Diálogos
Internacionais
Latino-Americanos
ESCRITOS SOBRE A AMÉRICA LATINA NO
SISTEMA INTERNACIONAL
Bernardo Salgado Rodrigues
Primeira Edição
São Paulo
2020
1
PerSe Editora, Autopublicação e Comercio Eletrônico Ltda - Rua
Lincoln Albuquerque, 259 - Conj 118 - Perdizes - São Paulo
CEP: 05004-010 - CNPJ.: 11.100.364/0001-60
Contato: [email protected]
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem a
prévia autorização do autor e da editora.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Ficha Catalográfica elaborada pelo autor
R696d Rodrigues, Bernardo Salgado.
Diálogos Internacionais Latino-Americanos: escritos sobre a
América Latina no sistema internacional / Bernardo Salgado
Rodrigues. São Paulo: Perse, 2020. 280p.
ISBN: 978-65-86045-23-9
1.Economia Política Internacional. 2. América Latina. 3.
Geopolítica. 4. Integração.
I.Título
CDD 327.1
CDU 327
2
ÍNDICE
Prefácio ..................................................................................7
Preâmbulo ..............................................................................9
Parte 1 – Conjuntura e teoria na América Latina .................13
Repensar a América Latina pelos latino-americanos: o resgate da
teoria marxista da dependência .........................................................15
O fantasma de Bolívar ........................................................................20
O pêndulo latino-americano de Polanyi ..........................................26
Liderança carismática na América Latina ........................................30
Resenha: Vinte anos da originalidade de "Estados e moedas" .....33
O legado de "Poder e dinheiro" ........................................................36
Homenagem a Theotonio dos Santos (1936-2018): um "civilizador
planetário"..............................................................................................39
A atualidade geopolítica de Spykman: política de contenção,
equilíbrio de poder e disputa territorial ............................................42
Cartografia e projeções de poder nas relações internacionais ......47
Olimpíadas e política internacional ...................................................52
A caverna da esquerda ........................................................................55
O papel da guerra na conformação da ordem mundial .................59
3
O conceito de Guerra Híbrida e as ações políticas veladas ..........63
Lawfare: a utilização de instrumentos jurídicos para fins políticos
.................................................................................................................70
Espaço cibernético - quinta dimensão do conflito geopolítico.....74
Parte 2 – Geopolítica latino-americana no sistema mundial
...............................................................................................81
O que é a geopolítica? .........................................................................83
Contendas geopolíticas na América do Sul .....................................88
A geopolítica da água na América do Sul ........................................95
O ouro e o euro no território sul-americano ................................100
Dossiê Malvinas: O imediato pós Guerra .....................................104
Porque Malvinas e não Falklands: geopolítica e soberania sul-
americana ............................................................................................111
Geoeconomia e Geopolítica na Venezuela ...................................116
Israel e Colômbia: dois pontos de uma mesma reta estadunidense
...............................................................................................................121
Soberania ou internacionalização da Amazônia? ..........................124
Questão energética da Amazônia ....................................................129
Pan-Amazônia: riqueza, diversidade e desenvolvimento ............133
4
Parte 3 – Integração latino-americana no sistema mundial
.............................................................................................137
Entorno estratégico brasileiro e integração regional ....................139
O papel do Brasil na integração regional latino-americana .........143
Os BRICS e a volatilidade de um mundo profanado ..................147
MERCOSUL: 25 anos de avanços e desafios ..............................151
O coração continental do MERCOSUL .......................................155
A importância da Venezuela para o MERCOSUL ......................159
Por uma discussão do Banco do Sul, o “Banco dos BRICS latino-
americano” .........................................................................................164
Integração regional em tempos de crise: desafios políticos e
dilemas teóricos .................................................................................169
“Integra” em domicílio .....................................................................174
Parte 4 – O Brasil e as relações internacionais latino-
americanas ..........................................................................179
A Amazônia Azul e o Atlântico Sul: proteção e projeção
geopolítica brasileira ..........................................................................181
Porto de Mariel: a porta de entrada do Brasil no Caribe .............188
Nova geopolítica do petróleo na América do Sul: quem tem medo
da Petrobras? ......................................................................................193
Serra, relações exteriores e petróleo ...............................................202
Realismo periférico tupiniquim .......................................................212
5
O conservadorismo político brasileiro sob a perspectiva da teoria
marxista da dependência ..................................................................218
O óbito da política externa ativa e altiva .......................................224
Parte 5 – A disputa pelo Poder global: Estados Unidos e
China ..................................................................................229
A histórica estratégia hemisférica dos Estados Unidos na América
Latina ...................................................................................................231
Complexo industrial-militar estadunidense: passado e presente
...............................................................................................................240
TPP, TTIP, TISA e a geopolítica da "Segunda Guerra Fria" .....245
Eleição estadunidense de 2016: projeto do novo século americano
ou caos sistêmico? .............................................................................251
Economia política do desenvolvimento da China .......................258
América "LaChina": nova etapa da dependência latino-americana?
...............................................................................................................262
China e a (des)integração da América do Sul ................................269
Implicações geoeconômicas da Nova Rota da Seda na América
Latina ...................................................................................................274
6
PREFÁCIO
Glauber Cardoso Carvalho1 e Larissa Rosevics2
Publicados originalmente na revista Diálogos
Internacionais (http://www.dialogosinternacionais.com.br), entre
os anos de 2014 e 2019, os textos desta coletânea fazem parte do
amadurecimento intelectual do autor e de sua pesquisa sobre a
América Latina. As análises conjunturais aqui reunidas retratam a
conturbada história recente da região, que conta com o declínio
dos governos progressistas, a ascensão chinesa como principal
parceira comercial de muitos Estados e a nova ofensiva do
governo dos Estados Unidos para garantir a sua hegemonia
regional.
A premissa central que norteia os textos é a de que, para
compreender a América Latina e seus desafios e oportunidades no
mundo contemporâneo, é preciso levar em consideração a posição
que a região ocupa nos tabuleiros geopolítico e geoeconômico
1 Doutor (2018) em Economia Política Internacional pelo Instituto de Economia
da UFRJ. É professor do Departamento de Ciências Econômicas e do curso de
Relações Internacionais da Universidade Estácio de Sá - RJ e Bolsista do
Programa de Pesquisa Produtividade - UNESA. É Coordenador Executivo do
Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e editor
da Revista Diálogos Internacionais. É membro do Grupo de Pesquisa/CNPq
Integração Sul: Autonomia e Desenvolvimento (UFRJ). Desenvolve pesquisas
nas áreas de Economia Brasileira; Política Externa Brasileira; Integração
Regional; Mercosul e Unasul; Organizações Internacionais e Comércio Exterior.
2 Professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Doutora
em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Foi Professora Visitante na UFABC. Desenvolve pesquisas sobre: política
externa brasileira contemporânea; integração regional; economia política
internacional; e segurança e defesa. É membro do Grupo de Pesquisa
"Integração Sul: autonomia e desenvolvimento", na linha de pesquisa: "Produção
do Conhecimento, Ciência & Tecnologias" e do "Observatório da Política
Externa Brasileira" da UFABC.
7
internacionais. Nesse sentido, o dilema latino-americano do
desenvolvimento econômico com justiça social e preservação
ambiental está intrinsicamente associado à busca por autonomia e
independência da região em relação aos principais centros do
poder global.
A revista Diálogos Internacionais surgiu entre alguns
estudantes do Programa de Pós-Graduação em Economia Política
Internacional da UFRJ, no ano de 2014, com o objetivo de ser um
espaço independente para o exercício do diálogo e da análise
crítica das relações entre poder e riqueza no mundo
contemporâneo. No terceiro ano da iniciativa, as principais
análises foram reunidas no livro digital “Diálogos Internacionais:
reflexões críticas do mundo contemporâneo”. E agora, em seu
sexto ano de existência, mais um livro chega ao público, de um
dos principais incentivadores e colaboradores do blog, o professor
e pesquisador Bernardo Salgado Rodrigues.
Em tempos de mudanças e incertezas como os atuais, é
fundamental que perspectivas críticas como as aqui expostas se
façam presentes no debate sobre os rumos da América Latina no
o século XXI.
8
PREÂMBULO
A expressão “América Latina” é usada comumente para
se referir a todos os países do continente americano, com exceção
de Estados Unidos e Canadá, sendo composto por países da
América do Sul, América Central e o México. Outra versão aponta
para os Estados cuja colonização foi realizada por países latinos
europeus, onde a língua oficial é derivada do latim, excluindo-se,
além dos Estados Unidos e Canadá, o Suriname e a Guiana,
ambos colonizados por Inglaterra e Holanda, e incluindo-se países
caribenhos, como Cuba, Haiti e República Dominicana.
Na literatura oficial, para além das definições geográficas e
linguísticas apresentadas acima, o surgimento do conceito de
América Latina e seu real significado político acalentam um debate
que se desenvolve em torno de duas versões principais que
explicariam a origem do termo: uma geopolítica e uma literária.
Na versão geopolítica, a terminologia da América Latina
teria surgido em 1836, num artigo de Michel Chavalier
influenciado por Alexandre von Humoldt, que afirmara, em 1825,
que o novo mundo estava dividido entre povos germânicos e
latinos, como na Europa Ocidental. Baseado nesta prerrogativa,
Chevalier defenderia a ideia do panlatinismo, em analogia ao
pangermanismo, afirmando que a França teria uma suposta
identidade linguística, cultural e étnica com seus irmãos latinos da
América, em contraposição aos anglo-americanos, germânicos em
última instância.
Na variante literária, a expressão teria sido criada pelos
próprios hispano-americanos, em que o chileno Francisco Bilbao
teria utilizado pela primeira vez a expressão América Latina numa
conferência em Paris, em 1856, intitulada “Iniciativa de la América”,
com a finalidade de unir os seus povos. Desta forma, rejeitando-se
o termo “hispano-américa”, com uma ideia de vínculo com a
metrópole espanhola, passou-se a utilizar o conceito de América
9
Latina a fim de assegurar a autoafirmação de sua identidade e
independência política.
Em outros termos, o imbróglio pela origem do termo
surge desde a independência da América Latina no século XIX,
iniciando-se em 1808, com a crise da monarquia espanhola, até a
Batalha de Ayacucho, em 1824, fazendo nascer a figura de Simón
Bolívar. Para este principal ator da independência latino-
americana, nenhuma vitória parcial das nascentes repúblicas estava
avalizada com o triunfo militar, mas se projetava como futuro
político de libertação continental e adoção da “Pátria Grande”, de
pertencimento comum, do imaginário coletivo e da consciência
solidária de uma possível unidade política da América Latina.
Desta forma, como primeiro pensador da integração regional, sua
profundidade e visão de mundo perpassam a dimensão da união
como esfera política continental enraizada na América Latina.
Mais recentemente, outra vertente vem utilizando o termo
Abya Yala, que significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra
em florescimento” na língua do povo Kuna, como contraponto à
designação consagrada de América Latina. Este termo é
empregado como uma autodesignação dos povos do continente
objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento.
Abya Yala configura-se, portanto, como parte de um processo de
construção político-identitário, em que as práticas discursivas
cumprem um papel relevante de descolonização do pensamento,
caracterizando o novo ciclo protagonizado pelos movimentos dos
povos originários.
Dentre todas as formulações apresentadas, a identidade é
sempre um valor a ser destacado, uma vez que a terminologia
realiza um afastamento com a matriz colonial, uma contraposição
ao outro que, através da alteridade, auxilia na compreensão das
próprias raízes latinas. Este livro busca debater algumas dessas
questões, visando aplicar de maneira específica a experiência
histórica latino-americana, e identificar seus verdadeiros
problemas a fim de solucioná-los.
10
O livro conta com cinquenta “diálogos internacionais
latino-americanos”, divididos em cinco seções, que não
necessariamente apresentam uma ordem cronológica. O conjunto
de artigos expõe uma série de textos compilados durante cinco
anos na Revista Diálogos Internacionais, com pesquisas que
abarcam distintas áreas do conhecimento, mas que convergem
numa análise conjuntural e estrutural sobre a América Latina. O
objetivo é propor uma reflexão que possibilite a compreensão do
novo cenário de competição internacional por projetos de poder
na região.
Na primeira seção, intitulada “Conjuntura e teoria na
América Latina”, serão apresentados textos teóricos acerca da
conjuntura na América Latina, que auxiliam na compreensão das
partes subsequentes. O segundo ponto, “Geopolítica latino-
americana no sistema mundial”, discute-se temáticas das relações
entre espaço e poder na região. Na sequência, a terceira parte, sob
o título “Integração latino-americana no sistema mundial”,
exibem-se as experiências integracionistas, apontando seus
objetivos e desafios. Sob a denominação de “O Brasil e as relações
internacionais latino-americanas”, a quarta seção delineia temas
caros à política internacional e à política externa brasileira. Na
quinta e última seção, “A disputa pelo Poder global: Estados
Unidos e China”, discorre-se sobre os projetos de poder das duas
grandes potências no sistema internacional e suas diretrizes para a
América Latina.
A América Latina é um dos centros gravitacionais em
disputa nas relações internacionais no século XXI. Tanto em
termos geopolíticos quanto geoeconômicos, a região apresenta
características fundamentais para o processo de acumulação de
poder e riqueza dos grandes centros hegemônicos na economia
mundial, possibilitando uma crescente expansão sistêmica que
reverbera, política e economicamente, direta e indiretamente, em
suas sociedades.
Em síntese, ratifica-se que a América Latina é heterogênea
por excelência, e dessa diversidade que se identifica os desafios e
11
objetivos comuns, as bases de convergência que permitirão
avançar no processo de autoconhecimento, reflexão e
transformação de um conceito em realidade da prática política.
Espera-se que esse livro auxilie neste caminho. Boa leitura!
Rio de Janeiro, 12 abril de 2020.
Bernardo Salgado Rodrigues
12
Parte 1
Conjuntura e teoria na América Latina
13
14
Repensar a América Latina pelos latino-americanos: o
resgate da teoria marxista da dependência 3
A teoria marxista da dependência significou um salto na
interpretação crítica da realidade latino-americana a partir da
década de 1960. Seus teóricos analisaram a dependência a partir
das estruturas econômicas, políticas, sociais e ideológicas, num
escopo dialeticamente nacional e internacional, em que interno e
externo se articulavam na reprodução do fenômeno da
dependência. Ao longo da segunda metade do século XX, sua
influência foi presente sobre os mais diversos campos das ciências
sociais latino-americanas, ainda que relativamente renegada ou mal
interpretada nas décadas subseqüentes a sua formulação inicial.
Desta forma, seu resgate atual enseja debates teóricos e
práticas políticas importantes para as perspectivas da América
Latina no século XXI. Assim, o resgate e reorganização do
pensamento crítico da teoria marxista da dependência se dedicam
a análise de um mundo em globalização e do papel que a América
Latina cumpre nesse processo: se reproduzindo os velhos laços de
dependência [1], ou se projetando sua inserção internacional de
maneira autônoma e soberana.
Desta maneira, os estudos de Theotonio dos Santos
acerca da teoria da dependência se integram as teorias do sistema
mundial, de Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi, Andre
Gunder Frank e Samir Amin. A teoria do sistema mundial situa a
formação do sistema mundial capitalista a partir do século XV,
assim como seu desenvolvimento a partir da articulação de suas
tendências seculares e cíclicas. No século XXI, o desenvolvimento
dos regionalismos, a projeção do Leste Asiático – centrado na
3 Publicado em 3 de dezembro de 2014.
15
China – e a expansão dos movimentos sociais sinalizam
movimentos contra-hegemônicos no sistema mundial.
Para Martins (2006, p.934), “à América Latina cabe a
escolha entre submergir ao neoliberalismo ou lutar pela ruptura
com a dependência e a participação ativa na recondução do
sistema mundial.” Assim, sinaliza para novos rumos na ordem
internacional, no qual os próprios projetos de integração latino-
americana, como a Unasul, Alba e Celac, são exemplos práticos
dessa relação que busca remodelar a geopolítica mundial no século
XXI.
Uma recorrência dos preceitos da teoria marxista da
dependência é o papel descapitalizador do capital estrangeiro,
preconizado por Vânia Bambirra [2] em seus estudos, que exerce a
liderança sobre o processo de acumulação dos países dependentes
ao longo do tempo, com ainda mais intensidade na atualidade.
Além disso, pode-se agregar ao papel descapitalizador o efeito
“escalator up, elevator down”, em que tanto investidores
domésticos como estrangeiros, ao aplicarem seu capital de forma
isolada e lenta, fogem e retiram seus capitais em massa e
rapidamente quando há algum indício de perda de rentabilidade,
criando enorme volatilidade e instabilidade nas economias
dependentes.
Da mesma forma, seus estudos das elites políticas latino-
americanas como “dominantes-dominados”[3] ainda é recorrente.
Historicamente, as classes dominantes latino-americanas possuem
vínculos estreitos com as elites estrangeiras, em que tal relação
muita vezes se realiza através da subordinação dos interesses
internos aos externos, em que tal fato não isenta os ganhos locais
por parte das classes dominantes nacionais; i.e., os interesses
políticos nacionais se encontram, assim, vinculados – de maneira
dependente – aos interesses dos grandes centros de poder
mundiais.
O principal conceito de Ruy Mauro Marini, a
superexploração da força de trabalho[4], encontra atualidade e
16
expansão interpretativa a partir do momento em que se tem sua
disseminação a nível mundial. Onde outrora a especificidade deste
mecanismo era relacionada ao contexto latino-americano,
atualmente estende-se aos próprios países centrais do sistema
mundial capitalista e aos demais países da periferia, que se utilizam
da superexploração do trabalho a fim de auferir lucros
extraordinários sob a prerrogativa da eficiência e da
competitividade do mundo globalizado. “A emergência das
chamadas empresas globais, como uma etapa mais avançada da
transnacionalização empresarial, é chave nesse processo de
globalização da superexploração.” (MARTINS, 2011, p.292-293)
Como observado, esses e outros aspectos acerca da teoria
marxista da dependência em sua formulação inicial são recorrentes
no século XXI, o que justifica a hipótese central da necessidade de
um resgate para se pensar os novos rumos da América Latina.
Assim, cabe aos povos e países da América Latina indagarem se
desejam continuar a seguir um projeto ideológico que substitui o
Estado pelo mercado, o cidadão pelo consumidor, a regulação
econômica pelo livre-comércio, os espaços públicos pelos
shopping centers, a ideologia pelo marketing, o trabalhador pelo
indivíduo; se desejam continuar na prisão da dependência, ou
libertarem-se dos seus grilhões rumo a emancipação e
autodeterminação.
Referências bibliográficas
BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-
americano. Florianópolis: Editora Insular, 2012.
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia. 11ª ed.
Cidade do México: ERA, 1991.
MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e
neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011.
17
______.Pensamento Social. In: SADER, Emir; JINKINGS, Ivana
(Org.). Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da
América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo Editorial; Rio
de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 2006. p.
925-934.
SANTOS, Theotonio dos. Imperialismo y dependencia.
Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2011.
[1] “La dependencia es una situación en la cual un cierto grupo de
países tienen su economía condicionada por el desarrollo y
expansión de otra economía a la cual la propia está sometida. La
relación de interdependencia entre dos o más economías, y entre
estas y el comercio mundial, asume la forma de dependencia
cuando algunos países (los dominantes) pueden expandirse y
autoimpulsarse, en tanto que otros países (los dependientes) solo
lo pueden hacer como reflejo de esa expansión, que puede actuar
positiva y/o negativamente sobre su desarrollo inmediato. De
cualquier forma, la situación de dependencia conduce a una
situación global de los países dependientes que los sitúa en retraso
y bajo la explotación de los países dominantes.” (SANTOS, 2011,
p.361)
[2] "O desenvolvimento industrial - apesar do que achavam os
teóricos do capitalismo latino-americano -, na medida em que
chega a ser promovido pelo capital estrangeiro, gera os
mecanismos de aprofundamento e ampliações do controle deste
capital sobre o capitalismo dependente. Esses mecanismos
acumulativos, em espiral, derivam da forma como as empresas
imperialistas funcionam: dos lucros obtidos, uma parte, em geral
pequena, é reinvestida; outra parte é enviada ao exterior como
remessa, que aumenta indiretamente através dos pagamentos dos
royalties, de serviços técnicos e de depreciação, cujo resultado é a
descapitalização da economia. Esta descapitalização se reflete nos
18
déficits do balanço de pagamento. Para suprir esses déficits são
requeridas ‘ajudas externas’, por meio de empréstimos. Os
empréstimos aumentam os serviços da dívida externa e esta
aumenta ainda mais os déficits, aumentando progressivamente a
necessidade de mais capital estrangeiro. Em poucas palavras,
pode-se dizer que os investimentos estrangeiros provocam uma
descapitalização que exige novos investimentos estrangeiros. O
capital estrangeiro se torna assim uma necessidade intrínseca do
funcionamento do capitalismo dependente e é, ao mesmo tempo,
seu componente descapitalizador e capitalizador. É como o
dependente químico: as drogas o matam, mas necessitam delas
para seguir vivendo..." (BAMBIRRA, 2012, p.143)
[3] A dependência política não seria compreendida apenas como a
imposição da interferência estrangeira no plano nacional, mas,
sobretudo, como parte de uma dependência “que faz com que o
processo de tomada de decisões por parte das classes dominantes
– em função dos interesses políticos ‘nacionais’ internos – seja
dependente. Como os países dependentes são parte constitutiva
do sistema capitalista internacional, suas classes dominantes jamais
gozaram de uma real autonomia para dirigir e organizar suas
respectivas sociedades. A situação de dependência termina por
confrontar estruturas cujas características e cuja dinâmica estão
subjugadas às formas de funcionamento e às leis de movimento
das estruturas dominantes.” (BAMBIRRA, 2012, p.143-144)
[4] Identificado em três mecanismos: “la intensificación del
trabajo, la prolongación de la jornada de trabajo y la expropiación
de parte del trabajo necesario al obrero para reponer su fuerza de
trabajo” (MARINI, 1991)
19
O fantasma de Bolívar4
Parafraseando Karl Marx no contexto europeu do século
XIX, em seu clássico livro do Manifesto[1]: "um espectro ronda a
América Latina – o espectro de Bolívar." Tal como a "maldição"
que o termo comunismo possui em algumas frações políticas
latino-americanas, o termo bolivarianismo possui equidade no
caráter pejorativo: toda e qualquer forma de buscar desqualificar
alguma ação política que não atenda aos anseios de determinados
grupos é taxado de comunismo ou bolivarianismo.
Neste pequeno excerto, busca-se desmistificar o caráter
pejorativo do termo bolivarianismo, devido ao próprio
desconhecimento da sua figura histórica em alguns países,
principalmente no Brasil. Simón Bolívar sempre foi uma figura
polêmica, contraditória e mal-compreendida. Até mesmo Karl
Marx, ao escrever o verbete sobre Bolívar na New American
Cyclopaedia, de 1857, o retrata em termos preconceituosos ao
repudiá-lo, comparando-o com Napoleão Bonaparte e o taxando
de manipulador e ditador, afirmando que “o que Bolívar
realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma
única república federativa, tendo nele próprio seu ditador."
(MARX, 2008, p.53)[2]
No início do século XIX, as repúblicas latino-americanas
ganharam sua independência como parte de um processo político
internacional bastante complexo, que teve influência da
independência das treze colônias norte-americanas, da Revolução
Francesa, da revolta dos escravos no Haiti e, principalmente, das
Guerras napoleônicas e das invasões na Península Ibérica.
Destarte, é consenso na historiografia latino-americana que os
movimentos emancipatórios do início do século XIX possuem
4 Publicado em 6 de fevereiro de 2019.
20
relação direta com os acontecimentos europeus. Com a crise da
monarquia espanhola em 1808 − "que deixou a nação sem
nenhum governo cuja legitimidade fosse aceita unanimemente"
(BETHELL, 2009, p.119) −, a luta pela independência tem início
e dura cerca de dezesseis anos, até a Batalha de Ayacucho, em
1824.
É neste contexto que surge a figura de Simón Bolívar.
Com uma educação liberal e "uma devoção à razão, à liberdade e à
ordem, que o acompanhou por toda a vida" (BETHELL, 2009,
p.65), visualizava que nenhuma vitória parcial das nascentes
repúblicas sul-americanas estava garantida enquanto as tropas
espanholas continuassem atuando no continente. Deste fato
advém a necessidade de uma gestão libertadora continental, um
dos pilares de seu pensamento.
A união dos governos dos povos da América se apresenta
como uma consequência da guerra pela independência e como
garantia de consolidação da vitória sobre a Espanha, mas,
concomitantemente, como necessidade da vontade política dos
novos governantes das repúblicas recém-libertadas. “Direi ao
senhor o que pode nos tornar capaz de expulsar os espanhóis e de
fundar um governo livre: é a união, sem dúvida; mas essa união
não nos chegará por milagres divinos, e sim por efeitos sensíveis e
esforços bem dirigidos.” (BOLÍVAR, 1992, p.74)
A Carta da Jamaica, escrita por Bolívar em 1815, reitera as
críticas às instituições adotadas pelos regimes anteriores,
analisando o passado da América Latina e suas impressões sobre
os acontecimentos da época. Neste texto, surge o conceito de
"Pátria Grande", "la más grande nación del mundo, menos por su
extensión y riqueza que por su libertad y gloria." (BOLIVAR,
2013, p.68), que se refere ao sentido de comunidade, de
pertencimento comum das nações da América Latina, do
imaginário coletivo de uma possível unidade política, de uma
consciência de solidariedade continental[3].
21
Em 1824, há uma convocação ao Congresso do Panamá,
a Primeira Assembléia Internacional de Estados Americanos,
assinado pelo Libertador em 7 de dezembro de 1824, dois dias
antes da batalha de Ayacucho. Marco mais perceptível do
pensamento integracionista de Bolívar, a chamada para o
Congresso do Panamá ilustra o imperativo visualizado por ele na
consecução de um projeto político de união dos interesses e das
relações entre as repúblicas americanas.
Entablar aquel sistema y consolidar el
poder de este gran cuerpo político,
pertenece al ejercicio de una autoridad
sublime que dirija la política de nuestros
gobiernos, cuyo influjo mantenga la
uniformidad de sus principios, y cuyo
nombre sólo calme nuestras tempestades.
Tan respetable autoridad no puede existir
sino en una asamblea de
plenipotenciarios, nombrados por cada
una de nuestras repúblicas y reunidos
bajo los auspicios de la victoria obtenida
por nuestras armas contra el poder
español. (BOLIVAR, 2013, p.147-148)
Devido às dificuldades de transporte da época e à guerra,
o projeto da realização do Congresso levou de "1821 até 1826,
data em que se conseguiu, finalmente, realizar a reunião."
(RAMOS, 2012, p.287) O Congresso constituiu um antecedente
da futura cooperação interamericana e foi assinado, no final do
mesmo ano, um Tratado de União, Liga e Confederação perpétuo
entre os quatro estados latino-americanos presentes (México, a
Federação Centro-Americana, a Gran Colombia e o Peru).
Entretanto, o congresso se mostrou uma ilusão para as condições
materiais da América recém-independente, um indicativo da falta
de condições para uma cooperação desse gênero na época. Apesar
da importância simbólica do Congresso do Panamá para o
pensamento bolivariano e integracionista, o desfecho da reunião
foi aquém das expectativas. O congresso se dissolveu, fazendo
22
com que, nos anos vindouros, "os climas benignos para a unidade
latino-americana ficaram desaparecidos por muito tempo."
(RAMOS, 2012, p.304)
Assim, como um dos pais fundadores das nações
independentes da América Latina, para Bolívar (1992, p.31):
uma única deve ser a pátria de todos os
americanos (...) nos apressaremos, com o
mais vivo interesse, para estabelecer, de
nossa parte, o pacto americano que,
formado de todas as nossas repúblicas
um corpo político, apresente a América
ao mundo com um aspecto de majestade
e grandeza sem paralelo nas nações
antigas.
Bolívar encarou a necessidade de alcançar um
desenvolvimento e integração para a América Latina em seu
tempo histórico, através do estabelecimento da ordem interna e da
estabilidade política. Ele influenciou, posteriormente e até a
atualidade, os intérpretes e pensadores latino-americanos,
compreendendo a necessidade de ruptura com a dependência
histórico-estrutural e a dominação dos centros de poder ao longo
da história. Assim, seu pensamento vem pautando as discussões
acerca dos projetos de integração regional de forma autônoma e
soberana, fundada na aliança das nações-irmãs para defesa e
destino comuns.
Para os defensores da liberdade, igualdade e da Taça
Libertadores da América (aos amantes de futebol), é um
contrassenso intitular-se "anti-bolivariano": ou se desconhece o
papel político de Bolívar, ou a defesa de tais princípios é mera
retórica e visa um projeto político antagônico. O paralelismo
temporal entre os séculos XIX e XXI é significante, uma vez que
seguir os preceitos de Bolívar é buscar a segunda independência
que falta aos países da América Latina: a independência da
soberania econômica (e política) diante de intervenções externas.
23
Referências bibliográficas:
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: da
independência a 1870, volume III. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2009.
BOLÍVAR, Símon. Escritos Políticos. Campinas: Unicamp, 1992.
BOLÍVAR, Simón. Nuestra patria es América: discursos y documentos de
Simón Bolívar. Buenos Aires: Punto de Encuentro, 2013.
MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial,
1998.
MARX, Karl. Simón Bolívar por Karl Marx. São Paulo: Martins,
2008.
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. 2. ed.
Florianópolis: Insular, 2012.
[1]MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo
Editorial, 1998.
[2]Há, neste ponto, quem seja contrário e favorável à opinião de
Karl Marx: Aricó (MARX, 2008, p.7-31) afirma que as explicações
erráticas de Marx tenham se fundamentado nas insuficiências e na
parcialidade das fontes utilizadas, num eurocentrismo e numa
avaliação política que o induziu a interpretar Bolívar como
autoritário e bonapartista, uma incompreensão do movimento em
seu conjunto: “Marx deixou de levar em conta o que seu próprio
método o impelia a buscar em outros fenômenos sociais que ele
analisou: a dinâmica real das lutas de classes ou das forças
atuantes.” (MARX, 2008, p.23) Em contrapartida, Rosenmann e
24
Cuadrado (MARX, 2008, p.59-76) criticam o próprio misticismo
de Bolivar na Venezuela atualmente, uma visão idealizada que o
próprio Marx busca destruir. Para eles, Bolívar pertencia à elite
crioula, não democrática, monárquica e aristocrática: “Bolívar foi
um aristocrata que, por trás das palavras 'Constituição',
'Federalismo' e 'Democracia Internacional', queria apenas
conquistar a ditadura 'mesclando a força e a intriga'. Separatista,
sim; democrata, não.” (MARX, 2008, p.74) A nosso ver, uma
visão elitista e pós-moderna dos autores, que remete ao "lugar de
fala" tão em voga na atualidade.
[3]"Es una idea grandiosa pretender formar de todo el Mundo
Nuevo una sola nación con un solo vínculo que ligue sus partes
entre sí y con el todo. Ya que tiene un origen, una lengua, unas
costumbres y una religión, debería, por consiguiente, tener un solo
Gobierno que confederase los diferentes estados que hayan de
formarse; mas no es posible, porque climas remotos, situaciones
diversas, intereses opuestos, caracteres desemejantes, dividen a la
América. ¡Qué bello sería que el istmo de Panamá fuese para
nosotros lo que el de Corinto para los griegos! Ojalá que algún día
tengamos la fortuna de instalar allí un augusto congreso de los
representantes de las repúblicas, reinos e imperios a tratar y
discutir sobre los altos intereses de la paz y de la guerra, con las
naciones de las otras partes del mundo." (BOLIVAR, 2013, p.74-
75)
25
O pêndulo latino-americano de Polanyi5
Em seu livro de 1944, "A Grande Transformação"[1],
Karl Polanyi apontava para uma "regularidade variável" na história
do capitalismo. Um duplo movimento pendular contraditório seria
recorrente na organização da economia e da sociedade de
mercado: o "princípio do liberalismo" econômico, que propõe a
globalização dos mercados através da defesa permanente
do laissez faire e do livre comércio, e o princípio da “autoproteção
social”, uma reação defensiva em torno da defesa das “substâncias
sociais ameaçadas pelos mercados” (FIORI, 2003)[2]. Assim, se
teria o “pêndulo de Polanyi”, entre regulamentação e
desregulamentação, entre a relação entre o Estado e o mercado,
onde historicamente o pêndulo tende em certos momentos da
história do capitalismo mais para o lado do liberalismo, outros
mais para o lado do protecionismo.
Há uma constante disputa ideológico-dialética entre as
forças do mercado e a sua resistência, que ocorrem tanto no
âmbito nacional como global. Entretanto, de forma ainda mais
acentuada se pode observar esse movimento contraditório na
América Latina, tendo como exemplo recente as eleições
presidenciais argentinas de 2015, podendo-se interpretar como
uma movimentação do pêndulo em favor do mercado com a
formação de um consenso de que a melhor alternativa é aumentar
seu poder.
Há dez anos, ocorria o ato mais simbólico contrário ao
liberalismo na região no século XXI: a refutação do projeto da
ALCA em Mar del Plata, em 2005, no qual as lutas sociais
antissistêmicas e anti-hegemônicas tiveram seu momento de ápice.
Este ciclo do "pêndulo de autoproteção social", no início da
5 Publicado em 15 de dezembro de 2015.
26
década de 2000, foi ancorado num crescimento econômico
distributivo alavancado principalmente pelos altos preços
internacionais de produtos primários oriundos da demanda
chinesa. Entretanto, um novo ciclo se inicia, de tendência
neoliberal e mudança do pêndulo para o "princípio do
liberalismo", que possui suas sementes na região à procura de um
elemento que intensifique seu poder de persuasão na América
Latina: a Aliança do Pacífico[3], o TPP[4], o TISA[5][6], o
TTIP[7], são os exemplos mais significativos e em discussão na
atualidade. A vitória do oposicionista Mauricio Macri nas eleições
de 2015, por somente 3% dos votos, demonstra a intrínseca
contradição e radicalização da sociedade argentina e,
concomitantemente, latino-americana.
O presidente argentino tomou posse no dia 10/12/2015,
mas outros fatores no cenário latino-americano ratificam a
tendência de modificação do "pêndulo" na metade da década de
2010: os históricos governos pró-mercado de México e Colômbia;
a mudança de postura do presidente Ollanta Humala no Peru (que
se elegera a partir de um programa progressista, modificado ao
longo de seu mandato); a retomada do Partido Colorado no
Paraguai com Horacio Cartes após o golpe de Estado contra
Fernando Lugo (cujo governo significava a interrupção de décadas
do partido de direita no poder); as recentes eleições parlamentares
na Venezuela, que significaram uma derrota para o chavismo e seu
processo revolucionário, assim como uma vitória para a oposição
(e desmistificando de vez a ideia de "ditadura bolivariana" através
da aceitação do resultado eleitoral pelo próprio presidente, Nicolas
Maduro); além das próprias tentativas de desestabilização
democrática no Brasil através do acolhimento pela Câmera de um
possível processo de impeachment da presidenta eleita, Dilma
Rousseff (ratificado em 2016), dentre outros.
Tomando como estudo de caso as eleições argentinas, a
vitória eleitoral da direita tende a intensificar o liberalismo pró-
mercado na região, uma vez que o presidente eleito defende maior
abertura comercial e tratados bilaterais com União Europeia e
Estados Unidos, ampara o pagamento dos Fundos Abutres[8], foi
27
contrário as reestatizações promovidas pelo governo Cristina
Kirchner e a favor da abertura de investimentos estrangeiros, no
qual colocará um ex-executivo do JP Morgan e ex-presidente do
Banco Central argentino (2002-2004), Alfonso Prat-Gay, como
ministro da Economia e Finanças, além de diversos assessores
econômicos pró-mercado[9]. É importante reafirmar um fato: é a
primeira vitória eleitoral significativa da direita na América Latina
desde 1999, e uma das raras vezes que um líder da direita liberal
argentina chega ao poder pelas urnas em eleições livres.
Em termos de integração regional, a vitória de Macri
sinaliza uma ruptura com as políticas externas progressistas sul-
americanas, alinhadas em torno da Unasul e do Mercosul,
pleiteando uma tentativa de suspensão da Venezuela do Mercosul
ao alegar a cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia – que
vale frisar, necessita do consenso dos demais sócios – e
questionando o regime de Nicolas Maduro em termos de política
interna, o que significa uma violação da soberania nacional do pais
venezuelano. Assim, promete uma virada de 180º na política
externa, buscando retomar a prioridade das relações com os
Estados Unidos e a Europa, revisando a aproximação com a
China e Rússia, países que Kirchner converteu em sócios
estratégicos, assim como o Irã, o grande desafeto estadunidense
no Oriente Médio. Outro tema bastante sensível será em relação
às Ilhas Malvinas, e qual a postura do novo presidente em relação
a Inglaterra.
Em suma, demonstra duas tendências na região: de que o
ciclo de governos progressistas de esquerda tende a se encerrar e
um novo ciclo neoliberal de direita tende a se iniciar. Tomando
como exemplo a Argentina em 2015, pode-se esperar que, assim
como aconteceu no passado, tendo como exemplo o final da
década de 80 e os tempos áureos do Consenso de Washington, o
pêndulo latino-americano de Polanyi voltará a se mover, agora em
favor do mercado. É papel das forças sociais opositoras uma
reformulação e radicalização de seus ideais e projetos sociais,
econômicos e culturais, buscando reduzir esse novo ciclo
28
neoliberal e intensificando as transformações sociais rumo à
equidade na região mais desigual do mundo.
Referências bibliográficas
[1] POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa
época. Rio de Janeiro, Elsevier Editora., 2011.
[2] FIORI, Jose Luis. O Duplo movimento. Carta Maior, 25/01/2003.
Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Coluna/O-Duplo-
movimento/20827
[3] https://alianzapacifico.net/#inicio
[4] https://ustr.gov/tpp/
[5] http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/tisa/
[6] http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/tisa-a-
pior-ameaca-aos-servicos-ja-vista-5750.html
[7] http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/
[8] BURGUEÑOS, Carlos. Los buitres. Buenos Aires: Edhasa,
2014.
[9] http://internacional.elpais.com/internacional/2015/11/25/ar
gentina/1448484896_491677.html
29
Liderança carismática na América Latina 6
No último dia 21/02/2016, o presidente Evo Morales foi
derrotado no plebiscito de reforma constitucional, inviabilizando
que dispute mais um mandato na eleição de 2019, após ter sido
eleito presidente em 2006, reeleito em 2010 e novamente em 2014.
Apesar do resultado desfavorável, a popularidade do
presidente segue em alta, explicado pelos dados econômicos e
sociais: uma revolução política e econômica num país que, até sua
chegada ao governo, era recordista na região em quantidade de
golpes de Estado e dos mais pobres de toda a América Latina.
Iniciado em 2006, seu governo lançou políticas ousadas de
redistribuição de renda com políticas sociais, em especial, aumento
das aposentadorias e uma versão local do Bolsa Família; o
percentual da população vivendo em extrema pobreza caiu de
38% para 24%, em seis anos[1]; nacionalizou setores estratégicos,
como o gás e o lítio; possui uma média de crescimento de 5,5%
a.a. nos seus dois primeiros mandatos, além do investimento
estatal ter aumentado em 75%.
Entretanto, esse consiste em mais um exemplo da
encruzilhada que os governos progressistas na América Latina se
encontram (agregando-se a dependência do extrativismo como
ferramenta de crescimento econômico, a dependência financeira
de organismos multilaterais, a superexploração de trabalhadores,
etc): o atrelamento da liderança carismática para sustentar a
continuidade de tais processos é uma característica presente
historicamente na América Latina.
A dominação carismática foi um termo utilizado pelo
sociólogo Max Weber, em seu clássico texto "Os três tipos puros
6 Publicado em 22 de fevereiro de 2016.
30
de dominação legítima", onde, a partir dos conceitos de
dominação racional-legal, tradicional e carismática, define as
diretrizes do poder, da dominação e da legitimação. A dominação
carismática é relacionada em virtude de devoção afetiva à pessoa
do senhor, do seu carisma e suas vocações pessoais; é uma relação
social especificamente extracotidiana e puramente pessoal, que se
pauta na presença de um líder carismático.
Não que a relação entre um líder carismático e um
processo revolucionário seja excludente ou incompatível; pelo
contrário, faz parte de um mesmo processo de ruptura de uma
ordem liberal estabelecida, segundo Laclau (2013). O problema se
encontra quando o processo em si se vincula, única e
exclusivamente, com a figura do líder carismático, onde a sua
própria figura se sobressai ao processo no qual se buscou
implementar. A América Latina possui alguns exemplos de líderes
carismáticos que não conseguiram desvincular essa liderança, e se
encontram dependentes das mesmas para sustentar a continuidade
de tais processos. A figura do líder carismático que assegure a voz
das massas é imprescindível; mas esse comando não deveria se
sobressair ao processo que busca implementar, correndo o risco
de se desgastar quando a persona não se encontra mais presente,
seja pela impopularidade ou ausência física, tendo como exemplo
o processo venezuelano após a morte de Hugo Chávez.
No atual contexto boliviano, com o resultado adverso, o
nome imediato para uma possível troca de poder no campo da
esquerda seria o do Vice-presidente Alvaro Garcia Linera.
Entretanto, dois empecilhos aparecem a sua candidatura: apesar
de ser um grande intelectual boliviano, Linera não é indígena, em
que, num contexto onde 55% da população é indígena e 30%
mestiça, tal fato possui um peso considerável. Em segundo lugar –
e ainda mais importante –, um verdadeiro líder, de dimensão
nacional, é um fator que não se pode "preparar". Todas as
lideranças populares que realizaram uma contribuição individual
decisiva para a História foram pessoas que construíram uma
trajetória de luta, de oposição à ordem estabelecida de maneira
criativa e original, lutando não só contra os poderes instituídos, as
31
classes dominantes, mas também contra ideias pré-estabelecidas e
práticas inerciais no próprio campo popular.
O "desgaste" das lideranças carismáticas na América
Latina ganha mais um protagonista. Entretanto, é inegável o papel
central dos líderes carismáticos em alguns dos movimentos
revolucionários mais bem-sucedidos e radicais; líderes que
possuem um perfil ideológico heterodoxo, isto é, que mostram
algumas das características típicas de populismo[2]: populismo
entendido a partir dos termos utilizados por Ernesto Laclau, na
obra A Razão Populista, num processo de demanda democrática
numa operação de construção do populismo, entendido como um
momento histórico de ruptura popular. É necessário examinar
seriamente o porquê desse papel nos processos revolucionários,
sem aceitar necessariamente as conotações negativas
convencionais, e propondo alternativas na sucessão desses líderes.
Referências bibliográficas:
LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2013.
WEBER, M. Sociologia. Coleção grandes cientistas sociais, n. 13. São
Paulo: Ática, 1979.
[1] http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-
palavras/economia-o-notavel-exemplo-da-bolivia-6693.html
[2] http://www.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=
S1012-25082006000200004
32
Resenha: Vinte anos da originalidade de "Estados e
moedas" 7 8
O esquecimento é um mal crônico do Brasil. Há falta de
memória dos clássicos da literatura, da cultura popular, dos fatos
históricos, da geografia inexplorada, do conhecimento inovador,
do progresso nacional, da origem da riqueza das nações. Neste
último quesito, o livro "Estados e moedas no desenvolvimento
das nações" busca suprir essa lacuna ao retomar, sob uma
perspectiva crítica, a centralidade do poder político dos Estados e
do valor do dinheiro na organização do sistema mundial.
Igualmente à década de 1990, quando o livro foi lançado,
a originalidade de "Estados e moedas" (1999) é a retomada de
uma interditada discussão acerca das lutas de dominação do
desenvolvimento econômico global e a distribuição desigual do
poder e da riqueza entre as nações. Dividido em quatro partes,
"Geopolítica e sistemas monetários", "Os 'capitalismo tardios' e
sua projeção global", "'Milagres' e 'miragens' no século XX" e
"Para retomar o debate brasileiro", o livro possui uma perspectiva
histórica cuja permanência transcende a conjuntura, haja vista que
os grandes debates, que ocorreram há vinte anos, ainda são
extremamente contemporâneos. De tal modo, é considerado um
ponto de inflexão no estudo da Economia Política Internacional
no Brasil desde o ponto de vista metodológico e teórico, ao
aprofundar a discussão de um grupo de pesquisadores que
ininterruptamente militaram contra a ortodoxia liberal, com uma
7 Publicado em 10 de junho de 2019.
8 Este texto é o resultado das discussões do III Encontro de Economia Política
Internacional (ENEPI) do Programa de Pós-Graduação em Economia Política
Internacional/PEPI-UFRJ, cuja mesa de encerramento foi uma comemoração
aos 20 anos da publicação do livro "Estados e moedas no desenvolvimento das
nações".
33
trajetória favorável à heterodoxia das estratégias de
desenvolvimento a partir da perspectiva do poder.
Através das divergências teórico-analíticas e da
convergência crítica ao ultraliberalismo por parte dos autores, é
um livro que nasce, cresce, se reproduz e não morre. Seus
idealizadores buscaram concentrar seus esforços intelectuais no
futuro do desenvolvimento na periferia do capitalismo diante da
polarização da riqueza mundial, dirigindo "sua pergunta
fundamental ao presente e futuro do desenvolvimento em países
periféricos, em particular daqueles que submetem, neste
momento, suas estratégias de crescimento econômico à dinâmica
da finança privada, global e desregulada." (FIORI, 2012, p.42)
A questão central do papel dos Estados periféricos no
sistema internacional seria como gerar uma política estatal
autônoma, visualizando-se potenciais aliados e rivais a fim de se
pensar as possibilidades geopolíticas de países como o Brasil.
Tanto na década de 1990 como na década de 2010, o conceito do
"fim da história" e do "Consenso de Washington", da vitória
incontestável do liberalismo político e econômico como atividade
estabilizadora apoiada pelo livre mercado e financeirização
econômica, devem ser rechaçados e desmistificados. Em outros
termos, os Estados que se dispõem a buscar a recuperação dos
conceitos de desenvolvimento econômico nacional devem buscar
alternativas alheias aos preceitos ultraliberais.
"Estados e moedas" é um livro para não ser esquecido e,
do campo internacional para o campo nacional, auxilia a pensar
um novo projeto de pesquisa, avançando o paradigma na
Economia Política Internacional. Portanto, é imprescindível
"retomar o fio da discussão interrompida, voltando ao problema
originário da economia política clássica − o da riqueza das nações
− e retomando o debate histórico sobre a viabilidade e os
caminhos do desenvolvimento econômico nacional" (FIORI,
2012, p.14). Ou seja, "nesse momento, essa é uma reconstrução
útil e talvez indispensável para todos os que se proponham
avançar no campo teórico, ou inovar no plano prático das
34
estratégias políticas e econômicas de desenvolvimento" (FIORI,
2012, p.14)
Diante deste quadro, questionava-se (e questiona-se) qual
a perspectiva das forças progressistas no Brasil diante de um
quadro totalmente desfavorável na correlação de forças. Para os
intelectuais brasileiros da Economia Política Internacional, o
maior desafio é remodelar os instrumentos analíticos e
conceituais, uma vez que a ininteligibilidade da realidade brasileira
atual é latente. Principalmente após as eleições de 2018, é essencial
compreender a união entre o ultra-conservadorismo moral,
familiar e religioso, com o ultra-liberalismo de Chicago,
ultrapassado e entreguista. Nas palavras de José Luis Fiori, em sua
exposição que finalizou os trabalhos do ENEPI: "porque o
primeiro caminho pra quem quer enfrentar, pra quem discorda, é
entender o adversário. E o segundo caminho é pensar o que fazer
com o país depois que essa excrescência for superada. É nossa
obrigação ética, enquanto intelectuais, pensar o futuro do Brasil."
Referência bibliográfica
FIORI, José Luis (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das
nações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
35
O legado de "Poder e dinheiro" 9 10
No dia 14 de setembro de 2017, por iniciativa da Pós-
Graduação em Economia Política Internacional/PEPI-UFRJ, foi
celebrada a comemoração dos 20 anos de lançamento do livro
"Poder e dinheiro" (1997), com a participação de organizadores e
autores, como José Luís Fiori, Carlos Aguiar de Medeiros,
Franklin Serrano, Luiz Eduardo Melin e Ernani Teixeira.
O debate sobre a conformação do livro surge da releitura
de um clássico texto de Maria da Conceição Tavares, escrito em
1985, intitulado "A retomada da hegemonia norte-americana".
Nele, Tavares criticava o consenso intelectual da época referente à
crise da hegemonia norte-americana, uma vez que a desregulação e
financeirização econômica eram parte de um projeto estratégico
de restauração do poder americano. Tais críticas, alinhadas ao
esgotamento do desenvolvimentismo brasileiro, conformam a
combinação das discussões que serão o ponto de partida do
Grupo em seu marco inicial no final da década de 1980. Entre
1994-1997, os desafios políticos e intelectuais se modificam: a
euforia com a globalização, o “fim da história”, a vitória neoliberal
(sintetizado no Consenso de Washington) realizam uma mudança
qualitativa na trajetória do Grupo: de somente pesquisadores para
militantes combatentes, uma luta ativa e intelectual compactuada
com uma produção acadêmica editorial, cujo esforço faz surgir
“Poder e dinheiro".
9 Publicado em 25 de setembro de 2017.
10 Este texto é fruto do evento em comemoração aos 20 anos da publicação do
livro "Poder e dinheiro: uma economia política da globalização", realizado pela
Pós-Graduação em Economia Política Internacional/PEPI, do Instituto de
Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 14 de setembro de
2017. O livro foi laureado com o Prêmio Jabuti de 1998, na categoria Economia,
administração, negócios e direito.
36
O livro é composto por um conjunto de ensaios cuja
diversidade intelectual convergia para questões fundamentais, que
se propunham a debater criticamente a economia política da
globalização, numa relação indissociável que possuía uma lógica e
uma dinâmica peculiar. Fundamentalmente, os autores realizaram
seus estudos partilhando uma visão crítica, tanto da globalização
como das políticas neoliberais da década de 1980-90, baseando-se
em três consensos: "poder e dinheiro", cuja dinâmica capitalista
fica completamente incompreensível se não levarmos em conta o
movimento simultâneo de suas determinações econômicas e
políticas; "dinheiro e riqueza", em que a nova etapa da
internacionalização capitalista se concentra no campo financeiro,
no qual se desfizeram as fronteiras entre as moedas e os capitais,
permitindo uma verdadeira universalização do capital financeiro; e
"espaços e hierarquias", onde a reorganização econômica e política
do capitalismo está passando por um processo de re-
hierarquização de poderes políticos e econômicos regionalizados e
assimétricos. (TAVARES; FIORI, 2017, pp.9-11)
Um dos questionamentos principais do livro seria como
um poder rival (Japão na década de 1980, e, por inferência, China
na atualidade) poderia contrastar o poder americano. Desde o
padrão dólar-flexível até a atualidade, os Estados Unidos tem a
dominância monetária do sistema internacional nunca antes vista
na história. Eles têm a capacidade de possuir déficit em conta
corrente e variar a taxa de câmbio nominal sem nenhuma restrição
externa. É a máxima do ex-secretário do Tesouro americano no
governo Nixon, John Connally: “The dollar is our currency but
your problem.”
No sistema internacional, o dinheiro tem dono, e seu
dono busca defender os interesses políticos, econômicos e
financeiros de sua matriz. Ou seja, mesmo com as crises de 2001 e
2008 nos Estados Unidos, e de 2008-2012 na União Europeia,
ratifica-se a falácia do colapso do dólar, cuja participação vem
crescendo nos anos recentes (em termos de circulação e
lastreamento do sistema, tanto pelo valor quanto pelo volume) em
comparação com o euro, libra e outras moedas, chegando a 80%
37
das transações inter-regionais (excluindo fluxos domésticos e
intra-regionais). O dólar é a moeda de referência nos fluxos
internacionais e, portanto, não há uma fuga do dólar, mas uma
fuga para o dólar.
Este livro se tornou um clássico uma vez que sobreviveu
às mudanças conjunturais e estruturais vivenciadas pelo sistema
internacional (ainda que o ano de 2008 consista numa mudança
brutal na estrutura do sistema, cujas previsões da dimensão dessa
crise e das mudanças posteriores ainda são imperceptíveis na
longa duração). É a recuperação de um livro que se mostrou
correto em suas reflexões vinte anos atrás, e que possui, ainda
assim, um respaldo na atualidade, com inúmeros paralelos entre
1997 e 2017, tais como a crítica ao pensamento neoliberal, a
condenação da crise da hegemonia norte-americana, a prevalência
do dólar, a continuidade da globalização financeira, o poder global
estruturado na hierarquia política e econômica, no poder e no
dinheiro.
Entretanto, no retorno da geopolítica das nações, a guerra
volta ao centro do jogo na arena internacional, cuja sistematização
teórica de parte do Grupo atualmente busca pensar o desafio
contemporâneo de multiplicação dos conflitos e as suas
prerrogativas éticas e filosóficas. Como brilhantemente descreveu
Fiori no encerramento do evento, há o retorno do sistema
westfaliano, um sistema internacional que gira em torno de uma
regra e no qual todos os países estão inseridos: cada um por si, e
na divergência, a guerra.
Referência bibliográfica
TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís (Org.). Poder e
dinheiro: uma economia política da globalização. 7. ed. Petrópolis,
Rj: Vozes, 2017.
38
Homenagem a Theotonio dos Santos (1936-2018): um
"civilizador planetário" 11
Rio de Janeiro, terça-feira, dia 27/02/2018: a América
Latina está de luto. Faleceu Theotonio dos Santos, um dos
maiores cientistas sociais da história, um dos principais
propagadores dos estudos da dependência no mundo (sendo,
inclusive, mais conhecido e reconhecido fora de seu país natal).
Ao buscar dialogar esta construção da teoria marxista latino-
americana com a teoria do sistema-mundo, realizou uma
convergência entre as contradições do capitalismo contemporâneo
e do capitalismo dependente de forma crítica e original.
Sucintamente, Theotonio fazia parte da corrente de cunho
“dependentista marxista-revolucionária”, que gerou uma base
teórica, histórica e dialética entre os fatores específicos da
realidade latino-americana e as transformações do sistema mundial
capitalista, a fim de construir uma interpretação crítica do papel da
região dentro desse sistema. A partir da constatação da
dependência e na busca de sua superação, contribuiu para pensar
caminhos políticos vis-à-vis as contradições características da
condição periférica e dependente pela via da revolução socialista.
Visualizando as especificidades dos países periféricos latino-
americanos como parte integrante do sistema mundial, se afastou
de qualquer ilusão igualitária em relação ao desenvolvimento
capitalista.
Em seus trabalhos, Theotonio dos Santos buscou
entender a especificidade dos países periféricos e a relação que a
dependência dos países latino-americanos impunha ao seu
desenvolvimento no sistema capitalista. Para ele,
11 Publicado em 28 de fevereiro de 2018.
39
la dependencia es una situación en la cual
un cierto grupo de países tienen su
economía condicionada por el desarrollo
y expansión de otra economía a la cual la
propia está sometida. La relación de
interdependencia entre dos o más
economías, y entre estas y el comercio
mundial, asume la forma de dependencia
cuando algunos países (los dominantes)
pueden expandirse y autoimpulsarse, en
tanto que otros países (los dependientes)
solo lo pueden hacer como reflejo de esa
expansión, que puede actuar positiva y/o
negativamente sobre su desarrollo
inmediato. De cualquier forma, la
situación de dependencia conduce a una
situación global de los países
dependientes que los sitúa en retraso y
bajo la explotación de los países
dominantes. (SANTOS, 2011, p.361)
Em sua essência, o desenvolvimento dos países da
América Latina possui padrões particulares, que estão atrelados à
situação de dominação econômica, social e política a qual estão
submetidos. Assim, estes padrões específicos determinam um
desenvolvimento dependente que tem como característica
fundamental a exploração tanto no âmbito das próprias
economias nacionais, como na relação entre estas e os grandes
centros de poder mundiais.
Em se tratando de seu lado pessoal, tive o imenso prazer
de conhecê-lo pessoalmente e até mesmo trabalhar, por um breve
espaço de tempo, com ele. Recordo-me até hoje, ao realizar uma
tradução para um de seus livros, sua hospitalidade e cordialidade
em sua casa de Niterói, fazendo questão de acompanhar e debater
algumas de suas ideias, sendo sempre um de seus pontos fortes, o
debate incessante e plural. No meio dos afazeres, pegou em sua
prateleira um de seus 38 livros publicados em mais de 16 idiomas,
40
"Teoria da dependência: balanço e perspectivas", traduzido para o
chinês, recomeçando uma nova rodada de aprendizados, e assim
se sucedeu até o final daquela noite e nos outros dias que tivemos
um contato mais direto.
Theotonio nos deixa fisicamente, assim como os
principais expoentes da Teoria Marxista da Dependência, como
Ruy Mauro Marini (1932-1997) e Vânia Bambirra (1940-2015).
Entretanto, seu legado está, a cada ano que passa, mais presente
no Brasil, na América Latina e no mundo, cujo resgate é
encorajado na medida em que sua teoria explica a realidade
contemporânea. É dever das novas gerações de pesquisadores
fazer jus ao excelente trabalho intelectual deste gigante, honrando
seu nome na defesa de uma "civilização planetária" mais justa e
igualitária.
Nota: Seu último livro, "Desenvolvimento e civilização:
homenagem a Celso Furtado" (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2016)
está disponível integralmente na Biblioteca Virtual do Clacso em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20160330040647/Dese
nvolvimento_e_civilizacao.pdf
Referência bibliográfica
SANTOS, Theotonio dos. Imperialismo y dependencia.
Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2011.
41
A atualidade geopolítica de Spykman: política de contenção,
equilíbrio de poder e disputa territorial 12
Dentre as análises que foram realizadas durante o prólogo
da Guerra Fria, os preceitos do geopolítico Nicholas John
Spykman se destacam na visão estratégica de longo prazo, tanto
em uma visão estadunidense quanto soviética, e "antecipa o
quadro básico e as estratégias dominantes das relações
internacionais do pós-guerra". (COSTA, 1992, p.176) Spykman
pleiteava uma política de poder sustentada na segurança nacional
dos Estados Unidos e, ao teorizar durante a 2ª Guerra Mundial, a
contemporaneidade de seus conceitos consiste no uso de
ferramentas metodológicas instrutivas para a compreensão da
geopolítica e da política de segurança norte-americana, desde o
início da Guerra Fria até a Guerra ao Terror.
A denominada "política de contenção" foi um termo
utilizado no final da década de 1940 a fim de inflamar a opinião
pública no preâmbulo da Guerra Fria. Tal política "se tornou o
slogan-chave que liga a atmosfera interna e as operações externas
em uma única frente e garante a passagem do New Deal para a
Doutrina Truman" (ANDERSON, 2015, p.39), possibilitando
uma política nacional que instaurava a prerrogativa de interferir
em qualquer parte do globo a partir do discurso sobre os perigos
do comunismo e a necessidade de sua contenção para a segurança
nacional.
O perigo do comunismo/nacionalismo, que se faz
presente na formulação política norte-americana, vem sendo
substituído pelo terrorismo internacional como discurso para a
base da estratégia de alianças internacionais, bases militares e
guerras por procuração a fim de garantir a segurança
12 Publicado em 10 de abril de 2017.
42
estadunidense no sistema internacional, evitar a propagação de
ideais contrários aos preceitos liberais democráticos e aumentar a
influência militar, econômica e política em distintos países do
globo, uma vez que o terrorismo não possui uma base territorial
centralizada.
Outro conceito chave para compreender a importância de
Spykman na atualidade é o equilíbrio de poder. A partir de uma
projeção azimutal equidistante centrada no Polo Norte, que
demonstra uma proximidade geográfica entre a América do Norte
e a Eurásia através dos Oceanos Atlântico e Pacífico e do Mar
Ártico (COSTA, 1992, p.178), reforça a necessidade do equilíbrio
de poder na Eurásia:
Spykman não dissimula o fato de que
uma teoria estratégica e a conseqüente
política de defesa dos EUA, para a guerra
e a situação mundial que a sucedesse,
envolviam forçosamente o
reconhecimento de que o país, como
grande potência global, ao defender-se, o
faria através de movimentos, alianças e
ofensivas que o projetariam como força
determinante no chamado equilíbrio do
poder mundial. (COSTA, 1992, p.171)
Caso a Eurásia fosse dominada por um único poder,
acumularia uma força não compensada que poderia se projetar
para o Oceano Atlântico e Pacífico e, em um movimento de
pinças, cercar o hemisfério ocidental, uma vez que "era o cerco
potencial da América pela Eurásia ou da Eurásia pela América que
definiria neste século as grandes linhas da política mundial."
(MELLO, 1999, p.103-105) Para Spykman (apud TOSTA, 1984,
p.78), “a possibilidade de cercar ou ser cercado depende dos
potenciais do poder de ambos os mundos e da capacidade de
integrar-se ou não, cada um deles, em uma só unidade ou coalizão
política”.
43
A resolução deste dilema seria "uma participação direta
americana no equilíbrio de poder eurasiático para manter divididas
e neutralizadas as forças político-militares da Europa e do
Extremo Oriente" (MELLO, 1999, p.118), não dispondo de
recursos excedentes que pudessem colocar em perigo a segurança
e os interesses estratégicos dos Estados Unidos. Assim,
ocasionaria num excedente de poder norte-americano para
projetar-se nos dois oceanos e fixar sua primeira linha de defesa
transoceânica nas duas bordas, tanto da Europa como da Ásia,
consistindo no "principal vetor da grande estratégia estadunidense
na política mundial." (MELLO, 1999, p.97-98)
A disputa territorial consiste num elemento central da
análise da política internacional e na formulação da grande
estratégia americana contemporânea. Ao examinar o mapa-múndi
e as duplas frentes oceânicas da Eurásia e dos Estados Unidos,
Spykman definiu a zona estratégica do poder mundial capaz de
compensar o domínio da massa continental eurasiana, essencial
para a política de segurança norte-americana: o Rimland. Para ele, o
"caminho circunferencial marítimo" (COSTA, 1992, p.179)
consistiria "numa vasta zona tampão de conflitos entre o Poder
Terrestre e o Poder Marítimo" (TOSTA, 1984, p.76),
determinando o Rimland como poder anfíbio de expansão tanto
pelo mar como por terra, cujas áreas marginais da Eurásia seriam,
"com sua orientação marítima, crucial para o contato com o
mundo exterior" (KAPLAN, 2013, p.98), ressaltando a
importância das "fímbrias marítimas que contornavam a grande
planície central da Eurásia". (MELLO, 1999, p.120)
Geograficamente, a tese do Rimland compreende as zonas
marginais da Europa, Oriente Médio, subcontinente indiano e
Extremo Oriente, entre o "anel desértico e montanhoso que
circundava a planície siberiana e, por outro lado, com o
semicírculo marítimo que contornava o continente eurasiano"
(MELLO, 1999, p.120), assim como "a área de contato entre o
litoral da Eurásia e o cordão de mares marginais que a cercam"
(TOSTA, 1984, p.79), constituindo-se como "a via expressa
marítima do tráfego comercial e militar da Ilha Mundial,
44
conectando África e Oriente Médio ao Leste Asiático".
(KAPLAN, 2013, p.104)
A disputa e o controle em torno do Rimland consistiram
no "centro nevrálgico da disputa americano-soviética" (MELLO,
1999, p.129) durante toda a Guerra Fria e, atualmente, da
contenda com a Rússia e China. Para os Estados Unidos, era peça
chave para o seu perímetro de segurança a contenção do
expansionismo na Eurásia, através do "avanço da primeira linha
de defesa estadunidense para a borda eurasiana e a montagem de
alianças militares com os países anfíbios e insulares do Velho
Continente" (MELLO, 1999, p.131), constatados nos pactos
militares norte-americanos no auge da Guerra Fria e que se fazem
presentes até os dias de hoje:
a) a OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte), aliança dos Estados
Unidos com os países do Rimland
europeu, que vedava o acesso russo à
periferia ocidental da Eurásia e ao oceano
Atlântico; b) a OTASE (Organização do
Tratado do Sudeste Asiático), aliança dos
Estados Unidos com os países do
Rimland asiático, que bloqueava aos
russos as saídas para o oceano Pacífico;
c) CENTO (Organização do Tratado
Central), aliança dos Estados Unidos
com os países do Rimland do Oriente
Médio, que fechava aos russos as
passagens para o golfo Pérsico e o
oceano Índico. (MELLO, 1999, p.132).
Em outros termos, em um sistema internacional
anárquico, o principal objetivo da política externa de cada Estado
consiste na preservação e no aumento de excedente de poder, em
um esforço para neutralizar o poder de outros Estados com o
objetivo de obter uma supremacia internacional. (MELLO, 1999,
p.96) Uma interpretação da atualidade geopolítica (em favor dos
45
Estados Unidos) de Spykman gira em torno desses três conceitos:
1) política de contenção, mantendo uma situação de indiscutível
hegemonia no Hemisfério Ocidental; 2) equilíbrio de poder,
assegurando o controle na Eurásia para evitar que se estabeleça
um centro de poder excessivamente influente na Europa e no
Extremo Oriente; 3) Rimland, impedindo o seu controle pelas
forças russas, isolando-as no interior da Eurásia sem acesso aos
mares quentes e, no caso chinês, buscando o cerco de seu acesso
ao Mar do Sul da China e posterior acesso a Bacia do Pacífico.
Um dos clássicos da geopolítica ainda serve de sustentáculo para a
compreensão mais apurada acerca dos embates geopolíticos e
geoeconômicos mundiais contemporâneos.
Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus
teóricos. São Paulo: Boitempo, 2015.
COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Política e
Geopolítica: discursos sobre o território e o poder. São Paulo:
Hucitec; Edusp, 1992.
KAPLAN, Robert. A vingança da geografia: a construção do mundo
geopolítico a partir da perspectiva geográfica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2013
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Quem tem medo da geopolítica? São
Paulo: Hucitec; Edusp, 1999.
TOSTA, Octavio. Teorias geopolíticas. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1984.
46
Cartografia e projeções de poder nas relações
internacionais13
Os mapas são a reprodução mais antiga do pensamento
geográfico. Concebida como ciência da representação gráfica da
superfície terrestre, a cartografia vem auxiliando numa maior
compreensão visual das relações internacionais. [1]. No entanto,
não é suficientemente sistematizada como meio através do qual
uma classe dominante projeta sua visão de mundo. Em outros
termos, a cartografia nunca foi uma ciência neutra, isenta, e sim
uma representação adaptada da realidade, que promove relações
de poder.
As projeções cartográficas são uma expressão matemática
que transformam as coordenadas geográficas, a partir de uma
superfície esférica, em coordenadas planas, mantendo
correspondência entre elas. Estas projeções são realizadas a partir
dos meridianos e paralelos curvos da esfera terrestre em figuras
geométricas, como o cilindro, o cone e o plano. Na projeção
cilíndrica, os paralelos e meridianos são retos, havendo
deformações nas regiões de altas latitudes (polos), com melhor
projeção nas regiões perto do Equador; na projeção cônica, os
meridianos são retos e convergentes e os paralelos são círculos
concêntricos, visualizando-se regiões de latitudes médias; na
projeção azimutal, há similitude com a projeção cônica, mas com
distorções aumentando a partir do centro, sendo preferidos para
representar regiões polares e mapas estratégicos (destaque a um
ponto central).
O mapeamento é uma manifestação das relações de
dominação existentes no plano internacional, cujas distorções
ocorrem através de três mecanismos principais: escala, projeção e
13 Publicado em 1 de abril de 2019.
47
simbolização. A escala delimita a proporção que existe entre as
distâncias da realidade e aquelas que aparecem em sua
representação cartográfica; em outros termos, quanto maior a
escala, maior o nível de detalhes e informações que o mapa pode
oferecer. A projeção seria o segundo mecanismo de distorção dos
mapas, pois trata de representar em um planisfério as superfícies
curvas da esfera terrestre. Como cartógrafos críticos apontam, não
há mapas perfeitos porque não há solução totalmente satisfatória
para esse desafio. As distorções da projeção (suas formas e seus
graus) não são imprevisíveis, mas obedecem a um padrão e regras
muito precisos. Por último, a simbolização seria o terceiro
elemento de distorção dos mapas: estes devem ter sinais gráficos
para identificar as características da realidade espacial em questão,
que são criados a partir da concepção e simbologia dos
cartógrafos.
Historicamente, as duas projeções cartográficas mais
conhecidas são a de Mercator e a de Peters. Arquitetada no século
XVI, a projeção cilíndrica de Mercator foi a mais utilizada por
navegantes, uma vez que as direções eram traçadas numa linha
reta sobre o mapa. Esta projeção respeita as formas dos
continentes, mas não seus tamanhos: áreas extensas ou situadas
em latitudes elevadas aparecem com dimensões exageradamente
ampliadas. Em contrapartida, a projeção de Peters, datada da
década de 1970, trata de uma projeção cilíndrica equivalente, ou
seja, preserva as dimensões relativas dos países e continentes. A
distorção, portanto, está nas formas, principalmente nas pequenas
latitudes, alongando os países e continentes no sentido norte-sul,
contudo, sendo mais fiel do que a projeção de Mercator no que se
refere aos tamanhos dos continentes. [2].
Para Boron (2013, p.286), a representação cartográfica
"oficial", baseada na projeção de Mercator, é a expressão fiel do
sistema imperialista. O mapa de Peters, por outro lado, sendo uma
"área equivalente", destaca a superfície real de cada um dos países
e continentes, endossando, com os dados concretos da geografia,
a igualdade e autodeterminação nacional, anticolonial e anti-
imperialista.
48
Peters fue un personaje notable, un
pensador radical que sostuvo cosas tales
como que “el eurocentrismo comienza
en los mapas”. […] Su mapa, continuó
diciendo, “es la expresión de la
europeización del mundo, de la época de
dominación mundial del hombre blanco,
de la explotación colonial del planeta por
parte de una minoría de pueblos blancos,
dominantes, bien armados, técnicamente
superiores y brutales.” Y concluyó
afirmando que “esa época no ha de
eternizarse mediante la insistencia en la
imagen geográfica mundial creada por
esa minoría y perteneciente a ella.”
(BORON, 2013, p.281-282)
Stuenkel não aborda o tema das distorções cartográficas
em termos de imperialismo, mas de ocidentocentrismo, uma visão
de mundo que leva a subestimar o papel dos atores não ocidentais,
no passado e no futuro. Além disso, no que se refere aos mapas,
faz com que as regiões mais próximas à linha do Equador
pareçam menores do que realmente são. Toma como exemplo
clássico a Groenlândia, que parece tão grande quanto o continente
africano, apesar de não corresponder à realidade. "Enquanto a
área da Groenlândia é de 2.166.000 km², a extensão da África é de
30.370.000 km² - catorze vezes maior." (STUENKEL, 2018, p.19)
As distorções mencionadas não são apenas questões
técnicas, mas obedecem a decisões essencialmente políticas e
ideológicas ligadas ao exercício do poder. Assim, a criação de
mapas era comumente controlada pelos governos e quase sempre
nas mãos de agências ou escritórios pertencentes às forças
armadas. Na moderna sociedade ocidental, os mapas rapidamente
se tornaram cruciais para a preservação do poder estatal
(fronteiras, comércio, administração interna, controle
populacional, força militar), ampliado para o setor privado
(Google Maps como maior exemplo).
49
El diseño, producción y uso de mapas,
contienen una amplia gama de
intencionalidades discursivas que van
desde la presentación diferenciada de
datos, hasta la divulgación de intereses
políticos y estratégicos que el Estado y
las empresas ejercen sobre el espacio y el
territorio. En todo caso, “el mapa”
transmite la visión específica del mundo
del/los autor/es, y se convierte por
excelencia en parte de un discurso
geográfico. (PRECIADO; UC, 2010,
p.74)
Mapa é uma questão de poder. Outrossim, a cartografia se
apresenta como uma projeção de força geopolítica, cuja
construção não possui um caráter geral e universal, replicável a
todo e qualquer Estado nacional. A cartografia, tal qual a
geopolítica, é o estudo de um autor de uma determinada nação ou
país, que produz mapas marcados pelo seu contexto político,
ideológico, territorial e histórico. Assim, se apresenta como
projeto de poder dos Estados sob condições materiais singulares,
que configuram e representam graficamente as relações
internacionais a partir de objetivos geográficos e políticos
específicos.
Referências bibliográficas
PRECIADO, Jaime & UC, Pablo (2010). La construcción de una
geopolítica crítica desde América Latina y el Caribe. Hacia una
agenda de investigación regional. Geopolítica(s). Revista de estudios
sobre espacio y poder. 1 (1), 65-94.
BORON, Atilio. América Latina en la geopolítica del imperialismo.
Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2013.
50
STUENKEL, Oliver. O mundo pós-ocidental: potências emergentes e
a nova ordem global. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
[1] Ainda que com temáticas distintas, no âmbito das relações
internacionais, três livros abordam a cartografia e geografia de
forma interessante e original: "Uma história do mundo em doze
mapas", de Jerry Brotton; "A vingança da Geografia", de Robert
Kaplan; e "Prisioneiros da Geografia", de Tim Marshall.
[2] Mais recentemente, em 2010, Hajime Narukawa criou um
mapa que melhor respeita as proporções. Trata-se do Authagraph,
criado depois de 15 anos de trabalho. Narukawa terminou de
elaborar esta projeção já em 2010 e, conforme explicado em uma
conferência, seu objetivo era unificar duas formas comuns de
representar o mundo em um mapa. Para conseguir uma
representação mais fiel das formas e tamanhos dos países,
Narukawa dividiu a esfera terrestre em 96 triângulos. Depois
transferiu esse desenho para um tetraedro, que, por sua vez, foi
desdobrado em um retângulo, em uma técnica que tem sido
comparada ao origami.
51
Olimpíadas e política internacional 14
Com o fim das Olimpíadas Rio 2016, permanece a
nostalgia dos dias em que os melhores atletas do mundo
disputavam o espaço mais alto no pódio, representando seus
países (e até mesmo na condição de refugiados, pela primeira vez
na história das Olimpíadas) através de uma estratégia de política
internacional.
Obviamente que as glórias e louros olímpicos, para os
atletas, são majoritariamente fruto de seu esforço pessoal e
competitivo. Entretanto, a Olimpíada é, historicamente, uma das
arenas de disputa internacional entre Estados mais simbólica e
elucidativa, em que os atletas disputam pelos seus países na busca
de acumulação de prestígio e força.
A disputa pelas medalhas olímpicas são moedas de
persuasão e autoridade no cenário internacional, que buscam
demonstrar a virilidade dos respectivos Estados nacionais através
do desempenho de seus atletas nativos. A relação entre influência
global e número de medalhas é diretamente proporcional: mais
medalhas, maior prestígio internacional; menos medalhas, menor
prestígio e impressão de decadência em termos político-
econômicos.
Tanto as potências ocidentais, especialmente os EUA e a
Grã-Bretanha, quanto a China, a Rússia e os países do antigo
bloco socialista possuem ciência deste fato, e investiram/investem
o máximo que podem para conseguir o maior número de
medalhas em jogos olímpicos, inclusive voltando seus
investimentos tradicionalmente para os esportes individuais, que
rendem mais pódios. A formação de atletas de alto rendimento é
14 Publicado em 1 de setembro de 2016.
52
um projeto político-estratégico no cenário internacional,
ensejando retorno simbólico muito maior que o investido.
Realizando uma cronologia dos três primeiros colocados
em cada Olimpíada dos Tempos Modernos (1896-2016), observa-
se a relevância de fatos históricos que confirmam a estratégia de
política internacional das Olimpíadas. Em 1896, Estados Unidos,
Grécia (país sede) e Alemanha figuraram nas três primeiras
colocações. Entre 1900-1912 (período que antecede a Primeira
Guerra Mundial e conhecido pelo imperialismo das grandes
potências na partilha do mundo), países como França (1º em
1900), Estados Unidos (1º em 1904 e 1912), Reino Unido (1º em
1908) e Alemanha (2º em 1904, 3º em 1896) consistiam o rol de
vencedores na arena internacional. No período pós 1ª Guerra
Mundial, os Estados Unidos foram os grandes vitoriosos entre
1920-1932, tendo a Alemanha vencido os Jogos em Berlim de
1936, buscando demonstrar a suposta força e superioridade ariana
no cenário internacional. No período da Guerra Fria (1948-1992),
a força militar necessitava também ser demonstrada nos esportes:
Estados Unidos (1º em 1948, 1952, 1964, 1968 e 1984) União
Soviética (1º em 1956, 1960, 1972, 1976, 1980, 1988 e 1992[1]) e
Alemanha Oriental (2º em 1976, 1980 e 1988) se revezaram nas
duas primeiras colocações do quadro de medalhas, com exceção
dos anos em que existiram boicotes de uma das partes (1980, em
Moscou, por parte dos Estados Unidos, e em 1984, em Los
Angeles, por parte da União Soviética e Alemanha Oriental). No
período de 1996-2004, os Estados Unidos foram os vencedores,
sendo seguido por antigas potências (como Alemanha, França e
Japão) e países emergentes (como Rússia e China), tendo sido
superado pela China nas Olimpíadas de Pequim, em 2008, o mais
novo país a contestar a hegemonia unipolar estadunidense no
sistema internacional.
Se analisarmos o top 10 das últimas três Olimpíadas
(Pequim 2008, Londres 2012 e Rio 2016), temos um quadro das
grandes potências internacionais (Estados Unidos, China, Rússia,
Reino Unido, Alemanha, Austrália, Coreia do Sul, Japão, Itália,
França) no cenário político e econômico que reverberam nos
53
esportes e refletem o investimento e a vontade política dos
Estados em buscar prestígio internacional através das Olimpíadas.
A própria colocação do Brasil no quadro de medalhas na
Rio 2016 é prova desta hipótese, tendo sua melhor colocação em
Olimpíadas em grande medida devido a projetos políticos, como o
Programa Segundo Tempo[2] e o Programa Bolsa Atleta[3]. Estes
indicam uma importância crescente do país no investimento ao
esporte, ainda que insuficiente e possivelmente intermitente.
O sucesso em Olimpíadas e na projeção internacional de
um país consiste numa combinação de investimentos com
vontade política; sem essa simbiose, não há resultados.
[1] Com o desmembramento da URSS em 1991, as ex-repúblicas
soviéticas (exceto Lituânia, Estônia e Letônia) participaram dos
Jogos Olímpicos de 1992 como Equipe Unificada (Comunidade
dos Estados Independentes). A CEI ficou em primeiro lugar no
quadro de medalhas em sua primeira e única participação nos
Jogos Olímpicos de Verão. Os atletas da Equipe Unificada
conquistaram 112 medalhas (45 medalhas de ouro, 38 medalhas de
prata e 29 medalhas de bronze). Nas Olimpíadas de 1996 as 12
nações competiram em separado.
[2] http://portal.esporte.gov.br/snee/segundotempo/
[3] http://www2.esporte.gov.br/snear/bolsaAtleta/sobre.jsp
54
A caverna da esquerda15
Das obras do filósofo grego Platão, a passagem mais
conhecida encontra-se no Livro VII de "A República" (PLATÃO,
2008), conhecida como o "mito da caverna". Esta narra a história
de um conjunto de prisioneiros que foram acorrentados e presos
em uma caverna desde sua infância. Na sua visão cotidiana, está
somente a parede da caverna com sombras oriundas dos efeitos da
luz, que penetram no local devido a existência de uma fogueira,
cujas sombras indicam apenas parte das formas, mas nunca uma
pessoa ou figura completa. Na continuação, um desses
prisioneiros se livra das correntes e caminha à saída da caverna,
ainda que com muito esforço, dado a adaptação de seu corpo e a
subida íngreme. Ao sair da caverna, a luz forte do sol faz seus
olhos doerem, mas, aos poucos, se adapta e descobre um novo
mundo até então desconhecido, a verdade. De pronto, resolve
voltar à caverna, libertar seus antigos companheiros de prisão e
contar tudo que havia visto. Entretanto, os presos que se
encontravam na caverna, devido à sua realidade, reféns dos seus
hábitos e cotidiano, não aceitam suas argumentações, interditam
um diálogo e acusam-no de louco, não descobrindo o mundo
verdadeiro.
O mito da caverna vem servindo de analogia para
diversos fenômenos sociais e filosóficos, uma alegoria que
transpassa barreiras e serve de guia autorreflexivo constante,
inclusive para a esquerda brasileira e mundial na atualidade.
No plano das relações internacionais, a esquerda carece
incorporar um conceito básico da geopolítica, a ideia da
estruturação de um sistema interestatal global anárquico,
hierárquico e competitivo, em que qualquer modificação na
15 Publicado em 9 de abril de 2018.
55
relação de forças afeta sempre a posição relativa dos atores
internacionais e que, por isso mesmo, não podem permanecer
indiferentes às oscilações do equilíbrio de poder mundial. Em
outros termos, é fundamental para a esquerda analisar as causas da
inflexão global à direita, seja no Brasil ou nos EUA, Hong Kong,
Argentina, Venezuela, Reino Unido, França, etc. As estruturas de
poder mudaram dramaticamente nos últimos 20 anos, diretamente
relacionadas com as inovações oriundas da Quarta Revolução
Industrial (inteligência artificial (IA), robótica, internet das coisas
(IoT), veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia,
biotecnologia, ciências dos materiais, armazenamento de energia e
computação quântica, dentre outras aplicações), que possui uma
velocidade, amplitude e profundidade ainda não mensuráveis, mas
com um impacto sistêmico inegável. A própria esquerda peca em
não analisar detidamente este novo fenômeno, tanto para sua
utilização plena como para sua regulação, quando necessária,
inviabilizando sua incorporação em suas estratégias.
A conjuntura atual para a esquerda é um das mais
complicadas em décadas. Não cabe aqui detalhar aspectos
específicos, mas realizar uma auto-reflexão, compreender que o
pêndulo de Polanyi[1] se apresenta como uma etapa de
reconfiguração de forças, autocrítica e diálogo aberto, ainda que
com as dificuldades que se apresentam em qualquer troca de ideias
no Brasil. É, ainda que a contragosto, debater e confrontar com
liberais e conservadores, mas também é imprescindível um diálogo
dentro da própria esquerda.
A esquerda ficou desacostumada a debater fora de sua
bolha, incapaz de responder argumentos que não compartilhem
suas premissas, permanentemente confundindo diferença política
com superioridade moral. Na época da chamada "onda rosa[2]" na
América do Sul, eram mais simples os argumentos da esquerda
serem aceitos, acachapava-se o dissenso da direita e mantinha-se a
hegemonia do discurso (ainda que permeado de contradições e
contra-argumentações). E na conjuntura atual, que a esquerda é
paulatinamente reduzida no espectro político (obviamente, por
conta de si própria e de movimentos da direita nacional e
56
internacional), tendo perdido até mesmo as ruas, que sempre
foram sua arena de lutas? Irá continuar a evitar o debate, não
conversar com ninguém? Continuará num movimento de
segregação ao invés de união, de construção de muros ao invés de
pontes?
Mais preocupante ainda é quando esse diálogo é
inviabilizado dentro da própria esquerda, um movimento que só
fortalece a direita. Enquanto tivermos ambientalistas que só
pensam no meio ambiente; movimento LGBT que só pensa nos
direitos LGBT (e cheio de subdivisões); feminismo
consideravelmente fragmentado e que, não raras às vezes, se
confunde com femismo; movimento negro que se enxerga, não
raras às vezes, como a única minoria; seremos presas fáceis, cada
um defendendo o seu quinhão ao invés da luta conjunta e
integradora. É fundamental compreendermos que o "lugar de
fala" vem se tornando, rotineiramente, uma ferramenta de
exclusão e, principalmente, segregação, transformado em veto de
articulações entre grupos dominados. Obviamente que não se
busca diminuir a importância extraordinária de cada um desses
movimentos específicos; é apenas um adendo que, enquanto
todos eles não se unirem e se inserirem em uma defesa global dos
menos favorecidos em geral (e não em casos particulares isolados),
apoiando a jogada estratégica pós-modernista americana e
renegando a luta principal contra o grande capital, continuaremos
sem "sul" em nossas bússolas esquerdistas.
Tal como no mito da caverna, assim se encontra a
esquerda na atualidade. E aqui, obviamente, me incluo, tendo a
certeza de que em alguns dias, meses ou anos, ao reler este texto,
terei muitas críticas sobre o mesmo, num eterno processo de
construção e desconstrução do pensamento. A esquerda,
prisioneira de seus hábitos e costumes, em suas sombras de
certezas passageiras, refém de seu mundo idealizado e ignorando a
exequibilidade realista de suas ações, não pode se incomodar em
adquirir novos conhecimentos, incorporar novas vozes, atrair
novos atores, compreender atos e falas, ainda que totalmente
contraditórios com sua visão de mundo; é a não interdição do
57
diálogo, a fim de compreender o porquê determinados
fenômenos, outrora incompreensíveis, surgem e se disseminam na
sociedade; é a desestabilização das certezas antigas que ajuda na
compreensão real do mundo; é a fuga da "caverna facebookiana",
que somente serve para pregar para convertidos, rumo ao mundo
real, de combate de ideias e projetos concretos.
Temos que ir além, buscar novos métodos, abordagens,
discursos que sejam acessíveis a parcela majoritária da população,
que não compreende a maioria dos jargões técnicos e discursos
prolixos, por mais que estejam permeados das melhores intenções.
Na conjuntura atual, o sectarismo orgulhoso e prepotente,
satisfeito de sua doutrina "pura", com seus métodos simplistas na
compreensão e resolução de problemas complexos, baseados num
modelo definido e hermeticamente fechado, cada vez mais longe
da vida real das massas, dificulta qualquer esforço de construir
uma Frente Popular de Esquerda. E, na divisão da esquerda, a
direita engrandece e agradece.
Referência bibliográfica
PLATÃO. A República. 2. ed. São Paulo: Editora Martin Claret,
2008.
[1] http://www.dialogosinternacionais.com.br/2015/12/o-
pendulo-latino-americano-de-polanyi.html
[2] "Onda rosa" é a expressão usada na análise política do início
do século XXI, para referir-se à percepção da crescente influência
da esquerda na América Latina, entre o fim da década de 1990 e o
início dos anos 2000, quando foram eleitos muitos chefes de
Estado ligados a partidos reformistas de esquerda. (Wikipedia)
58
O papel da guerra na conformação da ordem mundial 16 17
Desde a constatação dos primeiros primatas, a violência
acompanhou o homo sapiens em seu processo evolucionário.
Neste trajeto, com a formação de grupos nômades, surgiram
também os primeiros conflitos internos, que se separavam dos
conflitos externos com outros grupos, interpretado como a forma
primitiva do fenômeno da guerra, que se transforma numa
condição da unidade e da identidade interna de cada um destes
grupos ou tribos. Tal qual a conhecemos na atualidade, a guerra
somente viria a surgir com a formação das fronteiras territoriais e
com a ascensão dos primeiros impérios e civilizações,
aproximadamente no terceiro milênio antes da Era Cristã, se
generalizando e se transformando no principal instrumento
organizado e sistemático de conquista e de dominação entre os
povos e os impérios.
Qualitativamente, a guerra começa a sofrer uma mudança
substancial a partir dos séculos X e XI d.C., com o aumento da
competição interna e da centralização do poder, com o início da
expansão externa dos pequenos poderes territoriais europeus que
dariam origem aos Estados nacionais da Era Moderna, com o
Tratado de Vestfália de 1648, e com o papel do poder e da guerra
na formação, expansão e globalização do sistema europeu de
Estados e economias nacionais.
Essa originalidade dos europeus − tanto na criação dos
Estados nacionais como em fazer da própria guerra um
mecanismo regular de acumulação de riqueza e, simultaneamente,
fazer da acumulação da riqueza um instrumento regular de
16 Publicado em 18 de junho de 2018.
17 Este texto foi produzido a partir das discussões realizadas no Colóquio
"Sobre a Guerra", realizado de Setembro de 2016 a Agosto de 2017, pelo
Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ.
59
conquista e acumulação de poder − transformou a guerra em
componente sistêmico do processo de expansão do poder e do
território dos Estados e do próprio sistema estatal como um todo,
dentro e fora da Europa. Num sistema global de poder que se
configura pela assimetria, hierarquia e competição, há um elo
histórico entre a guerra e o estabelecimento de um mercado
mundial e economia global, cuja ordem econômica e política
internacional se configura como variável dependente e, como
variável independente, a guerra.
Numa visão de longa duração, verifica-se que a guerra é
um elemento presente na conformação do sistema internacional.
Constata-se que de 1480 a 1800, no auge do Mercantilismo, num
sistema ainda em formação, com aumento do comércio e
formação dos Impérios marítimos e cujo domínio do mar era o
domínio do mundo, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum
lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944,
no período da Pax Britânica, de hegemonia britânica pautada no
livre comércio, na indústria, no poder naval, no equilíbrio
europeu, com o triunfo da industrialização via Revolução
Industrial no berço do capitalismo, a cada um ou dois anos; a
partir da Segunda Guerra Mundial, na conformação da Pax
Americana, mais ou menos um a cada quatorze meses.
Nos períodos de transição da ordem mundial, de disputa
entre países referente aos seus projetos mundiais, são comumente
percebidos atos de violência, de turbulência e disputa entre
potências, no qual nenhuma consegue impor seu modelo às
demais. Nestas ocasiões, três fatores aparecem como variáveis
constantes: ascensão de novas potências desafiantes; crises
políticas e/ou econômicas, cíclicas, conjunturais e/ou estruturais;
e a guerra. Ou seja, diferentemente de teorias da "paz perpétua",
"estabilidade hegemônica", "democracia e livre mercado visando à
paz internacional", a guerra se intensifica quantitativa e
qualitativamente, num movimento progressivo dos conflitos que
configuram a ordem internacional de acordo com os interesses
dos grandes centros de poder internacional no momento em que
tal ordem é estabelecida.
60
No século XX, o sistema interestatal se universalizou
definitivamente, junto com suas guerras cada vez mais
globalizadas. Com a Segunda Guerra Mundial (1939-45), há uma
nova configuração de forças entre as principais potências, cuja
ordem internacional estabelecida após a Primeira Guerra Mundial
(1914-1917) não corresponde à realidade de poder relativo entre
os Estados. A vitória dos Aliados consolidou o sistema da Guerra
Fria com dois grandes pólos de poder: EUA e URSS. No período
que se seguiu, o sistema internacional passou por mudanças
significativas, com a criação de organizações multilaterais (ONU,
FMI e BIRD), reconstrução da Europa (Plano Marshall),
surgimento de novos Estados, criação do padrão ouro-dólar
(posteriormente dólar flexível) e o estabelecimento do sistema
hemisférico de defesa (OTAN), sob a hegemonia dos EUA. Com
a Guerra Fria, há um sistema de administração das relações
internacionais, permitindo dois sistemas antagônicos conviverem
em relativa “harmonia”, com a aceitação de áreas de influências
dos EUA e URSS.
Paradoxalmente e ao contrário do que muitos autores
preconizaram à época, como o clássico "fim da história" de
Fukuyama, o fim da Guerra Fria trouxe a guerra de volta para o
epicentro do sistema internacional. Foram 47 intervenções
militares americanas – algumas chamadas de “humanitárias” − na
década de 90, começando com a Guerra do Golfo e a Guerra dos
Balcãs, em 1991 e 1992, seguindo com a guerra quase contínua do
“Grande Oriente Médio”, de 2001 até hoje.
A possibilidade e potencialidade da guerra é mais
iminente num contexto de desequilíbrio global, cuja criação de
ameaças, como a ameaça verde (majoritariamente Estados
islâmicos radicais), a ameaça vermelha (Venezuela, Coreia do
Norte), a ameaça étnico-religiosa, a ameaça síria, a ameaça do
Estado Islâmico, servem de prerrogativas para a continuação da
máquina da guerra. Há ainda a crescente tensão bélica atual, entre
a OTAN e a Rússia, na Europa Central e no Mar Negro, e entre
os EUA, a China, e o Japão, no Sul do Pacífico, que consistem em
embates de grandes potências econômicas, militares e nucleares.
61
A guerra consiste num fenômeno central do sistema e da
ordem internacional, seja através da sua relação com o sistema
tributário, desenvolvimento tecnológico e acumulação de capital.
Ela está no princípio das hierarquias e relações de poder, cujo
principal objetivo sempre foi a “vitória”, e através da vitória, a
imposição dos argumentos e valores vitoriosos, e sobre a própria
maneira de construir a paz e a ética internacional. Por esta razão, a
paz lograda através da vitória acaba se transformando, muitas
vezes, no principal motivo da guerra seguinte, dos derrotados de
hoje contra os vitoriosos de ontem, na busca da “reparação” e do
restabelecimento do “equilíbrio de forças” que existia antes do
primeiro conflito.
62
O conceito de Guerra Híbrida e as ações políticas veladas 18
As características fundamentais de um estudo sobre a
Guerra não são inéditos; desde clássicos como Clausewitz (1832)
− ao afirmar que a guerra é um instrumento da política [1] e um
ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade
[2] − e Sun Tzu (2007) − ao basear a arte da guerra na
dissimulação [3] e cuja excelência suprema consistiria em vencer o
inimigo sem ser preciso lutar [4] −, determinadas peculiaridades
oriundas da pesquisa histórica sobre a guerra são constatadas,
como a sua natureza imutável (violência, acaso e propósito
político) e os impactos das Revoluções Industriais, Científicas e
Tecnológicas. Entretanto, o ineditismo do que se convencionou
denominar Guerra Híbrida é a dimensão e amplitude do conflito,
ensejando a formalização teórica dessa nova terminologia.
A Guerra Híbrida pode ser definida como a influência
indireta de uma força estrangeira sobre outro Estado, com o
objetivo de desestabilizar/reduzir o poder de seus oponentes e/ou
países não-alinhados, visando a sua substituição sem confronto
aberto através de um novo método de guerra indireta [5] e não-
violenta [6]. Esta nova modalidade “é um novo plano de guerra
que transcende todos os outros e os incorpora em seu ser
multifacetado.” (KORYBKO, 2018, pp. 42-43) Em outros
termos, a realização de ações políticas veladas com a finalidade de
desestabilizar Rogue States e Failed States [7] passou a fazer parte
do modus operandi de alguns Estados no sistema internacional, a
fim de alcançar seus interesses estratégicos, instaurar princípios de
economias abertas e democracias liberais e, fundamentalmente no
caso específico dos Estados Unidos, retomar a ordem unipolar.
18 Publicado em 7 de outubro de 2019.
63
Um dos autores que se debruçam sobre a temática da
Guerra Híbrida de modo enfático é o russo Andrew Korybko. É
na sua visão que a Guerra Híbrida constitui-se na conjunção entre
Revoluções Coloridas e Guerras Não-Convencionais. Desta
forma, as Revoluções Coloridas consistem numa guerra indireta
com a utilização de técnicas de psicologia das massas, tecnologia
da informação e meios de comunicação, cujas manifestações
políticas de oposição visam promover o controle sobre aspectos
intangíveis, tais como sociedade, ideologia, psicologia, assim como
a derrubada de governos não-alinhados através do uso da
resistência não-violenta. (KORYBKO, 2018, pp. 69-70) Assim,
para o autor,
[...] as revoluções coloridas – largamente
planeadas anteriormente e utilizando
ferramentas de propaganda e estudos
psicológicos combinados com o uso de
redes sociais – consistem em
desestabilizar governos por meio de
manifestações de massas em nome de
reivindicações abstratas como
democracia, liberdade, etc.; elas são a
fagulha que incendeia uma situação de
conflito interno. A revolução colorida é o
golpe brando. (KORYBKO, 2018, p. 8)
Consequentemente, caso as Revoluções Coloridas não
sejam suficientes para a derrubada e substituição de governos não-
alinhados, existe o avanço para o estágio de guerra não
convencional, combatidas por forças não regulares e que
constituem o denominado golpe rígido. Tais guerras não-
convencionais são atividades conduzidas e previamente
estabelecidas por forças não oficiais envolvidas num combate
assimétrico contra um adversário tradicional (KORYBKO, 2018,
p. 13), a fim de conformar movimentos de insurgência visando
coagir, abalar e derrubar um governo ou poder em exercício. Ao
atuar como um multiplicador de forças, "ela apodera-se de uma
infraestrutura política, militar e social pré-existente e a apoia com
64
vistas a acelerar, estimular e incentivar ações decisivas baseadas
em ganho político calculado e nos interesses nacionais dos EUA."
(KORYBKO, 2018, pp. 71-72) Assim,
[...] ao se prepararem para uma Guerra
Não Convencional em um Estado alvo,
os EUA normalmente fazem um estudo
de viabilidade para averiguar as chances
de sucesso da operação. Eles podem
fazer isso ou se encontrando com
representantes contra o governo, que
viajam aos EUA ou a um país terceiro,
ou enviando diretamente um especialista
militar a campo. Uma vez tomada a
decisão de implantar uma Guerra Não
Convencional, os EUA "prestam suporte
através de um parceiro de coalizão ou de
um país terceiro" quando "o apoio
manifesto dos EUA ao movimento de
resistência é [...] indesejado" (a estratégia
de Liderança velada). (KORYBKO,
2018, pp.82-83)
Deste modo, ao constituir-se como a evolução orgânica
da Revolução Colorida, a guerra não-convencional não é
espontânea, e sim a continuação de um conflito já existente na
sociedade; “ela é não linear, dinâmica e caótica, introduzindo uma
mescla de táticas em constante transformação que são
desenvolvidas para desequilibrar as autoridades.”(KORYBKO,
2018, p.77) Além disso, ao utilizar forças por procuração
compostas, principalmente, por atores desvinculados do Estado,
seu êxito consiste em abalar o inimigo e mantê-lo em contínuo
desequilíbrio, até que a oportunidade para um ataque decisivo se
apresente. (KORYBKO, 2018, p.80)
Fiori (2018) é outro autor que se debruça sobre o tema,
resumindo-o brilhantemente:
65
Uma sucessão de intervenções que
transformou este tipo de guerra, na
segunda década do século XXI, num
fenômeno quase permanente, difuso,
descontínuo, surpreendente e global.
Trata-se de um tipo de guerra que não
envolve necessariamente bombardeios,
nem o uso explícito da força, porque seu
objetivo principal é a destruição da
vontade política do adversário através do
colapso físico e moral do seu Estado, da
sua sociedade e de qualquer grupo
humano que se queira destruir. Um tipo
de guerra no qual se usa a informação
mais do que a força, o cerco e as sanções
mais do que o ataque direto, a
desmobilização mais do que as armas, a
desmoralização mais do que a tortura.
Por sua própria natureza e seus
instrumentos de ‘combate’, trata-se de
uma ‘guerra ilimitada’, no seu escopo, no
seu tempo de preparação e na sua
duração. Uma espécie de guerra
infinitamente elástica que dura até o
colapso total do inimigo, ou então se
transforma numa beligerância contínua e
paralisante das forças "adversárias".
(FIORI, 2018, pp.402-403)
Em suma, “a conexão entre as Revoluções Coloridas, a
Guerra Não Convencional, os objetivos de troca de regime dos
EUA e os atores desvinculados do Estado oferece ainda mais
provas para confirmar a teoria da Guerra Híbrida.” (KORYBKO,
2018, p.75) É papel dos pesquisadores em relações internacionais
se debruçarem mais atentamente sobre esta nova modalidade de
guerra, principalmente na América do Sul do século XXI.
66
Referências bibliográficas
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. Tradução do inglês para o
português CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle,
1832.
FIORI, José Luis. Epílogo - Ética cultural e guerra infinita. In:
FIORI, José Luis (Org.). Sobre a guerra. Petrópolis: Vozes, 2018.
KORYBKO, Andrew. Guerras híbridas das revoluções coloridas aos
golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
PECEQUILO, Cristina Soreanu. Os Estados Unidos e o século
XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
SHARP, Gene. From dictatorship to democracy: a conceptual framework
for liberation. New York: The New Press, 2012.
TZU, Sun. A arte da guerra. São Paulo: Golden Books, 2007.
[1]“A guerra não é meramente um ato de política, mas um
verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações
políticas realizada com outros meios. O que continua sendo
peculiar na guerra é simplesmente a natureza peculiar dos seus
meios. [...] O propósito político é a meta, a guerra é o meio de
atingi-lo, e o meio nunca deve ser considerado isoladamente do
seu propósito.” (CLAUSEWITZ, 1832, p.91)
[2]“A guerra é, portanto, um ato de força para obrigar o nosso
inimigo a fazer a nossa vontade.” (CLAUSEWITZ, 1832, p.75)
[3] “Consequentemente, quando estivermos capacitados para o
ataque, é necessário aparentar incapacidade; quando estivermos
perto, é necessário fazer o inimigo acreditar que estamos longe, e
67
quando estivermos longe fazê-lo acreditar que estamos perto.”
(SUN TZU, 2007, p.23)
[4]“Assim, o líder habilidoso subjugará as tropas inimigas sem
nenhuma luta, capturará suas cidades sem sitiá-las; dominará seus
reinos sem operações prolongadas no campo de batalha” (SUN
TZU, 2007, p.36)
[5]“A guerra indireta será marcada por 'manifestantes' e
insurgentes. As quintas-colunas serão compostas menos por
agentes secretos e sabotadores ocultos e mais por protagonistas
desvinculados do Estado que comportam-se publicamente como
civis. As mídias sociais e tecnologias afins substituirão as
munições guiadas como armas de 'ataque cirúrgico' da parte
agressora, e as salas de bate-papo online e páginas no Facebook
tornar-se-ão o novo 'covil dos militantes'. Em vez de confrontar
diretamente os alvos em seu próprio território, conflitos por
procuração serão promovidos na vizinhança dos alvos para
desestabilizar a periferia dos mesmos. As tradicionais ocupações
militares podem dar lugar a golpes e operações indiretas para troca
de regime, que são muito mais econômicos e menos sensíveis do
ponto de vista político.” (KORYBKO, 2018, p.12)
[6]“Nonviolent struggle is a much more complex and varied
means of struggle than is violence. Instead, the struggle is fought
by psychological, social, economic, and political weapons applied
by the population and the institutions of the society. These have
been known under various names of protests, strikes,
noncooperation, boycotts, disaffection, and people power. [...]
Political defiance, unlike violence, is uniquely suited to severing
those sources of power.” (SHARP, 2012, p.45)
[7] Na ausência de um inimigo após a Guerra fria, foram criadas
duas categorias de Estados que passaram a representar focos de
ameaça no sistema internacional: os Rogue States (Estados párias
ou bandidos) e os Failed States (Estados falidos). "Em linhas
gerais, os Estados párias são entidades políticas organizadas,
governadas de forma autoritária, com pretensões de hegemonia
68
regional, apoio a grupos radicais e desenvolvimento de programas
de armas de destruição em massa, e que não respeitam as normas
da comunidade internacional (o Irã e a Coreia do Norte são
exemplos atuais). Por sua vez, os Estados falidos referem-se a
Estados fragmentados social, étnica e socialmente, com graves
problemas humanitários, e que podem servir de santuário a grupos
fundamentalistas. No pós-Guerra Fria, a estabilidade e contenção
dessas nações é prioridade para os Estados Unidos, visando a
mudança de regime em direção à democracia por meios político-
econômicos." (PECEQUILO, 2012, pp.15-16)
69
Lawfare: a utilização de instrumentos jurídicos para fins
políticos 19
No início do século XXI, constata-se que os Estados
Unidos não possuem mais a capacidade (custos político-
econômicos, opinião pública) de manter guerras irrestritas
longínquas ao seu entorno estratégico direto e imediato,
principalmente após as experiências no Iraque e no Afeganistão e
devido à crise de 2008. Desta maneira, alguns geoestrategistas
estadunidenses vêm relançando suas bases para a retomada, num
primeiro momento, do controle regional, visando a possibilidade
posterior de nova ofensiva em âmbito global.
Em outros termos, a América do Sul retorna ao radar do
Big Game estadunidense, em que se constatam diversos
mecanismos visando o regime change, principalmente durante a
década de 2010, em países contrários ao direcionamento
estratégico dos Estados Unidos. Como exemplos, visualizam-se a
Venezuela de Chavez e Maduro, o Brasil de Lula e Dilma, a
Argentina de Nestor e Cristina Kirchner, a Bolívia de Evo
Morales, o Equador de Rafael Correa, e o Paraguai de Fernando
Lugo; todos países que, em maior ou menor medida, buscaram
políticas autônomas, seja com alinhamentos diretos com China e
Rússia, ou no direcionamento de suas políticas públicas internas.
Os Estados Unidos, portanto, abrem
mão da ideia de uma hegemonia ética e
cultural universal e optam pelo uso da
força e das armas, se necessário, para
impor seus interesses em todos os
tabuleiros geopolíticos e geoeconômicos
do mundo. Mesmo que seja através da
19 Publicado em 14 de outubro de 2019.
70
mudança de governos e regimes que
sejam considerados uma ameaça política
ou econômica aos interesses norte-
americanos. (FIORI, 2018, p.399)
Os estudos acerca da Guerra Híbrida ainda em curso
auxiliam a compreender novos parâmetros da complexa e nova
modalidade de guerra do futuro. Dentre elas, uma interessante
interpretação referente à guerra de informação e/ou guerra velada
pode ser realizada a partir do conceito de Lawfare, ou a utilização
de instrumentos jurídicos para fins políticos. Assim, ao manter o
Estado alvo em estado de colapso ou semicolapso jurídico-
institucional por um período de tempo prolongado, conforma-se
determinada desestabilização social, política e/ou econômica,
resultando num “Buraco Negro geopolítico, cuja intenção é que o
campo de atração gravitacional regido pelo caos engula os Estados
vizinhos.” (KORYBKO, 2018, p.91)
Tal terminologia está longe de ser uma teoria da
conspiração: os últimos documentos oficiais dos Estados Unidos,
os chamados National Security Strategy, de 2010, no governo
Obama, e de 2017, no governo Trump, deixam explícitos a
utilização do combate à corrupção em outros países como forma
de luta para mudar regimes e governos de Estados inimigos e/ou
afetar empresas concorrentes.
Strengthening International Norms
Against Corruption; We are working
within the broader international system
[...] to promote the recognition that
pervasive corruption is a violation of
basic human rights and a severe
impediment to development and global
security. We will work with governments
and civil society organizations to bring
greater transparency and accountability
to government budgets, expenditures,
and the assets of public officials. And we
71
will institutionalize transparent practices
in international aid flows, international
banking and tax policy, and private sector
engagement around natural resources to
make it harder for officials to steal and to
strengthen the efforts of citizens to hold
their governments accountable.
(UNITED STATES, 2010)
Counter foreign corruption: Using our
economic and diplomatic tools, the
United States will continue to target
corrupt foreign officials and work with
countries to improve their ability to fight
corruption so U.S. companies can
compete fairly in transparent business
climates. (UNITED STATES, 2017)
Como possível nova fase da Guerra Híbrid, a guerra
judicial não consiste somente num problema interno dos países,
mas, explicitamente, uma diretriz de política externa e de defesa
estadunidense, inclusive, interpretado como uma tática para tratar
de eliminar os líderes progressistas na América do Sul e no
mundo, que possivelmente não poderiam vencer nas urnas. Com
isso, o projeto estadunidense no sistema internacional consiste na
política de desmonte de projetos nacionais autônomos, ou
modelos que se aproximem e repliquem o chinês, visando destruir
qualquer massa crítica aos EUA onde exista um "núcleo duro",
através da exacerbação dos conflitos políticos internos,
acarretando uma divisão endógena seguida de caos econômico e
social das sociedades sul-americanas.
A Lawfare constitui um novo horizonte de estratégia
militar para troca de regime dos EUA, utilizando indiretamente
uma miscelânea de grupos por procuração (principalmente das
elites locais, como o próprio Judiciário, Imprensa, Atores
políticos) para realizar os objetivos estratégicos de Washington
72
que, em última instância, consistem em reverter o processo de
multipolarização e restabelecer a ordem unipolar por um período
de tempo indeterminado.
Referências bibliográficas
FIORI, José Luis. Epílogo - Ética cultural e guerra infinita. In:
FIORI, José Luis (Org.). Sobre a guerra. Petrópolis: Vozes, 2018.
KORYBKO, Andrew. Guerras híbridas das revoluções coloridas aos
golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
UNITED STATES. U.S. National Strategy of Making America
GreatAgain. Administration of Donald Trump. Washington, D.C.
Press, dec.2017.
UNITED STATES. U.S. National Strategy of Nation Renewal
and GlobalLeadership. Administration of Barack Obama.
Washington, D.C. Press,may. 2010.
73
Espaço cibernético – quinta dimensão do conflito
geopolítico 20
A guerra cibernética é a arena de combate do século XXI.
Ela se apresenta como novo palco de confrontos não
convencionais, de inimigos invisíveis, definida como uso ofensivo
e defensivo de informações e sistemas de informações para negar,
explorar, corromper ou destruir valores do adversário baseados
em informações, sistemas de informação e redes de
computadores.
Interpretada como uma externalidade negativa da 4ª
Revolução Industrial (SCHWAB, 2016), esta nova dimensão do
conflito geopolítico permite vislumbrar uma inédita maneira de
relação entre a economia, o Estado e a sociedade que, com o
advento da Web 3.0[1]e um considerável aumento na velocidade,
capacidade e flexibilidade na coleta, produção e disseminação de
informações, ensejou um conjunto de recursos relacionados à
criação, controle e comunicação de informações eletrônicas.
Ao seguir uma lógica cronológica das dimensões dos
conflitos geopolíticos a partir das teorias realizadas pelos seus
precursores, a marítima, com o almirante americano Alfred T.
Mahan, é considerada a primogênita. Em seu clássico livro de
1890, The Influence of Sea Power Upon History: 1660–1783, ele
revisa os acontecimentos militares e navais dos séculos XVII e
XVIII, alinhando a ideia básica de que “o domínio do mar traz a
vitória na guerra e a riqueza na paz” (MELLO, 1997, p.14) com a
hipótese de uma universalidade nos princípios que norteiam as
operações navais. Num segundo momento, Halford Mackinder
agrega o Poder Terrestre como segunda dimensão, defendendo-o
como território onde são "mais propícias as condições para o
20 Publicado em 7 de janeiro de 2019.
74
poder terrestre construir uma esquadra e lançar-se ao oceano a
partir de sua plataforma continental, que para o poder marítimo
organizar um exército e lançar-se à terra a partir de sua base
insular." (MELLO, 1999, p.40) Na terceira dimensão geopolítica,
o poder aéreo teve em Alexander Seversky, William Mitchell, J.
Douhet e Von Seecket os defensores de uma nova estratégia que
deveria ser adotada pelas nações, ou seja, o controle dos ares. Na
concepção desses autores a existência de uma força aérea eficaz é
que seria determinante nos resultados de uma guerra.
(MIYAMOTO, 1981, p.77) No contexto da Guerra Fria, visando
expandir suas áreas de influência, Estados Unidos e União
Soviética buscaram demonstrar superioridade em vários setores,
extrapolando, inclusive, os limites da própria Terra: o espaço
sideral. Assim, se inicia a corrida espacial, abrindo um quarto
campo de disputa geopolítica, que vem sendo expandida até a
atualidade com a criação de comandos ou forças espaciais em
diferentes Forças Armadas do mundo.
No modo informacional de desenvolvimento, a fonte de
produtividade encontra-se na tecnologia de geração de
conhecimentos e de processamento da informação como fonte de
produtividade. Ao contrário de certas premissas de diminuição
relativa do poder estatal nesse novo contexto, o Estado
informacional (BRAMAN, 2006) é o maior provedor e
consumidor de informação e seus fluxos em uma nova forma
particular de poder, controlando e vigiando as atividades do
cidadão por meio das Tecnologias de Informação e Comunicações
(TICs), além de vir cada vez mais adaptando seu papel e funções
às circunstâncias cambiantes. Assim, essa nova categoria de poder,
o poder informacional, envolve um conjunto de estratégias
(informacionais), se configurando como uma nova dimensão
geopolítica que afeta a natureza das demais dimensões,
principalmente quando se trata da segurança da informação.
Num mundo em que os ataques cibernéticos[2]são uma
ameaça para a segurança nacional, a defesa cibernética[3]é um
imperativo cada vez mais imprescindível para o Estado lidar com
ameaças como espionagem econômica, crime cibernético,
75
ciberguerra e ciberterrorismo. Logo, o espaço cibernético se
apresenta como um espaço não geográfico em rede, fundamental
para todo e qualquer país que busque se inserir de maneira
adequada nesta quinta dimensão do conflito geopolítico; é uma
demanda necessária, consciente ou não, para os governos, com a
finalidade de proteger suas infraestrutruas críticas[4]e a segurança
da informação[5].
In an era characterized by what the
Pentagon calls “the Long War,” when it
is already apparent that the importance
of information strategy is growing
relative to that of military strategy, it
seems clear that this is a struggle that will
not be won simply by force of arms. In
such a world, skillful information strategy
is likely to prove the difference between
victory and defeat. (ARQUILA, 2007,
p.9)
Assim, pode-se inferir um axioma desta nova era: a
informação/conhecimento é poder, cujas novas formas de guerra
demandam novos desafios para a proteção da sociedade. Nas
relações internacionais, aspectos da revolução da informação
ajudam os pequenos Estados nesta nova dimensão geopolítica,
mas, concomitantemente, auxiliam na manutenção do status quo
das grandes potências, principalmente, devido: 1) as barreiras à
entrada e economias de escala permanecem concentradas em
alguns aspectos do poder e do Estado; 2) coleta e a produção de
novas informações geralmente exigem investimentos
dispendiosos; 3) Estados pioneiros são os criadores dos padrões e
arquitetura dos sistemas de informação; 4) poder militar continua
importante em domínios críticos; 5) posse de hardware sofisticado
ou sistemas avançados não será o ponto central, mas a capacidade
de integrar um sistema de sistemas; 6) revolução da informação,
em termos gerais, não descentralizou ou igualou o poder entre os
Estados, e sim realizou o efeito oposto.
76
Ataques de hackers pagos pelos próprios governos a fim
de se apropriar de informações sigilosas de outros países;
interferências em eleições de forma direta e indireta; investimentos
em defesa redirecionados para o âmbito da tecnologia da
informação; uma espécie de "Guerra Fria cibernética" entre
Estados Unidos, China e Rússia pela supremacia do ciberespaço;
esses e vários outros elementos constituem a nova "guerra
tecnológica", em que todos os países do mundo, sem exceção,
terão que realizar grandes investimentos para se adaptar a esses
imperativos da nova realidade.
Entretanto, como afirmou Nye (2011), “the Information
Revolution is leading to a diffusion of power, but larger states still
have larger resources.” Em outros termos, a velha retórica de que
o sistema internacional é competitivo, assimétrico e hierárquico
continua vigente, somente tendo sido agregada uma nova esfera
de conflito geopolítico: o espaço cibernético.
Referências bibliográficas
ARQUILLA, John; BORER, Douglas A. Information strategy and
warfare: A guide to theory and practice. New York: Routledge,
2007.
BRAMAN, Sandra. Change of State: information, policy, and power.
Cambridge: MIT, 2006.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. A geopolítica do Brasil e a Bacia do
Prata. Manaus: Ed. da Universidade do Amazonas, 1997.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Quem tem medo da geopolítica? São
Paulo: Hucitec; Edusp, 1999.
MIYAMOTO, Shiguenoli. Os estudos geopolíticos no Brasil: uma
contribuição para sua avaliação. Perspectivas, São Paulo, v. 4, p.75-
92, 1981
77
NYE JR, Joseph. The future of Power.New York, PublicAffairs,
2011.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro,
2016.
[1]Esta nova geração prevê que os conteúdos online, além da
amplitude de acesso às pessoas e a produção de conteúdo mais
abrangente, estarão organizados de forma semântica, mais
personalizados para cada internauta, sites e aplicações inteligentes,
com publicidade baseada nas pesquisas e nos comportamentos.
Assim, as máquinas se unem aos usuários na produção de
conteúdo e na tomada de ações, tornando a infraestrutura da
internet de coadjuvante para protagonista na geração de
conteúdos e processos. No campo político, com a web 3.0,
ferramentas como painéis em tempo real, que monitoram a
presença de opositores através de tags, inteligência na internet e
mídias sociais, softwares de georeferenciação em tempo real, são
todos elementos que ajudam a monitorar as eleições e a
democracia em tempo real.
[2]Ataques cibernéticos são definidos como ações deliberadas com
o emprego de recursos da Tecnologia da Informação e
Comunicações (TIC) que visam interromper, penetrar, adulterar
ou destruir redes utilizadas por setores públicos e privados
essenciais à sociedade e ao Estado.
[3]Defesa cibernética é definida como conjunto de ações
defensivas, exploratórias e ofensivas, no contexto de um
planejamento militar, realizadas no espaço cibernético, com as
finalidades de proteger os nossos sistemas de informação, obter
dados para a produção de conhecimento de inteligência e causar
prejuízos aos sistemas de informação do oponente.
78
[4]As infraestruturas críticas são as instalações, serviços e bens
que, se forem interrompidos ou destruídos, provocarão sério
impacto social, econômico, político, internacional e/ou à
segurança nacional. Em suma, um ataque a essas estruturas coloca
em risco a integridade de infraestruturas sensíveis, essenciais à
operação e ao controle de diversos sistemas e órgãos diretamente
relacionados à segurança nacional, tais como telecomunicações,
energia, transportes, água e finanças. Assim, sua securitização
torna-se um componente essencial da política de segurança
nacional.
[5]A segurança da informação diz respeito à proteção de
determinados dados, com a intenção de preservar seus respectivos
valores para um Estado, organização (empresa) ou indivíduo.
Entende-se como informação todo o conteúdo ou dado valioso,
com capacidade de armazenamento ou transferência, que serve a
determinado propósito útil. A Segurança da Informação possui
quatro características principais: 1) disponibilidade: propriedade de
que a informação esteja acessível e utilizável sob demanda
(autorizada) por uma pessoa física ou determinado sistema, órgão
ou entidade; 2) integridade: propriedade da informação que não
foi modificada no caminho entre a fonte e o receptor; 3)
confidencialidade: propriedade de que a informação não esteja
disponível ou revelada à pessoa física, sistema, órgão ou entidade
não autorizado e credenciado; 4) autenticidade: propriedade de
que a informação foi produzida, expedida, modificada ou
destruída por uma determinada pessoa física, ou por um
determinado sistema, órgão ou entidade.
79
80
Parte 2
Geopolítica latino-americana no sistema
mundial
81
82
O que é a geopolítica? 21
A palavra geopolítica está na moda. O termo é
rotineiramente utilizado nos meios de comunicação, discursos
políticos e trabalhos acadêmicos, muitas vezes como sinônimo
(ainda que equivocadamente) de relações internacionais. A sua
popularização é desejada na medida em que os fenômenos
internacionais carecem de análises geopolíticas consistentes;
entretanto, paradoxalmente, sua banalidade não deve ser
incentivada, uma vez que é um termo de complexa definição e
utilização.
A conceituação da geopolítica pode parecer uma tarefa
simples, mas, como veremos, sua sistematização de modo
homogêneo é impedido por sua própria natureza. Em outras
palavras, a geopolítica só pode ser considerada se levar em
consideração que os diferentes interesses nacionais no sistema
internacional são assimétricos, hierárquicos e competitivos, e,
concomitantemente, diferentes visões geopolíticas são
desenvolvidas a fim de estabelecer relações causais em distintos
espaços e tempos. Ela oferece uma proposta/visão/representação
específica de mundo, que são distintas entre si, relacionadas com
as condições materiais e históricas, dinâmicas e cambiantes.
A própria geografia é essencialmente um saber político,
estratégico, que pensa o espaço com a finalidade de agir
eficazmente. Segundo Spykman (apud KAPLAN, 2013, p.31), “a
geografia é o mais fundamental dos fatores da política externa dos
Estados, por ser o mais permanente”, e dessa relação entre
geografia e política, espaço e poder, que distintos autores
buscaram definir a geopolítica: "é o estudo do Estado como
organismo geográfico, isto é, como fenômeno localizado em certo
21 Publicado em 27 de março de 2018.
83
espaço da Terra, logo do Estado como país, como território,
como região, ou, mais caracteristicamente, como Reich"
(KJELLEN apud BACKHEUSER, 1952, p.56); "é o estudo dos
processos políticos que ocorrem em dependência do solo dos
Estados" (BACKHEUSER, 1952, p.67); "geopolítica es la
doctrina del espacio vital" (VIVES, 1950, p.79); "es la ciencia que
estudia cuál es la influencia ejercida por los factores geográficos e
históricos en la vida y evolución de los Estados, a fin de extraer
conclusiones de carácter político" (UGARTE, 1974, p.42); "os
raciocínios geopolíticos, isto é, tudo aquilo que mostra a
complexidade das relações entre aquilo que sobrevém da política e
as configurações geográficas" (LACOSTE, 2012, p.218);
"geopolitics can be defined as the science of the relation of
politics to geography […] which includes the relationship between
geography and military strategy, national development, expansion,
and imperialism" (CHILD, 1979, p.89); "is the impact on foreign
security policies of certain geographic features […] might also be
described as the relationship between power politics and
geography" (KELLY, 1997, p.4-5); "a geopolítica é a influência da
geografia sobre as divisões humanas." (KAPLAN, 2013, p.62)
No tocante à sistematização da geopolítica, os autores
costumam realizar a distinção entre geografia política e
geopolítica. A primeira consistiria numa disciplina da Geografia
Geral que apresenta características estáticas e estuda os aspectos
geográficos de determinado território, consistindo numa análise
descritiva das fronteiras, rios, serras, planícies, etc. Quanto à
geopolítica, seria uma ciência política que se relaciona com esses
fatores físicos descritivos, buscando uma aplicabilidade na
formulação de políticas estratégicas; é, portanto, uma teoria do
poder e dinâmica (MIYAMOTO, 1981, p.76) que "estudia la
influencia de los factores geográficos en la vida y evolución de los
estados." (TRIAS, 1969, p.11)
O primeiro autor a realizar essa diferenciação foi Rudolf
Kjellén. Em sua visão, a geopolítica era um ramo do direito
público, e não da Geografia; deste modo, a geografia política
estudava a Terra como moradia das populações humanas em suas
84
relações com as propriedades do espaço, enquanto que a
geopolítica era a melhor compreensão da existência do Estado.
(VIVES, 1950, p.60) Como atesta Costa (1992, p.16):
Parte da tradição no setor identifica
como geografia política o conjunto de
estudos sistemáticos mais afetos à
geografia e restrito às relações entre o
espaço e o Estado, questões relacionadas
à posição, situação, características das
fronteiras, etc., enquanto à geopolítica
caberia a formulação das teorias e
projetos de ação voltados às relações de
poder entre os Estados e às estratégias de
caráter geral para os territórios nacionais
e estrangeiros, de modo que esta última
estaria mais próxima das ciências
políticas aplicadas, sendo assim mais
interdisciplinar e utilitarista que a
primeira.
Segundo Lautensach, em seu artigo Wesen und Methode
der Geopolitik (1925), a atitude mental do geopolítico era
"dinâmica", enquanto do geógrafo político era "estática".
(UGARTE, 1974, p.40) Assim sendo, a "Geografía Política era
como una 'instantánea fotográfica' del momento temporal en la
circunstancia espacial determinada; mientras que la Geopolítica
era la 'cinta cinematográfica' del mismo proceso general." (VIVES,
1950, p.61-62)
A busca de uma definição do termo geopolítica se justifica
para o que "a geopolítica pode ser, conceitualmente, e o
desdobramento que esse instrumento pode apresentar na realidade
da política internacional." (HAGE, 2016, p.3) Assim, a geopolítica
é considerada um método de estudo dinâmico da influência de
fatores geográficos no desenvolvimento dos Estados com a
finalidade de orientar suas políticas internas e externas. Ou seja,
como método que estuda a política derivada de fatores
85
geográficos, como posição, espaço, relevo, clima, topografia e
recursos, é uma ferramenta de análise de política externa que
busca compreender, explicar e prever o comportamento político
internacional, principalmente em termos de variáveis espaciais.
Desta assertiva incorre-se que a geopolítica é dinâmica
porque as variáveis temporal e relacional modificam a importância
da variável geográfica; é complexa na medida em que é mutável a
relevância dos Estados ou arranjos internacionais, dos avanços
científico-tecnológicos e das configurações econômico-militares
em determinados momentos específicos da humanidade; é
imprescindível para auxiliar os Estados em seus planejamentos
estratégicos, políticos e econômicos na competitiva estrutura
internacional de poder.
Referências bibliográficas
BACKHEUSER, Everardo. A geopolítica geral e do Brasil. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 1952.
CHILD, John. Geopolitical Thinking in Latin America. Latin
American Research Review, Pittsburgh, v. 14, n. 2, p.89-111, 1979.
COSTA, Wanderley Messias da. Geografia política e geopolítica. São
Paulo: Hucitec; Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
HAGE, José Alexandre Altahyde. Alguns aspectos conceituais da
geopolítica: breve investigação entre o clássico e o moderno no
pensamento geopolítico. Meridiano 47, Brasília, v. 17, p.1-11, 2016.
KAPLAN, Robert D.. A vingança da geografia: A construção do
mundo geopolítico a partir da perspectiva geográfica. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2013.
KELLY, Philip. Checkerboards and Shatterbelts: The geopolitics of
South America. Austin: University Of Texas Press, 1997.
86
LACOSTE, Yves. A geografia - isso serve, em primeiro lugar, para fazer a
guerra. 19. ed. Campinas: Papirus, 2012.
MIYAMOTO, Shiguenoli. Os estudos geopolíticos no Brasil: uma
contribuição para sua avaliação. Perspectivas, São Paulo, v. 4, p.75-
92, 1981
TRIAS, Vivian. Imperialismo y geopolítica en América Latina. Buenos
Aires: Editorial Jorge Alvarez, 1969.
UGARTE, Augusto Pinochet. Geopolítica. 2. ed. Santiago: Editorial
Andres Bello, 1974.
VIVES, J. Vicens. Tratado general de geopolítica. Barcelona: Editorial
Teide, 1950.
87
Contendas geopolíticas na América do Sul 22
Em 1943, o artista uruguaio Joaquin Torres García criou a
obra-prima "América invertida", visando, principalmente, a
valorização e o desenvolvimento da cultura sul-americana. Com o
icônico lema "Nuestro norte es el sur", a pintura se tornou um
símbolo da integração regional autônoma e soberana,
principalmente no início do século XXI, em que foram realizados
saltos quantitativos e qualitativos na América do Sul no que tange
às políticas integracionistas; entretanto, tal assertiva nem sempre
foi uma constante na região.
Segundo Buzan e Waever (2003), o Complexo de
Segurança Regional da América do Sul é considerado do tipo
padrão, de integração moderada, configurando-se como um meio
termo de complexos conflituosos e complexos cooperativos.
Historicamente, os autores analisam a formação desse Complexo
da América do Sul em três períodos históricos. O primeiro, da
descolonização e independência até a Guerra Fria, deixou marcas
profundas na região na delimitação das fronteiras sul-americanas,
com contendas geopolíticas até hoje presentes; o segundo, durante
a Guerra Fria, possui um aumento de grau de ingerência dos
Estados Unidos via interferência por penetração (unilateral ou
consentida), ou seja, aliança com um Estado do Complexo com a
finalidade de preservar seus interesses e manter o equilíbrio de
poder; e o terceiro, pós Guerra Fria, formalizam-se os projetos de
integração regional como incremento da cooperação pelo
desenvolvimento de instituições. Assim, a América do Sul
configura-se como um Complexo Regional de Segurança
institucionalizado.
22 Publicado em 21 de janeiro de 2019.
88
Excetuando-se a última fase integracionista, as históricas
contendas geopolítica na América do Sul podem ser sintetizadas
de forma clara a partir do trabalho Checkerboards and
Shatterbelts – The geopolitics of South America, de Philip Kelly, e
que, até a atualidade, ainda não possuem conclusão nas disputas
entre os países. Segundo o autor, essas disputas
contemporâneas[1] podem ser resumidas em:
1) Ilhas Malvinas/Falklands: situadas a 480 km da costa
argentina e a 14 mil km do Reino Unido, as Ilhas
Malvinas/Falklands são consideradas prolongamento do território
da Argentina, que desde a conquista de sua independência reclama
a sua soberania após a ocupação ilegal do território pelos
britânicos, em 1833, quando quebraram a integridade territorial
argentina, ocupando e desalojando ilegalmente as autoridades da
Ilha nos marcos da sua expansão marítima e imperialista. As
negociações entre Argentina e Reino Unido acerca das Ilhas
Malvinas/Falklands se encontram num impasse desde a Guerra
das Malvinas, em 1982, vencida pelos britânicos com apoio dos
Estados Unidos e da OTAN. Apesar da renovação das relações
diplomáticas, o fim da Zona Econômica Exclusiva de 150 milhas
ao redor das ilhas e a retomada das comunicações aéreas e
marítimas fizeram com que ambos os lados pareçam mais
distantes de um denominador comum [2].
2) Demanda da Bolívia por uma saída para o Oceano
Pacífico: desde a Guerra do Pacífico (1879-1883), o território
boliviano clama pelo retorno de uma saída para o mar, perdida
como espólios de guerra para o Chile, cedendo a província
de Antofagasta. Desde o século XIX, essa contenda é uma
questão nacional para o povo e o Governo boliviano, constando,
inclusive, como um objetivo estratégico na Constituição Nacional
do país. Desde 2013, a Bolívia e o Chile têm argumentado na
Corte Internacional de Justiça (CIJ) de Haia pela demanda
boliviana, inclusive, tendo tal discussão retornado com força nos
anos recentes [3].
89
3) Conflitos dos mares territoriais: envolvendo as
repúblicas costeiras, gira em torno de reivindicações das águas
territoriais. À medida que as novas tecnologias expandem a
exploração dos leitos oceânicos, pode-se esperar que a
concorrência pela pesca, mineração e extração de petróleo em
águas profundas se intensifiquem. Disputas desse tipo já
ocorreram na região, como entre Argentina e Chile, em 1978, pela
posse do Canal de Beagle e a Passagem de Drake, que somente foi
amenizada em 1985, por mediação do Vaticano, através de um
tratado reconhecendo ao Chile a posse das pequenas estratégicas
ilhas de Pincton, Nueva e Lennox. Mais recentemente, a disputa
marítima entre Peru e Chile, iniciada em 2008 e finalizada em 2014
na Corte Internacional de Justiça, com a nova delimitação de faixa
marítima de 38 mil km² de extensão, em uma região rica em
recursos pesqueiros (anchovetas) no oceano Pacífico[4].
4) Península de La Guajira: a fronteira original da
Venezuela, desde o século XIX, possui uma faixa estreita da
Península de La Guajira, de frente para o Golfo da Venezuela, o
que permitiu a reivindicação de todo o volume de água a partir de
marcos continentais. Já a Colômbia afirma que o limite deveria ser
determinado pelas ilhas Los Monjes, que projetam as posses
colombianas para além do continente. Nesse contexto, incluem-se
as descobertas de petróleo no Lago Maracaibo, e possivelmente
nas águas abertas do Golfo e áreas adjacentes. A contenda foi
recolocada em 2015, quando a Venezuela estabeleceu, com um
decreto unilateral, a delimitação marítima, gerando
descontentamento por parte da Colômbia [5].
5) Conflito de Essequibo: o território de Essequibo, com
aproximadamente três quartos do território da Guiana, é
reivindicado pela Venezuela. Após mais de 50 anos de pleito [6],
em 2015, com as descobertas de petróleo na região, o Ministério
da Defesa da Venezuela despachou tropas para a fronteira entre
os dois países, que foi repudiado pelo governo da Guiana,
reavivando o debate [7].
90
6) Reivindicações contestadas para a Antártica: desde o
estabelecimento do Tratado da Antártica, ratificado em 1961, há
um regime jurídico referente às reivindicações dos territórios
antárticos, ao controle da exploração de minerais, à proibição das
operações militares e ao incentivo ao estudo científico e
ecológico[8]. Dentre desse contexto, países sul-americanos como
Peru, Equador, Uruguai, Chile, Argentina e Brasil realizam pleitos
por estes territórios na Antártica.
Como atesta Kelly (1997, p.3), "das ilhas do Caribe à
Antártica, desde as franjas costeiras até o interior, parte
considerável dos conflitos internacionais na América do Sul se
originou em disputas territoriais."[9] Neste sentido, a integração
regional vem se apresentando como um elemento de vital
importância a fim de evitar tais contendas no século XXI. A
própria concepção do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS),
em 2008, se insere nesse contexto de integração em matéria de
defesa visando superar as desconfianças existentes, tendo sido
criado, inclusive, no mesmo ano do incidente diplomático-militar
envolvendo a Colômbia, Venezuela e Equador[10]. (SANTOS,
2018, p.123-133)
Desafortunadamente, o ano de 2018 se apresenta como
uma encruzilhada crucial para a manutenção da região sul-
americana como zona de paz e integração ou para a reativação das
contendas geopolíticas. Tal fato pode ser constatado em especial a
partir do Brasil. Historicamente, o país se planejou para ser o pilar
da estabilidade da América do Sul desde a Guerra do Paraguai;
entretanto, recentemente, vem se tornando o principal fator de
desestabilização e tensão, principalmente com a eleição de Jair
Bolsonaro à presidência[11].
Visando a continuidade da América do Sul como zona de
paz e que busca na integração regional um meio para o
desenvolvimento das capacidades produtivas, tecnológicas e
intelectuais dos países da região, espera-se que as disputas
geopolíticas na América do Sul sejam resolvidas
91
diplomaticamente, que novas contendas insanas sejam extirpadas,
e que nosso norte seja, de fato, o sul.
Referências bibliográficas
BUZAN, Barry; WAEVER, Ole. Regions and Powers: the structure of
International Security. New York: Cambridge University Press, 2003.
SANTOS, Marcos. Construindo inimigos para a América do Sul: os
discursos de segurança no Conselho de Defesa da Unasul.
Curitiba: Editora Appris, 2018.
KELLY, Philip. Checkerboards and Shatterbelts: The geopolitics of South
America. Austin: University Of Texas Press, 1997.
[1]https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/06/12-
disputas-de-fronteira-na-Am%C3%A9rica-Latina
[2]http://www.dialogosinternacionais.com.br/2015/04/porque-
malvinas-e-nao-falklands.html
[3]https://www.nytimes.com/es/2018/10/02/chile-bolivia-mar-
la-haya/
[4]https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/01/140127_
haia_decisao_chile_peru_fn
[5]http://www.defesanet.com.br/al/noticia/19551/Venezuela-e-
Colombia-se-envolvem-em-um-conflito-maritimo/
[6]O território de Essequibo é regulado desde 1899 pelo Laudo
Arbitrário de Paris, que definia os limites entre Venezuela e a
antiga Guiana Britânica. Em 1962, Caracas apresentou sua
92
demanda pelo território diante das Nações Unidas, a partir da
constatação de que o Laudo foi declarado fraudulento, uma vez
que supostamente havia cumplicidade entre os delegados
britânicos e o juiz russo que determinou a sentença. No ano de
1966, conjuntamente com a independência da Guiana, se
estabeleceu o Acordo de Genebra, que reconheceu a reivindicação
venezuelana. O Protocolo de Porto Espanha, de 1970, congelou
por 12 anos o Acordo de Genebra. Ao fim do período, a
Venezuela não o ratificou e retomou as demandas do Acordo de
1966, tendo estado, desde então, o litígio em aberto.
[7]https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-
43600074
[8]Outras propostas também surgiram, como da "herança comum
da humanidade", que a colocaria à disposição de todas as nações;
do " patrimônio comum das Américas", que daria às nações da
América do Sul o direito conjunto e exclusivo de explorar a
fachada americana da Antártica; e do "projeto de parque ecológico
mundial", que converteria a região numa reserva natural e excluiria
todas as atividades econômicas e de desenvolvimento.
[9]"From Caribbean islands to the Antarctic, from coastal fringes
to the interior, most international conflict in South America has
originated over disputed territory." (KELLY, 1997, p.3)
[10]http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL335062-
5602,00-
ENTENDA+O+CONFLITO+ENTRE+VENEZUELA+EQU
ADOR+E+COLOMBIA.html
[11]Num cenário hipotético, as dificuldades internas da crise
brasileira poderiam fazer com que Bolsonaro buscasse um conflito
externo, o que ensejaria plenos poderes a partir da prerrogativa
constitucional do Estado de Sítio. Como possível alvo na América
do Sul, a Venezuela se apresenta como principal alvo, a partir de
provável coalizão com a Colômbia, apoio da OEA e do
departamento de defesa dos EUA. No jogo geopolítico hipotético,
93
tal iniciativa seria catastrófica: China e Rússia forneceriam suporte
direto e indireto com armas e recursos para Venezuela (fato que já
começa a ser comprovado com as manobras militares entre
Moscou e Caracas), transformando a Amazônia brasileira em
palco de guerra. A partir da alegação de que Brasil e Colômbia
sozinhos não conseguiriam conter a Venezuela, os EUA
desembarcariam na região, com o aval do Brasil, sob a
prerrogativa da manutenção da paz.
94
A geopolítica da água na América do Sul 23
Em 2015, o Estado de São Paulo se apresentava como o
exemplo mais elucidativo das novas tendências da geopolítica da
água na América do Sul. A escassez de água na maior metrópole
sul-americana vem deflagrando o aumento na demanda pelo
consumo diante de uma oferta limitada. Alguns estudiosos
apontam diversos motivos que podem se apresentar em diferentes
países, como o aumento na taxa de consumo superior a taxa de
crescimento populacional; a expansão da população em grandes
aglomerações demográficas acima da capacidade de
abastecimento; a ausência de obras de infraestrutura; as baixas
taxas naturais de reposição em países onde há baixos índices
pluviométricos; o desperdício, a poluição e o aquecimento global.
Neste sentido, a água tornou-se uma questão de segurança e de
defesa do Estado, devendo constar no seu planejamento
estratégico.
Da água no planeta, 99,7% de suas reservas não são aptas
para o consumo humano e animal. Da água doce existente, 7
milhões de milhas cúbicas estão concentradas em forma de gelo
nos pólos e geleiras, e 3,1 milhões na atmosfera; a água
subterrânea, os lagos e os rios aportam 2 milhões de milhas
cúbicas; (CECEÑA, 2006, p.592) e ainda, 99% da água doce
acessível do planeta se encontra nos aquíferos de água doce.
(BRUCKMANN, 2011, p.215)
A América do Sul conta com cerca de 30% dos recursos
hídricos renováveis do mundo, apesar da distribuição das
precipitações ao longo da região ser muito desigual e, por isso,
existirem algumas zonas sumamente áridas e outras zonas com
excesso da água em determinadas estações. Entretanto, embora no
23 Publicado em 31 de agosto de 2015.
95
conjunto da região não coubesse falar de uma escassez da água no
sentido físico absoluto, de fato é importante ressaltar que, em
muitos casos, a organização de sistemas para a gestão desse
recurso é fraca ou inexistente.
A região também possui a maior taxa de reposição de
água do mundo, com níveis altíssimos de capacidade em águas
superficiais e subterrâneas, o que constitui o principal fator de
abastecimento dos sistemas aquíferos da região. Ainda, o nível de
extração deste recurso – que enseja um panorama do esgotamento
dos sistemas hidrográficos e das camadas freáticas –, em termos
absolutos, é o de menor taxa do mundo, com aproximadamente
25 km³ por ano. (BRUCKMANN, 2011, p.222)
A América do Sul apresenta o maior complexo mundial
de água fluvial e subterrânea composto por territórios
transfronteiriços compartilhados entre vários países, destacando-
se, na região setentrional, a Bacia Hidrográfica Amazônica que
recorta oito países, e, na região meridional, o Aquífero Guarani
que é um reservatório transregional presente no subsolo dos
países do Mercosul: Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina
(SENHORAS; MOREIRA; VITTE, 2009, p.8) e um dos maiores
depósitos de água doce do planeta.
Outra capacidade com alto potencial a partir das reservas
de água da região é a possibilidade de geração hidroelétrica, que na
região chegam a 590 GW, dos quais quase a metade se encontra
no Brasil (260 GW, em que 41% estão localizados na bacia
hidrográfica do Amazonas), embora a capacidade instalada atual
seja de 137 GW, correspondendo a 23% do potencial
hidroelétrico dos países da América do Sul. (ALTOMONTE,
2013, p.68) Constata-se que os hidrocarbonetos continuam a ter
uma forte presença na produção de energia primária, com 65%,
enquanto a hidroeletricidade representa 11% da oferta total em
2011, (ALTOMONTE, 2013, p.81-82) ainda com grande
potencial de desenvolvimento, principalmente no Brasil, Colômbia
e Paraguai (Bacia do Prata em geral).
96
Entretanto, inúmeros são os focos de conflitos
econômicos, políticos, sociais e ambientais para a plena utilização
dos recursos hídricos para geração elétrica na região, tais como:
gerar um consumo energético integrador e homogêneo, com o fim
de fechar as brechas sub-regionais que ainda persistem, como a
heterogeneidade dos recursos naturais, das estruturas de
abastecimento e do consumo de energia; dificuldades regulatórias
e instabilidade quanto aos financiamentos; necessidade de
adaptação dos sistemas de gestão do recurso à mudança climática;
proteção dos ecossistemas e das comunidades locais, dentre
outros. “O ponto-chave é assegurar o respeito dos projetos
hidroelétricos aos princípios de sustentabilidade e o uso racional
de um recurso disponível que, no caso da Unasul, é abundante.”
(ALTOMONTE, 2013, p.88)
Pelo volume das reservas destes aquíferos e pela
capacidade de reposição da água destes sistemas, o controle da
água na região representa o controle de uma das principais fontes
renováveis de água do planeta, de um alto potencial de energia
hidrelétrica e de um dos sistemas ecológicos de maior
concentração de biodiversidade do mundo.
Logo, é necessária uma estratégia sul-americana de gestão
dos recursos hídricos, com metas comuns dos países da região
para descontaminação e preservação das bacias hidrográficas, das
reservas subterrâneas e dos lençóis freáticos, uma vez que os
interesses em disputa se fazem cada vez mais presentes. Os
grandes centros de poder mundial realizam um novo mapa
geopolítico a partir da demarcação das áreas potenciais de
conflito, tendo a água como elemento central; posicionam-se no
tabuleiro geopolítico global de tal forma que a água passa a ser
vista como questão de segurança estratégica.
Esta estratégia deve abranger uma visão integral das
bacias (ALTOMONTE, 2013, p.89), em que é necessário
considerar os sistemas hidráulicos precisamente como bacias, nas
quais é preciso otimizar os benefícios e minimizar os efeitos
negativos das variações temporais e territoriais dos fluxos da água,
97
com eficientes sistemas de gestão da água como requisito
indispensável para avançar na solução sustentável e duradoura dos
problemas, que demandam grandes construções infraestruturais
bem planejadas. Para isso, é necessário estabelecer sistemas de
medição, monitoramento e tomada de decisões, além de levar à
frente um importante esforço de coordenação interinstitucional
entre organismos governamentais centrais e governos regionais.
A elaboração de um censo da água para quantificar,
prever e assegurar água doce para o futuro da América do Sul é
imprescindível, assim como a identificação dos sistemas aquíferos
é um requisito básico para qualquer política de sustentabilidade e
gestão de recursos hídricos que permitam que o sistema continue
funcionando, melhorando assim a capacidade de gestão da água
como recurso natural estratégico.
Referências bibliográficas
ALTOMONTE, Hugo et al. Recursos naturais na União das Nações
Sul-americanas (UNASUL): Situação e tendências para uma agenda
de desenvolvimento regional. Publicação das Nações Unidas
(CEPAL) e da UNASUL. Santiago de Chile, Maio de 2013.
BRUCKMANN, Monica. Ou inventamos ou erramos: a nova conjuntura
latino-americana e o pensamento crítico. Tese (Doutorado) - Programa
de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2011.
CECEÑA, Ana Esther. Geopolítica. In: SADER, Emir;
JINKINGS, Ivana (Org.). Latinoamericana: enciclopédia
contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo:
Boitempo Editorial; Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas
Públicas da UERJ, 2006. p. 582-593.
SENHORAS, E. M.; MOREIRA, F. A.; VITTE, C. C. S.; A
agenda exploratória de recursos naturais na América do Sul: da empiria à
98
teorização geoestratégica de assimetrias nas relações
internacionais. 04/2009, 12º Encuentro de Geógrafos de América
Latina - caminando en una América Latina en
transformación.,Vol. 1, pp.1-15, Montevideo, Uruguai, 2009.
99
O ouro e o euro no território sul-americano24
Historicamente, o metal e a moeda constituem elementos
fundamentais na compreensão dos fenômenos econômicos. Ainda
durante a Idade Média, os indivíduos depositavam ouro nas
ourivesarias visando a segurança de seu valioso produto. Em
troca, os ourives emitiam títulos referentes ao valor do depósito.
Devido a segurança e praticidade dos títulos, começou-se a utilizá-
los como moeda ao invés do resgate do ouro nas transações,
ensejando o início do que conhecemos atualmente como cédulas
monetárias.
Desde a antiguidade, o ouro foi utilizado como símbolo
de pureza e valor, como "materialização social absoluta da
riqueza” (MARX, 1988, p.119-120), cujas primeiras ligas metálicas
utilizavam-no na fabricação de moedas, justificado por seu difícil
acesso, seu brilho, a durabilidade de seu material e sua vinculação
com padrões culturais e religiosos. Ainda, o ouro possui
importância significativa na economia internacional até o século
XX, tendo sido utilizado como padrão monetário internacional
desde o século XIX até colapso do sistema de Bretton Woods, em
1971.
Da mesma forma, a moeda, que surge a partir do
estabelecimento de uma economia baseada na troca direta (maça-
banana) para outra baseada na troca indireta (maça-dinheiro-
banana), funciona como meio geral de pagamento e compra, ou
seja, como meio de troca (aceito como pagamento de bens e
serviços), reserva de valor (preservação do poder de compra com
o passar do tempo) e unidade de conta (base de medição de todos
os bens). Historicamente, a " 'moeda internacional' sempre foi a
moeda do 'Estado-economia nacional' mais poderoso, numa
24 Publicado em 5 de fevereiro de 2018.
100
determinada região e durante um determinado tempo" (FIORI,
2007, p.29-30), que, concomitantemente, é a moeda mais
valorizada em termos monetários e comerciais.
Ao realizar uma análise geopolítica da América do Sul
baseada na disputa tanto do ouro como da moeda, percebe-se um
fato interessante referente a única unidade política não
independente da região: a Guiana Francesa.
A Guiana Francesa[1] constituiu um território ultramarino
francês na América do Sul, sendo o menor território sul-
americano. Apesar de constituir-se como um espaço europeu, seus
dados gerais divergem com a média européia: possui uma
população de 276.000 pessoas (2016), taxa de desemprego (em
porcentagem da força de trabalho) de 22,7% (2014)[2], taxa de
pobreza de 44,3% (2014), taxa de homicídio de 17,2 (por 100 mil
habitantes)[3].
Os fluxos migratórios consistem em outro dado
interessante: atraídos pelas fronteiras diluídas, pelo garimpo do
ouro e pelo mercado de alto poder aquisitivo da moeda local
(euro), imigrantes − em grande medida brasileiros
clandestinos[4] − buscam melhores condições de vida neste
departamento francês. A população da Guiana francesa é
oficialmente composta por 40 % de estrangeiros[5], cujos
brasileiros – sem considerar os garimpeiros ilegais, estimados pela
“Gendarmerie de Guyane” em mais de 10.000 homens, mulheres
e crianças – respondem pelo terceiro maior fluxo imigratório,
cerca de 30% dos estrangeiros na Guiana, em seguida ao Suriname
e Haiti.
Como exemplo desta conjuntura, em março de 2017,
diversos protestos ocorreram na Guiana Francesa, durando mais
de uma semana e gerando transtornos para a população. Dentre
os principais motivos, as reivindicações centravam-se contra o
aumento da violência, a pesca ilegal por brasileiros e surinameses
em águas francesas, e a mineração de ouro ilegal por brasileiros e
surinameses em território francês[6].
101
O imaginário do “Eldorado”, tão presente na história da
própria Amazônia, impulsiona um fluxo migratório contínuo que
gera conflitos na região. Os brasileiros se sujeitam ao trabalho
informal e ilegal, principalmente nos garimpos clandestinos,
enquanto para as mulheres, há o trabalho na casa de famílias
guianenses e, no pior dos casos, a prostituição[7].
Em outros termos, o "fetiche por empregos[8]" tem
levado a imigração ilegal de brasileiros (que vem enfrentando uma
profunda crise econômica na década de 2010) na Guiana
Francesa, basicamente atraídos por dois bens: o ouro, na busca de
trabalho em garimpos ilegais, retornando ao Brasil com a
mercadoria para ser vendida, e o euro, que possui um valor
monetário substancialmente mais elevado se comparado ao real.
Uma contenda que, aparentemente, não possui demasiada
atenção dos meios de comunicação, pesquisadores e políticos em
geral, possui uma multiplicidade de enfoques a serem abordados e
estudados, como segurança e defesa internacional, violência,
fluxos migratórios, desemprego, dentre outros. É a geopolítica e a
geoeconomia, um exemplo clássico entre a acumulação de poder e
riqueza na América do Sul com traços ainda presentes da
colonização.
Referências bibliográficas
FIORI, José Luís. O poder global: e a nova geopolítica das nações.
São Paulo: Boitempo, 2007.
Marx, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
[1] http://www.guyane.gouv.fr/
102
[2] http://data.un.org/CountryProfile.aspx?crName=French%20
Guiana
[3] http://www.defesanet.com.br/br_fr/noticia/25418/Guiana-
Francesa---A-crise-politica-e-social/
[4] http://www.jornalbeiradorio.ufpa.br/novo/index.php/2013/1
43-edicao-111--marco-e-abril/1429-processos-migratorios-de-
brasileiros-para-a-guiana-francesa-instigam-pesquisa
[5] http://confins.revues.org/5003?lang=PT
[6] http://www.pautanews.com.br/2017/03/27/protestos-em-
cayenne-violencia-saques-a-lojas-e-toque-de-recolher-na-vizinha-
guiana-francesa/
[7] https://estrategiaempresarial.wordpress.com/2008/02/17/gui
ana-francesa-brasileiros-atravessam-a-fronteira-em-busca-de-
euros/
[8] https://www.diariodoamapa.com.br/2017/02/18/a-guiana-e-
um-sonho-realizado-de-poucos-e-uma-grande-ilusao-para-muitos/
103
Dossiê Malvinas: O imediato pós Guerra 25
A Guerra das Malvinas teve início em 2 de abril − quando
as forças argentinas desembarcaram nas ilhas – e término em 14
de junho de 1982 − quando se deu a rendição, cujo saldo da
guerra para a Argentina foi de quase 700 mortos e 1.300 feridos
(SADER; JINKINGS, 2006, p.738). A Guerra foi conduzida pelo
então presidente da Argentina, Leopoldo Fortunato Galtieri, que,
uma vez que a ditadura começava a demonstrar sinais de desgaste
(crise econômica, pressão internacional por causa da violação dos
direitos humanos, e pressão nacional, com a criação das Mães da
Praça de Maio), decidiu partir para uma ofensiva pela permanência
no poder, sob o pretexto de criação de um inimigo externo e
promoção da coesão nacional. Entretanto, a derrota nas Malvinas
acabou engendrando a aceleração do processo de
redemocratização no país.
No plano internacional, os países europeus apoiaram o
Reino Unido em sua reivindicação e impuseram como sanção um
embargo comercial à Argentina − inclusive, fortalecendo o
governo Thatcher durante toda a década de 1980 após a vitória
britânica, uma das grandes responsáveis pelas reformas liberais no
mundo e na Comunidade Europeia. Os países da América Latina
e do Terceiro Mundo, em geral, apoiavam a Argentina, ainda que
essa adesão não redundasse em ajuda logística. Ou seja, tinha-se
uma situação totalmente paradoxal: "as democracias ocidentais,
aliadas ideológicas da ditadura, convertiam-se em inimigos,
enquanto os países do Terceiro Mundo, que o governo militar
repudiava como berço do socialismo e do comunismo,
levantavam-se como seu único respaldo." (SADER; JINKINGS,
2006, p.738)
25 Publicado em 22 de novembro de 2017.
104
Voou pelos ares o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca,
assinado no Rio de Janeiro em 1947, para
uso privado dos Estados Unidos. É um
simples papel molhado. A Doutrina
Monroe foi soterrada pelos próprios
norte-americanos com poucas honras.
Ficou destruída também a “Doutrina da
Segurança Nacional”, a teoria das
“fronteiras ideológicas” e o mito dos
“valores do Ocidente”. Agora, os
militares argentinos sabem que os valores
do Ocidente têm cotação na Bolsa de
Londres. A integração argentina ao
Terceiro Mundo ensinará às Forças
Armadas que, se os europeus e
norteamericanos gozam de um modo de
vida ocidental, os latino-americanos
padecem de um modo de vida acidental.
Tais lições têm sido recolhidas nas águas
ensanguentadas do Atlântico Sul e
ninguém poderá esquecê-las. (RAMOS,
2012, p.558-559)
Os Estados Unidos, que haviam condenado a ação
argentina e inclusive enviado apoio logístico e de inteligência
auxiliar, "uma solidariedade material e política" (SADER;
JINKINGS, 2006, p.1036), tiveram que realizar modificações
profundas na sua estratégia na América Central, segundo um
informe da CIA para o Conselho de Segurança da Casa Branca.
De fato, segundo o informe, o
compromisso assumido pelo general
Galtieri de enviar instrutores militares
para hostilizar a Nicarágua e El Salvador
se rompeu pela conduta dos Estados
Unidos ao apoiarem a Inglaterra. Ditos
instrutores, disse o informe da CIA,
105
foram retirados e a heroica república de
Sandino experimentou assim o primeiro
benefício da luta nas Malvinas. Os
Estados Unidos tiveram de assumir por
si mesmos e abertamente a defesa da sua
política agressiva para a América Central.
O abraço de Costa Méndez e Fidel
Castro em Havana, por outro lado,
simbolizou a reorientação, não
ideológica, porém política, que a
Argentina da ditadura militar se via
obrigada a adotar em razão da guerra.
(RAMOS, 2012, p.559)
Para a Argentina, a Guerra das Malvinas foi a última
tentativa do regime militar em manter-se no poder, promovendo a
aliança do Reino Unido com os Estados Unidos contra o governo
militar argentino. Desta forma, o imediato pós-Guerra teve como
ponto principal o início da contagem regressiva para o governo
militar, no qual o Exército retira Galtieri da presidência e designa
o general Raynaldo Benito Bignone, com a finalidade de preparar
as bases para a convocação das eleições, envolto no espectro das
reformas neoliberais em voga na década de 1980.
Desde a restauração da democracia, em
1983, a alternância de governos girou em
torno do radicalismo e do justicialismo.
O governo de transição foi do radical
Raúl Ricardo Alfonsín, mas a chegada de
Carlos Menem à presidência, em 1989,
trouxe um rearranjo no espectro político
argentino. O tradicional bipartidarismo
se mantinha, mas com novas alianças no
seio da UCR e do PJ. A mais chamativa,
e que marcaria o rumo econômico e
político argentino, foi a aliança entre o
justicialismo e a direita liberal (SADER;
JINKINGS, 2006, p.106).
106
De fato, após a Guerra das Malvinas, os britânicos
ficaram responsáveis pela ilha e, dada a sua atual condição, as
Malvinas estão elencadas como território ultramarino da União
Europeia. Para o Reino Unido, baseando-se no direito à
autodeterminação, um dos princípios da Carta das Nações Unidas,
não há uma contenda a ser solucionada, uma vez que não há
vontade de alteração da gestão atual por parte dos ilhéus. Para a
Argentina, mantém-se o não reconhecimento das "Falkland",
baseado em dois fatos: que a região fora adquirida da Espanha, em
1816, quando da proclamação da independência argentina, e,
portanto, pertencente ao seu território; e que o governo britânico
do arquipélago, mesmo desde 1833, está baseado em uma
ocupação ilegal, que acarretou, com ameaça do uso de força
militar, a expulsão da administração argentina, das autoridades e
dos colonos, com a determinação de que não mais retornassem.
Em termos geopolíticos, quatro interpretações podem ser
realizadas numa análise das consequências nos primeiros anos do
pós Guerra das Malvinas: uma geopolítica do imperialismo, uma
geopolítica dos recursos naturais, uma geopolítica do Atlântico Sul
e uma geopolítica da integração.
No primeiro plano, o conflito apresentou todas as
características de uma guerra de descolonização e antiimperialista.
Situadas a 480 km da costa argentina e a 14 mil km do Reino
Unido, as Ilhas são consideradas prolongamento do território da
Argentina, que desde a conquista de sua independência reclama a
sua soberania, jamais aceitando a ocupação britânica. Assim como
as bases militares na Colômbia e o território ultramarino da
Guiana Francesa, as Ilhas Malvinas apontam como uma região de
ponta de lança dos interesses internacionais britânicos e
estadunidenses, que reforça a importância inglesa na Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mediante o controle
militar do Estreito de Drake e das suas aspirações em relação à
Antártida. Tais assertivas são utilizadas como justificativa britânica
para investimento em gastos militares na região, inclusive com a
realização de manobras militares, no qual a Grã-Bretanha vai
107
gastar £ 280 milhões nos próximos dez anos para reforçar a
defesa das Ilhas[1].
No que se refere à geopolítica dos recursos naturais, os
britânicos buscam a exploração do petróleo da área malvinense −
no qual alguns estudiosos acreditam que a região pode ter
aproximadamente 18 bilhões de barris de petróleo (KLARE, 2012,
p.63) −, a industrialização do krill (pequeno crustáceo de alto
poder proteico, que é uma das maiores reservas mundiais em
matéria de alimentação) e o acesso direto a Antártida, cuja disputa
territorial e a guerra de matérias-primas estratégicas tende a se
acentuar nos próximos anos, uma vez que existem provadas e
abundantes reservas de petróleo e de gás, assim como uma
enorme riqueza mineral e silvícola.
Ainda, as Ilhas se configuram como uma base de acesso
ultramarino europeu no Atlântico Sul, cuja localização a somente
300 milhas (cerca de 483 Km) do Estreito de Magalhães
correspondem a uma zona estratégica em termos de circulação
marítima dos ingleses, seja pelo Atlântico Sul, Pacífico Sul e
Oceano Índico. Nesta discussão ainda está situado o problema da
interposição, e consequente falta de entendimento, entre a
fronteira marítima argentina e as águas territoriais "britânicas", que
levam em conta a Convenção do Direito do Mar, da ONU, com
sua determinação de jurisdição na distância de 370 Km das costas.
Para os países sul-americanos, a melhor perspectiva
geopolítica é a da integração, cuja Guerra das Malvinas "colocava
à prova, como num laboratório gigantesco, a solidariedade
política, econômica e militar latino-americana com a Argentina"
(RAMOS, 2012, p.557). O fato de a ditadura argentina ter sido
derrotada concomitantemente à brasileira criou condições para
que os dois países voltassem a considerar a necessidade de uma
integração econômica. Tais negociações vinham desde o Acordo
Tripartite entre Argentina, Brasil e Paraguai, de 1979, por ocasião
das divergências sobre a construção da represa de Itaipu, até
chegarem ao acordo bilateral entre os presidentes Raúl Alfonsín
(1983-1989) e José Sarney (1985-1990), ponto de partida da
108
criação do MERCOSUL, em 1991, com a celebração do Tratado
de Assunção. Desta forma, no tocante a América do Sul, a
integração regional aparece como uma alternativa real e necessária
num sistema internacional anárquico, competitivo e hierárquico,
cuja força extrarregional com uma presença militar, como é o caso
das Malvinas – que possui um soldado para cada 2,5 civis –
apresenta-se como um ponto crítico para a estabilidade regional.
O apoio dos países da região a demanda argentina é reiterado pelo
constante amparo da Unasul em relação à reivindicação argentina,
assim como pela CELAC em sua II Cúpula, na Declaração de
Havana, em 2014.
Como demonstra Ramos (2012), a partir da experiência da
Guerra das Malvinas, a América Latina precisa da união para não
se degradar:
Não é o progresso do capitalismo, como
aconteceu na Europa ou nos Estados
Unidos, o que exige, hoje, a unidade de
nossos estados, mas sim a crise profunda
e o esgotamento da condição
semicolonial que padecemos. [...] A
guerra das Malvinas, com o fulgor de um
relâmpago, ensinou aos latino-
americanos que realmente têm uma
pátria comum. (RAMOS, 2012, p.551-
552),
Referências bibliográficas
KLARE, Michael. The race for what's left: The global scramble for
the world's last resources.New York: Picador, 2012.
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. 2. ed.
Florianópolis: Insular, 2012.
109
SADER, Emir; JINKINGS, Ivana (Org.). Latinoamericana:
enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São
Paulo: Boitempo Editorial; Rio de Janeiro: Laboratório de
Políticas Públicas da UERJ, 2006.
[1] https://br.sputniknews.com/mundo/20150324544430/
110
Porque Malvinas e não Falklands: geopolítica e soberania
sul-americana 26
No dia 02 de abril de 2015 completaram-se 33 anos da
Guerra das Malvinas entre a Argentina e a Grã-Bretanha. Ainda
que o ponto de partida tenha sido a ocupação ilegal do território
pelos britânicos em 1833 – quando quebraram a integridade
territorial argentina, ocupando e desalojando ilegalmente as
autoridades argentinas da Ilha nos marcos da sua expansão
marítima e imperialista – o imbróglio se prolonga até a atualidade.
A Organização das Nações Unidas, em 1960, qualificou a
ocupação como um caso colonial especial [1], instituindo um
Comitê de Descolonização com o objetivo de impulsionar o
processo de independência de territórios sujeitos à exploração
colonial. O Comitê elaborou uma lista de territórios não-
autônomos, que incluía as Ilhas Malvinas [2], mas a Argentina e o
Reino Unido mantêm suas reivindicações sobre a ilha [3].
Os britânicos são os responsáveis pelas relações
internacionais da ilha e, dada a sua atual condição, as Malvinas
estão elencadas como território ultramarino da União Europeia.
Para o Reino Unido, baseando-se no direito à autodeterminação,
um dos princípios da Carta das Nações Unidas, não há um
problema a ser resolvido, pois não há vontade de alteração da
gestão atual por parte dos ilhéus. Certamente está no horizonte
britânico a permanência por quase dois séculos no governo da ilha
(desde 1833), sem tais clamores. Como parte desse processo de
disputa, em março de 2013, foi realizado um referendo sobre a
questão e a possibilidade de alteração de seu domínio, mas quase a
totalidade dos votos (99,8%) foram a favor da manutenção da
presença britânica.
26 Publicado em 3 de abril de 2015.
111
A despeito do pleito perdido, a Argentina não reconheceu
a validade do referendo e mantém o seu não reconhecimento das
"Falkland" como parceira em negociações. Duas alegações estão
no cerne da reclamação. A primeira, é que a região fora adquirida
da Espanha em 1816 quando da proclamação da independência
argentina. A segunda é que o governo britânico do arquipélago,
desde 1833, está baseado em uma ocupação ilegal, que acarretou,
com ameaça do uso de força militar, a expulsão da administração
argentina, das autoridades e dos colonos, com a determinação de
que não mais retornassem. Esse clamor argentino pela soberania
da ilha foi pacífico e baseado no direito internacional, das
alegações da ONU e de seu Comitê de Descolonização até abril de
1982, quando decidiu entrar na ilha dando início à guerra, no qual
o dia 3/4/82 marca o auge do esforço do país e a troca das
bandeiras. A reação viria, entretanto, ao final do mês, com ataques
que se estenderam até 14 de junho daquele ano e fizeram os
ingleses reocupá-la.
No tocante a América do Sul, a região é uma zona
pacífica, no qual uma força extra-regional com uma presença
militar, como é o caso das Malvinas – que possui um soldado para
cada 2,5 civis [4] – apresenta-se como um ponto crítico para a
estabilidade regional. Os países do Mercosul decidiram bloquear a
entrada em seus portos de navios com bandeira das ilhas Falkland,
e a Argentina tenta impedir, em negociações com o Chile, a saída
do único voo da LAN Chile que liga as Malvinas ao continente
americano [5].
Geopoliticamente, o conflito apresenta todas as
características de uma guerra de descolonização e antiimperialista.
Situadas a 480 km da costa argentina e a 14 mil km do Reino
Unido, as Ilhas são consideradas prolongamento do território da
Argentina, que desde a conquista de sua independência reclama a
soberania sobre elas, jamais aceitando a ocupação britânica. Ou
seja, este enclave colonial na América do Sul é justificado não
somente pela autodeterminação do povo de menor densidade
demográfica do mundo, de um lado, e o direito à soberania e
112
descolonização argentina, de outro; agregam-se, ademais, cinco
razões geopolíticas:
1. Contra os resquícios imperialistas ainda presentes na
América do Sul: como as bases militares na Colômbia, o território
ultramarino da Guiana Francesa e a base da OTAN nas Ilhas
Malvinas – contando ainda o fato da relativa inércia da ONU no
caso das Malvinas sendo justificada, em parte, pela condição do
Reino Unido de membro permanente do Conselho de Segurança,
com direito de veto. Esses postos geopolíticos, aparentemente
desconexos, apontam para toda a América do Sul e seu projeto de
integração regional;
2. Ilha como ponta de lança dos interesses internacionais
britânicos e de parceiros no Cone Sul: utilizando-a como
justificativa britânica para investimento em gastos militares na
região, inclusive com a realização de manobras militares [6], no
qual a Grã-Bretanha vai gastar £ 280 milhões nos próximos dez
anos para reforçar a defesa das Ilhas [7];
3. Base de acesso ultramarino europeu no Atlântico Sul:
cuja localização a somente 300 milhas (cerca de 483 Km) do
Estreito de Magalhães corresponde a uma zona estratégica em
termos de circulação marítima dos ingleses, seja pelo Atlântico
Sul, Pacífico Sul e Oceano Índico. Nesta discussão está situado o
problema da interposição, e consequente falta de entendimento,
entre a fronteira marítima argentina e as águas territoriais
"britânicas", que levam em conta a Convenção do Direito do Mar,
da ONU, com sua determinação de jurisdição na distancia de 370
km das costas;
4. Proximidade geográfica com a Antártica: onde a sua
disputa territorial e a guerra de matérias-primas estratégicas tende
a se acentuar nos próximos anos, uma vez que existem reservas de
petróleo e de gás comprovadas, assim como uma enorme riqueza
mineral e ictícola (GULLO, 2014, p.185) e;
113
5. Recursos naturais e biodiversidade existentes na ilha:
no qual alguns estudiosos acreditam que a região pode ter
aproximadamente 18 bilhões de barris de petróleo (KLARE, 2012,
p.63), onde as empresas britânicas Desire Petroleum e
Rockhopper Exploration realizaram prospecções geológicas
promissoras na região. (KLARE, 2012, p.65) Assim, a decisão do
governo britânico de explorar petróleo e gás nas Ilhas Malvinas
ressuscita tensões entre ambos países.
A posição britânica respalda-se na lógica do imperialismo
e do colonialismo. As Malvinas pertencem à Argentina e sua
reivindicação é um marco de soberania não somente para os
argentinos, mas para todos os sul-americanos.
Referências bibliográficas
KLARE, Michael. The race for what's left: The global scramble for
the world's last resources. New York: Picador, 2012.
GULLO, Marcelo. A insubordinação fundadora: Breve história da
construção do poder pelas nações. Florianópolis: Insular, 2014.
[1] http://www.cancilleria.gov.ar/es/la-cuestion-de-las-islas-
malvinas
[2] http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Malvinas-
resquicio-colonial-no-espaco-do-Mercosul%0D%0A/6/24983
[3] https://www.dur.ac.uk/ibru/resources/south_atlantic/
[4] http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Malvinas-
militarizada-deve-preocupar-Brasil-diz-chanceler-
argentino%0D%0A/6/27377
114
[5] http://www.blogdacidadania.com.br/2012/02/malvinas-o-
arquipelago-roubado/
[6] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/04/argentina-
denuncia-manobras-militares-britanicas-nas-malvinas.html
[7] http://br.sputniknews.com/mundo/20150324/544430.html
115
Geoeconomia e Geopolítica na Venezuela 27
Em fevereiro de 2019, a Venezuela esteve presente em
praticamente todos os noticiários brasileiros. A grave crise que
alastra o país foi tema de acaloradas discussões entre chefes de
Estado, centros de pesquisa, universidades, meios de comunicação
e redes sociais. Nunca antes na história brasileira existiram tantos
especialistas sobre o país sul-americano e caribenho.
Para além de um juízo de valor, ideológico ou
humanitário acerca dos acontecimentos recentes em nosso vizinho
amazônico, é papel do pesquisador acadêmico em relações
internacionais analisar de forma racional. Assim, é imprescindível
reflexionar e realizar a diferenciação científica entre geoeconomia
e geopolítica, tomando como referência a Venezuela na atualidade,
com a finalidade de avaliar os acontecimentos do tempo presente
e, ainda, como uma forma didática de aprendizado.
A geoeconomia se define como o uso de instrumentos
econômicos para fins geopolíticos, tal qual definido por Blackwill
e Harris (2016, p.20): "the use of economic instruments to
promote and defend national interests, and to produce beneficial
geopolitical results; and the effects of other nations’ economic
actions on a country’s geopolitical goals[1]." Deste modo, caso
hajam ganhos geopolíticos, o custo econômico é secundário,
podendo até mesmo haver gastos maiores que lucros; o que
importa é estabelecer áreas de influência ou impossibilitar
caminhos autônomos e independentes de outros países. Assim,
segundo Blackwill e Harris (2016, p.49), a geoeconomia é centrada
na utilização de sete ferramentas econômicas: política comercial,
política de investimento, sanções econômicas e financeiras,
27 Publicado em 4 de março de 2019.
116
ciberataques, subsídios econômicos, política financeiro-monetária
e energia e commodities.
No escopo desses instrumentos geoeconômicos, as
sanções econômicas e financeiras se apresentam de forma nítida
no caso venezuelano. As ações tem longa data, desde a tentativa
de golpe de Estado em 2002, com início de sanções econômicas e
políticas, passando pela proibição de comércio de armas na era
Bush, em 2006, aprofundando-se com o governo Obama,
principalmente em março de 2015, através da ordem executiva
nº13.692 ("Blocking Property and Suspending Entry of Certain
Persons Contributing to the Situation in Venezuela"[2]), que
decretou o estado de emergência venezuelano, até chegarmos às
tentativas explícitas de desestabilização e derrubada de governo
através do cerco financeiro de Trump, bloqueando o acesso do
governo venezuelano ao mercado financeiro estadunidense, assim
como travando os ativos da petrolífera estatal PDVSA.
Estes e diversos outros documentos relacionados às
sanções econômicas dos Estados Unidos em relação à Venezuela
podem ser acessados publicamente através do site oficial do U.S.
Department of State[3], consistindo num exemplo de como a
atuação geoeconômica funciona na atualidade.
Do outro lado da moeda, Fiori denomina a geopolítica
como "um conhecimento estratégico e normativo que avalia e
redesenha a própria geografia a partir de algum projeto de poder
específico, defensivo ou expansivo." (FIORI, 2014, p.141) Em
outros termos, a geopolítica é considerada um método de estudo
dinâmico da influência de fatores geográficos no desenvolvimento
dos Estados com a finalidade de orientar suas políticas internas e
externas. Ou seja, é uma ferramenta de análise de política externa
que busca compreender, explicar e prever o comportamento
político internacional, principalmente em termos de variáveis
espaciais.
Em termos geopolíticos, Martins (2019) sumariza a
importância estratégica da Venezuela para os Estados Unidos:
117
detém as maiores reservas de petróleo do mundo, com maior
proximidade geográfica do que as reservas do Oriente Médio,
além de estarem sob domínio de uma empresa estatal que vem
diversificando suas exportações para outros países; é a experiência
contra-hegemônica mais avançada na América do Sul, e que, com
seus avanços e retrocessos, acertos e erros, foi o país que mais
realizou consultas populares no século XXI, propondo uma
democracia participativa alternativa ao modelo democrático liberal
americano; possui alto nível de internacionalização ao articular a
construção de um novo eixo geopolítico regional e mundial,
aprofundando relações comerciais e financeiras com a China e
cooperação militar com a Rússia, além de impulsionar os projetos
de integração na América Latina, como Unasul, Celac, Alba,
Petrocaribe e Telesur.
Tanto a tentativa de ajuda humanitária por parte dos
Estados Unidos através da Colômbia e do Brasil, quanto a
prerrogativa de instaurar no governo interino um deputado
nacional eleito com apenas 97.492 votos[4] (mas totalmente
alinhado aos interesses privados estrangeiros, inclusive colocando
em pauta uma intervenção militar em seu país), devem ser
interpretados a partir dessas variáveis geopolíticas apresentadas.
Toda e qualquer análise da realidade venezuelana atual que
desconsidere a geoeconomia e a geopolítica estão fadadas a
deixarem de lado variáveis substanciais na compreensão do
problema. Como diria um dos gurus do liberalismo econômico,
Milton Friedman, "there ain’t no such thing as a free lunch[5]".
É papel de um analista internacional visualizar
determinado objeto de estudo e recorrer às bases teóricas e
metodológicas, analisando o maior número possível de variáveis e
distanciando-se de qualquer conclusão simplista. Geoeconômica e
geopoliticamente falando, a Venezuela se configura como palco de
contradições internas e conflitos externos, cuja complexidade do
tema envolve distintos atores políticos e interesses de poder. Uma
possível intervenção na Venezuela (seja via Colômbia, Brasil ou
EUA) trará a disputa geopolítica internacional explícita para a
América do Sul, uma zona de paz desde a Guerra do Paraguai
118
(1864-1870). As consequências negativas são incomensuráveis.
Para qualquer ator sul-americano neste imbróglio, a melhor das
armas é a sabedoria, e a pior, a ingenuidade.
Referências bibliográficas
BLACKWILL, Robert D.; HARRIS, Jennifer M.. War by other
means: geoeconomics and statecraft. Cambridge, Massachusetts:
The Belknap Press Of Harvard University Press, 2016.
FIORI, José Luís. História, estratégia e desenvolvimento: para uma
geopolítica do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.
MARTINS, Carlos Eduardo. Trump e a Venezuela. 2019.
Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2019/02/20/trump-e-a-
venezuela/?fbclid=IwAR3fgsH85xu0h2OyNUA6kxDMDgf0gBl
YanW323ksa6fC-7LYoR9nB2VHXeo>. Acesso em: 26 fev. 2019.
[1]"O uso de instrumentos econômicos para promover e defender
interesses nacionais, e produzir resultados geopolíticos benéficos;
e os efeitos das ações econômicas de outras nações nos objetivos
geopolíticos de um país."
[2]https://www.treasury.gov/resource-
center/sanctions/Programs/Documents/13692.pdf
[3]https://www.state.gov/e/eb/tfs/spi/venezuela/
[4]Não é intuito do presente trabalho considerar a contradição
entre a prerrogativa suscitada pelos meios de comunicação
internacional de rotular o governo de Nicolás Maduro como uma
ditadura, a partir do momento em que existe a eleição de
119
opositores ao Governo, prática mais do que comum em todos os
regimes democráticos do mundo.
[5]"Não há almoços grátis."
120
Israel e Colômbia: dois pontos de uma mesma reta
estadunidense 28
Historicamente, a política estadunidense possui uma
gênese, em qualquer espaço geográfico: a submissão de políticas
nacionais em detrimento de seus interesses globais, seja pela
coerção e/ou pelo consentimento. A partir de pontos estratégicos,
seja em terra, mar ou espaço, os Estados Unidos construíram a
maior força militar jamais vista na história, contando com bases
militares em todos os continentes do mundo[1], com seus Unified
Combatant Commands[2], 4,35% do PIB no setor (2012)[3] e
correspondendo a aproximadamente 34% do PIB global em
gastos militares (2014)[4]. Como estratégia global, a análise da
presença expressiva do imperialismo estadunidense, tomando
como exemplos a Colômbia e Israel, apresenta papéis
geoestratégicos convergentes em ambos países no que se refere à
política externa dos Estados Unidos no século XXI.
A partir de um exame geopolítico e dialético, os países
que aparentemente não possuem nenhuma relação entre si passam
a ser visualizados como dois pontos de uma mesma estratégia.
Em termos geográficos, Israel é o ponto eqüidistante
entre Paris e Pequim, cujo controle dos EUA impede a criação de
um projeto de Eurásia, que seria altamente preocupante para seus
interesses globais. Implicações geopolíticas históricas clássicas
(seja através das análises de Mackinder, Mahan e Spykman) e
atuais (Mello, Moniz Bandeira e Fiori) podem ser explicadas a
partir dessa chave interpretativa, a fim de qualificar o papel vital
de Israel na região do Oriente Médio para os interesses
estadunidenses.
28 Publicado em 25 de julho de 2016.
121
Da mesma forma a Colômbia, consistindo no ponto
equidistante dos EUA até a Terra do Fogo, sendo um país
geoestratégico para a dominação hegemônica estadunidense na
América, uma vez que desse país sul-americano se pode deslocar
para qualquer ponto da região, consistindo num "heartland
americano", parafraseando Mario Travassos.
Concomitantemente, ratifica-se a análise de política
externa estadunidense comparada entre esses países tão distantes,
mas tão geoestrategicamente similares, principalmente no discurso
ideológico e geopolítico:
1) Israel consiste no principal aliado da luta contra o
terrorismo islâmico no Oriente Médio; na Colômbia, intensifica-se
a luta de décadas contra o narcotráfico. Ambos possuem como
ponto fundamental a guerra contra um inimigo da potência global;
2) Israel possui o controle estratégico sobre as Colinas de
Golã e o rio Jordão; Colômbia é um ponto fundamental de acesso
para o Aquífero Amazonas, a maior reserva de água do mundo.
Ambos países são fundamentais para o abastecimento de água de
suas regiões de um recurso natural que será um dos mais
importantes no século XXI;
3) Israel é um ponto de conexão entre o Mar
Mediterrâneo e o Mar Vermelho, através do Golfo de Aqaba, cuja
importância é histórica e presente; a Colômbia possui o ponto de
conexão entre o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico, único país
sul-americano que possui duas frentes oceânicas. Consistem em
dois pontos estratégicos a nível continental e intercontinental;
4) Israel é considerada por alguns estudiosos como a
cabeça-de-ponte[5] estadunidense no Oriente Médio, Ásia e
Europa; a Colômbia tem a mesma especificidade na América
Central, América do Sul e Antártica.
5) Israel é um país entrave, que impede um projeto
integracionista mais amplo no Oriente Médio vinculado ao
122
islamismo (como nos movimentos Pan-Arábicos e no próprio
nasserismo); a Colômbia é uma parte importante de um conjunto
de países da América do Sul que impede a criação de um projeto
de integração sul-americano mais autônomo e soberano (como a
própria ampliação do Mercosul).
Como um tabuleiro de xadrez global, os Estados Unidos
posicionam seus peões nacionais com a finalidade de realizar um
xeque-mate global, no qual tanto Israel quanto Colômbia possuem
papel vital, sendo mais que meros peões, e sim rainhas em seus
respectivos continentes. Entretanto, através da análise de longa
duração do sistema interestatal, o projeto de poder global
estadunidense, seja através de vínculos com outros países ou mera
imposição de seus interesses nacionais e internacionais, é uma
concepção inviável, uma vez que nas relações internacionais
sempre haverá a constante competição entre os Estados nacionais,
que buscam ascender e melhorar sua posição internacional num
ambiente hierárquico, expansivo, anárquico e conflitivo: é um jogo
de xadrez sem fim.
[1] http://www.politico.com/magazine/story/2015/06/us-
military-bases-around-the-world-119321; http://militarybases.com
[2] http://www.defense.gov/home/features/2009/0109_unifiedc
ommand
[3] https://www.cia.gov/library/publications/the-world-
factbook/geos/us.html
[4] https://www.sipri.org/
[5] É uma fortificação temporária feita em território inimigo, no
lado oposto ao de um obstáculo, rio, desfiladeiro,etc, e usada
como ponto de partida e apoio para o avanço das tropas.
123
Soberania ou internacionalização da Amazônia? 29
Em 2017, o presidente em exercício no Brasil em questão,
Michel Temer, liberou a exploração mineral numa reserva da
Amazônia e convocou mineradoras estrangeiras a uma "nova caça
ao ouro". Foi alvo de críticas, tanto por ambientalistas e
protetores dos direitos indígenas, como por extinguir o
monopólio estatal de mineração em área com alto potencial de
ouro e outros metais[1].
Historicamente, a Amazônia se encontra entrelaçada
diante dos interesses de acumulação de poder e riqueza das
grandes centros de poder mundiais, sejam dos Estados e das
empresas transnacionais. Na atualidade, tais centros de poder se
lançam sobre a região, principalmente, na disputa das fontes de
recursos naturais estratégicos (KLARE, 2003:2012), fazendo com
que a região seja essencial para o funcionamento e expansão do
sistema mundial, “e por isto deve sofrer uma pressão econômica e
política cada vez maior, de fora e de dentro da própria região.”
(FIORI, 2008, p.58)
Inúmeros são os desafios dos países amazônicos. No
plano doméstico, se apresenta a questão da sua ocupação e
integração, além da efetiva presença do Estado. No regional, a
integração com os países vizinhos sob a máxima histórica de
"integrar para não entregar", numa perspectiva Pan-Amazônica.
No internacional, a problemática da histórica disputa internacional
pelos territórios amazônicos, no qual o binômio "soberania ou
internacionalização" impera até os dias atuais.
Diversos autores geopolíticos realizaram estudos sobre a
importância da Amazônia para um projeto nacional de
29 Publicado em 4 de setembro de 2017.
124
desenvolvimento e regional de integração, alertando para as
pretensões internacionais de controle territorial e dos fluxos
econômicos.
O general Carlos de Meira Mattos afirmava que a
Amazônia possuía capacidade de fomentar o desenvolvimento
nacional e regional. Deste fato advém seu preceito de
continentalização da hinterdândia sul-americana através da
utilização de modernas tecnologias dos transportes e
comunicações, conjuntamente aos pólos de desenvolvimento, que
seriam a "unidade econômica motriz" (FREITAS, 2004, p.72-73)
do impulso ao "progresso e a influência até os limites com os
demais países amazônicos" (COSTA, 1992, p.220), numa vontade
política em termos de cooperação sul-americana (tendo seu ápice
no Tratado de Cooperação Amazônica, de 1978).
Therezinha de Castro foi uma das autoras brasileiras que
antecipou, inclusive, a sua cobiça internacional: "de um lado, o
princípio da soberania nacional e, do outro, a crescente afirmação
de uma responsabilidade mundial quanto à gestão desse
patrimônio da humanidade". (FREITAS, 2004, p.96) Surgem,
assim, os preceitos da autora, de "integrar para não entregar" e
"preservar quando possível, mas conservar não." (FREITAS,
2004, p.99)
A "cientista da Amazônia", Bertha Becker, realizou uma
síntese das mudanças decorrentes das transformações ocorridas
nas dinâmicas espaciais da região amazônica, cujos
desdobramentos em ações estatais foram diversos. No plano
internacional, sua teoria da coerção velada[2] é fundamental para
compreender os anseios geopolíticos das grandes potências na
região. Além disso, insere ao debate amazônico o
desenvolvimento via ciência e tecnologia, argumentando a
necessidade de aproveitamento sustentável dos recursos naturais.
Entretanto, alerta para o caráter político restritivo da única e
exclusiva preocupação com a preservação.
125
A região amazônica se apresenta como uma das últimas
fronteiras de expansão do capitalismo mundial dado,
principalmente, a sua geografia. Com o avanço tecnológico e a
necessidade de constante adaptabilidade dos países centrais com a
finalidade de manutenção do seu status quo, tal fronteira é
crescentemente valorizada. Como constatado pelos estudos de
Ribeiro (2005), Pereira (2007), Morel (1984) e Reis (1968), há um
secular interesse na região amazônica; em outros termos, a
importância histórica da conquista, ocupação e gestão dos
recursos naturais estratégicos presentes na região amazônica vem
pautando o aumento da presença estrangeira ao longo do tempo.
Sucintamente, neste caso em particular, a idéia principal
do governo golpista brasileiro − implícita ou explicitamente − é
demonstrar a incapacidade de conter a catástrofe que uma
exploração descontrolada e não regulamentada pode acarretar
(além de mais uma sinalização de abertura política ao mercado).
Com isso, a comoção pública nacional e internacional reacenderia
o antigo debate sobre a incapacidade dos países amazônicos de
proteger a floresta, sendo a única alternativa a sua
internacionalização; uma securitização internacional da Amazônia
em detrimento das soberanias e projetos estratégicos nacionais e
regionais dos países amazônicos. Vence a entrega e
internacionalização, perde a integração e a soberania nacional.
Referências bibliográficas
BECKER, Bertha. As Amazônias de Bertha K. Becker: ensaios sobre
geografia e sociedade na região amazônica - Vol.3. Rio de Janeiro:
Garamond, 2015.
COSTA, Wanderley Messias da. Geografia política e geopolítica. São
Paulo: Hucitec; Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
FIORI, José Luís. O sistema interestatal capitalista no início do
século XXI. In: FIORI, José Luís; SERRANO, Franklin;
126
MEDEIROS, Carlos Aguiar de. O mito do colapso do poder
americano. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 11-70.
FREITAS, Jorge Manuel de Costa. A escola geopolítica brasileira. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 2004.
KLARE, Michael. Guerras por los recursos: El futuro escenario del
conflicto global. Barcelona: Ediciones Urano, 2003.
KLARE, Michael. The race for what's left: The global scramble for the
world's last resources. New York: Picador, 2012.
MOREL, Edmar. Amazônia saqueada. 3. ed. São Paulo: Global,
1984.
PEREIRA, Carlos Patricio Freitas. Geopolítica e o futuro do Brasil:
Amazônia Ocidental e Pantanal Comunidade Sul-Americana. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 2007.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Amazônia e a cobiça internacional. 3.
ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968.
RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. A questão geopolítica da
Amazônia: da soberania difusa à soberania restrita. Brasília: Senado
Federal, 2005.
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/24/politica/1503605
287_481662.html
[2] "Pressões de todo tipo para influir na decisão dos Estados
sobre o uso de seus territórios. Essa mudança está ligada
intimamente à revolução científico-tecnológica e às possibilidades
criadas de ampliar a comunicação e a circulação no planeta através
de fluxos e redes que aceleram o tempo e ampliam as escalas de
127
comunicação e de relações, configurando espaços-tempos
diferenciados." (BECKER, 2015, 451-452)
128
Questão energética da Amazônia 30
A energia é um dos principais temas dos Estados no
sistema internacional, ensejando análises mais apuradas ao se
considerar a necessidade de acesso a recursos naturais para a
provisão energética necessária para a reprodução capitalista.
Simultaneamente, consistem em bens de disputas internacionais,
uma vez que se encontram geograficamente dispersos no mundo.
Na América do Sul, o potencial energético é, paradoxalmente,
elevado e subutilizado, principalmente na região amazônica.
Segundo dados da Resenha Energética Brasileira[1], em
2015, as fontes renováveis chegaram a 75,5% de participação na
matriz de Oferta Interna de Energia Elétrica (OIEE), das quais
84,8% referentes à hidroeletricidade, com 198 Usinas Hidrelétricas
(UHE). A OIEE de hidroeletricidade corresponde a 359.743
GWh, enquanto que de biomassa de cana e eólica correspondem a
34.163 GWh e 21.626 GWh, respectivamente. Comparado ao
mundo, o Brasil apresenta 64% de participação de energia
hidráulica em seu território, contra apenas 12,9% na OCDE, e de
18,7% nos outros países. Em termos de presença de fontes
renováveis na matriz de energia, o Brasil registrou 41,2% de
participação em 2015, contra 9,4% da OCDE, e 14,3% no mundo.
Em termos de consumo per capita de energia elétrica
(kWh/capita), o Brasil está abaixo da média mundial.
Do potencial hidrelétrico brasileiro, de acordo com o
Plano Nacional de Energia 2030 [2], 43% está localizados na
região Norte, cujo potencial da Bacia do Amazonas se encontra
distribuído por 13 sub-bacias, sendo que quatro delas (Tapajós,
Xingu, Madeira e Trombetas) concentram quase 90%. Entretanto,
a proporção desse potencial considerado, sem restrições
30 Publicado em 12 de dezembro de 2016.
129
ambientais significativas, corresponde a 38%. A previsão do Plano
Decenal de Energia de 2010 [3] é que o país terá 71 novas usinas
até 2017, com potencial de geração de 29.000 MW, sendo 15 na
bacia do Amazonas, 13 na bacia do Tocantins-Araguaia, 18 no rio
Paraná e 8 no rio Uruguai, tendo sido previstos cerca de R$ 83
bilhões para a área hidrelétrica. Com um terço do potencial
hidráulico nacional utilizado, as usinas de grande porte a serem
instaladas na região amazônica constituem a nova fronteira
hidrelétrica nacional.
Os projetos hidrelétricos possuem um duplo papel
geoeconômico: gerador de benefícios nacionais/regionais e locais,
no qual a população nativa tenderia a visualizar aquele
empreendimento como algo favorável para sua comunidade. Em
termos técnicos, o papel da hidrelétrica na região amazônica busca
apresentar características peculiares baseada em três pilares para
um modelo de sustentabilidade: consiste na geração de energia
(limpa e renovável), no fomento ao desenvolvimento regional
(inserção local, turismo e tecnologia) e na preservação do meio
ambiente (responsabilidade sócio-ambiental).
O subaproveitamento do potencial hidrelétrico
amazônico decorre dos desafios dessa região: grande extensão
territorial (aproximadamente 40 % do território da América do
Sul); difícil acesso (sendo algumas localidades acessíveis somente
pela via marítima, ou inacessíveis por conta da densa floresta);
latentes desigualdades sociais e espaciais (com alta concentração
de renda nas principais cidades amazônicas); vulnerabilidades
externas (com alta participação estrangeira em diversas áreas);
importância global (qualquer perturbação grave na Amazônia
impacta a região e todo o planeta, uma vez que é importante para
diversos ciclos naturais); restrições do ponto de vista ambiental;
falta de investimento/financiamento.
Ainda, há uma crescente ocorrência de movimentos
sociais contrários às hidrelétricas, uma vez que elevada parcela
destes empreendimentos na região fere os direitos humanos,
possui impactos profundos na biodiversidade e nas comunidades
130
tradicionais (como os atingidos por barragens da Amazônia
brasileira, naturais dos rios Xingu, Tapajós, Teles Pires, Madeira,
Tocantins e Araguaia), além de violar leis e acordos internacionais.
[4]
Uma vez que os impactos ambientais em qualquer forma
de geração de energia são presentes – ainda que com graus
diferenciados –, e a exploração do potencial hídrico da Amazônia
se apresenta como uma oportunidade, busca-se uma
operacionalidade menos degradante, a fim de mitigar os danos
sócio-ambientais, tais como:
1) Tornar mais eficiente e reduzir a necessidade de
geração de energia elétrica, através de maiores investimentos em
ações de eficiência energética tanto na oferta como na demanda.
Estas ações para reduzir as perdas possuem custo de investimento
muito mais baixo do que novas formas de geração elétrica,
eliminando desperdícios;
2) Conceber um plano de longo prazo para difundir e
perenizar o uso de tecnologias de energias renováveis na
Amazônia, tais como hidrocinética, eólica, solar ou biomassa;
3) Assegurar compensações financeiras (seja em termos
sociais e ambientais) para a região compatível com os benefícios
proporcionados para o país, na medida em que a energia gerada na
região não for endogenizada;
4) Construir pequenas centrais hidrelétricas, uma vez que
há diversidade de fontes de energia presentes na Amazônia.
Entretanto, não há um inventário para pequenos aproveitamentos
energéticos (somente para grandes projetos), e ainda há falta de
recursos humanos para desenvolver tais energias.
O uso adequado e sustentável do potencial energético
amazônico pode alavancar projetos estratégicos. O
desenvolvimento da Pan-Amazônia perpassa pela articulação de
planos de construção e formação de redes sul-americanas de
131
transmissão de energia elétrica a partir da cooperação amazônica,
modificando a dimensão do sistema de geração e o perfil de
distribuição de energia, abrindo novas possibilidades de
desenvolvimento tanto no âmbito micro, das localidades
amazônicas, como macro, na esfera nacional e regional sul-
americana. Assim, a partir de um planejamento energético de
forma integrada, pode-se vir a compensar superávits e déficits
locais e sazonais entre os países.
[1] http://www.mme.gov.br/documents/10584/3580498/02+-
+Resenha+Energ%C3%A9tica+Brasileira+2016+-
+Ano+Base+2015+(PDF)/66e011ce-f34b-419e-adf1-
8a3853c95fd4;version=1.0
[2] http://www.epe.gov.br/PNE/20080512_3.pdf
[3] http://www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2010/11/matriz-
energetica
[4]http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Hidreletricas-
na-Amazonia-um-mau-negocio-para-o-Brasil-e-para-o-
mundo/#a0
132
Pan-Amazônia: riqueza, diversidade e desenvolvimento 31 32
Os debates sobre a Amazônia brasileira e a Pan-Amazônia
se iniciam no século XX e ainda demonstram contemporaneidade
nos congressos, artigos e livros acadêmicos no Brasil, na América
do Sul e no mundo. Com uma área que corresponde a 6% da
superfície do planeta, possui 20% de toda a água doce vertida aos
oceanos e a maior reserva de água doce do planeta (Aquífero
Amazônia), recursos minerais (petróleo, gás, bauxita, nióbio,
silvinita, casterita, entre outros), a maior floresta tropical e
biodiversidade do mundo, além de uma população de 40 milhões
de habitantes com saberes locais ancestrais no terriório brasileiro.
Ainda no Brasil, a Amazônia corresponde a 60% do
território nacional (9 Estados), 71% do estoque de água doce,
70% das fronteiras brasileiras e 64% da bacia hidrográfica da Pan-
Amazônia. Com esses dados, ratifica-se que essa região requer um
modelo próprio de desenvolvimento e, atualmente, não possui o
reconhecimento e atenção condizentes com sua importância
geopolítica e para o desenvolvimento da América do Sul.
Esta revalorização da região é pautada, principalmente,
pela sua posição geoestratégica e pelos recursos naturais
estratégicos, ratificados pela diversidade/quantidade de reservas e
para os futuros processos e ciclos científicos, tecnológicos e de
inovação. Com a ascensão do que os estudiosos costumam
denominar de 4ª Revolução Industrial, a Amazônia se apresenta
como um dos principais pólos dessa nova etapa.
31Publicado em 24 de outubro de 2016.
32 Este artigo foi fruto dos debates realizados no 3º Congresso Internacional do
Centro Celso Furtado: Amazônia Brasileira e Pan-Amazônia: riqueza, diversidade
e desenvolvimento humano, realizado em Manaus-AM, na Universidade Federal
do Amazonas - UFAM, nos dias 15 e 16 de setembro de 2016.
133
Entretanto, há a necessidade de se investir em indústria de
produção de conhecimento, parte substancial na próxima
revolução industrial; a região deve estar preparada, investindo em
conhecimento, em pesquisa e desenvolvimento, entendendo que a
academia deve estar acoplada com a indústria e serviços, que
possuem maior conhecimento do mercado e de suas demandas.
Os centros de excelência e pesquisa Pan-Amazônicos
(como o INPA, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia[1],
que atua profundamente ao longo de anos) e os projetos de
integração regionais (como a OTCA, Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica[2]), devem ser valorizados e
disseminados, a fim de que se tornem modelos de importância
científica para compreensão e conservação ambiental, ensejem
tecnologias de fins produtivos e de modo sustentável,
promovendo o desenvolvimento sustentável na Pan-Amazônia.
A mudança de foco principal para o desenvolvimento
amazônico enseja o debate acerca do desenvolvimento sustentável
– com o equilíbrio de pilares econômico, social e ambiental (e até
mesmo cultural) –, que busque o respeito aos condicionantes
ecológicos e avanços na qualidade de vida da população local,
visando a geração de riqueza em cooperação e integração de todos
os países da Pan-Amazônia. Ou até mesmo do
ecodesenvolvimento, que considera as especificidades, a estrutura
produtiva, a relação com a natureza, as relações sociais, o saber-
fazer, a natureza do território, as motivações e as dificuldades e
seus valores culturais; um desenvolvimento com base ambiental e
no conhecimento local, como fundamento do controle endógeno
do processo.
Entretanto, o ponto mais importante é a criação de um
modelo próprio de desenvolvimento, que não existe no Brasil, na
América do Sul e em nenhum lugar do mundo, um debate que
deve ser Pan-Amazônico, um modelo de desenvolvimento que:
1) abarque as tradições e saberes locais, com centros de
estudos locais;
134
2 ) Tenha sentido preservacionista, em total sintonia com
a prevenção do maior patrimônio;
3) Não seja um desenvolvimento do mercado, e sim uma
política de Estado(s);
4) Seja fundado numa ciência própria, uma ciência de
conhecimentos específicos da região, de energia, da
biodiversidade, das ciências regionais, agregando de forma
sustentável os recursos naturais presentes na região;
5) Modifique a forma com que os recursos naturais
amazônicos são utilizados, repensando-os em bases sustentáveis,
tanto em termos econômicos como ambientais;
6) Crie uma ciência amazônica, fundada na biotecnologia,
nas questões da saúde;
7) Defenda as questões jurídicas sobre temas latentes na
região amazônica, como a biotecnologia, direito ambiental e
questão fundiária;
8) Almeje a segurança da Pan-Amazônia, a proteção e as
implicações para a soberania regional.
Assim, criar-se-ia um projeto de cooperação para o
desenvolvimento em novas bases, comprometidas com a geração
e uso do conhecimento e dos saberes locais correlacionados com
processos fundamentados na ciência, tecnologia e inovação.
A valorização da Amazônia é diretamente proporcional ao
aumento da importância dos recursos estratégicos para a
economia global, cuja expansão de interesses estrangeiros na
América do Sul é um determinante real e que se intensifica no
século XXI. Esta expansão, analisada sob uma perspectiva crítica
da geopolítica, do desenvolvimento e da integração, afim de que
135
se possa pensar na construção de um modelo para a Pan-
Amazônia com cooperação dos países amazônicos, pode vir a
engendrar uma autonomia estratégica dos recursos naturais
amazônicos como um dos pilares da política externa sul-
americana, ensejando o fomento de um desenvolvimento
soberano para a região através de um planejamento estratégico.
Este debate envolve a soberania e integração sul-americana, cuja
necessidade de trazer a Pan-Amazônia para as agendas nacionais e
para a agenda regional é imprescindível.
[1] O INPA é o instituto de estudos científicos do meio físico e
das condições de vida da região amazônica para promover o bem-
estar humano e o desenvolvimento sócio-econômico regional,
referência mundial em Biologia Tropical.
[2] A OTCA é o mais importante bloco socioambiental da região,
fórum permanente de cooperação, intercâmbio e conhecimento,
que busca promover o desenvolvimento sustentável com inclusão
social e harmonia com a natureza. É um instrumento de
cooperação Sul-Sul, focada nas oportunidades e desafios da região
amazônica. Assim, a OTCA poderia ser uma das possibilidades
mais concretas de realizar projetos de integração na região
amazônica.
136
Parte 3
Integração latino-americana no sistema
mundial
137
138
Entorno estratégico brasileiro e integração regional 33
Ao longo do século XX, os clássicos da geopolítica
brasileira visualizaram o imenso potencial e papel de liderança do
Brasil na América do Sul. Everardo Backheuser foi o primeiro
teórico da denominada Escola Geopolítica Brasileira (FREITAS,
2004), fornecendo uma metodologia e sistematização,
influenciando o estabelecimento pelo governo de uma nova
política de fronteiras; Mario Travassos traçou os grandes rumos de
uma política nacional destinada a levar o Brasil à posição de maior
potência sul-americana, neutralizado os desequilíbrios potenciais
oferecidos pelos antagonismos fisiográficos; Golbery do Couto e
Silva projetou sua teoria sobre um projeto desenvolvimentista
brasileiro, realizando uma radiografia do Brasil contemporâneo e
sugerindo ações políticas; Carlos de Meira Mattos se preocupou
com a projeção do Brasil como "potência mundial" e a Pan-
Amazônia; Therezinha de Castro defendeu a importância do Brasil
num contexto da segurança estratégica do Atlântico Sul, da
Antártica e da Amazônia (assim como Bertha Becker, focando-se
numa revolução científica a fim de permitir um aproveitamento
sustentável dos recursos naturais disponíveis).
A vocação geopolítica do Brasil se coaduna com seus 16
mil km de fronteiras terrestres com quase todos os países sul-
americanos (com exceção de Chile e Equador), e seus 7,5 mil km
de fronteira marítima – sendo o maior país do Atlântico Sul.
Pertencente ao grupo de cinco maiores países em termos de
território e população, entre as dez maiores economias do mundo
em termos de PIB, com aproximadamente 95% das reservas
petrolíferas localizadas off-shore, e mais de 90% do seu comércio
exterior feito pelo mar, o Brasil se configura como um país
33 Publicado em 13 de fevereiro de 2017.
139
simultaneamente marítimo e continental, uma dualidade
geopolítica em seu entorno estratégico.
O termo entorno estratégico surge no Plano Nacional de
Defesa (PND)[1] de 2005 e na Estratégia Nacional de
Defesa[2] (END) de 2008, que originou o Livro Branco de Defesa
Nacional[3] (2012). Tal conceito vinha sendo uma prioridade da
Política Externa Brasileira (PEB) na década de 2000, utilizada nos
discursos do ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim,
do seu ex-Secretário Executivo, Samuel Pinheiro Guimarães, e do
ex-presidente Lula. A partir desses documentos, o conceito é
definido como "a região onde o Brasil quer irradiar –
preferencialmente – sua influência e sua liderança diplomática,
econômica e militar, o que inclui a América do Sul, a África
Subsaariana, a Antártida e a Bacia do Atlântico Sul" (FIORI,
2013); i.e., entorno estratégico pode ser classificado como
perímetro de segurança, área de influência imediata e/ou área de
interesse estratégico.
Cada país possui um entorno estratégico a partir de sua
configuração geopolítica nas relações internacionais, que se
caracteriza como um ambiente anárquico, competitivo,
hierarquizado e assimétrico. Conquanto, interseções dos múltiplos
entornos estratégicos revelam choques de interesse e conflitos no
sistema internacional, no qual qualquer presença ou interferência
de potência externa – ou até mesmo interna – no entorno
estratégico de qualquer país é visualizada como uma ameaça a sua
segurança nacional.
Tal fato é comumente mitigado ou amenizado a partir da
correlação de interesses mútuos e recíprocos. Essa convergência é
profícua e duradoura na medida em que projetos de integração
regional são intensificados. Em qualquer projeto de integração, os
objetivos finais são delineados como uma meta geopolítica. Seja
em termos de segurança, desenvolvimento, poder internacional ou
identidade, a integração regional busca confluir os interesses
particulares e coletivos dos países integrantes e como tal projeto
140
se relaciona com as potências hegemônicas, levando a uma
mudança do status quo dos países no sistema internacional.
Das quatro áreas de influência do entorno estratégico
brasileiro, a que vem apresentando avanços em termos de projeto
de integração, principalmente na década de 2000, é o continente
sul-americano. Dentre os fatos de maior destaque, podem-se citar
a ampliação de temas e da geografia do MERCOSUL, a partir de
2003; o “enterro” da ALCA (Área de Livre Comércio das
Américas), em Mar Del Plata (2005); a revisão da agenda de
integração sul-americana e criação da Unasul (2008); a
revitalização da IIRSA (Iniciativa para a Integração de
Infraestrutura Sul-Americana), criada em 2000 e com viés
neoliberal e privatista, para projetos autônomos baseados no
COSIPLAN (Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e
Planejamento) no âmbito da Unasul; a criação do Conselho
Energético Sul-Americano (2007), visando a possibilidade de
cooperação energética com os países sul-americanos; a criação do
Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) da UNASUL (2009),
como iniciativa brasileira para uma agenda de defesa e segurança
sul-americana. Todos esses empreendimentos, em termos
geopolíticos do entorno estratégico brasileiro, buscam a
construção de uma força dissuasória para defender áreas
estratégicas, como a Amazônia, a Bacia do Prata e o Pré-sal, com
uma ênfase na soberania sobre recursos naturais e defesa diante de
ameaças interestatais, dentre outros múltiplos fatores.
Para além de uma simples retórica, o imperativo brasileiro
no entorno estratégico sul-americano busca ampliar os projetos de
integração regional a fim de que haja um uníssono convergente
nas interseções dos entornos estratégicos dos distintos países.
Como demonstram as experiências da primeira década de 2000,
haja vista a vital importância geopolítica e geoeconômica do Brasil
na região, tanto entorno estratégico brasileiro como integração
regional sul-americana são partes indivisíveis de um mesmo
projeto político.
141
Referências bibliográficas
FIORI, José Luis. O Brasil e seu ‘entorno estratégico’ na primeira década
do século XXI. 2013. Disponível em:
<http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-Brasil-e-seu-
'entorno-estrategico'-na-primeira-decada-do-seculo-
XXI/4/28080>. Acesso em: 24 maio 2013.
FREITAS, Jorge Manoel. A Escola Geopolítica Brasileira. Rio de
Janeiro: Blibiex, 2004.
[1] http://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/pnd.pdf
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/Decreto/D6703.htm
[3] http://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/lbdn.pdf
142
O papel do Brasil na integração regional latino-americana 34
A partir da primeira década do século XXI, o Brasil
começou a desenvolver uma estratégia de afirmação internacional
e expansão de sua presença em alguns tabuleiros geopolíticos,
buscando aumentar sua capacidade de defesa autônoma de suas
demandas internacionais. A projeção de poder e liderança
brasileira, fora de suas fronteiras nacionais, pode ser realizada
através da coerção, da cooperação e da sua capacidade de
transferir dinamismo econômico para sua zona de influência ou
seu entorno estratégico.
O redesenho da geometria econômica internacional
baseada nas mudanças econômicas na América Latina é um fato
novo e de enorme importância. Segundo Fiori (2007), a América
Latina será cada vez mais hierarquizada, e o futuro da América do
Sul, em particular, será cada vez mais dependente das escolhas e
decisões tomadas pelo Brasil. Logo, o país se encontra em uma
posição estratégica “to appraise leverage or pivotal impact in
international relationships. Certain countries are found in central
or middle positions and, thus, may enjoy certain advantages in
trade, resources access, and leadership” (KELLY, 1997, p.15).
A soma de todas as suas potencialidades faz com que o
Brasil se apresente como espaço primordial de promoção do
desenvolvimento da região, com maiores ganhos para os países
menos desenvolvidos. Seja pelo seu grande mercado, pelo seu
parque industrial, pelo seu potencial agrícola, ou somente pelo
grande espaço para a expansão do consumo, gerado simplesmente
pela melhoria da distribuição de renda; o fato é que um
crescimento constante por parte da economia de maior
desenvolvimento, quando complementado com uma busca pela
34 Publicado em 4 de julho de 2016.
143
maior integração regional, proporcionará um aumento das
importações desses parceiros, aumentando a demanda pela
produção desses países e, por conseqüência, seu interesse em
colaborar com uma estratégica geopolítica que priorize a
integração, diante dos desafios externos impostos pela economia
mundial. (COSTA, 2013, p.675-676)
Se o Brasil deseja mudar sua participação na distribuição
internacional de poder e riqueza, deve questionar a hierarquia
internacional e adotar estratégias de mudança do status quo,
ensejando uma maior participação da América Latina como um
novo pólo do sistema mundial. Logo, dado seu peso específico, é
de fundamental importância que o Brasil assuma o papel de
grande player regional e internacional, de motor da expansão
econômica (COSTA, 2013, p.675), de “país ballena[1]” (SOSA,
2013, p.137), de “Brazil as leader of integration” (KELLY, 1997,
p.179) pretendida na América Latina. Desta forma, deve cooperar
com os maiores e menores Estados da região, mas se fortalecendo
como centro polarizador e dinamizador, econômico e político.
Assim, o caminho para a inserção internacional do Brasil deve ser
compreendido a partir da integração e cooperação latino-
americana.
A integração regional torna-se elemento-chave desse
processo, capaz de afirmar na América Latina um importante
centro de acumulação internacional. A transição para a
multipolaridade e a emergência da China e do Leste Asiático como
principais eixos dinâmicos da economia mundial nas últimas
décadas indicam seu protagonismo na organização do sistema
mundial no século XXI. O crescente nível de coordenação que os
BRICS vêm assumindo em matéria de política internacional e a
inclusão de temas estratégicos em suas cúpulas anuais, como
alternativas monetárias ao dólar, democratização dos organismos
internacionais, apoio às soluções pacíficas e diplomáticas e a
redução das assimetrias do comércio internacional, sinalizam a
possibilidade de que se afirme a tendência à multipolaridade e de
que esta se desdobre em cooperação científico-tecnológica. Neste
sentido, poderá vir a impulsionar na América Latina um
144
importante centro de acumulação da economia mundial através de
destacada participação brasileira.
A integração regional é parte integrante e indivisível do
pilar que compõe a estratégia de inserção internacional, de
desenvolvimento e de política externa do Brasil. Assim, o país se
apresenta como centro polarizador e dinamizador da integração
latino-americana como:
1) ator indispensável para a construção de um diálogo
político internacional que contribui para a formação de outra
estrutura de governança global;
2) liderança na América Latina por sua influência política
e geoestratégica, além de possuir capacidades materiais,
organizacionais e doutrinárias para a formulação de um projeto
em conjunto com o seu entorno estratégico;
3) articulador do papel central nos processos de
integração e no seu aprofundamento e;
4) detentor de centros de crescimento industrial e de
inovação que podem engendrar resultados de importância regional
e internacional.
A característica central que atualmente distingue a
América Latina do resto do mundo é a desigualdade. A
expectativa é de um processo em que as diversas iniciativas se
tornem sinérgicas, ao mesmo tempo em que o enfrentamento da
desigualdade, a busca da desconstrução das assimetrias regionais, a
construção de uma identidade regional, a instauração de uma
complementaridade, cooperação e autodeterminação entre os
povos e as nações, a ampliação da participação de componentes
sociais e a projeção/inserção internacional mais soberana
representem um objetivo comum. Este é o papel central do Brasil
no desenvolvimento e na integração da América Latina.
145
Referências bibliográficas
COSTA, Darc. Do sonho do Mercosul à realização da Unasul. In:
GADELHA, Regina Maria A. F.. Mercosul a Unasul: avanços do
processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 661-682
FIORI, José Luís. O poder global e a nova geopolítica das nações. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
KELLY, Philip. Checkboards and Shatterbelts: The geopolitics of
South America. Austin: University Of Texas Press, 1997.
SOSA, Alberto J.. ¿Mercosur frente a la Unasur? In: GADELHA,
Regina Maria A. F.(Org.). Mercosul a Unasul: avanços do processo
de integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 119-149.
[1] “Según la terminologia del Itamaraty este tipo de países se
caracteriza por su gran dimensión geográfica, demográfica y
económica y por el hecho de que cuando se ponen en marcha
sacuden al sistema mundial.” (SOSA, 2013, p.137)
146
Os Brics e a volatilidade de um mundo profanado 35
A crise mundial do capitalismo de 2008, e ainda hoje em
curso, aprofundou o processo de desenvolvimento desigual,
reforçando o deslocamento da produção industrial do Ocidente
para o Oriente e a necessidade objetiva de uma nova ordem
internacional. Desde o estabelecimento do sistema internacional
de Estados nacionais, logo após a paz de Westfalia em 1648, as
mutações na ordem internacional eram medidas praticamente em
séculos. Atualmente, inúmeras transformações vêm sendo
registradas em apenas três décadas. Deste fato decorre a inédita
volatilidade e periculosidade da situação atual.
Os Estados Unidos estão enfrentando uma crise de
liderança nas relações políticas e econômicas com seus aliados e
adversários, mas isso não significa uma diminuição do seu poder
estrutural. A queda de seu poder relativo não deixará para segundo
plano o seu protagonismo no século XXI:
es más, en un informe especial elaborado
por el Pentágono se apunta que en los
próximos años Washington deberá
prepararse para vivir en un mundo
mucho más hostil y competitivo, e que
tendrá que lidiar con cinco categorías de
actores nacionales: amigos, aliados,
competidores, adversarios y enemigos,
todos ellos midiendo sus fuerzas en la
arena internacional. (BORON, 2013,
p.52)
35 Publicado em 12 de novembro de 2014.
147
Assim, no início do século XXI, a ascensão dos países
emergentes que não estão no centro de gravidade da antiga ordem
econômica mundial implica no estabelecimento de um mundo
multipolar, no qual o surgimento dos BRICS é um movimento de
subversão estratégica da ordem estabelecida, a médio e longo
prazo. Assim, ao lado do crescimento das relações econômicas e
do modo com que o primeiro mundo vem enfrentando a crise, a
necessidade de transição a uma nova ordem mundial explica e
justifica a unidade dos BRICS.
Os cinco países membros dos BRICS – Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul – possuem uma área correspondente
a mais de um quarto da superfície terrestre, tendo quatro dos dez
maiores países do mundo; 41% da população mundial, sendo a
China e a Índia os países mais populosos; 27% do PIB/PCC
global (2014), com economias emergentes em ascensão e tomando
lugar de antigas potências econômicas; seu crescimento do PIB,
impulsionado pela China, corresponde a média global e um novo
pólo dinamizador de crescimento.
Entretanto, vale ressaltar que esse crescimento
econômico, em grande parte, não tem sido acompanhado de
melhorias sociais na mesma velocidade, em que seus PIB’s per
capita ainda são baixos, apesar de acima da média global; seus
IDH’s estão abaixo da média global e demonstram pouca
evolução ao longo dos anos; e o GINI está acima da média global,
o que demonstra uma relativa concentração de riqueza a partir
desse crescimento econômico dos Brics.[1]
Da mesma forma, entre os anos de 1970-2014, podem-se
perceber cinco características fundamentais acerca do rearranjo
institucional global: 1) a ascensão econômica exponencial dos
Estados Unidos a partir de 1970 e, principalmente, nos anos 1990,
com o processo de liberalização e desregulamentação econômica
no âmbito da globalização e do neoliberalismo, onde tal
crescimento e distanciamento ainda se faz presente, sobretudo se
comparado aos demais países; 2) o “desenvolvimento à convite”
das demais potências globais no século XX, alinhadas com o
148
crescimento dos Estados Unidos, em que o Japão apresenta um
crescimento exponencial entre 1975-1995, e a Alemanha entre
1985-1995; 3) o aumento acelerado do PIB de todos os países dos
BRICS, principalmente na virada do século XXI, com altas taxas
de crescimento consecutivas até a crise de 2008, mas retomado
seu crescimento econômico nos anos seguintes; 4) a discrepância
entre o “líder do grupo” e os demais países, tanto nos BRICS, no
caso da China, como entre os países desenvolvidos, com os
Estados Unidos, ambos correspondendo a mais da metade dos
PIB’s agregados dos demais países; 5) ainda que com dois pólos
de poder econômicos muito mais elevados, constata-se a ascensão
de um mundo multipolar, numa nova ordem internacional
composta por velhas e novas potências econômicas.[2]
Ainda, a relação desde 1970 entre o somatório do PIB
entre os Brics e das três maiores potências no final do século XX
(Estados Unidos, Japão e Alemanha) possui dois pontos distintos:
o primeiro, em que a maior distância entre o somatório dos PIB’s
entre os dois grupos foi constatada no ano de 1995, com uma
relação G3/BRICS de 6,44, enquanto que a menor relação foi,
justamente, no último ano da série, 2013, com uma relação
G3/BRICS de 1,60.
Assim, constata-se que a mudança nas relações
econômicas entre a Ásia, a África e a América Latina é um fato
novo e de enorme importância para o redesenho da geometria
econômica internacional. Pela primeira vez na história do sistema
mundial, as relações entre países emergentes adquirem uma
intensidade e dinamismo direto e expressivo. “Além disto, o
crescimento da economia mundial e desses fluxos e conexões
econômicas aumentam a ‘pressão competitiva’ sobre esses
continentes e sobre seus principais países, envolvendo-os de
forma definitiva no sistema interestatal capitalista.” (FIORI, 2008,
p.60)
A crise é um momento de dificuldades, mas também de
transformação, de novas oportunidades; é o tempo histórico de
apagar incêndios e de construir novas estratégias. Uma das saídas
149
apresentadas para um enfrentamento eficiente da questão é o
reforço da integração e cooperação Sul-Sul. De acordo com Marx
(2010, p.43), “tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar,
tudo o que era sagrado é profanado.”
Desta forma, os BRICS no século XXI possuem a
capacidade e a necessidade de profanar os ares instaurados pela
crescente volatilidade da economia mundial, ocupando uma
posição similar na ordem mundial em transição a fim de
consolidar sua posição rumo à multipolaridade, a uma reforma
multilateral de “governança”, reivindicando mudanças nas regras
da “gestão” do sistema mundial e na sua distribuição hierárquica e
desigual de poder e riqueza.
Referências bibliográficas:
BORON, Atilio. América Latina en la geopolítica del
imperialismo. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2013.
FIORI, José Luís. O sistema interestatal capitalista no início do
século XXI. In: FIORI, José Luís; SERRANO, Franklin;
MEDEIROS, Carlos Aguiar de. O mito do colapso do poder
americano. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 11-70.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo:
Boitempo, 2010.
[1] Fonte: CIA World Factbook, Human Development Report
(United Nations), Banco Mundial.
[2] Fonte: Banco Mundial.
150
MERCOSUL: 25 anos de avanços e desafios 36
O MERCOSUL é uma organização intergovernamental
estabelecida a partir do Tratado de Assunção, em 1991. No dia 26
de março de 2016, o bloco celebrou 25 anos. Durante esse
período, mudanças ocorreram tanto nos objetivos e na
configuração do bloco, como no alinhamento das políticas
realizadas pelos governos. Atualmente com 5 países membros, a
união aduaneira constituída de uma aliança comercial visando
dinamizar a economia regional é oriunda dos programas bilaterais,
de 1986, entre Brasil e Argentina, que possuíam características de
integração tanto econômicas como políticas.
Com um território que responde por 71,8% (12.789.558
km²) do território da América do Sul (cerca de 3 vezes a área da
União Europeia), 275 milhões de habitantes (69,78% da
população da América do Sul), com PIB nominal de US$ 3,2
trilhões em 2016 (que ocuparia a posição de quinta economia
mundial se fosse considerado como um único país), o
MERCOSUL possui um comércio interno que se multiplicou por
mais de 12 vezes em duas décadas, saltando de US$ 4,5 bilhões
(1991) para US$ 59,4 bilhões (2013).
Ainda, o bloco constituiu-se como um potência agrícola
(o maior exportador líquido mundial de açúcar, o maior produtor
e exportador mundial de soja, 1º produtor e 2º maior exportador
mundial de carne bovina) e energética (detém 19,6% das reservas
provadas de petróleo do mundo, 3,1% das reservas de gás natural
e 16% das reservas de gás recuperáveis de xisto), transformando-
se ao longo dos anos num dos principais pólos econômicos do
mundo.[1]
36 Publicado em 30 de março de 2016.
151
Principalmente na segunda metade de sua existência, ao
contrário das expectativas de um bloco estritamente comercial –
onde, nos marcos da busca de um mercado comum, "sua
integração começou com um bem-sucedido programa de
liberalização comercial para estabelecer uma zona de livre-
comércio” (LARRAÑAGA, 2013, p.548) –, as principais
conquistas do MERCOSUL residem atualmente mais no campo
político do que no campo comercial. Ainda, o bloco faz parte de
uma narrativa que pressupões não apenas a coexistência pacífica
entre seus países, mais na importância da cooperação entre eles,
uma solidariedade regional que "gerou um processo de integração
de identidades compatíveis entre os membros do bloco."
(OLIVEIRA; CRESTANI, 2014, p.253).
Entretanto, muitos dos desafios do MERCOSUL podem
ser visualizados desde a assinatura de seu tratado em 1991. A
dificuldade de definir a Tarifa Externa Comum (TEC) e negociar
setores sensíveis para apoio; indefinição quanto às negociações
dos regimes especiais e regime de salvaguardas; a complexidade de
adaptação e fortalecimento da estrutura institucional; a não
especificação de uma ordem jurídica regional e o cumprimento
dos regulamentos; são todos elementos que dificultam uma
atuação mais incisiva do bloco, sem contar as assimetrias entre os
países do grupo, tanto econômico-sociais como representativas,
no qual deve-se, inclusive, buscar diminuir o déficit democrático
que há no MERCOSUL[2].
Como afirma Gadelha (2013, p.398), alguns problemas
estruturais seriam:
i) o intenso grau de pobreza da região; ii)
as assimetrias econômicas existentes
entre os países-membros e associados do
Bloco; iii) a necessidade de fazer avançar
o processo de construção de
infraestrutura, imprescindível para
ampliar o comércio da região; iv) o
152
envolver das democracias dos países-
membros. (GADELHA, 2013, p.398)
São inegáveis os desafios e a necessidade de constante
adaptabilidade do MERCOSUL num ambiente internacional
altamente dinâmico e competitivo. Ainda assim, não se podem
negar suas conquistas comerciais – principalmente nos primeiros
anos do bloco –, assim como suas conquistas políticas. Num
momento de profunda crise política e econômica de seu maior
sócio, a prerrogativa dos demais membros de utilização da
cláusula democrática, caso haja uma quebra do compromisso
democrático por parte do Brasil, coloca o futuro do próprio bloco
em questão.
A possibilidade do fim do MERCOSUL seria uma derrota
considerável tanto em termos comerciais quanto políticos. Dessa
forma, como concertação política, o Mercado Comum do Sul
deve transpor seus obstáculos, se reinventar, realizar uma
"estratégia de aprofundamento", ou seja, promover a transição de
uma união aduaneira para uma comunidade econômica através da
adoção de políticas comuns setoriais (indústria, agricultura,
previdência, trabalho, comércio exterior) e macroeconômicas
(fiscal, monetária, cambial) (GUIMARÃES, 2002, p.128), e uma
"estratégia de expansão" de suas fronteiras para a América do Sul.
Como afirmam Oliveira e Crestani (2014, p.251-252), "o
MERCOSUL deve ser considerado um projeto que tem como
objetivo a redefinição da estratégia de desenvolvimento em um
momento em que se define a conjuntura internacional", tendo
sempre em consideração uma melhor forma de integração
autônoma na nova arquitetura financeira e comercial nas relações
internacionais.
153
Referências bibliográficas
GADELHA, Regina Maria A. F. Mercosul e Alba: caminhos da
integração da América Latina. In: GADELHA, Regina Maria A. F.
(Org.). Mercosul a Unasul - avanços do processo de integração. São Paulo:
Educ, 2013. p. 395-417
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. 4. ed.
Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. da UFRGS/Contraponto, 2002.
LARRAÑAGA, Félix Alfredo. Mercosul: o desafio logístico 20
anos depois. In: GADELHA, Regina Maria A. F.. Mercosul a
Unasul - avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p.
543-571
OLIVEIRA, Nilton Marques de; CRESTANI, Leandro de Araújo.
MERCOSUL: comércio, crise e indicadores socioeconômicos. In:
SCHNEIDER, Mirian Beatriz (Org.). A Inserção Internacional do
AgronegócIo BrasIleIro no Pós crise: A atuação da OMC, barreiras e
PolítIcas comerciais. Curitiba: Ledze, 2014. p. 247-273.
[1] http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-
mercosul#DADOSGERAIS
[2] http://br.sputniknews.com/opiniao/20160324/3918283/Mer
cosul-25-anos-muitos-desafios.html
154
O coração continental do MERCOSUL 37
Em julho de 2015, os países-membros do MERCOSUL
assinaram um novo protocolo com o objetivo de incluir a Bolívia
no bloco, ficando pendente somente a aprovação por parte dos
respectivos poderes legislativos de Brasil e Paraguai (os
parlamentos de Argentina, Uruguai e Venezuela votaram e
aprovaram a inclusão da Bolívia no MERCOSUL).
Diversos trabalhos foram realizados reafirmando a
importância estratégica do território boliviano para a América do
Sul. O general brasileiro Golbery do Couto e Silva
(RODRIGUES, 2014) apresentou a ideia de que na configuração
geopolítica da América do Sul existiam cinco áreas continentais,
onde a Bolívia consistia a “área geopolítica continental de
soldadura”. Já o general Pinochet (RODRIGUES, 2014), bastante
influenciado pelas ideias de Golbery, descreve a região não como
uma área que implicaria num isolamento da América do Sul, e sim
como um espaço de atração, podendo ser comparado a um imã
que agregaria as peças do conjunto, uma espécie de “campo
magnético” dos demais países sul-americanos.
Ainda, o conceito de “Heartland sul-americano” foi
proposto por Lewis Tambs, adaptando a ideia de Mackinder do
“coração continental” euroasiático para a situação da América do
Sul (RODRIGUES, 2014). Inclusive, constata-se a sua
importância histórica na região, como na extração de prata de
Cerro Rico, ou para a atualidade, sendo o território em que se
unem as vertentes do Oceano Pacífico e do Oceano Atlântico e
que se tocam as duas principais bacias hidrográficas da região, a
Bacia Amazônica e a Bacia do Prata. A Bolívia seria, portanto, o
37 Publicado em 27 de julho de 2015.
155
único país da América do Sul a ocupar simultaneamente ou
exercer projeção sobre todos esses quatro espaços.
A constatação é de que a Bolívia possui um enorme
potencial no processo de integração física regional, exercendo o
papel de plataforma de interligação do comércio regional e
bioceânico. Na América do Sul, este país andino consiste no
“gargalo estratégico”, por onde passam cinco dos doze Eixos de
Integração e Desenvolvimento da IIRSA, um projeto multisetorial
que pretende desenvolver e integrar as infraestrutras de
transporte, energia e telecomunicações na região[1]. Dentre eles,
pode-se citar o potencial hidroelétrico, sendo o principal no rio
Madeira em conjunto com o Brasil.
Em termos econômicos, a Bolívia possui uma das maiores
taxas de crescimento econômico da América do Sul, com o
crescimento consecutivo do PIB acima dos 4% desde 2005 (com
exceção de 2009, devido a crise global). Em grande parte, esse
crescimento se deve a nacionalização do gás boliviano, cuja
reserva é a segunda maior da América do Sul e impulsiona a
economia nacional. Em termos regionais, o Gasoduto Brasil-
Bolívia (GASBOL) é o mais importante da região, com 3.150
quilômetros de extensão e que abastece grande parte do coração
industrial do Brasil, o estado de São Paulo.
Ainda, a Bolívia possui 34% das reservas mundiais de lítio
(apesar de esse número sofrer algumas contestações e variar a
partir das metodologias e parâmetros contábeis, de acordo com as
empresas ou agências que realizam as prospecções), que se
encontram no Salar de Uyuni. O lítio é o mineral utilizado nas
baterias de celulares, televisores LCD, em tratamentos médicos,
além dos carros elétricos e híbridos, que podem vir a substituir os
carros convencionais, altamente poluentes e dependentes do
petróleo.
Somente com esses dois recursos naturais, abre-se uma
janela de oportunidades na região com a finalidade de
implementar uma complementaridade de cadeias produtivas, a
156
partir de uma política regional de industrialização, determinando
quais setores produtivos do MERCOSUL poderiam adquirir
competitividade internacional, transformando-os em setores de
interesse coletivo de todos os países que conformem a área de
integração, apropriando-se da pesquisa científica e tecnológica em
relação ao mineral e desenvolvendo todo o seu ciclo, desde sua
exploração ao desenvolvimento industrial local, logrando uma
indústria com alto valor agregado.
Em termos políticos, a estratégia do MERCOSUL se
pauta em duas prerrogativas: a de alargamento de seus membros,
um processo de expansão, no qual a inclusão da Bolívia consiste
na superação de mais uma etapa; e a de aprofundamento, no
intuito de “promover a transição de uma união aduaneira para
uma comunidade econômica através da adoção de políticas
comuns setoriais (indústria, agricultura, previdência, trabalho,
comércio exterior) e macroeconômicas (fiscal, monetária,
cambial).” (GUIMARÃES, 2002) Além disso, busca-se agregar
novas temáticas político-sociais ao bloco, como o Parlamento do
MERCOSUL[2], o Programa MERCOSUL Social e Solidário[3], o
Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL
(FOCEM)[4], dentre outros.
Com a tentativa de implementar uma nova visão ao
MERCOSUL, busca-se levar em consideração o intenso grau de
pobreza da região, as assimetrias econômicas existentes entre os
países-membros e associados do bloco, e a necessidade de fazer
avançar o processo de construção de infraestrutura, de
interconexão econômica e de concertação política.
Em poucas palavras, não há presença internacional sem
pertencer a um bloco, não há bloco regional sul-americano sem o
MERCOSUL, e tampouco há a possibilidade da UNASUL sem o
MERCOSUL como base de sustentação[5]. O ingresso da Bolívia
no bloco, o coração continental sul-americano, é importante para
dar novo fôlego à integração regional, além de ampliar o mercado,
a integração energética e os projetos de infraestrutura regional.
157
A bússola paradigmática sócio-econômica sul-americana,
assim como a bússola convencional, possui uma agulha
magnetizada que aponta sempre para o norte, ainda que muitos
pensadores apontem que “nuestro norte es el sur”. A entrada da
Bolívia no Mercosul é mais um sinal dessa reorientação que
inverte a histórica relação centro-periferia e privilegia o
fortalecimento do entorno estratégico e da integração regional.
Referências bibliográficas
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. 4. ed.
Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. da UFRGS/Contraponto, 2002.
RODRIGUES, Bernardo Salgado. O heartland sul-americano - a
importância geopolítica da Bolívia para a América do Sul.
Oikos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p.39-55, 2014.
[1] http://www.iirsa.org/
[2] http://www.parlamentodelmercosur.org/
[3] http://www.mercosursocialsolidario.org/index.php/pt/
[4] http://www.mercosul.gov.br/index.php/fundo-para-a-
convergencia-estrutural-do-mercosul-focem
[5] http://www.telesurtv.net/opinion/El-gran-aporte-de-Bolivia-
al-Mercosur--20150719-0019.html
158
A importância da Venezuela para o MERCOSUL 38
No dia 18/06/2015, um grupo de senadores brasileiros
foi à Venezuela, a princípio, para realizar uma visita a supostos
presos políticos de oposição ao presidente Nicolás Maduro. Os
parlamentares tiveram dificuldades para deixar o aeroporto e
foram cercados por manifestantes em Caracas, não conseguindo
realizar sua “missão” inicial.
Apesar das inúmeras ressalvas e críticas construtivas que
se possa realizar do governo Maduro na Venezuela, é relevante
analisar que, diferentemente dos preceitos da diplomacia brasileira
– que segue a tradicional postura de não-intervenção em assuntos
internos de outros países –, e desconsiderando a anormalidade do
fato de um grupo de senadores viajarem a outro país para
supostamente defender a democracia, o ato foi uma provocação
diplomática e política, cujo objetivo maior começa a ser
apresentado ao público: a exclusão da Venezuela do
MERCOSUL, alegando que o país vizinho não cumpre a cláusula
democrática, que afirma o compromisso do bloco com a
democracia. Assim que, o objetivo desse breve texto é analisar a
importância da Venezuela para o bloco, para o Brasil e para a
integração regional sul-americana.
A integração latino-americana não é somente uma política
do Governo brasileiro; ela está presente no artigo 4 da
Constituição de 1988 e constitui, portanto, um dos princípios do
seu Estado nas relações internacionais. Desde o Tratado de
Assunção, em 1991, a opção da integração sul-americana pelo
MERCOSUL foi constituída a fim de dinamizar a economia
regional a partir de uma política comercial. A despeito dos
contratempos e dificuldades que surgem em qualquer iniciativa de
38 Publicado em 22 de junho de 2015.
159
integração, seu aprofundamento e alargamento devem ser
concomitantemente considerados.
A importância da Venezuela para o MERCOSUL se
justifica em múltiplos termos. Com o ingresso do país caribenho,
o PIB do MERCOSUL passa a somar cerca de US$2,3 trilhões
(2015), alcançando 80% do total da América do Sul; (SEVERO,
2013, p.584) em termos comerciais, a estimativa é que aumente o
comércio intrabloco em cerca de 20% (SEVERO, 2013, p.597);
em termos populacionais, os países-membros aumentam para 272
milhões, 70% do total da região. (SEVERO, 2013, p.584)
O bloco se estabelece como um dos mais importantes
produtores mundiais de energia, uma vez que a Venezuela possui
90% das reservas de petróleo da América do Sul, 24,7% das
reservas da OPEP[1] e 17,7% das reservas mundiais[2].
As políticas sociais venezuelanas, como a Gran Misión
Vivienda[3], Mi Casa Bien Equipada[4], Barrio Adentro[5], dentre
outros, podem servir de exemplo para os demais países, uma vez
que ajudaram a diminuir o coeficiente Gini venezuelano de 0,498,
em 1999, para 0,41, em 2012, e reduzindo o índice das pessoas
que vivem abaixo da linha de pobreza de 62,1%, em 2003, para
31,9% em 2011[6].
Em termos geográficos, o país tem uma localização
especial, mais inserida nos fluxos internacionais do comércio do
Hemisfério Norte (SEVERO, 2013, p.584), além de ensejar a
integração entre a Bacia Amazônica e a Bacia do Orinoco,
interligando-as aos demais centros econômicos e políticos da
América do Sul, o que “possibilitaria o desenvolvimento e a
articulação produtiva e comercial à região sul-americana mais
carente em energia, transporte e comunicação, e com enorme
potencial de desenvolvimento no longo prazo.” (FIORI,
PADULA, VATER; 2012).
Para o Brasil em particular, a importância da entrada da
Venezuela se transmite claramente em termos comerciais. Entre
160
2000 e 2014, a balança comercial corrente entre os países teve um
crescimento total de 179,07%, com crescimento médio anual de
7,08%, saindo de 2.080.578.145 para 5.806.257.483 de
dólares[7]. Além disso, grande parte dos Estados brasileiros,
limítrofes ou geograficamente próximos a Venezuela, declararam
seu apoio à entrada venezuelana, uma vez que as relações diretas
com o país vizinho “geram impactos tanto para a realidade
nacional, quanto para a estadual e a local.” (KLEIMANN, 2010,
p.87)
O fato de não constituir uma democracia (liberal), como
alegaram os senadores brasileiros a fim de justificar a saída da
Venezuela do MERCOSUL, não é o equivalente proporcional a
um Estado não democrático; ao contrário, assegura o direito
internacional de autodeterminação dos povos, de construírem seu
autogoverno sem intervenções externas, e determinando seu
status político, inclusive, ratificado pelo Plebiscito Constitucional
na Venezuela, em 2007.
O principal objetivo da integração sul-americana é o de
promover o desenvolvimento econômico conjunto desses países;
ratifica-se o termo conjunto, porque o Brasil não pode ser um país
próspero em meio a um conjunto de países miseráveis ou, como
coloca Guimarães (2010, p.19), “o Brasil não terá possibilidade de
ter o desenvolvimento econômico, político e social de longo
prazo, se for cercado por países com grandes dificuldades
econômicas, políticas e sociais.”
Assim, a Venezuela não consiste num dos problemas do
MERCOSUL, e sim no elemento agregador para a solução dos
mesmos. Antes de pleitearem a exclusão do mais novo membro
ao bloco, os senadores poderiam avaliar os verdadeiros problemas
do MERCOSUL – não negando seus avanços –, como: as
assimetrias entre os países do grupo, tanto econômico-sociais
como representativas; o intenso grau de pobreza, desigualdade e
concentração de renda; a necessidade de fazer avançar o processo
de construção de infraestrutura, imprescindível para ampliar o
comércio da região; o fortalecimento da estrutura jurídico-
161
institucional, assim como sua concertação política, um pacto para
a preservação do respaldo das instituições e sua vitalidade; maior
publicização, demonstrando as suas conquistas públicas; maior
promoção e cooperação em termos sociais e culturais entre os
Estados. Essas seriam as verdadeiras demandas que ensejariam a
construção da solidariedade crítica em instrumento de luta no
MERCOSUL.
Referências bibliográficas
FIORI, José Luís (coordenador), PADULA, Raphael, VATER,
Maria Claudia. A projeção do Brasil na América do Sul e na Africa
Subsaariana. Relatório de pesquisa para o CGEE, 15 de dezembro
de 2012.
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Uma política externa para
enfrentar as vulnerabilidades e disparidades. In: JAKOBSEN,
Kjeld (Org.). A nova política externa. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2010. p. 13-24
KLEIMANN, Alberto. A ação internacional dos governos locais e
a cooperação federativa. In: JAKOBSEN, Kjeld (Org.). A nova
política externa. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010.
p. 79-95.
SEVERO, Luciano Wexell. A importância estratégica da
Venezuela no Mercosul. In: GADELHA, Regina Maria A.
F. Mercosul a Unasul - avanços do processo de integração. São
Paulo: Educ, 2013. p. 573-606
[1] http://www.opec.org/opec_web/en/data_graphs/330.htm
162
[2] Fonte: BP statistical review of world energy, 2014
[3] http://www.granmisionviviendavenezuela.gob.ve/
[4] http://www.bancodevenezuela.com/?bdv=link_personas&id=
681
[5] http://www.fmba.gob.ve/
[6] http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-
noticias/2013/03/17/politica-social-do-governo-chavez-tem-
casa-de-graca-e-pagamento-de-cirurgias.htm
[7] Fonte: AliceWeb
163
Por uma discussão do Banco do Sul, o “Banco dos BRICS
latino-americano” 39
Em julho de 2014, na VI Cúpula dos Brics, foi
estabelecida a criação de um acordo de cooperação financeira e
monetária com impactos no redesenho estratégico das finanças
globais, com o surgimento de um fundo de estabilização e um
banco de desenvolvimento. Ambos são expressão da assimetria e
do déficit democrático na governança mundial, em que os países
dos BRICS demandam a democratização da arquitetura financeira
internacional e a reforma das instituições oriundas de Bretton
Woods, visando tornar realidade seus anseios de uma ordem
internacional mais inclusiva, democrática e multilateral, assim
como na construção de um novo pólo de liderança global.
Uma rota semelhante tem o Banco do Sul no contexto
latino-americano, podendo ser atualmente – ainda que surgido
anteriormente – considerado um "Banco dos BRICS latino-
americano". Criado em 2007, é composto por um fundo
monetário e uma organização financeira da UNASUL, destinado a
promover o desenvolvimento com o objetivo de conceder
empréstimos e recursos para os países da América Latina, cujos
eixos principais são voltados para a criação de programas sociais e
de infraestrutura.
O Banco conta com uma reserva inicial de US$10 bilhões
e um total de capital global autorizado de US$20 bilhões, onde
este aporte primário se divide em grupos de países: o primeiro,
Argentina, Brasil e Venezuela, com um capital de US$ 2 bilhões
cada; o segundo, com Uruguai e Equador, com US$400 milhões
cada; o terceiro, com Paraguai e Bolívia, com US$100 milhões
cada; e os 3 bilhões restantes seriam obtidos através de
39 Publicado em 1 de outubro de 2014.
164
contribuições de US$970 milhões do Chile, Colômbia e Peru, e
US$45 milhões da Guiana e Suriname. (SEVERO, 2011, P.342)
Apesar das diferenças de aportes iniciais, há uma
flexibilidade maior para os países de menor desenvolvimento, em
que se propõe que a cota de crédito não seja proporcional ao
aporte de capital, de forma a apoiar um processo de redução das
assimetrias. Assim,
[...] la diferencia del FMI o el Banco
Mundial cuyo modo de funcionamiento y
toma de decisiones es a través del voto
ponderado (siendo las potencias
mundiales las mayores tenedoras de
votos), la nueva institución financiera de
América del Sur (…) busca mantener una
representación igualitaria para cada uno
de los socios que la integran y funcionar
bajo un sistema democrático.
(VALENCIA; RUVALCABA, 2013,
p.101)
Logo, a importância da operacionalização do Banco do
Sul seria como um primeiro pilar de transformação dos bancos de
desenvolvimento para financiar prioridades das soberanias
continentais. Os que se situam a favor do banco constatam que
[...] gran parte de las reservas
internacionales de los países
sudamericanos está depositada en bancos
europeos o de Estados Unidos. Teniendo
en cuenta el carácter de la nueva
institución en beneficio de los países de
la región, una de las propuestas es que el
banco concentre parte de estos recursos
y los utilice para el desarrollo de América
del Sur.(SEVERO, 2011, p.342)
165
Portanto, o banco demonstra um esforço de cooperação
entre os países para superar um problema histórico de suas
economias: o financiamento de longo prazo. Ele também inclui a
ideia de um fundo de estabilização, um importante instrumento
para a defesa de ataques especulativos de capital e de crises
internacionais.
Entretanto, Biancareli (apud SEVERO, 2011, p.344)
apresenta três questionamentos em relação ao Banco do Sul, que
merecem destaque nas discussões futuras: o formato institucional
e os poderes de voto e veto; a capilaridade e institucionalização
para os financiamentos e repasse de recursos em condições de
prazo e de custos determinadas; e a função que pode
desempenhar na formação de um mercado regional de títulos da
dívida.
Atualmente, um dos maiores empecilhos para a plena
instrumentalização do Banco na região advém do Congresso
brasileiro. Para que comece a operar, é necessário que o
Congresso de cada país-membro aprove seu estatuto. Até 2011,
apenas os legisladores venezuelanos, bolivianos, equatorianos e
argentinos votaram favoravelmente à proposta. Constata-se que
qualquer projeto de Banco do Sul passa por uma posição de
compromisso pelo Brasil, devido a sua importância e peso na
região. O Brasil retira o apoio na articulação da formação do
Banco do Sul a partir do momento que limita os recursos para a
sua formação.
Para alguns estudiosos, o Brasil parece cético em relação a
uma efetiva integração, prevalecendo a ilusão de que o Brasil se
viabiliza sozinho. Muitas vezes, a integração tem sido usada como
justificativa para a expansão das grandes empresas privadas de
capital brasileiro com base em vultosos financiamentos do
BNDES. Assim, acaba sendo instaurado um conceito dominante
de que “a integração significa expansão e domínio de novos
mercados e nada mais.” (FATTORELLI, 2012, p.71)
166
Vale frisar que a proposta inicial da instituição “busca
converter o Banco do Sul no coração, centro de um esforço para
transformar a constelação já existente de instituições de
desenvolvimentos nacionais, subnacionais e supranacionais (como
BID e BIRD)” (PAEZ, 2007, p.13). Ou seja, atuando no âmbito
da complementaridade ao invés da competição. Assim, o BNDES
se configuraria como banco do desenvolvimento brasileiro,
enquanto que o Banco do Sul como banco do desenvolvimento e
integração sul-americano.
Neste contexto, o Banco do Sul emerge como um
instrumento financeiro aos países da América do Sul visando a
unificação de suas nações, tentando construir uma nova
arquitetura financeira regional que não reproduza os mecanismos
institucionais que perpetuem a dependência, mas que contribuam
para a liberdade, soberania e independência das economias
regionais. Como afirmam Valencia e Ruvalcaba (2013, p.102),
“esta nueva institución financiera podría consolidarse como el
principal órgano de financiamiento para la integración económica
y social de la Unasur.”
Em suma, a partir do momento em que a criação do
Banco dos BRICS foi tida como grande vitória da política externa
brasileira, a retomada da discussão do Banco do Sul e o reforço da
integração e cooperação Sul-Sul devem ser estimulados a fim de
que a América Latina se torne um novo pólo de poder mundial,
pautado na redução das desigualdades, na inclusão social e na
elaboração de uma nova arquitetura financeira para o benefício
dos povos, e não do grande capital.
Referências bibliográficas
FATTORELLI, Maria Lucia (org.). Alternativas de enfrentamento à
crise. Brasília: Inove Editora, 2012.
167
PAEZ, Pedro. Por um banco de um novo tipo. Jornal dos
Economistas. Rio de Janeiro, p. 11-13. nov. 2007. Disponível em:
<http://www.corecon-rj.org.br/pdf/je_novembro_2007.pdf>.
Acesso em: 25 jul. 2014
SEVERO, Luciano Wexell. Mecanismos regionales para el
financiamiento de la integración de América del Sur. In: COSTA,
Darc (Org.). América del Sur: Integración e infraestructura. Rio de
Janeiro: Capax Dei, 2011. p. 289-347
VALENCIA, Alberto Rocha; RUVALCABA, Daniel Efrén
Morales. Desafíos en la construcción de la Unión de Naciones de
Suramérica. In: GADELHA, Regina Maria A. F. (Org.). Mercosul a
Unasul - avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p.
69-117
168
Integração regional em tempos de crise: desafios políticos e
dilemas teóricos 40 41
Em tempos de crise, repensar a integração no atual
contexto é o objetivo dos países sul-americanos que buscam
autonomia político-econômica e projeção de poder no sistema
internacional. Os ensinamentos progressistas da década de 2000,
como a ALBA, a UNASUL, a CELAC, servem de base para a
reconstrução da integração regional contemporânea − ainda que
passíveis de críticas − , que vem sendo lapidados a passos largos
na atual conjuntura política regional com o retorno das políticas
liberais.
Esse novo ciclo conservador, de alinhamento aos países
desenvolvidos em detrimentos dos fluxos regionais, intensifica as
convergências e divergências políticas nos processos
contemporâneos de integração na América Latina. A década de
2010 vem sendo marcada como um período de crises políticas e
ascensão de governos liberais, colocando-se em questionamento
os modelos de integração dos anos 2000.
Tal mudança política reflete as disputas no interior dos
Estados, no interior dos blocos comerciais e das instituições
políticas supranacionais, e abrange um modelo de propostas
integracionistas que privilegia tratados de livre comércio e/ou
bilaterais que, ao verificar a posição dos países sul-americanos na
hierarquia internacional de poder, somente tende a reforçar o
ônus e prejuízo econômico, político e social dos mesmos.
40 Publicado em 15 de janeiro de 2018.
41 O presente texto é fruto dos debates realizados no XVI Congresso
Internacional FOMERCO (Fórum Universitário Mercosul), realizado em
Salvador, sede da UFBA, nos dias 27, 28 e 29 de Setembro de 2017.
169
Há um domínio total de interesses nos aparelhos do
Estado, uma dependência econômica (primário-exportadores),
política (dominantes-dominados), ideológica (Consenso de
Washington) e teórica (colonização do pensamento), que
influenciam negativamente projetos de integração autônomos e
soberanos. Não é uma crise, como rotineiramente é proposto, e
sim um programa, com a tentativa de consolidação de um modelo
político-econômico, que já se mostrou fracassado no passado e
gera crise social exponencial no presente.
Desta forma, ao refletir sobre os desafios da Integração
Regional enquanto campo de estudos interdisciplinar em
construção, visualiza-se três projetos de integração na América
Latina, um embate histórico com influências e projetos distintos.
O primeiro pode ser denominado de "Integração
hemisférica" ou "Integração monroniana". Influenciado pela
Doutrina Monroe (1823), que "estabeleceu como principio a
conhecida fórmula de 'América para os americanos', o que
realmente significa para os (norte) americanos, porque servia a
seus interesses[1]" (BORON, 2013, p.64), os Estados Unidos
assentavam suas reais pretensões no hemisfério ocidental contra
as pretensões hegemônicas das potências européias, ratificando o
início da sua projeção de poder em sua área de influência direta, a
América Latina.
Assim, coube a América Latina ser a destinatária da
primeira doutrina de política externa elaborada pelos
estadunidenses, que significaria, antes de tudo, “uma autêntica
autoproclamação de ‘direitos naturais’ de uma ‘jovem potência’
que emergia do outro lado do Atlântico, para o livre exercício de
sua política de expansão nesta parte do globo.” (COSTA, 1992,
p.66)
Atualmente, influenciados por essa Doutrina, consiste em
projetos de integração hemisféricos (tais como a ALCA e TPP),
assim como acordos bilaterais que são, em sua essência,
semelhantes para todos os países latino-americanos e sem espaço
170
para discussão devido a assimetria de poder de persuasão,
beneficiando o capital estrangeiro e empresas transnacionais
estadunidenses. Assim, o objetivo principal dos Estados Unidos
vem consistindo na vigilância latino-americana preventiva, de
controle hemisférico unilateral, mantendo o domínio
geoestratégico a fim de deter potências competidoras regionais
através de mecanismos políticos, militares e econômicos na
promoção de uma pretensa paz, democracia e livres mercados.
O segundo projeto seria uma "Integração balcanizada",
com características de fragmentação, influenciada pela colonização
e pelos laços com as antigas metrópoles. Diferentemente da
América Portuguesa, que após a independência se tornou um
único país, a América Espanhola se fragmentou em distintos
países, devido, entre outros motivos, a falta de ligações diretas das
regiões entre si e ao controle que as elites crioulas e locais
assumiram nas lutas pela independência.
Uma vez que as relações econômicas das colônias eram
realizadas diretamente com as metrópoles (devido ao isolamento
geográfico e político entre as diversas regiões do império
espanhol), esses fluxos eram mais intensos do que entre os centros
administrativos (futuras capitais dos países independentes) entre
si. A independência espanhola realizou o rompimento das relações
entre colônias e metrópole, mas conservou estruturas sociais
herdadas do antigo sistema colonial. Além disso, a independência
política não se transformou em independência econômica,
impondo a dependência econômica latino-americana às grandes
potências capitalistas do século XIX, principalmente Inglaterra e
Estados Unidos, que intensificavam projetos de desunião e
fragmentação dos países independentes com vistas a enfraquecê-
los.
A fragmentação política da América espanhola, em
detrimento de uma integração dos recém-formados países
independentes, pode ser explicada pelo próprio sistema colonial,
cuja ausência de um poder político institucionalizado na fase
posterior à independência abriu espaço às múltiplas manifestações
171
autonomistas do latifúndio, surgindo lideres locais das diferentes
frações da classe dominante que preferiam a manutenção de seus
privilégios locais atrelados ao setor externo, que possuem
influência na fragmentação dos países latino-americanos até a
atualidade.
O terceiro e último projeto também possui raízes no
século XIX, sendo denominado de "Integração bolivariana" ou
"Integração latino-americana soberana". Os chamados
libertadores, dentre eles Simón Bolívar com a “Pátria Grande”, e
José Martí com a “Unidade latino-americana”, apesar de não
utilizarem o termo “integração regional” ou “integração latino-
americana”, possuíam em seus escritos nuances teóricas
integracionistas.
Desde então, o pensamento de ambos os autores rumou
firmemente no sentido da compreensão de que seria necessário
romper os vínculos de dominação e de dependência com os países
de elevado desenvolvimento industrial capitalista. Desta forma,
propuseram a formação de uma nacionalidade geograficamente
extensa (Grande Liga de Nações), que fosse capaz de engendrar a
defesa e o progresso econômico das recém-formadas nações
numa visão geopolítica e soberana conjunta, de caráter
emancipador antiimperialista e integracionista, a fim de ratificar
um maior poder de persuasão diante das demais grandes
potências.
Ainda assim, essa identidade e unidade latino-americana
não seriam o simples sentimento fraterno por uma comunidade de
origem e de idioma, e sim algo muito mais profundo, do
imperativo histórico da unidade latino-americana “como a única
maneira, para os povos do Sul, de subsistir e se desenvolver como
identidade sociocultural independente frente ao imperialismo
estadunidense.” (RODRÍGUEZ, 2006, p.125)
A máxima de que "a América Latina não se encontra
dividida por ser 'subdesenvolvida', mas, sim, é 'subdesenvolvida'
por estar dividida" (RAMOS, 2012, p.33), é um fato histórico que
172
se encontra cada vez mais atual. A integração latino-americana (ou
bolivariana) é um imperativo geopolítico vis-à-vis a crescente
competição interestatal e a concentração e centralização de capital,
poder e riqueza no sistema internacional, cujo ciclo conservador
da década de 2010, de matiz hemisférica e/ou fragmentadora, é
um retrocesso para a autonomia e soberania regional.
Referências bibliográficas
BORON, Atilio. América Latina en la geopolítica del
imperialismo. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2013.
COSTA, Wanderley Messias da. Geografia política e geopolítica. São
Paulo: Hucitec; Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. 2. ed.
Florianópolis: Insular, 2012.
RODRÍGUEZ, Pedro Pablo. Martí e as duas Américas. São Paulo:
Expressão Popular, 2006
[1] "La Doctrina Monroe estableció como principio la conocida
fórmula de ‘América para los americanos’, que en realidad quiere
decir para los (norte) americanos, porque ello convenía a sus
intereses.” (BORON, 2013, p.64)
173
“Integra” em domicílio 42
Em 2001, um dos maiores defensores da integração
latino-americana, Hugo Chávez, discorria sobre o tema num
discurso no Encuentro Latinoamericano y Caribeño sobre el
Diálogo de Civilizaciones:
“en América Latina tenemos la ecuación
invertida y es así porque los mecanismos
de integración más bien han funcionado
como mecanismos de desintegración; han
sido y fueron elaborados y han sido
hechos basándose en el principio o el
paradigma del neoliberalismo, del
materialismo, del capitalismo salvaje, e
ese no es el camino. Necesitamos colocar
en América Latina la política, la
geopolítica, la ética y la voluntad de los
pueblos al frente, esa es la caballería de la
integración.” (BARRIOS, 2014, p.203)
Numa visão estratégica, a participação no mundo
globalizado deve ser realizada de forma soberana. Uma vez que os
países latino-americanos ainda se inserem no sistema mundial de
forma periférica e dependente, a integração regional seria um
elemento a fortalecer esse papel. Assim, um projeto de integração
autônomo congrega a capacidade da própria tomada de decisões,
insubordinada internacionalmente e buscando superar os
“quinhentos anos de periferia”, como qualifica Guimarães (2002),
a fim de realizar o enfrentamento da desigualdade/desconstrução
das assimetrias regionais, a construção de uma identidade regional,
42 Publicado em 23 de setembro de 2015.
174
autodeterminação entre os povos/nações e a ampliação da
participação de componentes sociais.
A integração regional sul-americana, principalmente no
início do século XXI, vem buscando qualificar os processos não
somente em termos econômico-comerciais, tentando agregar –
ainda que de modo pouco enfático – a integração dos aparelhos
produtivos, da infraestrutura energética e dos transportes e de
uma nova estrutura financeira, realocando o debate diplomático-
político no centro de estratégias conjuntas de longo prazo.
Assim, surge a UNASUL e seus Conselhos Setoriais, que
abrangem temáticas referentes à defesa, educação, saúde, ciência e
tecnologia, cultura e até o combate às drogas, buscando um
modelo de integração que possibilite oportunidades iguais a todos
os países latino-americanos, para que as relações centro-periferia
não se reproduzam no interior da região, uma periferia dentro da
periferia, uma “integração por despossessão” ou, utilizando os
termos de Marini, um subimperalismo (brasileiro) na região.
Entretanto, tais iniciativas, apesar de consistirem num
marco histórico nos projetos de integração regional sul e latino-
americana, possuem um papel pouco assertivo na sociedade civil,
nos movimentos sociais e nas populações de baixa renda na região
que, historicamente, consistem na parcela majoritária dos países.
Com a hipótese de uma construção social da integração, busca-se
o exercício da cidadania e a qualidade de vida de grupos sociais
marginalizados, com a criação de redes e estruturas que assegurem
políticas públicas efetivas.
Como afirma Vieira (apud WANDERLEY, 2013, p.738),
“o processo de integração [...], ao contemplar basicamente
aspectos econômicos e comerciais, relegando a um segundo plano
as políticas sociais, traz à tona o perigo de ser mais um processo
de exclusão social.” Assim, “a opção pelo desenvolvimento
inclusivo e sustentável pode constituir-se na grande alavanca de
um salto da América do Sul para formas inovadoras de gestão
econômica e social” (DOWBOR, 2013, p.684), recorrendo ainda a
175
“vínculos con las ideas originales sobre la unidad, autonomía y
prosperidad de la región de los primeros pensadores de la
integración regional.” (VALENCIA; RUVALCABA, 2013, p.110)
Por que não engendrar um auto-conhecimento de nós
mesmo, como latino-americanos, ao invés de realizar uma
perspectiva eurocêntrica de conhecimento que opera como um
espelho que distorce o que reflete, como afirma Quijano (2005.
p.227-280)?
Por que não modificar a estrutura de ensino das escolas
desde o ciclo básico, em que a história latino-americana é
parcialmente ou totalmente desconhecida?
Por que não facilitar o intercâmbio de estudantes dentro
da América Latina, ou como propõe Ennio Candotti, criar um
“cerebroduto”, fazendo circular os jovens estudantes da América
Latina, compartindo visões de mundo e pensamentos locais em
escala global?
Por que não disseminar a cultura latino-americana nos
meios de comunicação tradicionais e cibernéticos com acesso a
parcela majoritária da população?
Por que não ensejar um turismo intra-regional, com
diminuição de custos de transporte, hospedagem e acesso aos
pontos turísticos, históricos e culturais para residentes locais?
Por que não viabilizar um projeto de integração público e
democrático, com participação plena da sociedade civil, não
somente dos centros especializados e das universidades, mas dos
movimentos sociais e da sociedade civil em si?
Enfim, por que não realizar um projeto de integração
regional latino-americana desde abajo, em que a população sinta
os logros e os benefícios diretos deste processo; uma integração
com participação genuinamente social, de base, rumo a uma
integração soberana, emancipadora e popular?
176
Urge a necessidade de um pensamento crítico
integracionista que constate que os problemas do processo de
integração não são somente de cunho político-econômicos, mas
também histórico-estruturais, de coesão dos países, que abarcam
problemas de identidade e até de disputas territoriais. Logo, não
há possibilidade de benefícios se não houver um elemento
essencial de estratégia de governo que vá além dos governos, na
educação, nas escolas, nas ruas.
Neste sentido, pondera-se a discussão da criação de uma
Unidade de Participação Popular, no qual a integração não pode
ser feita somente no âmbito estatal, mas também no âmbito de
seus povos, que devem agir como atores, criando uma vontade
popular de integração, no qual o cidadão comum precisa sentir
que a integração é benéfica para ele ao “bater em sua porta”.
Aos latino-americanos, tem-se a possibilidade de agregar à
nomenclatura integração da América Latina o termo integração
para a América Latina, uma vez que se pleiteia a solução da
equação: integração de quem e para quem? Outra integração
requer um ator principal distinto; entretanto, paradoxalmente,
ainda dependente do fortalecimento dos Estados nacionais.
Assim, o direcionamento rumo a uma reestruturação da integração
deve conceber um pensamento criativo e crítico, que rompa
fronteiras epistemológicas e realize uma descolonização do
pensamento em termos geopolíticos, fortalecendo os vínculos da
construção de uma comunidade latino-americana com
autorreconhecimento, uma integração dos povos para os povos.
Referências bibliográficas
BARRIOS, Miguel Ángel. Hugo Chávez: pensamiento histórico y
geopolítico. Buenos Aires: Biblos, 2014.
177
DOWBOR, Ladislau. Articulações latino-americanas: novos
desafios. In: GADELHA, Regina Maria A. F.. Mercosul a Unasul -
avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 683-726
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. 4. ed.
Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. da UFRGS/Contraponto, 2002
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e
América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander
(org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos
Aires, Argentina. setembro 2005.
VALENCIA, Alberto Rocha; RUVALCABA, Daniel Efrén
Morales. Desafíos en la construcción de la Unión de Naciones de
Suramérica. In: GADELHA, Regina Maria A. F. (Org.). Mercosul a
Unasul - avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p.
69-117
WANDERLEY, Luiz Eduardo W.. Integração regional sul-
americana e na América Latina: projetos viáveis? In: GADELHA,
Regina Maria A. F. Mercosul a Unasul - avanços do processo de
integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 727-756
178
Parte 4
O Brasil e as relações internacionais
latino-americanas
179
180
A Amazônia Azul e o Atlântico Sul: proteção e projeção
geopolítica brasileira 43
"Navegar é preciso, viver não é preciso". Essa antológica
frase do poeta português Fernando Pessoa, que buscava descrever
a tradição histórica dos portugueses na exploração dos mares,
converge com os ideais do almirante americano Alfred Thayer
Mahan, grande idealizador da Teoria do Poder Marítimo. A partir
de seu livro "A influência do poder marítimo sobre a história", o
clássico autor demonstra que o uso e o controle do mar
desempenharam papel fundamental na história do mundo, com
profunda influência da guerra e do comércio marítimo na
acumulação de riqueza das nações. Assim, o Sea Power é uma
estratégia marítima de domínio do mar através da marinha
mercante e naval, em tempos de paz e guerra. Logo, aqueles que
possuem poder marítimo têm segurança contra invasão através
dos oceanos, mobilidade e capacidade de alcançar a costa inimiga,
proteção do tráfego marítimo e controle de áreas marítimas.
Num contexto brasileiro da importância do mar, a
Marinha do Brasil criou o termo "Amazônia Azul” [1], área
marítima brasileira que faz uma analogia com os recursos
estratégicos da região terrestre. Buscando ampliar sua área, o
Estudo do Limite Exterior da Plataforma Continental Brasileira
foi encaminhado à ONU em 2015 a fim de acrescentar 960.000
km² ao território brasileiro que, somados aos 3,5 milhões de km²
de Zona Econômica Exclusiva (ZEE), totalizaria uma área
marítima de 4,5 milhões de km². Essa ampliação, somado às áreas
marítimas dos Arquipélagos de Fernando de Noronha, São Pedro
e São Paulo e as ilhas Oceânicas de Trindade e Martim Vaz, faria
com que a área disponível para a exploração científica e de
43 Publicado em 14 de janeiro de 2019.
181
riquezas se assemelhasse à atual superfície amazônica e mais de
50% da extensão territorial brasileira.
Além das vertentes ambiental, científica e soberana, a
Amazônia Azul possui dados impressionantes acerca da ótica
econômica: 95% do comércio exterior brasileiro é realizado por
via marítima; mais de 90% do petróleo brasileiro tem origem no
oceano; além das potencialidades econômicas da pesca, do
turismo e dos recursos naturais (sal, cascalhos, areias, fosforitas,
crostas cobaltíferas, sulfetos e nódulos polimetálicos, entre
outros). Esta imensidão de recursos e possibilidades engendra
uma perspectiva de soberania e defesa, uma vez que “é preciso
que sejam delineadas e implementadas políticas para a exploração
racional e sustentada das riquezas da nossa 'Amazônia azul', bem
como que sejam alocados os meios necessários para a vigilância e
a proteção dos interesses do Brasil no mar.” (CARVALHO, 2004)
Ampliando o escopo geopolítico, o Atlântico Sul é
compreendido como a área localizada entre a América do Sul e a
África, ao sul do Equador, separada do oceano Índico, a leste,
pelo meridiano de 20° longitude E, e do Pacífico, a oeste, pela
linha de maior profundidade entre o cabo Horn e a Antártica. Em
geral, ele abarca áreas geoestrategicamente importantes, como a
Foz do Amazonas, os Salientes Africano e Nordestino, o Golfo da
Guiné, as Bacias de Santos, Campos e do Espírito Santo, o
Estuário do Prata, os trampolins insulares do Atlântico Sul como
interconexão oceânica e com a Antártica, o Cabo da Boa
Esperança e o Estreito de Magalhães e Drake, além de constituir-
se como uma zona de comunicação marítima direta entre zonas
polares (diferentemente de todos os demais oceanos, tornando-o
o mais intercontinental).
Outro fato de interesse consiste no complexo mapa de
potências estrangeiras no Atlântico Sul. Da presença europeia
atual, como um reflexo do imperialismo do século XIX, tem-se o
território ultramarino francês da Guiana, as possessões britânicas
das Ilhas de Ascensão, Santa Helena, Tristão da Cunha, Gough,
Sandwich do Sul, Georgia do Sul, Orcadas do Sul e as Ilhas
182
Falklands/Malvinas, cuja derrota argentina na Guerra das
Malvinas revelou uma "gibraltarização" do Atlântico Sul
(CASTRO, 1998, p.25), com uma revalorização por parte da
Inglaterra e da própria OTAN. Além disso, a reativação da Quarta
Frota dos Estados Unidos, em 24 de abril de 2008, acendeu o
radar da superpotência marítima que, ao buscar garantir a
liberdade e a segurança marítimas por meio da cooperação
regional ou mundial que permita a atuação do seu poder naval
(SILVA, 2014, p.205-206), possivelmente visualizou as
potencialidades geopolíticas e geoeconômicas do Atlântico Sul no
século XXI.
O Brasil é o maior país do Atlântico Sul e o primeiro em
extensão de costa, com 7.491 quilômetros, com relevo favorável
para o estabelecimento de bons portos, com 80% de sua
população nas faixas litorâneas, posicionado no saliente oriental
da América do Sul, na zona de estrangulamento do Atlântico e
com maior proximidade da África (Natal-Dakar). Por esses e
demais fatores, e agregando-se a importância recente da Amazônia
Azul para o país, a revalorização brasileira do Atlântico Sul, aliada
a uma estratégia naval para o século XXI pautada no
desenvolvimento e segurança, é imprescindível.
Seja para proteção da Amazônia Azul ou projeção no
Atlântico Sul, o Brasil vem demonstrando cada vez mais interesse
nas questões marítimas. Têm-se como exemplos a Política
Nacional de Defesa (PND), de 2005, que visou intensificar o
intercâmbio com as FFAA das nações amigas, inclusive do
Atlântico Sul; a Estratégia Nacional de Defesa (END), de 2008,
que considera o Atlântico Sul, conjuntamente com a Amazônia,
como área estratégica para o Brasil em termos de defesa; e o Livro
Branco de Defesa Nacional (LBDN), de 2012, que ao demonstrar
as atividades de defesa do Brasil, assenta políticas e ações que
norteiam os procedimentos de segurança e proteção do Atlântico
Sul.
Como destaca Aguilar (2013, p.64), a prioridade foi
oriunda
183
da necessidade de proteger os
recursos naturais da sua
plataforma continental [...] e do
comércio exterior brasileiro
majoritariamente realizado pela
via marítima do Atlântico. Ou
seja, garantir a utilização sem
constrangimentos deste espaço.
Na virada do século XXI, a cooperação Sul-Sul passou a
delinear as pautas da Política Externa do Brasil (PEB). No
Atlântico Sul, tem havido uma cooperação de segurança e defesa
visando a garantia da paz interna e regional, com a capacidade de
atuar sem constrangimentos ou ameaças. Assim, o Brasil vem
buscando, desde a criação da ZOPACAS[2] e da Guerra das
Malvinas, revalorizar o Atlântico Sul e reduzir a interferência de
potências extrarregionais, visando estabelecer a criação de uma
identidade sul-americana e sul-atlântica.
Para tal, o país necessita de um poder dissuasório de
desenvolvimento, em que o projeto do submarino nuclear
brasileiro é o exemplo mais elucidativo, inclusive, a fim de
diminuir o apartheid tecnológico, que nega aos países em
desenvolvimento a oportunidade de desenvolver tecnologia
nuclear para usos pacíficos. "Thus, the nuclear-submarine
program can also be understood within the context of an effort to
overcome external technological dependence" (SILVA; MOURA,
2016, p.618), uma vez que visa alcançar o ciclo de combustível
nuclear em escala industrial, desenvolver recursos humanos,
prospectar reservas de urânio em território nacional, desenvolver
tecnologias civis a partir do programa nuclear, melhorar a
capacidade estratégica da Marinha Brasileira, dominar uma
tecnologia importante para o desenvolvimento nacional e
ambicionar um papel mais significativo no cenário mundial.
Uma das conquistas práticas do Programa de
Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB) tem sido a produção
de centrífugas a gás para as indústrias nucleares do Brasil, um
184
reator multiuso que produzirá isótopos para uso médico e
industrial, e contribuirá para a pesquisa em nanotecnologia,
biologia estrutural e outros campos, além da própria construção
de submarinos nucleares e convencionais.
No dia 14 de dezembro de 2018, foi lançado o Submarino
Riachuelo, o primeiro modelo Scorpène adquirido no âmbito do
Acordo de Transferência de Tecnologia firmado entre a França e
o Brasil, em 2008. Segundo dados da Marinha, a previsão é de que
o submarino Humaitá seja lançado ao mar em 2020, o Tonelero
em 2021, o submarino Angostura em 2022 e, por último, o
submarino com propulsão nuclear, Álvaro Alberto, em 2029.
Entretanto, o estabelecimento de uma política de Estado e o
emprego do poder naval via dissuasão nuclear ou convencional
requer, no médio-longo prazo, impreterivelmente, três elementos
essenciais e constantes: vontade política, recursos financeiros e
capacidade tecnológica. (SILVA; MOURA, 2016, p.629)
Diferentemente do século XX, o Atlântico Sul tende a
ganhar maior importância caso se confirme o dinamismo do
Brasil, da Argentina e dos países africanos, assim como o
comércio exterior entre estes e as maiores economias mundiais.
Se, na dimensão global, o Atlântico Sul tem um papel secundário
como via de comunicação marítima, no âmbito regional, sua
importância econômica e geopolítica é fundamental,
principalmente para o Brasil, que possui como objetivos manter
esse espaço marítimo como zona de paz e cooperação, livre de
armas nucleares, reafirmando o direito dos estados regionais de
desenvolver tecnologia nuclear para usos pacíficos.
Como constatam Silva e Moura (2016, p.627), a tarefa
mais importante para a Marinha Brasileira continua sendo a
“negação do mar”, ou seja, impedir que um inimigo tenha acesso
ao mar. Assim, um dos objetivos estratégicos é a criação de uma
força submarina tanto convencional como nuclear. O Brasil
necessita de consciencioso desenvolvimento marítimo e
correspondente influência transatlântica para base de sua expansão
econômica e liberdade de tráfego pelos mares.
185
Como afirmou Therezinha de Castro (1998, p.44), "que o
Brasil nascia do mar, no mar e, em seu destino manifesto tem que
viver pelo mar, não lhe podendo, pois virar as costas." Em suma,
a importância da Amazônia Azul para o Brasil é extremamente
relevante, e é função da Marinha Brasileira proteger esse
patrimônio, assim como assegurar o controle das vias de comércio
marítimo pelo Atlântico Sul.
Referências bibliográficas
AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz. Atlântico Sul: as relações do Brasil
com os países africanos no campo da segurança e
defesa. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações
Internacionais, v2 n. 4, jul-dez 2013, pp. 49-71.
CARVALHO, Roberto de GuimarÃes. A outra Amazônia. Folha
de São Paulo. São Paulo, 25 fev. 2004.
CASTRO, Therezinha de. Atlântico Sul: Geopolítica e Geoestratégia.
Rio de Janeiro, Escola Superior de Guerra, 1998.
SILVA, A. Ruy de Almeida; MOURA, José Augusto de Abreu.
The Brazilian Navy’s nuclear-powered submarine program. The
Nonproliferation Review, Vol.23. NOS. 5-6, 2016, pp. 617-633.
SILVA, A. Ruy. A. O Atlântico Sul na Perspectiva da Segurança e
da Defesa. In: Reginaldo Mattar Nesser e Rodrigo Fracalossi de
Moraes (Orgs.). O Brasil e a segurança no seu entorno
estratégico: América do Sul e Atlântico Sul. Brasília: Ipea, 2014.
[1]No que concerne a área da denominada "Amazônia Azul", a
partir da entrada em vigor da Convenção das Nações Unidas
186
sobre o Direito do Mar (CNUDM), em 16 de novembro de 1994,
os espaços marítimos brasileiros foram assim definidos: o Mar
Territorial, que não deve ultrapassar o limite de 12 milhas náuticas
(MN); a Zona Contígua, adjacente ao mar territorial, cujo limite
máximo é de 24 MN e é medida a partir das linhas de base do mar
territorial; a Zona Econômica Exclusiva (ZEE), medida a partir
das linhas de base do mar territorial e que não deve exceder a
distância de 200 MN; e a Plataforma Continental, que compreende
o solo e o subsolo das áreas submarinas, além do mar territorial,
podendo estender-se além das 200 milhas até o bordo exterior da
margem continental. Assim, a distância máxima de 350 milhas é o
limite, a partir da linha de base da qual se mede a largura do mar
territorial.
[2]A Zona e Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) foi
estabelecida em 1986, por meio da Resolução 41/11 da
Assembleia Geral das Nações Unidas. Desde 1986, a Assembleia-
Geral aprovou 22 resoluções sobre ZOPACAS. A resolução mais
recente foi adotada em 2015 e enfatizou o papel da ZOPACAS
como fórum para interação crescente e apoio mútuo entre os
Estados do Atlântico Sul. A ZOPACAS é integrada por 24 países
banhados pelo Atlântico Sul e visa o tratamento de temas relativos
à segurança e preservação da paz, mantendo-se a região como
zona livre de armas nucleares e de outras armas de destruição em
massa.
187
Porto de Mariel: a porta de entrada do Brasil no Caribe 44
Ao longo da história, a região do Caribe sempre foi palco
de intensas disputas territoriais entre as grandes potências. Assim,
a partir do momento em que os Estados Unidos despontaram
como potência regional capaz de disputar o território das
Américas com os europeus, sua história no mundo se orientou
pelas linhas gerais marcadas pela a Doutrina Monroe[1], em 1823,
apenas um ano antes da Batalha de Ayacucho (1824), que pôs fim
a colonização espanhola na América do Sul.
Atualmente, a região do Caribe é uma das protagonistas
das relações internacionais, que envolvem tanto os Estados
Unidos, os demais países americanos, latinos e caribenhos, e o
próprio Brasil. Em se tratado da atuação do Brasil no Caribe na
conjuntura atual, a balança comercial brasileira corrobora este
fato: no Caribe em particular, teve-se um crescimento total de
290,78% e um crescimento médio anual de 9,51% no período
entre 2000-2014, com destaque para os países integrantes do
CARICOM, com 1080,45% e 17,89%, respectivamente. No caso
específico de Cuba, o país se apresenta como o maior parceiro
brasileiro em termos de crescimento comercial no Caribe, tanto
no que diz respeito ao crescimento total quanto ao crescimento
médio anual, com um aumento de US$ 115.337.025 em 2000 para
US$ 568.846.225 em 2014, apesar de em termos de volume ainda
se encontrar muito abaixo de parceiros históricos do Brasil, como
México (US$ 9.032.963.434), Venezuela (US$ 5.806.257.483) e
Colômbia (US$ 4.099.775.043).
O embargo econômico a Cuba não fez com que o Brasil
deixasse de cultivar seus interesses internacionais na região, pelo
44 Publicado em 6 de julho de 2015.
188
contrário: no vácuo de poder dos EUA, cresce a influência
brasileira, no qual o Porto de Mariel é o maior exemplo.
Em sua visita a Cuba, em janeiro e fevereiro de 2012, a
Presidente Dilma assinou diversos acordos bilaterais, além de ter
garantido uma parceria entre os dois países para a transformação
do Porto de Mariel em um dos maiores da América Latina. Serão
investidos, em quatro anos, US$957 milhões, dos quais US$682
milhões (71%) serão financiados pelo BNDES (Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico e Social). A obra inclui a
construção de uma “Zona Especial de Desenvolvimento” de
400km², a qual servirá de plataforma para inserção das empresas
brasileiras na América Central. (VISENTINI, 2012, p.128)
Em contrapartida, 802 milhões de dólares investidos na
obra foram gastos no Brasil, na compra de bens e serviços
comprovadamente brasileiros, que gerou 156 mil empregos
diretos, indiretos e induzidos no país[2], além de que 80% de
todos os equipamentos utilizados na construção foram brasileiros.
Ou seja, grande parcela do empréstimo acabou revertida para o
próprio Brasil, uma vez que o porto foi construído pela
Odebrecht Infraestrutura – América Latina, em parceria com a
Quality, empresa ligada ao governo cubano, trazendo receitas e
gerando empregos em solo nacional.
Diferentemente do discurso propagado pela
desqualificação da construção do porto, do projeto de integração
regional e do reordenamento geopolítico brasileiro no Caribe, o
BNDES não investiu em Mariel: ele financiou as exportações de
cerca de 400 empresas brasileiras. O financiamento à exportação
gera empregos no Brasil, porque não há remessa de dinheiro para
o exterior; os recursos que financiam exportações não concorrem
com os destinados a projetos no Brasil e são providos por fontes
diferentes[3]. O próprio estatuto do Banco, em seu artigo nº9,
determina que o apoio a investimentos diretos no exterior deve
beneficiar exclusivamente empresas de capital nacional, “fazendo
com que cerca de 60% do que é usado nas obras sejam
produzidos no Brasil.” (SEVERO, 2013, p.599)
189
O fator mais determinante para a construção do porto de
Mariel é sua localização geográfica, que amplia o alcance do
comércio e a área de influência do Brasil. O porto está localizado
no centro da região do Caribe e das Américas, entre o cruzamento
Norte-Sul/Leste-Oeste do tráfego comercial marítimo de
mercadorias, centro de uma circunferência de 1000 milhas de raio
onde se localizam os principais portos da região, numa área
equivalente a 450 km², situado a cerca de 45 quilômetros de
Havana e a menos de 150 quilômetros do maior mercado do
mundo, os Estados Unidos. Ele terá capacidade para receber
navios de carga do tipo Post-Panamax, que vão transitar pelo
Canal do Panamá quando a ampliação deste estiver completa, ou
pelo Canal da Nicarágua, após sua construção.
Iniciado em 2010, o projeto poderá dotar Cuba de uma
moderna porta de saída marítima, permitindo que indústrias
brasileiras se instalem na ilha e aproveitem a mão de obra local e
incentivos cubanos para produzir e exportar, a partir do país
caribenho. Ainda, possui uma Zona Especial de Desarrollo de
Mariel (ZEDM), que conta com infraestrutura e benefícios para
receber empresas de alta tecnologia, tendo entrado em vigor em
novembro de 2013[4].
O Porto de Mariel pode representar uma aproximação
significativa entre os mercados do Brasil, da América do Sul e da
América Central, reduzindo o custo de operações logísticas,
ampliando as relações comerciais e a inserção brasileira no Caribe,
historicamente pequena. Provavelmente, com a vinda de empresas
brasileiras para se instalarem no Porto de Mariel, haverá uma
maior presença comercial do Brasil, não só em Cuba, mas em toda
a região.
Essas são as prerrogativas principais da importância
substancial para o Brasil no Porto de Mariel: se tornar parceiro
econômico de primeira ordem de Cuba, considerado um mercado
em potencial para empresas brasileiras; auxiliar na atualização do
modelo econômico cubano, onde na Zona Especial de
Desenvolvimento Econômico as empresas poderão ter capital
190
100% estrangeiro; a localização geoestratégica do porto no Caribe
e no mundo; o novo significado quando o embargo econômico
acabar e forem retomadas as relações diplomáticas entre EUA e
Cuba, podendo tornar o Porto de Mariel um dos mais
movimentados das Américas.
Referências bibliográficas
COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Política e
Geopolítica: discursos sobre o território e o poder. São Paulo:
Hucitec; Edusp, 1992.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A projeção internacional do Brasil:
1930-2012: diplomacia, segurança e inserção na economia
mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
SEVERO, Luciano Wexell. A importância estratégica da
Venezuela no Mercosul. In: GADELHA, Regina Maria A. F..
Mercosul a Unasul - avanços do processo de integração. São Paulo:
Educ, 2013. p. 573-606
[1] A complexidade da formulação da Doutrina Monroe como
projeto geopolítico é iminente, a partir do momento em que se
ajusta a realidade norte-americana do início do século XIX de
expansão e crescente influencia no continente americano. Em
realidade, como afirma Costa (1991, p.66), a Doutrina Monroe
significaria, antes de tudo, “uma autêntica autoproclamação de
‘direitos naturais’ de uma ‘jovem potência’ que emergia do outro
lado do Atlântico, para o livre exercício de sua política de
expansão nesta parte do globo.” (COSTA, 1992, p.66)
191
[2] http://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-o-
brasil-esta-certo-ao-investir-em-cuba-1890.html
[3] http://odebrecht.com/pt-br/comunicacao/noticias/quanto-
mais-mariels-melhor-para-o-brasil-folha-de-s-paulo-09022014
[4] http://www.agenciaplano.com/por/noticias.php?cod_noticia
=42
192
Nova geopolítica do petróleo na América do Sul: quem tem
medo da Petrobras? 45
A estrutura produtiva mundial de energia oriunda dos
recursos naturais energéticos se encontra num processo de
permanente reorganização. A competição e o controle por parte
das grandes economias sobre as reservas de petróleo e gás se
tornam, assim, essenciais para a reprodução dos padrões de
desenvolvimento capitalista, tornando-os bens estratégicos por
excelência. Principalmente no atual contexto, a América do Sul
tende a se constituir como um player decisivo no mercado
mundial de hidrocarbonetos no século XXI, “com as descobertas
dos campos do pré-sal brasileiro, de óleo ultrapesado na bacia do
Orenoco na Venezuela e as possibilidades de aproveitamento de
gás de xisto na Patagônia argentina.” (MONIÉ, BINSZTOK,
2012, p.83)
A região possui um grande peso das reservas mundiais de
petróleo, com 19,5%, mais ainda não proporcional com a sua
produção, de apenas 8,8%, em 2013. Pode-se verificar um
horizonte médio de 128 anos de produção de petróleo e 52,5 anos
de gás no ritmo atual, desconsiderando prospecções mais atuais
que não foram todavia contabilizadas. Se comparado com os
Estados Unidos (12,1 anos para petróleo e 13,6 anos para gás),
China (11,9 anos para petróleo e 28 anos para gás) e o mundo
(53,3 anos para petróleo e 55,1 anos para gás), a região possui um
poder relativo muito superior.
A relação reservas/produção de petróleo da América do
Sul com o mundo apresenta um grande salto absoluto e relativo
no indicador do grau de exploração dos reservatórios, obtendo o
maior índice na comparação com todas as regiões e o maior
45 Publicado em 3 de junho de 2015.
193
aumento na série histórica. A relação produção/consumo constata
que a América do Sul possui autossuficiência petrolífera quando
analisada sua produção e consumo interno no conjunto. Ou,
quando considerada sua relação histórica, principalmente do
petróleo, os níveis de produção e consumo permanecem
praticamente constantes, enquanto os de reservas aumentam em
grande medida nos últimos 15 anos[1].
Tal fato realoca a América do Sul como centro
gravitacional da geopolítica do petróleo no mundo, cada vez com
maior participação nas decisões globais de recursos energéticos.
Neste contexto, a Petrobras – como uma das maiores empresas
estatais do mundo e maior produtora de petróleo entre empresas
de capital aberto – torna-se o paradigma mais elucidativo da nova
geopolítica do petróleo na América do Sul.
Em meados da década de 2010, a empresa encontrava o
foco de suas atenções nos escândalos de corrupção da operação
Lava Jato, um esquema de lavagem de dinheiro que englobou a
Petrobras, empresas privadas e partidos políticos. Ainda que a
corrupção tenha de ser combatida, ela deve ser considerada como
um dado endêmico e endógeno do capitalismo em todas as partes
do mundo, seja na esfera pública ou privada, no plano individual
ou social. Ou seja, essa dramatização da corrupção tem claramente
efeitos políticos, que permeiam o interesse de certos grupos
nacionais e internacionais em alinhar o Estado como maculado,
indecoroso e ineficiente.
Há uma falsa percepção de quebra da Petrobras a partir
da queda de seu valor de mercado – ainda que desconsiderando
uma análise entre os preços do barril de petróleo na análise dos
anos, o que claramente influencia seu valor comparativamente –,
perda de grau de investimento e exclusão do índice Dow Jones de
sustentabilidade, além dos ataques midiáticos e partidários. Todos
esses fatores locais e internacionais devem ser visualizados num
plano geopolítico mais amplo.
194
Por exemplo, desconsidera-se o recorde diário, mensal e
anual de produção de petróleo e gás natural, no final de 2014,
chegando a produção histórica de 2,863 milhões de barris de óleo
equivalente por dia[2]. Não foi veiculado pela imprensa o prêmio
Offshore Technology Conference 2015, o maior prêmio da
indústria de petróleo e gás offshore mundial, recebido pela
Petrobras[3]; ou sua colocação como nona maior companhia de
energia do mundo, com base no valor de mercado, segundo a IHS
Energy[4]; ou o prêmio de Melhor Empresa do Setor de Petróleo
e Gás, na 14ª edição do anuário Valor 1000, que escolhe as
empresas com melhor desempenho de 26 setores da economia
brasileira[5]; ou a primeira das 50 maiores indústrias que operam
no Brasil, de acordo com o ranking anual Melhores & Maiores
2014, da revista Exame[6]; ou a eleição da quinta marca brasileira
mais valiosa de 2013[7][8].
Essa estratégia deliberada de ataque à estatal brasileira
possui motivações político-econômicas internacionais. Insere-se
no mesmo plano geopolítico das guerras do Oriente Médio, das
tentativas de desestabilização do governo da Venezuela e da
Argentina, do isolamento europeu frente à Rússia e da nova
corrida na África perpetrada por chineses e estadunidenses.
Da perspectiva do Estado, um adequado contrato
petrolífero é aquele que facilita o desenvolvimento dos recursos,
gerando benefícios econômicos em função da apropriação da
renda econômica, do financiamento com capital de risco e da
transferência tecnológica proporcionada pela parte privada. O
modelo de partilha utilizado pela Petrobras no pré-sal agrega esses
elementos, além de favorecer e proteger os interesses da empresa
em detrimento das empresas estrangeiras, que devem se adequar
ao fato da Petrobras ser a operadora única dos blocos.
Ou seja, no escopo da nova geopolítica do petróleo da
América do Sul, a desqualificação e ojeriza ao setor público e suas
empresas tem objetivos mercantis, políticos e geopolíticos; uma
vez que se considere somente o mercado como virtuoso e, em
contrapartida, tudo o que o Estado realiza sendo estereotipado
195
como ineficiente, o que se lê nas entrelinhas é que esse campo
pode ser mercantilizado e transformado em apropriação privada
para poucos, em detrimento de maiores recursos públicos para
toda a população. Ou ainda, como afirma Ladislau Dowbor,
Se, com todo o ataque, conseguirem
mudar a situação política do país, com a
troca de presidente ou o que seja, e
conseguirem privatizar a Petrobras, as
ações vão explodir e quem tiver
comprado na baixa vai ganhar. São os
mesmos especuladores. O ataque é esse,
é um ataque nacional e internacional.
Estão fazendo isso com a Argentina,
com a Venezuela, com os países que não
se dobraram aos interesses do
‘mercado’.[9]
Numa análise da geopolítica do petróleo na América do
Sul, agregado à análise da quantidade e da qualidade das reservas
regionais, o escopo da pesquisa deve abranger os distintos espaços
geográficos mundiais que possuem poder relativo de influenciar a
produção e o preço dos recursos energéticos, sejam eles petróleo e
gás dos mais variados tipos. Uma vez que a geopolítica do
petróleo não se estabelece num ambiente autárquico e nem
controlado pura e simplesmente pelas regras de mercado, sua
análise regional deve ser simultaneamente global.
A decisão da OPEP – que comercializa cerca de 40% do
petróleo vendido no mundo e possui de 80% das reservas
mundias[10] – de manter o volume de produção em um nível
acima da capacidade de consumo mundial foi o maior
desestabilizador do preço da commodity. O aumento da oferta
mundial e queda nos preços do barril trata-se de uma manobra
dos países exportadores de petróleo com baixos custos de
exploração – tendo como testa de ferro a Arábia Saudita,
responsável por 32% da produção da OPEP[11] e menor custo de
produção do mundo – como estratégia de dumping visando
196
prejudicar e afetar a concorrência tanto do óleo e gás de xisto
norte-americano como de produtores de petróleo e gás com altos
custos de produção – como é o caso do Brasil – e/ou com alta
concentração da renda nacional concentrada nas receitas das
exportações – como é o caso da Venezuela, Irã e Rússia.
Os maiores beneficiados com esta jogada geopolítica
foram os grandes importadores de petróleo do mundo, ajudando
na recuperação da economia dos Estados Unidos e mundial, ainda
que os efeitos da crise sejam presentes e grande parte das
economias do mundo ainda passará por um período prolongado
de crescimento baixo, segundo o FMI[12]. Nesta geometria global,
as potências mundiais aumentam seu poderio a nível internacional,
da mesma forma que as oligarquias dominantes, principalmente
dos países do Oriente Médio.
A China é atualmente o maior consumidor de energia do
mundo, com 19% da demanda mundial e importações de 59%.
Para sua segurança energética, a China busca relativa
independência dos produtores de petróleo do Oriente Médio,
devido à instabilidade interna destes países e alinhamento com a
política norte-americana. Assim, realiza grandes investimentos em
várias partes do mundo, onde na América do Sul inclui-se Brasil,
Equador, Venezuela, via estatais chinesas, joinventures ou
participações em empresas locais ou estrangeiras[13].
Neste terreno de volatilidade dos preços internacionais do
petróleo, o pré-sal e a Petrobrás acabam sendo afetadas. Segundo
Paulo Metri, conselheiro do Clube de Engenharia, o custo médio
da produção nacional é de US$45, podendo variar de acordo com
as condições de cada reservatório, os tributos (royalties,
participação especial, contribuição para o Fundo Social e outros),
dependem se a área foi concedida, cedida onerosamente ou
entregue através de contratos de partilha. Nos campos da bacia de
Campos, o custo médio do barril está em US$ 15[14]. Ou seja, em
ambos os casos, os projetos são economicamente viáveis com o
barril a US$60, aumentando-se as receitas com a possibilidade de
crescimento do preço do barril.
197
A Petrobrás é uma vítima direta desse reordenamento
geopolítico do petróleo. Há ainda quem argumente o porquê dos
escândalos de corrupção serem protagonizados no momento em
que a exploração das reservas do pré-sal se iniciaram, alertando
que não seria mera casualidade, uma vez que há interesses
econômicos e geopolíticos acompanhando o desenrolar dos
acontecimentos. A campanha de desmoralização da Petrobras
prejudica a empresa e o setor em escala muito superior à dos
desvios investigados, uma vez que reflete diretamente sobre a
cadeia produtiva do setor de petróleo e gás, responsável por
investimentos e geração de empregos em todo o país, impactando
negativamente seus negócios, sua credibilidade e sua cotação em
bolsa.[15]
No dia 08/04/2015, a Shell anunciou a compra da gigante
britânica BG por 70 bilhões de dólares. O Brasil se insere nesta
negociação na medida em que a Shell passa a ser a detentora de
grandes reservas e investidora no Brasil, com potencial de
aumentar a sua produção, uma vez que a BG opera em parceria
com a Petrobras na Bacia de Campos e visa um potencial projeto
de longo prazo para o campo de Libra. Além disso, a Shell
pretende incorporar, acumular e transferir conhecimento de
tecnologia da perfuração em águas profundas realizadas pela
Petrobras, líder global no ramo, a fim de garantir uma presença
mais forte neste segmento.[16]
Ou seja, respondendo a pergunta: os que têm medo da
Petrobras são aqueles contrários à soberania nacional e regional,
aqueles alinhados com os interesses das grandes transnacionais,
das grandes potências mundiais e do capital internacional, aqueles
no qual o lucro a qualquer custo é o objetivo a ser alcançado e
que, porventura haja um fortalecimento da estatal, perderão seus
privilégios e não conseguirão se apoderar da empresa, de seu
mercado, de suas encomendas e das imensas jazidas de petróleo e
gás do Brasil. Segundo a Federação Única dos Petroleiros, esses
setores teriam três objetivos principais:
198
1) imobilizar a Petrobras e depreciar a empresa para
facilitar sua captura por interesses privados, nacionais e
estrangeiros;
2) fragilizar o setor brasileiro de Óleo e Gás e a política de
conteúdo local, favorecendo fornecedores estrangeiros;
3) revogar a nova Lei do Petróleo, o sistema de partilha e
a soberania brasileira sobre as imensas jazidas do pré-sal[17].
As elites nacionais e internacionais, ao não encontrarem
uma adequada resistência por parte dos Estados periféricos,
provocam a sua subordinação, dominação e alienação, uma
espécie de síndrome de imunodeficiência geopolítica, no qual os
próprios Estados dependentes perdem a capacidade de estabelecer
sua imunidade soberana. Assim, o antídoto da América do Sul é a
realização de sua insubordinação fundadora (GULLO, 2014) [18]
baseada no impulso estatal regional, na insubordinação ideológica
e no nacionalismo dos recursos naturais.
Referências bibliográficas
GULLO, Marcelo. A insubordinação fundadora: Breve história da
construção do poder pelas nações. Florianópolis: Insular, 2014.
MONIÉ, Frédéric; BINSZTOK, Jacob (orgs.). Geografia e geopolítica
do petróleo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
[1] Fonte: BP Statistical review of world energy 2014.
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2015-
01/petrobras-bate-recorde-de-producao-de-petroleo-e-gas-natural
199
[3] http://www.petrobras.com.br/fatos-e-dados/recebemos-o-
premio-offshore-technology-conference-2015.htm
[4] https://www.ihs.com/info/en/a/energy50/index.html
[5] http://revistavalor.com.br/home.aspx?pub=18&edicao=7
[6] http://exame.abril.com.br/negocios/melhores-e-maiores/
[7] http://www.rankingmarcas.com.br/
[8] Site oficial da Petrobras.
[9] http://www.redebrasilatual.com.br/economia/2015/03/para-
economista-petrobras-esta-sob-ataque-internacional-apoiado-em-
forcas-locais-2099.html
[10] http://www.opec.org/opec_web/en/
[11]
http://www.opec.org/opec_web/static_files_project/media/dow
nloads/publications/MOMR_March_2015.pdf
[12] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/04/1613596-
pib-global-pode-ter-anos-de-fraqueza-afirma-fmi.shtml
[13] http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FA-
importancia-do-Pre-Sal-na-geopolitica-do-
petroleo%2F4%2F32497
[14] http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-petroleo-a-
Petrobras-e-a-geopolitica-Entrevista-com-Paulo-Metri-/4/32822
[15] http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2015/03/a-
petrobras-e-os-interesses-em-jogo-na-geopolitica-do-petroleo/
[16] http://www.brasil247.com/pt/247/economia/176389/US$-
70-bi-da-Shell-mostram-o-valor-real-do-pr%C3%A9-sal.htm
200
[17] http://brasildebate.com.br/defender-a-petrobras-e-defender-
o-brasil-leia-e-assine-o-manifesto/
[18] Este esplêndido estudo de Gullo culmina com reflexões
extremamente pertinentes acerca das possibilidades que a América
do Sul tem de realizar essa “insubordinação fundadora” e, com o
apoio do Estado, sair de sua condição periférica para se converter,
desse modo, em um importante interlocutor internacional
independente. (GULLO, 2014, p.16)
201
Serra, relações exteriores e petróleo 46
Apesar de ser considerada uma “fonte energética do
século XX” e muitos especialistas apontarem para um “pico do
petróleo”, (YERGIN, 2014, p.245), a utilização do petróleo ainda
será determinante na matriz energética mundial no século XXI,
assim como o carvão mineral foi o paradigma de recurso
energético no século XIX e, apesar de substituído pelo petróleo ao
longo do século posterior, ainda possui elevado percentual até a
atualidade. O mesmo ocorrerá com o ouro negro, no qual seu
possível substituto energético não inviabilizará sua elevada
participação como fonte energética neste século; as energias
renováveis tendem a crescer, mas essa transição será realizada de
maneira gradual.
Para que um recurso natural seja considerado estratégico,
segundo Ceceña (apud PALACIO, 2012, p.4), (CECEÑA;
PORRAS, 1995, p.143-146), ele deve possuir as seguintes funções:
essencialidade, massividade, vulnerabilidade e escassez. Nessa
definição, o petróleo se configura com um recurso natural
estratégico por excelência, uma vez que abrange todos os quatro
elementos: essencialidade, uma vez que se refere ao processo de
acumulação em seu conjunto como medida da amplitude de sua
participação na acumulação capitalista; massividade, pois é
intensamente utilizado e, portanto, não podem ser retirado do
processo de produção; vulnerabilidade, por sua disponibilidade,
quantidade, condições de pureza/extração e grau de suficiência
global serem heterogêneas e dispersos geograficamente; e
escassez, uma vez que se considera como um recurso não-
renovável e cada vez mais reduzida a quantidade de reservas
mundiais, o que intensifica o fator competição/disputa no sistema
internacional.
46 Publicado em 20 de junho de 2016.
202
Logo, o petróleo se configura como um recurso natural
estratégico, uma vez que “es aquel que es clave en el
funcionamiento del sistema capitalista de producción y/o para el
mantenimiento de la hegemonía regional y mundial” (RAMOS,
2010, p.32); “that is both essential in use (difficult to substitute
away from) and subject to some degree of supply risk” (KLARE,
2012, p.166); “passa a ser escasso e potencialmente vital para o
desenvolvimento de atividades econômicas." (SENHORAS;
MOREIRA; VITTE, 2009, p.32)
Uma vez que os maiores consumidores de recursos
naturais estratégicos, ou seja, os países desenvolvidos, dependem
das grandes reservas localizadas em países menos desenvolvidos,
como a América do Sul e o Brasil, as guerras/conflitos, as
pressões econômicas e/ou políticas sobre os Estados e a
intervenção direta de empresas transnacionais são alguns dos
mecanismos que ajudam a mitigar a dependência e vulnerabilidade
diante desses recursos em territórios alheios. Ou seja, a
competição e o controle por parte das grandes economias sobre as
reservas de petróleo se realizam uma vez que, por se tratar de um
recursos não-renovável e de rápido consumo, essencial para a
reprodução dos padrões de desenvolvimento capitalista, se torna
um bem estratégico por excelência.
Realizado este pequeno preâmbulo, no dia 24/02/2016, o
Senado Federal do Brasil aprovou a proposta PLS 131/2015, do
hoje ministro das relações exteriores, José Serra, que acaba com a
obrigatoriedade da Petrobras de ser a operadora única do pré sal e
com a exigência da empresa investir pelo menos 30% em todos os
campos do pré sal, ou seja, propõe o fim da exclusividade sem
retirar a preferência da estatal na produção de petróleo.
Analisemos as prerrogativas do ex-senador para seu
Projeto de Lei do Senado. Sucintamente, afirma que "é
inconcebível que um recurso natural de tamanha relevância
nacional sofra um retardamento irreparável na sua exploração
devido a crises internas da operadora estatal. Nesse sentido, são
imprescindíveis as alterações previstas na presente lei com vistas
203
ao restabelecimento de um modelo que garanta a exploração
ininterrupta e maiores possibilidades de ganhos para o Tesouro
Nacional[1]."
Não há como contestar que a Petrobras é fundamental
para a segurança estratégica do Brasil, para sua cadeia produtiva
nacional, para o financiamento do Estado Nacional, para o
investimento público, para o desenvolvimento tecnológico, para a
geração de patentes, dentre outros. Entretanto, não parece ser a
opinião do ministro: documentos revelados pelo Wikileaks sob o
título "Can the oil industry beat back the pre-salt law?", de
Dezembro de 2009 (portanto, antes das eleições nas quais Serra
concorreria como candidato à presidência), apontam que ele já era
contra o atual modelo de partilha, juntamente com as empresas
petroleiras americanas que não desejavam a mudança no marco de
exploração de petróleo no pré-sal, então aprovada pelo governo
no Congresso. Entretanto, não haveria urgência na resolução do
mesmo, uma vez que a regra seria alterada para o velho modelo,
caso ele vencesse a disputa[2]. Deste episódio, fica o
questionamento: quem vai produzir, como e a que velocidade,
para atender as necessidades de quem, em benefício de quem?
Referente ao endividamento da Petrobras, a PLS afirma
que "tem convivido com pressões financeiras que põem em risco
o cumprimento de suas ações nos campos do pré-sal."
Primeiramente, a dívida é constituída para transformar reservas
em produção, no qual seu endividamento se deve à necessidade de
realizar os grandes investimentos imprescindíveis à exploração do
pré-sal; ainda, segundo a Associação Engenheiros da Petrobras,
não cabe comparar a dívida da Petrobras, companhia responsável
pela descoberta das maiores reservas das últimas três décadas, que
possuem reservas que podem crescer e possuem futuro, com a
dívida de companhias com reservas declinantes.
Além disso, todas as petroleiras mundiais estão com alto
endividamento e com dificuldades financeiras em razão dos baixos
preços do petróleo, em torno de US$ 30 o barril, algumas até
mesmo falindo devido aos seus altos custos de extração. Ou seja,
204
mesmo a partir das "regras de mercado", oferecer um ativo ao
capital estrangeiro num momento de desvalorização, "vender na
baixa", não consiste num bom negócio. Apesar do alto
endividamento da Petrobras, a empresa consegue manter alta
lucratividade mesmo com os atuais preços do petróleo, com
baixos custos de extração e alta produção. A dívida da empresa
poderia se tornar um grande problema, porém, na situação em que
a Petrobras perca o acesso às jazidas; nesse caso, a empresa
perderia seu lastro patrimonial, podendo se fragilizar ao ponto de
não conseguir mais operar[3].
No que se refere a falta de recursos para garantia de
participação mínima de 30%, uma empresa que tem entre 50
bilhões de barris (com modestos 25% de taxa de recuperação) a
100 bilhões de barris (com o mais realista 25% de taxa de
recuperação) já comprovados de petróleo no Pré-Sal, não pode ser
apontada como financeiramente incapaz.[4] Contudo, a Petrobras,
além de operar com lucro substancial, tem solidez financeira, pois
está lastreada num fantástico ativo patrimonial: o pré-sal. Ou seja,
não faltarão recursos - seja do mercado financeiro nacional e
internacional - para que a Petrobras continue a investir no pré-sal,
uma vez que a empresa possui expertise, tecnologia e patrimônio
para superar suas atuais dificuldades, gerando lucros e dividendos
muito maiores que seus passivos.
Além do mais, uma empresa que descobriu o pré-sal com
seus esforços, a partir do seu conhecimento da bacia sedimentar
brasileira, assumindo riscos de centenas de milhões de dólares
numa área onde empresas estrangeiras haviam declarado a não
viabilidade de projetos, é capaz de liderar a produção e garantir a
segurança energética, na medida do interesse e do
desenvolvimento nacional.
No que tange a paralisação ou a baixa produção do pré-
sal, buscando reativar a produção do pré-sal, uma vez que,
segundo o PLS, "a exploração do pré-sal tem urgência, pois a
oferta interna de petróleo em futuro próximo dependerá dessa
exploração, sobretudo a partir de 2020", ter-se-iam prerrogativas
205
contrárias e que desmistificam esta assertiva: a produção do pré-
sal alcança mais de um milhão de barris de petróleo equivalente
por dia. A produção da Petrobras em 2015, pela primeira vez nos
últimos 13 anos, superou a meta fixada para o ano, de acordo com
o Plano de Negócios e Gestão da companhia. A marca de 2,128
milhões bpd, atingida em 2015, representa alta de 4,6% diante do
resultado do ano anterior, e é 0,15% acima dos 2,125 milhões
previstos. Se considerada também a extração de gás natural, que
cresceu 9,8% diante do ano anterior, a produção total chega a 2,6
milhões de barris de óleo equivalente por dia (boed) - 5,5% mais
que os 2,46 milhões boed de 2014[5]. Outro ponto seria a
chamada solidariedade intergeracional, no qual deve-se analisar a
questão da produção numa visão estratégica, que não obedeça a
uma lógica de curto prazo e não penalize as futuras gerações, e
sim busque assegurar o desenvolvimento a longo prazo.
Em outra parte do projeto, Serra afirma que "cabe ainda
salientar que, em 2014, o crescimento da oferta de petróleo foi
mais acentuado que o da demanda, o que ocasionou uma forte
desvalorização de seu preço." Apesar da primeira parte estar
correta, a desvalorização do preço do petróleo não pode ser
analisado somente sob o viés da oferta e demanda;
paradoxalmente, o próprio ministro contradiz seu argumento,
alertando que "devem-se considerar os efeitos da conjuntura
internacional sobre a rentabilidade dos projetos do pré-sal",
faltando ao seu projeto levar em consideração aspectos
geopolíticos e geoeconômicos.
Em termos geopolíticos, as multinacionais estão
mobilizadas em alijar a Petrobras da operação única num mercado
altamente competitivo, que possui grandes empresas petrolíferas
que visam cada vez mais aumentar seu raio de ação mundial diante
da escassez e do caráter estratégico dos recursos energéticos. Elas
têm interesse em acelerar a realização dos leilões no pré-sal,
buscando a propriedade do petróleo para a exportação, a fim de
recuperar suas reservas e produção decadentes, sendo a operação
única da Petrobras um entrave para que alcancem tal objetivo.
206
Segundo a AEPET, as empresas multinacionais que já
tiveram mais de 90% das reservas mundiais, atualmente detêm
apenas 10%. Em termos de produção, também perderam sua
hegemonia frente às companhias nacionais, que produzem cerca
de 75% do petróleo mundial, com a tendência de que essas
operadoras nacionais sejam responsáveis por 80% da produção
adicional de petróleo e gás até 2030, conforme previsão da
Agência Internacional de Energia.
Nesse novo cenário, há a exigência de uma grande
operadora para se manter o controle sobre o ritmo da produção,
sobre os custos reais, sobre a remuneração ao Estado, sendo tais
fatos assegurados pelo regime de partilha e pela própria
operadora, no caso a Petrobras. Ainda, ao introduzir um ente
privado e estrangeiro na exploração de seu petróleo, o país está
abrindo mão da possibilidade de usar a garantia de fornecimento
de petróleo, a curto e médio prazo, como um argumento de
comércio e convencimento internacional.
Em termos geoeconômicos, a grande baixa dos preços do
petróleo está relacionada à crise mundial, que contraiu
conjunturalmente a demanda num momento de excesso de oferta,
bem como às disputas sobre o controle do mercado mundial,
particularmente no que tange à viabilidade econômica do óleo de
xisto nos Estados Unidos. Há um claro processo de dumping, que
diminuiu artificialmente o preço do petróleo, mantidos baixos em
razão de conflagração internacional pelo controle do mercado. A
previsão é de que os preços retomem o seu curso normal e o
petróleo voltará a ser uma grande fonte de lucros.
Obviamente, o atual ambiente de dumping produz grande
pressão para que o Brasil comercialize rapidamente o pré-sal.
Entretanto, seria um equívoco nessas condições de preços
artificialmente baixos, o que renderia pouco no presente e
comprometeria muito o processo de exploração no futuro. Ainda,
historicamente, qual país se desenvolveu a partir da exploração e
exportação dos seus recursos naturais finitos por corporações
estrangeiras?
207
A Associação Engenheiros da Petrobras (AEPET) listou
as 14 principais razões porque a Petrobrás deve ser a operadora
única no Pré-Sal: 1) evita o risco de exploração predatória por
possibilitar maior controle sobre a taxa de produção; 2) previne o
risco de fraude na medição da vazão do petróleo produzido e a
consequente redução da fração partilhada com a União; 3) evita o
risco de fraude na medição dos custos dos empreendimentos e da
operação com a consequente redução da fração de petróleo
partilhada com a União; 4) permite a condução dos
empreendimentos e possibilita a adoção de política industrial para
desenvolver fornecedores locais, em bases competitivas, e
promover tecnologias nacionais; 5) garante o desenvolvimento
tecnológico e as decorrentes vantagens comparativas; 6) se
justifica porque a Petrobrás detém tecnologia, capacidade
operacional e financeira para liderar a produção, na medida do
interesse social e do desenvolvimento econômico nacional; 7) é
justa porque a Petrobrás se arriscou e fez enormes investimentos
para descobrir o petróleo na camada do pré-sal; 8) permite que
maior parcela dos resultados econômicos sejam destinados para
atender às necessidades e garantir os direitos dos brasileiros; 9)
promove a geração de empregos de qualidade no Brasil; 10)
permite que maior parcela do petróleo seja propriedade da União;
11) é adequada já que não há necessidade de novos leilões e de
urgência no desenvolvimento de novos campos para atender e
desenvolver o mercado interno; 12) se justifica porque os riscos
são mínimos, a produtividade dos campos operados pela
Petrobrás é alta e os custos são conhecidos pela companhia; 13)
mantem a Petrobrás em vantagem na comparação com seus
competidores; e 14) é essencial porque o petróleo não é uma
mercadoria qualquer e não existe substituto potencial compatível
para a produção de combustíveis líquidos, petroquímicos e
fertilizantes.[6]
Ou seja, os contra-argumentos ao projeto de Serra são
abundantes e contribuem para o debate; entretanto, deve-se
sempre considerar a propriedade do petróleo como estratégica e
sua produção compatível com o desenvolvimento da economia
nacional e submetida ao interesse social. Da perspectiva do
208
Estado, um adequado contrato petrolífero é aquele que, além de
facilitar o desenvolvimento dos recursos, permite gerar benefícios
econômicos em função da apropriação da renda econômica e do
financiamento com capital de risco. As decisões de investimento
se baseiam no potencial geológico do país, no acesso a mercados
favoráveis, nos aspectos jurídicos e legais, no nível das instituições
e num marco fiscal estável e progressivo.
Renunciar à gestão estratégica de um recurso finito e não
renovável, sem a qual o Brasil poderá se converter em mero
exportador de petróleo cru, significa abdicar da riqueza oriunda do
pré-sal, que deve ser utilizada para atender às necessidades e
alavancar o desenvolvimento brasileiro, promovendo uma
indústria forte e diversificada com benefícios sociais, buscando
construir a infraestrutura para produção das energias renováveis e
preparando a sociedade brasileira para o futuro. Essa manutenção
da Petrobras como operadora única do pré-sal corresponde a uma
lógica de longo prazo: o país está em crise e, ao alavancar o
desenvolvimento via recursos do pré-sal, pode-se contribuir para a
sua recuperação, criar as condições para um novo ciclo de
crescimento sólido e duradouro e afastar de vez qualquer
prerrogativa de "maldição do petróleo" da "doença holandesa"[7].
Assim, ainda que o PLS não exclua a prioridade de
escolha dos campos, somente acabando a obrigatoriedade da
Petrobras investir pelo menos 30% em todos os campos do Pré
Sal, esta iniciativa abre espaço para uma prerrogativa de
desmantelamento da companhia, já bastante debilitada pela
Operação Lava Jato e que, no curto/médio prazo, abre a
possibilidade de emergir novas ações que culminem na real perda
de um dos maiores patrimônios brasileiros. Em outros termos,
não consiste numa política de Estado – como requereria uma
grande riqueza nacional – mas sim numa política de Governo;
com a mudança de Governo, a possibilidade de mudança de
estratégia para o pré-sal se torna mais evidente. Este projeto pode
ser interpretado como uma primeira etapa para o retorno do
modelo de concessão, e ainda mais, como afirma Marcelo Zero,
sociólogo membro do Grupo de Reflexão sobre Relações
209
Internacionais (GR-RI): "na realidade, ao se retirar da Petrobras a
condição de operadora única do pré-sal poderia se conduzir a
empresa à falência ou a uma inevitável privatização. Talvez seja
esse um dos objetivos implícitos do projeto.”[8] A ida de José
Serra para o ministério de Relações Exteriores é mais um passo
nessa direção.
Referências bibliográficas
CECEÑA, Ana Esther; PORRAS, Paulo. Los metales como
elementos de superioridad estratégica. In: CECEÑA, Ana Esther;
BARREDA, Andrés (Org.). Producción estratégica y hegemonía mundial.
Cidade do México: Siglo Ventiuno Editores, 1995. p. 141-176.
KLARE, Michael. The race for what's left: The global scramble for
the world's last resources. New York: Picador, 2012.
PALACIO, Luis Emilio Riva. Del Triángulo del litio y el desarrollo
sustentable.: Una crítica del debate sobre la explotación de litio en
Sudamérica en el marco del desarrollo capitalista. 2012. Disponível
em: <http://www.geopolitica.ws/document/del-triangulo-del-
litio-y-el-desarrollo-sustentabl/>. Acesso em: 04 out. 2014.
RAMOS, Gian Carlo Delgado. La gran minería en América
Latina, impactos e implicaciones. Acta Sociológica, Cidade do
México, v. 54, p.17-47, jan./abr. 2010.
SENHORAS, E. M.; MOREIRA, F. A.; VITTE, C. C. S.; A
agenda exploratória de recursos naturais na América do Sul: da empiria à
teorização geoestratégica de assimetrias nas relações
internacionais. 04/2009, 12º Encuentro de Geógrafos de América
Latina - caminando en una América Latina en
transformación.,Vol. 1, pp.1-15, Montevideo, Uruguai, 2009.
YERGIN, Daniel. A busca: Energia, segurança e a reconstrução do
mundo moderno. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
210
[1] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/120179
[2] https://wikileaks.org/plusd/cables/09RIODEJANEIRO369_
a.html
[3] http://brasildebate.com.br/por-que-o-projeto-que-retira-da-
petrobras-a-condicao-de-operadora-unica-do-pre-sal-e-ruim-para-
o-brasil/
[4] http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/6-motivos-para-
a-Petrobras-ser-operadora-unica-do-pre-sal/4/35518
[5] http://www.investidorpetrobras.com.br/pt/comunicados-e-
fatos-relevantes/producao-de-petroleo-e-gas-natural-em-2015
[6] http://dialogopetroleiro.com.br/wp-
content/uploads/2015/12/Aepet-responde-ao-Serra.pdf
[7] “A expressão descreve uma enfermidade que a Holanda
contraiu na década de 1960. Na época, o país estava se tornando
um importante exportador de gás natural. À medida que a nova
riqueza do gás fluía para a Holanda, o restante da economia sofria.
A moeda corrente nacional foi supervalorizada e as exportações
tornaram-se mais cara – e, portanto, declinaram. As empresas
domésticas tornaram-se menos competitivas diante da onda
crescente de importações e uma inflação cada vez maior. Muitos
perderam o emprego, as empresas fecharam as portas. Tudo isso
ficou conhecido como ‘doença holandesa’.” (YERGIN, 2014,
p.119)
[8] http://brasildebate.com.br/por-que-o-projeto-que-retira-da-
petrobras-a-condicao-de-operadora-unica-do-pre-sal-e-ruim-para-
o-brasil/
211
Realismo periférico tupiniquim 47
No dia 10 de abril de 2019, foi estabelecida a marca dos
100 primeiros dias de Jair Bolsonaro na presidência do Brasil.
Ainda que esse período inicial não seja tão representativo, se
considerado um mandato de 4 anos, ele é simbólico em termos
políticos, uma vez que demonstra a orientação desejada pelo
governo recém-eleito.
Nestes termos, a política externa é considerada uma das
áreas que possui maior relevância no novo governo, buscando
desvencilhar-se de seus predecessores e visando uma nova
geometria de poder nas relações internacionais, dizendo
distanciar-se de qualquer viés ideológico em seu discurso. Sob a
tutela de Ernesto Henrique Fraga Araújo, diplomata brasileiro e
atual ministro das Relações Exteriores, o pêndulo da política
internacional brasileira realizou uma rotação de quase 180º,
findando em um movimento para a extrema-direita.
Este texto não busca debater a negação do atual chanceler
acerca do aquecimento global[1], nem uma trama internacional
para transferir poder econômico do Ocidente para a China[2], ou
ainda uma conspiração política da esquerda[3], tampouco a
suposta ideologia anticristã do globalismo[4]ou ainda a influência
no Itamaraty do "marxismo cultural".[5] Ele visa dialogar acerca
do entusiasmo explícito do chanceler brasileiro com a política
externa de Donald Trump, comprovado em seu artigo "Trump e
o Ocidente”.[6]
Em seu artigo, Ernesto Araújo (2017) analisa que a
presidência de Donald Trump propõe uma recuperação da
história e da cultura das nações ocidentais, demonstrando que o
47 Publicado em 10 de abril de 2019.
212
nacionalismo é a essência do Ocidente. Assim, não seria uma
doutrina econômica e política, mas uma vontade divina que agiria
na história, visando inserir o Brasil nessa discussão que mistura
política com religião. Saindo do texto e dos preceitos do ministro
para a realidade concreta dos fatos, seus pensamentos e ações
nada possuem de inovador, apenas replicando algo que ficou
conhecido como "realismo periférico" no âmbito das relações
internacionais, numa versão tupiniquim.
O termo "realismo periférico" surgiu com o cientista
político argentino Carlos Escudé (1992), assessor especial do
ministro das Relações Exteriores da Argentina, Guido di Tella, em
relação à estratégia de política externa daquele país diante das
potências ocidentais. Em termos gerais, é o estabelecimento de
um alinhamento automático e incondicional com os Estados
Unidos.
Segundo esta doutrina, ao considerar a Argentina um país
dependente, periférico, endividado e pouco relevante aos EUA e
países centrais, este deveria reduzir os enfrentamentos e
discordâncias em sua política exterior com a finalidade de atrair
investimentos e facilitar negociações com os organismos
financeiros internacionais. O exemplo prático desta política
externa ocorreu no governo de Carlos Menem (1989-1999)
quando este retirou a Argentina do Movimento dos Países Não-
Alinhados, além da completa identificação da Argentina com a
Aliança Ocidental, chegando-se a dizer, explicitamente, o desejo
de estabelecer "relações carnais[7]" com os americanos.
Na Argentina, a teoria do realismo periférico não resultou
em ganhos significativos, apesar de suas concessões em termos de
privatizações, políticas macroeconômicas, dentre outros. Esse
"tipo ideal de política exterior", segundo Bandeira (2010, p.476),
acabou negando "à Argentina a capacidade de ter uma política
exterior própria, um dos atributos da soberania, e subordinava-a à
dos EUA". Em outros termos, diferentemente de uma política
externa ativa e altiva − ou de exemplos históricos no caso
brasileiro, como a "Política Externa Independente" (1961-1964)
213
de Quadros/Goulart, a "Diplomacia da Prosperidade" (1967-
1969) e o "Pragmatismo Responsável e Ecumênico" (1974-1979),
nos governos militares − o realismo periférico visa o
entrelaçamento ideológico irrestrito com os Estados Unidos,
desconsiderando o tabuleiro de xadrez geopolítico global e as
contrapartidas negativas que tal política pode acarretar em termos
geoeconômicos.
As próprias visitas de Estado aos Estados Unidos e Israel,
logo nos primeiros dias do novo Governo do Brasil, visaram
reafirmar uma versão brasileira dessa análise teórica presente num
passado recente de nosso país vizinho, cuja presença da "essência
do Ocidente" proposta por Ernesto Araújo é intensa. O
estabelecimento de "relações carnais" com os americanos é
explícito, em que não se visualiza nenhum questionamento crítico
de quaisquer políticas estadunidenses, tanto internas quanto
externas, apoiando incondicionalmente todas as ações de Donald
Trump, desde a construção do muro no México até a deportação
de imigrantes brasileiros.
A versão brasileira do realismo periférico se encontra
presente na formulação da política exterior do atual governo
brasileiro, na qual os acordos incluem cessão de território nacional
para lançamento de foguetes sem transferência tecnológica; venda
de ativos nacionais estratégicos sem contrapartida social; liberação
de vistos para estrangeiros sem o princípio da reciprocidade;
incorporação na geoestratégia estadunidense sem ganhos políticos
nem econômicos para o Brasil. Realizando mais um paralelo com
a Argentina da década de 1990,
o que os teóricos do realismo periférico
pretenderam não foi que a Argentina
estabelecesse com os EUA uma relação
madura e equilibrada, construída sobre
razoável balanço de coincidências e
divergências. O que buscaram foi uma
relação especial [...] Desse modo,
conforme o sociólogo José Paradiso
214
observou, os teóricos do realismo
periférico imaginaram que, se o país fora
tão bem, acoplando-se à Grã-Bretanha, a
potência hegemônica no século XIX até
o início do século XX, o aconselhável era
repetir a fórmula que consistia em torná-
la o key country dos EUA.
(BANDEIRA, 2010, p.477)
Em 100 dias de governo Bolsonaro, visualiza-se uma
política interna baseada no liberalismo econômico e no
autoritarismo político, enquanto na política externa retomam-se as
fronteiras ideológicas dos tempos de Guerra Fria somada ao
alinhamento incondicional com o Ocidente, um "realismo
periférico tupiniquim".
Referências bibliográficas
ARAUJO, Ernesto. Trump e o Ocidente. Cadernos de Política
Exterior. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, v. 3, nº 6,
dezembro de 2017. Brasília : FUNAG, 2015, p. 323-358
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados
Unidos: conflito e integração na América do Sul (da Tríplice
Aliança ao Mercosul). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ESCUDÉ, Carlos. Realismo periférico: fundamntos para la nueva
política argentina. Buenos Aires: Planeta; Política y Sociedad,
1992.
[1]"Bolsonaro appoints climate change denier and conspiracy
theorist as foreign minister", Ben Cowles. 15 de Novembro de
215
2018. Disponível em:
https://morningstaronline.co.uk/article/bolsonaro-appoints-
climate-change-denier-and-conspiracy-theorist-as-foreign-minister
[2]"Climate change is a 'globalist' plot to help China, claims pro-
trump brazilian foreign minister", David Brennan, 16 de
Novembro de 2018 Disponível em:
https://www.newsweek.com/climate-change-cultural-marxist-
plot-claims-pro-trump-brazilian-foreign-1218722
[3]"Sequestrar e perverter", Ernesto Araújo. 12 de outubro de
2018. Disponível em:
https://www.metapoliticabrasil.com/blog/sequestrar-e-perverter
[4]"Sou Ernesto Araújo. Tenho 28 anos de serviço público e sou
também escritor. Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem
da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica
que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente
é um sistema anti-humano e anti-cristão. A fé em Cristo significa,
hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a
conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e
Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente,
abrir-se para a presença de Deus na política e na história.
Obrigado pela sua atenção a este blog!" Disponível em:
https://www.metapoliticabrasil.com/about
[5]"Futuro chanceler diz que vai libertar o Itamaraty do
“marxismo cultural”, Estadão Conteúdo. 28 de Novembro de
2018. https://exame.abril.com.br/brasil/futuro-chanceler-diz-
que-vai-libertar-o-itamaraty-do-marxismo-cultural/
[6]Disponível em Cadernos de Política Exterior. Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais, v. 3, nº 6, dezembro de 2017.
Brasília : FUNAG, 2015, p. 323-358
[7]"O próprio ministro das Relações Exteriores da Argentina,
Guido di Tella, declarou: 'Nosotros queremos pertenecer al Club
de Occidente. Yo quiero tener una relación cordial con los
216
Estados Unidos y no queremos un amor platónico. Nosotros
queremos un amor carnal con Estados Unidos. Nos interesa,
porque podemos sacar un beneficio." (BANDEIRA, 2010, p.478)
217
O conservadorismo político brasileiro sob a perspectiva da
teoria marxista da dependência 48
O conservadorismo brasileiro vem avançando na década
de 2010; conservadorismo no sentido denotativo do termo, de um
pensamento político-filosófico alinhado ao tradicionalismo, que se
contrapõe a mudanças abruptas de determinado marco econômico
e político-institucional ou no sistema de crenças, usos e costumes
de uma sociedade. O cenário atual brasileiro é propício e enseja
essa ascensão conservadora: ajuste fiscal, recessão econômica,
inflação elevada, alta taxa de desemprego, aumento da taxa básica
de juros, incontáveis escândalos de corrupção, eleição do
Congresso mais conservador nos últimos anos, imobilidade do
Executivo e do Legislativo, manifestações de rua em massa,
redução da maioridade penal, revogação do Estatuto de
Desarmamento, revogação da participação obrigatória da
Petrobras no pré-sal, tipificação do terrorismo, transferência da
demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo,
criminalização do aborto, e, principalmente, a atual crise política
que se instaura no país.
Entretanto, nos marcos de uma análise do pensamento
crítico latino-americano, a análise conjuntural brasileira e a
ascensão do conservadorismo podem ser visualizadas e
compreendidas através da perspectiva da teoria marxista da
dependência (TMD), que ajuda a identificar tendências e
interpretar o momento conturbado e complexo que se vive no
país na atualidade. Logo, a análise dos autores dependentistas e a
sua reutilização como ferramenta metodológica – ressaltando a
sua reformulação, revisão e atualização teórica crítica – enseja
hipóteses interpretativas referentes ao papel do conservadorismo
brasileiro contemporâneo. Dessa maneira, pode-se abordar três
48 Publicado em 13 de abril de 2016.
218
enfoques da TMD: a categoria dominantes-dominados, o
colonialismo ideológico-cultural e a superexploração do trabalho.
Ressalta-se que cada tópico poderia ser convertido num estudo
muito mais complexo, no qual se busca somente pontuá-los de
forma sucinta a fim de proporcionar um debate, demonstrando
indícios e chaves interpretativas para se pensar a realidade.
A categoria de dominantes-dominados, proposto por
Vânia Bambirra em seu livro "O capitalismo dependente latino-
americano", se refere à dependência não somente em termos
econômicos, mas também políticos. A dependência política não
seria compreendida apenas como a imposição da interferência
estrangeira no plano nacional, mas, sobretudo, como parte de uma
dependência
que faz com que o processo de tomada
de decisões por parte das classes
dominantes (...) seja dependente. Como
os países dependentes são parte
constitutiva do sistema capitalista
internacional, suas classes dominantes
jamais gozaram de uma real autonomia
para dirigir e organizar suas respectivas
sociedades. A situação de dependência
termina por confrontar estruturas cujas
características e cuja dinâmica estão
subjugadas às formas de funcionamento
e às leis de movimento das estruturas
dominantes. (BAMBIRRA, 2012, p.143-
144)
Ou seja, para as classes dominantes-dominados[1] (classe
política e econômica dominante no cenário interno, e dominada
no cenário externo), a aceitação seria a única forma de
manutenção do sistema de exploração, “abrindo as portas da
economia dependente para a penetração e domínio do capital
estrangeiro.” (BAMBIRRA, 2012, p.145)
219
Internacionalmente e historicamente, os Estados
hegemônicos buscam subjugar a capacidade dos "Estados da
periferia de executar estratégias de superação do
subdesenvolvimento e da dependência." (GUIMARÃES, 2005,
p.349) Essa subjugação, a partir da categoria analisada, é realizada
concomitantemente no interior dos próprios países, incluindo o
Brasil, a partir de parcelas da população e do corpo político que
buscam uma "aceitação" enquanto parte de uma "elite
internacional" ou uma inserção subordinada.
Já o colonialismo ideológico-cultural refere-se tanto ao
bloqueio político e intelectual imposto à teoria marxista da
dependência no Brasil, quanto ao colonialismo do saber,
predominantemente na universidade, mas também constatado nas
práticas políticas e sociais. Assim, a necessidade de rompimento
com o eurocentrismo – forma hegemônica de controle da
subjetividade/intersubjetividade, em particular no modo de
produzir conhecimento – e com o liberalismo são opções para a
reconstrução do pensamento científico, partindo de forças
teóricas que apresentam uma história e uma trajetória de
confrontação a eles.
Atualmente, como afirma Ouriques (2014, p.30), "a
ignorância brasileira sobre as ciências sociais latino-americanas
não pode mais ser justificada senão como expressão de
colonialismo intelectual e/ou simplesmente, conveniência
política", devendo-se buscar uma perspectiva que busque romper
com o colonialismo ideológico-cultural e com a colonialidade do
saber
O pensamento conservador reproduz e se apresenta
"como expressão das experiências de colonialismo e de
colonialidade do poder, das necessidades e experiências do
capitalismo e da eurocentralização de tal padrão de poder."
(RODRIGUES; FIGUEIREDO, 2012) Assim, o Brasil se
encontra entre muros, onde existe a dificuldade do pensamento
em se livrar das estruturas normativas do indivíduo moderno, de
uma individualidade centrada na redução "egológica" do sujeito e
220
de um colonialismo do pensamento, muitas vezes perpetrado e
influenciado pela mídia e pelos meios de comunicação.
No que tange à superexploração do trabalho, consiste
num dos mais emblemáticos estudos realizados pelos autores da
teoria da dependência, tendo como formulador principal Ruy
Mauro Marini, sendo identificado em três mecanismos: “la
intensificación del trabajo, la prolongación de la jornada de trabajo
y la expropiación de parte del trabajo necesario al obrero para
reponer su fuerza de trabajo.” (MARINI, 1991)
Na atualidade, é fundamental aprofundar o domínio
teórico do conceito inaugurado por esses autores, pois a
“emergência das chamadas empresas globais, como uma etapa
mais avançada da transnacionalização empresarial, é chave nesse
processo de globalização da superexploração.” (MARTINS, 2011,
p.292-293) Desta forma, não há indícios de modificação no
padrão histórico da superexploração do trabalho no Brasil, apenas
ajustamentos a sua forma a fim de que se estabeleçam ganhos
sociais mínimos.
Entretanto, mesmo esses pequenos resultados positivos
não amenizaram o padrão regulatório do capitalismo brasileiro na
égide do conservadorismo político, que a todo custo busca
eliminar direitos sociais e reintensificar a superexploração do
trabalho contra as políticas de elevação do salário mínimo, de
renda mínima e de aumento do poder de compra da população de
baixa renda. Ou seja,
a emergência da crise econômica, a partir
de 2012, leva as classes dominantes e o
grande capital internacional a conspirar
contra o projeto centrista impulsionado
pelos governos petistas [...] reforçando a
superexploração do trabalho, em parte
limitada pelas políticas de elevação do
salário mínimo.[2] (MARTINS, 2016)
221
Assim, a partir de uma interpretação da teoria marxista da
dependência acerca do pensamento conservador brasileiro, pode-
se destacar que a simbiose e o transformismo do petismo,
acompanhados da metáfora do "ornitorrinco" e da "hegemonia às
avessas" de Francisco de Oliveira, traduzem a crise política de um
pensamento progressista, uma vez que tais características
insuflaram a luta de classes e as contradições do capitalismo
brasileiro, ao invés de superá-las. Além disso, no atual cenário
político, o ponto capital da relação e contiguidade entre o
movimento conservador e o fascismo merece ser pontuado, como
destacou Theotonio dos Santos, em seu livro "Socialismo ou
fascismo".
O enfrentamento da desigualdade e a busca da
desconstrução das assimetrias regionais são possivelmente os
maiores desafios da sociedade brasileira, no qual essa nova etapa
de ascensão do pensamento conservador no Brasil pouco tem a
contribuir. Figurativamente, vistos de cima, somos todos anões; e
vistos de baixo, somos todos gigantes. A única maneira de buscar
ser uma sociedade mais igualitária e justa é recuperando a
horizontalidade solidária do olhar, vendo-se como iguais, olho no
olho.
Referências bibliográficas
BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-
americano. Florianópolis: Insular, 2012.
GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de America Latina. Buenos
Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010.
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era dos
gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia. 11ª ed. Cidade do
México: ERA, 1991.
222
MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo
na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O
ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
_______; BRAGA, Ruy; RIZEK, CIBELE (orgs.) Hegemonia às
avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira.
São Paulo: Boitempo, 2010.
OURIQUES, Nildo. O colapso do figurino francês: Crítica às ciências
sociais no Brasil. Florianópolis: Insular, 2014.
RODRIGUES, Bernardo Salgado; FIGUEIREDO, Talita Estrella
Figueira. Colonialidade na América Latina e a
descompartimentalização do saber. Revista Habitus, Vol. 10 - Nº2,
ano 2012.
SANTOS, Theotonio dos. Socialismo o Fascismo. Buenos Aires:
Ediciones Periferia, 1972.
[1] Eduardo Galeano, famoso escritor uruguaio, também
mencionava esta categoria em seu clássico, Las venas abiertas de
América Latina, afirmando que “la lluvia que irriga a los centros
del poder imperialista ahoga los vastos subúrbios del sistema. Del
mismo modo, y simétricamente, el bienestar de nuestras clases
dominantes – dominantes hacia dentro, dominadas desde fuera –
es la maldición de nuestras multitudes condenadas a una vida de
bestias de carga.” (GALEANO, 2010, p.17)
[2] http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/carlos-
eduardo-martins/
223
O óbito da política externa ativa e altiva 49
Desde a primeira eleição de Lula para a presidência,
evidencia-se uma inflexão da política externa brasileira (PEB),
representando “um verdadeiro protagonismo nas relações
internacionais, com a intenção real de desenvolver uma
diplomacia ativa e afirmativa, encerrando uma fase de estagnação
e esvaziamento.” (VISENTINI, 2013, p.112) Esta “nova geografia
econômica” atualizou a “construção de uma nova ordem
econômica internacional” (SANTOS, 2005, p.18) numa “clara
visão de que era necessário reequilibrar o jogo político e
econômico mundial.” (AMORIM, 2013, p.120) Em outros
termos, como afirma o ex-chanceler, Celso Amorim, seria a
construção de uma política externa ativa e altiva, associando-se
com seu entorno estratégico e pólos emergentes no sistema
internacional.
No lado oposto, visualizam-se as diretrizes da nova
política externa brasileira, proposta pelo ministro interino, José
Serra, em discurso de posse no Ministério de Relações Exteriores
(MRE), no dia 18/05/2016. [1] As dez diretrizes propostas (e suas
críticas) são: 1 - "desideologização" da política externa brasileira
(negação de que todo discurso, ainda que se proponha anti-
ideológico, é ideológico); 2 - defesa da "democracia" (de um
governo ilegítimo) e princípio de não ingerência (seletiva); 3 -
responsabilidade ambiental (a fim de "receber recursos caudalosos
de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar
as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta", no
qual interesses de empresas internacionais e preservação ambiental
são um paradoxo por si só); 4 - soluções pacíficas e negociadas
para os conflitos internacionais em todos os foros globais e
regionais (com exceção do seu entorno estratégico latino-
49 Publicado em 23 de maio de 2016.
224
americano); 5 - iniciativa de negociação de acordos bilaterais de
comércio (negando a tendência multilateral das relações
internacionais); 6 - abertura de mercados e concessões na base da
reciprocidade equilibrada (não visualizando as externalidades
negativas para o setor produtivo nacional); 7 - renovar o Mercosul
alinhando-o às diretrizes da Aliança do Pacífico (buscando
alinhamento ideológico com as políticas externas de México e
Argentina na conjuntura atual, e, contradizendo a diretriz número
1, uma vez que busca, na retórica, uma diplomacia "não mais das
conveniências e preferências ideológicas"); 8 - ampliação do
intercâmbio com Europa, Estados Unidos e Japão (alinhamento
com antigas potências hegemônicas e revertendo a lógica Sul-Sul
de aproximação com países emergentes); 9 - relação com países
asiáticos e africanos a partir de uma "solidariedade estreita e
pragmática" (e não a partir de uma visão geoestratégica de longo
prazo); e 10 - políticas de comércio exterior visando a
competitividade e a produtividade (utilizando-se de mecanismos
contrários a prerrogativa e/ou reproduzindo o conceito de
deterioração dos termos de troca, uma vez que não delineia quais
setores da economia seriam incorporados na ampliação das
exportações brasileiras, historicamente primário-dependentes). Ou
seja, o Golpe de Estado Institucional instaurado é refletido nas
relações internacionais, buscando reverter a prática de um política
externa ativa e altiva de maior protagonismo brasileiro no cenário
internacional.
Analisando a realidade a partir de uma pespectiva
continental latino-americana, houve experiências que utilizaram a
mesma metodologia, ensaios de golpes de Estado que não
necessitaram dos exércitos: foi o caso de Honduras (2009) e
Paraguai (2012), assim como as tentativas de golpe no Equador
(2010), Bolívia (2008) e Venezuela (2002). Tais ações fazem parte
de um projeto de recolonização continental, uma vez que as
grandes potências buscam, principalmente, nos recusos naturais
estratégicos da região a fonte para a estruturação futura de suas
economias. Ou seja, o golpe no Brasil representa um golpe contra
o projeto de integração regional sul-americana, não somente
contra o Governo em si.
225
A reação de governos estrangeiros, com um
posicionamento contrário ao processo de impeachment tal qual
fora realizado, além de ratificar a indignação internacional diante
de um golpe institucional, revela também a preocupação de que
essas práticas, travestidas de legalidade, possam se disseminar no
mundo, principalmente na América Latina, que, com a ascensão
de projetos de direita (como apontado no artigo “O pêndulo
latino-americano de Polanyi”), buscam promover a
desestabilização de governos democraticamente eleitos, quando
não conseguem chegar ao governo pelas vias legais (tendo como
exceção a Argentina de Macri).
A nomeação de José Serra rompe com uma tradição
diplomática brasileira cujos ministros correspondem aos
profissionais com histórico de carreira e competência na área
internacional. Ainda, não possui preparo técnico, envergadura
política e legitimidade institucional para liderar a chancelaria
brasileira. Além dessa deformação prática, a nomeação de Serra é
um possível ato estratégico, tanto para a conciliação da oposição
pós-golpe quanto para o seu projeto eleitoral visando às eleições
de 2018, seja pelo fortalecimento da ideologia do PSDB e/ou pela
mudança de partido do ex-senador para o PMDB, mirando a
corrida presidencial, uma vez que em seu atual partido existe a
concorrência de Aécio Neves e Geraldo Alckmin.
Assim, algumas tendências desta nova política externa
brasileira podem ser apontadas:
1- Reaproximação ideológica com os EUA: uma vez que
sempre foi a orientação e matriz ideológica do PSDB, partido do
atual ministro interino e que encontra muitos adeptos no
Itamaraty;
2- Ruptura Sul-Sul: afastamento da PEB baseada na
“Política Sul-Sul”, tanto em seu entorno estratégico sul e latino-
americano (MERCOSUL, UNASUL, CELAC) como com os
países emergentes (BRICS, IBAS);
226
3- Diminuir a influência chinesa: tanto no Brasil como na
América Latina, com o aval dos EUA, cuja região sempre foi
considerada como seu espaço geoestratégico por excelência, desde
a Doutrina Monroe (1823);
4- Abertura comercial e financeira ortodoxa: com
possibilidade de inserção no TTP (como apontado no
artigo “TPP, TTIP, TISA e a geopolítica da "Segunda Guerra
Fria");
5- “Soberania às avessas”: a partir da submissão às
grandes potências, de um lado, e a ingerência nos assuntos
internos de outros países da região, por outro;
6- Pré-sal em cheque: retomada do projeto de Lei
131/2015, de autoria de Serra, que autoriza a não-obrigatoriedade
da Petrobras nos campos do Pré-sal, num projeto inicial de
desnacionalização e posterior privatização da Petrobras.
Em termos gerais, como bem destaca Marcelo Zero, a
nova política externa traria a adesão acrítica a esses acordos ou
mesmo a acordos bilaterais de livre comércio com os EUA,
implodiria o Mercosul e a integração regional, tornaria inútil a
nossa participação no BRICS e inviabilizaria a vertente Sul-Sul da
nossa política externa. Voltaríamos a ter uma política externa
dependente, periférica, que orbitaria em torno dos interesses da
única superpotência do planeta e de seus aliados tradicionais. [2]
Ainda, essa mudança no MRE representa a dualidade da
elite intelectual e política conservadora brasileira: comportam-se
como vira-latas diante das potências ocidentais e com extrema
prepotência perante seus vizinhos. Essa nova política diverge dos
interesses brasileiros perante sua região e parceiros emergentes
estratégicos, claramente entrando em choque e contradição com
uma posição ativa e altiva.
Para o campo progressista, nacionalista e/ou de esquerda,
além da constante luta multifacetada, ainda mais importante é a
227
construção de um novo paradigma, que conjugue a unidade,
diante da fragmentação atual, com mudança radical. Na última
década, se iniciou o resgate de um projeto nacional-
desenvolvimentista, autônomo e multilateral da política externa
brasileira. É essencial à esquerda torná-lo uma política de Estado
do MRE, uma orientação que almeje o consenso, independente de
orientações econômicas e partidárias.
Referências bibliográficas
AMORIM, Celso. Breves narrativas diplomáticas. São Paulo: Benvirá,
2013.
SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G.. A América do Sul no
discurso diplomático brasileiro. Revista Brasileira de Política
Internacional, Brasília, v. 48, n. 2, p.1-20, jul. 2005.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A projeção internacional do Brasil:
1930-2012: diplomacia, segurança e inserção na economia
mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
[1] http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-
entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/14038-
discurso-do-ministro-jose-serra-por-ocasiao-da-cerimonia-de-
transmissao-do-cargo-de-ministro-de-estado-das-relacoes-
exteriores-brasilia-18-de-maio-de-2016
[2] http://brasilnomundo.org.br/analises-e-opiniao/o-papel-da-
politica-externa-na-restauracao-do-neoliberalismo-
tardio/#.Vz1FCvkrLIW
228
Parte 5
A disputa pelo Poder global: Estados
Unidos e China
229
230
A histórica estratégia hemisférica dos Estados Unidos na
América Latina 50
Desde a concepção de James Monroe até a presidência de
Barack Obama, houve a trajetória de um expansionismo
estadunidense limitado ao continente americano para um
planetário. Entretanto, a América Latina continua a ser – do
ponto de vista geoestratégico – a região mais importante para os
Estados Unidos, fato este constatado em sua preocupação, desde
seus primeiros anos como nação, em elaborar uma postura
política que abarcasse desde o sul do Rio Bravo até a Terra do
Fogo.
Desde a constituição dos Estados Unidos como país
independente da Inglaterra, em 1776, se alternam períodos da
clássica oposição entre isolacionismo e intervencionismo sobre a
política externa norte-americana[1]. Entretanto, no que tange ao
continente latino-americano, Spykman afirma que “os países da
América Latina já concluíram há muito tempo, isto é, que aos seus
olhos a política externa dos EUA, desde Monroe, sempre foi
intervencionista.” (COSTA, 1992, p.172)
Assim, a partir do momento em que os Estados Unidos
despontaram como potência regional capaz de disputar o
território das Américas com os europeus, sua história no mundo
se orientou pelas linhas gerais marcadas pelo presidente James
Monroe (1817-1825), que no dia 2 de dezembro de 1823 enviou
ao Congresso norte-americano a famosa mensagem de que o
continente americano não deveria aceitar nenhum tipo de
intervenção europeia. Coube a América Latina ser a destinatária da
primeira doutrina de política externa elaborada pelos Estados
Unidos.
50 Publicado em 30 de janeiro de 2017.
231
Ao longo de todo o século XIX, a política externa
estadunidense para a região foi embasada por esse princípio:
inicia-se a sua expansão para além dos seus territórios contíguos,
começando desde a anexação da Flórida, em 1819, até a conquista
da Califórnia pela posse dos territórios mexicanos em 1848.
Ainda, adquire da Rússia o Alasca, em 1867; instala a base naval
de Pearl Harbor no Havaí (1877), anexando o arquipélago em
1898; confronta-se com a Inglaterra nas disputas fronteiriças da
Guiana Inglesa com a Venezuela (1895); entra em guerra com a
Espanha sob o pretexto de auxiliar Cuba em sua luta pela
independência (1898), acabando por transformar a ilha em seu
protetorado e principal entreposto para a segurança das rotas no
Golfo do México, assim como para a defesa do canal que
projetava abrir no istmo do Panamá. Além disso, ao terminar a
guerra e vencida a Espanha, passam para o seu domínio, além de
Cuba e Porto Rico no Caribe, Tutuila, no arquipélago de Samoa, e
Guam, ao sul do Pacífico, quinze milhas a leste das Filipinas.
(BANDEIRA, 2014, p.770)
Todas essas anexações possuem um significado além de
objetivos territoriais: uma busca moral e política. Na metade do
século XIX, surge o slogan da Doutrina do Destino Manifesto,
com o jornalista John O'Sullivan, que pleiteava que os Estados
Unidos seriam o povo eleito por Deus para civilizar, cobrir e
possuir o continente americano, justificando seu ímpeto
expansionista a partir de uma vocação divina para com as nações
do mundo em favor da liberdade.
No final do século XIX, a Doutrina Monroe foi
rejuvenescida por Theodore Roosevelt com um corolário,
"mediante o qual racionalizou o direito de intervir em outros
Estados latino-americanos, sobretudo na América Central e no
Caribe." (BANDEIRA, 2009, p.47) Esta doutrina, sintetizada no
lema “a América para os americanos” e na política externa do Big
Stick, passou a ser a ideologia utilizada para objetivos estratégicos,
que consistia em manter sua hegemonia sobre todo o Hemisfério
Ocidental, conquistar e assegurar as fontes de matéria-prima e os
mercados da América do Sul para as suas manufaturas, alijando do
232
subcontinente a competição da Grã-Bretanha e de outras
potências industriais da Europa. (BANDEIRA, 2009, p.47) Em
outros termos, os dois mandatos de Roosevelt configuraram a
"first imperial presidency" (BANDEIRA, 2014, p.54-55), uma vez
que foi manifesta a convicção de instaurar uma hegemonia em seu
hemisfério com justificativa para a segurança dos Estados Unidos.
Desta feita, sobrepujou sua esfera de influência no Caribe e na
América Central e transformou a sua marinha na segunda mais
poderosa do mundo, iniciando seu desenvolvimento atrelado ao
militarismo.
Em 1903, os Estados Unidos auxiliam a revolução no
Panamá a fim de separar a região do istmo da Colômbia e ensejar,
assim, a imediata assinatura e construção do canal interoceânico
(cuja inauguração foi realizada em agosto de 1914) na cintura do
continente americano, possibilitando a junção das frotas do
Atlântico e do Pacífico, que os transformou numa grande potência
marítima, em termos de marinha mercante e de guerra. Para os
Estados Unidos, o absoluto domínio do Golfo do México e do
mar das Antilhas, o “Mediterrâneo Americano”, seria de crucial
importância para a sua segurança.
Uma nova etapa da política externa norte-americana é
inaugurada a partir da Segunda Guerra Mundial: não somente há
um projeto para a América Latina, como este é ampliado para um
escopo global. Nos anos críticos de 1945-47, há uma passagem
que liga a atmosfera interna e as operações externas em uma única
frente: do New Deal para a Doutrina Truman. (ANDERSON,
2015, p.39) A partir dessa nova política nacional, os Estados
Unidos iniciavam a prerrogativa de interferir em qualquer parte do
globo a partir do discurso sobre os perigos do comunismo e a
necessidade de sua contenção para a segurança nacional. Na
América Latina, foi utilizado para combater, principalmente, o
movimento de guerrilhas, e instaurar governos militares alinhados
aos seus interesses.
O ponto nevrálgico desta nova configuração é o
estabelecimento do Sistema de Bretton Woods, onde foram
233
estabelecidos os parâmetros de gestão econômica internacional
para as relações econômicas e financeiras. Tem-se a criação de
uma série de instituições que estabelecem a primazia dos Estados
Unidos como pólo econômico, político e militar, tais como o
FMI, o BIRD, o GATT, a ONU e seu Conselho de Segurança, o
Plano Marshall, a OTAN, a OEA, o TIAR, a JID, a CIA. Esta
nova arquitetura do capitalismo mundial consiste numa política
integral que busca uma integração planetária nos moldes
americanos.
A batalha contra o comunismo consistiu na pedra angular
de uma estratégia de dominação mundial perpetrado pelos EUA
na Guerra Fria. Na busca da contenção do “perigo vermelho”,
definiu-se uma política continental que se anunciava como uma
Aliança para o Progresso, idealizado como proposta inicial em
discurso de John F. Kennedy, um plano de dez anos entre os
"governos livres" do continente que buscariam eliminar a "tirania"
do hemisfério. Na América Latina, sua maior expressão foi o
Plano Condor (ou Operação Condor), em que os serviços de
inteligência do Chile, da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do
Uruguai acordaram estabelecer uma rede internacional de
comunicações, ações conjuntas de coordenação de repressão
visando eliminar os adversários dos regimes ditatoriais existentes
no Cone Sul (BANDEIRA, 2014, p.368), inaugurando "um novo
sistema de inteligência multinacional, baseado na tortura e no
desaparecimento dos militantes presos, completamente
inescrupuloso e violador dos direitos humanos." (CECEÑA,
2006, p.588)
Este quadro de repressão militar financiado pelos EUA
foi amplamente disseminado na América Latina até meados dos
anos 1980, quando um novo contexto internacional emerge e
modifica a orientação estratégica norte-americana. Esta nova etapa
do capitalismo contemporâneo é iniciada com a iniciativa da
globalização neoliberal preconizada pelo Consenso de
Washington, com o eixo fundamental deste processo de
acumulação – a financeirização da economia. No contexto latino-
americano, a onda neoliberal significou a perda da autonomia na
234
gestão econômica dos governos nacionais a partir dos impulsos às
reformas de liberalização econômica pró-mercado, que perderam
significativa capacidade de controlar sua economia e formular
políticas de acordo com sua específica realidade social.
Em 1990, a “Iniciativa para as Américas” tinha o objetivo
declarado da criação de uma zona de livre comércio que se
estendesse “do porto de Anchorage à Patagônia”. O primeiro
passo seria o estabelecimento de uma zona de livre comércio que
incluísse o Canadá, os Estados Unidos e o México – o North
American Free Trade Agreement (Nafta) –, com ambições de
englobar toda a América Latina em data futura: fato este que foi
confirmado com a iniciativa da ALCA, Área de Livre Comércio
das Américas.
A ALCA representava parte da estratégia
de manutenção da hegemonia econômica
e política dos Estados sobre a América
do Sul, porquanto, muito mais do que
uma tradicional área de livre comércio,
ela, se implantada, envolveria
compromissos internacionais nas áreas
do comércio de bens e serviços, de
investimentos diretos, de compras
governamentais, de patentes industriais,
de normas técnicas e, muito
provavelmente, de meio ambiente e
padrões trabalhistas. Seu propósito
central consistia em criar um conjunto de
regras, a fim de incorporar os países da
América do Sul, sobretudo o Brasil, ao
espaço econômico (e ao sistema político)
dos Estados Unidos, de forma
assimétrica e subordinada, limitando sua
capacidade de formular e executar
política econômica própria.
(BANDEIRA, 2009, p.53)
235
O próprio projeto da ALCA se enquadrava no contexto
do Projeto para o Novo Século Americano (PNAC), sendo
considerado a maior tentativa estadunidense de buscar efetivar a
América Latina como sua zona geoestratégica, uma vez que a
proposta de integração regional ocultava objetivos geopolíticos,
com respeito "à segurança continental, mediante o fortalecimento
das instituições democráticas e combate ao narcotráfico e ao
terrorismo." (BANDEIRA, 2009, p.52)
Entretanto, o projeto não foi viabilizado, em grande
medida devido à posição contrária de diversos governos e de
movimentos sociais da região. Apesar de ter sido derrotado seu
grande projeto estratégico para a América Latina no século XXI,
os Estados Unidos vem realizando uma sucessão de medidas,
principalmente no governo Obama, que, no fundo, almejam a
consolidação de sua influência por todo o território americano.
Essas ações se realizam através da influência e
proeminência do regionalismo aberto, das assinaturas de Tratados
de Livre-Comércio (TLC’s), da criação da Aliança do Pacífico, do
Trans Pacific Partnership (TPP), do Transatlantic Trade and
Investment Partnership (TTIP) e do Trade in Service Agreement
(TISA), abordados no artigo "TPP, TTIP, TISA e a geopolítica da
'Segunda Guerra Fria'."[2]
O principal objetivo político e militar dos Estados
Unidos, após a Guerra Fria, consiste em impedir o ressurgimento
de um novo rival de poder global, intervindo nas fontes de
conflitos regionais e focos de instabilidade. Para a América Latina,
a geoestratégia estadunidense sempre buscou estabelecer laços
institucionais a fim de controlar o continente americano como um
todo. Assim, seis pontos de análise são fundamentais para
compreender a sua geoestratégica na América Latina, com reflexos
mundiais:
1) visar conter a expansão do Brasil (através do
MERCOSUL e da UNASUL), uma vez que essas repercussões
236
ideológicas e geopolíticas de inserção autônoma entram em
choque com o projeto hemisférico estadunidense;
2) buscar ocupar militarmente a América do Sul, usando
tanto quanto possível as forças militares dos próprios países, com
a finalidade de assegurar o controle das reservas, produção e
fluxos dos recursos naturais estratégicos,tais como petróleo, água
e biodiversidade.;
3) realizar ações encobertas ou penetrações políticas, a
fim de desestabilizar e derrocar governos democraticamente
eleitos e instaurar/impor seus princípios de economias abertas,
liberalização do comércio, desregulamentação das atividades
econômicas e disciplina fiscal/contenção de gastos públicos;
4) refrear a influência da China no sudeste asiático, na
América Latina e inclusive na própria Eurásia, onde recentes
acordos entre China e Rússia alertam para o histórico problema
do controle geopolítico do coração continental eurasiano;
5) constituir uma maior presença na Bacia do Pacífico,
devido ao aumento da sua importância global nos últimos anos,
principalmente em termos comerciais, nos quais parte substantiva
dos países latino-americanos possuem papel fundamental;
6) minar os esforços dos países dos BRICS, que vem
estabelecendo acordos multiníveis, como estabelecimento de um
Banco de Desenvolvimento e de um Fundo de Contingências;
7) estabelecer as bases de uma nova hegemonia global
unilateral dos Estados Unidos, caso se finalizem os acordos do
TTIP e o TISA, uma espécie de "OTAN econômica"
(ANDERSON, 2015, p.129), assim como sua hegemonia política
(Conselho de Segurança da ONU) e militar (complexo industrial-
militar de ponta).
Esta prioridade estratégica da América Latina é realizada
por diversos fatores políticos, econômicos e geopolíticos: a
237
América Latina é seu espaço estratégico por excelência, em que é
posto aos países latino-americanos girar como satélites dos
centros internacionais dominantes, em especial dos Estados
Unidos. Constata-se que a desintegração política é um meio de
preservar essa desintegração econômica, no qual a política
imperialista estadunidense busca desestabilizar qualquer tentativa
de tentar formar um movimento político de dimensão continental
capaz de programar a quebra da estrutura econômica dependente
e subdesenvolvida.
Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos.
São Paulo: Boitempo, 2015.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império
Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. 4. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Geopolítica e política
exterior: Estados Unidos, Brasil e América do Sul. Brasília:
Fundação Alexandre Gusmão, 2009.
CECEÑA, Ana Esther. Geopolítica. In: SADER, Emir;
JINKINGS, Ivana (Org.). Latinoamericana: enciclopédia contemporânea
da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo Editorial; Rio
de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 2006. p.
582-593.
COSTA, Wanderley Messias da. Geografia política e geopolítica. São
Paulo: Hucitec; Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Quem tem medo da geopolítica? São
Paulo: Hucitec; Edusp, 1999.
238
[1] “Os isolacionistas afirmavam que o país deveria adotar uma
política de ‘esplêndido isolamento’ em relação ao mundo exterior
e opunham-se a um maior envolvimento americano nos assuntos
extracontinentais, especialmente nas querelas políticas europeias.
Ao contrário, os intervencionistas advogavam a necessidade de
uma ação direta americana, se alterações do equilíbrio de poder
mundial colocassem em perigo a segurança e os interesses do país,
a exemplo da intervenção militar na Primeira Grande Guerra.”
(MELLO, 1999, p.94)
[2] http://www.dialogosinternacionais.com.br/2016/01/tpp-ttip-
tisa-e-geopolitica-da-segunda.html
239
Complexo industrial-militar estadunidense: passado e
presente 51
Desde o final do século XIX – quando o governo dos
Estados Unidos, para fortalecer sua esquadra, começou a
demandar vários encouraçados à indústria pesada e metalúrgica –
se inicia o denominado complexo industrial-militar, constatando-
se a importância do militarismo como campo de acumulação de
capital, de luta pelo domínio de territórios e do aperfeiçoamento
constante dos meios de produção/destruição.
O militarismo constituía, então, o meio
privilegiado de realização do excedente
econômico, i.e., de acumulação de
capital, fundamental ao seu crescimento e
à sua expansão. Desde o início do século
XX, tornava-se, portanto, necessário
alimentar continuamente a indústria
bélica e os grandes negócios, nos quais os
militares e industriais se associavam,
forjando um clima de ameaças, um
ambiente de medo, de modo a compelir
o Congresso a aprovar vultuosos
recursos para o Pentágono e para outros
órgãos vinculados à defesa.
(BANDEIRA, 2014, p.211-212)
O termo "complexo industrial-militar" tem origem a
partir das correlações entre militarismo, indústria e pesquisa
tecnológica (principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial,
tendo Eisenhower cunhado o seu termo), constituindo a base da
51 Publicado em 8 de maio de 2017.
240
economia estadunidense até os dias atuais e, destarte, sendo o caso
mais emblemático,
onde inúmeros investigadores mostraram
a enorme influência dos imperativos
bélicos para a pesquisa científica de
universidades e de institutos ligados a
empresas, para a inovação tecnológica
nos ramos mais avançados da indústria
(eletrônica, informática, naval,
aeroespacial, química, nuclear, etc.) e até
para próprio volume de produção das
principais firmas multinacionais.
(VESENTINI, 1990, p.58-59)
Analisando o Orçamento de defesa em dólares e em
termos de percentagem do total, podemos observar um aumento
dos gastos militares na primeira década de 2000, ultrapassando os
600 bilhões de dólares e 20% do orçamento total, devido,
principalmente, às Guerras do Iraque e Afeganistão durante o
governo Bush, seguido de uma diminuição no segundo governo
Obama, a partir das reduções das operações em larga escala no
Oriente Médio, mas que ainda representa um sexto do orçamento
federal direcionado para gastos militares.
Como porcentagem do PIB, as despesas militares
americanas da década de 1990 até 2015 oscilaram entre 3% e 6%,
segundo dados oficiais. (Banco Mundial, World Development
Indicators). Além disso, o orçamento militar dos Estados Unidos
corresponde a 35% do orçamento militar mundial (2016), quase
três vezes maior que o orçamento da China e mais de oito vezes o
da Rússia.
Em fevereiro, o governo Trump enviou a proposta
orçamentária para o ano fiscal em curso, cujos aumentos dos
gastos militares "históricos"[1] em defesa seriam na ordem de
10%, ou 52 bilhões de dólares, totalizando 639 bilhões[2].
Concomitantemente a esse aumento, cortes seriam realizados em
241
outros programas, levando a profundas reduções nos programas
federais de caráter não-militar. A Casa Branca sinalizou que
começaria os cortes em agências como a United States
Environmental Protection Agency (Agência de Proteção
Ambiental), com redução de 24% do orçamento, uma redução de
2 bilhões de uma agência que possui orçamento anual de 8,1
bilhões; a Internal Revenue Service (a Receita Federal
estadunidense), que seria amortizada em 14% por cento; os
programas de seguridade social, que possuem divergências nos
cortes, inclusive entre os republicanos; e de ajudas americanas ao
exterior.[3]
O 45º presidente estadunidense disse que expandiria o
Exército para 540.000 tropas de serviço ativo de seus atuais
480.000; aumentaria o Corpo de Fuzileiros Navais para 36
batalhões de 23 – ou até 10.000 fuzileiros navais a mais –;
impulsionaria a Marinha para 350 navios e 276 submarinos; e
elevaria o número de aeronaves táticas da Força Aérea para 1.200
de 1.100. Ainda, reforçaria o desenvolvimento de defesas de
mísseis e capacidades cibernéticas. [4] Tais aumentos dos gastos
em defesa visam incrementar a construção naval, de aeronaves
militares e, sobretudo, estabelecer uma presença mais vigorosa em
vias-chave de navegação internacionais e em choke points (rota
estratégica estreita que fornece passagem através de/para outra
região), tais como o Estreito de Hormuz e o Mar do Sul da China.
O projeto final do orçamento será apresentado em maio
pela administração Trump, no qual o Congresso – controlado
pelos republicanos – deve avaliá-lo e aprová-lo, sob constantes
oposições. Ainda que tradicionalmente o projeto prévio
orçamental seja considerado como a descrição das prioridades da
Casa Branca, enquanto o orçamento final resulte das negociações
e compromissos entre a Administração e o Congresso, o
considerável aumento proposto por Trump neste primeiro ano – e
que tende a ser progressivo nos próximos três anos de mandato –
retoma o enfoque militarista da atuação americana no exterior.
242
Entretanto, os gastos militares de anos prévios foram
postos em prática antes mesmo da aprovação do orçamento
proposto por Trump. O ataque à base aérea na Síria, no começo
de abril, em retaliação a um suposto ataque químico numa cidade
de opositores de Bashar al-Assad, foi a primeira amostra do
ímpeto intervencionista militar do governo Trump, sendo
inclusive a primeira vez que fora realizado um ataque
estadunidense direto contra o regime sírio. [5] Tal iniciativa, ao
não levar em consideração o Conselho de Segurança da ONU e
até mesmo a aprovação do próprio Congresso Americano[6], abre
uma prerrogativa perigosa em termos político-militares.
A crescente tensão entre Estados Unidos e Coreia do
Norte, devido aos testes com armas nucleares por conta do país
asiático, alertam para a escalda militar na região e intensificação
militar dos Estados Unidos no Leste Asiático. A presença
estadunidense na Península Coreana, mais especificamente no Mar
do Japão e no Mar Amarelo, com seu USS Carl Vinson (CVN-70,
um super-porta-aviões de propulsão nuclear norte-americano da
classe Nimitz) e o USS Michigan (o segundo submarino de mísseis
guiados por energia nuclear da classe Ohio na Marinha dos
Estados Unidos), assim como a realização de exercício conjuntos
entre a Marinha dos Estados Unidos e o Japão[7], a instalação de
um sistema antimísseis na Coreia do Sul[8], são alguns fatores que
corroboram o ímpeto militarista no início do mandato de Trump,
assim como o histórico da influência do complexo industrial-
militar na economia estadunidense.
Referências bibliográficas
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império
Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. 4. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
VESENTINI, José William. Imperialismo e geopolítica global: espaço e
dominação em escala planetária. 2. ed. Campinas: Papirus, 1990.
243
[1] http://www.reuters.com/article/us-usa-trump-budget-
idUSKBN1661R2
[2] https://www.theguardian.com/us-
news/2017/mar/16/trump-military-budget-proposal-congress-
obama-spending-cap
[3] https://www.nytimes.com/2017/02/27/us/politics/trump-
budget-military.html?_r=0
[4] http://www.reuters.com/article/us-usa-trump-budget-
idUSKBN1661R2
[5] https://www.theguardian.com/world/2017/apr/06/trump-
syria-missiles-assad-chemical-weapons
[6] https://www.usnews.com/news/politics/articles/2017-04-
06/can-the-president-attack-another-country-without-congress
[7] http://www.nydailynews.com/newswires/news/national/lates
t-uss-carl-vinson-exercises-japan-air-force-article-1.3097307
[8] http://www.reuters.com/article/us-southkorea-usa-thaad-
idUSKBN17R2VA
244
TPP, TTIP, TISA e a geopolítica da "Segunda Guerra
Fria"52
Desde a derrocada do bloco socialista e a desintegração
da União Soviética, os Estados Unidos continuam a implementar
uma estratégia de dominação contra a presença da Rússia e, mais
recentemente, da China, na Eurásia e no Oriente Médio. Como
afirma Luiz Alberto Moniz Bandeira em seu livro, "A Segunda
Guerra Fria", a peleja não se alimenta da ideologia, mas de
interesses estratégicos dos EUA, Rússia e China, onde a Guerra
Fria continua em uma etapa histórica superior, como demonstram
os acontecimentos na Ucrânia, na Síria e nos demais países do
Oriente Médio. Apesar de, em termos geoestratégicos, os maiores
focos de tensão da "Segunda Guerra Fria" se concentrarem na
Eurásia, assim como na Guerra Fria de 1945-1991, essa rivalidade
geopolítica transcende as barreiras geográficas e engloba todo o
sistema internacional.
Para os Estados Unidos, seus principais objetivos
estratégicos no século XXI são: 1) manter sua hegemonia militar
em todo o globo; 2) manter sua hegemonia sobre os sistemas de
comunicações e de informação; 3) manter sua hegemonia nos
organismos econômicos internacionais (como OMC e FMI); 4)
manter sua hegemonia sobre o acesso e vias de acesso a recursos
naturais no território de outros países; 5) manter sua hegemonia
política (principalmente através do Conselho de Segurança da
ONU); 6) manter a vanguarda americana no desenvolvimento
científico e tecnológico; e 7) manter abertos os mercados de todos
os países para seus capitais e para suas exportações de bens e
serviços. [1]
52 Publicado em 11 de janeiro de 2016.
245
Neste último aspecto, o Trans Pacific Partnership (TPP),
acordo assinado em 2015 pelos EUA com outros países
pertencentes à Bacia do Pacífico, é o exemplo mais elucidativo
para a garantia através de negociações e normas multilaterais dessa
abertura. Da mesma maneira, a tática estadunidense busca ampliar
sua estratégia global através do Transatlantic Trade and
Investment Partnership (TTIP) e do Trade in Service Agreement
(TISA), acordos ainda em andamento.
O TPP[2] é o maior acordo regional na história, sob a
liderança dos Estados Unidos, cujas economias combinadas são
responsáveis por 40% do PIB mundial, 25% das importações
mundiais, 30% das exportações mundiais e 11 % da população
mundial, com 800 milhões de habitantes, abrangendo países
latino-americanos (Chile, México, Peru), da Ásia (Japão, Brunei,
Cingapura, Vietnã e Malásia) e da Oceania (Nova Zelândia e
Austrália). Este acordo de livre comércio, negociado a portas
fechadas e com cláusulas de confidencialidade, tem por objetivo
reduzir as barreiras comerciais, maior acesso a mercados,
estabelecer um quadro comum para a propriedade intelectual,
regras de origem, defesa comercial, compras públicas, serviços,
investimentos, comércio eletrônico, telecomunicações, regras do
direito do trabalho e direito ambiental, coerência regulatória e
constituir um mecanismo de resolução de litígios entre investidor-
Estado.
O TTP é alvo de críticas tanto na sociedade civil norte-
americana[3] como nos demais países signatários, uma vez que os
acordos foram realizados de maneira confidencial e possuem
diversas externalidades negativas, como a possível queda dos
empregos dentro dos Estados Unidos e a massiva entrada de
produtos estadunidenses nos demais países, por vezes destruindo
as incipientes indústrias nacionais de médio-alto valor agregado.
Dentre as inúmeras controvérsias resultantes da assinatura deste
acordo pelos países membros, três se destacam pela perda de
soberania que acarretará aos países de menor poder político e
econômico: no que se refere à propriedade intelectual, estabelece
sistema de responsabilidade para os prestadores de serviços de
246
Internet, permitindo que os provedores de serviço determinem
unilateralmente quando se está infringindo a propriedade
intelectual e limitando, assim, a privacidade; no tocante aos
investimentos, consolida o sistema investidor-Estado, permitindo
que empresas multinacionais demandem e obtenham dos
governos indenização quando haja mudanças nas leis que
prejudiquem seus lucros futuros; e quanto ao acesso a
medicamentos, através da proteção de dados, as empresas
farmacêuticas manterão direito de fórmula, bloqueando a entrada
de medicamentos genéricos – e mais baratos – ao mercado.
O TTIP[4] é uma proposta de acordo de livre
comércio entre a União Europeia e os Estados Unidos, agregando
28 países, com aproximadamente 60% do PIB mundial, 33% do
comércio mundial e 42% do comércio mundial de serviços. [5] O
tratado busca aumentar o volume de exportações e importações
entre o bloco e os EUA, além de intensificar os investimentos e
determinar mais facilmente a procedência dos produtos,
reduzindo custos através da regulação/equalização de regras,
buscando reduzir as barreiras comerciais como direitos
aduaneiros, burocracia, restrições ao investimento e remoção de
tarifas.
Entretanto, o acordo prevê um golpe às políticas sociais e
ambientais[6][7]: os Estados deverão atuar em base às
considerações comerciais; contempla a criação de um Investment
Court System (ICS), tribunal privado que outorga às
multinacionais o direito a demandar aos Estados quando
consideram que as leis são obstáculos ao comércio; tentativa de
ressuscitar a ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement),
culminando numa violação da privacidade e liberdade de
expressão; problemáticas referentes à segurança alimentar, como a
autorização dos Organismos Geneticamente Modificados e
utilização de hormônios de crescimento na carne; liberalização e
desregulamentação dos serviços financeiros, com maior
participação do setor financeiro no processo legislativo; aumento
da duração das patentes dos medicamentos, impossibilitando a
venda de genéricos a preços mais acessíveis, assim como serviços
247
de emergência poderão ser privatizados e, assim, destruindo o
NHS (National Health System) europeu; diminuição dos padrões
de proteção ambiental, como a autorização da exploração de gás
de xisto (fracking), proibido na Europa e permitido nos EUA,
dentre outros.
O TISA[8] é um acordo comercial atualmente negociado
por 23 membros da Organização Mundial do Comércio (OMC),
incluindo a UE, correspondendo a aproximadamente 70% do PIB
mundial e 70% do comércio mundial de serviços. O acordo é
baseado no General Agreement on Trade in Services (GATS) da
OMC, no qual as propostas são pautadas na abertura dos
mercados e melhoria das regras de comércio internacional em
áreas como licenciamento, serviços financeiros, telecomunicações,
e-commerce, transporte marítimo, e empregos profissionais
estrangeiros e temporários para prestação de serviços.
As críticas a este acordo talvez sejam as mais enfáticas,
uma vez que abrange todo o globo terrestre, e não somente um
espaço geopolítico específico. Uma vez que as rodadas de
negociação da OMC se encontram estagnadas, acordos mais
liberais têm sido estabelecidos em paralelo (como os tratados
bilaterais e o próprio TISA), principalmente por conta da
resistência de alguns países emergentes. Com o vazamento da
confidencialidade do acordo pelo Wikileaks, em 2014 [9], as
críticas ao projeto somente aumentaram [10]: proposição de listas
negativas de cada país para exclusão do acordo; status quo,
preservando-se o grau de liberalização vigente; cláusula
“trinquete”, definindo que qualquer desregulação promovida em
um país que seja parte do acordo se torna imediatamente
permanente; cláusula para o futuro, no qual os termos do acordo
valem para os serviços hoje e que venham a existir no futuro;
proibição de normas nacionais e restrição a regulações locais;
liberalização não diferenciada, o que valerá sempre aos países que
façam parte do TISA o acordo mais liberalizante estabelecido
pelos mesmos com qualquer outro país; bases jurídicas sólidas e
painéis arbitrais independentes, onde o julgamento em caso de
controvérsia se daria em tais painéis, sem qualquer subordinação
248
às leis nacionais ou mesmo aos tratados internacionais; leis não
necessárias, no qual o acordo contém uma cláusula que permitirá
que qualquer empresa ou Estado membro do TISA possa arguir
que uma lei nacional ou uma política de Estado prejudica a livre
concorrência; e divulgação pública somente cinco anos depois de
assinado o acordo.
Assim, nos termos geopolíticos de uma "Segunda Guerra
Fria", cinco pontos de análise são fundamentais:
1) na América Latina, e especialmente na América do Sul,
a assinatura do TPP visa conter a expansão do Brasil através do
MERCOSUL e da UNASUL, onde as repercussões ideológicas e
geopolíticas de tal acordo podem fraturar a região e suas
possibilidades de inserção autônoma;
2) refrear a influência da China no sudeste asiático, uma
vez que o tratado abrange cinco países da Ásia, e inclusive na
própria Eurásia, onde recentes acordos entre China e Rússia
alertam para o histórico problema do controle geopolítico do
coração continental eurasiano;
3) estabelecer uma maior presença na Bacia do Pacífico,
devido ao aumento da sua importância global nos últimos anos,
principalmente em termos comerciais;
4) minar os esforços dos países dos BRICS, que vem
estabelecendo acordos multiníveis, como estabelecimento de um
Banco de Desenvolvimento e de um Fundo de Contingências; e
5) caso se finalizem os acordos do TTIP e o TISA, ter-se-
ia o estabelecimento das bases de uma nova hegemonia global
unilateral dos Estados Unidos.
A crise de 2008 iniciou um processo em curso no sistema
global que abre uma janela de oportunidade, tanto para os países
no topo da estrutura hierárquica internacional quanto para os
países emergentes. A janela aberta pela "Segunda Guerra Fria"
249
pode ser explorada de forma definitiva a fim de declarar a
soberania dos países emergentes ou perpetuar sua dependência e
posição secundária no sistema internacional. Os tempos de crise
são uma ordem a se decifrar, uma oportunidade a se buscar, uma
transformação a se desejar; são sempre momentos difíceis, mas
também de mudanças, de novas oportunidades; é o tempo
histórico para rever os erros do passado e construir novas
estratégias de empoderamento democrático e igualitário no
sistema internacional.
Referências bibliográficas
[1] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Segunda Guerra
Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p.20-22
[2] https://ustr.gov/tpp/
[3] http://www.citizen.org/TPP
[4] http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/
[5] https://parceriatransatlantica.wordpress.com/
[6] http://www.independent.co.uk/voices/comment/what-is-ttip-
and-six-reasons-why-the-answer-should-scare-you-9779688.html
[7] https://parceriatransatlantica.wordpress.com/
[8] http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/tisa/
[9] https://wikileaks.org/tisa/
[10] http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/tisa-a-
pior-ameaca-aos-servicos-ja-vista-5750.html
250
Eleição estadunidense de 2016: projeto do novo século
americano ou caos sistêmico? 53
No dia 20 de janeiro de 2017, Donald Trump tomou
posse como 45º presidente dos Estados Unidos. Dentre as
inúmeras controversas que a surpreendente eleição do magnata
estadunidense ocasionou, duas se destacam num pensamento de
médio-longo prazo nas relações internacionais: se as eleições de
2016 consistiriam numa renovação do Projeto do Novo Século
Americano (em inglês, Project for the New American Century,
PNAC), ou se acarretaria no caos sistêmico, proposto por
estudiosos de distintas correntes teóricas.
No início do século XXI, a governança global dos
Estados Unidos consistiu no PNAC, elaborado pelos neocons do
Partido Republicano desde os anos 1990, que buscava a
hegemonia unilateral dos Estados Unidos no sistema mundial,
cujo objetivo declarado de promover a liderança mundial
estadunidense desfazia qualquer intenção de poder global voltado
para a multipolaridade ou o equilíbrio de poder. O Projeto
exerceu influência sobre os altos escalões do governo dos Estados
Unidos durante os mandatos do presidente George W. Bush no
que se refere ao desenvolvimento militar e da política externa,
particularmente com referência à segurança nacional e à guerra do
Iraque. Assim, consiste numa tentativa de trazer à existência o
primeiro império verdadeiramente global na história do mundo.
(ARRIGHI, 2008)
Em contrapartida, o caos sistêmico se conforma como a
desestabilização da configuração dominante de poder
hegemônico, corroendo e alterando a estrutura da hierarquia de
poder e riqueza entre Estados e empresas: "a perturbação tende a
53 Publicado em 20 de janeiro de 2017.
251
reforçar a si mesma, ameaçando provocar, ou de fato provocando,
um colapso completo na organização do sistema." (ARRIGHI;
SILVER, 2001, p. 42). Assim, seria a situação de desorganização
sistêmica aguda e aparentemente irremediável, em que as
expansões financeiras constituem num caráter contraditório neste
processo, uma vez que mantêm a organização do sistema sob
controle, inflando temporariamente o poder do Estado
hegemônico em declínio através da liquidez nos mercados
financeiros mundiais, fortalecendo a competição interestatal e
interempresarial, elevando os conflitos sociais, e transferindo o
capital para estruturas emergentes mais seguras e lucrativas.
Essa previsibilidade é obscura devido à instabilidade e
complexidade que se anuncia após a eleição de Donald Trump.
Entretanto, uma análise da configuração do seu Governo e do
ambiente internacional apontam tendências que possivelmente
influenciarão nos desdobramentos políticos dos Estados Unidos a
partir de 2017.
As nomeações do secretariado e alto escalão de seu
Governo estão repletas de multimilionários e personalidades
ligadas ao mercado financeiro e empresas bilionárias, como Rex
Tillerson, presidente da ExxonMobil e magnata do petróleo, como
secretário de Estado (pasta de maior prestígio depois da
presidência); Steven Mnuchin, ex-funcionário do Goldman Sachs
e financista de Hollywood, como secretário do Tesouro; James
Mattis, apelidado de "mad dog" e general linha-dura e anti-islã,
como secretário de Defesa; Jeff Sessions, senador pelo Alabama
contrário a política de imigração e a favor da construção do muro
na fronteira do México, como secretaria de Justiça; Ryan Zinke,
ex-comandante das forças de operações especiais SEALs e que
sempre votou contra pontos da agenda ambientalista, como
secretário do Interior; Wilbur Ross, bilionário conhecido na
reestruturação de empresas falidas (até mesmo do próprio
Trump), contrário ao NAFTA e a entrada da China na OMC,
como secretário de Comércio; Andrew Puzder, dono de uma
cadeia de fast food e crítico da regulamentação trabalhista do
presidente Obama e dos salários mínimos mais altos, como
252
secretário do Trabalho; Tom Price, deputado pela Geórgia que se
opõe ao Obamacare (Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente),
como secretário de Saúde; Rick Perry, ex-governador do Texas e
com fortes ligações com a indústria petrolífera, como secretário de
Energia; Betsy Devos, bilionária defensora da privatização da
educação, como secretária de Educação; John F. Kelly, general da
reserva e crítico da entrada de drogas e imigrantes pelo México,
como secretário da Segurança Interna.
Todas essas nomeações são extremamente preocupantes
para o eleitorado que o elegeu (pessoas brancas, sem curso
superior, de renda baixa a média e que trabalham na indústria
manufatureira tradicional) e para o mundo (protecionismo da
maior economia do mundo). Entretanto, tal configuração
governamental não é nenhuma novidade: consiste num reforço da
aliança ente setor privado e público[1], tão conectadas nos
Estados Unidos desde o final do século XIX, quando se inicia o
complexo industrial-militar. Não há condições de reverter as
diretrizes da política industrial e exterior dos Estados Unidos no
curto-médio prazo devido as pressões dos lobbies financeiros,
políticos e midiáticos, assim como as resistências internas nos
aparelhos de Governo e do Congresso, e não seria a eleição de
Trump o estopim de tal movimento.
No plano internacional, três questões se destacam: o
deslocamento de poder para a Ásia e o papel da América Latina
(para os Estados Unidos) nessa nova configuração; a ascensão do
radicalismo nacionalista de direita nos Estados Unidos e no
mundo; e um cenário econômico complexo e de futuras crises.
A aproximação de Trump com Putin tem objetivos
geopolíticos no plano internacional: acessar os recursos
energéticos russos no Ártico, no qual seu secretário de Estado
possui papel fundamental ao possuir, desde 2011, um acordo
entre a ExxonMobil e a estatal russa Rosneft, referente à indústria
do petróleo; suavizar o papel da Alemanha na União Europeia e
destruir o papel centrista que pretende jogar na Europa; e
enfraquecer a relação sino-russa-iraniana, que vem se
253
configurando em torno de projetos estratégicos, buscando isolar
os três países e, principalmente, a China. Entretanto, o país
asiático já possui estratégias delineadas a partir de um mandato
estadunidense de mudanças drásticas[2], e consiste num potencial
estabilizador mundial e promovedor de acordos comerciais
alternativos, diante das incertezas estadunidenses e retirada do
Tratado Trans-Pacífico. [3] Ou seja, visualiza-se o início de uma
reorientação estratégica, por parte da China, para se adequar a um
mundo menos centrado nos Estados Unidos. [4]
Na América Latina, a tensa relação com o México (e a
possível renegociação do NAFTA [5]) é um prelúdio das relações
com os países latino-americanos, ocasionando uma possível fuga
de capitais estadunidenses para alguns países da região devido
à expectativa de elevação da taxa de juros nos Estados Unidos em
função do aumento nos gastos públicos, acarretando uma possível
valorização do dólar e impactando negativamente a inflação e
importadores latino-americanos.
Ainda referente a agenda estadunidense para a região, há
duas perspectivas: uma de distanciamento relativo, tal qual fora
realizado no Governo George W. Bush e ratificado por uma
agenda mais doméstica e cética com respeito à globalização (e que
abre espaço para a atuação mais incisiva da China), e outra
baseada numa retomada mais enfática dos Tratados de Livre
Comércio bilaterais em detrimento de projetos hemisféricos,
detendo maior poder de persuasão nas negociações e buscando
contrapor a expansão chinesa e ascensão do Brasil. Entretanto, no
que tange a segurança, a presença político-militar, a atuação das
empresas e financiamentos americanos na extração dos recursos
naturais, tal agenda tende a ser constante e atuante.
Outro ponto seria a ascensão do radicalismo nacionalista
de direita, um fenômeno marcante da segunda metade do século
XXI, não somente nos Estados Unidos, mas na Europa, América
Latina e no mundo. Atualmente, há uma descrença no modelo de
democracia liberal, visualizada como fonte de imprevisibilidade,
corrupção e nepotismo, cujas crescentes taxas de abstenção por
254
parte dos eleitores que consideram a política algo distante de sua
vida prática deturpa a própria noção de governo representativo.
Neste sentido, a vitória de Trump, tido como outsider, antipolítico
e salvador da pátria para fazer a América grande outra vez,
fortalece essa tendência conservadora e, em certo sentido, de
contestação, nos Estados Unidos e no mundo, no qual discursos
populistas de direita, racistas, xenófobos e misóginos tendem a se
disseminar.
Indubitavelmente, a crise no sistema financeiro afetou e
afetará a estrutura econômica dos Estados Unidos, sustentada,
principalmente, pelo complexo industrial-militar. Seja no Governo
eleito ou nos próximos que virão, alguns especialistas afirmam que
os Estados Unidos não terão mais recursos para continuar
subsidiando a indústria bélica e toda a sua cadeia produtiva, sendo
inevitável reduzir seus gastos militares.
O presidente Trump, mesmo que trate de reduzir o déficit
fiscal dos Estados Unidos (fato pouco provável), terá pouca
margem de manobra e poder de barganha em determinadas
agendas, não podendo, por exemplo, cortar substancialmente as
encomendas com que o Pentágono subsidia a indústria militar,
uma vez que diversas empresas desse complexo industrial
quebrariam, aumentando o desemprego e arrasando os Estados
onde estão instaladas. Suas principais preocupações deveriam ser,
a princípio, os déficits gêmeos e a dívida externa, que tendem a
crescer e provocar uma bolha, representada pelo complexo
industrial-militar e inflada com recursos públicos. "Esta bolha
mais dias menos dia vai estourar, como aconteceu com a bolha do
sistema financeiro e a indústria automobilística." (BANDEIRA,
2009, p.41-42)
Em outros termos, a contraposição entre o Projeto de
Novo Século Americano e o caos sistêmico é provocativa e não
definitiva, uma vez que a inédita eleição de Trump e a correlação
de forças internas (nos Estados Unidos) e externas (no sistema
internacional) no século XXI são incógnitas em diversos sentidos.
Porém, um axioma é presente: Donald Trump nada mais é do que
255
a expressão máxima do ambíguo e convergente papel de homens
públicos e homens de negócios (statesman e businessman) nos
Estados Unidos, "que saem das grandes corporações para o
governo e vice-versa, através da porta-giratória do complexo
industrial-militar e financeiro, predominante em Washington"
(BANDEIRA, 2016, p.142), e que, agora, é o presidente da nação
econômica e militarmente mais poderosa do mundo.
Referências bibliográficas
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e
fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly J. Caos e governabilidade no
moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora
UFRJ, 2001.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Geopolítica e política
exterior: Estados Unidos, Brasil e América do Sul. Brasília:
Fundação Alexandre Gusmão, 2009.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A desordem mundial: o espectro
da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
[1] http://outraspalavras.net/terraemtranse/2016/12/20/capital-
e-poder-os-empresarios-na-politica-norte-americana/
[2] http://en.siis.org.cn/index.php?m=content&c=index&a=sho
w&catid=22&id=591
[3] http://americasquarterly.org/content/how-trump-benefits-
china-latin-america
256
[4] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/13/opinion/1481645
514_886736.html
[5] http://www.ictsd.org/bridges-news/pontes/news/trump-
quer-renegocia%C3%A7%C3%A3o-do-nafta-e-sa%C3%ADda-
da-tpp-no-in%C3%ADcio-de-seu-mandato
257
Economia política do desenvolvimento da China 54
A China é o fenômeno da economia política do
desenvolvimento mais intrigante e desafiador do século XXI. Ao
realizar sua estratégia a partir da segunda metade do século XX,
ela vem intrigando o mundo com suas elevadas e contínuas taxas
de crescimento que somente podem ser analisadas a partir de uma
infinidade de fatores que convergem para um objetivo único:
trazer a China para o topo dos grandes players internacionais.
Em termos de padrões de acumulação, a China teria que
ultrapassar os umbrais do desenvolvimento tradicional baseado na
dependência de recursos, capital e força de trabalho, evitando as
suas armadilhas, transformando seu modelo de desenvolvimento
em vias sustentáveis interna e externamente. Tal padrão de
acumulação vem gerando crescentes tensões nos últimos anos,
como: de demanda, com excesso de capacidade produtiva da
indústria pesada; distributiva, com a exaustão do regime de alto
crescimento, elevação dos salários reais e aumento das tensões
capital-trabalho; tecnológica, com o esgotamento da
modernização da tecnologia importada e conseqüente declínio da
complementaridade tecnológica com os EUA e o Japão; e
geopolítica, com a afirmação da China como centro econômico
asiático, com crescente competição e conflitos regionais sobre
controle de fronteiras, de matérias-primas, alimentos e energia.
Tal mudança de paradigma ficou conhecida na literatura
acadêmica como “o Novo Normal”, cuja inovação é identificada
como fundamental neste processo em curso, com uma política
industrial e esforço tecnológico de elevação substancial dos
recursos em P&D em tecnologias chaves (cujo aumento foi de
170% entre 2005 e 2010), com prioridade em tecnologias centrais,
54 Publicado em 31 de julho de 2017.
258
como softwares e semicondutores, que busque sair da simples
fabricação de produtos para a criação de novos produtos, novos
desenhos: substituir o modelo "Made in China" para o "Created in
China". Assim, visa a:
1) mudança no padrão de acumulação, distribuição de
renda e criação de mecanismos de coesão social;
2) catch-up tecnológico com tecnologia endógena;
3) novas frentes de expansão de âmbito regional como
eixo de ampliação de mercados para a indústria pesada e naval,
segurança energética e investimento em infraestruturas (rotas
comerciais).
Em termos econômicos, a China dobra seu PIB per capita
de forma muito acelerada, em termos absolutos e comparativos
com outras nações ao longo da história, crescendo de forma
ininterrupta desde 1952 (lançamento do primeiro plano
qüinqüenal) em taxas de crescimento médio de 7%. Ao agir como
"duplo-pólo na economia mundial" (MEDEIROS, 2006), há um
aumento e manutenção dos preços internacionais das
commodities com a estabilização ou baixo crescimento dos preços
da manufatura, cujos termos de troca favoráveis aos países
periféricos produtores de commodities possibilitaram a expansão
mundial do consumo de massa com redução da pobreza absoluta.
Em outros termos, durante o boom das commodities, a
estratégia econômica chinesa no mundo tinha uma ênfase nas
relações comerciais. Entretanto, após a crise de 2008 e a
inauguração de sua estratégia de going global (financiamento de
suas empresas para conseguir novos mercados mundiais), com
ênfase em investimentos (via IED) e financiamentos (oil for loan)
em setores estratégicos como infraestrutura e minérios, a China
deixa de ser receptora de capitais e passa a ser exportadora,
influenciando distintos rincões geográficos com vultuosas
quantidades de investimentos. Para a China, as razões deste
259
processo seriam a articulação entre excesso de capacidade, busca
de novos mercados e expansão do modelo de acumulação.
No que se refere ao Estado chinês, sua trajetória é
marcada pelo enfrentamento de diversas contradições internas,
que desafiam a ampliação e aprofundamento do modelo mais
equitativo: um padrão de acumulação centrado no Estado em
contraponto a ordem neoliberal, mas que incorpora muito de seus
elementos. Em outros termos, uma contradição entre um
socialismo de mercado ou um capitalismo de Estado.
Entretanto, há uma capacidade do Estado na interferência
direta na economia, principalmente no setor externo, que fazem
prevalecer o poder político de comando. O Estado não perde seu
poder de articulação: ele é o ator chave do desenvolvimento
chinês. O núcleo duro do setor produtivo chinês se concentra em
149 conglomerados empresariais/estatais, que se voltam para
setores estratégicos da economia chinesa, que consistem nos
executores dos interesses estratégicos do Estado. Ou seja, existe a
formação de “policy space” fundamental para que um país como a
China possa ter controle sobre a política monetária, fiscal,
financeira e industrial.
Em termos geopolíticos e nas relações exteriores, a Nova
Rota da Seda (One Bealt One Road) e a Nova Rota da Seda
Marítima são as novas frentes de expansão do capitalismo chinês,
e fazem parte de uma mesma estratégia de alargamento da
integração internacional e conexão da Ásia, Europa e África. São,
ao mesmo tempo, um projeto de ampliação das relações
comerciais, culturais e de investimentos com os países da Eurásia
historicamente envolvidos na rota da seda, mas, ao mesmo tempo
uma forma de escoamento do excesso de capacidade da indústria
pesada (aço) em projetos de infraestrutura que formam o núcleo
da estratégia. Toda essa infraestrutura continental e marítima visa,
em certo sentido, contrapor ao TPP (criado pelo governo Obama
na busca de cercar e minar a expansão econômica chinesa na Ásia
e Pacífico) e inviabilizar os cercos que são realizados por outros
260
países em seu entorno estratégico imediato e no seu acesso ao Mar
do Sul da China.
Ainda, a paralisia das organizações multilaterais (como
ONU, OMC, OIT) abriu espaço para que os BRICS agissem de
forma mais enfática, que, conjugado com a crise de 2008, culmina
na sua criação como entidade internacional. Ainda que os BRICS
emirjam sob a hegemonia neoliberal (países híbridos da ordem
neoliberal, mas com papel central e chave do Estado na
coordenação e indução do desenvolvimento econômico), o grupo
vem criando novos espaços de política doméstica e internacional
convergentes sob o jugo de Estados desenvolvimentistas, com
descentralização do poder e da ordem internacional.
Ao analisar tais elementos, começa-se a compreender que
a importância para a China no mundo é crescente. Em 1816, ao
saber do fracasso da tentativa inglesa em estabelecer relações
diplomáticas com a China, Napoleão Bonaparte profetizou uma
frase que se faz cada vez mais presente: "Quando a China
despertar, o mundo tremerá!"
261
América "LaChina": nova etapa da dependência latino-
americana? 55
A China é o fenômeno mais ilustrativo da nova etapa de
reprodução do sistema mundial na atualidade. Com uma
economia que cresce a taxas de 10% a.a. ao longo de duas
décadas, vem influenciando a economia mundial, alterando preços
e deslocando fluxos de comércio e de investimento.
Recentemente, houve a constatação do interesse chinês na
evolução de suas relações exteriores com a América Latina que,
consequentemente, exerce uma influência recíproca.
Entretanto, a partir deste novo alinhamento geopolítico,
conjetura-se a hipótese de uma nova etapa da dependência latino-
americana a partir da crescente participação chinesa,
principalmente com relação aos recursos naturais. Esse câmbio
estrutural de maior vínculo com a potência asiática na reorientação
da balança comercial, de investimentos e de financiamento
materializa alternativas econômicas e políticas, cujos países latino-
americanos devem avaliar se, e em que grau, tal cooperação é
pertinente para alavancar sua potencialidade produtiva, ou se,
opostamente, constitui apenas uma retórica reprodutora de
padrões de subordinação escamoteados.
Atualmente, a China corresponde a um centro cíclico
regional, no qual pauta sua estratégia de desenvolvimento na
busca de uma inserção internacional conhecida como going
global. A partir dessa estratégia, foram elaboradas diretrizes para o
investimento externo, que podem ser resumidas em três principais
objetivos: acessar recursos naturais escassos no país, fomentar a
industrialização e o desenvolvimento tecnológico das empresas
nacionais, e aumentar a competitividade das empresas chinesas
55 Publicado em 26 de setembro de 2016.
262
por meio da promoção de marcas no exterior e da construção de
uma rede global de produção e fornecimento. (COELHO et AL.,
2015)
Desde meados da década de 1990 até a atualidade,
diversos estadistas chineses reafirmaram a importância da América
Latina para a estratégia de política externa da China, cujos
interesses econômicos e políticos passam a ser cada vez mais
convergentes. O China's Policy Paper On Latin America And The
Caribbean é considerado um marco nas relações sino-
latinoamericanas, a partir do momento em que insere a América
Latina nos interesses de política externa imediata. Exemplo disso é
que, ao longo dos últimos anos, houve a assinatura de inúmeros
acordos intergovernamentais com mais de vinte nações latino-
americanas, assim como o desenvolvimento de relações bilaterais
mediante parcerias estratégias.
Entre 2002 e 2011, a corrente de comércio (exportações
mais importações) entre a China e a região aumentou em
aproximadamente 13 vezes. Neste período, as exportações da
América Latina para a China elevaram-se de US$ 6,2 bilhões para
US$ 86,3 bilhões, enquanto as importações foram multiplicadas
por 127 (de US$ 0,4 bilhão para US$ 45,5 bilhões)
(Comtrade/ONU), passando a ocupar uma posição privilegiada
nas relações comerciais com os países da região. Em 1993, a China
consumiu menos de 2% das exportações da América Latina, mas,
em 2013, foi responsável por 9%. Entretanto, essa importância
foi bastante desigual entre os diferentes setores de exportação: a
China triplicou a sua quota do total das exportações latino-
americanas na última década, mais do que triplicou as exportações
de produtos extrativos e duplicou a sua quota das exportações
agrícolas. Em contrapartida, sua demanda por bens
manufaturados continua constante, em cerca de 2% das
exportações de manufaturados da América Latina. (RAY et al,
2015)
A China tem sido um motor importante na expansão da
exportação de bens agrícolas e extrativos da América Latina. A
263
demanda chinesa também desempenhou um papel no aumento do
nível geral da maioria das commodities durante o período,
elevando significativamente os termos de troca em favor da
América Latina. (RAY et al, 2015) Entretanto, parte significativa
dos países da região possui déficit comercial com a China. Ainda,
é preciso destacar que o padrão de comércio, mesmo nos países
superavitários, foi marcado por uma relação assimétrica, em que
se verificaram elevados superávits em favor da região nos
produtos primários e nas manufaturas intensivas em recursos
naturais, e crescentes déficits nos produtos manufaturados (de
baixa, média e alta intensidade tecnologia), sobretudo após a crise
internacional, quando a China direcionou parte de suas
exportações de manufatura da Europa e dos Estados Unidos para
a região. Em contrapartida, as exportações da China para a
América Latina são compostas, fundamentalmente, por produtos
eletrônicos e mecânicos. Concomitantemente, os países da
América do Sul que possuem um parque industrial considerável
são os mais prejudicados com o desenvolvimento dessa
especialização comercial. (VADELL, 2011)
Além da maior conexão no comércio, a China vem
expandindo de forma expressiva o investimento direto,
especialmente na segunda metade da década de 2000. Esse novo
papel desempenhado pela China fica circunscrito ao investimento
greenfield, ao processo de aquisições e fusões realizadas por
empresas da China na região e pela ampliação de empréstimos de
bancos chineses (notadamente o China Development Bank) para
firmas e governos. O interesse primordial chinês tem sido voltado
aos recursos naturais e energia (petróleo, cobre e ferro),
principalmente para suprir sua demanda interna. Entre 2005 e
2013, o fluxo de IED chinês para a América Latina cresceu de
US$ 3,8 bilhões para US$ 16 bilhões, sendo que, a partir de 2009,
verificou-se um expressivo crescimento. O valor acumulado para
esse período foi de US$ 101,8 bilhões, representado 12,7% do
total mundial dos investimentos da China. (The China Global
Investment Tracker/Heritage Foundation).
264
O IED chinês na América Latina ficou concentrado,
sobretudo, no setor de energia (54,6% do total acumulado entre
2005 e 2013), sendo que, deste valor, 40% foram direcionados ao
segmento do petróleo. As participações de outros setores de
atuação das empresas chinesas na América Latina foram: 17,7%
em metais; 14% no setor de transporte (automóveis); 4,6 % na
agricultura; 4,5% em imóveis. (The China Global Investment
Tracker/Heritage Foundation).
Evidencia-se a estratégia chinesa de garantir o acesso às
fontes de recursos naturais no período (RAY et al, 2015). A
América do Sul é o destino principal dos IED chineses, que
podem ser divididos em três principais categorias, de acordo com
seus propósitos: a) “orientados aos recursos naturais” (natural
resource-seeking); b) “orientados ao mercado” (market-seeking) e
c) “orientados à eficiência” (efficiency-seeking). A grande maioria
dos IED com destino à América do Sul são orientados à
exploração de recursos naturais, em setores de grande demanda da
China, como cobre, aço, petróleo e soja. Ademais, podem-se
observar investimentos em infraestrutura ligados a facilitar o
escoamento desses produtos. (VADELL, 2011)
Desde 2005, a China tornou-se uma fonte adicional de
financiamento para a região, notadamente para os países com
dificuldades em acessar o mercado de crédito mundial. Os
empréstimos concedidos pelos bancos chineses (China
Development Bank, Export-Import Bank of China, entre outros)
às empresas e aos governos da América Latina totalizaram entre
US$ 118,5 e 125 bilhões no acumulado entre 2005 e 2014
(MYERS; GALLAGHER; YUAN, 2016).
Desse total, US$ 19 bilhões foram destinados ao governo
e empresas da Argentina para investimento em energia e,
sobretudo, em infraestrutura; US$ 22 bilhões para as empresas
brasileiras, sendo a maior parte para a exploração de petróleo no
pré-sal brasileiro realizado pela Petrobras; US$ 2,4 bilhões para o
México, na área de energia e infraestrutura; US$ 2,3 bilhões para o
265
Peru, voltados, sobretudo, para equipamentos de mineração; e
US$ 0,150 bilhão para empresas do Chile.
Apesar da desaceleração do crescimento, as finanças
chinesas para a América Latina expandiram-se consideravelmente
em 2015. Como nos anos anteriores, o foco principal são as áreas
de infraestrutura e matérias-primas. Recentemente, a China
também estabeleceu aproximadamente US$ 35 bilhões em fundos
de infraestrutura para toda a região, além de outros projetos.
(MYERS; GALLAGHER; YUAN, 2016)
Dos dados acima, podem-se concluir três fatores capitais:
1 – A importância da China no impulso do crescimento
econômico da região a partir de 2001-2002, fator fundamental
para entender a recuperação econômica de muitos países da
América do Sul após o fracasso das políticas econômicas
neoliberais e, na contrapartida, intensificação do processo de
desindustrialização e reprimarização das economias latino-
americanas;
2 – A China é altamente dependente de recursos naturais,
que faz com que tenha certa instabilidade no sistema internacional
e a busca de mercados e suprimento/oferta por parte do governo
chinês. Para os países latino-americanos, a solução seria realizar
alianças com a China, a fim de suprir o mercado chinês, realizando
juntamente com os chineses um processo de industrialização dos
recursos naturais regionais;
3 – Para a América Latina, o financiamento em
infraestrutura realizado pela China, em portos, rodovias, estradas,
ferrovias, são benéficos para a região reduzir os custos, diminuir
gargalos e melhorar a competitividade. Entretanto, a dependência
da exportação de commodities é um entrave pelo baixo valor
agregado, vulnerabilidade de preços e variações internacionais de
oferta e demanda.
266
Os ganhos temporários dos termos de troca não devem
substituir projetos de diversificação industrial de maior valor
agregado e de fomento científico tecnológico, ou, do contrário, a
inserção latino-americana na economia global será a mesma dos
séculos XIX e XX.
Assim, visualizam-se nuances que corroboram a hipótese
de uma nova etapa da dependência latino-americana, devido,
principalmente, a especialização regressiva da região,
reprimarização, desindustrialização e a histórica dependência em
recursos naturais com baixo valor agregado. Diferentemente da
constatação atual, no qual o comércio China-América Latina
reproduz a assimetria de uma relação Norte-Sul – em detrimento
de laços Sul-Sul –, a China, no longo prazo e na busca de um
mundo multipolar, não deveria repetir a estratégia atlantista, e sim
realizar relações comerciais com os demais países periféricos
horizontalmente, de maneira a reduzir as fronteiras econômicas e
tecnológicas dos países do Sul Global.
Nesta nova ordem mundial, é crucial para a América
Latina compreender as características de seus vínculos com a
China ao definir sua inserção global, uma vez que a região latino-
americana serve aos objetivos geopolíticos da nova política
externa chinesa de transformar o sistema internacional num
sistema multicêntrico. Assim, é crucial para a região buscar
modificar as condições internacionais na qual se insere, processo
que requer o estabelecimento de estratégias que superem o perfil
de meros exportadores de commodities no que tange às relações
com os pólos dinâmicos da economia global.
Referências bibliográficas
COELHO, Diego Bonaldo et al. A ascensão da China e seus
reflexos no Brasil: fundamentos e evidências para uma estratégia
de desenvolvimento. Rev. Bras. Inov, Campinas, v. 14, p.85-108, jul.
2015.
267
MYERS, Margaret; GALLAGHER, Kevin; YUAN, Fei. Chinese
Finance to LAC in 2015: Doubling Down. The Dialogue, 2016. 9 p.
RAY, Rebecca et al. China in Latin America: Lessons for South-
South Cooperationand Sustainable Development. Boston: Boston
University, 2015. 26 p.
VADELL, Javier. A China na América do Sul e as implicações
geopolíticas do Consenso do Pacífico. Revista Sociologia Política,
Curitiba, v. 19, p.57-79, nov. 2011.
268
China e a (des)integração da América do Sul 56
A partir de meados da década de 2000, mais precisamente
após as visitas de Estado de Hu Jintao (2004-2008) à região, a
estratégia going global[1] e o documento China’s Policy Paper on
Latin America and the Caribbean[2] (2008), a China se apresenta
como um dos maiores parceiros estratégicos de todos os países da
América do Sul.
Em termos geopolíticos, o “pouso do dragão” em
território sul-americano se justifica por uma série de fatores: vácuo
de poder relativo dos Estados Unidos na região desde o início da
war on terror, relegando a América do Sul um segundo plano ao
realizar guerras/intervenções diretas/indiretas no Afeganistão
(2001), Iraque (2003), Líbia (2011), Ucrânia (2014), Síria (2016) em
apenas quinze anos[3]; enfraquecimento da unipolaridade
estadunidense e ascensão da multipolaridade, tendo como maior
exemplo os BRICS ao buscarem maior participação nas relações
internacionais e propor uma nova arquitetura financeira mundial
que traduza a nova configuração econômica e política
internacional e reduza as assimetrias participativas; estratégia do
Estado chinês de going global, que visa assegurar recursos
estratégicos e mercados potenciais para as futuras etapas de seu
desenvolvimento nacional, no qual a América do Sul se configura
como uma das regiões principais, devido as potencialidades de
externalização do modelo chinês para a região; convergência entre
a estratégia comercial chinesa e a estrutura econômica sul-
americana, uma vez que a configuração histórica de exportadores
de commodities veio a complementar uma etapa específica do
desenvolvimento chinês, fato constatado no boom dos anos 2000;
e nova fronteira econômica para os investimentos e
financiamentos chineses, sendo a segunda região com maior IED
56 Publicado em 6 de março de 2017.
269
chinês no mundo, depois do Sudeste Asiático (RODRIGUES;
MOURA, 2016)
A entrada da China na América do Sul consiste em um
dos vetores da sua política externa. Para os países sul-americanos,
tal processo vem se configurando tanto benefícios em termos
estruturais e econômicos, quanto, concomitantemente, desafios
políticos e estratégicos.
Segundo dados UN Comtrade - International Trade
Statistics Database[4], a China é um dos principais parceiros
comerciais de todos os países sul-americanos, tanto no que se
refere às exportações quanto às importações. Entre 2001 e 2013, o
comércio bilateral multiplicou-se por vinte e duas vezes, o saldo
comercial em commodities latino-americanas foi de 2,3 bilhões de
dólares para 62,6 bilhões de dólares, e o déficit em bens
industrializados alcançou 130,7 bilhões de dólares em 2013, contra
7,5 bilhões de dólares em 2001[5]. Ainda, teve-se uma expansão
do consumo e do mercado interno nos anos 2000; aumento dos
fluxos comerciais, de investimentos e financiamentos (no qual os
créditos chineses à região mostram-se superiores ao total das
carteiras do Banco Mundial, BID e Eximbank dos Estados
Unidos para os países latino-americanos a partir de 2010); maior
convergência político-estratégica com participação da China nos
fóruns da CELAC[6] e até mesmo na configuração dos BRICS.
Entretanto, alguns desafios são pertinentes de serem
avaliados pelos países sul-americanos e que culminariam numa
hipótese de desintegração, tais como:
1) intensificação da condição de dependência primário-
exportadora sem contrapartidas de internalização de ganhos
dinâmicos no longo prazo, como transferência tecnológica ou
incentivo à produção de bens de maior valor agregado;
2) investimentos infraestruturais voltados para os
interesses imediatos da China (maior país investidor em projetos
de infraestrutura na região), em detrimento de uma integração
270
física e energética que intensifique e priorize o desenvolvimento
intrarregional;
3) alteração de parceiros estratégicos no entorno
geopolítico sul-americano, no qual os próprios países sul-
americanos diminuem suas relações intra-comerciais com a
ascensão chinesa;
4) modelo chinês de "cooperação pragmática",
estabelecendo parcerias no âmbito bilateral, ou seja, entre cada
país individualmente, o que diminui o poder de persuasão e os
ganhos para os países sul-americanos se atuassem em conjunto;
5) perda do papel do Brasil como “motor da integração
regional”, com relativo afastamento brasileiro nos projetos
regionais, possuindo um papel secundário na integração
econômica e política sul-americana, se comparado com as
iniciativas chinesas;
6) renegação do Banco do Sul, por parte do Brasil, por
conta do Banco dos Brics e da não ratificação por parte do
Congresso brasileiro do projeto de criação da instituição.
Dessa forma, a prerrogativa da entrada na China na região
pode ser interpretada como um dos fatores da reprimarização ou
especialização regressiva do padrão comercial dos países latino-
americanos, agravando inclusive a desindustrialização e
encorajando o aumento da financeirização.
Entretanto, cabe salientar que não há uma imposição
ideológica ou condicionalidades econômicas e políticas strictu
senso, e sim prerrogativas que se baseiam no próprio
desenvolvimento econômico-político da China, baseado
principalmente no comércio quando se refere às relações
internacionais, em função de especificidades da sua resiliente
política externa e também de sua dependência em recursos
naturais. Essa correlação de forças pode ser avaliada a partir de
critérios que visualizem os efeitos secundários, como a própria
271
desintegração da América do Sul, conquanto tenha crescente
relevância a falta de interesse estratégico de determinadas políticas
dos Governos sul-americanos num projeto de integração
soberano e autônomo.
Caberia aos governos, portanto, não serem meros
figurantes de um roteiro criado do outro lado do Pacífico, atuando
de maneira menos fragmentada e mais propositiva, convergindo
os diversos padrões de inserção externa (num contexto de
ausência de uma efetiva perspectiva integracionista), de modo a
vislumbrarem efetivamente um novo perfil de desenvolvimento,
com inclusão social concomitantemente a uma inserção
internacional soberana. Em outros termos, ainda que se visualize
um processo de desintegração sul-americana engendrada pela ativa
participação da China na região, essa ascensão pode ser visualizada
como uma janela de oportunidade para a América Latina, ao
compreender sua potencialidade em termos integracionistas/
estratégicos e as características de seus vínculos com a China ao
definir sua inserção global.
Referência bibliográfica
RODRIGUES, Bernardo Salgado; MOURA, Rafael Shoenmann
de. América "LaChina": nova etapa da dependência latino-
americana? 40º Encontro anual da ANPOCS, 2016, Caxambu. 32 p.
2016. Disponível em:
<http://www.anpocs.org/index.php/papers-40-encontro/st-
10/st27-4/10421-america-lachina-nova-etapa-da-dependencia-
latino-americana/file>. Acesso em: 20 dez. 2016.
[1] A partir dessa estratégia, foram elaboradas diretrizes para o
investimento externo, que podem ser resumidas em três principais
272
objetivos: acessar recursos naturais escassos no país, fomentar a
industrialização e o desenvolvimento tecnológico das empresas
nacionais, e aumentar a competitividade das empresas chinesas
por meio da promoção de marcas no exterior e da construção de
uma rede global de produção e fornecimento.
[2] Também conhecido como Livro Branco sobre a América
Latina e o Caribe, o documento pauta as diretrizes do Governo
chinês referentes a futura cooperação potencial com países em
desenvolvimento que desempenham um papel cada vez mais
importante em assuntos internacionais e regionais, visando
aprofundar a cooperação comercial, energética e de defesa.
[3] Ainda assim, a América do Sul continua a fazer parte do
perímetro de segurança geoestratégica estadunidense, haja vista o
interesse no Atlântico Sul com a reativação da IV Frota
(simultaneamente as descobertas do pré-sal brasileiro), os
Tratados de Livre Comércio com países da região, assim como a
instauração da Aliança do Pacífico e a iniciativa do TransPacific
Partnership.
[4] https://comtrade.un.org/
[5] http://brasilnomundo.org.br/analises-e-opiniao/china-e-
america-latina-parceria-sul-sul/#.WFlB0FMrLIU
[6] Plano de Cooperação entre a China e a Celac para o período
2015-2019 e assinada a Declaração de Pequim.
273
Implicações geoeconômicas da Nova Rota da Seda na
América Latina 57
Nas últimas duas décadas, a política externa da China
caracterizou-se por um processo de projeção internacional
baseado no paradigma do desenvolvimento pacífico[1] e
harmonioso[2], sustentada na cooperação Sul-Sul. Como parte
deste processo, o país aproximou-se de regiões como a América
Latina, ocupando espaços geopolíticos e geoeconômicos que
resultaram em crescimento dos vínculos comerciais, elevação dos
investimentos/financiamentos e a concretização de acordos
bilaterais e multilaterais.
Dentro desta perspectiva, em 2013, a Nova Rota da Seda
(NRS), também conhecida como Belt and Road Initiative
(BRI) ou One Belt One Road (OBOR), foi proposta pelo
presidente chinês Xi Jinping durante uma visita oficial à Ásia
Central. Na busca de retomar a Rota da Seda original − corredor
econômico que uniu Oriente e Ocidente no primeiro milênio de
nossa era −, a China intenta fortalecer os laços econômicos entre
Ásia, África e Europa, com investimento de bilhões de dólares em
infraestrutura (MAÇÃES, 2018, pp.9-13), que favoreceriam a
conexão e o comércio entre os países, assim como confirmaria,
direta ou indiretamente, a disputa pelo poder global.
Nos primeiros anos após o anúncio da NRS, oficiais
chineses e acadêmicos de think tanks negavam regularmente a
incorporação da América Latina. Dentre os fatores que
contribuiriam para a sua exclusão estariam: o distanciamento físico
natural entre as regiões, com as demandas chinesas atualmente
atendidas pela região em termos de recursos e mercados sendo
supridas pelo escopo da NRS; a mudança da política externa dos
57 Publicado em 18 de novembro de 2019.
274
países latino-americanos a partir de 2015, com a ascensão de
governos conservadores com perfil de maior alinhamento aos
Estados Unidos, assim como a própria reação norte-americana à
presença chinesa no hemisfério; e a preocupação geopolítica com
seu entorno estratégico imediato.
Recentemente, no entanto, as autoridades e empresas
chinesas, assim como suas contra partes latino-americanas, têm
sido mais abertas à negociação diplomática e comercial sob a
bandeira da NRS. Seja através dos pronunciamentos multilaterais
e bilaterais, formais e informais, ou dos documentos oficiais do
governo chinês, como o China's policy paper on Latin America
and the Caribbean (principalmente a segunda versão de 2016), há
fortes sinais indicativos de um estreitamento de diálogos
relacionados à NRS, ressaltando a inclusão gradual da região no
escopo do projeto.
Chinese decision-makers have no need of
being reminded that the world has
changed since the days of Genghis Khan
and that limiting the Belt and Road to
territories along the ancient land and sea
Silk Road would be to overlook vital
economic regions such as North and
South America and most of the African
continent. (MAÇÃES, 2018, p.25)
A NRS é global por natureza. A inclusão da América
Latina e Caribe, portanto, é ratificada com mais assertividade a
partir de 2017, quando um número crescente de países da região
assinou memorandos de entendimento relacionados à NRS e
anunciaram negócios, sinalizando a extensão, de fato, à região. Em
maio do mesmo ano, o presidente chinês Xi Jinping afirmou ao
presidente da Argentina, Mauricio Macri, no Belt and Road
Forum, em Pequim, que a região latino-americana era uma
"extensão natural" da Rota Marítima da Seda e um “participante
indispensável”[3], tornando, assim, a possibilidade de sua inclusão
mais evidente. No nível multilateral, um ponto de inflexão ocorreu
275
no Fórum Ministerial China-CELAC em Santiago, Chile, em
janeiro de 2018. Nele, os participantes assinaram uma Declaração
Especial sobre a NRS, no qual a região foi convidada pelo
Embaixador Li Jinzhang a participar formalmente, como uma
nova plataforma para cooperação mutuamente benéfica entre a
China e a América Latina. [4]
A China gostaria de aproveitar essa
oportunidade para promover o
acomplamento da iniciativa "Um
Cinturão e Uma Roda" com as estratégias
de desenvolvimento dos países
latinoamericanos e caribenhos. Proposto
pelo presidente chinês Xi Jinping, em
2013, "Um Cinturão e Uma Rota" é uma
iniciativa que objetiva a criação de uma
plataforma de cooperação internacional.
Durante a Cúpula "Um Cinturão e Uma
Rota" da Cooperação Internacional no
ano passado, o presidente Xi anunciou
que a China aumentará seu apoio à
construção "Um Cinturão e Uma Rota" e
adicionará 100 bilhões de yuan ao Fundo
da Rota da Seda, e encorajará as
instituições financeiras a realizar
operações em yuan no exterior, que
poderão movimentar 300 bilhões de
yuan. Além disso, as instituições
financeiras da China fornecerão quase
400 bilhões de yuan de empréstimos
especiais para apoiar a construção "Um
Cinturão e Uma Rota". "Um Cinturão e
Uma Roda" tornou-se um produto
público internacional bem recebido, cujo
segredo é ser “visível, tangível e
eficiente” em vez de ter conversas vazias.
400 anos atrás, a China e a América
Latina abriram "Roda da Seda Marítima
276
no Oceano Pacífico". A China está
disposta a promover a cooperação
substancial em todas as áreas com os
países da região sob os conceitos e
métodos de construção de "Um Cinturão
e Uma Roda", aprofundando a
comunicação das políticas, a
conectividade de infraestruturas, o livre
fluxo de comércio, a circulação de
capitais e o entendimento entre os povos,
criando as novas oportunidades e
expandindo novos espaços para
desenvolvimento. (FORUM CHINA-
CELAC, 2018, s/p)
Neste contexto, o Panamá foi o primeiro país a assinar
esse acordo com a China, em novembro de 2017, depois de trocar
o reconhecimento diplomático de Taiwan para Pequim no início
daquele ano. Posteriormente, um total de 15 países da América
Latina e Caribe assinaram memorandos de entendimento
referentes à NRS com a China, sendo o Equador o exemplo mais
recente, em 13 de dezembro de 2018. Notavelmente, a maioria
dos que assinaram são países menores na América Central e
Caribe, ou ainda membros sul-americanos convergentes com as
políticas chinesas, como Venezuela, Equador e Bolívia. Os países
maiores como Brasil, México, Colômbia, Argentina e Peru ainda
não se inscreveram[5]. Como afirmam Abdenur e Levaggi,
Somente uma parcela de países latino-
americanos reconheceram a importância
estratégica da BRI e realizaram esforços
para participar de seus primeiros passos.
Na maior parte da região, a BRI é
mencionada ocasionalmente na mídia,
mas está fora dos debates políticos e
mesmo acadêmicos. Existe a necessidade
de construção de conhecimento sobre
esta iniciativa e suas implicações para a
277
região, especialmente a partir do
engajamento de centros de pesquisa,
think tanks e instituições acadêmicas e
maior cobertura pela mídia latino-
americana. Maior conhecimento na
pesquisa ou jornalístico irá trazer mais
luzes tanto sobre oportunidades e
desafios, relativizando as visões
românticas sobre a BRI em algumas
partes da América Latina. (ABDENUR;
LEVAGGI, 2018, p. 15)
No âmbito mais geral, a construção da NRS faz parte de
um conjunto da política externa da China, que se relaciona com
sua agenda de desenvolvimento, a sustentação da sua expansão
econômica e a influência política regional e global.
Especificamente para a América Latina, consiste na incorporação
da região em sua geometria de poder a partir de uma estratégia
geoeconômica (BLACKWILL; HARRIS, 2016, p.20), que
estimula a oferta de financiamento e o aumento de investimentos
chineses, tanto em infraestrutura quanto em diferentes setores
econômicos, visando alavancar a capacidade produtiva e de
escoamento da região, ampliando seu escopo regional na Eurásia.
A China vem promovendo o Belt and Road Initiative
como uma oportunidade para as nações desenvolverem
infraestrutura e criarem novas oportunidades comerciais com
empresas chinesas, assim como ampliar sua projeção de poder no
sistema internacional. Considerado o maior projeto geoeconômico
da história, a entrada da América Latina enseja estudos complexos
e sistematizados sobre o tema, imprescindível para a compreensão
dos efeitos da NRS no desenvolvimento dos países latino-
americanos no século XXI.
278
Referências bibliográficas
ABDENUR, Adriana Erthal; LEVAGGI, Ariel Gonzalez. "Trans-
Regional Cooperation in a Multipolar World: How is the Belt and
Road Initiative Relevant to Latin America?” Working Paper, LSE
Global South Unit, 2018.
BLACKWILL, Robert D.; HARRIS, Jennifer M.. War by other
means: geoeconomics and statecraft. Cambridge, Massachusetts:
The Belknap Press Of Harvard University Press, 2016.
FÓRUM CHINA-CELAC. Fórum China-Celac- novas
oportunidades de desenvolvimento- discurso do Embaixador Li
Jinzhang em 21 de Janeiro de 2018. Disponível em:
http://www.chinacelacforum.org/esp/ltdt_2/t1527418.htm.
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva,
2011.
MAÇÃES, Bruno. Belt and Road: a Chinese world order. New York:
Oxford University Press, 2019.
SHAMBAUGH, David. China goes global: the partial power. New
York: Oxford University Press, 2013.
[1] "Com o título de 'Persistindo em tomar o caminho do
desenvolvimento pacífico', o artigo de Dai pode ser visto como
uma resposta tanto a observadores estrangeiros preocupados com
a possibilidade de que a China nutrisse intenções agressivas
quanto àqueles dentro da China — incluindo, postula-se, alguns
dentro da própria estrutura de liderança — que argumentavam
que a China devia adotar uma postura mais insistente. O
desenvolvimento pacífico, argumenta Dai, não é um artifício pelo
qual a China 'esconde seu brilho e ganha tempo' (como
279
desconfiam alguns não chineses), nem tampouco uma ilusão
ingênua que abdica as vantagens chinesas (como alguns dentro da
China acusam). É a política genuína e duradoura da China porque
serve melhor aos interesses do país e convém à situação
estratégica internacional." (KISSINGER, 2011, p.487)
[2] “In addition to these, in recent years China has sought to
project two key slogans/concepts abroad: its ‘Peaceful
Development’ and ‘Harmonious World.’ The concept or
kouhaoof ‘peaceful development’ (和平发展) is an out growth of
Deng Xiaoping’s concept of peace and development. First put
forward in 1985, Deng offered his concept as an alternative to
Mao’s notion of superpower competition and the inevitability of
world war, arguing instead that the world had entered a new era of
peace and development and that China needed peace externally in
order to pursue development internally. Enshrined in an
important 2011 government White Paper, Deng’s concept
demonstrated remarkable staying power in China’s official lexicon
and guiding ideology, even long after his death in 1997.”
(SHAMBAUGH, 2013, p.218)
[3] Disponível em: https://www.iiss.org/publications/strategic-
comments/2018/chinas-bri-in-latin-america
[4] Disponível
em: https://www.chinadialogue.net/article/show/single/en/1072
8-China-s-Belt-and-Road-lands-in-Latin-America
[5] Disponível em: https://dialogochino.net/26121-belt-and-road-
the-new-face-of-china-in-latin-america/
280