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Em 2007 lancei um livro, De mim já nem se lembra1, no qual compilo
cartas escritas por meu irmão, José Célio, para minha mãe, Geni, entre 1970 e
1978, período em que ele trabalhou como torneiro-mecânico em Diadema, na
Grande São Paulo. Dois anos depois, publiquei Estive em Lisboa e lembrei de
você 2 , degravação de quatro sessões de entrevistas com Sérgio de Souza
Sampaio, imigrante brasileiro em Portugal. A divulgação destes dois títulos,
nos quais, mais que escritor, atuo como organizador e editor, levou muitas
pessoas a me procurar com histórias que poderiam ser utilizadas em volume.
Como nunca visei tornar-me coadjuvante de textos alheios, recusei educado as
ofertas.
No entanto, em setembro de 2010 recebi uma correspondência que, pela
singularidade da proposta, me persuadiu a repensar minha decisão. A carta,
que reproduzo à frente, expunha, de maneira sucinta, o desejo do remetente,
Dório Finetto, de me submeter suas “memórias” para, eventualmente,
“aproveitar algum dos temas”. Sincero, admitia não ser e nem querer tornar-se
escritor e franqueava ampla liberdade para fazer o que quisesse com os
“papéis”, até mesmo descartá-los no lixo.
Engenheiro de formação, consultor de projetos na área de infraestrutura
do Banco Mundial, Dório despendeu a melhor parte de sua vida em incursões
aos ermos do planeta. Nestas andanças, conheceu inúmera gente e vastos
sucedidos, que converteu em personagens e enredos em suas folhas de caderno
manuscritas. São essas páginas, intituladas Viagens a terra alheia, que
ancoraram em minha mesa há pouco mais de três anos. Escritas em um
português bastante peculiar3, mescla de ecos do falar mineiro com demãos de

1

2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
São Paulo: Cia das Letras, 2009.
3
Observe a quase ausência de pronomes reflexivos em sua carta.
2
clássicos da língua

4

, portavam um distúrbio irremediável, o tom

excessivamente relatorial 5 . Expus meu diagnóstico – assunto demandando
estilo – e ele teimou que, então, “envernizasse a trama” segundo meus

predicados. Talvez por sermos conterrâneos, e contraparentes, acabei
aceitando o insólito encargo.
Com a anuência de Dório, a quem ofereci a coautoria, rechaçada de
maneira peremptória, elegi alguns dos capítulos para compor o livro6. O leitor
perceberá que, colhidos em três diferentes idiomas – inglês, francês e
espanhol 7 –, os relatos, traduzidos no processo de escritura, perderam suas
características, resultando numa linguagem bastante homogênea 8 . Essa
anomalia não houve como corrigir, mas espero que o interesse despertado pela
narrativa retifique a deficiência.
Alinhavei, como posfácio, algumas breves anotações para uma biografia
de Dório Finetto, nas quais ele, entretanto, afirma não se reconhecer, não sei
se por pilhéria ou por incompetência do retratista.

Ao leitor, um buquê de flores artificiais.

4

O título Viagens a terra alheia emula Viagens à minha terra, de Almeida Garrett, e a epígrafe por ele
escolhida é um trecho de Os Lusíadas.
5
Digo “excessivamente” porque o tom relatorial, ou burocrático, pode às vezes render boa literatura, como na
obra de Franz Kafka, ou, no Brasil, a de Carlos Sussekind, para nos limitarmos a apenas dois exemplos.
6
Apenas metade das páginas enviadas foi aproveitada. Caso conte com a benevolência dos leitores, um
segundo volume talvez possa vir a ser publicado futuramente.
7
À exceção de “Uma história inverossímil”.
8
Sobre essa questão, vale a pena consultar CRAIG, Stephen. Translation – an introduction. Champaign:
University of Illinois Press, 2006.

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Em 2007 lancei um livro

  • 1. Em 2007 lancei um livro, De mim já nem se lembra1, no qual compilo cartas escritas por meu irmão, José Célio, para minha mãe, Geni, entre 1970 e 1978, período em que ele trabalhou como torneiro-mecânico em Diadema, na Grande São Paulo. Dois anos depois, publiquei Estive em Lisboa e lembrei de você 2 , degravação de quatro sessões de entrevistas com Sérgio de Souza Sampaio, imigrante brasileiro em Portugal. A divulgação destes dois títulos, nos quais, mais que escritor, atuo como organizador e editor, levou muitas pessoas a me procurar com histórias que poderiam ser utilizadas em volume. Como nunca visei tornar-me coadjuvante de textos alheios, recusei educado as ofertas. No entanto, em setembro de 2010 recebi uma correspondência que, pela singularidade da proposta, me persuadiu a repensar minha decisão. A carta, que reproduzo à frente, expunha, de maneira sucinta, o desejo do remetente, Dório Finetto, de me submeter suas “memórias” para, eventualmente, “aproveitar algum dos temas”. Sincero, admitia não ser e nem querer tornar-se escritor e franqueava ampla liberdade para fazer o que quisesse com os “papéis”, até mesmo descartá-los no lixo. Engenheiro de formação, consultor de projetos na área de infraestrutura do Banco Mundial, Dório despendeu a melhor parte de sua vida em incursões aos ermos do planeta. Nestas andanças, conheceu inúmera gente e vastos sucedidos, que converteu em personagens e enredos em suas folhas de caderno manuscritas. São essas páginas, intituladas Viagens a terra alheia, que ancoraram em minha mesa há pouco mais de três anos. Escritas em um português bastante peculiar3, mescla de ecos do falar mineiro com demãos de 1 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. São Paulo: Cia das Letras, 2009. 3 Observe a quase ausência de pronomes reflexivos em sua carta. 2
  • 2. clássicos da língua 4 , portavam um distúrbio irremediável, o tom excessivamente relatorial 5 . Expus meu diagnóstico – assunto demandando estilo – e ele teimou que, então, “envernizasse a trama” segundo meus predicados. Talvez por sermos conterrâneos, e contraparentes, acabei aceitando o insólito encargo. Com a anuência de Dório, a quem ofereci a coautoria, rechaçada de maneira peremptória, elegi alguns dos capítulos para compor o livro6. O leitor perceberá que, colhidos em três diferentes idiomas – inglês, francês e espanhol 7 –, os relatos, traduzidos no processo de escritura, perderam suas características, resultando numa linguagem bastante homogênea 8 . Essa anomalia não houve como corrigir, mas espero que o interesse despertado pela narrativa retifique a deficiência. Alinhavei, como posfácio, algumas breves anotações para uma biografia de Dório Finetto, nas quais ele, entretanto, afirma não se reconhecer, não sei se por pilhéria ou por incompetência do retratista. Ao leitor, um buquê de flores artificiais. 4 O título Viagens a terra alheia emula Viagens à minha terra, de Almeida Garrett, e a epígrafe por ele escolhida é um trecho de Os Lusíadas. 5 Digo “excessivamente” porque o tom relatorial, ou burocrático, pode às vezes render boa literatura, como na obra de Franz Kafka, ou, no Brasil, a de Carlos Sussekind, para nos limitarmos a apenas dois exemplos. 6 Apenas metade das páginas enviadas foi aproveitada. Caso conte com a benevolência dos leitores, um segundo volume talvez possa vir a ser publicado futuramente. 7 À exceção de “Uma história inverossímil”. 8 Sobre essa questão, vale a pena consultar CRAIG, Stephen. Translation – an introduction. Champaign: University of Illinois Press, 2006.