Curso de Especialização em Estudos Africanos e Afro-brasileiros
Disciplina: O papel da escravidão e da desigualdade racial na construção do capitalismo
8ª. AULA – Transgressão ou subordinação – A integração abortada e singularidade dos mulheres negras
Prof. Dr. Ramatis Jacino
Indícios de uma ascensão abortada
Em pesquisa realizada em testamentos produzidos entre 1850 e 1853, no
Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi possível constatar
um número significativo de negros possuidores de bens deixados de herança,
em valores semelhantes a dos brancos.
Foram pesquisados cento e cinquenta e seis testamentos. Destes,
selecionados cinquenta e cinco que continham informações a respeito de
proprietários que legaram heranças para seus familiares, que alforriaram
seus escravizados, deixando heranças para estes e para entidades religiosas.
Dos cinquenta e cinco testamentos analisados dezesseis eram de negros e
trinta e nove de brancos.
NEGROS
Desses dezesseis negros, doze eram africanos e
quatro crioulos ou mestiços. Todos se declaravam
cristãos, oito eram casados, seis eram solteiros e
dois viúvos. Dois tinham filhos enquanto quatorze
não. Seis eram membros de irmandades.
Dentre os herdeiros desses indivíduos, nove eram
cônjuges, dois eram filhos e em cinco casos a
herança foi legada à uma irmandade. Quatro
escravizados destes negros foram seus herdeiros,
assim como quatro amigos ou compadres. Três não
nomearam herdeiros. Evidentemente, em muitos
casos não existia apenas um herdeiro. Uma mesma
herança poderia ser dividida entre um cônjuge, um
escravizado e uma irmandade.
No que diz respeito as ocupações, três dos doadores
eram pedreiros. Os demais documentos não
informam as profissões.
Brancos
Do total de trinta e nove testamentos de
brancos, dezesseis deixaram herança
para parentes, vinte e três para
indivíduos sem parentesco ou
instituições.
Estes eram proprietários de cento e
trinta e um escravizados e alforriaram
cento e cinco, embora tais cativos não
gozassem da liberdade imediatamente
após a morte do senhor pois esta estava
condicionada a prestação de serviços aos
herdeiros por períodos que variavam de
dois a trinta e três anos.
Um documento informa a profissão de
pedreiro e outro a de carpinteiro dos
proprietários. Os demais documentos
não informam a profissão.
Algumas singularidades do grupo estudado
•Embora a maioria dos negros fossem africanos, todos se declaravam cristãos.
Provavelmente não por opção uma vez que, como nos informam diversos estudos, eram
cristianizados impositivamente.
•O fato de a maioria ser casada é mais um indício que a assimilação das regras da
sociedade branca era grande.
•A quantidade de negros membros de irmandades e o compromisso assumido com elas,
a ponto de as elegerem como herdeiras, demonstram um nível de organização social
relativamente autônoma, associada à tentativas de integração, pois aquelas irmandades
eram subordinadas à Igreja Católica.
•A quantidade de profissões citadas tanto dentre os documentos relativos a negros como
os relativos aos brancos são incipientes e não nos permitem afirmar a consistência de
indícios, embora as profissões citadas fossem as mesmas em ambos os grupos.
Bens legados
Os bens arrolados, mais do que as profissões,
explicitam as semelhanças sociais entre os dois
grupos estudados.
No que diz respeito a imóveis, os dezesseis negros
legaram nove casas, dois terrenos e um sítio. Os
trinta e nove brancos deixaram para seus herdeiros
quatro casas, um sítio e um terreno de dez alqueires.
Ou seja, neste pequeno universo, os negros, em
número menor, possuíam quantidade de imóveis
superior aos brancos, ampla maioria.
Os trinta e nove brancos, possuíam cento e trinta e
um escravizados e alforriaram cento e cinco em
testamento.
Os negros possuíam dez e alforriaram todos. O
comportamento dos primeiros ressalta a prática de
libertar escravizados com a morte do senhor, ainda
que muitos desses fossem obrigados a continuar
prestando serviços aos herdeiros.
Valores
Os negros tiveram não apenas ascensão
social como adquiriram bens com caráter
profundamente simbólico de “status” para
aquela sociedade. Possuir ao menos um
escravizado explicitava a condição
inequívoca de cidadão para aquela
sociedade.
Tanto negros como brancos legaram aos
seus herdeiros ferramentas, louças,
roupas, livros e joias. Os valores em
dinheiro, entretanto, servem como
exemplos do nivelamento social entre os
dois grupos estudados.
•Os dezesseis negros doaram aos seus
herdeiros 20 doblas, 50 patacões e
270$000 réis.
•Os trinta e nove brancos legaram, 6
doblas e 520$000 réis.
Ascensão e
integração social
Embora analisando um
universo diminuto é possível,
a partir da documentação
estudada, afirmar que existia
um grupo razoável de ex
escravizados integrados
socialmente, possuidores de
bens imóveis, móveis e
dinheiro que os colocava em
situação de igualdade aos
brancos. Estes negros
amealharam estes recursos
com seu trabalho - similar aos
ofícios que exerciam como
escravizados - que, por sua
vez, se assemelhavam aos
dos brancos pobres.
Exemplo de profissional negro especializado
Dentre profissionais africanos ou afro descendentes
que dominavam as técnicas de construção com
adobe e com pedras de cantaria se destacou
Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como
Tebas, que foi um homem negro nascido em 1721,
na cidade de Santos. Escravizado de Bento de
Oliveira, construtor, que vem para São Paulo
trabalhar mas morre em seguida, Tebas assume os
negócios. Os valores recebidos pelo trabalho dele
em 1765 giravam em torno de 640 réis por dia, mais
que o dobro do que se pagava aos demais
construtores, inclusive brancos. Seu valor como
escravizado era 400 mil réis. O valor atribuído a
outros três oficiais pedreiros juntos somava apenas
319 mil réis.
Sua qualificação profissional, contudo, não deve ser
considerada inédita, dentre os três únicos pedreiros
registrados na cidade de São Paulo naquele ano
aparecem Antônio do Rozario, preto forro, casado,
com 45 anos de idade, com renda de 100 mil réis
anuais; Estevão da Silva, branco, casado, 54 anos,
que não tem a renda mencionada; e Bento de
Oliveira Lima, branco, casado, 56 anos e com renda
de 500 mil réis.
Construindo São Paulo e ascendendo socialmente
Dentre os principais trabalhos de Tebas em São
Paulo podemos destacar:
•A torre do Recolhimento de Santa Teresa, utilizando
a técnica de taipa de pilão, coberta por telhas de
barro
•O frontispício da Igreja da Ordem Terceira do
Carmo;
•Conserto da fonte de São Francisco
•Construção do primeiro chafariz público da cidade,
o da Misericórdia, talhado em pedra e com quatro
torneiras em que a água era conduzida por gravidade
das nascentes do Caaguassú (atual Paraíso) por meio
de tubos com papelão coberto por betume.
Em 1803, Tebas apareceria com 82 anos de idade,
viúvo, proprietário de uma casa na Rua dos Freitas
onde morava com suas três filhas.
A análise de Florestan Fernandes sobre o período e a condição
social dos negros
Nos capítulos 2 e 3 Exclusão social, marginalização
• Pauperização e anomia
social (Segundo Émile Durkheim,
quando as normas sociais não são
claras)
• Heteronomia (sujeição a uma lei
exterior ou à vontade de outrem;
ausência de autonomia) racial na
sociedade de classes
• Consolidação da ordem
competitiva, sobre forte
persistência da concepção
tradicionalista do mundo -
1900 a 1930
• Permanência dos padrões
tradicionais de relações
raciais
• O mito da democracia racial
Impulsões igualitárias de integração social
• Cor e estratificação socioeconômica
• Ascensão social do negro e do “mulato”
• Natureza e função das impulsões igualitárias
Capítulo 3 - O problema do negro na sociedade de classes
Consequências Tentativas de inserção social
• A reação societária às tensões raciais
(Bailes, imprensa negra, etc.)
• O dilema racial brasileiro (A questão de
raça e classe)
• “De um lado a desagregação do regime de
castas e estamental, associado à escravidão,
não repercutiu diretamente nas formas de
acomodação racial desenvolvidas no passado.
Não só os mecanismos de dominação racial
tradicionais ficaram intactos. Mas a
organização da sociedade não afetou, de
maneira significativa, os padrões estabelecidos
de concentração racial da renda, do prestígio
social e do poder. Em conseqüência, a liberdade
conquistada pelo negro não produziu
dividendos econômicos, sociais e culturais. Ao
contrário, dadas certas condições
especificamente históricas, do desenvolvimento
econômico da cidade, ela esbarrou com as
pressões diretas e indiretas da substituição
populacional.
Pg. 567, vol. 2
Abdias do Nascimento
Aos nove anos, já trabalhava e só então conseguiu
comprar seu primeiro par de sapatos aos 11 anos
quando entrou para a Escola de Comércio do Ateneu
Francano. Aos 16 anos entrou para o Segundo Grupo
de Artilharia Pesada de São Paulo e veio para a capital,
já formado técnico em contabilidade, ingressando na
Faculdade de Economia da Escola de Comércio Alvares
Penteado.
Em 1936 para o Rio de Janeiro, onde cria, em 1944 o
Teatro Experimental do Negro., participando da Frente
Negra Brasileira e da Ação Integralista Brasileira.
Foi preso várias vezes sempre por lutar contra o
racismo e acabou exilado pela ditadura civil/militar
tornando-se professor em universidades americanas.
Recebeu vários prêmios, e escreveu vários livros;
dentre eles “O Negro Revoltado” e ”Genocídio do
Negro Brasileiro (1978)”
Em 1982 elege-se deputado federal pelo PTB do Rio de
Janeiro, então sob liderança de Leonel Brizola. Em
1991 torna-se suplente do senado Darcy Ribeiro e
quando este morre, em 1996, assume o mandato,
permanecendo até 1998.
Genocídio do Negro Brasileiro
Nesse livro Abdias do Nascimento desconstrói vários mitos até então sustentados pela
historiografia oficial e denuncia aspectos até então desprezados da escravidão e da discriminação
que a sucedeu e desconstrói o mito do senhor benevolente
Exploração sexual da
mulher africana
Denuncia que além do
estupro continuado das
mulheres negras, famílias
brancas amealhavam valores
consideráveis obrigando suas
escravizadas a se
prostituírem.
Concomitantemente vai
sendo criado o mito da
hipersexualidade da mulher
negra e da comercialização do
seu corpo em vários
momentos. Atualmente, na
mídia.
Desconstrói o mito do
"africano livre“
• Lei de 1831 que proíbe o
tráfico e cria a figura do
“africano livre”
• Lei Euzébio de Queiróz de
04/08/1850, reitera a
proibição do tráfico e
mantém a figura do
“africano livre” ou “meia
cara”.
Denuncia o branqueamento cultural como
outra estratégia de genocídio: o etnocídio
Destaca a resistência
cultural
A perseguida persistência da
cultura africana no Brasil
Sincretismo ou folclorização?
A bastardização da cultura
afro-brasileira
A estética da brancura nos
artistas negros aculturados
Uma reação contra o
embranquecimento: o Teatro
Experimental do Negro que
durou de 1944 a 1961.
O roubo do protagonismo foi um importante instrumento
legitimar a escravidão e a desigualdade racial – 13/05 x 20/11
O papel das mulheres na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado
Lavadeiras, quitandeiras, trabalhadoras a ganho
Mulheres negras: As primeiras feministas do Brasil?
Matriarcalismo ancestral, tradição de mulheres africanas
comerciantes, desagregação familiar e solidão da mulher
negra, modalidade intermediária entre escravidão e trabalho
“livre”, autonomia financeira: razões que levam as mulheres
negras a autonomia econômica e, consequentemente, a um
comportamento social que conflitava com a sociedade, que
chegou a virar um padrão cultural.
A sociedade racista e patriarcal acenava com a possibilidade
de integração social (subalterna) ao homem negro, se
cumprisse certos ritos e abandonasse suas manifestações
culturais e formas tradicionais de sociabilidade.
Por esse e outros motivos, existia conflito e uma tensão
permanente entre homens negros mulheres negras, a quem
a sociedade não apresentava quase nenhuma opção de
integração social.
Além disso, contrair matrimônio com uma mulher branca
também era sinal de status, enquanto com uma mulher
negra não.
No imaginário machista e racista a mulher negra está reduzida ao binômio cama/cozinha
A comercialização do corpo da mulher negra, assim como sua híper erotização, acontece desde
a Colônia. Inicialmente para justificar o estupro continuado de mulheres e meninas negras. Se
manteve na transição, ao longo do século XX e, em pleno século XXI, ainda está presente nos
corações e mentes de parte significativa da população masculina.
O imaginário que estigmatiza a mulher negra foi alimentado por gigolôs travestidos de
empresários, como Osvaldo Sargentelli, nas décadas de 60 e 70, e por escritores que, a
exemplo de Jorge Amado, apresentavam as mulheres negras quase sempre como lascivas e
donas de uma sensualidade que “enlouquecia os homens”.
A mulher negra que não se enquadra em determinado padrão estético ou já tem certa idade,
imediatamente é identificada com a outra parte do binômio e considerada a serviçal por
excelência, a cuidadora.
Essa estigmatização é exemplificada pela figura mitificada da “mãe preta” ou da personagem
Mammy, do filme clássico norte americano “E o vento levou”.
Mulheres negras: principais vítimas da escravidão, aqui e nos EUA
O vídeo, cujo link está abaixo, é da musica
Summertime, interpretado por Ella
Fitzgerald e Louis Armstrong, também
cantada por Billie Holiday, Nina Simone e
outras cantoras negras.
A musica retrata a tragédia de uma mãe
negra escravizada, nos EUA, cujo filho foi
vendido.
Fica evidente a semelhança com as
tragédias cotidianas enfrentadas pelas
mulheres negras ao longo da escravidão no
Brasil.
A “Mãe preta”, figura que foi mitificada
pela historiografia racista é um dos grandes
exemplos do cinismo dos opressores, que
romantizaram aquela violência sistêmica.
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Marginalização e lutas igualmente históricas
Essa realidade adversa serviu para
marginalizar de maneira particular
as mulheres negras mas por outro
lado contribuiu para que essas se
tornassem a parcela da população
que mais motivos tinham para se
opor as normas sociais. Ou seja, foi
e continua sendo nesse grupo onde
estão presentes as razões objetivas
e subjetivas para o choque com a
sociedade estabelecida e a ânsia
por mudanças profundas.
Contudo, em que pese suas lutas
históricas e as ações que
promoveram certa diminuição das
desigualdades de gênero e raça nas
primeiras décadas do século XXI, as
mulheres negras continuam sendo
as mais discriminadas e excluídas
dentre os discriminados e excluídos.