A Geração de 1945
Objetivos:
• Analisar de que modo se articularam os
agentes do discurso no período e como essa
articulação influenciou o surgimento do
Pós-Modernismo.
• Identificar as características da literatura
pós-modernista.
• Caracterizar o projeto literário da poesia a
partir de 1945.
• Analisar como João Cabral de Melo Neto
combina forma e conteúdo para extrair a
significação máxima do poema.
Observe ao lado como a experimentação característica
da Geração de 1945 e dos concretistas subverte o
verso e as artes plásticas produzindo obras inusitadas.
SACILOTTO, Luiz. Concreção 8215. 1983.
Têmpera vinílica sobre tela fixada em painel.
Tecendo a manhã
1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que, tecido, se eleva por si: luz balão.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra.
In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 345.
João Cabral: a “máquina” do poema
“[...] Creio que uma das bases da minha poesia sempre foi [...] essa coisa visual.
Sempre achei que a linguagem, quanto mais concreta, mais poética. Palavras
como melancolia, amor, cada pessoa entende de uma maneira. Se você usar
palavras como maçã, pedra ou cadeira, elas evocam imediatamente ao leitor
uma reação sensorial. [...]”
MELO NETO, João Cabral de. In: LUCAS, Fábio. O poeta e a mídia: Carlos Drummond de
Andrade e João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Senac, 2003. p. 95. (Fragmento).
• Um lugar-comum: João Cabral é conhecido como um poeta cerebral. Isso significa que o
planejamento do poema e a reflexão sobre o próprio processo de composição são a base do seu
fazer literário. Trata-se de uma engenharia poética que procura potencializar a expressão
através da forma.
• Sua preocupação em buscar extrair a máxima significação de cada palavra e a qualidade
literária de seus poemas foram fatores que o projetaram como um dos maiores poetas da sua
geração e fizeram com que ele alcançasse uma importância muito grande para a literatura
brasileira no século XX.
• Seu universo poético é essencialmente nordestino, com muitas
referências à zona da mata e ao sertão. Fiel às origens, o autor
pernambucano trouxe para o poema a aridez dos espaços em que se
criou. A linguagem que utiliza aparece despida de ornamentos, uma
“faca só lâmina”, como ele mesmo definiu. Pela linguagem de seus
versos, por não falar de sentimentos, não abordar estados de
espírito, os críticos o reconheceram como um poeta não lírico.
• As imagens da realidade, na obra de João Cabral, são reduzidas à
sua essência. As palavras estão sempre dispostas em uma
organização rigorosa. E constroem uma série de imagens que
transformam o poema em “máquina” que produz significados. Esse
processo é evidente em “Rios sem discurso”.
Rios sem discurso
João Cabral de Melo Neto
Quando um rio corta, corta-se de vez O curso de um rio, seu discurso-rio,
o discurso-rio que ele fazia; chega raramente a se reatar de vez;
cortado, a água se quebra em pedaços, um rio precisa de muito fio de água
em poços de água, em água paralítica. para refazer o fio antigo que o fez.
Em situação de poço, a água equivale Salvo a grandiloquência de uma cheia
a uma palavra em situação dicionária: lhe impondo interina outra linguagem,
isolada, estanque no poço dela mesma, um rio precisa de muita água em fios
e porque assim estanque, estancada; para que todos os poços se enfrasem:
e mais: porque assim estancada, muda, se reatando, de um para outro poço,
e muda porque com nenhuma se comunica, em frases curtas, então frase e frase,
porque cortou-se a sintaxe desse rio, até a sentença-rio do discurso único
o fio de água por que ele discorria. em que se tem voz a seca ele combate.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 350-351.
A Educação pela Pedra Catar feijão
Uma educação pela pedra: por lições; Catar feijão se limita com escrever:
para aprender da pedra, frequentá-la; joga-se os grãos na água do alguidar
captar sua voz inenfática, impessoal e as palavras na folha de papel;
(pela de dicção ela começa as aulas). e depois, joga-se fora o que boiar.
A lição de moral, sua resistência fria Certo, toda palavra boiará no papel,
ao que flui e a fluir, a ser maleada; água congelada, por chumbo seu verbo:
a de poética, sua carnadura concreta; pois para catar esse feijão, soprar nele,
a de economia, seu adensar-se compacta: e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
lições de pedra (de fora para dentro, *
cartilha muda), para quem soletrá-la. Ora, nesse catar feijão entra um risco:
* o de que entre os grãos pesados entre
O um grão qualquer, pedra ou indigesto,
utra educação pela pedra: no Sertão um grão imastigável, de quebrar dente.
(de dentro para fora, e pré-didática). Certo não, quando ao catar palavras:
No Sertão a pedra não sabe lecionar, a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
e se lecionasse, não ensinaria nada; obstrui a leitura fluviante, flutual,
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, açula a atenção, isca-a como o risco.
Conhece a Giralda, em Sevilha?
O ferrageiro de Carmona De certo subiu lá em cima.
Um ferrageiro de Carmona, Reparou nas flores de ferro
que me informava de um balcão: dos quatro jarros das esquinas?
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão. Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Só trabalho em ferro forjado Nada têm das flores de forma,
que é quando se trabalha ferro moldadas pelas das campinas.
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero. Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro fundido é sem luta O ferro não deve fundir-se
é só derramá-lo na forma. nem deve a voz ter diarréia.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja. Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Existe a grande diferença do Mas ao que pode até ser flor
ferro forjado ao fundido: Se flor parece a quem o diga.
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos. João Cabral de Melo Neto. Uma faca só lâmina.
Morte e vida severina: recriação do nascimento de Cristo
• A mais conhecida obra de João Cabral, Morte e vida severina, era a
de que ele menos gostava. Feita para atender a uma encomenda de
Maria Clara Machado, que precisava de um auto de Natal, o poema
situa em um manguezal do Recife a cena bíblica do nascimento de
Cristo, representada pelo nascimento do filho de um carpinteiro
pernambucano.
• Severino, o protagonista, é um nordestino que sai do interior do
sertão em direção ao litoral, em busca de melhores condições. Na
sua fala inicial, percebe-se o drama da personagem: incapaz de
encontrar características pessoais ou sociais que o diferenciem de
tantos outros retirantes, Severino torna-se um símbolo do drama
vivido nas regiões assoladas pela seca.
O ator José Dumont, em filme dirigido por Walter Avanci
Morte e vida Severina: tragédia ou esperança? Funeral de um lavrador,
Chico Buarque de Holanda
• Na trama, o retirante chega ao Recife com uma dúvida: Esta cova em que estás com palmos medida
será que vale a pena uma pessoa como ele permanecer É a conta menor que tiraste em vida
viva, tendo que enfrentar tanta dificuldade? No É de bom tamanho nem largo nem fundo
momento em que faz essa pergunta a José, um É a parte que te cabe deste latifúndio
carpinteiro com quem conversava no cais do rio Não é cova grande, é cova medida
Capibaribe, é interrompido por uma mulher, que vem É a terra que querias ver dividida
avisar José do nascimento do filho. É uma cova grande pra teu pouco defunto
• Severino testemunha, então, a solidariedade dos outros Mas estarás mais ancho que estavas no
mundo
habitantes do manguezal, dispostos a dividir o pouco
É uma cova grande pra teu defunto parco
que têm com a criança recém-nascida. Naquele
Porém mais que no mundo te sentirás largo
momento, compreende que a própria vida deu a É uma cova grande pra tua carne pouca
resposta que procurava: mesmo sofrida, difícil, a vida Mas a terra dada, não se abre a boca
merece ser vivida. É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Morte e vida Severina, O meu nome é Severino, na mesma cabeça grande
João Cabral de Melo Neto não tenho outro de pia. que a custo é que se equilibra,
Cumpre observar que os “severinos” Como há muitos Severinos, no mesmo ventre crescido
atuais são todos os migrantes que saem que é santo de romaria, sobre as mesmas pernas finas,
do interior ou das regiões mais afastadas
deram então de me chamar e iguais também porque o sangue
Severino de Maria; que usamos tem pouca tinta.
em busca de melhores condições de
como há muitos Severinos E se somos Severinos
vida nos grandes centros econômicos.
com mães chamadas Maria, iguais em tudo na vida,
Representam uma grande parcela da fiquei sendo o da Maria morremos de morte igual,
população brasileira que não tem acesso do finado Zacarias. mesma morte severina:
a condições dignas de sobrevivência e Mas isso ainda diz pouco: que é a morte de que se morre
incham as favelas, enfim, todos os que há muitos na freguesia, de velhice antes dos trinta,
não têm os direitos básicos garantidos por causa de um coronel de emboscada antes dos vinte,
em um país marcado pela desigualdade que se chamou Zacarias de fome um pouco por dia
social. e que foi o mais antigo (de fraqueza e de doença
senhor desta sesmaria. é que a morte severina
Como então dizer quem fala ataca em qualquer idade,
ora a Vossas Senhorias? e até gente não nascida).
[...] Somos muitos Severinos Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida: iguais em tudo e na sina [...].
João Cabral de Melo Neto: a lógica do engenheiro
“[...] Muita gente queria que depois de cada espetáculo eu
subisse ao palco e gritasse “Viva a Reforma Agrária”. Recusei-
me a fazer isto. Não faço teorias para consertar o Brasil, mas
não me abstenho de retratar em poesia o que vejo e sinto. Eu
mostrei a miséria que havia no Nordeste. Cabia aos políticos
cumprirem seu papel. [...]”
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/crioula/article/viewFile/53574/57543>.
Acesso em: 30 jun. 2015.
É possível identificar que tanto no poema “Morte e ida
Severina” como na fala de João Cabral de Melo Neto um
descontentamento com as injustiças sociais e com as
instituições. O próprio questionamento sobre se vale a pena
ou não viver uma vida severina é reflexo dessa tendência.