas dois
anos atrás. Levou um ano para que você apenas imprimisse formulários de
aplicação. Você levou dois anos e meio desde meu primeiro caso registrado apenas
para aparecer aqui e dar uma olhada. A quantidade ínfima de dinheiro pela qual você
está nos fazendo implorar—dos quatro bilhões que vocês recebem todo ano— não
vai chegar até Deus sabe quando. De qualquer forma em que você combine tudo
isso, é um atraso inconcebível e nunca, nunca existiu em qualquer outra emergência
de saúde durante este século inteiro. Enquanto algo que causa morte está sendo
espalhado. Descobriram que mulheres têm isso na África— onde é claramente
transmitido heterossexualmente. É apenas uma questão de tempo. Podemos todos
estarmos mortos antes de vocês fazerem qualquer coisa. Você quer meus pacientes?
Leve-os! LEVE-OS! (Ela começa a jogar suas pastas e papéis contra ele, sem rumo
no espaço) Apenas faça algo por eles! Você está certo, porra, eu sou imprecisa e
desfocada. E vocês são todos idiotas! (KRAMER, 1985, p. 82-83)25

25
Tradução própria do trecho em inglês: [...] How does it always happen that all the idiots are always on your
team? You guys have all the money, call the shots, shut everybody out, and then operate behind closed doors. I
am taking care of more victims of this epidemic than anyone in the world. We have more accumulated test
results, more data, more frozen blood samples, more experience! How can you not fund my research or invite me
to participate in yours? A promising virus has already been discovered—in France. Why are we being told not to
cooperate with the French? Why are you refusing to cooperate with the French? Just so you can steal a Nobel
Prize? Your National Institutes of Health received my first request for research money two years ago. It took you
one year just to print up application forms. It's taken you two and a half years from my first reported case just to
show up here to take a look. The paltry amount of money you are making us beg for—from the four billion
dollars you are given each and every year— won't come to anyone until only God knows when. Any way you
50

​ Vemos, neste trecho, que a raiva de Brookner não é, diferentemente da do médico


fictício com quem está discutindo e de profissionais reais como Robert Gallo, motivada pelo
medo de ser excluída do rol da fama da medicina. Ela teme pela vida dos pacientes,
oferecendo-os para que sejam tratados pelos NIH se será melhor para eles. Brookner está
desesperada diante de autoridades que não investem em pesquisas e se negam a cooperar com
os franceses, mesmo diante de uma pandemia mortal que não para de crescer. Sua
preocupação, ao contrário dos anseios neoliberais e individualistas de alguns de seus pares, é
com o coletivo. Brookner nota que mulheres heterossexuais em outros lugares do mundo
também estão sendo contaminadas, temendo o que isso significa no cenário local.
​ As angústias de Weeks e de Brookner espelham aquelas manifestadas por Kramer e
por organizações como a ACT UP. Eles temem não apenas a própria morte, mas uma
aniquilação completa dos grupos afetados. Em 1989, Larry Kramer publicou uma coleção de
ensaios intitulada Reports from the Holocaust: the making of an AIDS Activist. Nela, incluiu
diversos textos elaborados logo antes e durante a década de 80 a respeito da questão, e
comparou abertamente a negligência proposital das autoridades àquela praticada pelo mundo
inteiro da abertura dos campos de concentração ao início efetivo da II Guerra Mundial
(KRAMER, 1989). Já os artistas da ACT UP utilizaram-se da palavra genocídio (Figura 3) e
de simbologia oriunda do Holocausto (Figura 2) para representar a injustiça à qual estavam
sendo submetidos.
​ Em suma, The Normal Heart é uma obra radicalmente política e carregada de angústia
por parte de seu autor e de seus personagens. É um protesto explícito e direto contra não
apenas a administração profundamente hetero-nacionalista (PANTER, 2022) e neoliberal de
Ronald Reagan, mas também contra todas aquelas entidades que diante dela se curvaram. O
prefeito Ed Koch, a GMHC, o CDC, os NIH e mesmo o próprio Kramer não escapam das
críticas do autor. E é claro que, apesar de impactante, a peça não é isenta de críticas. Por mais
que seja um trabalho autobiográfico que discorre sobre a experiência pessoal do dramaturgo
dentro de seu próprio círculo social, há críticas que colocam The Normal Heart como sendo
extremamente branca, gay e cisgênero, colocando homens gays brancos no holofote e
ignorando outros grupos marginalizados que também foram, e até hoje são, afetados pela crise

add all this up, it is an unconscionable delay and has never, never existed in any other health emergency during
this entire century. While something is being passed around that causes death. We are enduring an epidemic of
death. Women have been discovered to have it in Africa— where it is clearly transmitted heterosexually. It is
only a question of time. We could all be dead before you do anything. You want my patients? Take them! TAKE
THEM! (She starts hurling her folders and papers at him, out into space.) Just do something for them! You're
fucking right I'm imprecise and unfocused. And you are all idiots!
51

da AIDS (WINSHIP, 2018). Kramer claramente escreve apenas sobre comunidades que
conhece com certa intimidade. Mesmo assim, é inegável a importância de The Normal Heart
para a produção teatral sobre a AIDS. No ano de 1985, Larry Kramer buscou e, até certo
ponto, conseguiu publicar uma obra politicamente mobilizante para as massas. Veremos, em
seguida, como o processo criativo e os elementos críticos em Rent tiveram intenções e
consequências muito diferentes.

4.2 JONATHAN LARSON: VIDA, MORTE E ALUGUEL.

​ Assim como Kramer, Jonathan Larson também teve sua origem em uma família
judaica na Costa Leste dos Estados Unidos. Nascido em Mount Vernon, no estado de Nova
York, em 1960, Larson teve, no entanto, uma formação educacional e profissional diferente.
Enquanto Larry Kramer, seguindo a própria tradição familiar, estudou inglês em Yale, Larson
esteve sempre ligado à música e ao teatro. Da infância à adolescência, envolveu-se em
atividades artísticas extracurriculares, tocando diversos instrumentos e estrelando produções
teatrais estudantis. Em 1978, ingressou na Adelphi University, em Garden City (no estado de
Nova York), com a intenção de seguir a carreira de ator, mas acabou se envolvendo ainda
mais na composição de canções para musicais. Após completar a graduação, em 1982, Larson
se mudou para a cidade de Nova York e passou a escrever e compor suas próprias peças
(GUSSOW, 1996). Suas composições baseavam-se tanto na música popular, principalmente
nos trabalhos de artistas de pop e rock como Prince, Pete Townshend, Liz Phair e Kurt
Cobain, quanto nos grandes nomes do teatro, como Leonard Bernstein e Stephen Sondheim.
Este foi citado diversas vezes pelo autor como um grande mentor durante o início de sua
carreira (LARSON, 1996).
​ Para se manter enquanto tentava conquistar uma carreira na competitiva cena
dramatúrgica de Nova York, Larson passou a trabalhar como garçom e dividia, entre o final
dos anos 1980 e o início dos 1990, um apartamento em Tribeca com vários outros jovens—de
diversas origens e situações de vida, dentre eles dependentes químicos, portadores de HIV e
pessoas LGBTQ+, que podem ter vindo a influenciar a caracterização do elenco de Rent
(PACHECO, 1996). Afinal, os temas de sexualidade, HIV e drogadição são parte fundamental
da trama desenrolada pelo autor. Mas não foi essa a inspiração inicial para o roteiro.
Por volta da década de 1980, por mais que o teatro da Broadway ainda fosse, até certo
ponto, extremamente prestigioso e rentável, havia um consenso entre diversos diretores,
produtores e compositores a respeito de uma necessidade de modernizar o teatro mainstream
52

nova-iorquino. No começo dos anos 90, o produtor Ira Weitzman entrou em contato com
Jonathan Larson, que já havia composto uma releitura em forma de rock opera do livro 1984,
de George Orwell, em seu musical Superbia (LARSON, 1996), a respeito de uma ideia do
diretor Billy Aronson, que pretendia produzir uma releitura de La Bohème, clássica ópera de
Puccini. No entanto, em vez de ambientar a obra na Paris dos anos 1830, o cenário seria a
Nova York da década de 1980, e no lugar dos boêmios franceses estariam os yuppies
nova-iorquinos. Larson preferiu, entretanto, retratar o que considerava a boemia da cidade em
vez da nova geração de engravatados. Além de uma questão de (des)interesse próprio, ele
conhecia mais dessa realidade, afinal, estava nela relativamente inserido. Em uma carta
introdutória ao New York Theatre Workshop (NYTW), onde a peça teve sua estreia
Off-Broadway26 logo depois de sua morte, o autor escreveu:
Com este trabalho, eu celebro meus amigos e os muitos outros que continuam a
realizar seus sonhos e viver suas vidas à sombra da AIDS. Nestes tempos perigosos,
nos quais parece que o mundo está se rasgando pelas bordas, nós todos podemos
aprender a sobreviver com aqueles que encaram a morte todos os dias, e deveríamos
nos conectar uns com os outros e nos unir como uma comunidade, em vez de nos
escondermos dos terrores da vida. (LARSON, 1994, apud. PACHECO, 1996)27

​ Ou seja, por mais que a premissa original da peça, e o tema principal que a norteia,
seja uma reimaginação da ópera La Bohème (LARSON, 1996), Larson incluiu elementos com
os quais teve contato, principalmente de forma indireta por meio de seu círculo social, na
narrativa e na construção de seus personagens (PACHECO, 1996). E a mensagem por ele
pretendida é uma de esperança espelhada na maneira escolhida por alguns indivíduos de
enfrentar a situação. Assim como Larry Kramer em The Normal Heart, aspectos vivenciados,
direta ou indiretamente, pelo autor foram não apenas condicionantes na escrita como
tornaram-se parte explícita e integral dela.
Embora Rent seja considerada quase unanimemente a magnum opus do dramaturgo, e
o que o fez abandonar seu emprego como garçom para se dedicar inteiramente ao teatro
musical (GUSSOW, 1996), a peça não foi seu único trabalho a chegar aos palcos; além de ter
composto canções para obras como o programa de televisão infantil Vila Sésamo, Larson

26
Off-Broadway é um termo que se refere a qualquer teatro que não faça parte do circuito oficial, e extremamente
limitado, do distrito teatral de Nova York. Os teatros são espalhados por diversas regiões da cidade e costumam
ter uma capacidade maior para a audiência.
27
Tradução própria do texto em inglês: “With this work, I celebrate my friends and the many others who
continue to fulfill their dreams and live their lives in the shadow of AIDS. In these dangerous times, where it
seems the world is ripping apart at the seams, we can all learn how to survive from those who stare death
squarely in the face every day, and we should reach out to each other and bond as a community, rather than hide
from the terrors of life. (LARSON, 1994, apud. PACHECO, 1996)
53

apresentou seu monólogo de rock, Tick, Tick…Boom!, em 1991. Outras peças, como Superbia
e JP Morgan Saves The Nation, foram realizadas com financiamento oriundo de prêmios de
teatro (PACHECO, 1996). Apesar do grande sucesso de crítica e de audiência, Jonathan
Larson não chegou a ver Rent chegar à Broadway. Em abril de 1996, três meses após sua
morte aos 35 anos por conta de uma dissecção da aorta28, o musical estreou no Nederlander
Theatre. Analisemos, agora, a peça em si.

4.2.1 Rent: resumo, temas e personagens.

​ Rent, assim como The Normal Heart e a maioria das outras produções sobre a crise da
AIDS na costa leste, é ambientada na Nova York oitentista. No bairro East Village, o aspirante
a cineasta Mark Cohen e seu amigo rockeiro e ex-usuário de heroína Roger Davis reclamam
das dificuldades de suas vidas empobrecidas dentro de seu apartamento caindo aos pedaços.
Mark quer documentar as vidas de seu círculo social e tenta gravar Roger compondo uma
música com uma câmara de mão. Eles são, no entanto, interrompidos por uma mensagem da
mãe preocupada de Mark em sua caixa postal. Quando Benjamin “Benny” Coffin III, o
proprietário do prédio em que a dupla vive, avisa-lhes que estão lhe devendo um ano de
aluguel, Mark e Roger se revoltam e, cercados de um coro de punks e moradores de rua,
cantam uma música de protesto. Eles queimam seus roteiros e rascunhos de canções para se
manterem aquecidos, já que estão sem eletricidade, e revelam que Roger é HIV-positivo,
tendo sido contaminado por sua ex-namorada April via agulha infectada. Após descobrir que
tinha a doença, April cometeu suicídio e deixou um bilhete revelando o contágio a Roger.
Amigo de Roger e de Mark, Tom Collins, que foi assaltado e esfaqueado ao tentar
visitar o apartamento, conhece a drag queen hispânica Angel, que o ajuda com seus
ferimentos e os dois se apaixonam. Quando Mark sai de casa, Roger tenta escrever uma
canção que vá ser seu legado. Ele recebe a visita de Mimi Marquez, uma dançarina viciada
em heroína, que flerta com ele ao pedir ajuda para acender uma vela, mas reluta em aceitar as
insinuações da jovem. Collins e Angel chegam ao apartamento e Benny propõe que, para
poderem morar ali de graça, Mark e Roger o ajudem a expulsar Maureen Johnson,
ex-namorada de Mark, de uma construção que ela usa de espaço para suas performances para
que seja construído um centro de tecnologia. Eles se recusam, pois não querem desalojar as

28
De acordo com uma análise retrospectiva do Journal of Urgent Care Medicine, publicada com o aval e a
contribuição de Allan, o pai de Larson, o quadro do dramaturgo provavelmente foi agravado pois ele muito
possivelmente era portador da Síndrome de Marfan, condição genética que causa má-formação dos tecidos
conectivos.
54

pessoas em situação de rua que lá vivem. Mark vai ajudar Maureen com sua apresentação,
mas encontra a atual namorada dela, Joanne, que acaba virando sua amiga após discutirem
sobre os comportamentos tóxicos de Maureen.
Angel e Collins frequentam um grupo de apoio para pessoas com AIDS, e Mark vai
junto a uma reunião para gravá-los e colocar em um documentário. Ao longo da peça, as
dinâmicas entre os personagens vão se alterando. Mark recebe uma proposta de trabalho em
um tabloide, mas recusa por medo de “se vender”. Roger e Mimi começam um
relacionamento turbulento, visto que Mimi não quer parar de usar drogas e Roger sente ciúme
de um antigo relacionamento da jovem com Benny. Joanne e Maureen têm um término
dramático. A saúde de Angel vai piorando até que ela finalmente sucumbe às complicações da
AIDS. Mark, com medo de ver todos os seus amigos morrerem por conta da doença, decide
aceitar o emprego no tabloide. Benny paga para que Mimi vá a uma clínica de reabilitação e
Collins não consegue pagar pelo funeral de Angel.
Um ano depois, tanto Mark quanto Roger conseguiram desenvolver suas grandes
obras artísticas. Mark está produzindo um documentário sobre a vida de Angel e Roger se
inspira em Mimi para escrever sua grande canção. Mimi, no entanto, está desaparecida, e é
encontrada à beira da morte. Ela quase morre, mas volta à vida ao ouvir a música de Roger.
Quando ele entoa a última estrofe, lamentando-se pela morte da amada que deixou escapar, o
músico explicita o papel de musa de Mimi: “Quando eu olhei em seus olhos / Por que a
distância nos torna mais sábios? / Você era a canção o tempo todo / E antes que a canção
morra / Eu deveria lhe contar, eu deveria lhe contar / Eu sempre amei você / Você pode ver
em meus olhos”29 (LARSON, 1997, p. 127). Os amigos, fora Angel, se abraçam e cantam um
número musical final em tom de esperança.
​ A montagem do cenário, de acordo com o roteiro, é complexa, porém tradicional de
musicais de alto orçamento. O cenário, que varia entre um apartamento, uma sala de reuniões,
a rua, um bar, um abrigo e outros locais, é cercado por pequenos edifícios de madeira com
corrimões de metal que simulam um prédio. As performances musicais, que tomam conta de
praticamente toda a narrativa, são interrompidas periodicamente por mensagens na caixa
postal dos personagens vindas principalmente de famílias preocupadas. Em uma cena em que
os personagens vão a um grupo de apoio para pessoas HIV-positivas, o elenco é orientado, no
libreto, a trocar o nome dos membros do grupo de apoio todas as noites, chamando-os pelos

29
Tradução própria do inglês: “When I looked into your eyes / Why does distance make us wise? / You were the
song all along / And before the song dies / I should tell you, I should tell you / I have always loved you / You can
see it in my eyes” (LARSON, 1997, p. 127)
55

nomes dos amigos que recentemente sucumbiram à AIDS (LARSON et. al., 1997, p. 88). A
principal questão enfrentada pelos protagonistas, apesar de uma terrível realidade material, é
colocada como a busca por sua obra prima, um trabalho artístico autêntico, inovador e
individual. Para o bem ou para o mal, a individualidade é glorificada durante toda a peça em
detrimento de elementos abstratos como o amor romântico, a amizade e uma ideia confusa de
boemia.
​ Rent, após sua estreia oficial, tornou-se um marco no teatro estadunidense. Ao
humanizar seus protagonistas, muitos dos quais são racializados, LGBTQ+ e/ou
HIV-positivos, a peça contribuiu para difundir uma ideia mais simpática aos grupos
marginalizados dentre o público. Até hoje, a obra de Larson é muito elogiada quanto à sua
representação da pandemia da AIDS, dos seus personagens LGBTQ+ e da diversidade de seu
elenco (WINSHIP, 2018). No entanto, diversas críticas também apontam que a escolha de
ambientar sua trama em meio à crise da AIDS em Nova York não recebe a seriedade e a
politização necessárias. Em um vídeo ensaio de 2017, a YouTuber Lindsay Ellis aponta esses
problemas. Segundo ela, é feita uma falsa equivalência entre o cenário de La Bohème e a
Nova York oitentista; enquanto a tuberculose, que aflige os personagens de Puccini, era uma
doença sobre a qual nada se sabia principalmente por conta da falta de tecnologia para a
pesquisa na época, o atraso no isolamento do HIV e no desenvolvimento de tratamentos foi
uma negligência proposital das autoridades (ELLIS, 2017). A França do século XIX, ainda
que populações marginalizadas fossem, de fato, desproporcionalmente vitimizadas, não
possuía os materiais ou o conhecimento científico necessários para aprofundar pesquisas. Já
os Estados Unidos da década de 1980 eram não apenas considerados vanguarda na pesquisa
médica, mas também detentores da maior parte dos recursos financeiros necessários para
realizá-la. Larson ignorar esse detalhe é, na melhor das hipóteses, sintomático do pensamento
neoliberal que abstrai papéis e conceitos, individualizando a ideia da vítima e, por
conseguinte, eliminando a ideia de um ou mais perpetradores.
A peça de Jonathan Larson, apesar de trazer a temática da AIDS com personagens
humanizados ao público mainstream, é uma perfeita ilustração dessa despolitização. Mesmo
se passando na Nova York da década de 80, palco de ações políticas de grupos como a ACT
UP, Rent já traz a AIDS como uma tragédia abstrata em vez de um genocídio, equalizando-a
ao papel da tuberculose em La Bohème. Os personagens passam o musical inteiro
expressando sua rejeição ao “sistema”, mas este em nenhum momento é questionado como
sendo responsável pela propagação da AIDS entre as populações marginalizadas. Na verdade,
o “sistema” antagonista de Larson não é o regime neoliberal, o governo negligente ou a
56

desigualdade social, e sim uma ideia muito vaga de algo que vai diretamente contra a vida
boêmia almejada pelos personagens. Em La Vie Bohème, no primeiro ato, os personagens se
reúnem em um restaurante, apesar dos protestos do garçom que não deseja lidar com a
bagunça e a falta de pagamento costumeiras de Mark, Roger e companhia, e fazem brindes
como:
Por amar tensão, sem pensão / Por mais de uma dimensão / Por morrer de fome por
atenção / Odiar convenção / Odiar pretensão / Sem mencionar, é claro / Odiar os
queridos Mamãe e Papai // Por andar de bicicleta / Ao meio-dia ultrapassando os
ternos de três peças / Por frutas / Por nenhum absoluto / Por Absolut / Pela escolha /
Pelo The Village Voice / Por qualquer moda passageira30 (LARSON, 1997, p. 102).

​ Apesar das menções a jornais independentes e vanguardistas como o The Village


Voice e, em uma estrofe posterior, à propria ACT UP (p. 105), tais entidades são colocadas
em meio a outros elementos, como a vodka Absolut e odiar os próprios pais — o que, pelo
menos nos casos de Mark (p. 70) e Mimi (p. 124), parece não ter motivação a não ser uma
falta de compreensão de genitores bem intencionados que deixam mensagens preocupadas
com o paradeiro e a alimentação dos filhos em suas caixas postais. A sensação provocada é a
de que questões políticas, que afetam a vivência material de um enorme grupo de pessoas
marginalizadas, são tão ou menos importantes do que desejos individuais de expressão
artística abstrata. Vidas em jogo equiparadas a ideais de vida boêmia.
Os protagonistas Mark e Roger, por exemplo, revoltam-se contra ter de pagar o
aluguel não porque a ideia da monetização do direito básico à moradia é absurda, mas porque
se sentem no direito de alugar seu apartamento de graça pelo simples fato de serem artistas.
Essa ideia do “artista” do roteiro de Larson é um exemplo da formação de “novas identidades,
fundadas em uma vivência fragmentada e mutável, porém esvaziadas de qualquer experiência
transmitida” (TRAVERSO, 2008, p. 8)31 no contexto neoliberal. Em um trecho do número de
abertura, a canção Rent, Mark e Roger se lamentam a respeito da própria situação da seguinte
maneira: “MARK: E estamos famintos e congelados / ROGER: Que vida escolhemos”
(LARSON et. al., 1997, p. 72)32.

30
Tradução própria do inglês: To loving tension, no pension / To more than one dimension / To starving for
attention / Hating convention / Hating pretension / Not to mention, of course / Hating dear old Mom and Dad /
To riding your bike / Midday past the three-piece suits / To fruits / To no absolutes / To Absolut / To choice / To
The Village Voice / To any passing fad (LARSON, 1997, p. 102)
31
Tradução própria do espanhol: “nuevas identidades, fundadas en una vivencia fragmentaria y cambiante, pero
vaciadas de cualquier experiencia transmitida” (TRAVERSO, 2008, p. 8).
32
Tradução própria do inglês: “MARK: And we’re hungry and frozen / ROGER: Some life we’ve chosen”
(LARSON et. al., 1997)
57

Roger e Mark afirmam que escolheram, por conta própria, viver devendo milhares de
dólares e sem eletricidade para o aquecimento no inverno. O que os incomoda é que acabou a
luz no prédio e que Benny não quer perdoar a dívida de um ano de aluguel, e não o fato de
moradia e eletricidade não serem serviços básicos fornecidos pelo Estado. Os dois estão
desempregados, mas por escolha própria. Mark somente aceita uma proposta de emprego no
segundo ato. Para não se venderem ao “sistema”, esse espectro amorfo repudiado ao longo da
peça, não querem trabalhar em algo que não seja a própria “arte”, autêntica e individual, ou
pagar. Vemos aqui uma ilustração do processo neoliberal da delegação da autoridade e da
responsabilização do indivíduo (BROWN, 2015, p. 132-134); ao delegar elementos básicos da
sobrevivência de sua população a entidades privadas cada vez menores, como o proprietário
Benny ou mesmo aos próprios Mark e Roger, o governo responsabiliza esses indivíduos pela
própria qualidade de vida e pelo capital. Benny precisa investir na especulação imobiliária
para movimentar a economia. Os inquilinos precisam produzir obras de arte que possam ser
capitalizadas tanto por eles quanto por quem queira ajudar a financiá-las.

4.3 KRAMER VERSUS LARSON: CORAÇÕES NORMAIS E CONTRATOS DE


ALUGUEL.

​ Além das semelhanças superficiais, como os elementos autobiográficos, a temática da


AIDS e a inclusão da diversidade sexual, entre The Normal Heart e Rent, as duas peças
diferem em algumas questões fundamentais. A primeira, é claro, sendo o fato de The Normal
Heart ser escrita em formato “tradicional” e de Rent ser um musical, mas não é isso que
viemos discutir neste trabalho. A abordagem do tema da crise da AIDS, bem como suas
respectivas implicações, e as motivações e contextos de escrita são o que, neste estudo,
realmente importa.
​ Como já foi colocado anteriormente, mesmo tendo tido um início de vida
relativamente parecido, Jonathan Larson e Larry Kramer seguiram caminhos bastante
diferentes. Apesar da escrita de roteiros, Larson acabou focando na indústria do teatro musical
e Kramer, em ensaios, roteiros para filmes e peças e discussões críticas, por vezes clínicas, da
realidade. Nos anos 80, Kramer foi motivado a escrever The Normal Heart ao enxergar
semelhanças entre a negligência deliberada do governo estadunidense quanto à crise da AIDS
e a de outros países diante da criação de campos de concentração pela Alemanha nazista
(SHILTS, 1987, p. 385). O medo e a raiva sentidos pelo ativista foram transmitidos no
desenvolvimento dos personagens da trama. Já Larson trabalhou em cima da ideia de Billy
58

Aronson, que desejava modernizar a Broadway, e adaptou La Bohème para um cenário


contemporâneo (LARSON, 1996). Sua busca por autenticidade e sua esperança são, também,
refletidos em seu elenco ao longo da peça. Há uma diferença gritante entre os tons das duas
obras; enquanto The Normal Heart é sombria e pessimista, dando ênfase à quantidade de
mortes por conta da AIDS e da dificuldade enfrentada pelos ativistas diante da inação de
diversos setores, Rent traz mais otimismo, dando ao afeto um poder transformador quase
mágico. A primeira protesta problemas da sua realidade material; a segunda valoriza
conceitos difusos e abstratos.
​ Ned Weeks e Mark Cohen, os protagonistas de The Normal Heart e Rent,
respectivamente, também têm origens e vivências similares. Ambos são escritores brancos,
judeus e vivem em Nova York. Além disso, os dois presenciam a morte de uma pessoa
próxima por conta da AIDS. Ned perde, ao final da peça, seu companheiro Felix e Mark vê a
amiga Angel falecer. O que o luto causa neles, no entanto, é bastante diferente, e quase
dicotômico. Ao longo do roteiro, Ned vê muitas pessoas de seu círculo social perderem a vida
para a doença, e o luto vai lhe deixando cada vez mais enfurecido e assustado. Ele transforma
a própria dor em mobilização política, exigindo mudanças materiais nas condições de vida de
sua comunidade. Mark, por outro lado, inspira-se na vida e na morte de Angel para produzir
um documentário, algo que passa o enredo todo tentando fazer e se frustrando ao não
conseguir repetidas vezes. Não apenas o seu luto e o de seus amigos, mas também a própria
Angel enquanto sujeito, são transformados em capital. Em um investimento (BROWN, 2015,
p. 132-134) na carreira artística individual do protagonista.
​ Todos os personagens de The Normal Heart são figuras complexas, nem sempre
afáveis ou carismáticas. A maior parte deles se mostra difícil e até arrogante diante dos
conflitos que surgem ao longo da trama. Ned e Emma são teimosos, diretos e agressivos a
ponto de se tornarem, por vezes, cruéis. Ben é preconceituoso, Bruce é omisso e covarde. No
entanto, essas falhas não os tornam menos humanos ou estimulam (exceto no caso do chefe
do NIH que negligencia as pesquisas apesar de possuir orçamento), a hostilidade da audiência
para com eles. O desespero da crise da AIDS os torna progressivamente mais instáveis,
indignados e enlutados, simultaneamente limitados e potencializados pelo medo e pela raiva.
Ninguém ali é uma “vítima ideal” (CHRISTIE, 1986); mesmo assim, estão em uma situação
vitimizante. O próprio Larry Kramer costumava dizer que não havia heróis na epidemia da
AIDS (SHILTS, 1987, p. 558). O posicionamento do autor e, consequentemente dos
personagens Emma e Ned, principalmente, sempre foi muito claro e definido: a pandemia da
AIDS tem vítimas — todas as pessoas contaminadas e, em milhares de casos, mortas ao longo
59

dos anos, e as comunidades em maior risco de contágio — e perpetradores — a administração


Reagan, governos municipais e estatais, a grande imprensa, a indústria farmacêutica, aqueles
que faziam pouco caso da situação e os políticos espalhando retórica homofóbica e sorofóbica
pelo país. Na visão de Kramer (e também de organizações de vanguarda como a ACT UP),
estava ocorrendo um genocídio.
​ Em Rent, no entanto, há definitivamente heróis. Ou, pelo menos, uma tentativa de se
haver heróis. A própria introdução de Larson à peça, na qual ele afirma que “nós todos
podemos aprender a sobreviver com aqueles que encaram a morte todos os dias, e deveríamos
nos conectar uns com os outros e nos unir como uma comunidade” (LARSON, 1994, apud.
PACHECO, 1996), indica que a história a ser contada conta com personagens nos quais a
audiência deveria se inspirar, e que somos individualmente responsáveis por uma união
enquanto comunidade. E praticamente todos os acontecimentos mais importantes do enredo
são motivados por um investimento individual abstrato. Maureen protesta o fechamento de
um abrigo para moradores de rua porque não quer perder o espaço onde realiza suas
performances (LARSON et. al., 1997, p. 86 e 100-102). Mark não acompanha Collins e Angel
à reunião do grupo de pessoas HIV-positivas para prestar apoio emocional aos amigos; ele vai
para filmar os depoimentos extremamente íntimos e pessoais de cada um porque quer
produzir um documentário (p. 88-89). Roger se aproxima de Mimi porque ela o lembra da sua
ex-namorada morta (p. 83) e parece acreditar que possa encontrar nela uma nova musa para
compor a maior canção de sua carreira. De fato, ao final do segundo ato, isso ocorre; quando
Mimi está morrendo após uma recaída e o agravamento das complicações da AIDS, Roger
canta sua composição para ela, que acorda (p. 127-128).
​ Há um argumento entre alguns críticos, como a escritora Faith Leigh Winship, que
escreve para o blog do projeto Silence=Death 2.0, que observam a produção dramatúrgica
estadunidense a respeito da crise da AIDS que coloca Rent como uma obra “superior” a The
Normal Heart e outras por conta de seu elenco. Porque a peça de Larson tem protagonistas
(secundários, pois os principais personagens são Mark e Roger, originalmente brancos e
heterossexuais) que saem do demográfico dos homens gays brancos, é tida por alguns como
mais “representativa” e “fidedigna” ao que foi, e ainda é, de certa forma, a pandemia da AIDS
(WINSHIP, 2018). Rent tem personagens racial e sexualmente diversos, mas isso não quer
dizer que seus papéis na peça sejam livres de problemáticas. Há, por exemplo, duas
60

personagens latinas.33 Sim, de fato. Mas ambas, Angel por meio do documentário de Mark
(LARSON, 1997, p. 124) e Mimi da canção de Roger (p.127-128), acabam relegadas à
posição de musas de homens brancos, heroínas trágicas, mas sempre em um papel secundário.
Collins, um homem negro que entende muito de computação usa suas habilidades para
basicamente roubar um caixa eletrônico, fazendo-o soltar dinheiro para qualquer um que
insira o código “A-N-G-E-L”. E vale ressaltar que, apesar de o próprio Collins afirmar que
“bancar o Robin Hood” não resolverá os problemas em larga escala, ele declara em seguida
que Os poderes que devem ser minados onde eles moram / Em uma pequena e exclusiva
instituição gourmet / Onde nós cobramos a mais da clientela abastada”34, o que o leva à
conclusão de que, junto a Mark e Roger, ele deveria abrir um restaurante superfaturado na
Califórnia (p. 125). Toda a discussão em torno dessa forma de comparação, utilizando o
conceito difuso de “representatividade” é profundamente marcada pela racionalidade
neoliberal; afinal, é diferente comparar aspectos específicos de diferentes peças de forma
crítica e aprofundada, mas medir aspectos difusos e complexos de forma rasa é sintomático de
uma lógica mercadológica (DARDOT; LAVAL, 2016), de uma competitividade aplicada à
arte. Este trabalho, apesar do tom crítico, não pretende comparar a “qualidade” das duas
obras, mas sim a manifestação da racionalidade neoliberal em cima de suas abordagens da
crise da AIDS.35
​ Com todas as problemáticas apontadas em relação à sua representação relativamente
limitada da pandemia da AIDS, The Normal Heart é inegavelmente uma consolidação das
ideias dos ativistas de vanguarda do movimento gay dos anos 1980. A ideia da AIDS como
um genocídio permeia toda a peça. Larry Kramer escolheu, como epígrafe para ser incluída
em todos os programas e edições do roteiro, o trecho do poema de Auden, escrito a respeito
da invasão nazista à Polônia, que dá título tanto à peça quanto à sua biografia editada por
Lawrence D. Mass (KRAMER, 1985, p. 3). Na seção de agradecimentos (p. 5-6), o autor cita
uma série de trabalhos acadêmicos acerca do Holocausto. Ned Weeks e outros personagens,

33
Não cabe, aqui, entrar na discussão sobre o que significa ser/ser lido como “latino” nos Estados Unidos e todas
as suas complexidades. Nas resenhas da peça e no entendimento da maior parte da audiência estadunidense, no
entanto, Mimi e Angel são tratadas como personagens racializadas.
34
Tradução própria do inglês: “The powers that be must be undermined where they dwell / In a small, exclusive
gourmet institution / Where we overcharge the wealthy clientele” (LARSON, 1997, p. 125)
35
Há um argumento que vai contra essa linha de pensamento, trazendo a ideia de “arte pela arte”, que tira da arte
uma suposta responsabilidade de funcionalidade, didática e moral, mas pode-se considerar que, no contexto e
nos objetivos deste trabalho, não necessariamente se aplicaria. Afinal, o que está sendo analisado aqui não é
exatamente um propósito das peças de teatro, mas a presença de uma racionalidade então ascendente que afeta a
forma como é representada a pandemia da AIDS que tanto The Normal Heart quanto Rent explicitamente
buscam retratar.
61

como seu amigo e camarada Mickey, Felix e Emma, declaram abertamente que o governo, ao
deliberadamente negligenciar a epidemia, está matando milhares. Mickey, em uma discussão
da organização da qual faz parte junto com Ned, Bruce e outros, indaga: “Por que nos
ajudariam; nós estamos, na verdade, cooperando com eles ao morrermos?” (p. 76)36. A
indignação dos personagens se refere, majoritariamente, a um cenário coletivo com papéis
bem definidos. As autoridades, principalmente as estatais, são responsabilizadas pelo que
ocorre ao longo de toda a peça.
No caso de Rent, por outro lado, vemos o quanto se exacerba a abstração e a
individualização típicas do que se pensou como Fim-da-História (FUKUYAMA, 1991). Não
há motivações políticas na revolta dos personagens da peça. Embora alguns tenham sido
infectados pela AIDS, seu grande problema não é a dificuldade de acesso ao tratamento por
conta da negligência do governo e da falta de um sistema público de saúde, e sim o fato de
que a sociedade (também muito vaga, representada principalmente pelas famílias preocupadas
e pelo dono do prédio onde vivem os protagonistas) espera que eles consigam um emprego e
paguem as próprias contas. Em vez de irem às ruas reivindicar o acesso à saúde, à dignidade e
à cidadania, como faziam os ativistas, os personagens de Rent lutam pelo direito ao aluguel
gratuito (não para todos, mas para artistas como eles) e de não trabalhar, pois isso seria “se
vender ao sistema”, apenas expressando sua artisticidade individual. Sua prioridade não é
derrubar a opressão estrutural que permite a mortalidade da pandemia de AIDS, e sim investir
no próprio pertencimento à frágil e difusa identidade boêmia (BROWN, 2015; TRAVERSO,
2008). A AIDS torna-se um “mal do século”, uma quase inevitabilidade do contexto
histórico-social, como é tratada a tuberculose na ópera de Puccini. Essa equivalência de
Larson ignora o fato de que, enquanto em 1830 não se tinha recursos para tratar a tuberculose,
em 1980 as autoridades ativamente negligenciaram as pesquisas sobre possíveis tratamentos e
formas de profilaxia. A abordagem da AIDS em Rent é um sintoma da despolitização que
perdura até os dias de hoje.
Pode-se argumentar que, talvez, a diferença entre as duas representações se dê pelo
fato de The Normal Heart, de 1985, tenha sido escrita e originalmente encenada no que se
conhece como o auge da crise da AIDS, enquanto Rent, de 1993, surgiu quando a situação
estava sob controle. No entanto, 1996, quando a peça estreou tanto Off-Broadway quanto na
Broadway, foi o ano em que a Suprema Corte vetou a quebra da patente da AZT pela segunda
vez, após ter ignorado o pedido em 1992 (MARSA. Organizações como a ACT UP, que só foi

36
Tradução própria do trecho em inglês: “Why should they help us; we're actually cooperating with them by
dying?” (KRAMER, 1985, p. 76)
62

fundada em 1987, continuavam extremamente ativas e exigindo tratamentos de maior


qualidade e acessibilidade, uma cura e outros direitos básicos. Em sua peça, Jonathan Larson,
assim como Larry Kramer oito anos antes, estava representando a história do tempo presente.
Afirmo, portanto, que a despolitização de sua abordagem é sintomática do sucesso de
implantação da razão neoliberal (BROWN, 2015; DARDOT; LAVAL, 2016). A AIDS ainda
era um problema de saúde pública extremamente pertinente e profundamente político. Afinal,
a doença é até hoje considerada uma pandemia (SOARES, 2021) e não possui uma cura.
63

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em termos cronológicos e históricos, a virada da década de 80 para a de 90 não


representa, numericamente, uma diferença tão grande. No entanto, considerando não apenas
os dois mandatos de Reagan e de seu “herdeiro” George H. W. Bush (HEMMER, 2022, p.
90-106) e a popularização da ideia de um “fim da história” argumentado por Fukuyama
(1991) após a queda da União Soviética e a consequente (suposta) vitória da democracia
liberal, é possível inferir que a propagação da razão neoliberal entre não apenas o povo
estadunidense, mas também os de diversos outros países, foi muito acelerada. Entre 1985 e
1993, a visão de mundo da população em geral havia mudado muito. A percepção a respeito
da AIDS, por exemplo, ao mesmo tempo em que chegou às esferas alheias às comunidades
inicialmente atingidas, deixou de ser vista como um problema político e se tornou mais uma
tragédia sem culpados.
Além da assimilação de diversos grupos ativistas às autoridades governamentais e
sanitárias, como afirma Epstein (1997), ouso dizer que a ideia de um genocídio praticado
contra, principalmente, a população gay dos Estados Unidos, não fazia mais sentido dentro de
uma racionalidade profundamente capitalizada. Afinal, se qualquer atitude em prol de ou
contra si mesmo era agora vista como uma questão de investimento no capital humano,
contaminar-se com o vírus HIV poderia ser encarado como o resultado de um investimento
mal planejado. Se o governo propositalmente negligenciou as pesquisas, evitou estimular a
educação sexual, nada fez para proteger as comunidades mais vulneráveis (SHILTS, 1987;
ROSSINOW, 2015), demorou a liberar um tratamento e, quando o fez, rendeu-se ao lobby das
gigantes farmacêuticas (MARSA, 1993) em vez de investir em testes com remédios mais
eficazes e menos tóxicos (GREENHOUSE, 2016), foi porque havia investimentos mais
interessantes a serem feitos em prol da economia. Ser contaminado por um vírus e ter recursos
para tratá-lo é responsabilidade do indivíduo.
Outro ponto que pode contribuir com a velocíssima despolitização da memória da
AIDS é que, especialmente considerando o conservadorismo exacerbado que passou a assolar
o mundo ocidental com a ascensão do neoliberalismo (MUDDE, 2019; HEMMER, 2022),
não é implausível afirmar que houvesse, e que haja até hoje, uma relutância no inconsciente
coletivo em enxergar os gays (e outras populações marginalizadas) como vítimas. E, sem a
vítima, não há um perpetrador e nem crime (CHRISTIE, 1986). Logo, não haveria a
possibilidade de se considerar a falta proposital de políticas de contenção da pandemia da
AIDS na década de 80 um genocídio. Entretanto, mesmo em casos nos quais se reconheça a
64

tomada de medidas genocidas contra a população LGBTQ+, como o artigo de Heather Panter
(2022), a reação do governo dos EUA e, posteriormente, das grandes companhias
farmacêuticas, à crise da AIDS não costuma aparecer. Apesar de sua definição oficial (ONU,
2024) não incluir métodos específicos, a ideia de um genocídio no imaginário coletivo
torna-se extremamente debatível. É mais plausível chamar de genocídio algo como as
políticas denunciadas na Arábia Saudita, por exemplo, que pune a homossexualidade com
encarceramento, chibatadas e, segundo alguns relatos, decapitação (PANTER, 2022, p. 75).
Uma negligência institucional, mesmo que documentadamente deliberada, em vez de medidas
diretas, acaba abrindo menos espaço para ser colocada como genocida.
Logo, de um lado temos os setores mais conservadores, que se recusam a enxergar as
populações desproporcionalmente afetadas pela pandemia da AIDS (principalmente em seus
estágios iniciais) como vítimas, seja por homofobia e racismo explícitos ou por considerarem
as pessoas LGBTQ+ um grupo político, e por isso não aplicável às diretrizes da ONU. Se
aqueles contaminados pelo HIV possuem “estilos de vida gay” (KENNEDY, 2023, apud.
GLAAD, 2024), são eles mesmos os culpados pelo próprio sofrimento. De outro, setores
progressistas, geralmente bem intencionados, que reconhecem as baixas da crise da AIDS
como vítimas apenas da doença em si, e não de um governo e de um empresariado que,
durante anos, recusaram-se a conter uma pandemia mortal por preconceito e ganância. A
identidade dessas pessoas como vítimas é difusa (TRAVERSO, 2008) e completamente
desligada da ideia de um sujeito perpetrador. Este papel acaba, mesmo que de forma
inconsciente, sendo delegado ao próprio vírus.
Considerando tudo isso, concluo este trabalho observando que a memória da AIDS
nos Estados Unidos, ao longo de sua construção, foi, de fato, tornando-se progressivamente
mais despolitizada e abstrata, e esse processo é ilustrado pelas diferentes abordagens das
peças de teatro The Normal Heart (1985) e de Rent (1993). A primeira lida com a pandemia
da AIDS como um problema coletivo e alarmante, além de tratar a negligência das
autoridades como um genocídio — a obra é permeada por referências ao Holocausto, do título
ao tom do texto. A revolta dolorosamente politizada dos personagens em relação à inação das
autoridades, sabendo que esta é proposital, diretamente baseada na do autor e de seus
companheiros de luta, mostra que, pelo menos na vanguarda do ativismo oitentista,
enxergava-se a AIDS como uma espécie de arma que caiu no colo de autoridades que já se
posicionavam contra os direitos das populações que foram mais afetadas. A segunda peça
transforma a doença em um mal do século, um agente invisível que assombra seus
personagens e dá as caras por si só em alguns momentos chave. Por mais que a peça
65

humanize personagens LGBTQ+ e inclua em seu elenco pessoas etnicamente diversas,


trazendo uma perspectiva plural da AIDS, essa perspectiva é esvaziada de significado
político. Os protagonistas, especialmente aqueles HIV-positivos, estão sofrendo. Mas por quê?
Quem é o causador desse sofrimento? Ao tratar a AIDS e sua fatal propagação como zeitgeist,
e não como uma medida deliberada do governo, Larson ilustra a velocidade com que a
despolitização dessa memória se deu. A AIDS deixou de ser a conveniente arma indireta de
um governo que tratava as populações marginalizadas como cidadãos de segunda classe e se
tornou parte do cenário, sendo absorvida pela abstração típica da memória neoliberal.
66

REFERÊNCIAS

ACT UP New York records. The New York Public Library Digital Collections. Disponível
em:
<https://digitalcollections.nypl.org/collections/act-up-new-york-records#/?tab=navigation>
Acesso em 23 out. 2024.

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora


da Unicamp, 2011.

AUDEN, W.H.. September 1, 1939. Academy of American Poets. Disponível em:


<https://poets.org/poem/september-1-1939 /> Acesso em 6 ago. 2024.

BARBOSA FILHO, Evandro Alves; VIEIRA, Ana Cristina de Souza. A expansão da


sorofobia no discurso político brasileiro. Argumentum, v.13, n.3, 2021, p.134-147.
Disponível em: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=475571230010> Acesso em: 6 ago.
2024.

BARNES, R.; DONOVAN, C. Being ‘ideal’ or falling short? The legitimacy of lesbian, gay,
bisexual and/or transgender victims of domestic violence and hate crime. In: DUGGAN,
Mary (Org.). Revisiting the “Ideal Victim”: Developments in Critical Victimology. Bristol:
Policy Press, 2018, p. 83-102.

BARNETT, M.; SUBOTIC, J.; VANDERMAAS-PEELER, A. Constructing victims:


Suffering and status in modern world order. Cambridge: Review of International Studies,
vol. 50, n. 1, Jan. 2024. p. 171-189. Disponível em:
<https://doi.org/10.1017/S0260210522000596> Acesso em: 3 jun. 2024.

BERGQUIST, S.; OTTEN, T.; SARICH, N.. COVID-19 pandemic in the United States.
Londres: Health Policy and Technology, v. 9, n. 4, p. 623-638, 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.1016/j.hlpt.2020.08.007> Acesso em: 6 ago. 2024.

BORGES, P. D. V. R. História e Literatura: Algumas Considerações. Revista de Teoria da


História, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 94–109, 2014.
67

BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de


austeridade. Rio de Janeiro: Zazie, 2018.

______________. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone
Books, 2015.

CAMUS, Albert. A peste. Tradução de La chute. Rio de Janeiro: Record, 2019.

CERCEL, Cristian. Towards a Disentanglement of the Links between the Memory Boom and
the Neoliberal Turn. Intersections. East European Journal of Society and Politics, p. 27-42,
v. 6, n. 1, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.17356/ieejsp.v6i1.630> Acesso em: 5 set.
2023.

_______________. Whither Politics, Whither Memory? Modern Languages Open, p. 1-15,


v. 18, n. 1, 2020.

CHITNIS A.; RAWLS, D.; MOORE, J.. Origin of HIV Type 1 in Colonial French Equatorial
Africa? Larchmont: AIDS Research and Human Retroviruses, vol. 16, n.1, 2000.
Disponível em: <https://www.liebertpub.com/doi/10.1089/088922200309548> Acesso em 1
out. 2024.

CHRISTIE, Nils. The Ideal Victim. In: FATTAH, Ezzat A. (Org). From Crime Policy to
Victim Policy. Londres: Palgrave Macmillan, 1986.

DADRIAN, Vahakn N.. A Typology of Genocide. International Review of Modern


Sociology, p. 201-212, v. 5, n. 2, 1975. Disponível em:
<https://www.jstor.org/stable/41421531>

DARDOT, P.; LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal.
Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
68

“Dead women can’t vote”. ACT UP New York. Digital Public Library of America.
Disponível em: <https://dp.la/primary-source-sets/act-up-and-the-aids-crisis/sources/1266>
Acesso em 23 out. 2024.

ELLIS, Lindsay. RENT - Look Pretty And Do As Little As Possible: A Video Essay.
YouTube, 1 jan. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=q0qfFbtIj5w>
Acesso em 5 set. 2023.

EPSTEIN, Steven. Specificities: AIDS Activism and the Retreat from the 'Genocide' Frame.
Social Identities, p. 415-438, v. 3, n. 3, 1997.

FINKELSTEIN, Avram. Behind the Iconic Protest Posters of the AIDS Activist Movement.
UC Press Blog. Berkeley, 1 dez. 2017. Disponível em:
<https://www.ucpress.edu/blog/31456/behind-the-iconic-protest-posters-of-the-aids-activist-m
ovement/> Acesso em: 5 set. 2023.

FLEGENHEIMER, Matt. GOLDENSOHN, Rosa. The Secrets Ed Koch Carried. The New
York Times, Nova York, 7 mai. 2022. Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20220507133053/https://www.nytimes.com/2022/05/07/nyregio
n/ed-koch-gay-secrets.html> Acesso em 26 out. 2024.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 5. ed. Trad. Ligia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes,
1987.

_________________. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal,


1988.

_________________. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).


Trad. Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

FRANCIS, Donald. Interviews: Don Francis. [Entrevista concedida a] Frontline: The Age of
AIDS. PBS, Arlington, 2 dez. 2004. Disponível em:
<https://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/aids/interviews/francis.html> Acesso em 1 out.
2024.
69

FREUD, Sigmund. A repressão. In: Obras Completas - volume 12, p. 61-112. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.

FUKS, Betty Bernardo. Notas sobre o conceito de angústia. Estudos & Pesquisas em
Psicologia, Rio de Janeiro, v.1 n.1, 2001.

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde S.


Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GALLO, Robert. [Correspondência] Destinatário: Donald Francis. Atlanta, 27 dez. 1984. 1


carta datilografada (escaneada). Disponível em:
<https://quod.lib.umich.edu/c/cohenaids/5571095.0541.028/1> Acesso em: 1 out. 2024.

GLAAD. GLAAD Accountability Profiles (GAP): Robert F. Kennedy Jr.. Atualizado por
último em 3 set. 2024. Disponível em: <https://glaad.org/gap/robert-f-kennedy-jr/> Acesso
em 9 nov. 2024.

GOTTLIEB, MIchael S.. Pneumocystis Pneumonia—Los Angeles. Washington: American


Journal of Public Health, v. 96, n.6, 2006, p. 980-981. Disponível em:
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1470612/> Acesso em 1 out. 2024.

GREENHOUSE, Linda. Supreme Court Roundup; Justices Reject Challenge Of Patent for
AIDS Drug. The New York Times, Nova York, 17 jan. 1996. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/1996/01/17/us/supreme-court-roundup-justices-reject-challenge-of
-patent-for-aids-drug.html> Acesso em 1 out. 2024.

GUERREIRO, C.; ALMEIDA, R. D. Negacionismo religioso: Bolsonaro e lideranças


evangélicas na pandemia Covid-19. Religião & Sociedade, v. 41, n. 2, p. 49–74, maio 2021.

GUSSOW, Mel. Jonathan Larson, 35, Composer Of Rock Opera and Musicals. Nova York:
The New York Times, 26 jan. 1996. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/1996/01/26/nyregion/jonathan-larson-35-composer-of-rock-opera-
and-musicals.html> Acesso em 1 out. 2024.
70

HEMMER, Nicole. Partisans: The Conservative Revolutionaries Who Remade American


Politics in the 1990s. Nova York, Basic Books, 2022.

HINDMAN, Matthew D.. Political Advocacy and Its Interested Citizens: Neoliberalism,
Postpluralism, and LGBT Organizations. Filadélfia: Penn Press, 2019.

JOHNSON-AGBAKWU, Crista E., et. al. Racism, COVID-19, and Health Inequity in the
USA: a Call to Action. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, v. 9., p. 52-58,
2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s40615-020-00928-y> Acesso em: 6 ago.
2024.

JONES, Kimberly Gracia. JONES, Sandra Gracia. Lo Siento Pero Usted No Está Bienvenido:
U.S. Travel Policies and Immigration Laws for HIV-Infected Persons. Alphen aan den Rijn:
Journal of the Association of Nurses in AIDS Care, v. 19, n. 4, p. 325-329, jul. 2008.
Disponível em: <https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC7118450/> Acesso em 8 out.
2024.

KALISH, M.L. et. al..Central African Hunters Exposed to Simian Immunodeficiency Virus.
Atlanta: Emerging Infectious Diseases, vol. 11, n. 12, dec. 2005. Disponível em:
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3367631/> Acesso em 1 out. 2024.

KRAMER, Larry. March 27, 1983: 1,112 and Counting. Larry Kramer’s call to arms. Los
Angeles Blade. 27 mai. 2020. Disponível em:
<https://www.losangelesblade.com/2020/05/27/march-27-1983-1112-and-counting/> Acesso
em 2 set. 2023.

_____________. Reports from the Holocaust: the making of an AIDS activist. Nova York:
St. Martin’s Press, 1989.

_____________. The Normal Heart. Nova York: Samuel French Inc., 1985.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005, 372p.
71

LELAND, John. When Larry Kramer, AIDS Warrior, Took on Another Plague. The New
York Times, Nova York, 28 mar. 2020. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2020/03/28/nyregion/coronavirus-larry-kramer-aids.html> Acesso
em 16 out. 2024.

LARSON, Jonathan. Jonathan Larson Talks About His Writing Process and Making ‘Rent’.
[Entrevista concedida a] John Istel. Nova York: American Theatre Magazine, 1 jul. 1996.
Disponível em:
<https://www.americantheatre.org/1996/07/01/jonathan-larson-talks-about-his-writing-proces
s-and-rent/> Acesso em 1 out. 2024.

_________________; MCDONNELL, E.; SILBERGER, K. Rent! Nova York:


HarperEntertainment / HarperCollins, 1997.

LEWIS, David. Larry Kramer, Playwright and Outspoken AIDS Activist, Dies at 84. Nova
York: The New York Times, 27 mai. 2020. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2020/05/27/us/larry-kramer-dead.html> Acesso em 5 set. 2023.

LOURES, Vinicius. Comissão aprova projeto que proíbe o casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Agência Câmara de Notícias (Câmara dos Deputados), Brasília, 10 out. 2023.
Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/noticias/1006272-comissao-aprova-projeto-que-proibe-o-casame
nto-entre-pessoas-do-mesmo-sexo/> Acesso em: 6 ago. 2024.

MARSA, Linda. TOXIC HOPE: WIDELY EMBRACED, THE AIDS DRUG IS NOW
UNDER HEAVY FIRE. THE AZT STORY. The Los Angeles Times, Los Angeles, 20 jun.
1993, Science & Medicine. Disponível em:
<https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1993-06-20-tm-10183-story.html> Acesso em 6
ago. 2024.

MASS, Lawrence (org.). We Must Love One Another or Die: The Life and Legacies of
Larry Kramer. Nova York: St. Martin's Press, 1997.
72

MATOS, Maurílio Castro de. O neofascismo da política de saúde de Bolsonaro em tempos


perigosos da pandemia da COVID-19. Palmas: Humanidades & Inovação, v. 8, n. 35, p.
25-35, 2021.

MUDDE, Cas. The far right today. Cambridge: Polity Press, 2019.

___________. The ideology of the extreme right. Manchester: Manchester University Press,
2002.

NELSON, Harry. Outbreaks of Pneumonia Among Gay Males Studied. The Los Angeles
Times, Los Angeles, 5 jun. 1981, p. 9.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. O que é a Convenção da Prevenção e Punição


do Crime de Genocídio? ONU News, 12 jan. 2024. Disponivel em:
<https://news.un.org/pt/story/2024/01/1826157> Acesso em: 6 ago. 2024.

PACHECO, Patrick. Life, Death and ‘Rent’ : Jonathan Larson’s Pulitzer winner celebrates the
artists and HIV-positive addicts he knew, a ‘Hair’ cut for the ‘90s. The show couldn’t have
gone to Broadway without him. And then it did. Los Angeles: The Los Angeles Times, 14
abr. 1996. Disponível em:
<https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1996-04-14-ca-58265-story.html> Acesso em 1
out. 2024.

PANTER, Heather. LGBT+ Genocide: Understanding hetero-nationalism and the politics of


psychological silence. In: ESKI, Yarin (Org.). Genocide and Victimology. Londres:
Routledge, 2022, p.69-85.

PARRY, M. S.. Public health heritage and policy: HIV and AIDS in museums and archives.
Manguinhos: História, Ciências, Saúde, p. 253–262, v. 27, set. 2020.

PARKER, C. F.; STERN, E. K. The Trump Administration and the COVID-19 crisis:
Exploring the warning-response problems and missed opportunities of a public health
emergency. Public Administration, v. 100, n. 3, p. 616-632, 2022. Disponível em:
<https://doi.org/10.1111/padm.12843> Acesso em: 6 ago. 2024.
73

PIPER-SHAFIR, Isabel. La construcción del sujeto víctima. Revista Puentes, n. 25, p. 30-35,
dez. 2008

RICH, Frank. Theater: ‘The Normal Heart’, by Larry Kramer. Nova York: The New York
Times, 22 abr. 1985. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/1985/04/22/theater/theater-the-normal-heart-by-larry-kramer.html
> Acesso em: 5 set. 2023.

ROCHA, L. S., DIL, G.. A construção da epidemia da AIDS como câncer gay pelos meios de
comunicação. Revista Justiça do Direito, v. 36, n.1, p. 231-255, jan/abr. 2022. Disponível
em: <https://doi.org/10.5335/rjd.v36i1.13458> Acesso em: 5 set. 2023.

ROSSINOW, Douglas C. The Reagan Era: A History of the 1980s. Nova York: Columbia
University Press, 2015.

ROTHBERG, Michael. Multidirectional Memory: Remembering the Holocaust in the Age


of Decolonization. Stanford: Stanford University Press, 2009.

SHILTS, Randy. And the Band Played on: Politics, People, and the AIDS Epidemic. Nova
York: Penguin Books, 1988.

“Silence = Death”. ACT UP New York. Brooklyn Museum. Disponível em:


<https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/159258> Acesso em 23 out. 2023.

Silence=Death Project. AIDSGATE. Nova York, The Metropolitan Museum of Art.


Disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/497874> Acesso em 5 set.
2023.

SNOWDEN, Frank M. HIV/AIDS: The Experience of the United States. In: Epidemics and
Society: From the Black Death to the Present. New Haven: Yale University Press, 2019.
74

SOARES, Marcelo. ‘HIV e AIDS nunca deixaram de ser uma pandemia’. [Entrevista
concedida a] Cátia Guimarães. Notícias: Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz. Rio de Janeiro, 1 de dezembro de 2021. Disponível em:
<https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/hiv-e-aids-nunca-deixaram-de-ser-uma-pand
emia> Acesso em 2 set. 2023.

SPECTER, Michael. Larry Kramer, Public Nuisance. Nova York: The New Yorker, 5 mai.
2002. Disponível em: <https://www.newyorker.com/magazine/2002/05/13/public-nuisance>
Acesso em 1 out. 2024.

STEIN, Marc. Memories of the 1987 March on Washington. OutHistory, ago. 2013.
Disponível em:
<https://outhistory.org/exhibits/show/march-on-washington/exhibit/by-marc-stein> Acesso
em 23 out. 2024.

STRANGE, Jared. Rent! Study Guide. Washington: The National Theatre Foundation, 2022.
Disponível em: < https://www.nationaltheatre.org/reflections-on-rent/> Acesso em 23 out.
2024.

STRYKER, Jeff. Writer Chuckles Over Report of His Demise. Nova York: The New York
Times, 8 jan. 2002. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2002/01/08/health/writer-chuckles-over-report-of-his-demise.html
> Acesso em 7 nov. 2024.

TEPPER, Jennifer Ashley. 5 Jonathan Larson Songs You've Probably Never Heard. Nova
York: Playbill Magazine. 9 out. 2018. Disponível em:
<https://playbill.com/article/5-jonathan-larson-songs-youve-probably-never-heard> Acesso
em 1 out. 2024.

The C. Everett-Koop Papers: AIDS, the Surgeon General, and the Politics of Public Health.
NIH: National Library of Medicine. Profiles in Science. Disponível em:
<https://profiles.nlm.nih.gov/spotlight/qq/feature/aids> Acesso em 1 out. 2024.
75

The Story of Jonathan—One Week in January. Machesney Park: The Journal of Urgent
Care Medicine, 15 jun. 2009. Disponível em:
<https://www.jucm.com/story-jonathan-one-week-january/> Acesso em 1 out. 2024.

TRAVERSO, Enzo. De la memoria y su uso crítico. Revista Puentes, n. 25, dez. 2008, p.
6-21.

TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história.


Tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: huya, 2016.

VINYES, Richard. La privatización de la memoria en España y sus consecuencias. Nuestra


Historia, p. 212-220, v. 3, n. 4, 2020.

______________. Sobre víctimas y vacíos; ideologías y reconciliaciones; privatizaciones e


impunidades. In: RUANO, Enrique. Memoria viva de la impunidad del franquismo, p.
255-273. Madri: UCM Editorial Complutense, 2011.

WALKLATE, Sandra (org.). Handbook of Victims and Victimology. 2ª edição. Londres:


Routledge, 2017.

Quotations from LGBTQ Leaders. Nova York: WestView News, 3 jun. 2020. Disponível em:
<https://westviewnews.org/2020/06/03/quotations-from-lgbtq-leaders/gcapsis/> Acesso em 23
out. 2024.

WHITE, Hayden. The Practical Past. In: The Practical Past. Evanston: Northwestern
University Press, 2014.

WIESNER, Caitlin. Caring for the Community During a Pandemic: Lessons from HIV/AIDS.
New York Historical Society, Nova York, 11 mai. 2020. Women at the Center. Disponível
em:
<https://www.nyhistory.org/blogs/caring-for-the-community-during-a-pandemic-lessons-from
-hiv-aids> Acesso em: 5 set. 2023.
76

WIJK, Joris van. Who is the ‘little old lady’ of international crimes? Nils Christie’s concept of
the ideal victim reinterpreted. International review of victimology, v. 19, n. 2, 2013.
Disponível em: <https://doi.org/10.1177/0143034312472770> Acesso em 26 mai. 2024.

WINSHIP, Faith Leigh. “Actual Reality — ACT UP — Fight AIDS” A Review of HIV/AIDS
Representation in Theater. Silence=Death 2.0, 28 mai. 2018. Disponível em:
<https://medium.com/silence-death-2-0/actual-reality-act-up-fight-aids-9a2ce17200eb>
Acesso em 23 out. 2024.

WOLTERS, Raymond. New Right. In: FROHNEN, Bruce; BEER, Jeremy. NELSON, Jeffrey
O. (org.). American Conservatism: An Encyclopedia. Wilmington: Intercollegiate Studies
Institute, 2006.

Você também pode gostar