DACULTURADO CORPO
Utilizando um referencial próprio da Antropologia So-
cial, esta obra discute a construção cultural do corpo
humano. É com base nessa perspectiva que o autor
analisa o trabalho do professor de Educação Física,
reconstruindo o universo de representações sobre o
corpo, que rege e orienta sua prática escolar.
Além de apresentar um modelo de investigação que
permite atingir aspectos até então não pesquisados no
trabalho do docente de Educação Física, o enfoque
cultural exposto pelo autor pode contribuir para a aná-
lise do corpo como algo dotado de significações so-
ciais e trazer para o leitor uma visão despida de
preconceitos em relação ao comportamento corporal
humano, pois "(...) os homens são iguais justamente
na expressão de suas diferenças".
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PAPIRUS EDITORA
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Utilizando um referencial próprio da Antropologia So-
cial, esta obra discute a construção cultural do corpo
humano. É com base nessa perspectiva que o autor
analisa o trabalho do professor de Educação Física,
reconstruindo o universo de representações sobre o
corpo, que rege e orienta sua prática escolar.
Além de apresentar um modelo de investigação que
permite atingir aspectos até então não pesquisados no
trabalho do docente de Educação Física, o enfoque
cultural exposto pelo autor pode contribuir para a aná-
lise do corpo como algo dotado de significações so-
ciais e trazer para o leitor uma visão despida de
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Utilizando um referencial próprio da Antropologia So-
cial, esta obra discute a construção cultural do corpo
humano. É com base nessa perspectiva que o autor
analisa o trabalho do professor de Educação Física,
reconstruindo o universo de representações sobre o
corpo, que rege e orienta sua prática escolar.
Além de apresentar um modelo de investigação que
permite atingir aspectos até então não pesquisados no
trabalho do docente de Educação Física, o enfoque
cultural exposto pelo autor pode contribuir para a aná-
lise do corpo como algo dotado de significações so-
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preconceitos em relação ao comportamento corporal
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PAPIRUS
Da Cultura Do Corpo - Jocimar Daolio.pdf
JOCIMAR DAOLIO
DA CULTURA DO CORPO
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PAPIRUS EDITORA
Capa: Férnando Cornacchia
Antonio César de Lima Abboud
Foto: Renato Testa
Escultura da capa: Felguérez
Copidesque: Lucia H. Morelli
Revisão: Jazon S. Santos
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Oaolio, Jocimar
Da cultura do corpo I Jocimar Oaolio. -- Campinas, SP
Papirus, 1995. -· (Coleção corpo e motricidade)
Bibliografia.
ISBN 85-308-0305-1
1. Educação física 2. Educação física - Estudo e ensino 3.
Educação física- Estudo e 8nsino- Metodologia I. Título.
11. Série.
95-3487 CDD-613.707
Índices para catálogo sistemático:
1. Educação física: Estudo e ensino 613.707
DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:
© M. R. Cornacchia & Cia. Ltda - Papirus Editora - Matriz -
Fone: (0192} 31-3534 e 31-3500- C.P. 736- CEP 13001-970
Campinas- Filial- Fone: (011) 570-2877- São Paulo- Brasil.
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Aos meus alunos, que,
cotidianamente, me
ensinam a ser professm:
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
SUMÁRIO
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1. ANTROPOLOGIA: UM DESLOCAMENTO DO OLHAR
2. A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO CORPO HUMANO
A natureza cultural do homem
O corpo: sede de signos sociais
Marcel Mauss e a noção de técnica corporal
3. O TRABALHO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Os caminhos da pesquisa
Ouvindo os professores
4. DO CORPO MATÉRIA-PRIMA AO CORPO CIDADÃO
CONCLUSÃO: POR UMA EDUCAÇÃO FÍSICA PLURAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
9
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101
PREFÁCIO
Antes que planejemos nossa aula, a vida nos plancjou. Os
professores são mais que os livros que leram, os discursos que ouvi-
ram, as correntes pedagógicas que se impuseram.
Os professores, quando falam, falam de suas vidas. Falam aos
nossos olhos, ouvidos e peles. Para o pesquisador do estudo relatado
neste livro, falam ao seu olhar antropológico. Esse olhar antropológi-
co de que nos fala Jocimar é o olhar do Homem sobre o Homem;
nunca o olhar do pesquisador isento, asséptico.
Lendo a obra do prof0
• Jocimar Daolio, leio uma surpreendente
revelação: a aula de Educação Física serve para tudo. Os professores
de Educação Física não escapam à síndrome do Super-Homem. Não
querem o mínimo ou o suficiente; querem o máximo. Não hasta
ensinar conteúdos específicos; julgam ter o poder de mudar as vidas
dos alunos, de mudar a sociedade. Ao falar, é disso que os professores
de Educação Física falam.
E Jocimar, nosso autor desse belíssimo livro, vai deixando que
o professor fale. E, quando fala, quando fala livremente, sem as
9
amarras de um questionário fechado, esse professor fala mais da vida
que da profissão. Como se a profissão fosse apenas um cenário para
que ele exerça seus super-poderes. O professor não planeja a aula,
planeja a vida.
Qual é o principal conteúdo das aulas de Educação Física? O
esporte, sem dúvida, dizem os professores consultados. Do que mais
falam? Além do esporte, ainda falam do conhecimento sobre o pró-
prio corpo, das regras do jogo e, em torno desses conteúdos, de tudo
sobre a vida passada deles mesmos e da vida futura de seus alunos.
Talvez com acertada razão, nossos professores de Educação
Física consultados por Jocimar colocam-se como intermediários en-
tre a natureza e a sociedade. Também em minhas andanças, ouvi
vários professores falando sobre isso. De fato, eles verificam que as
crianças que entram na escola, antes disso, correm, saltam, riem,
brincam de todas as coisas e, depois nos bancos escolares, tornam-se
alunos, despojados de todas as coisas que possuíam. Talvez o erro
esteja em achar que aquelas coisas de fora da escola são da natureza;
e as da escola, da sociedade. Eu diria que nem uma coisa nem outra.
Aquelas coisas de fora da escola são a cultura da criança que nunca é
matriculada, e as coisas da escola nüo süo bem as coisas da sociedade.
Neste livro, Jocimar nos apresenta Marcel Mauss. Apenas isso
já seria uma belíssima contribuição para a Educação Física. Porém,
mais que isso, leva-nos a um agradúvel passeio pela Antropologia
Social. Como todas as coisas desta obra, nada deixa de ser interessem-
te. Creio que os estudos feitos no campo da Antropologia passarão, a
partir destes escritos, a despertar maior interesse entre os profissio-
nais ela área ele Lducaçüo Física.
Escrito em linguagem clara c direta, este livro não reproduz a
rigidez das teses acadêmicas. Sem abrir mão do rigor científico,
nitidamente se preocupa com os aspectos estéticos que caracterizam
uma literatura de boa qualidade. Como leitor, agradecemos a consi-
deração; como profissionais da área de Educação Física, saudamos a
oportunidade de ver uma tese acadêmica sair das prateleiras da uni-
10
versidade e penetrar um público muito mais amplo que aquele que
freqüenta os banco escolares.
Estou honrado com a solicitação que me foi feita de prefaciar
este livro. Não é de hoje que conheço o autor. Fui seu professor na
Faculdade de Educação Física. De lá para cá temos sido amigos e
companheiros de trabalho. Sou testemunha de sua seriedade na pro-
fissão, que exerce com a mesma competência com que consegue ser
amigo, meu e de tantas pessoas que, seguramente, aguardavam com
ansiedade o lançamento de sua primeira obra escrita.
Jocimar junta-se ao esforço de outros autores na área de Edu-
cação Física que entendem que um livro deve ser para muitos e não
apenas para um círculo fechado de "iniciados". O conhecimento não
pode ser monopólio de grupos restritos. Distribuí-lo constitui, no meu
entender, a mais democrática das atitudes.
João Batista Freire
11
APRESENTAÇÃO
Este trabalho, com algumas modificações, é a minha disserta-
ção de mestrado, defendida em dezembro de 1992 na Escola de
Educação Física da USP. Pretendi torná-Ia um pouco mais leve e ágil,
a fim de que possa ser lida por um público maior. Na verdade, quando
da realização da dissertação, eu já pensava em transformá-la em livro,
já que a própria temática e o contato com os professores de Educação
Física da rede pública estadual de São Paulo mostraram-me sua
dificuldade e, ao mesmo tempo, a vontade de reciclar sua prática.
Espero que, de alguma forma, este livro possa ser útil aos profissio-
nais e estudantes, não só de Educação Física, mas ele todas as áreas
que trabalham sobre e através do corpo humano.
Este livro não se tornaria realidade sem a concorrência de uma
série de pessoas que foram fundamentais na minha vida nestes últi-
mos anos.
Quem me apresentou à Antropologia foi Carmen Cinira de
Macedo, que me orientou de julho de ] 9R9 até sua morte, em outubro
de 1991. Entre outras coisas, ela me ensinou o prazer de fazer pesqui-
sa. Ela deve estar feliz em ver este livro. É minha co-autora.
13
Após a morte de Carmen, Maria Lúcia Montes adotou-me e foi
fundamental na conclusão do processo. Eu dispunha, então, de pouco
mais de um ano para a qualificação, o trabalho de campo, a redação
final e a defesa da dissertação. Por várias vezes achei que não iria
conseguir. Foi ela quem me conduziu nessa etapa, com muita compe-
tência e muito carinho.
Gostaria de ressaltar também a participação atenciosa na pes-
quisa dos professores da 14il Delegacia de Ensino do Estado. Sem essa
colaboração, a pesquisa se tornaria impossível.
Os amigos que me acompanharam de várias maneiras nesse
processo, eu não cito. Seriam muitos e não vou correr o risco de
esquecer algum. Eles se sabem meus amigos e, por isso mesmo, não
fazem questüo de ver seus nomes aqui citados.
Vou citar os meus anjos da guarda, que foram aquelas pessoas
que ficaram cochichando no meu ouvido nos momentos difíceis dessa
jornada: Ovídio c Elza, meus pais, Gui, meu filho, e Lúcia, minha
terapeuta.
O que um autor deve esperar do seu livro? É difícil responder.
A Carmen Cinira, na apresentação de Tempo de Gênesis, dizia que
esperava que o seu livro tivesse sabor doce. Eu me contentaria apenas
que o meu tivesse sabor.
14
INTRODUÇÃO
As coisas estão no mundo,
só que eu preciso apren-
der.
Paulinho da Viola
Este trabalho utiliza um referencial teórico próprio da Antropo-
logia Social para analisar a prática de professores de Educação Física
na rede pública de primeiro grau. Pretendemos com esse enfoque uma
nova forma de olhar a atuação de professores de Educação Física e
assim conseguir ·desvendar e compreender um pouco melhor sua
prática. Isso porque a Antropologia Social, como veremos com deta-
lhes no próximo capítulo, pauta-se pelo estudo do homem nas suas
relações sociais, entendendo-o como construtor de significados para
as suas ações no mundo. Se o homem é sempre um ser social,
vinculado a redes de sociabilidade, com uma grande capacidade de
agir simbolicamente, ele também o é na sua atividadc profissional. É
assim que olhamos para os professores de Educação Física: como um
15
grupo constituído por seres sociais, buscando e fazendo de sua atua-
ção profissional cotidiana o sentido para suas vidas.
A Antropologia Social pode nos auxiliar nessa empreitada na
medida em que nos mostrar que os professores de Educação Física,
como seres sociais que são, imersos numa dinâmica cultural, possuem
um universo de representações- sobre o mundo, o corpo, a atividade
física, a profissão que exercem, a escola etc. - que define e orienta
a atividade profissional na área. Em outros termos, devemos conside-
rar a sua ação como ligada a esse conjunto de representações e não
como um dado isolado. O que os professores fazem é importante e
significativo, mas também o é a forma como eles justificam, explicam
e procuram sentido naquilo que fazem.
É válido ressaltar que não pretendemos, ao lançar mão de
recursos da Antropologia, perder de vista nosso objeto principal de
investigação: a atuação de professores de Educação Física nas esco-
las de primeiro grau. Utilizarémos o chamado "olhar antropológico"
para colocar em foco a atuação dos professores nas escolas, não em
termos exclusivamente fisiológicos, pedagógicos, sociológicos ou
psicológicos, mas num aspecto relacional que engloba todos eles, já
que na sua prática cotidiana os professores constroem significados
sobre essas áreas.
Esta pesquisa considerará a experiência concreta ele professo-
res de Educação Física da rede pública, resgatando-a e respeitando-a,
já que é elas mais profícuas. Não pretendemos culpá-los por não
agirem de uma determinada maneira, mas compreender sua prática,
na sua amplitude e nos seus limites. A consideração da experiência de
professores de Educação Física do ensino público ganha importância
redobrada num momento em que o seu trabalho mostra-se desvalori-
zado, tanto por parte dos órgãos governamentais responsáveis pela
educação como, e principalmente, por parte dos próprios professores.
Pretendemos demonstrar a riqueza de sua prática na construção de
representações sobre o seu papel na sociedade. Segundo Macedo:
16
Cumpre não esquecer que a atividade humana envolve, s.empre, o
esforço dos homens de construir e integrar significados que possam
dar sentido a sua vida concreta c que esse esforço se traduz cm
formas de conceber suas próprias inscrçôcs na realidade social.
(19R5, p. 143)
A pesquisa com professores de Educação Física não é novida-
de. Muitas pesquisas, nos últimos anos, têm se debruçado sobre esse
objeto de estudo, mas com finalidades e referenciais diferentes dos
nossos. Estudou-se muito o currículo das faculdades que preparam
esses professores, concluindo-se, de maneira geral, que as disciplinas
técnico-esportivas são predominantes, levando esses profissionais a
uma falta de embasamento teórico que possa conduzir a uma transfor-
mação da sua prática. Várias pesquisas constataram a ênfase curricu-
lar de disciplinas da área biológica e o número insignificante de
disciplinas da área de humanas (Carmo 1982; Gallardo 1988). Algu-
mas pesquisas investigaram o nível de consciência política dos pro-
fessores, concluindo que sua prática reproduz valores vigentes da
sociedade capitalista (Coutinho 1988; Ferreira 1984). Um outro gru-
po de pesquisas investigou os determinantes históricos que influen-
ciaram a prática de Educação Física ao longo dos anos no Brasil
(Betti 1991; Castellani Filho 1988; Soares 1994). Outras pesquisas
procuraram, ao analisar as competências didáticas necessárias ao
professor de Educação Física, traçar o seu perfil ideal (Faria 1985;
Santos 1984). Algumas pesquisas analisaram diretamente o trabalho
dos professores (Cavallaro 1990; Moreira 1990; Pires 1990). Outras,
ainda, preocuparam-se com os procedimentos de avaliação adotados
pelos professores de Educação Física (Figueiredo 1988).
Entretanto, poucas investigações em Educação Física olharam
para os professores como agentes sociais e para sua prática como
determinada culturalmente. Sua prática não é mecanicamente in-
fluenciada pelo currículo da faculdade, embora consideremos a mu-
dança deste como importante. É condição necessária, mas não
suficiente. Da mesma forma que um aumento salarial substancial
pode não garantir, por si só, uma prática docente conseqüente. Por-
que, como elementos sociais que são, esses professores traduzem, em
sua prática docente, determinados valores segundo a forma como
foram educados, como foram preparados profissionalmente, segundo
a escola em que trabalham etc. É óbvio que a formação profissional é
17
r
significativa nesse processo de tradução e filtragem de valores. Mas
a história de vida desses professores também é, fato não considerado
em outros trabalhos. Que tipo de crianças foram? Como brincavam?
De que modo eram como alunos de Educação Física no primeiro
grau? Quando se decidiram pela carreira? Qual a reação dos pais em
relação a essa escolha? Como se sentem como professores? São
questões também determinantes na forma como esses profissionais
concebem sua prática docente, trabalhando com e através do corpo de
seus alunos, colocando sobre ele a competência que lhes deu sua
formaçào específica.
Ao olhar para um grupo de professores de Educaçào Física,
propusemo-nos a ver neles, na inten!çào entre açüo- o que fazem-
c representaÇto- como justificam o que fazem-, a síntese de toda
uma experiência. Porque os professores de Educaçüo Física são ata-
res sociais, que trabalham num determinado ccnúrio- escola, bairro,
cidade etc. -, utilizando determinados conteúdos e seguindo deter-
minadas regras, crenças, valores, certezas etc. Tudo isso possui raízes
na própria dinfunica da viela social. Süo essas ligações entre a prática
cotidiana dos professores e as questões sociais mais amplas que serão
mostradas neste trabalho. A nossa intenção é desvendar, no plano
simbólico da cultura, a lógica que rege a atuação de professores de
Educaçüo Física da rede pública de primeiro grau.
No capítulo seguinte faremos uma incursão pela Antropologia,
buscando traçar um rápido histórico dessa disciplina e mostrando
alguns dos seus pressupostos metodológicos que dão suporte à nossa
análise do trabalho de professores de Educação Física. Apesar do
risco de esse capítulo tornar-se monótono e desinteressante, conside-
ramos importante essa discussão a fim de que o leitor compreenda o
"olhar antropológico" utilizado na nossa análise posterior.
Em seguida mostraremos que o corpo humano é construído
culturalmente, e que a tendência em pensá-lo como exclusivamente
biológico revela uma determinada concepção sobre natureza humana.
Na verdade, a Antropologia estruturou-se como disciplina a partir da
oposição entre natureza e cultura. Ora, essa oposição está presente no
corpo humano, que é, ao mesmo tempo, natural e social, possuindo
18
um componente inato e outro adquirido. Aliás, o próprio termo "Edu-
cação Física":_ na for~a coAmo. foi concebido e utilizado ao longo dos
anos, pressupoe uma mfluenc1a cultural sobre um físico biológico.
Ainda nesse capítulo, destacaremos os estudos de Marcel Mauss
que vislumbrou, já em 1935, a análise do corpo como determinad~
culturalmente, permitindo-nos abordar a prática corporal como um
"fato social total", para usar um termo por ele criado. Esse referencial
iniciado por Mauss permitiu-nos analisar a Educação Física e 0
trabalho dos seus profissionais sob uma perspectiva diferente da que
tem sido utilizada até hoje.
.. É essa,análise que está apresentada nos dois capítulos subse-
quentes. Sera apresentada a pesquisa de campo propriamente dita,
d~sde a escolha das escolas na Delegacia de Ensino, o contato com as
d~reções das unidades e com os professores, até a análise das entre-
VJstas._Nesse momento, a partir da interação entre a ação e a repre-
~entaçao, ou, em outros termos, entre o que os professores fazem e a
forma como justificam o que fazem, será possível reconstruir a lógica
que ordena sua atuação profissional.
, . E, final:nente, na seção reservada às conclusões, a partir da
a~a!Js~ das ~çoe~ e das representações dos professores, será possível
d1scutu. as Implicações pedagógicas da Educação Física na escola
atual, VIslumbrando uma prática que tenha por referencial 0 caráter
cultural, não só do corpo com o qual trabalha, mas dos conteúdos que
dese~v~l~e. Uma E~ucaç~o Física que, emprestando da Antropologia
? pnncipiO da altendade , permita considerar que todos os alunos,
m~e_rendentemente de suas diferenças, são iguais no direito à sua
pratica.
I. A ~ntropologia nos ensina a considc~ar as diferenças entre os vários grupos humanos não como
desigualdades, mas como características específicas de cada grupo. Assim, fazer Antropologia
ex1ge, de algu.ma for~a, ~~locar-se n? lugar do outro, procurando compreender sua dinâmica
cultural própna. O pnnc1p10 da altcndadc implica a consideração c o respeito às diferenças
humanas.
19
ANTROPOLOGIA:
UM DESLOCAMENTO DO OLHAR
(...) aquilo que os seres !tu-
manos têm em comum é sua
capacidade para se diferen-
ciar uns dos outros(...).
François Laplantine
Laplantine (1988) afirma que a Antropologia, em particular a
Antropologia Social, propõe-se a estudar tudo o que constitui uma
sociedade -seus modos de produção económica, suas técnicas, sua
organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus
sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, suas
criações artísticas. Entretanto, a Antropologia consiste menos no
levantamento sistemático desses aspectos do que em estudar a manei-
ra particular como estão relacionados entre si e por meio dos quais
aparece a especificidade de uma sociedade.
21
Historicamente, a Antropologia constituiu-se como disciplina es-
pecífica durante o século XIX, embora seja possível considerar o seu
início há mais tempo, na medida em que sempre houve alguém interes-
sado na reflexão e no estudo de outros povos e outros costumes.
Até o final do século XIX, a pesquisa antropológica possuía um
caráter evolucionista, concordando com o paradigma científico em
voga, que, ao considerar todos os homens como integrantes da mesma
espécie animal, procurava descobrir a origem da espécie, para justifi-
car suas diferenças a partir de ritmos desiguais de desenvolvimento.
Os antropólogos da época nada mais faziam do que coletar informa-
ções e materiais dos vários povos do mundo, quase sempre trazidos
por missionários, viajantes ou mercadores. As interpretações eram
feitas à distância dos vários agrupamentos humanos, a partir do
pressuposto de que o homem, ao longo da sua evolução, passou por
vários estágios, desde o nível mais primitivo até o mais civilizado;
alguns concluindo todo esse desenvolvimento, outros interrompendo-
o em estágios anteriores. Em 1877, Morgan classificou os homens em
três estágios básicos de desenvolvimento: selvageria, barbárie e civi-
lização. Nessa visão etnocêntrica, os povos considerados primitivos
nada mais eram do que os não-europeus da América, da Ásia e da
África, que, por condições ambientais ou históricas, ainda não tinham
atingido o estado de civilizaçüo característico da sociedade européia
do século XIX. A diferença era pensada como inferioridade (Morgan
1946).
Se, por um lado, a Antropologia evolucionista estimulava o
preconceito racial e justificava a prática colonialista, por outro lado
-e esse foi o seu mérito-, ela permitiu o reconhecimento de uma
mesma humanidade para todos os homens. Todos os seres encontra-
dos nos mais distantes locais, por mais diferentes e estranhos que
fossem, faziam parte da humanidade, ou, no dizer de Morgan, da
família humana.
No início do século XX, com Franz Boas e, principalmente,
com Brunislaw Malinowski, a Antropologia passou por uma revolu-
ção conceituai e metodológica. O trabalho do antropólogo, até então
elaborado a partir do material co!etado por pessoas sem treino profis-
22
sional, foi substituído pela pesquisa feita no campo. O pressuposto
era o de que só seria poss.ível entender a dinâmica de uma cultura se
houvesse uma forte interação do pesquisador com o seu objeto de
estudo. O antropólogo, para a realização de sua pesquisa, teria que
viver com os nativos, falar a sua língua, enfim, buscar o sentido e a
função de qualquer costume no contexto do grupo. Ao trabalho de
coleta de dados foi incorporada a reflexão, já que cada sociedade era
considerada como uma entidade autô1~oma, em que cada detalhe
observado possuía um sentido. Antes de Boas e Malinowski, acredi-
tava-se que os dados estavam nas sociedades, podendo ser coletados
por qualquer viajante. Agora, o pesquisador buscava compreender a
sociedade, relacionar os fatos entre si, estudar os mínimos detalhes,
decifrar os fenômenos sociais da perspectiva dos próprios membros
da sociedade. Já se percebe aqui o respeito ao princípio da alteridade,
uma das premissas da ciência antropológica atual.
Essa nova forma de fazer Antropologia exerceu forte influência
nos pesquisadores da área durante as décadas seguintes, fazendo-se
presente até os dias de hoje. A crítica ao evolucionismo deu lugar a
novos referenciais teóricos, a partir dos quais passou-se a considerar
os homens como diferentes entre si, mas não superiores ou inferiores.
No surgimento dessa nova concepção de homem, dois fatores podem
ser considerados: a crítica crescente que a própria Antropologia pas-
sou a fazer contra sua postura etnocêntrica e colonialista, e a redução
do seu campo de estudo devido ao intenso processo de descoloniza-
ção. Tem-se como somatória, nos dias de hoje, uma Antropologia cujo
objeto de pesquisa não está mais ligado a um espaço geográfico,
cultural ou histórico particular. Permitiu-se, assim, uma ampliação do
seu campo de atuação (Kuper 1978).
Dessa perspectiva, é possível desmitificar a idéia de "estudo do
que nos é estranho", ainda reinante no senso comum, que considera a
Antropologia a ciência que estuda tribos longínquas e exóticas. Como
define Laplantine (1988), a Antropologia nada mais é do que um certo
olhar, um certo enfoque, que consiste em estudar o homem inteiro e
em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus
estados e em todas as épocas. Ou, dito de outro modo, trata-se de
estudar o homem em todas as suas práticas e os seus costumes.
23
Assim, a Antropologia pode estudar também a nossa sociedade,
não apenas a partir de um conjunto de aspectos exteriores e materiais,
mas como provida de sentido e significação. O termo cunhado para
este estudo é "Antropologia das Sociedades Complexas", que permite
o estudo de qualquer grupo contemporâneo, tais como operários,
militantes de um partido político, homossexuais, grupos religiosos
ou, ainda, professores de Educação Física. Brandão, discutindo o
objeto de estudo da Antropologia atualmente, afirma:
A mulher, a criança, o bandido, o capelão de roça, o profeta urbano
de um novo surto religioso, os grupos tradicionais ou renovadora-
mente minoritários, ou então este ator surpreendente que é o homem ._
comum em seus dias de cotidiano, eis os sujeitos cuja vida ou cujo
modo peculiar de participação na vida de todos nós tem suscitado
velhas e novas perguntas à Antropologia. (1987, pp. 47-48)
O conhecimento antropológico da nossa cultura passa, inevita-
velmente, pelo conhecimento das outras culturas, reconhecendo que
somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.
Entretanto, esse conhecimento não se dá objetivando apenas a com-
paração com a nossa para percebermos quão diferentes elas são. Esse
conhecimento é realizado a fim de se compreender o sentido de
determinada manifestação cultural numa dada sociedade e, a partir
daí, relacionar com certos aspectos da nossa própria sociedade. Por-
que, apesar das diferenças entre as várias sociedades, existem seme-
lhanças entre os seres humanos, das quais a mais interessante é a
capacidade de se diferenciarem uns dos outros, de se expressarem das
mais variadas formas, sem perderem a condição de seres humanos. O
antropólogo, a partir de observações em outras sociedades, vai notan-
do certas diferenças em relação à sua própria sociedade. Esse estra-
nhamento em relação a determinados hábitos e comportamentos o faz
olhar criticamente para características até então tidas como naturais
em sua sociedade. É justamente essa variabilidade cultural que torna
a humanidade plural e faz com que os homens, apesar de pertencerem
todos à mesma espécie, se expressem por meio de especificidades
culturais (Laplantine 1988).
24
Um texto de Miner (1973), intitulado "Ritos corporais entre os
nacirema", ilustra bem essa questão do estranhamento da nossa cul-
tura, quando supõe um antropólogo observando uma cultura exótica,
que nada mais é do que a cultura americana1
•
É justamente esse movimento de olhar para o outro e olhar para
si mesmo através do outro que constitui a especificidade do chamado
"olhar antropológico". Segundo Laplantine:
A abordagem antropológica provoca, assim, uma verdadeira revolu-
ção epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela
implica um descentramento radical, uma ruptura com a idéia de que
existe um "centro do mundo", c, correlativamente, uma ampliação do
saber e uma mutação de si mesmo. (19RR, pp. 22-23)
Uma das idéias básicas que justificam lançar um "olhar antro-
pológico" também sobre grupos contemporâneos é uma perspectiva
metodológica associada ao conceito de "fato social total", desenvol-
vido por Marcel Mauss no início deste século. A noção de "fato social
total" implica a compreensão de que em qualquer realização do
homem podem ser encontradas as dimensões sociológica, psicológica
e fisiológica. Essa tríplice abordagem só é possível de ser alcançada
porque essas dimensões constituem uma unidade, quando encarnadas
na experiência de qualquer indivíduo membro de determinada socie-
dade (Lévi-Strauss 1974). A partir desse conceito criado por Mauss,
a Antropologia passou a priorizar, na sua forma de olhar o homem, os
seus comportamentos e a sua atuação específica nos grupos, em vez
de trabalhar com enfoques considerados mais abstratos, como socie-
dades, idéias ou regras sociais. Como explica Mauss: "(...) o dado é
Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio dessa ou daquela
ilha, e não a prece, ou o direito em si" (1974, v. 2, p. 181).
Durkheim, influenciador da obra ele Mauss, já propunha desde
1894, quando da publicação de seu livro As regras do método socio-
lógico, o tratamento dos fatos sociais como "coisas", que só poderiam
!. Leia-se "nacircrna" ele rorrna invertida.
25
ser explicados quando relacionados a outros fatos sociais. Dessa
forma, ele definia um método sociológico para a análise dos fenôme-
nos sociais e a Sociologia conquistava sua autonomia ao constituir
um objeto próprio de estudo (Durkheim 1960). Porém, enquanto
Durkheim recusava-se a explicar os fenômenos sociais por meio de
estados de consciência individuais, Mauss tentaria posteriormente,
durante boa parte de sua obra, estabelecer as conexões entre essas
duas dimensões em si, e destas com a dimensão fisiológica. Embora
concordando com Durkheim que o fato social era irredutível a uma
explicação em nível individual, Mauss acreditava, no entanto, que o
fato social só poderia ser completamente compreendido se observado
em sua incorporação numa experiência individual. Em sua aula inau-
gural na cátedra de História das Religiões de Povos Não-civilizados,
em 1902, Mauss, além de esclarecer que não existem povos "não-ci-
vilizados" mas civilizações diferentes, antecipava já um importante
conceito que nortearia toda a sua obra e, posteriormente, exerceria
uma influência decisiva sobre Lévi-Strauss: o caráter inconsciente
dos costumes. Afirmava ele que o etnógrafo deveria buscar os fatos
profundos, quase inconscientes, que existem na tradição coletiva.
Deixava ele claro, desde essa época, que os costumes de um povo
estavam encarnados em cada indivíduo membro desse povo e só por
meio da sua unidade, tal como incorporada na experiência individual,
é que poderiam ser compreendidos (Mauss 1979).
Apesar elo caráter diferencial da proposta de Mauss em relação
a Durkheim, a contribuição de ambos foi decisiva para uma estrutu-
ração da Antropologia como saber científico, já que foi a partir daí
que o aspecto social no estudo do homem passou a ter autonomia. Os
costumes c os hábitos ele um povo passaram a ser estudados como
fatos s.oci~is independentes de uma explicação histórica, como no
evolucwm~mo ele poucos anos antes, ou de uma explicação geográfi-
ca, q:1e fazia da Antropologia o estudo de povos fisicamente distantes,
ou ~Inda de uma explicação psicológica, que tratava um fenômeno
socwl como conseqüência de um conjunte ele estados afetivos ou
motivacionais individuais.
A partir dessa nova perspectiva, tornou-se possível analisar não
só as sociedades ditas primitivas, mas também compreender o co·m-
26
portamento de indivíduos e grupos na sociedade contemporânea. O
pressuposto, tanto em um como no outro caso, é o de que a experiên-
cia individual ou grupal é uma expressão sintética da cultura em que
o indivíduo ou o grupo vive, cabendo ao pesquisador o mapeamento
e a reconstrução da l~gica que ordena seus comportamentos. Como
não existem comportamentos naturais, o pesquisador deve tentar
decifrar, nos v~lores e nas atitudes de indivíduos ou grupos, a expres-
são de uma construção social que só se compreende quando referida
a aspectos globais da sociedade. Como afirma Durham (1977), a
noção de cultura parte do estabelecimento de uma unidade fundamen-
tal entre ação e representação, unidade esta que está dada em todo
comportamento social, cabendo ao trabalho de pesquisa proceder
no nível da investigação do comportamento real de grupos concre-
tos. Pensando dessa forma, é possível realizar uma pesquisa antro-
pológica a partir de qua_Iquer comportamento que um determinado
grupo possa expressar. E possível também pensar, como fez Mauss,
no conjunto de gestos corporais desenvolvidos pelo homem ao
longo de sua história como um profícuo objeto de estudo das
sociedades.
A característica principal ela pesquisa antropológica é o reco-
nhecimento do lugar e do papel ocupados pelo observador. Quando os
pesquisa~ores trabalhavam com povos exóticos ele regiões longín-
quas, o distanciamento sujeito/objeto era um dado de fato, devido até
mesmo à distância geográfica entre o observador e o observado. Além
disso, a pesquisa antropológica possuía, como já afirmado, um caráter
etno~ê~trico, que facilitava a crença ele que o papel do pesquisador
consistia em ser uma "testemunha objetiva" de culturas diferentes.
Com a consideração da reflexividade na construção do objeto da
Antropologia, olhar o outro acabou se transformando numa forma de
olhar a si ~esmo. Por isso, a pesquisa antropológica sempre implica
o reconhecimento do papel e do lugar da subjetividade do observador.
Laplantine (1988) coloca que o pesquisador não é uma testemunha
objetiva observando ?bjetos, mas um sujeito observando outros sujei-
tos. E alerta para o nsco, se essa subjetividade não for considerada
de uma cientificidade desumana ou de um humanismo não-científico:
Toda e qualquer:observação que o pesquisador possa fazer ao analisar
27
um grupo específico será mediada pelo seu referencial cultural, ex-
presso na sua subjetividade. O que lhe agradará, o que lhe causará
aversão, o que lhe parecerá justo, o que lhe parecerá desumano,
enfim, o que se destacará para ele será em função de sua condição de
sujeito participante de uma cultura e será intermediado pela sua
subjetividade. Por isso DaMatta (1978) pode afirmar que não seria
exagero dizer que a Antropologia é um mecanismo dos mais impor-
tantes para deslocar nossa própria subjetividade.
Cardoso (1986), falando do lugar da subjetividade do observa-
dor, afirma que não se trata de um descontrole que invade e perturba
o campo da reflexão racional, mas de um fator intrínseco à relação
entre duas pessoas, o pesquisador e seu informante. Laplantine desta-
ca a utilidade do reconhecimento da subjetividade do pesquisador:
A perturbação que o etnólogo impõe através de sua presença àquilo
que observa e que perturba a ele próprio, longe de ser considerada
como um obstáculo que seria conveniente neutralizar, é uma fonte
infinitamente fecunda de conhecimento. Incluir-se não apenas so-
cialmente mas subjetivamente faz parte do objeto científico que
procuramos construir, bem como do modo de conhecimento caracte-
rístico da profissão de etnólogo. A análise, não apenas das reações
dos outros à presença deste, mas também de suas reações às reações
dos outros, é o próprio instrumento capaz de fornecer à nossa disci-
plina vantagens científicas consideráveis, desde que se saiba apro-
veitá-lo. (1988, pp. 172-173)
Procurando contribuir para o aprofundamento da discussão da
metodologia antropológica, DaMatta (1978) afirma que o trabalho do
pesquisador resume-se numa dupla tarefa de afastamento e aproxima-
ção, que consiste, por um lado, em transformar o exótico em familiar
e, por outro, o familiar em exótico, embora ressalv~,,que o exótico
nunca pode passar a ser familiar, e o familiar nuné'a chega a ser
exótico. Na primeira tarefa, o pesquisador deve buscar decifrar o que
se lhe apresenta como incompreensível. Na segunda, deve procurar
estranhar aquilo que à primeira vista é conhecido, a fim de manter um
distanciamento necessário à pesquisa. ·
28
O antropólogo Gilberto Velho discute com propriedade o cará-
ter de familiaridade de que pode estar imbuído o objeto de pesquisa.
Buscando perceber alguns mecanismos que sustentavam a lógica das
relações sociais internas e externas, o estilo de vida e a visão de
mundo de um grupo de moradores de um prédio de classe média
carioca, o autor pesquisou o seu próprio local de moradia. Segundo
ele, o objeto de pesquisa pode ser familiar e não ser, necessariamente,
conhecido. Afirma ainda que o familiar pode ser
(...) objeto relevante de investigação para uma Antropologia preocu-
pada em perceber a mudança social não apenas ao nível das grandes
transformações históricas, mas como resultado acumulado e progres-
sivo de decisões e interações cotidianas. (1978, p. 46)
Geertz (1989) também coloca o papel interpretativo do pesqui-
sador em relação aos dados, fazendo o que ele chamou de "descrição
densa". Segundo ele, qualquer análise cultural vai ser sempre uma
leitura sobre o real, e de segunda mão, já que é uma reconstrução da
realidade e não a realidade em si. No exemplo citado por ele, em que
dois garotos piscam rapidamente o olho direito, fica explicitado o
trabalho do antropólogo, que é o de dar conta dos significados sociais
de determinado comportamento. O movimento em si é o mesmo;
entretanto, o primeiro garoto está apresentando um tique nervoso e o
segundo, uma piscadela conspiratória. Poder-se-ia ainda, seguindo o
exemplo, pensar num terceiro garoto, que imita o tique nervoso.
Numa quarta situação, poder-se-ia ter o imitador diante de um espe-
lho, ensaiando o tique nervoso do primeiro garoto. E uma quinta
possibilidade seria um outro garoto fingir a piscadela conspiratória do
segundo. A "descrição densa", ao contrário de uma simples descrição,
daria conta da "hierarquia estratificada de estruturas significantes"
(1978, p. 17) de fatos sociais, muitas vezes, simples e, aparentemente,
indiferenciadas. O movimento de piscar o olho implica, além do
componente fisiológico, um componente simbólico, de caráter social,
o que torna vários movimentos, anatomicamente muito semelhantes,
passíveis de descrições diferentes.
29
A Antropologia nos ensina a evitar qualquer tipo de preconcei-
to, uma vez que todo comportamento humano, por possuir uma di-
mensão pública, não pode ser julgado por meio de conceitos
implacáveis como bom/mau ou certo/errado. O entendimento de qual-
quer atitude humana deve ser buscado em referenciais culturais que
dão sentido a essas atitudes. Como vimos, o chamado "olhar antropo-
lógico" implica uma relação especular entre quem olha e quem é
olhado. Olhar para o outro é, em alguma medida, olhar para si mesmo
através do outro, porque a forma de olhar é também influenciada pela
cultura.
Essa contribuição da Antropologia, por si só, é útil para qual-
quer área do conhecimento e também para a Educação Física, que não
tem o hábito de considerar as diferenças existentes entre alunos e
grupos de alunos de forma não-preconceituosa. Em relação a esse
tema, voltaremos a tratar posteriormente.
Nessas breves considerações sobre a Antropologia e seus pres-
supostos metodológicos não tivemos por finalidade esgotar o assunto.
Pretendemos unicamente esboçar o referencial a partir do qual estu-
daremos o corpo como construção cultural e sede de signos sociais,
estudo este que nos oferecerá subsídios para a posterior análise do
trabalho de professores de Educação Física.
30
2
A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO CORPO HUMANO
A natureza cultural do homem
Hoje, trago em meu corpo
as marcas do meu tempo.
Taiguara
Durante o século XIX, houve um extraordinário desenvolvi-
mento científico, indo da Química à Geologia, passando pela Botâni-
ca e pela Zoologia para chegar à Biologia, ao lado do desenvolvimento
da Arqueologia, da Paleontologia e da Filologia. Esse desenvolvi-
mento científico coincidiu com a estruturação da Antropologia como
ciência, oferecendo a ela um referencial t.eórico que provinha das
ciências naturais. Esse referencial deu bases teóricas ao pensamento
evolucionista, que se interessava por compreender a história do gêne-
ro humano, estudando o princípio do homem como espécie animal no
reino da natureza. Por isso pode-se dizer que a noção fundante da
Antropologia Social é a oposição entre natureza e cultura. Pensava-se
31
que, ao encontrar a origem do homem, seria possível entender o seu
desenvolvimento desigual e, assim, compreender as diferenças exis-
tentes entre os vários tipos humanos. Para se chegar ao "homem
original" seria preciso ir retirando a sua roupagem cultural até atingir
um ser natural, puro de qualquer influência cultural, anterior ao
desenvolvimento social. Segundo os pesquisadores da época, esse
primeiro homem estaria no limite entre o máximo desenvolvimento
biológico dos australopitecos e a atitude cultural primeira do homo
sapiens. Em outros termos, o que se buscava era o homem biologica-
mente pronto, sem as influências do meio ambiente e das dimensões
socioculturais responsáveis pela diferenciação futura. Esse homem
possuiria uma constituição biológica próxima da que temos hoje e
estaria, ao longo da evolução, no ponto exato do salto qualitativo
responsável pela transformação que culminou no homem.
Essas premissas foram sendo questionadas nas décadas seguin-
tes, dando bases para o desenvolvimento da Antropologia, no sentido
de estabelecê-la como ciência social e não mais natural. Já neste
século, com os avanços dos estudos arqueológicos,''foi possível refu-
tar as idéias de linearidade e seqüenciação no desenvolvimento huma-
no. Foram encontrados i~dícios de cultura datados de uma época
anterior ao homo sapiens, o que contradizia a tese de uma maturação
cerebral anterior ao início do desenvolvimento cultural (Leakey &
Lewin 1980; Leakey 1981). Geertz (1989), retomando recentemente
essa discussão clássica, afirma que, ao longo da evolução do homem,
houve um período de superposição entre o desenvolvimento cerebral
e o desenvolvimento sociocultural. De fato, um simples aumento do
número de neurónios parece não garantir, por si só, uma atuação
cerebral desenvolvida. O autor sustenta que a capacidade mental,
durante sua evolução, foi permitindo certos comportamentos cultu-
rais, como a utilização de ferramentas, o convívio social, o início da
linguagem, que determinaram a evolução final do organismo humano.
Dessa forma, a cultura, mais que conseqüência de um sistema nervoso
estruturado, seria um ingrediente para o seu desenvolvimento.
Hallowell (1974) tarilbém compartilha dessa concepção, ao
deduzir a existência de uma fase protocultural na evolução hominí-
dea. A evolução social dos primatas, o hábitat terrestre, a comunica-
32
ção já existente entre os primeiros hominídeos e a organização psico-
lógica crescente alicerçaram as bases para o desenvolvimento cultu-
ral posterior.
Com essas considerações é possível questionar a noção de que
existe uma dimensão puramente biológica na natureza do homem. Se
houve um desenvolvimento interativo entre os componentes biológi-
cos e socioculturais, um afetando o outro igualmente, não é possível
separar esses dois aspectos. O cérebro humano é também cultural, já
que desenvolvido, em grande parte, após o início da cultura e influen-
ciado e estimulado por atitudes culturais.
Outro fator que corrobora a tese da ausência de uma natureza
humana essencialmente biológica é a compreensão de que o homem
é um animal incompleto. A natureza humana é caracterizada justa-
mente pela ausência de orientações intrínsecas, geneticamente pro-
gramadas, na modelagem do comportamento do homem (Durham
1984). Conforme afirma Gehlen (1973), no homem atual só é possível
encontrar resquícios de instintos. Segundo ele, é justamente esse
processo de redução dos instintos que explica a plasticidade c a
inventividade de condutas no homem. De fato, o homem, ao nascer, é
biologicamente mais dependente do que grande parte dos mamífe-
ros. Essa carência instintiva inicial, entretanto, permite que ele adqui-
ra a bagagem necessária- em termos de conceitos, valores, crenças
e comportamentos - para sua vida cm sociedade. !': Gccrtz quem
afirma:
( ...)nós snmos animais incompletos c inac:1hados que nos complcla-
mos c acabamos através ela cultura - não :1través li<l cultura cm
geral, mas através de formas altamente particulares de CJJ!tma (...).
(1989, p. 61)
A espécie humana só chegou a se constituir como tal pela
concorrência simultânea de fatores culturais e biológicos. Traçar uma
linha divisória entre o que é natural, universal e constante no homem
e o que é convencional, local e variável é, na opinião ele Gecrtz,
difícil. Diz ele que"(...) traçar tal linha é falsificar a situação humana,
33
ou pelo menos interpretá-la mal (...)" (1989, p. 48). P~rque to~o e
qualquer homem que se poss~ consider~r ser_á ~empre mfluencrado
pelos costumes de lugares particulares, nao exrstrndo um homem sem
cultura.
Afirmando que nüo existe natureza humana independente da
cultura, Geertz hipotetiza homens sem cultura, afirmando que eles
l ...) scri<llll lllllllStruusidadcs incontrolúvcis, cum muito poucos ins-
tintos litcis. iliL'IlOS scntilll<.:lltus rc·cuntlecívcis c nenhum intclc:cto.
(I t)1)<J, ]L h I)
Na busca da comprecns~tu do homem, ()eertz afirma que ele
nüo pode ser definido nem pelas suas habilidades .ina~as,. nem pel_o seu
comportamento real, mas pelo elo entre esses dors nivers, pela torma
em que o primeiro é transformado no segundo por meio ele atuações
específicas em situaçües culturais particulares. Nesse sentido, o autor
refuta o que ele clenumina "concepçüo estratigrúfica" da naturez_a do
homem, segundo a qual os fatores biológico, psicológico, socwl e
cultural manteriam entre si uma relaçào de superposiçüo no compor-
tamento humano, podendo, por isso, cada um deles ser isolado para
fins de estudo. Essa concepçüo pretende descobrir universais huma-
nos constantes cm todas as partes elo mundo. O processo dessa busca
é ir retirando as camadas elo homem, "descascando-o" dos valores
culturais, sociais, psicológicos, até chegar aos fundamentos biológi-
cus - anatômicos, fisiológicos, neurológicos -- ela vida humana,
rcivindicanuu autonomia para cada uma dessas dimensões. Em opo-
si<Jto a essa conccp<.;~to cstratigrúfica, o autor propõe como própria da
Antropologia uma concep<.;~to sintética, na qual os fatores biológicos,
psicológicos, sociolCJgicos c culturais possam ser tratados comova-
riúveis dentro ele sistemas unit{trios ele análise. Nüo se pretende aqui
a busca de características humanas universais abstraias, mas a análise
dessas variúvcis nas situações culturais particulares. Isso é o que
constituiria a característica universal ela natureza humana, pois, como
afirma Gecrtz:
34
(...)pode ser que nas particularidades culturais dos povos- nas suas
esquisitices- sejam encontradas algumas das revelações mais ins-
trutivas sobre o que é ser genericamente humano. (1989, p. 55)
É a perspectiva de cultura como unvnecanismo de controle, ou
como sistemas organizados de símbolos significantes, que permite
afirmar que o comportamento humano possui uma dimensüo pública
e "que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da
cidade" (Geertz 1989, p. 57). Assim, a cultura torna-se necessária
para a regulagem desse comportamento público do homem. É ela que
clú o caráter de humanidade a essa espécie animal. ·
Não dirigido por padrões culturais(...) o comportamento do homem
seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem senti-
do c de explosôes emocionais, c sua expcr"iência não teria pratica-
mente qualquer form::t. A cultura, a totalidade acumulada ele tais
padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma
condição essencial para ela- a principal base de sua especificidade.
(Gecrtz 1989, p. 58)
A partir dessas colocações, torna-se impossível pensar a natu-
reza humana como exclusivamente biológica e desvinculada da cul-
tura. Pode-se afirmar que a natureza do homem é ser um ser cultural,
ao mesmo tempo, fruto e agente da cultura. Poder-se-ia dizer, como
Rodrigues (1986), que a estrutura biológica do homem lhe permite
ver, ouvir, cheirar, sentir, pensar, e a cultura lhe forneceria o rosto de
suas visões, os cheiros agradáveis ou desagradáveis, os sentimentos
alegres ou tristes, os conteúdos do pensamento. Poder-se-ia, igual-
mente, afirmar que todos os seres humanos têm a capacidade biológi-
ca de sentir dor, mas o limite a partir do qual o indivíduo reclamará e
passará a gemer é extremamente variável de cultura para cultura.
Entretanto, essas afirmações sào de pouca utilidade, porque, como diz
Geertz (1989), traçar o limite entre o que é biológico e o que é cultural
é muito difícil, impossível até, em grande parte dos casos. Além disso,
o próprio conceito de natureza pode ser diferente de uma sociedade
para outra, sendo ele próprio uma construção cultural, pois, como
35
afirma Rodrigues, "(...) desde que construída socialmente, a idéia de
Natureza é variável culturalmente" (1986, p. 21).
É a partir da concepção de que o homem possui uma natureza
cultural e de que ele se apresenta em situações sociais específicas que
se chega à idéia de que o que caracteriza o ser humano é justamente
a sua capacidade de singularização por meio da construção social de
diferentes padrões culturais. Afirma Geertz:
Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos indivi-
duais sob a dircção dos padrões culturais, sistemas de significados
criados historicamente crn termos dos quais damos forma, ordem,
objctivo c di rcção às nossas vidas. ( 1989, p. 64)
O corpo: sede de signos sociais
Nessa linha de pensamento desenvolvida por Geertz, de que ser
homem não é ser qualquer homem, mas uma espécie particular de
homem, é possível discutir o corpo como uma construção cultural, já
que cada sociedade se expressa diferentemente por meio de corpos
diferentes. Todo homem, mesmo inconsciente desse processo, é por-
tador de especificidades culturais no seu corpo. Tornar-se humano é
tornar-se individual, individualidade esta que se concretiza no e por
meio do corpo,"(...) o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais
normal patrimônio que o homem possui" (Rodrigues 1986, p. 47).
É o mesmo Rodrigues (1987) quem afirma que o homem não
consegue apreender o mundo tal qual o mundo é em sua objetividade
porque sua percepção está limitada à sua humanidade, que, por sua
vez, está restrita à forma como cada sociedade "treinou" os órgãos
dos sentidos dos seus indivíduos. Cada cultura pode enfatizar ou
limitar um ou alguns sentidos.
Ao se pensar o corpo, pode-se incorrer no erro de encará-lo
como puramente biológico, um patrimônio universa~sobre o qual a
cultura escreveria histórias diferentes. Afinal, homens de nacionali-
dades diferentes apresentam semelhanças físicas. Entretanto, para
36
além das semelhanças ou diferenças físicas, existe um conjunto de
significados que cada sociedade escreve nos corpos dos seus mem-
bros ao longo do tempo, significados estes que definem o que é corpo
de maneiras variadas.
Sérgio (s.d.) afirma a corporeidade como o locus em que o
homem transcende os determinismos biológicos e torna-se efetiva-
mente humano:
Assente na corporeidade, ou no físico c nn hiol<'>gico, r:lc mostra-se
c<Jpaz de substituir o instintual por umil cultura que lhe determina a
relação com os outros. explica a sua acção, orienta o seu destino. f,;:
assim que ele legitimamente se afirma corno homem. (p. !43)
Lévi-Strauss (1976), buscando um critério para a diferenciação
entre o que, na tradição do século XVIII, ficou conhecido como "estado
de natureza", em oposição a um "estado de sociedade", afirma que onde
se manifestar uma regra nas relações humanas, pode-se reconhecer a
cultura; onde se observar uma característica constante, universal nos
homens, pode-se encontrar a natureza. Por meio da aplicação desse
duplo critério, Lévi-Strauss analisou o tabu do incesto, fenômeno que se
encontra no limiar entre natureza e cultura, por existir em todas as
sociedades e se constituir numa proibição, embora com conteúdos dife-
rentes. Segundo o autor, "a proibição do incesto possui ao mesmo tempo
a universalidade das tendências e dos instintos e o caráter coercitivo das
leis e instituições" (1976, p. 49).
Ora, o tabu do incesto constitui precisamente a imposição de
uma regra, uma ordenação da cultura sobre a natureza, ou sobre um
corpo que poderia ser pensado como puramente "natural", "instinti-
vo". O controle do uso do corpo aparece, portanto, como necessário
ao surgimento da cultura. A cultura nada mais faz do que ordenar o
universo por meio da organização de regras sobre a natureza. O
controle da sexualidade coloca o corpo como sede da ordenação
primeira da cultura sobre a natureza. O seu controle torna-se necessá-
rio para o surgimento do universo da cultura como condição de
humanidade. Por outro lado, esse controle se dá também por meio da
37
construção da própria noção de corpo e de natureza, construção esta
que varia de uma sociedade para outra e de uma época para outra
(Silva 1991).
Marcel Mauss (1Y74) tem o mérito de, pela primeira vez, ter
incluído o corpo c o que ele chamou ele "técnicas corporais" no
ümbito dos estudos antrupulúgicos. Conforme será discutido com
detalhes na próxima seção, Mauss considerou os gestos e os movi-
mentos corporais como técnicas criadas pela cultura, passíveis de
transmissão através das gerações e imbuídas de significados especí-
ficos. Afirmou também que uma determinada forma de uso do corpo
pode influenciar a própria estrutura fisiológica elos indivíduos. Um
dos exemplos que ele citou foi a posiçào de cócoras, adotada em
vúrios países, que causa uma nova conformação muscular nos mem-
bros inferiores.
Hertz (1980), num interessante artigo, discute a preferência da
utilizaçüo da müo direita em relação à esquerda. O autor reconhece a
existência de uma explicação biológica para o fato, segundo a qual a
prcdominfmcia da mào direita seria conseqüência de um maior desen-
volvimento do hemisfério cerebral esquerdo, que governa os múscu-
los do lado direito, é o centro ela linguagem articulada e é responsável
pelos movimentos voluntúrios. Mas acredita que tal explicaçào nào
clú conta da preferência quase absoluta pela mão direita, tendo, inclu-
sive, surgido posteriormente a uma série de fatores culturais que, ao
longo do tempo, foram acentuando essa predominância. Um dos
excmplus citadus 0 a associa~.;üo que as palavras "direita" c "esquer-
da" pussuem, cm vúrias sociedades, com valores e expressões consi-
clcraclos positivos no primciru caso e negativos no segundo. O autor
deixa a qu<.:stão ~;e uma base neurológica constante teria determinado
os húbitos ou se <.:ss<.: uso, durante muitos anos, teria influenciado o
próprio desenvolvimento cerebral.
Segundo Rodrigues (I tJ~ó), o corpo humano, como qualquer
outra realidade do mundo, é socialmente concebido e a análise de sua
representaçüo social oferece uma via de acesso à estrutura de uma
sociedade particular. Cada sociedade elege um certo número de atri-
38
butos que configuram o que e como o homem deve ser, tanto do ponto
de vista intelectual ou moral quanto do ponto de vista físico.
No corpo estüo inscritos todas as regras, todas as normas e
todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de
contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca. Mesmo
antes de a criança andar ou falar, ela já traz no corpo alguns compor-
tamentos sociais, como o sorrir para determinadas brincadeiras, a
forma de dormir, a necessidade de um certo tempo de sono, a postura
no colo. Para reforçar esse ponto de vista, Kofes (19~5) afirma que o
corpo é expressão da cultura, portanto cada cultura vai se expressar
por meio de diferentes corpos, porque se expressa diferentemente
como cultura. DaMatta chega a afirmar que "(...) tudo indica que
existem tantos ,corpos quanto há sociedades" (1987, p. 76).
Os exemplos sobre essas diferenças culturais expressas por
meio do corpo são esclarecedores. Pode-se adivinhar, com bom índice
de acerto, a origem de determinado indivíduo observando-se a distân-
cia sua gesticulaçào, sua forma de andar, sua postura corporal. Rodri-
gues (1987) descreve com bom humor as situações constrangedoras
pelas quais passou quando, num país estrangeiro, manifestava com-
portamentos corporais que nüo condiziam com a regularidade local,
como o tipo de cumprimento, o número de beijos e outros gestos.
Observando-se, por exemplo, um festival de danças folclóricas,
vêem-se com clareza as diferenças entre sociedades por meio dos
movimentos corporais ritmados, a formação do grupo no palco, a
postura dos dançarinos, a rigidez ou a soltura de movimentos. Assis-
tindo-se a uma copa do mundo de futebol, também pode-se diferen-
ciar com nitidez uma seleçüo de outra, a despeito de todas jogarem
segundo as mesmas regras c apesar de ·os esquemas táticos atuais
tentarem nivelar todas as selcções privilegiando o preparo físico dos
jogadores. É notória, por exemplo, a diferença entre a expressão
corporal da seleção brasileira de futebol e a da seleção alemà. Fala-se
com propriedade que elas possuem estilos diferentes.
O homem, por meio do seu corpo, vai assimilando e se apro-
priando dos valores, normas e costumes sociais, num processo de
inCORPOração (a palavra é significativa). Diz-se correntemente que
39
um indivíduo incorpora algum novo comportamento ao conjunto de
seus atas, ou uma nova palavra ao seu vocabulário ou, ainda, um novo
conhecimento ao seu repertório cognitivo. Mais do que um aprendi-
zado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se
instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões. Em outros
termos, o homem aprende a cultura por meio do seu corpo.
Podemos pensar no fato de os meninos brasileiros, como se diz
correntemente, "nascerem sabendo jogar futebol". De forma contrá-
ria, ainda segundo o senso comum, podemos dizer que as meninas
brasileiras, além de não nascerem sabendo, nunca conseguem apren-
der a jogar futebol. Ora, o primeiro brinquedo que o menino ganha é
uma bola. Como se não bastasse o estímulo do material, há todo um
reforço social incentivando-o aos primeiros chutes, ao contrário da
menina, que, afora não ser estimulada, é proibida de brincar com bola
utilizando os pés. As aptidões motoras também fazem parte do pro-
cesso de transmissão cultural.
Assimilar o emprego de um utensílio significa, portanto, para o
homem, assimilar as operações motrizes encarnadas nesse utensílio.
Este processo é, ao mesmo tempo, o da formação, dentro de si
próprio, de aptidões novas e superiores, daquilo a que se chama as
"funções psicomotrizes", "humanizando" o seu domínio motor.
(Léontiev 1977, p. 56)
O estudo das expressões corporais características de cada cul-
tura não pode se reduzir a simples levantamento e classificação de
movimentos e de técnicas corporais, mesmo que se faça posterior-
mente uma comparação desses dados com os de outras culturas. Esses
dados corporais constituem-se no que Rodrigues (1986) chamou de
conteúdos denotativos. Para ele, 6 mais importante são os conteúdos
conotativos, que contêm princípios estruturadores da visão de mundo
de uma sociedade e das atitu,des dos homens em relação a seus corpos
e aos alheios. Mais do que s'aber que os corpos se expressam diferen-
temente porque representam culturas diferentes, é necessário enten-
der quais os princípios, valores e normas que levam os corpos a se
manifestar de determinada maneira. Enfim, é preciso compreender os
40
símbolos culturais que estão representados no corpo. Na comparação
entre a mão direita e a esquerda, Hertz, citado anteriormente, não está
falando apenas das características motoras diferenciais, mas sim da
polaridade religiosa entre sagrado e profano que, como simbologia,
reforça uma pequena diferenciação orgânica, fazendo com que uma
parte do corpo seja mais valorizada do que outra.
Pode-se afirmar, portanto, que o corpo humano não é um dado
puramente biológico sobre o qual a cultura impinge especificidades.
O corpo é fruto da interação natureza/cultura. Conceber o corpo como
meramente biológico é pensá-lo - explícita ou implicitamente -
como natural e, conseqüentemente, entender a natureza do homem
como anterior ou pré-requisito da cultura. Santos (1990) critica os
que propõem a volta a um suposto corpo natural não atingido pela
cultura. Segundo ele, não se pode esquecer da natureza necessaria-
mente social do corpo, sendo possível somente pensar em novos usos
do corpo, já que a cultura é passível de reinvenções e recriações.
Rodrigues afirma que"(...) nenhuma prática se realiza sobre o corpo,
sem que tenha, a suportá-la, um sentido genérico ou específico"
(1986, p. 64). É justamente esse sentido específico que incide sobre
toda e qualquer atividade corporal o que impede de pensar o corpo
como um dado biológico. O que define corpo é o seu significado, o
fato de ele ser produto da cultura, ser construído diferentemente por
cada sociedade, e não as suas semelhanças biológicas universais.
Rodrigues (1986) afirma que existem certos comportamentos
presentes em todos os seres humanos, independentemente da forma-
ção específica que cada um tenha tido. Geertz (1989) também afirma
que alguns aspectos humanos são inteiramente controlados intrinse-
camente, como, por exemplo, a respiração. Poder-se-ia afirmar, como
o faz Vargas (1990), que todos os seres humanos possuem uma
constituição biológica semelhante, composta por cerca de 50 trilhões
de células, um esqueleto com cerca de 12 quilos e pouco mais de 200
ossos, um coração que bate numa velocidade de 60 a 80 vezes por
minuto e que num século de trabalho constante terá batido quatro
bilhões de vezes e bombeado 600 mil toneladas de sangue.
41
Entretanto, náo são essas semelhanças que definem o corpo
humano, mas a forma como os conceitos e as definições a seu respeito
são construídos culturalmente. Saber que existem 50 trilhões de
células no corpo pode náo ter sentido em muitas sociedades. O saber
sobre o corpo para um indígena, por exemplo, implica outros conhe-
cimentos, diferentes dos nossos. Confrontando a concepção científica
sobre corpo da nossa sociedade, Kofes (1985) cita uma pesquisa sobre
a tribo Sarno, na qual o corpo é concebido como dividido em nove
componentes: o sangue, a carne, a sombra, o duplo etc; cada componente
do corpo é transmitido à medida que o feto vai se constituindo. Portanto,
o que importa é a forma como cada um desses corpos é construído,
cuidado, educado, concebido, valorizado, enfim, representado.
Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimen-
tos corporais representa valores e princípios culturais. Conseqüente-
mente, atuar nu corpo implica aluar sobre a sociedade na qual esse
corpo estú inserido. Todas as prúticas institucionais que envolvem o
corpo humano - c a Educaç~to Física faz parte delas -, sejam elas
educativas, recreativas, reabilitadoras ou expressivas, devem ser pensa-
elas nesse contexto, a fim de que não se conceba sua realizaçüo de forma
reclucionista, mas se considere o homem como sujeito da vida social.
Marcel Mauss e a noção de técnica corporal
Marcel Mauss nasceu na França em 1872 e morreu no mesmo país
cm 1950. Seu mestre foi o tio, o célebre Émile Durkheim, com quem
trabalhou até a morte deste, ocorrida em 1917. Entre as inúmeras obras
que deixou, uma elas mais famosas foi o Ensaio sobre a dádiva', escrita
em 1925, na qual criou e desenvolveu o conceito de "fato social total",
que se constituiria na sua grande contribuição às ciências sociais (Mauss
1974, v. 2). Daí decorre o reconhecimento de pensadores franceses
ulteriores elo porte ele Lévi-Strauss e MerleauPonty, que consideraram o
pensamento ele Marcel Mauss atual e suscitador de importantes desen-
volvimentos posteriores, como serú discutido adiante.
I. Na iradu<J!t> poriugu~sa dcs1a obra, cnconlra·sc o lcrll!o ··uo111" cm vc;~ de "'d:ídiva".
42
A tentativa de estabelecer conexões e limites entre os campos
sociológico, psicológico e fisiológico constitui-se em um de seus
maiores esforços e pode ser presenciada em várias obras de Marcel
Mauss. No seu texto "A expressão obrigatória de sentimentos" esse
fato é bem ilustrado:
Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimen-
tos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos,
mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não-espon-
tâneas e da mais perfeita obrigação. (Mauss) 979, p. 147)
Numa comunicação apresentada em 1924 a psicólogos, intitu-
lada "Relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia",
Mauss discute de forma interessante as relações entre a psicologia e
a sociologia, tentando delimitar o campo de cada uma. Nesse traba-
lho, Mauss estabelece que tanto a sociologia como a psicologia
humana fazem parte da antropologia, que seria"...o total das ciências
que consideram o homem como ser vivo, consciente e sociável"
(Mauss 1974, v. 1, p. 181). Deixa claro, entretanto, que apenas a
sociologia trabalha exclusivamente com fatos humanos, já que a
psicologia, como a fisiologia, não se limitam ao estudo do homem.
Mesmo considerando a parte da psicologia que trata dos fenômenos
humanos chamada por Mauss de "Psicologia Humana"- e mesmo
quando esta fosse pe!lsada em termos de psicologia coletiva, tendo
por campo de investigação as representações coletivas nas consciên-
cias individuai's~ assim mesmo ela se diferenciaria da sociologia
porque, além dessas representações coletivas, existem outras coisas
de que a psicologia não daria conta. Na mesma obra, Mauss escreve:
(...) na França há algo além da idéia de pátria: há um solo, há o seu
capital, há a sua adaptação; há sobretudo os franceses, suas divisões,
sua história. Atrás do espírito de grupo, numa só expressão, está o
grupo que merece ser estudado(...). (1974, v. 1, p. 183)
Segundo Mauss, a sociologia se diferencia da psicologia por
três razões. Em primeiro lugar, pelos fenômenos chamados morfoló-
gicos, que constituiriam as especificidades de cada povo ou de cada
região. Seriam as variações entre homens e mulheres, entre adultos e
43
crianças, relações entre os sexos, entre as idades, características de
natalidade, mortalidade, enfim, as pequenas variações morfológicas
de cada povo em cada região. Uma segunda razão diferencial entre a
psicologia e a sociologia seria o aspecto estatístico dessa última.
Seria, por exemplo, a moeda utilizada, as medidas econômicas, o
índice de criminalidade, enfim medidas estatísticas que estariam
contribuindo para um entendimento mais profundo de uma sociedade
específica. E, finalmente, a terceira razão seria o aspecto histórico da
tradição de determinada sociedade. Cada fato social, mesmo parecen-
do novo, faz parte de uma história e deve ser analisado em conexão
com fatos ocorridos anteriormente.
Para a competência da psicologia, Mauss deixaria ainda uma
enorme gama de possibilidades referentes ao aspecto da consciência
individual. Mesmo quando o homem empreende trabalhos coletivos,
tomado por uma representação ou por uma emoção coletiva, o indivíduo
possui uma consciência própria. Esse ponto de vista é relevante na
compreensão da obra de Mauss, pois dá ao indivíduo uma importância
particular. O homem não é somente fruto e representante de uma socie-
dade, agindo como uma máquina comandada por suas instituições. Ele
é também um ser particular dotado de uma consciência que permite uma
mediação entre o nível social e o nível pessoal (Mauss 1974, v. 1).
É nesse sentido que Mauss afirma nesse mesmo trabalho a
importância de se considerar a totalidade do ser humano. Segundo
ele, o homem nunca é encontrado dividido em faculdades.
No fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se mistura. Os fatos que nos
interessam não são fatos especiais de tal ou qual parte da mentalida-
de; são fatos de uma ordem muito complexa, a mais complexa que se
possa imaginar. São aqueles para os quais proponho a denominação
de fenômenos de totalidade, em que não apenas o grupo toma parte,
como ainda, pelo grupo, todas as personalidades, todos os indivíduos
na sua integridade moral, social, mental c, sobretudo, corporal ou
material. (1974, v. 1, p. 198)
É impressionante a atualidade dessa citação- escrita em 1924
-para a Educação Física, que ainda tende a considerar o corpo como
primordialmente biológico. No discurso da área, o corpo que se
44
movimenta não é o mesmo corpo que representa aspectos da socieda-
de, como se ele não fosse, ao mesmo tempo e indissociavelmente,
biológico e cultural. É exatamente nesse ponto que o trabalho de
Marcel Mauss intitulado "As técnicas corporais" é esclarecedor. Pro-
ferido como palestra em 1935, esse trabalho é até hoje útil para a
compreensão cultural do corpo humano, compreensão esta que na
Educação Física brasileira ainda é nascente.
Nesse trabalho, Mauss coloca o corpo humano, os movimentos
corporais, cada pequeno gesto como tradutores de elementos de uma
dada sociedade ou cultura. Equipara assim o corpo humano a outros
temas da Antropologia, como a religião, as trocas econômicas, os
sistemas jurídicos, os rituais de passagem, que sempre mereceram
maiores estudos dos etnógrafos. Apesar desse destaque dado por
Mauss ao corpo humano e às técnicas corporais, os estudos a esse
respeito ainda são insuficientes. Claude Lévi-Strauss lamentou que
ainda ninguém tivesse feito o que havia sido iniciado por Mauss, ou
seja, um inventário de todos os usos que os homens fazem de seus
corpos em todos os cantos do mundo e nos vários momentos históri-
cos. Para ele, esse trabalho teria importância particular numa época
em que os homens, devido ao desenvolvimento tecnológico, tendem
a se utilizar menos dos meios corporais, correndo o risco de abando-
nar num passado inexplorado certas práticas cujo conhecimento c
análise poderiam ser úteis para a comprecnsúo da sociedade atual. Esse
trabalho contribuiria também para urna contraposição aos preconceitos
raciais, mostrando que a variação existente entre os homens cm v<irias
localidades não é devida a diferenças biológicas hierárquicas inscritas
nos seus corpos, mas a diferenças culturais expressas por meio deles
(Lévi-Strauss 1974). Em outras palavras, não existe corpo melhor ou
pior; existem corpos que se expressam diferentemente, de acordo com a
história de cada povo em cada região, de acordo com a utilização que
cada povo foi fazendo dos seus corpos ao longo da história.
Em seu trabalho, Mauss define técnica corporal como sendo as
maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira
tradicional, sabem servir-se de seus corpos. A partir dessa definição,
cita uma série de exemplos, com a finalidade de mostrar a diversidade
de hábitos motores existentes na humanidade. Cita a aprendizagem de
45
nataçüo pela qual ele passou quando criança e a ~iferencia ~a é~oca
em que escreve seu trabalho. Anteriormente, ensmava-se p.nmeuo a
criança a nadar para depois ensiná-la a mergu~har. Po.ste~I~rn?ente,
passou-se a ensinar primeiro ~ mer?ulho, a fun_ d~ familianzar_ a
criança com a água, para depois ensmar-lhe as tec?;ca~ de na~aça.o
propriamente ditas. Mauss também fala da sua expenencw na Pnme~­
ra Guerra Mundial quando, servindo na Inglaterra, observou a substi-
tuição de oito mil pás francesas, porque elas exigiam um tipo de
movimento manual que os soldados ingleses não dominavam e não
conseguiam aprender em pouco tempo. Observou também a dificul-
dade da tropa inglesa em marchar com marcação rítmica francesa.
Relata ainda diferenças no andar, no correr, na posição das mãos ao
sentar à mesa em vários povos. Descrevendo o andar da mulher
Maori (Nova Zelândia), Mauss afirma que talvez não exista uma
maneira "natural" de andar, já que cada sociedade vai andar de uma
maneira particular. O próprio uso de sapatos transforma a posição
dos pés no andar, fato que pode ser comprovado quando se anda
descalço (Mauss 1974, v. 2).
Entretanto, mais importante do que constatar, relacionar e clas-
sificar as diferentes manifestações corporais é entender o significado
desses componentes num contexto social. O primeiro passo, obvia-
mente, é partir das diferenças corporais entre povos ou entre épocas
de um mesmo povo, mas o passo seguinte proposto por Mauss é
entender os movimentos corporais como parte de um todo social. Em
seu trabalho intitulado "Fenômenos gerais da vida intra-social", Mauss
propõe que os comportamentos corporais sejam compreendidos como
parte de uma tradiçüo social, da mesma forma que os rituais religio-
sos, as obras de arte, as construções, a linguagem (Mauss 1979).
Como toda tradiçüo, esses gestos sfto transmitidos de uma geração
para outra, dos pais para us filhos, enfim, de pessoas para pessoas,
num processo de educaçüo2
• /s pessoas, principalmente as crianças,
imitam aios que obtiveram êxito c que foram bem-sucedidos cm
pessoas que detêm prestígio c autoridade no grupu social.
--
2. Embora nf1o considerada pl~lu autor, podcn1os citar corno dcterminantl! nesse processo c.k
transmissãu cultural a quc:-;táo das classes sociais.
46
É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato
ordenado, autorizado c provado, cm relação ao indivíduo imitador,
que se encontra todo o elemento social. (Mauss 1974, v. 2, p. 215)
Na pessoa que aprende o gesto tradicional e no seu ato imita-
dor, podem-se encontrar, respectivamente, os componentes psicológi-
co e fisiológico. Vê-se assim o fato social manifesto como um todo:
um elemento tradicional valorizado numa sociedade sendo transmiti-
do a um indivíduo dotado de uma unidade psíquica por meio da
utilização de seu componente fisiológico.
O termo "técnica corporal", criado por Mauss, não significa
apenas o emprego técnico do corpo para realizar determinadas funçõ-
es. Apesar de o autor ter escrito que o corpo é o principal e mais
natural instrumento do ser humano, seu mais natural objeto técnico,
pode-se depreender da sua obra que o sentido de técnica corporal é
mais abrangente. Mauss, ao definir técnica como um ato que é ao
mesmo tempo tradicional e eficaz e ao falar do corpo humano em
termos de técnicas corporais, elevou-o ao nível de fato social, poden-
do, portanto, ser pensado em termos de tradição a ser transmitida
através de gerações (Mauss 1974, v. 2).
Quando uma geração passa à outra geração a ciência de seus gestos
e de seus atos manuais, há tanta autoridade c tradição social quanto
quando a transmissão se faz pela linguagem. (Mauss 1979, p. 199)
Mas o que é mais interessante nesse enfoque é que ele permite
o estudo do corpo e elo movimento humanos como expressões simbó-
licas, já que toda prática social tem uma tradição que é passada às
gerações por meio de símbolos. A tradição oral, a mais conhecida e
muitas vezes mais valorizada, é apenas uma dentre as tradições
simbólicas. Qualquer técnica corporal pode ser transmitida por meio
do recurso oral. Pode ser contada, descrita, relatada. Mas pode tam-
bém ser transmitida pelo movimento em si, como expressfto simbóli-
ca de valores aceitos na sociedade. Quem transmite acredita e pratica
aquele gesto. Quem recebe a transmissão aceita, aprende e passa a
imitar aquele movimento. Enfim, é. um gesto eficaz. É justamente
47
devido à eficácia das técnicas corporais que se pode, segundo Mauss,
conceber que os símbolos do andar, da postura, das técnicas esporti-
vas são do mesmo gênero que os símbolos religiosos, rituais, morais
etc. É por meio dos símbolos que a tradição vai sendo transmitida às
gerações seguintes.
É oportuno alertar, como fez Mauss, que o termo tradição pode
ser entendido precipitadamente como inércia, resistência ao esforço,
imutabilidade e conformismo social. De fato, as sociedades tribais
apresentam uma adaptabilidade tão grande aos seus meios interno e
externo que não sentem necessidade de modificar sua rotina. Sua
coesão grupal é extremamente forte. Já nas sociedades contemporâ-
neas, não se dá o mesmo, embora esteja sempre presente o que Mauss
chamou de "memória coletiva". É precisamente o conteúdo dessa
memória- em algumas sociedades maior, em outras, menor- que
se pode chamar de tradição. É o que vai resistindo aos avanços
tecnológicos e ao desenvolvimento científico, mas é também o resul-
tado desses avanços que vai se incorporando às tradições sociais, num
processo dinâmico.
Neste capítulo discutimos a influência determinante da cultura
ao longo da evolução humana e do papel que ela realiza no compor-
tamento humano atual. Falamos que a natureza do homem não está
restrita somente ao nível biológico, mas é eminentemente cultural. A
partir disso pudemos discutir o corpo humano como construído cul-
turalmente. O mesmo patrimônio biológico humano universal confi-
gura-se de diferentes maneiras em virtude dos vários usos e dos
diversos significados que cada grupo determinado vai conferindo ao
corpo ao longo do tempo. Em seguida, avançamos ·um pouco mais em
relação à contribuição de Marcel Mauss, já que foi ele quem primeiro
sistematizou a pesquisa sobre o corpo como um dado de cultura.
As idéias discutidas neste capítulo são decisivas para a análise
que faremos do trabalho de professores de Educação Física, já que o
nosso interesse é justamente o de compreender de que forma as
noções sobre essa área, que foram construídas e incorporadas no
48
imaginário social dos profissionais, são reconstruídas e reatualizadas
no seu cotidiano. Torna-se pertinente, portanto, pensar no trabalho
empreendido pela Educação Física, principalmente naquele segmento
dela que atua nas escolas de primeiro grau. Urge saber a concepção
de corpo que os profissionais da área possuem. Em outros termos, é
necessário descobrir qual é a apropriação de corpo que a Educação
Física escolar realiza por intermédio de seus profissionais, analisan-
do-se os valores, conceitos, conteúdos e métodos com os quais ela
trabalha e transmite aos alunos. Porque os alunos, antes, inde-
pendentemente da escola e durante toda a vida, terão acesso a uma
educação corporal, já que as técnicas corporais, como visto, integran-
do uma gama variada de tradições, são imbuídas de significados. Ora,
a Educação Física escolar propõe-se a atuar formalmente sobre um
processo de educação corporal tradicional. O homem pode viver sem
a Educação Física, porém a suposição é que se ele passar por esse
processo formal, ele será mais apto do que outro que não o fizer. A
questão é saber o que- e como- a sociedade está expressando por
meio do processo de educação corporal formal. Nesse sentido, anali-
sar as representações que os professores possuem, tanto a respeito do
corpo como a respeito de sua prática profissional, apresenta-se como
importante tarefa quando se objetivam a reciclagem desses profissionais
e a conseqüente qualificação do seu trabalho.
49
3
O TRABALHO DE PROFESSORES
DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Os caminhos da pesquisa
A análise cultural é intrin-
secamente incompleta e, o
que é pi01; quanto mais pro-
funda, menos completa.
Clifford Geertz
A partir do referencial teórico antropológico explicitado anterior-
mente, começamos a delimitar nosso campo de investigação, escolhen-
do o trabalho com professores de primeiro grau da rede pública estadual.
A opção pela rede pública deveu-se ao fato de os professores serem
instados a seguir uma diretriz programática única. Mesmo considerando
as diferenças entre escolas e entre professores, buscou-se um elemento
de uniformidade no grupo, uma vez que a diretriz curricular, pelo menos
51
na sua origem, é a mesma:; o que poderia não ocorrer se fossem
reunidos professores de escolas públicas e privadas.
Pensamos, inicialmente, em entrevistar 20 professores, sendo
dez do sexo masculino e dez do sexo feminino. Acreditávamos, como
de fato ocorreu, que com 20 entrevistas seria possível obter uma certa
repetição das respostas, e que um número superior apenas viria a
confirmar uma saturação dos dados, que nada acrescentaria a uma
pesquisa qualitativa como a que propúnhamos realizar. Quando deci-
dimos por dez homens e dez mulheres, imaginávamos que os profes-
sores ministravam aulas para os meninos e as professoras, para as
meninas, e que haveria diferenças entre a Educação Física de um e de
outro grupo. Como encontramos professores e professoras, aleatoria-
mente, com turmas masculinas, femininas ou mistas, percebemos não
serem significativas as eventuais preferências dos professores em
termos de sexo dos alunos. A partir da nossa observação verificamos
que a tendência parece ser a de que as aulas de Educação Física façam
parte do horário regular da escola, fato que faz com que as turmas
sejam mistas, a despeito da preferência dos professores.
Pensamos também em trabalhar com professores da mesma
Delegacia de Ensino, a fim de se garantir uma certa referência comum
ao grupo, já que os procedimentos sugeridos pela Secretaria de Edu-
cação chegariam às suas escolas de forma semelhante. A escolha
recaiu sobre a 14ª Delegacia de Ensino, na qual se congregam escolas
do município de São Paulo .que, em princípio, deveriam atender a
clientelas distintas. As escolas dos bairros de Moema, Indianópolis e
Brooklin, mais centrais, definem sua clientela como sendo "de classe
média", enquanto que boa parte das escolas do Butantã, mais perifé-
ricas, define sua clientela como sendo "de classe baixa". Pensamos
em trabalhar com metade dos professores que atendesse crianças de
classe baixa e metade que atendesse crianças de classe média: as
semelhanças e diferenças eventualme.nte encontradas nos dois grupos
poderiam se mostrar significativas. De maneira geral, esperávamos
encontrar professores mais antigos, com uma formação mais tradicio-
nal, em escolas mais centrais, com clientela "de classe média"; e
professores mais jovens, com formação mais crítica, em escolas
periféricas, com clientela "de classe baixa". Entretanto, em algumas
52
escolas consideradas de clientela "de classe média", os professores
1firmavam que a proximidade de favelas tornava sua clientela hete-
rogênea. Por outro lado, em escolas consideradas de clientela "de
classe baixa", os professores afirmavam que o agravamento da crise
econômica fez com que vários pais transferissem seus filhos de
escolas particulares para escolas da rede pública. Um professor de
uma escola considerada bem localizada definiu sua clientela como
sendo "de classe baixa" devido ao fato de a escola, há muito tempo,
ter tido curso noturno e isso ter deixado a fama de escola ruim, fato
que levava os alunos de classe média, moradores do bairro, para
outras escolas mais distantes.
Antes de aprofundarmos nossa análise adentrando a realidade
cotidiana dessas diferentes escolas, de sua clientela e de seus profes-
sores, é preciso relatar os critérios para a escolha das escolas e o modo
como se deu nosso contato com elas. Dada a estrutura institucional da
rede pública de ensino, pareceu-nos necessário iniciar os contatos
pela Delegacia de Ensino, a fim de que sua delegada autorizasse o
desenvolvimento ela pesquisa. Esse procedimento visou facilitar nos-
sa entrada nas escolas e "quebrar" possíveis resistências por parte das
diretoras em relação à pesquisa, fato que se confirmou posteriormente
em algumas escolas. O cantata com a 14ª Delegacia de Ensino foi
fácil e rápido. Conversamos diretamente com a delegada, que se
mostrou receptiva e "permitiu" o trabalho, apesar de não ter discutido
com detalhes o projeto a ser desenvolvido. O passo seguinte foi a
escolha de 12 escolas (sendo duas excedentes, para possíveis substi-
tuições), de um total de 46 abrangidas pela delegacia. Tínhamos
afirmado que desejávamos seis escolas de classe baixa e seis de classe
média. A própria delegada e outros funcionários da delegacia, solíci-
tos e.. interessados em colaborar, passaram a manifestar opiniões
particulares a respeito de cada escola, tais como: "esta é uma boa
escola", "não vai nessa, não", "esta é melhor". As opiniões, embora
manifestando critérios particulares de difícil compreensão para nós,
pareciam estar relacionadas com a organização administrativo-buro-
crática das escolas e a boa vontade das diretoras.
Para evitar que essas opiniões definissem a escolha das escolas,
recorremos ao planejamento anual que cada escola entrega à Delega-
53
cia de Ensino, no qual elas caracterizam sua clientela. Fomos condu-
zidos, então, para uma sala repleta de prateleiras, com pastas de todas
as escolas, públicas e privadas, sobre as quais a delegacia possui uma
função de supervisão. Havia uma funcionária responsável pelo local
que, apesar da grande quantidade de material, localizou rapidamente
os planejamentos do ano anterior das escolas públicas.
As pastas e a quantidade imensa de papéis, organizados em
prateleiras, pareceram-nos pouco capazes de dar uma idéia mais
precisa da dinâmica escolar. Ficamos imaginando se essas pastas
eram consultadas regularmente e confrontadas com o dia-a-dia de
cada escola. Os planejamentos, embora analisados rapidamente, con-
firmaram essa suposição. Apresentavam-se, na maioria dos casos,
como um conjunto de dados administrativos ou de intenções educa-
cionais. A impressão era a ele que o planejamento era uma formalida-
de exigida pela delegacia, que pouco mudava de ano para ano. A
caracterização da clientela cm termos de classes média e baixa tam-
bém mostrava-se vaga. Alguns planejamentos somente definiam a
clientela, sem qualquer justificativa. Em outros planejamentos havia
uma descrição do bairro, do tipo de comércio e elo tipo de moradia.
Combinando alguns desses critérios, escolhemos as 12 escolas, cuja
clientela podia ser definida como sendo, cm seis casos, "ele classe
baixa" e, cm outros seis, "de classe média".
A chegada nas escolas
Com a relação das 12 escolas, partimos para a visita e o contato
com as cliretoras. Ao visitar as unidades, começamos a decifrar as
opiniõ~s.dos funcionários da delegacià em relação àquelas em que, na
sua opm1ão, nós deveríamos ir e àquelas cm que não deveríamos ir.
Começamos a entender um pouco melhor as categorias "classe mé-
dia" e "classe baixa" definidas pelas escolas em seus planejamentos.
Mesmo sem ~onsiderar a sua localização, já era possível saber
s.e a escola era co_nsiderada "de classe média" ou "baixa" apenas pelo
t1po de construçao e pela sua organização física. As escolas mais
centrais, de maneira geral, são mais antigas, e os prédios são mais
54
amplos. Quase todas possuem um hall de entrada que dá para a
secretaria, o que obriga a quem entra na escola a realizar esse trajeto.
Em duas dessas escolas, a separação do setor administrativo (secreta-
ria, direção) ·do pedagógico (salas de aula, quadra, pátio) era tão
grande que não se via criança. Elas entravam pelo portão de trás e a
parte da frente da escola se assemelhava a um hospital, tamanho era
o silêncio. Numa dessas escolas, tendo ido por duas vezes, não vimos
uma criança sequer.
Já nas escolas consideradas "de classe baixa", à exceção de
apenas uma, a própria localização da secretaria, à primeira vista, já
denunciava a .diferença, revelando também o tamanho da escola.
Eram construções mais recentes, algumas das quais consistiam em
simples galpões, e o espaço era visivelmente menor. Não havia sepa-
ração entre a secretaria ou a sala ele professores e as salas de aula. A
separação entre o setor administrativo e o setor pedagógico, percebi-
da nas escolas consideradas "de classe média", aqui não ocorria.
Começamos a entender então que o conceito de "classe média"
relativo às escolas estava relacionado a uma maior organização física,
administrativa e burocrática do seu e'spaço e de suas atividades,
enquanto o conceito de "classe baixa" estava relacionado a uma
menor organização nesses aspectos, ou a uma maior improvisação em
termos de espaço. Começamos a enteqcler também os conselhos dos
funcionários da delegacia. As escolas "boas" eram aquelas que pos-
suíam uma organização maior.
Concluímos que, das 12 escolas relacionadas por nós, apenas
uma, considerada como atendendo população de classe baixa, possuía
uma organização típica de escola "ele classe média". Posteriormente,
ao voltar às escolas e ao conversar com os professores, percc.:bemos
que há uma heterogeneidade na clientela de várias escolas. Existem
favelas em regiões centrais; existe uma 'classe média que vem tirando
seus filhos das escolas particulares. A classificação que os planeja-
mentos anuais fazem parece se referir a uma época em que era
possível relacionar as escolas centrais com população de classe média
e as escolas periféricas com clientela de classe baixa. Apesar da
heterogeneidade observada, parece existir uma tradição que cristali-
55
zou a idéia de que as escolas centrais são mais organizadas e as
escolas periféricas, menos.
Ainda em relação ao aspecto físico das escolas, é interessante
ressaltar que, embora todas as escolas visitadas possuam pelo menos
uma quadra de esportes em que se realizam as aulas de Educação
Física, não há lugar definido para sua localização. Observamos qua-
dras que ficam logo após o portão que separa a escola da rua, fato que
nos propiciou um contato primeiro com o professor, antes mesmo de
nos dirigirmos à secretaria. Em outras escolas, a quadra não era
visível, localizando-se nos fundos do prédio. Em algumas, ela se
misturava com o pátio externo, fato que causava a reclamação dos
professores de Educação Física, pois as crianças, em horário de
entrada, saída ou recreio, atrapalhavam suas aulas. Outros professo-
res relataram que a quadra ficava ao lado das janelas das salas de aula,
o que causava reclamação por parte das professoras dessas salas em
relação ao barulho provindo das aulas de Educação Física. Alguns
professores também lembrarqm que a quadra ficava próxima ao esta-
cionamento, o que gerava problemas quando a bola utilizada nas
aulas atingia os carros dos outros professores.
Outro fato observado é que a maioria das escolas visitadas
possui somente uma quadra e, às vezes, até cinco professores de
Educação Física. Quando ocorrem aulas simultâneas, os professores
se dividem na quadra ou um deles utiliza os pátios existentes, locais
em que há crianças em recreio, ou sem aula, ou esperando para entrar
em sala. Nos dois casos, as aulas são prejudicadas.
O contato com as escolas não foi difícil. Nenhuma escola
recusou-se a participar da pesquisa, talvez pelo documento da Dele-
gacia de Ensino nos apresentando. Somente em uma escola houve
alguma dificuldade para a realização das entrevistas. As funcionárias
da secretaria condicionavam nosso contato com os professores à
permissão da diretora, que não foi encontrada facilmente. Nesse meio
tempo, houve a tentativa de uma assistente em nos fazer desistir
daquela escola, alegando que os professores trabalhai"am em muitos
lugares e não tinham tempo, e que seria melhor fazermos esse traba-
lho em outras escolas. ·
56
Em algumas unidades foi necessário conversar com a diretora;
em outras, um funcionário da secretaria autorizava de imediato o
contato com os professores de Educação Física. Nenhuma diretora
interessou-se em discutir o projeto, ou mesmo querer saber detalhes
sobre a pesquisa. Somente uma escola pediu cópia do projeto, atitude
definida por um funcionário corno "de praxe". A preocupação das
escolas era somente que a pesquisa não atrapalhasse a rotina de aulas
dos professores de Educação Física.
O contato com os professores
Após a autorização das direções ou das secretarias, iniciamos o
contato com os professores. Em algumas escolas, nas quais a quadra
era visível, foi possível contatar diretamente o professor e, depois,
solicitar autorização da direção para as entrevistas. Nessas escolas,
foi possível presenciar o professor em aula. Quase todos trabalhavam
com esporte. Os alunos jogavam e o professor orientava a respeito das
técnicas ou das regras. Um professor, visivelmente incomodado com
a nossa presença, justificou que, por ser início de ano, ele permitia
que os poucos alunos presentes jogassem, a fim de que o esporte
servisse como "chamariz" para os outros alunos que ainda estavam
faltando às aulas.
Quando não foi possível encontrar os professores na primeira
visita, o horário das aulas era fornecido pela secretaria e o contato,
realizado posteriormente. Só em uma escola esse procedimento foi
confuso. A escola não definia o horário de Educação Física e os
professores não tinham dia nem hora para ir à escola. Comparecemos
por duas vezes no horário de reunião de todos os professores, mas não
encontramos a equipe de Educação Física, composta por três pessoas.
Soubemos, posteriormente, que dois professores dessa escola esta-
vam se exonerando. Acabamos não realizando nenhuma entrevista
nessa escola.
De maneira geral, os professores colaboraram de imediato com
o trabalho, dispondo-se a ser entrevistados. Alguns perguntaram so-
57
bre os objetivos da pesquisa, porém sem muita profundidade. Outros
mostraram-se interessados nos seus resultados.
Foram contatados 28 professores. Apenas quatro se negaram a
participar da pesquisa: dois alegando "falta de tempo" e dois alegan-
do "timidez" ou "vergonha". Três professores demonstraram interes-
se, porém não houve compatibilidade de horários e acabaram não
participando. Um professor mostrou-se, inicialmente, contrário à
participaçüo. Afirmou que os pesquisadores vüo à escola, usam os
professores c depois os criticam cm suas análises. Foi o único
professor que condicionou sua participação à leitura do projeto.
Entretanto, antes ela entrevista, ele se exonerou e sua participaçüo
ficou inviabilizada.
Apesar ela concordância das escolas e da maioria dos professo-
res, a rcalizaçfto elas entrevistas nem sempre foi úgil, devido üs
impossibilidades dos professores. Quase todos realizam outras ativi-
clades, além elo trabalho naquelas escolas. Alguns citaram trabalho em
até três escolas, incluindo o período noturno. Vúrios professores
complementam seus salúrios com atividades ligadas ao esporte, como
arbitragem de jogos em finais de semana ou à noite. Alguns realizam
atividades profissionais em outros setores. Um professor é dono de
um bar; outra é proprietária de uma empresa de festas infantis.
A identificação do professor quando de nossa chegada à escola
é também digna ele anúlise. O professor de Educação Física apresen-
ta-se clifcrcnlcmente dos outros professores, tanto em termos de
aparência física como cm termos ele horário, comportamentos e locais
em que fica. /lém do seu local de trabalho ser diferente elo de outros
professores, sua identificaçüo também se dá de imediato pela vesti-
menta, caracterizada pelu uso ele agasalhos esportivos c de tênis. Seu
comportamento, tk maneira geral, é marcado por extroversüo, simpa-
tia e jeito falante. Observamus u relacionamento mais próximo elos
professores de EducaÇto l.'ísica com os alunos, em comparaçüo com
professores de uulras disciplinas. r:ssa proximidade pôde ser notada
pelo tipo ele cumprimento, pelas cxprcssôes faciais que os alunos
manifestavam quando encontravam os professores ele Eclucaçüo Físi-
ca e também pelo carinho c pela atitude paternal que estes demons-
58
travam em relação aos alunos. A identificação do professor de Educa-
ção Física na escola também se dá pelo seu horário, que nem sempre
acompanha os períodos escolares. Em relação aos locais em que esses
professores ficam quando não estão dando aulas na quadra, percebe-
mos também sua diferenciação em relação aos seus colegas de outras
disciplinas. Encontramos vários entrevistados na sala de material
esportivo e não na sala de professores, onde é comum permanecerem
aqueles que estão em aula vaga ou antes do início das aulas. Entretan-
to, apesar das diferenças entre o professor de Educação Física e os de
outras disciplinas, o relacionamento entre eles, sempre que foi possí-
vel observar, pareceu ser bom.
Ouvindo os professores
' .
Foram entrevistados 20 professores, sendo dez do sexo mascu-
lino e dez do sexo feminino, com idades variando entre 24 e 47 anos,
formados em faculdades de Educação Física elo estado de São Paulo,
nas décadas ele 1970 e 1980. A única exceção foi uma professora de
51 anos, formada na década de 1960, no Espírito Santo, aposentada e
que voltou a dar aulas.
A história de vida
Os professores, no início de cada entrevista, foram solicitados
a falar de sua infância e das atividades corporais que realizavam
quando crianças. A intençüo com essa pergunta foi a de que os
professores relatassem atividades infantis que se relacionassem não
só com a escolha vocacional que eles viriam a realizar, mas com a
própria prática profissional futura.
Os professores falam, com entusiasmo, de brincadeiras e jogos
em praças do interior, sítios, chácaras, quintais e na rua. Falam de
uma época em que era possível brincar de forma livre. Enfim, falam
de uma atividade natural. Quando se referem ao próprio corpo infan-
til, falam de movimentos livres, sem técnica, do prazer de um corpo
que brincava naturalmente. E se diferenciam das crianças que atual-
59
mente brincam numa cidade como São Paulo, na qual, segundo eles,
as atividades são dirigidas, os locais de lazer são escassos e a televi-
são assume um papel nociv.o. Assim eles falam de sua infância:
Foi bem rr.ovimentada, bem brincada. Brincava de esconde-esconde,
pega-pega, barra-manteiga, taco, futebol, guerra de goiaba verde,
polícia e ladrão, andava de bicicleta.
Porque lá você morava no sítio, você caçava, nadava, você jogava
pedra com a mão. E, de uma forma geral, você exercitava muito mais
do que aqui. O trabalho corporal era muito maior do que aqui.
Era bem natural. Naquele tempo não existia uma preocupação de você
praticar alguma coisa. Você praticava naturalmente. Então eu aprendi a
andar de bicicleta, patim, corria, brincava com os meus colegas.
Eu tinha uma vida bastante ativa. Cheguei a morar em chácara, andava
muito. Automaticamente, eu praticava esporte sem saber. Ciclismo,
natação, eu corria. A gente mantinha aquela vidinha bem ativa.
E aqui a gente vê hoje que a atividade física foi totalmente diferente
da minha. É muito mais restrito o espaço deles.
Relatando sua trajetória de vida, os professores afirmam, na
seqüência, que quando ingressam na vida escolar, o gosto pela Edu-
cação Física é imediato. Parece haver uma relação direta entre o tipo
de vida que levavam fora da escola e as atividades que passaram
fazer nas aulas de Educação Física. Freqüentam as aulas, particip<.
de equipes representativas das escolas e consideram os professores t:
Educação Física como verdadeiros ídolos e até como influenciadore:
de sua escolha profissional futura.
60
A aula que cu mais gostava era Educação Física.
Eu fui muito motivado· por um professor ele Educação Física no
primeiro ano de gin;ísio. Ele era um ótimo professor c cu achava
bonito ele coordenando, ensinando. Ele fazia com que todos partici-
passem. Ele era muito carismático.
Eu tive uma professora bárbara! Até hoje, às vezes, eu ainda sonho
com ela... aquele ídolo!
Eu lembro até hoje da minha professora de Educação Física, que foi
uma pessoa que me marcou muito. Era uma pessoa muito ativa, muito
bonita. Então, ficou aquela imagem boa.
Do gosto pelas brincadeiras de rua à participação nas aulas de
Educação Física, o esporte surge, majoritariamente, como manifesta-
ção "espontânea" dos professores, então adolescentes. Todos relatam
uma aproximação com o esporte, quer como participantes de equipes
do colégio ou da cidade, treinando e competindo, quer como pratican-
tes do esporte informal, recreativo.
Eu sempre gostei de esporte.
Eu treinava futebol no time de garotos da cidade.
Eu acabei entrando na equipe de natação da cidade. Nadei lá oito
anos, competi em campeonato estadual, Jogos Abertos do lnterior.
Eu sempre estive ligada ao esporte. Sempre gostei muito. Fiz natação
desde os quatro anos. Aí parti para a ginástica olímpica a partir dos sete
e fui até os 15 anos. Eu treinava em clubes, participando de campeona-
tos. Aí já comecei a me interessar cm fazer Educação Física.
Essas atividades corporais ela infância e da juventude, fora e
dentro da escola, contribuíram decisivamente para a escolha ela Edu-
cação Física como carreira profissional.
A experiência que cu tive de movimento para poder decidir fazer uma
faculdade de Educação Física foi simplesmente uma cducaç;1o ele brin-
cadeira. Eu gostava muito ele brincadeira. de esporte. Nad:1 dirigido por
nenhum especialista. O que cu mesmo inventava quando cu cr<~ criança.
E quando cu fiz natação também, nada com profissional; no clube,
sozinha, cu descobria movimento, cu adorava descobrir movimentos
sozinha. Queria ter um aperfeiçoamento desses movimentos.
O que eu mais me encontrei, olhando para o p<lssaclo, cu achava que
cu me cncontr<Jva mais na Educação Física.
Então eu optei cm fazer Educação Física, para continuar dentro elo
mundo esportivo.
61
Vários professores relatam que, devido a essa infância "natu-
ral", não conseguiam visualizar um projeto de futuro em que estives-
sem trabalhando dentro de uma sala, num escritório, ou lidando com
papéis e documentos. Optaram, então, por uma profissão que pudesse
ser exercida ao ar livre, que permitisse o contato com crianças e que
desse uma sensação de liberdade.
Se cu tivesse que fazer outra coisa, trabalhar na secretaria, essas
coisas, cu não gostaria.
Eu acho que cu não conseguiria ficar num escritório cercada durante
scis horas, batendo à máquina.
Durante o vestibular mesmo cu decidi que não ia mais fazer Enge-
nharia c prcfcri optar por Educação Física, primeiro pela minha
vontade de estar mais independente, ao ar livre e, assim, ter contato
com as pessoas.
Eu comecei a perceber que eu não gostava muito de ficar em salas
fechadas, ou cm escritórios, ou em algum lugar assim.
É interessante observar que alguns professores pensaram em
ou.tras áreas, tais co.mo Medicina, Engenharia, Psicologia, Agrono-
rma, mas que, avaliando sua vida anterior, decidiram-se por uma
carreira na qual eles iriam trabalhar com o corpo, o movimento e o
esporte, que eles sempre gostaram.
h>i até d.: r.:pcntL·, purqu.: cu estava no segundo colegial. Eu estava
quase dcciditla a faz<:r l'siculogia. Depois, num cstalo,'cu falei: "niio,
acho que cu vuu fazer Educação Física, é mais gustoso".
l:tr sempre gostei muito da panc m0dicJ. Enliiu cu fiquci entre
l'vlctlicin~r <: Etluca<Jro l;ísica. /té achu quc cu ~cria uma boa m<!dica.
E1~1 .EduL·açii:> Física cu acabei lllc r<:alizando purqu<: tem a parte.;
mcdrc~J qu<: c predominante. Entüu, fiquei bem dentro da ;írca. Eu
casei as duas, a parte tk l'vlt:dicina c a parte tiL: Educação Física.
Alie-se também a isso o fato de a faculdade ele Educação Física
ter u.m.a duração, na época, de três anos, enquanto a faculdade de
Mec!Icma, por exemplo, exige seis anos, mais dois de residência.
62
Alguns professores citam a curta duração do curso também como
fator considerado na escolha da carreira. Outros citam a dificuldade
em se ingressar num curso de Medicina, ao contrário do curso de
Educação Física, cujas faculdades proliferaram por todo o interior do
Estado de São Paulo, a partir da década de 70.
Eu não acreditei muito cm mim cm relação a prestar um vestibular
em Medicina.
Eu não queria arriscar c não queria perder o ano, ficar um ano parado.
Não que Educação Física fosse fácil! Fuvest é igual para todo mundo!
Alguns professores do sexo masculino citam também a resis-
tência dos pais quando eles se decidiram pela Educação Física, o que
indica uma visão negativa e inferior da área. Os pais gostariam que
eles optassem por uma carreira tida como nobre, como Engenharia ou
Medicina, e que desse retorno financeiro maior.
Eu acho que todo pai quer ter um filho n{édico.
Desde pequeno, quando eu tinha aula de Educação Física na escola,
eu já pensava em fazer Educação Física, mas os meus pais eram um
pouco contra.
É interessante notar como essa faceta aparece somente nas
entrevistas de professores do sexo masculino, o que permite afirmar
que para a família, na experiência dos entrevistados, a escolha profis-
sional do filho ·é muito mais relevante clli que a escolha profissional
da filha. É interessante também destacar que alguns professores do
sexo masculino, ao avaliarem hoje sua atuação profissional, utilizam
termos como "atividade honrosa", "atividade útil", "atividade res-
ponsável", como que valorizando a profissão contra o preconceito
dos pais e que parece estar incorporado na representação que eles
mesmos fazem da própria carreira.
Na faculdade, esses alunos se identificam com o currículo,
predominantemente técnico-esportivo. Não relatam dificuldades em
63
acompanhar o curso, pois todos já praticavam esportes e já sabiam
realizar as habilidades esportivas exigidas pelas disciplinas.
Fiz um curso que eu tinha facilidade, porque tinha a parte prática. Eu
tinha facilidade em tudo.
Entretanto, apesar dessa identificação inicial, alguns professo-
res criticam sua formação profissional, afirmando que ela só ensinou
as técnicas esportivas e não os preparou para dai: aulas. Eles não
reclamam da grande ênfase esportiva do currículo, mas da falta de
aplicabilidade das técnicas esportivas numa situação escolar de rede
pública, em que o espaço, os materiais disponíveis e as características
do grupo exigem determinadas adaptações. Citam a falta de estágios,
a presença de alguns docentes incompetentes e o excesso de conheci-
mentos fisiológicos ou anatômicos.
A minha faculdade foi designada para treinadores: técnicas, seqüên-
cias pedagógicas, o arremesso ele peso.
Eu acho que não foram preparados professores ele Educação Física,
por exemplo, para trabalhar com pré-escola. É técnico!
Não, eu não saí apta para dar aulas.
A faculdade forma atleta. A formação que eles dão não é para você
sair de Já e cair numa escola de rede pliblica. Eles não te ensinam
como dar aula. Eles formam a tua parte física.
O que foi hem desenvolvida foi a par.te esportiva. Faltou a parte teórica.
Outros professores, entretanto, falam de sua formação profis-
sional como boa.
64
Foi boa. A gente só não teve formação específica para trabalhar com
ciclo básico como tem agora.
Eu achei que ali me deu uma formaç;io profissional muito boa.
Minha formação profissional foi muito hoa. Os meus professores, de
forma geral, foram muito bons.
A prática profissional esportiva
É interessante observar que todos os professores entrevistados
relatam a formação esportiva e reproduzem esse modelo nas suas
aulas. A formação profissional eminentemente esportiva, ocorrida nas
décadas de 70 e 80, homogeneíza o grupo, na medida em que passa a
ele uma determinada visão a respeito de Educação Física e, implici-
tamente, uma concepção de corpo. A única exceção é, como já citado,
uma professora aposentada que voltou a dar aulas na rede pública.
Formada na década de 60, portanto, antes da chamada esportivização
da Educação Física brasileira, fenômeno ocorrido entre 1969 e 1979
(Betti 1991), é a única professora que não fala do esporte nem na sua
formação, nem na sua prática docente atual. Ela trabalha com classes
de ciclo básico (antigas primeira e segunda séries), utilizando jogos,
brincadeiras tradicionais e danças folclóricas.
A maior parte dos professores que estão em exercício atual-
mente na rede escolar são licenciados nas décadas de 70 e 80, uma
vez que os formados na década de 60 ou antes já se aposentaram,
estão em vias de se aposentar, ou exercem cargos administrativos.
São raros os casos de aposentados que voltam a dar aulas, como a
citada professora que entrevistamos em nossa pesquisa.
A prática profissional do grupo é, portanto, de uma maneira ou
de outra, balizada pelo esporte. Alguns professores, explicitamente,
colocam que o seu objetivo é ensinar habilidades esportivas a fim de
selecionar os melhores alunos para participar das equipes repre-
sentativas da escola. São os professores que foram- ou ainda são-
atletas e se autovalorizam pela obtenção de títulos em campeonatos
esportivos com os seus alunos. Todo o planejamento é voltado para o
esporte. Eles dispõem as modalidades esportivas nos quatro bimes-
tres ao longo do ano e trabalham com seqüências pedagógicas objeti-
vando o ensino de habilidades esportivas.
65
Eu solto uma bola de basquete um dia, no ginásio, para ver a
habilidade que essa garotada tem, para começar a fazer uma seleção,
em virtude de cu sempre me interessar cm promover campeonatos
internos c campeonatos colegiais.
Eu cheguei para a diretora c falei que cu gostaria de fazer um trabalho
ue. :l'a.~e com o ginásio, que cu queria entrar em campeonato.
Esse ano, como cu estava com saudades do esporte, eu peguei urnas
classes de ginásio.
A gente faz um plancjamento no começo do ano e a gente divide por
bimestre o esporte que você vai trabalhar.
O ano passado eu fiquei com voleibol quatro meses porque eles não
conheciam nada. Mas ainda não chegou aonde eu esperava que fosse
chegar, porque não tinham uma base.
Para o aperfeiçoamento técnico dos alunos que "levam jeito"
ou que já sabem praticar determinada modalidade esportiva, existem
as Turmas de Treinamento, espaço oficial da rede pública estadual do
Estado de São Paulo e autorizado pela Delegacia de Ensino, em que
0 professor, fora do horário de aulas, tem a possibilid_ade de montar
um grupo de treinamento visando à formação de equipes para cam-
peonatos. O critério da 14ª Delegacia de Ensino para autorizar a
criação de Turmas de Treinamento é a participação da escola no
campeonato que a delegacia promove anualmente.
Você tem que formar um time, que time você vai formar? Você não
vai pegar aqueles quatro que eu te falei! Eles nunca jogam! Há um
treino à parte, extra-aula.
Nós procuramos entrar em campeonatos para incentivar os alunos.
Eu gosto muito de trabalhar com Turma de Treinamento.
O treinamento são 20 alunos. Você pega só aqueles que você já fez
classificação, que têm mais condições para vôlei, para basquete.
Outros professores se colocam como educadores em vez de
técnicos esportivos, e fazem ressalvas ao uso seletivo do esporte nas
aulas de Educação Física. Afirmam que nas suas aulas todos os alunos
66
realizam as mesmas atividades, que qut;:nr sabe mais tem que ensinar
aos que sabem menos e que sua meta não é a formação de equipes.
Essas ressalvas, porém, não os fazem ministrar aulas não-esportivas.
Eles afirmam que os alunos só se motivam com bola e acabam
dividindo também o ano letivo em modalidades esportivas.
Aí eu já entro no jogo, porque não adianta você ficar contra eles. Ou
eles fazem a sua aula contentes ou não fazem. Então, é melhor fazer
contentes e assim eu já aproveito o potencial que eles têm para jogar.
Educação Física é esporte, mas não é só esporté.
Formamos times, competimos também, mas eu acho que isso não é o
principal para a Educação Física escolar.
Eu falo assim: "não precisa ser o melhor jogador."
Criticar o esporte e fazer ressalvas em relação a ele é uma
forma de esses professores, embora pela negação, reconhecerem-no
como o principal conteúdo das aulas de Educação Física. É interes-
sante como, ao fazerem essas críticas, eles manifestam, de modo
implícito, valores próprios do esporte, como a busca da melhoria
técnica ou o rendimento.
Não vou deixar o que sabe menos parar no tempo, mas cu consigo
uma evolução de todos eles, mais ou menos homogênea.
Eu treino na minha aula mesmo.
Talvez até descobrir alguma vocação para o esporte.
A própria forma como dizem lidar com os menos habilidosos é
denunciadora do padrão tecnicista. Esses alunos são detectados em
virtude de quão defasados estão em relação às técnicas esportivas
ensinadas e o "tratamento" se dá no sentido de fazê-los chegar a um
nível mínimo de prática das habilidades motóras próprias de uma
modalidade esportiva.
67
Mesmo jogando mal, que ele saiba o que ele pode fazer com a bola.
Eu tenho que trabalhar muito mais o aluno que tem dificuldade do
que aquele que já é bom por natureza, que já é dotado.
Todos são obrigados a fazer a aula, mesmo aqueles que não querem.
E os mais fracos sempre melhoram. Não que eles cheguem aonde eu
acho que poderiam chegár, mas, pelo menos, saem daquela inibição.
Esses professores também defendem as Turmas de Treinamen-
to para os mais habilidosos, porque dessa forma as aulas de Educação
Física seriam destinadas ao aprendizado por parte de todos os alunos,
incluindo os que apresentam dificuldades. Com esse recurso, eles
poderiam "abaixar" o níve.I das aulas, desde que fosse garantido um
espaço fora do período letivo para o aperfeiçoamento técnico dos
alunos que apresentam habilidades mais desenvolvidas. Fica explici-
tada, portanto, uma distorçüo, que consiste no fato de as aulas de
Educação Física não estarem à disposição de todos os alunos, já que
elas acabam secundarizadas ern relação às Turmas ele Treinamento,
realizando, por vezes, a classificação de alunos para aquelas.
Se você está a fim de desenvolver uma habilidade, você monta uma
Turma ele Treinamento, fora ela aula. Mas a aula é aquela que todo
mundo participa, saiba ou n<io, lenha condições ou não.
A partir da constatação de que o esporte é o tema cP-ntral das
aulas de Educação Física, é importante saber o que os professores
esperam que os alunos aprendam das aulas. Perguntados a respeito do
que os alunos levam das suas aulas, alguns professores afirmaram que
era o conhecimento das modalidades esportivas, tanto em termos de
saber praticá-las como em termos de saber apreciá-las.
Eu procuro, no decorrer do ano, trazer para a criança uma idéia do
que é uma modalidade esportiva.
Além do esporte, os professores afirmaram também que os
alunos aprendem nas suas aulas noções sobre o corpo, de fortaleci-
68
mento físico e de educação do movimento, visando a maneira correta
de o corpo dispor-se no mundo.
Eu ensino uma noção dos esportes c pretendo contribuir também para
o fortalecimento físico da criança.
Seria uma educação, educar-se para os próprios movimentos. Ele ser
conhecedor do seu potencial.
Quando ele estiver andando, ele saber andar; quando estiver correndo,
ele saber correr. Que ele saiba botar o pé no chão; quando ele vai pular,
que saiba pular; quando ele for jogar, ele saiba jogar. É o máximo. O que
mais de correto que eu possa passar, eu tenho que passar.
Todos os professores, sem exceção, falaram elo aprendizado,
por parte elos alunos, de regras sociais por intermédio elo esporte, tais
como saber vencer, saber perder, cumprir horários, ter respeito pelo
companheiro e pelo adversário, esperar a sua vez, relacionar-se em
grupo. Por meio do esporte, os professores estariam ensinando e
exigindo elos alunos a prática de regras coletivas, que se manifestam
de forma evidente nas atividades esportivas.
O que eles saem lendo é uma boa nnç<lo de colelivichtdc.
Acho que eles saem mais socializados.
Se você perguntar assim:"<1h, vai ser um jogador?" Nfio V<li. mas ele
vai ser educado, ele vai saber. Ele vai pedir licença para entrar; ele
vai ficar esperando a vez dele.
O respeito, porque eles têm que ler, porque eles quase não se respeitam.
Eles se chutam, eles se batem. Eles vêm para a escola dessa forma.
Você ajuda essa criança no dia-a-dia dela. Você faz com que ela
aprenda a respeitar os outros seres com quem e1<1 tem que conviver.
A falta de especificidade
É interessante assinalar também que os professores, quando
perguntados a respeito da especificidade da Educação f;-ísica, não
69
conseguiram diferenciá-la de maneira clara de outras disciplinas, já
que todas ensinam e exigem valores como respeito, cumprimento de
horário e sociabilização. Porém, enfatizaram a maior capacidade da
Educação Física em ensinar esse tipo de valores educativos. Segundo
eles, nesse momento a Educação Física estaria sendo educação. Ela
estaria cumprindo sua função educativa na medida em que ensinasse
determinados valores de vida aos alunos. É impressionante como os
professores apresentam dificuldades em falar da especificidade da
Educação Física, ou, em outros termos, dos limites que a distinguem
de outras disciplinas escolares. Quando insistimos que qualquer dis-
ciplina poderia ensinar os valores apresentados, os professores tende-
ram, em vez de diferenciar a Educação Física, a ressaltar sua maior
capacidade em conseguir transmitir tais valores ou tais ensinamentos.
Uma das razôes invocadas para tanto seria a motivação que as aulas
de Educaçüo Física geram nos alunos, distinguindo-a com vantagem
das chamadas disciplinas de classe. Um outro motivo seria a capaci-
dade que os esportes possuem de colocar em prática regras coletivas.
Um terceiro motivo lembrado seria o não-comprometimento com
nota. Nesse sentido, os professores colocam a Educação Física como
a principal disciplina da escola, porque dentro dela as outras pode-
riam ser incluídas, porém nenhuma inclui a Educação Física.
70
É a matéria principal mesmo! Matemática fica uma coisa muito
específica, porque a criança vai aprender o raciocínio lógico e aca-
bou ali. Ela não educa. Educação Física, não! Você educa! O próprio
nome diz, educação do físico. Mas não é só físico, não. Você educa
a mente da criança. Eu acho que é até mais amplo. Você aprende
quase que a viver. Você leva muita coisa para a sua própria viela.
Olha, a rncu ver, é a matéria principal de uma escola, porque ela
contém tudo. Porque nela você faz com que a criança se desenvolva
de todas as formas, física c mental também.
Em Educação Física você pega Matemática, você pega Português. Eu
ensino tudo para eles, porque üs vezes eu tenho brincadeira ele
tabuada. Quando eles falam errado, cu corrijo. E eles aprendem a
falar.
O elevado grau ele importância atribuído à Educação Física pelos
professores é diretamente proporcional à sua falta de especificidade
dentro da grade curricular, como se ela fosse identificada e valorizada
pelo que ela não é, em termos de uma disciplina específica que compõe
o currículo escolar. No discurso dos professores, ela seria tão importante
e tão útil que não seria possível pensar na sua especificidade, sob pena
de se perder sua função global na escola. A falta de especificidade e de
identidade da Educação Física, que deveria ser vista como um problema
da disciplina e do próprio sistema escolar que a inclui, é representada
pelos professores como uma virtude. Como ela não ensina nada de modo
específico, pode ensinar tudo globalmente.
Eu acho que quase tudo é da Educação Físi~a.
Nós procuramos desenvolver um trabalho cm que a gente possa dar
à criança um desenvolvimento físico e mental, de maneira a fazer
uma dosagem.
Eu acho que a minha finalidade aqui é ajudar que os alunos cresçam.
O básico, cu acho que é o carinho, a atenção, é o prazer naquilo que
ele estú aprendendo.
Ao falarem da sua disciplina e das suas aulas, os professores
referem-se também à escola, ao seu papel nessa instituição e à forma
como entendem que são vistos e avaliados. É significativo que,
quando perguntados a respeito do seu papel na escola, os professores
tendem a falar de suas atividades extracurriculares, tais como ensaios
de formatura, preparação de desfiles, ensaios de fanfarra, organização
de festas, ou então se referem às solicitações da direção ou da coor-
denação pedagógica para falarem sobre sexo com os alunos ou para
resolverem alguma questão disciplinar com alguma criança que está
apresentando problemas. Alguns professores do sexo masculino refe-
rem-se também ao fato de existirem poucos homens na escola e de
terem que dar uma ajuda em serviços gerais. Autodenominando-se
"polivalentes" ou "pau para toda obra", eles citam como suas ativida-
des a troca de lâmpadas, instalações elétricas, pequenos consertos e
até a remoção de um barranco, atividade. que foi feita numa escola
71
visitada com a ajuda dos alunos, em horário de aula. O que é mais
interessante nesse relato é que os professores não se colocam como
contrários ao fato de realizarem essas tarefas, nem se rebelam com tal
atribuição. Dizem gostar elas atividacles extracurriculares, inclusive
afirmando que elas já fazem parte do seu planejamento anual.
Ah, cu adoro! Eu faço cxcurs5o cnm eles, cu faço c<Jmpconato, cu
faço demonstração de ginástica, de d<JnÇ<l, festa junina, quadrilha.
Eu tenho a função, às vezes, de socorrer criança que se machuca.
Qualquer criança... se cu estou aí por perto, me chamam.
É, eu gosto, me sinto bem! Gosto mesmo! Tudo que é ligado à festa,
eu gosto! Não faço por obrigação, não! Porque eu gosto!
Nada exigido. Eu faço porque eu acho também que se cu não fizer,
ninguém vai fazer. ·
Se eu não quiser fazer, cu não vou fazer, mas eu trabalho porque eu
acho que a minha disciplina tem que trabalhar aquilo ali.
Essas atividades extracurriculares dão ao professor uma grande
importância perante alunos, funcionários, direção e comunidade em
geral. Os professores afirmam que no começo de cada ano os alunos
perguntam se vai haver a tradicional festa, ou o grupo de treinamento,
ou a excursão. Essa importância dada ao professor de Educação
Física em virtude de suas atividades extracurriculares parece estar
relacionada ao caráter de oposição que os alunos manifestam em
relação à estrutura curricular da escola. Na medida em que o conjunto
ele atividades curriculares é visto como menos significativo pelos
alunos, o componente extracurricular começa a ocupar o centro de
interesses de todo o corpo discente. A direção, como que para motivar
os alunos, também lança mão desses recursos, chegando ao ponto de
se observar em algumas escolas, durante todo um ano, a preparação
de uma festa junina, uma olimpíada esportiva ou um desfile. Soares
(1986), entendendo a contribuição que essas atividadcs possam dar ao
desenvolvimento do aluno e sua utilidade no cotidiano escolar, sugere
que elas sejam assumidas por toda a escola e não apenas pelo profes-
sor de Educação Física, como se sua disciplina fosse vazia de conteúdo.
72
Se for considerado todo o tempo despendido com as atividaclcs
extracurriculares (desfiles, ensaios, organizações de festas), mais as
atividades auxiliares (atuação disciplinar, palestras sobre sexo), mais
a saída com as equipes esportivas para jogos cm outras escolas, mais
os consertos que os professores do sexo masculino afirmam fazer, é
de se perguntar qual o tempo que resta para as aulas de Educaç~to
Física, para o trabalho pedagógico curricular. Se, além de considerar
o tempo com as atividadcs extracurricularcs, for considerada também
a dificuldade dos professores em determinar a especificidade ela
Educação Física, chega-se ao perfil ele uma disciplina caracterizada
pelo "não-curricular", pelo "diferente" em relação às outras discipli-
nas escolares. Dessa forma, pode-se afirmar que o professor é tam-
bém visto na escola como uma pessoa diferenciada, "especial". Já
observamos que o professor de Educação Física se apresenta de
maneira distinta dos outros professores, tanto no aspecto físico como
em termos de horários, comportamentos e local em que trabalha.
Vemos agora que essa diferenciação também está relacionada ao
conteúdo desenvolvido pela Educação Física e à própria identidade
da área diante do currículo escolar.
Entretanto a Educação Física parece possuir algumas vanta-
gens em relação às outras disciplinas. Os entrevistados afirmam ser
mais apreciados pelos alunos do que outros professores, devido ao
fato de sua disciplina não reprovar por nota e ao fato ele trabalharem
com o esporte, além de, como já dilo, serem os organizadores das
atividades extracurriculares. Quase todos afirmam possuir com os
alunos um ótimo relacionamento, mais próximo elo que aquele que os
alunos mantêm com os professores ele outras disciplinas. Essa proxi-
midade chega até mesmo a um certo grau ele intimidade, quando os
alunos relatam problemas de ordem familiar, ou quando confiden-
ciam críticas contra outros professores ou contra a direçflo da escola.
É um professor que nunca é rejeitado pelos alunos. mesmo ele sendo
chato, bonito, feio.
Ele é menos pichado.
Eles se abrem muito com o professor de Educação Física. Não sei,
acho que é afinidade.
Eles chegam para a gente para contar dos outros professores. Então,
a gente tem uma amizade, tem mais conversa.
É interessante também observar o contraste entre a incom-
preensão por parte da direção em relação ao trabalho curricular do
professor de Educação Física e o seu reconhecimento quando realiza
atividades extracurriculares. Alguns professores afirmam que a dire-
çfto da escola nfto compreende o seu método de trabalho, não observa
suas aulas e relega a Educaçüo Física a um papel secundário em
relaçüo às outras disciplinas. Alguns professores tecem críticas con-
tundentes ao sistema educacional representado pela direçfto, chaman-
do-o de ''antiquado" e "falido". Nesse momento, eles se colocam
como incompreendidos.
A escola, cm geral, a dirctora, eles não entendem a Educação Física.
Eu já tive casos ele cliretores que odiavam o professor de Educação
Física.
Eu acho que a Educação Física não é valorizada. Eu acho que,
principalmente no ensino público, não é valorizada.
Eu estou bem chateado com o sistema educacional, principalmente
na escola pública. Você não tem condições materiais, não tem condi-
ções humanas. Você vê muito interesse em aparecer elas pessoas e
isso vai te deixando desgostoso.
A escola não prepara ninguém para a viela. A escola é apenas uma
exigCncia IL!gal. Não existe escola!
Em contraposiçiio, a valorizaçfto por parte da clireção ocorre
por meio dos frutos elo trabalho extracurricular, chegando ao ponto,
numa das escolas visitadas, de a diretora manter na unidade um
professor comissionado, que obteve vários triunfos esportivos em
campeonatos colegiais, em detrimento ele um professor efetivo. Nesse
mo1~1ento, a clireçfto apóia, consegue material esportivo, elogia, e os
professores sentem-se valorizados. Parece ser a única forma de o
74
I
I
professor de Educação Física ser reconhecido, apesar de nessas situa-
ções ele não atuar como professor e sim como técnico esportivo, anima-
dor ou organizador de festas. Dessa forma, a Educação Física na escola
se caracteriza essencialmente pelo seu aspecto não-curricular.
As definições de Educação Física
As definições que os professores dão de Educação Física ilus-
tram a dificuldade apresentada em identificá-Ia como disciplina no
contexto escolar. Alguns professores referem-se a ela como um espa-
ço de lazer.
É a hora que eles podem jogar bola. É aquela hora de lazer, de
descontração.
Defino Educação Física como um lazer para o teu autoconhecimento
e para o teu relacionamento com o meio e com outras pessoas.
Quase todos os professores demonstram dificuldade em definir
Educação Física. Alguns professores dão uma definição teórica tão
genérica que não consegue determinar a especificidade da área.
Eu acho que Educação Física é o movimento.
A Educação Física é um trabalho biopsicossocial. Você trabalha o
corpo e a mente das pessoas.
Outros dão uma definição totalizadora, ampla demais e colocam
a Educação Física como englobando tudo o que se faz na escola, porque
tudo o que ela ensina pode ser aplicado em outras situações da vida.
Educação Física eu acho que é lazer, recreação, atividade física, vida,
esporte, tudo. A Educação Física engloba tudo o que a gente faz,
porque o que você aprende ali dentro você leva para tudo aqui fora.
75
A amplitude desse tipo de definição genérica contribui para
aumentar a incerteza quanto ao significado da Educação Física.
Eu não sei te definir Educação Física.
Ah, se eu te falar que eu nunca parei para definir. Acho que é um
bem-estar com você próprio.
O modo de realização desse bem-estar varia, indo da referência
ao aspecto físico, como o1ensino do "jeito certo" de um músculo se
movimentar, até uma forma de harmonia interior.
Educação Física... a palavra já fala tudo: a educação do fís~c?. Que
mostra o jeito certo de usar tal músculo para fazer tal exerctcto.
Dentro da Educação Física você pode ajudar o corpo a funcionar,
essa máquina a funcionar de uma forma melhor.
A Educação Física... eu acho que é você tentar melhorar essa harmo-
nia. É você desenvolver cada parte do corpo para que elas fiquem o
mais harmoniosamente possível.
Daí porque certas definições referem-se à Educação Física
atribuindo-lhe uma certa função "salvadora" em relação à escola. Ela
seria a responsável por tornar a escola mais agradável para a crian.ça,
gerando prazer e assumindo para si uma preoc~pa~ão que tem sido
discutida em âmbitos maiores, como o da propna escola e o do
sistema escolar.
O objelivo do professor .de Educação Física é fazer c_om que a escola
seja mais gostosa par~ ~ criança, fazer com que 3 cri-ança fique na
escola e goste da escola.
Na escola, a criança poderá encontrar no professor de Edu-
cação Física ainda outra função de "salvação", não mais da insti-
tuição, mas da própria individualidade. De fato, vários professore_s
afirmam como função da Educação Física auxiliar o desenvolvi-
76
menta de crianças tímidas e retraídas, dando a elas condições de
enfrentar com segurança a vida futura.
Eu acho que o aluno tem oportunidade de se desinibir, melhorar sua
coordenação motora.
Você pode realmente mudar a vida de uma pessoa, fazer ela se
conscientizar de que ela tem condições de fazer alguma coisa que ela
acha que não tem. Então, acho que a Educação Física desinibe muito.
Eu acho que a Educação Física dá oportunidade da criança se desen-
volver melhor, mais livremente.
Não se trata, obviamente, de negar o objetivo da escola e a
contribuição da Educação Física em relação ao desenvolvimento
global do aluno. Entretanto, o que se evidenciou nas entrevistas foi
uma prioridade desses aspectos, motivada justamente pela ausência
de especificidade da área.
Todas as definições de Educação Física apresentadas pelos
professores sintetizam o conjunto de afirmações que eles fizeram ao
longo das entrevistas. Embora diferentes entre si e revelando caracte-
rísticas individuais, os relatos podem ser compreendidos como uni-
formes, demonstrando assim seu caníter ele construçiío social. A forma
como cada professor representa a Educaçiúl Física pode ser depreen-
dida não só por meio das definiçôes apresentadas, mas também
quando eles se reportam i1 própria experiência ele vida na infilncia,
quando citam os fatores relacionados à escolha profissional que fize-
ram, quando descrevem a forma como ministram suas aulas, quando
relatam os objetivos que esperam atingir por intermédio do seu traba-
lho e quando falam do seu papel no contexto da escola. Mais elo que
opiniões individuais, as entrevistas reafirmam a construç~o social das
representações dos professores, indicando uniformidade c regularida-
de no grupo.
Esse conjunto de representações não pode ser visto como des-
vinculado das ações dos professores c elo cenário em que elas ocor-
rem. A ação dos professores, embora não investigada sistema ticamcntc,
foi observada quando falávamos com eles na quadra, cm meio i't aula,
77
ou quando algum aluno interrompia a entrevist~, o~ ~uando a. diretora
referia-se ao professor, ou quando algum func10nano dava mforma-
ções, ou, até mesmo, quando a delegada de .ensino recomendava
alguma escola para a realização de nossa pesqmsa.
Assim 0 trabalho dos professores de Educação Física está
ancorado nu~1 conjunto de representações sobre a. pr~pr~a_área que
extrapola as opiniões do grupo, perpassando toda ~ mstltm~ao educa-
cional. É a lógica subjacente a essas representaço~s que. uemos em
seguida procurar demonstrar, por meio da construçao soc1al do corpo
que por intermédio delas se revela.
78
4
DO CORPO MATÉRIA-PRIMA
AO CORPO CIDADÃO
Eu estou contribuindo para
a formação do cidadão, di-
reta ou indiretamente, para
o progresso do país.
Professor entrevistado
O corpo, conforme já discutido, é um espaço privilegiado no
qual é possível encontrar o duplo critério proposto por Lévi-Strauss
(1976) para a diferenciaçüo entre o chamado "estado de natureza" e o
"estado social". Nele é possível perceber características comuns a
qualquer ser humano, nascido em qualq~;~er parte do mundo, sob
qualquer nacionalidade. Porém, nele também é possível perceber
regras que diferenciam os homens, diferenciação esta que não torna
nenhum deles menos humano, mas apenas especificamente humano.
O controle sobre o corpo faz-se necessário para a existência da
cultura, apesar de ser absolutamente variável entre as sociedades e ao
79
longo do tempo. Esse controle não se dá apenas por meio da imposi-
ção de regras sobre os instintos naturais, mas também por meio da
construção da própria noção de corpo e de natureza, variável tanto de
uma sociedade para outra como de uma época para outra. Assim, o
mesmo corpo que torna os homens iguais e membros da mesma
espécie também os torna diferentes, e não há nisso qualquer parado-
xo, porque a igualdade e a diferenciação são dois aspectos de uma
mesma questão. Na medida cm que a igualdade é tomada como
critério, é possível perceber a diferenciação e vice-versa.
Portanto, se é verdade que o homem só existe como natureza e
cultura, indissociavelmente unidas e explícitas no corpo, é possível
afirmar que qualquer prática que se realize com, sobre e por meio elo
corpo só se torna compreensível na medida em que explicita uma
certa concepção acerca da relação entre esses dois aspectos. Essa
concepção, como produto da cultura, varia ao longo elo tempo e de
uma sociedade para outra. Compreende-se, assim, que a própria idéia
de uma Educação Física é uma construção social, tal como a noção de
corpo que ela difunde por intermédio de seus profissionais. Em outras
palavras, um trabalho com o corpo, de Educação Física ou não, que
se preocupasse somente com a dimensão fisiológica que esse corpo
inegavelmente possui, estaria desconsiderando que essa constituição
orgânica, sendo a de um corpo humano, pode se expressar, em termos
de sentido, de formas absolutamente diferentes em grupos diversos.
Sendo o objetivo deste trabalho justamente compreender as repre-
sentações dos professores da área sobre sua prática profissional,
procuramos analisá-Ia buscando decifrar a forma como eles cons-
troem, como membros de uma dada sociedade e nos termos de sua
cultura, a noçáo ele corpo que sustenta essa prática. A forma como os
professores entendem e traduzem essas noções influencia no tipo de
aula que ministram, no delineamento elos seus objetivos, na sua
postura perante os alunos e na forma como utilizam as técnicas
corporais na sua rotina ele aulas, constituindo assim como que um fio
invisível que costura, por uma lógica própria, sua experiência de
mundo e, portanto, a concepção acerca ele sua prática como profissio-
nais.
80
Os professores afirmam que tiveram uma infância próxima da
natureza, com espaço, áreas verdes e brincadeiras ele rua. Falam de
um corpo livre, que não tinha ou não se preocupava com técnicas
rígidas; um corpo "natural", que brincava e sentia prazer. É com esse
mesmo corpo "natural" que eles passam a gostar do esporte, alguns
tornam-se atletas e são assíduos freqüentadores das aulas de Educa-
ção Física. Procuram uma faculdade que vai ao encontro dessas
ativiclacles esportivas c tornam-se professores, assumindo o papel ele
antigos docentes, tidos como ídolos. Passam, então, a trabalhar sobre
os corpos "naturais" de crianças, agora seus alunos.
O dado mais relevante que foi possível depreender elas entre-
vistas, e que parece ser a própria base da atuação profissional elo
grupo, é que os professores procuram realizar, ao trabalhar por inter-
médio elos corpos ele seus alunos. uma tarefa que, no plano simbólico
em que se estruturam suas representações a respeito ele sua pr<ítica,
aparece como uma mediação entre a ordem da naturc7.a e a ordem ela
sociedade. No primeiro plano, entendem o corpo como matéria-prima
sobre a qual vão impor seus ohjetivos e seus métodos ele ensino.
Acho que o corpo é a coisa mais sadia que a gente tem. icho que <l
gente tem que cuidar e tentar sempre estar trabalhando com o corpo.
não ficar se encostando. Acho que o corpo é saúde. Eu acho que o
corpo foi feito para a gente explorar, para a gente usar mesmo.
É como se fosse uma matéria-prima, que <l pessoa tem no dia-a-dia
que trabalhar, conservar, lapidar. A viela ela pesso<t! Eu vejo assim
como uma matéria-prima que as pessoas têm ohrigaçiio de alimentar.
Situando-o na ordem da natureza, os professores pressupõem
um corpo "natural", isto é, livre, despojado ele técnicas. (:,a mesma
imagem elo seu corpo infantil que esses profissionais projetam sobre
o corpo dos seus alunos. Tomando-o como um dado da natureza,
devem, portanto, trabalhar sobre esse corpo para conduzi-lo i1 ordem
social. Nesse plano, entendem o corpo como ;tprcncliz de comporta-
mentos sociais, ele atitudes necessárias para uma vida melhor; enten-
dem o corpo como base elo aprendizado c prática ele regras sociais por
parte do aluno, futuro cidadão.
81
Corpo é o início da aprendizagem. Você aprende a se movimentar, a
se conhecer, a ver o teu espas:o, tudo através do seu corpo. Você
enxerga o mundo através do scu corpo.
Eu acho que é tudo. Se a gente não preservar, não tiver, assim, urna
scqüência til: movimcntos para educar, logicamentc a gente vai atro-
fiar. É tudo o que a gente poderia explorar c conseqüentemente
conseguir valores melhores.
Essa passagem simbólica da ordem da natureza para a ordem
social é realizada, na representação desses professores, por meio da
imposição de técnicas sobre o corpo, destacando-se entre estas as
técnicas esportivas. Os professores ensinam uma série de movimen-
tos aos alunos, objetivando a incorporação por parte destes de um
conjunto de técnicas que deverão ser capazes de torná-los mais ades-
trados e, ao mesmo tempo, mais socializados, com maior capacidade
de enfrentar o mundo.
Para os professores, esses alunos são, tal como eles foram no
passado, crianças cujos corpos não apresentam técnicas ou que se
movimentam de forma não-técnica. Esses corpos "naturais" se mos-
tram ávidos para o aprendizado escolar de técnicas corporais.
Porque você pega crianças que não têm um trabalho corporal.
O aluno vem de uma quarta série, nunca pegou numa bola. Às vezes
o aluno vem sem muita coordenação.
Eu pego aluno que não sabe correr, não sabe respirar direito ainda.
Só jogam futebol.
A nossa escola é de urna clientela carente e a educação fica só a cargo
da cscola. Praticamente, eles não trazem nada ou quase nada de casa.
Há que se observar aqui a contradição entre a continuidade da
experiência infantil que os professores levam para a escola, quando
falam de si próprios, e a ruptura que estabelecem para os alunos. Os
professores, quando crianças, brincavam naturalmente e foi o corpo
tido como natural que os fez gostar das aulas ele Educação Física,
levando-os a seguir essa carreira profissional. Seus alunos, hoje, não
82
apresentam um trabalho corporal, não sabem correr, não sabem respi-
rar direito, em síntese, "não trazem nada de casa". É essa ruptura entre
sua experiência passada e a experiência atual de seus alunos que
justifica sua função de mediação entre a ordem da natureza e a ordem
da sociedade.
Ora, essa tarefa grandiosa que os professores defendem para a
Educação Física, de inserir os alunos, por meio do corpo, na ordem
da sociedade, é o que dá sentido às suas afirmações de educação
global, ou de sociabilização, ou ainda, de sua função de realizadores
das atividades extracurriculares da escola. Vê-se, portanto, que a
atuação dos professores de Educação Física na escola, ape~ar de
carecer de especificidade, é dotada de uma alta eficácia simbólica,
uma vez que eles se vêem e são reconhecidos a partir do seu papel
diferencial na escola, de sua atuação não-curricular.
É interessante observar também comcí os professores desconsi-
deram o repertório corporal que as crianças possuem antes de entrar
na escola, como se a Educação Física esco}ar fosse o único recurso de
educação corporal para os alunos. Ao considerarem os movimentos
corporais das crianças como não-técnicos, os professores entendem
esses corpos como desprovidos de cultura, fazendo parte da ordem da
natureza, podendo, então, justificar a atu.ação da Educação Física no
sentido de contribuir para a formação do cidadão, ou seja, aquele
indivíduo que d~ve possuir um repertório corporal adequado à vida
em sociedade. E como se os movimentos enfatizados nas aulas de
Educação Física fossem corretos, e que devessem substituir todos os
outros que a criança aprendeu ao longo de sua experiência de vida.
Eu trabalho muito a fundamentação da coisa. O que é o certo.
Ninguém chega e laca! Eles arrcmessam. É diferente!
Já vimos que os movimentos corporais só têm sentido por
serem criados pelos homens como membros de uma sociedade e
transmitidos através das gerações. Dessa forma, as técnicas corpo-
rais só podem ser chamadas de técnicas porque são culturais. Não é
83
possível falar de um movimento "não-técnico", "natural", "livre",
ainda não atingido pela cultura.
Quando os professores definem corpo, é possível perceber a
idéia de matéria-prima que tem que ser lapidada, cuidada, preservada,
alimentada, para ser conservada em bom estado. A partir dessa maté-
ria-prima, há a necessidade de preparar esse corpo saudável para a
vida em sociedade.
É por isso que a gente trabalha o corpo, senão o corpo fica sem vida,
vai ficar um corpo parado. Então, a gente tem que mexer as mãos, os
braços, cabeça, pernas.
Corpo... ele tem que ser saudável! Ele tem que ser bonito! Você tem que
bater o olho c ver que a pessoa tem interesse, prazer em manter o corpo
melhor, cuidar, que aquilo lá é importante também para o interior, para
o ego, para o dia-a-dia, para as conquistas aí na vida afora.
Nessa transformaçao do corpo matéria-prima em corpo social
é possível perceber a idéia de máquina eficiente, que não pode parar,
que tem que funcionar com perfeição.
Eu acho que o nosso corpo é uma máquina. Você não pode l"icar
parado. senão já começa a doer cm algum lugar c tem dificuldade
até de andar.
Corpo é uma máquina perfeita, ou deveria ser perfeita. Para alguns,
falha às vezes.
Eu acho que o corpo é um conjunto harmônico de coisas, de peças.
Então, juntaria um braço, uma perna, peças e formaria um conjunto
harmonioso possível, onde tudo se encaixa, tudo funciona bem.
Pensando o corpo como perfeição da técnica, chega-se, portan-
to, à idéia de corpo eficiente, num duplo sentido: mecânico, por um
lado, de manutenção de uma máquina perfeita e, por outro lado,
social, de cumprimento das regras que a vida em grupo exige, contri-
buindo, assim, para o desenvolvimento da sociedade. Todos os pro-
fessores entrevistados enfatizaram o seu papel de preparadores de
84
indivíduos perfeitamente socializados, função esta que é realizada
por meio da aplicação de técnicas, quase sempre esportivas, sobre os
corpos dos alunos. O aluno que souber praticar melhor as técnicas
esportivas será mais capaz de viver em sociedade, será um indivíduo
mais evoluído, que saberá ganhar e perder, saberá esperar a sua vez,
saberá enfrentar melhor as adversidades que a vida apresenta. Dessa
forma, estará sendo criado um homem brasileiro, que será intelectual,
moral e fisicamente melhor, tal como se pretendia em outras épocas da
história do Brasil. Entretanto, em vez de contribuir para a melhoria ela
raça, como se pretendia no final do século passado, ou em vez ele
qualificar a mão-de-obra ou preparar o indivíduo para a defesa da pátria,
como se queria no Estado Novo, a Educação Física atual pretende
aprimorar o corpo, levando-o à perfeição da técnica, para, por meio dele,
alcançar um tipo de eficiência característica ela sociedade capitalista,
tida como base do potencial da nação c ela construção de seus cidadãos.
Eu posso dar a minha cnntribuiçün para que <lqucle <Hinlcsccnte. que
está ali cm desenvolvimento, não raça um<l opç:lo por 11111 caminho
tortuoso. Dentro do m11ndn esportivo ele pode ler 11111 dcscnvnlvi-
mcntn. tanto Físico quanto de cnhcç:1. lcg.;1l.
Eu estou contribuindo para <1 l"ormação do cidnd;io. diret:1 011 indire·
lamente. piir<J o progresso do país. (: um<J cois;J ho<J. uma coisa
honesta. A gente está num país de mui1<1 gente desonesta.
Seria ilssim uma l"ormação, uma preparação para uma cidadania, para
tornar o aluno cidadão, para preparar o aluno para o que ele v:1i e111'rentar
fora da escola. O aluno tem um hor;írio a cumprir. um hor;írio m;ne<1do
de aula, um comportamento, ele tem deveres, direitos.
Povo que tem educação é 1111 povo que cad;1 vez mais vai pnrn a
!"rente; vai para a !"rente porque tem ccluca<;<io, tem uma conscicntiz:l-
ção. Então, é por isso que tem Educação Física.
A busca do corpo tecnicamente perfeito não se limita üs sessões
de Educação Física na escola, mas se prolonga na criaçfto de hábitos
de vida, de novos costumes, mesmo nos momentos de lazer, para que
o aluno preencha adequadamente o seu tempo livre, como se ele não
fosse capaz de decidir o que fazer nas horas vagas.
85
É como eu falo para eles: "você não tem nada para fazer, em vez de
ficar em casa assistindo televisão, está sozinho, vai fazer uma parada
de mãos na parede, vai fazer estrela, vai correr, não fica parado em
casa perdendo tempo da tua vida vendo o tempo passar."
Uma característica essencial que é possível perceber na busca
desse corpo eficiente é a ênfase centrada no indivíduo, como se o
homem nüo vivesse em sociedade, como se o corpo não fosse produto
ela cultura c como se a vontade individual bastasse para o desenvolvi-
mento corporal. Mais uma vez fica patente a idéia de corpo "natural",
que pode, graças ü vontade individual, desenvolver-se, passando
diretamcntc para a "boa" ordem social, como corpo "cidadão".
Se t.:ll: se csfor.,;ar mais, ck vai const.:guir fazer, fisicamente, tudo.
Eu <1clw que a Educa.,;ão Física pude se comparar à vida. Você cstú
no mt:io de u1n 111ontc dt: gcntt:, cada um tem un1 ccnu potencial, você
tem qut.: rcsp~:itar o pott:ncial dt.: tuclos e nesse grupu você cunsegut:
v~:ncer, mas o outro tamb.:m pode conseguir v<.:ncer. Você tem que
dividir isso com o outro.
A regra de um jugo você transporta para a regra ela vida, a sua
sociedade, como você vive cm socit.:cladc.
Na verdade, o objetivo da Educação Física escolar, no relato
dos professores, é dar condições para o aluno levar uma vida melhor,
e essa vida melhor passa, necessariamente, pela compreensão, por
parte elo aluno, do seu papel na sociedade.
Educaçflu Física é a criança ter a compreensão, a formação, entender
a importância dela na sociedade.
Essa concepção de Educaçüo Física como trabalho de prepara-
ção do cicladào está ancorada nas duas grandes influências sofridas
por ela no Brasil ao longo de sua história, a militar e a médica. Só faz
sentido falar da utilização da Educação Física na busca da eficiência
que leva à cidadania se for considerada a influência conjunta dos
militares e do conhecimento científico da medicina, com sua noção
86
de corpo humano primordialmente biológica. Só dessa perspectiva é
possível conceber que, lançando mão das técnicas da Educação Físi-
ca, se pretendesse construir homens fisicamente fortes e saudáveis,
aptos a defender a pátria e viabilizar a construção da nação.
Esse trabalho de preparação do cidadão brasileiro - consoante
com um padrão de eficiência explícito no corpo, que, definido inicial-
mente de uma perspectiva higienista e eugênica e depois pelo modelo
esportivo nacional, hoje tem a forma da modernidade capitalista - não
pode ser realizado sem uma dose de autoritarismo. Apesar de os professo-
res se considerarem apreciados pelos alunos e de enfatizarem as vanta-
gens motivacionais da Educação Física, como o trabalho com esportes,
a liberdade nas aulas e a ausência de nota, a grande maioria se coloca
como controladora, na busca da excelência do programa desenvolvido.
Eu não desprezo ainda um pouco daquela aula tradicional.
Eles me acham muito brava.
Às vezes, tem de ser duro!
Não deixo muito à vontade mesmo.
Quando eu chego, eles já sabem, precisa entrar em forma.
Eu dou liberdade pura o aluno, mas cu ainda exijo um pouco deles.
Eu sempre comando. O que eles vão fazer naquele dia já está tudo
preestabelecido. Eu sou um pouco bravo. Eu acho que eu não sou
muito maleável, não. Eu não sou rígido. Eu sou acessível. Mas, ao
mesmo tempo, a gente tem que ter o pulso.
À primeira vista, a atitude paternalista dos professores em
relação às crianças, revelada nas entrevi~tas, poderia ser entendida
como contraditória com essa postura autoritária. Entretanto, percebe-
se que esse paternalismo apenas camufla a postura diretiva que os
professores têm diante de seus alunos por meio da exigência de
movimentos corporais tidos como corretos. E, ao camuflá-la, esse
paternalismo acaba por reafirmar-se como constitutivo do papel do
professor de Educação Física na escola.
87
Às vezes. acho que a gente é pai, é mãe para o aluno. A gente é tudo
para ele, para resolver os problemas dele.
Eu acredito que cu posso dar um pouco ele mim aos alunos que
comigo convivem.
Eu tinha sempre muita vontade ele fazer alguma coisa por alguém, c
peguei essa escola no desejo ele me realizar, não só profissionalmen-
te, mas como pessoa, como ser humano, achando que aqui as crianças
eram bem carentes por serem ela favela. Eu poderia fazer um trabalho
com eles bem ele amor, de dar o m~ximo ele amor, ele atenção que cu
pudesse dar para eles.
Por isso mesmo, na qualidade de mediadores que fazem a
passagem da ordem da natureza para a ordem social, transformando
o corpo natural em corpo eficiente, e preparando o futuro cidadão, os
professores sentem-·se gratificados e realizados. Apesar das reclama-
ções em relação ao salário, à falta de materiais e à falta de estrutura,
eles gostam do que fazem e consideram que possuem "o dom de
ensinar".
Eu acho. que professora é dom. Não adianta você querer se formar
professora. Você nasce com aquele dom.
Eu não consigo trocar. Não consigo fazer outra coisa porque eu gosto
disso, eu gosto ele dar aula, cu gosto de ensinar.
Para mim representa dar tudo daquilo que eu tenho para outras
pessoas que não tiveram possibilidade de ter.
A impressão que se tem, pelo discurso dos professores, é que
um modelo de aula diferente, que, talvez, pudesse ser considerado
mais democrático, seria incompatível com os objetivos de formação
do cidadão. É por isso que eies enfatizam a organização e a disciplina
como condição das suas aulas.
88
Sempre que eu vejo que 6u posso estar perdendo a rédea e vai virar
bagunça, então eu imponho.
Tem que ser organizada senão não dá. Já é em lugar aberto. Então,
talvez você ache que fica meio rígida, mas tem que ser assim. Na hora
de trabalhar, tem ele trabalhar. Tem que programar c ser mais ou
menos rígido. Você não pode deixar só por eles, porque senão vira
bagunça.
À época cm que cu f'iz escola, era um pouco militarismo, era uma
formação militar. Mas a gente muda. Eu sei que a disciplinn c a
ordem são h~sicos cm tudo, c onde não houver disciplina, você niin
consegue quase nada. Disciplina c ordem.
Alguns professores reconhecem que sua postura ainda é con-
servadora:
Eu acho que minhas aulas ainda são meio quaclradinhas. Eu estou
tentando mudar.
É interessante notar a contradição entre o discurso dos profes-
sores, que defende a formação do cidadão, e sua postura diretiva nas
aulas quando buscam o movimento eficiente. Essa contradição revela
a noção de cidadania que permeia o discurso dos professores, muito
mais ligada ao cumprimento de normas e regras do que visando ~~
crítica e à autonomia dos alunos.
Porém mudar nem sempre é fácil. Os professores não são
"conservadores" apenas pela influência militar, que deixou para a
Educação Física um legado autoritário nos seus métodos ele ensino,
hoje reproduzido no comportamento elos professores perante seus
alunos. É preciso entender as mediaçôes sociais concretas por meio
das quais essa influência foi capaz de perpetuar-se ele forma incons-
ciente e, muitas vezes, contra a intenção explícita elos professores.
Para isso, será necessário recorrer novamente a Marcel Mauss,
lembrando que, para ele, a educação ocorre por meio ele um processo
de imitação, por parte das crianças, de atos que obtiveram êxito c que
foram bem-sucedidos em pessoas que detêm prestígio e autoridade no
grupo social. É justamente esse processo tradicional que transmite
gestos, valores, conceitos e comportamentos de pais para filhos, ou
de professores para alunos. Essa reflexão permite compreender os
89
motivos pelos quais os professores enfatizam a sua postura de coman-
do e de controle nas aulas. Permite também entender por que esses
profissionais se reportam a seus antigos professores de Educação
Física na escola como verdadeiros ídolos, sendo lembrados por eles
muitos anos depois. O que esses professores realizam com seus
alunos, em nível de postura disciplinar, parece ser uma imitação do
que seus antigos professores fizeram com eles. Trata-se de uma
imitação prestigiosa, já que os professores marcaram suas vidas,
tornando-se seus ídolos c modelos. Esse prestígio serve para reforçar
o conteúdo dos ensinamentos que nossos professores receberam de
seus antigos mestres e que, hoje, transmitem a seus alunos. Possivel-
mente, eles visem ocupar no futuro, na lembrança de seus alunos, o
mesmo lugar de prestígio reservado à imagem de ídolos que eles têm
dos antigos professores. I~ dessa maneira que toda uma visão de
mundo pode ser filtrada por meio da linguagem silenciosa do corpo,
cuja concepçüo responde pela lógica que articula as representações e
a prática dos professores de Educação Física no desempenho de sua
atividade profissional.
90
CONCLUSÃO:
POR UMA EDUCAÇÃO FÍSICA PLURAL
Porque se chamavam ho-
mens, também se chama-
vam sonhos, e sonhos não
envelhecem.
Lô Borges, Márcio Borges, Milton Nascimento
O papel da Educação Física na escola e a forma como seus
profissionais incorporam o carátcr especial da áreu e.sua diferencia-
ção em relação às outras disciplinas são significativos para com-
preendermos sua prática escolar na rede pública de primeiro grau,
bem como a lógica das representações que a justificam.
O caráter diferencial da Educação Física em relaçfto às outras
disciplinas escolares é percebido quando os professores não conse-
guem falar da especificidade da sua área de atuaçüo na escola, e na
própria definição que dão de Educação Física. Em ambos os casos,
percebe-se uma certa abstração das respostas, evidenciada na vocação
da "educação global" que os professores imputam ao ensino de Edu-
91
cação Física. Os professores reconhecem que todas as disciplinas
escolares procuram preparar o aluno para a vida em sociedade, mas
se vêem com mais condições para essa tarefa, justamente pelo traba-
lho sobre e por meio do corpo, que, na sua opinião, permite uma atuação
global sobre os alunos. Esse aspecto é enfatizado pelos professores,
chegando ao ponto de um deles afirmar que a Educação Física educa,
enquanto as outras disciplinas não conseguem tal intento.
Entretanto, esse "privilégio" concedido à Eçlucação Física só
pode ser entendido em virtude da sua especificidade e 'da sua diferen-
ciação em relação às outras disciplinas escolares. Tal concepção não
se restringe à visão que os professores ·possuem da área, mas está
presente até mesmo na legislação, que· entende a Educação Física
como atividade, em vez de disciplina escolar. Esse caráter de ativida-
de da Educação Física está presente no fato de a nota não reprovar o
aluno, no fato de as turmas, em algumas escolas, serem divididas por
sexo somente nessas aulas, e no fato de as aulas serem, em alguns
casos, fora do horário regul<í da escola.
Mais ainda, essa diferenciação da Educação Física também está
confirmada e legitimada na própria função que as escolas, por meio
de suas direções, delegam a. ela. Como vimos na análise das entrevis-
tas, os professores de Educação Física são solicitados a colaborar nas
atividades extracurriculares (festas, desfiles, formaturas), em orienta-
ções disciplinares ou sexuais, e em pequenos consertos, no caso dos
professores do sexo masculino.
Por fim, a própria localização aleatória da quadra, chamada
por alguns professores de "nossa sala de aula", parece estar relacio-
nada ao papel diferencial que a Educação Física ocupa na escola, já
que parece ter por critério o espaço que sobrou após a construção elo
prédio.
Nota-se aqui uma ambigüidade no papel da Educação Física
escolar: o seu caráter diferencial, aleatório e extracurricular, mostra-
do até aqui como problemático e criticado em vários estudos atuais,
é o que dota a prática escolar de Educação Física de uma eficácia
simbólica, responsável pelo seu sucesso entre alunos, pais e direção
92
das escolas, sucesso este que justifica o papel educativo pelo qual os
professores se auto-avaliam.
Entretanto, esse caráter diferencial da Educação Física na esco-
la, incorporado pelo professor no seu discurso, no seu comportamen-
to, no seu relacionamento com os alunos, bem como nas atividades
extracurriculares que realiza, deve ser analisado em conjunto com a
forma como esses profissionais organizam e desenvolvem seu progra-
ma curricular. Sua prática pedagógica, de maneira geral, ainda se
caracteriza pela busca de um tipo de treinamento ideal para todo um
grupo, pelo desejo de uma classe homogênea de alunos, pelo destaque
da melhoria da aptidão física como objetivo de ensino. Em outros
termos, todos os alunos devem correr o mesmo número de voltas,
fazer tantas repetições do mesmo exercício, saltar a mesma metra-
gem. Vemos professores realizando testes físicos no início e ao final
de um período letivo para verificar o progresso dos alunos em termos
de força, velocidade, resistência e flexibilidade corporais. O nível do
grupo é determinado em virtude desses critérios de aptidão física e as
atividades propostas seguirão esses parâmetros. Alguns professores
chegam mesmo a defender a formação de turmas de Educação Física
em virtude do biotipo dos alunos, independentemente da idade que
-:!~" tenham e ela série que estejam cursando. É sobre os corpos dos
alunos assim definidos que deve incidir a prática elo professor de
Educação Física, como imposição de técnicas que favoreçam seu
desenvolvimento e a eficiência elo seu desempenho.
Na bibliografia tradicional específica ela área, a técnica é trata-
ela de maneira instrumental. As obras a ela clcclicaclas nada mais fazem
do que coletar um conjunto de movimentos consiclcraclos eficientes c
perfeitos para as finalidades de clctcrminacla modaliclaclc esportiva c
dividi-los em estágios de uma seqiiência pedagógica para o seu apren-
dizado. Dessa forma, uma única maneira de se executar urn movimen-
to esportivo ganha o status de padrão de corrcção, e todas as outras
formas são tidas como erróneas, incompletas ou variantes menos
desejáveis da técnica considerada perfeita. O professor de Educação
Física, partindo dessa concepção, tenderá a considerar as técnicas
esportivas ou ginásticas como movimentos únicos a serem alcança-
dos no comportamento corporal de seus alunos.
93
Percebe-se nessa prática pedagógica que o conceito de educa-
ção apresentado pelos professo~es está relacionado a uma certa con-
cepção de educação corporal. E como, se_ fosse ~ma model_agem de
comportamentos e atitudes que serão uteis na vida em.sociedade, a
partir do aperfeiçoamento, pelo exercício, de um ~otencial natural do
indivíduo inscrito no seu corpo. Essa concepçao de corpo como
primordi;lmente biológico, ainda arraigada na prática do~ professo-
res, implica entender que os mesmos o~so_:;, ?s ~es:n~s musculos, os
mesmos órgãos que compõem o patnmomo bwlog1co _hum~no se
constituiriam na justificativa para a aceitação de uma noçao umversal
de corpo humano. A conseqüência direta d~ssa conc~~ção é a tendên-
cia em se visar unicamente ao desenvolvimento fiSICO de todos os
alunos da mesma forma.
Pensando o corpo como exclusivamente biológico, os profes-
sores entendem-no como natural, como se fosse anterior à cultura e,
portanto, o mesmo em todo e qualquer lugar. En: decorrência d~ssa
suposição, eles negam que os alunos chegam a escola pos_smndo
técnicas corporais, que, por isso mesmo, devem ser-lhes ensmadas.
Entretanto, sabemos que toda técnica é cultural, porque fruto de
aprendizagem específica de uma determinada sociedade, num d~te:­
minado momento histórico. Os corpos, embora com uma base b!Oio-
gica semelhante, foram e continuam a ser co~struídos diferentement.e
em cada sociedade, segundo os padrões gcnus da sua cultura c respei-
tando as especificidades ele classe social, ele religião, de grupo etc.
Cada sociedade destaca c valoriza determinadas formas de uso do
corpo ou determinados movimentos corporais. E assim os corpos vão
se diferenciando uns dos outros, em conseqüência dos símbolos e
valores que neles süo colocados pela sociedade, em cada momento
histórico específico.
Se o professor percebe que os corpos diferem entre si, a expli-
cação tende a ser em virtude da natureza do corpo e não das especifi_-
cidades socioculturais que podem ter gerado diferenças corporais. E
como se, para o professor, existissem corpos naturalmente melhores,
mais fortes, mais capazes e, em contraposição, corpos naturalmente
piores, mais fracos, menos capazes. Nesse caso, o professor não
conseguirá compreender as técnicas corporais como integrantes de
94
uma realidade sociocultural, tendendo, por isso, a ter dificuldade em
adequar a sua prática às características dos grupos com os quais
trabalha. Possivelmente, ele não terá condições de entender os movi-
mentos corporais como símbolos sociais e sua prática correrá sérios
riscos de se desvincular do contexto de vida dos alunos, apesar de
estar significando alguns valores que devem ser esclarecidos. Um
exemplo dessa tendência ocorre quando o professor de Educação
Física, numa escola de periferia, tenta ensinar a "parada de mãos" e
desconsidera que os alunos, em sua grande maioria, sabem "plantar
bananeira". São técnicas corporais parecidas. A primeira faz parte de
um conhecimento sistematizado de uma modalidade esportiva e a
segunda faz parte de um conhecimento corporal popular (Daolio
1993).
Assim, o professor de Educação Física parece esquecer que seu
trabalho se dá num ambiente cultural, com pessoas que fazem parte
de uma realidade social e utiliza conteúdos historicamente relevantes
daquela cultura. O próprio termo "Educação Física" remete sua com-
preensão para o campo da cultura de uma dada sociedade. Pensar o
corpo como construído culturalmente implica considerar que a ênfase
biológica que a Educação Física recebeu é também uma construção
social, que atendeu a necessidades históricas e políticas particulares.
O referencial antropológico utilizado neste trabalho permite
sugerir que a Educação Física reconheça o repertório corporal que
cada aluno possui quando chega à escola, já que toda técnica corporal
é uma técnica cultural e, portanto, não existe técnica melhor ou mais
correta senão em virtude de objetivos claramente explicitados e em
relação aos quais possa haver consenso entre professor e alunos.
Em termos de literatura específica da área, somente alguns
poucos estudos começam a considerar ·o corpo, o movimento e o
trabalho do professor de Educação Física como produtos culturais.
Medina (1987) afirma que existem vários corpos brasileiros. Consi-
derando o corpo como suporte de signos sociais, ele vislumbra uma
pedagogia que considere as significações presentes no corpo do ho-
mem brasileiro, sem, no entan~o, detalhar essa pedagogia objetivando
transformar a prática ?os professores.
95
Ghiraldelli Júnior (1988) também inclui a questão cultural na
discussão da Educação Física e do papel do seu profissional. Para ele,
o professor de Educação Física desenvolve a tarefa de agente cultural,
pois atua no sentido de implantar no movimento humano os ditames
de uma determinada cultura. Propõe, então, a vinculação de análise
do muvimento humano ao movimento social, afirmando que o traba-
lho do professor de Educação Física extrapola a transmissão das
técnicas de ginástica e esporte para alcançar a crítica por meio da
riqueza cultural inerente aos movimentos humanos.
Na mesma direção, Kofes ( 1985) também alerta para o risco de
os professores de Educação Física levarem em conta somente uma
concepção cientificista do corpo como estrutura biológica, não consi-
derando que os alunos possam ter outras representações a respeito do
próprio corpo, interferindo mesmo em seus movimentos c comporta-
mentos corporais.
Em outro trabalho, tentamos uma aproximação mais estreita
entre a Educação Física e a Antropologia Social. Relacionando a
Aprendizagem Motora com o estudo antropológico das técnicas cor-
porais, justificamos que em ambos os níveis o indivíduo aprende: no
nível mais microscópico de uma aula de Educação Física, o aluno, por
meio do seu corpo e dos seus movimentos, aprende habilidades
motoras; no nível macroscópico da sociedade, o indivíduo também
aprende determinadas técnicas sociais, muitas vezes sem se dar conta
desse processo. E concluímos ressaltando a importância de o profes-
sor de Educação Física considerar o aspecto cultural de sua prática,
para não se tornar vítima e reprodutor de modismos, saber considerar
as diferenças culturais existentes entre os alunos e, assim, poder
utilizar adequadamente os ensinamentos da Aprendizagem Motora
(Daolio 1989).
Ao trabalhar diretamentc com o corpo dos alunos, o professor
interfere na concepção e .na representação que os alunos têm do
próprio corpo. Interfere, por extensão, na própria cultura que dá
suporte a essas representações. É possível afirmar que um professor
de Educação Física, atento ao alcance cultural de sua prática, tem
mais condições de realizar um trabalho competente, por encontrar-se
96
conectado com a realidade sociocultural cm que vive. Porque os
professores são atares sociais, e sua prática está ancorada num con-
junto de representações cuja base é justamente sua experiência con-
creta no mundo. Como elementos da sociedade, os professores realizam
uma determinada prática em virtude da forma como traduzem c
filtram os valores sociais.
Entretanto, cabe ainda investigar os motivos que fazem com
que os profissionais de Educação Física, na escola, mostrem-se resis-
tentes às críticas e às novas propostas que vêm sendo feitas já há uma
década, mantendo uma prática cujo referencial ainda é, primordial-
mente, biológico. Se, por um lado, existe um discurso dos professores
que, em alguns momentos, é transformador e crítico, por outro lado,
a lógica de sua prática ainda se mostra arraigada a determinados
valores que poderiam ser considerados, precipitadamente, como su-
perados.
A Educação Física no Brasil clcsenvo]vcu-sc a partir do século
XIX e foi grandemente influenciada pelas Forças Armadas c pela
chamada Medicina Higienista. Essas duas grandes influências, com
algumas nuanças, foram reaparecendo ao longo deste século, inicial-
mente no Estado Novo e, posteriormente no período pós-I 964 (Cas-
tellani Filho 1988). Somente a partir do início da década ele I980, com
a redemocratização do país, é que a Educação Física começou a ser
discutida de forma mais contundente, levando ao reconhecimento de
que sua prática escolar é problemática e visando a uma redefinição ele
seus objetivos, conteúdos e métodos de trabalho.
É dessa forma que a história da Educação Física no Brasil nos
dá bases para entender como os professores atuais reproduzem, no
seu cotidiano, ideais c valores passados, como a higiene c a cugcnia
do final do século XIX, ou o militarismo nacionalista do Estado
Novo, ou o modelo esportivo característico do recente governo mili-
tar. Porém, ao reproduzirem esses ideais passados, eles atualizam, na
sua experiência presente, esses valores, atribuindo-lhes novos signi-
ficados.
97
Para entendermos esse distanciamento entre o discurso dos
professores de Educação Física, muitas vezes crítico e progressista, e
sua prática, tradicional e mecanicista, este trabalho procurou sugerir
que é necessário considerar o corpo como produto de uma construção
social específica e cada gesto ou postura como a expressão individual
de uma totalidade social. Dessa perspectiva é possível entender que a
lógica da prática dos professores de Educação Física tem por eixo um
lugar "estratégico": o corpo desses profissionais. Corpo este que,
considerado como produto da sociedade e da cultura, pode ser com-
preendido em termos de tradição social, sendo os movimentos por ele
expressos transmitidos através das gerações. É justamente por deixar
de levar em conta os pequenos detalhes inscritos no corpo dos profes-
sores que, por sua própria "insignificância" podem passar desperce-
bidos ou inobservados, que a prática desses profissionais apresenta-se
resistente a uma crítica que leve a transformações. É por meio da sua
prática corporal que os professores vão reatualizando, inconsciente-
mente e muitas vezes contra os próprios valores explícitos em seu
discurso, os ideais da Educação Física brasileira desde o século
passado. E é justamente a prática corporal desses professores, junto
com as representações que por meio dela se veiculam, que dá sentido
à sua atividade profissional, tendo sido por eles incorporada como
valor por meio de momentos de sua experiência de vida que reputam
significativos e são, por isso mesmo, altamente valorizados.
Estas reflexões nos oferecem subsídios para compreender que
a história da Educação Física no Brasil, para além de uma somatória
ele elementos responsáveis pela produção e reprodução de determina-
dos comportamentos dos professores, foi influenciando na construção
de um imaginário social referente ao corpo- biológico naturalista
. ' '
um,vers~.l -., qt~e se ~xpres~a no .conjunto. das ações e representações
dos profiSSionais da area ate os dws de hoJe. Em outros termos, existe
uma lógica da prática desses profissionais, tradicional e eficaz ins-
crita nos seus corpos e, ainda, refratária a uma crítica que, unica~ente
baseada no discurso, possa torná-la passível de alterações. Essa tradi-
ção, prese~te na sua prática corporal, só faz confirmar a lembrança
desses professores em relação a seus antigos mestres, tomados como
inspiração e modelo a ser seguido na sua prática profissional atual.
98
Vê-se, portanto, que uma ação transformadora na Educação
Física escolar só será efetiva se conseguir penetrar esse universo de
representações dos professores, decifrar os significados de sua práti-
ca, até chegar ao nível dos seus comportamentos corporais. As pes-
quisas realizadas em Educação Física, de maneira geral, colocam-se
ou num nível de análise das condições .institucionais em que se
desenvolve a prática dos professores, ou dessa própria prática desvin-
culada do contexto social que a influencia, ou, ainda, tratam os
professores a partir do seu discurso e da necessidade de sua "cons-
cientização" com relação aos fatores sociais que incidem sobre J seu
trabalho. Em qualquer desses níveis, a experiência concreta desses
agentes sociais não é levada em conta. Ou são vistos como meros·
executores de uma determinada prática, ou como seres capazes de
transformar sua prática pela consciência dos seus erros. Esta pesquisa
pretendeu, justamente, dar conta desse distanciamento entre o discur-
so e a prática, contribuindo para uma revisão do papel do professor
de Educação Física na escola.
Apesar de os professores entrevistados se apresentarem com
características individuais diferenciadas, foi possível compreender a
lógica que, no plano simbólico da cultura, ordena o trabalho de
Educação Física dos seus profissionais. na escola, perpassando as
ações e representações não só de todos os professores entrevistados,
mas também dos demais agentes da instituição escolax, confirmando,
assim, a construção social tanto do seu conceito de corpo como do seu
próprio entendimento da área e de sua atuação profissional. Dessa
forma, pode-se pensar que o universo simbólico que sustenta a ação
~ess~s professores - neste trabalho reconstruído - extrapola o
ambito do grupo considerado, para atingir, com variações a serem
investigadas por outras pesquisas, toda a área de Educação Física
escolar no Brasil.
Tomando emprestado da Antropologia o princípio da alterida-
de, que aprendemos a levar em consideração ao longo da realização
deste tra?~lho, talvez pudéssemos encontrar um instrumento útil para
nos aux!lwr a pensar, sob um outro ângulo, a prática escolar de
Educação Física. A ciência antropológica, conforme discutido ante-
riormente, considera a humanidade plural e procura abordar os ho-
99
mens a partir das suas diferenças. Refuta, assim, o etnocentrismo, que
considera uma sociedade como o centro do mundo e a partir da qual
as outras são analisadas de forma preconceituosa. Um costume ou
uma IJrática de um determinado grupo não devem ser vistos como
certos ou errados, melhores ou piores do que outros do nosso próprio
grupo. Ambos têm significados próprios que os justificam no âmbito
do grupo no qual ocorrem. Portanto, a diferença não deve ser pensada
como inferioridade. o que caracteriza a espécie humana é justamente
sua capacidade de se expressar diferenciadamente.
Em razão do seu desenvolvimento como área específica desde
finais do século XIX, a Educação Física teve e tem uma dificuldade
histórica em pensar a diferença, ou seja, aquilo que destoa de uma
expectativa universal do comportamento corporal. Se, por um lado, a
Educação Física coloca-se como diferente das outras disciplinas es-
colares, assumindo um caráter especial, por outro lado, sua prática
curricular cotidiana parece apresentar dificuldades em lidar com as
diferenças apresentadas pelos alunos. Uma Educação Física escolar
que considere o princípio da alteridade saberá reconhecer as diferen-
ças - não só físicas, mas também culturais - expressas pelos
alunos, garantindo assim o direito de todos à sua prática. A diferença
deixará de ser critério para justificar preconceitos, que causam cons-
trangimentos e levam à subjugação dos alunos, para se tornar condi-
ção de sua igualdade, garantindo, assim, a afirmação do seu direito à
diferença, condição do pleno exercício da cidadania. Porque os ho-
mens são iguais justamente pela expressão de suas diferenças.
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aventura sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 197R.
105

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  • 1. DACULTURADO CORPO Utilizando um referencial próprio da Antropologia So- cial, esta obra discute a construção cultural do corpo humano. É com base nessa perspectiva que o autor analisa o trabalho do professor de Educação Física, reconstruindo o universo de representações sobre o corpo, que rege e orienta sua prática escolar. Além de apresentar um modelo de investigação que permite atingir aspectos até então não pesquisados no trabalho do docente de Educação Física, o enfoque cultural exposto pelo autor pode contribuir para a aná- lise do corpo como algo dotado de significações so- ciais e trazer para o leitor uma visão despida de preconceitos em relação ao comportamento corporal humano, pois "(...) os homens são iguais justamente na expressão de suas diferenças". •• •• PAPIRUS EDITORA .;, o (') o eh o (') .;, 00 z []J ~ -.o Ll"'l o ,..,., o 00 o ,..,., Ll"'l 00 00 1'- o-. - - - -- -- - - - DA CULTURADO CORPO C O R P O - L = MOTRICIDADE J,~ -1)~~ •• •• PAPIRUS
  • 2. DACULTURADO CORPO Utilizando um referencial próprio da Antropologia So- cial, esta obra discute a construção cultural do corpo humano. É com base nessa perspectiva que o autor analisa o trabalho do professor de Educação Física, reconstruindo o universo de representações sobre o corpo, que rege e orienta sua prática escolar. Além de apresentar um modelo de investigação que permite atingir aspectos até então não pesquisados no trabalho do docente de Educação Física, o enfoque cultural exposto pelo autor pode contribuir para a aná- lise do corpo como algo dotado de significações so- ciais e trazer para o leitor uma visão despida de preconceitos em relação ao comportamento corporal humano, pois "(...) os homens são iguais justamente na expressão de suas diferenças". •• •• PAPIRUS EDITORA .;, o (') o eh o (') .;, 00 z []J ~ -.o Ll"'l o ,..,., o 00 o ,..,., Ll"'l 00 00 1'- o-. - - - -- -- - - - DA CULTURADO CORPO C O R P O - L = MOTRICIDADE J,~ -1)~~ •• •• PAPIRUS
  • 3. DA CULTURADO CORPO Utilizando um referencial próprio da Antropologia So- cial, esta obra discute a construção cultural do corpo humano. É com base nessa perspectiva que o autor analisa o trabalho do professor de Educação Física, reconstruindo o universo de representações sobre o corpo, que rege e orienta sua prática escolar. Além de apresentar um modelo de investigação que permite atingir aspectos até então não pesquisados no trabalho do docente de Educação Física, o enfoque cultural exposto pelo autor pode contribuir para a aná- lise do corpo como algo dotado de significações so- ciais e trazer para o leitor uma visão despida de preconceitos em relação ao comportamento corporal humano, pois "(...) os homens são iguais justamente na expressão de suas diferenças". •• •• PAPIRUS EDITORA .;, o M o cO o M .;, "' z CC ~ -º o r:u o ,__ r:u E ·u o --, o a. a: o u o c <( a: ::;) ~ ::> u <( c ""- < ""- •• •• DA CULTURADO CORPO C O R P O IIII IIII PAPIRUS
  • 5. JOCIMAR DAOLIO DA CULTURA DO CORPO .~ ; PAPIRUS EDITORA
  • 6. Capa: Férnando Cornacchia Antonio César de Lima Abboud Foto: Renato Testa Escultura da capa: Felguérez Copidesque: Lucia H. Morelli Revisão: Jazon S. Santos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Oaolio, Jocimar Da cultura do corpo I Jocimar Oaolio. -- Campinas, SP Papirus, 1995. -· (Coleção corpo e motricidade) Bibliografia. ISBN 85-308-0305-1 1. Educação física 2. Educação física - Estudo e ensino 3. Educação física- Estudo e 8nsino- Metodologia I. Título. 11. Série. 95-3487 CDD-613.707 Índices para catálogo sistemático: 1. Educação física: Estudo e ensino 613.707 DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © M. R. Cornacchia & Cia. Ltda - Papirus Editora - Matriz - Fone: (0192} 31-3534 e 31-3500- C.P. 736- CEP 13001-970 Campinas- Filial- Fone: (011) 570-2877- São Paulo- Brasil. .~·-) ,-' ~, ...'· -....-.. './ '! ; .: ? cY C i c, í ·-'' ' ''. ( / ( c_ Aos meus alunos, que, cotidianamente, me ensinam a ser professm:
  • 7. PREFÁCIO APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO SUMÁRIO ,.:· 1. ANTROPOLOGIA: UM DESLOCAMENTO DO OLHAR 2. A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO CORPO HUMANO A natureza cultural do homem O corpo: sede de signos sociais Marcel Mauss e a noção de técnica corporal 3. O TRABALHO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA Os caminhos da pesquisa Ouvindo os professores 4. DO CORPO MATÉRIA-PRIMA AO CORPO CIDADÃO CONCLUSÃO: POR UMA EDUCAÇÃO FÍSICA PLURAL REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 9 13 15 21 31 31 36 42 51 51 59 79 91 101
  • 8. PREFÁCIO Antes que planejemos nossa aula, a vida nos plancjou. Os professores são mais que os livros que leram, os discursos que ouvi- ram, as correntes pedagógicas que se impuseram. Os professores, quando falam, falam de suas vidas. Falam aos nossos olhos, ouvidos e peles. Para o pesquisador do estudo relatado neste livro, falam ao seu olhar antropológico. Esse olhar antropológi- co de que nos fala Jocimar é o olhar do Homem sobre o Homem; nunca o olhar do pesquisador isento, asséptico. Lendo a obra do prof0 • Jocimar Daolio, leio uma surpreendente revelação: a aula de Educação Física serve para tudo. Os professores de Educação Física não escapam à síndrome do Super-Homem. Não querem o mínimo ou o suficiente; querem o máximo. Não hasta ensinar conteúdos específicos; julgam ter o poder de mudar as vidas dos alunos, de mudar a sociedade. Ao falar, é disso que os professores de Educação Física falam. E Jocimar, nosso autor desse belíssimo livro, vai deixando que o professor fale. E, quando fala, quando fala livremente, sem as 9
  • 9. amarras de um questionário fechado, esse professor fala mais da vida que da profissão. Como se a profissão fosse apenas um cenário para que ele exerça seus super-poderes. O professor não planeja a aula, planeja a vida. Qual é o principal conteúdo das aulas de Educação Física? O esporte, sem dúvida, dizem os professores consultados. Do que mais falam? Além do esporte, ainda falam do conhecimento sobre o pró- prio corpo, das regras do jogo e, em torno desses conteúdos, de tudo sobre a vida passada deles mesmos e da vida futura de seus alunos. Talvez com acertada razão, nossos professores de Educação Física consultados por Jocimar colocam-se como intermediários en- tre a natureza e a sociedade. Também em minhas andanças, ouvi vários professores falando sobre isso. De fato, eles verificam que as crianças que entram na escola, antes disso, correm, saltam, riem, brincam de todas as coisas e, depois nos bancos escolares, tornam-se alunos, despojados de todas as coisas que possuíam. Talvez o erro esteja em achar que aquelas coisas de fora da escola são da natureza; e as da escola, da sociedade. Eu diria que nem uma coisa nem outra. Aquelas coisas de fora da escola são a cultura da criança que nunca é matriculada, e as coisas da escola nüo süo bem as coisas da sociedade. Neste livro, Jocimar nos apresenta Marcel Mauss. Apenas isso já seria uma belíssima contribuição para a Educação Física. Porém, mais que isso, leva-nos a um agradúvel passeio pela Antropologia Social. Como todas as coisas desta obra, nada deixa de ser interessem- te. Creio que os estudos feitos no campo da Antropologia passarão, a partir destes escritos, a despertar maior interesse entre os profissio- nais ela área ele Lducaçüo Física. Escrito em linguagem clara c direta, este livro não reproduz a rigidez das teses acadêmicas. Sem abrir mão do rigor científico, nitidamente se preocupa com os aspectos estéticos que caracterizam uma literatura de boa qualidade. Como leitor, agradecemos a consi- deração; como profissionais da área de Educação Física, saudamos a oportunidade de ver uma tese acadêmica sair das prateleiras da uni- 10 versidade e penetrar um público muito mais amplo que aquele que freqüenta os banco escolares. Estou honrado com a solicitação que me foi feita de prefaciar este livro. Não é de hoje que conheço o autor. Fui seu professor na Faculdade de Educação Física. De lá para cá temos sido amigos e companheiros de trabalho. Sou testemunha de sua seriedade na pro- fissão, que exerce com a mesma competência com que consegue ser amigo, meu e de tantas pessoas que, seguramente, aguardavam com ansiedade o lançamento de sua primeira obra escrita. Jocimar junta-se ao esforço de outros autores na área de Edu- cação Física que entendem que um livro deve ser para muitos e não apenas para um círculo fechado de "iniciados". O conhecimento não pode ser monopólio de grupos restritos. Distribuí-lo constitui, no meu entender, a mais democrática das atitudes. João Batista Freire 11
  • 10. APRESENTAÇÃO Este trabalho, com algumas modificações, é a minha disserta- ção de mestrado, defendida em dezembro de 1992 na Escola de Educação Física da USP. Pretendi torná-Ia um pouco mais leve e ágil, a fim de que possa ser lida por um público maior. Na verdade, quando da realização da dissertação, eu já pensava em transformá-la em livro, já que a própria temática e o contato com os professores de Educação Física da rede pública estadual de São Paulo mostraram-me sua dificuldade e, ao mesmo tempo, a vontade de reciclar sua prática. Espero que, de alguma forma, este livro possa ser útil aos profissio- nais e estudantes, não só de Educação Física, mas ele todas as áreas que trabalham sobre e através do corpo humano. Este livro não se tornaria realidade sem a concorrência de uma série de pessoas que foram fundamentais na minha vida nestes últi- mos anos. Quem me apresentou à Antropologia foi Carmen Cinira de Macedo, que me orientou de julho de ] 9R9 até sua morte, em outubro de 1991. Entre outras coisas, ela me ensinou o prazer de fazer pesqui- sa. Ela deve estar feliz em ver este livro. É minha co-autora. 13
  • 11. Após a morte de Carmen, Maria Lúcia Montes adotou-me e foi fundamental na conclusão do processo. Eu dispunha, então, de pouco mais de um ano para a qualificação, o trabalho de campo, a redação final e a defesa da dissertação. Por várias vezes achei que não iria conseguir. Foi ela quem me conduziu nessa etapa, com muita compe- tência e muito carinho. Gostaria de ressaltar também a participação atenciosa na pes- quisa dos professores da 14il Delegacia de Ensino do Estado. Sem essa colaboração, a pesquisa se tornaria impossível. Os amigos que me acompanharam de várias maneiras nesse processo, eu não cito. Seriam muitos e não vou correr o risco de esquecer algum. Eles se sabem meus amigos e, por isso mesmo, não fazem questüo de ver seus nomes aqui citados. Vou citar os meus anjos da guarda, que foram aquelas pessoas que ficaram cochichando no meu ouvido nos momentos difíceis dessa jornada: Ovídio c Elza, meus pais, Gui, meu filho, e Lúcia, minha terapeuta. O que um autor deve esperar do seu livro? É difícil responder. A Carmen Cinira, na apresentação de Tempo de Gênesis, dizia que esperava que o seu livro tivesse sabor doce. Eu me contentaria apenas que o meu tivesse sabor. 14 INTRODUÇÃO As coisas estão no mundo, só que eu preciso apren- der. Paulinho da Viola Este trabalho utiliza um referencial teórico próprio da Antropo- logia Social para analisar a prática de professores de Educação Física na rede pública de primeiro grau. Pretendemos com esse enfoque uma nova forma de olhar a atuação de professores de Educação Física e assim conseguir ·desvendar e compreender um pouco melhor sua prática. Isso porque a Antropologia Social, como veremos com deta- lhes no próximo capítulo, pauta-se pelo estudo do homem nas suas relações sociais, entendendo-o como construtor de significados para as suas ações no mundo. Se o homem é sempre um ser social, vinculado a redes de sociabilidade, com uma grande capacidade de agir simbolicamente, ele também o é na sua atividadc profissional. É assim que olhamos para os professores de Educação Física: como um 15
  • 12. grupo constituído por seres sociais, buscando e fazendo de sua atua- ção profissional cotidiana o sentido para suas vidas. A Antropologia Social pode nos auxiliar nessa empreitada na medida em que nos mostrar que os professores de Educação Física, como seres sociais que são, imersos numa dinâmica cultural, possuem um universo de representações- sobre o mundo, o corpo, a atividade física, a profissão que exercem, a escola etc. - que define e orienta a atividade profissional na área. Em outros termos, devemos conside- rar a sua ação como ligada a esse conjunto de representações e não como um dado isolado. O que os professores fazem é importante e significativo, mas também o é a forma como eles justificam, explicam e procuram sentido naquilo que fazem. É válido ressaltar que não pretendemos, ao lançar mão de recursos da Antropologia, perder de vista nosso objeto principal de investigação: a atuação de professores de Educação Física nas esco- las de primeiro grau. Utilizarémos o chamado "olhar antropológico" para colocar em foco a atuação dos professores nas escolas, não em termos exclusivamente fisiológicos, pedagógicos, sociológicos ou psicológicos, mas num aspecto relacional que engloba todos eles, já que na sua prática cotidiana os professores constroem significados sobre essas áreas. Esta pesquisa considerará a experiência concreta ele professo- res de Educação Física da rede pública, resgatando-a e respeitando-a, já que é elas mais profícuas. Não pretendemos culpá-los por não agirem de uma determinada maneira, mas compreender sua prática, na sua amplitude e nos seus limites. A consideração da experiência de professores de Educação Física do ensino público ganha importância redobrada num momento em que o seu trabalho mostra-se desvalori- zado, tanto por parte dos órgãos governamentais responsáveis pela educação como, e principalmente, por parte dos próprios professores. Pretendemos demonstrar a riqueza de sua prática na construção de representações sobre o seu papel na sociedade. Segundo Macedo: 16 Cumpre não esquecer que a atividade humana envolve, s.empre, o esforço dos homens de construir e integrar significados que possam dar sentido a sua vida concreta c que esse esforço se traduz cm formas de conceber suas próprias inscrçôcs na realidade social. (19R5, p. 143) A pesquisa com professores de Educação Física não é novida- de. Muitas pesquisas, nos últimos anos, têm se debruçado sobre esse objeto de estudo, mas com finalidades e referenciais diferentes dos nossos. Estudou-se muito o currículo das faculdades que preparam esses professores, concluindo-se, de maneira geral, que as disciplinas técnico-esportivas são predominantes, levando esses profissionais a uma falta de embasamento teórico que possa conduzir a uma transfor- mação da sua prática. Várias pesquisas constataram a ênfase curricu- lar de disciplinas da área biológica e o número insignificante de disciplinas da área de humanas (Carmo 1982; Gallardo 1988). Algu- mas pesquisas investigaram o nível de consciência política dos pro- fessores, concluindo que sua prática reproduz valores vigentes da sociedade capitalista (Coutinho 1988; Ferreira 1984). Um outro gru- po de pesquisas investigou os determinantes históricos que influen- ciaram a prática de Educação Física ao longo dos anos no Brasil (Betti 1991; Castellani Filho 1988; Soares 1994). Outras pesquisas procuraram, ao analisar as competências didáticas necessárias ao professor de Educação Física, traçar o seu perfil ideal (Faria 1985; Santos 1984). Algumas pesquisas analisaram diretamente o trabalho dos professores (Cavallaro 1990; Moreira 1990; Pires 1990). Outras, ainda, preocuparam-se com os procedimentos de avaliação adotados pelos professores de Educação Física (Figueiredo 1988). Entretanto, poucas investigações em Educação Física olharam para os professores como agentes sociais e para sua prática como determinada culturalmente. Sua prática não é mecanicamente in- fluenciada pelo currículo da faculdade, embora consideremos a mu- dança deste como importante. É condição necessária, mas não suficiente. Da mesma forma que um aumento salarial substancial pode não garantir, por si só, uma prática docente conseqüente. Por- que, como elementos sociais que são, esses professores traduzem, em sua prática docente, determinados valores segundo a forma como foram educados, como foram preparados profissionalmente, segundo a escola em que trabalham etc. É óbvio que a formação profissional é 17
  • 13. r significativa nesse processo de tradução e filtragem de valores. Mas a história de vida desses professores também é, fato não considerado em outros trabalhos. Que tipo de crianças foram? Como brincavam? De que modo eram como alunos de Educação Física no primeiro grau? Quando se decidiram pela carreira? Qual a reação dos pais em relação a essa escolha? Como se sentem como professores? São questões também determinantes na forma como esses profissionais concebem sua prática docente, trabalhando com e através do corpo de seus alunos, colocando sobre ele a competência que lhes deu sua formaçào específica. Ao olhar para um grupo de professores de Educaçào Física, propusemo-nos a ver neles, na inten!çào entre açüo- o que fazem- c representaÇto- como justificam o que fazem-, a síntese de toda uma experiência. Porque os professores de Educaçüo Física são ata- res sociais, que trabalham num determinado ccnúrio- escola, bairro, cidade etc. -, utilizando determinados conteúdos e seguindo deter- minadas regras, crenças, valores, certezas etc. Tudo isso possui raízes na própria dinfunica da viela social. Süo essas ligações entre a prática cotidiana dos professores e as questões sociais mais amplas que serão mostradas neste trabalho. A nossa intenção é desvendar, no plano simbólico da cultura, a lógica que rege a atuação de professores de Educaçüo Física da rede pública de primeiro grau. No capítulo seguinte faremos uma incursão pela Antropologia, buscando traçar um rápido histórico dessa disciplina e mostrando alguns dos seus pressupostos metodológicos que dão suporte à nossa análise do trabalho de professores de Educação Física. Apesar do risco de esse capítulo tornar-se monótono e desinteressante, conside- ramos importante essa discussão a fim de que o leitor compreenda o "olhar antropológico" utilizado na nossa análise posterior. Em seguida mostraremos que o corpo humano é construído culturalmente, e que a tendência em pensá-lo como exclusivamente biológico revela uma determinada concepção sobre natureza humana. Na verdade, a Antropologia estruturou-se como disciplina a partir da oposição entre natureza e cultura. Ora, essa oposição está presente no corpo humano, que é, ao mesmo tempo, natural e social, possuindo 18 um componente inato e outro adquirido. Aliás, o próprio termo "Edu- cação Física":_ na for~a coAmo. foi concebido e utilizado ao longo dos anos, pressupoe uma mfluenc1a cultural sobre um físico biológico. Ainda nesse capítulo, destacaremos os estudos de Marcel Mauss que vislumbrou, já em 1935, a análise do corpo como determinad~ culturalmente, permitindo-nos abordar a prática corporal como um "fato social total", para usar um termo por ele criado. Esse referencial iniciado por Mauss permitiu-nos analisar a Educação Física e 0 trabalho dos seus profissionais sob uma perspectiva diferente da que tem sido utilizada até hoje. .. É essa,análise que está apresentada nos dois capítulos subse- quentes. Sera apresentada a pesquisa de campo propriamente dita, d~sde a escolha das escolas na Delegacia de Ensino, o contato com as d~reções das unidades e com os professores, até a análise das entre- VJstas._Nesse momento, a partir da interação entre a ação e a repre- ~entaçao, ou, em outros termos, entre o que os professores fazem e a forma como justificam o que fazem, será possível reconstruir a lógica que ordena sua atuação profissional. , . E, final:nente, na seção reservada às conclusões, a partir da a~a!Js~ das ~çoe~ e das representações dos professores, será possível d1scutu. as Implicações pedagógicas da Educação Física na escola atual, VIslumbrando uma prática que tenha por referencial 0 caráter cultural, não só do corpo com o qual trabalha, mas dos conteúdos que dese~v~l~e. Uma E~ucaç~o Física que, emprestando da Antropologia ? pnncipiO da altendade , permita considerar que todos os alunos, m~e_rendentemente de suas diferenças, são iguais no direito à sua pratica. I. A ~ntropologia nos ensina a considc~ar as diferenças entre os vários grupos humanos não como desigualdades, mas como características específicas de cada grupo. Assim, fazer Antropologia ex1ge, de algu.ma for~a, ~~locar-se n? lugar do outro, procurando compreender sua dinâmica cultural própna. O pnnc1p10 da altcndadc implica a consideração c o respeito às diferenças humanas. 19
  • 14. ANTROPOLOGIA: UM DESLOCAMENTO DO OLHAR (...) aquilo que os seres !tu- manos têm em comum é sua capacidade para se diferen- ciar uns dos outros(...). François Laplantine Laplantine (1988) afirma que a Antropologia, em particular a Antropologia Social, propõe-se a estudar tudo o que constitui uma sociedade -seus modos de produção económica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, suas criações artísticas. Entretanto, a Antropologia consiste menos no levantamento sistemático desses aspectos do que em estudar a manei- ra particular como estão relacionados entre si e por meio dos quais aparece a especificidade de uma sociedade. 21
  • 15. Historicamente, a Antropologia constituiu-se como disciplina es- pecífica durante o século XIX, embora seja possível considerar o seu início há mais tempo, na medida em que sempre houve alguém interes- sado na reflexão e no estudo de outros povos e outros costumes. Até o final do século XIX, a pesquisa antropológica possuía um caráter evolucionista, concordando com o paradigma científico em voga, que, ao considerar todos os homens como integrantes da mesma espécie animal, procurava descobrir a origem da espécie, para justifi- car suas diferenças a partir de ritmos desiguais de desenvolvimento. Os antropólogos da época nada mais faziam do que coletar informa- ções e materiais dos vários povos do mundo, quase sempre trazidos por missionários, viajantes ou mercadores. As interpretações eram feitas à distância dos vários agrupamentos humanos, a partir do pressuposto de que o homem, ao longo da sua evolução, passou por vários estágios, desde o nível mais primitivo até o mais civilizado; alguns concluindo todo esse desenvolvimento, outros interrompendo- o em estágios anteriores. Em 1877, Morgan classificou os homens em três estágios básicos de desenvolvimento: selvageria, barbárie e civi- lização. Nessa visão etnocêntrica, os povos considerados primitivos nada mais eram do que os não-europeus da América, da Ásia e da África, que, por condições ambientais ou históricas, ainda não tinham atingido o estado de civilizaçüo característico da sociedade européia do século XIX. A diferença era pensada como inferioridade (Morgan 1946). Se, por um lado, a Antropologia evolucionista estimulava o preconceito racial e justificava a prática colonialista, por outro lado -e esse foi o seu mérito-, ela permitiu o reconhecimento de uma mesma humanidade para todos os homens. Todos os seres encontra- dos nos mais distantes locais, por mais diferentes e estranhos que fossem, faziam parte da humanidade, ou, no dizer de Morgan, da família humana. No início do século XX, com Franz Boas e, principalmente, com Brunislaw Malinowski, a Antropologia passou por uma revolu- ção conceituai e metodológica. O trabalho do antropólogo, até então elaborado a partir do material co!etado por pessoas sem treino profis- 22 sional, foi substituído pela pesquisa feita no campo. O pressuposto era o de que só seria poss.ível entender a dinâmica de uma cultura se houvesse uma forte interação do pesquisador com o seu objeto de estudo. O antropólogo, para a realização de sua pesquisa, teria que viver com os nativos, falar a sua língua, enfim, buscar o sentido e a função de qualquer costume no contexto do grupo. Ao trabalho de coleta de dados foi incorporada a reflexão, já que cada sociedade era considerada como uma entidade autô1~oma, em que cada detalhe observado possuía um sentido. Antes de Boas e Malinowski, acredi- tava-se que os dados estavam nas sociedades, podendo ser coletados por qualquer viajante. Agora, o pesquisador buscava compreender a sociedade, relacionar os fatos entre si, estudar os mínimos detalhes, decifrar os fenômenos sociais da perspectiva dos próprios membros da sociedade. Já se percebe aqui o respeito ao princípio da alteridade, uma das premissas da ciência antropológica atual. Essa nova forma de fazer Antropologia exerceu forte influência nos pesquisadores da área durante as décadas seguintes, fazendo-se presente até os dias de hoje. A crítica ao evolucionismo deu lugar a novos referenciais teóricos, a partir dos quais passou-se a considerar os homens como diferentes entre si, mas não superiores ou inferiores. No surgimento dessa nova concepção de homem, dois fatores podem ser considerados: a crítica crescente que a própria Antropologia pas- sou a fazer contra sua postura etnocêntrica e colonialista, e a redução do seu campo de estudo devido ao intenso processo de descoloniza- ção. Tem-se como somatória, nos dias de hoje, uma Antropologia cujo objeto de pesquisa não está mais ligado a um espaço geográfico, cultural ou histórico particular. Permitiu-se, assim, uma ampliação do seu campo de atuação (Kuper 1978). Dessa perspectiva, é possível desmitificar a idéia de "estudo do que nos é estranho", ainda reinante no senso comum, que considera a Antropologia a ciência que estuda tribos longínquas e exóticas. Como define Laplantine (1988), a Antropologia nada mais é do que um certo olhar, um certo enfoque, que consiste em estudar o homem inteiro e em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas. Ou, dito de outro modo, trata-se de estudar o homem em todas as suas práticas e os seus costumes. 23
  • 16. Assim, a Antropologia pode estudar também a nossa sociedade, não apenas a partir de um conjunto de aspectos exteriores e materiais, mas como provida de sentido e significação. O termo cunhado para este estudo é "Antropologia das Sociedades Complexas", que permite o estudo de qualquer grupo contemporâneo, tais como operários, militantes de um partido político, homossexuais, grupos religiosos ou, ainda, professores de Educação Física. Brandão, discutindo o objeto de estudo da Antropologia atualmente, afirma: A mulher, a criança, o bandido, o capelão de roça, o profeta urbano de um novo surto religioso, os grupos tradicionais ou renovadora- mente minoritários, ou então este ator surpreendente que é o homem ._ comum em seus dias de cotidiano, eis os sujeitos cuja vida ou cujo modo peculiar de participação na vida de todos nós tem suscitado velhas e novas perguntas à Antropologia. (1987, pp. 47-48) O conhecimento antropológico da nossa cultura passa, inevita- velmente, pelo conhecimento das outras culturas, reconhecendo que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única. Entretanto, esse conhecimento não se dá objetivando apenas a com- paração com a nossa para percebermos quão diferentes elas são. Esse conhecimento é realizado a fim de se compreender o sentido de determinada manifestação cultural numa dada sociedade e, a partir daí, relacionar com certos aspectos da nossa própria sociedade. Por- que, apesar das diferenças entre as várias sociedades, existem seme- lhanças entre os seres humanos, das quais a mais interessante é a capacidade de se diferenciarem uns dos outros, de se expressarem das mais variadas formas, sem perderem a condição de seres humanos. O antropólogo, a partir de observações em outras sociedades, vai notan- do certas diferenças em relação à sua própria sociedade. Esse estra- nhamento em relação a determinados hábitos e comportamentos o faz olhar criticamente para características até então tidas como naturais em sua sociedade. É justamente essa variabilidade cultural que torna a humanidade plural e faz com que os homens, apesar de pertencerem todos à mesma espécie, se expressem por meio de especificidades culturais (Laplantine 1988). 24 Um texto de Miner (1973), intitulado "Ritos corporais entre os nacirema", ilustra bem essa questão do estranhamento da nossa cul- tura, quando supõe um antropólogo observando uma cultura exótica, que nada mais é do que a cultura americana1 • É justamente esse movimento de olhar para o outro e olhar para si mesmo através do outro que constitui a especificidade do chamado "olhar antropológico". Segundo Laplantine: A abordagem antropológica provoca, assim, uma verdadeira revolu- ção epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a idéia de que existe um "centro do mundo", c, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutação de si mesmo. (19RR, pp. 22-23) Uma das idéias básicas que justificam lançar um "olhar antro- pológico" também sobre grupos contemporâneos é uma perspectiva metodológica associada ao conceito de "fato social total", desenvol- vido por Marcel Mauss no início deste século. A noção de "fato social total" implica a compreensão de que em qualquer realização do homem podem ser encontradas as dimensões sociológica, psicológica e fisiológica. Essa tríplice abordagem só é possível de ser alcançada porque essas dimensões constituem uma unidade, quando encarnadas na experiência de qualquer indivíduo membro de determinada socie- dade (Lévi-Strauss 1974). A partir desse conceito criado por Mauss, a Antropologia passou a priorizar, na sua forma de olhar o homem, os seus comportamentos e a sua atuação específica nos grupos, em vez de trabalhar com enfoques considerados mais abstratos, como socie- dades, idéias ou regras sociais. Como explica Mauss: "(...) o dado é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio dessa ou daquela ilha, e não a prece, ou o direito em si" (1974, v. 2, p. 181). Durkheim, influenciador da obra ele Mauss, já propunha desde 1894, quando da publicação de seu livro As regras do método socio- lógico, o tratamento dos fatos sociais como "coisas", que só poderiam !. Leia-se "nacircrna" ele rorrna invertida. 25
  • 17. ser explicados quando relacionados a outros fatos sociais. Dessa forma, ele definia um método sociológico para a análise dos fenôme- nos sociais e a Sociologia conquistava sua autonomia ao constituir um objeto próprio de estudo (Durkheim 1960). Porém, enquanto Durkheim recusava-se a explicar os fenômenos sociais por meio de estados de consciência individuais, Mauss tentaria posteriormente, durante boa parte de sua obra, estabelecer as conexões entre essas duas dimensões em si, e destas com a dimensão fisiológica. Embora concordando com Durkheim que o fato social era irredutível a uma explicação em nível individual, Mauss acreditava, no entanto, que o fato social só poderia ser completamente compreendido se observado em sua incorporação numa experiência individual. Em sua aula inau- gural na cátedra de História das Religiões de Povos Não-civilizados, em 1902, Mauss, além de esclarecer que não existem povos "não-ci- vilizados" mas civilizações diferentes, antecipava já um importante conceito que nortearia toda a sua obra e, posteriormente, exerceria uma influência decisiva sobre Lévi-Strauss: o caráter inconsciente dos costumes. Afirmava ele que o etnógrafo deveria buscar os fatos profundos, quase inconscientes, que existem na tradição coletiva. Deixava ele claro, desde essa época, que os costumes de um povo estavam encarnados em cada indivíduo membro desse povo e só por meio da sua unidade, tal como incorporada na experiência individual, é que poderiam ser compreendidos (Mauss 1979). Apesar elo caráter diferencial da proposta de Mauss em relação a Durkheim, a contribuição de ambos foi decisiva para uma estrutu- ração da Antropologia como saber científico, já que foi a partir daí que o aspecto social no estudo do homem passou a ter autonomia. Os costumes c os hábitos ele um povo passaram a ser estudados como fatos s.oci~is independentes de uma explicação histórica, como no evolucwm~mo ele poucos anos antes, ou de uma explicação geográfi- ca, q:1e fazia da Antropologia o estudo de povos fisicamente distantes, ou ~Inda de uma explicação psicológica, que tratava um fenômeno socwl como conseqüência de um conjunte ele estados afetivos ou motivacionais individuais. A partir dessa nova perspectiva, tornou-se possível analisar não só as sociedades ditas primitivas, mas também compreender o co·m- 26 portamento de indivíduos e grupos na sociedade contemporânea. O pressuposto, tanto em um como no outro caso, é o de que a experiên- cia individual ou grupal é uma expressão sintética da cultura em que o indivíduo ou o grupo vive, cabendo ao pesquisador o mapeamento e a reconstrução da l~gica que ordena seus comportamentos. Como não existem comportamentos naturais, o pesquisador deve tentar decifrar, nos v~lores e nas atitudes de indivíduos ou grupos, a expres- são de uma construção social que só se compreende quando referida a aspectos globais da sociedade. Como afirma Durham (1977), a noção de cultura parte do estabelecimento de uma unidade fundamen- tal entre ação e representação, unidade esta que está dada em todo comportamento social, cabendo ao trabalho de pesquisa proceder no nível da investigação do comportamento real de grupos concre- tos. Pensando dessa forma, é possível realizar uma pesquisa antro- pológica a partir de qua_Iquer comportamento que um determinado grupo possa expressar. E possível também pensar, como fez Mauss, no conjunto de gestos corporais desenvolvidos pelo homem ao longo de sua história como um profícuo objeto de estudo das sociedades. A característica principal ela pesquisa antropológica é o reco- nhecimento do lugar e do papel ocupados pelo observador. Quando os pesquisa~ores trabalhavam com povos exóticos ele regiões longín- quas, o distanciamento sujeito/objeto era um dado de fato, devido até mesmo à distância geográfica entre o observador e o observado. Além disso, a pesquisa antropológica possuía, como já afirmado, um caráter etno~ê~trico, que facilitava a crença ele que o papel do pesquisador consistia em ser uma "testemunha objetiva" de culturas diferentes. Com a consideração da reflexividade na construção do objeto da Antropologia, olhar o outro acabou se transformando numa forma de olhar a si ~esmo. Por isso, a pesquisa antropológica sempre implica o reconhecimento do papel e do lugar da subjetividade do observador. Laplantine (1988) coloca que o pesquisador não é uma testemunha objetiva observando ?bjetos, mas um sujeito observando outros sujei- tos. E alerta para o nsco, se essa subjetividade não for considerada de uma cientificidade desumana ou de um humanismo não-científico: Toda e qualquer:observação que o pesquisador possa fazer ao analisar 27
  • 18. um grupo específico será mediada pelo seu referencial cultural, ex- presso na sua subjetividade. O que lhe agradará, o que lhe causará aversão, o que lhe parecerá justo, o que lhe parecerá desumano, enfim, o que se destacará para ele será em função de sua condição de sujeito participante de uma cultura e será intermediado pela sua subjetividade. Por isso DaMatta (1978) pode afirmar que não seria exagero dizer que a Antropologia é um mecanismo dos mais impor- tantes para deslocar nossa própria subjetividade. Cardoso (1986), falando do lugar da subjetividade do observa- dor, afirma que não se trata de um descontrole que invade e perturba o campo da reflexão racional, mas de um fator intrínseco à relação entre duas pessoas, o pesquisador e seu informante. Laplantine desta- ca a utilidade do reconhecimento da subjetividade do pesquisador: A perturbação que o etnólogo impõe através de sua presença àquilo que observa e que perturba a ele próprio, longe de ser considerada como um obstáculo que seria conveniente neutralizar, é uma fonte infinitamente fecunda de conhecimento. Incluir-se não apenas so- cialmente mas subjetivamente faz parte do objeto científico que procuramos construir, bem como do modo de conhecimento caracte- rístico da profissão de etnólogo. A análise, não apenas das reações dos outros à presença deste, mas também de suas reações às reações dos outros, é o próprio instrumento capaz de fornecer à nossa disci- plina vantagens científicas consideráveis, desde que se saiba apro- veitá-lo. (1988, pp. 172-173) Procurando contribuir para o aprofundamento da discussão da metodologia antropológica, DaMatta (1978) afirma que o trabalho do pesquisador resume-se numa dupla tarefa de afastamento e aproxima- ção, que consiste, por um lado, em transformar o exótico em familiar e, por outro, o familiar em exótico, embora ressalv~,,que o exótico nunca pode passar a ser familiar, e o familiar nuné'a chega a ser exótico. Na primeira tarefa, o pesquisador deve buscar decifrar o que se lhe apresenta como incompreensível. Na segunda, deve procurar estranhar aquilo que à primeira vista é conhecido, a fim de manter um distanciamento necessário à pesquisa. · 28 O antropólogo Gilberto Velho discute com propriedade o cará- ter de familiaridade de que pode estar imbuído o objeto de pesquisa. Buscando perceber alguns mecanismos que sustentavam a lógica das relações sociais internas e externas, o estilo de vida e a visão de mundo de um grupo de moradores de um prédio de classe média carioca, o autor pesquisou o seu próprio local de moradia. Segundo ele, o objeto de pesquisa pode ser familiar e não ser, necessariamente, conhecido. Afirma ainda que o familiar pode ser (...) objeto relevante de investigação para uma Antropologia preocu- pada em perceber a mudança social não apenas ao nível das grandes transformações históricas, mas como resultado acumulado e progres- sivo de decisões e interações cotidianas. (1978, p. 46) Geertz (1989) também coloca o papel interpretativo do pesqui- sador em relação aos dados, fazendo o que ele chamou de "descrição densa". Segundo ele, qualquer análise cultural vai ser sempre uma leitura sobre o real, e de segunda mão, já que é uma reconstrução da realidade e não a realidade em si. No exemplo citado por ele, em que dois garotos piscam rapidamente o olho direito, fica explicitado o trabalho do antropólogo, que é o de dar conta dos significados sociais de determinado comportamento. O movimento em si é o mesmo; entretanto, o primeiro garoto está apresentando um tique nervoso e o segundo, uma piscadela conspiratória. Poder-se-ia ainda, seguindo o exemplo, pensar num terceiro garoto, que imita o tique nervoso. Numa quarta situação, poder-se-ia ter o imitador diante de um espe- lho, ensaiando o tique nervoso do primeiro garoto. E uma quinta possibilidade seria um outro garoto fingir a piscadela conspiratória do segundo. A "descrição densa", ao contrário de uma simples descrição, daria conta da "hierarquia estratificada de estruturas significantes" (1978, p. 17) de fatos sociais, muitas vezes, simples e, aparentemente, indiferenciadas. O movimento de piscar o olho implica, além do componente fisiológico, um componente simbólico, de caráter social, o que torna vários movimentos, anatomicamente muito semelhantes, passíveis de descrições diferentes. 29
  • 19. A Antropologia nos ensina a evitar qualquer tipo de preconcei- to, uma vez que todo comportamento humano, por possuir uma di- mensão pública, não pode ser julgado por meio de conceitos implacáveis como bom/mau ou certo/errado. O entendimento de qual- quer atitude humana deve ser buscado em referenciais culturais que dão sentido a essas atitudes. Como vimos, o chamado "olhar antropo- lógico" implica uma relação especular entre quem olha e quem é olhado. Olhar para o outro é, em alguma medida, olhar para si mesmo através do outro, porque a forma de olhar é também influenciada pela cultura. Essa contribuição da Antropologia, por si só, é útil para qual- quer área do conhecimento e também para a Educação Física, que não tem o hábito de considerar as diferenças existentes entre alunos e grupos de alunos de forma não-preconceituosa. Em relação a esse tema, voltaremos a tratar posteriormente. Nessas breves considerações sobre a Antropologia e seus pres- supostos metodológicos não tivemos por finalidade esgotar o assunto. Pretendemos unicamente esboçar o referencial a partir do qual estu- daremos o corpo como construção cultural e sede de signos sociais, estudo este que nos oferecerá subsídios para a posterior análise do trabalho de professores de Educação Física. 30 2 A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO CORPO HUMANO A natureza cultural do homem Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo. Taiguara Durante o século XIX, houve um extraordinário desenvolvi- mento científico, indo da Química à Geologia, passando pela Botâni- ca e pela Zoologia para chegar à Biologia, ao lado do desenvolvimento da Arqueologia, da Paleontologia e da Filologia. Esse desenvolvi- mento científico coincidiu com a estruturação da Antropologia como ciência, oferecendo a ela um referencial t.eórico que provinha das ciências naturais. Esse referencial deu bases teóricas ao pensamento evolucionista, que se interessava por compreender a história do gêne- ro humano, estudando o princípio do homem como espécie animal no reino da natureza. Por isso pode-se dizer que a noção fundante da Antropologia Social é a oposição entre natureza e cultura. Pensava-se 31
  • 20. que, ao encontrar a origem do homem, seria possível entender o seu desenvolvimento desigual e, assim, compreender as diferenças exis- tentes entre os vários tipos humanos. Para se chegar ao "homem original" seria preciso ir retirando a sua roupagem cultural até atingir um ser natural, puro de qualquer influência cultural, anterior ao desenvolvimento social. Segundo os pesquisadores da época, esse primeiro homem estaria no limite entre o máximo desenvolvimento biológico dos australopitecos e a atitude cultural primeira do homo sapiens. Em outros termos, o que se buscava era o homem biologica- mente pronto, sem as influências do meio ambiente e das dimensões socioculturais responsáveis pela diferenciação futura. Esse homem possuiria uma constituição biológica próxima da que temos hoje e estaria, ao longo da evolução, no ponto exato do salto qualitativo responsável pela transformação que culminou no homem. Essas premissas foram sendo questionadas nas décadas seguin- tes, dando bases para o desenvolvimento da Antropologia, no sentido de estabelecê-la como ciência social e não mais natural. Já neste século, com os avanços dos estudos arqueológicos,''foi possível refu- tar as idéias de linearidade e seqüenciação no desenvolvimento huma- no. Foram encontrados i~dícios de cultura datados de uma época anterior ao homo sapiens, o que contradizia a tese de uma maturação cerebral anterior ao início do desenvolvimento cultural (Leakey & Lewin 1980; Leakey 1981). Geertz (1989), retomando recentemente essa discussão clássica, afirma que, ao longo da evolução do homem, houve um período de superposição entre o desenvolvimento cerebral e o desenvolvimento sociocultural. De fato, um simples aumento do número de neurónios parece não garantir, por si só, uma atuação cerebral desenvolvida. O autor sustenta que a capacidade mental, durante sua evolução, foi permitindo certos comportamentos cultu- rais, como a utilização de ferramentas, o convívio social, o início da linguagem, que determinaram a evolução final do organismo humano. Dessa forma, a cultura, mais que conseqüência de um sistema nervoso estruturado, seria um ingrediente para o seu desenvolvimento. Hallowell (1974) tarilbém compartilha dessa concepção, ao deduzir a existência de uma fase protocultural na evolução hominí- dea. A evolução social dos primatas, o hábitat terrestre, a comunica- 32 ção já existente entre os primeiros hominídeos e a organização psico- lógica crescente alicerçaram as bases para o desenvolvimento cultu- ral posterior. Com essas considerações é possível questionar a noção de que existe uma dimensão puramente biológica na natureza do homem. Se houve um desenvolvimento interativo entre os componentes biológi- cos e socioculturais, um afetando o outro igualmente, não é possível separar esses dois aspectos. O cérebro humano é também cultural, já que desenvolvido, em grande parte, após o início da cultura e influen- ciado e estimulado por atitudes culturais. Outro fator que corrobora a tese da ausência de uma natureza humana essencialmente biológica é a compreensão de que o homem é um animal incompleto. A natureza humana é caracterizada justa- mente pela ausência de orientações intrínsecas, geneticamente pro- gramadas, na modelagem do comportamento do homem (Durham 1984). Conforme afirma Gehlen (1973), no homem atual só é possível encontrar resquícios de instintos. Segundo ele, é justamente esse processo de redução dos instintos que explica a plasticidade c a inventividade de condutas no homem. De fato, o homem, ao nascer, é biologicamente mais dependente do que grande parte dos mamífe- ros. Essa carência instintiva inicial, entretanto, permite que ele adqui- ra a bagagem necessária- em termos de conceitos, valores, crenças e comportamentos - para sua vida cm sociedade. !': Gccrtz quem afirma: ( ...)nós snmos animais incompletos c inac:1hados que nos complcla- mos c acabamos através ela cultura - não :1través li<l cultura cm geral, mas através de formas altamente particulares de CJJ!tma (...). (1989, p. 61) A espécie humana só chegou a se constituir como tal pela concorrência simultânea de fatores culturais e biológicos. Traçar uma linha divisória entre o que é natural, universal e constante no homem e o que é convencional, local e variável é, na opinião ele Gecrtz, difícil. Diz ele que"(...) traçar tal linha é falsificar a situação humana, 33
  • 21. ou pelo menos interpretá-la mal (...)" (1989, p. 48). P~rque to~o e qualquer homem que se poss~ consider~r ser_á ~empre mfluencrado pelos costumes de lugares particulares, nao exrstrndo um homem sem cultura. Afirmando que nüo existe natureza humana independente da cultura, Geertz hipotetiza homens sem cultura, afirmando que eles l ...) scri<llll lllllllStruusidadcs incontrolúvcis, cum muito poucos ins- tintos litcis. iliL'IlOS scntilll<.:lltus rc·cuntlecívcis c nenhum intclc:cto. (I t)1)<J, ]L h I) Na busca da comprecns~tu do homem, ()eertz afirma que ele nüo pode ser definido nem pelas suas habilidades .ina~as,. nem pel_o seu comportamento real, mas pelo elo entre esses dors nivers, pela torma em que o primeiro é transformado no segundo por meio ele atuações específicas em situaçües culturais particulares. Nesse sentido, o autor refuta o que ele clenumina "concepçüo estratigrúfica" da naturez_a do homem, segundo a qual os fatores biológico, psicológico, socwl e cultural manteriam entre si uma relaçào de superposiçüo no compor- tamento humano, podendo, por isso, cada um deles ser isolado para fins de estudo. Essa concepçüo pretende descobrir universais huma- nos constantes cm todas as partes elo mundo. O processo dessa busca é ir retirando as camadas elo homem, "descascando-o" dos valores culturais, sociais, psicológicos, até chegar aos fundamentos biológi- cus - anatômicos, fisiológicos, neurológicos -- ela vida humana, rcivindicanuu autonomia para cada uma dessas dimensões. Em opo- si<Jto a essa conccp<.;~to cstratigrúfica, o autor propõe como própria da Antropologia uma concep<.;~to sintética, na qual os fatores biológicos, psicológicos, sociolCJgicos c culturais possam ser tratados comova- riúveis dentro ele sistemas unit{trios ele análise. Nüo se pretende aqui a busca de características humanas universais abstraias, mas a análise dessas variúvcis nas situações culturais particulares. Isso é o que constituiria a característica universal ela natureza humana, pois, como afirma Gecrtz: 34 (...)pode ser que nas particularidades culturais dos povos- nas suas esquisitices- sejam encontradas algumas das revelações mais ins- trutivas sobre o que é ser genericamente humano. (1989, p. 55) É a perspectiva de cultura como unvnecanismo de controle, ou como sistemas organizados de símbolos significantes, que permite afirmar que o comportamento humano possui uma dimensüo pública e "que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade" (Geertz 1989, p. 57). Assim, a cultura torna-se necessária para a regulagem desse comportamento público do homem. É ela que clú o caráter de humanidade a essa espécie animal. · Não dirigido por padrões culturais(...) o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem senti- do c de explosôes emocionais, c sua expcr"iência não teria pratica- mente qualquer form::t. A cultura, a totalidade acumulada ele tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela- a principal base de sua especificidade. (Gecrtz 1989, p. 58) A partir dessas colocações, torna-se impossível pensar a natu- reza humana como exclusivamente biológica e desvinculada da cul- tura. Pode-se afirmar que a natureza do homem é ser um ser cultural, ao mesmo tempo, fruto e agente da cultura. Poder-se-ia dizer, como Rodrigues (1986), que a estrutura biológica do homem lhe permite ver, ouvir, cheirar, sentir, pensar, e a cultura lhe forneceria o rosto de suas visões, os cheiros agradáveis ou desagradáveis, os sentimentos alegres ou tristes, os conteúdos do pensamento. Poder-se-ia, igual- mente, afirmar que todos os seres humanos têm a capacidade biológi- ca de sentir dor, mas o limite a partir do qual o indivíduo reclamará e passará a gemer é extremamente variável de cultura para cultura. Entretanto, essas afirmações sào de pouca utilidade, porque, como diz Geertz (1989), traçar o limite entre o que é biológico e o que é cultural é muito difícil, impossível até, em grande parte dos casos. Além disso, o próprio conceito de natureza pode ser diferente de uma sociedade para outra, sendo ele próprio uma construção cultural, pois, como 35
  • 22. afirma Rodrigues, "(...) desde que construída socialmente, a idéia de Natureza é variável culturalmente" (1986, p. 21). É a partir da concepção de que o homem possui uma natureza cultural e de que ele se apresenta em situações sociais específicas que se chega à idéia de que o que caracteriza o ser humano é justamente a sua capacidade de singularização por meio da construção social de diferentes padrões culturais. Afirma Geertz: Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos indivi- duais sob a dircção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente crn termos dos quais damos forma, ordem, objctivo c di rcção às nossas vidas. ( 1989, p. 64) O corpo: sede de signos sociais Nessa linha de pensamento desenvolvida por Geertz, de que ser homem não é ser qualquer homem, mas uma espécie particular de homem, é possível discutir o corpo como uma construção cultural, já que cada sociedade se expressa diferentemente por meio de corpos diferentes. Todo homem, mesmo inconsciente desse processo, é por- tador de especificidades culturais no seu corpo. Tornar-se humano é tornar-se individual, individualidade esta que se concretiza no e por meio do corpo,"(...) o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais normal patrimônio que o homem possui" (Rodrigues 1986, p. 47). É o mesmo Rodrigues (1987) quem afirma que o homem não consegue apreender o mundo tal qual o mundo é em sua objetividade porque sua percepção está limitada à sua humanidade, que, por sua vez, está restrita à forma como cada sociedade "treinou" os órgãos dos sentidos dos seus indivíduos. Cada cultura pode enfatizar ou limitar um ou alguns sentidos. Ao se pensar o corpo, pode-se incorrer no erro de encará-lo como puramente biológico, um patrimônio universa~sobre o qual a cultura escreveria histórias diferentes. Afinal, homens de nacionali- dades diferentes apresentam semelhanças físicas. Entretanto, para 36 além das semelhanças ou diferenças físicas, existe um conjunto de significados que cada sociedade escreve nos corpos dos seus mem- bros ao longo do tempo, significados estes que definem o que é corpo de maneiras variadas. Sérgio (s.d.) afirma a corporeidade como o locus em que o homem transcende os determinismos biológicos e torna-se efetiva- mente humano: Assente na corporeidade, ou no físico c nn hiol<'>gico, r:lc mostra-se c<Jpaz de substituir o instintual por umil cultura que lhe determina a relação com os outros. explica a sua acção, orienta o seu destino. f,;: assim que ele legitimamente se afirma corno homem. (p. !43) Lévi-Strauss (1976), buscando um critério para a diferenciação entre o que, na tradição do século XVIII, ficou conhecido como "estado de natureza", em oposição a um "estado de sociedade", afirma que onde se manifestar uma regra nas relações humanas, pode-se reconhecer a cultura; onde se observar uma característica constante, universal nos homens, pode-se encontrar a natureza. Por meio da aplicação desse duplo critério, Lévi-Strauss analisou o tabu do incesto, fenômeno que se encontra no limiar entre natureza e cultura, por existir em todas as sociedades e se constituir numa proibição, embora com conteúdos dife- rentes. Segundo o autor, "a proibição do incesto possui ao mesmo tempo a universalidade das tendências e dos instintos e o caráter coercitivo das leis e instituições" (1976, p. 49). Ora, o tabu do incesto constitui precisamente a imposição de uma regra, uma ordenação da cultura sobre a natureza, ou sobre um corpo que poderia ser pensado como puramente "natural", "instinti- vo". O controle do uso do corpo aparece, portanto, como necessário ao surgimento da cultura. A cultura nada mais faz do que ordenar o universo por meio da organização de regras sobre a natureza. O controle da sexualidade coloca o corpo como sede da ordenação primeira da cultura sobre a natureza. O seu controle torna-se necessá- rio para o surgimento do universo da cultura como condição de humanidade. Por outro lado, esse controle se dá também por meio da 37
  • 23. construção da própria noção de corpo e de natureza, construção esta que varia de uma sociedade para outra e de uma época para outra (Silva 1991). Marcel Mauss (1Y74) tem o mérito de, pela primeira vez, ter incluído o corpo c o que ele chamou ele "técnicas corporais" no ümbito dos estudos antrupulúgicos. Conforme será discutido com detalhes na próxima seção, Mauss considerou os gestos e os movi- mentos corporais como técnicas criadas pela cultura, passíveis de transmissão através das gerações e imbuídas de significados especí- ficos. Afirmou também que uma determinada forma de uso do corpo pode influenciar a própria estrutura fisiológica elos indivíduos. Um dos exemplos que ele citou foi a posiçào de cócoras, adotada em vúrios países, que causa uma nova conformação muscular nos mem- bros inferiores. Hertz (1980), num interessante artigo, discute a preferência da utilizaçüo da müo direita em relação à esquerda. O autor reconhece a existência de uma explicação biológica para o fato, segundo a qual a prcdominfmcia da mào direita seria conseqüência de um maior desen- volvimento do hemisfério cerebral esquerdo, que governa os múscu- los do lado direito, é o centro ela linguagem articulada e é responsável pelos movimentos voluntúrios. Mas acredita que tal explicaçào nào clú conta da preferência quase absoluta pela mão direita, tendo, inclu- sive, surgido posteriormente a uma série de fatores culturais que, ao longo do tempo, foram acentuando essa predominância. Um dos excmplus citadus 0 a associa~.;üo que as palavras "direita" c "esquer- da" pussuem, cm vúrias sociedades, com valores e expressões consi- clcraclos positivos no primciru caso e negativos no segundo. O autor deixa a qu<.:stão ~;e uma base neurológica constante teria determinado os húbitos ou se <.:ss<.: uso, durante muitos anos, teria influenciado o próprio desenvolvimento cerebral. Segundo Rodrigues (I tJ~ó), o corpo humano, como qualquer outra realidade do mundo, é socialmente concebido e a análise de sua representaçüo social oferece uma via de acesso à estrutura de uma sociedade particular. Cada sociedade elege um certo número de atri- 38 butos que configuram o que e como o homem deve ser, tanto do ponto de vista intelectual ou moral quanto do ponto de vista físico. No corpo estüo inscritos todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca. Mesmo antes de a criança andar ou falar, ela já traz no corpo alguns compor- tamentos sociais, como o sorrir para determinadas brincadeiras, a forma de dormir, a necessidade de um certo tempo de sono, a postura no colo. Para reforçar esse ponto de vista, Kofes (19~5) afirma que o corpo é expressão da cultura, portanto cada cultura vai se expressar por meio de diferentes corpos, porque se expressa diferentemente como cultura. DaMatta chega a afirmar que "(...) tudo indica que existem tantos ,corpos quanto há sociedades" (1987, p. 76). Os exemplos sobre essas diferenças culturais expressas por meio do corpo são esclarecedores. Pode-se adivinhar, com bom índice de acerto, a origem de determinado indivíduo observando-se a distân- cia sua gesticulaçào, sua forma de andar, sua postura corporal. Rodri- gues (1987) descreve com bom humor as situações constrangedoras pelas quais passou quando, num país estrangeiro, manifestava com- portamentos corporais que nüo condiziam com a regularidade local, como o tipo de cumprimento, o número de beijos e outros gestos. Observando-se, por exemplo, um festival de danças folclóricas, vêem-se com clareza as diferenças entre sociedades por meio dos movimentos corporais ritmados, a formação do grupo no palco, a postura dos dançarinos, a rigidez ou a soltura de movimentos. Assis- tindo-se a uma copa do mundo de futebol, também pode-se diferen- ciar com nitidez uma seleçüo de outra, a despeito de todas jogarem segundo as mesmas regras c apesar de ·os esquemas táticos atuais tentarem nivelar todas as selcções privilegiando o preparo físico dos jogadores. É notória, por exemplo, a diferença entre a expressão corporal da seleção brasileira de futebol e a da seleção alemà. Fala-se com propriedade que elas possuem estilos diferentes. O homem, por meio do seu corpo, vai assimilando e se apro- priando dos valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração (a palavra é significativa). Diz-se correntemente que 39
  • 24. um indivíduo incorpora algum novo comportamento ao conjunto de seus atas, ou uma nova palavra ao seu vocabulário ou, ainda, um novo conhecimento ao seu repertório cognitivo. Mais do que um aprendi- zado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões. Em outros termos, o homem aprende a cultura por meio do seu corpo. Podemos pensar no fato de os meninos brasileiros, como se diz correntemente, "nascerem sabendo jogar futebol". De forma contrá- ria, ainda segundo o senso comum, podemos dizer que as meninas brasileiras, além de não nascerem sabendo, nunca conseguem apren- der a jogar futebol. Ora, o primeiro brinquedo que o menino ganha é uma bola. Como se não bastasse o estímulo do material, há todo um reforço social incentivando-o aos primeiros chutes, ao contrário da menina, que, afora não ser estimulada, é proibida de brincar com bola utilizando os pés. As aptidões motoras também fazem parte do pro- cesso de transmissão cultural. Assimilar o emprego de um utensílio significa, portanto, para o homem, assimilar as operações motrizes encarnadas nesse utensílio. Este processo é, ao mesmo tempo, o da formação, dentro de si próprio, de aptidões novas e superiores, daquilo a que se chama as "funções psicomotrizes", "humanizando" o seu domínio motor. (Léontiev 1977, p. 56) O estudo das expressões corporais características de cada cul- tura não pode se reduzir a simples levantamento e classificação de movimentos e de técnicas corporais, mesmo que se faça posterior- mente uma comparação desses dados com os de outras culturas. Esses dados corporais constituem-se no que Rodrigues (1986) chamou de conteúdos denotativos. Para ele, 6 mais importante são os conteúdos conotativos, que contêm princípios estruturadores da visão de mundo de uma sociedade e das atitu,des dos homens em relação a seus corpos e aos alheios. Mais do que s'aber que os corpos se expressam diferen- temente porque representam culturas diferentes, é necessário enten- der quais os princípios, valores e normas que levam os corpos a se manifestar de determinada maneira. Enfim, é preciso compreender os 40 símbolos culturais que estão representados no corpo. Na comparação entre a mão direita e a esquerda, Hertz, citado anteriormente, não está falando apenas das características motoras diferenciais, mas sim da polaridade religiosa entre sagrado e profano que, como simbologia, reforça uma pequena diferenciação orgânica, fazendo com que uma parte do corpo seja mais valorizada do que outra. Pode-se afirmar, portanto, que o corpo humano não é um dado puramente biológico sobre o qual a cultura impinge especificidades. O corpo é fruto da interação natureza/cultura. Conceber o corpo como meramente biológico é pensá-lo - explícita ou implicitamente - como natural e, conseqüentemente, entender a natureza do homem como anterior ou pré-requisito da cultura. Santos (1990) critica os que propõem a volta a um suposto corpo natural não atingido pela cultura. Segundo ele, não se pode esquecer da natureza necessaria- mente social do corpo, sendo possível somente pensar em novos usos do corpo, já que a cultura é passível de reinvenções e recriações. Rodrigues afirma que"(...) nenhuma prática se realiza sobre o corpo, sem que tenha, a suportá-la, um sentido genérico ou específico" (1986, p. 64). É justamente esse sentido específico que incide sobre toda e qualquer atividade corporal o que impede de pensar o corpo como um dado biológico. O que define corpo é o seu significado, o fato de ele ser produto da cultura, ser construído diferentemente por cada sociedade, e não as suas semelhanças biológicas universais. Rodrigues (1986) afirma que existem certos comportamentos presentes em todos os seres humanos, independentemente da forma- ção específica que cada um tenha tido. Geertz (1989) também afirma que alguns aspectos humanos são inteiramente controlados intrinse- camente, como, por exemplo, a respiração. Poder-se-ia afirmar, como o faz Vargas (1990), que todos os seres humanos possuem uma constituição biológica semelhante, composta por cerca de 50 trilhões de células, um esqueleto com cerca de 12 quilos e pouco mais de 200 ossos, um coração que bate numa velocidade de 60 a 80 vezes por minuto e que num século de trabalho constante terá batido quatro bilhões de vezes e bombeado 600 mil toneladas de sangue. 41
  • 25. Entretanto, náo são essas semelhanças que definem o corpo humano, mas a forma como os conceitos e as definições a seu respeito são construídos culturalmente. Saber que existem 50 trilhões de células no corpo pode náo ter sentido em muitas sociedades. O saber sobre o corpo para um indígena, por exemplo, implica outros conhe- cimentos, diferentes dos nossos. Confrontando a concepção científica sobre corpo da nossa sociedade, Kofes (1985) cita uma pesquisa sobre a tribo Sarno, na qual o corpo é concebido como dividido em nove componentes: o sangue, a carne, a sombra, o duplo etc; cada componente do corpo é transmitido à medida que o feto vai se constituindo. Portanto, o que importa é a forma como cada um desses corpos é construído, cuidado, educado, concebido, valorizado, enfim, representado. Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimen- tos corporais representa valores e princípios culturais. Conseqüente- mente, atuar nu corpo implica aluar sobre a sociedade na qual esse corpo estú inserido. Todas as prúticas institucionais que envolvem o corpo humano - c a Educaç~to Física faz parte delas -, sejam elas educativas, recreativas, reabilitadoras ou expressivas, devem ser pensa- elas nesse contexto, a fim de que não se conceba sua realizaçüo de forma reclucionista, mas se considere o homem como sujeito da vida social. Marcel Mauss e a noção de técnica corporal Marcel Mauss nasceu na França em 1872 e morreu no mesmo país cm 1950. Seu mestre foi o tio, o célebre Émile Durkheim, com quem trabalhou até a morte deste, ocorrida em 1917. Entre as inúmeras obras que deixou, uma elas mais famosas foi o Ensaio sobre a dádiva', escrita em 1925, na qual criou e desenvolveu o conceito de "fato social total", que se constituiria na sua grande contribuição às ciências sociais (Mauss 1974, v. 2). Daí decorre o reconhecimento de pensadores franceses ulteriores elo porte ele Lévi-Strauss e MerleauPonty, que consideraram o pensamento ele Marcel Mauss atual e suscitador de importantes desen- volvimentos posteriores, como serú discutido adiante. I. Na iradu<J!t> poriugu~sa dcs1a obra, cnconlra·sc o lcrll!o ··uo111" cm vc;~ de "'d:ídiva". 42 A tentativa de estabelecer conexões e limites entre os campos sociológico, psicológico e fisiológico constitui-se em um de seus maiores esforços e pode ser presenciada em várias obras de Marcel Mauss. No seu texto "A expressão obrigatória de sentimentos" esse fato é bem ilustrado: Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimen- tos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não-espon- tâneas e da mais perfeita obrigação. (Mauss) 979, p. 147) Numa comunicação apresentada em 1924 a psicólogos, intitu- lada "Relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia", Mauss discute de forma interessante as relações entre a psicologia e a sociologia, tentando delimitar o campo de cada uma. Nesse traba- lho, Mauss estabelece que tanto a sociologia como a psicologia humana fazem parte da antropologia, que seria"...o total das ciências que consideram o homem como ser vivo, consciente e sociável" (Mauss 1974, v. 1, p. 181). Deixa claro, entretanto, que apenas a sociologia trabalha exclusivamente com fatos humanos, já que a psicologia, como a fisiologia, não se limitam ao estudo do homem. Mesmo considerando a parte da psicologia que trata dos fenômenos humanos chamada por Mauss de "Psicologia Humana"- e mesmo quando esta fosse pe!lsada em termos de psicologia coletiva, tendo por campo de investigação as representações coletivas nas consciên- cias individuai's~ assim mesmo ela se diferenciaria da sociologia porque, além dessas representações coletivas, existem outras coisas de que a psicologia não daria conta. Na mesma obra, Mauss escreve: (...) na França há algo além da idéia de pátria: há um solo, há o seu capital, há a sua adaptação; há sobretudo os franceses, suas divisões, sua história. Atrás do espírito de grupo, numa só expressão, está o grupo que merece ser estudado(...). (1974, v. 1, p. 183) Segundo Mauss, a sociologia se diferencia da psicologia por três razões. Em primeiro lugar, pelos fenômenos chamados morfoló- gicos, que constituiriam as especificidades de cada povo ou de cada região. Seriam as variações entre homens e mulheres, entre adultos e 43
  • 26. crianças, relações entre os sexos, entre as idades, características de natalidade, mortalidade, enfim, as pequenas variações morfológicas de cada povo em cada região. Uma segunda razão diferencial entre a psicologia e a sociologia seria o aspecto estatístico dessa última. Seria, por exemplo, a moeda utilizada, as medidas econômicas, o índice de criminalidade, enfim medidas estatísticas que estariam contribuindo para um entendimento mais profundo de uma sociedade específica. E, finalmente, a terceira razão seria o aspecto histórico da tradição de determinada sociedade. Cada fato social, mesmo parecen- do novo, faz parte de uma história e deve ser analisado em conexão com fatos ocorridos anteriormente. Para a competência da psicologia, Mauss deixaria ainda uma enorme gama de possibilidades referentes ao aspecto da consciência individual. Mesmo quando o homem empreende trabalhos coletivos, tomado por uma representação ou por uma emoção coletiva, o indivíduo possui uma consciência própria. Esse ponto de vista é relevante na compreensão da obra de Mauss, pois dá ao indivíduo uma importância particular. O homem não é somente fruto e representante de uma socie- dade, agindo como uma máquina comandada por suas instituições. Ele é também um ser particular dotado de uma consciência que permite uma mediação entre o nível social e o nível pessoal (Mauss 1974, v. 1). É nesse sentido que Mauss afirma nesse mesmo trabalho a importância de se considerar a totalidade do ser humano. Segundo ele, o homem nunca é encontrado dividido em faculdades. No fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se mistura. Os fatos que nos interessam não são fatos especiais de tal ou qual parte da mentalida- de; são fatos de uma ordem muito complexa, a mais complexa que se possa imaginar. São aqueles para os quais proponho a denominação de fenômenos de totalidade, em que não apenas o grupo toma parte, como ainda, pelo grupo, todas as personalidades, todos os indivíduos na sua integridade moral, social, mental c, sobretudo, corporal ou material. (1974, v. 1, p. 198) É impressionante a atualidade dessa citação- escrita em 1924 -para a Educação Física, que ainda tende a considerar o corpo como primordialmente biológico. No discurso da área, o corpo que se 44 movimenta não é o mesmo corpo que representa aspectos da socieda- de, como se ele não fosse, ao mesmo tempo e indissociavelmente, biológico e cultural. É exatamente nesse ponto que o trabalho de Marcel Mauss intitulado "As técnicas corporais" é esclarecedor. Pro- ferido como palestra em 1935, esse trabalho é até hoje útil para a compreensão cultural do corpo humano, compreensão esta que na Educação Física brasileira ainda é nascente. Nesse trabalho, Mauss coloca o corpo humano, os movimentos corporais, cada pequeno gesto como tradutores de elementos de uma dada sociedade ou cultura. Equipara assim o corpo humano a outros temas da Antropologia, como a religião, as trocas econômicas, os sistemas jurídicos, os rituais de passagem, que sempre mereceram maiores estudos dos etnógrafos. Apesar desse destaque dado por Mauss ao corpo humano e às técnicas corporais, os estudos a esse respeito ainda são insuficientes. Claude Lévi-Strauss lamentou que ainda ninguém tivesse feito o que havia sido iniciado por Mauss, ou seja, um inventário de todos os usos que os homens fazem de seus corpos em todos os cantos do mundo e nos vários momentos históri- cos. Para ele, esse trabalho teria importância particular numa época em que os homens, devido ao desenvolvimento tecnológico, tendem a se utilizar menos dos meios corporais, correndo o risco de abando- nar num passado inexplorado certas práticas cujo conhecimento c análise poderiam ser úteis para a comprecnsúo da sociedade atual. Esse trabalho contribuiria também para urna contraposição aos preconceitos raciais, mostrando que a variação existente entre os homens cm v<irias localidades não é devida a diferenças biológicas hierárquicas inscritas nos seus corpos, mas a diferenças culturais expressas por meio deles (Lévi-Strauss 1974). Em outras palavras, não existe corpo melhor ou pior; existem corpos que se expressam diferentemente, de acordo com a história de cada povo em cada região, de acordo com a utilização que cada povo foi fazendo dos seus corpos ao longo da história. Em seu trabalho, Mauss define técnica corporal como sendo as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos. A partir dessa definição, cita uma série de exemplos, com a finalidade de mostrar a diversidade de hábitos motores existentes na humanidade. Cita a aprendizagem de 45
  • 27. nataçüo pela qual ele passou quando criança e a ~iferencia ~a é~oca em que escreve seu trabalho. Anteriormente, ensmava-se p.nmeuo a criança a nadar para depois ensiná-la a mergu~har. Po.ste~I~rn?ente, passou-se a ensinar primeiro ~ mer?ulho, a fun_ d~ familianzar_ a criança com a água, para depois ensmar-lhe as tec?;ca~ de na~aça.o propriamente ditas. Mauss também fala da sua expenencw na Pnme~­ ra Guerra Mundial quando, servindo na Inglaterra, observou a substi- tuição de oito mil pás francesas, porque elas exigiam um tipo de movimento manual que os soldados ingleses não dominavam e não conseguiam aprender em pouco tempo. Observou também a dificul- dade da tropa inglesa em marchar com marcação rítmica francesa. Relata ainda diferenças no andar, no correr, na posição das mãos ao sentar à mesa em vários povos. Descrevendo o andar da mulher Maori (Nova Zelândia), Mauss afirma que talvez não exista uma maneira "natural" de andar, já que cada sociedade vai andar de uma maneira particular. O próprio uso de sapatos transforma a posição dos pés no andar, fato que pode ser comprovado quando se anda descalço (Mauss 1974, v. 2). Entretanto, mais importante do que constatar, relacionar e clas- sificar as diferentes manifestações corporais é entender o significado desses componentes num contexto social. O primeiro passo, obvia- mente, é partir das diferenças corporais entre povos ou entre épocas de um mesmo povo, mas o passo seguinte proposto por Mauss é entender os movimentos corporais como parte de um todo social. Em seu trabalho intitulado "Fenômenos gerais da vida intra-social", Mauss propõe que os comportamentos corporais sejam compreendidos como parte de uma tradiçüo social, da mesma forma que os rituais religio- sos, as obras de arte, as construções, a linguagem (Mauss 1979). Como toda tradiçüo, esses gestos sfto transmitidos de uma geração para outra, dos pais para us filhos, enfim, de pessoas para pessoas, num processo de educaçüo2 • /s pessoas, principalmente as crianças, imitam aios que obtiveram êxito c que foram bem-sucedidos cm pessoas que detêm prestígio c autoridade no grupu social. -- 2. Embora nf1o considerada pl~lu autor, podcn1os citar corno dcterminantl! nesse processo c.k transmissãu cultural a quc:-;táo das classes sociais. 46 É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado, autorizado c provado, cm relação ao indivíduo imitador, que se encontra todo o elemento social. (Mauss 1974, v. 2, p. 215) Na pessoa que aprende o gesto tradicional e no seu ato imita- dor, podem-se encontrar, respectivamente, os componentes psicológi- co e fisiológico. Vê-se assim o fato social manifesto como um todo: um elemento tradicional valorizado numa sociedade sendo transmiti- do a um indivíduo dotado de uma unidade psíquica por meio da utilização de seu componente fisiológico. O termo "técnica corporal", criado por Mauss, não significa apenas o emprego técnico do corpo para realizar determinadas funçõ- es. Apesar de o autor ter escrito que o corpo é o principal e mais natural instrumento do ser humano, seu mais natural objeto técnico, pode-se depreender da sua obra que o sentido de técnica corporal é mais abrangente. Mauss, ao definir técnica como um ato que é ao mesmo tempo tradicional e eficaz e ao falar do corpo humano em termos de técnicas corporais, elevou-o ao nível de fato social, poden- do, portanto, ser pensado em termos de tradição a ser transmitida através de gerações (Mauss 1974, v. 2). Quando uma geração passa à outra geração a ciência de seus gestos e de seus atos manuais, há tanta autoridade c tradição social quanto quando a transmissão se faz pela linguagem. (Mauss 1979, p. 199) Mas o que é mais interessante nesse enfoque é que ele permite o estudo do corpo e elo movimento humanos como expressões simbó- licas, já que toda prática social tem uma tradição que é passada às gerações por meio de símbolos. A tradição oral, a mais conhecida e muitas vezes mais valorizada, é apenas uma dentre as tradições simbólicas. Qualquer técnica corporal pode ser transmitida por meio do recurso oral. Pode ser contada, descrita, relatada. Mas pode tam- bém ser transmitida pelo movimento em si, como expressfto simbóli- ca de valores aceitos na sociedade. Quem transmite acredita e pratica aquele gesto. Quem recebe a transmissão aceita, aprende e passa a imitar aquele movimento. Enfim, é. um gesto eficaz. É justamente 47
  • 28. devido à eficácia das técnicas corporais que se pode, segundo Mauss, conceber que os símbolos do andar, da postura, das técnicas esporti- vas são do mesmo gênero que os símbolos religiosos, rituais, morais etc. É por meio dos símbolos que a tradição vai sendo transmitida às gerações seguintes. É oportuno alertar, como fez Mauss, que o termo tradição pode ser entendido precipitadamente como inércia, resistência ao esforço, imutabilidade e conformismo social. De fato, as sociedades tribais apresentam uma adaptabilidade tão grande aos seus meios interno e externo que não sentem necessidade de modificar sua rotina. Sua coesão grupal é extremamente forte. Já nas sociedades contemporâ- neas, não se dá o mesmo, embora esteja sempre presente o que Mauss chamou de "memória coletiva". É precisamente o conteúdo dessa memória- em algumas sociedades maior, em outras, menor- que se pode chamar de tradição. É o que vai resistindo aos avanços tecnológicos e ao desenvolvimento científico, mas é também o resul- tado desses avanços que vai se incorporando às tradições sociais, num processo dinâmico. Neste capítulo discutimos a influência determinante da cultura ao longo da evolução humana e do papel que ela realiza no compor- tamento humano atual. Falamos que a natureza do homem não está restrita somente ao nível biológico, mas é eminentemente cultural. A partir disso pudemos discutir o corpo humano como construído cul- turalmente. O mesmo patrimônio biológico humano universal confi- gura-se de diferentes maneiras em virtude dos vários usos e dos diversos significados que cada grupo determinado vai conferindo ao corpo ao longo do tempo. Em seguida, avançamos ·um pouco mais em relação à contribuição de Marcel Mauss, já que foi ele quem primeiro sistematizou a pesquisa sobre o corpo como um dado de cultura. As idéias discutidas neste capítulo são decisivas para a análise que faremos do trabalho de professores de Educação Física, já que o nosso interesse é justamente o de compreender de que forma as noções sobre essa área, que foram construídas e incorporadas no 48 imaginário social dos profissionais, são reconstruídas e reatualizadas no seu cotidiano. Torna-se pertinente, portanto, pensar no trabalho empreendido pela Educação Física, principalmente naquele segmento dela que atua nas escolas de primeiro grau. Urge saber a concepção de corpo que os profissionais da área possuem. Em outros termos, é necessário descobrir qual é a apropriação de corpo que a Educação Física escolar realiza por intermédio de seus profissionais, analisan- do-se os valores, conceitos, conteúdos e métodos com os quais ela trabalha e transmite aos alunos. Porque os alunos, antes, inde- pendentemente da escola e durante toda a vida, terão acesso a uma educação corporal, já que as técnicas corporais, como visto, integran- do uma gama variada de tradições, são imbuídas de significados. Ora, a Educação Física escolar propõe-se a atuar formalmente sobre um processo de educação corporal tradicional. O homem pode viver sem a Educação Física, porém a suposição é que se ele passar por esse processo formal, ele será mais apto do que outro que não o fizer. A questão é saber o que- e como- a sociedade está expressando por meio do processo de educação corporal formal. Nesse sentido, anali- sar as representações que os professores possuem, tanto a respeito do corpo como a respeito de sua prática profissional, apresenta-se como importante tarefa quando se objetivam a reciclagem desses profissionais e a conseqüente qualificação do seu trabalho. 49
  • 29. 3 O TRABALHO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA Os caminhos da pesquisa A análise cultural é intrin- secamente incompleta e, o que é pi01; quanto mais pro- funda, menos completa. Clifford Geertz A partir do referencial teórico antropológico explicitado anterior- mente, começamos a delimitar nosso campo de investigação, escolhen- do o trabalho com professores de primeiro grau da rede pública estadual. A opção pela rede pública deveu-se ao fato de os professores serem instados a seguir uma diretriz programática única. Mesmo considerando as diferenças entre escolas e entre professores, buscou-se um elemento de uniformidade no grupo, uma vez que a diretriz curricular, pelo menos 51
  • 30. na sua origem, é a mesma:; o que poderia não ocorrer se fossem reunidos professores de escolas públicas e privadas. Pensamos, inicialmente, em entrevistar 20 professores, sendo dez do sexo masculino e dez do sexo feminino. Acreditávamos, como de fato ocorreu, que com 20 entrevistas seria possível obter uma certa repetição das respostas, e que um número superior apenas viria a confirmar uma saturação dos dados, que nada acrescentaria a uma pesquisa qualitativa como a que propúnhamos realizar. Quando deci- dimos por dez homens e dez mulheres, imaginávamos que os profes- sores ministravam aulas para os meninos e as professoras, para as meninas, e que haveria diferenças entre a Educação Física de um e de outro grupo. Como encontramos professores e professoras, aleatoria- mente, com turmas masculinas, femininas ou mistas, percebemos não serem significativas as eventuais preferências dos professores em termos de sexo dos alunos. A partir da nossa observação verificamos que a tendência parece ser a de que as aulas de Educação Física façam parte do horário regular da escola, fato que faz com que as turmas sejam mistas, a despeito da preferência dos professores. Pensamos também em trabalhar com professores da mesma Delegacia de Ensino, a fim de se garantir uma certa referência comum ao grupo, já que os procedimentos sugeridos pela Secretaria de Edu- cação chegariam às suas escolas de forma semelhante. A escolha recaiu sobre a 14ª Delegacia de Ensino, na qual se congregam escolas do município de São Paulo .que, em princípio, deveriam atender a clientelas distintas. As escolas dos bairros de Moema, Indianópolis e Brooklin, mais centrais, definem sua clientela como sendo "de classe média", enquanto que boa parte das escolas do Butantã, mais perifé- ricas, define sua clientela como sendo "de classe baixa". Pensamos em trabalhar com metade dos professores que atendesse crianças de classe baixa e metade que atendesse crianças de classe média: as semelhanças e diferenças eventualme.nte encontradas nos dois grupos poderiam se mostrar significativas. De maneira geral, esperávamos encontrar professores mais antigos, com uma formação mais tradicio- nal, em escolas mais centrais, com clientela "de classe média"; e professores mais jovens, com formação mais crítica, em escolas periféricas, com clientela "de classe baixa". Entretanto, em algumas 52 escolas consideradas de clientela "de classe média", os professores 1firmavam que a proximidade de favelas tornava sua clientela hete- rogênea. Por outro lado, em escolas consideradas de clientela "de classe baixa", os professores afirmavam que o agravamento da crise econômica fez com que vários pais transferissem seus filhos de escolas particulares para escolas da rede pública. Um professor de uma escola considerada bem localizada definiu sua clientela como sendo "de classe baixa" devido ao fato de a escola, há muito tempo, ter tido curso noturno e isso ter deixado a fama de escola ruim, fato que levava os alunos de classe média, moradores do bairro, para outras escolas mais distantes. Antes de aprofundarmos nossa análise adentrando a realidade cotidiana dessas diferentes escolas, de sua clientela e de seus profes- sores, é preciso relatar os critérios para a escolha das escolas e o modo como se deu nosso contato com elas. Dada a estrutura institucional da rede pública de ensino, pareceu-nos necessário iniciar os contatos pela Delegacia de Ensino, a fim de que sua delegada autorizasse o desenvolvimento ela pesquisa. Esse procedimento visou facilitar nos- sa entrada nas escolas e "quebrar" possíveis resistências por parte das diretoras em relação à pesquisa, fato que se confirmou posteriormente em algumas escolas. O cantata com a 14ª Delegacia de Ensino foi fácil e rápido. Conversamos diretamente com a delegada, que se mostrou receptiva e "permitiu" o trabalho, apesar de não ter discutido com detalhes o projeto a ser desenvolvido. O passo seguinte foi a escolha de 12 escolas (sendo duas excedentes, para possíveis substi- tuições), de um total de 46 abrangidas pela delegacia. Tínhamos afirmado que desejávamos seis escolas de classe baixa e seis de classe média. A própria delegada e outros funcionários da delegacia, solíci- tos e.. interessados em colaborar, passaram a manifestar opiniões particulares a respeito de cada escola, tais como: "esta é uma boa escola", "não vai nessa, não", "esta é melhor". As opiniões, embora manifestando critérios particulares de difícil compreensão para nós, pareciam estar relacionadas com a organização administrativo-buro- crática das escolas e a boa vontade das diretoras. Para evitar que essas opiniões definissem a escolha das escolas, recorremos ao planejamento anual que cada escola entrega à Delega- 53
  • 31. cia de Ensino, no qual elas caracterizam sua clientela. Fomos condu- zidos, então, para uma sala repleta de prateleiras, com pastas de todas as escolas, públicas e privadas, sobre as quais a delegacia possui uma função de supervisão. Havia uma funcionária responsável pelo local que, apesar da grande quantidade de material, localizou rapidamente os planejamentos do ano anterior das escolas públicas. As pastas e a quantidade imensa de papéis, organizados em prateleiras, pareceram-nos pouco capazes de dar uma idéia mais precisa da dinâmica escolar. Ficamos imaginando se essas pastas eram consultadas regularmente e confrontadas com o dia-a-dia de cada escola. Os planejamentos, embora analisados rapidamente, con- firmaram essa suposição. Apresentavam-se, na maioria dos casos, como um conjunto de dados administrativos ou de intenções educa- cionais. A impressão era a ele que o planejamento era uma formalida- de exigida pela delegacia, que pouco mudava de ano para ano. A caracterização da clientela cm termos de classes média e baixa tam- bém mostrava-se vaga. Alguns planejamentos somente definiam a clientela, sem qualquer justificativa. Em outros planejamentos havia uma descrição do bairro, do tipo de comércio e elo tipo de moradia. Combinando alguns desses critérios, escolhemos as 12 escolas, cuja clientela podia ser definida como sendo, cm seis casos, "ele classe baixa" e, cm outros seis, "de classe média". A chegada nas escolas Com a relação das 12 escolas, partimos para a visita e o contato com as cliretoras. Ao visitar as unidades, começamos a decifrar as opiniõ~s.dos funcionários da delegacià em relação àquelas em que, na sua opm1ão, nós deveríamos ir e àquelas cm que não deveríamos ir. Começamos a entender um pouco melhor as categorias "classe mé- dia" e "classe baixa" definidas pelas escolas em seus planejamentos. Mesmo sem ~onsiderar a sua localização, já era possível saber s.e a escola era co_nsiderada "de classe média" ou "baixa" apenas pelo t1po de construçao e pela sua organização física. As escolas mais centrais, de maneira geral, são mais antigas, e os prédios são mais 54 amplos. Quase todas possuem um hall de entrada que dá para a secretaria, o que obriga a quem entra na escola a realizar esse trajeto. Em duas dessas escolas, a separação do setor administrativo (secreta- ria, direção) ·do pedagógico (salas de aula, quadra, pátio) era tão grande que não se via criança. Elas entravam pelo portão de trás e a parte da frente da escola se assemelhava a um hospital, tamanho era o silêncio. Numa dessas escolas, tendo ido por duas vezes, não vimos uma criança sequer. Já nas escolas consideradas "de classe baixa", à exceção de apenas uma, a própria localização da secretaria, à primeira vista, já denunciava a .diferença, revelando também o tamanho da escola. Eram construções mais recentes, algumas das quais consistiam em simples galpões, e o espaço era visivelmente menor. Não havia sepa- ração entre a secretaria ou a sala ele professores e as salas de aula. A separação entre o setor administrativo e o setor pedagógico, percebi- da nas escolas consideradas "de classe média", aqui não ocorria. Começamos a entender então que o conceito de "classe média" relativo às escolas estava relacionado a uma maior organização física, administrativa e burocrática do seu e'spaço e de suas atividades, enquanto o conceito de "classe baixa" estava relacionado a uma menor organização nesses aspectos, ou a uma maior improvisação em termos de espaço. Começamos a enteqcler também os conselhos dos funcionários da delegacia. As escolas "boas" eram aquelas que pos- suíam uma organização maior. Concluímos que, das 12 escolas relacionadas por nós, apenas uma, considerada como atendendo população de classe baixa, possuía uma organização típica de escola "ele classe média". Posteriormente, ao voltar às escolas e ao conversar com os professores, percc.:bemos que há uma heterogeneidade na clientela de várias escolas. Existem favelas em regiões centrais; existe uma 'classe média que vem tirando seus filhos das escolas particulares. A classificação que os planeja- mentos anuais fazem parece se referir a uma época em que era possível relacionar as escolas centrais com população de classe média e as escolas periféricas com clientela de classe baixa. Apesar da heterogeneidade observada, parece existir uma tradição que cristali- 55
  • 32. zou a idéia de que as escolas centrais são mais organizadas e as escolas periféricas, menos. Ainda em relação ao aspecto físico das escolas, é interessante ressaltar que, embora todas as escolas visitadas possuam pelo menos uma quadra de esportes em que se realizam as aulas de Educação Física, não há lugar definido para sua localização. Observamos qua- dras que ficam logo após o portão que separa a escola da rua, fato que nos propiciou um contato primeiro com o professor, antes mesmo de nos dirigirmos à secretaria. Em outras escolas, a quadra não era visível, localizando-se nos fundos do prédio. Em algumas, ela se misturava com o pátio externo, fato que causava a reclamação dos professores de Educação Física, pois as crianças, em horário de entrada, saída ou recreio, atrapalhavam suas aulas. Outros professo- res relataram que a quadra ficava ao lado das janelas das salas de aula, o que causava reclamação por parte das professoras dessas salas em relação ao barulho provindo das aulas de Educação Física. Alguns professores também lembrarqm que a quadra ficava próxima ao esta- cionamento, o que gerava problemas quando a bola utilizada nas aulas atingia os carros dos outros professores. Outro fato observado é que a maioria das escolas visitadas possui somente uma quadra e, às vezes, até cinco professores de Educação Física. Quando ocorrem aulas simultâneas, os professores se dividem na quadra ou um deles utiliza os pátios existentes, locais em que há crianças em recreio, ou sem aula, ou esperando para entrar em sala. Nos dois casos, as aulas são prejudicadas. O contato com as escolas não foi difícil. Nenhuma escola recusou-se a participar da pesquisa, talvez pelo documento da Dele- gacia de Ensino nos apresentando. Somente em uma escola houve alguma dificuldade para a realização das entrevistas. As funcionárias da secretaria condicionavam nosso contato com os professores à permissão da diretora, que não foi encontrada facilmente. Nesse meio tempo, houve a tentativa de uma assistente em nos fazer desistir daquela escola, alegando que os professores trabalhai"am em muitos lugares e não tinham tempo, e que seria melhor fazermos esse traba- lho em outras escolas. · 56 Em algumas unidades foi necessário conversar com a diretora; em outras, um funcionário da secretaria autorizava de imediato o contato com os professores de Educação Física. Nenhuma diretora interessou-se em discutir o projeto, ou mesmo querer saber detalhes sobre a pesquisa. Somente uma escola pediu cópia do projeto, atitude definida por um funcionário corno "de praxe". A preocupação das escolas era somente que a pesquisa não atrapalhasse a rotina de aulas dos professores de Educação Física. O contato com os professores Após a autorização das direções ou das secretarias, iniciamos o contato com os professores. Em algumas escolas, nas quais a quadra era visível, foi possível contatar diretamente o professor e, depois, solicitar autorização da direção para as entrevistas. Nessas escolas, foi possível presenciar o professor em aula. Quase todos trabalhavam com esporte. Os alunos jogavam e o professor orientava a respeito das técnicas ou das regras. Um professor, visivelmente incomodado com a nossa presença, justificou que, por ser início de ano, ele permitia que os poucos alunos presentes jogassem, a fim de que o esporte servisse como "chamariz" para os outros alunos que ainda estavam faltando às aulas. Quando não foi possível encontrar os professores na primeira visita, o horário das aulas era fornecido pela secretaria e o contato, realizado posteriormente. Só em uma escola esse procedimento foi confuso. A escola não definia o horário de Educação Física e os professores não tinham dia nem hora para ir à escola. Comparecemos por duas vezes no horário de reunião de todos os professores, mas não encontramos a equipe de Educação Física, composta por três pessoas. Soubemos, posteriormente, que dois professores dessa escola esta- vam se exonerando. Acabamos não realizando nenhuma entrevista nessa escola. De maneira geral, os professores colaboraram de imediato com o trabalho, dispondo-se a ser entrevistados. Alguns perguntaram so- 57
  • 33. bre os objetivos da pesquisa, porém sem muita profundidade. Outros mostraram-se interessados nos seus resultados. Foram contatados 28 professores. Apenas quatro se negaram a participar da pesquisa: dois alegando "falta de tempo" e dois alegan- do "timidez" ou "vergonha". Três professores demonstraram interes- se, porém não houve compatibilidade de horários e acabaram não participando. Um professor mostrou-se, inicialmente, contrário à participaçüo. Afirmou que os pesquisadores vüo à escola, usam os professores c depois os criticam cm suas análises. Foi o único professor que condicionou sua participação à leitura do projeto. Entretanto, antes ela entrevista, ele se exonerou e sua participaçüo ficou inviabilizada. Apesar ela concordância das escolas e da maioria dos professo- res, a rcalizaçfto elas entrevistas nem sempre foi úgil, devido üs impossibilidades dos professores. Quase todos realizam outras ativi- clades, além elo trabalho naquelas escolas. Alguns citaram trabalho em até três escolas, incluindo o período noturno. Vúrios professores complementam seus salúrios com atividades ligadas ao esporte, como arbitragem de jogos em finais de semana ou à noite. Alguns realizam atividades profissionais em outros setores. Um professor é dono de um bar; outra é proprietária de uma empresa de festas infantis. A identificação do professor quando de nossa chegada à escola é também digna ele anúlise. O professor de Educação Física apresen- ta-se clifcrcnlcmente dos outros professores, tanto em termos de aparência física como cm termos ele horário, comportamentos e locais em que fica. /lém do seu local de trabalho ser diferente elo de outros professores, sua identificaçüo também se dá de imediato pela vesti- menta, caracterizada pelu uso ele agasalhos esportivos c de tênis. Seu comportamento, tk maneira geral, é marcado por extroversüo, simpa- tia e jeito falante. Observamus u relacionamento mais próximo elos professores de EducaÇto l.'ísica com os alunos, em comparaçüo com professores de uulras disciplinas. r:ssa proximidade pôde ser notada pelo tipo ele cumprimento, pelas cxprcssôes faciais que os alunos manifestavam quando encontravam os professores ele Eclucaçüo Físi- ca e também pelo carinho c pela atitude paternal que estes demons- 58 travam em relação aos alunos. A identificação do professor de Educa- ção Física na escola também se dá pelo seu horário, que nem sempre acompanha os períodos escolares. Em relação aos locais em que esses professores ficam quando não estão dando aulas na quadra, percebe- mos também sua diferenciação em relação aos seus colegas de outras disciplinas. Encontramos vários entrevistados na sala de material esportivo e não na sala de professores, onde é comum permanecerem aqueles que estão em aula vaga ou antes do início das aulas. Entretan- to, apesar das diferenças entre o professor de Educação Física e os de outras disciplinas, o relacionamento entre eles, sempre que foi possí- vel observar, pareceu ser bom. Ouvindo os professores ' . Foram entrevistados 20 professores, sendo dez do sexo mascu- lino e dez do sexo feminino, com idades variando entre 24 e 47 anos, formados em faculdades de Educação Física elo estado de São Paulo, nas décadas ele 1970 e 1980. A única exceção foi uma professora de 51 anos, formada na década de 1960, no Espírito Santo, aposentada e que voltou a dar aulas. A história de vida Os professores, no início de cada entrevista, foram solicitados a falar de sua infância e das atividades corporais que realizavam quando crianças. A intençüo com essa pergunta foi a de que os professores relatassem atividades infantis que se relacionassem não só com a escolha vocacional que eles viriam a realizar, mas com a própria prática profissional futura. Os professores falam, com entusiasmo, de brincadeiras e jogos em praças do interior, sítios, chácaras, quintais e na rua. Falam de uma época em que era possível brincar de forma livre. Enfim, falam de uma atividade natural. Quando se referem ao próprio corpo infan- til, falam de movimentos livres, sem técnica, do prazer de um corpo que brincava naturalmente. E se diferenciam das crianças que atual- 59
  • 34. mente brincam numa cidade como São Paulo, na qual, segundo eles, as atividades são dirigidas, os locais de lazer são escassos e a televi- são assume um papel nociv.o. Assim eles falam de sua infância: Foi bem rr.ovimentada, bem brincada. Brincava de esconde-esconde, pega-pega, barra-manteiga, taco, futebol, guerra de goiaba verde, polícia e ladrão, andava de bicicleta. Porque lá você morava no sítio, você caçava, nadava, você jogava pedra com a mão. E, de uma forma geral, você exercitava muito mais do que aqui. O trabalho corporal era muito maior do que aqui. Era bem natural. Naquele tempo não existia uma preocupação de você praticar alguma coisa. Você praticava naturalmente. Então eu aprendi a andar de bicicleta, patim, corria, brincava com os meus colegas. Eu tinha uma vida bastante ativa. Cheguei a morar em chácara, andava muito. Automaticamente, eu praticava esporte sem saber. Ciclismo, natação, eu corria. A gente mantinha aquela vidinha bem ativa. E aqui a gente vê hoje que a atividade física foi totalmente diferente da minha. É muito mais restrito o espaço deles. Relatando sua trajetória de vida, os professores afirmam, na seqüência, que quando ingressam na vida escolar, o gosto pela Edu- cação Física é imediato. Parece haver uma relação direta entre o tipo de vida que levavam fora da escola e as atividades que passaram fazer nas aulas de Educação Física. Freqüentam as aulas, particip<. de equipes representativas das escolas e consideram os professores t: Educação Física como verdadeiros ídolos e até como influenciadore: de sua escolha profissional futura. 60 A aula que cu mais gostava era Educação Física. Eu fui muito motivado· por um professor ele Educação Física no primeiro ano de gin;ísio. Ele era um ótimo professor c cu achava bonito ele coordenando, ensinando. Ele fazia com que todos partici- passem. Ele era muito carismático. Eu tive uma professora bárbara! Até hoje, às vezes, eu ainda sonho com ela... aquele ídolo! Eu lembro até hoje da minha professora de Educação Física, que foi uma pessoa que me marcou muito. Era uma pessoa muito ativa, muito bonita. Então, ficou aquela imagem boa. Do gosto pelas brincadeiras de rua à participação nas aulas de Educação Física, o esporte surge, majoritariamente, como manifesta- ção "espontânea" dos professores, então adolescentes. Todos relatam uma aproximação com o esporte, quer como participantes de equipes do colégio ou da cidade, treinando e competindo, quer como pratican- tes do esporte informal, recreativo. Eu sempre gostei de esporte. Eu treinava futebol no time de garotos da cidade. Eu acabei entrando na equipe de natação da cidade. Nadei lá oito anos, competi em campeonato estadual, Jogos Abertos do lnterior. Eu sempre estive ligada ao esporte. Sempre gostei muito. Fiz natação desde os quatro anos. Aí parti para a ginástica olímpica a partir dos sete e fui até os 15 anos. Eu treinava em clubes, participando de campeona- tos. Aí já comecei a me interessar cm fazer Educação Física. Essas atividades corporais ela infância e da juventude, fora e dentro da escola, contribuíram decisivamente para a escolha ela Edu- cação Física como carreira profissional. A experiência que cu tive de movimento para poder decidir fazer uma faculdade de Educação Física foi simplesmente uma cducaç;1o ele brin- cadeira. Eu gostava muito ele brincadeira. de esporte. Nad:1 dirigido por nenhum especialista. O que cu mesmo inventava quando cu cr<~ criança. E quando cu fiz natação também, nada com profissional; no clube, sozinha, cu descobria movimento, cu adorava descobrir movimentos sozinha. Queria ter um aperfeiçoamento desses movimentos. O que eu mais me encontrei, olhando para o p<lssaclo, cu achava que cu me cncontr<Jva mais na Educação Física. Então eu optei cm fazer Educação Física, para continuar dentro elo mundo esportivo. 61
  • 35. Vários professores relatam que, devido a essa infância "natu- ral", não conseguiam visualizar um projeto de futuro em que estives- sem trabalhando dentro de uma sala, num escritório, ou lidando com papéis e documentos. Optaram, então, por uma profissão que pudesse ser exercida ao ar livre, que permitisse o contato com crianças e que desse uma sensação de liberdade. Se cu tivesse que fazer outra coisa, trabalhar na secretaria, essas coisas, cu não gostaria. Eu acho que cu não conseguiria ficar num escritório cercada durante scis horas, batendo à máquina. Durante o vestibular mesmo cu decidi que não ia mais fazer Enge- nharia c prcfcri optar por Educação Física, primeiro pela minha vontade de estar mais independente, ao ar livre e, assim, ter contato com as pessoas. Eu comecei a perceber que eu não gostava muito de ficar em salas fechadas, ou cm escritórios, ou em algum lugar assim. É interessante observar que alguns professores pensaram em ou.tras áreas, tais co.mo Medicina, Engenharia, Psicologia, Agrono- rma, mas que, avaliando sua vida anterior, decidiram-se por uma carreira na qual eles iriam trabalhar com o corpo, o movimento e o esporte, que eles sempre gostaram. h>i até d.: r.:pcntL·, purqu.: cu estava no segundo colegial. Eu estava quase dcciditla a faz<:r l'siculogia. Depois, num cstalo,'cu falei: "niio, acho que cu vuu fazer Educação Física, é mais gustoso". l:tr sempre gostei muito da panc m0dicJ. Enliiu cu fiquci entre l'vlctlicin~r <: Etluca<Jro l;ísica. /té achu quc cu ~cria uma boa m<!dica. E1~1 .EduL·açii:> Física cu acabei lllc r<:alizando purqu<: tem a parte.; mcdrc~J qu<: c predominante. Entüu, fiquei bem dentro da ;írca. Eu casei as duas, a parte tk l'vlt:dicina c a parte tiL: Educação Física. Alie-se também a isso o fato de a faculdade ele Educação Física ter u.m.a duração, na época, de três anos, enquanto a faculdade de Mec!Icma, por exemplo, exige seis anos, mais dois de residência. 62 Alguns professores citam a curta duração do curso também como fator considerado na escolha da carreira. Outros citam a dificuldade em se ingressar num curso de Medicina, ao contrário do curso de Educação Física, cujas faculdades proliferaram por todo o interior do Estado de São Paulo, a partir da década de 70. Eu não acreditei muito cm mim cm relação a prestar um vestibular em Medicina. Eu não queria arriscar c não queria perder o ano, ficar um ano parado. Não que Educação Física fosse fácil! Fuvest é igual para todo mundo! Alguns professores do sexo masculino citam também a resis- tência dos pais quando eles se decidiram pela Educação Física, o que indica uma visão negativa e inferior da área. Os pais gostariam que eles optassem por uma carreira tida como nobre, como Engenharia ou Medicina, e que desse retorno financeiro maior. Eu acho que todo pai quer ter um filho n{édico. Desde pequeno, quando eu tinha aula de Educação Física na escola, eu já pensava em fazer Educação Física, mas os meus pais eram um pouco contra. É interessante notar como essa faceta aparece somente nas entrevistas de professores do sexo masculino, o que permite afirmar que para a família, na experiência dos entrevistados, a escolha profis- sional do filho ·é muito mais relevante clli que a escolha profissional da filha. É interessante também destacar que alguns professores do sexo masculino, ao avaliarem hoje sua atuação profissional, utilizam termos como "atividade honrosa", "atividade útil", "atividade res- ponsável", como que valorizando a profissão contra o preconceito dos pais e que parece estar incorporado na representação que eles mesmos fazem da própria carreira. Na faculdade, esses alunos se identificam com o currículo, predominantemente técnico-esportivo. Não relatam dificuldades em 63
  • 36. acompanhar o curso, pois todos já praticavam esportes e já sabiam realizar as habilidades esportivas exigidas pelas disciplinas. Fiz um curso que eu tinha facilidade, porque tinha a parte prática. Eu tinha facilidade em tudo. Entretanto, apesar dessa identificação inicial, alguns professo- res criticam sua formação profissional, afirmando que ela só ensinou as técnicas esportivas e não os preparou para dai: aulas. Eles não reclamam da grande ênfase esportiva do currículo, mas da falta de aplicabilidade das técnicas esportivas numa situação escolar de rede pública, em que o espaço, os materiais disponíveis e as características do grupo exigem determinadas adaptações. Citam a falta de estágios, a presença de alguns docentes incompetentes e o excesso de conheci- mentos fisiológicos ou anatômicos. A minha faculdade foi designada para treinadores: técnicas, seqüên- cias pedagógicas, o arremesso ele peso. Eu acho que não foram preparados professores ele Educação Física, por exemplo, para trabalhar com pré-escola. É técnico! Não, eu não saí apta para dar aulas. A faculdade forma atleta. A formação que eles dão não é para você sair de Já e cair numa escola de rede pliblica. Eles não te ensinam como dar aula. Eles formam a tua parte física. O que foi hem desenvolvida foi a par.te esportiva. Faltou a parte teórica. Outros professores, entretanto, falam de sua formação profis- sional como boa. 64 Foi boa. A gente só não teve formação específica para trabalhar com ciclo básico como tem agora. Eu achei que ali me deu uma formaç;io profissional muito boa. Minha formação profissional foi muito hoa. Os meus professores, de forma geral, foram muito bons. A prática profissional esportiva É interessante observar que todos os professores entrevistados relatam a formação esportiva e reproduzem esse modelo nas suas aulas. A formação profissional eminentemente esportiva, ocorrida nas décadas de 70 e 80, homogeneíza o grupo, na medida em que passa a ele uma determinada visão a respeito de Educação Física e, implici- tamente, uma concepção de corpo. A única exceção é, como já citado, uma professora aposentada que voltou a dar aulas na rede pública. Formada na década de 60, portanto, antes da chamada esportivização da Educação Física brasileira, fenômeno ocorrido entre 1969 e 1979 (Betti 1991), é a única professora que não fala do esporte nem na sua formação, nem na sua prática docente atual. Ela trabalha com classes de ciclo básico (antigas primeira e segunda séries), utilizando jogos, brincadeiras tradicionais e danças folclóricas. A maior parte dos professores que estão em exercício atual- mente na rede escolar são licenciados nas décadas de 70 e 80, uma vez que os formados na década de 60 ou antes já se aposentaram, estão em vias de se aposentar, ou exercem cargos administrativos. São raros os casos de aposentados que voltam a dar aulas, como a citada professora que entrevistamos em nossa pesquisa. A prática profissional do grupo é, portanto, de uma maneira ou de outra, balizada pelo esporte. Alguns professores, explicitamente, colocam que o seu objetivo é ensinar habilidades esportivas a fim de selecionar os melhores alunos para participar das equipes repre- sentativas da escola. São os professores que foram- ou ainda são- atletas e se autovalorizam pela obtenção de títulos em campeonatos esportivos com os seus alunos. Todo o planejamento é voltado para o esporte. Eles dispõem as modalidades esportivas nos quatro bimes- tres ao longo do ano e trabalham com seqüências pedagógicas objeti- vando o ensino de habilidades esportivas. 65
  • 37. Eu solto uma bola de basquete um dia, no ginásio, para ver a habilidade que essa garotada tem, para começar a fazer uma seleção, em virtude de cu sempre me interessar cm promover campeonatos internos c campeonatos colegiais. Eu cheguei para a diretora c falei que cu gostaria de fazer um trabalho ue. :l'a.~e com o ginásio, que cu queria entrar em campeonato. Esse ano, como cu estava com saudades do esporte, eu peguei urnas classes de ginásio. A gente faz um plancjamento no começo do ano e a gente divide por bimestre o esporte que você vai trabalhar. O ano passado eu fiquei com voleibol quatro meses porque eles não conheciam nada. Mas ainda não chegou aonde eu esperava que fosse chegar, porque não tinham uma base. Para o aperfeiçoamento técnico dos alunos que "levam jeito" ou que já sabem praticar determinada modalidade esportiva, existem as Turmas de Treinamento, espaço oficial da rede pública estadual do Estado de São Paulo e autorizado pela Delegacia de Ensino, em que 0 professor, fora do horário de aulas, tem a possibilid_ade de montar um grupo de treinamento visando à formação de equipes para cam- peonatos. O critério da 14ª Delegacia de Ensino para autorizar a criação de Turmas de Treinamento é a participação da escola no campeonato que a delegacia promove anualmente. Você tem que formar um time, que time você vai formar? Você não vai pegar aqueles quatro que eu te falei! Eles nunca jogam! Há um treino à parte, extra-aula. Nós procuramos entrar em campeonatos para incentivar os alunos. Eu gosto muito de trabalhar com Turma de Treinamento. O treinamento são 20 alunos. Você pega só aqueles que você já fez classificação, que têm mais condições para vôlei, para basquete. Outros professores se colocam como educadores em vez de técnicos esportivos, e fazem ressalvas ao uso seletivo do esporte nas aulas de Educação Física. Afirmam que nas suas aulas todos os alunos 66 realizam as mesmas atividades, que qut;:nr sabe mais tem que ensinar aos que sabem menos e que sua meta não é a formação de equipes. Essas ressalvas, porém, não os fazem ministrar aulas não-esportivas. Eles afirmam que os alunos só se motivam com bola e acabam dividindo também o ano letivo em modalidades esportivas. Aí eu já entro no jogo, porque não adianta você ficar contra eles. Ou eles fazem a sua aula contentes ou não fazem. Então, é melhor fazer contentes e assim eu já aproveito o potencial que eles têm para jogar. Educação Física é esporte, mas não é só esporté. Formamos times, competimos também, mas eu acho que isso não é o principal para a Educação Física escolar. Eu falo assim: "não precisa ser o melhor jogador." Criticar o esporte e fazer ressalvas em relação a ele é uma forma de esses professores, embora pela negação, reconhecerem-no como o principal conteúdo das aulas de Educação Física. É interes- sante como, ao fazerem essas críticas, eles manifestam, de modo implícito, valores próprios do esporte, como a busca da melhoria técnica ou o rendimento. Não vou deixar o que sabe menos parar no tempo, mas cu consigo uma evolução de todos eles, mais ou menos homogênea. Eu treino na minha aula mesmo. Talvez até descobrir alguma vocação para o esporte. A própria forma como dizem lidar com os menos habilidosos é denunciadora do padrão tecnicista. Esses alunos são detectados em virtude de quão defasados estão em relação às técnicas esportivas ensinadas e o "tratamento" se dá no sentido de fazê-los chegar a um nível mínimo de prática das habilidades motóras próprias de uma modalidade esportiva. 67
  • 38. Mesmo jogando mal, que ele saiba o que ele pode fazer com a bola. Eu tenho que trabalhar muito mais o aluno que tem dificuldade do que aquele que já é bom por natureza, que já é dotado. Todos são obrigados a fazer a aula, mesmo aqueles que não querem. E os mais fracos sempre melhoram. Não que eles cheguem aonde eu acho que poderiam chegár, mas, pelo menos, saem daquela inibição. Esses professores também defendem as Turmas de Treinamen- to para os mais habilidosos, porque dessa forma as aulas de Educação Física seriam destinadas ao aprendizado por parte de todos os alunos, incluindo os que apresentam dificuldades. Com esse recurso, eles poderiam "abaixar" o níve.I das aulas, desde que fosse garantido um espaço fora do período letivo para o aperfeiçoamento técnico dos alunos que apresentam habilidades mais desenvolvidas. Fica explici- tada, portanto, uma distorçüo, que consiste no fato de as aulas de Educação Física não estarem à disposição de todos os alunos, já que elas acabam secundarizadas ern relação às Turmas ele Treinamento, realizando, por vezes, a classificação de alunos para aquelas. Se você está a fim de desenvolver uma habilidade, você monta uma Turma ele Treinamento, fora ela aula. Mas a aula é aquela que todo mundo participa, saiba ou n<io, lenha condições ou não. A partir da constatação de que o esporte é o tema cP-ntral das aulas de Educação Física, é importante saber o que os professores esperam que os alunos aprendam das aulas. Perguntados a respeito do que os alunos levam das suas aulas, alguns professores afirmaram que era o conhecimento das modalidades esportivas, tanto em termos de saber praticá-las como em termos de saber apreciá-las. Eu procuro, no decorrer do ano, trazer para a criança uma idéia do que é uma modalidade esportiva. Além do esporte, os professores afirmaram também que os alunos aprendem nas suas aulas noções sobre o corpo, de fortaleci- 68 mento físico e de educação do movimento, visando a maneira correta de o corpo dispor-se no mundo. Eu ensino uma noção dos esportes c pretendo contribuir também para o fortalecimento físico da criança. Seria uma educação, educar-se para os próprios movimentos. Ele ser conhecedor do seu potencial. Quando ele estiver andando, ele saber andar; quando estiver correndo, ele saber correr. Que ele saiba botar o pé no chão; quando ele vai pular, que saiba pular; quando ele for jogar, ele saiba jogar. É o máximo. O que mais de correto que eu possa passar, eu tenho que passar. Todos os professores, sem exceção, falaram elo aprendizado, por parte elos alunos, de regras sociais por intermédio elo esporte, tais como saber vencer, saber perder, cumprir horários, ter respeito pelo companheiro e pelo adversário, esperar a sua vez, relacionar-se em grupo. Por meio do esporte, os professores estariam ensinando e exigindo elos alunos a prática de regras coletivas, que se manifestam de forma evidente nas atividades esportivas. O que eles saem lendo é uma boa nnç<lo de colelivichtdc. Acho que eles saem mais socializados. Se você perguntar assim:"<1h, vai ser um jogador?" Nfio V<li. mas ele vai ser educado, ele vai saber. Ele vai pedir licença para entrar; ele vai ficar esperando a vez dele. O respeito, porque eles têm que ler, porque eles quase não se respeitam. Eles se chutam, eles se batem. Eles vêm para a escola dessa forma. Você ajuda essa criança no dia-a-dia dela. Você faz com que ela aprenda a respeitar os outros seres com quem e1<1 tem que conviver. A falta de especificidade É interessante assinalar também que os professores, quando perguntados a respeito da especificidade da Educação f;-ísica, não 69
  • 39. conseguiram diferenciá-la de maneira clara de outras disciplinas, já que todas ensinam e exigem valores como respeito, cumprimento de horário e sociabilização. Porém, enfatizaram a maior capacidade da Educação Física em ensinar esse tipo de valores educativos. Segundo eles, nesse momento a Educação Física estaria sendo educação. Ela estaria cumprindo sua função educativa na medida em que ensinasse determinados valores de vida aos alunos. É impressionante como os professores apresentam dificuldades em falar da especificidade da Educação Física, ou, em outros termos, dos limites que a distinguem de outras disciplinas escolares. Quando insistimos que qualquer dis- ciplina poderia ensinar os valores apresentados, os professores tende- ram, em vez de diferenciar a Educação Física, a ressaltar sua maior capacidade em conseguir transmitir tais valores ou tais ensinamentos. Uma das razôes invocadas para tanto seria a motivação que as aulas de Educaçüo Física geram nos alunos, distinguindo-a com vantagem das chamadas disciplinas de classe. Um outro motivo seria a capaci- dade que os esportes possuem de colocar em prática regras coletivas. Um terceiro motivo lembrado seria o não-comprometimento com nota. Nesse sentido, os professores colocam a Educação Física como a principal disciplina da escola, porque dentro dela as outras pode- riam ser incluídas, porém nenhuma inclui a Educação Física. 70 É a matéria principal mesmo! Matemática fica uma coisa muito específica, porque a criança vai aprender o raciocínio lógico e aca- bou ali. Ela não educa. Educação Física, não! Você educa! O próprio nome diz, educação do físico. Mas não é só físico, não. Você educa a mente da criança. Eu acho que é até mais amplo. Você aprende quase que a viver. Você leva muita coisa para a sua própria viela. Olha, a rncu ver, é a matéria principal de uma escola, porque ela contém tudo. Porque nela você faz com que a criança se desenvolva de todas as formas, física c mental também. Em Educação Física você pega Matemática, você pega Português. Eu ensino tudo para eles, porque üs vezes eu tenho brincadeira ele tabuada. Quando eles falam errado, cu corrijo. E eles aprendem a falar. O elevado grau ele importância atribuído à Educação Física pelos professores é diretamente proporcional à sua falta de especificidade dentro da grade curricular, como se ela fosse identificada e valorizada pelo que ela não é, em termos de uma disciplina específica que compõe o currículo escolar. No discurso dos professores, ela seria tão importante e tão útil que não seria possível pensar na sua especificidade, sob pena de se perder sua função global na escola. A falta de especificidade e de identidade da Educação Física, que deveria ser vista como um problema da disciplina e do próprio sistema escolar que a inclui, é representada pelos professores como uma virtude. Como ela não ensina nada de modo específico, pode ensinar tudo globalmente. Eu acho que quase tudo é da Educação Físi~a. Nós procuramos desenvolver um trabalho cm que a gente possa dar à criança um desenvolvimento físico e mental, de maneira a fazer uma dosagem. Eu acho que a minha finalidade aqui é ajudar que os alunos cresçam. O básico, cu acho que é o carinho, a atenção, é o prazer naquilo que ele estú aprendendo. Ao falarem da sua disciplina e das suas aulas, os professores referem-se também à escola, ao seu papel nessa instituição e à forma como entendem que são vistos e avaliados. É significativo que, quando perguntados a respeito do seu papel na escola, os professores tendem a falar de suas atividades extracurriculares, tais como ensaios de formatura, preparação de desfiles, ensaios de fanfarra, organização de festas, ou então se referem às solicitações da direção ou da coor- denação pedagógica para falarem sobre sexo com os alunos ou para resolverem alguma questão disciplinar com alguma criança que está apresentando problemas. Alguns professores do sexo masculino refe- rem-se também ao fato de existirem poucos homens na escola e de terem que dar uma ajuda em serviços gerais. Autodenominando-se "polivalentes" ou "pau para toda obra", eles citam como suas ativida- des a troca de lâmpadas, instalações elétricas, pequenos consertos e até a remoção de um barranco, atividade. que foi feita numa escola 71
  • 40. visitada com a ajuda dos alunos, em horário de aula. O que é mais interessante nesse relato é que os professores não se colocam como contrários ao fato de realizarem essas tarefas, nem se rebelam com tal atribuição. Dizem gostar elas atividacles extracurriculares, inclusive afirmando que elas já fazem parte do seu planejamento anual. Ah, cu adoro! Eu faço cxcurs5o cnm eles, cu faço c<Jmpconato, cu faço demonstração de ginástica, de d<JnÇ<l, festa junina, quadrilha. Eu tenho a função, às vezes, de socorrer criança que se machuca. Qualquer criança... se cu estou aí por perto, me chamam. É, eu gosto, me sinto bem! Gosto mesmo! Tudo que é ligado à festa, eu gosto! Não faço por obrigação, não! Porque eu gosto! Nada exigido. Eu faço porque eu acho também que se cu não fizer, ninguém vai fazer. · Se eu não quiser fazer, cu não vou fazer, mas eu trabalho porque eu acho que a minha disciplina tem que trabalhar aquilo ali. Essas atividades extracurriculares dão ao professor uma grande importância perante alunos, funcionários, direção e comunidade em geral. Os professores afirmam que no começo de cada ano os alunos perguntam se vai haver a tradicional festa, ou o grupo de treinamento, ou a excursão. Essa importância dada ao professor de Educação Física em virtude de suas atividades extracurriculares parece estar relacionada ao caráter de oposição que os alunos manifestam em relação à estrutura curricular da escola. Na medida em que o conjunto ele atividades curriculares é visto como menos significativo pelos alunos, o componente extracurricular começa a ocupar o centro de interesses de todo o corpo discente. A direção, como que para motivar os alunos, também lança mão desses recursos, chegando ao ponto de se observar em algumas escolas, durante todo um ano, a preparação de uma festa junina, uma olimpíada esportiva ou um desfile. Soares (1986), entendendo a contribuição que essas atividadcs possam dar ao desenvolvimento do aluno e sua utilidade no cotidiano escolar, sugere que elas sejam assumidas por toda a escola e não apenas pelo profes- sor de Educação Física, como se sua disciplina fosse vazia de conteúdo. 72 Se for considerado todo o tempo despendido com as atividaclcs extracurriculares (desfiles, ensaios, organizações de festas), mais as atividades auxiliares (atuação disciplinar, palestras sobre sexo), mais a saída com as equipes esportivas para jogos cm outras escolas, mais os consertos que os professores do sexo masculino afirmam fazer, é de se perguntar qual o tempo que resta para as aulas de Educaç~to Física, para o trabalho pedagógico curricular. Se, além de considerar o tempo com as atividadcs extracurricularcs, for considerada também a dificuldade dos professores em determinar a especificidade ela Educação Física, chega-se ao perfil ele uma disciplina caracterizada pelo "não-curricular", pelo "diferente" em relação às outras discipli- nas escolares. Dessa forma, pode-se afirmar que o professor é tam- bém visto na escola como uma pessoa diferenciada, "especial". Já observamos que o professor de Educação Física se apresenta de maneira distinta dos outros professores, tanto no aspecto físico como em termos de horários, comportamentos e local em que trabalha. Vemos agora que essa diferenciação também está relacionada ao conteúdo desenvolvido pela Educação Física e à própria identidade da área diante do currículo escolar. Entretanto a Educação Física parece possuir algumas vanta- gens em relação às outras disciplinas. Os entrevistados afirmam ser mais apreciados pelos alunos do que outros professores, devido ao fato de sua disciplina não reprovar por nota e ao fato ele trabalharem com o esporte, além de, como já dilo, serem os organizadores das atividades extracurriculares. Quase todos afirmam possuir com os alunos um ótimo relacionamento, mais próximo elo que aquele que os alunos mantêm com os professores ele outras disciplinas. Essa proxi- midade chega até mesmo a um certo grau ele intimidade, quando os alunos relatam problemas de ordem familiar, ou quando confiden- ciam críticas contra outros professores ou contra a direçflo da escola. É um professor que nunca é rejeitado pelos alunos. mesmo ele sendo chato, bonito, feio. Ele é menos pichado.
  • 41. Eles se abrem muito com o professor de Educação Física. Não sei, acho que é afinidade. Eles chegam para a gente para contar dos outros professores. Então, a gente tem uma amizade, tem mais conversa. É interessante também observar o contraste entre a incom- preensão por parte da direção em relação ao trabalho curricular do professor de Educação Física e o seu reconhecimento quando realiza atividades extracurriculares. Alguns professores afirmam que a dire- çfto da escola nfto compreende o seu método de trabalho, não observa suas aulas e relega a Educaçüo Física a um papel secundário em relaçüo às outras disciplinas. Alguns professores tecem críticas con- tundentes ao sistema educacional representado pela direçfto, chaman- do-o de ''antiquado" e "falido". Nesse momento, eles se colocam como incompreendidos. A escola, cm geral, a dirctora, eles não entendem a Educação Física. Eu já tive casos ele cliretores que odiavam o professor de Educação Física. Eu acho que a Educação Física não é valorizada. Eu acho que, principalmente no ensino público, não é valorizada. Eu estou bem chateado com o sistema educacional, principalmente na escola pública. Você não tem condições materiais, não tem condi- ções humanas. Você vê muito interesse em aparecer elas pessoas e isso vai te deixando desgostoso. A escola não prepara ninguém para a viela. A escola é apenas uma exigCncia IL!gal. Não existe escola! Em contraposiçiio, a valorizaçfto por parte da clireção ocorre por meio dos frutos elo trabalho extracurricular, chegando ao ponto, numa das escolas visitadas, de a diretora manter na unidade um professor comissionado, que obteve vários triunfos esportivos em campeonatos colegiais, em detrimento ele um professor efetivo. Nesse mo1~1ento, a clireçfto apóia, consegue material esportivo, elogia, e os professores sentem-se valorizados. Parece ser a única forma de o 74 I I professor de Educação Física ser reconhecido, apesar de nessas situa- ções ele não atuar como professor e sim como técnico esportivo, anima- dor ou organizador de festas. Dessa forma, a Educação Física na escola se caracteriza essencialmente pelo seu aspecto não-curricular. As definições de Educação Física As definições que os professores dão de Educação Física ilus- tram a dificuldade apresentada em identificá-Ia como disciplina no contexto escolar. Alguns professores referem-se a ela como um espa- ço de lazer. É a hora que eles podem jogar bola. É aquela hora de lazer, de descontração. Defino Educação Física como um lazer para o teu autoconhecimento e para o teu relacionamento com o meio e com outras pessoas. Quase todos os professores demonstram dificuldade em definir Educação Física. Alguns professores dão uma definição teórica tão genérica que não consegue determinar a especificidade da área. Eu acho que Educação Física é o movimento. A Educação Física é um trabalho biopsicossocial. Você trabalha o corpo e a mente das pessoas. Outros dão uma definição totalizadora, ampla demais e colocam a Educação Física como englobando tudo o que se faz na escola, porque tudo o que ela ensina pode ser aplicado em outras situações da vida. Educação Física eu acho que é lazer, recreação, atividade física, vida, esporte, tudo. A Educação Física engloba tudo o que a gente faz, porque o que você aprende ali dentro você leva para tudo aqui fora. 75
  • 42. A amplitude desse tipo de definição genérica contribui para aumentar a incerteza quanto ao significado da Educação Física. Eu não sei te definir Educação Física. Ah, se eu te falar que eu nunca parei para definir. Acho que é um bem-estar com você próprio. O modo de realização desse bem-estar varia, indo da referência ao aspecto físico, como o1ensino do "jeito certo" de um músculo se movimentar, até uma forma de harmonia interior. Educação Física... a palavra já fala tudo: a educação do fís~c?. Que mostra o jeito certo de usar tal músculo para fazer tal exerctcto. Dentro da Educação Física você pode ajudar o corpo a funcionar, essa máquina a funcionar de uma forma melhor. A Educação Física... eu acho que é você tentar melhorar essa harmo- nia. É você desenvolver cada parte do corpo para que elas fiquem o mais harmoniosamente possível. Daí porque certas definições referem-se à Educação Física atribuindo-lhe uma certa função "salvadora" em relação à escola. Ela seria a responsável por tornar a escola mais agradável para a crian.ça, gerando prazer e assumindo para si uma preoc~pa~ão que tem sido discutida em âmbitos maiores, como o da propna escola e o do sistema escolar. O objelivo do professor .de Educação Física é fazer c_om que a escola seja mais gostosa par~ ~ criança, fazer com que 3 cri-ança fique na escola e goste da escola. Na escola, a criança poderá encontrar no professor de Edu- cação Física ainda outra função de "salvação", não mais da insti- tuição, mas da própria individualidade. De fato, vários professore_s afirmam como função da Educação Física auxiliar o desenvolvi- 76 menta de crianças tímidas e retraídas, dando a elas condições de enfrentar com segurança a vida futura. Eu acho que o aluno tem oportunidade de se desinibir, melhorar sua coordenação motora. Você pode realmente mudar a vida de uma pessoa, fazer ela se conscientizar de que ela tem condições de fazer alguma coisa que ela acha que não tem. Então, acho que a Educação Física desinibe muito. Eu acho que a Educação Física dá oportunidade da criança se desen- volver melhor, mais livremente. Não se trata, obviamente, de negar o objetivo da escola e a contribuição da Educação Física em relação ao desenvolvimento global do aluno. Entretanto, o que se evidenciou nas entrevistas foi uma prioridade desses aspectos, motivada justamente pela ausência de especificidade da área. Todas as definições de Educação Física apresentadas pelos professores sintetizam o conjunto de afirmações que eles fizeram ao longo das entrevistas. Embora diferentes entre si e revelando caracte- rísticas individuais, os relatos podem ser compreendidos como uni- formes, demonstrando assim seu caníter ele construçiío social. A forma como cada professor representa a Educaçiúl Física pode ser depreen- dida não só por meio das definiçôes apresentadas, mas também quando eles se reportam i1 própria experiência ele vida na infilncia, quando citam os fatores relacionados à escolha profissional que fize- ram, quando descrevem a forma como ministram suas aulas, quando relatam os objetivos que esperam atingir por intermédio do seu traba- lho e quando falam do seu papel no contexto da escola. Mais elo que opiniões individuais, as entrevistas reafirmam a construç~o social das representações dos professores, indicando uniformidade c regularida- de no grupo. Esse conjunto de representações não pode ser visto como des- vinculado das ações dos professores c elo cenário em que elas ocor- rem. A ação dos professores, embora não investigada sistema ticamcntc, foi observada quando falávamos com eles na quadra, cm meio i't aula, 77
  • 43. ou quando algum aluno interrompia a entrevist~, o~ ~uando a. diretora referia-se ao professor, ou quando algum func10nano dava mforma- ções, ou, até mesmo, quando a delegada de .ensino recomendava alguma escola para a realização de nossa pesqmsa. Assim 0 trabalho dos professores de Educação Física está ancorado nu~1 conjunto de representações sobre a. pr~pr~a_área que extrapola as opiniões do grupo, perpassando toda ~ mstltm~ao educa- cional. É a lógica subjacente a essas representaço~s que. uemos em seguida procurar demonstrar, por meio da construçao soc1al do corpo que por intermédio delas se revela. 78 4 DO CORPO MATÉRIA-PRIMA AO CORPO CIDADÃO Eu estou contribuindo para a formação do cidadão, di- reta ou indiretamente, para o progresso do país. Professor entrevistado O corpo, conforme já discutido, é um espaço privilegiado no qual é possível encontrar o duplo critério proposto por Lévi-Strauss (1976) para a diferenciaçüo entre o chamado "estado de natureza" e o "estado social". Nele é possível perceber características comuns a qualquer ser humano, nascido em qualq~;~er parte do mundo, sob qualquer nacionalidade. Porém, nele também é possível perceber regras que diferenciam os homens, diferenciação esta que não torna nenhum deles menos humano, mas apenas especificamente humano. O controle sobre o corpo faz-se necessário para a existência da cultura, apesar de ser absolutamente variável entre as sociedades e ao 79
  • 44. longo do tempo. Esse controle não se dá apenas por meio da imposi- ção de regras sobre os instintos naturais, mas também por meio da construção da própria noção de corpo e de natureza, variável tanto de uma sociedade para outra como de uma época para outra. Assim, o mesmo corpo que torna os homens iguais e membros da mesma espécie também os torna diferentes, e não há nisso qualquer parado- xo, porque a igualdade e a diferenciação são dois aspectos de uma mesma questão. Na medida cm que a igualdade é tomada como critério, é possível perceber a diferenciação e vice-versa. Portanto, se é verdade que o homem só existe como natureza e cultura, indissociavelmente unidas e explícitas no corpo, é possível afirmar que qualquer prática que se realize com, sobre e por meio elo corpo só se torna compreensível na medida em que explicita uma certa concepção acerca da relação entre esses dois aspectos. Essa concepção, como produto da cultura, varia ao longo elo tempo e de uma sociedade para outra. Compreende-se, assim, que a própria idéia de uma Educação Física é uma construção social, tal como a noção de corpo que ela difunde por intermédio de seus profissionais. Em outras palavras, um trabalho com o corpo, de Educação Física ou não, que se preocupasse somente com a dimensão fisiológica que esse corpo inegavelmente possui, estaria desconsiderando que essa constituição orgânica, sendo a de um corpo humano, pode se expressar, em termos de sentido, de formas absolutamente diferentes em grupos diversos. Sendo o objetivo deste trabalho justamente compreender as repre- sentações dos professores da área sobre sua prática profissional, procuramos analisá-Ia buscando decifrar a forma como eles cons- troem, como membros de uma dada sociedade e nos termos de sua cultura, a noçáo ele corpo que sustenta essa prática. A forma como os professores entendem e traduzem essas noções influencia no tipo de aula que ministram, no delineamento elos seus objetivos, na sua postura perante os alunos e na forma como utilizam as técnicas corporais na sua rotina ele aulas, constituindo assim como que um fio invisível que costura, por uma lógica própria, sua experiência de mundo e, portanto, a concepção acerca ele sua prática como profissio- nais. 80 Os professores afirmam que tiveram uma infância próxima da natureza, com espaço, áreas verdes e brincadeiras ele rua. Falam de um corpo livre, que não tinha ou não se preocupava com técnicas rígidas; um corpo "natural", que brincava e sentia prazer. É com esse mesmo corpo "natural" que eles passam a gostar do esporte, alguns tornam-se atletas e são assíduos freqüentadores das aulas de Educa- ção Física. Procuram uma faculdade que vai ao encontro dessas ativiclacles esportivas c tornam-se professores, assumindo o papel ele antigos docentes, tidos como ídolos. Passam, então, a trabalhar sobre os corpos "naturais" de crianças, agora seus alunos. O dado mais relevante que foi possível depreender elas entre- vistas, e que parece ser a própria base da atuação profissional elo grupo, é que os professores procuram realizar, ao trabalhar por inter- médio elos corpos ele seus alunos. uma tarefa que, no plano simbólico em que se estruturam suas representações a respeito ele sua pr<ítica, aparece como uma mediação entre a ordem da naturc7.a e a ordem ela sociedade. No primeiro plano, entendem o corpo como matéria-prima sobre a qual vão impor seus ohjetivos e seus métodos ele ensino. Acho que o corpo é a coisa mais sadia que a gente tem. icho que <l gente tem que cuidar e tentar sempre estar trabalhando com o corpo. não ficar se encostando. Acho que o corpo é saúde. Eu acho que o corpo foi feito para a gente explorar, para a gente usar mesmo. É como se fosse uma matéria-prima, que <l pessoa tem no dia-a-dia que trabalhar, conservar, lapidar. A viela ela pesso<t! Eu vejo assim como uma matéria-prima que as pessoas têm ohrigaçiio de alimentar. Situando-o na ordem da natureza, os professores pressupõem um corpo "natural", isto é, livre, despojado ele técnicas. (:,a mesma imagem elo seu corpo infantil que esses profissionais projetam sobre o corpo dos seus alunos. Tomando-o como um dado da natureza, devem, portanto, trabalhar sobre esse corpo para conduzi-lo i1 ordem social. Nesse plano, entendem o corpo como ;tprcncliz de comporta- mentos sociais, ele atitudes necessárias para uma vida melhor; enten- dem o corpo como base elo aprendizado c prática ele regras sociais por parte do aluno, futuro cidadão. 81
  • 45. Corpo é o início da aprendizagem. Você aprende a se movimentar, a se conhecer, a ver o teu espas:o, tudo através do seu corpo. Você enxerga o mundo através do scu corpo. Eu acho que é tudo. Se a gente não preservar, não tiver, assim, urna scqüência til: movimcntos para educar, logicamentc a gente vai atro- fiar. É tudo o que a gente poderia explorar c conseqüentemente conseguir valores melhores. Essa passagem simbólica da ordem da natureza para a ordem social é realizada, na representação desses professores, por meio da imposição de técnicas sobre o corpo, destacando-se entre estas as técnicas esportivas. Os professores ensinam uma série de movimen- tos aos alunos, objetivando a incorporação por parte destes de um conjunto de técnicas que deverão ser capazes de torná-los mais ades- trados e, ao mesmo tempo, mais socializados, com maior capacidade de enfrentar o mundo. Para os professores, esses alunos são, tal como eles foram no passado, crianças cujos corpos não apresentam técnicas ou que se movimentam de forma não-técnica. Esses corpos "naturais" se mos- tram ávidos para o aprendizado escolar de técnicas corporais. Porque você pega crianças que não têm um trabalho corporal. O aluno vem de uma quarta série, nunca pegou numa bola. Às vezes o aluno vem sem muita coordenação. Eu pego aluno que não sabe correr, não sabe respirar direito ainda. Só jogam futebol. A nossa escola é de urna clientela carente e a educação fica só a cargo da cscola. Praticamente, eles não trazem nada ou quase nada de casa. Há que se observar aqui a contradição entre a continuidade da experiência infantil que os professores levam para a escola, quando falam de si próprios, e a ruptura que estabelecem para os alunos. Os professores, quando crianças, brincavam naturalmente e foi o corpo tido como natural que os fez gostar das aulas ele Educação Física, levando-os a seguir essa carreira profissional. Seus alunos, hoje, não 82 apresentam um trabalho corporal, não sabem correr, não sabem respi- rar direito, em síntese, "não trazem nada de casa". É essa ruptura entre sua experiência passada e a experiência atual de seus alunos que justifica sua função de mediação entre a ordem da natureza e a ordem da sociedade. Ora, essa tarefa grandiosa que os professores defendem para a Educação Física, de inserir os alunos, por meio do corpo, na ordem da sociedade, é o que dá sentido às suas afirmações de educação global, ou de sociabilização, ou ainda, de sua função de realizadores das atividades extracurriculares da escola. Vê-se, portanto, que a atuação dos professores de Educação Física na escola, ape~ar de carecer de especificidade, é dotada de uma alta eficácia simbólica, uma vez que eles se vêem e são reconhecidos a partir do seu papel diferencial na escola, de sua atuação não-curricular. É interessante observar também comcí os professores desconsi- deram o repertório corporal que as crianças possuem antes de entrar na escola, como se a Educação Física esco}ar fosse o único recurso de educação corporal para os alunos. Ao considerarem os movimentos corporais das crianças como não-técnicos, os professores entendem esses corpos como desprovidos de cultura, fazendo parte da ordem da natureza, podendo, então, justificar a atu.ação da Educação Física no sentido de contribuir para a formação do cidadão, ou seja, aquele indivíduo que d~ve possuir um repertório corporal adequado à vida em sociedade. E como se os movimentos enfatizados nas aulas de Educação Física fossem corretos, e que devessem substituir todos os outros que a criança aprendeu ao longo de sua experiência de vida. Eu trabalho muito a fundamentação da coisa. O que é o certo. Ninguém chega e laca! Eles arrcmessam. É diferente! Já vimos que os movimentos corporais só têm sentido por serem criados pelos homens como membros de uma sociedade e transmitidos através das gerações. Dessa forma, as técnicas corpo- rais só podem ser chamadas de técnicas porque são culturais. Não é 83
  • 46. possível falar de um movimento "não-técnico", "natural", "livre", ainda não atingido pela cultura. Quando os professores definem corpo, é possível perceber a idéia de matéria-prima que tem que ser lapidada, cuidada, preservada, alimentada, para ser conservada em bom estado. A partir dessa maté- ria-prima, há a necessidade de preparar esse corpo saudável para a vida em sociedade. É por isso que a gente trabalha o corpo, senão o corpo fica sem vida, vai ficar um corpo parado. Então, a gente tem que mexer as mãos, os braços, cabeça, pernas. Corpo... ele tem que ser saudável! Ele tem que ser bonito! Você tem que bater o olho c ver que a pessoa tem interesse, prazer em manter o corpo melhor, cuidar, que aquilo lá é importante também para o interior, para o ego, para o dia-a-dia, para as conquistas aí na vida afora. Nessa transformaçao do corpo matéria-prima em corpo social é possível perceber a idéia de máquina eficiente, que não pode parar, que tem que funcionar com perfeição. Eu acho que o nosso corpo é uma máquina. Você não pode l"icar parado. senão já começa a doer cm algum lugar c tem dificuldade até de andar. Corpo é uma máquina perfeita, ou deveria ser perfeita. Para alguns, falha às vezes. Eu acho que o corpo é um conjunto harmônico de coisas, de peças. Então, juntaria um braço, uma perna, peças e formaria um conjunto harmonioso possível, onde tudo se encaixa, tudo funciona bem. Pensando o corpo como perfeição da técnica, chega-se, portan- to, à idéia de corpo eficiente, num duplo sentido: mecânico, por um lado, de manutenção de uma máquina perfeita e, por outro lado, social, de cumprimento das regras que a vida em grupo exige, contri- buindo, assim, para o desenvolvimento da sociedade. Todos os pro- fessores entrevistados enfatizaram o seu papel de preparadores de 84 indivíduos perfeitamente socializados, função esta que é realizada por meio da aplicação de técnicas, quase sempre esportivas, sobre os corpos dos alunos. O aluno que souber praticar melhor as técnicas esportivas será mais capaz de viver em sociedade, será um indivíduo mais evoluído, que saberá ganhar e perder, saberá esperar a sua vez, saberá enfrentar melhor as adversidades que a vida apresenta. Dessa forma, estará sendo criado um homem brasileiro, que será intelectual, moral e fisicamente melhor, tal como se pretendia em outras épocas da história do Brasil. Entretanto, em vez de contribuir para a melhoria ela raça, como se pretendia no final do século passado, ou em vez ele qualificar a mão-de-obra ou preparar o indivíduo para a defesa da pátria, como se queria no Estado Novo, a Educação Física atual pretende aprimorar o corpo, levando-o à perfeição da técnica, para, por meio dele, alcançar um tipo de eficiência característica ela sociedade capitalista, tida como base do potencial da nação c ela construção de seus cidadãos. Eu posso dar a minha cnntribuiçün para que <lqucle <Hinlcsccnte. que está ali cm desenvolvimento, não raça um<l opç:lo por 11111 caminho tortuoso. Dentro do m11ndn esportivo ele pode ler 11111 dcscnvnlvi- mcntn. tanto Físico quanto de cnhcç:1. lcg.;1l. Eu estou contribuindo para <1 l"ormação do cidnd;io. diret:1 011 indire· lamente. piir<J o progresso do país. (: um<J cois;J ho<J. uma coisa honesta. A gente está num país de mui1<1 gente desonesta. Seria ilssim uma l"ormação, uma preparação para uma cidadania, para tornar o aluno cidadão, para preparar o aluno para o que ele v:1i e111'rentar fora da escola. O aluno tem um hor;írio a cumprir. um hor;írio m;ne<1do de aula, um comportamento, ele tem deveres, direitos. Povo que tem educação é 1111 povo que cad;1 vez mais vai pnrn a !"rente; vai para a !"rente porque tem ccluca<;<io, tem uma conscicntiz:l- ção. Então, é por isso que tem Educação Física. A busca do corpo tecnicamente perfeito não se limita üs sessões de Educação Física na escola, mas se prolonga na criaçfto de hábitos de vida, de novos costumes, mesmo nos momentos de lazer, para que o aluno preencha adequadamente o seu tempo livre, como se ele não fosse capaz de decidir o que fazer nas horas vagas. 85
  • 47. É como eu falo para eles: "você não tem nada para fazer, em vez de ficar em casa assistindo televisão, está sozinho, vai fazer uma parada de mãos na parede, vai fazer estrela, vai correr, não fica parado em casa perdendo tempo da tua vida vendo o tempo passar." Uma característica essencial que é possível perceber na busca desse corpo eficiente é a ênfase centrada no indivíduo, como se o homem nüo vivesse em sociedade, como se o corpo não fosse produto ela cultura c como se a vontade individual bastasse para o desenvolvi- mento corporal. Mais uma vez fica patente a idéia de corpo "natural", que pode, graças ü vontade individual, desenvolver-se, passando diretamcntc para a "boa" ordem social, como corpo "cidadão". Se t.:ll: se csfor.,;ar mais, ck vai const.:guir fazer, fisicamente, tudo. Eu <1clw que a Educa.,;ão Física pude se comparar à vida. Você cstú no mt:io de u1n 111ontc dt: gcntt:, cada um tem un1 ccnu potencial, você tem qut.: rcsp~:itar o pott:ncial dt.: tuclos e nesse grupu você cunsegut: v~:ncer, mas o outro tamb.:m pode conseguir v<.:ncer. Você tem que dividir isso com o outro. A regra de um jugo você transporta para a regra ela vida, a sua sociedade, como você vive cm socit.:cladc. Na verdade, o objetivo da Educação Física escolar, no relato dos professores, é dar condições para o aluno levar uma vida melhor, e essa vida melhor passa, necessariamente, pela compreensão, por parte elo aluno, do seu papel na sociedade. Educaçflu Física é a criança ter a compreensão, a formação, entender a importância dela na sociedade. Essa concepção de Educaçüo Física como trabalho de prepara- ção do cicladào está ancorada nas duas grandes influências sofridas por ela no Brasil ao longo de sua história, a militar e a médica. Só faz sentido falar da utilização da Educação Física na busca da eficiência que leva à cidadania se for considerada a influência conjunta dos militares e do conhecimento científico da medicina, com sua noção 86 de corpo humano primordialmente biológica. Só dessa perspectiva é possível conceber que, lançando mão das técnicas da Educação Físi- ca, se pretendesse construir homens fisicamente fortes e saudáveis, aptos a defender a pátria e viabilizar a construção da nação. Esse trabalho de preparação do cidadão brasileiro - consoante com um padrão de eficiência explícito no corpo, que, definido inicial- mente de uma perspectiva higienista e eugênica e depois pelo modelo esportivo nacional, hoje tem a forma da modernidade capitalista - não pode ser realizado sem uma dose de autoritarismo. Apesar de os professo- res se considerarem apreciados pelos alunos e de enfatizarem as vanta- gens motivacionais da Educação Física, como o trabalho com esportes, a liberdade nas aulas e a ausência de nota, a grande maioria se coloca como controladora, na busca da excelência do programa desenvolvido. Eu não desprezo ainda um pouco daquela aula tradicional. Eles me acham muito brava. Às vezes, tem de ser duro! Não deixo muito à vontade mesmo. Quando eu chego, eles já sabem, precisa entrar em forma. Eu dou liberdade pura o aluno, mas cu ainda exijo um pouco deles. Eu sempre comando. O que eles vão fazer naquele dia já está tudo preestabelecido. Eu sou um pouco bravo. Eu acho que eu não sou muito maleável, não. Eu não sou rígido. Eu sou acessível. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem que ter o pulso. À primeira vista, a atitude paternalista dos professores em relação às crianças, revelada nas entrevi~tas, poderia ser entendida como contraditória com essa postura autoritária. Entretanto, percebe- se que esse paternalismo apenas camufla a postura diretiva que os professores têm diante de seus alunos por meio da exigência de movimentos corporais tidos como corretos. E, ao camuflá-la, esse paternalismo acaba por reafirmar-se como constitutivo do papel do professor de Educação Física na escola. 87
  • 48. Às vezes. acho que a gente é pai, é mãe para o aluno. A gente é tudo para ele, para resolver os problemas dele. Eu acredito que cu posso dar um pouco ele mim aos alunos que comigo convivem. Eu tinha sempre muita vontade ele fazer alguma coisa por alguém, c peguei essa escola no desejo ele me realizar, não só profissionalmen- te, mas como pessoa, como ser humano, achando que aqui as crianças eram bem carentes por serem ela favela. Eu poderia fazer um trabalho com eles bem ele amor, de dar o m~ximo ele amor, ele atenção que cu pudesse dar para eles. Por isso mesmo, na qualidade de mediadores que fazem a passagem da ordem da natureza para a ordem social, transformando o corpo natural em corpo eficiente, e preparando o futuro cidadão, os professores sentem-·se gratificados e realizados. Apesar das reclama- ções em relação ao salário, à falta de materiais e à falta de estrutura, eles gostam do que fazem e consideram que possuem "o dom de ensinar". Eu acho. que professora é dom. Não adianta você querer se formar professora. Você nasce com aquele dom. Eu não consigo trocar. Não consigo fazer outra coisa porque eu gosto disso, eu gosto ele dar aula, cu gosto de ensinar. Para mim representa dar tudo daquilo que eu tenho para outras pessoas que não tiveram possibilidade de ter. A impressão que se tem, pelo discurso dos professores, é que um modelo de aula diferente, que, talvez, pudesse ser considerado mais democrático, seria incompatível com os objetivos de formação do cidadão. É por isso que eies enfatizam a organização e a disciplina como condição das suas aulas. 88 Sempre que eu vejo que 6u posso estar perdendo a rédea e vai virar bagunça, então eu imponho. Tem que ser organizada senão não dá. Já é em lugar aberto. Então, talvez você ache que fica meio rígida, mas tem que ser assim. Na hora de trabalhar, tem ele trabalhar. Tem que programar c ser mais ou menos rígido. Você não pode deixar só por eles, porque senão vira bagunça. À época cm que cu f'iz escola, era um pouco militarismo, era uma formação militar. Mas a gente muda. Eu sei que a disciplinn c a ordem são h~sicos cm tudo, c onde não houver disciplina, você niin consegue quase nada. Disciplina c ordem. Alguns professores reconhecem que sua postura ainda é con- servadora: Eu acho que minhas aulas ainda são meio quaclradinhas. Eu estou tentando mudar. É interessante notar a contradição entre o discurso dos profes- sores, que defende a formação do cidadão, e sua postura diretiva nas aulas quando buscam o movimento eficiente. Essa contradição revela a noção de cidadania que permeia o discurso dos professores, muito mais ligada ao cumprimento de normas e regras do que visando ~~ crítica e à autonomia dos alunos. Porém mudar nem sempre é fácil. Os professores não são "conservadores" apenas pela influência militar, que deixou para a Educação Física um legado autoritário nos seus métodos ele ensino, hoje reproduzido no comportamento elos professores perante seus alunos. É preciso entender as mediaçôes sociais concretas por meio das quais essa influência foi capaz de perpetuar-se ele forma incons- ciente e, muitas vezes, contra a intenção explícita elos professores. Para isso, será necessário recorrer novamente a Marcel Mauss, lembrando que, para ele, a educação ocorre por meio ele um processo de imitação, por parte das crianças, de atos que obtiveram êxito c que foram bem-sucedidos em pessoas que detêm prestígio e autoridade no grupo social. É justamente esse processo tradicional que transmite gestos, valores, conceitos e comportamentos de pais para filhos, ou de professores para alunos. Essa reflexão permite compreender os 89
  • 49. motivos pelos quais os professores enfatizam a sua postura de coman- do e de controle nas aulas. Permite também entender por que esses profissionais se reportam a seus antigos professores de Educação Física na escola como verdadeiros ídolos, sendo lembrados por eles muitos anos depois. O que esses professores realizam com seus alunos, em nível de postura disciplinar, parece ser uma imitação do que seus antigos professores fizeram com eles. Trata-se de uma imitação prestigiosa, já que os professores marcaram suas vidas, tornando-se seus ídolos c modelos. Esse prestígio serve para reforçar o conteúdo dos ensinamentos que nossos professores receberam de seus antigos mestres e que, hoje, transmitem a seus alunos. Possivel- mente, eles visem ocupar no futuro, na lembrança de seus alunos, o mesmo lugar de prestígio reservado à imagem de ídolos que eles têm dos antigos professores. I~ dessa maneira que toda uma visão de mundo pode ser filtrada por meio da linguagem silenciosa do corpo, cuja concepçüo responde pela lógica que articula as representações e a prática dos professores de Educação Física no desempenho de sua atividade profissional. 90 CONCLUSÃO: POR UMA EDUCAÇÃO FÍSICA PLURAL Porque se chamavam ho- mens, também se chama- vam sonhos, e sonhos não envelhecem. Lô Borges, Márcio Borges, Milton Nascimento O papel da Educação Física na escola e a forma como seus profissionais incorporam o carátcr especial da áreu e.sua diferencia- ção em relação às outras disciplinas são significativos para com- preendermos sua prática escolar na rede pública de primeiro grau, bem como a lógica das representações que a justificam. O caráter diferencial da Educação Física em relaçfto às outras disciplinas escolares é percebido quando os professores não conse- guem falar da especificidade da sua área de atuaçüo na escola, e na própria definição que dão de Educação Física. Em ambos os casos, percebe-se uma certa abstração das respostas, evidenciada na vocação da "educação global" que os professores imputam ao ensino de Edu- 91
  • 50. cação Física. Os professores reconhecem que todas as disciplinas escolares procuram preparar o aluno para a vida em sociedade, mas se vêem com mais condições para essa tarefa, justamente pelo traba- lho sobre e por meio do corpo, que, na sua opinião, permite uma atuação global sobre os alunos. Esse aspecto é enfatizado pelos professores, chegando ao ponto de um deles afirmar que a Educação Física educa, enquanto as outras disciplinas não conseguem tal intento. Entretanto, esse "privilégio" concedido à Eçlucação Física só pode ser entendido em virtude da sua especificidade e 'da sua diferen- ciação em relação às outras disciplinas escolares. Tal concepção não se restringe à visão que os professores ·possuem da área, mas está presente até mesmo na legislação, que· entende a Educação Física como atividade, em vez de disciplina escolar. Esse caráter de ativida- de da Educação Física está presente no fato de a nota não reprovar o aluno, no fato de as turmas, em algumas escolas, serem divididas por sexo somente nessas aulas, e no fato de as aulas serem, em alguns casos, fora do horário regul<í da escola. Mais ainda, essa diferenciação da Educação Física também está confirmada e legitimada na própria função que as escolas, por meio de suas direções, delegam a. ela. Como vimos na análise das entrevis- tas, os professores de Educação Física são solicitados a colaborar nas atividades extracurriculares (festas, desfiles, formaturas), em orienta- ções disciplinares ou sexuais, e em pequenos consertos, no caso dos professores do sexo masculino. Por fim, a própria localização aleatória da quadra, chamada por alguns professores de "nossa sala de aula", parece estar relacio- nada ao papel diferencial que a Educação Física ocupa na escola, já que parece ter por critério o espaço que sobrou após a construção elo prédio. Nota-se aqui uma ambigüidade no papel da Educação Física escolar: o seu caráter diferencial, aleatório e extracurricular, mostra- do até aqui como problemático e criticado em vários estudos atuais, é o que dota a prática escolar de Educação Física de uma eficácia simbólica, responsável pelo seu sucesso entre alunos, pais e direção 92 das escolas, sucesso este que justifica o papel educativo pelo qual os professores se auto-avaliam. Entretanto, esse caráter diferencial da Educação Física na esco- la, incorporado pelo professor no seu discurso, no seu comportamen- to, no seu relacionamento com os alunos, bem como nas atividades extracurriculares que realiza, deve ser analisado em conjunto com a forma como esses profissionais organizam e desenvolvem seu progra- ma curricular. Sua prática pedagógica, de maneira geral, ainda se caracteriza pela busca de um tipo de treinamento ideal para todo um grupo, pelo desejo de uma classe homogênea de alunos, pelo destaque da melhoria da aptidão física como objetivo de ensino. Em outros termos, todos os alunos devem correr o mesmo número de voltas, fazer tantas repetições do mesmo exercício, saltar a mesma metra- gem. Vemos professores realizando testes físicos no início e ao final de um período letivo para verificar o progresso dos alunos em termos de força, velocidade, resistência e flexibilidade corporais. O nível do grupo é determinado em virtude desses critérios de aptidão física e as atividades propostas seguirão esses parâmetros. Alguns professores chegam mesmo a defender a formação de turmas de Educação Física em virtude do biotipo dos alunos, independentemente da idade que -:!~" tenham e ela série que estejam cursando. É sobre os corpos dos alunos assim definidos que deve incidir a prática elo professor de Educação Física, como imposição de técnicas que favoreçam seu desenvolvimento e a eficiência elo seu desempenho. Na bibliografia tradicional específica ela área, a técnica é trata- ela de maneira instrumental. As obras a ela clcclicaclas nada mais fazem do que coletar um conjunto de movimentos consiclcraclos eficientes c perfeitos para as finalidades de clctcrminacla modaliclaclc esportiva c dividi-los em estágios de uma seqiiência pedagógica para o seu apren- dizado. Dessa forma, uma única maneira de se executar urn movimen- to esportivo ganha o status de padrão de corrcção, e todas as outras formas são tidas como erróneas, incompletas ou variantes menos desejáveis da técnica considerada perfeita. O professor de Educação Física, partindo dessa concepção, tenderá a considerar as técnicas esportivas ou ginásticas como movimentos únicos a serem alcança- dos no comportamento corporal de seus alunos. 93
  • 51. Percebe-se nessa prática pedagógica que o conceito de educa- ção apresentado pelos professo~es está relacionado a uma certa con- cepção de educação corporal. E como, se_ fosse ~ma model_agem de comportamentos e atitudes que serão uteis na vida em.sociedade, a partir do aperfeiçoamento, pelo exercício, de um ~otencial natural do indivíduo inscrito no seu corpo. Essa concepçao de corpo como primordi;lmente biológico, ainda arraigada na prática do~ professo- res, implica entender que os mesmos o~so_:;, ?s ~es:n~s musculos, os mesmos órgãos que compõem o patnmomo bwlog1co _hum~no se constituiriam na justificativa para a aceitação de uma noçao umversal de corpo humano. A conseqüência direta d~ssa conc~~ção é a tendên- cia em se visar unicamente ao desenvolvimento fiSICO de todos os alunos da mesma forma. Pensando o corpo como exclusivamente biológico, os profes- sores entendem-no como natural, como se fosse anterior à cultura e, portanto, o mesmo em todo e qualquer lugar. En: decorrência d~ssa suposição, eles negam que os alunos chegam a escola pos_smndo técnicas corporais, que, por isso mesmo, devem ser-lhes ensmadas. Entretanto, sabemos que toda técnica é cultural, porque fruto de aprendizagem específica de uma determinada sociedade, num d~te:­ minado momento histórico. Os corpos, embora com uma base b!Oio- gica semelhante, foram e continuam a ser co~struídos diferentement.e em cada sociedade, segundo os padrões gcnus da sua cultura c respei- tando as especificidades ele classe social, ele religião, de grupo etc. Cada sociedade destaca c valoriza determinadas formas de uso do corpo ou determinados movimentos corporais. E assim os corpos vão se diferenciando uns dos outros, em conseqüência dos símbolos e valores que neles süo colocados pela sociedade, em cada momento histórico específico. Se o professor percebe que os corpos diferem entre si, a expli- cação tende a ser em virtude da natureza do corpo e não das especifi_- cidades socioculturais que podem ter gerado diferenças corporais. E como se, para o professor, existissem corpos naturalmente melhores, mais fortes, mais capazes e, em contraposição, corpos naturalmente piores, mais fracos, menos capazes. Nesse caso, o professor não conseguirá compreender as técnicas corporais como integrantes de 94 uma realidade sociocultural, tendendo, por isso, a ter dificuldade em adequar a sua prática às características dos grupos com os quais trabalha. Possivelmente, ele não terá condições de entender os movi- mentos corporais como símbolos sociais e sua prática correrá sérios riscos de se desvincular do contexto de vida dos alunos, apesar de estar significando alguns valores que devem ser esclarecidos. Um exemplo dessa tendência ocorre quando o professor de Educação Física, numa escola de periferia, tenta ensinar a "parada de mãos" e desconsidera que os alunos, em sua grande maioria, sabem "plantar bananeira". São técnicas corporais parecidas. A primeira faz parte de um conhecimento sistematizado de uma modalidade esportiva e a segunda faz parte de um conhecimento corporal popular (Daolio 1993). Assim, o professor de Educação Física parece esquecer que seu trabalho se dá num ambiente cultural, com pessoas que fazem parte de uma realidade social e utiliza conteúdos historicamente relevantes daquela cultura. O próprio termo "Educação Física" remete sua com- preensão para o campo da cultura de uma dada sociedade. Pensar o corpo como construído culturalmente implica considerar que a ênfase biológica que a Educação Física recebeu é também uma construção social, que atendeu a necessidades históricas e políticas particulares. O referencial antropológico utilizado neste trabalho permite sugerir que a Educação Física reconheça o repertório corporal que cada aluno possui quando chega à escola, já que toda técnica corporal é uma técnica cultural e, portanto, não existe técnica melhor ou mais correta senão em virtude de objetivos claramente explicitados e em relação aos quais possa haver consenso entre professor e alunos. Em termos de literatura específica da área, somente alguns poucos estudos começam a considerar ·o corpo, o movimento e o trabalho do professor de Educação Física como produtos culturais. Medina (1987) afirma que existem vários corpos brasileiros. Consi- derando o corpo como suporte de signos sociais, ele vislumbra uma pedagogia que considere as significações presentes no corpo do ho- mem brasileiro, sem, no entan~o, detalhar essa pedagogia objetivando transformar a prática ?os professores. 95
  • 52. Ghiraldelli Júnior (1988) também inclui a questão cultural na discussão da Educação Física e do papel do seu profissional. Para ele, o professor de Educação Física desenvolve a tarefa de agente cultural, pois atua no sentido de implantar no movimento humano os ditames de uma determinada cultura. Propõe, então, a vinculação de análise do muvimento humano ao movimento social, afirmando que o traba- lho do professor de Educação Física extrapola a transmissão das técnicas de ginástica e esporte para alcançar a crítica por meio da riqueza cultural inerente aos movimentos humanos. Na mesma direção, Kofes ( 1985) também alerta para o risco de os professores de Educação Física levarem em conta somente uma concepção cientificista do corpo como estrutura biológica, não consi- derando que os alunos possam ter outras representações a respeito do próprio corpo, interferindo mesmo em seus movimentos c comporta- mentos corporais. Em outro trabalho, tentamos uma aproximação mais estreita entre a Educação Física e a Antropologia Social. Relacionando a Aprendizagem Motora com o estudo antropológico das técnicas cor- porais, justificamos que em ambos os níveis o indivíduo aprende: no nível mais microscópico de uma aula de Educação Física, o aluno, por meio do seu corpo e dos seus movimentos, aprende habilidades motoras; no nível macroscópico da sociedade, o indivíduo também aprende determinadas técnicas sociais, muitas vezes sem se dar conta desse processo. E concluímos ressaltando a importância de o profes- sor de Educação Física considerar o aspecto cultural de sua prática, para não se tornar vítima e reprodutor de modismos, saber considerar as diferenças culturais existentes entre os alunos e, assim, poder utilizar adequadamente os ensinamentos da Aprendizagem Motora (Daolio 1989). Ao trabalhar diretamentc com o corpo dos alunos, o professor interfere na concepção e .na representação que os alunos têm do próprio corpo. Interfere, por extensão, na própria cultura que dá suporte a essas representações. É possível afirmar que um professor de Educação Física, atento ao alcance cultural de sua prática, tem mais condições de realizar um trabalho competente, por encontrar-se 96 conectado com a realidade sociocultural cm que vive. Porque os professores são atares sociais, e sua prática está ancorada num con- junto de representações cuja base é justamente sua experiência con- creta no mundo. Como elementos da sociedade, os professores realizam uma determinada prática em virtude da forma como traduzem c filtram os valores sociais. Entretanto, cabe ainda investigar os motivos que fazem com que os profissionais de Educação Física, na escola, mostrem-se resis- tentes às críticas e às novas propostas que vêm sendo feitas já há uma década, mantendo uma prática cujo referencial ainda é, primordial- mente, biológico. Se, por um lado, existe um discurso dos professores que, em alguns momentos, é transformador e crítico, por outro lado, a lógica de sua prática ainda se mostra arraigada a determinados valores que poderiam ser considerados, precipitadamente, como su- perados. A Educação Física no Brasil clcsenvo]vcu-sc a partir do século XIX e foi grandemente influenciada pelas Forças Armadas c pela chamada Medicina Higienista. Essas duas grandes influências, com algumas nuanças, foram reaparecendo ao longo deste século, inicial- mente no Estado Novo e, posteriormente no período pós-I 964 (Cas- tellani Filho 1988). Somente a partir do início da década ele I980, com a redemocratização do país, é que a Educação Física começou a ser discutida de forma mais contundente, levando ao reconhecimento de que sua prática escolar é problemática e visando a uma redefinição ele seus objetivos, conteúdos e métodos de trabalho. É dessa forma que a história da Educação Física no Brasil nos dá bases para entender como os professores atuais reproduzem, no seu cotidiano, ideais c valores passados, como a higiene c a cugcnia do final do século XIX, ou o militarismo nacionalista do Estado Novo, ou o modelo esportivo característico do recente governo mili- tar. Porém, ao reproduzirem esses ideais passados, eles atualizam, na sua experiência presente, esses valores, atribuindo-lhes novos signi- ficados. 97
  • 53. Para entendermos esse distanciamento entre o discurso dos professores de Educação Física, muitas vezes crítico e progressista, e sua prática, tradicional e mecanicista, este trabalho procurou sugerir que é necessário considerar o corpo como produto de uma construção social específica e cada gesto ou postura como a expressão individual de uma totalidade social. Dessa perspectiva é possível entender que a lógica da prática dos professores de Educação Física tem por eixo um lugar "estratégico": o corpo desses profissionais. Corpo este que, considerado como produto da sociedade e da cultura, pode ser com- preendido em termos de tradição social, sendo os movimentos por ele expressos transmitidos através das gerações. É justamente por deixar de levar em conta os pequenos detalhes inscritos no corpo dos profes- sores que, por sua própria "insignificância" podem passar desperce- bidos ou inobservados, que a prática desses profissionais apresenta-se resistente a uma crítica que leve a transformações. É por meio da sua prática corporal que os professores vão reatualizando, inconsciente- mente e muitas vezes contra os próprios valores explícitos em seu discurso, os ideais da Educação Física brasileira desde o século passado. E é justamente a prática corporal desses professores, junto com as representações que por meio dela se veiculam, que dá sentido à sua atividade profissional, tendo sido por eles incorporada como valor por meio de momentos de sua experiência de vida que reputam significativos e são, por isso mesmo, altamente valorizados. Estas reflexões nos oferecem subsídios para compreender que a história da Educação Física no Brasil, para além de uma somatória ele elementos responsáveis pela produção e reprodução de determina- dos comportamentos dos professores, foi influenciando na construção de um imaginário social referente ao corpo- biológico naturalista . ' ' um,vers~.l -., qt~e se ~xpres~a no .conjunto. das ações e representações dos profiSSionais da area ate os dws de hoJe. Em outros termos, existe uma lógica da prática desses profissionais, tradicional e eficaz ins- crita nos seus corpos e, ainda, refratária a uma crítica que, unica~ente baseada no discurso, possa torná-la passível de alterações. Essa tradi- ção, prese~te na sua prática corporal, só faz confirmar a lembrança desses professores em relação a seus antigos mestres, tomados como inspiração e modelo a ser seguido na sua prática profissional atual. 98 Vê-se, portanto, que uma ação transformadora na Educação Física escolar só será efetiva se conseguir penetrar esse universo de representações dos professores, decifrar os significados de sua práti- ca, até chegar ao nível dos seus comportamentos corporais. As pes- quisas realizadas em Educação Física, de maneira geral, colocam-se ou num nível de análise das condições .institucionais em que se desenvolve a prática dos professores, ou dessa própria prática desvin- culada do contexto social que a influencia, ou, ainda, tratam os professores a partir do seu discurso e da necessidade de sua "cons- cientização" com relação aos fatores sociais que incidem sobre J seu trabalho. Em qualquer desses níveis, a experiência concreta desses agentes sociais não é levada em conta. Ou são vistos como meros· executores de uma determinada prática, ou como seres capazes de transformar sua prática pela consciência dos seus erros. Esta pesquisa pretendeu, justamente, dar conta desse distanciamento entre o discur- so e a prática, contribuindo para uma revisão do papel do professor de Educação Física na escola. Apesar de os professores entrevistados se apresentarem com características individuais diferenciadas, foi possível compreender a lógica que, no plano simbólico da cultura, ordena o trabalho de Educação Física dos seus profissionais. na escola, perpassando as ações e representações não só de todos os professores entrevistados, mas também dos demais agentes da instituição escolax, confirmando, assim, a construção social tanto do seu conceito de corpo como do seu próprio entendimento da área e de sua atuação profissional. Dessa forma, pode-se pensar que o universo simbólico que sustenta a ação ~ess~s professores - neste trabalho reconstruído - extrapola o ambito do grupo considerado, para atingir, com variações a serem investigadas por outras pesquisas, toda a área de Educação Física escolar no Brasil. Tomando emprestado da Antropologia o princípio da alterida- de, que aprendemos a levar em consideração ao longo da realização deste tra?~lho, talvez pudéssemos encontrar um instrumento útil para nos aux!lwr a pensar, sob um outro ângulo, a prática escolar de Educação Física. A ciência antropológica, conforme discutido ante- riormente, considera a humanidade plural e procura abordar os ho- 99
  • 54. mens a partir das suas diferenças. Refuta, assim, o etnocentrismo, que considera uma sociedade como o centro do mundo e a partir da qual as outras são analisadas de forma preconceituosa. Um costume ou uma IJrática de um determinado grupo não devem ser vistos como certos ou errados, melhores ou piores do que outros do nosso próprio grupo. Ambos têm significados próprios que os justificam no âmbito do grupo no qual ocorrem. Portanto, a diferença não deve ser pensada como inferioridade. o que caracteriza a espécie humana é justamente sua capacidade de se expressar diferenciadamente. Em razão do seu desenvolvimento como área específica desde finais do século XIX, a Educação Física teve e tem uma dificuldade histórica em pensar a diferença, ou seja, aquilo que destoa de uma expectativa universal do comportamento corporal. Se, por um lado, a Educação Física coloca-se como diferente das outras disciplinas es- colares, assumindo um caráter especial, por outro lado, sua prática curricular cotidiana parece apresentar dificuldades em lidar com as diferenças apresentadas pelos alunos. Uma Educação Física escolar que considere o princípio da alteridade saberá reconhecer as diferen- ças - não só físicas, mas também culturais - expressas pelos alunos, garantindo assim o direito de todos à sua prática. A diferença deixará de ser critério para justificar preconceitos, que causam cons- trangimentos e levam à subjugação dos alunos, para se tornar condi- ção de sua igualdade, garantindo, assim, a afirmação do seu direito à diferença, condição do pleno exercício da cidadania. Porque os ho- mens são iguais justamente pela expressão de suas diferenças. 100 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEITI, M. Educação física e sociedade. São Paulo, Movimento, 1991. BRANDÃO, C.R. "A antropologia social"./n: MARCELLINO, N.C. (org.). Introdução às ciências sociais. Campinas, Papirus, 1987. CARDOSO, R. (org.). A aventura antropológica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. CARMO, A.A. do. "Educação física: crítica de uma formação acrítica". São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Univer- sidade Federal de São Carlos, 1982, 184 p. (Dissertação de mestrado) CASTELLANl FILHO, L. Educação física no Brasil: a histária que não se conta. Campinas, Papirus, 1988. CAVALLARO, G.A. "Pianejamenlo e prática de ensino de professores de educação física em escolas públicas da cidade ele São Pau- lo". São Paulo, Escola de Educação Física, Universidade de São Paulo, 1990, 68 p. (Dissertação de mestrado) 101
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