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A MENSAGEM
CENTRAL
do Novo
TESTAMENTO
CRISTÃ
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
JOACHIM JEREMIAS
A MENSAGEM CENTRAL
DO
NOVO TESTAMENTO
Prefácio de F. Refoulé, O. P.
2005
CRISTÃ
© Editora Academia Cristã
Título original:
Le message central du Noveau Testament
Les Éditions du Cerf, Paris
Supervisão Editorial:
Luiz Henrique A. Silva
Rogério de Lima Campos
Paulo Cappelletti
Layout, e artefinal:
CompSystem - Digitação e Diagramaçâo Ltda-Me.
Tradução:
João Rezende Costa
Revisão:
Vagner Montrezol
Capa:
James Valdana
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Jeremias, Joachim, 1900-
J55m A mensagem central do Novo Testamento (traduziu João Rezende Costa) -
São Paulo : Ed. Academia Cristã Ltda, 2005.
14 X21 cm; 152 páginas
ISBN 85-98481-06-8
1. Bíblia- N.T. -Teologia I. Título.
CDU-225.017
índices para catálogo sistemático:
I. Novo Testamento - Teologia 225.017
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio
eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão
expressa da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998).
Todos os direitos reservados à
Editora A cademia Cristã L tda.
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Cep 09070-510 - São Paulo, SP - Brasil
Fonefax (11) 4424-1204 / 4421-8170
Email: academiacrista@globo.com
Site: www.editoraacademiacrista.com.br
PREFACIO
Será que o Cristo da fé é também o Jesus da his­
tória, será que a mensagem dos apóstolos coincide
com a de Jesus, será que a Igreja está vinculada re-
ahnente à comunidade messiânica reunida por Je­
sus, e será que o cristianismo não passa de um esse-
nismo que teria tido êxito? Estas graves questões,
que tocam o próprio cerne da nossa fé, situam-se
no centro dos debates contemporâneos. São delas
que o professor Jeremias trata diretamente neste
opúsculo, que temos a felicidade de aqui apresen­
tar. Isto basta para dizer a importância desta obra,
cujo peso não se mede pelo número das páginas.
A exposição do professor Jeremias apresenta-se,
todavia, com tanta simplicidade, e com uma erudi­
ção tão discreta, que o alcance das conclusões do
Autor corre o risco de escapar ao leitor não adverti­
do. Parapressentir seu significado,épreciso,cremos,
conhecer pelo menos em suas grandes linhas o con­
texto histórico em que se situam estes estudos.
No decorrer do século XIX,o estudo crítico ehis­
tórico do Novo Testamento levou os exegetas e os
Prefácio
teólogos a tomarem mais claramente consciência do
corte profundo que foi - na evolução do cristianis­
mo das origens - o evento pascal, ou seja, o duplo
fato da morte e da ressurreição de Jesus. A vinda
do reino de Deus constituíra o tema maior da pre­
gação de Jesus. Depois da Páscoa, a mensagem dos
apóstolos resume-se essencialmente no anúncio de
Jesus como Messias e Senhor. Os textos o demons­
tram de modo evidente. Como o frisa R.Schnacken-
BURG, no seu grande livro Gottes Herrschaft und
Reich, os sermões missionários dos Atos dos Após­
tolos não mencionam nem sequer uma vez o reino
de Deus, e, no conjunto dos Atos, ele não é evocado
mais do que sete vezes, ao passo que aparece trinta
e nove vezes no Evangelho de Lucas. Pelo contrá­
rio, a pregação da ação salvadora de Jesus desde o
seu batismo, a pregação da sua crucifixão e ressur­
reição, constitui regularmente o cerne dos discur­
sos de Pedro e dos apóstolos.
Da pregação de Jesus à dos apóstolos, o centro
de gravidade deslocou-se incontestavelmente. Evi-
denciou-se difícil uma justa interpretação deste fato
e os exegetas ainda não chegaram a determinar de
modo satisfatório a relação entre a pregação de Je­
sus e a dos apóstolos.
H arnack e os teólógos protestantes liberais consi­
deravam a pregação apostólica como um desenvol­
vimento üegítimo e mitologizante da mensagem de
Jesus. Para estes teólogos, o ensinamento do Novo
TestamentosobreJesusMessias,Senhor,FühodeDeus,
Redentor, Juiz escatológico, não conteria nada de
Prefácio
especificamente cristão,pelo contrário, violaria os tra­
ços individuais e concretos da figura histórica de Je­
sus, sobre a qual aquele ensinamento estaria distante.
Hoje, inversamente,para Bultmann e seus discípulos,
o evento pascal marcaria o começo absoluto do cristi­
anismo. Jesus, afirmam eles, não teria sido um "cris­
tão", mas um judeu, e sua pregação se moveria intei­
ramenteem quadrosdeidéiaseconceitosdojudaísmo,
mesmo quando entra em oposição à religião judaica
tradicional. Esta solução radical de Bultmann susci­
tou vivas reações eaté mesmo alguns de seusdiscípu­
los se recusam a segui-lo neste ponto. Como admitir,
com efeito, que apessoa eo ensinamento deJesusnão
se situem no centro da mensagem cristã? Além disto,
se é verdade que a pregação dos apóstolos não se li­
mitou a repetir a de Jesus, não é menos verdade que
elasempre sereferiu à deJesuse que osprimeiros dis­
cípulos sentiram a necessidade de escrever "evange­
lhos".Enfim,comoKàsemann objetacomrazãoa Bult­
mann, "somente se a pregação de Jesus coincide de
modo decisivo com a pregação sobre Jesus, é que se
pode compreender que o ressuscitado é oJesushistó­
rico. A partir daí, somos constrangidos,comohistoria­
dores, a remontar para além da Páscoa. Verificare­
mos se Jesus está detrás da palavra de sua Igreja ou
não, e se o querigma cristão é um nüto inteiramente
separável da sua palavra e dele próprio, ou se ele está
vinculado indissoluvelmente ao Jesus histórico".
E precisamente esta coincidência decisiva entre
a pregação de Jesus e a da sua Igreja que o professor
Jeremias sepropõe mostrarna presente obra. Partindo
P refácio
dos temas maiores da pregação apostólica (oração
endereçada ao Pai, justificação pela fé, morte de Je­
sus como sacrifício), ele remonta, passo a passo, até
as camadas mais antigas da tradição na tentativa
de determinar em que medida estas doutrinas fun­
damentais estão vinculadas à pregação de Jesus. E
depois destas pacientes análises que ele se crê auto­
rizado a afirmar a unidade real da mensagem cris­
tã quanto ao essencial, e a continuidade da doutri­
na dos apóstolos com a de Jesus.
Seninguém jamais pôs em dúvida a qualidade ex­
cepcionaldas pesquisas do professorJeremias eo rigor
do seu método exegético, fundado particularmente
num conhecimento notável do aramaico, alguns au­
tores católicos e protestantes recentemente julgaram
poder formular reservas quanto ao seu alcance teoló­
gico. Alguns,por exemplo, questionaram se o interes­
se que o professor Jeremias dirige ao Jesus da história
não implicaria uma certa depreciação da tradição
apostólica. Outros julgam que o caráter decisivo do
evento pascal não se acharia suficientemente acentu­
ado; perguntam-se se o professor Jeremias não viria,
como outrora osjudeu-cristãos, a considerar a ressur­
reição de Jesus mais como a confirmação da mensa­
gem de Jesus do que como o objeto central da fé. Al­
guns, enfim, temem que o peso que ele atribui às
provas históricas não venha a pôr a fé na dependên­
cia da crítica histórica e literária.
Seja lá o que for, nada na presente obra justifica
essas críticas ou esses temores. O Autor, neste opús­
culo,sepropõe unicamentemostrarqueJesussesitua
P refáck)
por detrás daspalavras da sua Igreja, e, da nossa
parte, cremos que ele realiza o seu propósito de ma­
neira tão convincente como magistral. Expresse­
mos-lhe aqui a nossa gratidão.
F.Refoulé, o .P.
INDICE GERAL
C a p ít u l o I- ABBÁ......................................................13
1. Deus "Pai" no Antigo Testamento....................13
2. O judaísmo palestinense....................................19
3. "Abbá" nas orações de Jesus.............................. 22
4. A paternidade de Deus nos Evangelhos..........27
5. A oração do Senhor..............................................34
6. Conclusão.............................................................36
C a p ít u l o II - A MORTE DEJESUSCOMO
SACRIFÍCIO.............................................................39
1.A paixão na Epístola aos Hebreus e na
primeira Epístola de Pedro................................39
2.Apóstolo Paulo.................................................... 45
3.A Igreja das origens.............................................55
4.Qual a interpretação que o próprio Jesus
deu de sua morte?................................................57
C a p ít u l o III- AJUSTIFICAÇÃOPELAFÉ..............67
1.0 sentido da fórmula........................................67
2.Justificação e nova criação..................................74
3.A origem da doutrina paulina da justificação ....84
C apítulo IV - O VERBO REVELADOR...................91
1.A forma literária do prólogo de João.................91
2.0 encadeamento das idéias...............................100
A segunda estrofe (vv. 6-8)................................102
A terceira estrofe (vv. 9-13)................................102
A quarta estrofe (vv. 14-18).........;.....................104
3.0 sentido da designação de Jesus como
Lógos....................................................................108
C apítuloV - A ORIGINALIDADE DA
MENSAGEM DO NOVO TESTAMENTO...........113
Qumran e a Teologia..............................................113
1.Cresceu o conhecimento do meio em que
viveu Jesus......................................................123
2.Analogias com a comunidade cristã das
origens..............................................................130
3.0 que separa os essênios de Jesus..............136
ÍNDICE DOSAUTORES...........................................145
ÍNDICE DOSTEXTOS BÍBLICOS...........................147
1 2 Ín d ic e
Capítulo I
ABBÁ
1. Deus "Pai" no Antigo Testamento
No Oriente Próximo, por mais que retornemos
no tempo, sempre é familiar a idéia mitológica do
deus pai da humanidade ou de certos seres huma­
nos. Povos, tribos e famílias se dizem proceder de
um ancestral divino. É particularmente ao rei, en­
quanto representante do seu povo, que se atribui
uma parte especial da dignidade e do poder de um
pai divino. Toda vez que a palavra "pai" é usada
para a divindade, neste contexto, implica a pater­
nidade no sentido de autoridade incondicional e
irrevogável.
Estes são fatos muito conhecidos na história das
religiões, mas o que é menos conhecido é que muito
cedo já a palavra "pai", enquanto epíteto atribuído
à divindade, está carregada de uma tonalidade par­
ticular. Num célebre hino sumério eacádico de Ur, o
deus Lua, Sin, é invocado como "Pai misericordioso.
14 A bba
em suas disposições que retém em sua mão a vida
de todo opaís". Edo deus sumério-babilônico se diz;
Sua cólera é como o dilúvio,
Ele se reconcilia como um pai
misericordioso.
Para os orientais, por mais que recuemos no
tempo, a palavra "pai" aplicada para Deus evoca
- algo semelhante ao que a palavra "mãe" signifi­
ca para nós.
Isto ainda é mais verdade no Antigo Testamen­
to. Aí, raramente se chama a Deus de "pai", apenas
catorze vezes, mas cada uma delas é importante.
Para começar, quando Deus é chamado de "pai"
ele é honrado como criador;
Não é ele,porventura, teupai,
que te fez seu,
que te formou e te consolidou?
(Dt 32.6).
Porventura não é um mesmo o Pai
de todosnós?
Não é um só Deus que nos criou?
(Ml 2.10).
Como criador. Deus é o Senhor. Ele pode espe­
rar receber a obediência em homenagem.
Por outro lado, sendo um pai. Deus é considera­
do misericordioso;
Deus "P ai" o Axtigo Tetamexto 15
Como um paise compadece dos filhos,
assim dos que o temem se apieda o Senhor.
Pois ele bem conhece de que massa
somos feitos:
recorda-se que somospó (SI 103.13s).
Porque Deus é o criador, está cheio de indulgên­
cia paternal para com a fraqueza de seus filhos.
É evidente que todas estas citações do Antigo
Testamento refletem o velho conceito oriental da
paternidade divina. Há, porém, diferenças funda­
mentais. O fato de que no Antigo Testamento Deus
não é o ancestral, mas o criador, não é a menor di­
ferença. E o que é ainda mais importante: no Anti­
go Testamento, a paternidade divina atribui-se só a
Israel e de uma maneira que não encontra nenhum
equivalente. Israel tem uma relação toda particu­
lar com Deus. Israel é o primogênito de Deus, esco­
lhido entre todos os povos (Dt 14.Is). Além disto,
esta eleição de Israel como filho primogênito de
Deus se originava, cria-se, num fato histórico con­
creto: o êxodo do Egito. Associar a paternidade de
Deus com um fato histórico implica uma profunda
revisão do conceito de Deus como Pai; A certeza de
que Deus é Pai e Israel seu filho não se fundamenta
no mito, mas em um ato línico de salvação realiza­
do por Deus, do qual Israel foi o alvo na história.
Contudo, somente nos profetas é que o conceito
de Deus como Pai adquire todo o seu sentido no
Antigo Testamento. Quantas vezes os profetas não
foram obrigados a repetir que Israel só correspondia
16 A bbâ
ao amor paternal de Deus por uma constante in­
gratidão. A maior parte dos textos proféticos refe­
rentes a Deus como Pai denunciam com insistência
e paixão a contradição que se manifesta entre a filia­
ção de Israel e sua impiedade...
Eagora me invocas, não é verdade?:
"Meu Pai,
vós sois o companheiro da minha
juventude!
Terá que guardar eterno rancor?
Terá que conservar ressentimento
para sempre?"
Assim falas;mas depois fazes o mal
quepodes! (Jr 3.4s).
E eu disse: "Comoposso colocar-te
entre os meus fílhos
e dar-te uma terra invejável,
a gema das nações como herança?"
E acrescentei: "Chamar-me-eispai,
e não hesitareis em vir após mim
Como,porém, uma mulheréinfiel
ao seu amante,
assim vós me fostes infíéis,
ó filhos de Israel, diz o Senhor
(Jr 3.19s).
Um fílho honra seupai
e um servo teme o seu senhor.
Masse eu sou Pai,
onde está a honra que me corresponde?
Deus "F ai" o Amic.o Tftamexto 17
Ese sou senhor,
onde está o temor que se me deve?
(Ml 1.6)
A resposta constante de Israel a este apelo ao
arrependimento é: "Tu és o meu (ou o nosso) Pai" -
Abbinu atta.No trito-Isaías, este grito tornou-se um
apelo supremo à misericórdia e ao perdão de Deus:
Contemplaido céu e observai
da vossa santa, magnífica morada:
Onde estão o vosso zelo e a vossa força,
a ternura de vossas entranhas
e a vossa misericórdia?
Não fiqueis insensível,
porque sois nosso Pai(abbinu atta).
Não é Abraão que sepreocupa conosco,
Israelnem sabe quem somos,
mas vós. Senhor, sois o nosso Pai,
enosso Víndice, desde todos os tempos,
é o vosso nome (Is 63.15s).
E, no entanto. Senhor, vóssois
onosso Pai,
nós somos a argila e vós o nosso oleiro;
somos todos obra de vossasmãos.
Não vos irriteis em extremo. Senhor,
e não vos lembreis eternamente da culpa
(Is 64.7s).
Deus responde a este apelo de Israelpelo perdão.
Os 11.1-11 faz disto uma descrição comovente.
18 A bba
Compara-se Deus com um pai que, ensinando a an­
dar ao seu filho Efraim, carregava-o nos braços:
E eu ensinava Efraim a andar,
tomava-o nos braços...
Como te hei de abandonar, Efraim?
Deixar-te à mercê de outros, ó Israel?
(Os 11.3,8).
Do mesmo modo o profeta Jeremias encontrou
as intensidades mais comoventes para expressar o
perdão de Deus:
Com lágrimaspartiram,
no meio de consolações os trareide volta;
levá-los-eiaos arroios de água,
por um caminho reto, que os não cansará,
pois serei um paipara Israel
e Efraim será meuprimogênito (Jr 31.9).
A misericórdia paternal de Deus ultrapassa toda
compreensão humana:
Mas é Efraim para mim um filho tão caro,
filhinho de caricias...
Com efeito, apenas falo dele,
ou mesmo quando tão só dele me lembro,
basta-me isto para que se me comovam
por ele as entranhas
sinto deveras compaixão dele (Jr 31.20).
OJüDAÍSMO P aLESTINENSE 19
A última palavra do Antigo Testamento sobre a
paternidade divina é esse "saber" da incompreen­
sível misericórdia de Deus e de seu perdão.
2. O judaísmo palestinense
Assim como o Antigo Testamento, também oju­
daísmo palestinense anterior a Jesus Cristo é sóbrio
em falar de Deus como Pai. Assim, por exemplo, em
toda a literatura de Qiimran, que deve ser anterior a
68a.C., só existe uma passagem em que se dá o nome
de pai a Deus^ O judaísmo rabínico serve-se mais li­
vremente do título, mas sem excesso. Procurando sa­
ber o que os judeus contemporâneos de Jesus enten­
diam quando davam a Deus o nome de Pai,
precisamos frisar duas notas características. Em pri­
meiro lugar, tendo a menor familiaridade com o ju­
daísmo destaépoca,nãoacharemosestranhoverener­
gicamente sublinhada a obrigação de obedecer ao Pai
celeste. Os rabinos ensinavam que Deus estende sua
paternidade unicamente àqueles que cumprem a Lei
(Tora). Ele é pai dos que fazem sua vontade, dos jus­
tos. Contudo, encontra-se ainda e sempre a certeza
formidável dos profetas: o amor paternal de Deus é
sem limites e ultrapassa toda culpabilidade humana.
Quando o rabi Jehuda (cerca de 150 a.C.) ensinava:
Se agisseis como íilhos,
serieis chamados de filhos.
QH 9.55 S
20 A bba
Se não agisseis como filhos,
não serieis chamados de filhos.
O seu colega e adversário rabi Meir lhe opunha
esta frase de audaz brevidade:
De uma maneira ou de outra - sois
chamados de filhos^.
O amor paternal de Deus é sua primeira e últi­
ma palavra, por maior que seja a culpabilidade de
seus filhos.O segundo traço que caracteriza os tes­
temunhos judaicos desta época sobre a paternida­
de de Deus é o seguinte: Deus é chamado de Pai
várias vezes de cada israelita em particular, e a ele
se dirigem nas orações litúrgicas: abbinu, malkenu
- "nosso Pai, nosso Rei". Assim é possível ler em
uma oração que pode facilmente ser situada na
mesma época de Jesus:
Nosso Pai,nosso Rei,
em vista de nossospais
que crêem em ti
e a quem ensinas as leis da vida -
tem piedade de nós e ilumina-no^.
- Talmud Babilónico, tratado Qidduschim, 36‘
^(Baraitha).
’ Oração Ahabba rabba, a segunda bênção que introduzia o
Shema recitado diariamente de manhã e de tarde. Prova­
velmente já fazia parte da liturgia do Templo {Mischna,
Tratado Tamid, 5.L). Textos: W. B. H eidenheim, Siddur Se-
phath Emeth, Rodelheim, 1886, pp. 17a.l3s.
o Judaísmo Palestinexse 21
Isto é novidade com referência ao Antigo Testa­
mento. Contudo, há um certo número de coisas que
nãodevem sernegligenciadas.Primeiramente,estetex­
to está em hebraico, língua sacra, da qual não se abdi­
cava na vida cotidiana. Considere-se também o duplo
título de "nosso Pai, nosso Rei", que sublinha tanto a
majestade de Deus enquanto Rei como sua paternida­
de,emuitomais. Para terminar,éo conjunto da comu­
nidade que se dirige a Deus como "nosso Pai".
Até hoje ninguém forneceu um único exemplo
com origem no judaísmo palestinense em que Deus
seja chamado de "meu Pai" por um indivíduo^.En-
contram-se alguns casos no judaísmo helenístico,
mas são de influência grega. Entre os escritos pa-
lestinenses, só se pode citar um texto, de dois versí­
culos, muito semelhante do c. 23 do livro de Bern
Sira (começo do séc. II a.C.), que infelizmente só há
em grego. Aí se pode ler: "Ó Senhor, Pai e dono da
minha vida..." (v. 1) e: "O Senhor, Pai e Deus da
minha vida..." (v. 4). Estes dois versículos são os
únicos que fazem exceção à regra, e nós o acataría­
mos como sendo um prelúdio ao Evangelho, se não
houvesse sido descoberta, há cerca de uns 30 anos,
uma paráfrase hebraica deste texto. Nela não se diz:
"Ó Senhor, Pai...", mas: "Ó Deus de meu pai^..." Te­
mos aí evidentemente os termos do texto hebraico
^Existem alguns casos isolados no Sedher Eliyahu Rabba,
mas é um texto medieval (séc. 10?) do sul da Itália.
" J. M a r c u s, A fifth MS of Ben Sira, in; Jewish Quarterly Re­
view 21 (1930) p. 238.
22 A b b á
original,porque a expressão "Deus de meu pai", que
provém de Ex 15.2 estava muito dispersa e acha-se
alhures no Sirácida. Pode-se, portanto, dizer que
não existe até agora nenhuma prova de que no ju­
daísmo palestinense alguém se tenha dirigido a
Deus, chamando-o de "meu Pai".
3. "Abbá" nas orações de Jesus
Ora, é exatamente o que fez Jesus. Os discípulos
devem ter achado muito extraordinário Jesus se di­
rigir a Deus dizendo "meu Pai". Não só os quatro
evangelhos atestam que Jesus se dirigia a Deus nes­
tes termos, mas todos eles relatam que o fazia em
todas as suas orações^ Há uma única oração de Je­
sus onde falta o "meu Pai", e trata-se do grito na
cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abando­
naste?" (Mc 15.34, paral. Mt 27.46), citando o SI22.1.
Ainda não dissemos tudo: o que é mais notável
é o fato de Jesus, em suas orações, se dirigir a Deus
como ao seu Pai, servindo-se da palavra aramaica
abbá^.Marcos o afirma categoricamente no seu re­
lato da oração no Getsêmani: "Abbá (Pai)! tudo te é
possível: afasta de mim este cálice; todavia, não se
façao que eu quero, mas o que tu queres" (Mc 14.36).
Que Jesus tenha utilizado esta mesma palavra abbá
também nas suas outras orações, prova-se por uma
comparação das formas diferentes que a palavra
* 21 vezes (16 vezes se os paralelos forem contados uma só vez).
^O acento está ma última sílaba.
" A bbá" nas orações de Jesus 23
"pai" toma no grego. Ao lado do vocativo correto
jtárep / páte^ ou íráxep pm) / páter m oif, encon­
tramos o nominativo ó jiatfip / hopatér rva.função
de vocativo, o que é incorreto^“.Estas passagens do
vocativo ao nominativo, que aparecem num só e
mesmo lógion (Mt 11.25,26, parai. Lc 10.21) não se
podem explicar sem se considerar o fato de que a
palavra abbá - como o veremos - servia corrente­
mente no aramaico da Palestina no primeiro sécu­
lo, não só como invocativo, mas também para di­
zer "o pai" {status emphaticus). Digamos, enfim,
que sem contar Mc 14.34 e as variantes da palavra
"pai" em grego, possuímos uma terceira peça que
prova que Jesus dizia Abbá quando orava. São as
duas passagens de Paulo, em Rm 8.15 e G14.6. Elas
nos informam que as comunidades cristãs diziam
"Appá, ó íiaxfip / Abbá, ho patér" (Abbá, Pai) e ti­
nham-no como expressão produzida pelo Espírito
Santo. Aplica-se isto tanto às comunidades pauli-
nas (Gálatas) como às não-paulinas (Romanos), e
não há dúvida de que esta invocação seja um eco
das próprias orações de Jesus.
Não se encontra nada de comparável nas orações
judaicas do primeiromilênio antes de Cristo.Não exis­
tenenhum exemplono conjuntodasoraçõesdojudaís­
mo antigo - imenso tesouro muito pouco explorado -
» Mt 11.25 parai. Lc 10.21; Lc 11.2; 22.42; 23.34,46; Jo 11.41;
12.27s; 17.1,5,11,24,25.
’ Mt 26.39,42.
Mt 14.36; Mt 11.26 parai. Lc 10.21; Rm 8.15; G1 4.6; sem o
artigo unicamente nas variantes: Jo 17.5,11,21,24,25.
24 A bba
desta invocação dirigida a Deus coma Abbá,nem nas
orações propriamente litúrgicas nem nas outras.
Existe apenas uma passagem da literatura ju­
daica tardia, onde a palavra abbá se refere a Deus.
É a narração de um acontecimento que se deu pelo
fim do séc. I a.C. Refere-se a Hanin ha-Nehba, um
homem famoso por seu sucesso em orações para
obter chuva:
"Quando o mundo precisava de chuva, nos­
sos mestres tinham o costume de lhe mandar as
crianças das escolas, que se agarravam ao seu
manto e imploravam; Abbá, abbá habh lan m i­
tra-. papai, papai, dá-nos a chuva". E ele lhe (a
Deus) dizia: "Senhor do universo, concede-nos
(a chuva) em vista destes que não são ainda ca­
pazes de distinguir entre um abbáque tem o po­
der de dar a chuva e um abbá que não tem"“.
À primeira vista, parece que temos aí uma
amostra em que Deus é chamado de Abbá.Mas de­
vemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar,
a palavra abbáé aplicada a Deus como que a modo
de brincadeira. Hanin apela à misericórdia de
Deus, adotando o grito: "Papai, papai, dá-nos a
chuva", que as crianças repetem em coro, e cha­
ma a Deus de um "Abbá que tem o poder de dar a
chuva", como o fariam as crianças na sua lingua­
gem. Em segimdo lugar, e isto é o mais importante.
Talmud Babilónico, Tratado Ta^anith, 23b.
"A bba" nas orações de Jesus 25
Hanin não se dirige absolutamente a Deus como
Abbá; pelo contrário, invoca-o como "Senhor do
universo". Sem dúvida, a história constitui, de cer­
to modo, um prelúdio à afirmação de Jesus dizen­
do que o Pai celeste sabe do que precisam seus fi­
lhos (Mt 6.32 parai.), que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5.45), e dá coisas boas
aos filhos que lhas pedem (Mt 7.11 parai., Lc 11.13).
Mas isso não nos fornece a prova de um uso de
abbá para invocar a Deus. Deste modo não temos
nenhum testemunho do uso deste termo com tal
referência em todo o judaísmo.
Chegamos a um resultado de importância capi­
tal. De um lado, as orações judaicas não contêm um
só exemplo do emprego de abbá para dirigir-se a
Deus; por outro lado, Jesus a usava sempre quando
orava (com a exceção do grito na cruz em Mc 15.34).
Significaque temos aí,incontestavelmente,um traço
característico do modo como Jesus, e somente Je­
sus, se expressava, da sua ipsissima vox.
As razões pelas quais as orações judaicas não
se dirigiam a Deus como Abbá, se encontram ao
se considerar o fundo lingüístico da palavra. Origi­
nalmente, abbáíazm parte do balbucio infantil.O Tal­
mud diz; "Quando a criança começa a comer trigo
(isto é, quando é desmamada), aprende a dizer abbá
e iiTuná"(ou seja, papai e mamãe são as primeiras
palavras que ela diz)^^. Igualmente, Pais da Igreja,
Talmud Babilónico, Tratado Berachoth, 40a (Bar.) paral.
Tratado Sanhedrin, 70b (Bar.).
26 A bbá
como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e
Teodoreto de Ciro, os três nascidos em Antioquia
de pais ricos, mas, segundo todas as possibilidades,
educados por amas sírias, nos dizem, por sua pró­
pria experiência, que as criancinhas tinham o cos­
tume de chamar seu pai de Abbá. Quando comecei
este estudo, que me exigiu alguns anos de trabalho,
pensava que Jesus tinha simplesmente adotado este
balbucio infantil. Mas não demorei a constatar que
esta conclusão era muito apressada, pois ignorava
o fato de que já na época pré-cristã, esta palavra,
que se originava da linguagem dos bebês, tinha re­
cebido um sentido mais amplo no aramaico da Pa­
lestina. Para dirigir-se a seu pai, a forma abbá su­
plantou a antiga forma abbi, usada no aramaico
palestinense até pelo menos o séc. II a. C ., como
constatamos pela documentação. Além disso, abbá
tomou o sentido de "meu pai", e de "o pai", e subs­
tituiu na época até mesmo "seu pai" e "nosso pai".
De tal modo que a palavra não era apenas parte do
linguajar das crianças. Os jovens de ambos os sexos
também chamavam o próprio pai de Abbá (cf. Lc
15.21), não recorrendo à palavra "Senhor" (Kúpie
/ Kyriê) a não ser em uso cerimonioso (cf.Mt 21.29-
30). Mas, apesar destes desenvolvimentos, jamais
caiu no esquecimento o fato de que esta palavra
provinha do linguajar infantil.
Eis-nos, pois, autorizados a dizer porque abbá
não se usa nas oraçõesjudaicas para invocar a Deus:
seria desrespeitoso, e portanto impensável para
uma mentalidade judaica, chamar a Deus com um
A PATERNIDADE DE D e US NOS E v a NGELHOS 27
nome tão familiar^^. Foi algo de novo, linico e inau­
dito, ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a
Deus como uma criança fala ao seu pai, com sim­
plicidade, intimidade e sem temor. Portanto, não há
dúvida alguma de que a palavra abbá,utilizada por
Jesus para dirigir-se a Deus, revela o próprio fun­
damento de sua comunhão com ele.
4. Á paternidade de Deus nos Evangelhos
Dever-se-ia considerar esta maneira infantil de
se dirigir a Deus como a última etapa do desenvol­
vimento geral das relações do homem com Deus,
ou não haveria aí algo mais? Para obter a resposta,
ampliemos o nosso exame das fontes.
Até agora nos restringimos à invocação de Deus
como Pai nas orações de Jesus. Daremos um passo
adiante, considerando as palavras em que Jesus fala
de Deus como de um pai. Ou seja, nossa intenção
vai passar da invocação "meu Pai" à maneira pela
qual Jesus diz que Deus é "Pai".
Encontramos, nos Evangelhos, nada menos do
que sessenta vezes a palavra Paipara Deus nos lábios
de Jesus. À primeira vista, não parece haver a me­
nor dúvida de que, para Jesus, "Pai" seja a designa­
ção de Deus. Mas será assim mesmo? Ao se classifi­
car os textos de acordo com as cinco camadas da
Só existe no hassidismo (que surgiu no séc. 18) este modo
familiar de se dirigir a Deus (utilizando-se, por exemplo,
os diminutivos), como notou ao autor o Dr. Ja co b T au bes
de New York.
28 A bba
tradição que se podem discernir nos Evangelhos,
achamo-nos diante do seguinte quadro (os parale­
los sínóticos são contados uma só vez, e a invoca­
ção 'Tai" é excluída):
Marcos 3 vezes
Ditos comuns a Mateus e
a Lucas (coleção dos Lógià) 4 vezes
Ditos próprios de Lucas 4 vezes
Ditos próprios de Mateus 31 vezes
João 100 vezes
Este exame mostra que houve uma crescente ten­
dência a introduzir a designação de Deus como Pai
nas palavras de Jesus. Marcos, a coleção dos Lógia e
os elementos próprios de Lucas, todos estão de acor­
do, de modo que sepode dizer que Jesus se servia da
palavra "Pai" para designar a Deus somente em cer­
tas circunstâncias. Em Mateus, acha-se uma progres­
são sensível no uso do termo, e em João "Pai" quase
que setomou sinônimode Deus.Jesus,aparentemen­
te, servia-se do nome de "Pai" unicamente em cir­
cunstâncias particulares. Mas por quê?
Os poucos casos de uma designação de Deus
como Pai, que as camadas mais antigas da tradição
testemunham, são de dois tipos: um primeiro gru­
po, em que Jesus fala de Deus como "vosso Pai", e
um segundo grupo em que Jesus o chama de "meu
Pai". Os ensinamentos sobre "vosso Pai" apresentam
Deus como o pai que sabe do que necessitam seus
filhos (Mt 632 e paral. Lc. 12.30), que é misericordioso
APATERNIDADE DE D e US NOS E v ANGELHOS 29
(Lc 6.36) e de bondade infinita (Mt 5.45), que pode
perdoar (Mc 11.25), e cujo prazer é conceder o rei­
no ao pequeno rebanho (Lc 12.32). Nas camadas
mais antigas da tradição, as afirmações sobre "vos­
so Pai" parecem terem sido todas dirigidas aos dis­
cípulos. É uma das características da ôiôaxfi / di-
daché (instrução) reservada aos discípulos, do
ensinamento ao discipulado de Jesus. Àqueles que
estavam fora do círculo, parece que Jesus não falou
de Deus como Pai a não ser por meio de parábolas e
figuras.
Entre estes ditos, o mais importante é Mt 11.27
e o paral. Lc 10.22:
Tudo me foientreguepormeu Paf
eninguém conhece o Filhosenão o Pai,
e ninguém conhece o Paisenão o Filho
e aquele a quem o Filho o quiserrevelar.
Em sua História deJesud^,Karl von Base, que há
cem anos era professor de História da Igreja em lena,
foi o primeiro a comparar este trecho sinótico com as
características textuais joaiünas. Neste destacavam-
se saltavam à vista como joânicas: primeiramente, a
frase sobre o conhecimento mútuo que era considera­
da como um termo técnico tirado do misticismohele-
nístico; a seguir, a designação de Jesus como "o Fi­
lho" que caracteriza a cristologia joânica. Por muito
tempo se teve como certo que Mt 11.27 era produto
Die GeschichteJesu, Leipzig, 1876, 2"‘ed., p. 422.
30 A bba
do cristianismo helenístico. Todavia, recentemente a
tendência começou a mudar. Reconheceu-se cada vez
mais que, como o expressou T. W. M anson, "a passa­
gem está cheia de semitismos e certamente de origem
palestinense", ou, como o disse W. L. Knox, é "pura­
mente semítico"^^ De fato, a linguagem, o estilo e a
estrutura possibilitam situar este trecho num meio de
língua semita“.Épossível responder, num plano pu­
ramente lingüístico, às duas objeções que acabam de
ser mencionadas. Já em 1898, G. Dalman^^ chamou a
atenção para o fato de que o hebraico e o aramaico
não têm pronomes que expressem a reciprocidade
("um e outro", "cada um"). Servem-se, no seu lugar,
de uma circunlocução para falar de ação recíproca.
Além disto, é preciso lembrar-se de que em aramaico,
e em particular com referência às figuras e às compa­
rações, o artigo indefinido é muitas vezes usado num
sentido genérico. Levando-se em conta estes fatos, é
T . W. M a n so n , The Sayings ofJesus, Londres, 1937-1950,
79; W. L. K n o x , SomeHellenisticElementsinprimitive Chris­
tianity (Schweich Lectures 1942), Londres, 1944, p. 7.
W. D. D a v ie s chega à mesma conclusão, quando compara
o papel do "conhecimento" em Mt 11.27 e nos manuscri­
tos; ele mostra que nos dois casos encontra-se a mesma
mistura de intuição escatológica e de conhecimento de
Deus ( "Knowledge in the Dead Sea Scrolls and Matthew
11.25-30", in: Harvard Theological Review 46 (1953)
pp. 113-139, reeditado em W. D . D a v ie s, Christian Origins
andJudaism, Filadélfia e Londres, 1962, pp. 119-144).
G . D a l m a n , Die WorteJesu I, Leipzig, 1898 T ecf. - 1930,
pp. 231s (tr. inglesa: The Words ofJesus I, Edimburgo,
1902, pp. 282s).
A PATERNIDADE DE D e u S NOS E v ANGELHOS 31
preciso traduzir Mt 11.27 do seguinte modo: "Como
só um pai conhece o seu filho, assim só um füho co­
nhece seu pai". Isto significa que o textonão fala mais
de uma união mística {imiomysticà) fundada em um
conhecimento recíproco, e não emprega o título cris-
tológico"oFilho".AspalavrasdeJesusexpressamsim­
plesmente uma experiência cotidiana: só um pai eum
füho é que se conhecem mutuamente. Se isto está cer­
to, então Mt 11.27não éum versículojoânicono meio
de elementos sinóticos, mas antes um dos temas que a
teologia joânica haveria de desenvolver. Se não hou­
vesse pontos de partida desta natureza dentro da tra­
dição sinótica, a origem da teologia joânica permane­
ceria um eterno enigma. A palavra relatada por Mt
11.27 constitui uma perícope de quatro linhas. O pri­
meiro versículo indica o tema: "Tudo me foientregue
por meu Pai". Isto é: Meu Pai me concedeu um total
conhecimento de si mesmo. Os três versículos restan­
tes elucidam este tema por meio da comparação "pai-
fUho". Livremente parafraseados, eles dizem: "E por­
que um pai e um filho se conhecem verdadeiramente
um ao outro,um fühopode revelara outros ospensa­
mentos mais secretos do seu pai". Contudo, é preciso
saber que a relação "pai-filho" é familiar na apoca­
lípticapalestinensepara üustrara transmissãode uma
revelação. "Como um pai eu lhe revelei todos os se­
gredos", diz Deus no (Terceiro) Livro de Enoque^®. E
em outra passagem, um rabi relata: o mensageiro ce­
leste me mostrou as coisas que estavam tecidas na
3 Enoque 48 (C.) 7.
32 Abba
cortina celeste... "indicando mas com o dedo, como
um pai que ensina ao seu filho as letras da Torá"''^.
Portanto, se Jesus interpreta o tema "Tudo me foi en­
tregue por meu Pai" com o auxílio desta relação pai-
filho, o que ele quer dar a entender sob o véu de uma
figura cotidiana é o seguinte: como um pai que se de­
dica pessoalmente a mostrar ao seu filho as letras da
Torá,assim Deusme transmitiu arevelação de simes­
mo, e,conseqüentemente, só eu posso ensinar aos ou­
tros o verdadeiro conhecimento de Deus.
Este lógion,pelo qual Jesus dá testemunho de si
mesmo e de sua missão, não está isolado nos Evan­
gelhos^®. Citamos aqui apenas uma variante de
Mt 11.27 que remonta a uma antiga tradição ara-
maica-^ e esteve espalhada no séc. II entre a seita
gnóstica dos marcosianos. Segundo este texto, Je­
sus exclamou:
Sim,meu Pai,pois talfoitua vontade ameu res­
peito.
Esta variante da exclamação em Mt 11.26 po­
deria muito bem ser secundária. Contudo, ela faz
vibrar a nota original da alegria de Jesus pela reve­
lação que lhe foi concedida, alegria que impregna
igualmente nosso texto:
3 Enoque 45.1s.
Cf. p. ex. Mc 4.11; Mt 11.23; Lc 10.23s.
Ir in e u , Adv. Haer. I, 13.2; W. G r u n d m a n n , Die Geschichte
Jesu Christi, 1956, p. 80.
A PATERNIDADE DE D e L'S NOS E v ANGELHOS 33
"Sim, Abbá, porque assim foi do teu agrado".
Assim, quando Jesus falava de Deus como de
"meu Pai", ele' aludia não a uma familiaridade e a
uma intimidade com Deus que fosse acessívela todo
mundo, mas a uma revelação única que lhe fora
concedida. Ele fundamenta sua autoridade sobre o
fato de Deus o ter misericordiosamente dotado da
plenitude da revelação, revelando-se a si como só
um pai pode se revelar ao filho. Abbá é então uma
palavra que sugere a revelação. Ela representa o
cerne da consciência que Jesus tmha de sua missão.
Procurando-se as prefigurações desta relação
única para com Deus como Pai, deve-se remontar à
profecia de Natã a respeito de Davi: "Eu serei para
ele um pai e ele será para mim um filho" (2Sm 7.14,
e o parai. 1Cr 17.13), e às palavras referentes ao rei
nos Salmos 2.7; 89.27s.
Ele me invocará: Vóssois meupai
meu Deus e a rocha de minha salvação!
E eu o constituireio meuprimogênito^
excelso entre os reis da terra.
Das Pseudo-epígrafes, podemos citar a promes­
sa feita ao Messias sacerdotal, de que Deus lhe fala­
rá "com uma voz paternal" (Testamento de Levi
18.6), e a afirmação referente ao Messias de Judá,
que assegurava que "as bênçãos do Pai santo" se­
rão derramadas sobre ele (Testamento de Judá
24.2). Isto significa que o "meu Pai" de Jesus só foi
34 Abba
preparado no contexto das esperanças messiânicas.
Mt 11.27 implica, portanto, que as promessas fo­
ram cumpridas em Jesus.
5. A oração do Senhor
Somente se a virmos contra este pano de fundo
é que podemos compreender, no seu sentido mais
profundo, a oração do Senhor“^.
Ela chegou até nós sob duas formas: a) a mais
breve em Lc 11.2-4, e b) a mais longa em Mt 6.9-13.
Enquanto que ninguém teria ousado encurtar este
texto capital, é fácil de se imaginar um alargamen­
to do texto em relação com o seu emprego litúrgico.
A versão mais breve, a de Lucas, deve ser a mais
antiga. Aqui a oração se endereça simplesmente ao
Páter, o equivalente de Abbá:
Para compreender o que este apelativo signifi­
cava para os discípulos, é preciso referir-se às cir­
cunstâncias em que Jesus ensinou aos seus discípu­
los o Pai-nosso. Segundo Lc 11.1, eles tinham pedido
a Jesus: "Senhor, ensina-nos a orar". E preciso dizer
que este pedido impHcava, da parte dos discípulos, o
desejo de ter uma oração própria, só deles, como os
discípulos do Batista ou os fariseus e os essênios ti­
nham suas orações próprias, penhor de sua comu­
nhão. "Senhor, ensina-nos a orar" significa portanto:
Cf. para mais detalhes o meu estudo: The Lord's Prayerin
Modern Research, in Expository Times 71 (1959-1960)
pp. 141-146; texto revisto: The Lord's Prayer (Facet Books,
Biblical Series 8), Filadélfia, 1964.
AORAÇÀo DO S e n h o r 35
"Senhor, dá-nos uma oração que seja o sinal e o dis­
tintivo de teus discípulos".
Jesus atendeu a este pedido, e, fazendo-o, auto­
rizou primeiramente e antes de tudo os seus discí­
pulos a fazerem como ele e a dizerem Abbá. Deu-
lhes esta expressão como prova de sua qualidade
de discípulos. Pela autorização que lhes concedia
de invocarem também eles a Deus como Abbá,per­
mitia-lhes que participassem de sua própria comu­
nhão com Deus. Ele chega até mesmo a dizer que
somente aquele que puder repetir este Abbá entra­
rá no reino de Deus^^ Esta invocação Abbá,pronun­
ciada pelos discípulos, é uma participação na reve­
lação, é a escatologia realizada. E a presença do
reino já aqui, atualmente. É cumprimento, conce­
dido por antecipação, da promessa:
Eu sereio seupai
e elesserão meusfílhos.
Todos eles serão chamadosfilhos
do Deus vivo (Jubileus 1.24s).
É assim que Paulo compreendia esta invoca­
ção quando dizia, por duas vezes, que a repetição
da palavra Abbá era a prova de que um cristão
entrava na posse da filiação e do Espírito (Rm 8.15;
G14.6). As antigas liturgias cristãs evidenciam bem
a consciência da importância deste dom quando
^ J. Jeremias, The Parables ofJesus, ed. revista Londres e
Nova Iorque, 1963, pp. 190s (trad, bras: As parábolas de
Jesus, Ed. Paulus, São Paulo, 1976).
36 A bbA
fazem preceder à oração do Senhor as palavras:
"ousamos dizer: Pai nosso".
6. Conclusão
Tudo isto nos leva a uma conclusão de impor­
tância capital.
Sustentou-se muitas vezes que não sabemos
quase nada do Jesus histórico. Que não o corhece-
mos senão pelos Evangelhos, que não são relatos his­
tóricos, mas antes profissões de fé. Que não conhe­
cemos senão oCristo do querigma,em queJesus está
envolvido pela veste do mito; basta pensar-se nos
numerosos milagres que lhe são atribuídos. O que
descobrimos, ao aplicar a crítica histórica à análise
das fontes, é um profeta poderoso, mas um profeta
que não ultrapassou absolutamente os limites do ju­
daísmo. Este profeta pode apresentar interesse para
a história, mas não tem e não pode ter significação
ara a fé cristã. O que importa é o Cristo do querig­
ma. O cristanismo começa na páscoa.
Mas, se é verdade - e o testemunho das fontes
não deixa nenhuma dúvida acerca disto - que Abbá
como invocação de Deus é uma ipsissima vox, uma
expressão autêntica e original de Jesus, e que este
Abbá explica a reivindicação de uma revelação e
autoridade línicas - se tudo isso é verdade, então a
posição acerca do Jesus histórico, que acabamos de
lembrar, é insustentável. Porque, com Abbá, situa­
mo-nos além do querigma. Achamo-nos diante de
algo novo e inaudito, que ultrapassa os limites do
C onclusão
37
judaísmo. Aí descobrimos quem era o Jesus históri­
co: o homem que tinha o poder de se dirigir a Deus
como Abbá, e que fez publicanos e pecadores en­
trarem no reino, simplesmente os autorizando a re­
petir esta palavra "Abbá, Pai querido".
Capítulo II
A MORTE DE JESUS
COMO SACRIFÍCIO
1. A paixão na Epístola aos Hebreus e na
primeira Epístola de Pedro
No âmbito do Novo Testamento é a Epístola aos
Hebreus que mais detalhadamente expõe o signifi­
cado da cruz. Esta exortação dirigida a cristãos pro­
venientes do paganismo (Hb 13.22) caracteriza-se
pelo vigor e clareza de pensamento teológico. Faz
uma distinção entre catequese elementar (5.12) e
conhecimento mais aprofundado (6.1), isto é, entre
um ensinamento aos recém-chegados ao cristianis­
mo e um reservado aos iniciados. Esta distinção de
modo algum é "gnóstica". Ela provém da tradição
cristã: encontra-se em Paulo (1 Co 2.6ss) e, já antes
dele, no próprio Jesus, cuja pregação apresenta um
ensinamento público como distinto de um ensina­
mento reservado de modo especial aos discípulos.
40 A MORTE DEJesus como SACRrricio
De acordo com a Epístola aos Hebreus, a cate­
quese elementar referente a Cristo (6.1) abarcava o
convite à conversão e à fé (é o próprio conteúdo a
pregação missionária, cf 1 Ts 1.9s e At 20.21), bem
como uma catequese sobre o batismo e as últimas
coisas (é o conteúdo das catequeses catecumenais:
Hb 6.2). A teologia reservada aos iniciados compre­
endia sobretudo, além da catequese eucarística^, o
que se refere à oferta que Cristo, o sumo-sacerdote
celeste, faz de si próprio. É este o ponto desenvolvi­
do pela passagem central da Epístola (Hb 7.1-10.8).
Mostram-nos estes quatro capítulos que, na nova
ordem das coisas tal qual Deus a quis. Cristo é o
sumo-sacerdote que ofereceu o seu próprio sangue
no santuário celeste, sendo assim, ao mesmo tem­
po, sacerdote e vítima.
A fim de explicitar o sentido da morte de Jesus, a
Epístola aos Hebreus utiliza as figuras e representa­
ções fornecidas pelo ritual do Grande Perdão, minu-
ciosamente descrito em Lv 16.0 Dia do Grande Per­
dãoeraparaosjudeusogrande diadoarrependimento
e expiação, o único dia do ano em que pés humanos
pisavam o chão do Santo dos Santos. Tremendo -
porque a menor falha no ritual acarretaria morte
certa -, o sumo-sacerdote, na obscuridade por detrás
do cortinado, fazia por duas vezes a aspersão expia­
tória com o sangue: por si mesmo e por sua família
primeiramente, e depois por Israel. A Epístola aos
* Não se fala da ceia na enumeração dos temas de catequese
(Hb 6.2), não se fazendo menção dela a não ser em 13.10.
A PAIXÃONA Epístola aos H ebreus e na Primeira Episrola de Pedro 41
Hebreus vai aplicar tipologicamente este rito a Cris­
to de duas maneiras diversas. O Autor refere-se pri­
meiramenteao ritomaisantigo ecomparaCristocom
a vítima sem mancha. Mas, diversamente das víti­
masdaAntigaAliança,amortedeJesus,porseu valor
vicário, obteve de uma vez por todas o perdão total
ereestabeleceu aplena comunhão de vida com Deus.
A esta interpretação o autor acrescenta uma outra,
lançando mão do versículo 4 do salmo 110: Cristo é
ao mesmo tempo o sumo-sacerdote eterno e isento
de pecado. E ele que, após realizar uma vez por to­
das a expiação, se mantém continuamente diante de
Deus a fim de interceder em favor dos seus, pelos
quais está cheio de compaixão e misericórdia (7.25;
9.24; cf. 2.18; 4,14-16).
Esta cristologia reservada aos "iniciados" é um
ensaio muito penetrante que visa fazer a comunida­
de aproximar-se, de um modo novo, do mistério da
cruz, com a ajuda da interpretação tipológica de Lv
16.Concretamente, esta tipologia tem a intenção de
mostrar que a sexta-feira santa é o dia do Grande
Perdão na Nova Aliança, e todas as festas do Gran­
de Perdão, celebradas cada ano, não passavam de
tipo e figura. Isto acarreta duas conseqüências: pri­
meiramente, este caráter vicário que representa a
morte do Inocente no Gólgota faz cessar uma vez por
todas (7.27; 9.12; 10.10) o apelo ao perdão divino; e,
por outro lado, o fruto desta expiação etemamente
válida continua a ser ofertado, porque opróprio Cris­
to, que foi tentado, intercede pela comimidade dos
seus, por sua vez também tentada.
42 A MORTE DE Jesus como sacrifício
Nesta explicação da morte de Jesus, as figuras
tipológicas usadas têm pouca importância. De fato,
tudo depende daquilo que, sob a luz e a ajuda da
tipologia, no fundo se quer expressar. E aí se trata o
duplo "por nós": "ele morreu por nós" e "entrou
por nós no santuário celeste".
E o que emerge claramente, quando nos volta­
mos para aprimeira Epístola de Pedro. Esta, como
a Epístola aos Hebreus, retoma a antiga compara­
ção com a vítima sacrificada: é Cristo o verdadeiro
cordeiro sem defeito e sem mancha (1.8s), morto a
fim de expiar de uma vez por todas os pecados
(3.18). Por outro lado - e este é o segimdo ponto de
vista - a primeira Epístola de Pedro alude ao capí­
tulo 53 de Isaías: o hino a Cristo, que se acha na
Epístola (2.22-25) celebra-o como o Servo de Deus,
como aquele que, no madeiro, levou os nossospe­
cados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos
para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça;
aquele por cujas feridas fomos curados (2.24). Ei-
nalmente, em terceiro lugar, sempre para explici­
tar este sentido da morte de Jesus, a Epístola reto­
ma de modo expressivo o tema teológico da descida
e da pregação aos infernos (3.19s e 4.6).
Para compreender esta passagem, é de extrema
importância saber que dela temos uma prefigura­
ção, ainda que em sentido oposto, na versão etíope
do Livro de Enoque, apócrifo que recebeu sua for­
ma atual depois da invação dos partos em 37 a.C.
Nos capítulos 12-16 deste livro, narra-se como Eno­
que é encarregado de ir ter com os anjos decaídos
A PAIXÃON
AEpístola aos H ebreus e na Primeira Epísrola de Pedro
43
(cf. Gn 6) para lhes informar "que eles não recebe­
rão nem paz nem perdão" e que Deus rejeitará todo
pedido de paz e misericórdia. Tomados de pavor e
tremendo, pedem a Enoque que componha uma sú­
plica em que implorem perdão e indulgência. Eno­
que é então arrebatado até ao trono em que Deus
está sentado, em meio a um fogo cintilante, e aí re­
colhe o oráculo a se comunicar aos anjos decaídos
como resposta à sua súplica. A sentença se formula
breve e terrível: "Não tereis a paz!" Dificilmente se
poderá duvidar que o tema teológico da descida aos
infernos tenha sua prefiguração neste mito de Eno­
que. Uma vez mais, um enviado de Deus apresenta-
se com uma mensagem divina para os espíritos de­
sobedientes que habitam as trevas profundas da
prisão subterrânea. Mas, ao passo que Enoque teve
de declarar em sua mensagem a impossibilidade do
perdão, o anúncio que Cristo faz é diametralmente
oposto: refere-se à Boa-nova (4.6). Mesmo para os
que estavam perdidos sem esperança, a morte ex­
piatória do Justo adquire o perdão.
As duas Epístolas, adirigida aosHebreus eapri­
meira de Pedro, têm a intenção de ilustrar o que se
passou na sexta-feira santa, mas empregam para
tanto imagens basicamente diversas. A Epístola aos
Hebreus fala da subida de Jesus aos céus "por um
espírito eterno" (9.14), a fim de apresentar, ele pró­
prio, o seu sangue no santuário celeste. A primeira
Epístola de Pedro fala da descida àsprofundezas dos
infernos a fim de anunciar a Boa-nova aos espíri­
tos prisioneiros. "Subida aos céus" e "descida aos
44 A MORTE DEJesus como sacrifício
infernos", ambas servem à explicação do aconteci­
mento da sexta-feira santa.
Digamos em duas palavras o porquê desta apro­
ximação. Com efeito, é preciso saber que, no decur­
so do séc. I d.C., as representações do judaísmo an­
tigo acerca da sorte das almas depois falecimento
sofreram total transformação. Segundo a concep­
ção antiga, ainda considerada autoritativa, os in­
fernos {ohades) eram o lugar das almas dos defun­
tos. Mas, ao lado desta maneira de ver, impunha-se
pouco a pouco, sob o impacto do pensamento hele-
nístico, uma nova representação, segundo a qual as
almas dos justos ficavam no mimdo celeste, no pa­
raíso. É esta transformação que explica porque, no
Novo Testamento, não é uniforme o que se diz da
sorte de Jesus entre a sexta-feira santa e a Páscoa:
em Rm 10.7, Paulo fala de "abismo", ao passo que
Lc 23.24 fala do paraíso. Assim se justapõem os te­
mas da descida aos infernos e da subida aos céus,
ao se evocar o destino de Cristo após a morte. Pau­
lo, aprimeira Epístola de Pedro eo Apocalipse apóiam
a primeira concepção. E Lucas, a Epístola aos He­
breus e o Evangelho de João, a segunda. É, portan­
to, o tema da subida aos céus que utiliza a Epístola
aos Hebreus, ao apresentar-nos o sumo-sacerdote
oferecendo seu próprio sangue no santuário Celes­
te. E é o tema da descida aos infernos que emprega
a primeira Epístola de Pedro a fim nos descrever o
enviado de Deus, perante o qual se abrem as portas
do mundo subterrâneo, ao vir ele trazer a Boa-nova
aos réprobos.
A póstolo Pallo 45
Portanto, as imagens e temas usados são diver­
sos, o que para nós é salutar advertência a não os
sobrestimarmos. Mas o que se quer em definitivo
exprimir é idêntico nos dois casos, e este é o ponto
decisivo. Porque as duas Epístolas, uma sob ima­
gem tomada do culto, e a outra sob imagem busca­
da no mito, têm a intenção de expressar a mesma
verdade: a virtude expiatória da morte de Cristo tem
valor para a eternidade e desconhece limites.
2. Apóstolo Paulo
Pode-se detectar, tanto na Epístola aos Hebreus
como na primeira Epístola de Pedro, quanto, sob
muitos pontos de vista, sua teologia é devedora à
de Paulo. Pois, se, remontando à tradição, nos vol­
tarmos às passagens das epístolaspaulinas que in­
terpretam o sentido da morte de Cristo, uma nova
imagem se nos oferece. Não que Paulo nos propor­
cionasse algo de objetivamente diverso do que nos
apresentam os escritos pós-paulinos. Pelo contrá­
rio! Pois é uma das características do nosso tema
estapermanência do mesmo conteúdo objetivo atra­
vés das diversas exposições sobre este assunto em
todo o Novo Testamento. A diferença é de outra
natureza.
A Epístola aos Hebreus, como vimos, esforça-
se, na forma duma reflexão teológica, por apresen­
tar e desenvolver o mistério da cruz em desdobra­
mentos tipológicos profundamente refletidos e
cuidadosamente pesados. Em Paulo, pelo contrário.
46 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io
sentimos ainda a atmosfera candente das lutas que
teve de travar a fim de fazer inteligível o conteú­
do central da sua mensagem, duramente combati­
do. Gostaria de torná-lo acessível através de duas
observações.
Primeiramente, é notável que no Novo Testa­
mento as palavras "cruz" e "crucificar" se achem
quase somente em Paulo, se prescindirmos dos
evangelhos; encontram-se nele dez vezes o subs­
tantivo (alhures apenas em Hb 12.2) e oito vezes o
verbo (que não se encontra alhures a não ser em
At 2.36 e 4.10; Ap 11.8)^. Quando nas epístolas não
paulinas, nos Atos dos Apóstolos e no Apocalipse
se fala da morte de Jesus, são outras as expressões
que se utilizam: fala-se aí de seus sofrimentos, de
sua morte, de seu sangue, e da oferta do seu corpo,
ou seja, de sua execução, mas se evitam as duas
palavras "cruz" e "crucificar". Assinalemos, além
disto, o emprego, por cinco vezes, do termo "ma­
deiro" para designar a cruz^ Não pode ser efeito
do acaso. Mas então como explicar este fato estra­
nho? Uma expressão de 1 Co 1.18 pode nos escla­
recer . Encontra-se aí - e é o único caso em todo o
Novo Testamento - a expressão: "a mensagem {ló-
gos), a da cruz". A repetição do demonstrativo, que
não é usual na língua do Novo Testamento, distingue
- Fora dos evangelhos, a expressão "ser crucificado com (o
Cristo)" só se acha em Paulo (Rm 6.6; G1 2.19); em todo o
Novo Testamento, só se encontra "crucificar de novo" em
FIb 6.6.
3At 5.30; 10.39; G1 3.13; 1 Pd 2.24.
A i« tolo Pal lo 47
a “mensagem" cristã de outras mensagens. K. H.
R engstorf^ demonstrou de modo muito claro que
“linguagem" tem aí, como em 1Co 15.2, o sentido
de “relato cultual". A pregação cristã é, portanto,
apresentada em 1 Co 1.18 como o "relato cultual
sobre a cruz", onde "cruz" se coloca no lugar de
“suspenso à cruz". Representemo-nos o que há de
ofensivo nesta formulação: “o relato cultual sobre
o suspenso", para expressar o caráter incôngruo,
até mesmo chocante, da mensagem cristã; obser­
vemos que, além disto, aí nem se fala da ressurrei­
ção. Parece que não seria errado concluir que esta
expressão tem sua origem entre os adversários da
comunidade cristã, e expressa do modo mais ade­
quado suas chacotas e seu sarcasmo. De mais a
mais, para confirmar esta hipótese, basta ler a se-
qüência da frase, que diz brutalmente: este “rela­
to cultual sobre o suspenso" é loucura para os que
se perdem. E alguns versículos adiante, Paulo
acrescenta: para os judeus, a mensagem de um sal­
vador suspenso à cruz é um escândalo, um discur­
so blasfematório, e, para os pagãos, é simplesmen­
te uma loucura. Tudo isto reflete o eco normal da
mensagem cristã e Paulo o sentiu centenas de ve­
zes. Com certeza, estes sarcasmos continuaram
sendo parte do arsenal dos adversários do cristia­
nismo; mas nos primeiros tempos, em que estas
zombarias eram ainda novas, teriam ferido forte­
mente os pregadores do Evangelho.
^K. H. R en g sto r f, Die Auferstehung Jesu, Witten, 1960, 4®
ed., p. 19.
48 A MORTE DEJiSLSCOMO SACRIHCIO
Havia duas maneiras de prevenir este sarcas­
mo: uma delas consistia em tentar amenizar ou até
mesmo eliminar esteaspecto chocante da mensagem.
É a via por que entrou a Gnose, e sobretudo o "do-
cetismo", que a primeira Epístola de João mostra
que já ia se implantando desde o primeiro século
depois de Cristo, e que ensinava que somente o ho­
mem Jesus fora suspenso na cruz, enquanto que o
Cristo havia se separado dele antes da paixão. E sig­
nificativo que Paulo nem sequer tentou tomar de
empréstimo tal insensatez. Pelo contrário, envere­
dou-se por outra via: anunciar a mensagem irascí­
vel em toda asua dureza, sem condescendência nem
concessão, mas refletindo ao mesmo tempo sobre
recursos que poderiam ajudar seus ouvintes a abrir
a inteligência. Tal é o seu pensamento, quando fri­
sa que o Cristo crucificado foi o único conteúdo de
sua pregação missionária na Calácia (Cl 3.1) e em
Corinto (1 Co 1.23; 2.3) e sua única glória (Cl 6.14).
Uma segunda passagem nos faz ver ainda mais
diretamente como a explicitação do sentido da cruz,
que depois fixou-se na Igreja de modo sólido e se­
guro, deve ter se estabelecido a duras penas nos pri­
meiros tempos. Pensona sentença de Cl3.13: "Cristo
se tomou maldição por nós". Façamos de imediato
duas observações acerca do estilo: a primeira para
frisar que o passivo "tornou-se" é um modo de
transcrever o nome divino, como o confirma 2 Co
5.21 ("Deus o fez pecado por nós"); por outro lado,
considerando-se o modo semita de se expressar, a pa­
lavra "maldição" é usada por "maldito". Por isso.
A póstolo Palix) 49
precisamos traduzir G1 3.13 assim: "Deus fez Cristo
maldito por nós". Paulo está se referindo aí à passa­
gem de Dt21.23: "Todo osuspenso no madeiro éum
homem maldito por Deus". A frase da Epístola aos
Gálatas nos é tão familiar que nem sentimos mais o
que ela tem de assombroso. Talvez opossamos pres­
sentir, se acrescentarmos que não existe nenhum
autor do Novo Testamento que tenha ousado dizer
algo que se aproximasse disso. Paul P e i n e ® foi pri­
meiro a ver - e um trabalho muito recente o reto­
mou expressamente^ - que só pode haver uma ex­
plicação para a audácia desta frase: ela nasceu no
período anterior ao episódio de Damasco. Era o tem­
po em que SauloperseguiaJesus de Nazaréna pessoa
dos seus adeptos, porque ele o considerava como ex­
pressamente maldito por Deus: então ele o blasfema­
va (1Tm 1.13) e tentava por meios violentos forçar os
discípulos a também blasfemá-lo (At 26.11), isto é, a
exclamar: "Jesus é um maldito!" (1 Co 12.3). E é, en­
tão, que no caminho de Damasco, o maldito lhe apa­
rececingido daprópria glória de Deus.A frase: "Deus
o amaldiçoou" permanecerá, mas completada dora­
vante por estas duas palavras: "por nós, por mim"
(G12.20). E desde então Paulo, por toda a sua vida, é
prisioneiro do Crucificado, como Inácio de Antioquia
dirá de simesmo que éuma "vítimahumÜde da cruz"
(Epístola aos Efésios 18.1).
P. Feine, Das gesetzesfreie Evangelium des Paulus, Leip­
zig, 1899, p. 18.
^G. Jeremias, DerLehrer der Gerechtigkeit, Goettingen, 1963,
pp. 134ss.
50 A MORTE DE Jesus como sacrifício
Não é, pois, exagero dizer que toda a cristologia
de Paulo está decididamente centrada neste esfor­
ço para tornar compreensível para os seus leitores
e ouvintes este "por nós", esta suplência de Cristo
em nosso favor; e, para consegui-lo, ele lança mão
de imagens sempre novas, emprestadas de quatro
domínios diversos.
1. A tradição lhe fornecia toda uma série de idéias
e expressões tiradas do domínio cultuai. No capítulo
5 da primeira Epístola aos Coríntios, Paulo exige des­
ta comunidade que faça valer a disciplina da Igreja
com referência a um dos seus membros, culpado de
um grave escândalo. Emprega, com este propósito, a
imagem do fermento que azeda toda a massa. Porque
as festas pascais estão próximas. E isto o incita, para
comentar o incidente, a tomar uma antiga meditação
cristã sobre a Páscoa (seu estilo e vocabulário eviden­
ciam que de fato é anterior a Paulo). Este comentário
situava-se na celebração da Páscoa, no momento em
que o pai de família interpretava os ritos e as etapas
da refeição visando instruir todos os participantes,
sobretudo as crianças. E uma destas passagens que
Paulo cita: "... sois sem fermento. Pois nossa Páscoa,
Cristo, foi imolada. Celebremos, portanto, a festa,não
com velho fermento, nem com o fermento de malícia
eperversidade, mas com pães ázimos: na pureza e na
verdade" (1 Co 5.7s). Ser cristão, diz Paulo, é viver a
Páscoa, é estar na luz pascal, é vida nova: a verdadei­
ra Páscoa chegou, quando o nosso cordeiro pascal foi
sacrificado no Gólgota. Assim - como o farão Pedro
na sua primeira Epístola e João no seu Evangelho -
A póstolo Paulo 51
Paulo compara Cristo com o cordeiro sem mancha,
em razão do qual Deus poupou no Egito as casas dos
israelitas. Também em Rm 3.25 ele o compara com o
sacrifício expiatório do dia do Grande Perdão, e, em
Rm 8.3,com o sacrifíciopelo pecado, e em Ef5.2,com
o "sacrifício de aroma suave". É com esta mesma or­
dem de idéias que estão vinculadas todas as passa­
gens que tratam do sangue de Jesus (Rm 3.25; 5.9; Cl
1.20; Ef 1.7; 2.13). Ora, a crucifixão não era uma exe­
cução sangrenta, e é por isso que, quando Paulo fala
do sangue de Jesus, ele não pensa primeiramente na
realização histórica do suplício, mas no seu aspecto
sacrifical.
Todos estes desenvolvimentos, que utilizam
uma terminologia relativa a sacrifício, têm, pois, a
intenção de expressar duas coisas: a) Jesus morreu
apesar de não ter pecado (2 Co 5.21); b) sua morte
teve valor vicário pelos nossos pecados; nela se re­
sumem todas as cerimônias sacrificiais da Antiga
Aliança, porque ele é a única vítima oferecida pe­
los pecados da humanidade.
2. Para ilustrar a suplência de Cristo, Paulo utili­
za também temas adquiridos do direitopenal. Estas
passagens referem-se ao capítulo 53 de Isaías, que
nos descreve oServo de Deus sofrendo esuportando
a pena pelos nossos pecados. "Ele foi entregue por
causa dos nossos pecados", diz Paulo em Rm 4.25,
aludindo a Is 53.12. "Deus o entregou por nós", diz
em Rm 8.32 (Is 53.6). "Ele se entregou por nossos pe­
cados", afirma em G11.14 (Is 53.10). Deus exerceu na
carne do seu FUhoesta pena de morte que deveríamos
52 A MORTE DEJesus como sacrifício
nós sofrer (Rm 8.3). Ele fez que Jesus carregasse a
maldição que repousava sobre nós (G1 3.13).
Em G12.14, Paulo insiste com veemência em ex­
plicar esta idéia de que Cristo suportou, em nosso
lugar,ojulgamento que nos estavareservado no fim
dos tempos: "Ele destruiu a cédula de nossas dívi­
das, cédula que nos afligia e que enumerava nossas
violações da Lei; ele a eliminou, pregando-a na
cruz". Na cruz, pendurava-se acima do crucifica­
do o "titulus", um cartaz que o condenado à morte
trazia ao pescoço ao percorrer a via do suplício e
no qual estavam escritos os crimes que motivaram
sua condenação. Houve um "titulus" afixado aci­
ma da cabeça de Jesus. Então - assim diz Paulo -
você não está vendo a mão que retira o "titulus" e o
substitui por um outro escrito de letras apertadas?
Fiquebem de perto,sevocê quiserdecifrarestenovo
"titulus": ele contém as suas e as minhas faltas!
3. Ao lado dessas imagens e expressões tiradas do
domínio cultuai ou do direito penal, Paulo emprega
também uma outra referente à condição de escravo.
"Comprar" (1 Co 6.20; 7.23), "resgatar" (G13.13; 4.5),
"por um preço" (1 Co 620; 7.23) são termos caracte­
rísticos nesta linha. A imagem é buscada na própria
vida que Paulo tem sob os olhos. Não se trata aí dum
"resgate sagrado", como pensou Deissmann (vendia-
se aparentemente um escravo à divindade, mas era
elepróprio quem de fato apartava o dinheiro do seu
resgate), mas trata-se de um procedimento incom­
paravelmente mais impressionante: tratava-se de
assumir a escravidão no lugar de outrem, a fim de
A póstolo Palxo
53
libertá-lo. Paulo está pensando é num sacrifício vo­
luntário desta natureza, que dificilmente pode ser
maior - renunciar à própria liberdade em proveito de
outrem quando em 1Co 13.3("seentregarmeu cor­
po às chamas") ele o apresenta como o exemplo do
mais alto devotamento. "Ainda que eu distribmsse
todos os meus bens aos famintos, ainda que volun­
tariamente me deixasse imprimir a ferro quente a
marca de escravo (para libertar um irmão), se não
tivesse amor, isso de nada me adiantaria". E sabe­
mos, pela primeira Epístola de Clemente aos corínti-
os, que houve reahnente sacrifícios deste gênero nas
primeiras comunidades cristãs (55.2).
Eis, diz Paulo, o que Cristo fez por nós. Estáva­
mos na escravidão do pecado (Rm 3.9), da Lei
(G14.5) e da maldição de Deus (G13.13). O Crucifi­
cado fez-se escravo em nosso lugar, escravo das po­
tências, para nos resgatar de -modo regular (1 Co
6.20; 7.23). E preciso imaginar a terrível condição
dos escravos na Antiguidade, submetidos sem de­
fesa ao arbítrio e humor de seus donos, condenados
a trabalhar até a morte nas minas e galeras, para
captarmos a ressonância extraordinária que encon­
trava no mundo da época esta palavra "resgate"
para os inúmeros escravos, membros nas mais an­
tigas comimidades.
4. O Quarto tema, o da obediência vicáría, en­
contra-se raramente (duas vezes, pelo que me pa­
rece). É o caso em Rm 5.18s, onde Paulo contrapõe
em duas sentenças paralelas a eficácia universal da
desobediência de Adão e o ato de obediência do
54 A MORTE DEJesus como SACRrFfcio
Cristo ("pela obediência 'vicária' de um só, os 'inú­
meros' se tornam justos"); é também o caso de G1
4.4s: "Cristo fez-se escravo da Lei para resgatar os
que eram escravos da Lei (cumprindo-a no seu lu­
gar), a fim de nos conferir a adoção filial".
Por diferentes que sejam estas imagens, tomadas
de empréstimo a domínios muito diversos, todas elas
têm para Paulo uma só e a mesma finalidade; üus-
trar o "por nós", a substituição pelos pecadores da
parte daquele que foi sem pecado. E é nesta substi­
tuição, válida para os ímpios (Rm 5.6), pelos inimi­
gos de Deus (5.10), bem como pelo mimdo carrega­
do da ira de Deus (2 Co 5.19), que se manifesta a
onipotência sem limites do amor divino que abarca
todas as coisas (Rm 5.8). E se Paulo pode dizer tam­
bém que na cruz a justiça de Deus se manifestou, é
que para ele não há contradição. Porque justiça de
Deus e amor de Deus não são qualidades opostas -
como se tivesse havido na cruz um conflito a arbi­
trar entre a justiça de Deus e o amor de Deus. Pelo
contrário, é um dos resultados seguros e fundamen­
tais da exegese do Novo Testamento que a expres­
são "justiça de Deus" deve traduzir-se em Paulo por
"salvação de Deus". Paulo liga-se à linguagem dos
Salmos e do Dêutero-Isaías, onde "justiça" se empre­
ga constantemente em paralelo com "graça, salva­
ção, libertação". Pense-se somente no SI 103.17:
Mas o amor de Deuspara os que o temem dura
eternamente,
e suajustiça passa dos filhos aosnetos...
A Igreja das origens 55
Assim, para Paulo, amor de Deus e justiça de
Deus significam a mesma coisa. Quando Deus, na
cruz do seu Filho, elimina o pecado, o julgamento e
a maldição que, objetivamente, separam dele os ho­
mens (porque quem está carregado de pecado não
pode subsistir diante de Deus), então é que ele ma­
nifesta o seu amor. A morte vicária de Cristo na
cruz, ponto central da pregação paulina, é a con­
cretização, a atualização e a manifestação visível e
histórica do amor de Deus.
3. A Igreja das origens
Continuemos nossa subida no tempo e voltemo-
nos para a comunidadepré-paulina. Mas, se temos
a chance de possuir os escritos originais de Paulo,
não éo caso aqui. Contudo, podemos dizer com cer­
teza que, para a comimidade das origens, a explici­
tação do sentido da cruz foi uma busca de impor­
tância fimdamental. A própria situação histórica,
desde o dia da Páscoa, forçava-a, com efeito, a to­
mar posição diante do enigma dilacerante da cruz.
Porque, para os homens da Antiguidade, a cruz não
só era a quintessência das torturas mais horroro­
sas, mas também o cúmulo da vergonha (Hb 12.2);
além disso, para a sensibilidade judaica, esta pena
de morte, desconhecida em Israel, era tida, sob a
influência de Dt 21.23, como um sinal visível da
maldição divina. Como então foipossível que aque­
le que Deus legitimara pela ressurreição pudesse ter
suportado esta morte amaldiçoada? o mais antigo
56 A MORTE DEJesus como sacrifício
anúncio da mensagem cristã (o querigma) indica
onde se pode achar a resposta: Cristo morreu pelos
nossos pecados, segimdo a Escritura (cf. 1Co 15.3).
"Pelos nossos pecados" pretende afirmar que a sua
morte foi uma substituição, e "segimdo a Escritu­
ra" fundamenta esta explicitação da morte de Cristo
sobre Isaías 53.Porque, em todo oAntigo Testamen­
to, é essa a única passagem em que se encontra: "Ele
morreu pelos nossos pecados". E para mim conti­
nua sendo um mistério que se tenha podido duvi­
dar desta referência a Isaías 53. Em todo caso,jamais
se deveria ter reclamado do plural (literalmente: "se­
gundo as Escrituras"), que parece aludir a inúme­
ras passagens escriturísticas, porque essa afirma­
ção repousa num erro gramatical. Com efeito, o
plural aramaico {kthubayyá),subjacente a este plu­
ral do grego, designa a Escritura e deve traduzir-se
pelo singular em nossas línguas.
Temos ainda outros exemplos além do de 1 Co
15.3. E de novo impressiona constatar que as refe­
rências cristológicas a Isaías 53, extraordinariamen­
te numerosas, encontradas em Paulo, apresentam-
se, todas sem exceção, como pertencentes a uma
tradição que lhe é anterior. Descobrimo-lo por ra­
zões de estilo ou de terminologia, ou pelos dois mo­
tivos ao mesmo tempo^ Não subsiste, portanto, ne­
nhuma dúvida: Muito tempo antes de Paulo, foi no
capítulo dedicado ao Servo Sofredor (Is 53) que a
^Encontrar-se-ão algumas indicações, que deveriam ser am­
pliadas, no Theologisches Woertebuch des Neuen Testa­
ments, t. V. pp. 703 e 707.
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 57
comunidade das origens foibuscar a chave para re­
solver o mistério profundo do Filho de Deus pade­
cendo a morte ignominiosa.
4. Qual a interpretação que o próprio Jesus deu
de sua morte?
De acordo com o que dizem os evangelistas, re­
montaria ao próprio Jesus esta interpretação do sen­
tido de sua morte. Seria digna de fé essa afirmação?
Examinando-se, sob o prisma da crítica literá­
ria, os anúncios que Jesus faz de sua paixão, obser­
va-se uma tendência evidente da tradição em colo­
car, anacronicamente, nos lábios de Jesus tais
anúncios (cf. Mt 26.1-4, comparado com o esque­
ma apresentado em Mc 14.1-2). Constata-se, além
disso, o pendor desta tradição em progressivamen­
te formular estas predições da paixão, incluindo
nelas cada vez mais claramente a própria maneira
como se desenrolaram os acontecimentos (compa­
re-se Mc 9.31 com 8.31 e 10.33ss). Compreende-se,
então, que, deste,fato inegável, se chegasse a con­
cluir que tudo o que se nos transmite como ditos de
Jesus sobre a sua paixão não passaria de vaticinia
ex eventu (predições compostas mais tarde, a par­
tir dos próprios acontecimentos realizados). Mas,
na verdade, não se pode pensar assim neste caso.
Porque, mesmo procedendo com toda a prudência e
sentido críticos desejáveis, vamos nos defrontar, tan­
to nos anúncios da paixão como nos da glorificação,
com um núcleo que só pode ser anterior à Páscoa.
58 A MORTE DEJ esus como sacriekio
Quanto aos anúncios dapaixão, é preciso partir
do fato de que tudo na vida pública era para levar
Jesus a contar, e cada vez mais, com a perseguição
e até mesmo com a execução. A violação do sabbat,
a blasfêmia contra Deus e a chamada magia (Mc
3.22), que se lhe censuravam, eram crimes que exi­
giam o apedrejamento (e no caso do blasfemo, de
mais a mais, pendurava-se o cadáver numa cruz).
Acresce que Jesus se pôs por várias vezes no rol dos
profetas - e isso em palavras que, por seu teor, pou­
co cristológicas em aparência, nos leva a tê-las como
autênticas. Ora, precisamente no tempo de Jesus, o
martírio era considerado como parte integrante da
missão profética; é o que evidenciam tanto o Novo
Testamento com as lendas acerca dos profetas, con­
temporâneas de Jesus, bem como o costume, então
corrente, de dar relevo às tumbas dos profetas por
meio de monumentos expiatórios. O próprio Jesus
viu a história santa como uma série ininterrupta de
justos mártires, desde Abel até Zacarias, o filho de
Yoyada (Mt 23.35); a sorte deles, como a de João
Batista, o último da série, deve ter-lhe sido uma in­
dicação da sua própria sorte.
Mas o próprio testemunho dos textos tem ainda
mais peso do que essas considerações. Os anúncios
da paixão, que não se devem absolutamente limi­
tar aos três anjincios clássicos (Mc 8.31; 9.31; 10.33
e parai.), fazem parte de uma camada da tradição
anterior ao contato com o helenismo: é o que evi­
dência o jogo de palavras em aramaico bar nasha
Ifnê nasha (Mc 9.31: Deus entregará o homem aos
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 59
homens) e a quase total ausência de referências à
versão grega da Bíblia. Por outro lado, eles estão tão
fortemente ancorados no contexto que não se po­
dem destacar daí: pense-se somente na passagem
em que Pedro é tratado de "Satã" em Mc 8.32®; com
certeza isso não pode ser uma invenção! Além dis­
to, os anúncios aparecem nos gêneros literários mais
diversos. Ao lado dos anúncios oficiais da paixão
em suas diferentes variantes, encontram-se também
anúncios velados: em parábolas e figuras, tais como
"cálice, batismo, resgate", ditos enigmáticos, como
os referentes ao sinal de Jonas (Mt 12.39) ou à espa­
da (Lc 22.36); como também os ditos que enqua­
dram a celebração da ceia. Mas principalmente os
anúncios da paixão contêm uma série de detalhes
gue não se cumpriram exatamente como previstos.
É o caso, quando Jesus espera para si o sepultamen-
to dos criminosos (Mc 14.8), ou quando prediz que
parte de seus discípulos partilhará de sua sorte
(Mc 10.32,40; Lc 22.36s): ora, fato estranho, as auto­
ridades se contentaram em matar somente Jesus, e
deixaram de imediato seus discípulos, sem molestá-
los. Estas constatações, que se poderíam multiplicar,
nos impedem, portanto, de considerar em bloco os
anúncios da paixão como sendo vaticinia ex eventu.
O ceticismo se converte involuntariamente em falsi­
ficação da História, quando, por observações de de­
talhes, perfeitamente válidas do ponto de vista críti­
co, se deixam conduzir a se considerar, sem mais
Outros exemplos no TWbNT, t. V, p. 712.
60 A MORTE DEJesus como sacrifício
exame, todo o conjunto dos anúncios como se fos­
sem uma construção da comimidade.
Os anúncios daglorificação^ que de mais a mais
se vinculam aos da paixão, evidenciam que tam­
bém eles mantêm um núcleo que é anterior à Pás­
coa. Limitar-me-ei a um exemplo, à questão dos
"três dias". Ao lado da passagem que se refere a
Os 6.2 ("depois de três dias, ele ressuscitará"), en­
contram-se ditos totabnente diversos sobre os "três
dias". Depois de três dias, diz Jesus, será construí­
do o novo Templo (Mc 14.58 e parai.). Hoje e ama­
nhã, ele expulsa demônios e realiza curas; no ter­
ceiro dia, ele será "consumado" (Lc 13.32; cf. nota
b, p. 1.374 da Bible deJérusalenri). Hoje, amanhã e
no dia seguinte, ele prosseguirá seu caminho, e de­
pois disso sofrerá em Jerusalém a sorte dos profetas
(15.33). Ainda um pouco de tempo e eles não mais
o verão, e ainda um pouco de tempo e eles o verão:
hoje estão vivendo em comunidade com ele, ama­
nhã será a separação, e, no terceiro dia, o retorno
(Jo 16.16). Assim fica claro que Jesus anunciou, de
muitos modos, a "grande reviravolta de Deus", ejá
a ausência de qualquer diferenciação entre ressur­
reição e retorno mostra-nos que os amíncios da glo­
rificação não são também vaticinia ex eventu, mas
sim, no seu núcleo, anteriores à Páscoa.
Mas, se estes anúncios da paixão e da glorifica­
ção remontam, no essencial, ao próprio Jesus, o que
pensar dos textos evangélicos que pretendem atri­
buir a Jesus a explicitaçãomesma do sentido de sua
paixão? Seria possível eliminá-los levianamente
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 61
como construções da comunidade? Longe disto!
Quem quer que tenha pressentido a extrema impor­
tância que tinha no judaísmo antigo a idéia da for­
ça expiatória dos sofrimentos e da morte, só pode
achar impensável que Jesus tenha podido esperar
sua paixão e morte, sem nem sequer sonhar com o
sentido que elas poderiam ter.
Também neste caso, são decisivos os textos. E
entre estas explicações do sentido da paixão, preci­
samos pôr em primeiro lugar as palavras de Jesus
na Ceia. Limitar-me-ei a duas observações:
a) Importantes aí são as palavras "por muitos";
encontram-se com divergências quanto a sua locali­
zação e teor literal, nas cinco versões dos ditos da
Ceia que traz o Novo Testamento (Mc 14.24; Mt
26.28; 1 Co 11.24; Lc 22.19-20; Jo 6.51). Sua ausência
em Justino (cerca de 150 d.C.) é sem conseqüência,
pois é conscientemente que ele cita, abreviando-os,
os ditos da Ceia. Das diferentes versões, a expressão
de Marcos ("por muitos"), que é um semitismo, é
com certeza mais antiga do que a de Paulo ("por
vós"). Ora, Paulo deve ter recebido sua versão dos
ditos da Ceia, que apresentam um vocabulário for­
temente grecizado, pelos anos 40 em Antioquia, fato
que nos possibilita situar a versão mais antiga de
Marcos no primeiro decênio que seguiu à morte de
Jesus. Quem, pois, pretender eliminar estas duas pa­
lavras sob pretexto de que seriam uma interpretação
acrescentadaposteriormente,deveestarconscientede
que abandona uma tradição muito antiga, e sem ra­
zão lingüística de que possa se reclamar.
6 2 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io
b) Estas palavras "por muitos" são, como o con­
firma Mc 10.45, uma referência a Is 53. É nessa pas­
sagem da Bíblia que se encontram ao mesmo tem­
po o "por" e, com isto, a idéia de substituição, e o
"muitos"; ora, "muitos", usado sem artigo no sen­
tido inclusivo de "numerosos, grande turba, multi­
dão, todos", acha-se em abundância neste capítulo,
e dele constitui a palavra-chave^. Assim, o "por
muitos" dos ditos de Cristo na Ceia nos evidencia
que foi em Is 53 que Jesus encontrou a chave para
explicitar o sentido de sua paixão e morte.
Mais complexa é a história da tradição do dito
sobre o resgate, que está estreitamente aparentado
com os ditos da Ceia. Com efeito. Marcos (10.45 pa­
rai. Mt 20.28) e Lucas (22.27) divergem quanto ao
teor. Parece que se possa estabelecer que as duas
versões repousam sobre um lógion de Jesus,no qual
se tratava de serviço. Na fronte própria de Lucas,
este serviço de Jesus é ilustrado com auxílio de seu
"serviço à mesa", ao passo que em Marcos se recor­
re a Is 53. Em Lucas, o contexto acusa um vocabu­
lário claramente grecizado; em Marcos, não só o vo­
cabulário como também o conteúdo conceptual do
lógion são semíticos, pois a utilização religiosa da
figura do resgate é especificamente palestinense, o
que faz remontar a tradição usada por Marcos a
uma data muito antiga. O menos que se pode dizer
Usado substantivamente e sem artigo em: Is 52.14; 53.12.
A versão grega dos Setenta o pressupõe também em
53.11c.l2
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 63
éque Marcospossuía,aolado dos ditos da Ceia,uma
antiga tradição em que Jesus explicitava sua pai­
xão valendo-se de Is 53.
É também uma tradição muito antiga - diria,
até mesmo, um fragmento da rocha original em que
se baseou a tradição - que possuímos no dito refe­
rente à espada, que nos vem da fonte própria de
Lucas (22.35-38). O tempo da angústia está a ponto
de irromper; é este o sentido dos versículos 35s; tra­
ta-se, pois, de uma palavra que com certeza foipro­
nunciada antes da Páscoa,pois representa uma pre­
dição não realizada, uma vez que a paixão coletiva
dos discípulos não se deu dessa maneira. É também
em Is 53 que se encontra a razão desta mudança de
clima num mundo que vai passar da amizade hos­
pitaleira à ira sanguinolenta; pois aí se diz: "e ele (o
Servo de Deus) foi contado no número dos ímpios".
Quanto à sentença que segue no v. 38, onde os dis­
cípulos aludem às duas espadas, trata-se de um dito
muito antigo, pois, sem retoques ou eufemismo, ex­
plode aí a total falta de compreensão dos discípu­
los. Uma vez mais. Is 53 apresenta a explicitação
da paixão no momento em que, para Jesus, ela esta­
va imediatamente próxima.
Considere-se também como uma tradição ante­
rior à Páscoa o dito sobre o pastor que vai ser ferido
e cujas ovelhas vão se dispersar (Mc 14.27). Com
efeito,oV. 28prolonga aimagem do pastorpela pro­
messa: "ele precederá (o seu rebanho) na Galiléia",
a qual não pode ter sido formulada eqevtu / ex
eventu. Por outro lado, pensando-se no contexto
64 A MORTE DEJesus como sacrifício
desta citação de Zacarias (13.7),percebe-se que tam­
bém aí existe, no fundo, uma explicitação do senti­
do da paixão: a morte do Pastor traz a aflição, mas
também a reunificação do rebanho purificado. E Jo
10.15,17 aí está a nos mostrar que, pelo menos na
tradição, a imagem do pastor estava ligada a Is 53.
Precisamos, enfim, aduzir a passagem em que
Jesus na cruz intercede por seus inimigos (Lc 23.34).
Este versículo não é atestado por todos os manus­
critos, mas repousa sobre uma tradição muito anti­
ga, como o evidenciam, de modo concorde, a forma
e o fundo (a apóstrofe dirigida a Deus: "Pai"; a in­
tercessão pelos inimigos). Também aí se insere uma
explicitação do sentido da paixão, porque a inter­
cessão de Jesus toma o lugar do voto de expiação
que todo condenado devia pronunciar: "Que minha
morte expie por todos os meus pecados!", mas Je­
sus orienta a virtude expiatória de sua morte não
para si mesmo, mas para os seus carrascos. No fun­
do está igualmente Is 53, que termina assim: "E ele
intercedia pelos pecadores" (v. 12).0 número de
passagens em que Jesus, segundo os evangelhos,
aplica-se a si Is 53 é muito grande, ainda que limi­
tado. Liga-se isto ao fato de Jesus não ter revelado
os mais altos mistérios da sua missão a não ser na
pregação reservada aos discípulos enão na sua pre­
gação pública. Com efeito, somente aos discípulos
é que ele comunicou que via no cumprimento de Is
53 a tarefa mesma que Deus lhe marcava; a eles so­
mente explicitou o sentido da sua morte na linha da
suplência "pelos muitos", pela multidão incontável
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 65
dos que incorreram sob a justiça divina. Porque,
segundo Is 53, quatro elementos dão à morte "vicá­
ria" do Servo de Deus essa força expiatória sem li­
mites: trata-se dum sofrimento voluntário (v. 10),
suportado na paciência (v. 7), querido por Deus (vv.
6.10), e inocente (v. 9). E, nessa morte, o que se con­
cede ao Servo é a vida, da qual Deus é a fonte e da
qual se pode participar com ele.
Vimos que podemos com grande probabilidade
- não se pode fazer questão de certeza absoluta -
reconduzir ao próprio Jesus essa explicitação que o
cristianismo das origens dava do sentido da sua
morte como cumprimento de Is53.Contudo,a ques­
tão existencialnão ficou comistosuprimida. Elaper­
manece. Só que essa questão é posta agora lá mes­
mo onde ela tem o seu lugar: no próprio Jesus.
Capítulo III
A JUSTIFICAÇÃO
PELA FÉ
1. o sentido da fórmula
Num parágrafo de introdução, gostaria de esta­
belecer os fundamentos do que seguirá por meio de
algumas observações lingüísticas. Eis a questão: o
que se entende por a) ser justificado, b) por fé, c)
por graça?
Assim como o verbo hebraico sadhaq, SiKaiô /
dikaioún pertence, na Septuginta, à terminologia ju­
rídica. No ativo, significa "fazer justiça a alguém",
"declarar alguém inocente", "absolver um acusado".
O sentido passivo será, então, "ganhar uma causa",
"ser inocente", "ser absolvido". Neste sentido, Ô iK airâ
/ dikaioún é usado também no Novo Testamento, cf.
Mt 12.37; uma referência ao juízo final: "... por tuas
palavras serás justificado (ôiKai(o0fjati / dikaiothése)
e por tuas palavras serás condenado". A mesma
6 8 AJusnncAÇÀoPELAFé
oposição "absolver-condenar" acha-se em Rm 8.33s
citando Is 50.8: "É Deus quem justifica (0eòç ó
ôiKttiôv / Theós ho dikaiôrí). Quem condenará?"
Tudo isto se encontra em qualquer léxico.
É preciso, contudo, notar que o sentido do verbo
ôiKaiô / ôiKttiôaSai / dikaioún / dikaioústhaitinha
se alargado, em particular quando servia para expres­
sar a ação de Deus. O novo matiz surgiu pela primei­
ra vez no Dêutero-Isaías (Is 45.25 Septuaginta):
Por Yahweh serájustificada (ôiKaicoG fiaerai /
dikaiothésetai)
e,por causa de Yahweh, seráglorificada
toda a raça de Israel.
O Dêutero-Isaías rompe assim, com toda a evi­
dência, os limites do emprego jiirídico. O paralelis­
mo entre "ser justificado" e "ser glorificado" mos­
tra muito bem que ôiKairôoGai / dikaioústhaiioma
aí o sentido de "achar salvação".
Enquanto sei, ainda não foi observado que este
emprego tenha persistido no judaísmo pós-bíblico.
Destesepodem citarpelo menos dois exemplos.Nas
Antiguidades Bíblicasdo Pseudo-Filo (escritas após
70 d.C.), "ser justificado" se apresenta como para­
lelo à eleição de Deus (49.4), bem como no Quarto
livro de Esdras (escrito em 94 d.C.) "achar graça",
"ser justificado" e "ser ouvido na oração" se usam
como sinônimos (12.7).
A última dessas passagens constitui o começo
de uma oração:
o ŒNTTIDO DA FÓRMULA 6 9
Ó Senhor altíssimo,
se acheigraça diante de ti
e se fuijustificado em tuapresença
diante de uma multidão
e se minha oração se eleva com segurança na
direção de tua face...
As três linhas estão em paralelo. Na primeira e
na segrmda, "achar graça" altema-se com "ser jus­
tificado" sem nenhuma mudança aparente de sen­
tido. A tradução literal "ser justificado" é, portan­
to, muito estreita e não vai ao cerne da expressão.
O que se deve de preferência entender por este tex­
to é o seguinte:
Se acheigraça diante de ti
e se acheifavor em tuapresença
diante de uma multidão...
O que aqui é importante é que a idéia de pro­
cesso é abandonada. "Ser justificado", aplicado a
um ato de Deus e posto em paralelo com "achar
graça", não tem o sentido estreito de "ser absolvi­
do", mas antes o sentido mais abrangente de "ser
em favor". Confirma-se isto pelo paralelismo da
terceira linha, que indica como a graça de Deus, o
seu agrado, se manifesta: ele escuta a oração.
Este fato nos conduz para muito perto de uma
palavra dos evangelhos, em Lc 18.14, onde Jesus diz
com referência ao publicano: "Eu vos digo que este
último desceu para casa justificado, e não o outro".
70 AJUSTinCAÇÀOPELAFé
Também aqui se abandona a comparação jurídica.
Também aqui "ser justificado" tem antes o sentido
de "encontrar o favor de Deus". Também aqui este
favor divino se traduz pela audição da oração.
Lc18.14deve,portanto, traduzir-se: "Eu vosdigo que
estehomem desceupara asua casa comoalguém que
encontrou o favor de Deus, e não o outro". Podemos
até mesmo ir ao ponto de traduzir: "Eu vos digo que
este homem desceu para casa como alguém cuja ora­
ção foi ouvida por Deus, e não o outro".
Acabamos, pois, de ver um emprego de
ôiKttirâaBai / dikaioústhai em que a comparação
jurídica parece ter sido atenuada ou até mesmo
completamente abandonada. Gostaria de chamar
este uso de "soteriológico",para distingui-lo do uso
jurídico.
E evidente que em Paulo também o uso de "justi­
ficado" (ou de "ser justificado") vai muito além da
esferajurídica - mesmo quando oaspectojurídico (ou
forense) não está ausente - e já mencionamos o final
em forma de hino de Rm 8, onde Paulo (nos vv. 33s)
lança mão da imagem de um processo, citandoIs50.8:
"Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem jus­
tifica" (ôiKairâv / dikaiôrí). E, portanto, a conotação
soteriológica que comanda o seu discurso. Para Pau­
lo, (ôiKaicò / dikaoún no ativo significa "conceder a
graça ou favor", e no passivo (SiKaicòoGai / dikaioús­
thai "achar a graça ou favor". Vê-se de modo parti­
cularmente claro, que a imagem do processo desapa­
receu, quando Paulo fala de uma justificação que teve
lugar no passado, como por exemplo em Rm 4.2: "Se
I I I
oSENTIDOD
AFÓ
RM
ULA 71
Abraão achou graça (èôiKai(»0T| / edikaiôthê) pelas
obras..." Aí, na história da fé de Abraão, não nos de­
frontamos com uma cena judiciária, mas antes com a
outorga da graça de Deus. O que vale também de 5.1:
"Tendo, pois, recebido nossa graça. (ôiKaicoGévteç /
dikaiothénteé) pela fé, estamos em paz com Deus"; e
de 5.9: "Quanto mais, então, agora, tendo encontrado
graça (SiKaicoSévxeç / dikaiothénte^ por seu sangue".
A justificação que provém de Deus é um transbordar
de graça que extravaza largamente à esfera jurídica.
Com referência ao substantivo ^'SiKaicoGobvri
(tou) 08ob / dikaiosyne {toú) Theoú", a conotação
soteriológica foi notada há muito tempo, e, primei­
ramente, pelo que eu saiba, por James H ardy Ropes
no começo deste século^ Nos Salmos e no Dêutero-
Isaías, sidhqath Jahwe, a "justiça de Deus", se aco­
pla com a salvação de Deus e com a misericórdia de
Deus. E é precisamente o emprego que dela faz Pau­
lo (com a exceção de Rm 3.5, onde ele não fala em
seupróprio nome, mas citauma objeção). Assim,por
exemplo, Rm 1.17não se deve traduzir por "Porque
nele (no Evangelho) ajustiça de Deus serevela",mas
"Nele (no Evangelho) a salvação de Deus se revela".
Em resumo, assim como para as epístolas de
Paulo ôiKai(o0aí)vTi (tou) 0eoí) / dikaiosyne {toú)
Theoú deve-se traduzir por "a salvação de Deus",
ÔiKaiâo0ai / dikaioústhai deve-se traduzir por
"achar a graça de Deus".
’ Righteousnessin the Old Testamentandin St.Paul, in Jour­
nal ofBiblical Literature 22 (1903) pp. 211-227.
72 AJusnncAçÃoPELAFé
Vejamos agora as palavras ÔTtíoiei, èk tcíotego,
ôiòc TríaTECoç / pístei, ek písteos, dià písteos, "pela
fé". Toda vez que Paulo fala da ôiKaioo^òvr) / dikaio-
syne de Deus, da salvação de Deus, e do ôiKaicò /
dikaioún de Deus, a outorga da graça, ele centra a
atenção inteiramente em Deus. Tudo se reconduz à
questão vital de se saber se Deus é ou não é miseri­
cordioso, se ele concede ou não o seu favor, se ele
me diz "sim" ou "não". Quando é que Deus diz
"sim"?
Paulo responde: um homem é justificado, um
homem acha graça, pela fé. M artinho L utero, em
sua tradução de Rm 3.28 acrescentou uma palavra.
Ele diz: "Pois reputamos que o homem éjustificado
pela fé somente" ("allein durch den Glauben"^ sola
fidé). Criticou-se este acréscimo, mas do ponto de
vista lingüístico ele tem toda a razão. Pois é uma
característica da língua semita (e, sob este aspecto,
as cartas de Paulo traem muitas vezes o seu fundo
judaico) o fato de a palavra "somente", "só", ser
gerahnente omitida, mesmo quando no ocidente ela
se considera indispensável (cf., por exemplo, Mc
9.41, que é necessário interpretar assim: "Todo
aquele que vos der um simples copo d'água" será
recompensado, por insignificante que seja o servi­
ço). Sola fide!A fé é o único caminho para a miseri­
córdia de Deus.
Quando Paulo fala de achar a graça só pela fé, é
sempre em oposição à possibilidade de achá-la pe­
las obras. A doutrina da justificação não poderia ser
entendida sem esta antítese. Ela se dirige contra a
oSENTIDO DA FÓRMULA 73
concepção fundamental do judaísmo e do cristia­
nismo judaizante, segundo a qual o homem acha a
graça de Deus pelo cumprimento da vontade divi­
na. O próprio Paulo considerava as coisas assim até
o momento em que Cristo lhe apareceu no cami­
nho de Damasco: somente este instante é que lhe
abriu os olhos para a ilusão que o fazia crer que um
homem poderia manter-se diante de Deus por sua
própria força. É por isso que, depois de Damasco,
ele opõe à tese dos judaizantes, que pretendem que
a Lei seja o caminho da salvação, esta antítese: o
caminho da graça de Deus não está nas obras, mas
na fé (G1 2.16; 3.8,24; Rm 28.30; 4.5).
Assim a fé substitui as obras. Mas então se põe a
questão: Achamo-nos diante de uma façanha em
virtude da qual Deus concede a sua graça, se a jus­
tificação segue a fé? Eis a resposta: Sim! Estamos de
fato na presença de uma façanha. Deus concede
com efeito a sua misericórdia na base de uma faça­
nha. Mas ei-la: não se trata da minha própria faça­
nha, mas da façanha de Cristo na cruz. A fé mesma
não é uma façanha, mas antes a mão que apanha a
obra do Cristo e a dirige para Deus. A fé diz: Eis a
façanha - o Cristo morreu por mim na cruz (G1
2.20). Esta fé é a única maneira de obter graça junto
de Deus.O fato de que Deus concede o seu favor ao
crente é contrário a todas as normas das leis huma­
nas. Isto salta aos olhos, se considerarmos quem é
justificado,ou seja,oímpio (Rm45) quemereceamor­
teporque éportador da maldição de Deus (G13.10). A
salvação de Deus lhe é concedida "a título gracioso"
74 A Ju sn n C A Ç À O P E L A Fé
(Rm 4.4; 5.17), como um dom gratuito (Rm 3.24). Esta
graça não conhece limites; sendo independente da lei
mosaica, pode incluir os gentios. Em Rm 4.6-8,acha-
se com exatidão o que significa o favor de Deus, sola
gratia:"Como, aliás, também Davi proclama a bem-
aventurança do homem a quem Deus credita a jus­
tiça, independentemente das obras;
"Bem-aventurados aqueles cujas ofensas
foram perdoadas, e
cujospecados foram cobertos.
Bem-aventurado o homem, a quem o
Senhornão leva em conta opecado".
A justificação, é o perdão, nada mais do que o
perdão pelo amor de Cristo.
Esta afirmação, todavia, precisa ser mais expli­
cada.
2. Justificação e nova criação
Se contarmos as passagens de Paulo onde se
acha a fórmula da justificação, estaremos diante de
um fato curioso e muitas vezes negligenciado, ou
seja, o fato de que a doutrina da justificação não
aparece na maior parte das epístolas. Nas epístolas
aos Tessalonicenses não achamos o menor traço
dela. Na primeira delas, o advérbio ôiKaicoç / dikaíos
qualifica a conduta irrepreensível do Apóstolo
(1 Ts 2. 10). Na segunda, o julgamento de Deus é
chamado de "justo julgamento"; Deus é chamado
jL'snncAÇÃOe nova criação
75
"justo" porque o seu julgamento é imparcial (2 Ts
1.5s). Estas afirmações nada têm a ver com a doutri­
na da justificação. Na Carta aos Gálatas, que vem
cronologicamente logo depois daquelas, a fórmula
completa "justificação pela fé" ou "ser justificado
pela fé" aparece bruscamente pela primeira vez.
Nas duas Epístolas aos Coríntios, ôiKaiooúvrj /
dikaiosyne tem o sentido de "salvação", e "ser jus­
tificado" aparece pelo menos uma vez (1 Co 6.11)
num sentido especificamente paulino, mas em ne­
nhuma das duas Epístolas aparece a fórmula com­
pleta "justificação pela fé". A seguir, encontramo-
la com muita freqüência na Epístola aos Romanos.
Depois disto, desaparece de novo nas Epístolas do
cativeiro: Filipenses, Efésios, Colossenses, Filêmon,
com a exceção de El 3.9, onde ôiKaiooúvTi / dikaio­
syne (salvação) pela Lei se opõe à ôiKaioabvt] / di­
kaiosyne (salvação) de Deus pela fé. As Epístolas
pastorais não contêm a fórmula completa, ainda
que em Tt 3.7 se encontre a variante: "justificados
pela graça de Cristo". Assim, a fórmula completa
"justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé"
acha-se somente nas três Epístolas aos Gálatas, Ro­
manos e Filipenses (e numa única frase desta últi­
ma), às quais se deve acrescentar Tt 3.7. Como ex­
plicar este fato tão estranho?
A resposta nos parece ser a seguinte: a doutrina
não aparece a não ser quando Paulo entra em con­
trovérsia com o judaísmo. Com certeza W. Wrede-
- W red e W ., Paulus, Tübingen 1904.
76 AJusnnCAÇÃOPELAFé
tinha razão ao concluir que a doutrina da justifica­
ção era uma doutrina polêmica, saída da discussão
com o judaísmo e sua teologia da Lei. Mas W rede
foi ainda mais longe, inferindo do uso limitado da
fórmula, a conclusão de que a doutrina da justifi­
cação não está no centro da teologia paulina. A.
ScHWEiTZER^tomou partido em favor dele em sua de­
claração tornada célebre, segundo a qual a doutri­
na da justificação não passaria de uma "cratera se­
cundária que se formou no interior do círculo da
cratera principal" da experiência que Paulo fez da
vida mística em Cristo. É bem esta a conclusão que
se deve tirar? Não julgo que seja. W rede e Schweit-
ZER, ambos erram pornão colocar esta questão: como
é que se concede a justificação? Como Deus aceita
os ímpios? Hoje em dia vemos a coisa mais clara­
mente por termos aprendido, nas últimas décadas,
que este dom nos é concedido pelo batismo. Isto se
dediiz,por exemplo, de 1Co 6.11,onde o verbo "ser
justificado" está cercado de fórmulas e termos ba­
tismais: "Mas vós vos lavastes, mas fostes santifi­
cados, mas fostes justificados em nome do Senhor
Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus" (cf. ain­
da G1 3.24-27; Rm 6.7; Tt 3.5-7). Paulo não extrai
explicitamente a relação entre jiistificação e batis­
mo pelo simples motivo de que, na fórmula de jus­
tificação, o termo "pela fé" implica o batismo à
maneira de abreviação, como o demonstrou muito
*Schweitzer, A., Die Mystik des Apostels Paulus, Tübingen,
1930, p. 220.
JusnncAÇÀoe nova criação 77
bem R. Schnackenburg^ O laço da justificação com
o batisimo é tão claro para Paulo, que absolutamen­
te não acha necessário dizer que é pelo batismo que
Deus salva aquele que crê em Jesus Cristo.
É preciso lembrar-se que Paulo fala e escreve
como missionário. Na situação missionária, para o ju­
deu epara o gentioque criana Boa-novaese decidia a
entrar na comunidade cristã, o batismo era o ato
decisivo pelo qual ele se inseria entre os que depen­
dem de Jesus como de seu Senhor. É por isso que
Paulo sem cessar sublinha a importância do batis­
mo, servindo-se para tanto de uma multidão de ima­
gens destinadas a sugerir aos novos convertidos o
significado que devem atribuir a este rito. Ele lhes
diz: "Quando vocês são batizados, vocês são lava­
dos; são limpos; são santificados; são imergidos na
água e por esta imersão vocês participam da morte
de Cristo e de sua ressurreição; vocês são adotados
e se tomam filhos de Deus; vocês são circxmcidados
por uma circuncisão não feita por mão de homem,
isto é, vocês se tornam membros do povo de Deus;
numa palavra, vocês ficam no reino".
A fórmula "justificação pela fé" é uma destas
múltiplas imagens. É uma descrição da graça batis­
mal de Deus, feita por meio de uma imagem de ori­
gem jurídica. A graça de Deus dada no batismo é o
perdão imerecido. E é justamente esta formulação
da graça batismal que Paulo criou no seu conflito
* ScHNACKENBURG, R., DasHeUsgeschehen bei der Taufenach
dem ApostelPaulus ("Muenchener Theologische Studien",
I. Historische Abteilung 1), Muenchen, 1950, p. 120.
78 A J ustihcação pela Fe
com o judaísmo. Não temos, pois, aí uma "cratera
secundária", a imagem se encontra na mesma li­
nha que todas as outras descrições da graça do ba­
tismo. Veja-se mais uma vez 1 Co 6.11: "Mas vós
vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes jus­
tificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo
Espírito de nosso Deus".
Esta constatação é de enorme importância, pois
significa que a doutrina da justificação não deveria ser
isolada. Pelo contrário, não poderia ser compreendida
a não ser com referência ao conjunto dos ensinamen­
tos sobre o batismo. A graça de Deus dada no batis­
mo é tão rica que cada uma das numerosas ilustra­
ções, imagens e comparações, de que se serve Paulo,
não expressa senão rim único aspecto dela. Ao falar
de ablução, o acento recai sobre a libertação da sujeira
da existência anterior. Ao se servir da imagem do re­
vestir-se de Cristo, tirada da linguagem mística, acen­
tua-se a comunhão, a própria unidade, com o Senhor
ressuscitado. A mesma intenção, com o matiz a mais
da unidade dos cristãos entre si, expressa-se pela ima­
gem da incorporação no corpo de Cristo. Ao usar da
expressão "a circimcisão do Cristo", trata-se particu­
larmente da inclusão no novo povo de Deus. E, enfim,
ao adotar a linguagem originalmente jurídica da jus­
tificação, quer dizer que somente Deus é que está
agindo. O homem nada pode; éDeus quem faz tudo.
Ainda uma vez, nenhuma imagem poderia es­
gotar a riqueza ilimitada da graça de Deus. Seria
antes necessário tomar cada uma destas expressões
como parspro totocom relação à totalidade do dom.
I ' I
JuSTinCAÇÃO E NOVA CRIAÇÃO 79
O fato de isolar a imagem jurídica (forense) pode­
ria, portanto, levar a um mal-entendido que con­
sistiria em dizer que a graça de Deus concedida no
batismo é simplesmente jurídica (forense), e que aí
não teríamos nada mais do que um mero "como se":
Deus absolveria o ímpio e o trataria como se fosse
um justo.
Isto foi posto em evidência em 1924 por uma in­
teressante controvérsia entre R. Bultmann e H. W in-
DiscH, numa ocasião em que a teologia dialética es­
tava em voga. Bultmann tratou então do "Problema
Ético em Paulo"^ Seu tema versava sobre o proble­
ma da contradição aparente entre o indicativo e o
imperativo, isto é, sobre a antinomia paradoxal que
se encontra, por exemplo, em 1Co 5.7: "Purificai-
vos do velho fermento para serdes nova massa, já
que sois sem fermento", ou então em G1 5.25: "Se
vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos tam­
bém a nossa conduta". Bultmann rejeitava do modo
mais categórico e convincente as tentativas feitas
anteriormente para dar uma soluçãopuramente psi­
cológica a este problema. Pelo contrário, ele ressal­
tava o caráter escatológico da justificação divina.
Insistia, com razão, sobre o fato de que a justifica­
ção não é uma mudança nas qualidades morais do
homem, que não éuma experiência da natureza das
experiências místicas, não passando de objeto uni­
camente da fé. Mas penso que ele se enganou ao
Das Problem der Ethik bei Paulus, in Zeitschrift für die
neutestamentliche Wissenschaft7.?>(1924) pp. 123-140.
80 A Ju sn n c A Ç À O P E L A Fé
acrescentar que não havia solução de continuidade
entre ohomem antigo eonovo; que o crente não ces­
sa de ser ímpio e que ele jamais é justificado senão
como ímpio. O próprio Bultmann admitia de bom
grado que Paulo não diz isto. Mas afirmava que
Paulo não levou o seu pensamento até as suas últi­
mas conseqüências, e que a interpretação moderna
deve explicitar o que Paulo negligenciou. No decor­
rer do mesmo ano de 1924, W indisch opôs um des­
mentido a Bultmann num artigo intitulado "o Pro­
blema do Imperativo Paulino"^ W indisch era um
seguidor da velha escola liberalevárias de suas afir­
mações dão prova disto. Não deixou, porém, de ver
o ponto fraco da concepção de Bultmann. Com tom
irônico, ele declarou que teria sido extremamente
necessário a Paulo ouvir uma conferência de Karl
Barth ou de Rudolf Bultmann (p.278).Contra Bult­
mann, sustentava que, segimdo o Apóstolo, existe
uma verdadeira solução de continuidade entre o
homem velho e o novo, ruptura tão radical como
entre a morte e a ressurreição ("Se alguém está em
Cristo, é nova criatura" 2 Co 5.17). Para dizer tudo
numa palavra, o Jiveúpa / pneuma é uma realida­
de que toma posse dos batizados e rompe com a
continuidade entre a existência antiga e a nova.
A controvérsia é instrutiva na medida em que a
posição de Bultmann (que, aliás, ele não sustenta
em sua Teologia doNovo Testamento) mostra a que
* Das Problem des paulinischen Imperativs, ibid. 23 (1924)
pp. 265-281.
JusnncAÇÀoe nova criação 81
ponto é perigoso isolar a doutrina da justificação. Se
dizemos que o crente não cessa de ser ímpio e que a
justificação não passa de uma simples mudança no
julgamento de Deus, então nos aproximamos peri­
gosamente do mal-entendido quepretende que ajus­
tificação nada mais seja do que um "como se". E aí
não está, com certeza, a intenção de Paulo. A justifi­
cação não passa, para ele, nós o vimos, duma das
numerosas tentativas feitas no sentido de descrever
a inesgotável e indizível riqueza da graça de Deus; é
preciso colocar a justificação no conjunto das outras
expressões do batismo, se quisermos situá-la no seu
verdadeiro lugar.Ora, o denominador comum às di­
versas maneiras de expressar o batismo é que elas
descrevem sempre a ação graciosa de Deus como
operativa da nova criação ("Se alguém está em Cris­
to, é nova criatura"). E esta nova criação, continua
Paulo, possui duas faces: "passaram-se as coisas an­
tigas; eis que se fez uma realidade nova" (2Co 5.17).
A existência antiga terminou; o pecado foi lavado; o
domínio da carne e das potências das trevas, inclusi­
ve da Lei, foi quebrada. Começa vida nova; conce-
deu-se o dom do Espírito de Deus, que se manifesta
como uma força eficaz. Todo aquele que se incorpo­
rou em Cristo não permanece como ele era. Cristo é
sua vida (Cl 3-4); Cristo é a sua paz (Ef 3.14). Encon­
tramos sempre estes dois aspectos; "Ele nos arran­
cou do poder das trevas enos transportou para o rei­
no do seu Filho amado" (Cl 1.13).
Isto vale também para justificação. Ainda que
seja certíssimo que a justificação é e continua sendo
82 A Ju srm cA Ç À O P E L A Fé
um ato judiciário (forense), a anistia de Deus, não
resta dúvida, todavia, que a imagem jurídica (foren­
se) érompida. A absolvição de Deusnão éunicamen­
te jurídica, não é um "como se", não é uma mera pa­
lavra, mas sim a Palavra de Deus que opera e cria a
vida. A Palavra de Deus é sempre uma palavra efe­
tiva. O perdão, o favor de Deus, não é só negativo,
istoé,uma passada de esponjano passado,mas cons­
titui também o penhor do dom final de Deus. (O ter­
mo "antecipação", que seria de se esperar aqui, é um
termo infeliz, porque ele deriva do latim anticipere
que quer dizer "tomar antecipadamente". O senti­
do parece melhor traduzido pela palavra "penhor",
entendido no sentido de dom prévio, dom feito ante­
cipadamente). Enquanto penhor da absolvição final
de Deus, a justificação é um perdão no sentido mais
pleno. É o começo de uma vida nova, de uma nova
existência, uma nova criação pelo dom do Espírito
Santo. Como o disse Lutero: "Lá onde há a remissão
do pecado, há a vida e a salvação".
A vida nova em Cristo, dada no batismo, é sem
cessar renovada pela Eucaristia. E verdade que o
verbo "ser justificado" não aparece quando Paulo
fala da ceia do Senhor, mas não há nisso nada de se
estranhar, pois Paulo não trata a fundo da Eucaris­
tia a não ser em 1Co 10 e 11, onde se trata de ques­
tões práticas, isto é, dos sacrifícios oferecidos aos
ídolos e da partilha da ceia com os irmãos pobres.
Estas duas secções, em particular 1 Co 10.16, mos­
tram que, para Paulo, a Eucaristia representa o
mesmo dom que o batismo: uma participação na
JlS n n C A Ç À O E NOVA CRIAÇÃO 83
morte "vicária" de Cristo e na comunhão do seu
corpo. Assim, a Eucaristia renova a graça de Deus
dada no batismo, da qual a justificação não passa
de um dos múltiplos aspectos.
Enquanto penhor da salvação final de Deus, a
justificação se volta para o futuro. Participa da du­
pla natureza de todos os dons de Deus que são, ao
mesmo tempo, posse presente e objeto de esperan­
ça. A justificação é uma posse segura e atual (Rm
5.1 etc.), e todavia encontra-se ainda no futuro,
como o mostra, por exemplo, G15.5: "Nós com efei­
to, aguardamos, no Espírito, a esperança da justiça
(ôiKaiooi)VTi / dikaiosynè) que vem da fé". A justi­
ficação é, portanto, o começo de um movimento na
direção de uma meta que é a hora da justificação
definitiva, da absolvição no dia do juízo, quando o
dom total estará presente.
É por isso que a justificação do pecador, por
Deus, não é uma posse inerte, mas antes fonte de
obrigação. O dom de Deus pode ser perdido. O jus­
tificado permanece no temor de Deus. A justifica­
ção se situa na tensão que existe entre posse e espe­
rança. Mas é uma esperança fundada em bases
sólidas. Em Rm 5.8s podemos ler: "Mas Deus de­
monstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo
ter morrido por nós quando éramos ainda pecado­
res. Quanto mais, então, agora, justificados por seu
sangue, seremos por ele salvos da ira". Esta não é
uma conclusão a minoriad maius mas a maioriad
minus. Deus fez a maior coisa: Cristo morreu por
nós quando éramos pecadores, quanto mais, sendo
84 AJusnncAÇÃoPELA Fe
justificados, podemos estar seguros que ele nos con­
cederá a salvação final.
Para resumir, continua verdade que a justifica­
ção é o perdão, nada mais do que o perdão. Mas
justificação equivale ao perdão no sentido mais ple­
no do termo. Não é um mero esquecimento do pas­
sado, mas como penhor, um dom antecipado da sal­
vação total; é uma nova criação pelo Espírito de
Deus; e o Cristo tomando posse da vida desde ago­
ra e já aqui.
3. A origem da doutrina paulina da justificação
A doutrina da justificação que encontramos em
Paulo seria inteiramente nova? Teria ela uma raiz
mais antiga? Encontram-se anteriormente traços da
doutrina segimdo a qual Deus concede o seu favor
ao ímpio por causa da sua fé, por pura graça?
Afirmou-se ultimamente que os textos de
Qumran antecipam o que Paulo haveria de dizer
acerca da justificação^ Referiu-se principalmente
à surpreendente semelhança que teria com Paulo o
último salmo do Manual de Disciplina (IQS ll.lss).
Foidito que estapassagem atesta apresença da dou­
trina da justificação sola gratia em Qumran. O tex­
to menciona o seguinte:
^ Schulz, S., ZurRechtfertigung aus Gnaden in Qumran und
beiPaulus, in Zeitschriftfür Theologie undKirche 56 (1959)
pp. 155-185; Klon, G., Rechtfertigung I, in Die Religion in
(^schichte und Gegenwart, V, Tübingen, 1961, col. 825-828.
AORIGEM DA DODTWNA PAUUNA DA JUSTIFICAÇÃO 85
Mas, quanto a mim, minhajustificação {mispa-
ti) pertence a Deus.
e em sua mão está ainocência do meu compor­
tamento,
juntamente com a retidão de coração,
e em sua justiça minha transgressão será apa­
gada (I QS 11.2s).
Da fonte de suajustiça vem minha
justificação {mispati),
umaluz em meu coração vindo deseusmistérios
maravilhosos (11.5).
Se tropeçopor causa da carnepecadora, minha
justificação {mispati)
permanecerá eternamente
por causa dajustiça de Deus (11.12).
Porsua misericórdia ele me deixou
aproximar
e de sua graciosa manifestação
veio minha justificação {mispati);
pelajustiça de sua verdade ele me
justificou {^ phatani)
e na sua grande bondade ele resgatará
todos osmeuspecados
epor suajustiça me lavará de
toda mancha humana (11.13s).
Este texto justifica a conclusão que dele se tirou?
A interpretação repousa sobre apalavra mispat,que
86 A JUSTIHCAÇÀO PELA FÉ
foi traduzida por justificação. Ora, esta tradução
não é justa: tanto no Novo Testamento como no ju­
daísmo tardio, jamais mispat significa a justifica­
ção do ímpio, nem saphatsignifica justificar o ím­
pio. Ainda que seja geralmente aceita, a tradução
que apresentamos não retrata precisamente a in­
tenção do texto. Um exame atento das palavras usa­
das em paralelismo com mispatevidencia que este
termo significa o julgamento de graça de Deus so­
bre o caminho da vida daquele que ora®. Este julga­
mento é eficaz no fato de que Deus permite a quem
ora "aproximar-se" (termo técnico para dizer: en­
trar em comimidade), tomando-lhe assim possível
uma "conduta incensurável" em perfeita conformi­
dade com a Torá, conduta que o homem não é ca­
paz de levar a bom termo por si mesmo. Se ele tro­
peça no caminho. Deus apaga os seus pecados e
mantém seu julgamento, contanto que o coração
daquele que ora seja sincero. A mispatnão é, por­
tanto, ajustificação do ímpio {justifícatioimpii),mas
antes a predestinação à via de paciente obediência
a Tora.
Um exemplo particularmente significativo do
que há de inadmissível em colocar Paulo no mes­
mo plano de Qumran, é fornecido pela interpreta­
ção que o comentário de Habacuque (I Qp Hab.) dá
Devo agradecer ao meu filho Gert Jeremias por me ter apon­
tado. Ele me indicou, além disto, o paralelo quase literal
de I QH 15.12s, que está no manuscrito dos hinos I QH
15.12s, em que no lugar de mispatlemos: "a disposição de
todo Espírito".
AORIGEM DA DOUTRINA PAULINA DA JUSTinCAÇÀO 87
de Hab 2.4, a referência-chave da doutrina de Pau­
lo sobre a justificação: "o justo viverá pela fé". Em
1Qp Hab 8.1-3 se diz: "A interpretação (desta fra­
se) diz respeito a todos os que cumprem a Lei na
casa de Judá (e) aqueles que Deus salvará da casa
do julgamento (isto é, do julgamento final) por cau­
sa de seus trabalhos e de sua lealdade para com o
Mestre de Justiça".
Eis, portanto, o que diz Qumran: Deus salvará
aquele que cumpre a Lei,seguindo, leahnente aTorá
como éinterpretadapeloMestre.Paulo entende Hab
2.4 de modo totalmente diverso: Deus concede a
vida ao ímpio que renuncia a toda obra própria e
crê em Jesus Cristo.
Não! Qumran não prepara Paulo. De fato,
Qumran tem consciência da bondade e do perdão de
Deus, mas estes não atingem a não ser os que se es­
forçam para cumprir a lei até os limites de suas for­
ças. Para expressar tudo, Qumran ePaulo pertencem
a dois mundos diversos. Qumran fica inteiramente
na linha da Lei, Paulo está na linha da Boa-nova.
Mas se Qumran não representa uma preparação
à doutrinapaulina dajustificação,não quer dizer que
não exista uma prefiguração dela alhures. E aí acha­
mos precisamente o ensinamento paulino: a obser­
vação da Lei e as obras piedosas não contam para
Deus, que não quer tratar com o justo mas com o
pecador, e quem disse isto antes de Paulo foiJesus.
Eamensagem deJesussobre Deus que quertratar
com pecadores que é retomada por Paulo e por ele
desenvolvida na sua doutrina da justificação pela fé.
8 8 AJusTrncAçÀoPELA Fé
Esta mensagem línica e sem precedente estava no cer­
ne da pregação de Jesus. Isto é testemunhado por to­
das as parábolas em que Deus abraça os que estão
perdidos, e se revela como o Deus do pobre e do ne­
cessitado, bem como pelas refeições que Jesus toma­
va com publicanos e pecadores. O fato de que Paulo
retoma a mensagem de Jesus fica facilmente obscure­
cido, se nos restringirmos ao mero manejo de uma
concordância. É verdade que a maior parte dos ter­
mos usados por Paulo - como fé, graça, igreja só rara­
mente aparece nos ditos de Jesus. Todavia, a substân­
cia de todos estes termos está presente. Assim, Jesus
não fala de modo geral de igreja (èKKÀTioía / ekklesía)
mas do rebanho de Deus, da família de Deus, da vi­
nha de Deus. Paulo traduz constantemente no voca­
bulário teológico o que Jesus expressara por meio de
imagens e parábolas tomadas da vida do dia-a-dia.
Isto é certo também com referência à doutrina
da justificação. Esta não passa da mensagem de Je­
sus a respeito de Deus que quer tratar com os peca­
dores, expressa em termos teológicos.Jesusdiz: "Não
vim chamar os justos, mas os pecadores"; Paulo diz:
"o ímpio éjustificado".Jesus diz: "Eelizesospobres";
Paulo diz: "Somos justificados por graça". Jesus diz:
"Deixai os mortos enterrarem os mortos" (palavras
pesadas que implicam que fora do reino não se acha
nada mais senão a morte); Paulo diz: "Aquele que é
justificado pela fé terá a vida". O vocabulário é dife­
rente, mas o conteúdo é o mesmo.
Segundo Lucas, Jesus se servia às vezes até mes­
mo da terminologia jurídica da justificação para
AORIGEM DA DOUTRINÍA PAUUNA DA JUSTIFICAÇÃO 89
expressar o dom que Deus faz de seu favor àqueles
que estavam perdidos. Citamos antes Lc 18.14: "Eu
vos digo que este último desceu para casa justifica­
do, enão o outro", e vimos que o sentido é: "Foieste
homem, eu vos digo, que desceu para sua casa ten­
do encontrado favor aos olhos de Deus, e não o ou­
tro". Aí, Lucas não pode depender de Paulo sob o
ponto de vista da linguagem, porque ele se serve de
um torneio familiar semítico, incorreto em grego e
que Paulo evita^. Énecessário,pois,concluirque não
somente o conteúdo da doutrina pauüna da justifi­
cação, mas também a própria terminologia do pe­
nhor do perdão escatológico remonta a Jesus.
A grandeza de Paulo foi compreender a mensa­
gem de Jesus melhor do que qualquer outro autor
do Novo Testamento. Ele foi o intérprete fiel de Je­
sus, e isto vale particularmente para a doutrina da
justificação. Ela não é criação sua, mas retrata subs­
tancialmente amensagem essencial de Jesus tal qual
está resumida na primeira bem-aventurança: "Bem-
aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino
de Deus" (Lc 6.20).
Cf. meu livro: Asparábolas deJesus, Ed. Paulus, São Paulo,
1976, pp. 125ss.
Capítulo IV
O VERBO REVELADOR
1. A forma literária do prólogo de João
Como começo de um livro, o prólógo do Evan­
gelho de João representa um caso único. De acordo
com o que poderia ser habitualmente o começo de
um livro, comparando-o com os cinco outros do
Novo Testamento, fora as vinte e uma cartas. Eles
se apresentam sob duas formas diferentes. A pri­
meira é representada, por exemplo, por Ap 1.1: "Re­
velação de Jesus Cristo: Deus lha concedeu para que
mostrasse aos seus servos as coisasque devem acon­
tecer muito em breve. Ele a manifestou com sinais
por meio de seu anjo, enviado ao seu servo João". A
frase inicial é aí um resumo do conteúdo do livro. A
introdução ao Evangelho de Lucas ésemelhante: in­
forma-nos sobre pesquisas anteriores, fontes, inten­
ção e caráter peculiar do livro. E igualmente assim
que Lucasprefaciou o segundo volume de sua obra,
os Atos dos Apóstolos: um resumo do seu primeiro
92 O V erbo Revelador
volume. A segunda forma, geralmente utilizada
para começar um livro acha-se em Mateus: "Gene­
alogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de
Abraão", e provavelmente em Mc 1.1, que poderia
ou antes deveria ser traduzido assim: "Como Jesus
Cristo, Filho de Deus, começou a anunciar a Boa-
nova". Em cada um destes casos, é a abertura do
primeiro capítulo que constitui a entrada na maté­
ria. Em outros termos, um livro começa geralmente
ou por um prefácio ao conjunto da obra ou pela aber­
tura do primeiro capítulo. O Evangelho de João é
totalmente diverso, coloca-nos diante deste início
dogmático: "No princípio era o Verbo". Para com­
preender esta singularidade, é preciso examinar a
forma literária de Jo 1.1-18. Três observações enca­
deadas são necessárias. A primeira refere-se à es­
trutura da frase. O prólógo está construído na base
de paralelismo, acoplando os membros de frase de
ressonância análoga que constituem assim uma es­
pécie de apelo e de resposta - talvez um eco da al­
ternância entre o cantor e a assembléia. Esta cons­
trução nos é familiar, graças aos salmos. No Oriente
Próximo, o paralelismo tem a mesma função da
rima entre nós: com a métrica, diferencia a poesia
da prosa. Em outras palavras, Jo 1.1-18 é uma pas­
sagem poética. O prólógo, como todo mundo sabe
hoje em dia, é um cântico vigorosamente constru­
ído, um poema religioso dos inícios do cristianis­
mo, um salmo, um hino ao Lógos Jesus Cristo. Este
Hino aos Lógos se divide naturalmente em quatro
estrofes:
A FORMA LrTERÁRIA DO FTCLOGO DE JOÃO
93
Primeira estrofe (vv. 1-5): o Verbo de Deus.
Segunda estrofe (vv. 6-8): o testemunho que o
designa.
Terceira estrofe (vv. 9-13): o destino do Verbo
no mundo.
Quarta estrofe (vv. 14-18): a confissão da fé da
comunidade dos crentes.
O paralelismo se apresenta gerabnente sob três
formas: paralelismo sinônimo (o segimdo versículo
repete o conteúdo do primeiro), paralelismo anti-
nômico (o segimdo versículo diz o contrário do pri­
meiro), e paralelismo sintético (o segimdo versícu­
lo acrescenta uma nova idéia à primeira)^ Mas no
prólogo de João achamos uma quarta forma muito
acentuada e muito rara - uma hábil elaboração da
forma sintética, isto é, um paralelismo em série as­
cendente (paralelismo como degraus de escada),
assim designado porque cada versículo retoma uma
palavra do precedente como que para erguê-la de
um degrau. Os Evangelhos sinóticos em Mc 9.37 (e
paral.) nos oferecem uma amostra disto:
Aquele que receber uma destas crianças
por causa do meu nome,
a mim recebe;
e aquele que me recebe,
não é a mim que recebe,
mas sim àquele que me enviou.
^C. F. Burney, The Poetry of Our Lord, Oxford, 1925.
94 O V erbo Revelador
Noprólogo deJoão,estaforma estápresente,por
exemplo, em 1.4s e 1.14b.16(omitindo-se o v. 15por
razões que indicaremos):
Nele estava a vida
e a vida era a luz dos homens
e a luz brilha nas trevas
e as trevas não a apreenderam.
Enós vimos asua glória,
como a glória do Unigénito do Pai„
cheio de graça e de verdade,
pois da sua plenitude todosnós recebemos
e graça graça.
O paralelismo em série ascendente é a caracte­
rística formal dominante do prólógo, mas está au­
sente em alguns versículos. Podemos observar que
nos vv. 14-16 só tivemos paralelismo em série ascen­
dente através da réplica "cheio de graça" que religa
o V . 14b com o v. 16, saltando o v. 15. Igualmente os
vv. 12b e 13 não apresentam paralelismo em série
ascendente. Esta observação chama outra. Ao passo
que aspartesascendentes doprólógo diferemporseu
vocabulário do quarto Evangelho (palavras tão im­
portantes como "o lógos", "graça e verdade", e mes­
mo "graça" isoladamente, não retomam fora do pró­
lógo), as inserções não ascendentes traem a
linguagem do quarto Evangelho (vv. 6-8.12b-13.15
e talvez 17-18). Conclui-se, pois, e com razão, que é
preciso distinguirno prólógo de João entre o prólógo
original (Urprolog muito provavelmente escrito em
A FORM
ALTTERÁ
RIADOPRÓLOGOD
EJoÃO 95
grego) e os comentários do evangelista a seu respei­
to. Encontramos também em F1 2.6-11 a citação de
um hino pré-paulino a Cristo, no qual Paulo inseriu
comentários. R. Bultmann sustentava que o prólogo
originalprovinha do grupo de discípulos deJoão Ba­
tista, mas isto é refutado por Lc 1,que mostra que os
discípulos do Batista falavam de sinais miraculosos
por ocasião do seu nascimento, mas não atribuíam
preexistência ao seu mestre. Isto indica que o Urpro-
log deve ser de origem cristã. Era um hino cantado
por ocasião da Eucaristia cotidiana Christo quasi
Deo, "ao Cristo como um Deus" (como o diz Plínio
em sua célebre Carta X96 a.Trajano).
Podemos agora dar um passo adiante. O hino
ao Lógos não passa de um dentre todos os outros
hinos contidos no Novo Testamento. Como todas
as igrejas missionárias e as comunidades vivas, a
Igreja das origens era uma Igreja onde se cantava.
O fluxo da vida nova, o impulso de uma grande
energia espiritual, era sem cessar traduzidos pelo
canto, pelo hino e pelo louvor. Os salmos floresciam
em todos os lábios: "A palavra de Cristo habite em
vós ricamente: com toda sabedoria ensinai e admo­
estai uns aos outros e, em ação de graças a Deus,
entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos es­
pirituais" (Cl 3.16 e o paral. El 5.19). Os ofícios da
Igreja das origens eram um contínuo júbilo, uma
grande harmonia de adoração e de louvores.
Nestes hinos de júbilo, encontramos uma pro­
fusão de temas diversos. Não é por acaso que en­
contramos o maior número de hinos e de doxologias
96 O VERBORevelador
no livro do Apocalipse. Os temas dominantes são o
louvor do Deus rei eterno, edo Cordeiro,bem como a
açãode graçaspela libertação. A Igrejaperseguida está
sempre um passo adiante, e, no meio das tribulações,
ela antecipa em seus hinos a consumação final. A sal­
vação fínal se antecipa também nos dois hinos de Lc
1, Magnificate Benedictus. Por sua vez, Rm 11.33ss
exalta as vias impenetráveis de Deus, e em 1 Co 13
celebra-se o amor. Outros salmos exaltam Cristo: F1
2.6-11; Cl 1.15-20; 1 Tm 3.16; 2 Tm 2.11-13.
De todos os hinos do Novo Testamento, o mais
próximo do hino cristológico de Jo 1 é com certeza
F1 2.6-11. Não só ambos falam de Cristo, não só a
frase de Plínio Christo quasi Deo se aplica a cada
um deles (cf.F12.6 e Jo 1.1), mas também tanto um
como o outro diferem dos outros hinos do Novo
Testamento^ pelo fato de relatarem, narrarem e
pregarem a história de Cristo. Eles são Heilsges-
chichte in Hymnenform (história da salvação em
forma de hino). Este gênero literário, em que a his­
tória da salvação é cantada na forma de salmodia,
provém do Antigo Testamento; basta comparar os
salmos que exaltam a maneira como Deus conduz
seu povo através de sua história, como, por exem­
plo, o SI 78^
Dois exemplos do séc. II, provenientes de meios
diferentes e mesmo opostos, mostrarão o desenvol-
- Hb 1.1-4 está muito próximo, mas a composição evidencia
menos isto.
menos isto.
Salmo 77 nas Bíblias grega e latina.
A FORMA LITERÁRIA DO PROLOGO DE JOÀO 97
vimento deste gênero literário na Igreja das origens
e ao mesmo tempo o ilustrarão. O primeiro é o se-
gimdo artigo do credo, que diz econfessa,num hino
de louvor, a história de Jesus Cristo até a parusia. O
segimdo exemplo é o hino dito naasseniano trans­
mitido por Hipólito em sua Refutação de Todas as
Heresias.Começa nomeando os três princípios sub­
jacentes a toda existência, pois ele apresenta uma
narração dramática da maneira como a alma, como
um gamo tímido, é caçada pela morte e se acha in­
capaz de reencontrar uma saída do labirinto, ecomo
Jesus se oferece para salvá-la:
A leigeradora do universo foio Espíritoprimo­
gênito;
Vem em seguida o caos espalhadopelo Primo­
gênito;
Depois a alma recebe a lei da sua confecção.
Eporisso que ela,revestida de umaforma aquosa,
submergida pela dor, sucumbe àmorte.
Ora, investida de força, ela vê a luz;
Ora,precipitada na miséria, ela chora.
Ora chora e ora se alegra;
Ora chora e ora éjulgada.
Ora éjulgada e ora ela morre;
Ora enfim ela não acha mais saída, ínfortunada
que suas corridas errantes levaram a um labi­
rinto de males.
EntãoJesus diz: "Olha, Pai!
Vítima da desgraça, ela erra ainda na terra
Longe de teu sopro;
98 O V erbo Revei.ador
Procura escapar do odioso caos
Enão sabe como atravessá-lo
E,por isso. Pai, envia-me!
Descereilevando os selos.
Atravessareia totalidade dos eões.
Revelarei todos os mistérios.
Mostrareias formas dos deuses,
E transmitirei, sob o nome da gnose.
Os segredos da Santa Via
Estamos diante de um hino cristológico que co­
meça, como oprólogo de João, pelas origens primei­
ras para chegar ao Cristo pré-existente e à sua com­
paixão. Ainda uma vez estamos diante de uma
Heilsgeschichte in Hyrrmenform. Todavia, o hino
naasseniano por um lado, e F12, Jo 1e o credo per­
tencem a mundos absolutamente diversos: o cristia­
nismo gnóstico e o Evangelho. Para caracterizar su­
mariamente estes dois mundos, diremos que, por
um lado, o gnosticismo sustenta que o pior dos ma­
les é a marte, enquanto que para o Evangelho, é o
pecado, e que por outro lado o gnosticismo susten­
ta que a vida da salvação está no conhecimento re­
velado {gnósis),enquanto que para o Evangelho ela
se acha no perdão das pecados.
Precisamos, contudo, dar um último passo. Nes­
te hino, existe uma ruptura, uma interrupção. As
Hipólito de Roma, Philosophumena ou Refutação de Todas
as Heresias, V, 910. Retomamos parcialmente a tradução
de A. Sionville, Paris, 1928, t. I, pp. 162-163.
A FO
RM
ALITERÁ
RIADOPRÓLOGOD
EJoAO 99
três primeiras estrofes (vv. 1-13) estão na terceira
pessoa; mas, se a última estrofe (vv. 14-18) começa
da mesma maneira ("O Verbo se fez carne"), ela
passa muito depressa para a primeira pessoa ("Nós
vimos sua glória, nós recebemos graça sobre gra­
ça"). Isto significa que o hino cristológico termina
com uma confissão pessoal de fé e atinge o seu apo­
geu na ação de graças, no louvor ena adoração. Não
há nenhuma dúvida: o começo, as três primeiras
estrofes não poderiam constituir a verdadeira subs­
tância do salmo, mas antes a confissão de fé da últi­
ma parte; tudo o que precede de não passa de uma
introdução, de um prelúdio que serve para prepa­
rar a confissão de fé. O prólógo não é essencialmen­
te uma passagem dogmática que nos oferece espe­
culações cristológicas concernentes à pré-existência
de Cristo, sua participação na criação do mundo e
sua encarnação - interpretando-se assim, cometer-
se-ia um erro grave. É antes a celebração da comu­
nidade crente, por meio de um hino, do dom inefá­
vel de Deus através daquele em quem a glória de
Deus foi revelada.
Por que oevangelista colocou oseu hino ao Cris­
to no começo? Trata-se, como se opinou, de um re­
sumo do seu Evangelho? Se assim fosse, a paixão e
a ressurreição deveriam ter sido explicitamente
mencionadas. A boa resposta está no contexto. A
história de João Batista vem a seguir em 1.19ss. Isto
indica que o prólogo se acha no lugar ocupado em
Lucas e Mateus pelo nascimento epelos relatos da in­
fância. O quarto evangelista não fala da natividade.
100 o V ERBOReV
ELA
D
C
IR
mas substitui a história de Natal pelo salmo ao Ló-
gos. A comunidade crente, não podendo mais con­
tentar-se com a narração em prosa da encarnação,
cai de joelhos e canta um hino de adoração e lou­
vor: nós o vimos, fizemos a experiência da sua pre­
sença, "vimos sua glória".
Temos, pois, a resposta ã nossa questão concer­
nente ao estranho começo do Evangelho de João: o
evangelista começa o seu livro com um tom de exal­
tação. Ele tem, sem dúvida, o sentimento de que a
proclamação do Evangelho não poderia se acomo­
dar ao molde sem brilho que serve habitualmente
como começo de um livro. É por isso que ele come­
ça com um hino grandioso ao Lógos, ensinando-nos
assim que, para a proclamação do Evangelho, não
poderia haver tom mais elevado.
2. O encadeamento das idéias
O Lógos está aí presente de três maneiras.
"Noprincípio era o Verbo O hino ao Lógos co­
meça com uma reminiscência das primeiras pala­
vras da Bíblia: "No princípio Deus criou o céu e a
terra" (Gn 1.1), mas a palavra "princípio" tem sen­
tido diferente no prólógo e em Gênesis. Não desig­
na a criação (que não se menciona senão mais tar­
de em Jo 1.3), mas a eternidade antes de toda a
criação. Em outros termos: "No princípio" em Jo 1.1
não é um conceito temporal, mas uma apreciação
qualitativa equivalente a "esfera de Deus", o Ló­
gos tem sua origem na eternidade, e quem quer que
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S 101
entre em relações com o Lógos, obtém relações com
o próprio Deus vivo.
O Lógos é apresentado a seguir como omediador
na criação. "Tudofoifeitopormeiodeleesem elenada
foifeito de tudo o que existe'^. Qual é o sentido deste
theologoúmenon?O v. 10 dá a resposta:
"Ele estava no mundo e o mundo foi feito por
meio dele,mas omundonão o conheceu".Esobre o
fato de que o mundo foi criado por seu intermédio
que se funda o direito de Jesus Cristo à autoridade
soberana sobre todas as coisas. Assim, o v. 3, "tudo
foi feito por meio dele" quer dizer: o Verbo tem um
direito que se refere a todos os homens - a cada um
deles, quer o reconheçam quer não.
Enfim, o Lógos era a luz dos homens: "Neleesta­
vaa vida ea vida eraaluz doshomens". O fato de o
Lógos ser a luz dos homens foi muitas vezes mal in­
terpretado: acreditou-se que sepodería entender que
o Lógos proporcionava a luz interior - a luz da ra­
zão e da consciência de si - a todos os seres huma­
nos, mas não é este com certeza o sentido. Como o
eviência a frase seguinte ("as trevas não a apreende­
ram"), esta luz não é deste mimdo. É preciso antes
dizer que esta luz é a luz da nova criação, a luz esca-
tológica com o seu estranho e duplo efeito de fazer
ver aqueles que não vêem e de tomar cegos aqueles
Alguns exegetas ligam as últimas palavras com as que se­
guem ("o que foi feito, é a vida nele"), mas isto não tem
sentido. A criação não "era" ^cofi / zoé, que é a vida no
sentido mais pleno possível. Somente o Lógos "era" a vida.
102 o VERBOReVEIjDOR
que vêem (Jo 9.39). Esta luz salutar brilhava nas tre­
vas, mas brilhava em vão - "as trevas não a apreen­
deram". A luz os homens preferiam as trevas.
A segunda estrofe (vv. 6-8)
Antes de o evangelista prosseguir sua citação do
hino, ele insere uma breve passagem de sua criação
dizendo que Deus tinha anunciado a chegada do
Lógos por meio dum profeta chamado João. O Ba­
tista é honrado como a testemunha que Deus en­
viou para dar testemunho de Cristo, mas rejeita-se
claramente qualquer sobrestima do seu papel; "Ele
não era aluz"{v. 8). Esta declaração devia ser mui­
to importante para o evangelista, porque ele a re­
pete no V . 15, outra de suas inserções: o Batista dá
testemunho do Cristo como sendo superior a si pró­
prio, porque Cristo vinha da eternidade. A razão
desta advertência contra uma sobrestima do Batis­
ta pode achar-se na situação da Ásia Menor no fim
do séc. I d.C. Os Atos, no capítulo 19, sugerem que
havia rivalidade em Efeso entre os discípulos do
Batista e a Igreja. Mas esta razão poderia também
ser inteiramente pessoal: talvez o orador seja da­
queles que tomaram o Batista pela luz até o mo­
mento em que encontrou Jesus.
A terceira estrofe (vv. 9-13)
A seguir o hino continua a nos dizer o destino
do Lógos no mimdo. "O Verbo era aluz verdadeira
oENCADEAMENTO DASID
ÉIA
S 103
que, vindo aomundo, ilumina todo homem"{y.9).
É importante compreender corretamente o mem­
bro da frase “que ilumina todo homem". Foi inter­
pretada com freqüência como se quisesse dizer
"que ilumina interiormente todo ser humano". Este
sentido platônico de luz interior partilhada por to­
dos os seres humanos está em contradição com o v.
5, como o frisamos acima, e também com os vv. 7s.
"Iluminar" significa antes "projetar a luz sobre, re­
velar", e é exatamente assim que Jo 1.9 é interpre­
tado em 3.19-21. Assim, a frase "a luz verdadeira
que ilumina todo homem" diz que a luz escatológi-
ca que brilhava nas trevas tinha poder de tudo re­
velar. Com uma clareza implacável, que não se po­
deria anular, fazia aparecer o estado do homem
diante de Deus. O poder revelador do Lógos era a
razão pela qual "o mundo não o conheceu" (v. 10),
o que não quer dizer que o mundo não o reconhe­
ceu porque ele estava mascarado, mas (no sentido
de "conhecer" no Antigo Testamento) que o mun­
do o renegou, e recusou-se a obedecer-lhe. Mesmo
entre "os seus", em Israel, as portas se fecharam,
ele foi como um estrangeiro na sua própria pátria
(v. 11). Tal foi a sorte do Lógos no mundo.
Todavia não foi assim em toda parte. Algims o
receberam: e lá onde ele era admitido, onde os ho­
mens criam nele, ele concedia o dom supremo entre
todos - "Mas a todos que o receberam deu o poder
de se tornarem filhos de Deus" (v. 12). Eo evangelis­
ta explica o que significa "tornar-se filhos de Deus"
num inciso que se refere a uma noção fundamental
104 OV erbo R e'elaix)R
da teologia joânica: o dualismo. Constantemente o
quarto Evangelho repete que existem duas espécies
de vida, duas possibilidades de existência: a vida in­
ferior e a vida superior, carne e espírito, vida da na­
tureza e vida que surge do renascimento, filiação ter­
restre e filiação divina'’. Este dualismo é usado no
V . 13para explicar o dom do Lógos, "tornar-se filhos
de Deus". O nascimento natural, embora não seja
desprezível, não possibilita ao homem ver a Deus
como ele é. Não existe se não um só meio de ir para
Deus; o novo nascimento, e o único que nos pode fa­
zer este dom é o Lógos.
A quarta estrofe (vv. 14-18)
Ahistória do Lógoschega ao seu ponto alto com a
confissão da comunidade dos crentes. Ela começa pe­
laspalavras "Eo Verbosefezcarneehabitouentrenós"
(v. 14).Emnossosdias,não podemossequerimaginaro
quanto esta frase deve ter parecido escandalosa e
É grande infelicidade que o comentário do Evangelho de
João por R. B u l tm a n n (Goettingen, 1941), a quem o autor
deve muito, tenha aparecido seis anos antes da descoberta
dos manuscritos do Mar Morto, pois B u ltm a n n fundou a
sua interpretação gnóstica do quarto Evangelho na hipóte­
se de que o dualismo joânico é de origem gnóstica. Ora, os
manuscritos demonstram que o dualiasmo do quarto Evan­
gelho nada tem a ver com a Gnose, mas é, antes, de origem
palestinense; pois, como o dualismo de Qumram, apresen­
ta três características essenciais que são todas não-gnósti-
cas: os dualismos joânico e essênio são monoteístas, éticos
e escatológicos (esperando a vitória da luz).
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S 105
mesmoblasfemapara oscontemporâneos deJoão.Ela
continha duas proposições ofensivas. A primeira é a
palavra "carne". A "carne" representa o homem em
oposição a Deus, sublinhando sua fragilidade e sua
mortalidade;éamais forteexpressão de desprezopela
existência humana. Dizer "O Lógos eterno se fez car­
ne" é dizer que ele apareceu no mais profundo rebai­
xamento. E talvez as palavras "e habitou entre nós"
possam ter parecido ainda mais chocantes. Pois "ha­
bitar", "armarsua tenda",éuma metáforabíblicapara
a presença de Deus (cf.p. ex. Ap 7.15; 21.3; Mc 9.5;Lc
16.9); "ele habitou entre nós" implica que o próprio
Deusestavapresentena carne,no rebaixamento.Aqui
se põe a questão capital: Como se pode dizer de um
homem que sentia a fome e a sede, que experimenta­
va o medo e o tremor, que morreu como um crimino­
so, que Deus estava presente nele?
A resposta é uma simples confissão de fé com­
posta de duas proposições. Aprimeira declara: "Nós
vimos sua glória". O texto grego apresenta aqui o
verbo GeaoBai/ íAeásí/íar) que tem um sentido par­
ticular. Assim como o verbo habitualmente empre­
gado para significar "ver" (ópâv / horârí) no quar­
to Evangelho, implica uma verdadeira visão com
os olhos corporais, mas,contrariamente a ópâv / ho-
rân, pode designar uma visão que penetra sob a su­
perfície. Assim, "e nós vimos sua glória" quer di­
zer: vimos a carne, a humildade da vergonha, a
profunda desgraça da cruz, mas atrás deste véu da
carne e humilhação vimos a glória de Deus. O que
significa "a glória de Deus"? A resposta acha-se na
106 o Verbo Revelaixir
frase de dois termos: “cheio de graça e de verda­
de", que é a linguagem da aliança no Antigo Tes­
tamento. "Graça e verdade" resumem aquilo de
que faziam experiência os fiéis na aliança:
"Yahweh, Yahw^eh, Deus de ternura e de piedade,
lento para a cólera, rico em graça e fidelidade" (Ex
34.6). "Sou indigno de todos os favores e de toda a
fidelidade que tivestes para com o vosso servo"
(Gn 32.11). Na aliança, os crentes do Antigo Tes­
tamento faziam uma dupla experiência: conheciam
a misericórdia de Deus, da qual eram indignos, e,
mais ainda, a "verdade" (isto é, a "fidelidade") de
Deus, a constância desta misericórdia divina. E é
esta precisamente a glória que se torna visível em
Jesus. Aqueles que lhe pertencem, encontram nele
a inabalável fidelidade de Deus. E de tudo o que
ele fazia e dizia, uma e a mesma coisa sempre so­
bressaía: "a graça e a verdade", a imutável mise­
ricórdia divina.
Mas o testemunho da comunidade vai além
da confissão de fé "nós vimos sua glória... cheio
de graça e de verdade", incluindo esta declara­
ção: "De sua plenitude todos nós recebemos e gra­
ça por graça" (v. 16). Não só vimos sua glória
imutável, como também a recebemos. A expres­
são "graça por graça" indica uma interminável
progressão, uma intensificação. Como que de um
poço inesgotável, recebemos de Deus um dom de­
pois do outro, cada um sendo maior do que pre­
cedente. Tal era a experiência que os discípulos
tiveram de Jesus. É esta a resposta inteira da
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ÉI,A
S 107
comunidade crente à questão: como se pode dizer
que no homem Jesus o Deus eterno habitou entre
nós? Responde-se, mostrando-se sua glória, a cons­
tância da misericórdia e da graça de Deus: nós a
vimos e a recebemos.
Aí termina a história do Lógos, mas não o pró-
lógo. À guisa de resumo, acrescentam-se duas antí­
teses que terminam o hino, colocando em mais evi­
dência o sentido da revelação feita por Cristo. Esta
revelação é antes de tudo apresentada em contras­
te com a do Antigo Testamento: "Porque a Lei foi
dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos
vieram por Jesus Cristo" (v. 17). Uma vez já. Deus
concedera aos homens um grande dom, sua Lei, sua
santa vontade. Mas não passava duma revelação pre­
liminar. Agora, em Jesus, Deus se revelou verdadei-
ramente na plenitude da sua graça imutável. Aci­
ma da lei, existe a graça.
A segunda e última antítese vai até mesmo mais
longe. Ousadamente ela opõe a revelação dada pelo
Filho não só ao Antigo Testamento, mas também a
toda busca humana de Deus. "Ninguém jamais viu
a Deus: o Filho imigênito, que está voltado para o
seio do Pai, este o deu a conhecer" (v. 18). Deus é
invisível. Ninguém o viu jamais, ninguém está ga­
baritado para vê-lo. O homem que vê Deus deve
morrer, pois Deus é o Santo e nós somos sujos pelo
pecado. Só o Filho unigénito o viu. E ele o deu a co­
nhecer. "Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14.9). Nesta
frase final (v.l8), proclama-se o caráter absoluto e
universal da fé cristã.
108 o Verbo Revei.ador
3. O sentido da designação de Jesus como Lógos
Depois de termos compreendido que o prólogo
é um salmo, e ter tentado seguir o andamento do
discurso, podemos colocar agora nosso problema
principal: qual é o sentido da designação de Jesus
Cristo como sendo “a Palavra"? De todos os títulos
dados a Cristo no Novo Testamento, este é o mais
estranho. Só o encontramos nos escritos joânicos
Jo 1.1; 1Jo 1.1; Ap 19.13). Numerosas questões são
colocadas para nós.
Quanto à origem deste título, não poderia fazer
aquimaisdo queumasugestão.Falou-secomfreqüên-
cia, e acreditei nisto por muito tempo eu mesmo, que
ele proviría do gnosticismo, mas um exame das fon­
tes provou, para minha surpresa, que W. Bousset^ há
cinqüenta anos, tinha inteira razão ao notar que o
conceito de Lógosjogaum papelmuito limitado entre
osgnósticos.Aparecenognosticismoprimitivo- como
por exemplona escola valentiniana-, mas aíele écom
toda evidência retomado de Jo 1.1.Não é,pois, no do­
mínio do gnosticismo que se deve procurar a pré-his­
tória do título de Lógos, mas no campo do judaísmo
helenístico, onde a "Palavra" era tida como a revela­
ção de Deus. Se este fato passou de certo modo des­
percebido naspesquisas anteriores,istoé devido, eu o
creio, ao fato de que elas tomaram de partida uma
basepoucofavorável.Começarampeloestudode Filo.
^W. B o u sset , Kyrios Christo, 1913, ed. Goettingen 1921,
p. 305.
OSENTIDDD
ADESIGXAÇÀÍ' DFJf5LSCOM
OLõGOS 109
Todavia oconceito de Lógosem Filo nãopassa deum
receptáculo eclético das idéias do Antigo Testamento,
dePlatãoedosestoicos,quedificilmentesepodeapro­
ximar daquele do prólogo. Mas o conceito de Lógos
comomodo derevelaçãodeDeusremontamuitoalém
de Filo. Acha-sejá na versão dosSetenta.Na vigorosa
descrição da teofania de Deus em Habacuque 3, diz-
se no texto hebraico que a "peste" {debher) caminha­
va diante de Deus (Hab 3.5).Ora, "peste" {debbeí) na
escrita sem vogais se escrevia exatamente como "pa­
lavra" {dabhabj.Éassim que apalavra foierradamen­
te traduzida por "Lógos" {dabbai) na Septuaginta,
onde em Hab 3.5 se pode ler: diante de Deus "virá o
Lógos". O ponto de impacto deste conceito da Pala­
vra como precursora de Deus se acha em Sb 18.15s,
onde o Lógos de Deus é descrito como um guerreiro
austero munido de espada afiada lançando-se do tro­
no real para a terra. Isto nos lembra imediatamente
Ap 19.11SS, onde Cristo é descrito como o herói que
chega num cavalobranco com uma espada na boca, e
onde é chamado "o Lógos de Deus" (19.13). É, pois,
possível, que o título "Lógos de Deus" tenha servido,
para osprimeiros cristãos,para designar oSenhorque
viria. Num segundo tempo, o título parece ter sido
aplicado ao Senhor do Mundo (1Jo l.lss) eiguaknen-
te ao Cristo pré-existente Qo l.lss; 1Jo 1.1). Se isto é
verdade, o prólogo refletiria um estado avançado do
emprego do título pela Igreja.
Para o nosso propósito atual, não é sobre ques­
tões de origem e de desenvolvimento que se deve
voltar a nossa atenção, mas sobre a questão mais
no o V erbo R evelador
particular e limitada do significado do título "o Lo­
gos" para os contemporâneos do evangelista. Isto
foi expresso de maneira impressionante por um ho­
mem que, no tempo em que o quarto Evangelho foi
escrito, era provavelmente bispo de Antioquia na
Síria. Em 110 d.C., vinte ou trinta anos depois da
redação do Evangelho de João, os cristãos foram
perseguidos na Antioquia. O bispo da cidade foi
preso e condenado a ser entregue às feras na arena.
Enquanto ele, como prisioneiro, atravessava a Ásia
Menor, as igrejas locais delegavam mensageiros
para saudá-lo pelo caminho da morte. Inácio, era
este o seu nome, por sua vez lhes confiava cartas
para estas igrejas. Estas cartas são vigorosos teste­
munhos da fé cristã, pelas quais Inácio concita as
Igrejas a se manterem firmes na fé, suplicando-lhes
que não se esforçassem para libertá-lo e não o im­
pedissem de celebrar na arena os louvores do Se­
nhor crucificado e ressuscitado, até diante das fe­
ras. Na sua carta à Igreja de Magnésia, Inácio fala
de Cristo como o Logos de Deus: "Jesus Cristo, que
é oLogos de Deus, saiu do silêncio" {Magnésios^X).
Inácio pressupõe que Deus estivera silencioso
antes de enviar Jesus Cristo. O silêncio de Deus é
uma noção que provém do judaísmo®, onde estive­
ra ligada com a exegese de Gn 1.3: "E Deus disse:
Faça-se a luz". O que havia antes de Deus falar? -
perguntam os rabinos. E davam a resposta: o silêncio
B. S c h l a t t e r , Theologische Literaturzeitung 87 (1962)
col. 785.
oSETIDOD
ADESIC.XAÇAOD
EJeSLSCOM
OUx;OS 111
de Deus^ O silêncio que precedeu a revelação de
Deus na criação precedeu igualmente a revelação da
cólera de Deus contra faraó'° e se reproduzirá antes
da nova criação“. No mundo helenístico, o "Silên­
cio" tornou-se o símbolo da mais elevada divinda­
de. Existe até mesmo uma oração ao Silêncio. No
grande papiro mágico de Paris, chamado de "Litur­
gia de Mitra" (s. 4), o místico, que na rota do céu é
ameaçado por deuses hostis e por potências estela­
res, recebe o conselho de pôr o dedo na boca e pela
oração pedir ajuda ao Silêncio:
Silêncio, Silêncio, Silêncio
- Símbolo do Deus etemo e imortal-
- toma-me sob tuas asas, ó Silêncid~.
Oração comovente! Deus é silêncio. Está abso­
lutamente longe enão fala. Diante deste silêncio im­
penetrável, o homem só pode levantar os braços e
gritar "Toma-me sob tuas asas, ó Silêncio!"
É num mundo que considerava o silêncio de
Deus como um sinal de sua indizível majestade“
IV Esdras 6.39; Bar. Sir. 3.7; Pseudo-Filo, Biblical Antiqui­
tés 60.2.
Sb 18.14.
■
' IV Esdras 7.30; Bar. Sir 3.7; Ap 8.1.
4.558s (ed. Preisendaz) = Mithrasliturgie 6^2 (ed. Dieterich).
'■
’ In á c io , Efésios 19.1; Filipenses 1.1, cf. H. C h a d w ic k , "The
Silence ofBishops in Ignatius, Harvard TheologicalReview
43 (1950) pp. 169-172.
112 OViíRBO Rj l:l AIXIK
que ressoa a mensagem da Igreja cristã: Deus não é
mais silencioso - ele fala! De fato, ele já agiu; ele
revelou o seu poder eterno através da criação, fez
conhecer sua santa vontade, enviou seus mensagei­
ros, os profetas. Mas, apesar de tudo isto, ele conti­
nuava cheio de mistério, incompreensível, impers­
crutável, invisível, escondido atrás dos principados
epotestades, detrás das tribulaçõeseangústias, atrás
de uma máscara que era tudo o que se podia ver.
Todavia, Deus não ficou sempre escondido. Houve
um momento em que Deus retirou a máscara; de
repente ele falou distinta e claramente. Isto se deu
em Jesus de Nazaré; isto se deu sobretudo na cruz.
E assim que a jubilosa profissão de fé do salmo
de louvor aCristo, no começodo Evangelho de João,
deve ter ressoado aos ouvidos daqueles que o escu­
taram pela primeira vez: Deus não ésilencioso. Deus
falou. Jesus de Nazaré é a Palavra - ele é a Palavra
pela qual Deus rompeu o silêncio.
Capítulo V
A ORIGINALIDADE
DA MENSAGEM DO
NOVO TESTAMENTO
QUMRAN EA TEOLOGIA
I
Não pensava que seu nome entraria nos anais
da ciência ojovem pastor da tribo semi-nômade dos
Ta'amire que fugia, espantado por um ruído estra­
nho vindo da gruta onde, por brincadeira, atirara
umapedrinha,seguro de que eraperseguido porum
gênio mau. Mohammed ed-Dib (= "o lobo") acaba­
va de descobrir a gruta n. 1de Qumran, na margem
noroeste do Mar Morto. No dia seguinte (era prova­
velmente o verão de 1947) ele se aventurou a entrar
‘ As obras sobre Qumran dão em geral 1947 como data da des­
coberta; é a data em que os manuscritos emergiram em Belém,
e que o próprio Mohammed ed-Dib tinha primeiramente
114 AO riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento
no seu interiorem companhia de um primo seu mais
corajoso. Os rapazes acharam duas jarras de barro,
cujo conteúdo os decepcionou: em vez de tesouros
escondidos, "alguns rolos de couro com rabiscos em
cima"’. Valeria a pena levar aquilo? "Então, conta­
rá M ohammed, eu pensei que precisávamos de cor­
reias para as nossas sandálias"^ Estas benditas san­
dálias valeram então para a ciência a conservação
dos rolos da Gruta 1. Com efeito, o sapateiro de Be­
lém, o sírio Kandu, a quem os pastores levaram o
couro, mostra um dos rolos ao seu chefe religioso
Mar Atanásio Yeschue Samuel, metropolita da Igre­
ja siro-jacobita de Jerusalém. Depois de alguma he­
sitação, ele compra 4 dos 7 rolos. Logo, ao expirar o
mandato britânico (14 de maio de 1948 à meia noi­
te), perturbações explodem na Palestina e, pelo fim
destemesmo ano.MarAtanásiopõe sua aquisiçãosob
proteção na América. Os três rolos restantes foram
indicado num relato publicado em 1956 (W. H. B r o w n l ee,
Mohammed ed-Deeb's Own story ofhis scroll Discovery,
in: Journal ofNear Eastern Studies 16 (1957) pp. 236-239),
ele pretende ter encontrado os rolos em 1945 (p. 236, linha
1 de seu relato), e tê-los guardado mais de dois anos antes
de seu tio os levar para Belém. Mas os especialistas estão
de acordo em considerar como autêntica a primeira data
(v. R. DE V a u x , Les manuscrits de Qumran e 1'archéologie,
in R. B. 66 (1959) p. 88, n. 3, e mais recentemente W. H.
B r o w n lee, Ed-Deeb's Story ofhis ScrollDiscovery, in Reu-
ve de Qumran 3 (1961-62) pp. 483-494).
- W. H. B r o w n l e e , Muhammad ed-Deeb's Own Story...,
p. 237 (I, linha 11)
3 Ibidem, p. 237 (II, linha 2)
Q umran e a Teologia 115
comprados pela Universidade Hebraica de Jerusa­
lém. Assim, dos 7 rolos da Gruta 1, 4 chegam à
América, e 3 ficam na Jerusalém israelense. Mas a
sorte vai imi-los. De 1a 3 de junho de 1954 aparece
no Wall StreetJournal sob a rubrica "Vendas Di­
versas" o breve anúncio seguinte: "Estão à venda
os quatro rolos do Mar Morto, manuscritos bíblicos
datando o mais tardar pelo ano 200 a.C., presente
ideal individual ou coletivo, a instituto pedagógico
ou religioso. Dirigir-se à C.P.F 206 WallStreetJour­
nal"^. Um mês mais tarde, a dois de junho de 1954,
uma pasta preta contendo quatro manuscritos em
couro mudava de proprietário através de um che­
que de 250.000 dólares. Adquiriu: um banco que se
recusa a mencionar o seu mandante. Somente a 13
de fevereiro de 1955é que se desvenda o segredo. O
Presidente do Conselho israelense convocauma con­
ferência de imprensa e lhe faz a surpresa de anun­
ciar que a totalidade dos manuscritos da Gruta 1,
"tesouro nacional de valor inestimável, a maior des­
coberta arqueológica do século no país", está em
mãos de Israel. Tal foi o primeiro achado, com data
de 1947.
Alguns anos depois da descoberta da Gruta 1,
em fevereiro de 1952, novo caso sensacional: bedu­
ínos apresentam fragmentos de manuscritos encon­
trados nas mesmas paragens, na margem noroeste
do Mar Morto, no fundo de uma gruta que acabam
*Cf. E. W il s o n , The Scrolls from the Dead Sea, Londres,
1955, p. 156.
116 AO riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
de descobrir; é a Gruta 2 (as grutas estão enumera­
das na ordem de sua descoberta, de 1a 11 até hoje).
Então (março de 1952), os peritos decidem a explo­
rar sistematicamente as numerosas cavernas da re­
gião.Mas osresultados são decepcionantes: somente
uma gruta, a Gruta 3, é que oferece um material
interessante, entre o qual o célebre rolo de cobre^.
Assim, após a inspecção de 267 grutas, param com
estes penosos trabalhos. Os europeus renunciam,
mas beduínos teimam - e têm êxito. Em setembro
de 1952, descobrem a Gruta 4 com mais de 25.000
fragmentos provenientes de ims 400 manuscritos.
Como explicar que se tenha encontrado na Gruta 1
sete manuscritos bem conservados no conjunto, e
na Gruta 4 estes milhares de fragmentos? A respos­
ta é simples: os 7 manuscritos da Gruta 1 tinham
sido cuidadosamente envolvidos em panos e pos­
tos em jarras de barro, e os 400 da Gruta 4,pelo con­
trário, jogados, visivelmente às pressas e sem pro­
teção, na caverna. Em 1900 anos, os ratos, roendo o
couro para fazer os seus ninhos, realizaram uma
obra de destruição radical. 25.000 fragmentos, dos
quais em grande número menores do que uma
unha, e algrms em escrita cifrada: o simples profa­
no pode imaginar o exercício de paciência e abne­
gação que representa ajuntá-los e compô-los! “E
Uma tradução francesa foi feita por J. T. Milik, Le Rouleau
de Cuivre de Qumran (3 Q 15). "Traduction et commentai­
re topographique", in R.B. 66 (1959) pp. 312-357. A edição
de J. M. A ll eg r o , The Treasure of the CopperScroll, Lon­
dres, 1960, infelizmente está cheia de hipótese fantasistas.
Q umran e a Teologia 117
ainda se esperam novas descobertas", escreveu-me
na época um dos membros da equipe internacional
que estuda e edita os textos em Jerusalém. O que
ele esperava aconteceu: em junho de 1956, o faro
dos beduínos os levou aos novos manuscritos da
Gruta 11, felizmente também tão conservados na
maioria como os da Gruta 1!^
Todos osmanuscritos de Qumran,namedidaem
que não ficaram nas mãos dos beduínos, estão atual­
mente em Jerusalém: os 7 manuscritos da Gruta 1
numa sala da Universidade Hebraica, e todo o res­
to, em particular os numerosos fragmentos da Gru­
ta 4 e o achado recolhido na Gruta 11, no Museu
Nacional da Jordânia. Os dois lugares ficam ape­
nas a alguns quilômetros de distância, mas entre
eles se levanta, como um muro, a cortina de ferro
palestinense.
Trata-se de uns 600 manuscritos, biblioteca gi­
gante para a antiguidade! Para dizer a verdade,
apenas 10 rolos estão quase integralmente conser­
vados eo resto não passa de fragmentos. Todospro­
vêm de um período de uns 300 anos que se esten­
dem do séc. III a.C. ao séc. I de nossa era. Que
continham estes manuscritos? Um quarto mais ou
^As cavernas não mencionadas supra: Gruta 5 (descoberta
no curso da exploração científica da Gruta 4, em setembro
de 1952), Gruta 6 (descoberta pelos beduínos em depen­
dência da Gruta 4, no fim do verão de 1952), e Gruta 7-10
(descoberta no decorrer da quarta campanha de escavação
em Qumran, na primavera de 1955), só apresentaram uma
quantidade reduzida de restos de manuscritos.
118 A O riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento
menos deles contém textos bíblicos. Todos os livros
do Antigo Testamento, exceto Ester, aí estão pre­
sentes. Para compreender em que estes documen­
tos contribuem para a exegese veterotestamentária,
é preciso pensar que o nosso texto hebraico da Bí­
blia se baseava, até o momento, em manuscritos do
fim do séc. IX^e do começo do séc. X®d.C. Ora, ago­
ra dispomos de um manuscrito quase inteiro de Isa-
ías que remonta mais ou menos a 100 a.C.'^, e al­
guns fragmentos datam até mesmo do séc. III antes
de nossa era. A antiguidade de nossa tradição ma­
nuscrita do Antigo Testamento deu, pois, um salto
de mais de 1.000 anos para trás. A admiração con­
sistiu em se descobrir que o texto de que dispomos
até o presente é seguro no essencial. Um segundo
grupo é formado por manuscritos dos "dêutero-ca-
nônicos" e "apócrifos" veterotestamentários. Tra-
ta-se de escritos compostos no período intermediá­
rio entre o Antigo e o Novo Testamento. O terceiro
grupo, o mais interessante, compõe-se de escritos
emanados de uma comimidade religiosa judaica, e
que no-la dão a conhecer sob luz absolutamente
nova através de suas regras, seus salmos, suas ora­
ções da manhã e da tarde para cada dia do mês,
seus comentários da Bíblia, seu calendário e sua
astrologia.
^Codex do Cairo, 895 d.C. (Profetas).
*
* Codex de Alepo, 900-950 d.C. (Antigo Testamento inteiro).
’ I QIs®. Um segundo manuscrito de Isaías (I QIs'’) remonta
provavelmente à primeira metade do séc. 1 d.C.
Q umran e a T eologia 119
Quem escondera nas grutas estes 600 manuscri­
tos? A questão levou a se investigar nos arredores
traços de habitação. A 1.500 metros ao sul da Gruta
1, muito perto das Grutas 4-10, levanta-se um mon­
tão de ruínas, Khirbeth Qumran. A 24 de novem­
bro de 1951 começam as escavações que porão à
luz um conjunto de aparência de fortaleza, cercado
de muro e protegido por uma torre, tudo num qua­
drilátero de 80m de lado. Encontra-se aí um edifí­
cio principal com sala, anexos, 13 cisternas com
encanamentos de água, um cemitério de 1.100 tú­
mulos e, enfim, 3km mais para o sul, às margens do
Mar Morto e perto da fonte de Ain Feshkha, um
complexo de exploração agrícola com locais de
moradia e depósitos. Esta colônia do Mar Morto já
era conhecida há tempos pela literatura antiga. No
ano de 77 de nossa era, o naturalista e geógrafo ro­
mano Plínio o Antigo publicava sua História Natu­
ral, cujo quinto livro contém em particular uma
descrição do Mar Morto. "A margem ocidental (do
Mar Morto), fora do alcance da influência nociva
(de suas águas), estão estabelecidos os essênios. É
um agrupamento de solitários, único no mimdo:
sem mulheres - pois remmciam ao amor sexual - e
sem dinheiro, eles vivem na sociedade das palmei­
ras. (Embora se abstenham do casamento) o núme­
ro de seus adeptos se mantém e se renova cada dia
pela afluência daqueles que, cansados de lutar con­
tra as vagas do destino, vêm participar de sua vida.
Assim, coisa incrível, eles permanecem através de
milhares de gerações uma raça eterna, ainda que
120 A O rigin alidade da M ensagem do N ovo T estamento
não existam nascimentos entre eles" (V, 17.13). Não
existe dúvida: é exatamente o mosteiro essênio do
Mar Morto, descrito por Plínio, que reapareceu hoje
diante de nossos olhares. Todavia, existe um ponto
em que Plínio faltou com a prudência: ele fala de
uma "raça eterna" {gens aetema), ora, na época em
que apareceu sua obra, os religiosos de Qumran ti­
nham sido exterminados até ao último^“.
Quem eram os essênios? Em 167a.C., o rei da Sí­
ria, Antíoco IV Epifânio, desejando fazer desapare­
cer a religião judaica, profanou e transformou em
santuário de Zeus o Templo de Jerusalém. Eram, di­
zem osnossos textos, "os tempos da cólera" (CD 1.5).
A vigilante fanaília sacerdotal dos macabeus ousou
então dar o sinal de uma luta que parecia sem espe­
rança. Os sírios são vencidos e, três anos mais tarde,
em 164, o Templo é de novo consagrado. Em 152,Jô-
natas Macabeu, com o consentimento dos sírios, cin-
ge a tiara de sumo sacerdote, embora não pertences­
se à descendência dos sadoquitas, únicoshabilitados
para estas funções. Contra ele levanta-se então, no
colégio sacerdotal, uma oposição, movimento de re­
forma e reafervoramento, cujas membros se autono-
meiam de "Khassayya", os "piedosos" (em grego
"essenoí", "essaíoi"). Parece-nos hoje estranho que o
calendário tenha podido ser um dos grandes motivos
“ A ignorância de Plínio explica-se pelo fato de sua exposi­
ção apoiar-se não sobre o que ele mesmo viu, mas sobre
em relato oral ou escrito referente à colônia do Mar Mor­
to, relato que, no meio-tempo, fora ultrapassado pelos acon­
tecimentos.
Q umran e a Teouxíia
1 2 1
de litígio. Os sacerdotes essênios preconizavam um
calendário novo, solar, destinado a substituir o ca­
lendário lunissolar do judaísmo. A inovação estava
concebida para que nenhuma festa caísse em dia de
sabbat. A santificação rigorosa do sabbat era portan­
to uma das preocupações essenciais da oposição sa­
cerdotal. Seu chefe era um homem que os rolosmen­
cionam com a maior veneração, o "Mestre de
Justiça", grande teólogo e grande exegeta da seita.
Temos poucas informações a seu respeito. Seu pró­
prio nome nos é desconhecido; só sabemos que era
sacerdote“.É provavelmente sob sua direção que se
deu a ruptura com o culto do Templo e o êxodo de
Jerusalém fundado sobre a palavra de Isaías: "No
deserto, preparai um caminho do Senhor" (Is 40.3;
IQS 8.12-16). Construiu-se um mosteiro com sua co­
lônia agrícola,onde viveram em comunidade debens
cerca de 200 monges“. As moedas encontradas na
localidade indicam para a construção uma data pos­
terior a 134 a.C. Uma interrupção na ocupação dos
lugares deve-se, sem dúvida, ligar com o terremoto
de 41 a.C., que causou, segundo Josefo, a morte de
30.000 pessoas“.No começo da era cristã, o mosteiro
é reocupado. O movimento se propaga e se estende:
V. J. C a r m ig n a c , Le Docteur deJustice etJésus-Christ, Pa­
ris, 1957, e mais recentemente, o trabalho de conjunto de
G ert J e r e m ia s, Der Lehrer der Gerechtigkeit, Goettingen,
1963.
R. DE V a u x, in Die Religion in Geschichte und Gegenwart
Tübingen, 1961, col. 742.
BellumJudaicum, I, 370.
122 A O riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento
em muitos lugares nascem grupos novos, dos quais
alguns permitem o casamento'^. F ilo e Josefo falam
de 4.000 essênios^^ Mas o convento do Mar Morto
permanece sendo o centro da seita, até que soe para
ele, em 68 d.C., a hora do destino. No começo do ve­
rão daquele ano, as tropas da décima Legião, que ti­
nha por objetivo atacarJerusalémpelosflancos,avan­
çam para o Mar Morto pela depressão do Jordão.
Primeiro, com muito cuidado, e depois com pressa
febril, os monges põem em segurança o seu grande
tesouro, a sua biblioteca. Puderam salvar os seus li­
vros, mas não suas vidas. Uma brecha no muro, si­
nais de incêndio, pontas de ferro de flechas romanas
de três asas são os testemunhos mudos do que se
passou. Os irmãos devem ter sido exterminados, até
ao último, neste ano de 68,pois, se um só deles tives­
se escapado, as grutas não teriam guardado, até aos
nossos dias, o seu segredo.
II
Depois desta consideração preliminar acerca da
descoberta dos manuscritos e das escavações de
Qumran, eis-nos diante da questão decisiva: qual é
o interesse da descoberta para a teologia, o que em
nosso caso quer dizer: para o conhecimento do
Novo Testamento? Tentarei responder, colocando
sucessivamente três pontos de vista.
“ Bellum Judaicum, II, 160s.
Filo, Quod omnis produs Über sit, 75; Josefo, Antiquita-
tes, 18.20.
C resceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus 123
1. Cresceu o conhecimento do meio em que
viveu Jesus
O período que precede à vinda de Jesus, o séc.
I antes de nossa era, faz parte dos campos da his­
tória judaica que nos são relativamente obscuros.
Graças aos novos textos essênios, um elemento
desta época, um movimento sacerdotal de refor­
ma saída do Templo de Jerusalém, entra em ple­
na luz. Contemporâneos de Jesus nos falam. Ou­
vimos sua linguagem (possuem-se, pela primeira
vez, textos do séc. 1antes de nossa era em ara-
maico, língua materna de Jesus). Apanhamos ao
vivo sua interpretação da Escritura, a organiza­
ção de sua vida, sua oração, a orientação de sua
esperança. Os textos, revelando-nos algo do mun­
do que cercava Jesus, nos ajudam a compreender
melhor a sua mensagem.
Façamos um rápido apanhado da vida no mos­
teiro, da teologia e da piedade dos essênios.
A vidano mosteiro de Qumran sãofocalizadosnos
textos^^. Era extraordinariamente dura. A meta su­
prema era o mais alto grau de pureza, exterior sem
dúvida, mas também interior. Os essêniosusam ves­
tes sacerdotais de cor branca^^ e devem tender, por
incessantes abluções ebanhos rituais, a uma eminente
No que concerne a vida dos essênios, citar-se-á, além de
Filo e Josefo, sobretudo a "Regra da Comunidade" (sigla I
QS), a "Regra da Congregação" (sigla I QSa), e o Escrito
"de Damasco", cujo título autêntico se ignora (sigla CD).
Josefo, Bellum Judaicum, 2,123.
124 AO riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
pureza. O simplescontatocomum noviçoobriga aum
banho completo^®.Vivem no celibato porque as rela­
ções sexuais eram proibidas aos sacerdotes nos perío­
dos de seu serviçono Templo^^.O dia estárecheado de
trabalhos pesados, e um terço da noite - das 6 às 10
horas - é consagrado à leitura da Bíbliae ao louvor co­
mum (IQS 6.7s).Aqueleque érecebido depois de dois
anos‘°de prova e de noviciado, deve prestar um jura­
mento solene de entrada: promete observar todas as
obrigaçõesreligiosasdaordem,guardarsegredodesuas
doutrinas^^mesmonocasodetorturaoumorte^,edeve
dar aomosteiro todososseusbensantes de seradmiti­
do às refeições comims cotidianas^®. Será desde este
momento submetido à disciplina draconiana prevista
pela regra: todo aquele que comete uma falta grave é
expulso; e,como fezjuramento de não comera não ser
da comida preparada no convento, se mãos misericor­
diosas não lha trouxerem no liltimo momento, ele está
destinado a morrer de fome®^.
Josefo, Bellum Judaicum, 2,150.
K. G. Kuhn, in Die Religion in Geschichte und Gegenwaif,
V, Tübingen, 1961, col. 748.
I OS 6,13ss. Segundo Josefo, Bellum Judaicum, 2,137s, o
tempo de provação durava três anos.
Bellum Judaicum, 3,139; IQS 5.7ss; 9.17,22; 10.24; cf. 8.18;
CD, 15.8ss.
“ BellumJudaicum, 2,141.
^ Sobre as refeições, IQS 6.4-6; cf. I QSa 2.17-21; Filo, Quod
omnis probus liber sit, 86; Apologia pro Judaeis, citado
por Eusébio, Praeparatio Evangélica, VIII, II, II; Josefo,
Bellum Judaicum, 2,129-133; Antiquitates, 18.22.
Josefo, Bellum Judaicum, 2,144.
C resceu o conhecimento do meio em que 
tveu Jesus
125
Um estrito legalismo regula a vida, tanto no ex­
terior como no interior do mosteiro. Nenhuma cir­
cunstância - vemo-lo a respeito da origem dos es-
sênios - autoriza a profanar o sabbat pelo trabalho.
"No dia do sabbat, aquele que guarda um alimento
não o pegará" (CD 11.11). "Se no dia do sabbat um
homem vivo cai numa cisterna ou qualquer outro
buraco, não deve ninguém retirá-lo nem com uma
escada, nem com uma corda e nem com qualquer
outro instrumento que seja" (CD ll.lós). Que o dei­
xem gritar por comida; que ele se arrume: a santi­
dade do sabbat está acima de toda consideração.
Sabemos,pelo que dizem os contemporâneos,apro­
funda impressão que fizeram no meio ambiente os
costumes austeros dos essênios e sua observância
rigorosa da Lei^^ Mas, como não pensar nas pala­
vras de Jesus: "Quem haverá dentre vós que, ten­
do uma ovelha e, caindo ela numa cova, em dia
de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali? Ora,
um homem vale muito mais do que uma ovelha!
Lógo, é lícito fazer o bem aos sábados" (Mt
12.11s), e ainda: "O Filho do homem é senhor até
do sábado" (Mc 2.28).
A teologia dos essênios repousa essencialmente
sobre a doutrina dos doisespíritos,o espírito de Deus
e o espírito de Behal, isto é, do diabo. Luz e trevas se
opõem entre si, combatem-se no mundo, e o mesmo
conflito se desenrola no íntimo do homem. Na regra
Filo, Quod oirmis probus Ubersit, 80s; Josefo, Bellum Ju­
daicum, 2,150-153; Antiquitates, 18,20.
1 2 6 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
da ordem, que organiza a vida no mosteiro até o últi­
mo detalhe, este dualismo é exposto na forma de um
salmo (I QS 3.13 a 4.26), onde aparecem com muita
clareza os três traços distintivos do dualismo essênio.
a ) O dualismo essênio é monoteísta: Apresenta
esta característica com coerência e até mesmo com
vigor. Deus é o criador dos dois espíritos - mesmo
do espírito das trevas.
Do Deus dos conhecimentos
vem tudo o que é e tudo o que acontece^
e antes mesmo que as coisas existissem
eie fixara todo o seupiano...
É eie quem criou ohomem
para dominar o mundo
e opôs diante de dois espíritos,
para que eie ande neies
até ao momento fixadopor
sua divina visita.
São os {dois) espíritos
de verdade e de iniqüidade.
Da fonte da iuz saia verdade
E da fonte das trevas saia iniqüidade...
É eie {Deus) quem criou
os espíritos da iuz
e das trevas (I QS 3.15.17-19.25).
b) O dualismo essênio é de ordem morai Os sinais
do espírito de verdade são: "pensamentos humildes, a
C resceu o conhecimento do meio em que m-Eu Jesus 127
longanimidade, plenitude de misericórdia, bondade
perseverante, ciência, inteligência, sabedoria poderosa
que nãopõe sua confiança anão sernas obrasde Deus
e seapóia na plenitude de suas graças,um espírito avi­
sado em todo projeto de ação, zelo pelos decretos da
justiça,pensamentossantosdenaturezainabalável,rica
beneficência para com todos os filhos da verdade, pu­
reza real que abomina todos os ídolos impuros, pru­
dência atenta para com tudo, fidelidade em guardar
em segredoosmistériosdo conhecimento" (IQS4.3-6).
Pelo contrário, "épróprio do espírito de iniqüidade: in­
saciabilidade emãos preguiçosas no serviço da justiça,
impiedade e mentira, orgulho e pretensão, a astúcia, o
engano cruelegrandehipocrisia,ateimosiana cólerae
grandeloucura,zeloarrogante,obrasabomináveisper­
petradasnum espírito de luxúria, viasexecráveis a ser­
viço da impureza, má língua, cegueira dos olhos e sur­
dez de ouvidos, dureza de cerviz e endurecimento do
coração para não andar senão nas vias das trevas, e
uma astúcia maligna" (4.9-11).
c) A terceira característica do dualismo essênio
é sua orientação escatológica, sua insistência na vi­
tória de Deus. Os essênios esperam a última grande
prova, que os textos pintam com cores violentas:
"O fundo das águas primitivas ferve... a terra grita
por causa da desgraça que se realiza no mundo, to­
das as entranhas urram e todos os seus habitantes
deliram, fora de si,no meio da grande perdição. Por­
que Deus troveja com toda a força de seu poder... A
guerra dos vigilantes do céu passa em tempestade
sobre a terra, e não cessará até ao aniquilamento
128 AO riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento
definitivo e eterno" (I QH 3.32- 36). O Messias se
manifestará, bem como o sumo sacerdote dos últi­
mos tempos, e Deus "aniquilará (a iniqüidade) para
sempre, e então aparecerá duravelmente a verda­
de do mimdo... Não haverá (mais) iniqüidade, e to­
das as obras de mentira se tornarão uma vergonha.
Até então, os espíritos de verdade e de iniqüidade
disputarão entre si o coração dos homens" (I QS
4.19-23). No tempo presente, que corre na direção
do fim, e que é de conflito entre luz e trevas antes
dos 40 anos de luta final dos filhos da luz contra os
filhos das trevas. Deus enviou o "Mestre de Justi­
ça". Este deu uma interpretação nova da Torá, e
reuniu a seu redor os filhos da luz, que se prepa­
ram, por uma observância exata da Lei, para a ma­
nifestação última de Deus.
Mais importante, todavia, do que sua teologia é a
piedade dos essênios. O coração da seita bate no seu
saltério (sigla I QH), admirável hinário, cujo essencial
remonta ao Mestre de Justiça^L Todos os salmos co­
meçam com a fórmula: "Eu te dou graças. Senhor".
Estão carregados do louvor de Deus, que liberta o sal­
mista do pecado e da ofensa,defende-o contra os seus
inimigos, confere-lhe a sabedoria, e dele faz o porta-
bandeira e omédico de um grande número. Apresen­
to alguns extratos a título de exemplo.
Hino pela libertação
G ert J e r e m ia s, Der Lebrer der Gerechtigkeit, Geottingen,
1963, pp. 168ss.
I I
C resceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus 129
Eu te dou graças. Senhor,
porque salvaste minha alma da fossa
e me fizeste subir do inferno
da reprovaçãopara as alturas eternas.
E eu ando numa planura sem limites
e sei que uma esperança resta para aquele
que formaste dopó em vista
da eterna Assembléia (I QH 3.19-21).
Hino à glória de Deus
Eu te dou graças. Senhor,
porque fizeste meu olhar penetrante na tua
vontade
e me descobriste teus maravilhosos segredos
epor tuas marcas de favor, {a vida)
cai em partilha a um homem
e,pela imensidão de tua misericórdia,
àqueles cujo coração éperverso...
Ninguém pode subsistir diante
de tua cólera,
mas a todos osfilhos de tua verdade,
tu os conduzes em teuperdão
que está diante de ti,
e tu ospurificas de seuspecados
por tua grande bondade
epela imensidão de tua misericórdia
a fim de os colocar eternamente
diante de ti.
Sim, tu és um Deus eterno
7(1 QH 7.26S.29-31).
130 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
Pode-se sentir, parece-me, que o homem sabia
orar! Citemos ainda uma curta passagem da gran­
de oração que conclui a regra da ordem e que ca­
racteriza bem a religião desta milícia de ascetas:
Mesmo quando começam terror
e angústias^
eu quero louvá-lo,
porque ele se mostrapor demais
admirável (1 QS lO.lSs).
2. Analogias com a comunidade cristã das
origens
O que de imediato chama a atenção, quando se
estudam os essênios e seus escritos, são as analogias
com a comunidade cristã das origens. Por ocasião
de se fazerem públicas em 1948 as primeiras desco­
bertas de Qumran, surgiram, como cogumelos, as
hipóteses mais ousadas. Em toda parte, pensava-se
achar analogias, ou seja, contatos com a história de
Jesus e da Igreja das origens. Como sempre em caso
de novas descobertas, os amadores se precipitaram
sobre os dados recentes, vulgarizando grosseira­
mente as hipóteses científicas e clarinando pelo
mundo inteiro suas invenções. Via-se, no agrupa­
mento essênio, um predecessor da comunidade cris­
tã, eaté mesmo sua origem. Pensava-se, notadamen-
te, ter-se encontrado no Mestre da Justiça um
precursor de Jesus; tinha-se por certo que a seita te­
ria visto nele o Messias, atribuia-se-Ihe uma morte
A nalogias com a comunidade crbtã das origens 131
violenta, supondo-se até mesmo que ele teria sido
crucificado, e falava-se de fé na sua ressurreição e
no seu retorno - apesar dos textos se calarem sobre
todas estas questões. No Leste, a propaganda anti-
religiosa foi ainda mais longe: assim é que, segimdo
a Konsomolskaia Pravda de 9 de janeiro de 1958, as
descobertas do MarMorto “demonstraram peremp­
toriamente o caráter mítico de Moisés e de Jesus"^L
Com efeito, era de se perguntar como é que Moisés
veio a parar aí...
Hoje, a “febre qumraniana“ dos inícios deu lu­
gar, em toda parte, a uma maneira mais tranqüila
de se visualizarem as coisas, e confirmou-se que
aqueles que faziam recomendações contra uma so-
brestimação da importância das descobertas em
matéria de exegese neotestamentária, tinham razão.
Permanecem, mesmo assim, bastantes problemas.
Em quatro casos especialmente, ainda que os essê-
nios mesmos jamais sejam mencionados no Novo
Testamento, põe-se seriamente a questão de uma
influência essênia na história do cristianismo em
seus inícios.
a) Há, de imediato, a hipótese de que João Batis­
ta teria constituído o laço de ligação entre os essêni-
os e Jesus. Já a proximidade de Qumran e do lugar
em que o Batista exercia seu ministério convida a
pôr-se a questão. O Jordão é um rio impetuoso que
tem poucos vaus: éjunto de um deles que João deve
Segundo a impresa {Goettinger Tageblattáe 24-25 de maio
de 1958).
132 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
ter batizado, e Marcos (1.5) possibilita determiná-
lo: na região do vau do sul, não longe de Jericó. Daí
até Qumran existem mais de três ou quatro horas
de caminhada. E muitos fatos poderíam ser invoca­
dos para mostrar que João Batista esteve relaciona­
do com os essênios. Eles atribuem grande importân­
cia aosbanhos; como ele, apelam ao arrependimento;
como ele, pretendem reunir a comimidade messiâ­
nica dos últimos tempos. Referem-se, para o seu
êxodo no deserto, a Isaías (40.3)“®
, como João, para
sua atividade na estepe de Judá“®
.Pode-se ir ainda
mais longe: segimdo Lucas (1.80),o Batista "fica nas
solitudes até ao dia em que ele se manifesta a Isra­
el". Estas "solitudes" não designariam Qumran? Ao
nascimento de João, seus pais já eram avançados
em idade (Lc 1.7); filho de sacerdote (Lc 1.5) e fi­
cando logo órfão, não o teria sua parentela confia­
do à guarda dos essênios? Ele se nutria de "gafa­
nhotos e mel selvagem" (Mc 1.6): não seria isto
devido ao fato de que, expulso da ordem e obrigado
por seu juramento de admissão a não comer senão
alimentos preparados no mosteiro, ele teria renun­
ciado a uma alimentação normal? Tudo isto não é
impossível, mas devemos ser muito prudentes com
hipóteses romanescas. Uma coisa é a atenção as se­
melhanças de organização exterior entre os essênios
e a comunidade das origens em Jerusalém. Salta à
vista que, segundo os Atos dos Apóstolos (que sem
^ V. supra p. 122.
Jo 1.23; cf. Mc 1.3 paral.
A nalogias com a comunidade cristà das origens
133
dúvida generalizam casos particulares, At 2.44s;
4.32,34-37; 5.1-11), os primeiros cristãos viviam em
comunidade de bens como os essênios. Também to­
mavam como eles, diariamente, uma refeição jim-
tos (At 2.46). Iguabnente, o processo em três etapas
da disciplina eclesiástica (a sós, diante de uma ou
duas testemunhas, diante da comunidade reunida,
Mt 18.15-17; cf. Tt 2.10) corresponde ao uso da sei­
ta. Poderia haver aí influências diretas: explicar-se-
iam pela hipótese sedutora da presença de essênios
no "grande número de sacerdotes" que, segundo At
6.7, se uniram à comunidade^”.
c) Mais raros são, no conjunto, os contatos que se
podem levantar nas Epístolas do apóstolo Paulo. São
sobretudo perceptíveis em 2 Co 6.14-7.1, e no com­
plexo de figuras da panóplia espiritual, que Paulo
aprecia e desenvolve sobretudo em Ef 6.11-20. Mas
estescontatoscomaliteratura deQumran,bem como
muitosoutrosdelinguagem,estiloepensamento,que
se acreditou encontrar notadamente na Epístola aos
Efésios (principalmente na T parte, cc. 4-6), devem-
se tratar com grande prudência; permanece, com
efeito, sempre possível que as representações ou ex­
pressões apontadas não tenham sido próprias de
Qumran e que tenham chegado a Paulo por outras
vias. Pode-se em todo casoafirmar que aposição que
pretende encontrar já nos essênios a doutrina pauli-
na da justificação gratuita não resiste à análise. A
^ 0. CuLLMANN, The Significance of the Qumran Texts for
Research into the Beginnings of Chistianity, in Journal of
Biblical Literature 74 (1955) pp. 220-224.
134 A ORicixALroADE DA M ensagem DON ov o T estamexto
palavra "Mispat" (I QS 11.2), que se pretendeu tra­
duzir por "justificação", não tem este sentido em
nenhum lugar; designa na realidade a sentença do
juiz. O legalismo dos essênios não deixa nenhum lu­
garpara adoutrina de Paulo sobre ajustificação atual
do ímpio só pela sua fé (Rm 4.5).
d) Os novos textos esclarecem sobretudo o
Evangelho de João. O quarto Evangelho caracteri-
za-se pelo dualismo que o penetra e o atravessa:
verdade e mentira, espírito e carne, vida do alto e
vida de baixo opõem-se como dois modos de vida,
duas possibilidades oferecidas de existir. Antes da
descoberta dos novos textos de Qumran, a exegese
joânica inclinava-se fortemente a ligar este dua­
lismo à gnose e, a seguir, a interpretar todo o Evan­
gelho de João nas perspectivas do pensamento
gnóstico. Mas os textos novos mostraram que ha­
via também na Palestina uma visão dualista do
mundo, radicalmente diversa daquela da gnose:
ao passo que o dualismo gnóstico via substancial­
mente separadas a esfera do divino, mundo da luz,
e o cosmos, mundo das trevas e da morte, de modo
que se poderia falar a seu respeito de "dualismo
material ou físico", o dualismo essênio é, como vi­
mos, monoteísta, ético e escatológico. Nenhuma
dúvida é possível acerca de em qual destas corren­
tes sesitua o Evangelho deJoão.Masse osnovos tex­
tos nos mostraram que o quarto Evangelho deve ser
compreendidoapartir depressupostosjudaicosenão
gnósticos, não deixa de existir entre Qumran e João
uma diferença fundamental. A literatura essênia
A n a u xja s com a comunidade cristà dasorigems 135
mostra-nos a luz em luta com as trevas; João, bem
como Paulo, anunciam que o dia já nasceu, que
Cristo já venceu a noite. Os temas são idênticos,
mas em Qumran eles estão sob o signo da espera, e
no Evangelho, sob o signo do cumprimento. "Nele
estava a vida" (Jo 1.4). Jesus "venceu o mundo"
(Jo 16.33). Quem ouve sua palavra desde já "pas­
sou da morte à vida" (Jo 5.24).
Mas existe, além de todos os contatos que se po­
dem enumerar entre Qumran e a comimidade das
origens, um parentesco maisprofundo dos dois mo­
vimentos: a seita nos apresenta - e este é um caso
único no do Novo Testamento - um movimento de
revitalização religiosa, cuja exultação pelo dom sal-
vífico, cuja seriedade, cuja generosidade e cons­
ciência de si tocam conjuntamente o cristianismo
das origens. Os salmos do Mestre e os da comuni­
dade transbordam do louvor divino. Estes homens,
cuja oração nos surpreende, sabem algo da peque­
nez e do nada do homem diante de Deus, sentem-se
culpados, pecadores, perdidos diante de sua face.
Mas sabem também algo da grandeza incompreen­
sível de sua graça. Não se cansam de agradecer-lhe
por ela: "Eu te dou graças. Senhor" - é, como vi­
mos, o começo de todos os seus hinos. Dão graças,
porque Deus teve piedade deles, porque à última
hora seu apelo os tirou de um mundo votado ao
julgamento, dando-lhes, pelo Mestre de Justiça, oco­
nhecimento autêntico da Torá: esta Lei,eles apodem
doravante cumprir em toda verdade, observar estri­
tamente o calendário, e ganhar assim a salvação.
136 A O riginalidade da M en'sagem do N ovo Testamento
A esta consciência de sua eleição corresponde
nos essênios a idéia que fazem de seu próprio mo­
vimento. Sabem-se os santos de Deus^b os pobres^",
os filhos da luz^^ os filhos da complacência divi-
na^^, a plantação eterna de Deus^^ seu Templo^® os
participantes da nova aliança^^ - todas estas ima­
gens e denominações aplicam-se também à comu­
nidade apostólica. Duas expressões são particular­
mente sugestivas^®: os essênios se dizem "os pobres
de tua salvação"®^ arrancados por Deus à perdi­
ção, e "os pobres da graça"^°, aos quais se concedeu
experimentar a graça divina e medir-lhe a grande­
za. De fato, percebe-se aí uma ressonância do cris­
tianismo das origens, ultrapassa-se por um passo
os limites do judaísmo. Mas então, não seria o mo­
vimento essênio um cristianismo antes da letra?
3. O que separa os essênios de Jesus
Mas aíprecisamente é que se abre a fissura pro­
funda que separa os essênios de Jesus - e ao mes­
mo tempo aparece o alcance teológico decisivo dos
I QS 5.13: “Homens da Santidade".
V. infra, notas 39 e 40.
I QS 1.9; 2.16 etc.
I QH 4.32s; 11,9.
I QS 8.5; 11,8.
I QS 8.5: "uma casa santa para Israel".
CD 6.19; 8.12 parai.; 19.33s; 20.12.
Devo esta indicação ao meu filho Gert Jeremias.
I QM 11.9.
I QH 5.22.
o QUE SEPARA OS ESSÊNIOS DE JESUS 137
novos textos: osessêniosseconsideram como "oRes­
to O que significa isto?
A idéia do "resto", que a seguir haveria de ga­
nhar sem cessar importância, faz seu aparecimen­
to no séc. IX a.C. com o profeta Elias. Os profetas
prometem que Deus, por mais rigorosos que sejam
os seus julgamentos, deixará subsistir um remanes­
cente. Assim no Primeiro Livro dos Reis (19.18):
"Mas pouparei em Israel sete mil, todos os joelhos
que não se dobraram diante de Baal e todas as bo­
cas que não o beijaram". Este tema do "remanes­
cente" é retomado pelos profetas-escritores, e pri-
meiramente por Amós (4.11: "Fostes como um
tição arrancado ao incêndio, mas não voltastes
para mim"), depois por Isaías (1.9: "Se Yahweh Sa-
baot não tivesse deixado alguns sobreviventes, se­
ríamos como Sodoma, nos assemelharíamos a Go-
morra") e Miquéias (4.7); posteriormente
sobretudo por Sofonias (3.12: "Não deixarei sub­
sistir no teu seio a não ser um povo humilde e mo­
desto, e é no nome de Yahweh que buscará refúgio
o resto de Israel") e Zacarias (13.7-9). Este tema
exerceu sobre o pensamento judaico contemporâ­
neo de Jesus uma influência incomparável, e não
se pode hesitar até mesmo de se ver nele uma idéia
mestra do judaísmo tardio. Temos aí o coração da
espiritualidade dos "piedosos" no tempo deJesus^^
« CD 1.4; I QM 13.8; I OH 6.8.
® J. Jeremias. Der Gedanke des "Heiligen Restes" im Spätju­
dentum und in der VerkündigungJesu, in Zeitschrift für
de neutestamentliche Wissenchaft42 (1949) pp. 184-194.
138 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
O movimento farisaico é prova disto. Seus mem­
bros são na grande maioria leigos, que se reúnem em
conventículos piedosos. Os estatutos destes grupos
acusam a preocupação de constituir a verdadeira co­
munidade sacerdotal messiânica, o verdadeiro Israel.
Os essêniostambém tem istoem mira.Pretendem ser,
como vimos, os santos de Deus, "os de via
perfeita"^^"a comxmidade dos homens de santidade
perfeita"^, "os filhos da justiça"^^ um "santo dos
santos"^®, o verdadeiro povo de Deus, o Israel do fim
dos tempos. Sabem-se chamados a "expiar pela fal­
ta epelo pecado, pelas más ações e transgressões, e a
ganhar para o país a benevolência (de Deus)"^^. No
último combate que se aproxima entre luz e trevas,
querem ser o exército de Yahweh, o instrumento da
vingança divina que forçará a vitória. Tendem a este
objetivo pela estrita observância da Lei. Os essênios
sacerdotes, e os leigos que se unem a eles, estão deci­
didos a levar mna vida de pureza sacerdotal. Os sa­
cerdotes espalhados pelo país, quando realizavam,
duas vezes somente por ano, sua semana de serviço
no Templo, estavam obrigados a manter a continên­
cia: os essênios remmciarão inteiramente ao casa­
mento. Os sacerdotes em serviço deviam observar o
mais alto grau de pureza levítica: os essênios se ves­
tirão de branco e se purificarão todos os dias com
« I QS 4.22.
^ CD 20.2.
® I QS 3.20.
^ I QS 8.5s; 9.6.
1 QS 9.4.
oQUE SEPARA OS ESSÈNIOS DE J e SUS 139
banhos. Por seu comportamento moral, sua vida co­
mum, sua oração e meditação, bem como pelo rigor
em observar a Lei (sobretudo com referência ao Sab-
bat) e pela disciplina draconiana de sua ordem, pre­
tendem ser uma comimidade autenticamente sacer­
dotal. Sua exigência em termos de arrependimento,
a dura ascese que impõem aosmembros da seita,seu
esforço ardente por um maxhnum de pureza, tudo
isto não tem mais do que uma finalidade: constituir
opovo imaculadode Deus.Seustextossão documen­
tos que atraem e comovem: dão testemunho de seu
combate para realizar o "Remanescente".
Pensa-se atingir esta finalidade somente com o
mais estrito exclusivismo, segregação dos santos e
eliminação dos pecadores. Entrando para a ordem,
os membros se obrigam:
a amar tudo aquilo que ele {Deus) elegeu
e odiar tudo aquilo que ele rejeitou (I QS 1.3-4).
e ainda:
a amar todos osfilhos da luz,
cada um segundo a sorte estabelecida
para ele na comunidade,
e odiar todos osfilhos das trevas,
cada um de acordo com o que .
ele deve à vingança de Deus^.
I QS 1.9-11, cf. 9.16.21-24; 10.19-21.
140 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento
E no decorrer da cerimônia de entrada faz-se a
maldição dos "homens de Belial", isto é, os pecado­
res impenitentes sob o domínio de satã:
Maldito sejas sem misericórdia
segundo as trevas de tuas obras
e condenado sejas
na obscuridade do fogo eterno!
Que Deusnão se digne de mostrar-se
favorávela teus apelos
nem de teperdoar epermitir a expiação
de teuspecados.
Que ele levante sobre ti,para a vingança,
a face de sua cólera,
epara ti não hajapaz (I QS 2.7-9).
Oração terrível! Separa-se da massa, votada à
perdição por seu pecado irremediável. Até mesmo
defeitos corporais são motivos de exclusão. Os es-
sênios não constituem a comunidade sacerdotal do
fim dos tempos? Ora, só podem oficiar no tempo
sacerdotes sem mancha. É por isso que se dirá: "Os
insensatos, os loucos, os tolos, os alienados, os ce­
gos, os paralíticos, os coxos, os surdos e os menores
- nenhum deles pode ser aceito na comunidade;
porque no seu meio estão anjos santos"^®.Ede modo
semelhante quando se descreve a comimidade do
fim dos tempos: "Nenhuma pessoa atingida por
4 QD‘’ = CD 15.15-17 (em CD, texto muito deteriorado),
cf. MILIK, O. cit, p. 76.
o QUE SEPARA OS ESSêNIOS DE Je SUS 141
qualquer impureza humana pode entrar na assem­
bléia de Deus. Aquele que é atingido na sua carne,
paralítico dos pés ou das mãos, paralítico ou cego
ou surdo ou mudo, aquele que traz na carne uma
mancha visível, o velho fraco incapaz de se manter
de pé na assembléia, não podem entrar para tomar
lugar no seio da comunidade dos homens do nome;
porque no seu meio estão anjos santos"®“.
Tal é o universo em que surge Jesus. A todas es­
tas tentativas de homens para realizar a sociedade
dossantos,eleopõeoseunãoradical.Jesusveiopara
trazer de volta à casa do Pai os filhos desgarrados
de Deus. Convida à sua mesa os publicanos, os pe­
cadores, os excluídos, os reprovados, chama para o
grande banquete a gentinha das vielas e arrabaldes
(C.c 14.16-24). Sem descanso, não cessa de repetir
precisamente aos devotos que sua justiça mesma os
separa de Deus. Nós, a quem o Evangelho é familiar
desde a infância,não podemos imaginar que subver­
são religiosa representava para os contemporâneos
a pregação de um Deus que quer tratar com os pe­
cadores. Cada página do Evangelho mostra o escân­
dalo, a agitação, a convulsão que Jesus provoca, ao
se opor a toda pretensão diante de Deus de ser al­
guém que exige, e ao chamar à salvação precisa­
mente os pecadores. Sem cessar, requereu-se dele o
50 I QS" 2,3-9.
142 A O rionaudade DAM ensagem do N ovo Testamento
motivo desta atitude incompreensível, e sem ces­
sar, principalmente em suas parábolas, ele deu a
mesmaresposta: assim éDeus.Deus éopaique abre
ao filho perdido a porta de sua casa; é o pastor que
se rejubila por sua ovelha reencontrada, é o anfi­
trião que convida à sua mesa os pobres e os mendi­
gos. Deus sente mais alegria por um só pecador que
faz arrependimento do que pelos noventa e nove
justos. Ele é o Deus dos pequenos e dos desespera­
dos, cuja bondade e misericórdia são ilimitadas. É
assim que é Deus.
EJesus acrescenta: quando se compreende esta
mensagem, e os homens constroem não mais so­
bre aquilo que fizeram por Deus, mas sobre a gra­
ça dele, quando os extraviados sem esperança de
retorno são trazidos de volta, quando o amor do
Pai caminha adiante dos filhos perdidos - então a
salvação cessa de ser uma meta longínqua que o
homem deve ganhar por seus próprios meios, en­
tão, aqui e desde agora se realiza o reino de Deus.
É a explosão da alegria. Alegria dos convidados às
núpcias, alegria daquele que encontrou a pérola
preciosa, o grande tesouro: subjugado, nada mais
ele procura e tudo sacrifica sem hesitar, porque
todo outro bem empalidece diante da excelência
daquilo que ele viu. Trata-se da alegria de ser fi­
lho, da alegria messiânica, da unção de óleo sobre
a cabeça. Alegria tão grande que o próprio Deus
nela toma parte: "do mesmo modo. Deus se ale­
grará por um pecador que faz arrependimento"
(Lc 15.7; cf. 15.10). Com esta alegria do tempo da
o QUE SEPARA OS ESSÊNIOS DE J e SUS 143
salvação o amor caminha junto na mensagem de
Jesus: amor dos pobres, amor dos extraviados e dos
grandes culpados- amor atémesmo dos inimigos...
O interesseteológicodosnovostextos?- Elesdão
um relevo até então desconhecido ao contraste en­
tre Jesus e a religião do seu tempo. Lá, no mosteiro
do Mar Morto, vive, na mais severa penitência, o
pequeno exército dos ascetas, dos santos de Deus, a
milícia do Altíssimo. Tensosna direção da mais per­
feita pureza, compromissados na observância legal
mais estrita, ela odeia inflexivelmente os inimigos
de Deus, separa-se dos reprovados, exclui até mes­
mo osparalíticos eos cegos.Aqui,Jesus anuncia aos
pobres, aos miseráveis, aos mendigos de Yahweh o
amor incompreensível e infinito de Deus, e a amo­
ra do tempo da alegria em que os cegos vêem, os
paralíticos andam e os pobres são evangelizados.
São dois mundos que se antolham. De um lado, o
imiverso da Lei e da observância: Qumran leva ao
extremo sua admirável seriedade e a limitação do
seu amor. Do outro lado, omundo da Boa-nova, que
prega oamor de Deus sem limites ea alegria de seus
filhos agraciados. Melhor ainda que no passado,
vemos o esplendor e a originalidade da mensagem
de Jesus: tal é o serviço, o grande serviço, que nos
prestam os novos textos.
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
INDICE DOS AUTORES
Allegro, M. -116
B
Bousset, W. -108
Brownlee, W. H. - 114
Bultmann, R. - 7, 79, 80,
95, 104
Bumey, C. F. - 93
Carmignac, V. J. - 121
Chadwick, H. - 111
Cullmann, 0 .- 1 3 3
D
Dalman, G. - 30
Davies, W. CF. - 30
Eusébio -124
Feine, P. - 49
G
Grundmann, W. - 32
H
Heidenheim, W. B. - 20
Hipólito de Roma - 98
I
Inácio - 49,110, 111
Irineu - 32
146
J
Jeremias, J. - 5 ,8 ,1 8,35,137
Jeremias, Gert - 49,86,121,
128, 136
K
Karl von Base - 29
Käsemann - 7
Klein, G. - 84
Knox, W. L. - 30
Lutero - 72, 82
M
Manson, T. W. - 30
Indice
Marcus, J - 21
M ilik ,J.T .-116
R
R. de Vaux, - 114,121
Rengstorf, K. H. - 47
Schlatter, B. -110
Schnackenburg, R. - 6, 77
Schulz, S. - 84
Schweitzer, A. - 76
W
Wilson, E. -115
Windisch, H. - 79
Wrede W. - 75
I I I
ÍNDICES DOS TEXTOS BÍBLICOS
ANTIGO TESTAMENTO
Gênesis Salmos
1.1 100 2.7 33
1.3 110 2.18 41
6 43 4.14-16 41
32.11 106 7.25 41
Êxodo 9.24 41
22.1 22
15.2 22 78 96
34.6 106 89.27S 33
Levítico 103.13S 15
103.17 54
16 40, 41 110 41
Deuteronômío Isaías
14.1s 15 1.9 137
21.23 49, 55 40.3 121,132
32.6 14 45.25 68
2 Samuel 49.4 68
50.8 68,70
7.14 33 52.14 62
1 Reis 53 56, 62, 63, 64, 65
19.18 137 53.6 51
53.10 51
1 Crônicas 53.12 51
17.13 33 53.12.53.11c.12^ 62
148 LDtCE
63.15S
64.7s
17
17
Habacuque
2.4 87
Jeremias 3.5 109
3.4s 16 Sofonias
3.19S
31.9
16
18 3.12 137
31.20 18 Zacarias
Oséias 13.7 64
6.2 60 13.7-9 137
11.1-11
11.3,8
17
18
Malaquias
1.6 17
Amós 2.10 14
4.11 137
NOVO TESTAMENTO
Mateus
5.45 25, 29
Marcos
1.1 92
6.9-13 34 1.3 132
6.32 25, 28 1.5 132
7.11' 25 1.6 132
11.23 32 2.28 125
11.25 23 3.22 58
11.25,26 23 4.11 32
11.26 23, 32 8.31 58
11.27 29, 30, 31, 32, 34 8.32 59
12.11S 125 9.5 105
12.37 67 9.31 57,58
12.39 59, 23 9.37 93
18.15-17 133 9.41 72
20.28 62 10.32,40 59
21.29-30 26 10.33 58
23.35 58 10.33ss 57
26.1-4 57 10.45 62
26.28 61 11.25 29
26.39,42 23 14.8 59
27.46 22 14.24 61
Índices dos textos bíblicos 149
14.27 63 1.1 100,108, 96
14.34 23 l.lss 109
14.36 22 1.1-18 92
14.58 60 1.3 100
15.34 22, 25 1.4 94, 135
41.1-2 57 1.9 103
Lucas 1.14b.l6
1.19SS
94
99
1 95, 96 1.23 132
1.5 132 3.19-21 103
1.7 132 5.24 135
1.80 132 6-8.12b-13.15 94
6.20 89 6.51 61
6.36 29 9.39 102
10.21 23 10.15,17 64
10.22 29 11.41 23
10.23s 32 12.27s 23
11.1 34 14.9 107
11.2 23 16.16 60
11.2-4 34 16.33 135
11.13 25 17.1,5,11,24,25 23
12.30 28 17.5,11,21,24,25 23
12.32 29 Atos
13.32 60
15.10 142 2.36 46
15.7 142 2.44s 133
15.21 26 2.46 133
16.9 105 4.10 46
18.14 69, 70, 89 4.32,34-37 133
22.19-20 61 5.1-11 133
22.27 62 5.30 46
22.35-38 63 6.7 133
22.36 59 10.39 46
22.36s 59 20.21 40
22.42 23 26.11 49
23.24
23.34
44
64 Romanos
23.34,46 23 1.17 71
João 3.24
3.25
74
51
1 96, 98 3.28 71
150 Índice
3.5 71 15.2 47
3.9 53 15.3 56
4.2
4.25
70
51 2 Coríntios
4.4 74 5.17 80,81
4.5 134, 73 5.19 54
4.6-8 74 5.21 48, 51
5.1 71, 83 6.14-7.1' 133
5.6 54 Gaiatas
5.8 54
5.9 51,71 1.14 51
5.10 54 2.14 52
5.17 74 2.16 73
5.18S 53 2.19 46
6.6 46 2.20 49, 73
6.7 76 3.1 48
8 70 3.3 52
8.3 52 3.8,24 73
8.15 23, 35 3.10 73
8.32 51 3.13 46, 48, 49, 52, 53
8.33s 68 3.24-27 76
10.7 44 4.4s 54
11.33SS 96 4.5 52, 53
28.30 73 4.6 23, 35
1 Coríntios 5.5 83
5.25 79
1.18 46, 47 6.14 48
1.23 48 Efésios
2.3 48
2.6ss 39 1.7 51
5.7 79 2.13 51
5.7s 50 3.14 81
6.11 75, 76, 78 5.2 . 51
6.20 52, 53 6.11-20 133
7.23 52, 53 18.1 49
10 82 19.1 111
11
11.24
82
61 Filipenses
12.3 49 1.1 111
13 >96 2 98
13.3 53 2.6 96
iNDtCBSDOSTEXTOSBÍBUCOS 151
2.6-11 95, 96 6.1 39,40
3.9 75 6.2 40
5.19 95 6.6 46
7.1-10.8 40
Colossenses 7.25 41
1.13 81 7.27 41
1.15-20 96 9.12 41
1.20 51 9.24 41
3-4 81 10.10 41
3.16 95 12.2 46,55
13.10 40
1 Tessalotiicenses 13.22 39
1.9s
2.10
40
74
1 Pedro
42
42,46
2 Tessalonicenses 1.8s
2.24
1.5s 75 3.18 42
1 Timóteo 3 19s 42
4.6 42,43
1.13 49 9.14 43
2.11-13 96 20.22-25 42
3.16 96
1 João
Tito 1 .1 108, 109
2.10
3.5-7
133
76
Apocalipse
3.7 75 1 .1 91
Hebreus 7.45 105
8 .1 111
1.1-4 96 11.8 46
2.18 41 19.11SS 109
4.14-16 41 19.13 108, 109
5.12 39 21.3 105
LITERATURA EXTRA-CANONICA
32
31
3 Enoque 45,1s
3 Enoque 48
Adv. Haer. I, 13,2 32
Antiquitates, 18,20 122, 125
Antiquitates, 18,22
Bar. Sir 3.7
BellumJudaicum,2,129-133
BellumJudaicum,2,141,144
124
111
124
124
152 Lt)ice
BellumJudaicum,2,150-153 125
Bellum Judaicum, 2,50 124
Bellum Judaicum, 3,139 124
Bellum Judaicum, 2,123 123
CD 1.4 137
CD 11.11 125
CD 11.16s 125
CD 15.15-17 140
CD 15.8SS 124
CD 19.33s 136
CD 20.12 136
CD 20.2 138
CD 6.19 136
CD 8.12 136
I OS 6,13ss 124
I QH 11.9 136
I QH 15.12s 86
I QH 3.19-21 129
I QH 3.32-36 128
I QH 4.32s 136
I QH 5.22 136
I QH 6.8 137
QH 9.55s 19
7 (I QH 7.26S.29-31 129
I QM 11.9 136
I QM 13.8 137
I Qp Hab 8.1-3 87
I QS 1.3-4 139
I QS 1.9 136
I QS 1.9-11 139
I QS 10.15s 130
I QS 10.19.21 139
I QS 10.24 124
I QS 11.12 85
I QS 11.13s 85
I QS ll.lss 84
I QS 11.2
I QS 11.5
I QS 11.8
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I QS 4.3-6
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I QS 5.13
I QS 5.7ss
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I QS 8.12-16
I QS 8.18
I QS 8.5
I QS 8.5s
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I QS 9.17,22
I QS 9.4
I QS 9.6
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I Qsa 2.17-21
Jubileus 1.24s
IV Esdras
6.39
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Sabedoria
18.14
18.15s
85, 134
85
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141
136
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148 a mensagem central do novo testamento joachim jeremias

  • 3. JOACHIM JEREMIAS A MENSAGEM CENTRAL DO NOVO TESTAMENTO Prefácio de F. Refoulé, O. P. 2005 CRISTÃ
  • 4. © Editora Academia Cristã Título original: Le message central du Noveau Testament Les Éditions du Cerf, Paris Supervisão Editorial: Luiz Henrique A. Silva Rogério de Lima Campos Paulo Cappelletti Layout, e artefinal: CompSystem - Digitação e Diagramaçâo Ltda-Me. Tradução: João Rezende Costa Revisão: Vagner Montrezol Capa: James Valdana Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jeremias, Joachim, 1900- J55m A mensagem central do Novo Testamento (traduziu João Rezende Costa) - São Paulo : Ed. Academia Cristã Ltda, 2005. 14 X21 cm; 152 páginas ISBN 85-98481-06-8 1. Bíblia- N.T. -Teologia I. Título. CDU-225.017 índices para catálogo sistemático: I. Novo Testamento - Teologia 225.017 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998). Todos os direitos reservados à Editora A cademia Cristã L tda. Rua Marina, 333 - Santo André Cep 09070-510 - São Paulo, SP - Brasil Fonefax (11) 4424-1204 / 4421-8170 Email: [email protected] Site: www.editoraacademiacrista.com.br
  • 5. PREFACIO Será que o Cristo da fé é também o Jesus da his­ tória, será que a mensagem dos apóstolos coincide com a de Jesus, será que a Igreja está vinculada re- ahnente à comunidade messiânica reunida por Je­ sus, e será que o cristianismo não passa de um esse- nismo que teria tido êxito? Estas graves questões, que tocam o próprio cerne da nossa fé, situam-se no centro dos debates contemporâneos. São delas que o professor Jeremias trata diretamente neste opúsculo, que temos a felicidade de aqui apresen­ tar. Isto basta para dizer a importância desta obra, cujo peso não se mede pelo número das páginas. A exposição do professor Jeremias apresenta-se, todavia, com tanta simplicidade, e com uma erudi­ ção tão discreta, que o alcance das conclusões do Autor corre o risco de escapar ao leitor não adverti­ do. Parapressentir seu significado,épreciso,cremos, conhecer pelo menos em suas grandes linhas o con­ texto histórico em que se situam estes estudos. No decorrer do século XIX,o estudo crítico ehis­ tórico do Novo Testamento levou os exegetas e os
  • 6. Prefácio teólogos a tomarem mais claramente consciência do corte profundo que foi - na evolução do cristianis­ mo das origens - o evento pascal, ou seja, o duplo fato da morte e da ressurreição de Jesus. A vinda do reino de Deus constituíra o tema maior da pre­ gação de Jesus. Depois da Páscoa, a mensagem dos apóstolos resume-se essencialmente no anúncio de Jesus como Messias e Senhor. Os textos o demons­ tram de modo evidente. Como o frisa R.Schnacken- BURG, no seu grande livro Gottes Herrschaft und Reich, os sermões missionários dos Atos dos Após­ tolos não mencionam nem sequer uma vez o reino de Deus, e, no conjunto dos Atos, ele não é evocado mais do que sete vezes, ao passo que aparece trinta e nove vezes no Evangelho de Lucas. Pelo contrá­ rio, a pregação da ação salvadora de Jesus desde o seu batismo, a pregação da sua crucifixão e ressur­ reição, constitui regularmente o cerne dos discur­ sos de Pedro e dos apóstolos. Da pregação de Jesus à dos apóstolos, o centro de gravidade deslocou-se incontestavelmente. Evi- denciou-se difícil uma justa interpretação deste fato e os exegetas ainda não chegaram a determinar de modo satisfatório a relação entre a pregação de Je­ sus e a dos apóstolos. H arnack e os teólógos protestantes liberais consi­ deravam a pregação apostólica como um desenvol­ vimento üegítimo e mitologizante da mensagem de Jesus. Para estes teólogos, o ensinamento do Novo TestamentosobreJesusMessias,Senhor,FühodeDeus, Redentor, Juiz escatológico, não conteria nada de
  • 7. Prefácio especificamente cristão,pelo contrário, violaria os tra­ ços individuais e concretos da figura histórica de Je­ sus, sobre a qual aquele ensinamento estaria distante. Hoje, inversamente,para Bultmann e seus discípulos, o evento pascal marcaria o começo absoluto do cristi­ anismo. Jesus, afirmam eles, não teria sido um "cris­ tão", mas um judeu, e sua pregação se moveria intei­ ramenteem quadrosdeidéiaseconceitosdojudaísmo, mesmo quando entra em oposição à religião judaica tradicional. Esta solução radical de Bultmann susci­ tou vivas reações eaté mesmo alguns de seusdiscípu­ los se recusam a segui-lo neste ponto. Como admitir, com efeito, que apessoa eo ensinamento deJesusnão se situem no centro da mensagem cristã? Além disto, se é verdade que a pregação dos apóstolos não se li­ mitou a repetir a de Jesus, não é menos verdade que elasempre sereferiu à deJesuse que osprimeiros dis­ cípulos sentiram a necessidade de escrever "evange­ lhos".Enfim,comoKàsemann objetacomrazãoa Bult­ mann, "somente se a pregação de Jesus coincide de modo decisivo com a pregação sobre Jesus, é que se pode compreender que o ressuscitado é oJesushistó­ rico. A partir daí, somos constrangidos,comohistoria­ dores, a remontar para além da Páscoa. Verificare­ mos se Jesus está detrás da palavra de sua Igreja ou não, e se o querigma cristão é um nüto inteiramente separável da sua palavra e dele próprio, ou se ele está vinculado indissoluvelmente ao Jesus histórico". E precisamente esta coincidência decisiva entre a pregação de Jesus e a da sua Igreja que o professor Jeremias sepropõe mostrarna presente obra. Partindo
  • 8. P refácio dos temas maiores da pregação apostólica (oração endereçada ao Pai, justificação pela fé, morte de Je­ sus como sacrifício), ele remonta, passo a passo, até as camadas mais antigas da tradição na tentativa de determinar em que medida estas doutrinas fun­ damentais estão vinculadas à pregação de Jesus. E depois destas pacientes análises que ele se crê auto­ rizado a afirmar a unidade real da mensagem cris­ tã quanto ao essencial, e a continuidade da doutri­ na dos apóstolos com a de Jesus. Seninguém jamais pôs em dúvida a qualidade ex­ cepcionaldas pesquisas do professorJeremias eo rigor do seu método exegético, fundado particularmente num conhecimento notável do aramaico, alguns au­ tores católicos e protestantes recentemente julgaram poder formular reservas quanto ao seu alcance teoló­ gico. Alguns,por exemplo, questionaram se o interes­ se que o professor Jeremias dirige ao Jesus da história não implicaria uma certa depreciação da tradição apostólica. Outros julgam que o caráter decisivo do evento pascal não se acharia suficientemente acentu­ ado; perguntam-se se o professor Jeremias não viria, como outrora osjudeu-cristãos, a considerar a ressur­ reição de Jesus mais como a confirmação da mensa­ gem de Jesus do que como o objeto central da fé. Al­ guns, enfim, temem que o peso que ele atribui às provas históricas não venha a pôr a fé na dependên­ cia da crítica histórica e literária. Seja lá o que for, nada na presente obra justifica essas críticas ou esses temores. O Autor, neste opús­ culo,sepropõe unicamentemostrarqueJesussesitua
  • 9. P refáck) por detrás daspalavras da sua Igreja, e, da nossa parte, cremos que ele realiza o seu propósito de ma­ neira tão convincente como magistral. Expresse­ mos-lhe aqui a nossa gratidão. F.Refoulé, o .P.
  • 10. INDICE GERAL C a p ít u l o I- ABBÁ......................................................13 1. Deus "Pai" no Antigo Testamento....................13 2. O judaísmo palestinense....................................19 3. "Abbá" nas orações de Jesus.............................. 22 4. A paternidade de Deus nos Evangelhos..........27 5. A oração do Senhor..............................................34 6. Conclusão.............................................................36 C a p ít u l o II - A MORTE DEJESUSCOMO SACRIFÍCIO.............................................................39 1.A paixão na Epístola aos Hebreus e na primeira Epístola de Pedro................................39 2.Apóstolo Paulo.................................................... 45 3.A Igreja das origens.............................................55 4.Qual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte?................................................57 C a p ít u l o III- AJUSTIFICAÇÃOPELAFÉ..............67 1.0 sentido da fórmula........................................67 2.Justificação e nova criação..................................74 3.A origem da doutrina paulina da justificação ....84
  • 11. C apítulo IV - O VERBO REVELADOR...................91 1.A forma literária do prólogo de João.................91 2.0 encadeamento das idéias...............................100 A segunda estrofe (vv. 6-8)................................102 A terceira estrofe (vv. 9-13)................................102 A quarta estrofe (vv. 14-18).........;.....................104 3.0 sentido da designação de Jesus como Lógos....................................................................108 C apítuloV - A ORIGINALIDADE DA MENSAGEM DO NOVO TESTAMENTO...........113 Qumran e a Teologia..............................................113 1.Cresceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus......................................................123 2.Analogias com a comunidade cristã das origens..............................................................130 3.0 que separa os essênios de Jesus..............136 ÍNDICE DOSAUTORES...........................................145 ÍNDICE DOSTEXTOS BÍBLICOS...........................147 1 2 Ín d ic e
  • 12. Capítulo I ABBÁ 1. Deus "Pai" no Antigo Testamento No Oriente Próximo, por mais que retornemos no tempo, sempre é familiar a idéia mitológica do deus pai da humanidade ou de certos seres huma­ nos. Povos, tribos e famílias se dizem proceder de um ancestral divino. É particularmente ao rei, en­ quanto representante do seu povo, que se atribui uma parte especial da dignidade e do poder de um pai divino. Toda vez que a palavra "pai" é usada para a divindade, neste contexto, implica a pater­ nidade no sentido de autoridade incondicional e irrevogável. Estes são fatos muito conhecidos na história das religiões, mas o que é menos conhecido é que muito cedo já a palavra "pai", enquanto epíteto atribuído à divindade, está carregada de uma tonalidade par­ ticular. Num célebre hino sumério eacádico de Ur, o deus Lua, Sin, é invocado como "Pai misericordioso.
  • 13. 14 A bba em suas disposições que retém em sua mão a vida de todo opaís". Edo deus sumério-babilônico se diz; Sua cólera é como o dilúvio, Ele se reconcilia como um pai misericordioso. Para os orientais, por mais que recuemos no tempo, a palavra "pai" aplicada para Deus evoca - algo semelhante ao que a palavra "mãe" signifi­ ca para nós. Isto ainda é mais verdade no Antigo Testamen­ to. Aí, raramente se chama a Deus de "pai", apenas catorze vezes, mas cada uma delas é importante. Para começar, quando Deus é chamado de "pai" ele é honrado como criador; Não é ele,porventura, teupai, que te fez seu, que te formou e te consolidou? (Dt 32.6). Porventura não é um mesmo o Pai de todosnós? Não é um só Deus que nos criou? (Ml 2.10). Como criador. Deus é o Senhor. Ele pode espe­ rar receber a obediência em homenagem. Por outro lado, sendo um pai. Deus é considera­ do misericordioso;
  • 14. Deus "P ai" o Axtigo Tetamexto 15 Como um paise compadece dos filhos, assim dos que o temem se apieda o Senhor. Pois ele bem conhece de que massa somos feitos: recorda-se que somospó (SI 103.13s). Porque Deus é o criador, está cheio de indulgên­ cia paternal para com a fraqueza de seus filhos. É evidente que todas estas citações do Antigo Testamento refletem o velho conceito oriental da paternidade divina. Há, porém, diferenças funda­ mentais. O fato de que no Antigo Testamento Deus não é o ancestral, mas o criador, não é a menor di­ ferença. E o que é ainda mais importante: no Anti­ go Testamento, a paternidade divina atribui-se só a Israel e de uma maneira que não encontra nenhum equivalente. Israel tem uma relação toda particu­ lar com Deus. Israel é o primogênito de Deus, esco­ lhido entre todos os povos (Dt 14.Is). Além disto, esta eleição de Israel como filho primogênito de Deus se originava, cria-se, num fato histórico con­ creto: o êxodo do Egito. Associar a paternidade de Deus com um fato histórico implica uma profunda revisão do conceito de Deus como Pai; A certeza de que Deus é Pai e Israel seu filho não se fundamenta no mito, mas em um ato línico de salvação realiza­ do por Deus, do qual Israel foi o alvo na história. Contudo, somente nos profetas é que o conceito de Deus como Pai adquire todo o seu sentido no Antigo Testamento. Quantas vezes os profetas não foram obrigados a repetir que Israel só correspondia
  • 15. 16 A bbâ ao amor paternal de Deus por uma constante in­ gratidão. A maior parte dos textos proféticos refe­ rentes a Deus como Pai denunciam com insistência e paixão a contradição que se manifesta entre a filia­ ção de Israel e sua impiedade... Eagora me invocas, não é verdade?: "Meu Pai, vós sois o companheiro da minha juventude! Terá que guardar eterno rancor? Terá que conservar ressentimento para sempre?" Assim falas;mas depois fazes o mal quepodes! (Jr 3.4s). E eu disse: "Comoposso colocar-te entre os meus fílhos e dar-te uma terra invejável, a gema das nações como herança?" E acrescentei: "Chamar-me-eispai, e não hesitareis em vir após mim Como,porém, uma mulheréinfiel ao seu amante, assim vós me fostes infíéis, ó filhos de Israel, diz o Senhor (Jr 3.19s). Um fílho honra seupai e um servo teme o seu senhor. Masse eu sou Pai, onde está a honra que me corresponde?
  • 16. Deus "F ai" o Amic.o Tftamexto 17 Ese sou senhor, onde está o temor que se me deve? (Ml 1.6) A resposta constante de Israel a este apelo ao arrependimento é: "Tu és o meu (ou o nosso) Pai" - Abbinu atta.No trito-Isaías, este grito tornou-se um apelo supremo à misericórdia e ao perdão de Deus: Contemplaido céu e observai da vossa santa, magnífica morada: Onde estão o vosso zelo e a vossa força, a ternura de vossas entranhas e a vossa misericórdia? Não fiqueis insensível, porque sois nosso Pai(abbinu atta). Não é Abraão que sepreocupa conosco, Israelnem sabe quem somos, mas vós. Senhor, sois o nosso Pai, enosso Víndice, desde todos os tempos, é o vosso nome (Is 63.15s). E, no entanto. Senhor, vóssois onosso Pai, nós somos a argila e vós o nosso oleiro; somos todos obra de vossasmãos. Não vos irriteis em extremo. Senhor, e não vos lembreis eternamente da culpa (Is 64.7s). Deus responde a este apelo de Israelpelo perdão. Os 11.1-11 faz disto uma descrição comovente.
  • 17. 18 A bba Compara-se Deus com um pai que, ensinando a an­ dar ao seu filho Efraim, carregava-o nos braços: E eu ensinava Efraim a andar, tomava-o nos braços... Como te hei de abandonar, Efraim? Deixar-te à mercê de outros, ó Israel? (Os 11.3,8). Do mesmo modo o profeta Jeremias encontrou as intensidades mais comoventes para expressar o perdão de Deus: Com lágrimaspartiram, no meio de consolações os trareide volta; levá-los-eiaos arroios de água, por um caminho reto, que os não cansará, pois serei um paipara Israel e Efraim será meuprimogênito (Jr 31.9). A misericórdia paternal de Deus ultrapassa toda compreensão humana: Mas é Efraim para mim um filho tão caro, filhinho de caricias... Com efeito, apenas falo dele, ou mesmo quando tão só dele me lembro, basta-me isto para que se me comovam por ele as entranhas sinto deveras compaixão dele (Jr 31.20).
  • 18. OJüDAÍSMO P aLESTINENSE 19 A última palavra do Antigo Testamento sobre a paternidade divina é esse "saber" da incompreen­ sível misericórdia de Deus e de seu perdão. 2. O judaísmo palestinense Assim como o Antigo Testamento, também oju­ daísmo palestinense anterior a Jesus Cristo é sóbrio em falar de Deus como Pai. Assim, por exemplo, em toda a literatura de Qiimran, que deve ser anterior a 68a.C., só existe uma passagem em que se dá o nome de pai a Deus^ O judaísmo rabínico serve-se mais li­ vremente do título, mas sem excesso. Procurando sa­ ber o que os judeus contemporâneos de Jesus enten­ diam quando davam a Deus o nome de Pai, precisamos frisar duas notas características. Em pri­ meiro lugar, tendo a menor familiaridade com o ju­ daísmo destaépoca,nãoacharemosestranhoverener­ gicamente sublinhada a obrigação de obedecer ao Pai celeste. Os rabinos ensinavam que Deus estende sua paternidade unicamente àqueles que cumprem a Lei (Tora). Ele é pai dos que fazem sua vontade, dos jus­ tos. Contudo, encontra-se ainda e sempre a certeza formidável dos profetas: o amor paternal de Deus é sem limites e ultrapassa toda culpabilidade humana. Quando o rabi Jehuda (cerca de 150 a.C.) ensinava: Se agisseis como íilhos, serieis chamados de filhos. QH 9.55 S
  • 19. 20 A bba Se não agisseis como filhos, não serieis chamados de filhos. O seu colega e adversário rabi Meir lhe opunha esta frase de audaz brevidade: De uma maneira ou de outra - sois chamados de filhos^. O amor paternal de Deus é sua primeira e últi­ ma palavra, por maior que seja a culpabilidade de seus filhos.O segundo traço que caracteriza os tes­ temunhos judaicos desta época sobre a paternida­ de de Deus é o seguinte: Deus é chamado de Pai várias vezes de cada israelita em particular, e a ele se dirigem nas orações litúrgicas: abbinu, malkenu - "nosso Pai, nosso Rei". Assim é possível ler em uma oração que pode facilmente ser situada na mesma época de Jesus: Nosso Pai,nosso Rei, em vista de nossospais que crêem em ti e a quem ensinas as leis da vida - tem piedade de nós e ilumina-no^. - Talmud Babilónico, tratado Qidduschim, 36‘ ^(Baraitha). ’ Oração Ahabba rabba, a segunda bênção que introduzia o Shema recitado diariamente de manhã e de tarde. Prova­ velmente já fazia parte da liturgia do Templo {Mischna, Tratado Tamid, 5.L). Textos: W. B. H eidenheim, Siddur Se- phath Emeth, Rodelheim, 1886, pp. 17a.l3s.
  • 20. o Judaísmo Palestinexse 21 Isto é novidade com referência ao Antigo Testa­ mento. Contudo, há um certo número de coisas que nãodevem sernegligenciadas.Primeiramente,estetex­ to está em hebraico, língua sacra, da qual não se abdi­ cava na vida cotidiana. Considere-se também o duplo título de "nosso Pai, nosso Rei", que sublinha tanto a majestade de Deus enquanto Rei como sua paternida­ de,emuitomais. Para terminar,éo conjunto da comu­ nidade que se dirige a Deus como "nosso Pai". Até hoje ninguém forneceu um único exemplo com origem no judaísmo palestinense em que Deus seja chamado de "meu Pai" por um indivíduo^.En- contram-se alguns casos no judaísmo helenístico, mas são de influência grega. Entre os escritos pa- lestinenses, só se pode citar um texto, de dois versí­ culos, muito semelhante do c. 23 do livro de Bern Sira (começo do séc. II a.C.), que infelizmente só há em grego. Aí se pode ler: "Ó Senhor, Pai e dono da minha vida..." (v. 1) e: "O Senhor, Pai e Deus da minha vida..." (v. 4). Estes dois versículos são os únicos que fazem exceção à regra, e nós o acataría­ mos como sendo um prelúdio ao Evangelho, se não houvesse sido descoberta, há cerca de uns 30 anos, uma paráfrase hebraica deste texto. Nela não se diz: "Ó Senhor, Pai...", mas: "Ó Deus de meu pai^..." Te­ mos aí evidentemente os termos do texto hebraico ^Existem alguns casos isolados no Sedher Eliyahu Rabba, mas é um texto medieval (séc. 10?) do sul da Itália. " J. M a r c u s, A fifth MS of Ben Sira, in; Jewish Quarterly Re­ view 21 (1930) p. 238.
  • 21. 22 A b b á original,porque a expressão "Deus de meu pai", que provém de Ex 15.2 estava muito dispersa e acha-se alhures no Sirácida. Pode-se, portanto, dizer que não existe até agora nenhuma prova de que no ju­ daísmo palestinense alguém se tenha dirigido a Deus, chamando-o de "meu Pai". 3. "Abbá" nas orações de Jesus Ora, é exatamente o que fez Jesus. Os discípulos devem ter achado muito extraordinário Jesus se di­ rigir a Deus dizendo "meu Pai". Não só os quatro evangelhos atestam que Jesus se dirigia a Deus nes­ tes termos, mas todos eles relatam que o fazia em todas as suas orações^ Há uma única oração de Je­ sus onde falta o "meu Pai", e trata-se do grito na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abando­ naste?" (Mc 15.34, paral. Mt 27.46), citando o SI22.1. Ainda não dissemos tudo: o que é mais notável é o fato de Jesus, em suas orações, se dirigir a Deus como ao seu Pai, servindo-se da palavra aramaica abbá^.Marcos o afirma categoricamente no seu re­ lato da oração no Getsêmani: "Abbá (Pai)! tudo te é possível: afasta de mim este cálice; todavia, não se façao que eu quero, mas o que tu queres" (Mc 14.36). Que Jesus tenha utilizado esta mesma palavra abbá também nas suas outras orações, prova-se por uma comparação das formas diferentes que a palavra * 21 vezes (16 vezes se os paralelos forem contados uma só vez). ^O acento está ma última sílaba.
  • 22. " A bbá" nas orações de Jesus 23 "pai" toma no grego. Ao lado do vocativo correto jtárep / páte^ ou íráxep pm) / páter m oif, encon­ tramos o nominativo ó jiatfip / hopatér rva.função de vocativo, o que é incorreto^“.Estas passagens do vocativo ao nominativo, que aparecem num só e mesmo lógion (Mt 11.25,26, parai. Lc 10.21) não se podem explicar sem se considerar o fato de que a palavra abbá - como o veremos - servia corrente­ mente no aramaico da Palestina no primeiro sécu­ lo, não só como invocativo, mas também para di­ zer "o pai" {status emphaticus). Digamos, enfim, que sem contar Mc 14.34 e as variantes da palavra "pai" em grego, possuímos uma terceira peça que prova que Jesus dizia Abbá quando orava. São as duas passagens de Paulo, em Rm 8.15 e G14.6. Elas nos informam que as comunidades cristãs diziam "Appá, ó íiaxfip / Abbá, ho patér" (Abbá, Pai) e ti­ nham-no como expressão produzida pelo Espírito Santo. Aplica-se isto tanto às comunidades pauli- nas (Gálatas) como às não-paulinas (Romanos), e não há dúvida de que esta invocação seja um eco das próprias orações de Jesus. Não se encontra nada de comparável nas orações judaicas do primeiromilênio antes de Cristo.Não exis­ tenenhum exemplono conjuntodasoraçõesdojudaís­ mo antigo - imenso tesouro muito pouco explorado - » Mt 11.25 parai. Lc 10.21; Lc 11.2; 22.42; 23.34,46; Jo 11.41; 12.27s; 17.1,5,11,24,25. ’ Mt 26.39,42. Mt 14.36; Mt 11.26 parai. Lc 10.21; Rm 8.15; G1 4.6; sem o artigo unicamente nas variantes: Jo 17.5,11,21,24,25.
  • 23. 24 A bba desta invocação dirigida a Deus coma Abbá,nem nas orações propriamente litúrgicas nem nas outras. Existe apenas uma passagem da literatura ju­ daica tardia, onde a palavra abbá se refere a Deus. É a narração de um acontecimento que se deu pelo fim do séc. I a.C. Refere-se a Hanin ha-Nehba, um homem famoso por seu sucesso em orações para obter chuva: "Quando o mundo precisava de chuva, nos­ sos mestres tinham o costume de lhe mandar as crianças das escolas, que se agarravam ao seu manto e imploravam; Abbá, abbá habh lan m i­ tra-. papai, papai, dá-nos a chuva". E ele lhe (a Deus) dizia: "Senhor do universo, concede-nos (a chuva) em vista destes que não são ainda ca­ pazes de distinguir entre um abbáque tem o po­ der de dar a chuva e um abbá que não tem"“. À primeira vista, parece que temos aí uma amostra em que Deus é chamado de Abbá.Mas de­ vemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar, a palavra abbáé aplicada a Deus como que a modo de brincadeira. Hanin apela à misericórdia de Deus, adotando o grito: "Papai, papai, dá-nos a chuva", que as crianças repetem em coro, e cha­ ma a Deus de um "Abbá que tem o poder de dar a chuva", como o fariam as crianças na sua lingua­ gem. Em segimdo lugar, e isto é o mais importante. Talmud Babilónico, Tratado Ta^anith, 23b.
  • 24. "A bba" nas orações de Jesus 25 Hanin não se dirige absolutamente a Deus como Abbá; pelo contrário, invoca-o como "Senhor do universo". Sem dúvida, a história constitui, de cer­ to modo, um prelúdio à afirmação de Jesus dizen­ do que o Pai celeste sabe do que precisam seus fi­ lhos (Mt 6.32 parai.), que ele envia a chuva sobre os justos e os injustos (Mt 5.45), e dá coisas boas aos filhos que lhas pedem (Mt 7.11 parai., Lc 11.13). Mas isso não nos fornece a prova de um uso de abbá para invocar a Deus. Deste modo não temos nenhum testemunho do uso deste termo com tal referência em todo o judaísmo. Chegamos a um resultado de importância capi­ tal. De um lado, as orações judaicas não contêm um só exemplo do emprego de abbá para dirigir-se a Deus; por outro lado, Jesus a usava sempre quando orava (com a exceção do grito na cruz em Mc 15.34). Significaque temos aí,incontestavelmente,um traço característico do modo como Jesus, e somente Je­ sus, se expressava, da sua ipsissima vox. As razões pelas quais as orações judaicas não se dirigiam a Deus como Abbá, se encontram ao se considerar o fundo lingüístico da palavra. Origi­ nalmente, abbáíazm parte do balbucio infantil.O Tal­ mud diz; "Quando a criança começa a comer trigo (isto é, quando é desmamada), aprende a dizer abbá e iiTuná"(ou seja, papai e mamãe são as primeiras palavras que ela diz)^^. Igualmente, Pais da Igreja, Talmud Babilónico, Tratado Berachoth, 40a (Bar.) paral. Tratado Sanhedrin, 70b (Bar.).
  • 25. 26 A bbá como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e Teodoreto de Ciro, os três nascidos em Antioquia de pais ricos, mas, segundo todas as possibilidades, educados por amas sírias, nos dizem, por sua pró­ pria experiência, que as criancinhas tinham o cos­ tume de chamar seu pai de Abbá. Quando comecei este estudo, que me exigiu alguns anos de trabalho, pensava que Jesus tinha simplesmente adotado este balbucio infantil. Mas não demorei a constatar que esta conclusão era muito apressada, pois ignorava o fato de que já na época pré-cristã, esta palavra, que se originava da linguagem dos bebês, tinha re­ cebido um sentido mais amplo no aramaico da Pa­ lestina. Para dirigir-se a seu pai, a forma abbá su­ plantou a antiga forma abbi, usada no aramaico palestinense até pelo menos o séc. II a. C ., como constatamos pela documentação. Além disso, abbá tomou o sentido de "meu pai", e de "o pai", e subs­ tituiu na época até mesmo "seu pai" e "nosso pai". De tal modo que a palavra não era apenas parte do linguajar das crianças. Os jovens de ambos os sexos também chamavam o próprio pai de Abbá (cf. Lc 15.21), não recorrendo à palavra "Senhor" (Kúpie / Kyriê) a não ser em uso cerimonioso (cf.Mt 21.29- 30). Mas, apesar destes desenvolvimentos, jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil. Eis-nos, pois, autorizados a dizer porque abbá não se usa nas oraçõesjudaicas para invocar a Deus: seria desrespeitoso, e portanto impensável para uma mentalidade judaica, chamar a Deus com um
  • 26. A PATERNIDADE DE D e US NOS E v a NGELHOS 27 nome tão familiar^^. Foi algo de novo, linico e inau­ dito, ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma criança fala ao seu pai, com sim­ plicidade, intimidade e sem temor. Portanto, não há dúvida alguma de que a palavra abbá,utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus, revela o próprio fun­ damento de sua comunhão com ele. 4. Á paternidade de Deus nos Evangelhos Dever-se-ia considerar esta maneira infantil de se dirigir a Deus como a última etapa do desenvol­ vimento geral das relações do homem com Deus, ou não haveria aí algo mais? Para obter a resposta, ampliemos o nosso exame das fontes. Até agora nos restringimos à invocação de Deus como Pai nas orações de Jesus. Daremos um passo adiante, considerando as palavras em que Jesus fala de Deus como de um pai. Ou seja, nossa intenção vai passar da invocação "meu Pai" à maneira pela qual Jesus diz que Deus é "Pai". Encontramos, nos Evangelhos, nada menos do que sessenta vezes a palavra Paipara Deus nos lábios de Jesus. À primeira vista, não parece haver a me­ nor dúvida de que, para Jesus, "Pai" seja a designa­ ção de Deus. Mas será assim mesmo? Ao se classifi­ car os textos de acordo com as cinco camadas da Só existe no hassidismo (que surgiu no séc. 18) este modo familiar de se dirigir a Deus (utilizando-se, por exemplo, os diminutivos), como notou ao autor o Dr. Ja co b T au bes de New York.
  • 27. 28 A bba tradição que se podem discernir nos Evangelhos, achamo-nos diante do seguinte quadro (os parale­ los sínóticos são contados uma só vez, e a invoca­ ção 'Tai" é excluída): Marcos 3 vezes Ditos comuns a Mateus e a Lucas (coleção dos Lógià) 4 vezes Ditos próprios de Lucas 4 vezes Ditos próprios de Mateus 31 vezes João 100 vezes Este exame mostra que houve uma crescente ten­ dência a introduzir a designação de Deus como Pai nas palavras de Jesus. Marcos, a coleção dos Lógia e os elementos próprios de Lucas, todos estão de acor­ do, de modo que sepode dizer que Jesus se servia da palavra "Pai" para designar a Deus somente em cer­ tas circunstâncias. Em Mateus, acha-se uma progres­ são sensível no uso do termo, e em João "Pai" quase que setomou sinônimode Deus.Jesus,aparentemen­ te, servia-se do nome de "Pai" unicamente em cir­ cunstâncias particulares. Mas por quê? Os poucos casos de uma designação de Deus como Pai, que as camadas mais antigas da tradição testemunham, são de dois tipos: um primeiro gru­ po, em que Jesus fala de Deus como "vosso Pai", e um segundo grupo em que Jesus o chama de "meu Pai". Os ensinamentos sobre "vosso Pai" apresentam Deus como o pai que sabe do que necessitam seus filhos (Mt 632 e paral. Lc. 12.30), que é misericordioso
  • 28. APATERNIDADE DE D e US NOS E v ANGELHOS 29 (Lc 6.36) e de bondade infinita (Mt 5.45), que pode perdoar (Mc 11.25), e cujo prazer é conceder o rei­ no ao pequeno rebanho (Lc 12.32). Nas camadas mais antigas da tradição, as afirmações sobre "vos­ so Pai" parecem terem sido todas dirigidas aos dis­ cípulos. É uma das características da ôiôaxfi / di- daché (instrução) reservada aos discípulos, do ensinamento ao discipulado de Jesus. Àqueles que estavam fora do círculo, parece que Jesus não falou de Deus como Pai a não ser por meio de parábolas e figuras. Entre estes ditos, o mais importante é Mt 11.27 e o paral. Lc 10.22: Tudo me foientreguepormeu Paf eninguém conhece o Filhosenão o Pai, e ninguém conhece o Paisenão o Filho e aquele a quem o Filho o quiserrevelar. Em sua História deJesud^,Karl von Base, que há cem anos era professor de História da Igreja em lena, foi o primeiro a comparar este trecho sinótico com as características textuais joaiünas. Neste destacavam- se saltavam à vista como joânicas: primeiramente, a frase sobre o conhecimento mútuo que era considera­ da como um termo técnico tirado do misticismohele- nístico; a seguir, a designação de Jesus como "o Fi­ lho" que caracteriza a cristologia joânica. Por muito tempo se teve como certo que Mt 11.27 era produto Die GeschichteJesu, Leipzig, 1876, 2"‘ed., p. 422.
  • 29. 30 A bba do cristianismo helenístico. Todavia, recentemente a tendência começou a mudar. Reconheceu-se cada vez mais que, como o expressou T. W. M anson, "a passa­ gem está cheia de semitismos e certamente de origem palestinense", ou, como o disse W. L. Knox, é "pura­ mente semítico"^^ De fato, a linguagem, o estilo e a estrutura possibilitam situar este trecho num meio de língua semita“.Épossível responder, num plano pu­ ramente lingüístico, às duas objeções que acabam de ser mencionadas. Já em 1898, G. Dalman^^ chamou a atenção para o fato de que o hebraico e o aramaico não têm pronomes que expressem a reciprocidade ("um e outro", "cada um"). Servem-se, no seu lugar, de uma circunlocução para falar de ação recíproca. Além disto, é preciso lembrar-se de que em aramaico, e em particular com referência às figuras e às compa­ rações, o artigo indefinido é muitas vezes usado num sentido genérico. Levando-se em conta estes fatos, é T . W. M a n so n , The Sayings ofJesus, Londres, 1937-1950, 79; W. L. K n o x , SomeHellenisticElementsinprimitive Chris­ tianity (Schweich Lectures 1942), Londres, 1944, p. 7. W. D. D a v ie s chega à mesma conclusão, quando compara o papel do "conhecimento" em Mt 11.27 e nos manuscri­ tos; ele mostra que nos dois casos encontra-se a mesma mistura de intuição escatológica e de conhecimento de Deus ( "Knowledge in the Dead Sea Scrolls and Matthew 11.25-30", in: Harvard Theological Review 46 (1953) pp. 113-139, reeditado em W. D . D a v ie s, Christian Origins andJudaism, Filadélfia e Londres, 1962, pp. 119-144). G . D a l m a n , Die WorteJesu I, Leipzig, 1898 T ecf. - 1930, pp. 231s (tr. inglesa: The Words ofJesus I, Edimburgo, 1902, pp. 282s).
  • 30. A PATERNIDADE DE D e u S NOS E v ANGELHOS 31 preciso traduzir Mt 11.27 do seguinte modo: "Como só um pai conhece o seu filho, assim só um füho co­ nhece seu pai". Isto significa que o textonão fala mais de uma união mística {imiomysticà) fundada em um conhecimento recíproco, e não emprega o título cris- tológico"oFilho".AspalavrasdeJesusexpressamsim­ plesmente uma experiência cotidiana: só um pai eum füho é que se conhecem mutuamente. Se isto está cer­ to, então Mt 11.27não éum versículojoânicono meio de elementos sinóticos, mas antes um dos temas que a teologia joânica haveria de desenvolver. Se não hou­ vesse pontos de partida desta natureza dentro da tra­ dição sinótica, a origem da teologia joânica permane­ ceria um eterno enigma. A palavra relatada por Mt 11.27 constitui uma perícope de quatro linhas. O pri­ meiro versículo indica o tema: "Tudo me foientregue por meu Pai". Isto é: Meu Pai me concedeu um total conhecimento de si mesmo. Os três versículos restan­ tes elucidam este tema por meio da comparação "pai- fUho". Livremente parafraseados, eles dizem: "E por­ que um pai e um filho se conhecem verdadeiramente um ao outro,um fühopode revelara outros ospensa­ mentos mais secretos do seu pai". Contudo, é preciso saber que a relação "pai-filho" é familiar na apoca­ lípticapalestinensepara üustrara transmissãode uma revelação. "Como um pai eu lhe revelei todos os se­ gredos", diz Deus no (Terceiro) Livro de Enoque^®. E em outra passagem, um rabi relata: o mensageiro ce­ leste me mostrou as coisas que estavam tecidas na 3 Enoque 48 (C.) 7.
  • 31. 32 Abba cortina celeste... "indicando mas com o dedo, como um pai que ensina ao seu filho as letras da Torá"''^. Portanto, se Jesus interpreta o tema "Tudo me foi en­ tregue por meu Pai" com o auxílio desta relação pai- filho, o que ele quer dar a entender sob o véu de uma figura cotidiana é o seguinte: como um pai que se de­ dica pessoalmente a mostrar ao seu filho as letras da Torá,assim Deusme transmitiu arevelação de simes­ mo, e,conseqüentemente, só eu posso ensinar aos ou­ tros o verdadeiro conhecimento de Deus. Este lógion,pelo qual Jesus dá testemunho de si mesmo e de sua missão, não está isolado nos Evan­ gelhos^®. Citamos aqui apenas uma variante de Mt 11.27 que remonta a uma antiga tradição ara- maica-^ e esteve espalhada no séc. II entre a seita gnóstica dos marcosianos. Segundo este texto, Je­ sus exclamou: Sim,meu Pai,pois talfoitua vontade ameu res­ peito. Esta variante da exclamação em Mt 11.26 po­ deria muito bem ser secundária. Contudo, ela faz vibrar a nota original da alegria de Jesus pela reve­ lação que lhe foi concedida, alegria que impregna igualmente nosso texto: 3 Enoque 45.1s. Cf. p. ex. Mc 4.11; Mt 11.23; Lc 10.23s. Ir in e u , Adv. Haer. I, 13.2; W. G r u n d m a n n , Die Geschichte Jesu Christi, 1956, p. 80.
  • 32. A PATERNIDADE DE D e L'S NOS E v ANGELHOS 33 "Sim, Abbá, porque assim foi do teu agrado". Assim, quando Jesus falava de Deus como de "meu Pai", ele' aludia não a uma familiaridade e a uma intimidade com Deus que fosse acessívela todo mundo, mas a uma revelação única que lhe fora concedida. Ele fundamenta sua autoridade sobre o fato de Deus o ter misericordiosamente dotado da plenitude da revelação, revelando-se a si como só um pai pode se revelar ao filho. Abbá é então uma palavra que sugere a revelação. Ela representa o cerne da consciência que Jesus tmha de sua missão. Procurando-se as prefigurações desta relação única para com Deus como Pai, deve-se remontar à profecia de Natã a respeito de Davi: "Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho" (2Sm 7.14, e o parai. 1Cr 17.13), e às palavras referentes ao rei nos Salmos 2.7; 89.27s. Ele me invocará: Vóssois meupai meu Deus e a rocha de minha salvação! E eu o constituireio meuprimogênito^ excelso entre os reis da terra. Das Pseudo-epígrafes, podemos citar a promes­ sa feita ao Messias sacerdotal, de que Deus lhe fala­ rá "com uma voz paternal" (Testamento de Levi 18.6), e a afirmação referente ao Messias de Judá, que assegurava que "as bênçãos do Pai santo" se­ rão derramadas sobre ele (Testamento de Judá 24.2). Isto significa que o "meu Pai" de Jesus só foi
  • 33. 34 Abba preparado no contexto das esperanças messiânicas. Mt 11.27 implica, portanto, que as promessas fo­ ram cumpridas em Jesus. 5. A oração do Senhor Somente se a virmos contra este pano de fundo é que podemos compreender, no seu sentido mais profundo, a oração do Senhor“^. Ela chegou até nós sob duas formas: a) a mais breve em Lc 11.2-4, e b) a mais longa em Mt 6.9-13. Enquanto que ninguém teria ousado encurtar este texto capital, é fácil de se imaginar um alargamen­ to do texto em relação com o seu emprego litúrgico. A versão mais breve, a de Lucas, deve ser a mais antiga. Aqui a oração se endereça simplesmente ao Páter, o equivalente de Abbá: Para compreender o que este apelativo signifi­ cava para os discípulos, é preciso referir-se às cir­ cunstâncias em que Jesus ensinou aos seus discípu­ los o Pai-nosso. Segundo Lc 11.1, eles tinham pedido a Jesus: "Senhor, ensina-nos a orar". E preciso dizer que este pedido impHcava, da parte dos discípulos, o desejo de ter uma oração própria, só deles, como os discípulos do Batista ou os fariseus e os essênios ti­ nham suas orações próprias, penhor de sua comu­ nhão. "Senhor, ensina-nos a orar" significa portanto: Cf. para mais detalhes o meu estudo: The Lord's Prayerin Modern Research, in Expository Times 71 (1959-1960) pp. 141-146; texto revisto: The Lord's Prayer (Facet Books, Biblical Series 8), Filadélfia, 1964.
  • 34. AORAÇÀo DO S e n h o r 35 "Senhor, dá-nos uma oração que seja o sinal e o dis­ tintivo de teus discípulos". Jesus atendeu a este pedido, e, fazendo-o, auto­ rizou primeiramente e antes de tudo os seus discí­ pulos a fazerem como ele e a dizerem Abbá. Deu- lhes esta expressão como prova de sua qualidade de discípulos. Pela autorização que lhes concedia de invocarem também eles a Deus como Abbá,per­ mitia-lhes que participassem de sua própria comu­ nhão com Deus. Ele chega até mesmo a dizer que somente aquele que puder repetir este Abbá entra­ rá no reino de Deus^^ Esta invocação Abbá,pronun­ ciada pelos discípulos, é uma participação na reve­ lação, é a escatologia realizada. E a presença do reino já aqui, atualmente. É cumprimento, conce­ dido por antecipação, da promessa: Eu sereio seupai e elesserão meusfílhos. Todos eles serão chamadosfilhos do Deus vivo (Jubileus 1.24s). É assim que Paulo compreendia esta invoca­ ção quando dizia, por duas vezes, que a repetição da palavra Abbá era a prova de que um cristão entrava na posse da filiação e do Espírito (Rm 8.15; G14.6). As antigas liturgias cristãs evidenciam bem a consciência da importância deste dom quando ^ J. Jeremias, The Parables ofJesus, ed. revista Londres e Nova Iorque, 1963, pp. 190s (trad, bras: As parábolas de Jesus, Ed. Paulus, São Paulo, 1976).
  • 35. 36 A bbA fazem preceder à oração do Senhor as palavras: "ousamos dizer: Pai nosso". 6. Conclusão Tudo isto nos leva a uma conclusão de impor­ tância capital. Sustentou-se muitas vezes que não sabemos quase nada do Jesus histórico. Que não o corhece- mos senão pelos Evangelhos, que não são relatos his­ tóricos, mas antes profissões de fé. Que não conhe­ cemos senão oCristo do querigma,em queJesus está envolvido pela veste do mito; basta pensar-se nos numerosos milagres que lhe são atribuídos. O que descobrimos, ao aplicar a crítica histórica à análise das fontes, é um profeta poderoso, mas um profeta que não ultrapassou absolutamente os limites do ju­ daísmo. Este profeta pode apresentar interesse para a história, mas não tem e não pode ter significação ara a fé cristã. O que importa é o Cristo do querig­ ma. O cristanismo começa na páscoa. Mas, se é verdade - e o testemunho das fontes não deixa nenhuma dúvida acerca disto - que Abbá como invocação de Deus é uma ipsissima vox, uma expressão autêntica e original de Jesus, e que este Abbá explica a reivindicação de uma revelação e autoridade línicas - se tudo isso é verdade, então a posição acerca do Jesus histórico, que acabamos de lembrar, é insustentável. Porque, com Abbá, situa­ mo-nos além do querigma. Achamo-nos diante de algo novo e inaudito, que ultrapassa os limites do
  • 36. C onclusão 37 judaísmo. Aí descobrimos quem era o Jesus históri­ co: o homem que tinha o poder de se dirigir a Deus como Abbá, e que fez publicanos e pecadores en­ trarem no reino, simplesmente os autorizando a re­ petir esta palavra "Abbá, Pai querido".
  • 37. Capítulo II A MORTE DE JESUS COMO SACRIFÍCIO 1. A paixão na Epístola aos Hebreus e na primeira Epístola de Pedro No âmbito do Novo Testamento é a Epístola aos Hebreus que mais detalhadamente expõe o signifi­ cado da cruz. Esta exortação dirigida a cristãos pro­ venientes do paganismo (Hb 13.22) caracteriza-se pelo vigor e clareza de pensamento teológico. Faz uma distinção entre catequese elementar (5.12) e conhecimento mais aprofundado (6.1), isto é, entre um ensinamento aos recém-chegados ao cristianis­ mo e um reservado aos iniciados. Esta distinção de modo algum é "gnóstica". Ela provém da tradição cristã: encontra-se em Paulo (1 Co 2.6ss) e, já antes dele, no próprio Jesus, cuja pregação apresenta um ensinamento público como distinto de um ensina­ mento reservado de modo especial aos discípulos.
  • 38. 40 A MORTE DEJesus como SACRrricio De acordo com a Epístola aos Hebreus, a cate­ quese elementar referente a Cristo (6.1) abarcava o convite à conversão e à fé (é o próprio conteúdo a pregação missionária, cf 1 Ts 1.9s e At 20.21), bem como uma catequese sobre o batismo e as últimas coisas (é o conteúdo das catequeses catecumenais: Hb 6.2). A teologia reservada aos iniciados compre­ endia sobretudo, além da catequese eucarística^, o que se refere à oferta que Cristo, o sumo-sacerdote celeste, faz de si próprio. É este o ponto desenvolvi­ do pela passagem central da Epístola (Hb 7.1-10.8). Mostram-nos estes quatro capítulos que, na nova ordem das coisas tal qual Deus a quis. Cristo é o sumo-sacerdote que ofereceu o seu próprio sangue no santuário celeste, sendo assim, ao mesmo tem­ po, sacerdote e vítima. A fim de explicitar o sentido da morte de Jesus, a Epístola aos Hebreus utiliza as figuras e representa­ ções fornecidas pelo ritual do Grande Perdão, minu- ciosamente descrito em Lv 16.0 Dia do Grande Per­ dãoeraparaosjudeusogrande diadoarrependimento e expiação, o único dia do ano em que pés humanos pisavam o chão do Santo dos Santos. Tremendo - porque a menor falha no ritual acarretaria morte certa -, o sumo-sacerdote, na obscuridade por detrás do cortinado, fazia por duas vezes a aspersão expia­ tória com o sangue: por si mesmo e por sua família primeiramente, e depois por Israel. A Epístola aos * Não se fala da ceia na enumeração dos temas de catequese (Hb 6.2), não se fazendo menção dela a não ser em 13.10.
  • 39. A PAIXÃONA Epístola aos H ebreus e na Primeira Episrola de Pedro 41 Hebreus vai aplicar tipologicamente este rito a Cris­ to de duas maneiras diversas. O Autor refere-se pri­ meiramenteao ritomaisantigo ecomparaCristocom a vítima sem mancha. Mas, diversamente das víti­ masdaAntigaAliança,amortedeJesus,porseu valor vicário, obteve de uma vez por todas o perdão total ereestabeleceu aplena comunhão de vida com Deus. A esta interpretação o autor acrescenta uma outra, lançando mão do versículo 4 do salmo 110: Cristo é ao mesmo tempo o sumo-sacerdote eterno e isento de pecado. E ele que, após realizar uma vez por to­ das a expiação, se mantém continuamente diante de Deus a fim de interceder em favor dos seus, pelos quais está cheio de compaixão e misericórdia (7.25; 9.24; cf. 2.18; 4,14-16). Esta cristologia reservada aos "iniciados" é um ensaio muito penetrante que visa fazer a comunida­ de aproximar-se, de um modo novo, do mistério da cruz, com a ajuda da interpretação tipológica de Lv 16.Concretamente, esta tipologia tem a intenção de mostrar que a sexta-feira santa é o dia do Grande Perdão na Nova Aliança, e todas as festas do Gran­ de Perdão, celebradas cada ano, não passavam de tipo e figura. Isto acarreta duas conseqüências: pri­ meiramente, este caráter vicário que representa a morte do Inocente no Gólgota faz cessar uma vez por todas (7.27; 9.12; 10.10) o apelo ao perdão divino; e, por outro lado, o fruto desta expiação etemamente válida continua a ser ofertado, porque opróprio Cris­ to, que foi tentado, intercede pela comimidade dos seus, por sua vez também tentada.
  • 40. 42 A MORTE DE Jesus como sacrifício Nesta explicação da morte de Jesus, as figuras tipológicas usadas têm pouca importância. De fato, tudo depende daquilo que, sob a luz e a ajuda da tipologia, no fundo se quer expressar. E aí se trata o duplo "por nós": "ele morreu por nós" e "entrou por nós no santuário celeste". E o que emerge claramente, quando nos volta­ mos para aprimeira Epístola de Pedro. Esta, como a Epístola aos Hebreus, retoma a antiga compara­ ção com a vítima sacrificada: é Cristo o verdadeiro cordeiro sem defeito e sem mancha (1.8s), morto a fim de expiar de uma vez por todas os pecados (3.18). Por outro lado - e este é o segimdo ponto de vista - a primeira Epístola de Pedro alude ao capí­ tulo 53 de Isaías: o hino a Cristo, que se acha na Epístola (2.22-25) celebra-o como o Servo de Deus, como aquele que, no madeiro, levou os nossospe­ cados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça; aquele por cujas feridas fomos curados (2.24). Ei- nalmente, em terceiro lugar, sempre para explici­ tar este sentido da morte de Jesus, a Epístola reto­ ma de modo expressivo o tema teológico da descida e da pregação aos infernos (3.19s e 4.6). Para compreender esta passagem, é de extrema importância saber que dela temos uma prefigura­ ção, ainda que em sentido oposto, na versão etíope do Livro de Enoque, apócrifo que recebeu sua for­ ma atual depois da invação dos partos em 37 a.C. Nos capítulos 12-16 deste livro, narra-se como Eno­ que é encarregado de ir ter com os anjos decaídos
  • 41. A PAIXÃON AEpístola aos H ebreus e na Primeira Epísrola de Pedro 43 (cf. Gn 6) para lhes informar "que eles não recebe­ rão nem paz nem perdão" e que Deus rejeitará todo pedido de paz e misericórdia. Tomados de pavor e tremendo, pedem a Enoque que componha uma sú­ plica em que implorem perdão e indulgência. Eno­ que é então arrebatado até ao trono em que Deus está sentado, em meio a um fogo cintilante, e aí re­ colhe o oráculo a se comunicar aos anjos decaídos como resposta à sua súplica. A sentença se formula breve e terrível: "Não tereis a paz!" Dificilmente se poderá duvidar que o tema teológico da descida aos infernos tenha sua prefiguração neste mito de Eno­ que. Uma vez mais, um enviado de Deus apresenta- se com uma mensagem divina para os espíritos de­ sobedientes que habitam as trevas profundas da prisão subterrânea. Mas, ao passo que Enoque teve de declarar em sua mensagem a impossibilidade do perdão, o anúncio que Cristo faz é diametralmente oposto: refere-se à Boa-nova (4.6). Mesmo para os que estavam perdidos sem esperança, a morte ex­ piatória do Justo adquire o perdão. As duas Epístolas, adirigida aosHebreus eapri­ meira de Pedro, têm a intenção de ilustrar o que se passou na sexta-feira santa, mas empregam para tanto imagens basicamente diversas. A Epístola aos Hebreus fala da subida de Jesus aos céus "por um espírito eterno" (9.14), a fim de apresentar, ele pró­ prio, o seu sangue no santuário celeste. A primeira Epístola de Pedro fala da descida àsprofundezas dos infernos a fim de anunciar a Boa-nova aos espíri­ tos prisioneiros. "Subida aos céus" e "descida aos
  • 42. 44 A MORTE DEJesus como sacrifício infernos", ambas servem à explicação do aconteci­ mento da sexta-feira santa. Digamos em duas palavras o porquê desta apro­ ximação. Com efeito, é preciso saber que, no decur­ so do séc. I d.C., as representações do judaísmo an­ tigo acerca da sorte das almas depois falecimento sofreram total transformação. Segundo a concep­ ção antiga, ainda considerada autoritativa, os in­ fernos {ohades) eram o lugar das almas dos defun­ tos. Mas, ao lado desta maneira de ver, impunha-se pouco a pouco, sob o impacto do pensamento hele- nístico, uma nova representação, segundo a qual as almas dos justos ficavam no mimdo celeste, no pa­ raíso. É esta transformação que explica porque, no Novo Testamento, não é uniforme o que se diz da sorte de Jesus entre a sexta-feira santa e a Páscoa: em Rm 10.7, Paulo fala de "abismo", ao passo que Lc 23.24 fala do paraíso. Assim se justapõem os te­ mas da descida aos infernos e da subida aos céus, ao se evocar o destino de Cristo após a morte. Pau­ lo, aprimeira Epístola de Pedro eo Apocalipse apóiam a primeira concepção. E Lucas, a Epístola aos He­ breus e o Evangelho de João, a segunda. É, portan­ to, o tema da subida aos céus que utiliza a Epístola aos Hebreus, ao apresentar-nos o sumo-sacerdote oferecendo seu próprio sangue no santuário Celes­ te. E é o tema da descida aos infernos que emprega a primeira Epístola de Pedro a fim nos descrever o enviado de Deus, perante o qual se abrem as portas do mundo subterrâneo, ao vir ele trazer a Boa-nova aos réprobos.
  • 43. A póstolo Pallo 45 Portanto, as imagens e temas usados são diver­ sos, o que para nós é salutar advertência a não os sobrestimarmos. Mas o que se quer em definitivo exprimir é idêntico nos dois casos, e este é o ponto decisivo. Porque as duas Epístolas, uma sob ima­ gem tomada do culto, e a outra sob imagem busca­ da no mito, têm a intenção de expressar a mesma verdade: a virtude expiatória da morte de Cristo tem valor para a eternidade e desconhece limites. 2. Apóstolo Paulo Pode-se detectar, tanto na Epístola aos Hebreus como na primeira Epístola de Pedro, quanto, sob muitos pontos de vista, sua teologia é devedora à de Paulo. Pois, se, remontando à tradição, nos vol­ tarmos às passagens das epístolaspaulinas que in­ terpretam o sentido da morte de Cristo, uma nova imagem se nos oferece. Não que Paulo nos propor­ cionasse algo de objetivamente diverso do que nos apresentam os escritos pós-paulinos. Pelo contrá­ rio! Pois é uma das características do nosso tema estapermanência do mesmo conteúdo objetivo atra­ vés das diversas exposições sobre este assunto em todo o Novo Testamento. A diferença é de outra natureza. A Epístola aos Hebreus, como vimos, esforça- se, na forma duma reflexão teológica, por apresen­ tar e desenvolver o mistério da cruz em desdobra­ mentos tipológicos profundamente refletidos e cuidadosamente pesados. Em Paulo, pelo contrário.
  • 44. 46 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io sentimos ainda a atmosfera candente das lutas que teve de travar a fim de fazer inteligível o conteú­ do central da sua mensagem, duramente combati­ do. Gostaria de torná-lo acessível através de duas observações. Primeiramente, é notável que no Novo Testa­ mento as palavras "cruz" e "crucificar" se achem quase somente em Paulo, se prescindirmos dos evangelhos; encontram-se nele dez vezes o subs­ tantivo (alhures apenas em Hb 12.2) e oito vezes o verbo (que não se encontra alhures a não ser em At 2.36 e 4.10; Ap 11.8)^. Quando nas epístolas não paulinas, nos Atos dos Apóstolos e no Apocalipse se fala da morte de Jesus, são outras as expressões que se utilizam: fala-se aí de seus sofrimentos, de sua morte, de seu sangue, e da oferta do seu corpo, ou seja, de sua execução, mas se evitam as duas palavras "cruz" e "crucificar". Assinalemos, além disto, o emprego, por cinco vezes, do termo "ma­ deiro" para designar a cruz^ Não pode ser efeito do acaso. Mas então como explicar este fato estra­ nho? Uma expressão de 1 Co 1.18 pode nos escla­ recer . Encontra-se aí - e é o único caso em todo o Novo Testamento - a expressão: "a mensagem {ló- gos), a da cruz". A repetição do demonstrativo, que não é usual na língua do Novo Testamento, distingue - Fora dos evangelhos, a expressão "ser crucificado com (o Cristo)" só se acha em Paulo (Rm 6.6; G1 2.19); em todo o Novo Testamento, só se encontra "crucificar de novo" em FIb 6.6. 3At 5.30; 10.39; G1 3.13; 1 Pd 2.24.
  • 45. A i« tolo Pal lo 47 a “mensagem" cristã de outras mensagens. K. H. R engstorf^ demonstrou de modo muito claro que “linguagem" tem aí, como em 1Co 15.2, o sentido de “relato cultual". A pregação cristã é, portanto, apresentada em 1 Co 1.18 como o "relato cultual sobre a cruz", onde "cruz" se coloca no lugar de “suspenso à cruz". Representemo-nos o que há de ofensivo nesta formulação: “o relato cultual sobre o suspenso", para expressar o caráter incôngruo, até mesmo chocante, da mensagem cristã; obser­ vemos que, além disto, aí nem se fala da ressurrei­ ção. Parece que não seria errado concluir que esta expressão tem sua origem entre os adversários da comunidade cristã, e expressa do modo mais ade­ quado suas chacotas e seu sarcasmo. De mais a mais, para confirmar esta hipótese, basta ler a se- qüência da frase, que diz brutalmente: este “rela­ to cultual sobre o suspenso" é loucura para os que se perdem. E alguns versículos adiante, Paulo acrescenta: para os judeus, a mensagem de um sal­ vador suspenso à cruz é um escândalo, um discur­ so blasfematório, e, para os pagãos, é simplesmen­ te uma loucura. Tudo isto reflete o eco normal da mensagem cristã e Paulo o sentiu centenas de ve­ zes. Com certeza, estes sarcasmos continuaram sendo parte do arsenal dos adversários do cristia­ nismo; mas nos primeiros tempos, em que estas zombarias eram ainda novas, teriam ferido forte­ mente os pregadores do Evangelho. ^K. H. R en g sto r f, Die Auferstehung Jesu, Witten, 1960, 4® ed., p. 19.
  • 46. 48 A MORTE DEJiSLSCOMO SACRIHCIO Havia duas maneiras de prevenir este sarcas­ mo: uma delas consistia em tentar amenizar ou até mesmo eliminar esteaspecto chocante da mensagem. É a via por que entrou a Gnose, e sobretudo o "do- cetismo", que a primeira Epístola de João mostra que já ia se implantando desde o primeiro século depois de Cristo, e que ensinava que somente o ho­ mem Jesus fora suspenso na cruz, enquanto que o Cristo havia se separado dele antes da paixão. E sig­ nificativo que Paulo nem sequer tentou tomar de empréstimo tal insensatez. Pelo contrário, envere­ dou-se por outra via: anunciar a mensagem irascí­ vel em toda asua dureza, sem condescendência nem concessão, mas refletindo ao mesmo tempo sobre recursos que poderiam ajudar seus ouvintes a abrir a inteligência. Tal é o seu pensamento, quando fri­ sa que o Cristo crucificado foi o único conteúdo de sua pregação missionária na Calácia (Cl 3.1) e em Corinto (1 Co 1.23; 2.3) e sua única glória (Cl 6.14). Uma segunda passagem nos faz ver ainda mais diretamente como a explicitação do sentido da cruz, que depois fixou-se na Igreja de modo sólido e se­ guro, deve ter se estabelecido a duras penas nos pri­ meiros tempos. Pensona sentença de Cl3.13: "Cristo se tomou maldição por nós". Façamos de imediato duas observações acerca do estilo: a primeira para frisar que o passivo "tornou-se" é um modo de transcrever o nome divino, como o confirma 2 Co 5.21 ("Deus o fez pecado por nós"); por outro lado, considerando-se o modo semita de se expressar, a pa­ lavra "maldição" é usada por "maldito". Por isso.
  • 47. A póstolo Palix) 49 precisamos traduzir G1 3.13 assim: "Deus fez Cristo maldito por nós". Paulo está se referindo aí à passa­ gem de Dt21.23: "Todo osuspenso no madeiro éum homem maldito por Deus". A frase da Epístola aos Gálatas nos é tão familiar que nem sentimos mais o que ela tem de assombroso. Talvez opossamos pres­ sentir, se acrescentarmos que não existe nenhum autor do Novo Testamento que tenha ousado dizer algo que se aproximasse disso. Paul P e i n e ® foi pri­ meiro a ver - e um trabalho muito recente o reto­ mou expressamente^ - que só pode haver uma ex­ plicação para a audácia desta frase: ela nasceu no período anterior ao episódio de Damasco. Era o tem­ po em que SauloperseguiaJesus de Nazaréna pessoa dos seus adeptos, porque ele o considerava como ex­ pressamente maldito por Deus: então ele o blasfema­ va (1Tm 1.13) e tentava por meios violentos forçar os discípulos a também blasfemá-lo (At 26.11), isto é, a exclamar: "Jesus é um maldito!" (1 Co 12.3). E é, en­ tão, que no caminho de Damasco, o maldito lhe apa­ rececingido daprópria glória de Deus.A frase: "Deus o amaldiçoou" permanecerá, mas completada dora­ vante por estas duas palavras: "por nós, por mim" (G12.20). E desde então Paulo, por toda a sua vida, é prisioneiro do Crucificado, como Inácio de Antioquia dirá de simesmo que éuma "vítimahumÜde da cruz" (Epístola aos Efésios 18.1). P. Feine, Das gesetzesfreie Evangelium des Paulus, Leip­ zig, 1899, p. 18. ^G. Jeremias, DerLehrer der Gerechtigkeit, Goettingen, 1963, pp. 134ss.
  • 48. 50 A MORTE DE Jesus como sacrifício Não é, pois, exagero dizer que toda a cristologia de Paulo está decididamente centrada neste esfor­ ço para tornar compreensível para os seus leitores e ouvintes este "por nós", esta suplência de Cristo em nosso favor; e, para consegui-lo, ele lança mão de imagens sempre novas, emprestadas de quatro domínios diversos. 1. A tradição lhe fornecia toda uma série de idéias e expressões tiradas do domínio cultuai. No capítulo 5 da primeira Epístola aos Coríntios, Paulo exige des­ ta comunidade que faça valer a disciplina da Igreja com referência a um dos seus membros, culpado de um grave escândalo. Emprega, com este propósito, a imagem do fermento que azeda toda a massa. Porque as festas pascais estão próximas. E isto o incita, para comentar o incidente, a tomar uma antiga meditação cristã sobre a Páscoa (seu estilo e vocabulário eviden­ ciam que de fato é anterior a Paulo). Este comentário situava-se na celebração da Páscoa, no momento em que o pai de família interpretava os ritos e as etapas da refeição visando instruir todos os participantes, sobretudo as crianças. E uma destas passagens que Paulo cita: "... sois sem fermento. Pois nossa Páscoa, Cristo, foi imolada. Celebremos, portanto, a festa,não com velho fermento, nem com o fermento de malícia eperversidade, mas com pães ázimos: na pureza e na verdade" (1 Co 5.7s). Ser cristão, diz Paulo, é viver a Páscoa, é estar na luz pascal, é vida nova: a verdadei­ ra Páscoa chegou, quando o nosso cordeiro pascal foi sacrificado no Gólgota. Assim - como o farão Pedro na sua primeira Epístola e João no seu Evangelho -
  • 49. A póstolo Paulo 51 Paulo compara Cristo com o cordeiro sem mancha, em razão do qual Deus poupou no Egito as casas dos israelitas. Também em Rm 3.25 ele o compara com o sacrifício expiatório do dia do Grande Perdão, e, em Rm 8.3,com o sacrifíciopelo pecado, e em Ef5.2,com o "sacrifício de aroma suave". É com esta mesma or­ dem de idéias que estão vinculadas todas as passa­ gens que tratam do sangue de Jesus (Rm 3.25; 5.9; Cl 1.20; Ef 1.7; 2.13). Ora, a crucifixão não era uma exe­ cução sangrenta, e é por isso que, quando Paulo fala do sangue de Jesus, ele não pensa primeiramente na realização histórica do suplício, mas no seu aspecto sacrifical. Todos estes desenvolvimentos, que utilizam uma terminologia relativa a sacrifício, têm, pois, a intenção de expressar duas coisas: a) Jesus morreu apesar de não ter pecado (2 Co 5.21); b) sua morte teve valor vicário pelos nossos pecados; nela se re­ sumem todas as cerimônias sacrificiais da Antiga Aliança, porque ele é a única vítima oferecida pe­ los pecados da humanidade. 2. Para ilustrar a suplência de Cristo, Paulo utili­ za também temas adquiridos do direitopenal. Estas passagens referem-se ao capítulo 53 de Isaías, que nos descreve oServo de Deus sofrendo esuportando a pena pelos nossos pecados. "Ele foi entregue por causa dos nossos pecados", diz Paulo em Rm 4.25, aludindo a Is 53.12. "Deus o entregou por nós", diz em Rm 8.32 (Is 53.6). "Ele se entregou por nossos pe­ cados", afirma em G11.14 (Is 53.10). Deus exerceu na carne do seu FUhoesta pena de morte que deveríamos
  • 50. 52 A MORTE DEJesus como sacrifício nós sofrer (Rm 8.3). Ele fez que Jesus carregasse a maldição que repousava sobre nós (G1 3.13). Em G12.14, Paulo insiste com veemência em ex­ plicar esta idéia de que Cristo suportou, em nosso lugar,ojulgamento que nos estavareservado no fim dos tempos: "Ele destruiu a cédula de nossas dívi­ das, cédula que nos afligia e que enumerava nossas violações da Lei; ele a eliminou, pregando-a na cruz". Na cruz, pendurava-se acima do crucifica­ do o "titulus", um cartaz que o condenado à morte trazia ao pescoço ao percorrer a via do suplício e no qual estavam escritos os crimes que motivaram sua condenação. Houve um "titulus" afixado aci­ ma da cabeça de Jesus. Então - assim diz Paulo - você não está vendo a mão que retira o "titulus" e o substitui por um outro escrito de letras apertadas? Fiquebem de perto,sevocê quiserdecifrarestenovo "titulus": ele contém as suas e as minhas faltas! 3. Ao lado dessas imagens e expressões tiradas do domínio cultuai ou do direito penal, Paulo emprega também uma outra referente à condição de escravo. "Comprar" (1 Co 6.20; 7.23), "resgatar" (G13.13; 4.5), "por um preço" (1 Co 620; 7.23) são termos caracte­ rísticos nesta linha. A imagem é buscada na própria vida que Paulo tem sob os olhos. Não se trata aí dum "resgate sagrado", como pensou Deissmann (vendia- se aparentemente um escravo à divindade, mas era elepróprio quem de fato apartava o dinheiro do seu resgate), mas trata-se de um procedimento incom­ paravelmente mais impressionante: tratava-se de assumir a escravidão no lugar de outrem, a fim de
  • 51. A póstolo Palxo 53 libertá-lo. Paulo está pensando é num sacrifício vo­ luntário desta natureza, que dificilmente pode ser maior - renunciar à própria liberdade em proveito de outrem quando em 1Co 13.3("seentregarmeu cor­ po às chamas") ele o apresenta como o exemplo do mais alto devotamento. "Ainda que eu distribmsse todos os meus bens aos famintos, ainda que volun­ tariamente me deixasse imprimir a ferro quente a marca de escravo (para libertar um irmão), se não tivesse amor, isso de nada me adiantaria". E sabe­ mos, pela primeira Epístola de Clemente aos corínti- os, que houve reahnente sacrifícios deste gênero nas primeiras comunidades cristãs (55.2). Eis, diz Paulo, o que Cristo fez por nós. Estáva­ mos na escravidão do pecado (Rm 3.9), da Lei (G14.5) e da maldição de Deus (G13.13). O Crucifi­ cado fez-se escravo em nosso lugar, escravo das po­ tências, para nos resgatar de -modo regular (1 Co 6.20; 7.23). E preciso imaginar a terrível condição dos escravos na Antiguidade, submetidos sem de­ fesa ao arbítrio e humor de seus donos, condenados a trabalhar até a morte nas minas e galeras, para captarmos a ressonância extraordinária que encon­ trava no mundo da época esta palavra "resgate" para os inúmeros escravos, membros nas mais an­ tigas comimidades. 4. O Quarto tema, o da obediência vicáría, en­ contra-se raramente (duas vezes, pelo que me pa­ rece). É o caso em Rm 5.18s, onde Paulo contrapõe em duas sentenças paralelas a eficácia universal da desobediência de Adão e o ato de obediência do
  • 52. 54 A MORTE DEJesus como SACRrFfcio Cristo ("pela obediência 'vicária' de um só, os 'inú­ meros' se tornam justos"); é também o caso de G1 4.4s: "Cristo fez-se escravo da Lei para resgatar os que eram escravos da Lei (cumprindo-a no seu lu­ gar), a fim de nos conferir a adoção filial". Por diferentes que sejam estas imagens, tomadas de empréstimo a domínios muito diversos, todas elas têm para Paulo uma só e a mesma finalidade; üus- trar o "por nós", a substituição pelos pecadores da parte daquele que foi sem pecado. E é nesta substi­ tuição, válida para os ímpios (Rm 5.6), pelos inimi­ gos de Deus (5.10), bem como pelo mimdo carrega­ do da ira de Deus (2 Co 5.19), que se manifesta a onipotência sem limites do amor divino que abarca todas as coisas (Rm 5.8). E se Paulo pode dizer tam­ bém que na cruz a justiça de Deus se manifestou, é que para ele não há contradição. Porque justiça de Deus e amor de Deus não são qualidades opostas - como se tivesse havido na cruz um conflito a arbi­ trar entre a justiça de Deus e o amor de Deus. Pelo contrário, é um dos resultados seguros e fundamen­ tais da exegese do Novo Testamento que a expres­ são "justiça de Deus" deve traduzir-se em Paulo por "salvação de Deus". Paulo liga-se à linguagem dos Salmos e do Dêutero-Isaías, onde "justiça" se empre­ ga constantemente em paralelo com "graça, salva­ ção, libertação". Pense-se somente no SI 103.17: Mas o amor de Deuspara os que o temem dura eternamente, e suajustiça passa dos filhos aosnetos...
  • 53. A Igreja das origens 55 Assim, para Paulo, amor de Deus e justiça de Deus significam a mesma coisa. Quando Deus, na cruz do seu Filho, elimina o pecado, o julgamento e a maldição que, objetivamente, separam dele os ho­ mens (porque quem está carregado de pecado não pode subsistir diante de Deus), então é que ele ma­ nifesta o seu amor. A morte vicária de Cristo na cruz, ponto central da pregação paulina, é a con­ cretização, a atualização e a manifestação visível e histórica do amor de Deus. 3. A Igreja das origens Continuemos nossa subida no tempo e voltemo- nos para a comunidadepré-paulina. Mas, se temos a chance de possuir os escritos originais de Paulo, não éo caso aqui. Contudo, podemos dizer com cer­ teza que, para a comimidade das origens, a explici­ tação do sentido da cruz foi uma busca de impor­ tância fimdamental. A própria situação histórica, desde o dia da Páscoa, forçava-a, com efeito, a to­ mar posição diante do enigma dilacerante da cruz. Porque, para os homens da Antiguidade, a cruz não só era a quintessência das torturas mais horroro­ sas, mas também o cúmulo da vergonha (Hb 12.2); além disso, para a sensibilidade judaica, esta pena de morte, desconhecida em Israel, era tida, sob a influência de Dt 21.23, como um sinal visível da maldição divina. Como então foipossível que aque­ le que Deus legitimara pela ressurreição pudesse ter suportado esta morte amaldiçoada? o mais antigo
  • 54. 56 A MORTE DEJesus como sacrifício anúncio da mensagem cristã (o querigma) indica onde se pode achar a resposta: Cristo morreu pelos nossos pecados, segimdo a Escritura (cf. 1Co 15.3). "Pelos nossos pecados" pretende afirmar que a sua morte foi uma substituição, e "segimdo a Escritu­ ra" fundamenta esta explicitação da morte de Cristo sobre Isaías 53.Porque, em todo oAntigo Testamen­ to, é essa a única passagem em que se encontra: "Ele morreu pelos nossos pecados". E para mim conti­ nua sendo um mistério que se tenha podido duvi­ dar desta referência a Isaías 53. Em todo caso,jamais se deveria ter reclamado do plural (literalmente: "se­ gundo as Escrituras"), que parece aludir a inúme­ ras passagens escriturísticas, porque essa afirma­ ção repousa num erro gramatical. Com efeito, o plural aramaico {kthubayyá),subjacente a este plu­ ral do grego, designa a Escritura e deve traduzir-se pelo singular em nossas línguas. Temos ainda outros exemplos além do de 1 Co 15.3. E de novo impressiona constatar que as refe­ rências cristológicas a Isaías 53, extraordinariamen­ te numerosas, encontradas em Paulo, apresentam- se, todas sem exceção, como pertencentes a uma tradição que lhe é anterior. Descobrimo-lo por ra­ zões de estilo ou de terminologia, ou pelos dois mo­ tivos ao mesmo tempo^ Não subsiste, portanto, ne­ nhuma dúvida: Muito tempo antes de Paulo, foi no capítulo dedicado ao Servo Sofredor (Is 53) que a ^Encontrar-se-ão algumas indicações, que deveriam ser am­ pliadas, no Theologisches Woertebuch des Neuen Testa­ ments, t. V. pp. 703 e 707.
  • 55. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 57 comunidade das origens foibuscar a chave para re­ solver o mistério profundo do Filho de Deus pade­ cendo a morte ignominiosa. 4. Qual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? De acordo com o que dizem os evangelistas, re­ montaria ao próprio Jesus esta interpretação do sen­ tido de sua morte. Seria digna de fé essa afirmação? Examinando-se, sob o prisma da crítica literá­ ria, os anúncios que Jesus faz de sua paixão, obser­ va-se uma tendência evidente da tradição em colo­ car, anacronicamente, nos lábios de Jesus tais anúncios (cf. Mt 26.1-4, comparado com o esque­ ma apresentado em Mc 14.1-2). Constata-se, além disso, o pendor desta tradição em progressivamen­ te formular estas predições da paixão, incluindo nelas cada vez mais claramente a própria maneira como se desenrolaram os acontecimentos (compa­ re-se Mc 9.31 com 8.31 e 10.33ss). Compreende-se, então, que, deste,fato inegável, se chegasse a con­ cluir que tudo o que se nos transmite como ditos de Jesus sobre a sua paixão não passaria de vaticinia ex eventu (predições compostas mais tarde, a par­ tir dos próprios acontecimentos realizados). Mas, na verdade, não se pode pensar assim neste caso. Porque, mesmo procedendo com toda a prudência e sentido críticos desejáveis, vamos nos defrontar, tan­ to nos anúncios da paixão como nos da glorificação, com um núcleo que só pode ser anterior à Páscoa.
  • 56. 58 A MORTE DEJ esus como sacriekio Quanto aos anúncios dapaixão, é preciso partir do fato de que tudo na vida pública era para levar Jesus a contar, e cada vez mais, com a perseguição e até mesmo com a execução. A violação do sabbat, a blasfêmia contra Deus e a chamada magia (Mc 3.22), que se lhe censuravam, eram crimes que exi­ giam o apedrejamento (e no caso do blasfemo, de mais a mais, pendurava-se o cadáver numa cruz). Acresce que Jesus se pôs por várias vezes no rol dos profetas - e isso em palavras que, por seu teor, pou­ co cristológicas em aparência, nos leva a tê-las como autênticas. Ora, precisamente no tempo de Jesus, o martírio era considerado como parte integrante da missão profética; é o que evidenciam tanto o Novo Testamento com as lendas acerca dos profetas, con­ temporâneas de Jesus, bem como o costume, então corrente, de dar relevo às tumbas dos profetas por meio de monumentos expiatórios. O próprio Jesus viu a história santa como uma série ininterrupta de justos mártires, desde Abel até Zacarias, o filho de Yoyada (Mt 23.35); a sorte deles, como a de João Batista, o último da série, deve ter-lhe sido uma in­ dicação da sua própria sorte. Mas o próprio testemunho dos textos tem ainda mais peso do que essas considerações. Os anúncios da paixão, que não se devem absolutamente limi­ tar aos três anjincios clássicos (Mc 8.31; 9.31; 10.33 e parai.), fazem parte de uma camada da tradição anterior ao contato com o helenismo: é o que evi­ dência o jogo de palavras em aramaico bar nasha Ifnê nasha (Mc 9.31: Deus entregará o homem aos
  • 57. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 59 homens) e a quase total ausência de referências à versão grega da Bíblia. Por outro lado, eles estão tão fortemente ancorados no contexto que não se po­ dem destacar daí: pense-se somente na passagem em que Pedro é tratado de "Satã" em Mc 8.32®; com certeza isso não pode ser uma invenção! Além dis­ to, os anúncios aparecem nos gêneros literários mais diversos. Ao lado dos anúncios oficiais da paixão em suas diferentes variantes, encontram-se também anúncios velados: em parábolas e figuras, tais como "cálice, batismo, resgate", ditos enigmáticos, como os referentes ao sinal de Jonas (Mt 12.39) ou à espa­ da (Lc 22.36); como também os ditos que enqua­ dram a celebração da ceia. Mas principalmente os anúncios da paixão contêm uma série de detalhes gue não se cumpriram exatamente como previstos. É o caso, quando Jesus espera para si o sepultamen- to dos criminosos (Mc 14.8), ou quando prediz que parte de seus discípulos partilhará de sua sorte (Mc 10.32,40; Lc 22.36s): ora, fato estranho, as auto­ ridades se contentaram em matar somente Jesus, e deixaram de imediato seus discípulos, sem molestá- los. Estas constatações, que se poderíam multiplicar, nos impedem, portanto, de considerar em bloco os anúncios da paixão como sendo vaticinia ex eventu. O ceticismo se converte involuntariamente em falsi­ ficação da História, quando, por observações de de­ talhes, perfeitamente válidas do ponto de vista críti­ co, se deixam conduzir a se considerar, sem mais Outros exemplos no TWbNT, t. V, p. 712.
  • 58. 60 A MORTE DEJesus como sacrifício exame, todo o conjunto dos anúncios como se fos­ sem uma construção da comimidade. Os anúncios daglorificação^ que de mais a mais se vinculam aos da paixão, evidenciam que tam­ bém eles mantêm um núcleo que é anterior à Pás­ coa. Limitar-me-ei a um exemplo, à questão dos "três dias". Ao lado da passagem que se refere a Os 6.2 ("depois de três dias, ele ressuscitará"), en­ contram-se ditos totabnente diversos sobre os "três dias". Depois de três dias, diz Jesus, será construí­ do o novo Templo (Mc 14.58 e parai.). Hoje e ama­ nhã, ele expulsa demônios e realiza curas; no ter­ ceiro dia, ele será "consumado" (Lc 13.32; cf. nota b, p. 1.374 da Bible deJérusalenri). Hoje, amanhã e no dia seguinte, ele prosseguirá seu caminho, e de­ pois disso sofrerá em Jerusalém a sorte dos profetas (15.33). Ainda um pouco de tempo e eles não mais o verão, e ainda um pouco de tempo e eles o verão: hoje estão vivendo em comunidade com ele, ama­ nhã será a separação, e, no terceiro dia, o retorno (Jo 16.16). Assim fica claro que Jesus anunciou, de muitos modos, a "grande reviravolta de Deus", ejá a ausência de qualquer diferenciação entre ressur­ reição e retorno mostra-nos que os amíncios da glo­ rificação não são também vaticinia ex eventu, mas sim, no seu núcleo, anteriores à Páscoa. Mas, se estes anúncios da paixão e da glorifica­ ção remontam, no essencial, ao próprio Jesus, o que pensar dos textos evangélicos que pretendem atri­ buir a Jesus a explicitaçãomesma do sentido de sua paixão? Seria possível eliminá-los levianamente
  • 59. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 61 como construções da comunidade? Longe disto! Quem quer que tenha pressentido a extrema impor­ tância que tinha no judaísmo antigo a idéia da for­ ça expiatória dos sofrimentos e da morte, só pode achar impensável que Jesus tenha podido esperar sua paixão e morte, sem nem sequer sonhar com o sentido que elas poderiam ter. Também neste caso, são decisivos os textos. E entre estas explicações do sentido da paixão, preci­ samos pôr em primeiro lugar as palavras de Jesus na Ceia. Limitar-me-ei a duas observações: a) Importantes aí são as palavras "por muitos"; encontram-se com divergências quanto a sua locali­ zação e teor literal, nas cinco versões dos ditos da Ceia que traz o Novo Testamento (Mc 14.24; Mt 26.28; 1 Co 11.24; Lc 22.19-20; Jo 6.51). Sua ausência em Justino (cerca de 150 d.C.) é sem conseqüência, pois é conscientemente que ele cita, abreviando-os, os ditos da Ceia. Das diferentes versões, a expressão de Marcos ("por muitos"), que é um semitismo, é com certeza mais antiga do que a de Paulo ("por vós"). Ora, Paulo deve ter recebido sua versão dos ditos da Ceia, que apresentam um vocabulário for­ temente grecizado, pelos anos 40 em Antioquia, fato que nos possibilita situar a versão mais antiga de Marcos no primeiro decênio que seguiu à morte de Jesus. Quem, pois, pretender eliminar estas duas pa­ lavras sob pretexto de que seriam uma interpretação acrescentadaposteriormente,deveestarconscientede que abandona uma tradição muito antiga, e sem ra­ zão lingüística de que possa se reclamar.
  • 60. 6 2 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io b) Estas palavras "por muitos" são, como o con­ firma Mc 10.45, uma referência a Is 53. É nessa pas­ sagem da Bíblia que se encontram ao mesmo tem­ po o "por" e, com isto, a idéia de substituição, e o "muitos"; ora, "muitos", usado sem artigo no sen­ tido inclusivo de "numerosos, grande turba, multi­ dão, todos", acha-se em abundância neste capítulo, e dele constitui a palavra-chave^. Assim, o "por muitos" dos ditos de Cristo na Ceia nos evidencia que foi em Is 53 que Jesus encontrou a chave para explicitar o sentido de sua paixão e morte. Mais complexa é a história da tradição do dito sobre o resgate, que está estreitamente aparentado com os ditos da Ceia. Com efeito. Marcos (10.45 pa­ rai. Mt 20.28) e Lucas (22.27) divergem quanto ao teor. Parece que se possa estabelecer que as duas versões repousam sobre um lógion de Jesus,no qual se tratava de serviço. Na fronte própria de Lucas, este serviço de Jesus é ilustrado com auxílio de seu "serviço à mesa", ao passo que em Marcos se recor­ re a Is 53. Em Lucas, o contexto acusa um vocabu­ lário claramente grecizado; em Marcos, não só o vo­ cabulário como também o conteúdo conceptual do lógion são semíticos, pois a utilização religiosa da figura do resgate é especificamente palestinense, o que faz remontar a tradição usada por Marcos a uma data muito antiga. O menos que se pode dizer Usado substantivamente e sem artigo em: Is 52.14; 53.12. A versão grega dos Setenta o pressupõe também em 53.11c.l2
  • 61. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 63 éque Marcospossuía,aolado dos ditos da Ceia,uma antiga tradição em que Jesus explicitava sua pai­ xão valendo-se de Is 53. É também uma tradição muito antiga - diria, até mesmo, um fragmento da rocha original em que se baseou a tradição - que possuímos no dito refe­ rente à espada, que nos vem da fonte própria de Lucas (22.35-38). O tempo da angústia está a ponto de irromper; é este o sentido dos versículos 35s; tra­ ta-se, pois, de uma palavra que com certeza foipro­ nunciada antes da Páscoa,pois representa uma pre­ dição não realizada, uma vez que a paixão coletiva dos discípulos não se deu dessa maneira. É também em Is 53 que se encontra a razão desta mudança de clima num mundo que vai passar da amizade hos­ pitaleira à ira sanguinolenta; pois aí se diz: "e ele (o Servo de Deus) foi contado no número dos ímpios". Quanto à sentença que segue no v. 38, onde os dis­ cípulos aludem às duas espadas, trata-se de um dito muito antigo, pois, sem retoques ou eufemismo, ex­ plode aí a total falta de compreensão dos discípu­ los. Uma vez mais. Is 53 apresenta a explicitação da paixão no momento em que, para Jesus, ela esta­ va imediatamente próxima. Considere-se também como uma tradição ante­ rior à Páscoa o dito sobre o pastor que vai ser ferido e cujas ovelhas vão se dispersar (Mc 14.27). Com efeito,oV. 28prolonga aimagem do pastorpela pro­ messa: "ele precederá (o seu rebanho) na Galiléia", a qual não pode ter sido formulada eqevtu / ex eventu. Por outro lado, pensando-se no contexto
  • 62. 64 A MORTE DEJesus como sacrifício desta citação de Zacarias (13.7),percebe-se que tam­ bém aí existe, no fundo, uma explicitação do senti­ do da paixão: a morte do Pastor traz a aflição, mas também a reunificação do rebanho purificado. E Jo 10.15,17 aí está a nos mostrar que, pelo menos na tradição, a imagem do pastor estava ligada a Is 53. Precisamos, enfim, aduzir a passagem em que Jesus na cruz intercede por seus inimigos (Lc 23.34). Este versículo não é atestado por todos os manus­ critos, mas repousa sobre uma tradição muito anti­ ga, como o evidenciam, de modo concorde, a forma e o fundo (a apóstrofe dirigida a Deus: "Pai"; a in­ tercessão pelos inimigos). Também aí se insere uma explicitação do sentido da paixão, porque a inter­ cessão de Jesus toma o lugar do voto de expiação que todo condenado devia pronunciar: "Que minha morte expie por todos os meus pecados!", mas Je­ sus orienta a virtude expiatória de sua morte não para si mesmo, mas para os seus carrascos. No fun­ do está igualmente Is 53, que termina assim: "E ele intercedia pelos pecadores" (v. 12).0 número de passagens em que Jesus, segundo os evangelhos, aplica-se a si Is 53 é muito grande, ainda que limi­ tado. Liga-se isto ao fato de Jesus não ter revelado os mais altos mistérios da sua missão a não ser na pregação reservada aos discípulos enão na sua pre­ gação pública. Com efeito, somente aos discípulos é que ele comunicou que via no cumprimento de Is 53 a tarefa mesma que Deus lhe marcava; a eles so­ mente explicitou o sentido da sua morte na linha da suplência "pelos muitos", pela multidão incontável
  • 63. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 65 dos que incorreram sob a justiça divina. Porque, segundo Is 53, quatro elementos dão à morte "vicá­ ria" do Servo de Deus essa força expiatória sem li­ mites: trata-se dum sofrimento voluntário (v. 10), suportado na paciência (v. 7), querido por Deus (vv. 6.10), e inocente (v. 9). E, nessa morte, o que se con­ cede ao Servo é a vida, da qual Deus é a fonte e da qual se pode participar com ele. Vimos que podemos com grande probabilidade - não se pode fazer questão de certeza absoluta - reconduzir ao próprio Jesus essa explicitação que o cristianismo das origens dava do sentido da sua morte como cumprimento de Is53.Contudo,a ques­ tão existencialnão ficou comistosuprimida. Elaper­ manece. Só que essa questão é posta agora lá mes­ mo onde ela tem o seu lugar: no próprio Jesus.
  • 64. Capítulo III A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ 1. o sentido da fórmula Num parágrafo de introdução, gostaria de esta­ belecer os fundamentos do que seguirá por meio de algumas observações lingüísticas. Eis a questão: o que se entende por a) ser justificado, b) por fé, c) por graça? Assim como o verbo hebraico sadhaq, SiKaiô / dikaioún pertence, na Septuginta, à terminologia ju­ rídica. No ativo, significa "fazer justiça a alguém", "declarar alguém inocente", "absolver um acusado". O sentido passivo será, então, "ganhar uma causa", "ser inocente", "ser absolvido". Neste sentido, Ô iK airâ / dikaioún é usado também no Novo Testamento, cf. Mt 12.37; uma referência ao juízo final: "... por tuas palavras serás justificado (ôiKai(o0fjati / dikaiothése) e por tuas palavras serás condenado". A mesma
  • 65. 6 8 AJusnncAÇÀoPELAFé oposição "absolver-condenar" acha-se em Rm 8.33s citando Is 50.8: "É Deus quem justifica (0eòç ó ôiKttiôv / Theós ho dikaiôrí). Quem condenará?" Tudo isto se encontra em qualquer léxico. É preciso, contudo, notar que o sentido do verbo ôiKaiô / ôiKttiôaSai / dikaioún / dikaioústhaitinha se alargado, em particular quando servia para expres­ sar a ação de Deus. O novo matiz surgiu pela primei­ ra vez no Dêutero-Isaías (Is 45.25 Septuaginta): Por Yahweh serájustificada (ôiKaicoG fiaerai / dikaiothésetai) e,por causa de Yahweh, seráglorificada toda a raça de Israel. O Dêutero-Isaías rompe assim, com toda a evi­ dência, os limites do emprego jiirídico. O paralelis­ mo entre "ser justificado" e "ser glorificado" mos­ tra muito bem que ôiKairôoGai / dikaioústhaiioma aí o sentido de "achar salvação". Enquanto sei, ainda não foi observado que este emprego tenha persistido no judaísmo pós-bíblico. Destesepodem citarpelo menos dois exemplos.Nas Antiguidades Bíblicasdo Pseudo-Filo (escritas após 70 d.C.), "ser justificado" se apresenta como para­ lelo à eleição de Deus (49.4), bem como no Quarto livro de Esdras (escrito em 94 d.C.) "achar graça", "ser justificado" e "ser ouvido na oração" se usam como sinônimos (12.7). A última dessas passagens constitui o começo de uma oração:
  • 66. o ŒNTTIDO DA FÓRMULA 6 9 Ó Senhor altíssimo, se acheigraça diante de ti e se fuijustificado em tuapresença diante de uma multidão e se minha oração se eleva com segurança na direção de tua face... As três linhas estão em paralelo. Na primeira e na segrmda, "achar graça" altema-se com "ser jus­ tificado" sem nenhuma mudança aparente de sen­ tido. A tradução literal "ser justificado" é, portan­ to, muito estreita e não vai ao cerne da expressão. O que se deve de preferência entender por este tex­ to é o seguinte: Se acheigraça diante de ti e se acheifavor em tuapresença diante de uma multidão... O que aqui é importante é que a idéia de pro­ cesso é abandonada. "Ser justificado", aplicado a um ato de Deus e posto em paralelo com "achar graça", não tem o sentido estreito de "ser absolvi­ do", mas antes o sentido mais abrangente de "ser em favor". Confirma-se isto pelo paralelismo da terceira linha, que indica como a graça de Deus, o seu agrado, se manifesta: ele escuta a oração. Este fato nos conduz para muito perto de uma palavra dos evangelhos, em Lc 18.14, onde Jesus diz com referência ao publicano: "Eu vos digo que este último desceu para casa justificado, e não o outro".
  • 67. 70 AJUSTinCAÇÀOPELAFé Também aqui se abandona a comparação jurídica. Também aqui "ser justificado" tem antes o sentido de "encontrar o favor de Deus". Também aqui este favor divino se traduz pela audição da oração. Lc18.14deve,portanto, traduzir-se: "Eu vosdigo que estehomem desceupara asua casa comoalguém que encontrou o favor de Deus, e não o outro". Podemos até mesmo ir ao ponto de traduzir: "Eu vos digo que este homem desceu para casa como alguém cuja ora­ ção foi ouvida por Deus, e não o outro". Acabamos, pois, de ver um emprego de ôiKttirâaBai / dikaioústhai em que a comparação jurídica parece ter sido atenuada ou até mesmo completamente abandonada. Gostaria de chamar este uso de "soteriológico",para distingui-lo do uso jurídico. E evidente que em Paulo também o uso de "justi­ ficado" (ou de "ser justificado") vai muito além da esferajurídica - mesmo quando oaspectojurídico (ou forense) não está ausente - e já mencionamos o final em forma de hino de Rm 8, onde Paulo (nos vv. 33s) lança mão da imagem de um processo, citandoIs50.8: "Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem jus­ tifica" (ôiKairâv / dikaiôrí). E, portanto, a conotação soteriológica que comanda o seu discurso. Para Pau­ lo, (ôiKaicò / dikaoún no ativo significa "conceder a graça ou favor", e no passivo (SiKaicòoGai / dikaioús­ thai "achar a graça ou favor". Vê-se de modo parti­ cularmente claro, que a imagem do processo desapa­ receu, quando Paulo fala de uma justificação que teve lugar no passado, como por exemplo em Rm 4.2: "Se I I I
  • 68. oSENTIDOD AFÓ RM ULA 71 Abraão achou graça (èôiKai(»0T| / edikaiôthê) pelas obras..." Aí, na história da fé de Abraão, não nos de­ frontamos com uma cena judiciária, mas antes com a outorga da graça de Deus. O que vale também de 5.1: "Tendo, pois, recebido nossa graça. (ôiKaicoGévteç / dikaiothénteé) pela fé, estamos em paz com Deus"; e de 5.9: "Quanto mais, então, agora, tendo encontrado graça (SiKaicoSévxeç / dikaiothénte^ por seu sangue". A justificação que provém de Deus é um transbordar de graça que extravaza largamente à esfera jurídica. Com referência ao substantivo ^'SiKaicoGobvri (tou) 08ob / dikaiosyne {toú) Theoú", a conotação soteriológica foi notada há muito tempo, e, primei­ ramente, pelo que eu saiba, por James H ardy Ropes no começo deste século^ Nos Salmos e no Dêutero- Isaías, sidhqath Jahwe, a "justiça de Deus", se aco­ pla com a salvação de Deus e com a misericórdia de Deus. E é precisamente o emprego que dela faz Pau­ lo (com a exceção de Rm 3.5, onde ele não fala em seupróprio nome, mas citauma objeção). Assim,por exemplo, Rm 1.17não se deve traduzir por "Porque nele (no Evangelho) ajustiça de Deus serevela",mas "Nele (no Evangelho) a salvação de Deus se revela". Em resumo, assim como para as epístolas de Paulo ôiKai(o0aí)vTi (tou) 0eoí) / dikaiosyne {toú) Theoú deve-se traduzir por "a salvação de Deus", ÔiKaiâo0ai / dikaioústhai deve-se traduzir por "achar a graça de Deus". ’ Righteousnessin the Old Testamentandin St.Paul, in Jour­ nal ofBiblical Literature 22 (1903) pp. 211-227.
  • 69. 72 AJusnncAçÃoPELAFé Vejamos agora as palavras ÔTtíoiei, èk tcíotego, ôiòc TríaTECoç / pístei, ek písteos, dià písteos, "pela fé". Toda vez que Paulo fala da ôiKaioo^òvr) / dikaio- syne de Deus, da salvação de Deus, e do ôiKaicò / dikaioún de Deus, a outorga da graça, ele centra a atenção inteiramente em Deus. Tudo se reconduz à questão vital de se saber se Deus é ou não é miseri­ cordioso, se ele concede ou não o seu favor, se ele me diz "sim" ou "não". Quando é que Deus diz "sim"? Paulo responde: um homem é justificado, um homem acha graça, pela fé. M artinho L utero, em sua tradução de Rm 3.28 acrescentou uma palavra. Ele diz: "Pois reputamos que o homem éjustificado pela fé somente" ("allein durch den Glauben"^ sola fidé). Criticou-se este acréscimo, mas do ponto de vista lingüístico ele tem toda a razão. Pois é uma característica da língua semita (e, sob este aspecto, as cartas de Paulo traem muitas vezes o seu fundo judaico) o fato de a palavra "somente", "só", ser gerahnente omitida, mesmo quando no ocidente ela se considera indispensável (cf., por exemplo, Mc 9.41, que é necessário interpretar assim: "Todo aquele que vos der um simples copo d'água" será recompensado, por insignificante que seja o servi­ ço). Sola fide!A fé é o único caminho para a miseri­ córdia de Deus. Quando Paulo fala de achar a graça só pela fé, é sempre em oposição à possibilidade de achá-la pe­ las obras. A doutrina da justificação não poderia ser entendida sem esta antítese. Ela se dirige contra a
  • 70. oSENTIDO DA FÓRMULA 73 concepção fundamental do judaísmo e do cristia­ nismo judaizante, segundo a qual o homem acha a graça de Deus pelo cumprimento da vontade divi­ na. O próprio Paulo considerava as coisas assim até o momento em que Cristo lhe apareceu no cami­ nho de Damasco: somente este instante é que lhe abriu os olhos para a ilusão que o fazia crer que um homem poderia manter-se diante de Deus por sua própria força. É por isso que, depois de Damasco, ele opõe à tese dos judaizantes, que pretendem que a Lei seja o caminho da salvação, esta antítese: o caminho da graça de Deus não está nas obras, mas na fé (G1 2.16; 3.8,24; Rm 28.30; 4.5). Assim a fé substitui as obras. Mas então se põe a questão: Achamo-nos diante de uma façanha em virtude da qual Deus concede a sua graça, se a jus­ tificação segue a fé? Eis a resposta: Sim! Estamos de fato na presença de uma façanha. Deus concede com efeito a sua misericórdia na base de uma faça­ nha. Mas ei-la: não se trata da minha própria faça­ nha, mas da façanha de Cristo na cruz. A fé mesma não é uma façanha, mas antes a mão que apanha a obra do Cristo e a dirige para Deus. A fé diz: Eis a façanha - o Cristo morreu por mim na cruz (G1 2.20). Esta fé é a única maneira de obter graça junto de Deus.O fato de que Deus concede o seu favor ao crente é contrário a todas as normas das leis huma­ nas. Isto salta aos olhos, se considerarmos quem é justificado,ou seja,oímpio (Rm45) quemereceamor­ teporque éportador da maldição de Deus (G13.10). A salvação de Deus lhe é concedida "a título gracioso"
  • 71. 74 A Ju sn n C A Ç À O P E L A Fé (Rm 4.4; 5.17), como um dom gratuito (Rm 3.24). Esta graça não conhece limites; sendo independente da lei mosaica, pode incluir os gentios. Em Rm 4.6-8,acha- se com exatidão o que significa o favor de Deus, sola gratia:"Como, aliás, também Davi proclama a bem- aventurança do homem a quem Deus credita a jus­ tiça, independentemente das obras; "Bem-aventurados aqueles cujas ofensas foram perdoadas, e cujospecados foram cobertos. Bem-aventurado o homem, a quem o Senhornão leva em conta opecado". A justificação, é o perdão, nada mais do que o perdão pelo amor de Cristo. Esta afirmação, todavia, precisa ser mais expli­ cada. 2. Justificação e nova criação Se contarmos as passagens de Paulo onde se acha a fórmula da justificação, estaremos diante de um fato curioso e muitas vezes negligenciado, ou seja, o fato de que a doutrina da justificação não aparece na maior parte das epístolas. Nas epístolas aos Tessalonicenses não achamos o menor traço dela. Na primeira delas, o advérbio ôiKaicoç / dikaíos qualifica a conduta irrepreensível do Apóstolo (1 Ts 2. 10). Na segunda, o julgamento de Deus é chamado de "justo julgamento"; Deus é chamado
  • 72. jL'snncAÇÃOe nova criação 75 "justo" porque o seu julgamento é imparcial (2 Ts 1.5s). Estas afirmações nada têm a ver com a doutri­ na da justificação. Na Carta aos Gálatas, que vem cronologicamente logo depois daquelas, a fórmula completa "justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé" aparece bruscamente pela primeira vez. Nas duas Epístolas aos Coríntios, ôiKaiooúvrj / dikaiosyne tem o sentido de "salvação", e "ser jus­ tificado" aparece pelo menos uma vez (1 Co 6.11) num sentido especificamente paulino, mas em ne­ nhuma das duas Epístolas aparece a fórmula com­ pleta "justificação pela fé". A seguir, encontramo- la com muita freqüência na Epístola aos Romanos. Depois disto, desaparece de novo nas Epístolas do cativeiro: Filipenses, Efésios, Colossenses, Filêmon, com a exceção de El 3.9, onde ôiKaiooúvTi / dikaio­ syne (salvação) pela Lei se opõe à ôiKaioabvt] / di­ kaiosyne (salvação) de Deus pela fé. As Epístolas pastorais não contêm a fórmula completa, ainda que em Tt 3.7 se encontre a variante: "justificados pela graça de Cristo". Assim, a fórmula completa "justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé" acha-se somente nas três Epístolas aos Gálatas, Ro­ manos e Filipenses (e numa única frase desta últi­ ma), às quais se deve acrescentar Tt 3.7. Como ex­ plicar este fato tão estranho? A resposta nos parece ser a seguinte: a doutrina não aparece a não ser quando Paulo entra em con­ trovérsia com o judaísmo. Com certeza W. Wrede- - W red e W ., Paulus, Tübingen 1904.
  • 73. 76 AJusnnCAÇÃOPELAFé tinha razão ao concluir que a doutrina da justifica­ ção era uma doutrina polêmica, saída da discussão com o judaísmo e sua teologia da Lei. Mas W rede foi ainda mais longe, inferindo do uso limitado da fórmula, a conclusão de que a doutrina da justifi­ cação não está no centro da teologia paulina. A. ScHWEiTZER^tomou partido em favor dele em sua de­ claração tornada célebre, segundo a qual a doutri­ na da justificação não passaria de uma "cratera se­ cundária que se formou no interior do círculo da cratera principal" da experiência que Paulo fez da vida mística em Cristo. É bem esta a conclusão que se deve tirar? Não julgo que seja. W rede e Schweit- ZER, ambos erram pornão colocar esta questão: como é que se concede a justificação? Como Deus aceita os ímpios? Hoje em dia vemos a coisa mais clara­ mente por termos aprendido, nas últimas décadas, que este dom nos é concedido pelo batismo. Isto se dediiz,por exemplo, de 1Co 6.11,onde o verbo "ser justificado" está cercado de fórmulas e termos ba­ tismais: "Mas vós vos lavastes, mas fostes santifi­ cados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus" (cf. ain­ da G1 3.24-27; Rm 6.7; Tt 3.5-7). Paulo não extrai explicitamente a relação entre jiistificação e batis­ mo pelo simples motivo de que, na fórmula de jus­ tificação, o termo "pela fé" implica o batismo à maneira de abreviação, como o demonstrou muito *Schweitzer, A., Die Mystik des Apostels Paulus, Tübingen, 1930, p. 220.
  • 74. JusnncAÇÀoe nova criação 77 bem R. Schnackenburg^ O laço da justificação com o batisimo é tão claro para Paulo, que absolutamen­ te não acha necessário dizer que é pelo batismo que Deus salva aquele que crê em Jesus Cristo. É preciso lembrar-se que Paulo fala e escreve como missionário. Na situação missionária, para o ju­ deu epara o gentioque criana Boa-novaese decidia a entrar na comunidade cristã, o batismo era o ato decisivo pelo qual ele se inseria entre os que depen­ dem de Jesus como de seu Senhor. É por isso que Paulo sem cessar sublinha a importância do batis­ mo, servindo-se para tanto de uma multidão de ima­ gens destinadas a sugerir aos novos convertidos o significado que devem atribuir a este rito. Ele lhes diz: "Quando vocês são batizados, vocês são lava­ dos; são limpos; são santificados; são imergidos na água e por esta imersão vocês participam da morte de Cristo e de sua ressurreição; vocês são adotados e se tomam filhos de Deus; vocês são circxmcidados por uma circuncisão não feita por mão de homem, isto é, vocês se tornam membros do povo de Deus; numa palavra, vocês ficam no reino". A fórmula "justificação pela fé" é uma destas múltiplas imagens. É uma descrição da graça batis­ mal de Deus, feita por meio de uma imagem de ori­ gem jurídica. A graça de Deus dada no batismo é o perdão imerecido. E é justamente esta formulação da graça batismal que Paulo criou no seu conflito * ScHNACKENBURG, R., DasHeUsgeschehen bei der Taufenach dem ApostelPaulus ("Muenchener Theologische Studien", I. Historische Abteilung 1), Muenchen, 1950, p. 120.
  • 75. 78 A J ustihcação pela Fe com o judaísmo. Não temos, pois, aí uma "cratera secundária", a imagem se encontra na mesma li­ nha que todas as outras descrições da graça do ba­ tismo. Veja-se mais uma vez 1 Co 6.11: "Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes jus­ tificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus". Esta constatação é de enorme importância, pois significa que a doutrina da justificação não deveria ser isolada. Pelo contrário, não poderia ser compreendida a não ser com referência ao conjunto dos ensinamen­ tos sobre o batismo. A graça de Deus dada no batis­ mo é tão rica que cada uma das numerosas ilustra­ ções, imagens e comparações, de que se serve Paulo, não expressa senão rim único aspecto dela. Ao falar de ablução, o acento recai sobre a libertação da sujeira da existência anterior. Ao se servir da imagem do re­ vestir-se de Cristo, tirada da linguagem mística, acen­ tua-se a comunhão, a própria unidade, com o Senhor ressuscitado. A mesma intenção, com o matiz a mais da unidade dos cristãos entre si, expressa-se pela ima­ gem da incorporação no corpo de Cristo. Ao usar da expressão "a circimcisão do Cristo", trata-se particu­ larmente da inclusão no novo povo de Deus. E, enfim, ao adotar a linguagem originalmente jurídica da jus­ tificação, quer dizer que somente Deus é que está agindo. O homem nada pode; éDeus quem faz tudo. Ainda uma vez, nenhuma imagem poderia es­ gotar a riqueza ilimitada da graça de Deus. Seria antes necessário tomar cada uma destas expressões como parspro totocom relação à totalidade do dom. I ' I
  • 76. JuSTinCAÇÃO E NOVA CRIAÇÃO 79 O fato de isolar a imagem jurídica (forense) pode­ ria, portanto, levar a um mal-entendido que con­ sistiria em dizer que a graça de Deus concedida no batismo é simplesmente jurídica (forense), e que aí não teríamos nada mais do que um mero "como se": Deus absolveria o ímpio e o trataria como se fosse um justo. Isto foi posto em evidência em 1924 por uma in­ teressante controvérsia entre R. Bultmann e H. W in- DiscH, numa ocasião em que a teologia dialética es­ tava em voga. Bultmann tratou então do "Problema Ético em Paulo"^ Seu tema versava sobre o proble­ ma da contradição aparente entre o indicativo e o imperativo, isto é, sobre a antinomia paradoxal que se encontra, por exemplo, em 1Co 5.7: "Purificai- vos do velho fermento para serdes nova massa, já que sois sem fermento", ou então em G1 5.25: "Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos tam­ bém a nossa conduta". Bultmann rejeitava do modo mais categórico e convincente as tentativas feitas anteriormente para dar uma soluçãopuramente psi­ cológica a este problema. Pelo contrário, ele ressal­ tava o caráter escatológico da justificação divina. Insistia, com razão, sobre o fato de que a justifica­ ção não é uma mudança nas qualidades morais do homem, que não éuma experiência da natureza das experiências místicas, não passando de objeto uni­ camente da fé. Mas penso que ele se enganou ao Das Problem der Ethik bei Paulus, in Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft7.?>(1924) pp. 123-140.
  • 77. 80 A Ju sn n c A Ç À O P E L A Fé acrescentar que não havia solução de continuidade entre ohomem antigo eonovo; que o crente não ces­ sa de ser ímpio e que ele jamais é justificado senão como ímpio. O próprio Bultmann admitia de bom grado que Paulo não diz isto. Mas afirmava que Paulo não levou o seu pensamento até as suas últi­ mas conseqüências, e que a interpretação moderna deve explicitar o que Paulo negligenciou. No decor­ rer do mesmo ano de 1924, W indisch opôs um des­ mentido a Bultmann num artigo intitulado "o Pro­ blema do Imperativo Paulino"^ W indisch era um seguidor da velha escola liberalevárias de suas afir­ mações dão prova disto. Não deixou, porém, de ver o ponto fraco da concepção de Bultmann. Com tom irônico, ele declarou que teria sido extremamente necessário a Paulo ouvir uma conferência de Karl Barth ou de Rudolf Bultmann (p.278).Contra Bult­ mann, sustentava que, segimdo o Apóstolo, existe uma verdadeira solução de continuidade entre o homem velho e o novo, ruptura tão radical como entre a morte e a ressurreição ("Se alguém está em Cristo, é nova criatura" 2 Co 5.17). Para dizer tudo numa palavra, o Jiveúpa / pneuma é uma realida­ de que toma posse dos batizados e rompe com a continuidade entre a existência antiga e a nova. A controvérsia é instrutiva na medida em que a posição de Bultmann (que, aliás, ele não sustenta em sua Teologia doNovo Testamento) mostra a que * Das Problem des paulinischen Imperativs, ibid. 23 (1924) pp. 265-281.
  • 78. JusnncAÇÀoe nova criação 81 ponto é perigoso isolar a doutrina da justificação. Se dizemos que o crente não cessa de ser ímpio e que a justificação não passa de uma simples mudança no julgamento de Deus, então nos aproximamos peri­ gosamente do mal-entendido quepretende que ajus­ tificação nada mais seja do que um "como se". E aí não está, com certeza, a intenção de Paulo. A justifi­ cação não passa, para ele, nós o vimos, duma das numerosas tentativas feitas no sentido de descrever a inesgotável e indizível riqueza da graça de Deus; é preciso colocar a justificação no conjunto das outras expressões do batismo, se quisermos situá-la no seu verdadeiro lugar.Ora, o denominador comum às di­ versas maneiras de expressar o batismo é que elas descrevem sempre a ação graciosa de Deus como operativa da nova criação ("Se alguém está em Cris­ to, é nova criatura"). E esta nova criação, continua Paulo, possui duas faces: "passaram-se as coisas an­ tigas; eis que se fez uma realidade nova" (2Co 5.17). A existência antiga terminou; o pecado foi lavado; o domínio da carne e das potências das trevas, inclusi­ ve da Lei, foi quebrada. Começa vida nova; conce- deu-se o dom do Espírito de Deus, que se manifesta como uma força eficaz. Todo aquele que se incorpo­ rou em Cristo não permanece como ele era. Cristo é sua vida (Cl 3-4); Cristo é a sua paz (Ef 3.14). Encon­ tramos sempre estes dois aspectos; "Ele nos arran­ cou do poder das trevas enos transportou para o rei­ no do seu Filho amado" (Cl 1.13). Isto vale também para justificação. Ainda que seja certíssimo que a justificação é e continua sendo
  • 79. 82 A Ju srm cA Ç À O P E L A Fé um ato judiciário (forense), a anistia de Deus, não resta dúvida, todavia, que a imagem jurídica (foren­ se) érompida. A absolvição de Deusnão éunicamen­ te jurídica, não é um "como se", não é uma mera pa­ lavra, mas sim a Palavra de Deus que opera e cria a vida. A Palavra de Deus é sempre uma palavra efe­ tiva. O perdão, o favor de Deus, não é só negativo, istoé,uma passada de esponjano passado,mas cons­ titui também o penhor do dom final de Deus. (O ter­ mo "antecipação", que seria de se esperar aqui, é um termo infeliz, porque ele deriva do latim anticipere que quer dizer "tomar antecipadamente". O senti­ do parece melhor traduzido pela palavra "penhor", entendido no sentido de dom prévio, dom feito ante­ cipadamente). Enquanto penhor da absolvição final de Deus, a justificação é um perdão no sentido mais pleno. É o começo de uma vida nova, de uma nova existência, uma nova criação pelo dom do Espírito Santo. Como o disse Lutero: "Lá onde há a remissão do pecado, há a vida e a salvação". A vida nova em Cristo, dada no batismo, é sem cessar renovada pela Eucaristia. E verdade que o verbo "ser justificado" não aparece quando Paulo fala da ceia do Senhor, mas não há nisso nada de se estranhar, pois Paulo não trata a fundo da Eucaris­ tia a não ser em 1Co 10 e 11, onde se trata de ques­ tões práticas, isto é, dos sacrifícios oferecidos aos ídolos e da partilha da ceia com os irmãos pobres. Estas duas secções, em particular 1 Co 10.16, mos­ tram que, para Paulo, a Eucaristia representa o mesmo dom que o batismo: uma participação na
  • 80. JlS n n C A Ç À O E NOVA CRIAÇÃO 83 morte "vicária" de Cristo e na comunhão do seu corpo. Assim, a Eucaristia renova a graça de Deus dada no batismo, da qual a justificação não passa de um dos múltiplos aspectos. Enquanto penhor da salvação final de Deus, a justificação se volta para o futuro. Participa da du­ pla natureza de todos os dons de Deus que são, ao mesmo tempo, posse presente e objeto de esperan­ ça. A justificação é uma posse segura e atual (Rm 5.1 etc.), e todavia encontra-se ainda no futuro, como o mostra, por exemplo, G15.5: "Nós com efei­ to, aguardamos, no Espírito, a esperança da justiça (ôiKaiooi)VTi / dikaiosynè) que vem da fé". A justi­ ficação é, portanto, o começo de um movimento na direção de uma meta que é a hora da justificação definitiva, da absolvição no dia do juízo, quando o dom total estará presente. É por isso que a justificação do pecador, por Deus, não é uma posse inerte, mas antes fonte de obrigação. O dom de Deus pode ser perdido. O jus­ tificado permanece no temor de Deus. A justifica­ ção se situa na tensão que existe entre posse e espe­ rança. Mas é uma esperança fundada em bases sólidas. Em Rm 5.8s podemos ler: "Mas Deus de­ monstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecado­ res. Quanto mais, então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira". Esta não é uma conclusão a minoriad maius mas a maioriad minus. Deus fez a maior coisa: Cristo morreu por nós quando éramos pecadores, quanto mais, sendo
  • 81. 84 AJusnncAÇÃoPELA Fe justificados, podemos estar seguros que ele nos con­ cederá a salvação final. Para resumir, continua verdade que a justifica­ ção é o perdão, nada mais do que o perdão. Mas justificação equivale ao perdão no sentido mais ple­ no do termo. Não é um mero esquecimento do pas­ sado, mas como penhor, um dom antecipado da sal­ vação total; é uma nova criação pelo Espírito de Deus; e o Cristo tomando posse da vida desde ago­ ra e já aqui. 3. A origem da doutrina paulina da justificação A doutrina da justificação que encontramos em Paulo seria inteiramente nova? Teria ela uma raiz mais antiga? Encontram-se anteriormente traços da doutrina segimdo a qual Deus concede o seu favor ao ímpio por causa da sua fé, por pura graça? Afirmou-se ultimamente que os textos de Qumran antecipam o que Paulo haveria de dizer acerca da justificação^ Referiu-se principalmente à surpreendente semelhança que teria com Paulo o último salmo do Manual de Disciplina (IQS ll.lss). Foidito que estapassagem atesta apresença da dou­ trina da justificação sola gratia em Qumran. O tex­ to menciona o seguinte: ^ Schulz, S., ZurRechtfertigung aus Gnaden in Qumran und beiPaulus, in Zeitschriftfür Theologie undKirche 56 (1959) pp. 155-185; Klon, G., Rechtfertigung I, in Die Religion in (^schichte und Gegenwart, V, Tübingen, 1961, col. 825-828.
  • 82. AORIGEM DA DODTWNA PAUUNA DA JUSTIFICAÇÃO 85 Mas, quanto a mim, minhajustificação {mispa- ti) pertence a Deus. e em sua mão está ainocência do meu compor­ tamento, juntamente com a retidão de coração, e em sua justiça minha transgressão será apa­ gada (I QS 11.2s). Da fonte de suajustiça vem minha justificação {mispati), umaluz em meu coração vindo deseusmistérios maravilhosos (11.5). Se tropeçopor causa da carnepecadora, minha justificação {mispati) permanecerá eternamente por causa dajustiça de Deus (11.12). Porsua misericórdia ele me deixou aproximar e de sua graciosa manifestação veio minha justificação {mispati); pelajustiça de sua verdade ele me justificou {^ phatani) e na sua grande bondade ele resgatará todos osmeuspecados epor suajustiça me lavará de toda mancha humana (11.13s). Este texto justifica a conclusão que dele se tirou? A interpretação repousa sobre apalavra mispat,que
  • 83. 86 A JUSTIHCAÇÀO PELA FÉ foi traduzida por justificação. Ora, esta tradução não é justa: tanto no Novo Testamento como no ju­ daísmo tardio, jamais mispat significa a justifica­ ção do ímpio, nem saphatsignifica justificar o ím­ pio. Ainda que seja geralmente aceita, a tradução que apresentamos não retrata precisamente a in­ tenção do texto. Um exame atento das palavras usa­ das em paralelismo com mispatevidencia que este termo significa o julgamento de graça de Deus so­ bre o caminho da vida daquele que ora®. Este julga­ mento é eficaz no fato de que Deus permite a quem ora "aproximar-se" (termo técnico para dizer: en­ trar em comimidade), tomando-lhe assim possível uma "conduta incensurável" em perfeita conformi­ dade com a Torá, conduta que o homem não é ca­ paz de levar a bom termo por si mesmo. Se ele tro­ peça no caminho. Deus apaga os seus pecados e mantém seu julgamento, contanto que o coração daquele que ora seja sincero. A mispatnão é, por­ tanto, ajustificação do ímpio {justifícatioimpii),mas antes a predestinação à via de paciente obediência a Tora. Um exemplo particularmente significativo do que há de inadmissível em colocar Paulo no mes­ mo plano de Qumran, é fornecido pela interpreta­ ção que o comentário de Habacuque (I Qp Hab.) dá Devo agradecer ao meu filho Gert Jeremias por me ter apon­ tado. Ele me indicou, além disto, o paralelo quase literal de I QH 15.12s, que está no manuscrito dos hinos I QH 15.12s, em que no lugar de mispatlemos: "a disposição de todo Espírito".
  • 84. AORIGEM DA DOUTRINA PAULINA DA JUSTinCAÇÀO 87 de Hab 2.4, a referência-chave da doutrina de Pau­ lo sobre a justificação: "o justo viverá pela fé". Em 1Qp Hab 8.1-3 se diz: "A interpretação (desta fra­ se) diz respeito a todos os que cumprem a Lei na casa de Judá (e) aqueles que Deus salvará da casa do julgamento (isto é, do julgamento final) por cau­ sa de seus trabalhos e de sua lealdade para com o Mestre de Justiça". Eis, portanto, o que diz Qumran: Deus salvará aquele que cumpre a Lei,seguindo, leahnente aTorá como éinterpretadapeloMestre.Paulo entende Hab 2.4 de modo totalmente diverso: Deus concede a vida ao ímpio que renuncia a toda obra própria e crê em Jesus Cristo. Não! Qumran não prepara Paulo. De fato, Qumran tem consciência da bondade e do perdão de Deus, mas estes não atingem a não ser os que se es­ forçam para cumprir a lei até os limites de suas for­ ças. Para expressar tudo, Qumran ePaulo pertencem a dois mundos diversos. Qumran fica inteiramente na linha da Lei, Paulo está na linha da Boa-nova. Mas se Qumran não representa uma preparação à doutrinapaulina dajustificação,não quer dizer que não exista uma prefiguração dela alhures. E aí acha­ mos precisamente o ensinamento paulino: a obser­ vação da Lei e as obras piedosas não contam para Deus, que não quer tratar com o justo mas com o pecador, e quem disse isto antes de Paulo foiJesus. Eamensagem deJesussobre Deus que quertratar com pecadores que é retomada por Paulo e por ele desenvolvida na sua doutrina da justificação pela fé.
  • 85. 8 8 AJusTrncAçÀoPELA Fé Esta mensagem línica e sem precedente estava no cer­ ne da pregação de Jesus. Isto é testemunhado por to­ das as parábolas em que Deus abraça os que estão perdidos, e se revela como o Deus do pobre e do ne­ cessitado, bem como pelas refeições que Jesus toma­ va com publicanos e pecadores. O fato de que Paulo retoma a mensagem de Jesus fica facilmente obscure­ cido, se nos restringirmos ao mero manejo de uma concordância. É verdade que a maior parte dos ter­ mos usados por Paulo - como fé, graça, igreja só rara­ mente aparece nos ditos de Jesus. Todavia, a substân­ cia de todos estes termos está presente. Assim, Jesus não fala de modo geral de igreja (èKKÀTioía / ekklesía) mas do rebanho de Deus, da família de Deus, da vi­ nha de Deus. Paulo traduz constantemente no voca­ bulário teológico o que Jesus expressara por meio de imagens e parábolas tomadas da vida do dia-a-dia. Isto é certo também com referência à doutrina da justificação. Esta não passa da mensagem de Je­ sus a respeito de Deus que quer tratar com os peca­ dores, expressa em termos teológicos.Jesusdiz: "Não vim chamar os justos, mas os pecadores"; Paulo diz: "o ímpio éjustificado".Jesus diz: "Eelizesospobres"; Paulo diz: "Somos justificados por graça". Jesus diz: "Deixai os mortos enterrarem os mortos" (palavras pesadas que implicam que fora do reino não se acha nada mais senão a morte); Paulo diz: "Aquele que é justificado pela fé terá a vida". O vocabulário é dife­ rente, mas o conteúdo é o mesmo. Segundo Lucas, Jesus se servia às vezes até mes­ mo da terminologia jurídica da justificação para
  • 86. AORIGEM DA DOUTRINÍA PAUUNA DA JUSTIFICAÇÃO 89 expressar o dom que Deus faz de seu favor àqueles que estavam perdidos. Citamos antes Lc 18.14: "Eu vos digo que este último desceu para casa justifica­ do, enão o outro", e vimos que o sentido é: "Foieste homem, eu vos digo, que desceu para sua casa ten­ do encontrado favor aos olhos de Deus, e não o ou­ tro". Aí, Lucas não pode depender de Paulo sob o ponto de vista da linguagem, porque ele se serve de um torneio familiar semítico, incorreto em grego e que Paulo evita^. Énecessário,pois,concluirque não somente o conteúdo da doutrina pauüna da justifi­ cação, mas também a própria terminologia do pe­ nhor do perdão escatológico remonta a Jesus. A grandeza de Paulo foi compreender a mensa­ gem de Jesus melhor do que qualquer outro autor do Novo Testamento. Ele foi o intérprete fiel de Je­ sus, e isto vale particularmente para a doutrina da justificação. Ela não é criação sua, mas retrata subs­ tancialmente amensagem essencial de Jesus tal qual está resumida na primeira bem-aventurança: "Bem- aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus" (Lc 6.20). Cf. meu livro: Asparábolas deJesus, Ed. Paulus, São Paulo, 1976, pp. 125ss.
  • 87. Capítulo IV O VERBO REVELADOR 1. A forma literária do prólogo de João Como começo de um livro, o prólógo do Evan­ gelho de João representa um caso único. De acordo com o que poderia ser habitualmente o começo de um livro, comparando-o com os cinco outros do Novo Testamento, fora as vinte e uma cartas. Eles se apresentam sob duas formas diferentes. A pri­ meira é representada, por exemplo, por Ap 1.1: "Re­ velação de Jesus Cristo: Deus lha concedeu para que mostrasse aos seus servos as coisasque devem acon­ tecer muito em breve. Ele a manifestou com sinais por meio de seu anjo, enviado ao seu servo João". A frase inicial é aí um resumo do conteúdo do livro. A introdução ao Evangelho de Lucas ésemelhante: in­ forma-nos sobre pesquisas anteriores, fontes, inten­ ção e caráter peculiar do livro. E igualmente assim que Lucasprefaciou o segundo volume de sua obra, os Atos dos Apóstolos: um resumo do seu primeiro
  • 88. 92 O V erbo Revelador volume. A segunda forma, geralmente utilizada para começar um livro acha-se em Mateus: "Gene­ alogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão", e provavelmente em Mc 1.1, que poderia ou antes deveria ser traduzido assim: "Como Jesus Cristo, Filho de Deus, começou a anunciar a Boa- nova". Em cada um destes casos, é a abertura do primeiro capítulo que constitui a entrada na maté­ ria. Em outros termos, um livro começa geralmente ou por um prefácio ao conjunto da obra ou pela aber­ tura do primeiro capítulo. O Evangelho de João é totalmente diverso, coloca-nos diante deste início dogmático: "No princípio era o Verbo". Para com­ preender esta singularidade, é preciso examinar a forma literária de Jo 1.1-18. Três observações enca­ deadas são necessárias. A primeira refere-se à es­ trutura da frase. O prólógo está construído na base de paralelismo, acoplando os membros de frase de ressonância análoga que constituem assim uma es­ pécie de apelo e de resposta - talvez um eco da al­ ternância entre o cantor e a assembléia. Esta cons­ trução nos é familiar, graças aos salmos. No Oriente Próximo, o paralelismo tem a mesma função da rima entre nós: com a métrica, diferencia a poesia da prosa. Em outras palavras, Jo 1.1-18 é uma pas­ sagem poética. O prólógo, como todo mundo sabe hoje em dia, é um cântico vigorosamente constru­ ído, um poema religioso dos inícios do cristianis­ mo, um salmo, um hino ao Lógos Jesus Cristo. Este Hino aos Lógos se divide naturalmente em quatro estrofes:
  • 89. A FORMA LrTERÁRIA DO FTCLOGO DE JOÃO 93 Primeira estrofe (vv. 1-5): o Verbo de Deus. Segunda estrofe (vv. 6-8): o testemunho que o designa. Terceira estrofe (vv. 9-13): o destino do Verbo no mundo. Quarta estrofe (vv. 14-18): a confissão da fé da comunidade dos crentes. O paralelismo se apresenta gerabnente sob três formas: paralelismo sinônimo (o segimdo versículo repete o conteúdo do primeiro), paralelismo anti- nômico (o segimdo versículo diz o contrário do pri­ meiro), e paralelismo sintético (o segimdo versícu­ lo acrescenta uma nova idéia à primeira)^ Mas no prólogo de João achamos uma quarta forma muito acentuada e muito rara - uma hábil elaboração da forma sintética, isto é, um paralelismo em série as­ cendente (paralelismo como degraus de escada), assim designado porque cada versículo retoma uma palavra do precedente como que para erguê-la de um degrau. Os Evangelhos sinóticos em Mc 9.37 (e paral.) nos oferecem uma amostra disto: Aquele que receber uma destas crianças por causa do meu nome, a mim recebe; e aquele que me recebe, não é a mim que recebe, mas sim àquele que me enviou. ^C. F. Burney, The Poetry of Our Lord, Oxford, 1925.
  • 90. 94 O V erbo Revelador Noprólogo deJoão,estaforma estápresente,por exemplo, em 1.4s e 1.14b.16(omitindo-se o v. 15por razões que indicaremos): Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas e as trevas não a apreenderam. Enós vimos asua glória, como a glória do Unigénito do Pai„ cheio de graça e de verdade, pois da sua plenitude todosnós recebemos e graça graça. O paralelismo em série ascendente é a caracte­ rística formal dominante do prólógo, mas está au­ sente em alguns versículos. Podemos observar que nos vv. 14-16 só tivemos paralelismo em série ascen­ dente através da réplica "cheio de graça" que religa o V . 14b com o v. 16, saltando o v. 15. Igualmente os vv. 12b e 13 não apresentam paralelismo em série ascendente. Esta observação chama outra. Ao passo que aspartesascendentes doprólógo diferemporseu vocabulário do quarto Evangelho (palavras tão im­ portantes como "o lógos", "graça e verdade", e mes­ mo "graça" isoladamente, não retomam fora do pró­ lógo), as inserções não ascendentes traem a linguagem do quarto Evangelho (vv. 6-8.12b-13.15 e talvez 17-18). Conclui-se, pois, e com razão, que é preciso distinguirno prólógo de João entre o prólógo original (Urprolog muito provavelmente escrito em
  • 91. A FORM ALTTERÁ RIADOPRÓLOGOD EJoÃO 95 grego) e os comentários do evangelista a seu respei­ to. Encontramos também em F1 2.6-11 a citação de um hino pré-paulino a Cristo, no qual Paulo inseriu comentários. R. Bultmann sustentava que o prólogo originalprovinha do grupo de discípulos deJoão Ba­ tista, mas isto é refutado por Lc 1,que mostra que os discípulos do Batista falavam de sinais miraculosos por ocasião do seu nascimento, mas não atribuíam preexistência ao seu mestre. Isto indica que o Urpro- log deve ser de origem cristã. Era um hino cantado por ocasião da Eucaristia cotidiana Christo quasi Deo, "ao Cristo como um Deus" (como o diz Plínio em sua célebre Carta X96 a.Trajano). Podemos agora dar um passo adiante. O hino ao Lógos não passa de um dentre todos os outros hinos contidos no Novo Testamento. Como todas as igrejas missionárias e as comunidades vivas, a Igreja das origens era uma Igreja onde se cantava. O fluxo da vida nova, o impulso de uma grande energia espiritual, era sem cessar traduzidos pelo canto, pelo hino e pelo louvor. Os salmos floresciam em todos os lábios: "A palavra de Cristo habite em vós ricamente: com toda sabedoria ensinai e admo­ estai uns aos outros e, em ação de graças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos es­ pirituais" (Cl 3.16 e o paral. El 5.19). Os ofícios da Igreja das origens eram um contínuo júbilo, uma grande harmonia de adoração e de louvores. Nestes hinos de júbilo, encontramos uma pro­ fusão de temas diversos. Não é por acaso que en­ contramos o maior número de hinos e de doxologias
  • 92. 96 O VERBORevelador no livro do Apocalipse. Os temas dominantes são o louvor do Deus rei eterno, edo Cordeiro,bem como a açãode graçaspela libertação. A Igrejaperseguida está sempre um passo adiante, e, no meio das tribulações, ela antecipa em seus hinos a consumação final. A sal­ vação fínal se antecipa também nos dois hinos de Lc 1, Magnificate Benedictus. Por sua vez, Rm 11.33ss exalta as vias impenetráveis de Deus, e em 1 Co 13 celebra-se o amor. Outros salmos exaltam Cristo: F1 2.6-11; Cl 1.15-20; 1 Tm 3.16; 2 Tm 2.11-13. De todos os hinos do Novo Testamento, o mais próximo do hino cristológico de Jo 1 é com certeza F1 2.6-11. Não só ambos falam de Cristo, não só a frase de Plínio Christo quasi Deo se aplica a cada um deles (cf.F12.6 e Jo 1.1), mas também tanto um como o outro diferem dos outros hinos do Novo Testamento^ pelo fato de relatarem, narrarem e pregarem a história de Cristo. Eles são Heilsges- chichte in Hymnenform (história da salvação em forma de hino). Este gênero literário, em que a his­ tória da salvação é cantada na forma de salmodia, provém do Antigo Testamento; basta comparar os salmos que exaltam a maneira como Deus conduz seu povo através de sua história, como, por exem­ plo, o SI 78^ Dois exemplos do séc. II, provenientes de meios diferentes e mesmo opostos, mostrarão o desenvol- - Hb 1.1-4 está muito próximo, mas a composição evidencia menos isto. menos isto. Salmo 77 nas Bíblias grega e latina.
  • 93. A FORMA LITERÁRIA DO PROLOGO DE JOÀO 97 vimento deste gênero literário na Igreja das origens e ao mesmo tempo o ilustrarão. O primeiro é o se- gimdo artigo do credo, que diz econfessa,num hino de louvor, a história de Jesus Cristo até a parusia. O segimdo exemplo é o hino dito naasseniano trans­ mitido por Hipólito em sua Refutação de Todas as Heresias.Começa nomeando os três princípios sub­ jacentes a toda existência, pois ele apresenta uma narração dramática da maneira como a alma, como um gamo tímido, é caçada pela morte e se acha in­ capaz de reencontrar uma saída do labirinto, ecomo Jesus se oferece para salvá-la: A leigeradora do universo foio Espíritoprimo­ gênito; Vem em seguida o caos espalhadopelo Primo­ gênito; Depois a alma recebe a lei da sua confecção. Eporisso que ela,revestida de umaforma aquosa, submergida pela dor, sucumbe àmorte. Ora, investida de força, ela vê a luz; Ora,precipitada na miséria, ela chora. Ora chora e ora se alegra; Ora chora e ora éjulgada. Ora éjulgada e ora ela morre; Ora enfim ela não acha mais saída, ínfortunada que suas corridas errantes levaram a um labi­ rinto de males. EntãoJesus diz: "Olha, Pai! Vítima da desgraça, ela erra ainda na terra Longe de teu sopro;
  • 94. 98 O V erbo Revei.ador Procura escapar do odioso caos Enão sabe como atravessá-lo E,por isso. Pai, envia-me! Descereilevando os selos. Atravessareia totalidade dos eões. Revelarei todos os mistérios. Mostrareias formas dos deuses, E transmitirei, sob o nome da gnose. Os segredos da Santa Via Estamos diante de um hino cristológico que co­ meça, como oprólogo de João, pelas origens primei­ ras para chegar ao Cristo pré-existente e à sua com­ paixão. Ainda uma vez estamos diante de uma Heilsgeschichte in Hyrrmenform. Todavia, o hino naasseniano por um lado, e F12, Jo 1e o credo per­ tencem a mundos absolutamente diversos: o cristia­ nismo gnóstico e o Evangelho. Para caracterizar su­ mariamente estes dois mundos, diremos que, por um lado, o gnosticismo sustenta que o pior dos ma­ les é a marte, enquanto que para o Evangelho, é o pecado, e que por outro lado o gnosticismo susten­ ta que a vida da salvação está no conhecimento re­ velado {gnósis),enquanto que para o Evangelho ela se acha no perdão das pecados. Precisamos, contudo, dar um último passo. Nes­ te hino, existe uma ruptura, uma interrupção. As Hipólito de Roma, Philosophumena ou Refutação de Todas as Heresias, V, 910. Retomamos parcialmente a tradução de A. Sionville, Paris, 1928, t. I, pp. 162-163.
  • 95. A FO RM ALITERÁ RIADOPRÓLOGOD EJoAO 99 três primeiras estrofes (vv. 1-13) estão na terceira pessoa; mas, se a última estrofe (vv. 14-18) começa da mesma maneira ("O Verbo se fez carne"), ela passa muito depressa para a primeira pessoa ("Nós vimos sua glória, nós recebemos graça sobre gra­ ça"). Isto significa que o hino cristológico termina com uma confissão pessoal de fé e atinge o seu apo­ geu na ação de graças, no louvor ena adoração. Não há nenhuma dúvida: o começo, as três primeiras estrofes não poderiam constituir a verdadeira subs­ tância do salmo, mas antes a confissão de fé da últi­ ma parte; tudo o que precede de não passa de uma introdução, de um prelúdio que serve para prepa­ rar a confissão de fé. O prólógo não é essencialmen­ te uma passagem dogmática que nos oferece espe­ culações cristológicas concernentes à pré-existência de Cristo, sua participação na criação do mundo e sua encarnação - interpretando-se assim, cometer- se-ia um erro grave. É antes a celebração da comu­ nidade crente, por meio de um hino, do dom inefá­ vel de Deus através daquele em quem a glória de Deus foi revelada. Por que oevangelista colocou oseu hino ao Cris­ to no começo? Trata-se, como se opinou, de um re­ sumo do seu Evangelho? Se assim fosse, a paixão e a ressurreição deveriam ter sido explicitamente mencionadas. A boa resposta está no contexto. A história de João Batista vem a seguir em 1.19ss. Isto indica que o prólogo se acha no lugar ocupado em Lucas e Mateus pelo nascimento epelos relatos da in­ fância. O quarto evangelista não fala da natividade.
  • 96. 100 o V ERBOReV ELA D C IR mas substitui a história de Natal pelo salmo ao Ló- gos. A comunidade crente, não podendo mais con­ tentar-se com a narração em prosa da encarnação, cai de joelhos e canta um hino de adoração e lou­ vor: nós o vimos, fizemos a experiência da sua pre­ sença, "vimos sua glória". Temos, pois, a resposta ã nossa questão concer­ nente ao estranho começo do Evangelho de João: o evangelista começa o seu livro com um tom de exal­ tação. Ele tem, sem dúvida, o sentimento de que a proclamação do Evangelho não poderia se acomo­ dar ao molde sem brilho que serve habitualmente como começo de um livro. É por isso que ele come­ ça com um hino grandioso ao Lógos, ensinando-nos assim que, para a proclamação do Evangelho, não poderia haver tom mais elevado. 2. O encadeamento das idéias O Lógos está aí presente de três maneiras. "Noprincípio era o Verbo O hino ao Lógos co­ meça com uma reminiscência das primeiras pala­ vras da Bíblia: "No princípio Deus criou o céu e a terra" (Gn 1.1), mas a palavra "princípio" tem sen­ tido diferente no prólógo e em Gênesis. Não desig­ na a criação (que não se menciona senão mais tar­ de em Jo 1.3), mas a eternidade antes de toda a criação. Em outros termos: "No princípio" em Jo 1.1 não é um conceito temporal, mas uma apreciação qualitativa equivalente a "esfera de Deus", o Ló­ gos tem sua origem na eternidade, e quem quer que
  • 97. oEN CAD EAM EN TODASID ÉIA S 101 entre em relações com o Lógos, obtém relações com o próprio Deus vivo. O Lógos é apresentado a seguir como omediador na criação. "Tudofoifeitopormeiodeleesem elenada foifeito de tudo o que existe'^. Qual é o sentido deste theologoúmenon?O v. 10 dá a resposta: "Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele,mas omundonão o conheceu".Esobre o fato de que o mundo foi criado por seu intermédio que se funda o direito de Jesus Cristo à autoridade soberana sobre todas as coisas. Assim, o v. 3, "tudo foi feito por meio dele" quer dizer: o Verbo tem um direito que se refere a todos os homens - a cada um deles, quer o reconheçam quer não. Enfim, o Lógos era a luz dos homens: "Neleesta­ vaa vida ea vida eraaluz doshomens". O fato de o Lógos ser a luz dos homens foi muitas vezes mal in­ terpretado: acreditou-se que sepodería entender que o Lógos proporcionava a luz interior - a luz da ra­ zão e da consciência de si - a todos os seres huma­ nos, mas não é este com certeza o sentido. Como o eviência a frase seguinte ("as trevas não a apreende­ ram"), esta luz não é deste mimdo. É preciso antes dizer que esta luz é a luz da nova criação, a luz esca- tológica com o seu estranho e duplo efeito de fazer ver aqueles que não vêem e de tomar cegos aqueles Alguns exegetas ligam as últimas palavras com as que se­ guem ("o que foi feito, é a vida nele"), mas isto não tem sentido. A criação não "era" ^cofi / zoé, que é a vida no sentido mais pleno possível. Somente o Lógos "era" a vida.
  • 98. 102 o VERBOReVEIjDOR que vêem (Jo 9.39). Esta luz salutar brilhava nas tre­ vas, mas brilhava em vão - "as trevas não a apreen­ deram". A luz os homens preferiam as trevas. A segunda estrofe (vv. 6-8) Antes de o evangelista prosseguir sua citação do hino, ele insere uma breve passagem de sua criação dizendo que Deus tinha anunciado a chegada do Lógos por meio dum profeta chamado João. O Ba­ tista é honrado como a testemunha que Deus en­ viou para dar testemunho de Cristo, mas rejeita-se claramente qualquer sobrestima do seu papel; "Ele não era aluz"{v. 8). Esta declaração devia ser mui­ to importante para o evangelista, porque ele a re­ pete no V . 15, outra de suas inserções: o Batista dá testemunho do Cristo como sendo superior a si pró­ prio, porque Cristo vinha da eternidade. A razão desta advertência contra uma sobrestima do Batis­ ta pode achar-se na situação da Ásia Menor no fim do séc. I d.C. Os Atos, no capítulo 19, sugerem que havia rivalidade em Efeso entre os discípulos do Batista e a Igreja. Mas esta razão poderia também ser inteiramente pessoal: talvez o orador seja da­ queles que tomaram o Batista pela luz até o mo­ mento em que encontrou Jesus. A terceira estrofe (vv. 9-13) A seguir o hino continua a nos dizer o destino do Lógos no mimdo. "O Verbo era aluz verdadeira
  • 99. oENCADEAMENTO DASID ÉIA S 103 que, vindo aomundo, ilumina todo homem"{y.9). É importante compreender corretamente o mem­ bro da frase “que ilumina todo homem". Foi inter­ pretada com freqüência como se quisesse dizer "que ilumina interiormente todo ser humano". Este sentido platônico de luz interior partilhada por to­ dos os seres humanos está em contradição com o v. 5, como o frisamos acima, e também com os vv. 7s. "Iluminar" significa antes "projetar a luz sobre, re­ velar", e é exatamente assim que Jo 1.9 é interpre­ tado em 3.19-21. Assim, a frase "a luz verdadeira que ilumina todo homem" diz que a luz escatológi- ca que brilhava nas trevas tinha poder de tudo re­ velar. Com uma clareza implacável, que não se po­ deria anular, fazia aparecer o estado do homem diante de Deus. O poder revelador do Lógos era a razão pela qual "o mundo não o conheceu" (v. 10), o que não quer dizer que o mundo não o reconhe­ ceu porque ele estava mascarado, mas (no sentido de "conhecer" no Antigo Testamento) que o mun­ do o renegou, e recusou-se a obedecer-lhe. Mesmo entre "os seus", em Israel, as portas se fecharam, ele foi como um estrangeiro na sua própria pátria (v. 11). Tal foi a sorte do Lógos no mundo. Todavia não foi assim em toda parte. Algims o receberam: e lá onde ele era admitido, onde os ho­ mens criam nele, ele concedia o dom supremo entre todos - "Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus" (v. 12). Eo evangelis­ ta explica o que significa "tornar-se filhos de Deus" num inciso que se refere a uma noção fundamental
  • 100. 104 OV erbo R e'elaix)R da teologia joânica: o dualismo. Constantemente o quarto Evangelho repete que existem duas espécies de vida, duas possibilidades de existência: a vida in­ ferior e a vida superior, carne e espírito, vida da na­ tureza e vida que surge do renascimento, filiação ter­ restre e filiação divina'’. Este dualismo é usado no V . 13para explicar o dom do Lógos, "tornar-se filhos de Deus". O nascimento natural, embora não seja desprezível, não possibilita ao homem ver a Deus como ele é. Não existe se não um só meio de ir para Deus; o novo nascimento, e o único que nos pode fa­ zer este dom é o Lógos. A quarta estrofe (vv. 14-18) Ahistória do Lógoschega ao seu ponto alto com a confissão da comunidade dos crentes. Ela começa pe­ laspalavras "Eo Verbosefezcarneehabitouentrenós" (v. 14).Emnossosdias,não podemossequerimaginaro quanto esta frase deve ter parecido escandalosa e É grande infelicidade que o comentário do Evangelho de João por R. B u l tm a n n (Goettingen, 1941), a quem o autor deve muito, tenha aparecido seis anos antes da descoberta dos manuscritos do Mar Morto, pois B u ltm a n n fundou a sua interpretação gnóstica do quarto Evangelho na hipóte­ se de que o dualismo joânico é de origem gnóstica. Ora, os manuscritos demonstram que o dualiasmo do quarto Evan­ gelho nada tem a ver com a Gnose, mas é, antes, de origem palestinense; pois, como o dualismo de Qumram, apresen­ ta três características essenciais que são todas não-gnósti- cas: os dualismos joânico e essênio são monoteístas, éticos e escatológicos (esperando a vitória da luz).
  • 101. oEN CAD EAM EN TOD ASID ÉIA S 105 mesmoblasfemapara oscontemporâneos deJoão.Ela continha duas proposições ofensivas. A primeira é a palavra "carne". A "carne" representa o homem em oposição a Deus, sublinhando sua fragilidade e sua mortalidade;éamais forteexpressão de desprezopela existência humana. Dizer "O Lógos eterno se fez car­ ne" é dizer que ele apareceu no mais profundo rebai­ xamento. E talvez as palavras "e habitou entre nós" possam ter parecido ainda mais chocantes. Pois "ha­ bitar", "armarsua tenda",éuma metáforabíblicapara a presença de Deus (cf.p. ex. Ap 7.15; 21.3; Mc 9.5;Lc 16.9); "ele habitou entre nós" implica que o próprio Deusestavapresentena carne,no rebaixamento.Aqui se põe a questão capital: Como se pode dizer de um homem que sentia a fome e a sede, que experimenta­ va o medo e o tremor, que morreu como um crimino­ so, que Deus estava presente nele? A resposta é uma simples confissão de fé com­ posta de duas proposições. Aprimeira declara: "Nós vimos sua glória". O texto grego apresenta aqui o verbo GeaoBai/ íAeásí/íar) que tem um sentido par­ ticular. Assim como o verbo habitualmente empre­ gado para significar "ver" (ópâv / horârí) no quar­ to Evangelho, implica uma verdadeira visão com os olhos corporais, mas,contrariamente a ópâv / ho- rân, pode designar uma visão que penetra sob a su­ perfície. Assim, "e nós vimos sua glória" quer di­ zer: vimos a carne, a humildade da vergonha, a profunda desgraça da cruz, mas atrás deste véu da carne e humilhação vimos a glória de Deus. O que significa "a glória de Deus"? A resposta acha-se na
  • 102. 106 o Verbo Revelaixir frase de dois termos: “cheio de graça e de verda­ de", que é a linguagem da aliança no Antigo Tes­ tamento. "Graça e verdade" resumem aquilo de que faziam experiência os fiéis na aliança: "Yahweh, Yahw^eh, Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em graça e fidelidade" (Ex 34.6). "Sou indigno de todos os favores e de toda a fidelidade que tivestes para com o vosso servo" (Gn 32.11). Na aliança, os crentes do Antigo Tes­ tamento faziam uma dupla experiência: conheciam a misericórdia de Deus, da qual eram indignos, e, mais ainda, a "verdade" (isto é, a "fidelidade") de Deus, a constância desta misericórdia divina. E é esta precisamente a glória que se torna visível em Jesus. Aqueles que lhe pertencem, encontram nele a inabalável fidelidade de Deus. E de tudo o que ele fazia e dizia, uma e a mesma coisa sempre so­ bressaía: "a graça e a verdade", a imutável mise­ ricórdia divina. Mas o testemunho da comunidade vai além da confissão de fé "nós vimos sua glória... cheio de graça e de verdade", incluindo esta declara­ ção: "De sua plenitude todos nós recebemos e gra­ ça por graça" (v. 16). Não só vimos sua glória imutável, como também a recebemos. A expres­ são "graça por graça" indica uma interminável progressão, uma intensificação. Como que de um poço inesgotável, recebemos de Deus um dom de­ pois do outro, cada um sendo maior do que pre­ cedente. Tal era a experiência que os discípulos tiveram de Jesus. É esta a resposta inteira da
  • 103. oEN CAD EAM EN TODASID ÉI,A S 107 comunidade crente à questão: como se pode dizer que no homem Jesus o Deus eterno habitou entre nós? Responde-se, mostrando-se sua glória, a cons­ tância da misericórdia e da graça de Deus: nós a vimos e a recebemos. Aí termina a história do Lógos, mas não o pró- lógo. À guisa de resumo, acrescentam-se duas antí­ teses que terminam o hino, colocando em mais evi­ dência o sentido da revelação feita por Cristo. Esta revelação é antes de tudo apresentada em contras­ te com a do Antigo Testamento: "Porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo" (v. 17). Uma vez já. Deus concedera aos homens um grande dom, sua Lei, sua santa vontade. Mas não passava duma revelação pre­ liminar. Agora, em Jesus, Deus se revelou verdadei- ramente na plenitude da sua graça imutável. Aci­ ma da lei, existe a graça. A segunda e última antítese vai até mesmo mais longe. Ousadamente ela opõe a revelação dada pelo Filho não só ao Antigo Testamento, mas também a toda busca humana de Deus. "Ninguém jamais viu a Deus: o Filho imigênito, que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer" (v. 18). Deus é invisível. Ninguém o viu jamais, ninguém está ga­ baritado para vê-lo. O homem que vê Deus deve morrer, pois Deus é o Santo e nós somos sujos pelo pecado. Só o Filho unigénito o viu. E ele o deu a co­ nhecer. "Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14.9). Nesta frase final (v.l8), proclama-se o caráter absoluto e universal da fé cristã.
  • 104. 108 o Verbo Revei.ador 3. O sentido da designação de Jesus como Lógos Depois de termos compreendido que o prólogo é um salmo, e ter tentado seguir o andamento do discurso, podemos colocar agora nosso problema principal: qual é o sentido da designação de Jesus Cristo como sendo “a Palavra"? De todos os títulos dados a Cristo no Novo Testamento, este é o mais estranho. Só o encontramos nos escritos joânicos Jo 1.1; 1Jo 1.1; Ap 19.13). Numerosas questões são colocadas para nós. Quanto à origem deste título, não poderia fazer aquimaisdo queumasugestão.Falou-secomfreqüên- cia, e acreditei nisto por muito tempo eu mesmo, que ele proviría do gnosticismo, mas um exame das fon­ tes provou, para minha surpresa, que W. Bousset^ há cinqüenta anos, tinha inteira razão ao notar que o conceito de Lógosjogaum papelmuito limitado entre osgnósticos.Aparecenognosticismoprimitivo- como por exemplona escola valentiniana-, mas aíele écom toda evidência retomado de Jo 1.1.Não é,pois, no do­ mínio do gnosticismo que se deve procurar a pré-his­ tória do título de Lógos, mas no campo do judaísmo helenístico, onde a "Palavra" era tida como a revela­ ção de Deus. Se este fato passou de certo modo des­ percebido naspesquisas anteriores,istoé devido, eu o creio, ao fato de que elas tomaram de partida uma basepoucofavorável.Começarampeloestudode Filo. ^W. B o u sset , Kyrios Christo, 1913, ed. Goettingen 1921, p. 305.
  • 105. OSENTIDDD ADESIGXAÇÀÍ' DFJf5LSCOM OLõGOS 109 Todavia oconceito de Lógosem Filo nãopassa deum receptáculo eclético das idéias do Antigo Testamento, dePlatãoedosestoicos,quedificilmentesepodeapro­ ximar daquele do prólogo. Mas o conceito de Lógos comomodo derevelaçãodeDeusremontamuitoalém de Filo. Acha-sejá na versão dosSetenta.Na vigorosa descrição da teofania de Deus em Habacuque 3, diz- se no texto hebraico que a "peste" {debher) caminha­ va diante de Deus (Hab 3.5).Ora, "peste" {debbeí) na escrita sem vogais se escrevia exatamente como "pa­ lavra" {dabhabj.Éassim que apalavra foierradamen­ te traduzida por "Lógos" {dabbai) na Septuaginta, onde em Hab 3.5 se pode ler: diante de Deus "virá o Lógos". O ponto de impacto deste conceito da Pala­ vra como precursora de Deus se acha em Sb 18.15s, onde o Lógos de Deus é descrito como um guerreiro austero munido de espada afiada lançando-se do tro­ no real para a terra. Isto nos lembra imediatamente Ap 19.11SS, onde Cristo é descrito como o herói que chega num cavalobranco com uma espada na boca, e onde é chamado "o Lógos de Deus" (19.13). É, pois, possível, que o título "Lógos de Deus" tenha servido, para osprimeiros cristãos,para designar oSenhorque viria. Num segundo tempo, o título parece ter sido aplicado ao Senhor do Mundo (1Jo l.lss) eiguaknen- te ao Cristo pré-existente Qo l.lss; 1Jo 1.1). Se isto é verdade, o prólogo refletiria um estado avançado do emprego do título pela Igreja. Para o nosso propósito atual, não é sobre ques­ tões de origem e de desenvolvimento que se deve voltar a nossa atenção, mas sobre a questão mais
  • 106. no o V erbo R evelador particular e limitada do significado do título "o Lo­ gos" para os contemporâneos do evangelista. Isto foi expresso de maneira impressionante por um ho­ mem que, no tempo em que o quarto Evangelho foi escrito, era provavelmente bispo de Antioquia na Síria. Em 110 d.C., vinte ou trinta anos depois da redação do Evangelho de João, os cristãos foram perseguidos na Antioquia. O bispo da cidade foi preso e condenado a ser entregue às feras na arena. Enquanto ele, como prisioneiro, atravessava a Ásia Menor, as igrejas locais delegavam mensageiros para saudá-lo pelo caminho da morte. Inácio, era este o seu nome, por sua vez lhes confiava cartas para estas igrejas. Estas cartas são vigorosos teste­ munhos da fé cristã, pelas quais Inácio concita as Igrejas a se manterem firmes na fé, suplicando-lhes que não se esforçassem para libertá-lo e não o im­ pedissem de celebrar na arena os louvores do Se­ nhor crucificado e ressuscitado, até diante das fe­ ras. Na sua carta à Igreja de Magnésia, Inácio fala de Cristo como o Logos de Deus: "Jesus Cristo, que é oLogos de Deus, saiu do silêncio" {Magnésios^X). Inácio pressupõe que Deus estivera silencioso antes de enviar Jesus Cristo. O silêncio de Deus é uma noção que provém do judaísmo®, onde estive­ ra ligada com a exegese de Gn 1.3: "E Deus disse: Faça-se a luz". O que havia antes de Deus falar? - perguntam os rabinos. E davam a resposta: o silêncio B. S c h l a t t e r , Theologische Literaturzeitung 87 (1962) col. 785.
  • 107. oSETIDOD ADESIC.XAÇAOD EJeSLSCOM OUx;OS 111 de Deus^ O silêncio que precedeu a revelação de Deus na criação precedeu igualmente a revelação da cólera de Deus contra faraó'° e se reproduzirá antes da nova criação“. No mundo helenístico, o "Silên­ cio" tornou-se o símbolo da mais elevada divinda­ de. Existe até mesmo uma oração ao Silêncio. No grande papiro mágico de Paris, chamado de "Litur­ gia de Mitra" (s. 4), o místico, que na rota do céu é ameaçado por deuses hostis e por potências estela­ res, recebe o conselho de pôr o dedo na boca e pela oração pedir ajuda ao Silêncio: Silêncio, Silêncio, Silêncio - Símbolo do Deus etemo e imortal- - toma-me sob tuas asas, ó Silêncid~. Oração comovente! Deus é silêncio. Está abso­ lutamente longe enão fala. Diante deste silêncio im­ penetrável, o homem só pode levantar os braços e gritar "Toma-me sob tuas asas, ó Silêncio!" É num mundo que considerava o silêncio de Deus como um sinal de sua indizível majestade“ IV Esdras 6.39; Bar. Sir. 3.7; Pseudo-Filo, Biblical Antiqui­ tés 60.2. Sb 18.14. ■ ' IV Esdras 7.30; Bar. Sir 3.7; Ap 8.1. 4.558s (ed. Preisendaz) = Mithrasliturgie 6^2 (ed. Dieterich). '■ ’ In á c io , Efésios 19.1; Filipenses 1.1, cf. H. C h a d w ic k , "The Silence ofBishops in Ignatius, Harvard TheologicalReview 43 (1950) pp. 169-172.
  • 108. 112 OViíRBO Rj l:l AIXIK que ressoa a mensagem da Igreja cristã: Deus não é mais silencioso - ele fala! De fato, ele já agiu; ele revelou o seu poder eterno através da criação, fez conhecer sua santa vontade, enviou seus mensagei­ ros, os profetas. Mas, apesar de tudo isto, ele conti­ nuava cheio de mistério, incompreensível, impers­ crutável, invisível, escondido atrás dos principados epotestades, detrás das tribulaçõeseangústias, atrás de uma máscara que era tudo o que se podia ver. Todavia, Deus não ficou sempre escondido. Houve um momento em que Deus retirou a máscara; de repente ele falou distinta e claramente. Isto se deu em Jesus de Nazaré; isto se deu sobretudo na cruz. E assim que a jubilosa profissão de fé do salmo de louvor aCristo, no começodo Evangelho de João, deve ter ressoado aos ouvidos daqueles que o escu­ taram pela primeira vez: Deus não ésilencioso. Deus falou. Jesus de Nazaré é a Palavra - ele é a Palavra pela qual Deus rompeu o silêncio.
  • 109. Capítulo V A ORIGINALIDADE DA MENSAGEM DO NOVO TESTAMENTO QUMRAN EA TEOLOGIA I Não pensava que seu nome entraria nos anais da ciência ojovem pastor da tribo semi-nômade dos Ta'amire que fugia, espantado por um ruído estra­ nho vindo da gruta onde, por brincadeira, atirara umapedrinha,seguro de que eraperseguido porum gênio mau. Mohammed ed-Dib (= "o lobo") acaba­ va de descobrir a gruta n. 1de Qumran, na margem noroeste do Mar Morto. No dia seguinte (era prova­ velmente o verão de 1947) ele se aventurou a entrar ‘ As obras sobre Qumran dão em geral 1947 como data da des­ coberta; é a data em que os manuscritos emergiram em Belém, e que o próprio Mohammed ed-Dib tinha primeiramente
  • 110. 114 AO riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento no seu interiorem companhia de um primo seu mais corajoso. Os rapazes acharam duas jarras de barro, cujo conteúdo os decepcionou: em vez de tesouros escondidos, "alguns rolos de couro com rabiscos em cima"’. Valeria a pena levar aquilo? "Então, conta­ rá M ohammed, eu pensei que precisávamos de cor­ reias para as nossas sandálias"^ Estas benditas san­ dálias valeram então para a ciência a conservação dos rolos da Gruta 1. Com efeito, o sapateiro de Be­ lém, o sírio Kandu, a quem os pastores levaram o couro, mostra um dos rolos ao seu chefe religioso Mar Atanásio Yeschue Samuel, metropolita da Igre­ ja siro-jacobita de Jerusalém. Depois de alguma he­ sitação, ele compra 4 dos 7 rolos. Logo, ao expirar o mandato britânico (14 de maio de 1948 à meia noi­ te), perturbações explodem na Palestina e, pelo fim destemesmo ano.MarAtanásiopõe sua aquisiçãosob proteção na América. Os três rolos restantes foram indicado num relato publicado em 1956 (W. H. B r o w n l ee, Mohammed ed-Deeb's Own story ofhis scroll Discovery, in: Journal ofNear Eastern Studies 16 (1957) pp. 236-239), ele pretende ter encontrado os rolos em 1945 (p. 236, linha 1 de seu relato), e tê-los guardado mais de dois anos antes de seu tio os levar para Belém. Mas os especialistas estão de acordo em considerar como autêntica a primeira data (v. R. DE V a u x , Les manuscrits de Qumran e 1'archéologie, in R. B. 66 (1959) p. 88, n. 3, e mais recentemente W. H. B r o w n lee, Ed-Deeb's Story ofhis ScrollDiscovery, in Reu- ve de Qumran 3 (1961-62) pp. 483-494). - W. H. B r o w n l e e , Muhammad ed-Deeb's Own Story..., p. 237 (I, linha 11) 3 Ibidem, p. 237 (II, linha 2)
  • 111. Q umran e a Teologia 115 comprados pela Universidade Hebraica de Jerusa­ lém. Assim, dos 7 rolos da Gruta 1, 4 chegam à América, e 3 ficam na Jerusalém israelense. Mas a sorte vai imi-los. De 1a 3 de junho de 1954 aparece no Wall StreetJournal sob a rubrica "Vendas Di­ versas" o breve anúncio seguinte: "Estão à venda os quatro rolos do Mar Morto, manuscritos bíblicos datando o mais tardar pelo ano 200 a.C., presente ideal individual ou coletivo, a instituto pedagógico ou religioso. Dirigir-se à C.P.F 206 WallStreetJour­ nal"^. Um mês mais tarde, a dois de junho de 1954, uma pasta preta contendo quatro manuscritos em couro mudava de proprietário através de um che­ que de 250.000 dólares. Adquiriu: um banco que se recusa a mencionar o seu mandante. Somente a 13 de fevereiro de 1955é que se desvenda o segredo. O Presidente do Conselho israelense convocauma con­ ferência de imprensa e lhe faz a surpresa de anun­ ciar que a totalidade dos manuscritos da Gruta 1, "tesouro nacional de valor inestimável, a maior des­ coberta arqueológica do século no país", está em mãos de Israel. Tal foi o primeiro achado, com data de 1947. Alguns anos depois da descoberta da Gruta 1, em fevereiro de 1952, novo caso sensacional: bedu­ ínos apresentam fragmentos de manuscritos encon­ trados nas mesmas paragens, na margem noroeste do Mar Morto, no fundo de uma gruta que acabam *Cf. E. W il s o n , The Scrolls from the Dead Sea, Londres, 1955, p. 156.
  • 112. 116 AO riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento de descobrir; é a Gruta 2 (as grutas estão enumera­ das na ordem de sua descoberta, de 1a 11 até hoje). Então (março de 1952), os peritos decidem a explo­ rar sistematicamente as numerosas cavernas da re­ gião.Mas osresultados são decepcionantes: somente uma gruta, a Gruta 3, é que oferece um material interessante, entre o qual o célebre rolo de cobre^. Assim, após a inspecção de 267 grutas, param com estes penosos trabalhos. Os europeus renunciam, mas beduínos teimam - e têm êxito. Em setembro de 1952, descobrem a Gruta 4 com mais de 25.000 fragmentos provenientes de ims 400 manuscritos. Como explicar que se tenha encontrado na Gruta 1 sete manuscritos bem conservados no conjunto, e na Gruta 4 estes milhares de fragmentos? A respos­ ta é simples: os 7 manuscritos da Gruta 1 tinham sido cuidadosamente envolvidos em panos e pos­ tos em jarras de barro, e os 400 da Gruta 4,pelo con­ trário, jogados, visivelmente às pressas e sem pro­ teção, na caverna. Em 1900 anos, os ratos, roendo o couro para fazer os seus ninhos, realizaram uma obra de destruição radical. 25.000 fragmentos, dos quais em grande número menores do que uma unha, e algrms em escrita cifrada: o simples profa­ no pode imaginar o exercício de paciência e abne­ gação que representa ajuntá-los e compô-los! “E Uma tradução francesa foi feita por J. T. Milik, Le Rouleau de Cuivre de Qumran (3 Q 15). "Traduction et commentai­ re topographique", in R.B. 66 (1959) pp. 312-357. A edição de J. M. A ll eg r o , The Treasure of the CopperScroll, Lon­ dres, 1960, infelizmente está cheia de hipótese fantasistas.
  • 113. Q umran e a Teologia 117 ainda se esperam novas descobertas", escreveu-me na época um dos membros da equipe internacional que estuda e edita os textos em Jerusalém. O que ele esperava aconteceu: em junho de 1956, o faro dos beduínos os levou aos novos manuscritos da Gruta 11, felizmente também tão conservados na maioria como os da Gruta 1!^ Todos osmanuscritos de Qumran,namedidaem que não ficaram nas mãos dos beduínos, estão atual­ mente em Jerusalém: os 7 manuscritos da Gruta 1 numa sala da Universidade Hebraica, e todo o res­ to, em particular os numerosos fragmentos da Gru­ ta 4 e o achado recolhido na Gruta 11, no Museu Nacional da Jordânia. Os dois lugares ficam ape­ nas a alguns quilômetros de distância, mas entre eles se levanta, como um muro, a cortina de ferro palestinense. Trata-se de uns 600 manuscritos, biblioteca gi­ gante para a antiguidade! Para dizer a verdade, apenas 10 rolos estão quase integralmente conser­ vados eo resto não passa de fragmentos. Todospro­ vêm de um período de uns 300 anos que se esten­ dem do séc. III a.C. ao séc. I de nossa era. Que continham estes manuscritos? Um quarto mais ou ^As cavernas não mencionadas supra: Gruta 5 (descoberta no curso da exploração científica da Gruta 4, em setembro de 1952), Gruta 6 (descoberta pelos beduínos em depen­ dência da Gruta 4, no fim do verão de 1952), e Gruta 7-10 (descoberta no decorrer da quarta campanha de escavação em Qumran, na primavera de 1955), só apresentaram uma quantidade reduzida de restos de manuscritos.
  • 114. 118 A O riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento menos deles contém textos bíblicos. Todos os livros do Antigo Testamento, exceto Ester, aí estão pre­ sentes. Para compreender em que estes documen­ tos contribuem para a exegese veterotestamentária, é preciso pensar que o nosso texto hebraico da Bí­ blia se baseava, até o momento, em manuscritos do fim do séc. IX^e do começo do séc. X®d.C. Ora, ago­ ra dispomos de um manuscrito quase inteiro de Isa- ías que remonta mais ou menos a 100 a.C.'^, e al­ guns fragmentos datam até mesmo do séc. III antes de nossa era. A antiguidade de nossa tradição ma­ nuscrita do Antigo Testamento deu, pois, um salto de mais de 1.000 anos para trás. A admiração con­ sistiu em se descobrir que o texto de que dispomos até o presente é seguro no essencial. Um segundo grupo é formado por manuscritos dos "dêutero-ca- nônicos" e "apócrifos" veterotestamentários. Tra- ta-se de escritos compostos no período intermediá­ rio entre o Antigo e o Novo Testamento. O terceiro grupo, o mais interessante, compõe-se de escritos emanados de uma comimidade religiosa judaica, e que no-la dão a conhecer sob luz absolutamente nova através de suas regras, seus salmos, suas ora­ ções da manhã e da tarde para cada dia do mês, seus comentários da Bíblia, seu calendário e sua astrologia. ^Codex do Cairo, 895 d.C. (Profetas). * * Codex de Alepo, 900-950 d.C. (Antigo Testamento inteiro). ’ I QIs®. Um segundo manuscrito de Isaías (I QIs'’) remonta provavelmente à primeira metade do séc. 1 d.C.
  • 115. Q umran e a T eologia 119 Quem escondera nas grutas estes 600 manuscri­ tos? A questão levou a se investigar nos arredores traços de habitação. A 1.500 metros ao sul da Gruta 1, muito perto das Grutas 4-10, levanta-se um mon­ tão de ruínas, Khirbeth Qumran. A 24 de novem­ bro de 1951 começam as escavações que porão à luz um conjunto de aparência de fortaleza, cercado de muro e protegido por uma torre, tudo num qua­ drilátero de 80m de lado. Encontra-se aí um edifí­ cio principal com sala, anexos, 13 cisternas com encanamentos de água, um cemitério de 1.100 tú­ mulos e, enfim, 3km mais para o sul, às margens do Mar Morto e perto da fonte de Ain Feshkha, um complexo de exploração agrícola com locais de moradia e depósitos. Esta colônia do Mar Morto já era conhecida há tempos pela literatura antiga. No ano de 77 de nossa era, o naturalista e geógrafo ro­ mano Plínio o Antigo publicava sua História Natu­ ral, cujo quinto livro contém em particular uma descrição do Mar Morto. "A margem ocidental (do Mar Morto), fora do alcance da influência nociva (de suas águas), estão estabelecidos os essênios. É um agrupamento de solitários, único no mimdo: sem mulheres - pois remmciam ao amor sexual - e sem dinheiro, eles vivem na sociedade das palmei­ ras. (Embora se abstenham do casamento) o núme­ ro de seus adeptos se mantém e se renova cada dia pela afluência daqueles que, cansados de lutar con­ tra as vagas do destino, vêm participar de sua vida. Assim, coisa incrível, eles permanecem através de milhares de gerações uma raça eterna, ainda que
  • 116. 120 A O rigin alidade da M ensagem do N ovo T estamento não existam nascimentos entre eles" (V, 17.13). Não existe dúvida: é exatamente o mosteiro essênio do Mar Morto, descrito por Plínio, que reapareceu hoje diante de nossos olhares. Todavia, existe um ponto em que Plínio faltou com a prudência: ele fala de uma "raça eterna" {gens aetema), ora, na época em que apareceu sua obra, os religiosos de Qumran ti­ nham sido exterminados até ao último^“. Quem eram os essênios? Em 167a.C., o rei da Sí­ ria, Antíoco IV Epifânio, desejando fazer desapare­ cer a religião judaica, profanou e transformou em santuário de Zeus o Templo de Jerusalém. Eram, di­ zem osnossos textos, "os tempos da cólera" (CD 1.5). A vigilante fanaília sacerdotal dos macabeus ousou então dar o sinal de uma luta que parecia sem espe­ rança. Os sírios são vencidos e, três anos mais tarde, em 164, o Templo é de novo consagrado. Em 152,Jô- natas Macabeu, com o consentimento dos sírios, cin- ge a tiara de sumo sacerdote, embora não pertences­ se à descendência dos sadoquitas, únicoshabilitados para estas funções. Contra ele levanta-se então, no colégio sacerdotal, uma oposição, movimento de re­ forma e reafervoramento, cujas membros se autono- meiam de "Khassayya", os "piedosos" (em grego "essenoí", "essaíoi"). Parece-nos hoje estranho que o calendário tenha podido ser um dos grandes motivos “ A ignorância de Plínio explica-se pelo fato de sua exposi­ ção apoiar-se não sobre o que ele mesmo viu, mas sobre em relato oral ou escrito referente à colônia do Mar Mor­ to, relato que, no meio-tempo, fora ultrapassado pelos acon­ tecimentos.
  • 117. Q umran e a Teouxíia 1 2 1 de litígio. Os sacerdotes essênios preconizavam um calendário novo, solar, destinado a substituir o ca­ lendário lunissolar do judaísmo. A inovação estava concebida para que nenhuma festa caísse em dia de sabbat. A santificação rigorosa do sabbat era portan­ to uma das preocupações essenciais da oposição sa­ cerdotal. Seu chefe era um homem que os rolosmen­ cionam com a maior veneração, o "Mestre de Justiça", grande teólogo e grande exegeta da seita. Temos poucas informações a seu respeito. Seu pró­ prio nome nos é desconhecido; só sabemos que era sacerdote“.É provavelmente sob sua direção que se deu a ruptura com o culto do Templo e o êxodo de Jerusalém fundado sobre a palavra de Isaías: "No deserto, preparai um caminho do Senhor" (Is 40.3; IQS 8.12-16). Construiu-se um mosteiro com sua co­ lônia agrícola,onde viveram em comunidade debens cerca de 200 monges“. As moedas encontradas na localidade indicam para a construção uma data pos­ terior a 134 a.C. Uma interrupção na ocupação dos lugares deve-se, sem dúvida, ligar com o terremoto de 41 a.C., que causou, segundo Josefo, a morte de 30.000 pessoas“.No começo da era cristã, o mosteiro é reocupado. O movimento se propaga e se estende: V. J. C a r m ig n a c , Le Docteur deJustice etJésus-Christ, Pa­ ris, 1957, e mais recentemente, o trabalho de conjunto de G ert J e r e m ia s, Der Lehrer der Gerechtigkeit, Goettingen, 1963. R. DE V a u x, in Die Religion in Geschichte und Gegenwart Tübingen, 1961, col. 742. BellumJudaicum, I, 370.
  • 118. 122 A O riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento em muitos lugares nascem grupos novos, dos quais alguns permitem o casamento'^. F ilo e Josefo falam de 4.000 essênios^^ Mas o convento do Mar Morto permanece sendo o centro da seita, até que soe para ele, em 68 d.C., a hora do destino. No começo do ve­ rão daquele ano, as tropas da décima Legião, que ti­ nha por objetivo atacarJerusalémpelosflancos,avan­ çam para o Mar Morto pela depressão do Jordão. Primeiro, com muito cuidado, e depois com pressa febril, os monges põem em segurança o seu grande tesouro, a sua biblioteca. Puderam salvar os seus li­ vros, mas não suas vidas. Uma brecha no muro, si­ nais de incêndio, pontas de ferro de flechas romanas de três asas são os testemunhos mudos do que se passou. Os irmãos devem ter sido exterminados, até ao último, neste ano de 68,pois, se um só deles tives­ se escapado, as grutas não teriam guardado, até aos nossos dias, o seu segredo. II Depois desta consideração preliminar acerca da descoberta dos manuscritos e das escavações de Qumran, eis-nos diante da questão decisiva: qual é o interesse da descoberta para a teologia, o que em nosso caso quer dizer: para o conhecimento do Novo Testamento? Tentarei responder, colocando sucessivamente três pontos de vista. “ Bellum Judaicum, II, 160s. Filo, Quod omnis produs Über sit, 75; Josefo, Antiquita- tes, 18.20.
  • 119. C resceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus 123 1. Cresceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus O período que precede à vinda de Jesus, o séc. I antes de nossa era, faz parte dos campos da his­ tória judaica que nos são relativamente obscuros. Graças aos novos textos essênios, um elemento desta época, um movimento sacerdotal de refor­ ma saída do Templo de Jerusalém, entra em ple­ na luz. Contemporâneos de Jesus nos falam. Ou­ vimos sua linguagem (possuem-se, pela primeira vez, textos do séc. 1antes de nossa era em ara- maico, língua materna de Jesus). Apanhamos ao vivo sua interpretação da Escritura, a organiza­ ção de sua vida, sua oração, a orientação de sua esperança. Os textos, revelando-nos algo do mun­ do que cercava Jesus, nos ajudam a compreender melhor a sua mensagem. Façamos um rápido apanhado da vida no mos­ teiro, da teologia e da piedade dos essênios. A vidano mosteiro de Qumran sãofocalizadosnos textos^^. Era extraordinariamente dura. A meta su­ prema era o mais alto grau de pureza, exterior sem dúvida, mas também interior. Os essêniosusam ves­ tes sacerdotais de cor branca^^ e devem tender, por incessantes abluções ebanhos rituais, a uma eminente No que concerne a vida dos essênios, citar-se-á, além de Filo e Josefo, sobretudo a "Regra da Comunidade" (sigla I QS), a "Regra da Congregação" (sigla I QSa), e o Escrito "de Damasco", cujo título autêntico se ignora (sigla CD). Josefo, Bellum Judaicum, 2,123.
  • 120. 124 AO riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento pureza. O simplescontatocomum noviçoobriga aum banho completo^®.Vivem no celibato porque as rela­ ções sexuais eram proibidas aos sacerdotes nos perío­ dos de seu serviçono Templo^^.O dia estárecheado de trabalhos pesados, e um terço da noite - das 6 às 10 horas - é consagrado à leitura da Bíbliae ao louvor co­ mum (IQS 6.7s).Aqueleque érecebido depois de dois anos‘°de prova e de noviciado, deve prestar um jura­ mento solene de entrada: promete observar todas as obrigaçõesreligiosasdaordem,guardarsegredodesuas doutrinas^^mesmonocasodetorturaoumorte^,edeve dar aomosteiro todososseusbensantes de seradmiti­ do às refeições comims cotidianas^®. Será desde este momento submetido à disciplina draconiana prevista pela regra: todo aquele que comete uma falta grave é expulso; e,como fezjuramento de não comera não ser da comida preparada no convento, se mãos misericor­ diosas não lha trouxerem no liltimo momento, ele está destinado a morrer de fome®^. Josefo, Bellum Judaicum, 2,150. K. G. Kuhn, in Die Religion in Geschichte und Gegenwaif, V, Tübingen, 1961, col. 748. I OS 6,13ss. Segundo Josefo, Bellum Judaicum, 2,137s, o tempo de provação durava três anos. Bellum Judaicum, 3,139; IQS 5.7ss; 9.17,22; 10.24; cf. 8.18; CD, 15.8ss. “ BellumJudaicum, 2,141. ^ Sobre as refeições, IQS 6.4-6; cf. I QSa 2.17-21; Filo, Quod omnis probus liber sit, 86; Apologia pro Judaeis, citado por Eusébio, Praeparatio Evangélica, VIII, II, II; Josefo, Bellum Judaicum, 2,129-133; Antiquitates, 18.22. Josefo, Bellum Judaicum, 2,144.
  • 121. C resceu o conhecimento do meio em que tveu Jesus 125 Um estrito legalismo regula a vida, tanto no ex­ terior como no interior do mosteiro. Nenhuma cir­ cunstância - vemo-lo a respeito da origem dos es- sênios - autoriza a profanar o sabbat pelo trabalho. "No dia do sabbat, aquele que guarda um alimento não o pegará" (CD 11.11). "Se no dia do sabbat um homem vivo cai numa cisterna ou qualquer outro buraco, não deve ninguém retirá-lo nem com uma escada, nem com uma corda e nem com qualquer outro instrumento que seja" (CD ll.lós). Que o dei­ xem gritar por comida; que ele se arrume: a santi­ dade do sabbat está acima de toda consideração. Sabemos,pelo que dizem os contemporâneos,apro­ funda impressão que fizeram no meio ambiente os costumes austeros dos essênios e sua observância rigorosa da Lei^^ Mas, como não pensar nas pala­ vras de Jesus: "Quem haverá dentre vós que, ten­ do uma ovelha e, caindo ela numa cova, em dia de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali? Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha! Lógo, é lícito fazer o bem aos sábados" (Mt 12.11s), e ainda: "O Filho do homem é senhor até do sábado" (Mc 2.28). A teologia dos essênios repousa essencialmente sobre a doutrina dos doisespíritos,o espírito de Deus e o espírito de Behal, isto é, do diabo. Luz e trevas se opõem entre si, combatem-se no mundo, e o mesmo conflito se desenrola no íntimo do homem. Na regra Filo, Quod oirmis probus Ubersit, 80s; Josefo, Bellum Ju­ daicum, 2,150-153; Antiquitates, 18,20.
  • 122. 1 2 6 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento da ordem, que organiza a vida no mosteiro até o últi­ mo detalhe, este dualismo é exposto na forma de um salmo (I QS 3.13 a 4.26), onde aparecem com muita clareza os três traços distintivos do dualismo essênio. a ) O dualismo essênio é monoteísta: Apresenta esta característica com coerência e até mesmo com vigor. Deus é o criador dos dois espíritos - mesmo do espírito das trevas. Do Deus dos conhecimentos vem tudo o que é e tudo o que acontece^ e antes mesmo que as coisas existissem eie fixara todo o seupiano... É eie quem criou ohomem para dominar o mundo e opôs diante de dois espíritos, para que eie ande neies até ao momento fixadopor sua divina visita. São os {dois) espíritos de verdade e de iniqüidade. Da fonte da iuz saia verdade E da fonte das trevas saia iniqüidade... É eie {Deus) quem criou os espíritos da iuz e das trevas (I QS 3.15.17-19.25). b) O dualismo essênio é de ordem morai Os sinais do espírito de verdade são: "pensamentos humildes, a
  • 123. C resceu o conhecimento do meio em que m-Eu Jesus 127 longanimidade, plenitude de misericórdia, bondade perseverante, ciência, inteligência, sabedoria poderosa que nãopõe sua confiança anão sernas obrasde Deus e seapóia na plenitude de suas graças,um espírito avi­ sado em todo projeto de ação, zelo pelos decretos da justiça,pensamentossantosdenaturezainabalável,rica beneficência para com todos os filhos da verdade, pu­ reza real que abomina todos os ídolos impuros, pru­ dência atenta para com tudo, fidelidade em guardar em segredoosmistériosdo conhecimento" (IQS4.3-6). Pelo contrário, "épróprio do espírito de iniqüidade: in­ saciabilidade emãos preguiçosas no serviço da justiça, impiedade e mentira, orgulho e pretensão, a astúcia, o engano cruelegrandehipocrisia,ateimosiana cólerae grandeloucura,zeloarrogante,obrasabomináveisper­ petradasnum espírito de luxúria, viasexecráveis a ser­ viço da impureza, má língua, cegueira dos olhos e sur­ dez de ouvidos, dureza de cerviz e endurecimento do coração para não andar senão nas vias das trevas, e uma astúcia maligna" (4.9-11). c) A terceira característica do dualismo essênio é sua orientação escatológica, sua insistência na vi­ tória de Deus. Os essênios esperam a última grande prova, que os textos pintam com cores violentas: "O fundo das águas primitivas ferve... a terra grita por causa da desgraça que se realiza no mundo, to­ das as entranhas urram e todos os seus habitantes deliram, fora de si,no meio da grande perdição. Por­ que Deus troveja com toda a força de seu poder... A guerra dos vigilantes do céu passa em tempestade sobre a terra, e não cessará até ao aniquilamento
  • 124. 128 AO riginalidade da M ensagem do N ovo T estamento definitivo e eterno" (I QH 3.32- 36). O Messias se manifestará, bem como o sumo sacerdote dos últi­ mos tempos, e Deus "aniquilará (a iniqüidade) para sempre, e então aparecerá duravelmente a verda­ de do mimdo... Não haverá (mais) iniqüidade, e to­ das as obras de mentira se tornarão uma vergonha. Até então, os espíritos de verdade e de iniqüidade disputarão entre si o coração dos homens" (I QS 4.19-23). No tempo presente, que corre na direção do fim, e que é de conflito entre luz e trevas antes dos 40 anos de luta final dos filhos da luz contra os filhos das trevas. Deus enviou o "Mestre de Justi­ ça". Este deu uma interpretação nova da Torá, e reuniu a seu redor os filhos da luz, que se prepa­ ram, por uma observância exata da Lei, para a ma­ nifestação última de Deus. Mais importante, todavia, do que sua teologia é a piedade dos essênios. O coração da seita bate no seu saltério (sigla I QH), admirável hinário, cujo essencial remonta ao Mestre de Justiça^L Todos os salmos co­ meçam com a fórmula: "Eu te dou graças. Senhor". Estão carregados do louvor de Deus, que liberta o sal­ mista do pecado e da ofensa,defende-o contra os seus inimigos, confere-lhe a sabedoria, e dele faz o porta- bandeira e omédico de um grande número. Apresen­ to alguns extratos a título de exemplo. Hino pela libertação G ert J e r e m ia s, Der Lebrer der Gerechtigkeit, Geottingen, 1963, pp. 168ss. I I
  • 125. C resceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus 129 Eu te dou graças. Senhor, porque salvaste minha alma da fossa e me fizeste subir do inferno da reprovaçãopara as alturas eternas. E eu ando numa planura sem limites e sei que uma esperança resta para aquele que formaste dopó em vista da eterna Assembléia (I QH 3.19-21). Hino à glória de Deus Eu te dou graças. Senhor, porque fizeste meu olhar penetrante na tua vontade e me descobriste teus maravilhosos segredos epor tuas marcas de favor, {a vida) cai em partilha a um homem e,pela imensidão de tua misericórdia, àqueles cujo coração éperverso... Ninguém pode subsistir diante de tua cólera, mas a todos osfilhos de tua verdade, tu os conduzes em teuperdão que está diante de ti, e tu ospurificas de seuspecados por tua grande bondade epela imensidão de tua misericórdia a fim de os colocar eternamente diante de ti. Sim, tu és um Deus eterno 7(1 QH 7.26S.29-31).
  • 126. 130 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento Pode-se sentir, parece-me, que o homem sabia orar! Citemos ainda uma curta passagem da gran­ de oração que conclui a regra da ordem e que ca­ racteriza bem a religião desta milícia de ascetas: Mesmo quando começam terror e angústias^ eu quero louvá-lo, porque ele se mostrapor demais admirável (1 QS lO.lSs). 2. Analogias com a comunidade cristã das origens O que de imediato chama a atenção, quando se estudam os essênios e seus escritos, são as analogias com a comunidade cristã das origens. Por ocasião de se fazerem públicas em 1948 as primeiras desco­ bertas de Qumran, surgiram, como cogumelos, as hipóteses mais ousadas. Em toda parte, pensava-se achar analogias, ou seja, contatos com a história de Jesus e da Igreja das origens. Como sempre em caso de novas descobertas, os amadores se precipitaram sobre os dados recentes, vulgarizando grosseira­ mente as hipóteses científicas e clarinando pelo mundo inteiro suas invenções. Via-se, no agrupa­ mento essênio, um predecessor da comunidade cris­ tã, eaté mesmo sua origem. Pensava-se, notadamen- te, ter-se encontrado no Mestre da Justiça um precursor de Jesus; tinha-se por certo que a seita te­ ria visto nele o Messias, atribuia-se-Ihe uma morte
  • 127. A nalogias com a comunidade crbtã das origens 131 violenta, supondo-se até mesmo que ele teria sido crucificado, e falava-se de fé na sua ressurreição e no seu retorno - apesar dos textos se calarem sobre todas estas questões. No Leste, a propaganda anti- religiosa foi ainda mais longe: assim é que, segimdo a Konsomolskaia Pravda de 9 de janeiro de 1958, as descobertas do MarMorto “demonstraram peremp­ toriamente o caráter mítico de Moisés e de Jesus"^L Com efeito, era de se perguntar como é que Moisés veio a parar aí... Hoje, a “febre qumraniana“ dos inícios deu lu­ gar, em toda parte, a uma maneira mais tranqüila de se visualizarem as coisas, e confirmou-se que aqueles que faziam recomendações contra uma so- brestimação da importância das descobertas em matéria de exegese neotestamentária, tinham razão. Permanecem, mesmo assim, bastantes problemas. Em quatro casos especialmente, ainda que os essê- nios mesmos jamais sejam mencionados no Novo Testamento, põe-se seriamente a questão de uma influência essênia na história do cristianismo em seus inícios. a) Há, de imediato, a hipótese de que João Batis­ ta teria constituído o laço de ligação entre os essêni- os e Jesus. Já a proximidade de Qumran e do lugar em que o Batista exercia seu ministério convida a pôr-se a questão. O Jordão é um rio impetuoso que tem poucos vaus: éjunto de um deles que João deve Segundo a impresa {Goettinger Tageblattáe 24-25 de maio de 1958).
  • 128. 132 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento ter batizado, e Marcos (1.5) possibilita determiná- lo: na região do vau do sul, não longe de Jericó. Daí até Qumran existem mais de três ou quatro horas de caminhada. E muitos fatos poderíam ser invoca­ dos para mostrar que João Batista esteve relaciona­ do com os essênios. Eles atribuem grande importân­ cia aosbanhos; como ele, apelam ao arrependimento; como ele, pretendem reunir a comimidade messiâ­ nica dos últimos tempos. Referem-se, para o seu êxodo no deserto, a Isaías (40.3)“® , como João, para sua atividade na estepe de Judá“® .Pode-se ir ainda mais longe: segimdo Lucas (1.80),o Batista "fica nas solitudes até ao dia em que ele se manifesta a Isra­ el". Estas "solitudes" não designariam Qumran? Ao nascimento de João, seus pais já eram avançados em idade (Lc 1.7); filho de sacerdote (Lc 1.5) e fi­ cando logo órfão, não o teria sua parentela confia­ do à guarda dos essênios? Ele se nutria de "gafa­ nhotos e mel selvagem" (Mc 1.6): não seria isto devido ao fato de que, expulso da ordem e obrigado por seu juramento de admissão a não comer senão alimentos preparados no mosteiro, ele teria renun­ ciado a uma alimentação normal? Tudo isto não é impossível, mas devemos ser muito prudentes com hipóteses romanescas. Uma coisa é a atenção as se­ melhanças de organização exterior entre os essênios e a comunidade das origens em Jerusalém. Salta à vista que, segundo os Atos dos Apóstolos (que sem ^ V. supra p. 122. Jo 1.23; cf. Mc 1.3 paral.
  • 129. A nalogias com a comunidade cristà das origens 133 dúvida generalizam casos particulares, At 2.44s; 4.32,34-37; 5.1-11), os primeiros cristãos viviam em comunidade de bens como os essênios. Também to­ mavam como eles, diariamente, uma refeição jim- tos (At 2.46). Iguabnente, o processo em três etapas da disciplina eclesiástica (a sós, diante de uma ou duas testemunhas, diante da comunidade reunida, Mt 18.15-17; cf. Tt 2.10) corresponde ao uso da sei­ ta. Poderia haver aí influências diretas: explicar-se- iam pela hipótese sedutora da presença de essênios no "grande número de sacerdotes" que, segundo At 6.7, se uniram à comunidade^”. c) Mais raros são, no conjunto, os contatos que se podem levantar nas Epístolas do apóstolo Paulo. São sobretudo perceptíveis em 2 Co 6.14-7.1, e no com­ plexo de figuras da panóplia espiritual, que Paulo aprecia e desenvolve sobretudo em Ef 6.11-20. Mas estescontatoscomaliteratura deQumran,bem como muitosoutrosdelinguagem,estiloepensamento,que se acreditou encontrar notadamente na Epístola aos Efésios (principalmente na T parte, cc. 4-6), devem- se tratar com grande prudência; permanece, com efeito, sempre possível que as representações ou ex­ pressões apontadas não tenham sido próprias de Qumran e que tenham chegado a Paulo por outras vias. Pode-se em todo casoafirmar que aposição que pretende encontrar já nos essênios a doutrina pauli- na da justificação gratuita não resiste à análise. A ^ 0. CuLLMANN, The Significance of the Qumran Texts for Research into the Beginnings of Chistianity, in Journal of Biblical Literature 74 (1955) pp. 220-224.
  • 130. 134 A ORicixALroADE DA M ensagem DON ov o T estamexto palavra "Mispat" (I QS 11.2), que se pretendeu tra­ duzir por "justificação", não tem este sentido em nenhum lugar; designa na realidade a sentença do juiz. O legalismo dos essênios não deixa nenhum lu­ garpara adoutrina de Paulo sobre ajustificação atual do ímpio só pela sua fé (Rm 4.5). d) Os novos textos esclarecem sobretudo o Evangelho de João. O quarto Evangelho caracteri- za-se pelo dualismo que o penetra e o atravessa: verdade e mentira, espírito e carne, vida do alto e vida de baixo opõem-se como dois modos de vida, duas possibilidades oferecidas de existir. Antes da descoberta dos novos textos de Qumran, a exegese joânica inclinava-se fortemente a ligar este dua­ lismo à gnose e, a seguir, a interpretar todo o Evan­ gelho de João nas perspectivas do pensamento gnóstico. Mas os textos novos mostraram que ha­ via também na Palestina uma visão dualista do mundo, radicalmente diversa daquela da gnose: ao passo que o dualismo gnóstico via substancial­ mente separadas a esfera do divino, mundo da luz, e o cosmos, mundo das trevas e da morte, de modo que se poderia falar a seu respeito de "dualismo material ou físico", o dualismo essênio é, como vi­ mos, monoteísta, ético e escatológico. Nenhuma dúvida é possível acerca de em qual destas corren­ tes sesitua o Evangelho deJoão.Masse osnovos tex­ tos nos mostraram que o quarto Evangelho deve ser compreendidoapartir depressupostosjudaicosenão gnósticos, não deixa de existir entre Qumran e João uma diferença fundamental. A literatura essênia
  • 131. A n a u xja s com a comunidade cristà dasorigems 135 mostra-nos a luz em luta com as trevas; João, bem como Paulo, anunciam que o dia já nasceu, que Cristo já venceu a noite. Os temas são idênticos, mas em Qumran eles estão sob o signo da espera, e no Evangelho, sob o signo do cumprimento. "Nele estava a vida" (Jo 1.4). Jesus "venceu o mundo" (Jo 16.33). Quem ouve sua palavra desde já "pas­ sou da morte à vida" (Jo 5.24). Mas existe, além de todos os contatos que se po­ dem enumerar entre Qumran e a comimidade das origens, um parentesco maisprofundo dos dois mo­ vimentos: a seita nos apresenta - e este é um caso único no do Novo Testamento - um movimento de revitalização religiosa, cuja exultação pelo dom sal- vífico, cuja seriedade, cuja generosidade e cons­ ciência de si tocam conjuntamente o cristianismo das origens. Os salmos do Mestre e os da comuni­ dade transbordam do louvor divino. Estes homens, cuja oração nos surpreende, sabem algo da peque­ nez e do nada do homem diante de Deus, sentem-se culpados, pecadores, perdidos diante de sua face. Mas sabem também algo da grandeza incompreen­ sível de sua graça. Não se cansam de agradecer-lhe por ela: "Eu te dou graças. Senhor" - é, como vi­ mos, o começo de todos os seus hinos. Dão graças, porque Deus teve piedade deles, porque à última hora seu apelo os tirou de um mundo votado ao julgamento, dando-lhes, pelo Mestre de Justiça, oco­ nhecimento autêntico da Torá: esta Lei,eles apodem doravante cumprir em toda verdade, observar estri­ tamente o calendário, e ganhar assim a salvação.
  • 132. 136 A O riginalidade da M en'sagem do N ovo Testamento A esta consciência de sua eleição corresponde nos essênios a idéia que fazem de seu próprio mo­ vimento. Sabem-se os santos de Deus^b os pobres^", os filhos da luz^^ os filhos da complacência divi- na^^, a plantação eterna de Deus^^ seu Templo^® os participantes da nova aliança^^ - todas estas ima­ gens e denominações aplicam-se também à comu­ nidade apostólica. Duas expressões são particular­ mente sugestivas^®: os essênios se dizem "os pobres de tua salvação"®^ arrancados por Deus à perdi­ ção, e "os pobres da graça"^°, aos quais se concedeu experimentar a graça divina e medir-lhe a grande­ za. De fato, percebe-se aí uma ressonância do cris­ tianismo das origens, ultrapassa-se por um passo os limites do judaísmo. Mas então, não seria o mo­ vimento essênio um cristianismo antes da letra? 3. O que separa os essênios de Jesus Mas aíprecisamente é que se abre a fissura pro­ funda que separa os essênios de Jesus - e ao mes­ mo tempo aparece o alcance teológico decisivo dos I QS 5.13: “Homens da Santidade". V. infra, notas 39 e 40. I QS 1.9; 2.16 etc. I QH 4.32s; 11,9. I QS 8.5; 11,8. I QS 8.5: "uma casa santa para Israel". CD 6.19; 8.12 parai.; 19.33s; 20.12. Devo esta indicação ao meu filho Gert Jeremias. I QM 11.9. I QH 5.22.
  • 133. o QUE SEPARA OS ESSÊNIOS DE JESUS 137 novos textos: osessêniosseconsideram como "oRes­ to O que significa isto? A idéia do "resto", que a seguir haveria de ga­ nhar sem cessar importância, faz seu aparecimen­ to no séc. IX a.C. com o profeta Elias. Os profetas prometem que Deus, por mais rigorosos que sejam os seus julgamentos, deixará subsistir um remanes­ cente. Assim no Primeiro Livro dos Reis (19.18): "Mas pouparei em Israel sete mil, todos os joelhos que não se dobraram diante de Baal e todas as bo­ cas que não o beijaram". Este tema do "remanes­ cente" é retomado pelos profetas-escritores, e pri- meiramente por Amós (4.11: "Fostes como um tição arrancado ao incêndio, mas não voltastes para mim"), depois por Isaías (1.9: "Se Yahweh Sa- baot não tivesse deixado alguns sobreviventes, se­ ríamos como Sodoma, nos assemelharíamos a Go- morra") e Miquéias (4.7); posteriormente sobretudo por Sofonias (3.12: "Não deixarei sub­ sistir no teu seio a não ser um povo humilde e mo­ desto, e é no nome de Yahweh que buscará refúgio o resto de Israel") e Zacarias (13.7-9). Este tema exerceu sobre o pensamento judaico contemporâ­ neo de Jesus uma influência incomparável, e não se pode hesitar até mesmo de se ver nele uma idéia mestra do judaísmo tardio. Temos aí o coração da espiritualidade dos "piedosos" no tempo deJesus^^ « CD 1.4; I QM 13.8; I OH 6.8. ® J. Jeremias. Der Gedanke des "Heiligen Restes" im Spätju­ dentum und in der VerkündigungJesu, in Zeitschrift für de neutestamentliche Wissenchaft42 (1949) pp. 184-194.
  • 134. 138 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento O movimento farisaico é prova disto. Seus mem­ bros são na grande maioria leigos, que se reúnem em conventículos piedosos. Os estatutos destes grupos acusam a preocupação de constituir a verdadeira co­ munidade sacerdotal messiânica, o verdadeiro Israel. Os essêniostambém tem istoem mira.Pretendem ser, como vimos, os santos de Deus, "os de via perfeita"^^"a comxmidade dos homens de santidade perfeita"^, "os filhos da justiça"^^ um "santo dos santos"^®, o verdadeiro povo de Deus, o Israel do fim dos tempos. Sabem-se chamados a "expiar pela fal­ ta epelo pecado, pelas más ações e transgressões, e a ganhar para o país a benevolência (de Deus)"^^. No último combate que se aproxima entre luz e trevas, querem ser o exército de Yahweh, o instrumento da vingança divina que forçará a vitória. Tendem a este objetivo pela estrita observância da Lei. Os essênios sacerdotes, e os leigos que se unem a eles, estão deci­ didos a levar mna vida de pureza sacerdotal. Os sa­ cerdotes espalhados pelo país, quando realizavam, duas vezes somente por ano, sua semana de serviço no Templo, estavam obrigados a manter a continên­ cia: os essênios remmciarão inteiramente ao casa­ mento. Os sacerdotes em serviço deviam observar o mais alto grau de pureza levítica: os essênios se ves­ tirão de branco e se purificarão todos os dias com « I QS 4.22. ^ CD 20.2. ® I QS 3.20. ^ I QS 8.5s; 9.6. 1 QS 9.4.
  • 135. oQUE SEPARA OS ESSÈNIOS DE J e SUS 139 banhos. Por seu comportamento moral, sua vida co­ mum, sua oração e meditação, bem como pelo rigor em observar a Lei (sobretudo com referência ao Sab- bat) e pela disciplina draconiana de sua ordem, pre­ tendem ser uma comimidade autenticamente sacer­ dotal. Sua exigência em termos de arrependimento, a dura ascese que impõem aosmembros da seita,seu esforço ardente por um maxhnum de pureza, tudo isto não tem mais do que uma finalidade: constituir opovo imaculadode Deus.Seustextossão documen­ tos que atraem e comovem: dão testemunho de seu combate para realizar o "Remanescente". Pensa-se atingir esta finalidade somente com o mais estrito exclusivismo, segregação dos santos e eliminação dos pecadores. Entrando para a ordem, os membros se obrigam: a amar tudo aquilo que ele {Deus) elegeu e odiar tudo aquilo que ele rejeitou (I QS 1.3-4). e ainda: a amar todos osfilhos da luz, cada um segundo a sorte estabelecida para ele na comunidade, e odiar todos osfilhos das trevas, cada um de acordo com o que . ele deve à vingança de Deus^. I QS 1.9-11, cf. 9.16.21-24; 10.19-21.
  • 136. 140 A O riginalidade da M ensagem do N ovo Testamento E no decorrer da cerimônia de entrada faz-se a maldição dos "homens de Belial", isto é, os pecado­ res impenitentes sob o domínio de satã: Maldito sejas sem misericórdia segundo as trevas de tuas obras e condenado sejas na obscuridade do fogo eterno! Que Deusnão se digne de mostrar-se favorávela teus apelos nem de teperdoar epermitir a expiação de teuspecados. Que ele levante sobre ti,para a vingança, a face de sua cólera, epara ti não hajapaz (I QS 2.7-9). Oração terrível! Separa-se da massa, votada à perdição por seu pecado irremediável. Até mesmo defeitos corporais são motivos de exclusão. Os es- sênios não constituem a comunidade sacerdotal do fim dos tempos? Ora, só podem oficiar no tempo sacerdotes sem mancha. É por isso que se dirá: "Os insensatos, os loucos, os tolos, os alienados, os ce­ gos, os paralíticos, os coxos, os surdos e os menores - nenhum deles pode ser aceito na comunidade; porque no seu meio estão anjos santos"^®.Ede modo semelhante quando se descreve a comimidade do fim dos tempos: "Nenhuma pessoa atingida por 4 QD‘’ = CD 15.15-17 (em CD, texto muito deteriorado), cf. MILIK, O. cit, p. 76.
  • 137. o QUE SEPARA OS ESSêNIOS DE Je SUS 141 qualquer impureza humana pode entrar na assem­ bléia de Deus. Aquele que é atingido na sua carne, paralítico dos pés ou das mãos, paralítico ou cego ou surdo ou mudo, aquele que traz na carne uma mancha visível, o velho fraco incapaz de se manter de pé na assembléia, não podem entrar para tomar lugar no seio da comunidade dos homens do nome; porque no seu meio estão anjos santos"®“. Tal é o universo em que surge Jesus. A todas es­ tas tentativas de homens para realizar a sociedade dossantos,eleopõeoseunãoradical.Jesusveiopara trazer de volta à casa do Pai os filhos desgarrados de Deus. Convida à sua mesa os publicanos, os pe­ cadores, os excluídos, os reprovados, chama para o grande banquete a gentinha das vielas e arrabaldes (C.c 14.16-24). Sem descanso, não cessa de repetir precisamente aos devotos que sua justiça mesma os separa de Deus. Nós, a quem o Evangelho é familiar desde a infância,não podemos imaginar que subver­ são religiosa representava para os contemporâneos a pregação de um Deus que quer tratar com os pe­ cadores. Cada página do Evangelho mostra o escân­ dalo, a agitação, a convulsão que Jesus provoca, ao se opor a toda pretensão diante de Deus de ser al­ guém que exige, e ao chamar à salvação precisa­ mente os pecadores. Sem cessar, requereu-se dele o 50 I QS" 2,3-9.
  • 138. 142 A O rionaudade DAM ensagem do N ovo Testamento motivo desta atitude incompreensível, e sem ces­ sar, principalmente em suas parábolas, ele deu a mesmaresposta: assim éDeus.Deus éopaique abre ao filho perdido a porta de sua casa; é o pastor que se rejubila por sua ovelha reencontrada, é o anfi­ trião que convida à sua mesa os pobres e os mendi­ gos. Deus sente mais alegria por um só pecador que faz arrependimento do que pelos noventa e nove justos. Ele é o Deus dos pequenos e dos desespera­ dos, cuja bondade e misericórdia são ilimitadas. É assim que é Deus. EJesus acrescenta: quando se compreende esta mensagem, e os homens constroem não mais so­ bre aquilo que fizeram por Deus, mas sobre a gra­ ça dele, quando os extraviados sem esperança de retorno são trazidos de volta, quando o amor do Pai caminha adiante dos filhos perdidos - então a salvação cessa de ser uma meta longínqua que o homem deve ganhar por seus próprios meios, en­ tão, aqui e desde agora se realiza o reino de Deus. É a explosão da alegria. Alegria dos convidados às núpcias, alegria daquele que encontrou a pérola preciosa, o grande tesouro: subjugado, nada mais ele procura e tudo sacrifica sem hesitar, porque todo outro bem empalidece diante da excelência daquilo que ele viu. Trata-se da alegria de ser fi­ lho, da alegria messiânica, da unção de óleo sobre a cabeça. Alegria tão grande que o próprio Deus nela toma parte: "do mesmo modo. Deus se ale­ grará por um pecador que faz arrependimento" (Lc 15.7; cf. 15.10). Com esta alegria do tempo da
  • 139. o QUE SEPARA OS ESSÊNIOS DE J e SUS 143 salvação o amor caminha junto na mensagem de Jesus: amor dos pobres, amor dos extraviados e dos grandes culpados- amor atémesmo dos inimigos... O interesseteológicodosnovostextos?- Elesdão um relevo até então desconhecido ao contraste en­ tre Jesus e a religião do seu tempo. Lá, no mosteiro do Mar Morto, vive, na mais severa penitência, o pequeno exército dos ascetas, dos santos de Deus, a milícia do Altíssimo. Tensosna direção da mais per­ feita pureza, compromissados na observância legal mais estrita, ela odeia inflexivelmente os inimigos de Deus, separa-se dos reprovados, exclui até mes­ mo osparalíticos eos cegos.Aqui,Jesus anuncia aos pobres, aos miseráveis, aos mendigos de Yahweh o amor incompreensível e infinito de Deus, e a amo­ ra do tempo da alegria em que os cegos vêem, os paralíticos andam e os pobres são evangelizados. São dois mundos que se antolham. De um lado, o imiverso da Lei e da observância: Qumran leva ao extremo sua admirável seriedade e a limitação do seu amor. Do outro lado, omundo da Boa-nova, que prega oamor de Deus sem limites ea alegria de seus filhos agraciados. Melhor ainda que no passado, vemos o esplendor e a originalidade da mensagem de Jesus: tal é o serviço, o grande serviço, que nos prestam os novos textos.
  • 141. INDICE DOS AUTORES Allegro, M. -116 B Bousset, W. -108 Brownlee, W. H. - 114 Bultmann, R. - 7, 79, 80, 95, 104 Bumey, C. F. - 93 Carmignac, V. J. - 121 Chadwick, H. - 111 Cullmann, 0 .- 1 3 3 D Dalman, G. - 30 Davies, W. CF. - 30 Eusébio -124 Feine, P. - 49 G Grundmann, W. - 32 H Heidenheim, W. B. - 20 Hipólito de Roma - 98 I Inácio - 49,110, 111 Irineu - 32
  • 142. 146 J Jeremias, J. - 5 ,8 ,1 8,35,137 Jeremias, Gert - 49,86,121, 128, 136 K Karl von Base - 29 Käsemann - 7 Klein, G. - 84 Knox, W. L. - 30 Lutero - 72, 82 M Manson, T. W. - 30 Indice Marcus, J - 21 M ilik ,J.T .-116 R R. de Vaux, - 114,121 Rengstorf, K. H. - 47 Schlatter, B. -110 Schnackenburg, R. - 6, 77 Schulz, S. - 84 Schweitzer, A. - 76 W Wilson, E. -115 Windisch, H. - 79 Wrede W. - 75 I I I
  • 143. ÍNDICES DOS TEXTOS BÍBLICOS ANTIGO TESTAMENTO Gênesis Salmos 1.1 100 2.7 33 1.3 110 2.18 41 6 43 4.14-16 41 32.11 106 7.25 41 Êxodo 9.24 41 22.1 22 15.2 22 78 96 34.6 106 89.27S 33 Levítico 103.13S 15 103.17 54 16 40, 41 110 41 Deuteronômío Isaías 14.1s 15 1.9 137 21.23 49, 55 40.3 121,132 32.6 14 45.25 68 2 Samuel 49.4 68 50.8 68,70 7.14 33 52.14 62 1 Reis 53 56, 62, 63, 64, 65 19.18 137 53.6 51 53.10 51 1 Crônicas 53.12 51 17.13 33 53.12.53.11c.12^ 62
  • 144. 148 LDtCE 63.15S 64.7s 17 17 Habacuque 2.4 87 Jeremias 3.5 109 3.4s 16 Sofonias 3.19S 31.9 16 18 3.12 137 31.20 18 Zacarias Oséias 13.7 64 6.2 60 13.7-9 137 11.1-11 11.3,8 17 18 Malaquias 1.6 17 Amós 2.10 14 4.11 137 NOVO TESTAMENTO Mateus 5.45 25, 29 Marcos 1.1 92 6.9-13 34 1.3 132 6.32 25, 28 1.5 132 7.11' 25 1.6 132 11.23 32 2.28 125 11.25 23 3.22 58 11.25,26 23 4.11 32 11.26 23, 32 8.31 58 11.27 29, 30, 31, 32, 34 8.32 59 12.11S 125 9.5 105 12.37 67 9.31 57,58 12.39 59, 23 9.37 93 18.15-17 133 9.41 72 20.28 62 10.32,40 59 21.29-30 26 10.33 58 23.35 58 10.33ss 57 26.1-4 57 10.45 62 26.28 61 11.25 29 26.39,42 23 14.8 59 27.46 22 14.24 61
  • 145. Índices dos textos bíblicos 149 14.27 63 1.1 100,108, 96 14.34 23 l.lss 109 14.36 22 1.1-18 92 14.58 60 1.3 100 15.34 22, 25 1.4 94, 135 41.1-2 57 1.9 103 Lucas 1.14b.l6 1.19SS 94 99 1 95, 96 1.23 132 1.5 132 3.19-21 103 1.7 132 5.24 135 1.80 132 6-8.12b-13.15 94 6.20 89 6.51 61 6.36 29 9.39 102 10.21 23 10.15,17 64 10.22 29 11.41 23 10.23s 32 12.27s 23 11.1 34 14.9 107 11.2 23 16.16 60 11.2-4 34 16.33 135 11.13 25 17.1,5,11,24,25 23 12.30 28 17.5,11,21,24,25 23 12.32 29 Atos 13.32 60 15.10 142 2.36 46 15.7 142 2.44s 133 15.21 26 2.46 133 16.9 105 4.10 46 18.14 69, 70, 89 4.32,34-37 133 22.19-20 61 5.1-11 133 22.27 62 5.30 46 22.35-38 63 6.7 133 22.36 59 10.39 46 22.36s 59 20.21 40 22.42 23 26.11 49 23.24 23.34 44 64 Romanos 23.34,46 23 1.17 71 João 3.24 3.25 74 51 1 96, 98 3.28 71
  • 146. 150 Índice 3.5 71 15.2 47 3.9 53 15.3 56 4.2 4.25 70 51 2 Coríntios 4.4 74 5.17 80,81 4.5 134, 73 5.19 54 4.6-8 74 5.21 48, 51 5.1 71, 83 6.14-7.1' 133 5.6 54 Gaiatas 5.8 54 5.9 51,71 1.14 51 5.10 54 2.14 52 5.17 74 2.16 73 5.18S 53 2.19 46 6.6 46 2.20 49, 73 6.7 76 3.1 48 8 70 3.3 52 8.3 52 3.8,24 73 8.15 23, 35 3.10 73 8.32 51 3.13 46, 48, 49, 52, 53 8.33s 68 3.24-27 76 10.7 44 4.4s 54 11.33SS 96 4.5 52, 53 28.30 73 4.6 23, 35 1 Coríntios 5.5 83 5.25 79 1.18 46, 47 6.14 48 1.23 48 Efésios 2.3 48 2.6ss 39 1.7 51 5.7 79 2.13 51 5.7s 50 3.14 81 6.11 75, 76, 78 5.2 . 51 6.20 52, 53 6.11-20 133 7.23 52, 53 18.1 49 10 82 19.1 111 11 11.24 82 61 Filipenses 12.3 49 1.1 111 13 >96 2 98 13.3 53 2.6 96
  • 147. iNDtCBSDOSTEXTOSBÍBUCOS 151 2.6-11 95, 96 6.1 39,40 3.9 75 6.2 40 5.19 95 6.6 46 7.1-10.8 40 Colossenses 7.25 41 1.13 81 7.27 41 1.15-20 96 9.12 41 1.20 51 9.24 41 3-4 81 10.10 41 3.16 95 12.2 46,55 13.10 40 1 Tessalotiicenses 13.22 39 1.9s 2.10 40 74 1 Pedro 42 42,46 2 Tessalonicenses 1.8s 2.24 1.5s 75 3.18 42 1 Timóteo 3 19s 42 4.6 42,43 1.13 49 9.14 43 2.11-13 96 20.22-25 42 3.16 96 1 João Tito 1 .1 108, 109 2.10 3.5-7 133 76 Apocalipse 3.7 75 1 .1 91 Hebreus 7.45 105 8 .1 111 1.1-4 96 11.8 46 2.18 41 19.11SS 109 4.14-16 41 19.13 108, 109 5.12 39 21.3 105 LITERATURA EXTRA-CANONICA 32 31 3 Enoque 45,1s 3 Enoque 48 Adv. Haer. I, 13,2 32 Antiquitates, 18,20 122, 125 Antiquitates, 18,22 Bar. Sir 3.7 BellumJudaicum,2,129-133 BellumJudaicum,2,141,144 124 111 124 124
  • 148. 152 Lt)ice BellumJudaicum,2,150-153 125 Bellum Judaicum, 2,50 124 Bellum Judaicum, 3,139 124 Bellum Judaicum, 2,123 123 CD 1.4 137 CD 11.11 125 CD 11.16s 125 CD 15.15-17 140 CD 15.8SS 124 CD 19.33s 136 CD 20.12 136 CD 20.2 138 CD 6.19 136 CD 8.12 136 I OS 6,13ss 124 I QH 11.9 136 I QH 15.12s 86 I QH 3.19-21 129 I QH 3.32-36 128 I QH 4.32s 136 I QH 5.22 136 I QH 6.8 137 QH 9.55s 19 7 (I QH 7.26S.29-31 129 I QM 11.9 136 I QM 13.8 137 I Qp Hab 8.1-3 87 I QS 1.3-4 139 I QS 1.9 136 I QS 1.9-11 139 I QS 10.15s 130 I QS 10.19.21 139 I QS 10.24 124 I QS 11.12 85 I QS 11.13s 85 I QS ll.lss 84 I QS 11.2 I QS 11.5 I QS 11.8 I QS 2,3-9 I QS 2.16 I QS 2.7-9 IQS 3.13 I QS 3.15.17-19.25 I QS 3.20 I QS 4.19-23 I QS 4.22 I QS 4.26 I QS 4.3-6 I QS 4.9-11 I QS 5.13 I QS 5.7ss I QS 6.4-6 I QS 8.12-16 I QS 8.18 I QS 8.5 I QS 8.5s I QS 9.12 I QS 9.16.21-24 I QS 9.17,22 I QS 9.4 I QS 9.6 I QS 6.7s I Qsa 2.17-21 Jubileus 1.24s IV Esdras 6.39 7.30 12.7 Sabedoria 18.14 18.15s 85, 134 85 136 141 136 140 126 126 138 128 138 126 127 127 136 124 124 121 124 136 138 41 139 124 138 138 124 24 35 110 111 68 111 109