SlideShare uma empresa Scribd logo
CARTA ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM
1
CARTA ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM
1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu
Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso
cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode
comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a
existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus
braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a
mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados
frutos com flores coloridas e verduras».[1]
2. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por
causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus
nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus
proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A
violência, que está no coração humano ferido pelo pecado,
vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo,
na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres
mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra
oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto»
(Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra
(cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do
planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-
nos e restaura-nos.
Nada deste mundo nos é indiferente
3. Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo estava
oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo Papa João
XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a
rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz.
Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a todo o mundo
católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa
vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente,
quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na
minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros
da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma
missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo
especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa
casa comum.
4. Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato
Papa Paulo VI referiu-se à problemática ecológica,
apresentando-a como uma crise que é «consequência
dramática» da atividade descontrolada do ser humano: «Por
motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser
humano] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser,
também ele, vítima dessa degradação».[2] E, dirigindo-se à
FAO, falou da possibilidade duma «catástrofe ecológica sob
o efeito da explosão da civilização industrial», sublinhando a
«necessidade urgente duma mudança radical no
comportamento da humanidade», porque «os progressos
científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais
assombrosas, o desenvolvimento Econômico mais
3
prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e
moral, voltam-se necessariamente contra o homem». [3]
5. São João Paulo II debruçou-se, com interesse sempre
maior, sobre este tema. Na sua primeira encíclica, advertiu
que o ser humano parece «não dar-se conta de outros
significados do seu ambiente natural, para além daqueles
que servem somente para os fins de um uso ou consumo
imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma conversão
ecológica global.[5] Entretanto fazia notar o pouco empenho
que se põe em «salvaguardar as condições morais de uma
autêntica ecologia humana».[6] A destruição do ambiente
humano é um fato muito grave, porque, por um lado, Deus
confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida
humana é um dom que deve ser protegido de várias formas
de degradação. Toda a pretensão de cuidar e melhorar o
mundo requer mudanças profundas «nos estilos de vida, nos
modelos de produção e de consumo, nas estruturas
consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades».[7] O
progresso humano autêntico possui um caráter moral e
pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve
prestar atenção também ao mundo natural e «ter em conta a
natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num
sistema ordenado».[8] Assim, a capacidade do ser humano
transformar a realidade deve desenvolver-se com base na
doação originária das coisas por parte de Deus.[9]
6. O meu predecessor, Bento XVI, renovou o convite a
«eliminar as causas estruturais das disfunções da economia
mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem
incapazes de garantir o respeito do meio ambiente».
4
[10] Lembrou que o mundo não pode ser analisado
concentrando-se apenas sobre um dos seus aspectos,
porque «o livro da natureza é uno e indivisível», incluindo,
entre outras coisas, o ambiente, a vida, a sexualidade, a
família, as relações sociais. É que «a degradação da
natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a
convivência humana».[11] O Papa Bento XVI propôs-nos
reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas
causadas pelo nosso comportamento irresponsável; o próprio
ambiente social tem as suas chagas. Mas,
fundamentalmente, todas elas se ficam a dever ao mesmo
mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis
a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem
limites. Esquece-se que «o homem não é apenas uma
liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si
mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza».
[12] Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que
a criação resulta comprometida «onde nós mesmos somos a
última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa
propriedade e onde o consumimos somente para nós
mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não
reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-
nos unicamente a nós mesmos».[13]
Unidos por uma preocupação comum
7. Estas contribuições dos Papas recolhem a reflexão de
inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e organizações
sociais que enriqueceram o pensamento da Igreja sobre
estas questões. Mas não podemos ignorar que, também fora
da Igreja Católica, noutras Igrejas e Comunidades cristãs –
5
bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma
profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes
temas que a todos nos estão a peito. Apenas para dar um
exemplo particularmente significativo, quero retomar
brevemente parte da contribuição do amado Patriarca
Ecuménico Bartolomeu, com quem partilhamos a esperança
da plena comunhão eclesial.
8. O Patriarca Bartolomeu tem-se referido particularmente à
necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de
maltratar o planeta, porque «todos, na medida em que
causamos pequenos danos ecológicos», somos chamados a
reconhecer «a nossa contribuição – pequena ou grande –
para a desfiguração e destruição do ambiente».[14] Sobre
este ponto, ele pronunciou-se repetidamente, de maneira
firme e encorajadora, convidando-nos a reconhecer os
pecados contra a criação: «Quando os seres humanos
destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os
seres humanos comprometem a integridade da terra e
contribuem para a mudança climática, desnudando a terra
das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas
húmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o
solo, o ar... tudo isso é pecado».[15] Porque «um crime
contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um
pecado contra Deus».[16]
9. Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a atenção para as
raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos
convidam a encontrar soluções não só na técnica mas
também numa mudança do ser humano; caso contrário,
estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos
6
passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade,
do desperdício à capacidade de partilha, numa ascese que
«significa aprender a dar, e não simplesmente renunciar. É
um modo de amar, de passar pouco a pouco do que eu
quero àquilo de que o mundo de Deus precisa. É libertação
do medo, da avidez, da dependência».[17]Além disso nós,
cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como
sacramento de comunhão, como forma de partilhar com
Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde
convição que o divino e o humano se encontram no menor
detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no
último grão de poeira do nosso planeta».[18]
São Francisco de Assis
10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um
modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e
inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de
Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do
cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida
com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os
que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado
também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma
atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres
e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua
dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico
e um peregrino que vivia com simplicidade e numa
maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a
natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são
inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para
7
com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz
interior.
11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia
integral requer abertura para categorias que transcendem a
linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em
contato com a essência do ser humano. Tal como acontece a
uma pessoa quando se enamora por outra, a reação de
Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos
animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as
outras criaturas. Entrava em comunicação com toda a
criação, chegando mesmo a pregar às flores «convidando-as
a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão».
[19] A sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação
intelectual ou um cálculo econômico, porque, para ele,
qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de
carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que
existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele,
«enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem
comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por
mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos
e irmãs».[20] Esta convicção não pode ser desvalorizada
como romantismo irracional, pois influi nas opções que
determinam o nosso comportamento. Se nos aproximarmos
da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a
admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da
fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo,
então as nossas atitudes serão as do dominador, do
consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais,
incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo
contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que
8
existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a
solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não
eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais
radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de
uso e domínio.
12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura,
propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido
onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e
bondade: «Na grandeza e na beleza das criaturas,
contempla-se, por analogia, o seu Criador» (Sab 13, 5) e «o
que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade –
tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo,
nas suas obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que,
no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por
cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que,
quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a
Deus, autor de tanta beleza.[21] O mundo é algo mais do
que um problema a resolver; é um mistério gozoso que
contemplamos na alegria e no louvor.
O meu apelo
13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui
a preocupação de unir toda a família humana na busca de
um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos
que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona,
nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de
nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de
colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo
agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos
mais variados setores da atividade humana, estão a trabalhar
9
para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma
especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por
resolver as dramáticas consequências da degradação
ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens
exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode
pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do
meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos.
14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a
maneira como estamos a construir o futuro do planeta.
Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o
desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas
dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento
ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho,
tendo gerado numerosas agregações de cidadãos que
ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos
esforços na busca de soluções concretas para a crise
ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela
recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos
outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução,
mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à
indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega
nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade
universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são
necessários os talentos e o envolvimento de todos para
reparar o dano causado pelos humanos sobre a criação de
Deus».[22] Todos podemos colaborar, como instrumentos de
Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura,
experiência, iniciativas e capacidades.
10
15. Espero que esta carta encíclica, que se insere no
magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a
grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela
frente. Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários
aspectos da atual crise ecológica, com o objetivo de assumir
os melhores frutos da pesquisa científica atualmente
disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar
uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A
partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações
que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior
coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente.
Depois procurarei chegar às raízes da situação atual, de
modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas
também as causas mais profundas. Poderemos assim propor
uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o
lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as
suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta
reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas
das grandes linhas de diálogo e de ação que envolvem seja
cada um de nós seja a política internacional. Finalmente,
convencido – como estou – de que toda a mudança tem
necessidade de motivações e dum caminho educativo,
proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no
tesouro da experiência espiritual cristã.
16. Embora cada capítulo tenha a sua temática própria e
uma metodologia específica, o sucessivo retoma por sua vez,
a partir duma nova perspectiva, questões importantes
abordadas nos capítulos anteriores. Isto diz respeito
especialmente a alguns eixos que atravessam a encíclica
inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os pobres e a
11
fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está
estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo
paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia,
o convite a procurar outras maneiras de entender a economia
e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido
humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e
honestos, a grave responsabilidade da política internacional
e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de
vida. Estes temas nunca se dão por encerrados nem se
abandonam, mas são constantemente retomados e
enriquecidos.
CAPÍTULO I
O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA
17. As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da
humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem
repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a
partir dum confronto com o contexto atual no que este tem de
inédito para a história da humanidade. Por isso, antes de
reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências
face ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos
detenhamos brevemente a considerar o que está a acontecer
à nossa casa comum.
18. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e
no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida
e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por
«rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos
12
sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as
ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução
biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os
objetivos desta mudança rápida e constante não estão
necessariamente orientados para o bem comum e para um
desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança
é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se
transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida
de grande parte da humanidade.
19. Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e
nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está a
entrar numa etapa de maior consciencialização. Nota-se uma
crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao
cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida
preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta.
Façamos uma resenha, certamente incompleta, das
questões que hoje nos causam inquietação e já não se
podem esconder debaixo do tapete. O objetivo não é
recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas
tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento
pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer
a contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças climáticas
Poluição, resíduos e cultura do descarte
20. Existem formas de poluição que afetam diariamente as
pessoas. A exposição aos poluentes atmosféricos produz
uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente
dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras.
13
Adoecem, por exemplo, por causa da inalação de elevadas
quantidades de fumo produzido pelos combustíveis utilizados
para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição
que afeta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da
indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem
para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes,
inseticidas, fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em geral. Na
realidade a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a
única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das
múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às
vezes resolve um problema criando outros.
21. Devemos considerar também a poluição produzida pelos
resíduos, incluindo os perigosos presentes em variados
ambientes. Produzem-se anualmente centenas de milhões
de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis:
resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições,
resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos
altamente tóxicos e radioativos. A terra, nossa casa, parece
transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.
Em muitos lugares do planeta, os idosos recordam com
saudade as paisagens de outrora, que agora vêem
submersas de lixo. Tanto os resíduos industriais como os
produtos químicos utilizados nas cidades e nos campos
podem produzir um efeito de bioacumulação nos organismos
dos moradores nas áreas limítrofes, que se verifica mesmo
quando é baixo o nível de presença dum elemento tóxico
num lugar. Muitas vezes só se adotam medidas quando já se
produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas.
14
22. Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do
descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como
as coisas que se convertem rapidamente em lixo. Note-se,
por exemplo, como a maior parte do papel produzido se
desperdiça sem ser reciclado. Custa-nos a reconhecer que o
funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as
plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os
herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que
fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos,
que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao
contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de produção e
consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e
reutilizar resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adotar
um modelo circular de produção que assegure recursos para
todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais
possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o
seu consumo, maximizando a eficiência no seu
aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A resolução
desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do
descarte que acaba por danificar o planeta inteiro, mas nota-
se que os progressos neste sentido são ainda muito
escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum, um bem de todos e para
todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem a ver
com muitas condições essenciais para a vida humana. Há
um consenso científico muito consistente, indicando que
estamos perante um preocupante aquecimento do sistema
climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi
15
acompanhado por uma elevação constante do nível do mar,
sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de
acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se
possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada
fenômeno particular. A humanidade é chamada a tomar
consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida,
de produção e de consumo, para combater este aquecimento
ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou
acentuam. É verdade que há outros fatores (tais como o
vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo
solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a
maior parte do aquecimento global das últimas décadas é
devida à alta concentração de gases com efeito de estufa
(anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros)
emitidos sobretudo por causa da atividade humana. A sua
concentração na atmosfera impede que o calor dos raios
solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isto é
particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento
baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está
no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a
prática crescente de mudar a utilização do solo,
principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.
24. Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do
carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a
situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos
essenciais como a água potável, a energia e a produção
agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de
parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das
calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça
com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e a
16
decomposição da matéria orgânica congelada poderia
acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbônico.
Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação,
pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição
produzida pelo anidrido carbônico aumenta a acidez dos
oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a
tendência atual se mantiver, este século poderá ser
testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma
destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves
consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do
nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se
se considera que um quarto da população mundial vive à
beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das
megacidades estão situadas em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são um problema global com
graves implicações ambientais, sociais, Econômicas,
distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos
principais desafios para a humanidade. Provavelmente os
impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre
os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem
em lugares particularmente afetados por fenômenos
relacionados com o aquecimento, e os seus meios de
subsistência dependem fortemente das reservas naturais e
dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a
pesca e os recursos florestais. Não possuem outras
disponibilidades econômicas nem outros recursos que lhes
permitam adatar-se aos impactos climáticos ou enfrentar
situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a
serviços sociais e de proteção. Por exemplo, as mudanças
climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que
17
nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez,
afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são
forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao
futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento de
emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação
ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados
nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida
abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente,
verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias,
que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes
do mundo. A falta de reações diante destes dramas dos
nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de
responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se
funda toda a sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder
Econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em
mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas,
procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de
mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais
efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os
modelos atuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se
urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes
de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido
carbónico e outros gases altamente poluentes se reduza
drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis
fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No
mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e
renováveis. Mas ainda é necessário desenvolver adequadas
tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns países,
registaram-se avanços que começam a ser significativos,
18
embora estejam longe de atingir uma proporção importante.
Houve também alguns investimentos em modalidades de
produção e transporte que consomem menos energia
exigindo menor quantidade de matérias-primas, bem como
em modalidades de construção ou restruturação de edifícios
para se melhorar a sua eficiência energética. Mas estas
práticas promissoras estão longe de se tornar
omnipresentes.
2. A questão da água
27. Outros indicadores da situação atual têm a ver com o
esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a
impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos
países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da
sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge
níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos
de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema
da pobreza.
28. A água potável e limpa constitui uma questão de
primordial importância, porque é indispensável para a vida
humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e
aquáticos. As fontes de água doce fornecem os setores
sanitários, agro-pecuários e industriais. A disponibilidade de
água manteve-se relativamente constante durante muito
tempo, mas agora, em muitos lugares, a procura excede a
oferta sustentável, com graves consequências a curto e
longo prazo. Grandes cidades, que dependem de
importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência
do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se
administra com uma gestão adequada e com imparcialidade.
19
A pobreza da água pública verifica-se especialmente na
África, onde grandes setores da população não têm acesso a
água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a
produção de alimento. Nalguns países, há regiões com
abundância de água, enquanto outras sofrem de grave
escassez.
29. Um problema particularmente sério é o da qualidade da
água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas
vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças
relacionadas com a água, incluindo as causadas por
microorganismos e substâncias químicas. A diarreia e a
cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água
inadequados, constituem um fator significativo de sofrimento
e mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos
estão ameaçados pela poluição produzida por algumas
atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em
países desprovidos de regulamentação e controles
suficientes. Não pensamos apenas nas descargas
provenientes das fábricas; os detergentes e produtos
químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo
continuam a ser derramados em rios, lagos e mares.
30. Enquanto a qualidade da água disponível piora
constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para
se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma
mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o
acesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina a
sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o
exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma
20
grave dívida social para com os pobres que não têm acesso
à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida
radicado na sua dignidade inalienável. Esta dívida é
parcialmente saldada com maiores contribuições
Econômicas para prover de água limpa e saneamento as
populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício
de água não só nos países desenvolvidos, mas também
naqueles em vias de desenvolvimento que possuem grandes
reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte,
uma questão educativa e cultural, porque não há consciência
da gravidade destes comportamentos num contexto de
grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de água provocará o aumento do
custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do
seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma
aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não
forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais
poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo
previsível que o controle da água por grandes empresas
mundiais se transforme numa das principais fontes de
conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32. Os recursos da terra estão a ser depredados também por
causa de formas imediatistas de entender a economia e a
atividade comercial e produtiva. A perda de florestas e
bosques implica simultaneamente a perda de espécies que
poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente
importantes não só para a alimentação mas também para a
cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies
21
contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver,
no futuro, alguma necessidade humana ou regular algum
problema ambiental.
33. Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies
apenas como eventuais «recursos» exploráveis, esquecendo
que possuem um valor em si mesmas. Anualmente,
desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que
já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não
poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas
extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade
humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não
darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão
comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito
de o fazer.
34. Possivelmente perturba-nos saber da extinção dum
mamífero ou duma ave, pela sua maior visibilidade; mas,
para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são
necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos
insetos, os répteis e a variedade inumerável de
microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que
habitualmente nos passam despercebidas, desempenham
uma função censória fundamental para estabelecer o
equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve
intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas
hoje o nível de intervenção humana numa realidade tão
complexa como a natureza é tal, que os desastres
constantes causados pelo ser humano provocam uma nova
intervenção dele de modo que a atividade humana torna-se
omnipresente, com todos os riscos que isto implica.
22
Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a
intervenção humana, para resolver uma dificuldade, muitas
vezes ainda agrava mais a situação. Por exemplo, muitos
pássaros e insetos, que desaparecem por causa dos agro-
tóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria
agricultura, e o seu desaparecimento deverá ser
compensado por outra intervenção tecnológica que
possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e,
às vezes, admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que
procuram dar solução aos problemas criados pelo ser
humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de
que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao
serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra
onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada
vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o
desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo
continua a avançar sem limites. Assim, parece que nos
iludimos de poder substituir uma beleza insuprível e
irrecuperável por outra criada por nós.
35. Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer
iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos
no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um
estudo cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a
perda de algumas espécies ou de grupos animais ou
vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os
novos cultivos, as reservas, as barragens e outras
construções vão tomando posse dos habitats e, por vezes,
fragmentam-nos de tal maneira que as populações de
animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo
que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem
23
alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas
obras, como a criação de corredores biológicos, mas são
poucos os países em que se adverte este cuidado e
prevenção. Quando se explora comercialmente algumas
espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade de
crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e
consequente desequilíbrio do ecossistema.
36. O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que
se estenda para além do imediato, porque, quando se busca
apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se
importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos
danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo
maior do que o benefício econômico que se possa obter. No
caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de
valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso,
podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas
desigualdades, quando se pretende obter benefícios
significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade,
presente e futura, os altíssimos custos da degradação
ambiental.
37. Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz
de certos lugares e áreas – na terra e nos oceanos –,
proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar
a sua fisionomia ou alterar a sua constituição original. No
cuidado da biodiversidade, os especialistas insistem na
necessidade de prestar uma especial atenção às áreas mais
ricas em variedade de espécies, em espécies endémicas,
raras ou com menor grau de efetiva proteção. Há lugares que
requerem um cuidado particular pela sua enorme importância
24
para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas
reservas de água assegurando assim outras formas de vida.
38. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta
repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia
fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os
glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do
planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar.
Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma
biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível
de conhecer completamente, mas quando estas florestas são
queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em
poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas
transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre
estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é
possível ignorar também os enormes interesses econômicos
internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar
contra as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas
de internacionalização da Amazônia que só servem aos
interesses Econômicos das corporações internacionais». [24]
É louvável a tarefa de organismos internacionais e
organizações da sociedade civil que sensibilizam as
populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando
legítimos mecanismos de pressão, para que cada governo
cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio
ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender
a espúrios interesses locais ou internacionais.
39. Habitualmente também não se faz objeto de adequada
análise a substituição da flora silvestre por áreas florestais
com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode
25
afetar gravemente uma biodiversidade que não é albergada
pelas novas espécies que se implantam. Também as zonas
húmidas, que são transformadas em terrenos agrícolas,
perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É
preocupante, nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento
dos ecossistemas constituídos por manguezais.
40. Os oceanos contêm não só a maior parte da água do
planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos
seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e
ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios,
lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte da
população mundial, é afetada pela extração descontrolada
dos recursos ictíicos, que provoca drásticas diminuições
dalgumas espécies. E no entanto continuam a desenvolver-
se modalidades seletivas de pesca, que descartam grande
parte das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados
estão organismos marinhos que não temos em consideração,
como certas formas de plânton que constituem um
componente muito importante da cadeia alimentar marinha e
de que dependem, em última instância, espécies que se
utilizam para a alimentação humana.
41. Passando aos mares tropicais e subtropicais,
encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes
florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão
de espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos,
esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos recifes de coral no
mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo
de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo
marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e
26
de cor?»[25] Este fenômeno deve-se, em grande parte, à
poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento,
das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de
métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que
utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da
temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a
compreender como qualquer ação sobre a natureza pode ter
consequências que não advertimos à primeira vista e como
certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa
duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos
oceanos.
42. É preciso investir muito mais na pesquisa para se
entender melhor o comportamento dos ecossistemas e
analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto
de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto
que todas as criaturas estão interligadas, deve ser
reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma,
e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. Cada
território detém uma parte de responsabilidade no cuidado
desta família, pelo que deve fazer um inventário cuidadoso
das espécies que alberga a fim de desenvolver programas e
estratégias de proteção, cuidando com particular solicitude
das espécies em vias de extinção.
4. Deterioração da qualidade de vida humana e
degradação social
43. Tendo em conta que o ser humano também é uma
criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e,
além disso, possui uma dignidade especial, não podemos
deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do
27
modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte
sobre a vida das pessoas.
44. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e
descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco
saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente
de emissões tóxicas mas também ao caos urbano, aos
problemas de transporte e à poluição visiva e acústica.
Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam,
gastando energia e água em excesso. Há bairros que,
embora construídos recentemente, apresentam-se
congestionados e desordenados, sem espaços verdes
suficientes. Não é conveniente para os habitantes deste
planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto,
vidro e metais, privados do contato físico com a natureza.
45. Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos
espaços tornou difícil o acesso dos cidadãos a áreas de
especial beleza; noutros, criaram-se áreas residenciais
«ecológicas» postas à disposição só de poucos, procurando-
se evitar que outros entrem a perturbar uma tranquilidade
artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia
de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas
«seguras», mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os
descartados da sociedade.
46. Entre os componentes sociais da mudança global,
incluem-se os efeitos laborais dalgumas inovações
tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no
fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a
fragmentação social, o aumento da violência e o
aparecimento de novas formas de agressividade social, o
28
narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais
jovens, a perda de identidade. São alguns sinais, entre
outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois
séculos não significou, em todos os seus aspectos, um
verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade
de vida. Alguns destes sinais são ao mesmo tempo sintomas
duma verdadeira degradação social, duma silenciosa ruptura
dos vínculos de integração e comunhão social.
47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do
mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não
favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver
com sabedoria, pensar em profundidade, amar com
generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do
passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria
no meio do ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós
um esforço para que esses meios se traduzam num novo
desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa
deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira
sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro
generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera
acumulação de dados, que, numa espécie de poluição
mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo
tendem a substituir as relações reais com os outros, com
todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação
mediada pela internet. Isto permite seleccionar ou eliminar a
nosso arbítrio as relações e, deste modo, frequentemente
gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver
mais com dispositivos e monitores do que com as pessoas e
a natureza. Os meios atuais permitem-nos comunicar e
partilhar conhecimentos e afetos. Mas, às vezes, também
29
nos impedem de tomar contato direto com a angústia, a
trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua
experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o
fato de, a par da oferta sufocante destes produtos, ir
crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas
relações interpessoais ou um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se
em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a
degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas
que têm a ver com a degradação humana e social. De fato, a
deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de
modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a
experiência comum da vida quotidiana como a investigação
científica demonstram que os efeitos mais graves de todas
as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais
pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas
ictíicas prejudica especialmente as pessoas que vivem da
pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a
substituir, a poluição da água afeta particularmente os mais
pobres que não têm possibilidades de comprar água
engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta
principalmente as populações costeiras mais pobres que não
têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios
atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos
pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em
muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas
agendas mundiais.[27]
30
49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma
consciência clara dos problemas que afetam particularmente
os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de
milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates
políticos e Econômicos internacionais, mas com frequência
parece que os seus problemas se coloquem como um
apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por
obrigação ou perifericamente, quando não são considerados
meros danos colaterais. Com efeito, na hora da
implementação concreta, permanecem frequentemente no
último lugar. Isto deve-se, em parte, ao fato de que muitos
profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação
e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas
urbanas isoladas, sem ter contato direto com os seus
problemas. Vivem e refletem a partir da comodidade dum
desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao
alcance da maioria da população mundial. Esta falta de
contato físico e de encontro, às vezes favorecida pela
fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a
consciência e a ignorar parte da realidade em análises
tendenciosas. Isto, às vezes, coexiste com um discurso
«verde». Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer
que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna
uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos
debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da
terra como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar
num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma
redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais
sobre os países em vias de desenvolvimento, que
31
condicionam as ajudas Econômicas a determinadas políticas
de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual
distribuição da população e dos recursos disponíveis cria
obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do
ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento
demográfico é plenamente compatível com um
desenvolvimento integral e solidário».[28] Culpar o
incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado
e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os
problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo
distributivo atual, no qual uma minoria se julga com o direito
de consumir numa proporção que seria impossível
generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os
resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se
desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos
produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse
roubada da mesa do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade
que devemos prestar atenção ao desequilíbrio na distribuição
da população pelo território, tanto a nível nacional como a
nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a
situações regionais complexas pelas combinações de
problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao
tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de
vida.
51. A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas
países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações
internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida
ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a
desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito
ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos
32
naturais efetuado historicamente por alguns países. As
exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os
mercados no Norte industrializado produziram danos locais,
como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na
extração minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na
do cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço
ambiental de todo o planeta usado para depositar resíduos
gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos
e criaram uma situação que agora afeta todos os países do
mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de
alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais
pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da
temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos
desastrosos no rendimento das cultivações. A isto
acrescentam-se os danos causados pela exportação de
resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de
desenvolvimento e pela atividade poluente de empresas que
fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não
podem fazer nos países que lhes dão o capital:
«Constatamos frequentemente que as empresas que assim
procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes
é permitido em países desenvolvidos ou do chamado
primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas
atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e
ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida,
esgotamento dalgumas reservas naturais, desflorestamento,
empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras,
colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que
já não se pode sustentar». [30]
33
52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num
instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a
dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de
desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais
importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso
dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu
futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada,
mas o acesso à propriedade de bens e recursos para
satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por um
sistema de relações comerciais e de propriedade
estruturalmente perverso. É necessário que os países
desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando
significativamente o consumo de energia não renovável e
fornecendo recursos aos países mais necessitados para
promover políticas e programas de desenvolvimento
sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos
possibilidade de adotar novos modelos de redução do
impacto ambiental, porque não têm a preparação para
desenvolver os processos necessários nem podem cobrir os
seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a
consciência de que a mudança climática
tem responsabilidades diversificadas e, como disseram os
bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se
«especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e
vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos
interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a
consciência de que somos uma única família humana. Não
há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam
isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a
globalização da indiferença.
34
6. A fraqueza das reações
53. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que
se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um
lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos
e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois
séculos. Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos
de Deus Pai para que o nosso planeta seja o que Ele sonhou
ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz, beleza e
plenitude. O problema é que não dispomos ainda da cultura
necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de
construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar
resposta às necessidades das gerações atuais, todos
incluídos, sem prejudicar as gerações futuras. Torna-se
indispensável criar um sistema normativo que inclua limites
invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes
que as novas formas de poder derivadas do paradigma
tecno-Econômico acabem por arrasá-los não só com a
política, mas também com a liberdade e a justiça.
54. Preocupa a fraqueza da reação política internacional. A
submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se
na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há
demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o
interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum
e manipular a informação para não ver afetados os seus
projetos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede que,
«nas intervenções sobre os recursos naturais, não
predominem os interesses de grupos Econômicos que
arrasam irracionalmente as fontes da vida».[32] A aliança
entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o
35
que não faz parte dos seus interesses imediatos. Deste
modo, poder-se-á esperar apenas algumas proclamações
superficiais, ações filantrópicas isoladas e ainda esforços por
mostrar sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto,
na realidade, qualquer tentativa das organizações sociais
para alterar as coisas será vista como um distúrbio
provocado por sonhadores românticos ou como um
obstáculo a superar.
55. Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos
significativos, o desenvolvimento de controles mais eficientes
e uma luta mais sincera contra a corrupção. Cresceu a
sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda
insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo, que
não parecem diminuir; antes, expandem-se e desenvolvem-
se. É o que acontece – só para dar um exemplo simples –
com o crescente aumento do uso e intensidade dos
condicionadores de ar: os mercados, apostando num ganho
imediato, estimulam ainda mais a procura. Se alguém
observasse de fora a sociedade planetária, maravilhar-se-ia
com tal comportamento que às vezes parece suicida.
56. Entretanto os poderes econômicos continuam a justificar
o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e
uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo
o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o
meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente
ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e
ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar ações
imorais, porque a constante distração nos tira a coragem de
advertir a realidade dum mundo limitado e finito. Por isso,
36
hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado
divinizado, transformados em regra absoluta».[33]
57. É previsível que, perante o esgotamento de alguns
recursos, se vá criando um cenário favorável para novas
guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra
causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza
cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se
pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com
efeito, «não obstante haver acordos internacionais que
proíbem a guerra química, bacteriológica e biológica,
subsiste o fato de continuarem nos laboratórios as pesquisas
para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes
de alterar os equilíbrios naturais». [34] Exige-se da política
uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que
podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder,
ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal
esforço, e os projetos políticos carecem muitas vezes de
amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um
poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir
quando era urgente e necessário fazê-lo?
58. Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na
melhoria do ambiente, tais como o saneamento de alguns
rios que foram poluídos durante muitas décadas, a
recuperação de florestas nativas, o embelezamento de
paisagens com obras de saneamento ambiental, projetos de
edifícios de grande valor estético, progressos na produção de
energia limpa, na melhoria dos transportes públicos. Estas
ações não resolvem os problemas globais, mas confirmam
37
que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma
positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites
germinam inevitavelmente gestos de generosidade,
solidariedade e desvelo.
59. Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou
aparente que consolida um certo torpor e uma alegre
irresponsabilidade. Como frequentemente acontece em
épocas de crises profundas, que exigem decisões corajosas,
somos tentados a pensar que aquilo que está a acontecer
não é verdade. Se nos detivermos na superfície, para além
de alguns sinais visíveis de poluição e degradação, parece
que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta
poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições
atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para
mantermos os nossos estilos de vida, de produção e
consumo. É a forma como o ser humano se organiza para
alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver,
luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes,
age como se nada tivesse acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60. Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das
possíveis soluções, que se desenvolveram diferentes
perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos,
alguns defendem a todo o custo o mito do progresso,
afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão
simplesmente com novas aplicações técnicas, sem
considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo
oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma
das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o
38
ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua
presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção.
Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis
cenários futuros, porque não existe só um caminho de
solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de
contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se
chegar a respostas abrangentes.
61. Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem
motivo para propor uma palavra definitiva e entende que
deve escutar e promover o debate honesto entre os
cientistas, respeitando a diversidade de opiniões. Basta,
porém, olhar a realidade com sinceridade, para ver que há
uma grande deterioração da nossa casa comum. A
esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma
saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos
fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia
parece notar-se sintomas dum ponto de ruptura, por causa
da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se
manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em
crises sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os
problemas do mundo não se podem analisar nem explicar de
forma isolada. Há regiões que já se encontram
particularmente em risco e, prescindindo de qualquer
previsão catastrófica, o certo é que o atual sistema mundial é
insustentável a partir de vários pontos de vista, porque
deixamos de pensar nas finalidades da ação humana: «Se o
olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos
depressa de que a humanidade frustrou a expectativa
divina».[35]
39
CAPÍTULO II
O EVANGELHO DA CRIAÇÃO
62. Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas
as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às
convições de fé? Não ignoro que alguns, no campo da
política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de
um Criador ou consideram-na irrelevante, chegando ao ponto
de relegar para o reino do irracional a riqueza que as
religiões possam oferecer para uma ecologia integral e o
pleno desenvolvimento do gênero humano; outras vezes,
supõe-se que elas constituam uma subcultura, que se deve
simplesmente tolerar. Todavia a ciência e a religião, que
fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar
num diálogo intenso e frutuoso para ambas.
1. A luz que a fé oferece
63. Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica
e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as
soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e
transformar a realidade. É necessário recorrer também às
diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à
vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade,
construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que
temos destruído, então nenhum ramo das ciências e
nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem
sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria.
Além disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o
40
pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias
sínteses entre fé e razão. No que diz respeito às questões
sociais, pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento
da doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada
vez mais a partir dos novos desafios.
64. Por outro lado, embora esta encíclica se abra a um
diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de
libertação, quero mostrar desde o início como as convicções
da fé oferecem aos cristãos – e, em parte, também a outros
crentes – motivações altas para cuidar da natureza e dos
irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples fato de ser
humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do
ambiente de que fazem parte, «os cristãos, em particular,
advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus
deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da
sua fé».[36] Por isso é bom, para a humanidade e para o
mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os
compromissos ecológicos que brotam das nossas
convicções.
2. A sabedoria das narrações bíblicas
65. Sem repropor aqui toda a teologia da Criação, queremos
saber o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre a
relação do ser humano com o mundo. Na primeira narração
da obra criadora, no livro do Gênesis, o plano de Deus inclui
a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da
mulher, diz-se que «Deus, vendo a sua obra, considerou-
a muito boa» (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser
humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de
Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação mostra-nos a imensa
41
dignidade de cada pessoa humana, que «não é somente
alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se
possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com
outras pessoas».[37] São João Paulo II recordou que o
amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano
«confere-lhe uma dignidade infinita».[38] Todos aqueles que
estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas
podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para
tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a
vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador,
num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se
repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de
nós: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te
conhecia» (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus
e, por isso, «cada um de nós é o fruto de um pensamento de
Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado,
cada um é necessário».[39]
66. As narrações da criação no livro do Gênesis contêm, na
sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos
profundos sobre a existência humana e a sua realidade
histórica. Estas narrações sugerem que a existência humana
se baseia sobre três relações fundamentais intimamente
ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra.
Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não
só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é
o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda
a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar
de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas
limitadas. Este fato distorceu também a natureza do mandato
de «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e
42
guardar» (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação
originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza
transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19). Por isso, é
significativo que a harmonia vivida por São Francisco de
Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como
uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que,
através da reconciliação universal com todas as criaturas,
Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência
original.[40] Longe deste modelo, o pecado manifesta-se
hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas
várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais
frágeis, nos ataques contra a natureza.
67. Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos
dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra
o pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do
Génesis, que convida a «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28),
favoreceria a exploração selvagem da natureza,
apresentando uma imagem do ser humano como dominador
e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da
Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós,
cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as
Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato
de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar
a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras
criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto,
com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a
«cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15).
Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno,
«guardar» significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto
implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser
43
humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da
bondade da terra aquilo de que necessita para a sua
sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e
garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações
futuras. Em última análise, «ao Senhor pertence a terra»
(Sl 24/23, 1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela
existe» (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe-nos toda a
pretensão de posse absoluta: «Nenhuma terra será vendida
definitivamente, porque a terra pertence-Me, e vós sois
apenas estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23).
68. Esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus
implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as
leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres
deste mundo, porque «Ele deu uma ordem e tudo foi criado;
Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e estabeleceu leis a que
não se pode fugir!» (Sl 148, 5b-6). Consequentemente, a
legislação bíblica detém-se a propor ao ser humano várias
normas relativas não só às outras pessoas, mas também aos
restantes seres vivos: «Se vires o jumento do teu irmão ou o
seu boi caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda-
os a levantarem-se. (...) Se encontrares no caminho, em
cima de uma árvore ou no chão, um ninho de pássaros com
filhotes, ou ovos cobertos pela mãe, não apanharás a mãe
com a ninhada» (Dt 22, 4.6). Nesta linha, o descanso do
sétimo dia não é proposto só para o ser humano, mas «para
que descansem o teu boi e o teu jumento» (Ex23, 12). Assim
nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um
antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras
criaturas.
44
69. Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso
responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que
os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e,
«pelo simples fato de existirem, eles O bendizem e Lhe dão
glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas obras»
(Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e
por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a
respeitar a criação com as suas leis internas, já que «o
Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3, 19). Hoje, a
Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas
estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como
se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível
dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os
bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, «se poderia
falar da prioridade do ser sobre o ser úteis». [42]
O Catecismo põe em questão, de forma muito direta e
insistente, um antropocentrismo desordenado: «Cada
criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. (...) As
diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem,
cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da
bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve
respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o
uso desordenado das coisas».[43]
70. Na narração de Caim e Abel, vemos que a inveja levou
Caim a cometer a injustiça extrema contra o seu irmão. Isto,
por sua vez, provocou uma ruptura da relação entre Caim e
Deus e entre Caim e a terra, da qual foi exilado. Esta
passagem aparece sintetizada no dramático colóquio de
Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu irmão
Abel?» Caim responde que não sabe, e Deus insiste com
45
ele: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da
terra até Mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra (…).
Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra» (Gn 4, 9-12). O
descuido no compromisso de cultivar e manter um correto
relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou
devedor da minha solicitude e custódia, destrói o
relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com
Deus e com a terra. Quando todas estas relações são
negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a
Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo. Assim no-lo
ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça acabar com
a humanidade pela sua persistente incapacidade de viver à
altura das exigências da justiça e da paz: «O fim de toda a
humanidade chegou diante de Mim, pois ela encheu a terra
de violência» (Gn 6, 13). Nestas narrações tão antigas, ricas
de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual
de que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da
nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é
inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos
outros.
71. Embora Deus reconhecesse que «a maldade dos
homens era grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se
de ter criado o homem sobre a terra» (Gn 6, 6), Ele decidiu
abrir um caminho de salvação através de Noé, que ainda se
mantinha íntegro e justo. Assim deu à humanidade a
possibilidade de um novo início. Basta um homem bom para
haver esperança! A tradição bíblica estabelece claramente
que esta reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos
ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está
patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia,
46
Deus descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a
Israel que cada sétimo dia devia ser celebrado como um dia
de descanso, um Shabbath (cf. Gn 2, 2-3; Ex 16, 23; 20, 10).
Além disso, de sete em sete anos, instaurou-se também um
ano sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv 25, 1-4), durante
o qual se dava descanso completo à terra, não se semeava e
só se colhia o indispensável para sobreviver e oferecer
hospitalidade (cf. Lv 25, 4-6). Por fim, passadas sete
semanas de anos, ou seja quarenta e nove anos, celebrava-
se o jubileu, um ano de perdão universal, «proclamando na
vossa terra a liberdade de todos os que a habitam» (Lv 25,
10). O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar
o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os
outros e com a terra onde vivia e trabalhava. Mas, ao mesmo
tempo, era um reconhecimento de que a dádiva da terra com
os seus frutos pertence a todo o povo. Aqueles que
cultivavam e guardavam o território deviam partilhar os seus
frutos, especialmente com os pobres, as viúvas, os órfãos e
os estrangeiros: «Quando procederes à ceifa das vossas
terras, não ceifarás as espigas até à extremidade do campo,
e não apanharás as espigas caídas. Não rebuscarás também
a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás
para o pobre e para o estrangeiro» (Lv 19, 9-10).
72. Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a
louvar a Deus criador: «Estendeu a terra sobre as águas,
porque o seu amor é eterno» (Sl 136/135, 6). E convidam
também as outras criaturas a louvá-Lo: «Louvai-O, sol e lua;
louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e
águas que estais acima dos céus! Louvem todos o nome do
Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado»
47
(Sl 148, 3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas
também na sua presença e companhia. Por isso O
adoramos.
73. Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças,
nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que
criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a
escapar da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o
carinho e a força. Na verdade, toda a sã espiritualidade
implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com
confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus
que liberta e salva é o mesmo que criou o universo, e estes
dois modos de agir divino estão íntima e inseparavelmente
ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu e a
terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para
Ti, nada é impossível! (...) Tu fizeste sair do Egito o teu povo,
Israel, com prodígios e milagres» (Jr 32, 17.21). «O Senhor é
um Deus eterno, que criou os confins da terra. Não se cansa
nem perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá
forças ao cansado e enche de vigor o fraco» (Is 40, 28b-29).
74. A experiência do cativeiro em Babilônia gerou uma crise
espiritual que levou a um aprofundamento da fé em Deus,
explicitando a sua omnipotência criadora, para animar o povo
a recuperar a esperança no meio da sua situação infeliz.
Séculos mais tarde, noutro momento de prova e perseguição,
quando o Império Romano procurou impor um domínio
absoluto, os fiéis voltaram a encontrar consolação e
esperança aumentando a sua confiança em Deus
omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as
tuas obras, Senhor Deus todo-poderoso! Justos e
48
verdadeiros são os teus caminhos!» (Ap 15, 3). Se Deus
pôde criar o universo a partir do nada, também pode intervir
neste mundo e vencer qualquer forma de mal. Por isso, a
injustiça não é invencível.
75. Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça
Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por
adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no
lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem
limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de
colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua
pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a
propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo;
caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor
à realidade as suas próprias leis e interesses.
3. O mistério do universo
76. Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que
dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de
Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado. A
natureza entende-se habitualmente como um sistema que se
analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode
conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai
de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos
chama a uma comunhão universal.
77. «A palavra do Senhor criou os céus» (Sl 33/32, 6). Deste
modo indica-se que o mundo procede, não do caos nem do
acaso, mas duma decisão, o que o exalta ainda mais. Há
uma opção livre, expressa na palavra criadora. O universo
não apareceu como resultado duma omnipotência arbitrária,
49
duma demonstração de força ou dum desejo de auto-
afirmação. A criação pertence à ordem do amor. O amor de
Deus é a razão fundamental de toda a criação: «Tu amas
tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois,
se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11, 24).
Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui
um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais
insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos
segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho.
Dizia São Basílio Magno que o Criador é também «a
bondade sem cálculos»,[44] e Dante Alighieri falava do
«amor que move o sol e as outras estrelas».[45] Por isso,
das obras criadas pode-se subir «à sua amorosa
misericórdia».[46]
78. Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão
desmitificou a natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu
esplendor e imensidão, já não lhe atribui um caráter divino.
Deste modo, ressalta ainda mais o nosso compromisso para
com ela. Um regresso à natureza não pode ser feito à custa
da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é
parte do mundo com o dever de cultivar as próprias
capacidades para o proteger e desenvolver as suas
potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade da
natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador
nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno
do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser
humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela
a nossa inteligência para reconhecer como deveremos
orientar, cultivar e limitar o nosso poder.
50
79. Neste universo, composto por sistemas abertos que
entram em comunicação uns com os outros, podemos
descobrir inumeráveis formas de relação e participação. Isto
leva-nos também a pensar o todo como aberto à
transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé
permite-nos interpretar o significado e a beleza misteriosa do
que acontece. A liberdade humana pode prestar a sua
contribuição inteligente para uma evolução positiva, como
pode também acrescentar novos males, novas causas de
sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à apaixonante
e dramática história humana, capaz de transformar-se num
desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação
e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua
destruição. Por isso a Igreja, com a sua ação, procura não só
lembrar o dever de cuidar da natureza, mas também e
«sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo».
[47]
80. Apesar disso, Deus, que deseja atuar connosco e contar
com a nossa cooperação, é capaz também de tirar algo de
bom dos males que praticamos, porque «o Espírito Santo
possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que
sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas
mais complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira,
quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo necessitado
de desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos
males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem
parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com
o Criador.[49] Ele está presente no mais íntimo de cada
coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá
lugar também à legítima autonomia das realidades terrenas.
51
[50] Esta presença divina, que garante a permanência e o
desenvolvimento de cada ser, «é a continuação da ação
criadora». [51] O Espírito de Deus encheu o universo de
potencialidades que permitem que, do próprio seio das
coisas, possa brotar sempre algo de novo: «A natureza nada
mais é do que a razão de certa arte – concretamente a arte
divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se
movem para um fim determinado. Como se o mestre
construtor de navios pudesse conceder à madeira a
possibilidade de se mover a si mesma para tomar a forma da
nave». [52]
81. Embora suponha também processos evolutivos, o ser
humano implica uma novidade que não se explica
cabalmente pela evolução doutros sistemas abertos. Cada
um de nós tem em si uma identidade pessoal, capaz de
entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus. A
capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a
interpretação, a elaboração artística e outras capacidades
originais manifestam uma singularidade que transcende o
âmbito físico e biológico. A novidade qualitativa, implicada no
aparecimento dum ser pessoal dentro do universo material,
pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada peculiar
à vida e à relação de um Tu com outro tu. A partir dos textos
bíblicos, consideramos o ser humano como sujeito, que
nunca pode ser reduzido à categoria de objeto.
82. Mas seria errado também pensar que os outros seres
vivos devam ser considerados como meros objetos
submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se
propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de
52
lucro e interesse, isso comporta graves consequências
também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio
do mais forte favoreceu imensas desigualdades, injustiças e
violências para a maior parte da humanidade, porque os
recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de
quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O ideal de
harmonia, justiça, fraternidade e paz que Jesus propõe situa-
se nos antípodas de tal modelo, como Ele mesmo Se
expressou ao compará-lo com os poderes do seu tempo:
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus
senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder.
Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós
quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20, 25-26).
83. A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de
Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da
maturação universal. [53] E assim juntamos mais um
argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e
irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim
último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas
avançam, juntamente connosco e através de nós, para a
meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente
onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o
ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela
plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as
criaturas ao seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura na harmonia de toda a
criação
84. O fato de insistir na afirmação de que o ser humano é
imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada
53
criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o
universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu
carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas:
tudo é carícia de Deus. A história da própria amizade com
Deus desenrola-se sempre num espaço geográfico que se
torna um sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na
memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem. Quem
cresceu no meio de montes, quem na infância se sentava
junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu
bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a
recuperar a sua própria identidade.
85. Deus escreveu um livro estupendo, «cujas letras são
representadas pela multidão de criaturas presentes no
universo».[54] E justamente afirmaram os bispos do Canadá
que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus:
«Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais
frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e
reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino».
[55]Os bispos do Japão, por sua vez, disseram algo muito
sugestivo: «Sentir cada criatura que canta o hino da sua
existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na
esperança».[56] Esta contemplação da criação permite-nos
descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer
transmitir através de cada coisa, porque, «para o crente,
contemplar a criação significa também escutar uma
mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa».
[57] Podemos afirmar que, «ao lado da revelação
propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma
manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite».
[58] Prestando atenção a esta manifestação, o ser humano
54
aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as
outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo;
exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo».[59]
86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações,
mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de
Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a
variedade «provêm da intenção do primeiro agente», o Qual
quis que «o que falta a cada coisa, para representar a
bondade divina, seja suprido pelas outras»,[60] pois a sua
bondade «não pode ser convenientemente representada por
uma só criatura».[61] Por isso, precisamos de individuar a
variedade das coisas nas suas múltiplas relações.[62] Assim,
compreende-se melhor a importância e o significado de
qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano
de Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: «A
interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a
lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espectáculo
das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa
que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem
na dependência umas das outras, para se completarem
mutuamente no serviço umas das outras». [63]
87. Quando nos damos conta do reflexo de Deus em tudo o
que existe, o coração experimenta o desejo de adorar o
Senhor por todas as suas criaturas e juntamente com elas,
como se vê neste gracioso cântico de São Francisco de
Assis:
«Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
55
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
88. Os bispos do Brasil sublinharam que toda a natureza,
além de manifestar Deus, é lugar da sua presença. Em cada
criatura, habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a
um relacionamento com Ele. [65] A descoberta desta
presença estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes
ecológicas». [66] Mas, quando dizemos isto, não
esqueçamos que há também uma distância infinita, pois as
coisas deste mundo não possuem a plenitude de Deus.
Esquecê-lo, aliás, também não faria bem às criaturas, porque
não reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio,
acabando por lhes exigir indevidamente aquilo que, na sua
pequenez, não nos podem dar.
5. Uma comunhão universal
89. As criaturas deste mundo não podem ser consideradas
um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a
56
vida» (Sab 11, 26). Isto gera a convição de que nós e todos
os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai,
estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie
de família universal, uma comunhão sublime que nos impele
a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar
que «Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos
rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença
para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma
espécie como se fosse uma mutilação».[67]
90. Isto não significa igualar todos os seres vivos e tirar ao
ser humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente,
implica uma tremenda responsabilidade. Também não requer
uma divinização da terra, que nos privaria da nossa vocação
de colaborar com ela e proteger a sua fragilidade. Estas
concepções acabariam por criar novos desequilíbrios, na
tentativa de fugir da realidade que nos interpela.[68] Às
vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à
pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras
espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade
entre os seres humanos. Devemos, certamente, ter a
preocupação de que os outros seres vivos não sejam
tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos
sobretudo as enormes desigualdades que existem entre nós,
porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais
dignos do que outros. Deixamos de notar que alguns se
arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais
de melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer
ao que têm, ostentam vaidosamente uma suposta
superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício
tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta.
57
Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais
humanos que outros, como se tivessem nascido com
maiores direitos.
91. Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima
com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não
houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos
seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta
contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica
completamente indiferente perante o tráfico de pessoas,
desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser
humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta
pelo meio ambiente. Não é por acaso que São Francisco, no
cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o
seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que
perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso,
exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao
amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso
constante com os problemas da sociedade.
92. Além disso, quando o coração está verdadeiramente
aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica
excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que
a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste
mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no
tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O
coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um
animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras
pessoas. Todo o encarniçamento contra qualquer criatura «é
contrário à dignidade humana».[69] Não podemos
considerar-nos grandes amantes da realidade, se excluímos
58
dos nossos interesses alguma parte dela: «Paz, justiça e
conservação da criação são três questões absolutamente
ligadas, que não se poderão separar, tratando-as
individualmente sob pena de cair novamente no
reducionismo».[70] Tudo está relacionado, e todos nós,
seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs
numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que
Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une
também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao
irmão rio e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93. Hoje, crentes e não-crentes estão de acordo que a terra
é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem
beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se uma
questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o mundo
para todos. Por conseguinte, toda a abordagem ecológica
deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os
direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio
da subordinação da propriedade privada ao destino universal
dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu
uso é uma «regra de ouro» do comportamento social e o
«primeiro princípio de toda a ordem ético-social».[71] A
tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável
o direito à propriedade privada, e salientou a função social de
qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo
II lembrou esta doutrina, com grande ênfase, dizendo que
«Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela
sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar
ninguém».[72] São palavras densas e fortes. Insistiu que
59
«não seria verdadeiramente digno do homem, um tipo de
desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os
direitos humanos, pessoais e sociais, Econômicos e políticos,
incluindo os direitos das nações e dos povos».[73]Com
grande clareza, explicou que «a Igreja defende, sim, o
legítimo direito à propriedade privada, mas ensina, com não
menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa
sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao
destino geral que Deus lhes deu».[74] Por isso, afirma que
«não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom de modo
tal que os seus benefícios aproveitem só a alguns poucos».
[75] Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos
duma parte da humanidade.[76]
94. O rico e o pobre têm igual dignidade, porque «quem os
fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o pequeno e
o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante sobre
os bons e os maus» (Mt 5, 45). Isto tem consequências
práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: «Cada
camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de
terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a
subsistência da sua família e gozar de segurança existencial.
Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu
exercício não seja ilusório mas real. Isto significa que, além
do título de propriedade, o camponês deve contar com meios
de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao
mercado».[77]
95. O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a
humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma
parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se
60
não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar
a existência aos outros. Por isso, os bispos da Nova Zelândia
perguntavam-se que significado possa ter o mandamento
«não matarás», quando «uns vinte por cento da população
mundial consomem recursos numa medida tal que roubam
às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que
necessitam para sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96. Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um
dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11, 25). Em colóquio
com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a
relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e
recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma
delas era importante aos olhos d’Ele: «Não se vendem cinco
pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum
deles passa despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). «Olhai
as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em
celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as» (Mt 6, 26).
97. O Senhor podia convidar os outros a estar atentos à
beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em
contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma
atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os
quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a beleza
semeada por seu Pai e convidava os discípulos a
individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai
os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa»
(Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é semelhante a um grão de
mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É
a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer,
61
torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa
árvore» (Mt 13, 31-32).
98. Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com
grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o
vento e o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava
como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas
aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo, declarou: «Veio o
Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um
glutão e bebedor de vinho”» (Mt 11, 19). Encontrava-Se
longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as
realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, estes
dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns
pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus
trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contato
com matéria criada por Deus para a moldar com a sua
capacidade de artesão. É digno de nota que a maior parte da
sua existência terrena tenha sido consagrada a esta tarefa,
levando uma vida simples que não despertava maravilha
alguma: «Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6,
3). Assim santificou o trabalho, atribuindo-lhe um valor
peculiar para o nosso amadurecimento. São João Paulo
II ensinava que, «suportando o que há de penoso no trabalho
em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora,
de alguma forma, com o Filho de Deus na redenção da
humanidade».[79]
99. Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino da
criação inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela está
presente desde a origem: «Todas as coisas foram criadas
por Ele e para Ele» (Cl 1, 16).[80] O prólogo do Evangelho
62
de João (1, 1-18) mostra a atividade criadora de Cristo como
Palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao
afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1, 14). Uma
Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo
criado, partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde
o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da
encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no
conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua
autonomia.
100. O Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e
da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo;
mostra-no-Lo também como ressuscitado e glorioso,
presente em toda a criação com o seu domínio universal.
«Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude
e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto
as que estão na terra como as que estão no céu» (Cl 1, 19-
20). Isto lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho
entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que Deus seja tudo
em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, as criaturas deste mundo já
não nos aparecem como uma realidade meramente natural,
porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia
para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e
as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos
humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa.
CAPÍTULO III
A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA
63
101. Para nada serviria descrever os sintomas, se não
reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um
modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser
humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a
arruinar. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo?
Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma
tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser
humano e a sua ação no mundo.
1. A tecnologia: criatividade e poder
102. A humanidade entrou numa nova era, em que o poder
da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos
herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a
máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade, o
automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina
moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução
digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É
justo que nos alegremos com estes progressos e nos
entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos
abrem estas novidades incessantes, porque «a ciência e a
tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana
que Deus nos deu».[81] A transformação da natureza para
fins úteis é uma característica do gênero humano, desde os
seus primórdios; e assim a técnica «exprime a tensão do
ânimo humano para uma gradual superação de certos
condicionamentos materiais».[82] A tecnologia deu remédio
a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano.
Não podemos deixar de apreciar e agradecer os progressos
alcançados especialmente na medicina, engenharia e
comunicações. Como não havemos de reconhecer todos os
64
esforços de tantos cientistas e técnicos que elaboraram
alternativas para um desenvolvimento sustentável?
103. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas
realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser
humano, desde os objetos de uso doméstico até aos grandes
meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É
capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser
humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para o
âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou
de alguns arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de
valor, obtidas com o recurso aos novos instrumentos
técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem
contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa plenitude
propriamente humana.
104. Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a
biotecnologia, a informática, o conhecimento do nosso
próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos
dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm
o conhecimento e sobretudo o poder Econômico para o
desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do
gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade
teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o
utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o
está a fazer. Basta lembrar as bombas atómicas lançadas
em pleno século XX, bem como a grande exibição de
tecnologia ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros
regimes totalitários e que serviu para o extermínio de milhões
de pessoas, sem esquecer que hoje a guerra dispõe de
instrumentos cada vez mais mortíferos. Nas mãos de quem
65
está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente
arriscado que resida numa pequena parte da humanidade.
105. Tende-se a crer que «toda a aquisição de poder seja
simplesmente progresso, aumento de segurança, de
utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de
valores»[83], como se a realidade, o bem e a verdade
desabrochassem espontaneamente do próprio poder da
tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem
moderno não foi educado para o reto uso do poder»,
[84] porque o imenso crescimento tecnológico não foi
acompanhado por um desenvolvimento do ser humano
quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência. Cada
época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência
dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a
humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que
se lhe apresentam, e «cresce continuamente a possibilidade
de o homem fazer mau uso do seu poder» quando «não
existem normas de liberdade, mas apenas pretensas
necessidades de utilidade e segurança».[85] O ser humano
não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece,
quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das
necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal.
Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio
poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o
controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas
podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma
cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um
limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si.
2. A globalização do paradigma tecnocrático
66
106. Mas o problema fundamental é outro e ainda mais
profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a
tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um
paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma,
sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente,
no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria
do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se
ao estabelecer o método científico com a sua
experimentação, que já é explicitamente uma técnica de
posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse
à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a
manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser
humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a
característica de acompanhar, secundar as possibilidades
oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que
a realidade natural por si permitia, como que estendendo a
mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível
das coisas por imposição da mão humana, que tende a
ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua
frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se
dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui
passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou
ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos
da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da
disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a
«espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo. Trata-se
do falso pressuposto de que «existe uma quantidade
ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a
sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos
negativos das manipulações da ordem natural podem ser
facilmente absorvidos».[86]
67
107. Assim podemos afirmar que, na origem de muitas
dificuldades do mundo atual, está principalmente a
tendência, nem sempre consciente, de elaborar a
metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um
paradigma de compreensão que condiciona a vida das
pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da
aplicação deste modelo a toda a realidade, humana e social,
constatam-se na degradação do meio ambiente, mas isto é
apenas um sinal do reducionismo que afeta a vida humana e
a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso
reconhecer que os produtos da técnica não são neutros,
porque criam uma trama que acaba por condicionar os
estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha
dos interesses de determinados grupos de poder. Certas
opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade
são opções sobre o tipo de vida social que se pretende
desenvolver.
108. Não se consegue pensar que seja possível sustentar
outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero
instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se
tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus
recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem
ser dominados pela sua lógica. Tornou-se anticultural a
escolha dum estilo de vida, cujos objetivos possam ser, pelo
menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos
e do seu poder globalizante e massificador. Com efeito, a
técnica tem tendência a fazer com que nada fique fora da
sua lógica férrea, e «o homem que é o seu protagonista sabe
que, em última análise, não se trata de utilidade nem de
bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da
68
palavra». [87] Por isso, «procura controlar os elementos da
natureza e, conjuntamente, os da existência humana».
[88] Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a
liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade
alternativa dos indivíduos.
109. O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu
domínio também sobre a economia e a política. A economia
assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do
lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências
negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia
real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e,
muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento
ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia
atual e a tecnologia resolverão todos os problemas
ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens
não acadêmicas, que os problemas da fome e da miséria no
mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do
mercado. Não é uma questão de teorias Econômicas, que
hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua
instalação no desenvolvimento concreto da economia.
Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com
os fatos, quando parece não preocupar-se com o justo nível
da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um
cuidado responsável do meio ambiente ou os direitos das
gerações futuras. Com os seus comportamentos, afirmam
que é suficiente o objetivo da maximização dos ganhos. Mas
o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento
humano integral nem a inclusão social.[89] Entretanto temos
um «superdesenvolvimento dissipador e consumista que
contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações
69
de miséria desumanizadora»,[90] mas não se criam, de
forma suficientemente rápida, instituições Econômicas e
programas sociais que permitam aos mais pobres terem
regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos
suficiente consciência de quais sejam as raízes mais
profundas dos desequilíbrios atuais: estes têm a ver com a
orientação, os fins, o sentido e o contexto social do
crescimento tecnológico e econômico.
110. A especialização própria da tecnologia comporta grande
dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A
fragmentação do saber realiza a sua função no momento de
se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a
perder o sentido da totalidade, das relações que existem
entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se
torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos
adequados para resolver os problemas mais complexos do
mundo atual, sobretudo os do meio ambiente e dos pobres,
que não se podem enfrentar a partir duma única perspectiva
nem dum único tipo de interesses. Uma ciência, que
pretenda oferecer soluções para os grandes problemas,
deveria necessariamente ter em conta tudo o que o
conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a
filosofia e a ética social. Mas este é atualmente um
procedimento difícil de seguir. Por isso também não se
consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de
referência. A vida passa a ser uma rendição às
circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o
recurso principal para interpretar a existência. Na realidade
concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que
mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a
70
ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência
social. Assim se demonstra uma vez mais que «a realidade é
superior à ideia».[91]
111. A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de
respostas urgentes e parciais para os problemas que vão
surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento
das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar
diferente, um pensamento, uma política, um programa
educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.
Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas
podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada.
Buscar apenas um remédio técnico para cada problema
ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade,
estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e
mais profundos do sistema mundial.
112. Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade
humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao
serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais
humano, mais social, mais integral. De fato verifica-se a
libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por
exemplo, quando comunidades de pequenos produtores
optam por sistemas de produção menos poluentes,
defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria e
convivência. Ou quando a técnica tem em vista
prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros,
com o compromisso de os ajudar a viver com mais dignidade
e menor sofrimento. E ainda quando a busca criadora do
belo e a sua contemplação conseguem superar o poder
71
objetivador numa espécie de salvação que acontece na
beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade
autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no
meio da civilização tecnológica de forma quase
imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da porta
fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de
tudo, desbrocha como uma obstinada resistência daquilo que
é autêntico?
113. Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num
futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a
partir das condições atuais do mundo e das capacidades
técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência
e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da
história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para
um futuro feliz são outros. Apesar disso, também não se
imaginam renunciando às possibilidades que oferece a
tecnologia. A humanidade mudou profundamente, e o
avolumar-se de constantes novidades consagra uma
fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direção.
Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da
vida. Se a arquitetura reflete o espírito duma época, as
mega-estruturas e as casas em série expressam o espírito
da técnica globalizada, onde a permanente novidade dos
produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos
a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o
sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o
estado de fato e precisaremos de mais sucedâneos para
suportar o vazio.
72
114. O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de
avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a
tecnologia não são neutrais, mas podem, desde o início até
ao fim dum processo, envolver diferentes intenções e
possibilidades que se podem configurar de várias maneiras.
Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é
indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade
doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e
ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes
objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano.
3. Crise do antropocentrismo moderno e suas
consequências
115. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente,
por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este
ser humano «já não sente a natureza como norma válida
nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese,
vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar
uma obra em que se imerge completamente, sem se importar
com o que possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o
valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não
redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si
mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade.
«Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve
usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a
qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por
Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral
de que foi dotado».[93]
116. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso
antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a
73
minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa
de reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de
prestar novamente atenção à realidade com os limites que a
mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade
dum desenvolvimento humano e social mais saudável e
fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia
cristã acabou por promover uma concepção errada da
relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi
transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo,
que provocou a impressão de que o cuidado da natureza
fosse atividade de fracos. Mas a interpretação correta do
conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-
lo no sentido de administrador responsável.[94]
117. A falta de preocupação por medir os danos à natureza e
o impato ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente
do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza
traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria
realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum
embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para
dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os
gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser
humano se declara autônomo da realidade e se constitui
dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência, porque «em vez de realizar o seu papel de
colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-
se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da
natureza».[95]
118. Esta situação leva-nos a uma esquizofrenia
permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que
74
não reconhece aos outros seres um valor próprio, até à
reação de negar qualquer valor peculiar ao ser humano.
Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não haverá
uma nova relação com a natureza, sem um ser humano
novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia.
Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um
ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum
determinismo físico, «corre o risco de atenuar-se, nas
consciências, a noção da responsabilidade».[96] Um
antropocentrismo desordenado não deve necessariamente
ser substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria
introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os
problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode
exigir do ser humano um compromisso para com o mundo,
se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas
peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade
e responsabilidade.
119. A crítica do antropocentrismo desordenado não deveria
deixar em segundo plano também o valor das relações entre
as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma
manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da
modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa
relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas
as relações humanas fundamentais. Quando o pensamento
cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar
acima das outras criaturas, suscita a valorização de cada
pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento do
outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer, amar e
dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana.
Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado,
75
não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano
nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao «Tu»
divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o
ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e
com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de
beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência.
120. Uma vez que tudo está relacionado, também não é
compatível a defesa da natureza com a justificação do
aborto. Não parece viável um percurso educativo para
acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes,
são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a
um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de
incómodos e dificuldades: «Se se perde a sensibilidade
pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham
também outras formas de acolhimento úteis à vida social».
[97]
121. Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese,
que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos. O
próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao
tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa
de se repensar e reformular em diálogo com as novas
situações históricas, deixando desabrochar assim a sua
eterna novidade.[98]
O relativismo prático
122. Um antropocentrismo desordenado gera um estilo de
vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii
gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza a
nossa época e que é «ainda mais perigoso que o doutrinal».
76
[99] Quando o ser humano se coloca no centro, acaba por
dar prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e
tudo o mais se torna relativo. Por isso, não deveria
surpreender que, juntamente com a omnipresença do
paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem
limites, se desenvolva nos indivíduos este relativismo no qual
tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se
torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite
compreender como se alimentam mutuamente diferentes
atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação
ambiental e a degradação social.
123. A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele
uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero
objeto, obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo-a à
escravidão por causa duma dívida. É a mesma lógica que
leva à exploração sexual das crianças, ou ao abandono dos
idosos que não servem os interesses próprios. É também a
lógica interna daqueles que dizem: «Deixemos que as forças
invisíveis do mercado regulem a economia, porque os seus
efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos
inevitáveis». Se não há verdades objetivas nem princípios
estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das
necessidades imediatas, que limites pode haver para o
tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o
narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de
peles de animais em vias de extinção? Não é a mesma
lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos
pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para
experimentação, ou o descarte de crianças porque não
correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do
77
«usa e joga fora» que produz tantos resíduos, só pelo desejo
desordenado de consumir mais do que realmente se tem
necessidade. Portanto, não podemos pensar que os
programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para
evitar os comportamentos que afetam o meio ambiente,
porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de
reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer
princípios universalmente válidos, as leis só se poderão
entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.
A necessidade de defender o trabalho
124. Em qualquer abordagem de ecologia integral que não
exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor do
trabalho, tão sabiamente desenvolvido por São João Paulo
II na sua encíclica Laborem excercens. Recordemos que,
segundo a narração bíblica da criação, Deus colocou o ser
humano no jardim recém-criado (cf. Gn2, 15), não só para
cuidar do existente (guardar), mas também para trabalhar
nele a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os
operários e os artesãos «asseguram uma criação perpétua»
(Sir 38, 34). Na realidade, a intervenção humana que
favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma
mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se
como instrumento de Deus para ajudar a fazer desabrochar
as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas: «O
Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem
sensato não os desprezará» (Sir 38, 4).
125. Se procurarmos pensar quais possam ser as relações
adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia, surge
a necessidade duma concepção correta do trabalho, porque,
78
falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se-
nos a questão relativa ao sentido e finalidade da ação
humana sobre a realidade. Não falamos apenas do trabalho
manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer atividade
que implique alguma transformação do existente, desde a
elaboração dum balanço social até ao projeto dum progresso
tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma
concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve
estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A
espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das
criaturas que encontramos em São Francisco de Assis,
desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do
trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do
Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos.
126. Algo se pode recolher também da longa tradição
monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo modo a
fuga do mundo, procurando afastar-se da decadência
urbana. Por isso, os monges buscavam o deserto,
convencidos de que fosse o lugar adequado para reconhecer
a presença de Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis
que os seus monges vivessem em comunidade, unindo
oração e estudo com o trabalho manual («Ora et labora»).
Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido
espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o
amadurecimento e a santificação na compenetração entre o
recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o trabalho
torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio
ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa relação
com o mundo.
79
127. Afirmamos que «o homem é o protagonista, o centro e o
fim de toda a vida econômico-social».[100] Apesar disso,
quando no ser humano se deteriora a capacidade de
contemplar e respeitar, criam-se as condições para se
desfigurar o sentido do trabalho.[101] Convém recordar
sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o
agente responsável do seu bem-estar material, progresso
moral e desenvolvimento espiritual».[102] O trabalho deveria
ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal,
onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade,
a projetação do futuro, o desenvolvimento das capacidades,
a exercitação dos valores, a comunicação com os outros,
uma atitude de adoração. Por isso, a realidade social do
munda atual exige que, acima dos limitados interesses das
empresas e duma discutível racionalidade econômica, «se
continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao
trabalho para todos».[103]
128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação.
Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua
cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a
humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma
necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é
caminho de maturação, desenvolvimento humano e
realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o
dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para
enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser
sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho.
Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de
progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de
produção com base na diminuição dos postos de trabalho,
80
que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de
como a ação do homem se pode voltar contra si mesmo. A
diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto
negativo no plano Econômico com a progressiva corrosão do
“capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de
confiança, de credibilidade, de respeito das regras,
indispensável em qualquer convivência civil». [104] Em
suma, «os custos humanos são sempre também custos
Econômicos, e as disfunções Econômicas acarretam sempre
também custos humanos».[105]Renunciar a investir nas
pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo
negócio para a sociedade.
129. Para se conseguir continuar a dar emprego, é
indispensável promover uma economia que favoreça a
diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por
exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares
rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior
parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida
de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em
pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e
recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. As
economias de larga escala, especialmente no setor agrícola,
acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as
suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais. As
tentativas feitas por alguns deles no sentido de
desenvolverem outras formas de produção, mais
diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade de
ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a
infra-estrutura de venda e transporte está ao serviço das
grandes empresas. As autoridades têm o direito e a
81
responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e firme
aos pequenos produtores e à diversificação da produção. Às
vezes, para que haja uma liberdade econômica da qual todos
realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites
àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A
simples proclamação da liberdade econômica, enquanto as
condições reais impedem que muitos possam efetivamente
ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao
trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a
política. A atividade empresarial, que é uma nobre vocação
orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para
todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a
região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se
pensa que a criação de postos de trabalho é parte
imprescindível do seu serviço ao bem comum.
A inovação biológica a partir da pesquisa
130. Na visão filosófica e teológica do ser humano e da
criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa
humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua
sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente
excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no
mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é
necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as
experimentações sobre os animais só são legítimas «desde
que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam
para curar ou poupar vidas humanas».[106] Recorda, com
firmeza, que o poder humano tem limites e que «é contrário à
dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e
dispor indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo o
82
uso e experimentação «exige um respeito religioso pela
integridade da criação».[108]
131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João
Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos
científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre a
vocação do homem para participar de modo responsável na
ação criadora de Deus», mas ao mesmo tempo recordava
que «toda e qualquer intervenção numa área determinada do
ecossistema não pode prescindir da consideração das suas
consequências noutras áreas».[109]Afirmava que a Igreja
aprecia a contribuição «do estudo e das aplicações da
biologia molecular, completada por outras disciplinas como a
genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na
indústria»,[110] embora dissesse também que isto não deve
levar a uma «indiscriminada manipulação genética»[111]que
ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é
possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir
a um artista que exprima a sua capacidade criativa, também
não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para o
progresso científico e tecnológico, cujas capacidades foram
dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo,
não se pode deixar de considerar os objetivos, os efeitos, o
contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é
uma forma de poder com grandes riscos.
132. Neste quadro, deveria situar-se toda e qualquer reflexão
acerca da intervenção humana sobre o mundo vegetal e
animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela
biotecnologia, a fim de aproveitar as possibilidades presentes
na realidade material. O respeito da fé pela razão pede para
83
se prestar atenção àquilo que a própria ciência biológica,
desenvolvida independentemente dos interesses
Econômicos, possa ensinar a propósito das estruturas
biológicas e das suas possibilidades e mutações. Em todo o
caso, é legítima uma intervenção que atue sobre a natureza
«para a ajudar a desenvolver-se na sua própria linha, a da
criação, querida por Deus».[112]
133. É difícil emitir um juízo geral sobre o desenvolvimento
de organismos modificados geneticamente (OMG), vegetais
ou animais, para fins medicinais ou agro-pecuários, porque
podem ser muito diferentes entre si e requerer distintas
considerações. Além disso, os riscos nem sempre se devem
atribuir à própria técnica, mas à sua aplicação inadequada ou
excessiva. Na realidade, muitas vezes as mutações
genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria
natureza. E mesmo as provocadas pelo ser humano não são
um fenômeno moderno. A domesticação de animais, o
cruzamento de espécies e outras práticas antigas e
universalmente seguidas podem incluir-se nestas
considerações. É oportuno recordar que o início dos
progressos científicos sobre cereais transgênicos foi a
observação de bactérias que, de forma natural e espontânea,
produziam uma modificação no genoma dum vegetal. Mas,
na natureza, estes processos têm um ritmo lento, que não se
compara com a velocidade imposta pelos avanços
tecnológicos atuais, mesmo quando estes avanços se
baseiam num desenvolvimento científico de vários séculos.
134. Embora não disponhamos de provas definitivas acerca
do dano que poderiam causar os cereais transgénicos aos
84
seres humanos e apesar de, nalgumas regiões, a sua
utilização ter produzido um crescimento Econômico que
contribuiu para resolver determinados problemas, há
dificuldades importantes que não devem ser minimizadas.
Em muitos lugares, na sequência da introdução destas
culturas, constata-se uma concentração de terras produtivas
nas mãos de poucos, devido ao «progressivo
desaparecimento de pequenos produtores, que, em
consequência da perda das terras cultivadas, se viram
obrigados a retirar-se da produção direta».[113] Os mais
frágeis deles tornam-se trabalhadores precários, e muitos
assalariados agrícolas acabam por emigrar para miseráveis
aglomerados das cidades. A expansão destas culturas
destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a
diversidade na produção e afeta o presente ou o futuro das
economias regionais. Em vários países, nota-se uma
tendência para o desenvolvimento de oligopólios na
produção de sementes e outros produtos necessários para o
cultivo, e a dependência agrava-se quando se pensa na
produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os
agricultores a comprá-las às empresas produtoras.
135. Sem dúvida, há necessidade duma atenção constante,
que tenha em consideração todos os aspectos éticos
implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate
científico e social que seja responsável e amplo, capaz de
considerar toda a informação disponível e chamar as coisas
pelo seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a
informação completa, mas é seleccionada de acordo com os
próprios interesses, sejam eles políticos, Econômicos ou
ideológicos. Isto torna difícil elaborar um juízo equilibrado e
85
prudente sobre as várias questões, tendo presente todas as
variáveis em jogo. É necessário dispor de espaços de
debate, onde todos aqueles que poderiam de algum modo
ver-se, direta ou indiretamente, afetados (agricultores,
consumidores, autoridades, cientistas, produtores de
sementes, populações vizinhas dos campos tratados e
outros) tenham possibilidade de expor as suas problemáticas
ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para
adotar decisões tendentes ao bem comum presente e futuro.
A questão dos OMG é uma questão de carácter complexo,
que requer ser abordada com um olhar abrangente de todos
os aspectos; isto exigiria pelo menos um maior esforço para
financiar distintas linhas de pesquisa autónoma e
interdisciplinar que possam trazer nova luz.
136. Além disso, é preocupante constatar que alguns
movimentos ecologistas defendem a integridade do meio
ambiente e, com razão, reclamam a imposição de
determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam
estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes
justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se
faz experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se
que o valor inalienável do ser humano é independente do seu
grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os
grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima
qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a técnica
separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o
seu poder.
CAPÍTULO IV
86
UMA ECOLOGIA INTEGRAL
137. Dado que tudo está intimamente relacionado e que os
problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta
todos os aspectos da crise mundial, proponho que nos
detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos
duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões
humanas e sociais.
1. Ecologia ambiental, Econômica e social
138. A ecologia estuda as relações entre os organismos
vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige
sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e
de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr
em questão modelos de desenvolvimento, produção e
consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado.
O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os
próprios átomos ou as partículas subatômicas se podem
considerar separadamente. Assim como os vários
componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos –
estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas
formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e
compreender. Boa parte da nossa informação genética é
partilhada com muitos seres vivos. Por isso, os
conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se
uma forma de ignorância, quando resistem a integrar-se
numa visão mais ampla da realidade.
139. Quando falamos de «meio ambiente», fazemos
referência também a uma particular relação: a relação entre
a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos de
87
considerar a natureza como algo separado de nós ou como
uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela,
somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas
quais um lugar se contamina, exigem uma análise do
funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu
comportamento, das suas maneiras de entender a realidade.
Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar
uma resposta específica e independente para cada parte do
problema. É fundamental buscar soluções integrais que
considerem as interações dos sistemas naturais entre si e
com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma
ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise
sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma
abordagem integral para combater a pobreza, devolver a
dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da
natureza.
140. Devido à quantidade e variedade de elementos a ter em
conta na hora de determinar o impacto ambiental dum
empreendimento concreto, torna-se indispensável dar aos
pesquisadores um papel preponderante e facilitar a sua
interação com uma ampla liberdade académica. Esta
pesquisa constante deveria permitir reconhecer também
como as diferentes criaturas se relacionam, formando
aquelas unidades maiores que hoje chamamos
«ecossistemas». Temo-los em conta não só para determinar
qual é o seu uso razoável, mas também porque possuem um
valor intrínseco, independente de tal uso. Assim como cada
organismo é bom e admirável em si mesmo pelo fato de ser
uma criatura de Deus, o mesmo se pode dizer do conjunto
harmônico de organismos num determinado espaço,
88
funcionando como um sistema. Embora não tenhamos
consciência disso, dependemos desse conjunto para a nossa
própria existência. Convém recordar que os ecossistemas
intervêm na retenção do anidrido carbónico, na purificação
da água, na contraposição a doenças e pragas, na
composição do solo, na decomposição dos resíduos, e
muitíssimos outros serviços que esquecemos ou ignoramos.
Quando se dão conta disto, muitas pessoas voltam a tomar
consciência de que vivemos e agimos a partir duma
realidade que nos foi previamente dada, que é anterior às
nossas capacidades e à nossa existência. Por isso, quando
se fala de «uso sustentável», é preciso incluir sempre uma
consideração sobre a capacidade regenerativa de cada
ecossistema nos seus diversos setores e aspetos.
141. Além disso, o crescimento Econômico tende a gerar
automatismos e a homogeneizar, a fim de simplificar os
processos e reduzir os custos. Por isso, é necessária uma
ecologia Econômica, capaz de induzir a considerar a
realidade de forma mais ampla. Com efeito, «a proteção do
meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo
de desenvolvimento e não poderá ser considerada
isoladamente».[114] Mas, ao mesmo tempo, torna-se atual a
necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos
distintos saberes, incluindo o Econômico, para uma visão
mais integral e integradora. Hoje, a análise dos problemas
ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos,
familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa
consigo mesma, que gera um modo específico de se
relacionar com os outros e com o meio ambiente. Há uma
interação entre os ecossistemas e entre os diferentes
89
mundos de referência social e, assim, se demonstra mais
uma vez que «o todo é superior à parte».[115]
142. Se tudo está relacionado, também o estado de saúde
das instituições duma sociedade tem consequências no
ambiente e na qualidade de vida humana: «toda a lesão da
solidariedade e da amizade cívica provoca danos
ambientais». [116] Neste sentido, a ecologia social é
necessariamente institucional e progressivamente alcança as
diferentes dimensões, que vão desde o grupo social primário,
a família, até à vida internacional, passando pela
comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos níveis
sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que
regulam as relações humanas. Tudo o que as danifica
comporta efeitos nocivos, como a perda da liberdade, a
injustiça e a violência. Vários países são governados por um
sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo
e para benefício daqueles que lucram com este estado de
coisas. Tanto dentro da administração do Estado, como nas
diferentes expressões da sociedade civil, ou nas relações
dos habitantes entre si, registam-se, com demasiada
frequência, comportamentos ilegais. As leis podem estar
redigidas de forma correta, mas muitas vezes permanecem
letra morta. Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as
normativas relativas ao meio ambiente sejam realmente
eficazes? Sabemos, por exemplo, que países dotados duma
legislação clara sobre a proteção das florestas continuam a
ser testemunhas mudas da sua frequente violação. Além
disso, o que acontece numa região influi, direta ou
indiretamente, nas outras regiões. Assim, por exemplo, o
consumo de drogas nas sociedades opulentas provoca uma
90
constante ou crescente procura de produtos que provêm de
regiões empobrecidas, onde se corrompem comportamentos,
se destroem vidas e se acaba por degradar o meio ambiente.
2. Ecologia cultural
143. A par do patrimônio natural, encontra-se igualmente
ameaçado um patrimônio histórico, artístico e cultural. Faz
parte da identidade comum de um lugar, servindo de base
para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir
e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde
nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a
história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando
a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve
também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no
seu sentido mais amplo. Mais diretamente, pede que se
preste atenção às culturas locais, quando se analisam
questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo
dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem
popular. É a cultura – entendida não só como os
monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido
vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na
hora de repensar a relação do ser humano com o meio
ambiente.
144. A visão consumista do ser humano, incentivada pelos
mecanismos da economia globalizada atual, tende a
homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade
cultural, que é um tesouro da humanidade. Por isso,
pretender resolver todas as dificuldades através de
normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a
negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que
91
requerem a participação ativa dos habitantes. Os novos
processos em gestação nem sempre se podem integrar
dentro de modelos estabelecidos do exterior, mas hão-de ser
provenientes da própria cultura local. Assim como a vida e o
mundo são dinâmicos, assim também o cuidado do mundo
deve ser flexível e dinâmico. As soluções meramente
técnicas correm o risco de tomar em consideração sintomas
que não correspondem às problemáticas mais profundas. É
preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das
culturas, dando assim provas de compreender que o
desenvolvimento dum grupo social supõe um processo
histórico no âmbito dum contexto cultural e requer
constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a
partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da
qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida
dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada
grupo humano.
145. Muitas formas de intensa exploração e degradação do
meio ambiente podem esgotar não só os meios locais de
subsistência, mas também os recursos sociais que
consentiram um modo de viver que sustentou, durante longo
tempo, uma identidade cultural e um sentido da existência e
da convivência social. O desaparecimento duma cultura pode
ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma
espécie animal ou vegetal. A imposição dum estilo
hegemônico de vida ligado a um modo de produção pode ser
tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.
146. Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção
especial às comunidades aborígenes com as suas tradições
92
culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas
devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente
quando se avança com grandes projetos que afetam os seus
espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem
Econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados
que nela descansam, um espaço sagrado com o qual
precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus
valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são
quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém,
são objeto de pressões para que abandonem suas terras e
as deixem livres para projetos extrativos e agro-pecuários
que não prestam atenção à degradação da natureza e da
cultura.
3. Ecologia da vida quotidiana
147. Para se poder falar de autêntico progresso, será preciso
verificar que se produza uma melhoria global na qualidade de
vida humana; isto implica analisar o espaço onde as pessoas
transcorrem a sua existência. Os ambientes onde vivemos
influem sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir. Ao
mesmo tempo, no nosso quarto, na nossa casa, no nosso
lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente para
exprimir a nossa identidade. Esforçamo-nos por nos adaptar
ao ambiente e, quando este aparece desordenado, caótico
ou cheio de poluição visiva e acústica, o excesso de
estímulos põe à prova as nossas tentativas de desenvolver
uma identidade integrada e feliz.
148. Admirável é a criatividade e generosidade de pessoas e
grupos que são capazes de dar a volta às limitações do
ambiente, modificando os efeitos adversos dos
93
condicionalismos e aprendendo a orientar a sua existência
no meio da desordem e precariedade. Por exemplo, nalguns
lugares onde as fachadas dos edifícios estão muito
deterioradas, há pessoas que cuidam com muita dignidade o
interior das suas habitações, ou que se sentem bem pela
cordialidade e amizade das pessoas. A vida social positiva e
benfazeja dos habitantes enche de luz um ambiente à
primeira vista inabitável. É louvável a ecologia humana que
os pobres conseguem desenvolver, no meio de tantas
limitações. A sensação de sufocamento, produzida pelos
aglomerados residenciais e pelos espaços com alta
densidade populacional, é contrastada se se desenvolvem
calorosas relações humanas de vizinhança, se se criam
comunidades, se as limitações ambientais são compensadas
na interioridade de cada pessoa que se sente inserida numa
rede de comunhão e pertença. Deste modo, qualquer lugar
deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida
digna.
149. Inversamente está provado que a penúria extrema
vivida nalguns ambientes privados de harmonia,
magnanimidade e possibilidade de integração, facilita o
aparecimento de comportamentos desumanos e a
manipulação das pessoas por organizações criminosas. Para
os habitantes de bairros periféricos muito precários, a
experiência diária de passar da superlotação ao anonimato
social, que se vive nas grandes cidades, pode provocar uma
sensação de desenraizamento que favorece
comportamentos anti-sociais e violência. Todavia tenho a
peito reiterar que o amor é mais forte. Muitas pessoas,
nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença e
94
convivência que transformam a superlotação numa
experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e
superam as barreiras do egoísmo. Esta experiência de
salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reações
criativas para melhorar um edifício ou um bairro.[117]
150. Dada a relação entre os espaços urbanizados e o
comportamento humano, aqueles que projetam edifícios,
bairros, espaços públicos e cidades precisam da contribuição
dos vários saberes que permitem compreender os
processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas.
Não é suficiente a busca da beleza no projeto, porque tem
ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de
vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o
encontro e ajuda mútua. Por isso também, é tão importante
que o ponto de vista dos habitantes do lugar contribua
sempre para a análise da planificação urbanista.
151. É preciso cuidar dos espaços comuns, dos marcos
visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso
sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o
nosso sentimento de «estar em casa» dentro da cidade que
nos envolve e une. É importante que as diferentes partes
duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes
possam ter uma visão de conjunto em vez de se encerrarem
num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um
espaço próprio partilhado com os outros. Toda a intervenção
na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os
diferentes elementos do lugar formam um todo, sentido pelos
habitantes como um contexto coerente com a sua riqueza de
significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos e
95
podemos senti-los como parte de um «nós» que construímos
juntos. Pela mesma razão, tanto no meio urbano como no
rural, convém preservar alguns espaços onde se evitem
intervenções humanas que os alterem constantemente.
152. A falta de habitação é grave em muitas partes do
mundo, tanto nas áreas rurais como nas grandes cidades,
nomeadamente porque os orçamentos estatais em geral
cobrem apenas uma pequena parte da procura. E não só os
pobres, mas uma grande parte da sociedade encontra sérias
dificuldades para ter uma casa própria. A propriedade da
casa tem muita importância para a dignidade das pessoas e
o desenvolvimento das famílias. Trata-se duma questão
central da ecologia humana. Se num lugar concreto já se
desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias,
trata-se primariamente de urbanizar estes bairros, não de
erradicar e expulsar os habitantes. Mas, quando os pobres
vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados perigosos, «no
caso de ter de se proceder à sua deslocação, para não
acrescentar mais sofrimento ao que já padecem, é
necessário fornecer-lhes uma adequada e prévia informação,
oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos e envolver
diretamente os interessados».[118] Ao mesmo tempo, a
criatividade deveria levar à integração dos bairros precários
numa cidade acolhedora: «Como são belas as cidades que
superam a desconfiança doentia e integram os que são
diferentes, fazendo desta integração um novo fator de
progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no
seu projeto arquitetônico, estão cheias de espaços que
unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do
outro!»[119]
96
153. Nas cidades, a qualidade de vida está largamente
relacionada com os transportes, que muitas vezes são causa
de grandes tribulações para os habitantes. Nelas, circulam
muitos carros utilizados por uma ou duas pessoas, pelo que
o tráfico torna-se intenso, eleva-se o nível de poluição,
consomem-se enormes quantidades de energia não-
renovável e torna-se necessário a construção de mais
estradas e parques de estacionamento que prejudicam o
tecido urbano. Muitos especialistas estão de acordo sobre a
necessidade de dar prioridade ao transporte público. Mas é
difícil que algumas medidas consideradas necessárias sejam
pacificamente acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria
substancial do referido transporte, que, em muitas cidades,
comporta um tratamento indigno das pessoas devido à
superlotação, ao desconforto, ou à reduzida frequência dos
serviços e à insegurança.
154. O reconhecimento da dignidade peculiar do ser humano
contrasta frequentemente com a vida caótica que têm de
fazer as pessoas nas nossas cidades. Mas isto não deveria
levar a esquecer o estado de abandono e desleixo que
sofrem também alguns habitantes das áreas rurais, onde não
chegam os serviços essenciais e há trabalhadores reduzidos
a situações de escravidão, sem direitos nem expectativas
duma vida mais dignificante.
155. A ecologia humana implica também algo de muito
profundo que é indispensável para se poder criar um
ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do
ser humano com a lei moral inscrita na sua própria
natureza. Bento XVI dizia que existe uma «ecologia do
97
homem», porque «também o homem possui uma natureza,
que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece».
[120] Nesta linha, é preciso reconhecer que o nosso corpo
nos põe em relação direta com o meio ambiente e com os
outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom
de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro
como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica
de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica,
por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a
aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus
significados é essencial para uma verdadeira ecologia
humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo
na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder
reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é
diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom
específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e
enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um
comportamento que pretenda «cancelar a diferença sexual,
porque já não sabe confrontar-se com ela».[121]
4. O princípio do bem comum
156. A ecologia humana é inseparável da noção de bem
comum, princípio este que desempenha um papel central e
unificador na ética social. É «o conjunto das condições da
vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada
membro, alcançar mais plena e facilmente a própria
perfeição».[122]
157. O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa
humana enquanto tal, com direitos fundamentais e
inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral.
98
Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança
social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios,
aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos,
destaca-se de forma especial a família enquanto célula
basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz
social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma certa
ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à
justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência. Toda
a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem
obrigação de defender e promover o bem comum.
158. Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há
tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as
pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos
fundamentais, o princípio do bem comum torna-se
imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um
apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais
pobres. Esta opção implica tirar as consequências do destino
comum dos bens da terra, mas – como procurei mostrar na
exortação apostólica Evangelii gaudium [123] – exige acima
de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das
mais profundas convições de fé. Basta observar a realidade
para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência
ética fundamental para a efetiva realização do bem comum.
5. A justiça intergeneracional
159. A noção de bem comum engloba também as gerações
futuras. As crises Econômicas internacionais mostraram, de
forma atroz, os efeitos nocivos que traz consigo o
desconhecimento de um destino comum, do qual não podem
ser excluídos aqueles que virão depois de nós. Já não se
99
pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma
solidariedade intergeneracional. Quando pensamos na
situação em que se deixa o planeta às gerações futuras,
entramos noutra lógica: a do dom gratuito, que recebemos e
comunicamos. Se a terra nos é dada, não podemos pensar
apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e
produtividade para lucro individual. Não estamos a falar
duma atitude opcional, mas duma questão essencial de
justiça, pois a terra que recebemos pertence também
àqueles que hão-de vir. Os bispos de Portugal exortaram a
assumir este dever de justiça: «O ambiente situa-se na lógica
da recepção. É um empréstimo que cada geração recebe e
deve transmitir à geração seguinte».[124] Uma ecologia
integral possui esta perspectiva ampla.
160. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai
suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta
não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada,
porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária.
Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos
deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu
sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta
de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas
possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta pergunta
é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras
questões muito diretas: Com que finalidade passamos por
este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que
trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta
terra? Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-
nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de
que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos
100
nós os primeiros interessados em deixar um planeta
habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se
de um drama para nós mesmos, porque isto chama em
causa o significado da nossa passagem por esta terra.
161. As previsões catastróficas já não se podem olhar com
desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar
demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo,
desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal
maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida
atual – por ser insustentável – só pode desembocar em
catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente
em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio
atual depende do que fizermos agora, sobretudo se
pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles
que deverão suportar as piores consequências.
162. A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver
com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a
deterioração ecológica. O homem e a mulher deste mundo
pós-moderno correm o risco permanente de se tornar
profundamente individualistas, e muitos problemas sociais de
hoje estão relacionados com a busca egoísta duma
satisfação imediata, com as crises dos laços familiares e
sociais, com as dificuldades em reconhecer o outro. Muitas
vezes há um consumo excessivo e míope dos pais que
prejudica os próprios filhos, que sentem cada vez mais
dificuldade em comprar casa própria e fundar uma família.
Além disso esta falta de capacidade para pensar seriamente
nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade
de alargar o horizonte das nossas preocupações e pensar
101
naqueles que permanecem excluídos do desenvolvimento.
Não percamos tempo a imaginar os pobres do futuro, é
suficiente que recordemos os pobres de hoje, que poucos
anos têm para viver nesta terra e não podem continuar a
esperar. Por isso, «para além de uma leal solidariedade entre
as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral
de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da
mesma geração».[125]
CAPÍTULO V
ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO
163. Procurei examinar a situação atual da humanidade,
tanto nas brechas do planeta que habitamos, como nas
causas mais profundamente humanas da degradação
ambiental. Embora esta contemplação da realidade em si
mesma já nos indique a necessidade duma mudança de
rumo e sugira algumas ações, procuremos agora delinear
grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair da
espiral de autodestruição onde estamos a afundar.
1. O diálogo sobre o meio ambiente na política
internacional
164. Desde meados do século passado e superando muitas
dificuldades, foi-se consolidando a tendência de conceber o
planeta como pátria e a humanidade como povo que habita
uma casa comum. Um mundo interdependente não significa
unicamente compreender que as consequências danosas
102
dos estilos de vida, produção e consumo afetam a todos,
mas principalmente procurar que as soluções sejam
propostas a partir duma perspectiva global e não apenas
para defesa dos interesses de alguns países. A
interdependência obriga-nos a pensar num único mundo,
num projeto comum. Mas, a mesma inteligência que foi
utilizada para um enorme desenvolvimento tecnológico não
consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional
para resolver as graves dificuldades ambientais e sociais.
Para enfrentar os problemas de fundo, que não se podem
resolver com ações de países isolados, torna-se
indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a
programar uma agricultura sustentável e diversificada,
desenvolver formas de energia renováveis e pouco
poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética,
promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais
e marinhos, garantir a todos o acesso à água potável.
165. Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis
fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas
também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser,
progressivamente e sem demora, substituída. Enquanto
aguardamos por um amplo desenvolvimento das energias
renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar
pelo mal menor ou recorrer a soluções transitórias. Todavia,
na comunidade internacional, não se consegue suficiente
acordo sobre a responsabilidade de quem deve suportar os
maiores custos da transição energética. Nas últimas
décadas, as questões ambientais deram origem a um amplo
debate público, que fez crescer na sociedade civil espaços
de notável compromisso e generosa dedicação. A política e a
103
indústria reagem com lentidão, longe de estar à altura dos
desafios mundiais. Neste sentido, pode-se dizer que,
enquanto a humanidade do período pós-industrial talvez
fique recordada como uma das mais irresponsáveis da
história, espera-se que a humanidade dos inícios do século
XXI possa ser lembrada por ter assumido com generosidade
as suas graves responsabilidades.
166. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo
caminho, enriquecido pelo esforço de muitas organizações
da sociedade civil. Não seria possível mencioná-las todas
aqui, nem repassar a história das suas contribuições. Mas,
graças a tanta dedicação, as questões ambientais têm
estado cada vez mais presentes na agenda pública e
tornaram-se um convite permanente a pensar a longo prazo.
Apesar disso, as cimeiras mundiais sobre o meio ambiente
dos últimos anos não corresponderam às expectativas,
porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos
ambientais globais realmente significativos e eficazes.
167. Dentre elas, há que recordar a Cimeira da Terra,
celebrada em 1992 no Rio de Janeiro. Lá se proclamou que
«os seres humanos constituem o centro das preocupações
relacionadas com o desenvolvimento sustentável».
[126] Retomando alguns conteúdos da Declaração de
Estocolmo (1972), sancionou, entre outras coisas, a
cooperação internacional no cuidado do ecossistema de toda
a terra, a obrigação de quem contaminar assumir
economicamente os custos derivados, o dever de avaliar o
impacto ambiental de toda e qualquer obra ou projeto.
Propôs o objetivo de estabilizar as concentrações de gases
104
com efeito de estufa na atmosfera para inverter a tendência
do aquecimento global. Também elaborou uma agenda com
um programa de ação e uma convenção sobre
biodiversidade, declarou princípios em matéria florestal.
Embora tal cimeira marcasse um passo em frente e fosse
verdadeiramente profética para a sua época, os acordos
tiveram um baixo nível de implementação, porque não se
estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão
periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados
continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de
realização prática.
168. Como experiências positivas, pode-se mencionar, por
exemplo, a Convenção de Basileia sobre os resíduos
perigosos, com um sistema de notificação, níveis estipulados
e controles, e também a Convenção vinculante sobre o
comércio internacional das espécies da fauna e da flora
selvagens ameaçadas de extinção, que prevê missões de
verificação do seu efetivo cumprimento. Graças à Convenção
de Viena para a proteção da camada de ozônio e a
respectiva implementação através do Protocolo de Montreal
e as suas emendas, o problema da diminuição da referida
camada parece ter entrado numa fase de solução.
169. No cuidado da biodiversidade e no contraste à
desertificação, os avanços foram muito menos significativos.
Relativamente às mudanças climáticas, os progressos são,
infelizmente, muito escassos. A redução de gases com efeito
de estufa requer honestidade, coragem e responsabilidade,
sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes. A
Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento
105
Sustentável, chamada Rio+20 (Rio de Janeiro 2012), emitiu
uma Declaração Final extensa mas ineficaz. As negociações
internacionais não podem avançar significativamente por
causa das posições dos países que privilegiam os seus
interesses nacionais sobre o bem comum global. Aqueles
que hão-de sofrer as consequências que tentamos
dissimular, recordarão esta falta de consciência e de
responsabilidade. Durante o período de elaboração desta
encíclica, o debate adquiriu particular intensidade. Nós,
crentes, não podemos deixar de rezar a Deus pela evolução
positiva nos debates atuais, para que as gerações futuras
não sofram as consequências de demoras imprudentes.
170. Algumas das estratégias para a baixa emissão de gases
poluentes apostam na internacionalização dos custos
ambientais, com o perigo de impor aos países de menores
recursos pesados compromissos de redução de emissões
comparáveis aos dos países mais industrializados. A
imposição destas medidas penaliza os países mais
necessitados de desenvolvimento. Assim, acrescenta-se uma
nova injustiça sob a capa do cuidado do meio ambiente.
Como sempre, a corda quebra pelo ponto mais fraco. Uma
vez que os efeitos das mudanças climáticas se farão sentir
durante muito tempo, mesmo que agora sejam tomadas
medidas rigorosas, alguns países com escassos recursos
precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a
produzir-se e afetam as suas economias. É verdade que há
responsabilidades comuns, mas diferenciadas, pelo simples
motivo – como disseram os bispos da Bolívia – que «os
países que foram beneficiados por um alto grau de
industrialização, à custa duma enorme emissão de gases
106
com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em
contribuir para a solução dos problemas que causaram».
[127]
171. A estratégia de compra-venda de «créditos de emissão»
pode levar a uma nova forma de especulação, que não
ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes. Este
sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a
aparência dum certo compromisso com o meio ambiente,
mas que não implica de forma alguma uma mudança radical
à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um
diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de
alguns países e setores.
172. Para os países pobres, as prioridades devem ser a
erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos seus
habitantes; ao mesmo tempo devem examinar o nível
escandaloso de consumo de alguns setores privilegiados da
sua população e contrastar melhor a corrupção. Sem dúvida,
devem também desenvolver formas menos poluentes de
produção de energia, mas para isso precisam de contar com
a ajuda dos países que cresceram muito à custa da atual
poluição do planeta. O aproveitamento direto da energia
solar, tão abundante, exige que se estabeleçam mecanismos
e subsídios tais, que os países em vias de desenvolvimento
possam ter acesso à transferência de tecnologias,
assistência técnica e recursos financeiros, mas sempre
prestando atenção às condições concretas, pois «nem
sempre se avalia adequadamente a compatibilidade dos
sistemas com o contexto para o qual são projetados».
[128] Os custos seriam baixos se comparados com os riscos
107
das mudanças climáticas. Em todo o caso, trata-se
primariamente duma decisão ética, fundada na solidariedade
de todos os povos.
173. Urgem acordos internacionais que se cumpram, dada a
escassa capacidade das instâncias locais para intervirem de
maneira eficaz. As relações entre os Estados devem
salvaguardar a soberania de cada um, mas também
estabelecer caminhos consensuais para evitar catástrofes
locais que acabariam por danificar a todos. São necessários
padrões reguladores globais que imponham obrigações e
impeçam ações inaceitáveis, como o fato de países
poderosos descarregarem, sobre outros países, resíduos e
indústrias altamente poluentes.
174. Mencionemos também o sistema de governança dos
oceanos. Com efeito, embora tenha havido várias
convenções internacionais e regionais, a fragmentação e a
falta de severos mecanismos de regulamentação, controle e
sanção acabam por minar todos os esforços. O problema
crescente dos resíduos marinhos e da proteção das áreas
marinhas para além das fronteiras nacionais continua a
representar um desafio especial. Em definitivo, precisamos
de um acordo sobre os regimes de governança para toda a
gama dos chamados bens comuns globais.
175. A lógica que dificulta a tomada de decisões drásticas
para inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma
que não permite cumprir o objetivo de erradicar a pobreza.
Precisamos duma reação global mais responsável, que
implique enfrentar, contemporaneamente, a redução da
poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres. O
108
século XXI, mantendo um sistema de governança próprio de
épocas passadas, assiste a uma perda de poder dos Estados
nacionais, sobretudo porque a dimensão Econômico-
financeira, de caráter transnacional, tende a prevalecer sobre
a política. Neste contexto, torna-se indispensável a
maturação de instituições internacionais mais fortes e
eficazmente organizadas, com autoridades designadas de
maneira imparcial por meio de acordos entre os governos
nacionais e dotadas de poder de sancionar. Com
afirmou Bento XVI, na linha desenvolvida até agora pela
doutrina social da Igreja, «para o governo da economia
mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de
modo a prevenir o agravamento da mesma e consequentes
maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral
desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir
a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos
migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade
política mundial, delineada já pelo meu predecessor,
[São] João XXIII».[129]Nesta perspectiva, a diplomacia
adquire uma importância inédita, chamada a promover
estratégias internacionais para prevenir os problemas mais
graves que acabam por afetar a todos.
2. O diálogo para novas políticas nacionais e locais
176. Há vencedores e vencidos não só entre os países, mas
também dentro dos países pobres, onde se devem identificar
as diferentes responsabilidades. Por isso, as questões
relacionadas com o meio ambiente e com o desenvolvimento
Econômico já não se podem olhar apenas a partir das
109
diferenças entre os países, mas exigem que se preste
atenção às políticas nacionais e locais.
177. Perante a possibilidade duma utilização irresponsável
das capacidades humanas, são funções inadiáveis de cada
Estado planificar, coordenar, vigiar e sancionar dentro do
respectivo território. Como pode a sociedade organizar e
salvaguardar o seu futuro num contexto de constantes
inovações tecnológicas? Um fator que atua como moderador
efetivo é o direito, que estabelece as regras para as condutas
permitidas à luz do bem comum. Os limites que uma
sociedade sã, madura e soberana deve impor têm a ver com
previsão e precaução, regulamentações adequadas,
vigilância sobre a aplicação das normas, contraste da
corrupção, ações de controle operacional sobre o
aparecimento de efeitos não desejados dos processos de
produção, e oportuna intervenção perante riscos incertos ou
potenciais. Existe uma crescente jurisprudência que visa
reduzir os efeitos poluentes dos empreendimentos. Mas a
estrutura política e institucional não existe apenas para evitar
malversações, mas para incentivar as boas práticas,
estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar
as iniciativas pessoais e coletivas.
178. O drama duma política focalizada nos resultados
imediatos, apoiada também por populações consumistas,
torna necessário produzir crescimento a curto prazo.
Respondendo a interesses eleitorais, os governos não se
aventuram facilmente a irritar a população com medidas que
possam afetar o nível de consumo ou pôr em risco
investimentos estrangeiros. A construção míope do poder
110
frena a inserção duma agenda ambiental com visão ampla na
agenda pública dos governos. Esquece-se, assim, que «o
tempo é superior ao espaço»[130] e que sempre somos mais
fecundos quando temos maior preocupação por gerar
processos do que por dominar espaços de poder. A
grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis,
se trabalha com base em grandes princípios e pensando no
bem comum a longo prazo. O poder político tem muita
dificuldade em assumir este dever num projeto de nação.
179. Nalguns lugares, estão a desenvolver-se cooperativas
para a exploração de energias renováveis, que consentem o
auto-abastecimento local e até mesmo a venda da produção
em excesso. Este exemplo simples indica que, enquanto a
ordem mundial existente se revela impotente para assumir
responsabilidades, a instância local pode fazer a diferença.
Com efeito, aqui é possível gerar uma maior
responsabilidade, um forte sentido de comunidade, uma
especial capacidade de solicitude e uma criatividade mais
generosa, um amor apaixonado pela própria terra, tal como
se pensa naquilo que se deixa aos filhos e netos. Estes
valores têm um enraizamento muito profundo nas
populações aborígenes. Dado que o direito por vezes se
mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma
decisão política sob pressão da população. A sociedade,
através de organismos não-governamentais e associações
intermédias, deve forçar os governos a desenvolver
normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os
cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional
e municipal –, também não é possível combater os danos
ambientais. Além disso, as legislações municipais podem ser
111
mais eficazes, se houver acordos entre populações vizinhas
para sustentarem as mesmas políticas ambientais.
180. Não se pode pensar em receitas uniformes, porque há
problemas e limites específicos de cada país ou região.
Também é verdade que o realismo político pode exigir
medidas e tecnologias de transição, desde que estejam
acompanhadas pelo projeto e a aceitação de compromissos
graduais vinculativos. Ao mesmo tempo, porém, a nível
nacional e local, há sempre muito que fazer, como, por
exemplo, promover formas de poupança energética. Isto
implica favorecer modalidades de produção industrial com a
máxima eficiência energética e menor utilização de matérias-
primas, retirando do mercado os produtos pouco eficazes do
ponto de vista energético ou mais poluentes. Podemos
mencionar também uma boa gestão dos transportes ou
técnicas de construção e restruturação de edifícios que
reduzam o seu consumo energético e o seu nível de
poluição. Além disso, a ação política local pode orientar-se
para a alteração do consumo, o desenvolvimento duma
economia de resíduos e reciclagem, a proteção de
determinadas espécies e a programação duma agricultura
diversificada com a rotação de culturas. É possível favorecer
a melhoria agrícola de regiões pobres, através de
investimentos em infra-estruturas rurais, na organização do
mercado local ou nacional, em sistemas de irrigação, no
desenvolvimento de técnicas agrícolas sustentáveis. Podem-
se facilitar formas de cooperação ou de organização
comunitária que defendam os interesses dos pequenos
produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas
locais. É tanto o que se pode fazer!
112
181. Indispensável é a continuidade, porque não se podem
modificar as políticas relativas às alterações climáticas e à
proteção ambiental todas as vezes que muda um governo.
Os resultados requerem muito tempo e comportam custos
imediatos com efeitos que não poderão ser exibidos no
período de vida dum governo. Por isso, sem a pressão da
população e das instituições, haverá sempre relutância a
intervir, e mais ainda quando houver urgências a resolver.
Para um político, assumir estas responsabilidades com os
custos que implicam não corresponde à lógica eficientista e
imediatista atual da economia e da política, mas, se ele tiver
a coragem de o fazer, poderá novamente reconhecer a
dignidade que Deus lhe deu como pessoa e deixará, depois
da sua passagem por esta história, um testemunho de
generosa responsabilidade. Importa dar um lugar
preponderante a uma política salutar, capaz de reformar as
instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos,
que permitam superar pressões e inércias viciosas. Todavia
é preciso acrescentar que os melhores dispositivos acabam
por sucumbir, quando faltam as grandes metas, os valores,
uma compreensão humanista e rica de significado, capazes
de conferir a cada sociedade uma orientação nobre e
generosa.
3. Diálogo e transparência nos processos decisórios
182. A previsão do impacto ambiental dos empreendimentos
e projetos requer processos políticos transparentes e sujeitos
a diálogo, enquanto a corrupção, que esconde o verdadeiro
impacto ambiental dum projeto em troca de favores,
113
frequentemente leva a acordos ambíguos que fogem ao
dever de informar e a um debate profundo.
183. Um estudo de impacto ambiental não deveria ser
posterior à elaboração dum projeto produtivo ou de qualquer
política, plano ou programa. Há-de inserir-se desde o
princípio e elaborar-se de forma interdisciplinar, transparente
e independente de qualquer pressão Econômica ou política.
Deve aparecer unido à análise das condições de trabalho e
dos possíveis efeitos na saúde física e mental das pessoas,
na economia local, na segurança. Assim os resultados
Econômicos poder-se-ão prever de forma mais realista,
tendo em conta os cenários possíveis e, eventualmente,
antecipando a necessidade dum investimento maior para
resolver efeitos indesejáveis que possam ser corrigidos. É
sempre necessário alcançar consenso entre os vários atores
sociais, que podem trazer diferentes perspectivas, soluções e
alternativas. Mas, no debate, devem ter um lugar privilegiado
os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam
sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem
ter em consideração as finalidades que transcendem o
interesse Econômico imediato. É preciso abandonar a ideia
de «intervenções» sobre o meio ambiente, para dar lugar a
políticas pensadas e debatidas por todas as partes
interessadas. A participação requer que todos sejam
adequadamente informados sobre os vários aspectos e os
diferentes riscos e possibilidades, e não se reduza à decisão
inicial sobre um projeto, mas implique também ações de
controle ou monitoramento constante. É necessário haver
sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas,
114
sem se limitar a considerar o que é permitido ou não pela
legislação.
184. Quando surgem eventuais riscos para o meio ambiente
que afetam o bem comum presente e futuro, esta situação
exige «que as decisões sejam baseadas num confronto entre
riscos e benefícios previsíveis para cada opção alternativa
possível».[131] Isto vale sobretudo quando um projeto pode
causar um incremento na exploração dos recursos naturais,
nas emissões ou descargas, na produção de resíduos, ou
então uma mudança significativa na paisagem, no habitat de
espécies protegidas ou num espaço público. Alguns projetos,
não apoiados por uma análise bem cuidada, podem afetar
profundamente a qualidade de vida dum lugar, devido a
questões muito diferentes entre si, como, por exemplo, uma
poluição acústica não prevista, a redução do horizonte visual,
a perda de valores culturais, os efeitos do uso da energia
nuclear. A cultura consumista, que dá prioridade ao curto
prazo e aos interesses privados, pode favorecer análises
demasiado rápidas ou consentir a ocultação de informação.
185. Em qualquer discussão sobre um empreendimento,
dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder discernir
se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente
integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De
que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que
preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste
exame, há questões que devem ter prioridade. Por exemplo,
sabemos que a água é um recurso escasso e indispensável,
sendo um direito fundamental que condiciona o exercício
115
doutros direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de
toda a análise de impato ambiental duma região.
186. Na Declaração do Rio, de 1992, afirma-se que, «quando
existem ameaças de danos graves ou irreversíveis, a falta de
certezas científicas absolutas não poderá constituir um
motivo para adiar a adoção de medidas eficazes»[132] que
impeçam a degradação do meio ambiente. Este princípio de
precaução permite a proteção dos mais fracos, que dispõem
de poucos meios para se defender e fornecer provas
irrefutáveis. Se a informação objetiva leva a prever um dano
grave e irreversível, mesmo que não haja uma comprovação
indiscutível, seja o projeto que for deverá suspender-se ou
modificar-se. Assim, inverte-se o ônus da prova, já que,
nestes casos, é preciso fornecer uma demonstração objetiva
e contundente de que a atividade proposta não vai gerar
danos graves ao meio ambiente ou às pessoas que nele
habitam.
187. Isto não implica opor-se a toda e qualquer inovação
tecnológica que permita melhorar a qualidade de vida duma
população. Mas, em todo o caso, deve permanecer de pé
que a rentabilidade não pode ser o único critério a ter em
conta e, na hora em que aparecessem novos elementos de
juízo a partir de ulteriores dados informativos, deveria haver
uma nova avaliação com a participação de todas as partes
interessadas. O resultado do debate pode ser a decisão de
não avançar num projeto, mas poderia ser também a sua
modificação ou a elaboração de propostas alternativas.
188. Há discussões sobre problemas relativos ao meio
ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma
116
vez mais que a Igreja não pretende definir as questões
científicas nem substituir-se à política, mas convido a um
debate honesto e transparente, para que as necessidades
particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.
4. Política e economia em diálogo para a plenitude
humana
189. A política não deve submeter-se à economia, e esta não
deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da
tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos
imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se
coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente
da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo,
fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de
rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio
absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar
novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. A
crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o
desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos
princípios éticos e para uma nova regulamentação da
atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas
não houve uma reação que fizesse repensar os critérios
obsoletos que continuam a governar o mundo. A produção
não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis
Econômicas que atribuem aos produtos um valor que não
corresponde ao seu valor real. Isto leva frequentemente a
uma superprodução dalgumas mercadorias, com um impato
ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica
muitas economias regionais.[133] Habitualmente, a bolha
financeira é também uma bolha produtiva. Em suma, o que
117
não se enfrenta com energia é o problema da economia real,
aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e
melhore a produção, que as empresas funcionem
adequadamente, que as pequenas e médias empresas se
desenvolvam e criem postos de trabalho.
190. Neste contexto, sempre se deve recordar que «a
proteção ambiental não pode ser assegurada somente com
base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O
ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado
não estão aptos a defender ou a promover adequadamente».
[134] Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção
mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas
se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das
empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem
está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a
considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas
gerações? Dentro do esquema do ganho não há lugar para
pensar nos ritmos da natureza, nos seus tempos de
degradação e regeneração, e na complexidade dos
ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela
intervenção humana. Além disso, quando se fala de
biodiversidade, no máximo pensa-se nela como um
reservatório de recursos Econômicos que poderia ser
explorado, mas não se considera seriamente o valor real das
coisas, o seu significado para as pessoas e as culturas, os
interesses e as necessidades dos pobres.
191. Quando se colocam estas questões, alguns reagem
acusando os outros de pretender parar, irracionalmente, o
progresso e o desenvolvimento humano. Mas temos de nos
118
convencer que, reduzir um determinado ritmo de produção e
consumo, pode dar lugar a outra modalidade de progresso e
desenvolvimento. Os esforços para um uso sustentável dos
recursos naturais não são gasto inútil, mas um investimento
que poderá proporcionar outros benefícios Econômicos a
médio prazo. Se não temos vista curta, podemos descobrir
que pode ser muito rentável a diversificação duma produção
mais inovadora e com menor impato ambiental. Trata-se de
abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implicam
frenar a criatividade humana nem o seu sonho de progresso,
mas orientar esta energia por novos canais.
192. Por exemplo, um percurso de desenvolvimento
produtivo mais criativo e melhor orientado poderia corrigir a
disparidade entre o excessivo investimento tecnológico no
consumo e o escasso investimento para resolver os
problemas urgentes da humanidade; poderia gerar formas
inteligentes e rentáveis de reutilização, recuperação funcional
e reciclagem; poderia melhorar a eficiência energética das
cidades... A diversificação produtiva oferece à inteligência
humana possibilidades muito amplas de criar e inovar, ao
mesmo tempo que protege o meio ambiente e cria mais
oportunidades de trabalho. Esta seria uma criatividade capaz
de fazer reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais
dignificante usar a inteligência, com audácia e
responsabilidade, para encontrar formas de desenvolvimento
sustentável e equitativo, no quadro duma concepção mais
ampla da qualidade de vida. Ao contrário, é menos
dignificante e criativo e mais superficial insistir na criação de
formas de espoliação da natureza só para oferecer novas
possibilidades de consumo e de ganho imediato.
119
193. Assim, se nalguns casos o desenvolvimento sustentável
implicará novas modalidades para crescer, noutros casos –
face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se
verificou ao longo de muitas décadas – devemos pensar
também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites
razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde.
Sabemos que é insustentável o comportamento daqueles
que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros
ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade
humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo
decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo,
fornecendo recursos para que se possa crescer de forma
saudável noutras partes. Bento XVI dizia que «é preciso que
as sociedades tecnologicamente avançadas estejam
dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela
sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia
e melhorando as condições da sua utilização».[135]
194. Para que apareçam novos modelos de progresso,
precisamos de «converter o modelo de desenvolvimento
global»[136], e isto implica refletir responsavelmente «sobre
o sentido da economia e dos seus objetivos, para corrigir as
suas disfunções e deturpações».[137] Não é suficiente
conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho
financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o
progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um
pequeno adiamento do colapso. Trata-se simplesmente de
redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e
Econômico, que não deixa um mundo melhor e uma
qualidade de vida integralmente superior, não se pode
considerar progresso. Além disso, muitas vezes a qualidade
120
real de vida das pessoas diminui – pela deterioração do
ambiente, a baixa qualidade dos produtos alimentares ou o
esgotamento de alguns recursos – no contexto dum
crescimento da economia. Então, muitas vezes, o discurso
do crescimento sustentável torna-se um diversivo e um meio
de justificação que absorve valores do discurso ecologista
dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a
responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se,
na maior parte dos casos, a uma série de ações de
publicidade e imagem.
195. O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-
se de todas as outras considerações, é uma distorção
concetual da economia: desde que aumente a produção,
pouco interessa que isso se consiga à custa dos recursos
futuros ou da saúde do meio ambiente; se o derrube duma
floresta aumenta a produção, ninguém insere no respetivo
cálculo a perda que implica desertificar um território, destruir
a biodiversidade ou aumentar a poluição. Por outras
palavras, as empresas obtêm lucros calculando e pagando
uma parte ínfima dos custos. Poder-se-ia considerar ético
somente um comportamento em que «os custos Econômicos
e sociais derivados do uso dos recursos ambientais comuns
sejam reconhecidos de maneira transparente e plenamente
suportados por quem deles usufrui e não por outras
populações nem pelas gerações futuras».[138] A
mentalidade utilitária, que fornece apenas uma análise
estática da realidade em função de necessidades atuais, está
presente tanto quando é o mercado que atribui os recursos
como quando o faz um Estado planificador.
121
196. Qual é o lugar da política? Recordemos o princípio da
subsidiariedade, que dá liberdade para o desenvolvimento
das capacidades presentes a todos os níveis, mas
simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem
comum a quem tem mais poder. É verdade que, hoje, alguns
setores Econômicos exercem mais poder do que os próprios
Estados. Mas não se pode justificar uma economia sem
política, porque seria incapaz de promover outra lógica para
governar os vários aspetos da crise atual. A lógica que não
deixa espaço para uma sincera preocupação pelo meio
ambiente é a mesma em que não encontra espaço a
preocupação por integrar os mais frágeis, porque, «no
modelo “do êxito” e “individualista” em vigor, parece que não
faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos
dotados possam também singrar na vida».[139]
197. Precisamos duma política que pense com visão ampla e
leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num
diálogo interdisciplinar os vários aspetos da crise. Muitas
vezes, a própria política é responsável pelo seu descrédito,
devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas. Se o
Estado não cumpre o seu papel numa região, alguns grupos
Econômicos podem-se apresentar como benfeitores e
apropriar-se do poder real, sentindo-se autorizados a não
observar certas normas até se chegar às diferentes formas
de criminalidade organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico
e violência muito difícil de erradicar. Se a política não é
capaz de romper uma lógica perversa e perde-se também
em discursos inconsistentes, continuaremos sem enfrentar
os grandes problemas da humanidade. Uma estratégia de
mudança real exige repensar a totalidade dos processos,
122
pois não basta incluir considerações ecológicas superficiais
enquanto não se puser em discussão a lógica subjacente à
cultura atual. Uma política sã deveria ser capaz de assumir
este desafio.
198. A política e a economia tendem a culpar-se
reciprocamente a respeito da pobreza e da degradação
ambiental. Mas o que se espera é que reconheçam os seus
próprios erros e encontrem formas de interação orientadas
para o bem comum. Enquanto uns se afanam apenas com o
ganho Econômico e os outros estão obcecados apenas por
conservar ou aumentar o poder, o que nos resta são guerras
ou acordos espúrios, onde o que menos interessa às duas
partes é preservar o meio ambiente e cuidar dos mais fracos.
Vale aqui também o princípio de que «a unidade é superior
ao conflito».[140]
5. As religiões no diálogo com as ciências
199. Não se pode sustentar que as ciências empíricas
expliquem completamente a vida, a essência íntima de todas
as criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar
indevidamente os seus confins metodológicos limitados. Se
se reflete dentro deste quadro restrito, desaparecem a
sensibilidade estética, a poesia e ainda a capacidade da
razão perceber o sentido e a finalidade das coisas.
[141] Quero lembrar que «os textos religiosos clássicos
podem oferecer um significado para todas as épocas,
possuem uma força motivadora que abre sempre novos
horizontes (...). Será razoável e inteligente relegá-los para a
obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença
religiosa?»[142] Realmente, é ingênuo pensar que os
123
princípios éticos possam ser apresentados de modo
puramente abstrato, desligados de todo o contexto, e o fato
de aparecerem com uma linguagem religiosa não lhes tira
valor algum no debate público. Os princípios éticos que a
razão é capaz de perceber, sempre podem reaparecer sob
distintas roupagens e expressos com linguagens diferentes,
incluindo a religiosa.
200. Além disso, qualquer solução técnica que as ciências
pretendam oferecer será impotente para resolver os graves
problemas do mundo, se a humanidade perde o seu rumo, se
esquece as grandes motivações que tornam possível a
convivência social, o sacrifício, a bondade. Em todo o caso,
será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam
coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com as
suas ações; será necessário insistir para que se abram
novamente à graça de Deus e se nutram profundamente das
próprias convições sobre o amor, a justiça e a paz. Se às
vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou
a justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do
ser humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a
violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então
fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos guardar.
Muitas vezes os limites culturais de distintas épocas
condicionaram esta consciência do próprio patrimônio ético e
espiritual, mas é precisamente o regresso às respectivas
fontes que permite às religiões responder melhor às
necessidades atuais.
201. A maior parte dos habitantes do planeta declara-se
crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem
124
diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos
pobres, a construção duma trama de respeito e de
fraternidade. De igual modo é indispensável um diálogo entre
as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se
nos limites da sua própria linguagem, e a especialização
tende a converter-se em isolamento e absolutização do
próprio saber. Isto impede de enfrentar adequadamente os
problemas do meio ambiente. Torna-se necessário também
um diálogo aberto e respeitador dos diferentes movimentos
ecologistas, entre os quais não faltam as lutas ideológicas. A
gravidade da crise ecológica obriga-nos, a todos, a pensar no
bem comum e a prosseguir pelo caminho do diálogo que
requer paciência, ascese e generosidade, lembrando-nos
sempre que «a realidade é superior à ideia».[143]
CAPÍTULO VI
EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
202. Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas
antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a
consciência duma origem comum, duma recíproca pertença
e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar
permitiria o desenvolvimento de novas convições, atitudes e
estilos de vida. Surge, assim, um grande desafio cultural,
espiritual e educativo que implicará longos processos de
regeneração.
1. Apontar para outro estilo de vida
125
203. Dado que o mercado tende a criar um mecanismo
consumista compulsivo para vender os seus produtos, as
pessoas acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das
compras e gastos supérfluos. O consumismo obsessivo é o
reflexo subjetivo do paradigma tecno-Econômico. Está a
acontecer aquilo que já assinalava Romano Guardini: o ser
humano «aceita os objetos comuns e as formas habituais da
vida como lhe são impostos pelos planos nacionais e pelos
produtos fabricados em série e, em geral, age assim com a
impressão de que tudo isto seja razoável e justo».[144] O
referido paradigma faz crer a todos que são livres pois
conservam uma suposta liberdade de consumir, quando na
realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o
poder Econômico e financeiro. Nesta confusão, a
humanidade pós-moderna não encontrou uma nova
compreensão de si mesma que a possa orientar, e esta falta
de identidade é vivida com angústia. Temos demasiados
meios para escassos e raquíticos fins.
204. A situação atual do mundo «gera um sentido de
precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece
formas de egoísmo coletivo». [145] Quando as pessoas se
tornam auto-referenciais e se isolam na própria consciência,
aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o
coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para
comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser
possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe
assinale limites; neste horizonte, não existe sequer um
verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de sujeito que tende
a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas
apenas na medida em que não contradigam as necessidades
126
próprias. Por isso, não pensemos só na possibilidade de
terríveis fenômenos climáticos ou de grandes desastres
naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises
sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista,
sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só
poderá provocar violência e destruição recíproca.
205. Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos,
capazes de tocar o fundo da degradação, podem também
superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para
além de qualquer condicionalismo psicológico e social que
lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com
honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos
novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que
anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à
beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a
animar no mais fundo dos nossos corações. A cada pessoa
deste mundo, peço para não esquecer esta sua dignidade
que ninguém tem o direito de lhe tirar.
206. Uma mudança nos estilos de vida poderia chegar a
exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder
político, Econômico e social. Verifica-se isto quando os
movimentos de consumidores conseguem que se deixe de
adquirir determinados produtos e assim se tornam eficazes
na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a
reconsiderar o impato ambiental e os modelos de produção.
É um fato que, quando os hábitos da sociedade afetam os
ganhos das empresas, estas vêem-se pressionadas a mudar
a produção. Isto lembra-nos a responsabilidade social dos
consumidores. «Comprar é sempre um ato moral, para além
127
de Econômico».[146] Por isso, hoje, «o tema da degradação
ambiental põe em questão os comportamentos de cada um
de nós».[147]
207. A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de
novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas
ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o
torne possível. Por isso, atrevo-me a propor de novo aquele
considerável desafio: «Como nunca antes na história, o
destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...).
Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar
duma nova reverência face à vida, pela firme resolução de
alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em
prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida».
[148]
208. Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade
de sair de si mesmo rumo ao outro. Sem tal capacidade, não
se reconhece às outras criaturas o seu valor, não se sente
interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue
impor limites para evitar o sofrimento ou a degradação do
que nos rodeia. A atitude basilar de se auto-transcender,
rompendo com a consciência isolada e a auto-
referencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos
outros e do meio ambiente; e faz brotar a reação moral de ter
em conta o impato que possa provocar cada ação e decisão
pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de
superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um
estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança
relevante na sociedade.
128
2. Educar para a aliança entre a humanidade e o
ambiente
209. A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica
precisa de traduzir-se em novos hábitos. Muitos estão
cientes de que não basta o progresso atual e a mera
acumulação de objetos ou prazeres para dar sentido e
alegria ao coração humano, mas não se sentem capazes de
renunciar àquilo que o mercado lhes oferece. Nos países que
deveriam realizar as maiores mudanças nos hábitos de
consumo, os jovens têm uma nova sensibilidade ecológica e
um espírito generoso, e alguns deles lutam admiravelmente
pela defesa do meio ambiente, mas cresceram num contexto
de altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a
maturação doutros hábitos. Por isso, estamos perante um
desafio educativo.
210. A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus
objetivos. Se, no começo, estava muito centrada na
informação científica e na consciencialização e prevenção
dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos
«mitos» da modernidade baseados na razão instrumental
(individualismo, progresso ilimitado, concorrência,
consumismo, mercado sem regras) e tende também a
recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior
consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com
todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação
ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o
Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido
mais profundo. Além disso, há educadores capazes de
reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica,
129
de modo que ajudem efetivamente a crescer na
solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na
compaixão.
211. Às vezes, porém, esta educação, chamada a criar uma
«cidadania ecológica», limita-se a informar e não consegue
fazer maturar hábitos. A existência de leis e normas não é
suficiente, a longo prazo, para limitar os maus
comportamentos, mesmo que haja um válido controle. Para a
norma jurídica produzir efeitos importantes e duradouros, é
preciso que a maior parte dos membros da sociedade a
tenha acolhido, com base em motivações adequadas, e reaja
com uma transformação pessoal. A doação de si mesmo
num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo
de virtudes sólidas. Se uma pessoa habitualmente se
resguarda um pouco mais em vez de ligar o aquecimento,
embora as suas economias lhe permitam consumir e gastar
mais, isso supõe que adquiriu convicções e modos de sentir
favoráveis ao cuidado do ambiente. É muito nobre assumir o
dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é
maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas
até dar forma a um estilo de vida. A educação na
responsabilidade ambiental pode incentivar vários
comportamentos que têm incidência direta e importante no
cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico
e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo,
cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer,
tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos
transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias
pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias…
Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e dignificante,
130
que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar – com
base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o
desperdiçar rapidamente pode ser um ato de amor que
exprime a nossa dignidade.
212. E não se pense que estes esforços são incapazes de
mudar o mundo. Estas ações espalham, na sociedade, um
bem que frutifica sempre para além do que é possível
constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que
sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente. Além
disso, o exercício destes comportamentos restitui-nos o
sentimento da nossa dignidade, leva-nos a uma maior
profundidade existencial, permite-nos experimentar que vale
a pena a nossa passagem por este mundo.
213. Vários são os âmbitos educativos: a escola, a família, os
meios de comunicação, a catequese, e outros. Uma boa
educação escolar em tenra idade coloca sementes que
podem produzir efeitos durante toda a vida. Mas, quero
salientar a importância central da família, porque «é o lugar
onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente
acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está
exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de
um crescimento humano autêntico. Contra a denominada
cultura da morte, a família constitui a sede da cultura da
vida».[149] Na família, cultivam-se os primeiros hábitos de
amor e cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correto
das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema
local e a proteção de todas as criaturas. A família é o lugar
da formação integral, onde se desenvolvem os distintos
aspetos, intimamente relacionados entre si, do
131
amadurecimento pessoal. Na família, aprende-se a pedir
licença sem servilismo, a dizer «obrigado» como expressão
duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a
dominar a agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa
quando fazemos algo de mal. Estes pequenos gestos de
sincera cortesia ajudam a construir uma cultura da vida
compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia.
214. Compete à política e às várias associações um esforço
de formação das consciências da população. Naturalmente
compete também à Igreja. Todas as comunidades cristãs têm
um papel importante a desempenhar nesta educação.
Espero também que, nos nossos Seminários e Casas
Religiosas de Formação, se eduque para uma austeridade
responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da
fragilidade dos pobres e do meio ambiente. Tendo em conta
o muito que está em jogo, do mesmo modo que são
necessárias instituições dotadas de poder para punir os
danos ambientais, também nós precisamos de nos controlar
e educar uns aos outros.
215. Neste contexto, «não se deve descurar nunca a relação
que existe entre uma educação estética apropriada e a
preservação de um ambiente sadio».[150]Prestar atenção à
beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista.
Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o
que é belo, não surpreende que tudo se transforme em
objeto de uso e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se
se quer conseguir mudanças profundas, é preciso ter
presente que os modelos de pensamento influem realmente
nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus
132
esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir
um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade
e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a
perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de
comunicação social e através dos mecanismos eficazes do
mercado.
3. A conversão ecológica
216. A grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente
de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias,
constitui uma magnífica contribuição para o esforço de
renovar a humanidade. Desejo propor aos cristãos algumas
linhas de espiritualidade ecológica que nascem das
convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos
ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir
e viver. Não se trata tanto de propor ideias, como sobretudo
falar das motivações que derivam da espiritualidade para
alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Com efeito,
não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com
doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem «uma
moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à
ação pessoal e comunitária».[151] Temos de reconhecer que
nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as
riquezas dadas por Deus à Igreja, nas quais a espiritualidade
não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou das
realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em
comunhão com tudo o que nos rodeia.
217. Se «os desertos exteriores se multiplicam no mundo,
porque os desertos interiores se tornaram tão amplos»,
[152] a crise ecológica é um apelo a uma profunda
133
conversão interior. Entretanto temos de reconhecer também
que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o
pretexto do realismo pragmático frequentemente se burlam
das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos,
não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se
incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que
comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os
rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus.
Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de
opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã,
mas parte essencial duma existência virtuosa.
218. Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para
propor uma sã relação com a criação como dimensão da
conversão integral da pessoa. Isto exige também reconhecer
os próprios erros, pecados, vícios ou negligências, e
arrepender-se de coração, mudar a partir de dentro. A Igreja
na Austrália soube expressar a conversão em termos de
reconciliação com a criação: «Para realizar esta
reconciliação, devemos examinar as nossas vidas e
reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus com
as nossas ações e com a nossa incapacidade de agir.
Devemos fazer a experiência duma conversão, duma
mudança do coração».[153]
219. Todavia, para se resolver uma situação tão complexa
como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada
um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a
capacidade e a liberdade de vencer a lógica da razão
instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem
ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais
134
responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas
com redes comunitárias: «As exigências desta obra serão tão
grandes, que as possibilidades das iniciativas individuais e a
cooperação dos particulares, formados de maneira
individualista, não serão capazes de lhes dar resposta. Será
necessária uma união de forças e uma unidade de
contribuições». [154] A conversão ecológica, que se requer
para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também
uma conversão comunitária.
220. Esta conversão comporta várias atitudes que se
conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de
ternura. Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou
seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do
amor do Pai, que consequentemente provoca disposições
gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que
ninguém os veja nem agradeça. «Que a tua mão esquerda
não saiba o que faz a tua direita (...); e teu Pai, que vê o
oculto, há-de premiar-te» (Mt 6, 3-4). Implica ainda a
consciência amorosa de não estar separado das outras
criaturas, mas de formar com os outros seres do universo
uma estupenda comunhão universal. O crente contempla o
mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro,
reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os
seres. Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer as
peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o
a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver
os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus «como sacrifício
vivo, santo e agradável» (Rm12, 1). Não vê a sua
superioridade como motivo de glória pessoal nem de domínio
irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por
135
sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da
sua fé.
221. Ajudam a enriquecer o sentido de tal conversão várias
convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início desta
encíclica, como, por exemplo, a consciência de que cada
criatura reflete algo de Deus e tem uma mensagem para nos
transmitir, ou a certeza de que Cristo assumiu em Si mesmo
este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo
de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o
com a sua luz; e ainda o reconhecimento de que Deus criou
o mundo, inscrevendo nele uma ordem e um dinamismo que
o ser humano não tem o direito de ignorar. Porventura uma
pessoa, ouvindo no Evangelho Jesus dizer – a propósito dos
pássaros – que «nenhum deles passa despercebido diante
de Deus» (Lc12, 6), será capaz de os maltratar ou causar-
lhes dano? Convido todos os cristãos a explicitar esta
dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz
da graça recebida se estendam também à relação com as
outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite
aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu,
de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis.
4. Alegria e paz
222. A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de
entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida
profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria
sem estar obcecado pelo consumo. É importante adotar um
antigo ensinamento, presente em distintas tradições
religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que
«quanto menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação
136
constante de possibilidades para consumir distrai o coração e
impede de dar o devido apreço a cada coisa e a cada
momento. Pelo contrário, tornar-se serenamente presente
diante de cada realidade, por mais pequena que seja, abre-
nos muitas mais possibilidades de compreensão e realização
pessoal. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na
sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É
um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear
as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida
oferece sem nos apegarmos ao que temos nem
entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige
evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de
prazeres.
223. A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é
libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa
intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as
pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento
são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à
procura do que não têm, e experimentam o que significa dar
apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a
familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se
com elas. Deste modo conseguem reduzir o número das
necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a
ansiedade. É possível necessitar de pouco e viver muito,
sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros
prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no
serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na
arte, no contato com a natureza, na oração. A felicidade
exige saber limitar algumas necessidades que nos
137
entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as
múltiplas possibilidades que a vida oferece.
224. A sobriedade e a humildade não gozaram de positiva
consideração no século passado. Mas, quando se debilita de
forma generalizada o exercício dalguma virtude na vida
pessoal e social, isso acaba por provocar variados
desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta falar
apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a
coragem de falar da integridade da vida humana, da
necessidade de incentivar e conjugar todos os grandes
valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano
excessivamente entusiasmado com a possibilidade de
dominar tudo sem limite algum, só pode acabar por
prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil
desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se
nos tornamos autônomos, se excluímos Deus da nossa vida
fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a
nossa subjetividade que determina o que é bem e o que é
mal.
225. Por outro lado, ninguém pode amadurecer numa
sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E
parte duma adequada compreensão da espiritualidade
consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é
muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das
pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o
bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num
equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de
admiração que leva à profundidade da vida. A natureza está
cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las
138
no meio do ruído constante, da distração permanente e
ansiosa, ou do culto da notoriedade? Muitas pessoas
experimentam um desequilíbrio profundo, que as impele a
fazer as coisas a toda a velocidade para se sentirem
ocupadas, numa pressa constante que, por sua vez, as leva
a atropelar tudo o que têm ao seu redor. Isto tem incidência
no modo como se trata o ambiente. Uma ecologia integral
exige que se dedique algum tempo para recuperar a
harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo
de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive
entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não
precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada».[155]
226. Falamos aqui duma atitude do coração, que vive tudo
com serena atenção, que sabe manter-se plenamente
presente diante duma pessoa sem estar a pensar no que virá
depois, que se entrega a cada momento como um dom
divino que se deve viver em plenitude. Jesus ensinou-nos
esta atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do
campo e as aves do céu, ou quando, na presença dum
homem inquieto, «fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele»
(Mc 10, 21). De certeza que Ele estava plenamente presente
diante de cada ser humano e de cada criatura, mostrando-
nos assim um caminho para superar a ansiedade doentia
que nos torna superficiais, agressivos e consumistas
desenfreados.
227. Uma expressão desta atitude é parar a agradecer a
Deus antes e depois das refeições. Proponho aos crentes
que retomem este hábito importante e o vivam
profundamente. Este momento da bênção da mesa, embora
139
muito breve, recorda-nos que a nossa vida depende de
Deus, fortalece o nosso sentido de gratidão pelos dons da
criação, dá graças por aqueles que com o seu trabalho
fornecem estes bens, e reforça a solidariedade com os mais
necessitados.
5. Amor civil e político
228. O cuidado da natureza faz parte dum estilo de vida que
implica capacidade de viver juntos e de comunhão. Jesus
lembrou-nos que temos Deus como nosso Pai comum e que
isto nos torna irmãos. O amor fraterno só pode ser gratuito,
nunca pode ser uma paga a outrem pelo que realizou, nem
um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por
isso, é possível amar os inimigos. Esta mesma gratuidade
leva-nos a amar e aceitar o vento, o sol ou as nuvens,
embora não se submetam ao nosso controle. Assim
podemos falar duma fraternidade universal.
229. É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos
outros, que temos uma responsabilidade para com os outros
e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já
muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à
bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de
reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos
serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida
social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa
dos próprios interesses, provoca o despertar de novas
formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento
duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente.
140
230. O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a
pôr em prática o pequeno caminho do amor, a não perder a
oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso, de qualquer
pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia
integral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos
quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do
egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é,
simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as
suas formas.
231. O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é
também civil e político, manifestando-se em todas as ações
que procuram construir um mundo melhor. O amor à
sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma
eminente de caridade, que toca não só as relações entre os
indivíduos, mas também «as macrorrelações como
relacionamentos sociais, Econômicos, políticos». [156] Por
isso, a Igreja propôs ao mundo o ideal duma «civilização do
amor».[157] O amor social é a chave para um
desenvolvimento autêntico: «Para tornar a sociedade mais
humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o
amor na vida social – nos planos político, Econômico, cultural
– fazendo dele a norma constante e suprema do agir».
[158] Neste contexto, juntamente com a importância dos
pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar
em grandes estratégias que detenham eficazmente a
degradação ambiental e incentivem uma cultura do
cuidado que permeie toda a sociedade. Quando alguém
reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente com
os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto
141
faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e,
deste modo, amadurece e se santifica.
232. Nem todos são chamados a trabalhar de forma direta na
política, mas no seio da sociedade floresce uma variedade
inumerável de associações que intervêm em prol do bem
comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano. Por
exemplo, preocupam-se com um lugar público (um edifício,
uma fonte, um monumento abandonado, uma paisagem,
uma praça) para proteger, sanar, melhorar ou embelezar
algo que é de todos. Ao seu redor, desenvolvem-se ou
recuperam-se vínculos, fazendo surgir um novo tecido social
local. Assim, uma comunidade liberta-se da indiferença
consumista. Isto significa também cultivar uma identidade
comum, uma história que se conserva e transmite. Desta
forma cuida-se do mundo e da qualidade de vida dos mais
pobres, com um sentido de solidariedade que é, ao mesmo
tempo, consciência de habitar numa casa comum que Deus
nos confiou. Estas ações comunitárias, quando exprimem um
amor que se doa, podem transformar-se em experiências
espirituais intensas.
6. Os sinais sacramentais e o descanso celebrativo
233. O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche
completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar
numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.
[159] O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade
para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar
a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São
Boaventura: «A contemplação é tanto mais elevada quanto
mais o homem sente em si mesmo o efeito da graça divina
142
ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras criaturas».
[160]
234. São João da Cruz ensinava que tudo o que há de bom
nas coisas e experiências do mundo «encontra-se
eminentemente em Deus de maneira infinita ou, melhor, Ele
é cada uma destas grandezas que se pregam». [161] E isto,
não porque as coisas limitadas do mundo sejam realmente
divinas, mas porque o místico experimenta a ligação íntima
que há entre Deus e todos os seres vivos e, deste modo,
«sente que Deus é para ele todas as coisas». [162] Quando
admira a grandeza duma montanha, não pode separar isto
de Deus, e percebe que tal admiração interior que ele vive,
deve finalizar no Senhor: «As montanhas têm cumes, são
altas, imponentes, belas, graciosas, floridas e perfumadas.
Como estas montanhas, é o meu Amado para mim. Os vales
solitários são tranquilos, amenos, frescos, sombreados, ricos
de doces águas. Pela variedade das suas árvores e pelo
canto suave das aves, oferecem grande divertimento e
encanto aos sentidos e, na sua solidão e silêncio, dão
refrigério e repouso: como estes vales, é o meu Amado para
mim».[163]
235. Os sacramentos constituem um modo privilegiado em
que a natureza é assumida por Deus e transformada em
mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos
convidados a abraçar o mundo num plano diferente. A água,
o azeite, o fogo e as cores são assumidas com toda a sua
força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que
abençoa é instrumento do amor de Deus e reflexo da
proximidade de Cristo, que veio para Se fazer nosso
143
companheiro no caminho da vida. A água derramada sobre o
corpo da criança batizada, é sinal de vida nova. Não fugimos
do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos
encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente na
espiritualidade do Oriente cristão. «A beleza, que no Oriente
é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia
divina e o modelo da humanidade transfigurada, mostra-se
em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores,
nas luzes, nos perfumes». [164] Segundo a experiência
cristã, todas as criaturas do universo material encontram o
seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho
de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo
material, onde introduziu um gérmen de transformação
definitiva: «O cristianismo não rejeita a matéria; pelo
contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no ato
litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima natureza
de templo do Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus
Senhor, feito também Ele corpo para a salvação do mundo».
[165]
236. A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia.
A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge
uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito
homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura.
No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar
ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz
de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no
nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a
plenitude, sendo o centro vital do universo, centro
transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho
encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças
144
a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de
amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem
lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é
sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo».
[166] A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda
a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em
feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, «a criação
propende para a divinização, para as santas núpcias, para a
unificação com o próprio Criador». [167] Por isso, a
Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas
preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser
guardiões da criação inteira.
237. A participação na Eucaristia é especialmente importante
ao domingo. Este dia, à semelhança do sábado judaico, é-
nos oferecido como dia de cura das relações do ser humano
com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo.
O domingo é o dia da Ressurreição, o «primeiro dia» da
nova criação, que tem as suas primícias na humanidade
ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de
toda a realidade criada. Além disso, este dia anuncia «o
descanso eterno do homem, em Deus». [168] Assim, a
espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O
ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao
âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se
tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. Na
nossa atividade, somos chamados a incluir uma dimensão
receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inatividade.
Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à nossa
essência. Assim, a ação humana é preservada não só do
ativismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da
145
consciência que se isola buscando apenas o benefício
pessoal. A lei do repouso semanal impunha abster-se do
trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu boi e o
teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o
estrangeiro residente» (Ex 23, 12). O repouso é uma
ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os
direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a
Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e
encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres.
7. A Trindade e a relação entre as criaturas
238. O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e
comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e
por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi
formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de
amor, está intimamente presente no coração do universo,
animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado
pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada
uma delas realiza esta obra comum segundo a própria
identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados,
contemplamos o universo na sua grandeza e beleza,
devemos louvar a inteira Trindade».[169]
239. Para os cristãos, acreditar num Deus único que é
comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade
contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São
Boaventura chega a dizer que o ser humano, antes do
pecado, conseguia descobrir como cada criatura
«testemunha que Deus é trino». O reflexo da Trindade podia-
se reconhecer na natureza, «quando esse livro não era
obscuro para o homem, nem a vista do homem se tinha
146
turvado».[170] Este santo franciscano ensina-nos que toda a
criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão
real que poderia ser contemplada espontaneamente, se o
olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e
fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler a
realidade em chave trinitária.
240. As Pessoas divinas são relações subsistentes; e o
mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de
relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada
ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade, de modo
que, no seio do universo, podemos encontrar uma série
inumerável de relações constantes que secretamente se
entrelaçam.[171] Isto convida-nos não só a admirar os
múltiplos vínculos que existem entre as criaturas, mas leva-
nos também a descobrir uma chave da nossa própria
realização. Na verdade, a pessoa humana cresce,
amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se
relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com
Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim
assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que
Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está
interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade
da solidariedade global que brota do mistério da Trindade.
8. A Rainha de toda a criação
241. Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com
carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim
como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus,
assim também agora Se compadece do sofrimento dos
pobres crucificados e das criaturas deste mundo
147
exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus,
completamente transfigurada, e todas as criaturas cantam a
sua beleza. É a Mulher «vestida de sol, com a lua debaixo
dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça»
(Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a
criação. No seu corpo glorificado, juntamente com Cristo
ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da
sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a
vida de Jesus, que «guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51),
mas agora compreende também o sentido de todas as
coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a
contemplar este mundo com um olhar mais sapiente.
242. E ao lado d’Ela, na sagrada família de Nazaré, destaca-
se a figura de São José. Com o seu trabalho e presença
generosa, cuidou e defendeu Maria e Jesus e livrou-os da
violência dos injustos, levando-os para o Egito. No
Evangelho, aparece descrito como um homem justo,
trabalhador, forte; mas, da sua figura, emana também uma
grande ternura, própria não de quem é fraco mas de quem é
verdadeiramente forte, atento à realidade para amar e servir
humildemente. Por isso, foi declarado protetor da Igreja
universal. Também Ele nos pode ensinar a cuidar, pode
motivar-nos a trabalhar com generosidade e ternura para
proteger este mundo que Deus nos confiou.
9. Para além do sol
243. No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza
infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e poderemos ler, com
jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá parte
connosco na plenitude sem fim. Estamos a caminhar para o
148
sábado da eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa
comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas»
(Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada,
onde cada criatura, esplendorosamente transformada,
ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres
definitivamente libertados.
244. Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para tomar a
nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que
aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu.
Juntamente com todas as criaturas, caminhamos nesta terra
à procura de Deus, porque, «se o mundo tem um princípio e
foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu início,
aquele que é o seu Criador».[172] Caminhemos cantando;
que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta
não nos tirem a alegria da esperança.
245. Deus, que nos chama a uma generosa entrega e a
oferecer-Lhe tudo, também nos dá as forças e a luz de que
necessitamos para prosseguir. No coração deste mundo,
permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama.
Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se uniu
definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva
a encontrar novos caminhos. Que Ele seja louvado!
* * *
246. Depois desta longa reflexão, jubilosa e ao mesmo
tempo dramática, proponho duas orações: uma que podemos
partilhar todos quantos acreditam num Deus Criador
Omnipotente, e outra pedindo que nós, cristãos, saibamos
149
assumir os compromissos para com a criação que o
Evangelho de Jesus nos propõe.
Oração pela nossa terra
Deus Omnipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
150
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
Oração cristã com a criação
Nós Vos louvamos, Pai,
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
Filho de Deus, Jesus,
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
Espírito Santo, que, com a vossa luz,
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
151
Senhor Deus, Uno e Trino,
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amém.
152
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 24 de Maio –
Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do meu
Pontificado.
Francisco
[1] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263.
[2] Carta ap. Octogesima adveniens (14 de Maio de 1971),
21: AAS 63 (1971), 416-417.
[3] Discurso à FAO, no seu XXV aniversário (16 de
Novembro de 1970), 4: AAS 62 (1970), 833; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 22/XI/1970), 6.
[4] Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de
1979),15: AAS 71 (1979), 287.
[5] Cf. Catequese (17 de Janeiro de 2001),
4: Insegnamenti24/1 (2001), 179; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8.
[6] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991),
38: AAS 83 (1991), 841.
[7] Ibid., 58: o. c.,863.
[8] João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de
Dezembro de 1987), 34: AAS 80 (1988), 559.
153
[9] Cf. Idem, Carta enc. Centesimus annus(1 de Maio de
1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[10] Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da
Santa Sé (8 de Janeiro de 2007): AAS 99 (2007), 73.
[11] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
51:AAS 101 (2009), 687.
[12] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de Setembro de
2011): AAS 103 (2011), 664; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[13] Bento XVI, Discurso ao clero da diocese de
Bolzano-Bressanone (6 de Agosto de 2008): AAS 100
(2008), 634; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
16/VIII/2008), 5.
[14] Mensagem para o Dia de Oração pela salvaguarda da
criação (1 de Setembro de 2012).
[15] Discurso em Santa Bárbara, Califórnia (8 de Novembro
de 1997); cf. John Chryssavgis, On Earth as in Heaven:
Ecological Vision and Initiatives of Ecumenical Patriarch
Bartholomew (Bronx/Nova Iorque 2012).
[16] Ibidem.
[17] Conferência no Mosteiro de Utstein, Noruega (23 de
Junho de 2003).
154
[18] Bartolomeu, Discurso Global Responsibility and
Ecological Sustainability: Closing Remarks, I Cimeira de
Halki, Istambul (20 de Junho de 2012).
[19] Tomás de Celano, Vita prima di San Francesco, XXIX,
81: Fonti Francescane, 460.
[20] Legenda Maior, VIII, 6: Fonti Francescane, 1145.
[21] Cf. Tomás de Celano, Vita seconda di San Francesco,
CXXIV, 165: Fonti Francescane, 750.
[22] Conferência dos Bispos Católicos da África do
Sul, Pastoral Statement on the Environmental Crisis (5 de
Setembro de 1999).
[23] Cf. Francisco, Saudação aos funcionários da FAO (20
de Novembro de 2014): AAS 106 (2014), 985; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 27/XI/2014), 3.
[24] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e
do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007),
86.
[25] Conferência dos Bispos Católicos das Filipinas, Carta
pastoral What is Happening to our Beautiful Land? (29 de
Janeiro de 1988).
[26] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El
universo, don de Dios para la vida (2012), 17.
155
[27] Cf. Conferência Episcopal Alemã – Comissão para a
pastoral social, Der Klimawandel: Brennpunkt globaler,
intergenerationeller und ökologischer
Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30.
[28] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 483.
[29] Francisco, Catequese (5 de Junho de
2013): Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 9/VI/2013), 16.
[30] Bispos da região da Patagónia-Comahue (Argentina),
Mensaje de Navidad (Dezembro de 2009), 2.
[31] Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos
da América, Global Climate Change: A Plea for Dialogue,
Prudence and the Common Good (15 de Junho de 2001).
[32] V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e
do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007),
471.
[33] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 56: AAS 105 (2013), 1043.
[34] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz
de 1990, 12: AAS 82 (1990), 154.
[35] Idem, Catequese (17 de Janeiro de 2001),
3: Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8.
156
[36] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz
de 1990, 15: AAS 82 (1990), 156.
[37] Catecismo da Igreja Católica, 357.
[38] Angelus com os inválidos, Osnabrük / Alemanha (16
de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2 (1980),
1232; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
23/XI/1980), 20.
[39] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério
Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711; L
´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2015), 5.
[40] Cf. Legenda Maior, VIII, 1: Fonti Francescane, 1134.
[41] Catecismo da Igreja Católica, 2416.
[42] Conferência Episcopal Alemã, Zukunft der Schöpfung –
Zukunft der Menschheit. Erklärung der Deutschen
Bischofskonferenz zu Fragen der Umwelt und der
Energieversorgung (1980), II, 2.
[43] Catecismo da Igreja Católica, 339.
[44] Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 10: PG 29, 9.
[45] Divina Commedia. Paradiso, Canto XXXIII, 145.
[46] Bento XVI, Catequese (9 de Novembro de 2005),
3: Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 12/XI/2005), 24.
157
[47] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de
2009), 51:AAS101 (2009), 687.
[48] João Paulo II, Catequese (24 de Abril de 1991),
6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 28/IV/1991), 12.
[49] O Catecismo ensina que Deus quis criar um mundo em
caminho para a perfeição última, o que implica a presença da
imperfeição e do mal físico: verCatecismo da Igreja
Católica,310.
[50] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[51] Tomás de Aquino, Summa theologiaeI, q. 104, art. 1, ad
4.
[52] Idem, In octo libros Physicorum Aristotelis expositio, lib.
II, lectio 14.
[53] Coloca-se, nesta perspectiva, a contribuição do P.
Teilhard de Chardin; veja-se Paulo VI, Discurso numa fábrica
químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de
1966): Insegnamenti 4 (1966), 992-993; João Paulo II, Carta
ao reverendo P. George V. Coyne (1 de Junho de
1988): Insegnamenti 11/2 (1988), 1715;Bento XVI, Homilia
na Celebração das Vésperas, em Aosta (24 de Julho de
2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60.
158
[54] João Paulo II, Catequese (30 de Janeiro de 2002),
6: Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 2/II/2002), 12.
[55] Conferência Episcopal do Canadá - Comissão para a
Pastoral Social, You love all that exists… All things are yours,
God, Lover of Life (4 de Outubro de 2003), 1.
[56] Conferência dos Bispos Católicos do Japão, Reverence
for Life. A Message for the Twenty-First Century (1 de
Janeiro de 2001), 89.
[57] João Paulo II, Catequese (26 de Janeiro de 2000),
5: Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 29/I/2000), 8.
[58] Idem, Catequese (2 de Agosto de 2000),
3: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[59] Paul Ricoeur, Philosophie de la volonté. 2ª
parte:Finitude et culpabilité (Paris 2009), 216.
[60] Summa theologiae I, q. 47, art. 1.
[61] Ibidem.
[62] Cf.ibid., art. 2, ad. 1; art. 3.
[63] Catecismo da Igreja Católica, 340.
[64] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263.
159
[65] Cf. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, A Igreja
e a questão ecológica (1992), 53-54.
[66] Ibid., 61.
[67] Francisco, Exort. ap.Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 215: AAS105 (2013), 1109.
[68] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate(29 de
Junho de 2009), 14:AAS101 (2009), 650.
[69] Catecismo da Igreja Católica, 2418.
[70] Conferência do Episcopado Dominicano, Carta
pastoral Sobre la relación del hombre con la naturaleza (21
de Janeiro de 1987).
[71] João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de
Setembro de 1981),19: AAS 73 (1981), 626.
[72] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991),
31: AAS 83 (1991), 831.
[73] Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de
1987), 33:AAS 80 (1988), 557.
[74] Discurso aos indígenas e agricultores do México, em
Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979),
209; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979),
4.
160
[75] Homilia na Missa celebrada para os agricultores, em
Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS 72 (1980), 926;L
´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13.
[76] Cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
8: AAS 82 (1990), 152.
[77] Conferência Episcopal do Paraguai, Carta pastoral El
campesino paraguayo y la tierra (12 de Junho de 1983), 2, 4,
d.
[78] Conferência Episcopal da Nova Zelândia, Statement on
Environmental Issues (1 de Setembro de 2006).
[79]Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de
1981), 27: AAS 73 (1981), 645.
[80] Por isso, São Justino podia falar de «sementes do
Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8, 1-2; 13, 3-6: PG 6, 457-
458; 467.
[81] João Paulo II, Discurso aos representantes da
ciência, da cultura e dos estudos superiores na
Universidade das Nações Unidas, em Hiroxima (25 de
Fevereiro de 1981), 3: AAS 73 (1981), 422.
[82] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho
de 2009), 69:AAS 101 (2009), 702.
[83] Romano Guardini, Das Ende der
Neuzeit(Würzburg9
1965), 87.
161
[84] Ibidem.
[85] Ibid., 87-88.
[86] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 462.
[87] Romano Guardini, Das Ende der
Neuzeit (Würzburg9
1965), 63-64.
[88] Ibid., 64.
[89] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de
Junho de 2009), 35: AAS 101 (2009), 671.
[90] Ibid., 22: o. c., 657.
[91] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 231: AAS 105 (2013), 1114.
[92] Romano Guardini, Das Ende der
Neuzeit (Würzburg9
1965), 63.
[93] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de
Maio de 1991), 38: AAS83 (1991), 841.
[94] Cf. Declaração Love for Creation. An Asian Response to
the Ecological Crisis: Colóquio promovido pela Federação
das Conferências Episcopais da Ásia, Tagaytay (31 de
Janeiro a 5 de Fevereiro de 1993), 3.3.2.
162
[95] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de
Maio de 1991),37: AAS 83 (1991), 840.
[96] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2010, 2: AAS 102 (2010), 41.
[97] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de
2009), 28:AAS 101 (2009), 663.
[98] Cf. Vicente de Lerins, Commonitorium primum, cap.
23: PL 50, 668: «Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur
tempore, sublimetur aetate – Fortalece-se com o decorrer
dos anos, desenvolve-se com o andar dos tempos, cresce
através das idades».
[99] N. 80: AAS 105 (2013), 1053.
[100] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 63.
[101] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de
Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[102] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de
Março de 1967), 34: AAS 59 (1967), 274.
[103] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho
de 2009), 32: AAS 101 (2009), 666.
[104] Ibidem.
[105] Ibidem.
163
[106] Catecismo da Igreja Católica, 2417.
[107] Ibid., 2418.
[108] Ibid., 2415.
[109] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
6: AAS 82 (1990), 150.
[110] Discurso à Pontifícia Academia das Ciências (3 de
Outubro de 1981), 3: Insegnamenti 4/2 (1981),
333; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/X/1981),
8.
[111] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
7: AAS 82 (1990), 151.
[112] João Paulo II, Discurso à 35ª Assembleia Geral da
Associação Médica Mundial (29 de Outubro de 1983), 6:
AAS 76 (1984), 394; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa
de 13/XI/1983), 7.
[113] Conferência Episcopal da Argentina – Comissão de
Pastoral Social, Una tierra para todos (Junho de 2005), 19.
[114] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992),
princípio 4.
[115] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 237: AAS 105 (2013), 1116.
164
[116] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho
de 2009), 51: AAS 101 (2009), 687.
[117] Alguns autores puseram em evidência os valores que
muitas vezes se vivem, por exemplo, nas «villas»,
«chabolas» ou favelas da América Latina: ver Juan Carlos
Scannone S.I., «La irrupción del pobre y la lógica de la
gratuidad», in Juan Carlos Scannone e Marcelo Perine
(eds.), Irrupción del pobre y quehacer filosófico. Hacia una
nueva racionalidad (Buenos Aires 1993), 225-230.
[118] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 482.
[119] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 210: AAS 105 (2013), 1107.
[120] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de Setembro de
2011): AAS 103 (2011), 668; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[121] Francisco, Catequese (15 de Abril de
2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
16/IV/2015), 20.
[122] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 26.
[123] Cf. nn. 186-201:AAS 105 (2013), 1098-1105.
165
[124] Conferência Episcopal Portuguesa, Carta
pastoral Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de
Setembro de 2003), 20.
[125] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2010, 8: AAS 102 (2010), 45.
[126] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992),
princípio 1.
[127] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El
universo, don de Dios para la vida (2012), 86.
[128] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Doc. Energia,
Giustizia e Pace (Cidade do Vaticano 2013), 56.
[129] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
67: AAS 101 (2009), 700.
[130] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.
[131] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 469.
[132] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (14 de Junho de 1992), princípio 15.
[133] Cf. Conferência Episcopal do México – Comissão de
Pastoral Social, Jesucristo, vida y esperanza de los
indígenas y campesinos (14 de Janeiro de 2008).
166
[134] Pontifício Conselho «Justiça e Paz»,Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 470.
[135] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010,
9: AAS 102 (2010), 46.
[136] Ibidem.
[137] Ibid., 5: o. c., 43.
[138] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho
de 2009), 50: AAS 101 (2009), 686.
[139] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 209: AAS 105 (2013), 1107.
[140] Ibid., 228: o. c., 1113.
[141] Cf. Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29 de Junho de
2013), 34 [AAS 105 (2013), 577]: «Enquanto unida à verdade
do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque
o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz
encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé
ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que
nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia
e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício
da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à
realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o
sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter,
satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a
natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se
diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da
167
razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos
da ciência».
[142] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro
de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123.
[143] Ibid., 231: o. c., 1114.
[144] Das Ende der Neuzeit (Würzburg9
1965), 66-67.
[145] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz
de 1990, 1: AAS 82 (1990), 147.
[146] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho
de 2009), 66:AAS101 (2009), 699.
[147] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2010, 11: AAS 102 (2010), 48.
[148] Carta da Terra, Haia (29 de Junho de 2000).
[149] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de
Maio de 1991), 39: AAS 83 (1991), 842.
[150] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
1990, 14: AAS 82 (1990), 155.
[151] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 261: AAS105 (2013), 1124.
168
[152] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério
Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710; L
´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2005), 5.
[153] Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, A New
Earth - The Environmental Challenge (2002).
[154] Romano Guardini, Das Ende der
Neuzeit (Würzburg9
1965), 72.
[155] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 71: AAS 105 (2013), 1050.
[156] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho
de 2009), 2:AAS 101 (2009), 642.
[157] Paulo VI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
1977: AAS 68 (1976), 709.
[158] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 582.
[159] Um mestre espiritual, Ali Al-Khawwas, partindo da sua
própria experiência, assinalava a necessidade de não
separar demasiado as criaturas do mundo e a experiência de
Deus na interioridade. Dizia ele: «Não é preciso criticar
preconceituosamente aqueles que procuram o êxtase na
música ou na poesia. Há um “segredo” subtil em cada um
dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados
chegam a captar o que dizem o vento que sopra, as árvores
que se curvam, a água que corre, as moscas que zunem, as
portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar de
169
cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido
dos aflitos…» [Eva De Vitray-Meyerovitch (ed.), Anthologie
du soufisme (Paris 1978), 200].
[160] In II Sententiarum, 23, 2, 3.
[161] Cántico Espiritual,XIV, 5.
[162] Ibidem.
[163] Ibid., XIV, 6-7.
[164] João Paulo II, Carta ap. Orientale lumen (2 de Maio
de 1995),11: AAS 87 (1995), 757.
[165] Ibidem.
[166] Idem, Carta enc.Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril
de 2003), 8: AAS 95 (2003), 438.
[167] Bento XVI, Homilia na Missa de Corpus Christi (15
de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 513; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 24/VI/2006), 3.
[168] Catecismo da Igreja Católica, 2175.
[169] João Paulo II, Catequese (2 de Agosto de 2000),
4: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[170] Quaestiones disputatae de Mysterio Trinitatis, 1, 2,
concl.
170
[171] Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae I, q. 11, art. 3;
q. 21, art. 1, ad 3; q. 47, art. 3.
[172] Basílio Magno, Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 6: PG 29, 8.
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/pap
a-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
A composição não confere com o documento original
171

Mais conteúdo relacionado

PPTX
Síntese da Encíclica "Laudato Sì" (Louvado Seja) sobre o Cuidado da nossa Cas...
PPTX
Aspectos teológicos da Encíclica "Laudato Sí" do Papa francisco ecologia
DOC
Extrato resumo da enciclica Laudato Si do Papa Francisco
PDF
Laudato Si'- Introdução
PDF
Documento de aparecida
PDF
CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
PPS
Documento De Aparecida
Síntese da Encíclica "Laudato Sì" (Louvado Seja) sobre o Cuidado da nossa Cas...
Aspectos teológicos da Encíclica "Laudato Sí" do Papa francisco ecologia
Extrato resumo da enciclica Laudato Si do Papa Francisco
Laudato Si'- Introdução
Documento de aparecida
CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
Documento De Aparecida

Destaque (9)

PPTX
Lautado si´ en power point
PDF
Revista Vida pastoral nº 296
PDF
Introdução à Política Medieval
PDF
Introdução à Patrística
PDF
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LÆTITIA DO SANTO PADRE FRANCISCO
PPTX
3. gênesis
PPT
Aula 1 - Gênesis
PPTX
Encíclica laudato si
PPT
Atherosclerosis ppt
Lautado si´ en power point
Revista Vida pastoral nº 296
Introdução à Política Medieval
Introdução à Patrística
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LÆTITIA DO SANTO PADRE FRANCISCO
3. gênesis
Aula 1 - Gênesis
Encíclica laudato si
Atherosclerosis ppt
Anúncio

Semelhante a Carta Enciclica Laudato Si (20)

PPTX
1 apresentação sobre a laudato si
PDF
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS nº 536 an 11 agosto_2015.ok
DOC
Teses da encíclica Laudato Si do Papa Francisco
PDF
Apelos para a vida religiosa na laudato si e na fratelli tutti
PDF
Agua e cuidado da casa comum (afonso murad)
PPTX
Como aplicar a Laudato Si e vivenciar sua espiritualidade
PPTX
Laudato si e a educação cristã
PPTX
Laudato si - Papa Francisco - Portugues - Introdução Geral.pptx
PPTX
Laudato Si, um caminho do magistério..pptx
PPTX
LAUDATO SI - ECOLOGIA.pptx
PPTX
10 Anos da Laudato Si e os compromissos socioambientais.pptx
PPTX
APRESENTAÇÃO DIOCESE - CF - Adaptado.pptx
PPTX
Campanha da Fraternidade sobre a ecologia
PPTX
Cópia de CF2025 APRESENTAÇÃO DIOCESE.pptx
PDF
Laudato si e a ecologia integral (rev medellin 2017)
PDF
Semana champagnat e a consciencia ecologica
PDF
Cf 2011 texto_base_final_fechado_
PDF
AGIR. MARISSANDRA campanha da Fraternidade .pdf
PDF
Construindo uma ecologia integral
PPTX
PERSEVERANÇA- 08032025- CF 2025- ESTUDO DA CAMPANHA 2025.pptx
1 apresentação sobre a laudato si
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS nº 536 an 11 agosto_2015.ok
Teses da encíclica Laudato Si do Papa Francisco
Apelos para a vida religiosa na laudato si e na fratelli tutti
Agua e cuidado da casa comum (afonso murad)
Como aplicar a Laudato Si e vivenciar sua espiritualidade
Laudato si e a educação cristã
Laudato si - Papa Francisco - Portugues - Introdução Geral.pptx
Laudato Si, um caminho do magistério..pptx
LAUDATO SI - ECOLOGIA.pptx
10 Anos da Laudato Si e os compromissos socioambientais.pptx
APRESENTAÇÃO DIOCESE - CF - Adaptado.pptx
Campanha da Fraternidade sobre a ecologia
Cópia de CF2025 APRESENTAÇÃO DIOCESE.pptx
Laudato si e a ecologia integral (rev medellin 2017)
Semana champagnat e a consciencia ecologica
Cf 2011 texto_base_final_fechado_
AGIR. MARISSANDRA campanha da Fraternidade .pdf
Construindo uma ecologia integral
PERSEVERANÇA- 08032025- CF 2025- ESTUDO DA CAMPANHA 2025.pptx
Anúncio

Mais de José Vieira dos Santos (20)

PDF
Livro Vinde e Vede: História da Paróquia Santo André Dourados MS
PDF
Padre Adriano van de Ven: O Missionário da Palavra
PDF
Ceia Dom Alberto: Essa História Eu Começo a Contar - EBook
PDF
CEIA DOM ALBERTO: Essa História Eu Começo a Contar
PDF
Eucaristia: Escola Vivencial
PDF
Ano Litúrgico
PDF
Artigo Igreja Povo de Deus 2021
PDF
Diretrizes da Igreja no Brasil 2019 a 2023
PDF
Formação com Catequistas
PDF
Dourados MS Candidatos Vereadores 2016
PPT
Slides cristãos leigos e leigas na igreja e na sociedade
PDF
Papa francisco Exortação Amoris Laetitia amor na família
PDF
Dia leigo 2015
PPTX
Diretrizes da Igreja no Brasil 2015 a 2019
PDF
Campanha da Fraternidade 2015
PDF
Gincana Bíblica Eucaristia I
PDF
Gincana Bíblica Adolescentes II
PDF
Gincana Bíblica Adolescentes III
PDF
Gincana Bíblica Eucaristia II
PDF
Gincana Bíblica Eucaristia III
Livro Vinde e Vede: História da Paróquia Santo André Dourados MS
Padre Adriano van de Ven: O Missionário da Palavra
Ceia Dom Alberto: Essa História Eu Começo a Contar - EBook
CEIA DOM ALBERTO: Essa História Eu Começo a Contar
Eucaristia: Escola Vivencial
Ano Litúrgico
Artigo Igreja Povo de Deus 2021
Diretrizes da Igreja no Brasil 2019 a 2023
Formação com Catequistas
Dourados MS Candidatos Vereadores 2016
Slides cristãos leigos e leigas na igreja e na sociedade
Papa francisco Exortação Amoris Laetitia amor na família
Dia leigo 2015
Diretrizes da Igreja no Brasil 2015 a 2019
Campanha da Fraternidade 2015
Gincana Bíblica Eucaristia I
Gincana Bíblica Adolescentes II
Gincana Bíblica Adolescentes III
Gincana Bíblica Eucaristia II
Gincana Bíblica Eucaristia III

Último (20)

PDF
ESPECIALIDADE DE ESCATOLOGIA DESBRAVADORES
PPTX
LIVROS_POÉTICOS_E_DE_SABEDORIA_PANORAMA_DO_ANTIGO_TESTAMENTO.pptx
PPTX
O Tabernáculo Um Caminho para a Presença de Deus.pptx
PDF
A escolha Islamismo vs cristianismo. PDF gratuito
PPTX
359778118-1844-ao-Selamento-do-povo-de-Deus.pptx
PPTX
Apologética - Aula 16 - Vãs Filosofias I - Rev00.pptx
PPTX
Vida Fraterna - A Palavra de Deus é a fonte de sabedoria e discernimento que ...
PDF
SLIDE_LIÇÃO_2_QUANDO_A_FAMÍLIA_AGE_POR_CONTA_PRÓPRIA_TEXTO_ÁUREO.pdf
PDF
O grande devocional Paciência e Espera.pdf
PPTX
06 Jesus como modelo de vida é o essencial para crescimento espiritualx
PDF
O outro mundo (islamismo) . PDF gratuito
PDF
Castelo dos Anjos* uma história sobre revelação aos homens.
PPTX
01 Porque estudar a biblia tras a certeza do caminho certo
PDF
Desenvolvimento incorporação sem medos e amarras
PDF
17 - Voce-Nasceu-Para-Liderar-John-Maxwell.pdf
PPTX
Ação vibratoria do Planeta.pptx traz a evolução dos mundos na perspectiva esp...
PPT
TabaCARIA SANTA _e_doencas_relacionadas.ppt
PPT
Slide sobre Sacramento da Eucaristia - católica
PPTX
Apologética - Aula 17 - Vãs Filosofias II - Rev00 (Cópia em conflito de Jeiel...
ESPECIALIDADE DE ESCATOLOGIA DESBRAVADORES
LIVROS_POÉTICOS_E_DE_SABEDORIA_PANORAMA_DO_ANTIGO_TESTAMENTO.pptx
O Tabernáculo Um Caminho para a Presença de Deus.pptx
A escolha Islamismo vs cristianismo. PDF gratuito
359778118-1844-ao-Selamento-do-povo-de-Deus.pptx
Apologética - Aula 16 - Vãs Filosofias I - Rev00.pptx
Vida Fraterna - A Palavra de Deus é a fonte de sabedoria e discernimento que ...
SLIDE_LIÇÃO_2_QUANDO_A_FAMÍLIA_AGE_POR_CONTA_PRÓPRIA_TEXTO_ÁUREO.pdf
O grande devocional Paciência e Espera.pdf
06 Jesus como modelo de vida é o essencial para crescimento espiritualx
O outro mundo (islamismo) . PDF gratuito
Castelo dos Anjos* uma história sobre revelação aos homens.
01 Porque estudar a biblia tras a certeza do caminho certo
Desenvolvimento incorporação sem medos e amarras
17 - Voce-Nasceu-Para-Liderar-John-Maxwell.pdf
Ação vibratoria do Planeta.pptx traz a evolução dos mundos na perspectiva esp...
TabaCARIA SANTA _e_doencas_relacionadas.ppt
Slide sobre Sacramento da Eucaristia - católica
Apologética - Aula 17 - Vãs Filosofias II - Rev00 (Cópia em conflito de Jeiel...

Carta Enciclica Laudato Si

  • 1. CARTA ENCÍCLICA LAUDATO SI’ DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM 1
  • 2. CARTA ENCÍCLICA LAUDATO SI’ DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM 1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras».[1] 2. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do
  • 3. planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica- nos e restaura-nos. Nada deste mundo nos é indiferente 3. Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo Papa João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum. 4. Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu-se à problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é «consequência dramática» da atividade descontrolada do ser humano: «Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação».[2] E, dirigindo-se à FAO, falou da possibilidade duma «catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial», sublinhando a «necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade», porque «os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento Econômico mais 3
  • 4. prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem». [3] 5. São João Paulo II debruçou-se, com interesse sempre maior, sobre este tema. Na sua primeira encíclica, advertiu que o ser humano parece «não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso ou consumo imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma conversão ecológica global.[5] Entretanto fazia notar o pouco empenho que se põe em «salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana».[6] A destruição do ambiente humano é um fato muito grave, porque, por um lado, Deus confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida humana é um dom que deve ser protegido de várias formas de degradação. Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas «nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades».[7] O progresso humano autêntico possui um caráter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado».[8] Assim, a capacidade do ser humano transformar a realidade deve desenvolver-se com base na doação originária das coisas por parte de Deus.[9] 6. O meu predecessor, Bento XVI, renovou o convite a «eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente». 4
  • 5. [10] Lembrou que o mundo não pode ser analisado concentrando-se apenas sobre um dos seus aspectos, porque «o livro da natureza é uno e indivisível», incluindo, entre outras coisas, o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. É que «a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana».[11] O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável; o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas se ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se que «o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza». [12] Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida «onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo- nos unicamente a nós mesmos».[13] Unidos por uma preocupação comum 7. Estas contribuições dos Papas recolhem a reflexão de inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e organizações sociais que enriqueceram o pensamento da Igreja sobre estas questões. Mas não podemos ignorar que, também fora da Igreja Católica, noutras Igrejas e Comunidades cristãs – 5
  • 6. bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos estão a peito. Apenas para dar um exemplo particularmente significativo, quero retomar brevemente parte da contribuição do amado Patriarca Ecuménico Bartolomeu, com quem partilhamos a esperança da plena comunhão eclesial. 8. O Patriarca Bartolomeu tem-se referido particularmente à necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de maltratar o planeta, porque «todos, na medida em que causamos pequenos danos ecológicos», somos chamados a reconhecer «a nossa contribuição – pequena ou grande – para a desfiguração e destruição do ambiente».[14] Sobre este ponto, ele pronunciou-se repetidamente, de maneira firme e encorajadora, convidando-nos a reconhecer os pecados contra a criação: «Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas húmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar... tudo isso é pecado».[15] Porque «um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus».[16] 9. Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a atenção para as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a encontrar soluções não só na técnica mas também numa mudança do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos 6
  • 7. passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha, numa ascese que «significa aprender a dar, e não simplesmente renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco do que eu quero àquilo de que o mundo de Deus precisa. É libertação do medo, da avidez, da dependência».[17]Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde convição que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta».[18] São Francisco de Assis 10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para 7
  • 8. com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior. 11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contato com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a reação de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão». [19] A sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo econômico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele, «enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e irmãs».[20] Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que 8
  • 9. existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio. 12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador» (Sab 13, 5) e «o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de tanta beleza.[21] O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor. O meu apelo 13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados setores da atividade humana, estão a trabalhar 9
  • 10. para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos. 14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo gerado numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são necessários os talentos e o envolvimento de todos para reparar o dano causado pelos humanos sobre a criação de Deus».[22] Todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades. 10
  • 11. 15. Espero que esta carta encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da atual crise ecológica, com o objetivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procurarei chegar às raízes da situação atual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas. Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de ação que envolvem seja cada um de nós seja a política internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã. 16. Embora cada capítulo tenha a sua temática própria e uma metodologia específica, o sucessivo retoma por sua vez, a partir duma nova perspectiva, questões importantes abordadas nos capítulos anteriores. Isto diz respeito especialmente a alguns eixos que atravessam a encíclica inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os pobres e a 11
  • 12. fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida. Estes temas nunca se dão por encerrados nem se abandonam, mas são constantemente retomados e enriquecidos. CAPÍTULO I O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA 17. As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum confronto com o contexto atual no que este tem de inédito para a história da humanidade. Por isso, antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências face ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos brevemente a considerar o que está a acontecer à nossa casa comum. 18. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos 12
  • 13. sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objetivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade. 19. Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de maior consciencialização. Nota-se uma crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta. Façamos uma resenha, certamente incompleta, das questões que hoje nos causam inquietação e já não se podem esconder debaixo do tapete. O objetivo não é recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar. 1. Poluição e mudanças climáticas Poluição, resíduos e cultura do descarte 20. Existem formas de poluição que afetam diariamente as pessoas. A exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras. 13
  • 14. Adoecem, por exemplo, por causa da inalação de elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis utilizados para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição que afeta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros. 21. Devemos considerar também a poluição produzida pelos resíduos, incluindo os perigosos presentes em variados ambientes. Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioativos. A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo. Em muitos lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora vêem submersas de lixo. Tanto os resíduos industriais como os produtos químicos utilizados nas cidades e nos campos podem produzir um efeito de bioacumulação nos organismos dos moradores nas áreas limítrofes, que se verifica mesmo quando é baixo o nível de presença dum elemento tóxico num lugar. Muitas vezes só se adotam medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas. 14
  • 15. 22. Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo. Note-se, por exemplo, como a maior parte do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado. Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte que acaba por danificar o planeta inteiro, mas nota- se que os progressos neste sentido são ainda muito escassos. O clima como bem comum 23. O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi 15
  • 16. acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros fatores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da atividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola. 24. Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e a 16
  • 17. decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbônico. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido carbônico aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras. 25. As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, Econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas nem outros recursos que lhes permitam adatar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de proteção. Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que 17
  • 18. nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil. 26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder Econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbónico e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis. Mas ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns países, registaram-se avanços que começam a ser significativos, 18
  • 19. embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias-primas, bem como em modalidades de construção ou restruturação de edifícios para se melhorar a sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se tornar omnipresentes. 2. A questão da água 27. Outros indicadores da situação atual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza. 28. A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes de água doce fornecem os setores sanitários, agro-pecuários e industriais. A disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade. 19
  • 20. A pobreza da água pública verifica-se especialmente na África, onde grandes setores da população não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a produção de alimento. Nalguns países, há regiões com abundância de água, enquanto outras sofrem de grave escassez. 29. Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água, incluindo as causadas por microorganismos e substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequados, constituem um fator significativo de sofrimento e mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares. 30. Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma 20
  • 21. grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores contribuições Econômicas para prover de água limpa e saneamento as populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade. 31. Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século.[23] 3. Perda de biodiversidade 32. Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial e produtiva. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies 21
  • 22. contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou regular algum problema ambiental. 33. Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais «recursos» exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer. 34. Possivelmente perturba-nos saber da extinção dum mamífero ou duma ave, pela sua maior visibilidade; mas, para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a variedade inumerável de microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção dele de modo que a atividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos que isto implica. 22
  • 23. Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana, para resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda agrava mais a situação. Por exemplo, muitos pássaros e insetos, que desaparecem por causa dos agro- tóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o seu desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica que possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes, admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza insuprível e irrecuperável por outra criada por nós. 35. Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os novos cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem 23
  • 24. alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de corredores biológicos, mas são poucos os países em que se adverte este cuidado e prevenção. Quando se explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e consequente desequilíbrio do ecossistema. 36. O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se possa obter. No caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental. 37. Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz de certos lugares e áreas – na terra e nos oceanos –, proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar a sua fisionomia ou alterar a sua constituição original. No cuidado da biodiversidade, os especialistas insistem na necessidade de prestar uma especial atenção às áreas mais ricas em variedade de espécies, em espécies endémicas, raras ou com menor grau de efetiva proteção. Há lugares que requerem um cuidado particular pela sua enorme importância 24
  • 25. para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras formas de vida. 38. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses econômicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses Econômicos das corporações internacionais». [24] É louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais. 39. Habitualmente também não se faz objeto de adequada análise a substituição da flora silvestre por áreas florestais com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode 25
  • 26. afetar gravemente uma biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se implantam. Também as zonas húmidas, que são transformadas em terrenos agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante, nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos por manguezais. 40. Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte da população mundial, é afetada pela extração descontrolada dos recursos ictíicos, que provoca drásticas diminuições dalgumas espécies. E no entanto continuam a desenvolver- se modalidades seletivas de pesca, que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão organismos marinhos que não temos em consideração, como certas formas de plânton que constituem um componente muito importante da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se utilizam para a alimentação humana. 41. Passando aos mares tropicais e subtropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e 26
  • 27. de cor?»[25] Este fenômeno deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a compreender como qualquer ação sobre a natureza pode ter consequências que não advertimos à primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos. 42. É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. Cada território detém uma parte de responsabilidade no cuidado desta família, pelo que deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que alberga a fim de desenvolver programas e estratégias de proteção, cuidando com particular solicitude das espécies em vias de extinção. 4. Deterioração da qualidade de vida humana e degradação social 43. Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do 27
  • 28. modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas. 44. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas mas também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visiva e acústica. Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam, gastando energia e água em excesso. Há bairros que, embora construídos recentemente, apresentam-se congestionados e desordenados, sem espaços verdes suficientes. Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contato físico com a natureza. 45. Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços tornou difícil o acesso dos cidadãos a áreas de especial beleza; noutros, criaram-se áreas residenciais «ecológicas» postas à disposição só de poucos, procurando- se evitar que outros entrem a perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas «seguras», mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da sociedade. 46. Entre os componentes sociais da mudança global, incluem-se os efeitos laborais dalgumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social, o 28
  • 29. narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São alguns sinais, entre outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida. Alguns destes sinais são ao mesmo tempo sintomas duma verdadeira degradação social, duma silenciosa ruptura dos vínculos de integração e comunhão social. 47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isto permite seleccionar ou eliminar a nosso arbítrio as relações e, deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as pessoas e a natureza. Os meios atuais permitem-nos comunicar e partilhar conhecimentos e afetos. Mas, às vezes, também 29
  • 30. nos impedem de tomar contato direto com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o fato de, a par da oferta sufocante destes produtos, ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento. 5. Desigualdade planetária 48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De fato, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais.[27] 30
  • 31. 49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e Econômicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao fato de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contato direto com os seus problemas. Vivem e refletem a partir da comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da população mundial. Esta falta de contato físico e de encontro, às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas. Isto, às vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres. 50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que 31
  • 32. condicionam as ajudas Econômicas a determinadas políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário».[28] Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo atual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao desequilíbrio na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida. 51. A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos 32
  • 33. naturais efetuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extração minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma situação que agora afeta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital: «Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar». [30] 33
  • 34. 52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade de bens e recursos para satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos possibilidade de adotar novos modelos de redução do impacto ambiental, porque não têm a preparação para desenvolver os processos necessários nem podem cobrir os seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a consciência de que a mudança climática tem responsabilidades diversificadas e, como disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença. 34
  • 35. 6. A fraqueza das reações 53. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos. Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta seja o que Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz, beleza e plenitude. O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações atuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras. Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-Econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça. 54. Preocupa a fraqueza da reação política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afetados os seus projetos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede que, «nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos Econômicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida».[32] A aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o 35
  • 36. que não faz parte dos seus interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á esperar apenas algumas proclamações superficiais, ações filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações sociais para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar. 55. Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos significativos, o desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção. Cresceu a sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo, que não parecem diminuir; antes, expandem-se e desenvolvem- se. É o que acontece – só para dar um exemplo simples – com o crescente aumento do uso e intensidade dos condicionadores de ar: os mercados, apostando num ganho imediato, estimulam ainda mais a procura. Se alguém observasse de fora a sociedade planetária, maravilhar-se-ia com tal comportamento que às vezes parece suicida. 56. Entretanto os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar ações imorais, porque a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito. Por isso, 36
  • 37. hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta».[33] 57. É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, «não obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica e biológica, subsiste o fato de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais». [34] Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço, e os projetos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo? 58. Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na melhoria do ambiente, tais como o saneamento de alguns rios que foram poluídos durante muitas décadas, a recuperação de florestas nativas, o embelezamento de paisagens com obras de saneamento ambiental, projetos de edifícios de grande valor estético, progressos na produção de energia limpa, na melhoria dos transportes públicos. Estas ações não resolvem os problemas globais, mas confirmam 37
  • 38. que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo. 59. Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou aparente que consolida um certo torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como frequentemente acontece em épocas de crises profundas, que exigem decisões corajosas, somos tentados a pensar que aquilo que está a acontecer não é verdade. Se nos detivermos na superfície, para além de alguns sinais visíveis de poluição e degradação, parece que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido. 7. Diversidade de opiniões 60. Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o 38
  • 39. ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a respostas abrangentes. 61. Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notar-se sintomas dum ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se podem analisar nem explicar de forma isolada. Há regiões que já se encontram particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da ação humana: «Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa divina».[35] 39
  • 40. CAPÍTULO II O EVANGELHO DA CRIAÇÃO 62. Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às convições de fé? Não ignoro que alguns, no campo da política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um Criador ou consideram-na irrelevante, chegando ao ponto de relegar para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer para uma ecologia integral e o pleno desenvolvimento do gênero humano; outras vezes, supõe-se que elas constituam uma subcultura, que se deve simplesmente tolerar. Todavia a ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas. 1. A luz que a fé oferece 63. Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. Além disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o 40
  • 41. pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e razão. No que diz respeito às questões sociais, pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento da doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios. 64. Por outro lado, embora esta encíclica se abra a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de libertação, quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples fato de ser humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem parte, «os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé».[36] Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções. 2. A sabedoria das narrações bíblicas 65. Sem repropor aqui toda a teologia da Criação, queremos saber o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre a relação do ser humano com o mundo. Na primeira narração da obra criadora, no livro do Gênesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se que «Deus, vendo a sua obra, considerou- a muito boa» (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação mostra-nos a imensa 41
  • 42. dignidade de cada pessoa humana, que «não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas».[37] São João Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano «confere-lhe uma dignidade infinita».[38] Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, «cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário».[39] 66. As narrações da criação no livro do Gênesis contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos profundos sobre a existência humana e a sua realidade histórica. Estas narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este fato distorceu também a natureza do mandato de «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e 42
  • 43. guardar» (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19). Por isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original.[40] Longe deste modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza. 67. Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do Génesis, que convida a «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, «guardar» significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser 43
  • 44. humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. Em última análise, «ao Senhor pertence a terra» (Sl 24/23, 1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela existe» (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta: «Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23). 68. Esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo, porque «Ele deu uma ordem e tudo foi criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e estabeleceu leis a que não se pode fugir!» (Sl 148, 5b-6). Consequentemente, a legislação bíblica detém-se a propor ao ser humano várias normas relativas não só às outras pessoas, mas também aos restantes seres vivos: «Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda- os a levantarem-se. (...) Se encontrares no caminho, em cima de uma árvore ou no chão, um ninho de pássaros com filhotes, ou ovos cobertos pela mãe, não apanharás a mãe com a ninhada» (Dt 22, 4.6). Nesta linha, o descanso do sétimo dia não é proposto só para o ser humano, mas «para que descansem o teu boi e o teu jumento» (Ex23, 12). Assim nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas. 44
  • 45. 69. Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, «pelo simples fato de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas obras» (Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas, já que «o Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3, 19). Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, «se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser úteis». [42] O Catecismo põe em questão, de forma muito direta e insistente, um antropocentrismo desordenado: «Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. (...) As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas».[43] 70. Na narração de Caim e Abel, vemos que a inveja levou Caim a cometer a injustiça extrema contra o seu irmão. Isto, por sua vez, provocou uma ruptura da relação entre Caim e Deus e entre Caim e a terra, da qual foi exilado. Esta passagem aparece sintetizada no dramático colóquio de Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim responde que não sabe, e Deus insiste com 45
  • 46. ele: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra (…). Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra» (Gn 4, 9-12). O descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra. Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo. Assim no-lo ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça acabar com a humanidade pela sua persistente incapacidade de viver à altura das exigências da justiça e da paz: «O fim de toda a humanidade chegou diante de Mim, pois ela encheu a terra de violência» (Gn 6, 13). Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual de que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros. 71. Embora Deus reconhecesse que «a maldade dos homens era grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se de ter criado o homem sobre a terra» (Gn 6, 6), Ele decidiu abrir um caminho de salvação através de Noé, que ainda se mantinha íntegro e justo. Assim deu à humanidade a possibilidade de um novo início. Basta um homem bom para haver esperança! A tradição bíblica estabelece claramente que esta reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, 46
  • 47. Deus descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a Israel que cada sétimo dia devia ser celebrado como um dia de descanso, um Shabbath (cf. Gn 2, 2-3; Ex 16, 23; 20, 10). Além disso, de sete em sete anos, instaurou-se também um ano sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv 25, 1-4), durante o qual se dava descanso completo à terra, não se semeava e só se colhia o indispensável para sobreviver e oferecer hospitalidade (cf. Lv 25, 4-6). Por fim, passadas sete semanas de anos, ou seja quarenta e nove anos, celebrava- se o jubileu, um ano de perdão universal, «proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam» (Lv 25, 10). O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os outros e com a terra onde vivia e trabalhava. Mas, ao mesmo tempo, era um reconhecimento de que a dádiva da terra com os seus frutos pertence a todo o povo. Aqueles que cultivavam e guardavam o território deviam partilhar os seus frutos, especialmente com os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros: «Quando procederes à ceifa das vossas terras, não ceifarás as espigas até à extremidade do campo, e não apanharás as espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro» (Lv 19, 9-10). 72. Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador: «Estendeu a terra sobre as águas, porque o seu amor é eterno» (Sl 136/135, 6). E convidam também as outras criaturas a louvá-Lo: «Louvai-O, sol e lua; louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas que estais acima dos céus! Louvem todos o nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado» 47
  • 48. (Sl 148, 3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua presença e companhia. Por isso O adoramos. 73. Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças, nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a escapar da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na verdade, toda a sã espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de agir divino estão íntima e inseparavelmente ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para Ti, nada é impossível! (...) Tu fizeste sair do Egito o teu povo, Israel, com prodígios e milagres» (Jr 32, 17.21). «O Senhor é um Deus eterno, que criou os confins da terra. Não se cansa nem perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco» (Is 40, 28b-29). 74. A experiência do cativeiro em Babilônia gerou uma crise espiritual que levou a um aprofundamento da fé em Deus, explicitando a sua omnipotência criadora, para animar o povo a recuperar a esperança no meio da sua situação infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento de prova e perseguição, quando o Império Romano procurou impor um domínio absoluto, os fiéis voltaram a encontrar consolação e esperança aumentando a sua confiança em Deus omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus todo-poderoso! Justos e 48
  • 49. verdadeiros são os teus caminhos!» (Ap 15, 3). Se Deus pôde criar o universo a partir do nada, também pode intervir neste mundo e vencer qualquer forma de mal. Por isso, a injustiça não é invencível. 75. Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses. 3. O mistério do universo 76. Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado. A natureza entende-se habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal. 77. «A palavra do Senhor criou os céus» (Sl 33/32, 6). Deste modo indica-se que o mundo procede, não do caos nem do acaso, mas duma decisão, o que o exalta ainda mais. Há uma opção livre, expressa na palavra criadora. O universo não apareceu como resultado duma omnipotência arbitrária, 49
  • 50. duma demonstração de força ou dum desejo de auto- afirmação. A criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11, 24). Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho. Dizia São Basílio Magno que o Criador é também «a bondade sem cálculos»,[44] e Dante Alighieri falava do «amor que move o sol e as outras estrelas».[45] Por isso, das obras criadas pode-se subir «à sua amorosa misericórdia».[46] 78. Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão desmitificou a natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu esplendor e imensidão, já não lhe atribui um caráter divino. Deste modo, ressalta ainda mais o nosso compromisso para com ela. Um regresso à natureza não pode ser feito à custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver as suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder. 50
  • 51. 79. Neste universo, composto por sistemas abertos que entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir inumeráveis formas de relação e participação. Isto leva-nos também a pensar o todo como aberto à transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé permite-nos interpretar o significado e a beleza misteriosa do que acontece. A liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à apaixonante e dramática história humana, capaz de transformar-se num desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição. Por isso a Igreja, com a sua ação, procura não só lembrar o dever de cuidar da natureza, mas também e «sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo». [47] 80. Apesar disso, Deus, que deseja atuar connosco e contar com a nossa cooperação, é capaz também de tirar algo de bom dos males que praticamos, porque «o Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo necessitado de desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador.[49] Ele está presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá lugar também à legítima autonomia das realidades terrenas. 51
  • 52. [50] Esta presença divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, «é a continuação da ação criadora». [51] O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo: «A natureza nada mais é do que a razão de certa arte – concretamente a arte divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a forma da nave». [52] 81. Embora suponha também processos evolutivos, o ser humano implica uma novidade que não se explica cabalmente pela evolução doutros sistemas abertos. Cada um de nós tem em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus. A capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração artística e outras capacidades originais manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico. A novidade qualitativa, implicada no aparecimento dum ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada peculiar à vida e à relação de um Tu com outro tu. A partir dos textos bíblicos, consideramos o ser humano como sujeito, que nunca pode ser reduzido à categoria de objeto. 82. Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de 52
  • 53. lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favoreceu imensas desigualdades, injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O ideal de harmonia, justiça, fraternidade e paz que Jesus propõe situa- se nos antípodas de tal modelo, como Ele mesmo Se expressou ao compará-lo com os poderes do seu tempo: «Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20, 25-26). 83. A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal. [53] E assim juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao seu Criador. 4. A mensagem de cada criatura na harmonia de toda a criação 84. O fato de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada 53
  • 54. criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus. A história da própria amizade com Deus desenrola-se sempre num espaço geográfico que se torna um sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem. Quem cresceu no meio de montes, quem na infância se sentava junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a recuperar a sua própria identidade. 85. Deus escreveu um livro estupendo, «cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo».[54] E justamente afirmaram os bispos do Canadá que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus: «Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino». [55]Os bispos do Japão, por sua vez, disseram algo muito sugestivo: «Sentir cada criatura que canta o hino da sua existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na esperança».[56] Esta contemplação da criação permite-nos descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, «para o crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa». [57] Podemos afirmar que, «ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite». [58] Prestando atenção a esta manifestação, o ser humano 54
  • 55. aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo».[59] 86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade «provêm da intenção do primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada coisa, para representar a bondade divina, seja suprido pelas outras»,[60] pois a sua bondade «não pode ser convenientemente representada por uma só criatura».[61] Por isso, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações.[62] Assim, compreende-se melhor a importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: «A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espectáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras». [63] 87. Quando nos damos conta do reflexo de Deus em tudo o que existe, o coração experimenta o desejo de adorar o Senhor por todas as suas criaturas e juntamente com elas, como se vê neste gracioso cântico de São Francisco de Assis: «Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o meu senhor irmão sol, 55
  • 56. o qual faz o dia e por ele nos alumia. E ele é belo e radiante com grande esplendor: de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo, com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite: ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64] 88. Os bispos do Brasil sublinharam que toda a natureza, além de manifestar Deus, é lugar da sua presença. Em cada criatura, habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a um relacionamento com Ele. [65] A descoberta desta presença estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes ecológicas». [66] Mas, quando dizemos isto, não esqueçamos que há também uma distância infinita, pois as coisas deste mundo não possuem a plenitude de Deus. Esquecê-lo, aliás, também não faria bem às criaturas, porque não reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio, acabando por lhes exigir indevidamente aquilo que, na sua pequenez, não nos podem dar. 5. Uma comunhão universal 89. As criaturas deste mundo não podem ser consideradas um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a 56
  • 57. vida» (Sab 11, 26). Isto gera a convição de que nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar que «Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação».[67] 90. Isto não significa igualar todos os seres vivos e tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade. Também não requer uma divinização da terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua fragilidade. Estas concepções acabariam por criar novos desequilíbrios, na tentativa de fugir da realidade que nos interpela.[68] Às vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos. Devemos, certamente, ter a preocupação de que os outros seres vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos sobretudo as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de notar que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer ao que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. 57
  • 58. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos. 91. Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente. Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade. 92. Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra qualquer criatura «é contrário à dignidade humana».[69] Não podemos considerar-nos grandes amantes da realidade, se excluímos 58
  • 59. dos nossos interesses alguma parte dela: «Paz, justiça e conservação da criação são três questões absolutamente ligadas, que não se poderão separar, tratando-as individualmente sob pena de cair novamente no reducionismo».[70] Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra. 6. O destino comum dos bens 93. Hoje, crentes e não-crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do comportamento social e o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social».[71] A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo II lembrou esta doutrina, com grande ênfase, dizendo que «Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[72] São palavras densas e fortes. Insistiu que 59
  • 60. «não seria verdadeiramente digno do homem, um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais, Econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos».[73]Com grande clareza, explicou que «a Igreja defende, sim, o legítimo direito à propriedade privada, mas ensina, com não menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu».[74] Por isso, afirma que «não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom de modo tal que os seus benefícios aproveitem só a alguns poucos». [75] Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos duma parte da humanidade.[76] 94. O rico e o pobre têm igual dignidade, porque «quem os fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o pequeno e o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt 5, 45). Isto tem consequências práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: «Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado».[77] 95. O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se 60
  • 61. não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros. Por isso, os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o mandamento «não matarás», quando «uns vinte por cento da população mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver».[78] 7. O olhar de Jesus 96. Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11, 25). Em colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos d’Ele: «Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). «Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as» (Mt 6, 26). 97. O Senhor podia convidar os outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa» (Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, 61
  • 62. torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13, 31-32). 98. Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo, declarou: «Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um glutão e bebedor de vinho”» (Mt 11, 19). Encontrava-Se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contato com matéria criada por Deus para a moldar com a sua capacidade de artesão. É digno de nota que a maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a esta tarefa, levando uma vida simples que não despertava maravilha alguma: «Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6, 3). Assim santificou o trabalho, atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso amadurecimento. São João Paulo II ensinava que, «suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de alguma forma, com o Filho de Deus na redenção da humanidade».[79] 99. Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino da criação inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela está presente desde a origem: «Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele» (Cl 1, 16).[80] O prólogo do Evangelho 62
  • 63. de João (1, 1-18) mostra a atividade criadora de Cristo como Palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1, 14). Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua autonomia. 100. O Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo; mostra-no-Lo também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação com o seu domínio universal. «Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que estão na terra como as que estão no céu» (Cl 1, 19- 20). Isto lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa. CAPÍTULO III A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA 63
  • 64. 101. Para nada serviria descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua ação no mundo. 1. A tecnologia: criatividade e poder 102. A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos alegremos com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes, porque «a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu».[81] A transformação da natureza para fins úteis é uma característica do gênero humano, desde os seus primórdios; e assim a técnica «exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais».[82] A tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano. Não podemos deixar de apreciar e agradecer os progressos alcançados especialmente na medicina, engenharia e comunicações. Como não havemos de reconhecer todos os 64
  • 65. esforços de tantos cientistas e técnicos que elaboraram alternativas para um desenvolvimento sustentável? 103. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objetos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de valor, obtidas com o recurso aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa plenitude propriamente humana. 104. Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a informática, o conhecimento do nosso próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder Econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer. Basta lembrar as bombas atómicas lançadas em pleno século XX, bem como a grande exibição de tecnologia ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros regimes totalitários e que serviu para o extermínio de milhões de pessoas, sem esquecer que hoje a guerra dispõe de instrumentos cada vez mais mortíferos. Nas mãos de quem 65
  • 66. está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade. 105. Tende-se a crer que «toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores»[83], como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder», [84] porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência. Cada época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e «cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder» quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas necessidades de utilidade e segurança».[85] O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si. 2. A globalização do paradigma tecnocrático 66
  • 67. 106. Mas o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que «existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos».[86] 67
  • 68. 107. Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo atual, está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a toda a realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afeta a vida humana e a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver. 108. Não se consegue pensar que seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se anticultural a escolha dum estilo de vida, cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer com que nada fique fora da sua lógica férrea, e «o homem que é o seu protagonista sabe que, em última análise, não se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da 68
  • 69. palavra». [87] Por isso, «procura controlar os elementos da natureza e, conjuntamente, os da existência humana». [88] Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos. 109. O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia atual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens não acadêmicas, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. Não é uma questão de teorias Econômicas, que hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua instalação no desenvolvimento concreto da economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os fatos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou os direitos das gerações futuras. Com os seus comportamentos, afirmam que é suficiente o objetivo da maximização dos ganhos. Mas o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.[89] Entretanto temos um «superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações 69
  • 70. de miséria desumanizadora»,[90] mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições Econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos suficiente consciência de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios atuais: estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e econômico. 110. A especialização própria da tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos adequados para resolver os problemas mais complexos do mundo atual, sobretudo os do meio ambiente e dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma única perspectiva nem dum único tipo de interesses. Uma ciência, que pretenda oferecer soluções para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social. Mas este é atualmente um procedimento difícil de seguir. Por isso também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência. A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal para interpretar a existência. Na realidade concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a 70
  • 71. ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que «a realidade é superior à ideia».[91] 111. A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. 112. Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De fato verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de pequenos produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso de os ajudar a viver com mais dignidade e menor sofrimento. E ainda quando a busca criadora do belo e a sua contemplação conseguem superar o poder 71
  • 72. objetivador numa espécie de salvação que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo, desbrocha como uma obstinada resistência daquilo que é autêntico? 113. Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso, também não se imaginam renunciando às possibilidades que oferece a tecnologia. A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitetura reflete o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de fato e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio. 72
  • 73. 114. O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem, desde o início até ao fim dum processo, envolver diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras. Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano. 3. Crise do antropocentrismo moderno e suas consequências 115. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. «Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado».[93] 116. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a 73
  • 74. minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos. Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê- lo no sentido de administrador responsável.[94] 117. A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impato ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui- se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza».[95] 118. Esta situação leva-nos a uma esquizofrenia permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que 74
  • 75. não reconhece aos outros seres um valor próprio, até à reação de negar qualquer valor peculiar ao ser humano. Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, «corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade».[96] Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade. 119. A crítica do antropocentrismo desordenado não deveria deixar em segundo plano também o valor das relações entre as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais. Quando o pensamento cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar acima das outras criaturas, suscita a valorização de cada pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento do outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana. Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado, 75
  • 76. não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao «Tu» divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência. 120. Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e dificuldades: «Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social». [97] 121. Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos. O próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular em diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua eterna novidade.[98] O relativismo prático 122. Um antropocentrismo desordenado gera um estilo de vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza a nossa época e que é «ainda mais perigoso que o doutrinal». 76
  • 77. [99] Quando o ser humano se coloca no centro, acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o mais se torna relativo. Por isso, não deveria surpreender que, juntamente com a omnipresença do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem limites, se desenvolva nos indivíduos este relativismo no qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite compreender como se alimentam mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social. 123. A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objeto, obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo-a à escravidão por causa duma dívida. É a mesma lógica que leva à exploração sexual das crianças, ou ao abandono dos idosos que não servem os interesses próprios. É também a lógica interna daqueles que dizem: «Deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque os seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis». Se não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do 77
  • 78. «usa e joga fora» que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade. Portanto, não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os comportamentos que afetam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar. A necessidade de defender o trabalho 124. Em qualquer abordagem de ecologia integral que não exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor do trabalho, tão sabiamente desenvolvido por São João Paulo II na sua encíclica Laborem excercens. Recordemos que, segundo a narração bíblica da criação, Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn2, 15), não só para cuidar do existente (guardar), mas também para trabalhar nele a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os operários e os artesãos «asseguram uma criação perpétua» (Sir 38, 34). Na realidade, a intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas: «O Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem sensato não os desprezará» (Sir 38, 4). 125. Se procurarmos pensar quais possam ser as relações adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia, surge a necessidade duma concepção correta do trabalho, porque, 78
  • 79. falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se- nos a questão relativa ao sentido e finalidade da ação humana sobre a realidade. Não falamos apenas do trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer atividade que implique alguma transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao projeto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos. 126. Algo se pode recolher também da longa tradição monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo modo a fuga do mundo, procurando afastar-se da decadência urbana. Por isso, os monges buscavam o deserto, convencidos de que fosse o lugar adequado para reconhecer a presença de Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus monges vivessem em comunidade, unindo oração e estudo com o trabalho manual («Ora et labora»). Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa relação com o mundo. 79
  • 80. 127. Afirmamos que «o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econômico-social».[100] Apesar disso, quando no ser humano se deteriora a capacidade de contemplar e respeitar, criam-se as condições para se desfigurar o sentido do trabalho.[101] Convém recordar sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual».[102] O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por isso, a realidade social do munda atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade econômica, «se continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos».[103] 128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, 80
  • 81. que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a ação do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto negativo no plano Econômico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência civil». [104] Em suma, «os custos humanos são sempre também custos Econômicos, e as disfunções Econômicas acarretam sempre também custos humanos».[105]Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade. 129. Para se conseguir continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no setor agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais. As tentativas feitas por alguns deles no sentido de desenvolverem outras formas de produção, mais diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a infra-estrutura de venda e transporte está ao serviço das grandes empresas. As autoridades têm o direito e a 81
  • 82. responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação da produção. Às vezes, para que haja uma liberdade econômica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples proclamação da liberdade econômica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a política. A atividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum. A inovação biológica a partir da pesquisa 130. Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas «desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas».[106] Recorda, com firmeza, que o poder humano tem limites e que «é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo o 82
  • 83. uso e experimentação «exige um respeito religioso pela integridade da criação».[108] 131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus», mas ao mesmo tempo recordava que «toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da consideração das suas consequências noutras áreas».[109]Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição «do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria»,[110] embora dissesse também que isto não deve levar a uma «indiscriminada manipulação genética»[111]que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a um artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para o progresso científico e tecnológico, cujas capacidades foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar os objetivos, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder com grandes riscos. 132. Neste quadro, deveria situar-se toda e qualquer reflexão acerca da intervenção humana sobre o mundo vegetal e animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela biotecnologia, a fim de aproveitar as possibilidades presentes na realidade material. O respeito da fé pela razão pede para 83
  • 84. se prestar atenção àquilo que a própria ciência biológica, desenvolvida independentemente dos interesses Econômicos, possa ensinar a propósito das estruturas biológicas e das suas possibilidades e mutações. Em todo o caso, é legítima uma intervenção que atue sobre a natureza «para a ajudar a desenvolver-se na sua própria linha, a da criação, querida por Deus».[112] 133. É difícil emitir um juízo geral sobre o desenvolvimento de organismos modificados geneticamente (OMG), vegetais ou animais, para fins medicinais ou agro-pecuários, porque podem ser muito diferentes entre si e requerer distintas considerações. Além disso, os riscos nem sempre se devem atribuir à própria técnica, mas à sua aplicação inadequada ou excessiva. Na realidade, muitas vezes as mutações genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria natureza. E mesmo as provocadas pelo ser humano não são um fenômeno moderno. A domesticação de animais, o cruzamento de espécies e outras práticas antigas e universalmente seguidas podem incluir-se nestas considerações. É oportuno recordar que o início dos progressos científicos sobre cereais transgênicos foi a observação de bactérias que, de forma natural e espontânea, produziam uma modificação no genoma dum vegetal. Mas, na natureza, estes processos têm um ritmo lento, que não se compara com a velocidade imposta pelos avanços tecnológicos atuais, mesmo quando estes avanços se baseiam num desenvolvimento científico de vários séculos. 134. Embora não disponhamos de provas definitivas acerca do dano que poderiam causar os cereais transgénicos aos 84
  • 85. seres humanos e apesar de, nalgumas regiões, a sua utilização ter produzido um crescimento Econômico que contribuiu para resolver determinados problemas, há dificuldades importantes que não devem ser minimizadas. Em muitos lugares, na sequência da introdução destas culturas, constata-se uma concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, devido ao «progressivo desaparecimento de pequenos produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se viram obrigados a retirar-se da produção direta».[113] Os mais frágeis deles tornam-se trabalhadores precários, e muitos assalariados agrícolas acabam por emigrar para miseráveis aglomerados das cidades. A expansão destas culturas destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e afeta o presente ou o futuro das economias regionais. Em vários países, nota-se uma tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes e outros produtos necessários para o cultivo, e a dependência agrava-se quando se pensa na produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os agricultores a comprá-las às empresas produtoras. 135. Sem dúvida, há necessidade duma atenção constante, que tenha em consideração todos os aspectos éticos implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a informação disponível e chamar as coisas pelo seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa, mas é seleccionada de acordo com os próprios interesses, sejam eles políticos, Econômicos ou ideológicos. Isto torna difícil elaborar um juízo equilibrado e 85
  • 86. prudente sobre as várias questões, tendo presente todas as variáveis em jogo. É necessário dispor de espaços de debate, onde todos aqueles que poderiam de algum modo ver-se, direta ou indiretamente, afetados (agricultores, consumidores, autoridades, cientistas, produtores de sementes, populações vizinhas dos campos tratados e outros) tenham possibilidade de expor as suas problemáticas ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para adotar decisões tendentes ao bem comum presente e futuro. A questão dos OMG é uma questão de carácter complexo, que requer ser abordada com um olhar abrangente de todos os aspectos; isto exigiria pelo menos um maior esforço para financiar distintas linhas de pesquisa autónoma e interdisciplinar que possam trazer nova luz. 136. Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é independente do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder. CAPÍTULO IV 86
  • 87. UMA ECOLOGIA INTEGRAL 137. Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais. 1. Ecologia ambiental, Econômica e social 138. A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios átomos ou as partículas subatômicas se podem considerar separadamente. Assim como os vários componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos – estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. Boa parte da nossa informação genética é partilhada com muitos seres vivos. Por isso, os conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de ignorância, quando resistem a integrar-se numa visão mais ampla da realidade. 139. Quando falamos de «meio ambiente», fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos de 87
  • 88. considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza. 140. Devido à quantidade e variedade de elementos a ter em conta na hora de determinar o impacto ambiental dum empreendimento concreto, torna-se indispensável dar aos pesquisadores um papel preponderante e facilitar a sua interação com uma ampla liberdade académica. Esta pesquisa constante deveria permitir reconhecer também como as diferentes criaturas se relacionam, formando aquelas unidades maiores que hoje chamamos «ecossistemas». Temo-los em conta não só para determinar qual é o seu uso razoável, mas também porque possuem um valor intrínseco, independente de tal uso. Assim como cada organismo é bom e admirável em si mesmo pelo fato de ser uma criatura de Deus, o mesmo se pode dizer do conjunto harmônico de organismos num determinado espaço, 88
  • 89. funcionando como um sistema. Embora não tenhamos consciência disso, dependemos desse conjunto para a nossa própria existência. Convém recordar que os ecossistemas intervêm na retenção do anidrido carbónico, na purificação da água, na contraposição a doenças e pragas, na composição do solo, na decomposição dos resíduos, e muitíssimos outros serviços que esquecemos ou ignoramos. Quando se dão conta disto, muitas pessoas voltam a tomar consciência de que vivemos e agimos a partir duma realidade que nos foi previamente dada, que é anterior às nossas capacidades e à nossa existência. Por isso, quando se fala de «uso sustentável», é preciso incluir sempre uma consideração sobre a capacidade regenerativa de cada ecossistema nos seus diversos setores e aspetos. 141. Além disso, o crescimento Econômico tende a gerar automatismos e a homogeneizar, a fim de simplificar os processos e reduzir os custos. Por isso, é necessária uma ecologia Econômica, capaz de induzir a considerar a realidade de forma mais ampla. Com efeito, «a proteção do meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente».[114] Mas, ao mesmo tempo, torna-se atual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos distintos saberes, incluindo o Econômico, para uma visão mais integral e integradora. Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio ambiente. Há uma interação entre os ecossistemas e entre os diferentes 89
  • 90. mundos de referência social e, assim, se demonstra mais uma vez que «o todo é superior à parte».[115] 142. Se tudo está relacionado, também o estado de saúde das instituições duma sociedade tem consequências no ambiente e na qualidade de vida humana: «toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais». [116] Neste sentido, a ecologia social é necessariamente institucional e progressivamente alcança as diferentes dimensões, que vão desde o grupo social primário, a família, até à vida internacional, passando pela comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos níveis sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as relações humanas. Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda da liberdade, a injustiça e a violência. Vários países são governados por um sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para benefício daqueles que lucram com este estado de coisas. Tanto dentro da administração do Estado, como nas diferentes expressões da sociedade civil, ou nas relações dos habitantes entre si, registam-se, com demasiada frequência, comportamentos ilegais. As leis podem estar redigidas de forma correta, mas muitas vezes permanecem letra morta. Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as normativas relativas ao meio ambiente sejam realmente eficazes? Sabemos, por exemplo, que países dotados duma legislação clara sobre a proteção das florestas continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação. Além disso, o que acontece numa região influi, direta ou indiretamente, nas outras regiões. Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades opulentas provoca uma 90
  • 91. constante ou crescente procura de produtos que provêm de regiões empobrecidas, onde se corrompem comportamentos, se destroem vidas e se acaba por degradar o meio ambiente. 2. Ecologia cultural 143. A par do patrimônio natural, encontra-se igualmente ameaçado um patrimônio histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais diretamente, pede que se preste atenção às culturas locais, quando se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente. 144. A visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual, tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade. Por isso, pretender resolver todas as dificuldades através de normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que 91
  • 92. requerem a participação ativa dos habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre se podem integrar dentro de modelos estabelecidos do exterior, mas hão-de ser provenientes da própria cultura local. Assim como a vida e o mundo são dinâmicos, assim também o cuidado do mundo deve ser flexível e dinâmico. As soluções meramente técnicas correm o risco de tomar em consideração sintomas que não correspondem às problemáticas mais profundas. É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento dum grupo social supõe um processo histórico no âmbito dum contexto cultural e requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano. 145. Muitas formas de intensa exploração e degradação do meio ambiente podem esgotar não só os meios locais de subsistência, mas também os recursos sociais que consentiram um modo de viver que sustentou, durante longo tempo, uma identidade cultural e um sentido da existência e da convivência social. O desaparecimento duma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal. A imposição dum estilo hegemônico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas. 146. Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições 92
  • 93. culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem Econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agro-pecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura. 3. Ecologia da vida quotidiana 147. Para se poder falar de autêntico progresso, será preciso verificar que se produza uma melhoria global na qualidade de vida humana; isto implica analisar o espaço onde as pessoas transcorrem a sua existência. Os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir. Ao mesmo tempo, no nosso quarto, na nossa casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente para exprimir a nossa identidade. Esforçamo-nos por nos adaptar ao ambiente e, quando este aparece desordenado, caótico ou cheio de poluição visiva e acústica, o excesso de estímulos põe à prova as nossas tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz. 148. Admirável é a criatividade e generosidade de pessoas e grupos que são capazes de dar a volta às limitações do ambiente, modificando os efeitos adversos dos 93
  • 94. condicionalismos e aprendendo a orientar a sua existência no meio da desordem e precariedade. Por exemplo, nalguns lugares onde as fachadas dos edifícios estão muito deterioradas, há pessoas que cuidam com muita dignidade o interior das suas habitações, ou que se sentem bem pela cordialidade e amizade das pessoas. A vida social positiva e benfazeja dos habitantes enche de luz um ambiente à primeira vista inabitável. É louvável a ecologia humana que os pobres conseguem desenvolver, no meio de tantas limitações. A sensação de sufocamento, produzida pelos aglomerados residenciais e pelos espaços com alta densidade populacional, é contrastada se se desenvolvem calorosas relações humanas de vizinhança, se se criam comunidades, se as limitações ambientais são compensadas na interioridade de cada pessoa que se sente inserida numa rede de comunhão e pertença. Deste modo, qualquer lugar deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida digna. 149. Inversamente está provado que a penúria extrema vivida nalguns ambientes privados de harmonia, magnanimidade e possibilidade de integração, facilita o aparecimento de comportamentos desumanos e a manipulação das pessoas por organizações criminosas. Para os habitantes de bairros periféricos muito precários, a experiência diária de passar da superlotação ao anonimato social, que se vive nas grandes cidades, pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece comportamentos anti-sociais e violência. Todavia tenho a peito reiterar que o amor é mais forte. Muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença e 94
  • 95. convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo. Esta experiência de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reações criativas para melhorar um edifício ou um bairro.[117] 150. Dada a relação entre os espaços urbanizados e o comportamento humano, aqueles que projetam edifícios, bairros, espaços públicos e cidades precisam da contribuição dos vários saberes que permitem compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas. Não é suficiente a busca da beleza no projeto, porque tem ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua. Por isso também, é tão importante que o ponto de vista dos habitantes do lugar contribua sempre para a análise da planificação urbanista. 151. É preciso cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento de «estar em casa» dentro da cidade que nos envolve e une. É importante que as diferentes partes duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam ter uma visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros. Toda a intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os diferentes elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes como um contexto coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos e 95
  • 96. podemos senti-los como parte de um «nós» que construímos juntos. Pela mesma razão, tanto no meio urbano como no rural, convém preservar alguns espaços onde se evitem intervenções humanas que os alterem constantemente. 152. A falta de habitação é grave em muitas partes do mundo, tanto nas áreas rurais como nas grandes cidades, nomeadamente porque os orçamentos estatais em geral cobrem apenas uma pequena parte da procura. E não só os pobres, mas uma grande parte da sociedade encontra sérias dificuldades para ter uma casa própria. A propriedade da casa tem muita importância para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das famílias. Trata-se duma questão central da ecologia humana. Se num lugar concreto já se desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os habitantes. Mas, quando os pobres vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados perigosos, «no caso de ter de se proceder à sua deslocação, para não acrescentar mais sofrimento ao que já padecem, é necessário fornecer-lhes uma adequada e prévia informação, oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos e envolver diretamente os interessados».[118] Ao mesmo tempo, a criatividade deveria levar à integração dos bairros precários numa cidade acolhedora: «Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta integração um novo fator de progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetônico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!»[119] 96
  • 97. 153. Nas cidades, a qualidade de vida está largamente relacionada com os transportes, que muitas vezes são causa de grandes tribulações para os habitantes. Nelas, circulam muitos carros utilizados por uma ou duas pessoas, pelo que o tráfico torna-se intenso, eleva-se o nível de poluição, consomem-se enormes quantidades de energia não- renovável e torna-se necessário a construção de mais estradas e parques de estacionamento que prejudicam o tecido urbano. Muitos especialistas estão de acordo sobre a necessidade de dar prioridade ao transporte público. Mas é difícil que algumas medidas consideradas necessárias sejam pacificamente acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria substancial do referido transporte, que, em muitas cidades, comporta um tratamento indigno das pessoas devido à superlotação, ao desconforto, ou à reduzida frequência dos serviços e à insegurança. 154. O reconhecimento da dignidade peculiar do ser humano contrasta frequentemente com a vida caótica que têm de fazer as pessoas nas nossas cidades. Mas isto não deveria levar a esquecer o estado de abandono e desleixo que sofrem também alguns habitantes das áreas rurais, onde não chegam os serviços essenciais e há trabalhadores reduzidos a situações de escravidão, sem direitos nem expectativas duma vida mais dignificante. 155. A ecologia humana implica também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma «ecologia do 97
  • 98. homem», porque «também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece». [120] Nesta linha, é preciso reconhecer que o nosso corpo nos põe em relação direta com o meio ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda «cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[121] 4. O princípio do bem comum 156. A ecologia humana é inseparável da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social. É «o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição».[122] 157. O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. 98
  • 99. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência. Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum. 158. Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção implica tirar as consequências do destino comum dos bens da terra, mas – como procurei mostrar na exortação apostólica Evangelii gaudium [123] – exige acima de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das mais profundas convições de fé. Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum. 5. A justiça intergeneracional 159. A noção de bem comum engloba também as gerações futuras. As crises Econômicas internacionais mostraram, de forma atroz, os efeitos nocivos que traz consigo o desconhecimento de um destino comum, do qual não podem ser excluídos aqueles que virão depois de nós. Já não se 99
  • 100. pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade intergeneracional. Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta às gerações futuras, entramos noutra lógica: a do dom gratuito, que recebemos e comunicamos. Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de vir. Os bispos de Portugal exortaram a assumir este dever de justiça: «O ambiente situa-se na lógica da recepção. É um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte».[124] Uma ecologia integral possui esta perspectiva ampla. 160. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito diretas: Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar- nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos 100
  • 101. nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra. 161. As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio atual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências. 162. A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica. O homem e a mulher deste mundo pós-moderno correm o risco permanente de se tornar profundamente individualistas, e muitos problemas sociais de hoje estão relacionados com a busca egoísta duma satisfação imediata, com as crises dos laços familiares e sociais, com as dificuldades em reconhecer o outro. Muitas vezes há um consumo excessivo e míope dos pais que prejudica os próprios filhos, que sentem cada vez mais dificuldade em comprar casa própria e fundar uma família. Além disso esta falta de capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de alargar o horizonte das nossas preocupações e pensar 101
  • 102. naqueles que permanecem excluídos do desenvolvimento. Não percamos tempo a imaginar os pobres do futuro, é suficiente que recordemos os pobres de hoje, que poucos anos têm para viver nesta terra e não podem continuar a esperar. Por isso, «para além de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da mesma geração».[125] CAPÍTULO V ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO 163. Procurei examinar a situação atual da humanidade, tanto nas brechas do planeta que habitamos, como nas causas mais profundamente humanas da degradação ambiental. Embora esta contemplação da realidade em si mesma já nos indique a necessidade duma mudança de rumo e sugira algumas ações, procuremos agora delinear grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde estamos a afundar. 1. O diálogo sobre o meio ambiente na política internacional 164. Desde meados do século passado e superando muitas dificuldades, foi-se consolidando a tendência de conceber o planeta como pátria e a humanidade como povo que habita uma casa comum. Um mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências danosas 102
  • 103. dos estilos de vida, produção e consumo afetam a todos, mas principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir duma perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países. A interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum. Mas, a mesma inteligência que foi utilizada para um enorme desenvolvimento tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional para resolver as graves dificuldades ambientais e sociais. Para enfrentar os problemas de fundo, que não se podem resolver com ações de países isolados, torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética, promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir a todos o acesso à água potável. 165. Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída. Enquanto aguardamos por um amplo desenvolvimento das energias renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo mal menor ou recorrer a soluções transitórias. Todavia, na comunidade internacional, não se consegue suficiente acordo sobre a responsabilidade de quem deve suportar os maiores custos da transição energética. Nas últimas décadas, as questões ambientais deram origem a um amplo debate público, que fez crescer na sociedade civil espaços de notável compromisso e generosa dedicação. A política e a 103
  • 104. indústria reagem com lentidão, longe de estar à altura dos desafios mundiais. Neste sentido, pode-se dizer que, enquanto a humanidade do período pós-industrial talvez fique recordada como uma das mais irresponsáveis da história, espera-se que a humanidade dos inícios do século XXI possa ser lembrada por ter assumido com generosidade as suas graves responsabilidades. 166. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo caminho, enriquecido pelo esforço de muitas organizações da sociedade civil. Não seria possível mencioná-las todas aqui, nem repassar a história das suas contribuições. Mas, graças a tanta dedicação, as questões ambientais têm estado cada vez mais presentes na agenda pública e tornaram-se um convite permanente a pensar a longo prazo. Apesar disso, as cimeiras mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes. 167. Dentre elas, há que recordar a Cimeira da Terra, celebrada em 1992 no Rio de Janeiro. Lá se proclamou que «os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável». [126] Retomando alguns conteúdos da Declaração de Estocolmo (1972), sancionou, entre outras coisas, a cooperação internacional no cuidado do ecossistema de toda a terra, a obrigação de quem contaminar assumir economicamente os custos derivados, o dever de avaliar o impacto ambiental de toda e qualquer obra ou projeto. Propôs o objetivo de estabilizar as concentrações de gases 104
  • 105. com efeito de estufa na atmosfera para inverter a tendência do aquecimento global. Também elaborou uma agenda com um programa de ação e uma convenção sobre biodiversidade, declarou princípios em matéria florestal. Embora tal cimeira marcasse um passo em frente e fosse verdadeiramente profética para a sua época, os acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática. 168. Como experiências positivas, pode-se mencionar, por exemplo, a Convenção de Basileia sobre os resíduos perigosos, com um sistema de notificação, níveis estipulados e controles, e também a Convenção vinculante sobre o comércio internacional das espécies da fauna e da flora selvagens ameaçadas de extinção, que prevê missões de verificação do seu efetivo cumprimento. Graças à Convenção de Viena para a proteção da camada de ozônio e a respectiva implementação através do Protocolo de Montreal e as suas emendas, o problema da diminuição da referida camada parece ter entrado numa fase de solução. 169. No cuidado da biodiversidade e no contraste à desertificação, os avanços foram muito menos significativos. Relativamente às mudanças climáticas, os progressos são, infelizmente, muito escassos. A redução de gases com efeito de estufa requer honestidade, coragem e responsabilidade, sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes. A Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento 105
  • 106. Sustentável, chamada Rio+20 (Rio de Janeiro 2012), emitiu uma Declaração Final extensa mas ineficaz. As negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global. Aqueles que hão-de sofrer as consequências que tentamos dissimular, recordarão esta falta de consciência e de responsabilidade. Durante o período de elaboração desta encíclica, o debate adquiriu particular intensidade. Nós, crentes, não podemos deixar de rezar a Deus pela evolução positiva nos debates atuais, para que as gerações futuras não sofram as consequências de demoras imprudentes. 170. Algumas das estratégias para a baixa emissão de gases poluentes apostam na internacionalização dos custos ambientais, com o perigo de impor aos países de menores recursos pesados compromissos de redução de emissões comparáveis aos dos países mais industrializados. A imposição destas medidas penaliza os países mais necessitados de desenvolvimento. Assim, acrescenta-se uma nova injustiça sob a capa do cuidado do meio ambiente. Como sempre, a corda quebra pelo ponto mais fraco. Uma vez que os efeitos das mudanças climáticas se farão sentir durante muito tempo, mesmo que agora sejam tomadas medidas rigorosas, alguns países com escassos recursos precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a produzir-se e afetam as suas economias. É verdade que há responsabilidades comuns, mas diferenciadas, pelo simples motivo – como disseram os bispos da Bolívia – que «os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa duma enorme emissão de gases 106
  • 107. com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram». [127] 171. A estratégia de compra-venda de «créditos de emissão» pode levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio ambiente, mas que não implica de forma alguma uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e setores. 172. Para os países pobres, as prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos seus habitantes; ao mesmo tempo devem examinar o nível escandaloso de consumo de alguns setores privilegiados da sua população e contrastar melhor a corrupção. Sem dúvida, devem também desenvolver formas menos poluentes de produção de energia, mas para isso precisam de contar com a ajuda dos países que cresceram muito à custa da atual poluição do planeta. O aproveitamento direto da energia solar, tão abundante, exige que se estabeleçam mecanismos e subsídios tais, que os países em vias de desenvolvimento possam ter acesso à transferência de tecnologias, assistência técnica e recursos financeiros, mas sempre prestando atenção às condições concretas, pois «nem sempre se avalia adequadamente a compatibilidade dos sistemas com o contexto para o qual são projetados». [128] Os custos seriam baixos se comparados com os riscos 107
  • 108. das mudanças climáticas. Em todo o caso, trata-se primariamente duma decisão ética, fundada na solidariedade de todos os povos. 173. Urgem acordos internacionais que se cumpram, dada a escassa capacidade das instâncias locais para intervirem de maneira eficaz. As relações entre os Estados devem salvaguardar a soberania de cada um, mas também estabelecer caminhos consensuais para evitar catástrofes locais que acabariam por danificar a todos. São necessários padrões reguladores globais que imponham obrigações e impeçam ações inaceitáveis, como o fato de países poderosos descarregarem, sobre outros países, resíduos e indústrias altamente poluentes. 174. Mencionemos também o sistema de governança dos oceanos. Com efeito, embora tenha havido várias convenções internacionais e regionais, a fragmentação e a falta de severos mecanismos de regulamentação, controle e sanção acabam por minar todos os esforços. O problema crescente dos resíduos marinhos e da proteção das áreas marinhas para além das fronteiras nacionais continua a representar um desafio especial. Em definitivo, precisamos de um acordo sobre os regimes de governança para toda a gama dos chamados bens comuns globais. 175. A lógica que dificulta a tomada de decisões drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma que não permite cumprir o objetivo de erradicar a pobreza. Precisamos duma reação global mais responsável, que implique enfrentar, contemporaneamente, a redução da poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres. O 108
  • 109. século XXI, mantendo um sistema de governança próprio de épocas passadas, assiste a uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão Econômico- financeira, de caráter transnacional, tende a prevalecer sobre a política. Neste contexto, torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre os governos nacionais e dotadas de poder de sancionar. Com afirmou Bento XVI, na linha desenvolvida até agora pela doutrina social da Igreja, «para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e consequentes maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, delineada já pelo meu predecessor, [São] João XXIII».[129]Nesta perspectiva, a diplomacia adquire uma importância inédita, chamada a promover estratégias internacionais para prevenir os problemas mais graves que acabam por afetar a todos. 2. O diálogo para novas políticas nacionais e locais 176. Há vencedores e vencidos não só entre os países, mas também dentro dos países pobres, onde se devem identificar as diferentes responsabilidades. Por isso, as questões relacionadas com o meio ambiente e com o desenvolvimento Econômico já não se podem olhar apenas a partir das 109
  • 110. diferenças entre os países, mas exigem que se preste atenção às políticas nacionais e locais. 177. Perante a possibilidade duma utilização irresponsável das capacidades humanas, são funções inadiáveis de cada Estado planificar, coordenar, vigiar e sancionar dentro do respectivo território. Como pode a sociedade organizar e salvaguardar o seu futuro num contexto de constantes inovações tecnológicas? Um fator que atua como moderador efetivo é o direito, que estabelece as regras para as condutas permitidas à luz do bem comum. Os limites que uma sociedade sã, madura e soberana deve impor têm a ver com previsão e precaução, regulamentações adequadas, vigilância sobre a aplicação das normas, contraste da corrupção, ações de controle operacional sobre o aparecimento de efeitos não desejados dos processos de produção, e oportuna intervenção perante riscos incertos ou potenciais. Existe uma crescente jurisprudência que visa reduzir os efeitos poluentes dos empreendimentos. Mas a estrutura política e institucional não existe apenas para evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas, estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar as iniciativas pessoais e coletivas. 178. O drama duma política focalizada nos resultados imediatos, apoiada também por populações consumistas, torna necessário produzir crescimento a curto prazo. Respondendo a interesses eleitorais, os governos não se aventuram facilmente a irritar a população com medidas que possam afetar o nível de consumo ou pôr em risco investimentos estrangeiros. A construção míope do poder 110
  • 111. frena a inserção duma agenda ambiental com visão ampla na agenda pública dos governos. Esquece-se, assim, que «o tempo é superior ao espaço»[130] e que sempre somos mais fecundos quando temos maior preocupação por gerar processos do que por dominar espaços de poder. A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projeto de nação. 179. Nalguns lugares, estão a desenvolver-se cooperativas para a exploração de energias renováveis, que consentem o auto-abastecimento local e até mesmo a venda da produção em excesso. Este exemplo simples indica que, enquanto a ordem mundial existente se revela impotente para assumir responsabilidades, a instância local pode fazer a diferença. Com efeito, aqui é possível gerar uma maior responsabilidade, um forte sentido de comunidade, uma especial capacidade de solicitude e uma criatividade mais generosa, um amor apaixonado pela própria terra, tal como se pensa naquilo que se deixa aos filhos e netos. Estes valores têm um enraizamento muito profundo nas populações aborígenes. Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de organismos não-governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional e municipal –, também não é possível combater os danos ambientais. Além disso, as legislações municipais podem ser 111
  • 112. mais eficazes, se houver acordos entre populações vizinhas para sustentarem as mesmas políticas ambientais. 180. Não se pode pensar em receitas uniformes, porque há problemas e limites específicos de cada país ou região. Também é verdade que o realismo político pode exigir medidas e tecnologias de transição, desde que estejam acompanhadas pelo projeto e a aceitação de compromissos graduais vinculativos. Ao mesmo tempo, porém, a nível nacional e local, há sempre muito que fazer, como, por exemplo, promover formas de poupança energética. Isto implica favorecer modalidades de produção industrial com a máxima eficiência energética e menor utilização de matérias- primas, retirando do mercado os produtos pouco eficazes do ponto de vista energético ou mais poluentes. Podemos mencionar também uma boa gestão dos transportes ou técnicas de construção e restruturação de edifícios que reduzam o seu consumo energético e o seu nível de poluição. Além disso, a ação política local pode orientar-se para a alteração do consumo, o desenvolvimento duma economia de resíduos e reciclagem, a proteção de determinadas espécies e a programação duma agricultura diversificada com a rotação de culturas. É possível favorecer a melhoria agrícola de regiões pobres, através de investimentos em infra-estruturas rurais, na organização do mercado local ou nacional, em sistemas de irrigação, no desenvolvimento de técnicas agrícolas sustentáveis. Podem- se facilitar formas de cooperação ou de organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais. É tanto o que se pode fazer! 112
  • 113. 181. Indispensável é a continuidade, porque não se podem modificar as políticas relativas às alterações climáticas e à proteção ambiental todas as vezes que muda um governo. Os resultados requerem muito tempo e comportam custos imediatos com efeitos que não poderão ser exibidos no período de vida dum governo. Por isso, sem a pressão da população e das instituições, haverá sempre relutância a intervir, e mais ainda quando houver urgências a resolver. Para um político, assumir estas responsabilidades com os custos que implicam não corresponde à lógica eficientista e imediatista atual da economia e da política, mas, se ele tiver a coragem de o fazer, poderá novamente reconhecer a dignidade que Deus lhe deu como pessoa e deixará, depois da sua passagem por esta história, um testemunho de generosa responsabilidade. Importa dar um lugar preponderante a uma política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas. Todavia é preciso acrescentar que os melhores dispositivos acabam por sucumbir, quando faltam as grandes metas, os valores, uma compreensão humanista e rica de significado, capazes de conferir a cada sociedade uma orientação nobre e generosa. 3. Diálogo e transparência nos processos decisórios 182. A previsão do impacto ambiental dos empreendimentos e projetos requer processos políticos transparentes e sujeitos a diálogo, enquanto a corrupção, que esconde o verdadeiro impacto ambiental dum projeto em troca de favores, 113
  • 114. frequentemente leva a acordos ambíguos que fogem ao dever de informar e a um debate profundo. 183. Um estudo de impacto ambiental não deveria ser posterior à elaboração dum projeto produtivo ou de qualquer política, plano ou programa. Há-de inserir-se desde o princípio e elaborar-se de forma interdisciplinar, transparente e independente de qualquer pressão Econômica ou política. Deve aparecer unido à análise das condições de trabalho e dos possíveis efeitos na saúde física e mental das pessoas, na economia local, na segurança. Assim os resultados Econômicos poder-se-ão prever de forma mais realista, tendo em conta os cenários possíveis e, eventualmente, antecipando a necessidade dum investimento maior para resolver efeitos indesejáveis que possam ser corrigidos. É sempre necessário alcançar consenso entre os vários atores sociais, que podem trazer diferentes perspectivas, soluções e alternativas. Mas, no debate, devem ter um lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o interesse Econômico imediato. É preciso abandonar a ideia de «intervenções» sobre o meio ambiente, para dar lugar a políticas pensadas e debatidas por todas as partes interessadas. A participação requer que todos sejam adequadamente informados sobre os vários aspectos e os diferentes riscos e possibilidades, e não se reduza à decisão inicial sobre um projeto, mas implique também ações de controle ou monitoramento constante. É necessário haver sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas, 114
  • 115. sem se limitar a considerar o que é permitido ou não pela legislação. 184. Quando surgem eventuais riscos para o meio ambiente que afetam o bem comum presente e futuro, esta situação exige «que as decisões sejam baseadas num confronto entre riscos e benefícios previsíveis para cada opção alternativa possível».[131] Isto vale sobretudo quando um projeto pode causar um incremento na exploração dos recursos naturais, nas emissões ou descargas, na produção de resíduos, ou então uma mudança significativa na paisagem, no habitat de espécies protegidas ou num espaço público. Alguns projetos, não apoiados por uma análise bem cuidada, podem afetar profundamente a qualidade de vida dum lugar, devido a questões muito diferentes entre si, como, por exemplo, uma poluição acústica não prevista, a redução do horizonte visual, a perda de valores culturais, os efeitos do uso da energia nuclear. A cultura consumista, que dá prioridade ao curto prazo e aos interesses privados, pode favorecer análises demasiado rápidas ou consentir a ocultação de informação. 185. Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste exame, há questões que devem ter prioridade. Por exemplo, sabemos que a água é um recurso escasso e indispensável, sendo um direito fundamental que condiciona o exercício 115
  • 116. doutros direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de toda a análise de impato ambiental duma região. 186. Na Declaração do Rio, de 1992, afirma-se que, «quando existem ameaças de danos graves ou irreversíveis, a falta de certezas científicas absolutas não poderá constituir um motivo para adiar a adoção de medidas eficazes»[132] que impeçam a degradação do meio ambiente. Este princípio de precaução permite a proteção dos mais fracos, que dispõem de poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis. Se a informação objetiva leva a prever um dano grave e irreversível, mesmo que não haja uma comprovação indiscutível, seja o projeto que for deverá suspender-se ou modificar-se. Assim, inverte-se o ônus da prova, já que, nestes casos, é preciso fornecer uma demonstração objetiva e contundente de que a atividade proposta não vai gerar danos graves ao meio ambiente ou às pessoas que nele habitam. 187. Isto não implica opor-se a toda e qualquer inovação tecnológica que permita melhorar a qualidade de vida duma população. Mas, em todo o caso, deve permanecer de pé que a rentabilidade não pode ser o único critério a ter em conta e, na hora em que aparecessem novos elementos de juízo a partir de ulteriores dados informativos, deveria haver uma nova avaliação com a participação de todas as partes interessadas. O resultado do debate pode ser a decisão de não avançar num projeto, mas poderia ser também a sua modificação ou a elaboração de propostas alternativas. 188. Há discussões sobre problemas relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma 116
  • 117. vez mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum. 4. Política e economia em diálogo para a plenitude humana 189. A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. A crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reação que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. A produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis Econômicas que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu valor real. Isto leva frequentemente a uma superprodução dalgumas mercadorias, com um impato ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica muitas economias regionais.[133] Habitualmente, a bolha financeira é também uma bolha produtiva. Em suma, o que 117
  • 118. não se enfrenta com energia é o problema da economia real, aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a produção, que as empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e médias empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho. 190. Neste contexto, sempre se deve recordar que «a proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente». [134] Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações? Dentro do esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da natureza, nos seus tempos de degradação e regeneração, e na complexidade dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela intervenção humana. Além disso, quando se fala de biodiversidade, no máximo pensa-se nela como um reservatório de recursos Econômicos que poderia ser explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres. 191. Quando se colocam estas questões, alguns reagem acusando os outros de pretender parar, irracionalmente, o progresso e o desenvolvimento humano. Mas temos de nos 118
  • 119. convencer que, reduzir um determinado ritmo de produção e consumo, pode dar lugar a outra modalidade de progresso e desenvolvimento. Os esforços para um uso sustentável dos recursos naturais não são gasto inútil, mas um investimento que poderá proporcionar outros benefícios Econômicos a médio prazo. Se não temos vista curta, podemos descobrir que pode ser muito rentável a diversificação duma produção mais inovadora e com menor impato ambiental. Trata-se de abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implicam frenar a criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por novos canais. 192. Por exemplo, um percurso de desenvolvimento produtivo mais criativo e melhor orientado poderia corrigir a disparidade entre o excessivo investimento tecnológico no consumo e o escasso investimento para resolver os problemas urgentes da humanidade; poderia gerar formas inteligentes e rentáveis de reutilização, recuperação funcional e reciclagem; poderia melhorar a eficiência energética das cidades... A diversificação produtiva oferece à inteligência humana possibilidades muito amplas de criar e inovar, ao mesmo tempo que protege o meio ambiente e cria mais oportunidades de trabalho. Esta seria uma criatividade capaz de fazer reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais dignificante usar a inteligência, com audácia e responsabilidade, para encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, no quadro duma concepção mais ampla da qualidade de vida. Ao contrário, é menos dignificante e criativo e mais superficial insistir na criação de formas de espoliação da natureza só para oferecer novas possibilidades de consumo e de ganho imediato. 119
  • 120. 193. Assim, se nalguns casos o desenvolvimento sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde. Sabemos que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes. Bento XVI dizia que «é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização».[135] 194. Para que apareçam novos modelos de progresso, precisamos de «converter o modelo de desenvolvimento global»[136], e isto implica refletir responsavelmente «sobre o sentido da economia e dos seus objetivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações».[137] Não é suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e Econômico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso. Além disso, muitas vezes a qualidade 120
  • 121. real de vida das pessoas diminui – pela deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos produtos alimentares ou o esgotamento de alguns recursos – no contexto dum crescimento da economia. Então, muitas vezes, o discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem. 195. O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar- se de todas as outras considerações, é uma distorção concetual da economia: desde que aumente a produção, pouco interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se o derrube duma floresta aumenta a produção, ninguém insere no respetivo cálculo a perda que implica desertificar um território, destruir a biodiversidade ou aumentar a poluição. Por outras palavras, as empresas obtêm lucros calculando e pagando uma parte ínfima dos custos. Poder-se-ia considerar ético somente um comportamento em que «os custos Econômicos e sociais derivados do uso dos recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de maneira transparente e plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras populações nem pelas gerações futuras».[138] A mentalidade utilitária, que fornece apenas uma análise estática da realidade em função de necessidades atuais, está presente tanto quando é o mercado que atribui os recursos como quando o faz um Estado planificador. 121
  • 122. 196. Qual é o lugar da política? Recordemos o princípio da subsidiariedade, que dá liberdade para o desenvolvimento das capacidades presentes a todos os níveis, mas simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais poder. É verdade que, hoje, alguns setores Econômicos exercem mais poder do que os próprios Estados. Mas não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspetos da crise atual. A lógica que não deixa espaço para uma sincera preocupação pelo meio ambiente é a mesma em que não encontra espaço a preocupação por integrar os mais frágeis, porque, «no modelo “do êxito” e “individualista” em vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida».[139] 197. Precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspetos da crise. Muitas vezes, a própria política é responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas. Se o Estado não cumpre o seu papel numa região, alguns grupos Econômicos podem-se apresentar como benfeitores e apropriar-se do poder real, sentindo-se autorizados a não observar certas normas até se chegar às diferentes formas de criminalidade organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico e violência muito difícil de erradicar. Se a política não é capaz de romper uma lógica perversa e perde-se também em discursos inconsistentes, continuaremos sem enfrentar os grandes problemas da humanidade. Uma estratégia de mudança real exige repensar a totalidade dos processos, 122
  • 123. pois não basta incluir considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser em discussão a lógica subjacente à cultura atual. Uma política sã deveria ser capaz de assumir este desafio. 198. A política e a economia tendem a culpar-se reciprocamente a respeito da pobreza e da degradação ambiental. Mas o que se espera é que reconheçam os seus próprios erros e encontrem formas de interação orientadas para o bem comum. Enquanto uns se afanam apenas com o ganho Econômico e os outros estão obcecados apenas por conservar ou aumentar o poder, o que nos resta são guerras ou acordos espúrios, onde o que menos interessa às duas partes é preservar o meio ambiente e cuidar dos mais fracos. Vale aqui também o princípio de que «a unidade é superior ao conflito».[140] 5. As religiões no diálogo com as ciências 199. Não se pode sustentar que as ciências empíricas expliquem completamente a vida, a essência íntima de todas as criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar indevidamente os seus confins metodológicos limitados. Se se reflete dentro deste quadro restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a capacidade da razão perceber o sentido e a finalidade das coisas. [141] Quero lembrar que «os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes (...). Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença religiosa?»[142] Realmente, é ingênuo pensar que os 123
  • 124. princípios éticos possam ser apresentados de modo puramente abstrato, desligados de todo o contexto, e o fato de aparecerem com uma linguagem religiosa não lhes tira valor algum no debate público. Os princípios éticos que a razão é capaz de perceber, sempre podem reaparecer sob distintas roupagens e expressos com linguagens diferentes, incluindo a religiosa. 200. Além disso, qualquer solução técnica que as ciências pretendam oferecer será impotente para resolver os graves problemas do mundo, se a humanidade perde o seu rumo, se esquece as grandes motivações que tornam possível a convivência social, o sacrifício, a bondade. Em todo o caso, será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com as suas ações; será necessário insistir para que se abram novamente à graça de Deus e se nutram profundamente das próprias convições sobre o amor, a justiça e a paz. Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos guardar. Muitas vezes os limites culturais de distintas épocas condicionaram esta consciência do próprio patrimônio ético e espiritual, mas é precisamente o regresso às respectivas fontes que permite às religiões responder melhor às necessidades atuais. 201. A maior parte dos habitantes do planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem 124
  • 125. diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber. Isto impede de enfrentar adequadamente os problemas do meio ambiente. Torna-se necessário também um diálogo aberto e respeitador dos diferentes movimentos ecologistas, entre os quais não faltam as lutas ideológicas. A gravidade da crise ecológica obriga-nos, a todos, a pensar no bem comum e a prosseguir pelo caminho do diálogo que requer paciência, ascese e generosidade, lembrando-nos sempre que «a realidade é superior à ideia».[143] CAPÍTULO VI EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS 202. Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convições, atitudes e estilos de vida. Surge, assim, um grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração. 1. Apontar para outro estilo de vida 125
  • 126. 203. Dado que o mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjetivo do paradigma tecno-Econômico. Está a acontecer aquilo que já assinalava Romano Guardini: o ser humano «aceita os objetos comuns e as formas habituais da vida como lhe são impostos pelos planos nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em geral, age assim com a impressão de que tudo isto seja razoável e justo».[144] O referido paradigma faz crer a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, quando na realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o poder Econômico e financeiro. Nesta confusão, a humanidade pós-moderna não encontrou uma nova compreensão de si mesma que a possa orientar, e esta falta de identidade é vivida com angústia. Temos demasiados meios para escassos e raquíticos fins. 204. A situação atual do mundo «gera um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo coletivo». [145] Quando as pessoas se tornam auto-referenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste horizonte, não existe sequer um verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de sujeito que tende a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas apenas na medida em que não contradigam as necessidades 126
  • 127. próprias. Por isso, não pensemos só na possibilidade de terríveis fenômenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca. 205. Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações. A cada pessoa deste mundo, peço para não esquecer esta sua dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar. 206. Uma mudança nos estilos de vida poderia chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder político, Econômico e social. Verifica-se isto quando os movimentos de consumidores conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim se tornam eficazes na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a reconsiderar o impato ambiental e os modelos de produção. É um fato que, quando os hábitos da sociedade afetam os ganhos das empresas, estas vêem-se pressionadas a mudar a produção. Isto lembra-nos a responsabilidade social dos consumidores. «Comprar é sempre um ato moral, para além 127
  • 128. de Econômico».[146] Por isso, hoje, «o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós».[147] 207. A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível. Por isso, atrevo-me a propor de novo aquele considerável desafio: «Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida». [148] 208. Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro. Sem tal capacidade, não se reconhece às outras criaturas o seu valor, não se sente interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue impor limites para evitar o sofrimento ou a degradação do que nos rodeia. A atitude basilar de se auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto- referencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a reação moral de ter em conta o impato que possa provocar cada ação e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade. 128
  • 129. 2. Educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente 209. A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se em novos hábitos. Muitos estão cientes de que não basta o progresso atual e a mera acumulação de objetos ou prazeres para dar sentido e alegria ao coração humano, mas não se sentem capazes de renunciar àquilo que o mercado lhes oferece. Nos países que deveriam realizar as maiores mudanças nos hábitos de consumo, os jovens têm uma nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso, e alguns deles lutam admiravelmente pela defesa do meio ambiente, mas cresceram num contexto de altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação doutros hábitos. Por isso, estamos perante um desafio educativo. 210. A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus objetivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica, 129
  • 130. de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão. 211. Às vezes, porém, esta educação, chamada a criar uma «cidadania ecológica», limita-se a informar e não consegue fazer maturar hábitos. A existência de leis e normas não é suficiente, a longo prazo, para limitar os maus comportamentos, mesmo que haja um válido controle. Para a norma jurídica produzir efeitos importantes e duradouros, é preciso que a maior parte dos membros da sociedade a tenha acolhido, com base em motivações adequadas, e reaja com uma transformação pessoal. A doação de si mesmo num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de virtudes sólidas. Se uma pessoa habitualmente se resguarda um pouco mais em vez de ligar o aquecimento, embora as suas economias lhe permitam consumir e gastar mais, isso supõe que adquiriu convicções e modos de sentir favoráveis ao cuidado do ambiente. É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas até dar forma a um estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias… Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e dignificante, 130
  • 131. que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar – com base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o desperdiçar rapidamente pode ser um ato de amor que exprime a nossa dignidade. 212. E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas ações espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente. Além disso, o exercício destes comportamentos restitui-nos o sentimento da nossa dignidade, leva-nos a uma maior profundidade existencial, permite-nos experimentar que vale a pena a nossa passagem por este mundo. 213. Vários são os âmbitos educativos: a escola, a família, os meios de comunicação, a catequese, e outros. Uma boa educação escolar em tenra idade coloca sementes que podem produzir efeitos durante toda a vida. Mas, quero salientar a importância central da família, porque «é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da cultura da vida».[149] Na família, cultivam-se os primeiros hábitos de amor e cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correto das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a proteção de todas as criaturas. A família é o lugar da formação integral, onde se desenvolvem os distintos aspetos, intimamente relacionados entre si, do 131
  • 132. amadurecimento pessoal. Na família, aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer «obrigado» como expressão duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa quando fazemos algo de mal. Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia. 214. Compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da população. Naturalmente compete também à Igreja. Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação. Espero também que, nos nossos Seminários e Casas Religiosas de Formação, se eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente. Tendo em conta o muito que está em jogo, do mesmo modo que são necessárias instituições dotadas de poder para punir os danos ambientais, também nós precisamos de nos controlar e educar uns aos outros. 215. Neste contexto, «não se deve descurar nunca a relação que existe entre uma educação estética apropriada e a preservação de um ambiente sadio».[150]Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir mudanças profundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus 132
  • 133. esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado. 3. A conversão ecológica 216. A grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade. Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver. Não se trata tanto de propor ideias, como sobretudo falar das motivações que derivam da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Com efeito, não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem «uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária».[151] Temos de reconhecer que nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com tudo o que nos rodeia. 217. Se «os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos», [152] a crise ecológica é um apelo a uma profunda 133
  • 134. conversão interior. Entretanto temos de reconhecer também que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa. 218. Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa. Isto exige também reconhecer os próprios erros, pecados, vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a partir de dentro. A Igreja na Austrália soube expressar a conversão em termos de reconciliação com a criação: «Para realizar esta reconciliação, devemos examinar as nossas vidas e reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus com as nossas ações e com a nossa incapacidade de agir. Devemos fazer a experiência duma conversão, duma mudança do coração».[153] 219. Todavia, para se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais 134
  • 135. responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias: «As exigências desta obra serão tão grandes, que as possibilidades das iniciativas individuais e a cooperação dos particulares, formados de maneira individualista, não serão capazes de lhes dar resposta. Será necessária uma união de forças e uma unidade de contribuições». [154] A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária. 220. Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja nem agradeça. «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita (...); e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te» (Mt 6, 3-4). Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres. Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável» (Rm12, 1). Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem de domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por 135
  • 136. sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé. 221. Ajudam a enriquecer o sentido de tal conversão várias convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início desta encíclica, como, por exemplo, a consciência de que cada criatura reflete algo de Deus e tem uma mensagem para nos transmitir, ou a certeza de que Cristo assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e ainda o reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e um dinamismo que o ser humano não tem o direito de ignorar. Porventura uma pessoa, ouvindo no Evangelho Jesus dizer – a propósito dos pássaros – que «nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc12, 6), será capaz de os maltratar ou causar- lhes dano? Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis. 4. Alegria e paz 222. A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. É importante adotar um antigo ensinamento, presente em distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação 136
  • 137. constante de possibilidades para consumir distrai o coração e impede de dar o devido apreço a cada coisa e a cada momento. Pelo contrário, tornar-se serenamente presente diante de cada realidade, por mais pequena que seja, abre- nos muitas mais possibilidades de compreensão e realização pessoal. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres. 223. A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas. Deste modo conseguem reduzir o número das necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade. É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contato com a natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos 137
  • 138. entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece. 224. A sobriedade e a humildade não gozaram de positiva consideração no século passado. Mas, quando se debilita de forma generalizada o exercício dalguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os grandes valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autônomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é bem e o que é mal. 225. Por outro lado, ninguém pode amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida. A natureza está cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las 138
  • 139. no meio do ruído constante, da distração permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade? Muitas pessoas experimentam um desequilíbrio profundo, que as impele a fazer as coisas a toda a velocidade para se sentirem ocupadas, numa pressa constante que, por sua vez, as leva a atropelar tudo o que têm ao seu redor. Isto tem incidência no modo como se trata o ambiente. Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada».[155] 226. Falamos aqui duma atitude do coração, que vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente presente diante duma pessoa sem estar a pensar no que virá depois, que se entrega a cada momento como um dom divino que se deve viver em plenitude. Jesus ensinou-nos esta atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do campo e as aves do céu, ou quando, na presença dum homem inquieto, «fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). De certeza que Ele estava plenamente presente diante de cada ser humano e de cada criatura, mostrando- nos assim um caminho para superar a ansiedade doentia que nos torna superficiais, agressivos e consumistas desenfreados. 227. Uma expressão desta atitude é parar a agradecer a Deus antes e depois das refeições. Proponho aos crentes que retomem este hábito importante e o vivam profundamente. Este momento da bênção da mesa, embora 139
  • 140. muito breve, recorda-nos que a nossa vida depende de Deus, fortalece o nosso sentido de gratidão pelos dons da criação, dá graças por aqueles que com o seu trabalho fornecem estes bens, e reforça a solidariedade com os mais necessitados. 5. Amor civil e político 228. O cuidado da natureza faz parte dum estilo de vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão. Jesus lembrou-nos que temos Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna irmãos. O amor fraterno só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga a outrem pelo que realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por isso, é possível amar os inimigos. Esta mesma gratuidade leva-nos a amar e aceitar o vento, o sol ou as nuvens, embora não se submetam ao nosso controle. Assim podemos falar duma fraternidade universal. 229. É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente. 140
  • 141. 230. O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a pôr em prática o pequeno caminho do amor, a não perder a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso, de qualquer pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas formas. 231. O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre os indivíduos, mas também «as macrorrelações como relacionamentos sociais, Econômicos, políticos». [156] Por isso, a Igreja propôs ao mundo o ideal duma «civilização do amor».[157] O amor social é a chave para um desenvolvimento autêntico: «Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social – nos planos político, Econômico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do agir». [158] Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto 141
  • 142. faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se santifica. 232. Nem todos são chamados a trabalhar de forma direta na política, mas no seio da sociedade floresce uma variedade inumerável de associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano. Por exemplo, preocupam-se com um lugar público (um edifício, uma fonte, um monumento abandonado, uma paisagem, uma praça) para proteger, sanar, melhorar ou embelezar algo que é de todos. Ao seu redor, desenvolvem-se ou recuperam-se vínculos, fazendo surgir um novo tecido social local. Assim, uma comunidade liberta-se da indiferença consumista. Isto significa também cultivar uma identidade comum, uma história que se conserva e transmite. Desta forma cuida-se do mundo e da qualidade de vida dos mais pobres, com um sentido de solidariedade que é, ao mesmo tempo, consciência de habitar numa casa comum que Deus nos confiou. Estas ações comunitárias, quando exprimem um amor que se doa, podem transformar-se em experiências espirituais intensas. 6. Os sinais sacramentais e o descanso celebrativo 233. O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre. [159] O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São Boaventura: «A contemplação é tanto mais elevada quanto mais o homem sente em si mesmo o efeito da graça divina 142
  • 143. ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras criaturas». [160] 234. São João da Cruz ensinava que tudo o que há de bom nas coisas e experiências do mundo «encontra-se eminentemente em Deus de maneira infinita ou, melhor, Ele é cada uma destas grandezas que se pregam». [161] E isto, não porque as coisas limitadas do mundo sejam realmente divinas, mas porque o místico experimenta a ligação íntima que há entre Deus e todos os seres vivos e, deste modo, «sente que Deus é para ele todas as coisas». [162] Quando admira a grandeza duma montanha, não pode separar isto de Deus, e percebe que tal admiração interior que ele vive, deve finalizar no Senhor: «As montanhas têm cumes, são altas, imponentes, belas, graciosas, floridas e perfumadas. Como estas montanhas, é o meu Amado para mim. Os vales solitários são tranquilos, amenos, frescos, sombreados, ricos de doces águas. Pela variedade das suas árvores e pelo canto suave das aves, oferecem grande divertimento e encanto aos sentidos e, na sua solidão e silêncio, dão refrigério e repouso: como estes vales, é o meu Amado para mim».[163] 235. Os sacramentos constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o mundo num plano diferente. A água, o azeite, o fogo e as cores são assumidas com toda a sua força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que abençoa é instrumento do amor de Deus e reflexo da proximidade de Cristo, que veio para Se fazer nosso 143
  • 144. companheiro no caminho da vida. A água derramada sobre o corpo da criança batizada, é sinal de vida nova. Não fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente na espiritualidade do Oriente cristão. «A beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada, mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes». [164] Segundo a experiência cristã, todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva: «O cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no ato litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus Senhor, feito também Ele corpo para a salvação do mundo». [165] 236. A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças 144
  • 145. a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo». [166] A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, «a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador». [167] Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira. 237. A participação na Eucaristia é especialmente importante ao domingo. Este dia, à semelhança do sábado judaico, é- nos oferecido como dia de cura das relações do ser humano com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. O domingo é o dia da Ressurreição, o «primeiro dia» da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade criada. Além disso, este dia anuncia «o descanso eterno do homem, em Deus». [168] Assim, a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. Na nossa atividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inatividade. Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência. Assim, a ação humana é preservada não só do ativismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da 145
  • 146. consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal. A lei do repouso semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro residente» (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres. 7. A Trindade e a relação entre as criaturas 238. O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade».[169] 239. Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura «testemunha que Deus é trino». O reflexo da Trindade podia- se reconhecer na natureza, «quando esse livro não era obscuro para o homem, nem a vista do homem se tinha 146
  • 147. turvado».[170] Este santo franciscano ensina-nos que toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que poderia ser contemplada espontaneamente, se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler a realidade em chave trinitária. 240. As Pessoas divinas são relações subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente se entrelaçam.[171] Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem entre as criaturas, mas leva- nos também a descobrir uma chave da nossa própria realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade. 8. A Rainha de toda a criação 241. Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo 147
  • 148. exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça» (Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo glorificado, juntamente com Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que «guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende também o sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a contemplar este mundo com um olhar mais sapiente. 242. E ao lado d’Ela, na sagrada família de Nazaré, destaca- se a figura de São José. Com o seu trabalho e presença generosa, cuidou e defendeu Maria e Jesus e livrou-os da violência dos injustos, levando-os para o Egito. No Evangelho, aparece descrito como um homem justo, trabalhador, forte; mas, da sua figura, emana também uma grande ternura, própria não de quem é fraco mas de quem é verdadeiramente forte, atento à realidade para amar e servir humildemente. Por isso, foi declarado protetor da Igreja universal. Também Ele nos pode ensinar a cuidar, pode motivar-nos a trabalhar com generosidade e ternura para proteger este mundo que Deus nos confiou. 9. Para além do sol 243. No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e poderemos ler, com jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá parte connosco na plenitude sem fim. Estamos a caminhar para o 148
  • 149. sábado da eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres definitivamente libertados. 244. Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas as criaturas, caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, «se o mundo tem um princípio e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu início, aquele que é o seu Criador».[172] Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança. 245. Deus, que nos chama a uma generosa entrega e a oferecer-Lhe tudo, também nos dá as forças e a luz de que necessitamos para prosseguir. No coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a encontrar novos caminhos. Que Ele seja louvado! * * * 246. Depois desta longa reflexão, jubilosa e ao mesmo tempo dramática, proponho duas orações: uma que podemos partilhar todos quantos acreditam num Deus Criador Omnipotente, e outra pedindo que nós, cristãos, saibamos 149
  • 150. assumir os compromissos para com a criação que o Evangelho de Jesus nos propõe. Oração pela nossa terra Deus Omnipotente, que estais presente em todo o universo e na mais pequenina das vossas criaturas, Vós que envolveis com a vossa ternura tudo o que existe, derramai em nós a força do vosso amor para cuidarmos da vida e da beleza. Inundai-nos de paz, para que vivamos como irmãos e irmãs sem prejudicar ninguém. Ó Deus dos pobres, ajudai-nos a resgatar os abandonados e esquecidos desta terra que valem tanto aos vossos olhos. Curai a nossa vida, para que protejamos o mundo e não o depredemos, para que semeemos beleza e não poluição nem destruição. Tocai os corações daqueles que buscam apenas benefícios à custa dos pobres e da terra. Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa, a contemplar com encanto, a reconhecer que estamos profundamente unidos com todas as criaturas 150
  • 151. no nosso caminho para a vossa luz infinita. Obrigado porque estais connosco todos os dias. Sustentai-nos, por favor, na nossa luta pela justiça, o amor e a paz. Oração cristã com a criação Nós Vos louvamos, Pai, com todas as vossas criaturas, que saíram da vossa mão poderosa. São vossas e estão repletas da vossa presença e da vossa ternura. Louvado sejais! Filho de Deus, Jesus, por Vós foram criadas todas as coisas. Fostes formado no seio materno de Maria, fizestes-Vos parte desta terra, e contemplastes este mundo com olhos humanos. Hoje estais vivo em cada criatura com a vossa glória de ressuscitado. Louvado sejais! Espírito Santo, que, com a vossa luz, guiais este mundo para o amor do Pai e acompanhais o gemido da criação, Vós viveis também nos nossos corações a fim de nos impelir para o bem. Louvado sejais! 151
  • 152. Senhor Deus, Uno e Trino, comunidade estupenda de amor infinito, ensinai-nos a contemplar-Vos na beleza do universo, onde tudo nos fala de Vós. Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão por cada ser que criastes. Dai-nos a graça de nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe. Deus de amor, mostrai-nos o nosso lugar neste mundo como instrumentos do vosso carinho por todos os seres desta terra, porque nem um deles sequer é esquecido por Vós. Iluminai os donos do poder e do dinheiro para que não caiam no pecado da indiferença, amem o bem comum, promovam os fracos, e cuidem deste mundo que habitamos. Os pobres e a terra estão bradando: Senhor, tomai-nos sob o vosso poder e a vossa luz, para proteger cada vida, para preparar um futuro melhor, para que venha o vosso Reino de justiça, paz, amor e beleza. Louvado sejais! Amém. 152
  • 153. Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do meu Pontificado. Francisco [1] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263. [2] Carta ap. Octogesima adveniens (14 de Maio de 1971), 21: AAS 63 (1971), 416-417. [3] Discurso à FAO, no seu XXV aniversário (16 de Novembro de 1970), 4: AAS 62 (1970), 833; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 22/XI/1970), 6. [4] Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979),15: AAS 71 (1979), 287. [5] Cf. Catequese (17 de Janeiro de 2001), 4: Insegnamenti24/1 (2001), 179; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8. [6] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38: AAS 83 (1991), 841. [7] Ibid., 58: o. c.,863. [8] João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 34: AAS 80 (1988), 559. 153
  • 154. [9] Cf. Idem, Carta enc. Centesimus annus(1 de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840. [10] Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (8 de Janeiro de 2007): AAS 99 (2007), 73. [11] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS 101 (2009), 687. [12] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 664; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/IX/2011), 5. [13] Bento XVI, Discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone (6 de Agosto de 2008): AAS 100 (2008), 634; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 16/VIII/2008), 5. [14] Mensagem para o Dia de Oração pela salvaguarda da criação (1 de Setembro de 2012). [15] Discurso em Santa Bárbara, Califórnia (8 de Novembro de 1997); cf. John Chryssavgis, On Earth as in Heaven: Ecological Vision and Initiatives of Ecumenical Patriarch Bartholomew (Bronx/Nova Iorque 2012). [16] Ibidem. [17] Conferência no Mosteiro de Utstein, Noruega (23 de Junho de 2003). 154
  • 155. [18] Bartolomeu, Discurso Global Responsibility and Ecological Sustainability: Closing Remarks, I Cimeira de Halki, Istambul (20 de Junho de 2012). [19] Tomás de Celano, Vita prima di San Francesco, XXIX, 81: Fonti Francescane, 460. [20] Legenda Maior, VIII, 6: Fonti Francescane, 1145. [21] Cf. Tomás de Celano, Vita seconda di San Francesco, CXXIV, 165: Fonti Francescane, 750. [22] Conferência dos Bispos Católicos da África do Sul, Pastoral Statement on the Environmental Crisis (5 de Setembro de 1999). [23] Cf. Francisco, Saudação aos funcionários da FAO (20 de Novembro de 2014): AAS 106 (2014), 985; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 27/XI/2014), 3. [24] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 86. [25] Conferência dos Bispos Católicos das Filipinas, Carta pastoral What is Happening to our Beautiful Land? (29 de Janeiro de 1988). [26] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 17. 155
  • 156. [27] Cf. Conferência Episcopal Alemã – Comissão para a pastoral social, Der Klimawandel: Brennpunkt globaler, intergenerationeller und ökologischer Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30. [28] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 483. [29] Francisco, Catequese (5 de Junho de 2013): Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 9/VI/2013), 16. [30] Bispos da região da Patagónia-Comahue (Argentina), Mensaje de Navidad (Dezembro de 2009), 2. [31] Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos da América, Global Climate Change: A Plea for Dialogue, Prudence and the Common Good (15 de Junho de 2001). [32] V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 471. [33] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 56: AAS 105 (2013), 1043. [34] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 12: AAS 82 (1990), 154. [35] Idem, Catequese (17 de Janeiro de 2001), 3: Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8. 156
  • 157. [36] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 15: AAS 82 (1990), 156. [37] Catecismo da Igreja Católica, 357. [38] Angelus com os inválidos, Osnabrük / Alemanha (16 de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2 (1980), 1232; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 23/XI/1980), 20. [39] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711; L ´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2015), 5. [40] Cf. Legenda Maior, VIII, 1: Fonti Francescane, 1134. [41] Catecismo da Igreja Católica, 2416. [42] Conferência Episcopal Alemã, Zukunft der Schöpfung – Zukunft der Menschheit. Erklärung der Deutschen Bischofskonferenz zu Fragen der Umwelt und der Energieversorgung (1980), II, 2. [43] Catecismo da Igreja Católica, 339. [44] Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 10: PG 29, 9. [45] Divina Commedia. Paradiso, Canto XXXIII, 145. [46] Bento XVI, Catequese (9 de Novembro de 2005), 3: Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/XI/2005), 24. 157
  • 158. [47] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS101 (2009), 687. [48] João Paulo II, Catequese (24 de Abril de 1991), 6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28/IV/1991), 12. [49] O Catecismo ensina que Deus quis criar um mundo em caminho para a perfeição última, o que implica a presença da imperfeição e do mal físico: verCatecismo da Igreja Católica,310. [50] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36. [51] Tomás de Aquino, Summa theologiaeI, q. 104, art. 1, ad 4. [52] Idem, In octo libros Physicorum Aristotelis expositio, lib. II, lectio 14. [53] Coloca-se, nesta perspectiva, a contribuição do P. Teilhard de Chardin; veja-se Paulo VI, Discurso numa fábrica químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de 1966): Insegnamenti 4 (1966), 992-993; João Paulo II, Carta ao reverendo P. George V. Coyne (1 de Junho de 1988): Insegnamenti 11/2 (1988), 1715;Bento XVI, Homilia na Celebração das Vésperas, em Aosta (24 de Julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60. 158
  • 159. [54] João Paulo II, Catequese (30 de Janeiro de 2002), 6: Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 2/II/2002), 12. [55] Conferência Episcopal do Canadá - Comissão para a Pastoral Social, You love all that exists… All things are yours, God, Lover of Life (4 de Outubro de 2003), 1. [56] Conferência dos Bispos Católicos do Japão, Reverence for Life. A Message for the Twenty-First Century (1 de Janeiro de 2001), 89. [57] João Paulo II, Catequese (26 de Janeiro de 2000), 5: Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 29/I/2000), 8. [58] Idem, Catequese (2 de Agosto de 2000), 3: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8. [59] Paul Ricoeur, Philosophie de la volonté. 2ª parte:Finitude et culpabilité (Paris 2009), 216. [60] Summa theologiae I, q. 47, art. 1. [61] Ibidem. [62] Cf.ibid., art. 2, ad. 1; art. 3. [63] Catecismo da Igreja Católica, 340. [64] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263. 159
  • 160. [65] Cf. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, A Igreja e a questão ecológica (1992), 53-54. [66] Ibid., 61. [67] Francisco, Exort. ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 215: AAS105 (2013), 1109. [68] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate(29 de Junho de 2009), 14:AAS101 (2009), 650. [69] Catecismo da Igreja Católica, 2418. [70] Conferência do Episcopado Dominicano, Carta pastoral Sobre la relación del hombre con la naturaleza (21 de Janeiro de 1987). [71] João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de 1981),19: AAS 73 (1981), 626. [72] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831. [73] Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 33:AAS 80 (1988), 557. [74] Discurso aos indígenas e agricultores do México, em Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979), 209; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979), 4. 160
  • 161. [75] Homilia na Missa celebrada para os agricultores, em Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS 72 (1980), 926;L ´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13. [76] Cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 8: AAS 82 (1990), 152. [77] Conferência Episcopal do Paraguai, Carta pastoral El campesino paraguayo y la tierra (12 de Junho de 1983), 2, 4, d. [78] Conferência Episcopal da Nova Zelândia, Statement on Environmental Issues (1 de Setembro de 2006). [79]Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de 1981), 27: AAS 73 (1981), 645. [80] Por isso, São Justino podia falar de «sementes do Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8, 1-2; 13, 3-6: PG 6, 457- 458; 467. [81] João Paulo II, Discurso aos representantes da ciência, da cultura e dos estudos superiores na Universidade das Nações Unidas, em Hiroxima (25 de Fevereiro de 1981), 3: AAS 73 (1981), 422. [82] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 69:AAS 101 (2009), 702. [83] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit(Würzburg9 1965), 87. 161
  • 162. [84] Ibidem. [85] Ibid., 87-88. [86] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 462. [87] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 63-64. [88] Ibid., 64. [89] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 35: AAS 101 (2009), 671. [90] Ibid., 22: o. c., 657. [91] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 231: AAS 105 (2013), 1114. [92] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 63. [93] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38: AAS83 (1991), 841. [94] Cf. Declaração Love for Creation. An Asian Response to the Ecological Crisis: Colóquio promovido pela Federação das Conferências Episcopais da Ásia, Tagaytay (31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 1993), 3.3.2. 162
  • 163. [95] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991),37: AAS 83 (1991), 840. [96] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 2: AAS 102 (2010), 41. [97] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 28:AAS 101 (2009), 663. [98] Cf. Vicente de Lerins, Commonitorium primum, cap. 23: PL 50, 668: «Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate – Fortalece-se com o decorrer dos anos, desenvolve-se com o andar dos tempos, cresce através das idades». [99] N. 80: AAS 105 (2013), 1053. [100] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 63. [101] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840. [102] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 34: AAS 59 (1967), 274. [103] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 32: AAS 101 (2009), 666. [104] Ibidem. [105] Ibidem. 163
  • 164. [106] Catecismo da Igreja Católica, 2417. [107] Ibid., 2418. [108] Ibid., 2415. [109] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 6: AAS 82 (1990), 150. [110] Discurso à Pontifícia Academia das Ciências (3 de Outubro de 1981), 3: Insegnamenti 4/2 (1981), 333; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/X/1981), 8. [111] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 7: AAS 82 (1990), 151. [112] João Paulo II, Discurso à 35ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (29 de Outubro de 1983), 6: AAS 76 (1984), 394; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 13/XI/1983), 7. [113] Conferência Episcopal da Argentina – Comissão de Pastoral Social, Una tierra para todos (Junho de 2005), 19. [114] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 4. [115] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 237: AAS 105 (2013), 1116. 164
  • 165. [116] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51: AAS 101 (2009), 687. [117] Alguns autores puseram em evidência os valores que muitas vezes se vivem, por exemplo, nas «villas», «chabolas» ou favelas da América Latina: ver Juan Carlos Scannone S.I., «La irrupción del pobre y la lógica de la gratuidad», in Juan Carlos Scannone e Marcelo Perine (eds.), Irrupción del pobre y quehacer filosófico. Hacia una nueva racionalidad (Buenos Aires 1993), 225-230. [118] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 482. [119] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 210: AAS 105 (2013), 1107. [120] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 668; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/IX/2011), 5. [121] Francisco, Catequese (15 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 16/IV/2015), 20. [122] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 26. [123] Cf. nn. 186-201:AAS 105 (2013), 1098-1105. 165
  • 166. [124] Conferência Episcopal Portuguesa, Carta pastoral Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de Setembro de 2003), 20. [125] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 8: AAS 102 (2010), 45. [126] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 1. [127] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 86. [128] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Doc. Energia, Giustizia e Pace (Cidade do Vaticano 2013), 56. [129] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 67: AAS 101 (2009), 700. [130] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111. [131] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 469. [132] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (14 de Junho de 1992), princípio 15. [133] Cf. Conferência Episcopal do México – Comissão de Pastoral Social, Jesucristo, vida y esperanza de los indígenas y campesinos (14 de Janeiro de 2008). 166
  • 167. [134] Pontifício Conselho «Justiça e Paz»,Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 470. [135] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 9: AAS 102 (2010), 46. [136] Ibidem. [137] Ibid., 5: o. c., 43. [138] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 50: AAS 101 (2009), 686. [139] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 209: AAS 105 (2013), 1107. [140] Ibid., 228: o. c., 1113. [141] Cf. Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29 de Junho de 2013), 34 [AAS 105 (2013), 577]: «Enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da 167
  • 168. razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência». [142] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123. [143] Ibid., 231: o. c., 1114. [144] Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 66-67. [145] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 1: AAS 82 (1990), 147. [146] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 66:AAS101 (2009), 699. [147] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 11: AAS 102 (2010), 48. [148] Carta da Terra, Haia (29 de Junho de 2000). [149] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 39: AAS 83 (1991), 842. [150] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 14: AAS 82 (1990), 155. [151] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 261: AAS105 (2013), 1124. 168
  • 169. [152] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710; L ´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2005), 5. [153] Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, A New Earth - The Environmental Challenge (2002). [154] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 72. [155] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 71: AAS 105 (2013), 1050. [156] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 2:AAS 101 (2009), 642. [157] Paulo VI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1977: AAS 68 (1976), 709. [158] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 582. [159] Um mestre espiritual, Ali Al-Khawwas, partindo da sua própria experiência, assinalava a necessidade de não separar demasiado as criaturas do mundo e a experiência de Deus na interioridade. Dizia ele: «Não é preciso criticar preconceituosamente aqueles que procuram o êxtase na música ou na poesia. Há um “segredo” subtil em cada um dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados chegam a captar o que dizem o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as moscas que zunem, as portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar de 169
  • 170. cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido dos aflitos…» [Eva De Vitray-Meyerovitch (ed.), Anthologie du soufisme (Paris 1978), 200]. [160] In II Sententiarum, 23, 2, 3. [161] Cántico Espiritual,XIV, 5. [162] Ibidem. [163] Ibid., XIV, 6-7. [164] João Paulo II, Carta ap. Orientale lumen (2 de Maio de 1995),11: AAS 87 (1995), 757. [165] Ibidem. [166] Idem, Carta enc.Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 8: AAS 95 (2003), 438. [167] Bento XVI, Homilia na Missa de Corpus Christi (15 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 513; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/VI/2006), 3. [168] Catecismo da Igreja Católica, 2175. [169] João Paulo II, Catequese (2 de Agosto de 2000), 4: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8. [170] Quaestiones disputatae de Mysterio Trinitatis, 1, 2, concl. 170
  • 171. [171] Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae I, q. 11, art. 3; q. 21, art. 1, ad 3; q. 47, art. 3. [172] Basílio Magno, Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 6: PG 29, 8. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/pap a-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html A composição não confere com o documento original 171