0% acharam este documento útil (0 voto)
1 visualizações11 páginas

A Memória Coletiva Para Jöel Candau e Maurice Halbwachs

O artigo explora a relação entre memória coletiva e coesão social em contextos urbanos, fundamentando-se nas obras de Jöel Candau e Maurice Halbwachs. A pesquisa revela que a memória coletiva é essencial para a construção de laços entre grupos sociais que compartilham o mesmo espaço, destacando a complexidade e dinamicidade das interações urbanas. Conclui-se que a cidade, como um espaço de múltiplas identidades e disputas, é um campo fértil para a formação de redes de memórias compartilhadas.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
1 visualizações11 páginas

A Memória Coletiva Para Jöel Candau e Maurice Halbwachs

O artigo explora a relação entre memória coletiva e coesão social em contextos urbanos, fundamentando-se nas obras de Jöel Candau e Maurice Halbwachs. A pesquisa revela que a memória coletiva é essencial para a construção de laços entre grupos sociais que compartilham o mesmo espaço, destacando a complexidade e dinamicidade das interações urbanas. Conclui-se que a cidade, como um espaço de múltiplas identidades e disputas, é um campo fértil para a formação de redes de memórias compartilhadas.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 11

Mnemosine Vol.18, nº1, p. 86-96 (2022) – Artigos.

DOI: 10.12957/mnemosine.2022.66384

A memória coletiva para Jöel Candau e Maurice Halbwachs: coesão dos


grupos sociais em um mesmo espaço

The collective memory in Jöel Candau and Maurice Halbwachs: the coesion
of social groups in the same space

Nicolli Bueno Gautério; Renata Ovenhausen Albernaz


Universidade Federal de Pelotas; Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_________________________________________________________________________

RESUMO:
Por meio da memória são construídos alguns tipos de nexos entre sujeito e espaço no tempo,
compondo os sentidos históricos dos territórios. Este trabalho tem como objetivo relacionar
conceitualmente, a partir das obras A Memória Coletiva (HALBWACHS, 1990) e Memória
e Identidade”(CANDAU, 2019), como os autores explicam o fato de a memória coletiva
operar na coesão dos grupos sociais que compartilham um mesmo espaço-tempo no território
urbano. O estudo foi realizado a partir da revisão bibliográfica acerca dos eixos de memória
coletiva e as relações destes conceitos com o espaço urbano, um espaço dotado de múltiplos
atores sociais que constroem nexos entre seus grupos de convívio e o fluxo da cidade.
Conclui-se que a cidade é um espaço complexo e dinâmico, com grupos marcados por
diferenças e disputas entre si. Tais grupos constituem-se em redes de memórias
compartilhadas e criam tecnologias para estabelecer noções de continuidade, onde ancoram
memórias e esquecimentos.

Palavras-chave: Fenômeno memorial, Memória coletiva, Espaço urbano.


_________________________________________________________________________

ABSTRACT:
Through memory, some types of meanings between subject and space in time are built,
composing the historical meanings of territories. This work aims to relate conceptually, from
the works "The Collective Memory" (HALBWACHS, 1990) and "Memory and Identity"
(CANDAU, 2019), how the authors explain the fact that collective memory operates in the
cohesion of social groups that share the same space-time in the urban territory. The study
was carried out from the bibliographical review about the axes of collective memory and the
relationships of these concepts with the urban space, a space endowed with multiple social
actors that build links between their social groups and the flow of the city. It is concluded
that the city is a complex and dynamic space, with groups marked by differences and
disputes among themselves, such groups constitute networks of shared memories and create
technologies to establish notions of continuity, where they anchor memories and
forgetfulness.

Key-words: Memorial phenomenon, Collective memory, Urban space


DOI: 10.12957/mnemosine.2022.66384

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ


A memória coletiva para Jöel Candau e Maurice Halbwachs: coesão dos grupos sociais
em um mesmo espaço. 87

Introdução
Por meio da memória são construídos alguns dos tipos de nexos entre sujeito e espaço
no tempo, compondo os sentidos históricos dos territórios – no caso aqui em tela, do
território urbano. As preocupações dos estudos em memória partem das relações entre o
individual e o coletivo nessa construção de nexos, na qual a memória individual se estrutura
e se insere na memória coletiva. Foi nesse ponto que o atual trabalho surgiu, a partir das
aprendizagens desencadeadas pela revisão bibliográfica acerca dos eixos de memória
coletiva e as relações destes conceitos com o espaço urbano, um espaço dotado de múltiplos
atores sociais que constroem nexos entre seus grupos de convívio e o fluxo da cidade.
Portanto, aqui se apresenta uma reflexão teórica com o objetivo de explorar,
conceitualmente, como os autores Jöel Candau e Maurice Halbwachs explicam o fato de a
memória coletiva operar na coesão dos diferentes grupos sociais que compartilham um
mesmo espaço-tempo.
Tal estudo justifica-se como uma base conceitual a ser utilizada ao investigar como
se relacionam os sujeitos no espaço urbano mediante a construção de memórias. Além disto,
os conceitos de memória aqui mencionados são fundamentais para compreender como esta
noção de memória no espaço coletivo passa a fazer parte, ou não, das narrativas patrimoniais,
e como os diferentes sujeitos que participam do espaço urbano significam, por sua memória,
esses bens.
Para tanto, a partir dos estudos de obras de Halbwachs – A Memória Coletiva (1990)
– e de Candau – Memória e Identidade (2019) –, somados a algumas contribuições de
Izquierdo (1989) e de Ricoeur (2007), elencam-se as principais definições sobre a memória
e suas diferentes manifestações, no âmbito em que ela se manifesta entre o individual e o
coletivo, principalmente quando ambientadas no complexo espaço relacional e grupal
envolvido na cidade.
Para finalizar, destacando-se a cidade como um espaço compartilhado por grupos
marcados por muitas diferenças e disputas entre si, especula-se que tais grupos passam a
tecer redes de memórias compartilhadas e criam tecnologias para que as noções de
continuidade se estabeleçam, ancorando memórias e esquecimentos. Assim, a memória
coletiva possibilita a coesão tanto entre grupos sociais que disputam e interagem no espaço
da cidade quanto na própria organização e orientação dos indivíduos em relação às suas
identidades, tempo e lugar onde se encontram e compartilham suas vidas.

Mnemosine Vol.18, nº1, p. 86-96 (2022) – Artigos.


88 Nicolli Bueno Gautério; Renata Ovenhausen Albernaz.

A memória e suas diferentes manifestações


O ser humano é um ser social em constante transformação devido às suas relações
com os grupos os quais está inserido. Nestas relações, as representações de si e do mundo
são mediadas pela relação da memória. Para Candau (2019), primeiramente, memória é uma
faculdade individual normal aos seres humanos, representando uma organização
neurobiológica muito complexa. Izquerdo (1989: 90) completa ao afirmar que “o
aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso; não existe atividade
nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela
memória”. Assim, Izquierdo (1989), em uma perspectiva neurobiológica, mesmo
percebendo ser uma tarefa difícil classificar, exaurientemente, tais mecanismos que operam
a memória, esboça uma classificação criada de acordo com: 1) as substâncias que são
liberadas para a aquisição de tais informações (B-endorfina, adrenalina etc); 2) o tipo de
informação a ser adquirida: como “saber que”/“saber como”, ou que envolvem eventos e
situações específicas; e 3) a classe que distingue hábitos de memórias (IZQUIERDO, 1989:
94). Para o autor, essas são classificações úteis para a prática clínica, mas não há
comprovação de que realmente tais tipos de memória sejam representações de processos
diferentes. E assim, ele elenca alguns aspectos fundamentais para a formação das memórias
individuais: 1) o processo de seleção (que determina quais informações serão armazenadas);
2) o processo de consolidação das informações (onde elas passam de um estado instável,
suscetível a mudanças, para um estado mais estável), e 3) a ideia de que as memórias não
são informações isoladas, pois se formam e são evocadas a partir de um contexto ou conjunto
de eventos que estão associadas e assim serão lembradas.
Outra forma de pensar o modo como tais mecanismos memoriais funcionam é o que
Paul Ricoeur (2007) define como "modos mnemônicos" e que consistem em: 1) o lembrar
(ato que envolve mecanismos internos e externos ao sujeito); 2) o relembrar (fenômeno
marcado pela atividade, lembrança de um sujeito que o auxilia para a lembrança do outro
em um mesmo grupo) e 3) o reconhecer, onde somos remetidos ao fenômeno da presença
do ausente, onde a memória e a imaginação operam atreladas para criar a representação do
“algo que está ausente”, ou seja, do passado.
Já em uma perspectiva antropológica, Jöel Candau (2019) classifica as diversas
manifestações de memória em: 1) protomemória, ou aprendizagens primárias, memórias
gestuais, experiencias resistentes e mais bem compartilhadas pelos membros da sociedade;
2) a memória propriamente dita, ou seja, a considerada de alto nível, recordação ou

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ


A memória coletiva para Jöel Candau e Maurice Halbwachs: coesão dos grupos sociais
em um mesmo espaço. 89

reconhecimento, feita também de esquecimentos; e por fim, 3) a metamemória, que é a


representação que cada individuo faz de sua própria memória. Assim, tanto a protomemória
quanto a metamemória, ao mesmo tempo que dependem da faculdade da memória, são
representações relativas desta faculdade, já que "através da memória o individuo capta e
compreende continuamente o mundo, manifesta suas intenções a este respeito, estrutura-o e
coloca-o em ordem” (CANDAU, 2019: 61-62) E é por isso que, ao se remeter à memória
humana, compreende-se o esquecimento como parte constituinte desta representação.
Ricoeur (2007), em seus estudos sobre a memória, destaca o potencial, e não só as
limitações, da seletividade da memória e do esquecimento, sendo esse “o avesso de sombra
da região iluminada da memória que nos liga ao que se passou antes que os
transformássemos em memória” (RICOEUR, 2007: 40). Essa sombra opera, por exemplo,
esclarece Ricoeur (2007), face a eventos traumáticos que geram o recalque, ou aos
mecanismo de defesa nos quais tais informações estão inacessíveis ao consciente, e que
passa a preencher tal lacuna com atos repetitivos (compulsões), sendo memórias impedidas.
No campo prático, considerando o indivíduo em seus grupos, o autor aponta,
também, a memória manipulada, onde haveria os abusos de memórias e os abusos de
esquecimento que se devem “à intervenção de um fator inquietante e multiforme que se
intercala na reinvindicação de identidade e as expressões públicas de memória” (RICOEUR,
2007: 95), coerções provenientes de embates ideológicos entre os sujeitos. E, por fim,
estabelece a memória obrigada, que seriam esquecimentos produzidos ao nível institucional
“cuja fronteira com a amnésia é fácil de ultrapassar: trata-se principalmente da anistia”
(RICOEUR, 2007: 459), onde tais esquecimentos são produzidos pelo Estado.

As Memórias Coletivas
Percebendo a memória individual e a memória coletiva como manifestações que se
sustentam de forma atrelada e não linear, tais considerações sobre como opera a memória e
a importância também dos esquecimentos individuais oferecem importantes reflexões
quando pensamos o espaço da cidade. Portanto, neste bloco, busca-se a compreensão da
memória na coletividade e como ela produz a coesão entre sujeitos, advindos de diferentes
grupos e classes sociais, no espaço em que vivem.
A perspectiva da humanização da memória é reforçada por Halbwachs (1990), que
publica seus estudos em memória coletiva em 1925, com o escrito Les cadres sociaux de la
mémoire, sendo portanto o pioneiro no tema. O autor trabalha a memória em uma perspectiva

Mnemosine Vol.18, nº1, p. 86-96 (2022) – Artigos.


90 Nicolli Bueno Gautério; Renata Ovenhausen Albernaz.

que contempla o social e suas narrativas através dos “quadros sociais”. Neste sentido, não
haveria uma memória meramente individual, visto que o sujeito está atrelado às relações
coletivas do meio em que vive, partindo dos grupos nucleares, como a família, até os mais
ampliados, como a religião ou identidade nacional.
Suponhamos que eu passeie só. Diremos que desse passeio eu não possa guardar senão
lembranças individuais, que não sejam senão minhas? Não obstante, passeei só somente
na aparência. Passando por Westminster, pensei no que me havia sido dito por um amigo
historiador (ou, o que dá no mesmo, no que havia lido sobre ela em uma história).
Atravessando uma ponte, considerei o efeito de perspectiva que meu amigo pintor havia
assinalado (ou que me havia surpreendido num quadro, numa gravura). E me dirigi,
orientado pelo pensamento de meu plano. (HALBWACHS, 1990:19)

Desta forma, Halbwachs (1990) mostra que o indivíduo, mesmo quando não está
presencialmente junto ao seu grupo, está permeado pelas produções memoriais construídas
nestes laços sociais. Estas construções estarão sempre atreladas às memórias de cada
indivíduo do grupo, explicando, assim, o motivo pelo qual não faria sentido a ideia de uma
memória individual pura e isolada do coletivo. “Neste contexto, o testemunho não é
considerado enquanto proferido por alguém para ser colhido por outro, mas enquanto
recebido por mim de outro a titulo de imposição sobre o passado”, explica Ricoeur (2007:
131). Quando não se têm os referenciais sociais compartilhados com o grupo, que organizam
e sustentam as funções simbólicas dos sujeitos, a rememoração acaba sendo dificultada.
Candau (2019) pontua a necessidade de diferenciarmos a ideia da memória coletiva
de uma memória compartilhada de forma literal, partindo do pressuposto de que uma
realidade compartilhada seria impossível. Para o autor, os indivíduos de um mesmo grupo
podem compartilhar os mesmos marcos memoriais, mas não as mesmas representações do
passado. Logo, considera-se que tanto o espaço quanto a memória são sistemas abertos, mas
que mediam as experiências dos sujeitos com o tempo em seu espaço atual.
Através dos estudos de Halbwachs (1990), as memórias são construções do presente,
elas mudam conforme as questões afetivas e simbólicas dos grupos e na medida em que
esses também passam por variações. Desta forma, é possível a rememoração de fatos em que
não se tem certeza de terem sido vividos por si próprio ou não; mas, ao ser lembrada pelo
grupo nessa construção narrativa, tal memória passa a também ser a verdade para o
indivíduo. Estas variações sofridas pelos grupos nos sentidos afetivos, econômicos,
religiosos, entre outros, são mediadas também pelas mudanças do espaço onde estão
inseridos.

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ


A memória coletiva para Jöel Candau e Maurice Halbwachs: coesão dos grupos sociais
em um mesmo espaço. 91

Ao considerar as relações dos grupos com o espaço onde vivem, Halbwachs (1990)
considera este espaço como importante para a “organização mental” dos indivíduos – uma
mudança para um local onde o sujeito não está adaptado, onde ele não verifica as marcas e
construções simbólicas de seu grupo, poderia ocasionar uma ruptura na sua ideia de
personalidade (HALBWACHS, 1990: 134). O autor preocupa-se, então, com a relação
mediadora que os objetos (e assim, o espaço) desempenham nas relações grupais e na
construção da memória coletiva. Candau (2019) também compreende que, nas vivências
com o meio, as pessoas se (re)organizam em função das convenções que este ambiente –
cultural e social – oferece. Segundo o autor, tais ícones materiais e imateriais de
compartilhamento simbólico são compreendidos como sociotransmissores:
Sobre os sociotransmissores, todas as coisas do mundo favorecem a comunicação entre os
indivíduos. Todas as coisas do mundo. Por exemplo, falar é um sociotransmissor, mas a
ideia de sociotransmissores, se preferirem, corresponde aos neurotransmissores no
cérebro. No cérebro os neurotransmissores permitem as conexões entre os neurônios e os
sociotransmissores permitem as conexões entre os indivíduos. Então há muitas coisas que
agem como sociotransmissores, mas os objetos materiais, e certos objetos, são melhores
sociotransmissores que outros. (BEZERRA; SERRES, 2015: 15).

O termo designa, assim, o potencial de objetos (materiais ou imateriais) de produzir


significados entre os indivíduos que compartilham a percepção do mundo e do seu espaço,
formando uma rede, ou seja, uma memória coletiva. Neste sentido, compreende-se a
importância do espaço, suas marcas e objetos para a sensação de continuidade e pertença de
um sujeito em um grupo, na medida em que esses objetos e espaço funcionam como
sociotransmissores para essas memórias. Para os bens imóveis do Centro Histórico e
Paisagístico de Jaguarão, a representação desses significados compartilhados e captados
pelos técnicos através de fontes orais nos processos de tombamento pode revelar a existência
de alguma conflituosidade a partir da perspectiva de diferentes grupos sociais, situação que
será por nós verificada. Tentaremos compreender quem são estes coletivos que participam
na produção e no compartilhamento dos sentidos memoriais coletivos, que participam do
contexto cultural, social e econômico do centro da cidade.

Memórias coletivas no complexo social e dinâmico temporal do espaço urbano


No contexto urbano, marcado pelo encontro histórico intenso de vários grupos
sociais e indivíduos, e de múltiplos usos que se sobrepõem, muito rapidamente essa memória
coletiva é menos trivial, mais dinâmica e também mais contraditória. E, em função mesmo
dessas qualidades da natureza das memórias coletivas do espaço urbano é que elas acabam

Mnemosine Vol.18, nº1, p. 86-96 (2022) – Artigos.


92 Nicolli Bueno Gautério; Renata Ovenhausen Albernaz.

sendo, também, bastante disciplinadas: “cada sociedade recorta o espaço a seu modo, mas
por sua vez para todas, ou seguindo sempre as mesmas linhas, de modo a constituir um
quadro fixo onde encerra e localiza suas lembranças” (HALBWACHS, 1990: 111).
Os conceitos que abrangem a percepção do espaço urbano, aqui utilizados, partem
do pressuposto de que tanto as ações dos atores sociais, quanto a cidade como produto destas
relações entre atores e o espaço, funcionam de forma atrelada. Assim, a cidade passa a
representar as diversas camadas de significações materiais e imateriais. Logo, entende-se
que a noção de “cidade” representa uma materialidade – ainda que não se encerre apenas
neste aspecto –, fazendo parte da produção dos atores sociais que vivenciam o espaço
“urbano”. Esta noção do “urbano”, por sua vez, é entendida como um fenômeno que não é
expresso de forma material como a cidade, caracterizando-se por meio dos modelos de
funcionamento de atores sociais em contextos de cidades de forma ampla (LEFEBVRE,
2011). Ou seja, embora os autores em foco no presente trabalho partam de épocas e vivências
de cidades diferentes, ao expressar suas ideias acerca do espaço urbano apresentam uma
consonância acerca das problemáticas percebidas neste tipo de ambiente. Embora este passe
por variações ao longo do tempo, as relações entre memória, sujeitos, espaço e patrimônio
ressignificam-se, mas mantêm sua existência ao longo do tempo e nos diferentes espaços
analisados.
Ao pensar as relações dos sujeitos com o espaço, quando este cenário é a cidade,
Halbwachs (1990) considera a sensação de permanência necessária que os prédios e as ruas,
ao se manterem no mesmo lugar, produzem em relação ao fluxo da vida que ocorre na
cidade. Assim, são essas estabilidades as que provocam uma noção de continuidade,
mantendo a função organizadora do indivíduo, um ambiente ou paisagem familiar, nesses
espaços complexos e dinâmicos em seus problemas, disputas, mudanças entre os vínculos
de seus membros.
Porém, ao deparar-se com uma demolição – exemplifica Halbwachs (1990) –, os
indivíduos, que habitualmente circulam neste espaço e que passaram a ter tal elemento da
paisagem como algo permanente, fazendo dele seu marco de continuidade (já que eles sabem
que houve grupos antecessores que construíram tal objeto), esse elemento de
compartilhamento memorial (um sociotransmissor) os faz sentir como tendo uma parte de si
morrendo, pela ruptura no que lhe marcava o imóvel com sua continuidade.
Sobre tal noção de continuidade, Candau (2019) destaca nas relações de grupos como
a família, que compartilham uma tradição, além de uma memória coletiva mais bem

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ


A memória coletiva para Jöel Candau e Maurice Halbwachs: coesão dos grupos sociais
em um mesmo espaço. 93

estabelecida, a ideia de que “não se deve romper o fio da memória e, para isso, o registro em
alta tecnologia da trajetória familiar é apresentado como um suporte eterno” (CANDAU,
2019: 139).
Esse temor do esquecimento preocupa os que passam a viver nas cidades, longe dos
locais rurais onde o compartilhamento de memórias e tradições ocorre de forma mais
facilitada, pois mais estável. A partir da modernidade, quando se intensificam as vivências
no espaço urbano, ocorrem os deslocamentos dos sujeitos que começam a ocupar esses
lugares, vindos de tão diferentes comunidades rurais, e experimenta-se, com mais
intensidade, essa descontinuidade. Essa descontinuidade também é produzida através de
manipulações de memórias coletivas por parte do Estado, na intenção de manusear o espaço,
e que podem vir a ser consideradas, em alguns casos, como abusos de memórias ou abusos
de esquecimento, tal como adverte Ricoeur (2007).
No espaço urbano, a consolidação de memórias na forma de patrimonialização passa,
principalmente a partir da modernidade na França, como destaca Candau (2019), a tornar-se
uma “efervercência patrimonial”. Diante da angústia e da necessidade de uma conservação
e rememoração deste passado, dotado de memórias coletivas, assume-se uma
patrimonialização em massa – o que também denota certa incapacidade de vivência do
tempo presente, uma doença de aprisionamento ao passado.
Em contraponto a esse excesso de sensibilidade patrimonial, também são descritos
processos de uma total ausência de consciência patrimonial. Eles não se confundem com o
esquecimento, mas constituem sinais de rejeição a marcas traumáticas do passado, ou até
mesmo uma não identificação com o passado, quando há o risco de, a depender de quais
símbolos estejam sendo expostos como sociotransmissores no contexto dos sujeitos, estes
chegarem a produzir uma destruição voluntária ou omissiva dos suportes de tais memórias.
Logo, os motivos para estas rejeições merecem também o olhar dos pesquisadores.
A cidade é, ainda, um espaço onde o fluxo de informações mercadológicas é intenso.
Neste sentido, a “memória econômica” (HALBWACHS, 1990: 104) também deve ser
pensada como parte do espaço. Mediante este conceito, o autor demonstra mais uma relação
entre memória e espaço, que determina os valores e preços para os objetos no comércio, pois
apenas a força de trabalho ou o valor que cada indivíduo atribui ao objeto não lhe confere
seu preço. Por isto, a memória econômica forma-se como uma rede coletiva de lembranças
que estão ligados aos valores que o grupo atribui ao objeto, formulando seu preço.

Mnemosine Vol.18, nº1, p. 86-96 (2022) – Artigos.


94 Nicolli Bueno Gautério; Renata Ovenhausen Albernaz.

Porém, no espaço urbano, essa memória muda intensamente devido ao alto índice de
demandas e ofertas: “a vida econômica se baseia, portanto, sobre a tabela dos preços
anteriores e pelo menos, sobre o último preço” (HALBWACHS, 1990: 104) e, para essa
lembrança ser fixada, o lugar onde a mercadoria é exposta passa a ser uma recordação
fundamental para o acesso a tal memória pelos indivíduos.

Considerações Finais
No estudo sobre os conceitos de memória discutidos nas obras de Jöel Candau e
Maurice Halbwachs foram percebidas as diferentes manifestações da memória,
compreendendo que ela se expressa entre o individual e o coletivo, sempre ambientada em
um espaço relacional e grupal. Portanto, compreende-se que ambos autores consideram o
espaço mediador importante tanto para a relação dos sujeitos em suas vivências quanto para
a estruturação da lembrança. A memória coletiva possibilita uma certa coesão e estabilidade
de reconhecimento tanto entre grupos sociais que disputam e interagem no espaço da cidade
quanto na própria organização e orientação dos indivíduos em relação às suas identidades, o
tempo e o lugar onde se encontram e compartilham suas culturas.
No espaço complexo que é o urbano, as noções de continuidade e descontinuidade
vividas pelos sujeitos mediam essas memórias. O direito à cidade, que permite seu usufruto
pelos mais diferentes usos e grupos, e o impulso pelo compartilhamento de uma memória
coletiva tornam-se variáveis em relação aos próprios discursos que significam esse espaço
no tempo: marcadores de gênero, raça e classe, bem como aspectos culturais e subjetivos da
construção do psiquismo de cada indivíduo deixam de ser variáveis independentes para
serem a própria composição eclética de atos espaços. E passam a construir as noções de
memória e identidade dos sujeitos implicados em um mesmo espaço de uma forma mais
rica, mesmo que ambivalente, contraditória e dinâmica.
No caso brasileiro, por exemplo, há faltas históricas talvez insanáveis relativamente
à memória da escravidão e dos espaços vivenciais das pessoas negras, por muito tempo
esquecidos pelo patrimônio oficialmente declarado, segundo atesta Guran (2017). Em
tombamentos entre as décadas de 1970 e 1980 – por exemplo, no caso do tombamento do
conjunto urbano do Pelourinho, em Salvador –, houve algumas incompatibilidades entre o
ideal de pluralidade e democratização entre os valores, bem como a carência de participação
social nas decisões. Isto é, identifica-se um processo de exclusão de classes mais vulneráveis
da significação desse centro histórico. Esta expropriação facilitaria a transformação de seu

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ


A memória coletiva para Jöel Candau e Maurice Halbwachs: coesão dos grupos sociais
em um mesmo espaço. 95

bairro em um local turístico, restaurado do Patrimônio Mundial da UNESCO, e assim não


apenas a arquitetura, mas comportamentos, vestimentas, identidade e expressões culturais
dos moradores também passam a fazer parte do circuito turístico (COLLINS, 2011). Casos
como estes evocam-nos a pensar quais seriam os limites entre patrimônio e identidade, bem
como apontam a necessidade do debate sobre quais tipos de sujeitos são participantes dos
processos de decisão que abrangem os centros históricos das cidades.
Porém, muito em função da resistência a isso por parte de grupos antes
invisibilizados, que passaram a reafirmar a sua participação na sociedade brasileira por meio
da luta pela democracia nas políticas patrimoniais, têm-se obtido alguns avanços, segundo
estudo de Albernaz (2021), em termos de ações estatais para delimitar e reconhecer os mais
diversos enclaves patrimoniais e para condicionar a vitalidade e a reprodução da vida
comunitária com esse patrimônio. Mas eles ainda estão longe de incorporar, no mesmo
padrão de dignidade histórica, todos os segmentos sociais do país. Daí que estudos sobre
esse grupos e seus patrimônios e memórias precisem, ainda, avolumar-se.

Referências
ALBERNAZ, Renata Ovenhausen. Democracia e sistema de proteção do patrimônio cultural
no Brasil. Revista Direito, Estado e Sociedade. PUC-RJ. V. 58. N. Pp. 2021.
Disponível em https://revistades.jur.puc-
rio.br/index.php/revistades/article/view/1438/631
BEZERRA, Daniele Borges; SERRES, Juliane Conceição Primon. O Museu das Coisas
Banais Entrevista: O Antropólogo Jöel Candau. Expressa Extensão. Pelotas, v.20,
n.1, p. 13-16, 2015.
CANDAU, Jöel. Memória e identidade. Traduzido por: Maria Leticia M. Ferreira. São
Paulo: Contexto, 2019.
COLLINS, John. Melted Gold and National Bodies: the hermeneutics of depth and the value
of history in Brazilian racial politics. American Ethnologist, v.38, n.4, 683-700,
2011.
GURAN, Milton. Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento
patrimonial como uma condição para a plena cidadania. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, nº 35, p. 213-226, 2017.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Rio de Janeiro: Vértice, 1990.
IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Estudos Avançados, v. 3, n. 6, p. 89-112, 1989. Disponível
em: http://www.journals.usp.br/eav/article/view/8522. Acesso em: 5 fev. 2021.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São
Paulo: Centauro Editora, 2011.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,
2007.

Mnemosine Vol.18, nº1, p. 86-96 (2022) – Artigos.


96 Nicolli Bueno Gautério; Renata Ovenhausen Albernaz.

Nicolli Bueno Gautério


Universidade Federal de Pelotas – UFPel
E-mail: [email protected]

Renata Ovenhausen Albernaz


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
E-mail: [email protected]

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ

Você também pode gostar