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A FADA DA MINHA VIDA
José Castanho
Era uma tarde solarenga, os pássaros chilreavam e a floresta dançava
ao ritmo da aragem primaveril. Eu encontrava-me sentado num tronco
esquecido, fustigado pelo clima e pelo mundo. Um tronco que, um dia,
sustentara a mais alta das árvores. Vivi nela durante a minha infância, por isso,
agora, gosto de me sentar no pedaço de madeira, que dela resta. Faz-me
sentir bem. Ao meu lado sentava-se a mais linda das raparigas, digna de
estatuto de musa, mais bela que Vénus em si. Também ela me faz sentir bem.
- É bonito – disse ela, mais por cortesia que por honestidade.
- Obrigado – aceitei eu – Lembro-me de brincar naquele baloiço – disse,
apontando para uns troncos de madeira montados de uma maneira peculiar,
longe de se parecerem com o baloiço de que eu falava. – Lembro-me de subir
às árvores e de travar milhentas guerras contra o reino dos katawhan. Tenho
saudades – confessei.
- Agora tens tudo o que quiseres na cidade. Tens cinema, salões de
jogos, cafés, bares e amigos verdadeiros. Não precisas de sentir saudades do
passado – tentou ela.
- Mas tudo o que eu queria foi-me tirado. Isto era o que eu queria. Hoje,
tenho 16 anos, a vida complica-se a cada dia que passa e eu a cada dia
percebo melhor os quarentões, que exclamam o quão bom seria voltar a ser
criança. Engraçado, que também me lembro de pensar o quão estúpido eles
soavam ao dizerem isso, quando eu era pequenino e inocente. Hoje, tudo o
que eu faço está errado para alguém. Tudo o que eu digo, tudo o que escrevo
é a maior das blasfémias. Quando era criança não compreendia, hoje sou
incompreendido – parei para respirar e deixar as minhas palavras assentar na
cabeça dela – Por isso, é completamente justificável sentir saudades do
passado.
O seu calor invadiu o meu corpo de surpresa, os seus braços apertaram-
me e eu senti-me seguro. Oh que abraço aquele!
- Conta-me mais – proferiu ela com uma ternura mais doce que
caramelo.
- Não te quero aborrecer – retorqui com timidez.
- Não aborreces nada, gosto de te ouvir falar deste teu lugar mágico,
onde tu tão feliz foste – ateou ela.
- Já te contei a história da fada dos dentes? – incendiei eu, com um
sorriso de orelha a orelha – Oh tenho que te contar! – continuei, sem esperar
resposta à pergunta feita.
“Era uma vez, num reino longínquo e cheio de maldade, uma fada.
Criatura atarracada, velha e demente. Reza a história que era a mais doce das
fadas, antes de ali chegar. As suas asas já mais não eram que adereços,
ressequidas pelo passar dos anos. O pó, que outrora deixara um rasto doirado
por onde ela passasse, tornara-se mais tóxico e venenoso que o pior dos
venenos. Vivia numa cabana, que em nada discordava dela, e passava os dias
a vaguear pelo reino, sem objetivo, sem rumo, perdida na imortalidade à qual
fora condenada.
Um dia, apareceu por aquelas bandas um dramo, na nossa língua: um
estranho. A velha sabia o que ele era. Havia lido sobre a espécie dele, num dos
livros carcomidos por insetos, que amontoava em pilhas pelo chão de sua
casa. Era um viking. Parecia saído de uma das gravuras do livro que ela lera.
Alto, musculado, cabelos compridos e loiros a esvoaçar ao sabor do vento. O
exemplo do ideal daquele povo nórdico, conhecido pela sua coragem em
batalha e barbaridade de costumes. Dominavam a Europa, mas a sua sede de
conquista não se encontrava saciada. Queriam mais. Que estaria ele ali a
fazer? Ela não fazia a menor ideia.
Fora numa tarde como esta de hoje, segundo ela, que as suas dúvidas
desapareceram. À sua porta, uma sombra parou, sobressaltando-a e retirando
a sua concentração do livro de botânica que estudava. Com cautela,
aproximou-se da porta de carvalho que separava o mundo, do espaço que nele
ocupava. As palavras ao certo não as sei, perderam-se algures no tempo e no
espaço, mas o viking viajara até tão longe à procura de algo! Um amuleto.
Segundo a lenda, durante uma batalha, o viking perdera o seu dente da sorte.
Desde então, a morte batera-lhe à porta inúmeras vezes, cada vez com maior
persistência para o levar deste nosso mundo. Assim, cansado de batalhar a
morte e com medo de outra batalha, partira em busca de alguém que o
pudesse ajudar. Essa procura levara-o ali. A criatura de metro e meio mandou-
o voltar passadas três luas.
Três luas passaram. O viking voltou, mas desta vez a velha já o
esperava. Convidou-o a sentar-se, serviu-lhe um chá com aroma forte e
observou-o por uns breves segundos. O homem nada disse, por cortesia
sentara-se e bebericara o chá. A outra rira-se, ao ver tão encorpado ser beber
tão delicada bebida, de uma tão delicada chávena de fina porcelana. De
seguida, dirigira-se para uma das pilhas de livros e pegara num maior que o
seu pequeno corpo. Com dificuldade pousou-o em cima da mesa, com
estrondoso espalhafato abriu-o numa página previamente marcada e apontou
para uma gravura pintada a óleo. Aquela tinta à base de óleo de linhaça
representava uma criança a chorar, desdentada. Segundo a tradução da fada,
a legenda pintada por baixo da gravura dizia: “A força reside na forma mais
inocente do humano.”. Após proferir tais palavras, os seus olhos brilharam, a
sua boca começou a mover-se compulsivamente e uma explicação mais
aprofundada sobre a ilustração saiu disparada, em profunda exaltação.
Mal a velha se calara, o viking sorriu, levantou-se da cadeira e abraçou o
corpo enrugado da sua interlocutora. A solução era simples! Bastava tirar um
dente de leite a uma criança e a sua força, a sua coragem e a sua sorte
voltariam. Emocionado pela bondade da idosa, convidou-a a juntar-se a ele na
busca de um dente de leite perfeito. Relutante, temendo sair do seu espaço,
ela começou por recusar. Contudo, com a persistência e casmurrice
característica do seu povo, o viking convencera-a a mudar de ideias.
Nessa mesma noite, partiram os dois iluminados pelo luar. Caminharam
dias, até porem para trás a floresta negra que circundava aquele reino de
escuridão. Uma vez para lá da densa florestação, começou a verdadeira
procura. Pararam em vilas, aldeias e capitais de reinos. Subiram montanhas,
desceram vales e caminharam por planícies verdejantes. Conheceram velhos,
jovens, criaturas das mais diferentes espécies, mas nenhum menino com um
dente de leite a abanar. Foi só ao quadragésimo terceiro dia, quando as suas
esperanças e forças começavam a escassear, que, numa aldeia com pouco
mais de cinco casas de pedra, encontraram um pequeno menino. Era perfeito.
Loiro, olhos azuis e rechonchudo à moda viking, sem, contudo, uma gota de
sangue que pertencesse a esse povo guerreiro.
Não importava. Na sua pequena boca, um dente abanava desde há
muito. Dava-lhe dores imensas e o outro recém-nascido já mostrava a cara,
impaciente, empurrando o outro como dois irmãos a meio de uma zanga.
Com os seus conhecimentos de botânica, a fada preparou um unguento
de cor verde e cheiro intenso. Esfregou na gengiva do rapaz, que enrugou cada
centímetro da sua face, como se trincasse um limão. Aquela mistela funcionara
como anestesia. Em seguida, já a noite caíra, ela pegou no dente com jeitinho,
atou uma corda prendendo-o bem e puxou com um esticão seco. O menino
nada sentira. Acabariam por passar a noite naquela cabana, hospedados e
bem tratados, como agradecimento pelo alívio do menino.
Partiram mal o sol nasceu. O caminho para casa era longo. Com o dente
ao peito, o viking acompanhou a fada pelo caminho, inchado de confiança e
certeza. Chegaram finalmente a casa, muitas luas depois. Despediram-se e
cada um seguiu o seu caminho, não sem antes prometerem mutuamente que
se voltariam a encontrar.”
- Encontraram-se? – questionou ela, mal eu parei de falar.
- Não – retorqui eu – mas a história da fada dos dentes não termina aqui!
- Não? – perguntou, admirada.
- Não – respondi, sorrindo.
“Muitos anos se passaram após tal aventura. A fada continuava velha,
mais uma vez perdida na mesma rotina sem piada e mortífera. Contudo,
passado tanto tempo, um pombo chegou. Chegou cansado, quase morto. Na
sua pata uma mensagem vinha enrolada. Intrigada, a velha abriu o pequeno
papiro amarelo. Era para ela, não havia dúvida, o seu nome estava lá referido.
No entanto, a mensagem não vinha completa. Vários dias se passaram, vários
dias a velha não pregou olho com aquelas palavras a ecoarem na sua cabeça.
Até que, num dia quando já o sol se punha, outro pombo chegou, com outra
mensagem. O mesmo aconteceu, nas duas semanas que se sucederam. As
palavras juntaram-se como um puzzle e delas uma história surgiu. Quem
escrevia era um parente do viking de outrora. Pelos vistos, o guerreiro tinha
relatado a história que os dois viveram à procura do dente de leite, num diário
de viagem. Todavia, as novas não eram boas. A longa carta terminava com a
notícia de que forças das trevas tinham domado e aperfeiçoado o
conhecimento que ela usara com o viking. Segundo os traços a tinta preta nos
papiros, bruxas usavam o poder dos dentes de leite para o mal, apoderando-se
da alma dos coitados que perdiam os dentes. Esta informação perturbara-a.
Teria ela dado poder às forças do mal, para estas fazerem o bem sucumbir?
Não podia deixar que isso acontecesse.
Pegara nos livros que se alinhavam nas estantes, agora. Mais
determinada que nunca, só parava para fazer chá e alimentar os pombos que
recuperavam forças no seu alpendre. Não muito tempo depois, sentou-se à
mesa, encheu uma taça com tinta que ela preparou e pegou numa pena.
Começou, assim, a escrever a resposta ao seu correspondente. Nela escrevia
o segredo para impedir as bruxas de obterem os dentes: enterrá-los. Os
pombos partiram numa manhã de nevoeiro. Ela ficara a vê-los desaparecer na
névoa, com a esperança de que eles chegassem salvos ao destino.
Chegaram. A Idade Média decorria, na Europa. O conselho da fada fora
aceite e uma caça às bruxas começara. Muitos inocentes padeceram com tal
caça, mas o mal foi travado. Se bem que o mal foi travado pelo bem que agiu
mal, não se podendo, por isso, dizer que o mal tenha sido travado. Porém,
diminuiu.
Hoje, a fada voa de novo, deixando um rasto doirado por onde passa.
Ninguém a vê, mas todos sabem da sua existência. Hoje, é ela mesma quem
recolhe os dentes das crianças, deixando os seus quartos com pó doirado e
brilhante e uma surpresa debaixo da almofada onde o dente for deixado. Hoje,
vivemos todos felizes, não reconhecendo o papel desta fada nas nossas vidas,
não reconhecendo a felicidade e a segurança que ela nos proporciona. No
entanto, ela é feliz no anonimato, é feliz a escrever as suas memórias e
aventuras, é feliz ao ser fonte da felicidade dos outros. Não vive mais nas
trevas, nem em nenhuma casa em nenhum reino. Vive antes em todo o lado,
não vivendo, de facto, em lado nenhum.”
Não disse mais nada. Os olhos dela diziam tudo. Deliciara-se com a
história. Eu esqueci a minha timidez, inclinei-me em direcção a ela e beijei-a.
Ela correspondeu. Afastei-me ligeiramente, sentindo a sua respiração e o seu
hálito fresco e agradável. Deixei-a sem reação, apenas com um sorriso na
cara. Na minha, outro espelhava-se também. Olhei em redor, olhei os céus,
mas nada vi. Contudo, os meu lábios proferiram um “obrigado”. Onde quer que
ela estivesse, sei que sorriu de volta.
Obrigado, fada.

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Castanho, j. a fada da minha vida. conto. aveiro, aems 11_a

  • 1. A FADA DA MINHA VIDA José Castanho
  • 2. Era uma tarde solarenga, os pássaros chilreavam e a floresta dançava ao ritmo da aragem primaveril. Eu encontrava-me sentado num tronco esquecido, fustigado pelo clima e pelo mundo. Um tronco que, um dia, sustentara a mais alta das árvores. Vivi nela durante a minha infância, por isso, agora, gosto de me sentar no pedaço de madeira, que dela resta. Faz-me sentir bem. Ao meu lado sentava-se a mais linda das raparigas, digna de estatuto de musa, mais bela que Vénus em si. Também ela me faz sentir bem. - É bonito – disse ela, mais por cortesia que por honestidade. - Obrigado – aceitei eu – Lembro-me de brincar naquele baloiço – disse, apontando para uns troncos de madeira montados de uma maneira peculiar, longe de se parecerem com o baloiço de que eu falava. – Lembro-me de subir às árvores e de travar milhentas guerras contra o reino dos katawhan. Tenho saudades – confessei. - Agora tens tudo o que quiseres na cidade. Tens cinema, salões de jogos, cafés, bares e amigos verdadeiros. Não precisas de sentir saudades do passado – tentou ela. - Mas tudo o que eu queria foi-me tirado. Isto era o que eu queria. Hoje, tenho 16 anos, a vida complica-se a cada dia que passa e eu a cada dia percebo melhor os quarentões, que exclamam o quão bom seria voltar a ser criança. Engraçado, que também me lembro de pensar o quão estúpido eles soavam ao dizerem isso, quando eu era pequenino e inocente. Hoje, tudo o que eu faço está errado para alguém. Tudo o que eu digo, tudo o que escrevo é a maior das blasfémias. Quando era criança não compreendia, hoje sou incompreendido – parei para respirar e deixar as minhas palavras assentar na cabeça dela – Por isso, é completamente justificável sentir saudades do passado. O seu calor invadiu o meu corpo de surpresa, os seus braços apertaram- me e eu senti-me seguro. Oh que abraço aquele! - Conta-me mais – proferiu ela com uma ternura mais doce que caramelo.
  • 3. - Não te quero aborrecer – retorqui com timidez. - Não aborreces nada, gosto de te ouvir falar deste teu lugar mágico, onde tu tão feliz foste – ateou ela. - Já te contei a história da fada dos dentes? – incendiei eu, com um sorriso de orelha a orelha – Oh tenho que te contar! – continuei, sem esperar resposta à pergunta feita. “Era uma vez, num reino longínquo e cheio de maldade, uma fada. Criatura atarracada, velha e demente. Reza a história que era a mais doce das fadas, antes de ali chegar. As suas asas já mais não eram que adereços, ressequidas pelo passar dos anos. O pó, que outrora deixara um rasto doirado por onde ela passasse, tornara-se mais tóxico e venenoso que o pior dos venenos. Vivia numa cabana, que em nada discordava dela, e passava os dias a vaguear pelo reino, sem objetivo, sem rumo, perdida na imortalidade à qual fora condenada. Um dia, apareceu por aquelas bandas um dramo, na nossa língua: um estranho. A velha sabia o que ele era. Havia lido sobre a espécie dele, num dos livros carcomidos por insetos, que amontoava em pilhas pelo chão de sua casa. Era um viking. Parecia saído de uma das gravuras do livro que ela lera. Alto, musculado, cabelos compridos e loiros a esvoaçar ao sabor do vento. O exemplo do ideal daquele povo nórdico, conhecido pela sua coragem em batalha e barbaridade de costumes. Dominavam a Europa, mas a sua sede de conquista não se encontrava saciada. Queriam mais. Que estaria ele ali a fazer? Ela não fazia a menor ideia. Fora numa tarde como esta de hoje, segundo ela, que as suas dúvidas desapareceram. À sua porta, uma sombra parou, sobressaltando-a e retirando a sua concentração do livro de botânica que estudava. Com cautela, aproximou-se da porta de carvalho que separava o mundo, do espaço que nele ocupava. As palavras ao certo não as sei, perderam-se algures no tempo e no espaço, mas o viking viajara até tão longe à procura de algo! Um amuleto. Segundo a lenda, durante uma batalha, o viking perdera o seu dente da sorte.
  • 4. Desde então, a morte batera-lhe à porta inúmeras vezes, cada vez com maior persistência para o levar deste nosso mundo. Assim, cansado de batalhar a morte e com medo de outra batalha, partira em busca de alguém que o pudesse ajudar. Essa procura levara-o ali. A criatura de metro e meio mandou- o voltar passadas três luas. Três luas passaram. O viking voltou, mas desta vez a velha já o esperava. Convidou-o a sentar-se, serviu-lhe um chá com aroma forte e observou-o por uns breves segundos. O homem nada disse, por cortesia sentara-se e bebericara o chá. A outra rira-se, ao ver tão encorpado ser beber tão delicada bebida, de uma tão delicada chávena de fina porcelana. De seguida, dirigira-se para uma das pilhas de livros e pegara num maior que o seu pequeno corpo. Com dificuldade pousou-o em cima da mesa, com estrondoso espalhafato abriu-o numa página previamente marcada e apontou para uma gravura pintada a óleo. Aquela tinta à base de óleo de linhaça representava uma criança a chorar, desdentada. Segundo a tradução da fada, a legenda pintada por baixo da gravura dizia: “A força reside na forma mais inocente do humano.”. Após proferir tais palavras, os seus olhos brilharam, a sua boca começou a mover-se compulsivamente e uma explicação mais aprofundada sobre a ilustração saiu disparada, em profunda exaltação. Mal a velha se calara, o viking sorriu, levantou-se da cadeira e abraçou o corpo enrugado da sua interlocutora. A solução era simples! Bastava tirar um dente de leite a uma criança e a sua força, a sua coragem e a sua sorte voltariam. Emocionado pela bondade da idosa, convidou-a a juntar-se a ele na busca de um dente de leite perfeito. Relutante, temendo sair do seu espaço, ela começou por recusar. Contudo, com a persistência e casmurrice característica do seu povo, o viking convencera-a a mudar de ideias. Nessa mesma noite, partiram os dois iluminados pelo luar. Caminharam dias, até porem para trás a floresta negra que circundava aquele reino de escuridão. Uma vez para lá da densa florestação, começou a verdadeira procura. Pararam em vilas, aldeias e capitais de reinos. Subiram montanhas, desceram vales e caminharam por planícies verdejantes. Conheceram velhos, jovens, criaturas das mais diferentes espécies, mas nenhum menino com um
  • 5. dente de leite a abanar. Foi só ao quadragésimo terceiro dia, quando as suas esperanças e forças começavam a escassear, que, numa aldeia com pouco mais de cinco casas de pedra, encontraram um pequeno menino. Era perfeito. Loiro, olhos azuis e rechonchudo à moda viking, sem, contudo, uma gota de sangue que pertencesse a esse povo guerreiro. Não importava. Na sua pequena boca, um dente abanava desde há muito. Dava-lhe dores imensas e o outro recém-nascido já mostrava a cara, impaciente, empurrando o outro como dois irmãos a meio de uma zanga. Com os seus conhecimentos de botânica, a fada preparou um unguento de cor verde e cheiro intenso. Esfregou na gengiva do rapaz, que enrugou cada centímetro da sua face, como se trincasse um limão. Aquela mistela funcionara como anestesia. Em seguida, já a noite caíra, ela pegou no dente com jeitinho, atou uma corda prendendo-o bem e puxou com um esticão seco. O menino nada sentira. Acabariam por passar a noite naquela cabana, hospedados e bem tratados, como agradecimento pelo alívio do menino. Partiram mal o sol nasceu. O caminho para casa era longo. Com o dente ao peito, o viking acompanhou a fada pelo caminho, inchado de confiança e certeza. Chegaram finalmente a casa, muitas luas depois. Despediram-se e cada um seguiu o seu caminho, não sem antes prometerem mutuamente que se voltariam a encontrar.” - Encontraram-se? – questionou ela, mal eu parei de falar. - Não – retorqui eu – mas a história da fada dos dentes não termina aqui! - Não? – perguntou, admirada. - Não – respondi, sorrindo. “Muitos anos se passaram após tal aventura. A fada continuava velha, mais uma vez perdida na mesma rotina sem piada e mortífera. Contudo, passado tanto tempo, um pombo chegou. Chegou cansado, quase morto. Na sua pata uma mensagem vinha enrolada. Intrigada, a velha abriu o pequeno papiro amarelo. Era para ela, não havia dúvida, o seu nome estava lá referido. No entanto, a mensagem não vinha completa. Vários dias se passaram, vários
  • 6. dias a velha não pregou olho com aquelas palavras a ecoarem na sua cabeça. Até que, num dia quando já o sol se punha, outro pombo chegou, com outra mensagem. O mesmo aconteceu, nas duas semanas que se sucederam. As palavras juntaram-se como um puzzle e delas uma história surgiu. Quem escrevia era um parente do viking de outrora. Pelos vistos, o guerreiro tinha relatado a história que os dois viveram à procura do dente de leite, num diário de viagem. Todavia, as novas não eram boas. A longa carta terminava com a notícia de que forças das trevas tinham domado e aperfeiçoado o conhecimento que ela usara com o viking. Segundo os traços a tinta preta nos papiros, bruxas usavam o poder dos dentes de leite para o mal, apoderando-se da alma dos coitados que perdiam os dentes. Esta informação perturbara-a. Teria ela dado poder às forças do mal, para estas fazerem o bem sucumbir? Não podia deixar que isso acontecesse. Pegara nos livros que se alinhavam nas estantes, agora. Mais determinada que nunca, só parava para fazer chá e alimentar os pombos que recuperavam forças no seu alpendre. Não muito tempo depois, sentou-se à mesa, encheu uma taça com tinta que ela preparou e pegou numa pena. Começou, assim, a escrever a resposta ao seu correspondente. Nela escrevia o segredo para impedir as bruxas de obterem os dentes: enterrá-los. Os pombos partiram numa manhã de nevoeiro. Ela ficara a vê-los desaparecer na névoa, com a esperança de que eles chegassem salvos ao destino. Chegaram. A Idade Média decorria, na Europa. O conselho da fada fora aceite e uma caça às bruxas começara. Muitos inocentes padeceram com tal caça, mas o mal foi travado. Se bem que o mal foi travado pelo bem que agiu mal, não se podendo, por isso, dizer que o mal tenha sido travado. Porém, diminuiu. Hoje, a fada voa de novo, deixando um rasto doirado por onde passa. Ninguém a vê, mas todos sabem da sua existência. Hoje, é ela mesma quem recolhe os dentes das crianças, deixando os seus quartos com pó doirado e brilhante e uma surpresa debaixo da almofada onde o dente for deixado. Hoje, vivemos todos felizes, não reconhecendo o papel desta fada nas nossas vidas, não reconhecendo a felicidade e a segurança que ela nos proporciona. No
  • 7. entanto, ela é feliz no anonimato, é feliz a escrever as suas memórias e aventuras, é feliz ao ser fonte da felicidade dos outros. Não vive mais nas trevas, nem em nenhuma casa em nenhum reino. Vive antes em todo o lado, não vivendo, de facto, em lado nenhum.” Não disse mais nada. Os olhos dela diziam tudo. Deliciara-se com a história. Eu esqueci a minha timidez, inclinei-me em direcção a ela e beijei-a. Ela correspondeu. Afastei-me ligeiramente, sentindo a sua respiração e o seu hálito fresco e agradável. Deixei-a sem reação, apenas com um sorriso na cara. Na minha, outro espelhava-se também. Olhei em redor, olhei os céus, mas nada vi. Contudo, os meu lábios proferiram um “obrigado”. Onde quer que ela estivesse, sei que sorriu de volta. Obrigado, fada.