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4.+Dante.+O+garimpo+de+ouro+no+rio+Madeira.+p.36-48

A garimpagem de ouro no rio Madeira, que começou no final dos anos 1970, atingiu seu auge na década de 1980 e começou a declinar nos anos 1990. A atividade atraiu muitos garimpeiros, incluindo Mário Savanhago, e concentrou-se principalmente em Rondônia, com métodos de extração evoluindo de lavra manual para o uso de dragas. O artigo explora a história da garimpagem, depoimentos de garimpeiros e a importância da produção de ouro na região.

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A garimpagem de ouro no rio Madeira, que começou no final dos anos 1970, atingiu seu auge na década de 1980 e começou a declinar nos anos 1990. A atividade atraiu muitos garimpeiros, incluindo Mário Savanhago, e concentrou-se principalmente em Rondônia, com métodos de extração evoluindo de lavra manual para o uso de dragas. O artigo explora a história da garimpagem, depoimentos de garimpeiros e a importância da produção de ouro na região.

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O Garimpo de Ouro no Rio Madeira durante a Década de 1980 Segundo a

Percepção de um Garimpeiro
Gold Mining on the Madeira River during the 1980s According to the Perception of a Gold Miner
Dante Ribeiro da Fonseca*
Resumo: Iniciada no final dos anos de 1970, a garimpagem do ouro no rio Madeira teve seu apogeu na dé-
cada seguinte, seu declínio principia nos primeiros anos da década de 1990. A atividade concentrou-se na
região do Alto Madeira, inclusive no trecho encachoeirado do rio, em sua maior parte dentro do estado de
Rondônia expandindo-se também pela região fronteiriça da Bolívia com o Brasil. Atraiu pessoas de todas as
partes do Brasil e entre esses buscadores da fortuna estava o sr. Mário Savanhago. Primeiramente garimpei-
ro, depois dono de draga, permaneceu nessa atividade até que o garimpo iniciou a decair. O presente artigo
é composto por uma introdução, contendo um breve histórico sobre a atividade garimpeira no rio Madeira
na década de 1980; o depoimento do sr. Mário Savanhago; finalizando com algumas considerações sobre a
formulação de documentos a partir de depoimentos orais.
Palavras-chave: Garimpo; Amazônia; Rondônia; Conhecimento popular.

Introdução1 téria prima muito valorizada na época, des-


Embora o rio Madeira tenha partici- pertou a cobiça de mineradores que pas-
pado como corredor de comunicação entre saram a pesquisar a existência de outras
o norte do Mato Grosso e Belém do Pará, jazidas, provocando uma corrida em busca
em razão do controle do comércio da re- desse metal em Rondônia. A exploração
gião aurífera do Guaporé, cujos primeiros manual da cassiterita, que ocupou milha-
achados são datados de 1731, a minera- res de trabalhadores, foi proibida no início
ção do ouro propriamente dita na bacia do da década de 1970 e o minério passou a
rio Madeira é fenômeno do século XX. ser objeto de produção industrial, explo-
rada pelas mineradoras estrangeiras que
Em Rondônia, a mineração come- ganharam do governo brasileiro a conces-
ça nesse mesmo século, pois a partir dos são para esse fim. Ao longo dessa década
anos de 1950 são constatadas a existência a produção desse minério entra em deca-
de jazidas de cassiterita no seringal do sr. dência em razão da queda de seu preço no
Joaquim Pereira da Rocha, situadas no rio mercado internacional. Consta também em
Machadinho, afluente do rio Jamari, que meados do século passado, achados de
deságua no rio Madeira. A cassiterita, ma- diamantes no rio Pimenta Bueno, afluente
do Ji-Paraná.
* Professor Titular do Departamento de História da
Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), No final dos anos de 1970, o ouro já
sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Ron- havia iniciado uma escalada de preços no
dônia (IHGRO) e da Academia de Letras de Rondônia mercado internacional, o que aumentou o
(ACLER) e sócio correspondente do Instituto Geográfico
e Histórico do Amazonas (IGHA). interesse pela pesquisa e exploração do
1. O presente trabalho, que segue parcialmente pu-
metal ocasionando o surgimento de diver-
blicado, foi elaborado para servir de suporte ao projeto sos garimpos manuais em toda a Amazô-
AGAGÊ (Hg), agraciado pelo Edital nº 33/2021/SEJUCE- nia. A tabela abaixo (Tabela 1) registra o au-
L-CODEC- 2ª Edição Alejandro Bedotti do Edital de Cha-
mamento Público de Fomento à Cultura para Pesquisa e
mentos do preço médio anual da grama do
Desenvolvimento de Expressões Culturais, da Superin- ouro em dólares e as diversas estatísticas e
tendência da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer – Seju- estimativas de produção em toneladas.
cel, do Estado de Rondônia.

DOI: 10.47209/2675-6862.v.2.n.4.p.36-48.2021
Primeiramente, observando-se os proveniente dos garimpos participou com
preços, podemos constatar na tabela I que uma parte sempre menor do que o ouro pro-
na década de 1970 a variação do preço do duzido industrialmente, ou seja nas minas,
metal já apresentava crescimento, particu- durante a década de 1980 a produção do
larmente a partir do ano de 1974. Apesar ouro proveniente das zonas de garimpo so-
da variação do preço para baixo no ano brepujará, desconsiderando a produção ga-
de 1976 os mesmos voltaram a crescer no rimpeira estimada em razão das dúvidas que
ano seguinte, continuando em patamares daí possam advir, inequivocamente a produ-
muito superiores na década seguinte, onde ção industrial do ouro já a partir do ano de
registrou-se o máximo de US$ 446,22 no 1978 e marcantemente na década de 1980,
ano de 1987, iniciando a década de 1990 terminando a década com uma produção in-
no patamar de US$ 362,26. dustrial de 30,20 toneladas contra 71,70 to-
A produção de ouro, tanto no total ofi- neladas produzidas pelos garimpos.
cialmente registrado como no total estimado, Embora a mineração do ouro em Mi-
seguiu a tendência dos preços, ou seja, os nas Gerais tenha sido a mais importante do
agentes econômicos respondiam ao aumen- Brasil desde o século XVII, no século pas-
to da demanda e aos preços convidativos do sado essa posição foi superada pela Ama-
mercado aumentando também a produção. zônia, de tal forma que no ano de 1998 so-
Nesse sentido, é de se notar ainda na mente a bacia do rio Tapajós produziu 3,5
tabela acima que se a tonelagem de ouro toneladas do metal. Destarte, a expansão
da produção aurífera nacional ocorreu prin-

Tabela 1: Extração anual de ouro oficial e Estimada no Brasil e na Amazônia (1967-2013)

Preço Médio Total oficial Total Estimado Indústria Garimpo Garimpo Garimpo Amazônia
Ano Anual US$ (Ton.) (Ton.) (Ton.) Oficial (Ton.) Estimado (Ton.) Estimado

1970 36,02 6,20 9,00 5,80 0,40 3,20 –


1971 46,62 6,00 9,00 5,10 0,90 3,90 –
1972 58,42 7,20 9,50 6,30 0,90 3,20 –
1973 97,39 6,40 11,00 5,10 1,20 5,90 –
1974 154,00 5,80 13,80 4,70 1,10 9,00 –
1975 160,86 5,40 12,50 3,90 1,50 8,70 –
1976 124,74 4,90 13,60 3,70 1,20 9,90 –
1977 147,84 5,40 15,90 3,80 1,60 12,10 –
1978 193,44 9,50 22,10 4,10 5,40 18,00 –
1979 304,68 4,50 35,30 3,30 1,10 31,70 –
1980 614,50 15,20 40,10 4,10 11,10 35,90 25,50
1981 459,26 15,40 42,40 4,40 10,90 37,60 30,70
1982 375,30 25,50 60,50 4,60 20,90 55,90 53,70
1983 423,66 53,70 75,00 6,20 47,50 68,90 65,50
1984 360,78 37,20 67,80 6,70 30,60 61,10 58,70
1985 317,30 29,70 79,80 7,60 22,10 72,30 69,10
1986 367,85 23,40 91,20 7,90 15,50 83,40 80,70
1987 446,22 35,80 99,80 13,10 22,70 86,70 83,30
1988 436,86 56,40 122,60 22,60 33,80 100,00 93,50
1989 380,82 52,50 111,70 22,80 29,70 88,90 79,50
1990 383,56 101,90 85,20 30,20 71,70 55,00 –
1991 362,26 89,60 76,10 34,10 55,50 42,00 31,00
Fonte: WANDERLEY, 2015, p. 74.

Afros & Amazônicos 37 Vol. 2, nº 4, 2021


cipalmente na Amazônia e principalmen- Rondônia não deixou de ser afetada
te através dos garimpos, surgindo vários por esse fenômeno, nela, a produção de
deles nos diversos estados da Amazônia ouro expandiu-se pelo curso do rio Madeira
Legal, conforme demonstra o mapa acima. para a montante de Porto Velho atingindo
Vemos então a ocorrência de garimpos no o município de Guajará-Mirim e mesmo o
Maranhão (Gurupi), no Pará (Serra Pelada território boliviano. Nos anos de 1980, a pa-
e Cumarú), no Mato Grosso (Juruena), em vimentação das rodovias que ligam Cuiabá
Rondônia (rio Madeira), Roraima, Amapá. a Porto Velho (RO) e a Rio Branco (AC), a
Os garimpos do rio Tapajós se distribuíam BR-364 e a rodovia BR-425, uma variante
pelos estados do Pará e Amazonas. da BR-364 que liga a vila de Abunã (RO) a
Mapa 1: Garimpagem do ouro na Amazônia Guajará-Mirim (RO) facilitaram a migração
de massas de trabalhadores em busca de
terras ou de ouro. Embora os depósitos e
ocorrências conhecidos de ouro em Ron-
dônia concentrem-se, em sua maior parte,
nos rios Madeira, Mamoré e Guaporé, con-
forme demonstra o mapa abaixo, a produ-
ção de ouro na década de 1980 concen-
trou-se no rio Madeira, do início do trecho
encachoeirado, espraiando-se, em menor
medida, pelo rio Mamoré.
No contexto regional, também o rio
Madeira, na parte situada em Rondônia,
forneceu importante contributo para a pro-
dução de ouro nacional proveniente de
áreas de garimpo. Conforme podemos ver
na tabela abaixo (Tabela 2), Rondônia, du-
Fonte: Cleary, 1992, p. XXV.

Mapa 2: Principais depósitos, ocorrências e indícios de ouro no território rondoniense

Fonte: LINHARES et alii, 2017, p. 64

Afros & Amazônicos 38 Vol. 2, nº 4, 2021


rante a década de 1980 somente teve sua barrancos como do fundo do rio servin-
produção superada pelas áreas garimpei- do-se de equipamentos, como bombas
ras do rio Tapajós e Sudeste do Pará, su- de sucção (chupadeiras) e bico de jato,
plantando a última região nos anos de 1988 que demoliam os barrancos dos rios ou
e 1989. Conclui-se então que a produção reviravam os bancos de areia, que se for-
garimpeira de ouro do alto rio Madeira era mavam na vazante.
extremamente significante no contexto da Posteriormente esse material foi
produção regional. adaptado aos flutuantes, que passaram
A garimpagem do ouro no rio Madeira a revolver mais fundo no rio. Foi partir de
iniciou em 1978. A partir desse ano pode- 1980/81, quando iniciaram a explorar o
mos dividir essa produção em três fases, ouro também através de balsas vindas
caracterizadas a partir da introdução de do Pará, principalmente de Itaituba e
novos métodos de produção mineral: a) Santarém (SOUTO, 1985, p. 275). Nes-
lavra manual (1978 a 1981), extração por ses flutuantes eram utilizadas bombas
meio de balsas (1981 a 1985) e dragas ga- de sucção mais potentes e adotada a
rimpeiras (1986-1992) (LINHARES, et alii, utilização de acessórios como a maraca
2017, p. 43-69). e o abacaxi para revirar o fundo do rio,
Tabela 2: Exploração garimpeira de ouro estimada por zona garimpeira – Kg (1980-1989)

Províncias 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989
Auríferas
Tapajós 12.000 16.700 20.600 25.500 17.000 16.700 20.300 28.200 35.200 33.450
Sudeste do Pará 9.800 10.500 16.850 20.750 16.200 23.450 32.800 17.650 10.150 7.200
Norte do MT 450 950 4.350 9.400 11.850 14.800 14.350 16.650 11.350 10.250
Rio Madeira 1.650 450 7.050 3.250 3.450 4.350 2.300 13.400 16.900 11.850
Roraima 150 250 550 900 750 550 1.050 1.550 10.150 9.150
Amapá 100 150 250 800 1.300 2.050 5.350 1.850 3.800 2.850
Gurupi 200 250 300 350 1.800 1.850 700 850 300 250
Tocantins 100 200 150 250 750 1.050 350 250 850 450
Cuiabá-Poconé 150 250 2.050 2.050 4.200 2.100 1.050 800 2.050 1.950
Outros 900 950 1.550 2.250 1.350 2.200 2.350 2.050 2.750 2.100
TOTAL 25.500 30.650 53.700 65.500 58.650 69.100 80.600 83.250 93.500 79.500
Participação
Nacional (%) 63,4 72,4 88,8 88,3 86,6 86,6 88,5 83,5 76,3 71,2
Fonte: WANDERLEY, 2015, p. 93.

Inicialmente, esse garimpo era re- facilitando a sucção do cascalho para a


alizado com bateias, nas praias e ca- superfície.
choeiras do rio Madeira. A notícia se A partir de 1978, a população garim-
espalhou e garimpeiros de todo o país, peira no rio Madeira cresceu até o final
especialmente da Região Norte, vieram da década seguinte. Não se tem números
para Rondônia (ainda Território Federal). preciso, mas a estimativa anual está apre-
Eram atraídos pelos boatos de que ha- sentada na tabela abaixo (Tabela 3):
via muito ouro não explorado no rio Ma-
Tabela 3: População Garimpeira Estimada por Zona
deira. Após esse curto período inicial, a Garimpeira (1980-1990)
garimpagem com bateias passou a ser
superada por métodos mais eficazes de Províncias Tapajós Sudeste Rio
Auríferas do Pará Madeira
extração do ouro. Passou então a garim-
pagem a utilizar crescentemente maqui- 1980 40.000 26.000 4.900
nário para a extração do ouro, tanto dos 1981 40.000 28.000 5.500

Afros & Amazônicos 39 Vol. 2, nº 4, 2021


Imagem 1: Sr. Mário Jorge Savanhago, garimpeiro de
1982 55.000 48.000 8.000
ouro no rio Madeira de 1987 a 1991
1983 80.000 80.000 12.700
1984 80.000 70.000 9.400
1985 90.000 50.000 11.000
1986 95.000 50.000 16.500
1987 100.000 40.000 14.000
1988 110.000 47.000 20.000
1989 130.000 55.000 20.000
1990 95.000 31.000 15.800
Fonte: Wanderley et alii, 2015, p. 95.

Em 1980, um número estimado em


quatro mil e novecentas pessoas dedica-
va-se a garimpagem do ouro no rio Madei-
ra, em meados daquela década, no auge Fonte: Foto gentilmente cedida.
da fofoca, cerca de onze mil pessoas se
Imagem 2: Draga de ouro no Rio Madeira
ocupavam no garimpo do rio Madeira, atin-
gindo o auge nos anos de 1988 e 1989,
com vinte mil pessoas finalizando com um
montante de pessoal ocupado no garimpo
estimado em quinze mil e oitocentos indiví-
duos no final da década.
A entrevista, cuja transcrição segue
abaixo, resulta da coleta das memórias e
impressões de um garimpeiro que atuou
no rio Madeira , o sr. Mário Savanhago
(Imagem 1), entre 1987 e 1991, ou seja, no
auge do movimento extrativista. Realizei-a Fonte: Foto do autor de maio de 2022.
entre os dias 7 e 14 de abril de 2022.
Em 1987, foi recrutado para trabalhar
Um garimpeiro do rio Madeira na no garimpo do rio Madeira, em Rondônia.
década de 1980 Junto com ele vieram outros, para traba-
lhar como peões de um conjunto de dragas
O sr. Mário Jorge Savanhago nasceu
pertencentes a um italiano de Porto Alegre.
em Francisco Beltrão (PR) no dia 19 de de-
Esse senhor, que se chamava Vicente Ata-
zembro de 1965. Seu pai Ivair Savanhago
násio, era leiteiro nos anos de 1980, entre-
já falecido, era construtor e agricultor e sua
gava leite nos morros de Porto Alegre. Em
mãe Erci Endres Savanhago reside hoje
1984/85 veio para o garimpo do rio Madei-
perto de balneário Camboriú (SC). Inte-
ra como mergulhador. Era um estrangeiro
grou os quadros da Brigada Militar do Rio
gordo, mas mergulhava dezoito, trinta me-
Grande do Sul de 1982 a 1986, onde ser-
tros. Ganhou seus primeiros dois, três qui-
viu no primeiro batalhão de Porto Alegre.
los de ouro e se transformou de garimpeiro
Nesse ínterim, cursou parcialmente vários
em dono de draga. A turma que saiu com
cursos superiores, quais sejam: Teologia
Savanhago de Porto Alegre para Porto Ve-
(Faculdade Teológica de Ciências Huma-
lho era composta por vinte e sete homens,
nas e Sociais Logos – FAETEL, SP), peda-
que foram conduzidos a Rondônia por um
gogia na Universidade Regional Integrada
ônibus da empresa União Cascavel. Esse
do Alto Uruguai e das Missões (URI) de
grupo tinha como tarefa montar cinco dra-
Frederico Westphalen /RS e Administração
gas para seu recrutador e depois operá-las
de Empresas na UERGS – Universidade
no garimpo.
Estadual do Rio Grande do Sul.

Afros & Amazônicos 40 Vol. 2, nº 4, 2021


Savanhago ocupou-se do garimpo Imagem 3: Maraca, acoplada ao motor e ao duto que
conduz a areia e o cascalho à superfície.
do ouro no rio Madeira desde 1987 até
1991, quando o garimpo já dava sinais
de esgotamento. Ainda em 1987 a princi-
pal forma de mineração era através das
balsas. Eram equipadas com magotes de
quatro polegadas. Mergulhadores condu-
ziam a extremidade submersa desse ma-
gote, que sugava do fundo do rio o ma-
terial contendo ouro (areia e algum cas-
calho). Respiravam através de uma man-
gueira por onde o compressor bombeava
o ar, essa mangueira terminava em uma
“chupeta”, que ficava acoplada à boca do
mergulhador.
A partir de 1985, chegaram em Ron-
dônia as dragas “queixo duro”. Eram as-
sim chamadas porque na ponta de suas
tubulações não havia ainda a maraca, que
somente seria inventada depois (Imagem
3). As dragas queixo duro eram equipadas
com canos de aço com até cinquenta me-
Fonte: Foto do autor de maio de 2022.
tros de comprimento e bitolas de 8, 10 e
12 polegadas. Nessas dragas já não era As maracas eram movimentadas um
necessária mais a utilização de mergulha- motor hidráulico com força de 34 cavalos
dores para sugar o fundo do rio. O cano que promovia sua rotação. Ambos, mara-
batia no fundo do rio para sugar a areia e ca e motor, ficavam na ponta submersa da
o cascalho. Na verdade, como atingiam tubulação, escarificando o cascalho, aju-
profundidades de trinta e cinco a quarenta dando a moê-lo um pouco no fundo do rio
metros, poucos mergulhadores poderiam para que chegasse à superfície em peda-
suportar o trabalho. Os que aguentavam, ços menores junto com a areia. As dragas
quando emergiam, eventualmente mor- queixo duro pouco aproveitavam desse
riam, por causa da descompressão. cascalho porque eram desprovidas das
maracas. Segundo o senhor Savanhago:
No ano em que foi inventada essa
“Foi usada uma mecânica totalmente hi-
importante inovação da maraca, os índices
dráulica, a engenharia foi copiada da retro-
de produtividade do garimpo melhoraram.
escavadeira, como as que temos até hoje
Naquele ano, um dono de oficina chama-
em todas as cidades do Brasil”. No final,
do Rolfe, Rolph ou Wolf, de nacionalidade
as maracas aprimoradas com a tecnologia
alemã, inventou a maraca para adaptar às
da retroescavadeira foram as que fizeram
dragas. Tinha ele uma oficina situada no
mais ouro no garimpo. Então, de 1987 em
trevo do Roque (em Porto Velho), onde se
diante a produtividade das dragas aumen-
concentravam na época muitas oficinas
tou, o que coincidiu com o aumento da pro-
para a construção de equipamentos para
dução do ouro.
garimpagem e madeireiras. O senhor Rolfe
(chamemo-lo assim) era torneiro mecâni- Posteriormente Savanhago veio a
co e começou a fabricar as maracas em ser proprietário de dragas. Trabalhou com
sua oficina. As primeiras não deram muito esse italiano no primeiro ano na cachoeira
certo, quebravam bastante, depois foram de Santo Antônio, no segundo ano adquiriu
melhorando. sua própria draga em sociedade com ou-
tros amigos. Naquela época, para garim-

Afros & Amazônicos 41 Vol. 2, nº 4, 2021


par no rio Madeira, era exigido o registro As populações ribeirinhas formadas
das dragas também no Ministério da Mari- por famílias, que o sr. Savanhago define
nha, como se fosse uma embarcação. como cristãs, ordeiras, acolhedoras, ho-
O regime de trabalho era tão intensi- nestas e trabalhadoras, comerciavam com
vo que se trabalhava dia e noite e se per- os garimpeiros. Em 1987 ficou seis meses
dia a noção dos dias, não se dando con- garimpando na cachoeira de Teotônio. Ha-
ta se estavam no sábado ou no domingo. via, próximo à cachoeira: minimercado,
Dessa forma, passaram-se dois anos sem vendinha, farmácia, bares, pesca esporti-
que o sr. Savanhago se desse conta do dia va. Afirma que a população convivia com
do seu aniversário sequer, de tão ocupado os garimpeiros e, nas suas palavras, ado-
que estava. E conclui: “Quem pensa que rava a presença deles porque pagavam
o garimpo é fácil, está muito enganado, é em ouro.
um trabalho muito difícil e vai toda a saú- Compravam nesse comércio farinha,
de e toda tecnologia que tu possas usar e remédio, soro para a malária, cobertor,
estiver ao seu dispor para arrancar o ouro gasolina, hélice de motor de popa, que
do fundo do rio, as vezes dezoito, vinte e eram pagos com ouro, porque todas as
até cinquenta metros de profundidade em vendinhas tinham sua balança para pesar
alguns lugares em que eu garimpei”. o ouro. Calculava-se o valor das compras
Lembra que os políticos iam fazer em moeda corrente e convertia-se na cota-
campanha nas beiras do rio, nas áreas de ção de outro do momento, daí pesava-se o
garimpo, para tentar se eleger com o voto valor correspondente às compras em ouro
dos garimpeiros. Por esse motivo ele trans- e pagava-se ao comerciante. O garimpeiro
feriu seu título de eleitor para votar em Por- era bem vindo porque não comprava fiado.
to Velho, nos deputados que apoiavam as Quanto à exposição dos garimpeiros
demandas dos garimpeiros, que era a libe- ao mercúrio, disse que os garimpeiros sa-
ração de certas áreas do garimpo, para tor- biam das afecções resultantes de sua ma-
nar o garimpo legal para os trabalhadores. nipulação. Isso porque, segundo afirma,
Existiam locais onde o garimpo era em geral os donos de draga não eram pes-
proibido, como as áreas cedidas às gran- soas ignorantes. Havia poucos que sequer
des empresas internacionais (certamente completaram o ensino fundamental, mas a
as mineradoras de cassiterita). Eram áreas maioria era como ele, já haviam passado
cheias de placas proibindo o acesso e al- pelos bancos de um curso superior. Es-
guns garimpeiros, aqueles que chegaram ses donos de dragas providenciavam para
muito perto eram repelidos a tiros de ba- seus negócios os EPI’s (equipamentos de
las de espingarda Winchester. O brasileiro proteção individual). Equipamentos que
não podia chegar perto dessas empresas, não poluíssem a natureza e prejudicassem
que eram norte-americanas e chinesas. sua própria saúde.
Ele não sabe como no governo, depois do A exceção eram aqueles que deno-
Collor, esses estrangeiros conseguiram minou “garimpeiros raiz”, que estavam
áreas, montanhas inteiras, para garimpar sempre em volta deles. Foram para Porto
sem a perturbação dos brasileiros, do povo Velho com o pessoal do Sul, mas sempre
nativo. Também as áreas de preservação e davam empregos e oportunidades ao pes-
as áreas indígenas eram proibidas. Ainda, soal ribeirinho. Assim, tendo trabalhando
era proibido garimpar nas proximidades com o pessoal de Porto Velho e o pessoal
de Porto Velho e no canal de navegação ribeirinho, observou que esse pessoal não
das balsas. Para evitar embaraços às bal- respeitava as normas de segurança (de
sas que transportavam mercadorias entre trabalho e sanitária). Então esse pessoal
Manaus e Porto Velho. Essas áreas eram não usava os EPI’S, não usavam botinas,
respeitadas pelos garimpeiros. luvas, o cadinho (retorta). Queimavam o

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ouro a céu aberto, mas era tão pouco que to já se havia formado em volta do buraco
afirma não ter prejudicado o rio. Sendo um barranco de areia de aproximadamen-
essa acusação, segundo ele, conversa de te dez metros de altura. Quando esse bar-
ecologista. ranco desabava, todos os mergulhadores
Afirma ser mentira que o rio Madeira que estavam no fundo do buraco ficavam
foi poluído de mercúrio pelos garimpeiros, soterrados por toneladas de areia. Com o
em razão de que o forte do ouro foi extraí- advento da maraca esse tipo de acidente
do pelos garimpeiros do Paraná, Rio Gran- diminuiu bastante.
de do Sul, São Paulo parte de Goiás. Esse A malária era o que menos matava.
pessoal sempre usou cadinho, porque não As mortes por desavenças (bebida, ouro
queria jogar dinheiro fora, o mercúrio cus- e mulher) causavam mais mortes. A maio-
tava muito caro. Com o uso do cadinho o ria dos corpos que desciam o rio boiando
mercúrio era reaproveitado, não indo nada resultavam dessas causas. Certa feita, ao
para a natureza. passar pela cachoeira de Teotônio presen-
O óleo velho, óleo de motor, eles tira- ciou o velório de um mergulhador, ainda
vam em baldes e levavam para a cidade, vestido em traje de mergulho. Ao perguntar
não era largado, nem no rio, nem na mata. pela causa do infausto, foi informado que
Então é claro que os garimpeiros sabiam o falecido estava submerso a aproximada-
dos resultados das afecções resultantes mente vinte e oito metros de profundidade
do manejo do mercúrio. Principalmente do e subiu muito rápido. Não fazendo a des-
mercúrio em forma de vapor que, quando compressão necessária, foi vítima de em-
respirado, se aloja no pulmão e é fatal, pro- bolia pulmonar que o levou a óbito.
voca doenças neurológicas, tipo mal de Al- Morria-se muito disto: falta de conhe-
zheimer. Então o pessoal do Sul, de todo o cimento técnico e treinamento para o mer-
Brasil, se cuidava muito, mas o ribeirinho gulho. A malária seria o terceiro colocado
não ligava para nada, garimpavam de cal- na seguinte ordem: falta de aptidão técnica
ção e chinelo de dedo, mas eram poucos. para o mergulho, a ganância pelo ouro, a
Na fofoca, num aglomerado de dragas, combinação de mulher e bebida, finalmen-
você encontrava 100 pessoas nesse esti- te a malária. A mortalidade era muito gran-
lo, ou outros; 500 a 1000 pessoas eram to- de nessa época, a vida no garimpo era
dos de botina, luva e com os EPI’s, com a uma roleta russa diária para essas pesso-
segurança necessária e o bom andamento as que não pensavam no amanhã. Houve
do trabalho para salvar o mercúrio, conhe- dias que, parado na draga, viu passar da
cido por azougue na época. manhã até a noitinha vinte e três corpos
Em 1985, foi o ano no qual se extraiu flutuando no rio, pessoas que foram mortas
mais ouro. Foi também onde houve maior mais acima, nos Periquitos e no Palmeiral.
mortandade, na localidade de Abunã, nos Todos mortos à bala ou na faca, por estes
Periquitos. Ouviu falar, pelos que já esta- três motivos: ouro, bebidas e “mulheres”.
vam no garimpo em 1985, que a mortan- Quando do início de seu labor de ga-
dade foi principalmente pela falta de equi- rimpeiro, conheceu pessoas que já garim-
pamentos de segurança e treinamento dos pavam há mais tempo e que afirmavam
mergulhadores. O garimpo nos Periquitos desde sempre o garimpo ser área insa-
era muito artesanal, sem nenhum cuidado lubre. A vida nos garimpos do estado, de
técnico. maneira geral, era muito insalubre, muito
Acontecia as vezes que estavam ga- triste, muita malária, e sempre à mercê
rimpando em um buraco na areia dez, vin- das intempéries. A selva amazônica co-
te, trinta e até cinquenta dragas e balsas, bra a seu preço com as malárias, com as
“batendo areia” no buraco no fundo do rio pneumonias e com as doenças venéreas.
até que chegam no cascalho. Nesse pon- Na época a doença mais grave que havia

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no garimpo era a gonorreia, logo depois às redes, um fogão de barro, o maior luxo
surgiu a AIDS, mas então era a gonor- eram as panelas, tratadas com zelo e pri-
reia, que se curava fácil. Também, é claro, morosamente areadas, brilhavam como
onde há ouro, bebidas e mulheres, havia prata. Compunha o restante dos utensí-
também as drogas da Bolívia, era só atra- lios domésticos um radinho de pilha, uma
vessar o rio. lanterna, uma espingarda e uma garrafa
Viu muita gente se perder na droga. de pinga.
Quando chegou ao garimpo já era ho- Todo o dia o morador caçava ou pes-
mem feito e havia sido policial militar, ou cava e cuidava de um roçado de aproxi-
seja: conhecia a malandragem. Mas mui- madamente trinta metros de comprimento.
ta gente chegou com a cabeça aberta e: Protegia essa plantação uma cerca de pau
“Viraram garimpeiros, nunca mais viraram grosso para impedir sua devastação pro-
homens de verdade”. O garimpeiro em si vocada pelas varas de queixada (porco do
é um bicho trabalhador, trabalha a sema- mato), que comiam tudo. Tudo era aban-
na inteira para gastar tudo em um final de donado tão logo terminava a fofoca.
semana em um bordel em Porto Velho. É evidente no depoimento de Sava-
Acabado o ouro volta para o garimpo. In- nhago a enorme simpatia que ele nutria
felizmente fortunas foram conseguidas e por essas famílias beiradeiras. Em certo
gastas assim: “Quando tu viras garimpei- momento afirmou mesmo que, apesar das
ro raiz, nunca mais se tornará um homem, poucas posses dessas famílias, sentia ao
no sentido de uma pessoa que pensa no visitá-las ser apossado por uma paz iné-
futuro, que pensa nos filhos e que pensa dita. Explica essa sensação pelo fato do
na família, que é cristão e que pensa na isolamento dessas famílias dos desejos e
pátria. Vira um bichinho, que só trabalha e sofrimentos do mundo moderno. Isso ex-
satisfaz suas necessidades básicas, mais plica a sensação de paz, tranquilidade e
nada”. segurança espiritual que sentia no ar, uma
Existiam famílias em Porto Velho que tranquilidade inexplicável.
adquiriam sítios nas proximidades dos ga- Afirmou que somente mesmo estan-
rimpos, onde as fofocas estavam bambur- do no local é que é possível sentir-se em
rando, onde tinham cem, duzentas, qui- um local abençoado, onde circulam seres
nhentas dragas trabalhando dia e noite. angelicais que cuidam daquela proprieda-
Iam e vinham com o achado do metal, por- de, daquela família, contra onças, contra
que essas aglomerações não demoravam cobras ou serpentes em razão de estarem
muito tempo. Teve o privilégio de conhecer no “nada”, a cento e cinquenta quilômetros
um membro dessas famílias que o levou a de Porto Velho, do outro lado do rio. Essas
conhecer a casa dele, que era um barraco famílias só tem um “caiquinho” (espécie de
de madeira, coberto de palha e chão bati- canoa na região Sul do Brasil) para atra-
do, “no meio do nada”. vessar o rio de água barrenta com gran-
O terreno circundante a essas mora- de correnteza e profundidade pode chegar
dias era queimado, para espantar cobras a 40 metros. Estavam lá desamparados,
e outros animais, e nele eram plantadas mas com uma tranquilidade espiritual nun-
algumas espécies comestíveis: abóbora, ca vista. Em lugar nenhum do Brasil viu
maxixe, cana, banana, jambo. Visitou al- aquilo. Mas a família mais bonita foi aque-
gumas famílias que viviam nesses sítios, la que viu no meio do nada, perto do Acre
à beira do rio, que eram rapidamente para quem vai em direção a Guajará Mirim,
abandonados com o fim da fofoca. Viviam do lado boliviano do rio. Nunca viu tanta fe-
desprovidos de qualquer luxo, não tinham licidade e paz espiritual naquele casal que
televisão, não tinham nada, sequer uma não tinha nada, só umas panelas ariadas e
cama para dormir. O mobiliário se resumia duas redes para dormir.

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Outro tipo de família que viu no ga- Em 1991, começou a declinar a pro-
rimpo foi aquela que residia na mesma dução do garimpo, de tal forma que mui-
draga. Em cima das dragas, principalmen- tos garimpeiros venderam seus equipa-
te as dragas de dois andares, viu famílias mentos e voltaram para o Sul. Foi esse o
inteiras. Pai, filho, mãe, trabalhando e con- caso dele. Quando sua filha tinha um ano
vivendo ali no garimpo, durante os oito ou ele vendeu tudo e retornou ao Rio Grande
nove meses quando é possível trabalhar, do Sul. Vendeu tudo com auxílio de advo-
porquê depois vem a cheia e tem que en- gado, a venda registrada em cartório, mas
costar a draga até que passem os troncos até hoje não recebeu o valor do negócio.
violentos que descem o rio. Essas famílias Hoje é casado com a sra. Diana Salete Ze-
conviviam normalmente em cima das dra- lesky, de origem polonesa e moradora de
gas por meses e meses a fio. Frederico Westphalen com a qual possui
Na cachoeira de Teotônio, em 1987, um filho de vinte e quatro anos (Mário Jor-
Savanhago fez muito ouro. Só com sua ge Savanhago Junior), casualmente nasci-
draga fez oito quilos de ouro em seis me- do no mesmo dia e no mesmo mês que o
ses. Também naquele ano o Abunã fez pai. Suas ocupações atuais são: agricultor,
muito ouro. Em 1988, 1989 (ou 1990) foi o cultiva mudas de plantas em um sítio pró-
Palmeiral e a Prainha. O Palmeiral ficava prio, que comercializa em uma floricultura
entre Guajará Mirim e o Abunã. Também a própria, que é contígua a uma loja de rou-
Prainha, que era uma ilha formada por um pas e tecidos de sua propriedade, ambas
banco de areia. situadas em Frederico Westphalen (RS).

Conheceu sua segunda esposa em Ficou rico no garimpo três vezes, e


1988 ou 1989 nas proximidades da ave- ficou pobre duas vezes, ainda sobrou al-
nida Sete de Setembro, em Porto Velho e gum dinheiro que ele levou para o Sul. As
teve com ela uma filha cujo nome é Pris- malárias levaram a riqueza, a primeira vez
cila Gabrieli de Castro Savanhago, nasci- que enriqueceu veio a malária e teve que
da em Porto Velho, no Hospital de Base internar-se em clínica particular. Enquan-
e hoje reside no balneário de Camboriú to estava enfermo foi roubado no garimpo,
(SC). Dela se separou em 1990. A per- até motor de popa e uma embarcação bico
cepção da população local sobre os ga- chato foram levados pelos empregados
rimpeiros era também construída através que trocaram por droga. No garimpo é as-
da vizinhança urbana. O sr. Mário possuía sim: se o dono da draga não estiver em
residência na cidade, perto da antiga loja cima o peão toma conta e rouba na cara
de autopeças PEMASA, onde vivia sua dura.
família constituída em Rondônia. Era co- Durante seu período no garimpo, ob-
nhecido como gaúcho e sempre foi muito servou que de uma forma geral havia no
bem tratado pela vizinhança. Como, mes- garimpo pessoas de todo o Brasil. Mas li-
mo quando a renda do garimpo não era derando essa população, como donos de
boa, sempre tinha algum dinheiro guarda- dragas, liderando garimpos, liderando equi-
do, porque não gastava dinheiro nos bor- pes de trabalho predominavam os naturais
déis de Porto Velho, quando ia para casa do: Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás, São
fazia um bom rancho, comprava carne e Paulo e Rio de Janeiro, o povo trabalhador
bebidas e convidava os vizinhos para um da Paraíba e da Bahia, que era o povo que
churrasco. Nas épocas de chuvas e no se destacava. Mas existia gente do Brasil
Natal voltava ao Rio Grande do Sul para inteiro, gente de Minas Gerais e do Goi-
visitar a família. Onde os garimpeiros es- ás, alguns capixabas também. Conheceu
tavam era sinal de progresso, de pros- pessoas de todas as partes do Brasil, mas
peridade, as igrejas, os pastores pediam quem realmente fez a riqueza do garimpo
doações, sempre vinham adular os donos foram os gaúchos e paranaenses, paraiba-
de dragas. nos, baianos, potiguares e goianos, e con-
Afros & Amazônicos 45 Vol. 2, nº 4, 2021
clui: “Esse pessoal foi o que fez o Brasil tuno e realizada segundo o método e os
ganhar dinheiro com ouro”. materiais próprios.
Quem continua desbravando a Ama- Procurei então não intervir nas lem-
zônia é o paranaense, desbravador, e o branças e principalmente nas suas opini-
povo gaúcho, seguido pelos outros estados ões, fazendo perguntas que ocasionalmen-
do Brasil. Nunca viu povo mais desbrava- te dirigissem as respostas. Também evitei
dor que o paranaense, na década de 1960, contestações à sua percepção dos fatos.
1970 e 1980 foi o que desbravou o estado Explico, tais iniciativas resultariam em um
do Acre e Rondônia foi o paranaense e o documento onde seria difícil extrair as opi-
gaúcho, seguido pelo mato-grossense pelo niões do entrevistador das informações do
goiano. Esse povo, com malária, criando fi- entrevistado. Em tal inextrincável situação
lho, botava tudo em cima de um caminhão, o documento, enfim, seria de pouca utili-
um armário, uns colchões, um tratorzinho, dade, pois não expressaria a dinâmica das
vendia as terras no sul e encarava aquele lembranças, mas uma mistura dessas com
mundão de selva, as onças, as malárias os interesses de pesquisa do entrevistador.
com força, fé e esperança, esse é o povo Em outras palavra, a ideia foi de deixar fluir
gaúcho e o povo paranaense. o relato ao sabor da memória do depoente,
evitando o máximo possível intervir ou diri-
Breves considerações finais gir suas palavras.
Como se pode observar no depoi- O objetivo da entrevista foi registrar o
mento do sr. Mário Savanhago, sua vivên- que sabe, do que se lembra e como pen-
cia de aproximadamente quatro anos no sa esse garimpeiro dos anos de 1980, não
garimpo de ouro do rio Madeira proporcio- importando aqui nossas opiniões pessoais
nou-lhe uma experiência que carrega viva ou acadêmicas a respeito desse material.
na memória até os dias de hoje, que pro- Menos ainda as discordâncias do entre-
curamos registrar com a máxima fidelida- vistador em relação ao entrevistado sobre
de possível. Contrariamente a uma prática o tema. O material resultante, espera-se,
que tem se tornado, infelizmente, muito co- deve expressar da forma mais pura possí-
mum nos dias de hoje, que consiste em o vel a memória do depoente.
entrevistador estabelecer o debate com o
entrevistado, optamos por não intervir em Referências
suas opiniões, nem pedir dele comprova- AYRES, Gisele Antunes. Distribuição do
ção acerca de certas afirmações. As per- mercúrio nas águas superficiais do Rio Ma-
guntas eventualmente feitas pelo entrevis- deira. Dissertação (mestrado em Geociên-
tador tiveram o objetivo de esclarecer infor- cias – Geoquímica Ambiental). Orientador:
mações por ele prestadas. Prof. Dr. Luiz Drude de Lacerda. Niterói:
A crítica, quando e se for feita, deve- Universidade Federal Fluminense, 2004.
rá ser externa e posterior à elaboração do BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDE-
documento. Esse método já é secularmen- RAL. Câmara de Coordenação e Revisão,
te utilizado na História e é a melhor forma 4. Mineração ilegal de ouro na Amazônia:
para se obter uma revelação desnudada, marcos jurídicos e questões controversas.
na medida em que tal escopo seja possí- Brasília: MPF, 2020.
vel, das lembranças e opiniões do depo-
CLEARY, DAVID. A garimpagem do ouro
ente sobre diversos aspectos da vida no
na Amazônia: uma visão antropológica.
garimpo. Assim, a crítica, quando feita, Rio de Janeiro. UFRJ, 1992.
que implica também a análise do pensa-
mento do entrevistado, tomando-se como COELHO, Maria Célia; WANDERLEY, Luiz
parâmetro as diversas dimensões da vida, Jardim; COSTA, Reinaldo. Garimpeiros
deve ser reservada a seu momento opor- de Ouro e Cooperativismo no século XXI.
Exemplos nos rios Tapajós, Juma e Madeira

Afros & Amazônicos 46 Vol. 2, nº 4, 2021


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Afros & Amazônicos 47 Vol. 2, nº 4, 2021


Geografia, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

-----//-----
Abstract: Started in the late 1970s, gold mining on
the Madeira River reached its peak in the following
decade; its decline beginning in the early 1990s.
That activity was concentrated in the Alto Madeira
region, including the waterfalled stretch of the river,
mostly within the state of Rondônia, also expand-
ing through the border region of Bolivia with Brazil.
It attracted people from all over Brazil and among
those fortune seekers was Mr. Mario Savanhago.
First a prospector, then a dredger, he remained in
this activity until the mining began to decline. This
article consists of an introduction, containing a brief
history of mining activity on the Madeira River in the
1980s; the testimony of Mr. Mario Savanhago; end-
ing with some considerations on the formulation of
documents from oral testimonies.
Keywords: Mining; Amazon; Rondônia; Popular
knowledge.

Recebido em: 02 de junho de 2022.


Aceito em: 15 de junho de 2022.

Afros & Amazônicos 48 Vol. 2, nº 4, 2021

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