HISTÓRIA DO ESPORTE:
cultura, política, gênero e economia
Realização
&
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Marcius de Almeida Gomes – UNEB/BA
Prof. Dr. Paulo Cezar Borges Martins – UNEB/BA
Profa. Me. Margaret Pereira Arbués – UFG/GO
Prof. Me. Edson Matias Dias – PUC/GO
Profa. Dra. Sueli Ribeiro Mota Souza – UNEB/BA
Prof. Dr. Antônio Lopes Ribeiro – FATEO/DF
Profa. Dra. Sandra Célia Coelho G. S. S. de Oliveira – UNEB/BA
Prof. Dr. Krzysztof Dworak – PUC/SP
Prof. Dr. Luís Flávio Reis Godinho – UFRB/BA
Prof. Dr. Itamar Pereira de Aguiar – UESB/BA
Profa. Me. Larissa Silva de Abreu Rodrigues – UNEB/BA
Profa. Me. Ivanete Prado Fernandes – UNEB/BA
Dra. Berta Leni Costa Cardoso - UNEB/BA
Felipe Eduardo Ferreira Marta
Leila Maria Prates Teixeira Mussi
Berta Leni Costa Cardoso
(Orgs.)
HISTÓRIA DO ESPORTE:
cultura, política, gênero e economia
Coleção MovimentAção: debates e propostas
Volume 3
Goiânia – GO
Kelps, 2017
Copyright © 2017 by Felipe Eduardo Ferreira Marta; Leila Maria Prates Teixeira Mussi; Berta
Leni Costa Cardoso.
Editora Kelps
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2017
MAR	 Marta, Felipe Eduardo Ferreira.
his			 Historia da esporte: cultura, política, gênero e economia -
Felipe Eduardo Ferreira Marta; Leila Maria Prates Teixeira Mussi;
Berta Leni Costa Cardoso. (orgs.) - Goiânia: / Kelps, 2017
	 182 p.: il.
	 ISBN: 978-85-400-2065-8
	 1. Análise 2. Artigos 3. História 4. Esporte I. Título.
CDU: 796:(045)
CIP - Brasil - Catalogação na Fonte
BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS
Índice para catálogo sistemático:
CDU: 796:(045)
5
APRESENTAÇÃO
A ‘Coleção MovimentAção: debates e propostas’ vem oportuni-
zar aos pesquisadores, docentes e extensionistas divulgarem pesqui-
sas e intervenções, atividades singulares, que são desenvolvidas nos
seus cotidianos acadêmicos, versando sobre questões teóricas e prá-
ticas, permitindo que as mais diferentes comunidades (re)conheçam
a riqueza dessas ações, se apropriem e dialoguem com os escritores.
O terceiro volume, tematizado na “História do Esporte”, apresen-
ta produções que versam sobre sua interação com questões culturais,
políticas, de gênero e econômicas, que representam importante cam-
po de atuação profissional para uma diversidade de profissões.
Prof. Me. Ricardo Franklin de Freitas Mussi
7
PREFÁCIO
CELEBRANDO UMA NOVA ETAPA NOS ESTUDOS
HISTÓRICOS DO ESPORTE NO BRASIL
Ainda que existam estudos anteriores, a conformação de um
campo acadêmico ao redor da história do esporte se dá na transição
dos séculos XX e XXI. No âmbito da Educação Física, os primórdios
desse movimento se encontram nos anos 1980. Na História, isso se
deu mais tardiamente, nos anos 2000, fortalecendo e sendo funda-
mental na melhor definição das iniciativas em curso.
A despeito de recente, o campo tem dados passos alvissareiros.
Nesses cerca de 20 anos de caminhada, é crescente o número de pes-
quisadores envolvidos; de investigações que resultaram na publica-
ção de livros, capítulos, artigos em periódicos, teses e dissertações; de
localidades envolvidas. Esta última, a meu ver, é a grande novidade
dos últimos anos.
A princípio, a quase totalidade dos estudos se referia ao eixo Sul-
-Sudeste, com destaque para investigações e pesquisadores de Rio de
Janeiro e São Paulo. Certamente contribuíram para tal o fato de que a
pós-graduação e os mecanismos de pesquisa se encontravam melhor
estruturados nessas cidades, bem como sua importância na história
nacional.
De um lado, não há como negar a contribuição e importância
dessas iniciativas – nessas capitais continuam em desenvolvimento
importantes ações relacionadas à história do esporte. De outro lado,
gestaram-se modelos que, não poucas vezes, acabaram por equivo-
cadamente pautar os estudos que começaram a ser desenvolvidos em
outras localidades do país.
Pari passu com o crescimento da universidade brasileira, inclusi-
ve da pós-graduação, em outras regiões nacionais – Nordeste, Cen-
tro-Oeste e Norte, os estudos históricos do esporte se espraiaram,
envolvendo novos pesquisadores que passaram também a lançar no-
8
vos olhares sobre o tema, aportar importantes contribuições para o
debate, arejar o conjunto de reflexões acerca do assunto. Trata-se de
um sinal de dupla via – é tanto um retrato da consolidação do cam-
po acadêmico quanto uma relevante contribuição para sua melhor
estruturação.
Este livro que tenho a honra de prefaciar é um claro exemplo des-
se processo. Ainda que envolva pesquisadores da região sudeste, bem
como apresente capítulos dedicados a abordagens dessa parte do país
ou de caráter mais nacional, pode-se dizer que sua grande potenciali-
dade é lançar olhares para arranjos locais ainda pouco conhecidos (e
reconhecidos), oriundos do trabalho de pesquisa de jovens pesquisa-
dores, majoritariamente atuando no Estado da Bahia.
Esse balanço de novos temas, novas abordagens e novos pesqui-
sadores (é verdade, alguns nem tão novos, já há alguns anos frequen-
tadores e construtores do campo da História do Esporte) é o ponto
forte deste livro que já nasce com o perfil de que marcará esse novo
tempo dos estudos históricos do esporte brasileiro.
Certamente a grande contribuição se dará na sequência. A leitura
deste material desencadeará debates (oxalá muitas sejam as críticas
que permitam avançar o conhecimento!) e inspirará jovens pesqui-
sadores que começam a se encantar com o tema. Novos estudos sur-
girão, outros livros serão lançados, eventos organizados: o campo
continuará em movimento, mais múltiplo, diverso, aberto à inovação
e novidade.
O leitor perceberá que não são exagerados esses prognósticos, o
futuro nos demonstrará se essas ideias são ou não exageradas. Por
ora, cabe nos deleitar com este livro, desfrutar da leitura agradável e
saudar essa notável iniciativa.
Victor Andrade de Melo
Verão de 2017
Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada e do
Programa em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Professor do Programa de Pós-graduação em Estudos do Lazer da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
9
SOBRE OS ORGANIZADORES
FELIPE EDUARDO FERREIRA MARTA
Licenciado em Educação Física (UNESP/SP), Doutor em Histó-
ria (PUC/SP), Pós-Doutor (Virginia Tech/USA). Professor Titular do
Departamento de Ciências Naturais da Universidade do Sudoeste da
Bahia (DCN/UESB/BA) e docente do Programa de Pós-Graduação
em Memória: linguagem e sociedade (UESB/BA). Coordenador do
Grupo de Pesquisa CORPORHIS – História, Corpo e Cultura.
LEILA MARIA PRATES TEIXEIRA MUSSI
Licenciada em História (UNEB/BA), mestre em História (UNEB/
BA). Professora da Faculdade Santo Agostinho de Vitória da Con-
quista (FASAVIC/BA) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/
BA). Líder do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação,
Cultura e Saúde (GEPEECS/CNPq).
BERTA LENI COSTA CARDOSO
Graduada em Educação Física (UNIMONTES/MG); especialista
em Docência do Ensino Superior (FIJ/RJ); mestre e doutora em Edu-
cação Física (UCB/DF). Pós-doutoranda em Educação (UESB/BA)
Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA). Pes-
quisadora do Grupo de Pesquisa sobre Mulher, Gênero e Saúde, do
Grupo de Estudos Sociopedagógicos da Educação Física e da Linha
de Estudo, Pesquisa e Extensão em Atividade Física
11
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................. 5
PREFÁCIO......................................................................................... 7
Victor Andrade de Melo
SOBRE OS ORGANIZADORES...................................................... 9
CAPÍTULO I
MEMÓRIAS DO CORPO NA IMPRENSA SOTEROPOLITANA:
A TARDE 1912 A 1914.......................................................................13
Prof. Dr. Felipe Eduardo Ferreira Marta
Profa. Joalice Santos Batista
Prof. Me. Natanael Vaz Sampaio Junior
CAPÍTULO II
PROFISSIONALIZAÇÃO DO ATLETA DE HANDEBOL
NA BAHIA DA DÉCADA DE 1980? UMA ANÁLISE
DOCUMENTAL................................................................................... 29
Profa. Ma. Leila Maria Prates Teixeira Mussi
Prof. Me. Ricardo Franklin de Freitas Mussi
Prof. Me. Angelo Maurício de Amorim
CAPÍTULO III
HISTÓRIA DO BOXE FEMININO: UMA LUTA ALÉM DOS
RINGUES................................................................................................ 47
Profa. Dra. Berta Leni Costa Cardoso
Profa. Dra. Tania Mara Vieira Sampaio
CAPÍTULO IV
DO ESCANTEIO PARA O MEIO DA ÁREA: EM BUSCA
DA VISIBILIDADE E RESPEITO AO FUTEBOL FEMININO
BRASILEIRO.......................................................................................... 65
Profa. Dra. Enny Vieira Moraes
Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque
12
CAPÍTULO V
FUTEBOL EM CAPIM GROSSO E SUA RELAÇÃO COM AS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS – 1964 A
1985.......................................................................................................... 85
Prof. Gildison Alves de Souza
Prof. Me. Osni Oliveira Noberto da Silva
CAPÍTULO VI
A CAIXA DE GUARDADOS: MEMÓRIAS DO FUTEBOL DE
FÁBRICA................................................................................................. 97
Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga
Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque
CAPÍTULO VII
O DISSÍDIO E INTERVENÇÃO ESTATAL NO FUTEBOL NA
DÉCADA DE 1930.............................................................................. 115
Dr. Jorge Miguel Acosta Soares
CAPÍTULO VIII
ESPORTE PARA TODOS E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS NA
DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1964-1985).......... 131
Profa. Dra. Nailze Pereira de Azevêdo Pazin
Profa. Ma. Denize Pereira de Azevêdo Freitas
CAPÍTULO IX
JEQUIÉ TÊNIS CLUBE: INSPIRADOR DA MODERNIDADE
ESPORTIVA LOCAL.......................................................................... 147
Prof. Dr. Roberto Gondim Pires
Prof. Dr. Cleber Augusto Gonçalves Dias
Marcos Cesar Meira Leite
CAPÍTULO X
A MODERNIDADE EM DUAS RODAS: CULTURA E PODER NA
PRÁTICA DO CICLISMO NA CIDADE DE SÃO PAULO (1890-
1904)...................................................................................................... 165
Prof. Me. Yuri Vasquez Souza
Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga
SOBRE OS AUTORES.................................................................. 179
13
CAPÍTULO I
MEMÓRIAS DO CORPO NA IMPRENSA
SOTEROPOLITANA: A TARDE 1912 A 1914
Prof. Dr. Felipe Eduardo Ferreira Marta
Profa. Joalice Santos Batista
Prof. Me. Natanael Vaz Sampaio Junior
Introdução
Este estudo desenvolveu-se em uma perspectiva histórica a partir
das análises das manchetes do Jornal A TARDE que versavam so-
bre as atividades físico-esportivas praticadas na cidade de Salvador,
sobretudo, o contexto sócio histórico e cultural em que tais práticas
eram desenvolvidas, nos permitindo utilizar da memória enquanto
ciência que propiciou a análise de fenômenos que envolvem as dis-
cussões sobre o corpo naquela sociedade.
A importância de se apropriar da memória na qualidade de re-
curso para este estudo, se deve ao fato da memória ter possibilitado a
reminiscência de um passado vivificado por diferentes grupos sociais
que, de certa forma, determinavam o que era memorável, mas, tam-
bém, as formas pelas quais seriam lembrados, sendo a memória fruto
dos testemunhos de uma época (HALBWACHS, 2003).
Nora (1993), ao elencar acerca dos lugares de memória traz que
o que chamamos de memória é a constituição gigantesca e “vertigi-
nosa” daquilo que nos é impossível lembrar, daí, o autor se utiliza do
pensamento de Leibniz para dizer que a memória de papel tornou-se
um instrumento autônomo de museus, bibliotecas depósitos, centros
de documentação e bancos de dados. Assim, conforme desaparece a
memória tradicional nos sentimos obrigados a acumular religiosa-
mente vestígios do que foi (LE GOFF, 1996). Neste sentido, o arquivo
público da Biblioteca Pública do Estado da Bahia constitui-se en-
quanto lugares de memória registradora, ao dá ao arquivo o cuidado
de se lembrar por ela.
14
História do Esporte
O jornal A TARDE, caracterizar-se-á como meio produtor de
memória na medida em que foi escrito em uma determinada épo-
ca por um grupo, tornando-se documento histórico ao se encontrar
distante no tempo e ser analisado criticamente pelo historiador. As-
sim, cabe ao historiador identificar nestes lugares de memória, meios
para escrever a história. Neste sentido, a intenção deste estudo foi
identificar memórias do corpo nas páginas do jornal A TARDE no
período de 1912 a 1914. Para desenvolvê-lo, foram analisadas 518
edições do referido Jornal, iniciando-se em outubro de 1912 e fin-
dando-se em junho de 1914.
É importante salientar que no período de janeiro a junho de 1913,
não foram encontradas edições do jornal. Os dados foram coletados
na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada na cidade de
Salvador no período de Setembro de 2013 a março de 2014.
Se tratando de um estudo norteado pela análise do discurso jor-
nalístico, reforça o papel da imprensa escrita na qualidade de meio
difusor de informação que tinha como leitores a camada mais ele-
vada da população onde, nela “[…] as tensões e articulações entre a
cultura letrada, campo privilegiado de expressão das elites, e a ora-
lidade constituem dimensão fundamental da formação das culturas
urbanas e das relações de poder na cidade moderna” (CRUZ, 2013,
p.30).
Assim, “é importante atentar-se que, para um país inserido no
contexto da modernidade, os corpos e suas práticas também deve-
riam expressá-la” (MARTA, 2013, p.4.). Corroborando com o autor,
percebemos o quanto era imprescindível europeizar, a visão dos cor-
pos apregoada na pele, sendo necessário que sua conduta corpórea
expressasse o protótipo ocidental, levando-nos então a questionar
qual a memória de corpo que o jornal enquanto força ativa buscou
construir? Como se constituiu a memória do corpo dentro de suas
diferentes possibilidades neste espaço movido por ideais de moder-
nização?
15
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
Memórias do Corpo na Imprensa Soteropolitana
[...] é possível discutir o corpo como uma construção cultural, já
que cada sociedade se expressa diferentemente por meio de corpos
diferentes.
Jocimar Daolio
O pensamento de trazer Daolio (1995) para esta discussão re-
força a ideia de que não foi tarefa simples discutir sobre o corpo,
sobretudo, em uma sociedade em transformação, onde os ideais de
civilidade e modernidade são constantemente reafirmados como ne-
cessários para o avanço dos lugares. Lugares marcados pela experi-
ência da industrialização, do avanço tecnológico, do capitalismo e
do processo de urbanização, caracterizados pelas novas formas de
organização dos espaços, onde, higiene, saúde, beleza, tornam-se
desejos a serem impregnados no corpo, e nos espaços, tornando-se
uma construção cultural da sociedade.
Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam
a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mun-
do, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da
fisionomia singular de um ator, Através do corpo, o homem apro-
pria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, ser-
vindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros
da comunidade (LÊ BRETON, 2007, p.7).
Em outras palavras, são nos corpos que estão presentes as es-
tratégias de sobrevivência humana, onde se experimentam diversas
sensações: andar, correr, saltar, pensar, comunicar-se, entre outros.
Todas as ações humanas perpassam pela corporeidade, antes de tudo
o homem é um ser corpóreo. Corpos que falam que desejam, que
através de suas ações transformam realidades, mudam cenários e
constroem espaços novos, criam e recriam, inventam e se reinventam
na busca incessante por melhorias para si e para o outro.
Estes corpos são colocados nas páginas dos periódicos A TARDE
sobre diferentes perspectivas, dentre elas estão: corpo, espaço urba-
no e higienização; corpo esportivo; corpo e moda; e corpo enquan-
16
História do Esporte
to objeto de consumo. No entanto, para este estudo desenvolvemos
nossas análises a partir do corpo na relação com o espaço urbano e o
corpo esportivo, demonstrando o pensamento presente na sociedade
soteropolitana no período elencado e, assim, resgatar memórias do
corpo nesses espaços que ele emerge.
Corpo, higiene e espaço urbano
Compreendendo que o homem é antes de tudo um ser corporal
e nele todas as ações acontecem, o corpo não pode ser compreen-
dido sem uma análise do contexto onde o mesmo se insere. Neste
sentido, Caxilé (2007, p.377) assevera que “a imagem idealizada do
corpo transfere seus valores para as cidades. As pedras urbanas con-
tam experiências de povos – homens e mulheres que sentem e vivem
determinadas épocas e lugares”. Assim, no contexto da cidade transi-
ta diferentes corpos aumentando a possibilidade de contágio por di-
ferentes tipos de epidemias e doenças, deste modo, os cuidados com
a saúde no início do século XX, perpassavam pela prevenção e cura
de uma “infinidade de febres [...]. Para tais casos, asseio significava
principalmente proteção” (SANT’ANA, 2011, p.288).
Preocupados com a proliferação de epidemias os representantes
da cidade soteropolitana buscavam então, formas de proteger a po-
pulação dos males que poderiam acometê-los, objetivando resguar-
dá-los de possíveis enfermidades. No fragmento que segue, o Jornal
explicita o texto da seguinte forma: “em relação à saúde pública foi
solicitado ao diretor da estatística demográfica sanitária o resumo do
movimento de vacinação, durante o mês de novembro último, comu-
nicando a higiene municipal o péssimo estado dos prédios números
236, 230 e 226, armazéns de secos e molhados situados em zona afe-
tada por peste” (A TARDE, ed. 51, dezembro de 1912, p.2).
As evidências demonstravam a inquietação no que diz respeito à
limpeza dos espaços, e a preocupação com a conservação dos alimen-
tos em lugares limpos e devidamente higienizados tornava-se uma
das principais preocupações elencadas nas páginas do jornal. Deste
17
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
modo, há indícios de que a elite soteropolitana estava preocupada
com o desenvolvimento do espaço urbano, e o corpo imerso nes-
te espaço não poderia passar despercebido, as apreensões elencadas
nas páginas do jornal, que em sua maioria diziam muito a respeito
da corporeidade e da higienização destes corpos imersos no espaço
citadino, reforçando os conflitos entre as classes.
Os conflitos que abalam a sociedade moderna, “a procura in-
fatigável por novas legitimidades são, entre outros fatores, os que
contribuíram logicamente para comprovar o enraizamento físico da
condição humana” (LE BRETON, 2007, p.10). Assim sendo, a mo-
dernidade traz consigo grandes transformações em diversos aspectos
da vida humana. Novos comportamentos são adquiridos em decor-
rência das constantes mutações sociais. Neste sentido, o corpo como
parte representante deste espaço, necessita ser cuidado de formas
diferenciadas dos modos existentes no período colonial. Conforme
menciona o jornal quando traz que “enfermos pobres ainda são car-
regados em canapés” questionando o processo/desejo de civilização
da cidade no fragmento que diz o seguinte:
Dizem que a cidade se cívilisa. Os autos, os cinemas e as avenidas
em projecto, requintam seus costumes sacudindo os velhos hábitos,
que nos trouxeram o primeiro governador geral e que amigos como
somos das tradições, conservamos com certo carinho.
Pode ser que assim seja, mas nem tudo ainda desprezamos da velha
herança colonial.
Entre seus legados, há um que perdura, embora há muito já deveste
ter desaparecido: é o transporte dos enfermos pobres em canapês (A
TARDE ed.64, 27 de dezembro de 1912, p.1).
E foi nesse contexto que a população menos favorecida começou
a aspirar por acesso à instrução, e isto fica elucidado na edição nº 247
publicada no dia 7 de agosto de 1913 em sua primeira página o jornal
A TARDE faz um apelo solicitado por moradores de um povoado
carente acerca da necessidade de uma escola, colocando o seguinte:
“Há ali cerca de 500 crianças privadas de ensino por falta de escola.
Para frequentarem os educandos têm necessidade de melhores rou-
pas, sendo-lhes impossível voltar para casa na hora do recreio para
18
História do Esporte
fazer suas refeições”. Portanto, a população procura civilizar-se, e vê
na educação um meio para tal, elencando também as necessidades
presentes no corpo como alimento e vestimenta. Assim, o homem
age no corpo e pelo corpo, seus desejos, suas ânsias, suas idealizações
são impregnadas através do lugar onde estão imersos.
Segundo o jornal as pessoas que leem “os diários da capital” (jor-
nal veiculado no Rio de Janeiro), fora da cidade soteropolitana, supõe
que a cidade é civilizada. Enfatizando que de fato há muita gente feliz
e tranquila vivendo no palácio confortável nos bairros aristocráticos
que nega a miséria, porém, as pessoas carentes durante a noite vão
dormir no lajedo frio dos bancos das praças e jardins ou nas rodas
das igrejas:
Assim, os cegos, que encontramos, dia a dia, nas portas dos ascen-
sores, ou das igrejas, esfarrapados e quase nus, como se quizessem
zombar com uma ironia pungente das nossas pretenções de civili-
sação.
[...]quanta miséria vai pôr ahi aos nossos olhos, no coração da cida-
de, nas chambergas fétidas onde homens, mulheres e creanças ha-
bitam numa promiscuidade de sujeira, turca, com a tuberculose e a
peste? (A TARDE ed. 313, 23 de Outubro de 1913, p.1).
Os “corpos” esquecidos e maltratados são jogados ao relento nas
praças públicas, enquanto outros “corpos” se esbanjam na fartura em
estabelecimentos confortáveis e luxuosos. As contradições presentes
nos espaços citadinos são refletidas em diferentes comportamentos,
onde, de um lado estão os corpos maltratados pela miséria e de outro
os corpos imersos em espaços confortáveis e luxuosos.
A higienização dos espaços e o anseio pela retirada da população
carente que com seus corpos maltratados e enfermos, circulavam no
centro de Salvador, causava grande inquietação a população burgue-
sa, estando esses, preocupados com a forma como a cidade seria vista
pelos visitantes e com o contágio por doenças como a peste, a tuber-
culose entre outras. Assim, a preocupação com os indivíduos que
transitam na cidade de Salvador deveria ser priorizada, tanto quanto
a modernização da mesma, isto é exposto nas páginas do jornal em
diferentes edições, quando são mencionadas questões relacionadas
19
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
à saúde pública, e as necessidades de saneamento básico, a fim de
evitar proliferação das epidemias.
Ao constituir-se enquanto cidade as demandas sociais aumen-
tam, surgindo a necessidade de um planejamento urbano, tendo em
vista que é preciso oferecer à população que se encontra condensada
no espaço urbano, melhores condições de higiene, trabalho, educa-
ção, saúde e moradia. A esse despeito Cruz (2013, p.36) destaca que
as alterações “econômicas, políticas e sociais (a abolição da escravi-
dão, a proclamação da República, os processos de industrialização,
a ampliação acelerada do mercado interno, a imigração massiva)”
foram fatores que contribuíram para o rápido processo de urbaniza-
ção. Com isto os corpos residentes nesse espaço, aos poucos vão se
adequando a ele.
Neste sentido, diante das múltiplas questões colocadas nas pági-
nas do Jornal A TARDE há indícios que a população residente em
Salvador desejava estar imersa em um espaço civilizado e higieniza-
do de acordo com padrões vindo de países como: França, Inglaterra
e Estados Unidos e, que lhes proporcionassem múltiplas possibilida-
des de lazer e interação, vendo como uma dessas possibilidades de
socialização os espaços das práticas esportivas.
Corpo Esportivo
Ao tratar das questões relacionadas a prática de esportes, o jor-
nal A TARDE em uma de suas reportagens, alude que a ausência da
cultura esportiva foi um problema que abalava os homens públicos,
nos países de civilização modelar. Preocupado com a ascensão da
prática esportiva, o jornal coloca que esta deverá ser motivo de ze-
los e meditação, pois é um divertimento que beneficia o desenvolvi-
mento psicológico, educa o espírito e contribui para despertar forças
adormecidas. Porque, admirável será um povo viril, feito de perseve-
rança, força e tranquilidade com grandes vantagens, podendo então,
adquirir a cultura do psíquico por meio da ginástica e dos jogos ao
ar livre se forem praticados de forma inteligente (A TARDE, ed. 1, 15
de outubro de 1912).
20
História do Esporte
Diz, ainda, A TARDE, que:
Aqui, no Brasil, o homem da cidade passa depressa, vive pouquíssi-
mo é fraco sem harmonia de linhas, consequentemente deselegante.
Age, pode agir, mais quando o faz é propelido por exaltações mór-
bidas.
Que infelizes se nós não podermos corrigir! Mirem-se todos no
espelho da nova geração do sul ou encarem os que fazem aqui, a
despeito de mal orientados, um pouco de sport; prometem alguma
coisa. (A TARDE, 1º ed. 15 de outubro de 1912, p.2).
A ideia de nação forte aparece no discurso jornalístico como algo
belo e vantajoso. O homem soteropolitano é descrito como um ser
fraco e feio, sem harmonia em sua estrutura corporal, isto é, coloca-
do pelo jornal como um problema de carácter econômico e social.
Segundo o Jornal A TARDE, os governantes de países vistos pela
população burguesa de Salvador como modelo de civilização (Euro-
pa, Estados Unidos, Japão e Argentina) estão estimulando a prática
esportiva com prêmios. Como prova deste interesse os povos cultos
realizam a festa pública universal dos jogos olímpicos, a cada qua-
tro anos nas capitais Europeias (A TARDE, ed. 1, 15 de outubro de
1912). Neste sentido, entende-se que:
Interações implicam em códigos, em sistemas de espera e de reci-
procidade aos quais os atores se sujeitam. Não importam quais se-
jam as circunstâncias da vida social, uma etiqueta corporal é usada
e o ator a adota espontaneamente em função das normas implícitas
que o guiam (LE BRETON, 2007, p.47).
À medida que a sociedade se desenvolve, as cidades começam a
estabelecer conexões com outras cidades e com outros continentes,
às notícias se espalham pelo mundo, no caso de Salvador, as atuali-
dades vigentes no exterior eram trazidas em embarcações náuticas e
levava dias para chegar, porém, logo que chegava o jornal A TARDE
se incumbia de divulgar em suas edições acerca do que havia de mais
atual no continente europeu, dando ao povo letrado, a incumbência
de buscar se atualizar, procurando se apropriar ao máximo do que
havia de mais culto em outros países, e o esporte era uma das práticas
21
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
consideradas como algo que deveria estar presente em uma cidade
considerada civilizada e culta.
Assim, em um de seus fragmentos, o jornal A TARDE aborda
que houve um homem que compreendeu a necessidade de oferecer
subsídio para as práticas esportivas, ele foi o reformador do Rio de
Janeiro, o prefeito Pereira Passos, um homem alto de ombros lar-
gos e aparência saudável, compreendeu a necessidade de povoar as
avenidas e modernizar os espaços, pensando patrioticamente. De
fato, precisamos de avenidas belas e edifícios para que os estrangeiros
nos vejam mais dignos, e entendemos estes sentimentos como justos,
pois eles correspondem a carência de um novo povoamento. Esta é
uma segunda necessidade, complemento da primeira (A TARDE, ed.
01, 15 de outubro de 1912, p.3). A primeira necessidade foi colocada
pelo jornal no fragmento a seguir, da seguinte forma:
[...] carecemos de atividade, de vida, de beleza nos homens e nas
mulheres – e só se adquirem essas qualidades dando a todos os mús-
culos do organismo trabalho regular, ou seja, cultivando o sport com
inteligência.
Remodelamos tudo, mais antes de tudo, remodelamo-nos.
Diremos aos que nos procurem: vamos a terra da vida fácil, das belas
cidades, da força que sorri com beleza.
E nós, por nossa vez porque seremos fortes, não nos deixamos ab-
sorver.
Prevenimo-nos para o futuro se tanto nos lisonjeia uma solidarieda-
de universal. (A TARDE, 1º ed. 15 de outubro de 1912, p.2).
Segundo o jornal, cabe aos governos terem boas intenções, e não
esquecerem este problema, assim também, a imprensa precisa provo-
car o desejo de resolvê-lo. Os corpos físicos revelavam então um ima-
ginário de corpo como algo passível de intervenção, a necessidade de
melhorar a condição física, a beleza e a elegância são colocadas como
fatores que podem ser aprimorados através da prática esportiva.
As exigências em relação à corporeidade dos indivíduos são di-
versas, o homem precisava passar por transformação, a fim de aten-
der aos critérios estabelecidos, assumido diferentes valores, onde o
magro, o musculoso e o forte fisicamente e intelectualmente, apare-
22
História do Esporte
cem como valor distintivo nas sociedades modernas. A esse despeito,
Magalhães e Sabatine (2011, p. 134) trazem que no corpo incidem
as estratégias de poder, tornando-o objeto dos investimentos sociais
que dão passagem à produção das diferenças, reproduzidas na atu-
alidade através da valorização dos símbolos da saúde, da beleza, da
felicidade e da qualidade de vida.
Em uma das reportagens sobre o esporte veiculada no A TAR-
DE (Ed. 2, 16 de outubro de 1912 p. 03), o jornal coloca que entre
os competidores estão inscritos os páreos de maior importância. Na
disputa do campeonato baiano do remo, veremos o mais importante
“pareô” do dia, o já três vezes campeão, um dos poucos atletas, que
vem sabendo competir. Não sendo um Hercules, fez-se grande atleta.
Ao descrever a respeito de outro atleta inscrito no campeonato, o
jornal menciona o seguinte: “Hrill também favorito no campeonato
e talvez o mais forte, o mais belo conjunto de músculos em destaque”
(A TARDE, ed. 2, 16 de outubro de 1912 p. 3).
Os símbolos atribuídos ao corpo são construídos na interação
com os indivíduos à medida que as sociedades se desenvolvem, os
corpos adquirem novas características tornando-se algo marcante na
modernidade. Os indícios encontrados nas edições do jornal A TAR-
DE reafirmam o pensamento destacado por Le Breton (2007, p.9),
para quem: “a expressão corporal é socialmente modulável, mesmo
sendo vivida de acordo com o estilo particular do indivíduo”.
O corpo elencado pelo discurso midiático do Jornal A TARDE
leva-nos, a hipotética ideia de que suas raízes estão centradas nos
valores culturais vigentes em países do exterior, dentre eles a Euro-
pa. A cidade soteropolitana objetivando alcançar a civilidade, deve-
ria então educar os seus corpos respeitando tais padrões e normas.
No discurso do jornal A TARDE evidência mais uma vez as caracte-
rísticas físicas dos esportistas, quando coloca que “A guarnição está
composta dos melhores competidores. Este povo prefere o partido de
sua grande força, ao da arte de remar bem. É valente a guarnição” (A
TARDE, ed. 3, 17 de outubro de 1912, p. 2).
Diz, ainda, que:
23
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
[...] toma parte na bancada de sola voga um dos nossos mais belos
sportmem: peito 1 m, 11: bisceps; 0,41 e força de gênio: grau máxi-
mo mais pouco duradouro – Felizmente. E fortíssima esta guarni-
ção, e perde, talvez, um pouco com isto. Dela destaca-se Alberta-
zzi, incontestavelmente um tipo exemplar de perseverança, calma
e persistência. Sabe aliar a sua extraordinária força, cultivada com
carinho, meios inteligentes de aperfeiçoamento. (A TARDE Ed. 3, 17
de outubro de 1912, p.2).
Percebe-se uma valorização das medidas antropométrica dos es-
portistas, o que mais uma vez nos remete a imaginação de que exis-
tia um ideal originário do exterior veiculado nas edições do Jornal.
Segundo a reportagem do Jornal A TARDE, a preparação física dos
esportistas era algo considerado peculiar para que se chegue à vitó-
ria, os competidores no geral estão bem preparados e com aspecto
feroz. Os esportistas devem mostrar a alegria, a força e a agilidade de
seus músculos para as senhoritas (A TARDE, ed. 7, 22 de outubro de
1912, p.3).
A mulher ocupava lugar de submissão, sua participação nas prá-
ticas esportivas se limitava a contemplação dos eventos ficando na
condição de plateia, consideradas pelo jornal A TARDE, as respon-
sáveis por embelezar os ambientes de socialização com suas lindas
vestes, era também um dos motivos pelos quais os esportistas deviam
exibir seus corpos a fim de serem admirados por elas.
O Esporte era tido como uma prática que promovia diversos
benefícios ao ser humano, tanto para os praticantes quanto para os
admiradores, sendo praticado em sua maioria pela classe burguesa
e, considerado também, como algo distintivo e culto presente nas
sociedades europeias, sendo necessário um lugar próprio para pra-
ticá-lo. Por outro lado às práticas corporais realizadas pela classe
subalterna eram consideradas como atos de vandalismo e vadiagem
praticados na rua, neste sentido, a prática da capoeira era vista como
algo negativo para a imagem da cidade de Salvador, que buscando se
modernizar não a considerava como algo civilizado e culto, especial-
mente por fazer parte da cultura negra.
24
História do Esporte
Tal fato fortaleceu os conflitos sociais entre a burguesia e a classe
subalterna, onde de um lado a burguesia tentava inibir e acabar com
as práticas da capoeira, inclusive, mandando prender seus pratican-
tes. Por outro lado, os capoeiristas resistiam e fortaleciam seus gru-
pos expandindo assim sua cultura.
Segundo Lima e Carvalho (2011, p.238) o surgimento dos espa-
ços citadino sugeria inovações necessárias para o desempenho de ati-
vidades sociais laicas que se tornavam cada vez mais públicas, onde
de acordo com os autores, “os esportes, as festas e os piqueniques ao
ar livre, as comemorações cívicas” começam a ganhar relevância nas
sociedades modernas estimulando o consumo, a exibição dos corpos
e a valorização da moda, sendo que, essa passa a ser algo marcante
nas sociedades modernas.
Considerações Finais
Para identificar as memórias do corpo na imprensa soteropolita-
no, A TARDE no período de 1912 a 1914 percebemos destaques para
quatro pontos considerados como fundamentais dentro do processo
de transformação pelo qual a cidade soteropolitana estava passando:
a urbanização da cidade e o processo de higienização dos espaços, as
práticas esportivas, a moda e as propagandas.
As questões relacionadas ao processo de modernidade na cida-
de de Salvador estão presentes nas páginas do jornal A TARDE de
forma enfática e explícita no período estudado. As notícias de aqui-
sição de empréstimos no exterior, pavimentação das ruas e ao me-
lhoramento dos espaços, surgem em todas as edições do jornal. No
entanto, percebe-se que questões relacionadas ao corpo aparecem de
forma implícita nas edições analisadas. Ainda, no que diz respeito
à urbanização da cidade foram encontrados vestígios do corpo em
diferentes perspectivas, entre elas estão às questões relacionadas, ao
saneamento básico, aos cuidados com o corpo (higiene, alimentação,
prática de exercício físico etc), a organização dos espaços citadinos e
a preocupação com a proliferação das epidemias.
25
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
Em relação às práticas esportivas as memórias do corpo são co-
locadas nas páginas do jornal enfatizando as questões relacionadas
ao ser fisicamente capaz, como o ser forte, musculoso e resistente,
características consideradas como fundamentais para o desenvolvi-
mento de uma nação bela. Vale salientar que nos primeiros periódi-
cos as notícias acerca do esporte aparecem em quase todas as edições
e nelas são colocadas diversas questões, dente elas estão: preparação
física dos esportistas e as condições físicas dos mesmos.
Identificamos então, que de acordo com discursos presentes no
Jornal A TARDE, o processo de inserção em determinada prática es-
portiva enquanto elemento sistematizado perpassa por um arsenal
de exigências atribuídas ao corpo. Historicamente, um desportista
precisa ser forte, saudável, bem preparado, a fim de ter um bom de-
sempenho objetivando alcançar resultados, o corpo precisa ser mol-
dado, buscando atender as exigências.
Neste sentido, o discurso jornalístico nos leva a desconfiar que o
ideal de corpo esportivo vigente tenha relações com os tipos físicos
dos europeus visto e colocados como modelo de uma sociedade mo-
derna, bela e civilizada. Salientamos ainda que, apenas uma camada
mínima da população soteropolitana atendia aos critérios colocados
nas páginas dos jornais como bons, finos e civilizados. A higiene pes-
soal e dos espaços são questões que circulavam em cada nova edição
do jornal, elas eram colocadas de diferentes maneiras buscando rea-
firmar ideais de países do exterior.
Ao analisar as páginas de propaganda deve-se levar em conside-
ração os objetivos do mercado produtor em disseminar o produto
propagandeado. Assim, ainda que os indícios encontrados nas pági-
nas do jornal surgiram à ideia de que as questões inerentes ao corpo
eram algo em ascensão voltada para questões de beleza e saúde, não
se podem desconsiderar questões como o desenvolvimento do capi-
talismo e da industrialização, fatores relevantes neste contexto.
Os resultados até então encontrados não são conclusivos, contu-
do, têm nos conduzido a uma reflexão de que assim como o ambiente
citadino passava por mudanças influenciadas pelo ideal de moderni-
dade presente na Europa, essas mudanças também diziam respeito
26
História do Esporte
ao comportamento humano influenciando as questões de higiene,
saúde e beleza, o que leva-nos a indagar se a sociedade soteropolitana
já apresentava naquele momento histórico sintomas da busca de um
corpo idealizado.
Fontes Escritas
A TARDE Ed. 1 ,15 de outubro de 1912.
A TARDE Ed. 2, 16 de outubro de 1912.
A TARDE Ed. 3, 17 de outubro de 1912.
A TARDE Ed. 7, 22 de outubro de 1912.
A TARDE Ed. 51, dezembro de 1912.
A TARDE Ed. 64, 27 de dezembro de 1912.
A TARDE Ed. 313, 23 de outubro de 1913.
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LIMA, S. F.; CARVALHO, V. C. O corpo na cidade: gênero, cultura ma-
terial e imagem pública. Estudos Históricos, v.25, n.48, p.231-263, 2011.
27
Memórias do corpo na imprensa soteropolitana
MARTA, F. E. F. O esporte na imprensa soteropolitana da primeira
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blica. In: DEL PRIORI, M.; AMANTINO, M. História do Corpo no
Brasil. São Paulo: Unesp, 2011. p.507-530
29
CAPÍTULO II
PROFISSIONALIZAÇÃO DO ATLETA DE HANDEBOL
NA BAHIA DA DÉCADA DE 1980? UMA ANÁLISE
DOCUMENTAL1
Profa. Ma. Leila Maria Prates Teixeira Mussi
Prof. Me. Ricardo Franklin de Freitas Mussi
Prof. Me. Angelo Maurício de Amorim
Introdução
O esporte é aceito entre as principais e mais relevantes atividades
historicamente desenvolvidas e/ou incorporadas pelas sociedades
humanas. De acordo com Vigarello e Holt (2009), o esporte pode
ter nascido das festas e jogos tradicionais, após a ocorrência de
mudanças estruturantes que tornaram o seu desenvolvimento
possível. Neste sentido, é importante o entendimento das maneiras
como o fenômeno esportivo se constituiu e se constitui, valendo-se
dos debates historiográficos, antropológicos e sociológicos.
Barros (2013, p.12) cita que a atividade esportiva emerge e
interage “como fenômeno e prática sociocultural, a uma rede de
outras práticas e saberes diversos, de instâncias sociais e fenômenos
políticos e culturais”. Em alguns momentos chegando a assumir certo
protagonismo diante do seu uso político, econômico e/ou social.
O esporte moderno está entre as mais relevantes expressões
culturais da humanidade, presente em diferentes regiões do
mundo, muitas vezes atendendo demandas e especificidades locais
determinadaspelomomentohistórico,infraestruturaecaracterísticas
institucionais, financeiras e físicas, que podem facilitar ou dificultar a
aderência de seus praticantes.
Natrajetóriadeconfiguraçãodepopularidadedapráticaesportiva,
muitos foram os desdobramentos e peculiaridades, com destaque a
1
Esse texto é versão ampliada de comunicação oral apresentada no VCONECE, publicada no formato
de trabalho completo intitulado “Ser Atleta de Handebol Competitivo na Bahia da Década de 1980”.
30
História do Esporte
transição do século XIX e XX, quando chegam ao Brasil os ecos do
fluxo internacional de desenvolvimento esportivo (MELO, 2011).
Ressalta-se que, de maneira geral, o esporte moderno brasileiro
não passa pelo processo de desenvolvimento que foi vivenciado na
Europa, mas, é transplantado para atender aos interesses de uma
oligarquia nacional.
Especificamente sobre o handebol, objeto principal desse
texto, Romero e Silva (2009) citam que sua origem é carregada de
contradições, diferentemente do ocorrido com outras modalidades
esportivas coletivas bastante populares no contexto mundial, como
Futebol, Voleibol e Basquete, que apresentam informações bastante
precisas sobre suas origens. Fundamentalmente, as informações
históricas disponíveis são aquelas que versam da sua inserção no
modelo competitivo institucionalizado.
A estruturação institucionalizada confirma que o esporte
modernoestáalicerçadonacompetição,produtividade,secularização,
igualdadedeoportunidades,supremaciadomaishábil,especialização
defunções,quantificaçõesderesultadosefixaçãoderegras(FRANCO
JR, 2007). A qualidade e eficiência esportiva são mensuradas a partir
dos resultados obtidos e os vencedores são premiados com troféus
e medalhas, com prêmios simbólicos ou materiais que atestam a
posição alcançada (GIGLIO; RÚBIO, 2013).
Neste sentido, se verifica que o esporte, diferentemente dos jogos
tradicionais, não atende mais ao mero usufruto do tempo ou mesmo
para o atingimento do prazer, ele passa a representar um novo modelo
de práticas corporais, que coaduna com os objetivos morais, sociais e
ideológicos do momento histórico da humanidade.
Essas caraterísticas são fundamentais para o enfraquecimento da
sua prática amadora e, simultaneamente, para o fortalecimento das
questões relativas a sua profissionalização. Mas, Dias, Fortes e Melo
(2014) alertam que mesmo ao se espraiar pelo mundo os contatos
materiais e simbólicos se relacionam em diferentes graus com as
peculiaridades locais. Assim, são percebidos diferentes níveis de
desenvolvimento nas diversas modalidades esportivas praticadas,
segundo o local, grupo social e momento histórico.
31
Profissionalização do atleta de handebol na bahia na década de 1980
Atendendo a esse modelo de sociedade capitalista, atividades
antes desenvolvidas livremente pelas pessoas e comunidades, passam,
após adequação estrutural, a assumir caráter laboral. O sujeito que
desenvolvia essas atividades de maneira espontânea, agora passará
a executá-la segundo os ditames sociais burgueses, ou seja, “a mão-
de-obra tinha que aprender a responder aos incentivos monetários”
(HOBSBAWN, 2001, p.67), ratificando que “o trabalho mecânico
começa a triunfar sobre o trabalho hábil” (VIGARELLO; HOLT,
2009, p.414).
Deve-se entender a profissionalização esportiva como o
reconhecimento da sua prática enquanto atividade trabalhista, que
passa a exigir disponibilidade maior que aquela relativa ao tempo
livre, demandando dedicação quase que exclusiva às atividades
esportivas (ROMARIZ; MOURÃO, 2006).
A força do mercado encontrou campo propício de atuação no
esporte, onde os atletas eram (e são) instados a apresentar-se em
nível cada vez mais elevado de performance e para isso necessitam
dedicar-se exclusivamente a sua prática (AMARO; MOSTARO;
HELAL, 2014). Mas, é cabível compreender que os processos
de profissionalização esportiva ocorrem de maneira bastante
diferenciada segundo as modalidades, localidade e estrutura social.
Por exemplo, enquanto o futebol contemporâneo apresenta estrutura
econômica contendo contratos milionários, outras modalidades
ainda carecem desse desenvolvimento financeiro, carregados de
dificuldade sobre o funcionamento relativo à contratação e ao salário
dispensado aos atletas e demais personagens envolvidos.
EspecificamenteaoqueserefereàpráticadeHandebolnosdiversos
Estados brasileiros, lacunas sócio-históricas parecem evidentes. Esta
situação demanda investigações capazes de reconstituir narrativa
crítica do seu desenvolvimento e relações institucionais, marcos
históricos que analisados de maneira contextual explicitariam a
implementação, permanência e disseminação de sua prática nas mais
diversas dimensões sociais do esporte.
32
História do Esporte
O handebol, o mais jovem esporte coletivo tradicional (REIS,
2012a), figura dentre as modalidades mais praticadas no mundo,
principalmente na Europa. Neste sentido e, considerando a carência
de investigações relativas à questões históricas do Handebol baiano,
inclusive sobre a profissionalização e dificuldades enfrentadas por
seus atletas, o presente texto tem como objetivo compreender o
processo de profissionalização do atleta de handebol competitivo na
Bahia da década de 1980.
Procedimentos Metodológicos
Os crescentes estudos sobre História do Esporte ampliam a
compreensão, entre desportistas e intelectuais, do desenvolvimento
de uma ‘consciência de historicidade’, aceitando que “o esporte, em
cada uma de suas inúmeras modalidades, constitui um universo em
permanente transformação” (BARROS, 2013, p.11). Permitindo,
segundo o contexto de análise, a aceitação do esporte enquanto
sujeito e/ou produto, além de meio e fonte para a compreensão da
história em sentido mais amplo.
Nesse sentido, a presente investigação apresenta perspectiva
metodológica qualitativa. Para fins de atendimento da proposta
foi desenvolvida pesquisa documental exploratória no acervo da
Federação Bahiana de Handebol (FBHb), considerando o recorte
da década de 1980, importante período historiográfico da Educação
FísicaeEsportebrasileiro(CAVALCANTI,1996),comforteinfluência
da criação da Confederação Brasileira de Handebol (CBHb) em 1979,
e baiano, pela fundação da FBHb em 1980. Neste sentido, ressalta-se
que a partir da década de 1980, análises documentais passaram a ser
mais valorizados em estudos do esporte (GEBARA, 2003).
Para o acesso ao acervo documental da FBHb foi encaminhada
prévia solicitação à instituição, contendo as informações desta
investigação. Após a liberação institucional foram marcadas visitas à
Federação durante o mês de abril de 2014.
33
Profissionalização do atleta de handebol na bahia na década de 1980
Considerando as etapas para desenvolvimento da Análise de
Conteúdo (BARDIN, 2011), o acervo documental foi acessado, após
exploração daqueles relativos à década de 1980 que versavam sobre
questões econômicas e profissionais foi fotografada, e finalmente
ocorreu o tratamento e interpretação das informações.
Sendo importante ressaltar que este trabalho representa recorte
da pesquisa “História do Handebol Baiano”, autorizada pelo CEP/
UESB-BA (CAAE: 23200614.1.0000.0055).
Resultados e Discussão
O processo de democratização e popularização de uma nova
cultura esportiva perpassa por diversos aspectos, dentre os quais,
uns de dimensões mais simples, que envolvem as condições para o
desenvolvimento da modalidade e a necessidade de equipamentos
específicos (quadras, bolas), até aqueles mais complexos, como a
formação dos atletas, técnicos, árbitros e gestores.
A década de 1980 foi importantíssima para o Handebol baiano,
representando período a seguir da criação da CBHb e década
da fundação da FBHb, instituições dedicadas unicamente ao
incentivo, profissionalização e organização dos eventos e atividades
handebolísticas nas múltiplas dimensões esportivas e institucionais,
incluindo a captação de recursos financeiros para investimento nas
atividades esportivas.
Nesse período a sociedade brasileira encontrava-se sob o
domínio político dos militares (1964-1985), que percebia o Esporte
“como uma esfera da cultura capaz de dar visibilidade política aos
feitos da ditadura brasileira no âmbito internacional” (OLIVEIRA,
2009, p.389). Os sucessos da prática esportiva nas competições
internacionais serviriam para exemplificar o modelo de gestão
exitoso do Estado brasileiro.
Em um contexto regional, para os governos militares nos países
do Cone Sul, o Esporte poderia acalmar os ânimos da população,
controlar os jovens que pudessem contestar o regime vigente
34
História do Esporte
que buscava legitimidade dos “atos institucionais” e das atitudes
repressivas como os assassinatos, torturas e desaparecimentos
(PADRÓS, 2012).
O governo naquele período fomentava o modelo esportivo
disciplinador de corpos, a pretensão era atuar na constituição de
uma sociedade submissa e obediente. Assim como “o ideal de uma
vida de ociosidade e de cultura, [...], foi pouco a pouco abandonada”
(VIGARELLO; HOLT, 2009, p.428) nas sociedades europeias no
século XIX, nos países americanos ocorreu, de maneira tardia, já no
século XX.
Mesmo que o governo ditatorial brasileiro tenha implantado
uma política esportiva, essa prática ocorreu menos no que tange
a “movimentação do corpo” e mais ao desenvolvimento de uma
“mentalidade esportiva” (OLIVEIRA, 2009). A campanha midiática
empregada foi muito forte em relação à atividade esportiva, mas
os investimentos econômicos não foram favoráveis para sua
implementação em larga escala na sociedade.
A ditadura, que enxergava na prática esportiva um mecanismo
para o fortalecimento da centralidade do Estado, devido aos recursos
escassos demandados para esse setor, acabou preparando o terreno
(popularização) para o capital privado. As empresas, investidoras
esportivas,namaioriadasvezes,nãosepreocupavamcomadimensão
participativa e inclusão social, o foco era somente na prática de alto
rendimento e sua lucratividade imediata ou potencial.
A luta pela manutenção do amadorismo no esporte moderno
apresenta-se alicerçado na sua origem aristocrática entre seus
praticantes e, também, pelo desejo da manutenção do controle dos
seus processos de organização e institucionalização pela mesma
aristocracia (RÚBIO, 2002). No entanto, a partir da década de 1970,
ocorre o enfraquecimento do amadorismo esportivo competitivo,
frente a dificuldade dos atletas das mais diversas modalidades terem
que se dedicar diariamente aos exercícios e treinamentos, diante das
preocupações com colégio, faculdade, emprego, ou ainda família
(BENELI; RODRIGUES; MONTAGNER, 2006).
35
Profissionalização do atleta de handebol na bahia na década de 1980
Emoutraperspectiva,essasmudançasnocampoesportivopodem
ser percebidas como resultado do desenvolvimento capitalista, com
o corpo tornando-se instrumento a serviço do sistema de forças
produtivas. O atleta profissional é um novo tipo de trabalhador que
vende a um patrão sua força de trabalho (capaz de produzir um
espetáculo que atrai multidões) (RÚBIO, 2002).
Dessa maneira, em 1981, é permitido patrocínios aos clubes
e em 1983 é implementada pela autorização da divulgação desses
patrocínios nos uniformes, mas essa prática só é amplamente
concretizada no final da década 1980 (PRONI, 2000). Assim,
ampliou a possibilidade de remuneração e dedicação exclusiva
aos treinamentos, podendo extrapolar para assistência médica,
odontológica e nutricional, findando os treinamentos pós jornada
laboral e restrição material para as atividades esportivas (FONSECA,
1984).
No entanto, a década de 1980 foi marcado por diversificadas e
importantesdificuldadesdenaturezafinanceiraparaofortalecimento
das práticas competitivas (MUSSI; MUSSI; AMORIM, 2014).
Situação esta resquício da crise econômica que o país vivia naquele
momento de redemocratização.
A profissionalização do esporte de rendimento fez com que
o mundo do esporte e o do trabalho se transformasse em um só
para atletas, técnicos e demais sujeitos diretamente envolvidos
com sua efetivação. Essas relações profissionalizantes elevam a
competitividade, em busca das melhores recompensas financeiras,
consolidação no mercado de trabalho, possibilidade de mobilidade
social (PIRES, 1998).
Especificamente sobre o processo inicial de profissionalização
dos atletas, o amadorismo no handebol competitivo baiano é
evidenciado em vários ofícios trocados pelos clubes e a FBHb
indicando a necessidade de mudança de horários e datas de jogos sob
alegação da indisponibilidade dos jogadores (por motivo de trabalho
ou atividade escolar) que não eram remunerados.
36
História do Esporte
Confirmando essas afirmativas o Clube Olímpico de Natação,
por intermédio do ofício s/n, de 4 de outubro de 19882
, solicitou
formalmente o adiamento de jogo “tendo em vista a greve dos
professores da rede particular de ensino” visto que a equipe “é
composta de atletas (alunos) da rede particular, e os mesmos com a
greve viajaram”.
Neste caso, fica evidenciado que os estudantes-atletas não
recebiam bolsa auxílio capaz de custear o translado dos componentes
da equipe. Essa situação evidencia a falta de profissionalização dos
clubes, mesmo considerando que os jogadores ainda estavam em
período escolar.
Alerta-se que a motivação extrínseca reduz fortemente a
dúvida quanto à manutenção da prática esportiva (EPIPHANIO,
2002). A falta de apoio dificulta o estabelecimento de vínculo e/
ou comprometimento dos jogadores com as atividades esportivas,
possivelmente com reflexos negativos na condição física, técnica e
tática do jogo frente a descontinuidade do processo de preparação
dos atletas e equipes.
A presença do esporte como conteúdo recorrente na Escola
é fundamental para seu desenvolvimento ao longo da história.
De acordo com Vigarello e Holt (2009, p.432) é no “seio dos
estabelecimentos do ambiente da era vitoriana na Grã-Bretanha
que foi elaborado o novo corpo atlético e os valores de fair-play e de
esportividade”.
No entanto é importante citar que os dois campos, esportivo e
educacional, não devem ser concorrentes, mas colaborativos. De
acordocomMonaco(2007),oenvolvimentodaeducaçãonaformação
dos esportistas brasileiros permite a continuidade dos estudos e
formação profissional paralelamente, reduzindo a dependência da
remuneração advinda do esporte.
Neste sentido, Andres (2014), em investigação com mulheres
praticantes de handebol no Rio Grande do Sul, cita que para as
atletas “além de uma profissão referem que o Handebol pode ser um
2
Documento arquivado na sede da Federação Bahiana de Handebol localizada na cidade de Salvador/BA.
37
Profissionalização do atleta de handebol na bahia na década de 1980
meio de viajar e assim conhecer outras cidades ou países, ou ainda
como uma possibilidade de se concluir um curso superior” (p. 65).
É importante ressaltar que uma das práticas comuns realizadas pelos
clubes de handebol no Brasil é conceder uma bolsa de estudos, em
alguma universidade, como pagamento pelos jogos.
Parece que a situação apresentada no documento analisado
confronta-se com a proposta dos governos militares, duradouros até
metade dos anos de 1980, dedicados na sistematização de métodos e
pesquisasutilizandoapráticaesportivacomoaplicaçãoepreocupação
central na preparação do cidadão capaz de tocar o ‘progresso do país’
e de defender as fronteiras (MELO, 2011), sinalizando um conflito
entre a possibilidade de uma formação educacional crítica e uma
formação esportiva doutrinadora dos interesses ditatoriais.
NocasodoHandeboladultoficouevidentequeodesenvolvimento
deatividadeslaborais,quenãoaquelasespecíficasparaodesempenho
atlético, interferiu negativamente para a manutenção do calendário
oficial da FBHb, podendo influenciar em atividades competitivas ou
de exibição esportiva.
Por exemplo, a equipe do Serviço Social da Indústria (SESI/
CIA), no ofício 374 de 28 de setembro de 19883
, solicita que a FBHb
“estude a possibilidade de não incluir as equipes do SESI/CIA” em
programações esportivas durante o intervalo de 22 de dezembro de
1988 até 26 de janeiro de 1989, uma vez que estavam ocorrendo as
“férias coletivas” da instituição.
Sobre o papel do setor industrial no acesso do trabalhador e
a ampliação da prática esportiva, Vigarello e Holt (2009, p.421)
comentam que “se o esporte amador atingia antes de tudo a classe
burguesa no século XIX, a necessidade de oferecer aos operários o que
a época vitoriana chamava de divertimentos racionais desempenhou
também um papel importante na sua difusão”.
Como bem se sabe nesse período de revolução das indústrias,
o controle do tempo dos operários acontecia até mesmo em seu
momento de lazer (KNIJNIK, 2009). O controle desse tempo
3
Idem
38
História do Esporte
certamente ocorria através das regras do jogo, tanto para duração da
atividade como também para que esses operários não “desfalcassem”
as fábricas no dia seguinte.
Portanto, a reorganização do espaço urbano, o advento de uma
classe trabalhadora controlada por uma burguesia que enxergava a
necessidade de extinguir qualquer prática que não fosse considerada
“civilizada”, faz surgir uma necessidade de regulamentar os jogos, até
mesmo aqueles que eram praticados pelos operários em suas raras
horas de lazer. Essa prática é aprimorada na Europa e chega ao Brasil,
durante seu processo de industrialização, ganhando terreno devido
as dificuldades encontradas para a prática de lazer.
AindaquantoapedidosderemarcaçõesdejogosoClubeOlímpico
de Natação no dia 30 de agosto de 19894
oficializa solicitação para
adiamento de partida marcada para o dia 3 de setembro do mesmo
ano alegando que nesse dia nada menos que cinco de seus atletas
trabalhariam no dia do jogo.
Osdoisdocumentosindicamqueaausênciadoatleta-trabalhador,
fundamentalmente os jogadores não assalariados para dedicação
às atividades esportivas pode propiciar que jogadores acabem
trabalhandoematividadesquepodemseconfrontarcomasdemandas
esportivas (GRECO, 2013), uma vez que o profissionalismo do atleta
determina que suas atividades diárias passam a ser determinadas pelo
treinador, clube e/ou patrocinador, o que inclui questões relativas
aos dias, horários e conteúdos do treinamento, da alimentação e do
descanso (PIRES; HUNGER, 2004).
Ao longo da história da humanidade encontramos vários
momentos que evidenciam as capacidades do evento enquanto
aglutinador das forças e motivações dos seres humanos, tanto numa
lógica individual, como nas dinâmicas de grupo (SARMENTO et
al., 2011). Neste sentido, a remarcação de jogos, por motivos até
certo ponto frágeis, dificulta a participação de público e o interesse
de investidores e mídias, diante da incerteza da efetivação da
atividade, o que demonstra a baixa profissionalização e dificulta o
4
Documento arquivado na sede da Federação Bahiana de Handebol localizada na cidade de Salvador/BA.
39
Profissionalização do atleta de handebol na bahia na década de 1980
desenvolvimento esportivo do handebol baiano durante o período
analisado.
No final de década de 1980, ainda é verificado baixa
profissionalização entre os atletas de handebol baianos. Para
confirmar essa afirmativa indica-se que a Associação de Handebol
Hazena, por meio do Ofício no
15 de 25 de julho de 19895
, solicita
a remarcação de jogo respaldada em duas questões dentre as mais
inusitadas. Conforme o próprio documento apresenta, as atividades
necessitariam ter suas datas modificadas porque “seis jogadores não
estarão em Salvador nesta data e um estará casando”.
A análise documental apresentada nesse texto proporciona de
maneira clara e objetiva compreender que o Handebol competitivo
baiano durante a década de 1980 se manteve dentro de uma
perspectiva romântica, de caráter eminentemente amador.
Diferentemente, nesse mesmo recorte temporal, o voleibol
se encontrava em vias de espetacularização e profissionalização
(MARCHI JR, 2005). Em 1975, tem início a profissionalização do
vôlei brasileiro, marcada fundamentalmente pelo vinculo assalariado
dos jogadores (MOREIRA; FERREIRA; MARCHI JR, 2008).
No caso do basquete, a substituição do amadorismo eleva o
quantitativo de pessoas ligadas a esse esporte que passam a receber
reconhecimento financeiro para dedicar-se a sua prática (BENELI;
RODRIGUES; MONTAGNER, 2006).
Já o futebol, após período de falso amadorismo, quando os
jogadores não-profissionais recebiam os famosos “bichos” como
premiação pelos resultados positivos (DRUMOND, 2014: 71), inicia
seu processo de profissionalização a partir do ano de 1933, com a
fundação da primeira Liga Carioca de Football, a primeira do Brasil
(GOMES, 2014).
Até os dias atuais o handebol parece apresentar problemas em seu
processo de profissionalização, que caminha lentamente. Segundo
Greco (2013), no âmbito nacional é percebida a presença de jogadores
com bons rendimentos, mas ainda sem a real profissionalização, sem
que possam se dedicar exclusivamente ao jogo.
5
Idem.
40
História do Esporte
Em contra partida, é importante perceber que o processo de
profissionalização também apresenta aspectos negativos para o
atleta. O atleta amador, antes personificado na figura herói, acaba
transformando-seem,com“commoditie”,ouseja,umsimplesproduto
comercializável, portanto, substituível em caso de vencimento
de sua ‘validade’ (RÚBIO, 2011). Além disso, a estruturação
institucionalizada capitalista coloca os jogadores, os verdadeiros
protagonistas do espetáculo, na base da hierarquia (DAMO, 2008).
Nesse contexto o Esporte profissional também passa a ser
reconhecidocomoferramentaparaalavancarnegócios,ascompetições
esportivas passaram a representar oportunidade empresarial, com as
organizações valorizando os atributos do esporte profissional e da
marca, valendo-se inclusive dos exemplos de vida dos atletas para
inspirar e motivar a juventude, funcionários e clientes (VLASTUIN;
ALMEIDA; MARCHI JR., 2008).
Entre as limitações da presente investigação é importante citar
a dificuldade em dialogar, diante da ausência, com trabalhos sobre
o processo de profissionalização do handebol em outras regiões/
estados, o que, em certo ponto, prejudica a discussão presente no
corpo do texto. Outra questão limitante da presente investigação que
necessita de reconhecimento é a utilização de única origem de fontes
de informação, documentos enviados ou recebido pela FBHb, o que
não permite diálogo direto com os sujeitos envolvidos no processo
de profissionalização investigado.
Considerações Finais
Desde sua origem mundial o Handebol apresenta contradições
históricas. Na Bahia estudos relativos a esta importante modalidade
é tema que demanda exploração. Os registros sobre os ditames
históricos reservam-se a chegada da modalidade no país e há poucos
relatos que tratam da especificidade da vinda dos esportes para os
Estados e regiões brasileiras.
41
Profissionalização do atleta de handebol na bahia na década de 1980
Os principais achados da presente investigação documental
apontam que o Handebol competitivo baiano da década de 1980
não parece representar uma modalidade esportiva profissionalizante
para os seus atletas. Para concretizar a continuidade da participação
dos seus praticantes eram necessárias e recorrentes as concessões
individuais ou coletivas direcionadas aos esportistas.
Nesse sentido, a documentação trocada entre os clubes e à FBHb
analisada demonstra a presença de solicitações para modificações de
datas pré-programadas de partidas, uma vez que os atletas estavam de
férias ou com as atividades suspensas, no caso dos atletas-escolares,
e, no caso dos atletas-trabalhadores, por estarem desenvolvendo
atividades relativas ao trabalho ou mesmo de cunho pessoal.
Os atletas, estudantes ou trabalhadores, são os apaixonados pela
modalidade, cativados pelas características do esporte e engajamento
positivo dos treinadores e, esforçavam-se para alavancar a prática do
esporte de Federação promovido no Estado da Bahia.
Esse quadro representa o pouco avanço no processo de
profissionalização dos atletas do Handebol na Bahia durante à década
de 1980. Esta situação atrapalha, para além do desenvolvimento
individual do atleta, que continua apresentando perfil amador,
o crescimento da modalidade. Essa situação relativa a carência
profissional do atleta de handebol baiano confirma a compreensão
que o fenômeno esportivo só se realiza a partir de determinadas
condições sociais, que no caso analisado não contribuíram para sua
ocorrência.
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46
47
CAPÍTULO III
HISTÓRIA DO BOXE FEMININO: UMA LUTA ALÉM DOS
RINGUES
Profa. Dra. Berta Leni Costa Cardoso
Profa. Dra. Tania Mara Vieira Sampaio
Introdução
Durante muito tempo a participação feminina no esporte
foi reduzida, muitas vezes, cabendo-lhe apenas os espaços de
expectadoras. Havia muito preconceito em relação à participação da
mulher no esporte, pois, acreditava-se que seus corpos não estavam
preparados para a prática esportiva uma vez que houve um momento
na história em que o esporte era utilizado para preparação militar.
Aos poucos a mulher foi ocupando espaços principalmente
participando das Olimpíadas como atletas e não apenas como as
“meninas” que entregavam as medalhas. Algumas modalidades
esportivas se revezaram com a participação feminina, em algumas
edições entraram, depois saíram e depois retornaram. O boxe era a
única modalidade em que não se havia participação feminina quando
da sua inserção nas Olimpíadas 2012.
Essa participação ainda é reduzida em relação à masculina, pois
apenas três categorias femininas participaram em 2012 e em 2016, e
dezmasculinasnasduasedições,sendoessascategoriasdeterminadas
por peso.
Embora essa configuração da participação feminina nos esportes
esteja mudando, verifica-se que essa reduzida participação ainda tem
relação com preconceitos e estereótipos criados socialmente sobre o
papel da mulher na sociedade de uma maneira geral.
O boxe ainda é uma modalidade que sofre preconceitos e
discriminações, não apenas a participação feminina, mas também
pelo seu histórico que durante muito tempo esteve relacionado
a práticas marginais em que apenas pessoas de classes menos
48
História do Esporte
abastadas e consideradas de “más condutas” praticavam. Aos poucos
a modalidade vem ganhando destaque nas academias de ginástica e
alterando sua concepção. No entanto, ainda se percebe sua prática
apenas como atividade física e não como modalidade esportiva.
História do boxe
Há divergência quanto à data exata em que o boxe começou a ser
praticado, um dos motivos seria o das transformações ocorridas no
esporte ao longo dos séculos. Algumas publicações informam que o
surgimento se deu por volta de 7 mil anos antes de Cristo, sendo a luta
realizada com o uso exclusivo das mãos (VIEIRA; FREITAS, 2007).
Por sua vez, Rojo (2010) sustenta que o boxe surgiu aproximadamente
no ano de 4000 a.C., na região que é hoje denominada Etiópia, no
continente Africano, de onde se espalhou para o Egito Antigo e
eventualmente para toda a área do Mediterrâneo.
Achados arqueológicos no norte da África confirmam registros
da existência de formas rudimentares de lutas com as mãos de
homens pré-históricos. Os “combates” constituíam uma prática
informal, sem regras, em que dois oponentes ficavam frente a frente
e atacavam-se mutuamente, com golpes de mãos. Acredita-se que,
até chegar à forma atual, o boxe sofreu inúmeras transformações
(VIEIRA; FREITAS, 2007).
Verifica-se, também, a existência de um desencontro quanto às
datas das descrições de como os lutadores se preparavam para as
disputas. Os egípcios e o gregos usavam tiras de tecido envolvendo
as mãos, algo como bandagens que mais tarde foram substituídas
por faixas de couro rígido incrustadas com esferas cortantes ou
tachas pontiagudas (VIEIRA; FREITAS, 2007). Queiroz (1989), a
esse respeito, sustenta que essas tiras de couro, chamadas de “cestos”,
possuíam um dedo de largura e um metro e meio de comprimento,
e envolviam cuidadosamente cada mão e antebraço, de forma a
permitir a constituição de um sistema, papel hoje desempenhado
pela bandagem. De acordo com esse autor, quando a emoção popular
49
História do boxe feminino
exigiu combates mais arriscados, brutais, os “cestos” passaram a
apresentar incrustações de chumbo ou bronze (myrmex) e, mais
tarde, pontiagudos cravos metálicos.
O pugilato foi admitido no rol de esportes olímpicos dos Jogos da
Antiguidade na edição de número 23 da competição, no ano 668 a.C.
Se, por um lado, o boxe se beneficiava do status olímpico e seguia
uma trilha de fortalecimento como um nobre desporto, de outro,
crescia nos submundos, entre a população menos abastada, como
uma atividade marginal – o boxe underground, caracterizado pela
violência extrema (VIEIRA, FREITAS, 2007).
As lutas continuaram com o surgimento do Império Romano e,
tal como ocorria com os gladiadores, os pugilistas eram escolhidos
entre os prisioneiros de guerra e submetidos a intenso treinamento
nas escolas para esse fim, que havia em Roma. O advento do
Cristianismo e o sofrimento causado para seus praticantes, mesmo
a punho nu, fizeram com que o boxe fosse proibido. Assim, durante
séculos, viveu marginalizado pela lei, o que não impedia que, de
quando em quando, houvesse combates dramáticos entre homens
gigantescos (QUEIROZ, 1989).
A decisão de suspender as competições veio do imperador
Teodósio e, com essa medida, o pugilato, a exemplo de outras
modalidades olímpicas, saiu temporariamente de cena, retornando
séculos mais tarde (VIEIRA, FREITAS, 2007).
O pugilismo nunca deixou de ser praticado, não obstante ter
havido muita confusão e irregularidades; as regras eram inventadas
e, às vezes, desprezadas, conforme as conveniências (QUEIROZ,
1989). Após séculos de obscurantismo, o pugilismo reapareceu na
Inglaterra, onde, em 1719, James Figg fundou a Arena Figg, na qual
ensinava defesa pessoal, e dela fazia demonstrações (OATES, 1987;
QUEIROZ, 1989).
Por mais de cem anos (1743 - 1838), na Inglaterra, as normas
defendidas por Jack Broughton, um dos campeões que sucederam
Figg, vigoraram e só vieram a ser alteradas com a renovação do
boxe pelas regras do marquês de Queensberry. Oficializada na
50
História do Esporte
segunda metade do século XIX, essa regulamentação, entre outras
determinações, fixava categorias diferentes de competição, de acordo
com o peso dos lutadores (peso leve, médio e pesado), bem como
uso obrigatório de luvas especiais, protegendo toda a mão e também
os dedos, e a duração dos assaltos de três minutos, com intervalos de
um minuto entre eles (VIEIRA, FREITAS, 2007).
O boxe apareceu timidamente nos Estados Unidos, no início
do século XIX, sendo considerado ilegal na maioria dos estados
americanos. Seus praticantes e fãs precisavam estar atentos à ação da
polícia e de outras autoridades que combatiam a prática do esporte,
uma vez que corriam o risco de serem presos. Portanto, nos Estados
Unidos, as primeiras lutas por títulos foram travadas em locais
afastados, rurais, escondidos do grande público. Além das alegadas
razões de segurança, naquela época, assim como hoje, o boxe era uma
oportunidade para as classes menos abastadas superarem a pobreza e
a discriminação. A elite não via tal situação com bons olhos (FLORES
Jr., 2001).
Nos Jogos Olímpicos da Era Moderna, o boxe integrou a agenda
de competições e passou a ser reconhecido como esporte olímpico
nos Jogos de Londres, em 1908 (VIEIRA, FREITAS, 2007).
De acordo com Flores Jr. (2001), após 1910 a transmissão de filmes
de boxe foi proibida nos Estados Unidos. O objetivo da censura era
evitar a propagação do triunfo e da habilidade dos negros sobre os
brancos; foi revogada a proibição em 1919.
De acordo com a Confederação Brasileira de Boxe (CBBOXE,
2010), no início do século XX essa prática desportiva era quase
totalmente desconhecida no Brasil. Os raros esportistas se limitavam
a membros das comunidades de imigrantes alemães e italianos, nos
estados do Rio Grande do Sul e São Paulo.
Além da falta de tradição esportiva, outra característica
desfavorecia a introdução do boxe no Brasil: no final do século XIX
e início do XX, lutar era, equivocadamente, associado à “coisa de
capoeiristas”, ou seja, a práticas de pessoas consideradas “malandros”
e marginais (CBBOXE, 2010). Esse preconceito era especialmente
51
História do boxe feminino
forte entre os membros das classes mais abastadas. Vale ressaltar,
segundo Yahn (2009), que a capoeira foi proibida no Código de 1890
por meio do Decreto № 847, sob o título “Dos Vadios e Capoeiras”,
tendo sua proibição revogada em 1930.
Em1913,foidocumentadaamaisantigalutadeboxeemterritório
brasileiro. Foi uma luta de exibição realizada em São Paulo, entre um
ex-boxeador profissional, que fazia parte de uma companhia de ópera
francesa, e o atleta Luís Sucupira, conhecido como “Apolo Brasileiro”.
O lutador “Apolo” tornou-se um grande entusiasta do boxe e um de
seus primeiros divulgadores. A propaganda de Sucupira entusiasmou
alguns jovens que eram membros da tradicional “Societá dei
Canotiere Esperia”, de São Paulo, os quais tentaram incluir o boxe
entre as atividades dessa associação. Esse esforço durou entre 1914 e
1915, mas não frutificou (CBBOXE, 2010).
Nesse mesmo período, no ano de 1919, no Rio de Janeiro, outro
grande divulgador do boxe, Goes Neto, marinheiro carioca que
havia feito várias viagens à Europa, lugar em que aprendeu a boxear,
retornara ao Brasil e fez várias exibições no Rio de Janeiro. Um
sobrinho do Presidente da República, Rodrigues Alves, encantou-
se pela “nobre arte”, e o apoio do presidente facilitou a difusão do
boxe. Começaram a surgir academias, e logo esse esporte ganhou o
status de legalidade, de esporte regulamentado, a partir da criação
das comissões municipais de boxe, entre 1920 e 1921, em São Paulo,
em Santos e no Rio de Janeiro (MATTEUCCI, 1988).
Até 1923, os treinamentos eram improvisados, e os treinadores,
amadores.AsituaçãocomeçouamelhorarquandoBatistaBertagnolli
estabeleceu-se, em 1923, como organizador de lutas no Clube
Espéria, de São Paulo. Ainda em 1923, no Rio de Janeiro, foi criada a
primeira academia de boxe no Brasil: era o Brasil Boxing Club, que
muito difundiu o boxe entre os cariocas. No final do ano de 1922,
Benedito dos Santos, “Ditão”, iniciou os treinamentos de boxe numa
academia de São Paulo e em poucos meses, no início de 1923, estreou
como profissional (CBBOXE, 2010).
52
História do Esporte
Foi organizada uma luta entre Ditão e Hermínio Spalla (campeão
europeu), que rendeu muito dinheiro naquela época. O italiano
venceu a luta e Ditão, como resultado da luta, teve um derrame
cerebral, mas sobreviveu, terminando seus dias como inválido.
Imediatamente após a derrota de Ditão, os jornais iniciaram uma
campanha contra o boxe, o que levou o governador de São Paulo
a proibir sua prática. O impacto da tragédia de Ditão fez com que
os empresários brasileiros ficassem receosos de trazer boxeadores
estrangeiros (CBBOXE, 2010).
Depois de revogada a proibição, em abril de 1925, conforme a
Confederação (2010), o boxe brasileiro voltou a crescer.
De acordo com a Confederação Brasileira de Boxe (2010), o
maior boxeador brasileiro de todos os tempos nasceu em uma
família de pugilistas, Éder Jofre, e este motivou o surgimento de
muitos boxeadores brasileiros, dentre os quais se destacaram Servílio
de Oliveira e Miguel de Oliveira.
Noiníciodosanosoitenta,pelaprimeiraveznoBrasil,umaredede
TV (a TV Bandeirantes) resolveu investir no boxe, transformando-o
em espetáculo de massa (CBBOXE, 2010).
Os primeiros boxeadores que tiveram destaque na TV brasileira
foram Francisco Thomás da Cruz (peso super-pena) e Rui Barbosa
Bonfim (meio-peso), que tiveram relativo sucesso; mas foi com
Adilson “Maguila” Rodrigues que as transmissões de lutas de boxe
pela TV alcançaram absoluta liderança de audiência. Chegou a ser
campeão mundial pela WBF (Federação Mundial de Boxe) e, por
falta de patrocínio, pouco tempo depois, Maguila foi destituído do
título por inatividade (CBBOXE, 2010).
A partir do ocorrido com Maguila, o boxe brasileiro rapidamente
perdeu o enorme espaço que havia tido na televisão. No final dos
anos noventa, surgiu uma nova promessa: Acelino de Freitas, o
Popó. Patrocinado pela Rede Globo de Televisão, chegou ao título de
campeão mundial pelo WBO (CBBOXE, 2010).
53
História do boxe feminino
Participação de homens e mulheres no boxe
Historicamente o boxe tem sido um esporte eminentemente
masculino, reduzindo e marginalizando a participação feminina. No
final do século passado, Oates (1987, p.69) publicou: “Embora haja
mulheres pugilistas – facto que parece surpreender, alarmar, divertir
– o papel das mulheres no desporto tem sido extremamente marginal
[...]”, a autora admite que o boxe é para homens e diz respeito a eles,
sendo masculino.
Oates (1987) chama a atenção para o papel das mulheres no
universo do boxe, o qual, segundo ela, limita-se ao da mulher de
cartaz e ocasional cantora do hino nacional – funções estereotipadas.
“Soa o gongo, e a garota do cartaz pula pro ringue, rebolando e
sacudindo seu traseiro” (TOOLE, 2005, p.80).
Wacquant (2002) admite que o salão de treinamento de boxe é
um espaço masculino, no interior do qual a intromissão do gênero
feminino é tolerada somente à proporção em que permanece
incidental. “O boxe é para homens, sobre os homens, ele é os homens.
Homens que lutam com homens para determinar seu valor, isto é,
sua masculinidade, excluindo as mulheres” (WACQUANT, 2002,
p.69). Ele concebe o gym como uma escola de moralidade, isto é, uma
máquina de fabricar o espírito de disciplina, a ligação com o grupo,
o respeito ao outro assim como a si próprio, a autonomia da vontade,
todos indispensáveis na vocação de um pugilista. O autor considera
o salão de boxe um vetor de uma desbanalização da vida cotidiana,
porque o pugilista faz da rotina e da remodelagem corporais o meio
de acesso a um universo distintivo, em que se misturam aventura,
honra masculina e prestígio.
Oboxeaindaapresenta-secomotípicodomundomasculino,tanto
no aspecto físico (ginásios de treinamento, arenas de competição)
quanto devido à característica da técnica corporal e, ainda, por se
tratar de um mundo dos negócios, esfera tradicionalmente concebida
como lugar de ações dos homens (MELO; VAZ, 2009).
54
História do Esporte
Wacquant (2002) acrescenta que, embora não haja barreira formal
que proiba a participação feminina, alguns treinadores chegam
a negar qualquer restrição com relação ao boxe feminino, mas
admitem que as mulheres não são bem-vindas à academia, porque
sua presença atrapalha, se não o bom funcionamento material,
pelo menos a ordenação simbólica do universo pugilístico. O autor
relata que, quando havia alguma mulher no gym de Woodlawn, os
pugilistas não estavam autorizados a sair dos vestiários de tronco nu
para ir pesar-se na balança, que ficava na sala dos fundos.
“Respeito é parte da magia do boxe. Muita gente fora do circuito
boxista espera que os vitoriosos humilhem os derrotados. Isso
destruiria a magia” (TOOLE, 2005, p.22). Quando um boxeador
sai humilhado de um assalto, o que se diz a ele é que vá lá e ganhe
respeito, pois trata-se de uma pequena família, cujos integrantes
precisam um do outro, não só por causa do dinheiro, mas também
para que possam, no final das contas, testar uns aos outros. “Os fãs
pensam que boxe é sobre ser durão. Para os realmente interessados, a
luta é sobre conseguir respeito” (TOOLE, 2005, p.31).
Wacquant (2002) destaca que o ensino do boxe é uma empreitada
coletiva, na qual o treinador é assistido, em suas funções, por todos os
membros da academia. No início, pelos boxeadores profissionais mais
experimentados, que colaboram de maneira informal, mas ativa, na
formação dos noviços, assim como pelos outros treinadores ou pelos
veteranos que vêm de vez em quando passar uma tarde na academia.
“Cada membro do clube passa para aqueles que estão abaixo dele na
hierarquia objetiva e subjetiva do gym o saber que recebeu daqueles
que estão situados mais acima” (WACQUANT, 2002, p.140).
Esse autor acrescenta que muitos profissionais admitiram que,
muito provavelmente, teriam caído na criminalidade se não fosse a
descoberta do boxe. Percebe-se que a maioria dos pugilistas faz do
esporte sua profissão, seu meio de vida.
Wacquant (2002) relata que a esmagadora maioria dos boxistas
vem dos meios populares, e que os pugilistas profissionais são mais
frequentemente originários de famílias intactas e, na maioria das
vezes, são casados e pais de família.
55
História do boxe feminino
DeacordocomFloresJr.(2001),arealidadesocial,historicamente,
sempre exerceu influência sobre os jovens que escolheram ingressar
no boxe. Treinar até seis dias em uma semana pode parecer mais
fácil do que ir à escola ou ficar esperando um emprego por horas em
uma fila interminável, no entanto é difícil determinar um perfil para
o boxeador.
Conforme Melo e Vaz (2009), o boxe foi, inicialmente, preferido
pelas classes subalternas e com ele estavam envolvidos os imigrantes,
os com poucas oportunidades de trabalho, os que moravam nos
cortiços, os que suportavam mais facilmente a dor, o sofrimento,
os representantes do tipo de sensibilidade “brutal” do boxe. Esses
autores admitem que o esporte, com o passar do tempo, passou a ser
apreciado pelos grupos sociais mais favorecidos economicamente,
com críticas ou desconfianças sobre sua civilidade.
Schaap (2007), ao publicar a biografia de James Braddock, em
2007, fê-lo, resgatando-o dos anais do boxe esquecidos por décadas.
Esse autor, ao posicionar o boxe socialmente, afirma que, ao
contrário do beisebel, que foi sinônimo dos valores de classe média
nos EUA, acredita que o boxe era, e ainda é, um esporte das classes
empobrecidas. Ele postula que, se houvesse outro caminho possível
para chegar à segurança econômica e à elevação do status social,
ninguém em seu juízo perfeito escolheria fazer carreira no boxe, pois
trata-se de uma forma muito dura de ganhar a vida.
Wacquant (2002) estimou haver uma taxa de evasão habitual
que ultrapassa 90% para um gym, estimando que em torno de 100 a
150 pessoas vão treinar durante o ano, mas que a vasta maioria não
permanece além de algumas semanas, porque descobre depressa que
o treinamento é muito exigente para o gosto deles. Em conformidade
com esse autor, as motivações dos participantes variam de acordo
com o status deles, sendo que os mais regulares boxeiam oficialmente
com amadores ou com profissionais, e a academia é, para eles, o local
de uma preparação intensiva para a competição. Muitos vão ao clube
apenas para se manter em forma física; outros, para perder peso;
alguns, apenas para permancer em contato com os amigos e outros,
56
História do Esporte
para adquirir técnicas de autodefesa. No entanto, segundo Wacquant
(2002), para o técnico de Woodlawn, só conta de verdade o boxe de
competição.
Para Wacquant (2002), o boxe amador e o boxe profissional
formam dois universos gêmeos e estreitamente interdependentes,
sendo, no entanto, muito distantes no plano da experiência. No
boxe amador, a finalidade é acumular pontos, tocando o adversário
o maior número de vezes possível, com séries de golpes rápidos. O
árbitro dispõe de uma grande liberdade para cessar o confronto,
quando um dos combatentes pareça impossibilitado de continuar
lutando. Entre os profissionais, que não usam capecete e cujas luvas
são menores, o objetivo máximo é derrubar o adversário, atingindo-o
com golpes. O confronto prolonga-se até que um dos participantes
não tenha condições de continuar. Segundo esse autor, grande parte
dos boxistas amadores não vira profissional.
Mulher no boxe
Sobre a participação feminina no boxe, Mennesson (2000), ao
realizar uma pesquisa com lutadoras, verificou que elas tiveram
comportamentos diferentes na infância e na adolescência em
relação a outras meninas. A autora identificou que as lutadoras
eram desordeiras, gostavam de competição, vestiam-se de forma
semelhante aos meninos e preferiam a presença deles à das meninas,
além de possuírem uma coordenação motora incomum para
meninas. Segundo a autora, a maioria das boxeadoras afirmou ter-
se identificado com modelos masculinos durante a infância e, ao
chegar a adolescência e a fase adulta, adaptou seus comportamentos
aos padrões hegemônicos da feminilidade; e, mesmo estando em
um esporte com características socialmente determinadas como
masculinas, elas se esforçaram para parecerem femininas, mas
sem parecerem frágeis ou passivas, características socialmente
determinadas como femininas.
57
História do boxe feminino
Segundo a autora, as lutadoras que começaram o boxe após os
20 anos preferem a forma mais suave do esporte [apenas treinos em
academias], enquanto que as que começaram mais cedo preferem
a versão mais dura (pesada) do esporte [lutadoras amadoras e
profissionais].
Fernandes e Dantas (2007) analisaram a presença do boxe nas
academias de ginástica de Campina Grande/PB, sob a dimensão
dos comportamentos de risco e de estilos de vida saudáveis,
entrevistando homens e mulheres. Esses autores admitem que o boxe
vem invadindo as academias de ginástica, apoiado nos apelos de uma
cultura de consumo fixada em padrões corporais universais de beleza
e saúde. Os autores destacam que o boxe vem ganhando espaço nas
academias de ginástica de Campina Grande-PB, mesmo se tratando
de uma atividade em que o risco e a dor estão muito presentes.
Segundo os autores, o boxe, juntamente com a capoeira, a dança
e as artes marciais em geral, vem, nos últimos anos, tornando-se uma
prática bastante difundida e em ascensão na sociedade moderna,
sendo, muitas vezes, submetido a um processo de mercadorização e
esportivização de suas características. Afirmam, ainda, que, seja em
busca da saúde, da beleza, da autodefesa ou competição, a prática
do boxe nas sociedades contemporâneas vem-se constituindo num
fenômeno complexo, muitas vezes contraditório, uma vez que o risco
da prática contrapõe-se à impossibilidade do controle total da vida.
Fernandes e Dantas (2007) destacam, em sua pesquisa,
a predominância da presença masculina, mas afirmam ser
significativa a presença das mulheres não só nas aulas, mas também
observando, com curiosidade e interesse, sua realização. Apesar de
dois dos entrevistados não terem tido contato com artes marciais
anteriormente à prática do boxe, os autores consideram que a
vivência de outras experiências com lutas seja um fator que facilita o
acesso ao boxe: “A proximidade de outras artes marciais pode ter sido
o motivo também de os praticantes se mostrarem dispostos a realizar
o boxe fora das academias de ginástica” (FERNANDES; DANTAS,
2007, p.7). Em conformidade com os autores, é interessante ressaltar
58
História do Esporte
aspectos psicológicos, citados por uma das entrevistadas, como uma
compreensão de saúde mais próxima a um bem-estar psicológico.
Os autores afirmam que, para a maioria dos entrevistados, o boxe
não é considerado um esporte arriscado, mesmo que já se tenham
machucado praticando-o, o que evidencia uma certa tolerância
dos indivíduos em conviver com o risco e a dor, numa perspectiva
existencial da saúde.
Ferretti e Knijnik (2007) investigaram lutadoras universitárias
(boxeadoras, capoeiristas e caratecas), sob a dimensão das
representações sociais. Esses autores consideram que essas
representações possibilitam uma análise de significados e de
aspectos simbólicos, relativos às configurações de gênero em
constante mutação, sobretudo por serem as lutas uma atividade,
no imaginário social sobre gêneros, como “coisa de homem”. Os
autores, ao discutirem o papel social das mulheres lutadoras décadas
atrás, afirmam que muitas delas, além de correrem o risco de serem
rotuladas de lésbicas, foram impedidas de praticar as lutas.
Eles realizaram a pesquisa com sete universitárias, entre 26 e
36 anos, das quais três eram boxeadoras, duas capoeristas e duas
caratecas. Em conformidade com os autores, todas as entrevistadas
se envolveram com o esporte na escola na infância, embora tenham
relatado ter diminuído a prática de atividades físicas na adolescência.
Segundo eles, as lutadoras ressaltaram a dificuldade em conciliar a
casa com o esporte, e algumas reclamaram que a mídia as ignora.
Todavia, elas reconhecem as melhoras e os avanços, apesar da
existência de preconceitos antigos.
O boxe praticado na universidade não visa ao profissionalismo,
o que pode explicar o fato de a maioria das alunas não perceber
diretamente um preconceito contra as lutadoras, ou contra elas
mesmas. Ao serem questionadas se o esporte “tem sexo”, ou seja, o
que elas pensavam sobre o fato de existirem esportes classificados
como “masculinos” ou como “femininos”, a fala de que “não tem sexo,
mas homem é diferente de mulher” predominou entre as lutadoras,
pois, segundo elas, as mulheres são mais fracas, lutando de modo
59
História do boxe feminino
distinto dos homens; e, embora pareçam bradar contra qualquer tipo
de comentário relacionado ao sexo sobre as atletas nas lutas, elas
procuram proteger sua feminilidade fora dos ringues, mostrando que
lutar não tem relação com opção ou preferências sexuais (FERRETTI,
KNIJNIK, 2007). De acordo com os autores, a estética também esteve
no discurso da lutadoras, as quais afirmaram que a luta mexe com o
corpo todo, reforçando o trabalho com as pernas; que a luta pode ser
uma forma agradável de manter o corpo em forma.
Conforme esses autores, as lutadoras falaram sobre como seus
familiares e os grupos sociais as veem; há aquelas que perceberam
mudanças e outras que ainda sofrem preconceitos, mesmo que
velados e ocultos. Ao serem questionadas sobre a prevalência de
homens nos esportes de luta, elas possuem um discurso que fala da
mudança que ocorreu nas mentalidades, e que o ingresso da mulher
está quebrando o preconceito, pois a sociedade tradicional sempre
estimulou mais os meninos aos combates, às lutas.
Melo e Vaz (2009), ao estudarem o boxe e o cinema, admitem
haver uma escassez de imagens em longas e curtas sobre esse esporte,
sendo isso um indicador de alguma resistência a ele. Em uma análise
inicial do material filmado, sustentam que as ideias de superação
como um valor e da denúncia da desonestidade parecem imperar.
Em boa parte dos filmes de boxe, os combates são coadjuvantes
das situações pelas quais passam os personagens e, ao contrário
dos esportes de equipe, nos quais sempre a ideia de parceiros e de
oponentes é multifacetada, no boxe, no ringue, só há dois indivíduos
que se tocam e, durante todo o tempo, interagem. O resultado da
competição não depende só de um, já que a interposição do outro se
impõe.
De acordo com Melo e Vaz (2009), em muitos filmes de boxe,
o boxeador principal tem um filho como um dos seus elementos
motivadores. Isso acontece porque sente a necessidade de construir
e reforçar a ideia de que é um herói para o filho, e também porque
tem a preocupação de, se morto e/ou derrotado em combate, não
conseguirá os recursos financeiros para garantir o futuro de seu filho.
60
História do Esporte
Sofre também por não ter tempo para brincar com o filho, devido ao
tempo que deve dedicar aos treinos, e sofre por ver que precisa da mãe
do filho para custear as despesas até que o herói possa fazê-lo. Esse é
um drama nos filmes, pois, segundo a sociedade tradicional, é papel
do homem, além de provar capacidade de reproduzir, comprovar sua
capacidade de prover recursos financeiros necessários à criação da
prole.
A tradicional constituição da imagem de masculinidade é plena-
mente identificada nas películas que têm o boxe como argumento
desencadeador da trama: os pugilistas não são femininos, homosse-
xuais, dóceis, seus gestos são típicos dos machos (um tanto grossei-
ros), e fundamentalmente são seres ativos. Isso é, apresenta-se um
modelo de performance pública esperada para os homens, inclusive
e fundamentalmente no que se refere às posturas corpóreas a serem
adotadas (MELO, VAZ, 2009, p.133).
	 Cardoso (2011), ao apresentar e discutir dificuldades e
preconceitos em boxeadoras, verificou que essas atletas sofrem ou
sofreram, de forma direta ou indireta, algum tipo de preconceito em
sua trajetória esportiva, e que muitos desses preconceitos e limites
partiram da própria esfera familiar. Segundo a autora, embora
as atletas sofram algum tipo de preconceito, isso não as afasta do
esporte, e elas demonstram “paixão” pelo esporte, principalmente
após ele se tornar de competição olímpica. As atletas afirmaram que,
mesmo depois que tiverem de parar de lutar devido à faixa etária,
uma vez que o esporte impõe limites, elas desejam estar presentes no
âmbito esportivo do boxe de alguma maneira.
Boxe feminino nas olimpíadas
O boxe feminino quase foi incluído na Olimpíada de 2008, em
Pequim, mas o COI acabou não autorizando a mudança, devido à
percepção de que o esporte não atingia o padrão mínimo necessário
para ser considerado olímpico. Uma preocupação, à época, era que o
boxe feminino não era praticado em um número suficiente de países.
Mas a participação feminina no esporte aumentou e, desde então,
61
História do boxe feminino
120 federações internacionais contam com boxeadoras (ESTADÃO,
2010).
O Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu, no dia 13 de
agosto de 2009, incluir o boxe feminino entre os esportes olímpicos,
e a categoria disputou medalhas já na Olimpíada, em Londres, em
2012. “A decisão foi o reconhecimento de que o boxe feminino
obteve progresso substancial em universalidade e qualidade técnica
das atletas, desde que a diretoria executiva analisou a disciplina pela
última vez, em 2005”, informou o COI, em sua página na internet
(ESTADÃO, 2010).
O boxe feminino foi disputado em Londres, por três categorias:
48kg – 51kg; 56kg – 60kg e 69kg – 75kg, com doze atletas em cada
faixa de peso, somando, portanto, 36 boxeadoras. Para que o núme-
ro total de boxeadores permanecesse o mesmo, a categoria 48kg do
boxe masculino deixou de existir, restando, assim, dez categorias
para o boxe masculino. Portanto, o boxe deixou de ser o único espor-
te olímpico praticado exclusivamente por homens; antes conhecido
como amador, passou então a ser chamado de boxe olímpico (MO-
RETTI, 2009).
A discriminação não acaba por decreto ou pela mera inclusão
do boxe feminino nas olimpíadas. O posicionamento de Cuba a esse
respeito comprova claramente isso, quando anuncia que não enviará
representantes para a disputa do boxe feminino que teve a sua estreia
nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres (UOL, 2009).
O chefe dos técnicos da seleção cubana de boxe, Pedro Roque,
mostrou ter a mesma opinião sobre o boxe feminino. “Penso que o
esporte ainda vai se desenvolver. Mas, as mulheres cubanas foram
feitas para mostrar sua beleza, não para receberem golpes no rosto”,
afirmou ele à rádio estatal Radio Rebelde (UOL, 2009).
Médicos britânicos também se posicionaram contra a decisão
que permitiu a entrada do boxe feminino no programa dos Jogos
Olímpicos de Londres em 2012, ressaltando que é um esporte
perigoso, que não deve ser promovido em altas esferas. “Mais além
do que a questão do sexo, durante um combate de boxe, os pugilistas
62
História do Esporte
podem sofrer hemorragias cerebrais e sérios problemas nos olhos,
nos ouvidos e no nariz”, afirmou um porta-voz da Associação dos
Médicos Britânicos – BMA (ARAGÃO, 2009).
Em 2016, no Rio de Janeiro, o boxe continuou com dez categorias
masculinas e três femininas, sendo que apenas duas brasileiras
participaram do evento, Andreia Bandeira e Adriana Araújo, sem
nenhuma medalha.
Considerações Finais
Embora o boxe ainda seja uma modalidade esportiva coberta
de desconfiança, preconceitos e discriminações, verifica-se que esta
prática tem ajudado jovens e adultos a se inserirem em uma prática
esportiva tanto como uma opção de vida quanto de trabalho.
A participação feminina em muitas modalidades esportivas ainda
é restrita e isso verifca-se acentuadamente no boxe. Sua inserção nas
Olimpíadas pode ser um ponto de partida para sua maior divulgação
para atrair mais atletas que queiram praticá-lo. Como essa inserção
ainda é embrionária, muito ainda haverá que se contar dessa
participação feminina em uma modalidade que durante décadas e
séculos foi restrita ao mundo masculino.
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65
CAPÍTULO IV
DO ESCANTEIO PARA O MEIO DA ÁREA: EM BUSCA DA
VISIBILIDADE E RESPEITO AO FUTEBOL FEMININO
BRASILEIRO
Profa. Dra. Enny Vieira Moraes
Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque
Introdução
“Enquanto o talento masculino é cultivado e alimentado, a ginga das
mulheres cresce a partir do nada”1
.
Nos últimos anos dois megaeventos esportivos sediados no
Brasil fizeram com que os olhos do mundo se voltassem para nosso
território. Um contexto esportivo que muitas vezes tende a reforçar
uma suposta identidade nacional, una e coesa, mostrou sem pudor
as faces do país e expôs preconceito, intolerância e muitos outros
elementos somados à uma grave crise política e econômica. “Olhar
politicamente é por as dissidências no centro do foco, o traço
oposicionista da arte frente aos discursos estabelecidos” (SARLO,
1997, p.60).
Um ano antes da Copa do Mundo, manifestações se alastraram
pelo país, com o jargão “não vai ter copa”. Mas, a Copa aconteceu e
com ela uma derrota histórica e um placar de difícil digestão, afinal a
Copa do Mundo é uma baliza cronológica, tece memórias e histórias,
todos nós temos memórias sobre Copas do Mundo relacionadas à
nossa vida pessoal, como por exemplo: na Copa do Mundo do ano
tal, eu morava em tal lugar, assisti na companhia de tais pessoas,
o jogo tal foi marcante por tal razão; é de certo modo uma mola
propulsora de memórias.
1
“Marta e Neymar: a desigualdade de salários e apoio no futebol brasileiro”
. Época Negócios.com, publicada em
05/06/2015 às 18:19hs, atualizada às 12:51hs, Disponível em: http://epocanegocios.globo.com/
Informacao/Dilemas/noticia/2015/06/marta-e-neymar-desigualdade-de-salarios-e-apoio-no-futebol-
brasileiro.html
66
História do Esporte
Somadaaessemardesubjetividade,existeaforçadarepresentação
do país: “A cada quatro anos, uma nova leva de brasileiros aprende
que o time da CBF é o Brasil e é instigada a torcer por ele. A força
do time da CBF – apresentado, acreditado e vivido – como a seleção
brasileira deriva do fato de que os brasileiros – se não todos, a grande
maioria deles – são envolvidos emocionalmente com ele. O Brasil
não é o único país no qual um time de futebol foi alçado a símbolo
da nação, mas o fato de que não tenhamos um histórico belicoso,
de onde a nação pinça boa parte de seus heróis e narrativas épicas,
faz do time da CBF uma unanimidade ou quase” (DAMO; OLIVEN,
2013, p.20).
Passado o “trauma”, no ano de 2016 foram realizadas no Brasil
as Olimpíadas, principal acontecimento esportivo mundial, mais
uma vez o mundo volta os olhos para nosso país; o clima festivo e
o colorido da bandeira dividem espaço com um contexto político
conturbado, um processo de impeachment que tira o mandato das
mãos da primeira mulher presidenta do país. Vale salientar que a
função social do historiador e sua vitalidade crítica para se debruçar
sobre esse cenário não constitui escopo deste texto, porém, não está
dissociado dele.
Na imprensa, holofotes se voltam para as delegações, para o
campo esportivo, para os Jogos Olímpicos, com muita descrença
sobre a possibilidade de não cometer gafes, assiste-se o início do
evento que não havia sido ainda chancelado pelo Brasil. Com uma
abertura surpreendente, marcada por um excepcional jogo de
cores, luzes, som e imagens que retrataram um país multiforme. A
conotação que foi dada e, exemplarmente incentivada pela imprensa
desde a abertura dos Jogos, foi a visão de um Brasil de diversidade,
construído historicamente por diversos povos e etnias que, com o
tempo foram se fortalecendo em seus costumes e culturas, de modo
a se consolidarem enquanto diferentes grupos, o que findou por
construírem um país múltiplo e que, exatamente por suas diferenças,
vem se consolidando como uma nação que aprendeu a lhe dar com
as diversidades, sejam elas étnicas, religiosas, de gênero e de geração.
67
Do escanteio para o meio da área
Temos um mito fundador “no sentido antropológico, no qual a
narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições
que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da
realidade” (CHAUÍ, 2000, p.9). Embora eventos esportivos sirvam
geralmente como elemento de coesão e afirmam a existência de uma
identidade nacional, fissuras nesse processo foram identificadas
como, por exemplo, a ausência de representantes de religiões afro-
brasileiras na Vila Olímpica “O Comitê da Rio-2016, responsável
pela organização da Olimpíada, escolheu apenas cinco religiões para
terem representantes em seu centro inter-religioso, montado na Vila
Olímpica para atender atletas que participarão do evento. Somente
cristãos, judeus, muçulmanos, budistas ou hindus terão sacerdotes
de suas religiões no espaço”2
.
Temos ainda traços marcantes da sociedade autoritária da época
colonial, onde divisões sociais “são naturalizadas em desigualdades
postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos
trabalhadores, negros, índios, imigrantes, migrantes e idosos) e as
diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer, ora como
desvios de norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero),
ora como perversão ou monstruosidade” (CHAUÍ, 2000, p.90). A
eleição de uma mulher como representante do país, representou um
avanço e expôs a face autoritária e machista da sociedade brasileira,
evidenciando sua imaturidade democrática, tirando o foco da
discussão do campo político - inúmeras vezes - e colocando-o como
uma questão de gênero, procurando limitar o papel da mulher na
sociedade.
2
“Rio-16 restringe religiões afro em centro na Vila Olímpica e gera críticas”. UolOlimpiadas.
com, publicado em 06/07/2016 às 16:07hs. disponível em: http://olimpiadas.uol.com.br/noticias/
redacao/2016/07/06/rio-16-restringe-religioes-afro-e-espirita-na-vila-olimpica-e-gera-criticas.htm
68
História do Esporte
Figura 1: Capa de Revista de 06 de Abril de 2016
http://istoe.com.br/edicoes/page/2/
Negros e Mulheres, segundo o último senso brasileiro constituem
maioria da nossa sociedade, mas ainda estão em busca de espaço
e de representação. Voltando ao campo esportivo, não podemos
deixar de observar, em meio a tantas belezas, que os Jogos Olímpicos
trouxeram consigo muitos pontos de análise, especialmente no
que se refere à diversidade. Utilizar-se-á uma das modalidades
esportivas para, através de sua historia, apontarmos aspectos que
discutem a exaltação da diversidade e igualdade, tão insistentemente
evocada quando do espetáculo da abertura dos Jogos Olímpicos
que ocorreram no Rio de Janeiro 2016. Nesse trabalho buscaremos,
portanto, através do futebol feminino, discutirmos e mostrarmos
elementos que possibilitam analisar contraditoriamente aspectos de
nossa própria história enquanto povo.
Brasil: país do futebol masculino
A mulher, tanto na antiguidade quanto no mundo moderno tem
sido estudada e descrita a partir de uma perspectiva eurocêntrica
masculina. Perspectiva essa de quem esta no poder. [...] No esporte
essa prática se repete. A mulher foi considerada como usurpadora
ou profanadora de um espaço consagrado ao usufruto masculino
(RUBIO; SIMÕES, 1999, p.50).
OBrasil,comoédeconhecimentonotório,semprefoiconsiderado
como o país do futebol. Afinal, quem não se lembra de Pelé, o grande
69
Do escanteio para o meio da área
ícone do futebol nacional? Reconhecido internacionalmente seu
nome, definitivamente entrou para história como o craque da bola,
e pelos seus feitos, até hoje continua sendo saudado e homenageado
pelo mundo afora. A única ressalva que precisa ser feita é que “somos
o país do futebol masculino” e esse aspecto, muda completamente, a
visão de um país múltiplo e que consolidou aspectos como igualdade
e justiça nas relações sociais estabelecidas.
Necessário se faz, nesse momento, lançarmos mão da história
desse esporte para buscar argumentos que solidifiquem nosso ponto
de partida. Não questionando a importância desse esporte para
brasileiros/as, mas a apontando a constituição da memória desse
povo e das narrativas que a sustentam. Afinal, ambigüidades estão
presentes nas narrativas e elas fazem parte de processos sociais e isso
implica,anossover,emoutraformadelidarcomreferenciaisteóricos,
despertando-nos a percepção sobre como ocorrem a realimentação
de representações e na identificação de forças hegemônicas e de
pontos de tensão e de disputas entre grupos sociais.
Nessesentido,podemosdizerqueahistóriadofutebolfemininono
Brasil está ainda por se construir e se consolidar. Em nossas trajetórias
acadêmicas, o futebol constituiu um ponto em comum, porém não
foi o futebol profissional dos campos gramados e televisionados que
constituíram nossos objetos de pesquisa. Futebóis varzeanos, de
chão batido, cujos protagonistas foram operários e mulheres, foram
os que concentraram nossa atenção. De lá para cá esses grupos que
investigamos têm nos ensinado, não só lidar com fontes escassas,
mas nos desafiam a todo instante, muitas vezes a produzirmos fontes,
colocando-nos como co-autoras, ouvindo e compartilhando muitas
memórias sobre inúmeras faces do futebol brasileiro, apontando
para a emergência em continuarmos tal trabalho como militância
acadêmica, tirando da sombra e invisibilidade inúmeros sujeitos,
em especial as mulheres3
. Lidando com as contradições de um
3
Sobre gênero, vide: “As mulheres também são boas de bola: histórias de vida de jogadoras baianas
(1970-1990)” Tese de doutorado disponível no banco de teses da PUC/SP, Programa de Pós-Graduação
em Historia Social. Sobre futebol varzeano-operário, vide: “A cidade, o futebol e o trabalho: memórias
do futebol de fábrica São José dos Campos (1920-2010). Tese de doutorado disponível no banco de
teses PUC/SP.
70
História do Esporte
esporte que, no fundo, mostra as contradições de nossa própria
estrutura social, temos tentando “aprender um pouquinho”, como diz
Alessandro Portelli (1997).
Aspectos históricos sobre o futebol feminino no Brasil
Citar Pelé, como nosso maior jogador de futebol nos abre a
possibilidade de falar também de Marta Vieira, nossa maior jogadora
nessa modalidade na atualidade. Nascida em Dois Riachos4
, uma
cidade Alagoana do nordeste brasileiro, essa atleta teve que superar
muitas barreiras para atuar no futebol. Além de enfrentar a fome e
a pobreza, o preconceito foi o pior obstáculo encontrado pela única
menina que tinha a coragem de entrar num campinho improvisado,
somente com duas traves arranjadas, em baixo de uma ponte, para
driblar e fazer gols no meio de um monte de garotos. Foi a partir
do incentivo do professor Tota, primeiro a estimular Marta a atuar
e permanecer nas quatro linhas, que Marta iniciou uma improvável,
mas vitoriosa carreira nos campinhos de barro em Alagoas e dali
seguiu, inicialmente para o time do Vasco no Rio de Janeiro, em
seguida, aos 17 anos, na Seleção Brasileira Feminina de Futebol.
Depois veio a possibilidade de atuar na Suécia, um país frio e bem
diferente do nosso, mas que possibilitou essa atleta a se consagrar
como a melhor do mundo. Em nove anos jogando Marta acumula
sete títulos de campeã sueca, duas medalhas olímpicas (em Atenas e
Pequim), além do fantástico título de ser reconhecida cinco vezes a
melhor jogadora do mundo.
Mesmo com esse currículo exemplar e uma trajetória campeã,
prova de que através do exemplo de Marta podemos compreender
um pouco sobre como de fato se vive no “país do futebol”, tivemos
o caso do menino Bernardo, que como fã de Marta, vestiu a camisa
dez da seleção masculina e nela inseriu o nome de Marta. Outro
caso foi o do ator Alexandre Nero que se mostrou indignado por
4
“Marta:ameninaquedriblouopreconceitoecresceunofutebol:jogadora foi eleita a melhor do mundo cinco vezes
seguidas; exemplo da mãe e incentivo de professor foram fundamentais”. Jornal Nacional, publicado
em 01/08/2016 às 21:49hs, atualizado as 21:49. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/
noticia/2016/08/marta-menina-que-driblou-o-preconceito-e-cresceu-no-futebol.html
71
Do escanteio para o meio da área
não conseguir adquirir uma camisa da Seleção Feminina de futebol,
por não ser comercializada em modelo masculino5
. “A fornecedora
de material esportivo do Brasil informou que as camisas modelo
2016 usadas em amistosos e competições da Fifa da equipe feminina,
estão sim à venda no site da empresa e podem ser customizadas,
ressaltando ainda que é uma opção do lojista “pré-fabricar” o nome e
número às costas com o objetivo de chamar a atenção dos clientes e
não há qualquer tipo de restrição. Os itens são enviados “em branco”
aos pontos de venda. A opção tem sido Neymar”6
. O fato é que não
há a mesma visibilidade direcionada ao futebol feminino, quanto se
tem, até hoje, voltada para o futebol masculino e isso demonstra que
atletas possuem condições de tratamento diferenciadas - e quando se
fala da questão da gênero, as condições são ainda mais agravadas ou
distanciadas.
Figura 2: Reprodução da foto que viralizou na internet no início de agosto de 2016
5
“Ator da Globo reclama de não poder comprar camisa da seleção feminina: pensamento medieval”.
Torcedores.com, publicada em 07/08/2016 às 15:16hs. disponível em http://torcedores.com/
noticias/2016/08/alexandre-nero-marta
6
A polêmica acesa diante dessa questão pode ser um pouco elucidada a partir da Matéria “Fornecedora
da Seleção Brasileira diz que envia ‘camisas em branco’ às lojas”. GloboEsporte.com. publicado
em 09/08/2016 às 14:41hs, atualizado às 15:48hs. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/
olimpiadas/futebol/noticia/2016/08/sem-riscos-uniforme-feminino-esta-venda-lojas-podem-gravar-
marta.html
72
História do Esporte
Dificuldades à parte, para a atleta em questão, sua maior vitória
foi ter dado uma casa para a mãe e ter ajudado a família a sair da
miséria. Para Marta, apesar de todas as suas conquistas que somam,
entre outras, na Seleção Feminina os títulos da Copa do Mundo de
2007, onde ajudou a conquistar o segundo lugar, assim como no
Campeonato Sul-Americano em 2006, o que ficou foi a consciência
de que, se tivesse desistido dos seus sonhos, teria continuado numa
vida beirando a miséria em Dois Riachos (AL), como ela mesma
afirma:
Eu já pensei muitas vezes e eu acredito que já estaria casada e com
filhos. A mentalidade na minha cidade não tinha tanta perspectiva
de vida. É casar, trabalhar para o poder público ou trabalhar na plan-
tação... É o que aconteceria comigo se eu não tivesse tomado esta
decisão de deixar tudo para trás e ir atrás do meu sonho7
.
Um dos aspectos mais importantes a ser observados na entrevista
de Marta consiste no fato de que a jogadora, atualmente com trinta
anos e, talvez por esse fato, estar atuando em sua última Olimpíada
no auge de sua forma física, não se difere em nada das circunstâncias
nas quais vivenciaram no Brasil outras atletas de gerações anteriores.
Com base em depoimentos e fontes documentais fornecidas por
ex atletas e jogadoras de futebol foi possível perceber que, no Brasil,
entre as décadas de 1970 e 1990, o preconceito foi a principal barreira
para o futebol feminino, fato que teve como conseqüência uma quase
total falta de estrutura para essa modalidade esportiva se consolidar8
.
Um exemplo pontual, pode ser o do estado baiano nas décadas
de 1970 e 1980, a inserção das meninas no esporte se deu da
mesma forma: em campinhos de terra batida, com duas travezinhas
improvisadas, no meio dos meninos. Nesse período, participar
das peladas acontecia com a anuência dos meninos - como se deu
7
Depoimento de Marta Vieira da Silva retirado da matéria “Rainha Marta, a mulher que derrubou
Pelé do trono do futebol brasileiro”, publicada em 21/07/2016 às 08:28, atualizada em 22/07/2016 16:04,
disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2016/07/21/marta-derruba-pele_n_10929532.html.
8
Os dados a seguir se encontram-se na Tese de Doutorado intitulada “As mulheres também são boas
de bola: historias de vida de jogadoras baianas (1970-1990)”, defendida em julho de 2012 no Programa
de Pós-Graduação em Historia Social da PUC/SP e que consta no banco de dissertações e teses do
referido Programa.
73
Do escanteio para o meio da área
com Marta mas, para isso, as meninas precisavam ser muito boas
de bola. Os times eram organizados e mantidos pelos “donos dos
times”, os homens que organizavam as meninas, como também os
treinamentos e vestimentas emprestadas dos times masculinos, já
que, nesse período, não existia vestimenta específica para os times
femininos.
Além das dificuldades de acesso ao campo e consentimento
dos “donos”, observa-se no caso baiano, a existência da expressão
macho-feme que se consolidou como referência a essas ousadas
meninas que insistiam em driblar, correr e marcar gols. Esses times
eram sempre marcados por efemeridades, já que dependiam da boa
vontade dos organizadores que eram as pessoas responsáveis por
bancarem treinos, lanches, deslocamento, ou mesmo hospedagem
em suas residências para promover algum torneio; sendo comum a
desintegração dos times, o que ceifava também sonhos e carreiras.
Sabe-se que o futebol constitui sonho de muitos meninos e
meninas no Brasil e pelo mundo à fora e que mesmo com vários
exemplos de carreiras consolidadas, de atletas que venceram, esses
casos ainda são pontuais. O futebol glamoroso, televisionado, das
primeiras divisões é um sonho ucrônico. E quando se trata do
futebol feminino, as dificuldades são ímpares! Entretanto, ele resiste.
Durante a pesquisa, identificou-se que nas décadas de 70 e 80,
somente na região sudoeste da Bahia, existiam os seguintes times:
Conquistar, Canadá, Alto do Cruzeiro, Macicas, As Panteras e o time
do Mandacaru. Um dos mais famosos times femininos de futebol
desse período foi o Flamengo da cidade de Feira de Santana e o Bahia
da cidade de Salvador. Mas existiram também o Baiano de Tênis, o
Ipiranga, o Catuense, Agroveco, Guadalupe, Yuratim, Brasília, 8 de
Agosto e Tejan, elucidando a força dessa prática esportiva.
A existência desses vários times, demonstram que haviam
investimentos e aceitação por parte do público, justificando-se o
envolvimento do poder público, quando, em 1986, a Prefeitura de
Salvador realizou o Primeiro Campeonato Estadual de Futebol
Feminino. De acordo com o Departamento de Esportes e Animação
74
História do Esporte
Urbana e da Federação Baiana de Futebol, nesse período existiam no
Estado 100 equipes de futebol feminino, dos quais 30 participaram
desse torneio, sendo 21 equipes da capital e 09 do interior9
. Vale
ressaltar ainda que, já na década de 1980 foi realizada a Copa do
Brasil de Futebol Feminino.
O final da década de 1980 foi acompanhado do crescente processo
de expansão dos direitos das mulheres e de sua maior participação
social, inclusive em esportes antes desestimulados. “Em 11 de abril
de 1983, o extinto Conselho Nacional de Desportos regulamentava
o futebol feminino e autorizava a prática do esporte em todos os
municípios do Brasil” (ROQUE, FRAGA, ZANETTI, 2014, p.179).
Figura 3:IBRAPE x Raios de Sol – Estádio Martins Pereira São José dos Campos
- SP (1985)
Com esses times espalhados pelo Brasil, nessa mesma época em
que eram realizados os campeonatos estaduais de futebol de salão
feminino; houve também o Campeonato Metropolitano em São
Paulo, a Copa Sudoeste no Rio de Janeiro, a Taça Cidade de São
Paulo e a Taça Brasil, cuja uma das edições foi realizada na cidade
de Contagem, outra em Brasília e outra em Mairinque, no início dos
anos de 1990.
9
MORAES, Op. cit. p. 93. Ainda puderam ser identificados dados sobre o futebol de salão na transição
entre os anos 80 e 90 do século passado. Times como Bordon Poli Esporte (SP), C. R. Vasco da Gama
(RJ), Aruc (DF), A.D.C. Frigo Arnaldo (MG), Artrok (MS), Goiânia Esporte Clube (GO), G. R.
Transvira (SP), Canto do Rio F. C. (RJ), Center Clube (PR), Flavio Automóveis (CE), Independente A.
C. (PA) e Sul América (AM).
75
Do escanteio para o meio da área
Obviamente, para que os torneios ocorressem, seja de campo
ou salão, havia público. E foi nesse contexto, no final dos anos de
1980, que foi criada a primeira Seleção Feminina de Futebol, mais
especificamente em 1988. Tendo como base o time carioca do Radar
(RJ), que apresentou resultados pra lá de satisfatórios em jogos
internacionais realizados na Itália, Alemanha, Suíça, China, Japão,
Caribe e Estados Unidos, o que fez do Radar uma equipe valorizada
e reconhecida nacional e internacionalmente (MOURÃO; MOREL,
2005)10
formavam esse grupo nomes como Russa, Michael Jackson,
Fanta, Sisi, Marcinha, Pelézinha, Lica, Simone, Suzana, Mariza,
Elaine, Fia, Roseli, Flordelis, Suzy, Sandra, Lucia e Cebola11
.
Com isso afirmamos que o futebol feminino no Brasil não é
um fenômeno novo. Para as novas gerações, a atleta Marta, citada
nesse estudo e suas companheiras, são inovadoras nessa modalidade
pelo fato de, diferentemente do futebol masculino, aprendemos a
construir nossas memórias associadas a gerações que sucederam Pele
e Zico, esse último ex-atleta do time carioca do Flamengo e outro
nome muito lembrado por seu brilhantismo em campo na década
de 1980, como nos tempos em que atuou na nossa Seleção. Mas, ao
contrário dos homens em campo, da Seleção Feminina do final dos
anos 8º e da década de 1990 do século passado, restaram sombras,
muitos silêncios e esquecimentos.
Entre discrepâncias salariais e estruturais, qual será o futuro
do futebol feminino no Brasil?
“Juntar mulher bonita e futebol – duas maiores paixões dos
brasileiros – não é novidade hoje, ontem nem anteontem”12
.
O que podemos observar sobre o futebol feminino brasileiro é que
essa prática vem se construindo em meio a diálogos, frequentemente
10
Dos 44 jogos realizados entre 1982 a 1986, o Radar venceu 39 disputas, empatou duas delas e teve
apenas 3 derrotas (MOURÃO, MOREL, 2005, p.80).
11
Idem, p. 145.
12
“A primeira musa do futebol brasileiro na radio e na TV”. Globoesporte.com, publicada em
05/12/2007 às 15:57hs, atualizada às 16h42m. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/ESP/
Noticia/Futebol/Flamengo/0,,MUL204651-4282,00.html
76
História do Esporte
conturbados e esclarecedores, sobre elementos quem compõem
nossa própria cultura. Nesse aspecto alguns trabalhos esclarecem o
quanto de conservadorismo existe no Brasil, sem falar nas doses de
machismo e preconceito que insistentemente tentam burlar práticas
sociais, dentre essas, o acesso e a permanência de mulheres em
práticas esportivas, como no caso do futebol.
Nessesentido,algunsestudosapontamatrajetóriadeinstabilidade
dessa modalidade, seja na mídia ou na pouca estrutura, que até hoje
lhe é oferecida, aspectos que associados, indicam que não houve
a consolidação do futebol feminino brasileiro no país do futebol.
Assim, o futebol das meninas, em dado momento, se apresenta
como um espaço de esperança e mexe com a alegria de milhões de
pessoas em espetáculos como os Jogos Olímpicos do Rio 2016, vindo
em seguida cair em esquecimento logo ao encerramento dessas
competições. Acreditamos que a epígrafe acima pode esclarecer, ou
mesmo resumir um conjunto de valores sociais sobre os esportes
considerados masculinos, como o futebol, quando praticado por
mulheres: mulher nesses esportes, para a sociedade brasileira e,
especificamente no futebol, não precisa ter talento com a bola, ela
pode (e deve) até ficar nas arquibancadas, o importante e necessário
é que ela seja bonita, o que não geraria dúvidas sobre sua sexualidade.
Em seu trabalho quando analisa, sob a ótica da mídia, esse
esporte no Brasil nos anos de 1940, Franzini (2005, p.316) é enfático
ao observar que:
É notório que o universo do futebol caracteriza-se por ser, desde sua
origem, um espaço eminentemente masculino; como esse espaço
não é apenas esportivo, mas também sociocultural, os valores nele
embutidos e dele derivados estabelecem limites que, embora nem
sempre tão claros, devem ser observados para a perfeita manutenção
da ‘ordem’, ou da ‘lógica’, que se atribui ao jogo e que nele se espera
ver confirmada. A entrada das mulheres em campo subverteria tal
ordem, e as relações daí decorrentes expressam muito bem as rela-
ções de gênero presentes em cada sociedade: quanto mais machista,
ou sexista, ela for, mais exacerbadas suas replicas.
77
Do escanteio para o meio da área
Nesse estudo, o autor comenta o quanto de resistências se
observou na sociedade brasileira naquele que seria um dos primeiros
contatos que nosso público teve com o futebol das moças, referindo-
se ao futebol feminino carioca que, entre os anos de 1940, começava
a estruturar suas primeiras equipes. A época, o correto seriam
meninas nas arquibancadas torcendo alegremente por seus pares
que, nas quatro linhas, mostravam toda masculinidade através dos
chutes a gol e dos dribles em campo. O ‘problema’ começa quando
elas resolveram levantar das arquibancadas e se imiscuir num espaço,
até então, considerado absolutamente de domínio e pertencimento
dos homens.
Revelando e refletindo nossos próprios valores, o autor mostra
o posicionamento de nossa população sobre essa ‘aberração’ que,
naquele momento, iniciava seus primeiros passos diante do público,
o que gerou vários escritos na imprensa da época, contrários a
participação feminina nesse ambiente considerado, minimamente,
incompatível com a natureza da mulher. Nesse caso, até o Presidente
Getúlio Vargas foi solicitado a intervir, de modo a evitar que essa
calamidadeseinstalasseemnossasociedade,fatoque,seconsolidado,
comprometeria o futuro de toda uma geração por se tratar de um
esporte incompatível com a natural fragilidade biológica, assim
como a inata docilidade da mulher.
Desse apelo popular engrossavam tal discurso profissionais do
jornalismo, da área médica, especialmente da medicina esportiva.
O fato provocou o posicionamento do Poder Público o que gerou,
através do Conselho Nacional de Desportos (CND), em seu artigo
54 a normativa: “às mulheres não se permitira a prática de desportos
incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para
esse efeito, o Conselho nacional de Desportos baixar as necessárias
instruções às entidades desportivas do país.”13
Segui-se, a partir daí, uma série de publicações jornalísticas que
tratavam de forma irônica e ridícula a participação das mulheres no
futebol. Além da intervenção governamental que durou até a década
13
Correio da Manha, Rio de Janeiro, 10.05.1940, p.06. In: FRANZINI (Op. cit. p, 323)
78
História do Esporte
de 70 no Brasil e que impedia, de fato e de direito que essa prática se
efetivasse pelas mulheres, houve também um constante comparativo
de um olhar preconceituoso que padronizou o futebol como de
posse e reserva masculina, universo distante das “potencialidades”
associadas a natural fragilidade feminina.
No mesmo trabalho, ao se referir a uma partida de futebol
feminino ocorrida entre os times de São Paulo e America, no dia
17 de maio de 1949 no Pacaembu, a matéria jornalística registrava:
‘momentos dos mais agradáveis, sobretudo humorísticos, pois, se as
frágeis jogadoras não exibiram técnica de futebol, padrão de jogo,
etc., agradaram em cheio, na maioria das vezes, pelas próprias falhas,
que eram recebidas com gostosas gargalhadas pela assistência.’
Soma-seaanálisedefendidapeloautor,outroimportantetrabalho
que trata da visão da imprensa brasileira sobre essa modalidade
esportivanoséculoXX.Considerandoque,sobreessetemaapresenta-
se, em certos momentos, certa escassez de informações, por outro
lado quando surgem, tais informações apontam para aspectos como
fragilidade, resistência a essa prática e um forte preconceito que
associa o futebol a masculinizarão da mulher.
Em seu estudo que enfoca análises sobre o discurso da mídia
brasileira entre 1930 a 2000, Mourão e Morel sugerem que na
documentação que se consolida pelo CND em 1967, através de seu
artigo de número 7, quando imprime a proibição às mulheres da
prática do futebol, do futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático,
halterofilismo e baseball, entre outros esportes, que já se apontava
uma normatização de comportamentos considerados desejáveis a
juventude nacional. De acordo com as autoras:
A simples leitura desses documentos nos conduz a indícios de que
a legislação esportiva explicitava uma distinção entre as atividades
físicas a serem praticadas pelos homens e aquelas a serem execu-
tadas pelas mulheres, mesmo o esporte sendo dividido por sexo,
culminando por viabilizar aos primeiros, maiores oportunidades de
desenvolverem-se em destrezas físicas. Nesta leitura, evidencia-se a
intenção de se adaptar a nossa juventude ao padrão de masculinida-
de e feminilidade vigente em nossa sociedade (MOURÃO; MOREL,
2005, p.78).
79
Do escanteio para o meio da área
Com um trabalho baseado em matérias de Jornais e Revistas
(que vão de 1930 a 2000) essas autoras apontam que o fundamento
sobre o qual se desenvolveu toda uma concepção de masculinizacão
da mulher através da prática de alguns esportes e, principalmente
o futebol, desenvolveu-se a partir do argumento biológico. A partir
desse ponto de partida, no caso do futebol, foi naturalizada uma visão
que, ao tempo que ridicularizava e ironizava certa falta de habilidade
femininaparaodesempenhocomabolanospés,apontavaigualmente
perigos a sua natureza frágil e sua valorizada feminilidade. Como
lembram as autoras – não há nada de neutralidade nisso.
As autoras destacaram nesse trabalho uma das matérias da
Revista Placar14
, lançada na década de 1980, que sugeria haver uma
fama na sociedade brasileira sobre a maioria dos esportes de quadra
desenvolvido por mulheres, de acordo com a reportagem: “...um antro
de homossexualismo, praticado por mulheres feias e masculinizadas”.
Senadécadade80haviaasuspeitadeseroambientedoesporteum
espaço de homossexualidade, cenário no qual desfilavam mulheres
masculinizadas - vale a pena destacar essa informação, como sugerem
os textos acima, essa concepção xenófoba e preconceituosa sobre
essa mulher se concentra no distanciamento desse perfil de outra
referência centrada nas normalizações sobre sua inata feminilidade.
Essa outra concepção amplamente divulgada, desde o início do
século passado, foi exemplarmente argumentada através de estudos
médicos e eugenistas, além de reforçada pela Educação Física, ou
Ginástica e discutida em diversos estudos. Dessa forma, Pacheco15
,
referindo-se a Revista de Educação Física Feminina (1933), mostra
que a preocupação em masculinizar a mulher através da prática
esportiva foi uma questão em pauta permanente no Brasil, de modo
que se preservassem os modelos sociais esperados para homens e
mulheres:
14
Revista Placar de 25 de agosto de 1986, n. 848, São Paulo, Op. cit, p. 79.
15
REVISTA DE EDUCAÇÃO FÍSICA - Educação Física Feminina: rápido esboço sobre processos
educacionais, v.2, n.6, 1933. In: PACHECO, A. J. P. Educação Física Feminina: uma abordagem de
gênero sobre as décadas de 1930 e 1940. Revista da Educação Física/Uem, v.9, n.1, p.45-52, 1998.
80
História do Esporte
uma cousa é certa: na escolha desses processos é preciso afastar os
exercícios capazes de masculinizar a mulher e favorecer aqueles ca-
pazes de desenvolver suas aptidões e sua conformação física, a fim
de assegurar sua missão biológica e seu caráter, suas faculdades de
espírito e o vigor de seu corpo.
Estudos como esses sugerem que a prática de esportes por
mulheres ainda permanece como um tabu, um espaço masculino ou
masculinizante que suscita cuidados até os dias atuais. Além disso,
essasdiscussõesqueiniciaramoembricamentodasquestõesdegênero
relacionadas ao esporte desde décadas finais do século passado, ao
que parecem, ainda necessitam de maiores aprofundamentos e novos
estudos. No que se refere ao nosso futebol feminino, estudos nessa
área indicam uma militância acadêmica se constituindo no Brasil
do século XXI que busca defender esse como um espaço no qual
as mulheres têm totais condições de se manter por seu talento em
termos de qualidades técnicas e táticas, além de se constituir num
direito relacionado a sua liberdade de escolha e de sua identidade de
gênero e, principalmente – enquanto sujeito no mundo.
Anteriormente citada nesse trabalho Sisi16
, ex atleta de futebol que
atuou na Seleção Brasileira durante toda a década de 90 nos da uma
aula de persistência: após encerrada sua participação na Seleção em,
1999, desloca-se para os EUA em busca de suporte para continuar
atuando no futebol, já que no Brasil do seu tempo, pouquíssimo
espaço havia ou reais condições estruturais para permanecer nessa
prática.
Em 2016, com a eliminação das meninas do futebol dessas
Olimpíadas seu nome foi sugerido para conduzir a Seleção Feminina.
Na entrevista a UOL Esporte, essa ex atleta faz uma análise sobre
nosso futebol feminino e inicia afirmando que, desde 2004 tem
trabalhado como treinadora nos EUA.
16
Sisi é o codinome de Sisleide Lima do Amor, a maior jogadora de futebol do Brasil durante a década
de 1990. Sobre esse assunto sugerimos a leitora da matéria “Sissi faz carreira de técnica, sonha com
seleção, mas evita criticar Vadão”. BolNotícias, publicada em 18/09/2016 às 6:00hs. Disponível em:
http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/esporte/2016/09/18/sissi-queria-trabalhar-na-selecao-
mas-o-problema-do-brasil-nao-e-treinador.htm
81
Do escanteio para o meio da área
LogonoiníciodesuaanáliseSisilembraque,paraofortalecimento
do futebol, em primeiro lugar seria necessário termos um calendário
permanente e sólido para a modalidade, o que daria base e viabilizaria
a observação dessas atletas. Critica a falta de continuidade do futebol
femininonosclubeseaintermitênciadecampeonatos,oqueprejudica
inclusive a formação e manutenção de uma Seleção, já que, com a
falta de continuidade, não há como acompanhar o nível das atletas.
Por outro lado ainda cita três aspectos a serem considerados: há falta
de escolinhas de futebol no Brasil para as meninas; o futebol das
meninas precisa acontecer nas escolas; ainda não há no Brasil espaço
para as jogadoras continuarem atuando como técnicas, auxiliares,
ou qualquer outra função. Após o encerramento da carreira como
atletas essa mulheres não encontram espaço para atuar, afirma. Já Sisi
encontrou outras possibilidades:
Eu adoro o que faço. Não imaginava que de repente eu ia ter a
oportunidade de ficar nos EUA (após o fim da carreira como
jogadora, em 2009, pelo FC Gold Pride). Um dos motivos de sair (do
Brasil) foi não só jogar profissionalmente, mas ter a oportunidade de
continuar o trabalho aqui. O trabalho como diretora me da acesso as
categorias de base. Mas já trabalhei com garotas de 17, 18.
Assim como a atleta Marta, também citada no trabalho, Sisi
encontrou outro caminho para prosseguir fazendo exatamente aquilo
quegostaeoquesemprequisfazer:atuarnofutebolfeminino.Odifícil
para nós e termos que aceitar que, para ambas essa possibilidade só
foi possível fora do Brasil.
Considerações Finais
O Brasil, no que se refere ao seu corpo social como foi mostrado
pela imprensa nos Jogos Olímpicos do Rio 2016, consiste num
conjunto múltiplo de raízes étnicas e culturais que, ao longo do
tempo vem, através de embates políticos, buscando se constituir
enquanto uma sociedade única, embora essas características estejam
permanentemente em conflito. Conflitos esses que atestam interesses
82
História do Esporte
de categorias sociais extremamente diversas e mesmo distantes em
suas distinções e compreensões acerca de seus traços identitários.
Questões como as disputas de classe sociais sempre estiveram
em foco na história do Brasil, embora igualmente sempre se tenha
tentado exaltar um país de iguais. Atualmente as questões e disputas
que envolvem os diversos gêneros e que ultrapassam as concepções
biológicas de sexo, talvez sejam aquelas que suscitam hoje maiores
preocupações. Por trás das disputas de poder estão disputas de
visibilidade e reconhecimento e, especialmente, de independência,
autonomia e liberdade de escolha.
Nesse cenário conflituoso se encontram as nossas mulheres
do futebol. Acreditamos que a luta do futebol feminino no Brasil
atualmente por melhores condições de espaço e visibilidade, o
que envolve desde uma melhor estrutura econômica a abertura
e consolidação dessa área como um espaço profissional e
profissionalizante para as mulheres, sublima-se um problema e
um obstáculo ainda maior: vencer o preconceito histórico, social e
cultural que acompanha as mulheres que ousam romper com um
padrão normativo de feminilidade e docilidade.
Ou seja, criado para afirmar a delicadeza e dependência
femininas, com base em argumentos legais e biológicos, esse padrão
normativo sempre teve como direcionamento limitar o raio de ação
e, consequentemente, de empoderamento da mulher brasileira
acerca de seu destino. Ensinadas a todo custo a serem dependentes,
emocional e financeiramente, o que observamos é que as mulheres
não se renderam as essas pressões sociais e buscaram forças para
romper com barreiras históricas – como no esporte e, principalmente,
no futebol feminino brasileiro.
O resultado dessa luta de não submissão são os alarmantes
números que atestam sobre a violência contra a mulher por seus
parceiros e mesmo a criação da Lei Maria da Penha que significa
dizer: precisamos da Lei para nos proteger! Talvez isso seja o bastante
para contrapor a ideia de igualdade tão exuberantemente explicita
sobre o Brasil na abertura dos Jogos do Rio 2016.
83
Do escanteio para o meio da área
Como visto, o esporte reproduz os valores presente em nossa
sociedade. Por esse motivo, parece ser redundância falar sobre o
preconceito que até nossos dias recai sobre o futebol feminino, ainda
consideradoeobservadocomoumespaçomasculino/masculinizante.
Compreendendo esse processo cabe a pergunta: seria diferente o
futuro do futebol feminino se as meninas tivessem trazido a medalha
de ouro em qualquer uma das Olimpíadas que o Brasil já participou?
Mesmo com um futuro de incertezas, queremos lembrar aquilo que
expressou, com toda simplicidade, o esforço de nossas meninas ao
final dos jogos de futebol feminino das Olimpíadas 2016, quando
Brasil terminou em quarto lugar: “não desistam da gente!” E sobre
o futuro desse esporte, para nós fica somente uma certeza: nós não
desistiremos delas.
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85
CAPÍTULO V
FUTEBOL EM CAPIM GROSSO E SUA RELAÇÃO COM AS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS – 1964 A 1985
Prof. Gildison Alves de Souza
Prof. Me. Osni Oliveira Noberto da Silva
Introdução
Tratar da história do esporte seja ela em âmbito nacional estadual
ou municipal é uma tarefa que demanda esforço e cautela. Em esfera
municipal, muitos autores podem colaborar com relatos, contestando
ou confirmando informações, em que os documentos públicos e
projetos legisladores municipais são escassos.
O presente artigo trata-se de uma revisão bibliográfica onde
é objetivado discutir a importância atribuída ao futebol entre os
anos de 1964 e 1985, na cidade de Capim Grosso/Bahia e fazer
uma relação com o uso político desse esporte pelos governantes do
período ditatorial brasileiro, utilizando como referência a produção
impressa disponível no acervo da prefeitura municipal e câmara de
vereadores.
A bibliografia encontrada referente à história da cidade
mencionada é escassa, todavia contêm dados concernentes ao
futebol e outras modalidades esportivas com riqueza de detalhes.
Mas, atentaremos apenas para os referentes às décadas citadas e
prioritariamente para o futebol que foi o precursor da história
esportiva de Capim Grosso.
A escolha de Capim Grosso como lócus de investigação se dá por
conta de termos crescido e residirmos nessa cidade além de sermos
profissionais de Educação Física, fato que possibilitou a realização de
estudos referentes a políticas públicas de esporte nessa mesma cidade
através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC) pela Universidade do Estado da Bahia, Campus IV, em
Jacobina.
86
História do Esporte
Com isso, acabamos por observar que existe uma similaridade
temporal entre a história de Capim Grosso e a Ditadura Militar
brasileira visto que as evidências apontam que a prática esportiva em
Capim Grosso se iniciou no mesmo período de início do Regime
Ditatorialesupomosqueesseacontecimentoinfluencioudiretamente
o desenvolvimento esportivo na cidade.
O recorte temporal do presente trabalho se dá pelo fato de
que entre os anos de 1964 e 1985 foi instaurada a ditadura militar
no Brasil. Com isso, supomos haver uma relação direta entre os
programas governamentais nacionais existentes nesse período com
as ações públicas e/ou populares direcionadas para o futebol em
Capim Grosso, visto que o início da história do esporte no referido
município se deu justamente nas décadas citadas.
Futebol em Capim Grosso na década de 1960 e a instauração
da Ditadura Militar
No Brasil, a maior das paixões esportivas existentes é o futebol.
Ele entretém e comove grande número de pessoas em todas as regiões
do território nacional, em Capim Grosso, ou em qualquer cidade do
interior baiano não é diferente. Apesar de não existirem documentos
públicos relativos à história do futebol em Capim Grosso antes de sua
emancipação política, é grande a riqueza de informações encontradas
no livro no qual é contada a história dessa cidade através do esporte.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) (2014) a cidade está localizada a aproximadamente 280 km
de Salvador, a capital baiana, no cruzamento das rodovias 407 e
324. Tem uma área aproximada de 350 km² e tem cerca de 31 mil
habitantes.
A emancipação política de Capim Grosso ocorreu no dia 09 de
maio de 1985, no mesmo ano do fim da ditadura militar no Brasil.
Anteriormente ela era distrito de Jacobina, e mesmo antes da chegada
da TV, um mecanismo que estimula padrões comportamentais,
muitos moradores tinham o futebol como maior fonte de diversão
(SILVA; SOUZA, 2016).
87
Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras
Segundo os mesmos autores, poucos registros relativos às
competiçõesesportivasocorridasnomunicípioforamachados,exceto
pelos escassos documentos referentes a uma corrida que acontece
tradicionalmente no dia 9 de maio, e alguns dos documentos foram
encontrados apenas em acervos particulares e no acervo público
municipal de Jacobina (SILVA; SOUZA, 2016).
Os documentos encontrados em Jacobina que têm relação com
Capim Grosso foram referente ao período no qual Gilberto Dias de
Miranda1
foi prefeito de jacobina, isso norteou a descoberta da data
aproximada da doação de um terreno para a alocação do estádio
de futebol (SILVA; SOUZA, 2016). Essa história será contada mais
detalhadamente no tópico seguinte.
A prática do futebol no então povoado de Capim Grosso teve
início na década de 1960 com os alunos da escola paroquial que, se
juntavam para sair às 05h00min da manhã a pé para poder jogar bola
em povoados e cidades vizinhas que ficam a até 15 km de distância
de Capim Grosso (SILVA; SOUZA, 2016).
A possível relação de tamanha paixão pelo futebol pré e pós-
regime ditatorial é feita a partir da observação de que, sobretudo
durante a ditadura militar, o esporte e principalmente o futebol foi
utilizado como meio para encobrir as mazelas sociais existentes,
interferindo diretamente na aversão ao regime político vigente como
é mostrado nos parágrafos a seguir.
A Ditadura Militar no Brasil foi estabelecida no dia 01 de abril de
1964, e exatamente um mês depois foi evidenciado o uso político do
futebol,dia01demaiodomesmoanoaconteceuumasériedeclássicos
regionais de futebol em todas as cidades com população acima de
50 mil habitantes. A realização desses jogos foi determinada pelo
governo Castello Branco (1964-1967) que percebeu a intensificação
das manifestações contrárias ao golpe e com isso objetivou acalmar o
povo (SALVADOR; SOARES, 2009).
Dois anos após a implantação do regime, a seleção brasileira de
futebol foi eliminada da Copa do Mundo em sua pior campanha
1
Gilberto Dias Miranda foi prefeito de Jacobina de 01 de fevereiro de 1973 a 31 de janeiro de 1977.
88
História do Esporte
registrada até os dias atuais, sendo necessária até mesmo a escolta do
time pelo Serviço Nacional de Informações (SEI) no desembarque
no Brasil (MAGALHÃES, 2011).
Nessa época foi feito um massivo investimento no esporte na
tentativa de fazer da Educação Física um suporte para as ideias
militares, na medida em que ela participasse na colaboração para o
sucesso em competições de alto rendimento (DARIDO, 2003).
A fomentação da prática de esportes em âmbito universitário
partiu da Lei nº 5.540 de 1968, sequencialmente o Decreto/Lei nº 705
de 1969, tornou a prática da Educação Física obrigatória em todos os
níveis de ensino inclusive no superior (CASTELLANI FILHO, 1988).
Possivelmente essa obrigatoriedade tenha interferido na prioridade
dada à prática do futebol pelos garotos de Capim Grosso.
FutebolemCapimGrossoenocenárionacionaldadécadade1970
Após o falecimento do então presidente Costa e Silva que esteve
no cargo entre os dias 31 de agosto a 30 de outubro de em 1969, o
General Emílio Garrastazu Médici assumiu o governo. Ele era um
apaixonado pelo futebol e graças a isso as relações entre política e
futebol, que já eram fortes, foram intensificadas sendo indispensável
para o General e para a Assessoria Especial de Relações Públicas
(AERP)2
a divulgação desse esporte, principalmente após a conquista
do Tricampeonato mundial em 1970, fez com que a vitória da
seleção fosse associada com o modelo de política vigente no país
(MAGALHAES, 2008).
Outro marco da utilização do futebol pela mídia e pelo governo
foi a ideia de nacionalismo tida no período Vargas acerca da mistura
e integração sociais foi inserida nesse esporte através da imagem de
atletas como, por exemplo, Pelé que claramente representava a classe
pobre da população (HELAL, 2001), a emoção gerada pela integração
atingiu o seu ápice no período ditatorial (PROCHNIK, 2010).
2
Assessoria criada a partir do Decreto nº 62.119 de 15 de janeiro de 1968, para cumprir o papel de
assessorar o presidente no âmbito da comunicação social, esta fazia uso do futebol como tema de
campanha (SALVADOR; SOARES, 2009).
89
Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras
Isso indubitavelmente está relacionado à quase idolatria pelo
futebol, principalmente pós-tricampeonato mundial da seleção
brasileira em 1970 no México. Em Capim Grosso, uma vez que essa
imagem de integração era passada através dos meios midiáticos,
era forte a influência nos ouvintes de maneira que o objetivo dos
governantes que fizeram uso dessa popularização foi alcançado.
Até o fim da década de 1960 em Capim Grosso o acesso às
informações esportivas era advindo principalmente do rádio. Nessa
época se ouvia apenas as rádios do Rio de Janeiro e de São Paulo, por
essa razão existiam mais torcedores dos times cariocas e paulistas
(SILVA; SOUZA, 2016). Há uma relação direta entre o poder da
mídia com o crescimento do esporte. A junção dos setores esportivos
e midiáticos resultou no aumento do número de fãs do esporte
(MORAES, 2008).
O rádio foi a principal fonte de informações e entretenimento
até 1969, pois, não existia televisão no então povoado. Foi a partir
da iniciativa do senhor Otaviano Ferreira, popular Dão, de comprar
a primeira televisão da cidade. Essa não era só a única TV de
Capim Grosso, mas também a única de toda a região. Por conta da
popularidade do futebol na época, muitas pessoas vinham de outras
cidades e povoados para assistir os jogos das Copas do Mundo de
1970 e 1974.
Como a Copa de 70 sendo foi o primeiro grande evento
futebolístico transmitido via satélite e em cores para todo o mundo
(RIBAS, 2010), um grande número de pessoas estavam interessadas
em assistir. Assim a televisão do seu Dão precisou ser colocada em
um posto de gasolina na saída de Capim Grosso e assim as pessoas se
reuniam para assistir as partidas (SILVA; SOUZA, 2016).
Esse episódio da história no qual muitos jovens que só tinham o
futebol como esporte para se entreter e com muito esforço assistiram
o Tricampeonato Mundial do Brasil proveu uma injeção de ânimo
em relação a essa prática esportiva em muitos deles, o que foi
determinante para o percurso histórico que o futebol viria a percorrer
em Capim Grosso (SILVA; SOUZA, 2016).
90
História do Esporte
A conquista do Tricampeonato na Copa do Mundo de 1970 e a
massiva propaganda do governo relacionando a vitória ao modelo
governamental vigente, além de atenuar a revolta do povo através do
espetáculo proporcionado, possivelmente estimulou o entusiasmo
de jovens e adultos quanto a esse esporte não só em Capim Grosso,
mas em muitas outras cidades do Brasil, o que mostra que o foco
da atenção do poder público nacinal prioritariamente para o futebol
teve os resultados esperados para aqueles que se utilizaram dessa
ferramenta.
Em 1971 o governo federal criou o Campeonato Nacional (Hoje
Campeonato Brasileiro) através do Conselho Nacional de Desporto
(CND), que contava com vinte clubes e realizou cinco amistosos
nos anos de 1971, 1973 e 1974 somente contra times selecionados
(RIBEIRO; ALMEIDA, 2014).
Entre 1975 e 1978 foi implantada claramente a política de Panis
et Circenses (política de pão e circo), com o Campeonato Nacional
ao elevar progressivamente o número de clubes no certame, de 40
equipes repartidos em duas divisões em 1974, foi expandido para 90
times em 1979 (BUENO, 2008).
Isso ocorreu para sanar a vontade de políticos conectados ao
regime militar e que pretendiam fazer com que grandes times de
futebol jogassem em seus estados, assim como manipular o povo
através do entretenimento esportivo (SOUZA; SILVA, 2016).
No início da referida década foram construídos diversos estádios
capazes de receber mais de 70 mil pessoas. Somente entre os anos de
1972e1975foramconstruídostrintaestádiosemuitosoutrosdurante
o período ditatorial (HELAL; GORDON, 2002). Isso auxiliava na
manutenção da popularidade do governo, pois mostrava o ideal
de progresso e desenvolvimento do discurso político (RIBEIRO;
ALMEIDA, 2014).
Em Capim Grosso os primeiros campos da cidade foram de
terra batida, de modo que, inicialmente, os jogadores usavam um
campo na Praça Campos Sales, onde hoje está localizado o Ginásio
de Esportes Otto Alencar e que naquela época ficou conhecida como
“rua do campo”.
91
Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras
Pelo fato de Capim Grosso ainda não ser emancipado na década
de 1970, não existia campeonatos, apenas jogos amistosos, mas já
existiam times amadores de grande relevância regional no povoado
e que participavam de torneios em Jacobina, cidade a qual o distrito
pertencia, como era o caso do Botafogo que que chegou a ficar invicto
por 57 jogos!
Além de Botafogo, existiram outros grandes times na cidade de
Capim Grosso entre os quais podemos destacar: Monumento, União,
Palmeiras, Cascadura, Juventus, Atlântico, Óleo, Toca da traíra
(SILVA; SOUZA, 2016).
Existe uma relação de permuta entre a mídia e a sociedade, onde a
influência produzida pela mídia gera e é criado para/pelos interesses
existentes na sociedade, sendo assim uma relação via dupla. Mas isso
só ocorre se houver interesse prévio da população (PROCHNIK,
2010).
Segundo Moraes (2008) o esporte é o conteúdo mais atrativo,
rentável e eficiente para a maioria das redes de televisão aberta do
mundo. No Brasil percebemos a poderosa influência que a TV Globo
em apoio à ditadura nos anos 60 e 70 ajudou a difundir, junto com
suas afiliadas, o conteúdo esportivo, principalmente do Rio de Janeiro
e São Paulo para todas as regiões do país, o que explica em parte a
popularidade dos times de futebol desses estados nos dias atuais.
Possivelmente a criação do Campeonato Nacional nessa mesma
década tenha influenciado os atletas capim-grossenses a fundar o
seu melhor time até então. O Botafogo, mesmo nome de um clube
carioca, cujos criadores podem ter optado por escolher esse nome
com o intuito de atrair maior número de pessoas para os jogos.
Década de 1980, fim da Ditadura Militar e emancipação
política de Capim Grosso
Entre o fim da década de 1970 e início da de 1980 o futebol
era tão popular em Capim Grosso e existiam times que moviam
grande número de torcedores para suas partidas na cidade que já
92
História do Esporte
não era possível manter os jogos em espaços improvisados, sendo
imprescindível a construção de um estádio (SILVA; SOUZA, 2016).
Outra prova de que o futebol era dotado de grande importância
no distrito foi a fundação da Liga Desportiva de Capim Grosso
(LDCG), em 1980 por causa dos campeonatos realizados na cidade
região e que sempre tinham a presença de times de Capim Grosso
(SILVA; SOUZA, 2016).
Por causa disso o campo foi realocado para o contorno da BR
324, sentido Feira de Santana, próximo do monumento da cidade e
que leva o nome de Lomanto Junior. Entretanto, devido a crescente
popularidade do futebol, não era mais cabível realizar os jogos em
locais improvisados (SILVA; SOUZA, 2016).
Visto isso, entusiastas do futebol que eram envolvidos com a
política da cidade fizeram contato com o dono de um terreno que
ficava um pouco afastado do centro da cidade, o Senhor Ângelo
Francisco de Oliveira, que estipulou um preço para a metade do
terreno dizendo que a outra metade ele doaria (SILVA; SOUZA,
2016).
Os jogadores se reuniram e foram encontrar o então prefeito de
Jacobina Gilberto Dias Miranda, que concordou em colaborar para a
aquisição do terreno. Assim foi feito e no início da década de 1980 foi
inaugurado o estádio Ângelo Francisco de Oliveira, popularmente
conhecido como “Franciscão” (SILVA; SOUZA, 2016).
Esse estádio, que até hoje é o principal da cidade, foi inaugurado
ainda sem muros e a entrada daqueles que iam assistir aos jogos era
controlada por uma corda, que todos respeitavam e pagavam a taxa
de entrada. Com essa taxa, doações, campanhas realizadas pelos
jogadores, amantes do futebol e mão de obra dos mesmos foi que se
conseguiu erguer os muros que permanecem de pé até os dias atuais
(SILVA; SOUZA, 2016).
Nofimdadécadade1970opaíspassavaporumacrisenofutebole
essa se tornava evidente pela mesclagem de fatores como: diminuição
do número de espectadores nos jogos, violência nos estádios, saída
dos atletas para outros países, principalmente europeus, e aumento
das dívidas dos clubes (HELAL; GORDON, 2002).
93
Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras
Em 1979, o desmembramento da Confederação Brasileira de
Desporto (CBD) gerou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF),
essa mudança ocorreu por conta das sobras dos recursos da loteria
esportiva, desta forma passou a ser defendida a criação de federações
especializadas (BUENO, 2012).
Esse desmembramento, somado a crise financeira que existia no
país, como consequência do fim do “milagre econômico” em meados
dos anos 70, provocou a mercantilização do futebol brasileiro. Deste
modo, os atletas passaram a ser considerados como mercadorias de
câmbio e os uniformes passariam a ser lócus para propagandas das
empresas patrocinadoras (HAWILLA, 2008).
Em Capim Grosso os entusiastas também tentavam superar a
crise financeira. Sem dinheiro para comprar os equipamentos e
acessórios necessários para a manutenção do time, além de custear
as viagens para participar dos torneios na região, os jogadores
realizavam bingos, jogos beneficentes e até mesmo pediam dinheiro
para os comerciantes para sanar com essas necessidades.
Curiosamente, diante do baixo poder aquisitivo existente entre os
praticantesdofutebolemCapimGrossoeracomumosrepresentantes
e donos dos times buscarem patrocinadores que teriam sua marca
ocupando lugar de destaque nos uniformes que os jogadores usavam
no campo. Aqueles benfeitores que colaboravam com maiores
quantias em dinheiro tinham o nome de suas lojas estampados num
pano e costurados na camisa do time, como forma de promover sua
marca (SILVA; SOUZA, 2016). Respeitando as devidas proporções,
essa é a mesma alternativa para arrecadar fundos utilizadas pelos
grandes times nacionais, o que é, de certo modo, feito até os dias
atuais. Com isso, notamos uma clara similaridade entre o contexto
nacional e municipal de Capim Grosso.
Nodia15dejaneirode1985,apósaeleiçãodopresidenteTancredo
Neves, primeiro presidente civil desde João Goulart em 1964, a
Ditadura Militar é encerrada de forma oficial no Brasil. No período
no qual ela foi vigente muitas mudanças ocorreram no país em todos
os setores, se tratando do âmbito esportivo e mais especificamente
94
História do Esporte
do futebol, essas modificações impactaram diretamente na economia
do país assim como no comportamento de muitos entusiastas desse
esporte em todo o território nacional.
Capim Grosso, que teve sua emancipação política no dia 09 de
maio de 1985 e seus habitantes posteriormente a essa data tinham
como foco de prática esportiva o futebol, certamente foram direta
ou indiretamente influenciados pelos programas governamentais
direcionados a esse esporte.
Mesmo com o fim do regime e a possível minimização das
propagandas futebolísticas, esse esporte ainda se manteve como o
principal alvo de investimentos em Capim Grosso até que entre o
fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 outros esportes como o
vôlei e o basquete passaram a ganhar um espaço de destaque entre
a população. Sem dúvidas ainda hoje existem indícios da influência
da época destacada nesse estudo sob as políticas públicas de muitas
cidades do Brasil, inclusive de Capim Grosso... mas essa é outra
história.
Considerações finais
A história do esporte em Capim Grosso é dotada de grande
riqueza,tantoemseusprimórdiosnoscamposdeterraeimprovisados
por aqueles movidos pela paixão pelo futebol, quanto nos dias que
se sucederam após a emancipação política desse lugar que, assim
como possivelmente outros fizeram, seguia a euforia vivida no
cenário nacional provocada pelo futebol e pelo apelo midiático/
governamental em expor constantemente esse esporte nas décadas
destacadas.
Diante do exposto pudemos observar uma evidente relação
entre as políticas governamentais vigentes no período ditatorial as
ações populares dirigidas ao futebol no então povoado de Capim
Grosso na mesma época. Tal relação evidencia também o poder
das mídias sobre o comportamento da população, que, também
95
Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras
de acordo com os dados expostos, segue aquilo que conhecem e
conhece prioritariamente aquilo que as mídias, sejam elas de rádio
ou televisivas mostram, nesse caso o futebol.
As referidas ferramentas midiáticas fizeram e fazem uso do
espetáculo esportivo com intenções que muitas vezes vão além da
compreensão de grande parcela da população, que como no caso das
décadas em questão, o governo utilizou-se das mídias existentes para
mostrar o país como uma potência futebolística mundial, visto que
esse esporte movimentava grandes multidões que se comoviam com
as derrotas, vibravam e comemoravam as conquistas tidas pelos seus
times e principalmente pela Seleção Brasileira de Futebol.
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SALVADOR, M. A. S.; SOARES, A. J. G. A memória da Copa de 70:
esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade
nacional. Campinas: Autores Associados, 2009.
SILVA, O. O. N.; SOUZA, G. A. Capim Grosso: uma história contada
através do esporte. Curitiba: CRV, 2016.
SOUZA, G. A.; SILVA, O. O. N. O poder público brasileiro e sua
relação com o futebol: história e conflitos. Rev. ODEP., v.2, n.3, p.83-
97, 2016.
97
CAPÍTULO VI
A CAIXA DE GUARDADOS: MEMÓRIAS DO FUTEBOL DE
FÁBRICA
Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga
Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque
Introdução
Próximo das 17 horas, tem-se o acesso “liberado”, pela catraca da
ADC Embraer. Lá, do outro lado da Avenida dos Astronautas, fica
a fábrica, ou melhor, uma parte dela, já que atualmente ela possui
outras plantas. No aguardo do sinal da fábrica, anunciando o fim
do trabalho, da lanchonete da ADC, ouve-se o som do atrito das
chuteiras sobre o soalho do ginásio, que se confunde com aqueles
vindos de um aparelho de TV da lanchonete, em meio à transmissão
do jogo entre Arsenal e Everton pela ESPN Brasil. Além da partida
de futsal no ginásio, simultaneamente a bola rola em um dos campos
de futebol society, No local, a presença feminina é marcada por mãe
e filha, que, em trajes de fitness, aguardam por alguma aula. Quase
todos os frequentadores dessa tarde, no “Ninho do Tucano” (como
é chamada a sede da ADC Embraer), vestem cinza e possuem uma
pequena bandeira do Brasil bordada no meio do peito; no bolso de
suas camisas polo, trazem bordado o setor ao qual pertencem.
Ao soar o sinal do fim do expediente do primeiro turno, um
senhor de cabelos grisalhos, roupa social, apresenta-se sorridente: -
Prazer, sou Alfredo Gonçalves!
Começa um tour pela ADC e, a cada porta que se abre, uma
explicação, suspiros, lembranças e, com orgulho, senhor Alfredo me
apresenta a sala de troféus da ADC Embraer (são muitos e muitos
troféus, de variados tamanhos e há alguns quadros com recortes
de jornais na “parede da memória”). Na sequência, a visita segue
para o depósito, onde Juninho, um funcionário antigo da ADC, é
o responsável pelo local. É ele quem fornece os jogos de camisa e
98
História do Esporte
os demais materiais esportivos para os funcionários, enche as bolas
e encarrega-se também de fazer gelo, para ajudar os atletas que se
machucam durante os jogos que acontecem no “ninho do Tucano”.
Ao chegar à sala da administração da ADC Embraer, a fala
de Alfredo Gonçalves “quebra” o clima de otimismo, até então
predominante em relação às atividades esportivas promovidas pela
empresa, ao comentar que tinha recolhido, do material descartado
pela empresa como “lixo”, alguns objetos, que, com muito cuidado,
guardava na sua “caixa de memórias”:
	
Então, ontem à noite eu não tinha preparado nada. Minha esposa
quer colocar fogo em tudo! Eu falo: “um dia nós vamos resolver
isso”. Eu fico triste que colaboradores (da ADC Embraer) pegaram
caixas e caixas e colocaram fogo de alguns presidentes que passaram.
Então tenho algumas lacunas. Mas eu sou sentimentalista, eu
guardo bem, então eu queria mostrar uma caixa; lá em casa umas
fotos pessoais, mas aí isto aqui eu peguei de um pacotão, isto aqui
estava na minha gaveta. Mas, se a gente fecha o olho tá tudo no lixo!.
(Alfredo Gonçalves – funcionário da Embraer 03/02/2011)
O técnico e administrador de empresas Alfredo Gonçalves, que
é também, além de operário da empresa, o coordenador de esportes
da ADC Embraer, exibiu um material que não está exposto na
sala da “memória oficial”, em que figuram com destaque os troféus
conquistadosnoscampeonatosdisputadospelosfuncionários,ounos
corredores, onde são expostos em molduras, fac-símiles de jornais.
Nota-se um certo ressentimento nas palavras do Sr. Alfredo, ao se
referir a outros objetos que foram descartados na operação limpeza
de arquivos da empresa e que assim foram irremediavelmente
perdidos, apagados da memória da Embraer. Trata-se aparentemente
de um detalhe, mas que sinaliza a importância de outros registros,
sobretudo objetos importantes para a memória dos operários-
jogadores, os verdadeiros responsáveis pelas conquistas dos troféus
emcampeonatosdefutebol. Nessepontolembramo-nosdaspalavras
de Dulce Critelli (2015, p.46), sobre os arquivos de nossa memória
que “não conservam apenas pequenos relatos, mas historietas.
99
A caixa de guardados
São relatos de episódios vividos que formam histórias maiores,
mais elaboradas e carregadas de significados. [...] Essas historietas
compõem um cenário para o nosso viver e vão se acumulando ao
longo de nossas existências. [...] Falam de coisas que nos marcaram,
de acontecimentos nos quais foram se construindo nossas maneiras
de viver e nosso destino.
Figura 1: Sala de Troféus ADCE
A sala de troféus da ADC Embraer, com suas vitrines, não
impressiona mais que a constatação feita pelo senhor Alfredo sobre
o antes e o depois da fábrica, em várias situações, tanto na linha de
produção quanto na gestão esportiva. A interpretação de Alfredo
sobre como a equipe gestora da fábrica vê a ADC e o esporte operário,
tendo em mãos uma revista denominada Bandeirante e um Jornal da
ADC, é um desabafo:
O jornal de antigamente, o jornalzinho da Embraer, noventa por
cento era coisa da ADC, então... Depois de quarenta anos, agora
tem o avião a álcool. Ela (empresa) colocou (na capa) o primeiro
Bandeirante; e, o primeiro Bandeirante só falava de futebol! Pra
você ver, não tem história, não tem mais nada no jornalzinho! O
primeiro jornal fala só de futebol, mas, aqui, somente a capa fala do
Bandeirantes. Então olha aqui, a empresa hoje falando do primeiro
100
História do Esporte
Bandeirantes... Na época, Bandeirante era só de esporte, não tinha
o que falar da empresa. Daí foi indo e as pessoas começaram a falar
somente da ADC. (ALFREDO GONÇALVES, 03/02/2011).
O “jornalzinho” interno transformou-se em revista bilíngue,
que circula em todo o mundo. Para entender melhor a questão,
O Bandeirante é o nome do tradicional órgão informativo dos
empregados da Embraer. Trata-se de uma publicação interna, que
teve sua primeira edição em julho de 1970. Na empresa recém-
inaugurada, com restrito número de funcionários1
, o informativo, de
responsabilidade do Serviço Social da Divisão de Pessoal, era voltado
aos seus funcionários.
Figura 2: 1.ª Edição de O Bandeirante
Durante os anos 70, em O Bandeirante, encontram-se matérias
sobre a história da empresa, sobre os eventos socioculturais, como o
1
De acordo com informações retiradas do portal da ADC Embraer, no ano de 1970 a empresa possuía
cerca de 250 funcionários. http://www.adcembraer.com.br/conteudo/index.php?pg=1 acesso realizado
em 05/10/2011.
101
A caixa de guardados
Salão de Artes, e sobre as obras da construção do Clube de Campo.
Cobertura sobre as festas e os torneios esportivos, agenda de cursos
e listas de funcionários homenageados também eram temas que
predominavam nas publicações.
Já nos anos 80, constata-se que uma maior diversificação das
modalidades desportivas passa a fazer parte do jornal e o registro
de cursos e de organização sistemática do espaço fabril ganham
destaque cada vez maior. As temáticas sobre o Controle de Produção
são recorrentes no jornal, bem como a premiação a funcionários que
sugerissem ideias para a melhor organização da fábrica. Ainda assim,
havia espaços destinados à publicação dos casamentos realizados
durante o mês e para um ou outro funcionário que se destacasse
pelos seus talentos artísticos ou pelo fato de colecionar determinados
objetos.
A fábrica, juntamente com o GSE- Grêmio Sócio-Recreativo,
fazia uso do Jornal O Bandeirante para reforçar a necessidade do uso
dos equipamentos de segurança, para esclarecer sobre as metas da
fábrica e para dividir a responsabilidade de economia e otimização,
tanto de materiais quanto de tempo, no processo produtivo das
aeronaves. Nesse contexto, premiar funcionários que dessem ideias
que otimizassem a organização do seu setor na fábrica e destacar
atitudes consideradas exemplares foi uma prática recorrente em
O Bandeirante. Como nos casos dos funcionários José Roberto e
Nildevar, o “Macumba”.
José, “o operário Embraer”, demonstrou domínio sobre legislação
trabalhista, atualidades, segurança e higiene no trabalho e sobre a
organização e a história da fábrica. Mesmo aqueles funcionários
que não participavam do concurso, eram mergulhados na onda do
civismo característico da época, reverenciando os mitos nacionais
e equiparando-se aos feitos deles em seu cotidiano de trabalho:
“Santos Dumont deu asas ao mundo e a Embraer, no presente, no
trabalho de cada um dos seus funcionários, dá asas ao Brasil”. (O
BANDEIRANTE, Out. 1973).
Nildevar Albiru Thomaz, o “Macumba”, também recebeu
destaque de uma página de O Bandeirante, pela ideia de organização
102
História do Esporte
de um painel de ferramentas a fim de otimizar o empréstimo das
mesmas. Sua ideia foi acatada pelo supervisor e pelo diretor, pois
se tratava de manter o ambiente de trabalho mais funcional e com
controle sobre as ferramentas, pois tal painel facilitaria a visualização
e ainda indicaria qual funcionário tinha a responsabilidade sobre a
retirada delas.
Os anos 90 são marcados por crises, que forçam a empresa a
se representar como uma “Nova Embraer2
”. A Qualidade total é a
principal meta e a empresa necessita competir em todos os sentidos.
O processo de privatização da Empresa foi vivenciado de maneira
traumática, não só pelos funcionários, como também por seus
familiares e pelos comerciantes da cidade de São José dos Campos
e região3
.
Em suma, a empresa tratou de se organizar e garantir seu lucro. O
funcionário, nesse processo, passou a se preocupar cada vez mais com
a manutenção do seu posto de trabalho, incorporando mudanças ao
seu cotidiano e vivendo pressões cada vez mais nítidas. O momento
é outro e as transformações pelas quais passou a fábrica refletem-se
em O Bandeirante, assim como na ADCE.
Desdeofuncionáriomaissimplesaoconsideradomaisqualificado,
mudanças foram sentidas. No caso de Alfredo, uma analogia revela
seu olhar sobre como a empresa lidou com o passado, que, para ele,
não era só institucional e corporativo, como também dizia respeito a
ele e a outros funcionários, que fabricavam aviões, mas que também
“voaram” com o nome da Embraer em pistas, quadras e gramados:
Porque profissionalmente é aparato e fácil. Eu trabalho em um setor
que cuida da Certificação das Aeronaves, um órgão respeitado do
mundo inteiro. Nós tínhamos pilhas e pilhas de documentações que
a gente não podia jogar fora. Nós contratamos uma empresa, pois nós
tínhamos duas salas cheias de caixas de documentos. Digitalizamos
2
Capa da Edição de O Bandeirante de 07/07/1995.
3
A esse respeito podem-se consultar alguns trabalhos que se dedicaram exclusivamente a analisar o
caso da privatização da Embraer - que não constitui foco desta pesquisa-: BERNARDES, Roberto. O
caso Embraer: privatização e transformação da gestão empresarial – dos imperativos tecnológicos à
focalização no mercado. In: Cadernos de Gestão e Tecnologia. CYTED: PGT USP, 2000. ZULIETTI,
Luis Fernando. Nas Asas da Embraer: urbanização, crise e mudanças em São José dos Campos (1994-
2004). TD Ciências Sociais Aplicadas PUC-SP 2006.
103
A caixa de guardados
tudo, estratégia da empresa. Mas isso aqui é ADC, qual o interesse
com a ADC? [sobre a sala dos troféus] Não sabe quanta gente achou
isso, jogado num sótão, quebrado tudo cheio de poeira, pusemos
nossos funcionários pra juntar, colar, passar caol, fazer aquilo lá é
montar como cerâmica. (Alfredo Gonçalves 03/02/2011).
Na construção da narrativa de Alfredo, nota-se um grande
empenho na relação do relator com a sua história. São os objetos que,
dediversasformas,garantem“umacontinuidadetemporalnointerior
dos inumeráveis acontecimentos e experiências de vida. (STARACE,
2015, p.67). Os objetos têm a função de dar “continuidade à vida
humana: apesar das mudanças, permitem recuperar a estabilidade
do self no tempo, constituem verdadeiros núcleos identitários”.
(Idem, ibidem). No caso dos objetos, especificamente, os jornais
e as fotografias conseguem falar da história do depoente, das
adversidades vencidas, das mudanças sofridas, do desapontamento,
das esperanças, dos sonhos não vividos. Profunda é a sensibilidade
com que o depoente rememora sua história, ao retirar os objetos
da “caixa de guardados”, pois falam de sua própria vida, compondo
quadros biográficos plenos de significado (Idem, p. 62).
A caixa de guardados protege uma memória importante e
preciosa e, mesmo que nos objetos seja relembrada a sociabilidade
antiga entre os companheiros de fábrica, é uma memória única, tem
individualidade,épersonalizada. Trata-sedasubjetividadequeexpõe
enredos únicos. (PORTELLI, 1997, p. 32). O trabalho de Alfredo,
na Embraer, no setor de certificação de aeronave é “respeitado no
mundo inteiro”, digno de preservação no formato digital. Mas, ao
lado do seu trabalho na fabricação de aviões, está também sua efetiva
participação no Departamento de Esportes, desde a época do Grêmio
Sócio-esportivo, que hoje é a ADCE, que, nas palavras dele, “é como
montar cerâmica”.4
4
A esse respeito, nota-se que “A história das sensibilidades diz respeito a zonas ainda pouco estudadas,
que se estendem à margem da história das ideias, das representações, dos corpos ou das imagens.
Ela toca o que se situa além da elaboração intelectual, mas nunca se separa dela. Ela coincide com
os territórios do imaginário, mas tampouco se confunde com ele. (...) A história das sensibilidades
interessa-se pelo individuo, por suas reações intimas, por suas contradições abertas ou encobertas. Ela
escava destinos, exuma afetos, mas sempre para reinscrevê- los em conjuntos significativos mais vastos,
grupos[...]. (GRUZINSKI, 2007, p.7) .
104
História do Esporte
O trabalho da rememoração realizado pelos depoentes, ao se
abrir a “caixa de guardados” orienta-se pelo esforço de “reconfigurar
o passado [...] pela busca de preservar da destruição aquilo que de
singular e significativo [que] merece ser resguardado(...). Se o tempo
passado escapa-nos como pura passagem e multiplicidade de sentido,
a memória se lança na tarefa de criar permanência e identidade.”
(OLIVEIRA. L.I. EDUC, 2008, p.46).
As tensões e os conflitos apontados pelo senhor Alfredo não
podem ser generalizados, porém, não devem ser desprezados5
.
Não foram entrevistados atletas que jogaram pela ADC Embraer,
porque tanto a fala, como os documentos disponibilizados pelo
Sr. Alfredo, mostrou mais que a política de esportes aplicada pela
Embraer. Revelou-se o sentido que Alfredo dá à sua participação
nos bastidores dos esportes de fábrica e, em especial, à escolinha de
futebol que funciona há 25 anos ininterruptamente, conferindo à sua
participação uma vitória.
Sabe-se que Alfredo realizou uma pré-seleção no material
que apresentou junto da sua oralidade, os jornais e as fotografias
levados ao encontro da pesquisadora, “Fica à sua disposição, é um
pedacinho que eu peguei lá de casa. Aqui, eu tentei colocar por uma
ordem cronológica, dos mais antigos pros mais novos; isso aqui
está bagunçado. Eu trouxe dois, dos de hoje”. (Alfredo Gonçalves
03/02/2011). Esse rico material6
possui limitações; já a sua narrativa,
contempla questões e relações. O resultado final dos diálogos é,
5
Alessandro Portelli em: “Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na
História Oral”, esclarece sobre o emprego do termo memória coletiva e sugere que, ao se trabalhar
com a essencialidade do indivíduo, chegamos à memória compartilhada: “prefiro evitar o termo
memória coletiva; embora estejamos trabalhando com o intuito de registrar lembranças que possam
ser coletivamente compartilhadas, devemos ser cautelosos ao situá-la fora do indivíduo” (PORTELLI,
1997, p.16)
6
Além de O Bandeirante, teve-se contato também com algumas edições de outros periódicos, tais
como: O Jornal do Esporte (Edição de Julho de 1998, Ano I n.2 e de 12 de Dezembro de 1995) e O
Jornal Notícias Indústrias & Clubes (Semana de 21 a 27 de Agosto de 1995, Ano IV n.91); sendo
que o único exemplar deste último veículo, apresentado por Alfredo, apresentou na capa o caso da
demissão do Presidente do Clube da Embraer em 1995; dado curioso, após a reestruturação da empresa,
pós-privatização e corte de mais de dois mil funcionários; o Presidente do Clube, que deveria gozar
de estabilidade de emprego, assim como membros do Sindicato e da CIPA (Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes) foi dispensado após dezoito anos de casa.
105
A caixa de guardados
portanto, produto de ambos. Segundo Portelli, ouvir é uma arte e
as perguntas feitas por nossas “fontes”: “contribuem para definir
a base da diferença e da possibilidade de comparação que confere
significado à entrevista” (PORTELLI, 1997, p.22)7
.
Figura 3: Recorte de Jornal (1960)
Em visita realizada à sede do Johnson Clube de SJC, em janeiro
de 2011, constatou-se a inexistência de registros fotográficos e de
jornais semanais, que circularam até bem pouco tempo na fábrica. O
responsável pelo setor de esportes da fábrica, professor de educação
física Denis, justifica a falta de espaço físico e de pessoal para a
manutenção de um acervo na sede do clube. Problemas como fungo
e chuva explicam a inexistência de documentos, restando, segundo o
depoente, apenas algumas fotos de troféus.
O acesso à cópia do Estatuto do Johnson Clube foi negado, sob a
alegação de que se trata de documento confidencial de funcionários
7
Portanto, trata-se de uma opção metodológica de pesquisa que questiona o lugar social do historiador
em busca de outras histórias. Durante os anos em que desenvolveu-se a pesquisa no Programa de
Estudos Pós Graduados em História na PUC SP, o trabalho alinhou-se ao Núcleo de Estudos Culturais.
Muitas das discussões realizadas pelo núcleo encontram-se reunidas em duas coletâneas de textos que
apontam para a necessidade de se pluralizar as memórias e de abrir mão de uma história, pensando no
passado a partir do momento presente. Sendo assim, optou-se por desenvolver uma pesquisa pautada
em movimentos sociais, em especial o operário, de modo a lidar com as nuances diferentes existentes
dentro dele, valorizando os sujeitos históricos como substrato das memórias.
106
História do Esporte
da empresa. Contudo, em contatos anteriores com o futebol amador,
através de campeonatos varzeanos e amadores da cidade, conheceu-
se um ex-jogador do SJEC, cujo apelido é Zum e atualmente é o
treinador do Corinthians Futebol Clube do Jardim Paulista: Zum, é
também ex-funcionário da Johnson & Johnson. Era essa, até então, a
única referência que se possuía sobre o futebol de fábrica da Johnson.
Quando se perguntou, no Johnson Clube, sobre esse ex-funcionário,
houve imediata negação quanto à sua autoridade como referência e
representantedofutebolnafábrica,alegando-sequeeraumindivíduo
de “mau comportamento”, que se envolvia em brigas e discórdia, que
acarretaram sua demissão. O silêncio predominou por minutos.
A maneira pela qual os responsáveis pelo setor resolveram a
questão sobre a falta de registros sobre o futebol de fábrica da J&J
foi fornecendo uma lista de contatos de funcionários da fábrica que
jogam futebol na categoria Master8
. Esses jogadores possuem um
histórico com o futebol da fábrica que vem de longa data, alguns
atuaram em times principais e veteranos, e, atualmente, pela idade
em que se encontram, têm disputado campeonatos promovidos pela
SEL e pela ACAF – Associação dos Clubes Amadores de Futebol de
SJC. No topo da lista, o técnico Antônio Bosco, mecânico da fábrica,
atualmente afastado por problemas de saúde. Pastel, funcionário
do setor de produtos profissionais, 38 anos e Beiçola foram outros
nomes mencionados como efetivos colaboradores do futebol do
Johnson Clube.
Além da escassez de documentos constatada no Johnson Clube,
obteve-se a informação de que, naquele momento, não haviam times
de futebol de categoria principal representando a fábrica.
Na visita ao clube, a quadra de futebol society - localizada atrás
do restaurante - estava sendo ocupada por vários jovens, inclusive
com fila de espera. Diante de tal inquietação, recorreu-se ao ambiente
virtual, em busca de referências sobre esses operários e praticantes
de futebol, que fazem uso do espaço físico do clube da fábrica, sem
vincular sua prática esportiva ao nome dela.
8
A Categoria Master para os campeonatos que foram acompanhados durante a pesquisa é composta
por jogadores acima de 35 anos.
107
A caixa de guardados
Não existe um futebol de fábrica, e sim vários futebóis. Tanto
em relação ao espaço em que se pratica – campo, quadra - quanto à
forma como se organizam os times e suas pretensões.
Há também o futebol do fim de expediente, visivelmente
despojado de pretensões classificatórias e que apresenta outros
sentidos para aqueles que querem bater bola.
Ao navegar pelo youtube9
encontram-se alguns vídeos postados
por funcionários da Johnson. São times de jovens, na faixa etária dos
20/30 anos. Um futebol praticado na quadra do Clube da Fábrica,
que, quando gravado e postado na rede, evidencia outra forma de
diversão, em que trabalho e futebol estão presentes.
Como o foco principal da pesquisa foi o momento em que ocorreu
os Jogos das Indústrias, Bosco e Pastel tiveram suas narrativas
priorizadas para o entendimento da participação deles e de outros
trabalhadores da Johnson em campeonatos de futebol realizados nas
últimas décadas.
Vou pegar minha caixinha de medalhas. Esse troféu eu ganhei da
prefeitura como Dirigente Veterano. Ganhei esse em 2007, como
treinador, nós fomos vice-campeões lá no Martins Pereira (estádio),
perdemos nos pênaltis para o Aliança, aí eles premiaram os dois
treinadores. A medalha de prata... Essa aqui é a caixinha de medalha
que eu tenho, tem medalhas super antigas. Eu tenho, tá vendo essa é
da Primeira Olimpíada em 83. Aqui tem regulamentos, tabelas dos
jogos, resultados, anotações que eu faço... (Antônio Bosco)
Alémdasconversasepartidasdefutebolqueforamacompanhadas
durante a pesquisa, caixas de fotografias, jornais de circulação interna
e externa ao ambiente fabril enriqueceram a abordagem sobre
a prática do futebol por esses operários e trouxeram à tona várias
memórias e ressentimentos, cuja compreensão foi imprescindível
para o entendimento dos usos e contrausos do esporte no ambiente
de trabalho. Nesses exercícios de memória, percebe-se que “as
narrativas interpõem uma pausa na ordem habitual do mundo
cotidiano e a faz hesitar, podendo assim reconfigurá-la: promove a
9
Trata-se de um site que existe desde o ano de 2005, nele permite-se com que seus usuários
compartilhem vídeos em formato digital.
108
História do Esporte
suspensão da linearidade cronológica e instaura um tempo outro,
que reúne brevidade e intensidade. É quando se abre esse intervalo
disjuntivo e concentrado de tempos outros que tem lugar o trabalho
de rememoração/refiguração do narrador, trabalho capaz de
arrancar o passado de um curso contínuo e indiferente e redimi-lo.”
(OLIVEIRA, L.I., idem, p. 83).
Operário-Jogador e Jogador-Operário
À frente do Departamento de Esportes da ADC General Motors
de São José dos Campos, Tércio Borges, ex-jogador de futebol do
Catanduvense, chegou à cidade , no início dos anos 80, momento em
que os Jogos das Indústrias estavam em alta. Sua experiência como
funcionário nunca foi vinculada à produção da fábrica, mas sim
exclusivamente à ADC.
Sua narrativa é permeada por testemunhos de mudanças, no que
diz respeito à prática de esporte dos funcionários da fábrica, de modo
a vincular essas mudanças às mudanças de ritmo da fábrica e também
às experiências que lhe são próprias, como ex-jogador profissional.
Toda a abordagem que se realizou durante a pesquisa sobre a GM
pautou-se em testemunhos de ex-jogadores profissionais, a exemplo
de Tércio Borges, quando adentraram a faixa dos trinta anos de idade,
diante de limitações físicas decorrentes da prática do futebol, tiveram
de encontrar soluções para continuarem no mercado de trabalho
e, em seus currículos, o futebol era o elemento principal, que fora
usado como uma espécie de passaporte, garantindo a entrada em
um novo ambiente de trabalho, até então diferente daquele ao qual
pertenciam.
Tanto a entrevista de Mococa quanto a de Tércio ilustram
bem o trânsito bastante comum do esporte profissional para o
amador classista, nas mais diversas modalidades, embalado pela
promoção de eventos esportivos de alto nível técnico, que ocorreram
principalmente nas décadas de 80 e 90 na cidade de São José dos
Campos.
109
A caixa de guardados
A contratação de ex-profissionais era uma prática que se tornou
tão enraizada no cotidiano dos jogadores que, ainda nos dias de hoje,
há tentativas de ingresso nas fábricas, por esse expediente. Porém,
diante das novas condições de trabalho, perdeu-se o interesse nesse
tipo de contratação, por parte da fábrica, como expôs senhor Alfredo
Gonçalves, da ADC Embraer:
Hoje não tem ninguém sem curso técnico, não tem supervisor sem
curso superior. As coisas mudaram muito. O Celso é um que veio
do profissional e entrou aqui como estagiário, começou a jogar aqui
dentro, ele começou na categoria menores do São José, passou pelo
Corinthians. Existem alguns jogadores que são raros. A gente tem
até hoje pessoas que querem tentar entrar na fábrica pelo esporte,
então a Embraer enquanto muitas empresas colocavam apenas
o futebol, a Embraer investia em vários esportes, tênis de mesa,
atletismo, basquete, se contratava ex-profissionais. Nós tivemos
atletas que vieram atrás de um time com condições técnicas, vieram
para produção, precisava mesmo contratar, então o atleta era mão-
de-obra. Tem um atleta em São José que se profissionalizou: o Alex
Cortez, hoje eu recebi um currículo dele quer voltar a jogar bola,
quer trabalhar na Embraer, ajudar a Embraer. Mas, sinto dificuldade,
pois hoje você tem que ter um curso técnico. Passou por todos os
testes, mas, não tem ninguém que não tem curso superior. Mas,
você acha que um atleta tem curso superior? (Alfredo Gonçalves
03/02/2011, grifos nossos)
O questionamento de Alfredo vai ao encontro do raciocínio
do ex-jogador profissional e depois operário da GM, Edson Mug.
Para ele, a decisão de profissionalizar-se ou não, envolve inúmeras
escolhas, que tornam inviável a conciliação dos estudos com os
treinos, concentrações e viagens de trabalho:
Falam que jogador de futebol tem ter estudos, uma formação
acadêmica. Eu falo, tem que ser sincero pra você, se ele fizer isso
tudo, como ele vai concentrar? Viajar? Treinar? Dão o Sócrates
como exemplo, mas, o Sócrates estudou por que o Botafogo treinava
à noite, ele fazia residência, tudo.... Não treinava direto. Como vão
fazer isso hoje, com um Ronaldinho? Você pega Adriano, ele não
tem estudo acadêmico. Vão aprender na vida! Agora todo mundo
quer falar de estudar, mas não é assim. Sou contra! Se não, vai chegar
110
História do Esporte
um tempo que o cara vai estudar, ou ser profissional. Em time grande
você joga direto! Só se tiver um consenso da escola, mas isso não
existe! (Edson Mug)
De fato, ter curso superior, ter curso técnico, são necessidades que
foram impostas pelas fábricas, nos últimos tempos, e que alteraram
a rotina do trabalhador, de modo que ele ocupe seu tempo fora da
empresa com atribuições que tendam a tornar o processo produtivo
da fábrica cada vez mais otimizado e preciso. Esse é o atual jogo da
fábrica e se reflete até mesmo no escasso ou até raro uso do espaço
destinado ao esporte e lazer na ADC, como observa Tércio Borges da
ADC GM:
Hoje o trabalhador nosso sai daqui, da linha da fábrica, faz ginástica,
ou dá uma corrida aqui na pista, toma uma cerveja, sai voando, vai
buscar a esposa não sei onde, acabou a do lar. Já sai dali, vai pra
faculdade, porque ele quer crescer na empresa, a vida mudou e o
perfil do associado também mudou. Naquela época, era mais
sossegado, hoje, diminuiu a frequência de associado na nossa
fábrica. Aqui é assim, quando você entra, você já é associado, com o
passar do tempo você vai analisar se é viável ou não continuar sendo
associado. (Tércio Borges)
Em relação à presença de ex-jogadores profissionais na linha de
produção das empresas de SJC, percebeu-se que foi expressiva e, por
esse motivo, incorporada como um elemento importante na pesquisa
sobre a prática futebolística e a memória operária.
Todos os ex-jogadores que concederam entrevistas abordaram
situações delicadas e tensas do ambiente de trabalho, em algumas
vezes se tratando de conflitos bem mais pungentes que os do
operário-jogador. Edson Mug, José Luiz Pantera e Walter Passarinho,
todos com trajetórias semelhantes: nascidos na capital paulista,
profissionalizaram-se e atuaram pelo SJEC e por outros clubes, até o
momento em que se viram forçados a trabalhar em fábricas joseenses
para garantirem emprego.
O tipo de conflito e a forma de luta de ambas as categorias
(operário- jogador e jogador-operário) serviram para deslocar a
111
A caixa de guardados
prática futebolística de uma posição estanque. Não se trata apenas
de lazer, mas, sobretudo, de outra forma de trabalho fabril e, por
isso mesmo, uma possibilidade de leituras plurais sobre o mundo
desses trabalhadores em experiências coletivas, e principalmente nas
individuais.
Considerações Finais
Lembrar e esquecer. Uma cidade industrial, portanto operária,
que não se reconhece operária. Foi essa a primeira afirmação feita
na abertura do capítulo, que se propõe a discutir o jogo no campo da
memória, que terminou com a “goleada da cidade industrial” sobre
a sanatorial.
Quando se menciona a memória esportiva operária, pretende-se
explorarumageografiaatéentãoinexplorada“dinâmicaefragmentária
do espaço social” (HAESBAERT, 2006, p. 14). A principal fonte eleita
no processo de pesquisa para entender o cotidiano operário foram
as narrativas dos funcionários das fábricas, que, de algum modo,
se relacionaram com os esportes, em especial com o futebol. Mas
também se percebeu a necessidade de se debruçar sobre a questão da
memória esportiva operária via-fábrica e/ou associações desportivas
classistas.
De início, interpretaram-se as visitas às ADC´s como missões mal
sucedidas. Depois, percebeu-se que cada uma, a seu modo, revelou o
lugar que hoje ocupa o departamento de esportes na fábrica e de que
modo ligam o presente ao passado, fornecendo pistas importantes de
pesquisa, que serviram de base para as entrevistas, que traduziram
muito da experiência dos trabalhadores das fábricas de SJC, que
tinham e têm em comum a prática do futebol.
Tal situação, evidenciando o esvaziamento dos arquivos das
empresas ou a ausência de um propósito de constituir um arquivo
sobre a memória desportiva da empresa e, particularmente, o
registro referente à atuação dos operários nos campeonatos, remete
112
História do Esporte
a Walter Benjamin em seu texto “Experiência e pobreza, de 1933,
sobre o desaparecimento dos rastros e sua relação com a destruição
da experiência e o declínio da narração. Nesse sentido, o presente
trabalho com operários-jogadores das fábricas de São José dos
Campos teve o sentido de recuperar os rastros inscritos nas falas
e nos objetos guardados na” caixa de memórias” dos narradores.
Percebe-se, especialmente no caso da Embraer, que os depoentes
aproveitaram a oportunidade dos depoimentos para expressar com
sensibilidade os conteúdos da memória individual que conseguem ler
nos restos, guardados e recolhidos do lixo da fábrica. São conteúdos
da memória de cada um, mas que confluem para um passado
comum, em que os companheiros de ofício e de futebol comparecem
para dar movimento e sentido à experiência individual vivida, mas
coletivamente partilhada.
Figura 4: Almoxarifado/Acervo Jogos das Indústrias-
Secretaria de Esportes e Lazer (2011)
Referências
CRITELLI, D. História pessoal e sentido da vida. Historiobiografia.
São Paulo: EDUC/FAPESP.
113
A caixa de guardados
GRUZINSKI, S. Por uma História das Sensibilidades. In:
PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. (orgs). Sensibilidades na história:
memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2007.
OLIVEIRA, L. I. Do canto e do silêncio das sereias: um ensaio à luz
da teoria da narração de Walter Benjamin. São Paulo: EDUC, 2005.
STARACE, G. Os objetos e a vida: reflexões sobre as posses, as
emoções e a memória. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
PASSERINI,L.MemóriayUtopia,Laprimaciadelaintersubjetividade.
España: Universidad de Valencia, 2006.
PORTELLI, A. O que faz a História Oral diferente. Projeto História,
v.14, p.25-39, 1997.
______ . Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões obre
a ética em História Oral. Projeto História, n.15, p.13-49, 1997.
115
CAPÍTULO VII
O DISSÍDIO E INTERVENÇÃO ESTATAL NO FUTEBOL NA
DÉCADA DE 1930
Dr. Jorge Miguel Acosta Soares
Introdução
A profissionalização do futebol em 1933 marcou um
importantíssimo ponto de virada na história do esporte em nossas
terras. Foi a transformação definitiva de uma prática desportiva,
aristocrática e elegante, que incorporava, agora de forma oficial,
os atletas oriundos das camadas populares, imigrantes e operários.
Este artigo não pretende estudar o processo de profissionalização,
uma vez que outros, de forma muito mais competente já o fizeram
(CALDAS, 1990; FRANCO JUNIOR, 2007; FRANZINI, 2000;
PEREIRA, 2000). O texto busca retratar a situação de dissídio que
se instalou entre os clubes, e entre as entidades dirigentes do futebol
após 1933, marcando profundamente os anos seguintes, e preparando
o terreno para a intervenção estatal nos esportes, com a edição do
Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Os anos que se seguiram
á profissionalização também marcaram o aparecimento de novos e
influentes dirigentes no futebol, uma nova burocracia desportiva,
afinada com o novo regime. Os novos dirigentes, João Lyra Filho,
Manoel do Nascimento Vargas Neto, Luiz Aranha, Rivadávia Corrêa
Meyer contrapunham-se à antiga aristocracia dos clubes, e viriam a
ser os responsáveis diretos pela construção de um sistema oficial para
o desporto, e posteriormente, pela construção da justiça desportiva
(SOARES, 2016).
A profissionalização
Em 1933, a situação do amadorismo tornara-se insustentável.
Grandes clubes cariocas, como o Vasco da Gama e o Bangu Athletic
116
História do Esporte
Club, há muito não escondiam que remuneravam seus atletas. O
“amadorismo marrom”, com o pagamento de remuneração aos
atletas de forma camuflada como gorjetas pelas vitórias, já não
enganava mais ninguém. Em janeiro de 1933, uma reunião a pedido
dos dirigentes do Vasco, Fluminense e Bangu, na sede da Associação
Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea) decidiu pela adoção do
profissionalismo no futebol do Rio de Janeiro. A proposta foi aceita
por quatro votos a favor – Fluminense, Vasco da Gama, America
e Bangu – e três contra – Botafogo, Flamengo e São Christóvão –,
nenhuma abstenção e nenhum voto nulo. Dito desta maneira parece
que a adoção do profissionalismo foi pacífica, limitando-se a uma
votação entre os clubes. Não foi.
Na sequência a reunião aprovou, também por quatro votos
contra três, a criação da Liga Carioca de Futebol (LCF), reunindo
os clubes que aderiram ao profissionalismo. Ainda no mesmo dia,
o Botafogo publicou uma nota, assinada por 75 dos 77 membros de
seu conselho diretivo, manifestando-se “irredutivelmente contrário
à implantação do futebol profissional, por julgá-lo inconveniente e
contrário às tradições do clube e do esporte carioca”1
. O conselho do
São Christóvão publicou nota com idêntico teor. No dia seguinte os
jornais do Rio de Janeiro publicaram notas de repúdio assinadas por
seus leitores, que pediam a expulsão de Fluminense, Vasco, America
e Bangu dos quadros associativos da Amea. Poucos dias após, o jornal
Correio da Manhã publicou uma longa entrevista com Rivadávia
Corrêa Meyer2
, presidente da Amea, com duras críticas à decisão, que
chamou de “gesto de ingratidão e de nenhuma nobreza” dos quatro
times cariocas. Na entrevista, Meyer fez advertências aos jogadores
e clamou pela volta da moralidade ao futebol3
. Meyer, que também
respondia pela presidência do Flamengo, verdadeiramente não tinha
resistência ao futebol profissional. Sua diferença era com Oscar
da Costa, presidente do Fluminense, time com o qual disputava a
1
"O profissionalismo no football", Correio da Manhã, 24 de janeiro de 1933, p. 6.
2
Ao longo da década de 1930, Corrêa Meyer mudaria de posição, aderindo entusiasticamente ao
projeto institucional governamental para o esporte.
3
Correio da Manhã, 28 de janeiro de 1933, p. 10.
117
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
hegemonia na cidade (CALDAS, 1990). No começo de fevereiro José
Bastos Padilha foi eleito para a presidência do Flamengo4
, mudando
a posição do clube e desestabilizando o jogo em favor da LCF.
O clube rubro-negro havia votado contra o profissionalismo,
permanecendo na Amea, chegando a disputar duas partidas no
início do campeonato amador promovido pela entidade. Contudo,
em meados de maio, a nova presidência do Flamengo convocou uma
reunião para discutir a adoção do profissionalismo. No dia 19, com
a presença de quase todo o conselho deliberativo, o clube aprovou
a adesão à LCF, desligando-se dos quadros da Amea5
. Nos dias
seguintes, o São Christóvão e o Carioca Football Club seguiram o
Flamengo, também abandonando a disputa da Amea. A imprensa
noticiou como uma vitória do profissionalismo, mas não foi
exatamente isso. O Flamengo disputou o restante do campeonato de
1933daLFCcomumaequipeamadora,ficandoemúltimolugarentre
os seis que participaram. Seu primeiro time profissional somente foi
montado no final de 1934, para disputar o campeonato estadual do
ano seguinte. A resistência do amadorismo mostrava-se inútil, e o
exemplo carioca rapidamente foi seguido pelos clubes paulistas.
A aceitação do profissionalismo, aparentemente colocaria fim a
êxodo dos jogadores brasileiros para o exterior, uma dos argumentos
centrais daqueles que defendiam a mudança. As péssimas condições
para o exercício da atividade de futebolista, no início da década de
1930 tornavam atraentes as propostas de melhores possibilidades e
melhores rendimentos feitas por clubes estrangeiros. O mercado do
futebol na Europa era extremamente atraente para os jogadores, que
não hesitavam em abraçar essas propostas, levando o futebol nacional
ao risco de desaparecer, ou, na melhor das hipóteses, apequenar-se. A
profissionalização era uma solução capaz, simultaneamente, de fixar
o jogador no Brasil, e em seu clube, e manter um bom nível técnico
e atlético do futebol nacional. Contudo, havia outra causa indireta,
interna, menos evidente, mas de grande importância.
4
Correio da Manhã, 4 de fevereiro de 1933, p. 6.
5
Jornal dos Sports, 20 de maio de 1933, p. 1.
118
História do Esporte
O início dos anos de 1930 marcou uma das mais profundas
transformações do Brasil, envolvendo não só a estrutura da economia
e as relações políticas, mas todo o complexo cultural, imaginário e
ideológico do país. A Revolução de 1930, e a tomada do poder pelos
jovens oficiais do Exército, apoiados pelas camadas médias urbanas,
alterou as funções e a própria estrutura do Estado brasileiro. Mais
do que a simples tomada do poder e a consolidação de um novo
governo, a Revolução proporcionou a construção da ideia de um
Estado em que, ao menos no discurso dominante, havia espaço para
camadas populares, como agentes de transformação. O movimento
revolucionário impôs uma derrota, ainda que parcial, aos grupos
dominantes, provocando a ruptura das relações sociais e políticas
existentesduranteaRepúblicaVelha.Asoligarquiasforamsubstituídas
pelo Estado como principal agente da sociedade brasileira. O novo
governo recriou as relações sobre novos parâmetros e novos valores
sociais e culturais. A nova construção política, cultural e ideológica
incorporou alguns elementos que até então eram marginalizados, ou
tratados como caso de polícia, como os sindicatos e os movimentos
de trabalhadores. Havia um espaço reservado para o futebol nesse
projeto.
Na República Velha o futebol aparentemente estava à margem da
evolução dos eventos sociais e econômicos do país. Mas essa situação
era apenas aparente. O desenvolvimento do futebol nas primeiras
décadas do século XX refletiu as transformações sociais e econômicas
que o país atravessava. A urbanização, o crescimento das camadas
médias urbanas, o processo de industrialização, o surgimento de um
proletariado que começava a se organizar eram fenômenos sociais
que mostravam seus reflexos no futebol. A estrutura econômica,
as transformações sociais, políticas e culturais influenciaram o
desenvolvimento do esporte. A adoção do profissionalismo em
1933 estava em sintonia com uma das diretrizes centrais do novo
regime. Os representantes do poder político tinham como meta a
regulamentação da vida dos trabalhadores do país. Contudo, a
ligação do futebol com o novo regime que se criava ia muito além
119
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
dessa relação. A construção de uma ideia de “Nação”, identificada
com o novo país que se erigia, elaborou elementos ideológicos que
fundariam a identidade nacional, brasilidade, o caráter peculiar,
individualizador, do que era ser brasileiro, e o futebol teve papel
importante nesse processo.
Membros do novo governo, ainda provisório, logo em seus
primeiros dias, passaram a atuar nos bastidores no sentido de
participar do processo de profissionalização do futebol, que somente
iria acontecer dois anos depois (SILVA, 2004). A transferência
de verbas oficiais para a realização de partidas e torneios, assim
como para o saneamento das finanças da Confederação Brasileira
de Desportos (CBD), que já ocorriam nos governos anteriores, foi
mantida, e gradativamente intensificada.
A profissionalização do futebol teve efeitos imediatos, entre eles
o aumento da remuneração dos atletas. No Rio de Janeiro, logo
em seus primeiros meses, os clubes se viram obrigados a oferecer
vantagens para manter seus jogadores e trazer outros tantos de
agremiações adversárias ou do exterior. Nesse momento, mais
jogadores provenientes das camadas populares recebiam propostas
para a profissionalização nos clubes cariocas. Para muitos, porém, a
novidade ainda parecia incômoda. Os críticos, pela imprensa, diziam
que o futebol se transformara em apenas um negócio e equiparavam
os jogadores a cavalos de corrida. Já para os jogadores o novo regime
era extremamente positivo. A profissionalização, ao contrário dos
maus agouros dos críticos, que previam a derrocada e o fim do
esporte no país, apenas fez crescer o futebol. A qualidade técnica dos
antigos e dos novos jogadores, estimulados pela boa remuneração
que passaram a receber, aumentou o interesse pelo espetáculo,
levando ainda mais público aos estádios. O futebol passou a viver
um período de glórias nos campos, e divergências nos bastidores.
Contudo, os desentendimentos causados pela profissionalização
geraram uma luta fratricida entre as entidades representativas dos
clubes de futebol.
120
História do Esporte
O dissídio entre os clubes
No Rio de Janeiro as associações pró e contra a nova situação
dos atletas viviam em guerra. Dirigentes da Amea, a amadora, e
da profissional LCF trocavam farpas e insultos pelas páginas dos
jornais, mostrando que a paz estava bem distante. Em 1935, a Amea
voltou a se fundir com a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres
(LMDT)6
, criando a Federação Metropolitana de Desportos (FMD),
que mudou sua posição, aderindo ao profissionalismo. Entre 1933 e
1936, o Rio de Janeiro teve dois campeonatos de futebol ocorrendo
simultaneamente.
Ao largo das divergências e das lutas intestinas dos dirigentes,
assistia-se à ascensão do esporte, e ao aumento do interesse popular
pelo futebol, que não passaram despercebidos pela cúpula do poder
estatal. Nos primeiros anos da década de 1930, aquilo que poderia
se chamava de paixão pelo futebol tornara-se uma verdadeira febre.
O rádio, surgido no país em 1922 e que rapidamente se convertera
em um veículo de comunicação de massa, transmitia as partidas,
que agora podiam ser acompanhadas fora dos estádios. A disputa
entre as agremiações era estimulada por grupos de torcedores
organizados, concursos, hinos, símbolos, mascotes, bandeiras. O
Governo Vargas percebeu o potencial político dessa febre, à qual
a luta entre as entidades em nada ajudava. Em meados de 1935 a
imprensa já informava que o governo estaria estudando a criação
de um órgão governamental para centralizar os desportos, e não só
o futebol, reorganizando as entidades representativas7
. Esse projeto
se consolidaria apenas em 1941, mas o processo de intervenção do
Estado no esporte já começara.
Em 1935, foi aprovada uma regulamentação, apelidada como
“Lei Getúlio Vargas”, determinando que a Censura Policial, órgão do
governo federal ligado ao Departamento de Propaganda e Difusão
Cultural (DPDC), aplicasse aos clubes de futebol as mesmas regras
6
Criada com o nome de Liga Metropolitana de Futebol em 1905.
7
“A oficialização dos sports”, Jornal dos Sports, 7 de julho de 1935, p. 1.
121
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
definidas para outras diversões públicas como os teatros e cinemas.
As normas, criadas em dezembro de 1928 pelo Decreto nº 18.527,
ainda durante o governo de Washington Luís, impunham que a
autoridade policial fiscalizasse os contratos de artistas de teatro.
Assim, a Censura passou a vistoriar o cumprimento dos contratos
dos jogadores profissionais com seus clubes, obrigando-os a enviar-
lhe os prontuários dos atletas. Segundo a imprensa, a medida era
uma forma de controlar o profissionalismo, evitando excessos. Pela
regra geral do DPDC aplicada ao futebol, apenas poderiam jogar os
profissionais cuja ficha fosse inscrita junto à Censura e cujos contratos
com os clubes seguissem o modelo-padrão.
A estratégia da aproximação do governo com o futebol dera
certo, especialmente após a Copa do Mundo de 1938, primeiro bom
resultado da seleção brasileira, que fora claramente apoiada pelo
presidente e seu gabinete. A despeito do golpe que instaurou o Estado
Novo, em novembro de 1937, o Getúlio Vargas tinha apoio popular. A
ligaçãocomofutebol,quepassouafazerpartedoconjuntodemedidas
populistas governamentais de ampla repercussão, demonstrava que o
caminho se mostrava correto. A associação do futebol com a figura
do presidente foi explorada pela propaganda oficial do governo. O
anúncio das grandes medidas oficiais de interesse dos trabalhadores
era feito pelo próprio presidente Vargas em cerimônias públicas no
estádio de São Januário, do Clube de Regatas Vasco da Gama, no Rio
de Janeiro, time com muito prestígio não só na cidade, mas, graças
ao rádio, em todo o país. Das oito celebrações do Primeiro de Maio
realizadas durante o período do Estado Novo, entre 1937 e 1945,
quatro foram realizadas no estádio.
Desdeosurgimentodasprimeiraspráticasorganizadas,odesporto
no Brasil foi marcado por formas associativas que privilegiavam a
vontade individual. A ordem desportiva nasceu marcada pela livre
associação em entidades privadas, clubes, associações, federação,
reguladas pelo direito privado, sem intervenção direta do Estado.
As entidades eram criadas e extintas pela vontade de seus filiados.
Exatamente por expressar os humores e interesses individuais,
122
História do Esporte
essa ordem era caótica e desordenada. Não foram poucas as vezes
em que essas vontades individuais colidiram, gerando desacordos,
desavenças e conflitos.
As relações com o Poder Público existiam, mas eram indiretas,
veladas. Havia a interferência política no futebol, mas ela não
era institucional. Membros do Executivo, Legislativo e Judiciário
compunham os quadros sociais dos clubes, usando seu prestígio
pessoal, influenciando as decisões internas. Mas essa interferência
era pessoal, não institucional. O mesmo não acontecia com as
entidades representativas do esporte, que por não terem rendas
próprias dependiam da subvenção e liberação de recursos públicos.
A entidade nacional dos desportos, a CBD era um bom exemplo
dessa dependência; apesar de privada, necessitava de verbas
governamentais para sua manutenção e a realização de eventos. Até
o final dos anos de 1930, os esportes, futebol entre eles, eram regidos
pelas entidades dirigentes das diferentes modalidades. Havia alguma
obediência às regras internacionais, sem a intervenção do Estado,
que apenas cuidava das questões que envolvessem a ordem pública,
liberava verbas para a realização de eventos, contribuía de forma
indiretaparaaconstruçãodeestádiosepraçasdeesportes.Odesporto
era atividade dos particulares e, como tal, cabia aos particulares sua
organização. Os constantes conflitos entre as entidades dirigentes
de uma mesma prática esportiva, as divergências entre os dirigentes
dos diversos estados, os atritos internacionais, nada disso estava
inserido diretamente no rol das preocupações oficiais. Contudo, com
a chegada de Getúlio Vargas ao poder e, especialmente depois da
decretação do Estado Novo, essa relação mudou.
Desde sua criação do futebol no Brasil as divergências fizeram
parte da vida dos clubes. A competitividade, sempre presente,
deixava conflituosas as relações entre admiradores dos clubes.
A paixão pelas cores e pelos emblemas de seu time tornava os
torcedores absolutamente avessos aos adversários, especialmente os
adversários próximos, vizinhos, da mesma cidade. Os grandes matchs
eletrizavam a imprensa e o coração dos fãs. Essa mesma cizânia havia
123
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
entre os clubes e entre as entidades representativas. A organização
do futebol em clubes e associações repetiu a estrutura histórica do
futebol inglês. Simultaneamente ao nascimento dos clubes, foram
criadas associações, ligas, federações.
Os conflitos e a animosidade entre as entidades apenas iria
crescer com a intensificação das discussões sobre a legalidade da
profissionalização do futebol. Após a decisão dos clubes, em 1933,
o debate entre as duas correntes, pró e contra, gerou calorosas
discussões. Clubes, entidades, órgãos de imprensa não se entendiam.
Em todo o país novas entidades foram criadas segundo os interesses
divergentesdosclubes,gerandoarranjosorganizativosabsolutamente
caóticos e incompreensíveis. Entidades amadoras e profissionais
criaram campeonatos paralelos, que aconteciam simultaneamente,
confundindo as torcidas e os dirigentes, que não sabiam em qual
federação inscrever seu time. Todos apresentavam bons argumentos
para defender uma das posições, assim como para provar que o outro
lado estava errado. Contudo, apesar dos debates acalorados, essa não
era a questão central. O profissionalismo já existia na prática; há mais
de uma década vários clubes já pagavam uma remuneração a seus
jogadores. Por quase toda a Europa, e especialmente na Inglaterra,
o futebol amador, lúdico, e o profissional, de alto desempenho, já
conviviam em campos bem delimitados. No Brasil, o que estava em
jogo era uma luta pelo poder no futebol. Antigas lideranças, como
Arnaldo Guinle, ex-presidente da CBD, estavam perdendo influência
na burocracia, e assistiam à ascensão de novos dirigentes: Manoel
do Nascimento Vargas Neto, Luiz Aranha, Rivadávia Corrêa Meyer e
JoãoLyraFilho.AsrelaçõesdeGetúlioVargascomosnovosdirigentes
do futebol iam muito além da simples afinidade política. Manoel do
Nascimento Vargas Neto, filho de Viriato Dorneles Vargas e sobrinho
do presidente Getúlio Vargas, viria a se tornar mais tarde o presidente
da Federação Metropolitana de Futebol Federação Metropolitana
de Futebol (FMF) da cidade do Rio de Janeiro e deputado federal
constituinte em 1946 com apoio do tio. Luiz Aranha, dirigente do
Botafogo, seria eleito presidente da CBD. Aranha havia participado
124
História do Esporte
ativamente da Revolução de 1930, e era irmão de Oswaldo Aranha,
este, amigo íntimo e ministro de Vargas entre 1930 e 1945. Rivadávia
Corrêa Meyer, ex-jogador e ex-presidente do Flamengo, foi escolhido
presidente da CBD na sucessão de Luiz Aranha, ocupando o cargo
entre 1943 e 1955. João Lyra Filho, ex-presidente do Botafogo e
diretor da Caixa Econômica, viria se tornar o mais importante nome
de Vargas para o desporto, citado à época como um dos mentores
da intervenção estatal, foi o criador e o primeiro presidente do
Conselho Nacional de Desportos (CND), a entidade governamental
dos esportes.
Um ponto de inflexão desse conflito intestino foi a eleição e posse
deLuizAranhaparaapresidênciadaCBD,em5desetembrode19368
.
A entidade, que representava todas as modalidades dos esportes do
país e se mantinha firme na defesa do amadorismo, em detrimento da
profissionalista FBF, escolhia para seu cargo máximo alguém que não
pertenciaaseusquadrosdirigentes,enãopossuíaexperiênciaanterior.
A escolha estava diretamente ligada à sua influência e proximidade
com o presidente da República, com acesso às dependências privadas
do Palácio do Catete. Luiz Aranha, ou “Lulu”, como era chamado por
Vargas, foi um dos principais articuladores civis da Revolução de
1930. Depois da tomada do poder, a intimidade com o presidente lhe
garantia prestígio no Distrito Federal.
Em meados de julho de 1937 o Jornal dos Sports anunciou com
entusiasmo a solução do conflito entre as entidades esportivas, e a
pacificação do futebol carioca. Segundo nota oficial, os presidentes
do Vasco da Gama, Pedro Novaes, e do America, Pedro Magalhães
Corrêa,haviampropostoacriaçãodeumanovaentidade,extinguindo
as existentes, que passaria a ser a única representante do futebol
do Distrito Federal9
. Ainda segundo o jornal, oito clubes haviam
aderido à proposta – Vasco, America, Flamengo, Fluminense, São
Christóvão, Bangu, Bonsucesso Futebol Clube e Madureira Esporte
Clube –, sendo que só disputariam os certames oficiais da cidade os
8
Correio da Manhã, 6 de setembro de 2014, p. 1.
9
Jornal dos Sports, 18 de julho de 1937, p. 1.
125
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
filiados, sem exceção, proibida a dupla filiação. O pacto extinguia a
amadora FMD10
, presidida por João Lyra Filho, e a LCF, criada após
a adoção do profissionalismo, e comandada por Antonio Gomes
Avellar, presidente do America. Em seu lugar nasceria uma terceira
entidade, a Liga de Futebol do Rio de Janeiro (LFRJ), que seria
vinculada à entidade nacional FBF. Todas as entidades regionais,
caso quisessem participar de torneios entre estados, deveriam pedir
filiação à FBF. Com grande destaque o jornal também informava
que os dois presidentes, Novaes e Magalhães Corrêa, já haviam feito
reuniões com a Liga de São Paulo, que também aceitara o arranjo em
sua base territorial.
O acordo consolidava a situação que já existia, com duas
entidades nacionais, mas criava uma clara divisão de funções entre
ambas. À FBF caberia cuidar de todo o futebol nacional, reunindo
clubes de todo o país e realizando campeonatos entre eles, fossem
amadores ou profissionais. Por sua vez, a CBD ficaria responsável
somente pela representação do futebol e dos demais esportes do
Brasil no exterior, sem interferência direta na organização interna.
A proposta, assim como sua aceitação pelos grandes clubes cariocas,
pegou a CBD de surpresa. Em uma entrevista pelo rádio, falando em
nome da entidade, Célio da Silva, secretário-geral da CBD, classificou
a proposta, assim como os acertos sigilosos, como uma “traição do
Vasco”11
. Contudo, a suposta “traição” não passava de jogo de cena
da diretoria da CBD. O plano fazia parte do projeto de Luiz Aranha,
e consequentemente do Governo Vargas, para solucionar o conflito
nas entidades do futebol, colocando em prática suas premissas: o
reconhecimento definitivo do profissionalismo no futebol e o fim dos
conflitos entre dirigentes, com a centralização do poder em apenas
uma entidade.
Mesmo o Botafogo, o mais ferrenho defensor do amadorismo,
aderiu prontamente, já no dia 19 de julho. A diretoria do clube, que
10
A FMD tivera vida curta. Fora criada em 1935, com a fusão da Associação Metropolitana de Esportes
Athleticos (Amea) e da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), ambas defensoras do
amadorismo no futebol.
11
Jornal dos Sports, 18 de julho de 1937, p. 6.
126
História do Esporte
anos antes anunciara que se um dia o Botafogo fosse obrigado a
aceitar o profissionalismo iria extinguir o departamento de futebol,
aceitou. Vencendo muita resistência interna, o clube também se
filiou à FBF. Ainda nesse dia, Luiz Aranha como presidente da CBD,
sem nem ao menos uma crítica ao plano, assinou de forma enfática o
acordo, oficializando a pacificação das entidades; Lyra Filho ratificou
o acordo em nome da FMD. Em uma cerimônia pública, Aranha
aceitou a redução do poder da CBD, que não mais poderia interferir
diretamente nos rumos do futebol dentro do país12
.
A solução aparentemente era péssima para os interesses da CBD,
que seria a grande derrotada no processo, perdendo seu poder sobre
o futebol. Tudo fazia crer que para a entidade não restaria outra
opção a não ser render-se e ver seu poder esvaziar. Mas essa derrota
era apenas aparente. Em pouco tempo a CBD passaria a ser o grande
organismo oficial, não só do futebol, mas de todos os esportes. Os
influentesdirigentesLuizAranha,RivadáviaCorrêaMeyereJoãoLyra
Filho, muito próximos de Vargas, pareciam aceitar obedientemente
o arranjo, ainda que supostamente contrariados. Contudo, isso
também se mostraria falso; a “obediência” seria recompensada.
Todos faziam parte de um projeto maior para o desporto; nos anos
seguintes, todos seriam içados aos cargos de comando do desporto
nacional, permanecendo neles pela próxima década.
Pouco tempo depois começava oficialmente a ditadura de Vargas,
comopronunciamento“Proclamaçãoaopovobrasileiro”,transmitido
por rádio para todo o país na noite de 10 de novembro de 1937,
anunciando a promulgação da nova Constituição e preparando o
país para o endurecimento do regime. Vargas justificou a necessidade
de medidas de força: “A gravidade da situação está na consciência de
todos os brasileiros. Era necessário e urgente optar pela continuação
desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil. Entre a
existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e
desordem em que nos encontrávamos, não podia haver meio-termo
oucontemporização”13
.Aintervençãodeforçanosesportesprecedera
12
Jornal dos Sports, 20 de julho de 1937, p. 1.
13
Biblioteca da Presidência da República, Ex-Presidentes, Getúlio Vargas, Discurso de posse, 1937.
127
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
a instauração do Estado Novo em alguns meses, mas não pararia por
aí. Os próximos anos ficaram marcados pela centralização dos rumos
do desporto nacional dentro da estrutura governamental de poder.
Ao conjunto de problemas provocados pelos atritos entre
amadoristas e profissionalistas, somaram-se as dissonâncias
entre “especialistas” e “generalistas”. Em meados dos anos de
1930 “especialistas” eram aqueles que defendiam a criação e o
fortalecimento de entidades distintas, uma para cada esporte.
Os “generalistas”, por sua vez, defendiam a criação de entidades
congregando várias modalidades esportivas, uma em cada base
geográfica. Esse desentendimento, que tinha suas origens na
criação da CBD em 1916, trazia ainda mais elementos à cizânia e
desarmonia do sistema esportivo. Essas divergências teriam solução
definitiva, ainda que híbrida, em 1941, permitindo a coexistência de
entidades específicas e gerais em uma mesma base territorial, apenas
diferenciando suas atribuições.
A manutenção das práticas liberais na organização dos esportes,
após a Revolução de 1930, passou a colidir com o projeto político-
social que se implantava no país. Na ordem desportiva prevalecia a
autonomia da vontade dos dirigentes dos clubes e das entidades, a
liberdade organizativa, expressa nos estatutos e códigos, a iniciativa
privada sem a intervenção do Estado, o pluralismo e o conflito. Ao
contrário, o regime implantado pelos novos detentores do poder
estava baseado na intervenção direta estatal, na oficialização das
entidades e das formas organizativas, na hierarquia, na ordem e na
disciplina. Os dois elementos, ordem e disciplina, viriam a se tornar
os pressupostos, e a justificativa, para a intervenção governamental,
seja por meio de medidas de convencimento, seja com o uso de
mecanismos de força.
128
História do Esporte
Considerações finais
Os esportes, organizados de forma independente e liberal, não
se harmonizavam com o processo de intervenção, centralização
e controle da sociedade pelo Estado. Enquanto o federalismo e a
independência dos estados desapareciam perante a União, o desporto
em geral, e o futebol em particular, dividia-se em uma miríade de
entidades e siglas incompreensíveis até mesmo para quem militava
no setor. Se de um lado o poder político estava centralizado nas mãos
do chefe de Estado, no futebol os comandos paralelos e simultâneos
imobilizavam a realização até dos certames mais banais. O sistema
desportivo se tornara inviável ante a nova realidade política do país.
A forma da intervenção do governo no desporto acompanhou
o processo de endurecimento do regime. Os primeiros sinais do
descontentamento oficial com a situação reinante no futebol foram
sutis, como a delegação de poder à Censura Federal para fiscalizar o
cumprimento dos contratos de trabalho dos jogadores. O segundo
momento foi marcado pela indicação de pessoas de confiança,
afinadas com o regime e com o presidente, nos postos-chave das
entidades representativas. Depois, as manobras de bastidores, sem
que os interesses do governo se tornassem públicos; o processo de
pacificação dos esportes foi gestado nos círculos ligados a Vargas,
mas veio a público aparentemente como uma iniciativa dos clubes.
Aconsolidaçãodoprocessodeintervençãoestatalocorreriaapenas
em 1941, por meio de um decreto-lei, impositivo e obrigatório14
,
o instrumento pelo qual o Estado passou a controlar todas as
atividades ligadas ao desporto no país. Criou-se o Conselho Nacional
de Desportos (CND) e abaixo dele uma estrutura corporativista,
hierárquica, compulsória e imperativa, vinculada à Presidência da
República. Uma longa cadeia de graduações e subordinação ligava
diretamente o menor clube, no rincão mais distante do país, aos
interesses do Palácio do Catete.
14
Os decretos-lei foram criados pela Constituição de 1937. De competência exclusiva do presidente da
República, tinham força de lei, entrando em vigor imediatamente após sua publicação.
129
O dissidio e intervenção estatal no futebol na década de 1930
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131
CAPÍTULO VIII
ESPORTE PARA TODOS E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS
NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1964-1985)
Profa. Dra. Nailze Pereira de Azevêdo Pazin
Profa. Ma. Denize Pereira de Azevêdo Freitas
Introdução
Neste capítulo, pretendemos problematizar como os corpos e
as práticas esportivas que sobre eles incidem assumem significados
normativos associados aos saberes que os definem produzindo
discursos legitimadores de práticas cotidianas. Para a produção
dos efeitos de verdades a respeito do esporte, esperava-se que este
funcionasse como um mecanismo propagador dos benefícios e
progressos que poderia trazer à nação e a seu povo. Uma estratégia
empregada pelos manuais técnicos da campanha Esporte para Todos
(EPT) no Brasil foi divulgar a positividade das práticas esportivas
para convencer a população a aderir ao projeto governamental.
Nesse sentido, os conceitos de disciplina e controle desenvolvidos
por Michel Foucault serão de extrema importância para a análise das
práticas que incidem sobre os corpos, nesse caso, o esporte, ainda
que Foucault não tenha falado das práticas em si, mas da experiência
e de sua relação com os campos de saber, com as normas de conduta
e com as formas de subjetividade. O corpo útil, cuja noção foi
desenvolvida pelo autor, produtivo e submisso não é obtido apenas
por meio da violência, coerção ou ideologia. A sujeição pode dar-se
sobre “elementos materiais que servem de pontos de apoio para as
relações de poder e de saber, que investem os corpos humanos e os
submetem fazendo deles objetos de saber” (FOUCAULT, 1987, p.27).
Portanto, há um poder que pode ser tecnicamente pensado, ou
seja, um saber que constitui a tecnologia política do corpo. E quanto
mais multiformes e difusas se configuram essas relações de poder-
saber, também mais multiforme e difusa é a instrumentalização. Por
132
História do Esporte
isso, não devemos nos ater apenas a uma instituição de controle, mas
a uma rede de micropoderes que são verificados pelos efeitos por eles
induzidos.
De acordo com Robert Van Krieken (1996), tanto em Michel
Foucault como em Norbert Elias, apesar da diferença no tratamento
do tema, o conceito de disciplina é central para os vários caminhos
nos quais a história da subjetividade ocidental foi abordada desde o
século XIX. Segundo o autor, ser moderno significa ser disciplinado,
pelo Estado, pelos outros, mas, sobretudo, por nós mesmos, pois as
crescentes objetivações e a disciplinarização da subjetividade a um
ordenamento da alma sempre intensificado e conjugado com uma
crescente individualização fez com que nos tornássemos modernos
autocontrolados, administrados.
Nesse sentido, o interesse de Foucault era analisar as técnicas e as
estratégias que esse poder disciplinar operava, ou seja, “as técnicas do
eu que nos torna e com as quais nos tornamos sujeitos modernos”.
No terceiro volume de História da sexualidade, podemos
perceber as várias formas de poder sobre o corpo problematizadas
pelo autor: de início o poder a que ele se refere é o poder disciplinar
do século XVII, centrado no corpo individual, que, ao fazer suas
teias nos conventos, hospitais, quartéis, fábricas, escolas e presídios,
utiliza técnicas para tornar os corpos dóceis e exerce a dominação
por meio dos exercícios de adestramento. De acordo com Foucault,
esse poder não precisa ser necessariamente repressivo, centrado
no corpo individual, mas pode ser positivo, estimulante, tênue,
tendo sua produção constituída no âmbito do desejo, ou seja, da
incessante estimulação do autoconhecimento do indivíduo, por isso,
a necessidade de uma vigilância constante de si mesmo.
Nessa produção de saber sobre os corpos (biopoder), é que a
disciplina exercida aproxima-se de um saber clínico que se esforça
para medicalizar os comportamentos e desejos, esquadrinhando e
rotulando a conduta individual, sempre em busca de algo que esse
indivíduo, sozinho, não poderia entender ou identificar.
133
Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira
Ao ler as obras de Foucault, percebemos que “disciplina” tem um
duplo significado. De um lado, implica uma forma de controle ou
punição;deoutro,refere-seaumcorpoacadêmicodeconhecimentos.
Tal questão pode ser aplicada aos saberes que legitimaram a
política pública de massificação esportiva no Brasil na década de
1970, embora a relação que o esporte estabeleceu com a saúde no
século XX não possa ser comparada a períodos anteriores. Nos
novos moldes do conhecimento, foram estipulados julgamentos
racionais sobre a “aptidão física” do brasileiro, produzindo regras e
normatizações capazes de estabelecer verdades e desenvolver uma
nova imagem de usos do corpo, da cidade, do tempo livre, e uma
nova visão a respeito do esporte. Todas essas relações estabelecem
uma percepção sobre o comportamento, suas alterações e a influência
do poder como regulador das condutas individuais e coletivas.
A teoria do processo civilizatório suscita que na história social
europeia houve uma transformação gradual da personalidade, a
partir de uma intensa dinâmica da coerção para a outocoerção, na
qual a regulação do corpo humano, tanto quanto nossos impulsos,
paixões e desejos foram submetidos a esse processo (KRIEKEN,
1996).
Elias explica tal processo em relação a uma crescente
monopolização da violência que acompanhou o processo de
formação do Estado moderno. Para o autor, esse novo Estado tem
como uma de suas características fundamentais o monopólio da
violência física, dentro de uma esfera de legitimidade, ou seja, o
controle da violência é um dos pilares da civilização, no entanto,
Elias destaca que “esse movimento da civilização é um fenômeno
não-planejado, casual, fruto de um processo que não podemos
datar e muito menos prever um ponto final desse desenvolvimento
das relações sociais” (ELIAS; DUNING, 1992, p.185). Desse modo,
não existe civilização pronta e acabada, mas em contínua mudança
e construção/desconstrução, num movimento constante de recuo e
avanço, progressos e retrocessos.
134
História do Esporte
Umdoselementosessenciaisdateoriadosprocessosdecivilização
desenvolvidos por Elias constitui-se em outra teoria, a teoria do
controle das emoções (impulsos e paixões), que poderá nos ajudar
a compreender a constituição de uma pedagogia moral e do corpo
presente na campanha Esporte para todos no Brasil. Será que essa
teoria está presente na concepção de educação e formação integral
do indivíduo nos livros e manuais técnicos do EPT brasileiro? Se ela
estiver presente, como se manifesta?
Movimento Internacional
Logo após os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, surgiu na
Europa um movimento internacional para reavaliar as práticas
esportivas de massa. Nesse mesmo ano, foi lançado o Manifesto
mundial do esporte pelo CIEPS-UNESCO. O documento denunciava
o excessivo predomínio do esporte de alto rendimento, voltado
apenas para os jogos olímpicos em contraposição ao esporte de
massa e defendia a implantação do modelo esportivo ou de lazer
que atendesse às pessoas comuns e ao sistema escolar. Segundo o
Manifesto, o esporte era para a sociedade uma medida contra “os
riscos biológicos provocados pelo avanço tecnológico”.
O Conselho da Europa foi e é a organização internacional
responsável por divulgar os ideais do Desporto para Todos em
diversos países. A organização foi fundada em maio de 1949, após o
final da Segunda Guerra Mundial. Dez países aderiram ao Conselho:
Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países
Baixos, Noruega, Suécia e Reino Unido. A sede da organização foi
fixada em Estrasburgo, cidade símbolo dos dois conflitos mundiais
que, na primeira metade do século XX, assolaram o continente
europeu. O objetivo traçado para o Conselho da Europa foi
estabelecer regras para uma colaboração militar, econômica, social e
cultural, realizando uma união mais estreita entre os seus membros.1
1
Para saber mais, ver: MINISTÉRIO da Educação [Portugal]. op. cit., p. 17.
135
Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira
As questões relacionadas às práticas desportivas continuaram
sendo debatidas na Convenção Cultural Europeia, realizada em
1954. Destinada a reunir vários Estados-Nação com o propósito
de cooperar nos domínios da cultura e da educação, a convenção
interessou-se em tornar regular a Educação Física para a juventude,
tanto quanto o desporto, os lazeres, a história, o patrimônio cultural
e a criação artística. Seu objetivo era contribuir no sentido de “forjar
uma personalidade europeia rica da diversidade de todas as suas
tradições”. 2
Logo depois, foi criado, na década de 1960, o comitê
de peritos culturais, cuja responsabilidade seria a Educação Física e
Desporto. Nesse sentido, a ideia de que o esporte deveria ser um
meio de formação e educação do corpo, da mente e do espírito
ganhava cada vez mais força.
Em 1966, após os jogos olímpicos de Tóquio, o conceito Esporte
paraTodos(EPT)foiformuladopeloConselhodaEuropa.Aintenção
era a de massificar o esporte, promovê-lo numa perspectiva de
educação permanente e de desenvolvimento cultural. Tal perspectiva
transformou-se no ano seguinte, na Noruega, num movimento
esportivo de incentivo à prática de atividade física para sedentários.
O idealizador do programa, o norueguês Per Hauge-Moe, com o
apoio de empresas privadas, lançou uma campanha denominada
TRIMM, que, utilizando material de marketing, procurava instigar
os sedentários à prática da atividade física. O programa foi
inicialmente planejado para um período de cinco anos (1967-1972)
e posteriormente para dez anos (1972-1982).
Em 1967, em Ruit, na então Alemanha Ocidental, representantes
da Noruega, Suécia, Bélgica e do próprio país-sede, motivados
pela experiência norueguesa, discutiram pela primeira vez as
possibilidades de implantação de programas esportivos em massa.
Porém, era importante “arranjar fundos e criar facilidades para toda a
população”. A partir daquele encontro, o movimento EPT expandiu-
se pela Europa, atingindo também os Estados Unidos, Canadá e
diversos países da América Latina.
2
SISTEMA europeu de proteção dos direitos humanos. Conselho da Europa. Disponível em: <http://
www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-historia.html>. Acesso em: 12 ago. 2013.
136
História do Esporte
A campanha europeia buscava estender a prática esportiva como
atividade educativa e cultural melhorando a qualidade de vida das
pessoas comuns que não estivessem envolvidas com o esporte de
alto rendimento, o esporte olímpico. Em 1975, com o crescimento
do movimento, o Conselho da Europa lançou a Carta Europeia de
Esporte para Todos, documento decisivo para que as instituições
sociais reconhecessem a importância das atividades físicas.
Em três anos de campanha (1970-1973), noventa e três por cento
da população alemã já conhecia o movimento esportivo. Partindo
de estudos sobre os custos das doenças cardiovasculares ocasionadas
pela falta de exercícios físicos, a campanha alemã centrou sua ação
na prática preventiva do esporte e em sua importância no mundo do
trabalho.
As pesquisas realizadas pelo Instituto de Medicina Esportiva, da
Universidade de Berlim, influenciaram idealizadores de campanhas
de massificação esportiva em vários países, entre eles o Brasil. Jürgen
Palm foi um dos maiores divulgadores das ideias do Esporte para
Todos (EPT) na América Latina. Sua participação nas Jornadas
Internacionales de estudio sobre el Deporte, realizadas em 1973 em
Buenos Aires, foi decisiva na organização das campanhas no Brasil e
na Argentina. Segundo Palm, a inatividade física deve ser combatida
com a mesma intensidade com que se combate o analfabetismo.
O desafio das décadas de 1960 e 1970 no Brasil era transformar
em ação o grande sonho de progresso dos corpos e da saúde. Para
tanto, os governos ditatoriais produziram inúmeros diagnósticos que
se baseavam em diferentes tipos de estudos e análises. No caso do
esporte, foi publicado, em 1971, o Diagnóstico da Educação Física e
desporto no Brasil. Uma vez detectados os problemas, era necessário
difundir a ideia, tão comum ainda hoje, de que o esporte educa,
combate a criminalidade e aumenta a autoestima da nação.
Assim, era necessário, em primeiro lugar, avaliar o esporte,
sublinhar seu crescimento constante e privilegiar sistematicamente
as aparências e aptidões, até transformá-lo em valor coletivo, pois
desse modo a massificação das práticas esportivas ganharia força.
137
Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira
O que importa, enfim, é perceber como o esporte e as políticas
públicas esportivas foram constituindo-se objeto de investimento
dos governos, o que, naquele contexto, era um modo também de
confirmar força e progresso.
Para os idealizadores da campanha de massificação esportiva,
paralelamente aos jogos olímpicos, estava desenvolvendo-se um
segundo movimento internacional, haja vista que diversos países
estavam colocando “o Esporte para Todos em seus planos nacionais”.
A Inglaterra, “mãe do esporte moderno, em 1972, declarou o Esporte
para Todos como um programa nacional” (PALM, 1977, p.29).
No entanto, conforme Vigarello (2008), as práticas esportivas que
ocupam um espaço intermediário no processo de construção do
ideário de uma sociedade moderna acabam expondo justamente suas
contradições. Se por um lado combate a inatividade física provocada
por um mundo cada vez mais tecnológico, por outro, regula os
“problemas originados pelo aumento das horas de lazer”.
Nesse sentido, na tentativa de transformar o Esporte para Todos
em o “novo humanismo” da sociedade tecnológica, seus idealizadores
esforçaram-se por torná-lo habitus (BOURDIEU, 2007) na cidade
e no campo. A ambição de seus pesquisadores era prescrever e
recomendarpráticasesportivasasmaisdiversasedifusas,demodoque
pudessem disseminar-se rápida e amplamente no tecido social. Nesse
mesmo congresso foi definida para 1896, em Atenas, a realização da
primeira edição dos Jogos Olímpicos. O projeto de Coubertin buscou
instituir um conjunto de ideias denominado “ideário olímpico”
ou “olimpismo”, que se tornou a base para a elaboração da carta
olímpica, e que estabelecia como principais objetivos do Comitê
Olímpico Internacional promover o desenvolvimento das qualidades
físicas e morais que são a base do esporte; educar a juventude através
do espírito esportivo para um melhor entendimento e amizade entre
os povos, ajudando a construir um mundo melhor e mais pacífico;
espalhar os princípios olímpicos pelo mundo, criando a amizade
internacional; unir os atletas do mundo a cada quatro anos em um
grande festival esportivo, Jogos Olímpicos (BINDER, 2001).
138
História do Esporte
Conforme Carmen Soares, o século XIX inaugura uma forma
de pensar o corpo e, sobretudo, uma educação do corpo a partir
de parâmetros possíveis de serem planejados, sistematizados, cujos
resultados poderiam ser mensurados e comparados. Talvez a questão
mais importante não seja encontrar no idealismo coubertiniano
as “raízes” do Esporte para Todos, mas o seu contrário, ou seja, a
maneira pela qual esse “mito fundador” (CHAUÍ, 2004) aparece em
suas campanhas.
União e sacralização
A política de massificação esportiva da década de 1970, além de
garantir a melhoria da saúde do povo, asseguraria o bom desempenho
da vida social, ao ensinar um conjunto de regras necessárias a esse
propósito.
Assim, os programas esportivos para a população passam a
representar a significação da civilidade a partir de uma vigorosa
valorização de regras de boa conduta, auxiliando a regulação dos
gestos necessária à preservação da sociedade e manutenção da ordem.
O mesmo editorial é emblemático do tipo de observações sobre
o “valor educativo da atividade física” (CHAUÍ, 2004). A prática
esportiva é justificada como uma espécie de humanismo purificador
do corpo e da alma e devia fazer parte integrante de todo sistema
educativo para a expansão do homem e para sua melhor integração
social, e ainda,
A política pública esportiva brasileira foi percebida na década de
1970 como uma esfera da cultura capaz não apenas de dar visibilidade
aos feitos do governo militar, mas como prática capaz de educar um
tipo de sensibilidade. Tal perspectiva torna visível a preocupação com
a remodelação dos hábitos sociais, seguidos da transformação dos
comportamentos populares. Nesse processo, constituiu-se uma visão
do corpo voltado para o aperfeiçoamento constante e progressivo a
fim de atingir seu melhor desempenho. Mas o que estava em jogo era
a construção de um novo homem que pudesse decifrar as fraquezas
e vontades de seu próprio corpo e corrigi-las a partir das habilidades
e ensinamentos adquiridos via práticas esportivas.
139
Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira
Nesse sentido, para desfazer-se de antigos rótulos que
conceituavam a Educação Física, tais como ginástica, os elaboradores
do Diagnóstico de Educação Física/Desporto no Brasil insistiam que
o desenvolvimento de uma política nacional para o setor deveria ser
planejado para um período de longo prazo. Para tanto, os diferentes
governos incentivaram professores, atletas, dirigentes esportivos e
líderes comunitários a relatar ao Departamento de Educação Física
e Desporto do Ministério da Educação e Cultura (DED/MEC) as
iniciativas e problemas de suas regiões no âmbito esportivo. Para
isso, foram utilizadas as seções de cartas dos periódicos publicados
pelo DED/MEC - as revistas: Brasileira de Educação Física, Podium,
Comunidade Esportiva, Esporte e Educação, entre outros - como um
elo entre a comunidade e o gestor público (OLIVEIRA, 2009).
A constituição desse elo entre os programas governamentais e a
comunidade anunciava também o rompimento com a “desordem”
relacionada à falta de planejamento, segundo o Diagnóstico, prática
comum no período anterior à “revolução”. Mas tinha-se também o
objetivo de tornar o indivíduo, o responsável pelo seu bem-estar, e o
esporte seria o elemento capaz de mobilizar a nação em torno desse
bem comum, a saúde de seus cidadãos. No entanto, para além de
um dispositivo de formação de uma população forte e saudável em
prol do desenvolvimento do país, as práticas esportivas faziam parte
também de eixos temáticos da indústria cultural que as viam como
um mercado promissor e lucrativo.
Com o fim do milagre econômico, o presidente general Ernesto
Geisel, enfrentou períodos de graves crises como a do petróleo
e as altas taxas de inflação. E mesmo investindo mais recursos em
educação do que os governos anteriores, sua administração não
conseguiu universalizar o então chamado ensino de primeiro grau
e implantar em escala suficiente o ensino profissional. Em meio
às incertezas sobre os rumos da distensão política3
, evidenciada
pelo tom pessimista que marcaram editoriais e artigos da grande
3
A partir de 1974, lideres do governo, como o general Golbery do Couto e Silva, começaram a articular
o processo de reconduzir gradualmente as instituições políticas ao Estado de Direito e à democracia. Tal
processo foi denominado de distensão no governo Ernesto Geisel (1974-1979) e abertura no governo de
João Batista Figueiredo (1979-1985).
140
História do Esporte
imprensa nacional naquele momento, e com o agravamento da crise
econômica com taxa de inflação situada em 42%, em fins de 1978,
e incrível processo de concentração de renda, os programas sociais
de seu governo irão utilizar as imagens relacionadas ao passado
imediato de grande crescimento econômico como ponto de apoio
para manutenção da legitimidade no momento de crise.
Dentro dessa nova conjuntura econômica e social, uma das
principais armas do governo Geisel foi o culto ao otimismo. Em
1976, a Assessoria de Relações Públicas (ARP) do governo anunciava
que “depois das eleições de novembro virá uma campanha de paz e
concórdia, com o objetivo de acabar com possíveis focos de tensão
que venham a surgir no debate político-eleitoral” (FICO, 1997,
p.127).
Seguindo essa orientação na propaganda produzida para a
campanha Esporte Para Todos (EPT), a prática esportiva aparecia
não apenas como valorização da vida saudável, mas, especialmente,
como visão otimista do mundo. A ideia do brasileiro solidário,
irmanado em torno de objetivos comuns perpassa toda a campanha
Esporte Para Todos no Brasil. Essa busca do amor, da união era
utilizada como estratégia para mobilizar a comunidade em torno das
ações esportivas.
Portanto, era preciso confiar no governo para retomarmos o
rumo do desenvolvimento, afinal, “Ninguém segura este país” e “Este
é um país que vai pra frente” são dois de tantos slogans divulgados
pela Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) e pela sua
sucessora, Assessoria de Relações Públicas (ARP). Se no período
do milagre econômico brasileiro, o esporte para alguns teria a
capacidade de canalizar a energia da juventude para o crescimento
econômico do país, a partir de 1974, e de maneira acentuada de 1977
em diante, seu discurso tornava-se mais moralizador, fundamentado
emsentimentoscomoamoràfamília,amoràcomunidade,esperança,
união, natureza, congraçamento, coesão nacional. Era preciso ter
fé, otimismo e criatividade para combater a crise e a escassez de
recursos, sobretudo, porque as dificuldades do período contrastavam
com a euforia do período anterior.
141
Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira
O Movimento Brasileiro de Alfabetização e o EPT
O Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) do governo
Geisel não conseguiu universalizar o então chamado ensino de
primeiro grau e implantar em escala suficiente o ensino profissional,
mesmo tendo investido mais recursos em educação do que os
governos anteriores. A administração Geisel fixou como meta uma
taxa de crescimento de 10% ao ano para ser alcançada mediante
investimentos na indústria de bens duráveis, pois acreditavam que a
mudança de ênfase sobre os bens duráveis acelerariam o crescimento,
melhorando a distribuição de renda, mantendo os altos índices de
ingresso de capital no país (SKIDIMORE, 1988).
A educação, nesse contexto, continuava sendo vista como
instrumento de consolidação do modelo econômico, e o Movimento
Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) tinha ainda sua força como
programa político e ideológico no governo Geisel, traduzida na
afirmação contida no projeto de apoio do Brasil a Guiné-Bissau
no campo da alfabetização em 1976. “O MOBRAL é um projeto
criado pela Revolução e com ela identificado” (BOMENY, ANO???,
p.101).Criado pela Lei n.º 5.379, de 15 de dezembro de 1967, o
novo órgão adotou uma concepção tecnicista, uma vez que nesse
período valorizavam-se os princípios de racionalidade, eficácia e
produtividade.
Os dirigentes do MOBRAL pretendiam coordenar e fiscalizar o
desenvolvimentocomunitárionopaís.Nessesentido,foidesenvolvido
programassociaisdedimensãonacionalqueenvolvesseacomunidade
local na implantação e desenvolvimento dos programas. Assim, para
o Programa de Educação Comunitária para a Saúde, foi feita uma
espécie de cartilha chamada de Documento sobre o Conteúdo Básico
de Educação Sanitária para o MOBRAL, cujo objetivo era “propiciar
a melhoria das condições de saúde das populações residentes na área
de atuação do programa, principalmente as mais carenciadas, através
de trabalho de natureza educacional” (CORRÊA, 1979, p.314).
142
História do Esporte
Contudo, esses programas possuíam uma característica comum
no sentido de elaborar estratégias para que a comunidade resolvesse
seus problemas.
O setor esportivo foi tratado de forma tecnocrática como os
demais setores estatais nesse período. Os militares ocuparam os
principais postos dos setores esportivos, desde o Ministério de
Educação e Cultura ao Conselho Nacional de Desporto (CND)
e Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Em 1975, foi iniciado o
Programa Diversificado de Ação Comunitária (PRODAC), sob a
responsabilidade da gerência pedagógica do MOBRAL.
O PRODAC era dividido em oito subprogramas, dos quais o
esporte fazia parte. O Programa era desenvolvido em três etapas:
mobilização, organização de grupos e manutenção do trabalho. Nesse
sentido, mobilizar para Arlindo Lopes Corrêa consistia em convocar
a “população para a participação em uma atividade onde a própria
comunidade planeja o que irá executar, após levantar as prioridades
em relação às suas necessidades e interesses” (CORRÊA, 1979, p.340).
De acordo com Arlindo Lopes Corrêa, organizar a comunidade
dizia respeito à formação de grupos que iriam trabalhar com base
no diagnóstico realizado, e a manutenção do programa fazia
com que, periodicamente, os grupos se reunissem “para discutir
estratégias, dividir tarefas, responsabilidades, avaliar e, se necessário,
fazer reformulações no plano” (CORRÊA, 1979, p.342). Portanto,
os programas sociais do governo militar tinham quase sempre o
MOBRAL como principal órgão divulgador, e o Esporte para Todos
foi mais um deles. Segundo Arlindo Lopes Corrêa, em 1978, o
MOBRAL já havia atendido “quase 2 milhões de pessoas, atingindo
um total de 2.251 municípios em todo o país.” E todo esse esforço só
foi possível porque o MOBRAL era “uma organização já estruturada
e com significativa experiência a serviço da política social do governo
e voltada para a efetiva promoção do homem brasileiro” (CORRÊA,
1979, p.471).
143
Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira
O esporte e a promoção do homem brasileiro
Assim, “a promoção do homem brasileiro” definiu-se em
torno de um corpo ajustado às demandas do sistema capitalista. O
investimento no lazer esportivo, além de promover certo uso do
tempo livre, também exibia o próprio corpo, belo, saudável, jovem
e ágil. Do ponto de vista do governo militar, era preciso tornar o
trabalhador mais saudável e produtivo, e o esporte poderia canalizar
a energia juvenil para o crescimento econômico da nação. Diante da
crise, os programas sociais do governo Geisel tinham como meta
buscar aceitabilidade para suas ações por meio da argumentação de
que havia a necessidade de se alcançar um desenvolvimento integral
e humanista para solução dos problemas sociais.
Desde o início dos anos 1970, o Conselho Federal de Educação
(CFE) concebia a Educação Física como uma atividade formadora
do “corpo e mente dos cidadãos”. A preocupação com a juventude,
a disciplina e a consolidação de valores morais marcarão as políticas
públicas esportivas das décadas de 1970-1980.
Nesse sentido, qualquer movimento contrário, ou mesmo avesso
à cultura oficial, era condenado e associado a imagens de degeneração
ou de loucura. Contudo, se por um lado os militares procuravam
inibir o pensamento e inviabilizar os encontros, principalmente
daqueles considerados uma “ameaça” para a moral e os “bons
costumes”, de outro, a modernização, mesmo que autoritária, fazia
surgir novos espaços de sociabilidade, cultura e lazer. O discurso
otimista em relação à Educação Física e o desporto, de forma geral
valorizavam a população como um bem, como capital, a principal
riqueza da nação, entretanto, era alvo também de investimento a
formação de sensibilidades mais adequadas ao regime e consideradas
indispensáveis à condução correta de uma vida em comunidade.
No final da década de 1970 e início dos 80, a estratégia psicossocial
do regime continuava sua luta incessante para que houvesse uma
internalização dos pressupostos básicos da ordem social almejada
desde 1964. Se por um lado a campanha Esporte Para Todos foi
144
História do Esporte
a tentativa e ambição de seus idealizadores de promover corpos
saudáveis e eficientes, aumentando sua aptidão física, por outro,
foi também a tentativa de produzir um novo éthos da felicidade, da
união, do congraçamento comunitário e do amor, contra toda forma
de pessimismo. Ao seu redor é possível perceber as tensões políticas,
econômicas e culturais que marcaram o período.
Neste sentido, acredita-se que esta é apenas uma das várias
possibilidades de estudo que esse tema pode vir a contemplar, pois
este trabalho pretendeu ser uma contribuição para o entendimento
de tão complexo processo, procurando colaborar com a reflexão e o
debate no âmbito da História da Educação Física, levando em conta
as motivações menos evidentes na implantação de políticas públicas
(em seus conteúdos e métodos) e a produção de diversas pedagogias
que tomam por base preceitos científicos da Educação Física para
legitimar projetos de intervenção corporal.
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Janeiro: Paz e Terra, 1988.
147
CAPÍTULO IX
JEQUIÉ TÊNIS CLUBE: INSPIRADOR DA MODERNIDADE
ESPORTIVA LOCAL1
Prof. Dr. Roberto Gondim Pires
Prof. Dr. Cleber Augusto Gonçalves Dias
Marcos Cesar Meira Leite
Introdução
Tão valioso quanto saber a história do mundo e do Brasil é conhecer
a história do bairro e da cidade em que vivo: como ele se formou, por
que cresceu, quem mais se dedicou a ela, quais as atividades do seu
povo, ontem e hoje (Chico de Alencar).
A importância dos clubes como um ambiente de construção da
identidade cultural, econômica e sócio esportivo do homem e da
mulherbrasileirospodeserobservadadesdeatransiçãodoséculoXIX
ao século XX. Isso porque as manifestações ocorridas nesse período
já eram carregadas de tradições entre os clubes luzo brasileiros com
o remo e os alemães com o seu método ginástico. Felizmente por
associativismo acabaram rompendo com suas tradições restritas e
reconstruindo novas identidades culturais e esportivas (SILVA et al
2012).
Linhares (2009) tendo como pano de fundo a ideia da
modernidadeesuasinterpretaçõesnocontextonacional,compreende
o processo de escolarização das práticas esportivas em um tempo
no qual se apostava na eficiência da escola como uma possibilidade
de organização e disciplinarização da vida social. A autora aponta
o esporte como uma estratégia importante para pensar o processo
civilizador da sociedade brasileira de então. “energizar o caráter” –
“Assim, o esporte passa a ser lido como uma prática que poderia
integrar o projeto brasileiro de modernidade, dada a sua capacidade
1
Esse texto é versão ampliada de artigo publicado na Revista Eletrônica Discente de História intitulado
“Jequié Tênis Clube: inspirador da modernidade esportiva local”.
148
História do Esporte
de potencializar a máquina humana e revesti-la de um caráter forte,
aguerrido e cívico” (MACEDO, 2012; GOELLNER, 2012, p.225)
Atualmente observa-se poucas descrições na literatura sobre
as representações das entidades esportivas como um lócus de
memória principalmente as que se manifestaram entre as décadas
de 1930 e 1950. Esse período marca um importante processo de
desenvolvimento do estado brasileiro em geral, e do esporte em
particular como a regulamentação dos clubes (SILVA et al 2012;
CUNHA, 2010; MEZZADRI, 2003).
Pensar o “Jequié Tênis Clube” enquanto local de memórias de
práticas esportivas e educacionais, produtor, portanto, de uma
dada educação do corpo no espaço de tal cidade é sem dúvida,
assumir a percepção que a abordagem dos estudos em Cultura,
memória e cidade podem nos ajudar a perceber a importância de
refletir os processos que envolvem a Memória do Esporte e o Jequié
Tênis Clube na sua transitoriedade, reelaborando os sentidos a eles
dispensados ao longo da história. Chartier (1990, p.20) expõe-nos
uma das funções da representação como “exibição de uma presença,
como apresentação pública de algo” e é nesse sentido que o JTC com
suas práticas e representações, produziu sentidos e significados de
uma lógica inerente ao contexto social em que foram produzidas.
O conhecimento e o reconhecimento dos atores dessa época podem
não apenas nos fazer compreender o movimento esportivo desse
período, mas também pode nos dar indícios em um âmbito geral
das transformações políticas da cidade de Jequié, pois como afirma
Mezzadri (2003, p. 02) “existiu uma aproximação entre o poder
nacional e a política administrativa esportiva, reproduzindo-se na
relação autoritária e a ação centralizadora, administrativa efetivada
através da regulamentação e de projetos para a área do esporte”.
Foram, nesse sentido, múltiplas as “frentes” assumidas neste
estudo, e, pensando, sobretudo, no que vem sendo produzido, sobre
a História do Esporte no campo da historiografia no Brasil que esta
pesquisa delimitou seus fazeres a partir das metodologias da história.
Isso significa recorrer aos acervos, bem como problematizá-los de
149
Jequié tênis clube
formaaconstituirarticulaçãoentreoobjetoestudadoeasperspectivas
da história cultural como possibilidade de diálogo. Certau (2002) diz
que em história tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de
transformar em documentos certos objetos distribuídos de outras
maneiras. Organizá-los de outros modos significa dar ao objeto de
pesquisa outras funções e significados. Um dos desafios da história
cultural é narrar às representações do passado e suas versões,
contando com a sensibilidade e o imaginário de que a pesquisa não
pode ser apresentada enquanto verdade absoluta, mas enquanto
representações dessa realidade. Lidamos com o desafio de entender
as representações do esporte no Jequié Tênis Clube para pensá-lo
enquanto local de memória.
A riqueza de estudar e escrever a história de um determinado
acontecimento está na possibilidade criativa, investigatória e no
olhar não-convencional da linearidade e das fontes tradicionais. A
sensibilidade do pesquisador e o seu referencial teórico é que vão
direcionar várias perspectivas de um texto mais comprometido com
o contexto social, econômico e cultural da época em pauta. Fazer
históriadahistóriaéumaarteeumgrandedesafio,poisopesquisador
terá que se comprometer com o estudo do ser humano no seu tempo,
entender as suas representações de mundo, verificar a sua cultura,
além de levantar os fatos e as obras de um tempo que não viveu, mas
que deixou seus vestígios (BURKE, 2005)
Contexto Local e Esportivo
O município de Jequié, cidade baiana, situada na região do
sudoeste do Estado da Bahia, distante 360 Km de Salvador. Tem uma
área de 3.035,423 Km² formada pela área urbana e por distritos na
zona rural. Estima-se a população, segundo dados do IBGE, em 2010
de 151.820 habitantes. Na década 1930, período de criação do JTC,
não houve recenseamento no País, mas uma estimativa feita em 1928
dava ao município uma população de 49.603 habitantes, dos quais
28.115 viviam na sede (ARAÚJO, 1997). A taxa de urbanização que
150
História do Esporte
era de 64,63% em 1970, cresceu para 80,73% em 1991 e hoje aparece
com 88,52%, muito maior do que a taxa média do estado, que é de
67,12%. Isso significa dizer que até a primeira metade do século
XX, o município era essencialmente rural. Na década de 1940 essa
população era estimada em 78%. Outros dados socioeconômicos,
contudo também são interessantes para refletir sobre o estado
de empobrecimento daquele que já foi o quarto mais importante
município da Bahia e encontra-se há mais de três décadas numa
estagnação econômica. O IDH de Jequié é de 0,694, um índice de
desenvolvimento bastante baixo. Distante do IDH do estado da
Bahia, que é de 0,742 e mais distante ainda do IDH do Brasil, que é
de 0,813.
O JTC é criado na década de 1930, período que vários eventos
marcaram a História de Jequié, merecendo destaque: a criação do
“Ginásio de Jequié”; o aparecimento de novas entidades, a “Liga
Jequieense de Desporto Terrestre”, o “Rotary Club de Jequié, a
“Associação Comercial de Jequié”, foi inaugurado o prédio do Grupo
escolar Castro Alves; foi inaugurada a ponte Teotônio Sampaio que
ligaocentrodeJequiéaobairromandacaru;foiinauguradooHospital
Regional Prado Valadares (HGPV); foi inaugurado o Cine teatro de
Jequié; foi realizado o Congresso dos Estudantes Universitário, em
21 a 24 de fevereiro de 1936.
Governava o Município no período de Criação do JTC prefeitos
nomeados: 1931-1932 Tenente Alcino Ávidos, 1932-1933 José
Americano da Costa – Gregório Celli de Freitas. Neste período um
jovem visionário italiano muito investiu no futuro dessa cidade,
Vicente Grillo, considerado por muitos, um dos maiores benemérito
de Jequié, ele doou terrenos para construção: HGPV, Catedral de
Santo Antônio, Cemitério São João Batista, aeroporto que leva seu
nome, centro de abastecimento e o JTC (Rodrigues, 2012).
Em que pese os ideários de modernidade presente do período
em tela, responsável pela alteração da fisionomia de algumas cidades,
sobretudo do Sul e Sudeste do Brasil, com obras de saneamento,
alargamento de ruas, construção de prédios públicos e construção
151
Jequié tênis clube
de praças para fins de lazer da população, no nordeste brasileiro,
sobretudo no interior dos Estados, não se via grandes alterações
nas estruturas arquitetônicas nas cidades, mas, uma grande
curiosidade, criação de clubes esportivos, e é com essa curiosidade
e particularidades que pretendemos revelar memórias do esporte de
Jequié a partir das ações do JTC.
OssignificadosvinculadosaosesportesemJequié,particularmente
nocontextodaspráticasdesenvolvidasnoJequiéTênisClube,primeira
e por muito tempo principal instituição esportiva da cidade, foram
bastante representativas para a edificação de memórias culturais e
políticas da cidade (PIRES; DIAS; LEITE, 2014). Certamente, parte
das transformações que se testemunhavam em Jequié em princípios
do século XX disseram respeito também aos esportes. Articulado a
todo esse processo de mudanças, a prática do futebol registrava-se em
Jequié ao menos desde a década de 1920. Nessa época, nos períodos
de seca, trechos do rio de Contas transformavam-se em espaços
improvisados para as primeiras partidas de futebol da região, os
chamados “babas”. Os mais famosos e prestigiados eram os babas do
Mandão e principalmente os do Gereré – entusiasta do esporte que
organizava partidas no local. Nas palavras de Waldemir Vidal, em
entrevista concedida, “o baba do Gereré se caracterizava pelo clima
festivo, ritmado por charangas, constituindo-se num verdadeiro local
de lazer aos domingos para os desportistas e apreciadores do esporte
da cidade de Jequié”. Pouco depois, com apoio e incentivo de Aníbal
Brito, gerente da agência do Banco do Brasil inaugurada em 1923, o
futebol em Jequié teria ganhado “novo impulso”, conforme Araújo
(1997), sobretudo por causa da realização de campeonatos.
Para além do futebol, em 1932, um grupo de amigos resolvera
criar um clube de tênis. Assim, em cinco de novembro daquele ano
nascia o Bahiano Tênis Club de Jequié, situado, de início, entre as ruas
Silva Jardim e Dois de Julho. Em seguida o nome da instituição foi
mudado para Clube Bahiano de Tennis de Jequié, e em 1933, assumiu-
se, em caráter definitivo, o nome Jequié Tennis Clube (RODRIGUES,
2012).
152
História do Esporte
Na primeira diretoria do novo clube encontravam-se pessoas
como Milton Couto Muniz (presidente) e Magno Silva (secretário),
ambos representantes de elite local. Magno Silva nascera em 1908.
Em Jequié, além da participação na articulação para criação de um
clube esportivo, esteve entre os fundadores do Lyons Clube e do
Sindicato Rural da cidade, de acordo com seu filho, Eduardo Magno
Senhorinho, em entrevista concedida. Por volta da segunda metade
dos anos 1920, mudara-se para Salvador, para dar continuidade aos
estudos. Foi aí, provavelmente, que conheceu e se interessou pelo
tênis.
A passagem estudantil por Salvador parece ter sido bastante
importante para a constituição dos gostos e predileções esportivas
de alguns jequieenses. Milton Muniz, por exemplo, que também
estudara em Salvador, fora sócio do Bahiano de Tênis durante sua
estadia na capital baiana, um dos mais tradicionais clubes de tênis à
época, onde provavelmente adquirira o novo hábito.
Grupo de tenistas do JTC em 1937
Fonte: Acervo do Jequié Tênis Clube. Autor desconhecido (s/d).
153
Jequié tênis clube
Desde os fins do século XIX, Salvador conhecia um progressivo
entusiasmo com práticas de esportes e de exercícios físicos em
geral. Estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia envolviam-se
crescentemente, não apenas com a prática, mas também com a defesa
da difusão regular de esportes e exercícios entre toda a população.
Fora precisamente essa ambiência de excitabilidade esportiva, que
alguns cidadãos jequieenses encontraram em Salvador quando da
sua passagem pela cidade para a realização de estudos ou outras
finalidades. Para além de universitários formados em Salvador,
outros personagens colaboraram ativamente para disseminação de
esportes em Jequié através, sobretudo, de atuações no clube que
se formara na cidade. O capitão Napoleão, por exemplo, chefe da
Circunscrição do Tiro de Guerra em Jequié, logo assumiu a direção
de esportes do clube recém fundado. Conhecedor de métodos de
ginástica e educação física, utilizados em suas instruções militares,
Napoleão transferiu parte desses conhecimentos na preparação de
atletas do clube, o que “acabou aperfeiçoando a prática desportiva na
cidade”, segundo memórias de Aníbal Brito (ARAUJO, 1997).
No período de formação do Jequié Tênis Clube, preocupações
com a oferta de esportes e outras formas de exercício físico
intensificavam-se em todo o estado da Bahia. Em 1927, o governador
Francisco Marques de Góes Calmon (1927), relatava que “a educação
physica, também, tem tido visível desenvolvimento. Por toda a parte,
até em classes isoladas de lugares longínquos e afastados, tem ido a
insistência pela gymnastica e pelos jogos, fazendo-se, hoje, de modo
geral, em nossas escolas, educação physica” (p. 77-8). Em princípios
da década de 1940, no mesmo sentido, notar-se-iam já a criação
das primeiras iniciativas formais e sistemáticas para formação de
professores de educação física na Bahia (PIRES, 2008).
Nesse contexto, enfim, a prática de esportes se intensificou
paulatina e progressivamente também em Jequié. Prova disso é a
criação da Liga Jequieense de Esportes Terrestres, na década de 1940,
que segundo avaliação de Inaldo Sardinha, em entrevista concedida,
“alavancou o esporte [em Jequié]”, sobretudo através da organização
154
História do Esporte
de campeonatos no antigo campo do Jequiezinho, depois estádio
Aníbal Brito.
Especificamente no Jequié Tênis Clube, testemunha-se a partir
dessa época progressiva ampliação do repertório de modalidades
oferecidas aos seus sócios. Daí em diante, além do tênis, primeira
e principal modalidade desenvolvida pelo clube entre as décadas
de 1930 e 1940, notar-se-ia empenho para a promoção de outros
esportes. A partir da década de 1950, a diretoria do clube reformou
suas quadras de saibro, visando adequá-las ao basquete. Ao mesmo
tempo, Ubirajara Coelho Lima, filho de um abastado pecuarista e
agricultor de Jequié, apresentava o futebol de salão para alguns
frequentadores do clube. Ubirajara era estudante da Escola da Polícia
Militar, em Salvador, onde aprendera o jogo. Segundo se dizia, além
da Escola Militar, só o Clube Bahiano de Tênis, também em Salvador,
praticava a modalidade. Milton Rabello, presidente do Jequié Tênis
Clube à época, apoiou prontamente a nova modalidade. De Salvador,
do Bahiano de Tênis, mais especificamente, onde já havia sido sócio,
além de ser amigo do presidente do clube à época, um de seus
antigos colegas de Faculdade, Rabello mandou trazerem regras e
bolas do novo esporte. Na mesma época, jovens de outros estados,
com envolvimento anterior com o futebol de salão, logo passaram a
participar dos jogos em Jequié.
Tudo isso, ao lado de algumas boas atuações em campeonatos
esportivos, ajudou a sedimentar a noção de que o Jequié Tênis Clube
fora uma instituição responsável pelo aumento de visibilidade,
consagração e reconhecimento da cidade na Bahia e mesmo no Brasil.
Idealizado com motivações primeiramente esportivas, logo o Jequié
Tennis Clube tornou-se local preferido para banquetes e reuniões
convocadas para debater assuntos de interesses da comunidade – ou
de parte dela pelo menos: ponto obrigatório de lazer e sociabilidade
dos ricos da cidade. De certo modo, desde sua fundação, podia-se
notar preocupações entre os principais protagonistas da iniciativa
em angariar apoiadores e conquistar visibilidade. Logo após a criação
formal do clube, carta de Magno Silva, eleito secretário da primeira
155
Jequié tênis clube
direção, informava ao diretor do jornal Correio de Jequié a fundação
do Club Bahiano de Tennis.2
JTC - Social- Político...
Podemos supor que as atividades promovidas inicialmente pelo
JTC não aconteceram exatamente para os fins que foram idealizadas,
qual seja, a prática do Tênis, destarte, Araújo (1997) revela que o
JTC, no dizer de Milton Rabelo3
, se converteu na sala de visitas da
cidade. Festas dançantes, local preferido para banquetes e reuniões
convocadas para solucionar assuntos de interesses da comunidade,
ponto obrigatório de Lazer e da prática do esporte não somente do
Tênis como de outras modalidades de jogos se efetuavam em seus
salões.
Pedro Rodrigues4
nos dá uma ideia da representatividade do
novo espaço para a cidade:
Jequié era menor e tudo convergia para o JTC. Era o único clube
social da cidade. Também, o único espaço viável para realização das
festas de formatura, casamentos, aniversários, desfiles de modas,
natal, São João, carnaval, dia da cidade, além dos cursos de piano,
culinária e palestra dos clubes de serviços: Lions Clube e Rotary que
ainda não possuíam seus espaços...(depoimento pessoal, 2012)
Artistas da época, consagrados nacionalmente, como Ângela
Maria, Virginia Lane, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Luiz
Gonzaga, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Cauby Peixoto, foram
algumas das atrações que passaram pelo Aristocrático. A década de
setenta foi marcada por vários desfiles de modas com a participação
de jovens da localidade, estes eventos eram precedidos de festas com
a participação de artistas como Sônia Braga, José Wilker, Elisabete
Savala. Nos anos oitenta passou a acontecer, os mega-shows nas
2
cf. Carta de Magno Silva ao Illm. Sr. Director do “Correio de Jequié” e Illm. Sr. Director de “O Jornal”,
Jequié, 11 nov. 1932, Acervo do Jequié Tênis Clube; Carta do Secretário [Magno Silva] ao Illm. Sr.
Arthur Goulart, Jequié, 10 nov. 1932. Acervo do Jequié Tênis Clube.
3
Esportista, ex-presidente do JTC, personagem de destaque na cidade tanto no meio Político, quanto
acadêmico.
4
Esportista e personalidade que escreve periodicamente sobre o esporte em Jequié.
156
História do Esporte
quadras poliesportivas, destaques para: Zé Ramalho, Flávio José, Kid
Abelha, Chiclete com Banana dentre outras.
Vale registrar o cassino interno do JTC nos anos sessenta, com
destaques para os amantes do xadrez e gamão. A foto da faixada
inicial do Clube é reveladora, percebemos que o clube se quer tinha
muro, Para Pedro Rodrigues “o limite era moral, ninguém pulava,
não entrava, pois tinha vergonha de ser posto para fora” (depoimento
pessoal, 2012)
No JTC só podia ser sócio quem tinha poder aquisitivo
elevado, nós tivemos em uma época... uma coisa bem
vexatória.... a diretoria do clube...não aceitava pessoas
de cores para se associarem ao clube... e nós tivemos
um cidadão que era dono de uma empresa, Dínamo,
Waldemir, e ele levou anos para conseguir ser sócio do
Clube por que era negro... e quando conseguiu foi visto
como uma vitória
Com o tempo, o Jequié Tennis Clube convertera-se na “sala
de visitas da cidade” (ARAÚJO, 1997, p. 355), assim, o clube seria
reconhecido por muitos como “o aristocrático” representante local
de noções e valores ligados ao progresso e a modernização dos
costumes.
Entrada da sede do Jequié Tênis Clube (no fim da década de 30, provavelmente)
Fonte: Acervo pessoal de Pedro Rodrigues. Autor desconhecido (s/d).
157
Jequié tênis clube
A importância simbólica do clube para a vida social da cidade
era tanta que vários personagens projetaram-se politicamente por
intermédio de suas atuações como dirigentes do clube. Podemos
mesmo afirmar que existiu uma intensa relação entre a política local
e a administração do clube. Figuras como Nelson Moraes, Dorival
Borges de Sousa, Walter Sampaio, Newton Pinto de Araújo, Ewerton
Almeida e Milton Rabello, todos pertencentes a famílias da elite
jequieense, figuraram como praticantes de esportes (sobretudo o
tênis), dirigentes do clube, além de terem atuado na vida política
da cidade, como prefeitos, deputados, vereadores. Segundo Val
Rodrigues (2012):
Na época o JTC era o suprassumo dos desejos das pessoas, todos
queriam ser associados e o clube se dava o luxo de escolher quem
queria para o seu quadro social. Ser o seu presidente, era o aval para
uma candidatura a vereador ou prefeito da cidade, ali se media e
quantificava a competência do cidadão (RODRIGUES, 2012, p.19)
JTC Esportivo
Os novos moradores incrementavam a densidade populacional
e a dinâmica comercial da cidade. Alguns desses imigrantes teriam
papel proeminente num conjunto de transformações sociais e
culturais em Jequié, incluindo aí àquelas relacionadas aos esportes.
Em 1938, por exemplo, o imigrante italiano Vicente Grillo, que já
havia doado terrenos para construção da Catedral de Santo Antônio,
do Cemitério São João Batista, entre outras iniciativas em Jequié,
doara também um terreno para a construção da sede até hoje
ocupada pelo Jequié Tênis Clube (RODRIGUES, 2012). Imigrantes,
além disso, também ofereceriam incentivos para o início da prática
de esportes. João Aguiar Ribeiro, por exemplo, sócio do Jequié Tênis
Clube, conhecido como “canhota de ouro”, vencedor de diversos
campeonatos, incluindo um campeonato brasileiro de tênis em
1954, começara a praticar a modalidade sob estímulo direto de seu
cunhado, o italiano Vicente Leone, conforme conta sua filha, Lílian
Simone Ribeiro Dutra, em entrevista concedida.
158
História do Esporte
Tenista João Aguiar Ribeiro
Fonte: Acervo pessoal de Lílian Simone Ribeiro Dutra. Autor
desconhecido (s/d).
É possível que alguns desses estrangeiros já chegassem ao Brasil
conhecedores de esportes. O quartel final do século XIX, quando
aumenta a proporções de estrangeiros fixando residência no Brasil,
coincide com o momento em que os esportes conheciam progressiva
disseminação por todo o continente europeu (cf. RIORDAN;
KRUGER, 2003). Na Itália, especificamente, responsável pelo envio
de mais de 2,5 milhões de pessoas para o Brasil entre 1886 e 1920
(ALVIM, 1998), o esporte já era uma realidade relativamente bem
conhecida desde essa época. Desde a década de 1880, clubes de
ginástica relativamente bem consolidados ao redor de vários pontos
da Itália introduziam modalidades esportivas em seus repertórios
de atividades. Logo, testemunhar-se-ia o surgimento de associações
e o início de competições dedicadas ao alpinismo, ciclismo, esqui,
futebol e natação (MARTIN, 2011). Não por acaso, esportes foram
ativamente utilizadas por comunidades de imigrantes italianos como
instrumento privilegiado de mediação de suas interações com a
sociedade brasileira (BOCKETTI, 2008).
159
Jequié tênis clube
De outra forma, porém, também não é improvável que muitos
desses imigrantes italianos tenham entrado em contato com esportes
pela primeira vez no Brasil. Na Bahia, diferente do que ocorria com
a maioria dos imigrantes europeus, que vinham do campo, para
o campo, italianos costumavam ter ocupações de natureza mais
urbana. Eram sapateiros, carpinteiros, músicos, mecânicos, ourives
ou comerciantes. Assim, ao invés de trabalharem na plantação de
lavouras, atuavam como “mascates”, caixeiros-viajantes que além de
vender tecidos e gêneros alimentícios, atuavam como divulgadores
de notícias de outras regiões e novidades importadas da Europa,
como máquinas fotográficas, gramafones e outras inovações da
época. Eram verdadeiros intermediadores culturais, servindo como
ponte entre as modernas novidades do século XX e a vida tradicional
e rural do sertão baiano.
Os arquivos disponíveis no JTC e os depoimentos de dirigentes e
esportistas de Jequié, nos dá uma certa segurança para afirmar, que o
Tênis foi o primeiro esporte sistematizado de quadra em Jequié.
Competição de Tênis no JTC
Fonte: Acervo do Jequié Tênis Clube. Autor desconhecido (s/d).
Este histórico de desenvolvimento do Esporte em Jequié,
capitaneado pelo JTC, impactou a visibilidade da cidade, a
participação em competições estaduais e nacionais, deixa nos
dias de hoje para muitos esportistas de gerações diferentes, uma
sensação de descontinuidade. Muitos esportistas da Cidade atribui
o auge do esporte Jequieensse o ano em que o Brasil conquistou o
160
História do Esporte
tri campeonato mundial de futebol. Garrincha jogou uma partida de
futebol em Jequié, no estádio municipal Waldomiro Borges (Jequié X
Ipiaú), ele jogou o primeiro tempo por Jequié e o segundo por Ipiaú
na década de 1970.
	
Pedro Rodrigues, desportista da década de 1950 assevera a esse
respeito:
Todos nós já passamos por situações nas quais a coincidência é a
personagem principal. Mas, há momentos em que nos parece que
o conceito “coincidência” explica muito pouco... essas inquietantes
“casualidades” não teria maior importância se fizesse parte de um
caso isolado. No entanto, a realidade as oferece com tanta profusão
que nos faz pensar num sistema autofágico. (Rodrigues, 2012, p.44)
Como vemos, a constatação é material e também saudosista.
161
Jequié tênis clube
Considerações Finais
Em larga medida, foi justamente essa trajetória histórica um
dos principais elementos a concorrer para as representações que o
Jequié Tênis Clube assumiu para a memória e o imaginário de Jequié
a partir de determinado momento, manifestando-se até hoje em
certa medida. Atualmente, o Jequié Tênis Clube é recorrentemente
lembrado como um espaço institucional responsável por agregar
visibilidade e prestígio à cidade.
A posição social privilegiada dos principais sócios do clube
certamente concorreu para a cristalização de uma memória muito
positiva, e mais que isso, gloriosa do Jequié Tênis Clube. Todavia,
para as finalidades deste trabalho, não importa discutir se o clube, de
fato, foi ou não tão importante para as representações da cidade na
Bahia e no Brasil, como apontam alguns desses modos de lembrar-
se do passado do clube. Aqui, de outra forma, interessa situar essa
experiência mnemônica no contexto de uma história regional do
esporte – ainda pouco considerada na historiografia brasileira
sobre o assunto. Em Jequié, a fundação de um clube de esportes
fora o resultado de fluxos multidirecionais entre o sertão e a capital,
intermediados simultaneamente por diferentes grupos sociais:
imigrantes italianos, jovens da elite, ferroviários brasileiros ou não.
Ligando Jequié a um amplo circuito de trocas materiais e imateriais,
esses grupos disseminaram novos produtos, ideias e práticas, entre
as quais, os “sports”.
Para além dessa versão, outras possibilidades de memória foram
ou são ainda possíveis. A interdição que o próprio requinte do
Jequié Tênis Clube impunha aos habitantes mais pobres da cidade
não significou que estes outros grupos estivessem impedidos de
apreender práticas esportivas em Jequié, ainda que atribuindo-lhes
outros significados, diferentes daqueles pretendidos pelas elites. A
reconstituição dessas outras histórias, porém, esbarra em limitações
documentais severas – que afetam também o envolvimento das
elites com essas práticas. A continuidade de pesquisas em outros
arquivos baianos talvez ajude a transpor tais obstáculos, permitindo
desvelamento mais detalhado dos meandros dessas outras histórias.
162
História do Esporte
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Educação Física da UEM, v.23, n.4, p.529-541, 2012.
165
CAPÍTULO X
A MODERNIDADE EM DUAS RODAS: CULTURA E PODER
NA PRÁTICA DO CICLISMO NA CIDADE DE SÃO PAULO
(1890-1904)
Prof. Me. Yuri Vasquez Souza
Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga
Introdução
A bicicleta e o ciclismo, objetos desse trabalho, estão inseridos no
complexo processo de modernização das estruturas de produção e
das relações sociais.
Como se sabe, a modernidade modificou os modos de fazer e
de representar as coisas, a organização econômica e produtiva,
a literatura e as artes, a organização política e o estilo de vida, o
planejamento urbano e as formas de se deslocar pela cidade.
Os estudos acerca da modernidade buscam apreendê-la como
movimento, em suas múltiplas manifestações e no ritmo de mudança
que se estabelece em torno da produção, no espaço e nas novas
relações que surgem através dos objetos que passou-se a produzir1
.
Os novos objetos desenvolvidos pela indústria, que surgiram com o
advento da modernidade foram responsáveis por reestruturar formas
de vida e passaram a ocupar papéis importantes na construção do
ideal de civilidade e do sujeito2
.
Neste trabalho, escolheu-se abordar a bicicleta como objeto
da cultura material, fruto do desenvolvimento tecnológico, que
aconteceu durante todo o século XIX, e que acontece ainda hoje; e
o ciclismo, que é a prática cultural do andar de bicicleta e um dos
1
Sobre o processo de industrialização e racionalização industrial e moderna, que passaram a direcionar
a formação das cidades e dos estilos de vida ver: Hobsbawm (2015).
2
	 Segundo Soares (2011), entender a vida dos objetos nos permite, a partir de suas particularidades,
compreender formas e modos de vida que compõem profunda e sistematicamente a educação do
corpo. Um olhar possível em direção à cultura que se formou em São Paulo em torno da bicicleta busca
compreender quais espaços possibilitaram ou não a prática do ciclismo.
166
História do Esporte
símbolos da modernidade e do progresso, e que se faz presente no
cotidiano dos centros urbanos, em diversas manifestações da sua
prática e da sua incorporação a dinâmicas variadas no interior das
idades3
.
Nessa perspectiva, através deste trabalho, buscou-se contribuir
com os estudos acerca da história do desenvolvimento dos modernos
sports4
e também dos usos e representações da bicicleta, na cidade
de São Paulo, desde sua chegada à capital paulista, no final do século
XIX, até meados da primeira década do século XX5
.
Bicicleta, ciclismo e modernidade
Os modelos que deram origem ao atual desenho da bicicleta são
resultado das modificações da estrutura do objeto e de sua mecânica
ao longo de todo século XIX e XX. A bicicleta foi desenvolvida por
inventores, espalhados por cidades da Alemanha, Inglaterra e França,
que tinham como objetivo a melhoria do desempenho daquele
veículo, o conforto para o usuário e a estética do objeto6
.
Segundo Pequini (2000; 2005), a Michaux e Co. primeira
fabricante francesa de bicicleta, iniciou a produção em massa do
velocípede em 1861, introduzindo o objeto na linha de produção
industrial. Mais tarde, na Inglaterra, os irmãos Gilmet e Meyer
adicionaram a engrenagem por correntes, aumentando, assim, a
velocidade atingida pela bicicleta. A partir daí, a prática ciclística se
espalhou por toda a Europa e chegou timidamente ao Brasil.
Desde o início de sua produção em escala industrial, a bicicleta
percorreu diversos países e, em cada um deles, a cultura ciclística se
estabeleceu de uma maneira própria, já que seu uso é determinado
sempre por seus usuários.
3
	 Segundo Schetino (2007), o ciclismo pode ser definido tanto como a “arte de andar de bicicleta”
como “o esporte das corridas de bicicletas”.
4
	 Sobre os sports e o processo civilizatório ver: Elias e Dunning (1992).
5
Segundo Souza (2016), o estudo das representações da bicicleta na cidade de São Paulo auxilia a
compreensão de aspectos do desenvolvimento e da história da cidade.
6
Para entendimento do desenvolvimento mecânico e do designer aplicado à bicicleta ver: Pequini
(2000; 2005).
167
A modernidade em duas rodas
Por potencializar os descolamentos, a bicicleta passou a ser um
meiodelocomoçãonoespaçourbano,tornando-seumdosprincipais
meios de transporte, principalmente da classe trabalhadora, por
ser economicamente acessível, exigir pouca manutenção e oferecer
versatilidade capaz de encurtar distâncias e criar oportunidades de
encontros, sobretudo em países europeus. No Brasil, nas décadas de
1950 e 1960, as fabricantes de bicicleta, Caloi e Monark, passaram
a direcionar seus anúncios à classe trabalhadora e, ao mesmo
tempo, incentivavam seus funcionários a adotar essa alternativa de
transporte.
Por outro lado, desde o início do século XX, na Europa
e no Brasil, a prática desportiva realizada com a bicicleta foi
incorporada aos modernos sports7
. Na França, um dos berços do
desenvolvimento técnico do objeto, a cultura ciclística se formou
e se expandiu principalmente influenciada pelas grandes provas
ciclísticas realizadas no final do século XIX e início do XX.  O desafio
Paris- Brest- Paris de 1891 e o Tour de France, de 1903, são marcos
históricos da formação da cultura da bicicleta daquele país8
.
A prática do ciclismo entre as elites paulistanas
Os primeiros relatos da presença da bicicleta no Brasil apontam
que as primeiras unidades chegaram ao sul do país, em São Paulo
e no Rio de Janeiro, na segunda metade século XIX (BUSTOS,
2014). Nessa mesma época, São Paulo passou a receber famílias
ricas, que trocaram a vida nas fazendas de café pela vida na cidade.
Esse processo, juntamente com a chegada dos trilhos da São Paulo-
Jundiaí, colocaram São Paulo na modernidade, introduzindo novos
modos de viver. Para Rago (2004, p.390):
7
Com o aprimoramento da técnica desportiva, o ciclismo recebeu adequações e passou exigir espaços
e estruturas próprias para a sua prática desportiva, criando novas instituições, reforçando a ideia de
sujeito universal e promovendo novas relações sociais. Segundo Vigarello (2001), o ciclismo desportivo
foi o principal responsável por incorporar o uso de tecnologias modernas ao esporte. O ciclismo passou
a dinamizar as relações entre os indivíduos e estabeleceu um novo ideal de vida moderna: a bicicleta
8
Ao se analisarem aspectos da cultura moderna francesa, incluindo o ciclismo, na transição do século
XIX para o XX, Weber (1998) escolheu denominar esse período através da expressão “Fin-de-Siècle”.
168
História do Esporte
Desde cedo, a metropolização da cidade de São Paulo envolveu mui-
to mais do que a ordenação e o embelezamento do espaço físico,
com a construção dos majestosos palacetes, jardins e parques, como
o Anhangabaú, o parque Dom Pedro, ou a Praça Buenos Aires, pelo
arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard. Constituiu-se um novo
regime de verdade a partir do qual foram definidas e ditadas as re-
gras do modo correto de viver, sentir, pensar e agir. Os padrões con-
siderados civilizados de comportamento e de convívio social, pro-
gressivamente adotados no universo patriarcal da elite cafeicultora
e dos industriais emergentes foram exportados para toda a cidade,
produzindo tensões, conflitos, tumultos e resistências.
Segundo Souza (2016), as primeiras bicicletas foram trazidas à
cidade de São Paulo, no final do século XIX, por iniciativa de pessoas
que frequentemente viajavam ao continente europeu, especialmente
à França, e de lá importavam costumes e modas da época. Assim, a
introdução da bicicleta em São Paulo foi responsável pelo surgimento
de novos espaços de sociabilidade, como praças e velódromos e pela
prática de sports que estimularam as competições ciclísticas na
cidade9
.
Conforme Sevcenko (1992), nessa época, os cronista dos jornais
enfatizavam em seus textos a enorme e crescente febre esportiva nas
múltiplas modalidades aqui praticadas: as corridas de pedestres, as
náuticas, as ciclísticas, as motociclistas e as automobilísticas, que
introduziam uma nova relação da cidade com a velocidade. Para
Sevcenko (1992),
O fenômeno era recente e suas trilhas de difusão pulsavam manifes-
tantes. Considerado um avanço incontestável, uma conquista social,
seu advento marcava uma nova etapa na história da humanidade.
De par com as últimas descobertas tecnológicas, de fato como um
desdobramento delas, se destacou a noção de um corpo humano em
particular e a sociedade como um todo são também máquinas, au-
tênticos dínamos geradores de energia (SEVCENKO, Op. cit., p. 45).
Ao chegar a São Paulo, em meados de 1890, a bicicleta trouxe
consigo traços dos usos que a sociedade europeia lhe atribuiu,
9
Sobre aspectos da cultura ciclística paulistana, desde a chegada da bicicleta, passando pelos clubes
esportivos e também o uso cotidiano do objeto ver: SOUZA. Op. Cit.
169
A modernidade em duas rodas
principalmente no que diz respeito ao uso esportivo. Antônio Prado
Junior e outros membros das famílias abastadas foram responsáveis
por trazer as primeiras unidades do objeto, contribuindo para o
surgimento de novas formas de sociabilização através dos clubes de
ciclismo.
Souza (2016) aponta que, nessa época, surgiram na cidade
espaços para a prática ciclística como o Jockey Club, o velódromo
do Parque Antártica e o Velódromo de Sant’Anna, que organizavam
provas ciclísticas, contribuindo, desse modo, para a popularização
do esporte.
Em 1892, Antônio Silva Prado, cafeicultor e político ligado ao
partido Republicano Paulista (PRP), e sua mãe, Veridiana Prado10
,
encomendaram o projeto de um velódromo no interior da chácara
localizada na região da Consolação e colocaram o ciclismo em
prática na família. Em se tratando de ciclismo de pista, a alta
burguesia paulistana promovia e disputava os páreos de bicicleta
principalmente os realizados no Velódromo Paulista11
. Com medidas
oficiais e inspirado nos modelos europeus, o Velódromo Paulista
passou a abrigar as corridas de bicicleta, possibilitando o surgimento
de um dos primeiros clubes ciclísticos na cidade: O Veloce Club
Olímpico Paulista.
Inspirado nos clubes franceses, o Veloce Clube Paulista promovia
as corridas e as disputas realizadas no Velódromo Paulista, o que
contribuíaparaadivulgaçãodociclismoentreapopulaçãopaulistana.
O conhecimento e o uso da bicicleta serviram como primeiro contato
da população paulistana com ela.
Inaugurado em 21 de julho de 1896, o Velódromo é considerado
a primeira praça de esporte ao ar livre do país12
. Dentre os clubes
fundados no velódromo, com participação de Antônio Prado Jr.,
10
A construção do velódromo torna Dona Veridiana importante figura no desenvolvimento do esporte
paulistano, juntamente com seu neto, Antônio Prado Jr., um sportman à paulistana, para quem o
velódromo serviu como sede dos diversos clubes esportivos em que ele esteve envolvido como atleta e
dirigente. (SOUZA, Op. Cit)
11
SOUZA, Op. Cit.
12
RAGO, Op. Cit.
170
História do Esporte
destaca-se o Veloce Club Olímpico Paulista e o Athletico Clube
Paulistano. Em ambos atuou como desportista e dirigente. Mais
tarde, em 1904, ajudou a fundar o automóvel Club Paulista. Durante
toda a sua vida, dirigiu entidades federativas esportivas no Brasil,
destacando-se a sua escolha para ser o 1º presidente do Comitê
Olímpico Brasileiro-COB, entre os anos de 1935 e 194613
.
Figura 1: Panfleto de Inauguração da pista pavimentada do Velódromo Paulista, 1896.
O velódromo foi, portanto, o berço do ciclismo competitivo da
cidade e passou a ser o espaço social das famílias da elite paulistana14
:
Extraordinariamente animada a corrida que o « Veloce Club » rea-
lizou domingo ultimo, no Velodromo da Consolação, e pena foi que
a chuva viesse transtornar a festa, na occasião de realisarem-se os
pareôs mais importantes do dia. A concurrencia, como sempre, foi
selecta, vendo se nas archibancadas as principais famílias de nossa
sociedade. Durante todo o tempo que durou o temporal, a banda de
musica do corpo de bombeiros, collocada numa das archibancadas,
executou brilhantes peças. (A Bicycleta, 1896, n.18, p.71)
13
NICOLINI, Op. Cit.
14
NICOLINI, Op. Cit.
171
A modernidade em duas rodas
A propriedade da família Prado abrangia toda a área que hoje
é ocupada pelos bairros de Higienópolis e Santa Cecília no centro
da capital paulistana. No interior da chácara Vila Maria, o parque
esportivo contava com campo de futebol e uma pista de ciclismo,
rodeada de duas arquibancadas de madeira, cada uma para mil
pessoas. Construído em terra batida na sua inauguração, dois anos
depois teve a pista recoberta de pavimento.
Nessa época, jornais de grande circulação como O Estado de São
PauloeCorreioPaulistanopassaramanoticiarospáreosrealizadosno
velódromo da Consolação15
. Mas, em se tratando de sports, destaca-
se o surgimento de semanários que se dedicavam exclusivamente a
noticiar os eventos esportivos em São Paulo16
.
EmmeioàdifusãodociclismoemSãoPaulo,em1896, épublicado
o Semanário Cyclistico Illustrado A Bicycleta, responsável por
divulgar a cultura ciclística daquele momento e que, em seu formato,
inspirou-se em jornais franceses especializados em ciclismo, como
o L’auto e La Bicyclette. Publicado aos domingos, seu principal
objetivo era difundir a cultura ciclística paulistana, enfatizando a
prática esportiva e as sociabilidades elitistas do Velódromo Paulista
e do Veloce Club, seguindo o modelo das publicações europeias,
especializadas em assuntos esportivos. Segundo o semanário, assim
se desenvolviam as atividades no Velódromo Paulista:
Velódromo Paulista:
Completamente transformado, com a pista cimentada, elegante ar-
chibancada, rink, tiro ao alvo, com serviço de restaurant e botequim
de primeira ordem, estará diariamente aberto ao publico das 6 1/2 ás
10 horas da amanhã, do meio dia á 1 hora e das 4 ás 6 horas da tarde.
PREÇOS: Entrada geral, 1$000 Entrada no Rink, 1$000.
Nas tardes de terça, quinta feira e sabbado, tocará uma banda de
musica (A Bicycleta, 1896, s/n, s/p.).
15
Ao se analisarem as publicações desses dois jornais no período estudado, 1890- 1903, encontram-
se muitas notícias e relatos sobre o uso da bicicleta em São Paulo, mas primordialmente o uso
esportivo do objeto.
16
Dentre os semanários consultados para a realização desta pesquisa, destacam-se as publicações
do “Semanário A Vida Esportiva” de 1903, do “Semanário Illustrado Vida Paulista”, do mesmo ano,
e o pioneiro em noticiar exclusivamente os páreos de bicicleta, O Semanário Cyclistico Illustrado A
Bicycleta de 1896.
172
História do Esporte
No texto, o Semanário enfatizava a “entusiástica torcida” do
público presente às disputas de ciclistas – os velocemen da Paulicéia –
realizadas no Velódromo. A preocupação do periódico em promover
as disputas e em exaltar a participação do público, ocupavam espaço
de destaque nas notícias sobre os eventos esportivos. Um dado
interessante encontrado nas notícias dá conta que os esportistas – os
velocement – como eram chamados, costumavam usar pseudônimos.
Assim, Antônio Prado Jr., era conhecido no Velódromo como Odarp,
anagrama do sobrenome de família, Prado. Alberico, às avessas era
Ocirebla, mas também tinha o Rápido, o Mago, o Dr. Semana, o
Rocambole, dentre outros muitos. Usar outros nomes como espécie
de “identidade ciclística” era também prática comum no Rio de
Janeiro assim como nos descreve Schetino (2007):
Tornou-se habito comum entre os ciclistas a adoção de pseudôni-
mos para a participação nas competições. Excetuando-se alguns
menos criativos, que utilizavam o sobrenome, encontramos atletas
com as mais variada denominações: valores exaltados no esporte li-
gados a força e velocidade, como Destemido, Cruel, Le Fleche; no-
mes de marcas de bicicletas e acessórios. que por vezes patrocináva-
mos atletas, como Monarck, Dunlop; nomes de cavalos campeões,
reforçando as relações estabelecidas entre o ciclismo e o turfe como
Huguenotte e Boulanger, respectivamente, animais vencedores que
corriam no ano de 1890 (SCHETINO, 2007, p.100).
A descrição dos pareôs e a performance esportiva dos ciclistas são
o assunto mais abordado pelo semanário. Por exemplo, na capa da
edição de número 4, datada de 12 de junho de 1896, o Semanário “A
Bicycleta” estampa o imagem de Otto Huffenbaecher, filho de Carlos
Huffenbaecher, importante cafeicultor paulista. Otto representa,
segundo o semanário, a figura do verdadeiro sportman do ciclismo
paulistano17
.
17
Muito detalhista, o semanário publicava o tempo das provas e, pelas notícias, sabe-se que as
provas disputadas no velódromo da Consolação variavam em entre 380 e 3000 metros. Havia páreos
que chegavam a durar cerca de 12 horas ininterruptas. O jornal publicou o levantamento estatístico
dos tempos medidos no Velódromo Paulista, entre 21 de junho e 25 de outubro de 1986. As provas
comparadas foram as de 500, 25.000 e 50.000 metros de distância.
173
A modernidade em duas rodas
Figura 2: Capa do Semanário Cyclistico Illustrado A Bicycleta
de 12 de julho de 1896.
O semanário, além de difundir o ciclismo, comemorava
datas importantes para o republicanismo liberal, do qual a burguesia
paulistana era a maior representante. Os páreos de 14 de julho
de 1896, data importante para o liberalismo francês, e de 15 de
novembro, data marco da proclamação da república no Brasil atraíam
expoentes da elite política paulista, que passaram a frequentar as
arquibancadas, camarotes e aéreas sociais do Velódromo. A notícia
de 1896, por exemplo, destaca as presenças, nesse período, de
Campos Sales, presidente da província de São Paulo, de Washington
Luís, importante político e futuro prefeito de São Paulo, além de toda
a família Prado:
174
História do Esporte
Extraordinariamente animada a corrida que o « Veloce Club » rea-
lizou domingo ultimo, no Velódromo da Consolação, e pena foi que
a chuva viesse transtornar a festa, na ocasião de realizaram-se os
pareôs mais importantes do dia. A concorrência, como sempre, foi
selecta, vendo-se nas archibancadas as principais famílias de nossa
sociedade. Durante todo o tempo que durou o temporal, a banda de
musica do corpo de bombeiros, colocada numa das archibancadas,
executou brilhantes peças (A Bicycleta 1896, n.18, p.69).
Para além dos páreos, diversas crônicas e artigos extraídos
de publicações de outros países sobre ciclismo foram notícia nos
jornais da época. Em muitos deles, a bicicleta é descrita como objeto
de diversão da aristocracia inglesa, russa, portuguesa, italiana,
dinamarquesa, austríaca e grega, para destacar e para enfatizar a
adesão da nobreza e da aristocracia europeia à prática do ciclismo
ou, segundo o semanário, ao “velocipiedismo”18
.
Em relação ao uso da bicicleta pelo público feminino, há uma
notícia, em tom crítico, sobre um incidente que envolveu uma ciclista.
Em sintonia com os noticiários de periódicos esportivos europeus,
que destacavam a prática do ciclismo por mulheres, o Semanário
publicou uma nota de repúdio aos protagonistas de um episódio
envolvendo o público e uma ciclista no velódromo no Rio de Janeiro.
A nota intitulada “Sem comentários” descreve uma corrida realizada
no Derby Clube daquela cidade (Rio de Janeiro) em que, segundo
notícia publicado no O Paiz, uma moça, que aquele jornal identifica
trajando roupas apropriadas à prática do ciclismo e bombachas presas
na altura dos joelhos, causou certo alvoroço nas arquibancadas ao
adentrar a pista montada em sua bicicleta. A quem se espantou com
o acontecimento, o “povinho”, na expressão do jornal, e “que achando
uma coisa talvez mais fantástica a presença de uma bicycletista n’um
campo de sport”, começou a vaiar, um “attestado de uma falta de
educação inqualificável, um atentado a liberdade individual…” (A
Bicycleta, 1896, n.18, p.72).
Podem-se encontrar também nas páginas do Semanário
indicações de parâmetros alimentares para ajudar a melhorar o
18
A Bicycleta, n.18, p.72.
175
A modernidade em duas rodas
desempenho e as funções orgânicas do corpo, embora a ciência da
Nutrição só tenha ganho importância a partir do anos 1930 194019
.
Portanto, a medicina começa a se preocupar com a alimentação
mais adequada à prática desse esporte. Do mesmo modo, em artigos
publicados por médicos, ressalta-se a importância dessa atividade
para a saúde, inclusive das mulheres.
O andar equilibrado sobre um veículo de duas rodas requer
experiência e, na época, quem se aventurava corria o risco de
provocar curiosidade e chacota:
Um Cyclista, ainda não muito seguro no risco passeando pelas ruas
d’esta capital, notou que era constantemente seguido por três mole-
ques. Já montado por tal perseguição, dirigiu-se aos mulecotes per-
guntando-lhes o que queriam, ao que um d’elles respondeu: - Fazeis
tantos zig-zags, que estamos á espera que deis um tombo, para carre-
gar a bicycleta para vossa casa! (A Bicycleta, 1896, n.18, p.72).
Se o andar de bicicleta não é uma prática fácil e precisa ser
aprendida, o Semanário noticia as aulas oferecidas no velódromo:
“Velódromo Paulista: Licções de velocipedia e patinação. Alugueis de
velocípedes e patins. Todos os dias das 7 às 10 horas da manhã das 12
às a 2 da tarde e das 4 às 6.”(A Bicycleta, 1896, s/n s/p).
A partir de 1904, as corridas de bicicleta cairiam em decadência
e, na mesma época, o Veloce Club seria desfeito. Após a criação
do Club Atlético Paulistano em 1900, Antônio Prado Jr, ciclista,
futebolista e neto de dona Veridiana, alugou de sua avó o velódromo,
pela quantia de 250$000 mil reis e ali estabeleceu a primeira sede do
seu clube de futebol, o Athletico Clube Paulistano (ACP). Contudo,
o velódromo se manteve em funcionamento, como estádio e espaço
para prática e disputas ciclísticas, até 1914, quando foi desapropriado
para dar passagem para a rua Nestor Pestana . Em 1917, o Atlético
Clube Paulistano transferiu-se para a região do Jardim América e
Antonio Prado Jr. passou a dedicar-se a outros esportes, dentre eles
o automobilismo.
19
A Bicycleta, n.18, p.72. Ver também Sant’Anna (2016).
176
História do Esporte
Um adendo não conclusivo...
Se, no presente texto, destaca-se como fonte o Semanário A
Bycicleta, por ser um material ainda inédito, há que se considerar
que um estudo mais aprofundado desse periódico ainda está por ser
feito. A bibliografia sobre a introdução da bicicleta na cidade de São
Paulo e seu uso, merecem outras pesquisas, que reflitam sobre como
a prática ciclística modificou os hábitos de sociabilidade paulistana,
e como trabalhar o material publicado por revistas da época, como
Educação Physica - Revista de Técnica de Sport e Athletismo; Sport
Ilustrado; Revista de Educação Física do Exército, dentre outras, e que
noticiam as pesquisas de médicos sobre os benefícios da prática para
a saúde. Portanto, a bicicleta – a exemplo do que ocorreu em outros
países - incentivou o comércio de roupas esportivas, especialmente
para mulheres, como destaca a excelente pesquisa de Cármen Lúcia
Soares (2011), e também o surgimento de pequenas oficinas para
conserto de bicicletas. Somados a isso, os anúncios publicados nos
jornais sobre a venda e aluguel de bicicletas em São Paulo, permitem
perceber como esse objeto deixou de ser apenas de uso da elite
paulistana e foi sendo gradativamente disseminado pelas camadas
populares, como meio de locomoção e de transporte para o trabalho
(ver a respeito, dissertação de mestrado de Souza opus cit.) .
Fontes Documentais
Semanário A Vida Esportiva, 1903.
Semanário Illustrado Vida Paulista1903.
Semanário Ilustrado A Bicycleta, 1896. n 4.
Semanário Ilustrado A Bicycleta, 1896 n 18.
O Estado de São Paulo 1890- 1903
Correio Paulistano 1890- 1903
177
A modernidade em duas rodas
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WEBER, E. França Fin-de-Siècle. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
179
SOBRE OS AUTORES
Angelo Maurício de Amorim - Graduado em Educação Física
(UCSal/BA), Mestre em Educação (UFBA/BA). Professor da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA).
Cleber Augusto Gonçalves Dias – graduado em Educação Física
(UCB/RJ), mestre em História Comparada (UFRJ/RJ), doutor em
Educação (UNICAMP/SP). Professor da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG/MG).
Denize Pereira de Azevêdo Freitas – Licenciada em Educação Física
e Bacharel em Ciências Econômicas (UEFS/BA), mestre em Saúde
Coletiva (UEFS/BA). Professora da Universidade Estadual de Feira
de Santana (UEFS/BA).
Enny Vieira Moraes – Licenciada em Educação Física (UFAL/AL),
mestre em Educação Física (UGF/RJ), doutora em História (PUC/
SP). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB/BA).
EstefâniaKnotzCanguçúFraga–GraduadaemHistória,especialista
em História e Doutora em História (PUC/SP). Professora do
Programa de Pós Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP).
Gildison Alves de Souza - Licenciado em Educação Física (UNEB/BA).
Joalice Santos Batista - Licenciada em Educação Física (UESB/BA).
Atua no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF - Jitaúna/BA).
Jorge Miguel Acosta Soares – Graduado em História (UNICAMP/
SP), em Jornalismo (PUC/SP) e em Direito (PUC/SP), mestre em
Direito (PUC/SP) e Doutor em História (PUC/SP).
180
Marcos Cesar Meira Leite – graduando em Educação Física (UESB/
BA).
Nailze Pereira de Azevêdo Pazin – graduada em história, mestre
em educação e doutora em história (USFC/SC). Professora da rede
municipal de ensino de Florianópolis.
Natanael Vaz Sampaio Junior - Licenciado em Educação Física
(UESB/BA), mestre em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB/
BA). Professor regente da Secretaria de Educação do Estado da Bahia
(SEC/BA).
Osni Oliveira Noberto da Silva – Licenciado em Educação Física
(UEFS/BA), Mestre em Educação (UFBA/BA). Professor da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA).
Ricardo Franklin de Freitas Mussi – Licenciado em Educação Física
(UNEB/BA), Mestre em Saúde Coletiva (UEFS/BA). Professor da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA).
Roberto Gondim Pires – graduado em Educação Física (UFBA/BA),
mestre em Educação (PUC/SP), doutor em Educação (UFBA/BA).
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB/
BA).
Tania Mara Vieira Sampaio – Bacharel em Teologia (UMESP/
SP), graduada em pedagogia (UNIMEP/SP), Mestre e doutora em
Ciências da Religião (UMESP/SP). Professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG/GO).
ZuleikaStefâniaSabinoRoque–graduadaemHistóriaeespecialista
em História e Geografia (UNIVAP/PB), mestre e doutora em
História (PUC/SP). Professora da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP/SP).
181
Yuri Vasquez Souza – Bacharel e Licenciado em Educação Física
(USCS/SP), Mestre em História (PUC/SP).
Este livro foi impresso na oficina da Pronto Editora
Gráfica/ Kelps, no papel: Off-set LD 75g/m2
,
composto na fonte Minion Pro corpos 10 e 12.
Abril, 2017.
A revisão final desta obra é de responsabilidade dos autores.
Em apoio à sustentabilidade, à
preservação ambiental, Pronto Editora
Gráfica/ Kelps, declara que este livro foi
impresso com papel produzido de floresta
cultivada em áreas não degradadas e que
é inteiramente reciclável.

Livro história do-esporte-cultura-política-gênero-e-economia

  • 2.
    HISTÓRIA DO ESPORTE: cultura,política, gênero e economia
  • 3.
    Realização & CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr.Marcius de Almeida Gomes – UNEB/BA Prof. Dr. Paulo Cezar Borges Martins – UNEB/BA Profa. Me. Margaret Pereira Arbués – UFG/GO Prof. Me. Edson Matias Dias – PUC/GO Profa. Dra. Sueli Ribeiro Mota Souza – UNEB/BA Prof. Dr. Antônio Lopes Ribeiro – FATEO/DF Profa. Dra. Sandra Célia Coelho G. S. S. de Oliveira – UNEB/BA Prof. Dr. Krzysztof Dworak – PUC/SP Prof. Dr. Luís Flávio Reis Godinho – UFRB/BA Prof. Dr. Itamar Pereira de Aguiar – UESB/BA Profa. Me. Larissa Silva de Abreu Rodrigues – UNEB/BA Profa. Me. Ivanete Prado Fernandes – UNEB/BA Dra. Berta Leni Costa Cardoso - UNEB/BA
  • 4.
    Felipe Eduardo FerreiraMarta Leila Maria Prates Teixeira Mussi Berta Leni Costa Cardoso (Orgs.) HISTÓRIA DO ESPORTE: cultura, política, gênero e economia Coleção MovimentAção: debates e propostas Volume 3 Goiânia – GO Kelps, 2017
  • 5.
    Copyright © 2017by Felipe Eduardo Ferreira Marta; Leila Maria Prates Teixeira Mussi; Berta Leni Costa Cardoso. Editora Kelps Rua 19 nº 100 — St. Marechal Rondon- CEP 74.560-460 — Goiânia — GO Fone: (62) 3211-1616 - Fax: (62) 3211-1075 E-mail: [email protected] / homepage: www.kelps.com.br Programação Visual: Alcides Pessoni Imagem da capa: Projetado por Freepik DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito dos autores. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Impresso no Brasil Printed in Brazil 2017 MAR Marta, Felipe Eduardo Ferreira. his Historia da esporte: cultura, política, gênero e economia - Felipe Eduardo Ferreira Marta; Leila Maria Prates Teixeira Mussi; Berta Leni Costa Cardoso. (orgs.) - Goiânia: / Kelps, 2017 182 p.: il. ISBN: 978-85-400-2065-8 1. Análise 2. Artigos 3. História 4. Esporte I. Título. CDU: 796:(045) CIP - Brasil - Catalogação na Fonte BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS Índice para catálogo sistemático: CDU: 796:(045)
  • 6.
    5 APRESENTAÇÃO A ‘Coleção MovimentAção:debates e propostas’ vem oportuni- zar aos pesquisadores, docentes e extensionistas divulgarem pesqui- sas e intervenções, atividades singulares, que são desenvolvidas nos seus cotidianos acadêmicos, versando sobre questões teóricas e prá- ticas, permitindo que as mais diferentes comunidades (re)conheçam a riqueza dessas ações, se apropriem e dialoguem com os escritores. O terceiro volume, tematizado na “História do Esporte”, apresen- ta produções que versam sobre sua interação com questões culturais, políticas, de gênero e econômicas, que representam importante cam- po de atuação profissional para uma diversidade de profissões. Prof. Me. Ricardo Franklin de Freitas Mussi
  • 8.
    7 PREFÁCIO CELEBRANDO UMA NOVAETAPA NOS ESTUDOS HISTÓRICOS DO ESPORTE NO BRASIL Ainda que existam estudos anteriores, a conformação de um campo acadêmico ao redor da história do esporte se dá na transição dos séculos XX e XXI. No âmbito da Educação Física, os primórdios desse movimento se encontram nos anos 1980. Na História, isso se deu mais tardiamente, nos anos 2000, fortalecendo e sendo funda- mental na melhor definição das iniciativas em curso. A despeito de recente, o campo tem dados passos alvissareiros. Nesses cerca de 20 anos de caminhada, é crescente o número de pes- quisadores envolvidos; de investigações que resultaram na publica- ção de livros, capítulos, artigos em periódicos, teses e dissertações; de localidades envolvidas. Esta última, a meu ver, é a grande novidade dos últimos anos. A princípio, a quase totalidade dos estudos se referia ao eixo Sul- -Sudeste, com destaque para investigações e pesquisadores de Rio de Janeiro e São Paulo. Certamente contribuíram para tal o fato de que a pós-graduação e os mecanismos de pesquisa se encontravam melhor estruturados nessas cidades, bem como sua importância na história nacional. De um lado, não há como negar a contribuição e importância dessas iniciativas – nessas capitais continuam em desenvolvimento importantes ações relacionadas à história do esporte. De outro lado, gestaram-se modelos que, não poucas vezes, acabaram por equivo- cadamente pautar os estudos que começaram a ser desenvolvidos em outras localidades do país. Pari passu com o crescimento da universidade brasileira, inclusi- ve da pós-graduação, em outras regiões nacionais – Nordeste, Cen- tro-Oeste e Norte, os estudos históricos do esporte se espraiaram, envolvendo novos pesquisadores que passaram também a lançar no-
  • 9.
    8 vos olhares sobreo tema, aportar importantes contribuições para o debate, arejar o conjunto de reflexões acerca do assunto. Trata-se de um sinal de dupla via – é tanto um retrato da consolidação do cam- po acadêmico quanto uma relevante contribuição para sua melhor estruturação. Este livro que tenho a honra de prefaciar é um claro exemplo des- se processo. Ainda que envolva pesquisadores da região sudeste, bem como apresente capítulos dedicados a abordagens dessa parte do país ou de caráter mais nacional, pode-se dizer que sua grande potenciali- dade é lançar olhares para arranjos locais ainda pouco conhecidos (e reconhecidos), oriundos do trabalho de pesquisa de jovens pesquisa- dores, majoritariamente atuando no Estado da Bahia. Esse balanço de novos temas, novas abordagens e novos pesqui- sadores (é verdade, alguns nem tão novos, já há alguns anos frequen- tadores e construtores do campo da História do Esporte) é o ponto forte deste livro que já nasce com o perfil de que marcará esse novo tempo dos estudos históricos do esporte brasileiro. Certamente a grande contribuição se dará na sequência. A leitura deste material desencadeará debates (oxalá muitas sejam as críticas que permitam avançar o conhecimento!) e inspirará jovens pesqui- sadores que começam a se encantar com o tema. Novos estudos sur- girão, outros livros serão lançados, eventos organizados: o campo continuará em movimento, mais múltiplo, diverso, aberto à inovação e novidade. O leitor perceberá que não são exagerados esses prognósticos, o futuro nos demonstrará se essas ideias são ou não exageradas. Por ora, cabe nos deleitar com este livro, desfrutar da leitura agradável e saudar essa notável iniciativa. Victor Andrade de Melo Verão de 2017 Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada e do Programa em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Professor do Programa de Pós-graduação em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
  • 10.
    9 SOBRE OS ORGANIZADORES FELIPEEDUARDO FERREIRA MARTA Licenciado em Educação Física (UNESP/SP), Doutor em Histó- ria (PUC/SP), Pós-Doutor (Virginia Tech/USA). Professor Titular do Departamento de Ciências Naturais da Universidade do Sudoeste da Bahia (DCN/UESB/BA) e docente do Programa de Pós-Graduação em Memória: linguagem e sociedade (UESB/BA). Coordenador do Grupo de Pesquisa CORPORHIS – História, Corpo e Cultura. LEILA MARIA PRATES TEIXEIRA MUSSI Licenciada em História (UNEB/BA), mestre em História (UNEB/ BA). Professora da Faculdade Santo Agostinho de Vitória da Con- quista (FASAVIC/BA) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/ BA). Líder do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação, Cultura e Saúde (GEPEECS/CNPq). BERTA LENI COSTA CARDOSO Graduada em Educação Física (UNIMONTES/MG); especialista em Docência do Ensino Superior (FIJ/RJ); mestre e doutora em Edu- cação Física (UCB/DF). Pós-doutoranda em Educação (UESB/BA) Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA). Pes- quisadora do Grupo de Pesquisa sobre Mulher, Gênero e Saúde, do Grupo de Estudos Sociopedagógicos da Educação Física e da Linha de Estudo, Pesquisa e Extensão em Atividade Física
  • 12.
    11 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO............................................................................. 5 PREFÁCIO......................................................................................... 7 VictorAndrade de Melo SOBRE OS ORGANIZADORES...................................................... 9 CAPÍTULO I MEMÓRIAS DO CORPO NA IMPRENSA SOTEROPOLITANA: A TARDE 1912 A 1914.......................................................................13 Prof. Dr. Felipe Eduardo Ferreira Marta Profa. Joalice Santos Batista Prof. Me. Natanael Vaz Sampaio Junior CAPÍTULO II PROFISSIONALIZAÇÃO DO ATLETA DE HANDEBOL NA BAHIA DA DÉCADA DE 1980? UMA ANÁLISE DOCUMENTAL................................................................................... 29 Profa. Ma. Leila Maria Prates Teixeira Mussi Prof. Me. Ricardo Franklin de Freitas Mussi Prof. Me. Angelo Maurício de Amorim CAPÍTULO III HISTÓRIA DO BOXE FEMININO: UMA LUTA ALÉM DOS RINGUES................................................................................................ 47 Profa. Dra. Berta Leni Costa Cardoso Profa. Dra. Tania Mara Vieira Sampaio CAPÍTULO IV DO ESCANTEIO PARA O MEIO DA ÁREA: EM BUSCA DA VISIBILIDADE E RESPEITO AO FUTEBOL FEMININO BRASILEIRO.......................................................................................... 65 Profa. Dra. Enny Vieira Moraes Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque
  • 13.
    12 CAPÍTULO V FUTEBOL EMCAPIM GROSSO E SUA RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS – 1964 A 1985.......................................................................................................... 85 Prof. Gildison Alves de Souza Prof. Me. Osni Oliveira Noberto da Silva CAPÍTULO VI A CAIXA DE GUARDADOS: MEMÓRIAS DO FUTEBOL DE FÁBRICA................................................................................................. 97 Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque CAPÍTULO VII O DISSÍDIO E INTERVENÇÃO ESTATAL NO FUTEBOL NA DÉCADA DE 1930.............................................................................. 115 Dr. Jorge Miguel Acosta Soares CAPÍTULO VIII ESPORTE PARA TODOS E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1964-1985).......... 131 Profa. Dra. Nailze Pereira de Azevêdo Pazin Profa. Ma. Denize Pereira de Azevêdo Freitas CAPÍTULO IX JEQUIÉ TÊNIS CLUBE: INSPIRADOR DA MODERNIDADE ESPORTIVA LOCAL.......................................................................... 147 Prof. Dr. Roberto Gondim Pires Prof. Dr. Cleber Augusto Gonçalves Dias Marcos Cesar Meira Leite CAPÍTULO X A MODERNIDADE EM DUAS RODAS: CULTURA E PODER NA PRÁTICA DO CICLISMO NA CIDADE DE SÃO PAULO (1890- 1904)...................................................................................................... 165 Prof. Me. Yuri Vasquez Souza Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga SOBRE OS AUTORES.................................................................. 179
  • 14.
    13 CAPÍTULO I MEMÓRIAS DOCORPO NA IMPRENSA SOTEROPOLITANA: A TARDE 1912 A 1914 Prof. Dr. Felipe Eduardo Ferreira Marta Profa. Joalice Santos Batista Prof. Me. Natanael Vaz Sampaio Junior Introdução Este estudo desenvolveu-se em uma perspectiva histórica a partir das análises das manchetes do Jornal A TARDE que versavam so- bre as atividades físico-esportivas praticadas na cidade de Salvador, sobretudo, o contexto sócio histórico e cultural em que tais práticas eram desenvolvidas, nos permitindo utilizar da memória enquanto ciência que propiciou a análise de fenômenos que envolvem as dis- cussões sobre o corpo naquela sociedade. A importância de se apropriar da memória na qualidade de re- curso para este estudo, se deve ao fato da memória ter possibilitado a reminiscência de um passado vivificado por diferentes grupos sociais que, de certa forma, determinavam o que era memorável, mas, tam- bém, as formas pelas quais seriam lembrados, sendo a memória fruto dos testemunhos de uma época (HALBWACHS, 2003). Nora (1993), ao elencar acerca dos lugares de memória traz que o que chamamos de memória é a constituição gigantesca e “vertigi- nosa” daquilo que nos é impossível lembrar, daí, o autor se utiliza do pensamento de Leibniz para dizer que a memória de papel tornou-se um instrumento autônomo de museus, bibliotecas depósitos, centros de documentação e bancos de dados. Assim, conforme desaparece a memória tradicional nos sentimos obrigados a acumular religiosa- mente vestígios do que foi (LE GOFF, 1996). Neste sentido, o arquivo público da Biblioteca Pública do Estado da Bahia constitui-se en- quanto lugares de memória registradora, ao dá ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela.
  • 15.
    14 História do Esporte Ojornal A TARDE, caracterizar-se-á como meio produtor de memória na medida em que foi escrito em uma determinada épo- ca por um grupo, tornando-se documento histórico ao se encontrar distante no tempo e ser analisado criticamente pelo historiador. As- sim, cabe ao historiador identificar nestes lugares de memória, meios para escrever a história. Neste sentido, a intenção deste estudo foi identificar memórias do corpo nas páginas do jornal A TARDE no período de 1912 a 1914. Para desenvolvê-lo, foram analisadas 518 edições do referido Jornal, iniciando-se em outubro de 1912 e fin- dando-se em junho de 1914. É importante salientar que no período de janeiro a junho de 1913, não foram encontradas edições do jornal. Os dados foram coletados na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada na cidade de Salvador no período de Setembro de 2013 a março de 2014. Se tratando de um estudo norteado pela análise do discurso jor- nalístico, reforça o papel da imprensa escrita na qualidade de meio difusor de informação que tinha como leitores a camada mais ele- vada da população onde, nela “[…] as tensões e articulações entre a cultura letrada, campo privilegiado de expressão das elites, e a ora- lidade constituem dimensão fundamental da formação das culturas urbanas e das relações de poder na cidade moderna” (CRUZ, 2013, p.30). Assim, “é importante atentar-se que, para um país inserido no contexto da modernidade, os corpos e suas práticas também deve- riam expressá-la” (MARTA, 2013, p.4.). Corroborando com o autor, percebemos o quanto era imprescindível europeizar, a visão dos cor- pos apregoada na pele, sendo necessário que sua conduta corpórea expressasse o protótipo ocidental, levando-nos então a questionar qual a memória de corpo que o jornal enquanto força ativa buscou construir? Como se constituiu a memória do corpo dentro de suas diferentes possibilidades neste espaço movido por ideais de moder- nização?
  • 16.
    15 Memórias do corpona imprensa soteropolitana Memórias do Corpo na Imprensa Soteropolitana [...] é possível discutir o corpo como uma construção cultural, já que cada sociedade se expressa diferentemente por meio de corpos diferentes. Jocimar Daolio O pensamento de trazer Daolio (1995) para esta discussão re- força a ideia de que não foi tarefa simples discutir sobre o corpo, sobretudo, em uma sociedade em transformação, onde os ideais de civilidade e modernidade são constantemente reafirmados como ne- cessários para o avanço dos lugares. Lugares marcados pela experi- ência da industrialização, do avanço tecnológico, do capitalismo e do processo de urbanização, caracterizados pelas novas formas de organização dos espaços, onde, higiene, saúde, beleza, tornam-se desejos a serem impregnados no corpo, e nos espaços, tornando-se uma construção cultural da sociedade. Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mun- do, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator, Através do corpo, o homem apro- pria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, ser- vindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade (LÊ BRETON, 2007, p.7). Em outras palavras, são nos corpos que estão presentes as es- tratégias de sobrevivência humana, onde se experimentam diversas sensações: andar, correr, saltar, pensar, comunicar-se, entre outros. Todas as ações humanas perpassam pela corporeidade, antes de tudo o homem é um ser corpóreo. Corpos que falam que desejam, que através de suas ações transformam realidades, mudam cenários e constroem espaços novos, criam e recriam, inventam e se reinventam na busca incessante por melhorias para si e para o outro. Estes corpos são colocados nas páginas dos periódicos A TARDE sobre diferentes perspectivas, dentre elas estão: corpo, espaço urba- no e higienização; corpo esportivo; corpo e moda; e corpo enquan-
  • 17.
    16 História do Esporte toobjeto de consumo. No entanto, para este estudo desenvolvemos nossas análises a partir do corpo na relação com o espaço urbano e o corpo esportivo, demonstrando o pensamento presente na sociedade soteropolitana no período elencado e, assim, resgatar memórias do corpo nesses espaços que ele emerge. Corpo, higiene e espaço urbano Compreendendo que o homem é antes de tudo um ser corporal e nele todas as ações acontecem, o corpo não pode ser compreen- dido sem uma análise do contexto onde o mesmo se insere. Neste sentido, Caxilé (2007, p.377) assevera que “a imagem idealizada do corpo transfere seus valores para as cidades. As pedras urbanas con- tam experiências de povos – homens e mulheres que sentem e vivem determinadas épocas e lugares”. Assim, no contexto da cidade transi- ta diferentes corpos aumentando a possibilidade de contágio por di- ferentes tipos de epidemias e doenças, deste modo, os cuidados com a saúde no início do século XX, perpassavam pela prevenção e cura de uma “infinidade de febres [...]. Para tais casos, asseio significava principalmente proteção” (SANT’ANA, 2011, p.288). Preocupados com a proliferação de epidemias os representantes da cidade soteropolitana buscavam então, formas de proteger a po- pulação dos males que poderiam acometê-los, objetivando resguar- dá-los de possíveis enfermidades. No fragmento que segue, o Jornal explicita o texto da seguinte forma: “em relação à saúde pública foi solicitado ao diretor da estatística demográfica sanitária o resumo do movimento de vacinação, durante o mês de novembro último, comu- nicando a higiene municipal o péssimo estado dos prédios números 236, 230 e 226, armazéns de secos e molhados situados em zona afe- tada por peste” (A TARDE, ed. 51, dezembro de 1912, p.2). As evidências demonstravam a inquietação no que diz respeito à limpeza dos espaços, e a preocupação com a conservação dos alimen- tos em lugares limpos e devidamente higienizados tornava-se uma das principais preocupações elencadas nas páginas do jornal. Deste
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    17 Memórias do corpona imprensa soteropolitana modo, há indícios de que a elite soteropolitana estava preocupada com o desenvolvimento do espaço urbano, e o corpo imerso nes- te espaço não poderia passar despercebido, as apreensões elencadas nas páginas do jornal, que em sua maioria diziam muito a respeito da corporeidade e da higienização destes corpos imersos no espaço citadino, reforçando os conflitos entre as classes. Os conflitos que abalam a sociedade moderna, “a procura in- fatigável por novas legitimidades são, entre outros fatores, os que contribuíram logicamente para comprovar o enraizamento físico da condição humana” (LE BRETON, 2007, p.10). Assim sendo, a mo- dernidade traz consigo grandes transformações em diversos aspectos da vida humana. Novos comportamentos são adquiridos em decor- rência das constantes mutações sociais. Neste sentido, o corpo como parte representante deste espaço, necessita ser cuidado de formas diferenciadas dos modos existentes no período colonial. Conforme menciona o jornal quando traz que “enfermos pobres ainda são car- regados em canapés” questionando o processo/desejo de civilização da cidade no fragmento que diz o seguinte: Dizem que a cidade se cívilisa. Os autos, os cinemas e as avenidas em projecto, requintam seus costumes sacudindo os velhos hábitos, que nos trouxeram o primeiro governador geral e que amigos como somos das tradições, conservamos com certo carinho. Pode ser que assim seja, mas nem tudo ainda desprezamos da velha herança colonial. Entre seus legados, há um que perdura, embora há muito já deveste ter desaparecido: é o transporte dos enfermos pobres em canapês (A TARDE ed.64, 27 de dezembro de 1912, p.1). E foi nesse contexto que a população menos favorecida começou a aspirar por acesso à instrução, e isto fica elucidado na edição nº 247 publicada no dia 7 de agosto de 1913 em sua primeira página o jornal A TARDE faz um apelo solicitado por moradores de um povoado carente acerca da necessidade de uma escola, colocando o seguinte: “Há ali cerca de 500 crianças privadas de ensino por falta de escola. Para frequentarem os educandos têm necessidade de melhores rou- pas, sendo-lhes impossível voltar para casa na hora do recreio para
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    18 História do Esporte fazersuas refeições”. Portanto, a população procura civilizar-se, e vê na educação um meio para tal, elencando também as necessidades presentes no corpo como alimento e vestimenta. Assim, o homem age no corpo e pelo corpo, seus desejos, suas ânsias, suas idealizações são impregnadas através do lugar onde estão imersos. Segundo o jornal as pessoas que leem “os diários da capital” (jor- nal veiculado no Rio de Janeiro), fora da cidade soteropolitana, supõe que a cidade é civilizada. Enfatizando que de fato há muita gente feliz e tranquila vivendo no palácio confortável nos bairros aristocráticos que nega a miséria, porém, as pessoas carentes durante a noite vão dormir no lajedo frio dos bancos das praças e jardins ou nas rodas das igrejas: Assim, os cegos, que encontramos, dia a dia, nas portas dos ascen- sores, ou das igrejas, esfarrapados e quase nus, como se quizessem zombar com uma ironia pungente das nossas pretenções de civili- sação. [...]quanta miséria vai pôr ahi aos nossos olhos, no coração da cida- de, nas chambergas fétidas onde homens, mulheres e creanças ha- bitam numa promiscuidade de sujeira, turca, com a tuberculose e a peste? (A TARDE ed. 313, 23 de Outubro de 1913, p.1). Os “corpos” esquecidos e maltratados são jogados ao relento nas praças públicas, enquanto outros “corpos” se esbanjam na fartura em estabelecimentos confortáveis e luxuosos. As contradições presentes nos espaços citadinos são refletidas em diferentes comportamentos, onde, de um lado estão os corpos maltratados pela miséria e de outro os corpos imersos em espaços confortáveis e luxuosos. A higienização dos espaços e o anseio pela retirada da população carente que com seus corpos maltratados e enfermos, circulavam no centro de Salvador, causava grande inquietação a população burgue- sa, estando esses, preocupados com a forma como a cidade seria vista pelos visitantes e com o contágio por doenças como a peste, a tuber- culose entre outras. Assim, a preocupação com os indivíduos que transitam na cidade de Salvador deveria ser priorizada, tanto quanto a modernização da mesma, isto é exposto nas páginas do jornal em diferentes edições, quando são mencionadas questões relacionadas
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    19 Memórias do corpona imprensa soteropolitana à saúde pública, e as necessidades de saneamento básico, a fim de evitar proliferação das epidemias. Ao constituir-se enquanto cidade as demandas sociais aumen- tam, surgindo a necessidade de um planejamento urbano, tendo em vista que é preciso oferecer à população que se encontra condensada no espaço urbano, melhores condições de higiene, trabalho, educa- ção, saúde e moradia. A esse despeito Cruz (2013, p.36) destaca que as alterações “econômicas, políticas e sociais (a abolição da escravi- dão, a proclamação da República, os processos de industrialização, a ampliação acelerada do mercado interno, a imigração massiva)” foram fatores que contribuíram para o rápido processo de urbaniza- ção. Com isto os corpos residentes nesse espaço, aos poucos vão se adequando a ele. Neste sentido, diante das múltiplas questões colocadas nas pági- nas do Jornal A TARDE há indícios que a população residente em Salvador desejava estar imersa em um espaço civilizado e higieniza- do de acordo com padrões vindo de países como: França, Inglaterra e Estados Unidos e, que lhes proporcionassem múltiplas possibilida- des de lazer e interação, vendo como uma dessas possibilidades de socialização os espaços das práticas esportivas. Corpo Esportivo Ao tratar das questões relacionadas a prática de esportes, o jor- nal A TARDE em uma de suas reportagens, alude que a ausência da cultura esportiva foi um problema que abalava os homens públicos, nos países de civilização modelar. Preocupado com a ascensão da prática esportiva, o jornal coloca que esta deverá ser motivo de ze- los e meditação, pois é um divertimento que beneficia o desenvolvi- mento psicológico, educa o espírito e contribui para despertar forças adormecidas. Porque, admirável será um povo viril, feito de perseve- rança, força e tranquilidade com grandes vantagens, podendo então, adquirir a cultura do psíquico por meio da ginástica e dos jogos ao ar livre se forem praticados de forma inteligente (A TARDE, ed. 1, 15 de outubro de 1912).
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    20 História do Esporte Diz,ainda, A TARDE, que: Aqui, no Brasil, o homem da cidade passa depressa, vive pouquíssi- mo é fraco sem harmonia de linhas, consequentemente deselegante. Age, pode agir, mais quando o faz é propelido por exaltações mór- bidas. Que infelizes se nós não podermos corrigir! Mirem-se todos no espelho da nova geração do sul ou encarem os que fazem aqui, a despeito de mal orientados, um pouco de sport; prometem alguma coisa. (A TARDE, 1º ed. 15 de outubro de 1912, p.2). A ideia de nação forte aparece no discurso jornalístico como algo belo e vantajoso. O homem soteropolitano é descrito como um ser fraco e feio, sem harmonia em sua estrutura corporal, isto é, coloca- do pelo jornal como um problema de carácter econômico e social. Segundo o Jornal A TARDE, os governantes de países vistos pela população burguesa de Salvador como modelo de civilização (Euro- pa, Estados Unidos, Japão e Argentina) estão estimulando a prática esportiva com prêmios. Como prova deste interesse os povos cultos realizam a festa pública universal dos jogos olímpicos, a cada qua- tro anos nas capitais Europeias (A TARDE, ed. 1, 15 de outubro de 1912). Neste sentido, entende-se que: Interações implicam em códigos, em sistemas de espera e de reci- procidade aos quais os atores se sujeitam. Não importam quais se- jam as circunstâncias da vida social, uma etiqueta corporal é usada e o ator a adota espontaneamente em função das normas implícitas que o guiam (LE BRETON, 2007, p.47). À medida que a sociedade se desenvolve, as cidades começam a estabelecer conexões com outras cidades e com outros continentes, às notícias se espalham pelo mundo, no caso de Salvador, as atuali- dades vigentes no exterior eram trazidas em embarcações náuticas e levava dias para chegar, porém, logo que chegava o jornal A TARDE se incumbia de divulgar em suas edições acerca do que havia de mais atual no continente europeu, dando ao povo letrado, a incumbência de buscar se atualizar, procurando se apropriar ao máximo do que havia de mais culto em outros países, e o esporte era uma das práticas
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    21 Memórias do corpona imprensa soteropolitana consideradas como algo que deveria estar presente em uma cidade considerada civilizada e culta. Assim, em um de seus fragmentos, o jornal A TARDE aborda que houve um homem que compreendeu a necessidade de oferecer subsídio para as práticas esportivas, ele foi o reformador do Rio de Janeiro, o prefeito Pereira Passos, um homem alto de ombros lar- gos e aparência saudável, compreendeu a necessidade de povoar as avenidas e modernizar os espaços, pensando patrioticamente. De fato, precisamos de avenidas belas e edifícios para que os estrangeiros nos vejam mais dignos, e entendemos estes sentimentos como justos, pois eles correspondem a carência de um novo povoamento. Esta é uma segunda necessidade, complemento da primeira (A TARDE, ed. 01, 15 de outubro de 1912, p.3). A primeira necessidade foi colocada pelo jornal no fragmento a seguir, da seguinte forma: [...] carecemos de atividade, de vida, de beleza nos homens e nas mulheres – e só se adquirem essas qualidades dando a todos os mús- culos do organismo trabalho regular, ou seja, cultivando o sport com inteligência. Remodelamos tudo, mais antes de tudo, remodelamo-nos. Diremos aos que nos procurem: vamos a terra da vida fácil, das belas cidades, da força que sorri com beleza. E nós, por nossa vez porque seremos fortes, não nos deixamos ab- sorver. Prevenimo-nos para o futuro se tanto nos lisonjeia uma solidarieda- de universal. (A TARDE, 1º ed. 15 de outubro de 1912, p.2). Segundo o jornal, cabe aos governos terem boas intenções, e não esquecerem este problema, assim também, a imprensa precisa provo- car o desejo de resolvê-lo. Os corpos físicos revelavam então um ima- ginário de corpo como algo passível de intervenção, a necessidade de melhorar a condição física, a beleza e a elegância são colocadas como fatores que podem ser aprimorados através da prática esportiva. As exigências em relação à corporeidade dos indivíduos são di- versas, o homem precisava passar por transformação, a fim de aten- der aos critérios estabelecidos, assumido diferentes valores, onde o magro, o musculoso e o forte fisicamente e intelectualmente, apare-
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    22 História do Esporte cemcomo valor distintivo nas sociedades modernas. A esse despeito, Magalhães e Sabatine (2011, p. 134) trazem que no corpo incidem as estratégias de poder, tornando-o objeto dos investimentos sociais que dão passagem à produção das diferenças, reproduzidas na atu- alidade através da valorização dos símbolos da saúde, da beleza, da felicidade e da qualidade de vida. Em uma das reportagens sobre o esporte veiculada no A TAR- DE (Ed. 2, 16 de outubro de 1912 p. 03), o jornal coloca que entre os competidores estão inscritos os páreos de maior importância. Na disputa do campeonato baiano do remo, veremos o mais importante “pareô” do dia, o já três vezes campeão, um dos poucos atletas, que vem sabendo competir. Não sendo um Hercules, fez-se grande atleta. Ao descrever a respeito de outro atleta inscrito no campeonato, o jornal menciona o seguinte: “Hrill também favorito no campeonato e talvez o mais forte, o mais belo conjunto de músculos em destaque” (A TARDE, ed. 2, 16 de outubro de 1912 p. 3). Os símbolos atribuídos ao corpo são construídos na interação com os indivíduos à medida que as sociedades se desenvolvem, os corpos adquirem novas características tornando-se algo marcante na modernidade. Os indícios encontrados nas edições do jornal A TAR- DE reafirmam o pensamento destacado por Le Breton (2007, p.9), para quem: “a expressão corporal é socialmente modulável, mesmo sendo vivida de acordo com o estilo particular do indivíduo”. O corpo elencado pelo discurso midiático do Jornal A TARDE leva-nos, a hipotética ideia de que suas raízes estão centradas nos valores culturais vigentes em países do exterior, dentre eles a Euro- pa. A cidade soteropolitana objetivando alcançar a civilidade, deve- ria então educar os seus corpos respeitando tais padrões e normas. No discurso do jornal A TARDE evidência mais uma vez as caracte- rísticas físicas dos esportistas, quando coloca que “A guarnição está composta dos melhores competidores. Este povo prefere o partido de sua grande força, ao da arte de remar bem. É valente a guarnição” (A TARDE, ed. 3, 17 de outubro de 1912, p. 2). Diz, ainda, que:
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    23 Memórias do corpona imprensa soteropolitana [...] toma parte na bancada de sola voga um dos nossos mais belos sportmem: peito 1 m, 11: bisceps; 0,41 e força de gênio: grau máxi- mo mais pouco duradouro – Felizmente. E fortíssima esta guarni- ção, e perde, talvez, um pouco com isto. Dela destaca-se Alberta- zzi, incontestavelmente um tipo exemplar de perseverança, calma e persistência. Sabe aliar a sua extraordinária força, cultivada com carinho, meios inteligentes de aperfeiçoamento. (A TARDE Ed. 3, 17 de outubro de 1912, p.2). Percebe-se uma valorização das medidas antropométrica dos es- portistas, o que mais uma vez nos remete a imaginação de que exis- tia um ideal originário do exterior veiculado nas edições do Jornal. Segundo a reportagem do Jornal A TARDE, a preparação física dos esportistas era algo considerado peculiar para que se chegue à vitó- ria, os competidores no geral estão bem preparados e com aspecto feroz. Os esportistas devem mostrar a alegria, a força e a agilidade de seus músculos para as senhoritas (A TARDE, ed. 7, 22 de outubro de 1912, p.3). A mulher ocupava lugar de submissão, sua participação nas prá- ticas esportivas se limitava a contemplação dos eventos ficando na condição de plateia, consideradas pelo jornal A TARDE, as respon- sáveis por embelezar os ambientes de socialização com suas lindas vestes, era também um dos motivos pelos quais os esportistas deviam exibir seus corpos a fim de serem admirados por elas. O Esporte era tido como uma prática que promovia diversos benefícios ao ser humano, tanto para os praticantes quanto para os admiradores, sendo praticado em sua maioria pela classe burguesa e, considerado também, como algo distintivo e culto presente nas sociedades europeias, sendo necessário um lugar próprio para pra- ticá-lo. Por outro lado às práticas corporais realizadas pela classe subalterna eram consideradas como atos de vandalismo e vadiagem praticados na rua, neste sentido, a prática da capoeira era vista como algo negativo para a imagem da cidade de Salvador, que buscando se modernizar não a considerava como algo civilizado e culto, especial- mente por fazer parte da cultura negra.
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    24 História do Esporte Talfato fortaleceu os conflitos sociais entre a burguesia e a classe subalterna, onde de um lado a burguesia tentava inibir e acabar com as práticas da capoeira, inclusive, mandando prender seus pratican- tes. Por outro lado, os capoeiristas resistiam e fortaleciam seus gru- pos expandindo assim sua cultura. Segundo Lima e Carvalho (2011, p.238) o surgimento dos espa- ços citadino sugeria inovações necessárias para o desempenho de ati- vidades sociais laicas que se tornavam cada vez mais públicas, onde de acordo com os autores, “os esportes, as festas e os piqueniques ao ar livre, as comemorações cívicas” começam a ganhar relevância nas sociedades modernas estimulando o consumo, a exibição dos corpos e a valorização da moda, sendo que, essa passa a ser algo marcante nas sociedades modernas. Considerações Finais Para identificar as memórias do corpo na imprensa soteropolita- no, A TARDE no período de 1912 a 1914 percebemos destaques para quatro pontos considerados como fundamentais dentro do processo de transformação pelo qual a cidade soteropolitana estava passando: a urbanização da cidade e o processo de higienização dos espaços, as práticas esportivas, a moda e as propagandas. As questões relacionadas ao processo de modernidade na cida- de de Salvador estão presentes nas páginas do jornal A TARDE de forma enfática e explícita no período estudado. As notícias de aqui- sição de empréstimos no exterior, pavimentação das ruas e ao me- lhoramento dos espaços, surgem em todas as edições do jornal. No entanto, percebe-se que questões relacionadas ao corpo aparecem de forma implícita nas edições analisadas. Ainda, no que diz respeito à urbanização da cidade foram encontrados vestígios do corpo em diferentes perspectivas, entre elas estão às questões relacionadas, ao saneamento básico, aos cuidados com o corpo (higiene, alimentação, prática de exercício físico etc), a organização dos espaços citadinos e a preocupação com a proliferação das epidemias.
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    25 Memórias do corpona imprensa soteropolitana Em relação às práticas esportivas as memórias do corpo são co- locadas nas páginas do jornal enfatizando as questões relacionadas ao ser fisicamente capaz, como o ser forte, musculoso e resistente, características consideradas como fundamentais para o desenvolvi- mento de uma nação bela. Vale salientar que nos primeiros periódi- cos as notícias acerca do esporte aparecem em quase todas as edições e nelas são colocadas diversas questões, dente elas estão: preparação física dos esportistas e as condições físicas dos mesmos. Identificamos então, que de acordo com discursos presentes no Jornal A TARDE, o processo de inserção em determinada prática es- portiva enquanto elemento sistematizado perpassa por um arsenal de exigências atribuídas ao corpo. Historicamente, um desportista precisa ser forte, saudável, bem preparado, a fim de ter um bom de- sempenho objetivando alcançar resultados, o corpo precisa ser mol- dado, buscando atender as exigências. Neste sentido, o discurso jornalístico nos leva a desconfiar que o ideal de corpo esportivo vigente tenha relações com os tipos físicos dos europeus visto e colocados como modelo de uma sociedade mo- derna, bela e civilizada. Salientamos ainda que, apenas uma camada mínima da população soteropolitana atendia aos critérios colocados nas páginas dos jornais como bons, finos e civilizados. A higiene pes- soal e dos espaços são questões que circulavam em cada nova edição do jornal, elas eram colocadas de diferentes maneiras buscando rea- firmar ideais de países do exterior. Ao analisar as páginas de propaganda deve-se levar em conside- ração os objetivos do mercado produtor em disseminar o produto propagandeado. Assim, ainda que os indícios encontrados nas pági- nas do jornal surgiram à ideia de que as questões inerentes ao corpo eram algo em ascensão voltada para questões de beleza e saúde, não se podem desconsiderar questões como o desenvolvimento do capi- talismo e da industrialização, fatores relevantes neste contexto. Os resultados até então encontrados não são conclusivos, contu- do, têm nos conduzido a uma reflexão de que assim como o ambiente citadino passava por mudanças influenciadas pelo ideal de moderni- dade presente na Europa, essas mudanças também diziam respeito
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    26 História do Esporte aocomportamento humano influenciando as questões de higiene, saúde e beleza, o que leva-nos a indagar se a sociedade soteropolitana já apresentava naquele momento histórico sintomas da busca de um corpo idealizado. Fontes Escritas A TARDE Ed. 1 ,15 de outubro de 1912. A TARDE Ed. 2, 16 de outubro de 1912. A TARDE Ed. 3, 17 de outubro de 1912. A TARDE Ed. 7, 22 de outubro de 1912. A TARDE Ed. 51, dezembro de 1912. A TARDE Ed. 64, 27 de dezembro de 1912. A TARDE Ed. 313, 23 de outubro de 1913. Referências CAXILÉ, C. R. V. O Corpo e as Pedras em Evidência. Projeto Histó- ria, v.34, p.377-379, 2007. CRUZ, H. F. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana 1890-1915. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2013. DAOLIO, J. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. LEBRETON,D.Asociologiadocorpo.2ed.Petrópolis:Ed.Vozes,2007. LE GOFF, J. História e Memória. 4 ed. Campinas: UNICAMP, 1996. LIMA, S. F.; CARVALHO, V. C. O corpo na cidade: gênero, cultura ma- terial e imagem pública. Estudos Históricos, v.25, n.48, p.231-263, 2011.
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    27 Memórias do corpona imprensa soteropolitana MARTA, F. E. F. O esporte na imprensa soteropolitana da primeira metade do século XX: A TARDE (1912-1950). In: Encontro Estadual de História ANPUH-BA, 6, 2012. ANAIS... Ilhéus: UFRB, 2012. NORA, P. Entre Memória e História: A problemática dos Lugares. Projeto História, v.10º, p.7-28, 1993. MAGALHÃES, B. R.; SABATINE, T. T. A saúde como estilo e o cor- po como objeto de intervenção. In: SOUZA, L. A. F.; SABATINE, T. T.; MAGALHÃES, B. R. (Orgs.) Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmi- ca, 2011. p.133-154 SANT’ANNA, D. B. Higiene e higienismo entre o Império e a Repu- blica. In: DEL PRIORI, M.; AMANTINO, M. História do Corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011. p.507-530
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    29 CAPÍTULO II PROFISSIONALIZAÇÃO DOATLETA DE HANDEBOL NA BAHIA DA DÉCADA DE 1980? UMA ANÁLISE DOCUMENTAL1 Profa. Ma. Leila Maria Prates Teixeira Mussi Prof. Me. Ricardo Franklin de Freitas Mussi Prof. Me. Angelo Maurício de Amorim Introdução O esporte é aceito entre as principais e mais relevantes atividades historicamente desenvolvidas e/ou incorporadas pelas sociedades humanas. De acordo com Vigarello e Holt (2009), o esporte pode ter nascido das festas e jogos tradicionais, após a ocorrência de mudanças estruturantes que tornaram o seu desenvolvimento possível. Neste sentido, é importante o entendimento das maneiras como o fenômeno esportivo se constituiu e se constitui, valendo-se dos debates historiográficos, antropológicos e sociológicos. Barros (2013, p.12) cita que a atividade esportiva emerge e interage “como fenômeno e prática sociocultural, a uma rede de outras práticas e saberes diversos, de instâncias sociais e fenômenos políticos e culturais”. Em alguns momentos chegando a assumir certo protagonismo diante do seu uso político, econômico e/ou social. O esporte moderno está entre as mais relevantes expressões culturais da humanidade, presente em diferentes regiões do mundo, muitas vezes atendendo demandas e especificidades locais determinadaspelomomentohistórico,infraestruturaecaracterísticas institucionais, financeiras e físicas, que podem facilitar ou dificultar a aderência de seus praticantes. Natrajetóriadeconfiguraçãodepopularidadedapráticaesportiva, muitos foram os desdobramentos e peculiaridades, com destaque a 1 Esse texto é versão ampliada de comunicação oral apresentada no VCONECE, publicada no formato de trabalho completo intitulado “Ser Atleta de Handebol Competitivo na Bahia da Década de 1980”.
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    30 História do Esporte transiçãodo século XIX e XX, quando chegam ao Brasil os ecos do fluxo internacional de desenvolvimento esportivo (MELO, 2011). Ressalta-se que, de maneira geral, o esporte moderno brasileiro não passa pelo processo de desenvolvimento que foi vivenciado na Europa, mas, é transplantado para atender aos interesses de uma oligarquia nacional. Especificamente sobre o handebol, objeto principal desse texto, Romero e Silva (2009) citam que sua origem é carregada de contradições, diferentemente do ocorrido com outras modalidades esportivas coletivas bastante populares no contexto mundial, como Futebol, Voleibol e Basquete, que apresentam informações bastante precisas sobre suas origens. Fundamentalmente, as informações históricas disponíveis são aquelas que versam da sua inserção no modelo competitivo institucionalizado. A estruturação institucionalizada confirma que o esporte modernoestáalicerçadonacompetição,produtividade,secularização, igualdadedeoportunidades,supremaciadomaishábil,especialização defunções,quantificaçõesderesultadosefixaçãoderegras(FRANCO JR, 2007). A qualidade e eficiência esportiva são mensuradas a partir dos resultados obtidos e os vencedores são premiados com troféus e medalhas, com prêmios simbólicos ou materiais que atestam a posição alcançada (GIGLIO; RÚBIO, 2013). Neste sentido, se verifica que o esporte, diferentemente dos jogos tradicionais, não atende mais ao mero usufruto do tempo ou mesmo para o atingimento do prazer, ele passa a representar um novo modelo de práticas corporais, que coaduna com os objetivos morais, sociais e ideológicos do momento histórico da humanidade. Essas caraterísticas são fundamentais para o enfraquecimento da sua prática amadora e, simultaneamente, para o fortalecimento das questões relativas a sua profissionalização. Mas, Dias, Fortes e Melo (2014) alertam que mesmo ao se espraiar pelo mundo os contatos materiais e simbólicos se relacionam em diferentes graus com as peculiaridades locais. Assim, são percebidos diferentes níveis de desenvolvimento nas diversas modalidades esportivas praticadas, segundo o local, grupo social e momento histórico.
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    31 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 Atendendo a esse modelo de sociedade capitalista, atividades antes desenvolvidas livremente pelas pessoas e comunidades, passam, após adequação estrutural, a assumir caráter laboral. O sujeito que desenvolvia essas atividades de maneira espontânea, agora passará a executá-la segundo os ditames sociais burgueses, ou seja, “a mão- de-obra tinha que aprender a responder aos incentivos monetários” (HOBSBAWN, 2001, p.67), ratificando que “o trabalho mecânico começa a triunfar sobre o trabalho hábil” (VIGARELLO; HOLT, 2009, p.414). Deve-se entender a profissionalização esportiva como o reconhecimento da sua prática enquanto atividade trabalhista, que passa a exigir disponibilidade maior que aquela relativa ao tempo livre, demandando dedicação quase que exclusiva às atividades esportivas (ROMARIZ; MOURÃO, 2006). A força do mercado encontrou campo propício de atuação no esporte, onde os atletas eram (e são) instados a apresentar-se em nível cada vez mais elevado de performance e para isso necessitam dedicar-se exclusivamente a sua prática (AMARO; MOSTARO; HELAL, 2014). Mas, é cabível compreender que os processos de profissionalização esportiva ocorrem de maneira bastante diferenciada segundo as modalidades, localidade e estrutura social. Por exemplo, enquanto o futebol contemporâneo apresenta estrutura econômica contendo contratos milionários, outras modalidades ainda carecem desse desenvolvimento financeiro, carregados de dificuldade sobre o funcionamento relativo à contratação e ao salário dispensado aos atletas e demais personagens envolvidos. EspecificamenteaoqueserefereàpráticadeHandebolnosdiversos Estados brasileiros, lacunas sócio-históricas parecem evidentes. Esta situação demanda investigações capazes de reconstituir narrativa crítica do seu desenvolvimento e relações institucionais, marcos históricos que analisados de maneira contextual explicitariam a implementação, permanência e disseminação de sua prática nas mais diversas dimensões sociais do esporte.
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    32 História do Esporte Ohandebol, o mais jovem esporte coletivo tradicional (REIS, 2012a), figura dentre as modalidades mais praticadas no mundo, principalmente na Europa. Neste sentido e, considerando a carência de investigações relativas à questões históricas do Handebol baiano, inclusive sobre a profissionalização e dificuldades enfrentadas por seus atletas, o presente texto tem como objetivo compreender o processo de profissionalização do atleta de handebol competitivo na Bahia da década de 1980. Procedimentos Metodológicos Os crescentes estudos sobre História do Esporte ampliam a compreensão, entre desportistas e intelectuais, do desenvolvimento de uma ‘consciência de historicidade’, aceitando que “o esporte, em cada uma de suas inúmeras modalidades, constitui um universo em permanente transformação” (BARROS, 2013, p.11). Permitindo, segundo o contexto de análise, a aceitação do esporte enquanto sujeito e/ou produto, além de meio e fonte para a compreensão da história em sentido mais amplo. Nesse sentido, a presente investigação apresenta perspectiva metodológica qualitativa. Para fins de atendimento da proposta foi desenvolvida pesquisa documental exploratória no acervo da Federação Bahiana de Handebol (FBHb), considerando o recorte da década de 1980, importante período historiográfico da Educação FísicaeEsportebrasileiro(CAVALCANTI,1996),comforteinfluência da criação da Confederação Brasileira de Handebol (CBHb) em 1979, e baiano, pela fundação da FBHb em 1980. Neste sentido, ressalta-se que a partir da década de 1980, análises documentais passaram a ser mais valorizados em estudos do esporte (GEBARA, 2003). Para o acesso ao acervo documental da FBHb foi encaminhada prévia solicitação à instituição, contendo as informações desta investigação. Após a liberação institucional foram marcadas visitas à Federação durante o mês de abril de 2014.
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    33 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 Considerando as etapas para desenvolvimento da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), o acervo documental foi acessado, após exploração daqueles relativos à década de 1980 que versavam sobre questões econômicas e profissionais foi fotografada, e finalmente ocorreu o tratamento e interpretação das informações. Sendo importante ressaltar que este trabalho representa recorte da pesquisa “História do Handebol Baiano”, autorizada pelo CEP/ UESB-BA (CAAE: 23200614.1.0000.0055). Resultados e Discussão O processo de democratização e popularização de uma nova cultura esportiva perpassa por diversos aspectos, dentre os quais, uns de dimensões mais simples, que envolvem as condições para o desenvolvimento da modalidade e a necessidade de equipamentos específicos (quadras, bolas), até aqueles mais complexos, como a formação dos atletas, técnicos, árbitros e gestores. A década de 1980 foi importantíssima para o Handebol baiano, representando período a seguir da criação da CBHb e década da fundação da FBHb, instituições dedicadas unicamente ao incentivo, profissionalização e organização dos eventos e atividades handebolísticas nas múltiplas dimensões esportivas e institucionais, incluindo a captação de recursos financeiros para investimento nas atividades esportivas. Nesse período a sociedade brasileira encontrava-se sob o domínio político dos militares (1964-1985), que percebia o Esporte “como uma esfera da cultura capaz de dar visibilidade política aos feitos da ditadura brasileira no âmbito internacional” (OLIVEIRA, 2009, p.389). Os sucessos da prática esportiva nas competições internacionais serviriam para exemplificar o modelo de gestão exitoso do Estado brasileiro. Em um contexto regional, para os governos militares nos países do Cone Sul, o Esporte poderia acalmar os ânimos da população, controlar os jovens que pudessem contestar o regime vigente
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    34 História do Esporte quebuscava legitimidade dos “atos institucionais” e das atitudes repressivas como os assassinatos, torturas e desaparecimentos (PADRÓS, 2012). O governo naquele período fomentava o modelo esportivo disciplinador de corpos, a pretensão era atuar na constituição de uma sociedade submissa e obediente. Assim como “o ideal de uma vida de ociosidade e de cultura, [...], foi pouco a pouco abandonada” (VIGARELLO; HOLT, 2009, p.428) nas sociedades europeias no século XIX, nos países americanos ocorreu, de maneira tardia, já no século XX. Mesmo que o governo ditatorial brasileiro tenha implantado uma política esportiva, essa prática ocorreu menos no que tange a “movimentação do corpo” e mais ao desenvolvimento de uma “mentalidade esportiva” (OLIVEIRA, 2009). A campanha midiática empregada foi muito forte em relação à atividade esportiva, mas os investimentos econômicos não foram favoráveis para sua implementação em larga escala na sociedade. A ditadura, que enxergava na prática esportiva um mecanismo para o fortalecimento da centralidade do Estado, devido aos recursos escassos demandados para esse setor, acabou preparando o terreno (popularização) para o capital privado. As empresas, investidoras esportivas,namaioriadasvezes,nãosepreocupavamcomadimensão participativa e inclusão social, o foco era somente na prática de alto rendimento e sua lucratividade imediata ou potencial. A luta pela manutenção do amadorismo no esporte moderno apresenta-se alicerçado na sua origem aristocrática entre seus praticantes e, também, pelo desejo da manutenção do controle dos seus processos de organização e institucionalização pela mesma aristocracia (RÚBIO, 2002). No entanto, a partir da década de 1970, ocorre o enfraquecimento do amadorismo esportivo competitivo, frente a dificuldade dos atletas das mais diversas modalidades terem que se dedicar diariamente aos exercícios e treinamentos, diante das preocupações com colégio, faculdade, emprego, ou ainda família (BENELI; RODRIGUES; MONTAGNER, 2006).
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    35 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 Emoutraperspectiva,essasmudançasnocampoesportivopodem ser percebidas como resultado do desenvolvimento capitalista, com o corpo tornando-se instrumento a serviço do sistema de forças produtivas. O atleta profissional é um novo tipo de trabalhador que vende a um patrão sua força de trabalho (capaz de produzir um espetáculo que atrai multidões) (RÚBIO, 2002). Dessa maneira, em 1981, é permitido patrocínios aos clubes e em 1983 é implementada pela autorização da divulgação desses patrocínios nos uniformes, mas essa prática só é amplamente concretizada no final da década 1980 (PRONI, 2000). Assim, ampliou a possibilidade de remuneração e dedicação exclusiva aos treinamentos, podendo extrapolar para assistência médica, odontológica e nutricional, findando os treinamentos pós jornada laboral e restrição material para as atividades esportivas (FONSECA, 1984). No entanto, a década de 1980 foi marcado por diversificadas e importantesdificuldadesdenaturezafinanceiraparaofortalecimento das práticas competitivas (MUSSI; MUSSI; AMORIM, 2014). Situação esta resquício da crise econômica que o país vivia naquele momento de redemocratização. A profissionalização do esporte de rendimento fez com que o mundo do esporte e o do trabalho se transformasse em um só para atletas, técnicos e demais sujeitos diretamente envolvidos com sua efetivação. Essas relações profissionalizantes elevam a competitividade, em busca das melhores recompensas financeiras, consolidação no mercado de trabalho, possibilidade de mobilidade social (PIRES, 1998). Especificamente sobre o processo inicial de profissionalização dos atletas, o amadorismo no handebol competitivo baiano é evidenciado em vários ofícios trocados pelos clubes e a FBHb indicando a necessidade de mudança de horários e datas de jogos sob alegação da indisponibilidade dos jogadores (por motivo de trabalho ou atividade escolar) que não eram remunerados.
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    36 História do Esporte Confirmandoessas afirmativas o Clube Olímpico de Natação, por intermédio do ofício s/n, de 4 de outubro de 19882 , solicitou formalmente o adiamento de jogo “tendo em vista a greve dos professores da rede particular de ensino” visto que a equipe “é composta de atletas (alunos) da rede particular, e os mesmos com a greve viajaram”. Neste caso, fica evidenciado que os estudantes-atletas não recebiam bolsa auxílio capaz de custear o translado dos componentes da equipe. Essa situação evidencia a falta de profissionalização dos clubes, mesmo considerando que os jogadores ainda estavam em período escolar. Alerta-se que a motivação extrínseca reduz fortemente a dúvida quanto à manutenção da prática esportiva (EPIPHANIO, 2002). A falta de apoio dificulta o estabelecimento de vínculo e/ ou comprometimento dos jogadores com as atividades esportivas, possivelmente com reflexos negativos na condição física, técnica e tática do jogo frente a descontinuidade do processo de preparação dos atletas e equipes. A presença do esporte como conteúdo recorrente na Escola é fundamental para seu desenvolvimento ao longo da história. De acordo com Vigarello e Holt (2009, p.432) é no “seio dos estabelecimentos do ambiente da era vitoriana na Grã-Bretanha que foi elaborado o novo corpo atlético e os valores de fair-play e de esportividade”. No entanto é importante citar que os dois campos, esportivo e educacional, não devem ser concorrentes, mas colaborativos. De acordocomMonaco(2007),oenvolvimentodaeducaçãonaformação dos esportistas brasileiros permite a continuidade dos estudos e formação profissional paralelamente, reduzindo a dependência da remuneração advinda do esporte. Neste sentido, Andres (2014), em investigação com mulheres praticantes de handebol no Rio Grande do Sul, cita que para as atletas “além de uma profissão referem que o Handebol pode ser um 2 Documento arquivado na sede da Federação Bahiana de Handebol localizada na cidade de Salvador/BA.
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    37 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 meio de viajar e assim conhecer outras cidades ou países, ou ainda como uma possibilidade de se concluir um curso superior” (p. 65). É importante ressaltar que uma das práticas comuns realizadas pelos clubes de handebol no Brasil é conceder uma bolsa de estudos, em alguma universidade, como pagamento pelos jogos. Parece que a situação apresentada no documento analisado confronta-se com a proposta dos governos militares, duradouros até metade dos anos de 1980, dedicados na sistematização de métodos e pesquisasutilizandoapráticaesportivacomoaplicaçãoepreocupação central na preparação do cidadão capaz de tocar o ‘progresso do país’ e de defender as fronteiras (MELO, 2011), sinalizando um conflito entre a possibilidade de uma formação educacional crítica e uma formação esportiva doutrinadora dos interesses ditatoriais. NocasodoHandeboladultoficouevidentequeodesenvolvimento deatividadeslaborais,quenãoaquelasespecíficasparaodesempenho atlético, interferiu negativamente para a manutenção do calendário oficial da FBHb, podendo influenciar em atividades competitivas ou de exibição esportiva. Por exemplo, a equipe do Serviço Social da Indústria (SESI/ CIA), no ofício 374 de 28 de setembro de 19883 , solicita que a FBHb “estude a possibilidade de não incluir as equipes do SESI/CIA” em programações esportivas durante o intervalo de 22 de dezembro de 1988 até 26 de janeiro de 1989, uma vez que estavam ocorrendo as “férias coletivas” da instituição. Sobre o papel do setor industrial no acesso do trabalhador e a ampliação da prática esportiva, Vigarello e Holt (2009, p.421) comentam que “se o esporte amador atingia antes de tudo a classe burguesa no século XIX, a necessidade de oferecer aos operários o que a época vitoriana chamava de divertimentos racionais desempenhou também um papel importante na sua difusão”. Como bem se sabe nesse período de revolução das indústrias, o controle do tempo dos operários acontecia até mesmo em seu momento de lazer (KNIJNIK, 2009). O controle desse tempo 3 Idem
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    38 História do Esporte certamenteocorria através das regras do jogo, tanto para duração da atividade como também para que esses operários não “desfalcassem” as fábricas no dia seguinte. Portanto, a reorganização do espaço urbano, o advento de uma classe trabalhadora controlada por uma burguesia que enxergava a necessidade de extinguir qualquer prática que não fosse considerada “civilizada”, faz surgir uma necessidade de regulamentar os jogos, até mesmo aqueles que eram praticados pelos operários em suas raras horas de lazer. Essa prática é aprimorada na Europa e chega ao Brasil, durante seu processo de industrialização, ganhando terreno devido as dificuldades encontradas para a prática de lazer. AindaquantoapedidosderemarcaçõesdejogosoClubeOlímpico de Natação no dia 30 de agosto de 19894 oficializa solicitação para adiamento de partida marcada para o dia 3 de setembro do mesmo ano alegando que nesse dia nada menos que cinco de seus atletas trabalhariam no dia do jogo. Osdoisdocumentosindicamqueaausênciadoatleta-trabalhador, fundamentalmente os jogadores não assalariados para dedicação às atividades esportivas pode propiciar que jogadores acabem trabalhandoematividadesquepodemseconfrontarcomasdemandas esportivas (GRECO, 2013), uma vez que o profissionalismo do atleta determina que suas atividades diárias passam a ser determinadas pelo treinador, clube e/ou patrocinador, o que inclui questões relativas aos dias, horários e conteúdos do treinamento, da alimentação e do descanso (PIRES; HUNGER, 2004). Ao longo da história da humanidade encontramos vários momentos que evidenciam as capacidades do evento enquanto aglutinador das forças e motivações dos seres humanos, tanto numa lógica individual, como nas dinâmicas de grupo (SARMENTO et al., 2011). Neste sentido, a remarcação de jogos, por motivos até certo ponto frágeis, dificulta a participação de público e o interesse de investidores e mídias, diante da incerteza da efetivação da atividade, o que demonstra a baixa profissionalização e dificulta o 4 Documento arquivado na sede da Federação Bahiana de Handebol localizada na cidade de Salvador/BA.
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    39 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 desenvolvimento esportivo do handebol baiano durante o período analisado. No final de década de 1980, ainda é verificado baixa profissionalização entre os atletas de handebol baianos. Para confirmar essa afirmativa indica-se que a Associação de Handebol Hazena, por meio do Ofício no 15 de 25 de julho de 19895 , solicita a remarcação de jogo respaldada em duas questões dentre as mais inusitadas. Conforme o próprio documento apresenta, as atividades necessitariam ter suas datas modificadas porque “seis jogadores não estarão em Salvador nesta data e um estará casando”. A análise documental apresentada nesse texto proporciona de maneira clara e objetiva compreender que o Handebol competitivo baiano durante a década de 1980 se manteve dentro de uma perspectiva romântica, de caráter eminentemente amador. Diferentemente, nesse mesmo recorte temporal, o voleibol se encontrava em vias de espetacularização e profissionalização (MARCHI JR, 2005). Em 1975, tem início a profissionalização do vôlei brasileiro, marcada fundamentalmente pelo vinculo assalariado dos jogadores (MOREIRA; FERREIRA; MARCHI JR, 2008). No caso do basquete, a substituição do amadorismo eleva o quantitativo de pessoas ligadas a esse esporte que passam a receber reconhecimento financeiro para dedicar-se a sua prática (BENELI; RODRIGUES; MONTAGNER, 2006). Já o futebol, após período de falso amadorismo, quando os jogadores não-profissionais recebiam os famosos “bichos” como premiação pelos resultados positivos (DRUMOND, 2014: 71), inicia seu processo de profissionalização a partir do ano de 1933, com a fundação da primeira Liga Carioca de Football, a primeira do Brasil (GOMES, 2014). Até os dias atuais o handebol parece apresentar problemas em seu processo de profissionalização, que caminha lentamente. Segundo Greco (2013), no âmbito nacional é percebida a presença de jogadores com bons rendimentos, mas ainda sem a real profissionalização, sem que possam se dedicar exclusivamente ao jogo. 5 Idem.
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    40 História do Esporte Emcontra partida, é importante perceber que o processo de profissionalização também apresenta aspectos negativos para o atleta. O atleta amador, antes personificado na figura herói, acaba transformando-seem,com“commoditie”,ouseja,umsimplesproduto comercializável, portanto, substituível em caso de vencimento de sua ‘validade’ (RÚBIO, 2011). Além disso, a estruturação institucionalizada capitalista coloca os jogadores, os verdadeiros protagonistas do espetáculo, na base da hierarquia (DAMO, 2008). Nesse contexto o Esporte profissional também passa a ser reconhecidocomoferramentaparaalavancarnegócios,ascompetições esportivas passaram a representar oportunidade empresarial, com as organizações valorizando os atributos do esporte profissional e da marca, valendo-se inclusive dos exemplos de vida dos atletas para inspirar e motivar a juventude, funcionários e clientes (VLASTUIN; ALMEIDA; MARCHI JR., 2008). Entre as limitações da presente investigação é importante citar a dificuldade em dialogar, diante da ausência, com trabalhos sobre o processo de profissionalização do handebol em outras regiões/ estados, o que, em certo ponto, prejudica a discussão presente no corpo do texto. Outra questão limitante da presente investigação que necessita de reconhecimento é a utilização de única origem de fontes de informação, documentos enviados ou recebido pela FBHb, o que não permite diálogo direto com os sujeitos envolvidos no processo de profissionalização investigado. Considerações Finais Desde sua origem mundial o Handebol apresenta contradições históricas. Na Bahia estudos relativos a esta importante modalidade é tema que demanda exploração. Os registros sobre os ditames históricos reservam-se a chegada da modalidade no país e há poucos relatos que tratam da especificidade da vinda dos esportes para os Estados e regiões brasileiras.
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    41 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 Os principais achados da presente investigação documental apontam que o Handebol competitivo baiano da década de 1980 não parece representar uma modalidade esportiva profissionalizante para os seus atletas. Para concretizar a continuidade da participação dos seus praticantes eram necessárias e recorrentes as concessões individuais ou coletivas direcionadas aos esportistas. Nesse sentido, a documentação trocada entre os clubes e à FBHb analisada demonstra a presença de solicitações para modificações de datas pré-programadas de partidas, uma vez que os atletas estavam de férias ou com as atividades suspensas, no caso dos atletas-escolares, e, no caso dos atletas-trabalhadores, por estarem desenvolvendo atividades relativas ao trabalho ou mesmo de cunho pessoal. Os atletas, estudantes ou trabalhadores, são os apaixonados pela modalidade, cativados pelas características do esporte e engajamento positivo dos treinadores e, esforçavam-se para alavancar a prática do esporte de Federação promovido no Estado da Bahia. Esse quadro representa o pouco avanço no processo de profissionalização dos atletas do Handebol na Bahia durante à década de 1980. Esta situação atrapalha, para além do desenvolvimento individual do atleta, que continua apresentando perfil amador, o crescimento da modalidade. Essa situação relativa a carência profissional do atleta de handebol baiano confirma a compreensão que o fenômeno esportivo só se realiza a partir de determinadas condições sociais, que no caso analisado não contribuíram para sua ocorrência. Referências ANDRES,S.S.MulhereseHandebolnoRioGrandedoSul:narrativas sobre o processo de profisisionalização da modalidade e das atletas. (Dissertação) Mestrado em Ciências do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.
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    42 História do Esporte AMARO,F.; MOSTARO, F. F. R.; HELAL, R. Mídia e megaeventos esportivos: as cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas-1896 a Londres-1948. Logos, v.1, n.24, p.1-24, 2014. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70 - Brasil, 2011. BARROS, J. D´A. Prefácio. In: MELO, V. A. et al. Pesquisa Histórica e História do Esporte. Rio de Janeiro: 7 letras, 2013. p.11-19 BENELI, L. M.; RODRIGUES, E. F.; MONTAGNER, P. C. O Modelo de Brohm e a Organização do Basquetebol Masculino Brasileiro. CONEXÕES, v.4, n.1, p.48-63, 2006. CAVALACANTI, V. P. Produção do Discurso Historiográfico da Educação Física Brasileira na década de 80. (Dissertação) Mestrado em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba: Piracicaba, 1996. DAMO, A. S. Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.23, n.66, p.139-50, 2008. DIAS, C.; FORTES, R.; MELO, V. A. Sobre as ondas: surfe, juventude e cultura no Rio de Janeiro dos anos 1960. In: FORTES, R.; MELO, V. A. Comunicação e esporte: reflexões a partir do cinema. Rio de Janeiro: 7 letras, 2014. DRUMOND, M. Estado Novo e Esporte: a política e o esporte em Getúlio Vargas e Oliveira Salazar (1930-1945). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014. EPIPHANIO, E. H. Conflitos vivenciados por atletas quanto à manutenção da prática esportiva de alto rendimento. Revista de Estudos de Psicologia, v.19, n.1, p.15-22, 2002.
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    43 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 FONSECA, D. Uma nova força nas quadras. Placar, Rio de Janeiro, p. 56-58, 28 set. 1984. FRANCO Jr., H. A dança dos Deuses: futebol, cultura, sociedade. São Paulo: Cia das letras, 2007 GEBARA, A. Considerações sobre a História do Esporte e do Lazer no Brasil. In: Simpósio Nacional de História, 22, 2003, João Pessoa. ANAIS... João Pessoa: Sal da Terra, 2003. p.141-141. GIGLIO, S. S.; RÚBIO, K. Futebol profissional: o mercado e as práticas de liberdade. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v.27, n.3, p.387-400, 2013. GOMES, E. S. História comparada do esporte na América Latina: um olhar para a profissionalização do futebol no Brasil (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954). In: Encontro de História Regional da ANPUH Rio: Saberes e Práticas Científicas, 16, 2014, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUH Rio, 2014. GRECO, P. J. Depoimento de P. J. Greco II: Projeto Garimpando Memórias. Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEF- UFRGS 04/07/2013. Disponível em: < http://www.lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/83581/000906811.pdf?sequence=1> Acesso em 29.jun.2014. HOBSBAWN, E. J. A era das revoluções: Europa 1989-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2001. KNIJNIK, J. D. Handebol. São Paulo: Odysseus Editora, 2009. (Coleção Agôn, o espírito do esporte). MARCHI Jr, W. O processo de ressignificação do voleibol a partir da inserção da televisão no campo esportivo. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 26, n. 2, 2005.
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    44 História do Esporte MELO,V. A. O corpo esportivo nas searas tupiniquins – panorama histórico. In: DEL PRIORI, M.; AMANTINO, M. História do Corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011. p.507-530 MONACO, F. C. Miopia esportiva. GV executivo, v.6, n.3, p.59-63, mai./jun. 2007. MOREIRA, T. S.; FERREIRA, A. L. P.; MARCHI JR, W. Profissionalização do Voleibol Feminino no Brasil: o cenário. In: ENCONTRO DA ALESDE: Esporte na América Latina: atualidade e perspectivas, 1, 2008, Curitiba. Anais... Curitiba: UFPN, 2008. MUSSI, L. M. P. T.; MUSSI, R. F. F.; AMORIM, A. M.  O Handebol na Bahia: Dificuldades Econômicas para a Prática Esportiva. In: Encontro de História Regional da ANPUH Rio: Saberes e Práticas Científicas, 16, 2014, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUH Rio, 2014. OLIVEIRA, M. A. T. O esporte brasileiro em tempos de exceção: sob a égide da ditadura (1964-1985). In: Del Priori, M.; MELO, V. A. (orgs.) História do Esporte no Brasil. São Paulo: UNESP, 2009. p.387-416 PADRÓS, E. S. A ditadura civil-militar Uruguaia: doutrina e segurança nacional. Revista Varia História, v.28, n.48, p.495-517, jul./dez. 2012. PIRES, G. L. Breve Introdução ao Estudo dos Processos de Apropriação Social do Fenômeno Esporte. Revista Da Educação Física/UEM, v.9, n.1, p.25-34, 1998. PIRES, R. C. C.; HUNGER, D. Seleção Brasileira de Basquetebol Masculino: história e memória. In: Encontro Regional de História: o lugar da História, 17, 2004, Campinas. Anais... Campinas: UNICAMP, 2004.
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    45 Profissionalização do atletade handebol na bahia na década de 1980 PRONI, M. W. A metamorfose do futebol. Campinas, SP: UNICAMP/IE, 2000. REIS, H. H. B. A Gênese do Handebol: primeiras aproximações. In: GRECO, P. J.; ROMERO, J. J. F. Manual de Handebol: da iniciação ao alto nível. São Paulo: Phorte, 2012. p.23-24 ROMARIZ, S. B.; MOURÃO, L. A História do Voleibol Contada por Jogadoras de Seleção Brasileira no Período de 1958 a 1989. In: Encontro de História Regional da ANPUH-RJ: Usos do Passado, 12, 2006, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUH-RJ, 2006. ROMERO, E.; SILVA, M. C. S. Refletindo Sobre A Agressividade E Coragem Como Qualidades Aos Atletas De Handebol. Esporte e Sociedade, v.5, n.13, p.1-30, 2009. RÚBIO, K. A dinâmica do Esporte olímpico do século XIX ao XXI. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v.25, p.83-90, 2011. ______ . O Trabalho do Atleta e a Produção do Espetáculo Esportivo. Scripta Nova, v.6, n.119, p.95, ago. 2002. SARMENTO, J. P. O Evento Desportivo: etapas, fases e operações. Revista Intercontinental de Gestão Desportiva, v.1, n.2, p.78-96, 2011. VIGARELLO,G.;HOLT,R.Ocorpotrabalhado:ginastaseesportistas no século XIX. In: CORBIN, A.; COURTINE, J.; VIGARELLO, G. (org.). História do Corpo: da revolução à grande guerra. 3 ed. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2009. p.293-478. VLASTUIN, J.; ALMEIDA, B. S.; MARCHI JR, W. O Marketing Esportivo na Gestão do Voleibol Brasileiro: fragmentos teóricos referentes ao processo de espetacularização da modalidade. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v.29, n.3, p.9-24, 2008.
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    47 CAPÍTULO III HISTÓRIA DOBOXE FEMININO: UMA LUTA ALÉM DOS RINGUES Profa. Dra. Berta Leni Costa Cardoso Profa. Dra. Tania Mara Vieira Sampaio Introdução Durante muito tempo a participação feminina no esporte foi reduzida, muitas vezes, cabendo-lhe apenas os espaços de expectadoras. Havia muito preconceito em relação à participação da mulher no esporte, pois, acreditava-se que seus corpos não estavam preparados para a prática esportiva uma vez que houve um momento na história em que o esporte era utilizado para preparação militar. Aos poucos a mulher foi ocupando espaços principalmente participando das Olimpíadas como atletas e não apenas como as “meninas” que entregavam as medalhas. Algumas modalidades esportivas se revezaram com a participação feminina, em algumas edições entraram, depois saíram e depois retornaram. O boxe era a única modalidade em que não se havia participação feminina quando da sua inserção nas Olimpíadas 2012. Essa participação ainda é reduzida em relação à masculina, pois apenas três categorias femininas participaram em 2012 e em 2016, e dezmasculinasnasduasedições,sendoessascategoriasdeterminadas por peso. Embora essa configuração da participação feminina nos esportes esteja mudando, verifica-se que essa reduzida participação ainda tem relação com preconceitos e estereótipos criados socialmente sobre o papel da mulher na sociedade de uma maneira geral. O boxe ainda é uma modalidade que sofre preconceitos e discriminações, não apenas a participação feminina, mas também pelo seu histórico que durante muito tempo esteve relacionado a práticas marginais em que apenas pessoas de classes menos
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    48 História do Esporte abastadase consideradas de “más condutas” praticavam. Aos poucos a modalidade vem ganhando destaque nas academias de ginástica e alterando sua concepção. No entanto, ainda se percebe sua prática apenas como atividade física e não como modalidade esportiva. História do boxe Há divergência quanto à data exata em que o boxe começou a ser praticado, um dos motivos seria o das transformações ocorridas no esporte ao longo dos séculos. Algumas publicações informam que o surgimento se deu por volta de 7 mil anos antes de Cristo, sendo a luta realizada com o uso exclusivo das mãos (VIEIRA; FREITAS, 2007). Por sua vez, Rojo (2010) sustenta que o boxe surgiu aproximadamente no ano de 4000 a.C., na região que é hoje denominada Etiópia, no continente Africano, de onde se espalhou para o Egito Antigo e eventualmente para toda a área do Mediterrâneo. Achados arqueológicos no norte da África confirmam registros da existência de formas rudimentares de lutas com as mãos de homens pré-históricos. Os “combates” constituíam uma prática informal, sem regras, em que dois oponentes ficavam frente a frente e atacavam-se mutuamente, com golpes de mãos. Acredita-se que, até chegar à forma atual, o boxe sofreu inúmeras transformações (VIEIRA; FREITAS, 2007). Verifica-se, também, a existência de um desencontro quanto às datas das descrições de como os lutadores se preparavam para as disputas. Os egípcios e o gregos usavam tiras de tecido envolvendo as mãos, algo como bandagens que mais tarde foram substituídas por faixas de couro rígido incrustadas com esferas cortantes ou tachas pontiagudas (VIEIRA; FREITAS, 2007). Queiroz (1989), a esse respeito, sustenta que essas tiras de couro, chamadas de “cestos”, possuíam um dedo de largura e um metro e meio de comprimento, e envolviam cuidadosamente cada mão e antebraço, de forma a permitir a constituição de um sistema, papel hoje desempenhado pela bandagem. De acordo com esse autor, quando a emoção popular
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    49 História do boxefeminino exigiu combates mais arriscados, brutais, os “cestos” passaram a apresentar incrustações de chumbo ou bronze (myrmex) e, mais tarde, pontiagudos cravos metálicos. O pugilato foi admitido no rol de esportes olímpicos dos Jogos da Antiguidade na edição de número 23 da competição, no ano 668 a.C. Se, por um lado, o boxe se beneficiava do status olímpico e seguia uma trilha de fortalecimento como um nobre desporto, de outro, crescia nos submundos, entre a população menos abastada, como uma atividade marginal – o boxe underground, caracterizado pela violência extrema (VIEIRA, FREITAS, 2007). As lutas continuaram com o surgimento do Império Romano e, tal como ocorria com os gladiadores, os pugilistas eram escolhidos entre os prisioneiros de guerra e submetidos a intenso treinamento nas escolas para esse fim, que havia em Roma. O advento do Cristianismo e o sofrimento causado para seus praticantes, mesmo a punho nu, fizeram com que o boxe fosse proibido. Assim, durante séculos, viveu marginalizado pela lei, o que não impedia que, de quando em quando, houvesse combates dramáticos entre homens gigantescos (QUEIROZ, 1989). A decisão de suspender as competições veio do imperador Teodósio e, com essa medida, o pugilato, a exemplo de outras modalidades olímpicas, saiu temporariamente de cena, retornando séculos mais tarde (VIEIRA, FREITAS, 2007). O pugilismo nunca deixou de ser praticado, não obstante ter havido muita confusão e irregularidades; as regras eram inventadas e, às vezes, desprezadas, conforme as conveniências (QUEIROZ, 1989). Após séculos de obscurantismo, o pugilismo reapareceu na Inglaterra, onde, em 1719, James Figg fundou a Arena Figg, na qual ensinava defesa pessoal, e dela fazia demonstrações (OATES, 1987; QUEIROZ, 1989). Por mais de cem anos (1743 - 1838), na Inglaterra, as normas defendidas por Jack Broughton, um dos campeões que sucederam Figg, vigoraram e só vieram a ser alteradas com a renovação do boxe pelas regras do marquês de Queensberry. Oficializada na
  • 51.
    50 História do Esporte segundametade do século XIX, essa regulamentação, entre outras determinações, fixava categorias diferentes de competição, de acordo com o peso dos lutadores (peso leve, médio e pesado), bem como uso obrigatório de luvas especiais, protegendo toda a mão e também os dedos, e a duração dos assaltos de três minutos, com intervalos de um minuto entre eles (VIEIRA, FREITAS, 2007). O boxe apareceu timidamente nos Estados Unidos, no início do século XIX, sendo considerado ilegal na maioria dos estados americanos. Seus praticantes e fãs precisavam estar atentos à ação da polícia e de outras autoridades que combatiam a prática do esporte, uma vez que corriam o risco de serem presos. Portanto, nos Estados Unidos, as primeiras lutas por títulos foram travadas em locais afastados, rurais, escondidos do grande público. Além das alegadas razões de segurança, naquela época, assim como hoje, o boxe era uma oportunidade para as classes menos abastadas superarem a pobreza e a discriminação. A elite não via tal situação com bons olhos (FLORES Jr., 2001). Nos Jogos Olímpicos da Era Moderna, o boxe integrou a agenda de competições e passou a ser reconhecido como esporte olímpico nos Jogos de Londres, em 1908 (VIEIRA, FREITAS, 2007). De acordo com Flores Jr. (2001), após 1910 a transmissão de filmes de boxe foi proibida nos Estados Unidos. O objetivo da censura era evitar a propagação do triunfo e da habilidade dos negros sobre os brancos; foi revogada a proibição em 1919. De acordo com a Confederação Brasileira de Boxe (CBBOXE, 2010), no início do século XX essa prática desportiva era quase totalmente desconhecida no Brasil. Os raros esportistas se limitavam a membros das comunidades de imigrantes alemães e italianos, nos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo. Além da falta de tradição esportiva, outra característica desfavorecia a introdução do boxe no Brasil: no final do século XIX e início do XX, lutar era, equivocadamente, associado à “coisa de capoeiristas”, ou seja, a práticas de pessoas consideradas “malandros” e marginais (CBBOXE, 2010). Esse preconceito era especialmente
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    51 História do boxefeminino forte entre os membros das classes mais abastadas. Vale ressaltar, segundo Yahn (2009), que a capoeira foi proibida no Código de 1890 por meio do Decreto № 847, sob o título “Dos Vadios e Capoeiras”, tendo sua proibição revogada em 1930. Em1913,foidocumentadaamaisantigalutadeboxeemterritório brasileiro. Foi uma luta de exibição realizada em São Paulo, entre um ex-boxeador profissional, que fazia parte de uma companhia de ópera francesa, e o atleta Luís Sucupira, conhecido como “Apolo Brasileiro”. O lutador “Apolo” tornou-se um grande entusiasta do boxe e um de seus primeiros divulgadores. A propaganda de Sucupira entusiasmou alguns jovens que eram membros da tradicional “Societá dei Canotiere Esperia”, de São Paulo, os quais tentaram incluir o boxe entre as atividades dessa associação. Esse esforço durou entre 1914 e 1915, mas não frutificou (CBBOXE, 2010). Nesse mesmo período, no ano de 1919, no Rio de Janeiro, outro grande divulgador do boxe, Goes Neto, marinheiro carioca que havia feito várias viagens à Europa, lugar em que aprendeu a boxear, retornara ao Brasil e fez várias exibições no Rio de Janeiro. Um sobrinho do Presidente da República, Rodrigues Alves, encantou- se pela “nobre arte”, e o apoio do presidente facilitou a difusão do boxe. Começaram a surgir academias, e logo esse esporte ganhou o status de legalidade, de esporte regulamentado, a partir da criação das comissões municipais de boxe, entre 1920 e 1921, em São Paulo, em Santos e no Rio de Janeiro (MATTEUCCI, 1988). Até 1923, os treinamentos eram improvisados, e os treinadores, amadores.AsituaçãocomeçouamelhorarquandoBatistaBertagnolli estabeleceu-se, em 1923, como organizador de lutas no Clube Espéria, de São Paulo. Ainda em 1923, no Rio de Janeiro, foi criada a primeira academia de boxe no Brasil: era o Brasil Boxing Club, que muito difundiu o boxe entre os cariocas. No final do ano de 1922, Benedito dos Santos, “Ditão”, iniciou os treinamentos de boxe numa academia de São Paulo e em poucos meses, no início de 1923, estreou como profissional (CBBOXE, 2010).
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    52 História do Esporte Foiorganizada uma luta entre Ditão e Hermínio Spalla (campeão europeu), que rendeu muito dinheiro naquela época. O italiano venceu a luta e Ditão, como resultado da luta, teve um derrame cerebral, mas sobreviveu, terminando seus dias como inválido. Imediatamente após a derrota de Ditão, os jornais iniciaram uma campanha contra o boxe, o que levou o governador de São Paulo a proibir sua prática. O impacto da tragédia de Ditão fez com que os empresários brasileiros ficassem receosos de trazer boxeadores estrangeiros (CBBOXE, 2010). Depois de revogada a proibição, em abril de 1925, conforme a Confederação (2010), o boxe brasileiro voltou a crescer. De acordo com a Confederação Brasileira de Boxe (2010), o maior boxeador brasileiro de todos os tempos nasceu em uma família de pugilistas, Éder Jofre, e este motivou o surgimento de muitos boxeadores brasileiros, dentre os quais se destacaram Servílio de Oliveira e Miguel de Oliveira. Noiníciodosanosoitenta,pelaprimeiraveznoBrasil,umaredede TV (a TV Bandeirantes) resolveu investir no boxe, transformando-o em espetáculo de massa (CBBOXE, 2010). Os primeiros boxeadores que tiveram destaque na TV brasileira foram Francisco Thomás da Cruz (peso super-pena) e Rui Barbosa Bonfim (meio-peso), que tiveram relativo sucesso; mas foi com Adilson “Maguila” Rodrigues que as transmissões de lutas de boxe pela TV alcançaram absoluta liderança de audiência. Chegou a ser campeão mundial pela WBF (Federação Mundial de Boxe) e, por falta de patrocínio, pouco tempo depois, Maguila foi destituído do título por inatividade (CBBOXE, 2010). A partir do ocorrido com Maguila, o boxe brasileiro rapidamente perdeu o enorme espaço que havia tido na televisão. No final dos anos noventa, surgiu uma nova promessa: Acelino de Freitas, o Popó. Patrocinado pela Rede Globo de Televisão, chegou ao título de campeão mundial pelo WBO (CBBOXE, 2010).
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    53 História do boxefeminino Participação de homens e mulheres no boxe Historicamente o boxe tem sido um esporte eminentemente masculino, reduzindo e marginalizando a participação feminina. No final do século passado, Oates (1987, p.69) publicou: “Embora haja mulheres pugilistas – facto que parece surpreender, alarmar, divertir – o papel das mulheres no desporto tem sido extremamente marginal [...]”, a autora admite que o boxe é para homens e diz respeito a eles, sendo masculino. Oates (1987) chama a atenção para o papel das mulheres no universo do boxe, o qual, segundo ela, limita-se ao da mulher de cartaz e ocasional cantora do hino nacional – funções estereotipadas. “Soa o gongo, e a garota do cartaz pula pro ringue, rebolando e sacudindo seu traseiro” (TOOLE, 2005, p.80). Wacquant (2002) admite que o salão de treinamento de boxe é um espaço masculino, no interior do qual a intromissão do gênero feminino é tolerada somente à proporção em que permanece incidental. “O boxe é para homens, sobre os homens, ele é os homens. Homens que lutam com homens para determinar seu valor, isto é, sua masculinidade, excluindo as mulheres” (WACQUANT, 2002, p.69). Ele concebe o gym como uma escola de moralidade, isto é, uma máquina de fabricar o espírito de disciplina, a ligação com o grupo, o respeito ao outro assim como a si próprio, a autonomia da vontade, todos indispensáveis na vocação de um pugilista. O autor considera o salão de boxe um vetor de uma desbanalização da vida cotidiana, porque o pugilista faz da rotina e da remodelagem corporais o meio de acesso a um universo distintivo, em que se misturam aventura, honra masculina e prestígio. Oboxeaindaapresenta-secomotípicodomundomasculino,tanto no aspecto físico (ginásios de treinamento, arenas de competição) quanto devido à característica da técnica corporal e, ainda, por se tratar de um mundo dos negócios, esfera tradicionalmente concebida como lugar de ações dos homens (MELO; VAZ, 2009).
  • 55.
    54 História do Esporte Wacquant(2002) acrescenta que, embora não haja barreira formal que proiba a participação feminina, alguns treinadores chegam a negar qualquer restrição com relação ao boxe feminino, mas admitem que as mulheres não são bem-vindas à academia, porque sua presença atrapalha, se não o bom funcionamento material, pelo menos a ordenação simbólica do universo pugilístico. O autor relata que, quando havia alguma mulher no gym de Woodlawn, os pugilistas não estavam autorizados a sair dos vestiários de tronco nu para ir pesar-se na balança, que ficava na sala dos fundos. “Respeito é parte da magia do boxe. Muita gente fora do circuito boxista espera que os vitoriosos humilhem os derrotados. Isso destruiria a magia” (TOOLE, 2005, p.22). Quando um boxeador sai humilhado de um assalto, o que se diz a ele é que vá lá e ganhe respeito, pois trata-se de uma pequena família, cujos integrantes precisam um do outro, não só por causa do dinheiro, mas também para que possam, no final das contas, testar uns aos outros. “Os fãs pensam que boxe é sobre ser durão. Para os realmente interessados, a luta é sobre conseguir respeito” (TOOLE, 2005, p.31). Wacquant (2002) destaca que o ensino do boxe é uma empreitada coletiva, na qual o treinador é assistido, em suas funções, por todos os membros da academia. No início, pelos boxeadores profissionais mais experimentados, que colaboram de maneira informal, mas ativa, na formação dos noviços, assim como pelos outros treinadores ou pelos veteranos que vêm de vez em quando passar uma tarde na academia. “Cada membro do clube passa para aqueles que estão abaixo dele na hierarquia objetiva e subjetiva do gym o saber que recebeu daqueles que estão situados mais acima” (WACQUANT, 2002, p.140). Esse autor acrescenta que muitos profissionais admitiram que, muito provavelmente, teriam caído na criminalidade se não fosse a descoberta do boxe. Percebe-se que a maioria dos pugilistas faz do esporte sua profissão, seu meio de vida. Wacquant (2002) relata que a esmagadora maioria dos boxistas vem dos meios populares, e que os pugilistas profissionais são mais frequentemente originários de famílias intactas e, na maioria das vezes, são casados e pais de família.
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    55 História do boxefeminino DeacordocomFloresJr.(2001),arealidadesocial,historicamente, sempre exerceu influência sobre os jovens que escolheram ingressar no boxe. Treinar até seis dias em uma semana pode parecer mais fácil do que ir à escola ou ficar esperando um emprego por horas em uma fila interminável, no entanto é difícil determinar um perfil para o boxeador. Conforme Melo e Vaz (2009), o boxe foi, inicialmente, preferido pelas classes subalternas e com ele estavam envolvidos os imigrantes, os com poucas oportunidades de trabalho, os que moravam nos cortiços, os que suportavam mais facilmente a dor, o sofrimento, os representantes do tipo de sensibilidade “brutal” do boxe. Esses autores admitem que o esporte, com o passar do tempo, passou a ser apreciado pelos grupos sociais mais favorecidos economicamente, com críticas ou desconfianças sobre sua civilidade. Schaap (2007), ao publicar a biografia de James Braddock, em 2007, fê-lo, resgatando-o dos anais do boxe esquecidos por décadas. Esse autor, ao posicionar o boxe socialmente, afirma que, ao contrário do beisebel, que foi sinônimo dos valores de classe média nos EUA, acredita que o boxe era, e ainda é, um esporte das classes empobrecidas. Ele postula que, se houvesse outro caminho possível para chegar à segurança econômica e à elevação do status social, ninguém em seu juízo perfeito escolheria fazer carreira no boxe, pois trata-se de uma forma muito dura de ganhar a vida. Wacquant (2002) estimou haver uma taxa de evasão habitual que ultrapassa 90% para um gym, estimando que em torno de 100 a 150 pessoas vão treinar durante o ano, mas que a vasta maioria não permanece além de algumas semanas, porque descobre depressa que o treinamento é muito exigente para o gosto deles. Em conformidade com esse autor, as motivações dos participantes variam de acordo com o status deles, sendo que os mais regulares boxeiam oficialmente com amadores ou com profissionais, e a academia é, para eles, o local de uma preparação intensiva para a competição. Muitos vão ao clube apenas para se manter em forma física; outros, para perder peso; alguns, apenas para permancer em contato com os amigos e outros,
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    56 História do Esporte paraadquirir técnicas de autodefesa. No entanto, segundo Wacquant (2002), para o técnico de Woodlawn, só conta de verdade o boxe de competição. Para Wacquant (2002), o boxe amador e o boxe profissional formam dois universos gêmeos e estreitamente interdependentes, sendo, no entanto, muito distantes no plano da experiência. No boxe amador, a finalidade é acumular pontos, tocando o adversário o maior número de vezes possível, com séries de golpes rápidos. O árbitro dispõe de uma grande liberdade para cessar o confronto, quando um dos combatentes pareça impossibilitado de continuar lutando. Entre os profissionais, que não usam capecete e cujas luvas são menores, o objetivo máximo é derrubar o adversário, atingindo-o com golpes. O confronto prolonga-se até que um dos participantes não tenha condições de continuar. Segundo esse autor, grande parte dos boxistas amadores não vira profissional. Mulher no boxe Sobre a participação feminina no boxe, Mennesson (2000), ao realizar uma pesquisa com lutadoras, verificou que elas tiveram comportamentos diferentes na infância e na adolescência em relação a outras meninas. A autora identificou que as lutadoras eram desordeiras, gostavam de competição, vestiam-se de forma semelhante aos meninos e preferiam a presença deles à das meninas, além de possuírem uma coordenação motora incomum para meninas. Segundo a autora, a maioria das boxeadoras afirmou ter- se identificado com modelos masculinos durante a infância e, ao chegar a adolescência e a fase adulta, adaptou seus comportamentos aos padrões hegemônicos da feminilidade; e, mesmo estando em um esporte com características socialmente determinadas como masculinas, elas se esforçaram para parecerem femininas, mas sem parecerem frágeis ou passivas, características socialmente determinadas como femininas.
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    57 História do boxefeminino Segundo a autora, as lutadoras que começaram o boxe após os 20 anos preferem a forma mais suave do esporte [apenas treinos em academias], enquanto que as que começaram mais cedo preferem a versão mais dura (pesada) do esporte [lutadoras amadoras e profissionais]. Fernandes e Dantas (2007) analisaram a presença do boxe nas academias de ginástica de Campina Grande/PB, sob a dimensão dos comportamentos de risco e de estilos de vida saudáveis, entrevistando homens e mulheres. Esses autores admitem que o boxe vem invadindo as academias de ginástica, apoiado nos apelos de uma cultura de consumo fixada em padrões corporais universais de beleza e saúde. Os autores destacam que o boxe vem ganhando espaço nas academias de ginástica de Campina Grande-PB, mesmo se tratando de uma atividade em que o risco e a dor estão muito presentes. Segundo os autores, o boxe, juntamente com a capoeira, a dança e as artes marciais em geral, vem, nos últimos anos, tornando-se uma prática bastante difundida e em ascensão na sociedade moderna, sendo, muitas vezes, submetido a um processo de mercadorização e esportivização de suas características. Afirmam, ainda, que, seja em busca da saúde, da beleza, da autodefesa ou competição, a prática do boxe nas sociedades contemporâneas vem-se constituindo num fenômeno complexo, muitas vezes contraditório, uma vez que o risco da prática contrapõe-se à impossibilidade do controle total da vida. Fernandes e Dantas (2007) destacam, em sua pesquisa, a predominância da presença masculina, mas afirmam ser significativa a presença das mulheres não só nas aulas, mas também observando, com curiosidade e interesse, sua realização. Apesar de dois dos entrevistados não terem tido contato com artes marciais anteriormente à prática do boxe, os autores consideram que a vivência de outras experiências com lutas seja um fator que facilita o acesso ao boxe: “A proximidade de outras artes marciais pode ter sido o motivo também de os praticantes se mostrarem dispostos a realizar o boxe fora das academias de ginástica” (FERNANDES; DANTAS, 2007, p.7). Em conformidade com os autores, é interessante ressaltar
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    58 História do Esporte aspectospsicológicos, citados por uma das entrevistadas, como uma compreensão de saúde mais próxima a um bem-estar psicológico. Os autores afirmam que, para a maioria dos entrevistados, o boxe não é considerado um esporte arriscado, mesmo que já se tenham machucado praticando-o, o que evidencia uma certa tolerância dos indivíduos em conviver com o risco e a dor, numa perspectiva existencial da saúde. Ferretti e Knijnik (2007) investigaram lutadoras universitárias (boxeadoras, capoeiristas e caratecas), sob a dimensão das representações sociais. Esses autores consideram que essas representações possibilitam uma análise de significados e de aspectos simbólicos, relativos às configurações de gênero em constante mutação, sobretudo por serem as lutas uma atividade, no imaginário social sobre gêneros, como “coisa de homem”. Os autores, ao discutirem o papel social das mulheres lutadoras décadas atrás, afirmam que muitas delas, além de correrem o risco de serem rotuladas de lésbicas, foram impedidas de praticar as lutas. Eles realizaram a pesquisa com sete universitárias, entre 26 e 36 anos, das quais três eram boxeadoras, duas capoeristas e duas caratecas. Em conformidade com os autores, todas as entrevistadas se envolveram com o esporte na escola na infância, embora tenham relatado ter diminuído a prática de atividades físicas na adolescência. Segundo eles, as lutadoras ressaltaram a dificuldade em conciliar a casa com o esporte, e algumas reclamaram que a mídia as ignora. Todavia, elas reconhecem as melhoras e os avanços, apesar da existência de preconceitos antigos. O boxe praticado na universidade não visa ao profissionalismo, o que pode explicar o fato de a maioria das alunas não perceber diretamente um preconceito contra as lutadoras, ou contra elas mesmas. Ao serem questionadas se o esporte “tem sexo”, ou seja, o que elas pensavam sobre o fato de existirem esportes classificados como “masculinos” ou como “femininos”, a fala de que “não tem sexo, mas homem é diferente de mulher” predominou entre as lutadoras, pois, segundo elas, as mulheres são mais fracas, lutando de modo
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    59 História do boxefeminino distinto dos homens; e, embora pareçam bradar contra qualquer tipo de comentário relacionado ao sexo sobre as atletas nas lutas, elas procuram proteger sua feminilidade fora dos ringues, mostrando que lutar não tem relação com opção ou preferências sexuais (FERRETTI, KNIJNIK, 2007). De acordo com os autores, a estética também esteve no discurso da lutadoras, as quais afirmaram que a luta mexe com o corpo todo, reforçando o trabalho com as pernas; que a luta pode ser uma forma agradável de manter o corpo em forma. Conforme esses autores, as lutadoras falaram sobre como seus familiares e os grupos sociais as veem; há aquelas que perceberam mudanças e outras que ainda sofrem preconceitos, mesmo que velados e ocultos. Ao serem questionadas sobre a prevalência de homens nos esportes de luta, elas possuem um discurso que fala da mudança que ocorreu nas mentalidades, e que o ingresso da mulher está quebrando o preconceito, pois a sociedade tradicional sempre estimulou mais os meninos aos combates, às lutas. Melo e Vaz (2009), ao estudarem o boxe e o cinema, admitem haver uma escassez de imagens em longas e curtas sobre esse esporte, sendo isso um indicador de alguma resistência a ele. Em uma análise inicial do material filmado, sustentam que as ideias de superação como um valor e da denúncia da desonestidade parecem imperar. Em boa parte dos filmes de boxe, os combates são coadjuvantes das situações pelas quais passam os personagens e, ao contrário dos esportes de equipe, nos quais sempre a ideia de parceiros e de oponentes é multifacetada, no boxe, no ringue, só há dois indivíduos que se tocam e, durante todo o tempo, interagem. O resultado da competição não depende só de um, já que a interposição do outro se impõe. De acordo com Melo e Vaz (2009), em muitos filmes de boxe, o boxeador principal tem um filho como um dos seus elementos motivadores. Isso acontece porque sente a necessidade de construir e reforçar a ideia de que é um herói para o filho, e também porque tem a preocupação de, se morto e/ou derrotado em combate, não conseguirá os recursos financeiros para garantir o futuro de seu filho.
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    60 História do Esporte Sofretambém por não ter tempo para brincar com o filho, devido ao tempo que deve dedicar aos treinos, e sofre por ver que precisa da mãe do filho para custear as despesas até que o herói possa fazê-lo. Esse é um drama nos filmes, pois, segundo a sociedade tradicional, é papel do homem, além de provar capacidade de reproduzir, comprovar sua capacidade de prover recursos financeiros necessários à criação da prole. A tradicional constituição da imagem de masculinidade é plena- mente identificada nas películas que têm o boxe como argumento desencadeador da trama: os pugilistas não são femininos, homosse- xuais, dóceis, seus gestos são típicos dos machos (um tanto grossei- ros), e fundamentalmente são seres ativos. Isso é, apresenta-se um modelo de performance pública esperada para os homens, inclusive e fundamentalmente no que se refere às posturas corpóreas a serem adotadas (MELO, VAZ, 2009, p.133). Cardoso (2011), ao apresentar e discutir dificuldades e preconceitos em boxeadoras, verificou que essas atletas sofrem ou sofreram, de forma direta ou indireta, algum tipo de preconceito em sua trajetória esportiva, e que muitos desses preconceitos e limites partiram da própria esfera familiar. Segundo a autora, embora as atletas sofram algum tipo de preconceito, isso não as afasta do esporte, e elas demonstram “paixão” pelo esporte, principalmente após ele se tornar de competição olímpica. As atletas afirmaram que, mesmo depois que tiverem de parar de lutar devido à faixa etária, uma vez que o esporte impõe limites, elas desejam estar presentes no âmbito esportivo do boxe de alguma maneira. Boxe feminino nas olimpíadas O boxe feminino quase foi incluído na Olimpíada de 2008, em Pequim, mas o COI acabou não autorizando a mudança, devido à percepção de que o esporte não atingia o padrão mínimo necessário para ser considerado olímpico. Uma preocupação, à época, era que o boxe feminino não era praticado em um número suficiente de países. Mas a participação feminina no esporte aumentou e, desde então,
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    61 História do boxefeminino 120 federações internacionais contam com boxeadoras (ESTADÃO, 2010). O Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu, no dia 13 de agosto de 2009, incluir o boxe feminino entre os esportes olímpicos, e a categoria disputou medalhas já na Olimpíada, em Londres, em 2012. “A decisão foi o reconhecimento de que o boxe feminino obteve progresso substancial em universalidade e qualidade técnica das atletas, desde que a diretoria executiva analisou a disciplina pela última vez, em 2005”, informou o COI, em sua página na internet (ESTADÃO, 2010). O boxe feminino foi disputado em Londres, por três categorias: 48kg – 51kg; 56kg – 60kg e 69kg – 75kg, com doze atletas em cada faixa de peso, somando, portanto, 36 boxeadoras. Para que o núme- ro total de boxeadores permanecesse o mesmo, a categoria 48kg do boxe masculino deixou de existir, restando, assim, dez categorias para o boxe masculino. Portanto, o boxe deixou de ser o único espor- te olímpico praticado exclusivamente por homens; antes conhecido como amador, passou então a ser chamado de boxe olímpico (MO- RETTI, 2009). A discriminação não acaba por decreto ou pela mera inclusão do boxe feminino nas olimpíadas. O posicionamento de Cuba a esse respeito comprova claramente isso, quando anuncia que não enviará representantes para a disputa do boxe feminino que teve a sua estreia nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres (UOL, 2009). O chefe dos técnicos da seleção cubana de boxe, Pedro Roque, mostrou ter a mesma opinião sobre o boxe feminino. “Penso que o esporte ainda vai se desenvolver. Mas, as mulheres cubanas foram feitas para mostrar sua beleza, não para receberem golpes no rosto”, afirmou ele à rádio estatal Radio Rebelde (UOL, 2009). Médicos britânicos também se posicionaram contra a decisão que permitiu a entrada do boxe feminino no programa dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012, ressaltando que é um esporte perigoso, que não deve ser promovido em altas esferas. “Mais além do que a questão do sexo, durante um combate de boxe, os pugilistas
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    62 História do Esporte podemsofrer hemorragias cerebrais e sérios problemas nos olhos, nos ouvidos e no nariz”, afirmou um porta-voz da Associação dos Médicos Britânicos – BMA (ARAGÃO, 2009). Em 2016, no Rio de Janeiro, o boxe continuou com dez categorias masculinas e três femininas, sendo que apenas duas brasileiras participaram do evento, Andreia Bandeira e Adriana Araújo, sem nenhuma medalha. Considerações Finais Embora o boxe ainda seja uma modalidade esportiva coberta de desconfiança, preconceitos e discriminações, verifica-se que esta prática tem ajudado jovens e adultos a se inserirem em uma prática esportiva tanto como uma opção de vida quanto de trabalho. A participação feminina em muitas modalidades esportivas ainda é restrita e isso verifca-se acentuadamente no boxe. Sua inserção nas Olimpíadas pode ser um ponto de partida para sua maior divulgação para atrair mais atletas que queiram praticá-lo. Como essa inserção ainda é embrionária, muito ainda haverá que se contar dessa participação feminina em uma modalidade que durante décadas e séculos foi restrita ao mundo masculino. Referências ARAGÃO,A.Nadadepuxaroscabelos:boxefemininonasOlimpíadas. Net. 2009. Disponível em: <http://maragao.com.br/2009/10/nada- de-puxar-os-cabelos-boxefeminino-nas-olimpiadas/>. Acesso em: 26 maio 2010. CARDOSO, B. L. C. Percepção das dificuldades encontradas por mulheres atletas praticantes do boxe. (Tese) Doutorado em Educação Física, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2011.
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    65 CAPÍTULO IV DO ESCANTEIOPARA O MEIO DA ÁREA: EM BUSCA DA VISIBILIDADE E RESPEITO AO FUTEBOL FEMININO BRASILEIRO Profa. Dra. Enny Vieira Moraes Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque Introdução “Enquanto o talento masculino é cultivado e alimentado, a ginga das mulheres cresce a partir do nada”1 . Nos últimos anos dois megaeventos esportivos sediados no Brasil fizeram com que os olhos do mundo se voltassem para nosso território. Um contexto esportivo que muitas vezes tende a reforçar uma suposta identidade nacional, una e coesa, mostrou sem pudor as faces do país e expôs preconceito, intolerância e muitos outros elementos somados à uma grave crise política e econômica. “Olhar politicamente é por as dissidências no centro do foco, o traço oposicionista da arte frente aos discursos estabelecidos” (SARLO, 1997, p.60). Um ano antes da Copa do Mundo, manifestações se alastraram pelo país, com o jargão “não vai ter copa”. Mas, a Copa aconteceu e com ela uma derrota histórica e um placar de difícil digestão, afinal a Copa do Mundo é uma baliza cronológica, tece memórias e histórias, todos nós temos memórias sobre Copas do Mundo relacionadas à nossa vida pessoal, como por exemplo: na Copa do Mundo do ano tal, eu morava em tal lugar, assisti na companhia de tais pessoas, o jogo tal foi marcante por tal razão; é de certo modo uma mola propulsora de memórias. 1 “Marta e Neymar: a desigualdade de salários e apoio no futebol brasileiro” . Época Negócios.com, publicada em 05/06/2015 às 18:19hs, atualizada às 12:51hs, Disponível em: http://epocanegocios.globo.com/ Informacao/Dilemas/noticia/2015/06/marta-e-neymar-desigualdade-de-salarios-e-apoio-no-futebol- brasileiro.html
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    66 História do Esporte Somadaaessemardesubjetividade,existeaforçadarepresentação dopaís: “A cada quatro anos, uma nova leva de brasileiros aprende que o time da CBF é o Brasil e é instigada a torcer por ele. A força do time da CBF – apresentado, acreditado e vivido – como a seleção brasileira deriva do fato de que os brasileiros – se não todos, a grande maioria deles – são envolvidos emocionalmente com ele. O Brasil não é o único país no qual um time de futebol foi alçado a símbolo da nação, mas o fato de que não tenhamos um histórico belicoso, de onde a nação pinça boa parte de seus heróis e narrativas épicas, faz do time da CBF uma unanimidade ou quase” (DAMO; OLIVEN, 2013, p.20). Passado o “trauma”, no ano de 2016 foram realizadas no Brasil as Olimpíadas, principal acontecimento esportivo mundial, mais uma vez o mundo volta os olhos para nosso país; o clima festivo e o colorido da bandeira dividem espaço com um contexto político conturbado, um processo de impeachment que tira o mandato das mãos da primeira mulher presidenta do país. Vale salientar que a função social do historiador e sua vitalidade crítica para se debruçar sobre esse cenário não constitui escopo deste texto, porém, não está dissociado dele. Na imprensa, holofotes se voltam para as delegações, para o campo esportivo, para os Jogos Olímpicos, com muita descrença sobre a possibilidade de não cometer gafes, assiste-se o início do evento que não havia sido ainda chancelado pelo Brasil. Com uma abertura surpreendente, marcada por um excepcional jogo de cores, luzes, som e imagens que retrataram um país multiforme. A conotação que foi dada e, exemplarmente incentivada pela imprensa desde a abertura dos Jogos, foi a visão de um Brasil de diversidade, construído historicamente por diversos povos e etnias que, com o tempo foram se fortalecendo em seus costumes e culturas, de modo a se consolidarem enquanto diferentes grupos, o que findou por construírem um país múltiplo e que, exatamente por suas diferenças, vem se consolidando como uma nação que aprendeu a lhe dar com as diversidades, sejam elas étnicas, religiosas, de gênero e de geração.
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    67 Do escanteio parao meio da área Temos um mito fundador “no sentido antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade” (CHAUÍ, 2000, p.9). Embora eventos esportivos sirvam geralmente como elemento de coesão e afirmam a existência de uma identidade nacional, fissuras nesse processo foram identificadas como, por exemplo, a ausência de representantes de religiões afro- brasileiras na Vila Olímpica “O Comitê da Rio-2016, responsável pela organização da Olimpíada, escolheu apenas cinco religiões para terem representantes em seu centro inter-religioso, montado na Vila Olímpica para atender atletas que participarão do evento. Somente cristãos, judeus, muçulmanos, budistas ou hindus terão sacerdotes de suas religiões no espaço”2 . Temos ainda traços marcantes da sociedade autoritária da época colonial, onde divisões sociais “são naturalizadas em desigualdades postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, imigrantes, migrantes e idosos) e as diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer, ora como desvios de norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade” (CHAUÍ, 2000, p.90). A eleição de uma mulher como representante do país, representou um avanço e expôs a face autoritária e machista da sociedade brasileira, evidenciando sua imaturidade democrática, tirando o foco da discussão do campo político - inúmeras vezes - e colocando-o como uma questão de gênero, procurando limitar o papel da mulher na sociedade. 2 “Rio-16 restringe religiões afro em centro na Vila Olímpica e gera críticas”. UolOlimpiadas. com, publicado em 06/07/2016 às 16:07hs. disponível em: http://olimpiadas.uol.com.br/noticias/ redacao/2016/07/06/rio-16-restringe-religioes-afro-e-espirita-na-vila-olimpica-e-gera-criticas.htm
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    68 História do Esporte Figura1: Capa de Revista de 06 de Abril de 2016 http://istoe.com.br/edicoes/page/2/ Negros e Mulheres, segundo o último senso brasileiro constituem maioria da nossa sociedade, mas ainda estão em busca de espaço e de representação. Voltando ao campo esportivo, não podemos deixar de observar, em meio a tantas belezas, que os Jogos Olímpicos trouxeram consigo muitos pontos de análise, especialmente no que se refere à diversidade. Utilizar-se-á uma das modalidades esportivas para, através de sua historia, apontarmos aspectos que discutem a exaltação da diversidade e igualdade, tão insistentemente evocada quando do espetáculo da abertura dos Jogos Olímpicos que ocorreram no Rio de Janeiro 2016. Nesse trabalho buscaremos, portanto, através do futebol feminino, discutirmos e mostrarmos elementos que possibilitam analisar contraditoriamente aspectos de nossa própria história enquanto povo. Brasil: país do futebol masculino A mulher, tanto na antiguidade quanto no mundo moderno tem sido estudada e descrita a partir de uma perspectiva eurocêntrica masculina. Perspectiva essa de quem esta no poder. [...] No esporte essa prática se repete. A mulher foi considerada como usurpadora ou profanadora de um espaço consagrado ao usufruto masculino (RUBIO; SIMÕES, 1999, p.50). OBrasil,comoédeconhecimentonotório,semprefoiconsiderado como o país do futebol. Afinal, quem não se lembra de Pelé, o grande
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    69 Do escanteio parao meio da área ícone do futebol nacional? Reconhecido internacionalmente seu nome, definitivamente entrou para história como o craque da bola, e pelos seus feitos, até hoje continua sendo saudado e homenageado pelo mundo afora. A única ressalva que precisa ser feita é que “somos o país do futebol masculino” e esse aspecto, muda completamente, a visão de um país múltiplo e que consolidou aspectos como igualdade e justiça nas relações sociais estabelecidas. Necessário se faz, nesse momento, lançarmos mão da história desse esporte para buscar argumentos que solidifiquem nosso ponto de partida. Não questionando a importância desse esporte para brasileiros/as, mas a apontando a constituição da memória desse povo e das narrativas que a sustentam. Afinal, ambigüidades estão presentes nas narrativas e elas fazem parte de processos sociais e isso implica,anossover,emoutraformadelidarcomreferenciaisteóricos, despertando-nos a percepção sobre como ocorrem a realimentação de representações e na identificação de forças hegemônicas e de pontos de tensão e de disputas entre grupos sociais. Nessesentido,podemosdizerqueahistóriadofutebolfemininono Brasil está ainda por se construir e se consolidar. Em nossas trajetórias acadêmicas, o futebol constituiu um ponto em comum, porém não foi o futebol profissional dos campos gramados e televisionados que constituíram nossos objetos de pesquisa. Futebóis varzeanos, de chão batido, cujos protagonistas foram operários e mulheres, foram os que concentraram nossa atenção. De lá para cá esses grupos que investigamos têm nos ensinado, não só lidar com fontes escassas, mas nos desafiam a todo instante, muitas vezes a produzirmos fontes, colocando-nos como co-autoras, ouvindo e compartilhando muitas memórias sobre inúmeras faces do futebol brasileiro, apontando para a emergência em continuarmos tal trabalho como militância acadêmica, tirando da sombra e invisibilidade inúmeros sujeitos, em especial as mulheres3 . Lidando com as contradições de um 3 Sobre gênero, vide: “As mulheres também são boas de bola: histórias de vida de jogadoras baianas (1970-1990)” Tese de doutorado disponível no banco de teses da PUC/SP, Programa de Pós-Graduação em Historia Social. Sobre futebol varzeano-operário, vide: “A cidade, o futebol e o trabalho: memórias do futebol de fábrica São José dos Campos (1920-2010). Tese de doutorado disponível no banco de teses PUC/SP.
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    70 História do Esporte esporteque, no fundo, mostra as contradições de nossa própria estrutura social, temos tentando “aprender um pouquinho”, como diz Alessandro Portelli (1997). Aspectos históricos sobre o futebol feminino no Brasil Citar Pelé, como nosso maior jogador de futebol nos abre a possibilidade de falar também de Marta Vieira, nossa maior jogadora nessa modalidade na atualidade. Nascida em Dois Riachos4 , uma cidade Alagoana do nordeste brasileiro, essa atleta teve que superar muitas barreiras para atuar no futebol. Além de enfrentar a fome e a pobreza, o preconceito foi o pior obstáculo encontrado pela única menina que tinha a coragem de entrar num campinho improvisado, somente com duas traves arranjadas, em baixo de uma ponte, para driblar e fazer gols no meio de um monte de garotos. Foi a partir do incentivo do professor Tota, primeiro a estimular Marta a atuar e permanecer nas quatro linhas, que Marta iniciou uma improvável, mas vitoriosa carreira nos campinhos de barro em Alagoas e dali seguiu, inicialmente para o time do Vasco no Rio de Janeiro, em seguida, aos 17 anos, na Seleção Brasileira Feminina de Futebol. Depois veio a possibilidade de atuar na Suécia, um país frio e bem diferente do nosso, mas que possibilitou essa atleta a se consagrar como a melhor do mundo. Em nove anos jogando Marta acumula sete títulos de campeã sueca, duas medalhas olímpicas (em Atenas e Pequim), além do fantástico título de ser reconhecida cinco vezes a melhor jogadora do mundo. Mesmo com esse currículo exemplar e uma trajetória campeã, prova de que através do exemplo de Marta podemos compreender um pouco sobre como de fato se vive no “país do futebol”, tivemos o caso do menino Bernardo, que como fã de Marta, vestiu a camisa dez da seleção masculina e nela inseriu o nome de Marta. Outro caso foi o do ator Alexandre Nero que se mostrou indignado por 4 “Marta:ameninaquedriblouopreconceitoecresceunofutebol:jogadora foi eleita a melhor do mundo cinco vezes seguidas; exemplo da mãe e incentivo de professor foram fundamentais”. Jornal Nacional, publicado em 01/08/2016 às 21:49hs, atualizado as 21:49. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/ noticia/2016/08/marta-menina-que-driblou-o-preconceito-e-cresceu-no-futebol.html
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    71 Do escanteio parao meio da área não conseguir adquirir uma camisa da Seleção Feminina de futebol, por não ser comercializada em modelo masculino5 . “A fornecedora de material esportivo do Brasil informou que as camisas modelo 2016 usadas em amistosos e competições da Fifa da equipe feminina, estão sim à venda no site da empresa e podem ser customizadas, ressaltando ainda que é uma opção do lojista “pré-fabricar” o nome e número às costas com o objetivo de chamar a atenção dos clientes e não há qualquer tipo de restrição. Os itens são enviados “em branco” aos pontos de venda. A opção tem sido Neymar”6 . O fato é que não há a mesma visibilidade direcionada ao futebol feminino, quanto se tem, até hoje, voltada para o futebol masculino e isso demonstra que atletas possuem condições de tratamento diferenciadas - e quando se fala da questão da gênero, as condições são ainda mais agravadas ou distanciadas. Figura 2: Reprodução da foto que viralizou na internet no início de agosto de 2016 5 “Ator da Globo reclama de não poder comprar camisa da seleção feminina: pensamento medieval”. Torcedores.com, publicada em 07/08/2016 às 15:16hs. disponível em http://torcedores.com/ noticias/2016/08/alexandre-nero-marta 6 A polêmica acesa diante dessa questão pode ser um pouco elucidada a partir da Matéria “Fornecedora da Seleção Brasileira diz que envia ‘camisas em branco’ às lojas”. GloboEsporte.com. publicado em 09/08/2016 às 14:41hs, atualizado às 15:48hs. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/ olimpiadas/futebol/noticia/2016/08/sem-riscos-uniforme-feminino-esta-venda-lojas-podem-gravar- marta.html
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    72 História do Esporte Dificuldadesà parte, para a atleta em questão, sua maior vitória foi ter dado uma casa para a mãe e ter ajudado a família a sair da miséria. Para Marta, apesar de todas as suas conquistas que somam, entre outras, na Seleção Feminina os títulos da Copa do Mundo de 2007, onde ajudou a conquistar o segundo lugar, assim como no Campeonato Sul-Americano em 2006, o que ficou foi a consciência de que, se tivesse desistido dos seus sonhos, teria continuado numa vida beirando a miséria em Dois Riachos (AL), como ela mesma afirma: Eu já pensei muitas vezes e eu acredito que já estaria casada e com filhos. A mentalidade na minha cidade não tinha tanta perspectiva de vida. É casar, trabalhar para o poder público ou trabalhar na plan- tação... É o que aconteceria comigo se eu não tivesse tomado esta decisão de deixar tudo para trás e ir atrás do meu sonho7 . Um dos aspectos mais importantes a ser observados na entrevista de Marta consiste no fato de que a jogadora, atualmente com trinta anos e, talvez por esse fato, estar atuando em sua última Olimpíada no auge de sua forma física, não se difere em nada das circunstâncias nas quais vivenciaram no Brasil outras atletas de gerações anteriores. Com base em depoimentos e fontes documentais fornecidas por ex atletas e jogadoras de futebol foi possível perceber que, no Brasil, entre as décadas de 1970 e 1990, o preconceito foi a principal barreira para o futebol feminino, fato que teve como conseqüência uma quase total falta de estrutura para essa modalidade esportiva se consolidar8 . Um exemplo pontual, pode ser o do estado baiano nas décadas de 1970 e 1980, a inserção das meninas no esporte se deu da mesma forma: em campinhos de terra batida, com duas travezinhas improvisadas, no meio dos meninos. Nesse período, participar das peladas acontecia com a anuência dos meninos - como se deu 7 Depoimento de Marta Vieira da Silva retirado da matéria “Rainha Marta, a mulher que derrubou Pelé do trono do futebol brasileiro”, publicada em 21/07/2016 às 08:28, atualizada em 22/07/2016 16:04, disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2016/07/21/marta-derruba-pele_n_10929532.html. 8 Os dados a seguir se encontram-se na Tese de Doutorado intitulada “As mulheres também são boas de bola: historias de vida de jogadoras baianas (1970-1990)”, defendida em julho de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Historia Social da PUC/SP e que consta no banco de dissertações e teses do referido Programa.
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    73 Do escanteio parao meio da área com Marta mas, para isso, as meninas precisavam ser muito boas de bola. Os times eram organizados e mantidos pelos “donos dos times”, os homens que organizavam as meninas, como também os treinamentos e vestimentas emprestadas dos times masculinos, já que, nesse período, não existia vestimenta específica para os times femininos. Além das dificuldades de acesso ao campo e consentimento dos “donos”, observa-se no caso baiano, a existência da expressão macho-feme que se consolidou como referência a essas ousadas meninas que insistiam em driblar, correr e marcar gols. Esses times eram sempre marcados por efemeridades, já que dependiam da boa vontade dos organizadores que eram as pessoas responsáveis por bancarem treinos, lanches, deslocamento, ou mesmo hospedagem em suas residências para promover algum torneio; sendo comum a desintegração dos times, o que ceifava também sonhos e carreiras. Sabe-se que o futebol constitui sonho de muitos meninos e meninas no Brasil e pelo mundo à fora e que mesmo com vários exemplos de carreiras consolidadas, de atletas que venceram, esses casos ainda são pontuais. O futebol glamoroso, televisionado, das primeiras divisões é um sonho ucrônico. E quando se trata do futebol feminino, as dificuldades são ímpares! Entretanto, ele resiste. Durante a pesquisa, identificou-se que nas décadas de 70 e 80, somente na região sudoeste da Bahia, existiam os seguintes times: Conquistar, Canadá, Alto do Cruzeiro, Macicas, As Panteras e o time do Mandacaru. Um dos mais famosos times femininos de futebol desse período foi o Flamengo da cidade de Feira de Santana e o Bahia da cidade de Salvador. Mas existiram também o Baiano de Tênis, o Ipiranga, o Catuense, Agroveco, Guadalupe, Yuratim, Brasília, 8 de Agosto e Tejan, elucidando a força dessa prática esportiva. A existência desses vários times, demonstram que haviam investimentos e aceitação por parte do público, justificando-se o envolvimento do poder público, quando, em 1986, a Prefeitura de Salvador realizou o Primeiro Campeonato Estadual de Futebol Feminino. De acordo com o Departamento de Esportes e Animação
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    74 História do Esporte Urbanae da Federação Baiana de Futebol, nesse período existiam no Estado 100 equipes de futebol feminino, dos quais 30 participaram desse torneio, sendo 21 equipes da capital e 09 do interior9 . Vale ressaltar ainda que, já na década de 1980 foi realizada a Copa do Brasil de Futebol Feminino. O final da década de 1980 foi acompanhado do crescente processo de expansão dos direitos das mulheres e de sua maior participação social, inclusive em esportes antes desestimulados. “Em 11 de abril de 1983, o extinto Conselho Nacional de Desportos regulamentava o futebol feminino e autorizava a prática do esporte em todos os municípios do Brasil” (ROQUE, FRAGA, ZANETTI, 2014, p.179). Figura 3:IBRAPE x Raios de Sol – Estádio Martins Pereira São José dos Campos - SP (1985) Com esses times espalhados pelo Brasil, nessa mesma época em que eram realizados os campeonatos estaduais de futebol de salão feminino; houve também o Campeonato Metropolitano em São Paulo, a Copa Sudoeste no Rio de Janeiro, a Taça Cidade de São Paulo e a Taça Brasil, cuja uma das edições foi realizada na cidade de Contagem, outra em Brasília e outra em Mairinque, no início dos anos de 1990. 9 MORAES, Op. cit. p. 93. Ainda puderam ser identificados dados sobre o futebol de salão na transição entre os anos 80 e 90 do século passado. Times como Bordon Poli Esporte (SP), C. R. Vasco da Gama (RJ), Aruc (DF), A.D.C. Frigo Arnaldo (MG), Artrok (MS), Goiânia Esporte Clube (GO), G. R. Transvira (SP), Canto do Rio F. C. (RJ), Center Clube (PR), Flavio Automóveis (CE), Independente A. C. (PA) e Sul América (AM).
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    75 Do escanteio parao meio da área Obviamente, para que os torneios ocorressem, seja de campo ou salão, havia público. E foi nesse contexto, no final dos anos de 1980, que foi criada a primeira Seleção Feminina de Futebol, mais especificamente em 1988. Tendo como base o time carioca do Radar (RJ), que apresentou resultados pra lá de satisfatórios em jogos internacionais realizados na Itália, Alemanha, Suíça, China, Japão, Caribe e Estados Unidos, o que fez do Radar uma equipe valorizada e reconhecida nacional e internacionalmente (MOURÃO; MOREL, 2005)10 formavam esse grupo nomes como Russa, Michael Jackson, Fanta, Sisi, Marcinha, Pelézinha, Lica, Simone, Suzana, Mariza, Elaine, Fia, Roseli, Flordelis, Suzy, Sandra, Lucia e Cebola11 . Com isso afirmamos que o futebol feminino no Brasil não é um fenômeno novo. Para as novas gerações, a atleta Marta, citada nesse estudo e suas companheiras, são inovadoras nessa modalidade pelo fato de, diferentemente do futebol masculino, aprendemos a construir nossas memórias associadas a gerações que sucederam Pele e Zico, esse último ex-atleta do time carioca do Flamengo e outro nome muito lembrado por seu brilhantismo em campo na década de 1980, como nos tempos em que atuou na nossa Seleção. Mas, ao contrário dos homens em campo, da Seleção Feminina do final dos anos 8º e da década de 1990 do século passado, restaram sombras, muitos silêncios e esquecimentos. Entre discrepâncias salariais e estruturais, qual será o futuro do futebol feminino no Brasil? “Juntar mulher bonita e futebol – duas maiores paixões dos brasileiros – não é novidade hoje, ontem nem anteontem”12 . O que podemos observar sobre o futebol feminino brasileiro é que essa prática vem se construindo em meio a diálogos, frequentemente 10 Dos 44 jogos realizados entre 1982 a 1986, o Radar venceu 39 disputas, empatou duas delas e teve apenas 3 derrotas (MOURÃO, MOREL, 2005, p.80). 11 Idem, p. 145. 12 “A primeira musa do futebol brasileiro na radio e na TV”. Globoesporte.com, publicada em 05/12/2007 às 15:57hs, atualizada às 16h42m. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/ESP/ Noticia/Futebol/Flamengo/0,,MUL204651-4282,00.html
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    76 História do Esporte conturbadose esclarecedores, sobre elementos quem compõem nossa própria cultura. Nesse aspecto alguns trabalhos esclarecem o quanto de conservadorismo existe no Brasil, sem falar nas doses de machismo e preconceito que insistentemente tentam burlar práticas sociais, dentre essas, o acesso e a permanência de mulheres em práticas esportivas, como no caso do futebol. Nessesentido,algunsestudosapontamatrajetóriadeinstabilidade dessa modalidade, seja na mídia ou na pouca estrutura, que até hoje lhe é oferecida, aspectos que associados, indicam que não houve a consolidação do futebol feminino brasileiro no país do futebol. Assim, o futebol das meninas, em dado momento, se apresenta como um espaço de esperança e mexe com a alegria de milhões de pessoas em espetáculos como os Jogos Olímpicos do Rio 2016, vindo em seguida cair em esquecimento logo ao encerramento dessas competições. Acreditamos que a epígrafe acima pode esclarecer, ou mesmo resumir um conjunto de valores sociais sobre os esportes considerados masculinos, como o futebol, quando praticado por mulheres: mulher nesses esportes, para a sociedade brasileira e, especificamente no futebol, não precisa ter talento com a bola, ela pode (e deve) até ficar nas arquibancadas, o importante e necessário é que ela seja bonita, o que não geraria dúvidas sobre sua sexualidade. Em seu trabalho quando analisa, sob a ótica da mídia, esse esporte no Brasil nos anos de 1940, Franzini (2005, p.316) é enfático ao observar que: É notório que o universo do futebol caracteriza-se por ser, desde sua origem, um espaço eminentemente masculino; como esse espaço não é apenas esportivo, mas também sociocultural, os valores nele embutidos e dele derivados estabelecem limites que, embora nem sempre tão claros, devem ser observados para a perfeita manutenção da ‘ordem’, ou da ‘lógica’, que se atribui ao jogo e que nele se espera ver confirmada. A entrada das mulheres em campo subverteria tal ordem, e as relações daí decorrentes expressam muito bem as rela- ções de gênero presentes em cada sociedade: quanto mais machista, ou sexista, ela for, mais exacerbadas suas replicas.
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    77 Do escanteio parao meio da área Nesse estudo, o autor comenta o quanto de resistências se observou na sociedade brasileira naquele que seria um dos primeiros contatos que nosso público teve com o futebol das moças, referindo- se ao futebol feminino carioca que, entre os anos de 1940, começava a estruturar suas primeiras equipes. A época, o correto seriam meninas nas arquibancadas torcendo alegremente por seus pares que, nas quatro linhas, mostravam toda masculinidade através dos chutes a gol e dos dribles em campo. O ‘problema’ começa quando elas resolveram levantar das arquibancadas e se imiscuir num espaço, até então, considerado absolutamente de domínio e pertencimento dos homens. Revelando e refletindo nossos próprios valores, o autor mostra o posicionamento de nossa população sobre essa ‘aberração’ que, naquele momento, iniciava seus primeiros passos diante do público, o que gerou vários escritos na imprensa da época, contrários a participação feminina nesse ambiente considerado, minimamente, incompatível com a natureza da mulher. Nesse caso, até o Presidente Getúlio Vargas foi solicitado a intervir, de modo a evitar que essa calamidadeseinstalasseemnossasociedade,fatoque,seconsolidado, comprometeria o futuro de toda uma geração por se tratar de um esporte incompatível com a natural fragilidade biológica, assim como a inata docilidade da mulher. Desse apelo popular engrossavam tal discurso profissionais do jornalismo, da área médica, especialmente da medicina esportiva. O fato provocou o posicionamento do Poder Público o que gerou, através do Conselho Nacional de Desportos (CND), em seu artigo 54 a normativa: “às mulheres não se permitira a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para esse efeito, o Conselho nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”13 Segui-se, a partir daí, uma série de publicações jornalísticas que tratavam de forma irônica e ridícula a participação das mulheres no futebol. Além da intervenção governamental que durou até a década 13 Correio da Manha, Rio de Janeiro, 10.05.1940, p.06. In: FRANZINI (Op. cit. p, 323)
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    78 História do Esporte de70 no Brasil e que impedia, de fato e de direito que essa prática se efetivasse pelas mulheres, houve também um constante comparativo de um olhar preconceituoso que padronizou o futebol como de posse e reserva masculina, universo distante das “potencialidades” associadas a natural fragilidade feminina. No mesmo trabalho, ao se referir a uma partida de futebol feminino ocorrida entre os times de São Paulo e America, no dia 17 de maio de 1949 no Pacaembu, a matéria jornalística registrava: ‘momentos dos mais agradáveis, sobretudo humorísticos, pois, se as frágeis jogadoras não exibiram técnica de futebol, padrão de jogo, etc., agradaram em cheio, na maioria das vezes, pelas próprias falhas, que eram recebidas com gostosas gargalhadas pela assistência.’ Soma-seaanálisedefendidapeloautor,outroimportantetrabalho que trata da visão da imprensa brasileira sobre essa modalidade esportivanoséculoXX.Considerandoque,sobreessetemaapresenta- se, em certos momentos, certa escassez de informações, por outro lado quando surgem, tais informações apontam para aspectos como fragilidade, resistência a essa prática e um forte preconceito que associa o futebol a masculinizarão da mulher. Em seu estudo que enfoca análises sobre o discurso da mídia brasileira entre 1930 a 2000, Mourão e Morel sugerem que na documentação que se consolida pelo CND em 1967, através de seu artigo de número 7, quando imprime a proibição às mulheres da prática do futebol, do futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, halterofilismo e baseball, entre outros esportes, que já se apontava uma normatização de comportamentos considerados desejáveis a juventude nacional. De acordo com as autoras: A simples leitura desses documentos nos conduz a indícios de que a legislação esportiva explicitava uma distinção entre as atividades físicas a serem praticadas pelos homens e aquelas a serem execu- tadas pelas mulheres, mesmo o esporte sendo dividido por sexo, culminando por viabilizar aos primeiros, maiores oportunidades de desenvolverem-se em destrezas físicas. Nesta leitura, evidencia-se a intenção de se adaptar a nossa juventude ao padrão de masculinida- de e feminilidade vigente em nossa sociedade (MOURÃO; MOREL, 2005, p.78).
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    79 Do escanteio parao meio da área Com um trabalho baseado em matérias de Jornais e Revistas (que vão de 1930 a 2000) essas autoras apontam que o fundamento sobre o qual se desenvolveu toda uma concepção de masculinizacão da mulher através da prática de alguns esportes e, principalmente o futebol, desenvolveu-se a partir do argumento biológico. A partir desse ponto de partida, no caso do futebol, foi naturalizada uma visão que, ao tempo que ridicularizava e ironizava certa falta de habilidade femininaparaodesempenhocomabolanospés,apontavaigualmente perigos a sua natureza frágil e sua valorizada feminilidade. Como lembram as autoras – não há nada de neutralidade nisso. As autoras destacaram nesse trabalho uma das matérias da Revista Placar14 , lançada na década de 1980, que sugeria haver uma fama na sociedade brasileira sobre a maioria dos esportes de quadra desenvolvido por mulheres, de acordo com a reportagem: “...um antro de homossexualismo, praticado por mulheres feias e masculinizadas”. Senadécadade80haviaasuspeitadeseroambientedoesporteum espaço de homossexualidade, cenário no qual desfilavam mulheres masculinizadas - vale a pena destacar essa informação, como sugerem os textos acima, essa concepção xenófoba e preconceituosa sobre essa mulher se concentra no distanciamento desse perfil de outra referência centrada nas normalizações sobre sua inata feminilidade. Essa outra concepção amplamente divulgada, desde o início do século passado, foi exemplarmente argumentada através de estudos médicos e eugenistas, além de reforçada pela Educação Física, ou Ginástica e discutida em diversos estudos. Dessa forma, Pacheco15 , referindo-se a Revista de Educação Física Feminina (1933), mostra que a preocupação em masculinizar a mulher através da prática esportiva foi uma questão em pauta permanente no Brasil, de modo que se preservassem os modelos sociais esperados para homens e mulheres: 14 Revista Placar de 25 de agosto de 1986, n. 848, São Paulo, Op. cit, p. 79. 15 REVISTA DE EDUCAÇÃO FÍSICA - Educação Física Feminina: rápido esboço sobre processos educacionais, v.2, n.6, 1933. In: PACHECO, A. J. P. Educação Física Feminina: uma abordagem de gênero sobre as décadas de 1930 e 1940. Revista da Educação Física/Uem, v.9, n.1, p.45-52, 1998.
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    80 História do Esporte umacousa é certa: na escolha desses processos é preciso afastar os exercícios capazes de masculinizar a mulher e favorecer aqueles ca- pazes de desenvolver suas aptidões e sua conformação física, a fim de assegurar sua missão biológica e seu caráter, suas faculdades de espírito e o vigor de seu corpo. Estudos como esses sugerem que a prática de esportes por mulheres ainda permanece como um tabu, um espaço masculino ou masculinizante que suscita cuidados até os dias atuais. Além disso, essasdiscussõesqueiniciaramoembricamentodasquestõesdegênero relacionadas ao esporte desde décadas finais do século passado, ao que parecem, ainda necessitam de maiores aprofundamentos e novos estudos. No que se refere ao nosso futebol feminino, estudos nessa área indicam uma militância acadêmica se constituindo no Brasil do século XXI que busca defender esse como um espaço no qual as mulheres têm totais condições de se manter por seu talento em termos de qualidades técnicas e táticas, além de se constituir num direito relacionado a sua liberdade de escolha e de sua identidade de gênero e, principalmente – enquanto sujeito no mundo. Anteriormente citada nesse trabalho Sisi16 , ex atleta de futebol que atuou na Seleção Brasileira durante toda a década de 90 nos da uma aula de persistência: após encerrada sua participação na Seleção em, 1999, desloca-se para os EUA em busca de suporte para continuar atuando no futebol, já que no Brasil do seu tempo, pouquíssimo espaço havia ou reais condições estruturais para permanecer nessa prática. Em 2016, com a eliminação das meninas do futebol dessas Olimpíadas seu nome foi sugerido para conduzir a Seleção Feminina. Na entrevista a UOL Esporte, essa ex atleta faz uma análise sobre nosso futebol feminino e inicia afirmando que, desde 2004 tem trabalhado como treinadora nos EUA. 16 Sisi é o codinome de Sisleide Lima do Amor, a maior jogadora de futebol do Brasil durante a década de 1990. Sobre esse assunto sugerimos a leitora da matéria “Sissi faz carreira de técnica, sonha com seleção, mas evita criticar Vadão”. BolNotícias, publicada em 18/09/2016 às 6:00hs. Disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/esporte/2016/09/18/sissi-queria-trabalhar-na-selecao- mas-o-problema-do-brasil-nao-e-treinador.htm
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    81 Do escanteio parao meio da área LogonoiníciodesuaanáliseSisilembraque,paraofortalecimento do futebol, em primeiro lugar seria necessário termos um calendário permanente e sólido para a modalidade, o que daria base e viabilizaria a observação dessas atletas. Critica a falta de continuidade do futebol femininonosclubeseaintermitênciadecampeonatos,oqueprejudica inclusive a formação e manutenção de uma Seleção, já que, com a falta de continuidade, não há como acompanhar o nível das atletas. Por outro lado ainda cita três aspectos a serem considerados: há falta de escolinhas de futebol no Brasil para as meninas; o futebol das meninas precisa acontecer nas escolas; ainda não há no Brasil espaço para as jogadoras continuarem atuando como técnicas, auxiliares, ou qualquer outra função. Após o encerramento da carreira como atletas essa mulheres não encontram espaço para atuar, afirma. Já Sisi encontrou outras possibilidades: Eu adoro o que faço. Não imaginava que de repente eu ia ter a oportunidade de ficar nos EUA (após o fim da carreira como jogadora, em 2009, pelo FC Gold Pride). Um dos motivos de sair (do Brasil) foi não só jogar profissionalmente, mas ter a oportunidade de continuar o trabalho aqui. O trabalho como diretora me da acesso as categorias de base. Mas já trabalhei com garotas de 17, 18. Assim como a atleta Marta, também citada no trabalho, Sisi encontrou outro caminho para prosseguir fazendo exatamente aquilo quegostaeoquesemprequisfazer:atuarnofutebolfeminino.Odifícil para nós e termos que aceitar que, para ambas essa possibilidade só foi possível fora do Brasil. Considerações Finais O Brasil, no que se refere ao seu corpo social como foi mostrado pela imprensa nos Jogos Olímpicos do Rio 2016, consiste num conjunto múltiplo de raízes étnicas e culturais que, ao longo do tempo vem, através de embates políticos, buscando se constituir enquanto uma sociedade única, embora essas características estejam permanentemente em conflito. Conflitos esses que atestam interesses
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    82 História do Esporte decategorias sociais extremamente diversas e mesmo distantes em suas distinções e compreensões acerca de seus traços identitários. Questões como as disputas de classe sociais sempre estiveram em foco na história do Brasil, embora igualmente sempre se tenha tentado exaltar um país de iguais. Atualmente as questões e disputas que envolvem os diversos gêneros e que ultrapassam as concepções biológicas de sexo, talvez sejam aquelas que suscitam hoje maiores preocupações. Por trás das disputas de poder estão disputas de visibilidade e reconhecimento e, especialmente, de independência, autonomia e liberdade de escolha. Nesse cenário conflituoso se encontram as nossas mulheres do futebol. Acreditamos que a luta do futebol feminino no Brasil atualmente por melhores condições de espaço e visibilidade, o que envolve desde uma melhor estrutura econômica a abertura e consolidação dessa área como um espaço profissional e profissionalizante para as mulheres, sublima-se um problema e um obstáculo ainda maior: vencer o preconceito histórico, social e cultural que acompanha as mulheres que ousam romper com um padrão normativo de feminilidade e docilidade. Ou seja, criado para afirmar a delicadeza e dependência femininas, com base em argumentos legais e biológicos, esse padrão normativo sempre teve como direcionamento limitar o raio de ação e, consequentemente, de empoderamento da mulher brasileira acerca de seu destino. Ensinadas a todo custo a serem dependentes, emocional e financeiramente, o que observamos é que as mulheres não se renderam as essas pressões sociais e buscaram forças para romper com barreiras históricas – como no esporte e, principalmente, no futebol feminino brasileiro. O resultado dessa luta de não submissão são os alarmantes números que atestam sobre a violência contra a mulher por seus parceiros e mesmo a criação da Lei Maria da Penha que significa dizer: precisamos da Lei para nos proteger! Talvez isso seja o bastante para contrapor a ideia de igualdade tão exuberantemente explicita sobre o Brasil na abertura dos Jogos do Rio 2016.
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    83 Do escanteio parao meio da área Como visto, o esporte reproduz os valores presente em nossa sociedade. Por esse motivo, parece ser redundância falar sobre o preconceito que até nossos dias recai sobre o futebol feminino, ainda consideradoeobservadocomoumespaçomasculino/masculinizante. Compreendendo esse processo cabe a pergunta: seria diferente o futuro do futebol feminino se as meninas tivessem trazido a medalha de ouro em qualquer uma das Olimpíadas que o Brasil já participou? Mesmo com um futuro de incertezas, queremos lembrar aquilo que expressou, com toda simplicidade, o esforço de nossas meninas ao final dos jogos de futebol feminino das Olimpíadas 2016, quando Brasil terminou em quarto lugar: “não desistam da gente!” E sobre o futuro desse esporte, para nós fica somente uma certeza: nós não desistiremos delas. Referências CHAUÍ, M. Brasil: Mito Fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000. DAMO, A. S.; OLIVEN, R. G. O Brasil no horizonte dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016: sua cara, seus sócios e seus negócios. Revista Horizontes Antropológicos, v.19, n.40, p.19-63, 2013. FRANZINI, F. Futebol é “coisa pra macho”? Pequeno esboço para uma historia das mulheres no país do futebol. Revista Brasileira de Historia, v.25, n.50, p.315-328, 2005. MOURÃO, L.; MOREL, M. As Narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia na imprensa em campo. Revista Brasileira de Ciência do Esporte, v.26, n.2, p.73-86, 2005. PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História, v.15, p.13-49, 1997.
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    84 História do Esporte ROQUE,Z. S.; FRAGA, E. K. G.; ZANETTI, V. O campo das mulheres: pequeno ensaio sobre o futebol feminino em São José dos Campos. In: GUIMARÃES, A.; ZANETTI, V.; PAPALI, M. A. C. R. (orgs.). São José dos Campos: Cotidiano, Gênero e Representação. São José dos Campos: UNIVAP, 2014. (Série História & Cidade, v.7) p.175-188 RUBIO,K.;SIMÕES,A.C.Deespectadorasaprotagonistas:aconquista do espaço esportivo pelas mulheres. Revista Movimento, v.5, n.1, p.50-56, 1999. SARLO, B. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997.
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    85 CAPÍTULO V FUTEBOL EMCAPIM GROSSO E SUA RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS – 1964 A 1985 Prof. Gildison Alves de Souza Prof. Me. Osni Oliveira Noberto da Silva Introdução Tratar da história do esporte seja ela em âmbito nacional estadual ou municipal é uma tarefa que demanda esforço e cautela. Em esfera municipal, muitos autores podem colaborar com relatos, contestando ou confirmando informações, em que os documentos públicos e projetos legisladores municipais são escassos. O presente artigo trata-se de uma revisão bibliográfica onde é objetivado discutir a importância atribuída ao futebol entre os anos de 1964 e 1985, na cidade de Capim Grosso/Bahia e fazer uma relação com o uso político desse esporte pelos governantes do período ditatorial brasileiro, utilizando como referência a produção impressa disponível no acervo da prefeitura municipal e câmara de vereadores. A bibliografia encontrada referente à história da cidade mencionada é escassa, todavia contêm dados concernentes ao futebol e outras modalidades esportivas com riqueza de detalhes. Mas, atentaremos apenas para os referentes às décadas citadas e prioritariamente para o futebol que foi o precursor da história esportiva de Capim Grosso. A escolha de Capim Grosso como lócus de investigação se dá por conta de termos crescido e residirmos nessa cidade além de sermos profissionais de Educação Física, fato que possibilitou a realização de estudos referentes a políticas públicas de esporte nessa mesma cidade através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) pela Universidade do Estado da Bahia, Campus IV, em Jacobina.
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    86 História do Esporte Comisso, acabamos por observar que existe uma similaridade temporal entre a história de Capim Grosso e a Ditadura Militar brasileira visto que as evidências apontam que a prática esportiva em Capim Grosso se iniciou no mesmo período de início do Regime Ditatorialesupomosqueesseacontecimentoinfluencioudiretamente o desenvolvimento esportivo na cidade. O recorte temporal do presente trabalho se dá pelo fato de que entre os anos de 1964 e 1985 foi instaurada a ditadura militar no Brasil. Com isso, supomos haver uma relação direta entre os programas governamentais nacionais existentes nesse período com as ações públicas e/ou populares direcionadas para o futebol em Capim Grosso, visto que o início da história do esporte no referido município se deu justamente nas décadas citadas. Futebol em Capim Grosso na década de 1960 e a instauração da Ditadura Militar No Brasil, a maior das paixões esportivas existentes é o futebol. Ele entretém e comove grande número de pessoas em todas as regiões do território nacional, em Capim Grosso, ou em qualquer cidade do interior baiano não é diferente. Apesar de não existirem documentos públicos relativos à história do futebol em Capim Grosso antes de sua emancipação política, é grande a riqueza de informações encontradas no livro no qual é contada a história dessa cidade através do esporte. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2014) a cidade está localizada a aproximadamente 280 km de Salvador, a capital baiana, no cruzamento das rodovias 407 e 324. Tem uma área aproximada de 350 km² e tem cerca de 31 mil habitantes. A emancipação política de Capim Grosso ocorreu no dia 09 de maio de 1985, no mesmo ano do fim da ditadura militar no Brasil. Anteriormente ela era distrito de Jacobina, e mesmo antes da chegada da TV, um mecanismo que estimula padrões comportamentais, muitos moradores tinham o futebol como maior fonte de diversão (SILVA; SOUZA, 2016).
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    87 Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras Segundo os mesmosautores, poucos registros relativos às competiçõesesportivasocorridasnomunicípioforamachados,exceto pelos escassos documentos referentes a uma corrida que acontece tradicionalmente no dia 9 de maio, e alguns dos documentos foram encontrados apenas em acervos particulares e no acervo público municipal de Jacobina (SILVA; SOUZA, 2016). Os documentos encontrados em Jacobina que têm relação com Capim Grosso foram referente ao período no qual Gilberto Dias de Miranda1 foi prefeito de jacobina, isso norteou a descoberta da data aproximada da doação de um terreno para a alocação do estádio de futebol (SILVA; SOUZA, 2016). Essa história será contada mais detalhadamente no tópico seguinte. A prática do futebol no então povoado de Capim Grosso teve início na década de 1960 com os alunos da escola paroquial que, se juntavam para sair às 05h00min da manhã a pé para poder jogar bola em povoados e cidades vizinhas que ficam a até 15 km de distância de Capim Grosso (SILVA; SOUZA, 2016). A possível relação de tamanha paixão pelo futebol pré e pós- regime ditatorial é feita a partir da observação de que, sobretudo durante a ditadura militar, o esporte e principalmente o futebol foi utilizado como meio para encobrir as mazelas sociais existentes, interferindo diretamente na aversão ao regime político vigente como é mostrado nos parágrafos a seguir. A Ditadura Militar no Brasil foi estabelecida no dia 01 de abril de 1964, e exatamente um mês depois foi evidenciado o uso político do futebol,dia01demaiodomesmoanoaconteceuumasériedeclássicos regionais de futebol em todas as cidades com população acima de 50 mil habitantes. A realização desses jogos foi determinada pelo governo Castello Branco (1964-1967) que percebeu a intensificação das manifestações contrárias ao golpe e com isso objetivou acalmar o povo (SALVADOR; SOARES, 2009). Dois anos após a implantação do regime, a seleção brasileira de futebol foi eliminada da Copa do Mundo em sua pior campanha 1 Gilberto Dias Miranda foi prefeito de Jacobina de 01 de fevereiro de 1973 a 31 de janeiro de 1977.
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    88 História do Esporte registradaaté os dias atuais, sendo necessária até mesmo a escolta do time pelo Serviço Nacional de Informações (SEI) no desembarque no Brasil (MAGALHÃES, 2011). Nessa época foi feito um massivo investimento no esporte na tentativa de fazer da Educação Física um suporte para as ideias militares, na medida em que ela participasse na colaboração para o sucesso em competições de alto rendimento (DARIDO, 2003). A fomentação da prática de esportes em âmbito universitário partiu da Lei nº 5.540 de 1968, sequencialmente o Decreto/Lei nº 705 de 1969, tornou a prática da Educação Física obrigatória em todos os níveis de ensino inclusive no superior (CASTELLANI FILHO, 1988). Possivelmente essa obrigatoriedade tenha interferido na prioridade dada à prática do futebol pelos garotos de Capim Grosso. FutebolemCapimGrossoenocenárionacionaldadécadade1970 Após o falecimento do então presidente Costa e Silva que esteve no cargo entre os dias 31 de agosto a 30 de outubro de em 1969, o General Emílio Garrastazu Médici assumiu o governo. Ele era um apaixonado pelo futebol e graças a isso as relações entre política e futebol, que já eram fortes, foram intensificadas sendo indispensável para o General e para a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP)2 a divulgação desse esporte, principalmente após a conquista do Tricampeonato mundial em 1970, fez com que a vitória da seleção fosse associada com o modelo de política vigente no país (MAGALHAES, 2008). Outro marco da utilização do futebol pela mídia e pelo governo foi a ideia de nacionalismo tida no período Vargas acerca da mistura e integração sociais foi inserida nesse esporte através da imagem de atletas como, por exemplo, Pelé que claramente representava a classe pobre da população (HELAL, 2001), a emoção gerada pela integração atingiu o seu ápice no período ditatorial (PROCHNIK, 2010). 2 Assessoria criada a partir do Decreto nº 62.119 de 15 de janeiro de 1968, para cumprir o papel de assessorar o presidente no âmbito da comunicação social, esta fazia uso do futebol como tema de campanha (SALVADOR; SOARES, 2009).
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    89 Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras Isso indubitavelmente estárelacionado à quase idolatria pelo futebol, principalmente pós-tricampeonato mundial da seleção brasileira em 1970 no México. Em Capim Grosso, uma vez que essa imagem de integração era passada através dos meios midiáticos, era forte a influência nos ouvintes de maneira que o objetivo dos governantes que fizeram uso dessa popularização foi alcançado. Até o fim da década de 1960 em Capim Grosso o acesso às informações esportivas era advindo principalmente do rádio. Nessa época se ouvia apenas as rádios do Rio de Janeiro e de São Paulo, por essa razão existiam mais torcedores dos times cariocas e paulistas (SILVA; SOUZA, 2016). Há uma relação direta entre o poder da mídia com o crescimento do esporte. A junção dos setores esportivos e midiáticos resultou no aumento do número de fãs do esporte (MORAES, 2008). O rádio foi a principal fonte de informações e entretenimento até 1969, pois, não existia televisão no então povoado. Foi a partir da iniciativa do senhor Otaviano Ferreira, popular Dão, de comprar a primeira televisão da cidade. Essa não era só a única TV de Capim Grosso, mas também a única de toda a região. Por conta da popularidade do futebol na época, muitas pessoas vinham de outras cidades e povoados para assistir os jogos das Copas do Mundo de 1970 e 1974. Como a Copa de 70 sendo foi o primeiro grande evento futebolístico transmitido via satélite e em cores para todo o mundo (RIBAS, 2010), um grande número de pessoas estavam interessadas em assistir. Assim a televisão do seu Dão precisou ser colocada em um posto de gasolina na saída de Capim Grosso e assim as pessoas se reuniam para assistir as partidas (SILVA; SOUZA, 2016). Esse episódio da história no qual muitos jovens que só tinham o futebol como esporte para se entreter e com muito esforço assistiram o Tricampeonato Mundial do Brasil proveu uma injeção de ânimo em relação a essa prática esportiva em muitos deles, o que foi determinante para o percurso histórico que o futebol viria a percorrer em Capim Grosso (SILVA; SOUZA, 2016).
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    90 História do Esporte Aconquista do Tricampeonato na Copa do Mundo de 1970 e a massiva propaganda do governo relacionando a vitória ao modelo governamental vigente, além de atenuar a revolta do povo através do espetáculo proporcionado, possivelmente estimulou o entusiasmo de jovens e adultos quanto a esse esporte não só em Capim Grosso, mas em muitas outras cidades do Brasil, o que mostra que o foco da atenção do poder público nacinal prioritariamente para o futebol teve os resultados esperados para aqueles que se utilizaram dessa ferramenta. Em 1971 o governo federal criou o Campeonato Nacional (Hoje Campeonato Brasileiro) através do Conselho Nacional de Desporto (CND), que contava com vinte clubes e realizou cinco amistosos nos anos de 1971, 1973 e 1974 somente contra times selecionados (RIBEIRO; ALMEIDA, 2014). Entre 1975 e 1978 foi implantada claramente a política de Panis et Circenses (política de pão e circo), com o Campeonato Nacional ao elevar progressivamente o número de clubes no certame, de 40 equipes repartidos em duas divisões em 1974, foi expandido para 90 times em 1979 (BUENO, 2008). Isso ocorreu para sanar a vontade de políticos conectados ao regime militar e que pretendiam fazer com que grandes times de futebol jogassem em seus estados, assim como manipular o povo através do entretenimento esportivo (SOUZA; SILVA, 2016). No início da referida década foram construídos diversos estádios capazes de receber mais de 70 mil pessoas. Somente entre os anos de 1972e1975foramconstruídostrintaestádiosemuitosoutrosdurante o período ditatorial (HELAL; GORDON, 2002). Isso auxiliava na manutenção da popularidade do governo, pois mostrava o ideal de progresso e desenvolvimento do discurso político (RIBEIRO; ALMEIDA, 2014). Em Capim Grosso os primeiros campos da cidade foram de terra batida, de modo que, inicialmente, os jogadores usavam um campo na Praça Campos Sales, onde hoje está localizado o Ginásio de Esportes Otto Alencar e que naquela época ficou conhecida como “rua do campo”.
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    91 Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras Pelo fato deCapim Grosso ainda não ser emancipado na década de 1970, não existia campeonatos, apenas jogos amistosos, mas já existiam times amadores de grande relevância regional no povoado e que participavam de torneios em Jacobina, cidade a qual o distrito pertencia, como era o caso do Botafogo que que chegou a ficar invicto por 57 jogos! Além de Botafogo, existiram outros grandes times na cidade de Capim Grosso entre os quais podemos destacar: Monumento, União, Palmeiras, Cascadura, Juventus, Atlântico, Óleo, Toca da traíra (SILVA; SOUZA, 2016). Existe uma relação de permuta entre a mídia e a sociedade, onde a influência produzida pela mídia gera e é criado para/pelos interesses existentes na sociedade, sendo assim uma relação via dupla. Mas isso só ocorre se houver interesse prévio da população (PROCHNIK, 2010). Segundo Moraes (2008) o esporte é o conteúdo mais atrativo, rentável e eficiente para a maioria das redes de televisão aberta do mundo. No Brasil percebemos a poderosa influência que a TV Globo em apoio à ditadura nos anos 60 e 70 ajudou a difundir, junto com suas afiliadas, o conteúdo esportivo, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo para todas as regiões do país, o que explica em parte a popularidade dos times de futebol desses estados nos dias atuais. Possivelmente a criação do Campeonato Nacional nessa mesma década tenha influenciado os atletas capim-grossenses a fundar o seu melhor time até então. O Botafogo, mesmo nome de um clube carioca, cujos criadores podem ter optado por escolher esse nome com o intuito de atrair maior número de pessoas para os jogos. Década de 1980, fim da Ditadura Militar e emancipação política de Capim Grosso Entre o fim da década de 1970 e início da de 1980 o futebol era tão popular em Capim Grosso e existiam times que moviam grande número de torcedores para suas partidas na cidade que já
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    92 História do Esporte nãoera possível manter os jogos em espaços improvisados, sendo imprescindível a construção de um estádio (SILVA; SOUZA, 2016). Outra prova de que o futebol era dotado de grande importância no distrito foi a fundação da Liga Desportiva de Capim Grosso (LDCG), em 1980 por causa dos campeonatos realizados na cidade região e que sempre tinham a presença de times de Capim Grosso (SILVA; SOUZA, 2016). Por causa disso o campo foi realocado para o contorno da BR 324, sentido Feira de Santana, próximo do monumento da cidade e que leva o nome de Lomanto Junior. Entretanto, devido a crescente popularidade do futebol, não era mais cabível realizar os jogos em locais improvisados (SILVA; SOUZA, 2016). Visto isso, entusiastas do futebol que eram envolvidos com a política da cidade fizeram contato com o dono de um terreno que ficava um pouco afastado do centro da cidade, o Senhor Ângelo Francisco de Oliveira, que estipulou um preço para a metade do terreno dizendo que a outra metade ele doaria (SILVA; SOUZA, 2016). Os jogadores se reuniram e foram encontrar o então prefeito de Jacobina Gilberto Dias Miranda, que concordou em colaborar para a aquisição do terreno. Assim foi feito e no início da década de 1980 foi inaugurado o estádio Ângelo Francisco de Oliveira, popularmente conhecido como “Franciscão” (SILVA; SOUZA, 2016). Esse estádio, que até hoje é o principal da cidade, foi inaugurado ainda sem muros e a entrada daqueles que iam assistir aos jogos era controlada por uma corda, que todos respeitavam e pagavam a taxa de entrada. Com essa taxa, doações, campanhas realizadas pelos jogadores, amantes do futebol e mão de obra dos mesmos foi que se conseguiu erguer os muros que permanecem de pé até os dias atuais (SILVA; SOUZA, 2016). Nofimdadécadade1970opaíspassavaporumacrisenofutebole essa se tornava evidente pela mesclagem de fatores como: diminuição do número de espectadores nos jogos, violência nos estádios, saída dos atletas para outros países, principalmente europeus, e aumento das dívidas dos clubes (HELAL; GORDON, 2002).
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    93 Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras Em 1979, odesmembramento da Confederação Brasileira de Desporto (CBD) gerou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), essa mudança ocorreu por conta das sobras dos recursos da loteria esportiva, desta forma passou a ser defendida a criação de federações especializadas (BUENO, 2012). Esse desmembramento, somado a crise financeira que existia no país, como consequência do fim do “milagre econômico” em meados dos anos 70, provocou a mercantilização do futebol brasileiro. Deste modo, os atletas passaram a ser considerados como mercadorias de câmbio e os uniformes passariam a ser lócus para propagandas das empresas patrocinadoras (HAWILLA, 2008). Em Capim Grosso os entusiastas também tentavam superar a crise financeira. Sem dinheiro para comprar os equipamentos e acessórios necessários para a manutenção do time, além de custear as viagens para participar dos torneios na região, os jogadores realizavam bingos, jogos beneficentes e até mesmo pediam dinheiro para os comerciantes para sanar com essas necessidades. Curiosamente, diante do baixo poder aquisitivo existente entre os praticantesdofutebolemCapimGrossoeracomumosrepresentantes e donos dos times buscarem patrocinadores que teriam sua marca ocupando lugar de destaque nos uniformes que os jogadores usavam no campo. Aqueles benfeitores que colaboravam com maiores quantias em dinheiro tinham o nome de suas lojas estampados num pano e costurados na camisa do time, como forma de promover sua marca (SILVA; SOUZA, 2016). Respeitando as devidas proporções, essa é a mesma alternativa para arrecadar fundos utilizadas pelos grandes times nacionais, o que é, de certo modo, feito até os dias atuais. Com isso, notamos uma clara similaridade entre o contexto nacional e municipal de Capim Grosso. Nodia15dejaneirode1985,apósaeleiçãodopresidenteTancredo Neves, primeiro presidente civil desde João Goulart em 1964, a Ditadura Militar é encerrada de forma oficial no Brasil. No período no qual ela foi vigente muitas mudanças ocorreram no país em todos os setores, se tratando do âmbito esportivo e mais especificamente
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    94 História do Esporte dofutebol, essas modificações impactaram diretamente na economia do país assim como no comportamento de muitos entusiastas desse esporte em todo o território nacional. Capim Grosso, que teve sua emancipação política no dia 09 de maio de 1985 e seus habitantes posteriormente a essa data tinham como foco de prática esportiva o futebol, certamente foram direta ou indiretamente influenciados pelos programas governamentais direcionados a esse esporte. Mesmo com o fim do regime e a possível minimização das propagandas futebolísticas, esse esporte ainda se manteve como o principal alvo de investimentos em Capim Grosso até que entre o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 outros esportes como o vôlei e o basquete passaram a ganhar um espaço de destaque entre a população. Sem dúvidas ainda hoje existem indícios da influência da época destacada nesse estudo sob as políticas públicas de muitas cidades do Brasil, inclusive de Capim Grosso... mas essa é outra história. Considerações finais A história do esporte em Capim Grosso é dotada de grande riqueza,tantoemseusprimórdiosnoscamposdeterraeimprovisados por aqueles movidos pela paixão pelo futebol, quanto nos dias que se sucederam após a emancipação política desse lugar que, assim como possivelmente outros fizeram, seguia a euforia vivida no cenário nacional provocada pelo futebol e pelo apelo midiático/ governamental em expor constantemente esse esporte nas décadas destacadas. Diante do exposto pudemos observar uma evidente relação entre as políticas governamentais vigentes no período ditatorial as ações populares dirigidas ao futebol no então povoado de Capim Grosso na mesma época. Tal relação evidencia também o poder das mídias sobre o comportamento da população, que, também
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    95 Futebolemcapimgrossoesuarelaçãocomaspolíticasgovernamentaisbrasileiras de acordo comos dados expostos, segue aquilo que conhecem e conhece prioritariamente aquilo que as mídias, sejam elas de rádio ou televisivas mostram, nesse caso o futebol. As referidas ferramentas midiáticas fizeram e fazem uso do espetáculo esportivo com intenções que muitas vezes vão além da compreensão de grande parcela da população, que como no caso das décadas em questão, o governo utilizou-se das mídias existentes para mostrar o país como uma potência futebolística mundial, visto que esse esporte movimentava grandes multidões que se comoviam com as derrotas, vibravam e comemoravam as conquistas tidas pelos seus times e principalmente pela Seleção Brasileira de Futebol. Referências BUENO, L. Políticas Públicas do Esporte no Brasil: Razões para o predomínio do alto rendimento. Escola de Administração de Empresas de São Paulo. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2008. CASTELLANI FILHO, L. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus, 1988. DARIDO, S. C. Educação Física na escola: Questões e reflexões. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 2003 HELEAL, R.; GORDON, C. A Crise do Futebol Brasileiro: perspectivas para o século XXI. Eco-Pós, v.5, n.1, p.37-55, 2002. IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil, 2014. HAWILLA, J. Um olho no marketing esportivo, outro na mídia caipira. Jornalista & Cia. 2008. http://www.jornalistasecia.com.br/ protagonista11.htm.acessado em 10 de setembro de 2016.
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    96 História do Esporte MAGALHÃES,L. G. Futebol em tempos de ditadura civil-militar. Anais... XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. ______ . Trece jugadores en campo. Medios de comunicación, dictaduras militares y Mundiales de Fútbol en Brasil y Argentina. Dissertação (Mestrado) – UNSAM, Buenos Aires, 2008. MORAES, D. Cultura tecnológica, mídia e consumo globalizado. In: BRITTOS, V. C.; CABRAL, A. (Orgs.) Economia Política da Comunicação: interfaces brasileiras. Rio de Janeiro: E-papers serviços editoriais, 2008. PROCHNIK, L. O futebol na Telinha: A Relação Entre o Esporte Mais Popular do Brasil e a Mídia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. ANAIS... XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 13 a 15 de maio de 2010. RIBAS, L. V. O Mundo das Copas. São Paulo: Lua de Papel, 2010. RIBEIRO, C. S.; ALMEIDA, M. A. B. A Interferência dos Governos Militares (1964 – 1985) no futebol brasileiro. Universidade de São Paulo – Escola de Artes, Ciências e Humanidades. São Paulo – SP – Brasil. SALVADOR, M. A. S.; SOARES, A. J. G. A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional. Campinas: Autores Associados, 2009. SILVA, O. O. N.; SOUZA, G. A. Capim Grosso: uma história contada através do esporte. Curitiba: CRV, 2016. SOUZA, G. A.; SILVA, O. O. N. O poder público brasileiro e sua relação com o futebol: história e conflitos. Rev. ODEP., v.2, n.3, p.83- 97, 2016.
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    97 CAPÍTULO VI A CAIXADE GUARDADOS: MEMÓRIAS DO FUTEBOL DE FÁBRICA Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga Profa. Dra. Zuleika Stefânia Sabino Roque Introdução Próximo das 17 horas, tem-se o acesso “liberado”, pela catraca da ADC Embraer. Lá, do outro lado da Avenida dos Astronautas, fica a fábrica, ou melhor, uma parte dela, já que atualmente ela possui outras plantas. No aguardo do sinal da fábrica, anunciando o fim do trabalho, da lanchonete da ADC, ouve-se o som do atrito das chuteiras sobre o soalho do ginásio, que se confunde com aqueles vindos de um aparelho de TV da lanchonete, em meio à transmissão do jogo entre Arsenal e Everton pela ESPN Brasil. Além da partida de futsal no ginásio, simultaneamente a bola rola em um dos campos de futebol society, No local, a presença feminina é marcada por mãe e filha, que, em trajes de fitness, aguardam por alguma aula. Quase todos os frequentadores dessa tarde, no “Ninho do Tucano” (como é chamada a sede da ADC Embraer), vestem cinza e possuem uma pequena bandeira do Brasil bordada no meio do peito; no bolso de suas camisas polo, trazem bordado o setor ao qual pertencem. Ao soar o sinal do fim do expediente do primeiro turno, um senhor de cabelos grisalhos, roupa social, apresenta-se sorridente: - Prazer, sou Alfredo Gonçalves! Começa um tour pela ADC e, a cada porta que se abre, uma explicação, suspiros, lembranças e, com orgulho, senhor Alfredo me apresenta a sala de troféus da ADC Embraer (são muitos e muitos troféus, de variados tamanhos e há alguns quadros com recortes de jornais na “parede da memória”). Na sequência, a visita segue para o depósito, onde Juninho, um funcionário antigo da ADC, é o responsável pelo local. É ele quem fornece os jogos de camisa e
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    98 História do Esporte osdemais materiais esportivos para os funcionários, enche as bolas e encarrega-se também de fazer gelo, para ajudar os atletas que se machucam durante os jogos que acontecem no “ninho do Tucano”. Ao chegar à sala da administração da ADC Embraer, a fala de Alfredo Gonçalves “quebra” o clima de otimismo, até então predominante em relação às atividades esportivas promovidas pela empresa, ao comentar que tinha recolhido, do material descartado pela empresa como “lixo”, alguns objetos, que, com muito cuidado, guardava na sua “caixa de memórias”: Então, ontem à noite eu não tinha preparado nada. Minha esposa quer colocar fogo em tudo! Eu falo: “um dia nós vamos resolver isso”. Eu fico triste que colaboradores (da ADC Embraer) pegaram caixas e caixas e colocaram fogo de alguns presidentes que passaram. Então tenho algumas lacunas. Mas eu sou sentimentalista, eu guardo bem, então eu queria mostrar uma caixa; lá em casa umas fotos pessoais, mas aí isto aqui eu peguei de um pacotão, isto aqui estava na minha gaveta. Mas, se a gente fecha o olho tá tudo no lixo!. (Alfredo Gonçalves – funcionário da Embraer 03/02/2011) O técnico e administrador de empresas Alfredo Gonçalves, que é também, além de operário da empresa, o coordenador de esportes da ADC Embraer, exibiu um material que não está exposto na sala da “memória oficial”, em que figuram com destaque os troféus conquistadosnoscampeonatosdisputadospelosfuncionários,ounos corredores, onde são expostos em molduras, fac-símiles de jornais. Nota-se um certo ressentimento nas palavras do Sr. Alfredo, ao se referir a outros objetos que foram descartados na operação limpeza de arquivos da empresa e que assim foram irremediavelmente perdidos, apagados da memória da Embraer. Trata-se aparentemente de um detalhe, mas que sinaliza a importância de outros registros, sobretudo objetos importantes para a memória dos operários- jogadores, os verdadeiros responsáveis pelas conquistas dos troféus emcampeonatosdefutebol. Nessepontolembramo-nosdaspalavras de Dulce Critelli (2015, p.46), sobre os arquivos de nossa memória que “não conservam apenas pequenos relatos, mas historietas.
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    99 A caixa deguardados São relatos de episódios vividos que formam histórias maiores, mais elaboradas e carregadas de significados. [...] Essas historietas compõem um cenário para o nosso viver e vão se acumulando ao longo de nossas existências. [...] Falam de coisas que nos marcaram, de acontecimentos nos quais foram se construindo nossas maneiras de viver e nosso destino. Figura 1: Sala de Troféus ADCE A sala de troféus da ADC Embraer, com suas vitrines, não impressiona mais que a constatação feita pelo senhor Alfredo sobre o antes e o depois da fábrica, em várias situações, tanto na linha de produção quanto na gestão esportiva. A interpretação de Alfredo sobre como a equipe gestora da fábrica vê a ADC e o esporte operário, tendo em mãos uma revista denominada Bandeirante e um Jornal da ADC, é um desabafo: O jornal de antigamente, o jornalzinho da Embraer, noventa por cento era coisa da ADC, então... Depois de quarenta anos, agora tem o avião a álcool. Ela (empresa) colocou (na capa) o primeiro Bandeirante; e, o primeiro Bandeirante só falava de futebol! Pra você ver, não tem história, não tem mais nada no jornalzinho! O primeiro jornal fala só de futebol, mas, aqui, somente a capa fala do Bandeirantes. Então olha aqui, a empresa hoje falando do primeiro
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    100 História do Esporte Bandeirantes...Na época, Bandeirante era só de esporte, não tinha o que falar da empresa. Daí foi indo e as pessoas começaram a falar somente da ADC. (ALFREDO GONÇALVES, 03/02/2011). O “jornalzinho” interno transformou-se em revista bilíngue, que circula em todo o mundo. Para entender melhor a questão, O Bandeirante é o nome do tradicional órgão informativo dos empregados da Embraer. Trata-se de uma publicação interna, que teve sua primeira edição em julho de 1970. Na empresa recém- inaugurada, com restrito número de funcionários1 , o informativo, de responsabilidade do Serviço Social da Divisão de Pessoal, era voltado aos seus funcionários. Figura 2: 1.ª Edição de O Bandeirante Durante os anos 70, em O Bandeirante, encontram-se matérias sobre a história da empresa, sobre os eventos socioculturais, como o 1 De acordo com informações retiradas do portal da ADC Embraer, no ano de 1970 a empresa possuía cerca de 250 funcionários. http://www.adcembraer.com.br/conteudo/index.php?pg=1 acesso realizado em 05/10/2011.
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    101 A caixa deguardados Salão de Artes, e sobre as obras da construção do Clube de Campo. Cobertura sobre as festas e os torneios esportivos, agenda de cursos e listas de funcionários homenageados também eram temas que predominavam nas publicações. Já nos anos 80, constata-se que uma maior diversificação das modalidades desportivas passa a fazer parte do jornal e o registro de cursos e de organização sistemática do espaço fabril ganham destaque cada vez maior. As temáticas sobre o Controle de Produção são recorrentes no jornal, bem como a premiação a funcionários que sugerissem ideias para a melhor organização da fábrica. Ainda assim, havia espaços destinados à publicação dos casamentos realizados durante o mês e para um ou outro funcionário que se destacasse pelos seus talentos artísticos ou pelo fato de colecionar determinados objetos. A fábrica, juntamente com o GSE- Grêmio Sócio-Recreativo, fazia uso do Jornal O Bandeirante para reforçar a necessidade do uso dos equipamentos de segurança, para esclarecer sobre as metas da fábrica e para dividir a responsabilidade de economia e otimização, tanto de materiais quanto de tempo, no processo produtivo das aeronaves. Nesse contexto, premiar funcionários que dessem ideias que otimizassem a organização do seu setor na fábrica e destacar atitudes consideradas exemplares foi uma prática recorrente em O Bandeirante. Como nos casos dos funcionários José Roberto e Nildevar, o “Macumba”. José, “o operário Embraer”, demonstrou domínio sobre legislação trabalhista, atualidades, segurança e higiene no trabalho e sobre a organização e a história da fábrica. Mesmo aqueles funcionários que não participavam do concurso, eram mergulhados na onda do civismo característico da época, reverenciando os mitos nacionais e equiparando-se aos feitos deles em seu cotidiano de trabalho: “Santos Dumont deu asas ao mundo e a Embraer, no presente, no trabalho de cada um dos seus funcionários, dá asas ao Brasil”. (O BANDEIRANTE, Out. 1973). Nildevar Albiru Thomaz, o “Macumba”, também recebeu destaque de uma página de O Bandeirante, pela ideia de organização
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    102 História do Esporte deum painel de ferramentas a fim de otimizar o empréstimo das mesmas. Sua ideia foi acatada pelo supervisor e pelo diretor, pois se tratava de manter o ambiente de trabalho mais funcional e com controle sobre as ferramentas, pois tal painel facilitaria a visualização e ainda indicaria qual funcionário tinha a responsabilidade sobre a retirada delas. Os anos 90 são marcados por crises, que forçam a empresa a se representar como uma “Nova Embraer2 ”. A Qualidade total é a principal meta e a empresa necessita competir em todos os sentidos. O processo de privatização da Empresa foi vivenciado de maneira traumática, não só pelos funcionários, como também por seus familiares e pelos comerciantes da cidade de São José dos Campos e região3 . Em suma, a empresa tratou de se organizar e garantir seu lucro. O funcionário, nesse processo, passou a se preocupar cada vez mais com a manutenção do seu posto de trabalho, incorporando mudanças ao seu cotidiano e vivendo pressões cada vez mais nítidas. O momento é outro e as transformações pelas quais passou a fábrica refletem-se em O Bandeirante, assim como na ADCE. Desdeofuncionáriomaissimplesaoconsideradomaisqualificado, mudanças foram sentidas. No caso de Alfredo, uma analogia revela seu olhar sobre como a empresa lidou com o passado, que, para ele, não era só institucional e corporativo, como também dizia respeito a ele e a outros funcionários, que fabricavam aviões, mas que também “voaram” com o nome da Embraer em pistas, quadras e gramados: Porque profissionalmente é aparato e fácil. Eu trabalho em um setor que cuida da Certificação das Aeronaves, um órgão respeitado do mundo inteiro. Nós tínhamos pilhas e pilhas de documentações que a gente não podia jogar fora. Nós contratamos uma empresa, pois nós tínhamos duas salas cheias de caixas de documentos. Digitalizamos 2 Capa da Edição de O Bandeirante de 07/07/1995. 3 A esse respeito podem-se consultar alguns trabalhos que se dedicaram exclusivamente a analisar o caso da privatização da Embraer - que não constitui foco desta pesquisa-: BERNARDES, Roberto. O caso Embraer: privatização e transformação da gestão empresarial – dos imperativos tecnológicos à focalização no mercado. In: Cadernos de Gestão e Tecnologia. CYTED: PGT USP, 2000. ZULIETTI, Luis Fernando. Nas Asas da Embraer: urbanização, crise e mudanças em São José dos Campos (1994- 2004). TD Ciências Sociais Aplicadas PUC-SP 2006.
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    103 A caixa deguardados tudo, estratégia da empresa. Mas isso aqui é ADC, qual o interesse com a ADC? [sobre a sala dos troféus] Não sabe quanta gente achou isso, jogado num sótão, quebrado tudo cheio de poeira, pusemos nossos funcionários pra juntar, colar, passar caol, fazer aquilo lá é montar como cerâmica. (Alfredo Gonçalves 03/02/2011). Na construção da narrativa de Alfredo, nota-se um grande empenho na relação do relator com a sua história. São os objetos que, dediversasformas,garantem“umacontinuidadetemporalnointerior dos inumeráveis acontecimentos e experiências de vida. (STARACE, 2015, p.67). Os objetos têm a função de dar “continuidade à vida humana: apesar das mudanças, permitem recuperar a estabilidade do self no tempo, constituem verdadeiros núcleos identitários”. (Idem, ibidem). No caso dos objetos, especificamente, os jornais e as fotografias conseguem falar da história do depoente, das adversidades vencidas, das mudanças sofridas, do desapontamento, das esperanças, dos sonhos não vividos. Profunda é a sensibilidade com que o depoente rememora sua história, ao retirar os objetos da “caixa de guardados”, pois falam de sua própria vida, compondo quadros biográficos plenos de significado (Idem, p. 62). A caixa de guardados protege uma memória importante e preciosa e, mesmo que nos objetos seja relembrada a sociabilidade antiga entre os companheiros de fábrica, é uma memória única, tem individualidade,épersonalizada. Trata-sedasubjetividadequeexpõe enredos únicos. (PORTELLI, 1997, p. 32). O trabalho de Alfredo, na Embraer, no setor de certificação de aeronave é “respeitado no mundo inteiro”, digno de preservação no formato digital. Mas, ao lado do seu trabalho na fabricação de aviões, está também sua efetiva participação no Departamento de Esportes, desde a época do Grêmio Sócio-esportivo, que hoje é a ADCE, que, nas palavras dele, “é como montar cerâmica”.4 4 A esse respeito, nota-se que “A história das sensibilidades diz respeito a zonas ainda pouco estudadas, que se estendem à margem da história das ideias, das representações, dos corpos ou das imagens. Ela toca o que se situa além da elaboração intelectual, mas nunca se separa dela. Ela coincide com os territórios do imaginário, mas tampouco se confunde com ele. (...) A história das sensibilidades interessa-se pelo individuo, por suas reações intimas, por suas contradições abertas ou encobertas. Ela escava destinos, exuma afetos, mas sempre para reinscrevê- los em conjuntos significativos mais vastos, grupos[...]. (GRUZINSKI, 2007, p.7) .
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    104 História do Esporte Otrabalho da rememoração realizado pelos depoentes, ao se abrir a “caixa de guardados” orienta-se pelo esforço de “reconfigurar o passado [...] pela busca de preservar da destruição aquilo que de singular e significativo [que] merece ser resguardado(...). Se o tempo passado escapa-nos como pura passagem e multiplicidade de sentido, a memória se lança na tarefa de criar permanência e identidade.” (OLIVEIRA. L.I. EDUC, 2008, p.46). As tensões e os conflitos apontados pelo senhor Alfredo não podem ser generalizados, porém, não devem ser desprezados5 . Não foram entrevistados atletas que jogaram pela ADC Embraer, porque tanto a fala, como os documentos disponibilizados pelo Sr. Alfredo, mostrou mais que a política de esportes aplicada pela Embraer. Revelou-se o sentido que Alfredo dá à sua participação nos bastidores dos esportes de fábrica e, em especial, à escolinha de futebol que funciona há 25 anos ininterruptamente, conferindo à sua participação uma vitória. Sabe-se que Alfredo realizou uma pré-seleção no material que apresentou junto da sua oralidade, os jornais e as fotografias levados ao encontro da pesquisadora, “Fica à sua disposição, é um pedacinho que eu peguei lá de casa. Aqui, eu tentei colocar por uma ordem cronológica, dos mais antigos pros mais novos; isso aqui está bagunçado. Eu trouxe dois, dos de hoje”. (Alfredo Gonçalves 03/02/2011). Esse rico material6 possui limitações; já a sua narrativa, contempla questões e relações. O resultado final dos diálogos é, 5 Alessandro Portelli em: “Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na História Oral”, esclarece sobre o emprego do termo memória coletiva e sugere que, ao se trabalhar com a essencialidade do indivíduo, chegamos à memória compartilhada: “prefiro evitar o termo memória coletiva; embora estejamos trabalhando com o intuito de registrar lembranças que possam ser coletivamente compartilhadas, devemos ser cautelosos ao situá-la fora do indivíduo” (PORTELLI, 1997, p.16) 6 Além de O Bandeirante, teve-se contato também com algumas edições de outros periódicos, tais como: O Jornal do Esporte (Edição de Julho de 1998, Ano I n.2 e de 12 de Dezembro de 1995) e O Jornal Notícias Indústrias & Clubes (Semana de 21 a 27 de Agosto de 1995, Ano IV n.91); sendo que o único exemplar deste último veículo, apresentado por Alfredo, apresentou na capa o caso da demissão do Presidente do Clube da Embraer em 1995; dado curioso, após a reestruturação da empresa, pós-privatização e corte de mais de dois mil funcionários; o Presidente do Clube, que deveria gozar de estabilidade de emprego, assim como membros do Sindicato e da CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) foi dispensado após dezoito anos de casa.
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    105 A caixa deguardados portanto, produto de ambos. Segundo Portelli, ouvir é uma arte e as perguntas feitas por nossas “fontes”: “contribuem para definir a base da diferença e da possibilidade de comparação que confere significado à entrevista” (PORTELLI, 1997, p.22)7 . Figura 3: Recorte de Jornal (1960) Em visita realizada à sede do Johnson Clube de SJC, em janeiro de 2011, constatou-se a inexistência de registros fotográficos e de jornais semanais, que circularam até bem pouco tempo na fábrica. O responsável pelo setor de esportes da fábrica, professor de educação física Denis, justifica a falta de espaço físico e de pessoal para a manutenção de um acervo na sede do clube. Problemas como fungo e chuva explicam a inexistência de documentos, restando, segundo o depoente, apenas algumas fotos de troféus. O acesso à cópia do Estatuto do Johnson Clube foi negado, sob a alegação de que se trata de documento confidencial de funcionários 7 Portanto, trata-se de uma opção metodológica de pesquisa que questiona o lugar social do historiador em busca de outras histórias. Durante os anos em que desenvolveu-se a pesquisa no Programa de Estudos Pós Graduados em História na PUC SP, o trabalho alinhou-se ao Núcleo de Estudos Culturais. Muitas das discussões realizadas pelo núcleo encontram-se reunidas em duas coletâneas de textos que apontam para a necessidade de se pluralizar as memórias e de abrir mão de uma história, pensando no passado a partir do momento presente. Sendo assim, optou-se por desenvolver uma pesquisa pautada em movimentos sociais, em especial o operário, de modo a lidar com as nuances diferentes existentes dentro dele, valorizando os sujeitos históricos como substrato das memórias.
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    106 História do Esporte daempresa. Contudo, em contatos anteriores com o futebol amador, através de campeonatos varzeanos e amadores da cidade, conheceu- se um ex-jogador do SJEC, cujo apelido é Zum e atualmente é o treinador do Corinthians Futebol Clube do Jardim Paulista: Zum, é também ex-funcionário da Johnson & Johnson. Era essa, até então, a única referência que se possuía sobre o futebol de fábrica da Johnson. Quando se perguntou, no Johnson Clube, sobre esse ex-funcionário, houve imediata negação quanto à sua autoridade como referência e representantedofutebolnafábrica,alegando-sequeeraumindivíduo de “mau comportamento”, que se envolvia em brigas e discórdia, que acarretaram sua demissão. O silêncio predominou por minutos. A maneira pela qual os responsáveis pelo setor resolveram a questão sobre a falta de registros sobre o futebol de fábrica da J&J foi fornecendo uma lista de contatos de funcionários da fábrica que jogam futebol na categoria Master8 . Esses jogadores possuem um histórico com o futebol da fábrica que vem de longa data, alguns atuaram em times principais e veteranos, e, atualmente, pela idade em que se encontram, têm disputado campeonatos promovidos pela SEL e pela ACAF – Associação dos Clubes Amadores de Futebol de SJC. No topo da lista, o técnico Antônio Bosco, mecânico da fábrica, atualmente afastado por problemas de saúde. Pastel, funcionário do setor de produtos profissionais, 38 anos e Beiçola foram outros nomes mencionados como efetivos colaboradores do futebol do Johnson Clube. Além da escassez de documentos constatada no Johnson Clube, obteve-se a informação de que, naquele momento, não haviam times de futebol de categoria principal representando a fábrica. Na visita ao clube, a quadra de futebol society - localizada atrás do restaurante - estava sendo ocupada por vários jovens, inclusive com fila de espera. Diante de tal inquietação, recorreu-se ao ambiente virtual, em busca de referências sobre esses operários e praticantes de futebol, que fazem uso do espaço físico do clube da fábrica, sem vincular sua prática esportiva ao nome dela. 8 A Categoria Master para os campeonatos que foram acompanhados durante a pesquisa é composta por jogadores acima de 35 anos.
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    107 A caixa deguardados Não existe um futebol de fábrica, e sim vários futebóis. Tanto em relação ao espaço em que se pratica – campo, quadra - quanto à forma como se organizam os times e suas pretensões. Há também o futebol do fim de expediente, visivelmente despojado de pretensões classificatórias e que apresenta outros sentidos para aqueles que querem bater bola. Ao navegar pelo youtube9 encontram-se alguns vídeos postados por funcionários da Johnson. São times de jovens, na faixa etária dos 20/30 anos. Um futebol praticado na quadra do Clube da Fábrica, que, quando gravado e postado na rede, evidencia outra forma de diversão, em que trabalho e futebol estão presentes. Como o foco principal da pesquisa foi o momento em que ocorreu os Jogos das Indústrias, Bosco e Pastel tiveram suas narrativas priorizadas para o entendimento da participação deles e de outros trabalhadores da Johnson em campeonatos de futebol realizados nas últimas décadas. Vou pegar minha caixinha de medalhas. Esse troféu eu ganhei da prefeitura como Dirigente Veterano. Ganhei esse em 2007, como treinador, nós fomos vice-campeões lá no Martins Pereira (estádio), perdemos nos pênaltis para o Aliança, aí eles premiaram os dois treinadores. A medalha de prata... Essa aqui é a caixinha de medalha que eu tenho, tem medalhas super antigas. Eu tenho, tá vendo essa é da Primeira Olimpíada em 83. Aqui tem regulamentos, tabelas dos jogos, resultados, anotações que eu faço... (Antônio Bosco) Alémdasconversasepartidasdefutebolqueforamacompanhadas durante a pesquisa, caixas de fotografias, jornais de circulação interna e externa ao ambiente fabril enriqueceram a abordagem sobre a prática do futebol por esses operários e trouxeram à tona várias memórias e ressentimentos, cuja compreensão foi imprescindível para o entendimento dos usos e contrausos do esporte no ambiente de trabalho. Nesses exercícios de memória, percebe-se que “as narrativas interpõem uma pausa na ordem habitual do mundo cotidiano e a faz hesitar, podendo assim reconfigurá-la: promove a 9 Trata-se de um site que existe desde o ano de 2005, nele permite-se com que seus usuários compartilhem vídeos em formato digital.
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    108 História do Esporte suspensãoda linearidade cronológica e instaura um tempo outro, que reúne brevidade e intensidade. É quando se abre esse intervalo disjuntivo e concentrado de tempos outros que tem lugar o trabalho de rememoração/refiguração do narrador, trabalho capaz de arrancar o passado de um curso contínuo e indiferente e redimi-lo.” (OLIVEIRA, L.I., idem, p. 83). Operário-Jogador e Jogador-Operário À frente do Departamento de Esportes da ADC General Motors de São José dos Campos, Tércio Borges, ex-jogador de futebol do Catanduvense, chegou à cidade , no início dos anos 80, momento em que os Jogos das Indústrias estavam em alta. Sua experiência como funcionário nunca foi vinculada à produção da fábrica, mas sim exclusivamente à ADC. Sua narrativa é permeada por testemunhos de mudanças, no que diz respeito à prática de esporte dos funcionários da fábrica, de modo a vincular essas mudanças às mudanças de ritmo da fábrica e também às experiências que lhe são próprias, como ex-jogador profissional. Toda a abordagem que se realizou durante a pesquisa sobre a GM pautou-se em testemunhos de ex-jogadores profissionais, a exemplo de Tércio Borges, quando adentraram a faixa dos trinta anos de idade, diante de limitações físicas decorrentes da prática do futebol, tiveram de encontrar soluções para continuarem no mercado de trabalho e, em seus currículos, o futebol era o elemento principal, que fora usado como uma espécie de passaporte, garantindo a entrada em um novo ambiente de trabalho, até então diferente daquele ao qual pertenciam. Tanto a entrevista de Mococa quanto a de Tércio ilustram bem o trânsito bastante comum do esporte profissional para o amador classista, nas mais diversas modalidades, embalado pela promoção de eventos esportivos de alto nível técnico, que ocorreram principalmente nas décadas de 80 e 90 na cidade de São José dos Campos.
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    109 A caixa deguardados A contratação de ex-profissionais era uma prática que se tornou tão enraizada no cotidiano dos jogadores que, ainda nos dias de hoje, há tentativas de ingresso nas fábricas, por esse expediente. Porém, diante das novas condições de trabalho, perdeu-se o interesse nesse tipo de contratação, por parte da fábrica, como expôs senhor Alfredo Gonçalves, da ADC Embraer: Hoje não tem ninguém sem curso técnico, não tem supervisor sem curso superior. As coisas mudaram muito. O Celso é um que veio do profissional e entrou aqui como estagiário, começou a jogar aqui dentro, ele começou na categoria menores do São José, passou pelo Corinthians. Existem alguns jogadores que são raros. A gente tem até hoje pessoas que querem tentar entrar na fábrica pelo esporte, então a Embraer enquanto muitas empresas colocavam apenas o futebol, a Embraer investia em vários esportes, tênis de mesa, atletismo, basquete, se contratava ex-profissionais. Nós tivemos atletas que vieram atrás de um time com condições técnicas, vieram para produção, precisava mesmo contratar, então o atleta era mão- de-obra. Tem um atleta em São José que se profissionalizou: o Alex Cortez, hoje eu recebi um currículo dele quer voltar a jogar bola, quer trabalhar na Embraer, ajudar a Embraer. Mas, sinto dificuldade, pois hoje você tem que ter um curso técnico. Passou por todos os testes, mas, não tem ninguém que não tem curso superior. Mas, você acha que um atleta tem curso superior? (Alfredo Gonçalves 03/02/2011, grifos nossos) O questionamento de Alfredo vai ao encontro do raciocínio do ex-jogador profissional e depois operário da GM, Edson Mug. Para ele, a decisão de profissionalizar-se ou não, envolve inúmeras escolhas, que tornam inviável a conciliação dos estudos com os treinos, concentrações e viagens de trabalho: Falam que jogador de futebol tem ter estudos, uma formação acadêmica. Eu falo, tem que ser sincero pra você, se ele fizer isso tudo, como ele vai concentrar? Viajar? Treinar? Dão o Sócrates como exemplo, mas, o Sócrates estudou por que o Botafogo treinava à noite, ele fazia residência, tudo.... Não treinava direto. Como vão fazer isso hoje, com um Ronaldinho? Você pega Adriano, ele não tem estudo acadêmico. Vão aprender na vida! Agora todo mundo quer falar de estudar, mas não é assim. Sou contra! Se não, vai chegar
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    110 História do Esporte umtempo que o cara vai estudar, ou ser profissional. Em time grande você joga direto! Só se tiver um consenso da escola, mas isso não existe! (Edson Mug) De fato, ter curso superior, ter curso técnico, são necessidades que foram impostas pelas fábricas, nos últimos tempos, e que alteraram a rotina do trabalhador, de modo que ele ocupe seu tempo fora da empresa com atribuições que tendam a tornar o processo produtivo da fábrica cada vez mais otimizado e preciso. Esse é o atual jogo da fábrica e se reflete até mesmo no escasso ou até raro uso do espaço destinado ao esporte e lazer na ADC, como observa Tércio Borges da ADC GM: Hoje o trabalhador nosso sai daqui, da linha da fábrica, faz ginástica, ou dá uma corrida aqui na pista, toma uma cerveja, sai voando, vai buscar a esposa não sei onde, acabou a do lar. Já sai dali, vai pra faculdade, porque ele quer crescer na empresa, a vida mudou e o perfil do associado também mudou. Naquela época, era mais sossegado, hoje, diminuiu a frequência de associado na nossa fábrica. Aqui é assim, quando você entra, você já é associado, com o passar do tempo você vai analisar se é viável ou não continuar sendo associado. (Tércio Borges) Em relação à presença de ex-jogadores profissionais na linha de produção das empresas de SJC, percebeu-se que foi expressiva e, por esse motivo, incorporada como um elemento importante na pesquisa sobre a prática futebolística e a memória operária. Todos os ex-jogadores que concederam entrevistas abordaram situações delicadas e tensas do ambiente de trabalho, em algumas vezes se tratando de conflitos bem mais pungentes que os do operário-jogador. Edson Mug, José Luiz Pantera e Walter Passarinho, todos com trajetórias semelhantes: nascidos na capital paulista, profissionalizaram-se e atuaram pelo SJEC e por outros clubes, até o momento em que se viram forçados a trabalhar em fábricas joseenses para garantirem emprego. O tipo de conflito e a forma de luta de ambas as categorias (operário- jogador e jogador-operário) serviram para deslocar a
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    111 A caixa deguardados prática futebolística de uma posição estanque. Não se trata apenas de lazer, mas, sobretudo, de outra forma de trabalho fabril e, por isso mesmo, uma possibilidade de leituras plurais sobre o mundo desses trabalhadores em experiências coletivas, e principalmente nas individuais. Considerações Finais Lembrar e esquecer. Uma cidade industrial, portanto operária, que não se reconhece operária. Foi essa a primeira afirmação feita na abertura do capítulo, que se propõe a discutir o jogo no campo da memória, que terminou com a “goleada da cidade industrial” sobre a sanatorial. Quando se menciona a memória esportiva operária, pretende-se explorarumageografiaatéentãoinexplorada“dinâmicaefragmentária do espaço social” (HAESBAERT, 2006, p. 14). A principal fonte eleita no processo de pesquisa para entender o cotidiano operário foram as narrativas dos funcionários das fábricas, que, de algum modo, se relacionaram com os esportes, em especial com o futebol. Mas também se percebeu a necessidade de se debruçar sobre a questão da memória esportiva operária via-fábrica e/ou associações desportivas classistas. De início, interpretaram-se as visitas às ADC´s como missões mal sucedidas. Depois, percebeu-se que cada uma, a seu modo, revelou o lugar que hoje ocupa o departamento de esportes na fábrica e de que modo ligam o presente ao passado, fornecendo pistas importantes de pesquisa, que serviram de base para as entrevistas, que traduziram muito da experiência dos trabalhadores das fábricas de SJC, que tinham e têm em comum a prática do futebol. Tal situação, evidenciando o esvaziamento dos arquivos das empresas ou a ausência de um propósito de constituir um arquivo sobre a memória desportiva da empresa e, particularmente, o registro referente à atuação dos operários nos campeonatos, remete
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    112 História do Esporte aWalter Benjamin em seu texto “Experiência e pobreza, de 1933, sobre o desaparecimento dos rastros e sua relação com a destruição da experiência e o declínio da narração. Nesse sentido, o presente trabalho com operários-jogadores das fábricas de São José dos Campos teve o sentido de recuperar os rastros inscritos nas falas e nos objetos guardados na” caixa de memórias” dos narradores. Percebe-se, especialmente no caso da Embraer, que os depoentes aproveitaram a oportunidade dos depoimentos para expressar com sensibilidade os conteúdos da memória individual que conseguem ler nos restos, guardados e recolhidos do lixo da fábrica. São conteúdos da memória de cada um, mas que confluem para um passado comum, em que os companheiros de ofício e de futebol comparecem para dar movimento e sentido à experiência individual vivida, mas coletivamente partilhada. Figura 4: Almoxarifado/Acervo Jogos das Indústrias- Secretaria de Esportes e Lazer (2011) Referências CRITELLI, D. História pessoal e sentido da vida. Historiobiografia. São Paulo: EDUC/FAPESP.
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    113 A caixa deguardados GRUZINSKI, S. Por uma História das Sensibilidades. In: PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. (orgs). Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. OLIVEIRA, L. I. Do canto e do silêncio das sereias: um ensaio à luz da teoria da narração de Walter Benjamin. São Paulo: EDUC, 2005. STARACE, G. Os objetos e a vida: reflexões sobre as posses, as emoções e a memória. São Paulo: Martins Fontes, 2015. PASSERINI,L.MemóriayUtopia,Laprimaciadelaintersubjetividade. España: Universidad de Valencia, 2006. PORTELLI, A. O que faz a História Oral diferente. Projeto História, v.14, p.25-39, 1997. ______ . Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões obre a ética em História Oral. Projeto História, n.15, p.13-49, 1997.
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    115 CAPÍTULO VII O DISSÍDIOE INTERVENÇÃO ESTATAL NO FUTEBOL NA DÉCADA DE 1930 Dr. Jorge Miguel Acosta Soares Introdução A profissionalização do futebol em 1933 marcou um importantíssimo ponto de virada na história do esporte em nossas terras. Foi a transformação definitiva de uma prática desportiva, aristocrática e elegante, que incorporava, agora de forma oficial, os atletas oriundos das camadas populares, imigrantes e operários. Este artigo não pretende estudar o processo de profissionalização, uma vez que outros, de forma muito mais competente já o fizeram (CALDAS, 1990; FRANCO JUNIOR, 2007; FRANZINI, 2000; PEREIRA, 2000). O texto busca retratar a situação de dissídio que se instalou entre os clubes, e entre as entidades dirigentes do futebol após 1933, marcando profundamente os anos seguintes, e preparando o terreno para a intervenção estatal nos esportes, com a edição do Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Os anos que se seguiram á profissionalização também marcaram o aparecimento de novos e influentes dirigentes no futebol, uma nova burocracia desportiva, afinada com o novo regime. Os novos dirigentes, João Lyra Filho, Manoel do Nascimento Vargas Neto, Luiz Aranha, Rivadávia Corrêa Meyer contrapunham-se à antiga aristocracia dos clubes, e viriam a ser os responsáveis diretos pela construção de um sistema oficial para o desporto, e posteriormente, pela construção da justiça desportiva (SOARES, 2016). A profissionalização Em 1933, a situação do amadorismo tornara-se insustentável. Grandes clubes cariocas, como o Vasco da Gama e o Bangu Athletic
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    116 História do Esporte Club,há muito não escondiam que remuneravam seus atletas. O “amadorismo marrom”, com o pagamento de remuneração aos atletas de forma camuflada como gorjetas pelas vitórias, já não enganava mais ninguém. Em janeiro de 1933, uma reunião a pedido dos dirigentes do Vasco, Fluminense e Bangu, na sede da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea) decidiu pela adoção do profissionalismo no futebol do Rio de Janeiro. A proposta foi aceita por quatro votos a favor – Fluminense, Vasco da Gama, America e Bangu – e três contra – Botafogo, Flamengo e São Christóvão –, nenhuma abstenção e nenhum voto nulo. Dito desta maneira parece que a adoção do profissionalismo foi pacífica, limitando-se a uma votação entre os clubes. Não foi. Na sequência a reunião aprovou, também por quatro votos contra três, a criação da Liga Carioca de Futebol (LCF), reunindo os clubes que aderiram ao profissionalismo. Ainda no mesmo dia, o Botafogo publicou uma nota, assinada por 75 dos 77 membros de seu conselho diretivo, manifestando-se “irredutivelmente contrário à implantação do futebol profissional, por julgá-lo inconveniente e contrário às tradições do clube e do esporte carioca”1 . O conselho do São Christóvão publicou nota com idêntico teor. No dia seguinte os jornais do Rio de Janeiro publicaram notas de repúdio assinadas por seus leitores, que pediam a expulsão de Fluminense, Vasco, America e Bangu dos quadros associativos da Amea. Poucos dias após, o jornal Correio da Manhã publicou uma longa entrevista com Rivadávia Corrêa Meyer2 , presidente da Amea, com duras críticas à decisão, que chamou de “gesto de ingratidão e de nenhuma nobreza” dos quatro times cariocas. Na entrevista, Meyer fez advertências aos jogadores e clamou pela volta da moralidade ao futebol3 . Meyer, que também respondia pela presidência do Flamengo, verdadeiramente não tinha resistência ao futebol profissional. Sua diferença era com Oscar da Costa, presidente do Fluminense, time com o qual disputava a 1 "O profissionalismo no football", Correio da Manhã, 24 de janeiro de 1933, p. 6. 2 Ao longo da década de 1930, Corrêa Meyer mudaria de posição, aderindo entusiasticamente ao projeto institucional governamental para o esporte. 3 Correio da Manhã, 28 de janeiro de 1933, p. 10.
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    117 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 hegemonia na cidade (CALDAS, 1990). No começo de fevereiro José Bastos Padilha foi eleito para a presidência do Flamengo4 , mudando a posição do clube e desestabilizando o jogo em favor da LCF. O clube rubro-negro havia votado contra o profissionalismo, permanecendo na Amea, chegando a disputar duas partidas no início do campeonato amador promovido pela entidade. Contudo, em meados de maio, a nova presidência do Flamengo convocou uma reunião para discutir a adoção do profissionalismo. No dia 19, com a presença de quase todo o conselho deliberativo, o clube aprovou a adesão à LCF, desligando-se dos quadros da Amea5 . Nos dias seguintes, o São Christóvão e o Carioca Football Club seguiram o Flamengo, também abandonando a disputa da Amea. A imprensa noticiou como uma vitória do profissionalismo, mas não foi exatamente isso. O Flamengo disputou o restante do campeonato de 1933daLFCcomumaequipeamadora,ficandoemúltimolugarentre os seis que participaram. Seu primeiro time profissional somente foi montado no final de 1934, para disputar o campeonato estadual do ano seguinte. A resistência do amadorismo mostrava-se inútil, e o exemplo carioca rapidamente foi seguido pelos clubes paulistas. A aceitação do profissionalismo, aparentemente colocaria fim a êxodo dos jogadores brasileiros para o exterior, uma dos argumentos centrais daqueles que defendiam a mudança. As péssimas condições para o exercício da atividade de futebolista, no início da década de 1930 tornavam atraentes as propostas de melhores possibilidades e melhores rendimentos feitas por clubes estrangeiros. O mercado do futebol na Europa era extremamente atraente para os jogadores, que não hesitavam em abraçar essas propostas, levando o futebol nacional ao risco de desaparecer, ou, na melhor das hipóteses, apequenar-se. A profissionalização era uma solução capaz, simultaneamente, de fixar o jogador no Brasil, e em seu clube, e manter um bom nível técnico e atlético do futebol nacional. Contudo, havia outra causa indireta, interna, menos evidente, mas de grande importância. 4 Correio da Manhã, 4 de fevereiro de 1933, p. 6. 5 Jornal dos Sports, 20 de maio de 1933, p. 1.
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    118 História do Esporte Oinício dos anos de 1930 marcou uma das mais profundas transformações do Brasil, envolvendo não só a estrutura da economia e as relações políticas, mas todo o complexo cultural, imaginário e ideológico do país. A Revolução de 1930, e a tomada do poder pelos jovens oficiais do Exército, apoiados pelas camadas médias urbanas, alterou as funções e a própria estrutura do Estado brasileiro. Mais do que a simples tomada do poder e a consolidação de um novo governo, a Revolução proporcionou a construção da ideia de um Estado em que, ao menos no discurso dominante, havia espaço para camadas populares, como agentes de transformação. O movimento revolucionário impôs uma derrota, ainda que parcial, aos grupos dominantes, provocando a ruptura das relações sociais e políticas existentesduranteaRepúblicaVelha.Asoligarquiasforamsubstituídas pelo Estado como principal agente da sociedade brasileira. O novo governo recriou as relações sobre novos parâmetros e novos valores sociais e culturais. A nova construção política, cultural e ideológica incorporou alguns elementos que até então eram marginalizados, ou tratados como caso de polícia, como os sindicatos e os movimentos de trabalhadores. Havia um espaço reservado para o futebol nesse projeto. Na República Velha o futebol aparentemente estava à margem da evolução dos eventos sociais e econômicos do país. Mas essa situação era apenas aparente. O desenvolvimento do futebol nas primeiras décadas do século XX refletiu as transformações sociais e econômicas que o país atravessava. A urbanização, o crescimento das camadas médias urbanas, o processo de industrialização, o surgimento de um proletariado que começava a se organizar eram fenômenos sociais que mostravam seus reflexos no futebol. A estrutura econômica, as transformações sociais, políticas e culturais influenciaram o desenvolvimento do esporte. A adoção do profissionalismo em 1933 estava em sintonia com uma das diretrizes centrais do novo regime. Os representantes do poder político tinham como meta a regulamentação da vida dos trabalhadores do país. Contudo, a ligação do futebol com o novo regime que se criava ia muito além
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    119 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 dessa relação. A construção de uma ideia de “Nação”, identificada com o novo país que se erigia, elaborou elementos ideológicos que fundariam a identidade nacional, brasilidade, o caráter peculiar, individualizador, do que era ser brasileiro, e o futebol teve papel importante nesse processo. Membros do novo governo, ainda provisório, logo em seus primeiros dias, passaram a atuar nos bastidores no sentido de participar do processo de profissionalização do futebol, que somente iria acontecer dois anos depois (SILVA, 2004). A transferência de verbas oficiais para a realização de partidas e torneios, assim como para o saneamento das finanças da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que já ocorriam nos governos anteriores, foi mantida, e gradativamente intensificada. A profissionalização do futebol teve efeitos imediatos, entre eles o aumento da remuneração dos atletas. No Rio de Janeiro, logo em seus primeiros meses, os clubes se viram obrigados a oferecer vantagens para manter seus jogadores e trazer outros tantos de agremiações adversárias ou do exterior. Nesse momento, mais jogadores provenientes das camadas populares recebiam propostas para a profissionalização nos clubes cariocas. Para muitos, porém, a novidade ainda parecia incômoda. Os críticos, pela imprensa, diziam que o futebol se transformara em apenas um negócio e equiparavam os jogadores a cavalos de corrida. Já para os jogadores o novo regime era extremamente positivo. A profissionalização, ao contrário dos maus agouros dos críticos, que previam a derrocada e o fim do esporte no país, apenas fez crescer o futebol. A qualidade técnica dos antigos e dos novos jogadores, estimulados pela boa remuneração que passaram a receber, aumentou o interesse pelo espetáculo, levando ainda mais público aos estádios. O futebol passou a viver um período de glórias nos campos, e divergências nos bastidores. Contudo, os desentendimentos causados pela profissionalização geraram uma luta fratricida entre as entidades representativas dos clubes de futebol.
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    120 História do Esporte Odissídio entre os clubes No Rio de Janeiro as associações pró e contra a nova situação dos atletas viviam em guerra. Dirigentes da Amea, a amadora, e da profissional LCF trocavam farpas e insultos pelas páginas dos jornais, mostrando que a paz estava bem distante. Em 1935, a Amea voltou a se fundir com a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT)6 , criando a Federação Metropolitana de Desportos (FMD), que mudou sua posição, aderindo ao profissionalismo. Entre 1933 e 1936, o Rio de Janeiro teve dois campeonatos de futebol ocorrendo simultaneamente. Ao largo das divergências e das lutas intestinas dos dirigentes, assistia-se à ascensão do esporte, e ao aumento do interesse popular pelo futebol, que não passaram despercebidos pela cúpula do poder estatal. Nos primeiros anos da década de 1930, aquilo que poderia se chamava de paixão pelo futebol tornara-se uma verdadeira febre. O rádio, surgido no país em 1922 e que rapidamente se convertera em um veículo de comunicação de massa, transmitia as partidas, que agora podiam ser acompanhadas fora dos estádios. A disputa entre as agremiações era estimulada por grupos de torcedores organizados, concursos, hinos, símbolos, mascotes, bandeiras. O Governo Vargas percebeu o potencial político dessa febre, à qual a luta entre as entidades em nada ajudava. Em meados de 1935 a imprensa já informava que o governo estaria estudando a criação de um órgão governamental para centralizar os desportos, e não só o futebol, reorganizando as entidades representativas7 . Esse projeto se consolidaria apenas em 1941, mas o processo de intervenção do Estado no esporte já começara. Em 1935, foi aprovada uma regulamentação, apelidada como “Lei Getúlio Vargas”, determinando que a Censura Policial, órgão do governo federal ligado ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), aplicasse aos clubes de futebol as mesmas regras 6 Criada com o nome de Liga Metropolitana de Futebol em 1905. 7 “A oficialização dos sports”, Jornal dos Sports, 7 de julho de 1935, p. 1.
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    121 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 definidas para outras diversões públicas como os teatros e cinemas. As normas, criadas em dezembro de 1928 pelo Decreto nº 18.527, ainda durante o governo de Washington Luís, impunham que a autoridade policial fiscalizasse os contratos de artistas de teatro. Assim, a Censura passou a vistoriar o cumprimento dos contratos dos jogadores profissionais com seus clubes, obrigando-os a enviar- lhe os prontuários dos atletas. Segundo a imprensa, a medida era uma forma de controlar o profissionalismo, evitando excessos. Pela regra geral do DPDC aplicada ao futebol, apenas poderiam jogar os profissionais cuja ficha fosse inscrita junto à Censura e cujos contratos com os clubes seguissem o modelo-padrão. A estratégia da aproximação do governo com o futebol dera certo, especialmente após a Copa do Mundo de 1938, primeiro bom resultado da seleção brasileira, que fora claramente apoiada pelo presidente e seu gabinete. A despeito do golpe que instaurou o Estado Novo, em novembro de 1937, o Getúlio Vargas tinha apoio popular. A ligaçãocomofutebol,quepassouafazerpartedoconjuntodemedidas populistas governamentais de ampla repercussão, demonstrava que o caminho se mostrava correto. A associação do futebol com a figura do presidente foi explorada pela propaganda oficial do governo. O anúncio das grandes medidas oficiais de interesse dos trabalhadores era feito pelo próprio presidente Vargas em cerimônias públicas no estádio de São Januário, do Clube de Regatas Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, time com muito prestígio não só na cidade, mas, graças ao rádio, em todo o país. Das oito celebrações do Primeiro de Maio realizadas durante o período do Estado Novo, entre 1937 e 1945, quatro foram realizadas no estádio. Desdeosurgimentodasprimeiraspráticasorganizadas,odesporto no Brasil foi marcado por formas associativas que privilegiavam a vontade individual. A ordem desportiva nasceu marcada pela livre associação em entidades privadas, clubes, associações, federação, reguladas pelo direito privado, sem intervenção direta do Estado. As entidades eram criadas e extintas pela vontade de seus filiados. Exatamente por expressar os humores e interesses individuais,
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    122 História do Esporte essaordem era caótica e desordenada. Não foram poucas as vezes em que essas vontades individuais colidiram, gerando desacordos, desavenças e conflitos. As relações com o Poder Público existiam, mas eram indiretas, veladas. Havia a interferência política no futebol, mas ela não era institucional. Membros do Executivo, Legislativo e Judiciário compunham os quadros sociais dos clubes, usando seu prestígio pessoal, influenciando as decisões internas. Mas essa interferência era pessoal, não institucional. O mesmo não acontecia com as entidades representativas do esporte, que por não terem rendas próprias dependiam da subvenção e liberação de recursos públicos. A entidade nacional dos desportos, a CBD era um bom exemplo dessa dependência; apesar de privada, necessitava de verbas governamentais para sua manutenção e a realização de eventos. Até o final dos anos de 1930, os esportes, futebol entre eles, eram regidos pelas entidades dirigentes das diferentes modalidades. Havia alguma obediência às regras internacionais, sem a intervenção do Estado, que apenas cuidava das questões que envolvessem a ordem pública, liberava verbas para a realização de eventos, contribuía de forma indiretaparaaconstruçãodeestádiosepraçasdeesportes.Odesporto era atividade dos particulares e, como tal, cabia aos particulares sua organização. Os constantes conflitos entre as entidades dirigentes de uma mesma prática esportiva, as divergências entre os dirigentes dos diversos estados, os atritos internacionais, nada disso estava inserido diretamente no rol das preocupações oficiais. Contudo, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e, especialmente depois da decretação do Estado Novo, essa relação mudou. Desde sua criação do futebol no Brasil as divergências fizeram parte da vida dos clubes. A competitividade, sempre presente, deixava conflituosas as relações entre admiradores dos clubes. A paixão pelas cores e pelos emblemas de seu time tornava os torcedores absolutamente avessos aos adversários, especialmente os adversários próximos, vizinhos, da mesma cidade. Os grandes matchs eletrizavam a imprensa e o coração dos fãs. Essa mesma cizânia havia
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    123 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 entre os clubes e entre as entidades representativas. A organização do futebol em clubes e associações repetiu a estrutura histórica do futebol inglês. Simultaneamente ao nascimento dos clubes, foram criadas associações, ligas, federações. Os conflitos e a animosidade entre as entidades apenas iria crescer com a intensificação das discussões sobre a legalidade da profissionalização do futebol. Após a decisão dos clubes, em 1933, o debate entre as duas correntes, pró e contra, gerou calorosas discussões. Clubes, entidades, órgãos de imprensa não se entendiam. Em todo o país novas entidades foram criadas segundo os interesses divergentesdosclubes,gerandoarranjosorganizativosabsolutamente caóticos e incompreensíveis. Entidades amadoras e profissionais criaram campeonatos paralelos, que aconteciam simultaneamente, confundindo as torcidas e os dirigentes, que não sabiam em qual federação inscrever seu time. Todos apresentavam bons argumentos para defender uma das posições, assim como para provar que o outro lado estava errado. Contudo, apesar dos debates acalorados, essa não era a questão central. O profissionalismo já existia na prática; há mais de uma década vários clubes já pagavam uma remuneração a seus jogadores. Por quase toda a Europa, e especialmente na Inglaterra, o futebol amador, lúdico, e o profissional, de alto desempenho, já conviviam em campos bem delimitados. No Brasil, o que estava em jogo era uma luta pelo poder no futebol. Antigas lideranças, como Arnaldo Guinle, ex-presidente da CBD, estavam perdendo influência na burocracia, e assistiam à ascensão de novos dirigentes: Manoel do Nascimento Vargas Neto, Luiz Aranha, Rivadávia Corrêa Meyer e JoãoLyraFilho.AsrelaçõesdeGetúlioVargascomosnovosdirigentes do futebol iam muito além da simples afinidade política. Manoel do Nascimento Vargas Neto, filho de Viriato Dorneles Vargas e sobrinho do presidente Getúlio Vargas, viria a se tornar mais tarde o presidente da Federação Metropolitana de Futebol Federação Metropolitana de Futebol (FMF) da cidade do Rio de Janeiro e deputado federal constituinte em 1946 com apoio do tio. Luiz Aranha, dirigente do Botafogo, seria eleito presidente da CBD. Aranha havia participado
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    124 História do Esporte ativamenteda Revolução de 1930, e era irmão de Oswaldo Aranha, este, amigo íntimo e ministro de Vargas entre 1930 e 1945. Rivadávia Corrêa Meyer, ex-jogador e ex-presidente do Flamengo, foi escolhido presidente da CBD na sucessão de Luiz Aranha, ocupando o cargo entre 1943 e 1955. João Lyra Filho, ex-presidente do Botafogo e diretor da Caixa Econômica, viria se tornar o mais importante nome de Vargas para o desporto, citado à época como um dos mentores da intervenção estatal, foi o criador e o primeiro presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND), a entidade governamental dos esportes. Um ponto de inflexão desse conflito intestino foi a eleição e posse deLuizAranhaparaapresidênciadaCBD,em5desetembrode19368 . A entidade, que representava todas as modalidades dos esportes do país e se mantinha firme na defesa do amadorismo, em detrimento da profissionalista FBF, escolhia para seu cargo máximo alguém que não pertenciaaseusquadrosdirigentes,enãopossuíaexperiênciaanterior. A escolha estava diretamente ligada à sua influência e proximidade com o presidente da República, com acesso às dependências privadas do Palácio do Catete. Luiz Aranha, ou “Lulu”, como era chamado por Vargas, foi um dos principais articuladores civis da Revolução de 1930. Depois da tomada do poder, a intimidade com o presidente lhe garantia prestígio no Distrito Federal. Em meados de julho de 1937 o Jornal dos Sports anunciou com entusiasmo a solução do conflito entre as entidades esportivas, e a pacificação do futebol carioca. Segundo nota oficial, os presidentes do Vasco da Gama, Pedro Novaes, e do America, Pedro Magalhães Corrêa,haviampropostoacriaçãodeumanovaentidade,extinguindo as existentes, que passaria a ser a única representante do futebol do Distrito Federal9 . Ainda segundo o jornal, oito clubes haviam aderido à proposta – Vasco, America, Flamengo, Fluminense, São Christóvão, Bangu, Bonsucesso Futebol Clube e Madureira Esporte Clube –, sendo que só disputariam os certames oficiais da cidade os 8 Correio da Manhã, 6 de setembro de 2014, p. 1. 9 Jornal dos Sports, 18 de julho de 1937, p. 1.
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    125 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 filiados, sem exceção, proibida a dupla filiação. O pacto extinguia a amadora FMD10 , presidida por João Lyra Filho, e a LCF, criada após a adoção do profissionalismo, e comandada por Antonio Gomes Avellar, presidente do America. Em seu lugar nasceria uma terceira entidade, a Liga de Futebol do Rio de Janeiro (LFRJ), que seria vinculada à entidade nacional FBF. Todas as entidades regionais, caso quisessem participar de torneios entre estados, deveriam pedir filiação à FBF. Com grande destaque o jornal também informava que os dois presidentes, Novaes e Magalhães Corrêa, já haviam feito reuniões com a Liga de São Paulo, que também aceitara o arranjo em sua base territorial. O acordo consolidava a situação que já existia, com duas entidades nacionais, mas criava uma clara divisão de funções entre ambas. À FBF caberia cuidar de todo o futebol nacional, reunindo clubes de todo o país e realizando campeonatos entre eles, fossem amadores ou profissionais. Por sua vez, a CBD ficaria responsável somente pela representação do futebol e dos demais esportes do Brasil no exterior, sem interferência direta na organização interna. A proposta, assim como sua aceitação pelos grandes clubes cariocas, pegou a CBD de surpresa. Em uma entrevista pelo rádio, falando em nome da entidade, Célio da Silva, secretário-geral da CBD, classificou a proposta, assim como os acertos sigilosos, como uma “traição do Vasco”11 . Contudo, a suposta “traição” não passava de jogo de cena da diretoria da CBD. O plano fazia parte do projeto de Luiz Aranha, e consequentemente do Governo Vargas, para solucionar o conflito nas entidades do futebol, colocando em prática suas premissas: o reconhecimento definitivo do profissionalismo no futebol e o fim dos conflitos entre dirigentes, com a centralização do poder em apenas uma entidade. Mesmo o Botafogo, o mais ferrenho defensor do amadorismo, aderiu prontamente, já no dia 19 de julho. A diretoria do clube, que 10 A FMD tivera vida curta. Fora criada em 1935, com a fusão da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea) e da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), ambas defensoras do amadorismo no futebol. 11 Jornal dos Sports, 18 de julho de 1937, p. 6.
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    126 História do Esporte anosantes anunciara que se um dia o Botafogo fosse obrigado a aceitar o profissionalismo iria extinguir o departamento de futebol, aceitou. Vencendo muita resistência interna, o clube também se filiou à FBF. Ainda nesse dia, Luiz Aranha como presidente da CBD, sem nem ao menos uma crítica ao plano, assinou de forma enfática o acordo, oficializando a pacificação das entidades; Lyra Filho ratificou o acordo em nome da FMD. Em uma cerimônia pública, Aranha aceitou a redução do poder da CBD, que não mais poderia interferir diretamente nos rumos do futebol dentro do país12 . A solução aparentemente era péssima para os interesses da CBD, que seria a grande derrotada no processo, perdendo seu poder sobre o futebol. Tudo fazia crer que para a entidade não restaria outra opção a não ser render-se e ver seu poder esvaziar. Mas essa derrota era apenas aparente. Em pouco tempo a CBD passaria a ser o grande organismo oficial, não só do futebol, mas de todos os esportes. Os influentesdirigentesLuizAranha,RivadáviaCorrêaMeyereJoãoLyra Filho, muito próximos de Vargas, pareciam aceitar obedientemente o arranjo, ainda que supostamente contrariados. Contudo, isso também se mostraria falso; a “obediência” seria recompensada. Todos faziam parte de um projeto maior para o desporto; nos anos seguintes, todos seriam içados aos cargos de comando do desporto nacional, permanecendo neles pela próxima década. Pouco tempo depois começava oficialmente a ditadura de Vargas, comopronunciamento“Proclamaçãoaopovobrasileiro”,transmitido por rádio para todo o país na noite de 10 de novembro de 1937, anunciando a promulgação da nova Constituição e preparando o país para o endurecimento do regime. Vargas justificou a necessidade de medidas de força: “A gravidade da situação está na consciência de todos os brasileiros. Era necessário e urgente optar pela continuação desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil. Entre a existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e desordem em que nos encontrávamos, não podia haver meio-termo oucontemporização”13 .Aintervençãodeforçanosesportesprecedera 12 Jornal dos Sports, 20 de julho de 1937, p. 1. 13 Biblioteca da Presidência da República, Ex-Presidentes, Getúlio Vargas, Discurso de posse, 1937.
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    127 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 a instauração do Estado Novo em alguns meses, mas não pararia por aí. Os próximos anos ficaram marcados pela centralização dos rumos do desporto nacional dentro da estrutura governamental de poder. Ao conjunto de problemas provocados pelos atritos entre amadoristas e profissionalistas, somaram-se as dissonâncias entre “especialistas” e “generalistas”. Em meados dos anos de 1930 “especialistas” eram aqueles que defendiam a criação e o fortalecimento de entidades distintas, uma para cada esporte. Os “generalistas”, por sua vez, defendiam a criação de entidades congregando várias modalidades esportivas, uma em cada base geográfica. Esse desentendimento, que tinha suas origens na criação da CBD em 1916, trazia ainda mais elementos à cizânia e desarmonia do sistema esportivo. Essas divergências teriam solução definitiva, ainda que híbrida, em 1941, permitindo a coexistência de entidades específicas e gerais em uma mesma base territorial, apenas diferenciando suas atribuições. A manutenção das práticas liberais na organização dos esportes, após a Revolução de 1930, passou a colidir com o projeto político- social que se implantava no país. Na ordem desportiva prevalecia a autonomia da vontade dos dirigentes dos clubes e das entidades, a liberdade organizativa, expressa nos estatutos e códigos, a iniciativa privada sem a intervenção do Estado, o pluralismo e o conflito. Ao contrário, o regime implantado pelos novos detentores do poder estava baseado na intervenção direta estatal, na oficialização das entidades e das formas organizativas, na hierarquia, na ordem e na disciplina. Os dois elementos, ordem e disciplina, viriam a se tornar os pressupostos, e a justificativa, para a intervenção governamental, seja por meio de medidas de convencimento, seja com o uso de mecanismos de força.
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    128 História do Esporte Consideraçõesfinais Os esportes, organizados de forma independente e liberal, não se harmonizavam com o processo de intervenção, centralização e controle da sociedade pelo Estado. Enquanto o federalismo e a independência dos estados desapareciam perante a União, o desporto em geral, e o futebol em particular, dividia-se em uma miríade de entidades e siglas incompreensíveis até mesmo para quem militava no setor. Se de um lado o poder político estava centralizado nas mãos do chefe de Estado, no futebol os comandos paralelos e simultâneos imobilizavam a realização até dos certames mais banais. O sistema desportivo se tornara inviável ante a nova realidade política do país. A forma da intervenção do governo no desporto acompanhou o processo de endurecimento do regime. Os primeiros sinais do descontentamento oficial com a situação reinante no futebol foram sutis, como a delegação de poder à Censura Federal para fiscalizar o cumprimento dos contratos de trabalho dos jogadores. O segundo momento foi marcado pela indicação de pessoas de confiança, afinadas com o regime e com o presidente, nos postos-chave das entidades representativas. Depois, as manobras de bastidores, sem que os interesses do governo se tornassem públicos; o processo de pacificação dos esportes foi gestado nos círculos ligados a Vargas, mas veio a público aparentemente como uma iniciativa dos clubes. Aconsolidaçãodoprocessodeintervençãoestatalocorreriaapenas em 1941, por meio de um decreto-lei, impositivo e obrigatório14 , o instrumento pelo qual o Estado passou a controlar todas as atividades ligadas ao desporto no país. Criou-se o Conselho Nacional de Desportos (CND) e abaixo dele uma estrutura corporativista, hierárquica, compulsória e imperativa, vinculada à Presidência da República. Uma longa cadeia de graduações e subordinação ligava diretamente o menor clube, no rincão mais distante do país, aos interesses do Palácio do Catete. 14 Os decretos-lei foram criados pela Constituição de 1937. De competência exclusiva do presidente da República, tinham força de lei, entrando em vigor imediatamente após sua publicação.
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    129 O dissidio eintervenção estatal no futebol na década de 1930 Referências ARAÚJO, J. R. C. Imigração e futebol: o caso Palestra Itália. 1996. Dissertação (Mestrado em História) –Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996. CALDAS, W. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro (1894-1933). São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1990. DRUMOND, M. Os gramados do Catete: futebol e política na Era Vargas (1930-1945). In: SILVA, F. C. T.; SANTOS, R. P. (Org.). Memória social dos esportes – futebol e política: a construção de uma identidade nacional. V. 2. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2006. p. 107-132. ______. A política no jornalismo esportivo: o Jornal do Brasil e o Jornal dos Sports no dissídio esportivo dos anos 30. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 32., 2009, Curitiba. Anais... Curitiba, 2009(a). FRANCO JUNIOR, H. A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. FRANZINI, F. As raízes do país do futebol: estudos sobre a relação entre o futebol e a nacionalidade brasileira (1919-1940). 2000. Dissertação (Mestrado)–Departamento de História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. GOULART, S. Sobaverdadeoficial. Ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990. MALAIA, J. M. Revolução vascaína: a profissionalização do futebol e inserção socioeconômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). 2010. Tese (Doutorado em História)– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
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    130 História do Esporte MELO,V. A. Esporte e propaganda política: um estudo comparado dos governos de Vargas (1930-1945) e Perón (1946-1955). Materiales para la Historia del Deporte. VII. Espanha, Sevilha: Asociación Andaluza de Historia del Deporte, Universidad Pablo de Olavide, 2009. p. 29-58. NEGREIROS, P. L. A nação entra em campo: futebol nos anos 30 e 40. 1998. Tese (Doutorado)–Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1998. PARDINI, M. N. M. A narrativa da ordem e a voz da multidão: o futebol na imprensa durante o Estado Novo (1937-1945). 2009. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. PEREIRA, L. A. M. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. RODRIGUES FILHO, M. O negro no futebol brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Firmo, 1994. SANTOS NETO, J. M. Visão de jogo – Primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. SARMENTO, C. E. A regra do jogo: uma história institucional da CBF. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006. SOARES, J. M. A. Justiça desportiva: o Estado Novo entra em campo (1941–1945). Tese (Doutorado). Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. SOUZA,D.A.OBrasilentraemcampo:construçõesereconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008.
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    131 CAPÍTULO VIII ESPORTE PARATODOS E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1964-1985) Profa. Dra. Nailze Pereira de Azevêdo Pazin Profa. Ma. Denize Pereira de Azevêdo Freitas Introdução Neste capítulo, pretendemos problematizar como os corpos e as práticas esportivas que sobre eles incidem assumem significados normativos associados aos saberes que os definem produzindo discursos legitimadores de práticas cotidianas. Para a produção dos efeitos de verdades a respeito do esporte, esperava-se que este funcionasse como um mecanismo propagador dos benefícios e progressos que poderia trazer à nação e a seu povo. Uma estratégia empregada pelos manuais técnicos da campanha Esporte para Todos (EPT) no Brasil foi divulgar a positividade das práticas esportivas para convencer a população a aderir ao projeto governamental. Nesse sentido, os conceitos de disciplina e controle desenvolvidos por Michel Foucault serão de extrema importância para a análise das práticas que incidem sobre os corpos, nesse caso, o esporte, ainda que Foucault não tenha falado das práticas em si, mas da experiência e de sua relação com os campos de saber, com as normas de conduta e com as formas de subjetividade. O corpo útil, cuja noção foi desenvolvida pelo autor, produtivo e submisso não é obtido apenas por meio da violência, coerção ou ideologia. A sujeição pode dar-se sobre “elementos materiais que servem de pontos de apoio para as relações de poder e de saber, que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber” (FOUCAULT, 1987, p.27). Portanto, há um poder que pode ser tecnicamente pensado, ou seja, um saber que constitui a tecnologia política do corpo. E quanto mais multiformes e difusas se configuram essas relações de poder- saber, também mais multiforme e difusa é a instrumentalização. Por
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    132 História do Esporte isso,não devemos nos ater apenas a uma instituição de controle, mas a uma rede de micropoderes que são verificados pelos efeitos por eles induzidos. De acordo com Robert Van Krieken (1996), tanto em Michel Foucault como em Norbert Elias, apesar da diferença no tratamento do tema, o conceito de disciplina é central para os vários caminhos nos quais a história da subjetividade ocidental foi abordada desde o século XIX. Segundo o autor, ser moderno significa ser disciplinado, pelo Estado, pelos outros, mas, sobretudo, por nós mesmos, pois as crescentes objetivações e a disciplinarização da subjetividade a um ordenamento da alma sempre intensificado e conjugado com uma crescente individualização fez com que nos tornássemos modernos autocontrolados, administrados. Nesse sentido, o interesse de Foucault era analisar as técnicas e as estratégias que esse poder disciplinar operava, ou seja, “as técnicas do eu que nos torna e com as quais nos tornamos sujeitos modernos”. No terceiro volume de História da sexualidade, podemos perceber as várias formas de poder sobre o corpo problematizadas pelo autor: de início o poder a que ele se refere é o poder disciplinar do século XVII, centrado no corpo individual, que, ao fazer suas teias nos conventos, hospitais, quartéis, fábricas, escolas e presídios, utiliza técnicas para tornar os corpos dóceis e exerce a dominação por meio dos exercícios de adestramento. De acordo com Foucault, esse poder não precisa ser necessariamente repressivo, centrado no corpo individual, mas pode ser positivo, estimulante, tênue, tendo sua produção constituída no âmbito do desejo, ou seja, da incessante estimulação do autoconhecimento do indivíduo, por isso, a necessidade de uma vigilância constante de si mesmo. Nessa produção de saber sobre os corpos (biopoder), é que a disciplina exercida aproxima-se de um saber clínico que se esforça para medicalizar os comportamentos e desejos, esquadrinhando e rotulando a conduta individual, sempre em busca de algo que esse indivíduo, sozinho, não poderia entender ou identificar.
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    133 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira Ao ler asobras de Foucault, percebemos que “disciplina” tem um duplo significado. De um lado, implica uma forma de controle ou punição;deoutro,refere-seaumcorpoacadêmicodeconhecimentos. Tal questão pode ser aplicada aos saberes que legitimaram a política pública de massificação esportiva no Brasil na década de 1970, embora a relação que o esporte estabeleceu com a saúde no século XX não possa ser comparada a períodos anteriores. Nos novos moldes do conhecimento, foram estipulados julgamentos racionais sobre a “aptidão física” do brasileiro, produzindo regras e normatizações capazes de estabelecer verdades e desenvolver uma nova imagem de usos do corpo, da cidade, do tempo livre, e uma nova visão a respeito do esporte. Todas essas relações estabelecem uma percepção sobre o comportamento, suas alterações e a influência do poder como regulador das condutas individuais e coletivas. A teoria do processo civilizatório suscita que na história social europeia houve uma transformação gradual da personalidade, a partir de uma intensa dinâmica da coerção para a outocoerção, na qual a regulação do corpo humano, tanto quanto nossos impulsos, paixões e desejos foram submetidos a esse processo (KRIEKEN, 1996). Elias explica tal processo em relação a uma crescente monopolização da violência que acompanhou o processo de formação do Estado moderno. Para o autor, esse novo Estado tem como uma de suas características fundamentais o monopólio da violência física, dentro de uma esfera de legitimidade, ou seja, o controle da violência é um dos pilares da civilização, no entanto, Elias destaca que “esse movimento da civilização é um fenômeno não-planejado, casual, fruto de um processo que não podemos datar e muito menos prever um ponto final desse desenvolvimento das relações sociais” (ELIAS; DUNING, 1992, p.185). Desse modo, não existe civilização pronta e acabada, mas em contínua mudança e construção/desconstrução, num movimento constante de recuo e avanço, progressos e retrocessos.
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    134 História do Esporte Umdoselementosessenciaisdateoriadosprocessosdecivilização desenvolvidospor Elias constitui-se em outra teoria, a teoria do controle das emoções (impulsos e paixões), que poderá nos ajudar a compreender a constituição de uma pedagogia moral e do corpo presente na campanha Esporte para todos no Brasil. Será que essa teoria está presente na concepção de educação e formação integral do indivíduo nos livros e manuais técnicos do EPT brasileiro? Se ela estiver presente, como se manifesta? Movimento Internacional Logo após os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, surgiu na Europa um movimento internacional para reavaliar as práticas esportivas de massa. Nesse mesmo ano, foi lançado o Manifesto mundial do esporte pelo CIEPS-UNESCO. O documento denunciava o excessivo predomínio do esporte de alto rendimento, voltado apenas para os jogos olímpicos em contraposição ao esporte de massa e defendia a implantação do modelo esportivo ou de lazer que atendesse às pessoas comuns e ao sistema escolar. Segundo o Manifesto, o esporte era para a sociedade uma medida contra “os riscos biológicos provocados pelo avanço tecnológico”. O Conselho da Europa foi e é a organização internacional responsável por divulgar os ideais do Desporto para Todos em diversos países. A organização foi fundada em maio de 1949, após o final da Segunda Guerra Mundial. Dez países aderiram ao Conselho: Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Suécia e Reino Unido. A sede da organização foi fixada em Estrasburgo, cidade símbolo dos dois conflitos mundiais que, na primeira metade do século XX, assolaram o continente europeu. O objetivo traçado para o Conselho da Europa foi estabelecer regras para uma colaboração militar, econômica, social e cultural, realizando uma união mais estreita entre os seus membros.1 1 Para saber mais, ver: MINISTÉRIO da Educação [Portugal]. op. cit., p. 17.
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    135 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira As questões relacionadasàs práticas desportivas continuaram sendo debatidas na Convenção Cultural Europeia, realizada em 1954. Destinada a reunir vários Estados-Nação com o propósito de cooperar nos domínios da cultura e da educação, a convenção interessou-se em tornar regular a Educação Física para a juventude, tanto quanto o desporto, os lazeres, a história, o patrimônio cultural e a criação artística. Seu objetivo era contribuir no sentido de “forjar uma personalidade europeia rica da diversidade de todas as suas tradições”. 2 Logo depois, foi criado, na década de 1960, o comitê de peritos culturais, cuja responsabilidade seria a Educação Física e Desporto. Nesse sentido, a ideia de que o esporte deveria ser um meio de formação e educação do corpo, da mente e do espírito ganhava cada vez mais força. Em 1966, após os jogos olímpicos de Tóquio, o conceito Esporte paraTodos(EPT)foiformuladopeloConselhodaEuropa.Aintenção era a de massificar o esporte, promovê-lo numa perspectiva de educação permanente e de desenvolvimento cultural. Tal perspectiva transformou-se no ano seguinte, na Noruega, num movimento esportivo de incentivo à prática de atividade física para sedentários. O idealizador do programa, o norueguês Per Hauge-Moe, com o apoio de empresas privadas, lançou uma campanha denominada TRIMM, que, utilizando material de marketing, procurava instigar os sedentários à prática da atividade física. O programa foi inicialmente planejado para um período de cinco anos (1967-1972) e posteriormente para dez anos (1972-1982). Em 1967, em Ruit, na então Alemanha Ocidental, representantes da Noruega, Suécia, Bélgica e do próprio país-sede, motivados pela experiência norueguesa, discutiram pela primeira vez as possibilidades de implantação de programas esportivos em massa. Porém, era importante “arranjar fundos e criar facilidades para toda a população”. A partir daquele encontro, o movimento EPT expandiu- se pela Europa, atingindo também os Estados Unidos, Canadá e diversos países da América Latina. 2 SISTEMA europeu de proteção dos direitos humanos. Conselho da Europa. Disponível em: <http:// www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-historia.html>. Acesso em: 12 ago. 2013.
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    136 História do Esporte Acampanha europeia buscava estender a prática esportiva como atividade educativa e cultural melhorando a qualidade de vida das pessoas comuns que não estivessem envolvidas com o esporte de alto rendimento, o esporte olímpico. Em 1975, com o crescimento do movimento, o Conselho da Europa lançou a Carta Europeia de Esporte para Todos, documento decisivo para que as instituições sociais reconhecessem a importância das atividades físicas. Em três anos de campanha (1970-1973), noventa e três por cento da população alemã já conhecia o movimento esportivo. Partindo de estudos sobre os custos das doenças cardiovasculares ocasionadas pela falta de exercícios físicos, a campanha alemã centrou sua ação na prática preventiva do esporte e em sua importância no mundo do trabalho. As pesquisas realizadas pelo Instituto de Medicina Esportiva, da Universidade de Berlim, influenciaram idealizadores de campanhas de massificação esportiva em vários países, entre eles o Brasil. Jürgen Palm foi um dos maiores divulgadores das ideias do Esporte para Todos (EPT) na América Latina. Sua participação nas Jornadas Internacionales de estudio sobre el Deporte, realizadas em 1973 em Buenos Aires, foi decisiva na organização das campanhas no Brasil e na Argentina. Segundo Palm, a inatividade física deve ser combatida com a mesma intensidade com que se combate o analfabetismo. O desafio das décadas de 1960 e 1970 no Brasil era transformar em ação o grande sonho de progresso dos corpos e da saúde. Para tanto, os governos ditatoriais produziram inúmeros diagnósticos que se baseavam em diferentes tipos de estudos e análises. No caso do esporte, foi publicado, em 1971, o Diagnóstico da Educação Física e desporto no Brasil. Uma vez detectados os problemas, era necessário difundir a ideia, tão comum ainda hoje, de que o esporte educa, combate a criminalidade e aumenta a autoestima da nação. Assim, era necessário, em primeiro lugar, avaliar o esporte, sublinhar seu crescimento constante e privilegiar sistematicamente as aparências e aptidões, até transformá-lo em valor coletivo, pois desse modo a massificação das práticas esportivas ganharia força.
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    137 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira O que importa,enfim, é perceber como o esporte e as políticas públicas esportivas foram constituindo-se objeto de investimento dos governos, o que, naquele contexto, era um modo também de confirmar força e progresso. Para os idealizadores da campanha de massificação esportiva, paralelamente aos jogos olímpicos, estava desenvolvendo-se um segundo movimento internacional, haja vista que diversos países estavam colocando “o Esporte para Todos em seus planos nacionais”. A Inglaterra, “mãe do esporte moderno, em 1972, declarou o Esporte para Todos como um programa nacional” (PALM, 1977, p.29). No entanto, conforme Vigarello (2008), as práticas esportivas que ocupam um espaço intermediário no processo de construção do ideário de uma sociedade moderna acabam expondo justamente suas contradições. Se por um lado combate a inatividade física provocada por um mundo cada vez mais tecnológico, por outro, regula os “problemas originados pelo aumento das horas de lazer”. Nesse sentido, na tentativa de transformar o Esporte para Todos em o “novo humanismo” da sociedade tecnológica, seus idealizadores esforçaram-se por torná-lo habitus (BOURDIEU, 2007) na cidade e no campo. A ambição de seus pesquisadores era prescrever e recomendarpráticasesportivasasmaisdiversasedifusas,demodoque pudessem disseminar-se rápida e amplamente no tecido social. Nesse mesmo congresso foi definida para 1896, em Atenas, a realização da primeira edição dos Jogos Olímpicos. O projeto de Coubertin buscou instituir um conjunto de ideias denominado “ideário olímpico” ou “olimpismo”, que se tornou a base para a elaboração da carta olímpica, e que estabelecia como principais objetivos do Comitê Olímpico Internacional promover o desenvolvimento das qualidades físicas e morais que são a base do esporte; educar a juventude através do espírito esportivo para um melhor entendimento e amizade entre os povos, ajudando a construir um mundo melhor e mais pacífico; espalhar os princípios olímpicos pelo mundo, criando a amizade internacional; unir os atletas do mundo a cada quatro anos em um grande festival esportivo, Jogos Olímpicos (BINDER, 2001).
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    138 História do Esporte ConformeCarmen Soares, o século XIX inaugura uma forma de pensar o corpo e, sobretudo, uma educação do corpo a partir de parâmetros possíveis de serem planejados, sistematizados, cujos resultados poderiam ser mensurados e comparados. Talvez a questão mais importante não seja encontrar no idealismo coubertiniano as “raízes” do Esporte para Todos, mas o seu contrário, ou seja, a maneira pela qual esse “mito fundador” (CHAUÍ, 2004) aparece em suas campanhas. União e sacralização A política de massificação esportiva da década de 1970, além de garantir a melhoria da saúde do povo, asseguraria o bom desempenho da vida social, ao ensinar um conjunto de regras necessárias a esse propósito. Assim, os programas esportivos para a população passam a representar a significação da civilidade a partir de uma vigorosa valorização de regras de boa conduta, auxiliando a regulação dos gestos necessária à preservação da sociedade e manutenção da ordem. O mesmo editorial é emblemático do tipo de observações sobre o “valor educativo da atividade física” (CHAUÍ, 2004). A prática esportiva é justificada como uma espécie de humanismo purificador do corpo e da alma e devia fazer parte integrante de todo sistema educativo para a expansão do homem e para sua melhor integração social, e ainda, A política pública esportiva brasileira foi percebida na década de 1970 como uma esfera da cultura capaz não apenas de dar visibilidade aos feitos do governo militar, mas como prática capaz de educar um tipo de sensibilidade. Tal perspectiva torna visível a preocupação com a remodelação dos hábitos sociais, seguidos da transformação dos comportamentos populares. Nesse processo, constituiu-se uma visão do corpo voltado para o aperfeiçoamento constante e progressivo a fim de atingir seu melhor desempenho. Mas o que estava em jogo era a construção de um novo homem que pudesse decifrar as fraquezas e vontades de seu próprio corpo e corrigi-las a partir das habilidades e ensinamentos adquiridos via práticas esportivas.
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    139 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira Nesse sentido, paradesfazer-se de antigos rótulos que conceituavam a Educação Física, tais como ginástica, os elaboradores do Diagnóstico de Educação Física/Desporto no Brasil insistiam que o desenvolvimento de uma política nacional para o setor deveria ser planejado para um período de longo prazo. Para tanto, os diferentes governos incentivaram professores, atletas, dirigentes esportivos e líderes comunitários a relatar ao Departamento de Educação Física e Desporto do Ministério da Educação e Cultura (DED/MEC) as iniciativas e problemas de suas regiões no âmbito esportivo. Para isso, foram utilizadas as seções de cartas dos periódicos publicados pelo DED/MEC - as revistas: Brasileira de Educação Física, Podium, Comunidade Esportiva, Esporte e Educação, entre outros - como um elo entre a comunidade e o gestor público (OLIVEIRA, 2009). A constituição desse elo entre os programas governamentais e a comunidade anunciava também o rompimento com a “desordem” relacionada à falta de planejamento, segundo o Diagnóstico, prática comum no período anterior à “revolução”. Mas tinha-se também o objetivo de tornar o indivíduo, o responsável pelo seu bem-estar, e o esporte seria o elemento capaz de mobilizar a nação em torno desse bem comum, a saúde de seus cidadãos. No entanto, para além de um dispositivo de formação de uma população forte e saudável em prol do desenvolvimento do país, as práticas esportivas faziam parte também de eixos temáticos da indústria cultural que as viam como um mercado promissor e lucrativo. Com o fim do milagre econômico, o presidente general Ernesto Geisel, enfrentou períodos de graves crises como a do petróleo e as altas taxas de inflação. E mesmo investindo mais recursos em educação do que os governos anteriores, sua administração não conseguiu universalizar o então chamado ensino de primeiro grau e implantar em escala suficiente o ensino profissional. Em meio às incertezas sobre os rumos da distensão política3 , evidenciada pelo tom pessimista que marcaram editoriais e artigos da grande 3 A partir de 1974, lideres do governo, como o general Golbery do Couto e Silva, começaram a articular o processo de reconduzir gradualmente as instituições políticas ao Estado de Direito e à democracia. Tal processo foi denominado de distensão no governo Ernesto Geisel (1974-1979) e abertura no governo de João Batista Figueiredo (1979-1985).
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    140 História do Esporte imprensanacional naquele momento, e com o agravamento da crise econômica com taxa de inflação situada em 42%, em fins de 1978, e incrível processo de concentração de renda, os programas sociais de seu governo irão utilizar as imagens relacionadas ao passado imediato de grande crescimento econômico como ponto de apoio para manutenção da legitimidade no momento de crise. Dentro dessa nova conjuntura econômica e social, uma das principais armas do governo Geisel foi o culto ao otimismo. Em 1976, a Assessoria de Relações Públicas (ARP) do governo anunciava que “depois das eleições de novembro virá uma campanha de paz e concórdia, com o objetivo de acabar com possíveis focos de tensão que venham a surgir no debate político-eleitoral” (FICO, 1997, p.127). Seguindo essa orientação na propaganda produzida para a campanha Esporte Para Todos (EPT), a prática esportiva aparecia não apenas como valorização da vida saudável, mas, especialmente, como visão otimista do mundo. A ideia do brasileiro solidário, irmanado em torno de objetivos comuns perpassa toda a campanha Esporte Para Todos no Brasil. Essa busca do amor, da união era utilizada como estratégia para mobilizar a comunidade em torno das ações esportivas. Portanto, era preciso confiar no governo para retomarmos o rumo do desenvolvimento, afinal, “Ninguém segura este país” e “Este é um país que vai pra frente” são dois de tantos slogans divulgados pela Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) e pela sua sucessora, Assessoria de Relações Públicas (ARP). Se no período do milagre econômico brasileiro, o esporte para alguns teria a capacidade de canalizar a energia da juventude para o crescimento econômico do país, a partir de 1974, e de maneira acentuada de 1977 em diante, seu discurso tornava-se mais moralizador, fundamentado emsentimentoscomoamoràfamília,amoràcomunidade,esperança, união, natureza, congraçamento, coesão nacional. Era preciso ter fé, otimismo e criatividade para combater a crise e a escassez de recursos, sobretudo, porque as dificuldades do período contrastavam com a euforia do período anterior.
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    141 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira O Movimento Brasileirode Alfabetização e o EPT O Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) do governo Geisel não conseguiu universalizar o então chamado ensino de primeiro grau e implantar em escala suficiente o ensino profissional, mesmo tendo investido mais recursos em educação do que os governos anteriores. A administração Geisel fixou como meta uma taxa de crescimento de 10% ao ano para ser alcançada mediante investimentos na indústria de bens duráveis, pois acreditavam que a mudança de ênfase sobre os bens duráveis acelerariam o crescimento, melhorando a distribuição de renda, mantendo os altos índices de ingresso de capital no país (SKIDIMORE, 1988). A educação, nesse contexto, continuava sendo vista como instrumento de consolidação do modelo econômico, e o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) tinha ainda sua força como programa político e ideológico no governo Geisel, traduzida na afirmação contida no projeto de apoio do Brasil a Guiné-Bissau no campo da alfabetização em 1976. “O MOBRAL é um projeto criado pela Revolução e com ela identificado” (BOMENY, ANO???, p.101).Criado pela Lei n.º 5.379, de 15 de dezembro de 1967, o novo órgão adotou uma concepção tecnicista, uma vez que nesse período valorizavam-se os princípios de racionalidade, eficácia e produtividade. Os dirigentes do MOBRAL pretendiam coordenar e fiscalizar o desenvolvimentocomunitárionopaís.Nessesentido,foidesenvolvido programassociaisdedimensãonacionalqueenvolvesseacomunidade local na implantação e desenvolvimento dos programas. Assim, para o Programa de Educação Comunitária para a Saúde, foi feita uma espécie de cartilha chamada de Documento sobre o Conteúdo Básico de Educação Sanitária para o MOBRAL, cujo objetivo era “propiciar a melhoria das condições de saúde das populações residentes na área de atuação do programa, principalmente as mais carenciadas, através de trabalho de natureza educacional” (CORRÊA, 1979, p.314).
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    142 História do Esporte Contudo,esses programas possuíam uma característica comum no sentido de elaborar estratégias para que a comunidade resolvesse seus problemas. O setor esportivo foi tratado de forma tecnocrática como os demais setores estatais nesse período. Os militares ocuparam os principais postos dos setores esportivos, desde o Ministério de Educação e Cultura ao Conselho Nacional de Desporto (CND) e Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Em 1975, foi iniciado o Programa Diversificado de Ação Comunitária (PRODAC), sob a responsabilidade da gerência pedagógica do MOBRAL. O PRODAC era dividido em oito subprogramas, dos quais o esporte fazia parte. O Programa era desenvolvido em três etapas: mobilização, organização de grupos e manutenção do trabalho. Nesse sentido, mobilizar para Arlindo Lopes Corrêa consistia em convocar a “população para a participação em uma atividade onde a própria comunidade planeja o que irá executar, após levantar as prioridades em relação às suas necessidades e interesses” (CORRÊA, 1979, p.340). De acordo com Arlindo Lopes Corrêa, organizar a comunidade dizia respeito à formação de grupos que iriam trabalhar com base no diagnóstico realizado, e a manutenção do programa fazia com que, periodicamente, os grupos se reunissem “para discutir estratégias, dividir tarefas, responsabilidades, avaliar e, se necessário, fazer reformulações no plano” (CORRÊA, 1979, p.342). Portanto, os programas sociais do governo militar tinham quase sempre o MOBRAL como principal órgão divulgador, e o Esporte para Todos foi mais um deles. Segundo Arlindo Lopes Corrêa, em 1978, o MOBRAL já havia atendido “quase 2 milhões de pessoas, atingindo um total de 2.251 municípios em todo o país.” E todo esse esforço só foi possível porque o MOBRAL era “uma organização já estruturada e com significativa experiência a serviço da política social do governo e voltada para a efetiva promoção do homem brasileiro” (CORRÊA, 1979, p.471).
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    143 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira O esporte ea promoção do homem brasileiro Assim, “a promoção do homem brasileiro” definiu-se em torno de um corpo ajustado às demandas do sistema capitalista. O investimento no lazer esportivo, além de promover certo uso do tempo livre, também exibia o próprio corpo, belo, saudável, jovem e ágil. Do ponto de vista do governo militar, era preciso tornar o trabalhador mais saudável e produtivo, e o esporte poderia canalizar a energia juvenil para o crescimento econômico da nação. Diante da crise, os programas sociais do governo Geisel tinham como meta buscar aceitabilidade para suas ações por meio da argumentação de que havia a necessidade de se alcançar um desenvolvimento integral e humanista para solução dos problemas sociais. Desde o início dos anos 1970, o Conselho Federal de Educação (CFE) concebia a Educação Física como uma atividade formadora do “corpo e mente dos cidadãos”. A preocupação com a juventude, a disciplina e a consolidação de valores morais marcarão as políticas públicas esportivas das décadas de 1970-1980. Nesse sentido, qualquer movimento contrário, ou mesmo avesso à cultura oficial, era condenado e associado a imagens de degeneração ou de loucura. Contudo, se por um lado os militares procuravam inibir o pensamento e inviabilizar os encontros, principalmente daqueles considerados uma “ameaça” para a moral e os “bons costumes”, de outro, a modernização, mesmo que autoritária, fazia surgir novos espaços de sociabilidade, cultura e lazer. O discurso otimista em relação à Educação Física e o desporto, de forma geral valorizavam a população como um bem, como capital, a principal riqueza da nação, entretanto, era alvo também de investimento a formação de sensibilidades mais adequadas ao regime e consideradas indispensáveis à condução correta de uma vida em comunidade. No final da década de 1970 e início dos 80, a estratégia psicossocial do regime continuava sua luta incessante para que houvesse uma internalização dos pressupostos básicos da ordem social almejada desde 1964. Se por um lado a campanha Esporte Para Todos foi
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    144 História do Esporte atentativa e ambição de seus idealizadores de promover corpos saudáveis e eficientes, aumentando sua aptidão física, por outro, foi também a tentativa de produzir um novo éthos da felicidade, da união, do congraçamento comunitário e do amor, contra toda forma de pessimismo. Ao seu redor é possível perceber as tensões políticas, econômicas e culturais que marcaram o período. Neste sentido, acredita-se que esta é apenas uma das várias possibilidades de estudo que esse tema pode vir a contemplar, pois este trabalho pretendeu ser uma contribuição para o entendimento de tão complexo processo, procurando colaborar com a reflexão e o debate no âmbito da História da Educação Física, levando em conta as motivações menos evidentes na implantação de políticas públicas (em seus conteúdos e métodos) e a produção de diversas pedagogias que tomam por base preceitos científicos da Educação Física para legitimar projetos de intervenção corporal. Referências BINDER, D. “Olimpism” revisited as context for global education: Implications for Physical Education. Quest, Estados Unidos, n. 53, p. 14-34, 2001. BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. BOMENY, H. Educação e cultura no arquivo Geisel. In: CASTRO, C.; D’ARAUJO, M. C. (Orgs.). Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 21-25, 2002. CORRÊA, A. L. Educação de massa e ação comunitária. Rio de Janeiro: AGGS/MOBRAL, 1979.
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    145 Esporteparatodoseaeducaçãodossentidosnaditaduracivil-militarbrasileira CHAUÍ, M. Brasil:mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004. ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. FICO, C. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. KRIEKEN, R. V. A organização da alma: Elias e Foucault sobre a disciplina do eu. Plural: revista de sociologia da USP, v. 3, p.153-180, 1996. PALM, J. A visão e a realidade. Revista brasileira de Educação Física e desporto, v.9, n.35, p.29, 1977. VIGARELLO, G. Estádios: o espetáculo esportivo das arquibancadas às telas. In: COURTINE, J.; VIGARELLO, G. (Org.). História do Corpo: As mutações do Olhar: O século XX. Petrópolis: Vozes, p. 102-107, 2008 (v. 3.). OLIVEIRA, M. A. T. O esporte em tempos de exceção: sob a égide da Ditadura (1963-1985). In: PRIORE, M. et al. (Org.). História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais. São Paulo: UNESP, p. 82-86, 2009. SKIDIMORE, T. Brasil de Castelo a Tancredo 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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    147 CAPÍTULO IX JEQUIÉ TÊNISCLUBE: INSPIRADOR DA MODERNIDADE ESPORTIVA LOCAL1 Prof. Dr. Roberto Gondim Pires Prof. Dr. Cleber Augusto Gonçalves Dias Marcos Cesar Meira Leite Introdução Tão valioso quanto saber a história do mundo e do Brasil é conhecer a história do bairro e da cidade em que vivo: como ele se formou, por que cresceu, quem mais se dedicou a ela, quais as atividades do seu povo, ontem e hoje (Chico de Alencar). A importância dos clubes como um ambiente de construção da identidade cultural, econômica e sócio esportivo do homem e da mulherbrasileirospodeserobservadadesdeatransiçãodoséculoXIX ao século XX. Isso porque as manifestações ocorridas nesse período já eram carregadas de tradições entre os clubes luzo brasileiros com o remo e os alemães com o seu método ginástico. Felizmente por associativismo acabaram rompendo com suas tradições restritas e reconstruindo novas identidades culturais e esportivas (SILVA et al 2012). Linhares (2009) tendo como pano de fundo a ideia da modernidadeesuasinterpretaçõesnocontextonacional,compreende o processo de escolarização das práticas esportivas em um tempo no qual se apostava na eficiência da escola como uma possibilidade de organização e disciplinarização da vida social. A autora aponta o esporte como uma estratégia importante para pensar o processo civilizador da sociedade brasileira de então. “energizar o caráter” – “Assim, o esporte passa a ser lido como uma prática que poderia integrar o projeto brasileiro de modernidade, dada a sua capacidade 1 Esse texto é versão ampliada de artigo publicado na Revista Eletrônica Discente de História intitulado “Jequié Tênis Clube: inspirador da modernidade esportiva local”.
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    148 História do Esporte depotencializar a máquina humana e revesti-la de um caráter forte, aguerrido e cívico” (MACEDO, 2012; GOELLNER, 2012, p.225) Atualmente observa-se poucas descrições na literatura sobre as representações das entidades esportivas como um lócus de memória principalmente as que se manifestaram entre as décadas de 1930 e 1950. Esse período marca um importante processo de desenvolvimento do estado brasileiro em geral, e do esporte em particular como a regulamentação dos clubes (SILVA et al 2012; CUNHA, 2010; MEZZADRI, 2003). Pensar o “Jequié Tênis Clube” enquanto local de memórias de práticas esportivas e educacionais, produtor, portanto, de uma dada educação do corpo no espaço de tal cidade é sem dúvida, assumir a percepção que a abordagem dos estudos em Cultura, memória e cidade podem nos ajudar a perceber a importância de refletir os processos que envolvem a Memória do Esporte e o Jequié Tênis Clube na sua transitoriedade, reelaborando os sentidos a eles dispensados ao longo da história. Chartier (1990, p.20) expõe-nos uma das funções da representação como “exibição de uma presença, como apresentação pública de algo” e é nesse sentido que o JTC com suas práticas e representações, produziu sentidos e significados de uma lógica inerente ao contexto social em que foram produzidas. O conhecimento e o reconhecimento dos atores dessa época podem não apenas nos fazer compreender o movimento esportivo desse período, mas também pode nos dar indícios em um âmbito geral das transformações políticas da cidade de Jequié, pois como afirma Mezzadri (2003, p. 02) “existiu uma aproximação entre o poder nacional e a política administrativa esportiva, reproduzindo-se na relação autoritária e a ação centralizadora, administrativa efetivada através da regulamentação e de projetos para a área do esporte”. Foram, nesse sentido, múltiplas as “frentes” assumidas neste estudo, e, pensando, sobretudo, no que vem sendo produzido, sobre a História do Esporte no campo da historiografia no Brasil que esta pesquisa delimitou seus fazeres a partir das metodologias da história. Isso significa recorrer aos acervos, bem como problematizá-los de
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    149 Jequié tênis clube formaaconstituirarticulaçãoentreoobjetoestudadoeasperspectivas dahistória cultural como possibilidade de diálogo. Certau (2002) diz que em história tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outras maneiras. Organizá-los de outros modos significa dar ao objeto de pesquisa outras funções e significados. Um dos desafios da história cultural é narrar às representações do passado e suas versões, contando com a sensibilidade e o imaginário de que a pesquisa não pode ser apresentada enquanto verdade absoluta, mas enquanto representações dessa realidade. Lidamos com o desafio de entender as representações do esporte no Jequié Tênis Clube para pensá-lo enquanto local de memória. A riqueza de estudar e escrever a história de um determinado acontecimento está na possibilidade criativa, investigatória e no olhar não-convencional da linearidade e das fontes tradicionais. A sensibilidade do pesquisador e o seu referencial teórico é que vão direcionar várias perspectivas de um texto mais comprometido com o contexto social, econômico e cultural da época em pauta. Fazer históriadahistóriaéumaarteeumgrandedesafio,poisopesquisador terá que se comprometer com o estudo do ser humano no seu tempo, entender as suas representações de mundo, verificar a sua cultura, além de levantar os fatos e as obras de um tempo que não viveu, mas que deixou seus vestígios (BURKE, 2005) Contexto Local e Esportivo O município de Jequié, cidade baiana, situada na região do sudoeste do Estado da Bahia, distante 360 Km de Salvador. Tem uma área de 3.035,423 Km² formada pela área urbana e por distritos na zona rural. Estima-se a população, segundo dados do IBGE, em 2010 de 151.820 habitantes. Na década 1930, período de criação do JTC, não houve recenseamento no País, mas uma estimativa feita em 1928 dava ao município uma população de 49.603 habitantes, dos quais 28.115 viviam na sede (ARAÚJO, 1997). A taxa de urbanização que
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    150 História do Esporte erade 64,63% em 1970, cresceu para 80,73% em 1991 e hoje aparece com 88,52%, muito maior do que a taxa média do estado, que é de 67,12%. Isso significa dizer que até a primeira metade do século XX, o município era essencialmente rural. Na década de 1940 essa população era estimada em 78%. Outros dados socioeconômicos, contudo também são interessantes para refletir sobre o estado de empobrecimento daquele que já foi o quarto mais importante município da Bahia e encontra-se há mais de três décadas numa estagnação econômica. O IDH de Jequié é de 0,694, um índice de desenvolvimento bastante baixo. Distante do IDH do estado da Bahia, que é de 0,742 e mais distante ainda do IDH do Brasil, que é de 0,813. O JTC é criado na década de 1930, período que vários eventos marcaram a História de Jequié, merecendo destaque: a criação do “Ginásio de Jequié”; o aparecimento de novas entidades, a “Liga Jequieense de Desporto Terrestre”, o “Rotary Club de Jequié, a “Associação Comercial de Jequié”, foi inaugurado o prédio do Grupo escolar Castro Alves; foi inaugurada a ponte Teotônio Sampaio que ligaocentrodeJequiéaobairromandacaru;foiinauguradooHospital Regional Prado Valadares (HGPV); foi inaugurado o Cine teatro de Jequié; foi realizado o Congresso dos Estudantes Universitário, em 21 a 24 de fevereiro de 1936. Governava o Município no período de Criação do JTC prefeitos nomeados: 1931-1932 Tenente Alcino Ávidos, 1932-1933 José Americano da Costa – Gregório Celli de Freitas. Neste período um jovem visionário italiano muito investiu no futuro dessa cidade, Vicente Grillo, considerado por muitos, um dos maiores benemérito de Jequié, ele doou terrenos para construção: HGPV, Catedral de Santo Antônio, Cemitério São João Batista, aeroporto que leva seu nome, centro de abastecimento e o JTC (Rodrigues, 2012). Em que pese os ideários de modernidade presente do período em tela, responsável pela alteração da fisionomia de algumas cidades, sobretudo do Sul e Sudeste do Brasil, com obras de saneamento, alargamento de ruas, construção de prédios públicos e construção
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    151 Jequié tênis clube depraças para fins de lazer da população, no nordeste brasileiro, sobretudo no interior dos Estados, não se via grandes alterações nas estruturas arquitetônicas nas cidades, mas, uma grande curiosidade, criação de clubes esportivos, e é com essa curiosidade e particularidades que pretendemos revelar memórias do esporte de Jequié a partir das ações do JTC. OssignificadosvinculadosaosesportesemJequié,particularmente nocontextodaspráticasdesenvolvidasnoJequiéTênisClube,primeira e por muito tempo principal instituição esportiva da cidade, foram bastante representativas para a edificação de memórias culturais e políticas da cidade (PIRES; DIAS; LEITE, 2014). Certamente, parte das transformações que se testemunhavam em Jequié em princípios do século XX disseram respeito também aos esportes. Articulado a todo esse processo de mudanças, a prática do futebol registrava-se em Jequié ao menos desde a década de 1920. Nessa época, nos períodos de seca, trechos do rio de Contas transformavam-se em espaços improvisados para as primeiras partidas de futebol da região, os chamados “babas”. Os mais famosos e prestigiados eram os babas do Mandão e principalmente os do Gereré – entusiasta do esporte que organizava partidas no local. Nas palavras de Waldemir Vidal, em entrevista concedida, “o baba do Gereré se caracterizava pelo clima festivo, ritmado por charangas, constituindo-se num verdadeiro local de lazer aos domingos para os desportistas e apreciadores do esporte da cidade de Jequié”. Pouco depois, com apoio e incentivo de Aníbal Brito, gerente da agência do Banco do Brasil inaugurada em 1923, o futebol em Jequié teria ganhado “novo impulso”, conforme Araújo (1997), sobretudo por causa da realização de campeonatos. Para além do futebol, em 1932, um grupo de amigos resolvera criar um clube de tênis. Assim, em cinco de novembro daquele ano nascia o Bahiano Tênis Club de Jequié, situado, de início, entre as ruas Silva Jardim e Dois de Julho. Em seguida o nome da instituição foi mudado para Clube Bahiano de Tennis de Jequié, e em 1933, assumiu- se, em caráter definitivo, o nome Jequié Tennis Clube (RODRIGUES, 2012).
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    152 História do Esporte Naprimeira diretoria do novo clube encontravam-se pessoas como Milton Couto Muniz (presidente) e Magno Silva (secretário), ambos representantes de elite local. Magno Silva nascera em 1908. Em Jequié, além da participação na articulação para criação de um clube esportivo, esteve entre os fundadores do Lyons Clube e do Sindicato Rural da cidade, de acordo com seu filho, Eduardo Magno Senhorinho, em entrevista concedida. Por volta da segunda metade dos anos 1920, mudara-se para Salvador, para dar continuidade aos estudos. Foi aí, provavelmente, que conheceu e se interessou pelo tênis. A passagem estudantil por Salvador parece ter sido bastante importante para a constituição dos gostos e predileções esportivas de alguns jequieenses. Milton Muniz, por exemplo, que também estudara em Salvador, fora sócio do Bahiano de Tênis durante sua estadia na capital baiana, um dos mais tradicionais clubes de tênis à época, onde provavelmente adquirira o novo hábito. Grupo de tenistas do JTC em 1937 Fonte: Acervo do Jequié Tênis Clube. Autor desconhecido (s/d).
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    153 Jequié tênis clube Desdeos fins do século XIX, Salvador conhecia um progressivo entusiasmo com práticas de esportes e de exercícios físicos em geral. Estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia envolviam-se crescentemente, não apenas com a prática, mas também com a defesa da difusão regular de esportes e exercícios entre toda a população. Fora precisamente essa ambiência de excitabilidade esportiva, que alguns cidadãos jequieenses encontraram em Salvador quando da sua passagem pela cidade para a realização de estudos ou outras finalidades. Para além de universitários formados em Salvador, outros personagens colaboraram ativamente para disseminação de esportes em Jequié através, sobretudo, de atuações no clube que se formara na cidade. O capitão Napoleão, por exemplo, chefe da Circunscrição do Tiro de Guerra em Jequié, logo assumiu a direção de esportes do clube recém fundado. Conhecedor de métodos de ginástica e educação física, utilizados em suas instruções militares, Napoleão transferiu parte desses conhecimentos na preparação de atletas do clube, o que “acabou aperfeiçoando a prática desportiva na cidade”, segundo memórias de Aníbal Brito (ARAUJO, 1997). No período de formação do Jequié Tênis Clube, preocupações com a oferta de esportes e outras formas de exercício físico intensificavam-se em todo o estado da Bahia. Em 1927, o governador Francisco Marques de Góes Calmon (1927), relatava que “a educação physica, também, tem tido visível desenvolvimento. Por toda a parte, até em classes isoladas de lugares longínquos e afastados, tem ido a insistência pela gymnastica e pelos jogos, fazendo-se, hoje, de modo geral, em nossas escolas, educação physica” (p. 77-8). Em princípios da década de 1940, no mesmo sentido, notar-se-iam já a criação das primeiras iniciativas formais e sistemáticas para formação de professores de educação física na Bahia (PIRES, 2008). Nesse contexto, enfim, a prática de esportes se intensificou paulatina e progressivamente também em Jequié. Prova disso é a criação da Liga Jequieense de Esportes Terrestres, na década de 1940, que segundo avaliação de Inaldo Sardinha, em entrevista concedida, “alavancou o esporte [em Jequié]”, sobretudo através da organização
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    154 História do Esporte decampeonatos no antigo campo do Jequiezinho, depois estádio Aníbal Brito. Especificamente no Jequié Tênis Clube, testemunha-se a partir dessa época progressiva ampliação do repertório de modalidades oferecidas aos seus sócios. Daí em diante, além do tênis, primeira e principal modalidade desenvolvida pelo clube entre as décadas de 1930 e 1940, notar-se-ia empenho para a promoção de outros esportes. A partir da década de 1950, a diretoria do clube reformou suas quadras de saibro, visando adequá-las ao basquete. Ao mesmo tempo, Ubirajara Coelho Lima, filho de um abastado pecuarista e agricultor de Jequié, apresentava o futebol de salão para alguns frequentadores do clube. Ubirajara era estudante da Escola da Polícia Militar, em Salvador, onde aprendera o jogo. Segundo se dizia, além da Escola Militar, só o Clube Bahiano de Tênis, também em Salvador, praticava a modalidade. Milton Rabello, presidente do Jequié Tênis Clube à época, apoiou prontamente a nova modalidade. De Salvador, do Bahiano de Tênis, mais especificamente, onde já havia sido sócio, além de ser amigo do presidente do clube à época, um de seus antigos colegas de Faculdade, Rabello mandou trazerem regras e bolas do novo esporte. Na mesma época, jovens de outros estados, com envolvimento anterior com o futebol de salão, logo passaram a participar dos jogos em Jequié. Tudo isso, ao lado de algumas boas atuações em campeonatos esportivos, ajudou a sedimentar a noção de que o Jequié Tênis Clube fora uma instituição responsável pelo aumento de visibilidade, consagração e reconhecimento da cidade na Bahia e mesmo no Brasil. Idealizado com motivações primeiramente esportivas, logo o Jequié Tennis Clube tornou-se local preferido para banquetes e reuniões convocadas para debater assuntos de interesses da comunidade – ou de parte dela pelo menos: ponto obrigatório de lazer e sociabilidade dos ricos da cidade. De certo modo, desde sua fundação, podia-se notar preocupações entre os principais protagonistas da iniciativa em angariar apoiadores e conquistar visibilidade. Logo após a criação formal do clube, carta de Magno Silva, eleito secretário da primeira
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    155 Jequié tênis clube direção,informava ao diretor do jornal Correio de Jequié a fundação do Club Bahiano de Tennis.2 JTC - Social- Político... Podemos supor que as atividades promovidas inicialmente pelo JTC não aconteceram exatamente para os fins que foram idealizadas, qual seja, a prática do Tênis, destarte, Araújo (1997) revela que o JTC, no dizer de Milton Rabelo3 , se converteu na sala de visitas da cidade. Festas dançantes, local preferido para banquetes e reuniões convocadas para solucionar assuntos de interesses da comunidade, ponto obrigatório de Lazer e da prática do esporte não somente do Tênis como de outras modalidades de jogos se efetuavam em seus salões. Pedro Rodrigues4 nos dá uma ideia da representatividade do novo espaço para a cidade: Jequié era menor e tudo convergia para o JTC. Era o único clube social da cidade. Também, o único espaço viável para realização das festas de formatura, casamentos, aniversários, desfiles de modas, natal, São João, carnaval, dia da cidade, além dos cursos de piano, culinária e palestra dos clubes de serviços: Lions Clube e Rotary que ainda não possuíam seus espaços...(depoimento pessoal, 2012) Artistas da época, consagrados nacionalmente, como Ângela Maria, Virginia Lane, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Cauby Peixoto, foram algumas das atrações que passaram pelo Aristocrático. A década de setenta foi marcada por vários desfiles de modas com a participação de jovens da localidade, estes eventos eram precedidos de festas com a participação de artistas como Sônia Braga, José Wilker, Elisabete Savala. Nos anos oitenta passou a acontecer, os mega-shows nas 2 cf. Carta de Magno Silva ao Illm. Sr. Director do “Correio de Jequié” e Illm. Sr. Director de “O Jornal”, Jequié, 11 nov. 1932, Acervo do Jequié Tênis Clube; Carta do Secretário [Magno Silva] ao Illm. Sr. Arthur Goulart, Jequié, 10 nov. 1932. Acervo do Jequié Tênis Clube. 3 Esportista, ex-presidente do JTC, personagem de destaque na cidade tanto no meio Político, quanto acadêmico. 4 Esportista e personalidade que escreve periodicamente sobre o esporte em Jequié.
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    156 História do Esporte quadraspoliesportivas, destaques para: Zé Ramalho, Flávio José, Kid Abelha, Chiclete com Banana dentre outras. Vale registrar o cassino interno do JTC nos anos sessenta, com destaques para os amantes do xadrez e gamão. A foto da faixada inicial do Clube é reveladora, percebemos que o clube se quer tinha muro, Para Pedro Rodrigues “o limite era moral, ninguém pulava, não entrava, pois tinha vergonha de ser posto para fora” (depoimento pessoal, 2012) No JTC só podia ser sócio quem tinha poder aquisitivo elevado, nós tivemos em uma época... uma coisa bem vexatória.... a diretoria do clube...não aceitava pessoas de cores para se associarem ao clube... e nós tivemos um cidadão que era dono de uma empresa, Dínamo, Waldemir, e ele levou anos para conseguir ser sócio do Clube por que era negro... e quando conseguiu foi visto como uma vitória Com o tempo, o Jequié Tennis Clube convertera-se na “sala de visitas da cidade” (ARAÚJO, 1997, p. 355), assim, o clube seria reconhecido por muitos como “o aristocrático” representante local de noções e valores ligados ao progresso e a modernização dos costumes. Entrada da sede do Jequié Tênis Clube (no fim da década de 30, provavelmente) Fonte: Acervo pessoal de Pedro Rodrigues. Autor desconhecido (s/d).
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    157 Jequié tênis clube Aimportância simbólica do clube para a vida social da cidade era tanta que vários personagens projetaram-se politicamente por intermédio de suas atuações como dirigentes do clube. Podemos mesmo afirmar que existiu uma intensa relação entre a política local e a administração do clube. Figuras como Nelson Moraes, Dorival Borges de Sousa, Walter Sampaio, Newton Pinto de Araújo, Ewerton Almeida e Milton Rabello, todos pertencentes a famílias da elite jequieense, figuraram como praticantes de esportes (sobretudo o tênis), dirigentes do clube, além de terem atuado na vida política da cidade, como prefeitos, deputados, vereadores. Segundo Val Rodrigues (2012): Na época o JTC era o suprassumo dos desejos das pessoas, todos queriam ser associados e o clube se dava o luxo de escolher quem queria para o seu quadro social. Ser o seu presidente, era o aval para uma candidatura a vereador ou prefeito da cidade, ali se media e quantificava a competência do cidadão (RODRIGUES, 2012, p.19) JTC Esportivo Os novos moradores incrementavam a densidade populacional e a dinâmica comercial da cidade. Alguns desses imigrantes teriam papel proeminente num conjunto de transformações sociais e culturais em Jequié, incluindo aí àquelas relacionadas aos esportes. Em 1938, por exemplo, o imigrante italiano Vicente Grillo, que já havia doado terrenos para construção da Catedral de Santo Antônio, do Cemitério São João Batista, entre outras iniciativas em Jequié, doara também um terreno para a construção da sede até hoje ocupada pelo Jequié Tênis Clube (RODRIGUES, 2012). Imigrantes, além disso, também ofereceriam incentivos para o início da prática de esportes. João Aguiar Ribeiro, por exemplo, sócio do Jequié Tênis Clube, conhecido como “canhota de ouro”, vencedor de diversos campeonatos, incluindo um campeonato brasileiro de tênis em 1954, começara a praticar a modalidade sob estímulo direto de seu cunhado, o italiano Vicente Leone, conforme conta sua filha, Lílian Simone Ribeiro Dutra, em entrevista concedida.
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    158 História do Esporte TenistaJoão Aguiar Ribeiro Fonte: Acervo pessoal de Lílian Simone Ribeiro Dutra. Autor desconhecido (s/d). É possível que alguns desses estrangeiros já chegassem ao Brasil conhecedores de esportes. O quartel final do século XIX, quando aumenta a proporções de estrangeiros fixando residência no Brasil, coincide com o momento em que os esportes conheciam progressiva disseminação por todo o continente europeu (cf. RIORDAN; KRUGER, 2003). Na Itália, especificamente, responsável pelo envio de mais de 2,5 milhões de pessoas para o Brasil entre 1886 e 1920 (ALVIM, 1998), o esporte já era uma realidade relativamente bem conhecida desde essa época. Desde a década de 1880, clubes de ginástica relativamente bem consolidados ao redor de vários pontos da Itália introduziam modalidades esportivas em seus repertórios de atividades. Logo, testemunhar-se-ia o surgimento de associações e o início de competições dedicadas ao alpinismo, ciclismo, esqui, futebol e natação (MARTIN, 2011). Não por acaso, esportes foram ativamente utilizadas por comunidades de imigrantes italianos como instrumento privilegiado de mediação de suas interações com a sociedade brasileira (BOCKETTI, 2008).
  • 160.
    159 Jequié tênis clube Deoutra forma, porém, também não é improvável que muitos desses imigrantes italianos tenham entrado em contato com esportes pela primeira vez no Brasil. Na Bahia, diferente do que ocorria com a maioria dos imigrantes europeus, que vinham do campo, para o campo, italianos costumavam ter ocupações de natureza mais urbana. Eram sapateiros, carpinteiros, músicos, mecânicos, ourives ou comerciantes. Assim, ao invés de trabalharem na plantação de lavouras, atuavam como “mascates”, caixeiros-viajantes que além de vender tecidos e gêneros alimentícios, atuavam como divulgadores de notícias de outras regiões e novidades importadas da Europa, como máquinas fotográficas, gramafones e outras inovações da época. Eram verdadeiros intermediadores culturais, servindo como ponte entre as modernas novidades do século XX e a vida tradicional e rural do sertão baiano. Os arquivos disponíveis no JTC e os depoimentos de dirigentes e esportistas de Jequié, nos dá uma certa segurança para afirmar, que o Tênis foi o primeiro esporte sistematizado de quadra em Jequié. Competição de Tênis no JTC Fonte: Acervo do Jequié Tênis Clube. Autor desconhecido (s/d). Este histórico de desenvolvimento do Esporte em Jequié, capitaneado pelo JTC, impactou a visibilidade da cidade, a participação em competições estaduais e nacionais, deixa nos dias de hoje para muitos esportistas de gerações diferentes, uma sensação de descontinuidade. Muitos esportistas da Cidade atribui o auge do esporte Jequieensse o ano em que o Brasil conquistou o
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    160 História do Esporte tricampeonato mundial de futebol. Garrincha jogou uma partida de futebol em Jequié, no estádio municipal Waldomiro Borges (Jequié X Ipiaú), ele jogou o primeiro tempo por Jequié e o segundo por Ipiaú na década de 1970. Pedro Rodrigues, desportista da década de 1950 assevera a esse respeito: Todos nós já passamos por situações nas quais a coincidência é a personagem principal. Mas, há momentos em que nos parece que o conceito “coincidência” explica muito pouco... essas inquietantes “casualidades” não teria maior importância se fizesse parte de um caso isolado. No entanto, a realidade as oferece com tanta profusão que nos faz pensar num sistema autofágico. (Rodrigues, 2012, p.44) Como vemos, a constatação é material e também saudosista.
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    161 Jequié tênis clube ConsideraçõesFinais Em larga medida, foi justamente essa trajetória histórica um dos principais elementos a concorrer para as representações que o Jequié Tênis Clube assumiu para a memória e o imaginário de Jequié a partir de determinado momento, manifestando-se até hoje em certa medida. Atualmente, o Jequié Tênis Clube é recorrentemente lembrado como um espaço institucional responsável por agregar visibilidade e prestígio à cidade. A posição social privilegiada dos principais sócios do clube certamente concorreu para a cristalização de uma memória muito positiva, e mais que isso, gloriosa do Jequié Tênis Clube. Todavia, para as finalidades deste trabalho, não importa discutir se o clube, de fato, foi ou não tão importante para as representações da cidade na Bahia e no Brasil, como apontam alguns desses modos de lembrar- se do passado do clube. Aqui, de outra forma, interessa situar essa experiência mnemônica no contexto de uma história regional do esporte – ainda pouco considerada na historiografia brasileira sobre o assunto. Em Jequié, a fundação de um clube de esportes fora o resultado de fluxos multidirecionais entre o sertão e a capital, intermediados simultaneamente por diferentes grupos sociais: imigrantes italianos, jovens da elite, ferroviários brasileiros ou não. Ligando Jequié a um amplo circuito de trocas materiais e imateriais, esses grupos disseminaram novos produtos, ideias e práticas, entre as quais, os “sports”. Para além dessa versão, outras possibilidades de memória foram ou são ainda possíveis. A interdição que o próprio requinte do Jequié Tênis Clube impunha aos habitantes mais pobres da cidade não significou que estes outros grupos estivessem impedidos de apreender práticas esportivas em Jequié, ainda que atribuindo-lhes outros significados, diferentes daqueles pretendidos pelas elites. A reconstituição dessas outras histórias, porém, esbarra em limitações documentais severas – que afetam também o envolvimento das elites com essas práticas. A continuidade de pesquisas em outros arquivos baianos talvez ajude a transpor tais obstáculos, permitindo desvelamento mais detalhado dos meandros dessas outras histórias.
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    162 História do Esporte Referências ALVIM,Z. Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo. In: SEVCENKO, N. História privada no Brasil. v.3. São Paulo: Companhia das letras, 1998. p. 215-287 ARAÚJO, E. P. Capítulos da História de Jequié.  Salvador: EGB Editora, 1997. BOCKETTI, G. P. Italian immigrants, Brazilian fooball, and the dilemma of national identity. Journal of Latin American Studies, v.40, n.2, p.275-302, 2008. BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. CALMON, F. M. G. Mensagem apresentada pelo Exmo. Sr. Dr. Francisco Marques de Góes, governador do Estado da Bahia, à Assembleia Geral Legislativa por ocasião da abertura da 1º reunião ordinária da 19º legislatura, em 7 de abril de 1927. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1927. CERTAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2002. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. CUNHA, M.L.O. A Criação dos Clubes nas Praças Pública da Cidade de Porto Alegre (1920- 1940). Revista Brasileira de Ciência do Esporte, v.32, n.2-4, p123-139, dez. 2010. LINHARES, M. A. A escola e o esporte: uma história de práticas culturais. São Paulo: Cortez, 2009.
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    163 Jequié tênis clube MACEDO,C. G; GOELLNER, S. V. A escolarização do esporte nas décadas de 1920 e 1930: a associação brasileira de Educação e a Energização do caráter. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Florianópolis, V. 34, p. 253-260. jan/mar. 2012. MARTIN, S. Sport Italia: the Italian love affair with sport. New York: Palgrave Macmillan, 2011. MEZZADRI, F. M. Esporte no Brasil entre as décadas de 30-50 e suas influências no desenvolvimento do esporte no estado do paraná. In: Simpósio Nacional de História, 22, 2003. ANAIS... João Pessoa, 2003. p.1-7. PIRES, R. G. Educação física na Bahia: cenas e flashes de uma história. Salvador: Arcadia, 2008. PIRES, R. G.; DIAS, C.; LEITE, M. C. M. História e memória do esporte em Jequié. Recorde: Revista de História do Esporte, v.7, n. 1, p.1-23, 2014. RIORDAN, J.; KRUGER, A. (eds.). European cultures in sport: examining the nations and regions. Bristol: Intellec Books, 2003. ROCHA JUNIOR, C. P. Esporte e modernidade: uma análise comparada da experiência esportiva no Rio de Janeiro e na Bahia nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. (Tese) Doutorado em História Comparada, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2011. RODRIGUES, P. Sensação de perda. Revista Muito Mais, v.3, p.44- 45, 2012. RODRIGUES, V. JTC - 80 anos de história. Extra, v.8, p.19-20, 2012.
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    164 História do Esporte SANTAINÊS, A. L. As Estradas da Esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982. SILVA, C. N. da, et. al. Esporte na imprensa em vitória (1926-1936): uma análise dos jornais a gazeta e o diário da manhã. Revista de Educação Física da UEM, v.23, n.4, p.529-541, 2012.
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    165 CAPÍTULO X A MODERNIDADEEM DUAS RODAS: CULTURA E PODER NA PRÁTICA DO CICLISMO NA CIDADE DE SÃO PAULO (1890-1904) Prof. Me. Yuri Vasquez Souza Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga Introdução A bicicleta e o ciclismo, objetos desse trabalho, estão inseridos no complexo processo de modernização das estruturas de produção e das relações sociais. Como se sabe, a modernidade modificou os modos de fazer e de representar as coisas, a organização econômica e produtiva, a literatura e as artes, a organização política e o estilo de vida, o planejamento urbano e as formas de se deslocar pela cidade. Os estudos acerca da modernidade buscam apreendê-la como movimento, em suas múltiplas manifestações e no ritmo de mudança que se estabelece em torno da produção, no espaço e nas novas relações que surgem através dos objetos que passou-se a produzir1 . Os novos objetos desenvolvidos pela indústria, que surgiram com o advento da modernidade foram responsáveis por reestruturar formas de vida e passaram a ocupar papéis importantes na construção do ideal de civilidade e do sujeito2 . Neste trabalho, escolheu-se abordar a bicicleta como objeto da cultura material, fruto do desenvolvimento tecnológico, que aconteceu durante todo o século XIX, e que acontece ainda hoje; e o ciclismo, que é a prática cultural do andar de bicicleta e um dos 1 Sobre o processo de industrialização e racionalização industrial e moderna, que passaram a direcionar a formação das cidades e dos estilos de vida ver: Hobsbawm (2015). 2 Segundo Soares (2011), entender a vida dos objetos nos permite, a partir de suas particularidades, compreender formas e modos de vida que compõem profunda e sistematicamente a educação do corpo. Um olhar possível em direção à cultura que se formou em São Paulo em torno da bicicleta busca compreender quais espaços possibilitaram ou não a prática do ciclismo.
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    166 História do Esporte símbolosda modernidade e do progresso, e que se faz presente no cotidiano dos centros urbanos, em diversas manifestações da sua prática e da sua incorporação a dinâmicas variadas no interior das idades3 . Nessa perspectiva, através deste trabalho, buscou-se contribuir com os estudos acerca da história do desenvolvimento dos modernos sports4 e também dos usos e representações da bicicleta, na cidade de São Paulo, desde sua chegada à capital paulista, no final do século XIX, até meados da primeira década do século XX5 . Bicicleta, ciclismo e modernidade Os modelos que deram origem ao atual desenho da bicicleta são resultado das modificações da estrutura do objeto e de sua mecânica ao longo de todo século XIX e XX. A bicicleta foi desenvolvida por inventores, espalhados por cidades da Alemanha, Inglaterra e França, que tinham como objetivo a melhoria do desempenho daquele veículo, o conforto para o usuário e a estética do objeto6 . Segundo Pequini (2000; 2005), a Michaux e Co. primeira fabricante francesa de bicicleta, iniciou a produção em massa do velocípede em 1861, introduzindo o objeto na linha de produção industrial. Mais tarde, na Inglaterra, os irmãos Gilmet e Meyer adicionaram a engrenagem por correntes, aumentando, assim, a velocidade atingida pela bicicleta. A partir daí, a prática ciclística se espalhou por toda a Europa e chegou timidamente ao Brasil. Desde o início de sua produção em escala industrial, a bicicleta percorreu diversos países e, em cada um deles, a cultura ciclística se estabeleceu de uma maneira própria, já que seu uso é determinado sempre por seus usuários. 3 Segundo Schetino (2007), o ciclismo pode ser definido tanto como a “arte de andar de bicicleta” como “o esporte das corridas de bicicletas”. 4 Sobre os sports e o processo civilizatório ver: Elias e Dunning (1992). 5 Segundo Souza (2016), o estudo das representações da bicicleta na cidade de São Paulo auxilia a compreensão de aspectos do desenvolvimento e da história da cidade. 6 Para entendimento do desenvolvimento mecânico e do designer aplicado à bicicleta ver: Pequini (2000; 2005).
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    167 A modernidade emduas rodas Por potencializar os descolamentos, a bicicleta passou a ser um meiodelocomoçãonoespaçourbano,tornando-seumdosprincipais meios de transporte, principalmente da classe trabalhadora, por ser economicamente acessível, exigir pouca manutenção e oferecer versatilidade capaz de encurtar distâncias e criar oportunidades de encontros, sobretudo em países europeus. No Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, as fabricantes de bicicleta, Caloi e Monark, passaram a direcionar seus anúncios à classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, incentivavam seus funcionários a adotar essa alternativa de transporte. Por outro lado, desde o início do século XX, na Europa e no Brasil, a prática desportiva realizada com a bicicleta foi incorporada aos modernos sports7 . Na França, um dos berços do desenvolvimento técnico do objeto, a cultura ciclística se formou e se expandiu principalmente influenciada pelas grandes provas ciclísticas realizadas no final do século XIX e início do XX.  O desafio Paris- Brest- Paris de 1891 e o Tour de France, de 1903, são marcos históricos da formação da cultura da bicicleta daquele país8 . A prática do ciclismo entre as elites paulistanas Os primeiros relatos da presença da bicicleta no Brasil apontam que as primeiras unidades chegaram ao sul do país, em São Paulo e no Rio de Janeiro, na segunda metade século XIX (BUSTOS, 2014). Nessa mesma época, São Paulo passou a receber famílias ricas, que trocaram a vida nas fazendas de café pela vida na cidade. Esse processo, juntamente com a chegada dos trilhos da São Paulo- Jundiaí, colocaram São Paulo na modernidade, introduzindo novos modos de viver. Para Rago (2004, p.390): 7 Com o aprimoramento da técnica desportiva, o ciclismo recebeu adequações e passou exigir espaços e estruturas próprias para a sua prática desportiva, criando novas instituições, reforçando a ideia de sujeito universal e promovendo novas relações sociais. Segundo Vigarello (2001), o ciclismo desportivo foi o principal responsável por incorporar o uso de tecnologias modernas ao esporte. O ciclismo passou a dinamizar as relações entre os indivíduos e estabeleceu um novo ideal de vida moderna: a bicicleta 8 Ao se analisarem aspectos da cultura moderna francesa, incluindo o ciclismo, na transição do século XIX para o XX, Weber (1998) escolheu denominar esse período através da expressão “Fin-de-Siècle”.
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    168 História do Esporte Desdecedo, a metropolização da cidade de São Paulo envolveu mui- to mais do que a ordenação e o embelezamento do espaço físico, com a construção dos majestosos palacetes, jardins e parques, como o Anhangabaú, o parque Dom Pedro, ou a Praça Buenos Aires, pelo arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard. Constituiu-se um novo regime de verdade a partir do qual foram definidas e ditadas as re- gras do modo correto de viver, sentir, pensar e agir. Os padrões con- siderados civilizados de comportamento e de convívio social, pro- gressivamente adotados no universo patriarcal da elite cafeicultora e dos industriais emergentes foram exportados para toda a cidade, produzindo tensões, conflitos, tumultos e resistências. Segundo Souza (2016), as primeiras bicicletas foram trazidas à cidade de São Paulo, no final do século XIX, por iniciativa de pessoas que frequentemente viajavam ao continente europeu, especialmente à França, e de lá importavam costumes e modas da época. Assim, a introdução da bicicleta em São Paulo foi responsável pelo surgimento de novos espaços de sociabilidade, como praças e velódromos e pela prática de sports que estimularam as competições ciclísticas na cidade9 . Conforme Sevcenko (1992), nessa época, os cronista dos jornais enfatizavam em seus textos a enorme e crescente febre esportiva nas múltiplas modalidades aqui praticadas: as corridas de pedestres, as náuticas, as ciclísticas, as motociclistas e as automobilísticas, que introduziam uma nova relação da cidade com a velocidade. Para Sevcenko (1992), O fenômeno era recente e suas trilhas de difusão pulsavam manifes- tantes. Considerado um avanço incontestável, uma conquista social, seu advento marcava uma nova etapa na história da humanidade. De par com as últimas descobertas tecnológicas, de fato como um desdobramento delas, se destacou a noção de um corpo humano em particular e a sociedade como um todo são também máquinas, au- tênticos dínamos geradores de energia (SEVCENKO, Op. cit., p. 45). Ao chegar a São Paulo, em meados de 1890, a bicicleta trouxe consigo traços dos usos que a sociedade europeia lhe atribuiu, 9 Sobre aspectos da cultura ciclística paulistana, desde a chegada da bicicleta, passando pelos clubes esportivos e também o uso cotidiano do objeto ver: SOUZA. Op. Cit.
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    169 A modernidade emduas rodas principalmente no que diz respeito ao uso esportivo. Antônio Prado Junior e outros membros das famílias abastadas foram responsáveis por trazer as primeiras unidades do objeto, contribuindo para o surgimento de novas formas de sociabilização através dos clubes de ciclismo. Souza (2016) aponta que, nessa época, surgiram na cidade espaços para a prática ciclística como o Jockey Club, o velódromo do Parque Antártica e o Velódromo de Sant’Anna, que organizavam provas ciclísticas, contribuindo, desse modo, para a popularização do esporte. Em 1892, Antônio Silva Prado, cafeicultor e político ligado ao partido Republicano Paulista (PRP), e sua mãe, Veridiana Prado10 , encomendaram o projeto de um velódromo no interior da chácara localizada na região da Consolação e colocaram o ciclismo em prática na família. Em se tratando de ciclismo de pista, a alta burguesia paulistana promovia e disputava os páreos de bicicleta principalmente os realizados no Velódromo Paulista11 . Com medidas oficiais e inspirado nos modelos europeus, o Velódromo Paulista passou a abrigar as corridas de bicicleta, possibilitando o surgimento de um dos primeiros clubes ciclísticos na cidade: O Veloce Club Olímpico Paulista. Inspirado nos clubes franceses, o Veloce Clube Paulista promovia as corridas e as disputas realizadas no Velódromo Paulista, o que contribuíaparaadivulgaçãodociclismoentreapopulaçãopaulistana. O conhecimento e o uso da bicicleta serviram como primeiro contato da população paulistana com ela. Inaugurado em 21 de julho de 1896, o Velódromo é considerado a primeira praça de esporte ao ar livre do país12 . Dentre os clubes fundados no velódromo, com participação de Antônio Prado Jr., 10 A construção do velódromo torna Dona Veridiana importante figura no desenvolvimento do esporte paulistano, juntamente com seu neto, Antônio Prado Jr., um sportman à paulistana, para quem o velódromo serviu como sede dos diversos clubes esportivos em que ele esteve envolvido como atleta e dirigente. (SOUZA, Op. Cit) 11 SOUZA, Op. Cit. 12 RAGO, Op. Cit.
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    170 História do Esporte destaca-seo Veloce Club Olímpico Paulista e o Athletico Clube Paulistano. Em ambos atuou como desportista e dirigente. Mais tarde, em 1904, ajudou a fundar o automóvel Club Paulista. Durante toda a sua vida, dirigiu entidades federativas esportivas no Brasil, destacando-se a sua escolha para ser o 1º presidente do Comitê Olímpico Brasileiro-COB, entre os anos de 1935 e 194613 . Figura 1: Panfleto de Inauguração da pista pavimentada do Velódromo Paulista, 1896. O velódromo foi, portanto, o berço do ciclismo competitivo da cidade e passou a ser o espaço social das famílias da elite paulistana14 : Extraordinariamente animada a corrida que o « Veloce Club » rea- lizou domingo ultimo, no Velodromo da Consolação, e pena foi que a chuva viesse transtornar a festa, na occasião de realisarem-se os pareôs mais importantes do dia. A concurrencia, como sempre, foi selecta, vendo se nas archibancadas as principais famílias de nossa sociedade. Durante todo o tempo que durou o temporal, a banda de musica do corpo de bombeiros, collocada numa das archibancadas, executou brilhantes peças. (A Bicycleta, 1896, n.18, p.71) 13 NICOLINI, Op. Cit. 14 NICOLINI, Op. Cit.
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    171 A modernidade emduas rodas A propriedade da família Prado abrangia toda a área que hoje é ocupada pelos bairros de Higienópolis e Santa Cecília no centro da capital paulistana. No interior da chácara Vila Maria, o parque esportivo contava com campo de futebol e uma pista de ciclismo, rodeada de duas arquibancadas de madeira, cada uma para mil pessoas. Construído em terra batida na sua inauguração, dois anos depois teve a pista recoberta de pavimento. Nessa época, jornais de grande circulação como O Estado de São PauloeCorreioPaulistanopassaramanoticiarospáreosrealizadosno velódromo da Consolação15 . Mas, em se tratando de sports, destaca- se o surgimento de semanários que se dedicavam exclusivamente a noticiar os eventos esportivos em São Paulo16 . EmmeioàdifusãodociclismoemSãoPaulo,em1896, épublicado o Semanário Cyclistico Illustrado A Bicycleta, responsável por divulgar a cultura ciclística daquele momento e que, em seu formato, inspirou-se em jornais franceses especializados em ciclismo, como o L’auto e La Bicyclette. Publicado aos domingos, seu principal objetivo era difundir a cultura ciclística paulistana, enfatizando a prática esportiva e as sociabilidades elitistas do Velódromo Paulista e do Veloce Club, seguindo o modelo das publicações europeias, especializadas em assuntos esportivos. Segundo o semanário, assim se desenvolviam as atividades no Velódromo Paulista: Velódromo Paulista: Completamente transformado, com a pista cimentada, elegante ar- chibancada, rink, tiro ao alvo, com serviço de restaurant e botequim de primeira ordem, estará diariamente aberto ao publico das 6 1/2 ás 10 horas da amanhã, do meio dia á 1 hora e das 4 ás 6 horas da tarde. PREÇOS: Entrada geral, 1$000 Entrada no Rink, 1$000. Nas tardes de terça, quinta feira e sabbado, tocará uma banda de musica (A Bicycleta, 1896, s/n, s/p.). 15 Ao se analisarem as publicações desses dois jornais no período estudado, 1890- 1903, encontram- se muitas notícias e relatos sobre o uso da bicicleta em São Paulo, mas primordialmente o uso esportivo do objeto. 16 Dentre os semanários consultados para a realização desta pesquisa, destacam-se as publicações do “Semanário A Vida Esportiva” de 1903, do “Semanário Illustrado Vida Paulista”, do mesmo ano, e o pioneiro em noticiar exclusivamente os páreos de bicicleta, O Semanário Cyclistico Illustrado A Bicycleta de 1896.
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    172 História do Esporte Notexto, o Semanário enfatizava a “entusiástica torcida” do público presente às disputas de ciclistas – os velocemen da Paulicéia – realizadas no Velódromo. A preocupação do periódico em promover as disputas e em exaltar a participação do público, ocupavam espaço de destaque nas notícias sobre os eventos esportivos. Um dado interessante encontrado nas notícias dá conta que os esportistas – os velocement – como eram chamados, costumavam usar pseudônimos. Assim, Antônio Prado Jr., era conhecido no Velódromo como Odarp, anagrama do sobrenome de família, Prado. Alberico, às avessas era Ocirebla, mas também tinha o Rápido, o Mago, o Dr. Semana, o Rocambole, dentre outros muitos. Usar outros nomes como espécie de “identidade ciclística” era também prática comum no Rio de Janeiro assim como nos descreve Schetino (2007): Tornou-se habito comum entre os ciclistas a adoção de pseudôni- mos para a participação nas competições. Excetuando-se alguns menos criativos, que utilizavam o sobrenome, encontramos atletas com as mais variada denominações: valores exaltados no esporte li- gados a força e velocidade, como Destemido, Cruel, Le Fleche; no- mes de marcas de bicicletas e acessórios. que por vezes patrocináva- mos atletas, como Monarck, Dunlop; nomes de cavalos campeões, reforçando as relações estabelecidas entre o ciclismo e o turfe como Huguenotte e Boulanger, respectivamente, animais vencedores que corriam no ano de 1890 (SCHETINO, 2007, p.100). A descrição dos pareôs e a performance esportiva dos ciclistas são o assunto mais abordado pelo semanário. Por exemplo, na capa da edição de número 4, datada de 12 de junho de 1896, o Semanário “A Bicycleta” estampa o imagem de Otto Huffenbaecher, filho de Carlos Huffenbaecher, importante cafeicultor paulista. Otto representa, segundo o semanário, a figura do verdadeiro sportman do ciclismo paulistano17 . 17 Muito detalhista, o semanário publicava o tempo das provas e, pelas notícias, sabe-se que as provas disputadas no velódromo da Consolação variavam em entre 380 e 3000 metros. Havia páreos que chegavam a durar cerca de 12 horas ininterruptas. O jornal publicou o levantamento estatístico dos tempos medidos no Velódromo Paulista, entre 21 de junho e 25 de outubro de 1986. As provas comparadas foram as de 500, 25.000 e 50.000 metros de distância.
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    173 A modernidade emduas rodas Figura 2: Capa do Semanário Cyclistico Illustrado A Bicycleta de 12 de julho de 1896. O semanário, além de difundir o ciclismo, comemorava datas importantes para o republicanismo liberal, do qual a burguesia paulistana era a maior representante. Os páreos de 14 de julho de 1896, data importante para o liberalismo francês, e de 15 de novembro, data marco da proclamação da república no Brasil atraíam expoentes da elite política paulista, que passaram a frequentar as arquibancadas, camarotes e aéreas sociais do Velódromo. A notícia de 1896, por exemplo, destaca as presenças, nesse período, de Campos Sales, presidente da província de São Paulo, de Washington Luís, importante político e futuro prefeito de São Paulo, além de toda a família Prado:
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    174 História do Esporte Extraordinariamenteanimada a corrida que o « Veloce Club » rea- lizou domingo ultimo, no Velódromo da Consolação, e pena foi que a chuva viesse transtornar a festa, na ocasião de realizaram-se os pareôs mais importantes do dia. A concorrência, como sempre, foi selecta, vendo-se nas archibancadas as principais famílias de nossa sociedade. Durante todo o tempo que durou o temporal, a banda de musica do corpo de bombeiros, colocada numa das archibancadas, executou brilhantes peças (A Bicycleta 1896, n.18, p.69). Para além dos páreos, diversas crônicas e artigos extraídos de publicações de outros países sobre ciclismo foram notícia nos jornais da época. Em muitos deles, a bicicleta é descrita como objeto de diversão da aristocracia inglesa, russa, portuguesa, italiana, dinamarquesa, austríaca e grega, para destacar e para enfatizar a adesão da nobreza e da aristocracia europeia à prática do ciclismo ou, segundo o semanário, ao “velocipiedismo”18 . Em relação ao uso da bicicleta pelo público feminino, há uma notícia, em tom crítico, sobre um incidente que envolveu uma ciclista. Em sintonia com os noticiários de periódicos esportivos europeus, que destacavam a prática do ciclismo por mulheres, o Semanário publicou uma nota de repúdio aos protagonistas de um episódio envolvendo o público e uma ciclista no velódromo no Rio de Janeiro. A nota intitulada “Sem comentários” descreve uma corrida realizada no Derby Clube daquela cidade (Rio de Janeiro) em que, segundo notícia publicado no O Paiz, uma moça, que aquele jornal identifica trajando roupas apropriadas à prática do ciclismo e bombachas presas na altura dos joelhos, causou certo alvoroço nas arquibancadas ao adentrar a pista montada em sua bicicleta. A quem se espantou com o acontecimento, o “povinho”, na expressão do jornal, e “que achando uma coisa talvez mais fantástica a presença de uma bicycletista n’um campo de sport”, começou a vaiar, um “attestado de uma falta de educação inqualificável, um atentado a liberdade individual…” (A Bicycleta, 1896, n.18, p.72). Podem-se encontrar também nas páginas do Semanário indicações de parâmetros alimentares para ajudar a melhorar o 18 A Bicycleta, n.18, p.72.
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    175 A modernidade emduas rodas desempenho e as funções orgânicas do corpo, embora a ciência da Nutrição só tenha ganho importância a partir do anos 1930 194019 . Portanto, a medicina começa a se preocupar com a alimentação mais adequada à prática desse esporte. Do mesmo modo, em artigos publicados por médicos, ressalta-se a importância dessa atividade para a saúde, inclusive das mulheres. O andar equilibrado sobre um veículo de duas rodas requer experiência e, na época, quem se aventurava corria o risco de provocar curiosidade e chacota: Um Cyclista, ainda não muito seguro no risco passeando pelas ruas d’esta capital, notou que era constantemente seguido por três mole- ques. Já montado por tal perseguição, dirigiu-se aos mulecotes per- guntando-lhes o que queriam, ao que um d’elles respondeu: - Fazeis tantos zig-zags, que estamos á espera que deis um tombo, para carre- gar a bicycleta para vossa casa! (A Bicycleta, 1896, n.18, p.72). Se o andar de bicicleta não é uma prática fácil e precisa ser aprendida, o Semanário noticia as aulas oferecidas no velódromo: “Velódromo Paulista: Licções de velocipedia e patinação. Alugueis de velocípedes e patins. Todos os dias das 7 às 10 horas da manhã das 12 às a 2 da tarde e das 4 às 6.”(A Bicycleta, 1896, s/n s/p). A partir de 1904, as corridas de bicicleta cairiam em decadência e, na mesma época, o Veloce Club seria desfeito. Após a criação do Club Atlético Paulistano em 1900, Antônio Prado Jr, ciclista, futebolista e neto de dona Veridiana, alugou de sua avó o velódromo, pela quantia de 250$000 mil reis e ali estabeleceu a primeira sede do seu clube de futebol, o Athletico Clube Paulistano (ACP). Contudo, o velódromo se manteve em funcionamento, como estádio e espaço para prática e disputas ciclísticas, até 1914, quando foi desapropriado para dar passagem para a rua Nestor Pestana . Em 1917, o Atlético Clube Paulistano transferiu-se para a região do Jardim América e Antonio Prado Jr. passou a dedicar-se a outros esportes, dentre eles o automobilismo. 19 A Bicycleta, n.18, p.72. Ver também Sant’Anna (2016).
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    176 História do Esporte Umadendo não conclusivo... Se, no presente texto, destaca-se como fonte o Semanário A Bycicleta, por ser um material ainda inédito, há que se considerar que um estudo mais aprofundado desse periódico ainda está por ser feito. A bibliografia sobre a introdução da bicicleta na cidade de São Paulo e seu uso, merecem outras pesquisas, que reflitam sobre como a prática ciclística modificou os hábitos de sociabilidade paulistana, e como trabalhar o material publicado por revistas da época, como Educação Physica - Revista de Técnica de Sport e Athletismo; Sport Ilustrado; Revista de Educação Física do Exército, dentre outras, e que noticiam as pesquisas de médicos sobre os benefícios da prática para a saúde. Portanto, a bicicleta – a exemplo do que ocorreu em outros países - incentivou o comércio de roupas esportivas, especialmente para mulheres, como destaca a excelente pesquisa de Cármen Lúcia Soares (2011), e também o surgimento de pequenas oficinas para conserto de bicicletas. Somados a isso, os anúncios publicados nos jornais sobre a venda e aluguel de bicicletas em São Paulo, permitem perceber como esse objeto deixou de ser apenas de uso da elite paulistana e foi sendo gradativamente disseminado pelas camadas populares, como meio de locomoção e de transporte para o trabalho (ver a respeito, dissertação de mestrado de Souza opus cit.) . Fontes Documentais Semanário A Vida Esportiva, 1903. Semanário Illustrado Vida Paulista1903. Semanário Ilustrado A Bicycleta, 1896. n 4. Semanário Ilustrado A Bicycleta, 1896 n 18. O Estado de São Paulo 1890- 1903 Correio Paulistano 1890- 1903
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    177 A modernidade emduas rodas Referências BUSTOS, V. A bicicleta no Brasil. Museu da Bicicleta de Joinville. Disponível em: <museudabicicleta.com.br/museu_hist.html>>. Acesso em: 12 ago. 2014. CERTEAUR, M. A invenção do cotidiano: artes do fazer. São Paulo: Vozes, 1994. CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. CORBIN, A. (Org.). História dos tempos livres. Lisboa: Teorema, 2001. p. 5-18. ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. HOBSBAWM, E. Era das revoluções. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. JUNQUEIRA, T. Para transporte ou passeio? Propagandas brasileiras de bicicleta (Décadas de 1950-1970). Recorde, v.8, n.2, p.1-23, 2015. PEQUINI, S. M. Evolução tecnológica da bicicleta e suas implicações ergonômicas para a máquina humana. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU-USP, 2000. ______, S. M. Ergonomia aplicada ao design de produtos: Um estudo de caso sobre o design de bicicletas. Tese de Doutorado, São Paulo, FAU-USP, 2005. RAGO, M. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, P. (Org.). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. v.3, p.387-436
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    178 História do Esporte SANT’ANNA,D. B. Gordos, Magros e Obesos: uma história de peso no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2016. SCHETINO, A. M.  Pedalando na modernidade: a bicicleta e o ciclismo: uma análise comparada entre Rio de Janeiro e Paris na transição dos séculos XIX e XX. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. SEVCENKO,N.OrfeuExtáticonaMetrópole:SãoPaulo,sociedade e cultura nos frementes anos XX. São Paulo: Companhia das letras; 1992. SOARES, C. L. As roupas nas práticas corporais e esportivas: a educação do corpo entre o conforto, a elegância e a eficiência. (1920- 1940). Campinas: Autores Associados, 2011. SOUZA, Y. V. Quando as rodas conquistam a cidade: cultura, tensões, conflitos e ações na prática do ciclismo em São Paulo. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade de São Paulo, PUC-SP, São Paulo, 2016. VIGARELLO, G. O tempo do desporto. In: CORBIN, A. História dos tempos livres. Lisboa, 2001. p.231-262. WEBER, E. França Fin-de-Siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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    179 SOBRE OS AUTORES AngeloMaurício de Amorim - Graduado em Educação Física (UCSal/BA), Mestre em Educação (UFBA/BA). Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA). Cleber Augusto Gonçalves Dias – graduado em Educação Física (UCB/RJ), mestre em História Comparada (UFRJ/RJ), doutor em Educação (UNICAMP/SP). Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/MG). Denize Pereira de Azevêdo Freitas – Licenciada em Educação Física e Bacharel em Ciências Econômicas (UEFS/BA), mestre em Saúde Coletiva (UEFS/BA). Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS/BA). Enny Vieira Moraes – Licenciada em Educação Física (UFAL/AL), mestre em Educação Física (UGF/RJ), doutora em História (PUC/ SP). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB/BA). EstefâniaKnotzCanguçúFraga–GraduadaemHistória,especialista em História e Doutora em História (PUC/SP). Professora do Programa de Pós Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Gildison Alves de Souza - Licenciado em Educação Física (UNEB/BA). Joalice Santos Batista - Licenciada em Educação Física (UESB/BA). Atua no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF - Jitaúna/BA). Jorge Miguel Acosta Soares – Graduado em História (UNICAMP/ SP), em Jornalismo (PUC/SP) e em Direito (PUC/SP), mestre em Direito (PUC/SP) e Doutor em História (PUC/SP).
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    180 Marcos Cesar MeiraLeite – graduando em Educação Física (UESB/ BA). Nailze Pereira de Azevêdo Pazin – graduada em história, mestre em educação e doutora em história (USFC/SC). Professora da rede municipal de ensino de Florianópolis. Natanael Vaz Sampaio Junior - Licenciado em Educação Física (UESB/BA), mestre em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB/ BA). Professor regente da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC/BA). Osni Oliveira Noberto da Silva – Licenciado em Educação Física (UEFS/BA), Mestre em Educação (UFBA/BA). Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA). Ricardo Franklin de Freitas Mussi – Licenciado em Educação Física (UNEB/BA), Mestre em Saúde Coletiva (UEFS/BA). Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/BA). Roberto Gondim Pires – graduado em Educação Física (UFBA/BA), mestre em Educação (PUC/SP), doutor em Educação (UFBA/BA). Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB/ BA). Tania Mara Vieira Sampaio – Bacharel em Teologia (UMESP/ SP), graduada em pedagogia (UNIMEP/SP), Mestre e doutora em Ciências da Religião (UMESP/SP). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG/GO). ZuleikaStefâniaSabinoRoque–graduadaemHistóriaeespecialista em História e Geografia (UNIVAP/PB), mestre e doutora em História (PUC/SP). Professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/SP).
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    181 Yuri Vasquez Souza– Bacharel e Licenciado em Educação Física (USCS/SP), Mestre em História (PUC/SP).
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    Este livro foiimpresso na oficina da Pronto Editora Gráfica/ Kelps, no papel: Off-set LD 75g/m2 , composto na fonte Minion Pro corpos 10 e 12. Abril, 2017. A revisão final desta obra é de responsabilidade dos autores. Em apoio à sustentabilidade, à preservação ambiental, Pronto Editora Gráfica/ Kelps, declara que este livro foi impresso com papel produzido de floresta cultivada em áreas não degradadas e que é inteiramente reciclável.