Michel Foucault nasceu na França em 1926 e estudou na École Normale Supérieure, onde conheceu importantes filósofos franceses. Morreu em 1984. O documento apresenta sua biografia básica em três frases.
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Paul.Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15
de outubro de 1926, Em 1946 ingressa na Ecole Normale Su-
periéure, onde conhece e mantém contato com Pierre Bourdieu,
Jean-Paul Sartre, Paul Veyne, entre outros, Em 1949, Foucault
conclui sua Licenciatura em Psicologia e recebe seu Diploma em
Estudos Superiores de Filosofia, com uma tese sobre Hegel, sob
a orientação de Jean Hyppolite, Morre em 25 de junho de 1984,
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I
Michel Foucault
A Hermenêutica do Sujeito
Curso dado no College de France (1981-1982)
Edição estabelecida por Frédéric Gros
sob a direção de François Ewald
e Alessandro Fontana
Tradução
MÁRCIO ALVES DA FONSECA
SALMA TANNUS MUCHAIL
Martins Fontes
São Paulo 2006
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4. Aula de 6 de janeiro de 1982 - Segunda hora .................. 35
Presença conflituosa das exigências de espiritua-
lidade: ciência e teologia antes de Descartes; filo-
sofia clássica e moderna: marxismo e psicanálise.
- Análise de uma sentença lacedemônia: o cui-
dado de si como privilégio estatutário. - Primei-
ra análise do Alcibíades de Platão. - As pretensões
políticas de Alcibíades e a intervenção de Sócra-
tes. - A educação de Alcibíades comparada com
a dos jovens espartanos e dos príncipes persas. -
Contextualização do primeiro aparecimento, no
Alcibíades, da exigência do cuidado de si: preten-
são política; déficit pedagógico; idade crítica; au-
sência de saber político. -A natureza indetermi-
nada do eu e sua implicação política.
Aula de 13 de janeiro de 1982 - Primeira hora................ 55
Contextos de aparecimento do imperativo socrá-
tico do cuidado de si: a capacidade política dos
jovens de boa famflia; os limites da pedagogia
ateniense (escolar e erótica); a ignorância que se
ignora. - As práticas de transformação do eu na
Grécia arcaica. - Preparação para o sonho e téc-
nicas da prova no pitagorismo. - As técnicas de si
no Fédon de Platão. - Sua importância na filoso-
fia helenística. - A questão do ser do eu com o
qual é preciso ocupar-se no Alcibíades. - Deter-
minação do eu como alma. - Determinação da
alma como sujeito de ação. - O cuidado de si na
sua relação com a dietética, a econômica e a eró-
tica. - A necessidade de um mestre do cuidado.
Aula de 13 de janeiro de 1982 - Segunda hora ................ 83
A determinação, no Alcibíades, do cuidado de si
como conhecimento de si: rivalidade dos dois
imperativos na obra de Platão. - A metáfora do
olho: princípio de visão e elemento divino. - Fim
•
do diálogo: o cuidado com a justiça. - Problemas
de autenticidade do diálogo e sua relação geral
com o platonismo. - O cuidado de si do Alcibíades
em relação: à ação política; à pedagogia; à eróti-
ca dos rapazes. - A antecipação, no Alcibíades, do
destino do cuidado de si no platonismo. - Poste-
ridade neoplatônica do Alcibíades. - O parado-
xo do platonismo.
Aula de 20 de janeiro de 1982 - Primeira hora................ 101
O cuidado de si, do Alcibíades aos dois primeiros
séculos da nossa era: evolução geral. - Estudo lé-
xico em tomo da epiméleia. - Uma constelação de
expressões. - A generalização do cuidado de si:
princípio de coextensividade à totalidade da exis-
tência. - Leitura de textos: Epicuro, Musonius Ru-
fus, Sêneca, Epicteto, Fílon de Alexandria, Lucia-
no. - Consequências éticas desta generalização:
o cuidado de si como eixo formador e corretivo;
aproximação entre atividade médica e filosófica
. (os conceitos comuns; o objetivo terapêutico).
Aula de 20 de janeiro de 1982 - Segunda hora ................ 133
O privilégio da velhice (meta positiva e ponto
ideal da existência). - Generalização do princípio
do cuidado de si (como vocação universal) e arti-
culação do fenômeno sectário. - Leque social con-
siderado: do meio cultuaI popular às redes aristo-
cráticas da amizade romana. - Dois outros exem-
plos: círculos epicuristas e grupo dos Terapeutas.
- Recusa do paradigma da lei. - Princípio estrutu-
ral de dupla articulação: universalidade do apelo
e raridade da eleição. - A forma da salvação.
Aula de 27 de janeiro de 1982 - Primeira hora................ 155
Indicação dos caracteres gerais das práticas de si
nos séculos 1-11. -A questão do Outro: os três ti-
5. pos de mestria nos diálogos platônicos. - Perío-
do helenístico e romano: a mestria de subjetiva-
ção. - Análise da stultitia em Sêneca. - A figura
do filósofo como mestre de subjetivação. - A for-
ma institucional helenística: a escola epicurista e
a reunião estóica. - A forma institucional roma-
na: o conselheiro de existência privado.
Aula de 27 de janeiro de 1982 - Segunda hora ................ 185
O filósofo profissional dos séculos 1-11 e suas esco-
lhas políticas. - Eufrates, das Cartas de Plínio: um
anticínico. -A filosofia fora da escola como prá-
tica social: o exemplo de Sêneca. - A correspon-
dência entre Frontão e Marco Aurélio: sistemati-
zação da dietética, da econômica e da erótica na
direção da existência. - O exame de consciência.
Aula de 3 de fevereiro de 1982 - Primeira hora ............... 209
Os comentários neoplatônicos do Alcibíades: Pro-
clo e Olimpiodoro. - A dissociação neoplatônica
do político e do catártico. - Estudo do laço entre
cuidado de si e cuidado dos outros em Platão: fi-
nalidade; reciprocidade; implicação essencial. -
Situação nos séculos 1-11: a autofinalização do
eu. - Conseqüências: uma arte filosófica de viver
ordenado ao princípio de conversão; o desenvol-
vimento de uma cultura de si. - Significação re-
ligiosa da idéia de salvação. - Significações de
sotería e de salus.
Aula de 3 de fevereiro de 1982 - Segunda hora................ 231
Questães propostas pelo público em tomo de:
subjetividade e verdade. - Cuidado de si e cuida-
do dos outros: uma inversão de relações. - A
concepção epicurista da amizade. - A concepção
estóica do homem como ser comunitário. - A
falsa exceção do príncipe.
Aula de 10 de fevereiro de 1982 - Primeira hora ............. 253
Indicação da dupla desvinculação do cuidado de
si: em relação à pedagogia e à atividade política.
- As metáforas da autofinalização do eu. - A in-
venção de um esquema prático: a conversão a si.
- A epistrophé platônica e sua relação com a con-
yersão a si. - A metánoia cristã e sua relação com
'a conversão a si. - O sentido grego clássico de
metánoia. - Defesa de uma terceira via entre epis-
trophé platônica e metánoia cristã. - A conversão
do olhar: crítica da curiosidade. - A concentra-
ção atlética.
Aula de 10 de fevereiro de 1982 - Segunda hora.............. 281
Quadro teórico geral: veridicção e subjetivação.
- Saber do mundo e prática de si entre os cíni-
coS': o exemplo de Demetrius. - Caracterização
dos conhecimentos úteis em Demetrius.- O sa-
ber etopoiético. - O conhecimento fisiológico em
Epicuro. - A parrhesía do fisiólogo epicurista.
Aula de 17 de fevereiro de 1982 - Primeira hora ............. 301
A conversão a si como fonna subseqüente do cui-
dado de si. - A metáfora da navegação. - A téc-
nica da pilotagem como paradigma de governa-
mentalidade. - A idéia de uma ética do retomo
a si: a recusa cristã e as tentativas abortadas da
época moderna. - A governamentalidade e a re-
lação a si, contra a política e o sujeito de direito.
- A conversão a si sem o princípio de um conhe-
cimento de si. - Dois modelos ocultadores: a re-
miniscência platônica e a exegese cristã. - O mo-
delo escondido: a conversão helenística a si. - Co-
nhecimento do mundo e conhecimento de si no
pensamento estóico. - O exemplo de Sêneca: a
crítica da cultura nas Cartas a LUC11io; o movimen-
to do olhar nas Questões naturais.
...
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6. Aula de 17 de fevereiro de 1982 - Segunda hora.............. 331
Final da análise do prefácio à terceira parte das
Questões naturais. - Estudo do prefácio à primei-
ra parte. - O movimento da alma cognoscente em
Sêneca: descrição; característica geral; efeito de
retomo. - Conclusões: implicação essencial entre
conhecimento de si e conhecimento do mundo;
efeito liberador do saber do mundo; irredutibili-
dade ao modelo platônico. - A visão do alto.
Aula de 24 de fevereiro de 1982 - Primeira hora ............. 351
A modalização espiritual do saber em Marco Au-
rélio: o trabalho de análise das representações;
definir e descrever; ver e nomear; avaliar e pro-
var; aceder à grandeza de alma. - Exemplos de
exercícios espirituais em Epicteto. - Exegese cris-
tã e análise estóica das representações. - Retomo
a Marco Aurélio: exercícios de decomposição do
objeto no tempo; exercícios de análise do objeto
em seus constituintes materiais; exercidos de
descrição redutora do objeto. - Estrutura concei-
tual do saber espiritual. - A figura de Fausto.
Aula de 24 de fevereiro de 1982 - Segunda hora.............. 381
A virtude em sua relação com a áskesis. - A au-
sência de referência ao conhecimento objetivo do
sujeito na mathêsis. - A ausência de referência à
lei na áskesis. - Objetivo e meio da áskesis. - Ca-
racterização da paraskeué: o sábio corno atleta do
acontecimento. - Conteúdo da paraskeué: os dis-
cursos-ação. - Modo de ser destes discursós: o
prokheiron. - A áskesis corno prática de incorpora-
ção ao sujeito de um dizer-verdadeiro.
Aula de 3 de março de 1982 - Primeira hora ................... 399
Separação conceitual entre a ascese cristã e a as-
cese filosófica. - Práticas de subjetivação: a impor-
tância dos exercícios de escuta. - A natureza am-
bígua da escuta, entre passividade e atividade: o
Peri toa akoúein de Plutarco; a carta 108 de Sêne-
ca; o colóquio lI, 23 de Epicteto. - A escuta sem
tékhne. - As regras ascéticas da escuta: o silêncio;
gestualidade precisa e atitude geral do bom ou-
vinte; a atenção (vinculação ao referente do dis-
curso e subjetivação do discurso por memoriza-
ção imediata).
Aula de 3 de março de 1982 - Segunda hora ........... 427
As regras práticas da boa leitura e a indicação de
sua finalidade: a meditação. - O sentido antigo
de me/éteJmeditatio corno jogo do pensamento so-
bre o sujeito. - A escrita corno exercício físico de
incorporação dos discursos. - A correspondência
corno círculo de subjetivação/veridicção. - A arte
de falar na espiritualidade cristã: as formas do
discurso verdadeiro do diretor; a confissão do
dirigido; o dizer-verdadeiro sobre si corno con-
dição da salvação. - A prática greco-romana de
direção: constituição de um sujeito de verdade
pelo silêncio atento do lado do dirigido; a obri-
gação de parrhesía no discurso do mestre.
Aula de 10 de março de 1982 - Primeira hora ................. 449
A parrhesía corno atitude ética e procedimento
técnico no discurso do mestre. - Os adversários da
parrhêsia: lisonja e retórica. - A importância dos
temas da lisonja e da cólera na nova economia
do poder. - Um exemplo: o prefácio ao quarto li-
vro das Questões naturais de Sêneca (exercício do
poder, relação consigo, perigos da lisonja). -A sa-
bedoria frágil do príncipe. - Os pontos da oposi-
ção parrhesía/retórica: a separação entre verdade e
mentira; o estatuto de técnica; os efeitos de sub-
jetivação. - Conceitualização positiva da parrhe-
sía: o Peri parrhesías de Filodemo.
7. Aula de 10 de março de 1982 - Segunda hora ................. 479
Continuação da análise da parrhesía: o Tratado das
paixões da alma de Galeno. - Caracterizações da
libertas segundo Sêneca: recusa da eloqüência po-
pular e enfática; transparência e rigor; incorpo-
ração dos discursos úteis; uma arte de conjectu-
ra. - Estrutura da libertas: transmissão acabada
do pensamento e comprometimento do sujeito
com seu discurso. - Pedagogia e psicagogia: re-
lação e evolução na filosofia greco-romana e no
cristianismo.
Aula de 17 de março de 1982 - Primeira hora................. 501
Observações suplementares sobre a significação
das regras de silêncio no pitagorismo. - Definição
da "ascética". - Balanço concernente à etnologia
histórica da ascética grega. - Retomada do Al-
cibíades: a inflexão do ascético sobre o conheci-
mento de si como espelho do divino. - A ascéti-
ca dos séculos I e II: uma dupla desvinculação
(relativamente: ao princípio de conhecimento de
si; ao princípio de reconhecimento no divino). -
Explicação da fortuna cristã da ascética helenís-
tica e romana: a rejeição da gnose. - A obra de
vida. - As técnicas de existência, exposição de dois
registros: o exercício pelo pensamento; o treino
em situação real. - Os exercícios de abstinência:
corpo atlético em Platão e corpo resistente em
Musonius Rufus. - A prática das provas e suas
características.
Aula de 17 de março de 1982 - Segunda hora................. 531
A própria vida como prova. - O De providentia de
Sêneca: a prova de existir e sua função discrimi-
nante. - Epicteto e o filósofo-explorador. - A
transfiguração dos males: do antigo estoicismo a
Epicteto. - A prova na tragédia grega. - Observa-
ções sobre a indiferença da preparação de exis-
tência helenística aos dogmas cristãos da imorta-
lidade e da salvação. - A arte de viver e o cuidado
de si: uma inversão de relação. - Sinal desta in-
versão: o tema da virgindade no romance grego.
Aula de 24 de março de 1982 - Primeira hora................. 551
Indicação dos pontos alcançados na aula prece-
dente. - A apreensão de si por si no Alcibíades de
Platão e nos textos filosóficos dos séculos I e II:
estudo comparativo. - As três grandes formas
ocidentais de reflexividade: a reminiscência; a
meditação; o método. - A ilusão da historiogra-
fia filosófica ocidental contemporânea. - As duas
séries meditativas: a prova do conteúdo de ver-
dade; a prova do sujeito de verdade. - A desqua-
lificação grega da projeção no porvir: o primado
da memória; o vazio ontológico-ético do futu-
ro. - O exercício estóico de presunção dos males
como preparação. - Gradação da prova de pre-
sunção dos males: o possível, o certo, o iminen-
te. - A presunção dos males como obstrução do
porvir e redução de realidade.
Aula de 24 de março de 1982 - Segunda hora ................. 579
A meditação sobre a morte: um olhar sagital e re-
trospectivo. - O exame de consciência em Sêne-
ca e Epicteto. - A ascese filosófica. - Biotécnica,
prova de si, objetivação do mundo: os desafios
da filosofia ocidental.
Resumo do curso ................................................. ............. 597
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8. L
NOTA
Michel Foucault ensinou no Col/ege de France de janeiro
de 1971 até sua morte, em junho de 1984 - com exceção do
ano de 1977, em que pôde beneficiar-se de um ano sabático.
O título de sua cátedra era: História dos sistemas de pensamento.
Esta cátedra foi criada em 30 de novembro de 1969, a
partir da propositura de JulesVuillemin, pela assembléia ge-
ral dos professores do Col/ege de France, em substituição à
cátedra de História do pensamento filosófico, ocupada por
Jean Hyppolite até sua morte. A mesma assembléia elegeu
Michel Foucault, em 12 de abril de 1970, titular da nova cá-
tedral Ele tinha quarenta e três anos.
Michel Foucault pronunciou a aula inaugural em 2 de
dezembro de 19702
1. Michel Foucault havia concluído um opúsculo redigido para
sua candidatura com a seguintef6ml.Ula: "Seria preciso empreendera his-
tória dos sistemas de pensamento" ("Titres et travaux", in Dits et Écrits,
1954-1988, ed. por D. Detert & F. Ewald, colab. J. Lagrange, Paris, Gal-
limard, 1994, 4 vol.; cf. !, p. 846).
2. Publicada pelas Edições Gallimard em maio de 1971 com o tí-
tulo: L'Ordre du discours. [Trad. bras. de Laura Fraga de Almeida Sam-
paio, A ordem do discurso, São Paulo, LoyoIa, 1996. (N. dos T.)]
9. XVI A HERMENfUTICA DO SUJEITO
o ensino no Collége de France obedece a regras particu-
lares. Os professores têm a obrigação de cumprir vinte e
seis horas de ensino por ano (podendo a metade, no máxi-
mo, ser oferecida na forma de seminários3). A cada ano, de-
vem expor uma pesquisa original, o que os obriga a sempre
renovar o conteúdo de seu ensino. A assistência às aulas e
aos seminários é inteiramente livre; não requer inscrição
nem diploma. E o professor não os fornece'. No vocabulário
do Collége de France, diz-se que os professores não têm alu-
nos, mas ouvintes.
As aulas de Michel Foucault ocorriam às quartas-fei-
ras, do início de janeiro ao fim de março. A assistência, muito
numerosa, composta de estudantes, professores, pesquisa-
dores, curiosos, muitos deles estrangeiros, mobilizava dois
anfiteatros do Collége de France. Michel Foucault muitas ve-
zes lamentou a distância que isto podia instalar entre ele e
seu "público", e o pouco intercâmbio possibilitado pela for-
ma do curso'. Ele almejava um seminário que fosse lugar de
um verdadeiro trabalho coletivo. Fez diferentes tentativas
neste sentido. Nos últimos anos, no final da aula, dedicava
um logo tempo para responder às perguntas dos ouvintes.
Em 1975, um jornalista do Nouvel Observateur, Gérard
Petiljean, assim transcrevia a atmosfera dos cursos: "Quando
Foucault entra na arena, dinâmico, decidido, como alguém
que se lança na água, salta algumas pessoas para chegar à
sua cadeira, afasta os gravadores para colocar seus papéis,
3. Éo que fez Michel Foucault até o início dos anos 1980.
4. No âmbito do College de France.
5. Em 1976, na esperança - vã - de reduzir a assistência, Michel
Foucault mudou a hora da aula que passou de 17h45, no final da tarde,
para às 9 horas da manhã. Cf. o início da primeira-aula (7 de janeiro de
1976) de "Il faut défendre la société". Cours au College de France, 1976, ed. s.
dir. F. Ewald & A. Fontana, por M. Bertani & A. Fontana, Paris, Galli·
mard/Seuil, 1997. [Trad. bras. de Maria Ennantina Galvão, Em defesa da
sociedade. Curso no College de France (1975·1976), São Paulo, Martins Fon·
tes, 1999. (N. dos T.)]
NOTA XVII
tira o paletó, acende uma lâmpada e arranca a cem por hora.
Voz forte, eficaz, amplificada por alto-falantes, única con-
cessão ao modernismo de uma sala pouco iluminada por
uma luz que se eleva de cúpulas de estuque. Há trezentos
lugares e quinhentas pessoas aglomeradas, preenchendo o
menor espaço livre [...]. Nenhum efeito de oratória. É límpi-
do e terrivelmente eficaz. Nenhuma concessão à improvisa-
ção. Foucault tem doze horas por ano para explicar, em curso
público, o sentido de sua pesquisa durante o ano que aca-
ba de transcorrer. Então, ele se adensa ao máximo e preen-
che as margens como aqueles correspondentes que ainda
têm muito a dizer quando chegam ao fim da página. 19h15.
Foucault pára. Os estudantes precipitam-se à sua mesa.
Não para lhe falar, mas para desligar os gravadores. Não há
perguntas. Na confusão, Foucault está só." E Foucault co-
mentará: "Seria preciso poder discutir o que propus. Por ve-
zes, quando a aula não foi boa, bastaria pouca coisa, uma
pergunta, para tudo reordenar. Mas esta pergunta nunca
vem. Na França, o efeito de grupo toma impossível qual-
quer discussão real. E, como não há canal de retomo, o cur-
so se teatraliza. Tenho com as pessoas presentes uma rela-
ção de ator ou de acrobata. E, quando termino de falar, uma
sensação de total solidão'-.."
Michel Foucault conduzia seu ensino como um pes-
quisador: explorações para um livro vindouro, desbrava-
mento também de éampos de problematização, que se for-
mulariam mais como um convite lançado a eventuais pes-
·quisadores. É por isto que os cursos no Collége de France não
duplicam os livros publicados. Não são seu esboço, ainda
que alguns temas possam ser comuns a livros e cursos. Eles
têm seu próprio estatuto. Concernem a um regime discur-
sivo específico no conjunto dos 11 atos filosóficos" efetuados
por Michel Foucault. Neles, desenvolve particularmente o
6. Gérard Petitjean, "Les Grands Prêtres de L'Université Françai-
se", Le Nouvel Observateur, 7 de abril de 1975.
10. XVIII AHERMENfurrCA DO SUJEITO
programa de uma genealogia das relações saber/poder em
função do qual, a partir do início dos anos 1970, refletirá seu
trabalho - em oposição àquele de uma arqueologia das for-
mações discursivas que havia até então predominado'.
Os cursos tinham também uma função na atualidade.
O ouvinte que os seguia não era apenas cativado pela nar-
rativa que se construía semana após semana; não era ape-
nas seduzido pelo rigor da exposição; neles encontrava tam-
bém um aclaramento da atualidade. A arte de Michel Fou-
cault estava em diagonalizar a atualidade pela história. Ele,
podia falar de Nietzsche ou de Aristóteles, da perícia psi-
quiátrica no século XIX ou da pastoral cristã, o ouvinte sem-
pre extraía uma luz sobre o presente e os acontecimentos
de que era contemporâneo. A força própria de Michel Fou-
cault em seus cursos estava neste sutil cruzamento entre
uma sábia erudição, um engajamento pessoal e um traba-
lho com o acontecimento.
•
Com o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dos gra-
vadores de fitas cassetes nos anos setenta, a mesa de Michel
Foucault foi logo por eles invadida. As aulas (e alguns semi-
nários) foram então conservados.
Esta edição toma como referência a palavra pronuncia-
da publicamente por Michel Foucault. Dela fornece a trans-
crição mais literal possível'. Gostaríamos de poder apresen-
tá-la tal qual. Mas a passagem do oral ao escrito impõe uma
intervenção do editor: faz-se necessário, no mínimo, introdu-
7. Cf., em particular, "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", in Dits
et Écrits, lI, p. 137. [Trad. bras. "Nietzsche, a genealogia e a história", in
Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Ro-
berto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979. (N. dos T.)}
8. Foramespecialmenteutilizadas as gravaçõesrealizadas porGérard
Burlet e Jacques Lagrange, depositadas no College de France e no IMEC.
NOTA XIX
zir pontuação e separar parágrafos. O princípio sempre foi
permanecer o mais próximo possível do curso efetivamen-
te pronunciado.
Sempre que pareceu indispensável, as retomadas e as re-
petições foram suprimidas; as frases interrompidas foram res-
tabelecidas; e as construções incorretas, retificadas.
As reticências assinalam que a gravação está inaudí-
vel. Quando a frase é obscura, figura, entre colchetes, uma
integração conjecturaI ou um acréscimo.
Um asterisco no rodapé indica as variantes significati-
vas das notas utilizadas por Michel Foucault em relação ao
que foi pronunciado.
As citações foram verificadas e aS referências dos tex-
tos utilizados, indicadas. O aparato crítico limita-se a eluci-
dar os pontos obscuros, a explicitar certas alusões e a preci-
sar os pontos críticos.
Para facilitar a leitura, cada aula foi precedida por um
breve sumário que indica suas principais articulações'-
O texto do curso é seguido do resumo publicado no
Annuaire du Collége de France. Michel Foucault geralmente os
redigia no mês de junho, portanto, algum tempo depois do
fim do curso. Era, para ele, a ocasião de apreender, retrospec-
tivamente, sua intenção e seus objetivos. Constitui sua me-
lhor apresentação.
Cada volume conclui-se com uma "situação", cuja res-
ponsabilidade é do editor do curso: trata-se de fornecer ao
leitor elementos contextuais de ordem biográfica, ideológica e
política, situando o curso na obra publicada e fornecendo in-
dicações concernentes ao seu lugar no âmbito do corpus utili-
zado, a fim de facilitar seu entendimento e evitar os contra-
sensos que poderiam decorrer do esquecimento das circuns-
tâncias nas quais cada curso foi elaborado e pronunciado.
9. Encontrar-se-á no fim do volume (p. 660) precisões concernentes
aos critérios e soluções adotados pelos editores para este ano de curso.
'--'
11. r
xx A HERMENtUTICA DO SUJEITO
A hermenêutica do sujeito, curso pronunciado em 1982, foi
editado por Frédéric Gros.
*
Com esta edição dos cursos no College de France, uma
nOva face da "obra" de Michel Foucault é publicada.
Não se trata, propriamente, de inéditos, já que esta edi-
ção reproduz a palavra proferida publicamente por Michel
Foucault, exceção feita ao suporte escrito que utilizava e que
podia ser muito elaborado. Daniel Defert, que possui as notas
de Michel Foucault, permitiu que os editores as consultassem.
A ele os mais vivos agradecimentos.
Esta edição dos cursos no College de France foi autori-
zada pelos herdeiros de Michel Foucault, que desejaram sa-
tisfazer à forte demanda de que eram objeto, na França como
nO exterior. E isto em incontestáveis condições de serieda-
de. Os editores procuraram estar à altura da confiança ne-
les depositada.
FRANÇOIS EWALD e ALESSANDRO FONTANA
NOTA DATRADUÇÃO BRASILEIRA
Aulas tornadas livro. Aulas em que a fala do Professor
Michel Foucault faz falar tantos outros: Platão, Descartes,
Epicuro, Epicteto, Sêneca, Marco Aurélio, Plutarco, Muso-
nius Rufus, Filodemo de Gedara, Fílon de Alexandria... li-
vrO em que o curso é reconstruído, as múltiplas falas são
textualizadas em notas de referência e a função-professor é
transformada em função-autor. O resultado é, verdadeira-
mente, um composto de dito e escrito.
No movimento que vai da fala à escrita a tradução agre-
ga um outro momento. E, neste exercício que consiste em
reconstituir o texto que reconstiruiu as falas tomando-o
fluente em outra lingua, o tradutor enfrenta o fascinante de-
safio de desdobrar-se, também ele, em leitor-ouvinte. Olhos
e ouvidos atentos, a igual postura é convocado o leitor em
quem, afinal, se completam o curso, o texto, a tradução.
*
Na tradução brasileira evitou-se introduzir acréscimos
a este composto já tão denso. Exceto em duas situações.
Primeiro quando, no corpo do curso, mais precisamente
~ ~
12. XXII A HERMEN~llTICA DO SUJEITO
nas notas de referência, havia citações extraídas dos volu-
mes 11 e III da História da sexualidade (respectivamente, O
uso dos prazeres e O cuidado de si). Nestes casos, foram feitas
remissões às passagens correspondentes nas traduções bra-
sileiras em razão de que são estes os livros de Foucault cujo
conteúdo está mais próximo de A hermenêutica do sujeito. Pro-
cedimento igual foi adotado também quando, nas notas,
assim como na Apresentação inicial, feita por François Ewald
e Alessandro Fontana, e no comentário final, Situação do
curso, elaborado por Frédéric Gros, há referências aos dois
outros cursos de Foucault anteriormente publicados, Em de-
fesa da sociedade e Os anormais e à aula inaugural NA ordem
do discurso", Também nestes casos, em razão agora da pro-
ximidade de forma, foram acrescentadas remissões às tra-
duções brasileiras.
MARCIO ALVES DA FONSECA e
SALMA TANNUS MUQlAJL
AULAS, ANO 1981-1982
L
13. .l...
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982
Primeira hora
Indicação da problemática geral: subjetividadee verdade. -
Novo ponto de partida teórico: o cuidado de si. - As interpreta-
ções do preceito délfico "conhece-te a ti mesmo". - Sócrates como
o homem do cuidado: andlise de três _atos da Apologia de
Sócrates. - O cuidado de si como preceito da vida filosófica e
moral antiga. - O cuidado de si nos primeiros textos cristãos.
- Ocuidado de si como atitude geral, relação consigo, conjunto de
práticas. - Razões da desqualificação moderna do cuidado de si
em proveito do conhedmento de si: a moral moderna; o momen-
to cartesiano. - A exceção gnóstica. - Filosofia eespiritualidade.
Propus-me neste ano a experimentar o seguinte pro-
cedimentaL ministrar duas horas de aula (de 9h15min a
llh15min), com um pequeno intervalo de poucos minutos
após uma hora, a fim de lhes permitir descansar ou ir em-
bora se estiverem enfadados e para que também eu possa
descansar um pouco. De todo modo e na medida do possí-
vel, procurarei aínda diversificar um pouco as duas horas de
aula, isto é, apresentar, 'de preferência na primeira hora ou
em todo caso numa das duas horas, uma exposição um pou-
co mais, digamos, teórica e geral; e depois, na outra hora,
algo que, preferencialmente, se aproxime de uma explicação
de texto, contando, é claro, com todos os obstáculos e in-
convenientes que estão ligados às circunstâncias da nossa
instalação: ao fato de que não se pode distribuir-lhes os tex-
tos, de que não se sabe quantos vocês serão, etc. Enfim, va-
mos tentar. Se não der certo, procuraremos encontrar para
o próximo ano ou talvez para este ano mesmo, um outro
procedimento. É muito incômodo chegarem, de modo ge-
ral, às 9h15min? Não? Tudo bem? Então vocês são mais fa-
vorecidos que eu.
14. 4 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
No ano passado tentei entabular uma reflexão históri-
ca sobre o tema das relações entre subjetividade e verdade'-
Para o estudo deste problema, escolhi como exemplo privile-
giado ou, se quisermos, como superfície de refração, a ques-
tão do regime de comportamentos e prazeres sexuais na
Antiguidade, o regime dos aphrodísia, vocês se lembram, tal
como aparecera e fora definido nos dois primeiros séculos
de nossa era'. Regime que, ao que me parecia, comportava,
entre outras, a seguinte dimensão de interesse: era realmen-
te no regime dos aphrodísia e de modo algum na moral cha-
mada cristã ou, pior ainda, chamada judaico-cristã, que se
encontrava o arcabouço fundamental da moral sexual euro-
péia moderna'. No presente ano, gostaria de me desprender
um pouco deste exemplo preciso, bem como deste material
particular concernente aos aphrodísia e ao regime dos com-
portamentos sexuais e, deste exemplo preciso, extrair os ter-
mos mais gerais do problema "sujeito e verdade". Mais exa-
tamente: não pretendo, em caso algum, eliminar ou anular
a dimensão histórica na qual tentei situar o problema das
relações subjetividade/verdade, mas, ainda assim, gostaria
de fazê-lo aparecer sob uma forma bem mais geral. A questão
que apreciaria abordar neste ano é a seguinte: em que for-
ma de história foram tramadas, no Ocidente, as relações, que
não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica
habitual, entre estes dois elementos,,' o "sujeito" e a "verdade".
Gostaria então de tomar como ponto de partida uma
noção sobre a qual creio já lhes ter dito algumas palavras no
ano passadoS Trata-se da noção de "cuidado de si mesmo".
Com este termo tento traduzir, bem ou mal, uma noção gre-
ga bastante complexa e rica, muito freqüente também, e que
perdurou longamente em toda a cultura grega: a de epimé-
leia heautoú, que os latinos traduziram, com toda aquela in-
sipidez, é claro, tantas vezes denunciada ou pelo menos apon-
tada6
, por algo assim como cura sui'. Epiméleia heautou é o
cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preo-
cupar-se consigo, etc. Pode-se objetar que, para estudar as
relações entre sujeito e verdade, é sem dúvida um tanto pa-
...L
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 5
radoxal e passavelmente sofisticado, escolher a noção de epi-
méleia heautou para a qual a historiografia da filosofia, até o
presente, não concedeu maior importância. É um tanto pa-
radoxal e sofisticado escolher esta noção, pois todos sabe-
mos, todos dizemos, todos repetimos, e desde muito tempo,
que a questão do sujeito (questão do conhecimento do su-
jeito, do conhecimento do sujeito por ele mesmo) foi origi-
nariamente colocada em uma fórmula totalmente diferente
e em um preceito totalmente outro: a famosa prescrição
délfica do gnôthi seautón ("conhece-te a ti mesmo")'. Assim,
enquanto tudo nos indica que na história da filosofia - mais
amplamente ainda, na história do pensamento ocidental _
o gnôthi seautón é, sem dúvida, a fórmula fundadora da
questão das relações entre sujeito e verdade, por que esco-
lher esta noção aparentemente um tanto marginal, que cer-
tamente percorre o pensamento grego, mas à qual parece
não ter sido atribuído qualquer status particular, a de cuida-
do de si mesmo, deepiméleia heautoU? Gostaria pois, duran-
te esta primeira hora, de deter-me um pouco na questão
das relações entre a epiméleia heautoú (o cuidado de si) e o
gnôthi seautón (o "conhece-te a ti mesmo").
, ,A propósito do "conhece-te a ti mesmo", pretendo fa-
zer uma primeira e muito simples observação, referindo-me
a estudos realizados por historiadores e arqueólogos. De todo
modo, é preciso reter o seguinte: sem dúvida, tal como foi
formulado, de maneira tão ilustre e notória, gravado na pe-
dra do templo, o gnôthi seautón não tinha, na origem, o valor
que posteriormente lhe conferimos. Conhecemos (e volta-
remos a isto) o famoso texto em que Epicteto diz que o pre-
ceito "gnôthi seautón" foi inscrito no centro da comunidade
humana'. De fato, ele foi inscrito, sem dúvida, no lugar que
constituiu um dos centros da vida grega e depois!O um cen-
tro da comunidade humana, mas com uma significação que
certamente não era aquela do /I conhece-te a ti mesmo" no
sentido filosófico do termo. O que estava prescrito nesta fór-
mula não era o conhecimento de si, nem corno fundamen-
to da moral, nem como princípio de uma relação com os
15. 6 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
deuses. Algumas interpretações foram propostas. Há a ve-
lha interpretação de Roscher, de 1901, em um artigo do Phi-
lologus", no qual lembra que, afinal, todos os preceitos dél-
ficas endereçavam-se aos que vinham consultar o deus e
deviam ser lidos como espécies de regras, recomendações
rituais em relação ao próprio ato da consulta. Conhecemos
os três preceitos. O medbz ágan ("nada em demasia"), de
modo algum, segundo Roscher, pretendia designar ou for-
mular um princípio geral de ética e de medida para a con-
duta humana. Medbz ágan ("nada em demasia") quer dizer:
tu que vens consultar não coloques questões demais, não
coloques senão questões úteis, reduzi ao necessário as ques-
tões que queres colocar. O segundo preceito, sobre os engye
(as cauções)", significa exatamente o seguinte: quando vens
consultar os deuses, não faças promessas, não te compro-
metas com coisas ou compromissos que não poderás honrar.
Quanto ao gnôthi seautón, sempre segundo Roscher, signifi-
ca: no momento em que vens colocar questões ao oráculo,
examina bem em ti mesmo as questões que tens a colocar,
que queres colocar; e, posto que deves reduzir ao máximo o
número delas e não as colocar em demasia, cuida de ver em
ti mesmo o que tens precisão de saber. Interpretação bem
mais recente que esta é a de Defradas, de 1954, em um li-
vro sobre Os temas da propaganda délfica13
• Defradas propõe
outra interpretação, mas que, também ela, mostra, sugere
que o gnôthi seautón de modo algum é um princípio de co-
nhecimento de si. Segundo Defradas, estes três preceitos dél-
ficas seriam imperativos gerais de prudência: "nada em de-
masia" nas demandas, nas esperanças, nenhum excesso
também na maneira de conduzir-se; quanto às /I cauções",
tratava-se de um preceito que prevenia os consulentes con-
tra os riscos de generosidade excessiva; €, quanto ao 11 conhe-
ce-te a ti mesmo", seria o princípio [segundo o qual] é pre-
ciso continuamente lembrar-se de que, afinal, é-se somente
um mortal e não um deus, devendo-se, pois, não contar de-
mais com sua própria força nem afrontar-se com as potên-
cias que são as da divindade.
..
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 7
Passemos rapidamente sobre isto. Gostaria de insistir
sobre outra coisa que conceme bem mais ao assunto que
me preocupa. Qualquer que seja, efetivamente, o sentido
dado e atribuído no culto de Apolo ao preceito délfico "co-
nhece-te a ti mesmo", é fato, parece-me, que, quan-doeste
preceito délfico, o gnôthi seautón, aparece na filosofia, no pen-
samento filosófico, aparece, como sabemos, em tomo do
personagem de Sócrates. Xenofonte o atesta nos Memorá-
veis14 e Platão em alguns textos sobre os quais será preciso
retomar. Ora, quando surge este preceito délfico (gnôthi seau-
tón), ele está, algumas vezes e de maneira muito significati-
va, acoplado, atrelado ao princípio do "cuida de ti mesmo"
(epime/ou heautou). Eu disse"acoplado", "atrelado". Na ver-
dade, não se trata totalmente de um acoplamento. Em alguns
textos, aos quais teremos ocasião de retornar, é bem mais
como uma espécie de subordinação relativamente ao pre-
ceito do cuidado de si que se formula a regra"conhece-te
a ti mesmo". O gnôthi seautón (Uconhece-te a ti mesmo")
aparece, de maneira bastante clara e, mais uma vez, em al-
guns textos significativos, no quadro mais geral da epiméleia
heautou (cuidado de si mesmo), como uma das formas, uma
das conseqüências, uma espécie de aplicação concreta, pre-
cisa e particular, da regra geral: é preciso que te ocupes con-
tigo mesmo, que não te e~queças de ti mesmo, que tenhas
cuidados contigo mesmo. Eneste âmbito, como que no limi-
te deste cuidado, que aparece e se formula a regra"conhe-
ce-te a ti mesmo", De todo modo, não se deve esquecer que
no texto de Platão, A apologia de Sócrates, sem dúvida dema-
siado conhecido mas sempre fundamental, Sócrates apre-
senta-se como aquele que, essencialmente, fundamental e
originariamente, tem por função, oficio e encargo incitar os
outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados
consigo e a não descurarem de si. Com efeito, há na Apolo-
gia três trechos, três passagens a este respeito, totalmente
claras e explícitas.
Uma primeira passagem encontra-se em 29d da Apo-
logial5
. Defendendo-se, fazendo aquela espécie de alegação
16. 8 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
fictícia diante de seus acusadores e de seus juízes, Sócrates
responde, nesta passagem, à objeção que passo a descrever.
É ele censurado por estar atualmente em uma situação tal
que dela 1/ deveria ter vergonha". A acusação, se quisermos,
consiste em dizer: não sei muito bem o que tu fizeste de mal,
mas confessa que, de todo modo, é vergonhoso ter levado
uma vida tal que agora te encontres diante dos tribunais,
que agora estejas sob o golpe de uma acusação, que agora
corras o risco de seres condenado e, até mesmo talvez, con-
denado à morte. Para alguém que levou um certo modo de
vida, que não se sabe bem qual foi, mas tal que se arrisca a
ser assim condenado à morte após um julgamento como
este, afinal, não há nisto alguma coisa de vergonhoso? Ao
que Sócrates responde que, ao contrário, está muito orgulho-
so de ter levado esta vida e que, se alguma vez lhe pedis-
sem que levasse outra, recusaria. Diz ele: estou tão orgulhoso
de ter levado a vida que levei que mesmo se me propuses-
sem indulto não a mudaria. Eis a passagem, eis o que diz
Sócrates: "Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos amo;
mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alen-
to e puder fazê-lo, estejais seguros de que jamais deixarei
de filosofar, de vos [exortar], de ministrar ensinamentos àque-
le dentre vós que eu encontrar."16 E qual seria o ensinamen-
to que ele daria se não fosse condenado, uma vez que já o
havia dado antes da acusação? Pois bem, ele diria então,
como costumava fazê-lo, aos que encontrasse: "Meu caro,
tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputa-
da por sua cultura e poderio, não te envergonhas de cuida-
res (epimelefsthai) de adquirir o máximo de riquezas, fama e
.honrarias, e não te importares nem cogitares (epimelê, phron-
tízeis) da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a
tua alma?" Sócrates evoca, pois, o que sempre disse e que
está decidido a continuar dizendo a quem vier a encontrar
e a interpelar: ocupai-vos com tantas coisas, com vossa for-
tuna, com vossa reputação, não vos ocupais com vós mes-
mos. E continua: "E se algum de vós contestar, afirmando
que tem cuidados [com sua alma, com a verdade, com a ra-
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 9
zão; M. F.], não me irei embora imediatamente, deixando-
o; vou interrogá-lo, examiná-lo, discutir a fundol7. É assim
que agirei com quem eu encontrar, moço ou velho, forastei-
ro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me es-
tais mais próximos no sangue. É esta, estejais certos, a or-
dem do deus; e penso que à cidade jamais aconteceu nada
melhor do que meu zelo em executar esta ordem."18 Esta,
portanto, é a "ordem" pela qual os deuses confiaram a Só-
crates a tarefa de interpelar as pessoas, jovens e velhos, ci-
dadãos ou não, e lhes dizer: ocupai-vos com vós mesmos.
Esta, a tarefa de Sócrates. Na segunda passagem, ele retor-
na ao tema do cuidado de si e diz que se os atenienses efe-
tivamente o condenassem à morte, pois bem, ele, Sócrates,
não perderia tanto. Os atenienses, em contrapartida, prova-
riam com sua morte uma perda muito pesada e severa19.
Pois, diz ele, não terão ninguém mais para incitá-los a se
ocuparem consigo mesmos e com sua própria virtude. A
menos que os deuses tenham para com os próprios ate-
nienses um cuidado tão grande que lhes envie um substitu-
to de Sócrates, alguém que os lembrará incessantemente de
que devem cuidar de si mesmos20
• Enfim, uma terceira pas-
sagem: em 36b, a propósito da pena cabível. Segundo as
formas juridicas tradicionais", Sócrates propõe para si mes-
mo a pena à qual, se condenado, aceitaria submeter-se. Eis
o texto: "Que tratamento, que multa mereço eu por ter
acreditado que deveria renunciar a uma vida tranqüila, ne-
gligenciar o que a maioria dos homens estima, fortuna, in-
teresse privado, postos militares, sucesso na tribuna, magis-
traturas, coalizões, facções políticas? Por ter me convencido
que com meus escrúpulos eu me perderia se entrasse por
esta via? Por não ter querido me comprometer com o que
não tem qualquer proveito nem para vós nem para mim?
Por ter preferido oferecer, a cada um de vós em particular,
aquilo que declaro ser o maior dos serviços, buscando per-
suadi-lo a preocupar-se (epimeletheíe) menos com o que lhe
pertence do que com sua própria pessoa, a fim de se tomar
tão excelente, tão sensato quanto possível, de pensar menos
J
17. 10 A HERMEmUTICA DO SUJWO
nas coisas da cidade do que na própria cidade, em suma, de
aplicar a tudo estes mesmos princípios? Que mereci eu,
pergunto, por me ter assim conduzido [e por vos ter incitado
a vos ocupar com vós mesmos? Nenhuma punição, certa-
mente, nenhum castigo, mas; M. F.] um bom tratamento,
atenienses, se quisermos ser justos22
".
Detenho-me aqui por um instante. Queria simples-
mente lhes assinalar estas passagens em que Sócrates se
apresenta essencialmente corno aquele que incita os outros
a se ocuparem consigo mesmos, propondo que observemos
apenas três ou quatro coisas importantes. Primeiro, a ativi-
dade que consiste em incitar os outros a se ocuparem consi-
go mesmos é a de Sócrates, mas lhe foi confiada pelos deuses.
Realizando-a, Sócrates não faz senão cumprir urna ordem,
exercer urna função, ocupar urna posição (ele emprega o
termo táxis") que lhe foi fixada pelos deuses. Aliás, corno
vimos ao longo de urna passagem, é na medida em que se
ocupam com os atenienses que os deuses lhes enviaram Só-
crates e eventualmente lhes enviariam qualquer outro para
incitá-los a se ocuparem consigo mesmos.
Em segundo lugar, também vemos, e está muito claro
na última passagem que acabei de ler, ao ocupar-se com os
outros, Sócrates, evidentemente, não se ocupa consigo mes-
mo ou, em todo caso, negligencia, com esta atividade, urna
série de outras atividades tidas em geral corno interessadas,
proveitosas, propícias. Sócrates negligenciou sua fortuna,
assim como certas vantagens cívicas, renunciou a toda car-
reira política, não pleiteou qualquer cargo nem magistratura,
para poder ocupar-se com os outros. O problema que então
se estabelecia era o da relação entre o "ocupar-se consigo
mesmo" a que o filósofo incita e o que, para o filósofo, deve
representar o fato de ocupar-se consigo mesmo ou even-
tualmente de sacrificar a si mesmo: posição do mestre, pois,
na questão de "ocupar-se consigo mesmo". Em terceiro lu-
gar - e sobre isto, ainda que eu não tenha sido bastante
longo na passagem que citei há pouco, é irrelevante, pois
vocês poderão remeter-se a ela -, Sócrates diz que, na ati-
"
II
1.
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 11
vidade que consiste em incitar os outros a se ocuparem con-
sigo mesmos, ele desempenha, relativamente a seus conci-
dadãos, o papel daquele que desperta". O cuidado de si vai
ser considerado, portanto, como o momento do primeiro
despertar. Situa-se exatamente no momento em que os
olhos se abrem, em que se sai do sono e se alcança a luz
primeira: este, o terceiro ponto interessante na questão do
"ocupar-se consigo mesmo". E finalmente o término de
urna passagem que também não li: a célebre comparação
entre Sócrates e o tavão, este inseto que persegue os ani-
mais, pica-os e os faz correr e agitar-se". O cuidado de si é
urna espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne
dos homens, cravado na sua existência, e constitui um prin-
cípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio
de permanente inquietude no curso da existência. Creio,
pois, que esta questão da epiméleia heautoú deve ser um tan-
to distinguida do gnôthi seautón, cujo prestígio fez recuar um
pouco sua importância. Em um texto que logo adiante ten-
tarei explicar com mais precisão (o famoso texto do Alcibíades
em sua última parte), veremos corno a epiméleia heautoú (o
cuidado de si) é realmente o quadro, o solo, o fundamento a
partir do qual se justifica o imperativo do U conhece-te a ti
mesmo". Portanto, importância da noção de epiméleia
heautoú no personagem de Sócrates, ao qual, entretanto,
ordinariamente associa-se, de maneira senão exclusiva pelo
menos privilegiada, o gnôthi seautón. Sócrates é o homem do
cuidado de si e assim permanecerá. E, corno veremos, em
uma série de textos tardios (nos estóicos, nos cínicos, em
Epicteto principalmente") Sócrates é sempre, essencial e
fundamentalmente, aquele que interpelava os jovens na rua
e lhes dizia: uÉ preciso que cuideis de vós mesmos."
Terceiro ponto concernente a esta noção de epiméleia
heautoú e suas relações com oghôthi seautón: parece-me que
a noção de epiméleia heautoú acompanhou, enquadrou, fun-
dou a necessidade de conhecer-se a si mesmo não apenas
no momento de seu surgimento no pensamento, na exis-
tência, no personagem de Sócrates. Parece-me que a epimé-
18. l
12 A HERMENtlITICA DO SUJEITO
leia heautou (o cuidado de si e a regra que lhe era associada)
não cessou de constituir um princípio fundamental para ca-
racterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cul-
tura grega, helenística e romana. Noção importante, sem dú-
vida, em Platão. Importante nos epicuristas, uma vez que
em Epicuro encontramos a fórmula que será tão freqüente-
mente repetida: todo homem, noite e dia, e ao longo de
toda a sua vida, deve ocupar,se com a própria alma27. Para
"ocupar-se", emprega ele therapeúein", que é um verbo de
múltiplos valores: therapeúein refere-se aos cuidados médi-
cos (uma espécie de terapia da alma de conhecida impor-
tância para os epicuristas29), mas therapeúein é também o
serviço que um servidor presta ao seu mestre; e, como sabe-
mos, o verbo therapeúein reporta-se ainda ao serviço do cul-
to, culto que se presta estatutária e regularmente a uma di-
vindade ou a um poder divino. Entre os cínicos a importân--
cia do cuidado de si é capital. Remeto-os, por exemplo, ao
texto citado por Sêneca, nos primeiros parágrafos do livro
VII do De beneficiis, em que Demetrius, o cínico, explica, se-
gundo alguns princípios - aos quais voltaremos porque im-
portantes -, quão inútil é ocupar-se em especular sobre cer-
tos fenômenos naturais (como, por exemplo: a origem dos
tremores de terra, as causas das tempestades, as razões pelas
quais nascem gêmeos), devendo-se, antes, dirigir o olhar
para coisas imediatas que concernem a nós mesmos e para
certas regras pelas quais podemos nos conduzir e controlar
o que fazemos30
. Entre os estóicos, inútil dizer a importância
desta noção de epiméleia heautou: em Sêneca, junto com a
de cura sui, ela é central; em Epicteto, ela percorre toda a ex-
tensão dos Diálogos. Teremos ocasião de falar sobre tudo isto
bem mais longamente. Todavia, não somente entre os filó-
sofos a noção de epiméleia heautou é fundamental. Não é me-
ramente como condição de acesso à vida filosófica, no senti-
do estrito e pleno do termo, que é preciso cuidar de si mesmo.
Mas, como veremos, tentarei mostrar-lhes de que maneira
este princípio de precisar ocupar-se consigo mesmo tor-
nou-se, de modo geral, o princípio de toda conduta racional,
•
--
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982
13
em toda forma de vida ativa que pretendesse, efetivamente,
obedecer ao princípio da racionalidade moral. A incitação a
ocupar-se consigo mesmo alcançou, durante o longo brilho
do pensamento helenístico e romano, uma extensão tão gran-
de que se tomou, creio, um verdadeiro fenômeno cultural de
conjunto
31
• O que eu gostaria de mostrar-lhes, o que pre-
tendo abordar durante este ano, é esta história na qual este
fenômeno cultural de conjunto (incitação, aceitação geral
do princípio de que é preciso ocupar-se consigo mesmo)
constituiu, a um tempo, um fenômeno cultural de conjun-
to, próprio da sociedade helenística e romana (de sua elite,
pelo menos), mas também um acontecimento no pensamen-
to
32
. Parece-me que a aposta, o desafio que toda história do
pensamento deve suscitar, está precisamente em apreender
o momento em que um fenômeno cultural, de dimensão de-
terminada, pode efetivamente constituir, na história do pen-
sarnento, um momento decisivo no qual se acha compro-
metido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno,
Ainda uma palavra, para complementar. Se a noção de
cuidado de si, que vemos assim surgir de modo muito ex-
plícito e claro desde o personagem de Sócrates, percorreu,
seguiu, o decurso de toda a filosofia antiga até o limiar do
cristianismo, também reencpntraremos a noção de epiméleia
(de cuidado) no cristianismo, ou ainda, no que constituiu,
até certo ponto, seu entorno e sua preparação: a espiritua-
lidade alexandrina. De todo modo, em Fílon (veja-se o texto
Sobre a vida contemplativa"), encontraremos a noção de epi-
méleia em um sentido particular. Nós a encontramos em Pla-
tina, na Enéada 1134
• Também e sobretudo, a encontramos,
no ascetismo cristão: em Método de Olimpo", em Basílio
de Cesaréia". Eem Gregório de Nissa: em A vida de Moisés37,
no texto sobre O cântico dos cânticos", no Tratado das beati-
tudes". Encontraremos a noção de cuidado de si principal-
mente no Tratado da virgindade", que inclui o livro XIII
cujo título é precisamente: "Que os cuidados de si come-
çam com a liberação do matrimônio"". Dado que, para
Gregório de Nissa, a liberação do matrimônio (o celibato)
19. l
14 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
é a forma primeira, flexão inicial da vida ascética, esta as-
similação da primeira forma dos cuidados de si com a libe-
ração do matrimônio mostra-nos então a maneira como o
cuidado de si tornou-se uma espécie de matriz do ascetis-
mo cristão. Desde o personagem de Sócrates interpelando
os jovens para lhes dizer que se ocupem consigo até o as-
cetismo cristão que dá início à vida ascética com o cuidado
de si, vemos uma longa história da noção de epiméleia heau-
tou (cuidado de si mesmo).
Éclaro que, no curso desta história, a noção ampliou-se,
multiplicaram-se suas significações, deslocaram-se também.
Posto que o objeto do curso deste ano será precisamente a
elucidação desta temática (o que agora lhes apresento não
passa de puro esquema, simples sobrevôo antecipador), ve-
jamos o que, da noção de epiméleia heautou, por ora deve-
mos reter.
• Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um cer-
to modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de prati-
car ações, de ter relações com o outro. A.epiméleia heautou é
uma atitude - para consigo, para com os outros, para com o
mundo.
• Em segundo lugar, a epiméleia heautou é também uma
certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo im-
plica que se converta o olhar, que se o conduza do exterior
para... eu ia dizer"o interior"; deixemos de lado esta palavra
(que, como sabemos, coloca muitos problemas) e cligamos
simplesmente que é preciso converter o olhar, do exterior,
dos outros, do mundo, etc. para 1/ si mesmo" . O cuidado de
si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pen-
sa e ao que se passa no pensamento. Há um parentesco da
palavra epiméleia com meléte, que quer dizer, ao mesmo tem-
po' exercício e meclitação42
, assunto que também tratare-
mos de elucidar.
• Em terceiro lugar, a noção de epiméleia não designa
simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenção
voltada para si.Também designa sempre algumas ações, ações
que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos
I·
I
--
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 15
assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos trans-
formamos e nos transfiguramos. Daí, uma série de práticas
que são, na sua maioria, exercícios, cujo destino (na história
da cultura, da filosofia, da moral, da espiritualidade ociden-
tais) será bem longo. São, por exemplo, as técnicas de me-
ditação"; as de memorização do passado; as de exame de
consciência"; as de verificação das representações na medi-
da em que elas se apresentam ao espírito45, etc.
Temos pois, com o tema do cuidado de si, uma formu-
lação filosófica precoce, por assim dizer, que aparece clara-
mente desde o século V a.c. e que até os séculos IV-V d.C.
percorre toda a filosofia grega, helenística e romana, assim
como a espiritualidade cristã. Enfim, com a noção de epimé-
leia heautou, temos todo um corpus definindo uma maneira
de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que consti-
ruem uma espécie de fenômeno extremamente importante,
não somente na história das representações, nem somente
na história das noções ou das teorias, mas na própria histó-
ria da subjetividade ou, se quisermos, na história das práti-
cas da subjetividade. De todo modo, é a partir da noção de
epiméleia heautou que, ao menos a título de hipótese de tra-
balho, pode-se retomar toda esta longa evolução milenar
(séculoV a.c. - séculoV d.C.), evolução milenar que condu-
ziu das formas primeiras da atitude filosófica tal como se a
vê surgir entre os gregos até as formas primeiras do ascetis-
mo cristão! Do exercício filosófico ao ascetismo cristão, mil
anos de transformação, mil anos de evolução - de que o
cuidado de si é, sem dúvida, um dos importantes fios con-
dutores ou, pelo menos, para sermos mais modestos, um
dos possíveis fios condutoresl
Antes porém de concluir estes propósitos gerais, gos-
taria de colocar a seguinte questão: por que, a despeito de
tudo, a noção de epiméleia heautou (cuidado de si) foi descon-
siderada no modo como o pensamento, a filosofia ociden-
tal, refez sua própria história? O que ocorreu para que se te-
nha privilegiado tão fortemente, para que se tenha dado
tanto valor e tanta intensidade ao "conhece-te a ti mesmo"
20. 16 A HERMENfUTlCA DO SU)EITO
e se tenha deixado de lado, na penumbra ao menos, esta
noção de cuidado de si que, de fato, historicamente, quan-
do averiguamos os documentos e os textos, parece ter an-
tes enquadrado o princípio do "conhece-te a ti mesmo" e
constituído o suporte de todo um conjunto que é, afinal de
contas, extremamente rico e denso de noções, práticas, ma-
neiras de ser, formas de existência, etc.? Por que este privi-
légio, para nós, do gnôthi seautón às expensas do cuidado de
si? Enfim, o que delinearei a respeito não passa de hipóte-
ses, com muitos pontos de interrogação e reticências.
Numa primeira aproximação e de maneira totalmente
superficial, acho que poderíamos dizer algo que, embora
sem muita profundidade, talvez devamos reter: parece cla-
ro haver, para nós, alguma coisa um tanto perturbadora no
princípio do cuidado de si. Com efeito, vemos que, ao lon-
go dos textos de diferentes formas de filosofia, de diferen-
tes formas de exercícios, práticas filosóficas ou espirituais, o
princípio do cuidado de si foi formulado, convertido em
uma série de fórmulas como "ocupar-se consigo mesmoff
,
/I ter cuidados consigo", H retirar-se em si mesmo", "reco-
lher-se em si", "sentir prazer em si mesmo", "buscar deleite
somente em si", "permanecer em companhia de si mesmo",
"ser amigo de si mesmo", "estar em si corno numa fortale-
za", "cuidar-se" ou "prestar culto a si mesmo", "respeitar-se",
etc. Ora, nós bem sabemos, existe uma certa tradição (ou
talvez várias) que nos dissuade (a nós, agora, hoje) de con-
ceder a todas estas formulações, a todos estes preceitos e
regras, um valor positivo e, sobretudo, de deles fazer o fun-
damento de uma moral. Como soam aos nossoS ouvidos,
estas injunções a exaltar-se, a prestar culto a si mesmo, a
voltar-se sobre si, a prestar serviço a si mesmo? Soam como
uma espécie de desafio e de bravata, uma vontade de rup-
tura ética, uma espécie de dandismo moral, afirmação-de-
safio de um estádio estético e individual intransponível'6 Ou
então, soam aos nossos ouvidos como a expressão um pou-
co melancólica e triste de uma volta do indivíduo sobre si,
incapaz de sustentar, perante seus olhos, entre suas mãos, _'
--
~.
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 17
por ele próprio, uma moral coletiva (a da cidade, por exem-
plo), e que, em face do deslocamento da moral coletiva, nada
mais então teria senão ocupar-se consigo", Isto significa, se
quisermos, que estas conotações, estas ressonâncias primei-
ras que, de imediato, todas estas fórmulas têm para nós,
dissuadem-nos de pensar estes preceitos com valor positi-
vo. Ora, em todo O pensamento antigo de que lhes falo, seja
em Sócrates, seja em Gregório de Nissa, "ocupar-se consigo
mesmo" tem sempre um sentido positivo, jamais negativo.
Ademais - paradoxo suplementar - é a partir desta injunção
de "ocupar-se consigo mesmo" que se constituíram as mais
austeras, as mais rigorosas, as mais restritivas morais, sem
dúvida, que o Ocidente conheceu, as quais, repito (e foi nes-
.,te sentido que lhes ministrei o curso do ano passado), não
devem ser atribuídas ao cristianismo, porém à moral dos
primeiros séculos antes de nossa era e do começo dela (mo-
ral estóica, moral cínica e, até certo ponto, também moral
epicurista). Temos pois o paradoxo de um preceito do cui-
dado de si que, para nós, mais significa egoísmo ou volta
sobre si e que, durante tantos séculos, foi, ao contrário, um
princípio positivo, princípio positivo matricial relativamen-
te a morais extremamente rigorosas. Outro paradoxo que
também é preciso evocar a fim de explicar a maneira como
esta noção de cuidado de si de certo modo perdeu-se um
pouco na sombra, está em que esta moral tão rigorosa, ad-
vinda do princípio "ocupa-te contigo mesmo", estas regras
austeras foram por nós retomadas e efetivamente aparece-
rão ou reaparecerão, quer na moral cristã, quer na moral
moderna não-cristã. Porém, em um clima inteiramente di-
ferente. Estas regras austeras, cuja estrutura de código per-
maneceu idêntica, foram por nós reaclimatadas, transpos-
tas, transferidas para o interior de um contexto que é o de
uma ética geral do não-egoísmo, seja sob a forma cristã de
uma obrigação de renunciar a si, seja sob a forma "moderna"
de uma obrigação para com os outros - quer o outro, quer
a coletividade, quer a classe, quer a pátria, etc. Portanto, to-
dos estes temas, todos estes códigos do rigor moral, nascidos
j
21. l
18 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
que foram no interior daquela paisagem tão fortemente mar-
cada pela obrigação de ocupar-se consigo mesmo, vieram a
ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo moderno
numa moral do não-egoísmo. É este conjunto de parado-
xos, creio, que constitui uma das razões pelas quais o tema
do cuidado de si veio sendo um tanto deconsiderado, aca-
bando por desaparecer da preocupação dos historiadores.
Acredito porém haver uma razão bem mais essencial
que estes paradoxos da história da moral, e que concerne ao
problema da verdade e da história da verdade. A razão mais
séria, parece-me, pela qual este preceito do cuidado de si foi
esquecido, a razão pela qual o lugar ocupado por este prin-
cípio durante quase um milênio na cultura antiga foi sendo
apagado, pois bem, eu a chamaria - com uma expressão que
reconheço ser ruim, aparecendo aqui a título puramente
convencional- de "momento cartesiano". Parece-me que o
"momento cartesiano", mais uma vez com muitas aspas,
atuou de duas maneiras, seja requalificando filosoficamente
o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), seja desqualifican-
do, em contrapartida, a epiméleia heautou (cuidado de si).
Primeiro, o momento cartesiano requalificou filosofica-
mente o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo). Com efeito,
e nisto as coisas são muito simples, o procedimento carte-
siano, que muito explicitamente se lê nas Meditações", ins-
taurou a evidência na origem, no ponto de partida do pro-
cedimento filosófico - a evidência tal como aparece, isto é,
tal como se dá, tal como efetivamente se dá à consciência,
sem qualquer dúvida possível [*]. [É, portanto, ao] conhe-
cimento de si, ao menos como forma de consciência, que se
refere o procedimento cartesiano. Além disto, colocando a
evidência da existência própria do sujeito no princípio do
acesso ao ser, era este conhecimento de si mesmo (não mais
sob a forma da prova da evidência mas sob a forma da in-
dubitabilidade de minha existência como sujeito) que fazia
... Ouve-se apenas: "qualquer que seja o esforço...".
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 19
do Ifconhece-te a ti mesmo" um acesso fundamental à ver-
dade. Certamente, entre o gnôthi seautón socrático e o pro-
cedimento cartesiano, a distância é imensa. Compreende-se
porém por que, a partir deste procedimento, o princípio do
gnôthi seautón como fundador do procedimento filosófico,
pôde ser aceito, desde o século XVII portanto, em certas
práticas ou procedimentos filosóficos. Mas, se, pois, o pro-
cedimento cartesiano, por razôes bastante simples de com-
preender, requalificou o gnôthi seaulón, ao mesmo tempo
muito contribuiu, e sobre isto gostaria de insistir, para des-
qualificar o princípio do cuidado de si, desqualificá-Io e ex-
cluí-lo do campo do pensamento filosófico moderno.
Tomemos alguma distância. Chamemos de "filosofia",
se quisermos, esta forma de pensamento que se interroga,
não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é
falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver ver-
dadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não sepa-
rar o verdadeiro do falso. Chamemos "filosofia" a forma de
pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujei-
to ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta de-
terminar as condições e os limites do acesso do sujeito à
verdade. Pois bem, se a isto chamarmos "filosofia", creio
-- que poderíamos chamar de "espiritualidade" o conjunto de
buscas, práticas e experiências tais COmo as pUrificações, as
asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modifica-
ções de existência, etc., que constituem, não para o conhe-
cimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o
preço a pagar para ter acesso à verdade. Digamos que a es-
piritualidade, pelo menos como aparece no Ocidente, tem
três caracteres.
A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada
de pleno direito ao sujeito. A espiritualidade postula que o su-
jeito enquanto tal não tem direito, não possui capacidade de
ter acesso à verdade. Postula que a verdade jamais é dada
ao sujeito por um simples ato de conhecimento, ato que se-
ria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por ter
tal e qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade de que
22. rr
l
20 AHERMENtUTlCA DO SUJEITO
o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, tome-se,
em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mes-
mo, para ter direito a [oJ acesso à verdade. A verdade só é
dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo
do sujeito. Pois, tal como ele é, não é capaz de verdade. Acho
que esta é a fórmula mais simples porém mais fundamen-
tal para definir a espiritualidade. Isto acarreta, como conse-
qüência, que deste ponto de vista não pode haver verdade
sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito.
Esta conversão, esta transformação - e aí estaria o segundo
grande aspecto da espiritualidade - pode fazer-se sob dife-
rentes formas. Digamos muito grosseiramente (trata-se
aqui também de um sobrevôo muito esquemático) que esta
conversão pode ser feita sob a forma de um movimento que
arranca o sujeito de seu status e de sua condição atual (mo-
vimento de ascensão do próprio sujeito; movimento pelo
qual, ao contrário, a verdade vem até ele e o ilumina). Cha-
memos este movimento, também muito convencionalmen-
te, em qualquer que seja seu sentido, de movimento do éros
(amor). Além desta, outra grande forma pela qual o sujeito
pode e deve transformar-se para ter acesso à verdade é um
trabalho. Trabalho de si para consigo, elaboração de si para
consigo, transformação progressiva de si para consigo em
que se é o próprio responsável por um longo labor que é o
da ascese (áskesis). Éros e áskesis são, creio, as duas grandes
formas com que, na espiritualidade ocidental, concebemos
as modalidades segundo as quais o sujeito deve ser transfor-
mado para, finalmente, tomar-se sujeito capaz de verdade.
É este o segundo caráter da espiritualidade.
Enfim, a espiritualidade postula que, quando efetiva-
mente aberto, o acesso à verdade produz efeitos que segura-
mente são conseqüência do procedimento espiritual realiza-
do para atingi-la, mas que ao mesmo tempo são outra coisa
e bem mais: efeitos que chamarei"de retomo" da verdade'
sobre o sujeito. Para a espiritualidade, a verdade não é sim-
plesmente o que é dado ao sujeito a fim de recompensá-lo,
de algum modo, pelo ato de conhecimento e a fim de preen-
--
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 21
cher este ato de conhecimento. A verdade é o que ilumina
o sujeito; a verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o
que lhe dá tranqüilid~de de alma. Em suma, na verdade e
no acesso à verdade/há alguma coisa que completa o pró-
prio sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o
transfigura. Resumindo, acho que podemos dizer o seguinte:
para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mes-
mo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verda-
de se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, con-
sumado por certa transformação do sujeito, não do individuo,
mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito.
-~Há, sem dúvida, em relação a tudo o que acabo de dizer,
uma enorme objeção, uma enorme exceção, sobre a qual será
preciso voltar, que é a gnose49
• Mas a gnose, e todo o movi-
mento gnóstico, é precisamente um movimento que sobre-
carrega o ato de conhecimento, ao [qualJ, com efeito, atri-
bui-se a soberania no acesso à verdade. Sobrecarrega-se o
ato de conhecimento com todas as condições, toda a estru-
tura de um ato espiritual. A gnose é, em suma, o que tende
sempre a transferir, a transportar para o próprio ato de co-
nhecimento as condições, formas e efeitos da experiência
espiritual. Digamos esquematicamente: durante todo este
período que chamamos de Antiguidade e segundo moda-
lidades que foram bem diferentes, a questão filosófica do
/I como ter acesso à verdade" e a prática de espiritualidade
(as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito que
permitirão o acesso à verdade) são duas questões, dois te-
mas que jamais estiveram separados. Não estiveram sepa-
rados para os pitagóricos, é claro. Não estiveram separados
também para Sócrates e Platão: a epiméleia heautoú (cuida-
do de si) designa precisamente o conjunto das condições de
espiritualidade, o conjunto das transformações de si que cons-
tituem a condição necessária para que se possa ter acesso à
verdade. Portanto, durante toda a Antiguidade (para os pi-
tagóricos, para Platão, para os estóicos, os cínicos, os epicu-
ristas, os neoplatônicos, etc.), o tema da filosofia (como ter
acesso à verdade?) e a questão da espiritualidade (quais são
Instituto de P,ico!c'S;), - U~RGS
Biblioteca
23. L
22 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
as transfonnações no ser mesmo do sujeito necessárias para
ter acesso à verdade?) são duas questões que jamais estive~
ram separadas. Existe, bem entendido, exceção. A exceção
maior e fundamental é a daquele que, precisamente, chama~
mos "o" filósofoso, porque ele foi, sem dúvida, na Antigui~
dade, o único filósofo; aquele dentre os filósofos para quem
a questão da espiritualidade foi a menos importante; aque~
le em quem reconhecemos o próprio fundador da filosofia
no sentido moderno do tenno, que é Aristóteles. Contudo,
como sabemos todos, Aristóteles não é o ápice da Antigui~
dade, mas sua exceção.
Pois bem, se fizennos agora um salto de muitos séculos,
podemos dizer que entramos na idade moderna (quero di~
zer, a história da verdade entrou no seu periodo moderno)
no dia em que admitimos que o que dá acesso à verdade, as
condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à ver~
dade, é o conhecimento e tão~somente o conhecimento. É
aí que, parece-me, o que chamei de "momento cartesiano"
encontra seu lugar e sentido, sem que isto signifique que é
de Descartes que se trata, que foi exatamente ele o inventor,
o primeiro a realizar tudo isto. Creio que a idade moderna
da história da verdade começa no momento em que o que
pennite aceder ao verdadeiro é o próprio conhecimento e
somente ele. Isto é, no momento em que o filósofo (ou o sá~
bio, ou simplesmente aquele que busca a verdade), sem que
mais nada lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito
deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e
unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer
a verdade e a ela ter acesso. O que não significa, é claro, que
a verdade seja obtida sem condição. Contudo, estas condi~
ções são agora de duas ordens e nenhuma delas concerne à
espiritualidade. Por um lado, há condições internas do ato
de conhecimento e regras a serem por ele seguidas para ter
acesso à verdade: condições fonnais, condições objetivas, re~
gras fonnais do método, estrutura do objeto a conhecer'1 De
todo modo porém, é do interior do conhecimento que são
definidas as condições de acesso do sujeito à verdade. As ou~
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 23
tras condições são extrínsecas. Condições tais como: "não
se pode conhecer a verdade quando se é louco"(importân~
cia deste momento em Descartes52
). Condições culturais
também: para ter acesso à verdade é preciso ter realizado
estudos, ter uma formação, inscrever-se em algum consen-
so científico. E condições morais: para conhecer a verdade,
é bem preciso esforçar-se, não tentar enganar seus pares, é
preciso que os interesses financeiros, de carreira ou de sta-
tus ajustem~se de modo inteiramente aceitável com as nor~
mas da pesquisa desinteressada, etc. Como vemos, dentre
todas estas condições, algumas são intrínsecas ao conheci~
menta, outras bem extrínsecas ao ato de conhecimento,
mas não concernem ao sujeito no seu ser: só concernem ao
individuo na sua existência concreta, não à estrutura do su~
jeito enquanto tal. A partir deste momento (isto é, do mo~
mento em que se pode dizer: "de todo modo, tal como é, ('j
sujeito é capaz de verdade", sob as duas reservas quaAt.:r-ã
condições intrínsecas ao conhecimento e a condições extrín~
secas ao individuo'), desde que, em função da necessidade
de ter acesso à verdade, o ser do sujeito não esteja posto em
questão, creio que entramos numa outra era da história das
__ relações entre subjetividade e verdade. A conseqüência disto
ou, se quisermos, o outro aspecto, é que o acesso à verda-
de, cuja condição doravante é tão~somente o conhecimento,
nada mais encontrará no conhecimento, como recompensa
e completude, do que o caminho indefinido do conheci~
menta. Aquele ponto de iluminação, aquele ponto de com~
pletude, aquele momento da transfiguração do sujeito pelo
U efeito de retorno" da verdade que ele conhece sobre si mes~
mo, e que transita, atravessa, transfigura seu ser, nada disto
pode mais existir. Não se pode mais pensar que, como co~
'" O manuscrito (termo com que designamos as notas escritas que
serviram de suporte a Foucault para ministrar este curso no College de
France) permite assim compreender este último ponto: condições ex-
trínsecas, isto é, individuais.
24. l
24 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
roamento ou recompensa, é no sujeito que o acesso à ver-
dade consumará o trabalho ou o sacrifício, o preço pago para
alcançá-la. O conhecimento se abrirá simplesmente para a
dimensão indefinida de um progresso cujo fim não se co-
nhece e cujo benefício só será convertido, no curso da his-
tória, em acúmulo instituído de conhecimentos ou em be-
nefícios psicológicos ou sociais que, no fim das contas, é
tudo o que se consegue da verdade, quando foi tão difícil
buscá-la. Tal como doravante ela é, a verdade não será ca-
paz de salvar o sujeito. Se definirmos a espiritualidade como
o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele
é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é,
é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que
a idade moderna das relações entre sujeito e verdade come-
ça no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é
capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não
é capaz de salvar o sujeito.
Bem, se quisermos, um pequeno repouso de cinco mi-
nutos e recomeçaremos em seguida.
NOTAS
1. A partir do ano de 1982, Foucault, que até então conduzia
ao mesmo tempo, no CoIlege de France, um seminário e um curso,
decide abandonar o seminário e só ministrar um único curso de
duas horas.
2. O. Resumo do curso do ano 1980-1981 no Collége de France,
in M. Foucault, Dits et Éerits, 1954-1988, ed. por D. Defer! & F.
Ewald, colab.J. Lagrange, Paris, Gallimard, 1944, 4 vaI. [mais adian-
te: referência a esta edição]; cf. N, n. 303, pp. 213-8.
--- 3. Para a primeira elaboração deste terna, cf. aula de 28 de ja-
neiro de 1981, mas, sobretudo, L'Usage des plaisirs (Paris, Gallimard,
1984, p. 47-62). [Trad. bras. de Maria Thereza da Costa Albuquer-
que, revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque, O uso
dos prazeres, Rio de Janeiro, Graal, 1984, pp. 38-50. (N. dos T.)J
Pode-se dizer que por aphrodísia Foucault entende uma experiên-
cia, e uma experiência histórica: a experiência grega dos prazeres,
distinta da experiência cristã da carne e daquela, moderna, da sexua-
lidade. Os aphrodísia são designados como a "substância ética" da
moral antiga.
4. Éna primeira aula do ano de 1981 ("Subjectivité et Vérité",
aula de 7 de janeiro) que Foucault anuncia que a questão que real-
mente estará em jogo nas pesquisas empreendidas é a de com-
preender se nosso código moral, em seu rigor e pudor, não teria
sido elaborado precisamente pelo paganismo (o que, de resto, tor-
25. 26 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
naria problemática a cisão entre cristianismo e paganismo no qua-
dro de uma história da moral).
5. As aulas de 1981 não incluem desenvolvimentos explícitos
sobre o cuidado de si. Em contrapartida, nelas se encontram lan-
gas análises sobre as artes de existência e os processos de subjeti-
vação (aulas de 13 de janeiro, de 25 de março e de I? de abril). De
modo gerai, entretanto, o curso de 1981 continua, por um lado, a ver-
sar exclusivamente sobre o status dos aphrodísia na ética pagã dos
dois primeiros séculos de nossa era e, por outro, mantém a idéia
de que não se pode falar de subjetividade no mundo grego, quando
o elemento ético se deixa determinar como bíos (modo de vida).
6. Todos os textos importantes de Cícero, Lucrécio e Sêneca
sobre estes problemas de tradução estão reunidos por Carlos Lévy
em seqüência ao seu artigo: "Du grec au latin", in Le Discours phi-
/osophique, Fluis, PUF, 1998, p. 1145-54.
7. "Se tudo faço no interesse de minha pessoa é porque o in-
teresse que deposito em minha pessoa tudo precede (si omnia prop-
ter curam meifacio, ante omnia est mei cura)". (Séneque, Lettres à Lu-
ci/ius, t.Y, livro XIX-XX, carta 121,17, trad. Ir. H. Noblot, Paris, Les
SelIes Lettres, 1945 [mais adiante: referência a esta edição], p. 78).
8. Cf. P. Courcelle, Connais toi-même, de Socrate à Saint Ber-
nard, Paris, Études augustiniennes, 1974, 3 tomos.
9. Épictete, Entretiens, I1I, 1, 18-19, trad. Ir. J. Souilhé, Paris, Les
SelIes Lettres, 1963 [mais adiante: referência a esta edição], p. 8. a.
a análise deste mesmo texto na aula de 20 de janeiro, segunda hora.
10. Para os gregos, Delfos era o centro geográfico do mundo
(omphalós: umbigo do mundo), onde se haviam encontrado as
duas águias enviadas por Zeus a partir das bordas opostas da circun-
ferência da Terra. Delfos tomou-se um centro religioso importante
desde o fim do séculoVIII a.c. (santuário de Apolo de onde a Pitia
emitia oráculos) e assim permaneceu até o fim do século N d.C.,
ampliando então sua audiência para todo o mundo romano.
11. W. H. Roscher, "Weiteres über die Sedeutung des E {gguaJ
zu Delphi und die übrigengrammala Delphika", Philologus, 60, 1901,
p.81-101.
12. Esta é a segunda máxima: "engya, parà d'áte". Cf. a declara-
ção de Plutarco: "Eu não poderei explicar-te, enquanto não tiver
aprendido com estes senhores o que querem dizer seu Nada em de-
masia, seu Conhece-te ati mesmo e esta famosa máxima, que impediu
tantas pessoas de se casar, que tomou outras tantas desconfiadas, e
--
........
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 27
outras mudas: comprometer-se traz infelicidade (engya, parà d'ála)" (Le
Banquet des sepl sages, 164b in Oeuvres morales, t. 11, trad. Ir. J. Delra-
das, j. Hani & R Klaerr, Paris, Les Senes Lettres, 1985, p. 236).
13. J. Delradas, Les Thémes de la propagande delphique, Paris,
Klincksieck, 1954, capo I1I: "La sagesse delphique", pp. 268-83.
14. "Então, Sócrates: Dize-me, Eutidemo, perguntou ele, já
estiveste em Delfos? - Sim, por Zeus, respondeu Eutidemo; estive
até duas vezes. - Então viste em algum lugar no templo a inscri-
ção: Conhece-te a ti mesmo? - Sim. - Tu a viste distraidamente ou
prestaste atenção e tentaste examinar quem tu és?/I (Xénophon,
Mémorab/es, IV; 11, 24, trad. Ir. P. Charnbry, Paris, Gamier-Flamma-
rion, 1966, p. 390).
15. Na maioria das vezes, Foucault utiliza para seus cursos as
edições das SelIes Lettres (também chamadas edições Budé), que
lhe permitem ter, em face da tradução, o texto em língua original
(grega ou latina). Por isto, em se tratando de termos ou passagens
importantes, ele faz acompanhar sua leitura de referências ao tex-
to na língua original. Aliás, quando Foucault faz a leitura de tradu-
ções francesas, não as segue sempre literalmente, adapta-as às exi-
gências do estilo oraC multiplicando os conectares lógicos ("et",
"ou", "c'est-à-dire", "eh bien", etc.) ou então realizando retomadas da
argumentação precedente. Restituiremos, no mais das vezes, a tra-
dução francesa originaC indicando, no corpo do texto, os acrésci-
mos significativos (seguidos de: M.F.) entre colchetes. [Seguiremos
a mesma orientação, utilizando aqueles conectores lógicos em sua
versão traduzida ("e", "ou", "isto é", "pois bem"). (N. dos T.)]
16. Ap%gie de Socrale, 29d, in Platon, Oeuvres completes, t. I,
trad. Ir. M. Croiset, Paris, Les SelIes Lettres, 1920, pp. 156-7.
17. Foucault faz aqui a economia de uma frase em 30a: "En-
tão, se me parecer certo que ele não possui a virtude, embora o
afirme, eu o repreenderei por dar tão pouco valor ao que vale mais
e muito ao que vale menos" (id., p. 157).
18. Id., 30a, pp. 156-7
19. "Eu vos declaro: se me condenardes à morte, sendo eu
como sou, não é a mim que causareis mais dano, mas a vós mes-
mos" (id., 30c, p. 158).
20. Foucault está aqui se referindo a todo um desenvolvi-
mento que vai de 3a até 31c (id., pp. 158-9).
21. Em 35e-37a, Sócrates, que acabara de tomar conheci-
mento de sua condenação à morte, propõe uma pena de substitui-
26. "1:1
28 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
ção. Com efeito, no tipo de processo de que ele se tornou objeto,
nenhuma pena está fixada pela lei: são os juízes que a estabele-
cem. A pena solicitada pelos acusadores (e indicada no próprio ato
de acusação) é a morte, e os juízes acabam de reconhecer Sócra-
tes culpado pelos delitos de que o censuram e, portanto, suscetível
de incorrer nesta pena. Mas, neste momento do processo, Sócra-
tes, reconhecido culpado, deve propor uma pena de substituição.
Somente depois é que cumpre aos juízes fixar para o acusado um
castigo, a partir das proposições penais das duas partes. Para maio-
res detalhes, cf. C. Mossé, Le Proces de Socrate, Bruxelas, Éd. Com-
plexe, 1996, assim como a longa introdução de L. Brisson à sua edi-
ção da Apologie de Socrate (Paris, Gamier-Flammarion, 1997).
22. Apologie de Socrate, 36c-d, in Platon, Oeuvres comp/étes, t. I,
trad. M. Croiset, ed. citada, pp. 165-6.
23. Alusão à célebre passagem de 28d: "É que o verdadeiro
princípio, atenienses, é o seguinte: quem quer que ocupe um pos-
to (taxe) - seja por tê-lo escolhido como o mais honroso, seja por
ter sido nele instalado por um chefe - tem como dever, na minha
opinião, permanecer firme nele, sob qualquer risco, sem ter em
conta nem a morte possível, nem qualquer perigo, exceto a deson-
ra" (id., p. 155). Esta firmeza mantida no próprio posto será louva-
da por Epicteto como a atitude filosófica por excelência (cf., por
exemplo, Entretiens I, 9, 24; m,24, 26 e 95, em que Epicteto empre-
ga alternadamente os termos táxis e khôra; ou ainda o final do co-
lóquio sobre La Constance du sage de Sêneca, XIX.. 4: "Defendei o
posto (locum) que a natureza vos designou. Perguntais qual posto?
O de homem?") (in Sénéque, Dialogues, t. IY, trad. fr. R. Waltz, Paris,
Les Belles Leltres, 1927, p. 60).
24. Sócrates previne os atenienses quanto ao que ocorreria se
o condenassem à morte: "passaríeis o resto de vossa vida a dor-
mir" (id., 31a, p. 159).
25. "Se me matardes, não encontrareis facilmente um outro
homem [... 1dedicado, pela vontade dos deuses, a vos estimular
como um tavão estimularia um cavalo" (id., 30e, p. 158).
26. "Conseguia Sócrates persuadir a todos os que dele se
aproximavam a se ocuparem consigo mesmos (epimélesthai heau-
tôn)?"(Entretiens, m, 1, 19, p. 8).
27. Encontra-se na Lettre à Ménécée. Mais exatamente, diz o
texto: "Para ninguém é demasiado cedo nem demasiado tarde para
assegurar a saúde da alma [...]. De modo que devem filosofar tan-
-i
AULA DE 6 DEJANEIRO DE 1982 29
to o jovem quanto o velho" (Épicure, Lettres et maximes, trad. M.
Conche,VIllers-sur-Mer, Éd. De Mégare, 1977 [mais adiante: refe-
rência a esta edição], parágrafo 122, p. 217); citação retomada por
Foucault em Histoire de la sexualité, t. IH: Le Souci de soi, Paris, Gal-
Iimard, 1984 [mais adiante: referência a esta edição], p. 60. [Histó-
ria da sexualidade, t. m, O cuidado de si. Trad. bras. de Maria There-
za da Costa Albuquerque, revisão técnica de José Augusto Guilhon
Albuquerque, Rio de Janeiro, Craal, 1985, p. 51. (N. dos T.)]
28. Na verdade o texto grego traz "tà katà psykhén hugiaínon".
O verbo therapeúein não se acha em Epicuro senão em uma única
ocorrência na SentençaVaticana 55: "É preciso curar (therapeutéon)
os sofrimentos pela grata lembrança daquilo que se perdeu, e por
saber que é impossível tomar não consumado aquilo que aconte-
ceu" (Lettres et maximes, pp. 260-1).
29. Há toda uma temática que toma como centro de gravita-
ção a frase de Epicuro: "Vazio é o discurso do filósofo que não cui-
da de nenhuma afecção humana. Com efeito, assim como uma
medicina que não extirpa as doenças do corpo não tem qualquer
utilidade, assim também uma filosofia, se não extirpa a afecção da
alma (221 Us)" (trad. fr.A-J.Voelke, in La Philosophiecomme théra-
pie de /'âme, Paris, Éd. Du Cerf, 1993, p. 36: cf., na mesma obra, os
artigos: "Santé de l'âme et honheur de la raison. La fondion théra-
peutique de la philosophie dans l'épicurisme" e "Opinions vides
--- et troubles de l'âme: la médication épicurienne").
30. Sêneca, Des bienfaits, t. 11,VII, I, 3-7, trad. fr. F. Préchac, Pa-
ris, Les BeBes Lettres, 1927, pp. 75-7. Este texto será objeto de um
lo~o, exame na aula de 10 de fevereiro, segunda hora.
/ / 31. Cf., para uma conceitualização da noção de cultura de si,
a' aula de 3 de fevereiro, primeira hora.
32. Sobre o conceito de acontecimento em Foucault, cf. Dits
et Écrits, 11, n. 84, p. 136, a propósito das raízes nietzscheanas do
conceito; H, n.l02, p. 260, sobre o valor polêmico do acontecimen-
to no pensamento contra uma metafísica derridiana do originário;
IV, n. 278, p. 23, para o programa de 1/ acontecimentalização" do
saber histórico e, sobretudo, n. 341, p. 580, a propósito do "princí-
pio de singularidade da história do pensamento".
33. "Considerando o sétimo dia como um dia muito santo e
de grande festa, eles o favoreceram com uma honra insigne: na-
quele dia, após os cuidados com a alma (tês psykhês epiméleian), foi
27. 30 A HERMENJ:UTICA DO SUJEITO
o corpo que eles friccionaram com óleo" (philon d'Alexandrie, De
vita contemplativa, 477M, trad. fr. P Miquel, Paris, Éd. Du Cerf, 1963,
parágrafo 36, p. 105).
34. "Contemplaremos então os mesmos objetos que ela [a alma
do universo] porque também nós para isto estaremos bem prepa-
rados, graças à nossa natureza e ao nosso esforço (epimeleíaisY'
(p.lotin, Ennéades, lI, 9, 18, trad. fr. E.Bréhier, Paris, Les Benes Let-
tres, 1924, p. 138).
35. liA lei elimina o destino ensinando que a virtude pode ser
ensinada, pode ser desenvolvida, se a isto nos aplicamos (ex epime-
leías prosginoménen)"(Méthode d'Olympe, Le Banquet, 172c, trad.
fr. V.-H. Debidour, Paris, Éd. Du Cerf, 1963, parágrafo 226, p. 255).
36. "Hóte toínun hê ágan haúte tou sómatos epiméleia autô te
alusitelês tô sómati, kai prós tén psykhên empódion esti; tó ge hypopep-
tokénai toúto kaz therapeúein manía saphês" (liA partir do momento
em que o cuidado excessivo do corpo for inútil para o próprio cor-
po e nocivo à alma, submeter-se e apegar-se então a isto parece
uma evidente loucura" [trad. inédita]). (Basile de Césarée, Sermo
de legendis libris gentilium, p. 584d, in Patrologie grecque, t. 31, éd.
J.-P Migne, SEU Petit-Montrouge, 1857).
37. "Agora que ele [Moisés] elevou-se a um grau mais alto
nas virtudes da alma, tanto por uma longa aplicação (makràs epi-
meleías) quanto pelas luzes do alto, é, ao contrário, um encontro
feliz e pacífico que ele realiza na pessoa de seu irmão [...1.A assis-
tência dada por Deus à nossa natureza [...] só aparece [...] quando
nos familiarizamos suficientemente com a vida do alto pelo pro-
gresso e a aplicação (epimeleias)"(Grégoire de Nysse, La Vie de
Moise, ou Traité de la perfection en matiere de la vertu, 337c-d, trad.
fr. J. Daniélou, Paris, Éd. Du Cerf, 1965, parágrafos 43-44, pp. 130-1;
cf. também parágrafo 55 em 341b, colocando a exigência de um
"estudo longo e sério (toiaútes kai tosaútes epimeleías)", p. 138).
38. "Mas, no momento, eis-me de volta a esta mesma graça,
unida por amor ao meu mestre; fortalecei também em mim o que
esta graça tem de ordenado e estável, vós, amigos de meu aman-
te, que, por vossos cuidados (epimeleía) e vossa atenção, conservais
solidamente em mim meu impulso para o divino" (Grégoire de
Nysse, Le Cantique des cantiques, trad. fr. C. Bouchet, Éd. Migne, Pa-
ris, 1990, p. 106).
39. "Ei oun apoklyseias pálin di'epimeleías bíou ton epiplasthénta
tê kardía sou mpon, analámpsei soi to theoeidês kállos" ("Se, em con-
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 31
trapartida, ao cuidar de tua vida, tu purificares as escórias espalha-
das em teu coração, a beleza divina resplandescerá em ti" [trad.
inédita]) (Grégoire de Nysse, De beatitudinibus, OratioVI, in Patro-
logie grecque, t. 44, p. 1272).
40. Grégoire de Nysse, Traité de la virginité, trad. M. Aubineau,
Paris, Éd. Du Cerf, 1966. Cf., neste mesmo livro, a parábola da
dracma perdida (300c-301c, XII, p. 411-417), freqüentemente cita-
da por Foucault para ilustrar o cuidado de si (em uma conferência
de outubro de 1982, in Dits et Écrits, IV; n. 363, p. 787): "Por impudí-
cia deve-se entender, penso eu, a sujeira da carne: quando a 'var-
remos' e estabelecemos um lugar limpo pelos 'cuidados' (epime-
Ieía) que temos com nossa vida, o objeto aparece em plena luz"
(301c, XII. 3, p. 415).
41. Em uma entrevista de janeiro de 1984, Foucault especifi-
ca que, neste tratado de Gregório de Nissa (303c-305c, XIII, pp.
423-31), o cuidado de si é "definido essencialmente como a renún-
cia a todos os laços terrestres; é a renúncia a tudo que possa ser
amor de si, apego ao 'eu' terrestre" (Dits et Écrits, N, n. 356, p. 716).
42. Sobre o sentido da meléte, cf. aula de 3 de março, segun-
da hora, e de 17 de março, primeira hora.
43. Sobre as técnicas de meditação (e particularmente de me-
ditação sobre a morte), cf. aula de 24 de março, segunda hora, assim
como a aula de 24 de fevereiro, segunda hora, e a de 3 de março,
---"'1"rimeira hora.
44. Sobre o exame de consciência, cf. aula de 24 de março, se-
gunda hora.
45. Sobre a técnica de filtragem das representações, particu-
larmente em Marco Aurélio e comparativamente ao exame das
idéias em Cassiano, cf. aula de 24 de fevereiro, primeira hora.
46. Reconhecer-se-á no "dandismo moral" uma referência a
Baudelaire (cf. as páginas de Foucault sobre Na atitude de moder-
nidade" e o êthos baudelairiano em Dits et t-crits, IV, n. 339, pp.
568-71) e no "estádio estético" uma clara alusão ao tríptico exis-
tencial de Kierkegaard (estádios estético, ético, religioso), sendo a
esfera estética (incamada no Judeu errante, em Fausto e em Dom
Juan) a do indivíduo que, numa busca indefinida, sorve os instan-
tes como se foram átomos precários de prazer (a ironia é que per-
mitirá a passagem à ética). Foucault foi um grande leitor de Kier-
kegaard, ainda que praticamente jamais faça menção a este autor
28. 32 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
que, no entanto, teve para ele uma importância tão secreta quan-
to decisiva.
47. Esta tese do filósofo helenista e romano que não mais en-
contra, nas novas condições sociopolíticas, com o que desdobrar
livremente sua ação moral e política (como se a cidade grega fos-
se desde sempre seu elemento natural) e que encontra no eu uma
saída aviltante, tomou-se um topos, senão uma evidência incon-
testada da história da filosofia (partilhada por Bréhier, Festugiere,
etc.). Durante a segunda metade do século, os artigos de epigrafia
e de ensino de um célebre estudioso cuja audiência era internacio-
nal, Louis Robert ("Opera minora selecla". Épigraphie el antiquilés
grecques, Amsterdam, Hakkert, 1989, t.VI, p. 715), tomaram caduca
esta visão do grego perdido em um mundo grande demais e pri-
vado de sua cidade (devo todas estas indicações a P. Veyne). Esta
tese do apagamento da cidade na época helenística acha-se, por-
tanto, vivamente contestada, após outros, por Foucault em Le Souci
de soi (cf. capítulo III - "Sai et les autres", pp. 101-17: "Le jeu po-
litique"; cf. também, pp. 55-7. [O cuidado de si, op. cil., capítulo IlI,
"Eu e os outros", pp. 88-109: "O jogo potitico"; cf. lambém, pp. 47-9.
N. dosT.]). Para ele, trata-se, primeiramente, de contestar a tese de
um esfacelamento do quadro político da cidade nas monarquias
helenísticas (pp. 101-3; trad. bras.: pp. 88-90. N. dos T.) e, em se-
guida, de mostrar (assunto a que ele também se dedica no presen-
te curso) que o cuidado de si fundamentalmente se define mais
como um modo de viver-junto que como um recurso individualis-
ta ("o cuidado de si [...] aparece então como uma intensificação
das relações sociais", p. 69. [Trad. bras., pp. 58-9. N. dosT.]). P. Ha-
doI (Qu'est-ce que la philosophie antique?, Paris, Gallimard, 1955, pp.
146-7) remete o preconceito de um apagamento da cidade grega
a uma obra de G. Murray de 1012 (Four Slages of Greek Religion,
Nova York, Columbia University Press).
48. Descartes, Médilalions sur la philosophie premiére (1641), in
Oeuvres, Paris, Gallimardl "Bibliothéque de la Pléiade", 1952.
49. O gnosticismo representa uma corrente filosófico-religio-
sa esotérica que se desenvolveu nos primeiros séculos da era cris-
tã. Esta corrente, extremamente difundida, difícil de demarcar e de
definir, foi rejeitada ao mesmo tempo pelos Padres da Igreja e pela
filosofia de inspiração platônica. A "gnose" (do grego gnôsis: conhe-
cimento) designa um conhecimento esotérico capaz de oferecer a
salvação a quem a ele tem acesso e representa, para o iniciado, o
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 33
saber de sua origem e de sua destinação, assim como os segredos
e mistérios do mundo superior (trazendo com eles a promessa de
uma viagem celeste), alcançados a partir de tradições exegéticas
secretas. No sentido deste saber salvador, iniciático e simbólico, a
"gnose" recobre um vasto conjunto de especulações judaico-cris-
tãs a partir da Bíblia. O movimento fi gnóstico" promete pois, pela
revelação de um conhecimento sobrenatural, a liberação da alma
e a vitória sobre um poder cósmico maléfico. Para uma evocação
em um contexto literário, cf. Dits et Écrits, !, n. 21, p. 326. Pode-se
pensar, como me sugeriu A I. Davidson, que Foucault conhecia
bem os estudos de H.-Ch. Puech sobre o assunto (cf. Sur le mani-
chéisme et autres essais, Paris, Flammarion, 1979).
50. "O" filósofo: é assim que Santo Tomás designa Aristóte-
les nos seus comentários.
51. Na classificação das condições do saber que se segue,
reencontramos como que um eco surdo do que Foucault denomi-
nava "procedimentos de limitação dos discursos" na aula inaugu-
ral no Collége de France (I: Ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971).
Todavia, enquanto em 1970 o elemento fundamental era o discur-
so como superfície anônima e branca, aqui tudo se estrutura em
tomo da articulação do "sujeito" e da "verdade".
52. Reconhecemos aqui, como em eco, a famosa análise que
Foucault, no seu Histoire de Ia folie, consagra às Méditations. En-
contrando a vertigem da loucura no exercício da dúvida como ra-
zão de mais duvidar, Descartes a teria a priori excluído, teria recu-
---- sado prestar-se às suas vozes furiosas, preferindo as doçuras am-
bíguas do sonho: fia loucura é excluída pelo sujeito que duvida"
(Hisloire da la folie, Paris, Gallimardl "Tel", 1972, p. 57). Derrida
contestará em seguida esta tese (cf. o texto "Cogito et Histoire de la
folie", in I:Écriture el la différence, Paris, Éd. du Seuil, 1967, pp. 51-97,
que retoma uma conferência pronunciada em 4 de março de 1963
no Collége philosophique), mostrando que o que é próprio do Cogi-
to cartesiano está justamente em assumir o risco de uma "loucura
lotaI", quando recorre à hipótese do Gênio Maligno (pp. 81-2). Sa-
bemos que, mordido por esta crítica, Foucault publicará, alguns
anos mais tarde, uma resposta magistral, alçando, através de uma
rigorosa explicação seqüencial de texto, a querela de especialistas
à altura de um debate ontológico ("Mon corps, ce papier, ce feu",
assim como "Réponse à Derrida", in Dils el Écrits, 11, n. 102, pp. 245-
68, e n. 104, pp. 281-96). Foi assim que nasceu o que chamamos "po-
lêmica Foucault/Derrida" a propósito das Méditations de Descartes.
29. AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982
Segunda hora
Presença conflituosa das exigfucias de espiritualidade:
ciência e teologia antes de Descartes; filosofia clássica e moder- ---.....,
na: marxismo epsicanálise. - Análise de uma sentença Iacede-
mônia: o cuidado de si como privilégio estatutário. - Primeira
análise do Alcibíades de Platão. - As pretensões políticas de
Alcibíades e a intervenção de Sócrates. - A educação de Al-
cibíades comparada com a dos jovens espartanos e dos prínci-
pes persas. - Contextualização do primeiro aparecimento, no
Alcibíades, da exigência do cuidado de si: pretensão política;
déficit pedagógico; idade crítica; ausência de saber político. -
A natureza indeterminada do eu e sua implicação política.
Apesar de minhas boas resoluções e de um emprego
bem enquadrado do tempo, não me ative inteiramente ao ho-
rário, conforme pretendia. Por isso, duas ou três palavras ain-
da sobre o tema geral das relações entre filosofia e espiritua-
lidade e [sobre] as razões pelas quais a noção de cuidado de
si foi pouco a pouco eliminada do pensamento e da preocupa-
ção filosóficos. Dizia eu há pouco que me parece ter havido
um certo momento (quando digo "momento", não se trata,
de modo algum, de situar isto em uma data e localizá-Jo, nem
de individualizá-lo em torno de uma pessoa e somente uma)
[em que] o vínculo foi rompido, definitivamente creio, entre o
acesso à verdade, tomado desenvolvimento autônomo do co-
nhecimento, e a exigência de uma transformação do sujeito e
do ser do sujeito por ele mesmo*. Quando cJigo "creio que isto
.. Mais precisamente, o manuscrito traz que este vínculo foi rom~
pido Ifquando Descartes disse que a filosofia sozinha se basta para o co-
nhecimento, e quando Kant completou dizendo que se o conhecimento
tem limites, eles estão todos na própria estrutura do sujeito cognoscen-
te, isto é, naquilo mesmo que permite o conhecimento".
30. l
36
A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
foi definitivamente rompido", inútil afinnar-Ihes que não
acredito em nada disto e que todo o interesse da situação está,
precisamente, em que os vínculos não foram bruscamente
rompidos comO que por um golpe de espada.
Para começar, consideremos a situação, se quisennos, na
direção ascendente. O corte não se fez bem assim. Não se
fez no dia em que Descartes colocou a regra da evidência ou
descobriu o Cogito, etc. Havia muito tempo já se iniciara o tra-
baho para desconectar o princípio de um acesso à verdade
unicamente noS tennos do sujeito cognoscente e, por outro
lado, a necessidade espiritual de um trabalho do sujeito sobre
si mesmo, transfonnando-se e esperando da verdade sua
iluminação e sua transfiguração.. Havia muito tempo que a
dissociação começara a fazer-se e que um certo marco fora
cravado entre estes dois elementos. E este marco, bem enten-
dido, deve ser buscado... do lado da ciência? De modo al-
gum. Deve-se buscá-lo do lado da teologia. A teologia (esta
teologia que, justamente, pode fundar-se em Aristóteles -
confer o que lhes dizia há pouco - e que, com Santo Tomás,
a escolástica, etc., ocupará, na reflexão ocidental, o lugar que
conhecemos), ao adotar como reflexão racional fundante, a
partir do cristianismo, é claro, uma fé cuja vocação éuniver-
sal, fundava, ao mesmo tempo, o princípio de um sujeito cog-
noscente em geral, sujeito cognoscente que encontrava em
Deus, a um tempo, seu modelo, seu ponto de realização ab-
soluto, seu mais alto grau de perfeição e, simultaneamente,
seu Criador, assim como, por conseqüência, seu modelo. A
correspondência entre um Deus que tudo conhece e sujeitos
capazes de conhecer, sob o amparo da fé é claro, constitui
sem dúvida um dos principais elementos que fazem [fizeram]
com que o pensamento - ou as principais fonnas de refle-
xão _ ocidental e, em particular, o pensamento filosófico se
tenham desprendido, liberado, separado das condições de es-
piritualidade que os haviam acompanhado até então, e cuja
formulação mais geral era o princípio da epiméleia heautou.
Creio ser preciso compreender bem o grande conflito que
atravessou o cristianismo desde o fim do séculoV (incluindo
o
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 37
Santo Agostinho, sem dúvida) até o século XVll. Durante es-
tes doze séculos, o conflito não ocorria entre a espirituali-
dade e a ciência, mas entre a espiritualidade e a teologia. E a
melhor prova de que não era entre a espiritualidade e a ciência
está no florescimento de todas aquelas práticas do conheci-
mento espiritual, todo aquele desenvolvimento de saberes
esotéricos, toda aquela idéia -veja-se o tema de Fausto que
seria muito interessante para reinterpretar nesta direção' -,
segundo os quais não pode existir saber sem uma modifi-
cação profunda no ser do sujeito. Que a alquimia, por exem-
plo, e que todo um enonne painel de saberes tenham sido
considerados, naquela época, como alcançáveis somente ao
preço de uma modificação no ser do sujeito, é prova bastan-
te de que não havia oposição constitutiva, estrutural, entre
ciência e espiritualidade. A oposição se situava entre pensa-
mento teológico e exigência de espiritualidade. Portanto, o
desprendimento não se fez bruscamente com o aparecimen-
to da ciência moderna. O desprendimento, a separação, foi
um processo lento, processo cuja origem e desenvolvimento
devem antes ser vistos do lado da teologia.
Também não se deve imaginar que foi no que chamei,
de maneira totalmente arbitrária, de momento cartesiano,
que o corte tivesse sido feito e definitivamente feito. Ao
contrário, é muito interessante ver de que modo, no século
XVII, foi colocada a questão da relação entre as condições
de espiritualidade e o problema do percurso e do método
para chegar à verdade. Houve múltiplas superfícies de con-
tatos, múltiplos pontos de fricção, múltiplas fonnas de inter-
rogação. Tomemos, por exemplo, uma noção muito interes-
sante, característica do final do século XVI e começo do XVll:
a noção de refonna do entendimento. Consideremos, mais
precisamente, os nove primeiros parágrafos da Reforma do
entendimento de Espinosa2
Veremos de uma maneira muito
clara - por razões que conhecemos bem e sobre as qúais
não preciso insistir - de que modo o problema do acesso à
verdade, em Espinosa, estava ligado, em sua própria fonnu-
lação, a urna série de exigências que concerniam ao ser mes-
31. 38 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
mo do sujeito: em que e como devo transformar meu ser mes-
mo de sujeito? Que condições devo lhe impor para poder
ter acesso à verdade, e em que medida este acesso à verda-
de me concederá o que busco, isto é, o bem soberano, o so-
berano bem? Esta é uma questão propriamente espiritual, e
acho que o tema da reforma do entendimento no século XVII
é inteiramente característico dos laços ainda muito estritos,
muito estreitos, muito cerrados, entre, digamos, uma filoso-
fia do conhecimento e uma espiritualidade da transforma-
ção do ser do sujeito por ele próprio. Se tomarmos agora a
questão, não na direção ascendente mas na descendente, se
passarmos para o outro lado, a partir de Kant, creio que tam-
bém aí veremos que as estruturas da espiritualidade não
desapareceram, nem da reflexão filosófica nem mesmo tal-
vez do saber. Haveria... mas quanto a isto não quero agora
sequer fazer um esboço, apenas algumas indicações. Retome-
mos toda a filosofia do século XIX - enfim, quase toda: Hegel
certamente, Schelling, Shopenhauer, Nietzsche, o Husserl da
Krisis3, também Heidegger' - e veremos precisamente que,
seja desqualificado, desvalorizado, considerado criticamente,
seja, ao contrário, exaltado como em Hegel, de todo modo
porém, o conhecimento, o ato de conhecimento permane-
ce ainda ligado às exigências da espiritualidade. Em todas
estas filosofias, há uma certa estrutura de espiritualidade que
tenta vincular o conhecimento, o ato de conhecimento, as
condições deste ato de conhecimento e seus efeitos, a uma
transformação no ser mesmo do sujeito. Afinal, não é outro
o sentido da Fenomenologia do espíritoS. E podemos conside-
rar, creio eu, toda a história da filosofia do século XIX como
uma espécie de pressão pela qual se tentou repensar as es-
truturas da espiritualidade no interior de uma filosofia que,
desde o cartesianismo, ou em todo caso, desde a filosofia do
século XVII, se buscava desprender destas mesmas estrutu-
ras. Donde a situação de hostilidade, profunda aliás, entre
todos os filósofos [de] tipo clássico - Descartes, Leibniz,
etc., todos aqueles que reivindicam aquela tradição - e esta
filosofia do século XIX que, com efeito, é uma filosofia que
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 39
coloca, implicitamente ao menos, a velha questão da espiri-
tualidade e que reencontra, sem dizê-lo, o cuidado com o
cuidado de si.
Entretanto, eu diria que até no campo do saber propria-
mente dito esta pressão, este ressurgimento, este reapareci-
mento das estruturas de espiritualidade é, de algum modo,
muito sensível. Se é verdade, como dizem todos os cientis-
tas, que podemos reconhecer uma falsa ciência pelo fato de
que, para ser acessível, ela demanda uma conversão do su-
jeito e promete, ao termo de seu desenvolvimento, uma ilu-
minação do sujeito; se podemos reconhecer uma falsa ciência
pela sua estrutura de espiritualidade (isto é evidente, todos
os cientistas o sabem), não se deve esquecer que, em formas
de saber que não constituem precisamente ciências, e que
não devemos assimilar à estrutura própria da ciência, reen-
contramos, de maneira muito forte e muito nítida, alguns
elementos ao menos, algumas exigências da espiritualidade.
Dispensável, por certo, traçar-lhes um desenho: de imedia-
to reconhecemos uma forma de saber como o marxismo ou
a psicanálise. Assimilá-los à religião é, evidentemente, total
engano. Isto não faz nenhum sentido e nada acrescenta. Em
contrapartida, se considerarmos um e outra, sabemos bem
que, por razões totalmente diferentes mas com efeitos rela-
tivamente homólogos, no marxismo como na psicanálise, o
problema a respeito do que se passa com o ser do sujeito
(do que deve ser o ser do sujeito para que ele tenha acesso à
verdade) e a conseqüente questão acerca do que pode ser
transformado no sujeito pelo fato de ter acesso à verdade,
estas duas questões repito, absolutamente características da
espiritualidade, serão por nós reencontradas no cerne mes-
mo destes saberes ou, em todo caso, de ponta a ponta em
ambos. De modo algum afirmo que são formas de espiri-
tualidade. O que quero dizer é que nestas formas de saber
reencontramos as questões, as interrogações, as exigências
que, a meu ver - sob um olhar histórico de pelo menos um
ou dois milênios -, são as muito velhas e fundamentais ques-
tões da epiméleia heautoú e, portanto, da espiritualidade
32. 40 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
como condição de acesso à verdade. Ocorreu, bem enten-
dido, que nem uma nem outra destas duas formas de saber
levou muito explicitamente em consideração, de maneira
clara e corajosa, este ponto de vista. Tentou-se mascarar es-
tas condições de espiritualidade próprias a tais formas de
saber no interior de certas formas sociais. A idéia de uma po-
sição de classe, de efeito de partido, o pertencimento a um
grupo, a uma escola, a iniciação, a formação do analista, etc.,
tudo nos remete às questões da condição de formação do
sujeito para o acesso à verdade, pensadas porém em termos
sociais, em termos de organização. Não são pensadas no
recorte histórico da existência da espiritualidade e de suas
exigências. Ao mesmo tempo, o preço pago para transpor-
tar, para remeter as questões verdade e sujeito a proble-
mas de pertencimento (a um grupo, uma escola, um parti-
do, uma classe, etc.) foi, bem entendido, o esquecimento da
questão das relações entre verdade e sujeito*. E parece-me
que todo o interesse e a força das análises de Lacan estão
precisamente nisto: creio que Lacan foi o único depois de
Freud a querer recentralizar a questão da psicanálise preci-
samente nesta questão das relações entre sujeito e verdade'.
Isto significa que, em termos inteiramente estranhos à tra-
dição histórica desta espiritualidade, seja a de Sócrates, seja
a de Gregório de Nissa e de todos os intermediários entre
eles, em termos do próprio saber analitico, ele tentou colocar
a questão que, historicamente, é propriamente espiritual: a
questão do preço que o sujeito tem a pagar para dizer o ver-
dadeiro e a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato
de que ele disse, de que pode dizer e disse, a verdade sobre
si próprio. Fazendo ressurgir esta questão, acho que ele fez
efetivamente ressurgir, no interior mesmo da psicanálise, a
mais velha tradição, a mais velha interrogação, a mais velha
,.. Acerca da relação verdade-sujeito, o manuscrito explicita que o
fato de não ter sido jamais pensado teoricamente acarretou um po-
sitivismo, um psicologismo para a psicanálise.
I
I
I .
I
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 41
inquietude desta epiméleia heautoú, que constituiu a forma
mais geral da espiritualidade. Esta questão, que não me cabe
resolver, é certamente a seguinte: é possível, nos próprios
termos da psicanálise, isto é, dos efeitos de conhecimento
portanto, colocar a questão das relações do sujeito com a
verdade, que - do ponto de vista, pelo menos, da espiritua-
lidade e da epiméleia heautoú - não pode, por definição, ser
colocada nos próprios termos do conhecimento?
Quanto a isto, é o que queria dizer-lhe. Passemos ago-
ra a um exercício mais simples. Retomemos aos textos. Não
pretendo, por certo, refazer toda a história desta noção, des-
ta prática, destas regras do cuidado de si a que me referi.
Neste ano - e repito, ressalvadas minhas imprudências cro-
nológicas e minha incapacidade de cumprir o emprego do
tempo -, tentarei isolar três momentos que me parecem in-
teressantes: o momento socrático-platônico, de surgimento
da epiméleia heautoú na reflexão filosófica; em segundo lugar,
o período da idade de ouro da cultura de si, da cultura de si
mesmo, do cuidado de si mesmo, que pode ser situado nos
dois primeiros séculos de nossa era; e depois a passagem
aos séculos N-V; passagem, genericamente, da ascese filo-
sófica pagã para o ascetismo cristão'.
Primeiro momento, o momento socrático-platônico. O
texto a que então gostaria de referir-me é essencialmente o
que constitui a análise, a própria teoria do cuidado de si;
longa teoria que está desenvolvida na segunda parte e em
todo o desfecho do diálogo chamado Alcibíades. Antes de
começar a ler este texto, gostaria de lembrar duas coisas.
Primeiro, se é verdade que é com Sócrates, e em particular
no texto Alcibíades, que assistimos à emergência do cuida-
do de si na reflexão filosófica, não devemos contudo esque-
cer que o princípio 1/ocupar-se consigo - como regra, corno
imperativo, imperativo positivo do qual muito se espera _
não foi, desde a origem e ao longo de toda a cultura grega,
uma recomendação para filósofos, uma interpelação que
um filósofo dirigia aos jovens que passam pela rua. Não foi
uma atitude de intelectual, nem um conselho dado por ve-
Instituto de PSicologia - UFRGS
Biblioteca ---
33. ~'
I',
)
42 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
lhos sábios a alguns jovens demasiado apressados. Não, a
afirmação, o princípio é preciso ocupar-se consigo mes-
mo era uma antiga sentença da cultura grega. Uma senten-
ça' em particular, lacedemônia. Em um texto, aliás tardio pois
é de Plutarco, referente porém a uma sentença manifesta-
mente ancestral e plurissecular, Plutarco retoma uma pala-
vra que teria sido de Alexândrides, um lacedemônio, um es-
partano, a quem um dia se teria perguntado: mas afinal, vós,
espartanos, sois um tanto estranhos; tendes muitas terras
e vossos territórios são imensos ou, pelo menos, muito im-
portantes; por que não os cultivais vós mesmos, por que os
confiais a hilotas? E Alexândrides teria respondido: sim-
plesmente para podermos nos ocupar com nós mesmos
Entendamos, quando o espartano diz - temos que nos ocu-
par com nós mesmos e, por conseqüência, não temos que
cultivar nossas terras -, é evidente que não se trata, absolu-
tamente, [de filosofia]. Sendo pessoas para as quais a filoso-
fia, o intelectualismo, etc., não eram valores muito positivos,
tratava-se, para elas, da afirmação de uma forma de existên-
cia ligada a um privilégio e um privilégio político: se temos
hilotas, se não cultivamos nós mesmos nossas terras, 'se de-
legamos a outros todos estes cuidados materiais, é para po-
dermos nos ocupar com nós mesmos. O privilégio social, o
privilégio político, o privilégio econômico deste grupo soli-
dário de aristocratas espartanos, manifestava-se desta for-
ma: temos que nos ocupar com nós mesmos e é para po-
dermos fazê-lo que confiamos a outros nossos trabalhos.
Como vemos, ocupar-se consigo mesmo é um princípio
sem dúvida bastante corriqueiro, de modo algum filosófico,
ligado entretanto - e esta será uma questão que reencon-
traremos constantemente ao longo da história da epiméleia
heautou - a um privilégio político, econômico e social.
Portanto, quando Sócrates retoma a questão da epimé-
leia heautou e a formula, retoma-a a partir de uma tradição.
Veremos, aliás, que a referência a Esparta está presente des-
de a primeira grande teoria do cuidado de si no Alcibíades.
Passemos agora então ao texto do Alcibíades. Voltarei, hoje
AUlA DE 6 DEJANEIRO DE 1982
43
ou na próxima vez, a seus problemas, não os de autentici-
dade, que estão praticamente acertados, mas os de datação,
que são muito complicados'. Mas é preciso, sem dúvida, me-
lhor estudar o próprio texto para, concomitantemente, ver
surgirem as questôes. Passo muito rapidamente pelo come-
ço deste diálogo do Alcibíades. Observo apenas que, neste
começo, ao abordar Alcibíades, Sócrates o faz reparar que,
diferentemente de seus outros enamorados, até então jamais
o abordara e somente hoje se decide. E se decide porque se
dá conta de que Alcibíades tem algo em mentelO E se fosse
proposta a Alcibíades a antiga questão, clássica na educa-
ção grega, com referência a Homero, etc.ll, a saber - supon-
do que tivesses que escolher entre morrer hoje ou continuar
a levar uma vida sem nenhum brilho, o que preferirias? _,
pois bem, [Alcibíades responderia]: preferiria morrer hoje a
levar uma vida que não me trouxesse mais do que já tenho. É
por isto que Sócrates aborda Alcibíades. O que é que ele já
tem, e que outra coisa quer mais? Seguem-se detalhes so-
bre a farrulia de Alcibíades, seu status na cidade, privilégios
ancestrais que o situam acima dos outros. Ele tem, diz o
texto, uma das famílias mais empreendedoras da cidade12.
Pelo lado de seu pai - que era um Eupátrida - ele tem boas
relações, amigos, parentes ricos e poderosos. O mesmo pelo
lado da mãe, que era uma Alcmeônida13 Ademais, tendo per-
dido pai e mãe, seu tutor foi ninguém menos que Pérides,
isto é, alguém que faz o que quer, diz o texto, na cidade, na
Grécia mesmo, até em certos países bárbaros14• Acrescente-
se o fato de que Alcibíades é dono de uma avultada fortuna.
Além disso, Alcibíades é belo, todos sabem. Éassediado [por]
muitos enamorados, tem tantos, é tão orgulhoso de sua be-
leza e tão arrogante que a todos dispensou, restando somen-
te Sócrates a obstinar-se em assediá-lo. E por que somente
ele? Pois bem, é porque, precisamente, tendo dispensado to-
dos os seus enamorados, Alcibíades envelheceu. Tem agora
aquela famosa idade crítica dos rapazes, de que lhes falei no
ano passado, e a partir da qual não se pode mais realmen-
te amá-los. Sócrates porém continua a interessar-se por Al-
34. 44 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
cibíades. Não só, também decide, pela primeira vez, dirigir-
lhe a palavra. Por quê? Porque, como lhes dizia há pouco,
compreendeu que Alcibíades tinha em mente mais do que
a vontade de tirar proveito, ao longo da vida, de suas rela-
ções, de sua família, de sua riqueza; e sua beleza está se
acabando. Alcibíades não quer contentar-se com isto. Quer
voltar-se para o povo, quer tomar nas mãos o destino da ci-
dade' quer governar os outros. Em suma, [ele] é alguém
que quer transformar seu status privilegiado, sua primazia
estatutária, em ação política, em governo efetivo dele pró-
prio sobre os outros. E na medida em que esta intenção está
se formando, no momento em que - tendo tirado proveito
ou recusado aos outros o proveito de sua beleza - Al-
cibíades se volta então para o governo dos outros (após o
éros, a pólis, a cidade), é neste momento que Sócrates ouve
o deus que o insr.ira dizer-lhe que pode agora dirigir a pala-
vra a Alcibíades. Ealguém que tem uma tarefa: transformar
o privilégio de status, a primazia estatutária em governo dos
outros. Fica claro no texto que é neste momento que nasce
a questão do cuidado de si. Situação semelhante podemos
encontrar no relato de Xenofonte sobre Sócrates. Por
exemplo, no livro III das Memoráveis, Xenofonte faz refe-
rência a um diálogo, um encontro entre Sócrates e o jovem
Cármides16 Também Cármides é um jovem que está no li-
miar da política, certamente um pouco mais velho que o Al-
cibíades do diálogo de que lhes falo, pois já está suficiente-
mente avançado na política para participar do Conselho e
dar pareceres. Senão, vejamos. Cármides dá pareceres, pa-
receres acatados porque são sábios, é escutado no Conse-
lho, mas Cármides é tímido. Em vão é escutado, em vão sabe
que todos o escutam em deliberações de pequeno comitê;
tímido, não ousa falar em público. E é então que Sócrates
lhe diz: mas afinal é preciso dar um pouco de atenção a ti
mesmo; aplica teu espírito sobre ti, toma consciência das qua-
lidades que possuis, e poderás assim participar da vida polí-
tica. Não emprega a expressão epimélesthai heautou ou epi-
mélou sautoíl, mas a expressão aplica teu espírito, noún
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982
45
prósekhe1': aplica teu espírito sobre ti mesmo. Mas a situa-
ção é a mesma. A mesma, porém invertida: é preciso enco-
rajar Cármides, que, apesar de sua sabedoria, não ousa in-
troduzir-se na ação política pública, ao passo que, com Al-
cibíades, temos um jovem sôfrego que, pelo contrário, só
pleiteia entrar na política e transformar suas vantagens es-
tatutárias em ação política efetiva.
Ora, pondera Sócrates - é aí que começa a parte do
diálogo que gostaria de estudar um pouco mais de perto _, se
vieres a governar a cidade, é preciso que afrontes duas es-
pécies de rivais18
, De um lado, os rivais internos que encon-
trarás na cidade, porquanto não és o único a querer gover-
ná-la. De outro, no dia em que a governares, terás que de-
frontar-te com os inimigos da cidade. Terás que defrontar-te
com Esparta, com o Império Persa. Ora, diz Sócrates, sabes
bem quem eles são, tanto os lacedemônios quanto os per-
sas: eles prevalecem sobre Atenas e sobre ti. Comecemos
com a riqueza: por mais rico que sejas, podes comparar tuas
riquezas às do rei da Pérsia? Quanto à educação, aquela que
recebeste, podes efetivamente compará-la à dos lacedemô-
nios e dos persas? Do lado de Esparta [encontramos] uma
breve descrição da educação espartana apresentada, não
como modelo, mas, de qualquer maneira, como referência
de qualidade; uma educação que assegura as boas manei-
ras, a grandeza de alma, a coragem, a resistência, que dá aos
jovens o gosto pelos exercícios, o gosto pelas vitórias e pelas
honras, etc. Do lado dos persas também - e é interessante
a passagem a respeito - as vantagens da educação recebida
são muito grandes; educação que concerne ao rei, ao jovem
príncipe, ao jovem príncipe que desde a [mais] tenra idade
- enfim, desde a idade de compreender - é cercado por qUB.-
tro professores: um que é o professor de sabedoria (sophía),
outro que é professor de justiça (dikaiosyne), o terceiro que
é mestre de temperança (sophrosyne), e o quarto, mestre de
coragem (andreía). Primeiro problema, que será necessário
ter em conta para a questão da datação do texto: de um lado,
35. 46 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
o fascínio e o interesse por Esparta, como sabemos, são
bem constantes nos diálogos platônicos, desde os diálogos
socráticos; de outro, o interesse, o fascínio pela Pérsia é um
elemento considerado tardio em Platão e nos platônicos
[...*]. Ora, como foi formado Alcibíades, relativamente a
esta educação, quer a de Esparta quer a dos persas? Pois
bem, diz Sócrates, examina o que te aconteceu. Foste con-
fiado a Péricles após a morte de teus pais. Pérides, sem dú-
vida, tudo pode na cidade, na Grécia e em alguns Estados
bárbaros. Contudo, ele não foi capaz de educar seus filhos.
Teve dois e dois inúteis. Conseqüentemente, não tiveste boa
sorte. Por este ângulo, pois, não se havia de contar com uma
formação séria. Ademais, teu tutor Pérides teve o cuidado
de te confiar a um velho escravo (Zópiro da Trácia), que era
um monumento de ignorância e que, por conseqüência, nada
pôde ensinar-te. Nestas condições, diz Sócrates a Alcibíades,
há que se fazer esta comparação: queres entrar na vida po-
lítica, queres tomar nas mãos o destino da cidade, mas não
tens a mesma riqueza que teus rivais e não tens, principal-
mente, a mesma educação. É preciso que reflitas um pouco
sobre ti mesmo, que conheças a ti mesmo. Vemos então
aparecer a noção, o princípio: gnôthi seautón (referência ex-
plícita ao princípio délfico!9). Porém, é interessante notar
que este aparecimento do gnôthi seautón, antes de qualquer
noção de cuidado de si, ocorre de uma forma fraca. Trata-se,
meramente, de um conselho de prudência. Sócrates pede a
Alcibíades para refletir um pouco sobre ele próprio, voltar-
se um pouco sobre si e comparar-se aos seus rivais. Conse-
lho de prudência: olha um pouco o que és em face daqueles
que queres afrontar e então descobrirás tua inferioridade.
E esta inferioridade não consiste apenas em que não és
mais rico e não recebeste educação, mas também em não
seres capaz de compensar estes dois defeitos (riqueza e edu-
,. Ouve-se apenas: que encontraremos no platonismo tardio, em
todo caso, na segunda metade do platonismo.
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 47
cação) com aquilo que, unicamente, poderia permitir-te afron-
tá-los sem demasiada inferioridade: um saber, uma tékhne'0
Não tens a tékhne que te permitiria compensar estas inferio-
ridades iniciais. Não tens tékhne. Então, Sócrates demonstra
a Alcibíades que lhe falta a tékhne que lhe permitiria bem
governar e cidade e competir, ao menos como iguat com
seus rivais. Sócrates o demonstra por meio de um procedi-
mento absolutamente clássico em todos os diálogos socráti-
cos: o que é bem governar a cidade; em que consiste o bom
governo da cidade; em que se o reconhece? Longa seqüência
de interrogações. E chega-se à definição proposta por Alci-
bíades: a cidade é bem governada quando reina a concórdia
entre seus cidadãos2
!. Então se pergunta a Alcibíades: o que
é esta concórdia, em que consiste ela? Alcibíades não pode
responder. Como não pode responder, o pob:e rapaz se de-
sespera. E afirma: Não sei mais o que digo. E possível, ver-
dadeiramente, que eu tenha vivido desde muito tempo em
um estado de vergonhosa ignorância, sem sequer.me aper-
ceber. Ao que Sócrates responde: não te inquietes; se só
aos cinqüenta anos te acontecesse descobrir que estás as-
sim numa vergonhosa ignorância, que não sabes o que di-
zes, então seria bem difícil de remediar, pois não haveria de
ser fácil tomar-te aos teus próprios cuidados (tomar-te a ti
mesmo em cuidado: epimelethênai sautou). Porém, estás jus-
tamente na idade em que é preciso aperceber-se disto.
Pois bem, gostaria que nos detivéssemos um pouco aqui,
quando deste primeiro aparecimento no discurso filosófico
- ressalva feita, repito, à datação do Alcibíades - da fórmula
ocupar-se consigo, tomar cuidado de si mesmo.
Primeiramente, como vemos, a necessidade de cuidar
de si está vinculada ao exercício do poder. Já a havíamos en-
contrado na fórmula lacônia, espartana de Alexândrides. Se-
melhante à fórmula, ao que parece, tradicional- confiamos
nossas terras aos hilotas para podermos nos ocupar com nós
mesmos -, ocupar-se consigo era, contudo, conseqüên-
cia de uma situação estatutária de poder. Em contrapartida,
aqui, a questão do cuidado de si não aparece como um dos
1
36. ~
48 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
aspectos de um privilégio estatutário. Aparece, ao contrário,
como uma condição, condição para passar do privilégio es-
tatutário que era o de Alcibíades (grande família rica, tradi-
cional, etc.) a uma ação política definida, ao governo efeti-
vo da cidade. Como vemos, ocupar-se consigo está po-
rém implicado na vontade do indivíduo de exercer o poder
político sobre os outros e dela decorre. Não se pode gover-
nar os outros, não se pode bem governar os outros, não se
pode transformar os próprios privilégios em ação política
sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado
consigo mesmo. Entre privilégio e ação política, este é, por-
tanto, o ponto de emergência da noção de cuidado de si.
Em segundo lugar, vemos que a noção de cuidado de
si, esta necessidade de cuidar de si mesmo está vinculada à
insuficiência da educação de Alcibíades. Através dela porém
é a própria educação ateniense que é inteiramente insufi-
ciente, e sob dois aspectos: o aspecto, se quisermos, pro-
priamente pedagógico (o mestre de Alcibíades nada valia,
era um escravo e um escravo ignorante, quando entretanto
a educação era coisa por demais séria para que conviesse
confiar um jovem aristocrata destinado a uma carreira polí-
tica a um escravo familiar e doméstico); crítica, igualmente,
do outro aspecto, menos imediatamente clara, mas que se
insinua ao longo de todo o começo do diálogo, a saber, a
crítica do amor, do éros pelos rapazes que, para Alcibíades,
não teve a função que deveria ter tido, já que ele foi assedia-
do, assediado por homens que, na realidade, dele só que-
riam o corpo, mas não ocupar-se com ele - este tema rea-
parecerá um pouco mais adiante - ou não queriam incitar
Alcibíades a ocupar-se consigo mesmo. De resto, a melhor
prova de que não era pelo próprio Alcibíades que eles se in-
teressavam, que não se ocupavam com Alcibíades a fim de
que Alcibíades se ocupasse consigo mesmo, é que, mal per-
dera ele sua desejável juventude, eles o abandonaram, dei-
xando-o fazer o que quisesse. A necessidade do cuidado de si
inscreve-se pois, não somente no interior do projeto políti-
co, como no interior do déficit pedagógico.
AUlA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 49
Em terceiro lugar (caráter também importante, imedia-
tamente vinculado ao anterior), vimos que, se Alcibíades ti-
vesse cinqüenta anos, seria tarde demais para reparar as
coisas. Esta não é a idade para ocupar-se consigo. E preciso
aprender a ocupar-se consigo quando se está naquela ida-
de crítica, quando se sai das mãos dos pedagogos e se está
para entrar no período da atividade política. Até certo ponto,
este texto está em contradição, ou afinal coloca um proble-
ma relativamente a outro que li há pouco, o da Apologia de
Sócrates, quando Sócrates diz, ao defender-se diante de seus
juízes: mas meu ofício em Atenas era um ofício importante;
foi-me confiado pelos deuses e consistia em postar-me lá,
na rua, e interpelar todo mundo, jovens e velhos, cidadãos ou
não-cidadãos, para dizer-lhes que se ocupassem consigo
mesmos24
. Ali, a epiméleia heautou aparece como uma nm-
ção geral de toda a existência, ao passo que no Alcibíades apa-
rece como um momento necessário na formação do jovem.
Esta será uma questão muito importante, um dos grandes
debates, um dos pontos de deslocamento do cuidado de si
quando, com as filosofias epicurista e estoica, nós o veremos
tomar-se obrigação permanente de todo indivíduo ao lon-
go de sua existência inteira. Mas, nesta forma, precoce, se
quisermos, socrático-platônica, o cuidado de si é antes uma
atividade, uma necessidade de jovens numa relação entre
eles e seu mestre, ou entre eles e seu amante, ou entre eles e
seu mestre e amante. Este é o terceiro ponto, a terceira ca-
racterística do cuidado de si.
Finalmente, em quarto lugar, vemos que a necessidade
de ocupar-se consigo ec10de como uma urgência, não no
momento do texto em que Alcibíades formula seus proje-
tos políticos, mas quando se apercebe que ignora... ignora o
quê? Pois bem, ignora o próprio objeto, a natureza do obje-
to com que tem que ocupar-se. Ele sabe que quer ocupar-se
com a cidade. Tem segurança para fazê-lo por causa de seu
status. Porém não sabe como ocupar-se, em que consistirá o
objetivo e o fim do que há de ser sua atividade política, a sa-
ber: o bem-estar, a concórdia dos cidadãos entre si. Não
37. l
50 A HERMEmUTlCA DO SUJEITO
sabe qual é o objeto do bom governo e é por isto que deve
ocupar-se consigo mesmo.
Vemos então duas questões surgirem neste momento,
duas questões a serem resolvidas e que estão diretamente
vinculadas uma à outra. A necessidade de ocupar-se consi-
go coloca a seguinte questão: qual é pois o eu de que é pre-
ciso cuidar quando se diz que é preciso cuidar de si? Reme-
to-os a uma passagem muito importante, que comentarei
mais longamente na próxima vez. O diálogo Alcibíades traz
como subtítulo, que foi porém tardiamente acrescentado -
acho que na época alexandrina, não estou bem certo, verifica-
rei depois -: da natureza humana. Ora, no desenvolvimento
de toda a última parte do texto - desenvolvimento que co-
meça na passagem que indiquei -, vemos que a questão que
Sócrates coloca e tenta resolver não é: deves ocupar-te con-
tigo; ora, tu és um homem; portanto, pergunto, o que é um
homem? A questão colocada por Sócrates, muito mais pre-
cisa, muito mais difícil, muito mais interessante, é a seguin-
te: deves ocupar-te contigo; mas o que é este si mesmo (autá
tá auto')26, pois que é contigo mesmo que deves ocupar-te?
Questão que, conseqüentemente, não incide sobre a natu-
reza do homem, mas sobre °que nós hoje - pois a palavra
não está no texto grego - chamaríamos de questão do sujei-
to. O que é este sujeito, que ponto é este em cuja direção
deve orientar-se a atividade reflexiva, a atividade refletida,
esta atividade que retoma do indivíduo para ele mesmo? O
que é este eu? Esta, a primeira questão.
Segunda questão a ser também resolvida: de que modo
o cuidado de si, quando o desenvolvemos como convém,
quando o levamos a sério, pode nos conduzir, e conduzir
Alcibíades ao que ele quer, isto é, a conhecer a tékhne de que
precisa para governar os outros, a arte que lhe permitirá
bem governar? Em suma, o que está em jogo em toda a se-
gunda parte, neste final do diálogo, é a necessidade de for-
necer a este /I si mesmo - na expressão 11 cuidar de si mes-
mo - uma definição capaz de implicar, abrir ou dar acesso
ao saber necessário para um bom governo. O que está em
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 51
jogo no diálogo é, pois: qual o eu de que devo ocupar-me a
fim de poder, como convém, ocupar-me com os outros a
quem devo governar? É este círculo [que vai] do eu como ob-
jeto de cuidado ao saber do governo como governo dos ou-
tros que, creio, está no cerne deste final de diálogo. Esta a
questão que, afinal, é portadora da primeira emergência na
filosofia antiga da questão do cuidar de si mesmo.
Bem, eu lhes agradeço, e na próxima semana então co-
meçaremos também às 9h15. Tentarei terminar esta leitura
do diálogo.
38. NOTAS
1. Foucault examinará mais longamente o mito de Fausto na
aula de 24 de fevereiro, segunda hora.
2. B. Espinosa, Tractatus de intellectus emendatione, in Benedic-
ti de Spinoza Opera quotquot reperta sunt, ed. J.VanVIoten J. P.
N. Land, La Haye, 1882-1884 (Traité de la réfonne de /'entendement,
in Oeuvres de Spinoza, Paris, Irad. Ir. C. Appuhn, 1904).
3. E. Hussed, Die Krisis der europiiischen Wissenschaften und
die transzendentale Phiinomenologie, Belgrado, Philosophia, 1936 (La
Crise des sciences européennes et la Phénoménologie transcendan-
tale, trad. Ir. G. Granel, Paris, Gallimard, 1976).
4. É esta a tradição que, na mesma época, Foucault reconhece
como a da filosofia moderna e em relação à qual se posiciona
como herdeiro (cf. Dits et Éerits, op. dt., N, n. 351, pp. 687-8, e n.
364, pp. 813-4).
5. G. W. F. Hegel, Phiinomenologie des Geistes, Wurtzbourg, An-
lon Goebhardl, 1807 (Phénoménologie de /'Esprit, Irad. J. Hyppolile,
Paris, Aubier-Monlaigne, 1941).
6. Sobre a reabertura, por Lacan, da questão do sujeito, cf. Dits
et Écrits, ill, n. 235, p. 590; n. 299, pp. 204-5, e n. 330, p. 435. A propó-
sito dos textos de Lacan que têm esta direção: Fonction et champ de
la parole el du langage en psyehanalyse (1953), in Éerits, Paris, Le
Seuil, 1966, pp. 237-322; Subversion du sujeI el dialeetique du désir
dans l'ineonseienl freudien (1960), ibid., pp. 793-827; La Seienee
el la vérilé (1965), ibid., pp. 855-77; Du sujeI enfin la queslion
AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 53
(1966), ibid., pp. 229-36; Le Séminaire I: Les Éerits techniques de
Freud (1953-1954), Paris, Le Seuil, 1975, pp. 287-99; Le Séminaire lI:
Le Moi dans la théorie de Freud et dans la teehnique de la psyehanalyse
(1954-1955), Paris, Le Seuil, 1978; Le Séminaire XI: Les Quatre con-
cepts fundamentaux de la psychanalyse (1964), Paris, Le Seuil, 1973,
pp. 31-41, 125-35; Réponse à des étudiants en philosophie sur
l'objel de la pychanalyse, Cahiers pour I'analyse, 3, 1966, pp. 5-13;
La Méprise du suje! supposé savoir, Scilicet, 1, Paris, Le Seuil,
1968, pp. 31-41; Le Séminaire XX: Encore (1973), Paris, Le Seuil, 1975,
pp. 83-91; Le Symplôme, Scilicet, 617, Paris, Le Seuil, 1976, pp. 42-
52 (devo esla nota a J. Lagrange e a M. Bertani).
7. Este terceiro momento não terá sua elaboração no curso
deste ano nem do ano seguinte.
8. Como alguém perguntara por que confiavam aos hilotas
o trabalho dos campos no lugar de com eles se ocuparem eles
próprios (kai ouk autoi epimeloúntai), 'porque, respondeu ele, não
foi para com eles nos ocuparmos mas com nós mesmos (ou toú-
ton epimeloúmenoi all'hautôn) que os adquirimos' (Apophtégmes la-
coniens, 217a, in Plutarque, Oeuvres morales, t. UI, trad. fr. F. Fuhr-
mann, Paris, Les Belles Letlres, 1988, pp. 171-2); cf. a retomada
desle exemplo em Le Soud de 50i, op. dt., p. 58: [O cuidado de si, op. dt.,
p. 49. (N. dos T.)]
9. Eles serão examinados na segunda hora da aula de 13 de
janeiro.
10. Todo este desenvolvimento acha-se no começo do texto,
de 103a a 105e (Aldbiade, in Plalon, Oeuvre5 complétes, t. !, trad. M.
Croiset, Paris, Les Belles Lettres, 1929 [mais adiante: referência a
esla edição], pp. 60-3).
11. Foucault pensa aqui no duplo destino de Aquiles: Minha
mãe muitas vezes me disse, a deusa dos pés de prata, Tétis: dois
destinos me levarão para a morte, que tudo encerra. Se continuo
a combater aqui em torno da cidade de Tróia, nada me resta em
troca; em compensação, uma glória imperecível me espera. Se, ao
contrário, retorno à terra de minha pátria, nada me resta da nobre
glória; uma longa vida, em compensação, me é reservada, e a morte,
que tudo encerra, por muito tempo não poderá me atingir (Ilia-
de, canto IX, versos 410-416, trad. fr. P. Mazon, Paris, Les Belles
Lellres, 1937, p. 67).
12. A/cibiade, 104a (p. 60).
39. 54 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
13. Pelo seu pai Clínias, Alcibíades era membro do génos dos
1/ eupátridas (isto é, aqueles que têm bons pais), uma família de
aristocratas e de grandes proprietários que dominam politicamen-
te Atenas desde o periado arcaico. Quanto à esposa de Clínias (fi-
lha de Mégacles, vítima de ostracismo), pertence à família dosAlc-
meônidas, que tiveram, sem dúvida, o mais decisivo papel na his-
tória política da Atenas clássica.
14. Alcibiade, 104b (p. 61).
15. O problema da idade crítica dos rapazes fora abordado
por Foucault particularmente na aula de 28 de janeiro de 1981,
consagrada à estruturação da percepção ética dos aphrodísia (princí-
pio de isomorna sociossexual e princípio de atividade) e,neste qua-
dro, ao problema sobre o amor dos jovens rapazes de boa família.
16. Xénophon, Mémorables, I1I,VII, ed. citada, pp. 363-5.
17. O texto grego traz mais exatamente: allà diatefnou mâl-
lon pros to seautô prosékhein. (Xénophon, Memorabilia,VII, 9. ed. E.
C. Mackant, Londres, Loeb elassical Library, 1923, p. 216).
18.Toda esta passagem encontra-se em A/cibiade, 119a-124b
(p.86-93).
19. Vamos, criança muito ingênua, creia-me, creia nestas pa-
lavras inscritas em Delfos: 'Conhece-te a ti mesmo' (Alcibiade,
124b, p. 92).
20. A/cibiade, 125d (p. 95).
21. A/cibiade, 126c (p. 97).
22. A/cibiade, 127d (p. 99).
23. A/cibiade, 127e (p.99).
24. Apologie de Socrate, 30a, trad. M. eroiset, ed. d!., p. 157.
25. Segundo as declarações de Diógenes Laércio (Vie et Doc-
trines des philosophes illustres, I1I, 57-62, trad. fr. s. dir. M.-o. Goulet-
eazet, Paris, Le Livre de Poche, 1999, pp. 430-3), o catálogo deTra-
silio (astrólogo deTibério e filósofo na corte de Nero, século Id.e.)
adota a divisão dos diálogos de Platão em tetralogias, e fixa para
cada diálogo um primeiro título correspondente, na maioria das
vezes, ao nome do interlocutor privilegiado de Sócrates - sendo
possível contudo que esta maneira de designar os diálogos remon-
te ao próprio Platão - e um segundo, indicando o tema principal.
26. Encontramos esta expressão em Alcibiade, 129b (p. 102).
AULA DE 13 DE JANEIRO. DE 1982
Primeira hora
Contextos de aparecimento do imperativo socrático do
cuidado de si: a capacidade política dos jovens de boa famaia;
os limites da pedagogia ateniense (escolar e erótica); a ignorân-
cia que se ignora. - As práticas de transformação do eu na Gré-
cia arcaica. - Preparação para o sonho e técnicas da prova no
pitagorismo. - As técnicas de si no Fédon de Platão. - Sua im-
portância na filosofia helenística. - A questão do ser do eu com
o qual é preciso ocupar-se no Alcibíades. - Detenninação do
eu como alma. - Detenninação da alma como sujeito de ação.
- Ocuidado de si na sua relação com a dietética, a econômica
ea erótica. - A necessidade de um mestre do cuidado.
Começamos, na última aula, a leitura do diálogo de Pla-
tão, Alcibíades. Sem levantar a questão - a que voltaremos -
senão de sua autenticidade, que não está em dúvida, mas
de sua data, gostaria de prosseguir nesta leitura. Havíamos
parado no aparecimento daquela fórmula que pretendo es-
tudar, durante este ano, em toda a sua extensão e evolução:
ocupar-se consigo mesmo (heautoú epimelefsthaz). Lembre-
mos o contexto em que esta fórmula apareceu. Um contexto
muito familiar a todos os diálogos de juventude de Platão -
denominados diálogos socráticos -, uma paisagem política
e social: é a paisagem, o pequeno mundo dos jovens aristo-
cratas que, por seu status, são os primeiros da cidade e es-
tão destinados a exercer sobre sua cidade, sobre seus con-
cidadãos, um certo poder. Jovens que, desde a mocidade, são
devorados pela ambição de prevalecer sobre os outros, so-
bre seus rivais na cidade, assim como sobre seus rivais de fora
da cidade, em suma, de passar a uma política ativa, autori-
tária e triunfante. O problema porém está em saber se a au-
toridade que lhes é conferida por seu status de nascimento,
seu pertencimento ao meio aristocrático, sua grande fortuna
40. 56 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
- como era o caso de Alcibíades -, se a autoridade que lhes
é assim de saída conferida, também os dota da capacidade
de governar como convém.Trata-se, pois, de um mundo em
que se problematizam as relações entre o status de primei-
ros e a capacidade de governar: necessidade de ocupar-se
consigo mesmo na medida em que se há que governar os
outros. Primeiro círculo, primeiro elemento do contexto.
Segundo elemento, certamente ligado ao primeiro, é o
problema da pedagogia. Trata-se da crítica, também ela tão
familiar aos diálogos socráticos, à pedagogia e à pedagogia.
sob suas duas formas. Crítica, sem dúvida, à educação, à prá-
tica educativa em Atenas, comparada, com grande desvan-
tagem para os atenienses, à educação espartana que implica
o rigor contínuo, a forte inserção no interior de regras cole-
tivas. A educação ateniense também é comparada - o que é
mais estranho e menos freqüente nos diálogos socráticos e
mais característico dos últimos textos platônicos -, e também
aí em desvantagem, com a sabedoria oriental, a sabedoria
dos persas, que sabem fornecer, ao menos aos seus jovens
príncipes, os quatro grandes mestres necessários, capazes de
ensinar as quatro virtudes fundamentais. Esta é uma das ver-
tentes da crítica às práticas pedagógicas em Atenas. O outro
aspecto desta mesma crítica recai, certamente, sobre a ma-
neira como se passa e se desenrola o amor entre homens e
rapazes. O amor pelos rapazes, em Atenas, não consegue
honrar a tarefa formadora que seria capaz de justificá-lo e
fundá-101
Os homens adultos assediam os jovens enquan-
to estão no esplendor de sua juventude. Mas os abandonam
quando estão naquela idade crítica em que, precisamente,
tendo já saído da infância e se desvencilhado da direção e
das lições dos mestres de escola, necessitariam de um guia
para se formar nesta coisa outra, nova, para a qual não fo-
ram de modo algum formados por seu mestre: o exercício
da política. Necessidade, portanto, decorrente da dupla fa-
lha pedagógica (escolar e amorosa), de se ocupar consigo. E
desta feita, se quisermos, a questão do I'ocupar-se consigo
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 57
(da epiméleia heautou) não está mais vinculada à de gover-
nar os outros, mas àde ser governado. Na verdade, vemos
que estas questões estão ligadas umas às outras: ocupar-se
consigo para poder governar, e ocupar-se consigo na medi-
da em que não se foi suficiente e convenientemente gover-
nado. Governar, ser governado, ocupar-se consigo, eis
aí uma seqüência, uma série, cuja história será longa e com-
plexa, até a instauração, nos séculos III-N, do grande poder
pastoral na Igreja cristã'.
Terceiro elemento do contexto no qual apareceu a ques-
tão, {) imperativo, a prescrição Hocupa-te contigo mesmoH-
. também este um elemento familiar aos diálogos socráticos
- é a ignorância. Ignorância, ao mesmo tempo, das coisas
que se deveria saber e ignorância de si mesmo enquanto
sequer se sabe que se as ignora. Como lembramos, Alcibía-
des acreditava que lhe seria bem fácil responder à questão
de Sócrates e definir o que é o bom governo da cidade.
Acreclitou mesmo poder defini-lo designando-o como aque-
le que assegura a concórdia entre os cidadãos. E eis que ele
sequer sabe o que é a concórdia, mostrando que, ao mesmo
tempo, não sabe e ignora que não sabe. Como vemos, tudo
isto - estas três questões: exercício do poder político, peda-
gogia, ignorância que se ignora - forma uma paisagem bem
conhecida dos diálogos socráticos.
Entretanto, na emergência, no aparecimento deste im-
perativo H cuidar de si mesmo, gostaria ainda de assinalar
- visto estar aí precisamente o nosso tema - o que há, a des-
peito de tudo, de um tanto singular no próprio movimento
do texto, deste texto que, em 127e do Alcibíades, faz apare-
cer o imperativo Hcuidar de si mesmo. O movimento do
texto é muito simples. Já está delineado no contexto geral
de que de lhes falei há pouco: Sócrates acaba de mostrar a
Alcibíades que ele não sabe o que é a concórdia, que ele
sequer sabia que ignorava o que é bem governar. Tão logo
Sócrates acabara de mostrá-lo, Alcibíades se desespera. Só-
crates consola-o dizendo-lhe: não é tão grave assim, não te
41. •
58 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
inquietes, afinal tu não tens cinqüenta anos, és jovem; por-
tanto, tens tempo. Mas tempo do quê? É aí que se poderia
então dizer que a resposta a vir, a que se esperaria - a res-
posta que, sem dúvida, Protágoras daria' -, seria a seguinte:
ora, tu ignoras, mas és jovem, não tens cinqüenta anos, tens
tempo portanto para aprender, aprender a governar a cidade,
aprender a prevalecer sobre teus adversários, aprender a
convencer o povo, aprender a retórica necessária para exer-
cer este poder, etc. Mas, justamente, não é isto o que diz Só-
crates. Sócrates afirma: tu ignoras; mas és jovem; portanto,
tens tempo, não para aprender, mas para ocupar-te contigo.
ÉaL creio, neste desnível entre o aprender que seria a con-
seqüência esperada, a conseqüência habitual de semelhante
raciocínio, e o imperativo ocupar-te contigo, entre a peda-
gogia compreendida como aprendizagem e uma outra for-
ma de cultura, de paideía (de que voltaremos a tratar mais
longamente) que gira em tomo do que se poderia chamar
de cultura de si, formação de si, Selbstbildung, como diriam
os alemães', é neste desnível, neste jogo, nesta proximidade,
que vão precipitar-se certos problemas que tangenciam, pa-
rece-me, todo o jogo entre a filosofia e a espiritualidade no
mundo antigo.
Entretanto, façamos ainda uma prévia obselVação. Eu
lhes dizia, pois, que a fórmula /I ocupar-se consigo emerge e
aparece nos textos platônicos com o Alcibíades, cuja data é
uma questão a ser ainda recolocada. Éneste diálogo - como
veremos logo adiante, quando o retomar mais longamente
- que há muito explicitamente uma interrogação acerca do
que é ocupar-se consigo mesmo, interrogação bem siste-
mática, com dois segmentos: o que é si mesmoI o que é
ocupar-se? É a primeira teoria e, pode-se mesmo dizer, [en-
tre] todos os textos de Platão, a úníca teoria global do cui-
dado de si. Pode ser considerada como a primeira grande
emergência teórica da epiméleia heautou. Contudo, ainda as-
sim, não se deve esquecer e é preciso reter sempre na memó-
ria, que esta exigência de ocupar-se consigo, esta prática -
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í
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I:I
1
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 59
ou antes, o conjunto de práticas nas quais vai manifestar-se
o cuidado de si - enraíza-se, de fato, em práticas muito an-
tigas, maneiras de fazer, tipos e modalidades de experiência
que constituíram o seu suporte histórico, e isto bem antes
de Platão, bem antes de Sócrates. Que a verdade não pos-
sa ser atingida sem certa prática ou certo conjunto de prá-
ticas totalmente especificadas que transformam o modo de
ser do sujeito, modificam-no tal como está posto, qualifi-
cam-no transfigurando-o, é um tema pré-filosófico que deu
lugar a numerosos procedimentos mais ou menos ritualiza-
dos. Havia, se quisermos, muito antes de Platão, muito an-
tes do texto do Alcibíades, muito antes de Sócrates, toda uma
tecnologia de si que estava em relação com o saber, quer se
tratasse de conhecimentos particulares, quer do acesso glo-
bal à própria verdade'. A necessidade de pôr em exercício
uma tecnologia de si para ter acesso à verdade é uma idéia
manifestada na Grécia arcaica e, de resto, em uma série de
civilizações, senão em todas, por certo número de práticas que
passo a enumerar e que evoco muito esquematicamente'.
Primeiro, os ritos de purificação: não podemos ter acesso aos
deuses, praticar sacrifícios, ouvir o oráculo e compreender o
que ele disse, não podemos nos beneficiar de um sonho capaz
de esclarecer porque fornece sinais ambíguos mas decifrá-
veis, nada disto podemos fazer se antes não nos tivermos
purificado. A prática da purificação, enquanto rito necessá-
rio e prévio ao contato não apenas com os deuses mas [com]
aquilo que os deuses podem nos dizer como verdadeiro, é
um terna extremamente corrente, conhecido e atestado des-
de muito já na Grécia clássica, na Grécia helenística e, final-
mente, em todo o mundo romano. Sem purificação não há
relação com a verdade detida pelos deuses. Outras técnicas
(cito-as meio ao acaso e, certamente, sem um estudo bem
sistemático) são as de concentração da alma. A alma é algo
de móvel. A alma, o sopro, é algo que pode ser agitado, atin-
givel pelo exterior. E é preciso evitar que a alma, este sopro,
este pneuma se disperse. É preciso evitar que se exponha ao
42. .L
60 A HERMENtuTICA DO SUJEITO
perigo exterior, que alguma coisa ou alguém do exterior o
atinja. É preciso evitar que no momento da morte ele seja
assim dispersado. Épreciso, pois, concentrar este pneúma, a
alma, recolhê-lo, reuni-lo, fazê-lo refluir sobre si mesmo a
fim de conferir-lhe um modo de existência, uma solidez que
lhe permitirá permanecer, durar, resistir ao longo de toda a
vida e não dissipar-se quando o momento da morte chegar.
Uma outra técnica, outro procedimento pertinente às tec-
nologias de si é a técnica do retiro para a qual existe uma
palavra que terá, como sabemos, um considerável destino
em toda a espiritualidade ocidental: anakhóresis (anacorese).
O retiro, compreendido nestas técnicas de si arcaicas, é uma
certa maneira de desligar-se, de ausentar-se - ausentar-se
mas sem sair do lugar - do mundo no qual se está situado:
cortar, de certo modo, o contato com o mundo exterior, não
mais sentir as sensações, não mais agitar-se com tudo o que
se passa em tomo de si, fazer como se não mais se visse e
efetivamente não ver mais o que está presente, sob os olhos.
Trata-se da técnica, se quisermos, de uma ausência visível.
Permanece-se ali, é-se visível aos olhos dos outros. Mas se
está ausente, alheado. Quarto exemplo e, repito, são apenas
exemplos: a prática da resistência que, de resto, está vincu-
lada a esta concentração da alma e a este retiro (anakhóre-
sis) em si mesmo, e faz com que se consiga suportar as pro-
vações dolorosas e difíceis, ou ainda, resistir às tentações
que possam advir.
Todo este conjunto de práticas, além de outras, existia
pois, na civilização grega arcaica. Seus vestígios são ainda
encontrados durante muito tempo. Ademais, a maior parte
delas já havia sido integrada no interior de um movimento
espiritual, religioso ou filosófico muito conhecido, que é o
pitagorismo com seus componentes ascéticos. Tomarei, tão-
somente, dois exemplos destes elementos de tecnologia de
si no pitagorism07•Tomarei estes dois exemplos porque tam-
bém eles terão um longo destino, serão reencontrados até a
época romana, nos séculos! e Il de nossa era, e se difundi-
, ,-;;......,:
~
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 61
rão, neste ínterim, em muitas outras escolas fillosóficas. Por
exemplo, a preparação purificadora para o sonho. Uma vez
que, para os pitagóricos, sonhar enquanto se dorme é estar
em contato com um mundo divino, o da imortalidade, o
do além da morte, que é também o da verdade, devemos nos
preparar para o sonho8
. Assim, antes do sono, devemos
nos entregar a algumas práticas rituais que vão purificar a
alma e tomá-la capaz, conseqüentemente, de entrar em con-
tato com o mundo divino, compreender suas significações,
mensagens e verdades, reveladas sob uma forma mais ou
menos ambígua. Eis então algumas dentre as técnicas de
purificação: escutar música, respirar perfumes e, certamente,
também praticar o exame de consciência9. Reconstituir o
nosso dia todo, lembrarmo-nos das faltas cometidas e, por
conseguinte, neste mesmo ato de memória, expurgá-las e
delas nos purificarmos, é uma prática cuja paternidade foi
sempre atribuída a PitágoraslO
Que tenha ou não sido ele
efetivamente o primeiro a promovê-la, pouco importa. De
qualquer maneira, é uma prática pitagórica importante, cuja
difusão conhecemos. Tomarei também outro exemplo, den-
tre os numerosos exemplos de tecnologia de si, de técnicas
de si encontrados nos pitagóricos: as técnicas de provação.
Consiste em organizar em tomo de si, em buscar alguma
coisa, alguma situação que tenha força de tentação e passar
pela prova para saber se se é capaz de resistir. Estas práticas
também são muito arcaicas. Perduraram por muito tempo e
serão atestadas bem mais tarde. Como exemplo, tomo ape-
nas um texto de Plutarco (fim do século!, começo do Il). No
diálogo O demônio de Sócrates, Plutarco relata ou faz relatar
por um dos seus interlocutores, que é manifestamente por-
ta-voz dos pitagóricos, um pequeno exercício. Começa-se a
manhã com toda uma série de longos exercícios físicos, ár-
duos, cansativos, e que exaurem o estômago. Isto feito, man-
da-se servir, em mesas suntuosas, refeições extraordinaria-
mente ricas, com os mais atraentes alimentos. Fica-se diante
deles, olhando-os, meditando. Depois, chamam-se os escra-
Instituto de Psicologia - UFRGS
Biblioteca ---
43. 62 A HERMENtUTlCA DO SUJElTO
vos. Oferece-se a eles esta alimentação €, para si, uma ali-
mentação extraordinariamente frugal, a dos próprios escra-
vosll. Retomaremos, sem dúvida, a tudo isto, a fim de ver-
mos seus desdobramentos12.
Enfim, faço estas indicações para lhes dizer que, antes
mesmo da emergência da noção de epiméleia heautou no
pensamento filosófico de Platão, está atestada, de modo
geral e, particularmente nos pitagóricos, uma série de técni-
cas que concernem a algo como o cuidado de si. Neste con-
texto geral das técnicas de si, não se deve esquecer que até
mesmo em Platão, e ainda que seja verdade - como busca-
rei lhes mostrar - que todo o cuidado de si é para ele, por
ele, reduzido à forma do conhecimento e do conhecimento
de si, encontram-se numerosos indícios destas técnicas. En-
contramos, por exemplo, de modo muito claro, a técnica da
concentração da alma, da alma que se recolhe, que se reú-
ne. No Fédon, por exemplo, está dito que é preciso habituar
a alma, a partir de todos os pontos do corpo, a se reunir em
si mesma, a refluir sobre si, a residir em si mesma tanto
quanto possível- No mesmo Fédon, afirma-se que o filóso-
fo deve tomar a alma em suas mãos14
[... *]. Encontramos
também atestada em Platão, ainda no Fédon, a prática do
isolamento, da anakhóresis, do retiro em si mesmo, que se
manifestará essencialmente na imobilidade15. Imobilidade
da alma e imobilidade do corpo: do corpo que resiste, da
alma que não se mexe, que está como que fixa em si mes-
ma, no seu próprio eixo e de onde nada a pode desviar. É a
famosa imagem de Sócrates evocada no Banquete. Sócrates
que, como sabemos, durante a guerra era capaz de perma-
necer só, imóvel, ereto, os pés na neve, insensível a tudo o
que se passava ao seu redor16. Encontramos também em
li- Ouve-se apenas: e a [...] filosofia como guia ou como terapia da
alma, a integração, no interior da prática filosófica, ~esta técnica do re-
colhimento, da concentração, do retraimento da alma em si mesma.
1
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 63
Platão a evocação de todas aquelas práticas de rigidez, de
resistência à tentação. É a imagem de Sócrates, ainda no
Banquete, deitado ao lado de Alcibíades e conseguindo do-
minar seu desejo17. .
De resto, creio que a difusão destas técnicas de si no in-
terior do pensamento platônico foi apenas o primeiro pas-
so de todo um conjunto de deslocamentos, de reativações,
de organização e reorganização destas técnicas naquilo que
viria a ser a grande cultura de si na época helenística e ro-
mana. Encontramos este gênero de técnicas, é claro, nos
neoplatônicos e nos neopitagóricos. Mas também nos epi-
curistas. Como veremos, nós as encontramos' nos estóicos,
transpostas, repensadas diferentemente. Se considerarmos,
por exemplo, o tema da imobilidade do pensamento, imo-
bilidade que nenhuma agitação consegue perturbar - nem
a do exterior, garantindo a securitas, nem a do interior, ga-
rantindo a tranquillitas (para retomar o vocabulário estóico
romano)1S, pois bem, esta imobilização do pensamento é
muito claramente a transposição e a reelaboração, no inte-
rior de uma tecnologia de si cujas fórmulas gerais são por
certo diferentes daquelas práticas de que há pouco lhes fa-
lava. Seja, por exemplo, a noção de retiro. No estoicismo ro-
mano reencontraremos a teoria acerca do tipo de retiro, de-
nominado anakhóresis, que leva o indivíduo a retirar-se em
si mesmo e, conseqüentemente, a ser como que cortado do
mundo exterior. Em Marco Aurélio, particularmente, en-
contraremos uma hnga passagem,-gue buscarei explicar-lhes,
cujo tema é explicitamente a anakhóresis eis heautón (a ana-
corese sobre si mesmo, o retiro em si e em direção a Si)19.
Encontraremos igualmente nos estóicos uma série de técni-
cas sobre a purificação das representações, a verificação, a
prática, na medida em que as phantasíai se apresentam, que
permite reconhecer as que são puras e as impuras, as que se
pode admitir e as que se deve excluir. Há pois, se quisermos,
por trás de tudo isto, uma grande arborescência que pode
ser lida no sentido de um desenvolvimento contínuo, mas
44. 64 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
com certas transferências e reorganizações de conjunto. E
parece-me que Platão ou o momento platônico, particular-
mente o texto do Alcibíades, traz o testemunho de um des-
tes momentos em que é feita a reorganização progressiva
de toda a velha tecnologia do eu que é, portanto, bem an-
terior a Platão e a Sócrates. Penso que em Platão, no texto
do Alcibíades ou em algum lugar entre Sócrates e Platão, to-
das estas velhas tecnologias do eu foram submetidas a uma
reorganização muito profunda. Ou, pelo menos, no pensa-
mento filosófico, a questão da epiméleia heautoú (do cuida-
do de si) retoma, em nível totalmente diverso, com finalida-
de totalmente outra e com formas parcialmente diferentes,
elementos que poderíamos encontrar outrora nas técnicas
evocadas.
Portanto, após este esclarecimento acerca da emergên-
cia filosoficamente primeira mas também da continuidade
técnica desta temática, gostaria de retomar ao próprio tex-
to do Alcibíades e, particularmente, à passagem (127e) em
que se afirma: é preciso ocupar-se consigo mesmo. É pre-
ciso ocupar-se consigo, mas... E aí se acha a razão pela qual
insisto neste texto: Sócrates mal dissera /I é preciso ocupar-
se consigo mesmo e é tomado por uma dúvida. Interrom-
pe-se por um instante e diz: é muito bom ocupar-se consigo,
mas corre-se um grande risco de se enganar. Corre-se um
grande risco de não saber bem o que fazer quando se quer
ocupar-se consigo e, no lugar de obedecer [às] cegas ao prin-
cípio cuidemos de nós mesmos, deve-se pelo menos per-
guntar tí esti tà hautou epimélesthai (que é ocupar-se de si)?20
Afinal, sabemos muito bem ou sabemos mais ou menos o
que é ocupar-se com nossos sapatos. Há uma arte para isto,
a do sapateiro. E o sapateiro sabe perfeitamente ocupar-se
com eles. Sabemos perfeitamente o que é ocupar-se com
nossos pés. O médico (ou o ginasiarca) dá conselhos a res-
peito, é especialista nisto. Mas quem sabe exatamente o que
é ocupar-se consigo mesmo? O texto vai muito natural-
mente dividir-se em duas partes a partir de duas questões.
I'
I
rI
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 65
Primeiro, no imperativo Ilé preciso ocupar-se consigo que
coisa é esta, que objeto é este do qual é preciso ocupar-se,
o que é este eu? Em segundo lugar, no 1/ cuidado de si há
cuidado. Dado que o jogo do diálogo é - se devo ocupar-me
comigo é para tomar-me capaz de governar os outros e de
reger a cidade -, que forma deve ter este cuidado, em que
deve ele consistir? Portanto, é necessário que o cuidado co-
migo seja tal que forneça, ao mesmo tempo, a arte (a tékhne,
a habilidade) que me permitirá bem governar os outros. Em
suma, na sucessão das duas questões (o que é o eu e o que
é o cuidado?) trata-se de responder a u,ma única e mesma
interrogação: é preciso fornecer de si mesmo e do cuidado
de si uma definição tal que dela se possa derivar o saber ne-
cessário para governar os outros. Este é pois o jogo da segun-
da metade, desta segunda parte do diálogo que começa em
127e. E é o que gostaria agora de examinar alternadamen-
te. Para começar, a primeira questão: o que é este eu com que
se deve ocupar-se? E em segundo lugar: no que deve con-
sistir esta ocupação, este cuidado, esta epiméleia?
Primeira questão: o que é o eu? Pois bem, creio ser pre-
ciso observar, desde logo, a maneira como a questão está
colocada. Ela está colocada de uma maneira interessante por-
que vemos muito naturalmente reaparecer - a propósito da
questão sobre o que é o eu? - a referência ao oráculo de
Delfos, à Pítia, ao que ela diz: é preciso conhecer a si mesmo
(gnônai heautón)21. É a segunda vez que a referência ao orá-
culo, ou melhor, ao preceito imposto aos que vêm consultar
o oráculo de Delfos, aparece no texto. Lembremos que apa-
recera uma primeira vez quando Sócrates dialogava com
Alcibíades e lhe dizia: bem, se queres reger Atenas, vais ter
que prevalecer sobre teus rivais na própria cidade, vais ter
também que combater ou rivalizar com os lacedemônios e
os persas. Crês que és forte o bastante, que tens as capaci-
dades para isto, as riquezas e que, sobretudo, recebeste a
educação necessária? E como Alcibíades não estava muito
seguro para dar uma resposta positiva - nem se devia dar uma
45. Il..
66 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
resposta positiva ou negativa - Sócrates lhe dissera: afinal,
presta um pouco de atenção, reflete um pouco sobre o que
és, olha um pouco para a educação que recebeste, tu farás
bem em conhecer um pouco a ti mesmo (referência ao gnô-
thi seautón, referência explícita, aliás). Vemos porém que
esta primeira referência, que está pois na primeira parte do
texto que analisei na última aula, é uma referência, diria eu,
fraca, passageira. O gnôthi seautón é usado simplesmente
para incitar Alcibíades a refletir um pouco mais seriamente
sobre o que ele é, o que é capaz de fazer e as temíveis tare-
fas que o esperam quando tiver de governar a cidade. Aqui,
vemos aparecer o gnôthi seautón de maneira totalmente di-
ferente e em outro nível. Com efeito, agora sabemos que é
preciso ocuparmo-nos com nós mesmos. E a questão está
em saber o que é este nós mesmos. Na fórmula epimelefs-
thai heautou, o que é o heautoU? É preciso gnônai heautón, diz
o texto. Acho que este segundo uso, esta segunda referên-
cia ao oráculo de Delfos, deve ser bem compreendida. De
modo algum, para Sócrates, tratar-se-ia de dizer: pois bem,
tu deves conhecer o que és, tuas capacidades, tua alma, tuas
paixões, se és mortal ou imortal, etc. Não é isto, absoluta-
mente. Trata-se, de certo modo, de uma questão metodoló-
gica e formal, porém, creio eu, totalmente capital neste mo-
vimento inteiro: é preciso saber o que é heautón, é preciso sa-
ber O que é o eu. Portanto, não como /I que espécie de animal
és, qual é tua natureza, como és composto?, mas [qual é]
esta relação designada pelo pronome reflexivo heautón, o
que é este elemento que é o mesmo do lado do sujeito e do
lado do objeto?. Tens que ocupar-te contigo mesmo: és tu
que te ocupas; e, não obstante, tu te ocupas com algo que é
a mesma coisa que tu mesmo, [a mesma coisa] que o sujeito
que se ocupa com, ou seja, tu mesmo como objeto. O tex-
to, aliás, o diz muito claramente: é preciso saber o que é autá
tá autó23. O que é este elemento idêntico, de certa forma
presente de parte a parte no cuidado: sujeito do cuidado,
objeto do cuidado? O que é ele? Trata-se pois de uma inter-
)
AULA DE 13 DEjANElRO DE 1982 67
rogação metodológica sobre o que significa aquilo que está
designado pela forma reflexiva do verboocupar-se consigo
mesmo. Esta é a segunda referência ao preceito 11é preciso
conhecer-te a ti mesmo, porém, como vemos, totalmente
diferente do simples conselho de prudência dado um pouco
acima, quando se dizia a Alcibíades: presta ao menos um
pouco de atenção à tua precária educação e a todas as tuas
incapacidades. O que é pois este heautón, ou melhor, o que
está referido neste heautón? Passo, se quisermos, imediata-
mente à resposta. Ela é conhecida, foi cem vezes dada nos
diálogos de Platão: psykhês epimeletéon (é preciso ocupar-
se com a própria alma) é o que está dito, na seqüência de
um desenvolvimento a que retomarei. O texto do Alcibíades
a este respeito recobre muito exatamente uma série de for-
mulações que se encontram em outros: na Apologia, por
exemplo, quando Sócrates diz que incita seus concidadãos
de Atenas e, de resto, todos aqueles que ele encontra, a se
ocuparem com sua alma (psykhei a fim de que ela se tome
a melhor possíveF5; encontramos também esta expressão,
por exemplo, no Crátilo, quando, a propósito das teorias de
Heráclito e do fluxo universal, está dito que não se deve con-
fiar simplesmente na palavra therapeúein haután kai thz
psykhén (os cuidados em se ocupar, em estar atento consigo
mesmo e [à] alma) e ali a junção heautónlpsykhé é eviden-
te26
; temos também, no Fédon, a famosa passagem segundo
a qual, se a alma é imortal, então, epimeleías deitai (ela
precisa que com ela nos ocupemos, ela precisa de zelo, de
cuidado, etc.). Quando o Alcibíades chega à fórmula o que
é o eu com que se deve ocupar? - ora, é a alma, ele reco-
bre pois muitos aspectos, muitos temas que serão reencon-
trados, que efetivamente se encontram em tantos outros
textos platônicos. Creio porém que a própria maneira como
se chega a esta definição da heautón como alma, a maneira
como esta alma é aqui concebida, difere bastante daquilo
que encontramos em outros textos. Com efeito, a partir do
momento em que é dito no Alcibíades - aquilo com que se
46. 68 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
deve ocupar é a alma, sua própria alma -, poder-se-ia ima-
ginar que se está, no fundo, muito próximo do que é dito na
República. O Alcibíades poderia ser, de certo modo, a forma
inversa da República em que, COmo sabemos, tendo os inter-
locutores se perguntado o que é a justiça, o que é um indi-
víduo justo, são levados muito rapidamente a não poderem
encontrar resposta e, passando dos pequenos caracteres da
justiça inscritos no indivíduo, reportam-se aos grandes ca-
racteres da cidade para melhor lerem e decifrarem o que pode
ser a justiça: se queremos saber o que é a justiça na alma do
indivíduo, vejamos o que ela é na cidade2
'. Pois bem, poder-
se-ia imaginar que o procedimento do Alcibíades é, de cer-
to modo, o mesmo, porém invertido, isto é, que os interlo-
cudores do Alcibíades, procurando saber o que é bem gover-
nar, em que consiste a boa concórdia na cidade, o que é um
governo justo, se interrogassem sobre o que é a alma e fos-
sem buscar na alma individual o análogon e o modelo da ci-
dade. As hierarquias e as funções da alma poderiam, afinal,
nos esclarecer sobre a questão da arte de governar.
Ora, não é de modo algum o que se passa no diálogo.
É preciso examinar melhor como Sócrates e Alcibíades, em
sua discussão, chegam à definição (evidente mas ao mesmo
tempo paradoxal) de si mesmo como alma. De maneira mui-
to significativa, a análise que irá nos conduzir da questão -
o que é meu eu? - à resposta - sou minha alma - é um
movimento que começa com um pequeno conjunto de ques-
tões que eu resumiria, se quisermos, do modo como passo
a expor29
• Quando se diz - Sócrates fala a Alcibíades -, o
que isto quer dizer? A resposta é dada: quer dizer qu~ Só-
crates se serve da linguagem. Este simples exemplo é ao
mesmo tempo muito significativo. A questão colocada é a
questão do sujeito. Sócrates fala a Alcibíades, o que isto
quer dizer, pergunta Sócrates, ou seja, qual é o sujeito que
está suposto quando se evoca esta atividade da palavra que é
a de Sócrates em relação a Alcibíades? Trata-se, conseqüen-
temente, de fazer passar, para uma ação falada, o fio de uma
;1 I'
•,.
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 69
distinção que permitirá isolar, distinguir, o sujeito da ação e
o conjunto de elementos (palavras, ruídos, etc.) que consti-
tuem esta própria ação e permitem efetuá-la. Trata-se, em
suma, se quisermos, de fazer aparecer o sujeito na sua irre-
dutibilidade. E esta espécie de fio que a questão socrática
faz passar entre a ação e o sujeito será utilizada, aplicada
em alguns casos, casos fáceis e evidentes e que permitem, em
uma ação, distinguir o sujeito de todos os instrumentos, uten-
sílios' meios técnicos que ele pode pôr em ação. Assim, é fá-
cil estabelecer, por exemplo, que na arte da sapataria há, por
um lado, instrumentos como o cutelo; e há aquele que se
serve destes instrumentos, o sapateiro. Na música, há o ins-
trumento (a cítara) e há o músico. O músico é aquele que
se serve dos instrumentos. Entretanto, o que parece muito
simples quando se trata de ações que têm, por assim dizer,
mediações instrumentais, pode também valer quando se
tenta interrogar, não mais uma atividade instrumental, mas
um ato que se passa no próprio corpo. Quando, por exem-
pIo, agitamos as mãos para manipular alguma coisa, o que
fazemos? Pois bem, há as mãos e há aquele que se serve das
mãos - há um elemento, o sujeito que se serve das mãos.
Quando olhamos alguma coisa, o que fazemos? Servimo-nos
dos olhos, isto é, há um elemento que se serve dos olhos.
De modo geral, quando o corpo faz alguma coisa, há um
elemento que se serve do corpo. Mas que elemento é este
que se serve do corpo? Evidentemente, não é o próprio cor-
po: o corpo não pode servir-se de si. Diremos que quem se
serve do corpo é o homem, o homem entendido como um
composto de alma e corpo? Certamente não. Pois, mesmo
a título de simples componente, mesmo supondo que ele
esteja c6m a alma, o corpo não pode ser, nem a título de ad-
juvante, o que se serve do corpo. Portanto, qual é o único
elemento que, efetivamente, se serve do corpo, das partes
do corpo, dos órgãos do corpo e, por conseqüência, dos ins-
trumentos e, finalmente, se servirá da linguagem? Pois bem,
é e só pode ser a alma. Portanto, o sujeito de todas estas
ações corporais, instrumentais, e da linguagem é a alma: a
li
1
47. 70 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
alma enquanto se serve da linguagem, dos instrumentos e
do corpo. Chegamos pois à alma.Vemos porém que esta alma
à qual chegamos por este estranho raciocínio em tomo do
servir-se de (voltarei, logo adiante, a esta questão da sig-
nificação do servir-se de) nada tem a ver, por exemplo,
com a alma prisioneira do corpo e que seria preciso libertar,
como no Fédon30; nada tem a ver com a alma como atrela-
mento de cavalos alados que seria preciso conduzir na boa
direção, como no Fedrol; também não é a alma arquitetu-
rada segundo uma hierarquia de instâncias que seria preciso
harmonizar, como na República32
É a alma unicamente en-
quanto sujeito da ação, a alma enquanto se serve [do] corpo,
dos órgãos [do] corpo, de seus instrumentos, etc. E a expres-
são francesa se servir* que aqui utilizo é, de fato, a tradu-
ção de um verbo muito importante em grego, de numero-
sas significações. Trata-se de khrêsthai, com o substantivo
khrêsis. Estas duas palavras são igualmente clifíceis e seu des-
tino histórico foi muito longo e importante. Khrêsthai (khráo-
maio eu me sirvo) designa, na realidade, vários tipos de re-
lações que se pode ter com alguma coisa ou consigo mes-
mo. Com certeza, khráomai quer dizer: eu me sirvo, eu utilizo
(utilizo um instrumento, um utensílio), etc. Mas, igualmen-
te, khráomai pode designar um comportamento, uma atitude.
Por exemplo, na expressão hybristikôs khrêsthai, o sentido é:
comportar-se com violência (como dizemos usar de vio-
lência e usar, de modo algum tem o sentido de uma uti-
lização, mas de comportar-se com violência). Portanto, khráo-
mai é igualmente uma atitude. Khrêsthai designa também
certo tipo de relações com o outro. Quando se diz, por exem-
plo, theoís khrêsthai (servir-se dos deuses) isto não quer di-
zer que se utilizam os deuses para um fim qualquer. Quer
dizer que se tem com os deuses as relações que se deve ter,
que regularmente se tem, isto é, honrar, prestar culto, fazer
com eles o que se deve fazer. A expressão híppo khrêsthai (ser-
.. Em português, servir-se. (N. dos T.)
(1.
11.
.
.1. ,.
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 71
vir-se de um cavalo) não quer dizer que tomamos um cavalo
para fazer com ele o que quisermos. Significa que o contro-
lamos como convém e que nos servimos dele segundo as re-
gras da atrelagem ou da cavalaria, etc. Khráomai, khrêsthai
designam também uma certa atitude para consigo mesmo.
Na expressão epithymíais khrêsthai, o sentido não é servir-
se das próprias paixões para alguma coisa qualquer, mas,
muito simplesmente, H abandonar-se às próprias paixões.
Orgê khrêsthai não é servir-se da cólera, mas abandonar-
se à cólera, comportar-se com cólera.. Portanto, como ve-
mos, quando Platão (ou Sócrates) se serve da noção de
khrêsthailkhrêsis para chegar a demarcar o que é este heau-
tón (e o que é por ele referido) na expressão ocupar-se
consigo mesmo, quer designar, na realidade, não certa re-
lação instrumental da alma com todo o resto ou com o cor-
po, mas, princípalmente, a posição, de certo modo singular,
transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos
objetos de que dispõe, como também aos outros com os
quais se relaciona, ao seu próprio corpo €, enfim, a ele mes-
mo. Pode-se dizer que, quando Plantão se serviu da noção
de khrêsis para buscar qual é o eu com que nos devemos
ocupar, não foi, absolutamente, a alma-substância que ele
descobriu, foi a alma-sujeito. E a noção de khrêsis precisa-
mente será reencontrada ao longo de toda a história do cui-
dado de si e de suas formas*. Será particularmente impor-
tante nos estóicos. Estará no centro, creio, de toda a teoria
e prática do cuidado de si em Epicteto: ocupar-se consigo
mesmo será ocupar-se consigo enquanto se é sujeito de,
em certas situações, tais como sujeito de ação instrumental,
sujeito de.relações com o outro, sujeito de comportamentos
e de atitudes em geral, sujeito também da relação consigo
mesmo. É sendo sujeito, este sujeito que se serve, que tem
esta atitude, este tipo de relações, que se deve estar atento a
si mesmo. Trata-se pois de ocupar-se consigo mesmo en-
li- O manuscrito explicita aqui que ela se encontra em Aristóteles.
II
48. li.
72 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
quanto se é sujeito da khrêsis (com toda a polissemia da pa-
lavra: sujeito de ações, de comportamentos, de relações, de .
atitudes). A alma como sujeito e de modo algum como
substância, é nisto que desemboca, a meu ver, o desenvol-
vimento do Alcibíades sobre a pergunta: O que é si mes-
mo, que sentido se deve dar a si mesmo quando se diz que
é preciso ocupar-se consigo?
Chegados a este ponto, a título de corolário ou de con-
seqüência, é possível realçar no texto três pequenas refle-
xões que, na economia mesma do seu desenvolvimento, po-
dem passar por acessórias ou relativamente marginais, mas
que são, creio, historicamente muito importantes. Com
efeito, a partir do momento em que incide sobre a alma en-
quanto sujeito, o cuidado de si poderá distinguir-se muito
claramente de três outros tipos de atividades que, também
elas, podem passar (aparentemente ao menos ou à primeira
vista) por cuidados de si: primeiramente o médico, em se-
gundo lugar o dono da casa, em terceiro, o enamorado34. Co-
mecemos com o médico. Conhecendo a arte da medicina,
sabendo fazer diagnósticos, prescrever medicamentos, cu-
rar as doenças, quando o médico adoece e aplica tudo isto
a si mesmo, não se poderia dizer que ele se ocupa consigo?
Pois bem, a resposta, seguramente, será não. Pois, quando
ele se examina, faz um cliagnóstico sobre si mesmo, põe-se
em regime, com que se ocupa de fato? Não com ele próprio
no sentido em que acabamos de falar: enquanto alma, alma-
sujeito. Ocupa-se com seu corpo, isto é, com aquilo de que
se serve. É com seu corpo que Se ocupa, não com ele mesmo.
Deve haver, pois, uma diferença de finalidade, de objeto,
mas também de natureza, [entre] a tékhne do médico que
aplica a si próprio O seu saber e a tékhne que permitirá ao
indivíduo ocupar-se consigo mesmo, isto é, ocupar-se com
sua alma enquanto sujeito: esta, a primeira distinção. A se-
gunda distinção conceme à economia. Quando um bom
pai de farm1ia, um bom dono da casa, um bom proprietário
ocupa-se com seus bens e riquezas, ocupa-se em fazer pros-
,I
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 73
perar o que possui, ocupa-se de sua família, etc., pode-se
dizer que ele se ocupa consigo mesmo? Inútil insistir, o Ia-
ciocínio é o mesmo: ocupa-se com seus bens, com o que é
dele, mas não com ele [mesmo]. Por fim, em terceiro lugar,
pode-se dizer que os pretendentes de Alcibíades ocupam-se
com o próprio Alcibíades? De fato, seu comportamento, sua
conduta prova que não é com Alcibíades que se ocupam, é
meramente com seu corpo e a beleza de seu corpo, já que o
abandonam quando ele avança em idade e deixa de ser in-
teiramente desejável. Ocupar-se com o próprio Alcibíades, no
sentido estrito, significará pois ocupar-se não com seu cor-
po, mas ocupar-se com sua alma, com sua alma enquanto
ela é sujeito de ação e se serve mais ou menos bem de seu
corpo, de suas aptidões, de suas capacidades, etc. Vemos
então que o fato de Sócrates ter esperado que Alcibíades
avançasse na idade, que sua mais brilhante juventude ti-
vesse passado para dirigir-lhe a palavra, mostra que aqui-
lo de'que Sócrates cuida, diferentemente dos outros ena-
morados e pretendentes de Alcibíades, é o próprio Al-
cibíades, sua alma, sua alma como sujeito de ação. Mais
precisamente, Sócrates cuida da maneira como Alcibíades
vai cuidar de si mesmo.
Creio que temos aí (aquilo que, parece-me, devemos re-
ter) o. que define a posição do mestre na epiméleia heautoú (o
cuidado de si). Pois o cuidado de si é, com efeito, algo que,
como veremos, tem sempre necessidade de passar pela rela-
ção com um outro que é o mestre. Não se pode cuidar de si
sem passar pelo mestre, não há cuidado de si sem a presen-
ça de um mestre. Porém, o que define a posição do mestre é
que ele cuida do cuidado que aquele que ele guia pode ter de
si mesmo. Diferentemente do médico ou do pai de farní1ia,
ele não cuida do corpo nem dos bens. Diferentemente do
professor, ele não cuida de ensinar aptidões e capacidades a
quem ele guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevale-
cer sobre os outros, etc. O mestre é aquele que cuida do cui-
dado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem
49. t
74 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cui-
dado que o discípulo tem de si próprio. Amando o rapaz de
forma desinteressada, ele é assim o princípio e o modelo do
cuidado que o rapaz deve ter de si enquanto sujeito. Ora, se
insisti nestas três pequenas observações concernentes ao
médico, ao pai de familia e aos enamorados, se realcei estas
três pequenas passagens que, na economia do texto, têm de
fato um papel mais transicíonal, é porque, a meu ver, elas
evocam problemas que terão depois uma importância consi-
derável na história do cuidado de si e de suas técnicas.
Em primeiro lugar, veremos que regularmente é colo-
cada a questão da relação entre o cuidado de si e a medicina,
o cuidado de si e os cuidados com o corpo, o cuidado de si
e o regime. Digamos que se trata da relação entre cuidado
de si e dietética. E, se Platão, naquele texto, mostra bem a
diferença radical de natureza que distingue dietética e cuida-
do de si, veremos que, na história do cuidado de si e da die-
tética, haverá uma sobreposição cada vez maior - por todo
um conjunto de razões que tentaremos analisar -, a tal ponto
que uma das formas principais do cuidado de si na época
helenística e sobretudo na época romana, nos séculos I e 11,
está na dietética. A dietética, como regime geral da existência
do corpo e da alma, tornar-se-á, de todo modo, uma das for-
mas capitais do cuidado de si. Em segundo lugar, será tam-
bém regularmente colocada a questão da relação entre o cui-
dado de si e a atividade social, os deveres privados do pai de
familia, do marido, do filho, do proprietário, do senhor de es-
cravos, etc. - questões estas que, como sabemos, estão agru-
padas, no pensamento grego, sob o nome de econômica. É
o cuidado de si compatível ou não com o conjunto destes de-
veres? Esta também vai ser uma questão fundamental. E a
resposta não será dada do mesmo modo nas diferentes esco-
las filosóficas. Digamos, de modo geral, que entre os epicu-
ristas haverá uma tendência a querer desconectar o mais
possível as obrigações da economia e a urgência de um cui-
dado de si. Em contrapartida, nos estóicos veremos, ao con-
( I
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 75
trário, uma imbricação que eles procurarão tomar a mais só-
lida possível, do cuidado de si com o econômico. Enfim, será
também colocada, durante séculos, a questão do vínculo en-
tre cuidado de si e relação amorosa: o cuidado de si, que se
forma e só pode formar-se numa referência ao Outro, deve
também passar pela relação amorosa? E haverá então, numa
escala que atinge toda a história da civilização grega, helenís-
tica e romana, um longo trabalho que, pouco a pouco, des-
conectará o cuidado de si e a erótica, fazendo cair a erótica
para o lado de uma prática singular, duvidosa, inquietante,
talvez até condenável, na mesma medida em que o cuidado
de si vai se tomando um dos temas principais desta mesma
cultura. Desconexão, portanto, entre erótica e cuidado de si;
problema com soluções opostas, nos estóicos e nos epicuris-
tas, quanto à relação [entre] cuidado de si e econômica; e im-
bricação, ao contrário, da dietética e do cuidado de si: estas
serão as três grandes linhas de evolução [...'].
-.
oi- Ouve-se apenas: e veremos que estes problemas da relação do
cuidado de si com a medicina, a gestão familiar, os interesses privados
e a erótica....
50. NOTAS
1. Cf., sobre a pederastia como educação, a antiga explana-
ção de H.-L Marrou em sua Hístoire de l'éducation dans I'Antiquité,
primeira parte, capo I1I, Paris, Éd. du Seuil, 1948.
2. Foucault descreve o estabelecimento de um poder pasto-
ral pela Igreja cristã (como retomada-transformação de um tema
pastoral hebraico) pela primeira vez no Curso de 1978 no College
de France (aula de 22 de fevereiro). Dele encontramos uma expla-
nação sintética em uma conferência de 1979 (Omnes et singulatim:
vers une critique de la raison politique, in Dits et Écrits, ap. cit., N,
n. 291, pp. 145-7), e Foucault estudará outra vez, de maneira mais
precisa e aprofundada, a estrutura da relação diretor-dirigido no
curso de 1980, menos porém nos termos do poder pastoral que
da relação que liga o sujeito a II atos de verdade (cf. resumo des-
te curso, id., n. 289, pp. 125-9).
3. Nascido em Abdera, nos primeiros anos do século V a.c.,
Protágoras é um sofista bem conhecido na Atenas do meio do
século, tendo, sem dúvida, entabulado sólidas relações de trabalho
com Péricles. Platão o põe em cena em um célebre diálogo que traz
o seu nome e é ali que o sofista reivindica sua aptidão para fazer
da virtude um objeto de ensino, ensino para o qual exige ser pago.
Entretanto, a descrição de Foucault a seguir - concemindo à apren-
dizagem das técnicas retóricas de persuasão e de dominação - faz
antes pensar na réplica de Górgias no diálogo platônico de mes-
mo nome (452e).
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 77
4. Bildung é a educação, a aprendizagem, a formação (Selbst-
bildung: formação de si). Esta noção foi particularmente difundida
através da categoria de Bildungsroman (romance de aprendizagem,
cujo modelo permanece sendo Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister, de Goethe).
5. Sobre a noção de tecnologia de si (ou técnica de si)
como domínio histórico específico a explorar, cf. Dits et Écrits, IV,
n. 344, p. 624; como processo de subjetivação irredutível ao jogo
simbólico, id., p. 628; para uma definição, id., n. 338, p. 545: prá-
ticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não so-
mente se fixam regras de conduta, como também procuram se
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida
uma obra. [Esta passagem é extraída do texto Usage des plaisirs
et techniques de soi que veio a ser incorporado à Introdução do
vaI. IL O uso dos prazeres, da História da sexualidade. Este trecho foi
extraído da tradução brasileira: O uso dos prazeres, p.15. (N. dosT.)]
6. A história das técnicas de si na Grécia arcaica fora larga-
mente abordada antes dos estudos de Foucault dos anos oitenta.
Teve, por n;!,Uito tempo, como centro de gravitação, a exegese de um
texto de Empédocles a propósito de Pitágoras apresentado como
homem de raro saber, mestre mais que ninguém em toda espé-
cie de obras sábias, que havia adquirido um imenso tesouro de co-
nhecimentos. Pois, quando ele retesava todas as forças de seu es-
pírito, via sem dificuldades todas as coisas em detalhe, por dez,
vinte gerações humanas (Porphyre, Vie de Pythagore, trad. Ir. E. des
Places, Paris, Les SeUes Letlres, 1982, parágrafo 30, p. 50). L. Gemet
primeiramente (Anthropologie de la Grece antique, Paris, Maspero,
1968, p. 252) e depois ).-P.Vemant (Mythe et Pensée chez les Crecs,
Paris, Maspero, 1965, t. 1., p.114) viram aí uma evocação muito cla-
ra de uma técnica espiritual que consiste em controlar a respiração
a fim de permitir uma concentração tal da alma que ela se libera
do corpo para vi~gens ao além. M. Détienne também evoca estas
técnicas em um capítulo de Maftres de la véríté dans la Grece archai-
que, Paris, Maspero, 1967, pp. 132-3 (cf. ainda, do mesmo autor, La
Notion de daünôn dans Ie pythagorisme ancien, Paris, Les Belles Lettres,
1963, pp. 79-85). Entretanto, E. R. Dodds os havia precedido (1959)
em Les Grecs et I'Irrationnel (cap.: Les chamans grecs et les origi-
nes du puritanisme, trad. Ir. Paris, Flammarion, 1977, pp. 139-60).
H. )oly, mais tarde (Le Renversement platonicien Logos-Epistemê-Polis,
51. 78 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
Paris,Vrin, 1974), estudará os ressurgimentos destas práticas espi-
rituais no discurso platônico e no gesto socrático, e finalmente sa-
bemos quanto P. Hadot considerará estas técnicas de si como uma
chave essencial de leitura da filosofia antiga (cf. Exercices spirituels et
Philosophie antique, Paris, Études augustiniennes, 1981).
7. A organização dos primeiros grupos pitagóricos e suas prá-
ticas espirituais nos são conhecidas quase apenas por escritos tar-
dios como as Vie de Pythagore de Porfírio ou de Jâmblico, que da-
tam dos séculos lI!-N (Platão, em A República, faz realmente um
elogio do modo de vida pitagórico em 600a-b, mas somente for-
mal). Cf. W. Burkert, Weisheit und Wissenschaft. Studien zu Pythago-
ras, Philolaus, und Platon, Nuremberg, H. Karl, 1962 (trad. ingl. por
Edwin L. Milnar: Lore and Sdence in Ancient Pythagoreanism, Cam-
bridge, Mass., Harvard University Press, 1972; versão revisada
pelo autor).
8. Foucault faz referência aqui às descrições da seita pitagó-
rica primitiva: Considerando que se começa a ter cuidados com
os homens pela sensação, fazendo-os ver formas e figuras belas e
fazendo-os ouvir belos ritmos e belas melodias, ele [Pitágoras] fa-
zia começar a educação pela música, por certas melodias e ritmos,
graças aos quais curava o caráter e as paixões dos homens, recon-
duzia a harmonia entre as faculdades da alma, como originariamen-
te eram, e inventava meios de controlar ou expulsar as doenças do
corpo e da alma [...]. À noite, quando seus companheiros se pre-
paravam para o sono, ele os desvencilhava dos cuidados do dia e
do tumulto, e purificava seu espírito agitado, proporcionando-lhes
um sono tranqüilo, cheio de belos sonhos, por vezes até de sonhos
proféticos (Jamblique, Vie de Pythagores, trad. Ir. L. Brisson A.-Ph.
Segonds, Paris, Les Belles Lettres, 1996, parágrafos 64-65, pp. 36-7).
Sobre a importância do sonho na seita pitagórica primitiva, cf. M.
Détienne, La Notion de dailnôn..., op. cit., pp. 44-5. Cf. também a
aula de 24 de março, segunda hora.
9. Cf. aula de 27 de janeiro, segunda hora, e de 24 de março,
segunda hora.
10. Sobre o exame pitagórico da noite, cf. aula de 24 de mar-
ço, segunda hora.
11. Le Démon de Socrate, 585a in Plutarque, Oeuvres morales, t.
VlIl, trad. J. Hani, Paris, Les Benes Lettres, 1980, p. 95 (Foucault re-
tomará este mesmo exemplo em uma conferência de outubro de
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 79
1982 na Universidade doVermont, in Dits et Écrits, Iv, n. 363, p. 801;
cf. também Le Souci de sai, op. cit., p. 75). [O cuidado de si, op. cit.,
p. 64. (N. dos T.)]
12. O exame das técnicas de provação será desenvolvido na
aula de 17 de março, primeira hora. .
13. Énecessário: apartar a alma o mais possível do corpo, ha-
bituá-la a se reconduzir, a se reunir a si mesma, partindo de cada
um dos pontos do corpo (Phédon, 67c, in Platon, Oeuvres comple-
tes, t. IV, trad. Ir. L. Robin,Paris, Les Belies Lettres, 1926, p.19). No
manuscrito, Foucault explicita que estas técnicas podem atuar
contra a dispersão que faz dissipar-se a alma e se refere a outra
passagem do Fédon (70a) a propósito do temor expresso por Ce-
bes dé um desligamento da alma (id., p. 24).
14. Uma vez que tomou em suas mãos as almas, de que é a
condição, a filosofia lhes fornece, com doçura, suas razões (Phé-
don, 83a, p. 44).
15. [A filosofia] busca liberá-las [...] persuadindo-as [= as
almas] ainda a se desprenderem (anakhoreín) deles [= os dados
dos sentidos], p.e,lo menos se não houver necessidade (ibid).
16. Foucault funde aqui duas cenas relatadas por Alcibíades
em O Banquete, 220a-220d. A primeira é a de Sócrates insensível
ao frio do inverno: Ele, nesta situação, saía ao contrário, com o
mesmo manto que antes tinha costume de usar e, com os pés des-
calços, andava sobre o gelo mais facilmente do que os outros com
seus calçados (Le Banquet, in Platon, Oeuvres completes, t. IV-2,
trad. Ir. L. Robin, Paris, Les Belles Lettres, 1929, p. 86). A segunda,
que se segue imediatamente, é a de Sócrates mergulhado em uma
reflexão que o mantém imóvet de pé, durante todo um dia e uma
noite (id., pp. 87-8).
17. Trata-se da passagem 217d-219d do Banquet (pp. 81-2).
18. Esta dupla encontra-se em Sêneca, que nestes dois esta-
dos vê a realização da vida filosófica (com a magnitudo, ou grande-
za de alma). Cf., por exemplo: O que é a felicidade' Um estado
de paz, de contínua serenidade (securitas et perpetua tranquillitas)
(Lettres à Lucilius, t. IV, livro XlV, carta 92,3, ed. citada, p. 51). Sobre
a importância e a determinação destes estados em Sêneca, cf. L
Hadot, Seneca und die griechisch-r6mmische Tradition der Seelenlei-
tug, Berlim, De Gruyter, 1969, pp. 126-37. A tranquillitas, como cal-
ma interior inteiramente positiva, em distinção com a securitas,
como armadura de proteção dirigida contra o exterior, é uma ino-
52. 80 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
vação teórica de Sêneca, que se inspira, possivelmente, em Demó-
crito (euthymía).
19. MarcAurele, Pensées, IV; 3, trad. Ir. A. I.Trannoy, Paris, Les
BeUes Lettres, 1925 [mais adiante: referência a esta edição], pp. 27-9.
20. Foucault refere-se aqui a todo um desenvolvimento que
vai de 127e a 129a (Platon, Alcibiade, trad., N, Craiset, ed. citada,
pp.99-102).
21, Mas é fácil conhecer-se a si mesmo (gnônai heautón)? E
aquele que pôs este preceito no templo de Pito foi o primeiro que
veio? (Alcibiade, 129a, p. 102).
22. I/Então, ingênua criança, creia-me, creia nestas palavras ins-
critas em Delfos: 'Conhece-te a ti mesmo' (AIcibiade, 124 b, p. 92).
23. AIcibiade, 129b (p. 102).
24. AIcibiade, 132c (p. 108).
25. Apologie de Socrate, 2ge (p. 157).
26. Talvez não seja muito sensato remeter-se, a si e a sua
alma (hautàn kai tén hautou psykhén therapeúein), aos bons ofícios
dos nomes com inteira confiança neles e em seus autores (Craty-
le, 440c, in PlatoTI, Oeuvres completes, t. V-2, trad. L. Méridier, Paris,
Les BeUes Lettres, 1031, p. 137).
27. Phédon, 107c (p. 85).
28. Se pedíssemos a pessoas cuja vista é curta que lessem de
longe letras escritas em pequenos caracteres e se uma delas se
apercebesse que as mesmas letras se acham escritas em outro lu-
gar em caracteres maiores sobre um quadro maior, esta seria, pre-
sumo, uma bela chance de começar pelas grandes letras e exami-
nar em seguida as pequenas [...]. Poderia haver uma justiça maior
no quadro maior e, por isto, mais fácil de ser decifrada. Portanto,
se estiverdes de acordo, examinaremos primeiramente a natureza
da justiça nos Estados; em seguida a estudaremos nos indivíduos,
procurando encontrar a semelhança da grande nos traços da peque-
na(La République, livro lI, 368d e 369a, in Platon, Oeuvres complétes,
t.VI, trad. Ir. E. Chambry, Paris, Les BeUes Lettres, 1932, pp. 64-5).
29.Trata-se, no Alcibiade, da passagem que vai de 129b a 130c
(pp.102-4).
30. Phédon, 64c-65a (pp. 13-4).
31. Phédre, 246a-d, in Platon, Oeuvres Complétes, t. N-3, trad.
Ir. L. Robin, Paris, Les BeUes Lettres, 1926, pp. 35-6.
32. La République, livro N, 443d-e, in Platon, Oeuvres complé-
tes, t.VIl-1, trad. Ir. E. Chambry, Paris, Les BeUes Lettres, 1934, p. 44.
AULA DE 13 DEJANElRO DE 1982 81
33. Com efeito, a noção de uso das representações (khrêsis tôn
phantasiôn) é central em Epicteto, para quem esta faculdade, que
testemunha nossa filiação divina, é o bem supremo, o fim último
a perseguir e o fundamento essencial de nossa liberdade (os tex-
tos essenciais: I, 3,4; I, 12,34; I, 20, 5 e 15; 11, 8,4; Ill, 3,1; 111, 22,20;
I1I,24,69).
34. Estas atividades são examinadas em Alcibiade, 13a-132b
(pp 105-7).
35. Cf. aula de 27 de janeiro, primeira hora.
36. Esta tripartição (médica/econômica/erótica) fornece o pla-
no de estrutura de O uso dos prazeres e O cuidado de si (cf. Di!s et
Écrits, IV; r;. 326, p. 385).
Instituto de Psicologia - UFRGS
Biblioteca - -
53. PI
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982
Segunda hora
A determinação, no Alcibíades, do cuidado de si como co-
nhecimento de si: rivalidade dos dois imperativos na obra de
Platão. - A metáfora do olho; princípio de visão eelemento di-
vino. - Fim do diálogo: o cuidado com ajustiça. - Problemas de
autenticidade do diálogo e sua relação geral com o platonismo.
- Ocuidado de si do Alcibíades em relação: à ação política; à
. pedagogia; à erótica dos rapazes. - A antecipação, no Alcibía-
des, do destino do cuidado de si no platonismo. - Posteridade
neoplatônica do Alcibíades. - Oparadoxo do platonismo.
[...] [Há] mais uma sala à disposição? Sim? Os que lá
estão é porque não podem instalar-se na outra ou porque
preferem ficar lá? La;m,nto que as condições sejam tão ruins,
nada posso fazer e gostaria de evitar, na medida do possí-
vel, demasiado desconfortol
Bem, há pouco, ao falar das téc-
nicas de si e de sua preexistência à reflexão platônica sobre
a epiméleia heautou, eu tinha em mente, e me esqueci de lhes
mencionar, que existe um texto, um dos raros textos, pare-
ce-me, um dos raros estudos nos quais estes problemas são
um pouco abordados em função da filosofia platônica: tra-
ta-se do livro de Henri Joly intitulado Le Renversement pla-
tonicien Lógos-Epistéme-pólis. Há nele cerca de uma dúzia de
páginas sobre esta preexistência, ali atribuída à estrutura
xamanística - palavra discutível, mas isto é irrelevante'. Ele
insiste na preexistência de algumas destas técnicas na cul-
tura grega arcaica (técnicas de respiração, técnicas do corpo,
etc.). Pode ser tomado como referência'. Em todo caso, é um
texto que me trouxe algumas idéias, e fui desatento em não
citá-lo antes. Terceira observação, também de método: não me
desagrada o esquema de duas horas; não sei quanto a vocês,
mas, de qualquer forma, ele nos permite prosseguir mais
lentamente. Gostaria muito, é claro, de utilizar eventualmen-
54. 84 A HERMENfuTICA DO SUJEITO
te pelo menos uma parte da segunda hora para discutir com
vocês, responder a questões ou algo assim. Ao mesmo tem-
po, devo lhes confessar que estou um pouco cético, pois é
difícil discutir di.nte de um auditório tão numeroso. Não sei.
Se realmente vocês acharem possível e julgarem que pode-
mos fazê-lo com alguma seriedade, é o que quero. Se tiverem
questões, tentaremos, em uma parte da hora, responder a
elas. Enfim, vocês me dirão dentro em pouco. Poderíamos
fazer à moda grega: tirar na sorte, e a cada vez tirar na sorte
vinte ou trinta ouvintes com os quais faríamos um pequeno
seminário... Agora então gostaria de terminar a leitura do
Alcibíades. Trata-se para mim, repito, de uma espécie de in-
trodução àquilo de que gostaria de lhes falar neste ano. Pois
não é meu projeto retomar, em todas as suas dimensões, a
questão do cuidado de si em Platão, questão bastante im-
portante já que não é evocada apenas no Alcibíades, embo-
ra seja unicamente nO Alcibíades que dela existe uma teoria
completa. Também não tenho intenção de reconstituir a his-
tória continua do cuidado de si, desde suaS formulações soerá-
tico-platônicas até o cristianismo. Esta leitura do Alcibíades
é, de certo modo, a introdução, um ponto de referência na
filosofia clássica, após o qual passarei à filosofia helenística
e romana (período imperial). Portanto, simplesmente uma
referência. Gostaria agora de terminar a leitura do texto e
depois pontuar alguns dos problemas, dos traços específicos
deste texto, além de outros que, ao contrário, reencontrare-
moS mais tarde, permitindo colocar a questão do cuidado de
si na sua dimensão histórica. Assim, vimos a primeira ques-
tão de que tratou a segunda parte do Alcibíades: o que é o
eu com Oqual é preciso ocupar-se?
A segunda parte, o segundo desenvolvimento, a segun-
da questão desta segunda parte - o conjunto é arquiteturado
de maneira ao mesmo tempo simples, clara e perfeitamente
legível - é a seguinte: em que deve consistir este cuidado?
O que é cuidar? A resposta vem em seguida, imediatamente.
Nem há que se fazer aquele caminho um pouco sutil e curio-
so que fizemos a propósito da alma quando, a partir da no-
fi
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 85
ção de khrêsis!khrêsthai, etc., identificamos que era da alma
que devíamos nos ocupar. Não agora. Em que deve consis-
tir ocupar-se consigo? Pois bem, muito simplesmente, em
conhecer-se a si mesmo. E aí é que se encontra, pela terceira
vez, no texto, a referência ao gnôthi seautón, ao preceito dél-
fico. Mas esta terceira referência tem um valor inteiramente
outro, uma significação totalmente diversa das duas primeiras.
Lembremos, a primeira era apenas um conselho de prudên-
cia: dize-me, Alcibíades, tu tens realmente grandes ambições,
mas presta um pouco de atenção ao que és, crês que és ca-
paz de honrar estas ambições? Esta primeira referência era,
se quisermos, introdutória, incitadora à epíméleia heautou:
olhando um pouco para si mesmo e apreendendo suas pró-
prias insuficiências,Alcibíades era incitado a ocupar-se con-
sigo mesmo'. A segunda ocorrência do gnôthi seautón foi
logo após a injunção de ter de ocupar-se consigo, mas sob
a forma de uma questão de certo modo metodológica: o
que é este eu com que é preciso ocupar-se, o que quer dizer
este heautón ao qual ele se refere? Ali, pela segunda vez, era
citado o preceito délfico'- Agora, finalmente, a terceira ocorrên-
cia do gnóthi seautón, quando se pergunta em que deve con-
sistir ocupar-se consigo611
. Desta feita então, temos o gnô-
thi seautón, por assim dizer, em todo o seu esplendor e em
toda a sua plenitude: o cuidado de si deve consistir no co-
nhecimento de si. Gnóthi seautón no sentido pleno: aí está,
seguramente, um dos momentos decisivos do texto; um dos
momentos constitutivos, penso eu, [do] platonismo; e, jus-
tamente, um daqueles episódios essenciais na história das
tecnologias de si, na longa história do cuidado de si, e que terá
um forte peso ou, pelo menos, efeitos consideráveis durante
a civilização grega, helenística e romana. [Mais] precisamen-
te, como lhes lembrava há pouco, encontramos, em textos
como o Fédon, o Banquete, etc., numerOsas alusões a práticas
que não parecem concernir pura e simplesmente ao co-
nhece-te a ti mesmo: práticas de concentração do pensa-
ment0' de retraimento da alma em torno de seu eixo, de re-
tiro em si, de resistência, etc. Tantas maneiras de ocupar-se
55. 86 A HERMENturICA DO SUJEITO
consigo mesmo que não são pura e simplesmente, nem di-
retamente, ou pelo menos à primeira vista, assimiláveis ao
conhecimento de si. De fato, recuperando e reintegrando
algumas daquelas técnicas anteriores, arcaicas, preexisten-
tes, todo o movimento do pensamento platônico a propósi-
to do cuidado de si consistirá, precisamente, em dispô-las e
subordiná-las ao grande princípio do conhece-te a ti mes-
mo. Épara conhecer-se a si mesmo que é preciso dobrar-
se sobre si; é para conhecer-se a si mesmo que é preciso
desligar-se das sensações que nos iludem; é para conhecer-
se a si mesmo que é preciso estabelecer a alma em uma fi-
xidez imóvel que a desvincula de todos os acontecimentos
exteriores. É, ao mesmo tempo, para conhecer-se a si mes-
mo e na medida em que se conhece a si mesmo, que tudo
isto deve e pode ser feito. Portanto, haverá uma reorganiza-
ção geral, parece-me, de todas estas técnicas em tomo do
conhece-te a ti mesmo. De todo modo, aqui neste texto,
em que não são evocadas todas as técnicas anteriores, pode-
se dizer que, uma vez aberto o espaço do cuidado de si e uma
vez definido o eu como sendo a alma, todo o espaço assim
aberto é coberto pelo princípio do conhece-te a ti mesmo.
Há, pode-se dizer, um golpe de força do gnôthi seautón no
espaço aberto pelo cuidado de si. Dizer golpe de força,
evidentemente, é um pouco metafórico. Lembremos que na
última vez - e, no fundo, é sobre isto que procurarei lhes fa-
lar neste ano - eu evocara este tipo de problemas, difíceis e
de longo alcance histórico, entre o gnôthi seautón (o conhe-
cimento de si) e o cuidado de si. Parecera-me então que a fi-
losofia moderna - por razões que busquei assinalar naquilo
que denominei, brincando um pouco, embora não seja en-
graçado, de momento cartesiano - teria sido levada a fazer
recair a tônica inteiramente sobre o gnôthi seautón €I conse-
qüentemente, a esquecer, deixar na sombra, marginalizar
um tanto, a questão do cuidado de si. Portanto, é o cuida-
do de si, relativamente ao privilégio tão longamente con-
cedido ao gnôthi seautón, que, neste ano, gostaria de fazer
reemergir. Ao fazer assim reemergir o cuidado de si, não será,
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 87
de modo algum, para dizer que o gnôthi seautón não existiu,
não teve importância ou só teve um papel subalterno. Gos-
taria, na realidade, de expor (e aqui temos um excelente
exemplo) a sobreposição entre o gnôthi seautón e a epiméleia
heautoú (o conhece-te a ti mesmo e o cuidado de si). Ao
longo de todo o texto vemos a sobreposição de ambos: é
lembrando a Alcibíades que faria bem em olhar um pouco
para si mesmo que se o leva a dizer - /I sim, é verdade, pre-
ciso cuidar de mim mesmo; depois, assim que Sócrates es-
tabeleceu este princípio e Alcibíades o aceitou, novamente
colocou-se [o .problema] - é necessário conhecer este si
mesmo com o qual é preciso ocupar-se; e agora, pela ter-
ceira vez, quando queremos ver em que consiste o cuidado,
reencontramos o gnôthi seautón. Há uma sobreposição di-
nâmica' um apelo recíproco entre o gnôthi seautón e a epimé-
leia heautoú (conhecimento de si e cuidado de si). Esta so-
breposição, este apelo recíproco, é, creio, característico de
Platão. Será reencontrado em toda a história do pensamen-
to grego, helenístico e romano, evidentemente com equilí-
brios diferentes, diferentes relações, tônicas diferentemente
atribuídas a um ou a outro, distribuição dos momentos en-
tre conhecimento de si e cuidado de si também diferentes
nos diversos tipos de pensamentos. Contudo, é a sobreposi-
ção que importa e nenhum dos dois elementos deve ser ne-
gligenciado em proveito do outro.
Retomemos pois ao nosso texto e ao triunfal reapareci-
mento, pela terceira vez, do gnôthi seautón: ocupar-se consigo
é conhecer-se. Seguramente, uma questão se coloca: como
é possível conhecer-se, em que consiste este conhecimen-
to? Aparece então uma passagem que terá ecos nos outros
diálogos de Platão, sobretudo nos diálogos tardios, a da me-
táfora, bem conhecida e freqüentemente utilizada, do olho'.
Ora, se quisermos saber como a alma, posto que sabemos
agora que é a alma que deve conhecer-se a si mesma, pode
conhecer-se, tomemos o exemplo do olho. Sob que condi-
ções e como um olho pode se ver? Pois bem, quando per-
cebe sua própria imagem que lhe é devolvida por um es-
56. 88 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
pelho. Mas o espelho não é a única superfície de reflexo para
um olho que quer olhar-se a si mesmo. Afinal, quando o olho
de alguém se olha no olho de outro alguém, quando um
olho se olha em um outro olho que lhe é inteiramente seme-
lhante, o que vê ele no olho do outro?Vê-se a si mesmo. Por-
tanto, uma identidade de natureza é a condição para que
um indivíduo possa conhecer o que ele é. A identidade de
natureza é, se quisermos, a superfície de reflexo onde o in-
divíduo pode reconhecer-se, conhecer o que ele é. Em segun-
do lugar, quando o olho percebe-se assim no olho do outro,
é no olho em geral que ele se vê ou não seria antes neste
elemento particular do olho que é a pupila, elemento no
qual e pelo qual se efetua o próprio ato da visão? De fato, o
olho não se vê no olho. O olho se vê no princípio da visão.
Isto quer dizer que o ato da visão, que permite ao olho
apreender a si mesmo, só pode efetuar-se em outro ato de
visão, aquela que se encontra no olho do outro. Ora, o que
mostra esta comparação, que é bem conhecida, aplicada à
alma? Mostra que a alma só se verá dirigindo seu olhar para
um elemento que for da mesma natureza que ela, mais pre-
cisamente, olhando o elemento da mesma natureza que ela,
voltando seu olhar, aplicando-o ao próprio princípio que
constitui a natureza da alma, isto é, o pensamento e o saber
(to phronein, to eidénai)8 É voltando-se para este elemento
assegurado no pensamento e no saber que a alma poderá
ver-se. Ora, o que é este elemento? Pois bem, é o elemento
divino. Portanto, é voltando-se para o divino que a alma po-
derá apreender a si mesma. Neste momento então, coloca-se
um problema, problema técnico que, deixo claro, sou incapaz
de resolver, mas que é interessante, como veremos, relativa-
mente aos ecos que poderá ter na história do pensamento:
problema de uma passagem cuja autenticidade é contesta-
da. Ela começa com uma réplica de Sócrates: Assim como
os verdadeiros espelhos são mais claros, mais puros e mais
luminosos que o espelho do olho, assim o deus (ho theós) é
mais puro e mais luminoso que a melhor parte de nossa
alma. Alcibíades responde: Parece que sim, Sócrates. E
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 89
neste momento Sócrates responde: Portanto, é o deus que
devemos olhar; é ele o melhor espelho das próprias coisas
humanas para quem quiser julgar a qualidade da alma, e é
nele que melhor podemos nos ver e nos conhecer. Sim,
diz Alcibíades'.Vemos que nesta passagem está dito que os
melhores espelhos são mais puros e mais luminosos que o
próprio olho. Do mesmo modo, posto que nos vemos me-
lhor quando o espelho é mais luminoso que nosso próprio
olho, veremos melhor nossa alma se a olharmos, não em uma
alma semelhante à nossa, de igual luminosidade, mas se a
olharmos em um elemento mais luminoso e mais puro que
ela, a saber, Deus. Na realidade, esta passagem só é citada
em um texto de Eusébio de Cesaréia (Preparação evangéli-
ca)1O e por isto se suspeita que tenha sido introduzida, quer
por uma tradição neoplatônica, quer por uma tradição cristã,
quer por uma tradição platônico-cristã. De qualquer modo,
seja ela efetivamente de Platão, ou tenha sido acrescentada
posterior e tardiamente - ainda que constitua uma espécie
de passagem no limite, relativamente ao que se considera
como sendo a filosofia do próprio Platão -, o movimento
geral do texto, independemente desta passagem e mesmo
se a abstrairmos, continua a parecer-me perfeitamente claro.
Ele faz do conhecimento do divino a condição do conheci-
menta de si. Suprimamos esta passagem, deixemos o resto
do diálogo para se estar mais próximo de sua autenticida-
de, e teremos este princípio: para ocupar-se consigo, é pre-
ciso conhecer-se a si mesmo; para conhecer-se, é preciso
olhar-se em um elemento que seja igual a si; é preciso olhar-
se em um elemento que seja o próprio princípio do saber e
do conhecimento; e este princípio do saber e do conheci-
mento é o elemento divino. Portanto, é preciso olhar-se no
elemento divino para reconhecer-se: é preciso conhecer o di-
vino para reconhecer a si mesmo.
A partir daí, creio então que podemos, sem mais de-
longas, prosseguir ao final do texto tal cama ele se desen-
rola. Abrindo-se ao conhecimento do divino, o movimento
pelo qual nos conhecemos, no grande cuidado que temos
57. 90 A HERMEmUTICA DO SUJEITO
de nós mesmos, permitirá que a alma atinja a sabedoria. Se
estiver em contato com O divino, se o tiver apreendido, se ti-
ver podido pensar e conhecer este princípio de pensamen-
to e de conhecimento que é o divino, a alma será dotada de
sabedoria (sophrosYne). Dotada de sophrosyne, a alma pode-
rá, neste momento, retomar ao mundo aqui de baixo. Saberá
distinguir o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. Saberá en-
tão conduzir-se como se deve, saberá governar a cidade. Re-
sumi, muito brevemente, um trecho que é um pouco mais
longo, porque gostaria de logo chegar à última, ou melhor,
à penúltima réplica do texto, uma interessante reflexão que
se encontra em 13Se.
Eis que voltamos a descer e, apoiados no conhecimen-
to de si que é o conhecimento do divino, conhecimento da
sabedoria e regra para se conduzir como se deve, sabemos
agora que poderemos governar e que aquele que tiver feito
este movimento de ascenção e de descida poderá ser um
governante de qualidade para sua cidade. Alcibíades então
promete. O que promete ele, ao termo deste diálogo em que
de modo tão contumaz foi incitado a ocupar-se consigo
mesmo? Que promessa faz a Sócrates? Trata-se exatamen-
te da penúltima réplica, a última de Alcibíades, que será se-
guida de uma reflexão de Sócrates, e ele diz: de todo modo,
está decidido, vou começar desde agora a epimélesthai - a
aplicar-me, a preocupar-me...comigo mesmo? Não, com
a justiça (dikaios)Ínes). Pode parecer paradoxal, posto que o
conjunto do diálogo, ou pelo menOS toda a segunda parte
do seu movimento, concernia ao cuidado de si, à necessida-
de de ocupar-se consigo. E eis que, no momento em que o
diálogo termina, Alcibíades, uma vez convencido, compro-
mete-se a ocupar-se com a justiça.Vemos porém que, preci-
samente, não há diferença. Ou antes, este foi o benefício do
. diálogo e o efeito do seu movimento: convencer Alcibíades
de que deve ocupar-se consigo mesmo; definir para Alci-
bíades aquilo com que deve ocupar-se - sua alma; explicar
a Alcibíades como deve ocupar-se com sua alma - voltando
seu olhar para o divino onde se acha o princípio da sabedo-
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k
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 91
ria; [de sorte que] quando ele olhar na direção de si mesmo,
descobrirá o divino; e nele descobrirá, conseqüentemente, a
própria essência da sabedoria (dikaioS)Íne); ou, inversamen-
te, quando olhar na direção da essência da sabedoria (di-
kaioS)Íne), verá ao mesmo tempo o elemento divino; ele-
mento divino que é aquele em que ele se conhece e se re-
conhece, pois que é no elemento da identidade que o divino
reflete o que eu sou. Por conseguinte, ocupar-se consigo ou
ocupar-se com a justiça dá no mesmo e todo o jogo do diálo-
go, partindo da questão como poderei tomar-me um bom
governante?, consiste em conduzir Alcibíades ao preceito
ocupa-te contigo mesmo e, desenvolvendo o que deverá
ser este preceito e o sentido que lhe será necessário atribuir,
descobrir queocupar-se consigo mesmo é ocupar-se com
a justiça. No final do diálogo, é com isto que Alcibíades se
compromete. É assim que o texto se desenvolve.
Creio que podemos agora fazer algumas reflexões um
pouco mais gerais. Comecemos falando do diálogo e do pro-
blema que ele apresenta, pois várias vezes aludi, quer à au-
tenticidade de uma passagem, quer ao próprio diálogo, que,
em certo momento, foi considerado por alguns como não
autêntico. Na realidade, creio que agora não há mais um
único estudioso que coloque, de fato e seriamente, a ques-
tão da sua autenticidadel2
• Contudo, continuam a colocar-se
alguns problemas quanto à sua data. A este respeito há um
artigo muito bom escrito por Raymond Weil em I.:Informa-
tion littéraire, que faz um balanço, um posicionamento bem
completo, creio, das questões deste texto e de sua datação13
Com certeza, muitos elementos do texto parecem indicar
uma redação precoce: os elementos socráticos dos primei-
ros diálogos estão bastante presentes no tipo de problemas
colocados. Evoquei-os há pouco: a questão do jovem aris-
tocrata que quer governar, da insuficiência da pedagogia,
do papel a ser atribuído ao amor pelos rapazes, etc., dos
próprios passos do diálogo com suas questões um tanto re-
petitivas; tudo isto indica, ao mesmo tempo, uma paisagem
sociopolítica que era a dos diálogos socráticos e um méto-
1i
li
58. 92 A HERMENtlITlCA DO SUJEITO
do que era o dos diálogos aporéticos que não se concluíam.
Ora, por outro lado, encontramos no diálogo, justamente,
alguns elementos que parecem sugerir uma datação bem
mais tardia, elementos externos que não sou capaz de ava-
liar e tomo diretamente do artigo de Raymond Weil. Por
exemplo, a alusão, como vimos, feita em dado momento, à
riqueza da Lacedemônia, de Esparta, quando Sócrates diz a
Alcibíades: mas terás que lidar com um forte adversário,
pois sabes que, afinal, os lacedemônios são mais ricos que
tu. Parece que uma referência como esta à riqueza maior de
Esparta que de Atenas só faz sentido após a guerra do Pelo-
poneso e depois de um desenvolvimento econômico de Es-
parta que, certamente, não foi contemporâneo dos primei-
ros diálogos platônicos. Segundo elemento, este também
um tanto externo, o interesse pela Pérsia. Em Platão, a refe-
rência à Pérsia aparece mais tardiamente. Não há outro tes-
temunho nos primeiros diálogos. Entretanto, no tocante ao
problema da datação, é principalmente a consideração in-
terna do diálogo que a mim interessa. Por um lado, o fato de
que o diálogo começa inteiramente no estilo dos diálogos
socráticos: questões sobre o que é governar, sobre a justiça
e, em seguida, sobre o que é a felicidade na cidade. E, como
sabemos, todos estes diálogos terminam, em geral, com um
questionamento sem saída, ou pelo menos um questiona-
mento sem resposta positiva. Ora, no caso, após as longas
repetições, vemos precipitar-se, bruscamente, uma concep-
ção do conhecimento de si, do conhecimento de si como
reconhecimento do divino. Toda esta análise, que fundará a
dikaiosyne com uma espécie de evidência sem problema, não
pertence, em geral, ao estilo dos primeiros diálogos. Além
disto, há outros elementos. A teoria das quatro virtudes, como
sabemos, é emprestada dos persas e trata-se da teoria das
quatro virtudes no platonismo constituído. A metáfora do es-
pelho, da alma que se olha no espelho do divino, é igual-
mente do platonismo tardio. A idéia da alma muito mais
como agente, ou antes, como sujeito da khrêsis, do que co-
mo substância aprisionada no corpo, etc., é um elemento
;1
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982
93
que se reencontrará em Aristóteles e parece indicar uma in-
fluência do platonismo que seria bem surpreendente caso
datasse dos seus primeiros momentos. Em suma, temos um
texto que é cronologicamente estranho e que parece atra-
vessar, de certo modo, toda a obra de Platão: as referências,
o estilo da juventude estão muito presentes, inegáveis; por
outro lado, a presença de temas e formas do platonismo
constituído éigualmente muito visível. Penso que a hipótese
de alguns - a mesma, parece-me, que Weil propõe com cer-
tas precauções - seria talvez a de uma espécie de reescrita
do diálogo a partir de algum momento da velhice de Platão
ou, no limite, após sua morte: dois elementos que seriam
reunidos, dois extratos no texto, de certo modo, dois extra-
tos que vieram a interferir e que, em dado momento, teriam
sido costurados no diálogo. De qualquer maneira, posto que
esta não é uma discussão da minha competência nem do
meu propósito, o que me interessa e acho muito fascinante
neste diálogo, é que, no fundo, nele vemos o traçado de todo
um percurso da filosofia de Platão, desde a interrogação so-
crática até o que aparece como elementos muito próximos
do último Platão ou mesmo do neoplatonismo. Por isto, a
presença e a inserção talvez daquele controvertido trecho,
citado por Eusébio de Cesaréia, no fundo não destoa no in-
terior deste grande movimento em cujos elementos é ver-
dadeiramente a trajetória do próprio platonismo que está
não de todo presente, mas ao menos indicada no essencial
da sua curva. Esta é a primeira razão pela qual este texto me
parece interessante.
Ademais, é a partir daí e desta grande trajetória que
me parece possível isolar alguns elementos que posicionam
bem, não mais a questão propriamente platônica da epimé-
leia heaufoú, mas a da pura história desta noção, de suas
práticas, de sua elaboração filosófica no pensamento grego,
helenístico e romano. De um lado, vemos muito nitidamen-
te aparecer neste texto certas questões como: relação com a
ação política, relação com a pedagogia, relação com a eróti-
ca dos rapazes. São questões, na sua formulação e na solução
-.,
59. 94 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
aqui proposta, certamente típicas do pensamento socrático-
platônico, mas que serão reencontradas de maneira quase
contínua na história do pensamento greco-romano, até os
séculos 1I-I1I d.e., porém com soluções ou formulação de
problemas um pouco diferentes.
Primeiramente, relação com a ação política. Lembremos
que para Sócrates, no diálogo do Alcibíades, fica claro que o
cuidado de si é um imperativo proposto àqueles que querem
governar os outros, e em resposta à questãocomo se pode
bem governar?. Cuidar de si é um privilégio dos gover-
nantes ou, ao mesmo tempo, um dever dos governantes,
porque eles têm que governar. Será interessante ver como
este imperativo do cuidado de si de certo modo vai gene-
ralizar-se, tornar-se um imperativo, um imperativo para
todo mundo, mas, desde logo, colocando todo mundo
entre aspas. Haverá generalização deste imperativo - bus-
carei mostrar-lhes na próxima aula -, uma generalização
que é parcial, todavia, e para a qual é preciso levar em con-
ta duas consideráveis limitações. A primeira, seguramente,
é que para ocupar-se consigo [ainda] é preciso ter capacida-
de, tempo, cultura, etc. Trata-se de um comportamento de
elite. E mesmo quando os estóicos, mesmo quando os cíni-
cos' disserem às pessoas, a todo mundo ocupa-te contigo
mesmo, de fato isto só poderá tomar-se uma prática para
quem e nas pessoas que, para tanto, tiverem capacidade
cultural, económica e social. Em segundo lugar, deve-se
também lembrar que, nesta mesm~ generalização, haverá
um segundo princípio de limitação. E que ocupar-se consigo
terá por efeito - como sentido e como finalidade - fazer do
individuo que se ocupa consigo mesmo alguém diferente
em relação à massa, à maioria, a estes hai paliar' que são,
precisamente, as pessoas absorvidas na vida de todos os dias.
Haverá pois uma clivagem ética que, a título de conseqüên-
cia, é provocada pela aplicação do princípio ocupa-te con-
tigo mesmo, [o qual, por sua vez - segunda clivagem] só
pode ser efetuado por uma elite moral e por aqueles que fo-
rem capazes de se salvar. O cruzamento destas duas cliva-
:
I '
I
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 95
gens - a clivagem de fato, da elite cultivada, e a clivagem
imposta, obtida a título de conseqüência pela prática do
cuidado de si - instituirá consideráveis limitações a esta ge-
neralização, generalização que, contudo, será mais tarde rei-
vindicada, formulada, reclamada pelos filósofos.
Em segundo lugar, vemos que o cuidado de si, em Só-
crates e Platão, está diretamente ligado àquestão da pedago-
gia. Pedagogia insuficiente, logo, necessidade de cuidar de
si. Ora, assistiremos, na seqüência, a um segundo desloca-
mento, deslocamento que recairá não mais na generalidade
simplesmente, mas na idade. Será preciso ocupar-se consi-
go não quando se é jovem e porque a pedagogia em Atenas
é insuficiente, mas será preciso ocupar-se consigo em qual-
quer situação porque toda e qualquer pedagogia é incapaz
de nó-lo assegurar. Será preciso ocupar-se consigo durante
toda a vida, sendo que a idade crucial, determinante, é a da
maturidade. Não mais a saída da adolescência, mas o de-
senvolvimento da maturidade é que será a idade privilegiada
para o necessário cuidado de si. Como conseqüência, o pre-
paro do cuidado de si não se fará, como era no caso do ado-
lescente, pelo ingresso na vida adulta e na vida cívica. Não
mais para tomar-se cidadão, ou melhor, o chefe de que se
precisa, é que o jovem vai ocupar-se consigo [mesmo]. O adul-
to se ocupará consigo mesmo - para preparar o quê? Sua
velhice. Para preparar a completude da vida naquela idade
em que a própria vida estará completa e como que suspen-
sa, que é a velhice. O cuidado de si como preparação para a
velhice se distingue muito nitidamente do cuidado de si
como substituto pedagógico, como complemento pedagó-
gico que prepara para a vida.
Enfim - como indiquei há pouco e não preciso repetir
- relação com a erótica dos rapazes. Também quanto a isto,
o vinculo, em Platão, era nítido. Pouco a pouco ele se disso-
ciará e a erótica dos rapazes desaparecerá ou tenderá a de-
saparecer, na técnica de si e na cultura de si da época hele-
nística e romana. Com notáveis exceções e com uma série de
morosidades, de dificuldades, etc. Quando lemos, por exem-
60. 96 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
pIo, a terceira ou a quarta sátira de Perseu, percebemos que
ele evoca seu mestre Comutus inteiramente como aman-
te15; a correspondência de Frontão com Marco Aurélio assim
como a de Marco Aurélio com Frontão é uma correspondência
de amante e amado16. O problema é pois muito mais exten-
so e difícil.
Digamos então, se quisermos, que estes temas (relação
com a erótica, relação com a pedagogia, relação com a po-
lítica) estarão sempre presentes, mas com uma série de des-
locamentos que constituem a própria história do cuidado
de si na civilização pós-clássica. Portanto, se podemos dizer
que, pelos problemas que coloca, o Alcibíades descerra uma
longa história, mostra ao mesmo tempo qual é, no decurso
deste período, a solução propriamente platônica ou propria-
mente neoplatônica que será fornecida a estes problemas.
Nesta medida, o Alcibíades não dá testemunho nem faz
uma antecipação da história geral do cuidado de si, mas da
forma estritamente platônica que ele toma. Com efeito, pa-
rece-me que o que caracterizará o cuidado de si na tradição
platônica e neoplatônica é, por um lado, que o cuidado de
si encontra sua forma - forma esta, senão única, ao menos
absolutamente soberana - e sua realização no conhecimento
de si. Em segundo lugar, igualmente característico da cor-
rente platônica e neoplatônica, será o fato de que este conhe-
cimento de si, como expressão maior e soberana do cuidado
de si, dá acesso à verdade e à verdade em geral. Finalmente,
em terceiro lugar, será característico da forma platônica e
neoplatônica do cuidado de si, o fato de que o acesso à ver-
dade peTInite, ao mesmo tempo, reconhecer o que pode haver
de divino em si. Conhecer-se, conhecer o divino, reconhe-
cer o divino em si mesmo, é fundamental, creio, na forma
platônica e neoplatônica do cuidado de si. Não encontrare-
mos estes elementos - em todo caso, não assim distribuí-
dos e organizados - nas outras formas [do cuidado de si],
epicurista, estóica e mesmo pitagórica, a despeito de todas
as interferências que possam depois ter ocorrido entre os
movimentos neopitagóricos e neoplatônicos.
;1
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 97
Deste modo, creio ser possível, a partir daí, compreender
certos aspectos do grande paradoxo do platonismo na his-
tória do pensamento, não apenas na história do pensamen-
to antigo como também na história do pensamento euro-
peu, pelo menos até o século XVII.Vejamos o paradoxo. De
um lado, o platonismo foi o fermento, e pode-se mesmo di-
zer o principal fennento, de movimentos espirituais diversos,
na medida em que, com efeito, ele concebia o conhecimento
e o acesso à verdade somente a partir de um conhecimen-
to de si que era reconhecimento do divino em si mesmo.
Por isto, vemos bem, para o platonismo, o conhecimento, o
acesso à verdade só se poderia fazer nas condições de um
movimento espiritual da alma em relação consigo e com o
divino: relação com o divino porque em relação consigo, re-
lação consigo porque em relação com o divino. Esta relação
consigo e com o divino, relação consigo mesmo como divino
e relação com o divino como si mesmo foi, para o platonis-
mo, uma das condições de acesso à verdade. Nesta medida,
compreende-se quanto ele tenha sido, constantemente, o
fermento, o solo, o clima, a paisagem de uma série de mo-
vimentos espirituais, em cujo cerne, sem dúvida, ou em cujo
ápice, se quisermos, ocorreram todos os movimentos gnós-
ticos. Mas vemos, ao mesmo tempo, quanto o platonismo
pôde ter sido, constantemente também, o clima de desen-
volvimento do que poderíamos chamar de racionalidade.
E, na medida em que não faz sentido opor, como se fossem
duas coisas de igual nível, espiritualidade e racionalidade,
diria que o platonismo foi, antes, o clima perpétuo no qual
se desenvolveu um movimento de conhecimento, conheci-
mento puro sem condição de espiritualidade, posto que é
próprio do platonismo, precisamente, mostrar de que modo
todo o trabalho de si sobre si, todos os cuidados que se deve
ter consigo mesmo se se quiser ter acesso à verdade con-
sistem em conhecer-se, isto é, em conhecer a verdade. Nes-
ta mesma medida, conhecimento de si e conhecimento da
verdade (o ato de conhecimento, o percurso e o método do
conhecimento em geral) vão, de certa forma, neles absorver
61. 98 A HERMENtUTIü DO SUJEITO
e reabsorver as exigências da espiritualidade. De sorte que
o platonismo desempenhará, parece-me, ao longo de toda
a cultura antiga e da cultura européia, este duplo jogo: reco-
locar incessantemente as condições de espiritualidade que
são necessárias para o acesso à verdade €, ao mesmo tem-
po, reabsorver a espiritualidade no movimento único do co-
nhecimento, conhecimento de si, do divino, das essências.
Eis, de modo geral, o que lhes queria apresentar sobre o
texto do Alcibíades e [sobre] as perspectivas históricas que
ele descerra.
Na próxima aula passaremos então ao estudo da ques-
tão da epiméleia heautoú em outro período histórico, a saber,
nas filosofias epicurista, estóica, etc. dos séculos I e 11 da
nossa era.
NOTAS
1. O ColIege de France colocava à disposição do público, além
da sala principal onde Foucault ensinava, uma segunda sala onde,
por um sistema de microfones, a voz de Foucault era transmitida
diretamente.
2. É em nome, precisamente, de uma estrita definição do xa-
manismo - como fenômeno social ligado fundamentalmente às
civilizações da caça (Qu'est-ce que la philosophie antique?, op. cil., p.
270) - que P. Hadot se recusaria a falar aqui em xamanismo.
3. Cf. H. Joly, Le Renversemenet platonicien Logos-Epistemê-Po-
lis, op. cit., capo IH, L'archaisrne du connaítre et le puritanisme,
pp. 64-70: La pureté de la connaissance.
4. Alcibiade, 124b (ed. citada, p. 92); cf. aula de 6 de janeiro,
segunda hora.
5. Alcibiade, 129a (p. 102); cf. esta aula, primeira hora.
6. Mas, pelos deuses, este preceito tão justo de Delfos, que
evocávamos há pouco, estamos seguros de o tennos bem com-
preendido? (Alcibiade, 132c, p. 108).
7. Cf. um dos últimos desenvolvimentos do Alcibiade, 132d-
133c (pp. 108-10).
8. Alcibiade, 133c (p. 109).
9. Ibid. (p. 110).
10. Eusebe de Césarée, La Préparation évangélique, livro Xt
capo 27, trad. fr. G. Favrelle, Paris, Éd. Du Cerf, 1982, pp. 178-91.
.-,
62. ,
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il
1
100 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
11. Foucault quer sem dúvida dizer, aqui e lá, sophrosyne (e
não dikaiosyne), a menos que quisesse dizer justiça no lugar de
sabedoria.
12. O debate sobre a autenticidade do Alcibíades foi lançado
no começo do século XIX pelo estudioso alemão Schleierrnacher,
que considerava este diálogo como uma obra escolar redigida por
um membro da Academia. Deste então, as polêmicas não cessa-
ram. Sem dúvida, os grandes comentadores franceses que Fou-
cault podia conhecer (M. Craiset, L. Robin,V. Goldschmidt, R. Weil)
reconheciam sua autenticidade, mas numerosos estudiosos anglo-
saxões continuaram, ainda na época de Foucault, a colocá-lo em
dúvida. Hoje, eminentes especialistas franceses (como L. Brisson,
J. Brunschwig. M. Dixsaut) se perguntam novamente sobre esta
autenticidade, enquanto outros (J.-F. Pradeau) a defendem resolu-
tamente. Para uma verificação completa e quadro exaustivo das
posições, cf. a introdução de J.-F. Pradeau e o anexo 1 à sua edição
de Alcibiade, Paris, Gamier-Flammarion, 1999, pp. 24-9 e 219-20.
13. R. Weil, La place du Premier Alcibiade dans l'oeuvre de
Platon, L'Information littéraire, 16, 1964, pp. 74-84.
14. Esta expressão significa literalmente os vários ou os
numerosos e designa, desde Platão, o grande número em oposi-
ção à elite competente e sábia (para um uso exemplar desta ex-
pressão, cf. Criton, em 44b-49c, onde Sócrates mostra que, em ma-
téria de escolha ética, a opinião dominante nada vale).
15. Trata-se da quinta sátira. Foucault tem em mente aqui
particularmente os versos 36-37 e 40-41: Reservei-me para ti; és
tu quem recolhe minha tenra idade em teu seio socrático, Comu-
tus [...] com efeito, eu me lembro, contigo passava longos dias en-
solarados e ao cair da noite nossos festins (Perse, Satires, trad. fr.
A. Cartault, Paris, Les BeUes Lettres, 1920, p. 43).
16. Sobre esta correspondência, cf. aula de 27 de janeiro, se-
gunda hora.
~
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982
Primeira hora
o cuidado de si, do Alcibíades aos dois primeiros séculos
da nossa era: evolução geral. - Estudo léxico em tomo da epi-
méleia. - Uma constelação de expressões. - Ageneralização do
cuidado de si: prindpio de coextensividade à totalidade da exis-
tência. - Leitura de textos: Epicuro, Musonius RuJus, Sêneca,
Epicteto, Fz10n de Alexandria, Luciano. - Conseqüências éticas
desta generalização: O cuidado de si como eixoformador ecorre-
tivo; aproximação entre atividade médica efilosófica (os concei-
tos comuns; o objetivo terapêutico).
Gostaria agora de adotar marcos cronológicos diferentes
dos que até então escolhi e situar-me no período que cobre,
aproximadamente, os séculos I e 11 de nossa era: digamos,
considerando marcos políticos, o período que vai da insta-
lação da dinastia augustiniana ou júlio-claudiana até o final
dos Antoninos'; ou ainda, considerando marcos filosóficos
- marcos, de certo modo, no próprio domínio que gostaria
de estudar -, digamos que irei desde o período do estoicismo
romano, desenvolvido com Musonius Rufus, até Marco Au-
rélio, isto é, o período do renascimento da cultura clássica
do helenismo, imediatamente antes da difusão do cristianis-
mo e do aparecimento dos primeiros grandes pensadores
cristãos, Tertuliano e Gemente de Alexandria'. Éeste período,
portanto, que pretendo escolher, pois a meu ver constitui
uma verdadeira idade de ouro na história do cuidado de si,
entendido este tanto como noção quanto como prática e como
instituição. De que modo poderíamos caracterizar breve-
mente esta idade de ouro?
Lembremos que, no Alcibíades, há, segundo me pare-
ce, três condições que determinam, a um tempo, a razão de
ser e a forma do cuidado de si. Uma destas condições con-
cerne ao campo de aplicação do cuidado de si: quem deve
Instituto de Psicologia - UFRGS
--- Biblioteca ---
'''i
IIi
63. 102 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
ocupar-se consigo mesmo? O texto do Alcibíades é totalmen-
te claro: devem ocupar-se consigo mesmos os jovens aris-
tocratas destinados a exercer o poder. É claro no Alcibíades,
embora não possa afirmar que assim é nos outros textos de
Platão, nem mesmo nos outros diálogos socráticos. Neste
texto, porém, é Alcibíades enquanto jovem aristocrata, al-
guém que, por status, deve um dia dirigir a cidade, e são
pessoas como ele que devem ocupar-se consigo mesmos. A
segunda determinação, ligada evidentemente à primeira, é
que o cuidado de si tem um objetivo, uma justificação pre-
cisa: trata-se de ocupar-se consigo a fim de poder exercer o
poder ao qual se está destinado, como se deve, sensata-
mente, virtuosamente. Enfim, terceira limitação, claramente
exposta no final do diálogo, o cuidado de si tem como for-
ma principal, senão exclusiva. o conhecimento de si: ocupar-se
consigo é conhecer-se. Ora, creio que se pode ainda dizer,
fazendo um sobrevôo esquemático, que estas três concli-
ções vão romper-se quando nos situarmos na época de que
lhes pretendo falar, isto é, nos séculos 1-Il da nossa era.
Quando digo que se rompem, não quero com isto signifi-
car, e o enfatizo de uma vez por todas, que se rompem na-
quele momento como se algo de brutal e súbito tivesse ocor-
rido no período d instalação do Império, de modo que o
cuidado de si, de repente e de vez, adotasse novas formas.
Na realidade, é ao cabo de uma longa evolução, já percep-
tível no interior da obra de Platão, que estas diferentes con-
dições do cuidado de si, expostas no Alcibíades, finalmente
desapareceram. Esta evolução, já sensível em Platão, pros-
segue ao longo de toda a época helenística, tendo como
elemento portador e, em grande parte sob o seu efeito, to-
das aquelas filosofias cínica, epicurista, estóica, que se apre-
sentaram como artes de viver. Todavia, permanece o fato de
que na época em que pretendo me situar, as três determi-
nações (ou condições) que, no Alcibíades, caracterizavam a
necessidade de cuidar de si, desapareceram. À primeira vis-
ta, pelo menos, parece que desapareceram.
If
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 103
Primeiro, ocupar-se consigo tomou-se um princípio ge-
ral e incondicional, um imperativo que se impõe a todos,
durante todo o tempo e sem condição de status. Segundo, a
razão de ser de ocupar-se consigo não é mais uma ativida-
de bem particular, a que consiste em governar os outros.
Parece que ocupar-se consigo não tem por finalidade últi-
ma este objeto particular e privilegiado que é a cidade, pois,
se se ocupa consigo agora, é por si mesmo e com finalida-
de em si mesmo. Para esquematizar, acrescentemos ainda
que, na análise do Alcibíades, o eu - e nisto o texto é bem
claro, pois esta era a questão várias vezes repetida: qual o
eu com que se deve ocupar-se, qual é meu eu com que devo
ocupar-me? - estava muito claramente bem definido como
o objeto do cuidado de si, fazendo-se necessário interrogar
sobre a natureza deste objeto. Porém, a finalidade do cuida-
do de si, não o objeto, era outra coisa. Era a cidade. Sem dú-
vida, na meclida em que quem governa faz parte da cidade,
também ele, de certo modo, é finalidade de seu próprio cui-
dado de si e, nos textos do período clássico, encontra-se
com freqüência a idéia de que o governante deve, como con-
vém' aplicar-se a governar, para salvar a si mesmo e a cidade
- a si mesmo enquanto parte da cidade. Entretanto, pode-se
dizer que no tipo de cuidado de si do Alcibíades temos uma
estrutura um pouco complexa na qual o objeto do cuidado
é o eu, mas a finalidade é a cidade, onde o eu está presente
a título apenas de elemento. A cidade mecliatizava a relação
de si para consigo, fazendo com que o eu pudesse ser tanto
objeto quanto finalidade, finalidade contudo unicamente por-
que havia a mediação da cidade. Agora, porém, creio que
podemos dizer - e tentarei lhes mostrar - que, no cuidado
de si da forma como foi desenvolvido pela cultura neoc1ás-
sica no florescimento da idade de ouro imperial, o eu apa-
rece tanto como objeto do qual se cuida, algo com que se
deve preocupar, quanto, principalmente, como finalidade que
se tem em vista ao cuidar-se de si. Por que se cuida de si?
Não pela cidade. Por si mesmo. Quer dizer, a forma reflexi-
:1·,
64. 104 AHERMENWTICA DO SUJEITO
va organiza não somente a relação com o objeto - ocupar-se
consigo como objeto - como igualmente a relação com o
objetivo e com a finalidade. Se quisermos, uma espécie de
autofinalização da relação consigo: este é o segundo grande
traço que tentarei elucidar nas próximas aulas. Enfim, ter-
ceiro traço, o cuidado de si não mais se determina manifes-
tamente na forma única do conhecimento de si. Não, certa-
mente, que este imperativo ou esta forma do conhecimento
de si tivesse desaparecido. Digamos simplesmente que ele
se atenuou, integrou-se no interior de um conjunto, um con-
junto bem mais vasto, conjunto que está atestado, sobre o
qual podemos fazer uma primeira e aproximativa demarcação
indicando alguns elementos de vocabulário e assinalando
alguns tipos de expressões.
Inicialmente, convém lembrar que aquela expressão,
canônica, fundamental, encontrada, repito, desde o Alcibía-
des de Platão até Gregório de Nissa, epimelefsthai heautoú
(ocupar-se consigo mesmo, preocupar-se consigo, cuidar de
si), tem afinal um sentido, no qual é preciso insistir: epimé-
lesthai não designa meramente uma atitude de espírito, certa
forma de atenção, uma maneira de não esquecer tal ou tal
coisa. A etimologia remete a uma série de palavras como me-
letân, meléte, melétai, etc. Meletân, freqüentemente emprega-
da e associada ao verbo gymnázein3, é exercitar-se e treinar.
Melétai são exercícios: exercícios de ginástica, exercícios mi-
litares, treinamento militar. Bem mais que a uma atitude de
espírito, epimélesthai refere-se a uma forma de atividade, ati-
vidade vigilante, contínua, aplicada, regrada, etc. Conside-
remos, por exemplo, no vocabulário clássico, a Econômica de
Xenofonte. Para tratar de todas as atividades do proprietá-
rio de terras, esta espécie de gentleman-farmer cuja vida ele
descreve na Econômica, Xenofonte fala de suas epiméleiai, suas
atividades que, segundo ele, são muito favoráveis, favoráveis
ao proprietário de terras porque mantêm seu corpo, e tam-
bém à sua família, pois a enriquecem4
• Assim, toda a série de
palavras meletân, meléte, epime/eisthai, epiméleia, etc. designa
1
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 105
um conjunto de práticas. No vocabulário cristão do século N,
veremos que epíméleía tem, correntemente, o sentido de exer-
cício, exercício ascético. Portanto, jamais esqueçamos: epi-
méleialepimélesthai remete a formas de atividade. Em tomo
desta palavra fundamental, central, é fácil reconhecer, na li-
teratura filosófica ou mesmo nos textos literários propria-
mente ditos, uma nebulosa de vocabulário e de expressões
que transborda largamente o domínio circunscrito apenas
pela atividade de conhecimento. Podemos demarcar, se qui-
sermos, quatro famílias de expressões.
Algumas, com efeito, remetem a atos de conhecimento
e se referem à atenção, ao olhar, à percepção que se pode ter
em relação a si mesmo: estar atento a si (prosékhein tàn noún)5;
voltar o olhar para si (há, por exemplo, toda uma análise de
Plutarco sobre a necessidade de fechar as janelas, as persianas
do lado do pátio exterior e voltar o olhar para o interior da sua
casa e de si mesmo6
); examinar a si mesmo (é preciso exa-
minar-se: skeptéon sautón'). Entretanto, há ainda todo um
vocabulário a propósito do cuidado de si que não se refere
simplesmente a esta espécie de conversão do olhar, a esta
vigilância necessária sobre si, mas também a um movimen-
to global da existência que é conduzida, convidada, a girar
de certo modo em tomo de si mesma e a dirigir-se ou vol-
tar-se para si.Voltar-se para si é o famoso convertere, a famosa
metánoia, de que tornaremos a falar. Temos uma série de ex-
pressões: retirar-se em si, recolher-se em si9, ou ainda descer
ao mais profundo de si mesmo. Temos as expressões que se
referem à atividade, à atitude de refluir sobre si mesmo, re-
trair-se, ou então estabelecer-se, instalar-se em si mesmo como
em um lugar-refúgio, uma cidadela bem fortificada, uma for-
taleza protegida por muralhas, etclO Terceiro conjunto de
expressões, as que se referem a atividades, condutas parti-
culares em relação a si. Algumas são diretamente inspiradas
no vocabulário médico: tratar-se, curar-se, amputar-se, abrir
seus próprios abcessos, etc11 Temos expressões que se refe-
rem ainda a atividades em relação a si mesmo, mas que são
65. 106 A HERMENEUTICA DO SUJEITO
mais de tipo jurídico: é preciso reivindicar-se a si mesmo,
corno diz Sêneca a Lucílio em sua primeira carta12• Quer di-
zer, é preciso colocar a reivindicação jurídica, fazer valer
seus direitos, os direitos que se tem sobre si mesmo, sobre
o eu que se acha atualmente carregado de dívidas e obrigações
das quais deve livrar-se, ou que está escravizado. Há pois
que liberar-se, desobrigar-se. Ternos também expressões que
designam atividades de tipo religioso em relação a si mes-
mo: cultuar-se, honrar-se, respeitar-se, envergonhar-se dian-
te de si mesmo. Finalmente, quarta nebulosa, quarto con-
junto de expressões: as que designam certo tipo de relação
permanente consigo, quer se trate de relação de domínio e
soberania (ser mestre de si), quer de sensações (sentir pra-
zer consigo, alegrar-se consigo, ser feliz em presença de si,
satisfazer-se consigo mesmo, etc.14
).
Assim, há uma série de expressões mostrando como o
cuidado de si, tal corno se desenvolveu, manifestou-se e ex-
primiu-se no período que vou examinar, transborda larga-
mente a simples atividade de conhecimento e conceme, de
fato, a toda urna prática de si. Isto posto, a fim de situar um
pouco o que poderíamos chamar de explosão do culdado
de si, ou pelo menos sua transformação (a transmutação do
cuidado de si em urna prática autônoma, autofinalizada e
plural nas suas formas), e estudá-lo um pouco mais de per-
to, gostaria hoje de analisar o processo de generalização do
cuidado de si, generalização que é feita segundo dois eixos,
em duas dimensões. Por um lado, generalização na própria
vida do individuo. Corno o cuidado de si se toma e deve tor-
nar-se coextensivo à vida individual? Éo que tentarei expli-
car na primeira hora. Na segunda, buscarei analisar a gene-
ralização pela qual o cuidado de si deve estender-se a todos
os indivíduos, quaisquer que sejam, mas, como veremos, com
restrições importantes. Primeiramente, pois, extensão à vida
individual, ou coextensividade do cuidado de si à arte de vi-
ver (a famosa tékhne tou bíou), arte da vida, arte da existên-
cia que, corno sabemos, desde Platão e sobretudo nos mo-
Jf
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 107
vimentos neoplatônicos, virá a ser a definição fundamental
da filosofia. O cuidado de si toma-se coextensivo à vida.
Para continuar tornando o Alcibíades corno marco his-
tórico e chave de inteligibilidade de todos estes processos,
lembremos que o cuidado de si ali aparecia corno necessá-
rio em um dado momento da existência e em uma ocasião
precisa. Este momento, esta ocasião não é o que em grego
se denomina kairós15
, significando, de certo modo, a conjuntu-
ra particular de um acontecimento. Antes, é o que os gregos
chamam hóra: o momento da vida, estação da existência em
que se deve ocupar-se consigo mesmo. Esta estação da exis-
tência - corno já lhes tinha realçado, a idade crítica para a pe-
dagogia, para a erótica e para a política igualmente - é o
momento em que o jovem deixa de estar nas mãos dos pe-
dagogos e de ser, ao mesmo tempo, objeto de desejo eróti-
co, momento em que deve ingressar na vida e exercer seu
poder, um poder ativo!6 Todos sabemos que, certamente,
em todas as sociedades o ingresso do adolescente na vida,
sua passagem à fase que denominamos adulta, é proble-
mática e que a maioria das sociedades ritualizou fortemen-
te esta difícil e perigosa passagem da adolescência à idade
adulta. O interessante, parece-me, e mereceria, sem dúvida,
melhor exame, é que na Grécia, ou pelo menos em Atenas,
pois em Esparta deve ter sido diferente, no fundo, sempre
se ressentiu e se lastimou por não haver urna instituição de
passagem que fosse forte, bem regulamentada e eficaz para
os adolescentes, no momento de seu ingresso na vida!'. A
critica da pedagogia ateniense corno incapaz de assegurar a
passagem da adolescência à idade adulta, de assegurar e co-
dificar este ingresso na vida, parece-me constituir um dos
traços constantes da filosofia grega. Podemos até dizer que
foi aí - a propósito deste problema, neste vazio institucio-
nal, neste deficit da pedagogia, neste momento política e
eroticamente conturbado do fim da adolescência e de in-
gresso na vida - que se formou o discurso filosófico, ou pelo
menos a forma socrático-platônica do discurso filosófico.
Voltaremos a este ponto a que tantas vezes já me referi!'.
~1
66. 108 A HERMENWTlCA DO SUJEITO
Uma coisa porém é certa: após Platão e até o período
de que agora trato, não é neste ponto da vida, nesta fase
conturbada e crítica do fim da adolescência, que se afirmará
a necessidade do cuidado de si. Doravante, o cuidado de si
não é mais um imperativo ligado simplesmente à crise pe-
dagógica daquele momento entre a adolescência e a idade
adulta. O cuidado de si é uma obrigação permanente que deve
durar a vida toda. Enão foi necessário esperar os séculos I
e 11 para assim afirmá-lo. Se tomarmos, em Epicuro, todo o
começo da Carta a Meneceu, leremos: Quando se é jovem,
não se deve hesitar em filosofar e, quando se é velho, não
se deve deixar de filosofar. Nunca é demasiado cedo nem de-
masiado tarde para ter cuidados com a própria alma. Quem
disser que não é ainda ou não é mais tempo de filosofar as-
semelha-se a quem diz que não é ainda ou não é mais tem-
po de alcançar a felicidade. Logo, deve-se filosofar quando
se é jovem e quando se é velho, no segundo caso [quando se
é.velho, portanto; M.F.] para rejuvenescer no contato com o
bem, para a lembrança dos dias passados, e no primeiro
caso [quando se é jovem; M.F.] a fim de ser, embora jovem,
tão firme quanto um idoso diante do futuro!'. Como vemos,
este texto é realmente muito denso, comportando uma sé-
rie de elementos que seria preciso examinar mais de perto.
Gostaria apenas de destacar alguns deles. Vemos, é claro, a
assimilação entre filosofar e ter cuidados com a própria
alma; vemos que o objetivo proposto à atividade de filoso-
far, de ter cuidados com a própria alma, é o alcance da feli-
cidade; que esta atividade de ter cuidados com a própria alma
deve ser praticada em todos os momentos da vida, quando
se é jovem e quando se é velho. Entretanto, com duas fun-
ções diferentes: quando se é jovem trata-se de preparar-se
_ é a famosa paraskheué de que lhes falarei mais tarde, tão
importante nos epicuristas quanto nos estóicos
20
- para a
vida, annar-se, equipar-se para a existência; e no caso da ve-
lhice, filosofar érejuvenescer, isto é, voltar no tempo ou, pelo
menos, desprender-se dele, e isto graças a uma atividade de
AULA DE 20 DEJANEIRO DE 1982 109
memorização que, para os epicuristas, é a rememoração dos
momentos passados. Tudo isto nos coloca, de fato, no cerne
desta atividade, da prática do cuidado de si; mas voltarei
depois aos diferentes elementos deste texto. Assim, para
Epicuro, como vemos, deve-se filosofar todo o tempo,
deve-se incessantemente ocupar-se consigo.
Se tomarmos agora os textos estóicos, encontraremos
a mesma coisa. Dentre centenas, citarei apenas o de Muso-
nius Rufus, segundo o qual é cuidando-se sem parar (aei
therapeúontes) que se pode salvar-se'I Ocupar-se consigo,
portanto, é ocupação de toda uma vida, de toda a vida. De
fato, se observarmos no período de que lhes falo a maneira
como se praticou o cuidado de si, perceberemos que é real-
mente uma atividade de toda a vida. Podemos mesmo dizer
que se trata de uma atividade do adulto e que o centro de
gravidade, o eixo temporal privilegiado no cuidado de si, lon-
ge de estar no período da adolescência, está, ao contrário,
no meio da idade adulta; talvez até, como veremos, mais no
final da idade adulta do que no final da adolescência. De
qualquer modo, não estamos mais naquela paisagem de jo-
vens ambiciosos e ávidos que, na Atenas dos séculos V-Iv,
buscavam exercer o poder; lidamos agora com um pequeno
mundo, ou um grande mundo de homens jovens, ou ho-
mens em plena maturidade, homens que hoje consideraría-
mos velhos, que se iniciam, encorajam-se uns aos outros,
empenham-se, quer sozinhos quer coletivamente, na prática
de si.
Vejamos alguns exemplos. Nas práticas de tipo indivi-
dual, tomemos as relações entre Sêneca e Serenus, quando
Serenus consultando Sêneca no começo do De tranquillitate
escreve - supostamente ele ou talvez ele mesmo - uma car-
ta a Sêneca na qual relata seu estado de alma e pede a Sêne-
ca que lhe dê conselhos, emita um diagnóstico e faça para
com ele, de certa maneira, o papel de médico da alma. Ora,
este Serenus, a quem fora igualmente dedicado o De cons-
tantia e, provavelmente, tanto quanto sabemos, o De otio,
67. 110 A HERMENEUTICA DO SU]ElTO
quem era ele? De modo algum um adolescente do tipo de
Alcibíades. Era um homem jovem, da província (de uma fa-
mília de notáveis, parentes afastados de Sêneca), que che-
gara a Roma onde começara uma carreira de homem polí-
tico e até de cortesão. Favoreceu relações de Nero com uma
de suas amantes, não sei qual delas, pouco importa. É mais
ou menos nesta época que Serenus - tendo já avançado na
vida, feito suas escolhas, delineado uma carreira - dirige-se
a Sêneca. Continuando nesta ordem de relações individuais
e em torno de Sêneca, tomemos Lucílio, a quem será ende-
reçada toda a longa correspondência que, a partir de 62,
ocupará Sêneca, tanto quanto a redação das Questões natu-
rais, que são, aliás, dedicadas e dirigidas ao próprio Lucílio.
Pois bem, quem é Lucílio? Um homem que tem cerca de dez
anos menos que Sêneca26
. Ora, se pensarmos que, no mo-
mento de seu retiro, quando deu início àquela correspondên-
cia e à redação das Questões naturais, Sêneca era um homem
de sessenta anos27
, podemos dizer, no geral, que Lucílio de-
via ter cerca de cinqüenta anos, de quarenta a cinqüenta
anos. Em todo caso, na época da correspondência, era pro-
curador da Sicília. E o empenho de Sêneca, na correspon-
dência, é fazer com que Lucílio evolua de um epicurismo, di-
gamos assim, um pouco frouxo, mal teorizado, para um es-
toicismo estrito. Mas poderiamos objetar que afinal, no caso
de Sêneca, temos uma situação muito particular: trata-se, por
um lado, de uma prática propriamente individual, e por ou-
tro' de uma alta responsabilidade política, além do quê, ele
certamente não tinha tempo, nem horas livres, nem disposi-
ção para dirigir-se a todos os jovens e ministrar-lhes lições.
Consideremos então Epicteto que, diferentemente de
Sêneca, é um professor por profissão. Abriu uma escola que
se denomina precisamente /I escola, onde há alunos, entre
os quais, seguramente, jovens, um grande número sem dú-
vida, que vão lá para formar-se. A função formadora da es-
cola de Epicteto está assinalada, exposta em muitos mo-
mentos dos Diálogos reunidos por Arrianus28
• Ele censura,
#
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982
111
por exemplo, todos os jovens que para lá se dirigem fazen-
do crer aos seus familiares que foram se formar em uma
boa escola filosófica quando, de fato, não pensam mais que
[em] retornar às suas casas para brilhar e ocupar postos im-
portantes. Há também a crítica a todos os alunos que che-
gam cheios de zelo e que, ao cabo de algum tempo, desgos-
tosos com o ensino porque não os instrui suficientemente
para brilhar e lhes exige demais do ponto de vista moral,
deixam a escola. Éainda para estes jovens que há regras so-
bre a maneira de se conduzir na cidade quando vão às com-
pras. Tudo isto parece indicar que, além de tratar-se de jovens
frágeis, eram controlados com firmeza, em uma espécie de
pensionato muito bem disciplinado. Portanto, é inteiramen-
te verdade que Epicteto se dirigia a estes jovens. Não se
deve pensar que todo o cuidado de si, como eixo principal
da arte da vida, fosse reservado somente aos adultos. Para-
lelamente porém, entrelaçada com esta formação de jovens,
pode-se dizer que existia, em Epicteto e na sua escola, o que
poderíamos chamar, usando uma metáfora sem dúvida pou-
co adequada, uma prestação de serviços, serviços prestados
a adultos. Com efeito, por um dia, alguns dias ou algum
tempo, adultos iam à escola de Epicteto escutar seus ensi-
namentos. Na paisagem social evocada pelos Diálogos ve-
mos passar, por exemplo, um inspetor das cidades, uma es-
pécie de procurador fiscal. É um epicurista, vem consultar
Epicteto, fazer-lhe perguntas. Há um homem que fora en-
carregado por sua cidade de uma missão em Roma e, no ca-
minho da Ásia Menor para Roma, vai ter com Epicteto a fim
de lhe apresentar questões sobre a melhor maneira possível
de cumprir sua missão. De resto, Epicteto não desconside-
ra esta clientela ou estes interlocutores adultos, pois a seus
próprios alunos, jovens portanto, aconselha irem encontrar
os personagens notáveis de suas cidades e sacudi-los um
pouco interpelando-os: dizei, pois, de que modo viveis?
Ocupai-vos verdadeiramente com vós mesmos?29
-----.,.'l'
68. 112 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
Poderiamos citar toda a conhecida atividade dos ora-
dores cínicos que, nas praças públicas, nas esquinas ou por
ocasião de festas solenes, se dirigiam ao público em geral,
composto, evidentemente, de adultos como de jovens. No
gênero nobre, solene, destas diatribes ou discursos públi-
cos, há certamente os grandes textos de Díon de Prusa
30
,
muitos deles consagrados a problemas da ascese, do retiro
em si mesmo, da anakhóresis eis heautón, etc.31
Tomarei enfim um último exemplo concernente a este
problema do adulto, de sua inserção, se quisermos, no inte-
rior da prática de si. Refiro-me a um grupo importante, em-
bora enigmático e pouco conhecido, pois dele só sabemos
através de um texto de Fílon de Alexandria: o famoso grupo
dos Terapeutas, do qual lhes falarei depois um pouco mais
longamente. Deixemos, por ora, o problema de quem são e
o que fazem, etc. Trata-se, em todo caso, de um grupo das
redondezas de Alexandria, que pode ser chamado de ascé-
tico e que tem como um dos seus objetivos, expresso no pró-
prio texto, a epiméleia tés psykhés. Ter cuidados com a alma é
o que pretendem. Ora, uma passagem de Fílon de Alexan-
dria, no De vita contemplativa - onde é feita a referência -,
afirma, a propósito dos Terapeutas: Tendo o seu desejo de
imortalidade e de vida bem-aventurada os levado a acredi-
tar que já haviam terminado sua vida mortal [voltarei a esta
importante passagem, mais adiante, a respeito da velhice;
M. F.], deixam seus bens a seus filhos, suas filhas, seus pró-
ximos: deliberadamente, fazem deles herdeiros por anteci-
pação; quanto aos que não têm família, deixam tudo ao seu
companheiro e aos seus amigos32
.Vemos aí uma paisagem
inteiramente diferente, inversa mesmo da que encontramos
[no] Alcibíades. No Alcibíades, havia que ter cuidados con-
sigo mesmo o jovem que não fosse suficientemente bem
educado por seus pais - no caso de Alcibíades, por seu tu-
tor Péricles. E era por isto que, muito jovem, vinha apresentar
questões a Sócrates e deixava-se, afinal, interpelar por ele.
Agora, ao contrário, são pessoas que já tendo filhos, filhos
~ .
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 113
e filhas, uma família inteira, e sentindo, em dado momen-
to, que de algum modo terminaram sua vida mortal, par-
tem, indo ocupar-se com a própria alma. Ocupam-se com a
própria alma no final da vida, não mais no começo. Digamos
que, de todo modo, é a própria idade adulta, bem mais do que
a passagem a ela, ou talvez até a passagem da idade adulta
à velhice, que agora constituirá o centro de gravidade, o
ponto sensível da prática de si.
Para uma última confirmação, tomarei um divertido tex-
to de Luciano. Sabemos que, no final do século lI, Luciano
escreveu uma série de sátiras, textos irônicos, digamos, in-
teressantes para o assunto de que lhes quero falar. Um de-
les foi traduzido para o francês e publicado há cerca de dez
anos, em más condições infelizmente, com o título Philoso-
phes à I'encan33, quando, na realidade, o título tem um sig-
nificado diferente, mais ou menos como o mercado das vi-
das (dos modos de vida) que, efetivamente, os diferentes
filósofos promovem e propõem às pessoas e que, de certo
modo, expõem no mercado, como se cada qual tentasse ven-
der seu próprio modo de vida recrutando alunos.Temos tam-
bém outro texto interessante, denominado Herrnotímio, com
uma discussão, ironicamente apresentada, entre dois indiví-
duas. É divertido e deve ser lido mais ou menos como se vê
os filmes de WoodyAllen sobre a psicanálise no meio nova-
iorquino: é um pouco assim que Luciano apresenta a relação
das pessoas com seu mestre em filosofia e a relação com sua
própria busca da felicidade através do cuidado de si. Her-
motímio passeia pelas ruas. Está, certamente, a murmurar as
lições aprendidas com seu mestre, quando é abordado por
Licínio, que lhe pergunta o que está fazendo; ele está indo
à casa do mestre ou vindo dela, não me lembro bem, mas
isto é irrelevante'6 Há quanto tempo freqüentas a casa do
teu mestre? pergunta Licínio a Hermotírnio, que responde: há
vinte anos. - Como, há vinte anos, tu lhe dás muito dinhei-
ro? - Sim, dou-lhe muito dinheiro. - Mas esta aprendiza-
gem da filosofia, da arte de viver, da felicidade, não estará
•
69. 114 A HERMENEUTICA DO SUJEITO
logo concluída? - Oh, responde Hennotímio, seguramente
sim, não tardará! Penso que em vinte anos chegarei ao fim.
Como um pouco mais adiante no texto, Hennotímio explica
que começou a filosofar aos quarenta anos, e sabendo que
faz vinte anos que freqüenta seu mestre de filosofia, então,
aos sessenta anos encontra-se exatamente na metade do
caminho. Não sei se há estudos a respeito, se foram estabe-
lecidas referências ou correlações entre este e outros textos
filosóficos, mas lembramos que para os pitagóricos a vida
humana era dividida em quatro períodos, cada qual de vin-
te anos: durante os vinte primeiros anos, na tradição pita-
górica, era-se criança; de vinte a quarenta, adolescente; de
quarenta a sessenta, jovem; e, a partir de sessenta, idoso.
Assim, com sessenta anos, Hennotímio tem a idade que fica
exatamente na juntura. Teve sua juventude: os vinte anos
durante os quais já aprendeu a filosofia. Restam-lhe não
mais que vinte - os que lhe sobram para viver e que ainda o
separam da morte - para continuar a filosofar. Descobrindo
assim que foi aos quarenta anos que seu interlocutor Her-
rnotírnio começou, Licínio - o cético, o personagem em tor-
no e a partir do qual se produz e se conduz o olhar irônico
sobre Hennotímio e sobre toda esta prática de si - afinna:
muito bem, tenho quarenta anos, estou exatamente na idade
de começar a me formar. E dirigindo-se a Hennotímio, lhe
diz: serve-me pois de guia e conduze-me pela mão38
.
Pois bem, esta recentralização ou esta descentralização
do cuidado de si, do período da adolescência ao da maturi-
dade ou final da maturidade, acarretará algumas conse-
qüências, a meu ver, importantes. Primeiro, a partir do mo-
mento em que o cuidado de si toma-se assim uma atividade
adulta, sua função crítica vai evidentemente acentuar-se, e
acentuar-se cada vez mais. A prática de si terá um papel cor-
retivo tanto, ao menos, quanto fonnador. Ou ainda, a práti-
ca de si tornar-se-á cada vez mais uma atividade crítica em
relação a si mesmo, ao seu mundo cultural, à vida dos outros.
Não se trata, absolutamente, de dizer que o papel da prática
AULA DE 20 DEJANEIRO DE 1982 115
de si será somente crítico. O elemento fonnador continua
existindo sempre, mas estará vinculado de modo essencial
à prática da crítica. Podemos dizer que, no Alcibíades como
em outros diálogos socráticos, a necessidade de cuidar de si
tinha como quadro de referência o estado de ignorância em
que se achavam os indivíduos. Descobre-se que Alcibíades
ignora o que ele quer fazer - isto é, como governar bem a
cidade - e percebe-se que ele ignora que não o sabe. E, se,
nesta medida, alguma crítica do ensino havia, era principal-
mente para mostrar a Alcibíades que ele nada aprendera e
o que acreditava ter aprendido não passava de vento. Na
prática de si que vemos desenvolver-se no decurso do perío-
do helenístico e romano, ao contrário, há um lado fonnador
que é essencialmente vinculado à preparação do indivíduo,
preparação porém não para detenninada forma de profis-
são ou de atividade social: não se trata, como no Alcibíades,
de fonnar o indivíduo para tomar-se um bom governante;
trata-se, independentemente de qualquer especificação pro-
fissional, de fonná-lo para que possa suportar, como con-
vém, todos os eventuais acidentes, todos os infortúnios pos-
síveis, todas as desgraças e todos os reveses que possam
atingi-lo. Trata-se, conseqüentemente, de montar um me-
canismo de segurança, não de inculcar um saber técnico e
profissional ligado a determinado tipo de atividade. Esta for-
mação, esta armadura se quisermos, armadura protetora em
relação ao resto do mundo, a todos os acidentes ou aconteci-
mentos que possam produzir-se, é o que os gregos chama-
vam de paraskheué, aproximadamente traduzido por Sêneca
como instructio39
. A instructio é esta armadura do indivíduo
em face [dos] acontecimentos e não a formação em função de
um fim profissional determinado. Portanto, nos séculos I-lI,
encontramos este lado formador da prática de si.
Este aspecto formador, contudo, de modo algum é dis-
sociável de um aspecto corretivo que, a meu ver, toma-se
cada vez mais importante. A prática de si não mais se im-
põe apenas sobre o fundo de ignorância, como no caso de
70. 116 A HERMEmUTICA DO SUlEITO
Alcibíades, ignorância que ignora a si mesma. A prática de
si impõe-se sobre o fundo de erros, de maus hábitos, de de-
formação e de dependência estabelecidas e incrustadas, e
que se trata de abalar. Correção-liberação, bem mais que
formação-saber: é neste eixo que se desenvolverá a prática de
si, o que, evidentemente, é fundamental. Remeto-os, neste
sentido, a um exemplo. Trata-se da carta 50 de Sêneca a Lu-
cílio, em que diz: ora, não se deve acreditar que o mal foi
imposto a nós do exterior; não está fora de nós (extrinsecus),
está em nosso interior (intra nos est). Ou um pouco mais
adiante: in visceribus ipsis sedet (o mal está pois em nos-
sas vísceras)40. [...*] Na prática de nós mesmos, devemos
trabalhar para expulsar, expurgar, dominar este mal que nos
é interior, nos libertar e nos desembaraçar dele. E acrescen-
ta: certamente, é muito mais fácil corrigir-se quando se as-
sume este mal no período em que se é ainda jovem e tenro
e o mal não está ainda incrustado. De todo modo, como ve-
mos, mesmo quando concebida como uma prática de juven-
tude, a prática de si deve corrigir, não formar, ou não apenas
formar: deve também, e principalmente, corrigir, corrigir um
mal que já está lá. É preciso cuidar-se, mesmo quando se é
jovem. Um médico, seguramente, tem muito mais chances
de sucesso se for chamado no começo do que no termo da
doença'!. Entretanto, mesmo se não fomos corrigidos duran-
te a juventude, podemos sempre vir a sê-lo. Mesmo se nos
enrijecemos, há meios de nos endireitarmos, de nos corrigir-
mos, de nos tomarmos o que poderíamos ter sido e nunca
fomos42. Tomarmo-nos o que nunca fomos, este é, penso eu,
um dos mais fundamentais elementos ou temas desta práti-
ca de si. Sêneca evoca o que se passa com os elementos físi-
cos, os corpos físicos. Diz ele: conseguimos endireitar vigas
grossas quando encurvadas; com maior razão o espírito hu-
li- Neste trecho, o manuscrito traz apenas: é preciso buscar um
mestre.
~
AULA DE 20 DEJANEIRO DE 1982
117
mano, que é flexível, poderá também ser endireitado. Em
todo caso, continua ele, a bana mens (a alma de qualidade) ja-
mais virá antes da mala mens, da imperfeição da alma' A
qualidade da alma só pode vir depois da imperfeição da alma.
Somos, diz ele, sempre na carta 50, praeoccupali: já ocupados
por algo no momento em que intentamos fazer o bem';. E
encontra então uma fórmula que foi importante no vocabu-
lário cínico: virtutes discere é vilia dediscere (aprender as virtu-
des é desaprender os vícios). Trata-se da noção de desa-
prendizagem, essencial nos cínicos47, reencontrada nos estói-
cos. Ora, esta idéia de desaprendizagem que, de todo modo,
deve começar ainda quando a prática de si se esboça na ju-
ventude' esta reformação crítica, reforma de si que tem por
critério uma natureza - mas uma natureza jamais dada, ja-
mais manifestada como tal no indivíduo humano, de qual-
quer idade -, tudo isto assume, muito naturalmente, a feição
de um desbaste em relação ao ensino recebido, aos hábitos
estabelecidos e ao meio. Desbaste, inicialmente, de tudo o
que ocorreu na primeira infância. Nisto consiste a famosa cri-
tica' tantas vezes repetida, da primeira educação e destas fa-
migeradas histórias da carochinha com as quais, desde cedo,
se oblitera e defOrma o espírito da criança. Lê-se em um co-
nhecido texto de Cícero nas Tusculanas: Desde que nasce-
mos e somos admitidos em nossas famílias, encontramo-nos
em um meio inteiramente falseado onde a perversão dos jul-
gamentos é completa, tanto que, pode-se dizer, sugamos o
erro com o leite de nossas amas.4811
Crítica, pois, da primeira
infância e das condições em que ela se desenrola. Crítica tam-
bém do meio familiar, não somente em seus efeitos educati-
vos, como ainda, se quisermos, [pelo] conjunto de valores que
ele transmite e impõe; crítica do que, em nosso vocabulário,
chamaríamos de ideologia familiar. Penso naquela carta de
Sêneca a Lucílio, em que diz: põe-te em segurança, tenta
reencontrar a ti mesmo, bem sei que teus pais almejaram
para ti coisas bem diferentes; também eu faço por ti votos to-
talmente contrários aos que te fizeram tua família; almejo-te
Ijl
li
I
I
II
71. 118 A HERMEmUTICA DO SUJEITO
um desprezo generoso por todas as coisas que teus pais te al-
mejaram em abundância49. Por conseguinte, o cuidado de si
deve reverter inteiramente o sistema de valores veiculados e
impostos pela família. Em terceiro lugar, finalmente, e não in-
sisto nisto por ser bastante conhecido, toda a crítica da forma-
ção pedagógica dos mestres - mestres do ensino que chama-
ríamos primário - e principalmente a dos professores de retó-
rica. Encontramos aí - repito, não insisto por ser conhecido -
toda a grande polêmica entre a prática e o ensino filosóficos
por um lado, e o ensino da retórica [por outro]'. Vemos, por
exemplo, em Epicteto, o modo divertido de colocar nos eixos
o pequeno aluno de retórica que acabara de chegar'° Já seu
retrato físico é interessante, mostrando, situando um pou-
co, onde se acha o ponto maior de conflito entre a prática
de si filosófica e o ensino retórico: o aluno chega enfeitado,
maquiado, com seus cabelinhos frisados, manifestando as-
sim que o ensino da retórica é um ensino decorativo, da fal-
sa aparência, da sedução. Importa não ocupar-se consigo,
.mas agradar os outros. E é sobre isto, precisamente, que
Epicteto interrogará o pequeno aluno de retórica, dizendo-
lhe: muito bem, tu te enfeitaste todo, acreditavas ocupar-te
contigo; de fato porém, reflete um pouco - o que é ocupar-
se consigo mesmo? Podemos divisar a analogia, muito pro-
vavelmente explícita e reconhecível pelos leitores ou ouvin-
tes da época, isto é, a retomada, o eco do próprio Alcibíades:
tu que deves ocupar-te contigo, como o podes fazer, e o que
é tu mesmo? E a repetição: há que ocupar-se com a própria
alma, não com o corpo. Portanto, se quisermos, esta função
crítica da prática de si é a primeira conseqüência do deslo-
camento cronológico do cuidado de si do final da adoles-
cência à idade adulta.
.. No manuscrito, Foucault ilustra esta polêmica tomando o exem-
plo paradoxal de Díon de Prusa, que começa sua vida de retórico com
ataques dirigidos contra Musonius, para terminá-la como filósofo, com o
elogio da filosofia.
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 119
A segunda conseqüência será uma aproximação, nítida
e bem marcada, entre a prática de si e a medicinaS!. Com efei-
to, desde que a prática de si passa a ter como função maior,
ou como uma de suas funções maiores, corrigir, reparar,
restabelecer um estado que nunca talvez tenha existido, mas
cujo princípio é indicado pela natureza, vemos que nos apro-
ximamos de um tipo de prática que é o da medicina. Certa-
mente, não é preciso esperar o período de que lhes falo (sé-
culos I-lI) para nos apercebermos de que a filosofia foi sem-
pre concebida em relação privilegiada com a medicina. Já
em Platão está bem claro52. Mais claro ainda na tradição fi-
losófica pós-platônica: o óntos philosophefn de Epicuro é o
kat' aléthefan hygiaínein (cuidar-se, curar segundo a verdade);
e nos estóicos, sobretudo a partir de Posidônio54, a relação
entre medicina e filosofia - mais exatamente, a assimila-
ção da prática filosófica a uma espécie de prática médica _
é muito clara. Musonius afirma: chamamos o filósofo como
chamamos o médico em caso de doença. E sua ação junto
às almas é simetricamente análoga à do médico junto aos
corpos. Poderíamos também citar Plutarco ao dizer que me-
dicina e filosofia têm ou, mais exatamente, são mía khôra (uma
só região, um só território)56. Muito bem'. Este vinculo en-
tre medicina e cuidado de si, [vínculo] ao mesmo tempo
antigo, tradicional, bem estabelecido e sempre repetido, é
marcado de diferentes maneiras.
É marcado, primeiramente, pela identidade do quadro
conceitual ou do arcabouço conceitual entre medicina e filo-
sofia. No centro, sem dúvida, está a noção de páthos, noção
que, nos epicuristas como nos estóicos, é entendida como
paixão e como doença, seguida de toda uma série de ana-
10gias' assunto em que os estóicos foram mais prolixos e,
I- O manuscrito acrescenta aqui (fornecendo como ponto de apoio
- cf. supra - a carta 50 de Sêneca): Nossa cura é tanto mais difícil quan-
to menos soubermos se estamos doentes.
72. 120 AHERMENtUTICA DO SUJEITO
como de costume, mais sistemáticos que os demais. Descre-
vem eles a evolução de uma paixão como a evolução de uma
doença. O primeiro estágio é o que os gregos chamavam de
euemptosía (a proclivitas), isto é, a constituição que leva a
uma doença. Vem em seguida o páthos propriamente dito,
movimento irracional da alma, traduzido em latim pela pa-
lavra pertubatio por Cícero e affectus por Sêneca. Depois do
páthos, doença propriamente dita, temos o nósema, que é a
passagem ao estado crônico da doença, passagem à héxis,
que Sêneca denomina de morbus. A seguir vem o arróstema,
que Cícero traduz por aegrotatio, isto é, uma espécie de es-
tado permanente de doença, que pode manifestar-se de um
modo ou outro, mas que mantém o indivíduo perpetuamen-
te doente. Por fim, último estágio, o vício (kakía), a aegrotatio
inveterata, diz Cícero, ou o vitium malum (a pestis58
), diz Sê-
neca, momento em que o indivíduo está completamente de-
formado, atingido e perdido no interior de uma paixão que
o possui por inteiro. Temos, pois, todo um sistema de ana-
logias sobre o qual, por ser conhecido, passo rapidamente.
Mais interessante, sem dúvida, é o fato de que a própria
prática de si, tal como a filosofia a define, designa e prescreve,
é concebida como uma operação médica. No centro, certa-
mente, encontra-se a noção fundamental de therapeúein.
Como sabemos, therapeúein, em grego, quer dizer três coi-
sas. Therapeúein certamente significa realizar um ato médi-
co cuja destinação é curar, cuidar-se; therapeúein é também
a atividade do servidor que obedece às ordens e que serve
seu mestre; enfim, therapeúein é prestar um culto. Ora, thera-
peúein heautón59
significará, ao mesmo tempo: cuidar-se, ser
seu próprio servidor e prestar um culto a si mesmo. Em tomo
disto haverá, certamente, uma série de variações, algumas
das quais tratarei de retomar.
Tomemos, por exemplo, o texto fundamental de Fílon
de Alexandria no De vita contemplativa, ao referir-se ao grupo
de Terapeutas, pessoas que, em determinado momento, re-
tiraram-se para as proximidades de Alexandria, constituin-
;1
AUlA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 121
do uma comunidade, cujas regras - das quais tratarei adian-
te - estabelecem, desde as primeiras linhas, que eles se de-
nominam Terapeutas. E por que, pergunta Fílon, denomi-
nam-se eles Terapeutas? Pois bem, porque cuidam da alma
como os médicos cuidam do corpo. Sua prática é therapeu-
tiké, como a prática dos médicos é iatriké60• Fílon distingue,
como alguns autores gregos, não porém como todos, a tera-
pêutica e a iátrica, sendo a terapêutica uma forma de ativi-
dade de cuidados mais ampla, mais espiritual, menos dire-
tamente física do que a dos médicos para a qual reservam o
adjetivo iatriké (a prática iátrica se aplica ao corpo). Denomi-
nam-se Terapeutas, diz ele, porque querem cuidar da alma
como os médicos cuidam do corpo, mas também porque
praticam o culto do Ser (to ón: therapeúousi to ón). Cuidam do
Ser e cuidam da própria alma. Realizando as duas coisas ao
mesmo tempo, é na correlação entre o cuidado do Ser e o
cuidado da alma que eles podem intitular-se Terapeutas61.
Retomarei, sem dúvida, a estes temas de Fílon de Alexan-
dria' todos eles muito importantes. Apenas lhes indico a es-
treita correlação que aparece, em uma prática tão nitidamen-
te religiosa como esta, entre prática da alma e medicina.
Nesta correlação, cada vez mais aceita e marcada, entre filo-
sofia e medicina, prática da alma e medicina do corpo, creio
que podemos destacar três elementos e os destaco, precisa-
mente aliás, porque eles concemem à prática.
Primeiramente, a idéia de um grupo de pessoas asso-
ciando-se para praticar o cuidado de si, ou ainda uma esco-
la de filosofia que constitui, na realidade, um dispensário da
alma; é um lugar onde se vai porque se quer, onde se envia
os amigos, etc.Vai-se por algum tempo a fim de se fazer cui-
dar dos males e das paixões de que sofremos. É exatamen-
te isto que o próprio Epicteto diz a propósito de sua escola
de filosofia. Concebe-a como um hospital da alma, um dis-
pensário da alma.Vejamos o colóquio 21 do livro 11, em que
ele censura vivamente seus alunos por terem vindo somen-
te para aprender, como diríamos, filosofia, para aprender
Instituto de PsiCOlogia - UFRGS
Biblioteca ---
73. 122 AHERMENtUTICA DO SUJEITO
a discutir, para aprender a arte dos silogismos, etc.62: viestes
para isto, não para obter vossa cura, com o espírito de vos fa-
zer cuidar (therapeuthesómenoi)63; não foi para isto que vies-
tes; ora, é isto o que deveríeis fazer; deveríeis vos lembrar
que estais aqui essencialmente para a cura; portanto, antes
de vos lançardes a aprender os silogismos, curai vossas fe-
ridas, estancai o fluxo de vossos humores, acalmai vosso espí-
rito64. Ou ainda, de maneira ainda mais clara, no colóquio
23 do livro I1I: O que é uma escola de filosofia? Uma esco-
la de filosofia é um iatrefon (um dispensário). Quando se sai
da escola de filosofia não se deve ter aprendido o prazer,
mas ter sofrido. Pois não freqüentais a escola de filosofia
porque e quando estais em boa saúde. Este chega com o om-
bro deslocado, aquele com um abscesso, o terceiro com uma
fístula, outro com dores de cabeça65
•
. Bem, creio que estamos com problemas urgentes de
gravador. Por isto, devo interromper. Duas ou três palavras
que teria ainda a dizer acerca da medicina serão depois re-
tomadas. Então lhes falarei um pouco sobre o problema da
velhice e, em seguida, sobre a generalização do imperativo
do cuidado de si.
1
r
NOTAS
1. Otávio César promove, em 27 a.c., uma nova divisão de po-
deres (Principado) e faz-se chamar Augustus. Morre no ano 14 d.C.,
deixando o poder a seu filho adotivoTIbério (famUia dos Cláudios)
que inicia a dinastia dos Júlio-Claudianos, que reinará até a mor-
te de Nero, em 68. Quanto aos Antoninos, sucedendo os Flávios,
reinarão de 96 a 192 (assassinato de Cômodo), e seu reino será mar-
cado pelas figuras de Trajano, Adriano e Marco Aurélio. Este pe-
ríodo, eleito por Foucault, recobre o que os historiadores desig-
nam como o Alto Império.
2. Musonius Rufus, de quem conhecemos as predicações
morais por terem sido conservadas por Estobeu no seu Florilégio,
é um cavaleiro romano de origem etrusca, viveu como cínico, e
seu ensino domina em Roma no começo do reino dos Flávios.
Epicteto, que seguiu seus cursos, dele guarda uma lembrança
viva, evocando-o freqüentemente nos seus Diálogos. Ele é conhe-
cido sobretudo por seus sermões versando sobre práticas de exis-
tência concreta (como comer, vestir-se, dormir, etc.). Foucault re-
corre abundantemente a suas considerações sobre o matrimônio
em Histoire de la sexualité (Le Souci de 5Oi, op. cit., pp.177-80, 187-8,
197-8 e 201-2). [História da sexualidade, O cuidado de si, op. cito pp.
152-5,160-1,169-70 e 173-4. (N. dos T.)] Marco Aurélio, nascido
em 121, sucede Adriano em 138. Parece que os Pensamentos foram
redigidos no final de sua vida (a partir, pelo menos, dos anos 170).
Morre em 180. A primeira grande obra de Tertuliano (por volta de
74. 124 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
155-225), sua Apologética, data de 197. Finalmente, Clemente de
Alexandria (por volta de 150-220) redigiu tratados de direção (a
trilogia: Protrético, Pedagogo, Stromates) no começo do século IH.
3. Cf. aula de 3 de março, segunda hora, para uma distinção
conceitual mais precisa de meletân como exercício no pensamento
e de gymnázein como exercício na realidade.
4. Os mais opulentos personagens não podem dispensar a
agricultura: como vês, esta ocupação (epiméleia) é ao mesmo tem-
po uma fonte de satisfação, um meio de abastar a casa, um meio
de treinar o corpo em tudo o que convém a um homem livre ser
capaz de fazer (Xénophon, Économique, trad. Ir. P. Chantraine, Pa-
ris, Les Belles Lettres, 1949, V-I, p. 51).
5. Cf. o uso exemplar desta expressão em Platão: /lê preciso
que recomeces a examinar-te com mais atenção ainda (mállon pro-
sekhãn tãn noím kai eis seautãn apoblépsas)(Charmide, 160 d, trad.
A.. Croiset, in Platon, Oeuvres complêtes, t. li, Paris, Les Belles Let-
tres, 1921, p. 61); antes de todas as coisas, é preciso pois pensar
em nós mesmos (prosektéon tàn noún hemfn autofs) (Ménon, 96 d,
trad. Ir. A. Croiset, in Platon, Oeuvres complétes, t. III-2, Paris, Les
Belies Lettres, 1923, p. 274).
6. De la curiosité, 515 e (in Plutarque, Oeuvres morales, t.VII-I,
trad. J. Dumortier Delradas, Paris, Les Belles Lettres, 1975, pp.
266-7). Foucault analisa esta passagem mais detalhadamente na
aula de 10 de fevereiro, primeira hora.
7. Sobre este mesmo tema do olhar voltado para si, cf. mes-
ma aula, primeira hora.
8. Sobre a conversão e o sentido grego e cristão de metánoia,
cf. mesma aula, primeira hora.
9. Sobre o retiro (anakhóresis), cf. aula de 13 de janeiro, pri-
meira hora, e aula de 10 de fevereiro, primeira hora.
10. Lembra que teu guia interior se toma inexpugnável quan-
do, voltado sobre si mesmo, ele se contenta em não fazer o que não
quer [...1. Assim também, a inteligência livre de paixões é uma ci-
dadela. O homem não acha posição mais forte para onde se retirar
a fim de ser doravante inatingível (Marc Aurele, Pensées, VIII, 48,
ed. cit., p. 93); Que a filosofia erga em tomo de nós a inexpugná-
vel muralha que a Fortuna ataca com suas mil máquinas, sem abrir
passagem. Mantém uma posição inatingível a alma que, desligada
das coisas de fora, defende-se no forte que ela mesma construiu
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 125
para si (Séneque, Lettres à Lucilius, t. IlI, livro X, carta 82, 5, ed. cit.,
p. 102). A mesma imagem é encontrada em Epicteto (Entretiens, N,
1, 86), só que invertida pois trata-se, ao contrário, de derrubar a
fortaleza interior.
11. Cf. Le Souci de soi, p. 69-74, com referências principalmente
a Epicteto e a Sêneca. [O cuidado de si, op. cit., p. 59-63. (N. dos T.)]
12. Primeira frase da primeira carta de Sêneca a Lucilius: Vin-
dica te libi (Lettres à Lucilius, t. I, p. 3).
13. Remetemo-nos sobretudo a pensamentos de Marco Au-
rélio, como venera a faculdade de opinião (tén hypoleplikén dyna-
min sébe) (Pensées, I1I, 9, p. 23) ou reverencia (lima) o que há em ti
de mais eminente (Pensées, V, 21, p. 49).
14. Cf. as cartas 23,3-6 e 72,4 de Sêneca a Lucilius.
15. Kairós, cujo sentido primeiro era espacial (o ponto preci-
so da mira para o arqueiro), designa, na cultura clássica, uma se-
qüência qualitativa do tempo: momento oportuno, instante propí-
cio (cf. M. Trédé, ''Kairos''; l'à-propos et I'occasíon. Le mot et la notion
d'Homére à la fin du N siécIe avantJ.-c., Paris, Klincksieck, 1992).
16. Cf. aula de 6 de janeiro, segunda hora.
17. Somente no fim do século N Atenas instalará o equiva-
lente de um serviço militar, ou um enquadramento dos jovens an-
tes que se tomassem cidadãos adultos e responsáveis. Antes des-
ta data, Atenas não dispunha de instituição suficientemente forte
para pontuar esta passagem à idade adulta. Esparta, ao contrário,
desde sempre conheceu estruturas de enquadramento contínuas,
fortemente regulamentadas e militarizadas. Cf. H.-L Marrou, His-
toire de I'éducation dans l'Antiquité, op. cit.; sobre a efebia ateniense
em particular, cf. P. Vidal-Naquet, Le Chasseur noir et l'origine de
l'éphébie athénienne(1968), retomado e completado in Le Chas-
seurnoir, Paris, La Découverte, 1983, pp.151-74.
18. Reconhece-se a tese desenvolvida por Foucault no capí-
tulo V de O uso dos prazeres, op. dt. Ela fora assunto de todo um
curso no Collége de France (28 de janeiro de 1981).
19. Épicure à Ménécée in Diogene Laerce, Vie, doctrines et
sentences des philosophes ilIustres, t. lI, trad. fr. R. Genaille, Paris,
Gamier-Flammarion, 1965, p. 258.
20. Cf. aula de 24 de fevereiro, segunda hora.
21. Ora pois! Entre as máximas de Musonius que retivemos,
há uma,. Silas, que é a seguinte: é preciso cuidar-se sem parar (tà deín
75. ..
126 AHERMENtUTlCA DO SUJEITO
aei therapeuoménous) se quisermos viver de maneira salutar (bioun
tous sózesthai méllontas) (Du contrôle de la colére, 453d, in Plutarque,
Oeuvres morales, I.VII-l, trad. fr. J. Dumortier Defradas, ed. cit.,
p. 59; fragmento 36 da edição de O. Hense das Reliquae de Muso-
nius, Leipzig, Teubner, 1905, p. 123).
22. Trata-se do primeiro desenvolvimento do diálogo de Sê-
neca (De la tranquillité de I'âme, I, 1-18, in Dialogues, I. N, trad. Ir.
R. Waltz, ed. cil., pp. 71-5).
23. Estes três tratados (De la constance du sage, De la tranquillité
de I'âme, De l'oisivete') representam, tradicionalmente, a trilogia da
conversão (sob a influência de Sêneca) de Serenus, do epicurismo ao
estoicismo. Entretanto, P. Veyne (Préface a: Séneque, Entretiens,
Lettres à Lucilius, Paris, Robert Laffont, 1993, pp. 375-6) data este tra-
tado dos anos 62-65 (o que exclui que tenha sido dedicado a Sere-
nus, morto antes de 62), no momento em que Sêneca se resigna ao
retiro e começa a considerá-lo como uma probabilidade.
24. Sobre a relação entre Serenus e Sêneca, além do que diz
Foucault em Le Souci de sai, lYfJ. cit., pp. 64 e 69 [O cuidado de si, 1Jfl. cito
pp. 54 e 59 (N. dos T.)] deve-se lembrar, sobretudo, na obra clássi-
ca de P. Grimal (Séneque ou la Conscience de l'Empire, Paris, Les Bel-
les Lettres, 1979), as páginas consagradas a esta relação (pp. 13-
1114,26-8 e, em particular, 287-92 a propósito de sua carreira e de
seu suposto epicurismo). Presume-se que Serenus tenha sido um
parente de Sêneca (traz o mesmo nome de família que ele) a quem
deve sua carreira (cavaleiro, ocupou nos anos cinqüenta o cargo de
prefeito das vigr1ias). Morto em 62, envenenado por um prato de
cogumelos - é lastimado por Sêneca em sua carta a LUC11io 63, 14.
25. Trata-se de Actéia, cujos amores com o Príncipe, Serenus
acoberta: [Nero] deixou de ser obediente a sua mãe e pôs-se nas
mãos de Sêneca, de quem, um dos familiares, Annaeus Serenus,
fingindo-se enamorado da mesma libertina [ActéiaJ, contribuiu
para esconder os primeiros desejos do jovem Nero e emprestou
seu próprio nome para que os presentes que o príncipe dava em
segredo à jovem mulher, tivessem a aparência de larguezas de sua
parte (facite, Annales, XIII, 13, trad. Ir. P. Grimal, Paris, Gallimard,
1990, p. 310).
26. Para a relação entre Sêneca e Lucílio (e a idade deste úl-
timo) reportamo-nos a P. Grimal (Sénéque..., op. cit., pp. 13 e 92-3),
assim como ao artigo, mais antigo, de L. Delatte, Lucilius, l'ami de
;1
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 127
Séneque, Les Études classiques, IV; 1935, pp. 367-545; cf. também
Le Souci de sai, op. cit., pp. 64 e 69. [O cuidado de si, op. cit., pp. 54 e
59. (N. dos T.)]
27. Para os problemas de datação das Questões naturais, o tex-
to básico continua sendo o prefácio de P Oltramare à sua edição
da obra na Belies Lettres (I. I, Paris, 1929). Neste texto, P. Oltrama-
re situa a redação das Questões entre 61 e 64 (ou melhor, do fim de
63 ao começo de 65), o que leva à conclusãoque elas precederam
a maior parte das Cartas a Lucz1io(p. VII). Quanto à datação das
cartas a Lucílio, está longa e detalhadamente discutida por P Gri-
mal em Sénéque... (pp. 219-24; cf. sobretudo o apêndice I: Les Let-
Ires à Lucilius. Chronologie. Nature, pp. 435-41).
28. Flavius Arrianus (por volta de 89-166), nascido na Bitínia
de uma família de aristocratas, toma Epicteto como mestre em Ni-
cópolis. Dedica-se então a retranscrever fielmente a palavra do
mestre (cf. os Diálogos que constituem um testemunho único do
ensino oral de Epicteto). Segundo Simplicius, Arrianus é também
o autor do Manual que constitui uma espécie de antologia das me-
lhores proposições do seu mestre. Mais tarde, aquele que queria
ser o Xenofonte de seu tempo tomar-se-á pretor e cônsul no rei-
nado de Adriano, antes de instalar-se em Atenas como notável.
29. Foucault retomará todos estes exemplos no quadro de
uma análise sistemática de textos na aula de 27 de janeiro, primei-
ra hora.
30. Dion de Prosa (40-120), chamado Crisóstomo, o boca
de ouro, originário de uma das mais importantes famí1ias de Prusa,
inicia uma brilhante carreira de retórico durante o reinado de Ves-
pasiano (período sofístico, segundo Von Armim, que segue The-
mistius), antes de ter que exilar-se durante o reinado de Domicia-
no. Adota então o modo de vida cínico, errando de cidade em ci-
dade, e exortando seus contemporâneos à moral, em longos ser-
mões que nos restaram. Cf. a informação completa sobre Díon,
por Paolo Desideri no Dictionnaire des philosophes antiques, sob a
dir. de R. Goulet, I. lI, Paris, CNRS Éditions, 1994, pp. 841-56.
31. Cf. discurso 20: Peri anakhoréseos (in Dion Chrysostom,
Discourses, I. 11, trad. ingl. J.W. Cohoon, Londres, Loeb Classical Li-
brary, 1959, pp. 246-69). Este discurso é objeto de um estudo apro-
fundado nos dossiês de Foucault que nele vê o conceito de retiro
para fora do mundo ordenado, sob a condição de apercebermo-
nos (lógon apodidónai) permanentemente daquilo que fazemos.
76. .L
128 AHERMEmUTlCA DO SUJEITO
32. Philon d'Alexandrie, De vita contemplativa, 473M, trad. Ir.
P. Miquel, ed. cit., parágrafo 13, p. 87.
33. Lucien, Philosophes à l'encan, trad. fr. Th. Beaupere, Paris,
Les BeUes Lettres, 1967. Este título em português poderia ser Filó-
sofos em leilão. (N. dos T.)
34. Bíon prâsis: o mercado dos modos de vida, dos gêneros
de vida, dos estilos de vida.
35. Cf. para uma recente versão francesa: Lucien, Hennotime,
trad. J.-P. Dumont Paris, PUF, 1993 (encontra-se o original grego
em: Lucian, Hermotime Works, t. IV, trad. ingl. K. Kilbum, Cam-
bridge, Loeb Classical Library, 1959, pp. 65 55.).
36. Está indo: Como testemunham este livro e este passo
tão rápido, tu te apressas, dir-se-ia, à casa de teu mestre (Henno-
time, trad. Ir., ed. dt., p. 11).
37. Ele [Pitágoras] divide assim a vida do homem: 'Vinte
anos criança, vinte anos muito jovem, vinte anos, jovem, vinte anos
idoso' (Pythagore in Diogene Laerce, Vies et doctrines des philo-
sophes illustres, vm, 10, trad. Ir. sob a dir. de M.-O. Goulet-Cazé,
ed. cit., p. 948).
38. H.: Não te preocupes. Eu próprio, quando me pus a filo-
sofar, aproximava-me, como tu, dos quarenta. Não é esta aproxima-
damente a tua idade? L.: É isto, Hermotímio. Sê meu guia e meu
iniciador (Hermotime, trad. Ir., p. 25). Cf. também, sobre este mesmo
texto, Le Souci de soi, op. cit., pp. 64-5. [O cuidado de si, op. cit., p. 55.
(N. dos T.)]
39. Cf. sobre este uso as cartas a Lucilio 24, 5; 61, 4; 109,8 e
enfim, 113, 28 a partir de uma citação de Posidônio.
40. Por que nos enganannos? Nosso mal não vem de fora
(non est extrinsecus malum nostrum); está em nós (intra nos est), tem
sua sede no fundo mesmo de nossas entranhas (in visceribus ipsis se-
det), e a razão pela qual alcançamos dificilmente a saúde é que não
nos sabemos atingir (Lettres à Lucilius, t. 11, livroV, carta 50, 4, p. 34).
41. O médico [...1teria menos a fazer se o vício estivesse
fresco. Almas ainda tenras e novas seguiriam docemente as vias da
razão que ele lhes mostrasse (id., 50, 4, p. 35).
42. Há trabalho a despender (laborandum est) e, na verdade,
este trabalho só não é grande, como disse, se começamos a for-
mar, a endireitar nossa alma antes que as más tendências nela se
enrijeçam. Mesmo em caso de enrijecimento, não me desespero.
I
AUlA DE 20 DE JANEIRO DE 1982
129
Nada vence um labor obstinado, um zelo perseverante e inteli-
gente (id., 50, 5-6, p. 35).
43. Galhos de madeira rija, por mais arqueados, conseguirás
retesá-los; o calor alinha vigas curvadas e nós modificamos sua es-
trutura natural para modelá-las segundo nOSsas necessidades.
Quão mais facilmente a alma aceita sua forma, a alma, flexível essên-
cia' mais dúctil que todos os fluidos! Ela não é, com efeito, senão
um sopro de ar, constituído de uma certa maneira? Ora, constatas
que o ar é o elemento elástico por excelência, tanto mais elástico
quanto mais sutil (id., 50, 6, p. 35).
44. A ninguém a sabedoria jamais chega antes da desrazão
(ad neminem ante bona mens venit quam mala! (id., 50, 7, p. 36).
45. Todos nós temos nosso inimigo já presente (omnes
praeoccupati sumus! (ibid.).
46. Ibid.
47. Foucault refere-se aqui a uma citação de Antístenes, feita
por Diógenes Laércio: Como se lhe haviam perguntado qual é o
mais indispensável conhecimento, ele respondeu: 'aquele que evi-
ta desaprender' (to periairem tà apomanthánein) (Vies et doctrines
des philosophes illustres, VI, 7, p. 686). Dominando bem cedo a se-
paração entre conhecimentos úteis e inúteis, evita-se aprender es-
tes últimos para ter que desaprendê-Ios em seguida. De modo
mais geral, entretanto, o tema cínico de um modo de vida katà
physin implica que se desaprendam os costumes e outros conteú-
dos da paideía (cf. para a oposição entre a natureza e a lei, as de-
clarações de Antístenes e de Diógenes, in Vies et doctrines...,VI, 11
e 70-71, pp. 689 e 737-8). Assim relata ainda M.-O. Goulet-Cazé
sobre o mesmo assunto: Ciro, herói tipicamente antistênico, traz
uma primeira resposta: 'O conhecimento mais necessário é aque-
le que consiste em desaprender o mal' (L'Ascese cynique. Un com-
mentaire de Diogéne LaerceVI 70-71, Paris,Vrin, 1986, p. 143; citação
de Estobeu 11, 31, 34). Sêneca fala de dediscere: pennita que teus
olhos desaprendam (sine dediscere oculos tuos) (Lettres à Lucilius, t.
11, livro VII, carta 69, 2, p. 146).
48. Cicéron, Tusculanes, t. 11, 1lI, I, 2, trad. j. Humbert, Paris,
Les BelIes Lettres, 1931, p. 3.
49. Trata-se da carta 32 a Lucílio, de que Foucault usa aqui
uma antiga tradução (trad. fr. Pintrel, revisada por La Fontaine) re-
produzida em Oeuvres completes de Séneque, Ie philosophe, ed. M.
Nisard, Paris, Firrnin Didot, 1869 [mais adiante: referência a esta
edição], p. 583.
77. 130 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
50. Épictéte, Entretiens, IlI, 1, ed. cit., pp. 5-12.
51. Cf. Le Souci de sai, op. cit., pp. 69-74. [O cuidado de si, op.
eit., pp. 59-63. (N. dos T.)]
52. O texto básico para esta relação de complementaridade
entre medicina e filosofia é, sem dúvida, [Andenne médecine, per-
tencente ao corpus hipocrático: Alguns médicos e sábios declaram
que é impossível saber medicina quando não se sabe o que é o ho-
mem, mas que é esta precisamente a ciência que deve ter adquirido
quem quiser curar corretamente os doentes, e este discurso por eles
defendido vai no sentido da filosofia (trad. A-j. Festugiére, Paris,
Klincksieck, 1948, pp. 17-8). Para o estudo desta relação em Platão
e, mais amplamente, na cultura grega antiga, Foucault terá lido o
capíhllo Greek Medicine as Paideia no Paideia de W. Jaeger (voI.
Ill, Oxford, Basi! Blackwell, 1945, ed. inglesa revista pelo autor),
assim como: R. JoIy, Platon et la médecine, Bulletin de l'Association
Gui/laume Budé, pp. 435-51; P.-M. Schuhl, Platon et la médecine,
Revue des études grecques, 83, 1960, pp. 73-9; J. jouanna, La Collec-
!íon hippocratique et Platon, REG 90, 1977, pp. 15-28. Para uma sÍn-
tese recente, cf. B. Vitrac, Médecine et philosophie au temps d'Hip-
pocrate, Saint-Denis, Presses universitaires de Vmcennes, 1989.
53. Não se deve aparentar que se filosofa mas filosofar real-
mente (óntos philosophein); pois temos necessidade não de parecer,
mas de estar verdadeiramente com boa saúde (kat'alétheian hy-
giaínein) (Épicure, Sentence vaticane 54, in Letires et maximes, ed.,
dt., pp. 260-1).
54. Sobre este ponto, o texto essencial continua sendo a
apresentação por Galena das funções do hegemonikón (parte do-
minante da alma) em Posidônio no seu De Placitis Hippocratis et
Platonis (cf. Posidonius, l. The Fragments, edd. L. Edelstein I. G.
Kidd, Cambridge, Cambridge University Press, 1972). Contra Cri-
sipo, Posidônio defende a independência relativa das funções irra-
cionais (irascíveis e concupiscíveis) da alma. Portanto, é preciso
mais que um simples julgamento reto para dominar as paixões, as
quais se atêm ao corpo e aos seus equilíbrios: toda uma terapêu-
tica, uma dietética são requeridas para dissipar as paixões, e não
somente uma correção pelo pensamento. Cf. as páginas de A. J.
Voelke (I; Idée de volonté dans le stoiCisme, Paris, PUF, 1973, pp. 121-
30), assim como as de E. R. Dodds (Les Grecs et l'irrationnel, op. cit.,
pp. 236-7) saudando em Posidônio, um retorno ao realismo mo-
ral de Platão. Para uma apresentação mais geral de Posidônio, cf.
ti
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 131
M. Laffranque, Poseidonios d'Apamée, Paris, PUF, 1964, particular-
mente o capítulo sobre L'anthropologie, pp. 369-448.
55. Não se acha na obra de Musonius semelhante tese, mas
é provável que Foucault tenha em mente o discurso XXVII de Díon
de Prusa sobre o chamado ao filósofo: A maioria dos homens tem
horror aos filósofos como aos médicos; assim como só compramos
remédios quando uma doença é grave, também neglicenciamos a
filosofia quando não estamos demasiadamente infelizes. Assim um
homem rico que tem rendas ou vastos domínios [...1, se perde sua
fortuna ou sua saúde, mais facilmente dará ouvidos à filosofia; e,
se sua mulher ou seu filho ou seu innão vierem a falecer, oh! aí en-
tão fará vir o filósofo, o chamará (trad. fr. in Constant Martha, Les
Moralistes sous l'empire romain, Paris, Hachettee, 1881, p. 244).
56.Também não se deve acusar os filósofos que discutem ques-
tões relativas à saúde de transpor as fronteiras, mas, ao contrário,
deplorá-los se, uma vez abolidas todas as fronteiras não acredita-
rem que devam buscar ilustrar-se como que em um só território
comum a todos (en mía khôra koinôs), perseguindo em seus deba-
tes, ao mesmo tempo, o agradável e o necessário (Préceptes de santé,
122 e, in Plutarque, Oeuvres morales, t. lI, trad. fr. j. Defradas, j. Hani
R. Klaerr, ed. cit., p. 101).
57. Foucault apenas reproduz aqui o quadro construído por r.
Hadot em Seneca und die griechisch-romische Tradition der Seelenlei-
tun,op. cit., 11. parte, parágrafo 2, Die Grade der seelischen Kran-
kheiten, p. 145. Retoma as mesmas distinções em Le Souci de sai,
op. cit., p. 70. [O cuidado de si, op. cit., pp. 59-60. (N. dos T.)] Os prin-
cipais textos latinos utilizados por LHadot a fim de encontrar tra-
duções para as nosografias gregas são: as Tusculanes de Cícero (N,
10,23,27,29) e as Leltres à Luci/ius de Sêneca (75 e 94). Mas tam-
bém este parágrafo é sem dúvida inspirado na publicação, àquela
época, da tese de j. Pigeaud, La Maladie de l'âme. Étude sur la rela-
tion de l'âme et du corps dans la tradition médico-philosophique antique,
Paris, Les Belles Lettres, 1981.
58. Elas (as inclinações naturais) se revigoram, a menos, po-
rém, que a corrupção (pestis) não tenha, aos poucos, acabado por
penetrá-las e atingi-las mortalmente: de tal modo que, mesmo se
a filosofia aplicar-lhes todo esforço, não as fará renascer com suas li-
ções (Sénéque, Leltres à Lucilius, t.N, livro xv, carta 94, 31, p. 75).
59. Aqui a referência marcante é Marco Aurélio que, a propó-
sito do gênio interior, escreve que é preciso cercá-lo com um cul-
I~
78. 132 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
to sincero (gnesíos therapeúein). Este culto (therapeía) consiste em
mantê-lo isento de toda paixão (Pensées, lI, 13, ed. clt., p. 14).Tam-
bém em Epicteto encontramos a expressão heautàn therapeúein
(Entretiens, I, 19, 5, p. 72).
60. liA opção destes filósofos já está marcada no nome que
usam: terapeutas (therapeutaz) e terapêutridas (therapeutrídes! é
seu verdadeiro nome, principalmente porque a terapêutica que
eles professam é superior à que tem lugar em nossas cidades -
esta só cuida do corpo, mas a outra cuida também das almas
(Philon, De vita contemplativa, 471M, parágrafo 2, p. 79).
61. [Se se denominamTerapeutas] é também porque recebe-
ram uma educação conforme à natureza e às santas leis, ao culto
do Ser (therapeuousi to on) que é melhor do que o bem (id., 472M,
parágrafo 2, p. 81).
62. Épictéte, Entretiens, lI, 21, 12-22 (pp.93-5).
63. Id., parágrafo 15 (p. 94).
64. Id., parágrafo 22 (p. 95).
65. Entretiens, I1I, 23, 30 (p. 92). Este texto está retomado em
Le 50uci de sai, op. cit., p. 71. [O cuidado de si, op. cit., p. 61. (N. dos 1.)]
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982
Segunda hora
oprivilégio da velhice (meta positiva eponto ideal da exis-
tência). - Generalização do princípio do cuidado de si (como
vocação universal) e articulação do fenômeno sectário. - Leque
social considerado: do meio cultuaI popular às redes aristocrá-
ticas da amizade romana. - Dois outros exemplos: círculos epi-
curistas egrupo dos Terapeutas. - Recusa do paradigma da lei.
- Princípio estrutural de dupla articulação: universalidade do
apelo e raridade da eleição. - Aforma da salvação.
Do deslocamento cronológico da prática de si do final
da adolescência para a idade madura e a vida adulta, tentei
tirar duas conseqüências: a primeira concernente à função
crítica desta prática de si, que vem dobrar e recobrir a fun-
ção formadora; a segunda concernente à proximidade em
relação à medicina, tendo como conseqüência adjacente - de
que ainda não falei, mas a que retornarei - o fato de que
a arte do corpo era, em Platão, muito nitidamente distinta
da arte da alma. Lembremos que, no Alcibíades, era a partir
desta análise ou desta distinção que a alma ficava bem espe-
cificada como objeto do cuidado de si. Ao contrário [mais tar-
de], o corpo será reintegrado. Nos epicuristas, de modo mui-
to claro, por razões evidentes, como também nos estóicos para
os quais os problemas relativos à tensão da alma/saúde do
corpo estão profundamente ligados', veremos o corpo ree-
mergir como um objeto de preocupação, de sorte que ocupar-
se consigo será, a um tempo, ocupar-se com a própria alma e
com o próprio corpo. Isto aparece nas cartas já um pouco hi-
pocondríacas de Sêneca2 Esta hipocondria irromperá de ma-
neira flagrante, em pessoas como Marco Aurélio, Frontão',
Élio Aristides principalmente', etc. Retornaremos a este as-
sunto. Trata-se, creio, de um dos efeitos da aproximação entre
)
79. 134 A HERMENEUTICA DO SUJEITO
medicina e cuidado de si: ter-se-á que lidar com toda uma
imbricação psíquica e corporal que constituirá o centro des-
te cuidado.
Enfim, a terceira conseqüência deste deslocamento cro-
nológico é, evidentemente, a nova importância e o novo va-
lor que a velhice passa a ter. Por certo, na cultura antiga, a
velhice tem um valor, valor tradicional e reconhecido, mas
em certa medida, por assim dizer, limitado, restrito, parcial.
Velhice é sabedoria, mas também fraqueza. Velhice é expe-
riência adquirida, mas também incapacidade de estar ativo
na vida de todos os dias ou mesmo na vida política.Velhice
é possibilidade de dar conselhos, mas é também um estado
de fraqueza no qual se depende dos outros: dão-se opiniões,
mas são os jovens que defendem a cidade, defendendo, por
conseqüência, os idosos, trabalhando para lhes fornecer do
que viver, etc. Portanto, valor tradicionalmente ambíguo ou
limitado da velhice. Digamos, de modo geral, que a velhice
na cultura grega tradicional é sem dúvida honrosa, mas não
é com certeza desejável. Não se deve desejar ficar velho, mes-
mo que seja citada - e, justamente, será por muito tempo
citada - a famosa frase de Sófocles quando se felicitava por
estar finalmente velho, porque liberado dos apetites sexuais'-
Mas ele é citado, precisamente, a título excepcional: sendo
aquele que desejaria tornar-se velho, ou que pelo menos se
regozijava em estar velho por causa daquela liberação, a
frase de Sófocles será então muito utilizada. Ora, a partir do
momento em que o cuidado de si precisa ser praticado du-
rante a vida, principalmente na idade adulta, e em que as-
sume todas as suas dimensões e efeitos durante o período
da plena idade adulta, compreende-se bem que o coroa-
mento, a mais alta forma do cuidado de si, o momento de
sua recompensa, estará precisamente na velhice. Com o cris-
tianismo e as promessas do além, teremos, é claro, um outro
sistema. Mas, neste sistema que tange, por assim dizer, o
problema da morte - assunto aO qual voltaremos - com-
preende-se que é a velhice que constituirá o momento posi-
tivo, o momento de completude, o cume desta longa prática
~
AULA DE 20 DE]ANEIRO DE 1982 135
que acompanhou o indivíduo ou à qual ele teve que sub-
meter-se durante toda a sua vida. Liberado de todos os de-
sejos físicos, livre de todas as ambições políticas a que agora
renunciou, tendo adquirido toda a experiência possível, o
idoso será soberano de si mesmo e pode satisfazer-se intei-
ramente consigo. Nesta história e nesta forma da prática de
si, o idoso tem uma definição: aquele que pode enfim ter pra-
zer consigo, satisfazer-se consigo, depositar em si toda ale-
gria e satisfação, sem esperar qualquer prazer, qualquer alegria,
qualquer satisfação em mais nada, nem nos prazeres físicos
de que não é mais capaz, nem nos prazeres da ambição aos
quais renunciou. O idoso é, portanto, aquele que se apraz
consigo, e a velhice, quando bem preparada por uma longa
prática de si, é o ponto em que o eu, como diz Sêneca, final-
mente atingiu a si mesmo, reencontrou-se, e em que se tem
para consigo uma relação acabada e completa, de domínio
e de satisfação ao mesmo tempo.
Por conseguinte, se a velhice for realmente isto - este
ponto desejável -, há que se compreender (primeira conse-
qüência) que ela não seja considerada simplesmente como
um termo da vida, nem percebida como uma fase em que a
vida definha. A velhice deve ser considerada, ao contrário,
como uma meta, e uma meta positiva da existência. Deve-
se tender para a velhice e não resignar-se a ter que um dia
afrontá-la. É ela, com suas formas próprias e seus valores
próprios, que deve polarizar todo o curso da vida. Sobre este
assunto, há, creio, uma carta de Sêneca muito importante e
caractenstica. Característica porque começa com urna críti-
ca, aparentemente incidental ou pelo menos enigmática,
contra aqueles que, como ele diz, adotam um modo de vida
particular para cada idade da existência6
Com isto, Sêneca
se refere ao tema tão tradicional e importante na ética grega
e romana, a saber, que a vida é repartida em diferentes ida-
des e que a cada uma delas deve corresponder um modo de
vida particular. Segundo as diferentes escolas, segundo as
diferentes especulações cosmo-antropológicas, esta separa-
ção se fazia então diferentemente. Há pouco citei a separação
,:'
80. I.
136 A HERMENtuTlCA DO SUJEITO
dos pitagóricos entre infância, adolescência, juventude, ve-
lhice, etc. (havia outros modos). O interessante porém é, por
um lado, a importância concedida à forma de vida particular
a estas diferentes fases e [por outroJa importância conce-
dida, do ponto de vista ético, a uma boa correlação, no in-
dividuo, entre o modo de vida que ele escolhia, a maneira
como levava sua existência e o período de idade em que es-
tava. Um jovem devia viver como jovem, um homem ma-
duro como homem maduro, um idoso como idoso. Ora, diz
Sêneca, pensando muito provavelmente naquele gênero de
repartição tradicional, não posso estar de acordo com as pes-
soas que repartem sua vida em fatias e que não têm a mes-
ma maneira de viver conforme estejam em uma ou outra
idade. Sêneca propõe substituir esta repartição por uma es-
pécie de unidade - unidade, se quisermos, dinâmica: uni-
dade de um movimento contínuo que tende para a velhice.
E emprega algumas fórmulas características nas quais afirma:
fazei como se fõsseis perseguido, vivei apressado, senti que
durante toda a vossa vida há pessoas atrás de vós, inimigos
que vos perseguem'- Estes inimigos são os contratempos da
vida. São principalmente as paixões e os distúrbios que es-
tes acidentes podem provocar em vós, quer quando jovem
quer na idade adulta, porquanto esperais ainda alguma coi-
sa, sejais apegado ao prazer, cobiçais o poder ou o dinheiro.
São todos estes os inimigos que vos perseguem. Pois bem,
perante estes inimigos que vos perseguem, deveis fugir, e
fugir o mais rápido possível. Apressai-vos em direção ao lu-
gar que vos oferecerá um abrigo seguro. E o lugar que vos
oferecerá um abrigo seguro é a velhice. Isto significa que a
velhice não mais aparece como o termo ambíguo da vida,
mas, muito ao contrário, como uma polaridade da vida, um
pólo positivo para o qual se deve tender. Se quisermos, em-
pregando uma fórmula que não se encontra em Sêneca e
excede um pouco o que ele diz, poderíamos afirmar: dora-
vante deve-se viver para ser velho. Deve-se viver para ser
velho, pois é então que se encontrará a tranqüilidade, o abri-
go, o gozo de si.
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 137
Segunda conseqüência, esta velhice a que se deve tender
é, certamente, a velhice cronológica, aquela que normal-
mente a maioria dos Antigos reconhecia começar por volta
dos sessenta anos - aliás, aproximadamente a idade em que
Sêneca se pôs em retiro e decidiu gozar inteiramente de si.
Mas não se trata simplesmente desta velhice cronológica dos
sessenta anos. É também uma velhice ideal, uma velhice
que, de certo modo, fabricamos; uma velhice para a qual nos
preparamos. Devemos, por assim dizer, e nisto consiste o pon-
to central desta nova ética da velhice, nos colocar em relação
à vida, em um estado tal que a vivamos como se já a tivés-
semos consumado~No fundo, é preciso que, a cada momen-
to, mesmo sendo jovens, mesmo na idade adulta, mesmo se
estivermos ainda em plena atividade, tenhamos, para com
tudo que fazemos e somos, a atitude, o comportamento, o
desapego e a completude de alguém que já tivesse chegado
à velhice e completado sua vida. Devemos viver nada mais
esperando da vida e, assim como o idoso é aquele que nada
mais espera da vida, devemos, mesmo quando jovens, nada
esperar. Devemos consumar a vida antes da morte. A expres-
são está em Sêneca, sempre na carta 32: 1/ consummare vitam
ante mortem. Deve-se consumar a vida antes da morte,
deve-se completar a vida antes que chegue o momento da
morte, deve-se atingir a saciedade perfeita de si. Summa
tui satietas: saciedade perfeita, completa, de tiS. É nesta di-
reção que Sêneca quer que Lucilio se apresse. Esta idéia de
que se deve organizar a vida para ser velho, apressar-se em
direção à velhice, constituir-se como velho em relação à vida
mesmo se se é jovem, é um tema que, como percebemos,
toca uma série de questões importantes, sobre as quais re-
tornaremos. Primeiramente, bem entendido, é a questão do
exercício da morte (meditação sobre a morte como prática
da morte): viver a vida como se fora o derradeiro dia'- É o
problema do tipo de satisfação e de prazer que se pode ter
consigo. Éo problema, seguramente muito importante, da re-
lação entre velhice e imortalidade: em que medida, nesta
ética greco-romana, a velhice prefigurou ou antecipou, ou
fi
81. 138 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
estava em correlação com os temas da imortalidade e da so-
brevida pessoal. Enfim, encontramo-nos aí no cerne de toda
uma série de problemas que será necessário deslindarlO
Es-
tes são alguns traços, estas são algumas conseqüências que
marcam o deslocamento cronológico do cuidado de si: da
urgência adolescente - no Alcibíades - para a idade adulta
ou uma certa juntura entre a idade adulta e a velhice real ou
ideal- nOS séculos I e II da época imperial.
Agora, a segunda questão que gostaria hoje de abordar:
não mais a extensão cronológica ou o deslocamento crono-
lógico, mas a extensão, por assim dizer, quantitativa. Com
efeito, ocupar-se consigo não é mais, na época de que lhes
falo e não será mais, aliás, durante muito tempo, uma reco-
mendação reservada a alguns indivíduos e subordinada a
uma finalidade determinada. Em suma, não se diz mais às
pessoas o que Sócrates dizia a Alcibíades: se queres gover-
nar os outros, ocupa-te contigo mesmo. Doravante, se diz:
ocupa-te contigo mesmo e ponto final. Ocupa-te contigo
mesmo e ponto final significa que o cuidado de si parece
surgir como um princípio universal que se endereça e se im-
põe a todo mundo. A questão que eu gostaria de colocar,
questão ao mesmo tempo histórica e metodológica, é [a se-
guinte]: pode-se dizer que o cuidado de si constitui agora
uma espécie de lei ética universal?Vocês me conhecem bem
para saber que responderei imediatamente: não. O que eu
gostaria de mostrar, o jogo metodológico de tudo isto (ou
pelo menos de uma parte) é o seguinte: não devemos nos
deixar prender ao processo histórico posterior, que se de-
senvolveu na Idade Média, e que consistiu na juridicisação
progressiva da cultura ocidental, juridicisação que nos fez
tomar a lei como princípio geral de toda regra na ordem da
prática humana. O que eu gostaria de mostrar, ao contrário,
é que a própria lei faz parte, como episódio e como forma
transitória, de uma história bem mais geral, que é a das téc-
nicas e tecnologias das práticas do sujeito relativamente a si
mesmo, técnicas e tecnologias que são independentes da
forma da lei e prioritárias em relação a ela. No fundo, a lei
{f
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 139
não passa de um dos aspectos possíveis da tecnologia do
sujeito relativamente a si mesmo. Ou, se quisermos, mais pre-
cisamente ainda; a lei não passa de um dos aspectos desta
longa história no curso da qual se constituiu o sujeito oci-
dental tal como hoje se nos apresenta.Voltemos pois à ques-
tão que eu colocava: pode o Cuidado de si ser considerado, na
cultura helenística e romana, como uma espécie de lei geral?
Primeiramente, é preciso observar que esta universali-
zação, ainda que tenha ocorrido, ainda que se tenha formu-
lado o /I cuida de ti mesmo como uma lei geral, é, com cer-
teza' inteiramente fictícia. Pois, de fato, uma semelhante
prescrição (ocupar-se consigo mesmo) só pode ser aplicada
por um número evidentemente muito limitado de indiví-
duos. Lembremo-nos, afinaL da sentença lacedemônia de
que lhes falei na última aula ou na precedente: é para po-
dermos nos ocupar com nós mesmos que confiamos a cultu-
ra de nossas terras aos hilotasll Ocupar-se consigo mesmo
é, evidentemente, um privilégio de elite. É um privilégio de
elite assim afirmado pelos lacedemônios, mas é também
um privilégio de elite assim afirmado muito mais tarde, no
período de que agora trato, quando ocupar-se consigo apare-
cerá como um elemento correlato de uma noção - que será
necessário abordar e elucidar um pouco melhor -; a noção
de ócio (skholé ou otium)12. Não se pode ocupar-se consigo
sem que se tenha, diante de s~ correlata a si, uma vida em
que se possa - perdoem-me a expressão - pagar o luxo da
skholé ou do otium (e que não é, certamente, o ócio no sen-
tido em que o entendemos, mas voltaremos a isto). De todo
modo, é uma certa forma de vida particular e, na sua parti-
cularidade, distinta de todas as outras vidas, que será con-
siderada como condição real do cuidado de si. De fato pois, na
cultura antiga, na cultura grega e romana, o cuidado de si
jamais foi efetivamente percebido, colocado, afirmado como
uma lei universal válida para todo indivíduo, qualquer que
fosse o modo de vida adotado. O cuidado de si implica sem-
pre uma escolha de modo de vida, isto é, uma separação
entre aqueles que escolheram este modo de vida e os outros.
82. 140 A HERMENWTICA DO SUJEITO
Porém, creio que há também outro motivo pelo qual não se
pode assimilar o cuidado de si, mesmo incondicionado, mes-
mo autofinalizado, a uma lei universal: é que, de fato, na
cultura grega, helenística e romana, o cuidado de si sempre
tomou forma em práticas, em instituições, em grupos, que
eram perfeitamente distintos entre si, freqüentemente fe-
chados uns aos outros e, na maioria das vezes, implicando
uma relação de exclusão dos demais. O cuidado de si era li-
gado a práticas ou organizações de confraria, de fraternida-
de, de escola, de seita. Abusando um pouco da palavra seita
_ ou antes, dando-lhe o sentido geral que tem em grego,
pois, como sabemos, a palavra génos, que significava, a um
tempo, família, clã, gênero, raça, etc., era empregada para
designar o conjunto dos individuos reunidos, por exemplo,
na seita epicurista ou na seita estóica -, tomando a palavra
seita em uma acepção mais ampla que a habitual, eu diria
que, na cultura antiga, o cuidado de si generalizou-se efeti-
vamente como princípio, mas articulando-se sempre com
um ou com o fenômeno sectário.
Mas, a título de mera indicação, a fim de mostrar ou de
simplesmente demarcar a amplidão do leque, eu afirmaria
que não se deve pensar que, de fato, o cuidado de si só era
encontrado nos meios aristocráticos. Não [são] apenas as
pessoas mais ricas, econômica, social e politicamente privi-
legiadas, que praticam o cuidado de si. Nós o vemos difun-
dir-se amplamente em uma população que, com exceção
das classes mais baixas e certamente dos escravos - e ainda
aí há retificações a serem feitas -, era, pode-se dizer, uma
população bastante cultivada em comparação com a que
conhecemos na Europa até o século XIX. Pois bem, nesta
população, podemos realmente dizer que [vemos] o cuidado
de si manifestar-se, organizar-se, em meios que, absoluta-
mente, não eram privilegiados. No pólo extremo, nas clas-
ses menos favorecidas, encontram-se práticas de si muito
fortemente ligadas à existência, geralmente, de grupos reli-
giosos' grupos claramente institucionalizados, organizados
em tomo de cultos definidos, com procedimentos freqüen-
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 141
temente ritualizados. Aliás, é este caráter cultuaI e ritual que
tornava menos necessárias as formas mais sofisticadas e
mais eruditas da cultura pessoal e da investigação teórica. O
quadro religioso e cultual dispensava um pouco este trabalho
individual ou pessoal de investigação, de análise, de elabo-
ração de si por si. Entretanto, a prática de si, nestes grupos,
era importante. Em cultos, por exemplo, como o de Isis13, a
todos os participantes impunham-se abstinências alimen-
tares muito precisas, abstinências sexuais, confissão dos pe-
cados, práticas penitenciais, etc.
Pois bem, no outro pólo extremo deste leque, encan-
tramos práticas de si sofisticadas, elaboradas, cultivadas que,
evidentemente, são muito mais ligadas a escolhas pessoais,
à vida de ócio cultivada, à investigação teórica. Isto de modo
algum significa que estas práticas fossem isoladas. Faziam
parte de todo um movimento que poderíamos denominar
da moda. Apoiavam-se também, senão em organizações
cultuais bem precisas, pelo menos em redes socialmente
preexistentes, que eram as redes de amizade. Esta amiza-
de que, na cultura grega tinha uma determinada forma, ti-
nha outras, na cultura, na sociedade romanas, muito mais
fortes, muito mais hierarquizadas, etc. A amizade na socieda-
de romana consistia em uma hierarquia de individuos ligados
uns aos outros por um conjunto de serviços e obrigações;
em um grupo no qual cada individuo não tinha exatamen-
te a mesma posição em relação aos demais. A amizade era,
em geral, centralizada em tomo de um personagem em re-
lação ao qual alguns estavam mais próximos e [outros] menos
próximos. Para passar de um grau a outro de proximidade,
havia toda uma série de condições, ao mesmo tempo implí-
citas e explícitas, havia rituais, gestos e frases indicando a
alguém que ele progredira na amizade de outro, etc. Enfim,
se quisermos, temos aí toda uma rede social, parcialmente
institucionalizada, que, afora as comunidades cultuais de
que lhes falei há pouco, foi um dos grandes suportes da prá-
tica de si. E a prática de si, o cuidado da alma, na sua forma
individual e interindividual, está apoiada naqueles fenôme-
Instituto de PsiCOlogia - UFRGS
--- Biblioteca
I'A
( ..1
83. 142 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
nos. Falei-lhes muitas vezes de Sêneca, Lucílio, Serenus, etc.
Pertencem inteiramente a este tipo. Serenus (jovem paren-
te provinciano que chega a Roma cheio de ambição, que
tenta insinuar-se na corte de Nero) encontra seu tio ou seu
parente afastado, Sêneca, que está lá e que, por ser mais ve-
lho e já estar em uma situação importante, tem obrigações
para com ele. Serenus entra então na esfera de sua amizade
e é no interior desta relação de amizade semi-institucional
que Sêneca lhe dará conselhos, ou antes que Serenus soli-
citará conselhos a Sêneca. E dentre todos os serviços que
prestou a Serenus - prestou-lhe serviços junto a Nero, ser-
viços na corte, serviços financeiros, com certeza - Sêneca
prestou-lhe o que poderíamos chamar de um serviço de
alma!'''. Serenus diz: não sei muito bem a qual filosofia me
vincular, sinto-me desconfortável em minha própria pele,
não sei se sou bastante ou pouco estóico, nem o que devo
ou não aprender, etc. E todas estas questões são exatamen-
te do mesmo tipo que os serviços solicitados: a quem devo
me dirigir na corte, devo postular tal cargo ou outros? Pois
bem, Sêneca dá todo este conjunto de conselhos. O serviço
de alma se integra à rede de amizades, do mesmo modo
como se desenvolvia no interior de comunidades cultuais.
Digamos pois que dispomos de dois grandes pólos:
por um lado, um pólo popular, mais religioso, mais cultual,
teoricamente mais rude; €, na outra extremidade, cuidados
da alma, cuidados de si, práticas de si, que são mais indivi-
duais, mais pessoais, mais cultivados, mais articulados, fre-
qüentes nos meios mais favorecidos e que se apóiam, em
parte, nas redes de amizades. Porém, ao indicar estes dois
pólos, de modo algum quero dizer que há duas e somente
duas categorias: urna, popular e rude, e outra, erudita, culti-
vada e amistosa. Na verdade, as coisas são muito mais com-
plicadas!6 Tomemos dois exemplos desta complicação. Um
deles é o exemplo dos grupos epicuristas, grupos que não
eram religiosos, mas filosóficos, e que, ao menos em sua ori-
gem' na Grécia, constituíam comunidades em grande parte
populares, freqüentadas por artesãos, pequenos comercian-
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 143
tes, agricultores de pouca fortuna, e que representavam
uma escolha política democrática, oposta à escolha aristo-
crática dos grupos platônicos ou aristotélicos, implicando
porém, por mais populares que fossem, uma reflexão, refle-
xão teórica e filosófica, ou pelo menos uma aprendizagem
doutrinaI importante. Isto, de resto, não impediu o mesmo
epicurismo de dar lugar a círculos extraordinariamente so-
fisticados e eruditos na Itália, principalmente em Nápoles!?
e, por certo, em torno de Mecenas, na corte de Augusto!'.
Há também outro exemplo para lhes mostrar a comple-
xidade e a variedade de todas as dimensões institucionais
do cuidado de si: é o famoso grupo dos Terapeutas descrito
por Fílon de Alexandria em seu Tratado da vida contemplativa.
Eenigmático este grupo dos Terapeutas do qual já lhes fa-
lei porque, de fato, somente Fílon de Alexandria o menciona
e, praticamente - afora alguns textos que podem ser consi-
derados como referências implícitas aos Terapeutas -, dos
próprios textos de Filon que nos restam, só aquele fala dos
Terapeutas. Tanto assim quese presumiu que os Terapeutas
não teriam existido, tratando-se, na realidade, da descrição
ideal e utópica de uma comunidade como deveria ela ser. A
crítica contemporânea - e sou absolutamente incompetente
para decidir - parece supor que, de algum modo, este gru_
po realmente existiu!9. Ao cabo, as reconstituições o tornam
pelo menos bastante provável. Ora, como lhes disse, este
grupo dos Terapeutas era um grupo de pessoas que se ha-
viam retirado para as redondezas de Alexandria, não no de-
serto como será aprática eremita e anacoreta cristã mais tar-
dia
20
, mas em espécies de pequenos jardins, pequenos jardins
suburbanos, onde cada um dispunha de uma cela ou um
quarto para morar, com espaços comunitários. Esta comu-
nidade dos Terapeutas tinha três eixos ou três dimensões.
Por um lado, práticas cultuais, religiosas, muito marcadas,
mostrando quanto se tratava de um grupo religioso: prece
duas vezes por dia, reunião semanal em que as pessoas
eram posicionadas por idade e em que cada qual devia to-
I'.JI
84. 144 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
mar a conveniente atitude21
[ •.• *]. Ao mesmo tempo, uma
tônica igualmente muito acentuada sobre o trabalho inte-
lectual, teórico, sobre o trabalho do saber. No tocante ao
cuidado de si, é dito, desde o começo, que os Terapeutas se
retiraram para onde pudessem curar as doenças provocadas
por prazeres, desejos, desgostos, temores, cobiças, estulti-
ces, injustiças e a profusão infinita de paixões22
. São assim
os Terapeutas: afastam-se para curar-se. Em segundo lugar,
uma outra referência: o que eles buscam, antes de tudo, é a
enkráteia (o domínio de si sobre si), por eles considerada
como base e fundamento de todas as outras virtudes. E, fi-
nalmente - quanto a isto o texto, por seu vocabulário, é mui-
to importante -, eles acrescentam, uma só vez por semana,
nos famosos sétimos dias em que ocorre sua reunião, os cui-
dados do corpo à epiméleia tês psykhês que era sua atividade
de todos os dias. A epiméleia tês psykhês é, portanto, o cuida-
do com a própria alma, ao qual devem consagrar-se todos
os dias. Ao mesmo tempo que o cuidado da alma, vemos
uma forte acentuação do saber~ Como eles dizem, como diz
Fílon, seu objetivo é: aprender a ver claro. E ver claro é ter
o olhar suficientemente claro para poder contemplar Deus.
Seu amor pela ciência, diz Fílon, é tamanho, que lhes ocor-
re durante três dias, e para alguns durante até seis, esque-
cer inteiramente de alimentar-se. Lêem as Sagradas Escritu-
ras, entregam-se à filosofia alegórica, isto é, à interpretação
de textos. Lêem, igualmente, autores sobre os quais Fílon
não fornece qualquer informação, e que seriam os iniciado-
res de sua seita. Suas relações com o saber, sua prática de
estudos é tão forte, seus cuidados com o estudo tão inten-
50S - e aqui encontramos um tema muito importante em
toda a prática de si, ao qual creio já ter feito menção -, que,
mesmo durante o sono e os sonhos, proclamam as doutri-
nas da filosofia sagrada28. Este é um exemplo (creio já lhes
' Ouve-se apenas: isto é... o cuidado de si.
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 145
ter falado a respeito a propósito também dos pitagóricos29
)
do sono e dos sonhos como critérios das relações do indi-
víduo com a verdade: critérios da relação existente entre a
pureza do indivíduo e a manifestação da verdade.,
Portanto, tomo este exemplo por se tratar de um grupo,
como vemos, nitidamente religioso. Não temos qualquer
informação sobre a origem social dos indivíduos que dele
participam; não há razão alguma para supor que se trata de
meios aristocráticos ou privilegiados. Mas vemos também
quão considerável é a dimensão do saber, da meditação, da
aprendizagem, da leitura, da interpretação alegórica, etc. As-
sim, é preciso dizer que o cuidado de si sempre..toma forma
no interior qe redes ou de grupos determinado~ e distintos
uns dos outros, com combinações entre o cultuaI, o terapêu-
tico - no sentido que expusemos - e o saber, a teoria, mas
[trata-se de] relações variáveis conforme os grupos, confor-
me os meios e conforme os casos. De todo modo porém, é
nestas separações, ou melhor, neste pertencimento a uma
seita ou a um grupo, que o cuidado de si se manifesta e se
afirma. Não se pode cuidar de si, por assim dizer, na ordem
e na forma do universal. Não é como ser humano enquanto
tal, não é simplesmente enquanto pertencente à comunida-
de humana, mesmo se este pertencimento for muito im-
portante, que o cuidado de si pode manifestar-se e, princi-
palmente, ser praticado. Somente no interior do grupo e na
distinção do grupo, pode ele ser praticado.
Com isto, creio eu, tocamos um aspecto importante.
Pode-se dizer, sem dúvida, e deve-se lembrá-lo, que a maio-
ria destes grupos recusa totalmente - e nisto consiste uma
de suas razões de ser, bem como uma das razões de seu su-
cesso nas sociedades grega, helenística e romana - validar
e assumir por sua própria conta as diferenças de status en-
contradas na cidade ou na sociedade. Para o Alcibíades, por
exemplo, o cuidado de si inscrevia-se no interior de uma di-
ferença de status, que fazia com que Alcibíades fosse desti-
nado a governar, sendo por isto, e de certo modo por causa
J
85. 146 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
do status recebido e não questionado, que ele devia ocupar-se
consigo [mesmo]. Na maioria dos grupos de que lhes falo,
em princípio, não se valida, não se reconhece, não se aceita
a distinção entre rico e pobre, entre quem teve berço de ouro
e o de família obscura, quem exerce um poder político e
quem vive desapercebido. Exceção feita talvez aos pitagóri-
cos, a cujo propósito colocam-se algumas questões30, pare-
ce que, de todo modo, para a maioria dos grupos, até mesmo .
a oposição livre/escravo, ao menos teoricamente, não foi
aceita. Os textos dos epicuristas e dos estóicos sobre o assun-
to são numerosos e iterativos: afinal, um escravo pode ser
mais livre que um homem livre se este não tiver se liberado
de todos os vícios, paixões, dependências, etc., em cujo in-
terior estivesse preso3l
• Por conseguinte, não havendo dife-
rença de status, pode-se dizer que todos os indivíduos, em
geral, sãocapazes: capazes de ter a prática de si próprios,
capazes de exercer esta prática. Não há desqualificação a
priori de determinado indivíduo por motivo de nascimento
ou de status. Por outro lado porém, se todos, em princípio,
são capazes de aceder à prática de si, também é fato que, no
geral, poucos são efetivamente capazes de ocupar-se consigo.
Falta de coragem, falta de força, falta de resistência - inca-
pazes de aperceber-se da importância desta tarefa, incapa-
zes de executá-la: este, com efeito, é o destino da maioria.
O princípio de ocupar-se consigo (obrigação de epimélesthai
heautou) poderá ser repetido em toda parte e para todos. A
escuta, a inteligência, a efetivação desta prática, de todo modo,
será fraca. E é justamente porque a escuta é fraca e porque,
seja como for, poucos saberão escutá-lo, que o princípio deve
ser repetido por toda parte. Temos, a este respeito, um tex-
to de Epicteto muito interessante. Evocando novamente o
gnôthi seautón (o preceito délfico), diz ele: Olhai o que ocor-
re com este preceito délfico. Foi inscrito, marcado, gravado
em pedra, no centro do mundo civilizado (ele emprega a
palavra oikouméne). Está no centro da oikouméne, isto é, des-
te mundo que lê e escreve, que fala grego, mundo cultivado
que constitui a única comunidade humana aceitável. Foi es-
ti
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 147
crito lá, no centro da oikouméne, e por isto todos podem vê-lo.
Mas o gnôthi seautón, instalado pelo deus no centro geográ-
fico da comunidade humana aceitável, é contudo desconheci-
do e incompreendido. E passando desta lei geral, deste prin-
cípio geral, ao exemplo de Sócrates: Olhai Sócrates. Quantos
jovens Sócrates terá interpelado na rua para que, a despei-
to de tudo, alguns acabassem por escutá-lo e por ocupar-se
consigo mesmos? Sócrates, pergunta Epicteto, conseguia
persuadir todos os que vinham até ele a ter cuidados para
consigo mesmos? Nem mesmo um em mil32. Pois bem, nes-
ta afirmação de que o princípio é dado a todos mas poucos
são os que podem escutá-lo, vemos reaparecer a bem co-
nhecida e tradicional forma da partilha, tão importante e
decisiva em toda a cultura antiga, entre alguns e os outros,
os primeiros e a massa, os melhores e a multidão (entre oi
prôtoi e oi pollo;: os primeiros e, depois, os numerosos). Este
eixo de partilha é que permitia, na cultura grega, helenística,
romana, a repartição hierárquica entre os primeiros - privi-
legiados, cujo privilégio não devia ser questionado, ainda
que se pudesse questionar a maneira como o exerciam - e,
após eles, os outros. Reencontraremos agora a oposição en-
tre alguns e os demais, mas a partilha não é mais hierárqui-
ca: é uma partilha operatória entre os que são capazes e os
que não são capazes [de si].Não é mais o status do indiví-
duo que define, de antemão e por nascimento, a diferença
que o oporá à massa e aos outros. Éa relação consigo, a mo-
dalidade e o tipo de relação consigo, a maneira como ele mes-
mo será efetivamente elaborado enquanto objeto de seus
cuidados: é aí que se fará a partilha entre alguns poucos e
os mais numerosos. O apelo deve ser lançado a todos por-
que somente alguns serão efetivamente capazes de ocupar-se
consigo mesmos. Reconhecemos aí a grande forma da voz
que a todos se dirige e poucos ouvem, a grande forma do
apelo universal que só a poucos garante a salvação. Encon-
tramos aquela forma cuja importância será tão grande em
toda a nossa cultura. É preciso dizer que ela não foi inven-
tada exatamente aí. De fato porém, em todos estes grupos
86. 148 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
cultuais de que lhes falei, em alguns pelo menos, achava-se
o princípio de que o apelo era lançado a todos mas pouco
numerosos eram os verdadeiros bacantes33
.
É esta a forma que reencontraremos no cerne mesmo
do cristianismo, rearticulada em tomo do problema da Reve-
lação, da fé, do Texto, da graça, etc. O importante porém - e
é o que pretendia hoje realçar - é que foi já nesta forma com
dois elementos (universalidade do apelo e raridade da sal-
vação) que se teria problematizado no Ocidente a questão
do eu e da relação consigo. Em outros termos, digamos que
a relação consigo, o trabalho de si para consigo, a descober-
ta de si por si mesmo, foram concebidos e desdobrados, no
Ocidente, como a via, a única possível, que conduz da uni-
versalidade de um apelo que, de fato, só pode ser ouvido
por alguns, à raridade da salvação da qual, contudo, nin-
guém está originariamente excluído. É este jogo entre um
princípio universal que só pode ser ouvido por alguns e a
rara salvação da qual, contudo, ninguém se acha a priori ex-
cluído, que estará, como sabemos, no cerne da maioria dos
problemas teológicos, espirituais, sociais, políticos do cris-
tianismo. Ora, vemos aqui esta forma nitidamente articulada,
articulada à tecnologia do eu, ou melhor (pois não é mais
da tecnologia apenas que se deve falar), a uma verdadeira
cultura de si propiciada pela ciVilização grega, helenística e
romana e que, nos séculos I e II de nossa era, assumiu, a
meu ver, dimensões consideráveis. É no interior desta cul-
tura de si que vemos entrar plenamente em cena esta forma,
repito, tão fundamental em nossa cultura, entre a universa-
lidade do apelo e a raridade da salvação. Aliás, esta noção
de salvação (salvar-se, realizar a própria salvação) é absolu-
tamente central em tudo isto. Não lhes falei dela ainda por-
que, precisamente, nela desembocamos; vemos porém que
o deslocamento cronológico que nos conduziu do cuidado
de si adolescente ao cuidado de si na direção de tomar-se
velho instaura o problema de saber qual é o objetivo e a meta
deste cuidado de si; em que se pode ser salvo?Vemos tam-
bém que a relação medicina/prática de si nos remete ao
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 149
problema de salvar-se e realizar a própria salvação: o que
é ter boa saúde, escapar das doenças, estar ao mesmo tempo
conduzido à morte e, de certo modo, salvar-se dela?Vemos,
finalmente, como tudo nos conduz a uma temática da sal-
vação cuja forma está claramente definida em um texto como
aquele de Epicteto, que há pouco citei. Uma salvação que,
repito, deve responder a um apelo universal, mas, de fato,
só pode ser reservada para alguns.
Pois bem, na próxima vez tratarei de lhes falar de outro
aspecto desta cultura de si: aquele que conceme ao modo
como este cultivar a si mesmo, cuidar de si mesmo deu
lugar a formas de relações, a uma elaboração de si como
objeto de saber e de conhecimento possíveis, inteiramente
diferentes do que se podia encontrar no platonismo.
,..,
.. ~.
]
87. NOTAS
1. Cf. por exemplo o relato de Estobeu: Assim como a força
do corpo é uma tensão (tónos) suficiente nos nervos, assim tam-
bém a força da alma é uma tensão suficiente da alma no julga-
mento ou na ação (Florilegium, 11, 564). Sobre esta temática da
tensão (tónos) no estoicismo e seu quadro monista (0 tónos é a ten-
são interna que unifica um ser na sua totalidade, p. 90), a referência
essencial continua sendo a obra de A J. Voelke, r: Idée de volonté
dans le stoicisme, op. cit., depois das clássicas análises de É. Bréhier
no seu Chrysippe et l'ancien stoiásme, Paris, PUF, 1910 (1950, 2. ed.).
2. A propósito das cartas 55, 57, 78, Foucault escreve: As car-
tas de Sêneca ofereceriam muitos exemplos dessa atenção dirigida
à saúde, ao regime, aos mal-estares e a todas as perturbações que
podem circular entre corpo e alma (Le Souci de soi, op. cit., p. 73).
[O cuidado de si, op. cit., p. 62. (N. dos T.)]
3. Marcus Comelius Fronto (100-166), natural da Numídia,
cônsul em 143, é conhecido principalmente por ter sido o mestre
de retórica de Marco Aurélio. Parece que foi um bom orador, mas
para julgá-lo só nos resta sua correspondência com o futuro impe-
rador. Esta correspondência ocorre de 139 a 166 (morte de Fron-
tão). Cf. a análise desta correspondência, por Foucault, aula de 27
de janeiro, segunda hora.
4. Aelius Aristide é autor de seis Discours sacrés, consagra-
dos a suas doenças e a suas curas (trad. fr.A.-J. Festugiere, Paris,
Jf
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 151
Macula, 1986). CI.. sobre ele, Le Souá de sai, op. cit., p. 73. [O cuidado
de si, op. cit., p. 62. (N. dos T.)]
5. Referência ao começo da República de Platão, no momen-
to em que Céfalo, interrogado sobre os desprazeres da velhice,
responde: Encontrei, ao contrário, idosos animados com senti-
mentos bem diferentes, entre outros o poeta Sófocles. Estava eu
um dia junto a ele, quando lhe perguntaram: 'Como estás, Sófo-
eles, em relação ao amor? És ainda capaz de cortejar uma mulher?
- Cala-te, amigo, respondeu Sófocles; estou encantado por ter es-
capado do amor, como se tivesse escapado das mãos de um ser
enraivecido e selvagem' (La République, livro !, 329 b-c, in Platon,
Oeuvres eomplétes,!.VI, trad. fr. E. Chamb'Y ed. ci!., p. 6).
6. Em toda a descrição que se segue, Foucault vai, de fato,
confundir dois textos de Sêneca. Uma passagem do colóquio so-
bre La Tranquillité de l'âme: Acrescenta aqueles que, virando e re-
virando como pessoas que não conseguem dormir, tentam suces-
sivamente todas as posturas até que o cansaço as faça encontrar o
repouso: após terem cem vezes modificado a base de sua existên-
cia, acabam por permanecer na posição em que os apreende não
a impaciência da mudança, mas a velhice (II, 6, trad. R. Waltz, ed.
cit., p. 76), e a carta 32: Como é curta esta vida! E nós a abrevia-
mos por nossa leviandade, passando com ela sucessivamente de
recomeço em recomeço. Despedaçamos, esmigalhamos a vida
(Lettres à Lucilius,!.!, livro Iv, carta 32, 2, ed. ci!., p. 142). CI.. tam-
bém: Compreenderás o que há de revoltante na frivolidade dos
homens que, a cada dia, estabelecem sua vida sobre uma nova
base (id., livro 11, 16, p. 51) e a carta 23, 9.
7. Apressa-te pois, meu caríssimo Lucílio. Pensa como deve-
rias redobrar a velocidade se tivesses inimigos às tuas costas, se
suspeitasses da proximidade de uma cavalaria acossando fugitivos.
Estás assim: acossam-te. Avia-te! (id., 32-3, p.142).
8. Id., 32, p. 4 (143).
9. Cf. aula de 24 de março, segunda hora.
10. Cf. para um novo exame da natureza imortal ou não da
alma nos estóicos (e particularmente em Sêneca), aula de 17 de
março, segunda hora.
11. Cf. análise desta sentença na aula de 6 de janeiro, segun-
da hora.
12. Cf. j.-M. André, r:Otium dans la vie morale et intelleetuelle
romaine, des origines à l'époque augustéene, Paris, PUF, 1966.
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88. 152 AHERMENEUTICA DO SUJEITO
13. Divindade egípcia, fsis é conhecida principalmente por
ter reunido os pedaços do corpo de Osíris, em uma famosa lenda
cuja narrativa completa encontra-se em Plutarco (lsis et Osiris, in
Plutarque, Oeuvres morales, t. V-2, trad. fr. C. Froidefond, Paris, Les
Belles Lettres, 1988). Nos primeiros séculos da nossa era, seu cul-
to (ela é, ao mesmo tempo, a mulher ardilosa, a esposa devotada
e a mãe criacleira) conhece uma forte expansão e um crescente su-
cesso popular, até alcançar a admiração dos imperadores romanos
(como Calígula, que mandou construir em Roma um templo de
Ísis) e tomar-se mesmo uma entidade filosófico-mística entre os
gnósticos. A propósito das abstinências e confissões nestes ritos,
cf. F. Cumont, Les Religions orientales dans le paganisme romain, Pa-
ris, E. Leroux, 1929, pp. 36-7 e 218 n. 40, e R. Turcan, Les Cultes
orientaux dans le monde romain, Paris, Les Belles Lettres, 1989, p.
113 (devo estas referências a P. Veyne).
14. Q. Le Souci de sai, op. cit., p. 68. O cuidado de si, op. cit., p. 58.
(N. dos T.)
15. Cf. id., p. 69. Tradução brasileira, id., p. 59. (N. dos T.)
16. Sobre a vida e a organização social nas escolas de filo-
sofia antiga, cf. Carlo Natali, Lieux et École de savoir in Le Sa-
voir grec, s. dir. j. Brunschwig G. Lloyd, Paris, Flammarion,
1996, pp. 229-48. Encontramos também indicações gerais em P.
Hadot, Qu' est-ce que la philosophie antigue?, op. cit., pp. 154-8.
17. A propósito da organização do Círculo de Mecenas (agru-
pandoVirgHio, Horácio, Propércio, etc.) na corte de Augusto no fi-
nal dos anos trinta a.c., cf. ].-M. André, Médme. Essai de biographie
spirituelle, Paris, Les Belles Lettres, 1967.
18. Sobre o epicurismo na Campânia, particulannente em
torno de Filodemo de Gadara e de Lucius Calpurnius Piso Caeso-
ninus, cf. a obra fundamental do especialista na matéria: M. Gigante,
La Bibliotheque de Philodeme et l'épicurisme romain, Paris, Les Belles
Lettres, 1987.
19. Distingue-se, ordinariamente (cf. a introdução de F. Dau-
mas à sua tradução do De vita contemplativa de Filon, ed. cit., assim
como a bibliografia bastante completa de R. Radice: Filone di Ales-
sandria, Nápoles, Bibliopolis, 1983), três períodos da crítica: o pe-
ríodo antigo (de Eusébio de Cesaréia, no século III, a B. de Mont-
faucon, no século XVUD assimila os Terapeutas a uma comuni-
dade cristã; o período moderno, no século XIX (com Renan e o P.
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982
153
Lagrange), considera a descrição filoniana como uma pinrura ideal;
enfim, a crítica contemporânea atesta, por meio de reconstitui-
ções, a existência real do grupo dos Terapeutas e se pronuncia na
direção de uma aproximação com os Essênios (cf. M. Delcor, etc.).
20. É na aula de 19 de março de 1980 que Foucault elabora
sua grande tese de uma retomada das técnicas filosóficas e pagãs
de direção e de exame, pelo cristianismo, em Cassiano, a partir do
problema, que então se colocava, da formação do anacoreta antes
de sua partida para o deserto.
21. As mãos sob as vestes, a direita entre o peito e o queixo,
a esquerda pendente na lateral (philon, De vita contemplativa, 476
M, trad. P. Miquel, ed. ci!., parágrafo 30, pp. 99-101).
22. Id., 471M, parágrafo 2 (p. 81).
23. Sobre a base do controle de si (enkráteian), eles edificam
as outras virtudes da alma (id., 476M, parágrafo 34, p. 103).
24. Considerando o sétimo dia como um dia muito santo,
eles o beneficiaram com uma honra insigne: naquele dia, após os
cuidados da alma (ten tês psykhês epiméleian), o corpo é por eles
friccionado com óleo (id., 477M, parágrafo 36, p. 105).
25. A estirpe dos Terapeutas, cujo esforço constante está em
aprender a ver claro, dedica-se à contemplação do Ser (id., 473M,
parágrafo 10, p. 85).
26. Id., 476M, parágrafo 35 (pp. 103-4).
27. Id., 475M, parágrafo 28 (pp. 97-8).
28. Id., parágrafo 26 (p. 97).
29. Cf. aula de 13 de janeiro, primeira hora, e de 24 de mar-
ço, segunda hora.
30. Sobre a organização política da sociedade pitagórica e suas
tendências aristocráticas, cf. a clássica e preciosa apresentação de
A. Delatte no capírulo Organisation politique de la société pytha-
goricienne, in Essai sur la politique pythagoricienne (1922), Gene-
bra, Slatkine Reprints, 1979, pp. 3-34.
31. Cf. os textos decisivos de Epicteto, nos Diálogos (todo o
capítulo I do livro N e, sobretudo, o livro 11, I, 22 a 28, demons-
trando que não basta estar libertado perante o pretor para não ser
mais escravo), e o Manual (XIV), assim como, sobre a liberdade do
sábio, as Sentenças Vaticanas 67 e 77 de Epicuro.
32. E por quê, Apolo? E por que proferiu oráculos? E por
que estabeleceu-se em um lugar que dele fez o profeta e a fonte
da verdade, e o ponto de encontro de todos os habitantes do mun-
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89. 154 A HERMENtllTlCA DO SUJEITO
do civilizado (ek tés oíkouménes)? E por que inscreveu no templo
'Conhece-te a ti mesmo', ainda que ninguém compreenda estas
palavras? Conseguia Sócrates persuadir a todos os que vinham até
ele a ter cuidados consigo mesmos? Nem mesmO um em mil
(Entretiens, I1I, 1, 18-19, ed. cit., p. 8).
33. Alusão a uma célebre fórmula iniciática órtica, relativa ao
pequeno número de eleitos; cf. numerosos são os portadores de
tirso, raros os bacantes (platoTI, Phédon, 69c, trad. fr. L. Robin, ed.
cil., p. 23).
~-
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982
Primeira hora
Indicação dos caracteres gerais das práticas de si nos sé-
culos I-lI. - A questão do Outro: os três tipos de mesma nos
diálogos platônicos. - Período helenístico e romanO: a mestria
de subjetivação. -Análise da stultitia em Sêneca. -Afigura do
filósofo como mestre de subjetivação. - Afonna institucional he-
lenística: a escola epicurista e a reunião estóica. - A fonna ins-
titucional romana: o conselheiro de existência privado.
Tentarei descrever um pouco alguns traços da prática
de si que rrie parecem os mais característicos, ao menos na
Antiguidade, sem conjeturar sobre o que ocorreu depois,
por exemplo, nos séculos XVI ou XX, em nossas civilizações.
Portanto, traços característicos que a prática de si passou a
ter durante os séculos 1-II da nossa era.
Primeiro caráter, que apontei na última aula, a integra-
ção, a imbricação da prática de si com a fórmula geral da arte
de viver (tékhne tou bíou), integração pela qual o cuidado de
si não aparecia mais como uma espécie de condição prelimi-
nar ao que depois viria a ser uma arte de viver. A prática de
si não era mais aquela espécie de juntura entre a educação
dos pedagogos e a vida adulta, mas, ao contrário, um tipo de
exigência que devia acompanhar toda a extensão da existên-
cia' encontrando seu centro de gravidade na idade adulta, o
que evidentemente acarretava, para esta prática de si, algu-
mas conseqüências. Em primeiro lugar, uma função mais ni-
tidamente crítica que formadora: tratava-se de corrigir mais
que de instruir. Daí, um parentesco bem mais claro com a
medicina, o que desvincula um pouco a prática de si da pe-
',i
,',.,
;,11
'..Ai
.',,~
~
.51
90. 156 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
dagogia [...*l. Enfim, uma relação privilegiada entre a prática
de si e a velhice, entre a prática de si €, conseqüentemente, a
própria vida, já que a prática de si toma corpo na vida ou in-
corpora-se à própria vida. Portanto, a prática de si tem por
objetivo a preparação para a velhice que, por sua vez, apare-
ce como um momento privilegiado da existência ou, mais
ainda, como o ponto ideal da completude do sujeito. Para ser
sujeito é preciso ser velho.
Segunda característica da prática de si tal como está
formulada no período helenístico e romano. Se tomo os sé-
culos 1-11, não é tanto, repito, porque situo neste período to-
dos os fenômenos e a emergência de todos os fenômenos
que busco descrever. Tomo este período na medida em que
representa o ápice de uma evolução, sem dúvida muito lon-
ga, no decorrer de todo o período helenístico. Segundo traço,
pois: o cuidado de si é formulado como um princípio incon-
dicionado. Como um princípio incondicionado significa
que se apresenta como uma regra aplicável a todos, praticá-
vel por todos, sem nenhuma condição prévia de status e
sem nenhuma finalidade técnica, profissional ou social. A
idéia de que se deveria cuidar de si porque se é alguém que,
por status, está destinado à política, e a fim de poder, com
efeito, governar os outros corno convém, não mais aparecerá
ou, pelo menos, será muito postergada (precisaremos voltar
a isto para um pouco mais de detalhes). Prática incondicio-
nada, é verdade, mas prática que, de fato, era exercida sem-
pre em formas exclusivas. Com efeito, somente alguns pou-
cos podiam ter acesso a esta prática de si ou, em todo caso,
somente alguns podiam levá-la à sua meta. E a meta da prá-
tica de si é o eu. Somente alguns são capazes de si, muito
embora a prática de si seja um princípio dirigido a todos. E
duas eram as formas de exclusão, de rarefação por assim dizer,
relativamente à incondicionalidade do princípio, a saber:
... Ouve-se apenas: ainda que a palavra paidda LI está na expe-
riência individual [...] finalmente a cultura.
~
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 157
ora o pertencimento a um grupo fechado - este era o caso,
em geral, dos movimentos religiosos -, ora a capacidade de
praticar o otium, a skholé, o ócio cultivado, o que represen-
tava uma segregação de tipo mais econômico e social. Em
síntese, um fechamento em torno do grupo religioso ou a
segregação pela cultura. Estas eram as duas grandes formas
a partir das quais se definiam ou se forneciam os instrumen-
tos para que certos indivíduos, e somente eles, pudessem
aceder pela prática de si ao status pleno e inteiro de sujeit't. Já
lhes indiquei, ademais, que estes dois princípios não eram
representados ou não atuavam em estado puro, mas sem-
pre com certa combinação mútua: praticamente, os grupos
religiosos implicavam sempre alguma forma de atividade
cultural- e por vezes até muito elevada como no grupo dos
Terapeutas descrito por Fílon de Alexandria - e, inversamen-
te, na seleção por assim dizer social, pela cultura, havia ele-
mentos de constituição de um grupo com religiosidade mais
ou menos intensa corno, por exemplo, entre os pitagóricos.
De qualquer maneira, resulta que, doravante, a relação con-
sigo aparece como o objetivo da prática de si. Este objetivo
é a meta terminal da vida, mas, ao mesmo tempo, urna for-
ma rara de existência. Meta terminal da vida para todos os
homens, forma rara de existência para alguns e somente al-
guns: temos aí, se quisermos, a forma vazia daquela grande
categoria trans-histórica que é a categoria da salvação. Esta
forma vazia da salvação aparece, como vemos, no interior
da cultura antiga, seguramente fazendo eco, em correlação
ou em ligação - o que, com certeza, será preciso melhor de-
finir - com os movimentos religiosos, mas é preciso dizer
que, em certa medida, também aparece por si mesma, para
si mesma, constituindo não apenas um fenômeno ou um
aspecto do pensamento religioso ou da experiência religiosa.
É preciso ver agora qual conteúdo será fornecido pela filo-
sofia antiga ou pelo pensamento antigo a esta forma vazia
da salvação. ~
Antes disto porém, gostaria de colocar um problema
prévio que é a questão do Outro ou de outrem, questão da
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158 A HERMENEUTICA DO SUJEITO
relação com o outro, entendendo-o como mediador entre
esta forma da salvação e o conteúdo que se lhe há de for-
necer. Ésobre isto que hoje gostaria de me deter: o problema
do outro enquanto mediador indispensável entre aquela for-
ma que procurei analisar na última aula e o conteúdo que
pretendo analisar na próxima. O outro ou outrem é indis-
pensável na prática de si a fim de que a forma que define
esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja
porele efetivamente preenchida. Para que a prática de si al-
cance o eu por ela visado, o outro é indispensável. Esta é a
fórmula geral. E é o que precisamos agora analisar um pou-
co mais. A título de indicativo, tomemos a situação no seu
conjunto, tal como se apresenta, quer no Alcibíades, quer de
modo mais geral, nos diálogos socrático-platônicos. Através
dos diferentes personagens - positiva ou negativamente va-
lorizados, pouco importa - que aparecem nestes diálogos,
podemos facilmente reconhecer três tipos de mestria, três
tipos de relação com o outro enquanto indispensável à for-
mação do jovem. Primeiramente, a mestria de exemplo. O ou-
tro é um modelo de comportamento, modelo transmitido e
proposto ao mais jovem e indispensável à sua formação.
Este exemplo pode ser transmitido pela tradição: são os he-
róis, os grandes homens que se aprende a conhecer através
das narrativas, das epopéias, etc. A mestria de exemplo é tam-
bém assegurada pela presença dos prestigiados ancestrais,
dos gloriosos anciãos da cidade. Esta mestria de exemplo é
ainda assegurada, de maneira mais próxima, pelos enamo-
rados que, em tomo do jovem rapaz, propõem-lhe - devem
ou pelo menos deveriam propor-lhe - um modelo de com-
portamento. O segundo tipo é a mestria de competência, ou
seja, a simples transmissão de conhecimentos, princípios, .
aptidões, habilidades, etc. aos mais jovens. Finalmente, ter-
ceiro tipo de mestria: é a mestria socrática, sem dúvida, mes-
tria do embaraço e da descoberta, exercida através do diá-
logo. O que se deve observar, creio, é que estas três mestrias
se assentam todas sobre um jogo entre ignorância e memó-
ria. O problema, nesta mestria, está em como fazer para que
;1
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 159
o jovem saia de sua ignorância. Ele precisa ter sob os olhos
exemplos que possa respeitar. Tem necessidade de adquirir
as técnicas, as habilidades, os princípios, os conhecimentos
que lhe permitirão viver como convém. Tem necessidade de
saber - e é isto o que se produz no caso da mestria socrática
- que não sabe e, ao mesmo tempo, que sabe mais do que
não sabe. Estas mestrias são movidas pela ignorância e pela
memória, na medida em que se trata, quer de memorizar
um modelo, quer de memorizar e aprender uma habilidade
ou familiarizar-se com ela, quer ainda de descobrir que o
saber que nos falta é afinal simplesmente encontrado na pró-
pria memória e que, por conseqüência, se é verdade que não
sabíamos que não sabíamos, é também verdade que não sa-
bíamos que sabíamos. Pouco importam as diferenças entre
estas três categorias de mestria. Deixemos de lado a espe-
cificidade, a Singularidade da mestria de tipo socrático e o
papel principal que pode ter desempenhado em relação às
outras duas. Creio que todas, a de Sócrates e as outras duas,
têm ao menos isto em comum, a saber, que se trata sempre
de uma questão de ignorância e de memória, sendo a me-
mória, precisamente, o ql'e permite passar da ignorância à
não-ignorância, da ignorância ao saber, desde que se en-
tenda que a ignorância por si só não é capaz de sair dela mes-
ma. A mestria socrática é interessante na medida em que o
papel de Sócrates consiste em mostrar que a ignorância, de
fato, ignora que sabe, portanto, que até certo ponto o saber
pode vir a sair da própria ignorância. Todavia, o fato da exis-
tência de Sócrates e a necessidade do questionamento de
Sócrates provam que, não obstante, este movimento não pode
ser feito sem o outro.
Na prática de si que pretendo analisar, tal como apare-
ce bem mais tarde, durante o período helenístico e romano,
no começo do Império, a relação ao outro é tão necessária
quanto na época clássica que acabo de evocar, mas, eviden-
temente, sob uma forma inteiramente diferente. A necessi-
dade do outro funda-se, ainda e sempre, e até certo ponto,
no fato da ignorância. Mas funda-se principalmente em ou-
I
.J
92. 160 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
tros elementos de que lhes falei na última aula: essencial-
mente no fato de que o sujeito é menos ignorante do que
malformado, ou melhor, deformado, vicioso, preso a maus
hábitos. Funda-se, sobretudo, no fato de que o indivíduo,
mesmo na origem, mesmo no momento de seu nascimen-
to, mesmo quando estava no ventre da mãe, como diz Sê-
neca, jamais teve com a nahlreza a relação de vontade ra-
cional que caracteriza a ação moralmente reta e o sujeito
moralmente válido1
Conseqüentemente, não é para um sa-
ber que substituirá sua ignorância que o sujeito deve ten-
der. O indivíduo deve tender para um status de sujeito que
ele jamais conheceu em momento algum de sua existência.
Há que substituir o não-sujeito pelo status de sujeito, defi-
nido pela plenitude da relação de si para consigo. Há que
constituir-se como sujeito e é nisto que o outro deve intervir.
Creio que aí se encontra um tema muito importante em
toda a história da prática de si e, de modo mais geral, da
subjetividade no mundo ocidental. Doravante, o mestre não
é mais o mestre de memória. Não é mais aquele que, sa-
bendo o que o outro não sabe, lho transmite. Nem mesmo
é aquele que, sabendo que O outro não sabe, sabe mostrar-lhe
como, na realidade, ele sabe o que não sabe. Não é mais nes-
te jogo que o mestre vai inscrever-se. Doravante, o mestre é
um operador na reforma do indivíduo e na formação do in-
divíduo como sujeito. É o mediador na relação do indivíduo
com sua constituição de sujeito. Pode-se dizer que, de uma
maneira ou de outra, todas as declarações dos filósofos, di-
retores de consciência, etc., dos séculos 1-11, dão testemunho
disto. Tomemos, por exemplo, um fragmento de Musonius
(na edição Hense das Oeuvres de Musonius, um fragmento 23)
em que faz uma afirmação muito interessante. Diz ele que
quando se trata de aprender alguma coisa que é da ordem
do conhecimento ou das artes (tékhnai), tem-se sempre ne-
cessidade de um treino, tem-se sempre necessidade de um
mestre. E contudo, nestes domínios (conhecimentos, ciên-
cias, artes), não se adquirem maus hábitos. Apenas se ignora.
Pois bem, mesmo a partir deste status de ignorância, tem-se
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 161
necessidade de ser treinado e tem-se necessidade de um
mestre. Ora, diz ele, quando se tratar de transformar os maus
hábitos, de transformar a héxis, a maneira de ser do indiví-
duo, quando for preciso corrigir-se, afartiari então será ne-
cessário um mestre. Passar da ignorância ao saber implica o
mestre. Passar de um status a corrigir ao status corrigido
supõe, afortíori, um mestre. A ignorância não podia ser ope-
radora de saber e nisto, neste ponto, se fundava a mestria
nO pensamento clássico. Doravante, o sujeito não pode mais
ser operador de sua própria transformação e nisto se inscre-
ve agora a necessidade do mestre2.
A título de exemplo, gostaria de tomar uma pequena
passagem de Sêneca no começo da carta 52 a Lucílio. No
começo da carta, ele evoca brevemente a agitação do pen-
sarnento, a irresolução na qual muito naturalmente nos en-
contramos. E diz que esta agitação do pensamento, esta irre-
solução é, em suma, o que chamamos de stultitia'. A stultitia
é alguma coisa que a nada se fixa e que em nada se aprazo
Ora, diz ele, ninguém está suficientemente em boa saúde
(satis valet) para sair sozinho deste estado (sair: emergere). É
preciso que alguém lhe estenda a mão, e alguém que o puxe
para fora: oportent aliquis educaI:'. Pois bem, gostaria de reter
dois elementos desta passagem. Primeiramente, vemos que
é de boa e de má saúde que se trata nesta necessidade do
mestre ou da ajuda, logo, trata-se efetivamente de correção,
de retificação, de reformação. O que é este estado patológico,
este estado mórbido do qual se deve sair? A palavra foi pro-
nunciada: é a stultitia. Ora, sabemos que a descrição da stu/-
titia é uma espécie de lugar-comum na filosofia estóica,
principalmente a partir de Posidônioó
• De todo modo, acha-se
várias vezes descrita por Sêneca. Evocada no começo desta
carta 52, está descrita, principalmente, no começo do De tran-
quillitate'. Como sabemos, quando Serenus pede uma con-
sulta a Sêneca, este lhe diz: Bem, vou dar-te o diagnóstico
que te convém, vou dizer-te exatamente corno estás. Mas,
para bem fazer-te comprender como estás, vou dar-te pri-
meiro a descrição do pior estado em que se poderia estar,
Instituto de Psicologia - UFRGS
Biblioteca ---
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93. 162 A HERMEN!UTlCA DO SUJEITO
que é, na verdade, o estado no qual se acha quem não co-
meçou ainda o percurso da filosofia nem o trabalho da prá-'
tica de si'. Quem não teve ainda cuidados consigo encon-
tra-se neste estado de stultitia. Portanto, a stu/titia é, se qui-
sermos, o outro pólo, em relação à prática de si. A prática de
si tem que lidar - como matéria primeira, por assim dizer -
com a stultitia e seu objetivo é dela sair. Ora, o que é a stul-
titia? O stultus é aquele que não tem cuidado consigo mesmo.
Como se caracteriza o stultus? Referindo-nos particular-
mente àquele texto do começo do De tranquillitate', pode-
mos dizer que o stultus é, antes do mais, aquele que está à
mercê de todos os ventos, aberto ao mundo exterior, ou seja,
aquele que deixa entrar no seu espírito todas as representa-
ções que o mundo exterior lhe pode oferecer. Ele aceita es-
tas representações sem as examinarf'sem saber analisar o
que elas representam. O stultus está aberto ao mundo exte-
rior na I]1edida em que deixa estas representações de certo
modo misturar-se no interior de seu próprio espírito - com
suas paixões, seus desejos, sua ambição, seus hábitos de pen-
samento, suas ilusões, etc. - de maneira que o stultus é aque-
le que está assim à mercê de todos os ventos das represen-
tações exteriores e que, depois que elas entraram em seu
espírito, não é capaz de fazer a separação, a discnminatio
entre o conteúdo destas representações e os elementos que
chamaríamos, por assim dizer, subjetivos, que acabam por
misturar-se com ele'. Este é o primeiro caráter do stultus. Por
outro lado e em conseqüência, o stultus é aquele que está
disperso no tempo: não somente aberto à pluralidade do
mundo exterior, como também disperso no tempo. O stul-
tus é alguém que de nada se lembra, que deixa a vida correr,
que não tenta reconduzi-la a uma unidade pela rememori-
zação do que merece ser memorizado, e que não [dirige] sua
atenção, seu querer, em direção a uma meta precisa e bem
determinada. O stultus deixa a vida correr, muda continua-
mente de opinião. Sua vida, sua existência passa, portanto,
sem memória nem vontade. Por isto, no stultus, a perpétua
mudança de modo de vida. Lembremos um texto de Sêneca
que evoquei na última aula, em que ele afirma: no fundo,
7
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 163
naça é mais nocivo que mudar de modo de vida conforme
a idade, ter determinado modo de vida quando se é adoles-
cente, outro quando adulto, um terceiro quando velholO
• Na
realidade, é preciso fazer tender a vida o mais rapidamente
possível para seu objetivo, que é a completude de si na ve-
lhice. Em suma, dizia ele, apressemo-nos para ser velho,
já que a velhice constitui o ponto de polarização que permi-
te fazer tender a vida a uma só unidade. Com o stultus é tudo
ao contrário. O stultus não pensa na velhice, não pensa na
temporalidade da própria vida a fim de ser polarizada na
consumação de si na velhice. Muda de vida continuamen-
te. Então, muito pior que a escolha de um modo de vida di-
ferente para cada idade, ele menciona aqueles que mudam
de modo de vida todos os dias e vêem chegar a velhice sem
nela ter pensado sequer um instante. Esta é uma passagem
importante e encontra-se no começo do De tranquillitatel1
E então a conseqüência - conseqüência e princípio ao mes-
mo tempo - desta abertura às representações que vêm do
mundo exterior e desta dispersão no tempo é que o indiví-
duo stultus não é capaz de querer como convém. E o que é
querer como convém? Pois bem, há uma'passagem bem no
início da carta 52 que nos dirá o que é a vontade do stultus
e, por decorrência, o que deve ser a vontade daquele que sai
do estado de stultitia. A vontade do stultus é uma vontade
que não é livre. É uma vontade que não é vontade absolu-
ta. É uma vontade que não quer sempre. E o que significa
querer livremente? Significa que se quer sem que aquilo que
se quer tenha sido determinado por tal ou qual acontecimen-
to, por tal ou qual representação, por tal ou qual inclinação.
Querer livremente é querer sem qualquer determinação, en-
quanto o stultus é determinado, ao mesmo tempo, pelo que
vem do exterior e pelo que vem do interior. Em segundo lu-
gar, querer como convém é querer absolutamente (absolu-
te)12. Isto significa que o stultus quer várias coisas ao mesmo
tempo, coisas divergentes sem serem contraditórias. Ele não
quer uma e absolutamente só uma. O stultus quer algo e
ao mesmo tempo o lastima. É assim que ele quer a glória
e, ao mesmo tempo, lastima por não levar uma vida tranqüi-
/
94. 164 A HERMEmUTlCA DO SUJEITO
la, prazerosa, etc. Em terceiro lugar, o slultus é aquele que
quer, mas quer com inércia, quer com preguiça, sua vonta-
de se interrompe sem parar, muda de objetivo. Ele não quer
sempre. Querer livremente, querer absolutamente, querer
sempre: é isto o que caracteriza o estado oposto à stultitia.
Já a stultitia é esta vontade de algum modo limitada, relati-
va, fragmentária e cambiante.
Ora, qual é o objeto que se pode querer livremente, ab-
solutamente e sempre? Qual é o objeto para o qual a vonta-
de poderá ser polarizada de maneira tal que irá exercer-se
sem estar determinada por coisa alguma do exterior? Qual
é o objeto que a vontade poderá querer de modo absoluto,
isto é, sem querer nada mais? Qual é o objeto que a vontade
poderá, em quaisquer circunstâncias, querer sempre, sem
ter que modificar-se ao capricho das ocasiões e do tempo?
O objeto que se pode querer livremente, sem ter que levar
em conta as determinações exteriores, é evidentemente um
só: o eu. Que objeto é este que se pode querer absolutamen-
te, isto é, sem colocá-lo em relação com qualquer outro? O eu.
Que objeto é este que se pode sempre querer, sem ter que
trocá-lo conforme o decorrer do tempo ou o fluxo das oca-
siões? O eu. Portanto, qual é, de fato, a definição do stultus
que - sem extrapolar demasiado, creio - podemos extrair
destas descrições feitas por Sêneca? Essencialmente, o stul-
tus é aquele que não quer, não quer a si mesmo, não quer o
eu, aquele cuja vontade não está dirigida para o único ob-
jeto que se pode querer livremente, absolutamente e sempre,
o próprio eu. Entre a vontade e o eu há uma desconexão,
uma não-conexão, um não-pertencimento que é caracterís-
tico da stultitia, ao mesmo tempo seu efeito mais manifesto
e sua raiz mais profunda. Sair da stultitia será justamente
fazer com que se possa querer o eu, querer a si mesmo, ten-
der para si como o único objeto que se pode querer livre-
mente, absolutamente, sempre. Ora, vemos que a stultitia não
pode querer este objeto, pois afinal ela se caracteriza preci-
samente por não o querer.
~
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 165
Sair da stultitia, na medida mesma em que ela se define
por esta não-relação consigo, não pode ser feito pelo pró-
prio indivíduo. A constituição de si como objeto suscetível
de polarizar a vontade, de apresentar-se como objeto, fina-
lidade livre, absoluta e permanente da vontade, só pode fa-
zer-se por intermédio de outro. Entre o indivíduo stultus e o
indivíduo sapiens, é necessário o outro. Ou seja: entre o indi-
víduo que não quer seu próprio eu e o que conseguiu che-
gar a uma relação de domínio e posse de si, de prazer con-
sigo, que é, com efeito, o objetivo da sapientia, é preciso que·
o outro intervenha. Estruturalmente, digamos, a vontade ca-
racterística da stultitia não pode querer cuidar de si. Conse-
qüentemente, como vemos, o cuidado de si necessita da
presença, da inserção, da intervenção do outro. Isto, quanto
ao primeiro elemento que gostaria de ressaltar naquela pe-
quena passagem do começo da carta 52.
Além desta definição da stultitia e de sua relação com
a vontade, o segundo elemento que gostaria de ressaltar é
que, como vimos, o outro é necessário. Embora seu papel
não esteja muito nitidamente definido naquela passagem, é
claro porém que este outro não é um educador no sentido
tradicional do termo, alguém que ensinará verdades, dados
e princípios. Também é evidente que não se trata de um
mestre de memória. De modo algum o texto diz o que será
esta ação, mas as expressões empregadas (para assinalar esta
ação, ou melhor, para indicá-la com alguma distância) são
características. Há as expressões porrigere manum e oportet
educat13 Perdoem-me um pouco de gramática: claro que edu-
cat é um imperativo. Logo, não se trata de educare, mas de
edúcere: estender a mão, fazer sair, conduzir para fora. Ve-
mos pois que de modo algum é um trabalho de instrução
ou de educação no sentido tradicional do termo, de trans-
missão de um saber teórico ou uma habilidade. Mas é uma
certa ação, com efeito, que será operada sobre o indivíduo,
indivíduo ao qual se estenderá a mão e que se fará sair do
estado, do status, do modo de vida, do modo de ser no qual
está [...]. É uma espécie de operação que incide sobre o
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95. L
166 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
modo de ser do próprio sujeito, não simplesmente a trans-
missão de um saber que pudesse ocupar o lugar ou ser o
substituto da ignorância.
A qúestão que então se coloca é a seguinte: qual é, pois,
a ação do outro que é necessária à constituição do sujeito
por ele mesmo? De que modo vem ela inscrever-se como
elemento indispensável no cuidado de si? O que é, por as-
sim dizer, esta mão estendida, estaedução que não é uma
educação, mas outra coisa ou uma coisa mais que educação?
Ora, podemos logo imaginar, o mediador que desde logo se
apresenta, o operador que vem aqui impor-se na relação ou
na edificação da relação do sujeito consigo mesmo, este me-
diador, este operador, seguramente o conhecemos. Ele mes-
mo se apresenta, impõe-se ruidosamente, proclama que é,
unicamente ele, capaz de realizar esta mediação e operat
esta passagem da stultitia à sapientia. Proclama ser o único
a fazer com que o indivíduo possa querer a si mesmo - e as-
sim atingir finalmente asi próprio, exercer soberania sobre
si e, nesta relação, encontrar a plenitude da sua felicidade.
O operador que se apresenta é, com certeza, o filósofo. É o
filósofo pois, este operador. Esta é uma idéia que'podemos
encontrar em todas as correntes filosóficas, quaisquer que
sejam. Entre os epicuristas: o próprio Epicuro dizia que so-
mente o filósofo é capaz de dirigir os outros. Outro texto
- e encontraríamos dezenas - entre os estóicos, o de Muso-
nius: O filósofo é o hegemón (o guia) de todos os homens,
no que conceme às coisas que convêm à sua natureza15. E
alcançamos certamente o extremo com Díon de Prusa, este
antigo retórico tão hostil aos filósofos, convertido à filosofia
após ter levado uma vída de cínico e apresentando no seu
pensamento alguns traços muito característicos da filosofia
cínica. Díon de Prusa, [na] vírada do século I para o 11, afir-
ma: é junto aos filósofos que se encontra todo conselho so-
bre o que convém fazer; é consultando o filósofo que se
pode determinar se se deve ou não casar, participar da vída
política, estabelecer a realeza ou a democracia, ou outra for-
ma qualquer de constituição!6Vemos como, nesta definição
ç
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 167
de DíorY de Prusa, não é simplesmente a relação a si que
compete ao filósofo: é a existência inteira dos indivíduos. É
aos filósofos que precisamos perguntar como devemos nos
conduzir, e são os filósofos que dizem não somente como
devemos nos conduzir, mas também como devemos con-
duzir os outros homens, porquanto são eles que dizem qual
a constituição a ser adotada na cidade, se é melhor uma
monarquia que uma democracia, etc. Portanto, o filósofo se
apresenta, ruidosamente, como o único capaz de governar
os homens, de governar os que governam os homens e de
constituir assim uma prática geral do governo em todos os
graus possíveis: governo de si, governo dos outros. É quém
governa os que querem governar a si mesmos e é quem go-
verna os que querem governar os outros. Ai se acha, creio,
o grande ponto essencial de divergência entre a filosofia e a
retórica tal como eclode e se manifesta naquela época!'. A re-
tórica é o inventário e a análise dos meios pelos quais pode-
se agir sobre os outros mediante o ,discurso. A filosofia é o
conjunto de princípios e de práticas que se pode ter à pró-
pria disposição ou colocar à disposição dos outros, para to-
mar cuidados, como convém, de si mesmo ou dos outros.
Ora, concreta e praticamente, de que modo os filósofos, de
que modo a filosofia articula a necessidade de sua própria
presença com a constituição, o desel1volvimento e a organi-
zação, no indivíduo, da prática que ele faz de si próprio?
Que instrumento ela propõe? Ou melhor, através de quais
mediações institucionais pretende ela que o filósofo, na sua
existência, na sua prática, no seu discurso, nos conselhos que
dará, permitirá aos que o escutam fazer a prática de si mes-
mos, cuidar de si e alcançar enfim aquilo que lhes é propos-
to como objeto e como meta, e que são eles próprios?
Creio que há duas grandes formas institucionais que
podemos rapidamente examinar. A forma, se assim quiser-
mos, de tipo helênico e a forma de tipo romano. A forma
helênica, bem entendido, é a escola, a skholé. A escola pode
ter um caráter fechado, implicando a existência comunitária
dos indivíduos. É o caso, por exemplo, das escolas pitagóri-
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96. 168 A HERMEmUTlCA DO SUJEITO
cas. Também era o caso das escolas epicuristas. Nestas, assim
como, de resto, nas pitagóricas, a direção espiritual tinha
um grande papel. Alguns comentadores - particularmente
De Witt, em uma série de artigos consagrados às escolas
epicuristas19
- afirmam que a escola epicurista era organizada
segundo uma hierarquia muito complexa e rígida, contan-
do com uma série de indivíduos, o primeiro dos quais era,
sem dúvida, o sábio, o único que jamais tivera necessidade
de diretor: o próprio Epicuro. Epicuro é o homem divino (o
thefos anér) cuja singularidade - e singularidade sem nenhu-
ma exceção - consiste em que ele e somente ele foi capaz
de sair da não-sabedoria e de consegui-lo sozinho. Afora
este sophós, porém, todos os outros necessitaram de direto-
res, e De Witt propõe uma hierarquia: os philósophoi, os philó-
logoi, os kathegetaí, os synétheis, os kataskeuazómenoi, etc.20,
que teriam ocupado na escola posições e funções particula-
res' havendo, para cada qual destas posições e valores, um
papel particular na prática da direção (alguns só dirigindo
grupos muito amplos, outros, ao contrário, tendo o direito de
praticar a direção individual e de guiar os indivíduos quando
já estivessem suficientemente formados, no caminho da-
quela prática de si que é'indispensável para fazer chegar à
felicidade buscada). De fato, parece que esta hierarquia, pro-
posta por pessoas como De Witt, não corresponde inteira-
mente à realidade. Uma série de críticas foi feita a esta tese.
Se quiserem, remetam-se ao interessante volume dos coló-
quios da associação Guillaume Budé que é consagrado ao
epicurismo grego e romano21 .
Sem dúvida pois, devemos estar bem menos seguros
que De Witt a propósito da estrutura hierárquica fechada e
fortemente institucionalizada que ele apresenta. Da prática
da direção de consciência na escola [epicurista] podemos re-
ter alguns aspectos. Primeiramente, algo que é atestado por
um texto importante - ao qual deveremos retomar - escrito
por Filodemo22
(epicurista que viveu em Roma, foi conse-
lheiro de Lucius Piso e escreveu um texto do qual infelizmen-
te só se conhecem fragmentos, chamado Parrhesía - noção
ç
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 169
a que logo voltaremos). Filodemo mostra bem que na esco-
la epicurista era imprescindível que cada qual tivesse um
hegemón, um guia, um diretor que lhe assegurasse a direção
individual. Em segundo lugar, ainda a partir do texto de Fi-
lodemo, esta direção individual era organizada em tomo de
dois princípios ou a eles devia obedecer. Ela não podia fa-
zer-se sem que houvesse entre os pares, o diretor e o diri-
gido, uma intensa relação afetiva, uma relação de amizade.
E esta direção requeria certa qualidade, na verdade, uma cer-
ta maneira de dizer, uma certa, digamos assim, ética da
palavra, que buscarei analisar na próxima hora e que se
chama, justamente, parrhesía23 Parrhesía é a abertura do co-
ração, é a necessidade, entre os pares, de nada esconder um
ao outro do que pensam e se falar francamente. Noção, re-
pito, a ser elaborada, mas que, sem dúvida, foi para os epi-
curistas, junto com a de amizade, uma das condições, um
dos princípios éticos fundamentais da direção. Há outro as-
pecto de que podemos igualmente estar seguros, a partir de
um texto de Sêneca. Na mesma carta 52 que comentei há
pouco, logo em seguida à que estive analisando, há uma
passagem referente aos epicuristas. Diz ele que, para os epi-
curistas, havia, no fundo, duas categorias de indivíduos: aque-
les para os quais basta ser guiados, pois não encontrarão di-
ficuldades interiores à direção que lhes é proposta; e aque-
les que, por causa de uma certa malignidade de natureza, é
preciso puxar à força, empurrar para fora do estado em que
estão. Sêneca acrescenta Ce isto é interessante) que, entre
estas duas categorias de discípulos ou de dirigidos, havia,
para os epicuristas, não uma diferença de valor nem uma
diferença de qualidade - no fundo, uns não eram melhores
nem ocupavam uma posição mais avançada que os outros -,
mas uma diferença que era essencialmente de técnica: não se
podia dirigir uns e outros de igual modo, entendendo-se que,
uma vez concluído o trabalho de direção, a virtude a alcançar
seria do mesmo tipo, do mesmo nível em qualquer caso24
•
Entre os estóicos, parece que a prática da direção de
consciência estava menos ligada à existência de um grupo
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97. 170 A HERMENEUTICA DO SUJEITO
um pouco fechado levando uma existência comunitária e,
em particular, a exigência da amizade aparece de modo bem
menos claro. Segundo os textos de Epicteto relatados por
Arrianus, pode-se fazer uma idéia do que teria sido a escola
de Epicteto em Nicópolis25• Desde logo, parece que não era
realmente um lugar de convivia mas simplesmente de reu-
niões, reuniões muito freqüentes e muito exigentes. No co-
lóquio 8 do livro II há uma pequena anotação sobre os alu-
nos que são enviados à cidade para compras e incumbências,
o que implica, apesar de tudo, apesar da não-partilha da
existência, uma certa forma, diria eu, de intemato26. Os alu-
nos, sem dúvida, eram instados a permanecer durante todo
o dia em um lugar que ficava certamente na cidade, mas que
não se comunicava ou onde não era permitido comunicar-se
muito facilmente com a vida cotidiana. Neste lugar havia
várias categorias de alunos. Primeiro, os alunos regulares.
Estes, por sua vez, se dividiam em duas categorias. Havia
aqueles que para lá se dirigiam a fim de completar, de certo
modo, sua formação, antes de entrar na vida política, na vida
civil [...*]. [Epicteto] evoca também o momento em que eles
terão que exercer cargos, se apresentarão ao Imperador, te-
rão que escolher entre a lisonja e a sinceridade, terão tam-
bém que enfrentar as condenações.Temos, portanto, alunos
que, de certo modo, vêm para um estágio, estágio preambu-
lar à vida. É deste gênero, muito provavelmente, o caso apre-
sentado no colóquio 14 do livro 11, de um romano que chega
com seu jovem filho perante Epicteto. E logo Epicteto expli-
ca como concebe a filosofia, qual é, a seu ver, a tarefa do filó-
sofo e o que é o ensino da filosofia. De certo modo, faz ao
pai uma exposição do tipo de formação que está prestes a dar
ao filho. Portanto, alunos, por assim dizer, estagiários. Há tam-
bém alunos regulares que para lá se dirigem não apenas
para completar sua formação e cultura, mas porque querem
.., Ouve-se apenas: ,.. que seriam realmente jovens, digamos [...]
vocês, ricos.
ç
AULA DE 27 DEJANEIRO DE 1982 171
tomar-se filósofos. É manifestamente a esta categoria de
alunos que se dirige o colóquio 22 do livro 11, famoso coló-
quio sobre o retrato do cínico. Afirma-se que um dosgnórimoi
(alunos, discípulos de Epicteto) coloca a questão, ou me-
lhor, expõe seu desejo de passar para a vida cínica, isto é,
de se devotar totalmente à filosofia e a esta forma extrema,
militante, da filosofia em que consistia o cinismo, a saber:
partir, partir com a veste do filósofo e, de cidade em cidade,
interpelar as pessoas, sustentar discursos, apresentar diatri-
bes, oferecer um ensinamento, sacudir a inércia filosófica
do público, etc. É a propósito deste desejo de um de seus
alunos que Epicteto faz o famoso retrato da vida cínica, re-
trato em que a vida cínica é muito positivamente valorizada,
ao mesmo tempo em que se mostra todas as suas dificulda-
des e o seu necessário ascetismo.
Temos porém outras passagens que também se repor-
tam muito manifestamente a esta formação do futuro filó-
sofo profissional. Nesta medida, a escola de Epicteto se
apresenta como uma espécie de faculdade para filósofos,
onde se lhes explica como deverão atuar. Muito interessante
é uma passagem no colóquio 26 do livro 11: trata-se de um
pequeno capítulo que se divide em duas partes, onde en-
contramos a reformulação, ligeiramente modificada, da velha
tese socrática freqüentemente referida por Epicteto, a saber,
que, quando se faz o mal, comete-se uma falta, uma falta de
raciocínio, uma falta íntelectual29• Quando se faz o mal, diz ele,
é que, na realidade houve uma mákhe: uma batalha, um com-
baté em quem o cometeu30
. E este combate consiste em que,
por um lado, quem faz o mal é igual a todo mundo, busca a
utilidade, mas não se dá conta de que, na realidade, aquilo
que faz, longe de ser útil, é nocivo. Um ladrão, por exemplo,
é igual a todo mundo, busca sua utilidade. Não vê que rou-
bar é nocivo. Então, diz Epicteto - em uma expressão que
me parece interessante e que devemos realçar -, quando pois,
um individuo comete um erro como este é porque reputa
como verdadeira urna coisa que não o é, sendo necessário fa-
zer com que compreenda a pikrà anánke, a amarga necessi-
.:::.,
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98. 172 A HERMOOUTlCA DO SUJEITO
dade de renunciar àquilo que reputava verdadeiro31
. Como
fazer aparecer esta amarga necessidade, ou melhor, impô-la
a quem fez este erro e tem esta ilusão? Pois bem, é preciso
mostrar-lhe que, na realidade, ele faz o que não quer e não faz
o que quer. Faz o que não quer, isto é, faz algo nocivo. Não
faz o que quer, isto é, não faz a coisa útil que acreditava fa-
zer. E quem for capaz de mostrar, de fazer com que o outro,
Oque ele dirige, compreenda em que consiste esta mákhe,
este combate entre o que se faz sem querer e o que não se
faz quando se quer, é deinàs en lógo (é verdadeiramente for-
te, hábil na arte do discurso). É protreptikós e elenktikós. São
dois termos inteiramente técnicos. Protreptikós, que é capaz de
dar um ensinamento protréptico, isto é, um ensinamento que
consegue mover o espírito na boa direção. E elenktikós, isto
é, bom na arte da discussão, do debate intelectual que per-
mite distinguir a verdade do erro, refutar o erro e substituí-
lo por uma proposição verdadeira32. O indivíduo que é ca-
paz disto, que tem portanto estas duas qualidades típicas de
quem ensina - ou, dizendo mais exatamente, as duas gran-
des qualidade do filósofo, refutar e mover o espírito do ou-
tro _, conseguirá transformar a atitude daquele que estava
enganado. Pois, diz ele, a alma é como uma balança, incli-
na-se para um ou outro lado. Queiramos ou não, inclina-se
conforme a verdade que é levada a reconhecer. E, quando
sabemos assim [manobrar] o combate (a mákhe) que se des-
dobra no espírito do outro, quando, por uma suficiente arte
do discurso, somos capazes de conduzir a ação que consis-
te em refutar a verdade em que ele crê e mover seu espíri-
to para o bom lado, neste momento então somos verdadei-
ramente um filósofo: conseguiremos dirigir o outro comO
convém. Em contrapartida, se não o conseguirmos, não de-
vemos crer que faltoso é aquele que dirigimos, mas nós
próprios. Deveremos acusar a nós mesmos, não aqueles
que não conseguimos convencef33. Temos aí, por assim di-
zer, um belo exemplo indicativo de um ensinamento ende-
reçado aOS que, por sua vez, irão ensinar, ou antes dirigir as
consciências.
1
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 173
Portanto, primeita categoria de alunos: os que estão em
estágio. Segunda, os que lá estão para se tomar filósofos. E
depois, bem entendido, há as pessoas que estão de passa-
gem, pessoas que, nas diferentes cenas evocadas nos Diálo-
gos de Arrianus, desempenham papéis muito interessantes
a serem observados. Por exemplo, no colóquio 11 do livro I,
vemos passar no auditório de Epicteto um homem que
exerce um cargo, parece ser um notável da cidade ou das
redondezas. Ele tem aborrecimentos familiares: sua filha
está doente. Nesta oportunidade, Epicteto explica-lhe o va-
lor e a significação das relações familiares. Explica-lhe, ao
mesmo tempo, que devemos nos apegar não às coisas que
não podemos controlar ou dominar, mas à representação
que fazemos das coisas, pois é ela que efetivamente pode-
mos controlar e dominar, é dela que podemos nos servir
(khrêsthai)34. E o colóquio termina com uma observação im-
portante: para sermos assim capazes de examinar nossas
representações, é preciso que nos tomemos skholastikós (isto
é, que entremos na escola)35 Isto mostra bem que, mesmo
a um homem já instalado na vida, já dotado de cargos e
tendo uma familia, Epicteto propõe que venha fazer um tem-
po de estágio e de formação filosófica na escola. Há tam-
bém o colóquio 4 do livro 11, em que aparece um philólogos
- e aí todas as representações dos que estão do lado da re-
tórica, o que é importante nestes colóquios - que é adúlte-
ro e estabelece que as mulheres, por natureza, devem ser de
todos, e que, por conseguinte, o que ele faz não é realmente
um adultério. Diferentemente do precedente - o que sentia
para com a filha doente um apego sobre cuja natureza e
efeitos se interrogava, e que tinha o direito de tomar-se skho-
lastikós -, o philólogos adúltero, ao contrário, é rejeitado e não
deve mais apresentar-se à escola36
. Há também persona-
gens que chegam porque têm afazeres e vêm somente para
submetê-los a Epicteto. Em alguns casos, Epicteto transfor-
mará este pedido de consulta utilitária, deslocando a ques-
tão, dizendo: não, nada tenho a responder, não sou como o
sapateiro que conserta calçados; se querem me consultar,
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99. 174 A HERMEmUTICA DO SUJEITO
interroguem-me sobre aquilo de que sou capaz, isto é, sobre
o que conc~me à vida, às escolhas de existência e às repre-
sentações. E o que encontramos no colóquio 9 do livro III37.
Ternos também críticos, filósofos propriamente, corno, por
exemplo, quando no colóquio 7 do livro I1I, à chegada de
um inspetor das cidades, urna espécie de procurador fiscal,
que é epicurista, Epicteto levanta algumas interrogações so-
bre as obrigações sociais que os epicuristas deveriam recu-
sar muito embora as praticassem, corno era o caso daquele
indivíduo38
• É nesta contradição que ele desenvolverá urna
crítica do epicurismo em geral. Assim, nesta forma escolar
muito nitidamente afirmada em tomo de Epicteto, ternos, na
realidade, urna série de modos diversos de direções, de for-
mulações da própria arte de dirigir e de modalidades mui-
to variadas da direção.
Em confronto com esta forma, por assim dizer helênica
ou escolar, cujo mais aprimorado exemplo sem dúvida nos
é dado por Epicteto, temos a forma que chamarei de roma-
na. A forma romana é a do conselheiro privado. Denommo-a
romana na medida em que, manifestamente, não deriva da
estrutura da escola, mas integra-se às relações tipicamente
romanas da clientela, a saber, uma espécie de dependência
semicontratual que implica, entre dois indivíduos cujo sta-
tus é sempre desigual, uma troca dissimétrica de serviços.
Nesta medida, pode-se dizer que o conselheiro privado re-
presenta uma fórmula quase inversa à da escola. O filósofo
está na escola: vai-se até ele e se o solicita. Na fórmula do
conselheiro privado, ao contrário, tem-se a grande família
aristocrática, o chefe de família, o grande responsável polí-
tico que acolhe em sua casa e faz residir junto de si um fi-
lósofo que lhe servirá de conselheiro. Há dezenas de exem-
plos disto na Roma republicana e imperial. Há pouco lhes
falei de Filodemo, este epicurista que desempenhou um pa-
pel importante junto a Lucius Piso39
. Temos Atenodoro, que
tem um papel junto a Augusto, [papel de] uma espécie de
capelão para coisas culturais40 . Temos Demetrius, o cínico4
1,
que, pouco mais tarde, desempenha junto a Thrasea Paetus
4
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 175
e depois a Helvidius Priscus42
um papel politicamente im-
portante, sobre o qual precisamos retomar. Demetrius, por
exemplo, acompanhou Thrasea Paetus durante toda uma
parte de sua existência, inclusive quando este, obrigado a
suicidar-se, encenou seu suicídio - como aliás, muitas pes-
soas naquela época - de maneira muito solene. Chamou para
perto de si os que lhe eram próximos, sua família, etc. De-
pois, afastou todos. O último com quem ficou no momen-
to mesmo em que estava mais perto da morte, o único que
manteve ao seu lado, foi precisamente Demetrius. E, no mo-
mento em que o veneno fazia efeito e ele começava a perder
a consciência, voltou os olhos para Demetrius, que foi assim
a última figura que viu. As derradeiras palavras trocadas en-
tre Thrasea Paetus e Demetrius concemiam, bem entendi-
do, à morte, à imortalidade, à sobrevivência da alma, etc'3
(como vemos, reconstituição da morte de Sócrates, mas uma
morte em que Thrasea Paetus não estava cercado por um
grande número de discípulos; estava simplesmente acom-
panhado de seu único conselheiro).Vemos como este papel
de conselheiro não é O de preceptor, nem inteiramente o de
ainigo confidente. É antes o que se poderia chamar de con-
seheiro de existência, conselheiro de existência que dá pa-
recer.es sobre circunstâncias determinadas. É ele quem guia
e inicia aquele que, ao mesmo tempo, é seu patrão, seu qua-
se empregador e seu amigo, mas um amigo superior. Ini-
cia-o em uma forma particular de existência, pois não se é
filósofo em geral: ou se é estóico, ou se é epicurista, ou pla-
tônico, ou peripatético, etc. Este conselheiro é também uma
espécie de agente cultural relativamente a todo um círculo
no qual introduz conhecimentos teóricos e esquemas práticos
de existência, como também escolhas políticas, particular-
mente as grandes escolhas - no começo do Império - entre
o que seria o despotismo de tipo monárquico, a monarquia
esclarecida e moderada, a reivindicação republicana, incluin-
do também o problema da hereditariedade da monarquia _
tudo o que constituirá grandes objetos da discussão e das
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100. 176 AHERMENfUTlCA DO SUlillO
escolhas feitas por estes filósofos no seu papel de conselhei-
ros. Assim, eles serão encontrados por toda parte, misturados
à vida política e aos grandes debates, aos grandes conflitos,
aos assassinatos, às execuções e às revoltas que marcarão o
ambiente do século I, como serão reencontrados depois,
embora com papel mais apagado, a partir do começo do
século III quando a crise se reabrirá44
. Assim, à medida que
vemos desenvolver-se o personagem do filósofo, à medida
que vemos acentuar-se sua importància, vemos também que,
cada vez mais, ele perde sua função singular, irredutível, ex-
terior à vida cotidiana, à vida de todos os dias, à vida polí-
tica. Nós o vemos, ao contrário, integrar-se aos conselhos, a
dar pareceres. A prática vem imbricar-se com os problemas
essenciais postos aos individuos, de sorte que a profissão de
filósofo se desprofissionaliza na mesma medida em que se
tornamaisimportante*. Quanto mais se precisa de um con-
selheiro para si próprio, mais se precisa, nesta prática, de
recorrer ao Outro, mais se afirma, conseqüentemente, a ne-
cessidade da filosofia, mais também a função propriamente
filosófica do filósofo se esvairá e mais o filósofo aparecerá
como um conselheiro de existência que - a propósito de
tudo e de nada, a propósito da vida particular, dos compor-
tamentos familiares, como também dos comportamentos
políticos - fornecerá não os modelos gerais que Platão ou
Aristóteles, por exemplo, proporiam, mas conselhos, conse-
lhos de prudência, conselhos circunstanciais. Eles realmen-
te se integrarão ao modo de ser cotidiano. Isto nos condu-
zirá a algo de que gostaria de lhes falar, a saber: a prática da
direção de consciência, fora do campo profissional dos filóso-
fos, como forma de relação entre quaisquer indivíduos.
Bem, cinco minutos de descanso e retomaremos em
seguida.
... No manuscrito, após haver precisado que as formas que descre-
ve jamais são puras, Foucault cita dois outros exemplos de relações: De-
monax e Apollinius de Tyanei Musonius Rufus e Rubellius Plautus.
ç
NOTAS
1. Sobre a natureza primeira do vício, cf. cartas de Sêneca a
Lucilio, 50, 7; 90, 44; e 75, 16.
2. Não existe fragmento 23 de Musonius, mas 'tudo leva a crer
que Foucault remete aqui ao fragmento II, 3. Contudo, a argumen-
tação de Musonius não é exatamente a que Foucault reproduz.
Para Musonius, trata-se, antes, de estabelecer a universalidade das
disposições naturais para a virtude. Esta universalidade é estabele-
cida em comparação com as outras artes (állas tékhnas): no caso
destas, só ao especialista se censura o erro, ao passo que a perfei-
ção moral não é exigida somente ao filósofo, mas a todos: Nesta
hora, nos cuidados aos doentes, não se pede a mais ninguém se-
não ao médico que não incorra em erro, como no toque da lira não
se o pede a mais ninguém senão ao musicista, como no manejo do
leme não se o pede a mais ninguém senão ao piloto; na arte da
vida porém (en de tó bÍo) não se pede somente ao filósofo que não
incorra em erro, muito embora pareça ser o único a ter cuidados
com a virtude (epimeleísthai aretês), mas se o pede a todos igual-
mente (Deux prédicateurs dans l'Antiquité, Téles et Musonius, trad.
fr. e ed.A-I. Feslugiére, Paris,Vrin, 1978, p. 54). Então, a fim de es-
tabelecer a naturalidade da disposição à virtude, Musonius evoca
não tanto a necessidade de um mestre de virtude, que ele não torna
corno exemplo, mas a pretensão a poder abster-se de um mestre:
Pois, enfim, por que, pelos deuses, quando se trata de letras ou de
música, ou da arte da luta, ninguém que não tenha aprendido (me
~.
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178 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
mathón) diz que sabe, nem pretende possuir estas artes (ékhein tas
tékhnas) se não pode nomear um mestre (didáskalon) em cuja es-
cola as aprenderia, mas, quando se trata de virtude, cada qual pro-
fessa possuí-la? (id., p. 55). Há que se notar enfim que este mesmo
tema do caráter inato das noções morais e adquirido das compe-
tências técnicas é encontrado em Epicteto (cf. por exemplo, Entre-
tiens, 11, 11, 1-6).
3. Sénêque, Lettres à Lucilius, t. II, livro l, carta 52, ed. cit.,
pp.41-6.
4. Como, Lucílio, designar este impulso pelo qual, se tende-
mos para uma direção, somos arrastados para outra e impelidos
para o lado que desejamos evitar? Quem é este antagonista de nos-
sa alma, que nos impede de, uma vez por todas, querer? Vaguea-
mos entre resoluções diversas; não queremos com uma vontade
livre, absoluta (absolute), para sempre imóvel. 'É a desrazão (stulti-
tia), responde tu, para a qual nada existe de constante, nada satis-
faz por muito tempo'. Mas como, quando nos soltaremos de suas
amarras? Ninguém, por si mesmo, tem força para emergir das va-
gas (nemo perse satis valetut emergat). É preciso alguém que lhe es-
tenda a mão (aportet manum aliquis porrigat), alguém que o puxe
para a margem (aliquis educat) (id., carta 52, 1-2, pp. 41-2).
5. Cf. aula de 20 de janeiro, primeira hora, nota 54 (supra, pp.
130-1) sobre este autor (a partir de Posidônio, as funções irracionais
do hegemonikón se dão como irredutíveis às funções racionais).
6. Sénéque, De la tranquillité de l'âme, I (descrição, por Sere-
nus a Sêneca, do seu estado), trad. fr. R. Waltz, ed. dI., pp. 71-5.
7. Esta descrição se acha no capítulo lI, 6-15 (id., pp. 76-9).
8. Mais que descrever o estado de stuItitia unicamente a par-
tir do De tranquillitate, Foucault opera aqui como que uma síntese
das grandes análises da stultitia em toda a obra de Sêneca. Cf. so-
bre este tema, além dos dois textos citados por Foucault, as cartas
a Lucilio 1,3 (sobre a dispersão no tempo), 9, 22 (sobre o desgaste
de si), 13, 16 (sobre o destroçamento de uma vida constantemen-
te em partida com destino a si mesma), 37, 4 (sobre a permeabili-
dade às paixões).
9. O termo discriminario é objeto de uma análise por Foucault
na aula de 26 de março de 1980, consagrada a Cassiano (cf. as me-
táforas do moleiro, do centurião e do cambista): ele designa a ope-
ração de triagem das representações, após a prova, no quadro do
4
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 179
exame de consciência (cf. aula de 24--de fevereiro, primeira hora,
para uma apresentação destas técnicas).
10. Cf. a análise da carta 32, aula de 20 de janeiro, segunda
hora.
11. No capítulo IH encontramos a seguinte citação de Ateno-
doro: Quantas vezes um idoso, sob o peso dos anos, seria inca-
paz de provar que viveu muito tempo, se não pudesse invocar sua
idade! (Séneque, De la tranquillité de l'âme,!II, 8, p. 81). Mas Fou-
cault faz também referência a uma passagem do capítulo II: Acres-
centa aqueles que, virando e revirando como pessoas que não
conseguem dormir, tentam sucessivamente todas as posturas até
que o cansaço as faça encontrar o repouso: após terem cem vezes
modificado a base de sua existência, acabam por permanecer na
posição em que os apreende não a impaciência da mudança, mas
a velhice (id., II, 6, p. 76).
12. Cf. supra, nota 4, a citação de Sêneca.
13. Sénéque, Lettres à Lucilius, I. lI, livro V, carta 52, 2 (p. 42).
14. Sem dúvida, mais que o exemplo do próprio Epicuro, Fou-
cault quer aqui evocar a organização hierárquica das escolas epi-
curistas (cf., sobre este ponto, levantado mais adiante, o debate De
WittlGigante a propósito de fragmentos de Filoderno).
15. Fragmento XN: hegemón tais anthrópois esti tôn katà ph[;-
sin anthrópo prosekónton (C. Musonius Rufus, Reliquiae, ed. cit. [O.
HenseJ, p. 71).
16. Sobre a figura do filósofo-conselheiro em Díon de Frusa,
cf. discurso 22, Sur la paix et la guerre (Discourses, I. lI, trad. J. W.
Cohoon, ed. cit., pp. 296-8), assim como o discurso 67, Sur le phi-
losophe (id., I.V; pp.162-73) e o discurso 49 (id., UV; pp. 294-308).
17.Ver as descrições antigas mas decisivas de H. von Arnim,
Leben und Werke des Dia van Prosa. Mit einer Einleitung. Sophistik
Rhetorik, Philosophie in ihrem Kampf um die Jugendbildung, Berlim,
1898. Esta relação retórica/filosofia, tal como se problematiza na
época romana, foi objeto de uma tese de A. Michel, Rhétarique et
Philosophie chez Cicéron, Paris, PUF, 1960. Cf. também I' Hadot,
Philosophie, dialectique et rhétorique dans l'Antiquité, Studia
philosophica, 39, 1980, pp. 139-66. Para uma apresentação precisa e
geral da retórica, cf. F. Desbordes, La Rhétarique antique, Paris, Ha-
chette Supérieur, 1996.
18. Sobre a existência comunitária dos pitagóricos, cf. as des-
crições de Jâmblico (Viede Pythagore, Irad. fr. L. Brisson A.-Ph. Se-
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102. 180 A HERMEmUTlCA DO SUJEITO
gonds, ed. cil., parágrafos 71-110, pp. 40-63) e de Diógenes Laér-
cio (Vie et doetrines des philosophes illustres, VIII, 10, Irad. fr. s. dir.
M.-o. Goulet-Cazé, ed. cil., p. 949) e a aula de 13 de janeiro, primei-
ra hora, pp. 77-8, notas 6-8 (principalmente a nota 7, sobre a vida
das seitas pitagóricas).
19. Artigos retomados in N. W. De Wítt, Epicuros and his Phi-
losophy, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1954 (2. ed.
Wetsport, Conn., 1973).
20. N. W. De WItt, Organisation and procedure in Epicurean
groups, Cl11ssical Philnlogy, 31, 1936, p. 205 sq.; retomado in Epicurus...
21. Association Guillaume Budé, Actes du VIII Congrés, Paris, 5-
10 avri11968, Paris, Les Belles Lettres, 1970; cf. a critica de Gigante
à hierarquização de De Wítt, pp. 215-7.
22. Filodemo de Gadara, grego originário do Oriente-Próxi-
mo, dirige-se primeiramente a Atenas junto ao epicurista Zenão
de SídoTI, e depois a Roma nos anos setenta a.c., onde se torna
amigo, confidente e diretor de consciência de L. Calpurnius Piso
Caesonius, sogro de César e cônsul em 58 a.c. (sobre esta relação,
cf. Gigante, La Bibliotheque de Philodeme et l'épicurísme romaÍn, op.
eit., capo 1), antes de instalar-se definitivamente em Herculano na
Vila hoje chamada dos Papyri, propriedade de Lucius Piso, cuja
biblioteca encerrava numerosos e importantes textos epicuristas
(cf. id., capo lI).
23. Sobre a necessidade de um guia (denominado, de prefe-
rência, kathegetés), o princípio da amizade e do franco-falar entre
diretor e dirigido, cf. as análises do Feri parrhesías de Filodemo, por
Foucault, na aula de 10 de março, primeira hora.
24. Alguns, diz Epicuro, alcançaram a verdade sem que nin-
guém os assistisse; construíram seu próprio caminho. Estes são
honrados acima de todos, pois o impulso veio deles próprios, eles
se produziram com seus próprios meios. Outros, diz ele, têm ne-
cessidade de ajuda: não avançarão se alguém não caminhar à sua
frente, mas saberão seguir (Séneque, Lettres à LUCÍlius, t. li, livro
V, carta 52, 3, p. 42).
25. Nascido na Frígia, por volta do ano 50, escravo de Epafro-
dite (um liberto de Nero, amo violento, é freqüentemente posto
em cena nos Diálogos), antigo discípulo de Musonius Rufus, Epic-
teto, uma vez libertado, abre uma escola de filosofia em Roma an-
tes de sofrer, no começo dos anos noventa, as medidas de exclu-
são do imperador Domiciano perseguindo os filósofos da Itália. É
1
AULA DE 27 DEJANEIRO DE 1982 181
então que ele se estabelece na cidade-grega de Nicópolis (Epiro)
onde funda uma nova escola. Ali permanecerá até sua morte (por
volta de 125-130), malgrado as novas benesses de Adriano.
26. De resto, quando enviamos um jovem fora da escola para
os afazeres (epí tinas práxeis), por que tememos que se conduza
mal? (Épictéte, Entretiens, lI, 8, 15, ed. cil., p. 31).
27. Um dia em que um romano entrara com seu filho e es-
cutara uma das suas lições: 'Tal é, diz Epicteto, meu modo de en-
sino' (id., 14, 1, p. 54).
28. Um de seus discípulos (gnoríman), que parecia ter inclina-
ção para a profissão de Cínico, lhe perguntara: 'que espécie de ho-
mem deve ser o Cínico, e como se deve conceber esta profissão?'
(Entretiens, I1I, 22, 1, p. 70).
29. Cf., por exemplo, Entretiens, I, 28, 4-9, assim como II, 22,
36: ele será tolerante, condescendente, doce, indulgente, como se
diante de um ignorante que se extravia (p. 101).
30. Toda falta implica uma contradição (mákhen periékhei)
(Entretiens, lI, 26, 1, p. 117).
31. Uma dura necessidade (pikrà anánke) obriga quem se
apercebe deste erro a renunciar a ele, porém, enquanto assim não
lhe aparece, a ele adere como ao verdadeiro (id., 26, 3, p. 117).
32. Hábil para raciocinar (deinàs en lógo) ao mesmo tempo
em que sabe refutar (protreptikós) e convencer (elenktikós) é aquele
capaz de mostrar a cada um a contradição que é causa de sua fal-
ta (id, 26, 4, p. 117).
33. É que ele [Sócrates] sabia o que é que faz oscilar a alma
sensata: semelhante a uma balança, ela se inclinará, queiramos ou
não. Se à parte dominante da alma mostrares a contradição, a ela
renunciará. Mas, se não mostrares, acusa a ti mesmo, não àquele
que não conseguiste convencer (id., 26, 7, p. 118).
34. Portanto, retomou Epicteto, quando tiveres bem com-
preendido isto, então nada mais terás no coração, e tua única preo-
cupação será aprender a conhecer o critério do que é conforme à
natureza e, depois, dele servir-te (proskhrómenos) para julgar cada
caso particular (Entretiens, I, 11, 14-15, p. 46).
35. Vês pois que deves te fazer escolar (skholastikón se derge-
nésthat) e tornar-te este animal de que todo mundo ri, desde que,
não obstante, queiras empreender o exame de tuas próprias opi-
niões (id., 11, 39, p. 49).
Instituto de PSicologia - UFRGS
A Biblioteça ---
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182 A HERMEN!UTICA DO SUJEITO
36. Que queres que façamos de ti? Não há lugar algum onde
possamos te instalar(Entretiens, lI, 4, 7, p. 17).
37. Alguém se dirigia a Roma para um processo [...]. Vai a
Epicteto [...]: 'socorre-me neste assunto. - Não tenho regra algu-
ma a te dar a respeito. E tu mesmo, se vieste a mim com este pro-
pósito, então não foi como a um filósofo que vieste, mas como a
um comerciante de legumes, como a um sapateiro. - Então, para
qual intento os filósofos têm regras? - Para o seguinte: em qual-
quer circunstância, conservar e dirigir a parte dominante de nossa
alma em conformidade com a natureza' (Entretiens, III, 9, 1-11,
pp.34-5).
38. Vives em uma cidade do Império: deves exercer um car-
go, julgar segundo a justiça [...]. Busca princípios conformes a es-
tas maneiras de agir (id., 7, 20-22, pp. 29-30).
39 Cf. aula de 10 de março, primeira hora.
40. Atenodoro deTarso (por volta de 85-30 a.c.; é comumen-
te chamado filho de Sandon para distingui-lo de outro Ateno-
doro de Tarso que esteve durante muito tempo na direção da bi-
blioteca de Pérgamo), filósofo peripatético (supõe-se que freqüentou,
em Rodes, as aulas de Posidônio), foi o preceptor de Otávio (antes
que ele se tomasse Augusto). Cf. P. Grimal, Auguste et Athéno-
dare, Revue des études anciennes, 47, 1945, pp. 261-73; 48, 1946,
pp. 62-79 (retomado in Rome, la littérature etl'histoire, École françai-
sede Rome, Palais Famese, 1986, pp.1147-76). Cf. a retomada mais
elaborada deste mesmo exemplo na segunda hora desta aula.
41. Demetrius de Corinto, amigo de Sêneca e de Thrasea Pae-
tus, ficou famoso durante algum tempo por seus discursos contra
a monarquia (Calígula tentou em vão compliciá-Io com dinheiro,
cf. o relato de Sêneca in Des bienfaits,VIl, 11). Após a morte deThra-
sea ele se exila na Grécia, mas retoma a Roma no reinado de Ves-
pasiano. Juntamente com outros, foi por este último banido de
Roma, por volta de 71 (cf. a nota de M. Billerbeck in Dictionnaire
des philosophes antiques, t.!, ed. cit., pp. 622-3).
42. Thrasea Paetus é originário de Pádua. Ficou no Senado,
de 56 a 63, onde gozava de grande influência. Confederou em tor-
no de si a oposição republicana sob a bandeira espiritual do estoicis-
mo (escreve, inclusive, uma vida de Catão de Útica). Será obrigado
a cortar as próprias veias em 66, no reinado de Nero. Seu genro
Helvidius Priscus foi legado de legião em 51 e tribuno da plebe
em 56. Em 66, a condenação de seu sogro o obrigou a fugir de Roma.
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AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 183
Regressando do exI1io, no reinado de Galba, retomou uma atitude
irreverente e enalteceu os méritos da República. Depois, exilado
por Vespasiano em 74, Helvidius Priscus foi condenado à morte e
executado, apesar de uma contra-ordem imperial, tarde demais
obtida. Sobre estes desventurados opositores, cf. Dion Cassius, His-
toire romaine, trad. fr. E. Gros, Paris, Didot freres, 1867, livro 66
(cap. 12 e 13, pp. 302-7) e livro 67 (cap. 13, pp. 370-3), assim como
os Annales de Tacite Oivro XVl). Não esqueçamos que estas duas
grandes figuras são apresentadas por Epicteto como modelos de
virtude e de coragem (Entretiens, I, 2, 19 e Iv, 1, 123). Cf. também Le
Souci de soi, op. cit., p. 68. [O cuidado de si, op. cit., p. 58. (N. dos T.)]
43. Cf. o relato clássico em Tacite, Annales, livro XVI, capo 34-
35, trad. P. GrimaI, ed. cit., p. 443.
44. A relação dos filósofos com os mantenedores do poder
em Roma (entre a perseguição e a lisonja), suas construções ideo-
lógicas em matéria de filosofia política (entre a justificação e a re-
seIVa), tudo isto constituiu, e por muito tempo, objeto de numero-
sas publicações concernentes sobretudo ao estoicismo, sob cuja
bandeira uma franca oposição republicana e senatorial se constituiu.
Cf. por exemplo: 1. Hadot, Tradition stolcienne et idées politiques
au temps des Grecques, Revue des études Iatines, 48, 1970, pp. 133-
79; J. Gagé, La propagande sérapiste et la Iutte des empereurs fla-
viens avec les philosophes (Stoiciens et Cyniques), Revue philoso-
phique, 149, 1959-1, pp. 73-100; L. jerphagnon, Vivre et Philosopher
sous les Césars, Toulouse, Privat, 1980; J.-M. André, La Philosophie à
Rome, Paris, PUF, 1977; A. Michel, La Philosophie politique à Rome,
d'Auguste à Marc Auréle, Paris, Armand Colin, 1969; e, sobretudo, R.
MacMullen, Enemies of the Roman Order, Cambridge, Mass., Har-
vard University Press, 1966.
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104. ç
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982
Segunda hora
ofilósofo profissional dos séculos 1-11 esuas escolhas po-
líticas. - Eufrates, das Cartas de Plínio: um aniidnico. - A fi-
losofia fora da escola como prática social: oexemplo de Sêneca.
- A correspondência entre Frontão eMarco Aurélio: sistemati-
zação da dietética, da econômica e da erótica na direção da
existência. - Oexame de consciência.
Devo-lhes desculpas. Imaginava, de maneira um pouco
pretensiosa e quimérica, que, se eu me concedesse duas ho-
ras para dizer o que queria, não me delongaria mais, pois
contaria com bastante tempo. Mas delongar deve ser para
mim um modo de existência; por mais que tente, não consi-
go manter o uso do meu tempo e a cronologia que me fixei.
Enfim, que seja. Gostaria de lhes falar um pouco, com apoio
em alguns textos, [da maneira como] a prática de si foi um
imperativo, uma regra, um modo de agir que teve relações
muito privilegiadas com a filosofia, os filósofos, a própria
instituição filosófica. São os filósofos, evidentemente, que
difundiram a regra [desta prática de si], que fizeram circular
suas noções e métodos, que propuseram modelos. São eles
que, na maioria dos casos, estão na origem dos textos que
foram publicados, que circularam e que serviam como espé-
cies de manuais para a prática de si. Não se trata, absoluta-
mente, de negá-lo. Porém, creio ser preciso também realçar
outra coisa: na mesma medida em que esta prática de si se
difundia, o personagem do filósofo profissional - que, pelo
menos desde Sócrates, como sabemos, fora sempre acolhi-
do com certa desconfiança e suscitara não poucas reações
negativas -, este personagem tornava-se cada vez mais am-
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105. 186 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
bíguo. Objeto, sem dúvida, das críticas dos retóricos e tam-
bém - o que se fará ainda mais claro a partir do desenvolvi-
mento do que chamamos a segunda sofística no século II
da nossa era - objeto de desconfiança por motivos políticos.
Primeiramente, é claro, por causa das escolhas que faz, em
favor destes ou daqueles. Houve, por exemplo, toda uma
corrente de neo-republicanismo no começo do Império ro-
mano, em que os estóicos e, sem dúvida os cínicos também,
desempenharam um papel importante'. Por isto então uma
série de resistências. De modo geral, porém, a própria existên-
cia de filósofos profissionais, pregando, pedindo, insistindo
para que as pessoas se ocupassem consigo, não ocorria sem
que se colocasse um certo número de problemas políticos
sobre os quais houve discussões muito interessantes. Parti-
cularmente, parece que no próprio círculo de Augusto, bem
no começo do Império, [colocava-se] o problema de saber
se a filosofia, apresentando-se como uma arte de si mesmo
e convidando as pessoas a se ocuparem consigo mesmas,
era útil ou não. Jean-Marie André, que publicou dois estudos
muito interessantes3
sobre o otium e sobre o personagem de
Meneceu [emitiu certo número] de hipóteses.Acompanhan-
do o que ele diz, parece ter havido, em tomo de Augusto,
tendências diferentes, com mudanças de atitude por parte
de uns e outros e por parte do próprio Augusto. Parece que
Atenodoro, por exemplo, representava uma corrente muito
nítida de despolitização: ocupai-vos com política somente
se verdadeiramente o deveis, se tiverdes vontade, se as cir-
cunstâncias o impuserem, mas assim que possível, retirai-vos
da política. E parece que, pelo menos em um determinado
momento, Augusto foi favorável a esta espécie de despoli-
tização. Em contrapartida, Mecenas e os epicuristas que o
cercavam teriam representado um movimento em que, ao
contrário, buscava-se um equilíbrio entre a atividade política
em tomo do Príncipe, em favor do Príncipe, e a necessária
vida de ócios cultivados. A idéia de um Principado' em que o
essencial do poder estaria nas mãos do Príncipe, em que não
haveria lutas políticas como as que podiam acontecer na Re-
ç
AULA DE 27 DE ]ANFlRO DE 1982 187
pública, em que tudo estaria em boa ordem, mas em que
seria também necessário ocupar-se com o Império, teria re-
presentado, aos olhos daquelas pessoas (Mecenas e os epi-
curistas que, não obstante, eram precavidos em relação à ati-
vidade política), a fórmula mais adequada: pode-se ocupar-
se com as coisas da cidade, com o Império, com as coisas
políticas, com os negócios, no interior deste quadro cuja tran-
qüilidade está assegurada pela ordem política, pelo Principa-
do; e paralelamente pode-se afinal ter suficientes ócios na
própria vida para ocupar-se consigo mesmo. Enfim, em tor-
no da atividade profissional dos filósofos, há portanto toda
uma série de discussões interessantes. Mais tarde, e então
bem mais longamente, voltarei ao problema atividade con-
sigo mesmo/atividade política'''. Sobre a hostilidade ou a
desconfiança para com os filósofos, gostaria de remetê-los
mais precisamente a um texto. Tinha intenção de lhes citar
vários: poderia citar-lhes os textos satíricos de Luciano - de
que já lhes falei antes - em que se vê o personagem do fi-
lósofo caricaturado sob a forma de individuas ávidos por
dinheiro, que requerem vultuosas somas prometendo a feli-
cidade, que vendem modos de vida no mercado e que, pre-
tendendo-se perfeitos, alçados ao cume da filosofia, são pes-
soas que, ao mesmo tempo, praticam a usura, atacam seus
adversários, se enraivecem, etc., e não têm qualquer uma
das virtudes que pretendem possuir'. Bem, deixo de consi-
derar todos estes textos.
Gostaria de chamar a atenção para outro texto que me
parece bem interessante, conhecido, mas cuja interpretação
requer, creio, que nos detenhamos um pouco. Trata-se da fa-
mosa passagem na décima carta do primeiro livro das Car-
tas de Plínio', passagem consagrada a Eufrates'. Eufrates foi
um filósofo estóico importante cujas muitas intervenções são
encontradas em diversos textos. Na Vida de Apolônio de Tzana,
por Filostrato, temos um curioso e interessante confronto
entre Apolônio e Eufrates' - e retornaremos, eventualmen-
te, à questão do Príncipe e do filósofo como conselheiro do
Príncipe. De todo modo, na carta de Plínio a propósito de Eu-
I
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106. ..
188 A HERMENfuTlCA DO SUJEITO
frates, este importante personagem e filósofo, lemos o se-
guinte: Eufrates vivia na SITia; Plínio o conheceu quando
adulescentulus militarem, isto é, quando, muito jovem, es-
tava prestes não exatamente a fazer seu serviço militar, mas
a ocupar um posto militar. É jovem, portanto, mas não uma
criança ou um adolescente em idade escolar. Este texto nos
mostra que Plínio o freqüentou e intimamente. Penitus el
domi inspexi: eu o vi, pude olhá-lo, examiná-lo penitus (a fun-
do) el domi (em casa).
Isto significa que partilhou de sua existência ou, pelo
menos, teve com ele uma freqüentação contínua a fim de
partilhar com ele certos momentos da vida, fases da exis-
tência. Em terceiro lugar, fica claro que há entre os dois uma
relação afetiva intensa, porquanto é dito que amari ab eo la-
boravi, elsi non eral laborandumlO, o que significa: trabalhei
para ser por ele amado, embora ele não tenha tido que tra-
balhar para isto. É interessante observar que ele nem men-
ciona o fato de que o amava. Creio que isto se depreende do
conjunto do texto e do elogio muito intenso que [dele] faz.
Diz que trabalhou para ser por ele amado, o que é bastan-
te interessante, pois aí se faz presente, parece-me, uma no-
ção tipicamente romana que podemos destacar junto com
outros aspectos. No De beneficiis de Sêneca afirma-se que,
em uma amizade, além de prestar serviços, existe ainda todo
um trabalho, todo um labor pelo qual nos fazemos amar por
aquele cuja amizade desejamos. Este trabalho, por sua vez,
desdobra-se de acordo com certas fases e pela aplicação de
algumas regras que são sancionadas pela relativa posição
de uns para com outros no círculo de amizades daquele cuja
amizade é desejada. Em outras palavras, a amizade não é
exatamente uma relação de um com outro, não é a comu-
nicação imediata entre dois individuas, como na fórmula
epicurista.Trata-se agora de uma estrutura social da amizade
que gira em tomo de um individuo, mas com vários [outros]
a rodeá-lo e que têm seu lugar;lugar que muda conforme a
elaboração, o labor realizado por cada qual. É bem plausível
considerar que este labor consistia na aplicação às lições,
j
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 189
naquele zelo com que Plínio aceitava o ensino, o modelo, os
exemplos, as recomendações de Eufrates. É também plausível
que se tratasse, de acordo com uma forma bastante próxima
da amizade romana, de certos serviços que eram prestados
por um ou outro. Em suma, Plínio investiu nesta amizade
que, como vemos, de modo algum tem a forma da ami-
zade amorosa (empregando termos contemporâneos que
absolutamente não coincidem com a experiência daquela
época). Nada a ver - ou, pelo menos, é algo bem diferente,
afinal - com o que podia existir de amor, de éros entre Sócra-
tes e seus discípulos ou com o que podia existir também de
éros na amizade epicurista. Quanto ao personagem de Eufra-
tes, o texto é igualmente interessante. A descrição que é dele
fornecida, ao mesmo tempo é familiar - podemos dizer mes-
mo, banal, fastidiosa de tão insípida - e, contudo, quando
olhada de perto, tem elementos interessantes!2 Está elito que
Eufrates é um homem muito bem apessoado - tem barba, a
famosa barda dos filósofos - e com roupas totalmente lim-
pas. Diz-se também que ele fala de maneira requintada, agra-
dável e convincente; tão convincente, aliás, que quem foi
convencido, lamenta tê-lo sido, pois gostaria de ainda escu-
tá-lo para poder ser de novo convencido. Diz-se também que,
pelo alcance de seu olhar, ele lembra Platão, que ele pratica
as virtudes que ensina e que é de uma grande liberalidade
no acolhimento. Particularmente, ele não maltrata os que co-
meteram faltas, os que não estão no estado moral desejável.
Não os maltrata nem os repreende. Ao contrário, tem para
com eles uma grande indulgência e uma grande liberalilas.
E enfim seu ensino é caracterizado pelo fato de incessante-
mente dizer a seus discípulos que fazer justiça, administrar
as coisas da cidade - em suma, cumprir, em geral, seu ofí-
cio de notável local ou de representante da autoridade ro-
mana e imperial-, fazer tudo isto é fazer, afinal, trabalho de
filósofo13 Contudo, sob esta insipidez um tanto fastidiosa
do retrato, parece que podemos reter alguns aspectos. Por
um lado, temos uma exaltação bem acentuada, bem firme
(devemos lembrar que Plínio com certeza não é filósofo e
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107. 190 A HERMENWTICA DO SUJEITO
tem da filosofia apenas um vago verniz, muito vagamente
estóico, emprestado, sem dúvida, do próprio Eufrates). Plí-
nio, que não é filósofo, exalta muito o personagem Eufrates,
adoma-o com todas as qualidades, faz dele uma espécie de
personagem excepcional com quem se pode tecer laços afe-
tivos muito intensos; de resto, nenhuma menção a dinheiro
em toda esta situação, de modo que não se saiba se houve
ou não. De qualquer modo, é a partir dele, deste persona-
gem, que se pode ter com a filosofia a melhor relação possí-
vel. Ora, quando [se vê] quais os traços de caráter, quais os
traços de descrição com que é feita esta exaltação, percebe-
se que ela se faz pela exclusão sistemática de todos os tra-
ços pelos quais, tradicionalmente, se caracterizava o filósofo
de profissão.Ter barba bem penteada e roupas muito limpas
é, evidentemente, opor-se ou ser oposto àqueles filósofos
de profissão de barba malfeita, roupas um tanto asquerosas,
que circulam pelas ruaS: o personagem cínico, aquele que é,
a um tempo, o ponto extremo el aos olhos das pessoas, o
modelo negativo da filosofia. Ao explicar quanto Eufrates
fala bem, quão requintada é sua linguagem, como conven-
ce tão bem que depois de se estar convencido se desejaria
continuar a ouvi-lo, apesar de não se precisar mais ser con-
vencido, o que faz Plínio senão mostrar que Eufrates não é
um filósofo de linguagem rude, áspera, limitada ao seu úni-
co objetivo - convencer e mudar a alma de seu ouvinte -,
mas que ele é também um pouco retórico, que ele soube in-
tegrar [...] os prazeres próprios [...] ao discurso retórico no
interior da prática filosófica? É a diluição daquela famosa
separação entre retórico e filósofo que fora um dos mais ca-
racterísticos traços da profissionalização do filósofo. Em ter-
ceiro lugar, porque não maltrata, porque acolhe generosa-
mente, liberalmente, todos os que a ele se apresentam, sem
os abater, ele não tem mais aquele papel um pouco agres-
sivo, como tinha Epicteto, como afortiori tinham oS cínicos,
cuja função consistia em desequilibrar, de certo modo, em
perturbar o indivíduo quanto a seu modo de existência e,
puxando-o, impelindo-o, forçá-lo a adotar um outro modo
1
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 191
de existência. Finalmente e sobretudo, quando diz que fa-
zer justiça e administrar as coisas da cidade é fazer filosofia,
vemos, também aí, que é o apagamento da vida filosófica
no que ela tinha de singular, é o retraimento da filosofia em
relação à vida política, que se acham então postos entre pa-
rênteses. Eufrates é, justamente, aquele que não separa a
prática filosófica e a vida política. Portanto, toda esta valori-
zação da filosofia presente neste célebre texto de Plínio a
propósito de Eufrates não traduz, a meu ver, uma espécie
de homenagem que Plínio prestava assim a seu velho mes-
tre da juventude, mostrando o fascínio que ele, como todo
jovem nobre romano, teria tido para com um prestigioso fi-
lósofo do Oriente Médio. Não é isto. Este elogio precisa ser
considerado em todos os seus elementos, com todas as suas
pontuações. Trata-se de uma valorização que é feita, de cer-
to modo, pela repatriação da filosofia em uma maneira de
ser, em um modo de conduta, em um conjunto de valores,
em um conjunto de técnicas também - que não são os da fi-
losofia tradicional, mas de todo um conjunto de cultura em
que figuram os velhos valores da liberalidade romana, as
práticas da retórica, as responsabilidades políticas, etc. No
fundo, Plínio promove o elogio de Eufrates unicamente na
medida em que o desprofissionaliza em relação ao retrato
tradicional do filósofo que faz somente filosofia. Ele o mos-
tra como uma espécie de magnânimo senhor da sabedoria
socializada.
Creio que este texto abre uma pista, por assim dizer,
que não pretendo seguir detalhadamente, mas que parece-
me [tratar-se de] um dos traços mais característicos da épo-
ca da qual lhes falo, os séculos I-lI, a saber: mesmo fora das
instituições, dos grupos, dos indivíduos que, em nome da
filosofia, reivíndicavam o magistério da prática de si, esta
prática de si tomou-se uma prática social. Começou a desen-
volver-se entre indivíduos que, propriamente falando, não
eram do ofício. Houve toda uma tendência a exercer, a di-
fundir, a desenvolver a prática de si, fora mesmo da institui-
ção filosófica, fora mesmo da profissão filosófica, e a cons-
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192 AHERMENtUTICA DO SUJEITO
tituí-la como um certo modo de relação entre os indivíduos,
dela fazendo uma espécie de princípio de controle do indi-
víduo pelos outros, de formação, de desenvolvímento, de es-
tabelecimento de uma relação do indivíduo consigo mesmo,
cujo ponto de apoio, cujo elemento de mediação será encon-
trado em outro, outro que não é necessariamente um filó-
sofo de profissão, muito embora seja-lhe certamente indis-
pensável ter passado pela filosofia e ter noções filosóficas.
Em outras palavras, creio que é o problema da figura, da fun-
ção do mestre que está aí em questão. No tempo dos sofistas,
no tempo de Sócrates, no tempo de Platão ainda, um mes-
tre era [considerado] na sua singularidade, quer com base em
sua competência e habilidade sofísticas, quer em sua voca-
ção de theios anér (homem divino e inspirado), como em
Sócrates, quer no fato de que já teria alcançado a sabedoria,
como no caso de Platão. Pois bem, este mestre está em vias,
não exatamente de desaparecer, mas de ser invadido, cercado,
ameaçado por toda uma prática de si que é, ao mesmo tem-
po' uma prática social. A prática de si vem vincular-se à prá-
tica social ou, se quisermos, a constituição de uma relação
de si consigo mesmo vem manifestamente atrelar-se às re-
lações de si com o Outro.
Pode-se tomar como exemplo toda a série dos interlo-
cutores de Sêneca. Deste ponto de vista, Sêneca é um per-
sonagem muito interessante; é possível dizer que ele é um
filósofo de profissão, profissão no sentido bem amplo que
a palavra poderia ter naquela época. Começou sua carreira
principalmente quando estava no exHio, escrevendo tratados,
tratados de filosofia. E foi como filósofo que, chamado do
exHio na Sardenha, tomou-se preceptor ou, em todo caso,
conselheiro de Nero. Mas, afinal, não se pode compará-lo a
um professor de filosofia no sentido em que o foi Epicteto,
ou no sentido em que o foi Eufrates. Ele teve uma atividade
política, uma atividade administrativa. E, quando se exami-
na quais as pessoas a quem se dirigiu, a quem deu conselhos
e em relação às quais desempenhou o papel de mestre de
consciência, de diretor de consciência, nos damos conta de que
~
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 193
[são] sempre pessoas com quem tinha outras relações. Às
vezes, relações de família: foi para a sua mãe, Hélvia, que
escreveu uma consolação no momento em que ele próprio
era mandado ao exJ1io. Dirige uma consolação a Polibo, que
era para ele uma espécie de protetor ambíguo e longinquo,
de quem solicita amizade e proteção para conseguir retor-
nar do exI1io14
, Serenus15
, a quem endereçará uma série de
tratados - o De tranquillitate, talvez o De otio, e ainda um
terceiro16 -, para quem escreve estes tratados, é um parente
afastado que chegou da Espanha, veio fazer carreira na cor-
te e está prestes a tomar-se confidente de Nero. E é na base
deste semiparentescol semiclientelismo que Sêneca se diri-
ge a Serenus, escuta seu pedido e dá-lhe conselhos. Quan-
to a LucJ1io, um pouco mais jovem que ele mas já com altas
funções administrativas, é uma espécie de amigo, talvez
cliente, antigo protegido, alguém, de todo modo, que lhe é
muito próximo e com quem manteve outras relações além
da relação profissional de direção de consciência!'. A mesma
coisa poderiamos demonstrar a propósito de Plutarco que,
toda vez que intervém para dirigir alguém, dar-lhe conse-
lhos, não faz mais que modular uma relação social ou uma
relação de status, uma relação política!'. É a estas relações
que ele atrela, enxerta a atividade que consiste em dirigir a
consciência. Portanto, não é, por assim dizer, enquanto filó-
sofo profissional que Sêneca e Plutarco intervêm para guiar
os outros. É na medida em que as relações sociais que eles
mantêm com uma ou outra pessoa (amizade, clientelismo,
proteção, etc.) implicam, a título de dimensão - e, ao mes-
mo tempo, a título de dever, de obrigação -, o serviço da
alma e a possibilidade de fundamento de uma série de in-
tervenções' de conselhos que permitirão ao outro conduzir-
se como convém. Isto me leva a um último texto que gosta-
ria de analisar um pouco mais, por me parecer interessante
e muito significativo nesta história da prática de si. De fato,
a maioria dos textos de que dispomos concernentes à prá-
tica de si vem somente de um lado: o dos diretores, dos que
dão conselhos. Conseqüentemente, na medida em que dão
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.1,
109. 194 A HERMEmUTICA DO SUIWO
conselhos, sendo assim textos prescritivos, podemos sem-
pre supor - e temos fundamento para pensar assim - que
eram recomendações vãs, vazias, que não se inscreviam real-
mente no comportamento e na experiência das pessoas, uma
espécie de código sem conteúdo e sem aplicação real: no
fundo, uma certa maneira de modelar o pensamento filosó-
fico em regra moral cotidiana, sem que por isto o cotidiano
das pessoas fosse afetado. Temos, é certo, em Sêneca, no co-
meço do De tranquillitate, uma confissão de Serenus, alguém
que, justamente, vem pedir conselho a Sêneca e lhe expõe
seu estado de alma!9 Podemos dizer que se trata aí do tes-
temunho de uma experiência que alguém faz de si mesmo
e da maneira como, por conseqüência, reflete sobre si atra-
vés dos olhos de um diretor possível e em função de uma di-
reção possível. Mas, no fim das contas, este texto figura no
tratado de Sêneca. Ainda que tenha sido escrito efetivamen-
te por Serenus, ainda que em grande parte, o que é plausível,
não tenha sido reescrito por Sêneca, ainda assim faz parte
do próprio tratado do De tranquillitate. Faz parte do jogo de
Sêneca e dificilmente, indiretamente apenas, poderia passar
como um testemunho do que acontece do lado do dirigido.
Temos porém alguns documentos que mostram a outra
face, como a correspondência de Frontão com Marco Auré-
lio20 [ ... *]. Quando nos perguntamos por que esta correspon-
dência de Frontão com Marco Aurélio não foi publicada - ela
é praticamente inacessível na França [...]-, é fácil compreen-
der: afinal, ela é bem estranha. Se vocês se interessarem por
este texto, podem dispor, felizmente, de uma edição ingle-
sa na série das edições Loeb, onde encontrarão a corres-
pondência Frontão-Marco Aurélio, que merece ser lida21
• E
compreenderão por quê. Frontão é (sem dúvida, é preciso
lembrá-lo) o mestre de Marco Aurélio. Não porém o mestre
li- Ouve-se apenas: e estes documentos mostram perfeitamente
de que maneira [...1edição francesa à tradução, e que é a correspondên-
cia de Frontão com Marco Aurélio.
~
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 195
de filosofia. É um mestre de retórica. Frontão era um retó-
rico e sabemos que, no primeiro capítulo dos Pensamentos, há
a evocação das diferentes pessoas a quem Marco Aurélio
deve alguma coisa e que, de algum modo, foram modelos de
sua vida, a ela trazendo certos elementos com os quais com-
pôs seu comportamento e seus princípios de conduta. Ali
então uma passagem, aliás bem curta, sobre Frontão. Há
uma série de retratos muito impressionantes e belos: o céle-
bre retrato de Antonino, esplêndido e, ao mesmo tempo, uma
pequena teoria, menos do poder que do personagem impe-
rial. Há portanto grandes explanações e, em seguida, uma
pequena explanação, uma simples evocação de Frontão, di-
zendo: devo a Frontão ter compreendido quanta hipocrisia
acarreta o exercício do poder e ter também compreendido
quanto, em nossa aristocracia, se é incapaz de afeição24.
Estes dois elementos mostram Frontão como alguém de fran-
queza, em oposição à hipocrisia, à lisonja, etc.; é a noção de
parrhesÍa à qual retomarei. Além disto, a afeição: afeição que
é o suporte sobre o qual Marco Aurélio e Frontão desenvol-
vem sua relação.Vou lhes citar a carta que, a meu ver, melhor
caracteriza o que pode ou podia ser, por assim dizer, a dire-
ção de consciência vivida do lado do dirigido. É a carta 6
de Marco Aurélio a Frontão, que está no livro N das cartas de
Marco Aurélio.Assim lhe escreve25: Estamos passando bem.
Dormi pouco por causa de uma pequena agitação que, en-
tretanto' parece ter-se acalmado. Assim, das onze horas da
noite até as três da manhã, passei parte do tempo lendo a
Agricultura de Catão e parte também escrevendo; menos
que ontem, felizmente. Depois, cumprimentei meu pai, en-
goli água adocicada até a goela e a lancei fora em seguida,
de modo que mais adocei a garganta do que realmente gar-
garejei; pois, sob a autoridade de Novius e outros, posso em-
pregar a palavra 'gargarejei'. Tendo restaurado a garganta,
dirigi-me para junto de meu pai. Assisti a sua oferenda e de-
pois fomos comer. Com o que pensas que fiz meu desjejum?
Com um pouco de pão, enquanto via os outros devorando
ostras, cebolas e sardinhas bem gordas. Depois, fomos co-
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110. 196 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
lher uvas; suamos bastante, gritamos bastante26
• Na sexta
hora retomamos à casa. Estudei um pouco, sem proveito. Em
seguida, conversei muito com minha mãe que estava senta-
da sobre a cama [...]''- Enquanto conversávamos assim e dis-
putávamos qual dos dois amava melhor o seu [isto é, se
Marco Aurélio amava Frontão melhor que sua mãe amava
Gratia, filha de Frontão, creio eu; M. F], o gongo soou e
anunciou-se que meu pai se pusera ao banho. Assim, toma-
mos a refeição depois de nos termos banhado no lagar. Não
quero dizer que nos banhamos dentro do lagar, mas que
depois de termos nos banhado tomamos a refeição no lagar
e ouvimos prazerosamente os divertidos assuntos dos al-
deões. De volta para casa, antes de me virar de lado para
dormir, descarrego meu fardo (meum pensum expliquo) e pres-
to contas do meu dia ao meu dulcíssimo mestre (diei rationem
meo suavissimo magistro reddo). Mestre este que, a preço até
mesmo de minha saúde, de meu bem-estar físico, eu gos-
taria de desejar, sentir a falta, mais do que já o faço. Estejas
bem, caro Frontão, tu que és meus amor mea voluptas (tu,
meu amor, tu, meu deleite). Eu te amo.28
A propósito deste
texto, épreciso lembrar, corno já o fiz, que Frontão não é mes-
tre de filosofia. Não é um filósofo profissional, ele é um retó-
rico, um philólogos, como sugere, na própria carta, a pequena
observação filológica sobre o uso da palavra gargarejado.
Portanto, não há que se situar esta carta no interior de uma
relação profissional e técnica sobre a direção de consciên-
cia. Na realidade, o que lhe serve de suporte é a amizade, a
afeição, a ternura que, como vemos, têm um papel mais im-
portante. Este papel aparece aqui em toda a sua ambigüida-
de e continua difícil de ser decifrado, aliás, nas outras cartas,
em que constantemente há referência ao amor por Frontão,
ao seu amor recíproco, ao fato de que sentem falta um do
outro quando se separam, de que mandam um ao outro bei-
jos no pescoço, etc.. Lembremos que, nesta época, Marco
Aurélio deve ter entre dezoito e vinte anos e que Frontão é
um pouco mais velho. Relaçãoafetiva e, repito, creio que
1
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AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 197
seria inteiramente deslocado - quero dizer, historicamente
inadequado - colocar a questão sobre a natureza sexual ou
não desta relação. É uma relação de afeição, uma relação
de amor que implica, por conseqüência, muitos aspectos.
Deve-se simplesmente notar que estes aspectos jamais são
ditos, deslindados ou analisados no interior das repetidas,
intensas, afetivas afirmações de amor: tu, meu amor, tu,
meu deleite. Ora, se examinarmos agora, sob este fundo
que, repito, não é um fundo de relação filosófica, técnica,
mas uma relação de afeição para com um mestre, se exami-
narmos como é composta esta carta, perceberemos que se
trata, muito simplesmente, do relato bem meticuloso de u,!,
dia, desde o momento do despertar até o do adormecer. E,
em suma, o relato de si através do relato do dia. E quais são
os elementos deste dia assim descritos, quais os que são con-
siderados pertinentes por Marco Aurélio para fazer seu rela-
to, para prestar contas a Frontão? Creio ser possível, muito
esquematicamente mas sem falsear as coisas, incluir em
três categorias tudo o que está dito nesta carta.
Em primeiro lugar, os detalhes sobre saúde, os detalhes
sobre regime. A começar pelas pequenas agitações e medi-
cações. Pois bem, várias vezes encontramos este tipo de in-
dicação nas cartas de Sêneca, quando ele diz: ora pois, não
dormi bem esta noite, tive uma pequena agitação. Ou então:
acordei mal esta manhã, tive um pouco de náusea, tive agi-
tações, etc. Portanto, uma anotação que é tradicional: anota-
ção das agitações, dos medicamentos absorvidos (gargare-
jou, tomou água adocicada, etc.). De modo geral, anotações
sobre o sono. Por exemplo, dormir de lado, que é um im-
portante preceito médico-ético da época. Dormir de costas
é expor-se a visões eróticas; dormir de lado é promessa de
um sono casto. Anotações sobre a alimentação: comeu ape-
nas pão, enquanto os outros comiam..., etc. Anotações so-
bre o banho, sobre os exercícios. Sono, despertar, alimenta-
ção' banho, exercícios, e depois, bem entendido, as medica-
ções: elementos que muito exatamente, desde Hipócrates,
são considerados como os elementos do regime, do regime
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111. 198 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
médico, do regime dietético30. Ele presta contas, pois, de seu
regime médico.
Em segundo lugar, presta contas de seus deveres fami-
liares e religiosos. Dirigiu-se para junto de seu pai, assitiu-o
na sua oferenda, falou com sua mãe, etc. A seus deveres fa-
miliares juntam-se, ou podem juntar-se, as ocupações agrí-
colas. Marco Aurélio está descrevendo uma vida de agricultor.
Deve-se compreender que esta vida de agricultor está em
relação direta com alguns modelos. Um está citado, o outro,
implícito. O que está citado é o De agricultura de Catão. Ca-
tão escrevera um livro de agricultura que era um livro de eco-
nomia doméstica, indicando, na época em que foi escrito,
qual comportamento devia ter, o que devia ser um proprie-
tário agricola em Roma, para sua maior prosperidade, para
sua melhor formação ética €, ao mesmo tempo, para o maior
bem da cidade. Por trás deste modelo, deve-se pensar, sem
dúvida, naquele que foi o próprio modelo do texto de Ca-
tão, isto é, a Economica de Xenofonte, que narrava o que
devia ser, nos séculosV-IV; a vida de um senhor camponês na
Ática. Ora, estes modelos são muito importantes. Por certo,
Marco Aurélio, destinado ao Império, filho adotivo de Anto-
nino, de modo algum precisava levar este tipo de vida: sua
vida normal não é a de um senhor camponês. Porém - e
isto fica bem claro desde o final da República e mais ainda
desde o Império -, a vida agrícola, uma espécie de estágio na
vida agrícola, constituía, não exatamente um descanso, mas
um momento de se posicionar na existência a fim de ter,
precisamente, uma espécie de referência na vida de todos os
dias, referência político-ética. Com efeito, nesta vida cam-
ponesa, se está mais próximo das necessidades elementares
e fundamentais da existência; mais próximo também daque-
la vida arcaica, antiga, dos séculos passados, que nos deve
servir de modelo. Nesta vida tem-se ainda a possibilidade
de praticar uma espécie de otium cultivado. Isto significa
[igualmente] que são feitos exercícios físicos: vemos que ele
pratica a vindima; a vindima, aliás, lhe permite suar e gritar
1
AUlA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 199
bastante, exercícios que fazem parte do regime. Ele leva
pois esta vida de otium, que tem elementos físicos e. que lhe
deixa tempo suficiente para também ler e escrever. Portan-
to, se quisermos, o estágio camponês é uma espécie de rea-
tivação do velho modelo de Xenofonte ou do velho modelo
de Catão: modelo social, ético e político, agora retomado,
mas a título de exercício. Uma espécie de retiro feito com os
outros, mas para si mesmo e para melhor se formar, para
progr;edir neste trabalho feito sobre si, para atingir a si mes-
mo. E este, se quisermos, o aspecto da vida econômica no
sentido em que Xenofonte empregava este termo, ou seja: as
relações familiares, a atividade do dono da casa que tem
de ocupar-se com os que o cercam, com os seus, com seus
bens, com seus serviçais, etc. Esta paisagem toda é reutili-
zada' mas, repito, para fins de exercício pessoal.
O terceiro aspecto mencionado na carta consiste, cer-
tamente, nos elementos concernentes ao amor. Na conversa-
ção sobre o amor, discute-se uma questão bastante estranha,
pois, como vemos, não se trata mais da questão tradicional
- qual é o verdadeiro amor?33 -, questão que, como sabe-
mos, ordinariamente põe em jogo quatro elementos habi-
tuais: é o amor pelos rapazes ou o amor pelas mulheres; é
o amor que comporta uma consumação sexual ou não? Este
problema, o do amor verdadeiro, não está presente. Trata-se
de uma espécie de questão individual bastante estranha, em
que se compara a intensidade, o valor, a forma deste amor
- sobre cuja natureza é, repito, completamente quimérico
querer discutir - de dois homens (Frontão e Marco Aurélio)
e o amor de duas mulheres (a mãe de Marco Aurélio e Gratia).
O corpo, os familiares e a casa, o amor. Dietética, eco-
nômica, erótica. Estes são os três grandes domínios em que
se atualiza, nesta época, a prática de si, incluindo, como ve-
mos, uma perpétua remissão de um a outro. É por cuidado
com O regime e a dietética que se pratica a vida agrícola, que
se fazem colheitas, etc., isto é, que se passa à econômica. E
é no interior das relações de família, ou seja, no interior das
relações que definem a econômica, que se encontrará a ques-
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112. 200 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
tão do amor. O primeiro ponto é a existência destes três do-
mínios: o laço, a forte e manifesta remissão de um a outro,
da dietética à econômica, da econômica à erótica. Por outro
lado, é preciso lembrar que já havíamos encontrado estes três
elementos em uma passagem do Alcibíades. Lembremos
que, em dado momento, Sócrates conseguira definir qual era
o eu com que é preciso ocupar-se. E mostrou que este eu
com que é preciso ocupar-se é a alma. Ora, a partir desta de-
finição, ele dissera: se é com a alma que é preciso ocupar-se,
vedes bem que o cuidado de si não é o cuidado do corpo,
nem tampouco o cuidado dos bens, também não o cuidado
amoroso, pelo menos não como o concebem os enamora-
dos, os pretendentes de Alcibíades. Isto significa que, no
texto de Platão, na intervenção de Sócrates, o cuidado de si
estava completamente distinto do cuidado do corpo, isto é,
da dietética, do cuidado dos bens, isto é, da econômica, e do
cuidado do amor, isto é, da erótica. Pois bem, vemos que ago-
ra, ao contrário, estes três domínios (dietética, econômica,
erótica) são reintegrados, mas como superfície de reflexão:
ocasião, de cerlo modo, para o próprio eu experimentar-se,
exercer-se, desenvolver a prática de si mesmo que é sua re-
gra de existência e seu objetivo. A dietética, a econômica e
a erótica aparecem como os domínios de aplicação da prá-
tica de si.
É isto, ao que me parece, o que pode ser extraído do
conteúdo da carta, cujo comentário, porém, evidentemente
não pode terminar sem que retomemos àquelas linhas que
lhes mencionei, onde se afirma: liDe volta para casa, antes
de me virar de lado para dormir, descarrego meu fardo e pres-
to contas do meu dia ao meu dulcíssimo mestre, de quem
sinto falta, etc. O que isto significa? De volta para casa ele
vai adormecer e, antes de virar de lado, isto é, de pôr-se na
posição do sono, descarrega seu fardo, Trata-se, eviden-
temente, do exame de consciência, o exame de consciência
tal como foi descrito por Sêneca. Os dois textos (o do De ira
e o de Marco Aurélio) são extraordinariamente próximos.
Sêneca, como lembramos, dizia: todas as noites apago o
1
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 201
candeeiro €, quando minha mulher se cala, recolho-me em
mim mesmo e me presto contas de meu dia (ele emprega
exatamente a mesma expressão: prestar contas34'')'. Em ou-
tro texto - cuja referência não pude encontrar ontem à noite,
mas pouco importa -, Sêneca evoca a necessidade, de tem-
pos em tempos, de descarregar diante de si a carga (o volu-
men) da própria vida e do tempo que passou''. Pois bem, é
este descarregamento do fardo, do que havia a fazer e da
maneira como se o fez, é isto que Marco Aurélio, como ve-
mos, realiza nesta evocação. Descarrega seu fardo, descarrega
o livro do dia em que estavam escritas as coisas que tinha a
fazer, livro que, muito provavelmente, é o livro de sua me-
mória, não o livro que ele realmente estava escrevendo, em-
bora também o pudesse ser, o que, afinal, não tem tanta im-
portância. O essencial, por assim dizer, quer na ordem da
memória, quer na ordem da leitura, é esta revisão do dia que
passou, revisão obrigatória no seu final, no momento em
que se vai adormecer, e que permite fazer o balanço das coi-
sas que se tinha a fazer, das que foram feitas e da maneira
como foram feitas relativamente à maneira como deveriam
ser feitas. E se dá explicação. A quem se dá explicação? Pois
bem, àquele que é seu dulcíssimo mestre.Vemos aí a tradu-
ção exata do princípio fundamental do exame de consciên-
cia. Mas o que é esta carla, afinal? A própria carta, escrita na
manhã do dia seguinte, nada mais é senão o que fez Marco
Aurélio à noite, quando deitou-se antes de adormecer. Ele
descarregou o volumen de seu dia. Retomou seu dia e o des-
carregou. Fez isto à noite, para si mesmo, fez na manhã se-
guinte ao escrever para Frontão. Temos aí, portanto, pelo
menos um exemplo bem interessante da maneira como a
direção se tornava, estava em vias de tornar-se, havia já se
tornado, desde algum tempo sem dúvida, uma experiência,
uma experiência inteiramente normal e natural. Perante um
amigo, um amigo que é caro, um amigo com quem se tem
relações afetivas tão intensas, faz-se o exame de consciên-
cia. Toma-se-o como diretor de consciência e é totalmente
normal tomá-lo como diretor, independente de sua qualifi-
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202 A HERMEN~UTlCA DO SUJEITO
cação de filósofo - e, no caso, não é um filósofo -, simples-
mente porque é um amigo. Quanto a si mesmo, tem-se em
relação a si (ao dia que passou, ao trabalho feito, às distrações
ocorridas) esta atitude, esta posição de quem haverá de pres-
tar contas a alguém, de quem vive o seu dia de maneira a
poder e a dever apresentá-lo, oferecê-lo, decifrá-lo perante
um outro - que será quem? Ora, isto se verá depois: o juíz ou
inspetor, o mestre, etc. Gostaria ainda de lhes expor outro
aspecto, mas infelizmente é muito tarde. É que, através des-
te desenvolvimento da prática de si, através do fato de que
a prática de si toma-se assim uma espécie de relação social
- se não universal, por certo, pelo menos sempre possível
entre indivíduos, mesmo quando não têm uma relação de
mestre de filosofia com aluno -, desenvolve-se, creio, algo
muito novo e importante, que é uma nova ética, não tanto
da linguagem ou do discurso em geral, mas da relação ver-
bal com o Outro. E é esta nova ética da relação verbal com
o outro que está designada na noção fundamental de par-
rhesía. A parrhesía, traduzida em geral porfranqueza, é uma
regra de jogo, um princípio de comportamento verbal que
devemos ter para com o outro na prática da direção de cons-
ciência. Éisto então que, na próxima vez, começarei por lhes
explicar (esta parrhesía), antes de ver, em seguida, como e
sob qual forma se tecniciza esta relação verbal com o outro
na direção de consciência.
ç
NOTAS
1. A segunda sofística deve sua existência cultural às Vidas
dos sofistas de Filostrato de Lemnos (começo do século I1I). Os so-
fistas, a partir dos grandes retratos de Platão, são sempre aqueles
oradores e professores que circulam de cidade em cidade distri-
buindo lições de sabedoria. A comparação porém limita-se a isto,
pois os segundos sofistas se dispersam (no lugar de concentrar-se
em Atenas) e exibem-se nos teatros e outros auditórios (não tan-
to nas residências particulares dos ricos). Ademais, a segunda so-
fística, mais que qualquer outro gênero, encama o compromisso
histórico entre a cultura grega e o poder romano, porquanto vemos
por vezes o sofista que tenta, nas cidades, apaziguar os conflitos
que pudessem surgir. com o governador local e pregar uma con-
córdia ajustada às expectativas dos romanos (Histoire de la littéra-
ture grecque, s. dir. S. Said, Paris, PUF, 1997). Observemos enfim
que o complexo relativamente à filosofia parece invertido em rela-
ção ao período ateniense: nas suas Dissertações, Élio Aristides re-
prova finnemente a condenação da retórica (Górgias) por Platão e
coloca acima de tudo a aprendizagem fonnal do retórico. A superio-
ridade da retórica é assumida, reivindicada, e a filosofia é que passa
a ser então considerada como um jogo inútil e incerto. Sobre esta
segunda sofística, cf.: G. Bowersock, Greek Sophists in the Roman
Empire, Oxford, Clarendon Press, 1969; G. Anderson, The Second
Sophistic: A Cultural Phenomenon in the Ronum Empire, Londres,
Routledge, 1993; B. Cassin, r:Effetsophistique, Paris, Gallimard, 1995
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114. 204 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
(cf. neste livro, o vínculo entre a segunda sofística e o nascimento
do romance grego).
2. Também não era apenas dos oradores que os Césares so-
bretudo desconfiavam; os filósofos lhes eram mais suspeitos, olha-
vam-nos como os verdadeiros inimigos do Império. A partir de Ti-
bério, foi organizada uma espécie de perseguição contra eles e ela
prosseguiu sem trégua até os Antoninos. Freqüentes vezes foram
atingidos isoladamente, algumas, golpeados em massa: nos reina-
dos de Nero, de Vespasiano, de Domiciano, serão todos exilados
de Roma e da Itália. Que teriam feito para merecer tais rigores?
Passavam por descontentes com o novo regime e lastimosos do
antigo. Eram acusados de tomar como modelos [...] os mais deci-
didos republicanos (G. Boissier, L' Opposition sous les Césars, Paris,
Hachette, 1885, p. 97). Cf. supra, p. 183, nota 44, sobre a oposição
estóico-republicana aos Césares.
3. j.-M. André, Recherches sur I'Otium romain, Paris, Les Belies
Lettres, 1962, e Mécene. Essai de biographies spirituelles, ed. citada.
4. Sobre o Principado como nova organização dos poderes
em Roma a partir de Augusto, cf. J. Béranger, Recherches sur les as-
peels idéologiques du Principat, Bâle, F. Reinhardt, 1953.
5. Foucault não terá tempo para abordar este problema e é
somente em alguns dossiês preparatórios· (por exemplo, o que se
intihl.la Relações sociais) que se encontra um eshl.do da relação
cuidado de si/deveres cívicos, apoiando-se em três referências es-
senciais: Plutarco, Díon de Prusa e Máximo de Tiro.
6. Cf. o diálogo Philosophes à l'encan (trad. Th. Beaupére, ed.
citada), apresentado na aula de 20 de janeiro, primeira hora.
7. Pline le Jeune, Letlres, t. I, trad. fr. A-M. Cuillemin, Paris,
Les Belles Lettres, 1927 [mais adiante: referência a esta ediçãol, li-
vro I, carta 10, pp. 21-3. Cf a análise deste texto em Le Souci de soi,
op. cit., p. 63. [O cuidado de si, op. cit, pp. 53-4. (N. dos 1.)]
8. Eufrates de TIro, filósofo estóico do século I d.C., foi aluno de
Musonius Rufus. Filostrato o apresenta como um personagem pouco
simpático: republicano indeciso, grande lisonjeador e reles calculador.
Sabe-se que teve de exilar-se no começo dos anos setenta, quando
Vespasiano expulsou os filósofos para fora de Roma. Finalmente,
Apuleu relata que ele se suicidou com a idade de noventa anos, não
sem antes ter solicitado autorização ao imperador Adriano.
9. Philostrate, Vie d'Apollonius de Tyane in Romans grecs et la-
tins, ed. P. Crimal, Paris, CallimardlBibliothéque de la Pléiade,
ç
AUlA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 205
1963 (sobre o confronto entre os dois homens, crlivroV, capo 33-38,
pp. 1198-208: Eufrates'3ue afirma sua adesão aos dogmas estói-
cos, só reconhece como guia a imanência natural e se apresenta
como defensor da democracia e da liberdade política, enquanto
Apollonius de Tyane - escola platônica - invoca lições supra-sen-
síveis e pronuncia sua adesão à ordem imperial na qual vê uma
garantia da propriedade e da seguridade).
10. Pline le Jeune, Lettres, t. I, carta 10, 2 (p. 21).
11. Cf. Sénéque, Des bienfaits, li, XV, 1-2 e XVIII, 3-5 (cf. tam-
bém, para a mesma temática, Cicéron, Laelius de Amicitia, XVII,
63). Sobre este delicado ponto da mentalidade romana, ver a in-
trodução de P. Veyne (Séneque, Entretiens, Lettres à Lucilius, ed. cit.,
pp. 391-403) ao tratado sobre os Bienfaits.
12. Na exposição que se segue, Foucault resume a descrição
dada por Plínio nos parágrafos 5 a 8 (Lettres, p. 22).
13. /lÊ também filosofia, e até mesmo a mais bela porção da
filosofia, exercer uma função pública (id., parágrafo 10, p. 23).
14. Consolation à Helvia, Consolation à Polybius, in Séneque,
Dialogues, t. m, trad. R. Waltz, Paris, Les BeHes Lettres, 1923.
15. Cf. aula de 20 de janeiro, primeira hora, supra, p. 126, nota
24, sobre a relação entre Serenus e Sêneca.
16. Trata-se do De constantia, in Séneque, Dialogues, t. IV, ed.
citada, pp. 36-60.
17. Cf. aula de 20 de janeiro, primeira hora, supra, p. 126-7,
nota 26, sobre a relação entre Lucílio e Sêneca.
18. Nascido em Queronéia (por volta de 46), de uma família
rica e culta, Plutarco inicia sua aprendizagem com viagens culhl.-
rais (Atenas, Éfeso, Smirna, Alexandria), de que extrai uma impres-
sionante bagagem filosófica, retórica e científica. Por duas vezes
(no reinado de Vespasiano e no de Domiciano) dirige-se a Roma
a fim de ministrar conferências que têm grande sucesso, sucesso
que o toma um requisitado diretor de consciência. Nos anos no-
venta, volta a estabelecer-se em sua cidade natal, onde professa a
filosofia e redige o essencial de sua obra. Os prefácios a seus tra-
tados mostram bem que seus interlocutores ou lhe são próximos
(família, vizinhança), ou são dignatários gregos ou romanos.
19. Esta exposição ocupa o primeiro capítulo do tratado (Séné-
que, De la tranquillité de l'âme, trad. fr. R. Waltz, ed. citada, pp. 71-5).
Para a análise que Foucault faz da resposta de Sêneca, cf. a primei-
ra hora desta aula.
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115. 206 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
20. Cf. Le Souci de sai, op. cit., p. 73. [Trad. bras. O cuidado de
si, op. cit., p. 62. (N. dos T.)]
21. The Correspondence of Marcus Cornelius Fronto with Aure-
lius Antoninus, trad. ingL C. R. Haines, Londres, Loeb Classica! Li-
brary, 1919-1920.
22. Cf. aula de 20 de janeiro, segunda hora, supra, p. 150, nota
3 sobre Frontão.
23. Marc Aurele, Pensées, I, 16 (p. 5-7). Cf. Le Souci de sai,
p. 111. [Irad. bras. O cuidado de si, op. cit., pp. 96-7. (N. dos T.)]
24. De Frontão: ter observado a quanta inveja, dupliciclade,
dissimulação, chegam os tiranos; e que, quase sempre, estes per-
sonagens que entre nós chamamos de patrícios são, em certo sen-
tido, incapazes de afeição (Marc Aurele, Pensées, I, 11, p. 3).
25. Foucault segue aqui literalmente uma antiga tradução
francesa de A Ca55an (Lettres inédites de Mare Aurele et de Fronton.
Paris, A. Lavasseur, 1830, t. I, livro IV, cartaVI, pp. 249-51).
26. Foucault omite aqui o fim da frase: /I e deixamos, como diz
um autor, pender nas treliças algumas sobras da vindima (id.,
p.251).
27. Foucault não faz a leitura do começo do diálogo entabu-
lado entre Marco Aurélio e sua mãe: Eis o que eu dizia: o que pen-
5as que o meu Frontão está fazendo a esta hora? Eela: o que pensas
que está fazendo a minha Gratia? - Quem? repliquei. Nosso deli-
cado rouxinot a pequenina Gratia?
28. De fato, a última frase da carta é a seguinte: 11 qual a re-
lação entre tu e eu? Amo um ausente (Quid mihi tecum est? amo ab-
sentem).
29. Pode-se aqui precisar que o beijo entre homens é usual
durante o Império, inclusive na boca; tinha, aliás, valor hierárqui-
co: um plebeu beija somente a mão de um superior e somente en-
tre os superiores se beija na boca ou no peito. Isto significa princi-
palmente, para nossa passagem, que está abolida qualquer supe-
rioridade hierárquica entre Marco Aurélio e seu preceptor. U. L.
Friedlãnder, Sittengeschichte RDms 9, Leipzig, 1919, t. I, pp. 93-4, e
A. Alfõldi, Die monarchische Repriisentation in romischen KaiserTei-
che, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980, pp. 27,
41-2,64 (devo estas indicações a P. Veyne).
30. Cf. a análise por Foucault do tratado hipocrático Do Regi-
me em r:Usage des plaisirs, op. cit., pp. 124-32. [O uso dos prazeres, op.
cit., pp. 100-6. (N. dos T.)]
ç
AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 207
31. Caton, De l'agriculture, trad. fr. R. Goujard, Paris, Les Bel-
les Lettres, 1975.
32. Xénophon, Économique,.J;rad. fr. P. Chantraine,·ed. citada.
33. Alusão ao Banquete de Platão como texto fundador; cf. capo
Le véritable amour, in r:Usage des plaisirs, pp. 251-69. [O ver-
dadeiro amor in O uso dos prazeres, ap. cit., pp. 201-14. (N. dos T.)]
34. De la colére, m, XXXVI, in Séneque, Dialogues, t.1, trad. A.
Bourgery, Paris, Les Benes Lettres, 1922, pp. 102-3. Para um estu-
do mais desenvolvido do mesmo texto, cf. a aula de 24 de março,
segunda hora, assim como o seminário sobre as Techniques de
soi, na Universidade deVermont, em outubro de 1982 (Dits et Éerits,
ap. cit., IV, n. 363, pp. 797-9).
35. Referência inencontrável. Nenhum texto de Sêneca cor-
responde a esta descrição.
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AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982
Primeira hora
Os comentários neoplatônicos do Alcibíades: Prodo e
Olímpiodoro. - A dissociação neoplatônica do político edo catár-
tico. - Estudo do laço entre cuidado de si ecuidado dos outros em
Platão:finalidade; reciprocidade; implicação essencial. - Situação
nos séculos I-lI: a autofinalização do eu. - Conseqüências: uma
arte filosófica de viver ordenado ao princípio de conversão; o de-
senvolvimento de uma cultura de si. - Significação religiosa da
idéia de salvação. - Significações de sotería ede salus.
Na última vez, deixei em suspenso a análise de uma no-
ção que, a meu ver, é muito importante na prática de si, na
tecnologia do sujeito: a noção de parrhesía, que pode ser
compreendida, genericamente, como franqueza, abertura do
coração, abertura do pensamento, etc. Gostaria de começar
retomando um pouco esta questão e depois, por vários mo-
tivos, preferiria reencontrá-la mais tarde quando falaremos
mais precisamente de certas técnicas do sujeito na filosofia,
na prática, na cultura dos séculos 1-II e, em particular, quan-
do falaremos do problema da escuta e da relação mestre-dis-
cípulo. Bem, na ocasião, tratarei novamente do assunto.
Mas, em todo caso, alguém me colocou uma questão. Infe-
lizmente, as questões não ocorrem freqüentemente, talvez
porque não tenhamos muitas oportunidades de nos encon-
trar. Enfim, chegou-me uma questão a que gostaria de res-
ponder, pois acredito que, de qualquer forma, ela servirá
muito bem de introdução à aula que darei hoje.
A questão é apenas esta: por que tomar o diálogo do Al-
cibíades a que, ordinariamente, os comentadores não atri-
buem uma importância tão grande na obra de Platão? Por
que tomá-lo como marco, não apenas para falar de Platão,
como ainda para colocar em perspectiva, afinal, todo um pla-
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117. 210 A HERMEmUTlCA DO Sll]EITO
no da filosofia antiga? Eu pretendia mesmo, há algum tempo,
referir-me a dois ou três textos tardios, porém muito escla-
recedores, acerca do problema do Alcibíades e do lugar que
ele ocupa no pensamento antigo. Farei então um atalho. As-
sim, no lugar de lhes falar da parrhesía agora e dos cOllfen-
tadores neoplatônicos depois, gostaria, primeiramente, de
evocar o problema dos comentários neoplatônicos do Al-
cibíades. Sabemos que, a partir do grande retomo do neo-
platonismo na cultura, no pensamento, na filosofIa antiga
_ em geral, a partir do século II -, alguns problemas se colo-
caram e, em particular, a questão da sistematização das
obras de Platão. Digamos, simplesmente, o problema da sua
edição: edição sob uma forma e em uma ordem tais que os
problemas da filosofia estivessem sucessivamente aborda-
dos, no lugar conveniente e de maneira a constituir um
conjunto ao mesmo tempo fechado e utilizável no ensino e
na pedagogia. O problema da classificação das obras de
Platão foi então abordado por alguns comentadores, particu-
larmente Prodo e Olimpiodoro1
. Ora, no que concerne ao
lugar a ser atribuído ao Alcibíades - que assumi como ponto
de partida -, estes dois comentadores concordam em consi-
derar que este diálogo deve ser efetivamente colocado à
frente das obras de Platão, que é por ele que se deve abor-
dar o estudo de Platão e do platonismo e, por conseguinte,
o estudo da filosofIa em geral. Com efeito, três grandes
princípios, se quisermos, permitem a Proclo e a Olimpiodo-
ro conceder ao Alcibíades este lugar primeiro, inicial, e esta-
belecê-lo como uma espécie de portal da filosofia. Primeiro,
o Alcibíades é, a seus olhos, o próprio resumo da filosofia de
Platão. Segundo, ele é a introdução, primeira e solene na fi-
losofia, do gnôthi seautón como condição primeira da práti-
ca filosófIca. E enfim nele vêem o primeiro atrelamento en-
tre o político e o catártico. Retomemos um pouco estes pon-
tos. Faço notar que, de todo modo, eu não poderia dizer-lhes
isto se Festugiere não houvesse anteriormente escrito um
artigo interessante sobre a classificação das obras de Platão
pelos neoplatônicos, delas extraindo os textos principais.
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 211
Não lembro onde o artigo foi publicado, mas, de todo
modo, vocês o encontram nos Études de philosophie grecque'.
Temos então uma série de textos que são ali citados.
Texto de Proclo' (portanto, séculoV) a propósito da clas-
sificação das obras de Platão: Este diálogo [diz ele, referin-
do-se ao Alcibíades; M. F] é o princípio de toda a filosofia
[arkhe hapáses philosophías: o começo, o princípio da filosofia;
M.F], como o é também, precisamente, o conhecimento de
nós mesmos [assim como o conhecimento de nós mesmos
- o gnôthi seautón - é a condição para poder começar a filo-
sofar, assim o Alcibíades é o próprio princípio da filosofia;
M.F]. É por isto que numerosas considerações lógicas ali
estão disseminadas e fomecidas à tradição, numerosas con-
siderações morais que contribuem para a nossa investigação
sobre a eudemonia ali encontram esclarecimento, numero-
sas doutrinas apropriadas para nos conduzir ao estudo da
natureza ou mesmo à verdade acerca dos próprios seres di-
vinos ali estão sumariamente expostas, a fim de que esteja
contido neste diálogo, como em um modelo, um único e
mesmo esboço geral e total da filosofia inteira, esboço que
se revela a nós graças precisamente a este primeiro retomo
sobre nós mesmos' Texto interessante porque, desde logo,
nele vemos uma distinção de modo algum platônica, que
foi posteriormente introduzida e que corresponde, inteira-
mente, ao que era o ensino e a distribuição da filosofIa no
decurso da época helenística, imperial, e na Antiguidade tar-
dia. Distinção entre: considerações lógicas; considerações mo-
rais; doutrinas da natureza; verdades acerca dos seres divinos.
Lógica, moral, estudo da natureza, teologia - ou discurso
sobre o divino - são os quatro elementos fundamentais em
que a filosofia se distribui. Proclo supõe então que estes qua-
tro elementos acham-se de fato disseminados, ao mesmo
tempo presentes e um pouco discretamente escondidos, no
texto do Alcibíades, mas todos eles apresentados a partir da-
quilo que deve constituir seu fundamento, a saber, o retomo
sobre si mesmo. Este esboço da filosofia revela-se a nós
precisamente graças a este primeiro retomo sobre nós mes-
'11
'~I
118. •
212 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
mos. Retomemos sobre nós mesmos, tornemos consciência
do que somos e, neste mesmo retomo, veremos começar a
desdobrar-se aquilo que deve ser o saber filosófico. E é por
isto também, parece-me [acrescenta Proclo; M.F.], que o di-
vino Jâmblico confere ao Alcibíades a primeira posição entre
os dez cliálogos nos quais, segundo ele, está contida toda a
filosofia de Platão [referência a um texto perdido de Jâmbli-
c05, parecendo inclicar, conseqüentemente, que antes mesmo
de Proclo e do problema das classificações das obras platô-
nicas, o Alcibíades era já considerado como o primeiro dos
diálogos de Platão, ou pelo menos o que deveria estar à
frente deles todos; M.F.]6
Em outro comentário, Olimpiodoro afirma, a propósi-
to do Alcibíades: Quanto à posição [do Alcibíades; M.F.], é
precisQ dizer que se deve colocá-lo à frente de todos os diá-
logos platônicos. Pois, como diz Platão no Fedro, é absurdo
ignorar a si mesmo quando se aspira a conhecer tudo o mais.
Em segundo lugar, é socraticamente que se deve abordar a
doutrina socrática: ora, dizemos, é pelo preceito I conhece-
te a ti mesmo' que Sócrates se encaminhou para a filosofia.
Deve-se estimar, de resto, que este diálogo é semelhante a
um portal e que, assim como o portal precede o santuário
do templo, assim se deve comparar o Alcibíades a um portal,
e o Parrl;1ênides ao santuário711
. Como vemos, Olimpiodoro
faz do Alcibíades o portal, e do Pannênides o cerne mesmo
da filosofia platônica. Vemos também que, muito explicita-
mente, Olimpiodoro faz do conhece-te a ti mesmo, então
formulado no Alcibíades, não somente o fundamento de todo
saber filosófico como o próprio modelo da prática de quem
quer filosofar. Deve-se, diz ele, abordar socraticamente a
doutrina socrática, isto é, para iniciar-se na filosofia de Só-
crates e de Platão, deve-se reproduzir o procedimento so-
crático. É a preço deste trabalho exercido sobre si mesmo,
na forma do conhecimento de si, que se poderá pôr-se a ca-
minho no saber filosófico. Isto nos conduz ao terceiro ele-
mento de que lhes quero falar e que nos servirá cliretamente
de introdução: é o problema da distinção entre o político e
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 213
o catártico. Com efeito, o mesmo Olimpiodoro, no comen-
tário sobre o Alcibíades, afirma: Posto que a .meta deste
diálogo [o Alcibíades; M.F.] é conhecer a si mesmo, não se-
gundo o corpo, não segundo os objetos exteriores - o títu-
lo, de fato, é: Alcibíades, ou Sobre a natureza do homem [o que
prova que, na época de Olimpiodoro, este título, evidente-
mente não platônico, já havia sido acrescentado ao Alcibíades;
M.F.] -, mas segundo a alma; alma esta, não a vegetativa,
não a irracional, mas a racional; e conhecer-se segundo esta
alma, não, seguramente, enquanto agimos de maneira ca-
tártica, ou teórica, ou teológica, ou teúrgica, mas de maneira
política'''. Um pouco mais adiante (agora no comentário so-
bre o Górgias), afirma: Manifesta-se também, ao mesmo
tempo, a seqüência dos diálogos. Com efeito, tendo apren-
dido, no Alcibíades, que somos alma e que esta alma é ra-
cional, devemos exercer bem as virtudes políticas e as catárti-
caso Logo, uma vez que é preciso primeiro saber o que con-
cerne à política, necessariamente explicamos este diálogo
(o Górgias) após aquele (o Alcibíades) e depois, após este, o
Fédon na medida em que contém as virtudes catárticas911
.
Assim, creio haver aí um ponto muito importante, no fun-
do, para toda a história da tradição do gnôthi seautón e, con-
seqüentemente, do Alcibíades, através da tradição platônica,
mas provavelmente também, do pensamento antigo. Expli-
co. Colocando-se assim, no Alcibíades, o princípioconhe-
ce-te a ti mesmo, vê-se o germe da grande diferenciação
entre o elemento do político (isto é, o conhece-te a ti mes-
mo enquanto introduz alguns princípios, regras que per-
mitem ao inclivíduo ou ser o cidadão que ele deve ser, ou ser
o governante que convém), e, por outro lado, o conhece-te
a ti mesmo [que] convoca a algumas operações pelas quais
o sujeito deve purificar-se e tomar-se capaz, em sua própria
natureza, de estar em contato com o elemento divino e re-
conhecê-lo em si. Portanto, o Alcibíades é esta bifurcação. E,
na classificação dos cliálogos de Platão proposta por Olim-
piodoro, ou melhor, no ordenamento por ele proposto, o
Alcibíades é estabelecido no ponto inicial. Por um lado, diri-
3!
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119. •
214 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
gido no sentido do político, conseqüentemente, segue-se-
lhe o GÓrgias. Por outro lado, a dimensão do catártico, da pu-
rificação de si, e temos então o Fédon. Assim, segundo Olim-
piodoro, a série deveria ser: Alcibíades; Górgias, pela filiação
política; Fédon, pela filiação catártica. '
[Retomemos estes elementos.] Inicial o privilégio do
conhece-te a ti mesmo como o próprio fundamento da fi-
losofia, realizando, como vemos, nesta tradição neoplatôni-
ca, a absorção do cuidado de si na forma do conhecimento
de si. Primeiro, pois: privilégio do conhece-te a ti mesmo
como forma por excelência do cuidado de si; segundo, o
tema de que esteconhece-te a ti mesmo introduz à políti-
ca; terceiro, o tema de que esteconhece-te a ti mesmo in-
troduz também a uma catártica. Enfim, o que seria um
quarto elemento: entre o político e o catártico, colocam-se
alguns problemas. A relação entre o catártico e o político
constitui, na tradição neoplatônica, em certo problema. En-
quanto - vou mostrá-lo logo adiante - para Platão não há,
na realidade, diferença de economia entre o procedimento
catártico e o caminho do político, na tradição neoplatônica,
em contrapartida, estas duas tendências se dissociaram, de
modo que o uso do conhece-te a ti mesmo para fim po-
lítico e para fim catártico - ou então, o uso do cuidado de si
para fim político e para fim catártico - não mais coincide,
constituindo um vínculo que requer uma escolha. Isto pois,
quanto à maneira como - ao menos em uma das tradições
da filosofia grega, platonismo e neoplatonismo - situava-se
o Alcibíades e a maneira como se lhe atribuía uma impor-
tância iniciadora e fundamental. Pois bem, reconsideremos
um pouco tudo isto, mais precisamente, o problema 1/ cui-
dado de si e conhecimento de si (que, repito, não são
idênticos, mas são identificados na tradição platônica), bem
como o problemacatártico e político, que são identifi-
cados em Platão, mas não o são mais na tradição platônica
e neoplatônica.
Gostaria de recordar alguns aspectos a propósito do
Alcibíades, que expus na primeira aula. Lembramos que,
j
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 215
neste diálogo, tratava-se de mostrar que Alcibíades devia
ocupar-se consigo mesmo. E por que devia oC'l:l-par-se con-
sigo mesmo, nos dois sentidos do por quê? Ao mesmo
tempo porque ele não sabia o que era, precisamente, o bem
para a cidade e. em que consistia a concórdia dos cidadãos.
E, por outro lado, a fim de poder governar a cidade, a fim de
poder ocupar-se com seus concidadãos como convinha. Por-
tanto, devia ocupar-se consigo mesmo para poder ocupar-se
com os outros. Lembramos também, como lhes indiquei, que
no final do diálogo, Alcibíades se comprometia a ocupar-
se(epimélesthai). Retoma a palavra que fora a de Sócrates.
Diz ele: está certo, vou ocupar-me. Mas ocupar-me com o
quê? Pois bem, ele não diz vou ocupar-me comigo mes-
mo, mas vou ocupar-me com a dikaiosyne (a justiça). Des-
necessário lembrar que esta noção, em Platão, tem duplo
campo de aplicação: a alma e a cidadelO
• Portanto, quando
Alcibíades seguindo a lição de Sócrates e mantendo sua pro-
messa, vier a ocupar-se com a justiça, se ocupará com sua
alma, com a hierarquia interior de sua alma, com a ordem e
a subordinação que deve reinar entre as partes dela; ao mes-
mo tempo e por isto mesmo, se tornará capaz de estar atento
à cidade, de salvaguardar suas leis, a constituição (a politeía),
de equilibrar, como convém, as justas relações entre os ci-
dadãos. Ao longo de todo este texto, o cuidado de si é pois
claramente instrumental em relação ao cuidado dos outros.
Encontraremos uma prova de que é esta a relação definida
no Alcibíades em outra imagem, de certo modo negativa,
em todo caso tardia e já esmaecida de Alcibíades: o Al-
cibíades do Banquete. Em meio aos convidados que discu-
tem, ele irrompe, já um pouco envelhecido, em todo caso
completamente embriagado. Canta os louvores de Sócrates
e, enfeitiçado ainda pelas lições de Sócrates, deplora, la-
menta não as ter escutado. E afirma: a despeito de tudo o
que me falta, continuo, todavia, a não ter cuidado de mim
mesmo (epimélesthai emautoil), enquanto me ocupo com os
assuntos dos ateniensesl1
Esta frase manifestamente faz
eco ao tema do Alcibíades. Ele estava comprometido, no AI-
I
1
120. •
216 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
cibíades, a ocupar-se consigo mesmo para poder ocupar-se
com oS cidadãos, colocando a dikaiosyne no centro do seu cui-
dado. Pois bem, acabou por ocupar-se com os cidadãos sem
ocupar-se consigo. Não sabe pois o que é a dikaiosyne, etc.
E todos os dramas e catástrofes do Alcibíades real estj.o de-
senhados neste pequeno intervalo entre a promessa do Al-
cibíades e a embriaguez do Banquete.
Poderíamos dizer que em Platão, de modo geral, o vín-
culo entre cuidado de si e cuidado dos outros estabelece-se
de três maneiras. Ou então, retomando ao que eu lhes di-
zia há pouco, o conhecimento de si, em Platão, é um aspec-
to, um elemento, uma forma - sem dúvida capital, mas uma
forma apenas - do imperativo fundamental e geral do cui-
da de ti mesmo. O neoplatonismo inverterá esta relação.
Mas, em Platão, ao contrário, o catártico e o político não são
diferenciados um do outro. Ou antes o mesmo procedimen-
to será a um tempo catártico e político. E isto, de três ma-
neiras. Quem se ocupa consigo - é o que acabei de lhes
mostrar - toma-se capaz de ocupar-se com os outros. Há,
por assim dizer, um vínculo de finalidade entre ocupar-se
consigo e ocupar-se com os outros. Ocupo-me comigo para
poder ocupar-me com os outros. Praticarei em mim o que
os neoplatônicos chamarão de kátharsis, praticarei a arte da
catártica para poder, justamente, tomar-me um sujeito po-
lítico. Sujeito político entendido como aquele que sabe o que
é a política e, conseqüentemente, pode governar. Primeiro
vínculo: o de finalidade. Segundo, um vínculo de reciproci-
dade. Se, ao ocupar-me comigo, aO praticar a catártica no
sentido neoplatônico, faço, como assim desejo, o bem à ci-
dade que eu governo - se, conseqüentemente, ao ocupar-me
comigo asseguro para meus concidadãos a salvação, a pros-
peridade, a vitória da cidade -, em troca, esta prosperidade
de todos, esta salvação da cidade, esta vitória que lhes asse-
guro, será de meu proveito na medida em que faço parte da
própria comunidade da cidade. Na salvação da cidade o cui-
dado de si encontra pois sua recompensa e garantia. Salva-se
a si mesmo na medida em que a cidade se salva e na medi-
j
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 217
da em que, ocupando-se consigo mesmo, permitiu-se à ci-
dade que se salve. Encontramos esta circularidade manifes-
tamente desdobrada ao longo de todo o edificio da República.
Por fim, em terceiro lugar, após o da finalidade e, se quisermos,
o da reciprocidade, o terceiro vínculo: poderíamos chamá-lo
de vínculo de implicação essencial. Ocupando-se consigo
mesma, praticando a catártica de si (termo não platônico
mas neoplatônico), a alma descobre tanto o que ela é quanto
o que ela sabe, ou melhor, o que ela sempre soube. Descobre,
a um tempo, seu ser e seu saber. Descobre o que ela é e o
que ela contemplou na forma da memória. Pode assim, nes-
te ato de memória, ascender à contemplação das verdades
que permitem novamente fundar, com toda justiça, a ordem
da cidade.Vemos pois que há em Platão três maneiras de
vincular, encaixar solidamente o que os neoplatônicos cha-
marão de catártico e político: vínculo de finalidade na tékhne
política (devo ocupar-me comigo mesmo para saber, para co-
nhecer, como convém, a tékhne política que me permitirá
ocupar-me com os outros); vínculo de reciprocidade sob a
forma da cidade, pois, salvando-me, salvo a cidade e, salvan-
do a cidade, me salvo; enfim, em terceiro lugar, vínculo de
implicação sob a forma da reminiscência. Tal é, muito ge-
nericamente, se quisermos, o vínculo entre cuidado de si e
cuidado dos outros que se estabeleceu em Platão, e de tal
maneira estabeleceu-se que é muito difícil sua dissociação.
Ora, se nos situarmos agora na época que assumi como
marco, isto é, nos séculos I-It esta dissociação já está am-
plamente feita. Um dos mais importantes fenômenos, pro-
vavelmente, na história da prática de si e, talvez, na história
da cultura antiga, é perceber o eu - por conseguinte, as téc-
nicas de si, como também toda a prática de si que Platão
designava como cuidado de si -, desprender-se pouco a pou-
co como um fim que se basta a si mesmo, sem que o cuidado
dos outros constitua o fim último e o indicador que permi-
te a valorização do cuidado de si. Primeiramente, o eu do qual
se cuida não é mais um elemel!to entre outros ou, se apa-
rece como um elemento entre outros, como vimos há pou-
111
.''.'
121. 218 A HERMENtuTICA DO SUJEITO
co, é na seqüência de um raciocínio ou de uma forma de co-
nhecimento particular. Nele mesmo, este eu com o qual se
ocupa não é mais um ponto de juntura. Não mais um en-
caixe. Não mais um elemento de transição para outra coisa
que seria a cidade ou os outros. O eu é a meta definitiva e
única do cuidado de si. Por conseguinte, esta atividade, esta
prática do cuidado de si, em nenhum caso pode ser conside-
rada como pura e simplesmente preliminar e introdutória
ao cuidado dos outros. Centrada apenas em si mesma, é uma
atividade que encontra seu desfecho, sua completude e sua
satisfação, no sentido forte do termo, somente no eu, isto é,
naquela atividade que é exercida sobre si. Cuida-se de si,
por si mesmo, e é no cuidado de si que este cuidado encon-
tra sua própria recompensa. No cuidado de si é-se o pró-
prio objeto, o próprio fim. Ao mesmo tempo existe, se qui-
sermos, uma absolutização (perdoem-me a palavra) de si
como objeto do cuidado, e uma autofinalização de si para si
na prática que chamamos de cuidado de si. Numa palavra,
o cuidado de si, que em Platão era manifestamente aberto à
questão da cidade, dos outros, da politeía, da dikaiosyne, etc.,
surge - ao primeiro olhar, pelo menos, no período de que
trato, séculos 1-11 - como fechado em si mesmo. É isto, por
assim dizer, no tocante à curva geral do fenômeno que pre-
cisaremos agora analisar em detalhe, pois o que lhes expus
é e não é verdadeiro ao mesmo tempo. Digamos que é o
que pode aparecer como verdadeiro, em determinado nível,
sob determinado ângulo, praticando determinado tipo de
sobrevôo. De qualquer modo, considero importante o fenô-
meno de desprendimento daquilo que, repito, os neoplatô-
nicos chamavam de catártico relativamente ao que chama-
vam de político. Importante por duas ou três razões.
A primeira é que, para a própria filosofia, o fenômeno
é importante. Com efeito, convém lembrar que, ao menos
desde os cínicos - os pós-socráticos: cínicos, epicuristas, es-
tóicos, etc. -, a filosofia vinha, cada vez mais, buscando sua
definição, seu centro de gravidade, fixando seu objetivo em
tomo de alguma coisa que se chamava tékhne toa bÍou, isto
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 219
é, a arte, o procedimento refletido da existência, a técnica de
vida. Ora, à medida que o eu vai se afirmando como sendo
e devendo ser o objeto de um cuidado - como lembramos, na
última vez tentei lhes mostrar que ele devia atravessar toda
a existência e conduzir o homem até o ponto de completu-
de de sua vida -, percebemos que entre a arte da existência
(a tékhne toa bÍou) e o cuidado de si - ou então, para falar mais
sucintamente, entre a arte da existência e a arte de si meS-
mo - há uma identificação cada vez mais acentuada. A per-
gunta - como fazer para viver como se deve? - era a per-
gunta da tékhne toa bÍou: qual é o saber que me possibilitará
viver como devo viver, como devo viver enquanto indivíduo,
enquanto cidadão, etc.? Esta pergunta (como fazer para vi-
ver como convém?) tornar-se-á cada vez mais idêntica ou
cada vez mais nitidamente incorporada à pergunta: /Icomo
fazer para que o eu se tome e permaneça aquilo que ele deve
ser?/I. Isto, evidgntemente, acarretará algumas conseqüên-
das. Desde logo, por certo, a absorção, cada vez mais acen-
tuada no decorrer da época helenística e romana, da filoso-
fia como pensamento da verdade, pela espiritualidade como
transformação do modo de ser do sujeito por ele mesmo.
Simultaneamente, o crescimento do tema catártico. Ou en-
tão: o aparecimento ou o desenvolvimento do problema so-
bre o qual lhes falarei hoje e na próxima vez, que é o pro-
blema fundamental da conversão (da metánoia). Cada vez
mais a tékhne toa bÍou (a arte de viver) vai agora girar em tor-
no da pergunta: como devo transformar meu próprio eu para
ser capaz de aceder à verdade? Daí se compreende também o
fato de que a espiritualidade cristã, a partir do séculos I1I-IV,
ao desenvolver-se em sua forma mais rigorosa, no ascetis-
mo e no monasticismo, poderá muito naturalmente apre-
sentar-se como a consumação de uma filosofia antiga, de
uma filosofia pagã que, a partir do movimento que lhes
acabo de indicar, já era inteiramente dominada pelo tema
da catártica, ou pelo tema da conversão e da metánoia.Avida
de ascese, a vida monástica será a verdadeira filosofia, o mo-
nastério será a verdadeira escola de filosofia e isto, repito,
j
)!
...
122. 220 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
na linha direta de uma tékhne tou bíou que se tomara uma
arte de si mesmo*.
Entretanto, além desta evolução de longo alcance e glo-
bal da filosofia, creio ser necessário dizer também que esta
autofinallzação de si no cuidado de si não teve conseqüências
apenas para a filosofia. Pode-se muito facilmente divisá-lo,
ao que parece, não somente pela literatura, como também
por certas práticas que são atestadas pela história e [por] di-
ferentes documentos. Parece-me que esta autofinalização de
si teve efeitos mais amplos que atingem uma série de prá-
ticas, uma série de formas de vida, modos de experiência
dos individuos sobre si mesmos, por si mesmos, modos de
experiência que, sem dúvida, não eram universais, mas pelo
menos amplamente [propagadosl. Creio que se pode dizer,
tropeçando um pouco na palavra que vou empregar, colo-
cando-a entre muitos parênteses, parênteses irônicos, que,
a partir da época helenística e romana, assistimos a um ver-
dadeiro desenvolvimento da cultura de si. Como, de todo
modo, não gostaria de empregar a palavra cultura em um
sentido demasiadamente vago, diria que se pode falar de
cultura, parece-me, sob certas condições. Primeiramente,
quando dispomos de um conjunto de valores que têm entre
si um mínimo de coordenação, de subordinação, de hierar-
quia. Pode-se falar de cultura quando atendida uma segunda
condição, a saber, que estes valores sejam dados como sen-
do ao mesmo tempo universais, mas não acessíveis a qual-
quer um. Terceira condição para que se possa falar de cultura:
a fim de que os indivíduos atinjam estes valores, são neces-
sárias certas condutas, precisas e regradas. Mais que isto, são
necessários esforços e sacrifícios. Afinal, é necessário mes-
mo poder consagrar a vida inteira a estes valores para ter aces-
.. O manuscrito aqui explicita: Daí enfim que a filosofia ocidental
pode ser lida, em toda a sua história, como o desprendimento da questão:
como, sob que condições, podemos pensar a verdade? - relativamente
à questão: como, a que preço, com qual procedimento deve-se mudar o
modo de ser do sujeito para que ele aceda à verdade?
...........-------------
•
1
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 221
so a eles. Por fim, a quarta condição para que se possa falar
de cultura, é que o acesso a estes valores seja condicionado
por procedimentos e técnicas mais ou menos n?grados, que
tenham sido elaborados, validados, transmitidos, ensina-
dos, e estejam também associados a todo um conjunto de
noções, conceitos, teorias, etc., enfim, a todo um campo de sa-
ber. Pois bem, parece-me que se chamarmos cultura a uma
organização hierárquica de valores, acessível a todos, mas
também ocasião de um mecanismo de seleção e de exclu-
são; se chamarmos cultura ao fato de que esta organização
hierárquica de valores solicita do indivíduo condutas regra-
das, dispendiosas, sacrificiais, que polarizam toda a vida; e
enfim que esta organização do campo de valores e o acesso
a estes valores só se possam fazer através de técnicas regra-
das, refletidas e de um conjunto de elementos que consti-
tuem um saber, então, nesta medida, podemos dizer que na
época helenística e romana houve verdadeiramente uma
cultura de si. Parece-me que efetivamente o eu organizou
ou reorganizou o campo dos valores tradicionais do mundo
helênico clássico. Lembremos que o eu - como tentei expli-
car na última aula - apresenta-se corno um valor universal
mas, de fato, acessível apenas a alguns. Este eu só pode ser
efetivamente atingido como valor sob a condição de certas
condutas regradas, exigentes e sacrificiais, sobre as quais
voltaremos. E enfim o acesso ao eu está associado a certas
técnicas, práticas relativamente bem constituídas, relativa-
mente bem refletidas e, de todo modo, associadas a um do-
mínio teórico, a um conjunto de conceitos e noções que o
integram realmente a um modo de saber. Bem, acho que
tudo isto nos permite finalmente dizer que a partir do perío-
do helenístico desenvolveu-se uma cultura de si. Parece-me
não ser possível fazer a história da subjetividade, a história
das relações entre o sujeito e a verdade, sem inscrevê-la no
quadro desta cultura de si que conhecerá em seguida, no cris-
tianismo - o cristianismo primitivo e depois medieval - e
mais tarde no Renascimento e no século XVII, uma série de
mutações e transformações.
Instituto de PsicologiJ - UFRGS
--- Biblioteca
l
I
1
123. •
222 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
Vejamos pois esta cultura de si. Até então tentei lhes
mostrar como se formava esta prática de si. Gostaria agora
de retomar a questão de modo mais geral, perguntando em
que consiste esta cultura de si como campo de valores orga-
nizado, com suas exigências de comportamentos e seu cam-
po técnico e teórico associado. A primeira questão sobre a
qual pretendo lhes falar, pois creio tratar-se de um elemento
muito importante nesta cultura de si, é a noção de salvação.
Salvação de si e salvação dos outros. O termo salvação é ab-
solutamente tradicional. Com efeito, nós o encontramos em
Platão e precisamente associado ao problema do cuidado de
si e do cuidado dos outros. É preciso salvar-se, salvar-se para
salvar os outros. Em Platão, pelo menos, parece que esta
noção não tem um sentido técnico muito particular nem
muito intenso. Em contrapartida, quando a encontramos nos
séculos I-lI, apercebemo-'nos de que não somente sua ex-
tensão, seu campo de aplicação é infinitamente mais amplo,
mas também que assumiu um valor e urna estrutura intei-
ramente específicos. É sobre isto que gostaria de lhes falar
um pouco. Se tomarmos a noção de salvação de maneira
retrospectiva - isto é, pelos nossos crivos ou esquemas mais
ou menos formados através do cristianismo -, é claro que
associamos a idéia de salvação a certos elementos que nos
parecem constitutivos desta noção. Primeiro, para nós, a
salvação se inscreve, ordinariamente, em um sistema biná-
rio. Situa-se entre a vida e a morte, ou entre a mortalidade
e a imortalidade, ou entre este mundo e o outro. A salvação
faz passar: faz passar da morte para a vida, da mortalidade
para a imortalidade, deste mundo para o outro. Ou ainda
faz passar do mal ao bem, de um mundo da impureza a um
mundo da pureza, etc. Portanto, está sempre no limite, é
um operador de passagem. Segundo, para nós, a salvação
está sempre vinculada à dramaticidade de um acontecimen-
to, acontecimento que pode ser situado na trama temporal
dos acontecimentos do mundo ou pode situar-se em outra
temporalidade, a de Deus, da eternidade, etc. Em todo caso,
estes acontecimentos - históricos ou meta-históricos, repi-
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 223
to - é que estão em jogo na salvação: é a transgressão, a falta,
a falta original, a queda, que tomam necessária a salvação.
E, ao contrário, é a conversão, o arrependimento, ou a en-
carnação de Cristo, etc. - repito ainda, acontecimentos indi-
viduais' históricos ou meta-históricos - que irão organizar e
tomar possível a salvação. A salvação está pois vinculada à
dramaticidade de um acontecimento. Enfim, quando falamos
da salvação, parece que pensamos sempre em uma opera-
ção complexa na qual o próprio sujeito que realiza sua sal-
vação, dela é, sem dúvida, o agente e o operador, mas na
qual também é requerido o outro (um outro, o Outro) cujo
papel, precisamente, é muito variável e difícil de definir. De
todo modo, temos aí, neste jogo entre a salvação que nós
mesmos operamos e aquele que nos salva, o ponto de de-
flagração de certas teorias e análises que cqnhecemos bem.
De sorte que, através destes três elementos - o caráter bi-
nário' a dramaticidade de um acontecimento e a operação
com dois termos -, a salvação, para nós, é sempre conside-
rada como uma idéia religiosa. A tal ponto, aliás, que temos
o hábito de distinguir nas religiões, as religiões de salvação
e as religiões sem salvação. A tal ponto ainda que, quando
encontramos o tema da salvação no pensamento helenísti-
co, romano ou no pensamento da Antiguidade tardia, vemos
sempre a influência de um pensamento religioso. De resto,
é fato que entre os pitagóricos, cujo papel foi tão conside-
rável e duradouro ao longo do pensamento filosófico grego,
a noção de salvação é importante12 Não obstante, o que a
mim me parece necessário realçar, em razão do que pretendo
expor, o essencial, é que, qualquer que seja sua origem, qual-
quer que seja o reforço que, sem dúvida, recebeu da temá-
tica religiosa na época helenística e romana, a salvação funcio-
na, efetivamente e sem heterogeneidade, como noção filo-
sófica, no campo mesmo da filosofia. A salvação se tomou,
e assim se mostra, objetivo da prática e da vida filosóficas.
Lembremos certos pontos. O verbo sózein (salvar) ou o
substantivo solena (salvação) têm, em grego, algumas signi-
ficações, Sózein (salvar) é, primeiro, livrar de um perigo que
J
124. 224 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
ameaça. Dir-se-á, por exemplo: salvar de um naufrágio, sal-
var de uma derrota, salvar de uma doença*. Sózein também
quer dizer (segundo grande campo de significações): guardar,
proteger, manter em tomo de algo uma proteção que lhe
permitirá conservar-se no estado em que está. A este respeito,
há um texto muito curioso de Platão, no Crátilo, afirmando
que entre os pitagóricos o corpo é considerado como um
contorno da alma. Não o corpo como prisão ou túmulo da
alma que ele encerra, mas ao contrário como um pedbolon
tês psykhês (um contorno para a alma) hína sózetai (a fim de
que a alma seja salva). É a segunda grande significação do
sózein. Em terceiro lugar, em sentido semelhante mas niti-
damente mais moral, sózein quer dizer: conservar, proteger
alguma coisa como o pudor, a honra ou eventualmente a
lembrança. Soteda mnémes (guardar a lembrança)!4 é uma
expressão que encontramos em Plutarco. Em Epicteto, por
exemplo, encontramos a idéia da preservação do pudor!5.
Quarta significação: o sentido jurídico. Salvar [alguém] por
um advogado, por exemplo (ou, em todo caso, por qualquer
um que fale em nome de outro), é, evidentemente, fazer
com que escape à acusação que sobre ele recai. Ao mesmo
tempo, é limpá-lo. É mostrar que é inocente. Em quinto lu-
gar, sózesthai (forma passiva) significa ser salvo neste mo-
mento, isto é, subsistir, manter-se tal qual se estava no esta-
do anterior. Dir-se-á, por exemplo, que o vinho se conserva,
mantém-se em seu estado de frescor, sem alteração. Ou en-
tão Díon de Prusa examina de que modo um tirano poderá
se salvar, significando: de que modo poderá manter seu po-
der e mantê-lo no tempo [...]!6 [Também se dirá:] uma cida-
li- O manuscrito fornece um exemplo em Plutarco: Não se deve des-
truir uma amizade com comiseração, mas recorrer a palavras mordazes
como a um remédio que salva e preserva aquilo a que se aplka (all'hos
pharmdko fô dáknonti khrêsthai s6zonti kai phyláttonti to therapeuómenon)
(Comment distinguer le fiateur de l'ami, 55c, in Plutarque, Oeuvres morales, t.
1-2, trad. fr.A. Philippon, Paris, Les Belles Lettres, 1989, parágrafo 11, p. 98).
1
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 225
de só pode ser salva (sothênai), só pode conservar-se, ser con-
servada, se não se afrouxam suas leis17
. Idéia portanto, se
quisermos, de manutenção no estado anterior, no estado pri-
mitivo ou no estado de pureza original. Por fim, em sexto
lugar, sózein tem um sentido mais positivo ainda. Sózein sig-
nifica fazer o bem, quer dizer, assegurar o bem-estar, asse-
gurar o bom estado de alguma coisa, de alguém ou de uma
coletividade. Plutarco, por exemplo, na Consolação aApolônio,
afirma que, quando sofremos um luto, não devemos nos
entregar, nos fechar na solidão e no silêncio, negligenciar to-
das as nossas ocupações. É preciso, diz ele, continuar a as-
segurar a epiméleia tou sómatos (os cuidados do corpo) e sote-
da tôn symbioúnton (a salvação dos que vivem convosco)!8;
com certeza, trata-se aí do pai de família, daquele que tem
uma responsabilidade e que, por conseqüência, deve conti-
nuar a fazer com que sua família viva, assegurar-lhe o status,
o bom estado, o bem-estar, etc. e não tomar o luto como pre-
texto para negligenciar tudo isto. Díon de Prusa (discurso 64)
diz que o rei é aquele ho tà pánta sózon!9 Se traduzirmos,
palavra a palavra, sózein por salvar, isto quer dizer: aquele
que tudo salva. Na realidade, o rei é aquele que estende
seus benefícios a todas as coisas e a propósito de todas elas.
É o princípio do bem-estar no Estado ou no Império. Temos
ainda a expressão latina, uma expressão politico-jurídica mui-
to significativa: salus augusta, a augusta salvação, o que quer
dizer não que Augusto salvou o Império, [mas] que ele é o
princípio do bem público, do bem-estar do Império em geral.
Eele, pois, o princípio do bem. Aí está, portanto, todo um
conjunto de significações que podemos encontrar em torno
do verbo sózein ou do substantivo soteda.
Compreende-se, a partir daí, quesalvar-se a si mes-
mo de modo algum pode reduzir-se, quanto à sua signifi-
cação, a algo como a dramaticidade de um acontecimento
que permite, em nossa existência, permutar a morte em vida,
a mortalidade em imortalidade, o mal em bem, etc. Não se
trata simplesmente de salvar-se em relação a um perigo. So-
teria, sózein têm sentidos bem mais amplos. Salvar a si mes-
i
'i
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II
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125. •
226 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
mo não tem simplesmente o valor negativo de escapar do
perigo, escapar da prisão do corpo, escapar da impureza do
mundo, etc. Salvar-se tem significações positivas. Como
uma cidade que se salva instalando à volta de si as defesas,
as fortalezas, as fortificações de que precisa -lembremos a
idéia do corpo como pen1Jolon lês psykhês hína sózelai20
-, as-
sim se dirá da alma que se salva, de alguém que se salva,
quando estiver convenientemente armado, quando estiver
de tal modo equipado que, se a ocasião se fizer, possa efe-
tivamente defender-se. Quem se salva é quem está em um
estado de alerta, de resistência, de domínio e soberania so-
bre si, que lhe permite repelir todos os ataques e todos os
assaltos. Salvar-se a si mesmo quererá igualmente dizer:
escapar a uma dominação ou a uma escravidão; escapar a
uma coerção pela qual se está ameaçado, e ser restabelecido
nos seus direitos, recobrar a liberdade, recobrar a indepen-
dência. Salvar-se significará: manter-se em um estado per-
manente que nada possa alterar, quaisquer que sejam os
acontecimentos que se passam em tomo, como um vinho
se conserva e se salva. Enfim, salvar-se significará: aceder
a bens que não se possuía no ponto de partida, favorecer-se
com uma espécie de benefício que se faz a si mesmo, do
qual se é o próprio operador. Salvar-se significará: assegu-
rar-se a própria felicidade, a tranqüilidade, a serenidade, etc.
Vemos porém que, se par um lado salvar-se tem assim es-
tas significações positivas e não remete à dramaticidade de
um acontecimento que nos faz passar do negativo ao positi-
vo, por outro lado, o termo salvação a nada mais remete se-
não à própria vida. Nesta noção de salvação que encontra-
mos nos textos helenísticos e romanos não há referência a
algo como a morte ou a imortalidade ou um outro mundo.
Não é por referência a um acontecimento dramático ou a
um outro operador que nos salvamos. Salvar-se é uma ati-
vidade que se desdobra ao longo de toda a vida e cujo úni-
co operador é o próprio sujeito. E se, finalmente, a ativida-
de de salvar-se conduz a algum efeito terminal que é sua
meta, que é sua finalidade, este efeito consiste em que, por
.1
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 227
esta salvação, nos tomamos inacessíveis aos infortúnios, às
perturbações, a tudo o que pode ser induzido na alma pe-
los acidentes, pelos acontecimentos exteriores, etc. E, a par-
tir do momento em que se atingiu o termo, o objeto da sal-
vação, não se tem necessidade de nada mais, nem de mais
ninguém. Os dois grandes temas, a ataraxia (ausência de per-
turbação, domínio de si que faz com que nada nos perturbe)
e a autarcia (auto-suficiência que faz com que de nada mais
se necessite senão de si mesmo), são as duas formas nas
quais a salvação, os atos de salvação, a atividade de salvação
que se exerceu por toda a vida, encontram a recompensa. A
salvação é portanto uma atividade, atividade permanente do
sujeito sobre si mesmo, que encontra sua recompensa em
uma certa relação consigo, ao tornar-se inacessível às per-
turbações exteriores e ao encontrar em si mesmo uma sa-
tisfação que de nada mais necessita senão dele próprio. Di-
gamos, numa palavra, que a salvação é a forma, ao mesmo
tempo vigilante, contínua e completa, da relação consigo
que se cinge a si mesma. Salva-se para si, salva-se por si,
salva-se para afluir a nada mais do que a si mesmo. Nesta
salvação - que chamarei helenística e romana -, nesta sal-
vação da filosofia helenística e romana, o eu é o agente, o
objeto, o instrumento e a finalidade.Vemos quão longe esta-
mos da salvação mediatizada pela cidade, que encontramos
em Platão. Quão longe também estamos da salvação na for-
ma religiosa, referida a um sistema binário, à dramaticidade
de um acontecimento, a uma relação com o Outro e que, no
cristianismo, implicará uma renúncia a si21. Ao contrário, é
o acesso a si que está assegurado pela salvação, um acesso a
si indissociável, no tempo e no interior mesmo da vida, do
trabalho que se opera sobre si mesmo.
Interrompo-me aqui, se concordarem. Vamos descan-
sar por cinco minutos. E buscarei então lhes mostrar de que
modo, apesar de tudo e destas teses gerais, a salvação de si
no pensamento helenístico e romano acha-se vinculada à
questão da salvação dos outros.
126. •
NOTAS
1. Proclo (412-485) nasceu em Bizâncio, de uma família de ma-
gistrados, foi convertido por Plutarco à filosofia platônica e tor-
nou-se o novo mestre da Escola de Atenas. Mestre austero, minis-
trou seu ensino até o final dos seus dias, ao mesmo tempo em que
redigia numerosas obras, dentre as quais a Teologia platônica. Filóso-
fo neoplatônico do século VI, Olimpiodoro dirigiu a Escola de Ale-
xandria e redigiu numerosos comentários de Platão e de Aristóteles.
2. Trata-se de A-J. Festugiére, 'Tordre de lecture des dialo-
gues de Platon aux VM siécles in Études de philosophie grecque,
Paris, Vrin, 1971, pp. 535-50 (primeira publicação: Museum Helve-
ticum, 26-4, 1969).
3. Foucault apenas retoma aqui as traduções propostas por
Festugiére.
4. Id., p. 540.
5. Jâmblico (por volta de 240-325) nasceu em Chalsis, na Sí-
ria, de uma influente família principesca, ministrou seu ensino na
Ásia Menor (teria fundado uma escola em Apaméia, na Síria). De-
liberadamente abre o neoplatonismo à dimensão teúrgica; estabe-
lece uma ordem espiritual da leitura dos diálogos de Platão, que
será bem reconhecida.
6. A-J. Festugiére, 'Tordre de lecture....
7. Id., pp. 540-1.
8. Id., p. 541.
9.lbid.
I
!
J
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 229
10. Sobre a relação de analogia entre a alma e a cidade no Al-
cibíades e na República, cf. aula de 13 de janeiro, prjmeira hora, e
supra, p. 80, nota 28: citação de La République.
11. Ele me obrigou a confessar a mim mesmo que, embora
tantas coisas me faltem, persisto em não ter cuidado de mim mes-
mo (éti emautoú mên amelô), envolvendo-me, antes, com os assun-
tos de Atenas (platon, Le Banquet, 216a, trad. Ir. L. Robin, ed. ci-
tada, pp. 78-9).
12. Sobre a noção de salvação nos pitagóricos e particular-
mente a relação da salvação com os exercícios de memória, cf. M.
Détienne, Les Maftres de vérité dans la Crece archaique (1967), Paris,
La Découverte, 1990, pp. 128-9.
13. [Para os Órficos] a alma expia as faltas pelas quais é pu-
nida [...], para guardá-la (hina sózeta,), tem como contorno (perí-
bolon) este corpo que parece uma prisão (platon, Cratyle, 400c,
trad. Ir. L. Méridier, ed. citada, p. 76).
14. Seria então realmente necessário, primeiro e antes de
tudo, habitar em uma 'cidade célebre' [...] a fim [...] de recolher,
escutando e questionando, todos os detalhes que escaparam aos
escritores e que, conseIVados na memória dos homens (soteria mné-
mes), têm uma autoridade mais manifesta (Vie de Démsothene, 846d,
in Plutarque, Vies, t. XII, trad. Ir. R. Flaceliére E. Chambzy, Paris,
Les Belles Letres, 1976, capo 2, 1, p. 17).
15. Se salvaguardarmos (sózetai) este elemento distintivo
[...L se não deixarmos que se corrompam o pudor, a lealdade, a in-
teligência, então, é o próprio homem quem estará salvaguardado
(sózeta,) (Épictéte, Entretiens, I, 28, 21, ed. citada, p. 103).
16. Terceiro dos discursos de Díon Sur la royauté: /lEi sothése-
taí tina khrónon, in Dion Chrysostom, Discourses, t. 1, trad. fr. J. W.
Cohoon, ed. citada, p. 130.
17. Discurso 75 (Sur la lO!) in Dion Chrysostom, Discourses, t.
V, p. 248 (pólin d'ouk eni sothenai toú nómou luthentos).
18. Rejeitemos os sinais exteriores do luto e busquemos ter
cuidados com nosso corpo (tés tôn symbioúnton hemfn soterias) e
assegurar a salvaguarda das pessoas que vivem conosco (tês toú sym-
bioúnton hemfn soterías) (Consolation à Apollonios, 118b, in Plutar-
que, Oeuvres morales, t. lI, trad. Ir. J. Delradas R. Klaerr, ed. cita-
da, parágrafo 32, p. 80).
19. No discurso 64 realmente encontramos o verbo sózein, re-
ferente porém não ao Rei mas àFortuna sobre a qual Díon de Pru-
j
127. •
230 AHERMEN~UTlCA DO SI1JITTO
sa nos diz que, tal como um bom navio, salva todos os seus pas-
sageiros: pántas sózei tous empléontas (Discourses, t. V, p. 48).
20. Cf. supra, nota 13: citação do Crátilo de Platão.
21. Cf. aula de 24 de fevereiro, primeira hora.
.l
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982
Segunda hora
Questões propostas pelo público em torno de: subfetivi-
dade e verdade. - Cuidado de si e cuidado dos outros: uma in-
versão de relações. - A concepção epicurista da amizade. - A
concepção estóica do homem como ser comunitário. - A falsa
exceção do príncipe.
Uma simples questão técnica e de uso do tempo. Pergun-
taram-me há pouco se darei aula na próxima semana, pois
deve ser uma semana de férias nas universidades. Isto os
atrapalha ou tanto lhes faz? Bem, tenho sempre em mente
que, se vocês eventualmente tiverem questões a propor, se-
ria bom que o fizessem. Como uso duas horas seguidas, o
curso que ministro tem um pouco a forma de seminário1.
Enfim, tento trazer um tipo de material ou fazer certas refe-
rências que, de ordinário, mais dificilmente têm lugar em
um curso. Gostaria de aproximar um pouco este procedi-
menta do que poderia ser um seminário. Porém, em um se-
minário isto implica que haja algumas respostas, ou ques-
tões, ou questões-respostas. No momento, por exemplo,há
pessoas que gostariam de colocar questões, sejam elas pu-
ramente técnicas, sejam questões gerais acerca do sentido
da minha exposição? Sim?
[Questão vinda do público:] Eu, se me permite. Poderíamos ver
insinuar-se, como operadores naquilo que o senhor diz, certos
conceitos autenticamente lacanianos?
- Você quer dizer, no meu discurso, isto é, na maneira
como eu falo daquilo que falo, ou nas coisas de que falo?
- É indissociável.
,
'I
I
I
I
128. •
232 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
_ Em certo sentido, sim. Só que minha resposta não
pode ser a mesma em um caso ou no outro. Pois, em um
caso, a resposta a ser dada deveria ocupar-se comigo. Quero
dizer: eu deveria interrogar-me sobre o que faço. No outro,
deveria interrogar Lacan e saber o que, efetivamente, na prá-
tica, em um campo conceitual como o da psicanálise, e da
psicanálise lacaniana, conceme, de um modo ou outro, a esta
problemática do sujeito, à relação do sujeito consigo mesmo,
à relação do sujeito com a verdade, etc., tal como foi histo-
ricamente constituída nesta longa genealogia que tento re-
compor, desde o Alcibíades até Santo Agostinho. Assim,
gostaria que...
_ Excluamos o sujeito. E tenhamos em conta simplesmente
os conceitos lacanianos. Consideremos afunção dos conceitos la-
caníanos...
- No meu discurso?
- Sim.
_ Se é assim, então lhe responderia que cabe a você
dizê-lo. As idéias que estão naquilo que exponho, nem posso
dizer por trás do que digo, de tal modo estão à frente, mos-
tram, a despeito de tudo, da maneira mais manifesta, o que
quero fazer. Ou seja: tentar recolocar, no interior de um cam-
po histórico tão precisamente articulado quanto possível, o
conjunto daquelas práticas do sujeito que se desenvolveram
desde a época helenística e romana até hoje. E acredito que,
se não retomarmos a história das relações entre sujeito e
verdade do ponto de vista do que chamo, de modo geral, as
técnicas, tecnologias, práticas, etc., que as compuseram e re-
grafam, compreenderemos mal o que se passa com as ciên-
cias humanas e,se quisermos usar este termo, com a psica-
nálise em particular. Em certo sentido, pois, é disto que falo.
Agora, o que há de Lacan no meu modo de abordar, sem
dúvida, repito, não me cabe dizer. Não saberia dizê-lo.
_ Quando o senhor diz, por exemplo, isto é verdadeiro e
isto não é verdadeiro ao mesmo tempo, este não verdadeiro
não teria, afinal, uma função econômica?
-Você quer dizer o quê? [risos]
-1
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 233
- Que, como pressuposto disto (que: o que é dito não é ver-
dadeiro, como há pouco), não haveria afunção implícita de con-
ceitos lacanianos que vêm, precisamente, trazer esta espécie de
distância entre o que é dito e o que não é ainda, ou talvez, não é
jamais dito?
- Pode-se chamar de lacaniano, pode-se chamar de
nietzscheano também. Enfim, toda problemática da verdade
como jogo, digamos, conduz, com efeito, a este gênero de dis-
curso. Bem, tomemos as coisas de outro modo. Digamos o
seguinte: não foram tantas as pessoas que, nos últimos anos
- diria, no século XX -, colocaram a questão da verdade. Não
foram tantas as pessoas que perguntaram: o que se passa
com o sujeito e com a verdade? E: qual é a relação do sujei-
to com a verdade? O que é o sujeito da verdade, o que é o
sujeito que diz a verdade, etc.? Quanto a mim, só vejo duas:
Heidegger e Lacan. Pessoalmente, como vocês devem ter
percebido, é antes do lado de Heidegger e a partir de Hei-
degger que tentei refletir a respeito. Mas é certo que não se
pode deixar de cruzar com Lacan quando se coloca este gê-
nero de questões. Outras questões talvez?
[Passam-lhe um bilhete.]
A questão é a seguinte: Na primeira aula, o senhor colo-
cou em rivalidade ocuidado de si e omodelo cartesiano. Nas au-
las seguintes, parece-me, esta rivalidade não foi mais evocada.
Por quê?
É curioso que você me coloque hoje esta questão, pois,
de fato, havia pensado em retomá-la um pouco, precisamen-
te hoje, a propósito do catártico, etc. É certo que não é a ques-
tão fundamental que quero colocar. Esta, que é uma questão
histórica e, ao mesmo tempo, a questão de nossa relação
com a verdade, é a que, parece-me, desde Platão, desde
este Alcibíades iniciador, aos olhos da tradição platônica,
de toda a filosofia, é assim colocada: a que preço posso ter
acesso à verdade? Este preço é posto no próprio sujeito sob
a seguinte forma: qual trabalho devo operar em mim mes-
mo, qual a elaboração que devo fazer de mim mesmo, qual
modificação de ser devo efetuar para poder ter acesso à ver-
129. •
234 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
dade? Este me parece ser um terna fundamental do plato-
nismo, mas igualmente do pitagorismo, etc., e podemos di-
zer, creio, de toda a filosofia antiga, com a enigmática exceção
de Aristóteles, o qual porém, de todo modo, sempre cons-
titui exceção quando se estuda a filosofia antiga. É um traço
geral, um princípio fundamental, que o sujeito enquanto tal,
do modo corno é dado a si mesmo, não é capaz de verda-
de. E não é capaz de verdade, contudo, a não ser que ele efe-
tue em si mesmo certas operações, certas transformações
e modificações que o tomarão capaz de verdade. Creio que
este é um terna fundamental, e que nele o cristianismo mui-
to facilmente achará seu lugar, acrescentando-lhe, bem en-
tendido, um elemento novo, não encontrado na Antigui-
dade' a saber, que dentre as condições há a relação com o
Texto e a fé em umTexto revelado, o que, evidentemente, não
constava antes. Afora isto porém a idéia de uma conversão,
por exemplo, corno unicamente capaz de dar acesso à ver-
dade, é encontrada em toda a filosofia antiga. Não pode-
mos ter acesso à verdade se não mudamos nosso modo de
ser. Minha idéia então é que, tornando Descartes corno mar-
co, evidentemente porém sob o efeito de toda urna série de
complexas transformações, é chegado um momento em que
o sujeito corno tal tomou-se capaz de verdade. É claro que o
modelo da prática científica teve um papel considerável:
basta abrir os olhos, basta raciocinar com sanidade, de ma-
neira correta e, mantendo constantemente a linha da evidên-
cia sem jamais afrouxá-la, e seremos capazes de verdade.
Portanto, não é o sujeito que deve transformar-se. Basta que
o sujeito seja o que ele é para ter, pelo conhecimento, um
acesso à verdade que lhe é aberto pela sua própria estrutu-
ra de sujeito. Parece-me então ser isto que, de maneira muito
clara, encontramos em Descartes, a que se junta, em Kant,
se quisermos, a virada suplementar que consiste em dizer:
o que não somos capazes de conhecer é constitutivo, preci-
samente, da própria estrutura do sujeito cognoscente, fazen-
do com que não o possamos conhecer. Conseqüentemente,
a idéia de urna certa transformação espiritual do sujeito que
....i
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 235
lhe daria finalmente acesso a alguma coisa à qual não pode
aceder no momento é quimérica e paradoxal. Assim, a li-
quidação do que poderíamos chamar de condição de espi-
ritualidade para o acesso à verdade, faz-se com Descartes e
com Kant; Kant e Descartes me parecem ser os dois gran-
des momentos.
- O que me surpreende um pouco é a impressão que se tem
de que antes de Descartes só houve o fugaz aparecimento de
Aristóteles, mas que não teve uma espécie de continuidade...
- Houve Aristóteles e houve - creio tê-lo mencionado
na primeira aula - o problema da teologia'. A teologia é pre-
cisamente um tipo de conhecimento de estrutura racional
que permite ao sujeito - enquanto sujeito racional e somen-
te enquanto sujeito racional- ter acesso à verdade de Deus,
sem condição de espiritualidade. Tivemos em seguida todas
as ciências empíricas (ciências da observação), etc. Tivemos
as matemáticas, enfim, urna quantidade de processos com
resultados. Isto quer dizer que a escolástica, de modo geral,
já era um esforço para revogar a condição da espiritualida-
de que havia sido estabelecida em toda a filosofia antiga e
em todo o pensamento cristão (Santo Agostinho e assim
por diante).Você percebe o que quero dizer.
- Nestes dois regimes da verdade de que o senhorfala, em
cuja história o momento cartesiano opera a divisão (o primeiro
exigindo toda uma transformação do sujeito, etc., e o segundo em
que osujeito épor si mesmo capaz de aceder à verdade), éda mes-
ma verdade que se trata nos dois casos? Isto é, uma verdade pu-
ramente da ordem do conhecimento e uma verdade que acarreta
todo um trabalho sobre opróprio sujeito, são a mesma verdade...?
- De modo algum. Você tem inteira razão, pois, dentre
todas as transformações ocorridas, houve aquela concernen-
te ao que chamo de condição de espiritualidade para o aces-
so à verdade. Em segundo lugar: a própria transformação
desta noção de acesso à verdade que torna a forma do conhe-
cimento. E finalmente, em terceiro lugar, a própria noção de
verdade. Pois, também aí, considerando as coisas muito ge-
nericamente, ter acesso à verdade é ter acesso ao próprio
130. 236 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
ser, acesso este em que o ser ao qual se tem acesso será, ao
mesmo tempo e em contraponto, o agente de transforma-
ção daquele que a ele tem acesso. É este o círculo platônico
ou, em todo o caso, o círculo neoplatônico: conhecendo a
mim mesmo, acedo a um ser que é a verdade, e cuja verdade
transforma o ser que eu sou, assimilando-me a Deus. A ho-
moíosis tô theô aí está presente'.Você percebe o que eu que-
ro dizer. Ao contrário, é bem evidente que o conhecimento
de tipo cartesiano não poderá ser definido como acesso à
verdade, mas conhecimento de um domínio de objetos. En-
tão, se quisermos, a noção de conhecimento do objeto vem
substituir a noção de acesso àverdade.Tento aí situar a enor-
me transformação que é, creio eu, bastante essencial para
compreender tanto o que é a filosofia quanto o que é a ver-
dade e quais são as relações do sujeito com a verdade, enor-
me transformação que procuro estudar, durante este ano,
tendo como eixofilosofia e espiritualidade e deixando de
lado o problemaconhecimento do objeto. Bem, vocês con-
cordam que eu agora continue a aula? Pois seja.
Está posto, portanto, o modo como a noção de salvação
se organiza no pensamento helenístico e romano. Assim de-
finida, a salvação como objetivo de uma relação consigo na
qual se encontra a completude - salvação que é nada mais
do que a completude mesma da relação consigo - excluiria
ela, inteiramente então, o problema da relação com o Outro?
Salvação de si e salvação dos outros estariam definiti-
vamente desconectadas ou, para empregar mais uma vez o
vocabulário neoplatônico, o político e o catártico estariam
definitivamente dissociados? É evidente que não, pelo me-
nos durante o período e nas formas de pensamento que
aqui estudo, nos séculos I-lI. Mais tarde, sem dúvida, será
diferente. Em todo caso, bem mais que uma desconexão
entre o catártico e o político, trata-se antes, ao que me pa-
rece, de uma inversão de relação. Lembremos que, para Pla-
tão, era a salvação da cidade que envolvia, a título de conse-
qüência, a salvação do indivíduo. Ou, para falar um pouco
mais precisamente - ainda que sempre de um modo muito
..........--------
•
.....
AUlA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 237
global e esquemático -, em Platão havia que ocupar-se con-
sigo porque era preciso ocupar-se com os outros. E, ao salvar
os outros, simultaneamente se salvava a si. Pois bem, pare-
ce-me que agora a relação é inversa: é preciso ocupar-se de
si porque se é si mesmo e simplesmente para si. Quanto ao
benefício para os outros, a salvação dos outros, ou a manei-
ra de nos ocuparmos dos outros possibilitando sua salvação
ou ajudando-os na sua própria salvação, virá a título de be-
nefício suplementar ou, se quisermos, decorrerá a título de
efeito - efeito necessário, sem dúvida, mas tão-somente co-
nexo - do cuidado que devemos ter conosco mesmos, da
vontade e da aplicação que dedicamos à nossa própria sal-
vação. A salvação dos outros é como uma recompensa su-
plementar à operação e à atividade de salvação que obsti-
nadamente exercemos sobre nós mesmos. Penso que esta
inversão da relação está ilustrada de várias maneiras. Para
ater-me a dois ou três exemplos precisos, tomarei a concep-
ção epicurista da amizade e a concepção estóica ou, se qui-
sermos, aquela que é própria de Epicteto, da relação de si
com os outros (deveres para consigo mesmo, deveres para
com os cidadãos). Depois, se houver tempo, também o pro-
blema do exercício do Império em Marco Aurélio.
Primeiramente, a concepção epicurista da amizade. Sa-
bemos que esta concepção coloca alguns problemas, pro-
blemas que, muito curiosamente, revelam a inquietude mo-
ralizante que é a nossa. Com efeito, sabemos, por um lado,
que Epicuro exalta a amizade e, por outro, em alguns textos
célebres, que Epicuro sempre faz a amizade derivar da uti-
lidade. É a famosa Sentença Vaticana 23': Toda amizade é
por ela própria desejável; entretanto, ela tem seu começo na
utilidadeS. Deveríamos então dizer que esta amizade epicu-
rista' tal como é exaltada por Epicuro e todos os seus discí-
pulos, nada mais seria do que a utilidade, ou seja, que esta-
ria inteiramente comandada por um cuidado de si que se-
ria o cuidado da utilidade? Penso que é em tomo da noção
de utilidade, no seu sentido muito particular, que se deve
examinar um pouco mais de perto esta concepção. [Seria
j
131. •
238 A HERMENfUTICA DO SUJWO
preciso, com efeito] mostrar que a amizade epicurista nada
mais é do que uma fanna de cuidado de si, mas, ao mesmo
tempo, que este cuidado de si não é por isto a preocupação
com a utilidade. Retomemos a SentençaVaticana 23: Toda
amizade é por ela própria desejável; di' heautbz haireté:
deve ser escolhida por ela mesma, por causa dela mesma;
arkhbz de ez1ephen apà tês apheleías: entretanto, [oposição,
pois; M. F.] ela tem seu começo na utilidade. Há portanto
uma nítida oposição entre o fato de ser desejável e, entre-
tanto, começar pela utilidade. Como se ela devesse ser tan-
to menos desejável quanto mais fosse útil. Ou, ainda, como
se houvesse uma [relação de] exclusão entre a utilidade da
amizade (que, contudo é seu começo) e sua intrinseca de-
sejabilidade. Creio que não é muito difícil interpretar este
texto e o que ele quer dizer. A utilidade é a ophéleia, isto é,
alguma coisa que designa uma relação externa entre o que
se faz e por que se o faz. A amizade é útil. É útil porque pode
me ajudar, por exemplo, se tenho dívidas e quero ser ajuda-
do financeiramente. Pode ser útil na carreira política, etc. É
bem assim, diz Epicuro, que a amizade começa. Ou seja, ela
de fato se inscreve no regime das trocas sociais e dos servi-
ços que vinculam os homens. Mas, se de fato ela tem seu
começo assim, em contrapartida - e é aí que está a oposi-
ção - ela é hairete di' heautén, isto é, por ela mesma é que
deve ser escolhida. E por que deve ser escolhida por ela mes-
ma? A razão, creio, é facilmente encontrada na Sentença
Vaticana 39: Nem é amigo quem busca sempre a utilidade,
nem quem nunca a associa à amizade; pois o primeiro faz
com o benefício o tráfíco do que se dá em troca, o outro
rompe com a boa esperança para o futuro6
. Isto significa
que a amizade se tornará haireté (desejável) em si mesma,
não por uma supressão da utilidade, mas ao contrário por
certo equilíbrio entre a utilidade e alguma coisa diferente da
utilidade. Não é amigo, diz esta SentençaVaticana 39, quem
busca sempre e somente a utilidade. Mas também não se
deve crer que amigo é quem houvesse banido inteiramente
a utilidade da relação de amizade. Se removemos inteira-
J
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE ]982 239
mente a utilidade, se a excluímos, rompemos então com toda
boa esperança para o futuro. Assim, este é o problema da ami-
zade epicurista: primeiro, nascimento na utilidade; segun-
do, oposição entre a utilidade e a desejabilidade da amiza-
de; terceiro enfim o fato de que, a despeito desta oposição,
a amizade só é desejável se mantiver perpetuamente uma
certa relação útil. Esta combinação entre utilidade e deseja-
bilidade tem seu lugar e seu equilíbrio assim expressos: De
todos os bens que a sabedoria proporciona para a felicidade
da vida inteira, de longe o maior é a posse da amizade.? E
a SentençaVaticana 34: Da ajuda por parte dos amigos re-
cebemos não tanto a ajuda que deles nos vem, quanto a COn-
fiança nesta ajuda.''' Isto significa que a amizade é desejável
porque faz parte da felicidade. E a felicidade (makariótes) de
que ela faz parte, em que consiste? Em saber que, contra os
males que nos podem advir do mundo, somos tão protegi-
dos quanto possível e que deles independemos totalmente.
A makariótes é a certeza desta independência em relação aos
males. E esta independência em relação aos males nos é as-
segurada por várias coisas, entre elas a seguinte: da existên-
cia dos nossos amigos recebemos não tanto uma ajuda real
quanto a certeza e a confiança de podermos receber esta
ajuda. Neste momento, a consciência da amizade, saber que
estamos rodeados de amigos e que estes amigos terão para
conosco a atitude de reciprocidade correspondente à ami-
zade que lhes dedicamos, é isto que constitui para nós uma
das garantias da felicidade. A sabedoria se cerca de amigos
na medida em que, tendo a sabedoria por objetivo estabe-
lecer a alma em um estado de makariótes - em um estado,
pois, que depende da ataraxia, isto é, da ausência de per-
turbação -, encontramos nestes amigos e na confiança que
temos na sua amizade uma das garantias desta ataraxia e
desta ausência de perturbação. Portanto, nesta concepção
da amizade epicurista, vemos manter-se ao extremo o prin-
cípio segundo o qual na amizade nada se busca senão a si
mesmo ou a própria felicidade. A amizade nada mais é que
uma das formas que se dá ao cuidado de si. Todo homem
I
1
132. l
•
240 A HERMEN~UTICA DO SUJEIra
que tem realmente cuidado de si deve fazer amigos. Estes
amigos chegam ocasionalmente no interior da rede de tro-
cas sociais e da utilidade. A utilidade, que é ocasião de ami-
zade, não deve ser abolida. E preciso mantê-la até o fim.
Mas o que dará função à utilidade no interior da felicidade
é a confiança que dedicamos aos nossoS amigos que são,
para conosco, capazes de reciprocidade. E é a reciprocidade
destes comportamentos que faz figurar a amizade como um
dos elementos da sabedoria e da felicidade. Vemos pois a
complexa articulação entre utilidade e desejabilidade, entre
a reciprocidade da amizade e a singularidade da felicidade
e da tranqüilidade que me está assegurada. Vemos que a
amizade é inteiramente da ordem do cuidado de si e que é
pelo cuidado de si que se deve ter amigos. Mas a utilidade
que obtemos de nossa amizade el conseqüentemente, a uti-
lidade que nossos amigos obtêm da que lhes dedicamos,
são um excedente no interior desta busca da amizade para
si mesmo.Vemos a localização da relação de reciprocidade
(útilidade de nós mesmos para com os outros e dos outros
para conosco) no ~terior do objetivo geral da salvação de si e
do cuidado de si. E, por assim dizer, a figura inversa da reci-
procidade platônica de que lhes falei há pouco', na meclida
em que, para Platão, devemos nos ocupar conosco para os
outros, e são os outros que, na comunidade formada pela ci-
dade' nos asseguram nossa própria salvação. Agora, a amiza-
de epicurista permanece no interior deste cuidado de si e in-
clui, como garantia da ataraxia e da felicidade, a necessária re-
ciprocidade das amizades. Isto, quanto à amizade epicurista.
Segunda indicação desta inversão das relações entre
salvação de si e salvação dos outros: a concepção estóica do
homem como ser cOITIunitário10. Facilmente a encontramos
exposta em vários textos. Tomaremos Epicteto como exem-
plo. Em Epicteto, a concepção do vínculo entre cuidado de
si e cuidado dos outros desenvolve-se em dois niveis. Primei-
ramente, em um nível natural. É a concepção do vínculo
providencial. Com efeito, diz Epicteto, a ordem do mundo
está de tal sorte organizada que todos e quaisquer seres vi-
.1.
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 241
vos (animais, homens, pouco importa) buscam, todos eles,
seu próprio bem. Ora, a providência, Zeus, o Deus, a racio-
nalidade do mundo, etc., fizeram com que cada vez que um
destes seres vivos, qualquer que seja, busca seu próprio bem,
ao mesmo tempo e por isto mesmo, sem o querer nem pro-
curar, faz o bem dos outros. A tese está claramente explicada
no colóquio 19 do livro I: Zeus dispôs a natureza do ani-
mal racional de tal modo que ela não possa obter qualquer
bem particular sem acarretar a utilidade comum. Assim,
não é anti-social (akoinóneton) fazer tudo para si mesmo (pán-
ta hautou héneka poiefn).l1 Fazer tudo para si mesmo não é
associaI. não é anti-social. Pode-se retrucar que, neste texto,
diz-se que Zeus dispôs a natureza do animal racional. [...*]
[Mas, de modo mais geraL Epicteto estabeleceu o vínculo]
natural da busca egoísta daquilo que é útil ou indispensável
a cada um, com a utilidade para os outros. Em segundo lu-
gar e por outro lado, este vínculo acha-se transposto quando
se trata do ser racional propriamente dito e do ser humano.
O vínculo, neste momento, estabelece-se em um nível re-
flexivo. É que, como sabemos, segundo Epicteto, com efeito,
se os animais buscam seu próprio bem e o obtêm, não o ob-
têm porque se ocuparam consigo mesmos. Um dos outros
aspectos da Providência consiste, precisamente, em ter fei-
to com que não somente os animais façam o bem dos ou-
tros fazendo o seu próprio, mas também que, para fazer seu
próprio bem, não têm que ocupar-se consigo mesmos. Eles
foram dotados de certas vantagens como, por exemplo, a
pelagem que lhes permite não ter que tecer suas próprias ves-
tes, etc. -velho lugar-comum acerca das vantagens dos ani-
mais sobre os homens. Já os homens, em contrapartida, não
foram dotados de todas estas vantagens que os dispensa-
riam de ocupar-se consigo mesmos. Os homens se viram
confiados a si mesmos por Zeus. Zeus fez de tal sorte que,
.. Ouve-se apenas: ... infelizmente esqueci a referência; se quise-
rem, eu a darei na próxima vez....
Instituto de Psicologia - UFRGS
Bihlintpr: - - -
133. •
242 A HERMEmUTlCA DO SUJEITO
diferentemente dos animais - e este é um dos pontos fun-
damentais da diferença entre animal racional e animal não
racional-, os homens são confiados a eles mesmos, têm que
ocupar-se com eles mesmos. Isto significa que, para realizar
sua natureza de ser racional, para preencher a diferença que
o opõe aos animais, o homem deve realmente tomar-se como
objeto de seu cuidado.Tomando-se como objeto de seu cui-
dado, há que interrogar-se sobre o que ele é, sobre o que ele
é e o que são as coisas que não são ele. Há que interrogar-
se sobre o que depende dele e sobre o que não depende. Há
que interrogar-se, enfim, sobre o que convém fazer ou não
fazer, segundo as categorias quer dos kathékonta, quer dos
proegoúmena, etc13 Conseqüentemente, aquele que tiver se
ocupado consigo como convém - isto é, aquele que tiver efe-
tivamente analisado quais são as coisas que dele dependem
e quais as que não dependem - ao ter cuidados consigo de
tal maneira que, se alguma coisa vier à sua representação,
saberá o que deve e o que não deve fazer, este saberá, ao mes-
mo tempo, cumprir os seus deveres enquanto parte da co-
munidade humana. Saberá cumprir seus deveres de pai, de
filho, de esposo, de cidadão, etc., precisamente porque terá
se ocupado consigo. Esta tese é muitas vezes repetida por
Epicteto. Examinemos, por exemplo, o colóquio 14 do livro 11:
aqueles que souberam ocupar-se consigo levam uma vida
isenta de tristeza, de temor, de perturbação, e observam a
ordem das relações naturais e adquiridas: relações de filho,
de pai, de irmão, de cidadão, de esposo, de vizinho, de parcei-
ro' de subordinado, de chefe. Reporto-me a um colóquio
muito interessante que encontramos no livro I. É o décimo
primeiro colóquio que trata, justamente, de um exemplo re-
ferente a este problema, cuidado de si/cuidado dos outroS15.
O exemplo é bem concreto. É a história de um pai de farrulia
que tem atribulações porque a filha está doente. Quando
ela ficou gravemente doente, ele partiu às pressas e abando-
nou a cabeceira da filha e a casa, deixando-a assim aos cui-
dados dos outros, isto é, das mulheres, dos domésticos, etc.
Por que fez isto? Por egoísmo? De modo algum. Pelo contrá-
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 243
rio, fez isto porque amava sua filha. E a amava tanto que, em
sua afeição, sentiu-se perturbado pela doença da filha e foi
por cuidado com ela que abandonou a criança doente aos
cuidados dos outros. Epicteto vai evidentemente criticar
esta atitude. E, para criticá-la, que coisa ele enaltece? Enal-
tece o amor da família como elemento natural - natural no
sentido tanto prescritivo quanto descritivo da palavra -, isto
é, natural éamar a própria família. Devemos amar nossa fa-
mília porque amamos nossa família e porque está inscrito
na natureza que a amemos. Porque é natural que amemos
nossa família, é sensato seguir os princípios que regem os
laços entre os indivíduos no interior de uma famí1ia. Imagina,
diz Epicteto, se todos os que efetivamente amam tua filha
como tu a tivessem abandonado, se nem a mãe nem os do-
mésticos tivessem ficado, ela agora estaria morta. Em suma,
diz Epicteto, cometeste um erro. O erro que cometeste con-
siste em que, no lugar de considerar que tuas relações com
tua filha estavam inscritas e prescritas na natureza - no lu-
gar' portanto, de te conduzires em função deste imperativo
que te fora ditado pela natureza e por tua razão de indiví-
duo natural e animal racional-, sÓ te ocupaste com tua fi-
lha, só nela pensaste, e tu te deixaste de tal modo comover
por sua doença que, perturbado por ela, não suportando ver
aquela cena, partiste. Cometeste um erro, erro que consiste
em teres esquecido de cuidar de ti para cuidar de tua filha.
Se tivesses cuidado de ti, se tivesses considerado a ti como
indivíduo racional, se tivesses examinado as representações
que te vinham ao espírito acerca da doença de tua filha, se
tivesses escrutado um pouco o que tu és, o que é tua filha,
a natureza e o fundamento dos laços que entre ambos se
estabelecem, então não te terias deixado perturbar pela pai-
xão e pela afeição de tua filha. Não terias sido passivo dian-
tê destas representações. Ao contrário, terias sabido escolher
a conveniente atitude a tomar. Terias permanecido calmo
diante da doença de tua filha, O que significa que terias fi-
cado junto dela para dela cuidar. Portanto, conclui Epicteto,
é preciso que te tornes skholastikós, ou seja, que freqüentes
134. w
•
244 AHERMEN~UTICA DO SUJEITO
um pouco a escola e aprendas a fazer o exame sistemático
de tuas opiniões. Não é tarefa para uma hora ou um dia, mas
um longo trabalho. Como vemos pois, a propósito deste
caso, Epicteto mostra que uma conduta como a deste pai de
família, aparentemente da ordem do egoísmo, de fato é, ao
contrário, um comportamento cuja única razão de ser foi o
cuidado, de certo modo irregular, ou a preocupação irregular
pelo outro; que se o pai de família ocupar-se efetivamente
consigo mesmo como deveria ter feito, e se seguir o conselho
de Epicteto aprendendo na escola a ocupar-se consigo como
convém, então, em primeiro lugar, não será abalado pela
doença da filha e, em segundo lugar, ficará junto dela para
dela cuidar. Com este exemplo bem concreto, vemos como
o cuidado de si é que, por ele mesmo e a título de conse-
qüência, deve produzir, induzir as condutas pelas quais
poderemos efetivamente cuidar dos outros. Comecemos po-
rém por cuidar dos outros e tudo estará perdido.
Entretanto, poderíamos retrucar, há pelo menos um caso
na sociedade em que o cuidado dos outros deve, ou deveria,
prevalecer sobre o cuidado de si, porque há pelo menos um
individuo cujo ser inteiro deve estar voltado para os outros,
o Príncipe, evidentemente. Para o Príncipe, o homem políti-
co por excelência, o único que, no campo político do mundo
romano, contrariamente ao que se passava na cidade grega,
tem que ocupar-se inteiramente com os outros, [para] ele, o
cuidado de si não deveria ser comandado, como no Al-
cibíades de Platão, apenas pelo cuidado que lhe cabe ter com
os outros? Não seria o Príncipe, o único na sociedade, o úni-
co entre os seres humanos, que só deveria ocupar-se consi-
go mesmo na medida em que [deve] - e para efetivamen-
te poder - ocupar-se com os outros? Pois bem, encontra-
mos aqui este personagem que, sem dúvida, reencontraremos
muitas vezes neste estudo sobre o cuidado de si, o persona-
gem do Príncipe. Personagem paradoxal, personagem que é
central em toda uma séríe de reflexões, personagem que, in-
comum e exercendo sobre os outros um poder que consti-
tui todo o seu ser, poderia ter, em princípio, para consigo e
I
1
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 245
para com os outros, um tipo de relação inteiramente dife-
rente do que qualquer um pudesse ter. Teremos certamente
ocasião de rever alguns textos, sejam os de Sêneca no De
clementia, sejam principalmente os discursos de Díon de
Prusa sobre a monarquia!? Gostaria porém de me deter nos
textos de Marco Aurélio, na medida em que aí encontramos
- in concreto, no caso de alguém que efetivamente era Prín-
cipe - a maneira como concebia ele a relação entre ocupar-
se com os outros porque era o imperador, e ocupar-se con-
sigolS. Sabemos muito bem que, nos Pensamentos de Marco
Aurélio, neste texto que chamamos de Pensamentos19, as re-
ferências diretas ao exercício do poder imperial são relati-
vamente poucas; e que de fato, quando ele fala a respeito, é
sempre em relação a questões que, de certo modo, são ques-
tões do cotidiano. Temos, por exemplo, a longa e famosa ex-
planação sobre a maneira de acolher os outros, de falar com o
subordinado, de relacionar-se com os que fazem solicitações,
etc. E, nesta longa passagem, não se trata, absolutamente,
para Marco Aurélio, de fazer valer as tarefas específicas do
Príncipe. Propõe para a conduta em relação aos outros - su-
bordinados, solicitantes, etc. - regras que poderiam Ser in-
teiramente comuns ao Príncipe e a qualquer um. O princípio
geral de conduta, para quem quer ser Príncipe como o quer
Marco Aurélio, consiste precisamente em eliminar de seu
comportamento tudo o que pudesse referir-se à especifici-
dade de uma tarefa principesca, à especificidade de certas
funções, privilégios ou mesmo deveres. É preciso esquecer
que se é um César, e somente realizar o trabalho, cumprir os
encargos cesarianos sob a condição de comportar-se como
um homem qualquer: Acautela-te de te cesarizares profun-
damente e de te impregnares deste espírito. Conserva-te pois
si;nples, honesto, puro, grave, natural. amigo da justiça, pie-
doso, benevolente, afetuoso, firme no cumprimento dos de-
veres20
, Ora, vemos que todos estes elementos da boa con-
duta do Príncipe são elementos da conduta cotidiana de
qualquer homem. Muito interessante também é a passagem
em que Marco Aurélio faz seu exame matinal de consciên-
135. i
:: ,
246 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
cia. Sabemos que - e voltaremos a isto - o exame de cons-
ciência na prática estóica, como também na prática pitagó-
rica, tinha duas formas e dois momentos: o exame da noite,
quando arrolamos os fatos do dia para fazer a medição da-
quilo que deveríamos ter feito22
; e o exame da manhã, em
que, ao contrário, nos preparamos para as tarefas que deve-
remOs fazer. Neste caso, fazemos uma revisão do modo de
empregar o tempo futuro e nos equipamos, reativamos os
princípios de que teremos necessidade para pôr em prática,
para cumprir nosso dever. Temos pois um exame matinal
em Marco Aurélio, exame interessante por suas afirmações.
A cada manhã - diz ele - quando desperto, lembro-me do
que tenho a fazer. E me lembro que todo mundo tem algu-
ma coisa a fazer. O dançarino, pela manhã, lembra os exer-
cícios que deve fazer para se tomar um bom dançarino. O
sapateiro ou o artesão (não me recordo qual exemplo ele
usou) também deve lembrar as diferentes coisas que tem
a fazer durante o dia. Pois bem, é preciso que eu também
proceda assim, e proceda tanto melhor quanto mais impor-
tantes que a dança ou um ofício de artesão são as coisas que
tenho a fazer. Mais importância, mas nenhuma diferença de
natureza, nenhuma especificidade. Há simplesmente uma
carga, uma pesada carga que é do mesmo tipo de qualquer
profissão, de qualquer ofício, apenas acrescida de um suple-
mento de certo modo quantitativo. É então que, sem dúvida
pela primeira vez, vemos muito claramente aparecer a ques-
tão que, a seguir, nas monarquias européias e principalmen-
te quando da problematização das monarquias no século
XVI, terá uma importância muito grande: a da soberania
como ofício, isto é, como uma tarefa cuja estrutura moral,
cujos princípios fundamentais são os de qualquer atividade
profissional. Esta idéia de que ser imperador - ou ser chefe,
ou ser aquele que comanda - não somente impõe com cer-
teza deveres, já se o sabia, como também que estes deveres
devem ser tratados, cumpridos e executados a partir de uma
atitude moral que é a mesma de qualquer homem em rela-
l '.1
•
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 247
ção às tarefas que lhe são próprias, é uma idéia claramente
formulada por [MarcoAurélio]. O Império, o Principado, tor-
na-se ofício e profissão. E por quê? Muito simplesmente
porque o objetivo primeiro de Marco Aurélio, a finalidade
mesma de sua existência, o alvo em cuja direção deve sem-
pre fitar, não é ser imperador, é ser ele próprio. E é na me-
dida em que tiver cuidado de si, é na medida em que não
cessar de preocupar-se consigo, é então que, nesta preocu-
pação, encontrará todas as ocupações que lhe são próprias
como Imperador. Assim como o filósofo que, cuidando de
si, deve pensar em suas obrigações de filósofo - no ensino
a ministrar, na direção de consciência a exercer, etc. - ou as-
sim como o sapateiro que, cuidando de si, neste mesmo
cuidado, deve pensar naquilo que constitui sua tarefa de sa-
pateir0' assim o imperador, porque terá cuidado de si, en-
contrará e cumprirá tarefas, tarefas que só deverão ser cum-
pridas de modo imperativo na medida em que fazem parte
deste objetivo geral que não é outro senão ele mesmo por
ele mesmo. Livro VIII: Mantendo os olhos fixados em teu
labor, cumpre-o bem e, lembrando-te que é preciso ser um
homem de bem e aquilo que a natureza [do homem] exige,
faze-o, sem olhar para trás. Vejamos os elementos deste
importante texto. Primeiro: manter os olhos fixados no la-
bor. O Império, a soberania, não é privilégio. Não é conse-
qüência de um status. É tarefa, é trabalho, como outros. Se-
gundo: há que cumprir este labor, porém - e é nisto que ien-
contramos o que pode existir de particular, de único nesta
tarefa - ele é singular porque, no conjunto dos trabalhos,
profissões, etc., ofícios possíveis de se exercer, ocorre que o
Império pode ser exercido unicamente por um só. Portanto,
há que cumpri-lo, mas como cumpriríamos qualquer labor
com seus traços particulares. E, por fim, este cumprimento
dúarefa deve ser indexado, orientado em relação a alguma
coisa [de que] se lembre sempre. Que coisa é esta de que se
[lembra] sempre? De que é preciso ser bom imperador?
Não. De que se deve salvar a humanidade? Não. De que se é
devotado ao bem público? Não. É preciso lembrar-se sem-
136. 248 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
pre de que se deve ser um homem de bem e daquilo que
a natureza exige. A honestidade moral, honestidade moral
que, no caso do imperador não é definida pela tarefa espe-
cífica ou pelos privilégios que lhe são próprios, mas pela
natureza - uma natureza humana que ele partilha com qual-
quer um -, é isto que deve constituir o próprio fundamento da
sua conduta de imperador e, conseqüentemente, definir a
maneira pela qual ele se ocupa com os outros. Deve fazê-lo
sem olhar para trás, e aqui reencontramos aquela imagem
sobre a qual muitas vezes retomaremos, a saber, que o ho-
mem moralmente bom é aquele que, uma vez por todas em
sua vida, fixou para si um objetivo do qual não deve, de
modo algum, desviar-se: não deve lançar seu olhar nem
para a direita nem para a esquerda, nem para o comporta-
mento dos homens, nem para as ciências inúteis, nem para
todo um saber do mundo que para ele é sem importância;
tampouco deve olhar para trás a fim de procurar atrás de si
os fundamentos de sua ação. Os fundamentos de sua ação
é que constituem seu objetivo. E o que é seu objetivo? É ele
próprio. Portanto, é no cuidado de si, na relação de si para con-
sigo enquanto relação de esforço em direção a si mesmo,
que o imperador fará, não somente seu próprio bem, mas o
bem dos outros. É cuidando de si que, necessariamente, cui-
dará [dos outros].
Bem, na próxima vez trataremos do seguinte problema:
conversão de si e conhecimento de si.
I [
l d
•
NOTAS
1. Cf. aula de 6 de janeiro, primeira hora, supra, p. 25, nota 1.
2. Cf. a mesma aula, segunda hora.
3. Expressão que se encontra no Teeteto de Platão, em 176a-b,
e que significa assimilação ao divino; cf. aula de 17 de março, pri-
meira hora, infra, pp. 526-7, nota 7.
4. As Sentence Vascane são assim denominadas por terem
sido descobertas em um manuscrito doVaticano que compreendia
uma compilação de 81 sentenças de caráter ético. Quanto às Má-
ximas Capitais, reagrupam um conjunto de enunciados decisivos
que pode ter sido constituído, ao menos inicialmente, pelo próprio
Epicuro.
5. Épicure, SentenceVaticane 23, in Lettres et Maximes, ed. ci-
tada, p. 253.
6. Sentence Vaticane 39, in Lettres et Maximes, p. 257.
7. Maxime Capitale 27, in úttres et Maximes, p. 239.
8. SentenceVaticane, 34, in Letfres et Maximes, p. 257.
9. Cf. primeira hora desta aula, supra, p. 216.
10. Cf. por exemplo, os textos clássicos de Cícero (Traité des
devoirs, m,V) ou de Marco Aurélio (Pensées, V, 16 eV!, 54).
, 11. Épictete, Entretiens, I, 19, 13-15, ed. citada, p. 74.
12. Os animais não existem por eles mesmos, mas para servir,
e nisto não foi proveitoso criá-los com todas estas necessidades.
Pensa um pouco, que desgosto para nós se tivéssemos de estar
atentos não somente a nós mesmos, mas também a nossas ove-
137. t.
•
250 AHERMEN~UTICA DO SUJEITO
lhas e a nossos burros (id.,16, 3, p. 61). Cf. a análise deste texto na
aula de 24 de março, primeira hora.
13. Os kathékonta (traduzido por Cícero como officia: deveres,
funções, ofícios) designam, no estoicismo, atividades conformes à
natureza de um ser e que o realizam; os proegoúmena remetem a
ações que, embora não tendo valor absoluto do ponto de vista
moral, são suscetíveis de serem preferidas em relação a seus con-
trários (sobre estas noções, cf. Océron, Des fins des biens et eles maux,
livro 1lI, VI e XVI, in Les StoiCiens, trad. É. Bréhier, Paris, Galim-
mardlBibliotheque de la Pléiade, 1962, pp. 268-9 e 281-2).
14. Épictete, Entretiens, 11, 14 (p. 55).
15. Entretiens, I, 11 (pp. 44-9). Para uma primeira análise que
Foucault faz desta passagem, cf. aula de 27 de janeiro, primeira hora.
16. Vês pois, que deves te fazer escolar (skholastikón) e tor-
nar-te este animal de que todo mundo ri, desde que, não obstan-
te, queiras empreender o exame de tuas próprias opiniões. E esta
não é tarefa de uma hora ou um dia, tu também o percebes (id.,
11,39-40, p. 49).
17. De fato, Foucault não voltará aeste ponto. Entretanto, al-
guns dossiês encontrados com os manuscritos indicam quanto
Foucault havia trabalhado sobre a articulação entre o cuidado de si
e o cuidado dos outros no quadro de uma política geral do Princi-
pe. Encontramos indício destas reflexões em Le Souci de soi, op. cit.,
pp. 109-10. [O cuidado de si, op. cit., pp. 95-6. (N. dos 1.)J
18. Le Souci de sai, op. cit., pp. 110-2. O cuidado de si, op. cit.,
pp. 96-7. (N. dos 1.)
19 uÉ muitíssimo provável que, quando Marco Aurélio escre-
via o que hoje chamamos Pensamentos, não pretendesse absoluta-
mente atribuir um nome a estas notas, destinadas que eram ape-
nas a ele mesmo. Aliás, na Antiguidade, de modo geral, enquanto
um livro não fosse publicado, graças por exemplo a uma leitura
pública, acontecia sempre que o autor não lhe desse título. [...] O
manuscrito doVaticano não atribui título algum à obra do Impe-
rador.Algumas coletâneas manuscritas de extratos desta obra tra-
zem a menção: tã kath' heautón, que se pode traduzir por 'Escrito
concernente a ele mesmo' ou 'Escrito privado'.A editio princeps pro-
põe o título: 'Escrito para ele mesmo' (tá eis heautón). (P. Hadot,
La Citadelle intmeure, Paris, Fayard, 1992, p. 38).
20. Marc Auréle, Pensées,VI, 30, ed. citada, p. 60.
.....L
AULA DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982 251
21. Foucault concentrará sua análise em duas passagens do
primeiro parágrafo do livroV dos Pensamentos: Pela manhã, quan-
do te custa despertar, que este pensamento te esteja presente: é
para fazer um labor de homem que desperto. [...1Outros, que
gostam do próprio ofício, consomem-se nos respectivos trabalhos,
sem banhar-se e sem comer. Etu, estimas menos tua natureza do
que o cinzelador sua arte, do que o dançarino a dança?(pp. 41-2).
22. Cf. aula de 24 de março, segunda hora.
23. O do cinzelador.
24. Marc Auréle, Pensées,VIII, 5 (p. 84).
j
138. ~ ,,;,
•
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982
Primeira hora
Indicação da dupla desvinculação do cuidado de si: em
relação à pedagogia e à atividade política. - As metáforas da
autofinalização do eu. - A invenção de um esquema prático: a
conversão a si. - A epistrophé platônica e sua relação com a
conversão a si. - A metánoia cristã e sua relação com a con-
versão a si. - O sentido grego clássico de metánoia. - Defesa
de uma terceira via entre epistrophé platônica e metánoia
cristã. - A conversão do olhar: crítica da curiosidade. - A con-
centração atlética.
Até o presente tentei seguir um pouco a ampliação do
tema do cuidado de si a partir de sua demarcação no Alci-
bíades até o momento em que ele desemboca em uma ver-
dadeira cultura de si que, a meu ver, assume todas as suas
dimensões no começo da época imperial. Esta ampliação
manifesta-se então de duas grandes maneiras, por assim
dizer, conforme procurei mostrar nas aulas anteriores. Primei-
ramente, a desvinculação da prática de si em relação à pe-
dagogia. Isto significa que a prática de si não aparece mais,
como era no Alcibíades, como um complemento, uma peça
indispensável ou substitutiva da pedagogia. Doravante, a prá-
tica de si, no lugar de ser um preceito que se impõe ao ado-
lescente no momento em que vai entrar na vida adulta e
política, é uma injunção que vale para o desenrolar da existên-
cia inteira. A prática de si identifica-se e incorpora-se com
a própria arte de viver (a tékhne toú bíou). Arte de viver, arte
de si mesmo são idênticas, tornam-se idênticas ou pelo me-
nos tencrem a sê-lo. Esta desvinculação em relação à peda-
gogia tem ainda uma segunda conseqüência que já vimos:
doravante, a prática de si não é mais meramente uma espécie
de pequeno caso a dois que se inscreveria na relação singu-
lar e dialeticamente amorosa entre o mestre e o discípulo.
139. 254 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
Doravante, a prática de si integra-se, mistura-se, entrelaça-
se com toda uma rede de relações sociais diversas, onde
existe ainda a mestria no sentido estrito, mas onde igual-
mente se encontram muitas outras formas relacionais 'pos-
síveis. Portanto, em primeiro lugar, a desvinculação em rela-
ção à pedagogia. A segunda desvinculação se faz em relação
à atividade política. Lembremos que, no Alcibíades, tratava-se
de estar atento a si para poder ocupar-se, como convém, com
os outros e com a cidade. Agora, é preciso ocupar-se consi-
go para si mesmo, de maneira que a relação com os outros
seja deduzida, implicada na relação que se estabelece de si
para consigo. Lembremos que o próprio Marco Aurélio não
ficava mais atento a si para poder melhor assegurar-se de
estar atento, como convém, ao Império, isto é, ao gênero hu-
mano, em suma. Mas ele. bem sabia que estaria atento,
como convém, ao gênero humano que lhe fora confiado, na
medida em que, desde logo e antes de tudo, finalme~te e ao
cabo, soubesse cuidar de si mesmo como convém. E na re-
lação de si para consigo que o imperador encontra a lei e o
princípio do exercício de sua soberania. Cuida-se de si para
si. É nesta autofinalização - e foi o que procurei lhes mostrar
na última aula - que se funda, creio eu, a noção de salvação.
Pois bem, penso que tudo isto nos remete agora, não
exatamente a uma noção, insisto nisto, mas ao que proviso-
riamente chamaria, se assim quisermos, de uma espécie de
núcleo, núcleo central.Talvez mesmo, a um conjunto de ima-
gens, imagens que conhecemos bem, já muitas vezes en-
contradas. Enumero algumas, um tanto desordenadamente.
É preciso aplicar-se a si mesmo e isto significa ser preciso
desviar-se das coisas que nos cercam. Desviar-se de tudo o
que se presta a atrair nossa atenção, noss~ aplicação, suscitar
nosso zelo, e que não seja nós mesmos. E preciso desviar-se
para virar-se em direção a si. É preciso, durante toda a vida,
voltar a atenção, os olhos, o espírito, o ser por inteiro enfim,
na direção de nós mesmos. Trata-se da grande imagem da
volta para si mesmo, subjacente a todas as análises de que
lhes falei até o momento. Aliás, sobre esta questão da volta
l
~
~------------------~---~
•
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 255
para si mesmo há uma série de imagens, algumas das quais
tendo sido já analisadas. Uma delas, particularmente inte-
ressante, foi estudada por Festugiere, há bastante tempo.
Esta análise, ou melhor, este esquema, pode ser ~ncontrado
em uma resenha dos cursos dos Hautes Études. E a história
da imagem do piã01
O pião gira sobre si, mas gira sobre si
justament~ como não convém que giremos sobre nós. O que
é o pião? E alguma coisa que gira sobre si por solicitação e
sob o impulso de um movimento exterior. Ademais, giran-
do sobre si, ele apresenta sucessivamente faces diferentes
às diferentes direções e aos diferentes elementos que lhe
servem de circuito. E por fim, embora permaneça aparente-
mente imóvel, na realidade o pião está sempre em movimen-
to. Ora, contrariamente ao movimento do pião, a sabedoria
consistirá em não se deixar jamais ser induzido a um mo-
vimento involuntário·por solicitação e impulso de um movi-
mento exterior. Pelo contrário, será preciso buscar no cen-
tro de nós mesmos o ponto no qual nos fixaremos e em re-
lação ao qu~ permaneceremos imóveis. E na direção de si
mesmo ou do centro de si, é no centro de si mesmo que de-
vemos fixar nossa meta. O movimento a ser feito há de ser
então o de retomar a este centro de si para nele imobilizar-se,
e imobilizar-se definitivamente.
Todas estas imagens da virada - virada em direção a
nós desviando-nos do que nos é exterior - claramente nos
aproximam de algo que, antecipando talvez um pouco, po-
deriamos chamar de noção de conversão. Éfato que encon-
tramos, regularmente, muitas palavras que podem ser tra-
duzidas' e legitimamente o são, porconversão. Temos, por
exemplo, uma expressão - encontrada em Epicteto', encon-
trada em Marco Auréli03
, encontrada também em Platina'
- que é: epistréphein pràs heautón (voltar-se para si, conver-
ter-se a si). Encontramos em Sêneca a expressão [se] conver-
tere ad se (converter-se a si)'. Converter-se a si, ainda uma
vez, significa: fazer a volta em direção a si mesmo. Contu-
do - e é isto que tentarei lhes mostrar - parece-me que, de
fato, através de todas estas imagens, não lidamos com uma
140. •
256 A HERMENtuTICA DO SUJEITO
estrita noção, uma noçãoconstruída da conversão.Trata-se,
antes, de uma espécie de esquema prático que, de resto, tem
sua construção rigorosa, mas que não teria dado lugar a al-
guma coisa como o Jlconceito ou a noção de conversão. Em
todo caso, se hoje gostaria de me deter um pouco nesta no-
ção de conversão, de retorno a si, de volta para si mesmo, é
evidentemente porque, dentre as tecnologias do eu que o
Ocidente conheceu, esta certamente é uma das mais im-
portantes. E, quando digo que é uma das mais importantes,
penso, é claro, em sua importância no cristianismo. Entre-
tanto, seria inteiramente inexato ver e medir a importância
da noção de religião somente na ordem da religião e da re- _
ligião cristã. Afinal, a noção de conversão é também uma
noção filosófica importante, cujo papel, no interior da filoso-
fia, na prática filosófica, foi decisivo. A noção de convrsão
tem também uma importância capital na ordem da moral.
E, por fim, não se pode esquecer que ela introduziu-se de
maneira espetacular, dramática até, no pensamento, na pIá-
tica, na experiência, na vida política, a partir do século XIX.
Será preciso um dia elaborar a história do que poderíamos
chamar de subjetividade revolucionária. E o interessante é
que no fundo - é uma hipótese - penso que, nem no de-
curso do que chamamos de revolução inglesa, nem do que
chamamos a Revolução na França em [17]89, jamais teria
havido alguma coisa que fosse da ordem da conversão. Pa-
rece-me que é a partir do século XIX - repito, a se verificar
melhor -, seguramente por volta dos anos 1830-1840, e jus-
tamente em referência àquele acontecimento fundador,
histórico-mítico que foi [para o] século XIX, a Revolução fran-
cesa, que se começou a definir esquemas de experiência in-
dividual e subjetiva que consistiriam na /I conversão àrevo-
lução. Parece-me ainda que não se pode compreender o
que foi, ao longo do século XIX, a prática revolucionária, o que
foi o indivíduo revolucionário e o que foi para ele a expe-
riência da revolução, se não se levar em conta a noção; o es-
quema fundamental da conversão à revolução. O problema
então estaria em examinar de que modo introduziu-se este
I
~.
I
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 257
elemento que procedia da mais tradicional - diriá'nesmo,
da mais historicamente espessa e densa, pois que remonta
à Antiguidade - tecnologia de si que é a conversão, de que
modo atrelou-se ele a este domínio novo e a este campo de
atividade nova que era a política, de que modo este elemen-
to da conversão ligou-se necessariamente, senão exclusiva-
mente, à escolha revolucionária, à prática revolucionária.
Seria preciso examinar também de que modo esta noção de
conversão foi pouco a pouco sendo validada - depois absOI-
vida, depois enxugada e enfim anulada - pela própria existên-
cia de um partido revolucionário. E de que modo passamos
do pertencimento à revolução pelo esquema de conversão ao
pertencimento à revolução pela adesão a um partido. Sabe-
mos que hoje em dia, em nossa experiência cotidiana - esta,
um pouco insípida talvez, de nossos contemporâneos ime-
diatos -, só nos convertemos à renúncia da revolução. Os
grandes convertidos de hoje são os que não crêem mais na
revolução. Bem, haveria aí, enfim, toda uma história a ser
feita. Retornemos à noção de conversão e à maneira como
ela se elabora e se transforma na época de que lhes falo, isto
é, [nos] séculos I-lI de nossa era. Desde logo pois, presen-
ça importante e constante desta imagem do retomo a si
([se] convertere ad se).
A primeira coisa a realçar é que, certamente, na época
de que lhes falo, °tema da conversão não é evidentemente
novo, porquanto, como sabemos, está desenvolvido de modo
significativo em Platão. Em Platão, é encontrado sob a forma
da noção de epistrophé. Exponho, de modo muito esquemá-
tico' é claro, como se caracteriza a epistrophé platônica. Ela
consiste, primeiramente, em se desviar das aparências6. En-
contramos então o elemento da conversão como maneira de
se desviar de alguma coisa (desviar-se das aparências). Con-
siste, em segundo lugar, em fazer o retomo a si constatando
sua própria ignorância e decidindo-se, justamente, a ter cui-
dado de si e a ocupar-se consigo'- Finalmente, terceiro mo-
mento, a partir deste retomo a si que nos conduzirá à remi-
niscência, poder-se-á retomar à própria pátria, a das essências,
141. 258 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
da verdade e do Se:r8. Desviar-se de, virar-se na direção de
si, fazer ato de reminiscência, retomar à própria pátria (à
pátria ontológica) - são· os quatro elementos deste esque-
ma muito tosco da epistrophé platônica. De qualquer modo,
vemos que a epistrophé platônica é comandada, primeira-
mente, por uma oposição fundamental entre este mundo e
o outro. Em segundo lugar, pelo tema de uma liberação, de
um desprendimento da alma em relação ao corpo, ao cor-
po-prisão, ao corpo-túmulo, etc9 Em terceiro lugar enfim,
pelo privilégio do conhecer. Conhecer-se é conhecer o ver-
dadeiro. Conhecer o verdadeiro é liberar-se. E é no ato de
reminiscência, como forma fundamental do conhecimento, _
que estes diferentes elementos se enlaçam. .
Parece-me que o tema da conversão - entre parên-
teses, repito, pois não creio que se deva tomá-lo como uma
noção construída, fechada em si mesma, cerrada e bem de-
finida - que encontramos no cerne da cultura de si helenís-
tica e romana é muito diferente da epistrophé platônica. Ex-
cetuo, é claro, as correntes que, sendo propriamente platô-
nicas, permanecem fiéis à noção de epistrophé. A conversão
que encontramos na cultura e na prática de si helenística e
romana não se move, primeiramente, no eixo de oposição
entre este mundo e o outro, como a epistrophé platônica. Ao
contrário, trata-se de um retomo que se fará, de certo modo,
na própria imanência do mundo, o que não significa, con-
tudo, que não haverá oposição essencial - e realmente es-
sencial- entre o que não depende e o que depende de nós.
Porém, enquanto a epistrophé platônica consistia no movi-
mento capaz de nos conduzir deste mundo ao outro - do
mundo daqui de baixo ao de cima -, a conversão de que ago-
ra se trata, na cultura de si helenística e romana, conduz a
nos deslocarmos do que não depende de nós ao que de-
pende de nósl '. Trata-se, antes, de uma liberação no interior
deste eixo de imanência, liberação em relação a tudo aquilo
que não dominamos, para alcançarmos, enfim, aquilo que
podemos dominar. Conseqüentemente, isto nos leva a ou-
~
•..........__--------~----4•
•
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 259
tra característica da conversão helenística e roman~a saber,
que ela tem a feição não de uma liberação em relação ao cor-
po' mas do estabelecimento de uma relação completa, con-
sumada, adequada de si para consigo. Portanto, não é na ci-
são com o corpo, mas antes na adequação de si para consigo,
que a conversão se fará: esta, a segunda diferença relativa-
mente à epistrophé platônica. Enfim, a terceira grande dife-
rença está em que, se o conhecimento desempenha por certo
um papel importante, ele não é porém tão decisivo e funda-
mental quanto na epistrophé platônica. Nesta, é o conhecer,
o conhecer na própria forma da reminiscência, que constitui
o elemento essencial, fundamental, da conversão. Agora, no
processo do [se] convertere ad se, bem mais do que o conhe-
cimento, será o exercício, a prática, o treinamento, a áskesís,
que constituirá o elemento essencial. Muito esquematica-
mente, é isto que deveremos elaborar melhor mais adiante.
Por ora, é simplesmente para situar o tema da conversão,
que se há que analisá-lo em relação à grande epistrophé pla-
tônica.
Em segundo lugar, gostaria agora de situar [a conver-
são helenística] em relação a um tema, uma forma, uma no-
ção, desta feita bem precisa, da conversão, que encontrare-
mos não mais antes, mas posteriormente: na cultura cristã.
Trata-se da noção de conversão (metánoia) tal como será de-
senvolvida no cristianismo a partir do século III e sobretudo
do IV. Esta conversão cristã, para a qual os cristãos empre-
gam a palavra metánoia, é evidentemente muito diferente da
epistrophé platônica. Sabemos que a própria palavra metánoia
significa duas coisas: é a penitência e é também a mudança,
mudança radical ao pensamento e do espúito. Ora - também
aqui, tão esquematicamente quanto o fiz a propósito da
epistrophé - exponho as características que a metánoia cristã
me parece apresentar11
. Primeiramente, a conversão cristã im-
plica uma súbita mutação. Ao falar que é súbita, não quero
dizer que não possa ter sido ou não deva mesmo ter sido pre-
parada, e durante um longo tempo, por todo um percurso.
Não obstante - com preparação ou não, com percurso ou não,
142. •
260 AHERMEN~UTICA DO SUJEITO
com esforço ou não, com ascese ou ausência de ascese -, de
qualquer modo, para que haja conversão é preciso um acon-
tecimento único, súbito, ao mesmo tempo histórico e meta-
histórico que, de uma só vez, transtorna e transforma o
modo de ser do sujeito. Em segundo lugar - sempre no in-
terior da conversão ou metánaia cristã -, neste transtorno
súbito, dramático, histórico/meta-histórico do sujeito, ocorre
uma passagem: passagem de um tipo de ser a outro, da mor-
te à vida,da mortalidade à imortalidade, da obscuridade à
luz, do reino do demônio ao de Deus, etc. E por fim, em ter-
ceiro lugar, há na conversão cristã um elemento que é con-
seqüência dos dois outros, ou o ponto de cruzamento entre _
ambos, a saber, que só pode haver conversão na medida em
que, no interior do próprio sujeito, houver uma ruptura. O
eu que se converte é um eu que renunciou a si mesmo. Re-
nunciar a si mesmo, morrer para si, renascer em outro eu e
sob uma nova forma que, de certo modo, nada tem a ver,
nem no seu ser, nem no seu modo de ser, nem nos seus há-
bitos, nem no seu éthos, com aquele que o precedeu, é isto
que constitui um dos elementos fundamentais da conver-
são cristã.
Se examinarmos, em face disto, o modo como é descri-
ta a conversão na filosofia, na mora!, na cultura de si de que
lhes falo durante a época helenística e romana, se examinar-
mos o modo como é descrita aquela conversia ad se (aque-
la epistraphé pràs heautón!3), creio que veremos a atuação de
processos inteiramente diferentes em relação aos da con-
versão cristã. Primeiro, não há exatamente ruptura. Mais tar-
de, aliás, tentarei desenvolver um pouco mais este aspecto,
pois ele requer maior precisão. Encontramos, é fato, certas
expressões que parecem indicar alguma coisa como uma rup-
tura do eu, e como que uma mutação, uma transfiguração
súbita e radical de si. Encontramos em Sêneca - e pratica-
mente só em Sêneca - a expressão fugere a se: fugir, escapar
de si mesmo!'. Também em Sêneca há expressões interes-
santes, na carta 6 a Lucílio, por exemplo. Diz ele: é incrível
como sinto estar fazendo progressos atualmente. Não se tra-
....
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 261
ta somente de uma emendatio (uma correção). N~e con-
tento em corrigir-me, tenho a impressão de que estou me
transfigurando (transfigurari)15 E pouco depois, nesta mes-
ma carta, ele fala de mutação de mim mesmo (mutatio mó)!6
Contudo, afora estas poucas indicações, o que me parece
essencial ou pelo menos característico, na conversão hele'-
nística e romana, é que, se há ruptura, ela não se produz no
eu. Não é no interior de si que ocorre a cisão pela qual o eu se
desprende de si, renuncia a si mesmo para, após urna morte
figurada, renascer todo outro. Se existe ruptura - e ela exis-
te -, ela se dá em relação ao que cerca o eu. li em torno do eu,
para que ele não seja mais escravo, dependente e cerceado,
que se deve operar esta ruptura. Temos então uma série de
termos, noções que remetem a esta ruptura do eu relativa-
mente a tudo o mais, que não é porém uma ruptura de si
para consigo. São todos termos que designam a fuga (pheú-
gein)!7, o retiro (anakhóresis). A anakhóresis, como sabemos,
tem dois sentidos: retirada de um exército diante do inimi-
go (quando um exército recua diante do inimigo: anakhoref,
ele parte, bate em retirada, recua); ou então anakhóresis como
fuga de um escravo que parte para a khôra, para o campo,
escapando assim da sujeição e do status de escravidão. E
destes tipos de ruptura que se trata. E esta liberação do eu,
como veremos, tem em Sêneca (por exemplo, no prefácio à
terceira parte das Questões naturais!8 ou nas cartas 1!9, 3220,
821
, etc.) numerosos equivalentes, numerosas expressões
que remetem todas, repito ainda, à ruptura do eu relativa-
mente a tudo o mais. Faço notar uma interessante metáfora
de Sêneca; muito conhecida aliás, ela remete à idéia de ro-
dopio, mas em sentido diferente daquele do pião a que me
referi há pouco. Está na carta 8, quando Sêneca diz que a fi-
losofia faz com que o sujeito gire em torno de si mesmo, isto
é, faz com que ele execute o gesto pelo qual, tradicional e ju-
ridicamente, o mestre liberta seu escravo. Havia um gesto ri-
tua!, com que o mestre, a fim de mostrar, manifestar, efetuar
a liberação do escravo de sua sujeição, fazia-o girar em torno
dele mesmo. Sêneca retoma esta imagem e diz que a filoso-
Instituto de Psicologia - UFRGS
Biblioteca - -
143. •
262 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
fia faz com que o sujeito gire em tomo de si mesmo, mas para
o liberar23. Portanto, ruptura para o eu, ruptura em torno do
eu, ruptura em proveito do eu, mas não ruptura no eu.
O segundo tema importante nesta conversão helenís-
tica e romana em oposição à metánoia cristã, é que é em dire-
ção ao eu que se deve virar os olhos. Há que se ter o eu de
certo modo sob os olhos, sob o olhar, há que se tê-lo à vista.
Daí, uma série de expressões como blépe se (olha-te, como
encontramos em Marco Aurélio), ou observa te (observa-
te), se respieere (olhar-se, voltar o olhar para si)26, aplicar o
espírito em si próprio (prosékhein tàn noun heautô), etc. É
preciso pois ter o eu ante os olhos.
E por fim, em terceiro lugar, é preciso ir em direção ao -.
eu como quem vai em direção a uma meta. E este não é
mais um movimento apenas dos olhos, mas do ser inteiro
que deve dirigir-se ao eu como único objetivo. Ir em direção
ao eu é ao mesmo tempo retornar a si: como quem volve ao
porto ou como um exército que recobra a cidade e a forta-
leza que a protege. Também aí há uma série de metáforas
sobre o eu-fortaleza28
- o eu como o porto onde finalmen-
te encontramos abrigo, etc. -, mostrando bem que o movi-
mento pelo qual nos dirigimos para o eu é ao mesmo tempo
um movimento pelo qual a ele volvemos. Aliás, nestas ima-
gens que não são imediatamente coerentes há um proble-
ma; 'problema este que, a meu ver, imprime tensão a esta
noção, esta prática, este esquema prático da conversão, na
medida em que nunca está inteiramente claro, nem inteira-
mente decidido, no pensamento helenístico e romano, se o
eu é algo a que se retoma porque dado de antemão, ou se é
uma meta que devemos nos propor e à qual, alcançando a
sabedoria, eventualmente teremos acesso. Seria o eu o pon-
to ao qual volvemos através do longo ciI'Cuito da ascese e da
prática filosófica? Seria o eu um objeto que guardamos sem-
pre ante os olhos e que atingimos por meio de um movi-
mento que só a sabedoria poderia promover? Este, ao que
me parece, é um dos elementos da incerteza ou da oscila-
ção fundamental, nesta prática do eu.
~
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 263
Em todo caso - e esta será a última característlt!a que
gostaria de realçar a propósito desta noção de conversão -,
seja o eu ao qual volvemos seja o eu ao qual nos dirigimos,
trata-se afinal de estabelecer certas relações que caracteri-
zam, não o movimento da conversão, mas pelo menos seu
ponto de chegada e de realização. São relações de si para
consigo, que podem ter a forma de atos. Por exemplo: prote-
ge-se, defende-se, arma-se, equipa-se o eu30
• Podem assu-
mir também a forma de relações de atitudes: respeita-se,
honra-se o eu'l Podem, enfim, tomar a forma de relações de
estado, tais como: é-se senhor de si, possuímos nosso eu,
ele nos pertence (relação jurídica32). Ou ainda: experimenta-
mos prazer, gozo, deleite33
no próprio eu.Vemos que a con-
versão que aqui está definida é um movimento que se diri-
ge para o eu, que não tira os olhos dele, que o fixa de uma
vez por todas como a um objetivo e que, finalmente, alcan-
ça-o ou a ele retoma. Se a conversão (a metánoia cristã ou
pós-cristã) tem a forma de ruptura e de mutação no interior
do próprio eu, e se, conseqüentemente, pode-se dizer que
ela é uma espécie de trans-subjetivação, proporia então di-
zer que a conversão que está em causa na filosofia dos pri-
meiros séculos de nossa era não é uma trans-subjetivação.
Não é uma maneira de introduzir no sujeito e nele marcar
uma cisão essencial. A conversão é um processo longo e
contínuo que, melhor do que de trans-subjetivação, eu cha-
maria de auto-subjetivação. Fixando-se a si mesmo como ob-
jetivo, como estabelecer uma relação adequada e plena de si
para consigo? É isto o que está em jogo na conversão.
Vemos quão longe estamos, creio, da noção cristã de
metánoia. De todo modo, o próprio termo metánoia (que en-
contramos na literatura, nos textos da Grécia clássica, cer-
tamente, mas também nos da época de que lhes falo) jamais
tem o sentido de conversão. Conhecemos alguns usos que
remetem, primeiramente, à idéia de uma mudança de opi-
nião. Quando somos persuadidos por alguém, metanoei (mu-
damos de opinião)34. Encontramos também a noção de me-
tánoía, a idéia de um metanoefn, no sentido de pesar, de ter
144. •
264 A HERMENturICA DO SUJEITO
remorso (uso que se acha em Tucídides, livro m35). Neste
uso está sempre presente uma conotação, uma valorização
negativa. Na literatura grega daquela época, metánoia não
tem sentido positivo, é sempre negativo. Assim, encontra-
mos em Epicteto a necessidade de expulsar os julgamentos
errôneos que possamos ter na mente. E por que temos ne-
cessidade de expulsar os julgamentos errôneos? Porque, do
contrário, seríamos obrigados, por causa destes julgamentos
e em conseqüência deles, a nos censurar, a nos combater, a
nos arrepender (temos então os verbos: mákhestai, basanízein,
etc.). Seríamos obrigados a nos arrepender: metanoein36
• Por-
tanto, não ter julgamentos falsos para não metanoein (para não _.
se arrepender). Encontramos igualmente, no Manual de Epic-
teto, que não devemos nos deixar levar pelo gênero de pra-
zeres que depois provocariam arrependimento (metánoia)37.
Em Marco Aurélio, o conselho: a propósito de cada ação,
devemos nos perguntar: 'não teria por acaso do que me ar-
repender?' [mê metanoéso ep'autê: não me arrependeria eu
desta ação? M. F]38. O arrependimento é pois alguma coi-
sa a evitar e é porque devemos evitá-lo que há coisas a não
fazer, prazeres a recusar, etc. Portanto, devemos evitar a me-
tánoia como arrependimento. Com isto pretendo mostrar
que, a meu ver, não podemos assimilar o que está em ques-
tão nesta temática da conversão a si, do retomo a si, a uma
metánoia como conversão fundadora por meio de uma total
reversão do próprio sujeito, renunciando a si e renascendo
a partir de si. Não é isto que está em causa. No sentido de
ruptura consigo, de renovação de si com valor positivo, a
metánoia é encontrada em textos bem mais tardios. Não me
refiro, é claro, aos textos cristãos que, a partir do século m
ou, pelo menos, da instauração dos grandes ritos de peni-
tência, conferiram à metánoia um sentido positivo. No voca-
bulário filosófico, com sentido positivo e significando uma
renovação do sujeito por ele mesmo, o termo metánoia só é
encontrado nos séculos lJI-N. Por exemplo, nos textos pita-
góricos de Hierocles, quando diz: a metánoia é a arkhê tês
....
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 265
philosophías (é o começo da filosofia); é a fuga (ph~) de
toda ação e discurso desarrazoados; e é a preparação pri-
mordial para uma vida sem remorsos. Com efeito, é então
que temos a metánoia no sentido, por assim dizer, novo do
termo, sentido que, ao menos parcialmente, foi elaborado
pelos cristãos: a idéia de uma metánoia como mudança, re-
versão, modificação do ser do sujeito e acesso a uma vida
onde não há remorsos.
Vemos assim que, na região que gostaria agora de es-
tudar, estamos entre a epistrophé platônica e a metánoia cris-
tã (metánoia no sentido novo do termo). Creio que, de fato,
nem uma nem outra - nem a epistrophé platônica, nem a
metánoia que, esquematicamente, podemos chamar de cris-
tã - seria inteiramente adequada para descrever a prática e
o modo de experiência tão constantemente presentes, tão
constantemente evocados nos textos dos séculos I-lI. Toda
esta preparação, todas as precauções que venho tomando
acerca da análise desta conversão, entre a epistrophé e a me-
tánoia referem-se, com certeza, a um texto essencial escrito
por Pierre Hadot, há cerca de vinte anos40• Foi por ocasião de
um congresso filosófico, quando, fazendo uma análise que
me parece inteiramente fundamental e importante sobre
epistrophé e metánoia, ele afirmou que a conversão tem es-
tes dois grandes modelos na cultura ocidental, o da epistro-
phé e o da metánoia. A epistrophé, diz ele, é uma noção, uma
experiência da conversão que implica o retorno da alma em
direção a sua fonte, movimento pelo qual ela retoma à per-
feição do ser e se recoloca no movimento eterno do ser. De
certo modo, a epistrophé tem o despertar como seu modelo,
e a anámnesis (a reminiscência) como modo fundamental
do despertar. Abrimos os olhos, descobrimos a luz e retor-
namos à própria fonte da luz que, ao mesmo tempo, é a
fonte do ser. Isto, sobre a epistrophé. Quanto à metánoia, diz
ele, conceme a outro modelo, obedece a outro esquema.
Trata-se de uma reversão do espírito, de uma renovação ra-
dical e de uma espécie de re-procriação do sujeito por ele
mesmo, tendo ao centro a morte e a ressurreição como ex-
145. •
266 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
periência de si mesmo e de renúncia a si. Epistraphé e metá-
noia, com sua oposição, são apresentadas corno uma pola-
ridade permanente no pensamento, na espiritualidade e na
filosofia oddentais. Creio que esta oposição é extremamente
eficaz e constitui, com efeito, um bom crivo de análise da
conversão tal como ela existe e tal como, a partir do próprio
cristianismo, foi praticada e experimentada. E que, na expe-
riência do que agora podemos nomear com uma só palavra
- a conversão -, estes dois modos de transformação, de trans-
figuração do sujeito constituem, efetivamente, duas formas
fundamentais. Não obstante, gostaria de observar que, se
tomarmos a situação em seu desenvolvimento diacrônico e
se seguirmos o percurso do tema da conversão ao longo-da-'
Antiguidade, parece-me muito difícil fazer valer estes dois
modelos, estes dois esquemas como crivo de explicação e
de análise capaz de fazer compreender o que se passou no
periodo que, de modo geral, vai de Platão ao cristianismo.
Parece-me, com efeito, que, se ,a noção de epistrophé, que é
platônica ou talvez pitagórico-platônica, já está claramen-
te elaborada nos textos platônicos (portanto, no século IV
[a.c.]), contudo, fora das correntes propriamente pitagóricas
e platônicas, seus elementos foram profundamente modifi-
cados no pensamento posterior. O pensamento epicurista,
o pensamento cínico, o pensamento estóico, etc., tentaram -
e creio que conseguiram - pensar a conversão diferentemen-
te do modelo da epistrophé platônica. Mas também, durante
a época de que lhes falo, no pensamento helenístico e ro-
mano, temos um esquema da conversão diferente daquele
da metánoia, isto é, da metánoia cristã que se organiza em tor-
no da renúncia a si e da reversão súbita, dramática, do ser do
sujeito. Assim, gostaria de estudar agora, com um pouco
mais de precisão, entre a epistrophé platônica e antes do es-
tabelecimento da metánoia cristã, o modo c'omo foi concebi-
do o movimento pelo qual o sujeito é chamado a converter-
se a si, a dirigir-se a si mesmo ou a retomar a si. Éesta con-
versão, nem epistrophé nem metánoia, que pretendo estudar.
E de dois modos.
I
~I
,
I
..I
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 267
Primeiramente, tentarei estudar hoje o problema~ con-
versão do olhar. Buscarei examinar o modo como se estabe-
lece, no tema geral tia conversão (da conversão a si), a ques-
tão de volver o olhar para si mesmo e conhecer-se a si
mesmo. Dada a importância do tema - deve-se olhar para
si mesmo, volver para si os próprios olhos, jamais perder-se
de vista, ter-se sempre sob os olhos -, parece haver aí algu-
ma coisa que nos aproxima muito de perto do imperativo:
conhece-te a ti mesmo. É o conhecimento do sujeito por
ele mesmo, implicado no [...] imperativo: volve os olhos
para ti. Quando Plutarco, Epicteto, Sêneca, Marco Aurélio
afinnam que se deve examinar a si mesmo, olhar para si mes-
mo, trata-se, no fundo, de que tipo de saber? De um apelo
a constituir-se como objeto [...] [de conhecimento? De um
apelo platônico? Não seria um apelo semelhante ao que
encontraremos na literatura*J cristã e monástica ulterior,
sob a forma de uma recomendação de vigilância que se tra-
duzirá em certos preceitos e conselhos tais corno: presta
atenção a todas as imagens e representações que podem
entrar no espírito; rlão cessa de examinar cada um dos mo-
vimentos que se produzem no teu coração a fim de neles
tentar decifrar os sinais ou os vestígios de uma tentação;
busca determinar se o que te vem ao espírito te foi enviado
por Deus ou pelo demônio, senão por ti mesmo; não have-
ria vestígio de corlcupiscência nas idéias aparentemente
mais puras que te vêm ao espírito? Em suma, a partir da
prática monástica, temos certo tipo de olhar sobre si mes-
mo muito diferente do olhar platônico41 . A questão que se
deve então colocar, creio eu, é [a seguinte]: quando Epicteto,
Sêneca, Marco Aurélio, etc., estabelecem como imperativo
olha-te a ti mesmo, tratar-se-ia do olhar platônico - olha-
te para descobrir em ti as sementes da verdade - ou seria:
deves olhar-te a fim de detectar em ti os vestígios da concu-
piscência e expor, explorar os segredos de tua consciência
... Reconstituição a partir do manuscrito.
146. •
268 A HERMENfUTlCA DO SUJEITO
(os arcana conscientiae)? Pois bem, também aqui, creio que
não se trata nem de uma coisa nem de outra, e que a reco-
mendação de volver o olhar para si mesmo tem um sen-
tido inteiramente particular e distinto do conhece-te a ti
mesmo platônico e do examina-te a ti mesmo da espiri-
tualidade monástica. O que significa volver o olhar para si
mesmo nestes textos, repito, de Plutarco, de Sêneca, de
Epicteto, de Marco Aurélio, etc.? Creio que, para compreen-
der o que significa volver o olhar para si, é preciso, inicial-
mente, colocar a seguinte questão: do que deve o olhar des-
viar-se quando recebe a recomendação de volver-se para si?
Volver o olhar para si, antes do mais, significa: desviá-lo dos
outros. E, em seguida: desviá-lo das coisas do mundo. _ -.
Em primeiro lugar, pois, volver o olhar para si é desviá-lo
dos outros. Desviá-lo dos outros quer dizer: desviá-lo da agi-
tação cotidiana, da curiosidade que nos leva ao interesse
pelo outro, etc. A este respeito temos um texto interessan-
te, pequeno como todos os textos de Plutarco, um pouco
banal e, por isto mesmo de pouco alcance, mas que é, penso
eu, bastante significativo para o entendimento deste desvio
do olhar em relação aos outros. Intitula-se, justamente, Tra-
tado da curiosidade e, de saída, apresenta duas interessantes
metáforas. Bem no começo do texto, Plutarco refere-se ao
que se passa nas cidades''. Diz ele que outrora as cidades
eram construídas inteiramente ao acaso, nas piores condi-
ções, de sorte que o desconforto era grande, por causa dos
maus ventos que as atravessavam, da iluminação solar que
não era boa, etc. Até que chegou um momento em que se
teve que escolher entre deslocar inteiramente as cidades ou
reorganizá-las, recompô-las, 'Ireorientá-las, como diríamos.
Para isto, ele emprega precisamente a expressão stréphein43•
Fazemos virar as casas, nós as orientamos diferentemente,
abrimos de outro modo janelas e portas. Ou então, diz ele,
podemos derrubar montanhas ou edificar muros a fim de
que os ventos não mais fustiguem a cidade e seus habitan-
tes de uma maneira que possa ser nociva, perigosa, desagra-
dável' etc. [Portanto]: reorientação de uma cidade. Em se-
..I
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982
269
gundo lugar, um pouco mais abaixo (em 515e), re~mando
a metáfora da casa, diz ele: as janelas de uma casa não devem
abrir-se para as dos vizinhos. Ou, pelo menos, Se temos ja-
nelas que dão para o vizinho, é preciso cuidar de fechá-las e,
ao contrário, abrir aquelas que dão para o aposento dos ho-
mens, para o gineceu, para o quarto dos domésticos, a fim
de saber o que lá se passa e poder vigiá-los permanente-
mente. Pois bem, é isto o que devemos fazer conosco: olhar
o que se passa não na casa alheia, mas antes em nossa pró-
pria casa. Temos então a impressão - primeira impressão,
ao menos - que se trata de substituir o conhecimento dos
outros ou a malévola curiosidade em relação aos outros, por
um exame um pouco sério de nós mesmos. Também Marco
Aurélio várias vezes recomenda: não vos ocupeis com os
outros, vale mais ocupar-se COm vós mesmos. Assim, ternos
em lI, 8 um princípio: em geral, jamais se é infeliz por não
prestar atenção ao que se passa na alma de outrem. Em
IlI, 4: Não emprega a parte de vida que te foi dada a ima-
ginar o que o outro está fazendo45. Em Iv, 18: Quanto
tempo livre ganhamos se não olharmos o que o vizinho dis-
se, fez ou pensou, mas tão-somente o que nós mesmos fa-
zemos (tíautàs poief) 46. Portanto, não olhar o que se passa
com os outros, mas interessar-se antes por si.
Examinemos melhor em que consiste precisamente
este retomo do olhar e o que há que se olhar em si a partir
do momento em que não se olha mais os outros. De início,
devemos lembrar que a palavra curiosidade é polypragmo-
syne, isto é, não tanto o desejo de saber quanto a indiscri-
ção. É imiscuir-se-no que não nos diz respeito. Plutarco for-
nece uma definição bem exata no começo do seu tratado:
philomátheia allotríon kakôn47. Éo desejo, o prazer de saber
dos males do outro, do que se passa de ruim com ele. É in-
teressar-se pelo que não vai bem com os outros. Interessar-
se por seus defeitos. Sentir prazer em conhecer as faltas que
eles cometem. Por isto, o conselho inverso de Plutarco: não
sejas curioso. Isto é, no lugar de ocupar-te com os defeitos
dos outros, ocupa-te, antes, com os teus próprios defeitos e
147. •
-
270 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
faltas, com teus hamartémata48
• Olha os defeitos que estão
em ti. De fato porém, quando examinamos o desenvolvi-
menta do texto de Plutarco, nos apercebemos de que a ma-
neira como se deve fazer este desvio do olhar, dos outros
para si49, de modo algum consiste em substituir o outro por
si como objeto de um conhecimento possível ou necessário.
Plutarco emprega palavras que designam bem esta virada:
por exemplo, perispasmós, ou metholké, que significa deslo-
camento. Em que consiste este deslocamento da curiosidade?
Pois bem, diz ele, é preciso trépein tén psykhén (volver a alma)
na direção de coisas que são mais agradáveis do que os ma-
1es ou os infortúnios do outroso.E que coisas mais agradá;:eis
são estas? Ele dá três exemplos, assinalando três domínios'l
Primeiramente, é melhor estudar os segredos da natureza
(apórreta physeos). Em segundo lugar, é melhor ler as histó-
rias escritas pelos historiadores, malgrado a quantidade de
vilanias que nelas se lê e todos os infortúnios dei outro que
nelas se vê. Porém, como estes infortúnios do outro estão
agora recuados no tempo, não se sente com eles um prazer
tão malévolo. Finalmente, em terceiro lugar, devemos nos
retirar para o campo e sentir prazer com o espetáculo calmo,
reconfortante que podemos assistir ao nosso redor quando
lá estamos. Segredos da natureza; leituras da história; otium,
como diriam os latinos, cultivado no campo: é isto que deve
substituir a curiosidade. E, além destes três domínios - se-
gredos da natureza, história, tranqüilidade da vida campes-
tre -, há que se acrescentar exercícios. Plutarco enumera os
exercícios anticuriosidade por ele propostos. Primeiro, exer-
cícios de memória. Velho tema, com certeza tradicional em
toda a Antiguidade, pelo menos desde os pitagóricos: lem-
brar sempre o que temos na cabeça, o que aprendemos52
. É
preciso - e a expressão aqui citada é proverbial- abrir seus
próprios cofres5311
- ou seja, regularmente, ao longo do dia,
recitar o que se aprendeu de cor, lembrar as sentenças fun-
damentais que se leu, etc. Em segundo lugar, praticar cami-
nhadas sem olhar para os lados. E, particulaimente, diz ele,
....,.
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 271
sem distrair-se lendo as inscrições sobre os túmu~ que in-
formam acerca da vida das pessoas, seu casamento, etc.; é
preciso caminhar ollhando em frente, à semelhança, diz ele,
de cães levados em coleira cujo dono ensinou a seguirem
em linha reta no lugar de se dispersarem correndo à direita
e à esquerda. Outro exercício enfim é quando, na seqüência
de um acontecimento qualquer, ocorrendo a ocasião de ter
a curiosidade atiçada, recusar-se a satisfazê-la. Assim como
o próprio Plutarco, em outra passagem, dizia que é um bom
exercício colocar sob os olhos iguarias extremamente dese-
jáveis e agradáveis e a elas resistir'4, e assim como Sócrates
também resistia quando Alcibíades vinha deitar-se junto
dele, assim também é preciso, por exemplo, quando recebe-
mos uma carta e supomos que ela contém uma notícia im-
portante, que nos abstenhamos de abri-la e a deixemos ao
nosso lado tanto tempo quanto possível. Estes são exercí-
cios de não-curiosidade (de não-po/ypragmoSJjne) que ele
evoca: ser como um cão preso àcoleira, ter o olhar bem reto,
pensar somente em um objetivo e uma meta. Por conseguin-
te, percebemos que, se Plutarco reprova na curiosidade o
desejo de saber o que ocorre de mal com o outro, não é tan-
to porque descuidaríamos de olhar o que se passa conosco.
O que ele opõe à curiosidade não seria um movimento do
espírito ou da atenção pelo qual tentaríamos detectar o que
pode haver de mal em nós mesmos. Não se trata de deci-
frar as fraquezas, os defeitos, as faltas passadas. Se é neces-
sário desvencilhar-se do olhar maldoso, malicioso, malevo-
lente sobre o outro, é para poder concentrar-se no caminho
reto que se há de observar, que se há de manter, na direção
da meta. É preciso concentrar-se em si mesmo. Não se trata
de decifrar-se. Exercício de concentração do sujeito, exercí-
cio pelo qual ele reconduz toda a atividade e toda a atenção
para a tensão que o encaminha à sua meta, não se trata, ab-
solutamente, de descerrar o sujeito como um campo de co-
nhecimentos, realizando sua exegese e sua decifração. De igual
modo, em Marco Aurélio, percebemos o que se opõe à po-
/ypragmoSJjne. Quando ele diz que não se deve olhar, pres-
148. •
272 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
tar atenção ao que se passa com os outros, é, diz também,
para melhor concentrar o pensamento na própria açã?, para
perseguir a meta sem olhar de lado. Diz ele ainda: é para não
se deixar levar pelo turbilhão de pensamentos fúteis e mal-
dosos. Se é preciso desviar-se dos outros, é para melhor es-
cutar unicamente o guia interior57
.
Vemos pois - e insisto bastante nisto - que a requisita-
da inversão do olhar, em oposição à malévola curiosidade
em relação aos outros, não resulta na constituição de si mes-
mo como um objeto de análise, de decifração, de reflexão.
Trata-se, muito mais, de convocar a uma concentração te-
leológica. Trata-se, para o sujeito, de olhar bem sua própria
meta. Trata-se de ter diante dos olhos, do modo mais trans-
parente, a meta para a qual tendemos, com uma espécie de
clara consciência dela, do que é necessário fazer para atin-
gi-Ia e das possibilidades de que dispomos para isto. Épre-
ciso ter consciência, uma consciência de certo modo perma-
nente, do nosso esforço. [Não se trata] de ter a si mesmo
como objeto de conhecimento, como campo de consciência
e de inconsciência, mas uma consciência permanente e
sempre atenta desta tensão com a qual nos dirigimos à nos-
sa meta. O que nos separa da meta, a distância entre nós e
a meta deve ser o objeto, repito, não de um saber de deci-
fração, mas de uma consciência, uma vigilância, uma atenção.
Por conseqüência, somos levados a pensar, sem dúvida, na
concentração de tipo atlético. Pensamos na preparação para
a corrida, na preparação para a luta, no gesto com o qual o
arqueiro lançará a flecha em direção ao alvo. Estamos aqui
muito próximos do famoso exercício de arco e flecha que,
como sabemos, é tão importante para os japoneses, por
exemplo. Devemos pensar nisto bem mais do que em ~I
guma coisa como uma decifração de si, semelhante à que
encontraremos na prática monástica. Construir o vazio em
tomo de si, não se deixar levar nem distrair por todos os
ruídos nem por todas as pessoas que nos cercàm. Construir
o vazio em tomo de si, pensar na meta, ou antes, na relação
entre si mesmo e a meta. Pensar nesta trajetória que nos se-
..
AUlA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 273
para daquilo a que queremos nos dirigir ou da~ilo que
queremos atingir. É nesta trajetória de si para si, que deve-
mos concentrar toda a nossa atenção. Presença de si a si,
por causa mesmo desta distância que ainda existe de si para
consigo, presença de si a si na distância de si para consigo:
é este, creio, o objeto, o tema deste retomo do olhar que es-
tava posto nos outros e que devemos agora reconduzir, re-
conduzir precisamente não a si enquanto objeto de conheci-
menta, mas a esta distância para consigo mesmo enquanto
somos sujeito de uma ação que dispõe de meios para atin-
gi-Ia, mas, acima de tudo, do imperativo para atingi-Ia. E o
que há para ser atingido é o eu.
É isto, creio, o que se pode dizer acerca deste aspecto do
retomo do olhar na direção de si mesmo, [diferenciando-o
do] olhar posto nos outros. Na segunda hora tentarei lhes
mostrar o que significa, que forma assume a condução do
olhar sobre si quando se o opõe ao olhar posto nas coisas
do mundo e nos conhecimentos da natureza.
Então, se concordarem, alguns minutos de repouso.
--
149. •
NOTAS
1. Une expression hellénistique de l'agitation spirituelle,
Annuaire de /'ÉeoIe des Hautes Études, 1951, pp. 3-7 (retomado in A.
-J. Festugiêre, Hennétisme et mystique paienne, Paris, Aubier-Mon-
taigne, 1967, pp. 251-5).
2. Nenhum bom hábito em vós, nenhuma atenção, nenhum
retomo sobre vós mesmos (out'epistrophe eph'hautón) e nenhum cui-
dado em vos observar (Épictéte, Entretiens, IlI, 16, 15, ed. citada,
p. 37); retornai a vós mesmos (epistrépsate autOlJ, compreendei as
prenoções que trazeis em vós (id., 22,39, p. 75); dize-me, quem,
ouvindo tua leitura ou teu discurso, foi tomado de angústia, fez
um retorno sobre si mesmo ou saiu dizendo: 'o filósofo me tocou;
não devo mais agir assim'? (id., 23, 37, p. 93); em seguida, se en-
trares em ti mesmo (epistréphes katà sautón) e procurares qual o do-
mínio a que pertence o acontecimento, te lembrarás logo que é 'ao
domínio das coisas independentes de nós' (id., 24, 106,p. 110).
3. E, sobretudo, quando censurares um homem por sua des-
lealdade ou ingratidão, faze um retorno sobre ti mesmo (eis heal-
ton epistréphou) (Marc Auréle, Pensées, IX, 42, ed. citada, p. 108).
4. Plotin, Ennéades, N, 4, 2.
5. Para este compromisso com a conversão, cf. as cartas a Lu-
cUio 11, 8; 53, 11; 94, 67.
6. O presente discurso faz ver que toda alma tem em si esta
faculdade de apreender e um órgão para este uso, e que, como um
olho que não se pudesse fazer virar (stréphein) da obscuridade para
,.
....
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 275
a luz senão virando ao mesmo tempo o corpo inteiro~ste órgão
deve ser desviado com a alma inteira das coisas perecíveis, até que
se tome capaz de suportar a visão do ser e da parte mais brilhante
do ser, a que chamamos o bem [...J. A educação é a arte de virar
este órgão e de, para isto, encontrar o método mais fácil e mais efi-
caz; não consiste em pôr a visão no órgão, pois que ele já a pos-
sui; porém, como ele não está bem dirigido e olha para outra par-
te, ela realiza a sua conversão (La République, livroVII, 518c-d, in
Platon, Oeuvres eompIétes, t. VII-1, trad. fr. E. ChambI)', ed. citada,
p. 151). É principalmente no neoplatonismo que o termo epistro-
phé assume um valor conceitual direto e central [cf., por exemplo,
Porfírio: a única salvação é a conversão para Deus (móne sotería he
pros ton theon epistrophe) (A Mareella, 289N, trad. E. des Places,
Paris, Les BeUes Lettres, 1982, parágrafo 24, p. 120)]. No neoplato-
nismo, a noção de conversão assume uma importância ontológi-
ca, e não mais antropológica apenas. Ultrapassa o quadro da aven-
tura de uma alma e passa a designar um processo ontológico: no
neoplatonismo, um ser só assume sua consistência própria no mo-
vimento que o faz voltar-se para seu princípio. Q. P. Aubin, Le Pro-
bléme de la conversion, Paris, Beauchesne, 1963, e A. D. Nock, Conver-
sion: The OId and the New in Religionfrom AIexander the Great to Augus-
tine ofHippo, Oxford, Oxford University Press, 1933 (1961,2. ed.).
7. Cf. aula de 6 de janeiro, segunda hora: a passagem do Al-
cibíades (127e) em que Sócrates, demonstrando a Alcibíades sua
ignorância, o compromete a ter cuidado de si mesmo.
8. Sobre a reminiscência, cf. os textos essenciais do Phedre,
249b-c: Uma inteligência de homem deve exercer-se segundo o
que se chama Idéia, indo de uma multiplicidade de sensações para
uma unidade, cuja conjunção é um ato de reflexão. Ora, este ato
consiste em uma lembrança (anámnesis) dos objetos que nossa alma
viu outrora, quando acompanhava o passeio de um deus (trad. fr.
L. .Robin, ed. citada, p. 42); do Ménon, 81d: Sendo a natureza in-
teira homogênea e tendo a alma tudo aprendido, nada impede
que uma só lembrança (é o que os homens chamam de saber) a
faça reencontrar todas as outras (in Platon, Oeuvres completes, t.
IlI-2, trad. A. Croiset, Paris, Les BeUes Lettres, 1923, pp. 250-1); do
Phédon, 75e: O que denominamos 'instruir-se' não consistiria em
retomar um saber que nos pertence? E, sem dúvida, dando a isto
o nome de 'relembrar-se' (anamimnéskesthai), não empregaóamos
a denominação correta? (trad. fr. L. Robin, ed. citada, p. 31).
-'
150. •
276 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
9. O tema do corpo-túmulo, em Platão, apresenta-se de inÍ-
cio como um jogo de palavras entre sôma (corpo) e sêma (túmulo
e signo). Encontramo-lo no Cratyle, 400c; Gorgias, 493a: Um dia,
ouvi de um sábio homem que nossa vida presente é uma morte,
que nosso corpo é um túmulo (in PlatoTI, Oeuvres completes, t.1II-2,
trad. fr. A. Croiset ed. citada, pp. 174-5); Phédre, 250c: Éramos pu-
ros e não trazíamos a marca deste sepulcro que, sob o nome de
corpo, atualmente nos acompanha (trad. Ir. L. Robin, ed. citada, p.
44). Sobre este tema, podemos nos referir a P. Courcelle, Tradition
platonicienne etTradition chrétienne du corps-prison, Revue des
études latines, 1965, pp. 406-43, e Le Corps-tombeau, Revue des étu-
des anciennes, 68, 1966, pp. 101-22.
10. Esta distinção é capital em Epicteto, constituindo para ele
o ponto nevrálgico, a bússola absoluta. Cf. Manuel e Entretiens,
principalmente I, 1 e m, 8.
11. É no curso do ano de 1980 (aulas de 13, 20 e 27 de feve-
reiro) que Foucault analisa o tema da paenitentia (tradução latina
de metánoia), tomando como ponto essencial de referência o De pae-
nitentia de Tertuliano (por volta de 155-225). Trata-se, neste curso,
de opor a conversão cristã à conversão platônica, mostrando
como, enquanto em Platão a conversão permitia, em um mesmo
movimento, conhecer a Verdade e a verdade da alma que é origi-
nariamente ligada à primeira,Tertuliano opera, na penitência, uma
dissociação entre o acesso a umaVerdade instituída (a fé) e a bus-
ca de uma verdade obscura da alma, a ser liberada (confissão).
12. Cf. Le Souci de sai, op. cit., p. 82. [O cuidado de si, op. cit., pp.
69-70. (N. dos T.)]
13. Cf. Épictete, Entretiens, m, 22, 39; I, 4, 18; m, 16, 15; m, 23,
37; m, 24, 106.
14. Cf. na aula de 17 de fevereiro, segunda hora, a análise do
prefácio ao livro III das Questões naturais de Sêneca (a propósito da
escravidão de si - servitus sui - da qual há que libertar-se).
15. Lucílio, sinto que melhoro; mas isto diz pouco: uma me-
tamorfose se opera em mim (intellego, Lucili, non ernendari me tan-
tum sed transfigurari) (Sénêque, Lettres à Lucilius, t. I, livro I, carta
6,1, ed. citada, p. 16). ,
16. Ah! Gostaria de comunicar-te os efeitos de uma trans-
formação tão súbita (tam subitam mutationern mei) (id., carta 6, 2,
p.l7).
'-
'
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 277
~
17. Se não possuirdes ainda estas disposições [declarar às
coisas que não dependem de mim que elas nada são para mim],
fugi de vossos antigos hábitos, fugi dos profanos, se quiserdes al-
gum dia começar a ser alguém (Epictete, Entretiens, m, 15, p. 57).
18. Para a análise deste texto, cf. aula de 17 de fevereiro, se-
gunda hora.
19. Meu caro Lucílio: reivindica tu mesmo teus direitos (vin-
dica te tibl) (Séneque, Lettres à Luci/ius, t. I, livro I, carta 1, 1, p. 3).
20. Apressa-te pois, meu caríssimo Lucílio. Pensa em como
deverias redobrar a velocidade se tivesses inimigos às tuas costas,
se suspeitasses da proximidade de uma cavalaria acossando fugi-
tivos. Estás assim: acossam-te. Avia-te! Escapa (adcelera et evade)
(id., carta 32, 3, p. 142).
21. Retirei-me tanto do mundo quanto dos afazeres deste
mundo (secessi non tantum ab hominibus, sed a rebus)(id., carta 8,2,
p.23).
22. Cf. a retomada desta gestualidade em Epicteto, para mos-
trar que a verdadeira liberação não é da ordem da libertação obje-
tiva, mas da renúncia aos desejos: Quando se fez o escravo girar
diante do pretor, nada se fez? [...] Aquele que foi objeto desta ce-
rimônia não se tornou livre? - Não mais que se não houvesse ele
adquirido a tranqüilidade da alma (Entretiens, 11, 1, 26-27, p. 8).
23. Eis uma sentença que nele [Epicuro] encontrei hoje:
'Faze-te escravo da filosofia e possuirás a verdadeira liberdade'.
Com efeito, a filosofia não protela quem a ela submeteu-se, quem
a ela entregou-se: a libertação vem de pronto (statim circumagitur).
Quem diz servidão filosófica diz precisamente liberdade (Sénê-
que, Lettres à Lucilius, t. I, livro I, carta 8, 7, p. 24).
24. Marc Aurele, Pensées,VII, 55 e VIII, 38.
25. Vasculha tua vida, perscruta em diversos sentidos e olha
em toda parte (excute te et varie scrntare et observa) (Sénêque, Let-
tres à Lucilius, t. I, livro lI;carta 16,2, p. 64); assim pois, examina-
te (obseroa te itaque) (id., carta 20, 3, p. 82).
26. Eu me examinarei desde logo e, seguindo uma das mais
salutares práticas, farei a revisão de meu dia. Por que somos tão
maus? É que ninguém dentre nós lança sobre a própria vida um
olhar retrospectivo (nemo vitam suam respieit) (Sénêque, Lettres à
Lucilius, t. m, livro X, carta 83, 2, p. 110).
27. Cf. aula de 20 de janeiro, primeira hora.
28. Cf. a mesma aula, supra, pp. 124-5, nota 10.
---'
151. •
278 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
29. Desprenda-te pois do vulgar, caríssimo Paulinus, e, por
demais agitado pela duração de tua existência, retira-te enfim em
um porto mais tranqüilo (De la brieveté de la vie, XVIII, 1, in Séne-
que, Dialogues, t. lI, trad. Ir. A Bourgery, Paris, Les BeUes Lettres,
1923, p. 74).
30. Cf. aula de 24 de fevereiro, segunda hora. sobre a noção
de equipamento (paraskeué).
31. Cf. aula de 20 de janeiro, primeira hora, a propósito do
therapeúein heautón.
32. Cf. Le Souci de soi (pp. 82-3): referência a Sêneca (cartas a
Lucilio, 32 e 75; De la briroeté de la vie,V, 3). [O cuidado de si, op. cit.,
pp. 69-70. (N. dos T.)]
33. Cf. Le Souci de soi (pp. 83-4), onde Foucault, referindo-se
a Sêneca, opõe a voluptas alienante à autêntica gaudium (ou laeti-
tia) do eu: Quero que nunca deixes escapar a alegria. Quero que
ela seja abundante em tua casa. Ela abundará com a condição de
estar dentro de ti mesmo [...]. Ela nunca mais cessará quando en-
contrares, uma vez, de onde ela pode ser tomada [...}. Dirige teu
olhar para o bem verdadeiro; sê feliz pelos teus próprios bens (de
tua). Mas, esses bens, de que se trata? De ti mesmo (te ipso) e da tua
melhor parte (Lettres à Lucilius, t. I, livro m, carta 23, 3-6, pp. 98-9).
[O cuidado de si, op. cit., pp. 70-1. (N. dos T.)]
34. Cf., por exemplo, neste sentido: Quando consideramos
que existiu alguém, o persa Ciro, que se tornou senhor de um
grande número de homens [...], refazendo nossa opinião, fomos
obrigados a reconhecer (ek toútou dê enankazómetha metanoein) que
não é tarefa impossível nem difícil comandar homens, desde que
a saibamos cumprir (Xénophon, Cyropédie, t. I, 1-3, trad. bras. M.
Bizos E. Delebecque, Paris, Les BeUes Lettres, 1971, p. 2).
35. Mas, desde o dia seguinte, manifestaram-se pesares
(metánoia tis euthus en autaís) com a reflexão de que a resolução to-
mada era cruel e grave (1hucydide, La Guerre du Péloponnese, t. Il-l,
livro m, XXXVI, 4, trad. Ir. R. Weil J. de Romily, Paris, Les BeUes
Lettres, 1967, p. 22).
36. Desta forma, ele acabará por dirigir censuras a si mes-
mo, lutar contra si mesmo (makhómenos), arrepender-se (meta-
noón), atormentar-se (basanízon heautón) (Épictete, Entretiens, lI,
22,35, p. 101).
37. Tu virás a arrepender-te e a censurar a ti mesmo (hyste-
ron metanoéseis kai autôs seautô loidarêse) (Épictete, Manuel, 34,
trad. É. Bréhier, in Les Stoióens, op. cit., p. 1126).
......
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 279
38. Marc Aurele, Pensées,VIII, 2 (p. 83).
39. He de metánoia haúte philosophías arkhe gínetai kai tôn
anoéton érgon te kai lógon phyge kal tês ametamelétou zoês he próte pa-
raskeué (Hiérocles, Aureum Pythagoreomm Cannen Commentarius,
XIV-lO, ed. F. G. Koehler, Stuttgart, Teubner, 1974, p. 66; devo a R.
Goulet ter achado esta citação). Em uma edição de 1925 (Paris,
L'Artisan du livre), M. Meunier traduz: O arrependimento é pois
o começo da filosofia, e abster-se de palavras e ações insensatas é
a primeira condição que nos prepara para uma vida que seja isen-
ta de arrependimento (p.187).
..... 40. P. Hadot, Epistrophé et metánoia in Actes du Xl Congrês
Intemational de Philosophie, Bruxelas, 20-26 de agosto de 1953, Lou-
vain-Amsterdam, Nauwelaerts, 1953, vaI. XII, pp. 31-6 (cf. retoma-
do no artigo Conversion redigido para a Encyclopaedia Universalis
e republicado na primeira edição de Exercices spirituels et Philoso-
phie antique, op. cit., pp. 175-82).
41. Para uma apresentação do estabelecimento das técnicas
de decifração dos segredos da consciência no cristianismo, cf. aula
de 26 de março de 1980 (última aula do ano no Col/êge de France)
em que Foucault se apóia nas práticas de direção de consciência
de Cassiano.
42. Plutarque, De la curiosité, 515b-d, trad. Ir. J. Dumortier
j. Delradas, ed. citada, pp. 266-7.
43. Assim minha pátria, exposta ao Zéfiro, sofria à tarde
toda a força do sol vindo do Pamasso: dizem que ela foi reorien-
tada (trapênai) para o levante por Chéron (id., 515b, p. 266).
44. Não é fácil ver um homem que esteja infeliz por falta de
prestar atenção ao que se passa na alma de outrem. Quanto aos
que não observam os movimentos de sua própria alma, é fatal que
sejam infelizes (Marc Aurele, Pensées, lI, 8, p. 12).
45. Pensées, IlI, 4 (p. 20). A frase terrnina assim: a menos que
proponhas algum fim útil à comunidade:
46. Pensées, N, 18 (p. 31).
47. Plutarque, De la curiosité, 515d, parágrafo 1 (p. 267).
48. Id., 515d-e (p. 267).
49. Desvia esta curiosidade para com o fora a fim de recon-
duzi-Ia para dentro(ibid.).
50. Qual o meio de fugir? A conversão (penspasmós), como
foi dito, e a transferência (meiholke') da curiosidade, volvendo sua
alma (trépsanti ten psykhén), de preferência na direção de assuntos
mais honestos e mais agradáveis (id., 517c, parágrafo 5, p. 271).
--
152. •
280 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
51. Id., sucessivamente, parágrafos 5, 6 e 8, 517c a 519c (pp.
271-5).
52. Eles pensavam que é preciso guardar e conservar na me-
mória tudo o que foi ensinado e dito, e que é preciso adquirir co-
nhecimentos e saber, durante todo o tempo em que a faculdade de
aprender e de lembrar-se for capaz, porque é graças a ela que se
deve aprender e é nela que se deve guardar a lembrança. Tanto es-
timavam eles a memória que passavam um tempo considerável a
treiná-la e a ocupar-se com ela [...]. Os Pitagóricos esforçavam-se
em treinar amplamente a memória, pois nada de melhor existe
para adquirir ciência, experiência e sabedoria do que poder se
lembrar (Jamblique, Vie de Pythagore, trad. L. Brisson A Ph. Se-
gonds, ed. citada, parágrafo 164, p. 92).
53. Plutarque, De la curiosité, 520a, parágrafo 10 (pp. 276-7).
54. Plutarque, Le Dérnon de Socrate, 585a, trad. J. Hani, ed. ci-
tada; cf. para uma primeira análise do texto, aula de 13 de janeiro,
primeira hora.
55. De la curiosité, 522d, parágrafo 15 (p. 283).
56. Não atentes ao caráter maldoso, mas percorre reto a li-
nha da meta, sem olhar para todos os lados (Marc Aurêle, Pen-
sées, N, 18, p. 31); não te deixes distrair pelos incidentes que so-
brevêm de fora! Proporciona-te tempo livre a fim de aprenderes
ainda alguma coisa de bom e cessa de te levares pelo turbilhão
(Pensées, 1I, 7, p. 12).
57. I...] buscando imaginar o que faz tal pessoa, e por que, o
que diz, o que pensa, os planos que organiza, e outras ocupações
deste gênero, que te fazem levar-te pelo turbilhão e negligenciar
teu guia interior. É preciso evitar, portanto, que deixemos passar
na corrente de nossas idéias o que é temerário e vão e, antes de
tudo, a futilidade e a malvadez (Pensées, IlI, 4, p. 20).
58. Lembremos que Foucault era um grande leitor de E. Her-
rigel: cf. deste autor, Le Zen dans l'art ehevaleresque du tir à ['are
(1978), Paris, Dervy, 1986 (devo esta indicação a D. Defert).
i
~
......
•
~
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982
Segunda hora
Quadro teórico geral: veridicção e subjetivação. ~ Saber
do mundo e prática de si entre os cínicos: o exemplo de Deme-
trius. ~ Caracterização dos conhecimentos úteis em Demetrius.
~ O saber etopoiético. ~ O conhecimento fisiológico em Epicu-
ro. ~ A parrhesía do fisiólogo epicurista.
Vimos, na hora anterior, o que significava para Plutarco
e Marco Aurélio /I desviar o olhar e a atenção aos outros para
os conduzir a si. Gostaria agora de abordar uma questão
que, no fundo, é bem mais importante e se prestou a mais
discussões, a de saber o que significadesviar o olhar sobre
as coisas do mundo para condl:lzi-lo a si. De fato, esta é uma
questão difícil, complexa, em que me deterei um pouco mais
porquanto se situa exatamente no cerne do problema que
pretendia colocar este ano - aliás, que venho pretendendo
colocar há algum tempo -, que é, fundamentalmente, o se-
guinte: como se estabelece, como se fixa e se define a relação
entre o dizer-verdadeiro (a veridicção1
) e a prática do sujeito?
Ou ainda de modo mais geral: como o dizer-verdadeiro e o
governar (a si mesmo e aos outros) se vinculam e se articu-
lam um ao outro? Este é o problema que tentei abordar sob
numerosos aspectos e formas - seja a propósito da loucura
e da doença mental, seja a propósito das prisões-e da delin-
qüência, etc. - e que agora, a partir da questão a que me
propus sobre a sexualidade, gostaria de formular diferente-
mente, de um modo ao mesmo tempo mais estritamente de-
finido e ligeiramente deslocado em relação ao domínio que
escolhi, e [convocando períodos] historicamente mais ar-
I
Instituto de Psicologia - UFRGS
Bihlioipr: - - - -oi
153. •
282 A HERMENWTICA DO SUJEITO
caicos e mais antigos. Começo por dizer que agora, como já
indiquei, gostaria de colocar esta questão da relação entre o
dizer-verdadeiro e o governo do sujeito no pensamento an-
tigo que é anterior ao cristianismo. Gostaria também de co-
locá-la sob a forma e no quadro da constituição de uma re-
lação de si para consigo, a fim de mostrar como se formou
nesta relação um certo tipo de experiência de si que, pare-
ce-me, é característica da experiência ocidental, da experiên-
cia ocidental do sujeito por ele mesmo, mas igualmente da
experiência ocidental que o sujeito pode ter ou fazer em re-
lação aos outr~s. Esta pois a questão que, de modo geral,
quero abordar. E a questão do vínculo entre o saber das coisas
e o retorno a si que vemos aparecer em certos textos da épo-
ca helenística e romana dos quais gostaria de tratar, ques-
tão em tomo daquele antigo tema que Sócrates já evocava no
Fedro, ao perguntar se devemos escolher o conhecimento
das árvores ou o conhecimento dos homens. E ele escolhia
o conhecimento dos homens2. É um tema que encontrare-
mos a seguir, entre os socráticos, quando dizem, uns após
outros, que o interessante, importante e decisivo, não é co-
nhecer os segredos do mundo e-da natureza, mas conhecer
o próprio homem'- É um tema que encontramos também
nas grandes escolas filosóficas cínicas, epicuristas, estóicas,
e é quanto a elas que, na medida em que dispomos de tex-
tos mais numerosos e mais explícitos, tentarei examinar
como o problema está posto e de que modo é definido. Co-
meçarei com os cínicos, depois os epicuristas e, finalmente,
os estóicos.
Primeiro, os cínicos, ou pelo menos os cínicos tais como
os podemos conhecer através de alguns elementos e indi-
cações indiretos que, relativamente· ao período em pauta,
nos foram transmitidos por outros autores. De fato, a posição
do movimento cínico ou dos cínicos para com a questão 'da
relação conhecimento da natureza/conhecimento de si (re-
tomo a si, conversão a si) é certamente muito tnais compli-
cada do que parece. Lembremo-nos, por exemplo, de Dió-
genes Laércio. Quando ele escreve a vida de Diógenes, ex-
.(
~
,
,).
,
i~·
~.
i
•
~
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 283
plica que este fora nomeado preceptor dos filhos de... não
sei mais quem4
. Deu a estas crianças uma educação com a
qual lhes ensinou todas as ciências e cuidou para que, des-
tas ciências, conhecessem um resumo suficientemente pre-
ciso e familiar para que pudessem delas se lembrar durante
toda avida e em todas as ocasiões que se apresentassem. Por-
tanto, a recusa cínica de conhecimento das coisas da nature-
za deve, sem dúvida, ser consideravelmente atenuada. Em
contrapartida, no período de que trato - isto é, no começo
do Império Romano -, há, como sabemos, um texto relati-
'- vamente longo citado por Sêneca no livro VII do De benefi-
ciis, texto de Demetrius, que era um filósofo cínico, aclima-
tado a Roma, digamos assim, e ao círculo aristocrático'- Tra-
ta-se do famoso Demetrius, confidente de Thrasea Paetus
de cujo suicídio ele foi a testemunha e como que o organi-
zador filosófico: quando Thrasea Paetus suicidou-se, chamou
Demetrius junto a si, nos seus derradeiros momentos. Afas-
tou todas as pessoas e entabulou com ele um diálogo sobre
a imortalidade da alma. E foi dialogando desta maneira so-
crática com Demetrius que veio a morrer'. Portanto, Deme-
mus era um cínico, mas um cínico bem instruído, aclimatado.
Sêneca o cita freqüentemente e sempre com muitos elogios
e deferência. Nesta passagem citada por Sêneca, Demetrius
começa por dizer que devemos guardar na mente o modelo,
a imagem do atleta. Este tema, sobre o qual.será preciso vol-
tar - tentarei explicá-lo um pouco -, é extremamente cons-
tante, mas entre os cínicos teve um papel, um valor mais
importante do que em quaisquer outros'. É preciso pois ser
um bom atleta. O que é um bom atleta? Absolutamente não
é, diz ele, quem aprendeu todos os gestos possíveis de que
podemos eventualmente precisar, ou que poderíamos ser
capazes de fazer. No fundo, para ser um bom atleta, basta co-
nhecer os gestos - e tão-somente estes - que são efetiva-
mente e mais freqüentemente utilizáveis na luta. E é necessá-
rio que estes gestos, de tão conhecidos, se tenham tornado a
tal ponto familiares que os tenhamos sempre à disposição e
possamos recorrer a eles toda vez que aocasião se apresentarB.
_..J
154. 284 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
A partir deste modelo, vemos surgir o que poderia cons-
tituir, creio, um critério de utilidade. Negligenciemostodos
os conhecimentos que são como aqueles gestos mais ou
menos acrobáticos que poderíamos aprender, inteiramente
inúteis e sem utilização possível nos combates reais da vida.
Guardemos apenas os conhecimentos que serão utilizáveis,
a que poderemos recorrer facilmente nas diferentes ocasiões
da luta. Ao que parece, temos pois, mais uma vez, a impres-
são de uma divisão no conteúdo mesmo dos conhecimen-
tos, entre conhecimentos inúteis, que poderiam ser os do
mundo exterior, etc., e conhecimentos úteis, que tangen-
ciam diretamente a existência humana. De fato, a partir des-
ta-referência e [deste] modelo, precisamos ver como Deme-
trius distingue o que merece e o que não merece ser conhe-
cido. Tratar-se-ia de uma pura e simples diferença de con-
teúdo - conhecimento útil/conhecimento inútil-, situando do
lado dos conhecimentos inúteis os do mundo, das coisas do
mundo, e do lado dos conhecimentos úteis, os do homem e
:!1l existência humana? Examinemos Otexto; a tradução que
cito é antiga, mas isto é irrelevante. Diz ele: Tu podes ig-
norar a causa que faz erguer o oceano e reconduzi-Io ao seu
leito, podes ignorar por que a cada sete anos um 'novo ca-
ráter se imprime na vida do homem [idéia de que a cada sete
anos iniciamos uma nova fase da existência, um novo cará-
ter e que, por conseqüência, é preciso adaptar um novo modo
de vida; M.F.]; por que, vista de longe, a largura de um pór-
tico não conserva suas proporções, as extremidades se apro-
ximando e se estreitando, as colunas se tocando nos últi-
mos intervalos; por que os gêmeos, separados na concep-
ção, são reunidos no parto, se uma concepção se divide em
dois seres, ou se houve uma dupla concepção; por que, nas-
cidos ao mesmo tempo, o destino dos gêmeos é tão diver-
so; por que os acontecimentos estabelecem tão grandes
distâncias entre eles, quando tanta proximidade houve em
seu nascimento. Nada perderás negligenciando coisas cujo
conhecimento nos é interditado e inútiUlA.. o1:)scua verdade
se oculta em um abismo. Enão podemos ãcú~;'r a majev61ên-
1. . . . . . . . . . . .- - - - - - - - - -
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AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 285
cia da natureza. Porquanto nela nada é difícil de descobrir
senão as coisas cuja descoberta só tem por fruto a própria
descoberta. Tudo o que nos pode fazer melhores ou felizes,
ela pôs sob nossos olhos e ao nosso alcance9. E então a
enumeração das coisas que se deve conhecer, em oposição
às que seriam inúteis: Se o homem fortaleceu-se contra os
acasos e elevou-se acima do temor; se, na avidez'de sua es-
perança, não abraça o infinito, mas aprende a buscar as ri-
quezas em si mesmo; se circunscreveu o terror dos deuses
~ dos homens, persuadido de que há pouco a temer do ho-
mem e nada a temer de Deus; se, desprezando todas as fri-
validades que tanto são o tormento quanto o ornamento da
vida, chegou a compreender que a morte não produz males
e acaba com muitos deles; se devotou sua alma à virtude e
acha fácil o caminho por onde ela o chama; se se enxerga
corno um ser social nascido para viver em comunidade; se
vê o mundo corno a morada comum de todos; se abriu sua
consciência aos deuses e vive sempre corno se estivesse em
público - então, respeitando-se mais que aos outros [res-
peitando a si mais que aos outros; M.F.L tendo escapado. às
tempestades, fixou-se em uma calmaria inalterável; e reu-
niu em si toda ciência verdadeiramente útil e necessária: o
resto não passa de futilidades do lazer1o.
Como vemos, esta é a lista, uma dupla lista, do que é
inútil e do que é útil'conhecer. No que é inútil conhecer, te-
mos a causa dos maremotos, a causa do ritmo dos sete anos
que cadenciariam a vida humana, a causa das ilusões de
ótica, o motivo de haver gêmeos e o paradoxo de duas exis-
tências diferentes e nascidas sob o mesmo signo, etc.Vemos
bem que tudo o que é inútil conhecer não são coisas afasta-
das pertencentes a um mundo afastado. No limite, há, é certo,
a causa dos maremotos, muito embora se possa dizer que,
afinal, não estaria tão longe assim da existência humana. De
fato porém, em tudo isto o que está em questão, por exem-
1'10, são problemas - da saúde, do modo de vida, do ritmo
dos sete anO$ - que tangenciam diretamente a existência
humana. Nas ilusões óticas, a questão dos erros, dos erros
-~-
,
155. 286 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
humanos. No assunto dos gêmeos e de seus paradoxos, fa-
zendo com que duas existências nascidas sob o mesmo sig-
no tenham dois destinos diferentes, é a questão do destino,
a da liberdade, a do que, no mundo, determina nossa exis-
tência e contudo nos deixa livres. Todas estas são questões
evocadas na lista das coisas que não é necessário conhecer.
Vemos pois que não se trata da ordem de oposição entre o
distante e o próximo, o céu e a terra, os segredos da natu-
reza e as coisas que tangenciam a existência humana. Na
realidade, o que caracteriza toda esta lista do que é inútil
conhecer e constitui seu caráter comum, não é, creio, que se
trate de coisas que não tangenciam a existência humana.
Tangenciam-na e muito de perto. O traço comum e que as tor-
nará inúteis, é que se trata, como vemos, de conhecimentos
pelas causas. A causa de haver gêmeos, a causa d.o ritmo dos
sete anos, acausa das ilusões de ótica, acausa também dos ma-
remotos, é isto o que não precisa ser conhecido. Pois são estas
causas justamente que, fazendo muito embora atuar seus
efeitos, a natureza ocultou. E, para Demetrius, se a nature-
za tivesse considerado que estas causas, de um modo ou de
outro, poderiam ser importantes para a existência e para o
conhecimento humanos, ela as teria mostrado, ela as teria
tornado visíveis. Se as ocultou, não é porque houvesse uma
espécie de transgressão, um interdito a se transpor a fim de
conhecê-las. É meramente porque a natureza mostrou ao
homem que não era útil conhecer a causa destas coisas. O que
não significa que seja inútil conhecer estas coisas e tê-las
em conta. Podemos conhecer as causas, se quisermos. Pode-
mos conhecê-las em certa medida, e é isto o que aparece no
final do texto: Isto é permitido à alma que já estiver retira-
da ao abrigo de extraviar-se vez ou outra nestas especula-
ções que servem para ornamentar· o espírito mais que para
fortalecê-lo. Devemos aproximar esta passagem daquela
outra, já lida, que está no meio do texto, a saber, que a des-
coberta destas coisas só tem por fruto a própria descoberta.
Portanto, estas causas estão ocultas. Estão ocultas porque é
inútil conhecê-las. É inútil conhecê-las não porque proibi-
' 1· ,
4
...........------------
•
AULA DE /O DE FEVEREIRO DE 1982 287
do, mas porque, se as quisermos conhecer, ao conhecê-las
não obteremos mais do que algo suplementar, quando a
alma, estando in tutum relractoll (retirada na região de segu-
rança que lhe fornece a sabedoria), quererá a mais, a título
de distração e para sentir um prazer que reside, precisa e uni-
camente, na própria descoberta, buscar estas causas. Prazer
de cultura,por conseqüência, prazer suplementar, prazer inú-
til e ornamental: é isto o que a natureza nos sinalizou ao nos
mostrar que todas estas coisas que, repito, nos tocam em
nossa própria existência não estão para serem investigadas,
para serem pesquisadas no plano da causa. É o conheci-
mento pela causa como conhecimento de cultura, como co-
nhecimento ornamental que assim está denunciado, criti-
cado, rejeitado por Demetrius.
Em face disto, que coisas é preciso conhecer? Que.há.
pouco a temer dos homens, nada a temer dos deuses, que
a morte não produz nenhum mal, que é fácil achar o cami-
nho [da] virtude, que é preciso considerar-se como um ser
social nascido para a comunidade. Enfim, saber que o mundo
é um habitat comum, onde todos os homens estão reunidos
para justamente constituir esta comunidade. Vemos que a
série de conhecimentos que devemos ter não pertence à or-
dem do que poderíamos chamar, do que assim será chama-
do pela espiritualidade cristã, de arcana conscientiae (os se-
gredos da consciência)12. Demetrius não diz: negligencia o
conhecimento das coisas exteriores e tenta saber exatamen-
te quem és; faz o inventário de teus desejos, de tuas paixões,
de tuas enfermidades. Nem mesmo diz: faz um exame de
'consciência. Não propõe uma teoria da alma, não expõe o
que é a natureza humana. No plano do conteúdo, continua
falando das mesmas coisas, isto é: dos deuses, do mundo em
geral, dos outros homens. É disto que fala e isto, repito, não
é o próprio indivíduo. Não pede para reconduzir o olhar das
coisas exteriores para o mundo interior. Não pede para di-
rigir o olhar da natureza para a consciência, ou para si mes-
mo, ou para as profundezas da alma. Não quer substituir os
s~gredQli da natureza pelos segredos da consciência. Trata-se,
J
156. •
288 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
somente e sempre, do mundo. Trata-se, somente e sempre,
dos outros. Trata-se, somente e sempre, do que nos cerca.
Apenas é preciso ter destas coisas um saber diferente. De-
metrius fala de uma outra modalidade de saber. O que ele
opõe são dois modos de saber: um, pelas causas que ele diz
ser inútil e o outro, em que consiste? Creio que poderíamos
chamá-lo, muito simplesmente, de um modo de saber rela-
cionaL porquanto o que agora há que se ter em conta quan-
do consideramos os deuses, os outros homens, o kósmos, o
mundo, etc., é a relação entre, por um lado, os deuses, os hó-
mens, o mundo, as coisas do mundo, €I por outro, nós. Fa-
zendo de nós mesmos o termo recorrente e constante de
todas estas relações, é que deveremos conduzir nosso olhar
para as coisas do mundo, para os deuses e para os homens. É
neste campo de relação entre todas as coisas e nós mesmos
que o saber poderá e deverá desenvolver-se. Saber relacio-
nal: esta me parece ser a primeira característica do conheci-
ment? que é validado por De.metrius.
E também um conhecimento com a propriedade, por
assim dizer, de ser imediatamente transcriptível - de resto,
está imediatamente transcrito no texto de Demetrius - em
prescrições. Trata-se, diz Demetrius, de saber que o homem
tem pouco a temer dos homens, nada a temer dos deuses,
que deve desprezar os ornamentos, as frivolidades - tanto
tormento quanto ornamento da vida -, e que é necessário
que ele saiba quea morte não produz males e acaba com
muitos deles. São conhecimentos que, estabelecendo-se e
formulando-se como princípios de verdade, oferecem-se ao
mesmo tempo, solidariamente, sem distância nem qualquer
mediação, como prescrições. São constatações prescritivas.
São princípios nos dois sentidos do termo: no sentido de
que se trata dos enunciados de verdade fundamental dos
quais os outros podem ser deduzidos; e de que também se
trata do enunciado de preceitos de condutas- aos quais, em
qualquer situação, há que submeter-se. O que aqui está em
causa são verdades prescritivas. Portanto, o que há a conhe-
cer são relações: relações do sujeito com tudo o que o cerca.
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AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 289
O que há a conhecer, ou melhor, a maneira como se há de
conhecer, é tal que o que é dado como verdade seja lido, de
saída e imediatamente, como preceito.
Enfim, são conhecimentos tais que, uma vez que se os
tem, uma vez que se os possui, uma vez adquiridos, o mo-
do de ser do sujeito se acha transformado, pois que é gra-
ças a isto que nos tornamos melhores, diz Demetrius. É
graças a isto também que, respeitando-nos mais que aos ou-
tros, tendo escapado às tempestades, fixamo-nos em uma
cahnaria inalterável. In solido et sereno stare: podemos nos
manter no elemento sólido e sereno13. Estes conhecimentos
nos tornam beati (bem-aventurados)!' e é justamente nisto
que se opõem ao ornamento da cultura. O ornamento da
cultura consiste precisamente em alguma coisa que pode per-
feitamente ser verdadeira, mas em nada modifica o modo
de ser do sujeito. Os conhecimentos, por consegumte inúteis,
que são rejeitacRJs por Demetrius, repito, não se definem
pelo conteúdo. Definem-, por um modo de connecimen-
to, modo de conhecimento causal, com dupla propriedade,
ou melhor, com dupla falta, que agora, em relação aos de-
mais,podemos definir: são conhecimentos que não podem
transformar-se em prescrições, que não têm pertinência pres-
crítiva; em segundo lugar, que, quando os possuímos, não
têm efeito sobre o modo de ser do suje.ito. Em contrapar-
tida, será validado um modo de conhecimento que, consi-
derando todas as coisas do mundo (os deuses, o kósmos, os
outros, etc.) relativamente a nós, de pronto poderemos trans-
crever em prescrições, e elas modificarão o que somos, mo-
dificarão o estado do sujeito que as conhece.
Creio que aí se acha uma das caracterizações mais cla-
ras e mais nítidas daquilo que me parece ser um traço geral
de toda a ética do saber e da verdade qUeencoIltraremos
nas outras escolas filosóficas, isto é, que a divisória, o pon-
to de diferenciação, a fronteira que se estabelece, não con-
cerne, repito, à distinção entre coisas do mundo e coisas da
natureza humana: a distinção está no modo do saber e na
maneira como aquilo que conhecemos sobre os deuses, -os
/
.......
157. •
290 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
homens, o mundo, poderá ter efeito na natureza do sujeito,
ou melhor dizendo, na sua maneira de agir, no seu êthos. Os
gregos usavam uma palavra muito interessante, que encon-
tramos em Plutarco e também em Dionísio de Halicamasso,
sob a forma de substantivo, de verbo e de adjetivo. Trata-se
da expressão ou da série de expressões ou palavras: ethopoiefn,
ethopoiía, ethopoiós. Ethopoiefn significa: fazer o éthos, produ-
zir o éthos, modificar, transformar o êthos, a maneira de ser,
o modo de existência de um indivíduo. É ethopoiót; aquilo que
tem a qualidade de transformar o modo de ser de.um indi-
víduols [...]. Retenhamos o sentido encontrado em Plutarco,
isto é: fazer o éthos, formar o êthos (ethopoiefn); capaz de for-
mar o êthos (ethopoiós); formação do êthos (ethopoiía). Pois bem,
parece-me que a distinção, a cisão introduzida no campo
do saber, não é, repito, a que marcaria alguns conteúdos do
conhecimento como inúteis e outros como úteis, é a que
marca o caráter etopoético ou não do saber. Quando o sa-
ber, quando o conhecimento tem uma forma, quando fun-
ciona de tal maneira que é chamado a produzir o éthos, en-
tão ele é útil. E o conhecimento do mundo é perfeitamente
útil: pode fabricar o êthos (assim também, o conhecimento
dos outros, o.conhecimento dos deuses). É assim que se
marca, que se forma, é assim que se caracteriza o modo como
deve ser o conhecimento útil ao homem. Conseqüente-
mente, esta crítica do saber inútil, como vemos, de maneira
alguma nos remete à valorização de um outro saber com
outro conteúdo e que seria o co,nhecimento de nós mesmos
e de nosso interior. Remete-nos a um outro funcionamen-
to do mesmo saber das coisas exteriores. Portanto, pelo me-
nos neste plano, o conhecimento de si não está, absoluta-
mente, a caminho de tornar-se uma decifração dos arcanos
da consciência, aquela exegese de si que veremos desenvol-
ver-se em seguida, no cristianismo. O conhecimento útiL o
conhecimento em que a existência humana e,stá em questão,
é um modo de conhecimento relacional, a um tempo asser-
tivo e prescritivo, e capaz de produzir uma mudança no
modo de ser do sujeito. Ora, aquilo que me parece bastan-
~
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I.
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 291
te claro no texto de Demetrius, creio poder ser encontrado,
com modalidades diferentes, em outras escolas filosóficas,
fundamentalmente nos epicuristas e nos pitagóricos.
Procedamos agora a algumas leituras de textos epicu-
ristas. Como acabamos de ver, a demonstração, ou melhor,
a análise de Demetrius, consiste essencialmente em distin-
guir, em opor duas listas não propriamente de coisas a se-
rem conhecidas, repito, mas de caracteres definidores de
duas modalidades do saber: uma ornamental, característica
da cultura do homem cultivado que não tem nada mais a
fazer; e o modo de conhecimento ainda necessário para quem
tem que cultivar seu próprio eu, estabelecendo-o como ob-
jetivo de vida. Lista, por assim dizer, empírica. Entre os epi-
curistas, ao contrário, temos uma noção, a meu ver, muito
importante porque abrange o saber, ou melhor, o modo de
funcionamento do saber que podemos qualificar de etopé-
tico, isto é, capaz de cOI1~stituir, de formar o êthos. Trata-se
da noção de physiología. Com efeito, nos textos epicuristas, o
conhecimento da natureza (conhecimento da natureza en-
quanto está validado) é regularmente chamado de physiolo-
gía (fisiologia, se quisermos). O que é esta physiología? En-
contramos nas Sentenças Vaticanas, parágrafo 45, um texto
que fornece precisamente a definição da physiología. Lembro,
mais uma vez, que a physiología não é um setor do saber que
se oporia aos demais: é a modalidade do saber da natureza
enquanto filosoficamente pertinente para a práticade si. O
texto afirma: O estudo da natureza (physiología! não forma
fanfarrões nem artistas do verbo, nem pessoas que osten-
tam uma cultura julgada inviável para as massas, mas ho-
mens altivos e independentes, que se orgulham de seus
próprios bens, não dos que advêm das circunstânciasl6
Re-
tomemos este texto. Ele diz que a physiología não forma (pa-
raskeuázez) fanfarrões, artistas do verbo - voltarei a isto -,
pessoas que ostentam cultura (paideía), a cultura julgada in-
viável para as massas. São homens altivos e independentes
(autarkefs) que depositam seu orgulho nos bens que propria-
----J
158. ~
(
•
292 A HERMENWTICA DO SUJEITO
mente lhes pertencem, não naqueles que advêm das cir-
cunstâncias, das coisas (prágmata).
Vemos que este texto baseia-se, inicialmente, em uma
oposição clássica [cujo primeiro termo é] o saber da cultura
- para o qual Epicuro emprega a palavra paideía -, cuja fina-
lidade é a glória, a ostentação que constrói a reputação das
pessoas, uma espécie de saber de jactância. É o saber de jac-
tância dos fanfarrões (kómpous), pessoas que querem obter
entre os outros uma reputação que, de fato, em nada se as-
senta. É a paideía que se constata em pessoas que, diz a tra-
dução' sãoartistas do verbo, muito exatamente, phonês
ergastikoús. Os ergastikoí são artesãos, operários, isto é, pes-
soas que trabalham não para elas mesmas, mas para vender
e obter lucro. Sobre qual objeto elas trabalham? Sobre a pho-
nê, quer dizer, a palavra enquanto ruído, não enquanto tal
como o lágos ou a razão. Elas são, eu diria, fazedores de pa-
lavras. Pessoas que fabricam, para vender, certos efeitos li-
gados à sonoridade das palavras, não pessoas que trabalham
para elas mesmas no plano do lágos, isto é, do arcabouço ra-
cional do discurso. Portanto, temos a paideía definida como
aquilo que serve para jactar-se entre os outros e que é o
próprio objeto dos artesãos do ruído verbal. E estes, é claro,
é que são apreciados pelas massas, as massas entre as quais
fazem ostentação. Esta parte do texto tem muitos ecos nos
textos conhecidos de Epicuro. Quando ele afirma que é pre-
ciso filosofar para si e não para a Hélade17, está se referindo
à atividade da prática verdadeira de si cuja única meta é si
mesmo. E a opõe aos que aparentam ter esta prática de si,
mas que, na realidade, quando aprendem algo e o mostram,
só pensam em uma coisa, só têm um objetivo: fazer-se ad-
mirar pela Hélade. É isto que está presente no termo paideía
- termo que, como sabemos, era todavia empregado na Gré-
cia com conotações positivas18
. Paideía era uma espécie de
c.ultura geral necessária ao homem livre. Pois bem, Epicuro
rejeita esta paideía como sendo uma cultura de fanfarrões,
elaborada meramente por fabricantes de verbo, cuja única
meta é fazer-se admirar pelas massas.
'
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AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 293
o que Epicuro vai opor a esta paideía assim criticada?
Precisamente a physiología. A physiología é diferente da pai-
deía. E no que se distingue? Primeiro, no lugar de fabricar
pessoas que não passam de pomposos e inconsistentes fan-
farrões' o que faz a physiología? Ela paraskeuázei, isto é, ela
prepara. Encontramos aí a palavra à qual já me referi e a que
precisamos voltar: paraskeue19
A paraskeué é a equipagem, a
preparação do sujeito e da alma pela qual o sujeito e a alma
estarão armados como convém, de maneira necessária e
suficiente, para todas as circunstâncias possíveis da vida
com que viermos a nos deparar. A paraskeué é precisamen-
te o que permitirá resistir a todos os movimentos e solicita-
ções que poderão advir do mundo exterior. A paraskeué é o
que permite, a um tempo, atingir a meta e permanecer es-
tável, fixado na meta, sem se deixar desviar por nada. As-
sim, a physiología tem por função paraskeuázein, dotar a alma
do equipamento necessário para seu combate, seu objetivo
e sua vitória. Em si, opõe-se à paideía.
Fornecendo esta preparação, a physiología tem como
efeito constituir, produzir - releio a tradução: homens altivos
e independentes, que se orgulham de seus próprios bens,
não dos que advêm das circunstânciafr. Retomemos os ter-
mos. Altivos é sobaroí: palavra um pouco rara, preferencial-
mente empregada para aplicar-se aos animais, aos cavalos
fogosos, cheios de vitalidade, e que, por isto mesmo, são di-
fíceis de dominar e manter às rédeas. Fica claro que nesta
palavra está designado, primeiramente de modo negativo
por assim dizer, o fato de que os indivíduos, após a physio-
logía e graças a ela, não terão mais medo. Não~ão mais
submetidos ao temor dos deuses, ao qual Epicuro, como sa-
bemos, atribui tanta importância. Todavia, certamente trata-
se mais do que da abolição do temor. A physiología dota o
indivíduo de uma ousadia, de uma coragem, de uma espé-
cie de intrepidez que lhe permite afrontar não apenas as
múltiplas crenças que se pretendeu impingir-lhe, como igual-
mente os perigos da vida e a autoridade dos que pretendem
determinar sua lei. Ausência de medo, ousadia, uma espé-
~
159. ~
(
294 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
de de insubmissão, fogosidade se quisermos: é isto o que a
physiología atribuirá aos indivíduos que a aprenderem.
Em segundo lugar, estes indivíduos se tomarão autarkeis.
Encontramos agora a conhecida noção de autárkeia. Signi-
fica que eles só serão dependentes deles próprios. Estarão
contenti (contentes, satisfeitos consigo próprios). Não po-
rém no sentido em que hoje entendemos. Trata-se de estar
satisfeito consigo, também aqui, em sentido negativo e em
sentido positivo. No sentido negativo significa que não te-
rão necessidade de nada além deles mesmos; mas, ao mes-
mo tempo, encontrarão neles mesmos certos recursos, em
particular a possibilidade de sentir prazer e deleite na rela-
ção plena que terão consigo mesmos.
Por fim, terceiro efeito da physiología: permitir que os
indivíduos se orgulhem de seus próprios bens, não dos que
advêm das circunstâncias. Significa realizar aquela famosa
triagem, a famosa partilha que, como sabemos, tanto para
os epicuristas quanto para os estóicos, é fundamental na exis-
tência. A cada instante e perante cada coisa, perguntar e
poder dizer se depende de [si] ou não20; e colocar todo o or-
gulho, toda a satisfação, toda a afirmação de si relativamen-
te aos outros, no fato de se reconhecer o que depende de si,
estabelecendo-se, relativamente ao que depende de si, um
domínio totat absoluto e sem limites. Assim, como vemos,
a physiología, tal como aparece nos textos de Epicuro, não é
um setor do saber. É o conhecimento da natureza, da phy-
sis, enquanto conhecimento suscetível de servir de princí-
pio para a conduta humana e critério para fazer atuar nos-
sa liberdade; enquanto é também suscetível de transformar
o sujeito (que era, diante da natureza, diante do que lhe ha-
viam ensinado sobre os deuses e as coisas do mundo, reple-
to de temores e terrores) em um sujeito livre, um sujeito
que encontrará em si mesmo a possibilidade e o recurso de
seu d!'leite inalterável e perfeitamente tranqüilo.
E esta mesma definição de physiología que encontra-
mos em outra Sentença Vaticana, a Sentença 29, onde [está]
dito: De minha parte, usando da liberdade de palavra de
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AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 295
quem estuda a natureza, preferiria dizer profeticamente as
coisas úteis a todos os homens, ainda que ninguém pudes-
se compreender-me, a, dando meu assentimento às opi-
niões recebidas, recolher o louvor vindo de muitos, que se
derrama em abundância.21 Não disponho de muito tempo
para explicá-lo. Gostaria apenas de me deter em dois ou
três aspectos que me parecem importantes.Vemos que Epi-
curo diz: de minha parte, usando da liberdade de palavra.
A palavra grega é parrhesía - sobre a qual já lhes disse que
seria preciso voltar -, que, essencialmente, não é franqueza,
não é liberdade de palavra, mas a técnica - parrhesía é um
termo técnico - que permite ao mestre utilizar como con-
vém, nas coisas verdadeiras que ele conhece, o que é útil, o
que é eficaz para o trabalho de transformação de seu discí-
pulo. A parrhesía é uma qualidade, ou melhor, uma técnica
utilizada na relação entre médico e doente, entre mestre e
discípulo: é aquela liberdadê de jogo, se quisermos, que faz
com que, no campo dos conhecimentos verdadeiros, possa-
mos utilizar aquele que é pertinente para a transformação,
a modificação, a melhoria do sujeito.Vemos que, no [quadro]
da parrhesía, que ele reivindica enquanto fisiólogo, isto é, en-
quanto alguém que conhece a natureza mas só utiliza este
conhecimento em função do que será útil ao sujeito, usan-
do a liberdade [de palavra], afirma: prefiro dizer profeti-
camente as coisas úteis a todos os homens a lIdar meu as-
sentimento às opiniões recebidas. Dizer profeticamente
as coisas úteis é, em grego, khresmodotefn, uma importan-
te palavra.Vemos que aí, reportando-se ao oráculo, Epicuro
refere-se a um tipo de discurso em que, ao mesmo tempo,
se diz o que é verdadeiro e o que é preciso fazer, um discurso
que desvela a verdade e que prescreve. E afirma: na minha
liberdade de fisiólogo, ou seja, pela parrhesía da fisiologia,
prefiro sempre aproximar-me da formulação oracular que,
mesmo obscuramente, me diz o verdadeiro e ao mesmo tem-
po prescreve, a reduzir-me a seguir a opinião corrente que,
sem dúvida, tem O assentimento de todos, é compreendi-
da por todos, mas de fato em nada muda - justamente por
J
160. ~
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·296 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
ser admitida por todo o mundo - o próprio ser do sujeito.
Dizer profeticamente, somente a alguns capazes de com-
preender, as verdades tais da natureza, que podem efetiva-
mente mudar seu modo de ser, nisto consiste a arte e a liber-
dade do fisiólogo. Éuma arte que se aproxima da formulação
profética. Éuma arte que se aproxima também da medicina,
em função de um objetivo e em função da transformação do
sujeito.
Podemos compreender, portanto, por que também na
physiología não se trata de distinguir entre conhecimento
útil e conhecimento inútil pelo conteúdo, mas tão-somente
pela forma fisiológica ou não do saber. É bem isto que nos
diz a introdução de textos que são combinações de frag-
mentos epicuristas (a carta a Heródoto e a carta a Pítocles).
São, como sabemos, textos de física, de física por assim di-
zer teórica, que tratam dos meteoros, da composição do
mundo, dos átomos, de seus movimentos, etc. Ora, estes
textos são introduzidos por declarações perfeitamente claras
e nítidas. Eis o começo da carta a Heródoto: Recomendo
uma atividade incessante na physiología e, por tal atividade,
asseguro para a vida a mais perfeita serenidadeP Portan-
to, Epicuro impõe uma atividade incessante na physiología,
mas impõe este conhecimento da natureza a fim de atingir,
e na medida em que permite atingir, a mais perfeita sereni-
dade. Assim também o começo da carta a Pítocles: É pre-
ciso persuadir-se de que o conhecimento dos fenômenos
do céu tem por única finalidade a ataraxia e uma firme con-
nança. Com efeito, nossa vida não tem necessidade de des-
razão nem de opinião vazia, mas de renovar-se sem pertur-
bação.23f1
O conhecimento dos meteoros, o conhecimento
das coisas do mundo, o conhecimento do céu e da terra, o
mais especulativo conhecimento da física, nada é recusado,
longe disto. Mas eles são de tal modo apresentados e mo-
dalizados na physiología, que o saber do mundo constitui, na
prática do sujeito sobre si mesmo, um elemento pertinente,
elemento efetivo e encaz na transformação do sujeito por ele
mesmo. É por isto, se quisermos, que a oposição entre sa-
ó
I
I
r
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 297
ber das coisas e saber de si mesmo não pode, em caso algum,
ser interpretada, nos epicuristas como nos cínicos, como
oposição entre o saber da natureza e o saber do ser humano.
A oposição que é por eles delineada e a desqualificação que
fazem de certos conhecimentos recai, simplesmente, sobre
esta modalidade do saber. O que é requisitado e em que
deve consistir o saber validado e aceitáv~l, para o sábio como
para o discípulo, não é um saber que se reportasse a eles
mesmos, não é um saber que capturasse a alma, que fizes-
se do eu o próprio objeto do conhecimento. Éum saber que se
reporta às coisas, ao mundo, aos deuses e aos homens, mas
cujo efeito e função é modificar o ser do sujeito. É preciso
que esta verdade afete o sujeito, e não que o sujeito se tor-
ne objeto de um discurso verdadeiro. Esta é, creio, a grande
diferença. É isto o que temos a compreender e é por isto que,
nestas práticas de si e na maneira como elas se articulam
com o conhecimento da natureza e das coisas, nada pode
apresentar-se como preliminar ou como esboço do que será
mais tarde a decifração da consciência por ela mesma e a
auto-exegese do sujeito.
Pois bem, na próxima aula, então, eu lhes falarei deco-
nhecimento de si e conhecimento da natureza entre os
[estóicosJ.
j
161. ~'-
•
NOTAS
1. Sobre esta noção, cf. Dits et Écnts, op. cit., N, n. 330, p. 445,
e n. 345, p. 632.
2. Referência à passagem em que Sócrates, a quem Fedro ob-
seIVara que jamais se aventurava para além dos muros de Atenas,
responde: O campo e as mores não consentem em nada me en-
sinar, mas sim os homens da cidade (Platon, Phedre, 230d, trad.
fr. L. Robin, ed. citada, p. 7).
3. Os historiadores têm o hábito de designar comosocráticos
filósofos contemporâneos e amigos de Sócrates que pretendiam
ser seus discípulos diretos. Entre os mais conhecidos, podemos ci-
tar Antístenes (o mestre de Diógenes, o Cínico), que rejeitará a ló-
gica e a física para só conservar a ética, e Aristipo de Cirene, que
desprezará também as ciências para só buscar os princípios da sa-
tisfação de viver.
4. Trata-se dos filhos de Xeruades. Diógenes Laércio escreve:
Estas crianças aprenderam também numerosas passagens de
poetas, prosadores e até mesmo escritos de Diógenes, que lhes
apresentava, para cada ciência, resumos e sínteses a fim de fazê-las
reter mais facilmente (Vie, doctrine et sentences de philosophes illus-
tres, t. 11, trad. fr. R. Genaille, ed. citada, p. 17). Pode ser, contudo,
que Foucault se deixasse aqui induzir pela tradução um pouco li-
vre e freqüentemente incorreta de Genaille. Com efeito, a nova
tradução (Vies et docmnes des philosophes illustres, ed. citada) de M.
-O. Goulet-Cazé fornece: Estas crianças sabiam de cor várias
, r
.I
AULA DE 10 DE FEVEREIRO DE 1982 299
passagens de poetas, de prosadores e obras do próprio Diógenes;
ele as fazia exercitarem-se em todo procedimento que permitisse
memorizar rapidamente e bem (VI, 31, p. 712).
5. Cf. aula de 27 de janeiro, primeira hora, supra, p. 182, nota
41, sobre Demetrius.
6. Sobre esta cena e seus personagens, assim como para as
referências históricas, cf. mesma aula, notas 42 e 43.
7. Cf. aula de 24 de fevereiro, segunda hora.
8. O grande lutador não é, diz ele, quem conhece a fundo
todas as figuras e todas as posições pouco usadas na arena, mas
quem conscientemente treinou-se bem em uma ou duas dentre
elas e explora autenticamente o seu emprego, pois não importa a
quantidade de coisas que sabe se não souber bastante para ven-
cer; assim, no estudo que nos ocupa, muitas são as noções fúteis,
poucas as decisivas (Séneque, Des bienfaits, t. IL VII, 1, 4, trad. fr.
F. Préhac, ed. citada, p. 76).
9. Foucault utiliza aqui uma velha edição de Sêneca do século
XIX: Oeuvres completes de Séneque le philosophe, etc. ed. citada, Bien-
faits, VII, 1, p. 246 (os Bienfaits são aqui traduzidos por M. Baillard).
10. Ibid.
11. O texto latino traz exatamente: in tutum retracto animo
(uma alma já retirada ao abrigo) (ibid.).
12. Cf. aula de 26 de março de 1980.
13. Tendo escapado às tempestades, fixou-se em uma cal-
maria inalterável (in solido ac sereno stetit) (Bimfaits,VII, 1, p. 246).
14. Tudo o que nos pode fazer melhores ou felizes (meliores
beatosque), ela [a natureza} pôs sob nossos olhos e ao nosso alcan-
ce (ibid.).
15. Encontramos em Dionísio de Halicamasso o termo etho-
poiía no sentido de retrato dos costumes: Reconheço portanto em
Lísias esta tão distinta qualidade a que chamamos em geral de retra-
to dos costumes (ethopoiían) (I?sias, in Les Orateurs antiques, trad.
G. Aujac, Paris, Les BeUes Lettres, 1978, parágrafo 8, p. 81). Em Plu-
tarco, porém, está presente o sentido prático: A beleza moral [...}não
forma os costumes (ethopoief) de quem a contempla apenas por imi-
tação (Périclés, 153b in Plutarque, Vzes, t. 1lI, 2,4, trad. fr. R. Flace-
liére E. Chambry, Paris, Les BeUes Lettres, 1964, p. 15).
16. Épicure, Sentença 45, in Lettres et maximes, ed. citada, p. 259.
17. Ao envelheceres tu és como te aconselhei que fosses, sou-
beste bem distinguir o que é filosofar para ti e o que é filosofar
J
162. • )
•
300 A HERMENfUTlCA DO SUJEITO
para a Grécia (Helládi) (Épicure, Sentença 76, in Lettres et maxi-
mes, p. 267).
18. Cf. sobre a noção de paideía, as obras clássicas de W. Jae-
ger, Paideía. La forrnation de l'homme grec, Paris, 1964 (o segundo
tomo, consagrado mais particularmente ao estudo desta noção
em Sócrates e Platão, publicado em Berlim, em 1955, não foi tra-
duzido para o francês) [Há tradução brasileira de Artur M. Parreira,
Paidéia - A formação do homem grego, São Paulo, Martins Fontes,
2001 (N. dos T.)] e R-L Marrou, Histaire de l'éducatian dans I'An-
tiquité, ar, cit.
19. Cf. aula de 24 de fevereiro, segunda hora.
20. Cf. esta aula, primeira hora, e supra, p. 276, nota 10.
21. Épicure, Sentença 29, in LetlreS et maximes, p. 255.
22. Épicure, carta a Heródoto, parágrafo 37, in Lettres et maxi-
mes, p. 99.
23. Épicure, carta a Pitodes, parágrafos 85-86, in Lettres et ma-
ximes, p. 191.
•
)
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982
Primeira hora
A conversão a si como forma subseqüente do cuidado de
si. - A metáfora da navegação. - A técnica da pilotagem como
paradigma de govemamentalidade. - A idéia de uma ética do
retomo a si: a recusa cristã eas tentativas abortadas da época
moderna. - Agovernamentalidade ea relação a si, contra a po-
lítica e o sujeito de direito. - A conversão a si sem o princípio
de um conhecimento de si. - Dois modelos ocultadores: a remi-
niscência platônica e a exegese cristã. - O modelo escondido: a
conversão helenística a si. - Conhecimento do mundo econhe-
cimento de si no pensamento estóico. - O exemplo de Sêneca: a
crítica da cultura nas Cartas a Lucílio; o movimento do olhar
nas Questões naturais.
[...J [Mostrei inicialmente comoJo cuidado de si - este
velho cuidado de si cuja primeira formulação teórica e sis-
temática havíamos encontrado no Alcibíades - se libertara
.de sua relação privilegiada com a pedagogia, se desvenci-
lhara de sua finalidade política e, conseqüentemente, havia,
no total, se desvinculado das condições sob as quais apare-
cera no Alcibíades, ou mesmo, se quisermos, na paisagem
socrático-platônica. Assim, o cuidado de si acaba por assu-
mir a forma de um princípio geral e incondicionado. Isto sig-
nifica quecuidar de si não é mais um imperativo válido
para um momento determinado da existência e em uma fase
da vida que é a da passagem da adolescência para a vida
adulta. Cuidar de si é uma regra coexlensiva à vida. Em
segundo lugar, o cuidado de si não está ligado à,aquisição
de um status particular no interior da sociedade. E o ser in-
teiro do sujeito que, ao longo de toda a sua existência, deve
cuidar de si e de si enquanto tal. Em suma, chegamos àquela
noção que vem conferir um conteúdo novo ao velho impe-
rativo cuidar de si, noção nova que comecei a elucidar na
Instituto de PsicDlogia - UFRGS
f'.i;lf;,...t,...,..- -
I
~
163. ..
•
302 A HERMENWTlCA DO SUJEITO
última aula: a de conversão a si. É preciso que o sujeito in-
teiro se volte para si e se consagre a si mesmo: eph'heautàn
epistréphein1, eis heautàn anakhorefn', ad se recurrer!?, ad se re-
dire', in se recedere', se reducere in tutum' (retornar a si, voltar
a si, fazer retorno sobre si, etc.). Temos aí todo um conjun-
to de expressões que encontramos em latim e em grego e
que devemos reter, penso eu, por causa de dois ao menos
de seus componentes essenciais. Primeiramente, em todas
estas expressões há a idéia de um movimento real, movi-
mento real do sujeito em relação a si mesmo. Não se trata
simplesmente, como na idéia, por assim dizer, nua do
cuidado de si, de prestar atenção a si mesmo, de dirigir o olhar
asi ou de permanecer acordado e vigilante em relação a si
mesmo. Trata-se, realmente, de um deslocamento, um cer-
to deslocamentq - sobre cuja natureza precisaremos inter- )
rogar - do sujeito em relação a si mesmo. O sujeito deve ir
em direção a alguma coisa que é ele próprio. Deslocamen-
to, trajetória, esforço, movimento: é o que devemos reter na
idéia de conversão a si. Em segundo lugar, na idéia de con-
versão a si temos o tema do retomo, tema também impor-
tante, difícil, pouco claro, ambíguo. O que significa retomar
a si? Que círculo é este, que circuito, que dobra é esta que
devemos operar relativamente a algo que, contudo, não nos
é dado, senão apenas prometido ao termo de nossa vida?
Deslocamento e retorno - deslocamento do sujeito em di-
reção a ele mesmo e retomo do sujeito sobre si - são dois
elementos que tentaremos elucidar. Há ainda, creio, (a titulo
de observação um pouco à margem) uma metáfora signifi-
cativa, que aparece com freqüência acerca da conversão a si
e do retorno a si, da qual, sem dúvida, deveremos tratar.
Refiro-me à metáfora da navegação, que comporta vá-
rios elementos. [Primeiramente:] a idéia, certamente, de um
trajeto, um deslocamento efetivo de um ponto a outro. Em
segundo lugar, a metáfora da navegação implica que este des-
locameneto seja dirigido a uma determinada meta, tenha um
obfetivo. Esta meta, este objetivo, é o porto, o anco'4douro,
enquanto lugar de segurança onde se está protegido de
~
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 303
tudo. Nesta mesma idéia de navegação, há o tema de que o
porto ao qual nos dirigimos é o porto inicial, aquele onde
encontramos nosso lugar de origem, nossa pátria. A traje-
tória em direção a si terá sempre alguma coisa de odisséico.
Quarta idéia ligada à metáfora de navegação é que, se de-
sejamos tanto voltar ao porto inicial, chegar a este lugar de
segurança, é porque a própria trajetória é perigosa. Ao lon-
go de todo este trajeto somos confrontados a riscos, riscos
imprevistos que podem comprometer nosso itinerário e até
mesmo nos extraviar. Por conseguinte, esta trajetória será a
que realmente nos conduz ao lugar de salvação, atravessan-
do certos perigos, os conhecidos e os pouco conhecidos, os
conhecidos e os mal conhecidos, etc. Enfim, ainda na idéia
de navegação, acho necessário reter que esta trajetória a ser
assim conduzida na direção do porto, porto de salvação em
meio a perigos, a fim de ser levada a bom termo e atingir o
seu objetivo, implica um saber, uma técnica, uma arte. 5a
ber complexo, a um tempo teórico e prático; saber conjec-
turai também, que é sem dúvida um saber muito próximo
da pilotagem.
Penso que a idéia da pilotagem como arte, como técni-
ca a um tempo teórica e prática, necessária à. existência, é
importante e mereceria eventualmente ser analisada mais
de perto na medida em que encontramos pelo menos três
tipos de técnicas regularmente referidas ao modelo da pilo-
tagem: primeiro, a medicina; segundo, o governo político;
terceiro, a direção e o governo de si mesmo7
. Estas três ati-
vidades (curar, dirigir os outros, governar a si mesmo) são
muito r.egularmente referidas, na literatura grega, helenística
e romana, à imagem da pilotagem. E penso que a imagem da
pilotagem também demarca um tipo de saber e de práticas
entre os quais os gregos e os romanos reconheciam certo
parentesco e para os quais tentavam estabelecer uma tékh-
ne (uma arte, um sistema refletido de práticas relacionado a
princípios gerais, a noções e a conceitos): o Principe, na me-
dida em que deve governar os outros, governar a si mesmo,
curar os males da cidade, os males dos cidadãos, seus pró-
~
164. ..
304 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
prios males; aquele que governa a si como se governa uma
cidade, curando seus próprios males; o médico, que deve
emitir pareceres não somente sobre os males do corpo como
também sobre os males da alma dos individuos. Enfim,
como vemos, há todo um grupo, um conjunto de noções, na
mente dos gregos e dos romanos, pertinentes, creio eu, a
um mesmo tipo de saber, um mesmo tipo de atividade, um
mesmo tipo de conhecimento conjecturaI. Penso ainda que
poderíamos encontrar toda a história desta metáfora até pra-
ticamente o século XVI, quando, precisamente, a definição
de uma nova arte de governar, centralizada em torno da ra-
zão de Estado, distinguirá, agora de modo radical, governo
de si/medicina/governo dos outros - sem que, de resto, esta
imagem da pilotagem, como bem sabemos, deixe de perma-
necer vinculada à atividade que justamente se chama ativi-
dade de governo'- Em suma, vemos como nesta prática de si,
tal como aparece e se formula nos últimos séculos da era
chamada pagã e nos primeiros séculos da era cristã, o eu sur-
ge, fundamentalmente, como a meta, o fim de uma trajetó-
ria incerta e eventualmente circular, que é a perigosa traje-
tória da vida.
Acho necessário compreender a importância histórica
.desta figura prescritiva do retorno a si €, sobretudo, sua sin-
gularidade na cultura ocidental. Pois, creio que, se encontra-
mos, de maneira tão clara, tão evidente, o tema prescritivo
do retorno a si na época de que lhes falo, não podemos es-
quecer dois aspectos. Primeiro, que no cristianismo, como eixo
principal da espiritualidade cristã, encontraremos, creio eu,
uma rejeição, um:l. recusa, certamente com suas ambigüida-
des, deste tema do retorno a si. O ascetismo cristão afinal
tem como princípio fundamental que a renúncia a si cons-
titui o momento essencial que nos permitirá aceder à outra
vida, à luz, à verdade e à salvaçã09
Só pode salvar-se quem
renunciar a si. Ambigüidade, dificuldade sem dúvida - a
cujo respeito precisaremos retornar -, desta busca da salva-
ção.Jde si cuja condição fundamental é a renúncia a si. De .
todo modo porém, creio que esta renúncia a si 'é um dos ei-
,
1. . . . . . . .- - - - - - - - - - - - - - - -
•
..
AULA DE 17 DE FEVERE1RO DE 1982 305
xos fundamentais do ascetismo cristão. Quanto à mística
cristã, sabemos que também ela, se não inteiramente coman-
dada, absorvida, é pelo menos atravessada pelo tema do eu
que se aniquila em Deus, perdendo sua identidade, sua in-
dividualidade' sua subjetividade em forma de eu, por uma
relação privilegiada e imediata com Deus. Portanto, acho
que, em todo o cristianismo, o tema do retorno á si foi um
tema bem mais adverso que efetivamente retomado e inse-
rido no pensamento cristão. Em segundo lugar, creio ser tam-
bém necessário observar que o tema do retorno a si foi sem
dúvida, a partir do século XVI, um tema recorrente na cul-
tura moderna. Porém, penso também que não podemos
deixar de nos aperceber que este tema, no fundo, foi re-
constituído - por fragmentos, por migalhas - em sucessivas
tentativas que jamais se organizaram de modo tão global e
contínuo quanto na Antiguidade helenística e romana. O
tema do retorno a si nunca foi dominante entre nós como
na época helenística e romana. Por certo, encontramos no
século XVI toda uma ética e estética de si que é, aliás, mui-
to explicitamente referida à que encontramos nos autores
gregos e latinos dos quais lhes falo10
Penso que seria neces-
. sário reler Montaigne nesta perspectiva, como uma tentati-
va de reconstituir uma estética e uma ética do eull, Penso
também que poderíamos retomar a história do pensamen-
to no século XIX um pouco nesta perspectiva. E então tudo
seria, sem dúvida, bem mais complicado, bem mais ambí-
guo e contraditório. Mas podemos reler toda uma vertente do
pensamento do século XIX como a dificil tentativa, ou uma
série de difíceis tentativas, para reconstituir uma ética e
uma estética do eu. Tomemos, por exemplo, Stirner, Scho-
penhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, a anarquia, o
pensamento anarquista, etc., e teremos uma série de tenta-
tivas, sem dúvida inteiramente diver5.?is umas das outras,
mas todas elas, creio eu, mais ou menos polarizadas pela
questão: é possível constituir, reconstituir uma estética e uma
ética do eu? A que preço e em que condições? Ou então:
uma ética e uma estética do eu não deveriam finalmente in-
-
165. ..
306 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
verter-se na recusa sistemática do eu (como em Schopen-
hauer)? Enfim, haveria aí uma .questão, problemas a serem
levantados. Em todo caso, o que gostaria de assinalar é que,
de qualquer maneira, quando vemos hoje a significação, ou
antes, a ausência quase total de significação e pensamento
que conferimos a expressões - ainda que muito familiares e
percorrendo incessantemente nosso discurso, como: retor-
nar a si, liberar-se, ser si mesmo, ser autêntico, etc. -, quan-
do vemos a ausência de significação e pensamento em cada
uma destas expressões hoje empregadas, parece-me não
haver muito do que nos orgulharmos nos esforços que hoje
fazemos para reconstituir uma ética do eu. E é possível que
nestes tantos empenhos para reconstituir uma ética do eu,
nesta série de esforços mais ou menos estanques, fixados
em si mesmos, neste movimento que hoje nos leva, ao mes-
mo tempo, a nos referir incessantemente a esta ética do eu
sem contudo jamais fomecer-Ihe qualquer conteúdo, é pos-
sível suspeitar que haja uma certa impossibilidade de cons-
tituir hoje uma ética do eu, quando talvez seja esta uma ta-
refa urgente, fundamental, politicamente indispensável, se
for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e últi-
mo, de resistência ao poder político senão na relação de si
para consigo.
Em outras palavras, se considerarmos a questão do po-
der, do poder político, situando-a na questão mais geral da
govemamentalidade - entendida a govemamentalidade
como um campo estratégico de relações de poder, no sen-
tido mais amplo do termo, e não meramente político, enten-
dida pois como um campo estratégico de relações de poder
no que elas têm de móvel, transformável, reversívep2 -, então,
a reflexão sobre a noção de govemamentalidade, penso eu,
não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo âm-
bito de um sujeito que seria definido pela relação de si para
consigo. Enquanto a teoria do poder político como institui-
çãojefere-se, ordinariamente, a uma concepção jurídica do
sujeito de direito13
, parece-me que a análise da govema-
mentalidade - isto é, a análise do poder como conjunto de
~
,
.....------------------~
•
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 307
relações reversíveis - deve referir-se a uma ética do sujeito
definido pela relação de si para consigo. Isto significa mui-
to simplesmente que, no tipo de análise que desde algum
tempo busco lhes propor, devemos considerar que relações
de poder/govemamentalidade/govemo de si e dos outros/
relação de si para consigo compõem uma cadeia, uma tra-
ma e que é em tomo destas noções que se pode, a meu ver,
articular a questão da política e a questão da ética.
Isto posto acerca do sentido que pretendo dar a esta
análise - que pode lhes parecer um pouco repetitiva e me-
ticulosa - do cuidado de si e da relação de si para consigo,
gostaria agora de voltar à questão que coloquei na última
aula, a saber: que relações foram estabelecidas, na época de
que lhes falo, entre o princípio da conversão a si e o princípio
do conhecimento de si? Sob esta forma simples e tosca, esta-
ria a seguinte questão: a partir do momento em que o precei-
to cuidar de si ganhou amplitude, generalidade, assumiu
o caráter radical e absoluto do /té preciso converter-se a si
mesmo, é preciso passar a própria vida retornando sobre
si e buscando reunir-se a si mesmo, a partir deste momento,
o preceito I'converter-se a si não implicaria a necessidade
de transladar, parcial ou totalmente, o olhar, a atenção, a
agudez do espírito, da direção aos outros e às coisas do mun-
do para a direção a si mesmo? Mais precisamente, con-
verter-se a si não implicaria, fundamentalmente, constituir
a si mesmo como objeto e domínio de conhecimento? Ou
ainda, para colocar a mesma questão segundo uma pers-
pectiva e em uma linearidade históricas: não encontraría-
mos aí, neste preceito helenístico e romano da conversão a
si, o ponto de origem, o enraizamento primeiro de todas as
práticas e de todos os conhecimentos que se desenvolverão
em seguida no mundo cristão e no mundo moderno (práti-
cas de investigação e de direção da consciência), [não en-
contraríamos aí a] primeira forma do que se poderá depois
chamar de ciências do espírito, psicologia, análise da cons-
ciência, análise da psykhé, etc.? O conhecimento de si, no
sentido cristão e depois no moderno, não se enraizaria neste
~
166. ~
•
308 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
episódio estóico, epicurista, cínico, etc., que tento analisar?
Pois bem, o que lhes expus na última aula, acerca dos cíni-
cos e dos epicuristas, tende a mostrar, creio eu, que as coi-
sas não [são] assim tão simples, e que não é o conhecimento
de si no sentido em que o entendemos hoje, nem mesmo é
a decifração de si no sentido em que a entendeu a espiri-
tualidade cristã, que se teriam constituído naquela época e
naquelas formas de prática de si. Gostaria agora de retomar
um pouco a este ponto no que concerne aos cínicos, aos
epicuristas, [mas] quereria voltar aos estóicos porquanto ne-
les encontro um problema importan'te, importante pelo me-
nos para mim, uma vez que está no cerne dos problemas que
pretenderia colocar e uma vez que, no fundo, a questão que
me coloco é a seguinte: como pôde constituir-se, através
deste conjunto de fenômenos e processos históricos que
podemos chamar de nossa cultura, a questão da verdade
do sujeito? Como, por que e a que preço, temos nos empe-
nhado em sustentar um discurso verdadeiro sobre o sujei-
to, sobre o sujeito que não somos, enquanto sujeito louco ou
sujeito delinqüente, sobre o sujeito que, de modo geral, nós
somos enquanto falamos, trabalhamos, vivemos, e enfim
sobre o sujeito que, no caso particular da sexualidade, nós
somos direta e individualmente para nós mesmos? É pois a
questão da constituição da verdade do sujeito sob estas três
grandes formas, que tentei colocar, com uma obstinação tal-
vez condenável*.
De todo modo, gostaria de retomar ao ponto que, sem
dúvida, constitui.um lance histórico importante: o momen-
to em que, na cultura helenística e romana, o cuidado de si
' Para fechar esta nota metodológica, o manuscrito traz a seguinte
precisão: Se a questão crítica é a de saber 'sob que condições gerais
pode haver verdade para o sujeito'I a questão que gostaria de colocar é a
se~te: !sob que transformações particulares e historicamente definí-
veis, o sujeito teve que submeter-se a si mesmo para que houvesse a in-
junção de dizer a verdade sobre o sujeito?'
o
L
AUlA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 309
tornou-se uma arte autônoma, autofinalizada, valorizando
a existência inteira, não teria sido um momento privilegia-
do para vermos formar-se e formular-se a questão da ver-
dade do sujeito? Perdoem-me, ainda uma vez, por ser lento
e repetitivo, mas creio que aqui as confusões são fáceis. E
tomaram-se fáceis, creio, por causa da presença e do pres-
tígio de dois grandes modelos, de dois grandes esquemas
de relação entre cuidado de si e conhecimento de si - ou, se
quisermos, [entre] conversão a si e conhecimento de si -,
dois grandes esquemas que acabaram por recobrir o que
havia de específico no modelo que, precisamente, eu gosta-
ria de analisar, ao abordar o cinismo, o epicurismo e, prin-
cipalmente, o estoicismo. Estes dois grandes modelos reco-
briram o que eu denominaria, para simplificar as coisas e
apenas atribuir um nome puramente histórico, um marco
cronológico, de modelo helenístico. Este modelo helenístico,
que pretendo analisar através dos textos epicuristas, cínicos,
estóicos, foi recoberto, historicamente e na cultura poste-
rior, por outros dois grandes modelos: o platônico e o cris-
tão. Pretendo, precisamente, destacá-lo destes outros dois.
O que é o modelo platônico? Como se lembram, nós o
vimos esquematicamente no Alcibíades. No esquema platô-
nico, a relação entre cuidado de si e conhecimento de si es-
tabelece-se em tomo de três grandes pontos fundamen!ais.
Primeiro, é preciso cuidar de si porque se é ignorante. E-se
ignorante, não se sabe que se o é, mas finalmente se desco-
bre (precisamente na seqüência de um encontro, de um
acontecimento, de uma questão) que se ignora e que se ig-
nora que se ignora. É o que se passa no Alcibíades.Alcibíades
era ignorante relativamente a seus rivais. Descobre, pela in-
terrogação socrática, que ignora. Descobre até mesmo que
ignorava sua ignorância e que, por conseqüência, deve ocu-
par-se consigo mesmo para responder a esta ignorância, ou
melhor, para pôr fim a ela. Este, o primeiro ponto: a igno-
rância e a descoberta da ignorância da ignorância é. que
suscitam o imperativo do cuidado de si. O segundo ponto
no modelo platônico está em que, a partir do momento em
~
167. ~
•
310 A HERMENfuTICA DO SUJEITO
que o cuidado de si é afirmado e em que se tenta efetiva-
mente cuidar de si, ele consistirá, essencialmente, em /I co-
nhecer-se a si mesmo. Toda a superfície do cuidado de si é
ocupada pelo imperativo do conhecimento de si, conheci-
mento que, como sabemos, toma a forma de apreensão pela
alma de seu ser próprio, apreensão que ela opera ao olhar-se
no espelho do inteligível, onde, precisamente, deve reconhe-
cer-se. Isto nos conduz ao terceiro ponto do esquema pla-
tônico das relações entre cuidado de si e conhecimento de
si: a reminiscência está exatamente no pçmto de junção en-
tre cuidado de si e conhecimento de si. E lembrando-se do
que viu que a alma descobre o que ela é. E é lembrando-se
do que ela é que tem acesso ao que viu. Podemos dizer que
na reminiscência platônica acham-se reunidos e aglutina-
dos, em um único movimento da alma, conhecimento de si ;'.
e conhecimento da verdade, cuidado de si e retomo ao ser.
Isto, quanto ao modelo platônico.
Diante deste modelo - ou ao lado, ou melhor, tardiamen-
te, em relação a ele - formou-se, a partir dos séculos III-IV,
o modelo cristão. Melhor seria dizer modelo ascético-mo-
nástico, de preferência a cristão no sentido geral do termo.
Todavia, para começar, chamemos de cristão. O modelo
cristão - do qual, se tivermos tempo, lhes falarei com mais
detalhes - de que maneira se caracteriza? Pode-se dizer,
creio, que neste modelo o conhecimento de si está ligado,
de modo complexo, ao conhecimento da verdade tal como
é dada no Texto e pela Revelação; que este conhecimento de
si é implicado, exigido pela necessidade de que o coração
seja purificado paca compreender a Palavra; que só pelo co-
nhecimento de si ele pode ser purificado; que a Palavra pre-
cisa ser recebida a fim de que se possa empreender a puri-
ficação do coração e realizar o conhecimento de si. Portanto,
relação circular entre: conhecimento de si, conhecimento
da verdade e cuidado de si. Se quisermos promover nossa
próprii' salvação, devemos acolher a verdade: a que nos é
dada no Texto e a que se manifesta na Revelação. Mas não
podemos conhecer esta verdade se não nos 'ocuparmos
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 311
com nós mesmos na forma do conhecimento purificador do
coração. Em troca, este conhecimento purificador de si por
si mesmo só é possível sob a condição de que já tenhamos
uma relação fundamental com a verdade, a do Texto e a da
Revelação. É esta circularidade que, a meu ver, constitui um
dos pontos fundamentais das relações entre cuidado de si e
conhecimento de si no cristianismo. Em segundo lugar, no
cristianismo, este conhecimento de si é praticado através de
técnicas cuja função essencial consiste em dissipar as ilusões
interiores, reconhecer as tentações que se formam no pró-
prio interior da alma e do coração, assim como frustrar as
seduções de que podemos ser vítimas. E o método, para tudo
isto, é O da decifração dos processos e movimentos secretos
que se desenrolam na alma, dos quais é preciso apreender
a origem, a meta, a forma. Necessidade, portanto, de uma
exegese de si. Este, o segundo ponto fundamental do mo-
delo cristão das relações entre conhecimento de si e cuidado
de si. O terceiro, por fim, é que no cristianismo o conheci-
mento de si não tem tanto a função de voltar ao eu para, em
um ato de reminiscência, reencontrar a verdade que ele
contemplara e o ser que ele é: retoma-se a si, como lhes dis-
se há pouco, para, essencial e fundamentalmente, renunciar
a si. Assim, com o cristianismo temos um esquema de relação
entre conhecimento e cuidado de si que se articula em tor-
no de três pontos: primeiro, circularidade entre verdade do
Texto e conhecimento de si; segundo, método exegético para
o conhecimento de si; enfim, renúncia a si como objetivo.
Estes dois grandes modelos - o platônico e o cristão ou,
se quisermos, o da reminiscência e o da exegese - tiveram,
indubitavelmente, um imenso prestígio histórico que reco-
briu o outro modelo cuja natureza gostaria de destacar. Quan-
to à razão do prestígio destes dois grandes modelos, creio
que pode ser facilmente encontrada no fato de que foram
precisamente eles (modelo exegético e modelo da reminis-
cência) que se confrontaram um ao outro durante todo o
decurso dos primeiros séculos da história do cristianismo.
Não devemos esquecer que o modelo platônico - organizado
---'
168. ~
312 A HERMENtUT/CA DO SUJEITO
em torno do tema da reminiscência, isto é, da identificação
entre cuidado de si e conhecimento de si - foi, no fundo, re-
tomado nas fronteiras dO,cristianismo, no interior e no exte-
rior do cristianismo, por aqueles extraordinários movimen-
tos a que chamamos gnose, ou movimentos gnósticoS15.
Com efeito, em todos estes movimentos, encontramos o mes-
mo esquema que, no geral, podemos chamar de platônico,
isto é: a idéia de que conhecimento do ser e reconhecimento
de si constituem uma única e mesma coisa. Para a gnose,
voltar a si e recuperar a memória da verdade são uma úni-
ca e mesma coisa e é nisto que os movimentos gnósticos
são todos, para mais ou para menos, movimentos platôni-
cos. Em face deste modelo gnóstico, que se desenvolveu
nos confins do cristianismo, a Igreja cristã - e para isto, pre-
cisamente, é que serviu a espiritualidade e o ascetismo mo- .]
násticos - desenvolveu o modelo exegético, modelo cuja
função (ou pelo menos cujo efeito) foi assegurar a grande
cisão e a grande separação em relação ao movimento gnósti-
co e cujo resultado foi, no próprio interior da espiritualidade
cristã, conferir ao conhecimento de si, não a função memora-
tiva de reencontrar o ser do sujeito, mas a função exegética
de detectar a natureza e a origem dos movimentos interiores
que se produzem na alma. Creio que estes dois grandes mo-
delos - platônico e cristão ou, se quisermos, o modelo da re-
miniscência do ser do sujeito por ele mesmo e o da exegese
do sujeito por ele mesmo - dominaram ao mesmo tempo o
cristianismo e, pelo cristianismo, foram em seguida transmi-
tidos a toda a história da cultura ocidental.
O que gostaria de mostrar é que, entre este grande
modelo platônicõ- que subsistiu durante toda aAntiguidade,
que se revigorou a partir dos séculos II-IlI, que se manifes-
tou nos confins do cristianismo, que persistiu, por assim di-
zer, como interlocutor privilegiado do cristianismo e que o
cristianismo, até certo ponto, tanto buscou combater quan-
to repatriar - e o modelo exegético, da espiritualidade e do
asceti'Smo cristãos, há um terceiro esquema. O terceiro esque-
ma é precisamente aquele que foi posto em prática e desen-
...........--------------
•
r
I·
,
L
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 313
volveu-se no decurso dos últimos séculos da era antiga e
dos primeiros séculos da nossa era. Sua forma nem é a re-
miniscência nem a exegese. Diferentemente do modelo pla-
tônico, ele não identifica cuidado de si e conhecimento de
si nem absorve o~ cuidado de si no conhecimento de si. Ao
contrário, tende a acentuar e privilegiar o cuidàdo de si, a
preservar-lhe pelo menos a autonomia em relação ao co-
nhecimento de si, cujo lugar, como veremos, é afinal limita-
do e restrito. Em segundo lugar, diferentemente do modelo
cristão, o modelo helenístico não tende, absolutamente, à
exegese de si nem' à renúncia a si, mas ao contrário a cons-
tituir o eu como objetivo a alcançar. Entre platonismo e cris-
tianismo constituiu-se, durante todo o período helenístico
e romano, uma arte de si que, para nós, seguramente não
passaria de um episódio colocado definitivamente entre pa-
rênteses por aqueles dois grandes modelos, o anterior e o
posterior, que em seguida o dominaram e recobriram, de
maneira que, conseqüentemente, poderíamos considerá-lo
nada mais do que uma espécie de curiosidade um pouco
arqueológica em nossa cultura, se todavia não tivesse ocor-
rido - este, sem dúvida; o paradoxo a compreender - que foi
no interior deste modelo helenístico, nem platônico nem
cristão, que se formou uma certa moral exigente, rigorosa,
restritiva, austera. Moral que o cristianismo de modo nenhum
inventou, pois o cristianismo, como toda boa religião, não é
uma morru. O cristianismo é uma religião, em todo caso,
sem moral. Pois bem, foi esta moral que o cristianismo uti-
lizou e· repatriou, dé início, como ponto de apoio recebido
explicitamente do exterior (veja-se Gemente de Alexandria16)
e que, a seguir, ele aclimatou, elaborou, trabalhou, median-
te práticas que são precisamente as da exegese do sujeito e
da renúncia a si. Temos pois, se quisermos, no nível das prá-
ticas de si, três grandes modelos que historicamente se. su-
cederam uns aos outros. O modelo que eu chamaria pla-
tônico, gravitando em tomo da reminiscênciá. O modelo
helenístico, que gira em tomo da autofinalização da relação
a si. E o modelo cristão, que gira eI'l1 tomo da exegese de si
--'
169. •
314 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
e da renúncia a si. Os três se sucederam. Por razões históri-
cas que busquei delinear, o primeiro e o terceiro recobriram,
aos nossos olhos de modernos, o modelo do meio. Mas o
modelo do meio, o helenístico, centrado em torno da auto-
finalização da relação a si, da conversão a si, foi conhldo o
lugar de formação de uma moral que o cristianismo recebeu,
herdou, repatriou e elaborou para dela fazer alguma coisa
que hoje equivocadamente chamamos de moral cristã17
e
que ele, ao mesmo tempo, ligou precisamente à exegese de
si. A moral austera do modelo helenístico foi retomada e
trabalhada pelas técnicas de si definidas pela exegese e pela
renúncia a si próprias do modelo cristão. Temos aí, se qui-
sermos, um pouco da perspectiva histórica geral em que
gostaria de situar estas questões.
Agora, retornemos enfim ao modelo helenístico, cen-
trado em tomo do tema l/converter-se a si, e tentemos exa-
minar o lugar que nele tem o conhecimento de si. Conver-
ter-se a si implicaria ou demandaria uma tarefa que fosse
fundamental, contínua, de conhecimento do que nós cha-
maríamos de sujeito humano, alma humana, interioridade
humana, interioridade da consciência, etc.? Tentei rnostrar-
lhes, a propósito de textos cínicos - de um pelo menos, o de
Demetrius - e em alguns textos epicuristas, que, se o conhe-
cimento de si era realmente um tema fundamental no im-
perativo converter-se a si, não estava conrudo, nem pri-
meira nem absolutamente, em posição de alternativa em
relação ao conhecimento da natureza. Não se havia que co-
nhecer: ou a natureza ou nós mesmos; [tentei mostrar}, em
segundo lugar, que era ao contrário, em certa relação de la-
ços recíprocos entre-conhecimento da natureza e conheci-
mento de si que o conhecimento de si encontrava lugar no
interior do tema converter-se asi. Converter-se asi é ain-
da uma certa maneira de conhecer a natureza.
Gostaria agora de recolocar esta questão relativamente
aos estóicos na medida em que, como sabemos, a questão
~ do conhetimento da natureza tem, para eles, um lugar, uma
importância, um valor muito maior ou, pelo menos, certa-
r
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 315
mente muito maior do que nos cínicos, deixando de falar
nos epicuristas. De maneira esquemática, podemos dizer
que nos estóicos, como nos cínicos e como de resto também
nos epicuristas, encontramos uma certa tradição crítica a
respeito do que é um saber inútil e uma afirmação do privi-
légio de todos os conhecimentos, de todos os saberes, de
todas as técnicas, de todos os preceitos que possam concer-
nir àvida humana. Que todo o saber de que predsamos deva
ser ordenado à tékhne tou bíou (à arte de viver), é um tema
tanto estóico quanto epicurista ou cínico. A tal ponto que
encontramos em certas correntes do estoicismo que cha-
mamos, entre aspas, de heréticas, afirmações que são, por
assim dizer, drásticas ou, em todo caso, perfeitamente res-
tritivas, acerca do que poderia ser o conhecimento do mundo
ou da natureza. É o que encontramos no famoso Aríston de
QUíOSlB, de quem, como sabemos, Diógenes Laércio dizia
que rejeitava na filosofia a lógica e a fisica (a física porque
está acima de nossas forças e a lógica porque de modo al-
gum nos interessa)l9. Para Aríston, só importava a moral e,
ainda assim, dizia ele, não são os preceitos (os preceitos co-
tidianos, os conselhos de prudência, etc.) que fazem parte
da filosofia, mas simplesmente alguns princípios gerais de
moral, alguns dógmata20
, porquanto a razão, por si mesma e
sem precisar de qualquer conselho, é capaz de conhecer,
em cada circunstância, o que se deve fazer, sem- referir-se à
ordem da natureza. Em Aríston de Quíos temos, por assim
dizer, uma espécie de ponto extremo, pois de fato a tendên-
cia geral do estoicismo certamente não pende para esta des-
confiança e esta rejeição do saber sobre a natureza como
saber inútil. Conhecemos bem a vigorosa sistematicidade
em cujo interior o pensamento estóico situou moral/lógi-
ca/física, todas elas ligadas a uma cosmologia e a um con-
junto de especulações sobre a ordem do mundo. De sorte
que, independentemente até de suas proposições teóricas,
o estoicismo se encontrava associado, na prática, algumas
vezes indiretamente, outras mais diretamente, a todo um
conjunto de atividades de conhecimento. As grandes enciclo-
,
170. ~
•
316 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
pédias dos naturalistas dos séculos 1-11, a enorme enciclopé-
dia médica de Galena são efetivamente penetradas por pen-
samentos estóicos21
[ .. *]. Penso porém que a questão assim
se coloca: o que os estóicos pretendem dizer quando, a um
tempo, insistem na necessidade de ordenar todo o saber à
tékhne toú bíau, de dirigir os olhares para si, associando a esta
conversão e a esta inflexão do olhar sobre si todo o percurso
da ordem do mundo, da sua organização geral e interior?
Pois bem, para examinar de que modo os estóicos lidaram
com esta questão - dirigir o olhar para si e percorrer ao mes-
mo tempo a ordem do mundo -, eu me reportarei a dois tex-
tos. Ou melhor, primeiramente a uma série de textos de Sê-
neca e, se tivermos tempo, tratarei também de alguns textos
de Marco Aurélio.
Primeiro, em Sêneca. Há vários textos de Sêneca - so-
bre os quais serei breve, limitando-me a uma indicação -
que são mais tradicionais. Alguns se referem à crítica da
vaidade do saber encontrada em alguns indivíduos que se
interessam mais pelo luxo das bibliotecas e dos livros e pela
ostentação dos livros do que pelo seu conteúdo. É interes-
sante a crítica, no De tranquillitate, à biblioteca de Alexandria,
afirmando que, na realidade, suas centenas de milhares de
livros estão [lá] reunidos apenas para satisfazer à vaidade do
rei. Outra série de textos sobre os quais serei igualmente
breve, são as recomendações feitas ao discípulo, nas Cartas
aLucaio23
: não ler demais, não querer multiplicar as leituras,
não dispersar a curiosidade. Pegar apenas um ou dois livros
e tentar aprofundá-los; e, nestes livros, reter alguns aforis-
mos, como aqJ.Ieles, precisamente, que o próprio Sêneca
freqüentemente busca em Epicuro e que, extraindo por as-
sim dizer, de seu contexto e dos livros de onde foram toma-
dos, propõe a Lucílio como assunto de meditação. Esta me-
ditação, este exercício do pensamento sobre a verdade - de
,. Ouve-se apenas: ,.. o estoicismo separa conhecimentos úteis,
conhecimentos inúteis?
r
.. l_
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 317
que voltarei a tratar em outro momento - não se faz através
de um percurso cultural pelo saber em geral. Faz-se, segundo
a velha técnica grega, a partir de sentenças, de proposições
que são, ao mesmo tempo, enunciado de verdade e pronun-
ciamento de uma prescrição, afirmação e prescrição. Éisto que
constitui o âmbito da reflexão filosófica, não um campo cul-
tural a ser percorrido através de todo um saber. Terceira sé-
rie de textos: os que tratam da crítica do ensino, ensino inú-
til e prejudicial, ministrado na pedagogia tradicional. Textos,
igualmente, que concernem ao lugar a ser atribuído aos di-
ferentes conhecimentos no curso de um ensino ministrado
às crianças ou ainda, do ensino ministrado sob ° nome de
filosofia. E, na longa carta 8825
, temos toda a consideração,
todas as análises sobre as artes liberais e o caráter incerto e
inútil, ou em todo caso puramente instrumental, dos conhe-
cimentos que são por elas fornecidos. Portanto, há todos es-
tes textos, mas não é a eles que gostaria de me referir.
Gostaria de tomar, precisamente, o texto em que Sêne-
ca elabora o saber enciclopédico do mundo ao qual o estoi-
cismo sempre conferiu um valor certo, positivo, ao mesmo
tempo em que afirmava a necessidade de voltar o olhar para
si mesmo. Este texto certamente é o das Questões naturais,
obra relativamente longa e importante que Sêneca escreveu
quando se pôs em retiro, portanto, após os anos sessenta26,
Escrito durante seu retiro, foi no momento em que, por um
lado, dirigiu regularmente a Lucílio um grande número de
cartas de direção, direção espiritual e individual. Escreven-
do as Questões naturais ao mesmo tempo em que escreve a
Lucílio, ele lhas encaminha, de modo que alguns dos livros
das Questões naturais são acompanhados de cartas a Lucí-
lia que lhes servem de prefácio. E na mesma época escreve
um tratado de moraJ27. Por outro lado, as Questões naturais,
como sabemos, constituem uma espécie de imenso percurso
do mundo que abrange o céu e a terra, a trajetória dos pla-
netas e a geografia dos rios, a explicação dos raios, dos me-
teoros, etc. E tudo isto, ademais, em uma organização que re-
.--
171. •
•
318 AHERMENtUTICA DO SUJEITO
constitui uma espécie de movimento descendente e reascen-
dente: o primeiro livro trata do céu; o segundo, do ar; o ter-
ceiro e o quarto, dos rios e das águas; o quinto, do vento; o
se~o, da terra; e o sétimo, começando a reascensão, trata dos
meteoros. Ora, neste grande livro sobre as questões naturais,
que é portanto um percurso do mundo, há pelo menos dois
momentos em que Sêneca se coloca a questão de saber por
que escrever assim sobre estes assuntos, assuntos que afi-
nal estão tão distantes de nós. Estas duas passagens são pre-
cisamente cartas de acompanhamento, cartas de encami-
nhamento a Lucílio. Trata-se do prefácio ao primeiro livro
das Questões naturais, que serve de prefácio geral ao trabalho,
e de um outro trecho de encaminhamento que constitui, de
certo modo, o prefácio à terceira parte, situando-se, portan-
to, aproximadamente no meio do texto. Há outras cartas-
prefácios - ao quarto livro, por exemplo, a respeito da lison-
ja -que por ora deixaremos de lado. Gostaria de considerar
aquelas duas cartas de encaminhamento, a que introduz à
primeira parte e a que introduz à terceira. E começarei pela
que introduz à terceira parte28
, pois é nesta que Sêneca tam-
bém coloca - e se coloca de certo modo a si mesmo - a se-
guinte questão: afinal, que estou eu fazendo, o que significa
para mim, no ponto em que estou, escrever um livro como
este? Um livro cujo princípio, cujo objetivo, é muito exata-
mente fornecido em duas frases: trata-se, diz ele, de mundum
circuire (percorrer o grande círculo do mundo); em segundo lu-
gar' de buscar suas causas secretaque (causas e segredos). Per-
correr o mundQ.e penetrá-lo até suas causas e segredos inte-
riores, é isto o que está fazendo29. Ora, pergunta ele, que sen-
tido isto tem? Por que fazê-lo? Então - a partir desta cons-
tatação: estou percorrendo o mundo, estou buscando suas
causas e segredos - começa uma série de considerações que,
por comodidade, podemos repartir em quatro movimentos.
-Primeiramente, a questão da idade. Estou percorrendo
o mundo, buscando suas causas e segredos - diz Sêneca -
e sou senex (um idoso). Este tema introduz, ou melhor, rein-
,.
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982
319
troduz certos temas e questões que conhecemos bem: o tema
da velhice, da pressa e do percurso mais rápido possível da
vida, de que já falei. Para Sêneca - como, de resto, para os es-
tóicos, com a diferença que Sêneca atribui a isto uma impor-
tância muito particular - é preciso apressar-se, quanto pos-
sível, para consumar a própria vida30• É preciso agilizar-se
para chegar ao ponto em que ela estará completa. Comple-
ta não porque tivesse chegado enfim ao seu termo cronoló-
gico mais recuado, mas por ter chegado à sua plenitude. É
preciso atravessar a própria vida com a maior presteza, em
uma pincelada, uniformemente, sem sequer dividi-la em fa-
ses distintas e com modos distintos de existência. É preciso
atravessar a própria vida com a maior presteza, em uma pin-
celada, a fim de alcançar aquele ponto ideal da velhice ideal.
Sêneca retoma aqui este tema, acentuado pela considera-
ção de que, no momento em que escreve suas Questões na-
turais, efetivamente está velho. Está velho e perdeu tempo.
Tempo, diz ele, que consagrou aos vana studia (aos estudos
inúteis, vãos); que perdeu também pelo fato de ter tido em
sua vida tantos anos male exemptae (mal preenchidos, mal
utilizados, mal empregados). Por isto, diz ele (porque estou
tão velho e perdi tanto tempo), necessidade de um labar (de
um trabalho)3!, trabalho que deve então ser feito com tanto
mais velacitas (rapidez)32. Ora, em que deve consistir este la-
bor para o qual há que agora apressar-se por causa da ida-
de e de todo o tempo perdido? Pois bem, diz ele, é preciso
ocupar-me não com um domínio, não Com um patrimônio
que estivesse distante de seu senhor: é com o domínio pró-
ximo que devo ocupar-me. E este deve me reter p~r inteiro.
E que domínio próximo é este senão eu mesmo? E preciso,
diz ele, que sibi tatus animus vacet (que o espírito todo se
ocupe consigo, se desocupe para si mesmo). Esta expressão
sibi vacare (ocupar-se inteiramente consigo, desocupar-se
para si mesmo) é encontrada em outros textos de Sêneca,
particularmente na carta 17: si vis vacare animo (se queres
ocupar-te com teu animus)33, Portanto, ocupar-se não com
domínios longínquos, senão com o domínio mais próximo.
.~
172. 320 A HERMEN~UTlCA DO SUJEITO
Este domínio é si mesmo. É preciso, diz ele, ad eontemplatio-
nem sui saltem in ipso fugae impetu respiciati (volver o olhar
para a contemplação de si, no movimento mesmo da fuga).
Trata-se aí, não da fuga, do retiro do sábio, mas da fuga do
-tempo. Neste mesmo movimento do tempo que nos leva para
o ponto final de nossa vida, devemos volver nosso olhar e
nos tomarmos a nós mesmos como objeto de contempla-
ção. Tudo indica pois que o único objeto com que Sêneca,
em sua idade, deve ocupar-se, nesta fuga do tempo e nesta
precipitação, nesta veloeitas que lhe é agora imposta, aquilo
com que deve empregar seu labor, é com ele próprio35
. Se
é com ele próprio, com o que então não deve ocupar-se?
Com presto? Sim, se quisermos. Mas o que é este resto?
E então que nos acercamos do segundo desenvolvi-
mento do texto. Poderíamos imaginar que tendo chegado
aí, a este ponto de seu raciocínio, ele diria: uma vez que só
devo ocupar-me comigo mesmo e não com domínios distan-
tes, com o patrimônio distante, deixemos de lado a natureza,
os meteoros, os astros, etc. De modo algum. Não é o que diz.
Diz ele: é do saber histórico que devemos nos afastar. E o que
narra este saber histórico? A história de reis estrangeiros,
suas aventuras, suas façanhas, suas conquistas. Tudo isto
que, no fundo, é tão-somente a história de sofrimentos que,
na história dos reis, se transforma em louvores. Sofrimentos
infligidos ao povo ou sofrimentos infligidos pelos povos,
pouco importa, é somente isto afinal que, sob as aparentes
roupagens gloriosas da história dos reis, nos transmitem as
crônicas que lemos. E ele estima que no lugar de narrar as
paixões dos outr,os, como fazem os historiadores, seria bem
preferível superar e vencer nossas próprias paixões36. No lu-
gar de buscar e inquerir sobre o que foi feito, como os his-
toriadores, é preciso buscar quid IfaciendumJ (aquilo que de-
vemos fazer)3? Por fim, em terceiro lugar, ao lermos estas nar-
rativas, arriscamo-nos a tomar por grande o que não o é e
a nos ilu,lirmos sobre a verdadeira grandeza humana, só a
~ encontrando em vitórias sempre frágeis e em fortunas sem-
pre incertas.Todo este desenvolvimento contra a história tam-
r
.-------------•
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 321
bém faz eco ao que se encontra em muitos outros textos de
Sêneca, particularmente nas Cartas a Luez1io, nos quais é re-
gularmente estabelecida a oposição entre, por um lado, a
prolixidade das crônicas e a exaltação de alguns grandes
homens que Sêneca especialmente detestava, no caso Ale-
xandre, e, por outro, o verdadeiro valor do exemplum histó-
rico, exemplum histórico que não buscará na vida dos reis
estrangeiros o modelo a ser mostrado; o exemplum histórico
é bom na medida em que nos mostra modelos autóctones
(romanos) e em que faz aparecer os verdadeiros traços da
grandeza que, justamente, não são as formas visíveis do bri-
lho e do poder, mas as formas individuais do domínio de si.
Exemplo da modéstia de Catão; exemplo também de Cipião
ao deixar Roma a fim de garantir a liberdade para sua cidade,
retirando-se em uma casa no campo, modestamente e sem
alarde, etc.38
Portanto, nesta crítica da história e da crônica
dos grandes acontecimentos e dos grandes homens, acha-se
o ponto, o exemplo, o tipo de saber que efetivamente deve-
mos evitar se quisermos nos ocupar com nós mesmos. As-
sim, não é o conhecimento da natureza, mas aquela forma
de conhecimento histórico que não consiste em um conhe-
cimento exemplar, aquela forma de crônica histórica, de sa-
ber histórico, que se há de afastar.
Echegamos então ao terceiro desenvolvimento, terceiro
momento do texto: uma vez que a história não é capaz de
nos mostrar a verdadeira grandeza, em que consistirá esta
verdadeira grandeza? É o que ele explica e é ao que deve-
mos nos prender. O que há de grande aqui embaixo?Ven-
ceI os mares com suas frotas, fincar bandeiras na orla do
Mar Vermelho e, quando faltar terra para nossas devasta-
ções' errar pelo oceano à procura de plagas desconhecidas?
Não: é ter visto todo este mundo com os olhos do espírito, é
ter obtido o mais belo triunfo, o triunfo sobre os VÍcios. Não
saberíamos contar os homens que se tornaram senhores de
cidades e de nações inteiras; quão poucos porém o foram
de si mesmos' O que há de grande aqui embaixo? Elevar a
alma acima das ameaças e das promessas da fortuna; nada
Instituto de Psicologia - UFRGS
- - - - Rihlitol'I
173. ~
•
322 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
ter que dela esperar, que seja digno de nós. Com efeito, que
tem ela que devamos almejar, se quando nossos olhares, dei-
xando o espetáculo das coisas celestes, ao recaírem sobre a
terra só encontram trevas, como quando passamos do dia
claro à noite sombria das masmorras? O que há de grande
é uma alma firme e serena na adversidade, que aceita todos
os acontecimentos como se os desejasse. Não deveríamos
efetivamente desejá-los se soubéssemos que tudo ocorre
por decretos de Deus? O que há de grande é ver cair aos
nossos pés os vestígios da sorte; é lembrar que se é hOIljem;
é dizer a si mesmo, quando se é feliz, que não se o sera por
muito tempo. O que há de grande é ter a alma na ponta dos
lábios e prestes a partir; é-se livre então não por direito de
cidade, mas por direito de natureza. Em toda esta enume-
ração - omiti alguns parágrafos, mas é irrelevante - é fácil
reconhecer princípios bem conhecidos. Primeiro, é importan-
te vencer os vícios: é o princípio do domínio de si. Segundo,
é importante ser firme e sereno na adversidade e na má for-
tuna. Terceiro - saltei este parágrafo, mas pouco importa -
trata-se de lutar contra o prazer.Isto significa que temos aí
as três formas de combate tradicional: combate interior que
permite corrigir os vícios; combate exterior como afronta-
mento quer com a adversidade, quer com as tentações do
deleite. O que é grande [em quarto lugar] é não perseguir os
bens passageiros, mas a bana mens'I Significa que se deve
encontrar o objetivo, a felicidade e o bem último em si mes-
mo, no próprio espírito, na qualidade da própria alma. En-
fim, em quinto lugar, o que é importante, é ser livre para
partir, ter,alma na ponta dos lábios. Após as três formas
de combate, vemos pois a definição do objetivo final que é
a bana mens, com seu critério: o critério pelo qual efetivamen-
te adquiriu-se a qualidade e a plenitude necessárias à rela-
ção consigo é que se está pronto para morrer.
Tendo chegado a este ponto da definição do que se deve
faz~ quando se é um idoso e que se deve agilizar-se em
trabalhar para si e sobre si mesmo, podemos perguntar de
que modo este gênero de considerações pode ser compatí-
r
....
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 323
vel com todas as análises feitas na própria obra das Questões
naturais, de que modo este gênero de considerações pode
introduzir-se no meio desta obra acerca do ar, da água, dos
meteoros, etc.; e de que modo Sêneca pode resolver o pa-
radoxo que ele próprio experimenta e que ele próprio assi-
nala no começo deste texto, quando dissera: pois bem, que-
ro percorrer o mundo, quero extrair as causas e os segredos
deste mundo, e no entanto sou um idoso. Esta é a questão
que gostaria agora de estudar. Então, se concordarem, fare-
mos dois ou três minutos de descanso e depois tentarei lhes
mostrar, a partir deste texto e de outros de Sêneca, de que
modo, efetivamente, todos estes objetivos da moralidade
estóica tradicional, não somente são compatíveis, como só
podem ser efetivamente atingidos, efetivamente alcançados
e completados a preço do conhecimento, do conhecimento
da natureza que é ao mesmo tempo conhecimento da tota-
lidade do mundo. Só se pode chegar a si percorrendo o gran-
de ciclo do mundo. Penso ser isto o que encontraremos em
alguns textos de Sêneca de que lhes falarei em seguida.
_.....
174. ~
•
NOTAS
1. Um de vós, desviando-se dos objetos exteriores, concen-
tra os esforços na sua própria pessoa (Um proaíresin epéstraptai tên
hautou) (Épictéte, Entretiens, I, 4, 18, ed. citada, p. 19); retornai a
vós mesmos (epistrépsate autoi eph'heautoús) (Entretiens, I1I, 22, 39,
p. 75); em seguida, se entrares em ti mesmo (epistréphes katà sau-
tón) e buscares o domínio a que pertence o acontecimento, logo te
lembrarás que é 'ao domínio das coisas independentes de nós'
(id., 24, 106, p. 110).
2. Buscamos retiros (anakhoréseis) no campo, à beira-mar, na
montanha; e tu também tens costume de desejar este tipo de coi-
sas no mais alto grau. Mas tudo isto indica uma grande simplici-
dade de espírito, pois, na hora que quisermos, podemos nos reti-
rar em nós mesmos (eis heautàn anakhoreín) (Marc Aurele, Pen-
sées, N, 3, ed. citada, p. 27).
3. Os vícios pressionam, çerceam por todos os lados e não
permitem a'luem os tem corrigir-se ou erguer os olhos para dis-
cernir a verdade. Eles os mantêm submersos, afundados na pai-
xão; a estes jamais é permitido retomar a si (nunquam illis recurrere
ad se licet) (Sénéque, De la brieveté de la vie, II, 3, trad. fr. A. Bour-
gery, ed. citada, p. 49).
4. Cf. a carta 15, 5 de Sêneca a Lucilio.
5. É preciso, aliás, voltar-se muito sobre si mesmo (in se re-
cedàdum est) (Sénéque, De la tranquillité de l'âme, XVII, 3, in Dia-
logues, t. N, trad. Ir. R. Waltz, ed. citada, p.103); ela [a virtude] não
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AULA DE 17 DE FEVERE1RO DE 1982 325
será menor, ainda que, repelida por toda parte, tenha se retirado
(in se recessit) em si mesma (Séneque, Lettres à Lucilius, t. IH, livro
VIII, carta 74, 29, ed. citada, p. 46).
6. Todavia, no que depende de nós, poupemo-lo também
dos desconfortos e não somente dos perigos; retiremo-nos em lu-
gar seguro (in tutum nos reducamus), imaginando, constantemente,
meios de afastar os objetos de temor (Lettres à Lucilius, t. I, livro
II, carta 14, 3, p. 53).
7. Podemos lembrar que kybernétes, o encarregado da condu-
ção e da direção de um barco, foi vertido para o latim por guberna-
tor (cf. o artigo gubernator!kybernétes do Dictionnaire des antiquités
grecques et romaines, s. dir. E. Saglio, t. II-2, Paris, Hachete, 1926, p.
1673-1674). Aliás, a comparação entre a arte médica e a arte da
navegação é muito freqüente em Platão (cf. Alcibíades, 125e-126a;
Górgias, 511d-512d; A República, 332d-e, 341c-d, 360e, 389c e
489b, etc.). Mas é em uma longa passagem do Político (297e-299c)
que se opera a articulação da arte médica, da navegação e do go-
verno político (é este mesmo diálogo que Foucault estuda para de-
terminar a governamentalidade da cidade em oposição à governa-
mentalidade pastoral, na aula de 15 de fevereiro de 1978 no Collé-
ge de France). Contudo, o texto-referência para o estabelecimento
desta relação entre o piloto e o médico continua sendo L'Ancienne
médecine de Hipócrates: Acontece com os médicos, parece-me, o
mesmo que com os pilotos. Se estes estiverem governando em tem-
po calmo e cometerem um erro, este erro não é manifesto (trad.
A-J. Festugiere, ed. citada, p. 7). Encontramos vestígios desta ana-
logia até em Quintiliano: Com efeito, assim é um piloto que pre-
tende chegar ao porto sem avarias em seu barco; se for acostado
pela tempestade, nem por isto será menos piloto e repetirá a co-
nhecida expressão: 'desde que eu mantenha o leme firme'. Tam-
bém assim é o médico que visa a cura do doente; se a gravidade do
mal ou os excessos cometidos pelo doente ou uma outra circuns-
tância o impedirem de ter sucesso, desde que tenha agido inteira-
mente segundo a regra, o médico não se terá afastado da finalidade
da medicina (Institution oraloire, t. II, livro II, 17, 24-25, trad. j.
Cousin, Paris, Les Belles Lelres, 1976, p. 95).
8. Cf. para a análise da razão de Estado moderna, as aulas ho
Collége de France de 8 e 15 de março de 1978; igualmente, Dits et
Écrits, op. cit., IlI, n. 255, pp. 720-1, e N, n. 291, pp. 150-3.
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175. ~
326 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
9. Cf. aula de 26 de março de 1980 no College de France, que
estuda o esquema de subjetivação cristã no qual a produção da ver-
dade de si está ligada à renúncia a si mesmo: produzo a verdade
de mim mesmo somente para renunciar a mim.
10. Sobre o tema da vida como obra de arte (estética da existên-
cia), cf. aula de 17 de março, primeira hora e infra, p. 528, nota 14.
11. Cf. as declarações no mesmo sentido in Dits et Ecrits, N,
n. 326, p. 410.
12. Sobre uma análise do poder em termos estratégicos (em
oposição ao modelo jurídico), cf. Dits et Écrits, m, n. 169, p. 33, e n.
218, pp. 418-28.
13. Sobre a crítica de uma concepção jurídica do poder, cf. o
clássico texto de Foucault, em La Volonté de savoir, Paris, Gallimard,
1976, p. 177-211; Ilfaut défendre la société, Cours au College de Fran-
ce, 1975-1976, ed. s. dir. F. Ewald A. Fontana, par M. Bertani
A. Fontana, Paris, Gallimard/Seuil, 1997, passim; Dits et Écrits, N,
n. 304, p. 214, e n. 306, p. 241.
14. Para uma apresentação similar de sua obra (a figura do
louco na História da loucura, do delinqüente em Vigiar e punir),
rearticulada em tomo da noção de sujeito, cf. Dits et Écrits, IV, n.
295, p. 170; n. 306, p. 227; n. 345, p. 633; n. 349, p. 657.
15. Sobre os gnósticos, cf. aula de 6 de janeiro, primeira hora,
e supra, pp. 32-3, nota 49.
16. A propósit~ da retomada das passagens de Musonius Ru-
Ius no Pedagogo (11, 10) de Clemente de Alexandria, cf., por exem-
plo, a análise de Foucault em Le Souci de 5Oi, op. cit., p. 198. Tradução
brasileira: O cuidado de si, pp. 170-1. (N. dos T.) Foucault lera bas-
tante a obra clássica de M. Spanneut, Le StoiCisme des Peres de
/'Église, de Clément de Rome à Clement d'AIexandrie, Paris, Éd. du
Seuil,1957.
17. Sobre a dificuldade de falar em moral cristã, cf. come-
ço da aula d~6 de janeiro, primeira hora.
18. Discípulo dissidente de Zenão, .Aríston de Quíos, não se
contentando em desconsiderar a lógica (inútil) e a física (inacessí-
vel)' defende também um moralismo radical que consiste em afirmar
que, exceto a virtude, tudo se equivale (postulado de indiferença,
impedindo a prescrição de deveres médios). Alguns sustentam que
foi s~ l~itura que determinou a conversão de Marco Aurélio à fi-
10sofia. Cf. a nota de C. Guérard sobre este filósofo no Dictionnaire
des phiIosophes antiques, ed. citada, pp. 400-3.
-•
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AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 327
19. Ele suprimia o 'lugar' físico e o 'lugar' lógico, afirmando
que um nos ultrapassa, o outro não nos concerne, e que somente
o 'lugar' ético nos diz respeito (Diogêne Laerce, Vies et doctrines
des philosophes illustres, livro VII, 160, Ariston, trad. s. dir. M.-O.
Goulet-Cazé, ed. citada, p. 884; Sêneca retoma a mesma apresen-
tação nas cartas 89, 13 e 94, 2, a Lucilio).
20. Cf. a apresentação de Sêneca: Esta parte da filosofia que
fornece os preceitos (praecepta) próprios a cada pessoa, que não
forma o homem em geral, mas prescreve ao marido a conduta a
ter com a mulher, ao pai a maneira de educar os filhos, ao mestre
a de governar os escravos, foi recebida unicamente de alguns teó-
ricos; eles desconsideraram todo o resto, onde não viam mais que
digressões sem relação com nossas necessidades, como se pudés-
semos formular prescrições sobre detalhes sem termos primeiro
abrangido todo o conjunto da vida humana. Aríston, o estóico, es-
tima, ao contrário, que esta parte da filosofia não é de modo algum
sólida e não penetra o coração, tendo sido feita só de provérbios
populares. Para ele, nada é mais proveitoso do que a pura filosofia
dogmática (decreta philosophiae) (Lettres à LuciIius, t. IV, livro xv,
carta 94, 1-2, p. 66).
21. A obra do médico Galeno de Pérgamo (129-200) é im-
pressionante:.conta com dezenas de milhares de páginas e cobre
o conjunto das ciências médicas de seu tempo. Bem logo traduzida
para o árabe, se imporá até o Renascimento como monumento in-
contornável. Podemos mencionar ainda, no século It as obras de
Élien de Préneste (172-235), compilação de conhecimentos natu-
rais e históricos (História variada, Característica dos animais). Há que
se lembrar enfim, em língua latina, que a grande História natural
de Plínio data do século I, como os livros de Celso.
22. Quarenta mil volumes foram queimados em Alexandria.
Que outros exaltem este monumento de magnanimidade real,
como Tito Lívio, que o chama de obra-prima do gosto e da solici-
tude dos reis. Não vejo ai nem gosto nem solicitude, mas uma or-
gia de literatura; e me equivoco quando digo literatura, pois o cui-
dado com as letras em nada conta: estas belas coleções eram cons-
tituídas apenas para exibição(Sénéque, De la tranquillité de I'âme,
IX, 5, ed. citada, p. 90).
23. As recomendações de leitura estão essencialmente na car-
ta 2 (Lettres à Lucilius, t. I, livro I, pp. 5-7).
-'
176. ~
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•
328 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
24. Cf. aula de 27 de fevereiro, segunda hora, e aula de 3 de
março, primeira hora.
25. Lettres à Lucilius, t. m, livro XI, carta 88 (pp. 158-72).
26. Sobre a datação das Questões naturais, cE. aula de 20 de ja-
neiro, primeira hora, e supra, p. 127, nota 27.
27. São as últimas cartas a Lucílio (106, 2; 108,39; 109, 17) que
nos informam da redação dos Maralis phílosophiae libri, o que faz
supor uma redação por volta do ano 64.
28. Foucault seIVe-se aqui, novamente, da velha edição dos
textos de Sêneca (Oeuvres completes de Séneque Ie philosophe, ed. ci-
tada, pp. 434-6).
29. Não ignoro, meu excelente amigo, quão vasto o edifício
cujos fundamentos estabeleço, eu que, na minha idade (senex), que-
ro percorrer o círculo do universo e descobrir os princípios das coi-
5as e seus segredos (Qui mundum circuire constitui, et causas secre-
taque ejus ernere), para levá-los ao conhecimento dos homens(id.,
p.434).
30. Cf. aula de 20 de janeiro, segunda hora.
31. Quando poderei eu' pôr fim a tantas buscas, reunir tan-
tos fatos esparsos, penetrar em tantos mistérios? A velhice está aí
a me urgir e reprovar-me pelos anos sacrificados a vãos estudos
(objecit annos intervana studia consumptos); novo motivo para apres-
sar-me e reparar pelo trabalho as lacunas de uma vida mal ocupada
(damna aetatis male exemptae labor sarciatz) (Questzons naturelles, in
Oeuvres compl,tes de Sénéque le philosophe, p. 434).
32. Façamos o que se faz em viagem: partindo demasiado
tarde, recuperamos o atraso com velocidade (velocitate) (ibid.).
33. Se quiseres ocupar-te com tua alma (vacare animo): sê
pobre ou vive como pobre (Lettres à Lucilius, t. I, livro Ir, carta 17,
5, p. 68).
34. A e~ção das Belles Lettres não traz esta lição, masad con-
ternplationern SUl saltem in ipso fine respiciat (traduzido por Oltra-
mare: que, nos seus derradeiros momentos, [o espírito] só se in-
teresse pelo exame do que ele é) (Questions naturel/es, t. I, p. 113).
35. Aproximemos a noite ao dia, suprimamos os cuidados
inúteis; deixemos o cuidado com um patrimônio demasiado dis-
tante de seu senhor; que o espírito esteja inteiro para si mesmo e
para 't-eu'próprio estudo, e que no momento em que a precipita-
ção da idade for mais rápida, nossos olhares se dirijam ao menos
r
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 329
sobre nós (sibi totus animus vacet, et ad contemplationem SUl saltem
in ipso fugae impetu respieiat) (/oc. eit. supra, nota 31).
36. Não seria muito mais sábio sufocar as próprias paixões
do que narrar à posteridade as paixões dos outros? (ibid.).
37. Ah' Melhor inquirirmos sobre o que há a fazer (quid fa-
ciendum sit) do que sobre o que foi feito (ibid.).
38. Sobre a condenação das crônicas de Alexandre e a exalta-
ção do exemplum de Catão ou de Cipião, cf. as cartas 24, 25, 86, 94,
95,98,104, de Sêneca a Lucilio.Catão éainda apresentado por Sê-
neca para ser considerado como ideal de sabedoria em Da constân-
cia do sábio VII, 1, e Da prauidência lI, 9.
39. Oeuvres complétes de Sénéque le philosophe, pp. 435-6.
40. O que há de grande é que esta alma, forte e inabalável
nos reveses, recusa os deleites e até mesmo o combate ao extre-
mo (id., p. 435).
41. O que há de maior? [...] pretender unicamente o tesou-
ro que ninguém disputará convosco, a sabedoria (banam mentem)
(ibid.).
-'
177. J
,
-~
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AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982
Segunda hora
Final da análise do prefácio à terceira parte das Ques-
tões naturais. - Estudo do prefácio à primeira parte. - O movi-
mento da alma cognoscente em Sêneca: descrição; característica
geral; efeito de retomo. - Conclusões: implicação essencial en-
tre conhecimento de si e conhecimento do mundo; efeito libera-
dor do saber do mundo; irredutibilida,de ao modelo platônico.
- A visão do alto.
Voltemos ao prefácio à terceira parte das Questões na-
turais. Sêneca percorre o mundo. Ora, ele está velho. Quan-
do se está velho, é preciso ocupar-se com o domínio de si.
Ocupar-se com domínio de si não significa ler as crônicas
dos historiadores que contam as façanhas dos reis. É muito
mais: vencer as próprias paixões, estar firme diante da ad-
versidade' resistir à tentação, fixar-se como objetivo o pró-
prio espírito e estar preparado para morrer. Chegado a esse
ponto, de que modo Sêneca insere neste objetivo - defini-
do pela oposição às crônicas históricas - a possibilidade e a
necessidade de percorrer o mundo? Pois bem, creio que o
atrativo do retorno ao conhecimento da natureza, sobre
cuja utilidade ele se interrogava, está na última frase que li:
O que há de grande é ter a alma na ponta dos lábios e
prestes a partir; é-se livre então não por direito de cidade,
mas por direito de natureza (non ejure Quintium liberum, sed
e jure naturae)l É-se livre por direito de natureza. Mas li-
vre de quê? Em que consiste essa liberdade que nos é dada,
quando praticamos esses diferentes exercícios, travamos es-
ses diferentes combates, fixamos este objetivo, praticamos a
meditação sobre a morte e aceitamos que ela aconteça? Em
que consiste essa liberdade assim adquirida? O que é ser li-
-~
178. li
I
•
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332 A HERMENÊUTICA DO SUJEITO
vre? - per~nta Sêneca. E ele responde: ser livre é effugere
servitutern2 E fugir da servidão, mas servidão a quê? Servitu-
tem sui: a servidão a si. Afirmação que é evidentemente con-
siderável, desde que se lembre de tudo que o estoicismo diz,
tudo o que Sêneca diz em todos os lugares sobre o eu, o eu
que é preciso libertar de tudo o que pode sujeitá-lo, o eu que
é preciso proteger, defender, respeitar, cultuar, hçmrar: thera-
peúein heautón (prestar um culto a si mesmo)'- E preciso ter
este eu por objetivo. Ele próprio o diz quando, um pouco mais
adiante no texto, fala desta contemplação de si: é preciso ter
a si mesmo diante dos próprios olhos, não tirar os olhos de si
mesmo e ordenar toda a vida a este eu que foi fixado como
objetivo para si mesmo; este eu que, como Sêneca nos diz
tão freqüentemente, em contato com ele, próximo a ele, em
sua presença, podemos experimentar o maior dos deleites,
a única alegria, o único gaudium que é legítimo, sem fragili-
dade e que não está exposto a nenhum perigo nem deixa-
do à mercê de nenhum revés4. Como podemos dizer que o
eu seja honrado, perseguido, guardado diante dos olhos,
em cuja proximidade se experimenta este deleite absoluto
e, ao mesmo tempo, que é preciso se libertar dele?
Ora - neste ponto o texto de Sêneca é perfeitamente
claro - a servidão a si, a servidão em relação a si mesmo é
definida como aquilo contra o que devemos lutar. Desenvol-
vendo esta proposição - ser livre é fugir da servidão a si mes-
mo -, ele diz: ser escravo de si mesmo (sibi servire) é a mais
grave, a mais pesada (gravíssima) de todas as servidões. Em
segundo lugar, é uma servidão assídua, isto é, ela pesa so-
bre nós sem cessar. Dia e noite, diz Sêneca, sem intervalo e
sem descahso (intervallum, commeatus). Terceiro, ela é inelu-
tável. E I'inelutável não significa, como veremos, que seja
absolutamente insuperável. De todo modo, é inevitável e nin-
guém está dela dispensado: é daí que sempre partimos. En-
tretanto' pode-se lutar contra esta servidão que é tão pesada,
tão assídua, na qual não se encontra remissão e que nos é
defuda maneira imposta. É fácil sacudi-la, diz ele, e isto sob
duas condições. Primeiro, sob a condição de que se cesse de
I
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AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 333
pedir muito a si mesmo. E explicita um pouco adiante o que
quer dizer com isto: pedir muito a si mesmo é fazer muito
mal para si, é impor a si mesmo muitas penas e labor a fim
de, por exemplo, administrar os negócios, explorar as terras,
trabalhar o solo, apresentar queixa no fórum, reclamar nas
assembléias políticas, etc5. É impor a si, em suma, uma série
de obrigações que são as da vida ativa tradicional. E, em se-
gundo lugar, pode-se liberar-se desta servidão não atribuin-
do a si o que de ordinário se atribui como uma espécie de
salário, de retribuição e recompensa ao trabalho feito. Mer-
cedem sibi referre (trazer proveito para si mesmo) é o que
precisamos cessar de fazer se quisermos nos liberar de nós
mesmos6
. Vemos por conseguinte que, ainda que muito
brevemente indicada neste texto, a servidão para consigo
mesmo é descrita por Sêneca como uma série de compro-
missos, atividades e recompensas: uma espécie de obriga-
ção-endividamento de si e para consigo. É deste tipo de re-
lação consigo que precisamos nos liberar. Impomo-nos certas
obrigações e tentamos delas tirar alguns proveitos (proveito
financeiro, glória, reputação, proveitos que se referem aos
prazeres do corpo e da vida, etc.).Vivemos no interior deste
sistema obrigação-recompensa, deste sistema de endivida-
mento-atividade-prazer. É isto que constitui a relação a si
da qual devemos nos liberar. E então em que consistirá li-
berar-se desse tipo de relação consigo? Pois bem, é aí que
Sêneca coloca o princípio segundo o qual liberar-se desse
tipo de relação consigo - desse sistema de obrigação-endi-
vidamento, se quisermos - nos será permitido pelo estudo
da natureza. E termina esse desenvolvimento do prefácio à
terceira parte das Questões naturais dizendo: proderit nobis
inspicere rerum naturam (para tal1iberação nos será útil exa-
minar, inspecionar a natureza das coisas). Neste texto Sê-
neca não vai além da afirmação de que o eu do qual é pre-
ciso liberar-se é o desta relação consigo e que esta liberação
nos é assegurada pelo estudo da natureza.
Éentão que podemos nos reportar, creio, ao prefácio da
primeira parte que eu havia saltado a fim de chegar a esse
.~
179. r
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334 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
texto que, por sua vez, está muito mais próximo das ques-
tões pessoais de Sêneca: por que, velho, ele se dedica a tal
estudo? Agora, no prefácio à primeira parte, temos ao con~
trário o que poderíamos chamar de teoria geral e abstrata
do estudo da natureza como operador da liberação de si, no
sentido que acabo de expor. Este prefácio começa pela dis~
tinção entre duas partes da filosofia, que está inteiramente
conforme ao que se encontra em outros textos de Sêneca.
Há, diz ele, duas partes da filosofia. A que se ocupa dos ho~
mens, concerne, diz respeito a eles (ad homines spectat). Esta
parte da filosofia diz quid agendum in tems (o que se deve
fazer sobre a terra). E há também uma outra parte da filo~
sofia. Esta não diz respeito aos homens, mas aos deuses (ad
deos speetat)'.Tal parte da filosofia nos diz quid agatur in caelo
(o que se passa no céu). Entre estas duas partes da filosofia
- a que diz respeito aos homens, indicando~nos o que é pre~
ciso fazer, e a que diz respeito ao céu, indicando-nos o que
aí se passa - há, diz ele, uma grande diferença. Há tanta di~
ferença entre a primeira e a segunda dessas filosofias quan~
to entre as artes ordinárias (artes) e a própria filosofia. O que
os diferentes conhecimentos, as artes liberais, das quais fala~
va na carta 888
, são para a filosofia, assim a filosofia que diz
respeito aos homens o é para a filosofia que diz respeito aos
deuses. Entre estas duas formas de filosofia, vemos então
que há uma diferença de importância, de dignidade. Há tam~
bém, e é um outro ponto a se realçar, uma ordem de sucessão,
que é ademais praticada por Sêneca em seus outros textos:
quando se lê a série de cartas a Lucílio, as considerações que
concernem à ordem do mundo e à natureza em geral vêm,
com efeit~, após uma longa série de cartas concernentes ao
que se deve fazer na ação cotidiana. É o que encontramos
igualmente formulado de modo muito simples na carta 65,
em que Sêneca diz a Lucílio que é preciso primum se scru~
tari, deinde mundum (primeiro examinar a si mesmo, to-
mar~se em consideração, e em seguida o mundo)'. Pois bem,
esfll sucessão entre as duas formas de filosofia - a que diz
respeito aos homens e a que diz respeito aos deuses - é re~
r
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 335
querida pela incompletude da primeira em relação à segunda,
e pelo fato de que unicamente a segunda (a filosofia que diz
respeito aos deuses) pode consumar a primeira. A primeira
- a que diz respeito aos homens: que fazer? - permite, diz
Sêneca, conjurar os erros. Ela traz sobre a terra a luz que
permite discernir as vias ambíguas da vida. Mas a segunda,
por sua vez, não se contenta em utilizar esta luz para cla-
rear os caminhos da vida. Ela nos conduz, arrancando~nos
das trevas, à fonte da luz: il/o perducit, unde lueet (ela nos
conduz a esse lugar de onde nos vem a luz). Nesta segun~
da forma de filosofia, não se trata absolutamente de algo
como um conhecimento das regras da existência e do com~
portamento, mas não se trata também de algo como um mero
conhecimento. Trata-se de nos arrancar das trevas daqui de
baixo e de nos conduzir (perducere) até o ponto de onde nos
vem a luz. Trata~se pois de um movimento real do sujeito,
movimento real da alma que assim se eleva acima do mun~
do e é arrancada das trevas, trevas que são este mundo aqui
de baixo, [...] permanecendo porém um deslocamento do
próprio sujeito. Pois bem, esse movimento - perdoemme a
esquematização - tem, a meu ver, quatro características.
Primeiramente, esse movimento constitui uma fuga, um
arrancar-se de si mesmo, arrancar-se que consuma e com-
pleta o desprendimento em relação aoS defeitos e aos vícios.
Ele diz neste prefácio à primeira parte das Questões naturais:
tu fugiste aos vícios da alma - e aqui, muito manifestamente,
Sêneca se refere a suas outras cartas a Lucílio, ao trabalho
de direção de consciência que fez, em um ponto e em um
momento em que efetivamente o combate interior contra
os vícios e os defeitos é travado; é neste momento que en-
via~lhe as Questões naturais. Tu fugiste aos vicias da alma, tu
cessaste de compor teu rosto e tua linguagem, de mentir, de
iludir (toda a teoria da lisonja ativa e passiva), tu renuncias~
te à avareza, à luxúria, à ambição, etc. E entretanto, diz ele,
é como se nada tivesses feito: multa effugisti, te nondum'~ (tu
fugiste a muitas coisas, mas não de ti mesmo). É portanto
esta fuga em relação a si mesmo, no sentido de que lhes fa~
~
180. ~
•
336 AHERMENÉUTICA DO SUJEITO
lava há pouco, que o conhecimento da natureza poderá as-
segurar. Em segundo lugar, o movimento que nos conduz
ao ponto de onde vem a luz é o que nos conduz a Deus, não
entretanto sob a forma de uma perda de si mesmo em Deus
ou de um movimento que nele se aniquilaria, mas sob a forma
que nos permite encontrarmo-nos, diz o texto, in consor-
tium Dei: em uma espécie de co-naturalidade ou de co-
funcionalidade em relação a Deus. Isto significa que a razão
humana é da mesma natureza que a razão divina. Ela tem
as mesmas propriedades, o mesmo papel e a mesma função.
O que a razão divina é para o mundo, a razão humana deve
ser para o próprio homem. Em terceiro lugar, neste movi-
mento que nos leva à luz, nos arranca de nós mesmos, nos
coloca no consortíum Dei, elevamo-nos em direção ao pon-
to mais alto. Mas no mesmo momento em que somos as-
sim levados para cima desse mundo, deste universo em que
estamos - ou antes, no momento em que somos levados
para cima das coisas em cujo nível nos encontramos nesse
mundo - neste momento podemos, por isso mesmo, pene-
trar no segredo mais interior da natureza: in interíorem na-
turae sinum [venitl (a alma ganha o seio, o mais interior e
Íntimo regaço da natureza)!O
Compreendamos bem - voltarei a isso mais adiante -
a natureza e os efeitos desse movimento. Não se trata de um
arrancar-se deste mundo para um outro mundo. Não se tra-
ta de desprender-se de uma realidade para se alcançar o que
seria uma outra realidade. Não se trata de deixar um mundo
de aparências para atingir enfim uma esfera que seria a da
verdade. Trata-se de um movimento do sujeito que se ope-
ra e se efetJa no mundo - indo efetivamente em direção ao
ponto de onde vem a luz, ganhando efetivamente uma for-
ma que é a própria forma da razão divina -, que, porquanto
estamos no consortium Dei, nos coloca no topo, no ponto
mais alto (altum) deste universo. Mas não deixamos este
universo e este mundo e, no momento mesmo em que es-
tam6s no topo desse mundo, também então a interiorida-
de, os segredos e o próprio seio da natureza se abrem para
r
AUlA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 337
nós. Enfim, vemos que esse movimento que nos coloca no
lugar mais alto do mundo, e ao mesmo tempo nos abre os
segredos da natureza, vai nos permitir lançar do alto um
olhar para a terra. No momento em que, participando [da]
razão divina, apreendemos o segredo da natureza, podemos
apreender o pouco que somos. Reconhecemos então - in-
sisto nisto e o retomarei mais adiante - quão longe estamos,
apesar de um certo número de analogias, do movimento pla-
tônico. Enquanto o movimento platônico consiste em nos
afastarmos deste mundo para olharmos em direção a um
outro - admitindo a possibilidade, aliás, de que as almas
(que tiverem experimentado e reencontrado pela reminis-
cência a realidade que viram) sejam levadas, mais por força
do que por vontade, em direção a este mundo para gover-
ná-lo -, o movimento estóico definido por Sêneca é de uma
natureza inteiramente outra. Trata-se de uma espécie de re-
cuo em relação ao ponto em que estamos. Esta liberação faz
com que, sem que jamais tiremos os olhos de nós mesmos,
sem que jamais tiremos os olhos deste mundo ao qual per-
tencemos, de algum modo ganhemos as regiões mais altas
do mundo. Alcançamos o ponto de onde o próprio Deus vê
o mundo e, sem jamais termos verdadeiramente nos desvia-
do deste mundo, vemos o mundo a que pertencemos e, por
conseguinte, poderemos ver a nós mesmos neste mundo. O
que nos permitirá este olhar, que assim obtemos pelo movi-
mento de recuo em relação a este mundo e de subida até o
topo do mundo de onde se abrem os segredos da natureza?
Pois bem, permitirá apreendermos a pequenez e o ca-
ráter fictício e artificial de tudo o que, antes de termos sido
liberados, nos pareceu ser o bem. Riquezas, prazeres, glória:
todos esses acontecimentos passageiros vão retomar sua
verdadeira dimensão a partir do momento em que, graças a
esse movimento de recuo, tivermos chegado ao ponto mais
alto de onde os segredos do conjunto do mundo nos serão
descerrados. Uma vez, diz ele, que tenhamos percorrido o
mundo inteiro (mundum totum circuíre: reencontramos aqui
exatamente a expressão que havia lido no começo do pre-
~
181. ..
•
338 A HERMENfUTlCA DO SUJEITO
fácia do terceiro livroll
), uma vez que tenhamos feito o percur-
so do mundo em seu círculo geral, olhando do alto o círculo
das terras (terrarnm orbem super ne despícíens), é neste mo-
mento que podemos desprezar todos os falsos esplendores
forjados pelos homens (os tetos de marfim, as florestas
transformadas em jardins, os rios desviados de seus cursos,
etcI2
). É deste ponto de vista também - o texto não o diz,
mas vemos bem como os dois prefácios se correspondem -
que podemos recolocar as famosas glórias históricas de que
Sêneca falava no texto que citei anteriormente13
, como aque-
las das quais devemos nos desviar. Não são elas que importam,
pois, olhadas do alto deste ponto em que estamos agora co-
locados pelo percurso da natureza inteira, vemos quão pou-
co contam e duram. E é isto o que nos permite, uma vez que
tenhamos chegado a este ponto, não somente descartar,
desqualificar todos os falsos valores, todo o falso comércio
no interior do qual estávamos presos, mas também tomar a
medida do que somos efetivamente sobre a terra, a medida
de nossa existência - dessa existência que é apenas um pon-
to, um ponto no espaço e um ponto no tempo -, de nossa
pequenez. Do alto, diz Sêneca, o que são para nós os exér-
dtos, se os vemos após termos percorrido o grande ciclo do
mundo? Todos os exércitos nada mais são que formigas.
Como as formigas, com efeito, eles se agitam muito, mas
em um espaço bem pequeno. É num ponto, diz ele, e nada
além de um ponto, que navegais14
. Acreditais ter percor-
rido imensos espaços, ficastes porém num ponto. É em um
ponto que fizestes a guerra, é em um ponto e um ponto so-
mente que 'expandis os impérios. Vemos que este grande
percurso da natureza servirá, não para nos arrancar do mun-
do, mas para nos permitir apreender a nós mesmos lá onde
estamos. De modo algum em um mundo de irrealidades,
em um mundo de sombras e de aparências, não para nos
desprender de algo que seria apenas sombra, para nos reen-
cont?àr em um mundo que seria apenas luz: é para medir
exatamente a existência perfeitamente real que temos, mas
r
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 339
que não passa de uma existência pontual. Pontual no es-
paço, pontual no tempo. Ser para nós mesmos, aos nossos
próprios olhos, aquilo que somos, a saber, um ponto, pon-
tualizarmo-nos no sistema geral do universo: é esta libera-
ção que efetua realmente o olhar que podemos lançar sobre
o sistema inteiro das coisas da natureza. Podemos então, se
quisermos, tirar agora algumas conclusões sobre o papel do
conhecimento da natureza no cuidado de si e no conheci-
mento de si.
Primeira conseqüência, não se trata de modo algum,
neste conhecimento de si, de uma espécie de alternativa: ou
se conhece a natureza, ou se conhece a si mesmo. De fato,
não se pode conhecer a si mesmo como convém senão sob
a condição que se tenha sobre a natureza um ponto de vis-
ta, um conhecimento, um saber amplo e detalhado que nos
permita precisamente conhecer não apenas sua organização
global, mas até seus detalhes. Enquanto a análise epicurista,
a necessidade epicurista de conhecer a física tinha essencial-
mente por papel e por função nos liberar dos medos, dos
temores e dos mitos com os quais fomos atulhados desde o
nosso nascimento, a necessidade estóica, a necessidade em
Sêneca de conhecer a natureza não é tanto, ou em todo caso
não é somente, de dissipar esses temores, ainda que essa
dimensão também exista. Trata-se sobretudo, nesta forma
de conhecimento, de nos apreender a nós mesmos lá onde
estamos, no ponto em que estamos, isto é, de recolocar-nos
no interior de um mundo inteiramente racional e seguro,
que é o de uma Providência divina; Providência divina que
nos colocou lá onde estamos, que nos situou, pois, no inte-
rior de um encadeamento de causas e efeitos particulares,
necessários e razoáveis, que precisamos aceitar se quiser-
mos efetivamente nos liberar deste encadeamento, sob a
forma - a única possível - do reconhecimento da necessi-
dade deste encadeamento. Conhecimento de si e conheci-
mento da natureza não estão, portanto, em posição de .al-
Ternativa, mas absolutamente ligados. E vemos - é um ou-
Iro aspecto desta questão das relações - que o conhecimento
.~
182. ..
•
340 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
de si de modo algum é conhecimento de algo como uma
interioridade. Nada tem a ver com o que poderia ser a aná-
lise de si, de seus segredos (daquilo que os cristãos chamarão
depois I1rcana conscientiae). É preciso controlar, como vere-
mos mais tarde, a prolundidade de si mesmo, as ilusões que
se faz sobre si mesmo, os movimentos secretos da alma, etc.
Mas a idéia de uma exploração, a idéia de que há um domí-
nio de conhecimentos específicos a ser apreendido e eluci-
dado - tamanho o poder de ilusão sobre nós mesmos, no
interior de nós mesmos, e em razão da tentação -, tudo isto
é absolutamente estranho à análise de Sêneca. Ao contrá-
rio, se 11 conhecer-se a si mesmo está ligado ao conhecimen-
to da natureza, se nesta busca de si, conhecer a natureza e
[se] conhecer a si mesmo estão ligados um ao outro, é na me-
dida em que o conhecimento da natureza nos revelará que
somos nada mais que um ponto, um ponto cuja interiorida-
de não se põe evidentemente como um problema. O único
problema que se lhe põe consiste precisamente em situar-se
lá onde ele está e ao mesmo tempo aceitar o sistema de Ia-
cionalidade que o inseriu neste ponto do mundo. Eis aí o
primeiro conjunto de conclusões que gostaria de tirar acer-
ca do conhecimento de si e do conhecimento da natureza,
sua ligação e o fato de que o conhecimento de si em nada
se assemelha nem se aproxima do que será mais tarde a exe-
gese do sujeito por ele mesmo.
Em segundo lugar, vemos que este efeito do saber sobre
a natureza, desse grande olhar que percorre o mundo, ou
que, recuando em relação ao ponto em que estamos, acaba
por apreender o conjunto da natureza, consiste em ser libe-
ratório. Por tjue esse saber da natureza nos libera? Vemos
que nesta liberação não se trata, de modo algum, de um ar-
rancar-se deste mundo, como translação para um outro mun-
do, como ruptura e abandono em relação a este mundo.
Trata-se, antes, de dois efeitos essenciais. Primeiramente,
obter uma espécie de tensão máxima entre esse eu enquanto
razão'-- e, a este título, por conseqüência, razão universal,
de mesma natureza que a razão divina - e o eu enquanto
r
I.
~..;
/
AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 341
elemento individual, colocado aqui e ali no mundo, em um
lugar perfeitamente restrito e delimitado. Está aí o primeiro
efeito deste saber sobre a natureza: estabelecer a tensão
máxima entre o eu como razão e o eu como ponto. Em se-
gundo lugar, o saber sobre a natureza é liberador na medi-
da em que nos permite, não que nos desviemos de nós
mesmos, que desviemos nosso olhar daquilo que somos,
maS ao contrário que melhor o ajustemos e que tenhamos
continuamente sobre nós mesmos uma certa visão, que as-
seguremos uma contemplatia sui na qual o objeto desta con-
templação seremos nós mesmos no interior do mundo, nós
mesmos enquanto ligados, em nossa existência, a um con-
junto de determinações e de necessidades cuja racionalidade
compreendemos. Vemos, conseqüentemente, que não se
perder de vista e percorrer com o olhar o conjunto do mun-
do são duas atividades absolutamente indissociáveis uma
da outra, sob a condição de ter haviao esse movimento de
recuo, esse movimento espiritual do sujeito, estabelecendo
dele a ele mesmo o máximo de distância e fazendo com
que, no topo do mundo, o sujeito chegue a se tomar consor-
tium Dei: o mais próximo de Deus, participante da atividade
da racionalidade divina. Parece-me que tudo isto está per-
feitamente resumido em uma frase que encontramos na car-
ta 66 a Lucílio - trata-se da longa e importante descrição do
que é a alma virtuosa -, na qual ele diz que a alma virtuosa
é uma alma 11 em comunicação com todo o universo e aten-
ta em explorar todos os seus segredos (toti se inseres mun-
do et in omnis ejus actus contemplationem suam mittens). To-
dos os actus, poderíamos dizer no limite, todos os atos e
processos. Portanto a alma virtuosa está em comunicação
com todo o universo, está atenta à contemplação de tudo o
que constitui seus acontecimentos, atos, processos. Então,
ela se controla a si mesma tanto em suas ações quanto em
seus pensamentos (cagitationibus actionibusque intentus ex
aequo). Inserir-se no mundo e não ser arrancado dele, explo-
rar os segredos do mundo em vez de se voltar para os se-
gredos interiores, é nisto que consiste a virtude da alma15.
Instituto de Psicologia· UFRGS
---- Biblioteca --- ~
183. I
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•
342 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
Mas, por isso mesmo e pelo fato de que ela está em comu-
nicação com todo o universo e /I explora todos os seus segre-
dos, por isso mesmo ela pode controlar suas ações, Hcon-
trolar-se em suas ações e pensamentos.
Enfim, a terceira conclusão que gostaria de tirar seria a
seguinte: estamos aqui muito próximos de um movimento
que poderíamos considerar de tipo platônico. É evidente
que as lembranças, as referências, os termos de Platão estão
muito próximos, estão efetivamente presentes neste texto
do prefácio à primeira parte das Questões naturais. Encontra-
ríamos também textos desse gênero em outras passagens
de Sêneca. Penso na carta 65, na qual Sêneca diz: O que é
nosso corpo? Um peso sobre a alma para o seu suplício. Ele
a oprime, a abate, mantém-na acorrentada, mas a filosofia
apareceu, e eis que ela convida a alma a respirar em presen-
ça da natureza; ela a fez abandonar a terra pelas realidades
divinas. É assim que a alma se torna livre, é assim que ela
se reergue. De tempos em tempos ela foge de seu cárcere e
se recria gozando do céu [pelo céu: caelo reficitur; M.F.F6
E esta reminiscência é tão claramente platônica, mesmo aos
olhos de Sêneca, que ele faz uma espécie de pequena mito-
logia da caverna. Afirma: assim como os artesãos (que traba-
lham em sua oficina escura, nebulosa e esfumaçada) gostam
muito de deixá-la para caminharem ao ar livre, a céu aber-
to (libera luce), assim a alma, fechada em seu aposento tris-
te e obscuro, se lança cada vez que pode para os espaços a
fim de repousar na contemplação da natureza17. Estamos
então muito próximos de temas e de uma forma platônicos.
Poderíamos tam~ém citar o texto do De brevitate vitae, que
é bem antelíor. E um texto, como sabemos, endereçado a
seu sogrO!8, que era prefeito da anona e tinha então de se
ocupar com o abastecimento de Roma!'. Ele lhe diz: de qual-
quer forma, compara um pouco o que é se ocupar do trigo
(de seus preços, de seu armazenamento, de zelar para que
ele não apodreça, etc.) com uma outra atividade, que seria
a de ~bér o que é Deus, a substância de Deus (materia), seu
prazer (voluptas), sua condição e Sua forma. Compara as tuas
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AULA DE 17 DE FEVEREIRD DE 1982 343
ocupações às que consistiriam em conhecer a organização
do universo, a revolução dos astros. Queres tu, tendo deixado
o solo (relieto solo), voltar os olhos de teu espírito para estas
coisas (a natureza de Deus, a organização do universo, a re-
volução dos astros, etc.)? Há aqui referências platônicas
evidentes. Mas me parece que a existência inegável dessas
referências - como lhes disse há pouco, gostaria de voltar a
isso por ser importante - não deve iludir. O movimento da
alma que Sêneca descreve através de imagens platônicas é,
creio eu, muito diferente do que se encontra em Platão e pro-
cede de uma trama, de uma estrutura espiritual inteiramen-
te diversa. Neste movimento da alma, que Sêneca descreve
como efetivamente uma espécie de arrancar-se do mundo,
uma passagem da sombra à luz, etc., vemos primeiramente
que não há reminiscência, ainda que a razão se reconheça
em Deus. Mais que de uma redescoberta da essência da alma,
trata-se de um percurso através do mundo, de uma busca
através das coisas do mundo e suas causas. Não se trata ab-
solutamente, para a alma, de dobrar-se sobre si mesma, de
interrogar-se sobre si para reencontrar em si mesma a lem-
. brança das formas puras que viu outrora. Trata-se ao con-
trário de ver atualmente as coisas do mundo, de apreender-
lhes atualmente os detalhes e as organizações. Trata-se de,
atualmente e através desta busca efetiva, compreender qual
é a racionalidade do mundo para, neste momento, reco-
nhecer que a razão que presidiu a organização do mundo,
e que é a própria razão de Deus, é do mesmo tipo da nossa,
que nos permite por sua vez conhecê-la. É esta descoberta
da co-naturalidade, da co-funcionalidade da razão humana
e da razão divina que se faz, repito, não sob a forma da re-
miniscência da alma mirando-se a si mesma, mas pelo mo-
vimento da curiosidade do espírito percorrendo a ordem do
mundo: primeira diferença. A segunda diferença em relação
ao movimento platônico é que, como vemos, não há abso-
lutamente passagem a um outro mundo. O mundo ao qual
se acede pelo movimento que Sêneca descreve é o mundo no
qual estamos. E todo o jogo, todo o lance deste movimento
~
184. ..
•
344 A HERMENÊUTICA DO SUJEITO
consiste precisamente em nunca perder de vista qualquer
dos elementos que caracterizam o mundo no qual estamos
e que caracterizam mais particularmente ainda a nossa si-
tuação, no próprio lugar em que estamos. Nunca devemos
perder isto de vista. De certo modo, é recuando que nos afas-
tamos. Erecuando, vemos alargar-se o contexto no interior do
qual estamos colocados e apreendemos este mundo tal como
ele é, o mundo em que estamos. Não é, portanto, Uma pas-
sagem a um outro mundo. Não é o movim.ento pelo qual
se desviaria deste mundo para olhar além. E o movimento
pelo qual, sem nunca perder de vista este mundo e, no seu
interior, nós e o que aí somos, é-nos [permitido] apreendê-
lo na sua globalidade. Enfim, como vemos, não se trata de
modo algum, como no Fedro, de elevar os olhos o mais alto
possível para o que seria supraterrestre21. Vemos que o mo-
vimento assim designado não é o de um esforço pelo qual,
em se desprendendo deste mundo, em se desviando o olhar
dele, se tentaria ver uma outra realidade. Trata-se antes de
nos colocarmos em um ponto tal, ao mesmo tempo tão Cen-
traI e elevado que possamos ver abaixo de nós a ordem glo-
bal do mundo, ordem global da qual fazemos parte. Em ou-
tras palavras, antes que um movimento espiritual dirigido
para o alto pelo movimento do éros e da memória, trata-se,
por um esforço de um tipo bem diferente, que é o do pró-
prio conhecimento do mundo, de colocar-se tão alto que se
possa ver a partir desse ponto, e abaixo de si, o mundo em
sua ordem geral, o pequeno lugar que se ocupa nele, o pou-
co tempo que nele se vai ficar. Trata-se de uma visão do alto
sobre si, e não de um olhar ascendente para algo diferente
do mundo em que estamos. Visão do alto de si sobre si que
engloba o mundo de que se faz parte e que assegura assim
a liberdade do sujeito nesse próprio mundo.
Este tema de uma visão do alto sobre o mundo, de um
movimento espiritual que nada mais é senão o movimento
pelo qual esta visão se torna cada vez mais alta - quer dizer
cadalei mais englobante porque se eleva cada vez mais _,
esse movimento é de um tipo diferente do movimento pla-
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AUlA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 345
tônico. Ele parece definir uma das mais fundamentais formas
de experiência espiritual encontradas na cultura ocidental.
Encontramos este tema da visão do alto em alguns textos
estóicos e em particular em Sêneca. Penso em um texto que,
acho, foi o primeiro por ele escrito. É o Consolação a Már-
cia22. Como sabemos, consolando Márcia da morte de um
de seus filhos, Sêneca emprega os argumentos estóicos tra-
dicionais e dá lugar à experiência, faz referência à possibili-
dade de um olhar do alto sobre o mundo. A referência a
Platão está ali ainda implícita mas, creio, muito clara. Esta-
mos muito próximos da República e da escolha das almas,
quando é dado aos humanos que assim mereceram, ao en-
trarem em uma vida, poder escolher o tipo de existência que
terão23
. Fazendo eco a isto, há uma passagem muito curio-
sa no Consolação a Márcia em que Sêneca diz: pois bem, es-
cuta, imagina que antes de entrar na vida, antes que tua
alma tenha sido enviada a este mundo, tu tinhas a possibi-
lidade de ver o que ia se passar. Como vemos, não é a possi-
bilidade da escolha que se coloca aí: é o direito ao olhar; e
um olhar que será precisamente uma visão do alto de que
falava há pouco. No fundo, ele sugere a Márcia que se ima-
gine antes da vida, naquela mesma posição que deseja e
que prescreve ao sábio no ponto em que sua vida desembo-
ca, isto é, no ponto em que está no limite da vida e da morte,
no limiar da existência. Desta feita, é no limiar da entrada e
não no da saída, mas o tipo de olhar que Márcia é convida-
da a lançar é o mesmo que deverá ter o sábio ao fim de sua
existência. Ele tem o mundo diante de si. E o que se pode
ver neste mundo, desta visão do alto? Pois bem, primeira-
mente, diz ele, no momento de entrar na vida se te fosse
dado ver desse modo, tu verias lia cidade comum dos deuses
e dos homens, tu verias os astros, sua revolução regular, a
lua, os planetas cujo movimento comanda a fortuna dos
homens. Admirarias lias nuvens cumuladas, o risco oblí-
quo do raio e o trovão do céu. Depois teus olhos baixariam
para a terra e encontrariam ainda muitas outras coisas e
maravilhas, e então poderias ver as planícies, as montanhas
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185. rI
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346 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
e as cidades, os monstros marinhos, o oceano, os navios
que o atravessam e sulcam. Tu não verás nada que não te-
nha tentado a audácia humana, ao mesmo tempo testemu-
nha e laboriosa associada desses grandes esforços. Ao mes-
mo tempo porém verias, com esta ampla visão do alto (se
te fosse dada no momento de teu nascimento), que aí tam-
bém, nesse mundo, haveria mil flagelos do corpo e da alma,
guerras e pilhagens, envenenamentos e naufrágios, intem-
péries do ar e doenças, perda prematura dos próximos e a
morte, doce talvez, ou talvez cheia de dores e de torturas.
Delibera contigo mesmo e pesa bem o que queres; uma vez
tendo entrado nesta vida de maravilhas, é por ela que deve-
rás sair. Cabe a ti aceitá-la com suas condições24. Esta pas-
sagem me parece muito interessante. Primeiramente, porque
temos o tema, que será tão importante na espiritualidade
como também na arte e na pintura ocidentais, da visão do
alto sobre a totalidade do mundo, tema que me parece ao
mesmo tempo específico do estoicismo e sobre o qual Sêne-
ca, creio, mais que qualquer outro estóico, particularmente
insistiu. Vemos também que a referência a Platão é clara,
mas o que está aqui evocado é um tipo bem diferente de ex-
periência ou, se quisermos, um tipo bem diferente de mito.
Não é a possibilidade, para o indivíduo que a mereceu, de
escolher entre os diferentes tipos de vida que ,lhe são pro-
postos. Trata-se ao contrário de lhe dizer que não tem esco-
lha e que, com esta visão do alto sobre o mundo, deve com-
preender que todos os esplendores que possa encontrar no
céu, nos astros, nos meteoros, e a beleza da terra, as planícies,
o mar, as montanhas, tudo isso está indissociavelrnente li-
gado aos miHlagelos do corpo e da alma, às guerras, às pilha-
gens, à morte, aos sofrimentos. Mostramos-lhe o mundo
não para que possa escolher, como as almas de Platão po-
diam escolher seu destino. Mostramos-lhe o mundo preci-
samente para que compreenda que não tem escolha, e que
nada se pode escolher se não se escolhe o resto, que há so-
medre úm mundo, um único mundo possível, e que é a ele
que se está ligado. O único ponto de escolha é o seguinte:
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AULA DE 17 DE FEVEREIRO DE 1982 347
Delibera contigo mesmo e pesa bem o que queres. Uma
vez tendo entrado nesta vida de maravilhas, é por ela que de-
verás sair. A única escolha não é: que vida tu vais escolher,
que caráter tu vais atribuir-te, queres tu ser bom ou mau? O
único elemento de escolha que é dado à alma no momento
em que, no limiar da vida, nascerá neste mundo, é: delibe-
ra se queres entrar ou sair, ou seja, se queres ou não viver.
E temos aqui o simétrico, de certo modo anterior, ao que se
encontrará como forma da sabedoria, precisamente quando
for adquirida, no termo da vida e uma vez a vida consuma-
da. Uma vez que se tenha chegado à consumação ideal da
vida, à velhice ideal, então se poderá deliberar se se quer ou
não viver, se se quer matar-se ou continuar a viver. O simé-
trico do suicídio está dado aqui: tu podes deliberar, é dito a
Márcia neste mito, para saber se queres ou não viver; mas
saibas bem que, se escolheres viver, será a totalidade desse
mundo - desse mundo que se expôs aos teus olhos, com suas
maravilhas e dores - que terás escolhido. Da mesma ma-
neira o sábio, no final da vida, uma vez que tiver sob os
olhos o conjunto do mundo - seu encadeamento, dores, gran-
dezas -, neste momento, será livre para escolher, escolher
viver ou morrer;'graças a esta ampla visão do alto que a as-
censão ao topo do mundo, no consomum Dei, lhe terá pro-
piciado pelo estudo da natureza. Aí está. Obrigado.
~ ~
186. ..
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NOTAS
1. Questions naturelles, prefácio ao livro III, in Oeuvres eompli!~
tes de Sénéque le philosophe, ed. citada, p. 436.
2. Ser livre é não ser mais escravo de si (líber autem est, qui
seruitutem e!fugit sui) (ibid.).
3. Cf. aula de 20 de janeiro, primeira hora.
4. A alegria do sábio é de uma só contextura (sapientis vera
eontexitur gaudium) (Séneque, Lettres à Lucilius, t. IH, livro VIII,
carta 72, 4, ed. citada, p. 30); chegou ao ponto supremo, quem
sabe com o que deve se regozijar (qui scit, quo gaudeat) [...]. Teu pri~
meiro dever, ei-lo aqui, meu caro Lucílio: aprende 1alegria (disee
gaudere) (id., t. I, livro I1I, carta 23, 2-3, p. 98).
S. Por que tantas loucuras, tantas fadigas, tantos suores? Por
que revolver o solo, reclamar no fórum? Eu preciso de tão pouco
e por tão pouco tempo! (Questions naturelles, prefácio ao livro III,
in OeuDres complétes de Sénéque le philosophe, p. 436).
6. Que....m é escravo de si mesmo suporta o mais rude (gra-
víssima) de toaos os jugos; mas é fácil sacudi-lo: que não se faça mais
a si mesmo mil pedidos; que não se pague a si mesmo com seu
próprio mérito (si desieris tibi referre mereedem) (ibid.).
7.ld. (p. 389).
8. Cf. a análise desta carta na primeira hora desta aula.
9. Quando terminar de perscrutar em mim mesmo, perscru-
to os~egredos deste mundo (et me prius sentto!, deinde hunc mun-
dum) (Séneque, Lettres à Lucilius, t lI, livroVII, carta 65,15, p.1l1).
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AULA DE 17 DE FEVERE1RO DE 1982 349
10. Até aqui, entretanto, nada fizestes: salvos de tantos obs-
táculos, não escapastes a vós mesmos (multa effugisti, te nondum).
Se esta 'Virtude a qual aspiramos é digna de inveja, não é porque
seja propriamente um bem-estar isento de todo vício, mas porque
isto engrandece a alma, prepara-a para o conhecimento das coisas
celestes e a torna digna de ser associada ao próprio Deus (dignum-
que efficit, qui in eonsortiu, Dei veniat). A plenitude e o cúmulo da
felicidade está em esmagar todo desejo mau, lançar-se aos céus e
penetrar nos recantos mais escondidos da natureza (petit altum, et
in interiorem naturae sinum venit) (Oeuvres completes de Séneque le
philosophe, p. 390).
11. A expressão exata é de fato aqui mundum cireumere
(ibid.).
12. Para desdenhar os pórticos, os tetos resplandecentes de
marfim, as florestas talhadas como jardim, os rios conduzidos a
atravessar palácios, é preciso ter abraçado o círculo do universo
(quam totum cireumeat mundum) e lançado do alto um olhar sobre
esse globo estreito (terrarum orbem super ne descipiens, angustum),
cuja maior parte está submersa, enquanto a parte que flutua, tór-
rida ou gelada, apresenta ao longe terríveis solidões (id., p. 390).
13. Cf. os primeiros parágrafos do prefácio à terceira parte das
Questões naturais, analisados por Foucault no final da primeira
hora desta aula.
14. Oeuvres cv1nplétes de Sénéque le philosophe, p. 391.
15. Uma alma voltada para a verdade, instruíçia acerca da-
quilo de que é preciso fugir e daquilo que se deve procurar, esti-
mando para as coisas o seu valor natural, abstração feita da opinião,
em comunicação com todo o universo e atenta em explorar todos
os seus segredos (aetus), controlando-se a si mesma tanto em suas
ações quanto em seus pensamentos [...], uma alma assim se iden-
tifica com a 'Virtude (Lettres à Lucilius, i:. lI, livro VII, carta 66, 6,
pp.116-7).
16.ld., carta 65, 16 (p. 111).
17.ld., carta 65,17 (p. 112). O começo traz exatamente: As-
sim como os artistas, após um trabalho delicado que absorve sua
atenção e cansa sua vista, deixam seu ateliê de luz fraca e precá-
ria, chegando a um lugar qualquer consagrado ao lazer público
onde podem regozijar seus olhos a céu aberto, assim a alma...
18. O De brevitate vitae tem por destinatário um certo Pauli-
nus, parente próximo sem dú'Vida de Pompéia Paulina, que era a
mulher de Sêneca.
187. ..
350 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
19. A praefectura annonae instituída por Augusto supunha a
vigilância das entradas de impostos em espécie, constituídos pelas
colheitas de grãos.
20. Pensa que, cuidar para que o trigo, sem ser danificado
pela fraude ou negligência dos que o transportam, seja derrama-
do nos celeiros, não umedeça para que em seguida não se estra-
gue nem fermente, que sua medida e peso sejam exatos, é a mes-
ma coisa que aproximar-se dos estudos sagrados e sublimes para
saber o que é a essência de Deus, seu prazer (quae materia sit dei,
quae voJuptas), sua condição, sua forma [...]' Queres tu deixar o
solo para voltar teu espírito e teus olhares para estas belezas? (vis
tu relicto solo mente ad ista respicere) (De la brieveté de Ia vie, XIX, 1,
trad. Ir. A. Bourgery, ed. citada, pp. 75-6).
21. Platon, Phédre, 247d, trad. L. Robin, ed. citada, p. 38.
22. Em Sénéque ou la Conscience de l'Empire (op. cit., pp. 266-9),
p. Grimal escreve que esse primeiro texto teria sido redigido entre
o outono ou o inverno de 39 e a primavera de 40.
23. Alusão ao mito de Er, que conclui .$. República de Platão
(livro X, 614a-620c), e mais particularmente à passagem (618a-d)
sobre a escolha proposta de existências a serem vividas (in Platon,
Oeuvres complétes, t.VIl-2, trad. Ir. E. Chambry, ed. citada, pp. 119-20).
24. Consolation à Marcia (trad. fr. E. Regnault), in Oeuvres com-
plétes de Sénéque le philosophe, parágrafo 18, pp. 115-6.
,
.........------------
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~.
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982
Primeira hora
A modalização espiritual do saber em Marco Aurélio: o
trabalho de análise das representações; definir e descrever; ver
enomear; avaliar eprovar; aceder àgrandeza de alma. - Exem-
plos de exercícios espirituais em Epicteto. - Exegese cristã e aná-
lise estóica das representações. - Retorno aMarco Aurélio: exer-
cícios de decomposição do objeto no tempo; exercícios de análise
do objeto em seus constituintes materiais; exercícios de descrição
redutora do objeto. - Estrutura conceitual do saber espiritual. -
A figura de Fausto.
[...j O problema posto na última vez foi o seguinte: que
lugar ocupa o saber do mundo no tema e no preceito geral
da conversão a si? Tentei mostrar-lhes que, no tema geral da
conversão a si, o preceito particular voltar o olhar para si
mesmo não havia dado lugar a uma desqualificação do sa-
ber do mundo. Também não havia dado lugar a um conhe-
cimento de si enterrdido como investigação e decifração da
interioridade, do mundo interior. Antes porém, o princípio
(voltar o olhar para si mesmo), articulado pela dupla ne-
cessidade de se converter a si e de conhecer o mundo, ha-
via dado lugar a algo que se poderia chamar de modalidade
espiritual, de espiritualização do saber do mundo. Como lem-
bramas, tentei mostrar-lhes de que modo isto acontecia em
Sêneca, com aquela figura bem caract~rística, em certo sen-
tido próxima ao que se encontra em Platão e, entretanto, creio
eu, muito diferente em sua estrutura, em sua dinâmica e em
/ sua finalidade: era a figura do sujeito que recua, recua até O
ponto culminante do mundo, ao topo do mundo, de onde
se lhe abre uma visão do alto sobre o mundo, visão do alto
que, de um lado, O faz penetrar no segredo mais íntimo da
natureza (in interiorem nature sinum venit111
) e, de outro, lhe
penmite ao mesmo tempo tomar a medida ínfima desse pon-
188. ..
352 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
to do espaço e desse instante do tempo em que ele está. É
isto, parece-me, que encontramos em Sêneca. Gostaria ago-
ra de estudar esta mesma modalização espiritual do saber em
outro texto, também estóico, mais tardio: o de Marco Aurélio.
Nos Penamentos de Marco Aurélio, creio realmente que
encontramos uma figura do saber espiritual que, em certo
sentido, é correlata àquela que se encontra em Sêneca e ao
mesmo tempo inversa ou simetricamente inversa. Parece-me,
com efeito, que encontramos em Marco Aurélio uma figura
do saber espiritual que não consiste, para o sujeito, em to-
mar distância em relação ao lugar em que ele está no mun-
do, para apreender este mesmo mundo em sua globalidade,
mundo no qual ele próprio se acha situado. A figura que en-
contramos em Marco Aurélio consiste, antes, em defmir um
certo movimento do sujeito que, partindo do ponto em que
está no mundo, entranha-se em seu interior, ou em todo caso
debruça-se sobre ele, até em seus mínimos detalhes, como
que para lançar um olhar de míope sobre o mais ínfimo
grão das coisas. Esta figura do sujeito que se debruça no in-
terior das coisas para delas apreender o mais fino grão, en-
contra-se formulada em vários textos de Marco Aurélio. Um
dos mais simples, dos mais esquemáticos, encontramos no
livroVI: Olha para o interior (éso blépe). De l'enhuma coi-
sa deve escapar nem a qualidade (poiótes) nem dvalor (axia)'-
Trata-se em suma, se quisermos, da '-1são infinitesimal do
sujeito que se debruça sobre as coisas. E esta figura que gos-
taria de analisar na primeira hora de hoje. Tomarei um texto
que, a meu ver, é o mais detalhado quanto a este procedi-
mento e quanto a esta figura espiritual do saber. Este texto
se encontra no livro lI!. Vou lê-lo aqui quase integralmente.
Usarei a tradução Budé, que é uma velha tradução acerca da
qual buscarei dizer duas ou três coisas: Aos preceitos su-
pracitados que um outro ainda se acrescente. E este outro
princípio que se deve acrescentar aos preceitos supracita-
dO'i.,é: Sempre definir e descrever o objeto cuja imagem
(phantasia) se apresente ao espirito Portanto, definir e des-
crever este objeto cuja imagem se apresenta ao espíritode
.........------------
•
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)
..L
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 353
,rmodo que o vejamos distintamente, tal qual ele é na essên-
da, a nu, por inteiro, sob todas as suas faces; e dizer para si
mesmo seu nome e o nome dos elementos de que ele foi
composto e nos quais se resolverá. Com efeito, nada é tão
capaz de nos tornar a alma grande quanto poder identificar
com métodó e verdade cada um dos objetos que se apresen-
tam na vida e vê-los sempre de modo tal que consideremos,
ao mesmo tempo, a que espécie de universo cada um deles
confere utilidade, qual seu valor em relação ao conjunto e
qual seu valor em relação ao homem, este cidadão da mais
eminente dentre as cidades, em relação à qual as outras ci-
dades são como suas casas; o que é, de quais elementos se
compõe, quanto tempo deve naturalmente durar, este objeto
que causa esta imagem em mim, e qual é a virtude de que
necessito em relação a ele, como por exemplo: doçura, co-
ragem, sinceridade, boa-fé, simplicidade, abstinência, etcY'
Se quisermos, retomaremos um pouco este texto. Primeira
frase: Aos preceitos supracitados que um outro ainda se
acrescente. O termo grego é na realidade parastémata. O pa-
rástema não é exatamente um preceito. Não é exatamente a
formulação de alguma coisa a ser feita. Parástema é alguma
,coisa que está ali, qtre'se deve ter em vista, que se'deve guar-
dar sempre sob os olhos: tanto enunciado de uma verdade
fundamental quanto princípio fundador de uma conduta.
[Encontramos pois1esta articulação, ou antes esta não-dis-
sociação de coisas que são para nós tão diferentes: óprincí-·
pio de verdade e a regra de condutá; tal dissociação, como
sabemos, não existe ou não existe de uma maneira sistemá-
tica, regrada, constante no pensamento grego. Parástema, por-
tanto, é alguma coisa ou coisas que devemos ter no espírito
e guardar sob os olhos. Quais são os parastémata aos quais
/ Marco Aurélio faz alusão quando diz: Aos parastémata su-
pracitados que um outro ainda se acrescente? Os supraci-
tados parástemata são três. Seguramente nós os encontramos
nos parágrafos precedentes. Um conceme àquilo que deve-
mos considerar como bem: o que é o bem para o sujeito?4
O segundo dos parastémata conceme à nossa liberdade e ao
fato de que tudo para nós depende, na realidade, de nossa
~
189. ..
354 A HERMEN~I1TICA DO SUJEITO
própria faculdade de opinar. Nada pode reduzir nem domi-
nar esta faculdade de opinar. Somos sempre livres para opi-
nar como quisermos5
. Terceiro (terceiro dos parastémata), é
o fato de que não há, no fundo, para o sujeito, senão uma ins-
tância de realidade, e a única instância de realidade que
existe para o sujeito é o próprio instante: o instante infinita-
mente pequeno que constitui o presente, antes do qual nada
mais existe e após o qual tudo ainda é incert06 Portanto, os
três parastémata: definição do bem para o sujeito; definição
da liberdade para o sujeito; definição do real para o sujeito.
Conseqüentemente, o parágrafo 11 vai acrescentar um outro
a estes três princípios. De fato, o princípio que vem se jun-
tar aos três outros não é da mesma ordem nem exatamente
do mesmo nível. Há pouco eram três princípios, e agora o
que se desenvolverá será antes uma prescrição, um esque-
ma, esquema de alguma coisa que é um exercício: exercício
espiritual que terá precisamente por papel e função manter
sempre no espírito as coisas que devemos ter no espírito -
a saber: a definição do bem, a definição da liberdade e a de-
finição do real - e, ao mesmo tempo em que este exercício
deve sempre no-los lembrar e reatualizar, deve nos permitir
vinculá-los entre si e, por conseguinte, definir aquilo que,
em função da liberdade do sujeito, deve, por esta liberda-
de, ser reconhecido como bem em nosso úniCo elemento de
realidade, a saber, o presente. Pois bem, é este o objetivo pre-
tendido neste outro parástema, que é efetivamente um pro-
grama de exercícios e não mais um princípio a se ter sob os
olhos. Não estou inventando a idéia de que, em Marco Au-
rélio, muitos elementos dos textos são esquemas de exercí-
cio. Eu não a teria encontrado sozinho. No livro de Hadot
sobre os exercícios espirituais na Antiguidade, temos um ca-
pítulo notável sobre os exercícios espirituais em Marco Au-
rélio? Em todo caso, é certo que neste parágrafo trata-se de
um exercício espiritual que se refere a princípios que deve-
m9..S t~r no espírito e vincular entre si. Como este exercício
vai se desenvolver e em que ele consiste? Retomemo-lo ele-
mento por elemento.
I'-
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1
-- ~
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/
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 355
';.4 Primeiro momento: definir e descrever sempre o obje-
to cuja imagem se apresenta ao espírito. A expressão grega
para definir é a seguinte: poiefsthai hóron. Hóros é a delimi-
tação, o limite, a fronteira. Poiefsthai hóron é, se quisermos,
traçar a fronteira. De fato, esta expressão poiefsthai hóron
tem duas significações, Ela tem uma significação técnica na
ordem da filosofia, da lógica e da gramática. É, simplesmen-
te, estabelecer, dar uma definição adequada. Em segundo
lugar, poiefsthai hóron tem também um sentido quase técni-
co, que pertence mais ao vocabulário corrente, porém que é
razoavelmente preciso, e que quer dizer fixar o valor e o pre-
ço de alguma coisa. Por conseqüência, o exercício espiritual
deve consistir em dar definições, em dar uma definição em
termos de lógica ou em termos de semântica; e depois, ao
mesmo tempo, fixar o valor de uma coisa, Definir e /I descre-
ver. A expressão grega paradescrever é hypographén poiefs-
thai. E certamente, tanto aqui quanto no vocabulário filosófi-
co e gramatical da época, hypographé se opõe a hóros'. Hóros
é, pois, a definição. Hypographé é a descrição, isto é, o per-
curso mais ou menos detalhado do conteúdo intuitivo da
forma e dos element~ das coisas. O exercício espiritual que
está em questão neste parágrafo consistirá, portanto, no se-
guinte: do que daremos descrição e definição? Pois bem, diz
o texto, de tudo que se apresenta ao espírito. O objeto cuja
imagem se apresenta ao espírito, tudo que vem ao espírito
(hypopíptantos) deve ser de algum modo vigiado e deve servir
de pretexto, de ocasião, de objeto para um trabalho de defi-
nição e de descrição. A idéia de que é preciso [intervir] no
fluxo das representações tais como se nos dão, tais como se
nos chegam, tais como desfilam no espírito, é uma idéia que
encontramos correntemente na temática das experiências
espirituais da Antiguidade. Nos estóicos em particular, era
um tema recorrente: filtrar o fluxo da representação, tomá-la
tal como acontece, tal como se dá por ocasião dos pensa-
mentos que se apresentam espontaneamente ao espírito,
ou por ocasião de tudo que pode vir ao campo da percepção,
por ocasião da vida que se leva, dos encontros que se tem,
190. •
356 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
dos objetos que se vêem, etc.; tomar, portanto, o fluxo da re-
presentação e dar aeste fluxo espontâneo e involuntário uma
atenção voluntária que terá por função determinar o con-
teúdo objetivo desta representaçã09
Tem-se aí uma fórmula
interessante e que se pode comparar porque permite uma
oposição simples, clara e ainda assim fundamental, entre o
que se pode chamar método intelectual e exercício espiritual.
O exercício espiritual- e isto, encontramos na Antigui-
dade, na Idade Média certamente, no Renascimento, no sé-
culo XVII; [seria necessário] ver se reencontramos no século
XX - consiste precisamente em deixar se desenrolar espon-
taneamente o fio e o fluxo das representações. Movimento
livre da representação e trabalho sobre este movimento li-
vre: é isto o exercício espiritual sobre a representação. O mé-
todo intelectualconsistirá, ao con~ário, em se dar uma de-
finição voluntária e sistemática da lei de sucessão das re-
presentações e só aceitá-las no espírito sob a condição de
que tenham entre si um liame suficientemente forte, obri-
gatório e necessário, para que sejamos levados logicamente,
indubitavelmente, sem hesitação, a passar da primeira à se-
gunda. O caminho cartesiano é da ordem do método inte-
lectuaPO Esta análise, esta atenção preferencialmente dada
ao fluxo da representação é tipicamente da oq:lem do exer-
cício espiritual. A passagem do exercício espirilual ao méto-
do intelectual é evidentemente muito clara em Descartes. E
penso que não se pode compreender a meticulosidade com
a qual ele define seu método intelectual, se não se tiver bem
presente no espírito que aquilo a que ele visa negativamen-
te, aquilo de que quer se distinguir e se separar, [são] preci-
samente o~ métodos de exercício espiritual que eram cor-
rentemente praticados no cristianismo e que derivavam dos
exercícios espirituais da Antiguidade, particularmente do es-
toicismo. Aí está, pois, o tema geral deste exercício: um flu-
xo de representações sobre o qual se exercerá um trabalho
de análise, de definição e de descrição.
~osto este tema, esta 1/ captagem, por assim dizer, da
representação tal qual ela se dá, para dela apreender o con-
',.
,.
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.
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 357
teúdo objetivo, se desenvolverá agora em dois exercícios que
são especificados, e que efetivamente darão seu valor espi-
ritual a este trabalho puramente intelectual. Estes dois exer-
cícios, que se ramificam a partir deste tema geral, são o que
poderíamos chamar de meditação eidética e de meditação
onomástica. Enfim, vejamos o que quero dizer com estes es-
tranhos termos. Marco Aurélio disse que é necessário defi-
nir e descrever o objE;1o cuja imagem se apresenta ao espí-
rito de modo que o vejamos distintamente - tal qual ele é
na essência, a nu, por inteiro, sob todas as suas faces - e di-
zer para si mesmo seu nome e o nome dos elementos de
que ele foi composto e nos quais se resolverá. Portanto, pri-
meiro: de modo que o vejamos distintamente, tal qual ele
é na essência, a nu, por inteiro e sob todas as suas faces.
Trata-se, pois, de contemplar o objeto tal qual ele é na es-
sência (hopofón esti kafousían). E é em aposição e em co-
mentário a esta injunção geral (contemplar o objeto repre-
sentado tal qual ele é na sua essência) - em aposição a
isto, especifiquemos - que a frase se desenvolve, afirmando
ser preciso conhecer o objeto tal qual ele é representado:
gymnón, isto é, a nu, sêm nada mais, livre de tudo aquilo
que pode mascará-lo e cercá-lo; em segundo lugar, hó/on,
isto é, por inteiro; em terceiro lugar, di'hólon díereménos,
distinguindo seus elementos constituintes: É tudo isto - este
olhar sobre o objeto representado, olhar que deve fazê-lo
aparecer em estado nu, em sua totalidade e em seus ele-
mentos - que Marco Aurélio chama de b/épein. Quer dizer:
olhar bem, contemplar bem, fixar os olhos em, fazer de tal
modo que nada lhe escape, hem do objeto em sua Singula-
ridade, destacado de tudo que o cerca, em estado nu, [nem]
/ em sua totalidade e em seus elementos particulares. Ao mes-
mo tempo em que fazemos este trabalho, que é pois da or-
dem do olhar, da ordem da contemplação da coisa, é neces-
sário dizer para si mesmo seu nome e o nome dos elementos
dos quais ele foi composto e nos quais se resolverá. É esta a
outra ramificação do exercício. Dizer a si mesmo (o texto é
suficientemente explícito: légein par'heautô) significa não
191. ..
•
358 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
apenas conhecer, lembrar o nome da coisa e dos seus dife-
rentes elementos, mas dizê-lo em si mesmo, dizê-lo para si
mesmo. Significa que se trata justamente de uma enuncia-
ção, certamente interior, mas perfeitamente explícita. É pre-
ciso nomear, é preciso falar a si mesmo, é preciso dizer a si
mesmo. Absolutamente importante neste exercício é a for-
mulação real - ainda que interior - da palavra, do nome, ou
antes, do nome da coisa e do nome das coisas de que a pri-
meira coisa é composta. E este exercício de verbalização é
evidentemente muito importante para que, no espírito, se
dê a fixação da coisa, de seus eleme)1tos e, conseqüente-
mente, a reatualização, a partir destes nomes, de todo o sis- .
tema de valores do qual falaremos mais adiante. Formular
o nome das coisas, para fins de memorizaçã? Em segundo
lugar, vemos que este exercício de memorização dos nomes
deve ser simultâneo, diretamente articulado com o exercí-
cio de olhar. É necessário ver e nomear. Olhar e memória
devem estar ligados um ao outro em um único movimento
do espírito que, por um lado, dirige [o1olhar para as coisas
€, por outro, reativa na memória o nome destas diferentes
coisas. Em terceiro lugar, é preciso notar que - sempre a
respeito deste exercício de duas façes, exercício parcialmen-
te duplo - graças a este duplo exercício, a e.. s.s~ncia da coisa,
de certo modo, se desdobrará inteiramente.. Com efeito, pelo
olhar vemos a própria coisa - em estado nu, em sua totali-
dade' em suas partes -, mas nomeando a própria coisa e
nomeando seus diferentes elementos vemos, e o texto o diz
claramente, de quais elementos o objeto é composto e em
quais elementos ele se resolverá. Esta é, com efeito, a tercei'
ra funçãoxIesta dublagem do olhar pela nomeação. Através
deste exerácio, pode-se reconhecer não somente do que o
objeto é atualmente composto, mas qual será seu futuro, no
que irá resolver-se, quando, como, em quais condições irá
se desfazer e se solucionar. Apreendemos pois, por este
exercício, a plenitude complexa da realidade essencij'l do
objMo· e a fragilidade de sua existência no tempo. E isto
quanto à análise do objeto em sua realidade.
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AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 359
A segunda fase do exercício consistirá em considerar
este objeto, não mais na realidade tal qual ela se dá - na rea-
lidade de sua composição, na realidade de sua complexidade
atual e de sua fragilidade temporal-, mas consistirá em ten-
tar medir seu valor. Com efeito, nada é tão capaz de nos
tomar a alma grande quanto poder identificar com método e
verdade cada um dos objetos que se apresentam na vida e
vê-los sempre a fim de considerarmos ao mesmo tempo a
que espécie de universo cada um confere utilidade, qual seu
valor em relação ao conjunto e qual seu valor em relação ao
homem, este cidadão da mais eminente dentre as cidades,
em relação à qual as outras cidades são como suas casas.
Nesta passagem, Marco Aurélio lembra qual deve ser a meta
deste exercício analítico, desta meditação eidética e ono-
mástica. A meta deste exercício, a finalidade. que persegui-
mos ao praticá-lo, é tomar a alma grande: Com efeito,
nada é tão capaz de nos tomar a alma grande. Na realida-
de, com nos tornar a alma grande o texto traduz I'megalo-
phrosyne (uma espécie de grandeza da alma). De fato, trata-
se para Marco Aurélio do estado no qual o sujeito se reco-
nhece independente çlos laços, das servidões as quais suas
opiniões foram submetidas e,em seqüência, de suas paixões.
Tomar a alma grande é liberá-la de toda esta trama, de todo
este tecido que a envolve, fixa, delimita, permitindo-lhe, por
conseguinte, encontrar sua verdadeira natureza, e ao mes-
mo tempo sua verdadeira destinação, isto é, sua adequação
à razão geral do mundo. Por este exercício, a alma encontra
sua verdadeira grandeza, grandeza que é a do princípio ra-
cional que organiza o mundo. A liberdade que se traduz ao
mesmo tempo pela indiferença quanto às coisas e pela tran-
qüilidade em relação a todos os acontecimentos, é esta a
grandeza assegurada pelo exercício. Outros textos o confir-
mam muito claramente. Por exemplo, no livro XI, é dito que
a alma adiaphorései (será indiferente) se considerar cada
coisa diereménos kai holikôs11l
'. O que repete exatamente os
termos que aqui encontramos: considerando cada coisa
diereménos (analiticamente, parte por parte) kai holikôs (e na
192. ..
360 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
sua totalidade), a alma adquire então a indiferença, aquela
indiferença soberana da sua tranqüilidade e da sua adequa-
ção à razão divina. Tal é, pois, a meta deste exercício.
Ora, esta meta é atingida quando nos servimos do exa-
me da coisa, como acabo de lhes descrever, para pô-la à
prova - e aqui é preciso nos referirmos novamente ao' texto
de Marco Aurélio. A palavra empregada é elénkhein12 Este
exame analítico (que apreende a coisa em estado nu, em
sua totalidade, em suas partes) assegurará à alma a grandeza
para a qual ela deve tender, desde que permita elénkhein, isto
é, pôr à prova a coisa. A palavra elénkhein tem vários senti-
dos13 Na prática filosófica, no vocabulário da dialética, elén-
khein é refutar. Na prática judiciária, elénkhein é acusar, fazer
uma acusação contra alguém. E no vocabulário corrente, o
da moral corrente, simplesmente repreender. Este exame ana-
1ítico terá, pois, valor de liberação para a alma, asseguran-
do-lhe as autênticas dimensões de sua grandeza, se ele tiver
por função fazer passar o objeto - quer representado, quer
apreendido em sua realidade objetiva, mediante a descrição
e a definição - pelo fio da suspeita, da acusação possível, das
repreensões morais, das refutações intelectuais que dissi-
pam as ilusões, etc. Trata-se, em suma, de testar este objeto.
Em que consistirá esta prova, este teste do objeto? Consisti-
rá em examinar, diz Marco Aurélio, qual é a utilidade (khreía)
que tem este objeto em relação a qual universo, a qual kós-
mos. Trata-se, pois, de recolocar o objeto - tal como o ve-
mos, tal como foi desenhado em sua nudez, apreendido em
sua totalidade, analisado em suas partes - no interior do
kósmos ao qual ele pertence, para examinar qual utilidade
ele tem, quellugar, qual função aí exerce. É isto que Marco
Aurélio especifica no restante da frase que li há pouco. Ele
[pergunta] qual valor (axía) tem este objeto para o todo; e
em segundo lugar qual valor tem ele para o homem, o ho-
mem enquanto este cidadão da mais eminente dentre as
cidades, em relação à qual as outras cidades são como suas
casas'!. Esta frase um pouco enigmática é, creio, fácil de
explicaL Trata-se de apreender, pois, o valor do objeto para
r
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AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 361
o kósmos, assim como o seu valor para o homem enquanto
cidadão do mundo, isto é, enquanto um ser que, pela natu-
reza, na ordem natural, em função da Providência divina,
está situado no interior deste kósmos. Utilidade, se quiser-
mos, deste objeto para o homem enquanto cidadão do mun-
do em geral, mas também enquanto cidadãodestas cidades
particulares - e com isto é preciso entender não meramente
as cidades, como também as diferentes formas de comuni-
dade' de pertencimento social, etc., inclusive a família -, ci-
dades que são como casas da grande cidade do mundo.
Este vinculo bem conhecido, como sabemos, entre as dife-
rentes formas de comunidades sociais através da grande co-
munidade do gênero humano, para os estóicos, é invocado
aqui para mostrar que o exame da coisa deve ao mesmo tem-
po incidir sobre a relação desta coisa com o homem enquan-
to cidadão, mas igualmente, nesta medida e no quadro ge-
ral desta cidadania do mundo, definir a utilidill!l.e do objeto
para o homem enquanto cidadão de determinado país, per-
tencente a determinada cidade, pertencente a determinada
comunidade, pai de família, etc. E graças a isto poderemos
estabelecer qual a virtude de que o sujeito tem necessidade
em relação a estas coisas. No momento em que estas coisas
apresentam-se ao espírito e em que a phantasía as oferece à
percepção do sujeito, deve ele - em relação às coisas e em
função do conteúdo da representação - recorrer a uma virtu-
de como a doçura, Ou a uma virtude como a coragem, ou a
uma virtude como a sinceridade, ou como a boa-fé ou como
a enkráteia (domínio de si)? Eis o tipo de exercício que Mar-
co Aurélio apresenta e do qual dá vários outros exemplos
em outras passagens.
Poderíamos encontrar exercícios deste gênero em mui-
/ tos estóicos, sob uma forma mais ou menos sistematizada,
mais ou menos desenvolvida. A idéia de que o fluxo da re-
presentação deve estar submetido a uma vigilância ao mesmo
tempo contínua e minuciosa é um tema que já encontra-
mos freqüentemente desenvolvido em Epicteto. Repetidas
vezes, há em Epicteto esquemas de exercícios deste gênero15,
Instituto de ?s1co!ogia - UFRGS
Biblioteca ---:-- ~
193. ..
•
362 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
em particular sob duas formas. Uma é a forma do exercício-
caminhada!6 Epicteto, por exemplo, recomenda que saia-
mos de tempos em tempos, que caminhemos, que olhemos
o que se passa ao nosso redor (as coisas, as pessoas, os acon-
tecimentos' etc.) e que nos exercitemos em relação a todas
estas diferentes representações que o mundo nos oferece.
Exercitemo-nos para definir a respeito de cada uma, em que
ela consiste, em que medida pode agir sobre nós, se depen-
demos dela ou não, se ela depende ou não de nós, etc. E a
partir deste exame do conteúdo da representação, [trata-se]
de definir a atitude que tomaremos em relação a ela. Ele pro-
põe também o exercício que poderíamos chamar de exercí-
cio-memória. Lembrar-se de um acontecimento - um acon-
tecimento histórico ou que se tenha passado de maneira
mais ou menos recente em nossa própria vida - e depois, a
seu respeito, perguntar: em que consistiu este aconteci-
mento' qual sua natureza, que forma de ação ele pode ter
sobre mim, em que medida dele dependo, em que medida
estou livre dele, que julgamento devo dele fazer e qual ati-
tude ter em relação a ele? °exercício que lhes citei, tomando
o exemplo de Marco Aurélio, é pois um exercício freqüente,
regular na prática da espiritualidade antiga, e em particular
da espiritualidade estóica.
Como sabemos, encontraremos este tipo de exercício
de modo muito insistente, muito constante, na espirituali-
dade cristã. Temos exemplos na literatura monástica dos sé-
culos N-V, particularmente em Cassiano. Acho queno ano
passado, Ou há dois anos, já não sei mais17, ao começar a es-
tudar um pouco estes assuntos, talvez alguns se lembrem,
citei-Ihes'textos de Cassiano: o texto sobre o moinho, tam-
bém o texto sobre a mesa do cambista. Cassiano dizia que
o espírito é algo que está sempre em movimento. A cada
instante, novos objetos se lhe apresentam, novas imagens
se lhe oferecem, e não podemos deixar que estas represen-
tações entrem livremente - como em um moinho, diríamos,
nãN tassiano quem o diz -, e é preciso que a cada instante
sejamos suficientemente vigilantes para que, diante deste
r
/
~
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 363
fluxo das representações que se nos oferecem, decidamos o
que é preciso fazer, o que devemos aceitar e o que devemos
recusar. Assim, diz ele, o moleiro, quando vê o grão passar
diante de si, separa o grão que é bom e não deixa passar na
moenda o grão ruim1S, Assim também o cambista, o ban-
queiro, a quem levamos moedas para trocar por outras, não
aceita quaisquer moedas. Ele verifica, confere cada uma de-
las, examina-as todas e só aceitará as que considerar autên-
ticas19
, Em um caso como no outro, como vemos, trata-se
realmente de uma prova, de algo como aquele élenkhos de
que lhes falei há pouco e que Marco Aurélio recomenda que
façamos a todo instante. Portanto, ao que me parece, temos
uma forma de exercício bastante semelhante. Considerado
o fluxo, necessariamente móvel, variável e cambiante das
representações, assumir, em relação a elas, uma atitude de
vigilância, uma atitude de desconfiança. E procurar, a pro-
pósito de cada uma delas, verificar e provar. Entretanto, o
que gostaria de realçar é a diferença, certamente profunda,
entre ° exercício estóico do exame das representações que
encontramos muito desenvolvido em Marco Aurélio - e que,
repito, aparece em toda a tradição estóica, ao menos na tar-
dia, particularmente em Epicteto - e o que encontraremos
mais tarde nos cristãos, aparentemente sob a forma de um
exame das representações. Entre os cristãos, o problema de
modo algum consiste em estudar o conteúdo objetivo da
representação._O que é analisado, por Cassiano e por todos
aqueles em quem ele se inspira, também por aqueles a quem
ele inspirará, é a própria representação, a representação em
sua realidade psíquica. O problema para Cassiano não está
em saber qual a natureza do objeto que é representado. °pro-
blema está em saber qual o grau de pureza da própria re-
presentação enquanto idéia, enquanto imagem. O problema
consiste essencialmente em saber se a idéia está ou não mis-
turada com concupiscência, se é mesmo a representação do
mundo exterior ou uma simples ilusão. E através desta ques:
tão, que incide sobre a natureza, sobre a própria materiali-
dade desta idéia, o que se coloca é a questão da origem. A
~
194. ..
364 A HERMENfuTICA DO SUJEITO
idéia que tenho no espírito me vem de Deus - e seria por
isto necessariamente pura? Vem de Satã - e seria por isto
impura? Ou ainda, vem de mim, e neste caso em que me-
dida se pode dizer que é pura, em que medida se pode dizer
que é impura? Conseqüentemente, questão sobre a própria
pureza da representação em sua natureza de representação;
e em segundo lugar questão sobre sua origem.
Ora, no caso de Marco Aurélio não é o que se passa, ape-
sar de uma certa semelhança que veremos em seguida. O
texto que lhes {ihá pouco prossegue, çom efeito, com a se-
guinte afirmação de Marco Aurélio: Por isto [portanto,
após ter dito que, a propósito de cada representação, é pre-
ciso examinar aquilo que ela representa e, conseqüente-
mente, as virtudes que se deve opor ou praticar com relação
a esta coisa; M. F.] é necessário dizer a respeito de cada um
deles [cada um dos objetos que são dados à representação;
M. F.]: isto me vem de Deus; aquilo, do encadeamento, da
trama serrada dos acont~cimentos e do encontro assim pro-
duúdo por c0Dcidência e acaso; e-isto ainda me vem de um
ser de minha estirpe, meu parente e meu sócio, etc.20Ve-
mos que Marco Aurélio também coloca a questão sobre a
origem. Não porém a questão sobre a origem da represen-
tação. Ele não se pergunta se a representação em si mesma
vem de mim, se me foi sugerida por Deus ou insinuada por
Satã. A questão sobre a origem por ele colocada é sobre a
origem da coisa representada: pertence ela à ordem neces-
sária do mundo, vem diretamente de Deus, de sua Provi-
dência e de sua benevolência para comigo, ou ainda, vem
de alguém que faz parte da minha sociedade e do gênero
humanoi' Vemos, portanto, que o essencial da análise dos
estóicos, aqui apresentada em Marco Aurélio, incide sobre·
a análise do conteúdo representativo, ao passo que o essen-
cial da meditação e do exercício espiritual cristão incidirá so-
bre a natureza e a origem do próprio pensamento. A questão
colocada por Marco Aurélio está endereçada ao mundo exte-
ri))r; a questão que será colocada por Cassiano está endere-
çada ao próprio pensamento, à sua natureza, à sua interio-
I ~
•
/
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 365
ridade. Em um caso realmente se tratará, também e sempre,
de conhecer o que é o mundo exterior: também e sempre, é
um saber sobre o mundo que é posto em prática em Marco
Aurélio e nos estóicos. No caso de Cassiano e de outros será
justamente uma decifração da interioridade, uma exegese
do sujeito por ele mesmo. Pois bem, nos Pensamentos de Mar-
co Aurélio há uma série de exercícios deste gênero. Encon-
tramos o mesmo princípio formulado na parte XII dos Pen-
samentos'!, em VIII, 1122
, em VIII, 1323
, etc.
Deixo de lado tudo isto. Gostaria agora de averiguar
como este princípio geral do exame do conteúdo represen-
tativo é efetivamente posto em prática por Marco Aurélio
em uma série de exercícios que têm, todos, uma função mo-
ral precisa e bem particular. [... *]. Primeiro, os exercícios de
decomposição do objeto no tempo; segundo, os exercícios
de decomposição do objeto nos seus elementos constituin-
tes; terceiro, os exercícios de descrição redutora, desqualifi-
cante. Primeiro, os exercícios de decomposição no tempo.
Encontramos um exemplo bastante claro disto no [livro XI].
Trata-se ali de notas musicais, ou ainda movimentos de dan-
ça, ou mesmo movimentos de pancrá,cio, esta espécie de gi-
nástica mais ou menos dançada24
. E este o exercício que
propõe Marco Aurélio. Diz ele: quando escutais uma música,
cantos melodiosos, cantos encantadores, quando vedes uma
dança graciosa ou movimentos de pancrácio, pois bem, ten-
tai não mais vê-los em seu conjunto, mas, na medida do
possível, dirigir uma atenção descontínua e analítica, de tal
maneira que possais distinguir em vossa percepção cada nota
das demais, e cada movimento dos demais25. Por que fazer
este exercício? Por que tentar desfazer-se deste movimento
de conjunto apresentado pela dança ou pela música, para
dele abstrair e isolar cada elemento em sua maior particu-
laridade, a fim de apreender a realidade do instante naqui-
.. Ouve-se apenas: .. o exercício geral cujo exemplo acabo de lhes
dar.
195. ..
•
366 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
lo que ela possa ter de absolutamente singular? O sentido
deste exercício é fornecido no início e no fim do parágrafo,
gúando Marco Aurélio diz: Um canto maravilhoso, uma
dança ou um pancrácio, tu os desprezarás se tu, etc. E ele dá
os conselhos que acabo de lhes [citar]. No final, retoma a
mesma idéia e o mesmo tema. Após ter explicado esta regra
de percepção descontínua, diz: Não esquece de ir assim às
partes das coisas e, pela análise (diairesis), chegar .assim a
desprezá-las26
. A palavra empregada no começo e no final
do texto (traduzida pordesprezar) é kataphronein. Kata-
phronein é exatamente: considerar de cima, olhar de cima
para baixo. E por que é preciso assim considerar as coisas,
de cima para baixo, a fim de desprezá-las? Éque, se olhamos
uma dança na continuidade de seus movimentos, se ouvi-
mos uma melodia em sua unidade, seremos tomados pela
beleza desta dança ou pelo charme desta melodia. Seremos
menos fortes que ela. Se quisermos ser mais fortes do que
a melodia ou a dança, se quisermos portanto sobrepujá-Ias
- isto é, manter nosso domínio em relação ao encantarnen-
to, à lisonja, ao prazer que suscita -, se quisermos guardar
esta superioridade, não sermos menos fortes (héttones) ljue o
conjunto desta melodia, resistir-lhe portanto e assegurar nos-
sa própria liberdade, haveremos de decompô-Ia instante
por instante, nota por nota, movimento por movimento. Isto
significa que, no momento em que fizermos atuar esta lei do
real- da qual tratamos há pouco ao começarmos, esta lei se-
gundo a qual só é real para o sujeito o que se dá no instan-
te presente -, então cada nota ou movimento aparecerá em
sua realidade. E sua realidade lhe mostrará que realmente
ela não passa de uma nota, de um movimento, sem poder
em si mesmo porque sem channe, sem sedução, sem lison-
ja. E desde logo, nos aperceberemos de que nenhum bem
existe nisto, nestas notas, nestes movimentos. E uma vez
que neles não existe nenhum bem, não há que buscá-los, não
há que nos deixar dominar por eles, não há que nos deixar
ser m'ais fracos que eles, e poderemos assegurar nosso do-
mínio e nossa superioridade. Vemos como o princípio do
,
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 367
presente enquanto instância do real, da lei de determinação
do bem e da garantia da lib,erdade do indivíduo, enfim o prin-
cípio [segundo O qual] o indivíduo deve garantir sua própria
liberdade em relação a tudo que o cerca, tudo isto assegu-
rado pelo exercício de pôr em descontinuidade movimentos
que são contínuos, instantes que se encadeiam uns aos ou-
tros. A lei da percepção instantânea é um exercício de libe-
ração garantindo ao sujeito que ele será sempre mais forte
do que cada elemento do real que lhe é apresentado. Para ilus-
trar isto há, em outro texto, uma bela imagem. Ele diz que
é preciso olhar as coisas em sua multiplicidade e desconti-
nuidade. Se quisermos amar um dos pardais que passam
ligeiros, ele já terá desaparecido aos nossos olhos. Pois bem,
vejamos as coisas não em sua completa unidade, mas em
sua dispersão, assim como está disperso um bando de par-
dais que voam no céu. Não nos enamoramos de um pardal
que passa no céu. Aí está, se quisermos, um exemplo de exer-
cício da descontinuidade temporal.
Esta passagem que acabei de ler sobre as notas musicais
e a dança termina, entretanto, de um modo que gostaria
ainda de comentar um pouco: Em suma, exceto pela virtu-
de e por aquilo que a ela se liga, não te esqueças de pene-
trar a fundo no detalhe das coisas a fim de chegar, por esta
análise, a desprezá-Ias. Aplica o mesmo procedimento a toda
a vida28. É preciso, diz ele, aplicar a toda a vida esta aná-
1ise da percepção das continuidades, da percepção analítica
das continuidades. Com isto quer dizer, não somente a todas
as coisas que podem nos cercar, mas que é preciso aplicá-Ia
também à nossa própria existência e a nós mesmos. Creio
ser preciso aproximar esta breve indicação (aplica o proce-
dimento a toda a vida) a uma série de outros textos que
/ encontramos nos Pensamentos. Por exemplo, em 11, 2, onde
Marco Aurélio diz: não se deve jamais esquecer que nosso
pneúma nada mais é que um sopro. Trata-se aí da redução
ao elemento material de que falaremos a seguir. Nosso pneú-
ma é um sopro, um sopro material. E ainda, diz ele, este so-
pro se renova a cada respiração. Cada vez que respiramos,
J
196. ..
•
368 A HERMEN~UTlCA DO SUlEITO
abandonamos um pouco do nosso pneúma e tomamos um
pouco de um outro pneúma, de tal sorte que o pneíima jamais
é o mesmo. Enquanto temos um pneúma, não somos jamais
o mesmo. E, conseqüentemente, não é nele que devemos fi-
xar nossa identidade. Ou ainda emVI, 15: A vida de cada
um de nós é algo comparável à evaporação do sangue e à as-
piração do ar. Com efeito, expiramos o ar que respiramos, e
isto a cada instante'O Portanto, o exercício de pôr em descon-
tinuidade que devemos aplicar às coisas, devemos também
aplicar a nós mesmos, à nossa própria vida. E ao aplicá-lo a
nós mesmos, nos apercebemos de que aquilo que cremos
ser a nossa identidade, ou aquilo onde imaginamos que de-
vamos colocá-la ou procurá-la, não garante nossa continui-
dade. Somos, pelo menos enquanto corpo, até mesmo en-
quanto pneuma, sempre algo de descontínuo em relação a
nosso ser. Não é aí que está nossa identidade. De fato, com
isto comento a frase que inicia o texto lido há pouco: Exce-
to pela virtude e por aquilo que a ela se ligá, não te esqueças
de penetrar a fundo no detalhe das coisas. Aplica o mesmo
procedimento a toda a vida31
O único elemento, afinal, em
cujo interior podemos encontrar, ou em cujo fundo pode-
mos estabelecer nossa identidade, é a virtude·e, como bem
sabemos, em função da doutrina estóica, a virtude é inde-
componível32
. Indecomponível pela simples razão de que a
virtude não é senão a unidade, a coerência, a força de coesão
da própria alma. Ela é sua não-dispersão. E também pela
simples razão de que a virtude escapa ao tempo: um.instan-
te de virtude vale a eternidade. Portanto, é nesta coesão da
alma indissociável, indivisível em elementos e que faz equi-
valer um ir1stante à eternidade, é aí e somente aí que pode-
remos encontrar nossa identidade. Este é, se quisermos, um
tipo de exercício de decomposição do real, em função do ins-
tante e da descontinuidade do tempo. . ...
Encontramos em Marco Aurélio outros exercícios, tam-
bém analíticos, desta feita porém, incidindo sobre a decom,
posiÇão·das coisas em seus elementos materiais. É, de certo,
mais simples. Encontramos, por exemplo emVI, 13 um tex~
/
......
AUlA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 369
to meditativo que afirma: o que é, no fundo, um prato bem
preparado de que gostamos e que comemos com tanto pra-
zer? Lembremo-nos bem que é o cadáver de um animal. É
um animal morto. O que é a toga que traz aquele famoso
laticlava33 tão cobiçado? Pois bem, não passa de lã e tintura.
9que é a lã? São pêlos, pêlos de ovelha. O que é a tintura?
E sangue, sangue de um molusco. O que é também, diz na
mesma passagem, a cópula (synousía)? Pois bem, a cópula
são nervos, nervos que se friccionam uns contra os outros.
Éum espasmo e depois um.pouco de excreção, nada mais34
•
Trata-se aqui, através destas representações, de reentontrar
os elementos das coisas. Mas o texto no qual Marco Auré-
lio comenta esta decomposição das coisas em seus elementos
é bastante interessante, porque pergunta: ·aplicando este
método, ao relembrar que a cópula é apenas fricção de ner-
vos com espasmos e excreções, que a toga é pêlo de ovelha
tingido pelo sangue púrpura de um molusco, pois bem, ao
pensar em tudo isto, o que fazemos? Tocamos, tocamos as
próprias coisas, atingimos seu cerne e as atravessamos por
inteiro, de maneira tal que possamos ver o que elas são.
Graças a isto poderemos, diz ele, desnudá-las (apagymnaíin:
desnudar as coisas) e ver de cima (katharân), ver de cima para
baixo seu eutéleian (isto é, seu pequeno valor, seu baixo pre-
ço). E assim poderemos nos desprender da bazófia (typhas),
do feitiçb com que elas arriscam nos captar e nos cativar35
.
O exercício também aqui tem o mesmo objetivo: trata-se de
estabelecer a liberdade do sujeito por este olhar de cima para
baixo que faremos incidir sobre as coisas, pennitindo-nos
atravessá-las de lado a lado, atingi-las em seu cerne e com
isto mostrar-nos o pouco que valem. Nesta passagem, como
na precedente, Marco Aurélio acrescenta: não basta aplicar
este método às próprias coisas, devemos também aplicá-lo
à.possa própria vida e a nós mesmos. Uma série de exercí-
cios também nos remete a isto. Por exemplo, em 11, 2, quando
.Marco Aurélio diz: Quem sou eu, o que sou? Pois bem, sou
de carne, sou de sopro, e sou um princípio racional36
. En-
qúanto carne, o que sou? Sou de lama, sou de sangue, de os-
~
197. ..
370 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
50S, de nervos, de veias, de artérias. Enquanto sopro, a cada
instante expulso uma parte de meu sopro para aspirar uma
outra. O que resta é o princípio racional, o princípio diretor,
e é este que devemos liberar. Temos neste exercício a combi-
nação de diferentes elementos, de diferentes exercícios de
que lhes falei. Da carne, fazemos a análise material por seus
elementos componentes: lama, sangue, água, nervos, etc. Do
sopro, fazemos a análise temporal: sua descontinuidade e
sua perpétua renovação. E finalmente resta a razão, o princí-
pio racional, em [que] podemos encontrar nossa identidade.
Em IV, 4, encontramos também o mesmo tipo de análise: o
que somos? Somos um elemento terrestre, um elemento lí-
quido, calpr, fogo, um sopro, e também somos uma inteli-
gência37
. E isto quanto aos exercícios de análise elementar.
Enfim, o terceiro tipo de exercício, sobre o qual passarei
rapidamente, posto que muito simples, é a redução descri-
tiva' ou a descrição com finalidade de desqualificação. Este
exercício consiste em se proporcionar, com a maior exatidão
e o máximo de detalhes possível, uma representação que
tenha'o papel de reduzir a coisa tal como ela se apresenta,
reduzi-la relativamente às aparências de que se cerca, aos
ornamentos que a acompanham e aos efeitos de sedução
ou de medo a que ela pode induzir. Assim, quando temos
sob os olhos um homem poderoso, arrogante, que quer os-
tentar seu poder, que quer nos impressionar com sua supe-
rioridade ou nos amedrontar com sua cólera, o que é preciso
fazer? Imagina o que faz quando come, dorme, copula, de-
feca. Então, ele pode sempre ensoberbar-se.Vimos há pouco
a que mestre este homem estava subordinado, e podes di-
zer que ele klgo cairá sob a tutela de mestres semelhantes38
.
Eis aí os exercícios de análise infinitesimal que encontra-
mos em Marco Aurélio. Como vemos, tem-se a impressão
que, à primeira vista, esta figura do exercício espiritual pelo sa-
ber sobre o mundo é inversa àquela encontrada em Sêneca.
Entretanto, são necessárias algumas observações. Ve-
mos 'lué em Marco Aurélio, como em Sêneca, há de todo
modo um certo olhar de cima para baixo. Mas, enquanto em
.I.....
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 371
Sêneca o olhar de cima para baixo se faz a partir do topo do
mundo, em Marco Aurélio o ponto de partida deste olhar
de cima para baixo não está no topo do mundo. Ao contrário,
está no nível da existência humana. O olhar se efetua pre-
cisamente a partir do ponto em que estamos, e o problema
consiste em descer, de certo modo, abaixo do ponto em que
estamos, para conseguirmos mergulhar até o cerne das coi-
sas, permitindo-nos atravessá-las de ponta a ponta. Trata·
va·se, para Sêneca, de ver desdobrar-se abaixo de nós o con-
junto do mundo.Trata-se para Marco Aurélio, ao contrário, de
ter uma visão desqualificadora, redutora e irônica de cada
coisa em sua singularidade. Enfim, em Sêneca havia uma
perspectiva sobre si mesmo pela qual o sujeito, encontran-
do-se no topo do mundo e vendo o mundo desdobrar-se abai-
xo de si, conseguia perceber-se em suas próprias dimensões,
dimensões limitadas certamente, dimensões minúsculas, mas
que não tinham função de dissolução. Enquanto em Marco
Aurélio o olhar sobre as coisas - e isto é significativo, pois
introduz uma marca no estoicismo, uma inflexão impor-
tante -, este olhar certamente está referido a ele próprio, mas
referido a ele próprio de duas maneiras. Por um lado, trata-
se de mostrar, penetrando no cerne das coisas, apreenden-
do todos os seus mais singulares elementos, quanto somos
livres em relação a elas. Por outro lado, trata-se também e
ao mesmo tempo de mostrar quanto nossa própria identi-
dade - esta pequena totalidade que constituímos a nossos
próprios olhos, esta continuidade no tempo, esta continui-
dade no espaço - é, na realidade, composta apenas de ele-
mentos singulares, elementos distintos, elementos discre-
tos em relação uns aos outros, constituindo, no fundo, uma
/ falsa unidade. A única unidade de que somos capazes e que
pode nos fundar naquilo que somos, a identidade de sujei-
to que podemos e devemos ser em relação a nós mesmos,
é somente aquela que somos enquanto sujeitos razoáveis,
isto é, nada mais que uma parte da razão que preside o mun-
do. Conseqüentemente, se olharmos abaixo de nós, ou antes,
se olharmos a nós mesmos de cima para baixo, nada mais
•
198. ..
•
372 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
somos que uma série de elementos distintos uns dos outros:
elementos materiais, instantes descontínuos. Mas, se ten-
tarmos nos apreender como princípio razoável e racional,
perceberemos então que nada mais somos senão parte de
algo que é a razão presidindo o mundo inteiro. Portanto, é
antes a uma espécie de dissolução da individualidade que
se orienta o exercício espiritual de Marco Aurélio, ao passo
que o exercício espiritual de Sêneca - com o deslocamento
do sujeito para o topo do mundo de onde ele pode apreen-
der-se em sua singularidade - tinha antes por função fundar
e estabelecer a identidade do sujeito, sua singularidade e o
ser estável do eu que ele constitui. Teria muito ainda a lhes
falar. Para terminar, gostaria apenas de dizer rapidamente...
Ora, hesito, não sei bem... Continuamos? Não, talvez já seja
suficiente sobre Marco Aurélio*. Duas palavras apenas para
finalizar este tema do saber espiritual.
Se evoquei tudo isto a respeito de Sêneca e de Marco
Aurélio, é em função do que passo a expor. Como lhes lem-
brei, no interior deste tema geral da conversão a si e no inte-
rior desta prescrição geralé preciso v-ültar a si, pretendia
determinar o sentido que é conferido ao preceito particular
voltar o olhar para si mesmo, reportar a atenção sobre si,
.. O manuscrito compreende aqui longos desenvolvimentos (que
Foucault deixa deliberadamente de lado) sobre a função positiva da or-
dem infinitesimal (ele estuda a este respeito, nos Pensamentos, os textos:
X, 26; II, 12; IX, 32). Além disso, encontra coincidências entre os Pensa-
mentos (XII, 24 e IX, 30) e os textos de Sêneca sobre a contemplação ver-
tical do munco. Mas, aqui e lá, esta visão pendente induz a conseqüên-
cias éticas diferentes: conduz Sêneca à ironia do minúsculo; provoca em
Marco Aurélio efeitos de repetição do idêntico (deste ponto de vista Mar-
co Aurélio percebe menos o ponto singular onde está do que a identida-
de profunda entre coisas diferentes, acontecimentos separados no tem-
po). Analisando certos Pensamentos (XII, 24; XII, 27; lI, 14), Foucault
opera ~im a distinção entre um mergulho no mesmo lugar (com seus
efeitos de singularização) e um mergulho do alto (com o efeito inverso
de anulação das diferenças e de retorno ao mesmo).
.......
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 373
/I aplicar a si seu próprio espírito. Parece-me que, ao colocar
esta questão e ao examinar como Sêneca ou Marco Aurélio
a resolvem, fica perfeitamente claro que não se trata, de modo
algum, de constituir - ao lado, em face ou contra o saber so-
bre o mundo - um saber que seria o saber sobre o ser hu-
mano, sobre a alma, sobre a interioridade. Trata-se, pois, da
modalização do saber sobre as coisas, modalização que se
caracteriza da maneira que passo a expor. Primeiro, trata-se
de um certo deslocamento do sujeito, quer suba até o topo do
universo para vê-lo em sua totalidade, quer se esforce em
descer até o cerne das coisas. De qualquer maneira, não é
permanecendo onde está que o sujeito pode saber do modo
como convém. Este é o primeiro ponto, a primeira caracte-
ristica do saber espiritual. Segundo, a partir deste desloca-
mento do sujeito, está dada a possibilidade de apreender as
coisas ao mesmo tempo em sua realidade e em seu valor. E
por valor entende-se seu lugar, sua relação, sua dimensão
própria no interior do mundo assim como sua relação, sua
importância, seu poder real sobre o sujeito humano enquan-
to ele é livre. Terceiro, neste saber espiritual, trata-se para o
sujeito de ser capaz de ver a si mesmo, apreender-se em sua
realidade. Trata-se de uma espécie de heautoscopia. O su-
jeito deve perceber-se na verdade de seu ser. Em quarto lu-
gar finalmente, o efeito deste saber sobre o sujeito está as-
segurado pelo fato de que nele o sujeito não apenas desco-
bre sua liberdade, mas encontra em sua liberdade um modo
de ser que é o da felicidade e de toda a perfeição de que ele
é capaz. Pois bem, um saber que implica estas quatro condi-
ções (deslocamento do sujeito, valorização das coisas a par-
/ tir de sua realidade no interior do kósmos, possibilidade para
o sujeito de ver a si mesmo, transfiguração enfim do modo
de ser do sujeito por efeito do saber), é isto, creio, que cons-
titui o que poderíamos chamar de saber espiritual. Seria evi-
dentemente interessante fazer a história deste saber espiritual.
Seria interessante examinar como, muito embora o prestígio
que tenha tido no final da Antiguidade ou no período de
J
199. ..
•
374 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
que lhes falo, ele veio a ser pouco a pouco limitado, reco-
berto e finalmente apagado por um outro modo do saber a
que poderíamos chamar de saber de conhecimento, e não
mais saber de espiritualidade. Sem dúvida, foi nos séculos
XVI-XVII que o saber de conhecimento finalmente recobriu
por inteiro o saber de espiritualidade, não sem ter dele re-
tomado alguns elementos. É certo que, no que Concerne ao
que se passou no século XVII em Descartes, Pascal, Espino-
sa, etc., poderíamos encontrar esta conversão do saber de
espiritualidade em saber de conhecimento.
Não posso deixar de pensar que há uma figura cuja
história seria interessante realizar porque ela nos mostraria,
penso eu, como se colocou o problema das relações entre
saber de conhecimento e saber de espiritualidade, do sécu-
lo XVI ao século XVIII. É evidentemente a figura de Fausto.
Fausto, a partir do século XVI (isto é, a partir do momento
em que o saber de conhecimento começou a fazer valer seus
direitos absolutos sobre o saber de espiritualidade), é aque-
le que representou, creio, até o final do século XVIIL os po-
deres, encantamentos e perigos do saber de espiritualida-
de. Fausto de Marlowe certamente39• No meio do século
XVIII, o Fausto de Lessing - aquele que só conhecemos pela
décima sétima carta sobre a literatura e que é muito interes-
sante40
- transfonna o Fausto de Marlowe, que era um he-
rói condenado porque um herói de saber maldito e interdi-
to. Lessing salva Fausto. Salva-o porque o saber espiritual
que Fausto representa é, aos olhos de Lessing, convertido por
Fausto em uma crença [no] progresso da humanidade. A es-
piritualidaqe do saber toma-se fé e crença em um progres-
so contínuo da humanidade. É a humanidade que será a
beneficiária de tudo aquilo que se pedia ao saber espiritual,
[isto é] a transfiguração do próprio sujeito. Conseqüente-
mente, o Fausto de Lessing foi salvo. Ele foi salvo porque
soube converter a figura do saber de espiritualidade em saber
de cohhecimento, pelo viés desta fé [no] progresso. Quanto
ao Fausto de Goethe, por sua vez, é novamente o herói de
.
c_
~
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 375
um mundo do saber espiritual em desaparecimento. Leia-
se o começo do Fausto de Goethe, o famoso monólogo de
Fausto logo no início da primeira parte, e se encontrará ali
precisamente os elementos mais fundamentais do saber es-
piritual, precisamente as figuras deste saber que sobe até o
topo do mundo, que apreende todos os seus elementos, que
o atravessa de lado a lado, conhece seu segredo, mergulha
até em seus elementos e, ao mesmo tempo, transfigura o
sujeito e lhe traz a felicidade. Lembremos do que diz Goethe:
Filosofia, ai de mim! jurisprudência, medicina, e tu também,
triste teologia!... eu as estudei, pois, a fundo, com ardor e
paciência; e agora eis-me aqui, pobre louco, tão sábio quan-
to antes...Eis aí um saber que precisamente não é o saber es-
piritual. É o saber de conhecimento. Deste saber de conheci-
mento, o sujeito nada pode esperar para sua própria trans-
figuração. Ora, o que Fausto pede ao saber são valores e
efeitos espirituais que nem a filosofia, nem a jurisprudência,
nem a medicina podem lhe dar. Nada temo do diabo, nem
do inferno; mas também toda alegria me foi tirada [por este
saber; M.F.]. Doravante só me resta lançar-me na magia [do-
bra do saber de conhecimento sobre o saber de espirituali-
dade; M.F.]. Oh! Se a força do espírito e da palavra me des-
velasse os segredos que ignoro, e se eu não fosse mais obri-
gado a dizer penosamente o que não sei; se, enfim, eu pu-
desse conhecer tudo o que o mundo esconde nele mesmo,
e, sem me apegar por demais a palavras inúteis, ver o que
contém a natureza de secreta energia e sementes eternas!
Astro de luz prateada, lua silenciosa, digna-te pela última
vez lançar um olhar sobre minha dor' [...]. Tão freqüente-
mente velei a noite junto desta mesa' É então que tu me
/ aparecias sobre tantos livros e papéis, melancólica amiga'
Ah! Não pude, sob tua doce claridade, escalar as altas mon-
tanhas' errar nas cavernas com os espíritos, dançar sobre a
relva pálida das pradarias, esquecer todas as misérias da ciên-
cia' e banhar-me rejuvenescido no frescor de teu orvalho!4!
Pois bem, creio que temos aí a última fonnulação nostálgica
J
200. fi,
..
•
376 A HERMENÊUTICA DO SUJEITO
de um saber de espiritualidade que desaparece com a Au{
kliirung e a triste saudação ao nascimento de um saber de
conhecimento. Éisto o que pretendia dizer-lhes, pois, sobre
Sêneca e Marco Aurélio.
Dentro em pouco, em alguns minutos, passarei a um
outro problema: não mais o problema do conhecimento do
mundo, mas do exercício de si. Após a máthesis, a áskesis.
,
NOTAS
1. Prefácio à primeira parte das Qucstions naturelles, in Oeuvres
completes de Séneque le philosophe, ed. citada, p. 390 (analisada na
aula de 17 de fevereiro, segunda hora).
2. Mare Aurele, Pensées,VI, 3, ed. citada, p. 54 (tradução revis-
ta por Foucault).
3. Pensées, 1Il, 11 (p. 24).
4. Escolhe para ti pois, digo eu, franca e livremente, o bem
superior e não o deixes! - Mas o bem é o interesse. - Tratando-se
de teu interesse, enquanto ser racional, obseIVa-o (id., 6, p. 22).
5. Venera a facuidade de opinar, tudo depende dela (id., 9,
p.23).
6. E lembra-te ainda que cada qual vive apenas o presente,
infinitamente curto. O resto, ou já foi vivido, ou é incerto (id., 10,
p.23).
7. NA física como exercício espiritual ou pessimismo e otimis-
mo em Marco Aurélio (in P. Hadot, Exercices spirituels ct philoso-
phie antique, op. cit., pp. 119-33).
/' 8. Encon~ra-se esta distinção conceitual claramente expressa
em Diógenes Laércio, em seu livro sobre Zenão: Uma definição,
como o diz Antiparos no primeiro livro de seu tratado Sobre as de-
finições, é um enunciado, tirado de uma análise, formulado de ma-
neira adequada (ao objeto), ou ainda, como o diz Crisipo em seu
tratado Sobre as definições, a explicação do próprio. Uma descrição
é uma fórmula introdutória às realidades de maneira esquemáti-
201. ..
•
378 A HERMENêUTICA DO SUJEITO
ca (trad. fr. R. Goulet, in Diogene Laerce, Vies et doctn'nes des phi-
losophes illustres, VII, 60, ed. citada, p. 829).
9. Sobre esta filtragem das representações, em particular em
Epicteto, cf. Le Souci de sai (op. cit., p. 79-81; [O cuidado de si, ap. cit.,
pp. 67-9. N. dos T.J, tomando por referências principais os Entre-
tiens, III, 12, 15: Não se deve aceitar uma representação sem exa-
me, mas dizer-lhe: 'Espera, deixa-me ver quem és e donde vens',
assim como os vigias noturnos dizem: 'Mostra-me teus documen-
tos' (ed. citada, p. 45), e I, 20, 7-11.
10. Cf. a apresentação clássica por Foucault do método carte-
siano (a partir do texto das Regulae) em Les mots et les choses, Paris,
Gallimard, 1966, pp. 65-71.
11. Pensées, XI, 16 (p. 128).
12. Foucault volta aqui ao livro UI, 11: Com efeito, nada é
tão capaz de nos tornar a alma grande quanto poder identificar
(elénkhein) com método e verdade cada um dos objetos que se
apresentam (id., p. 24).
13. O élenkhos significa em grego antigo vergonha, depois
refutação no vocabulário clássico (cf. Dictionnaire de la langue
grecque de P. Chantraine, Paris, Klincksieck, 1968-1980, pp. 334-5).
Para um estudo desta noção (particularmente em seu sentido so-
crático), cf. L.-A. Dorion, La Subversion de l'elenchos juridique
dans l'Apologiede Socrates, Revue phi/osophique de Louvain, 88, 1990,
pp.311-44.
14. Pensées, I1I, 11 (p. 24).
15. Cf. para uma visão de conjunto destes exercícios em Epic-
teto, a obra, freqüentemente citada por Foucault, de B. L. Hijmans,
Askesis: Notes on Epictetus' Educational System, Utrecht, 1959.
16. Entretiens, I1I, 3, 14-19 (p. 18).
17. Os textos de Cassiano encontram-se analisados na aula
de 26 de março de 1980.
18. J. Cassien, Premiêre Conférence de l'abbé MOlse, in
Conférences, . I, parágrafo 18, trad. fr. Dom E. Pichery, Paris, Éd. du
Ceri, 1955, p. 99 (cf. a respeito do mesmo texto, Dits et Écrits, op.
cil., IV, n~ 363, p. 811).
19. Id., parágrafos 20-22, pp. 101-7 (cf., a propósito do mes-
mo texto, Dits et Ecrits, loco cit.).
20. Pensées, I1I, 11 (p. 24).
21-. liAsalvação da vida é ver a fundo o que é cada objeto, qual
sua matéria, qual sua causa formal (Pensées, XII, 29, p. 142).
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 379
22. O que é este objeto em si, na sua constituição própria?
Qual sua substância, matéria, causa formal? (pensées,VIII, 11, p. 85).
23. Constantemente, e tanto quanto possível, a cada idéia apli-
ca a ciência da natureza (phantasías physiologefn) (id., 13, p. 85).
24. O pancrácio designa, antes, um exercício violento, que é
uma combinação de boxe e de luta, e no qualtrata-se de colocar
o adversário fora de combate, seja porque caia, seja porque, levan-
tando o braço, se declare vencido. Para isto, todos os golpes são
permitidos; não somente os socos e as imobilizações·admitidos pela
luta regular, mas também toda espécie de ataques: pontapés no
estômago ou no ventre, torções de membros, mordidas, estrangu-
lamento, etc. (H.-1. Marrou, Histoire de l'éducation dans l'Antiquité,
op. cit., p. 190.).
25. Podes vir a desprezar (kataphronéseis) um canto maravi-
lhoso, a dança, o pancrácio. Tratando-se de uma área melodiosa,
basta decompô-la em suas notas e, diante de cada uma, pergun-
tares se não poderias resistir-lhe (ei toútou hétton eí). Não ousarias
reconhecê-lo. Para a dança, usa um método análogo diante de
cada movimento ou figura, e o mesmo para o pancrácio (Pensées,
XI, 2, p. 124).
26. Ibid. (tradução revista por Foucault).
27. Pensées,VI, 15 (p.57).
28. Pensées, XI, 2 (pp. 123-4).
29. Tudo o que sou se reduz a isto: carne, sopro, guia inte-
rior. Renuncia aos livros, não te deixes mais distrair, isto não te é
mais permitido; mas ao pensares que és moribundo, despreza a
carne: ela não é senão lama e sangue, ossos e um fino feixe de ner-
vos, de veias e de artérias. Vê também o que é teu sopro: vento, e
nem sempre o mesmo, pois a cada instante tu o expulsas para as-
pirares outro novamente. Resta, então, em terceiro lugar, o guia
interior (Pensées, 11, 2, p. 10).
30. Pensées,VI, 15 (p. 57).
31. Cf. supra, nota 28.
/ 32. Toda esta temática de uma eternidade estóica conquistada
no ato perfeito e estritamente imanente, compreendida não como
sendo sempiterna, mas como instante curto-circuitando o tempo,
encontra-se exposta na obra clássica da V. Goldschmidt, Le Syste-
me stoiCien et ['Idée de temps (1953), Paris, Vrin, 1985, pp. 200-10.
33. Trata-se de uma faixa púrpura costurada à túnica e que
indica uma distinção (senador ou cavalheiro).
202. ..
•
380 A HERMENféUTICA DO SUJEITO
34. /lÊ como conceber a idéia do que são as carnes cozidas e
outros alimentos deste tipo, se nos dissermos: isto é um cadáver
de peixe, aquele um cadáver de pássaro ou de porco; ou ainda: o
Falemo é apenas um suco de uva; a toga, lã de ovelha tingida com
sangue de molusco; o que se passa na cópula (synousía) é fricção
de nervo e, acompanhada de um certo espasmo, excreção de
muco (Pensées, VI, 13, p. 55).
35. Do mesmo modo que estas idéias atingem plenamente
seu objeto (kathiknoúmenai autôn), indo ao cerne das coisas, de sor-
te que se vê sua realidade; assim também é necessário agires em
todo o curso de tua vida (hoútos deípar'hólon tàn bíon poieín). Quan-
do os objetos te parecem os mais dignos de tua confiança, desnu-
da-os (apogymnoún), vê a fundo (kathorân) seu pequeno valor (eu-
téleian), arranca-lhes as aparências de que se orgulham. O orgulho
(tgphos) é um sofista terrível e, quando acreditas aplicar-te mais
que nunca às coisas sérias, é então que ele mais te mistifica (id.,
pp.55-6).
36. Pensées, 11, 2 (p. 10).
37. Com efeito, assim corno o que é terreno em mim foi ti-
rado de alguma terra, a parte líquida de U.fi outro elemento, o so-
pro de uma outra fonte, o calor e o fogo de uma outra fonte ainda
[...] assim também a inteligência vem de algum lugar (pensées, IV,
4, p. 29).
38. Pensées, X, 19 (p. 115).
39 Dactor Faustus, in The Works Df Christopher Marlowe, ed.
Tucker Brooke, Oxford, 1910. '
40. Lettre de 16 de fevereiro de 1759, in G. E. Lessing, Briefe die
neueste Literatur betreffend, Stuttgart, I' Redam, 1972, pp. 48-53.
41. Goethe, Faust, trad. Gérard de Nerval, primeira parte: La
Nuit, Paris, Camier, 1969, pp. 35-6.
,
, ,
AULADE 24 DE FEVEREIRO DE 1982
Segunda hora
A virtude em sua relação com a áskesis. ~ A ausêncía de
referêncía ao conhecímento objetivo do sujeito na máthesis. ~ A
ausêncía de referêncía à lei na áskesis. ~ Objetivo emeio da ás-
kesis. ~ Caracterização da paraskeué: o sábio como atleta do
acontecímento. - Conteúdo da paraskeué: os discursos-ação. -
Modo de ser destes discursos: o prókheiron. - A áskesis como
prática de incorporação ao sujeito de um dizer-verdadeiro.
Nas duas aulas precedentes, procurei estudar a questão
da conversão a si sob o ângulo do saber: relação entre retor-
no a si e conhecimento do mundo. Se quisennos, a conversão
a si confrontada com a máthesis. Agora, gostaria de retomar
esta questão da conversão a si, não mais sob o ângulo do co-
nhecimento e da máthesis, mas sob outro ângulo: qual o tipo
de ação, o tipo de atividade, o modo de prática de si sobre si
que implica a conversão a si? Em outras palavras: qual a prá-
tica operatória que, fora do conhecimento, é implicada pela
conversão a si? Creio ser isto, de modo geraL que chamamos
de áskesis (ascese, enquanto exercício de si sobre si). Em
uma passagem de um texto que se chama precisamente Peri
askéseos (Da ascese, Do exercício) um estóico romano que
sem dúvida conhecemos, chamado Musonius Rufus, com-
parava a aquisição da virtude com a da medicina ou da mú-
sica. Como adquirir a virtude? Adquire-se a virtude como se
/ adquire o conhecimento da medicina ou o conhecimento
da música? Este gênero de questões era extremamente ba-
nal, tradicional e muito antigo. Encontramo-lo seguramente
em Platão, desde os primeiros diálogos socráticos. Musonius
Rufus dizia que a aquisição da virtude implica duas coisas.
De um lado, requer um saber teórico (epistéme theoretike), e
. ~I. L'~Rrc
tnstituto de r'SICO:og' - ,r u~
. D'hj t '
- ' - lll)o,ea ~
203. ..
•
382 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
de outro deve também comportar uma epistéme praktiké (um
saber prático). E este saber prático, diz ele, só se pode ad-
quiri-lo treinando - e emprega o verbo gymnázesthai, fazer
ginástica, evidentemente no sentido muito geral que vere-
mos adiante - com zelo, sem negligenciar o esforço (philotí-
mos, philopónos). Portanto, esforço, zelo, treinamento, é isto
que nos permitirá adquirir a epistéme praktiké, que é tão in-
dispensável quanto a epistéme theoretiké2 Esta idéia de que
a virtude se adquire por uma áskesis, não menos indispen-
sável que uma máthesis, é evidentemente muito antiga. De
forma alguma é preciso esperar Musonius Rufus para vê-la
se formular quase nestes mesmos termos. Era Ul~a idéia en-
contrada nos textos pitagóricos mais antigos'- E uma idéia
encontrada em Platão Encontramo-la igualmente em Isócra-
tes quando fala da áskesis philosophíass É uma idéia na qual
os cínicos, certamente, muito mais voltados ao exercício prá-
tico do que ao conhecimento teórico, tinham igualmente
insistid06 Em suma, esta prática de si mesmo da qual pro-
curo elaborar, não a história, mas o esquema em um período
preciso (séculos 1-11 [d.C.]), é uma idéia bem tradicional na
arte de si mesmo. Mas, repito a fim de evitar qualquer equí-
voco, de modo algum pretendo que esta prática de si, que
procuro situar na época de que lhes falo, se tenha formado
naquele momento. Nem mesmo pretendo que naquele mo-
mento ela tenha constituído uma novidade radical. Quero
apenas dizer que naquela época, em seu termo, ou melhor,
após uma longa história (pois o termo ainda não se deu),
chega-se nos séculos 1-11 a uma cultura de si, a uma prática
de si cujas dimensões são consideráveis, cujas formas são
muito ric~s e cuja amplitude, que certamente não represen-
ta nenhuma ruptura de continuidade, permite uma análise
sem dúvida mais detalhada do que se nos reportássemos a
uma época anterior. Portanto, é mais por razões de como-
didade, de visibilidade e de legibilidade do fenômeno, que
me refiro a este periodo, sem de modo algum afirmar que ele
rep?esenta uma inovação. Em todo caso, não é minha in-
tenção refazer a longa história das relações máthesis/áskesis,
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 383
a longa história da própria noção de ascese, de exercício, tal
como já se encontra nos pitagóricos. Eu me contentarei, por-
tanto, em falar dos séculos 1-11, realçando porém, em segui-
da, um aspecto que, a meu ver, é bastante surpreendente.
A partir do momento em que não mais consideramos a
conversão a si sob o ângulo da máthesis - do conhecimento,
conhecimento do mundo, da pergunta pelo conhecimento de
si, etc. -, mas sob o ângulo da prática, do exercício de si so-
bre si, não nos encontraremos em uma ordem de coisas que
seguramente não é mais aquela da verdade, mas a da lei, da
regra, do código? Não encontraremos, no princípio fundador
desta áskesis, desta prática de si por si, de si sobre si, a ins-
tância fundadora e primeira da lei? Creio ser preciso com-
preender bem - este é um dos traços mais importantes e
dos mais paradoxais, pelo menos para nós, pois para mui-
tas outras culturas não o seria - o que caracteriza a ascese
(áskesis) no mundo grego, helenístico e romano, quaisquer
que sejam, aliás, os efeitos de austeridade, de renúncia, de
interdição, de prescrição detalhada e austera que esta áske-
sis possa induzir: ela não é e jamais será fundamentalmente
o efeito de uma obediência à lei. Não é por referência a uma
instância como a da lei que a áskesis se estabelece e desen-
volve suas técnicas. A áskesis é na realidade uma prática da
verdade. A asces~ não é uma maneira de submeter o sujeito
à lei: é uma maneira de ligar o sujeito à verdade. Creio ser
preciso termos isto presente, porque temos na mente, por
causa de nossa própria cultura e de nossas categorias, mui-
tos esquemas capazes de nos confundir. Se quisermos, com-
paro o que lhes dizia nas últimas aulas a respeito do conhe-
cimento do mundo com o que lhes direi agora a respeito da
/prática de si; ou então o que lhes dizia a respeito da máthesis
com o que pretendo lhes dizer agora a respeito da áskesis. Em
nossas categorias familiares de pensamento, consideramos
como uma evidência que, quando falamos do problema das
relações entre sujeito e conhecimento, a questão posta, a
questão que nos colocamos é a seguinte: é possível ter do su-
jeito um conhecimento do mesmo tipo daquele que temos
~
204. ..
•
384 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
de qualquer outro elemento do mundo, ou ao contrário é
necessário um outro tipo de conhecimento, irredutível ao
primeiro, etc.? Em outras palavras, penso que muito espon-
taneamente' colocamos a questão da relação sujeito e co-
nhecimento da seguinte forma: pode haver uma objetivação
do sujeito? O que pretendi lhes mostrar nas duas últimas
aulas foi que na cultura de si da época helenística e roma-
na, quando se coloca a questão da relação sujeito e conheci-
mento, nunca se trata de saber se o sujeito é objetivável, se
se pode aplicar ao sujeito o mesmo modo de conhecimento
que se aplica às coisas do mundo, se o sujeito efetivamente
faz parte das coisas do mundo que são cognoscíveis. Nun-
ca é isto que encontramos no pensamento grego, helenísti-
co e romano. Mas, quando se coloca a questão das relações
sujeito/conhecimento do mundo - é isto que pretendi lhes
mostrar-, encontra-se a necessidade de flexionar o saber so-
bre o mundo de maneira tal que ele tome, para o sujeito, na
experiência do sujeito, para a salvação do sujeito, uma cer-
ta forma e um certo valor espirituais. É esta modalização es-
piritual do sujeito que responde à questão geral: o que acon-
tece com as relações do sujeito com o conhecimento do mun-
do? É isto que pretendi lhes mostrar.
Creio que devemos agora aplicar à questão da áskesis o
mesmo desligamento, a mesma liberação relativamente às
nossas próprias categorias, às nossas próprias questões. Com
efeito, quando colocamos a questão do sujeito na ordem da
prática (não somente o que fazer?, mas também o que
fazer de mim mesmo?), penso que muito espontaneamen-
te - não quero dizer 1/ muito naturalmente, deveria antes
dizer rrtuito historicamente, e isto por uma necessidade
que carregamos - consideramos uma evidência -que a ques-
tão sobre o,que acontece com o sujeito e o que ele deve fa-
zer de si mesmo, [precise ser colocada] em função da lei. Isto.
é, em que, em que medida, a partir de qual fungamento e
atqu.alli,mite o sujeito deve se submeter à lei? Ora, na cul-
tura de si da civilização grega, helenística, romana, o proble-
ma do sujeito em sua relação com a prática conduz, creio, a
,I
~
I
.l.,
~
....
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 385
algo diferente da questão da lei. Conduz à seguinte ques-
tão: de que modo pode o sujeito agir como convém, ser como
deve, na medida em que não apenas conhece a verdade,
mas na medida em que ele a diz, pratica e exerce? Formu-
lei mal a questão, seria preciso dizer mais exatamente o se-
guinte: a questão que os gregos e os romanos colocam acer-
ca das relações entre sujeito e prática consiste em saber em
que medida o fato de conhecer a verdade, de dizer a verda-
de, de praticar e de exercer a verdade, pode permitir ao su-
jeito não somente agir como deve agir, mas ser como deve
ser e como quer ser. Digamos esquematicamente: onde en-
tendemos, nós modernos, a questão objetivação possível
ou impossível do sujeito em um campo de conhecimentos,
os antigos do período grego, helenístico e romano enten-
diam constituição de um saber sobre o mundo como expe-
riência espiritual do sujeito. E onde nós modernos enten-
demos sujeição do sujeito à ordem da lei, os gregos e os
romanos entendiam constituição do sujeito como fim últi-
mo para' si mesmo, através e pelo exercício da verdade. Há
aí, creio, uma heterogeneidade fundamental que deve nos
prevenir contra qualquer projeção retrospectiva. E diria que
quem quiser fazer a história da subjetividade - ou antes, a
história das relações entre sujeito e verdade - deverá tentar
encontrar a muito longa e muito lenta transfonnação de um
dispositivo de subjetividade, definido pela espiritualidade
do saber e pela prática da verdade pelo sujeito, neste outro
dispositivo de subjetividade que é o nosso e que é coman-
dado, creio, pela questão do conhecimento do sujeito por
ele mesmo e da obediência do sujeito à lei. Nenhum destes
dois problemas (obediência à lei, conhecimento do sujeito
)'lar ele mesmo) era, de fato, fundamental nem mesmo es-
tava presente no pensamento e na cultura antigos. Eraespi-
ritualidade do saber, era I'prática e exercício da verdade.
É a.ssim, penso, que devemos abordar a questão da áskesis;
é ela que pretendo agora estudar nesta aula e na próxima.
Quando falamos de ascese é evidente que, vista atra-
vés de uma certa tradição, esta mesma, aliás muito defonna-
205. ..
•
386 A HERMEN~UTICA DO SUJEITO
da, [...] [entendemos uma] fonna de prática cujos elementos,
fases, progressos sucessivos devem ser renúncias cada vez
mais severas, tendo como alvo e no limite a renúncia a si.
Progressos nas renúncias para chegar à renúncia essencial
que é [a] renuncia a.si': assim nós entendemos a ascese. É
com tais tonalidades que a entendemos. Creio que a ascese
(áskesis) entre os antigos tinha um sentido profundamente
diferente. Primeiro, porque evidentemente não se tratava
de chegar, tanto no tenno da ascese quanto em seu alvo, à
renúncia a si. Tratava-se, ao contrário, da constituição de si
mesmo. Digamos mais exatamente: tratava-se de chegar à
formação de uma certa relação de si para consigo que fosse
plena, acabada, completa, auto-suficiente e suscetível de pro-
duzir a transfiguração de si que consiste na felicidade que
se tem consigo mesmo. Este era o objetivo da ascese. Nada,
conseqüentemente, que fizesse pensar em uma renúncia a si.
Contudo, lembro muito simplesmente - porque é uma situa-
ção muito complexa e não tenho intenção de narrá-la em
todos os seus detalhes - a curiosa e interessante inflexão
que encontramos em Marco Aurélio para quem a ascese,
pela percepção desqualificadora das coisas que estão abaixo
de si, conduz a um questionamento da identidade de si pela
descontinuidade dos elementos de que somos compostos,
ou pela universalidade da razão de que Somos parte'. Mas
isto é muito mais urna inflexão, parece-me, do que um tra-
ço geral da ascese antiga. Portanto, o objetivo da ascese na
Antiguidade é realmente a constituição de uma relação ple-
na, acabada e completa de si para consigo.
Erp segundo lugar, não se deve buscar o meio da asce-
se antiga na renúncia a uma ou outra parte de si mesmo.
Certamente veremos que existem elementos de renúncia.
Existem elementos de austeridade. E pode-se até mesmo
dizer que o essencial, pelo menos uma parte considerável,
daquilo que será a renúncia cristã, já está exigido na ascese
l:!tiga. Mas a própria natureza dos meios, a tática, se qui-
sennos, que é praticada para se chegar a este objetivo final,
não é primeira nem fundamentalmente uma renúncia. Tra-
t
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 ~87
ta-se, ao contrário, de adquirir algo pela áskesis (pela ascese).
É necessário dotar-se de algo que não se tem, no lugar de
renunciar aalgum elemento que seríamos ou teóamos em nós
mesmos. É preciso se dotar de algo que, precisamente, no
lugar de nos conduzir a renunciar pouco a pouco a nós mes-
mos, permitirá proteger o eu e chegar até ele. Em duas pa-
lavras, a ascese antiga não reduz: ela equipa, ela dota. E
aquilo de que ela equipa, aquilo de que ela dota, é o que em
grego se chama paraskeué, que Sêneca traduz freqüentemen-
te em latim por instructiD. A palavra fundamental é paras-
keué, e é o que gostaria de estudar um pouco hoje, antes de,
na próxima vez, passar a diferentes fonnas mais precisas de
exercícios ascéticos. Portanto, uma vez que se trata, para ela,
de chegar à constituição da relação plena de si para consigo,
a ascese tem por função, ou melhor, por tática, por instru-
mento' a constituição de uma paraskeué. O que é a paras-
keué? Pois bem, a paraskeué é o que se poderia chamar uma
preparação ao--mesmo tempo aberta e finalizada do indivi-
duo para os acontecimentos da vida. Quero com isto dizer
que se trata, na ascese, de preparar o individuo para o futuro,
um futuro que é constituído de acontecimentos imprevistos,
acontecimentos cuja natureza em geral talvez conheçamos,
os quais porém não podemos saber quando se produzirão
nem mesmo se se produzirão. Trata-se pois, na ascese, de
encontrar uma preparação, uma paraskeué capaz de ajustar-se
ao que possa se produzir, e a isto somente, no momento exa-
to em que se produzir, caso venha a produzir-se.
Há muitas definições da paraskeué. Tomarei uma das
mais simples e drásticas. É a que encontramos em Deme-
trius, o cínico, na passagem citada por Sêneca no livroVII do
/ De beneficiis9
, em que Demetrius retoma um lugar-comum
da filosofia cínica, como também da filosofia moral em ge-
ral e de todas as práticas da vida: a comparação da existência,
e daquele que na existência quer chegar à sabedoria, com o
atleta. Precisaremos voltar muitas vezes a esta comparação
do sábio com o atleta, ou daquele que se dirige, que se en-
caminha para a sabedoria com o atleta. O bom atleta, neste
206. ..
•
388 I1ERMENfUTICA DO SUJEITO
texto de Demetrius em todo caso, é apresentado como aque-
le que se exercita. Mas exercita-se em quê? Não em todos
os movimentos possíveis, diz ele. Não se trata absolutamen-
te de desenvolver todas as possibilidades que nos são dadas.
Nem mesmo de realizar, em tal ou qual setor, tal ou qual fa-
çanha que nos pennitiria prevalecer sobre os outros. Trata-se
de nos preparar somente para aquilo com que podemos nos
deparar, somente para os acontecimentos que podemos en-
contrar, não [porém] de maneira a superar os outros, nem
de maneira a superar a nós mesmos. Podemos ~ncontrar, por.
vezes, a noção de superação de si nos estóicos - procura-
rei voltar a isto -, mas não nesta forma, por assim dizer, da
gradação indefinida em direção ao que há de mais difícil
encontrado na ascese cristã. Não se trata pois de ultrapas-
sar os outros nem de ultrapassar a si mesmo; trata-se, sem-
pre segundo aquela categoria de que lhes falava há pouco,
de ser mais forte, ou de não ser mais fraco do que aquilo
que pode acontecer. O treinamento do bom atleta deve ser,
portanto, o treinamento em alguns movimentos elementa-
res' mas suficientemente gerais e .eficazes para que possam
ser adaptados a todas as circunstâncias, e para que possa-
mos - sob a condição de serem também suficientemente sim-
pIes,e bem adquiridos - deles dispor sempre que necessá-
rio. E esta aprendizagem de alguns movimentos elementa-
res, necessários e suficientes para qualquer circunstância
possível, que constitui o bom treinamento, a boa ascese. E
a paraskeué não será mais do que o conjunto de movimentos
necessários e suficientes, o conjunto de práticas necessárias
e suficientes [para] permitir-nos ser mais fortes do que tudo
que p04sa acontecer ao longo de nossa existência. É esta a
formação atlética do sábio. Particularmente bem definido
por Demetrius, este tema é amplamente encontrado. Embora
também o encontremos em Sêneca, em Epicteto, etc., cito~
lhes uma passagem de Marco Aurélio: A arte de viver [o que
chama de biótica, he biotiké; M.F.] parece-se mais com a luta
.do que com a dança, na medida em que se deve sempre
manter-se alerta e ereto contra os golpes imprevistos que
I
I
.~
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~-
....
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 389
caem sobre vós.lÜ É interessante esta oposição entre atle-
tismo e dança, luta e dança. O dançarino é obviamente aque-
le que faz o melhor possível para atingir um certo ideal que
lhe permitirá superar os outros ou superar-se a si mesmo.
O trabalho do dançarino é indefinido. já a arte da luta con-
siste simplesmente em estar pronto, mantendo-se em alerta,
permanecendo ereto, isto é, não ser derrubado, não ser me-
nos forte do que todos os golpes com que se pode deparar,
que possam ser desferidos pelas circunstâncias ou pelos
outros. Penso que isto é muito importante. Permite bem
distinguir este atleta da espiritualidade antiga daquele que
será o atleta cristão. O atleta cristão estará na via indefinida
do progresso em direção à santidade, em que deve superar-
se a si mesmo, a ponto de renunciar a si. E principalmente
também, o atleta cristão é aquele que terá um inimigo, um
adversário, que se manterá alerta. Com relação a quem e a
quê? Ora, com relação a ele próprio! Com relação a ele pró-
prio na medida em que (pecado, natureza decaída, sedução
pelo demônio, etc.) é nele próprio que encontrará os mais
venenosos e perigosos dos poderes que terá de enfrentar. O
atleta estóico, o atleta da espiritualidade antiga, com efeito,
também ele tem que lutar. Tem que estar pronto para uma
luta, luta na qual tem por adversário tudo o que, advindo do
mundo exterior, pode se apresentar: o acontecimento. O atle-
ta antigo é um atleta do acontecimento. Já o cristão é um
atleta de si mesmo. Este, o primeiro ponto.
Em segundo lugar, de que é feito este equipamento
(paraskeué)? Pois bem, o equipamento do qual devemos nos
dotar e que permite respondermos sempre que necessário,
./ com os meios ao mesmo tempo mais simples e eficazes, é
constituído pelos lógoi (discursos). E aqui é preciso prestar
muita atenção. Por lógoi não basta entender apenas um equi-
pamento de proposições, de princípios, de axiomas, etc.,
que sejam verdadeiros. É preciso entender os discursos en-
quanto enunciados materialmente existentes. O bom atleta,
que tem a paraskeué suficiente, não é simplesmente aquele
J
207. ..
•
390 A HERMENêUTICA DO SUJEITO
que sabe uma ou outra coisa concernente à ordem geral da
natureza ou os preceitos particulares correspondentes a tal
ou qual circunstância, mas é aquele que tem - por enquanto
digo na mente, mas será necessário voltar a este assunto
- nele arraigado, nele implantado (são frases de Sêneca na
carta 5011
), o quê? Pois bem, frases efetivamente pronuncia-
das, frases efetivamente ouvidas ou lidas, frases que ele pró-
prio incrustou no espírito, repetindo-as, repetindo-as em
sua memória por exercícios cotidianos, escrevendo-as, escre-
vendo-as para si em notas como aquelas tomadas, por exem-
plo, por Marco Aurélio; como sabemos, nos textos de Marco
Aurélio, é muito difícil distinguir o que é dele e o que é ci-
tação. Pouco importa. O problema é que o atleta é aquele,
portanto, que se dota de frases efetivamente ouvidas ou li-
das, por ele efetivamente rememoradas, re-pronunciadas,
escritas e reescritas. São lições do mestre, frases que ouviu,
frases que disse, que disse a si mesmo. É deste equipamento
material de lógos, entendido neste sentido, que é constituí-
da a armadura necessária àquele que deve ser o bom atleta
do acontecimento, o bom atleta da fortuna. Em segundo lu-
gar, estes discursos ~ discursos existentes em sua materiali-
dade' adquiridos em sua materialidade, mantidos em sua
materialidade - não são, certamente, discursos quaisquer.
São proposições, proposições, como a própria palavra lógos
o indica, fundadas na razão. Fundadas na razão, isto é, ao
mesmo tempo em que são razoáveis, são verdadeiras e cons-
tituem princípios aceitáveis de comportamento. São, na fi-
10sofia estóica, os dógmata e os praecepta12
- não me dete-
nho neste ponto (eventualmente voltaremos a ele, mas não
é absolutámente necessário). O que gostaria de ressaltar é
que estas frases efetivamente existentes, estes lógoi mate-
rialmente existentes são pois frases, elementos de discurso,
de racionalidade: de uma racionalidade que ao mesmo tem-
po diz o verdadeiro e prescreve o que é preciso fazer. Enfim,
em terceiro lugar, estes discursos são discursos persuasivos.
Isto Significa que não só dizem o que é verdadeiro ou o que
é preciso fazer, mas, quando constituem uma boa paraskeué,
I
f
•
I
1-
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 391
estes lógoi não se contentam em estar presentes como se
fossem ordens dadas ao sujeito. São persuasivos no sentido
em que acarretam não somente a convicção, mas também
os próprios atos. São esquemas indutores de ação que, em,
seu valor e sua eficácia indutora, uma vez presentes - na men-
te, no pensamento, no coração, no próprio corpo de quem
os detém -, este que os detém agirá como que espontanea-
mente. Écomo se estes próprios lógoi, incorporando-se pou-
co a pouco na sua própria razão, na sua própria liberdade e
na sua própria vontade, falassem, falassem por ele: não so-
mente dizendo-lhe o que é preciso fazer, mas efetivamente
fazendo, n~ forma da racionalidade necessária, o que é pre-
ciso fazer. E, portanto, como matrizes de ação que estes ele-
mentos materiais de lógos razoável estão efetivamente ins-
critos no sujeito. É isto, a paraskeué. E é isto que a áskesis ne-
cessária ao atleta da vida visa obter.
O terceiro caráter desta paraskeué é a questão do modo
de ser. Para que este discurso, ou melhor, estes discursos, es-
tes elementos materiais de discursos, possam constituir efe-
tivamente a,preparação de que se tem necessidade, é preci-
so que sejam não somente adquiridos, mas também dota-
dos de uma espécie de presença permanente, ao mesI'flO
tempo virtual e eficaz, que permita que a eles se recorra sem-
pre que necessário. Este lógos que constitui a paraskeué deve
ser ao mesmo tempo um socorro. Chegamos aqui a uma im-
portante noção, que é muito freqüente em todos estes tex-
tos. É preciso que o lógos seja boethós (socorro)13 A palavra
boethós é interessante. Originariamente, no vocabulário ar-
caico, boethós significa socorro. Isto é, o fato de que alguém
. responde ao apelo (boé) lançado pelo guerreiro em perigo. E
.),1uem lhe traz socorro responde com um grito, anunciando-
lhe que está trazendo socorro e que acorre para ajudá-lo. É
isto, assim deve ser o lógos. Quando se apresenta uma cir-
cunstância, quando se produz um acontecimento que colo-
ca em perigo o sujeito, o domínio do sujeito, é preciso que o
lógos possa responder assim que solicitado e que possa fazer
ouvir sua voz, anunciando de algum modo ao sujeito que ele
208. ..
•
392 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
está presente, que traz Socorro. E é precisamente no enun-
ciado' na reatualização deste lógos, nesta voz que se faz ouvir
e promete socorro, que [reside1o próprio socorro. Uma vez
que o lógos fale, no momento em que o acontecimento se
produz, uma vez que o lógos - que constitui a paraskeué - se
formule para anunciar seu socorro, o socorro já está presente,
dizendo-nos o que é preciso fazer, ou melhor, fazendo-nos
fazer efetivamente o que devemos fazer. O lógos é, assim,
aquilo que nos vem em auxJ1io. Este lagos boethós é metafo-
rizado de incontáveis maneiras em toda esta literatura, seja
por exemplo sob a forma da idéia de um lógos-remédio (lógos
phannákon)14, seja sob a idéia também muito freqüente, à
qual já fiz alusão várias vezesl5
, da metáfora da pilotagem-
o lógos deve ser como um bom piloto no navio16, mantendo
a tripulação em seus postos, dizendo-lhe o que fazer, susten-
tando a direção, comandando a manobra, etc. - ou ainda,
certamente, sob a forma militar e guerreira, quer da arma-
dura, quer mais freqüentemente ainda da muralha e da for-
taleza atrás das quais podem se refugiar os guerreiros quan-
do em perigo, e de lá, bem protegidos pelas muralhas, do
alto delas, repelir os ataques dos inimigos. É da mesma ma-
neira que, na medida em que os acontecimentos se produ-
zem, quando o sujeito se sente ameaçado na rasa labuta da
vida cotidiana, o 16gos deve estar presente: fortaleza, citade-
la alçada em sua altura e na qual nos refugiamos. Refugia-
mo-nos em nós mesmos, em nós mesmos enquanto somos
lógos. É lá que encontramos a possibilidade de repelir o
acontecimento, de deixarmos de ser hétton (mais fracos) em
relação a ele, de podermos enfim superá-lo. Compreenda-
mos bertf que, para desempenhar este papel, para ser efeti-
vamente da ordem do socorro, e do SOcorro permanente, '
este equipamento dos lógoi razoáveis deve estar sempre ao
alcance da mão. Ele deve ser o que os gregos chamavam de
khrêstikos (utilizável). Sobre isto eles tinham uma série de
metáforas, ou melhor, uma metáfora que reaparecia cons-
tantemente, importante para se tentar definir o que é a pa-
raskeué e, conseqüentemente, o que devem ser os exercícios
~
.
t
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 393
que formam e mantêm a paraskeué em sua natureza e de-
senvolvimento. Para desempenhar este papel de socorro,.
para ser efetivamente este bom piloto, esta fortaleza ou este
remédio, é preciso que o lógos estejaà mão: prókheíron,
que os latinos traduziam por ad manum. É preciso tê-lo ali,
à mão17
. Creio ser esta uma noção muito importante, que
permanece incluída na categoria - tão fundamental em todo
pensamento grego - da memória, introduzindo porém uma
flexão particular. Digamos, com efeito, que a mnéme (a me-
mória, sob sua forma arcaica) tinha essencialmente por.fun- .
ção não apenas guardar, em seu ser, em seu valor, em seu .
brilho, o pensamento, a sentença que fora formulada pelo
poeta, como certamente também, guardando assim o brilho
da verdade, poder iluminar todos aqueles que novamente
pronunciassem a sentença, pronunciando-a porque eles pró-
prios participavam da mnéme ou a escutavam, escutavam-na
da boca do aedo ou do sábio que, por sua vez, participavam
diretamente desta mnéme18
• Como vemos, na idéia de que é
preciso ter os lógoi (os lógoi boethikoí, o lógos de socorro) à
mão, há algo um pouco diferente desta preservação do brilho
da verdade na memória daqueles que participam da mnéme.
Na realidade, é preciso que cada qual tenha este equipa-
mento à mão, e assim o tenha não bem sob a forma de uma
memória que novamente cantará a sentença e a fará brilhar
em sua luz, ao mesmo tempo sempre nova e sempre a mes-
ma. É preciso tê-lo à mão, isto é, tê-lo, de certo modo, qua-
se que nos músculos. É preciso tê-lo de tal maneira que se
possa reatualizá-Ia* imediata e prontamente, de forma au-
tomática. É preciso que seja realmente uma memória de ati-
vidade, uma memória mais de ato que uma memória de
. canto. Quando chegar o dia do infortúnio, do luto, do aci-
/ dente, quando a morte ameaçar, quando se estiver doente e
sofrendo, é preciso que o equipamento atue para proteger a
alma, impedir que seja atingida, permitir que conserve sua
.. É preciso entender aqui: a paraskeué.
-. J
209. ..
394 A HERMEN!UTICA DO SUJEITO
calma. Isto não significa, é claro, que a formulação ou refor-
mulação da sentença não será necessária, mas qu~, .se na
grande mnéme arcaica era quando o canto novamente se ele-
vava que então brilhava a verdade, aqui, todas,as repetições
verbais deverão ser da ordem da preparação. E para que ele
possa vir a integrar-se ao indivíduo e comandar sua ação,
fazer parte de certo modo de seus músculos e de seus ner-
vos, é para isto que antes será preciso, a título de prepara·
ção na áskesis, realizar todos os exercícios de remernoração
pelos quais efetivamente lembrar-se-á das sentenças e das
proposições e reatualizar-se-á os lógoi, reatualização que se
fará pronunciando-os de fato. Mas, no momento em que o
acontecimento se produzir, será preciso então que o lógos se
tenha tomado a tal ponto o próprio sujeito de,ação, que o
próprio sujeito de ação se tenha tomado a tal ponto o lógos.
que, sem ter sequer de cantar novamente a frase, sem se-
quer ter de pronunciá-la, [ele] aja como deve agir. Como ve-
mos, o que é assim posto em prática nesta noção geral da
áskesis é uma outra forma de mnéme, um ritual inteiramen-
te outro da reatualização verbal e da execução, uma relação
inteiramente outra entre o discurso que se repete e o brilho
da ação que se manifesta.
Para resumir e a título de introdução [à] próxima aula,
direi o seguinte: parece-me que para os gregos como tam-
bém para os romanos, a áskesis, em razão de seu objetivo fi-
nal que é a constituição de uma relação de si para consigo
plena e independente, tem essencialmente por função, por
objetivo primeiro e imediato, a constituição de uma paras-
keué (um~ preparação,um equipamento). E o que é esta pa-
raskeué?'E, creio, a forma que os discursos verdadeiros devem
tomar para poderem constituir a matriz dos comportamen-.
tos razoáveis. A paraskeué é a estrutura de transformação
permanente dos discursos verdadeiros - ancorados no su-
jeito - em princípios de comportamento moralmente acei'
táveis. A paraskeué é o elemento de transformação do lógos
eméthos. Pode-se então definir a áskesis: ela será o conjunto,
a sucessão regrada, calculada dos procedimentos que são
r
l
- ...-
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 395
aptos para que o indivíduo possa formar, fixar definitiva-
mente, reativar periodicamente e reforçar quando necessário,
a paraskeué. A áskesis é o que permite que o dizer-verdadeiro
- dizer-verdadeiro endereçado ao sujeito, dizer-verdadeiro que
o sujeito endereça também a si mesmo - constitua-se como
maneira de ser do sujeito. A áskesis faz do dizer-verdadeiro
um modo de ser do sujeito. Creio ser esta a definição que
podemos obter, que podemos enfim estabelecer quanto ao
tema geral da áskesis. Uma vez que, nesta época, neste pe-
ríodo, sob esta forma de cultura, a ascese é o que permite ao
dizer-verdadeiro tornar-se modo de ser do sujeito, estamos
necessariamente muito distantes de uma áskesis tal como ve-
remos desenvolver-se no cristianismo, quando 0 dizer-ver-
dadeiro será essencialmente definido a partir de uma Reve-
lação, de um Texto e de uma relação que será uma relação
de fé, e quando a ascese, por sua vez, será um sacrifício: sa-
crifício de partes sucessivas de si mesmo e renúncia final a
si mesmo. Constituir-se a si mesmo por um exercicio em que
o dizer-verdadeiro se toma modo de ser do sujeito: o que ha-
veria de mais distante daquilo que agora entendemos em
nossa tradição histórica por uma ascese, ascese que re-
nunciaa si em função de uma Palavra verdadeira que foi
dita por um Outro? Aí está. Obrigado.
/
?
210. ..
NOTAS
1. Peri askéseos, in R. Musonius, Reliquiae, ed. O. Hense citada,
pp. 22-7 (cf. em francês, a tradução de Festugiere, in Deux prédica-
teurs dans l'Antiquité, Téles et Musonius, ed. citada, pp. 69~71).
2. A virtude, dizia ele, não é somente uma ciência teórica
(epistémê theoretiké), mas também um saber prático (allà kai praktiké)
como a medicina e a música. Portanto, assim çomo o médico e o
músico não devem somente ter assumido os princípios de sua arte,
mas também ter se exercitado a agir segundo os princípios (me
mónon aneilephénai tà theorémata tês hautou téknes hekáteron, allà kai
gegymnásthai práttein katà tà theorémata), assim também aquele
que quer ser um homem virtuoso não deve somente ter aprendi-
do a fundo (ekmanthánein) todos os conhecimentos que levam à
virtude, mas também ter se exercitado segundo estes conheci-
mentos com zelo e laboriosamente (gymná.zesthai katà tauta philo-
limos kai philopónos) (Deux prédicateurs dons I'Antiquité..., p. 69).
3. Sobre a idéia de uma áskesis tês aretês nos pitagóricos, cf.
J.-F Vernant, Le fleuve 'amelês' et la 'meletê thanatou''', in Mythe
et pensée chez les grecs, op. cit., t. I, pp. 109-12 (começo do artigo). '
4. Cf. a conclusão do mito de Protágoras sobre a virtude como
objeto de exercício: Quan'do se trata das qualidades que estima-
mos poderem ser adquiridas pela aplicação (epimeleías), pelo exer-
cício (askéseos) e pelo ensino, se elas faltam em um homem e são
nel~ubstituídas pelos defeitos contrários, é então que se produ-
zem as cóleras, as punições e as exortações (Protágoras, 323d, in
l
..... .
•
AULA DE 24 DE FEVEREIRO DE ]982 397
Platão, Oeuvres completes, t. III-1, trad. fr. A Croiset, Paris, Les BeI-
les Lettres, 1966, p. 38); cf. também, logo após a famosa passagem
de A República sobre a educação como conversão da alma: As ou-
tras faculdades chamadas faculdades da alma são análogas às fa-
culdades do corpo; pois é verdade que, quando elas faltam no iní-
cio, podemos adquiri-las depois pelo hábito e o exercício (éthesi
kai askésesin) (La République, livro VII, 518d-e, t. VlI-1, trad. E.
Chambry, ed. citada, p. 151).
5. Para as almas, eles [os sacerdotes egípcios] revelaram a
prática da filosofia (phi/osophías áskesin) (Busiris, in Isocrate, Dis-
cours, XI, 22, t. l, trad. G. Mathieu E. Brémond, Paris, Les Belles
Lettres, 1923, p. 193).
6. Sobre a áskesis em Diógenes, cf. parágrafo 23 (ele tirava
proveito de tudo para se exercitar) e sobretudo parágrafos 70-71
do livroVI de Vies et doctnnes des philosophes illustres (trad. fr. s. dir.
M.-O. Goulet-Cazé, ed. citada, pp. 736-8) e, sobre este assunto, o
livro de M.-O. Goulet-Cazé, L'Ascese cynique. Un commentaire de
Diogene Laerce VI 70-71, op. cito
7. Sobre a renúncia a si no cristianismo, cf. aula de 17 de fe-
vereiro, primeira hora.
8. Cf. o estudo realizado por Foucault, na primeira hora des-
ta aula, dos exercícios de percepção redutora em Marco Aurélio.
9. Cf. a análise deste mesmo texto na aula de 10 de fevereiro,
segunda hora.
10. Marc Aurele, Pensées,VII, 61, ed. citada, p. 79.
11. Referência à metáfora vegetal do parágrafo 8 (Lettres à Lu-
ci/ius, t. 11, livro V, carta 50, 8, ed. citada, p. 79).
12. Foucault pretende sem dúvida dizer aqui decreta (retoma-
da latina por Sêneca dos dógmata gregos; cf. Marc Aurele, Pensées,
VII, 2), que remetem a princípios gerais articulados em um siste-
ma, precisamente opostos aos praecepta (preceitos práticos pon-
tuais). Cf. a carta 95 em que Sêneca prega uma moral dos decreta:
Somente os axiomas (decreta) nos fortalecem, pos conservam a
,/segurança e a calma, abrangem ao mesmo tempo toda a vida e
toda a natureza. Entre os axiomas da filosofia e seus preceitos (de-
creta philosophiae et praecepta) existe a mesma diferença que entre
os elementos e as partes de um organismo [...]. Não chegamos à
verdade sem o socorro de princípios gerais (sine decretis): eles
abrangem toda a vida (Lettres à Lucilius, t. N, livro XV, carta 95, 12
e 58, pp. 91 e 107, cf. também parágrafo 60, assim com? a aula de
211. ..
•
398 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
17 de fevereiro, primeira hora, para a apresentação de Ariston de
Quiós de quem Sêneca faz o pai desta distinção na carta 94). Para
uma visão de conjunto deste problema, cf. P. Boyancé, Le Stoidsme
à Rome, in Association Guillaume Budé, VII Congres, Aix-en-Pro-
vence, 1963, Paris, Les Belles Lettres, 1964, pp. 218-54.
13. Assim também quanto aos argt!.mentos (lógon) que aco-
dem às paixões (pràs tà páthe boethousz). É preciso aplicar-se a eles
antes de experimentar as paixões, se tivermos bom senso, a fim de
que, preparados de longa data (pareskeuasménoi), eles se mostrem
mais eficazes (Plutarco, De la tranquillité de I'âme, 465b, trad. fr. J.
Dumotier J. Delradas, ed. citada, parágrafo 1, p. 99).
14. Esta metáfora aparece em Plutarco, em sua Consolation à
Appollonios, 1011.
15. Cf. aula de 17 de fevereiro, primeira hora.
16. Cf. esta imagem em Plutarco, Du contrôle de Ia colêre, em
453e.
17. Assim como os médicos têm sempre à mão (prókheira)
seus instrumentos e estojos para os cuidados de urgência, assim
também tenhas sempre prontos os princípios (dógmata) graças aos
quais poderás conhecer as coisas divinas e humanas (Marc Aure-
le, Pensées, IIt 13, p. 25 - para usos similares de prókheiron, cf. tam-
bém XI, 4; VII, 64: VII, 1; V, 1).
18. Cf. J.-F. Vemant, Aspects mythiques de la mémoire, in
Mythe et pensée chez les grecs, t. I, pp. 80-107 e M. Détienne, La mé-
moire du poete, in Les Maítres de véritédans Ia Crece archai'que (1967),
Paris, Pocket, 1994, pp. 49-70.
•
r
t
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982
Primeira hora
Separação conceitual entre a ascese cristã ea ascese filosó-
fica. - Práticas de subjetivação: a importância dos exercícios de
escuta. - A natureza ambígua da escuta, entre passividade e ati-
vidade: o Perl toú akoúein de Plutarco; a carta 108 de Sêneca;
ocolóquio I!, 23 de Epicteto. - A escuta sem tékhne. - As regras
ascéticas da escuta: o silêncio; gestualidade precisa e atitude ge-
ral do bom ouvinte; aatenção (vinculação ao referente do discur-
so e subjetivação do discurso por memorização imediata).
A propósito do tema geral da conversão de si, como
nos lembramos, procurei inicialmente analisar os efeitos do
princípio converter-se a si na ordem do conhecimento.
Procurei mostrar-lhes que não era preciso buscar estes efei-
tos no âmbito da constituição de si mesmo como objeto e
domínio de conhecimento, antes porém nO âmbito da ins-
tauração de certas formas de saber espiritual de que indiquei
dois exemplos, um em Sêneca e outro em Marco Aurélio.
Pois bem, isto no âmbito da máthesis. Em seguida, passei a
outro aspecto da conversão de si: os efeitos introduzidos pelo
princípio converter-se a si mesmo no que podemos cha-
mar de prática de si. Creio ser isto que, no geral, os gregos
chamavam de áskesis. Numa primeira abordagem - é o que
procurei mostrar-lhes brevemente no final da última aula-
parece-me que esta áskesis, tal como a entendiam os gregos
da época helenística e romana, está muito/distante daquilo
,/ que entendemos tradic,ionalmente porascese, na medida
em que nossa noção de ascese é, aliás, mais ou menos mo-
delada e impregnada pela concepção cristã. Parece-me que
- repito, trata-se somente de um esquema, um primeiro es-
qoço que lhes ofereço - a ascese dos filósofos pagãos ou, se
quisermos, esta ascese da prática de si na época helenística
j
212. ..
400 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
e romana, distingue-se muito límpida e claramente da as-
cese cristã em certos pontos. Primeiro, na ascese filosófica, na
ascese da prática de si, o objetivo final, o objetivo último não
é evidentemente a renúncia a si. Ao contrário, o objetivo é
colocar-se - e da maneira mais explícita, mais forte, mais
continua e obstinada possível- como fim de sua própria exis-
tência. Segundo, na ascese filosófica não se trata de regrar
a ordem dos sacrifícios, das renúncias que se deve fazer de
uma ou outra parte, de um ou outro aspecto do nosso ser.
Ao contrário, trata-se de dotar-se de algo que não se tem,
de algo que não se possui por natureza. Trata-se de consti-
tuir para si mesmo um equipamento, equipamento de de-
fesa contra os acontecimentos possíveis da vida. Era o que
os gregos chamavam paraskeué. A ascese tem por função
constituir uma paraskeué [a fim de que] o sujeito se constitua
a si mesmo. Terceiro, parece-me que a ascese filosófica, a as-
cese da prática de si não tem por princípio a submissão do
individuo à lei. Tem por princípio ligar o indivíduo à verdade.
Ligação à verdade e não submiss~o à lei: parece-me .er este
um dos aspectos mais fundamentais da ascese filosófica.
Em suma, poderíamos dizer que - e foi nisto, creio, que
me detive na última vez - a ascese é o que permite, de um
lado, adquirir os discursos verdadeiros, dos quais se tem
necessidade em todas as circunstâncias, acontecimentos e
peripécias da vida, a fim de se estabelecer uma relação ade-
quada, plena e acabada consigo mesmo; de outro lado, e ao
mesmo tempo, a ascese é o que permite fazer de si mesmo
o sujeito destes discursos verdadeiros, é o que permite fazer
de si mesmo O sujeito que diz a verdade e que, por esta enun-
ciação dáverdade, encontra-se transfigurado, e transfigura-
do precisamente pelo fato de dizer a verdade. Enfim, creio.
que podemos antecipar o seguinte: a ascese filosófica, a as-
cese da prática de si na época helenística e romana tem es-
sencialmente por sentido e função assegurar o que chamarei
de subjetivação do discurso verdadeiro. Ela faz com que eu
mesino possa sustentar este discurso verdadeiro, ela faz com
que me torne o sujeito de enunciação do discurso verdadei-
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•
AUlA DE 3 DE MARÇO DE 1982 401
ro, ao passo que a ascese cristã, por sua vez, terá sem dúvi-
da uma função completamente diferente: função, é claro, de
renúncia a si. Entretanto, no caminho em direção à renúncia
de si, ela dàrá lugar a um momento particularmente impor-
tante - de que lhes falei, creio, não sei mais se no ano pas-
sado ou há dois anos1 -, que é o momento da confissão, isto
é, o momento em que o sujeito objetiva-se a si mesmo em
um discurso verdadeiro. Parece-me que na ascese cristã en-
contraremos, pois,.um movimento de renúncia a si que pas-
sará, enquanto momento essencial, pela objetivação de si
num discurso verdadeiro. Parece-me que na ascese pagã, na
ascese filosófica, na ascese da prática de si da época de que
lhes falo, trata-se de encontrar a si mesmo como fim e ob-
jeto de uma técnica de vida, de uma arte de viver. Trata-se
de encontrar a si mesmo em um movimento cujo momento
essencial não é a objetivação de si em um discurso verdadei-
ro, mas a subjetivação de um discurso verdadeiro em uma
prática e em um exercício de si sobre si. No fundo, é esta es-
pécie de diferença fundamental que venho tentando fazer
aparecer desde o início deste curso. Procedimento de sub-
jetivação do discurso verdadeiro, é isto que encontraremos
continuamente expresso nos textos de Sêneca quando, a
respeito do saber, da linguagem do filósofo, da leitura, da
escrita, das anotações, etc., ele afirma: trata-se de fazer suas
(!lfacere suum)2 as coisas que se sabe, fazer seus os discur-
sos que se ouve, fazer seus os discursos que se reconhece
como verdadeiros ou que nos foram transmitidos como ver-
dadeiros pela tradição filosófica. Fazer sua a verdade, tor-
o nar-se sujeito de enunciação do discurso verdadeiro: é isto,
creio, o próprio cerne desta ascese filosófica.
/ Compreendemos então qual será a formã primeira, ini-
cial, indispensável da ascese concebida assim como subjeti-
vação do discurso verdadeiro. O primeiro momento, a pri-
meira etapa e, ao mesmo tempo também, o suporte perma-
nente desta ascese como subjetivação do discurso verdade;-
ro serão todas as técnicas e todas as prátic?-s que concexnem
à escuta, à leitura, à escrita e ao fato de falar. Escutar, saber
Instituto de PSicologia· UFRGS
Bihlitor~ -
213. ..
402 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
escutar Como se deve; ler e escrever como se deve; e tam-
bém falar, é isto que, enquanto técnica do discurso verdadei-
ro' será o suporte permanente e o acompanhamento inin-
terrupto da prática ascética. Vemos também - e voltaremos
ao assunto - quanto isto se aproxima e ao mesmo tempo é
profundamente diferente do que será a escuta da Palavra ou
a relação ao Texto na espiritualidade cristã. Assim, são estas
três coisas que hoje tentarei lhes explicar, a saber: primeiro,
a escuta como prática de ascese, entendida como subjetiva-
ção do verdadeiro; em seguida, leitura e escrita; por fim, em
terceiro lugar, a palavra.
Primeiramente pois, escutar. Pode-se dizer que escutar
é Com efeito o primeiro passo, o primeiro procedimento na
ascese e na subjetivação do discursó verdadeiro, uma vez
que escutar, em uma cultura que sabemos bem ter sido fun-
damentalmente oral, é o que permitirá recolher o lógos, reco-
lher o que se diz de verdadeiro. Mas, conduzida como con-
vêm, a escuta é também o que levará o indivíduo a persua-
dir-se da verdade que se lhe diz, da verdade que ele entontra
no lógos. E enfim a escuta será o primeiro momento deste
procedimento pelo qual a verdade ouvida, a verdade escuta-
da e recolhida como se deve, irá de algum modo entranhar-se
. no sujeito, incrustar-se nele e começar 'a tomar-se suus (a
tomar-se sua) e a constituir assim a matriz do êtJws. A passa-
gem da alétheia ao êthos (do discurso verdadeiro ao que será
regra fundamental de conduta) começa seguramente com
a escuta. Encontramos o ponto de partida e a necessidade
desta ascese da escuta no que os gregos reconheciam como
a naturezal'rofundamente ambígua da audição. E esta na-
tureza am5ígua da audição está expressa em alguns textos.
Um dos mais claros e explícitos sobre o assunto é o tratado
de Plutarco denominado precisamente Feri toú akoúein (tra-
duzível [por] De audiendo:Tratado da escuta)3 Neste Tratado
da escuta, Plutarco retoma um tema que afirma explicitamen-
te ter tomado de Teofrasto e que, de fato, procede de toda
uma problemática grega traclicional. Diz ele que, no fundo,
a audição, o ouvir, é ao mesmo tempo o mais pathetikós e o
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•
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 403
mais logikós de todos os sentidos. O mais pathetikós, isto é,
o mais - traduzamos grosseira e esquematicamente - /I pas-
sivo de todos os sentidos'. Significa que na audição, mais
do que em qualquer outro sentido, a alma encontra-se pas-
siva em relação ao mundo exterior e exposta atodos os acon-
tecimentos que dele lhe advêm e que podem surpreendê-la.
Plutarco assim explica: não se pode não ouvir o que se passa
ao redor de si. No final das contas, pode-se recusar a olhar:
fecha-se os olhos. Pode-se recusar a tocar em alguma coisa.
Pode-se recusar a degustar alguma coisa. Não se pode não
ouvir. Ademais, diz ele, o que prova a passividade da audi-
ção é que o próprio corpo, o indivíduo físico arrisca-se a ser
surpreendido e abalado pelo que ouve, muito mais do que
por qualquer objeto que [lhe] possa ser apresentado pela
visão ou pelo tato. Não se pode evitar o sobressalto com um
barulho violento e que nos toma de improviso. Passividade
do corpo, conseqüentemente, em relação ao ouvir, mais que
em relação a qualquer outro sentido. E por fim o ouvir é evi-
dentemente mais capaz do que qualquer outro sentido de
enfeitiçar a alma, recebendo e sendo sensível à lisonja das
palavras, aos efeitos da retórica, ou certamente também sen-
do sensível a todos os efeitos - algumas vezes positivos, ou-
tIas nocivos - da música. Reconhecemos aí um velho tema,
um velho tema grego cujas formulações foram numerosas.
Em todos estes textos a respeito da passividade da audição,
a referência a Ulisses, certamente, é uma regra: Ulisses que
chegou a vencer todos os sentidos, a dominar inteiramente
a si mesmo, a recusar todos os prazeres que se podiam apre-
sentar. Porém, quando costeia aregião em que ,ncontrará as
Sereias - nada, nem sua coragem, nem seu domínio de si,
/ nem sua sophrosyne, nem sua phrónesis, podia impedi-lo de
ser vítima delas, enfeitiçado por seus cantos e por sua mú-
sica. Ele é obrigado a tapar as orelhas dos marinheiros e fa-
zer-se atar ao mastro, tanto sabe que seu ouvir, sua escuta
é o mais pathetikós de todos os seus sentidos'- Lembremos
também o que cliz Platão a respeito dos poetas, a respeito
da música, etc6
Portanto, o ouvir é o mais pathetikós de todos
214. ..
•
404 A HERMENfuTICA DO SUJEITO
os sentidos. Mas, diz Plutarco, é também o mais logikós'- E
por logikós pretende indicar o sentido que, mais do que qual-
quer outro, pode receber o lógos. Plutarco afirma que os ou-
tros sentidos dão acesso essencialmente aos prazeres (pra-
zer da visão, prazer do gosto, prazer do toque).Também dão
lugar ao erro, como todos os erros óticos, todos os erros da
visão. É essencialmente por todos os outros sentidos, gosto,
toque, olfato, visão, é por todas estas partes do corpo ou dos
órgãos que asseguram estas funções, que se aprendem os
vícios; Em contrapartida, o ouvir é o único de todos os sen~
tidos pelo qual se pode aprender a virtude.Não se aprende
a virtude pelo olhar. Ela é aprendida e só pode ser aprendi-
da pelo ouvido porquanto a virtude não pode ser dissociada
do lógos, isto. é, da linguagem racional, da linguagem efeti-
vamente presente, formulada, articulada, verbalmente arti-
culada em sons e racionalmente articulada pela razão. Este
lógos só pode penetrar pelo ouvido e graças ao sentido da
audição. O único acesso da alma ao lógos é, pois, o ouvido.
Portanto, ambigüidade fundamental da audição: pathetikós
e logikós.
Esta ambigüidade da audição é um tema que encontra-
mos em outros textos do período que estamos estudando
(séculos 1-11) e sempre em referência a esta questão da prá-
tica de si, da condução da alma, etc. Gostaria de reportar-me
essencialmente a dois textos: um de Sêneca, na carta 108, e
outro de Epicteto. Com efeito, ambos retomam este tema
geral da ambigüidade do ouvir (pathetikós e logikós). Mas
cada qual de um ponto de vista um pouco diferente. Sêneca,
na carta'108, retoma a questão da passividade da escuta. Ele
a aborda deste ângulo e tenta mostrar a ambigüidade di'
própria passividade. Podemos dizer que Plutarco mostra
que o ouvir é ambíguo porque é ao mesmo tempo um sen-
tido pathetikós e lagikós. Sêneca retoma o tema da passividade
do ouvir (sentido pathétikas), mas faz deste mesmo patético
umpÍincípio de ambigüidade tendo, conseqüentemente,
vantagens e inconvenientes. É o que está claramente expli-
/
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 405
cado na carta 108. A fim de mostrar as vantagens da própria
passividade do ouvir, afirma: é afinal muito vantajoso que,
no fundo, o ouvido se deixe assim penetrar, sem q)le a von-
tade intervenha, e que ela recolha tudo o que do lógas possa
passar a seu alcance. Assim, diz de, [para] as aulas de filo-
sofia isto é sempre bom, pois mesmo se não se compreen-
de, mesmo se não se presta muita atenção, mesmo'se ali se
está de uma maneira totalmente passiva, alguma coisa sem-
pre permanece. Alguma coisa sempre permanece porque o
lógos penetra no ouvido, e assim, quer o sujeito queira, quer
não, há sempre um certo trabalho do lógas na alma. Quem
vai à aula de um filósofo deve, a cada dia e de algum modo,
dela colher algum fruto. E, de algum modo, volta pa,a casa
em vias de curar-se, ou pelo menos mais facilmente curá-
vel.8 [Reencontramos] a idéia, com que já nos havíamos
deparado, de que a aula de filosofia é, na realidade, um em-
preendimento terapêutico; lembremos o que dizia Epicteto:
a escola de filosofia é um iatrefon, é um dispensário
9
. Assim,
vai-se à aula de filosofia como se vai ao dispensário. E vol-
ta-se sempre ou em vias de curar-se, ou mais facilmente ra-
zoável. Tal é a virtude da filosofia, de que todos se beneficiam:
os prosélitos (tradução dada para sludentes, estudantes) e
também o círculo familiar (canversantes)10; isto é, tanto aque-
les que estudam com zelo, porque querem completar sua
formação ou tornar-se eles próprios filósofos, [quanto] aque-
les que simplesmente cercam o filósofo. Mesmo estes tiram
proveito. Assim, diz ele, quando saímos ao sol nos bronzea-
mos, ainda que não tivéssemos este propósito. Ou então,
quando permanecemos por muito tempo elj1 uma perfu-
maria' nos impregnamos involuntariamente do seu cheiro.
/ Pois bem: ~a mesma maneira, '~também não saímos da. aula
de um hlosofo sem necessanamente termos dela tIrado
algo forte o bastante para beneficiar até os desatentos (ne-
glegentibus).11
Esta passagem anedótica e curiosa refere-se na reali-
dade a um importante elemento de doutrina: a doutrina das
sementes da alma. Há sementes de virtude em toda alma
,.r-)
..
215. ..
406 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
razoável vinda ao mundo e elas é que são despertadas e ati-
vadas pelas palavras, palavras de verdade pronunciadas em
tomo do sujeito e recolhidas por ele através do ouvido. As-
sim como ele não é responsável por estas sementes de vir-
tude' que foram nele implantadas pela própria natureza de
sua razão, também o despertar pode se fazer por um lógos
que passa sem que ele esteja atento. Ocorre aí uma espécie
de automatismo do trabalho do lógos sobre a virtude, sobre
a alma; [automatismo] que é ao mesmo tempo devido à exis-
tência das sementes das virtudes e à natureza, à propriedade
do lógos verdadeiro. Esta, pois, a vantagem do lado patético,
passivo da audição. Entretanto, ainda na carta 108, Sêneca
observa que, em face disto, há inconvenientes. Se é verdade,
diz ele, que nos deixamos impregnar pela filosofia quando
vamos à aula, um pouco como nos bronzeamos ao ficar ao
sol, também é verdade que alguns vão à escola de filosofia
.sem tirar nenhum proveito. É porque, afirma, eles não esta-
vam na escola de filosofia cama discipuli (discípulos, alunos).
Estavam lá como inqui/ini, isto é, como locatários!'. Eram
locatários de seu assento no curso de filosofia, e afinal ali per-
maneceram sem tirar proveito algum. Mas, uma vez que a
teoria das sementes de virtude e dos efeitos, ainda que pas-
sivos, do lógos deveria ter possibilitado que se formassem,
se efetivamente permaneceram apenas locatários é porque
não prestavam atenção ao que era dito. Prestavam atenção
somente aos ornamentos, à beleza da voz, à escolha de pa-
lavras e ao estilo. Temos pois aí - e retomarei adiante - a ma-
triz da sesuinte questão: dado que o I6gos, porque diz a ver-
dade, é capaz de produzir espontaneamente e como que
automaticamente efeitos sobre a alma, como se explica que,
ele não produza indefinidamente, na própria passividade
da atenção, efeitos positivos? Pois bem, é porque a atenção
está mal dirigida. É porque ela não está dirigida para o bom'
objel? ou alvo. Donde a necessidade de uma certa arte, ou
em todo caso, uma certa técnica, uma certa maneira. conve-
niente de escutar.
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•
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 407
Vejamos agora o texto de Epicteto: é o colóquio lI, 23,
em que retoma ainda este tema, desta feita porém do lado do
ouvir com o sentido logikós. Enquanto Sêneca afirmava que
-o ouvir é passivo, apresentando assim inconvenientes e van-
tagens, Epicteto, por sua vez, partirá da audição como sen-
tido capaz de recolher o lógos e mostrará que isto é àmbí-
guo, ou seja, que até mesmo na atividade lógica da audição
há algo necessariamente passivo, necessariamente da ordem
do patético, tomando assim toda audição, inclusive a audi-
ção da,palavra de verdade, um pouco perigosa. Epicteto afir-
ma: E por meio da palavra e do ensino (dià lógou kai para;
dóseos) que se deve avançar no sentido da perfeição.!3 E
necessário portanto escutar, escutar o lógos e receber a pará-
dosis, que é o ensino, a palavra transmitida. Ora, dii;o ele, este
lógos, esta parádosis não pode se apresentar, por assim dÍzer,
em estado nu. Não se pàde transmitir as verdades deste
modo. Para que as verdades cheguem à alma do ouvinte é
preciso também que sejam pronunciadas. E não se pode
pronunciá-las sem certos elementos que estão ligados à pró-
pria palavra e à sua organização em discurso. Duas coisas /7
são, então particularmente necessárias. Primeiro uma léxis. '1
A léxis é a maneira de dizer: não se pode dizer as coisas ~em
uma certa maneira de dizer. E também não se pode dizer as
coisas sem ü.tilizar o que ele chama de /lcerta variedade e
certa fineza nos termos. Quer com isto significar que não
se pode transmitir as coisas sem escolher os termos que [as]
designam, sem, por conseguinte, certas opções estilísticas ou
semânticas que impedem que a própria idéia, ou antes a ver-
dade do discurso, seja diretamente transmitida. Assim, já que
a verdade não pode ser dita senão por lógos e parádosis (por
,;discurso e transrr:issão oral), e uma vez que a transmissão
oral recorre a uma léxÍs e a escolhas semânticas, compreen-
demos que o ouvinte corre o risco de dirigir sua atenção não
precisamente sobre a coisa dita, mas sobre estes elementos
que permitem dizê-la, e unicamente sobre eles. O ouvinte
corre o risco, diz ele, de ser cativado, e de assim permanecer
(kataménei)1'. [Assim] permanecer, nos elementos da léxis ou
'
216. ~
•
•
408 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
nos elementos de vocabulário, a isto é que se expõe todo
indivíduo que fala e que se endereça a seus ouvintes. A isto
é que, por Sua vez, se expõe todo ouvinte que não dirige a
atenção para onde é preciso. Vemos então que, com a escu-
ta, com a audição, estamos de todo modo em um mundo,
em um sistema ambíguo. Quer tomemos o aspecto do pa-
tético, quer o do logikós, de qualquer maneira a audição está
sempre submetida a erro. Está sempre submetida a contra-
sensos, a faltas de atenção. .
Epicteto introduz aqui, creio, uma importante noção,
que nos conduzirá precisamente ao tema da ascese da es-
cuta. Diz ele: no fundo, se quando escutamos temos que nos
haver com um lógos, se este lógos não é dissociável de uma
léxis (de uma maneira de dizer), se tampouco é dissocjável
de certo número de palavras, então compreendemos que
escutar seja quase tão difícil quanto falar. Pois, quando fala~
mos, acontece-nos falar de modo útil; acontece [também] fa-
lannos de maneira inútil; acontece até mesmo falarmos de
maneira nociva. Assim, também, podemos escutar com
proveito; podemos escutar de maneira completamente inú-
til e sem tirar qualquer proveito; podemos até mesmo escu-
tar de modo tal que só tiremos inconvenientes. Pois bem, diz
Epicteto, para saber falar como convém, de modo útil, para
evitar falar de maneira vã ou prejudicial, é preciso algo co_O
mo uma tékhne, uma arte. De igual modo, para esculpir comô
convém, é preciso uma certa tékhne. Pais bem, diz ele, para
escutar, é preciso empeiría, isto é, competência, experiência,
a saber: habilidade adquirida. E preciso também tribé (tribé
é aplicação, prática assídua). Portanto, para escutar como
convém, é preciso empeiria (habilidade adquirida) e tribé (prá,
tica assídua), assim como para falar é preciso tékhne. Há,
como vemos, aproximação e diferença ao mesmo tempo.
Epicteto realça que, para falar como convém, precisamos de
tékhne, de uma arte, enquanto, para escutar, precisamos de
experiência, de competência, de prática assídua, de atenção,
~ aplicação, etc. Ora, no vocabulário filosófico técnico (o
vocabulário filosófico em geral), há comumente uma opo-
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AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 409
sição reconhecida, admitida (uma distinção, em todo caso)
entre tékhne de um lado e, de outro, tribé e empeiria. Há uma
passagem do Fedro que é perfeitamente clara a este respei-
to. Em 270b, Platão fala da medicina e da arte oratória. Diz
ele que na medicina e na arte oratória é evidentemente ne-
cessário bastante hábito, experiência, etc. Porém, diz ainda,
empeiria e tribé (as duas palavras estão emparelhadas como
no texto de Epicteto) não bastam. Também temos necessi-
dade de algo que é a tékhne. A tékhne assenta-se [no] e im-
plica o conhecimento - conhecimento do que é o corpo em
sua própria realidade. Éassim que a medicina será uma tékh-
ne, ou em todo caso suporá uma, que se assenta no conhe-
cimento do corpo. E a arte oratória será uma tékhne na medi-
da em que se assentar no conhecimento da alma. Já no caso
de empeiríQ e tribé não há necessidade de conhecimentos15
.
Nestas condições, compreendemos bem por que, tão natu-
ralmente em Epicteto - como de resto em todas estas refle-
xões sobre a escuta acerca da prática de si -, a escuta não
pode ser definida como tékhne, porquanto com ela estamo~
no primeiro estágio da ascese. Na escuta, começamos a1:tif
contato com a verdade. E como então poderia a escuta ser
uma tékhne, se a tékhne supõe um conhecimento, conheci-
menta que só podemos adquirir pela escuta? Conseqüen-
temente, o que poderíamos chamar - mas banalizando a
palavra - umaarte da escuta não pode ser umaarte no
sentido estrito. Ela é experiência, competência, habilidade,
uma certa- maneira de se familiarizar com as exigências da
escuta. Empeiría e tribé, não ainda tékhne. Há uma tékhne
para falar, não há tékhne para escutar.
Como então se manifesta esta prática, assídua, regrada,
não ainda tékhne? Sob que regra ela se coloca e quais são
suas exigências? O problema é este: já que temos de nos ha-
ver com uma escuta ambígua, que tem sua parte de pathe-
tikós e seu papellogikós, como conseguir conservar este papel
logikós, eliminando tanto quanto possível todos os efeitos
I de passividade involuntária que possam ser nocivos? Trata-se
em suma, nesta prática refletida, nesta prática aplicada da
217. ..
•
410 AHERMENtUT/CA DO SUJEITO
escuta, de purificar a escuta lógica. Como se purifica a escuta
lógica na prática de si? Essencialmente por três meios. O
primeiro é certamente o silêncio. Velha regra ancestral, se-
cular, até milenar nas práticas de si, regra que os pitagóri-
cos, como sabemos, haviam realçado e imposto. Os textos,
em particular o Vida de Pitágoras de Porfíriol6
, o repetem. Nas
comunidades pitagóricas impunham-se cinco anos de silên-
cio aos que ingressavam e deviam ser iniciados. Éclaro que
cinco anos de silêncio não significava que era preciso calar-
se totalmente durante cinco anos, mas que, em todos os exer-
cícios, em todas as práticas de ensino, de discussão, etc., en-
fim a cada vez que era preciso haver-se com o lógos enquan-
to discurso verdadeiro, quando se ingressava nestas práti-
cas e exercícios do discurso verdadeiro, quem não passava
de um noviço não tinha o direito de falar. Devia escutar, es-
cutar somente, nada mais fazer senão escutar sem intervir,
sem objetar, sem dar sua opinião e, bem entendido, sem en-
sinar. Este, creio, é o sentido a ser atribuído a esta famosa
regra do silêncio durante cinco anos. Este tema, particular-
mente acentuado e desenvolvido entre os estóicos, é en-
contrado sob formas mais brandas e mais adaptadas à vida
cotidiana nos textos de que lhes falo, essencialmente os de
Plutarco, Sênecal7
, etc. Em Plutarco, de modo particular, há
toda uma série de observações sobre a necessidade do silên-
cio. Podem ser encontradas no tratado Peri toú akoúein de que
lhes falei há pouco e também em um outro tratado consa-
grado à tagarelice, entendida, evidentemente, como o contrá-
rio imediato do silêncio; tagarelice que constitui o primeiro
vício do qual é necessário curar-se quando se começa a
aprender filosofia e nela se iniciar. Plutarco faz da aprendi-
zagem do silêncio um dos elementos essenciais da boa edu-
cação. O silêncio, diz ele no Tratado sobre a tagarelice, tem
alguma coisa de profundo, de misterioso e de sóbriol '. Fo-
ram os deuses que ensinaram o silêncio aos homens e foram
os homens que nos ensinaram a falar. As crianças que rece-
berh uma educação verdadeirame.nte nobre, verdadeiramen-
te real, aprendem primeiro a guardar o silêncio, e 'somente
rI
/'
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 411
qepois aprendem a falar. Toda esta questão sobre a economia
do silêncio em relação à linguagem teve, como sabemos,
um papel na espiritualidade - ao qual poderemos certa-
. mente voltar. Teve também um papel muito importante nos
. sistemas de educação. O princípio de que as crianças de-
vem se calar antes de falar pode hoje nos surpreender, po-
rém não devemos nos esquecer de que há algumas décadas
a educação de uma criança, ao menos antes da guerra de
1940, começava fundamentalmente pela aprendizagem do
silêncio19
. A idéia de que uma criança possa falar livremen-
te é algo que estava banido do sistema da educação, desde
a Antiguidade·grega e romana até a Europa modema. Portan-
to, educação [para oJ silêncio. Entretanto, não é nisto que
gostaria de insistir, mas no fato de que, para Plutarco, não
apenas o silêncio, esta educação dos deuses, deve ser o prin-
cípio fundamental da educação dos seres humanos, como
ainda é preciso fazer ,reinar em si mesmo, por,toda a vida,
uma espécie de economia estrita da palavra. E preciso ca-
Iar-se tanto quanto possível. Que significa calar-se tanto quan- ~
to possível? Significa, é claro, que não se deve falar quando· ',I
um outro fala. Mas é preciso igualmente - e é este, creio, o
ponto importante do texto de Plutarco sobre a tagarelice -
que quando se ouve alguma coisa, quando se acaba de ou-
vir uma lição, quando se acaba de ouvir um sábio falar, quan-
do se acaba de ouvir um poema ser recitado ou uma senten-
ça pronunciada, cercar então a escuta que acaba de se operar
com uma aura e uma coroa de silêncio. Não reconverter de
imediato aquilo que se ouviu em discurso. No sentido estri-
to, é preciso retê-lo, isto é, conservá-lo e evitar ~convertê-lo
de imediato em palavras. E Plutarco imagina ademais, para
',;e divertir, que exist~ no tagar~la uma cutiosa anomalia fi-
sioógica. Segundo ele, ironiza, no tagarela o ouvido não se
comunica diretamente com a alma: o ouvido se comunica
diretamente com a língua20. De modo que, assim que uma
coisa acaba de ser dita, ela passa imediatamente para a
língua, e então se perde. Tudo o que o tagarela recebe pelo
ouvido escoa, derrama-se de imediato no que ele diz e, der-
218. ..
412 A HERMENÊUTICA DO SUJEITO
ramando-se no que ele diz, a coisa ouvida não pode produ-
zir nenhum efeito sobre a própria alma. O tagarela é sem-
pre um recipiente vazio. O tagarela é incurável, pois só se
pode curar esta paixão da tagarelice, assim como as outras
paixões, pelo lógos. Ora, o tagarela é alguém que não retém
o lógos, que o deixa derramar-se de imediato no seu próprio
discurso. Conseqüentemente, não se pode curar o tagarela,
a menos que ele queira se calar'l Pode-se dizer que tudo
isto não é muito sério nem muito importante. Penso porém
- e tentarei mostrar-lhes adiante - que é interessante com-
parar todas as obrigaçõesconcementes à linguagem daque-
le que se inicia com as obrigações de escuta e de palavra
que encontraremos na espiritualidade cristã, em que a eco-
nomia silêncio/palavra é inteiramente diferente22
. Portanto,
primeira regra, se quisermos, na ascese da escuta, e a fim de
melhor separar o lado pathetikós e perigoso da escuta de seu.
lado logikós e positivo; o silêncio.
Mas, é claro, este silêncio não é suficiente. Além dele é
preciso uma certa atitude ativa. E esta atitude ativa é anali-
sada de diferentes maneiras, também elas, muito interes-
santes sob sua aparente banalidade. Primeiramente, a escuta
requer da parte de quem escuta uma determinada atitude
física muito precisa e que está claramente descrita nos tex-
tos da época. Esta atitude física muito precisa tem uma du-
pla função. Inicialmente tem a função de permitir a máxima
escuta, sem nenhuma interferência, sem nenhuma agita-
ção. A alma deve, de algum modo, acolher sem perturbação
a palavra que lhe é endereçada. Conseqüentemente, se a alma
deve es,lar completamente pura e sem perturbação para es-
cutar a palavra que lhe é endereçada, é preciso que também
o corpo permaneça absolutamente calmo. Ele deve expJi-
mir, e de algum modo garantir, selar, a tranqüilidade da
alma. Daí a necessidade de uma atitude, uma atitude física
muito precisa e tão imóvel quanto possível. Mas ao mesmo
tel:;'po é preciso que o corpo - a fim de cadenciar de algum
modo a atenção, exprimi-la, fazer acompanhar exatamente
o que está sendo dito - manifeste, com um certo número de
f
I
__ 1..
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AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 413
sinais, que efetivamente a alma compreende e recolhe o ló-
gos tal como lhe é proposto e tal como lhe é transmitido.
Portanto, há uma regra fundamental de imobilidade do cor-
~ po, garantindo a qualidade da atenção e a transparência da
alma ao que vai ser dito e, ao mesmo tempo, um sistema se-
miótico que imporá marcas de atenção; marcas de atenção
pelas quais o ouvinte se comunica com o orador e, ao mes-
mo tempo, garante para si que sua atenção acompanhe bem
o discurso do orador. .
Há, a este respeito, uma passagem muito interessante
e bem explícita. Ela é [de] Fílon de Alexandria e está no De
vita contemplativa, de que já lhes falei- Trata-se, como sa-
bemos' da descrição de um grupo espiritual chamado Tera-
peutas, que tem por objetivo precisamente cuidar da pró-
pria alma e salvá-la. Estes Terapeutas, que vivem em comu-
nidade. fechada, têm certas práticas coletivas e, dentre elas,
banquetes durante os quais há alguém que toma a palavra
e ensitÍa [...], o ouvinte ou aqueles que estão sentados e par-
ticipam do banquete, e também os ouvintes mais jovens, os . rmenos integrados e que permanecem em pé ao redor. Ora, .
diz ele, todos devem portar-se da mesma maneira. Devem,
primeiramente, voltar-se para o orador (eis autón). Devem para
ele voltar-se guardandoepi miâs kai tés autés skhéseos epi-
ménontes (mantendo-se na mesma skhesis, na mesma ati-
tude' única e idêntica). Isto se refere, pois, àquela obrigação
de uma atenção fixa, garantida e expressa pela imobilidade.
Refere-se também, como sabemos, a algo muito interessan-
te do ponto de vista, digamos, da cultura corporal da Anti-
guidade: o julgamento sempre extremamenteClesfavorável
sobre todas as agitações do corpo, todos os movimentos in-
/,oluntários, todos os movimentos espontâneos, etc. A imo-
bilidade, a plástica do corpo, a estatuária do corpo imóvel,
tão imóvel quanto possível, é muito importante. É muito im-
portante como garantia da moralidade. É muito importante
também para que os gestos, gestos do orador, gestos daque-
le que quer convencer e que constituirão uma linguagem
muito precisa, sejam carregados do máximo valor semânti-
219. ..
414 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
co. Para que esta linguagem seja bem precisa e eficaz, para
que ela faça sentido, é preciso ainda que o próprio corpo,
quando em seu estado corriqueiro e quando não se está fa-
lando, permaneça completamente imóvel, inalterável e como
que petrificado. Encontramos então um grande número de
textos que se referem a esta má qualidade moral e intelec-
tual de quem se agita o tempo todo e faz gestos incon-
gruentes. Esta incongruência de gestos e esta perpétua mo-
bilidade do corpo não são outra coisa senão a versão física
da stultitia; stultitia que, como sabemos, é aquela perpétua
agitação da alma, do espírito e da atenção; stultitia que vai de
um sujeito a outro, de um ponto de atenção a outro, que sal-
tita sem cessar e que tem igualmente sua versão moral na
atitude do e!feminatus26
, do homem efeminado, no seguinte
sentido: o homem, por assim dizer, passivo em relação a si
mesmo, incapaz de exercer sobre si a enkráteia, o domínio,-
a soberania. Tudo isto está ligado. Acerca desta necessidade
da imobilidade física de que fala Fílon, gostaria de ler um
texto quase contemporâneo, que está na carta 52 de Sêneca,
onde ele afirma que não se deve portar-se na escola como
no teatro2i
. ;JSe examinarmos bem, todas as coisas no mun-
do se revelam por todo tipo de sinais exteriores e, para se
apreender um índice sobre a moralidade, os menores deta-
lhes podem bastar. O homem de maus costumes [impudicus:
é interessante o emprego desta palavra, que tem quase o
mesmo sentido de e!feminatus, que indica maus costumes
sexuais, mas [também], de uma maneira geral, uma má mo-
ralidade, traduzindo, repito, na ordem do êthos, da conduta,
a agita;ão que caracteriza a stultitia; M.F.] tem, para denun-
ciá-lo, seu andar, um movimento de mão, por vezes uma
simples resposta, o fato de levar um dedo à cabeça [e co~á
la: são todos sinais de maus costumes e má moralidade;
M.F.28]. O pífio é traído por seu riso; o louco, por sua fisiono-
mia e seu semblante. São taras que se mostram por certas
!11J'tfcas sensíveis. Mas queres conhecer o indivíduo a fundo?
Observa como ele faz e como -recebe louvores..lAssim nas
aulas de filosofia, acontece que - M.,F.] de todos os lados
r
,-
f
L
._----------
•
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 415
mãos se levantam e aplaudem em honra do filósofo; sua ca-
beça desaparece sob a vaga de ouvintes entusiastas. Ei-lo co-
berto de louvores; melhor dizendo, coberto de gritos. Deixe-
-mos estas demonstrações ruidosas às profissões cujo objeto
é divertir o povo. Que a filosofia tenha nossa muda admira-
ção. Retorno ao texto de Fílon sobre a necessidade, para
a boa escuta da palavra verdadeira, de guardar uma única e
mesma atitude sem qualquer agitação exterior, sem qual-
quer gesto. Mas, diz ele, guardando esta mesma atitude, é
preciso ainda que os discípulos - aqueles que escutam du-
rante o banquete - primeiro dêem sinais para mostrar efe-
tivamente que acompanham e que compreenderam (que
acompanham: [de] syniénai; que compreenderam: [de] ka-
teilephénai). Para mostrar que acompanham e que compreen-
deram, devem utilizar acenos de cabeça e um certo modo
de olhar o ouvinte. Em segundo lugar, se aprovam, e para
mostrar que aprovam, devem exprimi-lo com um sorriso e
um leve movimento da cabeça. E enfim, se querem mostrar
que estão confusos, que não estão acompanhando, pois bem, ~4-
devem balançar levemente a cabeça e levantar o dedo indi-
cador da mão direita, gesto que todos nós também apren-
demos nas escolas30 Vemos, pois, aquele duplo registro da
imobilidade da estátua garantindo a qualidade da atenção e
'permitindo assim ao lógos penetrar na alma, como também
do jogo semiótico do corpo pelo qual o ouvinte, a um tem-
po, manifesta e manifesta também para si, sua atenção, ga-
rante para si mesmo que acompanha bem e que bem com-
preendeu e, ao mesmo tempo, guia o ritmo -í!aquele que
fala, guia o ritmo do discurso e as explicações daquele que
. está falando. Portanto, o que se requer do bom ouvinte da
)ilosofia é uma espécie de silêncio ativo e significativo. Éeste
o primeiro aspecto da regulamentação de certo modo física
da atenção, da boa atenção, da boa escuta.
Há também uma regulamentação, ou antes um princí-
pio mais amplo, que conceme à atitude em geral. Com efei-
to, a'boa escuta do discurso verdadeiro não implica apenas
esta atitude física precisa. A escuta, a boa escuta ~a filosofia
220. fi'
•
•
416 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
deve Ser uma espécie de compromisso, de manifestação da
vontade por parte de quem escuta, manifestação que susci-
ta e sustenta o discurso do mestre. Temos então, creio, um
elemento muito importante, sobretudo se o referimos a Pla-
tão, ou melhor, a Platão dos primeiros diálogos socráticos.
A este respeito há duas passagens de Epicteto sobre a boa
atitude a se ter em geral na relação com aquele que diz a
verdade. Elas se encontram no segundo livro dos Diálogos e
no primeiro colóquio do livro III. Nos dois casos trata-se de
uma cena, em que se vê dois jovens, muito delicados, finos,
perfumados, de cabelos frisados, etc., que vêm escutar Epic-
teto e solicitar a orientação do mestre. Ora, Epicteto recusa
estes jovens. Ou, em todo caso, mostra uma grande reticên-
cia em aceitar que o escutem. É interessante o modo como
Epicteto explica sua recusa. Particularmente em um dos ca~
sos, trata-se de um daqueles jovens, muito perfumados, que
acompanhou seu ensino e, ao cabo de algum tempo, irri-
tou-se dizendo a Epicteto: Pois bem, nada aprendi de teu
ensino. Ademais, não prestaste atenção em mim. Era como
se eu estivesse ausente, /I muitas vezes vim a ti e nunca me
respondeste31 E o jovem prossegue com sua reclamação,
dizendo: Não me respondeste, e contudo IISOU rico, sou
belo, sou forte e sou um bom orador. Portanto, e este é
um aspecto importante, ele acompanhou o ensino da retó-
rica e sabe falar. Epicteto responde: Ora, pessoas ricas, há
outras mais que tu; pessoas belas, também; pessoas fortes,
conheço muitas outras; melhores retóricos, também. Como
sabemos, é o velho argumento encontrado constantemente
na c!ii1tribe cínica ou estóica: por mais rico que seja o rico,
há um mais rico; por mais,poderoso que seja o rei, Deus é
ainda mais poderoso, etc. E assim que Epicteto resporde. E
após ter assim respondido acrescenta: Eis tudo o que te-
nho a dizer-te [que há mais rico, mais belo, mais forte e me-
lhor orador que tu; M.F.], mas nem mesmo isto tenho von-
.(ade de dizer-te. E por que, pergunta o jovem, não tens
vontade de me dizer? Pois bem, porque não me estimulaste,
não me excitaste. E este tu não me incitaste (erethízein)33 re-
)
t
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 417
fere-se a um desenvolvimento que está um pouco acima -
um pouco antes - quando Epicteto dizia a seu ouvinte: Mos-
tra-me a que posso chegar discutindo contigo. Excita meu
desejo [kínesón moi prothymían: incita minha vontade em
discutir contigo; M.F.]. Nesta p!,ssagem Epicteto recorre
a duas comparações. Afirma ele: E preciso que excites meu
desejo, porque nada se pode fazer se não se tem algum de-
sejo de fazer. Por exemplo, a cabra só é incitada a pastar se
lhe mostramos um prado bem verde. Ou ainda, um cavalei-
ro só é incitado a se interessar por um cavalo na medida em
que o cavalo tiver um belo porte. Pois bem, diz ele, assim
também, quando quiseres ouvir um filósofo, não lhe per-
guntes: 'O que tens a dizer-me?' Contenta-te em mostrar
tua própria competência para ouvir [ddknue sautàn émpeiron
tou akoúein: mostra-te hábil, experimentado em escutar35;
M.F.r. Trata-se da mesma noção de empeiria de que lhes fa-
lava há pouco: deves pois mostrar competência para ouvir,
e verás então como o excitarás a falar. Esta cena é interes-
sante, tanto quanto aquela que encontramos no primeiro co- Hlóquio do livro III36, pois, desde logo, temos aquele peque- '
no personagem, o jovem que acabara de chegar. Fica clara a
referência a Alcibíades que, também ele, viera para seduzir
Sócrates, e a quem Sócrates, como sabemos, resistiu. A en-
kráteia (o domínio de si) do professor de filosofia está sela-
da por sua reticência em se deixar tomar, seja pela beleza
real e intrínseca de Alcibíades, seja, com mais razão, pelos
vãos galanteios de todos aqueles jovens. Mas, por outro
lado, mostrando-se assim enfeitado, o jovem bem revela
não ser capaz de aplicar ao discurso verdadeir6 uma aten-
ção verdadeira e eficaz. Ele não pode efetivamente escutar
/ como se deve a filosofia, uma vez que se apresenta perlu-
mado, de cabelos frisados, etc. Pois ele atesta com isto que
só se interessa pelo ornamento, pela ilusão, em suma, por
todas as artes da lisonja. Portanto, é um bom aluno para o
professo: de lisonja, professor de ilusão, professor de oma-
mento. E o aluno adequado para o professor de retórica.
Não é o aluno adequado para o professor de filosofia. E é por
221. ..
•
418 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
isto que, em um caso como no outro, estes jovens são sem-
pre alunos de retórica. Da parte do mestre, encontramos
igualmente uma referência evidente ao tema socrático, na
medida em que o mestre (Epicteto) resiste como Sócrates ao
feitiço da beleza dos rapazes. Lembremos porém que o in-
teresse de Sócrates por seu aluno assentava-se afinal, ape-
sar da resistência que opunha àsedução física, sobre o amor
que tinha porAlcibíades, senão porAlcibíades, em todo caso
pela beleza da alma que se manifestava naqueles que o as-
sediavam, solicitando-lhe diálogo ou direção. A beleza física
e espiritual do aluno era indispensável, assim como o éros
do mestre. Em Epicteto [ao contrário], será completamente
diferente. A recusa do jovem perfumado e, de resto, além
destes jovens perfumados, a ausência de qualquer outra re-
ferência em Epicteto ao que poderia ser o elo amoroso do
mestre com o aluno mostram que se esvaziou naquele mo-
mento a necessidade do éros (do amor e do desejo) para·a
escuta da verdade. A rejeição de todos os jovens perfuma-
dos mostra que Epicteto só pede uma coisa àqueles por
quem irá se interessar. Recusa de todos os ornamentos, es-
vaziamento de tudo O que poderia constituir as artes da se-
dução: mostra-se com isto que Epicteto [só tem interesse],
e o mestre só deve ter interesse ~ mediante uma vontade
assídua, austera e despojada de todo ornamento, de toda
afetação, de toda lisonja e ilusão - pela verdade. Éesta aten-
ção à verdade e somente ela que deve permitir ao mestre ser
excitado, incitado a ocupar-se com seu aluno. Compreen-
de-se, assim, que aqueles jovens não excitem, não incitem
o mestre a falar. Des-erotização da escuta da verdade no
discurSo do mestre: é isto, creio, que aparece claramen~e
neste texto de Epicteto.
Falei-lhes primeiro do silêncio; depois, das regras; por
assim dizer, da atitude física, atitude precisa durante a escuta,
atitude global do corpo, relação do indivíduo com seu pró-
p,;;o corpo - como acabo de lhes mostrar a partir deEpicte-
to. Agora, um terceiro conjunto de regras de escuta: as que
concernem à atenção propriamente dita. Gostaria então de
I
-('
J....
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 419
retornar um instante à passagem em que Epicteto dizia que
o ensino da filosofia, como lembramos, não podia deixar de
passar pelo lógos, um lógos que implica uma léxis e certas es-
c-olhas de termos. Ou ainda, gostaria de retornar à carta 108
em que Sêneca conta os benefícios que podemos receber de
um ensino da filosofia, mesmo quando somos passivos. Es-
tes dois textos mostram bem que de fato o discurso filosó-
fico não se opõe total e inteiramente ao discurso retórico. O
discurso filosófico, bem entendido, é destinado a dizer a ver-
dade. Mas ele não pode dizê-la sem certos ornamentos. O dis-
curso filosófico deve ser escutado com toda a atenção ativa
de alguém que procura a verdade. Mas ele também tem
efeitos que são devidos, de certo modo, à sua materialidade
própria, à sua plástica própria, à sua retórica própria. Por-
tanto, não há dissociação efetiva a fazer, mas o trabalho do
ouvinte, escutando este discurso necessariamente ambíguo,
deve consistir precisamente em dirigir sua atenção como
convém. Dirigir sua atenção como convém - o que isto sig-
nifica? Pois bem, significa duas coisas.
Primeiramente, é preciso que o ouvinte dirija sua aten-
ção para o que é tradicionalmente chamado tà prâgma. Obser-
vo que tà prâgma não é simplesmentea coisa. li um termo
filosófico e de gramática muito precisa, que designa a refe-
rência da palavra (Bedeutung, se quisermos38
). Épara o refe-
rente da expressão que se deve dirigir-se. Por conseqüên-
cia, é preciso fazer, naquilo que é dito, todo um trabalho
de eliminação dos pontos de vista que não são pertinentes.
A atenção não deve ser dirigida para a beleza da forma; ela
não deve ser dirigida para a gramática e para o vbcabulário;
. não deve nem mesmo ser dirigida para a refutação das ar-
,ZÚcias filosóficas ou sofísticas. É preciso apreender o que é
dito. Épreciso apreender o que é dito por este lógos de verda-
de sob o único aspecto interessante para a escuta filosófica.
Pois o prâgma (o referente) da escuta filosófica é a proposi-
ção verdadeira enquanto pode transformar-se em preceito
de ação. Gostaria, então, se me concederem ainda alguns
minutos, de retomar aquela carta 108 de que lhes falei, fun-
t
222. r!
rI
..
•
420 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
damental para toda esta técnica da escuta. Nesta passagem,
Sêneca fornece, a meu ver, um bom exemplo do que deve
ser a escuta ativa, a escuta bem dirigida, aquilo que pode-
ríamos chamar de escuta parenética39 de um texto. Toma
como exemplo uma citação das Geórgicas de Virgüio40
. O
texto é simplesmente: O tempo foge, o irreparável tempo.
A esta única expressão, a este simples verso, pode-se apli-
car diferentes formas de atenção. O que virá ao espírito do
gramático quando prestar atenção a este verso: O tempo
foge, o irreparável tempo?4! Pois bem, virá a seu espírito
que VirgHio /I sempre coloc~ juntas as doenças e a velhice.
Fará algumas referências, remissões a outros textos deVirgI1io
em que há esta associação entre a fuga do tempo, a velhice
e a doença, justaposição, com efeito, bem legitima, sendo a
velhice uma incurável doença. Ademais, que qualificativo
Virgüioaplica regularmente à velhice? Pois bem, diz o gra-
mático,VirgI1io aplica em geral à velhice o qualificativo tris-
te: Eis que acorrem as doenças, a triste velhice. Ou cita-'
rá ainda .este outro texto deVirgI1io: 'É a estação das pálidas
doenças, da triste velhice'. Não é de admirar que cada qual
explore o mesmo assunto conforme slias tendências.42 E o
gramático, o filólogo, enfim aquele que se interessa pelo
texto se divertirá em encontrar as referências mais ou menos
análogas no texto de VirgI1io. Mas aquele que tem seus
olhares voltados para a filosofia verá que VirgI1io jamais
diz que os dias andam. Diz que os dias fogem. O tempo
foge, o que é uma maneira mais precipitada de correr do
que o andar. Virgüio diz, em todo caso é isto que o filósofo
deve.l'ntender: Nossos mais belos dias são também os pri-
meiros a serem arrebatados. POLque então.ta[damos. em
al'Eessar assim nosso passo a fim de igualar m v~Eidad_e
o ol:íjeIorriãispreste,,-;inos escapar:-A:rnê1Jiõr porçaopãssa
num-bater de asas; e'écpíor--se-iTfSfaTà---:'Da ânfora transborda
primeiro o mais puro; o mais espesso, o elemento turvo sem-
-pre cai ao fundo. Assim em nossa vida a melhor parte está
no começo. E nós a deixamos exaurir pelos outros, reser-
vando-nos somente a borra? Gravemos isto em nossa alma,
r
í
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 421
registremo-lo como um oráculo celeste: o tempo foge, o ir-
reparável tempo44. Como vemos, dois tipos de comentários:
o comentário filológico e gramatical que Sêneca descarta e
que consiste em encontrar citações análogas, em buscar as-
sociações de palavras, etc. E depois a escuta filosófica, a es-
cuta que é parenética: trata-se de, a partir de uma proposi-
ção' de uma afirmação, de uma asserção (o tempo foge),
chegar pouco a pouco, meditando sobre ela, transforman-
do-a de elemento em elemento, a um preceito de ação, a
uma regra não somente para se conduzir mas para viver de
uma maneira geral e fazer desta afirmação algo que está gra-
vado em nossa alma como pode estar um oráculo. A aten-
ção filosófica é portanto aquela que se dirige para um prâg-
ma, prâgrna que é um referente, uma Bedeutung, Bedeutung
que abrange a própria idéia e ao mesmo tempo aquilo que,
na idéia, pode e deve se tornar preceito.
. . Enfim, a segunda maneira de prestar atenção na corre~
ta escuta filosófica, consiste em, logo após ter ouvido a coi~
sa, sob seu aspecto ao mesmo tempo de verdade dita e de
prescrição dada, começar uma memorização. É preciso que
a coisa, assim que a tivermos ouvido da boca daquele que a
pronunciou, seja recolhida, compreendida, bem apreendida
no espírito, de modo que não escape em seguida. Daí toda
uma série de conselhos tradicionalmente dados nesta ética
da escuta: quando se ouvir alguém dizer alguma coisa de
importante, não se colocar imediata e interminavelmente a
discuti-la; procurar recolher-se, guardar o silêncio para me-
lhor gravar o que se ouviu, e fazer um rápido exame de si
mesmo após a lição que se ouviu ou a conversaque se aca-
bou de ter; lançar um rápido olhar sobre si mesmo para ver
,/ como se ,está, para examinar se o que se ouviu e aprendeu
constitui uma novidade em relação ao equipamento (a pa-
raskeuej de que já se dispunha e ver, conseqüentemente, em
que medida e até que ponto foi possível aperfeiçoar-se. So-
bre este tema Plutarco faz uma comparação com o que se
passa em um salão de cabeleireiro. Nunca deixamos um sa-
1ão de cabeleireiro sem ter lançado uma discreta olhadela no
Instituto de Psicologia - UFRGS
njhl;.....~....--
223. ..
422 A HERMENêUTICA DO SUJEITO
espelho para ver com o que parecemos. Pois bem, da mes-
ma maneira, após um diálogo filosófico, após uma lição fi-
10sófica' a escuta deve se concluir por este rápido olhar que
se lança sobre si mesmo, para saber e constatar como se
está na relação com a verdade - se a lição ouvida nos apro-
ximou efetivamente do discurso da verdade, se ela nos per-
mitiu apropriarmo-nos dele -, a fim de examinar se se está
em vias de o facere suum (de fazê-lo seu). Em suma, trata-
se de todo um trabalho de atenção, de atenção dupla e bi-
furcada' necessária na correta escuta filosófica. Por um lado,
olhar para o prâgma, para uma significação propriamente fi-
10sófica em que a asserção vale como prescrição. Por outro
lado, um olhar sobre si mesmo, olhar sobre si mesmo em
que, memorizando o que se acabou de ouvir, vê-se-o in-
crustar-se e aos poucos fazer-se tema no interior da alma que
acabou de escutar. A alma que escuta deve vigiar a si mesma.
Prestando atenção como deve àquilo que ouve, ela presta
atenção, no que ouve, à significação, ao prâgma. Também
presta atenção a si mesma a fim de que esta coisa verdadei-
Ia venha a tornar-se aos poucos, por sua escuta e sua me-
mória, no discurso que ela mesma sustenta. Éeste o primei-
ro ponto da subjetivação do discurso verdadeiro enquanto
objetivo final e constante da ascese filosófica. Pois bem, é o
que pretendia dizer-lhes sobre a escuta. Perdoem-me se fui
um pouco anedótico. Falarei logo mais sobre o problema
leitura/escrita, e depois, sobre palavra,
('
NOTAS
1. Cf. aulas no Collége de France, 5 e 12 de março de 1980.
2. Encontramosfacere suum em Sêneca, mas no sentido de se
apropriar de alguma coisa; cf. carta 119, a respeito de Alexandre e ~
de sua sede de posse: quaerit quod suum fadar' (Lettres à Lucilius, ':--
t. V, livro XIX-X)(, carta 119, 7, ed. citada, p. 62). Em contraparti-
da, encontramos expressões como sefacere: faria me et formo (De
la vie heureuse, XIV, 4, in Séneque, Dialogues, t. II, trad. fr. A. Bour-
gery, Paris, Les Belles Lettres, 1923, p. 30) oufieri suum: inestimá-
vel bem, chegar a pertencer-se (inaestimable bonum est suum fierz)
(Lettres à Lucilius, t. 1II, livro IX, carta 75, 18, p. 55).
3. Camment écouter, in Plutarque, Oeuvres morales, t. 1-2, trad.
Ir. A. Philippon, Paris, Les Belles Lettres, 1989.
4. Tu não poderias então, penso eu, experimentar qualquer
desprazer em ler como preâmbulo estas observações sobre apercep-
ção pelo ouvir, que Teofrasto declara ser, de todas, a mais ligada às
paixões (pathetikotáten), sendo que nada do que se pocle ver, de-
gustar ou tocar produz desassossegos, perturbações, inquietações
.tão grandes quanto aquelas que se apoderam da alma quando cer-
t,ÇloS ruídos retumbantes, estrondos e gritos a surpreendem pelo
ouvir (id., 37f-38a, p. 37).
5. Cf. canto XI! da Odisséia, versos 160-200.
6. Cf. o longo desenvolvimento do livro III de A República
(397a-39ge) sobre a rejeição do poeta-imitador e a condenação
das m~lodias lascivas (in Platon, OeuDres completes, t.VI, trad. fr. E.
Chambry, ed. citada, pp. 106-13).
224. r
..
•
424 A HERMENêUTICA DO SUJEITO
7. Mas este [= o ouvir] tem ainda mais ligações com a razão
(logikótera) do que com as paixões (Plutarque, Comment écouter,
38a, p. 37).
8. Sénegue, Lcftres à Lucilius, t. N, livro XVII-XVIII, carta 108,
4 (p. 178).
9. O que é uma escola de filosofia? Uma escola de filosofia
é um iatrefon (um dispensário). Não se deve, ao sair, ter gozado,
mas sofrido. Pois não freqüentais a escola de filosofia porque e
quando estais em boa saúde. Este chega com o ombro deslocado,
aquele com um abscesso, o terceiro com uma fístula, outro com do-
res de cabeça (Épictéte, Entretiens, IlI, 23, 30, ed. citada, p. 92).
10. Tal é a virtude da filosofia na qual todos ganham, prosé-
litos ou simplesmente o círculo familiar (ea philosophiae vis est ut
non studentis, sed etiam conversantis iuvet) (Séneque, Lcttres à Luci-
Nus, Ioc. cito supra, nota 8).
11. Ibid.
12. 'liMas quê! Não conhecemos quem tenha se instalado
durante anos na frente de um filósofo sem tirar daí pelo menos
um verniz superficial?' Certamente, conheço: modelos de perse-
verança e de assiduidade, pessoas que são, a meu ver, menos es-·
colares (non discpulos philosophorum) do que pilares da escola (in-
quilinos) (id., carta 108, 5, p. 178).
13. Épictéte, Entretiens, 11, 23, 40 (p. 108).
14. Como por outra parte o ensino dos princípios deve usar
necessariamente de uma certa elocução (léxis) e de uma certa fine-
za nos tennos, há pessoas que se deixam prender e assim pennané-
cem (kataménousin autoÚ): um é cativado pelo estilo (léxis), outro
pelos silogismos (id., 23, 40-41, p. 108).
15. Em uma [a medicinaJ e na outra [a retórica}, deve-se pro-
ceder à análise de uma natureza: na primeira, a do corpo, na outra
a da alma, desde que, no lugar de nos contentarmos Com a rotina
(tribé) e com a experiência (empeiría), quisennos recorrer à arte (tékh-
ne) (Vlaton, Phédre, 270b, trad. Ir. L. Rodin, ed. citada, p. 80).
16. Reinava entre eles um silêncio excepcional (Porphyre,
Vie de Pythagore, trad. Ir. E. des Places, ed. citada, parágrafo 19, p.
44). Cf. também a palavra de Isócrates em seu Busiris a respeito dos
discípulos de Pitágoras: eles são mais admirados em seu silêncio
do que as pessoas a quem a palavra valeu a maior reputação (BJ!-
siris, XI, trad. Ir. G. Mathieu E. Brémond, ed. citada, parágrafo 29,
r·195), assim como as página? decisivas de Jâmblico em sua Vie de
Pythagore: Após estes três anos [de exame prévio], impunha aos
,;
/'
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 425
que a ele se ligavam um silêncio de cinco anos, para verificar a que
ponto eles se dominavam, pois o mais difícil de todos os domínios
éo que se impõe à língua (trad. Ir. L. Brisson A.-Ph. Segonds, ed.
eitada, parágrafo 72, p. 41); ver ainda no mesmo sentido: Em um
primeiro tempo, pois, para examinar a fundo aqueles que vinham a
ele, observava se podiam'controlar a língua' (ekhemythefn) - este
era com efeito o termo que utilizava - examinava se eram capazes
de se calar e de guardar para si o que tinham ouvido durante o en-
sino recebido. Em seguida, observava se eram modestos e ocupava-
se mais com o silêncio do que com a fala (id., parágrafo 90, p. 55).
17. Que a filosofia tenha nossa muda admiração (Lettres à
Luci/ius, t. lI, livro V, carta 52, 13, p. 46).
18. O silêncio tem alguma coisa de profundo, de religioso,
de sóbrio (Traité sur le bavardage, 504a, in Plutarque, Oeuvres mo-
rales, t.VII-I, trad. fr. J. Dumortier J. Defradas, ed. citada, parágra-
fo 4, p. 232).
19. Para um testemunho pessoal da educação pelo silêncio, cf.
Dits et Écrits, op. cit., t. IV, n. 336, p. 525.
20. Seguramente o conduto auditivo destas pessoas de ~odo
algum se abre em direção à alma, mas à língua (Traité surlfÍla-
vardage, 502d, parágrafo 1, p. 229). .
21. É uma cura difícil e árdua que a filosofia empreende·em
relação à tagarelice; com efeito, o remédio que ela usa, a palavra,
requer ouvintes, e os tagarelas não escutam ninguém, pois falam
sem parar (id., 520b, parágrafo 1, p. 228).
22. Para uma comparação das regras de silêncio nas comuni-
dades pitagóricas e cristãs, cf. A..-J. Festugiere, Sur le De Vita Pytha-
gorica de Jamblique, reeditado in Études de philosophie grecquc, op.
eit., em particular pp. 447-51.
23. Cf. aula de 20 de janeiro, segunda hora.
24. liA assistência, por seu lado, com ouvidos atentos, olhos
fixados nele (eis autón), paralisada em uma atitudefmóvel (epi miâs
kai tês autês skhéseos epiménontes), o escuta (Philon, De vita contem-
plativa, 483M, trad. fr. I' Miguel, ed. citada, parágrafo 77, p. 139).
25. Sobre a stultitia, cf. aula de 27 de janeiro, primeira hora.
26. No que concerne ao ·personagem do effeminatus, cf. ob-
servações de Foucault em L'Usage des plaisirs, op. cit., p. 25. [O uso
dos prazeres, op. cit., p. 21. (N. dos 1.)J
27. Não confundamos as aclamações do teatro com as da
eswla: no próprio louvor há que se observar a conveniência (Let-
tres à Lucilius, t. lI, livroV, carta 52, 12, p. 45).
225. 1.
1
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~
•
426 A HtRMENWTICA DO SUJEITO
28. Em sua edição (citada) de Sêneca, P.Veyne observa a este
respeito: coçar a cabeça corn o dedo, gesto autístico, carecia de
dignidade viril; era um gesto feminino (p. 720).
29. Lettres à Lucilius, t. II, livroV, carta 52, 12-1 (pp. 45-6).
30. Com um aceno de cabeça, com um olhar, mostram que
compreenderam (syniénai kal kateilephénai); com um sorriso, com
um leve movimento da fronte, mostram que aprovam o orador;
com um lento movimento da cabeça e do dedo indicador da mão
direita, mostram que estão confusos (De vita contemplativa, 483M,
parágrafo 77, p. 139).
31. Entretiens, II, 24, 1 (p. 110).
32. Id., 24, 27 (p. 114).
33. Porque tu não me estimulaste (ouk eréthisas) (id., 24, 28,
p.114).
34. Id., 24. 15-16 (p. 112).
35. Id., 24, 29 (p. 115).
36.Trata-se da crítica de um jovem retórico em potencial cuja
cabeleira era por demais cuidada (Entretiens, Ill, 1, 1, p. 5). Cf. a
análise deste texto na aula de 20 de janeiro, primeira hora.
37. Cf. o estudo de P. Hadot, in Concepts et catégories dans la
pensée antique, s. dir. P. Aubenque, Paris,Vrin, 1980, pp. 309-20.
38. Cf. sobre Sinn e Bedeutung, o célebre artigo de Frege Sen-
tido e denotação (in G. Frege, Éerits logiques et philosophiques,
trad. C. Imbert, Paris, Le SeuiI, 1971, pp. 102-26).
39. Parenética: que tem relação com parenese, com exorta-
ção moral (Littré; cf. o verbo parainefn que significa: aconselhar,
prescrever).
40. Lettres à Lueilius, t. N, livro XVII-XVIII, carta 108, 24
(p. 185).
41. Mas o tempo foge, foge sem retomo (sed fugit interea,fu-
git inreparabile tempus) (Virgile, Les Géorgiques, livro IlI, verso 284,
trad. H. Goelzer, Paris, Les BelIes Lettres, 1926, p. 48).
42. Lettres à Lucilius, t. N, livro XVII-XVIII, carta 108, 28 (p. 186).
43. Id., carta 108, 25 (p. 185). .
44. De fato a sentença que Sêneca enuncia como devendo ser
gravada na alma é: os melhores de nossos dias, para nós, pobres
mortais, são sempre os primeiros a nos escapar! (id., pp. 185-6;
trata-se do verso 66 do livro IH das Géorgiques, citado poi Sêne.:-a
u.!paoutra vez: cf. De la briéveté de la vie,VIII, 2).
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982
Segunda hora
As regras práticas da boa leitura e a indicação de sua fi-
nalidade: a meditação. - O sentido antigo de rneléte/rnedita-
tio como jogo do pensamento sobre osujeito. - A escrita como
exercíciofísico de incorporação dos discursos. - A correspondên-
cia como círculo de subjetivação/veridicção. - A arte defalar na
espiritualidade cristã: as fonnas do discurso verdadeiro do di-
retor; a confissão do dirigido; o dizer-verdadeiro sobre si como
condição da salvação. - A prática greco-romana de direção: cons-
tituição de um sujeito de verdade pelo silêncio atento do lado
do dingido; a obrigação de parrhesía no discurso do mestre.
[...] Serei muito breve sobre as questões leitura/escrill'
porque são assuntos mais fáceis e conhecidos, e também
[porque] já fui bastante anedótico na aula precedente; pas'
sarei logo à questãd da ética da palavra. Primeira e rapida-
mente, leitura/escrita. De fato, os conselhos que são dados,
pelo menos quanto à leitura, decorrem de uma prática que
era corrente na Antiguidade, e que os princípios da leitura
filosófica retomam, mas sem modificá-los no essencial. Pri-
meiro, ler poucos autores; ler poucas obras; ler, nestas obras,
poucos trechos; escolher algumas passagens consideradas
importantes e suficientesl
Daí, aliás, todas aquelas práticas
bem conhecidas, como a de resumos de obras. I)e tal modo
esta prática foi difundida que é graças a ela, muitas vezes,
. que tantas obras nos foram felizmente conservadas. As ex-
,/planações de Epicuro só ficaram conhecidas praticamente
por resumos feitos por seus alunos depois da sua morte, e
por algumas proposições consideradas importantes e sufi-
cientes pelos que se iniciavam e pelos que, já iniciados, ne-
cessitavam reatualizar e [rememorar] os princípios funda-
mentais de uma doutrina a ser não apenas conhecida, mas
,
226. 428 A HERMENtuTlCA DO SUJEITO
também assimilada e da qual, de certo modo, era preciso
ter-se tomado o sujeito que fala. Portanto, prática de resu-
mos. Prática também de florilégios nos quais se reúnem, so-
bre um determinado assunto ou sobre uma série de assun-
tos, proposições e reflexões de autores diversos. Prática ainda
- como era, por exemplo, o caso de Sêneca com Lucília -
que consiste em destacar citações em um ou outro autor e
enviá-las a um correspondente dizendo-lhe: eis uma frase
importante, uma frase interessante; envio-a a ti; reflete,
medita sobre ela, etc. Esta prática evidentemente se assenta
sobre certos princípios. Gostaria de realçar sobretudo o se-
guinte: o objeto, a finalidade da leitura filosófica não está em
ter conhecimento da obra de um autor; nem mesmo tem
por função aprofundar sua doutrina. Pela leitura - em todo
caso é este seu objetivo principal - trata-se essencialmente
de propiciar uma ocasião de meditação.
Encontramos então uma noção de que falaremos mais
adiante, sobre a qual porém gostaria de deter-me um pou-
co ainda hoje. É a noção de meditação. A palavra latina me-
ditatio (ou o verbo meditan) traduz o substantivo grego melé-
te, o verbo grego meletân. E meléte, meletân não têm de modo
algum a mesma significação daquilo que chamamos, ao
menos hoje, isto é, nos séculos XIX e XX, meditação. Me-
léte é exercício. Meletân está muito próximo, por exemplo,
de gymnázein, que [significa1/1exercitar-se! /I treinar; tem en-
tretanto uma conotação ou, por assim dizer, um. centro de
gravidade do campo significativo um pouco diferente, na me-
dida em que gymnázein de modo geral designa mais uma
espécie de prova em realidade, uma maneira de se cOD-
frontar com a própria coisa, assim como nos confronta~os
com um adversário para saber se somos capazes de lh~
sistir ou de ser o mais forte; meletân por sua vez é antes un::t_~
espécie de exercício de pensamento, exercício em pensa-
menta/!, mas que, repito, é muito diferente do que entende-
mos por meditação. Por meditação usualmente entendemos:
uma tentativa para pensar com intensidade particular em
alguma coisa sem aprofundar seu sentido; ou então deixar
rI.
~'.,.:.,.
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982
429
o próprio pensamento desenvolver-se em uma ordeIJ1 mais
ou menos regrada a partir da coisa na qual se pensa. E apro-
ximadamente isto que para nós é a meditação. Para os gre-
gos e os latinos meléte ou meditatio é outra coisa. Creio que
isto deva ser apreendido sob dois aspectos. Primeiramente,
meletân consiste em fazer um exercício de apropriação, apro-
priação de um pensamento. Portanto, não se trata absolu-
tamente de, dado um texto, esforçar-se por [perguntar] o
que ele quis dizer. De modo algum está-se direcionado no
sentido da exegese. Na meditatio, ao cóntrário, trata-se de
apropriar-se [de um pensamento], de dele persuadir-se tão
profundamente que, por um lado, acreditamos que ele seja
verdadeiro e, por outro, podemos constantemente redizê-lo,
redizê-lo tão logo a necessidade se imponha ou a ocasião se
apresente. Trata-se, portanto, de fazer com que a verdade
seja gravada no espírito de maneira que dela nos lembre-
mos tão logo haja necessidade, de maneira também a tê-la,
como já vimos, prókheiron (à mão)' e, por conseguinte, a fazer
dela imediatamente um princípio de ação. Apropriação que
consiste em fazer com que, da coisa verdadeira, tornemo-nos
o sujeito que pensa com verdade e, deste sujeito que pensa
com verdade, tornemo-nos um sujeito que age corno se
deve. Éneste sentido que se direciona o exercício de meditatio.
Em segundo lugar, meditatio - e é seu outro aspecto - con-
siste em fazer urna espécie de experiência, experiência de
identificação. Quero com isto dizer que na meditatio trata-se
não tanto de pensar na própria ciWsa, mas de exercitar-se na
coisa em que se pensa. O exemplo mais célebre é evidente-
mente a meditação sobre a morte'. Meditar sobre a morte
(meditari, meletân), no sentido em que os latinos e os gre-
gos entendiam, não significa pensar que se vai morrer. Nem
mesmo significa convencer-se de que se vai efetivamente
morrer. Não é associar à idéia da morte algumas outras idéias
que dela decorrerão, etc. Meditar sobre a morte é pôr-se a si
mesmo, pelo pensamento, na situação de alguém que está
morrendo, que vai morrer, ou que está vivendo seus últimos
dias. A meditação não é, pois, um jogo do sujeito com seu
227. Ir'l
1iI..
430 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
próprio pensamento, não é um jogo do sujeito com o obje-
to ou os objetos possíveis de seu pensamento. Não é algo
da ordem da variação eidética, como se diria na fenomeno-
logia'. Trata-se de um tipo bem diferente de jogo: não mais
jogo do sujeito com seu próprio pensamento ou seus pró-
prios pensamentos, mas jogo efetuado pelo pensamento so-
bre o próprio sujeito. Éfazer com que, pelo pensamento, nos
tornemos alguém que está morrendo, ou na iminência de
morrer. Compreendamos ademais que esta idéia da medita-
ção, não como jogo do sujeito com seu pensamento mas
como jogo do pensamento sobre o sujeito, é, no fundo,
exatamente o que Descartes realizou nas Meditações, sendo
este precisamente o sentido que ele deu à meditação'. Se-
ria preciso fazer então a história desta prática da meditação:
meditação na Antiguidade; meditação 'no cristianismo pri-
mitivo; seu ressurgimento, ou em todo caso, sua nova impor-
tância e formidável eclosão nos séculos XVI e XVII. De todo
modo, porém, quand9 Descartes faz meditações, e escre-
ve as Meditações no século XVII, é bem neste sentido. Não
se trata de um jogo do sujeito com seu pensamento. Des-
cartes não pensa em tudo o que poderia ser duvidoso no
mundo. Tampouco pensa no que poderia ser indubitável.
Digamos que este seja o exercício cético habitual. Descartes
se põe na situação do sujeito que duvida de tudo, sem de
resto interrogar-se acerca de tudo que poderia ser dubitável
ou tudo de que se poderia duvidar. E põe-se na situação de
alguém que vai em busca do que é indubitável. Portanto, de
modo algum é um exercício sobre o pensamento e seu con-
teúdo. É um exercício pelo qual o sujeito se põe, pelo pen-
samento' em uma determinada situação. Deslocamento do
sujeito com relação ao que ele é por efeito do pensamento:
pois bem, é esta, na fundo, a função meditativa que deve ter
a leitura filosófica tal como é entendida na época de que
lhes falo. E é esta função meditativa como exercício do sujei-
to que se põe pelo pensamento em uma situação fictícia na
qual se experimenta a si mesmo, é isto que explica que a lei-
tura filosofia seja - se não totalmente, ao menos em boa par-
I.
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AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 431
te - indiferente ao autor, indiferente ao contexto da frase ou
da sentença.
Isto explica o efeito que se espera da leitura: não a com-
preensão do que o autor queria dizer, mas a constituição
para si de um equipamento de proposições verdadeiras, que
seja efetivamente seu. Portanto, nada que fosse da ordem
do ecletismo. Não se trata de constituir para si um mosaico
de proposições de diferentes origens, mas de constituir uma
trama sólida de proposições que valham por prescrições, de
discursos verdadeiros que sejam ao mesmo tempo princí-
pios de comportamento. Ademais, facilmente compreende-
mos que, sendo a leitura assim concebida como exercício,
experiência, e não havendo leitura senão para meditar, a lei-
tura seja imediatamente ligada à escrita. Daí um fenômeno
de cultura e de sociedade seguramente importante na época
de que lhes falo: o lugar relevante [rul assumido pela escrita,
a escrita de certo modo pessoal e individual'- Sem dúvida, é
difícil datar precisamente a origem do processo, mas, quan-
doa consideramos na época de que lhes falo, isto é, nos sé-
culos I-lI, percebemos que a escrita já se tornara, e não cessa
de assim afIrmar-se cada vez mais, um elemento do exercí-
cio de si. A leitura se prolonga, reforça-se, reativa-se pela
escrita, escrita que, também ela, é um exercício, um elemen-
to da meditação. Sêneca dizia que era preciso alternar escrita
e leitura. Isto está na carta 84: não se deve sempre escrever
ou sempre ler; a primeira destas ocupações (escrever), se a
praticássemos continuamente, acabaria por esgotar aenergia.
A segunda, ao contrário, a diminuiria, a diluiria. É preciso
temperar a leitura com a escrita, e reciprocamente, de modo
que a composição escrita dê corpo (corpus) àquilo que a lei-
tura recolheu. A leitura recolhe orationes, logói (discursos,
elementos de discursos); é preciso disto fazer um corpus. É
a escrita que vai constituir e assegurar este corpus7
. Encon-
tramos continuamente, nos preceitos de existência e nas re-
gras da prática de si, a obrigação de escrever, o conselho para
escrever. Encontramos em Epicteto, por exemplo, o seguin-
te conselho: é preciso meditar (meletân), escrever (graphein)
228. 432 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
e treinar (gymnázein)8. Senão vejamos: meletân, exercício de
pensamento freqüentemente sustentado por um texto que
se lê; gráphein, escrever; e gymnázein, isto é, treinar na reali-
dade, tentar vencer a prova ou o teste do real. Ou ainda,
após ter escrito uma meditação sobre a morte, Epicteto con-
clui dizendo: Possa a morte encontrar-me quando estiver
a pensar, a escrever e a ler estas frases.9 A escrita é, assim,
um elemento de exercício, e um elemento de exercício que
traz a vantagem de ter dois usos possíveis e simultâneos. Uso,
em certo sentido, para nós mesmos. É escrevendo, preci-
samente' que assimilamos a própria coisa na qual se pensa.
Nós a ajudamos a implantar-se na alma, a implantar-se no
corpo, a tornar-se como que uma espécie de hábito, ou em
todo caso de virtualidade física. Era hábito, e hábito recomen-
dado, escrever aquilo que se tivesse lido, e uma vez escrito,
reler aquilo que se tivesse escrito, e relê-lo necessariamente
em voz alta, pois, como sabemos, na escrita latina e grega,
as palavras não eram separadas umas das outras. Isto signi-
fíca que havia uma grande difículdade em ler. O exercício de
leitura não era fácil: não se tratava de ler simplesmente com
os olhos. Para se chegar a destacar as palavras como convi-
nha, era-se obrigado a pronunciá-Ias, pronunciá-las em voz
baixa. De sorte que o exercício de ler, escrever, reler o que se
tinha escrito e as anotações feitas, constituía um exercício
quase físico de assimilação da verdade e do lógos a se reter.
Epicteto afirma: Guarda estes pensamentos noite e dia à
tua disposição (prókheira); coloca-os por escrito e deles faz a
leirura.lo A palavra, para leitura, é a tradicional palavra ana-
gignóskein, que significa precisamente reconhecer, reconhe-
cer nesta espécie de miscelânea de signos que são tão difí-
ceis de repartir, de distribuir como convém e, conseqüente-
mente, de compreender. Guardamos, pois, nossos pensamen-
tos. Para guardá-los à nossa disposição, é preciso colocá-los
por escrito, é preciso deles fazer a leitura para nós mesmos.
É preciso que estes pensamentos sejamo objeto de tuas
conversas contigo mesmo ou com outro: 'podes vir em minha
'-.-.-
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 433
ajuda nesta circunstância?' E de novo vai encontrar um ou-
tro homem e outro ainda. Depois, se te ocorrer algum da-
queles acontecimentos indesejáveis, bem logo encontrarás
alívio no pensamento de que nada disto é inesperado.ll·
Leitura, escrita, releitura fazem parte da praemeditatio malo-
rum de que lhes falarei na próxima aula ou em uma próxi-
ma vez12
, e que é muito importante na ascese estóica. Por-
tanto, escrevemos após a leitura a fim de podermos reler,
reler para nós mesmos e assim incorporarmos o discurso
verdadeiro que ouvimos da boca de um outro ou que lemos
sob o nome de um outro. Uso para nós; mas certamente a
escrita é também um uso que serve para os outros. Esque-
cia-me de lhes dizer que as anotações que devemos fazer
sobre as leituras, ou sobre as conversas que tivemos, ou so-
bre as aulas a que assistimos, em grego denominam-se pre- .
cisamente hypomnémata13, isto é, são suportes de lembran-
ças. São anotações de lembranças com que precisamente
poderemos, graças à leitura ou a exercícios de memória, re-
- memorar as coisas ditas14
.
Os hypomnémata servem para nós, mas compreende-
mos que possam também servir para os outros. Nesta troca
maleável de benefícios e favores, nesta troca maleável de
serviços da alma em que ajudamos o outro no seu caminho
para o bem e para ele próprio, compreendemos que a ativi-
dade da escrita seja importante.Vemos então - e este é tam-
bém um fenômeno de cultura, um fenômeno social muito
interessante na época - quanto a correspondência, corres-
pondência que chamaríamos, por assim dizer, espiritual, cor-
respondência de alma, correspondência de sujeito a sujeito,
correspondência cuja finalidade não consistia tanto (como
era ainda o caso, por exemplo, das correspondências entre
Cícero e Atticus15
) em dar notícias sobre o mundo político,
mas em dar um ao outro notícias de si mesmo, indagar so-
bre o que se passava na alma do outro, ou pedir ao outro que
desse notícias do que se passava coQ1 ele, portanto, quanto
tudo isto se tornou naquele momento uma atividade ex-
tremamente importante, atividade, se quisermos, com dupla
229. 434 A HERMEN~UTlCA DO SUJEITO
face. Com efeito, trata-se, por um lado, nestas correspondên-
cias, de permitir àquele que estiver mais avançado na virtude
e no bem que dê conselhos ao outro: informa-se do estado
em que se encontra o outro e, em retomo, lhe dá conselhos.
Mas vemos que, ao mesmo tempo, este exercício permite
àquele que dá conselhos recordar as verdades que fornece
ao outro e das quais ele próprio tem necessidade para sua
vida. De sorte que, quem se corresponde com o outro, ser-
vindo-lhe de diretor, faz continuamente exercícios de certo
modo pessoais, uma ginástica que se destina ao outro, mas
também a si, e que permite, por esta correspondência, man-
ter-se perpetuamente em estado de autodireção. Os conse-
lhos dados ao outro, são dados igualmente a si mesmo.Tudo
isto pode ser facilmente percebido na correspondência a
Lucílio. Sêneca, expressamente, dá lições a Lucílio, mas, ao
fazê-lo, utiliza seus hypomnémata.Tem-se a impressão, a todo
instante, que ele se serve de uma espécie de caderno de no-
tas para relembrar as leituras importantes que fez, as idéias
que encontrou, as que ele próprio leu. Utiliza-as e utilizan-
do-as para o outro, colocando-as à disposição do outro, rea-
tiva-as para si mesmo. Há, por exemplo, uma carta - não sei
bem qual - que é dirigida a Lucílio, mas que reproduz uma
carta a [Marullus], alguém que havia perdido o filho16. Fica
muito claro que esta carta tem três usos. Serve a Marullus,
que perdera o filho, a quem Sêneca dá conselhos para não
ser tomado por uma dor demasiado forte e para mantê-la
na medida conveniente. Em segundo lugar, reproduzida para
atender a Lucílio, a carta lhe servirá como exercício para o
dia em que lhe ocorrer um infortúnio, a fim de ter prókhei-
ron (ad manum: à mão), o dispositivo de verdade que lhe
permitirá lutar contra aquele infortúnio, ou outro semelhan-
te que lhe venha a ocorrer. Em terceiro lugar, serve ao pró-
prio Sêneca como exercício de reativação daquilo que ele
sabe acerca da necessidade da morte, acerca da probabili-
dade do infortúnio, etc. Portanto, triplo uso do mesmo texto.
Neste mesmo sentido, encontramos também o início do
tratado de Plutarco denominado Peri euthymías (Sobre a trdn-
. I
'-.::'
'- .......
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 435
qüilidade do espírito), em que Plutarco responde a um de seus
correspondentes chamado Paccius, que lhe dissera: preciso
muito de conselhos, e de conselhos urgentes. E Plutarco
responde: estou terrivelmente ocupado, não tenho real-
mente tempo para redigir-te um tratado completo; por isto,
envio-te desordenadamente meus hypomnémata, isto é, en-
viote as notas que pude tomar sobre o tema da euthyrnía,
da tranqüilidade da alma1
'. E eis o tratado. De fato, é pro-
vável que o tratado tenha sido afinal um tanto reescrito-e
reelaborado, mas vemos aí toda uma prática em que leitu-
ra, escrita, anotação para si, correspondência, envio de tra-
tados' etc., constituem uma atividade, atividade muito im-
portante de cuidados de si e cuidados dos outros.
Seria interessante - e estas são pistas para quem qui-
ser investigar - comparar aquelas atividades, a forma e o
conteúdo daquelas atividades de leitura-anotação-redação
de uma espécie de diário de bordo e correspondência, com
o que acontecerá no século XVI na Europa quando, no con-
texto ao mesmo tempo da Refopna e precisamente do re-
torno a formas ou a preocupações éticas muito semelhan-
tes às dos séculos I-lI, veremos igualmente renovar-se este
gênero de anotação, de diàrio íntimo, diário de vida, diário
de bordo da existência, e também [de] correspondência. O
interessante é que justamente, enquanto naqueles textos _
nas correspondências como a de Lucílio ou nos tratados
como os de Plutarco - a autobiografia, a descrição de si no
desdobramento da própria vida, intervém praticamente
muito pouco, em contrapartida, no momento do significa-
tivo reaparecimento deste gênero no século XVI, a auto-
biografia será então absolutamente central. Neste intervalo,
porém, aconteceu o cristianismo. E nele, Santo Agostinho.
Ter-se-á passado então para um regime no qual, justamen-
te, a relação do sujeito com a verdade não será apenas co-
mandada pelo objetivô: como tornar-se um sujeito de ve-
ridicção, mas terá se transformado em: comp poder dizer
a verdade sobre si mesmo. Sobre este assunto apenas isto,
um esboço.
230. 436 A HERMENWTICA DO SUJEITO
Portanto, escutar, ler e escrever. Na prática de si, nesta
arte da prática de si, haveria alguma regulação, exigências
ou preceitos concernentes à palavra? O que se deve dizer,
como dizê-lo e quem deve dizê-lo? Reconheço que esta ques-
tão não tem sentido ou existência - e somente assim a pude
formular - senão a partir de um anacronismo ou, 'em todo
caso, de um olhar retrospectivo. Evidentemente só a coloco
a partir do momento [em que] e em função do fato de que,
na espiritualidade e na pastoral cristãs, encontraremos todo
um desenvolvimento extraordinariamente complexo, ex-
traordinariamente complicado e extremamente importante
da arte de falar. Com efeito, na pastoral e na espiritualidade
cristãs, veremos desenvolver-se a arte de falar, e desenvol-
ver-se sob dois registros. Certamente, por uma parte, haverá
a arte de falar do lado do mestre. A arte de falar do lado do
mestre está fundada e, ao meSIDO tempo, se complica bem
mais e como que se relativiza, no fato, é claro, de haver uma
palavra fundamental: a da Revelação. Há uma escrita funda-
mental: a do Texto. E é em relação a [elas] que toda palavra
do mestre deverá ordenar-se. Ainda que referida a esta pa-
lavra fundamental, também é certo que a palavra do mestre
será encontrada, na espiritualidade e na pastoral cristãs, sob
diferentes formas e com uma multiplicidade de ramifica-
ções. Haverá a função de ensino propriamente dita: ensinar
a verdade. Haverá uma atividade de parênese, isto é, de
prescrição. Haverá támbém uma função que será a do dire-
tor de consciência, a função [ainda] do mestre de penitência
e confessor que não é a mesma do diretor de consciência1S.
Estes distintos papéis do ensino, da pregação, da confissão,
da direção de consciência estão todos assegurados na insti-
tuição eclesiástica, seja por um único e mesmo persona-
gem, seja mais freqüentemente por personagens diferentes,
com todos os conflitos - conflitos doutrinais, práticos, ins-
titucionais - [a que] pode dar lugar. Bem, deixemos isto.
Gostaria, porém, de insistir hoje no fato de que na ~spiri
tualidade cristã, [houve sem dúvida] o discurso do mestre
com suas diferentes formas, suas diferentes regras, suas di-
i
I·
I
'O,'
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 437
ferentes táticas e seus diferentes suportes institucionais,
mas o que a ffielLYeI é importante e considerável para a
análise que pretendo fazer é o fato de que o dirigido - aque-
le que deve ser conduzido à verdade e à salvação, aquele
que, por conseguinte, ainda está na ordem da ignorância e
da perdição -, também ele tem algo a dizer. Tem algo a dizer,
tem a dizer uma verdade. Mas que verdade é esta que tem
ele a dizer, ele, o dirigido, aquele que é cond1}zido à verda-
de, que será por outro conduzido à verdade? E a verdade de
si mesmo. Creio que o momento em que a tarefa do dizer-
verdadeiro sobre si mesmo foi inscrita no procedimento in-
dispensável à salvação, quando esta obrigação do dizer-ver-
dadeiro sobre si mesmo foi inscrita nas técnicas de elabora-
ção' de transformação do sujeito por si mesmo, quando esta
obrigação foi inscrita nas instituições pastorais - pois bem,
creio que este constitui um momento absolutamente fun-
damental na história da subjetividade no Ocidenie, ou na
história das relações entre sujeito e verdade. Certamente não
é um momento preciso e particular, é de fato um processo
complexo com suas divisões, seus conflitos, suas lentas evo-
luções, suas precipitações, etc. Mas enfim, se tivermos a este
respeito uma visão histórica um pouco mais ampla, penso
ser preciso considerar como um acontecimento de grande
importância, nas relações entre sujeito e verdade, o mo-
mento em que o dizer-verdadeiro sobre si mesmo tornou-se
uma condição para a salvação, um princípio fundamental
na relação do sujeito consigo mesmo e um elemento neces-
sário ao pertencimento do individuo a uma comunidade.
Foi quando, se quisermos, a recusa de fazer a confissão ao
menos uma vez por ano era motivo de excomunhão19 .
Ora, a obrigação que tem o sujeito do dizer-verdadeiro
sobre si mesmo, ou ainda, o princípio fundamental de que
é preciso o dizer-verdadeiro sobre si mesmo a fim de se es-
tabelecer com a verdade em geral uma relação tal que nela
se possa encontrar a própria salvação, pois bem, é algo que
de modo algum existiu na Antiguidade grega, helenística
ou romana. Aquele que é conduzido à verdade pelo discur-
-_.
231. 438 A HERMEmUTICA DO SUJEITO
so do mestre não tem que dizer a verdade sobre si mesmo.
Sequer tem que dizer a verdade. E uma vez que não tem
que dizer a verdade, não tem que falar. É preciso e bastaque
se cale. Na história do Ocidente, quem é dirigido e quem ~
conduzido só passará a ter o direito de falar no interior da
obrigação do dizer-verdadeiro sobre si mesmo, isto é, na
obrigação da confissão. Certamente, poder-se-ia dizer que
nesta direção, na arte de si mesmo grega, helenística e ro-
mana, encontram-se (há exemplos) alguns elementos que po-
dem ser dela aproximados ou que um olhar retrospectivo
poderia determinar como antecipação da confissão vin-
doura. Encontram-se procedimentos de confissão, de reco-
nhecimento da falta que são exigidos, ou ao menos recomen-
dados, nas instituições judiciárias ou nas práticas religiosaslO
•
Encontram-se também - voltarei a isto com mais detalhes21
- algumas práticas que são afinal exercícios de exame de cons-
ciência, práticas de consulta nas quais o indivíduo que con-
sulta está obrigado a falar de si mesmo. Encontram-se tam-
bém obrigações de franqueza para com os amigos, de dizer
tudo o que se tem no coração. Todos estes elementos, po-
rém, parecem-me profundamente diferentes do que cha-
mamos 11 confissão no sentido estrito, ou pelo menos no
sentido espiritual da palavra2
'. Estas obrigações, para aque-
le que é dirigido, do dizer-verdadeiro, de falar francamente
ao amigo, de confiar-se ao diretor, de pelo menos dizer-lhe
[em] que ponto [ele] está, são obrigações de certo modo ins-
trumentais. Confessar é clamar pela indulgência dos deuses
ou dos juízes. É ajudar o médico da alma, fornecendo-lhe
alguns elementos de diagnóstico. É manifestar, pela coragem
de confessar uma falta, o progresso que se está fazendo,
etc. Tudo isto se encontra na Antiguidade com este senti-
do instrumental. Estes elementos da confissão são instru-
mentais, não porém operadores. Enquanto tais não têm va-
lor espiritual. Creio ser este um dos mais notáveis traços da
prática de si naquela época: o sujeito deve tomar-se sujeito
de verdade. Deve ocupar-se com discursos verdadeiros. É
preciso, pois, que opere uma subjetivação que se inicia com
,
~
'•..:./
....... ......
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 439
a escuta dos discursos verdadeiros que lhe sãO propostos. É
preciso, pois, que ele se tome sujeito de verdade, que ele
próprio possa dizer o verdadeiro, que possa dizer a si mesmo
o verdadeiro. De modo algum é necessário e indispensável
que diga a verdade de si mesmo. Poder-se-ia dizer, não obs-
tante, que há textós fundamentais que provam que o dirigi-
do, aluno ou discípulo, tem direito à palavra. E afinal a lon-
ga história, ou a longa tradição do diálogo, de Sócrates à
diatribe estóico-cínica, mostra muito bem que o outro, ou se
quisermos o dirigido, tem o que falar e pode falar. Entretan-
to, notemos bem que, nesta tradição, do diálogo socrático à
diatribe estóico-cínica, não se trata de obter, por este diálo-
go, esta diatribe ou esta discussão, que o sujeito diga a ver-
dade sobre si mesmo. Trata-se simplesmente de testá-lo, de
colocá-lo à prova como sujeito capaz do dizer-verdadeiro.
Pela interrogação socrática, pelos questionamentos inso-
lentes e desenvoltos da diatribe estóico-cínica, trata-se ou
de mostrar ao sujeito que ele sabe aquilo que pensava não
saber - o que faz Sócrates - ou de mostrar-lhe que não sabe
o que .pensava saber - o que também faz Sócrates e fazem
os estóicos e os cínicos. De certo modo, trata-se de colocá-
lo à prova, colocá-lo à prova em sua função de sujeito que
diz a verdade, para forçá-lo a tomar consciência do ponto
em que está na subjetivação do discurso verdadeiro, na sua
capacidade de dizer o verdadeiro. Creio, pois, que realmen-
te não há problema do lado do discurso de quem é dirigi-
do, já que afinal ele não tem que falar, ou então o que é le-
vado a dizer não passa de uma maneira para o discurso do
mestre apoiar-se e desenvolver-se. Não existe autonomia
do seu próprio discurso, não há função própria ao discurso
do dirigido. Fundamentalmente, seu papel é de silêncio. E a
palavra que se lhe arranca; que se lhe extorque, que se lhe
extrai, a palavra que nele se suscita, pelo diálogo ou a dia-
tribe, são maneiras, no fundo, de mostrar que é no discurso
do mestre, e nele somente, que a verdade está por inteiro.
Um problema então se coloca: o que se passa com o dis-
curso do mestre? Existiria, neste jogo da ascese, isto é, no jogo
----!
232. 440 AHERMENtUTICA DO SUJEITO
da subjetivação progressiva do discurso verdadeiro, uma par- .
cela a se atribuir ao discurso do mestre e à maneira pela
qual ele se desdobra? É aí que encontramos, creio, aquela
noção que mencionamos muitas vezes, e cujo estudo gos-
taria de começar hoje: a noção de parrhesía. A parrhesía é,
no fundo, o que corresponde, do lado do mestre, à obrigação
de silêncio do lado do discípulo. Assim como o discípulo deve
calar-se para operar a subjetivação de seu discurso, o mes-
tre, por sua vez, deve manter um discurso que obedece ao
princípio da parrhesía, desde que pretenda que o que ele diz
de verdadeiro tome-se enfim, ao termo de sua ação e direção,
o discurso verdadeiro subjetivado do discípulo. Etimologi-
camente, parrhesía é o fato de tudo dizer (franqueza, aber-
tura de coração, abertura de palavra, abertura de lingua-
gem, liberdade de palavra). Os latinos traduzem geralmen-
te parrhesía por libertas. E a abertura que faz com que se
diga, com que se diga o que se tem a dizer, com que se diga
o que se tem vontade de dizer, com que se diga o que se
pensa dever dizer porque é necessário, porque é útil, por-
que é verdadeiro. Aparentemente, libertas ou parrhesía é es-
sencialmente uma qualidade moral que se requer, no fundo,
de todo sujeito que fala. Posto que falar implica dizer o ver-
dadeiro, como não impor, à maneira de uma espécie de
pacto fundamental, a todo sujeito que toma a palavra, que
diga o verdadeiro porque o crê verdadeiro? Mas - e este é o
ponto que gostaria de realçar - este sentido moral geral da
palavra parrhesía assume na filosofia, na arte de si mesmo,
na prática de si de que lhes falo, uma significação técnica
muito precisa €, creio eu, muito interessante no que concer-
ne aCYpapel da linguagem e da palavra na ascese espiritual
dos filósofos. Temos incontáveis provas e indícios de que
isto tenha um sentido técnico. Tomarei apenas um pequeno
texto: foi escrito por Arrianus como prefácio aos Diálogos de
Epicteto. Como sabemos, os textos de Epicteto de que dis-
pomos representam apenas uma parte dos colóquios que
foram conservados23
, justamente sob a forma daqueles hy-
pomnémata de que falei há pouco, por um de seus ouvintes,
,~
:c
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 441
chamado Arrianus. Assim, Arrianus escutava, tomava notas,
fazia hypomnémata; e decide publicá-los. Decide publicá-los
porque muitos textos circulavam na época sob o nome de
Epicteto, e ele pretendia dar uma versão, que certamente era
a sua, mas que lhe parecia a mais fiel e, conseqüentemente,
a única capaz de autentificar. Autentificar o quê, nos coló-
quios de Epicteto? Em uma pequena página que serve de
introdução aos Diálogos, Arrianus afirma: Quanto a tudo o
que ouvi deste homem enquanto ele falava, esforcei-me, ten-
do-o escrito (grapsámenos)24... Temos aí, pois, a escuta da
palavra. Ele escuta, em seguida, escreve. Tendo escrito tanto
quanto possível com seus próprios termos, com suas pró-
prias palavras - emprega o termo ónoma - tendo transcri-
to com as próprias palavras, tentei conservá-las emautô
(para mim), eis hysteron (em vista do futuro) sob a forma de
hypomnémata.
Encontramos aí exatamente tudo o que lhes dizia há
pouco. Escuta-se, escreve-se, transcreve-se o que foi dito.
Arrianus insiste no fato de que ele realmente retomouas
próprias palavras. E constitui os hypomnémata, espécies de
anotações de coisas ditas. Ele os constitui heautô (para ele
próprio), eis hysteron (em vista do futuro), isto é, em vista
precisamente de constituir uma paraskeué (um equipamen-
to) que lhe permitirá utilizar tudo aquilo quando a ocasião
se apresentar: acontecimentos diversos, perigos, infortúnios,
etc. O que representam os hypomnémata que ele irá então
publicar? Diánoia kal parrhesía: o pensamento e a liberda-
de de palavra próprios a Epicteto. Assim, parece-me muito
importante a existência destas duas noções e sua justaposi-
ção. Publicando os hypomnémata que fez para si, Arrianus
atribui-se como tarefa, portanto, restituir o que as outras
publicações não souberam fazer: diánoia, o pensamento, o
conteúdo de pensamento que era, pois, o de Epicteto em seus
colóquios; e parrhesfa, sua liberdade de palavra. Poderíamos
dizer - e interromperei aqui, antes de prosseguir na próxi-
ma vez o estudo da parrhesía - que, no fundo, aquilo de que
se trata na parrhesía é uma espécie de retórica própria ou de
• tnstituto de Psicologia - UFRGS I
.• Biblioteca jI 1
233. 442 A HERMENfUTlCA DO SUJEITO
retórica não-retórica que deve ser a do discurso filosófico.
Conhecemos certamente a enorme separação, o enorme con-
flito que, da Grécia clássica até o fim do Império romano,
opôs incessantemente filosofia e retórica. Conhecemos a
intensidade que este conflito assumiu na época de que lhes
falo (séculos 1-11), a crise aguda que se desenvolveu no sé-
culo 11. Com efeito, é precisamente sobre esta superfície de
conflito que se deve definir a parrhesía. Parrhesía é a forma
necessária ao discurso filosófico porque - conforme o pró-
prio Epicteto afirmava, como lembramos, em um colóquio
de que lhes falei há pouco -, uma vez que se utiliza o lógos,
é preciso que exista uma léxis (uma maneira de dizer as coi-
sas) e que exista um certo número de palavras que sejam
escolhidas de preferência a outras. Portanto, não pode ha-
ver lógos filosófico .sem esta espécie de corpo de linguagem,
corpo de linguagem que tem suas qualidades próprias, sua
plástica própria, e tem seus efeitos, efeitos patéticos que são
necessários. Mas, quando se é filósofo, o que é necessário,
a maneira de regrar os elementos (elementos verbais, ele-
mentos que têm por função agir diretamente sobre a alma),
não deve ser a arte, a tékhne da retórica. Deve ser outra coi-
sa que, ao mesmo tempo, é uma técnica e uma ética, é uma
arte e uma moral, e a que chamamos parrhesía. Para que o
silêncio do discípulo seja um silêncio fecundo, para que, no
fundo deste silêncio, se depositem como convém as pala-
vras de verdade que são as do mestre, e para que o discípu-
lo possa fazer destas palavras algo de seu, que o habilitará
no futuro a tomar-se ele próprio sujeito de veridicção, é
preciso que, do lado do mestre, o discurso apresentado não
seja um discurso artificial, fingido, um discurso que obede-
ça às leis da retórica e que vise na alma do discípulo somen-
te efeito.s patéticos. É preciso que não seja um discurso de se-
dução. E preciso que seja um discurso t.al que a subjetividade
do discípulo possa dele apropriar-se e que, apropriando-se
dele, o discípulo possa alcançar o objetivo que é o seu, a
saber, ele próprio. Ora, para isto é preciso que, do lado do
mestre, haja um certo número de regras, regras que, uma
I,
i
l.
1
~. ~
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 443
vez mais, incidam não sobre a verdade do discurso, mas so-
bre a maneira pela qual o discurso de verdade será formu-
lado. E estas regras da formulação do discurso de verdãde
constituem a parrhesía, a libertas. Pois bem, são estas regras
do discurso de verdade, vistas do lado do mestre, que ten-
tarei explicar-lhes na próxima vez.
234. NOTAS
1. Os dispêndios de ordem literária, por mais relevantes que
sejam, só são razoáveis quando moderados. Para que selVem inu-
meráveis livros e bibliotecas cujo proprietário apenas consegue em
sua vida ler as etiquetas? Uma profusão de leituras entulha o espí-
rito, mas não o provê, e mais vale ligar-se muito a um pequeno nú-
mero de autores que perambular por todo canto (Sénêque, De Ia
tranquillité de l'âme, IX, 4, trad. fr. R. Waltz, ed. citada, pp. 89-90).
2. Cf. aula de 24 de fevereiro, segunda hora.
3. Esta meditação sobre a morte é analisada na aula de 24 de
março, segunda hora.
4.A variação eidética designa o método pelo qual se depreen-
de, para um determinado existente, o núcleo de sentido invarian-
te constitutivo de seu ser, também chamado seu efdos. A variação
sugere uma série de deformações impostas pela imaginação a um
existente, fazendo aparecer os limites para além dos quais ele não
é mais ele mesmo e permitindo demarcar uma invariável de senti-
do (sua essência). Portanto, eidética designa menos propriamen-
te a variação que seu resultado.
5. É preciso notar que, em sua resposta a Derrida (1972), Fou-
cault já havia fixado o sentido da meditação cartesiana fora da ins-
tauração de regras puras de método, mas em processos irredutí-
veis de subjetivação: Uma 'meditação' ao contrário produz, como
tantos acontecimentos discursivos, enunciados novos que acarre-
tam uma série de modificações do sujeito enunciante [...]. Na me-
'•....
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 445
ditação, o sujeito é incessantemente alterado por seu próprio mo-
vimento; seu discurso suscita efeitos no interior dos quais ele é to-
mado; ele o expõe a riscos, o faz passar por provas ou tentações,
nele produz estados, e lhe confere um estatuto ou uma qualifica-
ção que ele de modo algum detinha no momento inicial. Em suma,
a meditação implica um sujeito móvel e modificável por efeito
mesmo dos acontecimentos discursivos que se produzem (Dits et
Écrits, ap. cit., lI, n. 102, p. 257).
6. Foucault tinha o projeto de publicar uma coletânea de ar-
tigos consagrados às práticas de si. Um dos artigos tratava preci-
samente da escrita de si nos primeiros séculos de nossa era (cf.
uma versão deste texto publicada em Corps écrit em fevereiro de
1983; reeditado in Dits et Écrits, IV, n. 329, pp. 415-30).
7. Não se deve limitar-se a escrever assim como não se deve
limitar-se a ler. A primeira destas ocupações abaterá, esgotará a
energia espiritual. A segunda a enfraquecerá, a diluirá. Recorramos
alternativamente a uma e a outra, e temperemos uma com a ou-
tra, de tal modo que a composição escrita dê corpo de obra (stilus
redigat in corpus) àquilo que a leitura recolheu (quicquid lectione c01-
/ectum est) (Sénéque, Lettres à Luci/ius, t. I1I, livro XI, carta 84, 2,
ed. citada, pp. 121-2).
8. Eis os pensamentos sobre os quais devem meditar os fi-
lósofos, eis o que devem escrever todos os dias, o que deve ser sua
matéria de exercício (taUta édei meletân tous philosophountas, taUta
kath'heméran gráphein, en toútois gymnázesthaz) (Épictête, Entretiens,
1,1,25, ed. citada, p. 8).
9. Entretiens, I1I, 5, l1 (p. 23).
10. Id, 24, 103 (p. 109).
l1. Id., 24, 104 (p. 109)
12. Cf. aula de 24 de março, primeira hora.
13. Sobre os hypomnémata, cf. a exposição geral de Foucault
em ['Écriture de sai, in: Dits et Écrits, Iv, n. 329, pp. 418-23.
14. Hypomnémata tem, em grego, um sentido de fato mais
amplo que o de uma simples coleção de citações ou de coisas di-
tas, sob a forma de um auxílio para a memória. No sentido mais
amplo, designa todo comentário ou forma de memória por escri-
to (cf. o artigo commentarium, commentarius - tradução latina de
hypomnémata - do Dictionnaire des antiquités grecques et romaines, s.
dir, E. Saglio, t. 1-2, ed. citada, pp. 1404-8). Mas pode ainda de-
signar notas e reflexões pessoais, tomadas no dia-a-dia, sem que
235. 446 A HERMEmUTlCA DO SUJWO
se trate necessariamente de citações (cf. P. Hadot, La CítadeIle in-
térieure, op. cit., pp. 38 e 45-9).
15. Cícero, Letters to Atticus, ed. e trad. D. R. Shackleton Bailey,
HaIVard University Press, Loeb Classical Library, 1999, 4 tomos.
16. Trata-se da carta 99 (Lettres à Lucilius, t. IV; livro XVI, pp.
125-34), em que Sêneca reproduz para o uso de Lucílio uma car-
ta a MaruIlus.
17. Foi muito tarde que recebi tua carta, pela qual tu me
convidavas a escrever-te sobre a tranqüilidade da alma [...}. Eu
não tinha tempo à vontade para pôr-me a fazer o que desejavas,
mas também não suportava a idéia de que este homem, retor-
nando daqui, se apresentasse a ti com as mãos absolutamente
vazias. Então, reuni as notas (hypomnemáton) que havia tomado
para meu uso pessoal (De la tranquillité de /'âme, 464e-f, pará-
grafo 1, p. 98).
18. Sobre todos estes pontos, cf. as aulas no College de France
de 6 de fevereiro a 26 de março de 1980, nas quais Foucault (no
quadro teórico geral definido como estudo das obrigações de ver-
dade) examina a articulaçãó entre a manifestação do verdadeiro e
a remissão das faltas a partir dos problemas do batismo, da peni-
tência canônica e da direção de consciência. Remeta-se também
às aulas de 19 e 26 de fevereiro de 1975, nas quais Foucault exa-
mina o desenvolvimento da pastoral (Les Anonnaux. Cours au Co1-
lége de France, 1974-1975, ed. s, dir. F. Ewald A. Fontana, por V.
Marchetti A. Salomani, Paris, Gallimard/Seuil, 1999).
19. Sobre esta passagem de uma técnica de confissão reseIVa-
da para os meios monásticos a uma prática de confissão generaliza-
da, cf. La volonté de savoir, Paris, Gallirnard, 1976,.pp. 28-9 e 84-6.
20. Foucault empreendeu a análise dos procedimentos de
confissão no sistema judiciário desde os primeiros cursos no Col-
lége de France (ano de 1970-1971, sobre La volonté de savoir; o
resumo deste curso encontra-se em Dits et Écrits, lI, n. 101, pp. 240-
4), a partir do estudo da evolução do direito grego do século Vil
ao século V a.c. O Édipo-Rei de Sófoc1es era então dado como
exemplar.
21. Sobre o exame de consciência no estoicismo (e particu-
larmente em Sêneca), cf. aula de 24 de março, segunda hora.
22. Cf. a definição estrita do termo confissão no curso inédi-
to de Foucault, Mal faire, mre vrai. Fonctions de l'aveu (Louvain,
1981): A confissão é um ato verbal pelo qual o sujeito, em uma
r
I
1~. L
AULA DE 3 DE MARÇO DE 1982 447
afirmação sobre o que ele é, liga-se a esta verdade, coloca-se em
uma relação de dependência para com o outro e ao mesmo tem-
po modifica a relação que tem consigo mesmo .
23. As transcrições de Arrianus não dão conta da primeira
parte propriamente técnica e lógica das aulas de Epicteto (consa-
grada à leitura e à explicação dos princípios fundamentais da dou-
trina), evocando apenas sua colocação à prova por uma livre dis-
cussão com os discípulos.
24. Arrien à Lucius Gellus, in Épictete, Entretiens, t. Ir p. 4.
25. Cf. aula de 27 de janeiro, primeira hora.
26. Cf. esta aula, primeira hora.
236. AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982
Primeira hora
A parrhesía como atitude ética e procedimento técnico
no discurso do mestre. - Os adversários da parrhesía: lisrnja
e retórica. - A importância dos temas da lisonja eda cólera na
nova economia do poder. - Um exemplo: O prefácio ao quarto
livro das Questões naturais de Sêneca (exercício do poder, re-
lação consigo, perigos da lisonja), - A sabedoria frágil do prín-
cipe. - Os pontos da oposição parrhesíalretórica: a separação
entre verdade ementira; oestatuto de técnica; os efeitos de sub-
jetivação. - Conceitualização positiva da parrhesía: o Feri
parrhesías de Filodemo.
Tentei mostrar-lhes que a ascese - no sentido de áskesis,
no sentido que os filósofos gregos e romanos davam a este
termo - tinha por papel e por função estabelecer um vínculo
entre o sujeito e a verdade, vínculo tão sólido quanto possí-
vel, e que permitisse ao sujeito, quando tivesse atingido sua
forma acabada, dispor de discursos verdadeiros que ele de-
via ter e COnS€lVar àmão e que podia dizer a si mesmo a titu-
lo de socorro e em caso de necessidade. Portanto, a ascese
- e é este o seu papel- constitui o sujeito como sujeito de ve-
ridicçã1!J. Éo que tentei explicar-lhes, e que seguramente nos
conduziu aos problemas técnico e ético das regras de co-
municação destes discursos verdadeiros: comunicação en-
tre quem os dctém e quem deve recebê-los e deles fazer um
equipamento para a vída. Na [problemática] técnica e ética
da comunicação do discurso verdadeiro, o que devía natu-
ralmente se produzir, dada a maneira como a questão era
posta, era que.. consideradas do lado do discípulo, a técnica
e a ética do discurso verdadeiro não estivessem evídente-
mente centradas no problema da palavra. A questão acerca
do que o discípulo tinha a dizer, devía e podia dizer, a rigor,
237. Il.i
:'
450 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
não se colocava, ou pelo não como questão primordial, es-
sencial, fundamental. Mas o que se impunha ao discípulo,
como dever e como procedimento - dever moral e procedi-
mento técnico -, era o silêncio, um certo silêncio organizado,
obediente a algumas regras plásticas, implicando também
alguns signos de atenção que eram fornecidos. Portanto,
uma técnica e uma ética do silêncio, uma técnica e uma ética
da escuta, também uma técnica e uma ética da leitura e da
escrita, que são igualmente exercícios de subjetivação do dis-
curso verdadeiro. E assim, somente quando consideramos o
lado do mestre, isto é, daquele que deve liberar a palavra
verdadeira, é que naturalmente encontramos o problema: o
que dizer, como dizer, segundo quais regras, segundo quais
procedimentos técnicos e quais princípios éticos? É em tor-
no desta questão, ou melhor dizendo, é no próprio cerne
desta questão, que encontramos a noção de que comecei a
falar-lhes na última vez: a noção de parrhesia.
O termo parrhesia refere-se, a meu ver, de um lado à
qualidade moral, à atitude moral, ao êthos, se quisermos, e de
outro, ao procedimento técnico, à tékhne, que são necessá-
rios, indispensáveis para transmitir o discurso verdadeiro a
quem dele precisa para a constituição de si mesmo como
sujeito de soberania sobre si mesmo e sujeito de veridicção
de si para si. Portanto, para que o discípulo possa efetiva-
mente receber o discurso verdadeiro como convém, quando
convém, nas condições em que convém, é preciso que este
discurso seja pronunciado pelo mestre na forma geral da par-
rhesia. A parrhesia, como lhes lembrei na última vez, é eti-
mologicamente o tudo-dizer. A parrhesia diz tudo. Ou
melhor, não é tanto o tudo-dizer que está em questão na
parrhesía. Na parrhesia, o que está fundamentalmente em
questão é o que assim poderíamos chamar, de uma ma-
neira um pouco impressionista: a franqueza, a liberdade, a
abertura, que fazem com que se diga o que se tem a dizer, .
da maneira como se tem vontade de dizer, quando se tem
vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário
dizer. O termo parrhesia está tão ligado à escolha, à decisão,
.....
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 451
à atitude de quem fala, que os latinos justamente traduzi-
ram parrhesía pela palavra libertas. O tudo-dizer da parrhesía
tomou-se libertas: a liberdade de quem fala. E muitos tradu-
tores franceses utilizam para traduzir parrhesía - ou traduzir
libertas neste sentido - a expressão franc-parler (franco-falar),
tradus:ão que, como veremos, me parece a mais adequada.
E esta noção de parrhesía (libertas, franco-falar) que gos-
taria agora de estudar um pouco mais. Parece-me que se
quisermos compreender o que são parrhesía, êthos e tékhne,
·a atitude moral e O procedimento técnico requeridos da par-
te de quem fala, do mestre, de quem dita, talvez seja melhor
- começando por uma análise um pouco negativa - con-
frontar a parrhesía com duas figuras que lhe são adversas.
Esquematicamente, pode-se dizer que a parrhesía (o fran-
co-falar) do mestre tem dois adversários. O primeiro é um
adversário moral, ao qual se opõe diretamente, contra o
qual deve lutar. O adversário moral do franco-falar é pois a
lisonja. Em segundo lugar, o franco-falar tem um adversário
técnico. O adversário técnico é a retórica, retórica em relação
à qual o franco-falar tem de fato uma posição muito mais
complexa do que em relação à lisonja. A lisonja é o inimigo.
O franco-falar deve dispensar a lisonja e dela livrar-se. Em re-
lação à retórica, o franco-falar deve dela liberar-se, não tan-
to nem unicamente para expulsá-la ou excluí-la, mas antes,
uma vez livre em relação às regras da retórica, poder~la
servir-se nos limites muito estritos e sempre taticamente de-
finidos em que ela é verdadeiramente necessária. Oposição,
combate, luta contra a lisonja. Liberdade, liberação em re-.
lação à retórica. Observemos que a lisonja é o adversário mo-
ral do franco-falar. Quanto à retórica, se quisermos, seria seu
adversário ou parceiro ambíguo, mas parceiro técnico. Este9'
dois adversários (a lisonja e a retórica) são, aliás, profunda-
mente ligados um ao outro, pois o fundo moral da retórica
é sempre a lisonja, e o instrumento privilegiado da lisonja
é, bem entendido, a técnica, e eventualmente as astúcias da
retórica.
./-
238. 452 A HERMEN~lITlCA DO SUJEITO
Primeiramente, o que é a lisonja, e em que, por que o
franco-falar deve a ela se opor? É bastante significativo que,
em todos os textos deste período, nos deparamos com uma
abundante literatura sobre o problema da lisonja. É signifi-
cativo, por exemplo, que haja um número muito maior de
tratados, de considerações sobre a lisonja do que acerca das
condutas sexuais ou acerca de problemas como as relações
entre pais e filhos. Filodemo (de quem teremos de falar mui-
tas outras vezes), um epicurista escreveu um tratado sobre
a lisonja'. Plutarco escreveu um tratado sobre a maneira de
distinguir o verdadeiro amigo daquele que não passa de um
lisonjeador'. E as cartas de Sêneca estão repletas de consi-
derações referentes à lisonja. Curiosamente - voltarei aliás
a este texto de uma maneira· mais precisa - o prefácio da
quarta parte das Questões naturais, do qual poderíamos es-
perar qualquer coisa menOS uma consideração sobre a li-
sonja, é, não obstante, inteiramente consagrado a este pro-
blema. Por que a lisonja é importante? O que faz com que
a lisonja seja um risco moral tão importante na prática de
si, na tecnologia de si? Pois bem, podemos facilmente com-
preendê-lo se aproximarmos a lisonja de outro defeito, outro
vício que teve, naquela época, também ele, um papel capital
e que, de certo modo, a ela se equipara. Trata-se da cólera.
Cólera e lisonja equipáram-se na questão dos vícios. Em que
e como? Também a literatura sobre a cólera é enorme. Houve
aliás um estudo que foi publicado na Alemanha - há algum
tempo, creio que há mais de sessenta anos - por alguém cha-
mado Paul Rabbow, sobre os tratados da cólera na época
helenística e sob o Alto Império'. Sobre o que versam estes
tratados sobre a cólera? Evidentemente não vou alongar-me
a respeito. Também aqui, numerosos textos. Temos certamen-
te o De ira, de Sêneca, e o tratado sobre o controle ou o do-
mínio da cólera, de Plutarco', e ainda vários outros. O que
é a cólera? A cólera, por certo, é o arrebatamento violento,
arrebatamento incontrolado de alguém em relação a outro,
em relação a outro sobre quem o primeiro, o que está enco-
lerizado, encontra-se no direito e em posição de exercer seu
'-.'--
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 453
poder e, portanto, dele abusar. E quando consideramos es-
tes tratados sobre a cólera, percebemos que esta questão é
sempre tratada enquanto cólera do pai de família em relação
àsua mulher, aos seus filhos, aos domésticos, aos escravos.
Ou ainda a cólera do patrão em relação aos seus clientes ou
aos que dele dependem; a cólera do general em relação às
suas tropas; e certamente a cólera do Príncipe em relação
aos seus súditos. Isto significa que a questão da cólera, a
questão do próprio arrebatamento ou da impossibilidade
de controlar-se - digamos mais precisamente, a impossibi-
lidade de exercer o poder e a soberania sobre si mesmo na me-
dida e no momento em que se exerce a soberania e o poder
sobre os outros -, esta questão coloca-se exatamente no
ponto de articulação entre o domínio de si e o domínio so-
bre os outros, o governo de si mesmo e o governo dos outros.
De fato, se naquela época a cólera teve uma importância tão
grande é certamente por se tratar de uma época em que se
tentava na medida do possível - o que foi feito durante sé-
culos, digamos desde o começo do período helenístico até
o fim do Império romano - [colocar] a questão da econo-
mia das relações de poder em uma sociedade na qual a es-
trutura da cidade não era mais predominante e na qual o
aparecimento das grandes monarquias helenísticas, o apare-
cimento a fortiori do regime imperial, colocavam em novos
termos o problema da adequação do indivíduo à esfera do
poder, da sua posição na esfera do poder que ele exerceria.
Como seria o poder outra coisa senão um privilégio de esta-
tuto que se exerce como e quando se quer, em função mes-
mo deste estatuto originário? Como o exercício do poder se
tornaria uma função precisa e determinada cujas regras não
estariam na superioridade estatutária do indivíduo, mas nas
tarefas precisas e concretas que ele deve exercer? Como o
exercício do poder se tornaria uma função e um ofício? É na
ambiência geral deste problema que se coloca a questão da
cólera. Ou, se quisermos, a diferença entre o poder e a pro-
priedade é a seguinte: a propriedade é certamente ojus uten-
di et abutendi6
Quanto ao poder, é preciso definir um jus
.--'
239. 454 A HERMENfUTICA DO SUJEITO
utendi que permitirá fazer uso do poder sem jamais dele
abusar. E a ética da cólera é uma maneira de distinguir aqui-
lo que é uso legítimo daquilo que é pretensão de abuso do
poder. É isto, portanto, [sobre] a cólera.
A questão da lisonja, o problema moral da lisonja, cons-
titui exatamente um problema inverso e complementar. O
que é efetivamente a lisonja? Se a cólera é, pois, o abuso do
poder pelo superior em relação ao inferior, compreendemos
bem que a lisonja será, para o inferior, uma maneira de ga-
nhar este poder maior que se encontra no superior, ganhar
seus favores, sua benevolência, etc. Através do que e como
o inferior pode ganhar os favores e a benevolência do supe-
rior? Como ele pode desviar e utilizar em seu próprio pro-
veito o poder do superior? Através do único elemento, do úni-
co instrumento, da única técnica de que pode dispor: o lógos.
Ele fala, e é falando que o inferior pode, alcançando de cer-
to modo o poder maior do superior, conseguir dele obter o
que quer. O lisonjeador serve-se da linguagem para obter do
superior o que quer. Mas, servindo-se assim da superioridade
do superior, ele a reforça. Reforça-a porquanto o lisonjeador
é aquele que obtém o que quer do superior fazendo-lhe crer
que ele é o mais belo~ o mais rico, o mais poderoso, etc. Em
todo caso, mais rico, mais belo, mais poderoso do que real-
mente é. Conseqüentemente, o lisonjeador pode conseguir
desviar o poder do superior dirigindo-se a ele com um dis-
curso mentiroso no qual o superior se verá com mais qua-
lidades, força, poder do que tem. O lisonjeador é aquele
que, por conseguinte, impede que se conheça a si mesmo
como se é. O lisonjeador é aquele que impede o superior de
ocupar-se consigo mesmo como convém. Temos aqui uma
dialética, se quisermos, do lisonjeador e do lisonjeado, pela
qual o lisonjeador, encontrando-se por definição em uma
posição inferior, estará em relação ao superior em uma si-
tuação tal que, relativamente a ele, o superior estará como
que impotente, uma vez que é na lisonja do lisonjeador que
o superior encontrará uma imagem de si abusiva, falsa, que
o enganará, colocando-o assim em situação de fraqueza re-
~. '~L
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 455
lativamente ao lisonjeador, relativamente também aos ou-
tros, e finalmente a si mesmo. A lisonja torna impotente e
cego aquele a quem se dirige. É este, se quisermos, o esque-
ma geral da lisonja.
Há um texto muito preciso sobre o problema da lisonja.
Há, aliás, uma série de textos. Gostaria de deter-me no de
Sêneca, que se acha no prefácio ao quarto livro das Questões
naturais'. Temos então, parece-me, uma paisagem social e
politicamente muito clara, permitindo definir um pouco o
que está em jogo na questão da lisonja. Sêneca escreveu as
Questões naturais no momento em que, de certo modo, es-
tava em retiro, tinha se afastado do exercício do poder po-
lítico e escrevia a Lucflio - que era então procurador na Si-
cflia - a famosa correspondência que ocupa os últimos anos
de sua vida. Escreve a Lucflio. Escreve-lhe as cartas, e é igual-
mente para Lucílio que redige as Questões naturais que che-
garam até nós, bem como O famoso tratado de moral que,
ao contrário, não nos chegou. Portanto, escreve a Lucília e
envia-lhe os diferentes livros das Questões naturais na me-
dida em que os redige. Por razões que aliás não são claras,
pelo menos diretamente claras para mim, ele começa o quar-
to livro das Questões naturais, que é, creio, consagrado ao pro-
blema dos rios e das águas', por considerações sobre a li-
sonja. Vejamos o que ele diz. O texto começa assim: tenho
total confiança em ti, sei perfeitamente que te conduzes bem
e como convém no teu emprego de procurador. O que é
conduzir-se bem no emprego de procurador? Pois bem, o
texto o diz claramente. De um lado, ele exerce suas funções.
Exerce-as, sem contudo abandonar o que é indispensável
para bem exercê-las, isto é, o otium e as /itterae (o ócio e as
letras). Ócio estudioso, aplicado ao estudo, à leitura, à escrita,
etc., é isto que, a título de complemento, de acompanhamen-
to, de princípio regulador, é a garantia de que LUC11io exerça
seu cargo de procurador como convém. É graças a isto, a esta
justa combinação do exercício das funções com o oHum es-
tudioso, que Lucílio poderá manter suas funções (continere
intra fines: contê-las em [seus] limites). E ,que é conter em
240. I
Ilf
I
;11
I,
f.
456 A HERMENWTlCA DO SUJEITO
seus limites a função que exerce? É, diz Sêneca, lembrar-se
- e disto, afirma ele, tu, Lucílio não esqueças jamais - de
que tu não exerces o imperium (a soberania política em sua
totalidade), mas uma simples procuralio'. Portanto, a exis-
tência aqui destes dois termos técnicos é, a meu ver, muito
significativa. Lucílio exerce bem o poder graças à reflexão
estudiosa que acompanha o exercício de suas funções. Eexer-
ce-o bem na medida em que não se vê como um outro Prín-
cipe' como o substituto do Príncipe, nem mesmo corno o
representante global do poder total do Príncipe. Exerce seu
poder como um ofício, definido pelo cargo que lhe foi con-
ferido. Trata-se de uma simples procuratio e, diz ele, a razão
pela qual tu assim consegues, graças ao otium e ao estudo,
exercer tuas funções nos limites de uma procuratio e não sob
a presunção de uma soberania imperial, é que, afinal, estás
contente contigo mesmo, sabes satisfazer-te contigo (tibi
tecum optime convenit)10.
Vemos, então, em que e como o otium estudioso pode·
desempenhar o papel de delimitação da função que ele exer-
ce. Com efeito, enquanto arte de si mesmo cujo objetivo con-
siste em levar o indivíduo a estabelecer consigo uma relação
adequada e suficiente, ootium estudioso faz com que o in-
divíduo não venha a situar o seu próprio eu, sua própria sub-
jetividade no delírio presunçoso de um poder que extrapola
suas funções reais. Toda a soberania que ele exerce, situa-a
em si mesmo, no interior de si mesmo, ou mais exatamen-
te, em uma relação de si para consigo. A partir daí então, a
partir desta lúcida e total soberania que exerce sobre si
mesmo, poderá definir e delimitar o exercício de seu cargo
somente às funções que lhe são atribuídas. Assim é, portan-
to, o bom funcionário romano - penso que podemos em-
pregar este termo. Ele pode exercer seu poder como bom
funcionãrio a partir justamente desta relação de si para con-
sigo obtida pela sua própria cultura. Pois bem, diz ele, refe-
rindo-se. a Lucílio, isto tu fazes. Mas certamente há bem
poucos homens capazes de fazê-lo. A maior parte deles,
afirma, ou é movida pelo amor por si mesmo ou pelo des-
.,
,
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 457
gosto por si. É o desgosto ou, ao contrário, o amor excessivo
por si mesmo que levará alguns a se preocuparem com coi-
sas que na realidade não valem a pena; estes são movidos,
diz ele, pela sollicitudo, a solicitude, o cuidado com coisas
exteriores a si; ou então - em conseqüência do amor por si
- são atraídos pelo deleite, por todos os prazeres com os
quais se busca agradar a si mesmo. Em um caso como no
outro, quer no desgosto por si mesmo e, conseqüentemente,
no perpétuo cuidado relativamente aos acontecimentos que
possam ocorrer, quer ao contrário no amor por si €, conse-
qüentemente, no apego aos deleites, de todo modo, diz ele,
estas pessoas nunca estão sós consigo mesmasll. Nunca es-
tão sós consigo mesmas no sentido de jamais terem consi-
go mesmas aquela relação plena, adequada e suficiente que
faz com que não se sintam dependentes de nada, nem dos
infortúnios ameaçadores, nem dos prazeres que podem en-
contrar ou obter ao seu redor. É nesta insuficiência de ja-
mais se estar só consigo mesmo, é quando se tem desgosto
ou demasiado apego a si, é nesta incapacidade de se estar
só, que então acorrem o personagem do lisonjeador e os
perigos da lisonja. Nesta não-solidão, nesta incapacidade
de estabelecer consigo uma relação plena, adequada, sufi-
ciente, o Outro intervém, preenchendo de algum modo esta
lacuna, substituindo, ou melhor, suprindo esta inadequação
por um discurso; discurso que, justamente, não será o dis-
curso de verdade pelo qual podemos estabelecer, cercar e
encerrar nela própria a soberania que se exerce sobre si. O
lisonjeador introduzirá um discurso que é um discurso es-
tranho, que depende justamente do outro, dele, o lisonjea-
dor. E este será um discurso mentiroso. Assim, pela insufi-
ciência em que se encontra na sua relação consigo mesmo,
quem é lisonjeado se acha sob a dependência do lisonjea-
dor, lisonjeador que é um outro, que pode então desaparecer,
transformar sua lisonja em maldade, em cilada, etc. Depen-
dente deste outro, ele é também dependente da falsidade
dos discursos sustentados pelo lisonjeador. Assim, a subje-
tividade, como diríamos, a relação de si para consigo carac-
241. 458 A HERMEmUTlCA DO SUJEITO
terística do lisonjeado, é uma relação de insuficiência que
passa pelo outro, e uma relação de falsidade que passa pela
mentira do outro. Disto podemos facilmente tirar uma con-
clusão e algumas eventuais observações.
A conclusão é que a parrhesía (o franco-falar, a libertas)
é exatamente a antilisonja. É a antilisonja no sentido de que,
na parrhesía, há efetivamente alguém que fala e que fala ao
outro, mas fala ao outro de modo tal que o outro, diferen- ,
temente do que acontece na lisonja, poderá constituir con-
sigo mesmo uma relação que é autônoma, independente,
plena e satisfatória. A meta final da parrhesía não é manter
aquele a quem se endereça a fala na dependência de quem
fala - como é o caso da lisonja. O objetivo da parrhesía é fa-
zer com que, em um dado momento, aquele a quem se en-
dereça a fala se encontre em uma situação tal que não neces-
site mais do discurso do outro. De que modo e por que não
necessitará mais do discurso do outro? Precisamente, por-
que o discurso do outro foi verdadeiro. Éna medida em que
o outro confiou, transmitiu um discurso verdadeiro àquele a
quem se endereçava que este então, interiorizando este dis-
curso verdadeiro, subjetivando-o, pode se dispensar da re-
lação com o outro. A verdade que na parrhesía passa de um
ao outro sela, assegura, garante a autonomia do outro, da-
quele que recebeu a palavra relativamente a quem a pro-
nunciou. É isto, creio, o que podemos dizer acerca da opo-
sição lisonjalparrhesía (franco-falar). Gostaria apenas de
acrescentar duas ou três observações.
Pode-se retrucar que não seria preciso esperar os textos
de que lhes falo, da época helenística e imperial, para en-
contrar o problema da lisonja em oposição à verdadeira e sã
direção das almas, assim como o temor e a crítica da lisortja.
Afinal, há em Platão uma imensa crítica da lisonja que pode
ser encontrada em uma série de textos12. Gostaria simples-
mente de observar o seguinte: a lisonja de que fala Platão,
à qual opõe a verdadeira relação do filósofo com o discípu-
lo, é essencialmente a lisonja do enamorado em relação ao
rapaz. Já a lisonja de que aqui se trata - nos textos de que'
'-..
AUlA DE 10 DE MARÇO DE 1982 459
lhes falo, helenísticos e sobretudo romanos - de modo al-
gum é uma lisonja enamorada do velho filósofo em relação
ao jovem rapaz, mas uma lisonja que podemos chamar de
sociopolítica. O suporte desta lisonja não é o desejo sexual,
mas a posição de inferioridade de um relativamente ao ou-
tro. E isto se refere a uma prática da direção - sobre a qual
já lhes falei - que é muito diferente daquela que se encon-
trava ou que era exemplificada nos primeiros diálogos so-
cráticos: o diretor, nos meios greco-romanos desta época, não
é tanto o velho sábio, o velho detentor da verdade que in-
terpela os jovens no estádio ou no ginásio e os convida a se
ocuparem consigo mesmos. O diretor é alguém que está em
uma posição socialmente inferior relativamente àqueles a
quem se endereça; é alguém remunerado; alguém a quem se
dá dinheiro; alguém que se faz vir à própria casa a título de
conselheiro permanente para que diga, se for o caso, o que se
deve fazer em uma ou outra situação política ou em uma ou
outra situação particular; é aquele a quem se pede conselhos
de conduta. Éuma espécie de familiar cuja relação é antes a de
cliente para patrão relativamente àquele que ele dirige. Esta
inversão social do diretor relativamente àquele que ele dirige
é muito significativa. Constitui, penso eu, uma das razões pe-
las quais o problema da lisonja foi tão importante. Com efei-
to, a posição do diretor como conselheiro privado no interior
de uma grande familia ou em um círculo de aristocratas colo-
cade maneira bem diferente [em relação ao modo como se
colocava] na Grécia clássica o problema da lisonja. Há, aliás,
acerca deste assunto ou deste tema, uma observação de Ga-
leno - a cujo texto voltaremos logo mais - que, embora pare-
ça um pouco estranha, explica-se, a meu ver, neste contexto.
Certa ocasião, Galeno afirmara: quem é dirigido não deve ser
rico e poderoso13
• Penso que, de fato, esta observação tem
sentido.somente comparativo. Tratar-se-ia, para ele, de afir-
mar: é preciso afinal que aquele que é dirigido não seja mui-
to mais rico nem muito mais poderoso do que quem dirige.
Ao problema da lisonja vincula-se também um proble-
ma político mais geral. Com efeito, a partir do momento em
242. 460 A HERMENWTICA DO SUJEITO
que se lida com uma forma política do governo imperial em
que, bem mais do que a constituição da cidade, bem mais
até do que a organização legal do Estado, o importante é a
sabedoria do Príncipe, é sua virtude, são suas qualidades mo-
rais - já nos referimos a isto, como lembramos, arespeito de
Marco Aurélio14 -, a partir do momento, portanto, em que se
tem que haver com esta situação, certamente a questão da
direção moral do Principe então se coloca. Quem dará con-
selhos ao Principe? Quem formará o Príncipe, quem gover-
nará a alma do Príncipe, ele que tem que governar o mundo
inteiro? Coloca-se então, certamente, a questão da franque-
za em relação ao Príncipe. Problema que está ligado à exis-
tência do poder pessoal, à constituição de um fenômeno
novO no meio romano, que é o da corte em tomo do Prín-
cipe. Problema que está ligado também ao fenômeno, igual-
mente novo no meio romano, da divinização do impera-
dor. A questão essencial no Império romano, nesta época,
não é evidentemente a da liberdade de opinião. É a questão
da verdade para com o Príncipe: quem dirá a verdade ao
Príncipe? Quem falará francamente ao Príncipe? Como se
pode falar-verdadeiro com o Príncipe? Quem dirá ao Prín-
cipe o que ele é, não como imperador mas como homem,
situação indispensável pois é, enquanto sujeito razoável, en-
quanto ser humano pura e simplesmente (Marco Aurélio o
dízia), que o Príncipe será um bom Príncipe? As regras de seu
governo devem assentar-se fundamentalmente sobre a ati-
tude ética que ele tem em relação às coisas, aos homens, ao
mundo e a Deus. Na medida em que é a lei das leis, em que
é a regra interna à qual deve submeter-se todo poder absolu-
to, esta ética do Príncipe, este problema do seu êthos, eviden-
temente conferirá à parrhesía de quem aconselha o Príncipe
(a estedízer-verdadeiro ao Príncipe) um lugar fundamental.
Deixemos pois a questão da parrhesía (franco-falar)/li-
sonja e consideremos agora o outro adversário, o outro par-
ceiro, por assim dizer, da parrhesía que é, desta feita, a re-
tórica. Passarei um pouco maís rapidamente sobre o assunto
por se tratar de questões mais conhecidas. Conhecemos me-
.,
'-.
AUlA DE 10 DE MARÇO DE 1982 461
lhor a retórica do que a lisonja. Esquematicamente pode-
mos afirmar que a retórica é primeiramente definida como
uma técnica cujos procedimentos não têm evidentemente
por finalidade estabelecer uma verdade, mas como uma
arte de persuadir aqueles a quem nos endereçamos, pre-
tendendo convencê-los quer de uma verdade quer de uma
mentira, de uma não-verdade. A definição de Aristóteles na
Retórica é clara: trata-se do poder de encontrar aquilo que é
capaz de persuadir16
• A questão do conteúdo e a questão da
verdade do discurso sustentado não se colocam. É, dizia Ate-
neu, a arte conjecturai de persuadir os ouvintes. E Quin-
tiliano, que tanto se esforçou por aproximar ao máximo os
problemas da retórica ou pelo menos da arte da oratória dos
grandes temas da filosofia da época, colocava a questão so-
bre verdade e retórica, e dizia: a retórica certamente não
constitui uma técnica, uma arte que só transmitisse, só de-
vesse transmitir coisas verdadeiras e só destas persuadir;
uma arte e uma técnica capazes de persuadír o ouvinte tanto
de uma coisa verdadeira quanto de uma não verdadeira. To-
davia, pergunta ele, poderíamos ainda falar verdadeiramen-
te de tékhne (de técnica)? Orador bem formado em filoso-
fia, Quintiliano sabe que não pode haver tékhne eficaz se
não estiver indexada à verdade. Uma tékhne que se assen-
tasse sobre mentiras não seria uma técnica verdadeira nem
seria eficaz,. Quintiliano faz então uma distinção, afirman-
do: a retórica é uma tékhne e, por conseguinte, refere-se à
verdade, mas à verdade tal como é conhecida por aquele
que fala, não a verdade que está contida no discurso daque-
le que fala!9 Assim, diz ele, um bom general deve ser capaz
de persuadir suas tropas de que o adversário que vão en-
frentar não é sério nem tão temível, quando de fato o é. O bom
general deve pois poder persuadi-las de uma mentira. Como
o fará?· Pois bem, ele o fará se, de um lado, conhecer a ver-
dade da situação e, de outro, conhecer verdadeiramente os
meios pelos quais se pode persuadir alguém tanto de uma
mentira quanto de uma verdade. Assim, Quintiliano mostra
como a retórica enquanto tékhne está indexada a uma ver-
Instituto de Psicologi3 - UFRGS
Bihlintpl':l - - - .~
243. 462 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
dade - a verdade conhecida, possuída, dominada por aque-
le que fala -, mas não está indexada à verdade considerada
do lado daquilo que é dito e, conseqüentemente, do lado
daquele a quem ela é endereçada. Portanto, trata-se de uma
arte que, com efeito, é capaz de mentira. É isto o fundamental
sobre a retórica, retórica precisamente oposta ao discurso
filosófico e à técnica própria ao discurso filosófico, a saber,
a parrhesía. Na parrhesía só pode haver verdade. Onde não
houver verdade não há franco-falar. A parrhesía é a transmis-
são nua, por assim dizer, da própria verdade. A parrhesía as-
segura da maneira mais direta esta parádosis, este trânsito
do discurso verdadeiro de quem já o possui para quem deve
recebê-lo, deve dele impregnar-se, deve poder utilizá-lo e
deve poder subjetivá-Io. Ela é o instrumento desta transmis-
são que tão-somente faz atuar, em toda a sua força despo-
jada, sem ornamento, a verdade do discurso verdadeiro.
Em segundo lugar, a retórica, como sabemos, é uma arte
organizada, e organizada com procedimentos regrados. É tam-
bém uma arte que se ensina. Quintiliano lembra que ninguém
jamais ousou duvidar de que a retórica fosse uma arte e uma
arte que se ensina20• Até mesmo os filósofos, afirma ele, os
peripatéticos e os estóicos, o dizem e reconhecem (eviden-
temente, não cita os epicuristas que diziam exatamente o
contrário21): a retórica é uma arte, uma arte que se ensina.
E acrescenta: Haveria alguém tão distanciado não somen-
te de toda cultura como de todo senso comum a ponto de
pensar que poderia haver uma arte de forjar, uma arte de
tecer, uma arte de modelar vasos, enquanto a retórica, esta
obra tão importante e tão bela, teria atingido o nível que lhe
reconhecemos sem a ajuda de uma arte, sem ter-se torna-
do, ela mesma, uma arte?22 Portanto, a retórica é realmen-
te uma arte. E que regras comandam esta arte? Pois bem,
também sobre isto os textos são muito claros, sobretudo os
de Quintiliano, mas igualmente os de Cícero. Esta arte e suas
regras não são definidas pela relação pessoal ou individual,
ou, digamos ainda, pelasituação tática que é a de quem
fala em face daquele a quem se endereça. Não é pois o jogo·
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 463
de pessoas que define as regras da retórica tal como era en-
tendida naquela época. Tampouco é o fato - e devemos nos
lembrar disto, a despeito do que hoje por vezes se diz - de
que a retórica antiga fosse um jogo sobre as propriedades
intrínsecas da linguagem. As possibilidades e as regras da
retórica, o que a define como arte, não são as características
da própria língua. O que define a retórica, para Cícero, para
Quintiliano, é essencialmente, como sabemos, o assunto tra-
tado''. É aquilo [de que] se fala que é pertinente para dizer
o modo como se o deve falar. Trata-se de defender uma cau-
sa' trata-se de discutir diante de uma assembléia sobre a
guerra e a paz, trata-se de remover uma acusação criminal,
etc.? É este jogo, o do assunto tratado, que definirá para a
retórica o modo como deve ser organizado o discurso, como
deve ser feito o preâmbulo, como deve ser feita a narratio (a
narração dos acontecimentos), como se deve discutir os ar-
gumentos pró e contra. É o assunto, o referente do discur-
so por inteiro que deve constituir, e de onde devem derivar,
as regras retóricas deste discurso.
Na parrhesía a questão é outra. Primeiro, a parrhesía não
é uma arte. Digo isto com certa hesitação, pois, como vere-
mos adiante, há talvez alguém - e é Filodemo, no seu Peri
parrhesías - que definiu a parrhesía como uma arte, mas vol-
tarei a isto. Porém, de modo geral- e está muito claro em Sê-
neca - a parrhesía (o franco-falar, a libertas) não é uma arte.
Voltarei logo mais aos textos de Sêneca em que encontra-
mos, particularmente na carta 75, uma verdadeira teoria do
franco-falar, que não é expressamente organizado como uma
arte, nem sequer apresentado como uma arte. O que prin-
cipalmente caracteriza esta parrhesía é que ela é essencial-
mente definida não tanto pelo próprio conteúdo - o con-
teúdo é evidente e está dado, é a verdade -; mas o que irá
defini-Ia como uma prática específica, como uma prática
particular do discurso verdadeiro? Pois bem, são as regras de
prudência, as regras de habilidade, as condições que fazem
com que se deva dizer a verdade em tal momento, sob tal
forma, em tais condições, a tal individuo, na medida e so-
244. i
464 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
mente na medida em que ele for capaz de recebê-la, de re-
cebê-la da melhor forma no momento em que estiver. Neste
sentido, o que define essencialmente as regras da parrhesía
é o kairós, a ocasião, ocasião que é exatamente a ~tuação
dos indivíduos em relação uns aos outros e o momento es-
colhido para dizer a verdade. É precisamente em função da-
quele a quem nos endereçamos e do momento em que a ele
nos endereçamos que a parrhesía deve modalizar não o con-
teúdo do discurso verdadeiro, mas a forma com que este
discurso é sustentado. [...*] Tomarei apenas um exemplo em
Quintiliano. Tratando do ensino moral, ou antes da parte
moral, do aspecto moral do ensino que o professor de retó-
rica deve ministrar, Quintiliano explica que é preciso confiar
o aluno ao mestre de retórica o mais rápido possível, sem
muita demora, e que o mestre de retórica tem dois papéis a
desempenhar. Deve ensinar retórica, é claro. Mas tem tam-
bém um papel moral''. E como desempenhará este papel
moral, [que é] ajudar o indivíduo na formação de si mesmo,
na constituição de uma relação adequada consigo mesmo?
Quanto a isto Quintiliano fornece algumas regras25
para as
quais não emprega o termo libertas, mas também aqui o que
se dá são conselhos empíricos, que correspondem, de modo
geral, à parrhesía. Diz ele: não se deve provocar a antipatia
do aluno por excesso de severidade. Tampouco se deve, por
excesso de brandura, propiciar no aluno uma atitude dema-
siado arrogante que o levaria a desprezar o mestre e o que
ele diz. Quintiliano continua: de todo modo, é melhor dar
conselhos antes do que precisar punir depois um ato já co-
metido. Deve-se, diz ainda, responder de bom grado às per-
guntas. Deve-se interrogar os que permanecem muito ca-
lados e não perguntam. Deve-se retificar todos os erros que
podem ser cometidos pelo aluno, mas é preciso fazê-lo sem
,. Ouve-se apenas: fi ••• desdobrado como prática, como reflexão,
como prudência tática, digamos, entre quem detém a verdade e quem
deve recebê-Ia. .
'-,...,.
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 465
rudeza. Enfim, diz ele, é preciso que o próprio mestre, ao
menos uma vez ou eventualmente várias vezes por dia, tome
a palavra a fim de que seus ouvintes levem consigo o que
ele disse. Sem dúvida a leitura fornece exemplos a serem
imitados, mas a palavra viva é um alimento mais nutritivo,
sobretudo quando se trata da palavra de um mestre, por
quem seus alunos, quando bem formados, têm afeição e
respeito.26
Chegamos então a uma terceira diferença entre a retó-
rica e a parrhesía. A retórica tem essencialmente por função
agir sobre os outros no sentido de que permite dirigir ou
modalizar as deliberações das assembléias, conduzir o povo,
comandar um exército, etc. Ela age sobre os outros, mas
sempre para o maior proveito daquele que fala. O retórico,
quando efetivamente é um bom retórico, não dá a impres-
são de ser simplesmente um advogado que defende uma
causa. Ele lança raios e trovães, diz Quintiliano, e colhe para
si a glória, glória que é do momento presente, e que talvez
sobreviverã à sua morte. A parrhesía, ao contrário, tem um
objetivo completamente diferente, uma finalidade comple-
tamente diferente. A posição, por assim dizer, daquele que
fala e daquele a quem se fala é completamente diferente. Na
parrhesía, por certo, trata-se tampém de agir sobre os ou-
tros, não tanto para exigir-lhes algo, para dirigi-los ou incli-
ná-los a fazer uma ou outra coisa. Agindo sobre eles, trata-se
.fundamentalmente de conseguir que cheguem a constituir
por si mesmos e consigo mesmos uma relação de soberania
característica do sujeito sábio, do sujeito virtuoso, do sujei-
to que atingiu toda a felicidade que é possível atingir neste
mundo. Conseqüentemente, se este é o objeto da parrhesía,
compreende-se bem que quem a pratica - o mestre - não
tem nenhum interesse direto e pessoal neste exercício. O
exercício da parrhesía deve ser essencialmente comandado
pela generosidade. A generosidade para com o outro está
no cerne da obrigação moral da parrhesía. Numa palavra,
digamos pois que o franco-falar, a parrhesía, em sua própria
estrutura, é completamente diferente e oposta à retórica.
--'
245. ~ ,
II
I
,
466 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
Por certo, como lhes dizia no começo, esta oposição não é
inteiramente do mesmo tipo que a oposição entre franco-
falar e lisonja. A lisonja é verdadeiramente o adversário, o ini-
migo. Dela, a parrhesía deve livrar-se radicalmente. Quanto à
retórica, ao contrário, a posição é um pouco diferente. O dis-
curso da parrhesía, em sua própria estrutura, em seu jogo é,
por certo, completamente diferente da retórica. Isto não sig-
nifica que, por vezes e a fim de se obter o resultado a que Se
propõe, não se deva, na própria tática da parrhesía, recorrer
a elementos, a procedimentos que são da retórica. Digamos
que a parrhesía esteja fundamentalmente liberada das re-
gras da retórica, que ela a retoma diagonalmente e só-a uti-
liza quando necessário. Deparamos aqui com uma série de
problemas que apenas indico, e que constituem, por certo,
o conflito fundamental, na cultura antiga, entre a retórica e
a filosofia28
• Este conflito que, como sabemos, já está evi-
denciado desde os séculos V-N, atravessará toda a cultura
antiga. Assumirá dimensões e intensidade novas precisa-
mente no período do Alto Império de que lhes falo, com o
reaparecimento da cultura grega e o aparecimento do que
chamamos a segunda sofística, isto é, uma nova cultura lite-
rária, uma nova cultura retórica, uma nova cultura oratória
e judiciária que vai se opor muito fortemente - no fim do
primeiro e durante todo o segundo século - a esta prática
filosófica comandada pelo cuidado de si mesmo29
• É isto, se
quisermos, para destacar um pouco a parrhesía destas duas
figuras que lhe são ligadas e opostas Oisonja e retórica), per-
mitindo que nos aproximemos de uma definição, ao menos
negativa, do que vem a ser a parrhesía.
Se quisermos saber agora, positivamente, o que é a par-
rhesía, creio que podemos nos reportar a três textos que
muito diretamente colocam a questão e propõem uma aná-
lise do franco-falar. São eles: primeiro, o texto de Filodemo de
que lhes falei, o Peri parrhesías; segundo, a carta 75 de So-
neca a Lucílio; terceiro, o texto de Galena no Tratado das pai-
xões, que começa com uma análise do modo como se deve
utilizar a franqueza nas relações de direção. Não os conside-
,
'•..
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 467
rarei em estrita ordem cronológica. De qualquer maneira,
na medida em que as lacunas da documentação não permi-
tem estabelecer uma evolução nem demarcá-la claramen-
te, seria de todo inútil querer seguir estritamente a ordem
cronológica, parecendo-me que, dada a complexidade dos
textos e os níveis de análise, é melhor começar pelo texto de
Filodemo, que nos dará uma espécie de imagem institucio-
nal do jogo da parrhesía30
; estudaremos em seguida o texto de
Galena - embora bem mais tardio, fim do século II31 - que
fornece uma imagem do que é a parrhesía na relação indi-
vidual de direção; e depois [retomaremos] ao texto de Sê-
neca - meados do século I - que afinal é, a meu ver, o tex-
to mais profundo, mais analítico concernente à parrhesía.
Primeiro, o texto de Filodemo. Filodemo, como sabemos,
é um filósofo epicurista, que se instalara em Roma bem no
final da República e era o conselheiro filosófico, o conse-
lheiro privado de Lucius Pis03
'. Filodemo foi muito impor-
tante, quer pelo conteúdo significativo de seus escritos, quer
por ter sido um dos fundadores, um dos inspiradores do
movimento epicurista do final do século I a.c. - ou logo no
começo do século I [d.C.]. Foi a referência constante dos di-
ferentes círculos epicuristas que sabemos terem existido em
Nápoles, na Campânia, e igualmente em Roma. De Filode-
mo a Mecenas, se quisermos, toda a intensa vida do epicuris-
mo romano foi comandada pelos textos de Filodemo. Ele es-
Creveu uma série de tratados sobre pontos particulares de
moral, pontos em que estão justamente em questão ligações
entre relação de poder e governo de si, economia da verda-
de, etc. Há um tratado sobre a cólera, um tratado sobre a li-
sonja, um tratado sobre a vaidade (a jactância: hyperepha-
nía). E há o Peri parrhesías: Tratado do franco-falar. Deste
tratado dispomos de fragmentos relativamente importantes,
apresentando muitas lacunas. Foi editado na Alemanha34,
não na França, mas creio que Hadot pretende editá-lo e co-
mentá-lo. Aliás, devido à dificuldade do texto, confesso que
me guiei sobrehldo por um interessante comentário reali-
zado por um italiano, Gigante. Este comentário acha-se na
246. I
468 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
coletânea do congresso da associação Budé consagrado ao
epicurismo. O congresso ocorreu em 1968 e Gigante fez uma
análise muito precisa do Peri parrhesÍas. Tateando um pou-
co o texto e seguindo o comentário de Gigante, vejamos apro-
ximadamente o que podemos dizer a este respeito.
Eis a tese de Gigante. Diz ele: a parrhesÍa é apresenta-
da por Filodemo como sendo uma tékhne. E acrescenta em
seguida: notemos que o texto de Filodemo não menciona o
termo tékhne. Entretanto, diz ele, há um elemento que pa-
rece indicar que realmente é a uma arte (uma tékhne) que
Filodemo se refere. Com efeito, encontramos em um frag-
mento, que não está completo, a expressão stokhazómenos.
Filodemo diz precisamente: O homem sábio e filósofo apli-
ca o franco-falar (a parrhesÍa) na medida em que raciocina
conjeturando por meio de argumentos plausíveis e sem ri-
gidez. Ora, sabemos que há uma antiga oposição, tradicio-
nal ao menos desde Aristóteles, [entre] dois tipos de arte: as
artes de conjectura e as artes de método. A arte conjecturaI
é uma arte que procede precisamente por argumentos que
são meramente verossímeis e plausíveis; isto, por conse-
guinte, abre a possibilidade, para quem os utiliza, de não
seguir uma regra, e uma regra única, mas de tentar atingir
a verdade verossímil por meio de uma série de argumentos
que se justapõem sem que haja necessidade de uma ordem
necessária e única; por sua vez, toda arte metódica (metho-
dikej implica, primeiramente, que se alcance, como resulta-
do, uma verdade certa e bem estabelecida, mas à custa de
um percurso, uma via que só pode ser uma via única. Por-
tanto, pode-se supor que o uso da palavra stokhazómenos (do
verbo conjecturar)36 parece reportar-se à existência de uma
arte, ou à oposição entre a arte conjectural e a arte metódi-
ca''. Segundo o texto de Filodemo, sobre o que se assenta,
afinal, esta arte conjecturaI? Pois bem, precisamente sobre a
consideração do kairós, da circunstância38
. Também aqui está
presente a fidelidade à lição aristotélica. Também para Aris-
tóteles, uma arte conjecturaI assenta-se sobre a considera-
ção do kairós. E, diz Filodemo, deve-se efetivamente ter muic
.
AULA DE 10 DE MARÇO Df 1982
469
tos cuidados ao dirigir-se aos discípulos; deve-se retardar
tanto quanto possível as ocasiões de intervir entre eles.
Porém, sem jamais retardá-las demasiadamente. Deve-se
escolher exatamente o bom momento. Deve-se também ter
em conta o estado de espírito daquele a quem se dirige, pois
pode-se fazer sofrer os jovens quando admoestados em pú-
blico de maneira demasiado severa. Pode-se também fazê-lo,
e esta é a via que se deve escolher, de tal sorte que tudo se
passe,no prazer e na alegria (hilarôs)39. Nisto, nesta percep-
ção da ocasião, a parrhesÍa, diz Filodemo, faz realmente pen-
sar na arte ou na prática do navegador e na prática do mé-
dico. Aliás, ele desenvolve o paralelismo entre a parrhesÍa fi-
10sófica e a prática médica. A parrhesÍa, diz ele, é um Socorro
(boétheia: lembremos que já encontramos esta noção), é uma
therapeía (uma terapêutica). A parrhesÍa deve permitir cui-
dar como convém. O sophós é um bom médico41 . Enfim, en-
contramos nestes fragmentos de Filodemo um elemento que
é novo em relação a tudo o que acabo de lhes dizer, e que pu-
demos já perceber na definição negativa da parrhesÍa oposta
tanto à lisonja quanto à retórica. Este elemento novo, posi-
tivo e importante encontra-se no fragmento 25 de Filodemo.
A tradução do texto assim exprime: pelo franco-falar (a par-
rhesía) incitamos, intensificamos, animamos de certo modo
a benevolência (eúnoia) dos alunos uns para com os outros
graças ao fato d se ter faladÇ livremente. Há neste texto,
'a meu ver, algo importante. E, se quisermos, a oscilação da
parrhesÍa (do franco-falar). Como vemos, trata-se de um fran-
co-falar pelo qual se incita os alunos a isto ou àquilo. Portan-
to, trata-se do franco-falar, da parrhesÍa, do mestre que deve
agir sobre os discípulos, incitá-los a algo: intensificar algo.
Mas intensificar e animar o quê? A benevolência dos alunos
uns para com os outros graças ao fato de se ter falado livre-
mente. Isto é, graças ao fato de que os próprios alunos te-
rão falado livremente, e que assim uma benevolência recí-
proca, de uns para com os outros, estará assegurada e au-
mentada. Há, portanto, neste texto, o sinal de uma passa-
gem da parrhesÍa do mestre à parrhesÍa dos próprios alunos.
._-'
247. 470 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
A prática da palavra livre por parte do mestre deve ser tal
que sirva de incitação, de suporte e de ocasião aos alunos
que, também eles, terão a possibilidade, o direito, a obrigação
de falar livremente. Palavra livre dos alunos que aumentará
entre eles a eúnoia (a benevolência) ou ainda a amizade.
Portanto, há neste texto, a meu ver, dois elementos impor-
tantes: a transferência da parrhesía do mestre ao aluno; €,
certamente, a importância, tão tradicional nos meios epicu-
ristas, da amizade recíproca dos discípulos uns pelos ou-
tros, uma vez que isto é um princípio nos círculos epicuris- ftas, ao qual, aliás, Filodemo refere-se explicitamente em seu .
texto: os discípulos devem salvar-se uns aos outros, salvar-
se uns pelos outros (tà di'allélon sózesthai)43.
Creio, pois, esquematizando muito, que podemos re-
presentar o jogo da parrhesía da maneira que se segue. No
grupo epicurista, o lugar do guia, daquele que chamamos o
kathegetés, ou o kathegoúmenos, pouco importa, está fortemen-
te marcado: o diretor é um personagem importante, central
no grupo epicurista. Ele é central por uma razão essencial,
que é o fato de apoiar-se em uma sucessão; sucessão direta
de homem a homem, de presença a presença que remonta
a Epicuro. Na dinastia dos líderes epicuristas, o retomo di-
reto a Epicuro, através da transmissão de um exemplo vivo,
de um contato pessoal, é indispensável, e é isto que funda
o lugar particular do kathegetés (daquele que dirige).Ademais,
o que caracteriza a posição do kathegoúmenos (do mestre) é
que, apoiado nesta autoridade que lhe vem do exemplo vivo
transmitido desde Epicuro, ele pode falar. Pode falar e dirá
a verdade, verdade que é precisamente a do mestre a quem,
indiretamente, ele se vincula (vincula-se indiretamente, mas
por uma série de contatos diretos). Seu discurso será, poro
tanto, fundamentalmente, um discurso de verdade, e como
tal, sem nada a mais, terá de apresentá-lo. É a parrhesía de
seu próprio discurso que colocará o aluno em presença do
discurso do mestre primeiro, a saber, Epicuro. Por outro lado,
porém, além desta linha de certo modo vertical, que marca
o lugar singular do mestre na série histórica que remonta a
1
~
'-.'
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 471
Epicuro e que funda sua autoridade sobre todos os alunos,
haverá, no grupo, uma série de relações horizontais, rela-
ções-intensas, densas, fortes, que são relações de amizade e
que servirão à salvação recíproca. Pois bem, é nesta dupla
organização (vertical e horizontal) que a parrhesía irá circular.
Ela vem certamente do mestre, do mestre que tem o direi-
to de falar e que, aliás, não pode senão falar-verdadeiro já
que está em contato com a palavra de Epicuro. Mas, de ou-
tra parte, a pa17hesía irá reverter-se, virar-se, tomando-se a
prática e o modo de relação dos discípulos entre si. E efetiva-
mente, de acordo com alguns textos, aliás extremamente
alusivos e esquemáticos, é isto o que se passa nos grupos
epicuristas, isto é, a obrigação que têm os alunos de se reu-
nir em grupo diantE:, do kathegoúmenos e depois falar: falar
para dizer o que pensam, para dizer o que têm no coração,
falar para dizer as faltas que cometeram e as fraquezas de
que se sentem ainda responsáveis ou às quais ainda se sen-
tem expostos. É assim que encontramos - pela primeira
vez, parece-me, de maneira bastante explícita no interior
desta prática de si da Antiguidade greco-romana - a prática
da confissão. Uma prática da confissão inteiramente dife-
rente das práticas rituais, religiosas que, depois de se ter co-
metido um furto, um delito, um crime, consistiam efetivamen-
te em ir ao templo e depositar uma estela ou fazer uma ofe-
renda; [pelo que] se reconhecia como culpado do que havia
feito. Trata-se agora de algo inteiramente diferente: uma
prática verbal, explícita, desenvolvida e regrada pela qual o
discípulo deve responder a esta parrésia da verdade do mes-
tre com uma certa parrésia, urna certa abertura de coração
que é a abertura de sua própria alma colocada em comuni-
cação com a dos outros, operando assim, por meio disto, o
que é necessário para que ele realize sua própria salvação,
mas incitando também os outros a terem em relação a ele
uma atitude não de recusa, de rejeição e de censura, mas de
eúnoia (benevolência), e, por meio disto, incitando todos os
membros do grupo, todos os personagens do grupo a rea-
lizarem sua salvação. Temos aí uma estrutura inteiramente
')
248. 472 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
singular, cujo mecanismo ou lógica encontra-se, creio, mui-
to clara e facilmente a partir desta prática, desta técnica da
parrhesía. Mas isto será, como veremos, um fenômeno úni-
co, creio eu. Em todo caso, é nestes círculos epicuristas que
encontramos a primeira fundação, parece-me, daquilo que
se transformará [com] o cristianismo. É uma primeira forma
capaz de sugeri-lo, sem que prejulguemos, de modo ~lgum,
os laços históricos de transformação de um no outro. Ea pri-
meira vez que encontramos, parece-me, esta obrigação, que
reencontraremos no cristianismo, a saber: à palavra de ver-
dade que me ensina a verdade, e que por conseguinte me
ajuda a realizar minha salvação, devo responder - sou incita-
do, sou chamado, sou obrigado a responder - com um dis-
curso de verdade pelo qual exponl;o ao outro, aos outros, a
verdade de minha própria alma. E isto quanto a parrhesía
epicurista. Logo mais, lhes falarei, pois, da parrhesía em Ga-
leno e da parrhesía (libertas) em Sêneca.
1 '-.-:'
NOTAS
1. Sobre Filodemo, cf. aula de 27 de janeiro, primeira hora.
Lembremos aqui que este conflito foi pela primeira vez configurado
por Platão no Górgias (Platão recusava àretórica o nome de tékhne,
nela reconhecendo apenas uma habilidade vulgar) e no Fedro (em
que a retórica, para ganhar autenticidade, devia fazer-se filosofia),
e que readquiriu um novo vigor com a segunda sofística, assumin-
do orgulhosamente sua identidade e reivindicando seu divórcio
relativamente a uma filosofia reduzida a um passatempo formal
(cf. a mesma aula, segunda hora).
2. Ê após o ano 50 que devemos situar a outra grande obra
de sistematização dos conceitos morais, à qual Pilodemo dá o tí-
tulo Des vices et des vertus opposées [...l. Esta obra compunha-se ao
menos de dez livros: em vários deles o tema é a adulação, Peri ko-
lakeías [...]. Os diferentes livros De l'adulation indicavam de manei-
ra igualmente polêmica as características deste vício e, sobretudo,
podiam ter como meta determinar, em relação a ele, o comporta-
mento correto do sábio epicurista (M. Gigante, La Bibliotheque de
Philodeme et l'épicurisme romain, op. cit., p. 59).
3. Plutarque, Comment distinguer le fIateur de l'ami, in Oeuvres
Morales, t. 1-2, trad. fr. A. Philippon, ed. citada.
4. P. Rabbow, Antike Schriften über Seelenheilung und Seelenlei-
tung au! ihre Quellen untersucht, 1. Die Therapie des 2oms, Leipzig,
Teubner, 1914.
249. 474 A HERMENWTICA DO SU]WO
5. Plutarque, Du contróle de la colére, trad. J. Dumortier J.
Defradas, ed. citada.
6. Segundo os compiladores de ]ustiniano, o proprietário
tem sobre a coisa uma plena potestas (I., 2, 4, 4). Afirmação de prin-
cípio de um poder absoluto, que conhecerá uma fortuna singular.
Na Idade Média, o direito erudito a reencontra e desenvolve. Os
glosadores extrapolam um texto anódino do Digeste para dele tirar
com êxito a fórmula: a propriedade é o jus utendi et abutendi (D 5,
3, 25, 11: re sua abuti putanl) (P. Ourliac J. de Malafosse, Droit
ramain et Anaen Droi!, Paris, PUF, 1961, p. 58).
7. Prefácio ao quarto livro das Questions naturelIes, in Oeuvres
complétes de Sénéque le philosophe, ed. citada, pp. 455-9. Sobre este
texto, cf. Le Soua de soi, op. cit., pp. 108-9. [O cuidado de si, op. cil.,
p. 94. (N. dos T.)]
8. Este quarto livro é intitulado: Sobre o Nilo.
9. Apreciais pois, a julgar por vossas cartas, sábio Lucilio, a
Sicília e o ócio que vosso emprego de governador possibilita (of-
ficium procurationis otiosae).Vós sempre os apreciareis, desde que
vos disponhais a manter-vos nos limites deste cargo, desde que
imagineis que sois o ministro do príncipe e não o próprio prín-
cipe (si continere id intra fines suos volueris, nec efficere imperium,
quod est procuratio) (prefácio ao quarto livro das Questions natu-
rel/es, p. 455).
10. Vós, ao contrário, estais tão bem convosco (id., pp. 455-6).
11. Não me surpreendo que poucos homens tenham esta
felicidade: somos nossos próprios tiranos, nossos perseguidores;
infelizes ora por nos amarmos demais, ora pelo desgosto por nos-
so ser; uma vez o espírito inflado por um deplorável orgulho, ou-
tra distendido pela cupidez; deixando-nos levar pelos prazeres ou
nos consumindo pela inquietude; e, para o cúmulo da miséria,
nunca sós com nós mesmos (id., p. 456).
12. Cf. a famosa passagem do Górgias (463a) sobre a retórica:
Pois bem, Górgias, a retórica, pelo que me parece, é uma prática
estranha à arte, mas que exige uma alma dotada de imaginação,
de ousadia e naturalmente apta às relações entre os homens. O
nome genérico desta espécie de prática é, para mim, a .liso·nja (ko-
lakeían) (in Platon, Oeuvres complétes, t.1II-2, trad. fr. L. Bodin A.
Croiset, ed. citada, p. 131). Encontra-se além disto no Fedro uma
definição muito sombria do lisonjeador em 240b.
I '-.
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 475
13. É preciso que quem consulta não seja nem rico nem es-
teja investido de alguma honra cívica (Galien, Traité des passions
de l'âme et de ses erreurs, trad. R.Van der Elst, Paris, Delagrave, 1914,
cap.lII, p. 76).
14. Cf. aula de 3 de fevereiro, segunda hora.
15. Cf. a opinião de P. Veyne: Diante de uma legitimidade
mal a~segurada, não resta senão sobrevalorizar com manifesta-
ções de lealdade; o culto da personalidade ou 'lisonja' era isto: ao
mesmo tempo uma mera cláusula de estilo monárquico e uma
obrigação estrita, sob pena de ser suspeito de alta traição (Pre-
fácio a: Séneque, Entretiens, Lettres à Lucilius, ed. citada, p. XI).
16. A retórica é a faculdade (dynamis) de descobrir especu-
lativamente o que, em cada caso, pode ser próprio para persuadir
(Aristote, Rhétorique, t. 1, livro I, 1355b, trad. fr. M. Dufour, Paris,
Les BeUes Lettres, 1967, p. 76).
17. Athenaíos dê Iógon dynamin prosagoreúei tên rhetorikên sto-
khazoménen tês tôn akouónton peithous (citado por Sextus Empiri-
cus, Adversus mathematicos, lI, 62, in Sexti Empiriei opera, vol. I1I,
Leipzig, Teubner, 1954, p. 687).
18. Foucault refere-se aqui ao capítulo XVII (Si la rhétorique
est un art) do livro 11 da Institution oratoire, t. 11, trad. fr. J. Cousin,
ed. citada, pp. 89-100.
19. Há uma grande diferença entre ter sua própria opinião e
tentar inspirá-la nos outros (id., capo XII, 9, 19, p. 93).
20. Cf. Id., livro 11, passim.
21. Em seu Feri rhetorikés, Filodemo mesmo professando
com relação à retórica uma hostilidade que estava justamente na
tradição epicurista, reconhece somente a retórica sofística, isto é,
aquela que ensina a escrever outros discursos além dos políticos e
jurídicos, o estatuto de tékhne, de saber estruturado (C. Lévy, Les
Philosophes hel/énistiques, Paris, Le Livre de Poche, 1997, p. 38); cf.
ainda sobre este ponto as indicações de M. Gigante, La Bibliothê-
que de Philodéme..., pp. 49-5l.
22. Institution oratoire, t. 11, livro 11, capo XVII, 3 (p. 90).
23. De minha parte - e não é sem ter garantias - penso que
a retórica tem por matéria todos os assuntos acerca dos quais ela
será chamada a falar (QueUe est la matiere de l'éloquence) (id.,
capo XXI, 4, p. 106).
24. Id., capo 11: Moralité et devoirs du précepteur (pp. 29-33).
25. Id., capo 11, 3-8 (pp. 30-1).
250. 476 A HERMENtUTlCA DO SUJEITO
26. Id., capo 11, 8 (p.31).
27. Esta metáfora é encontrada pela primeira vez em Aristó-
fanes evocando Péric1es orador (Acharniens, verso 530). Quintilia-
no a utiliza repetidas vezes (cf., por exemplo, Institution oratoire, t.
VII, capo XII, 10,24 e 65).
28. Q. aula de 27 de janeiro, primeira hora.
29. Q. mesma aula, segunda hora.
30. Seguindo M. Gigante, pode-se datar este tratado, que per-
tence ao conjunto mais vasto consagrado aos Modes de vie (Peri
ethôn kai bíau), nos anos quarenta antes de nossa era. Para uma
apresentação histórica do Peri parrhesías, cf. M. Gigante, La Biblio-
théque de Philodéme..., pp. 41-7.
31.A partir de urna indicação do Traité des passions de l'âme...
Cedo citada, p. 98), supõe-se que Galena escreve esta obra com a
idade de cinqüenta anos, o que implica (se admitimos 131 como a
data de seu nascimento) uma redação por volta do ano 180.
32. Segundo o quadro cronológico de P. Grimal em seu Séné-
que Cop. cit., p. 45), dever-se-ia situar a carta 75 na primavera do ano
64 d.e.
33. a. aula de 27 de janeiro, primeira hora (Cícero faz um re-
trato caricatural desta relação, em que a sutileza grega encontra a
grosseria do cônsul romano; cf. Contre Pison, in Cicéron, Discours,
t. XVI-I, XXVIII-XXIX, trad. P. Grimal, Paris, Les Belles Lettres,
1966, pp. 135-7).
34. Philodêmos, Peri parrhesías, ed. A. Olivieri, Leipzig. Teub-
ner, 1914.
35. Fragmento 1 do Peri parrhesías, ed. citada, p. 3 (trad. de Gi-
gante deste fragmento in Assocíation Guillaume Budé, Actes du VIlr
congrés (1968), op. cit., p. 202).
36. De fato stokházesthai remete primeiro ao ato de mirar cer-
to (no caso de um alvo), antes de partilhar o sentido de conjectuar
com o verbo tekmaíresthai (cf. as explanações de M. Détienne em
Les Ruses de l'intelligence. La métis des grecs, Paris, Flammarion, ,974,
pp.292-305).
37. A oposição entre as ciências exatas e as artes de conjec-
tura, estas últimas incluindo o comando dos navios e os cuiçiados
médicos, encontra-se pela primeira vez perfeitamente- expressa
em L'Ancienne médecine do corpus hipocrático: É preciso visar a
uma espécie de medida (deigàr métrou anàs stokházesthaz). Ora, como
medida, número ou peso em referência aos quais conheceríamos
I
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 477
a exata verdade, nenhuma outra poderíamos encontrar senão a
sensibilidade do corpo; também é um árduo trabalho adquirir uma
ciência suficientemente precisa para não cometer senão erros le-
ves aqui e acolá; quanto a mim, cumularia de elogios o médico que
só comete erros leves, porém, a segurança absoluta de um julga-
mento é um espetáculo muito raro. De fato, pelo menos é o mais
freqüente, parece-me acontecer com os médicos o mesmo que
com os maus pilotos. Enquanto estes governam em tempo calmo,
ao cometerem um erro, o erro não aparece; porém, quando sur-
preendidos por uma grande tempestade e um vento contrário e
violento, todos então podem ver por seus próprios olhos que foi
por sua inexperiência e inabilidade que perderam o navio (trad.
A-J. Festugiere, ed. citada, p. 7-8). Cf., sobre a noção de arte esto-
cástica, em particular em Platão, a nota detalhada de Festugiere
(id., pp. 41-2 n. 41). Observemos entretanto que a oposição entre
um saber certo e um conhecimento aleatório encontra-se temati-
zada em Platão na ótica de uma condenação da inteligência esto-
cástica. Em contrapartida, em Aristóteles (que privilegia então a
idéia de golpe de vista - cf. a eustokhía), esta forma de inteligên-
cia prática será reconhecida como parte integrante da prudência
(phrónesis): o que a arte estocástica perde em necessidade demons-
trativa (no intemporal da ciência), ela ganha em justeza de inter-
venção no kairós captado de relance.
38. Cf. trad. Gigante, in Actes du VIII' Congrés..., pp. 206-7.
39. Cf. id., pp. 211-4 (fragmento 61 do Per! parrhesías, ed. A.
Olivieri, p. 29).
40. Cf. análise do discurso-socorro (lógos boethós) na aula de
24 de fevereiro, segunda hora.
41. Cf. trad. Gigante, in Actes du VII!' Congrés..., pp. 209-11
(fragmento 44 do Per! parrhesías, ed. A. Olivieri, p. 21).
42. Cf. trad. Gigante, p. 206 (fragmento 25 do Peri parrhesías,
p.13).
43. Cf. trad. Gigante, p. 212 (Fragmento 36 do Peri parrhesías,
p.l7). Retomada desta passagem em Le Souci de sai, p. 67. [O cuida-
do de si, op. cit., p. 57. (N. dos T.)]
44 Cf. trad. fr. Gigante, pp. 214-7.
J
251. I -
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982
Segunda hora
Continuação da análise da parrhesía: o Tratado das
paixões da alma de Galeno. - Caracterizações da libertas se-
gundo Sêneca: recusa da eloqüência popular eenfática; trans-
parência e rigor; incorporação dos discursos úteis; uma arte de
conjectura. - Estrutura da libertas: transmissão acabada do
pensamento e comprometimento do sujeito com seu discurso. _
Pedagogia e psicagogia: relação e evolução na filosofia greco-
romana e no cristianismo.
- Teremos ainda duas aulas?!
- Isto mesmo_
- Aqui se é pautado pelas festas religiosas...
- Ah sim, inteiramente. Da Natividade à Ressurreição2
Gostaria inicialmente não de abrir uma espécie de con-
corrência' mas de fazer uma pergunta. Parece-me que algu-
mas pessoas gravam as aulas. Tudo bem, isto faz parte intei-
ramente de direitos fundamentais. As aulas aqui são públicas.
Só que talvez lhes pareça que todas as minhas aulas estejam
escritas. Mas estão menos do que parecem e delas não te-
nho transcrição nem mesmo gravação. Ora, eu bem que pre-
cisaria disto. Assim, havendo entre vocês alguém que por-
ventura possua (ou que saiba de outros que possuam) gra-
vações - creio que há alguém chamado senhor Lagrange3 - ou,
é claro, transcrições, se tiverem a gentileza de me dizer, isto
poderia me ser útil. Seriam sobretudo as dos últimos quatro
ou cinco anos. Tentarei acabar logo €, eventualmente, vocês
poderão fazer perguntas.
Agora, pois, dando um pequeno salto e situando-nos
no final do século lI, consideremos o texto de Galeno. Ga-
leno escreve o célebre texto Tratado das paixões, mais exata-
mente, Tratado [da] cura das paixões'- E já nas primeiras pá-
252. 480 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
ginas deste texto, diferentemente do que encontramos em
Filodemo, de modo algum temos uma teoria da parrhesía,
mas alguns elementos indicadores do que deve ser o fran-
co-falar, naquele gênero de relações e vínculos, e que a meu
ver são interessantes. Ele parte do princípio segundo o qual
nunca se pode curar sem saber do que se deve curar. A ciên-
cia médica, ou antes a tékhne médica, tem necessidade, é
claro, de conhecer a doença que terá de tratar. Isto é óbvio.
Ora, no Tratado da cura das paixões Galeno explica que aque-
le texto não versa sobre o tratamento (a cura, a terapêutica)
das doenças, mas sobre a cura das paixões e dos erros. Ora,
diz ele, se é verdade que os doentes, não conhecendo bem
sua doença, sofrem tanto com ela, ou por causa dela experic·
mentam mal-estares tão explícitos [a ponto de] se encami-
nharem espontaneamente ao médico, em contrapartida, no
que conceme às paixões e aos erros, a cegueira é muito maior.
Pois, afirma ele, sempre se ama tanto a si mesmo (é o amor
sui de que falávamos há pouco acerca do texto de Sêneca
nas Questões naturais') que não se pode deixar de criar ilusões.
O fato de se criar ilusões, por conseguinte, desqualifica o
sujeito no papel de médico de si mesmo que ele poderia ter
ou poderia pretender exercer. Esta tese não nos autoriza a
nos julgarmos a nós mesmos, mas a que os outros o façam.
Conseqüentemente, necessidade de recorrer a um outro
para curar as próprias paixões e erros, devido a este amor a
si que cria ilusão a respeito de tudo, sob a condição de que
este outro não tenha em relação a nós - nós que o consulta-
mos - nem sentimento de indulgência nem sentimento de
hostilidade; logo mais retornarei a isto, no momento apee
nas acompanho o texto em seu desenvolvimento Como
escolher e recrutar este Outro, que não deve sernem indill=
gente nem hostil, de quem temos absoluta necessidade
para nos curarmos devido ao nosso amor por nós mesmos?
Pois bem, diz Galeno, há que se estar atento. Há que se es-
tar à espreita e, no momento em que se ouvir falar de alguém
célebre, reputado, conhecido por não ser um lisonjeador, di-
rigir-se então a ele'- Dirigir-se a ele, ou melhor, antes mesmo
,...
.......
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 481
de dirigir-se diretamente a ele, tentar verificar, provar, tes-
tar de algum modo a não-lisonja deste indivíduo. E obser-
var como ele age na vida, observar se freqüenta os podero-
sos, observar a atitude que tem em relação aos poderosos que
freqüenta ou em cuja dependência se encontra. É em função
de sua atitude, e quando se tiver efetivamente mostrado e pro-
vado que .não se trata de um lisonjeador, é neste momento
que se pode dirigir-se a ele. Portanto, há que se haver com um
desconhecido, ou melhor, com alguém que só é conhecido
-por nós mesmos, e só conhecido por sua não-lisonja. Veri-
ficando-se, pois, que não se trata de um lisonjeador, é que
então se vai dirigir-se a ele. E o que fazer, o que se passará?
Primeiro, iniciaremos uma conversa, conversa a sós com ele,
na qual de certo modo lhe colocaremos a questão primeira,
que é também a questão de confiança: não teria ele notado,
no nosso comportamento, na maneira como falamos, etc.,
traços, sinais, provas de uma paixão, paixão que nós mesmos
teríamos? Neste momento, muitas coisas podem se passar.
Certamente ele pode dizer que notou. Começa então a cura,
isto é, pedimos-lhe conselhos para nos curarmos de nossa
paixão. Suponhamos ao contrário que ele diga não ter no-
tado em nós, no decorrer deste primeiro colóquio, uma pai-
xão qualquer. Pois bem, diz Galeno, há que se resguardar de
cantar vitória, de considerar que não temos paixões, e con-
seqüentemente que não temos necessidade de diretor para
nos ajudar a curá-las. Pois, diz [Galeno], talvez [o diretor] não
tenha ainda tido tempo de ver estas paixões; talvez também
não queira interessar-se por quem o solicita; talvez ainda te-
nha medo do rancor que lhe seria endereçado se dissesse
que temos uma ou outra paixão. Por conseguinte, é preCIso
obstinar-se, insistir, pressioná-lo com questões para dele
obter uma outra resposta que não seja a de que não temos
paixão. É preciso eventualmente passar pela mediação de um
outro, a fim de procurar saber se este personagem, de quem
conhecemos as qualidades de não-lisonjeador, simplesmen-
te não estaria interessado em uma direção de consciência
corno [a nossa]. Suponhamos agora que, em vez de dizer que
'stituto de Psicologia· UFRGS
- Biblioteca ---
253. 482 A HERMENtUTICA DO SUJEITO
não temos nenhuma paixão, a pessoa a quem nos dirigimos
nos faça reprovações, mas sintamos que estas reprovações não
sejam efetivamente fundadas. Pois bem, neste caso, não de-
vemos nos afastar [do diretor] dizendo: pedi-lhe conselhos
e ele acreditou descobrir em mim paixões que estou certo de
não possuir. É preciso considerar primeiro que ele pode sem-
pre ter razão, e que de toda maneira a reprovação por ele fei-
ta - para mim, a quem a faz e que contudo tem o sentimento
de não possuir esta paixão - pode ser uma ocasião de me-
lhor me vigiar e exercer sobre mim [mesmo] uma guarda
mais atenta. Enfim, suponhamos que após esta primeira pro-
va, após estas primeiras reprovações aparentemente mal fun-
dadas e que incitaram o dirigido a vigiar melhor a si mesmo,
suponhamos que tenhamos chegado à conclusão, à certeza.
de que a reprovação feita pelo diretor seja injusta. Suponha-
mos até que o diretor continue, durante a cura, a fazer as re-
provações que apropriadamente sabemos serem injustas.
Pois bem, diz Galeno em uma passagem bastante curiosa, é
preciso ser-lhe grato. É preciso ser-lhe grato, pois temos aí
uma prova que nos exercitará a suportar a injustiça €, na me-
dida em que a injustiça é efetivamente algo que encontra-
mos continuamente no curso da vida, formar-se, armar-se,
equipar-se contra a injustiça é indispensável. A injustiça do
diretor é uma prova positiva para o dirigido: elemento curio-
so, surpreendente, que, até onde sei, praticamente não en-
contramos em outros textos do mesmo gênero, na mesma
época, mas do qual encontraremos uma transposição e todo
um desenvolvimento na espiritualidade cristã'.
Indiquei esta passagem de Galena, estas páginas iniciais
do Tratado das paixões, pela razão que passo a expor. Primeiro,
pudemos ver que a necessidade de ter um diretor é de cer-
to modo uma necessidade de estrutura. Nada se pode fazer
sem o outro. E Galena o diz de uma maneira muito explíci-
ta: Todos os homens que se reportaram a outros· p