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Entre Uma Nuvem... Eduardo PC

O texto explora o lugar da poesia em diferentes contextos, como nas estantes de livrarias, na vida cotidiana e na educação, questionando sua relevância e presença na sociedade contemporânea. A poesia é apresentada como uma forma de dar significado ao 'aqui', essencial para a experiência humana, mas que enfrenta o risco de ser marginalizada. O autor defende que a poesia deve ser valorizada e integrada na vida das pessoas, pois é capaz de criar momentos de beleza e reflexão.

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Entre Uma Nuvem... Eduardo PC

O texto explora o lugar da poesia em diferentes contextos, como nas estantes de livrarias, na vida cotidiana e na educação, questionando sua relevância e presença na sociedade contemporânea. A poesia é apresentada como uma forma de dar significado ao 'aqui', essencial para a experiência humana, mas que enfrenta o risco de ser marginalizada. O autor defende que a poesia deve ser valorizada e integrada na vida das pessoas, pois é capaz de criar momentos de beleza e reflexão.

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En

mEntre uma,nuyem negraa


e uti yembrancaya
Edua dCoelho

Tema: o lugar da poesia.


Começar por enunciar as possíveis declinações da
expressāo.
Assim: primeiro, pergunta-se qual o lugar da poesia nas
estantes? Porque a questão das estantes é obviamente uma
questão de hierarquias culturais: como arrumar os livros? que
livros estão mais perto de mim? que livros cam junto à luz que
vem das janelas? que livros ocupam a primeira la, em detri-
mento de outros que cam esquecidos lá para trás? como se
arrumam? com que critério? Um dia, a equipa de sociólogos de
Pierre Bourdieu conduziu um estudo, extremamente interes-
sante, sobre as diversas estratégias de colocação dos livros ao
longo dos anos na mais importante livraria católica de Paris, "La
Procure".O que se veri cava era que um determinado número
de temas ganhava a primazia com o avanço nos tempos: a se-
xualidade, por exemplo; ou a sociologia; ou os livros de viagens;
e que essas valorizações deviam compatibilizar-se com a marca
distintiva da livraria-o facto de ser uma livraria "católica". Não
sei bem qual era, nesse estudo, o posicionamento dos livros de
poesia. Mas posso dizer uma coisa: a colocação dos livros de
poesia de ne a qualidade de uma livraria. Procure o leitor
encontrar na livraria de um aeroporto o local dos livros de poe-
sia: não existe.
Donde: qual é o lugar da poesia no espaço da casa? Questāo
importante, porque tem a ver com o modo como a poesia é lida
se é que é lida. A que horas do dia? Com que iluminação?

relâmpago n°2 4|98 13


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Eduardo Prado Coelho

Sentado?Deitado? De pé? Andando na varanda? No carro? Na


casadebanho? No quarto? No escritório? Ả secretáia? Num
sofá?Com um lápis na mão? Lendo o livro todo de seguida?
Abrindo o livro ao acaso, e cando à mercê da tendência que os
livros têm para se abrirem sempre nas mesmas páginas?
Enunciando números de páginas à toa para contrariar essa
tendência sica? Copiando os versos mais importantes?
Mandandocitações à pessoa amada? Incluindo poemas nas car-
tas?Deixando recados com metáforas à deriva? Juntando poe-
mas às receitas de cozinha?
Se alargarmos o círculo, as perguntas começam a tornar-se
maisincomodativas. Qual o lugar da poesia no nosso ensino?
Até que ponto os jovens adquirem a noção da importância das
palavras,entendem o que vale o uso de uma palavra face a uma
outrapalavra possível, ou como as palavras têm efeitos, efeitos
de riso, de deslumbramento, de poder, de corrupção, de
sedução, de envolvimento, de compaixão, de clemência, de
beleza pura, de in nito? Porque o uso das palavras, a jubilação
da palavra certa por m encontrada, a modulação do encontro
na rede oscilante das palavras, tudo isso se pode aprender, e
tudoissopode alterar uma vida, uma relação, um momento de
desânimo, um começo de noite.
Qual o lugar da poesia na cidade? Os antropólogos contem-
porâneostendem a distinguir entre os lugares e os não-lugares,
sugerindoque uma certa sobre-modernidade (ou, se preferirem,
pós-modernidade) se distingue por uma predominânia dos
não-lugares,isto é, dos locais que servem apenas para que algo
passe, e alguma coisa se passe, e no entanto nada aconteça
senão o vazio interior dessa passagem: estradas, moteis, aero-
portos,gares de caminho de ferro, anónimos bares nocturnos.
Overdadeiro lugar teria sempre uma memória e um enraiza-
mento,corresponderia sempre a um valor de uso, a uma relação
intensiva. O não-lugar é um espaço desconectado, com mero
valor de troca, disponível apenas para relações extensivas. De
certomodo, poderíamos dizer que um lugar é uma zona de
adensamento da dimensão poética. Os lugares agarram-se a
nósna magia dos nomes próprios, desesperadamente próprios,
queos nomeiam. Mas devemos reconhecer ainda que nos nos-
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Entre uma nuvem negra e uma nuvem branca

sos dias emerge uma poética do não-lugar, suspensa de uma


geogra a da perda e do desgaramento, movida pela errância e
o nomadismo - horizonte crepuscular de cidades em fogo,
como num poema de Al Berto. Só que também aí a poesia con-
verte a sucessão dos não-lugares num lugar de sucessões.
Avancemos um pouco. Na tradição dos lugares-comuns,
Portugal era um país de poetas. Como numn lugar-comum há
sempre um resto de verdade, tal a rmação não era inteiramente
falsa. Havia o hábito de dar uma considerável importância à
edição poética, havia admiráveis colecções de poesia, havia
magní cos tradutores de poetas estrangeiros, havia uma
importância considerável da poesia nas páginas dos jornais, nas
revistas e nos suplementos literários. Muitas destas pessoas,
coisas e comportamentos, continuam felizmente a existir. Mas,
in uenciados pelas hierarquias dos mercados internacionais,
começámos a consagrar a cção como o género absoluto, e den-
tro da cção, os ccionistas que, como se diz, "sabem contar
histórias". Nada contra, evidentemente, desde que isso não faça
desaparecer o interesse pelas publicações de poesia, e também
pelos livros de cção ditos "difíceis" (como os de Maria Velho da
Costa ou Maria Gabriela Llansol, Rui Nunes ou Teresa Salema),
onde a contiguidade com o discurso poético emaranha a li-
nearidade das narrativas tradicionais.
Se ouvirmos a rádio, encontramos pouca ou nenhuma poe-
sia em quase todas as emissões, ou mesmo, para se falar ver-
dade, pouca ou nenhuma rádio. No entanto, a Antena 2 (e por
vezes Graça Vasconcelos na Antena 1 ou Paulo Alves Guerra na
TSF) dedica um espaço considerável aos textos literários o que é
positivo (apesar de uma certa poeticidade difusa de algumas
emissões que nem sempre conserva os necessários equilíbrios).
Já no que diz respeito às televisões, a situação é bastarnte mais
negativa. Se pusermos de lado o programa "Acontece", e alguns
excelentes documentários de Diana Andringae uma ou outra
entrevista de Clara Ferreira Alves, a poesia não chega a existir.
Mas digamos a verdade: é tudo o que é cultura que não chega
a existir.
Daí a possível e legítima sensação de que o lugar da poesia
recua na sociedade portuguesa e começa a estar ameaçado.
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Eduardo Prado Coelho

O risco é que a poesia permaneça como bolorenta matéria o cial


nos programas de ensino, e pouco a pouco deixe de ter uma
função essencial no quotidiano das pessoas: a de criar, na dobra
de uma frase, no articulado de três palavras, no tecido de um
texto, um patamar de espanto e deslumbramento, uma suspen-
são do tempo, uma inscrição dourada, dessas que nos acom-
panham pela vida fora e nos ajudam em momentos de desânimo.
Eé aqui que deveremos dizer o mnais importante: que não
poderemos falar em "o lugar da poesia" sem termos emn conta
que a poesia é o que dá lugar. A poesia é a glória de estarmos
aqui – mas começa por ser (porque tudo começa na linguagem)
a digni cação verbal da palavra "aqui". Como escreve Jean-
-Louis Chrétien, em L' Arche de la Parole, "a aparição do belo não
ocupa um lugar, dá lugar. Não se produz num espaço previa-
mente constituído e de que retiraria a sua condição de possibi-
lidade, como se entrasse numa cena, num cenário, sob uma lu-
minação que a tivesse precedido. Ao ter lugar, ela dá lugar, isto
é, ela faz que se erga um 'aqui' na sua exclamação jubilatória e
lancinante. O 'aqui' aberto pela beleza não gura em nenhum
cadastro, tal como sucede aos relâmpagos que o emolduram.
Por muito que custe ao romantismo, a poderosa estranheza da
beleza não reside no facto de ela insinuar a nostalgia de um
outro espaço, do mais longínquo dos espaços, infectando-nos
dos 'grands départs inassouvis', como aqueles que deplora Jean
de La Ville de Mirmont, ao qual Gabriel Fauré ofereceu cantos
tão puros. Esta estranheza é apenas a do aqui, arrancada à
indiferença e permutabilidade dos lugares, e onde vêm con uir
os espaços do longe."
O lugar a que a poesia dá lugar para nele incorporar a
matéria incendiada dos lugares e não-lugares poéticos começa
por se distinguir por uma questão de peso. Tomemos Santo
Agostinho: meu peso, meu amor. "E na boa vontade que reside
a paz. O corpo apoia-se na boa vontade para atingir o seu lugar.
O peso não tende apenas para baixo, tende para o seu lugar. O
fogo vai para cima, a pedra desce. São levados pelo seu peso,
atingem os seus lugares. O óleo que se espalha na água eleva-se
acima da água, a água espalhada sobre o óleo ca imersa sob
esse óleo: são empurrados pelo seu peso, atingem os seus

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Entre uma nuvem negra e uma nuvem branca

lugares. O que está menos ordenado não está em repouso:


ordena-se e ca em repouso. Meu peso: meu amor
Donde, a poesia concentra-se no peso das palavras que con-
duzem cada coisa ao seu lugar, ao lugar onde o peso é o amor
do aqui, o seu esplendor Se há um lugar da poesia, é esse. Cada
lugar existe entre uma nuvem negra e uma nuvem branca. Eo
espelho em que as palavras dizem do lugar o lugar que ele é que
permite que ele se erga sobre a nuvem negra e aí desenhe uma
gura de voo. Assim se viu o lugar da poesia nas visões de
Hildegarde de Bingen: "De novo eu vi como que uma grarnde
cidade construída em quadrado que parecia rodeada de um
certo esplendor e de uma certa treva, por aqui e por ali, como
por um muro, e também ornada de algumas montanhas e algu-
mas imagens. Vi também, no meio da sua zona oriental, como
que uma montanha grande e elevada, feita de uma pedra dura
e branca, donde saía fogo: ela possuía uma forma bela e no seu
cume brilhava como que um espelho de uma clareza e de uma
pureza tão grandes que parecia ultrapassar em excelência o
próprio esplendor do sol: sobre ele aparecia também uma
pomba de asas abertas pronta para voar. Era este mesmo espe-
Iho que, trazendo em si o maior número de maravilhas escon-
didas que se pode imaginar, lançava um esplendor de uma
enorme extensão e elevação, no qual apareciam numerosos mis-
térios e formas múltiplas de diversas imagens. Com efeito, este
esplendor deixava ver do lado da região astral, na zona supe-
rior, uma nuvem branca, e, na zona inferior, aparecia uma
nuvem negra, sobre a qual uma in nita multidão de anjos pro-
jectava um brilho fulgurante; todos eram movidos pelo vento
como lâmpadas ardentes; e também ele no seu voo estava cheio
de vozes que soavam como a fala do mar.
Basta saber olhar: este é o lugar da poesia. Aqui, com
Hildegarde de Bingen, na cozinha, na cadeira, no velho sofá, na
sala de aula, no banco do carro, no saco do supermercado, na
bolsa do pão, nas mãos de uma criança, sobre a terra, sobre os
animais ofegantes, na primeira página dos jornais, na tela do
cinema, no quarto dos amantes. Entre uma nuvem negra e uma
nuvem branca.

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