HUYSSEN - Seduzidos Pela Memória
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r Copyright © by Andreas Huyssen
ISBN 85-86579-15-7
Capa
Victor Burton
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Adriana Moreno
Coordenação editorial
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Tdefax: (021)529-6974 [email protected]
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Os ensaios reunldos neste livro
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. -Um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreen-
dentes dos anos recentes é a emergência da memória como
uma das preocupações culturais e políticas centrais das so-
blemática do tempo e da memória, vinculada à forma an- nados, então, primeiramente pelo debate cada vez mais
terior do alto modernismo, para uma outra na qual o espa- amplo sobre o Holocausro (iniciado com a série de TV
ço é uma peça-chave do momento pós-moderno'. Mas, como "Holocausto" e, um pouct) mais adiante, com o movimen-
tem mostrado o trabalho de geógrafos como David Har- to testemunhal bem como por toda uma série de eventos
vey', a própria separação entre tempo e espaço representa relacionados à história do Terceiro Reich (fortemente poli-
urr: grande risco para o entendimento completo das cultu- tizada e cobrindo quadragésimos e qüinquagésimos aniver-
ras moderna e pós-moderna. Tempo e espaço, como cate- sários): a ascensão de Hitler ao poder em 1933 e a infame
gorias fundamentalmente contingentes de percepção his- queima de livros, relernbrada em 1983; a Kristallnacbt, o
toricamente emaizadas, estão sempre intimamente ligadas pogrom organizado em 19~,8 contra os judeus alemães, obje-
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rastro da descoionização e dos nos novos movimentos
ciais em sua busca por histórias alternativas e revisioniscas.
so-
I, pode acrescentar a querela dos historiadores em 1986, a
queda do muro de Berlim em 1989 e a unificação nacional
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c. A procura por outras tradições e pela tradição dos "outros"
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da Alemanha em 19907 -- receberam intensa cobertura da
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perguntar: em que medida pode-se, agora, falar .de uma
globalização do discurso do Holocausto?
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mo uma prova da incapacidade da civilização ocidental de
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t praticar a anamnese, de refletir sobre sua inabilidade cons-
É evidente que a recorrência de políticas genocidas em I
(
ritutiva para viver em paz com diferenças e alteridades e de
C
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Ruanda, na Bósnia e em Kossovo, em uma década consi-
i tirar as conseqüências das relações insidiosas entre a rnoder-
dera?a pós-histórica (1990), tem mantido vivo o discurso i'
.1 nidade iluminista, a opressão racial e a violência organiza-
(
I
da memória do Holocausto, contaminando-o e estenden- da". Por outro lado, esta dimensão mais totalizante do dis- C
do-o para antes de seu ponto de: referência original. É real- curso do Holocausto, tão dominante em boa parte do pen- (
mente interessante notar como, no caso dos massacres or-
ganizados em Ruanda e na Bósnia, no início da década de
samento pós-moderno, é acompanhada por uma dimensão
C
que ela particulariza e localiza. É precisamente a emer- (
1990, as comparações com o Holocausto foram inicialmen- gência do Holocausto como uma figura de linguagem uni-
te fortemente rejeitadas pelos políticos, pela mídia e por
(
versal que permite à memória do Holocausto começar a
grande parte do público, não por causa das inquestionáveis entender situações locais específicas, historicamente dis-
(
referências históricas, mas sobretudo devido a um desejo
I· . tantes e politicamente distintas do evento original. No mo- (
de resistir à intervenção", Por outro lado, a intervenção "hu-
manitária" da OTAN em Kossovo e a sua legitimação têm
vimento transnacional dos discursos de memória, o Holo- C
causto perde sua qualidade de índice do evento histórico (
sido largamente dependentes da memória do Holocausto.
Fluxos de refugiados através das Ironreiras, mulheres e crian-
v
I
t
específico e começa a funcionar como uma metáfora para
outras histórias e memórias. O Holocausto, como lugar-
<
ças jogadas em trens para deportação, relatos de atrocida- It (
comum universal, é o pré-requisito para seu descentrarnen-
des, estupros sistemáticos e destruições brutais, tudo isto lI (
to e seu uso como um poderoso prisma através do qual po-
mobilizou uma política de culpa na Europa e nos Estados I
!
demos olhar outros exemplos de genocídio. O global e o r
Unidos associada à não-intervenção nas décadas de 1930 e
1940 e ao fracasso da intervenção na guerra da Bósnia em
local da memória do Holocausto têm entrado em novas r
constelações que pedem para ser analisadas caso a caso. As- ('
1992. A guerra em Kossovo confirma, portanto, o crescen-
te poder da cultura da memória no final da década de 1990,
sim como pode energizar reto ricamente alguns discursos f~
de memória traumática, a comparação com o Holocausto
mas ela também levanta questões difíceis sobre o uso do ~
Holocausro como um lugar-comum universal para os trau-
,.. também pode servir como uma falsa memória ou simples-
mente bloquear a percepção de histórias específicas.
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i.4
mas históricos. Em se tratando de passados presentes, no entanto, a
A globalização da memória funciona também em dois memória do Holocausto e seu lugar na reavaliação da mo- ~
outros sentidos relacionados, qc.e ilustram o que eu cha-
dernidade ocidental não contam toda a história. Há tam- (-
maria de paradoxo da globalização. Por um lado, o Holo-
bém muitas tramas secundárias, que constroem a me-
causto se transformou numa cifra para o século XX como um ~
todo e para a falência do projeto iluminista. Ele serve co-
mória narrativa atual no seu escopo mais amplo, dis-
(
tinguindo de forma bastante clara o nosso tempo das pri-
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C restauração hisroricizanre de velhos centros urbanos, cida- tá sendo musealizado e que todos nós representamos os nos-
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des-museus e paisagens inteiras, empreendimentos
moniais e heranças nacionais, a onda da nova arquitetura de
museus (que não mostra sinais de esgotamento),
parri-
o boom
sos papéis neste processo. É como se o objetivo fosse con-
seguir a recordação total. Trata-se então da fantasia de um
arquivista maluco? Ou há, talvez, algo mais para ser dis-
das modas retrô e dos utensílios reprô, a cornercialização cutido neste desejo de puxar todos esses vários passados para
(
~ em massa da nostalgia, a obsessiva automusealização atra- o presente? Algo que seja, de fato, específico à esrrururação
vés da câmera de vídeo, a literatura memorialística e con- da memória e da temporalidade de hoje e que não tenha si-
~
fessional,o crescimento dos romances autobiográficos e his- do experimentado do mesmo modo nas épocas passadas.
~
tóricos pós-modernos (com as suas difícieis negociações , Freqüentemente tais obsessões com a memória e com o
.~
entre fato e ficção), a difusão das práticas memorialísticas nas passado são explicadas em função do fin de siêcle, mas eu pen-
~ artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, so que é preciso ir mais fundo para dar conta daquilo que
tc e o aumento do número de documentários na televisão, in- se pode chamar agora de uma cultura da memória, na me-
cluindo, nos Estados Unidos, um canal totalmente voltado dida em que se disseminou nas sociedades do Atlântico-
para história: o History Channel. No lado traumático da cul- Norte a partir dos últimos anos da década de 1970. O que
tura da memória, e junto ao cada vez mais onipresente dis- aí aparece, agora, em grande parte como uma cornerciali-
curso do Holocausto, temos a vasta literatura psicanalítica zação crescente mente bem-sucedida da memória pela in-
sobre o trauma; a controvérsia sobre a síndrome da me- dustria cultural do ocidente, no contexto daquilo que a so-
mória recuperada; os trabalhos de história ou sobre temas "~"
ciologia alemã chamou de Erlebnisgesellschaj: ", assume uma
atuais relacionados a genocídio, aids, escravidão, abuso se- inflexão política mais explícita em outras partes do mun-
xual; as cada vez mais numerosas controvérsias públicas so- do. Especialmente desde 1989, as questões sobre memória
~ e o esquecimento têm emergido como preocupações domi-
bre efemérides politicamente dolorosas, comemorações e
!' memoriais; a mais recente pletora de pedidos de desculpas nantes nos países pós-comunistas do leste europeu e da an-
l"
-,.
).,
•• pelo passado, feitos por líderes religiosos e políticos da Fran-
ça, do Japão e dos Estados Unidos; e, finalmente, trazendo
tiga União Soviética; elas permanecem como peças-chaves
na política no Oriente Médio; dominam o discurso públi-
co na África do Sul pós-apartheid com a sua Trutb and Re-
juntos o entretenimento memorialístico e o trauma, temos
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sucesso internacional do Titanic é uma metáfora de me-
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da"~; pesam sobre as relações entre Japão, China e Coréia rar a legitimidade e o futuro das suas políticas emergentes,
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e determinam, em grau variado, o debate cultural e políti- buscando maneiras de comemorar e avaliar os erros do pas-
co em torno dos presos políticos desaparecidos e seus filhos sado. Quaisquer que poss~m ser as diferenças entre a Ale- . C
nos países latino-americanos, levantando questões funda- manha do pós-guerra e a África do Sul, a Argentina ou o .: I
mentais sobre violação de direitos humanos, justiça e res- Chile, o lugar político das práticas de memória é ainda na- ()
cional e não pós-nacional ou global. Isto traz implicações
ponsabilidade coletiva. ()
para o trabalho interpretativo. Embora o Holocausto, como
A disseminação geográfica da cultura da memória é tão )
ampla quanto é variado o uso político da memória, indo lugar-comum universal da história traumática, tenha mi-
desde a mobilização de passados rníticos para apoiar expli- grado para outros contextos não relacionados, deve-se sem-
citamente políticas chauvinistas ou fundamentalistas (por pre perguntar se e como ele reforça ou limita as práticas de
exemplo: a Sérvia pós-comunista e o o populismo hindu memória e as lutas locais, ou se e como ele pode executar (J
na índia) até as tentativas que estão sendo realizadas, na Ar- ambas funções ao mesmo tempo. É claro que os debates
gentina e no Chile, para criar esferas públicas de-memória sobre a memória nacional estão sempre imbricados com os
"real" contra as políticas do esquecimento, promovidas pe- efeitos da mídia global e seu foco em temas tais como ge-
nocídio e limpeza étnica, migração e direitos das minorias,
J
los regimes pós-ditatoriais, seja através de reconciliações
virimização e responsabilização. Quaisquer que possam ser
()
nacionais e anistias oficiais, seja através do silêncio repres-
as diferenças e especificidades locais das causas, elas suge- ( .'
sivo". Mas ao mesmo tempo, é claro, nem sempre é fácil
traçar uma linha de separação entre passado rnítico e pas- rem que a globalização e a forte reavaliação do respectivo (
sado real, um dos nós de qualquer política de memória em passado nacional, regional ou local deverão ser pensados (
qualquer lugar. O real pode ser mitologizado tanto quanto juntos. Isto, por seu turno, faz perguntar se as culturas de (
o mítico pode engendrar forres efeitos de realidade. Em memória contemporâneas em geral podem ser lidas como (\
suma, a memória se tornou urna obsessão cultural de pro- formações reativas à globalização da economia. Este é um
terreno no qual se poderia tentar alguns novos trabalhos
(
porções monumentais em todos os pontos do planeta.
(~
. Ao mesmo tempo, é importante reconhecer que embo- comparativos sobre mecanismos e lugares-comuns de trau-
ra os discursos de memória po.;sam parecer, de certo mo- mas históricos e práticas de memória nacional. ('
do, um fenômeno global, no seu núcleo eles permanecem (\
(~
ligados às histórias de nações e estados específicos. Na me- 2
dida em que as nações lutam para criar políticas democrá- (
ticas no rastro de histórias de extermínios em massa, apar-
theids, ditaduras militares e totalitarismo, elas se defrontam,
Se a consciência temporal da alta modernidade
dente procurou garantir o futuro, então pode-se argumen-
no oci-
ç
como 'foi e ainda é o caso da Alemanha desde a Segunda tar que a consciência temporal do final do século XX
Guerra Mundial, com a tarefa sem precedentes de assegu- envolve a não menos perigosa tarefa de assumir a responsa- ~
.-.
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~,
.- freqüência crescente, os críticos acusam a própria cultura
da memória contemporânea de amnésia, apatia ou ernbo-
; lugar. É o medo do esquecimento que dispara o desejo de
lembrar ou é, talvez, o contrário? É possível que o excesso
•.,
A acusação de amnésia é feita invariavelmente através de perigo constante de implosão, disparando, portanto, o me-
uma crítica à mídia, a despeito do fato de que é pre- do do esquecimento? Qualquer que seja a resposta para es-
cisamente esta - desde a imprensa e a televisão até os CO- tas questões, fica claro que velhas abordagens sociológicas
• Roms e a Internet - que faz a memória ficar cada vez mais da memória coletiva - tal como a de Maurice Halbwachs,
• disponível para nós a cada dia. Mas e se ambas as observa- que pressupõe formações de memórias sociais e de grupos
esquecimento estiverem realmente sendo transformadas, tes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de
,.•
(
sob pressões nas quais as novas tecnologias da informação, grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se
(
as políticas midiáticas e o consumismo desenfreado estive- ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de
rem começando a cobrar o seu preço? Afinal, e para co- memória consensual coletiva e, em caso negativo, se e de
meçar, muitas das memórias comercializadas em massa que que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem
~ consumimos são "memórias imaginadas" e, portanto, mui- ela. Está claro que a memória da mídia sozinha não será su-
to mais facilmente esquecíveis do que as memórias vivi- ficiente, a despeito de a mídia ocupar sempre maiores por-
~ das". Mas Freud já nos ensinou que a memória e o es- ções da percepção social e política do mundo.
quecimento estão indissolúvel e mutuamente ligados; que As próprias estruturas da memória pública midiatizada
~ a memória é apenas uma outra forma de esquecimento e ajudam a compreender que, hoje, a nossa cultura secular,
que o esquecimento é uma forma de memória escondida. obcecada com a memória, tal como ela é, está também de
Mas o que Freud descreveu como os processos psíquicos da alguma maneira tomada por um medo, um terror mesmo,
recordação, recalque e esquecimento em um indivíduo vale do esquecimento. Este medo do esquecimento articula-se
~ também para as sociedades de consumo contemporâneas paradigmaticamente em torno de questões do Holocausto,
r como um fenômeno
dentes que pede para ser interpretado
público de proporções sem prece-
historicamente.
na Europa e nos Estados Unidos, ou dos presos políticos
desaparecidos na América l.atina. Ambos, é claro, compar-
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tilham a crueial ausência de um espaço fúnebre tão neces- d e rru'doIa como veicu
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sário para alimentar a memória humana, fato que ajuda a Portanto, não é mais possível, por exemplo, pensar no Ho- (
explicar a forte presença do Holocausto na Argentina. Mas locausto ou em outro trauma histórico como uma questão ::1
o medo do esquecimento do desaparecimento opera tam- ética e política séria, sem levar em conta os múltiplos mo-
bém e:;n uma outra escala. Quanto mais nos pedem para dos em que ele está agora ligado à mercadorização e à espe- ~
lembrar, no rastro da explosão da informação e da COmer- tacularização em filmes, museus, docudrarnas, sites na In- l
cialização da memória, mais nos sentimos no perigo do es- ternet, livros de fotografia, histórias em quadrinhos, ficção,
até contos de fadas (La vita é bella, de Benigni) e música
quecimento e mais forte é a necessidade de esquecer. Um
l
ponto em questão é a distinção entre passados usáveis e da- ./ popular. Mas mesmo se o Holocausto tem sido rnercadori-
dos disponíveis. A minha hipótese aqui é que nós tentamos
combater este medo e o perigo do esquecimento com es-
zado interminavelmente,
quer mercadorização
isto não significa que toda e qual-
inevitavelmente banalize-o como
(.'1
tratégias de sobrevivência de rememo ração pública e priva- evento histórico. Não há nenhum espaço puro fora da cul-
da. O enfoque sobre a memória é energizado subliminar- tura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal
mente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracteri- espaço. Depende muito, portanto, das estratégias específicas
zado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fra- de representação e de mercadorização e do contexto no
turarnento do espaço vivido. Ao mesmo tempo, sabemos
que tais estratégias de rememoração podem afinal ser, elas
qual elas são representadas. Da mesma forma, a suposta-
mente trivial Erlebnisgesellschaft dos estilos de vida comer-
c
mesmas, transitórias e incompletas. Devo então voltar à
C
questão: por quê? E especialmente: por que agora? Por que
cializados em massa, espetáculos e eventos fugazes tem uma
realidade vivida significativa, subjacente às suas manifesta- e
esta obsessão pela memória e pelo passado e por que este ções superficiais. Meu argumento aqui é o seguinte: O pro- (
medo do esquecimento? Por que estamos construindo mu- blema não é resolvido pela simples oposição da memória
seus como se não houvesse mais amanhã? E por que só séria à memória trivial, do modo como os historiadores al- (
agora o Holocausto passou a ser algo como uma cifra oni- gumas vezes opõem história e memória tout court, memó- (
presente para as nossas memórias do século XX, por cami- ria como uma coisa subjetiva e trivial, fora da qual o his-
(
nhos inimagináveis vinte anos atrás? toriador constrói a realidade. Não podemos simplesmente
(
contrapor o museu sério do Holocausto a um parque te-
3 mático "Disneyficado", Porque isto iria apenas reproduzir a
(
Quaisquer que tenham sido as causas sociais e políticas velha dicotomia alta/baixa da cultura modernista sob uma no- (
do crescimento explosivo da memória nas suas várias sub- va aparência, como ocorreu no debate caloroso que situou
tramas, geografias e setorializações, uma coisa é certa: não
podemos discutir memória pessoal, geracional ou pública
o filme Shoah, de Claude Lanzmann, como uma represen-
tação adequada (isto é, uma não representação) da memó-
<c
sem considerar a enorme influência das novas tecnologias ria do Holocausto, por oposição à Lista de Scbindler; de Spiel-
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berg, como uma rrivializaçâo comercial. Se reconhecemos forma. E aqui - seguindo o surrado argumento de Me-
a distância constituriva entre a realidade e a sua representa- Luhan de que o meio é a mensagem - é bastante significati-
ção em linguagem ou imagem, devemos, em princípio, estar vo que o poder da nossa, eletrônica mais avançada depen-
abertos para as muitas possibilidades diferentes de repre- da inteiramente de quantidades de memória: Bill Gates
sentação do real e de suas memórias. Isto não quer dizer talvez seja a mais recente encarnação do velho ideal ameri-
que vale tudo. A qualidade permanece como uma questão cano - mais é melhor. Mas "mais" é medido agora em bites
a ser decidida caso a caso. Mas a distância serniórica não de memória e no poder de reciclar o passado. Que o diga
pode ser encurtada por uma e única representação correta. a divulgadíssima compra da maior coleção de originais fo-
Tal argumento equivaleria a uma concepção modernista tográficos feita por Bill Gates: com a mudança da foto-
do Holocausto". De fato, fenomenos como a Lista de Schin- grafia para a sua reciclagem digital, a arte de reprodução
dler e o arquivo visual de Spielberg dos testemunhos de so- mecânica de Benjamin (fotografia) recuperou a aura da
breviventes do Holocausto nos compelem a pensar a me- originalidade'. O que mostra que o famoso argumento de
mória traumática e a memória visual como ocupando jun- Benjamin sobre a perda ou o declínio da aura na moder-
tas o mesmo espaço público, em vez de vê-Ias como fenô- nidade era apenas uma parte da história; esqueceu-se que a
menos mutuamente excludentes. Questões cruciais da cul- modernização, para começar, criou ela mesma a sua aura.
.- tura contemporânea
fácil argumentar
estão precisamente localizadas no limi-
ar entre a memória dramática e a mídia comercial.
que os eventos de entretenimento
É muito
e os es-
Hoje, é a digitalização que dá aura à fotografia "original" .
Afinal, como Benjamin também sabia, a própria indústria
cultural da Alemanha de Weimar precisou lançar mão da
petáculos das sociedades contemporâneas midiatizadas exis- aura como uma estratégi a de marketing.
'f.,.••.
~
tem apenas para proporcionar alívio ao corpo político e so- Então, permitam-me por um momento condescender
cial angustiado por profundas memórias de atos de violên- com o velho argumento sobre a velha indústria cultural, tal
cia e genocídio perpetrados em seu nome, ou que eles são como Adorno o propôs contra a posição de Benjamim so-
( bre a rnídia tecnológica, por ele considerada excessivamente
montados apenas para reprimir tais memórias. O trauma é
:éc..
para diferentes consumidores de memórias. mui-
to fácil sugerir que os espectros do passado que assombram Luhan, os interesses de lucro dos comerciantes de memória
as sociedades modernas, com uma força nunca antes conhe-
"Nota do tradutor: para Benjamin, a fotografia é o primeiro meio de
cida, articulam realmente, pela via do deslocamento, um
é
reprodução verdadeiramente revolucionário, Para mais detalhes, inclu-
crescente medo do futuro, num tempo em que a crença no sive sobre a questão da aura, ver Walter Benjamin. Magia e técnica. arte
progresso da modernidade está profundamente abalada. e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. especialmente os ensaios
: Sabemos que a mídia não transporta a memória pública "A obra de arte na era da sua reproduribilidade técnica". "Pequena His-
c..
~
inocentemente; ela a condiciona na sua própria estrutura e tória da fotografia" e "Sobre () conceito da História".
~
(11
.~
"l~0',. 25
24 "'v~.··" Scdu:;,:k~os p'e~a Memóri(':
". Iy(;YSs
.~
p..('<ô,e'b'" Seduzidos peja Memória
de massa parecem ser mais pertinentes para explicar o su- presente da reciclagem a curto prazo, para o lucro, o pre-
~
cesso da síndrome da memória. Trocando em miúdos: o pas- sente da produção na hora, do entretenimento instantâneo
sado está vendendo mais do que () futuro. Mas por quanto e dos paliativos para a nossa sensação de ameaça e insegu-
tempo, ninguém sabe. rança, imediatamente subjacente à superfície desta nova
.. ' Tome-se a chamada de um falso anúncio colocado na In- era dourada, em mais um fin desiecle: Os computadores,
ternet: '''O Departamento de Retrô dos Estados Unidos Alerta: dizem, poderão não saber reconhecer a diferença entre o
Poderá Haver uma Escassez de Passado." O primeiro parágrafo ano 2000 e o ano 1900 - mas nós sabemos?
diz; "Numa entrevista coletiva na segunda-feira, o Secretário
r
de Retrô, Anson Williams, emitiu um importante comunica-
do sobre uma iminente 'crise nacional de retrô', alertando que
4 r
("'I
'se os níveis atuais do consumo retrô nos Estados Unidos con- Os críticos da amnésia do capitalismo tardio duvidam
tinuarem fora de controle, as reservas de passado poderão ser que a cultura ocidental da mídia tenha deixado algo pare-
exauridas já em 2005'. Mas não se preocupem. Nós já estamos cido com memória "real" ou com um forre sentido de his-
...•
comercializando passados que nunca existiram: a prova disso é v ' I tória. Partindo do argumento padrão de Adorno, segundo
a recente introdução da linha de produtos Aerobleu; nostalgias o qual a mercadorização é o mesmo que esquecimento, eles
dos anos 1940 e 50 inteligentemente organizadas em torno de argumentam que a comercialização de memórias gera ape-
um fictício clube de jazz de Paris que nunca existiu, mas onde nas amnésia. Em última instância, não acho este argumen-
teriam tocado todos os grandes nomes do jazz da época do be- to convincente porque ele deixa muita coisa de fora. É
bop, uma linha de produtos repleta de recordações originais, muito fácil atribuir o dilema em que vivemos a maqui-
gravações originais em CD e peças originais, todas disponíveis nações da indústria da cultura e à proliferação da nova mí-
nos Estados Unidos em qualquer filial da Barnes&Noble."15 , dia. Algo mais deve estar em causa, algo que produz o de-
Os "remakes originais" estão na moda e, assim como os teóri- sejo de privilegiar o passado e que nos faz responder tão fa-
cos culturais e os críticos, nós estamos obcecados com re-re- voravelmente aos mercados de memória: este algo, eu su-
presenração, repetição, replicação e com a cultura da cópia, geriria, é uma lenta mas palpável rransfomação da tempo-
com ou sem o original. ralidade nas nossas vidas, provocada pela complexa inter-
Do jeito como as coisas estão acontecendo, parece plau- seção de mudança tecnológica, mídia de massa e novos
sível perguntar: dado que o crescimento explosivo da me- padrões de consumo, trabalho e mobilidade global. Pode
mória é história, como não resta dúvida de que será, terá haver, de fato, boas razões para pensar que a força da re-
alguém realmente se lembrado de alguma coisa? Se todo o memoração tem igualmente uma dimensão mais benéfica
passado pode acabar, não esrarnos apenas criando nossas e produtiva. No entanto, muito disso é o deslocamento de
próprias ilusões de passado, na medida em que somos mar- um medo do futuro nas nossas preocupações com a me-
cados por um presente que 'se encolhe cada vez mais - o mória e, por mais dúbia que hoje nos pareça a afirmação
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de que somos capazes de aprender com a história, a cultura Aqui, gostaria de voltar a um argumento articulado pela
da memória preenche uma função importante nas transfor- primeira vez por dois filósofos alemães conservadores, Her-
mações atuais da experiência temporal, no rastro do im- mann Lübbe e Odo Marquard, no começo da década de
pacto da nova mídia na percepção e na sensibilidade hu- 1980. Já então, assim como outros que estavam no meio
manas. do debate em torno das promessas futuras do pós-moder-
Daqui para a frente, então, gostaria de sugerir alguns ca- nismo, Hermann Lübbe descreveu aquilo que chamou de
minhos para pensar a relação entre o privilégio que damos "rnusealização" como central para o deslocamento da sensi-
à memória e ao passado, de um lado, e, de outro, o im- bilidade temporal do nosso tempo". Ele mostrou como a
pacto potencial da nova mídia sobre a percepção e a tem-
••• musealização já não era mais ligada à instituição do museu
•• poralidade. Este é um tema complexo. Estender a dura no sentido estrito, mas tinha se infiltrado em todas as áreas
••
••••
crítica de Adorno à' indústria cultural ao que, agora, se po-
deria chamar de indústria da memória seria tão parcial e
insatisfatório quanto apoiar a crença de Benjamin no po-
da vida cotidiana. O diagnóstico de Lübbe assinalou o his-
toricismo expansivo da nossa cultura contemporânea
afirmou que nunca antes () presente tinha ficado tão obce-
e
f••••
tencial emancipado r da nova mídia, A crítica de Adorno é cado com o passado como agora. Lübbe argumentou que
correta, no que se refere à cornercialização em massa dos a modernização vem inevitavelmente acompanhada pela
""
produtos culturais, mas não ajuda a explicar o crescimen- atrofia das tradições válidas, por uma perda de racionali-
~
",
Ç.,
to da síndrome de memória dentro da indústria da cultura.
Sua ênfase teórica nas categorias marxistas de valor de tro-
dade e pela entropia das experiências de vida estáveis e du-
radouras. A velocidade sempre crescente das inovações técni-
ca e reificação acaba por bloquear questões de ternporali- cas, científicas e.culturais gera quantidades cada vez maio-
dade e de memória e não dá a devida atenção às especifici- res de produtos que já nascem praticamente obsoletos,
~
dades da mídia e da sua relação com as estruturas da per- contraindo objetivamente a expansão cronológica do que
cepção da vida cotidiana nas sociedades de consumo. Por pode ser considerado o (afiado qual gume) presente de
~
". outro lado, Benjamin está correto ao atribuir ao retrô uma uma dada época.
c:
~ tigre em direção ao passado, mas quer alcançá-Ia através do quando fui comprar um computador numa loja de alta
próprio meio de reprodutibilidade que, para ele, represen-' tecnologia em Nova York. A compra se mostrou mais difí-
ta a promessa futurista e permite a mobilização política so- cil do que o previsto. Tudo o que estava exposto era inva-
~ cialista. Em vez de colocar-nos ao lado de Benjamin con- riavelmente descrito pelos vendedores como já obsoleto, is-
~ tra Adorno ou vice-versa, como ocorre comumente, o inte- to é, uma peça de museu, se comparado com a nova versão
ressante seria 'Utilizarmos produtivamente a tensão entre do produto, muito mais poderosa e cujo lançamento seria
estes dois argumentos para uma análise do presente. iminente. Isto parecia dar novo significado à velha ética de
~
~
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6(e~'õ Seduzidos ce.c Memória S~d;';7..icloso(~la N'le~núr!3 "tvY.$'s
.
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~
postergar a gratificação. Como não me convenci, comprei sões insuportáveis na nossa "estrutura de sentimento", co-
mo a chamaria Raymond Williams. Na teoria de Lübbe, ~
um modelo lançado há dois anos que tinha mais do que eu
precisava e, além disso, estava sendo vendido pela metade o museu compensa esta perda de estabilidade. Ele oferece ~
do preço. Comprei um "obsoleto" e, portanto, não fiquei formas tradicionais de identidade cultural a um sujeito ~
surpreso ao ver recentemente o meu IBM Thinkpad 1995 moderno desestabilizado, mas a teoria não consegue re- (
exibido na seção de desenho industrial do Museu de Arte conhecer que estas tradições culturais têm sido, elas mes-
~
Moderna de Nova York. O tempo de permanência dos ob- mas, afetadas pela modernização, através da reciclagem ~.
jetos de consumo nas prateleiras tem obviamente encurta- digital mercadorizada. A musealização de Lübbe e os lu-
('
do de uma maneira muito radical, e com ele a extensão do gares de memória de Nora compartilham verdadeira-
presente que, no sentido de Lübbe, foi se contraindo si- mente a sensibilidade compensatória que reconhece uma
("
multaneamente à expansão da memória do computador e perda de identidade nacional e comunitária, mas crê na ~.
dos discursos sobre a memória pública. nossa capacidade de compensá-Ia de algum jeito. Os lu- ~
O que Lübbe descreveu como musealização pode agora gares de memória (tieux de mémoire), em Nora, compen-
~
ser facilmente mapeado com o crescimento fenomenal do sam a perda dos meios de memória (milieux de mémoire), (,.
discurso de memória dentro da própria historiografia. A do mesmo modo que, em Lübbe, a musealização com-
(
pesquisa sobre memória histórica. alcançou escopo interna- pensa a perda de tradições vividas.
cional. A minha hipótese é que, também nesta proemi- Este' argumento conservador sobre deslocamentos em ~
nência da mnerno-história, precisa-se da memória e da sensibilidades temporais precisa ser retirado de seu marco ('
musealização, juntas, para construir uma proteção contra a
obsolescência e o desaparecimento, para combater a nossa
de referência binário (lugar versus meio em Nora e en-
tropia do passado versus musealização compensatória em
••
(.
profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o con- Lübbe) e empurrado para uma outra direção, que não es- (
tínuo encolhimento dos horizontes de tempo e de espaço. teja ligada a um discurso de perda e que aceite o desloca-
~.
de Lübbe sobre a contração da extensão
,
.Ór O argumento mento fundamental nas estruturas do sentimento, expe-
do presente aponta para um grande paradoxo: quanto riência e percepção, na medida em que elas caracterizam o ~
..
mais o capitalismo de consumo avançado prevalece sobre nosso presente que se expande e contrai simultaneamente.
o passado e o futuro, sugando-os num espaço sincrônico A crença conservadora de que a musealização cultural ~ ..
contemporâneos. O cineasta e escritor Alexander Kluge já ples e ideológica. Ela não consegue reconhecer que qual-
comentou o ataque do presente sobre o resto do tempo. quer senso seguro do próprio passado está sendo desesta-
~
Há, simultaneamente, tanto excesso quanto escassez de bilizado pela nossa indústria cultural musealizante e pela ~
presença, uma situação historicamente nova que cria ten- rnídia, a qual funcionam como atores centrais no drama
••••••••
,...,
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30 ~v~~o:.." ..q"'O're 31
.~ t>-(\o~eac." $<9d',..(zidC:> pe~a Mt;"·t'J'iÓf'Í.:l j 'd .'. .a,"tVy
SI?f. 1;'4:1 t;~ p~~lcl retemooa SSlJ,.,
(
moral da memória. A própria musealização é sugada neste Com certeza, 'o fim do século :xx não nos oferece aces-
cada vez mais veloz redemoinho de imagens, espetáculos e so fácil ao lugar-comum da idade de ouro. As memórias do
eventos e, portanto, está sempre em perigo de perder a sua século :xx nos confromam, não com uma vida melhor,
capacidade de garantir a estabilidade cultural ao longo do mas com uma história única de genocídio e destruição em
tempo. massa, a qual, a priori, barra qualquer tentativa de glori-
Têm-se repetido que, na medida em que nos aproxi- nazismo e do genocídio em escala sem precedentes, depois
mamos do fim do século :xx e, com ele, do fim do milê- das tentativas de descolonização e das histórias de atroci-
nio, as coordenadas de espaço e de tempo estruturadoras dades e repressão, a nossa consciência foi afetada de tal
das nossas vidas estão sendo crescentemente submetidas a modo que a visão da modernidade ocidental e suas pro-
novos tipos de pressão. Espaço e tempo são categorias fun- messas escureceu consideravelmente dentro do próprio
.\... damentais da experiência e da percepção humana, mas, ocidente. Nem mesmo a atual idade dourada nos Estados
f longe de serem imutáveis, das estão sempre sujeitas a mu-
~ '" Unidos pode expurgar com facilidade as memórias dos
(~ danças históricas. Uma das larnentações permanentes da tremores que ameaçaram o mito de progresso permanente
(~ modernidade se refere à perda de um passado melhor, da a partir do final da década de 1960 e dos anos 1970. O tes-
memória de vi';~r em um lugar seguramente circunscrito, temunho da ampliação crescente da distância entre ricos e
com um senso ele fronteiras estáveis e numa cultura COllS- pobres, da permanente ameaça de colapso de economias
~
( ..• truída localmente com o seu fluxo regular de tempo e um
núcleo de relações permanentes -,.Talvez, tais dias tenham
regionais e nacionais inteiras e do retorno da guerra no
continente que gerou duas guerras mundiais neste século,
r
( ..• sido sempre mais sonho do que realidade, uma fantasma- certamente trouxe consigo um aumento significativo de
goria de perda gerada mais pela própria modernidade do entropia na nossa percepção das possibilidades futuras.
(. que pela sua pré-história. Mas, o sonho tem o poder de Numa era de limpezas étnicas e crises de refugiados, mi-
(.
C.
permanecer, e o que eu chamei de cultura da memória, po-
de bem ser, pelo menos em parte, a sua encarnação con-
temporânea. A questão, no entanto, não é a perda de algu-
grações em massa e mobilidade global para um número ca-
da vez maior de pessoas, experiências de deslocamento,
locação, migração e diásporas parecem não mais a exceção
re-
ma idade de ouro de estabilidade e permanência. Trata-se e sim a regra. Mas tais fenômenos sozinhos não contam to-
~
( • mais da tentativa, na medida em que encaramos o próprio
processo real de compressão do espaço-tempo, de garantir
da a estória/Na medida em que as barreiras espaciais se en-
fraquecem e o próprio espa,yo é globalizado por um tempo
alguma continuidade dentro do tempo, para propiciar al- cada vez mais comprimido, um novo tipo de incômodo es-
~ guma extensão do espaço vivido dentro do qual possamos tá se enraizando no coração das metrópoles. O mal-estar
respirar e nos mover. "",d' '; da civilização metropolitana do final do século não mais
\
f.
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c:
parece se originar primariamente de sentimentos generali- blica, sobre a democracia e o seu futuro e sobre a forma
zados de culpa e recalque pelo superego, como observou rnurante da nacionalidade, da cidadania e da identidade.
Freud na sua análise sobre a modernidade ocidental clás- As respostas dependerão, em grande medida, das conste-
(
r
sica e sobre o seu modo dominante de formação do sujeito. lações locais, mas a disseminação global dos discursos de \.
Franz Kafka e Woody Allen pertencem a uma idade ante- memória indicam que algo mais está em jogo. C
~, ....•.
rior. Nosso mal-estar parece fluir de uma sobrecarga infor- ..Alguns têm-se voltado para a idéia do arquivo, como um
macional e percepcional combinada com uma aceleração cul- contrapeso ao sempre crescente passo da mudança, um lugar
tural, com as quais nem a nossa psique nem os nossos senti- de presevarção espacial e temporal. Do ponto de vista do ar-
dos estão bem equipados para lidar, Quanto mais rápido so- quivo, é claro, o esquecimento é a última das transgressões.
mos empurrados para o futuro global que não nos inspira Mas quão confiáveis ou à prova de falhas são os nossos ar-
confiança, mais forte é o nosso desejo de ir mais devagar e quivos digitalizados? Os computadoras têm pouco mais de c
mais nos voltamos para a memória em busca de conforto. cinqüenta anos de idade e, no entanto, já estam os precisando
Mas que conforto pode-se ter com as memórias do século de "arqueólogos de dados" para desvendar os mistérios dos
XX?! E quais são as alternativas:' Que condições temos para primeiros programas: basta pensar no notório problema do
negociar uma mudança rãpida e um retorno ao que Georg bug do milênio, ameaçando as nossas burocracias computa-
,,
Simmel chamou de cultura objetiva, satisfazendo ao mesmo .dorizadas. Bilhões de dólares estão sendo gastos para impedir
tempo aquilo que considero como a necessidade fundamen- que as nossas redes cornputadorizadas funcionem de modo C
tal das sociedades modernas de viver em formas estendidas de retrô, trocando o ano 2000 por 1900. Ou considere as difi- l
temporalidade e para garantir um espaço, conquanto permeá- culdades quase insuperáveis que as autoridades alemãs estão
vel, a partir do qual possamos falar e agir? Com certeza, não tendo para decodificar o vasto corpo de gravações eletrônicas
t
há uma resposta simples para rai questão, mas, a memória - da antiga República Democrática da Alemanha, um mundo r'
individual, geracional, pública, cultural e, ainda inevitavel- que desapareceu junto com seus computadores de grande por-
\.>
mente, a memória nacional - certamente faz parte dela. Um te, de origem soviética, e seus sistemas administrativos. Re-
C
dia, talvez, emergirá algo como uma memória global, na me- fletindo sobre este problema, um gerente sênior de tecnologia t'
dida em que as diferentes partes do globo estão sendo levadas da informação dos arquivos canadenses teria dito recente- t'
a se juntar cada vez mais estreitamente. Mas, qualquer que mente:"É uma das maiores ironias da idade da informação. Se t'
seja, uma tal memória global será sempre mais prismática e não encontrarmos métodos de preservação duradoura das t~ I
heterogênea do que holística ou universal.
Neste meio tempo temos que' perguntar: como poderiam
gravações eletrônicas, esta poderá ser a era sem mernória.?"
De fato, a ameaça do esquecimento emerge da própria
ri
ser garantidas, estruturadas e representadas as memórias tecnologia à qual confiamos o vasto corpo de registros ele-
locais, regionais e nacionais? É. claro, esta- é uma questão trônicos e dados, esta parte mais significativa da memória
~I
fundamentalmente política sobre a natureza da esfera pú- :.t t'
cultural do nosso tempo. r
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As transformações atuais do imaginário temporal trazi- tentando curar as feridas provocadas pelo passado, alimen-
das pelo espaço e pelo tempo virtuais podem servir para tar e expandir o espaço habitável em vez de desrruí-lo em
destacar a dimensão das possibilidades da cultura da me- função de alguma promessa futura, garantindo o "tempo de
mória. Quaisquer que sejam as suas causas específicas, mo- qualidade" - estas parecem ser necessidades culturais ainda
tivos ou contextos, as intensas práticas de memória que ve- não alcançadas num mundo globalizado, e as memórias lo-
mos em tantas e distintas partes do mundo de hoje articu- cais estão intimamente ligadas às suas articulações.
lam uma crise fundamental de uma estrutura de rernporali- . Mas, é claro, o passado não pode nos dar o que o futuro
dade anterior, que marc~u a época da alta modernidade, não conseguiu. De fato, não há como evitar o retorno aos
(-•
com sua fé no progresso e no desenvolvimento, celebran- aspectos negativos daquilo que alguns chamariam de uma
( do o novo e o utópico, como o radical e irredutivelmente epidemia de memória. Isto me leva de volta a Nietzsche,
lé inabalável
-.
~
outro, e uma
liticamente, muitas práticas atuais de memória atuam con-
tra o rriunfalisrno da teoria da modernização,
em algum telas da história. Po-
~ tima versão chamada "globalização". Culturalmente, elas exrernporânea como sempre. Claramente, a febre de me-
expressam a crescente necessidade de uma ancoragem es- mória das sociedades midiatizadas ocidentais não é uma fe-
~
I
••
pacial e temporal em um mundo de fluxo crescente em re- bre de consumo histórico no sentido dado em Nierzsche, a
( des cada vez mais densas de espaço e tempos comprimidos. É
••
qual podia ser curada com o esquecimento produtivo.
Assim como a historiografia perdeu a sua antiga confiança mais uma febre mnernônica provocada pelo cibervírus da
~ em narrativas teleológicas magistrais e tornou-se mais céti- amnésia que, de tempm: em tempos, ameaça consumir a
~ ca quanto ao uso de marcos de referência nacionais para o própria memória. Portanto, agora nós precisamos mais de
I~ desenvolvimento do seu conteúdo, as atuais culturas críti- rememoração produtiva do que de esquecimento produti-
cas de memória, com sua ênfase nos direitos humanos, em vo. Em retrospectiva, podemos ver agora como a febre his-
questões de minorias e gêneros e na reavaliação dos vários tórica da época de Nietzsche funcionou para inventar tra-
~ passados nacionais e internacionais, percorrem um longo dições nacionais na Europa com vistas à legitimização dos
caminho para proporcionar um impulso favorável que estados-nações imperiais e para dar coerência cultural a so-
ajude a escrever a história de um modo novo e, portanto, ciedades conflitantes no turbilhão da revolução industrial
para garantir um futuro de memória. No cenário mais fa- e da expansão colonial. Em comparação, as convulsões
~
vorável, as culturas de memória estão intimamente ligadas,
t' em muitas partes do mundo, a processos de democratiza-
mnemônicas da cultura do norte do Atlântico
parecem em grande parte caóticas e fragmentárias,
de hoje
à deri-
--
(
~
)
ção e lutas por direitos humanos
mento das esferas públicas da sociedade civil. Desacelerar
e à expansão e fortaleci- va através das nossas telas, Mesmo em lugares onde as prá-
ticas de memória têm um foco político muito claro, tais
em vez de acelerar, expandir a natureza do debate público, como a África do Sul, a Argentina, o Chile e, mais recen-
c"
~ I
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36
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37
I'''v ,
temente, a Guatemala, elas são igualmente afetadas em as memórias necessárias para construir futuros locais dife-
renciados num mundo global. Não há nenhuma dúvida de
certo grau pela cobertura da mídia internacional e suas ob-
sessões de memória, Como sugeri anteriormente, assegurar que a longo prazo todas estas memórias serão modeladas c
o passado não é uma tarefa menos arriscada do que asse- em grande medida pelas tecnologias digitais e pelos seus C
gur<ü' o futuro, Afinal de contas, a memória não pode ser efeitos, mas elas não serão redutíveis a eles. Insistir numa
C
um' substituta da justiça e a própria justiça será inevitavel- separação radical entre memória "real" e virtual choca-me
mente envolvida pela falta de credibilidade da memória, tanto quanto um quixotismo, quando menos porque qual-
quer coisa recordada - pela memória vivida ou imaginada
Mas mesmo onde as práticas de memória cultural não têm
- é virtual por sua própria natureza. A memória é sempre
I
um foco explicitamente
que a sociedade precisa de ancoragem
político, elas expressam o fato de
temporal, numa transitória, notoriamente não confiável e passível de es-
(I
época em que, no despertar da revolução da informação e quecimento; em suma, ela é humana e social. Dado que a (
numa sempre crescente compressão do espaço-tempo, a re- memória pública está sujeita a mudanças - políticas, gera- (
lação entre passado, presente e futuro está sendo transfor- cionais e individuais -, ela não pode ser armazenada para
mada para além do reconhecimento. sempre, nem protegida em monumentos; tampouco, neste ,...
(
Neste sentido, práticas de memória nacionais e locais particular, podemos nos fiar em sistemas de rastreamento
(
contestam os mitos do cibercapitalisrno e da globalização digital para garantir coerência e continuidade. Se o senti-
do de tempo vivido está sendo renegociado nas nossas cul-
(
com sua negação de tempo, espaço e lugar. Sem dúvida,
desta negociação emergirá finalmente alguma nova confi- turas de memória contemporâneas, não devemos esquecer
guração de tempo e espaço. As novas tecnologias de trans- de que o tempo não é apenas o passado, sua preservação e
porte e comunicação sempre transformaram a percepção transmissão. Se nós estamos, de fato, sofrendo de um ex-
humana na modernidade. Foi assim com a ferrovia e o cesso de memória", devemos fazer um esforço para distin-
telefone, com o rádio e o avião, e o mesmo será verdade guir os passados usáveis dos passados dispensáveis. Precisa-
também quanto ao ciberespaço e o ciberternpo. As novas mos de discriminação e rememo ração produtiva e, ademais,
c
tecnologias e as novas mídias também sempre vêm acom- a cultura de massa e a mídia virtual não são necessaria-
panhadas de ansiedades e medo, os quais, mais tarde, se mente incompatíveis com este objetivo. Mesmo que a am-
mostrarão injustificados ou até mesmo ridículos. A nossa nésia seja um subproduto do ciberespaço, precisamos não
época não será exceção. permitir que o medo e o esquecimento nos dominem. Aí
Ao mesmo tempo, o ciberespaço sozinho não é
lo apropriado para imaginar o futuro global - esta noção
O mode- então, talvez, seja hora de lembrar o futuro, em vez de ape-
nas nos preocuparmos com o futuro da memória.
c1
38 ~r:,s~'p, -'l
~.~0 -"O'I'&éjIIs 39
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... :::~ " ,'1'-=.
I";,;t,il :;r~':ilj.,~ ·,:...,.~I71i',~:;:;·,f"i"<~~l"ia vYSSfllJ
,. ,-
1 . O título deste ensaio e a noção de "futuros presentes" se devem à obra
seminal de Reinhart
ton: MIT Press, 1985).
2 Naturalmente, uma
Koselleck,
noção
Futures Past ("Futuros
enfática de "futuros
passados",
presentes"
Bos-
ainda
que ele não pode dar conta dos problemas
a política de memória
ta pela mídia ocidental.
África, cf Richard
pós-colonial.
Werbner, Memory
específicos relacionados
Mas isto nunca foi levado em con-
Sobre políticas de memória
and the Postcolony: Afican
Anthropology and lhe Critique of lhe Poioer ("A memória e a pós-colônia:
nas várias partes da
com
~ opera no imaginário neoliberal da globalização financeira e eletrônica, a antropologia africana e a crítica do poder", Londres e Nova York: Zed
uma versão do antigo e praticamente desacreditado paradigma da mo- Books, 1998).
~
r,-
dernização, atualizado para o mundo pós-guerra fria. 10. Esta visão foi articulada pela primeira vez por Horkheimer e
3. Paradigrnaricamenre no ensaio clássico de Frederic Jameson, "Post- Adorno em sua Dialectic of Enliehtenment ("Dialética do esclarecimen-
modernism or rhe Cultural Logic of Late Capitalisrn" ("Pós-modernis- to"); nos anos 1980, foi novarne nte usada e reformulada por Lyotard e
r
l
mo ou a lógica cultural do capitalismo tardio"), Neto Lefi Reuieur 146 outros. Sobre a questão da centralidade do Holocausto na obra de
(julho-agosto de 1984): 53-92. Horkheimer e Adorno, ver Anson Rabinbach, ln th« Shadow of Ca-
",..'"
, 4. David Harvey,
modernidade",
5. Ver Arjun Appadurai,
Tbe Condition
Oxford: Basil Blackwell,
Modernity
OfPoJtrnodernity, ("A condição da pós-
1989).
at Large: Cultural Dimensions of
tastrophe: German lntellectuals Betioeen Apocalyps«
("A sombra da catástrofe: intelectuais alemães entre o Apocalipse e o es-
clarecimento", Berkeley: Universiry of California
and Enlightenment
Press, 1997).
Globalization ("Modernidade em geral: dimensóes culturais da global i- 11 . Gerhard Schulze, Die Erlebr,'isgesellschafi:Kultursoziologie der Gegen-
r zação", Minneapolis e Londres: Universiry of Minnesota Press, 1998), taart (''A Erlebnisgesellschaft. sociologia cultural da conrernporaneidade",
r
~
especialmente o capítulo
ter/Natiue Modernities ("Modernidades
ture 27 (1999).
4, e mais recencernenre o número
Alter/Narivas") de
especial Al-
Public Cul-
Frankfurt e Nova York: Campus, 1992). O termo Erlebnisgmllschafi, lite-
ralmente "sociedade da experiência", é de difícil tradução. Refere-se a uma
sociedade que privilegia experiências intensas, mas superficiais, orientadas
cultura
o pós-moderno")
de massa, pós-modernis-
em lho de Schulze é um estudo sociológico ernpírico sobre a sociedade alemã
contemporânea que evita tanto os parâmetros restritivos do paradigma de
classe de Bourdieu quanto a oposição de inflexão filosófica entre Erlebnis
~
t'- mo", Bloomington:
les S. Maier,
Indiana Up, .1986), 160-178, 179-221.7. Ver Char-
The Unmasterable Past ("O passado indomável", Carn-
e Eifahrung na obra de Benjamin, como oposição entre uma experiência
superficial e uma experiência gen uinarnenre profunda,
é' bridge: Harvard Universiry Press, 1988; a Neio German Critique44 (pri- , 2. Sobre o Chile, ver Nelly Richard, Residuos y metaforas: ensayos de
(~ mavera-verão de 1988), número especial sobre o Historikerstreit (a "que- critica cultural sobre el Chile de I.~transición ("Resíduos e metáforas: en-
rela dos historiadores"), e a Neu/ German Critique 58 (inverno de 1991), saios de crítica cultural sobre o Chile da transição" (Santiago do Chile:
é' número especial sobre a unificação alemã. Editorial Cuarto Propio, 1998\ sobre a Argentina, ver Rira Ardirti,
~ 8. Ver Anson Rabinach, "From Explosion to Erosion: Holocaust Me- Searcbing for Lifl: The Grandmothers of the Plaza de Mayo and the diss-
C- morializarion
mernoração
in America
do Holocausto
since Bitburg" ("Da explosão à erosão: a re-
nos Estados Unidos desde Bitburg"), Histo-
appeared Children of Argentina ("À procura de vida: as mães da Plaza de
Mayo e os filhos desaparecidos da Argentina", Berkeley, Los Angeles e
~ ry and Memory 9: 1/2 (outono de 1997): 226-255. Londres: Universiry of California Press, 1999).
~
~
(~
I
"-{.
""'ÍI")O'l"e 41
c
40 y.'SI···~
'i>-fl:/l~t;, S~c!uzij'c:;, p-e'u Í;;!~rr.Õ.·~,:~
"s f.;
vY$8$1)
(,
(
13, Meu uso da noção de "memória imaginada" tem origem na discus-
(
são de Arjun Appadurai sobre "nostalgia imaginada" em seu livro Mo-
dernity at Large, 77/ A noção é problemática, na medida em que toda
(
memória é imaginada e, mesmo assim, ela nos permite distinguir me- Sedução (
mórias relacionadas às experiências vividas de memórias pilhadas nos
moriumental
(
arquivõs e comercializadas
14, Sobre estas questões,
em massa para o consumo
ver Miriam Hansen,
rápido.
"Scbindlers List is not c
Shoah: The Second Cornrnandment, Popular Modernism, and Public (
Memory" ("A Lista de Stbindler não é Sboab. o Segundo Mandamento, Qualquer discussão sobre monumental idade e moderni- (
o modernismo popular e a memória pública"), Critica! Inquiry 22 (in- dade inevitavelmente traz à mente a obra de Richard Wag-
verno de 1996): 292-312. E também o meu artigo "Of Mice and Mi- (
ner, O anel, a estética do Gesamtkunstwerk, o artista menu-
mesis: Rcading Spiegelman wirh Adorno" ("De ratos e rnírncsis: lendo
" " mental; a história do Festival de Bayreuth. Mas a noção de
(.
Spiegelman com Adorno"), a ser publicado na Neta German Critique.
15, Dennis Cass, "Sacrebleu! The jaz.; Era is up for Sale: Gire Mer- monurnenralidade que Wagner representa deve ser situada (-
chandisers Take Licence wirh Hisrory" ("Sacrilégio! A era do jazz entra em seu contexto histórico, estético e nacional concreto, no (
em liqüidação: vendedores de presemes tomam liberdades com a histó- século XlX, e conforme seus efeitos políticos e culturais, (
ria"), Harpers Magazine (dezembro de 1997): 70-71. que viriam a dominara nossa compreensão mais genérica (
16. Hermann Lübbe, Zeit- Verhaltnisse, Zur Kulturphilosopbie des Fort-
, do monumental. Meu propósito é apresentar algumas re-
scbritts ("A sensibilidade temporal: para uma filosofia cultural do pro- (
flexões sobre a própria categoria de monumental, que, a
gresso",Graz, Viena e Colônia: Verlag Sryria, 1983). Para uma crítica (
mais detalhada do modelo de Lübbe, ver o meu "Escape from Amnesia: meu ver, vem sendo recodificada no contexto contemporâ-
The Museum as Mass Médium" ("Escapando da amnésia: o museu co- neo de uma cultura memorialísrica voraz e em contínua (
mo cultura de massa", in Twilight Memories: Marking Time in a Culture , i i expansão. Minha preocupação central, portanto, é a ques- (
of.Amnesia ("Memórias crepusculares: marcando o tempo numa cultura tão do monumental em relação à memória - a memória (
da amnésia", Londres e Nova York: Routledge, 1995), 13-36.
geracíonal, a memória na cultura pública, a memória na- (
17, Citado pelo New York Times de 12 de fevereiro de 1998.
cional, a memória feita em pedra na arquitetura -, e o con-
18, a termo é de Charles S. Maier; ver seu ensaio "A Surfeit of (
Memory? Reflerions on History, Melancholy,
so de memória? Reflexões sobre história,
and Denial" ("Um exces-
melancolia e negação"),
texto contemporâneo específico do qual tratarei é a Alema-
nha depois da unificação.
c
History and Memory, 5 (1992); 136-15l. : <'Enquanto os alemães têm se esforçado, ante a acusação C-
de esquecerem ou recalcarem seu passado histórico por dé- C
cadas, desde 1945, alguns críticos fazem agora a objeção C
l inversa: a inflação da memória. De fato, desde os anos (
1980 a Alemanha se engajou numa mania de memória de (
.proporções verdadeiramente monumentais. Estão em an-
(
damento em toda a Alemanha, hoje, algumas centenas de
C
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e tem um alcance
Co-
que
cordo com Sven Friedrich, o diretor do museu, represen-
tam um tipo muito especial de unidade e totalidade se abor-
dadas pelo ângulo do erotismo e do amor. Friedrich che-
gou a descrever o erotismo e o amor como "símbolos de
muito mais vasto do que o enfoque no Holocausto deixa um mundo à parte" que impulsionavam a concepção dra-
.entrever? As questões levantadas por essa conjuntura são 2
mática de redenção de Wagner. A necessidade de mundos
indistintamente políticas e estéticas, e é central aí a catego- à parte e de redenção em Bayreuth, ao que parece, continua
ria do monumental, em suas codificações tanto espaciais forte como sempre, mas em 1995 adquire uma inflexão
quanto temporais - sendo estas, talvez, as mais importan- muito específica.
tes no momento. Estamos diante de um paradoxo: o rnonu- A Alemanha e a redenção, cinqüenta anos depois. O país
mentalismo do espaço construído ou as tendências monu- está tomado por uma implacável mania de monumentos,
mentais em qualquer outro meio continuam a ser difama- que promete não esmorecer enquanto cada quilômetro
das, mas a noção do monumento como memorial ou even- quadrado não tiver o seu próprio monumento ou rnerno-
to comemorativo público vem conhecendo um retorno tri- rial, rememorando não algum mundo à parte de amor, e
~ r • unfante. Como ~devemos pensar a relação entre a rnonu- sim o mundo da destruição e do genocídio organizados,
(:
(
mentalidade
tiva do monumento?
enquanto grandeza e a dimensão comemora-
Passo a relatar três eventos ocorridos
no verão de 1995, a fim de discutir o destino da menu-
:..que adotou Wagner como um de seus heróis e profetas. Na
·Alemanha de hoje, o objetivo é a redenção pela memória.
Foi particularmente impressionante, durante os eventos
mentalidade e dos monumentos no nosso tempo: o ernbru- que marcaram o qüinquagésimo aniversário do fim da guer-
~
lhamento do Reichstag, em Berlirn, por Christo, o debate ra de extermínio nazista, o fato de o discurso da redenção
~
sobre o projeto de um monumento em Berlim aos judeus (ErlosunJj ter simplesmente substituído os discursos ante-
da Europa assassinados e Wagner em Bayreuth. riores de restituição (WidergutmachunJj e reconciliação
~ (VersohnunJj. Realmente, os alemães decidiram se apropriar
~
1 da primeira parte de um antigo ditado judaico - segundo
o qual "o segredo da redenção é a memória" - como uma
t4 Alemanha, verão de 1995, alguns meses antes do quin- estratégia para administrar o Holocausto nos anos 1990. O
to aniversário da unificação nacional. O 84° Festival de caso mais flagrante: o projeto de um gigantesco memorial
Bayreuth foi aberto em julho sob o lema "a redenção pelo do Holocausto, uma laje inclinada do tamanho de dois
~
(-- amor". Uma exposição no Museu Richard Wagner de Bay-
reuth, intitulada "Richard Wagner e o erotismo", acompa-
campos de futebol com os nomes de milhões de vítimas
gravados na pedra, em pleno coração de Berlim, pouco ao
nhava as apresentações no Festspiel de Tannhduser, Tristáo norte ·do bunker de Hitler e bem em cima do que seria o
e Isolda, O anel dos Nibelungos e Parsifal; obras que, de a- eixo norte-sul projetado por Albert Speer, entre o seu me-
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galomaníaco Grande Salão ao norte do Portão de Branden- dação quanto na derrubada da República de Weimar. pro- \..
burgo e o arco do triunfo de Hitler, ao sul. que também clamada do parapeito de suas janelas e encerrada no fa-
(
traria gravados em pedra os nomes dos morros na Primeira moso incêndio do Reichstag. que se seguiu à ascensão do na-
Guerra. A própria localização e o posicionarnento desse pre- zismo ao poder. Depois de 1945, permaneceu como uma t
miado memorial do Holocausto, depois abandonado em de- :.!:t.í.n.a
em memória da malograda República, museu da his- (.
corrência da execração pública, pareciam funcionar ao mes- "", tória recente da Alemanha e espaço de solenidades, só re- (
mo tempo como mímese e como encobrimento de um ou- tomando o seu valor político simbólico durante a celebra- (
tro local comemorativo, com a monumentalidade propor- ção da unificação nacional em outubro de 1990. Por duas (
cional às dimensões do projeto original de Speer. De fato, é semanas no verão de 1995, o edifício se tornou temporaria-
(
impressionante que um país cuja cultura tem se pautado há mente invisível, e a sua invisibilidade foi um acontecimen-
décadas por um deliberado antirnonumenralisrno anti- (
to midiático internacional e uma festa popular que cele-
fascista venha a recorrer às dimensões monumentais quando brou a Alemanha e a cidade de BerIim como só a queda do (
se trata da comemoração pública do Holocausto pela nação Muro o fizera, seis anos antes. Por um breve momento, a <-
reunificada. Alguma coisa aí está fora de sintonia. história alemã dispôs do poder do Tarnbelm dos Nibe- (.
Por Outro lado, talvez essa adoção do monumental não lungos. Tanto no projeto de Christo quanto no premiado (
tenha nada de surpreendente. Retomando a observação de monumento ao Holocausro estão em questão o embeleza-
(
Robert Musil de que não há nada tão invisível quanto um mento e o empacotamento do passado. A curta redenção
monumento;' Berlirn - e com ela toda essa loucura me- (
da história em Berlim parecia juntar-se à redenção pelo a-
moriosa - está optando pela invisibilidade. Quanto mais mor em Bayreuth alimentando o mesmo desejo subliminar
(
monumentos. mais o passado se torna invisível. mais fácil de esquecimento. ('
se torna esquecer: a redenção. porranto. pelo esquecimen- .. . '," -Era bastante previsível que alguns críticos alegassem
to. De fato. muitos críticos descrevem a atual obsessão da 'que, ao transformarem uma obra monumental de arquite-
-=
(
Alemanha por monumentos e memoriais como uma ten- tura numa escultura gigante, Christo e Jeanne-Claude trans-
(
tativa nada sutil de Entsorgung. a exposição em público de mutavam em mito um monumento da história da Alema-
('
lixo histórico radioativo. ..1 :
nha. Diante dessa mistura wagneriana de história, mito e
A invisibilidade monumental. de todo modo. também rnonumenralidade, não chegamos a nos surpreender ao en-
estava em jogo em outro grande evento cultural daquele contrar o projeto descrito numa prestigiosa revista de artes .:
verão em Berlim: o embrulhamenro do Reichstag por Chris- alemã como um Gesamtkunsttoerk que convertia a capital (
to e Jeanne-Claude. O enorme edifício construido em 1895, alemã em capital internacional da arte antes mesmo que o (
de arquitetura medíocre, abrigou o parlamento alemão pe- governo de Bonn se transferisse para Berlirn.' Essa exu- (
la primeira vez nos tempos do império guilhermino, tendo berância ilusionista só é comparável à insouciance com que
mais tarde exercido um papel fundamental tanto na fun-
(
o herói cultural de Adolf Hider é chamado a articular a
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4
~ reivindicação do estatuto de capital para Berlim, A polêmi- sual da arquitetura pesado na e agora coberta, Será possível
ca poderia ser Lcilmente prorrogada, mas eu diria que seu mesmo falar-se em redenção da história quando as discus-
~
valor cognitivo ~ limitado. sões públicas sobre a história e o significado desse edifício
Meus argumentos até aqui levam a um sintomático pa- nunca foram tão intensas quanto durante os acalorados de-
~
norama de má-vontade sobre esses três eventos culturais do bates que no parlamento, na mídia e entre o público em
( .....•
verão- de 1995: a redenção pelo amor, a redenção pela geral se desenrolaram acerca dos méritos do projeto de
r••••
memória e a redenção pelo esquecimento. Muitos certa- Christo? O paradoxo está em que o Reichstag pode ter si-
.....• mente sentirão. a sua postura intelectual fortalecer-se com do mais invisível antes -- visual e historicamente - do que
.....• 'essas reduções de complexidade, Para outros, só agora é o edifício que agora estava encoberto, Velamento, afinal,
que as verdadeiras questões começarão, Poderiam me per- não é o mesmo que empacotamento, Num contexto dis-
~
guntar 'se essa argumentação em curto-circuito não lem- cursivo e público mais amplo, o velamento de Christo fun-
0.1
braria estruturalmente um anti-wagnerianismo sirnplisra, I cionou na verdade como uma estratégia para tornar visível,
.. ~ que confronta diferentes registros históricos, políticos e es- I desvelar, revelar o que esr.ava oculto enquanto era visível.
'~ téticos num modelo teleológico que identifica a obra de Ainda outro efeito salutar teve o velarnento do Reichstag:
~ Wagner em conjunto com suas conseqüências no Terceiro calou a voz da política usual, a memória dos discursos de
..•
~r- Reich. Mais ainda, se esse tipo de abordagem não criaria a suas janelas, do hastear de bandeiras no terraço, fossem ale-
: sua própria boa consciência ao se apresentar como conve- mãs ou soviéticas, da retórica política oficial lá dentro, e as-
sim abriu um espaço de reflexão e contemplação bem co-
,..c..
nientemente antifascista cinqüenta anos depois do Terceiro
Reich, numa espécie de correção política à moda alemã, E, mo de memória, A própria transitoriedade do evento - os
por fim, se não seria um modo de Gesamtkritik que repro- artistas não atenderam aos pedidos populares de prolonga-
duz aquilo que ela ataca, a saber, o totalitarismo discursivo mento do espetáculo - era tal que vinha ressaltar a tempo-
c..
~ que subjaz ao conceito de Gesamtkunstwerk e tanto conta-
mina os textos teóricos e críticos de Wagner.
ralidade e a historicidade do espaço construído,
tênue entre relembrar e esquecer. E mesmo o edifício sur-
a relação
'i, Assim, para evitar a reprodução daquilo que se ataca, é preendentemente velado produzia uma memória bem
..
~
(
).,
'necessário busca.r uma outra abordagem, No fim, a maioria
concordou em que o Reichstag embrulhado
pileno, com a aparência variando entre o prateado brilhan-
em polipro-
diferente daquela marcada pela autoritária inscrição sobre
o portal - DEM DEUTSCHEN VOLKE, quer dizer: entregue
ao povo alemão das alturas. A nova camada de memória
na e às vezes misteriosamente belo, sendo a monumentali- celebrando um símbolo da democracia alemã em toda a
dade espacial ao mesmo tempo dissolvida e acentuada por sua fragilidade e a sua transitoriedade, O Reichstag em-
~ uma leveza que contrastava vivamente com a memória vi- brulhado assim se ergueu como um monumento à cultura
~
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compensado pela sensibilidade bastante moderna de Contra o gesto e a retórica de uma Gesamtkritik que da ma-
Wagner para a provisoriedade e a efemeridade da arte ins- neira mais simplista identifica o drama musical de Wagner
titucionalizada na modernidade, O desejo monumental e com um monumentalismo típico do século XIX, é impor-
~',
a consciência do efêmero, di) transitório, relacionam-se de tante ater-se a essas ambigüidades e contradições. Sem
maneira tensa e inquieta na mente de Wagner, o que, en- dúvida, o projeto de Christo também tem sua própria ~
~
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monumentalidade, extremamente sedutora
contudo, nada tinha a ver com morte e destruição. Foi exa-
naquilo que, ipoliticamente suspeito porque visto como representativo
dos nacionalismos oitocentistas e dos totalitarismos nove-
tamente a monumentalidade do Reichstag embrulhado centistas. É socialmente suspeito porque é o modo privile-
(~
que despertou em minha mente as questões teóricas sobre giado de expressão dos movimentos de massa e da política
(~ "o monumental" como uma categoria estética e política. de massa. É eticamente suspeito porque em sua predileção
~ 'Até.que ponto a monumentalidade do memorial do Holo- pelo grandioso se entrega ao mais-que-humano, na tenta-
causto projetado para Berlim pode ser equiparada à monu- ,
'I tiva de esmagar o espectador individual. É psicanalitica-
:..,
~
mentalidade da fantasmagoria arquitetõnica de Speer? E mente suspeito porque se liga às ilusões narcisistas de
seriam ambas comparáveis ao tipo de efeito monumental grandeza e cornpletude imaginária. E é musicalmente sus-
..,~
~
obtido por Christo ao embrulhar o Reichstag ou ao monu-
mentalismo do drama musical de Wagner e sua concepção?
peito porque ... ora, por causa de Wagner .
Em Sofrimento e grandeza de Richard Wágner, Thomas
,j Até que ponto o monumental não seria uma dimensão Mann, que, como se sabe, estava afinado com as ambigüi-
'-~ oculta do próprio modernismo? Por que a noção domi- dades e ambivalências da obra de Wagner, referia-se aos
(,~ nante de monumentalidade é tão unidimensional e ina- clamores monumentalizantes do compositor como "o mau
movível que tais questões normalmente sequer vêm à tona? século XIX".G E a mania de monumentos do nosso próprio
(J
O que faz da monumentalidade um objeto do desejo tão tempo lembra a seguinte passagem do Diário de Moscou,
J negativo? O que faz com que a rejeição "monumental" de Walter Benjamin: "Dificilmente se encontra um quar-
tJ funcione corno uma sentença de morte para qualquer dis- teirão na Europa cuja estrutura secreta não tenha sido pro- "
,~
cussão posterior? fanada e prejudicada ao longo do século XIX com a ereção'
'J ",; de um monumento."? Assim como a sensibilidade tempo-
(J 2 ral dos modernistas voltava sua ira contra a tradição e o
t.j museico, levando-os a desprezar tanto o monumental quan-
Talvez seja conveniente fazer uma breve digressão histó- to a monumentalidade, os pós-modernistas também fala-
li rica antes de nos voltarmos para o discurso do monumen- ram em nome de um apropriado antimonurnenralismo
U tal nos escritos programáticos teóricos e críticos de Wag-
I
quando começaram a atacar a arquitetura modernista co-
ner. Nesses três eventos culturais e debates do verão de mo universalizante, hegernônica e ossificada.
CJ 1995 na Alemanha estava em questão um consenso estéti- Por razões óbvias, a arquitetura é de fato o meio por ex-
celência em que a rejeição ao monumentalismo se coloca,
Ú co que remonta aos modernismos do início do século XX
e se estende até os vários pós-modernismos do nosso tem- com a alegação de que uma certa formação cultural se
(J
o po. O nome desse consenso é antimonumentalismo. O 'tornou congelada, ossificada, imobilizada. Parece esqueci-
monumental é esteticamente suspeito porque se liga ao do o tropa clássico segundo o qual as harmonias geométri-
mau gosto do século XIX, ao kitsch e à cultura de massa. É cas da arquitetura fazem eco às da música, um trapo que
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durante o período romântico foi recuperado por Hoff- " 'seduções monumentais de per se. Se enfocarmos a especifi-
mann, Schelling e Goethe, entre outros, e que era certa- cidade histórica da rnonumentalidade, posso até imaginar
mente bem conhecido por Wagner. É evidente que a que chegaremos à conclusão de que a identificação do
equação reducionista e pejorativa do monumental com o monumentalisrno com o fascismo e o declínio do desejo de
arquitetural no nosso tempo resulta menos dos arranha- monumental como forma de masoquismo e auto-aniqui-
céus modernistas do que das fantasrnagorias arquitetônicas lação torna-se legível em si antes como texto histórico do
de Hitler e seu mestre arquiteto Albert Speer, que punham que como condição universal ou norma meta-histórica.
toda a ênfase nos efeitos esmagadores e aterrorizadores da ,. )(, Somente se historicizarmos a categoria da monumenrali- (~
construção como um instrumento de psicologia de massa dade em si poderemos avançar para fora da dupla sombra
e dominação. Assim, para uma sensibilidade pós-1945,
('
do monumentalismo kitsch do século XIX e do belicoso
Michel Foucault argumentaria que o que estou chamando
(\
antimonumentalismo comum 'ao modernismo e ao pós-
-(
aqui de s~~_'::lç~o.
m()!1.~!l1:e.ntalrepresenta "o fascismo em modernismo. Só então seremos capazes de levantar a ques- .
todos nós, em nossas cabeças e em nosso comportamento tão da monumental idade de modos potencialmente novos. ( '
.
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54 V-->",
r-ô~e~~ Sedu~j,co!i p.e!3 I't1emórja
""1I)O're~
Concluímos que essa obsessão do século XIX pelas origens rnento por excelência par:l a admiração oitocentista pela
e suas fundações míticas vinha atender às necessidades de r - I 'antigüidade clássica e "pré- histórica" era a arquitetura. Por-
~
\.,••
legitimidade cultural do ,estado-nação burguês pós-revolu- tanto, não foi por mera coincidência que Hegel situou a
cionário, em fase de acelerada modernização. Ao mesmo arquitetura bem precisamente nos começos da arte. Espe-
tempo, como indica o exemplo de Lukács, a busca de ori- cialmente a arquitetura monumental - pense-se no culto
gens é a nova cultura emergente também podiam assumir de obeliscos, pirâmides, templos, memoriais e torres fune-
uma inflexão anti-ocidental, anticapitalista e antirnoderna. ; rárias - parecia garantir a permanência e oferecer um ba-
A obsessão pelas origens e seu mito não era apenas uma , luarte contra a aceleração elo tempo, as bases movediças do
ideologia reacionária do Estado, ou seu mero reflexo cul- espaço urbano e a transitoriedade da vida moderna. Ri-
tural e ideol6gico. Sua verdade, como afirmou Adorno, é chard Wagner estava inserido nesse aspecto do século XIX,
que ela manifestava como a rncdernidade oitocentista, em não contra a arquitetura, como o modernista Georges Ba-
contraste com o seu credo liberal e progressista, per- taille, e sim a favor dela, sem hesitações, não contra as ori-
~ maneceu ligada à dialética constitutiva entre esclarecimen- gens, mas bastante engajado em sua busca, não a favor dos
~ to e mito. É o caso de Wagner. prazeres da transitoriedade: e da moda (como Baudelaire),
~ "A fim de melhor compreender a relação entre o mito, o mas violentamente em oposição a eles e à procura de uma
~ monumental e as origens, é importante lembrar que para nova cultura permanente que realizaria o que ele chamava
o século XIX, ao contrário do nosso tempo, o monumen- de "a tarefa hisrórico-mundial-artlstica" [kunstwelt-
~
tal se encarnava antes de tudo nos monumentos da an- geschichtliche AukabeJ da música, um conceito dificil-
tigüidade clássica, monumentos que normalmente eram mente imaginável no discurso do modernismo francês.'?
~ , transmitidos da maneira mais fragmentária. Se os monu- Encarar a prática das artes como uma missão histórico-
(
~ mentos clássicos oferecera~ às nações européias um anco- mundial é de fato um fenômeno peculiar à Alemanha, re-
~ radouro para suas raízes culturais (pense-se na tirania da sultante do alto privilégio dado às artes e à cultura no
Grécia sobre a Alemanha), a busca de monumentos na- processo de modelagem da identidade nacional no período
~
(~ cionais criava o primeiro passado nacional remoto que precedente à formação do estado-nação alemão. Nessa
diferenciava cada cultura de seus pares tanto europeus idéia de uma missão da arte estava ancorada a auto-ima-
~ gem de Wagner como gênio, manifesta em sua Not [neces-
, quanto não-europeus. À medida que mais e mais monu-
~ mentos eram desencavados - as escavações de Schliemann sidade] de dar ao Vo!k alemão uma nova cultura.
(~ e o romance da arqueologia associado a seu nome são aqui De todo modo, a concepção wagneriana de arte, drama
(~ paradigmáticos - o monumento veio a garantir a origem e e música participa do tão difundido imaginário oitocen-
(~ , a estabilidadebem como a largueza do tempo e do espaço tista sobre os triunfos arquitetõnicos, as origens estáveis e
de um mundo que se transformava rapidamente e era vivi- as fundações rníticas da nação. Ao mesmo tempo, a osten-
~
do como transitório, desenraizador e instável. E o rnonu- siva monumentalidade de seu projeto artístico, que ele es-
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Seduzidos pala Memória Seduzidos rJe[~ ;I,ilarnó,'jt!
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boçou mais claramente a partir de seus ensaios de finais da historicista - eram incapazes de atender às demandas do
década de 1840 e inícios da de 1850, adquire sua forma presente, mas Wagner, de sua parte, articulou essas deman-
(
contra o pano de fundo de sua vociferante oposição a um das numa retórica universalizante e monumentalizante.
certo tipo de monumentalismo do século XIX. Seu pró- '" ! \'1 t. fácil perceber como a crítica do monumental por
prio .projeto de dar vida à arte do futuro, que viria a trans- Wagner já antecipava as reflexões de Nietzsche sobre a his- c
cender o estágio presente de decadência e corrupção e se- tória monumental, mas foi o mesmo Nietzsche que, num c..
ria reverenciada nos Pestspiele anuais de Bayreuth, ernbasa- de seus fragmentos de 1878, de publicação póstuma, apon- (
va-se claramente em duas premissas: a rejeição das normas tou pela primeira vez a contradição subjacente no ataque
(
classicistas atemporais, que, a seu ver, não reconheciam os de Wagner à monumentalidade: "Wagner combate o mo-
(
limites temporais e espaciais vitais de toda forma de arte e, numental, mas crê no humano universal."!' Do mesmo
em segundo lugar, a rejeição dos estilos arquitetõnicos his- modo contraditório, Wagner emprega uma imagem mítica C
toricizanres, que ele:atribuía à corrupção pela luxúria e pela e universalizante da arquitetura como base de suas próprias (
moda. Eis o que lemos em A obra artística do futuro: reivindicações de uma monumentalidade estética adequa- C
da a uma nova cultura emergente, a do drama musical (.
Ela (a arquitetura) reproduz os ediflcios que as épocaspas- apresentado pelo novo Gesamtkunstwerk. A própria noção (
sadas produziram por sua eJetiVt.! necessidade de beleza; ela de Gesamtkunstwerk, a meu ver, é fundamentalmente ar-
(
reúne os detalhes individuais dessas obras segundo sua fanta- quitetônica.
sia arbitrária, a partir de seu irrequieto anseio de mudança, De fato, a metáfora da arquitetura funciona como' um
(
e costura em seus variados remendos cada estilo nacional de Leitmotiv no conjunto das reflexões de Wagner em Arte e
edificação existente pelo mundo afora,·em suma - ela segue os revolução, A obra artística do :fUturo, Opera e drama e Co- (.
caprichos da Moda cujas Leisfrit10las ela precisa incorporar, municação a meus amigos, para mencionar aqui apenas os
pois ela já não ouve em parte a~;uma o chamado da neces- textos programáticos mais importantes, escritos na época
sidade interior de beleza. II em que o compositor estava concebendo sua tetralogia.
\
Apesar de sua aguerrida crítica do monumental e dos pre-
I " Nos tropos que engendra e no sua depreciação moder- ceitos classicistas, o modelo básico para a obra artística do
nista da obsessão do século XIX pelos estilos históricos, es- futuro é dado pela tragédia grega, e o mito de Antígona se
ta passagem pode ser lida como uma espécie de crítica torna a pedra fundamental da ideologia wagneriana sobre
auant Ia lettre da Ringstraíie de Viena, que algumas déca- o amor absoluto e redentor como precondição para o de-
das depois vira a se tornar tão fundamental para a emer- sejado colapso do estado presente, tão ansiado nos sonhos
I
(
gência do modernismo arquitetônico na Áustria. Tanto pa- de Wagner de uma cultura radicalmente nova. No entan-
(
ra Wagner quanto para os modernistas vienenses do fin de to, num movimento típico da história cultural pós-herde- (1
siecle, ambas as formas do monumental - a classicista e a riana, o caráter normativo da tragédia grega é enquadrado
(I
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Seduzk!o$ pei.J I\IlG'nóri;l
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pp.i.a 1VI')m~ii?
59
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por uma narrativa histórica de declínio e renascimento, Na construção da Tom de Babei, quando suas falas fica-
<.,
~
que retira seu efeito oitocenrista de uma teoria do capita- ram confusas e a compreensão mútua se tornou imposstoel. as
lismo como decadência, corrupção e contaminação do nações se separaram umas das outras, cada qual seguindo seu
~
Volk alemão. Essa idéia de dcclínio e renascimento é apre- próprio caminho; da mesma forma, quando toda soli-
~ sentada nas primeiras páginas de Arte e revolução: dariedade nacional se rompeu em milhares de particulari-
~ dades egolsticas, as artes em separado se desprenderam do
Ç., De mãos dadas com a dissolução do Estado Ateniense,
i
orgulhoso e gigantesco ediflcio do Drama, que perdera o âni-
estava em marcha o declínio da Tragédia. A medida que o mo inspirador da compreensão mútua. 14
v força e da beleza humanas.'? gramaticamente sobre as ruínas da ópera, assim como "a
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tão distribuirei os convites para um grande festival dramâti-
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co. Depois de um ano de preparações, produzirei minha obra va cultura. O Leitmotiu da arquitetura em ruínas dá um
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no curso de quatro dias. Com essa produção, transmitirei ao toque final mítico à busca romântica de Wagner: o que se
(J
povo da revolução o significado dto!revolução, no seu sentido está construindo já é sempre um túmulo, um memorial ao
fracasso e ao' desastre. A antipatia de Wagner pelo monu-
(j
mais nobre. O público há de me compreender; o público atual
não é capaz. 16 mental como preceito clássico se baseia nessa imaginação ()
do monumental como apenas ruina, pois só as ruínas têm (J
Nessa época, em finais de 1851, menos de um mês antes permanência. É aqui que este discurso oitocentista das ruí- (J
do 18 Brumário de Luís Napoleão, Wagner imagina o fu- nas se encontra com a teoria da arquitetura das ruínas de ()
turo como golpe estético bonapartista misturado a um de- Alberr Speer, que tinha a intenção explícita de realizar suas
sejo anarquista à maneira de Baku.nin e um populismo rea- construções de um modo que a grandeza do Terceiro Reich
C)
(.J
cionário alemão. Assim como Luís Napoleão reivindicou o permanecesse visível em suas ruínas mil anos depois. Era o
manto de seu tio-avô, a pretensão de Wagner era ser toma- estágio final do romantismo das ruínas, no qual o impulso ()
do como o sucessor dos dois maiores artistas do período originalmente melancólico e conternplativo se transforma- ()
anterior, Goethe e Beerhoven. Mas o que aí se revela é jus- va no projeto imperialista de conquistar o tempo e o espa- (,j
tamente o desejo de rnonumenralidade, uma monumen- ço. Também aqui Wagner aparece com as faces de Jano, ()
talidade que se caracteriza por um forte complexo de infe- olhando ao mesmo tempo atrás, para o romantismo, e (,;
rioridade diante desses predecessores, cujos feitos Wagner adiante, para o futuro violento e voraginoso. A coincidên-
muitas vezes perdeu a esperança de emparelhar. Thomas
C..J
cia de desejo de permanência e antecipação da destruição
Mann falou com eloqüência da arte de Wagner como "um lembra a reflexão de Elias Canetti sobre a hesitação de Hi- ()
diletantismo, monumentalizado e erigido na esfera do gê- der quanto a destruir ou não Paris. Em Massa e poder, Ca- C
nio" .17 Mas ao contrário das obras monumentais de Goe- netti vê o dilema de Hitler como a dupla delícia da perma- (
the ou Beethoven, Fausto e a Nona sinfonia, as fantasias de nência e da destruição, uma característica do paranóico. (1
Wagner sobre o futuro sempre se fundam na morte, na des- Evidentemente, Wagner se via como o "plenipotenciário
(J
I truição, no desastre, ta mo em seus textos teóricos quanto da queda"," e numa outra carta a Uhlig, de 22 de outubro
em seus dramas musicais. O novo mundo prometido por
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de 1850, pouco depois da publicação de Judaísmo na
Siegfried levantar-se-ia das ruínas do Walhalla, que eram música, escreveu: "Com toda a calma e sinceramente lhe as- (J
nada menos que as ruínas de um castelo dos mortos. É a seguro que a única revolução na qual eu acredito é aquela (1
arquitetura como espaço funerário e memorial da morte que começa com o total incêndio de Paris."" (1
ou do fracasso heróicos, assim erigida tanto no princípio Evidentemente, Paris acabou não sendo incendiada, nem (1
quanto no fim dos tempos. A função central dessa visão da
monumentalidade reside no seguinte: ela garante a pre-
mesmo pelos nazistas. Mas o estado alemão entrou em co-
lapso quatro vezes ao longo de um só século. E felizmente
o
sença dos mortos cujo sacrifício é indispensável a uma no- até agora não se deu o advento da nova cultura monu-
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mental que Wagner pretendia fundar, com seu drama mu- Isso me leva a uma reflexão final que descortina um no-
sical sobre as ruínas do estado, assim como tampouco se vo conjunto de questões inerentes ao projeto de Christo e
~
(..J viu um novo Aristófanes que viesse chorar e gargalhar em pertinentes ao tema da monumentalidade na nossa cultu-
meio às ruínas do Gesamtleunsttoere de Wagner. Em vez de ra, Em 1943, em Nova York, o pintor Fernand Léger, o ar-
~ tudo isso, Bayreuth está vivo e passa bem como um setor quiteto e urbanista José Luis Sert e o historiador Siegfried
~ exemplar da indústria internacional da ópera. Já existe Giedeon fizeram um apelo por uma nova rnonumenrali-
~ O anel dos Nibelllngos em quadrinhos, e temos ainda o pro- dade na arquitetura. No manifesto programático do grupo,
.j grama de Dallas.on tbe Rhine ("Dallas sobre o Rena"), uma intirulado "Nove pontos sobre monumentalidade", eles ar-
produção do Met dos anos oitenta. Pode ser que não pre- gumentaram contra a pseudomonumentalidade do século
~
cisemos de um Aristófanes - e talvez se possa dizer: XIX, bem como contra o puro funcionalismo da escola
..J 1,1OVO
c) Mas e quanto ao monumental nos dias de hoje? Nosso culturais de um povo, e portanto os autores lamentam a
() modo de apreciar a estética da monumentalidade - se pu- desvalorização da monumentalidade pelo modernismo. Ho-
dermos admitir que sob algumas formas o monumental je, seu manifesto parece uma derradeira tentativa de reins-
(.)
pode ser apreciado e não precisa ser rejeitado a qualquer crever uma monumentalidade democrática no projeto mo-
(J custo - encarna-se mais, a meu ver, no embrulhamento do dernista, num impulso que poderia ser historicizado como
(..)
Reichstag por Christo: uma monumentalidade que con- - em tudo pertencente à era do New Oeal. O fato de sua
segue conviver com a irnperrnanência e sem a destruição, , retórica hoje soar um tanto vazia é indicativo do declínio
que é fundamentalmente enformada pelo espírito moder- r do espaço público monumental nas últimas décadas. Nem
nista de uma epifania fugaz e transitória, mas que nem por a recente tentativa de ressuscitar a noção da grandeza na ar-
(J
(...) isso é menos memorável ou monumental. Sua monumen- quitetura, por Rem Koolhaas, nem os poucos monumen-
talidade foi a do grande evento cultural disseminado e re- tos públicos novos bem-sucedidos, como o Memorial do
CJ rnernorado pela mídia, um evento que foi ao mesmo tem- Vietnã em Washington, podem dissimular o fato de que
(..)
po monumental e antimonumental. No entanto, o proje- esperamos em vão pela ressurreição de uma rnonumenrali-
.: to de Christo foi um evento artístico, uma instalação nô- dade pública. Talvez o embrulhamento do Reichstag - que
li made. Não foi planejado como um espaço construído, e hoje s6 pode ser visto em imagens reproduríveis da mídia,
.: sim como a sua dissolução temporária. Portanto, sua cele- desde cartões postais e estampas em camisetas e canecas até
bração levanta a questão se é possível 'ou mesmo desejável, as imagens da Internet - seja no fundo sintomático do des-
hoje, uma arquitetura monumental. tino da monumentalidade nos nossos tempos pós-rnoder-
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lnfobahn, e a Deutsche Telekom, num anúncio publicado of Tbree Decades, rrad, de H. T. Lowe-Porrer ("Ensaios de três décadas",
Nova York: Alfred A. Knopf 1971) 315.
recentemente no New York Times, descreve-a sem hesitação
7. Walter Benjamin, "Moscow Diary", October 35 (Inverno de 1985): 65.
.como "a mais rápida via para o futuro". A monumentalidade
8. Michel Foucault, Prefácio a Gilles Deleuze e Félix Guarrari, Anti-
está viva e passa bem. Exceto porque talvez hoje tenhamos Oedipus: Capitalism and Schizopbrenia ("Anri-fdipo: capitalismo e es-
de considerar uma espécie de monumentalidade em rninia- quizofrenia", Minneapolis: U of Minnesora P, 1983) xiii.
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("Comra a arquitetura: os escritos de Georges Bacaille", Cambridge:
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MIT,1989).
(~ 10. A tradução ima o inglês publicada em livro é insuficiente, pois
Monumel1tos e memória do holocausto
menciona apenas "a tarefa histórico-mundial" [world-hiJrorical taskJ. numa idade da mldla .
~ Ver Richard Wagller, "The Arr-work of rhe Future" (''A obra artística do
~ futuro"), Richard Wágners Prose WórkJ, trad. de William Ashton ElIis,
'..J vol. I ("Obra em prosa de Richard Wagner". Nova York: Broude Bro-
thers, 1966) 130.
..J ..) a abundância de sofrimento real
11 . Wagner, "The Arr-work of rhe Future" (''A obra artística do futu-
..J ro") 162.
não tolera esquecimento
Theodor w. Adorno
...J 12. Friedrich Nietzsche, "Nachgelassene Fragmente". Sâmtliche Wérke,
org. por Giorgio Collí e Mazzino Monrinari vol. VIII ("Fragmentos pós-
...1
tumos", Obras completas, Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag, Só aquilo que nao cessa de doer
.J 1980) 501 (tradução minha':'" AH).13 Richard Wagner, "Art and perdura na memória.
.J Revolution?", Richard Wágners Prose WórkJ, vol. I, 35 . Friedricb Nietzsche
14. Wagner,"The Art-workof me Furure" 104f (traduçãocorrigidapor AH).
(.J
15. Richard Wabner, "Opera and Drama" ("Ópera e drama"), Richard
..)
.
Wagners Prose Works, vol.Il, 189 (tradução corrigida). 1
(.J 16. Inexplicavelrnente, apenas 'uma parte desta passagem é traduzida
em Richard Wagner, Richard W'aegnersLetters to Dresden Friends 140 . Numa época em que a noção de memória se transferiu
.)
Para o original em alemão, consultar Sâmtlicbe Briife IV Brieft der [abre para o domínio dos chips de silício, dos computadores e
(.) 1851-1852 ("Correspondência completa. vol. IV, Cartas dos anos de das histórias de ficção científica sobre cyborgs, os críticos la-
J 1851 e 1852", Leipzig: VEB Deutscher Verlag für Musik, 1979) 176.
17. Mann 316.
mentam rotineiramente a entropia da memória histórica,
(.J definindo a amnésia corno perigoso vírus cultural criado
18. Cosima Wágners Diaries- (1818-1883). ("Diários de Cosima
(J Wagner, 1878-1S83"), org. por Martin Gregor-Deilin e Dierrich Mack,
pelas novas tecnologias de mídia. Quanto maior é a me-
mória armazenada em bancos de dados e acervos de ima-
() trad. por Geoffrey Skelton (Nova York: Harcourt Brace, 1980)' 561.
19. Richard Wagner, Carta a:~hlig de 22 de outubro de 1850 (tra- gens, menor é a disponibilidade e a habilidade da nossa
(~ dução minha - AH). Esta passagem está totalmente ausente da tradução cultura para se engajar na rememo ração ativa, pelo menos
(J em inglês da carta em Richard Wágners Letters to Dresden Friends. Para ao que parece.
(.J o original completo. ver Wagner. Sãmtlicbe Brieft. vol. !lI 460.
A rememo ração dá forma aos nossos elos de ligação com
20. Agradeço a Ken Frampton por me apresentar a esse texto. Sigfried
(.J Giedeon, Fernand Léger e José Luis Sere, "Nine Poims on Monurnen-
o passado, e os modos de rememorar nos definem no pre-
sente. Como indivíduos e sociedades, precisamos do passa-
(J taliry" ("Nove pontos sobre rnonurnentalidade"), in Siegfried Giedeon,
Architecture, You and Me; the Diary ofa Deuelopment (''Arquitetura. você do para construir e ancorar nossas identidades e alimentar
() e eu; o diário de um projeto", Cambridge: Harvard Up, 1958) 48-51. urna visão do futuro. Na esteira de Freud e Nierzsche, con-
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modernidade nâo-autocrírica e de muitas de suas manifes- e perversas que fossem as maneiras, à modernidade do
tações estéticas de vanguarda no princípio do século :XX. Ocidente. Enquanto a tese de que a Alemanha nazista foi
No fundo, a modernização era o cordão umbilical muitas ve- uma aberração tem servido mais aos interesses da negação
zes não reconhecido que ligava os vários modernismos estéti- e do esquecimento, e de jeito nenhum somente na
cos e as vanguardas à modernidade social e econômica da so- Alemanha, a idéia de que o nazismo não passou de um re-
ciedade burguesa que eles tanto detestavam e combatiam. sultado lógico da evolução do Ocidente era comprometida
As décadas recentes, no entanto, testemunharam um cres- pela equação do marxismo ortodoxo entre capitalismo e
cente ceticismo quanto a ideologias como o progresso, à fascismo. Evidentemente, conclusões reducionistas como
medida que o lado sombrio da modernização vem impres- estas podem ser descartadas com facilidade. Mas a questão
sionando cada vez mais as consciências, nas sociedades oci- continua a ser dolorosa, f: dificilmente se chega a uma res-
dentais, em função dos totalitarismos políticos, dos empre- posta clara. Uma coisa (: reconhecer que Auschwitz é a
endimentos coloniais e das devastações ecológicas deste sé- maior ferida da civilização ocidental, jamais cicatrizada, e
..•.~ culo. Na maioria dos relatos ocidentais sobre essa crise da que jamais poderá cicatrizar. Outra coisa bem diferente é
,-I memória e da rnodernidadc, o Holocausto desempenha um afirmar que a máquina de extermínio da Solução Final,
papel chave. Como escreveu Primo Levi, o Terceiro Reich com a sua sistemática degradação dos seres humanos e seu
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travou uma gu<~rraobsessiva contra a memória, praticando plano de excessos em termos de "violência inútil" (Primo
.,..4
( "uma falsificaçlo orwelliana da memória, uma falsificação Levi), é inerente à própria civilização ocidental e represen-
"c-4
da realidade, uma negação da realidade".' E é sabido que ta o seu resultado lógico.
essas estratégias de negação e repressão não desapareceram Nessa conjuntura, o debate pós-moderno sobre a amné-
~ com a queda do regime nazista. Cinqüenta anos depois da sia se concentra na memória do Holocausto. O filósofo fran-
~ famosa Conferência de Wannsee, na qual pela primeira vez cês Jean-François Lyotard chegou a associar a amnésia dos
..J se deu uma forma política e burocrática à Solução Final, o alemães e o recalque do Holocausto no pós-guerra ao fra-
.J Holocausto e sua memória continuam a ser um desafio às casso da civilização ocidental na prática da anarnnese, re-
(...J pretensões humanistas e universalistas da civilização oci- fletindo sobre sua incapacidade constitutiva de aceitar a di-
dental. O tema rememoração e esquecimento atinge o cer- ferença e a alteridade e tirando as conseqüências da relação
..J
ne da identidade ocidental, por mais multifacetado e varia- insidiosa entre a modernídade esclarecida e Auschwitz.' Nes-
(..J
do que seja. se modo de ver, o nacional socialismo é um caso singular,
..; Houve debates bastante acirrados sobre se devemos ver mas não único, em que as fantasias narcísicas de onipotên-
(..; a barbárie nazista como uma aberração ou uma regressão cia e superioridade que assombraram a modernidade oci-
<..J da civilização ocidental, da qual a Alemanha, afinal de con- dental vieram à tona. Corno antídoto contra o poder de se-
tas, fazia parte. ou se melhor seria enfatizar aqueles aspec- dução de tais fantasias, Lyotard argumentou que o reco-
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tos do nacional socialismo que o ligam, por mais extremas nhecimento dos outros como outros - com suas histórias,
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aspirações, mundos vividos concretos - é de suma im-
portância. Reside aí, a meu ver, o cerne ético e político de
tinuar a ser deficiente quando se trata da anamnese especí-
fica que Lyorard julga faltar: o reconhecimento
ça e da alreridade, a reflexão sobre o embasarnenro
da diferen-
consti-
r
grande parte do pensamento pós-moderno e pós-estrutu-
ralista, vigorosamente prefigurado no próprio modernis- tutivo da modernidade sobre a exclusão e a dominação; a
mo, em especial pela obra de Theodor W. Adorno, que obra de lamentação e rernemoração que nos deslocaria ~I
com grande perspicácia analisou a dialética entre esclareci- daquilo que Lyotard diagnosticou como nossa "melancolia
r
mento e violência no momento
morte em Auschwitz Birkenau trabalhava em sua capaci-
em que a máquina da de fim de século". Apesar de sua divergência na avaliação
do estatuto da memória na tradição ocidental, ambos os r
dade máxima e com impiedosa eficiência. Sem memória,
sem a leitura dos restos do passado, não pode haver o re-
conhecimento da diferença ("não-identidade", como a de-
pontos de vista partem da idéia de que toda estrutura de
memória (e não apenas o seu conteúdo) é fortemente con-
tingente frente à formação social que a produz.
fir
nomina Adorno), nem a tolerância das ricas complexida-
des e instabilidades de identidades pessoais e culturais, po-
3 ~I
líticas e nacionais.
Nem todo mundo aceita a acusação generalizada da mo- Como, então, a mídia tecnológica afeta a estrutura da
r
dernidade ocidental proposta por Lyorard, -ern sua intran- memória, os modos pelos quais percebemos e vivemos r
sigente visão de Auschwitz come- a prova de fogo de qual- nossa temporalidade? À medida que a mídia visual invade
quer concepção contemporânea da história da rnoderni- todos os aspectos da vida política, cultural e pessoal, po- r
dade, que identifica a falta de anamnese, a precariedade da
memória e o recalque da alteridade como uma doença fa-
demos nos perguntar como seria uma memória pós-moder-
na, a memória num tempo em que os parâmetros básicos ti
tal da condição moderna. Assim, cercos filósofos alemães de uma modernidade ocidental antesauroconfianre pas-
~I
neoconservadores,
quard, argumentaram
como Hermann Lübbe ou Odo Mar-
que a evidente erosão da tradição na
saram a ser cada vez mais atacados, e no qual a questão da
tradição se recoloca justamente porque a tradição da pró- r
modernidade no fundo gerou órgãos compensatórios
rememo ração como as humanidades,
de
sociedades de preser-
pria modernidade já não tem respostas para a nossa situa-
ção. E quanto às instituições e espaços que organizam a nos-
~I
vação histórica e o museu. Segundo esse ponto de vista, a sa memória social na idade da disseminação da TV a cabo? ~I
memória social e coletiva, paradigmaticarnente
no museu, na historiografia ou na arqueologia,
organizada
não é o
Se nos voltarmos para a memória
anos 1980, ficaremos imediatamente
nos pós-modernos
impressionados não
ri
oposto da modernidade, e sim um de seus produtos. com os sinais de amnésia e sim com uma verdadeira obses-
É claro que um argumento não exclui o outro. Mesmo
que a modernidade gere seus órgãos e discursos de reme-
rnoração, a memória histórica da modernidade pode con-
são pelo passado. De fato, pode-se mesmo falar em sensibi-
lidade memorial ou museica que arrebata parcelas cada vez
maiores da cultura e da experiência do cotidiano. O filóso-
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fo Hermann Lübbe diagnosticou esse historicismo em ex- sante de canais vista corno a estratégia contemporânea de
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pansão na nossa cultura contemporânea, afirmando que nun- desrealização nardsica. À medida que essa simultaneidade
~
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ca antes uma cultura presente' fora tão obcecada pelo pas- vai abolindo a alreridade entre passado e presente, aqui e
sado quanto nos anos 1970 e 1980, quando se passou a ali, ela tende a perder a sua ancoragem na referencialidade,
~ construir museus e memoriais como se não houvesse mais no real, e o presente sucumbe ao seu poder mágico de si-
(~ amanhã.' Mesmo os monumentos, que, depois dos exces- mulação e projeção de imagens. Não se pode mais perce-
sos oitocenristas de pobrezaestética e aberta legitimação de ber a diferença real, a alteridade real no tempo histórico ou
~
projetos políticos, tinham passado por tempos difíceis na na distância geográfica. No caso mais extremo, os limites
~
••
,.
.~
modernidade (apesar de Gropius e Tátlin), têm vivido uma
espécie de revival, beneficiando-se
dade da nossa cultura memorial.
claramente da intensi-
entre fato e ficção, realidade e percepção se confundem
ponto de nos deixar apenas com a simulação, e o sujeito
a
,. '
Mas quais são os efeitos dessa musealização e como po-
demos ler essa obsessão pelos vários passados remernora-
dos, esse desejo de articular a memória na pedra ou em
perigos resultantes do relativismo e do cinismo têm sido
muito debatidos nos últimos anos, mas a fim de ultrapas-
j sar tais perigos devemos reconhecer que eles são inerentes
..~.. qualquer outro material permanente? Hoje, tanto a memó- aos nossos modos de processar o conhecimento, em vez de
ria pessoal quanto a cultural são afetadas pela emergência simplesmente denunciá-Ias como se estivéssemos num jo-
(-d
de uma nova estrutura de temporalidade, gerada pelo rit- go de intelectuais niilistas. O toque de corneta da verdade
U mo cada vez mais veloz da vida material, por um lado, e objetiva simplesmente não vai dar certo.
(~
pela aceleração das imagens e das informações da mídia, Há, no entanto, um paradoxo generativo nessa nova sen-
~ por outro. A velocidade destrói o espaço, e apaga a distân .. sibilidade temporal. O que sob um aspecto parece a esma-
C.
r
cia temporal. Em ambos os casos, o mecanismo da percep- gadora vitória do preseme modernizador sobre o passado,
.,J ção psicológica se altera. Quanto mais memória armazena- visto de uma outra perspectiva, apresenta-se como uma en-
mos em bancos de dados, mais o passado é sugado para a tropia do espaço ocupado pelo presente. A crescente acele-
~ órbita do presente, pronto para ser acessado na tela. Um ração das inovações científicas, tecnológicas e culturais nu-
~ sentido de continuidade histórica ou, no caso, de descon- ma sociedade orientada para o consumo e o lucro cria
~ rinuidade, ambos dependentes de um antes e um depois, quantidades cada vez maiores de objetos, estilos de vida e
~ cede o lugar à simultaneidade de todos os tempos e espaços atitudes fadados à rápida obsolescência, e assim faz enco-
(~ prontamente acessíveis pelo presente. A percepção da dis- lher efetivamente a duração temporal daquilo que pode ser
tância espacial e temporal está se apagando. Mas é evidente considerado o presente, num sentido concreto. O aspecto
(~
que essa simultaneidade, essa presentidade sugerida pelo temporal dessa obsolescência planejada é, evidentemente, a
imediatismo das imagens, é em larga medida imaginária, e amnésia. Esta, porém. 'gera simultaneamente o seu próprio
(~ cria suas próprias fantasias de onipotência: a troca inces-
(~ oposto: a nova cultura museica como uma formação reati- I
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va, S~j~ um paradoxo ou uma dialética, a di5semin~ção da
amnesia na nossa cultura se faz acompanhar de um mcoer-
ca às suas. práticas de criação, As fronteiras entr~ o muse,u,
o memonal e o monumento de fato se confundiram na ul-
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cível fascínio pela memória e pelo passado. rima década, de modo a tornar obsoleta a antiga crítica do (
Os críticos voltados para o tema da perda da história di- museu como fortaleza para poucos e do monumento como ("
rão que a nova cultura de museus e memória que emergiu meio de reificação e esquecimento. .. C~
n~s ,ií~timos anos contraria qualque~ noção verdadei~a de
história, ao se converter antes de mais nada em espetaculo
Os museus, ~onumentos e ~emonals do Holocaus.to
não podem ser vistos como alheios a essa cultura memonal
t
t.
e entretenimento. Argumentariam que essa cultura apre- pós-moderna. Ainda que o Holocausto levante problemas ,.
senta um imaginário pós-moderno superficial e destrói, ao intratáveis para qualquer projeto de representação memo- )..
invés de alimentar, toda noção verdadeira de tempo - pas- rial, o aumento da freqüência com que se erguem novos (. .
t
sado, presente ou futuro. Mas o fascínio pelo passado é
mais do que um simples efeito colateral compensatório
fraudulento de uma nova rernporalidade pós-moderna que
ou
museus e monumentos sobre o Holocausto
Alemanha e na Europa, assim como nos Estados Unido~,
evidentemente faz parte de um fenômeno
em Israel, na
cultural mais
rti I
paira sobre a necessidade de memória e o ritmo acelerado amplo.' Fenômeno que não deve ser atribuído apenas à t
do esquecimento. Talvez ele deva ser levado a sério como crescente distância geracional do acontecimento em ques- ~
tão e à decorrente
um modo de diminuir um pouco a velocidade da moder-
nização, como uma tentativa, embora frágil e cheia de con-
tradições, de atirar salva-vidas ao passado e contrabalançar
tentativa de contrapor-se
processo de esquecimento,
de testemunhas
num tempo em que a geração
e sobreviventes vai diminuindo
ao inevitável
e surgem
rr
(\
a notória tendência de nossa cultura à amnésia, sob o signo novas gerações, para as quais ? Holocausto é ou memória t
do lucro imediato e da p~lítica ele curto ~razo. O muse~, mítica ou c~ichê.. . t
o monumento e o memonal de faro se revigoraram depois Uma razao para o revlgoramento do museu e do mo nu- iIiiiI
de terem sido tantas vezes dados por extintos ao longo da mento na esfera pública pode ter algo a ver com o fato de ~
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história do modernismo. O museu, o monumento e o me- que ambos oferecem uma coisa que a televisão recusa: a (
morial de fato se revigoraram depois de terem sido tantas qualidade material do objeto. A permanência do monu-
vezes dados por extintos, ao longo da história do moder- rnenro e do objeto de museu, antes criticada como reifica-
nismo. Sua recém-adquirida importância junto à consciên- ção mortificadora, assume um papel diferente numa cul-
cia d~ público, seu sucesso na ~ulr~ra c~ntemporâne~: ain-
da nao encontraram uma explicação. Simplesmente Ja não
tura d~~inada
imarerialidade
pela fugaci~ade_ da imagem na teAla~ pela
das comurucaçoes .. É a permanenCla do
r
••
basta denunciar o museu como basrião elitista do conheci- monumento na tão reivindicada esfera pública, em áreas ~
r
mento e do poder, e a velha crítica modernista contra o de pedestres, centros urbanos restaurados e espaços memo- (
monumento deixa de ser convincente quando os autores riais preexistentes o que atrai um público insatisfeito com
dos monumentos passaram a incorporar essa mesma críti- a simulação e a troca incessante de canais. Diante disso, o ~
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sucesso de qualquer monumento deve ser medido por sua cia na prisão de uma fixação melancólica que atinge muito
capacidade de negociar com os múltiplos discursos de me- mais pessoas além das vítimas e dos perperradores.
mória oferecidos pelas mesmas mídias eletrônicas frente às Se essa proliferação, seja na literatura e no cinema ou na
quais o monumento como matéria sólida apresenta uma política contemporânea, realmente banaliza o evento his-
alternativa. E não há garantias de que os monumentos de tórico da Solução Final nazista, como muitos dizem, então
hoje, -projetados e construídos com a participação do pú- a construção de mais e mais memoriais e monumentos ao
blico, debates acirrados e engajamento mernorialístico, não Holocausto também pode não ser uma boa solução para os
vão um dia perdurar, como seus antecessores do século problemas da rernemoraçâo. A tentativa de compensar ver-
XIX, como figuras do esquecimento. Por enquanto, pelo sões aparentemente banalizantes como a do seriado de tele-
menos, um antigo meio que um dia sucumbiu ao ritmo e à visão Holocausto (1979) com representações museicas e
velocidade da modernização, passa a se beneficiar de novas monumentais sérias pode apenas, mais uma vez, congelar
possibilidades numa cultura híbrida memorial-midiática. a memória em imagens e discursos ritualísticos. A insis-
tência exclusiva em favor da representação verdadeira do
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seu próprio caminho rumo ao testemunho, o docurnen- Holocausto significa a ausência de uma presença judaica r
tário ou o tratado histórico justamente através de um forte na sociedade, além de um fardo traumático para a t
Holocausto ficcionalizado e emocionalizado
mente para o horário nobre da televisão. Se o Holocausto
feito especial- identidade nacional. Tentativas genuínas de lamentação,
que existiram por um certo tempo, enredam-se inexoravel-
t~
( I
pode ser comparado
dos os instrumentos
com um terremoto que destruiu to-
para medi-Ia, como sugeriu Lyotard,
mente com uma ferida narcísica, a autoflagelação e o re-
r
então certamente deve haver mais de um modo de repre-
calque. Assim, até muito recentemente
conhecimento
não houve muito
público sobre o que de fato se perdeu com
t:
sentá-Ia.
a destruição - ou sequer um maior interesse por isso. Em r
A crescente distância temporal e geracional, portanto, é
importante sob outro aspecto: da permitiu que a memória
Israel, o Holocausto se tornou central para a fundação do r
l-
estado, tanto como o desfecho de uma rejeitada história
enfocasse mais do que apenas os fatos. Em geral, tornamo-
nos cada vez mais conscientes de como a memória social e
dos judeus como vítimas quanto como ponto de partida de r)
uma nova história nacional, uma auto-afirmação e uma re-
coletiva é construída através de uma variedade de discursos (', I
e diversas camadas de representações. A historiografia do
sistência. Na imaginação israelense, a rebelião do gueto de
ri
Holocausco, os arquivos, os testemunhos oculares, os fil-
Varsóvia se reveste da força de uma memória rnítica de re-
sistência e heroísmo insondáveis na Alemanha. A imagi- r
mes documentários - tudo isso contribuiu para estabelecer nação americana sobre o Holocausto se concentra no pa- r
um núcleo duro de fatos, e esses fatos precisam ser transmi-
tidos às gerações posteriores ao Holocausto. Sem fatos, não
pel dos Estados Unidos como liberadores dos campos de
concentração e porto seguro para refugiados e imigrantes,
rr-
há memória real. Mas também estamos livres para reco- e os memoriais americanos ao Holocausto se estruturam
nhecer que o Holocausro de faro se tornou disperso e fra-
turado através dos diferentes modos existentes para reme-
em conformidade com isso. Na versão soviética, o genocí-
rt"
morá-Ia. O enfoque obsessivo no indizível e no irrepresen-
dio dos judeus perdeu a sua especificidade étnica e sim-
plesmente degenerou na forma da perseguição nazista ao r
tável, tal como no passado o articularam tão convincente- comunismo internacional. E isso em tal medida que hoje r
mente Elie Wiesel ou George Steiner, e tal como ele dá for-
ma hoje à filosofia ética de Jean-François Lyotard, impede
se faz necessário reconstruir as narrativas dos espaços me-
moriais europeus do Leste e soviéticos.
r
~\
esse reconhecimento. Mesmo em sua forma histórica mais É claro que muitas dessas informações são hoje bem co-
séria e legítima, a memória do Holocausto se estrutura de nhecidas, mas podem não ter sido inteiramente compre-
modo bem diferente no país das vítimas e rio país dos per- ~I
endidas as suas implicações para o debate sobre rememo-
petradores, e também diverso nos países da aliança anti- ração, esquecimento e representação. Essa fratura múltipla
nazista.' ~.
da memória do Holocausto em diferentes países e a sedi-
Desde o princípio, os mesmos fatos geraram relatos e
mentação em diversas camadas de imagens e discursos que r
memórias sintomaticamente distintos. Na Alemanha, o
variam desde o documentário até a telenovela, desde o tes- r
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C~e?>r:, Saduzioos U61.a Memõt-;'::;;
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tem unho de sobrevivente até a narrativa de ficção, desde o bição em público, os museus ou os monumentos. Numa
campo de concentração até a pintura memorial devem ser variação de Adorno, que com razão suspeitava dos possí-
vistas em seus aspectos de capacitação política e cultural, veis efeitos da estetização do sofrimento indizível das víti-
como antídoto em p-otencial contra o congelamento da
Ç. memória numa imagem traumática ou no enfoque ernbo-
mas, argumentou-se que construir um monumento
Holocausto era por si só um ato bárbaro. Nada de monu-
ao
tador dos números, O novo museu do Holocausto em W-a- mentos depois de Auschwirz. E diante dos excessos de
shington D. C. é tão bem-sucedido justamente por sua ca- monumentalização do f~lscismo, muitos chegaram a insi-
pacidade de li.dar com toda uma variedade de discursos, nuar que havia tendências fascistas inerentes a qualquer
mídia e acervos. documentais,
. abrindo assim, na memória monumento que seja.:
de seus visitantes, um espaço para o conhecimento e a re- Todas essas críticas do meio em si enfocam o mo-
flexão efetivos. numento como objeto, como realidade permanente, de
pedra, como escultura estética. Contudo, elas não reco-
~
l~
5 nhecem a dimensão pública do monumento,
Young definiu como o caráter dial6gico do espaço rnerno-
o que James
Mas e quanto ao monumento, no vasto âmbito das re- rial. Não há dúvidas de que estaríamos mal servidos pelo
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presentações e dos discursos sobre o Holocausto? O monu- monumento ao Holocausto como máscara mortuária ou
~
mento ao Holocausto evidentemente não figura na tradi- por uma estetização do terror. Por outro lado, à falta de
ção do monumento como celebração heróica e figura do pedras tumulares para as vítimas, o monumento funciona
(~ triunfo. Mesmo no caso do monumento à rebelião do gue- como espaço de lamentação e rememoração substituto.
(~ to de Varsóvia, estamos diante de um rnemorial do sofri- Como, afinal de contas, poderemos garantir a sobrevivên-
(~ mento, uma denúncia de crimes contra a humanidade. cia da memória se a nossa cultura não oferece espaços
Erguido contra a tradição do monumento legitimador e memoriais que nos aju.dem a construir e alimentar a
'f!!I
fomentador de identidades, o monumento ao Holocausto memória coletiva da Shoah? Somente se enfocarmos a di-
(~
deve ser pensado como necessariamente um conrrarnonu- mensão pública do monumento, embutindo-a em discur-
(~
mento. No entanto, várias vezes a crítica tradicional do sos públicos da memória coletiva, poderá ser evitado o
(r:tJ
monumento como túmulo da memória e fossilização do perigo de fossilização monumental. É claro que o discur-
(~ passado se voltou também contra o monumento ao Holo- so público é mais intenso no período de planejamento,
(yJ causto. Certos monumentos ao Holocausto foram acusa- concepção e ereção de um monumento. Não há garantias
dos de ropolatria, em especial os contruídos em campos de de que o nível de intensidade dialógica vai manter-se o
(J
extermínio. Outros foram criticados por traírem a memó- mesmo a longo prazo, e o monumento ao Holocausro
ria, numa objeção que supõe ser a memória antes de mais pode no final sucumbir ao congelamento da memória que
nada interior c subjetiva, portanto incompatível com a exi- ameaça todos os monumentos.
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A grande oportunidade do monumento ao Holocausto com meus próprios olhos". Por mais fragmentadas pela mí-
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hoje reside em sua intertexrualidade e no fato de que ele é (
dia, pela geografia ou pela posição subjetiva que sejam as re-
apenas uma parte de nossa cultura memorial. Como as fron- presentações do Holocausto, em última análise tudo se de- •• )
teiras tradicionais entre o museu, o monumento e a hisro- tém diante desse núcleo: inimaginável, indizível e irrepre- ••
riografia se tornaram mais fluidas, o próprio monumento sentável terror. As gerações posteriores ao Holocausro só po- •••
perdeu muito de sua permanência e fixidez. Portanto, os dem se aproximar desse núcleo pela aproximação mirnética,
~
critérios para a avaliação de seu êrito poderiam basear-se nos
modos pelos quais ele permite o cruzamento de fronteiras em
uma estratégia mnemônica que reconhece o evento em sua
alreridade e para além da identificação ou da ernpatia te-
••
~
direção a outros discursos sobre o Holocausto, os modos pe- l
los quais ele nos estimula a ler outros textos, outras estórias.
rapêutica, mas que incorpora fisicamente um pouco do ter-
ror e da dor no lento e persistente ofício de rernemoração. ••
\.. .
Nenhum monumento em particular poderá jamais dar Essa aproximação mimética só pode ser obtida se mantiver- •••
conta do Holocausto como um todo. Um monumento as- mos a tensão entre a desconcertanre totalidade do Ho-
~
~
sim pode até não ser desejável, assim como o Grande Livro
sobre a Shoah, nas palavras de Geoffrey Hartrnan, pode
locausto e as histórias de vítimas individuais, famílias e co-
munidades. O enfoque exclusivo sobre a primeira pode levar
t
••VI
"produzir um decepcionante senso de totalidade, deixando à abstração ernbotadora da estatística e o recalque daquilo
•••••
na sombra, ou mesmo no esquecimento, as estórias, os de- que esses números significam; e a atenção apenas às segun-
~\..
talhes e as perspectivas imprevisíveis que mantêm o inte- das pode levar a uma ernparia catártica superficial e assim ao
lecto ativo e a memória trabalhando"." Há muito a dizer esquecimento da conclusão assustadora a chegou Adi Ophir, •••
r
~ I
em favor da manutenção de monumentos e espaços me- de que o Holocausto resultou, como evento histórico, de
moriais sobre o Holocausto, para :que eles reflitam as his-
tórias locais, relembrando as memórias locais, tornando
mais palpável a Solução Final não somente pelo enfoque
uma combinação excepcional' de procedimentos
Em última análise, o êxito de um monumento
normais.
ao Holo-
10
t
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r••
~
geral, na sua totalidade, vai reafirmar-se junto com o proble- Um monumento ou memorial só pode nos levar um
ma de seu caráter indizível. Depois que tivermos rememo- passo adiante na direção do tipo de conhecimento que jür-
rado, vistoriado os fatos, lamentado as vítimas, permane- gen Habermas definiu como uma ruptura irreversível na
ceremos impressionados com esse núcleo de humilhação história humana:
absoluta, degradação e horror sofrido pelas vítimas. Como
podemos cornpreendê-lo, quando até mesmo as vítimas se Algo aconteceu ali [em Auschwitz} que até então ninguém
viram obrigadas a dizer: "Eu não podia acreditar no que via considerava sequer possluel. Ali, alguém encostou em algo que
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). representa a camada mais profunda de solidariedade entre Notas:
).
( .. todos os que vestem um rosto humano; não obstante todos os
atos costumeiros de bestialidade na história humana, a inte-
gridade dessa camada comum era tida por segura. (...)
1. Robert Musil, "Nachlaf zu Lebzeiten" ("Obra póstuma em vida"), in
Adolf Frisé (org.), Prosa, Dramen, spãte Bri'ft ("Prosa, dramas, cartas es-
parsas", Hamburgo: Rowohlr, 1957),480 ..
..•
~ i!
•.••
Auschwitz mudou as bases da continuidade das condições de 2. Primo Levi, The Droumed and th« Saved ("Os afogados e os que se
' !
vida na história. Ii salvaram", Nova York: Vintage International, 1989)-,31.
3. [ean-Françcis Lyorard, "Ticket to a New Decor" ("Entrada para um
~
novo cenário"), Copyright 1 (Outono de 1987): 14-15. Sobre a relação
Esse conhecimento pode ser facilmente esquecido ou re-
•••••
entre a memória do Holocausro e o pós-modernismo e o discurso da
calcado. Preservá-Io é tanto mais urgente quando a cultura
larnenração, ver o estudo de Eric L. Santer, Stranded Objuts: Mourning,
pós-moderna, 'pós-Auschwitz, se mostra imbuída de uma Memory and Film in Posttoar Germany "Objetos encalhados: lamen-
ambigüidade fundamental. Obcecada pela memória e pelo ração, memória e cinema na Alemanha do pós-guerra", f taca e Londres:
•••• passado, ela também se envolve numa dinâmica destrutiva Cornell Universicy Press, 1990).
•••• de esquecimento. Mas talvez a dicotomia do esquecimen- 4. Ver Hermann Lübbe, "Zeir-Verhalrnisse"
in Wolfgang Zacharias (org.), Zeitphãnomen
("Sensibilidade
Musealisierung:
temporal"),
Das
to e da rememo ração também escape ao mais importante.
venchunnden da Gegenioart und die Konstruktion der Erinnerung ("A
Talvez a cultura pós-moderna do ocidente seja presa de
(.,.
~ musealização dos fenômenos remporais: o desaparecimento do presente
Ç! o instrumento que Franz Kafka gostaria de que a literatu- 5. Ver a coletânea de ensaios organizada e prefaciada por Saul Frie-
..•
(
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ra fosse, quando afirmou que um livro deve ser o macha-
do para o mar congelado dentro de nós." Precisamos do
dlander, Probing the Limits ofRepmentation:
(.:...
..•
monumento e do livro para evitar que o mar congele. Na 6. Para um painel convincente, ver Deborah Lipstadt, Denying the
( memória congelado, o passado não é nada além de pas- Holocaust: the Growing Assau/t on Truth and Memory ("Negando o Ho-
( sado. A temporalidade interior e a política da memória do Iocausro: O crescente ataque ;\ verdade e à memória", Nova York: The
Holocausto, no entanto, mesmo quando ela fala do pas- Free Press, 1993).
sado, devem ser orientadas na direção do futuro. O futuro 7. Saul Friedlander, Reflectionr 01Nazismo: An Essay on Kitsch and Death
("Reflexos do nazismo: um ensaio sobre o 'Kitsch' e a morte". Nova
~ não nos julgará pelo esquecimento, e sim pela rememora-
(..- ção ampla de tudo, e ainda por não agirmos de acordo com
York: Harper and Row, 1984).
8. Ver o estudo inovador de James Young, Tbe Textur« o/ Memory:
~I(I essas memórias. Holocaust Memorials and Meaning in Europe, Israel, and America ("A tex-
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Press, 1993).
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Memóri;.)
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Não importa por onde comecemos nossa discussão da ci- A noção de cidade como signo, contudo, permanece tão
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dade dos signos - se com a leitura de Paris feita por Victor pertinente quanto antes, mesmo que agora talvez num sen-
Hugo em Natre-Dame de Paris, como um livro escrito na tido mais pictórico e mais relacionado à imagem do que
pedra; se com a tentativa de Alfred Doblin, em Berlin Ale- num sentido textual. Mas essa mudança da escrita para a
~ xanderplatz, de criar uma montagem de múltiplos discur- imagem traz uma significativa inversão. Para ser bem claro:
~ sos da cidade q::.J.ese acotovelam como passantes em uma o discurso da cidade corno texto, nos anos 1970, era sobre-
••• calçada cheia; se com a noção de flâneur, de Walter Ben- tudo um discurso que envolvia arquitetos, críticos literá-
••• jamin, sobre aquele que lê os objetos urbanos em medita- rios, teóricos e filósofos determinados a explorar e criar no-
••• ções comemorativas: se com a ênfase otimista dada por vos vocabulários para o espaço urbano depois do moder-
••
C•••
anos 1970 e 1980, sem dúvida no auge de uma obsessão
arquitetõnica com a semiótica, a retórica e os códigos que
como um habitante,
movimento.
em vez de um viajante sempre em
Mas, hoje em dia é ao turista, mais que ao
C•• perpassou grande parte do debate sobre a arquitetura pós- flâneur, que a nova cultura da cidade quer apelar, ao mes-
..A moderna. Qualquer que seja a explicação - e certamente mo tempo que teme o indesejável duplo do turista: o rni-
não há uma resposta simples para essa questão -, parece grante expatriado.
(..A
claro que hoje esse interesse pela cidade como signo, como E~iste um lado negativo dessa noção de cidade como sig-
(..A
texto, está apagando-se do discurso e da prática da arqui- no e imagem na nossa cultura global, que a meu ver nun-
C•••• tetura, ambos os quais se voltaram contra uma primeira ca apareceu de maneira tão evidente quanto num recente
c...• fascinação pelos modelos literários e lingüísticas, sem dú- artigo de primeira página do New York Times, no qual o
CoA vida, pelo menos parcialmente, como resultado das novas crítico de arte celebrava a recém-disneyficada Times
tecnologias de computação gráfica oferecidas pelos cada Square, com seu novo p:uque ternático, como o supra-su-
C.A
vez mais potentes computadores. mo da cultura comercial veiculada em outdoors eletrôni-
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cos, agora tornada - segundo a visão distorcida do crítico 10 faz com que tal esperança pareça simplesmente desloca-
(
indistinguível da verdadeira arte.' Devemos apenas esperar da, se não equivocada. De fato, Berlim talvez seja o lugar
(
que a transformação da Times Square - de paraíso de ma- para se estudar como esta nova ênfase sobre a cidade como
landros, prostitutas e drogados a instalação de arte pop - signo cultural, combinada com seu papel de capital e as (
não seja um presságio da transformação radical de Man- pressões do desenvolvimento em larga escala, evita alterna- C
hatran num museu, um processo·que já se encontra muito tivas criativas e representa uma "falsa largada" para o sécu- (
avançado em algumas antigas cidades da Europa. lo XXI. Berlim talvez esteja prestes a desperdiçar uma (
, ·1 Isto me traz de volta a Berlim, uma cidade famosa justa- chance única.
(
mente por suas gloriosas coleções de museus, mas sobretu-
(
do pela sua descentralidade e vasta extensão territorial,
menos propensa a se tornar um museu urbano, como se
2 (
tornaram os centros de Roma, Paris e mesmo Londres, em .Talvez não haja outra grande cidade ocidental que su- l
décadas recentes. Então, não causa grande surpresa que de- porte as marcas da história do século XX tão intensamente (
pois de um ressurgimento no início dos anos 1990, o turis- e de forma tão auto consciente como Berlim. A cidade-tex- (.
mo em Berlim tenha sofrido uma queda significativa. Essa to tem sido escrita, apagada e reescrita ao longo deste sécu-
(
queda súbita com certeza tem algo a ver com o fato de Ber- lo violento, e sua legitimidade se deve tanto mais às mar-
{
lim ser atualmente mais estimulante para a nova cons- cas visíveis do espaço construído quanto às imagens e me-
trução civil do que qualquer outro. lugar no mundo Oci- mórias reprimidas e rompidas pelos eventos traumáticos. (
dental: é muito estimulante para pessoas interessadas na Em parte palimpsesto, em parte Wunderblpck, Berlim agora ~
transformação urbana e arquiretônica, mas é, para muitos se acha num frenesi de projeções futuras e, alinhada com (
outros, principalmente uma desagradável desordem de su- as obsessões da memorialização geral dos anos 1990, em
~
. jeira, barulho e engarrafamentos. Uma vez que todas essas meio a intensos debates sobre como negociar seus passados
~
construções estejam prontas, a esperança é que Berlim ocu- nazista e comunista, agora que as dicotomias seguras da
pe o seu lugar de direito como uma capital européia, ao la- Guerra Fria se foram. A cidade está obcecada com as ques- ~
do de seus mais glamourosos competidores. Mas, será isto tões de arquitetura e planejamento, um debate que fun- ~
possível? Afinal, Berlim é significativamente diferente de ciona como um prisma que ilumina as armadilhas do de- ~.
outras capitais do Oeste Europeu em termos de sua histó- . I, senvolvimento urbano nesta virada de século. Tudo isto em ~~
ria como capital e centro industrial, assim como no que diz
respeito a suas construções. E o fato de a cidade ser pega
meio a uma corrida governamental e empresarial por um
boom de construção de proporções verdadeiramente mon-
~:
~.
de surpresa em meio às pressões dessa nova política de ima- umentais. O objetivo é nada menos do que criar a capital ~.l
gem urbana e em meio à crise mais geral dos empreendi- do século XXI, mas essa visão se vê persistentemente as-
mentos arquitetônicos nestes últimos anos do nosso sécu- : '. i. sombrada pelo passado. ~
~
Sl
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~c;-.6~e~":J :;t::.du~ki~.::sPf"<-l fl_c-:I1:,"'ri.J SOcJ.J2tdc:·"; .Jt:l;a Msmó,·j.:'! "rvJ-,S'S61)
, '" Berlim-corno-texto permanece, principalmente, como elenco pré-socialista e quase sempre decididamente anti-
r~ um texto histórico, marcado tanto (se não mais) por au- socialista; a derrubada de monumentos ao socialismo; o
•••
(...• sências quanto pela presenç.a visível de seu passado, desde debate absurdo em torno da demolição do Palácio da Re-
ruínas proeminentes como a Kaiser-Wilhelrn-Cedãchrni- pública Democrática Alemã para dar lugar à reconstrução
..,
I
(~
r skirche, no final da famosa Kurfürstendarnrn,
balas-e estilhaços da Segunda Guerra que se encontram em
às marcas de do Palácio Hohenzollern, e assim por diante. Não se trata
apenas de fazer reparos na cidade-texto comunista. É uma
li
••
.",
muitos dos seus prédios. Foi talvez durante os meses que se
seguiram ao colapso da Alemanha Oriental que mais se a-
purou a nossa sensibilidade para com o passado dessa cida-
estratégia de poder e humilhação, a última investida da
ideologia da Guerra Fria, perseguida através de uma políti-
ca de signos, a maioria deles totalmente desnecessários e
,."
de que durante muito tempo ficou na mira das políticas com o previsível desmantelamento político de uma popu-
~
" deste século. Império, guerra e revolução; democracia, fas- lação alemã oriental que se sentiu cada vez mais privada da
·4 cismo, stalinisrno e Guerra Fria, tudo isso aconteceu aqui. sua história de vida e de suas memórias de quatro décadas
~ Indelevelmente gravada na nossa memória está a idéia de de desenvolvimento em separado. Embora nem todos os
-. ~ uma Berlim corno a capital da história, descontínua, com planos para derrubar monumentos e renornear ruas te-
rupturas, do colapso de quatro Estados alemães sucessivos; nham dado resultado, houve prejuízos. A nostalgia da Re-
corno o terreno do expressionismo literário e da revolta pública Democrática Alemã e o ressurgimento do apoio ao
...
i
contra a antiga ordem; corno o epicentro do vibrante van- remodelado partido comunista - Partei des dernokratis-
.--i
guardismo cultural da República de Weimar e de sua eli- chen Sozialismus (PDS) - foram os resultados políticos
.~
inevitáveis, mesmo entre muitos da geração mais nova, que
Ç,., minação pelo nazismo; como o centro de comando da
guerra mundial e do holocausto; e, finalmente, como o es- tinham atuado na oposição ao governo durante os anos
~ paço simbólico do confronto Leste-Oeste da era nuclear, 1980.
(J com tanques americanos e soviéticos vigiando uns aos ou- O esquecimento é igwJmente privilegiado numa cam-
tros no Charlie, que agora está se transformando num cen- panha de propaganda oficial de 1996, literalmente escrita
(~
por toda a cidade: Berlin wird ("Berlim torna-se"). Mas
ÇJ tro de negócios americano, sob a vigilância temporária de
uma imensa fotografia de Philip Johnson e de uma Estátua "torna-se" o quê? No lugar do predicado apropriado, te-
...4
da Liberdade reduzida e dourada, no topo da antiga torre mos um vazio verbal. De fato, este fraseado pode refletir
(~ de vigia da Alemanha Oriental. uma sábia precaução,' pois no caos atual de planejamento
..À Se nestes tempos confusos e estimulantes após a queda público, negociação de bastidores e política contraditória,
(~ do Muro Berlim parece saturada de memórias, os anos tam- com muitos empreendimentos arquitetõnicos no ar (entre
("J bém ensinam múltiplas lições sobre a política do esqueci- eles Spreeinsel e Alexanderplarz), sendo ainda incertas a
(~
(~
mento deliberado: a mudança de nome das ruas de Berlim
Oriental, imposta e quase inútil, devolvendo-as ao seu
sua viabilidade e o seu financiamento, parece que ninguém
sabe exatamente o qu, Berlirn v~ " <0'0". M" o >ubn,x- I
(~
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c.~
(
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e'" ..qI)O'r61 97
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Seduaidos pela Mernória
6$ IyVy,s
'·0 r
to otimista da elipse é totalmente claro e radicalmente cia e o glamour da chamada fase de estabilização, antes da r
oposto ao lamento feito em 1910 por Karl Scheffler de que crise de 1929. A expressão de Bloch "funções no vazio" r
este é o destino trágico de Berlirn: "sempre vir a ser, e nun- também articulou a percepção de que, na idade do capita- é
ca ser".' Muitas das construções e dos projetos realmente lismo monopolizante, espaço construído da cidade já não
r
cortam o dinamismo e a energia da Berlim da virada do sé-
culo que Scheffler, sempre um pessimista cultural, lamen-
poderia desempenhar as funções representativas
época anterior. Como Brechr também apontou,
de uma
naqueles
ti
tava. Como grande parte da Bcrlirn central de meados dos
anos 1990 é um imenso canteiro de obras, um buraco no
mesmos anos, quando discutiu a necessidade de um realis-
mo novo, pós-rnimético, a realidade mesma tinha se torna-
~I
chão, um vazio, há, por certo, mais boas razões para se en- do funcional, requerendo, então, toda uma renovação dos r-
fatizar o vazio do que para celebrar o estado atual do vir a modos de representar.' r
ser de Berlim. ,. Quase uma década depois, foi a vez de o fascismo trans- r
formar Berlim no vazio literal que era a paisagem de ruí- .
r
3 nas, em 1945. Especialmente no centro de Berlim, os bom-
r
" A noção de Berlim como um vazio é mais do que uma
o bardeiros ingleses e americanos se juntaram com os vânda-
los que assessoravam de Albert Speer a fim de criar uma
r-
metáfora, e não é somente uma condição transitória. Traz tábula rasa para a Germânia, a capital rebatizada de um r
consigo conotações históricas, desde que, em 1935, o filó- Reich vitorioso. E a criação dos vazios não parou aí; con- r
sofo marxista Ernst Bloch, no seu livro Erbschaft dieser
("O legado deste tempo"), descreveu a vida em Berlim co-
Zeit tinuou através dos anos 1950 sob a liderança da Sanierung
("renovação urbana"), quando quarteirões inteiros da velha
r
" mo "funções no vazio".' Ele se referia, então, ao vácuo
deixado pelo colapso da cultura burguesa do século XIX,
Berlim foram totalmente
sões sirnplistas
demolidos para dar lugar a ver-
da arquitetura de planejamento moderno,
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r
que encontrou sua expressão espacial na pesada e orna- característica dos novos tempos. O Muro, principal proje-
mental arquitetura de pedra d.os singulares prédios de a- to de construção do período do pós-guerra, precisou de
partamentos
. tkasernen
de Berlim, o pejorativamente chamado Mie-
("conjuntos de aluguel") com suas múltiplas alas
um outro vazio, aquele da terra-de-ninguém e dos campos
minados que abriam seu caminho em pleno centro da ci-
rri
de fundos, o chamado Hinterhãuser, que incluía pátios in- dade e detinham sua parte ocidental num cerco fechado.
r
ternos acessíveis da rua somente através de arcos parecidos
com túneis. O vácuo deixado pela Primeira Guerra foi pre-
A própria Berlim Ocidental sempre aparecia nos mapas co-
mo um vazio no Leste Europeu: a Berlim Ocidental da
'r)
enchido por uma cultura funcionalista e, segundo Bloch, Guerra Fria como o buraco no queijo do Leste Europeu. 'r-
insubstancial, de distração: o modernismo de Weimar, os Assim como os mapas de previsão do tempo na TV da ~)
cinemas que eram verdadeiros palácios, as corridas de seis Alemanha Ocidental por muitos anos representavam a Re- ()
dias de bicicleta, a nova arquitetura modernista, a elegân- pública Democrática Alemã como uma ausência, um espaço
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em branco circundando a Berlim Frontstadr, o queijo capi- vergalhões de aço da muralha, deixados para trás pelos
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talista num vazio que existia de fato. Mauerspecbte, os vendedores de cacos do Muro, e decora-
~ ·l Quando o Muro caiu, Berlim acrescentou um outro
( dos com bandeirinhas de papel colorido, que ficavam ba-
capítulo à sua narrativa de vazios, um capítulo que trouxe
..•
lançando ao vento; eles marcaram poderosamente o vazio
(
de volta as sombras do passado e fantasmas assustadores. como uma segunda natureza e como memorial. Essa insta-
( Durante uns dois anos, o centro de Berlim, portal entre as lação aumentava um estranho sentimento: o vazio satura-
partes leste e oeste da cidade, era um terreno baldio de de- do de história invisível, com memórias da arquitetura cons-
,~
zessete acres que ia do Portão de Brandenburgo à Pors- truída e não-construída. Isto fez florescer o desejo de dei-
~
damer Platz e à Leipziger Plarz, um largo rasgão de sujeira, xar tudo como era, o mernorial como uma página vazia
~
,
mato e restos de pavimentação, sob um enorme céu que bem no centro da cidade reunificada, centro que foi e sem-
~ parecia maior ainda dada a ausência de um horizonte de pre tem sido, ao mesmo tempo, o portal entre as partes
edifícios altos, tão característicos desta cidade. Os berli- leste e oeste da cidade, e~.paço que agora, com uma outra
~ nenses chamavam a região carinhosamente de "as estepes camada de significação, parecia ter sido chamado a repre-
~.
da cidade das maravilhas", ou "a pradaria da história".' Era sentar o muro invisível da nossa cabeça, que ainda separa-
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do, o vídeo e as imagens geradas por computadorl?'" Para
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Então, não admira que a principal preocupação no que de Peter Behren, tendo Heirich Tessenow como um mo- ~
concerne aos empreendimentos e à reconstrução dos lu- dernista moderado que se empenha numa política de tra-
gares mais importantes do centro de Berlimk pareça rela- dicionalismo antivanguardista e antiweimariano. Berlim
~
cionar-se mais com a imagem do que com o uso, e mais deve ser Berlim, dizem eles. A identidade está em jogo.
r
com a atração para os turistas e os visitantes oficiais do que
com a construção de um espaç:o heterogêneo para os habi-
Mas, essa identidade
minada pela arquitetura
desejada está sintomaticamente
anterior à Primeira Guerra, pelas
do-
r
tantes de Berlim viverem, mais com o apagamento da me- Mietkaserne, e pela noção novamente popular de uma vizi-
chamada de Kiez. No
mória do que com a sua imaginada preservação. A nova ar-
quitetura serve para otimizar a almejada imagem de Berlim
como capital e metrópole global do século XXI; como um
nhança tradicional, carinhosamente
final dos anos 1970, o Kiez estava associado à conrracul-
tura nos bairros decadentes perto do Muro, como Kreuz-
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eixo de ligação entre as Europ.is do Leste e do Oeste; e co- berg, onde os squatters ocuparam e restauraram os prédios
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arruinados. Nos anos 1980, passou a ser incorporado aos dias banais muito altos e uma infinidade de imagens gera-
principais esforços de preservação da cidade. E agora dita das por computador para nos convencer de que precisamos
~ os mais importantes parârnerros do novo conservadorismo "/i rumar para o futuro. Mas essa dicotomia da idade da pe-
,~ arquitetõnico. Foram esquecidas as experiências arquiretô- dra versus a idade do cyber está equivocada: a luta é quan-
••••
~ nicas e urbanísticas dos anos 1920, como os grandes con- to à imagem e só pela imagem, em ambos os lados da ques-
,~. juntos residenciais de Marrin Wagner e Bruno Taut. Foi es- I tão. A nova simplicidade nacionalmente codificada é tão
~ quecida - ou melhor: recalcada - a arquitetura do período calcada na imagem quanto os êxtases da imagem high-tech,
nazista, da qual, apesar de tudo, Berlim ainda guarda exem- exceto pelo fato de que ela coloca imagens banais de um pas-
~
plos significativos, desde o Estádio Olímpico até o Minis- sado nacional contra imagens de um futuro global igual-
~
tério da Aviação de Coering, perto da Leipziger Platz. mente banais. A verdadeira Berlim de hoje, com seus con-
~ Ignorada, quase a ponto de ser esquecida, está a arquitetu- flitos e aspirações, permanece um vazio, num debate que
·f ra da República Democrática Alemã, que muitos simples- padece de imaginação e visão.
~ mente gostariam de colocar abaixo - desde a Stalinallee até '. Vejamos Stimmann e Lampugnani. Este desaprova "fi-
.~ os projetos de conjuntos satélites, como Marzahn ou Ho- guras fáceis (...) sensações superficiais (...) leveza atormen-
c.. .henschõnhausen. Em vez disso, temos uma estranha mis- tada (...) crescimento descontrolado (...) novas interpreta-
(~ tura de um romantismo Kiez, originalmente de esquerda, ções bizarras"." Stimmann, por sua vez, protesta dizendo
e uma visão oitocentisra de uma redondeza dividida em " que "aprender com Las Vegas" não serve numa cidade da
(~
c..., pequenas parcelas, como se tais estruturas pudessem se tor- Europa central, numa declaração programática
contra o pós-modernismo em arquitetura
que é tão
quanto desca-
nar prescririvas para a construção da cidade como um to-
c,.., do. Mas, é precisamente isso que burocratas como Stirn- Iradamente antiamericana no que diz respeito à tradição
,,.., mann e teóricos como Hoffman-Axthelm têm em mente a conservadora da Kulturkririk alemã." Mas esse ataque a
(.., respeito da reconstrução crítica. Prescrições tais como blo- um texto de 25 anos, fundador da arquitetura pós-moder-
(,.., cos de edifícios, fachadas de vidro tradicionais, uma altura na, com sua renomada política de imagem, está estranha-
uniforme de 22 metros (o.s ritualistas evocam Traufhôhe) e ,mente fora do lugar e elo tempo. O pós-modernismo de
(~
prédios feitos de pedra são ferozmente defendidos contra Las Vegas tem estado em desuso há algum tempo, e nin-
(~ guém nunca sugeriu que Berlim deveria se tornar uma ci-
todas as evidências de que taltradicionalismo é totalmente
(~ imaginário. Construções de pedra, a bem da verdade, num dade-cassino. O objetivo oculto do protesto moralizador
(~ tempo em que o que se tem é uma fina lasca de pedra co- de Stirnmann é a Berlirn da República de Weimar. Lem-
C-'
...,
brindo o esqueleto de concreto.
,'I Não há muito interesse em se falar das corporações nes-
bremos que a Berlim dos anos 1920 definia sua rnoder-
nidade como o que havia de mais puramente "americano"
se debate. Com relação a elas temos um estilo high-tecb in- - uma Berlim como se fosse "Chicago sobre o Spree" - e ao
(~
ternacional, o êxtase das fachadas, a preferência por pré- mesmo tempo tão diferente das capitais européias mais
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antigas e da Berlim do Império guilhermino. Aderir ao chido com vida pelos seus habitantes e seus leitores, mas a
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modelo americano era aderir à modernidade tecnológica e cidade como imagem e design a serviço da exibição do po- r
pragmática do funcionalismo, da cultura de massa e da de- '.' der e do lucra. Esse objetivo subjacente paradigmatica-
t
mocracia. Nessa época, os Estados. Unidos ofereciam a
imagem do novo, mas a lembrança da arquitetura de Wei-
mente veio à tona num projeto da Leipziger Platz chama-
do Info Box, uma imensa caixa vermelha sobre pilotis ne-
r
~
(
mar - Eric Mendelsohn, Walter Gropius e a Bauhaus, Bru- gros, com fachada envidraçada e vários andares, e com um
no Taut, Martin Wagner, Hannes Meyer, Mies van der .;:i, terraço aberto com vista panorâmica. A Info Box, que atrai
F
;
Rohe - simplesmente não aparece nos debates atuais sobre cerca de cinco mil visitantes por dia, foi construída em
a arquitetura de Berlim. No seu anrimodernismo, os con- 1995 como instalação temporária para se ver os canteiros
servadores tornaram-se pós-modernos. Não admira, por- de obras salpicados de guindastes que circundam aquela
tanto, que a preferência de Stimrnann
crítica diga respeito principalmente
pela reconstrução
à imagem e à publici-
, :1' área. Com suas paredes de
som e computadores
displays multimídia, salas de
interativos, ela serve de local de ex-
ri
~
dade: a imagem do construido que cria um senso de iden- posição e publicidade para os avanços de corpo rações co-
t
tidade tradicional para Berlim, cujos vazios devem ser pre-
enchidos; e a imagem internacional mais intangível, embo-
mo a Mercedes, a Sony e o Grupo de Investimento A+T na
Leipziger Platz e na Potsdamer Platz. Como um cyber- r
ra economicamente decisiva, de uma cidade na dos servi- flâneur na "Berlirn Virtual 2002", você pode tomar um f;
ços econômicos globais, do turismo urbano, da competi- vôo simulado por computador e passear pelas novidades
ção cultural e das novas concentrações de riqueza e poder. das novas Porsdarner Plarz e Leipziger Platz, ou pode che-
Mas a imagem almejada é, decididamente; aquela anterior gar, por trem, à futura Lehrrer Bahnhof. Pode olhar o can-
t,
a 1914. Os reconstrucionistas críticos fantasiam um se- teiro de obras num anfiteatro circundado, em seu interior,
r
gundo Gründerzeit, análogo ao dos tempos dos anos de por uma tela, enquanto ouve, num desenho animado no
rll
fundação do Segundo Reich, depois a Guerra Franco-Prus-
siana. Não importando
Gründerzeit
que a corrida do ouro do primeiro
tenha entrado em colapso tão rápido, com a
estilo Disney, um pardal berlinense fazer a sua narrativa no
linguajar maneiro das ruas de Berlim, com uma ligeira in-
flexão típica das camadas populares. Ou você pode admi-
;:
crise de 1873 e o começo de uma longa depressão.
" ,A questão da Berlim central - para usar num contexto
muito diferente os agora clássicos termos pós-modernos de
."
rar moldes de gesso da maioria dos arquitetos - o culto ao
grande construtor está vivo e passa bem, enquanto simu-
lacro, e tudo o mais, como os arquitetos, tornou-se um
t
~'
~
'i~ ("canteiro de obras"). Berlim como um todo faz publici- Berlim nos meados do inverno. Chame-se a isto de vin-
dade de si mesma como se fosse uma Schaustellen, com o gança do real. Além do mais, alguns dos sofisticados con-
slogan "Bühnen, Bauten, Boulevards" ("palcos, prédios, juntos comerciais da Friedrichstrae, feitos para competir
~ boulevares"), e montou um programa cultural que incluiu com o KaDeWe (Kaufhaus des Westens) e com a área de
~ mais de duzentos passeios turísticos pelos canteiros de shopping da Kurfürstendamrn, assim como as áreas próxi-
~ obras e oitocentas horas de música, acrobacia e pantomi- mas, já estão latadas, e embora Berlirn já tenha espaço para
(~ tantes do Oeste tivessem uma ampla visão do corredor da tral do tráfego entre as partes Leste e Oeste da cidade. Há
(...j morte, emblema do totalitarismo comunista? Só seria per- boas razões para duvidar se a tenda feliz de Helmur Jahn,
(...j verso se alguém simplesmente igualasse os dois locais. que pairava sobre a praç:a central das instalações da Sony,
Além disso, a memória dessa outra plataforma não irá em- poderá compensar a verda de vida urbana que esses em-
(..I ~ : 1\:
bora na medida em que divide com a Info Box um certo preendimentos inevitavelmente trarão.
(...I triunfalisrno nefasto. O rriunfalisrno político do Mundo
(~ Livre na época da Guerra' Fria foi substituído
falisrno. do mercado livre na idade da globalização empre-
pelo triun-
5
~
sarial. , Considerando as forças e as pressões que vêm moldan-
~
Talvez a caixa e a tela sejam nosso futuro. Afinal, os em- do a nova Berlirn, pede-se bem temer que o conjunto de
(~
preendimentos recentemente terminados na Friedrichstrae, soluções arquitetônicas propostas represente a pior arran-
(~ cada para o século XXI g ue alguém possa imaginar para es-
a principal artéria comercial que cruza o Unter den Lin-
(~ den, parece assustadoramente semelhante às suas antigas ta cidade. Muitos dos principais projetos de construção, ao
simulações por computador, com uma grande diferença: que me parece, foram desenhados contra a cidade, em vez
o que parecia arejado, às vezes até mesmo elegante e gene- de para ela. Alguns deles parecem aeronaves empresariais,
(~ rosamente espaçoso nas simulações, agora parece opres- remanescentes do filme Contatos imediatos de terceiro grau. ,
sivamente monumental, massivo e assustador, especial- O problema é: elas vieram para ficar. O vazio no centro de
(~ Berlim terá de ser preenchido. Mas as memórias daquele
mente quando experimentado sob os céus cinzentos de
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assombroso espaço de meses e anos depois de o Muro ter De qualquer forma, à luz do projeto de arquitetura de
caído permanecerão. O arquiteto que entendeu a natureza Libeskind, que é definitivamente uma arquitetura da me-
desse espaço vazio no centro de Berlirn foi Oaniel mória, mesmo a sua sugestão de deixar o vazio como esta-
Libeskind, que, em 1992, fez a seguinte proposta: va no começo dos anos 1990 não era somente romântica e
I impraticável. Pois Libeskind deu forma arquiterônica a um
Rilee disse uma vez que tudojá está lá. Precisamos apenas outro vazio que asson:bra Berlim, o vazio histórico deixa-
ver e proteger. Precisamos desenuoluer um sentimento pelos do pela destruição nazista da vida e da cultura judaicas de
lugares, as ruas e as casas que precisam de nosso apoio. Veja Berlim, que eram tão prósperas. A discussão sobre um
a área aberta na Potsdamer Platz. Sugiro um descampado de ,I.. museu projetado por Libeskind - indiscutivelmente o pré-
um quilômetro de extensão, dentro do qual tudo pode ficar dio mais interessante em construção em Berlim - é aqui r
como está. A rua simplesmente termina no mato. Ma- apropriada não apenas porque dá uma inflexão diferente à t-I
ravilhoso. Afinal, essa área é o resultado do direito natural noção de Berlim como vazio em relação à memória e' à ~"
l I
divino de hoje: ninguém a quer, ninguém a planejou, no en-
tanto ela permanece firmemente implantada nas mentes de
história, mas é mais importante porque, mesmo indireta-
r
todos nós, E lá, nas nossas cabeças, essa imagem do vazio da
mente, traz à tona a questão da identidade nacional alemã
e da identidade de Berlim. Embora hoje todos os outros
t
Potsdamer Platz ficará por décadas. Coisas como essanão po- canteiros de obra de Berlim sejam inevitavelmente assom- f'
dem serfaciLmente apagadas, mesmo se toda a área estiver brados pelo passado, somente o prédio de Libeskind tem a
ocupada. 11
intenção de articular a memória e a nossa relação com ela r
. Por certo, o que Libeskind descreve cruamente como a
na sua própria organização espacial.
t'lr
"o direito natural divino de hoje" não é nada mais que a
pressão da história, que criou o vazio chamado Porsdarner
Platz em primeiro lugar: a saturação de bombardeios de
6
Em 1989, apenas alguns meses antes da queda do Mu-
-.
1944-45, que só deixou de pé uma pequena parte da anti- ro, Libeskind foi surpreendido pela vitória do concurso pa-
ga Potsdamer Platz, a construção do Muro, em 1961, que
ra a expansão do Museu de Berlim com o Museu Judaico, t
requereu a posterior desocupação da área; a queda do Mu-
ro em 1989, que transformou a área toda, entre o Portão
como ele é estranharnente
bastante adequada,
chamado, ainda que de maneira
O Museu de Berlim foi fundado em
t
de Brandenburgo e a Potsdarner Plarz, nessa pradaria da
1962 como um museu de história local da parte ocidental
história que os berlinenses rapidamente incorporaram. Foi ~
da cidade dividida, numa clara reação à construção do
••
um vazio preenchido com história e memória, e tudo será
apagado pela nova construção civil (sou menos otimista
que Libeskind a respeito do poder da memória).
Muro, que tornou inacessível o antigo museu de história
local, o Markisches Museum. Desde o final dos anos 1970,
o Museu de Berlim tem uma seção judaica, que docurnen-
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r~ ta o papel dos judeus alemães na história de Berlim (atual- ao hall de exposições do museu: somente pela entrada sub-
mente abrigado no Martin-Gropius-Bau). Com a expan- terrânea o visitante pode entrar fisicarnjente numa seção
~
são, o museu era para ter três partes: uma apresentando I," desse espaço vazio. Não se pode entrar nele de nenhum
~
uma história geral de Berlim, de 1870 até hoje; uma re- outro lugar, mas pode-se vê-lo das pequenas pontes que
1~ presentando a história dos judeus em Berlim; e um espaço cruzam o museu em cada andar; é a visão de um abismo
(""~ intermediário dedicado ao tema dos judeus na sociedade, que se estende para cima e para baixo ao mesmo tempo.
(~~ que deveria articular as relações e passagens com os outros Libeskind chama isso de "o vazio". Esse vazio fraturado e
.~ dois componentes. O pr?pósito de Libeskind era tão ar- multiplamente interrompido funciona como uma espinha
quitetonicamenre ousado quanto conceitualmente con- para o prédio. É tão: conceitual quanto literal. E, clara-
.~
vincente, e embora resistências múltiplas - políticas, es- mente, tem significação: enquanto vazio, significa ausên-
.t
téticas e econômicas - tivessem que ser vencidas, o museu cia, a ausência dos judeus de Berlim, muitos dos quais
~ está sendo construído e deverá ficar pronto no outono de pereceram no Holocausto.'3 Como um vazio fraturado,
.) 1997. significa história, uma história quebrada, sem continui-
I) . A expansão é anexa ao antigo Museu de Berlim, um dade - a história dos judeus na Alemanha; dos judeus
) palácio barroco que abrigava o Tribunal de Berlim antes de alemães; e também da história da Alemanha propriamente
) o espaço ser transformado em museu. A parte velha e a no- dita. Então, conforme a demanda original do concurso, o
va estão aparentemente desconectadas, e a única entrada vazio produz esse espaço intermediário entre a história de
()
para o anexo é subterrânea, saindo do antigo prédio. A es- Berlim e a história dos judeus em Berlim, assim insepa-
() trutura de Libeskind tem sido freqüentemençe descrita co- ráveis, mas reunidas de um modo radicalmente diferente
) mo um ziguezague, como um raio ou, já que sua finalidade do que foi originalmente imaginado pelo concurso. Ao
() é abrigar uma coleção judaica, c.~n:.~}lma estrela-de-davi deixar esse espaço intermediário vazio, a arquitetura do
() fraturada. Ele próprio a chamou de "Entrelinhas". A am- museu retoma a possibilidade de reconciliar a história
bigüidade entre um .espaço arquitetõnico e um sentido alemã-judaica juntamente com os modelos desacreditados
()
literário (uma pessoa lê nas entrelinhas) é intencional e na de simbiose e assimilação. Mas também rejeita a visão
()
verdade sugere a essência conceitual do projeto. A estrutu- oposta que vê o Holocausto como. o rélos inevitável da
( ) ra básica do prédio está fundada na relação entre duas li- história da Alemanhara vida dos judeus na Alemanha foi
) nhas, uma reta, mas quebrada em pedaços, dividida em profundamente alterada pelo Holocausro, mas não acabou
,) fragmentos; a outra tem curvas contorcidas, mas sempre aí. O vazio, então, transformou-se num que alimenta a
() ., apontando para um lugar. Arquitetonicamente, o eixo lon- memória e a reflexão, tanto para os judeus quanto para os
gitudinal se transforma em finas fatias de espaço vazio que alemães. Sua presença ar'oma para uma ausência que nun-
[)
cruzam a tritha da estrutura em ziguezague a cada inter- ca pôde ser dominada, uma ruptura que não poderá ser cu-
)
seção, e vem de baixo até o topo do prédio. Não dá acesso rada, e que certamente não pode ser preenchida com obje-
)
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tos museicos. Sua fundamental negatividade epistemológi- .! I," do prédio. Essa antimonumentalidade monumental, com (11
ca não pode ser absorvida pelas narrativas que serão con- a qual o museu memorializa o Holocausto e a vida dos
(I,
tadas pelos objetos e pelas instalações que estão nas salas de judeus em Berlim, faz um agudo contraste com a monu-
(J
exposição do museu. O vazio sempre estará na mente dos mentalidade da falta de consciência do governo ao apoiar
espectadores que cruzam as pontes que atravessam o mu- o Monumento ao Holocausto que deverá ser construido a <-1
:t
seu, à medida que se movem' pelo espaço das exposições. nordeste do espaço entre o Portâo de Brandenburgo e a (
Os espectadores vão se mover constantemente entre as li- ~i, : i Leipziger Plarz." Para aqueles que, com boas razões, ques- (1
nhas. Organizada em torno de um vazio sem imagens, a tionam a capacidade dos monumentos tradicionais de
arquitetura de Libeskind se remou um roteiro. Seu prédio
descreve a narrativa desconrínua que é Berlim, inscreve-a
manter viva a memória enquanto memória pública ou co-
letiva, o anexo de Libeskind do Museu de Berlirn talvez se-
~I
(J,
fisicamente no próprio movimento do visitante do museu, ja um memorial melhor para a história dos alemães e dos
J
e ainda abre um espaço para que a lembrança seja articula- judeus, a história dos vivos e dos mortos, do que seria um .
da e lida nas entrelinhas. monumento fúnebre oficial ao Holocausto." ("
Certamente, os vazios que venho justapondo são de na- Portanto, como arquitetura, o museu de Libeskind é o IÇ.
turezas fundamentalmente diferentes. Um é o espaço urba- único projeto, no atual boom de construção de Berlim,
(
no em aberto, resultante da guerra, da destruição, e de que explicitamente articula, de forma pertinente, questões
('
uma série de eventos históricos subseqüentes; o outro é o da história nacional e local para uma Alemanha posterior à
(~
espaço arquiterônico, construido conscientemente e auto- ., unificação. Em sua ênfase espacial sobre rupturas, descon-
reflexivo por essência. Ambos O:S espaços alimentam a me-
mória, mas a memória de quem? A noção mesma do vazio
tinuidades e fraturas radicais da história dos alemães e dos
judeus alemães, permanece em oposição, às tentativas da
(I
(
terá significados diferentes para os judeus e para os ale-
mães. Há o perigo de se romantizar, ou naturalizar o cen-
crítica reconstrucionista de criar uma continuidade imper- (-', I
. ceptível com um passado nacional anterior a 1914, que (""
tro vazio de Berlim, já que o prédio de Libeskind não po- apagariam no seu processo as memórias da arquitetura de
derá evitar a crítica de estetizar arquitetonicamente ou Weimar, do nazismo e da República Democrática Alemã. ~I
monumentalizar o vazio." Mas, então, a articulação desse q Como uma arquitetura da memória, também se opõe à ar- ~I
espaço do museu demonstra a preocupação do arquiteto quitetura pós-nacionalista das corporações globais à Ia (",
com os perigos da monumenralização: enorme como é o Porsdamer Platz e Leipziger Platz, uma arquitetura de cons- ~
anexo, o espectador nunca o verá o experimentará como trução civil que não tem nem memória, nem senso de lu- (
como um todo. Tanto o vazio do lado de dentro quanto o . gar. Como um manifesto não intencional, o museu apon-
prédio visco de fora impedem a visão total sobre a qual os
~
ta para o vazio conceitual que atualmente existe entre uma
efeitos monumentais estão baseados. A monumentalidade .. visão nostálgica da cidade pré-1914 e seus entrópicos
~
espacial é entrecortada pela inevitável apreensão temporal , shoppings burocráticos pós-2002. A história de Berlim co- ~
("
~.io
(
(
() 114 y...,~SS0" "1""re 115
C)
I.
-p.J,\Óte?;":. i.' $ i·.t'~;) :\1~
a. '"
-- ~\h.:;":: -: ...• ': ..~,,''1 .\Jj.::-n••·.rl.,. '-'YSSD"
\) mo vazio ainda não acabou, mas, então, talvez uma cidade 7. Bernard Tschumi, Euent-Cities: Praxis ("Cidades-evento: práxis''),
) Cambridge, Mass., 1994, p. 367.
tão vasta e vibrante corno Berlim dê um jeito de incorpo-
) 8. Ver Saskia Sassen, The CIo ,aI City: Neio York, London, Tokyo (UA
rar seus últimos elefantes brancos da Porsdarner Platz e da
cidade global: Nova York, Lonc.res e Tóquio"), Princeton, N.J., 1991.
) Leipziger Platz a um tecido urbano maior. Se Paris está ap- 9. Algumas das conrribuções centrais para o debate sobre a reconstrução
() ta a viver com o Sacré Coeur, quem dirá que Berlim não
,
crítica se encontram em Gert Kahler (org.), Einfach schwierig: Eine
(~ pode engolir a Sony Corp.? Assim que passar o atual frene- deutsche Archirekrurdebarte ("Fácil difícil: um debate arquitetõnico
si "da imagem e a Info Box for desmontada, assim que re- alemão"), Braunschweig, 1995.
10. Citado em Dagmar Richrer, "Spazieren in Berlin" ("Passear por
,.~ construcionistas críticos tenham sido esquecidos, a noção
Berlirn"), Assemblage, n, 29, 1996, p. 80.
.., de capital como uma montagem de muitas formas e es-
11. Hans Stimrnann, "Conclusion: From Building Boom to Building
paços históricos poderá s.eimpor novamente, e o compro-
;l misso com a textura necessariamente palimpséstica do es-
Type" ("Conclusão: do boom de construção ao tipo da construção"), in
.,
Annegret Burg, Downtown Berlin: Building the Metropoliran
:-J paço urbano' talvez até leve a novas formas de arquitetura, Mix!Berlin Mirre: Die Enrsrehung einer urbanen Archirektur ("O cen-
hoje sequer irnagináveis. tro de Berlim: construindo a mistura metropolitana! O centro de Ber-
lim: sobre uma arquitetura urbana"), ed. Srimrnann, rrans. Ingrid Tay-
C' Notas: lor, Christian Caryl e Robin Benson, Berlirn, 1995.
() 12. Daniel Libeskind, "Daniel Libeskind rnit Daniel Libeskind: Potsdarner
1. Ver Michael Kinmelman, "Thar F1ashing Crazy Quilr of Signs? Irs Plarz" ("Daniel Libeskind com Daniel Libeskind: Porsdamer Plarz" , 1992).,
~
Art" ("Aquela colcha reluzente de signos? É arte"). New York Times, 31 in Alois Manin Müller (ed.), Radix-Marrix: Architekruren und Schrifen
t~ de dezembro de 1996, pp. A!, C20. ("Radix-Matrix: projetos arquitetõnicos e escritos"), Munique, 1994, p. 149.
\..,
., 2. Karl Scheller, Berlin - Ein Stadtschiksal ("Berlim - o destino de uma
cidade"), Berlirn, [1910J 1989, p. 219.
3. Ernst Bloch, Erbschaft diesel' Zeit ("O legado deste tempo"). Frank-
13. Para uma crítica cortês, mas para mim não muito convincente,
visão de Libeskind sobre o vazio como determinado
tória, o significado e a experiência, ver Derrida,
também
"Jacques Derrida
pela his-
zu
à
abertura do Muro ao embrulhamento do Reichstag", Assemblage, n. um pedaço. de concreto inclinado do tamanho de dois campos de fute-
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bol com milhões de nomes das vítimas esculpidos na pedra. Nem mes-
(', 29, 1996, p. 50.
mo Helmut Kohl gostoU, ainda que, certamente, pelas razões erradas.
6. Ver Perer Der Mauerspringer ("O
("
t~
Darrnsradt,
Schneider,
1982, p. 102.
salta-muro"),
Um novo concurso foi antecipado para o final deste ano.
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16. Falo aqui somente do prédio enquanto arquitetura. Suas funções de
e
museu e curado ria ainda estão muito instáveis para que eu possa tecer Andreas Huyssen é professor de literaturas comparada e
comentários, com algum grau de certeza, sobre a maneira como os es-
paços de exposição serão usados, ou mesmo sobre quem tem o controle
germânica, cátedra Villard, na Universidade de Columbia, c\
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da curadoria do anexo.
em Nova York, onde também dirige o Centro de Estudos
de Literatura Comparada .