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2
Aprender Antropologia
Fran¸cois Laplantine
2003
2
Conte´udo
I Marcos Para Uma Hist´oria Do Pensamento An-
tropol´ogio 23
1 A Pr´e-Hist´oria Da Antropologia: 25
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32
2 O S´eculo XVIII: 39
3 O Tempo Dos Pioneiros: 47
4 Os Pais Fundadores Da Etnografia: 57
4.1 BOAS (1858-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
4.2 MALINOWSKI (1884-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
5 Os Primeiros Te´oricos Da Antropologia: 67
II As Principais Tendˆencias Do Pensamento An-
tropol´ogico Contemporˆaneo 73
6 Introdu¸c˜ao: 75
6.1 Campos De Investiga¸c˜ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
6.2 Determina¸c˜oes Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
6.3 Os Cinco P´olos Te´oricos Do Pensamento Antropol´ogico Con-
temporˆaneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
7 A Antropologia Dos Sistemas Simb´olicos 87
8 A Antropologia Social: 91
9 A Antropologia Cultural: 95
3
4 CONTE ´UDO
10 A Antropologia Estrutural E Sistˆemica: 103
11 A Antropologia Dinˆamica: 113
III A Especificidade Da Pr´atica Antropol´ogica 119
12 Uma Ruptura Metodol´ogica: 121
13 Uma Invers˜ao Tem´atica: 125
14 Uma Exigˆencia: 129
15 Uma Abordagem: 133
16 As Condi¸c˜oes De Produ¸c˜ao Social Do Discurso Antropol´ogico137
17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: 139
18 Antropologia E Literatura: 143
19 As Tens˜oes Constitutivas Da Pr´atica Antropol´ogica: 149
19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
20 Sobre o autor: 163
CONTE ´UDO 5
Pref´acio
A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens˜ao do homem
Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma ´area do conhe-
cimento ´e tra¸car-lhe a hist´oria, mostrando como foi variando o seu colorido
atrav´es dos tempos, como deitou ramifica¸c˜oes novas que alteraram seu tema
de base ampliando-o. Para tanto ´e requerida uma erudi¸c˜ao dificilmente en-
contrada entre os especialistas, pois erudi¸c˜ao e especializa¸c˜ao constituem-se
em opostos: a erudi¸c˜ao abrindo- se na ˆansia de dominar a maior quantidade
poss´ıvel de saber, a especializa¸c˜ao se fechando no pequeno espa¸co de um co-
nhecimento minucioso.
O livro do antrop´ologo francˆes Fran¸cois Laplantine, professor da Univer-
sidade de Lyon II, autor de v´arias obras importantes e que hoje efetua pes-
quisas no Brasil, re´une as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento
antropol´ogico atrav´es da hist´oria e mostrando as diversas perspectivas atuais.
Em primeiro lugar, efetua a an´alise de seu desenvolvimento, que permite uma
compreens˜ao melhor de suas caracter´ısticas espec´ıficas; em seguida, apresenta
as tendˆencias contemporˆaneas e, finalmente, um panorama dos problemas co-
locados pela pr´atica e por suas possibilidades de aplica¸c˜ao.
Trata-se de uma introdu¸c˜ao `a Antropologia que parece fabricada de enco-
menda para estudantes brasileiros. A forma¸c˜ao nacional em Ciˆencias Sociais
(e a Antropologia n˜ao foge `a regra. . .) segue a via da especializa¸c˜ao, muito
mais do que a da forma¸c˜ao geral. Os estudantes lˆeem e discutem determi-
nados autores, ou ent˜ao os componentes de uma escola bem delimitada; o
conhecimento lhes ´e inculcado atrav´es do conhecimento de um problema ou
de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que susci-
tou, nas respostas e solu¸c˜oes que inspirou. A hist´oria da disciplina, assim
como da ´area de conhecimentos a que pertence, o exame cr´ıtico de todas
as proposi¸c˜oes tem´aticas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem
muitas vezes fora das cogita¸c˜oes do curso, como se fosse algo de somenos
importˆancia.
No Brasil o presente tem muita for¸ca; nele se vive intensamente, ´e ele que se
busca compreender profundamente, na convic¸c˜ao de que nele est˜ao as ra´ızes
do futuro. Pa´ıs em constru¸c˜ao, seus habitantes em geral, seus estudiosos em
particular, tem consciˆencia n´ıtida de que est˜ao criando algo, de que sua a¸c˜ao
´e de importˆancia capital como fator por excelˆencia do provir. E, para chegar
6 CONTE ´UDO
a ela escolhe-se uma ´unica via preferencial, a especializa¸c˜ao numa dire¸c˜ao,
como se fora dela n˜ao existisse salva¸c˜ao.
No entanto, com esta maneira de ser t˜ao mercante, perdem-se de vista com-
ponentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por
outro lado a multipli-cidade de caminhos que tˆem sido tra¸cados para cons-
tru´ı-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ciˆencias
Sociais, ´e o refor¸co do conhecimento do passado de sua pr´opria disciplina e
da variedade de ramos que foi originando at´e a atualidade. Este livro, em
muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da An-
tropologia e seu lugar no ˆambito do saber.
Constru´ıdo dentro da tradi¸c˜ao francesa do pensamento anal´ıtico e da cla-
reza de express˜ao, esta introdu¸c˜ao ao conhecimento da Antropologia atinge,
na verdade, um p´ublico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e
especialistas de Ciˆencias Sociais. Sua difus˜ao se far´a sem d´uvida entre todos
aqueles atra´ıdos para os problemas do homem enquanto tal, que buscam co-
nhecer ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo ”outro”.
Maria Isaura Pereira de Queiroz 1
1
Maria Isaura Pereira de Queiroz ´e professora do Departamento de Sociologia e pes-
quisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
CONTE ´UDO 7
Introdu¸c˜ao
O Campo e a Abordagem Antropol´ogicos
O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as socie-
dades existiram homens que observavam homens. Houve at´e alguns que eram
te´oricos e forjaram, como diz L´evi-Strauss, modelos elaborados ”em casa”.
A reflex˜ao do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elabora¸c˜ao de um
saber s˜ao, portanto, t˜ao antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na
´Asia como na ´Africa, na Am´erica, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto
de fundar uma ciˆencia do homem - uma antropologia - ´e, ao contr´ario, muito
recente. De fato, apenas no final do s´eculo XVIII ´e que come¸ca a se constituir
um saber cient´ıfico (ou pretensamente cient´ıfico) que toma o homem como
objeto de conhecimento, e n˜ao mais a natureza; apenas nessa ´epoca ´e que o
esp´ırito cient´ıfico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao pr´oprio homem os
m´etodos at´e ent˜ao utilizados na ´area f´ısica ou da biologia.
Isso constitui um evento consider´avel na hist´oria do pensamento do homem
sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n˜ao estejamos medindo
todas as conseq¨uˆencias. Esse pensamento tinha sido at´e ent˜ao mitol´ogico,
art´ıstico, teol´ogico, filos´ofico, mas nunca cient´ıfico no que dizia respeito ao
homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ´ultimo do estatuto de
sujeito do conhecimento ao de objeto da ciˆencia. Finalmente, a antropolo-
gia, ou mais precisamente, o projeto antropol´ogico que se esbo¸ca nessa ´epoca
muito tardia na Hist´oria - n˜ao podia existir o conceito de homem enquanto
regi˜oes da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi˜ao
muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trar´a, evidentemente, como vere-
mos mais adiante, conseq¨uˆencias importantes.
Para que esse projeto alcance suas primeiras realiza¸c˜oes, para que o novo
saber comece a adquirir um in´ıcio de legitimidade entre outras disciplinas
cient´ıficas, ser´a preciso esperar a segunda metade do s´eculo XIX, durante o
qual a antropologia se atribui objetos emp´ıricos autˆonomos: as sociedades
ent˜ao ditas ”primitivas”, ou seja, exteriores `as ´areas de civiliza¸c˜ao europ´eias
ou norte-americanas. A ciˆencia, ao menos tal como ´e concebida na ´epoca,
sup˜oe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que
a separa¸c˜ao (sem a qual n˜ao h´a experimenta¸c˜ao poss´ıvel) entre o sujeito ob-
servante e o objeto observado ´e obtida na f´ısica (como na biologia, botˆanica,
ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes,
na hist´oria, pela distˆancia no tempo que separa o historiador da sociedade
8 CONTE ´UDO
estudada, ela consistir´a na antropologia, nessa ´epoca - e por muito tempo -
em uma distˆancia definitivamente geogr´afica. As sociedades estudadas pelos
primeiros antrop´ologos s˜ao sociedades long´ınquas `as quais s˜ao atribu´ıdas as
seguintes caracter´ısticas: sociedades de dimens˜oes restritas; que tiveram pou-
cos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia ´e pouco desenvolvida
em rela¸c˜ao `a nossa; e nas quais h´a uma menor especializa¸c˜ao das atividades
e fun¸c˜oes sociais. S˜ao tamb´em qualificadas de ”simples”; em conseq¨uˆencia,
elas ir˜ao permitir a compreens˜ao, como numa situa¸cao de laborat´orio, da
organiza¸c˜ao ”complexa”de nossas pr´oprias sociedades.
* * *
A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe ´e pr´oprio:
o estudo das popula¸c˜oes que n˜ao pertencem `a civiliza¸c˜ao ocidental. Ser˜ao ne-
cess´arias ainda algumas d´ecadas para elaborar ferramentas de investiga¸c˜ao
que permitam a coleta direta no campo das observa¸c˜oes e informa¸c˜oes. Mas
logo ap´os ter firmado seus pr´oprios m´etodos de pesquisa - no in´ıcio do s´eculo
XX - a antropologia percebe que o objeto emp´ırico que tinha escolhido (as
sociedades ”primitivas”) est´a desaparecendo; pois o pr´oprio Universo dos
”selvagens”n˜ao ´e de forma alguma poupado pela evolu¸c˜ao social. Ela se vˆe,
portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma
quest˜ao se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu
nascimento: o fim do ”selvagem”ou, como diz Paul Mercier (1966), ser´a que
a ”morte do primitivo”h´a de causar a morte daqueles que haviam se dado
como tarefa o seu estudo? A essa pergunta v´arios tipos de resposta puderam
e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em trˆes deles.
1) O antrop´ologo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ˆambito das
outras ciˆencias humanas. Ele resolve a quest˜ao da autonomia problem´atica
de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente
o que ´e chamado de ”sociologia comparada”.
2) Ele sai em busca de uma outra ´area de investiga¸c˜ao: 0 camponˆes, este
selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem ade-
quado, j´a que foi deixado de lado pelos outros ramos das ciˆencias do homem.
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2
A pesquisa etnogr´afica cujo objeto pertence `a mesma sociedade que i) observador foi,
de in´ıcio, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van ¨uenncp que elaborou os m´etodos
pr´oprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
CONTE ´UDO 9
3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n˜ao exclui
o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especifici-
dade de sua pr´atica, n˜ao mais atrav´es de um objeto emp´ırico constitu´ıdo
(o selvagem, o camponˆes), mas atrav´es de uma abordagem epistemol´ogica
constituinte. Essa ´e a terceira via que come¸caremos a esbo¸car nas p´aginas
que se seguem, e que ser´a desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto
te´orico da antropologia n˜ao est´a ligado, na perspectiva na qual come¸camos
a nos situar a partir de agora, a um espa¸co geogr´afico, cultural ou hist´orico
particular. Pois a antropologia n˜ao ´e sen˜ao um certo olhar, um certo enfoque
que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em
todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em
todas as ´epocas.
O estudo do homem inteiro
S´o pode ser considerada como antropol´ogica uma abordagem integrativa que
objetive levar em considera¸c˜ao as m´ultiplas dimens˜oes do ser humano em so-
ciedade. Certa-mente, o ac´umulo dos dados colhidos a partir de observa¸c˜oes
diretas, bem como o aperfei¸coamento das t´ecnicas de investiga¸c˜ao, conduzem
necessariamente a uma especializa¸c˜ao do saber. Por´em, uma das voca¸c˜oes
maiores de nossa abordagem consiste em n˜ao parcelar o homem mas, ao
contr´ario, em tentar relacionar campos de investiga¸c˜ao freq¨uentemente se-
parados. Ora, existem cinco ´areas principais da antropologia, que nenhum
pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas `as quais ele deve
estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas delas,
dado que essas cinco ´areas mant´em rela¸c˜oes estreitas entre si.
A antropologia biol´ogica (designada antigamente sob o nome de antropologia
f´ısica) consiste no estudo das varia¸c˜oes dos caracteres biol´ogicos do homem
no espa¸co e no tempo. Sua problem´atica ´e a das rela¸c˜oes entre o patrimˆonio
gen´etico e o meio (geogr´afico, ecol´ogico, social), ela analisa as particulari-
dades morfol´ogicas e fisiol´ogicas ligadas a um meio ambiente, bem como a
evolu¸c˜ao destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a
este patrimˆonio, mas tamb´em, o que esse patrimˆonio (que se transforma)
deve `a cultura? Assim, o antrop´ologo biologista levar´a em considera¸c˜ao os
fatores culturais que influenciam o crescimento e a matura¸c˜ao do indiv´ıduo.
forma magistral) as tradi¸c˜oes populares camponesas, a distˆancia social e cultural que
separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a distˆancia geogr´afica da antropologia
”ex´otica”.
10 CONTE ´UDO
Ele se perguntar´a, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da
crian¸ca africana ´e mais adiantado do que o da crian¸ca europ´eia? Essa parte
da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crˆanios,
mensura¸c˜oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada
as ra¸cas c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela gen´etica
das popula¸c˜oes, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao ad-
quirido, sendo que um e outro est˜ao interagindo continuamente. Ela tem, a
meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n˜ao sejam
rompidas as rela¸c˜oes entre as pesquisas das ciˆencias da vida e as das ciˆencias
humanas.
A antropologia pr´e-hist´orica ´e o estudo do homem atrav´es dos vest´ıgios mate-
riais enterrados no solo (ossadas, mas tamb´em quaisquer marcas da atividade
humana). Seu projeto, que se liga `a arqueologia, visa reconstituir as socie-
dades desaparecidas, tanto em suas t´ecnicas e organiza¸c˜oes sociais, quanto
em suas produ¸c˜oes culturais e art´ısticas. Notamos que esse ramo da antro-
pologia trabalha com uma abordagem idˆentica `as da antropologia hist´orica
e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O histo-
riador ´e antes de tudo um histori´ografo, isto ´e, um pesquisador que trabalha
a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pr´e-hist´oria reco-
lhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como
o realizado na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos vivos.3
4 antropologia ling¨u´ıstica. A linguagem ´e, com toda evidˆencia, parte do
patrimˆonio cultural de uma sociedade. ´E atrav´es dela que os indiv´ıduos
que comp˜oem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas
preocupa¸c˜oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da l´ıngua permite com-
preender: o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto ´e,
suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnoling´ıi´ıstica); o como eles
expressam o universo e o social (estudo da literatura, n˜ao apenas escrita, mas
tamb´em de tradi¸c˜ao oral); o como, finalmente, eles interpretam seus pr´oprios
saber e saber-fazer (´area das chamadas etnociˆencias).
A antropologia ling¨u´ıstica, que ´e uma disciplina que se situa no encontro
3
Foi notadamente gra¸cas a pesquisadores como Paul Rivet e Andr´e Leroi-Gourhan
(1964) que a articula¸c˜ao entre as ´areas da antropologia f´ısica, biol´ogica e s´ocio-cultural
nunca foi rompida na Fran¸ca. Mas continua sempre amea¸cada de ruptura devido a um
movimento de especializa¸c˜ao facilmente compreens´ıvel. Assim, colocando-se do ponto de
vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a ”desagrad´avel obriga¸c˜ao de
fazer m´enage `a trois com os representantes da arqueologia pr´e-hist´orica e da antropologia
f´ısica”, comparando-a `a coabita¸c˜ao dos psic´ologos e dos especialistas da observa¸c˜ao de
ratos em laborat´orio
CONTE ´UDO 11
de v´arias outras, 4
n˜ao diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos
(dialetologia). Ela se interessa tamb´em pelas imensas ´areas abertas pelas no-
vas t´ecnicas modernas de comunica¸c˜ao (mass media e cultura do audiovisual).
A antropologia psicol´ogica. Aos trˆes primeiros p´olos de pesquisa que foram
mencionados, e que s˜ao habitualmente os ´unicos considerados como constitu-
tivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do
campo global da antropologia, fazemos quest˜ao pessoalmente de acrescentar
um quinto p´olo: o da antropologia psicol´ogica, que consiste no estudo dos
processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antrop´ologo ´e
em primeira instˆancia confrontado n˜ao a conjuntos sociais, e sim a indiv´ıduos.
Ou seja, somente atrav´es dos comportamentos - conscientes e inconscientes -
dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual
n˜ao ´e antropologia. ´E a raz˜ao pela qual a dimens˜ao psicol´ogica (e tamb´em
psicopatol´ogica) ´e absolutamente indissoci´avel do campo do qual procuramos
aqui dar conta. Ela ´e parte integrante dele.
A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos deter´a por muito mais
tempo. Apenas nessa ´area temos alguma competˆencia, e este livro tra-
tar´a essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir
de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo
`a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es-
quecer que ela ´e apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos
cuja abrangˆencia ´e consider´avel, j´a que diz respeito a tudo que constitui
uma sociedade: seus modos de produ¸c˜ao econˆomica, suas t´ecnicas, sua or-
ganiza¸c˜ao pol´ıtica e jur´ıdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de
conhecimento, suas cren¸cas religiosas, sua l´ıngua, sua psicologia, suas cria¸c˜oes
art´ısticas.
Isso posto, esclare¸camos desde j´a que a antropologia consiste menos no levan-
tamento sistem´atico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular
com a qual est˜ao relacionados entre si e atrav´es da qual aparece a especifi-
cidade de uma sociedade. ´E precisamente esse ponto de vista da totalidade,
e o fato de que o antrop´ologo procura compreender, como diz L´evi-Strauss,
aquilo que os homens ”n˜ao pensam habitualmente em fixar ria pedra ou no
papel”(nossos gestos, nossas trocas simb´olicas, os menores detalhes dos nos-
4
Foi o antrop´ologo Edward Sapir (1967) quem, al´em de introduzir o estudo da lin-
guagem entre os materiais antropol´ogicos, come¸cou tamb´em a mostrar que um estudo
antropol´ogico da l´ıngua (a l´ıngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura)
conduzia a um estudo ling¨u´ıstico da cultura (a l´ıngua como modelo de conhecimento da
cultura).
12 CONTE ´UDO
sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamental-
mente diferente dos utilizados setorial- mente pelos ge´ografos, economistas,
juristas, soci´ologos, psic´ologos. . .
O estudo do homem em sua totalidade
A antropologia n˜ao ´e apenas o estudo de tudo que com-p˜oe uma sociedade.
Ela ´e o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5
), ou seja,
das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades hist´oricas
e geogr´aficas. Visando constituir os ”arquivos”da humanidade em suas di-
feren¸cas significativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as ´areas de
civiliza¸c˜ao exteriores `a nossa. Mas a antropologia n˜ao poderia ser definida
por um objeto emp´ırico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao
qual ela a princ´ıpio se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente).
Se seu campo de observa¸c˜ao consistisse no estudo das sociedades preservadas
do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como j´a comentamos,
sem objeto.
Ocorre, por´em, que se a especificidade da contribui¸c˜ao dos antrop´ologos em
rela¸c˜ao aos outros pesquisadores em ciˆencias humanas n˜ao pode ser con-
fundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades
extra-europ´eias), ela ´e a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhe-
cimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observa¸c˜ao
direta, por impregna¸c˜ao lenta e cont´ınua de grupos humanos min´usculos com
os quais mantemos uma rela¸c˜ao pessoal.
Al´em disso, apenas a distˆancia em rela¸c˜ao a nossa sociedade (mas uma
distˆancia que faz com que nos tornemos extremamente pr´oximos daquilo que
´e long´ınquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tom´avamos por
natural em n´os mesmos ´e, de fato, cultural; aquilo que era evidente ´e Infinita-
mente problem´atico. Disso decorre a necessidade, na forma¸c˜ao antropol´ogica,
daquilo que n˜ao hesitarei em chamar de ”estranhamento”(depaysement), a
perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s˜ao para n´os as mais
distantes, e cujo encontro vai levar a uma modifica¸c˜ao do olhar que se tinha
sobre si mesmo. De fato, presos a uma ´Unica cultura, somos n˜ao apenas
cegos `a dos outros, mas m´ıopes quando se trata da nossa. A experiˆencia
5
Os antrop´ologos come¸caram a se dedicar ao estudo das sociedades’ industriais
avan¸cadas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como
vimos, dos aspectos ”tradicionais”das sociedades ”n˜ao tradicionais”(as comunidades cam-
ponesas europ´eias), em seguida, dos grupos marginais, e finalmente, h´a alguns anos apenas
na Fran¸ca, do setor urbano.
CONTE ´UDO 13
da alteridade (e a elabora¸c˜ao dessa experiˆencia) leva-nos a ver aquilo que
nem ter´ıamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa
aten¸c˜ao no que nos ´e habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ”evi-
dente”. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (ges-
tos, m´ımicas, posturas, rea¸c˜oes afetivas) n˜ao tem realmente nada de ”natu-
ral”. Come¸camos, ent˜ao, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a
n´os mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropol´ogico) da nossa cultura
passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos es-
pecialmente reconhecer que somos uma cultura poss´ıvel entre tantas outras,
mas n˜ao a ´unica.
Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropo-
logia, como j´a o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest˜ao, ´e sua
aptid˜ao praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de orga-
niza¸c˜ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina
permite notar, com a maior proximidade poss´ıvel, que essas formas de com-
portamento e de vida em sociedade que tom´avamos todos espontaneamente
por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar,
comemorar os eventos de nossa existˆencia. . .) s˜ao, na realidade, o produto
de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos tˆem em comum
´e sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes,
l´ınguas, modos de conhecimento, institui¸c˜oes, jogos profundamente diversos;
pois se h´a algo natural nessa esp´ecie particular que ´e a esp´ecie humana, ´e
sua aptid˜ao `a varia¸c˜ao cultural
O projeto antropol´ogico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento,
juntamente com a compreens˜ao de uma humanidade plural. Isso sup˜oe ao
mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do
idˆentico, e com a exclus˜ao num irredut´ıvel ”alhures”. As sociedades mais di-
ferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas,
s˜ao na realidade t˜ao diferentes entre si quanto o s˜ao da nossa. E, mais ainda,
elas s˜ao para cada uma delas muito raramente homogˆeneas (como seria de se
esperar) mas, pelo contr´ario, extremamente diversificadas, participando ao
mesmo tempo de uma comum humanidade.
A abordagem antropol´ogica provoca, assim, uma verdadeira revolu¸c˜ao epis-
temol´ogica, que come¸ca por uma revolu¸c˜ao do olhar. Ela implica um des-
centramento radical, uma ruptura com a id´eia de que existe um ”centro do
mundo”, e, correlativamente, uma amplia¸c˜ao do saber 6
e uma muta¸c˜ao de
6
Veremos que a antropologia sup˜oe n˜ao apenas esse desmembramento (´eclatement)
14 CONTE ´UDO
si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andr´e Gide:
”Eu sou mil poss´ıveis em mim; mas n˜ao posso me resignar a querer apenas
um deles”.
A descoberta da alteridade ´e a de uma rela¸c˜ao que nos permite deixar de
identificar nossa pequena prov´ıncia de humanidade com a humanidade, e
correlativamente deixar de rejeitar o presumido ”selvagem”fora de n´os mes-
mos. Confrontados `a multiplicidade, a priori enigm´atica, das culturas, somos
aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a
naturaliza¸c˜ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscri-
tos em n´os desde o nascimento, e n˜ao fossem adquiridos no contato com a
cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo cl´assico
que tamb´em consiste na identifica¸c˜ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura
com a nossa cultura. De fato, a filosofia cl´assica (antol´ogica com S˜ao Tom´as,
reflexiva com Descartes, criticista com Kant, hist´orica com Hegel), mesmo
sendo filosofia social, bem como as grandes religi˜oes, nunca se deram como
objetivo o de pensar a diferen¸ca (e muito menos, de pens´a-la cientificamente),
e sim o de reduzi-la, freq¨uentemente inclusive de uma forma igualit´aria e com
do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de L´ery) ou no ceticismo (de um
Montaigne), ligados ao questionamento da cultura `a qual se pertence, mas tamb´em uma
nova pesquisa e uma reconstitui¸c˜ao deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest˜ao:
ser´a que a Antropologia ´e o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade?
Evidentemente, o europeu n˜ao foi o ´unico a interessar-se pelos h´abitos e pelas ins-
titui¸c˜oes do n˜ao-europeu. A rec´ıproca tamb´em ´e verdadeira, como atestam notadamente
os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade M´edia, por viajantes vindos
da ´Asia. E os ´ındios Flathead de quem nos fala L´evi-Strauss eram t˜ao curiosos do que
ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedi¸c˜oes a fim
de encontr´a-los. Poder´ıamos multiplicar os exemplos. Isso n˜ao impede que a constitui¸c˜ao
de um saber de voca¸c˜ao cient´ıfica sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido
a partir da cultura europ´eia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um
africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um ”europe´ısmo”, que
teria se constitu´ıdo como campo de saber te´orico a partir da ´Asia, da ´Africa ou da Oceania.
Isso posto, as condi¸c˜oes de produ¸c˜ao hist´oricas, geogr´aficas, sociais e culturais da
antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropol´ogico perder
de vista, mas que n˜ao devem ocultar a voca¸c˜ao (evidentemente problem´atica) de nossa
disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve L´evi-Strauss:
”N˜ao se trata apenas de elevar-se acima dos valores pr´oprios da sociedade ou do grupo
do observador, e sim de seus m´etodos de pensamento; ´e preciso alcan¸car formula¸c˜ao
v´alida, n˜ao apenas para um observador honesto mas para todos os observadores poss´ıveis”.
Lembremos que a antropologia s´o come¸cou a ser ensinada nas universidades h´a al-
gumas d´ecadas. Na Gr˜a-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Fran¸ca a
partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
CONTE ´UDO 15
as melhores inten¸c˜oes do mundo.
O pensamento antropol´ogico, por sua vez, considera que, assim como uma
civiliza¸c˜ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve
igualmente aceitar a diversidade das culturas, tamb´em adultas. Estamos,
evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pˆode per-
manecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si
pr´opria e fazendo, de tudo que n˜ao eram suas ideologias dominantes sucessi-
vas, um objeto de exclus˜ao. Desconfiemos por´em do pensamento - que seria
o c´umulo em se tratando de antropologia - de que estamos finalmente mais
”l´ucidos”, mais ”conscientes”, mais ”livres”, mais ”adultos”, como acaba-
mos de escrever, do que em uma ´epoca da qual seria errˆoneo pensar que est´a
definitivamente encerrada. Pois essa transgress˜ao de uma das tendˆencias do-
minantes de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas
formas econˆomicas, pol´ıticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que
significa de forma alguma que o antrop´ologo esteja destinado, seja levado por
alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a l´ogica das outras socie-
dades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contr´ario, mostrar nesse livro
que a d´uvida e a cr´ıtica de si mesmo s´o s˜ao cientificamente fundamentadas
se forem acompanhadas da interpela¸c˜ao cr´ıtica dos de outrem.
Dificuldades
Se os antrop´ologos est˜ao hoje convencidos de que uma das caracter´ısticas
maiores de sua pr´atica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto ´e,
convencidos do fato de que os fenˆomenos sociais que estudamos s˜ao fenˆomenos
que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles
s˜ao tamb´em unˆanimes em pensar que h´a uni-dade da fam´ılia humana, a
fam´ılia dos antrop´ologos ´e, por sua vez, muito dividida, quando se trata de
dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e
de forma geral a todos aqueles que tˆem o direito de saber o que verdadei-
ramente fazem os antrop´ologos) dessa unidade m´ultipla, desses materiais e
dessa experiˆencia.
1) A primeira dificuldade se manifesta, como sempre, ao n´ıvel das pala-
vras. Mas ela ´e, tamb´em aqui, particularmente reveladora da juventude de
nossa disciplina,6 que n˜ao sendo, como a f´ısica, uma ciˆencia constitu´ıda, con-
tinua n˜ao tendo ainda optado definitivamente pela sua pr´opria designa¸c˜ao.
Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde `a tradi¸c˜ao
terminol´ogica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredut´ıvel das
etnias, isto ´e, das culturas. No segundo (que ´e mais usado nos pa´ıses anglo-
16 CONTE ´UDO
saxˆonicos), sobre a unidade do gˆenero humano. E optando-se por antro-
pologia, deve-se falar (com os autores britˆanicos) em antropologia social -
cujo objeto privilegiado ´e o estudo das institui¸c˜oes - ou (com os autores
americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos com-
portamentos.7
2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de cientificidade que conv´em
atribuir `a antropologia. O homem est´a em condi¸c˜oes de estudar cientifica-
mente o homem, isto ´e, um objeto que ´e de mesma natureza que o sujeito?
E nossa pr´atica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com
Radcliffe-Brown (1968), que as sociedade s˜ao sistemas naturais que devem
ser estudados segundo os m´etodos comprovados pelas ciˆencias da natureza,8
e
os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que ´e preciso tratar as socieda-
des n˜ao como sistemas orgˆanicos, mas como sistemas simb´olicos. Para estes
´ultimos, longe de ser uma ”ciˆencia natural da sociedade”(Radcliffe-Brown), a
antropologia deve antes ser considerada como uma ”arte”(Evans-Pritchard).
3) Uma terceira dificuldade prov´em da rela¸c˜ao amb´ıgua que a antropolo-
gia mant´em desde sua gˆenese com a Hist´oria. Estreitamente vinculadas nos
s´eculos XVIII e XIX, as duas pr´aticas v˜ao rapidamente se emancipar uma
da outra no s´eculo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perio-
dicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antrop´ologos.
Evans-Pritchard: ”O conhecimento da hist´oria das sociedades n˜ao ´e de ne-
7
Para que o leitor que n˜ao tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa
localizar-se, vale a pena especificar bem o significado dessas palavras. Estabele¸camos,
como L´evi-Strauss, que a etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os trˆes mo-
mentos de uma mesma abordagem. A etnografia ´e a coleta direta, e o mais minuciosa
poss´ıvel, dos fenˆomenos que observamos, por uma impregna¸c˜ao duradoura e cont´ınua e
um processo que se realiza por aproxima¸c˜oes sucessivas. Esses fenˆomenos podem ser reco-
lhidos tomando-se notas, mas tamb´em por grava¸c˜ao sonora, fotogr´afica ou cinematogr´afica.
A etnologia consiste em um primeiro n´ıvel de abstra¸c˜ao: analisando os materiais colhidos,
fazer aparecer a l´ogica espec´ıfica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente,
consiste era um segundo n´ıvel de inteligibilidade: construir modelos que permitam com-
parar as sociedades entre si. Como escreve L´evi-Strauss, ”seu objetivo ´e alcan¸car, al´em da
imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um invent´ario
das possibilidades inconscientes, que n˜ao existem em n´umero ilimitado”.
8
Ao modelo orgˆanico dos funcionalistas ingleses, L´evi-Strauss substituiu, como vere-
mos, um modelo ling¨u´ıstico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza
(o inato) e da cultura (tudo o que n˜ao ´e hereditariamente programado e deve ser inven-
tado pelos homens onde a natureza n˜ao programou nada), a antropologia deve aspirar a
tornar-se uma ciˆencia natural: ”A antropologia pertence `as ciˆencias humanas, seu nome o
proclama suficientemente; mas se se resigna em fazer seu purgat´orio entre as ciˆencias soci-
ais, ´e porque n˜ao desespera de despertar entre as ciˆencias naturais na hora do julgamento
final”(L´evi-Strauss, 1973)
CONTE ´UDO 17
nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das insti-
tui¸c˜oes”. Mais categ´orico ainda, Leach escreve: ”A gera¸c˜ao de antrop´ologos
`a qual perten¸co tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Hist´oria
em considera¸c˜ao”. Conv´em tamb´em lembrar aqui a distin¸c˜ao agora famosa
de L´evi-Strauss opondo as ”sociedades frias”, isto ´e, ”pr´oximas do grau zero
de temperatura hist´orica”, que s˜ao menos ”sociedades sem hist´oria”, do que
”sociedades que n˜ao querem ter est´orias”(´unicos objetos da antropologia
cl´assica) a nossas pr´oprias sociedades qualificadas de ”sociedades quentes”.
Essa preocupa¸c˜ao de separa¸c˜ao entre as abordagens hist´orica e antropol´ogica
est´a longe, como veremos, de ser unˆanime, e a hist´oria recente da antropo-
logia testemunha tamb´em um desejo de coabita¸c˜ao entre as duas disciplinas.
Aqui, no Nordeste do Brasil, onde come¸co a escrever este livro, desde 1933,
um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a forma¸c˜ao
da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do
conhecimento hist´orico.
4) Uma quarta dificuldade prov´em do fato de que nossa pr´atica oscila sem
parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode qualificar de
fundamental e aquilo que ´e designado sob o termo de ”antropologia aplicada”.
Come¸caremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e
que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim conside-
rava que a sociologia n˜ao valeria sequer uma hora de dedica¸c˜ao se ela n˜ao
pudesse ser ´util, e muitos antrop´ologos compartilham sua opini˜ao. Margaret
Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas
Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaura¸c˜ao de
uma sociedade melhor, e, mais especificamente a aplica¸c˜ao de uma pedagogia
menos frustrante `a sociedade americana. Hoje v´arios colegas nossos consi-
deram que a antropologia deve colocar-se ”a servi¸co da revolu¸c˜ao”(segundo
especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent˜ao, um mili-
tante, um ”antrop´ologo revolucion´ario”, contribuindo na constru¸c˜ao de uma
”antropologia da liberta¸c˜ao”. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a
qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos pro-
gramas de desenvolvimento e das decis˜oes pol´ıticas relacionadas `a elaborac˜ao
desses programas. Quer´ıamos simplesmente observai aqui que a ”antropolo-
gia aplicada”9
n˜ao ´e uma grande novidade. ´E por ela que, com a coloniza¸c˜ao,
a antropologia teve inicio.10
9
Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971
10
A maioria dos antrop´ologos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a pe-
18 CONTE ´UDO
Foi com ela, inclusive, que se deu o in´ıcio da Antropologia, durante a co-
loniza¸c˜ao. No extremo oposto das atitudes ”engajadas”das quais acabamos
de falar, encontramos a posi¸c˜ao determinada de um Claude L´evi-Strauss que,
ap´os ter lembrado que o saber cient´ıfico sobre o homem ainda se encontrava
num est´agio extremamente primitivo em rela¸c˜ao ao saber sobre a natureza,
escreve:
”Supondo que nossas ciˆencias um dia possam ser colocadas a servi¸co da
a¸c˜ao pr´atica, elas n˜ao tˆem, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O
verdadeiro meio de permitir sua existˆencia, ´e dar muito a elas, mas sobretudo
n˜ao lhes pedir nada”.
As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia ”pura”ou a antro-
pologia ”diluida”como diz ainda L´evi-Strauss encontram na realidade suas
primeiras formula¸c˜oes desde os prim´ordios da confronta¸c˜ao do europeu com
o ”selvagem”. Desde o s´eculo XVI, de fato, come¸ca a se implantar aquilo o
que alguns chamariam de ”arqu´etipos”do discurso etnol´ogico, que podem ser
ilustrados pelas posi¸c˜oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun.
Jean de Lery foi um huguenote* francˆes que permaneceu algum tempo no
Brasil entre os Tupinamb´as. Longe de procurar convencer seus h´ospedes da
superioridade da cultura europ´eia e da religi˜ao reformada, ele os interroga
e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns
anos mais tarde realizou uma verdadeira investiga¸c˜ao no M´exico.
Perfeitamente `a vontade entre os astecas, ele estava l´a enquanto mission´ario
a fim de converter a popula¸c˜ao que estuda.11
O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers˜ao
religiosa, a ”revolu¸c˜ao”, a ajuda ao ”Terceiro Mundo”, as estrat´egias daquilo
que ´e hoje chamado ”desenvolvimento”ou ainda ”mudan¸ca social”) n˜ao al-
tera nada quanto ao ˆamago do problema, que ´e o seguinte: 0 antrop´ologo
deve contribuir, enquanto antrop´ologo, para B transforma¸c˜ao das sociedades
que ele estuda 11
dido das administra¸c˜oes: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo
britˆanico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi
conselheiro do governo do Sud˜ao, etc
11
Essa dupla abordagem da rela¸c˜ao ao outro pode muito bem sei realizada por um ´unico
pesquisador. Assim Malinowski chegando `as ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa
literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas v´arios anos depois (trad.
franc., 1968) participa do que chama ”uma experiˆencia controlada”do desenvolvimento
CONTE ´UDO 19
Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abor-
dagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos ´e mais
familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos)
e em tornar mais familiar aquilo que nos ´e estranho (os comportamentos, as
cren¸cas, os costumes das sociedades que n˜ao s˜ao as nossas, mas nas quais po-
der´ıamos ter nascido), est´a diretamente confrontada hoje a um movimento de
homogeneiza¸c˜ao, ao meu ver, sem precedente’ na Hist´oria: o desenvolvimento
de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento
que ´e a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias
sucessivas entre os Berberes do M´edio Atlas e entre os Baul´es da Costa do
Marfim, perceber realmente o fasc´ınio que exerce este modelo, perturbando
completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de
se distrair, de se encontrar, de pensar 12
e levando a novos comportamentos
que n˜ao decorrem de uma escolha)
A quest˜ao que est´a hoje colocada para qualquer antrop´ologo ´e a seguinte:
h´a uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindo-
lhe o acesso a um est´agio de sociedade industrial (ou p´os-industrial) sem
conflito dram´atico, sem risco de despersonaliza¸c˜ao?
Minha convic¸c˜ao ´e de que o antrop´ologo, para ajudar os atores sociais a
responder a essa quest˜ao, n˜ao deve, pelo menos enquanto antrop´ologo, tra-
balhar para a transforma¸c˜ao das sociedades que estuda. Caso contr´ario, seria
conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agrˆonomo, m´edico,
pol´ıtico, a n˜ao ser que ele seja motivado por alguma concep¸c˜ao messiˆanica
da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicita¸c˜ao para ela
mesma de sua pr´opria diferen¸ca ´e uma coisa; organizar pol´ıtica, econˆomica e
socialmente a evolu¸c˜ao dessa diferen¸ca ´e uma outra coisa. Ou seja, a parti-
cipa¸c˜ao do antrop´ologo naquilo que ´e hoje a vanguarda do anticolonialismo
e da luta para os direitos humanos e das minorias ´etnicas ´e, a meu ver, uma
conseq¨uˆencia de nossa profiss˜ao, mas n˜ao ´e a nossa profiss˜ao propriamente
dita.
Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urgˆencia `a
qual temos o dever de responder.
12
As muta¸c˜oes de comportamentos geradas por essa forma de civiliza¸c˜ao mundialista
podem tamb´em evidentemente ser encontradas nas nossa; pr´oprias culturas rurais e ur-
banas. Em compensa¸c˜ao, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde
come¸cou a redigir este livro
20 CONTE ´UDO
a) Urgˆencia de preserva¸c˜ao dos patrimˆonios culturais locais amea¸cados (e
a respeito disso a etnologia est´a desde o seu nascimento lutando contra o
tempo para que a transcri¸c˜ao dos arquivos orais e visuais possa ser realizada
a tempo, enquanto os ´ultimos deposit´arios das tradi¸c˜oes ainda est˜ao vivos)
e, sobretudo, de restitui¸c˜ao aos habitantes das diversas regi˜oes nas quais tra-
balhamos, de seu pr´oprio saber e saber-fazer. Isso sup˜oe uma ruptura com
a concep¸c˜ao assim´etrica da pesquisa, baseada na capta¸c˜ao de informa¸c˜oes.
N˜ao h´a, de fato, antropologia sem troca, isto ´e, sem itiner´ario no decor-
rer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da
necessidade de n˜ao deixar se perder formas de pensamento e atividade ´unicas.
b) Urgˆencia de an´alise das muta¸c˜oes culturais impostas pelo desenvolvimento
extremamente r´apido de todas as sociedades contemporˆaneas, que n˜ao s˜ao
mais ”sociedades tradicionais”, e sim sociedades que est˜ao passando por um
desenvolvimento tecnol´ogico absolutamente in´edito, por muta¸c˜oes de suas
rela¸c˜oes sociais, por movimentos de migra¸c˜ao Interna, e por um processo de
urbaniza¸c˜ao acelerado. Atrav´es da especificidade de sua abordagem, nossa
disciplina deve, n˜ao fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim for-
mular quest˜oes com eles, elaborar com eles uma reflex˜ao racional (e n˜ao mais
m´agica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tamb´em uma
crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto ´e, o encontro
de l´ınguas, t´ecnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropol´ogica, que
n˜ao ´e de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem
nunca se substituir aos projetos e `as decis˜oes dos pr´oprios atores sociais,
tem hoje como voca¸c˜ao maior a de propor n˜ao solu¸c˜oes mas instrumentos
de investiga¸c˜ao que poder˜ao ser utilizados em especial para reagir ao choque
da acultura¸c˜ao, isto ´e, ao risco de um desenvolvimento conflituoso levando `a
violˆencia negadora das particularidades econˆomicas, sociais, culturais de um
povo.
5) Uma quinta dificuldade diz respeito, finalmente, `a natureza desta obra que
deve apresentar, em um n´umero de p´aginas reduzido, um campo de pesquisa
imenso, cujo desenvolvimento recente ´e extremamente especializado. No fi-
nal do s´eculo XIX, um ´unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo
global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural,
ling¨u´ıstica, pr´e-hist´orica, e tamb´em mais recentemente o caso de Ktoeber,
provavemente o ´ultimo antrop´ologo que explorou: com sucesso uma ´area t˜ao
extensa). N˜ao ´e, evidentemente, o caso hoje em dia. O antrop´ologo considera
agora – com raz˜ao – que ´e competente apenas dentro de uma ´area restrita 13
13
A antropologia das t´ecnicas, a antropologia econˆomica, pol´ıtica, a antropologia do
CONTE ´UDO 21
de sua pr´opria disciplina e para uma ´area geogr´afica delimitada.
Era-me portanto imposs´ıvel, dentro de um texto de dimens˜oes t˜ao restri-
tas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos
campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar
um certo n´umero de referˆencias, definir alguns conceitos a partir dos quais o
leitor poder´a, espero, interessar-se em ir mais adiante.
Ver-se-´a que este livro caminha em espiral. As preocupa¸c˜oes que est˜ao no
centro de qualquer abordagem antropol´ogica e que acabam de ser mencio-
nadas ser˜ao retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em
primeiro lugar quais foram as principais etapas da constitui¸c˜ao de nossa dis-
ciplina e como, atrav´es dessa hist´oria da antropologia, foram se colocando
progressivamente as quest˜oes que continuam nos interessando at´e hoje. Em
seguida, esbo¸carei os p´olos te´oricos - a meu ver cinco - em volta dos quais
oscilam o pensamento e a pr´atica antropol´ogica. Teria sido, de fato, surpreen-
dente, se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse
monol´ıtica. Ela ´e ao contr´ario claramente plural. Veremos no decorrer deste
livro que existem perspectivas complementares, mas tamb´em mutuamente
exclusivas, entre as quais ´e preciso escolher. E, em vez de fingir ter ado-
tado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que
nas ciˆencias humanas ´e um engodo, esfor¸cando-me ao mesmo tempo para
apresentar com o m´aximo de objetividade o pensamento dos outros, n˜ao
dissimularei as minhas pr´oprias op¸c˜oes. Finalmente, em uma ´ultima parte,
os principais eixos anteriormente examinados ser˜ao, em um movimento por
assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de definir aquilo que cons-
titui, a meu ver, a especificidade da antropologia.
Eu queria finalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo
p´ublico poss´ıvel. N˜ao `aqueles que tˆem por profiss˜ao a antropologia – du-
vido que encontrem nele um grande interesse – mas a todos que, em algum
momento de sua vida (profissional, mas tamb´em pessoal), possam ser levados
a utilizar o modo de conhecimento t˜ao caracter´ıstico da antropologia. Esta
´e a raz˜ao pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem t´ecnica
e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente
pela segunda. Pois a antropologia, que ´e a ciˆencia do homem por excelˆencia,
pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos n´os.
parentesco, das organiza¸c˜oes sociais, a antropologia religiosa, art´ıstica, a antropologia dos
sistemas de comunica¸c˜oes...
22 CONTE ´UDO
Parte I
Marcos Para Uma Hist´oria Do
Pensamento Antropol´ogio
23
Laplantine.françoise. aprender antropologia
Cap´ıtulo 1
A Pr´e-Hist´oria Da
Antropologia:
a descoberta das diferen¸cas pelos vi-
ajantes do s´eculo e a dupla resposta
ideol´ogica dada daquela ´epoca at´e nos-
sos dias
A gˆenese da reflex˜ao antropol´ogica ´e contemporˆanea `a descoberta do Novo
Mundo. O Renascimento explora espa¸cos at´e ent˜ao desconhecidos e come¸ca
a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espa¸cos.1
A
grande quest˜ao que ´e ent˜ao colocada, e que nasce desse primeiro confronto
visual com a alteridade, ´e a seguinte: aqueles que acabaram de serem desco-
bertos pertencem `a humanidade? O crit´erio essencial para saber se conv´em
atribuir-lhes um estatuto humano ´e, nessa ´epoca, religioso: O selvagem tem
uma alma? O pecado original tamb´em lhes diz respeito? –quest˜ao capital
para os mission´arios, j´a que da resposta ir´a depender o fato de saber se ´e
poss´ıvel trazer-lhes a revela¸c˜ao. Notamos que se, no s´eculo XIV, a quest˜ao
1
As primeiras observa¸c˜oes e os primeiros discursos sobre os povos ”distantes”de que
dispomos provˆem de duas fontes: 1) as rea¸c˜oes dos primeiros viajantes, formando o que
habitualmente chamamos de ”literatura de viagem”. Dizem respeito em primeiro lugar `a
P´ersia e `a Turquia, em seguida `a Am´erica, `a ´Asia e `a ´Africa. Em 1556, Andr´e Thevet
escreve As Singularidades da Fran¸ca Ant´artica, em 1558 Jean de Lery, A Hist´oria de Uma
Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tamb´em como exemplo, para um per´ıodo
anterior (s´eculo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um per´ıodo posterior (s´eculo
XVII) Y. d’Evreux (reed. 1985), bom como a coletˆanea de textos de J. P. Duviols (1978);
2) os relat´orios dos mission´arios e particularmente as ”Rela¸c˜oes”dos jesu´ıtas (s´eculo XVII)
nc Canad´a, no Jap˜ao, na China, Cf., por exemplo, as Lettres ˆEdifiantes et Curieuses de la
Chine par des Missionnaires J´esuites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979.
25
26 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
´e colocada, n˜ao ´e de forma alguma solucionada. Ela ser´a definitivamente
resolvida apenas dois s´eculos mais tarde.
Nessa ´epoca ´e que come¸cam a se esbo¸car as duas ideologias concorrentes,
mas das quais uma consiste no sim´etrico invertido da outra: a recusa do es-
tranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corol´ario ´e a boa consciˆencia
que se tem sobre si e sua sociedade;2
a fascina¸c˜ao pelo estranho cujo corol´ario
´e a m´a consciˆencia que se tem sobre si e sua sociedade.
Ora, os pr´oprios termos dessa dupla posi¸c˜ao est˜ao colocados desde a me-
tade do s´eculo XIV: no debate, que se torna uma controv´ersia p´ublica, que
durar´a v´arios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op˜oe o
dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera.
Las Casas:
” `Aqueles que pretendem que os ´ındios s˜ao b´arbaros, responderemos que essas
pessoas tˆem aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem pol´ıtica que,
em alguns reinos, ´e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou
at´e superavam muitas na¸c˜oes e uma ordem pol´ıtica que, em alguns reinos, ´e
melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou at´e superavam muitas
na¸c˜oes do mundo conhecidas como policiadas e razo´aveis, e n˜ao eram infe-
riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e
at´e, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tamb´em a
Inglaterra, a Fran¸ca, e algumas de nossas regi˜oes da Espanha. (...) Pois a
maioria dessas na¸c˜oes do mundo, sen˜ao todas, foram muito mais pervertidas,
irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudˆencia e saga-
cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. N´os
mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens˜ao
de nossa Espanha, pela barb´arie de nosso modo de vida e pela deprava¸c˜ao de
nossos costumes”.
Sepulvera:
”Aqueles que superam os outros em prudˆencia e raz˜ao, mesmo que n˜ao se-
jam superiores em for¸ca f´ısica, aqueles s˜ao, por natureza, os senhores; ao
contr´ario, por´em, os pregui¸cosos, os esp´ıritos lentos, mesmo que tenham as
for¸cas f´ısicas para cumprir todas as tarefas necess´arias, s˜ao por natureza ser-
2
Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendˆencia e a prote¸c˜ao, paternalista
do outro: 2) sua exclus˜ao
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27
vos. E ´e justo e ´util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela pr´opria
lei divina. Tais s˜ao as na¸c˜oes b´arbaras e desumanas, estranhas `a vida civil
e aos costumes pac´ıficos. E ser´a sempre justo e conforme o direito natural
que essas pessoas estejam submetidas ao imp´erio de pr´ıncipes e de na¸c˜oes
mais cultas e humanas, de modo que, gra¸cas `a virtude destas e `a prudˆencia
de suas leis, eles abandonem a barb´arie e se conformem a uma vida mais
humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imp´erio, pode-se
impˆo-lo pelo meio das armas e essa guerra ser´a justa, bem como o declara
o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos
dominem aqueles que n˜ao tˆem essas virtudes”.
Ora, as ideologias que est˜ao por tr´as desse duplo discurso, mesmo que n˜ao se
expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro s´eculos
ap´os a polˆemicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3
Como s˜ao estere´otipos
que envenenam essa antropologia espontˆanea de que temos ainda hoje tanta
dificuldade para nos livrarmos, conv´em nos determos sobre eles.
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom
Civilizado
A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos ho-
mens como um fato, e sim como uma aberra¸c˜ao exigindo uma justifica¸c˜ao.
A antig¨uidade grega designava sob o nome de b´arbaro tudo o que n˜ao par-
ticipava da helenidade (em referˆencia `a inarticula¸c˜ao do canto dos p´assaros
oposto `a significa¸c˜ao da linguagem humana), o Renascimento, os s´eculos
XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto ´e, seres da floresta),
opondo assim a animalidade `a humanidade. O termo primitivos ´e que triun-
far´a no s´eculo XIX, enquanto optamos preferencialmente na ´epoca atual pelo
de subdesenvolvidos.
Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto ´e, para a natureza to-
dos aqueles que n˜ao participam da faixa de humanidade `a qual pertencemos
e com a qual nos identificamos, ´e, como lembra L´evi-Strauss, a mais comum
3
Essa oscila¸c˜ao entre dois p´olos concorrentes, mas ligados entre si por um movimento
de pˆendulo ininterrupto, pode ser encontrada n˜ao apenas em uma mesma ´epoca, mas em
um mesmo autor. Cf., por exemplo, L´ery (1972) ou Buffon (1984).
28 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracter´ıstica dos ”selvagens”.4
Entre os crit´erios utilizados a partir do s´eculo XIV pelos europeus para julgar
se conv´em conferir aos ´ındios um estatuto humano, al´em do crit´erio religioso
do qual j´a falamos, e que pede, na configura¸c˜ao na qual nos situamos, uma
resposta negativa (”sem religi˜ao nenhuma”, s˜ao ”mais diabos”), citaremos:
• a aparˆencia f´ısica: eles est˜ao nus ou ”vestidos de peles de animais”;
• os comportamentos alimentares: eles ”comem carne crua”, e ´e todo o
imagin´ario do canibalismo que ir´a aqui se elaborar;5
• a inteligˆencia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles
falam ”uma l´ıngua inintelig´ıvel”.
Assim, n˜ao acreditando em Deus, n˜ao tendo alma, n˜ao tendo acesso `a
linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal,
o selvagem ´e apreendido nos modos de um besti´ario. E esse discurso so-
bre a alteridade, que recorre constantemente `a met´afora zool´ogica, abre o
grande leque das ausˆencias: sem moral, sem religi˜ao, sem lei, sem escrita,
sem Estado, sem consciˆencia, sem raz˜ao, sem objetivo, sem arte, sem pas-
sado, sem futuro.6
Cornelius de Pauw acrescentar´a at´e, no s´eculo XVIII:
”sem barba”, ”sem sobrancelhas”, ”sem pˆelos”, ”sem esp´ıritosem ardor para
com sua fˆemea”.
”´E a grande gl´oria e a honra de nossos reis e dos espanh´ois, escreve Go-
mara em sua Hist´oria Geral dos ´ındios, ter feito aceitar aos ´ındios um ´unico
Deus, uma ´unica f´e e um ´unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa-
crif´ıcios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus
pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos
deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais;
4
”Assim”, escreve L´evi-Strauss (1961), ”Ocorrem curiosas situa¸c˜oes onde dois interlo-
cutores d˜ao-s´e cruelmente a r´eplica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos ap´os a descoberta
da Am´erica, enquanto os espanh´ois enviavam comiss˜oes de inqu´erito para pesquisar se os
ind´ıgenas possu´ıam ou n˜ao uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisio-
neiros a fim de verificar, por uma observa¸c˜ao demorada, se seus cad´averes eram ou n˜ao
sujeitos `a putrefa¸c˜ao”
5
Cf. especialmente Hans Staden, V´eritable Histoire et Descriptiou d’un Pays Habit´e
par des Hommes Sauvages, Nus. F´eroces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M.
JVl´etaili´e, 1979.
6
Essa falta pode ser apreendida atrav´es de duas variantes: I) n˜ao tˆem, irremediavel-
mente, futuro e n˜ao temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) ´e poss´ıvel fazˆe-los
evoluir. Pela a¸c˜ao mission´aria (a partir s´eculo XVI). Assim como pela a¸c˜ao administrativa
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29
mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s˜ao como animais e o uso do
ferro que ´e t˜ao necess´ario ao homem. Tamb´em lhes mostramos v´arios bons
h´abitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso – e
at´e cada uma dessas coisas – vale mais que as penas, as p´erolas, o ouro que
tomamos deles, ainda mais porque n˜ao utilizavam esses metais como moeda”.
”As pessoas desse pa´ıs, por sua natureza, s˜ao t˜ao ociosas, viciosas, de pouco
trabalho, melanc´olicas, covardes, sujas, de m´a condi¸c˜ao, mentirosas, de mole
constˆancia e firmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abo-
min´aveis pecados dessas pessoas selvagens, r´usticas e bestiais, que fossem
atirados e banidos da superf´ıcie da Terra”. escreve na mesma ´epoca (1555)
Oviedo em sua Hist´oria das ´ındias.
Opini˜oes desse tipo s˜ao inumer´aveis, e passaram tranq¨uilamente para nossa
´epoca. No s´eculo XIX, Stanley, em seu livro dedicado `a pesquisa de Li-
vingstone, compara os africanos aos ”macacos de um jardim zool´ogico”, e
convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que
foi o discurso colonial dos franceses na Arg´elia.
Mais dois textos ir˜ao deter mais demoradamente nossa aten¸c˜ao, por nos pa-
recerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso
do civilizado. S˜ao as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes
para servir `a Hist´oria da Esp´ecie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado
em 1774, e a famosa Introdu¸c˜ao `a Filosofia da Hist´oria, de Hegel.
1) De Pauw nos prop˜oe suas reflex˜oes sobre os ´ındios da Am´erica do Norte.
Sua convic¸c˜ao ´e a de que sobre estes l´ıllimos a influˆencia da natureza ´e total,
ou mais precisamente negativa. Se essa ra¸ca inferior n˜ao tem hist´oria e est´a
pura sempre condenada, por seu estado ”degenerado”, a permanecer fora do
movimento da Hist´oria, a raz˜ao deve ser atribu´ıda ao clima de uma extrema
umidade:
”Deve existir, na organiza¸c˜ao dos americanos, uma causa qualquer que em-
brutece sua sensibilidade e seu esp´ırito. A qualidade do clima, a grosseria
de seus humores, o v´ıcio radical do sangue, a constitui¸c˜ao de seu tempera-
mento excessivamente fleum´atico podem ter diminu´ıdo o tom e o saracoteio
dos nervos desses homens embrutecidos”.
Eles tˆem, prossegue Pauw, um ”temperamento t˜ao ´umido quanto o ar e
a terra onde vegetam”e que explica que eles n˜ao tenham nenhum desejo se-
xual. Em suma, s˜ao ”infelizes que suportam todo o peso da vida agreste
30 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
na escurid˜ao das florestas, parecem mais animais do que vegetais”. Ap´os a
degenerescˆencia ligada a um ”v´ıcio de constitui¸c˜ao f´ısica”, Pauw chega `a de-
grada¸c˜ao moral. ´E a quinta parte do livro, cuja primeira se¸c˜ao ´e intitulada:
”O gˆenio embrutecido dos Americanos”.
”A insensibilidade, escreve nosso autor, ´e neles um v´ıcio de sua constitui¸c˜ao
alterada; eles s˜ao de uma pregui¸ca imperdo´avel, n˜ao inventam nada, n˜ao em-
preendem nada, e n˜ao estendem a esfera de sua concep¸c˜ao al´em do que vˆeem
pusilˆanimes, covardes, irritados, sem nobreza de esp´ırito, o desˆanimo e a
falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam in´uteis para
si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que
vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma.
Essa separa¸c˜ao entre um estado de natureza concebido por Pauw como ir-
remediavelmente imut´avel, e o estado de civiliza¸c˜ao, pode ser visualizado
num mapa m´undi. No s´eculo XVIII, a enciclop´edia efetua dois tra¸cados: um
longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa,
a ´Africa e a ´Asia, de outro a Am´erica, e um latitudinal dividindo o que se
encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon, a proxi-
midade ou o afastamento da linha equatorial s˜ao explicativos n˜ao apenas da
constitui¸c˜ao f´ısica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filos´oficas
sobre os Americanos escolhe claramente o crit´erio latitudinal, fundamento
aos seus olhos da distribui¸c˜ao da popula¸c˜ao mundial, distribui¸c˜ao essa n˜ao
cultural e sim natural da civiliza¸c˜ao e da barb´arie: ”A natureza tirou tudo
de um hemisf´erio deste globo para d´a-lo ao outro”. ”A diferen¸ca entre um
hemisf´erio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) ´e total, t˜ao grande quanto
poderia ser e quanto podemos imagin´a-la”: de um lado, a humanidade, e de
outro, a ”estupidez na qual vegetam”esses seres indiferenciados:
”Igualmente b´arbaros, vivendo igualmente da ca¸ca e da pesca, em pa´ıses
frios, est´ereis, cobertos de florestas, que despropor¸c˜ao se queria imaginar
entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de sa-
tisfazˆe-los s˜ao os mesmos, onde as influˆencias do ar s˜ao t˜ao semelhantes, ´e
poss´ıvel haver contradi¸c˜ao nos costumes ou varia¸c˜oes nas id´eias?”
Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os ind´ıgenas america-
nos vivem em um ”estado de embrutecimento”geral. T˜ao degenerados uns
quanto os outros, seria em v˜ao procurar entre eles variedades distintivas da-
quilo que se pareceria com uma cultura e com uma hist´oria.7
7
Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31
2) Os julgamentos que acabamos de relatar – que est˜ao, notamos, em ruptura
com a ideologia dominante do s´eculo XVIII, da qual falaremos mais adiante,
e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado
vinte anos antes – por excessivos que sejam, apenas radicalizam id´eias com-
partilhadas por muitas pessoas nessa ´epoca. Id´eias que ser˜ao retomadas e
expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdu¸c˜ao
`a Filosofia da Hist´oria, nos exp˜oe o horror que ele ressente frente ao es-
tado de natureza, que ´e o desses povos que jamais-ascender˜ao `a ”hist´oria”e
`a ”consciˆencia de si”.
Na leitura dessa Introdu¸c˜ao, a Am´erica do Sul parece mais est´upida ainda
do que a do Norte. A ´Asia aparentemente n˜ao est´a muito melhor. Mas ´e
a ´Africa, e, em especial, a ´Africa profunda do interior, onde a civiliza¸c˜ao
nessa ´epoca ainda n˜ao penetrou, que representa para o fil´osofo a forma mais
nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade:
”´E o pa´ıs do ouro, fechado sobre si mesmo, o pa´ıs da infˆancia, que, al´em
do dia e da hist´oria consciente, est´a envolto na cor negra da noite”.
Tudo, na ´Africa, ´e nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ”ne-
gros”n˜ao respeitam nada, nem mesmo eles pr´oprios, j´a que comem carne
humana e fazem com´ercio da ”carne”de seus pr´oximos. Vivendo em uma
ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado
bruto, eles n˜ao tˆem moral, nem institui¸c˜oes sociais, religi˜ao ou Estado.8
Pe-
trificados em uma desordem inexor´avel, nada, nem mesmo as for¸cas da colo-
niza¸c˜ao, poder´a nunca preencher o fosso que os separa da Hist´oria universal
da humanidade.
Na descri¸c˜ao dessa africanidade estagnante da qual n˜ao h´a absolutamente
nada a esperar – e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado `a
indianidade em Pauw – , o autor da Fenomenologia do Esp´ırito vai, vale a
pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filos´oficas sobre os Ameri-
canos. O ”negro”nem mesmo se vˆe atribuir o estatuto de vegetal. ”Ele cai”,
escreve Hegel, ”para o n´ıvel de uma coisa, de um objeto sem valor”.
8
”O fato de devorar homens corresponde ao princ´ıpio africano.”Ou ainda: ”S˜ao os
seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante ´e para eles apenas uma carne
como qualquer outra, suas guerras s˜ao feroze: e sua religi˜ao pura supersti¸c˜ao”.
32 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau
Civilizado
A figura de uma natureza m´a na qual vegeta um selvagem embrutecido ´e emi-
nentemente suscet´ıvel de se transformar em seu oposto: a da boa natureza
dispensando suas benfeitorias `a um selvagem feliz. Os termos da atribui¸c˜ao
permanecem, como veremos, rigorosamente idˆenticos, da mesma forma que
o par constitu´ıdo pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natu-
ral). Mas efetua-se dessa vez a invers˜ao daquilo que era apreendido como um
vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como
um menos que se torna um mais. O car´ater privativo dessas sociedades sem
escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi˜ao organizada, sem clero,
sem sacerdotes, sem pol´ıcia, sem leis, sem Estado –acrescentar-se-´a no s´eculo
XX sem Complexo de ´Edipo – n˜ao constitui uma desvantagem. O selvagem
n˜ao ´e quem pensamos.
Evidentemente, essa representa¸c˜ao concorrente (mas que consiste apenas
em inverter a atribui¸c˜ao de significa¸c˜oes e valores dentro de uma estrutura
idˆentica) permanece ainda bastante r´ıgida na ´epoca na qual o Ocidente desco-
bre povos ainda desconhecidos. A figura do bom selvagem s´o encontrar´a sua
formula¸c˜ao mais sistem´atica e mais radical dois s´eculos ap´os o Renascimento:
no rousseau´ısmo do s´eculo XVIII, e, em s´eguida, no Romantismo. N˜ao deixa
por´em de estar presente, pelo menos em estado embrion´ario, na percep¸c˜ao
que tˆem os primeiros viajantes. Am´erico Vesp´ucio descobre a Am´erica:
”As pessoas est˜ao nuas, s˜ao bonitas, de pele escura, de corpo elegante. .
. Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo ´e colocado em comum.
E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua
m˜ae, sua irm˜a, ou sua amiga, entre as quais eles n˜ao fazem diferen¸ca. . .
Eles vivem cinq¨uenta anos. E n˜ao tˆem governo”.
Crist´ov˜ao Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tamb´em o para´ıso;
”Eles s˜ao muito mansos e ignorantes do que ´e o mal, eles n˜ao sabem se
matar uns aos outros (...) Eu n˜ao penso que haja no mundo homens melho-
res, como tamb´em n˜ao h´a terra melhor”.
Toda a reflex˜ao de L´ery e de Montaigne no s´eculo XVI sobre os ”naturais”baseia-
se sobre o tema da no¸c˜ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela
primeira vez, instaura-se uma cr´ıtica da civiliza¸c˜ao e um elogio da ”ingenui-
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 33
dade original”do estado de natureza. L´ery, entre os Tupinamb´as, interroga-se
sobre o que se passa ”aqu´em”, isto ´e, na Europa. Ele escreve, a respeito de
”nossos grandes usur´arios”: ”Eles s˜ao mais cru´eis do que os selvagens dos
quais estou falando”. E Montaigne, sobre esses ´ultimos: ”Podemos portanto
de fato cham´a-los de b´arbaros quanto `as regras da raz˜ao, mas n˜ao quanto
a n´os mesmos que os superamos em toda sorte de barb´arie”. Para o autor
dos Ensaios, esse estado paradis´ıaco que teria sido o nosso outrora, talvez
esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei at´e o
encontrou.
Esse fasc´ınio exercido pelo ind´ıgena americano, e em especial por le Hu-
ron,9
protegido da civiliza¸c˜ao e que nos convida a reencontrar o universo ca-
loroso da natureza, triunfa nos s´eculos XVII e XVIII. Nas primeiras Rela¸c˜oes
dos jesu´ıtas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler:
”Eles s˜ao af´aveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que
freq¨uentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente
entre eles do que entre n´os”. Seu ideal: ”viver em comum sem processo,
contentar-se de pouco sem avareza, ser ass´ıduo no trabalho”.
Do lado dos livres-pensadores, ´e o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan:
”Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris˜oes e sem torturas passam a
vida na do¸cura, na tranq¨uilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida
dos franceses”.
Essa admira¸c˜ao n˜ao ´e compartilhada apenas pelos navegadores estupefa-
tos.10
O selvagem ingressa progressivamente na filosofia – os pensadores
9
Um dos primeiros textos sobre os Hurons ´e publicado em 1632: Le Grand Vayage
au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux
Voyages du Baron de La Hontan o¨u ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1’Auteur et
un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Am´ericains, de Lafitau; em 1767, Vlng´enu, de
Vol-taire..
Notemos que de cada popula¸c˜ao encontrada nasce um estere´otipo. Se o discurso euro-
peu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, referˆencia `a crueldade, o
discurso sobre os Esquim´os a sua hospitalidade, estes ´ultimos n˜ao hesitando em oferecer
suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente ´e sem d´uvida predominante
em grande parte na literatura sobre os ´ındios.
10
No s´eculo XVIII, um marinheiro francˆes escreve em seu di´ario de viagem: ”A inocˆencia
e a tranq¨uilidade est´a entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n˜ao trocariam essa
vida e seu pa´ıs por qualquer coisa no mundo”(coment´arios relatados por ). P. Duviols,
1978).
34 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
das Lumi`eresu 11
– , mas tamb´em nos sal˜oes liter´arios e nos teatros parisien-
ses. Em 1721, ´e montado um espet´aculo intitulado O Arlequim Selvagem. 0
personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco:
”Vocˆes s˜ao loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de
coisas in´uteis; vocˆes s˜ao pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez
de simplesmente gozar da cria¸c˜ao, como n´os, que n˜ao queremos nada a fim
de desfrutar mais livremente de tudo”.
´E a ´epoca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau aca-
bou de escrever, a ´epoca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens.
Manifesta¸c˜oes essas que constituem uma verdadeira acusa¸c˜ao contra a civi-
liza¸c˜ao. Depois, o fasc´ınio pelos ´ındios ser´a substitu´ıdo progressivamente, a
partir do fim do s´eculo XVIII, pelo charme e prazer id´ılico que provoca o
encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquip´elagos
polin´esios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de P´ascoa, e so-
bretudo o Taiti. Aqui est´a, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua
Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980):
”Seja dia ou noite, as casas est˜ao abertas. Cada um colhe as frutas na
primeira ´arvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ´ocio
´e compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar ´e sua mais preciosa
ocupa¸c˜ao. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres
pareciam n˜ao querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada
instante as do¸curas do amor, tudo incita ao abandono”.
Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exal-
tam a do¸cura das sociedades ”selvagens”, e, correlativamente fustigam tudo
que pertence ao Ocidente ainda s˜ao atuais. Se n˜ao o fossem, n˜ao nos seriam
diretamente acess´ıveis, n˜ao nos tocariam mais nada. Ora, ´e precisamente a
esse imagin´ario da viagem, a esse desejo de fazer existir em um ”alhures”uma
sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas
virtudes se estendam `a magnificˆencia da fauna e da flora (Chateau-briand,
Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu
sucesso com o p´ublico.
O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar
11
Condillac escreve: ”N´os que nos consideramos instru´ıdos, precisar´ıamos ir entre os
povos mais ignorantes, para aprender destes o come¸co de nossas descobertas: pois ´e so-
bretudo desse come¸co que precisar´ıamos: ignoramo-lo porque deixamos h´a tempo de ser
os disc´ıpulos da natureza”
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35
ao Ocidente mort´ıfero li¸c˜oes de grandeza, como acabamos de ver, n˜ao ´e novi-
dade. Mas grande parte do p´ublico est´a infinitamente mais dispon´ıvel agora
do que antes para se deixar persuadir que `as sociedades constrangedoras da
abstra¸c˜ao, do c´alculo e da impessoalidade das rela¸c˜oes humanas, op˜oem-se
sociedades de solidariedade comunit´aria, abrigadas na suntuosidade de uma
natureza generosa. A decep¸c˜ao ligada aos ”benef´ıcios”do progresso (nos quais
muitos entre n´os acreditam cada vez menos) bem como a solid˜ao e o ano-
nimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos
s´o aspirem a se projetar nesses para´ıso (perdido) dos tr´opicos ou dos mares
do Sul, que o Ocidente teria substitu´ıdo pelo inferno da sociedade tecnol´ogica.
Mas conv´em, a meu ver, ir mais longe. O etn´ologo, como o militar, ´e recru-
tado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a
sua, as mesmas insatisfa¸c˜oes,-ang´ustias, desejos. Se essa busca do ´Ultimo dos
Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo ”vento dos coqueiros”(que ´e na
realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa
disciplina, ela est´a presente nas motiva¸c˜oes dos pr´oprios etn´ologos. Mali-
nowski ter´a a franqueza de escrever e ser´a muito criticado por isso:
”Um dos ref´ugios fora dessa pris˜ao mecˆanica da cultura ´e o estudo das for-
mas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades
long´ınquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga
romˆantica para longe de nossa cultura uniformizada”.
Ora, essa ”nostalgia do neol´ıtico”, de que fala Alfred M´etraux e que es-
teve na origem de sua pr´opria voca¸c˜ao de Ctn´ologo, ´e encontrada em muitos
autores, especialmente nas descri¸c˜oes de popula¸c˜oes preservadas do contato
corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparˆencia.
O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que
s˜ao caracterizadas pela riqueza das trocas simb´olicas, foi certamente o de
”autˆentico”(oposto `a aliena¸c˜ao das sociedades industriais adiantadas), termo
proposto por Sapir em 1925, e que ´e erroneamente atribu´ıdo a L´evi-Strauss.
* * *
A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si
mesmo) n˜ao parou, portanto, de oscilar entre os p´olos de um verdadeiro
movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem:
• era um monstro, um ”animal com figura humana”(L´ery), a meio cami-
nho entre a animalidade e a humanidade mas tamb´em que os monstros
36 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
´eramos n´os, sendo que ele tinha li¸c˜oes de humanidade a nos dar;
• levava uma existˆencia infeliz e miser´avel, ou, pelo contr´ario, vivia num
estado de beatitude, adquirindo sem esfor¸cos os produtos maravilhosos
da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a
assumir as duras tarefas da ind´ustria;
• era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre gui¸coso;
• n˜ao tinha alma e n˜ao acreditava em nenhum deus, ou era profunda-
mente religioso;
• vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na
harmonia
• era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um
comunista decidido a tudo compartilhar, at´e e inclusive suas pr´oprias
mulheres;
• era admiravelmente bonito, ou feio;
• era movido por uma impulsividade criminalmente congˆenita quando era
leg´ıtimo temer, ou devia ser considerado como uma crian¸ca precisando
de prote¸c˜ao;
• era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid˜ao
permanente, ou, pelo contr´ario, um ser preso, obedecendo estritamente
aos tabus e `as proibi¸c˜oes de seu grupo;
• era atrasado, est´upido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente
virtuoso e eminentemente complexo;
• era um animal, um ”vegetal”(de Pauw), uma ”coisa”, um ”objeto sem
valor”(Hegel), ou participava, pelo contr´ario, de uma humanidade da
qual tinha tudo como aprender.
Tais s˜ao as diferentes constru¸c˜oes em presen¸ca (nas quais a repuls˜ao se trans-
forma rapidamente em fasc´ınio) dessa alteridade fantasm´atica que n˜ao tem
muita rela¸c˜ao com a realidade. O outro – o ´ındio, o taitiano, mas recente-
mente o basco ou o bret˜ao– ´e simplesmente utilizado como suporte de um
imagin´ario cujo lugar de referˆencia nunca ´e a Am´erica, Taiti, o Pa´ıs Basco
ou a Bretanha. S˜ao objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com
vistas `a explora¸c˜ao econˆomica, quanto ao militarismo pol´ıtico, `a convers˜ao
religiosa ou `a emo¸c˜ao est´etica. Mas, em todos os casos, o outro n˜ao ´e consi-
derado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37
Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v˜ao, tal-
vez anacrˆonico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento
etnol´ogico, t˜ao problem´atico, como acabamos de observar, ainda no final do
s´eculo XX. N˜ao basta viajar e surpreender-se com o que se vˆe para tornar-se
etn´ologo (n˜ao basta mesmo ter numerosos anos de ”campo”, como se diz
hoje). Por´em, numerosos viajantes nessa ´epoca colocam problemas (o que
n˜ao significa uma problem´atica) aos quais ser´a necessariamente confrontado
qualquer antrop´ologo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ir´a
se tornar a etnologia. Jean de L´ery, entre os ind´ıgenas brasileiros, pergunta-
se: ´e preciso rejeit´a-los fora da humanidade? Consider´a-los como virtualida-
des de crist˜aos? Ou questionar a vis˜ao que temos da pr´opria humanidade,
isto ´e, reconhecer que a cultura ´e plural? Atrav´es de muitas contradi¸c˜oes (a
oscila¸c˜ao permanente entre a convers˜ao e o olhar, os objetivos teol´ogicos e os
que poder´ıamos chamar de etnogr´aficos, o ponto de vista normativo e o ponto
de vista narrativo), o autor da Viagem n˜ao tem resposta. Mas as quest˜oes
(e para o que nos interessa aqui, mas especificamente a ´ultima) est˜ao no en-
tanto implicitamente colocadas. Montaigne (hoje `as vezes criticado), mesmo
se o que o preocupa ´e menos a humanidade dos ´ındios do que a inumanidade
dos europeus, seguindo nisso L´ery que transporta para o ”Novo Mundo”os
conflitos do antigo, come¸ca a introduzir a d´uvida no edif´ıcio do pensamento
europeu. Ele testemunha o desmoronamento poss´ıvel deste pensamento, me-
nos inclusive ao pronunciar a condena¸c˜ao da civiliza¸c˜ao do que ao considerar
que a ”selvageria”n˜ao ´e nem inferior nem superior, e sim diferente.
Assim, essa ´epoca, muito timidamente, ´e verdade, e por alguns apenas de
seus esp´ıritos os menos ortodoxos, a partir da observa¸c˜ao direta de um ob-
jeto distante (L´ery) e da reflex˜ao a distˆancia sobre este objeto (Montaigne),
permite a constitui¸c˜ao progressiva, n˜ao de um saber antropol´ogico, muito me-
nos de uma ciˆencia antropol´ogica, mas sim de um saber pr´e-antropol´ogico.
38 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
Cap´ıtulo 2
O S´eculo XVIII:
a inven¸c˜ao do conceito de homem
Se durante o Renascimento esbo¸cou-se, com a explora¸c˜ao geogr´afica de conti-
nentes desconhecidos, a primeira interroga¸c˜ao sobre a existˆencia m´ultipla do
homem, essa interroga¸c˜ao fechou-se muito rapidamente no s´eculo seguinte,
no qual a evidˆencia do cogito, fundador da ordem do pensamento cl´assico,
exclui da raz˜ao o louco, a crian¸ca, o selvagem, enquanto figuras da anorma-
lidade.
Ser´a preciso esperar o s´eculo XVIII para que se constitua o projeto de fun-
dar uma ciˆencia do homem, isto ´e, de um saber n˜ao mais exclusivamente
especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no s´eculo
XVI elementos que permitem compreender a pr´e-hist´oria da antropologia, en-
quanto o s´eculo XVII (cujos discursos n˜ao nos s˜ao mais diretamente acess´ıveis
hoje) interrompe nitidamente essa evolu¸c˜ao, apenas no s´eculo XVIII ´e que
entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na mo-
dernidade. Apenas nessa ´epoca, e n˜ao antes, ´e que se pode apreender as
condi¸c˜oes hist´oricas, culturais e epistemol´ogicas de possibilidade daquilo que
vai se tornar a antropologia.
”Antes do final do s´eculo XVIII”, escreve Fou-cauilt, ”o homem n˜ao existia.
Como tamb´em o poder du vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade
hist´orica da linguagem. ´E uma criatura muito recente que o demiurgo do sa-
ber fabricou com suas pr´oprias m˜aos, h´a menos de duzentos anos (...) Uma
coisa em todo caso ´e certa, o homem n˜ao ´e o mais antigo problema, nem o
mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem ´e uma
inven¸c˜ao e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto ´e recente.
E”, acrescenta Foucault no final de As Palavras e as Coisas, ”qu˜ao pr´oximo
39
40 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII:
talvez seja o seu fim”.
O projeto antropol´ogico (e n˜ao a realiza¸c˜ao da antropologia como a enten-
demos hoje) sup˜oe:
1) a constru¸c˜ao de um certo n´umero de conceitos, come¸cando pelo pr´oprio
conceito de homem, n˜ao apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do
saber; abordagem totalmente in´edita, j´a que consiste em introduzir dualidade
caracter´ıstica das ciˆencias exatas (o sujeito observante e o objeto observado)
no cora¸c˜ao do pr´oprio homem;
2) a constitui¸c˜ao de um saber que n˜ao seja apenas de reflex˜ao, e sim de
observa¸c˜ao, isto ´e, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser
considerado em sua existˆencia concreta, envolvida nas determina¸c˜oes de seu
organismo, de suas rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, de sua linguagem, de suas insti-
tui¸c˜oes, de seus comportamentos. Assim come¸ca a constitui¸c˜ao dessa posi-
tividade de um saber emp´ırico (e n˜ao mais transcendental) sobre o homem
enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e
fala (ling¨u´ıstica). . . Montesquieu, em O Esp´ırito das Leis (1748), ao mos-
trar a rela¸c˜ao de interdependˆencia que ´e a dos fenˆomenos sociais, abriu o
caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no s´eculo seguinte) a falar
em uma ”ciˆencia da sociedade”. Da mesma forma, antes dessa ´epoca, a lin-
guagem, quando tomada em considera¸c˜ao, era objeto de filosofia ou exegese.
Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objeto espec´ıfico de
um saber cient´ıfico (ou, pelo menos, de voca¸c˜ao cient´ıfica);
3) uma problem´atica essencial: a da diferen¸ca. Rompendo com a convic¸c˜ao
de uma transparˆencia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no
s´eculo XVIII a quest˜ao da rela¸c˜ao ao impensado, bem como a dos poss´ıveis
processos de reapropria¸c˜ao dos nossos condicionamentos fisiol´ogicos, das nos-
sas rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, dos nossos sistema de organiza¸c˜ao social. Assim,
inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constitui¸c˜ao da id´eia
de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais
reflex˜oes sobre os limites do saber, assim como sobre as rela¸c˜oes de sentido
e poder (que anunciam o fim da metaf´ısica) eram inimagin´aveis antes. A
sociedade do s´eculo XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da
consciˆencia europ´eia. Parte de suas elites busca suas referˆencias em um con-
fronto com o distante.
Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Compara-
dos aos Costumes dos Primeiros Tempos, Lafitau se d´a por objetivo o de
41
fundar uma ”ciˆencia dos costumes e h´abitos”, que, al´em da contingˆencia dos
fatos particulares, poder´a servir de compara¸c˜ao entre v´arias formas de hu-
manidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educa¸c˜ao do Jovem Selvagem
do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade `a qual pertencem
o homem da civiliza¸c˜ao em que nos transportamos e o homem da natureza,
a crian¸ca-lobo.1
Mas foi Rousseau quem tra¸cou, em seu Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornar´a o da
etnologia cl´assica, no seu campo tem´atico2
tanto quanto na sua abordagem:
a indu¸c˜ao de que falaremos agora;
4) um m´etodo de observa¸c˜ao e an´alise: o m´etodo indutivo. Os grupos sociais
(que come¸cam a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados
como sistemas ”naturais”que devem ser estudados empiricamente, a partir du
observa¸c˜ao de fatos, a fim de extrair princ´ıpios gerais, que hoje chamar´ıamos
de leis.
Esse naturalismo, que consiste numa emancipa¸c˜ao definitiva em rela¸c˜ao ao
pensamento teol´ogico, imp˜oe-se em especial na Inglaterra,3
com Adam Smith
e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza
Humana, cujo t´ıtulo completo ´e: ”Tratado sobre a natureza Humana: tenta-
tiva de introdu¸c˜ao de um m´etodo experimental de racioc´ınio para o estudo
de assuntos de moral”. Os fil´osofos ingleses colocam as premissas de todas
as pesquisas que procurar˜ao fundar, no s´eculo XVIII, uma moral natural”,
um ”direito natural”, ou ainda uma ”religi˜ao natural”.
* * *
Esse projeto de um conhecimento positivo do homem – isto ´e, de um estudo
de sua existˆencia emp´ırica considerada por sua vez como objeto do saber –
constitui um evento consider´avel na hist´oria da humanidade. Um evento que
se deu no Ocidente no s´eculo XVIII, que, evidentemente, n˜ao ocorreu da noite
para o dia, mas que terminou impondo-se j´a que se tornou definitivamente
1
Cf. o filme de Fran¸cois Truffaut, VEnfant Sauvage (1970), e o livro de Lucien Malson
que the serviu de base.
2
Rousseau estabelece a lista das regi˜oes devedoras de viagens ”filos´oficas”: o mundo
inteiro menos a Europa ocidental.
3
A precocidade e preeminˆencia, no pensamento inglˆes, do empirismo em rela¸c˜ao ao
pensamento francˆes, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), podem a meu
ver explicar em parte o crescimento r´apido (no come¸co do s´eculo XX) da antropologia
britˆanica e o atraso da antropologia francesa.
42 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII:
constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa ´epoca, entramos. A fim
de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revolu¸c˜ao do pensamento –
que instaura uma ruptura tanto com o ”humanismo”do Renascimento como
com o ”racionalismo”do s´eculo cl´assico –, examinemos de mais perto o que
mudou radicalmente desde o s´eculo XVI.
1)Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos
dos viajantes dos s´eculos XVI e XVII eram mais uma busca cosmogr´afica do
que uma pesquisa etnogr´afica. Afora algumas incurs˜oes t´ımidas para ´area das
”inclina¸c˜oes”e dos ”costumes”,4
o objeto de observa¸c˜ao, nessa ´epoca era mais
o c´eu, a terra, a fauna e a flora, do que o homem em si, e, quando se tratava
deste, era essencialmente o homem f´ısico que era tomado em considera¸c˜ao.
Ora, o s´eculo XVIII tra¸ca o primeiro esbo¸co daquilo que se tornar´a uma
antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo,
tomando como modelo a antropologia f´ısica, e instaurando uma ruptura do
monop´olio desta (especialmente na Fran¸ca).
2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo
para a atividade epistemol´ogica, que se torna cada vez mais organizada. Os
viajantes dos s´eculos XVI e XVII coletavam ”curiosidades”. Esp´ıritos curio-
sos reuniam cole¸c˜oes que iam formar os famosos ”gabinetes de curiosidades”,
ancestrais dos nossos museus contemporˆaneos. No s´eculo XVIII, a quest˜ao
´e: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a
Hist´oria Geral das Viagens, do padre Pr´evost (1746), passa-se da coleta dos
materiais para a cole¸c˜ao das coletas. N˜ao basta mais observar, ´e preciso pro-
cessar a observa¸c˜ao. N˜ao basta mais interpretar o que ´e observado, ´e preciso
interpretar interpreta¸c˜oes.5
E ´e desse desdobramento, isto ´e, desse discurso,
que vai justamente brotar uma atividade de organiza¸c˜ao e elabora¸c˜ao. Em
1789, Chavane, o primeiro, dar´a a essa atividade um nome. Ele a chamar´a:
a etnologia.
* * *
Finalmente, ´e no s´eculo XVIII que se forma o par do viajante e do fil´osofo:
o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La P´erouse. .
realizando o que ´e chamado na ´epoca de ”viagens filos´oficas”, precursoras das
4
Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o
question´ario que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informa¸c˜oes sobre
o estado das mentalidades populares no reino.
5
Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
43
nossas miss˜oes cient´ıficas contemporˆaneas; o fil´osofo Buffon, Voltaire, Rous-
seau, Diderot (cf. em especial o seu Suplemento `a Viagem de Bougainville)
”esclarecendo”com suas reflex˜oes as observa¸c˜oes trazidas pelo viajante.
Mas esse par n˜ao tem realmente nada de id´ılico. Que pena, pensa Rous-
seau, que os viajantes n˜ao sejam fil´osofos! Bougainville retruca (em 1771
em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os fil´osofos n˜ao sejam
viajantes!6
Para o primeiro, bem como para todos os fil´osofos naturalistas do
s´eculo das luzes, se ´e essencial observar, ´e preciso ainda que a observa¸c˜ao seja
esclarecida. Uma prioridade ´e portanto conferida ao observador, sujeito que,
para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo n´umero de
qualidades. E ´e assim que se constitui, na passagem do s´eculo XVIII para o
s´eculo XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada
pelos ent˜ao chamados ”ide´ologos”, que s˜ao moralistas, fil´osofos, naturalistas,
m´edicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova ´area
de saber (o homem nos seus aspectos f´ısicos, ps´ıquicos, sociais, culturais) e
quais devem ser suas exigˆencias epistemol´ogicas.
As Considera¸c˜oes sobre os Diversos M´etodos a Seguir na Observa¸c˜ao dos
Povos Selvagens, de De Gerando (1800) s˜ao, quanto a isso, exemplares. Pri-
meira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma miss˜ao
nas ”Terras Austrais”, esse texto ´e uma cr´ıtica da observa¸c˜ao selvagem do
selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista
deve ser ele pr´oprio testemunha ocular do que observa, pois a nova ciˆencia
– qualificada de ”ciˆencia do homem”ou ”ciˆencia natural-- ´e uma ”ciˆencia de
observa¸c˜ao”, devendo o observador participar da pr´opria existˆencia dos gru-
pos sociais observados.7
6
Rousseau: ”Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um d’Alembert,
um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas,
observando como sabem fazˆe-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que
esses novos H´ercules, de volta de suas andan¸cas memor´aveis, fizessem a seguir a hist´oria
natural, moral e pol´ıtica do que teriam visto, ver´ıamos nascer de seus escritos um mundo
novo, e aprender´ıamos assim a conhecer o nosso.
Bougainville: ”Sou viajante e marinheiro, isto ´e, um mentiroso e um imbecil aos olhos
dessa classe de escritores pregui¸cosos e soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam
sem fim sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas
imagina¸c˜oes. Modos bastante singulares e inconceb´ıveis da parte de pessoas que, n˜ao
tendo observado nada por si pr´oprias, s´o escrevem e dogmatizam a partir de observa¸c˜oes
tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar”.
7
Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de ”um homem
simples e rude”, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ´ındios entre os quais
esteve.
44 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII:
Por´em, o projeto de De Gerando n˜ao foi aplicado por aqueles a que se des-
tinava diretamente, e n˜ao ser´a, por muito tempo ainda, levado em conta.8
Se esse programa que consiste em ligar uma reflex˜ao organizada a uma ob-
serva¸c˜ao sistem´atica, n˜ao apenas do homem f´ısico, mas tamb´em do homem
social e cultural, n˜ao pˆode ser realizado, ´e porque a ´epoca ainda n˜ao o per-
mitia. O final do s´eculo XVIII teve um papel essencial na elabora¸c˜ao dos
fundamentos de uma ”ciˆencia humana”. N˜ao podia ir mais longe, e n˜ao po-
der´ıamos credit´a-lo aquilo que s´o ser´a poss´ıvel um s´eculo depois.
Mais especificamente, o obst´aculo maior ao advento de uma antropologia
cient´ıfica, no sentido no qual a entendemos hoje, est´a ligado, ao meu ver, a
dois motivos essenciais.
1) A distin¸c˜ao entre o saber cient´ıfico e o saber filos´ofico, mesmo sendo
abordada, n˜ao ´e de forma alguma realizada. Evidentemente, o conceito da
unidade e universalidade do homem, que ´e pela primeira vez claramente afir-
mado, coloca as condi¸c˜oes de produ¸c˜ao de um novo saber sobre o homem.
Mas n˜ao leva ipso facto `a constitui¸c˜ao de um saber positivo. No final do
s´eculo XVIII, o homem interroga-se: sobre a natureza, mas n˜ao h´a biologia
ainda (ser´a preciso esperar Cuvier); sobre a produ¸c˜ao e reparti-ti¸c˜ao das ri-
quezas, mas ainda n˜ao se trata de economia (Ricardo); sobre seu discurso
mas isso n˜ao basta para elaborar uma filosofia (Bopp), muito menos uma
ling¨u´ıstica.9
8
Os cientistas da expedi¸c˜ao conduzida por Bodin n˜ao eram de forma alguma etn´ografos,
e sim m´edicos, zo´ologos, miner´alogos, e os objetos etnogr´aficos que recolheram n˜ao foram
sequer depositados no Museu de Hist´oria Natural de Paris, e sim dispersados em cole¸c˜oes
particulares. O pr´oprio Gerando, ”observador dos povos selvagens”em 1800, torna-se
”visitante dos pobres”em 1824. O que mostra a prontid˜ao de uma passagem poss´ıvel entre
o estudo dos ind´ıgenas e a ajuda aos indigentes, mas sobretudo, nessa ´epoca, uma certa
ausˆencia de distin¸c˜ao entre a antropologia principiante e a ”filantropia”.
Notemos finalmente que, publicado em 1800, o m´emoire de Gerando s´o foi reeditado- na
Fran¸ca em 1883. E o primeiro museu etnogr´afico da Kran¸ca foi fundado apenas cinco anos
antes (em Paris, no Trocadero). sendo depois substitu´ıdo pelo atual Museu do Homem.
9
A antropologia contemporˆanea me parece, pessoalmente, dividida entre uma homena-
gem a esses pais fundadores que s˜ao os fil´osofos do s´eculo XVIII (L´evi-Strauss, por exemplo,
considera que o Discours sur l’Origine de l’In´egalit´e de Rousseau ´e ”o primeiro tratado de
etnologia geral”) e um assass´ınio ritual consistindo na reatualiza¸c˜ao de uma ruptura com
um projeto que permanece filos´ofico, enquanto que a ciˆencia exige a constitui¸c˜ao de um
saber positivo e especializado. Mas neste segundo caso, a positividade, n˜ao mais do saber,
e sim dc saberes que, muito rapidamente (a partir do s´eculo XIX), se rompem se parce-
lam, formando o que Foucault chama de ”ontologias regionais”constituindo-se em torno
dos territ´orios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (ling¨u´ıstica), ´e
45
O conceito de homem tal como ´e utilizado no ”s´eculo das luzes”permanece
ainda muito abstrato, isto ´e, rigorosamente filos´ofico. Estamos na impossi-
bilidade de imaginar o que consideramos hoje como as pr´oprias condi¸c˜oes
episte-mol´ogicas da pesquisa antropol´ogica. De fato, para esta, o objeto de
observa¸c˜ao n˜ao ´e o ”homem”, e sim indiv´ıduos que pertencem a uma ´epoca
e a uma cultura, e o sujeito que observa n˜ao ´e de forma alguma o sujeito da
antropologia filos´ofica, e sim um outro indiv´ıduo que pertence ele pr´oprio a
uma ´epoca e a uma cultura.
2) O discurso antropol´ogico do s´eculo XVIII ´e insepar´avel do discurso hist´orico
desse per´ıodo, isto ´e, de sua concep¸c˜ao de uma hist´oria natural, liberada da
teologia e animando a marcha das sociedades no caminho de um progresso
universal. Restar´a um passo consider´avel a ser dado para que a antropologia
se emancipe deste pensamento e conquiste finalmente sua autonomia. Para-
doxalmente, esse passo ser´a dado no s´eculo XIX (em especial com Morgan)
a partir de uma abordagem igualmente e at´e, talvez, mais marcadamente
historicista: o evolucionismo. ´E o que veremos a seguir.
evidentemente problem´atica para o antrop´ologo, que n˜ao pode resignar-se a trabalhar em
uma ´area setorizada.
46 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII:
Cap´ıtulo 3
O Tempo Dos Pioneiros:
os pesquisadores-eruditos do s´eculo XIX
O s´eculo XVl descobre e explora espa¸cos at´e ent˜ao desconhecidos e tem um
discurso selvagem sobre os habitantes que povoam esses espa¸cos. Ap´os um
parˆentese no s´eculo XVII, esse discurso se organiza no s´eculo XVIII: ele ´e ”ilu-
minado”`a luz dos fil´osofos, e a viagem se torna ”viagem filos´ofica”. Mas a
primeira – a grande – tentativa de unifica¸c˜ao, isto ´e, de instaura¸c˜ao de redes
entre esses espa¸cos, e de reconstitui¸c˜ao de temporalidades ´e incontestavel-
mente obra do s´eculo XIX. Esse s´eculo XIX, hoje t˜ao desacreditado, realiza
o que antes eram apenas empreendimentos program´aticos. Dessa vez, ´e a
´epoca durante a qual se constitui verdadeiramente a antropologia enquanto
disciplina autˆonoma: a ciˆencia das sociedades primitivas em todas as suas
dimens˜oes (biol´ogica, t´ecnica, econˆomica, pol´ıtica, religiosa, ling¨u´ıstica, psi-
col´ogica. . .) enquanto que, notamo-lo, em se tratando da nossa sociedade,
essas perspectivas est˜ao se tornando individualmente disciplinas particulares
cada vez mais especializadas.
Com a revolu¸c˜ao industrial inglesa e a revolu¸c˜ao pol´ıtica francesa, percebe-
se que a sociedade mudou mais voltar´a a ser o que era. A Europa se vˆe
confrontada a uma conjuntura in´edita. Seus modos de vida, suas rela¸c˜oes
sociais sofrem uma muta¸c˜ao sem precedente. Um mundo est´a terminando,
e..um outro est´a nascendo. Se o final do s´eculo XVIII come¸cava a sentir essas
transforma¸c˜oes, ele reagia ao enigma colocado pela existˆencia de sociedades
que tinham permanecido ora dos progressos da civiliza¸c˜ao, trazendo uma du-
pla resposta abandonada pela do s´eculo que nos interessa agora:
– resposta que confia nas vantagens da civiliza¸c˜ao e considera totalmente
47
48 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS:
estranhas a ela pr´opria todas essas formas de existˆencia que est˜ao situadas
fora da hist´oria e da cultura (de Pauw, Hegel);
– mas sobretudo resposta preocupada, que se expres* sa na nostalgia d´o
antigo que ainda subsiste noutro lugar: o estado de felicidade do homem
num ambiente protetor situa-se do lado do ”estado de natureza”, enquanto
que a infelicidade est´a do lado da civiliza¸c˜ao (Rousseau).
Ora, no s´eculo XIX, o contexto geopol´ıtico ´e totalmente novo: ´e o per´ıodo da
conquista colonial, que desembocar´a em especial na assinatura, em 1885, do
Tratado de Berlim, que rege a partilha da ´Africa entre as potˆencias europ´eias
e p˜oe um fim `as soberanias africanas.
´E no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna,
o antrop´ologo acompanhando de perto, como veremos, os passos do colono.
Nessa ´epoca, a ´Africa, a ´ındia, a Austr´alia, a Nova Zelˆandia passam a ser
povoadas de um n´umero consider´avel de emigrantes europeus; n˜ao se trata
mais de alguns mission´arios apenas, e sim de administradores. Uma rede de
informa¸c˜oes se instala. S˜ao os question´arios enviados por pesquisadores das
metr´opoles (em especial da Gr˜a-Bretanha) para os quatro cantos do mundo,1
e cujas respostas constituem os materiais de reflex˜ao das primeiras grandes
obras de antropologia que se suceder˜ao em ritmo regular durante toda a se-
gunda metade do s´eculo. Em 1861, Maine publica Ancient Law, em 1861,
Bachofen, Das Mutterrecht; em 1864, Fustel de Coulanges, La Cit´e Antique;
em .1865, MacLennan, O Casamento Primitivo; em 1871, Tylor, A Cultura
Primitiva-, em 1877, Morgan, A Sociedade Antiga; em 1890, Frazer, os pri-
meiros volumes do Ramo de Ouro.
Todas essas obras, que tˆem uma ambi¸c˜ao consider´avel – seu objetivo n˜ao
´e nada menos que o estabelecimento dc um verdadeiro corpus etnogr´afico da
humanidade – caracterizam-se por uma mudan¸ca radical de perspectiva em
rela¸c˜ao `a ´epoca das ”luzes”o ind´ıgena das sociedades extra-europ´eias n˜ao ´e
mais o selvagem do s´eculo XVIII, tornou-se o primitivo, isto ´e, o ancestral do
civilizado, destinado a reencontr´a-lo. A coloniza¸c˜ao atuar´a nesse sentido. As-
sim a antropologia, conhecimento do primitivo, fica indissociavelmente ligada
ao conhecimento da nossa origem, isto ´e, das formas simples de organiza¸c˜ao
social e de mentalidade que evolu´ıram para as formas mais complexas das
1
Morgan escreveu, assim, Systems of Consanguinity and Affinity of lhe Human Family
(1879), em seguida Frazer (a partir de suas Questions sur les Matii`eres. [es Coutumes, la
Relizions, les Superstitions des Peuples
49
nossas sociedades.
Procuremos ver mais de perto em que consiste o pensamento te´orico dessa
antropologia que se qualifica de evolucionista. Existe uma esp´ecie humana
idˆentica, mas que se desenvolve (tanto em suas formas tecnoeconˆomicas como
nos seus aspectos sociais e culturais) em ritmos desiguais, de acordo com as
popula¸c˜oes, passando pelas mesmas etapas, para alcan¸car o n´ıvel final que ´e ´o
da ”civiliza¸c˜ao”. A partir disso, conv´em procurar determinar cientificamente
a seq¨uˆencia dos est´agios dessas transforma¸c˜oes.0
O evolucionismo encontrar´a sua formula¸c˜ao mais sistem´atica e mais ela-
borada na obra de Morgan 2
e particularmente em Ancient Society, que se
tornar´a o documento de referˆencia adotado pela imensa maioria dos an-
trop´ologos do final do s´eculo XIX, bem como na lei de Haeckel. Enquanto
para de Pauw ou Hegel as popula¸c˜oes ”n˜ao civilizadas”s˜ao popula¸c˜oes que,
al´em de se situarem enquanto esp´ecies fora da Hist´oria, n˜ao tˆem hist´oria em
sua existˆencia individual (n˜ao s˜ao crian¸cas que se tornaram adultos atrasados,
e sim crian¸cas que permanecer˜ao inexoravelmente crian¸cas), Haeckel afirma
rigorosamente o contr´ario: a ontogˆenese reproduz a filogˆenese; ou seja, o in-
div´ıduo atravessa as mesmas fases que a hist´oria das esp´ecies. Disso decorre
a identifica¸c˜ao – absolutamente incontestada tanto pela primeira gera¸c˜ao de
marxistas quanto pelo fundador da psican´alise –dos povos primitivos aos
vest´ıgios da infˆancia da humanidade3
O que ´e tamb´em muito caracter´ıstico dessa antropologia do s´eculo XIX, que
pretende ser cient´ıfica, ´e a consider´avel aten¸c˜ao dada: 1) a essas popula¸c˜oes
que aparecem como sendo as mais ”arcaicas”do mundo: os abor´ıgines aus-
tralianos, 2) ao estudo do ”parentesco”, 3) e ao da religi˜ao. Parentesco e
religi˜ao s˜ao, nessa ´epoca, as duas grandes ´areas da antropologia, ou, mais
especificamente, as duas vias de acesso privilegiadas ao conhecimento das so-
0
Non-civilis´es ou Semi-civilis´es) Le Rameau d’Or (1981-1984). Uma correspondˆencia
intensa circula entre os pesquisadores e os novos residentes europeus que lhes mandam
uma grande quantidade de informa¸c˜oes e lˆeem em seguida seus livros.
2
Este ´ultimo distingue trˆes est´agios de evolu¸c˜ao da humanidade – selvageria, barb´arie,
civiliza¸c˜ao – cada um dividido em trˆes per´ıodos, em fun¸c˜ao notadamente do crit´erio tec-
nol´ogico
3
Se o evolucionismo antropol´ogico tende a aparecer hoje como a transposi¸c˜ao ao n´ıvel
das ciˆencias humanas do evolucionismo biol´ogico (A Origem das Esp´ecies, de Darwin, 1859)
que teria servido de justifica¸c˜ao ao primeiro, notemos que o primeiro ´e bem anterior ao
segundo. Vico elabora sua teoria das trˆes idades (que anuncia Condorcet, Comte, Morgan,
Frazer) no s´eculo XVIII, e Spencer. fundador da forma mais radical de evolucionismo
sociol´ogico, publica suas pr´oprias teorias antes de ter lido A Origem das Esp´ecies.
50 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS:
ciedades n˜ao ocidentais; elas permanecem ainda, notamo-lo, os dois n´ucleos
resistentes da pesquisa dos antrop´ologos contemporˆaneos.
1) A Austr´alia ocupa um lugar de primeira importˆancia na pr´opria cons-
titui¸c˜ao da nossa disciplina (cf. Elkin, l967), pois ´e l´a que se pode apreender
o que foi a origem bsoluta das nossas pr´oprias institui¸c˜oes.4
2) No estudo dos sistemas de parentesco, os pesquisadores dessa ´epoca pro-
curam principalmente evidenciar a anterioridade hist´orica dos sistemas de
filia¸c˜ao matrilinear sobre os sistemas patrilineares. Por deslize do pensa-
mento, imagina-se um matriarcado primitivo, id´eia que exerceu tal Influˆencia
que ainda hoje alguns continuam inspirando-se nela (cf. em especial Evelyn
Reed, Feminismo e Antropologia, (trad. franc. 1979), um dos textos de re-
ferˆencia do movimento feminista nos Estados Unidos).
3) A ´area dos mitos, da magia e da religi˜ao deter´a mais nossa aten¸c˜ao, pois
perece-nos reveladora ao mesmo tempo da abordagem e do esp´ırito do evolu-
cionismo. Notemos em primeiro lugar que a maioria dos antrop´ologos desse
per´ıodo, absolutamente confiantes na racionalidade cient´ıfica triunfante, s˜ao
n˜ao apenas agn´osticos mas tamb´em deliberadamente anti-religiosos. Mor-
gan, por exemplo, n˜ao hesita em escrever que ”todas as religi˜oes primitivas
s˜ao grotescas e de alguma forma inintelig´ıveis”, e Tylor deve parte de sua
voca¸c˜ao a uma rea¸c˜ao visceral contra o espiritualismo de seu meio. Mas ´e
certamente o Ramo de Ouro, de Frazer (trad. fr. 1981-1984),5
que realiza
a melhor s´ıntese de todas as pesquisas do s´eculo XIX sobre as ”cren¸cas”e
”supersti¸c˜oes”.
4
Desde a ´epoca de Morgan, a Austr´alia continuou sendo objeto de muitos escritos,
v´arias gera¸c˜oes de pesquisadores expressando literalmente sua estupefa¸c˜ao diante da dis-
tor¸c˜ao entre a simplicidade da cultura material desses povos, os mais ”primitivos”e mais
”atrasados”do mundo, vivendo na idade da pedra sem metalurgia, sem cerˆamica, sem
tecelagem, sem cria¸c˜ao de animais... e a extrema complexidade de seus sistemas de paren-
tesco baseados sobre rela¸c˜oes minuciosas entre aquilo que ´e localizado na natureza (animal,
vegetal) e aquilo que atua na cultura: o ”totemismo”.
Quando Durkheim escreve Les Formes ˆEl´ementaires de la Vie Religieuse (1912) baseia-se
essencialmente sobre os dados colhidos na Austr´alia por Spencer e Gillen. Quando Roheim
(trad. franc. 1967) decide refutar a hip´otese colocada por Malinowski da inexistˆencia do
complexo de ˆEdipo entre os primitivos, escolhe a Austr´alia como terreno de pesquisa.
Poder´ıamos assim multiplicar os exemplos a respeito desse continente que exerceu (junto
com os ´ındios) um papel t˜ao decisivo. Um papel decisivo inclusive, a meu ver, menos para
compreender a origem da humanidade dn nue a da reflex˜ao antropol´ogica.
5
Frazer era, inclusive, mais reservado sobre o fenˆomeno religioso do que os dois autores
anteriores, j´a que vˆe nesse um fenˆomeno recente, fruto de uma evolu¸c˜ao lenta e dizendo
respeito a ”esp´ıritos superiores”
51
Nessa obra gigantesca, publicada em doze volumes de 1890 a 1915 e que
´e uma das obras mais c´elebres de toda a literatura antropol´ogica,6
Frazer
retra¸ca o processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia
`a religi˜ao, e depois, da religi˜ao `a ciˆencia. ”A magia”, escreve Frazer, ”re-
presenta uma fase anterior, mais grosseira, da hist´oria do esp´ırito humano,
pela qual todas as ra¸cas da humanidade passaram, ou est˜ao passando, para
dirigir-se para a religi˜ao e a ciˆencia”. Essas cren¸cas dos povos primitivos
permitem compreender a origem das ”sobrevivˆencias”(termo forjado por Ty-
lor) que continuam existindo nas sociedades civilizadas. Como Hegel, Frazer
considera que a magia consiste num controle ilus´orio da natureza, que se
constitui num obst´aculo `a raz˜ao. Mas, enquanto para Hegel, a primeira ´e
um impasse total, Frazer a considera como religi˜ao em potencial, a qual dar´a
lugar por sua vez `a ciˆencia que realizar´a (e est´a at´e come¸cando a realizar) o
que tinha sido imaginado no tempo da magia.
* * *
O pensamento evolucionista aparece, da forma como podemos vˆe-lo hoje,
como sendo ao mesmo tempo dos mais simples e dos mais suspeitos, e as
obje¸c˜oes de que foi objeto podem organizar-se em torno de duas s´eries de
cr´ıticas:
1) mede-se a importˆancia do ”atraso”das outras sociedades destinadas, ou
melhor, compelidas a alcan¸car o pelot˜ao da frente, em rela¸c˜ao aos ´unicos
crit´erios do Ocidente do s´eculo XIX, o progresso t´ecnico e econˆomico da nossa
sociedade sendo considerado como a prova brilhante da evolu¸c˜ao hist´orica
da qual procura-se simultaneamente acelerar o processo e reconstituir os
est´agios. Ou seja, o ”arca´ısmo”ou a ”primitividade”s˜ao menos fases da
Hist´oria do que a vertente sim´etrica e inversa da modernidade do Ocidente;
o qual define o acesso entusiasmante `a civiliza¸c˜ao em fun¸c˜ao dos valores
da ´epoca: produ¸c˜ao econˆomica, religi˜ao monote´ısta, propriedade privada,
6
Le Rameau d’Or ´e uma obra de referˆencia como existem poucas em um s´eculo. ´E
quanto a isso compar´avel `a Origem das Esp´ecies, de Darwin. Exerceu uma influˆencia
consider´avel tanto sobre a filosofia de Bergson e escola francesa de sociologia sobre o pen-
samento antropol´ogico de Freud que, em Totem e Tabu. retira grande parte de seus mate-
riais etnogr´aficos dessa obra que todo home 11 culto da ´epoca vitoriana tinha obriga¸c˜ao de
conhecer. Quanto a seu autor, alcan¸cou durante sua vida uma gl´oria n˜ao apenas britˆanica,
mas internacional, que muito poucos etn´ologos – fora Malinowski, Margaret Mead o L´evi-
Strauss – conheceram.
52 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS:
fam´ılia monogˆamica, moral vitoriana
2) o pesquisador, efetuando de um lado a defini¸c˜ao de seu objeto de pes-
quisa atrav´es do campo emp´ırico das sociedades ainda n˜ao ocidentalizadas,
e, de outro, identificando-se `as vantagens da civiliza¸c˜ao `a qual pertence, o
evolucionismo aparece logo como a justifica¸c˜ao te´orica de uma pr´atica: o co-
lonialismo. Livingstone, mission´ario que, enquanto branco, isto ´e, civilizado,
n˜ao dissocia os benef´ıcios da t´ecnica e os da religi˜ao, pode exclamar: ”Vie-
mos entre eles enquanto membros de uma ra¸ca superior e servidores de um
governo que deseja elevar as partes mais degradadas da fam´ılia humana”. ,
A antropologia evolucionista, cujas ambi¸c˜oes nos parecem hoje desmedidas,
n˜ao hesita em esbo¸car em grandes tra¸cos afrescos imponentes, atrav´es dos
quais afirma com arrogˆancia julgamentos de valores sem contesta¸c˜ao poss´ıvel.
A convic¸c˜ao da marcha triunfante do progresso ´e tal que, juntando e interpre-
tando fatos provenientes do mundo inteiro (`a luz justamente dessa hip´otese
central), julga-se que ser´a poss´ıvel extrair as leis universais do desenvolvi-
mento da humanidade. Assim, encontramo-nos frente a reconstitui¸c˜oes con-
junturais que tˆem, pelo volume dos fatos relatados, a aparˆencia de um corpus
cient´ıfico, mas assemelham-se muito, na realidade, `a filosofia do s´eculo ante-
rior; a qual n˜ao tinha por´em a preocupa¸c˜ao de fundamentar sua reflex˜ao na
documenta¸c˜ao enorme que ser´a pela primeira vez reunida pelos homens do
s´eculo XIX.
Essa preocupa¸c˜ao de um saber cumulativo visa na realidade a demonstrar a
veracidade de uma tese mais do que a verificar uma hip´otese, os exemplos
etnogr´aficos sendo freq¨uentemente mobilizados apenas para ilustrar o pro-
cesso grandioso que conduz as sociedades primitivas a se tornarem socieda-
des civilizadas. Assim, esmagados sob o peso dos materiais, os evolucionistas
consideram os fenˆomenos recolhidos (o totemismo, a exogamia, a magia, o
culto aos antepassados, a filia¸c˜ao matrilinear. . .) como costumes que ser-
vem para exemplificar cada est´agio. E quando faltam documentos, alguns
(Frazer) fazem por intui¸c˜ao a reconstitui¸c˜ao dos elos ausentes; procedimento
absolutamente oposto, como veremos mais adiante, ao da etnografia contem-
porˆanea, que procura, atrav´es da introdu¸c˜ao de fatos min´usculos recolhidos
em uma ´unica sociedade, analisar a significa¸c˜ao e a fun¸c˜ao de rela¸c˜oes sociais.
Isso colocado, como ´e f´acil – e at´e irris´orio – desacreditar hoje todo o trabalho
53
que foi realizado pelos pesquisadores – eruditos da ´epoca evolucionista.7
N˜ao
custa muito denunciar o etnocentrismo que eles demonstraram em rela¸c˜ao
aos ”povos atrasados”, evidenciando assim tamb´em, um singular esp´ırito a-
hist´orico – e etnocentrista – em rela¸c˜ao a eles, sendo que ´e provavelmente
que, sem essa teoria, empenhada em mostrar as etapas do movimento da
humanidade (teoria que deve ser ela pr´opria considerada como uma etapa
do pensamento sociol´ogico), a antropologia no sentido no qual a praticamos
hoje nunca teria nascido.
Claro, nessa ´epoca o antrop´ologo raramente recolhe ele pr´oprio os materi-
ais que estuda e, quando realiza um trabalho de coleta direta,8
´e antes no
decorrer de expedi¸c˜ao visando trazer informa¸c˜oes, do que de estadias tendo
por objetivo o de impregnar-se das categorias mentais dos outros. O que
importa nessa ´epoca n˜ao ´e de forma alguma a problem´atica de etnografia
enquanto pr´atica intensiva de conhecimento de uma determinada cultura, ´e
a tentativa de compreens˜ao, a mais extensa poss´ıvel no tempo e no espa¸co,
de todas as culturas, em especial das ”mais long´ınquas”e das ”mais desco-
nhecidas”, como diz Tylor.
N˜ao poder´ıamos finalmente criticar esses pesquisadores da segunda metade
do s´eculo XIX por n˜ao terem sido especialistas no sentido atual da palavra
(especialistas de uma pequena parte de uma ´area geogr´afica ou de uma mi-
crodisciplina de um eixo tem´atico). Eles se recusavam a atuar dessa forma,
julgando que observadores conscienciosos, guiados a distˆancia por cientistas
preocupados em criticar fontes, eram capazes de recolher todos os materi-
ais necess´arios, e sobretudo considerando implicitamente que a antropologia
tinha tarefas mais urgentes a realizar do que um estudo particular em tal
ou tal sociedade. De fato, eles n˜ao tinham nenhuma forma¸c˜ao antropol´ogica
7
Da mesma forma que ´e f´acil reduzir toda essa ´epoca ao evolucionismo (a respeito do
qual conv´em notar que foi muito mais afirmado na Gr˜a-Bretanha e nos Estados Unidos
do que nos outros pa´ıses). Bastian por exemplo insiste sobre a especificidade de cada
cultura irredut´ıvel ao seu lugar na hist´oria do desenvolvimento da humanidade. Ratzel
abre o caminho para o que ser´a chamado de difusionismo. Tylor desconfia dos modelos de
interpreta¸c˜ao simples e un´ıvocos do social e anuncia claramente a substitui¸c˜ao da no¸c˜ao de
fun¸c˜ao `a causa. No entanto, a teoria da evolu¸c˜ao ´e nessa ´epoca amplamente dominante,
pelo menos at´e o final do s´eculo no qual come¸ca a mostrar (com Frazer) os primeiros sinais
de esgotamento.
8
s pesquisas de primeira m˜ao est˜ao longe de serem ausentes ne-´ıa ´epoca na qual todos os
antrop´ologos n˜ao s˜ao apenas pesquisadores indo de seu gabinete de trabalho `a biblioteca.
Em 1851, Morgan publica as observa¸c˜oes colhidas no decorrer de uma viagem realizada
por ele pr´oprio entre os Iroqueses. Alguns anos mais tarde, Bastian realiza uma pesquisa
no Congo, e Tylor no M´exico.
54 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS:
(Maine, MacLen-nan, Bachofen, Morgan s˜ao juristas; Bastian ´e m´edico; Rat-
zel, ge´ografo), mas como poder´ıamos critic´a-los por isso, j´a que eles foram
precisamente os fundadores de uma disciplina que n˜ao existia antes deles?
Em suma, o que me parece eminentemente caracter´ıstico desse per´ıodo ´e
a intensidade do trabalho que realizou, bem como sua imensa curiosidade.
Durante o s´eculo XIX, assistimos `a cria¸c˜ao das sociedades cient´ıficas de et-
nologia, das primeiras cadeiras universit´arias, e, sobretudo, dos museus como
o que foi fundado no pal´acio do Trocadero em 1879 e que se tornar´a o atual
Museu do Homem. ´E at´e dif´ıcil imaginar hoje em dia a abrangˆencia dos co-
nhecimentos dos principais representantes do evolucionismo. Tylor possu´ıa
um conhecimento perfeito tanto da pr´e-hist´oria, da ling¨u´ıstica, quanto do
que chamar´ıamos hoje de ”antropologia social e cultural”do seu tempo. Ele
dedicava os mesmos esfor¸cos ao estudo das ´areas da tecnologia, do parentesco
ou da religi˜ao. Frazer, em contato epistolar permanente com centenas de ob-
servadores morando nos quatro cantos do mundo, trabalhou doze horas por
dia durante sessenta anos, dentro de uma biblioteca de 50 mil volumes. A
obra que ele pr´oprio produziu estende-se, como diz Leach (1980), em quase
dois metros de estantes.
Atrav´es dessa atividade extrema, esses homens do s´eculo passado colocavam
o problema maior da antropologia: explicar a universalidade e a diversidade
das t´ecnicas, das institui¸c˜oes, dos comportamentos e das cren¸cas, compa-
rar as pr´aticas sociais de popula¸c˜oes infinitamente distantes uma das outras
tanto no espa¸co como no tempo. Seu m´erito ´e de ter extra´ıdo (mesmo se o
fizerem com dogmatismo, mesmo se suas convic¸c˜oes foram mais passionais
do que racionais) essa hip´otese mestra sem a qual n˜ao haveria antropologia,
mas apenas etnologias regionais: a unidade da esp´ecie humana, ou, como
escreve Morgan, da ”fam´ılia humana”. Pode-se sorrir hoje diante dessa vis˜ao
grandiosa do mando,baseada na no¸c˜ao de uma humanidade integrada, dentro
da qual concorrem em graus diferentes, mas para chegar a um mesmo n´ıvel
final, as diversas popula¸c˜oes do globo. Mas s˜ao eles que mostraram pela pri-
meira vez que as disparidades culturais entre os grupos humanos n˜ao eram
de forma alguma a conseq¨uˆencia de predisposi¸c˜oes congˆenitas, mas apenas o
resultado de situa¸c˜oes t´ecnicas e econˆomicas. Assim, uma das caracter´ısticas
principais do evolucionismo – ser´a que isso foi suficientemente destacado? –
´e o seu anti-racismo.
At´e Morgan (eu teria vontade de dizer sobretudo Morgan) n˜ao tem a ri-
gidez doutrinai que lhe ´e retroativamente atribu´ıda. Com ele, o objeto da
antropologia passa a ser a an´alise dos processos de evolu¸c˜ao que s˜ao os das
55
liga¸c˜oes entre as rela¸c˜oes sociais, jur´ıdicas, pol´ıticas. . . a liga¸c˜ao entre
esses diferentes aspectos do campo social sendo em si caracter´ıstica de um
determinado per´ıodo da hist´oria humana. A novidade radical da sociedade
arcaica ´e dupla.
1) Essa obra toma como objeto de estudo fenˆomenos que at´e ent˜ao n˜ao
diziam respeito `a Hist´oria, a qual, para Hegel, s´o podia ser escrita. Qualifi-
cando essas sociedades de ”arcaicas”, Morgan as reintegra pela primeira vez
na humanidade inteira; e ao acento sendo colocado sobre o desenvolvimento
material, o conhecimento da hist´oria come¸ca a ser posto sobre bases total-
mente diferentes das do idealismo filos´ofico.
2) Os elementos da an´alise comparativa n˜ao s˜ao mais, a partir de Morgan, cos-
tumes considerados bizarros, e sim redes de intera¸c˜ao formando ”sistemas”,
termo que o antrop´ologo americano utiliza para as rela¸c˜oes de parentesco.9
N˜ao h´a, como mostrou Kuhn (1983), conhecimento cient´ıfico poss´ıvel sem
que se constitua uma teoria servindo de ”paradigma”, isto ´e, de modelo or-
ganizador do saber, e a teoria da evolu¸c˜ao teve incontestavelmente, no caso,
um papel decisivo. Foi ela que deu seu impulso a antropologia. O paradoxo
(aparente, pois o conhecimento cient´ıfico se d´a sempre mais por descontinui-
dades te´oricas do que por acumula¸c˜ao), ´e que a antropologia s´o se tornar´a
cient´ıfica( no sentido que entendemos) introduzindo uma ruptura em rela¸c˜ao
a esse modo de pensamento que lhe havia no entanto aberto o caminho. ´E o
que examinaremos agora.
9
Por essas duas raz˜oes, compreende-se qual ser´a a influˆencia `a Morgan sobre o mar-
xismo, e particularmente, sobre Engels (1954)
56 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS:
Cap´ıtulo 4
Os Pais Fundadores Da
Etnografia:
Boas e Malinowski
Se existiam no final do s´eculo XIX homens (geralmente mission´arios e ad-
ministradores) que possu´ıam um excelente conhecimento das popula¸c˜oes no
meio das quais viviam – ´e o caso de Codrington, que publica em 1891 uma
obra sobre os melan´esios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas
observa¸c˜oes sobre os abor´ıgines australianos, ou de Junod, que escreve A
Vida de uma Tribo Sul-africana (1898) – a etnografia propriamente dita s´o
come¸ca a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador
deve ele mesmo efetuar no campo sua pr´opria pesquisa, e que esse trabalho
de observa¸c˜ao direta ´e parte integrante da pesquisa.
A revolu¸c˜ao que ocorrer´a da nossa disciplina durante o primeiro ter¸co do
s´eculo XX ´e consider´avel: ela p˜oe fim `a reparti¸c˜ao das tarefas, at´e ent˜ao
habitualmente divididas entre o observador (viajante, mission´ario, adminis-
trador) entregue ao papel subalterno de provedor de informa¸c˜oes, e o pes-
quisador erudito, que, tendo permanecido na metr´opole, recebe, analisa e
interpreta – atividade nobre! – essas informa¸c˜oes. O pesquisador compre-
ende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho
para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados n˜ao mais
como informadores a serem questionados, e sim como h´ospedes que o rece-
bem e mestres que o ensinam. Ele aprende ent˜ao, como aluno atento, n˜ao
apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua l´ıngua e a pensar
nessa l´ıngua, a sentir suas pr´oprias emo¸c˜oes dentro dele mesmo. Trata-se,
como podemos ver, de condi¸c˜oes de estudo radicalmente diferentes das que
57
58 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA:
conheciam o viajante do s´eculo XVIII e at´e o mission´ario ou o administrador
do s´eculo XIX, residindo geralmente fora da sociedade ind´ıgena e obtendo
informa¸c˜oes por interm´edio de tradutores e informadores: este ´ultimo termo
merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez
uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, ”ao vivo”, em uma
”natureza imensa, virgem e aberta”.
Esse trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, longe de ser visto
como um modo de conhecimento secund´ario servindo para ilustrar uma tese,
´e .onsiderado como a pr´opria fonte de pesquisa. Orientou a partir desse
momento a abordagem da nova gera¸c˜ao de etn´ologos que, desde os primei-
ros anos do s´eculo XX, realizou estadias prolongadas entre as popula¸c˜oes do
mundo inteiro. Em 1906 e 1908, Radcliffe-Brown estuda os habitantes das
ilhas Andaman. Em 1909 e 1910, Seligman dirige uma miss˜ao no Sud˜ao.
Alguns anos mais tarde, Malinowski volta para a Gr˜a-Bretanha, impregnado
do pensamento e dos sistemas de valores que lhe revelou a popula¸c˜ao de
um min´usculo arquip´elago melan´esio. A partir da´ı, as miss˜oes de pesquisas
etnogr´aficas e a publica¸c˜ao das obras que delas resultam se seguem em um
ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundadores da antropologia
inglesa, estuda os Todas da ´ındia; ap´os a .Primeira Guerra Mundial, Evans-
Pritchard estuda os Azand´es (trad. franc. 1972) e os Nuer (trad. franc.
1968); Nadei, as Nupes da Nig´eria; Fortes, os Tallensi; Margaret Mead, os
insulares da Nova Guin´e, etc
Como n˜ao ´e poss´ıvel examinar, dentro dos limites deste Inibalho, a con-
tribui¸c˜ao desses diferentes pesquisadores na elabora¸c˜ao da etnografia e da
etnologia contemporˆanea, dois entre eles, a meu ver os mais importantes, de-
ter˜ao nossa Hlen¸c˜ao: um americano de origem alem˜a: Franz Boas; o outro,
polonˆes naturalizado inglˆes: Bronislaw Malinowski.
4.1 BOAS (1858-1942)
Com ele assistimos a uma verdadeira virada da pr´atica antropol´ogica. Boas
era antes de tudo um homem de campo. Suas pesquisas, totalmente pioneiras,
iniciadas, notamo-lo, a partir dos ´ultimos anos do s´eculo XIX (em particular
entre os Kwakiutl e os Chinook de Col´umbia Britˆanica), eram conduzidas de
um ponto de vista que hoje qualificar´ıamos de microssociol´ogico. No campo,
ensina Boas, tudo deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das
4.1. BOAS (1858-1942) 59
casas at´e as notas das melodias cantadas pelos Esquim´os, e isso detalhada-
mente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descri¸c˜ao mais
meticulosa, da retranscri¸c˜ao mais fiel (por exemplo, as diferentes vers˜oes de
um mito, ou diversos ingredientes entrando na composi¸c˜ao de um alimento).
Por outro lado, enquanto raramente antes dele as sociedades tinham sido
realmente consideradas em si e para si mesmas, cada uma dentre elas ad-
quire o estatuto de uma totalidade autˆonoma. O primeiro a formular com
seus colaboradores (cf. em particular Lowie, 1971) a cr´ıtica mais radical e
mais elaborada das no¸c˜oes de origem e de reconstitui¸c˜ao dos est´agios,1
ele
mostra que um costume s´o tem significa¸c˜ao se for relacionado ao contexto
particular no qual se inscreve. Claro, Morgan e, muito antes dele, Montes-
quieu tinham aberto o caminho a essa pesquisa cujo objeto ´e a totalidade das
rela¸c˜oes sociais e dos elementos que a constituem. Mas a diferen¸ca ´e que,ia
partir de Boas, estima-se que para compreender o lugar particular ocupado
por esse costume n˜ao se pode mais confiar nos investigadores e, muito menos
nos que, da ”metr´opole”, confiam neles. Apenas o antrop´ologo pode elaborar
uma monografia, isto ´e, dar conta cientificamente de uma microssociedade,
apreendida em sua totalidade e considerada em sua autonomia te´orica. Pela
primeira vez, o te´orico e o observador est˜ao finalmente reunidos. Assistimos
ao nascimento de uma verdadeira etnografia profissional que n˜ao se contenta
mais em coletar materiais `a maneira dos antiqu´arios, mas procura detectar
o que faz a unidade da cultura que se expressa atrav´es desses diferentes ma-
teriais.
Por outro lado, Boas considera, e isso muito antes de Griaule, do qual fala-
remos mais adiante, que n˜ao h´a objeto nobre nem objeto indigno da ciˆencia.
As piadas de um contador s˜ao t˜ao importantes quanto a mitologia que ex-
pressa o patrimˆonio metaf´ısico do grupo. Em especial, a maneira pela qual as
sociedades tradicionais, na voz dos mais humildes entre eles, classificam suas
atividades mentais e sociais, deve ser levada em considera¸c˜ao. Boas anuncia
assim a constitui¸c˜ao do que hoje chamamos de ”etnociˆencias”.
Finalmente, ele foi um dos primeiros a nos mostrar n˜ao apenas a importˆancia,
mas tamb´em a necessidade, para o etn´ologo, do acesso `a l´ıngua da cultura
na qual trabalha. As tradi¸c˜oes que estuda n˜ao poderiam ser-lhe traduzidas.
1
Da qual Radcliffe-Brown e Malinowski tirar˜ao as conseq¨uˆencias tec ricas: n˜ao ´e
mais poss´ıvel opor sociedades ”simples”e sociedades ”complexas”, sociedades ”inferio-
res”evoluindo para o ”superior”, sociedades ”primitivas”a caminho da ”civiliza¸c˜ao”. As
primeiras n˜ao s˜ao as formas An nraanizac˜oes originais das quais as segundas teriam deri-
vado.
60 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA:
Ele pr´oprio deve recolhˆe-las na l´ıngua de seus interlocutores.2
Pode parecer surpreendente, levando em conta o que foi dito, que Boas, ex-
ceto entre os profissionais da antropologia, seja praticamente desconhecido.
Isso se deve principalmente a duas raz˜oes:
1) multiplicando as comunica¸c˜oes e os artigos, ele nunca escreveu nenhum
livro destinado ao p´ublico erudito, e os textos que nos deixou s˜ao de uma
concis˜ao e de um rigor asc´etico. Nada que anuncie, por exemplo, a emo¸c˜ao
que se pode sentir (como veremos logo) na leitura de um Malinowski; ou que
lembre o charme ultrapassado da prosa enfeitada de um Frazer;
2) nunca formulou uma verdadeira teoria, t˜ao estranho era-lhe o esp´ırito
de sistema; e a generaliza¸c˜ao apressada parecia-lhe o que h´a de mais distante
do esp´ırito cient´ıfico. `As ambi¸c˜oes dos primeiros tempos – quero falar dos
afrescos gigantescos do s´eculo XIX, que retratam os prim´ordios da humani-
dade mas expressam simultaneamente os prim´ordios da antropologia, isto ´e
uma antropologia principalmente – sucedem, com ele, a mod´estia e a sobri-
edade da maturidade.
De qualquer modo, a influˆencia de Boas foi consider´avel. Foi um dos pri-
meiros etn´ografos. A sua preocupa¸c˜ao de precis˜ao na descri¸c˜ao dos fatos
observados, acrescentava-se a de conserva¸c˜ao met´odica do patrimˆonio reco-
lhido (foi conservador do museu de Nova Iorque). Finalmente, foi, enquanto
professor, o grande pedagogo que formou a primeira gera¸c˜ao de antrop´ologos
americanos (Kroeber, Lowie, Sapir, Herskovitz, Linton. . . e, em seguida,
R. Benedict, M. Mead). Ele permanece sendo o mestre incontestado da an-
tropologia americana na primeira metade do s´eculo XX.
4.2 MALINOWSKI (1884-1942)
Malinowski dominou incontestavelmente a cena antropol´ogica, de 1922, ano
de publica¸c˜ao de sua primeira obra, Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental,
at´e sua morte, em 1942.
1) Se n˜ao foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiˆencia et-
nogr´afica, isto ´e, em primeiro lugar, a viver com as popula¸c˜oes que estudava
2
Sobre a rela¸c˜ao da cultura, da l´ıngua e do etn´ologo, cf. particular-mente. ap´os Boas.
Sapir (1967) e Leenhardt (1946).
4.2. MALINOWSKI (1884-1942) 61
e a recolher seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreens˜ao por
dentro, e para isso, procurou romper ao m´aximo os contatos com o mundo
europeu.
Ningu´em antes dele tinha se esfor¸cado em penetrar tanto, como ele fez
no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentali-
dade dos outros, e em compreender de dentro, por uma verdadeira busca
de despersonaliza-¸c˜ao, o que sentem os homens e as mulheres que perten-
cem a uma cultura que n˜ao ´e nossa. Boas procurava estabelecer repert´orios
exaustivos, e muitos entre seus seguidores nos Estados Unidos (Kroeber, Mur-
dock. . .) procuraram definir correla¸c˜oes entre o maior n´umero poss´ıvel de
vari´aveis. Malinowski considera esse trabalho uma aberra¸c˜ao. Conv´em pelo
contr´ario, segundo ele, conforme o primeiro exemplo que d´a em seu primeiro
livro, mostrar que a partir de um ´unico costume, ou mesmo de um ´unico ob-
jeto (por exemplo, a canoa trobriandesa – voltaremos a isso) aparentemente
muito simples, aparece o perfil do conjunto de uma sociedade.
2) Instaurando uma ruptura com a hist´oria conjetural (a reconstitui¸c˜ao es-
peculativa dos est´agios), e tamb´em com a geografia especulativa (a teoria di-
fusionista, que tende, no in´ıcio do s´eculo, a ocupar o lugar do evolucionismo,
e postula a existˆencia de centros de difus˜ao da cultura, a qual se transmite
por empr´estimos), Malinowski considera que uma sociedade deve ser estu-
dada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde
a observamos. Medimos o caminho percorrido desde Frazer, que foi no en-
tanto o mestre de Malinowski. Quando pergunt´avamos ao primeiro por que
ele pr´oprio n˜ao ia observar as sociedades a partir das quais tinha constru´ıdo
sua obra, respondia: ”Deus me livre!”. Os Argonautas do Pac´ıfico Ociden-
tal, embora tenha sido editado alguns anos apenas ap´os o fim da publica¸c˜ao
de O Ramo de Ouro, com um pref´acio, notamo-lo, do pr´oprio Frazer, adota
uma abordagem rigorosamente inversa: analisar de uma forma intensiva e
cont´ınua uma microssociedade sem referir-se a sua hist´oria. Enquanto Frazer
procurava responder `a pergunta: ”Como nossa sociedade chegou a se tornar
o que ´e?”; e respondia escrevendo essa ”obra ´epica da humanidade”que ´e O
Ramo de Ouro, Malinowski se pergunta o que ´e uma sociedade dada em si
mesma e o que a torna vi´avel para os que a ela pertencem, observando-a no
presente atrav´es da intera¸c˜ao dos aspectos que a constituem.
(Com Malinowski, a antropologia se torna uma ”ciˆencia”da alteridade que
vira as costas ao empreendimento evolucionista de reconstitui¸c˜ao das origens
da civiliza¸c˜ao, e se dedica ao estudo das l´ogicas particulares caracter´ısticas de
cada cultura. O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas ´e que os costumes
62 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA:
dos Trobriandeses, t˜ao profundamente diferentes dos nossos, tˆem uma signi-
fica¸c˜ao e uma coerˆencia. N˜ao s˜ao puerilidades que testemunham de alguns
vest´ıgios da humanidade, e sim sistemas l´ogicos perfeitamente elaborados.
Hoje, todos os etn´ologos est˜ao convencidos de que as sociedades diferentes
da nossa s˜ao sociedades humanas tanto quanto a nossa, que os homens e
mulheres que nelas vivem s˜ao adultos que se comportam diferentemente de
n´os, e n˜ao primitivos”, autˆomatos atrasados (em todos os sentidos do termo)
que pararam em uma ´epoca distante e vivem presos a tradi¸c˜oes est´upidas.
Mas nos anos 20 isso era propriamente revolucion´ario.
3) A fim de pensar essa coerˆencia interna, Malinowski elabora uma teoria
(o funcionalismo) que tira seu modelo das ciˆencias da natureza: o indiv´ıduo
sente um certo n´umero de necessidades, e cada cultura tem precisamente
como fun¸c˜ao a de satisfazer `a sua maneira essas necessidades fundamen-
tais. Cada uma realiza isso elaborando institui¸c˜oes (econˆomicas, pol´ıticas,
jur´ıdicas, educativas. . .), fornecendo respostas coletivas organizadas, que
constituem, cada uma a seu modo,solu¸c˜oes originais que permitem atender
a essas necessidades.
4) Uma outra caracter´ıstica do pensamento do autor de Os Argonautas ´e,
ao nosso ver, sua preocupa¸c˜ao em abrir as fronteiras disciplinares, devendo o
homem ser estudado atrav´es da tripla articula¸c˜ao do social, do psicol´ogico e
do biol´ogico. Conv´em em primeiro lugar, para Malinowski, localizar a rela¸c˜ao
estreita do social e do biol´ogico; o que decorre do ponto anterior, j´a que, para
ele, uma sociedade funcionando como um organismo, as rela¸c˜oes biol´ogicas
devem ser consideradas n˜ao apenas como o modelo epistemol´ogico que per-
mite pensar as rela¸c˜oes sociais, e sim como o seu pr´oprio fundamento. Al´em
disso, uma verdadeira ciˆencia da sociedade implica, ou melhor, inclui o es-
tudo das motiva¸c˜oes psicol´ogicas, dos comportamentos, o estudo dos sonhos e
dos desejos do indiv´ıduo.3
E Malinowski, quanto a esse aspecto (que o separa
radicalmente, como veremos, de Durkheim), vai muito al´em da an´alise da
afetividade de seus interlocutores. Ele procura reviver nele pr´oprio os sen-
timentos dos outros, fazendo da observa¸c˜ao participante uma participa¸c˜ao
psicol´ogica do pesquisador, que deve ”compreender e compartilhar os senti-
mentos”destes ´ultimos ”interiorizando suas rea¸c˜oes emotivas”.
3 ´E essa vontade de alcan¸car o homem em todas as suas dimens˜oes, e, notadamente,
de n˜ao dissociar o grupo do indiv´ıduo, que faz com que seja um dos primeiros etn´ologos
a interessar-se pelas obras de Freud. Mas devemos reconhecer que ele demonstra uma
grande incompreens˜ao da psican´alise
4.2. MALINOWSKI (1884-1942) 63
* * *
O fato de a obra (e a pr´opria personalidade) de Malinowski ter sido provavel-
mente a mais controvertida de toda a hist´oria da antropologia (isso inclusive
quando era vivo) se deve a duas raz˜oes, ligadas ao car´ater sistem´atico de sua
rea¸c˜ao ao evolucionismo.
1) Os antrop´ologos da ´epoca vitoriana identificavam-se totalmente com a
sua sociedade, isto ´e, com a ”civiliza¸c˜ao industrial”, considerada como ”a
civiliza¸c˜ao”tout court, e com seus benef´ıcios. Em rela¸c˜ao a esta. os costumes
dos povos ”primitivos”eram vistos como aberrantes. Malinowski inverte essa
rela¸c˜ao: a antropologia sup˜oe uma identifica¸c˜ao (ou, pelo menos, uma busca
de identifica¸c˜ao) com a alteridade, n˜ao mais considerada como forma social
anterior `a civiliza¸c˜ao, e sim como forma contemporˆanea mostrando-nos cm
sua pureza aquilo que nos faz tragicamente falta: a autenticidade. Assim
sendo, a aberra¸c˜ao n˜ao est´a mais do lado das sociedades ”primitivas”e sim
do lado da sociedade ocidental (cf. pp. 50-51 deste livro os coment´arios de
Malinowski, que retomam o tema da idealiza¸c˜ao do selvagem).
2) Convencido de ser o fundador da antropologia cient´ıfica moderna (o que,
ao meu ver, n˜ao ´e totalmente falso, pois o que fez a partir dos anos 20 ´e
essencial), ele elabora – sobretudo durante a ´ultima parte de sua vida –
uma teoria de uma extrema rigidez, que contribuiu, em grande parte, para o
descr´edito do qual ele ainda ´e objeto: o ”funcionalismo”. Nesta perspectiva,
as sociedades tradicionais s˜ao sociedades est´aveis e sem conflitos, visando
naturalmente a um equil´ıbrio atrav´es de institui¸c˜oes capazes de satisfazer `as
necessidades dos homens. Essa compreens˜ao naturalista e marcadamente oti-
mista de uma totalidade cultural integrada, que postula que toda sociedade
´e t˜ao boa quanto pode ser, pois suas institui¸c˜oes est˜ao a´ı para satisfazer a
todas as necessidades, defronta-se com duas grandes dificuldades: como ex-
plicar a mudan¸ca social? Como dar conta do disfuncionamento e da patologia
cultural?
A partir de sua pr´opria experiˆencia – limitada a um min´usculo arquip´elago
que permanece, no in´ıcio do s´eculo, relativamente afastado dos contatos in-
terculturais –, Malinowski, baseando-se no modelo do finalismo biol´ogico,
estabelece generaliza¸c˜oes sistem´aticas que n˜ao hesita em chamar de ”leis ci-
ent´ıficas da sociedade”. Al´em disso, esse funcionalismo ”cient´ıfico”n˜ao tem
rela¸c˜ao com a realidade da situa¸c˜ao colonial dos anos 20, situa¸c˜ao essa, to-
talmente ocultada. A antropologia vitoriana era a justifica¸c˜ao do per´ıodo
da conquista colonial. O discurso monogr´afico e a-hist´orico do funcionalismo
64 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA:
passa a ser a justifica¸c˜ao de uma nova fase do colonialismo.
* * *
Apesar disso, al´em das cr´ıticas que o pr´oprio Malinowski contribuiu em pro-
vocar, tudo o que devemos a ele permanece ainda hoje consider´avel.
1) Compreendendo que o ´unico modo de conhecimento em profundidade dos
outros ´e a participa¸c˜ao a sua existˆencia, ele inventa literalmente e ´e o pri-
meiro a pˆor em pr´atica a observa¸c˜ao participante, dando-nos o exemplo do
que deve ser o estudo intensivo de uma sociedade que nos ´e estranha. O fato
de efetuar uma estadia de longa dura¸c˜ao impregnan-do-se da mentalidade
de seus h´ospedes e esfor¸cando-se para pensar em sua pr´opria l´ıngua pode
parecer banal hoje. N˜ao o era durante os anos 1914-1920 na Inglaterra, e
muito menos na Fran¸ca. Malinowski nos ensinou a olhar. Deu-nos o exemplo
daquilo que devia ser uma pesquisa de campo, que n˜ao tem mais nada a ver
com a atividade do ”investigador”questionando ”informadores”.
2) Em Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, pela primeira vez, o social
deixa de ser aned´otico, curiosidade ex´otica, descri¸c˜ao moralizante ou cole¸c˜ao
exaustiva erudita. Pois, para alcan¸car o homem em todas as suas dimens˜oes,
´e preciso dedicar-se `a observa¸c˜ao de fatos sociais aparentemente min´usculos
e insignificantes, cuja significa¸c˜ao s´o pode ser encontrada nas suas posi¸c˜oes
respectivas no interior de uma totalidade mais ampla. Assim, as canoas tro-
briandesas (das quais falamos acima) s˜ao descritas em rela¸c˜ao ao grupo que
as fabrica e utiliza, ao ritual m´agico que as consagra, `as regulamenta¸c˜oes
que definem sua posse, etc. Algumas transportando de ilha em ilha colares
de conchas vermelhas, outras, pulseiras de conchas brancas, efetuando em
sentidos contr´arios percursos invari´aveis, passando necessariamente de novo
por seu local de origem, Malinowski mostra que estamos frente a um pro-
cesso de troca generalizado, irredut´ıvel `a dimens˜ao econˆomica apenas, pois
nos permite encontrar os significados pol´ıticos, m´agicos, religiosos, est´eticos
do grupo inteiro.
Os Jardins de Coral, o segundo grande livro de Malinowski, trabalha com a
mesma abordagem. Esse ”estudo dos m´etodos agr´ıcolas e dos ritos agr´arios
nas ilhas Trobriand”, longe de ser uma pesquisa especializada sobre um
fenˆomeno agronˆomico dado, mostra que a agricultura dos Trobriandeses
inscreve-se na totalidade social desse povo, e toca em muitos outros aspectos
que n˜ao a agricultura.
4.2. MALINOWSKI (1884-1942) 65
3) Finalmente, uma das grandes qualidades de Malinowski ´e sua faculdade
de restitui¸c˜ao da existˆencia desses homens e dessas mulheres que puderam
ser conhecidos apenas atrav´es de uma rela¸c˜ao e de uma experiˆencia pessoais.
Mesmo quando estuda institui¸c˜oes, n˜ao s˜ao nunca vistas como abstra¸c˜oes
reguladoras da vida de atores anˆonimos. Seja em Os Argonautas ou’ Os
Jardins de Coral, ele faz reviver para n´os esse povo trobriandˆes que n˜ao po-
deremos nunca mais confundir com outras popula¸c˜oes ”selvagens”. O homem
nunca desaparece em proveito do sistema. Ora, essa exigˆencia de conduzir
um projeto cient´ıfico sem renunciar `a sensibilidade art´ıstica chama-se etno-
logia. Malinowski ensinou a muitos entre n´os n˜ao apenas a olhar, mas a
escrever, restituindo `as cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor. Quanto
a isso, Os Argonautas me parece exemplar. ´E um livro escrito num estilo
magn´ıfico que aproxima seu autor de um outro polonˆes que, como ele, viveu
na Inglaterra, expressando-se em inglˆes: Joseph Conrad, e que anuncia as
mais bonitas p´aginas de Tristes Tr´opicos, de L´evi Strauss.
A antropologia contemporˆanea ´e freq¨uentemente amea¸cada pela abstra¸c˜ao
e sofistica¸c˜ao dos protocolos, podendo, como mostrou Devereux (1980), ir
at´e a destrui¸c˜ao do objeto que pretendia estudar, e, conjuntamente, da es-
pecificidade da nossa disciplina. ”Um historiador”, escreve Firth, ”pode ser
surdo, um jurista pode ser cego, um fil´osofo pode a rigor ser surdo e cego,
mas ´e preciso que o antrop´ologo entenda o que as pessoas dizem e veja o
que fazem”. Ora, a grande for¸ca de Malinowski foi ter conseguido fazer ver e
ouvir aos seus leitores aquilo que ele mesmo tinha visto, ouvido, sentido. Os
Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, publicado com fotografias tiradas a partir
de 1914 por seu autor, abre o caminho daquilo que se tornar´a a antropologia
audiovisual.4
4
Sobre a obra de Malinowski, consultar o trabalho de Michel Panoff. 1972.
66 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA:
Cap´ıtulo 5
Os Primeiros Te´oricos Da
Antropologia:
Durkheim e Mauss
Boas e Malinowski, nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial,
fundaram a etnografia. Mas o primeiro, recolhendo com a precis˜ao de um na-
turalista os fatos no campo, n˜ao era um te´orico. Quanto ao segundo, a parte
te´orica de suas pesquisas ´e provavelmente, como acabamos de ver, o que h´a
de mais contest´avel em sua obra. A antropologia precisava ainda elaborar
instrumentos operacionais que permitissem construir um verdadeiro objeto
cient´ıfico. ´E precisamente nisso que se empenharam os pesquisadores france-
ses dessa ´epoca, que pertenciam `a chamada ”escola francesa de sociologia”.
Se existe uma autonomia do social, ela exige, para alcan¸car sua elabora¸c˜ao
cient´ıfica, a constitui¸c˜ao de um quadro te´orico, de conceitos e modelos que
sejam pr´oprios da investiga¸c˜ao do social, isto ´e, independentes tanto da ex-
plica¸c˜ao hist´orica (evolucionismo) ou geogr´afica (difusionismo), quanto da
explica¸c˜ao biol´ogica (o funcionalismo de Malinowski) ou psicol´ogica (a psi-
cologia cl´assica e a psican´alise principiante).
Ora, conv´em notar desde j´a – e isso ter´a conseq¨uˆencias essenciais para o
desenvolvimento contemporˆaneo de nossa disciplina – que n˜ao s˜ao de forma
alguma etn´ologos de campo, e sim fil´osofos e soci´ologos – Durkheim e Mauss,
de quem falaremos agora – que forneceram `a antropologia o quadro te´orico
e os instrumentos que lhe faltavam ainda.
Durkheim, nascido em 1858, o mesmo ano que Boas, mostrou em suas pri-
meiras pesquisas preocupa¸c˜oes muito distantes das da etnologia, e mais ainda
67
68 CAP´ITULO 5. OS PRIMEIROS TE ´ORICOS DA ANTROPOLOGIA:
da etnografia. Em As Regras do M´etodo Sociol´ogico (1894), ele op˜oe a ”pre-
cis˜ao”da hist´oria `a ”confus˜ao”da etnografia, e se d´a como objeto de estudo
”as sociedades cujas cren¸cas, tradi¸c˜oes, h´abitos, direito, incorporaram-se em
movimentos escritos e autˆenticos”. Mas, em As Formas Elementares da Vida
Religiosa (1912), ele revisa seu julgamento, considerando que ´e n˜ao apenas
importante, mas tamb´em necess´ario estender o campo de investiga¸c˜ao da so-
ciologia aos materiais recolhidos pelos etn´ologos nas sociedades primitivas.
Sua preocupa¸c˜ao maior ´e mostrar que existe uma especificidade do social, e
que conv´em conseq¨uentemente emancipar a sociologia, ciˆencia dos fenˆomenos
sociais, dos outros discursos sobre o homem, e, em especial, do da psicologia.
Se n˜ao nega que a ciˆencia possa progredir por seus confins, considera que na
sua ´epoca ´e vantajoso para cada disciplina avan¸car separadamente e construir
seu pr´oprio objeto. ”A causa determinante de um fato social deve ser bus-
cada nos fatos sociais anteriores e n˜ao nos estados da consciˆencia individual”.
Durkheim n˜ao procura de forma alguma questionar a existˆencia desta, nem
a pertinˆencia da psicologia. Mas op˜oe-se `as explica¸c˜oes psicol´ogicas do social
(sempre ”falsas”, segundo sua express˜ao). Assim, por exemplo, a quest˜ao da
rela¸c˜ao do homem com o sagrado n˜ao poderia ser abordada psicologicamente
estudando os estados afetivos dos indiv´ıduos, nem mesmo atrav´es de alguma
psicologia ”coletiva”. Da mesma forma , que a linguagem, tamb´em fenˆomeno
coletivo, n˜ao poderia encontrar sua explica¸c˜ao na psicologia dos que a falam,
sendo absolutamente independente da crian¸ca que a aprende, ´e-lhe exterior,
a precede e c´ontinuar´a existindo muito tempo depois de sua morte.
Essa irredutibilidade do social aos indiv´ıduos (que ´e a pedra-de-toque de qual-
quer abordagem sociol´ogica) tem para Durkheim a seguinte conseq¨uˆencia: os
fatos sociais s˜ao ”coisas”que s´o podem ser explicados sendo relacionados a
outros fatos sociais. Assim, a sociologia conquista pela primeira vez sua auto-
nomia ao constituir um objeto que lhe ´e pr´oximo, por assim dizer arrancado
ao monop´olio das explica¸c˜oes hist´oricas, geogr´aficas, psicol´ogicas, biol´ogicas.
. . da ´epoca.
Esse pensamento durkheimiano – que, observamos, ´e t˜ao funcionalista quanto
o de Malinowski, mas n˜ao deve nada ao modelo biol´ogico – vai atrav´es de suas
novas exigˆencias metodol´ogicas, renovar profundamente a epistemologia das
ciˆencias humanas da primeira metade do s´eculo XX, ou, mais exatamente,
das ciˆencias sociais destinadas a se separar destas. Vai exercer uma influˆencia
consider´avel sobre a pesquisa antropol´ogica, particularmente na Inglaterra e
evidentemente na Fran¸ca, o pa´ıs de Durkheim, onde, ainda hoje. nossa dis-
ciplina n˜ao se emancipou realmente da sociologia.
69
Marcel Mauss (1872-1950) nasceu, como Durkheim, em Epinal, quatorze
anos ap´os este, de quem ´e sobrinho. Suas contribui¸c˜oes te´oricas respecti-
vas na constitui¸c˜ao da antropologia moderna s˜ao ao mesmo tempo muito
pr´oximas e muito diferentes. Se Mauss faz, tanto quanto Durkheim, quest˜ao
de fundar a autonomia do social, separa-se muito rapidamente do autor de
As Regras do M´etodo Sociol´ogico a respeito de dois pontos essenciais: o es-
tatuto que conv´em atribuir `a antropologia, e uma exigˆencia epistemol´ogica
que hoje qualificar´ıamos de pluridisciplinar.
Durkheim considerava os dados recolhidos pelos etnol´ogos nas sociedades
”primitivas”sob o ˆangulo exclusivo da sociologia, da qual a etnologia (ou
antropologia) era destinada a se tornar uma ramo. Mauss vai trabalhar in-
cansavelmente, durante toda sua vida (com Paul Rivet), para que esta seja
reconhecida como uma ciˆencia verdadeira, e n˜ao como uma disciplina anexa.
Em 1924, escreve que ”o lugar da sociologia”est´a ”na antropologia”e n˜ao o
inverso,.
Um dos conceitos maiores forjados por Mareei Mauss e o do fenˆomeno social
total, consistindo na integra¸c˜ao dos diferentes aspectos (biol´ogico, econˆomico,
jur´ıdico, hist´orico, religioso, est´etico. . .) constitutivos de uma dada reali-
dade social que conv´em apreender em sua integralidade. ”Ap´os ter for¸cosamente
dividido um pouco exageradamente”, escreve ele, ”´e preciso que os sociol´ogos
se esforcem em recompor o todo”. Ora, prossegue Mauss, os fenˆomenos so-
ciais s˜ao ”antes sociais, mas tamb´em conjuntamente e ao mesmo tempo fi-
siol´ogicos e psicol´ogicos”. Ou ainda: ”O simples estudo desse fragmento de
nossa vida que ´e nossa vida em sociedade n˜ao basta”. N˜ao se pode, ainda,
afirmar que todo fenˆomeno social ´e tamb´em um fenˆomeno mental, da mesma
forma que todo fenˆomeno mental ´e tamb´em um fenˆomeno social, devendo as
condutas humanas ser apreendidas em todas as suas dimens˜oes, e particular-
mente em suas dimens˜oes sociol´ogica, hist´orica e psicofisiol´ogica.
Assim, essa ”totalidade folhada”, segundo a palavra de L´evi-Strauss, co-
mentador de Mauss (1960), isto ´e, ”formada de uma multitude de planos
distintos”, s´o pode ser apreendida na experiˆencia dos indiv´ıduos”. Devemos,
escreve Mauss, ”observar o comportamento de seres totais, e n˜ao divididos
em faculdades”. E a ´unica garantia que podemos ter de que um fenˆomeno
social corresponda `a realidade da qual procuramos dar conta ´e que possa ser
apreendido na experiˆencia concreta de um ser humano, naquilo que tem de
´unico:
70 CAP´ITULO 5. OS PRIMEIROS TE ´ORICOS DA ANTROPOLOGIA:
”O que ´e verdadeiro, n˜ao ´e a ora¸c˜ao ou o direito,e sim o melan´esio de tal
ou tal ilha”.
N˜ao podemos portanto alcan¸car o sentido e a fun¸c˜ao de uma institui¸c˜ao
se n˜ao formos capazes de reviver sua incidˆencia atrav´es de uma consciˆencia
individual, consciˆencia esta que ´e parte da institui¸c˜ao e portanto do social.
Finalmente, para compreender um fenˆomeno social total, ´e preciso apreendˆe-
lo totalmente, isto ´e, de fora como uma ”coisa”, mas tamb´em de dentro
como uma realidade vivida. ´E preciso compreendˆe-lo alternadamente tal
como o percebe o observador estrangeiro (o etn´ologo), mas tamb´em tal como
os atores sociais o vivem. O fundamento desse movimento de desdobramento
ininterrupto diz respeito `a especificidade do objeto antropol´ogico. ´E um ob-
jeto de mesma natureza que o sujeito, que ´e ao mesmo tempo – emprestando
o vocabul´ario de Mauss e Durkheim – ”coisa”e ”representa¸c˜ao”. Ora, o que
caracteriza o modo de conhecimento pr´oprio das ciˆencias do homem, ´e que o
observador-sujeito, para compreender seu objeto, esfor¸ca-se para viver nele
mesmo a experiˆencia deste, o que s´o ´e poss´ıvel porque esse objeto ´e, tanto
quanto ele, sujeito.
Trabalhando inicialmente com uma abordagem semelhante `a de Durkheim,
a reflex˜ao da Mauss desembocou, como vemos, em posi¸c˜oes muito diferen-
tes. Estamos longe do distanciamento sociol´ogico que sup˜oe a metodologia
durkheimiana, e pr´oximos da pr´atica etnogr´afica de Malinowski. Este ´ultimo
ponto merece alguns coment´arios.
Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, de Malinowski, e o Ensaio sobre o
Dom, de Mauss, s˜ao publicados com um ano de intervalo (o primeiro em
1922, o segundo em 1923). As duas obras s˜ao muito pr´oximas uma da ou-
tra. A segunda sup˜oe o conhecimento dos materiais recolhidos pelo etn´o-
grafo. A primeira exige uma teoria que ser´a precisamente constitu´ıda pelo
antrop´ologo. Os Argonautas s˜ao uma descri¸c˜ao meticulosa desses grandes
circuitos mar´ıtimos transportando, nos arquip´elagos melan´esicos, colares e
pulseiras de conchas: a kula. O Ensaio sobre o Dom ´e uma tentativa de
esclarecimento e elabora¸c˜ao da kula, atrav´es da qual Mauss n˜ao apenas vi-
sualiza um processo de troca simb´olica generalizado, mas tamb´em come¸ca
a extrair a existˆencia de leis da reciprocidade (o dom e o contradom) e da
comunica¸c˜ao, que s˜ao pr´oprias da cultura em si, e n˜ao apenas da cultura tro-
briandesa. Enquanto Os Argonautas, a obra menos te´orica de Malinowski,
evidencia o que Leach chama de ”inflex˜ao biol´ogica”, o Ensaio sobre o Dom
j´a expressa preocupa¸c˜oes estruturais.
71
O fato de poder ser abordada de diferentes maneiras, de suscitar inter-
preta¸c˜oes m´ultiplas, ou mesmo voca¸c˜oes diversas, ´e pr´oprio de toda obra
importante, e a obra de Mauss est´a incontestavelmente entre estas. Muitos
mestres da antropologia do s´eculo XX (estou pensando particularmente em
Marciel Griaule, fundador da etnografia francesa, em Claude I.´evi-Strauss,
pai do estruturalismo, em Georges Devereux, fundador da etnopsiquiatria)
o consideram como seu pr´oprio mestre. Mauss ocupa na Fran¸ca um lugar
bastante compar´avel ao de Boas nos Estados Unidos, especialmente para to-
dos os que, influenciados por ele, procuraram promover a especificidade e a
unidade das ciˆencias do homem.
72 CAP´ITULO 5. OS PRIMEIROS TE ´ORICOS DA ANTROPOLOGIA:
Parte II
As Principais Tendˆencias Do
Pensamento Antropol´ogico
Contemporˆaneo
73
Laplantine.françoise. aprender antropologia
Cap´ıtulo 6
Introdu¸c˜ao:
Com o trabalho efetuado pelos pais fundadores da etno-grafia – Boas, Ma-
linowski, Rivers. . . – e pelos primeiros te´oricos da nova ciˆencia do social
– Durkheim e Mauss –, podemos considerar que a antropologia entrou em
sua maturidade. O que examinaremos agora s˜ao os desenvolvimentos contem-
porˆaneos. N˜ao se trata evidentemente de apresentar aqui um panorama com-
pleto desse per´ıodo que cobre mais de meio s´eculo (1930-1986), t˜ao grande ´e a
diversidade e a riqueza do campo antropol´ogico explorado, e tamb´em porque
nos falta distˆancia para fazer o balan¸co dos trabalhos que nos s˜ao propria-
mente contemporˆaneos. Contentar-nos-emos, mais modestamente, em abrir
algumas trilhas (mais pr´oximas da trilha do que da auto-estrada) que per-
mitam destacar as tendˆencias dominantes do pensamento e da pr´atica dos
antrop´ologos de nossa ´epoca. Podemos fazer isso de trˆes diferentes maneiras.
6.1 Campos De Investiga¸c˜ao
A primeira via, que me recusarei a adotar por raz˜oes que come¸caram a ser
expostas no in´ıcio desse livro, consistia em levantar as ´areas de investiga¸c˜ao
e estudar os resul tados obtidos em cada uma ou em algumas delas. O
desenvolvimento do pensamento cient´ıfico implica uma diferen cia¸c˜ao cres-
cente dos campos do saber. A antropologia n˜ao apenas tende a progredir
por disjun¸c˜ao em rela¸c˜ao `a filosofia, sociologia, psicologia, hist´oria. . . (po-
dendo manter paralelamente canais e espa¸cos de articula¸c˜ao e confronto),
mas avan¸ca, dentro de sua pr´opria pr´atica, especializando-se e instaurando
at´e subespecialidades.1
1
Especialidades: antropologia das tecnologias, antropologia econˆomica, antropologia
dos sistemas de parentesco, antropologia pol´ıtica, antropologia religiosa, antropologia
art´ıstica, antropologia da comunica¸c˜ao, antropologia urbana, antropologia industrial. ..
75
76 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO:
Se deixamos de lado essa primeira forma poss´ıvel de exposi¸c˜ao do campo
antropol´ogico contemporˆaneo, ´e porque consideramos que uma disciplina
cient´ıfica (ou que pretende sˆe-lo) n˜ao deva ser caracterizada por objetos
emp´ıricos j´a constitu´ıdos, mas, pelo contr´ario, pela constitui¸c˜ao de objetos
formais. Ou seja, a ´unica coisa pass´ıvel, a nosso ver, de definir uma disciplina
(qualquer que seja), n˜ao ´e de forma alguma um campo de investiga¸c˜ao dado
(a tecnologia, o parentesco, a arte, a religi˜ao. . .), muito menos uma ´area
geogr´afica ou um per´ıodo da hist´oria, e sim a especificidade da abordagem
utilizada que transforma esse campo, essa ´area, esse per´ıodo em objeto ci-
ent´ıfico.
6.2 Determina¸c˜oes Culturais
Uma segunda via, que apenas esbo¸caremos aqui, consistiria em mostrar o
que a pesquisa do antrop´ologo deve `a cultura `a qual ele pr´oprio pertence.
As condi¸c˜oes hist´oricas e sociais de produ¸c˜ao do saber antropol´ogico s˜ao
eminentemente diversificadas, e n˜ao seria satisfat´orio relacion´a-las `apenas ao
”Ocidente”, como se este fosse um bloco homogˆeneo e Imut´avel. Mostrare-
mos quais foram os caracteres culturais distintivos que marcavam profunda-
mente e continuam influenciando v´arias sociedades nas quais o pensamento e
a pr´atica (antropol´ogicas est˜ao hoje particularmente desenvolvidos. Limitur-
nos-emos a trˆes: a antropologia americana, a britˆanica h francesa.
A antropologia americana:
Tendo tido um crescimento r´apido com o impulso especialmente do evolu-
cionismo e de seu principal te´orico Lewis Morgan, pode ser caracterizada da
seguinte maneira:
1) trata-se de um tipo de pesquisa que destaca a diversidade das culturas-
, as varia¸c˜oes praticamente ilimitadas que aparecem quando se comparam
as sociedades entre si. Esse estudo, conduzido mais a partir da observa¸c˜ao
dos comportamentos individuais do que do funcionamento das institui¸c˜oes,
visa evidenciar a especificidade das personalidades culturais, bem como das
produ¸c˜oes culturais caracter´ısticas de uma etnia ou na¸c˜ao. Disso decorre a
Subespecialidades: etnoling¨u´ıstica, etnomedicina, etnopsiquiatria, etnomusicologia, de que
s´o se domina a pr´atica para uma ´area geogr´afica limitada.
6.2. DETERMINAC¸ ˜OES CULTURAIS 77
importˆancia, nos Estados Unidos, das rela¸c˜oes da etnologia com a psicologia
ou a psican´alise:
2) a antropologia americana n˜ao se interessa apenas pelos processos de in-
tera¸c˜ao entre os indiv´ıduos e sua cultura, mas tamb´em entre as pr´oprias1
culturas: forjou, em especial, o conceito de ”acultura¸c˜ao”ao qual voltaremos
mais adiante;
3) nunca foi confrontada, ao contr´ario do que ocorreu na Fran¸ca e na Ingla-
terra, aos processos da coloniza¸c˜ao e descoloniza¸c˜ao, mas, em contrapartida,
aos problemas colocados por suas pr´oprias minorias (negra, ´ındia e portorri-
quenha);
4) acrescentemos finalmente que se a antropologia americana contribuiu muito
cedo em grande parte (Boas) para pˆor um fim `a arrogˆancia das reconstitui¸c˜oes
hist´oricas especulativas, reatualizou e renovou ao mesmo tempo, em seus de-
senvolvimentos contemporˆaneos, a abordagem evolucionista sob a forma do
que ´e hoje chamado neo-evolucionismo
A antropologia britˆanica:
Seu crescimento, tamb´em muito r´apido, como nos Estados Unidos, deve ser
relacionado `a importˆancia de seu imp´erio colonial. Pode ser caracterizada da
seguinte maneira:
1) ´e uma antropologia antievolucionista, que se constituiu desde Malinowski
em oposi¸c˜ao a uma compreens˜ao hist´orica do social (as reconstru¸c˜oes hi-
pot´eticas dos est´agios, indo das sociedades ”primitivas”`as ”civilizadas”, bem
como a abordagem da historiografia). Dedica-se preferencialmente `a inves-
tiga¸c˜ao do presente a partir de m´etodos funcionais (Malinowski), e, em se-
guida, estruturais (Radcliffe-Brown): uma sociedade deve ser estudada em
si, independentemente de seu passado, tal como se apresenta no momento no
qual a observamos. O modelo pode portanto ser qualificado de sincrˆonico,
enquanto a pesquisa baseia-se no levantamento da totalidade dos aspectos
que constituem uma determinada sociedade: a monografia;
2) ´e uma antropologia antidifusionista, o que a op˜oe `a antropologia ame-
ricana, a qual se preocupa em compreender o processo de transmiss˜ao dos
elementos de uma cultura para outra. Para a maioria dos pesquisadores
ingleses, uma sociedade n˜ao deve ser explicada nem pelo que herda de seu
passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos;
78 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO:
3) ´e uma antropologia de campo, que se desenvolve muito rapidamente, a
partir do in´ıcio do s´eculo, com Malinowski e, antes, com Radcliffe-Brown, o
qual ´e, mais ainda que Malinowski, um dos pais fundadores de quem a maio-
ria dos antrop´ologos britˆanicos contemporˆaneos se considera sucessora. Esse
car´ater emp´ırico (observa¸c˜ao direta de uma determinada sociedade, a partir
de um trabalho exigindo longas estadias no campo) e indutivo da pr´atica dos
antrop´ologos ingleses ap´oia-se numa longa tradi¸c˜ao britˆanica: o empirismo
dos fil´osofos desse pa´ıs, que se pode opor ao racionalismo e ao idealismo
do pensamento francˆes. Hoje ainda, um antrop´ologo que pode ser conside-
rado como um dos mais importantes da Gr˜a-Bretanha, Leach, n˜ao hesita em
qualificar-se de ”empirista”, e at´e de ”materialista”, e vˆe a abordagem de um
L´evi-Strauss como tipicamente francesa: racionalista e idealista;
4) finalmente, ´e uma antropologia social que, ao contr´ario da antropologia
americana, privilegia o estudo da organiza¸c˜ao dos sistemas sociais em detri-
mento do estudo dos comportamentos culturais dos indiv´ıduos.
A antropologia francesa:
A Fran¸ca est´a praticamente ausente da cena da antropologia social e cul-
tural da segunda metade do s´eculo XIX. Nenhum pesquisador francˆes teve,
nessa ´epoca, a influˆencia de um Tylor (inglˆes) ou de um Morgan (americano).
As preocupa¸c˜oes da antropologia francesa estavam voltadas para outra ´area.
Quando se falava de antropologia, tratava-se da antropologia f´ısica, que era
ent˜ao ilustrada pelos trabalhos de Broca, Quatrefages ou Topinard, que pu-
blicou em 1876 uma obra intitulada simplesmente A Antropologia.2
Esse atraso da etnologia francesa – muito importante se considerarmos a
intensa atividade que se desenvolvia do outro lado do canal da Mancha e do
Atlˆantico – n˜ao ser´a recuperado no in´ıcio do s´eculo XX. Enquanto que um
campo emp´ırico e te´orico consider´avel se constitu´ıa tanto nos Estados Unidos
como na Gr´a-Bretanha; enquanto, nesses dois pa´ıses, administradores utili-
zavam cada vez mais os servi¸cos de antrop´ologos formados nas universidades,
a etnologia francesa dessa ´epoca permanecia ainda uma etnologia selvagem,
que n˜ao era praticada por etn´ologos e sim por mission´arios e por alguns ad-
2
Notemos que Gobineau, que considera o estudo do homem apenas sob o ˆangulo da
ra¸ca, nunca das culturas (Essai sur iln´egalit´e des Races Humaines, 1853) era francˆes.
Lembremos tamb´em a importˆancia que teve a antropologia f´ısica e pr´e-hist´orica na Fran¸ca
(em rela¸c˜ao notadamente `a influˆencia consider´avel exercida no final do s´eculo XIX pelas
ciˆencias positivas e experimentais no pa´ıs de Pasteur e de Claude Bernard)
6.2. DETERMINAC¸ ˜OES CULTURAIS 79
ministradores de colˆonias francesas.3
Mais uma vez, as preocupa¸c˜oes francesas est˜ao voltadas para outros aspec-
tos: trata-se dessa vez de preocupa¸c˜oes te´oricas de fil´osofos e soci´ologos que,
sem d´uvida, exercer˜ao uma influˆencia decisiva na constitui¸c˜ao cient´ıfica da
etnologia, mas n˜ao s˜ao sustentadas por nenhuma pr´atica etnogr´afica. Nem
Durkheim (cujo pensamento vai impregnar profundamente a antropologia in-
glesa), nem L´evy-Bruhl efetuaram qualquer observa¸c˜ao. O pr´oprio Mauss,
que ´e paradoxalmente autor de uma excelente obra, manual de investiga¸c˜ao
etnogr´afica (1967), nunca realizou uma investiga¸c˜ao no campo.
Ser´a preciso esperar os anos 30 para que uma verdadeira etnografia pro-
fissional comece a se constituir na Fran¸ca. A primeira miss˜ao de car´ater
cient´ıfico (a famosa ”Dacar-Djibuti”) ser´a efetuada por Mareei Griaule e
seus colaboradores em 1931. A partir da mesma ´epoca, Maurice Leenhardt,
que permaneceu por mais de 20 anos na Nova Caledˆonia como mission´ario
protestante, empreendeu trabalhos (1946, 1985) que podem ser qualificados
de pioneiros, enquanto Paul Rivet passava a ser um dos principais artes˜aos
da organiza¸c˜ao da antropologia no nosso pa´ıs. A partir dessa ´epoca, mas
s´o a partir dela, pode-se considerar que, com o impulso especialmente dos
homens que acabamos de citar, a antropologia francesa entrou em sua maturi-
dade. A partir desse momento, as pesquisas foram prosseguindo, estendendo
o aprofundando-se em um ritmo ininterrupto.
Seria dif´ıcil, principalmente em algumas frases, caracterizar os desenvolvi-
mentos propriamente contemporˆaneos dessa pesquisa francesa, cuja riqueza
n˜ao tem mais nada a invejar dos Estados Unidos ou da Inglaterra. Lembre-
mos apenas aqui alguns aspectos relevantes:
• as preocupa¸c˜oes te´oricas dos antrop´ologos franceses que aparecem par-
ticularmente quando confrontamos seus trabalhos (e debates) `a pr´atica
da antropologia anglo-saxˆonica, freq¨uentemente mais emp´ırica;
• um objeto de predile¸c˜ao que ´e o estudo dos sistemas de ”representa¸c˜oes”
3
Clozel e Delafosse estudaram no in´ıcio do s´eculo o sistema jur´ıdico das popula¸c˜oes
do Sud˜ao. O segundo se tornou professor na Escola Colonial. diretor da Revue
d’Ethnographie e co-fundador do Institu´ı d’Ethno-logie de Paris (1924). Publicou notada-
mente Les Noirs de 1’Afrique e L’Ame N`egre (1922). Entre os pioneiros desse africanismo
francˆes principiante, conv´em lembrar os noves de Tauxier, Monteil, Labouret, que s˜ao
administradores coloniais eruditos, e sobretudo ]unod, mission´ario da Su´ı¸ca romanche
80 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO:
(particularmente a religi˜ao, a mitologia, a literatura de tradi¸c˜ao oral),
termos que devemos a Dur-kheim, enquanto L´evy-Bruhl j´a se interes-
sava pelo que chamava de ”mentalidades”;
• uma renova¸c˜ao metodol´ogica, com o impulso especialmente:
1) do estruturalismo (do qual L´evi-Strauss ´e evidentemente o representante
mais ilustre),
2) de pesquisas conduzidas dentro da perspectiva do marxismo;
• um crescimento muito recente, mas apoiado em uma s´olida tradi¸c˜ao, da
etnografia, da museografia e da etnologia da pr´opria sociedade francesa,
em suas diversidades e muta¸c˜oes.
6.3 Os Cinco P´olos Te´oricos Do Pensamento
Antropol´ogico Contemporˆaneo
Uma terceira via deter´a mais nossa aten¸c˜ao. ´E para essa que finalmente
optaremos, e ´e a partir dela que se organizar´a a segunda parte desse li-
vro. Pareceu-nos que, desde sua conslitui¸c˜ao enquanto disciplina de voca¸c˜ao
cient´ıfica,4
a antropologia oscila entre v´arios p´olos te´oricos que aparecem
freq¨uentemente como exclusivos uns dos outros, mas s˜ao de fato pontos de
vista diferentes sobre a mesma realidade.
Tentaremos, portanto, dar conta do desenvolvimento contemporˆaneo da an-
tropologia, n˜ao nos colocando mais do lado dos territ´orios particulares (ter-
rit´orios tem´aticos como a antropologia econˆomica, a antropologia religiosa, a
antropologia urbana), nem do lado das colora¸c˜oes nacionais, explicativas das
tendˆencias culturais da pr´atica dos pesquisadores, mas do lado dos m´etodos
de investiga¸c˜ao.
A pluralidade dos modelos mobilizados e utilizados n˜ao tem, a meu ver,
nada de desvantajoso. E seria errˆoneo atribuir exclusivamente a impress˜ao
de cacofonia que d˜ao freq¨uentemente os congressos e reuni˜oes de antrop´ologos
4
As funda¸c˜oes antropol´ogicas de Morgan, o aperfei¸coamento de instrumentos de inves-
tiga¸c˜ao verdadeiramente etnogr´aficos com Boas, Rivers e Malinowski, a elabora¸c˜ao de um
quadro de referˆencia conceitual com Mauss e Durkheim
6.3. OS CINCO P ´OLOS TE ´ORICOS DO PENSAMENTO ANTROPOL ´OGICO CONTEMPOR ˆANE
a uma imaturidade cient´ıfica e ao car´ater ainda principiante de nossa disci-
plina. Novamente, procurando estudar a pluralidade, seria o c´umulo se a
antropologia n˜ao fosse ela mesma ”plural”. A pluralidade ´e pelo contr´ario
para mim, uma das garantias (n˜ao a ´unica evidentemente, pois pode haver
pluralidade de dogmatismos e ortodoxias) de que nossas pesquisas aceitam
sujeitar-se a cr´ıticas rec´ıprocas e passar por processos de invalida¸c˜ao (cf. K.
Popper, 1937), cada um dos modelos te´oricos sendo apenas uma perspectiva
sobre o social e n˜ao o pr´oprio social.
Em As Palavras e as Coisas, Michel Foucault distingue o que ele chama de
trˆes ”regi˜oes epistemol´ogicas”, em torno das quais se constitu´ıram, a partir do
s´eculo XIX, os diferentes saberes positivos sobre o homem: a biologia, ciˆencia
do ser vivo; a economia, ciˆencia da produ¸c˜ao e das rela¸c˜oes de produ¸c˜ao; a
filologia, ciˆencia da linguagem e de suas diversas express˜oes (mitologias, li-
teraturas, tradi¸c˜oes orais. . .). Mais precisamente, diz Foucault:
• a biologia ´e o estudo das fun¸c˜oes do homem nas suas regula¸c˜oes fi-
siol´ogicas e nos seus processos de adapta¸c˜ao, bem como o estudo das
normas reguladoras dessas fun¸c˜oes;
• a economia ´e o estudo dos conflitos entre o homens, a partir das rela¸c˜oes
sociais do trabalho, bem como das regras que permitem controlar esses
conflitos;
• a filologia ´e o estudo do sentido que elaboramos em nossos discursos,
bem como do sistema que constitui sua coerˆencia.
A ”regi˜ao”biol´ogica, considera Foucault (1966), encontra um de seus pro-
longamentos no campo psicol´ogico que estuda nossos processos neuromoto-
res, mas tamb´em nossa aptid˜ao em elaborar fantasias e representa¸c˜oes. `A
”regi˜ao”econˆomica pertence o campo sociol´ogico que explora as rela¸c˜oes de
poder. Finalmente, a ´ultima regi˜ao vai dar lugar ao espa¸co ling¨u´ıstico, `as
disciplinas que chamamos hoje de ciˆencias da comunica¸c˜ao, que se d˜ao como
objeto a an´alise de todas as manifesta¸c˜oes escritas, orais e gestuais.
O que ´e importante notar, ainda de acordo com o autor de /ls Palavras
e as Coisas, ´e:
1) o car´ater inconsciente das normas, das regras e dos sistemas, em rela¸c˜ao
`as fun¸c˜oes, aos conflitos e `as significa¸c˜oes;
2) o fato de que esses diferentes pares conceituais (fun¸c˜ao/norma, conflito/regra,
82 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO:
sentido/sistema) podem deslocar-se para fora dos territ´orios nos quais apa-
receram. Assim, por exemplo, o estudo do social tende a apreender o homem
em termos de regras e conflitos. Mas tamb´em pode ser conduzido a partir
dos conceitos de fun¸c˜oes e normas (Durkheim, Malinowski) ou a partir do
sentido e do sistema (Griaule, L´evi-Strauss).
Dispondo dessa orienta¸c˜ao, o que procurarei mostrar agora, falando em meu
nome pessoal, ´e que:
1) o objeto da antropologia ´e t˜ao complexo que n˜ao podia dotar-se de um
´unico modo de acesso sem correr o risco do esp´ırito de ortodoxia. E efe-
tivamente, no per´ıodo de aproximadamente meio s´eculo que estudaremos,
veremos nossa disciplina utilizando sucessiva ou simultaneamente v´arios mo-
dos de acesso.
2) a reflex˜ao antropol´ogica n˜ao pode deixar de lado o conceito de incons-
ciente, forjado no ˆambito do discurso psicanal´ıtico, mas do qual este n˜ao tem
evidentemente o monop´olio. Somente o car´ater inconsciente das normas,
regras e sistemas nos permite compreender que a partir dos trˆes campos do
saber determinados por Michel Foucault estaremos confrontados com pesqui-
sas etnol´ogicas de car´ater emp´ırico e a pesquisas preocupadas da constru¸c˜ao
de seu objeto cient´ıfico; o qual nunca ´e dado, e sim conquistado, sendo por
assim dizer arrancado da percep¸c˜ao consciente imediata tanto dos atores so-
ciais quanto das observadoras do social.
Levando em conta o que foi dito, parece a meu ver poss´ıvel localizar cinco
p´olos em torno dos quais a antropologia oscila constantemente.
1) A antropologia simb´olica. Seu objeto ´e essa regi˜ao da linguagem que cha-
mamos s´ımbolo e que ´e o lugar de m´ultiplas significa¸c˜oes,5
que se expressam
em especial atrav´es das religi˜oes, das mitologias e da percep¸c˜ao imagin´aria
do cosmos. Esse primeiro eixo da pesquisa caracteriza-se mais, como vere-
mos, por um tipo de preocupa¸c˜oes do que por um m´etodo propriamente dito.
Trata-se de apreender o objeto que se pretende estudar do ponto de vista do
sentido. O que significam as institui¸c˜oes ou os comportamentos que encon-
tramos em tal sociedade? O que se pode dizer a respeito daquilo que uma
sociedade expressa atrav´es da l´ogica de seus discursos?
5
Sobre a defini¸c˜ao antropol´ogica do s´ımbolo, autorizo-mo a indicar meu livro t.es 50
Mots Cl´es de /’Anthropologie. Toulouse. Privai, 1974.
6.3. OS CINCO P ´OLOS TE ´ORICOS DO PENSAMENTO ANTROPOL ´OGICO CONTEMPOR ˆANE
2) A antropologia social. Seu objeto situa-se claramente no campo epis-
temol´ogico oriundo da economia (cf. acima M. Foucault). Nada distingue
realmente seu territ´orio do territ´orio do soci´ologo. Um dos conceitos ope-
rat´orios a partir do qual essa perspectiva de in´ıcio se instaurou, ´e o de fun¸c˜ao
(Malinowski, mas tamb´em Durkheim), freq¨uentemente ligado ao estudo dos
processos de normaliza¸c˜ao destas fun¸c˜oes (= as institui¸c˜oes). ´E um eixo
de pesquisa que n˜ao se interessa diretamente para as maneiras de pensar,
conhecer, sentir, expressar-se, em si, e mais para a organiza¸c˜ao interna dos
grupos, a partir da qual podem ser estudados o pensamento, o conhecimento,
a emo¸c˜ao, a linguagem. Qual a finalidade de tal institui¸c˜ao? Para que serve
tal costume? A que classe social pertence aquele que tem tal discurso, e qual
´e o n´ıvel de integra¸c˜ao dessa classe na sociedade global?
3) A antropologia cultural. Seja o modelo utilizado, biol´ogico, psicol´ogico
(Kardiner, 1970), ou ling¨u´ıstico (Sapir, 1967), ´e uma antropologia freq¨uente-
mente emp´ırica, que se situa do lado da fun¸c˜ao ou, mais ainda, do sentido,
em detrimento da norma e do sistema. Mas o que permite essencialmente
caracterizar essa tendˆencia de nossa disciplina ´e o crit´erio da continuidade ou
descontinuidade entre a natureza e a cultura de um lado, e entre as pr´oprias
culturas, de outro.
a) Enquanto autores como Bateson ou L´evi-Strauss, de quem falaremos adi-
ante, esfor¸cam-se em pensar a continuidade (ou, mais exatamente, no caso
de L´evi-Strauss, a articula¸c˜ao) entre a ordem da natureza e a da cultura,
os que chamamos ”aculturalistas”, com autores de quem est˜ao, no que diz
respeito ao essencial, muito afastados, como Evans-Pritchard ou Devereux,
privilegiam claramente a solu¸c˜ao da descontinuidade.
b) Enquanto um grande n´umero de antrop´ologos salienta a universalidade
da cultura (para Morgan, as sociedades s´o s˜ao pens´aveis porque pertencem a
um tronco comum, para Malinowski, h´a uma permanˆencia das fun¸c˜oes, e para
Devereux uma ”universalidade da cultura”), os culturalistas mais uma vez,
sobretudo a respeito disso, privilegiam a des-continuidade, isto ´e a coerˆencia
interna e a diferen¸ca irredut´ıvel de cada cultura.
c) A antropologia estrutural e sistˆemica. Estudaremos aqui n˜ao s´o uma,
mas v´arias correntes do pensamento antropol´ogico. Uns utilizam um modelo
psicanal´ıtico; outros um modelo proveniente do que Foucault designa como
o campo epistemol´ogico da economia (Mauss elabora, como vimos, as regras
explicativas da troca); outros finalmente, os mais numerosos, escolhem um
modelo ling¨u´ıstico, matem´atico, cibern´etico (L´evi-Strauss, Bateson). Mas
84 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO:
qualquer que seja o modelo adotado, ele realiza uma passagem do consciente
para o inconsciente: passagem da fun¸c˜ao para a norma (Roheim), do conflito
para a regra (Mauss), do sentido para o sistema (L´evi-Strauss).
Enquanto nos situ´avamos por exemplo do lado da fun¸c˜ao, o alteridade sempre
corria o risco de ser considerada (e rejeitada) no espa¸co da extraterritoriali-
dade: ao lado, fora. isto ´e, para sempre diferente. Assim, para a psicologia
pr´e-freudiana, o normal e o anormal n˜ao tˆem nada em comum. Para a et-
nologia de L´evy-Bruhl (1933), existe uma ”mentalidade primitiva”exclusiva
de tudo que ´e pr´oprio do homem da l´ogica. Para Griaule, finalmente (1966),
`as institui¸c˜oes e mitologias plenamente significantes da ´Africa tradicional,
op˜oe-se a insignificˆancia do Ocidente industrial. Invers˜ao de perspectiva
neste caso, em rela¸c˜ao ao anterior, mas que se inscreve no mesmo horizonte
epistemol´ogico. Ao contr´ario, quando a atividade epistemol´ogica come¸ca a
situar-se do lado da norma (e n˜ao mais da fun¸c˜ao), da regra (e n˜ao mais do
conflito), do sistema (e n˜ao mais do sentido), n˜ao ´e mais poss´ıvel pensar que
os doentes mentais s˜ao ”loucos”, a ”mentalidade primitiva”, ”absurda”, e os
mitos ”insignificantes”. O que desmorona, ent˜ao, ´e a pertinˆencia dos pares
antinˆo-micos do normal e do patol´ogico, do l´ogico e do il´ogico, do sentido e
do n˜ao-sentido.
Se insistimos tanto desde j´a sobre esse quarto p´olo da pesquisa, ´e porque,
com ele, o campo epistemol´ogico do sabei sobre o homem muda radicalmente
pela segunda vez desde o final do s´eculo XVIII (cf. p. 53 deste livro). E
´e, de fato, em torno das obras de Freud (o inconsciente explicativo do cons-
ciente), Saussure, e depois Jakobson (a l´ıngua explicativa da palavra), de
L´evi-Strauss e dos estruturalistas (a prio ridade dada ao sistema sobre o
sentido), que se reorganizar´a o conhecimento antropol´ogico contemporˆaneo.
Na antropo logia psicanal´ıtica, como na antropologia estrutural, estima-se
que al´em da surpreendente diversidade das forma¸c˜oes psicol´ogicas ou das
produ¸c˜oes culturais localizadas a n´ıvel emp´ırico existe o que Bastian j´a cha-
mava de ”unidade ps´ıquica da humanidade”. Mas esta deve doravante ser
pensada, n˜ao mais ao n´ıvel das significa¸c˜oes vividas, mas ao n´ıvel do sistema
(inconsciente). Uma das principais quest˜oes que se colocar´a ent˜ao ´e a se-
guinte: quais s˜ao as estruturas inconscientes do esp´ırito que atuam, tanto
nas formas elementares e complexas do parentesco, quanto no mito, na obra
de arte?. . .
5) A antropologia dinˆamica. Reunimos nesse termo um eixo da pesquisa
antropol´ogica contemporˆanea que se situa no horizonte do que Foucault6
chama de campo sociol´ogico, e que procura estudar as rela¸c˜oes de poder.
6.3. OS CINCO P ´OLOS TE ´ORICOS DO PENSAMENTO ANTROPOL ´OGICO CONTEMPOR ˆANE
As interroga¸c˜oes dos autores dos quais trataremos n˜ao est˜ao distantes das
da sociologia, e alguns inclusive preferem qualificar-se de sociol´ogos. Uma
das caracter´ısticas de suas contribui¸c˜oes para a antropologia do s´eculo XX,
e mais especificamente, da segunda metade do s´eculo XX, consiste, a meu
ver, em reorientar a antropologia social, operando uma ruptura total com o
funcionalismo em seus pressupostos, ao mesmo tempo a hist´oricos (socieda-
des im´oveis que podem ser estudadas como se a coloniza¸c˜ao n˜ao existisse)
e finalistas (institui¸c˜oes visando satisfazer as necessidades). Para esses au-
tores, pelo contr´ario, conv´em n˜ao isolar essa ´area particular do homem que
seria a hist´oria. Esta ´e parte integrante do campo antropol´ogico. Por isso,
as quest˜oes colocadas s˜ao as seguintes: qual ´e a dinˆamica de tal sistema so-
cial? De onde vem? Quais s˜ao as modalidades atuais de suas transforma¸c˜oes?
Esses cinco p´olos em torno dos quais se organiza a antropologia contem-
porˆanea n˜ao tˆem nada de exclusivo. S˜ao tendˆencias de pesquisa que podem
coexistir dentro de uma mesma escola de pensamento, ou mesmo de um ´unico
pesquisador.7
A escolha da pieeminˆencia do que Devereux (1972) chamou de motivo ope-
rante (ou modelo epistemol´ogico principal, constitutivo da abordagem ado-
tada) – o qual pode ser exclusivo (ou n˜ao) do lugar concedido a um motivo
instrumental (ou modelo de investiga¸c˜ao complementar) –explica os deba-
tes, ou at´e as discuss˜oes, a que assistimos n˜ao apenas entre disciplinas, mas
tamb´em dentro de uma mesma disciplina. A incompreens˜ao entre os pesqui-
sadores pode se tornar total, se estes n˜ao tiverem plena consciˆencia do falo de
que efetuam respectivamente escolhas metodol´ogicas, que constituem diver-
sas perspectivas poss´ıveis visando dar conta de um mesmo objeto emp´ırico.
7
Assim, por exemplo, o come¸co da obra de Malinowski aparece como muito pr´oximo da
antropologia cultural. Evidenciando a especificidade da sociedade trobriandesa (1963), e
afirmando em seguida a n˜ao-existˆencia do complexo de ´Edipo nessa popula¸c˜ao melan´esia
(1967-1970), exerceu uma influˆencia evidente (cf.. por exemplo, Kardiner, 1970) sobre os
culturalistas americanos. Mas. no final de sua vida (1968h a universalidade da fun¸c˜ao
superou finalmente a particularidade das culturas. Considerando agora a obra de L´evi-
Strauss, esta situa-se, se a examinarmos do ponto de vista- dos objetos preferencialmente
estudados (os mitos), do lado do que chamamos de antropologia simb´olica. Mas seu projeto
diz respeito `a antropologia social (´e o nome do laborat´orio que L´evi-Strauss chefiou no
Coll`ege de Francel e sua abordagem pertence evidentemente (e ´e at´e constitutiva dele) ao
quarto eixo de pesquisa definido acima.
Existem portanto afinidades entre, por exemplo, a antropologia cultural e a antropo-
logia funcional (Malinowski), entre a antropologia estrutural e a antropologia dinˆamica
(Godelier. 1973). Em compensa¸c˜ao, ´e dif´ıcil imaginar como se poderia conciliar uma
antropologia baseada na no¸c˜ao de integra¸c˜ao social (Malinowski) e uma antropologia de
orienta¸c˜ao dinˆamica (Balandier) ou psicanal´ıtica (Devereux).
86 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO:
Esse problema diz respeito em especial `a quest˜ao da transferˆencia dos mo-
delos em antro pologia. Estes podem ser, por exemplo, biol´ogicos (Spencer.
Comte, Malinowski), hist´oricos (Morgan), ling¨u´ısticos ou. como se diz hoje,
”informacionais”(a antropologia estrutural e sistˆemica referindo-se `as no¸c˜oes
de mensagens, c´odigos e programas), psicol´ogicos (a introdu¸c˜ao dos conceitos
de inibi¸c˜ao, repress˜ao e sublima¸c˜ao para pensar o social). Conv´em, se qui-
sermos escapar daquilo que ´e freq¨uentemente apenas um di´alogo de surdos,
nunca esquecer que se trata somente de modelos, isto ´e, de instrumentos da
pesquisa que visam explicar o real, mas n˜ao podem subsiitu´ı-lo, pois este, em
termos cient´ıficos, s´o pode ser, segundo a express˜ao de Bachelard, ”aproxi-
mado”.
Cap´ıtulo 7
A Antropologia Dos Sistemas
Simb´olicos
Foi a antropologia que se empenhou essencialmente em mostrar a l´ogica pre-
cisa dos sistemas de pensamento mitol´ogicos, teol´ogicos, cosmol´ogicos, que
s˜ao os das sociedades qualificadas de ”tradicionais”. Toda uma corrente
de pesquisas aparece na Fran¸ca, particularmente representativa dessas preo-
cupa¸c˜oes: ´e a que, a partir dos anos 30, leva Mareei Griaule e seus colabo-
radores a efetuar estudos sistem´aticos, primeiro da mitologia dos Dogons, e
depois, da religi˜ao dos Bambaras. Esses trabalhos1
v˜ao marcar duradoura-
mente, n˜ao apenas o africanismo francˆes, mas tamb´em a pr´atica etnol´ogica
dos pesquisadores franceses. Deixando de lado, por assim dizer, a com-
preens˜ao das rela¸c˜oes de poder entre os diferentes protagonistas de uma
sociedade (assunto da antropologia social, de que trataremos no pr´oximo
cap´ıtulo), estes orientam sua aten¸c˜ao para os seguintes aspectos: o estudo
das produ¸c˜oes simb´olicas (artesanato), a literatura de tradi¸c˜ao oral (mitos,
contos, lendas, prov´erbios. . .) e dos instrumentos atrav´es dos quais essas
produ¸c˜oes se constituem (particularmente as l´ınguas); o estudo da l´ogica dos
saberes (filos´oficos, religiosos, art´ısticos, cient´ıficos) existentes num grupo (o
que abre o caminho para uma antropologia do conhecimento e para o que
hoje qualificamos de ”etnociˆencias”). em suma, de tudo que Griaule e seus
sucessores chamam de ”filosofia”das sociedades dogon, bambara. . . tal
como se expressa atrav´es dos mitos e est´orias tradicionais, da m´usica, dos
cantos, dan¸cas, m´ascaras e outros objetos culturais.
Para o conjunto dos etn´ologos, e para Griaule em especial, esse pensamento
1
Cf., por exemplo, M. Griaule (1938, 1966). G. Dielerlcn (1951, 1972), D. Paulme,
1962), M. Griaule e G. Dieterlen (1965). D Zahan (1960, 1963), G. Calame-Griaule (1965).
etc.
87
88 CAP´ITULO 7. A ANTROPOLOGIA DOS SISTEMAS SIMB ´OLICOS
simb´olico e as pr´aticas rituais a ele relacionados2
e que constituem com ele o
patrimˆonio do grupo, n˜ao se caracterizam apenas por sua profunda coerˆencia
– os sistemas de correspondˆencia extremamente precisos entre os vivos e os
mortos, o homem e o animal, a natureza e a cultura. . .
S˜ao elabora¸c˜oes grandiosas, de uma complexidade e riqueza inestim´aveis.
E ´e precisamente esse esplendor e essa grandeza (dos mitos, ritos, m´ascaras.
. .) que acabam impondo-se ao observador ocidental, e que far˜ao em es-
pecial, das fal´esias de Bandiagara (Mali) e de seus habitantes (os Dogons),
ap´os os ´ındios, os abor´ıgines australianos e os trobriandeses, um dos mais
importantes lugares da antropologia.
Como estamos longe do tempo era que Morgan considerava que ”todas as
religi˜oes primitivas s˜ao grotescas e de alguma forma inintelig´ıveis”. Mas
como estamos longe tamb´em das aprecia¸c˜oes que s˜ao no entanto as de mui-
tos pesquisadores contemporˆaneos de Griaule. De Frazer, por exemplo, que,
interrogando-se sobre os mitos e as pr´aticas rituais aos quais havia no en-
tanto dedicado sua vida, escreve: ”loucuras, v˜aos esfor¸cos, tempo perdido,
esperan¸cas frustradas”. Ou de L´evy-.Bruhl, que anota em seus Carnets: os
mitos s˜ao ”est´orias estranhas, para n˜ao dizer absurdas e incompreens´ıveis”,
e acrescenta: ”´E preciso um esfor¸co para se interessar por eles”.
Toda essa tendˆencia do pensamento antropol´ogico de que procuramos aqui
dar conta coloca-se (a partir de observa¸c˜oes minuciosas) contra esses julga-
mentos. Da mesma forma, op˜oe-se totalmente `a busca de uma determina¸c˜ao
pela economia, que explicaria a fun¸c˜ao dos mitos dentro do sistema social.
As pr´aticas simb´olicas em quest˜ao n˜ao tˆem de ser fundamentadas sociologica-
mente, pois s˜ao, pelo contr´ario, fundadoras da ordem c´osmica e social. S˜ao
elas que devem ser tomadas como fundamentais, se aceitarmos finalmente
compreendˆe-las de dentro, impregnando-nos de sua sabedoria, recolhendo o
mais fielmente poss´ıvel o discurso dos iniciados, e n˜ao projetando, de fora,
categorias caracteristicamente ocidentais. Percebe-se ent˜ao que o conjunto
do edif´ıcio das sociedades africanas baseia-se numa filosofia (cf., por exemplo,
Tempels, 1949) e at´e numa ”ontologia”que comanda a concep¸c˜ao toda que
se tem do mundo e das rela¸c˜oes dos homens na sociedade.
2
O interesse para a ´area dos mitos, dos ritos de inicia¸c˜ao, da religi˜ao e da magia aparece
como uma constante da antropologia francesa do conjunto do s´eculo XX. Cf. por exemplo
Durkheim (1979), M. Mauss (1960), A. Van Gennep (1981), M. Leiris (1958), A. M´etraux
(1958), R. Bastide (1958), J. Rouch (1960), L. de Heusch (1971), C. L´evi-Strauss (1964),
L. V. Thomas e R. Luneau (1975), G. Durand (1975), [. Favrct-Saada (1977), M. Aug´e
(1982).
89
Uma abordagem muito pr´oxima orienta as pesquisas efetuadas por Mau-
rice Leenhardt (um dos primeiros etn´olo-gos franceses de campo, com Gri-
aule) na Nova Caledˆonia. Em Do Kamo, a Pessoa e o Mito no Mundo
Melan´esio (1985), apresentado como um ”longo caminhar pelas trilhas cana-
ques, atrav´es do pensamento dos insulares, de sua no¸c˜ao de espa¸co, de tempo,
de sociedade, de palavra, de personagem”, Leenhardt considera que o mito ´e
fundador da ”vida e da a¸c˜ao do homem e da sociedade”.
Cr´ıticas n˜ao faltaram a essa antropologia que tem de fato tendˆencia a apre-
ender as representa¸c˜oes (religiosas, narrativas, art´ısticas. . .) como uma ´area
”`a parte”. Dedicando exclusivamente sua aten¸c˜ao ao ”s´ot˜ao”, deixando de
se interessar pelo que acontece ”na adega”, ela efetua a reconstitui¸c˜ao dos
sistemas de pensamento e conhecimento em si pr´oprios. As rela¸c˜oes que estes
mantˆem com as rela¸c˜oes sociais, pol´ıticas, econˆomicas da sociedade em um
determinado momento de sua hist´oria s˜ao consideradas secund´arias, quando
n˜ao s˜ao pura e simplesmente ocultadas. N˜ao se pensa um s´o instante, por
exemplo, na hip´otese de que as sociedades tradicionais possam, como diz
Althusser, ”ser movidas `a ideologia”. Assim sendo, o discurso etnol´ogico
tende a confundir-se com a teoria que a sociedade estudada elabora para dar
conta de si pr´opria. Trata-se evidentemente mais que de uma renova¸c˜ao:
de uma invers˜ao de perspectivas em rela¸c˜ao `a arrogˆancia dos julgamentos
ocidentalocˆentricos sobre o primitivo. Mas ser´a que essa abordagem que se
limita a recolher as representa¸c˜oes conscientes dos mais s´abios entre os inici-
ados locais pode servir de explica¸c˜ao antropol´ogica?
O que conv´em destacar ´e que essa tendˆencia da etnologia cl´assica inscreve-se
num projeto de reabilita¸c˜ao das formas de pensamento e express˜ao que n˜ao
s˜ao as nossas. Mostra que, fora o saber cient´ıfico, o ´unico a beneficiar de
uma plena legitima¸c˜ao no Ocidente do s´eculo XX, existem outras formas de
conhecimento tamb´em autˆenticas. Esse protesto para o direito `a existˆencia
de identidades culturais e espirituais (o que Senghor, por exemplo, chamar´a
de ”metaf´ısica negra”), negadas pelas pr´aticas coloniais e que coincide com
a descoberta de ”arte negra”, ´e profundamente subversivo na primeira me-
tade do s´eculo XX. Finalmente, se n˜ao existe nenhuma teoria griauliana
propriamente dita (retomamos mais uma vez o exemplo de Griaule porque
ele nos parece o mais representativo dessa abordagem), n˜ao deixa de haver
um ac´umulo de pesquisas extremamente aprofundadas que contribu´ıram em
dar `a etnologia francesa seu prest´ıgio, um trabalho consider´avel sem o qual
a antropologia provavelmente n˜ao seria o que ´e hoje.
90 CAP´ITULO 7. A ANTROPOLOGIA DOS SISTEMAS SIMB ´OLICOS
Cap´ıtulo 8
A Antropologia Social:
Os princ´ıpios da antropologia social, tal como se elabora especialmente na In-
glaterra com o impulso de Malinowski e sobretudo de Radcliffe-Brown (1968),
n˜ao deixam de lembrar os princ´ıpios da antropologia simb´olica. Esta insistia,
como acabamos de ver, na coerˆencia l´ogica dos sistemas de pensamento. A
antropologia social, por sua vez, come¸ca destacando a coes˜ao das institui¸c˜oes,
o car´ater integrativo da fam´ılia, da moral, e sobretudo da religi˜ao (Durkheim,
1979).
Mas essas duas perspectivas s˜ao muito diferentes. Essa alteridade da qual
procurava-se mostrar o significado profundo (cap´ıtulo anterior), e tamb´em
o valor inestim´avel, pode ser tamb´em encontrada dentro de cada sociedade,
t˜ao grande ´e a diferencia¸c˜ao interna dos grupos sociais que comp˜oem uma
mesma cultura. Assim, se o interesse para os sistemas de representa¸c˜oes (mi-
tologia, magia, religi˜ao. . .) permanece, ´e para mostrar o lugar e a fun¸c˜ao
que s˜ao seus dentro de um conjunto maior: a sociedade global em quest˜ao. O
que ´e ent˜ao tomado como explicativo precisa ser explicado. A antropologia
simb´olica realiza em muitos aspectos uma redundˆancia sofisticada daquilo
que era dito pelos pr´oprios fatores sociais, ou, mais precisamente, pelos de-
posit´arios habilitados do saber de uma parte do grupo. Perguntamo-nos
agora: o que mostram, mas tamb´em dissimulam, esses discursos suntuosos
que expressam menos a sociedade em sua realidade do que a sociedade em
seu ideal? Assim, ao estudo da cultura como sistema de rela¸c˜oes vividas,
Malinowski, um dos primeiros, pede que se substitua o estudo da sociedade
como sistema de rela¸c˜oes reais, que escapam aos atores sociais: ”Os objetivos
sociol´ogicos nunca est˜ao presentes no esp´ırito dos ind´ıgenas”. O antrop´ologo
´e que deve descobrir as leis de funcionamento da sociedade.
As produ¸c˜oes simb´olicas s˜ao simultaneamente produ¸c˜oes sociais que sempre
91
92 CAP´ITULO 8. A ANTROPOLOGIA SOCIAL:
decorrem de pr´aticas sociais. N˜ao devem ser estudadas em si-, mas enquanto
representa¸c˜oes do social. Este ´ultimo termo, consagrado por Durkheim, vai
exercer um papel consider´avel, particularmente na constitui¸c˜ao de uma an-
tropologia social da religi˜ao. Quando se diz nessa perspectiva que a religi˜ao
(da mesma forma que a arte ou a magia) ´e uma ”representa¸c˜ao”, sublinha-se
que n˜ao se deve atribuir-lhe nenhuma existˆencia autˆonoma pois est´a vincu-
lada a uma outra coisa, capaz de explic´a-la: as rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, de
parentesco, as rela¸c˜oes entre faixas de idade, entre grupos sexuais, todos es-
tes n´ıveis de realidade, mas que s˜ao sempre rela¸c˜oes de poder encontrando
ao mesmo tempo sua express˜ao e sua justifica¸c˜ao nesse saber integrativo e
totalizante por excelˆencia que ´e a religi˜ao.1
Uma outra caracter´ıstica desse segundo eixo de pesquisa, estreitamente vin-
culada ao que acabamos de dizer, merece ser sublinhada: um certo n´umero de
autores, e n˜ao dos menores (Radcliffe-Brown (1968), Evans-Pritchard (1969),
ou ainda na Fran¸ca, para o per´ıodo contemporˆaneo, Rogei Bastide (1970),
Henri Desroche (1973), Georges Balandier (1974), Louis-Vincent Thomas
(1975)), recusam-se a conceder uma pertinˆencia `a distin¸c˜ao entre a antro-
pologia social e a sociologia. A antropologia social n˜ao ´e profundamente
diferente da sociologia, considera Radcliffe-Brown. ´E uma ”sociologia com-
parativa”. Evans-Pritchard, por sua vez, (1969) escreve:
”A antropologia social deve ser considerada como fazendo parte dos estudos
sociol´ogicos. ´E um ramo da sociologia cujo estudo se liga mais especifica-
mente `as sociedades primitivas”.
Para ilustrar seu ponto de vista, diametralmente oposto ao de Mauss, esse
autor utiliza o exemplo de um processo que confronta juizes, jurados, teste-
munhas, advogados e r´eu:
”No decorrer desse processo, os pensamentos e sentimentos do r´eu, do j´uri
e do juiz sc alterar˜ao de acordo com o momento, assim como podem variar
a idade, a cor dos cabelos e dos olhos dos diferentes protagonistas, mas es-
sas varia¸c˜oes n˜ao s˜ao de nenhum interesse, pelo menos imediatamente, para
1
Estamos apenas dando conta, a partir do exemplo da religi˜ao, de uma op¸c˜ao poss´ıvel
inscrevendo-se na abordagem da antropologia social. Cf., ainda nessa perspectiva (durkhei-
miana), os trabalhos de R. E. Brad-bury e col. (1972) ou de M. Douglas (1971), muito
representativos da antropologia social britˆanica da religi˜ao. Cf. tamb´em, em uma pers-
pectiva sensivelmente diferente, G. Balandier (1967) para quem a religi˜ao ´e a ”linguagem
do pol´ıtico”, e, mais recentemente, as cr´ıticas formuladas por M. Aug´e (1979) quanto `a
no¸c˜ao de ”representa¸c˜ao”.
93
o antrop´ologo. Este n˜ao se interessa pelos atores do drama enquanto in-
div´ıduos”.
As rela¸c˜oes entre a perspectiva antropol´ogica e a perspectiva psicol´ogica,
prossegue Evans-Pritchard, podem ser formuladas nos seguintes termos:
”As duas disciplinas s´o podem ser proveitosas uma a outra, e, nesse caso,
extremamente proveitosas, se efetuarem independentemente suas respectivas
pesquisas, seguindo os m´etodos que lhes s˜ao pr´oprios”.
Estamos frente a uma abordagem tipicamente durkheimiana. A tal ponto
que, para muitos autores americanos (cf. em especial Lowie, 1971), e nota-
damente para os que est˜ao ligados `a antropologia cultural, que examinaremos
agora, a antropologia social n˜ao faz parte da antropologia, mas se inscreve
no prolongamento da sociologia francesa.
94 CAP´ITULO 8. A ANTROPOLOGIA SOCIAL:
Cap´ıtulo 9
A Antropologia Cultural:
A passagem da antropologia social (particularmente desenvolvida na Fran¸ca
e mais ainda na Inglaterra) para a antropologia cultural (especialmente ame-
ricana) corresponde a uma mudan¸ca fundamental de perspectiva. De um
lado, a antropologia se torna uma disciplina autˆonoma, totalmente indepen-
dente da sociologia. De outro, dedica-se uma aten¸c˜ao muito grande menos
ao funcionamento das institui¸c˜oes do que aos comportamentos dos pr´oprios
indiv´ıduos, que s˜ao considerados reveladores da cultura `a qual pertencem.
Quanto a isso, uma hist´oria da antropologia como a de Kardiner e Preble
(1966) – que est´a longe de ser uma das melhores hist´orias de nossa disci-
plina, mas essa n˜ao ´e a quest˜ao – ´e muito caracter´ıstica dessa atitude ame-
ricana. Trata tanto da personalidade dos principais pesquisadores apresen-
tados, quanto de suas id´eias. J´a de in´ıcio, coloca o que ´e uma constante
da pr´atica antropol´ogica nos Estados Unidos: sua rela¸c˜ao `a psicologia e `a
psican´alise.
Para compreender a especificidade dessa abordagem, freq¨uentemente qua-
lificada (de forma um pouco pejorativa) de ”culturalista”, parece-me impor-
tante especificar bem o significado dos conceitos de social e de cultura.
O social ´e a totalidade das rela¸c˜oes (rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, de explora¸c˜ao,
de domina¸c˜ao. . .) que os grupos mantˆem entre si dentro de um mesmo
conjunto (etnia, regi˜ao, na¸c˜ao. . .) e para com outros conjuntos, tamb´em
hierarquizados. A cultura por sua vez n˜ao ´e nada mais que o pr´oprio social,
mas considerado dessa vez sob o ˆangulo dos caracteres distintivos que apre-
sentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como
suas produ¸c˜oes originais (artesanais, art´ısticas, religiosas. . .).
A antropologia social e a antropologia cultural tˆem portanto um mesmo
95
96 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL:
campo de investiga¸c˜ao. Al´em disso, utilizam os mesmos m´etodos (etnogr´aficos)
de acesso a este objeto. Finalmente, s˜ao animadas por um objetivo e uma
ambi¸c˜ao idˆenticos: a an´alise comparativa.1
Mas, o que se compara no pri-
meiro caso ´e o social enquanto sistema de rela¸c˜oes sociais, sendo que, no
segundo, trata-se do social tal como pode ser apreendido atrav´es dos com-
portamentos particulares dos membros de um determinado grupo: nossas
maneiras espec´ıficas, enquanto homens e mulheres de uma determinada cul-
tura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir frente aos acon-
tecimentos (por exemplo, o nascimento, a doen¸ca, a morte).
´E dif´ıcil dar uma defini¸c˜ao que seja absolutamente satisfat´oria da cultura.
Kroeber, um dos mestres da antropologia americana, levantou mais de 50.
Propomos esta: a cultura ´e o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-
fazer caracter´ısticos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo
essas atividades adquiridas atrav´es de um processo de aprendizagem, e trans-
mitidas ao conjunto de seus membros.
Detenhamo-nos um pouco para sublinhar que, a nosso ver, apenas a no¸c˜ao
e cultura, ao contr´ario da de sociedade, ´e estritamente humana. Da mesma
forma que existe (isso n˜ao ´e mais sequer discutido hoje) um pensamento e
uma linguagem nos animais, existem sociedades animais c at´e formas de soci-
abilidade animal, que podem ser regidas por modos de intera¸c˜ao antagˆonicas
ou comunit´arias, bem como de modos de organiza¸c˜ao complexos (em fun¸c˜ao
das faixas de idade, dos grupos sexuais, da divis˜ao hierarquizada do traba-
lho. . .). Indo at´e mais adiante, existe o que hoje n˜ao se hesita mais em
chamar de sociologia celular. Assim, o que distingue a sociedade humana da
sociedade animal, e at´e da sociedade celular, n˜ao ´e de forma alguma a trans-
miss˜ao das informa¸c˜oes, a divis˜ao do trabalho, a especializa¸c˜ao hier´arquica
das tarefas (tudo isso existe n˜ao apenas entre os animais, mas dentro de uma
´unica c´elula!), e sim essa forma de comunica¸c˜ao propriamente cultural que se
d´a atrav´es da troca n˜ao mais de signos e sim de s´ımbolos, e por elabora¸c˜ao
das atividades rituais aferentes a estes. Pois, pelo que se sabe, se os animais
s˜ao capazes de muitas coisas, nunca se viu algum soprar as velas de seu bolo
de anivers´ario. ´E a raz˜ao pela qual, se pode haver uma sociologia animal
(e at´e, repetimo-lo, celular), a antropologia ´e por sua vez especificamente
humana.
Fechemos aqui esse parˆentese, que n˜ao nos afasta de forma alguma do nosso
prop´osito, mas, pelo contr´ario, define-o melhor, e examinemos mais adiante
1
Muito mais afirmada por´em na antropologia cultural do que na antropologia social.
97
os tra¸cos marcantes dessa antropologia que qualifica a si pr´opria de cultural.
Deter-nos-emos em trˆes deles, que est˜ao, como veremos, estreitamente liga-
dos entre si.
1) A antropologia cultural estuda os caracteres distintivos das condutas dos
seres humanos pertencendo a uma mesma cultura, considerada como uma
totalidade irredut´ıvel `a outra. Atenta `as descontinuidades (temporais, mas
sobretudo espaciais), salienta a originalidade de tudo que devemos `a socie-
dade `a qual pertencemos.
2) Ela conduz essa pesquisa a partir da observa¸c˜ao direta dos comporta-
mentos dos indiv´ıduos, tais como se elaboram em intera¸c˜ao com o grupo e o
meio no qual nascem e crescem estes indiv´ıduos. Procurando compreender
a natureza dos processos de aquisi¸c˜ao e transmiss˜ao, pelo indiv´ıduo, de uma
cultura, sempre singular (a forma como esta n˜ao apenas informa, mas modela
o comportamento dos indiv´ıduos, sem que estes o percebam), encontra v´arias
preocupa¸c˜oes comuns aos psic´ologos, psicanalistas e psiquiatras. Utiliza por-
tanto freq¨uentemente os modelos conceituais destes, bem como suas t´ecnicas
de investiga¸c˜ao (por exemplo, os testes projetivos, utilizados pela primeira
vez em etnologia por Cora du Bois). Assim, esse campo de pesquisa, desig-
nado pela express˜ao ”cultura e personalidade”, extremamente desenvolvido
nos Estados Unidos e relativamente negligenciado na Fran¸ca e Gr˜a-Bretanha,
imp˜oe-se, a partir dos anos 30, como uma das ´areas da antropologia na qual
a colabora¸c˜ao pluridisciplinar se torna sistem´atica.
3) Finalmente, a antropologia cultural estuda o social em sua evolu¸c˜ao, e
particularmente sob o ˆangulo dos processos de contato, difus˜ao, intera¸c˜ao e
acultura¸c˜ao, isto ´e, de ado¸c˜ao (ou imposi¸c˜ao) das normas de uma cultura por
outra.
* * *
Um certo n´umero de obras representativas dessa abordagem – escritas em
sua maior parte por americanos 2
– merece ser citado. 1927: Margaret Mead
2
Notemos por´em que a contribui¸c˜ao dos pesquisadores franceses na ´area da antropologia
cultural est´a longe de ser negligenci´avel. Citemos notadamente, para o per´ıodo contem-
porˆaneo, os trabalhos de Ortigues (1966), Erny (1972), J. Rabain (1979) e lembremos a
influˆencia consider´avel que exerceu e continua exercendo Roger Bastide (1950, 1965, 1972)
que pode ser considerado como o mestre da antropologia cultural francesa.
98 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL:
publica Corning of Age in Samoa, que ser´a retomado em H´abitos e Sexuali-
dade na Oceania, em 1935, um livro que foi um marco. 1934: Amostras de
Civiliza¸c˜ao, de Ruth Benedict, certamente a obra mais caracter´ıstica do cul-
turalismo americano; 1939: Kardiner, O Indiv´ıduo e Sua Sociedade-, 1943:
Roheim, Origem e Fun¸c˜ao da Cultura, que desenvolve a id´eia de que a cultura
´e uma sublima¸c˜ao decorrente da imperfei¸c˜ao do feto humano ao nascer; 1944:
Cora du Bois, O Povo de Alor; 1945: Linton, Os Fundamentos Culturais da
Personalidade: 1949: Herskovitz, As Bases da Antropologia Cultural; 1950:
Roheim, Psican´alise e Antropologia. . .
O que mostram essas diferentes obras, sempre baseadas em numerosas ob-
serva¸c˜oes, ´e que conv´em n˜ao atribuir `a natureza o que diz respeito `a cultura;
ou seja, n˜ao considerar como universal o que ´e relativo.3
Essa compreens˜ao
da irredut´ıvel diversidade das culturas que ´e o eixo central da antropologia
cultural – aparece ao mesmo tempo: 1) ao n´ıvel dos tra¸cos singulares dos
comportamentos; 2) ao n´ıvel da totalidade da nossa personalidade cultural,
qualificada por Kardiner de ”personalidade de base”. Como essa corrente de
pesquisa, que procuraremos apresentar o mais fielmente poss´ıvel, multiplica-
remos os exemplos.
1) A varia¸c˜ao cultural pode ser encontrada em cada um dos aspectos de
nossas atividades. Assim, a maneira com que descansamos. Nas sociedades
nas quais os homens dormem diretamente no. solo, dificilmente suportam
a maciez de um colch˜ao. Inversamente, sentimos dificuldade em dormir –
como me aconteceu no Brasil – em uma rede, e n˜ao nos passaria pela cabe¸ca
descansar, como alguns na ´Asia. apoiando-nos em uma s´o perna.
Tomemos um outro exemplo: a divis˜ao do trabalho entre os sexos. Nas
sociedades do Oeste africano, as mulheres se dedicam `a cerˆamica, enquanto
os homens v˜ao para a ro¸ca, quando, na ilha de Alor, s˜ao as mulheres que
cultivam a terra enquanto os homens cuidam da educa¸c˜ao das crian¸cas. As-
sim como na sociedade Chaumbuli, na qual os homens se dedicam aos filhos,
enquanto as mulheres v˜ao pescar.
Consideremos agora os comportamentos adotados para penetrar nos edif´ıcios
religiosos. Na Europa, ao penetrar numa igreja, observamos que os fi´eis tiram
o chap´eu e permanecem com os sapatos. Inversamente, em uma mesquita,
os mu¸culmanos tiram os sapatos e permanecem com o chap´eu.
3
Como mostrei em meu livro sobre A Etnopsiquiatria, este ultimo coment´ario deve
porem ser relativizado no que diz respeito a Rohem.
99
As formas de hospitalidade tamb´em testemunham de uma extrema diversi-
dade podendo, como no exemplo acima, consistir na invers˜ao pura e simples
daquilo que tom´avamos espontaneamente por natural. Assim, fiquei pessoal-
mente impressionado, durante minha primeira estadia em pa´ıs Ba´ule (Costa
do Marfim), como h´ospede, com o convite que me era sistematicamente feito
de uma refei¸c˜ao preparada em minha homenagem, mas que devia ser consu-
mida isoladamente, isto ´e, em um cˆomodo e separadamente de meus hospe-
deiros, os quais, por outro lado, reservavam-me um presente muito inesperado
para um ocidental, que n˜ao era nada menos que a filha mais bonita da casa.
Diferen¸cas significativas, decorrentes da cultura `a qual pertencemos, po-
dem tamb´em ser encontradas nos menores detalhes dos nossos comporta-
mentos mais cotidianos. Assim, nas sociedades ´arabes, sul-americanas e sul-
europ´eias, desviar o olhar ´e considerado como um sinal de m´a educa¸c˜ao,
enquanto que nas sociedades asi´aticas e norte-europ´eias, olhar fixamente
algu´em com insistˆencia causa um incˆomodo que se traduz por uma impress˜ao
de amea¸ca e agressividade.
A sauda¸c˜ao visual consistindo em levantar rapidamente as sobrancelhas, ace-
nar a cabe¸ca e sorrir, assinala um encontro amig´avel na Nova Guin´e ou na
Europa, mas ´e censurada por ser considerada indecente no Jap˜ao. As trocas
de contatos cutˆaneos entre dois interlocutores s˜ao extremamente reduzidas
nos pa´ıses anglo-saxˆonicos assim como no Jap˜ao. Imp˜oe-se pelo contr´ario,
como express˜ao normal do prazer de encontrar o outro nas sociedades medi-
terrˆaneas e sul-americanas. Esses mesmos interlocutores, sentados no terra¸co
de um bar ou passeando na rua, ir˜ao manter um certo espa¸co entre si na
Europa do Norte ou na ´Asia, sob pena de sentir um certo mal-estar; ten-
der˜ao a diminuir a distˆancia que os separa nas sociedades ´arabes ou latino-
americanas.
Finalmente, as formas de comportamento sexual detiveram particularmente
a aten¸c˜ao dos observadores. De um lado, a educa¸c˜ao sexual ´e eminentemente
vari´avel de uma sociedade para outra. Na Melan´esia, por exemplo, meninos
e meninas s˜ao, na idade da puberdade, iniciados nas t´ecnicas amorosas por
monitores experimentados, enquanto os Muria da ´ındia (cf. Elwin, 1959) ins-
titucionalizavam essa pr´atica preservando um espa¸co (por assim dizer, uma
casa da juventude) que tem como objetivo encorajar os jogos sexuais. Por
outro lado, os rituais amorosos s˜ao profundamente diferentes, n˜ao apenas de
uma civiliza¸c˜ao para outra, mas dentro de -uma mesma civiliza¸c˜ao. Aqui
est´a um exemplo recolhido por Margaret Mead que merece ser relatado.
100 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL:
Durante a ´ultima guerra mundial, soldados americanos estavam mobiliza-
dos na Gr˜a-Bretanha. Esses soldados e as jovens inglesas que freq¨uenta-
vam acusavam-se mutuamente de m´a educa¸c˜ao nas rela¸c˜oes amorosas. Os
GIs consideravam as inglesas mulheres levianas; as inglesas achavam que
os americanos comportavam-se como marginais. Cada um dos grupos re-
agia normalmente, mas a norma era diferente de uma cultura para outra:
para os americanos, o beijo, que interv´em muito cedo nas rela¸c˜oes de na-
moro, n˜ao tinha grandes conseq¨uˆencias, enquanto que, para as inglesas, era
a ´ultima etapa antes do ato sexual. As inglesas ficavam, portanto, chocadas
que os americanos quisessem beij´a-las t˜ao precipitadamente; e estes n˜ao en-
tendiam que as inglesas fugissem deles por causa de um ato t˜ao insignificante
quanto um beijo na boca, ou que passassem t˜ao rapidamente para a etapa
seguinte, quando tinham aceito o beijo. Q¨uiproqu´os desse tipo pontuam nos-
sas rela¸c˜oes interculturais.
2) O peso da cultura n˜ao se manifesta apenas nas formas diversificadas de
comportamentos e atividades facilmente localiz´aveis de uma sociedade para
outra (como a alimenta¸c˜ao, o h´abitat, a maneira de se vestir, os jogos. .O,
mas tamb´em nas estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas constitutivas
da pr´opria personalidade. A antropologia cultural foi assim levada a reto-
mar, nos fundamentos da observa¸c˜ao e da an´alise etnopsicol´ogica, o que os
folcloristas, mas tamb´em os escritores (Chateaubriand, Georges Sand. . .)
chamavam de ”alma”ou ”gˆenio”de um povo. Assim, tentou evidenciar a pre-
ocupa¸c˜ao dos japoneses em nunca perder a face em sociedade, sob pena de
um desmoronamento da personalidade que se traduz por um sentimento de
vergonha e culpa extremo, ou ainda, o receio dos franceses frente `a natureza
que deve ser domesticada pela raz˜ao; receio que se expressa tanto no car´ater
”bem-comportado”dos nossos contos populares (sempre menos extravagan-
tes que os contos escandinavos, russos ou alem˜as) quanto em nossos jardins,
qualificados precisamente de ”jardins `a francesa”.
Mas ´e sobretudo ao estudo das formas contrastadas da personalidade nos
povos das sociedades ”tradicionais”, que a antropologia americana deve a
sua fama. Margaret Mead (1969), ao confrontar duas popula¸c˜oes vizinhas da
Nova Guin´e, considera que uma, a dos doces e ternos Arapesh, s´o deseja paz
e serenidade, enquanto a outra, a dos violentos Mundugumor, ´e comandada
por uma agressividade propriamente canibal. O que ´e ent˜ao considerado
como personalidade desviante entre os primeiros (o indiv´ıduo violento), apa-
recer´a, entre os segundos, como perfeitamente normal, isto ´e conforme ao
ideal do grupo, e inversamente. Na mesma ´otica, Ruth Benedict (1950) op˜oe
101
a sociedade ”apoloniana”dos ´ındios Pueblos do Novo M´exico `a exalta¸c˜ao e
rivalidade ”dionis´ıacas”permanentes que mantˆem entre si os habitantes da
ilha de Dobu, este povo de feiticeiros (R. Fortune, 1972). Se houver, entre
estes, indiv´ıduos que n˜ao tenham nenhum sentimento de suspei¸c˜ao, nenhum
gosto pelo roubo, e detestem brigar, n˜ao deixar˜ao de aparecer como margi-
nais, enquanto estariam perfeitamente bem adaptados (e considerados como
conformistas) na sociedade pueblo.
A partir de exemplos desse tipo, Ruth Benedict elabora sua teoria do ”arco
cultural”. Cada cultura realiza uma escolha. Valoriza um determinado seg-
mento do grande arcode c´ırculo das possibilidades da humanidade. Encoraja
um certo n´umero de comportamentos em detrimento de outros que se vˆeem
censurados. Atrav´es de um processo de sele¸c˜ao (n˜ao biol´ogico, mas cultu-
ral), todos os membros de uma mesma sociedade compartilham um certo
n´umero de preocupa¸c˜oes, sentem as mesmas inclina¸c˜oes e avers˜oes. O que
caracteriza uma determinada sociedade ´e uma ”configura¸c˜ao cultural”, uma
l´ogica que se encontra ao mesmo tempo na especificidade das institui¸c˜oes e
na dos comportamentos. Toda cultura persegue um objetivo, desconhecido
dos indiv´ıduos. Cada um de n´os possui em si todas as tendˆencias, mas a cul-
tura `a qual pertencemos realiza uma sele¸c˜ao. As institui¸c˜oes (e, em especial,
as institui¸c˜oes educativas: fam´ılias, escolas, ritos de inicia¸c˜ao) pretendem –
inconscientemente – fazer com que os indiv´ıduos se conformem aos valores
pr´oprios de cada cultura.
Cr´ıticas, freq¨uentemente severas, n˜ao faltaram aos cul-turalismo americano,4
que est´a longe de fazer a unanimidade entre os antrop´ologos, sobretudo na
Fran¸ca onde o m´ınimo que se pode dizer ´e que n˜ao tem boa reputa¸c˜ao. Tra-
balhando com uma abordagem muito emp´ırica (a localiza¸c˜ao das fun¸c˜oes, dos
conflitos e das significa¸c˜oes, em detrimento da investiga¸c˜ao das normas, das
regras e dos sistemas, de acordo com os termos de Michel Foucault aos quais
nos referimos acima), tende a efetuar uma redu¸c˜ao dos comportamentos hu-
manos a tipos, e a esbo¸car tipologias que devem muito mais `a intui¸c˜ao e `a
pr´opria personalidade do pesquisador, do que `a constru¸c˜ao rigorosa de um
objeto cient´ıfico. Al´em disso, e em conseq¨uˆencia mesmo dos pressupostos que
s˜ao seus (a observa¸c˜ao daquilo que, em uma sociedade, ´e manifesto, em detri-
mento daquilo que ´e recalcado e inconsciente), desenvolve uma concep¸c˜ao do
4
Autorizo-me a indicar ao leitor dois de meus livros anteriores (L’Ethnopsychiatrie, Ed.
Universitaires, 1973, pp. 33-36; Les 50 Mots Cl´es de 1’Anthropologie, Ed. Privat, 1974,
pp. 46-50) e a sublinhar que, a meu ver, foi Georges Devereux (1970). colocando-se no
cora¸c˜ao mesmo do campo de estudo privilegiado por essa tendˆencia da antropologia, quem
propˆos a cr´ıtica mais radical desta.
102 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL:
relativismo cultural (express˜ao forjada por Herskovitz) que o impede de dar o
passo que separa o estudo das varia¸c˜oes culturais da an´alise da variabilidade
da cultura; variabilidade esta que ser´a o objeto das pesquisas examinadas no
pr´oximo cap´ıtulo.
Isso n˜ao impede que, levando-se em ’conta essas cr´ıticas, levando-se em conta,
tamb´em, o fato de que o projeto desses autores ´e freq¨uentemente menos am-
bicioso do que geralmente se diz (cf. particularmente a obra de Ruth Be-
nedict), a antropologia cultural, pela ´area de investiga¸c˜ao que ´e sua e que ´e
freq¨uentemente deixada de lado em nosso pa´ıs, pela amplitude do campo dos
materiais recolhidos, pela importˆancia dos problemas colocados, represente
uma contribui¸c˜ao bastante consider´avel para nossa disciplina.
Cap´ıtulo 10
A Antropologia Estrutural E
Sistˆemica:
Para a antropologia cultural, cada cultura particular, caracterizada por um
conjunto de tendˆencias tais como aparecem empiricamente ao observador, ´e
um pouco compar´avel `as pe¸cas de um quebra-cabe¸ca. S˜ao entidades parce-
ladas, frutos de uma pr´atica parceladora. E nessas condi¸c˜oes, a cultura ´e
concebida como uma esp´ecie de mosaico, um traje de Arlequim. Na perspec-
tiva na qual nos situaremos agora, as culturas s˜ao apreendidas, ou melhor,
tratadas, em um n´ıvel que n˜ao ´e mais dado, e sim constru´ıdo: o do sis-
tema. N˜ao se trata mais de estudar tal aspecto de uma sociedade em si,
relacionando-o ao conjunto das rela¸c˜oes sociais (antropologia social),’e muito
menos tal cultura particular na l´ogica que lhe ´e pr´opria (antropologia cultu-
ral, mas tamb´em simb´olica): trata-se de estudar a l´ogica da cultura. Ou seja,
al´em da variedade das culturas e organiza¸c˜oes sociais, procuraremos explicar
a variabilidade em si da cultura: o que dizem e inventem os homens deve ser
compreendido como produ¸c˜oes do esp´ırito humano, que se elaboram sem que
estes tenham consciˆencia disso.
Isso colocado, reuniremos nesse cap´ıtulo um certo mimero de tendˆencias do
pensamento e da pr´atica antropologica, aparentemente bastante distantes
entre si:
• o que se pode qualificar de antropologia da comunica¸c˜ao, que, com o
impulso de Gregory Bateson e da escola de Paio Alto, estuda as dife-
rentes modalidades da comunica¸c˜ao entre os homens, n˜ao a partir dos
interlocutores que seriam considerados como elementos separados uns
dos outros, mas a partir dos processos de intera¸c˜ao formando sistemas
de troca, integrando notadamente tudo o que, no encontro, se d´a ao
103
104CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA:
n´ıvel (n˜ao verbal) das sensa¸c˜oes, dos gestos, das m´ımicas, e da posturas;
• a enopsiquiatria, cujo fundador ´e Georges Devereux, e que ´e uma
pr´atica claramente pluridisciplinar, procurando compreender ao mesmo
tempo a dimens˜ao ´etnica dos dist´urbios mentais e a dimens˜ao psi-
col´ogica e psicopatol´ogica da cultura;
• o estruturalismo francˆes, finalmente, do qual muitos gostam hoje de
dizer que est´a h´a muito tempo ultrapassado, mas que eu considero
pessoalmente como mais atual do que nunca.
* * *
Existem, ´e claro, diferen¸cas essenciais entre essas diversas correntes da an-
tropologia contemporˆanea. Mas re´unem-se no entanto em torno de um certo
n´umero de op¸c˜oes.
1) Trata-se em primeiro lugar da importˆancia dada aos modelos episte-
mol´ogicos formados no ˆambito das ciˆencias da natureza ou, mais precisa-
mente, da necessidade de um confronto entre abordagens aparentemente
t˜ao afastadas uma das outras quanto a etnologia, a neurofisiologia, as ma-
tem´aticas (e no campo das ciˆencias humanas, a psican´alise, a ling¨u´ıstica).
Todos os autores que acabamos de citar colocam o problema da passagem de
um modo de conhecimento para outro, assim como a quest˜ao da validade da
transferˆencia dos modelos.
Partindo do ”princ´ıpio de incerteza”de Heiscnbcrg (´e imposs´ıvel determinar
ao mesmo tempo e com igual precis˜ao a velocidade e a posi¸c˜ao do el´etron,
pois sua observa¸c˜ao cria uma situa¸c˜ao que o modifica), Devereux, o primeiro,
mostra que o que ´e verdadeiro no campo da f´ısica quˆantica ´e mais verdadeiro
ainda no das ciˆencias humanas e, particularmente, da etnologia: a presen¸ca
de um observador (no caso, o etn´ografo) provoca uma perturba¸c˜ao do que ´e
observado, e essa perturba¸c˜ao, longe de ser uma fonte de erros a ser neutra-
lizada, ´e pelo contr´ario uma fonte de informa¸c˜oes que conv´em explorar.
Partindo da cibern´etica inventada por Norbert Wiener em 1848 a partir da
elabora¸c˜ao da pilotagem autom´atica, Bateson, de volta de Bali, percebe que
os princ´ıpios de Wiener podem trazer uma renova¸c˜ao total para o estudo
da comunica¸c˜ao humana, e, particularmente, das ferramentas, at´e ent˜ao n˜ao
utilizadas para abordar os sistemas interativos em jogo nas nossas trocas.
Ora, L´evi-Strauss, quase tanto quanto Bateson, recorre a esse modelo nascido
105
da fecunda¸c˜ao m´utua da eletrˆonica e da biologia. Desde a sua Introdu¸c˜ao `a
Obra de Mareei Mauss (o qual ´e incontestavelmente o pai do estruturalismo
francˆes, e tamb´em o ”mestre”a quem Devereux dedica seus Ensaios de Et-
nopsiquiatria Geral), L´evi-Strauss refere-se a Wiener e Neumann.
2) A partir dos anos 50, come¸ca a desenvolver-se, tanto na Europa quanto
nos Estados Unidos, um modelo que Winkin qualifica de ”modelo orques-
tral da comunica¸c˜ao”, esta ´ultima n˜ao sendo mais concebida `a maneira te-
legr´afica de um emissor transmitindo em sentido ´unico uma mensagem a um
destinat´ario, mas como um complexo de elementos em situa¸c˜ao de intera¸c˜oes
cont´ınua e n˜ao aleat´oria. Disso decorre a met´afora da orquestra participando
da execu¸c˜ao de uma partitura ”invis´ıvel”, na execu¸c˜ao da qual cada um dos
m´usicos est´a envolvido. Os antrop´ologos americanos que se inscrevem nessa
corrente insistem sobre o fato de que (
imposs´ıvel n˜ao comunicar, todo comportamento humano (do vozerio mais
intenso ao mutismo absoluto, pontuado por gestos, posturas, m´ımicas, ex-
press˜oes do rosto por m´ınimas que sejam) consistindo em trocar mensagens
freq¨uentemente involunt´arias. Ora, a tarefa do pesquisador ´e precisamente a
de evidenciar essas regras gramaticais constitutivas da linguagem tanto ver-
bal quanto n˜ao verbal, isto ´e, na realidade, a cultura, cuja l´ogica ´e irredut´ıvel
`a soma de seus elementos.
Lembremos mais uma vez que existem, ´e claro, diferen¸cas muito importan-
tes entre o estruturalismo europeu, em particular francˆes, e o interacionismo
americano. Mas eles visam juntos `a constru¸c˜ao do que L´evi-Strauss chama
uma ”ciˆencia da comunica¸c˜ao”. Para este ´ultimo, toda cultura ´e uma mo-
dalidade particular da comunica¸c˜ao (das mulheres, das palavras, dos bens),
regida por leis inconscientes de inclus˜ao e exclus˜ao. E quando o autor da
Antropologia Estrutural realiza, na parte mais recente de sua obra, o estudo
dos mitos, refere-se tamb´em `a imagem de uma partitura musical n˜ao escrita
e sem autor, expressando o pr´oprio inconsciente da sociedade.
Se a etnopsiquiatria de Devereux n˜ao deve nada a essa abordagem ”sistˆemica”,
relutando at´e, frente a quaisquer empreendimentos de formaliza¸c˜ao ling¨u´ıstica,
ela acentua o car´ater eminentemente relacionai do objeto das ciˆencias huma-
nas: os fenˆomenos estudados tanto pelo cl´ınico quanto pelo etn´ologo s˜ao
fenˆomenos que nunca s˜ao dados em estado bruto, tratando-se simplesmente
de recolhˆe-los, e sim fenˆomenos provocados em uma situa¸c˜ao de intera¸c˜ao
particular com atores particulares, e que conv´em analisar, procurando com-
preender a natureza da perturba¸c˜ao envolvida na pr´opria rela¸c˜ao que liga o
106CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA:
”observador”e o ”observado”.
3) A experiˆencia etnol´ogica – que ´e antes experiˆencia de uma rela¸c˜ao hu-
mana, isto ´e, de um encontro – se d´a no inconsciente: inconsciente freudi-
ano, mas tamb´em inconsciente ´etnico para Devereaux, inconsciente estrutural
para L´evi-Strauss. Isto ´e, ”estrutura inata do esp´ırito humano”. situada no
ponto de encontro entre a natureza e a cultura; mas estrutura que se expressa
sempre na ”hist´oria particular dos indiv´ıduos e dos grupos”, produzindo cons-
tantemente aspectos in´editos. Ou seja, tanto para o estruturalismo quanto
para etnopsiquiatria (mas isso j´a ´e menos verdadeiro para o conjunto da an-
tropologia sistˆemica americana, cuja tendˆencia ´e, freq¨uentemente, emp´ırica
como nos Estados Unidos), o sentido do que fazem os homens deve ser procu-
rado menos no que dizem do que no que encobrem, menos no que as palavras
expressam do que no que escondem.
4) Todo o pensamento antropol´ogico que procuramos aqui descrever inscreve-
se claramente no quadro das ciˆencias humanas (ou, como se diz nos Estados
Unidos, das ”ciˆencias do comportamento”) e n˜ao no das ciˆencias sociais.
Enquanto estas ´ultimas ”aceitam sem reticˆencias estabelecer-se no pr´oprio
ˆamago de sua sociedade”, como escreve L´evi-Strauss (1973) – ´e o caso da
economia, da sociologia, do direito, da demografia –, as primeiras, visando
”apreender uma realidade imanente ao homem, colocam-se aqu´em de todo
indiv´ıduo e de toda sociedade”.
O exemplo da primeira obra de Bateson, A Cerimˆonia do Naven (1936)
parece-me particularmente revelador. Em primeiro lugar, devido `a sila exigˆencia
de pluridisciplinaridade (e. especialmente, de pluridisciplinaridade entre a
abordagem etnol´ogica e psicol´ogica),1
mas que n˜ao ´e concebida, de forma
alguma, `a maneira da antropologia cultural. O autor estuda os diferentes
tipos poss´ıveis de rela¸c˜oes dos indiv´ıduos para com a sociedade e, mais espe-
cificamente, as rea¸c˜oes dos indiv´ıduos frente `as rea¸c˜oes de outros indiv´ıduos.
Em seguida, e sobretudo, por seu car´ater inovador no campo da antropolo-
gia anglo-saxˆonica da ´epoca, caracterizada notadamente pela monografia. A
partir da cultura dos latmul da Nova Guin´e, mas al´em dessa cultura, o que
interessa Bateson, ´e a possibilidade de aceder a uma teoria transcultural,
cujos conceitos poder˜ao ser utilizados na com preens˜ao de outras socieda-
des. Ora, ningu´em insistiu mais que L´evi-Strauss e Devereux sobre o fato de
1
Essa problem´atica, que ´e o eixo de toda a obra de Devereux ´e tamb´em uma das
preocupa¸c˜oes maiores de L´evi-Strauss, que escreve em La Pens´ee Sauvage que ”a etnologia
´e antes uma psicologia
107
que as culturas particulares n˜ao podiam antropologicamente ser apreendidas
sem referˆencia `a ”cultura”(Devereux), ”esse capital comum”(L´evi-Strauss)
que utilizamos para elaborar nossas experiˆencias tanto individuais como co-
letivas. Disso decorre o car´ater claramente ”metacultural”(Devereux) desse
pensamento, que est´a rigorosamente no oposto do ”culturalismo”, e emi-
nentemente fundador da possibilidade da comunica¸c˜ao tanto intersubjetiva
quanto intercultural.
5) Quer´ıamos finalmente insistir sobre o fato de que essas diferentes abor-
dagens s˜ao abordagens da totalidade, refrat´arias a qualquer atitude reduci-
onista, isto ´e, considerando apenas um aspecto parcelar da realidade social,
atrav´es de um instrumento ´unico. Para L´evi-Strauss como para Bateson,
n˜ao existem nunca rela¸c˜oes de causalidade unilinear entre dois fenˆomenos,
e sim ”correla¸c˜oes funcionais”. E se a abordagem da etnopsiquiatria em
rela¸c˜ao `a da antropologia estrutural ou sistˆemica ´e claramente anal´ıtica, e
n˜ao sint´etica, enquadra-se dentro de uma epistemologia da complementari-
dade, fundada sobre a necessidade da articula¸c˜ao de enfoques habitualmente
tomados como separados. Por todas essas raz˜oes, a antropologia assim con-
siderada ´e, de acordo com o termo proposto por Jean-Marie Auzias (1976),
um ”pensamento dos conjuntos”, preocupado em n˜ao deixar escapar nada na
investiga¸c˜ao do social, e, por isso, inventivo de modelos que conv´em qualificar
de ”complexos”.
A abordagem de L´evi-Strauss ocupar´a portanto agora nossa aten¸c˜ao. Essa
abordagem procede de uma s´erie de rupturas radicais.
1) Ruptura em primeiro lugar com o humanismo e a filosofia, isto ´e, as
ideologias do sujeito considerado enquanto fonte de significa¸c˜oes. A meto-
dologia estrutural inverte a ordem dos termos em que se apoiava a filosofia.
O sentido n˜ao est´a mais dessa vez ligado `a consciˆencia, a qual se vˆe descen-
trada pelo projeto estrutural, como pelo projeto freudiano. Rompendo com a
tagarelice do sujeito, ”essa crian¸ca mimada da filosofia”, como escreve L´evi-
Strauss, as significa¸c˜oes devem ser doravante buscadas no ”ele”da ling¨u´ıstica,
como no ”id”da psican´alise. Ou seja, eu sou pensado, sou falado, sou agido,
sou atravessado por estruturas que me preexistem. Assim, a antropologia
como a psican´alise intro-duzem uma crise na epistemologia da racionalidade:
o lugar atribu´ıdo ao sujeito transcendental ´e questionado pela irrup¸c˜ao da
problem´atica do inconsciente.
2) Ruptura em rela¸c˜ao ao pensamento hist´orico: o evolucionismo, ´e claro,
mas tamb´em qualquer forma de historicismo. Para este ´ultimo, que ´e ne-
108CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA:
cessariamente gen´etico, explicar ´e procurar uma anterioridade, isto ´e, tentar
compreender o presente atrav´es do passado. `A an´alise dos processos em ter-
mos de explica¸c˜ao causai, op˜oe-se a inteligibilidade estrutural, inteligibilidade
combinat´oria de uma institui¸c˜ao, de um comportamento, de um relato. . .
3) Ruptura com o atomismo, que considera os elementos independentemente
da totalidade. O modelo do estruturalismo sendo ling¨u´ıstico, o sentido de
um termo s´o pode ser compreendido dentro de sua rela¸c˜ao `as outras palavras
da l´ıngua ou do que for an´alogo a esta.
4) Ruptura, finalmente, com o empirismo. ”Para alcan¸car o real, ´e pre-
ciso primeiro repudiar o vivido”, diz L´evi-Strauss em Tristes Tr´opicos. Ou
seja, o objeto cient´ıfico deve ser arrancado da experiˆencia da impress˜ao, da
percep¸c˜ao espontˆanea. Para isso, conv´em colocar-se ao n´ıvel n˜ao mais da
palavra e sim da l´ıngua, n˜ao mais, voltaremos a isso, da hist´oria consciente
do que fazem os homens, e sim do sistema que ignoram. ´E toda a diferen¸ca
entre o estruturalismo inglˆes e o estruturalismo francˆes. Para L´evi-Strauss,
Radcliffe-Brown confunde a estrutura social e as rela¸c˜oes sociais. Ora. estas
s˜ao apenas os materiais utilizados para alcan¸car a estrutura, a qual n˜ao tem
como objetivo substituir-se `a realidade e sim explic´a-la. Mais precisamente,
uma estrutura ´e um sistema de rela¸c˜oes suficientemente distante do objeto
que se estuda para que possamos reencontr´a-lo em objetos diferentes.
* * *
Assim, atrav´es da invers˜ao epistemol´ogica que realiza, abrindo uma compre-
ens˜ao nova da sociedade, o pensamento estrutural nos mostra que a extra-
ordin´aria variedade das rela¸c˜oes emp´ıricas s´o se torna intelig´ıvel a partir do
momento em que percebemos que existe apenas um n´umero limitado de es-
trutura¸c˜oes poss´ıveis dos materiais culturais que encontramos, um n´umero
limitado de invariantes. As rela¸c˜oes de alian¸ca entre homens e mulheres pa-
recem, a primeira vista, praticamente infinitas. Mas oscilam sempre entre
alguns grupos: comunismo sexual, levirato, sororato, casamento por rapto,
poligamia, monogamia, uni˜ao livre. Da mesma forma, as rela¸c˜oes dos ho-
mens com a divindade sempre se organizam a partir de um pequeno n´umero
de op¸c˜oes poss´ıveis: o monote´ısmo, polite´ısmo, mante´ısmo, ate´ısmo, agnos-
ticismo.
Foi a partir do campo do parentesco que se constituiu o estruturalismo de
L´evi-Strauss. Para este, o parentesco ´e uma linguagem. N˜ao se pode compre-
endˆe-lo efetuando a an´alise ao n´ıvel dos termos (o pai, o filho, o tio materno
em uma sociedade matrilinear. . .), muito menos ao n´ıvel dos sentimentos
109
que podem animar os diferentes membros da fam´ılia. ´E preciso colocar-se
no n´ıvel das rela¸c˜oes entre estes termos, regidas por regras de troca an´alogas
`as leis sint´aticas da l´ıngua. Mas a an´alise estrutural das rela¸c˜oes de alian¸ca
e parentesco est´a longe de ser a aplica¸c˜ao pura e simples de um modelo (o
da ling¨u´ıstica). Quando se estuda o parentesco, a linguagem ou a economia,
estamos na realidade frente a diferentes modalidades de uma ´unica e mesma
fun¸c˜ao: a comunica¸c˜ao (ou a troca), que ´e a pr´opria cultura emergindo da
natureza para introduzir uma ordem onde esta ´ultima n˜ao havia previsto
nada. Mais precisamente, a reciprocidade – que ´e a troca atuando e que
exige uma teoria da comunica¸c˜ao – pode ser localizada em v´arios n´ıveis:
• ao n´ıvel da cultura: ´e a troca de mulheres (parentesco), de palavras
(ling¨u´ıstica), de bens (economia), mulheres, palavras e bens sendo ter-
mos que se trocam, informa¸c˜oes que se comunicam;2
• no ponto de encontro entre a natureza e a cultura, isto ´e, ao n´ıvel de
um inconsciente estrutural, que, al´em da contingˆencia dos materiais
programados, reorganiza incessantemente estes mesmos materiais.
Dois exemplos a que L´evi-Strauss recorre v´arias vezes em sua obra, permitem
compreender essa invers˜ao de perspectiva que realiza a metodologia estrutu-
ral. S˜ao os exemplos do baralho e do caleidosc´opio:
”O homem ´e semelhante ao jogador pegando na m˜ao, ao sentar `a mesa,
cartas que n˜ao inventou, j´a que o jogo de baralho ´e um dado da hist´oria
e da civiliza¸c˜ao. Fm segundo lugar, cada reparti¸c˜ao das cartas resulta de
uma distribui¸c˜ao contingente entre os jogadores, e se d´a independentemente
da vontade de cada um. Existem as distribui¸c˜oes que s˜ao sofridas, mas que
cada sociedade, como cada jogador, interpreta nos termos dc v´arios sistemas,
que podem ser comuns ou particulares: regras de um jogo, ou regras de uma
t´atica. E sabe-se bem que, com a mesma distribui¸c˜ao, jogadores diferentes
n˜ao fornecer˜ao a mesma partida, embora n˜ao possam, compelidos tamb´em
pelas regras, fornecer com uma determinada distribui¸c˜ao qualquer partida”.
”Em um caleidosc´opio, a combina¸c˜ao de elementos idˆenticos sempre d´a no-
vos resultados. Mas ´e porque a hist´oria dos historiadores est´a presente nele
– nem que seja na sucess˜ao de chacoalhadas que provocam as reorganiza¸c˜oes
2
”As pr´oprias mulheres”, escreve L´evi-Strauss. ”s˜ao tratadas como signos dos quais se
abusa quando n˜ao se d´a a elas o uso reservado aos signos, que ´e de serem comunicados”.
E a antropologia tem como tarefa a de estabelecer as regras da troca, diferentes dc uma
sociedade para outra, mas que permanecem em todos os casos independentes da natureza
dos parceiros
110CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA:
da estrutura – e as chances para que reapare¸ca duas vezes o mesmo arranjo
s˜ao praticamente nulas.”
Todo o programa e toda a abordagem do estruturalismo est˜ao nesses dois
textos:
1) a existˆencia de um certo n´umero de materiais culturais sempre idˆenticos,
que, como as cartas ou os elementos do caleidosc´opio, podem ser qualificados
de invariantes;
2) as diferentes estrutura¸c˜oes poss´ıveis destes materiais (isto ´e, as manei-
ras com as quais se organizam entre si quando passamos de uma cultura
para outra, ou de uma ´epoca outra) que n˜ao est˜ao em n´umero ilimitado, pois
s˜ao comandadas pelo que L´evi-Strauss chama de ”leis universais que regem
as atividades inconscientes do esp´ırito”;
3) finalmente, compar´aveis `a aplica¸c˜ao de leis gramaticais, o pr´oprio de-
senrolar do jogo de baralho ou os movimentos do caleidosc´opio que n˜ao para
de girar, com algu´em que observa esse processo – o etn´ologo – dirigindo, no
caso do autor de Tristes Tr´opicos, sobre o que percebe, um olhar que conv´em
qualificar de est´etico.
L´evi-Strauss n˜ao ignora a diversidade das culturas – j´a que procurar´a preci-
samente dar conta dela – nem a hist´oria. Mas, de um lado desconfia de um
”ecletismo apressado”que confundiria as tarefas e misturaria os programas”.
E, de outro, considera que para compreender o movimento das sociedades ´e
preciso n˜ao se situar ao n´ıvel da consciˆencia que o Ocidente tem da hist´oria.
Essa consciˆencia hist´orica do ”progresso”n˜ao carrega consigo nenhuma ver-
dade, ´e um mito que conv´em estudar como os outros mitos, isto ´e, estendendo
no espa¸co aquilo que o historiador percebe como escalonado no tempo.
Tal ´e o significado do conceito de estrutura que Pouil-lon (1966) define como
”a sintaxe das transforma¸c˜oes que In/em passar de uma variante para ou-
tra”, pois ”´e essa sintaxe que d´a conta de seu n´umero limitado, da explora¸c˜ao
restrita das possibilidades te´oricas”. Ou seja, a hist´oria ´e um jogo no qual
a identidade dos parceiros tem menos importˆancia que as partidas jogadas,
e mais ainda as regras das partidas jog´aveis. Ao comentar o pensamento
de L´evi-Strauss, Pouillon recorre notadamente `a dupla met´afora do bridge e
do jogo de xadrez. Enquanto no bridge ´e indispens´avel conhecer as cartas
que acabaram de ser jogadas, no xadrez, qualquer posi¸c˜ao do jogo pode ser
compreendida sem que se tenha conhecimento das jogadas anteriores. Ora,
111
L´evi-Strauss considera que o est´agio da partida jogada pelas sociedades oci-
dentais ´e hoje desastroso, enquanto que as que foram jogadas pelas sociedades
que se insiste em qualificai de ”primitivas”s˜ao infinitamente mais humanas.
112CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA:
Cap´ıtulo 11
A Antropologia Dinˆamica:
A antropologia cultural insiste ao mesmo tempo sobre a diferen¸ca das cul-
turas umas em rela¸c˜ao `as outras, e sobre a unidade de cada uma delas. A
antropologia que qualificamos de simb´olica abre, notadamente atrav´es de
sua reivindica¸c˜ao antietnocentrista, uma perspectiva muito pr´oxima da an-
terior, mas que se empenha em explorar particularmente um certo n´umero
de conte´udos materiais (os mitos, os ritos) e de estruturas formais (a espe-
cificidade das l´ogicas do conhecimento expressando-se notadamente atrav´es
das l´ınguas). A antropologia estrutural, por sua vez, faz aparecer, como
acabamos de ver, uma identidade formal (um inconsciente universal) infor-
mando uma multiplicidade de conte´udos materiais diferentes. O ´ultimo p´olo
do pensamento e da pr´atica antropol´ogicos que estudaremos agora aparece
como ao mesmo tempo pr´oximo e diferente da antropologia social cl´assica.
Pr´oximo, porque evidencia a articula¸c˜ao de diferentes n´ıveis do social dentro
de uma determinada cultura. Diferente, porque opera uma ruptura total com
a concep¸c˜ao de Malinowski ou de Durkheim, mas tamb´em de L´evi-Strauss,
de sociedades (”primitivas”, ”selvagens”ou ”tradicionais”)harmoniosas e in-
tegradas, em proveito do estudo dos processos de mudan¸ca, ligados tanto ao
dinamismo interno que ´e caracter´ıstico de toda sociedade, quanto `as rela¸c˜oes
que mantˆem necessariamente as sociedades entre si.
O que caracteriza essencialmente as diferentes tendˆencias dessa antropologia
que qualificamos aqui de dinˆamica, ´e sua rea¸c˜ao comum frente `a orienta¸c˜ao,
do seu ponto de vista conservadora, que pode ser encontrada dentro dos qua-
tro p´olos de pesquisa que, para maior clareza, acabamos de distinguir. Prati-
camente, de fato, todas as perspectivas etnol´ogicas que se elaboram a partir
dos anos 30 (a antropologia social, simb´olica, cultural) e que conhecem, para
muitas, uma renova¸c˜ao durante os anos 50, com o impulso particularmente
da an´alise estrutural, est˜ao animadas por uma abordagem claramente anti-
113
114 CAP´ITULO 11. A ANTROPOLOGIA DIN ˆAMICA:
evolucionista. O car´ater especulativo da antropologia dominante do s´eculo
passado explica em grande parte essa rea¸c˜ao a-hist´orica de nossa disciplina.
No entanto, tudo se passa freq¨uentemente como se as sociedades preferen-
cial, ou at´e exclusivamente estudadas pela maioria dos antrop´ologos do s´eculo
XX, fossem isentas de rela¸c˜oes com seus vizinhos, existissem dentro de um
quadro econˆomico e geogr´afico mundial, e ignorassem tudo das contradi¸c˜oes,
dos antagonismos e das rupturas que seriam pr´oprias apenas das sociedades
ocidentais.
Insistindo tanto sobre a natureza repetitiva e rotineira das sociedades vistas
como im´oveis ou, como diz L´evi-Strauss, ”pr´oximas do grau zero de tempera-
tura hist´orica”, chega-se a considerar anormal a transforma¸c˜ao. E dissocia-se,
por isso mesmo, um n´ucleo considerado essencial, ´unico objeto da ”ciˆencia”(a
integridade, estabilidade e harmonia dos grupos humanos que souberam pre-
servar uma arte de viver), e uma sujei¸c˜ao julgada acidental (as perip´ecias
da rea¸c˜ao com o colonialismo), Essa separa¸c˜ao artificial de um objeto que
poderia ser apreendido em estado puro, pois estaria cm si ainda puro de qual-
quer esc´oria da modernidade, e de um contexto (os grandes acontecimentos
mundiais do s´eculo XX) considerado como aleat´orio, s´o ´e poss´ıvel porque se
consegue enquadrar o fenˆomeno assim recortado nos moldes de um quadro
te´orico que funciona, em muitos aspectos, como uma oculta¸c˜ao da realidade.
Pois as sociedades emp´ıricas `as quais o etn´ologo do s´eculo XX ´e confrontado
n˜ao s˜ao nunca essas sociedades atem porais inencontr´aveis, ficticiamente ar-
rancadas da hist´oria, e sim sempre sociedades’ em plena muta¸c˜ao, nas quais,
pegando apenas um exemplo, as miss˜oes cat´olicas e protestantes abalaram
h´a muito tempo o edif´ıcio das religi˜oes tradicionais Recusando-se a tomar
em considera¸c˜ao a amplitude e a profundidade das mudan¸cas sociais, somos
levados a apagar tudo o que n˜ao entra no quadro que se pretende estudar
–um pouco como nesses filmes magn´ıficos sobre os ´ındios da Amazˆonia ou
os abor´ıgines da Austr´alia, em que evacuam-se as garrafas de Coca-Cola e
tanques de gasolina da Standard Oil para preservar a beleza das imagens.
Mas ent˜ao, devemos temer que essa quase-transmuta¸c˜ao est´etica, essa preo-
cupa¸c˜ao que tem o etn´ologo na realidade, menos em realizar ele pr´oprio uma
obra de arte do que contemplar modos de vida que seriam em si obras de
arte (de Malinowski a L´evi-Strauss, passando por Griaule e Margaret Mead),
fa¸ca esquecer a realidade das rela¸c˜oes sociais.
Ora, ´e precisamente contra essa tendˆencia do pensamento etnol´ogico que
um certo n´umero de antrop´ologos contemporˆaneos se levantam. A partir de
uma cr´ıtica vigorosa tanto do funcionalismo quanto do estruturalismo, toda
115
sua abordagem consiste, de acordo com as palavras de Paul Mercier (1966),
em aceitar ”a morte do primitivo”e ”reabilitar”a mudan¸ca. Para eles, esta
n˜ao ´e mais de forma alguma apreendida como a destrui¸c˜ao de uma identi-
dade que se caracteriza por um estado de equil´ıbrio e harmonia. Ou seja,
conv´em deixar de ter uma compreens˜ao negativa da mudan¸ca social, pois esta
´e co-extensiva ao pr´oprio social, e deve, portanto, se tornar um dos pontos
centrais da an´alise do social. A conseq¨uˆencia desse novo enfoque ´e o desa-
parecimento da oposi¸c˜ao, essencial para L´evi-Strauss, e.’.tre as ”sociedades
frias”e as ”sociedades quentes”; desaparecimento que pode levar `a recusa de
uma outra distin¸c˜ao que tamb´em deixa de ser reconhecida como pertinente:
a da antropologia e da sociologia.1
Esse neo-evolucionismo, particularmente
forte nos Estados Unidos; e do qual encontramos uma das mais importantes
realiza¸c˜oes nos trabalhos de Marshall Sahlins (1980), insiste notadamente
sobre o seguinte ponto: prolongar a problem´atica, j´a instaurada por Morgan
h´a um s´eculo, mas sobre bases dessa vez indiscutivelmente etnol´ogicas, que
n˜ao devem mais nada `as reconstitui¸c˜oes hipot´eticas do s´eculo XIX e que per-
mitem pensar numa evolu¸c˜ao resolutamente ”plural”da humanidade.
N˜ao ´e evidentemente poss´ıvel, dentro do quadro limita do desse trabalho,
dar conta da riqueza e diversidade das pesquisas que de uma forma ou de
outra participam hoje do desenvolvimento extremamente ativo dessa antro-
pologia que qualificamos de dinˆamica. Seria conveniente, por exemplo, falar
dos trabalhos de Max Gluckman (1966), de Jacques Bergue (1964), ou ainda,
da contribui¸c˜ao de um certo n´umero de antrop´ologos franceses de orienta¸c˜ao
marxista, que notadamente renovaram, durante os ´ultimos 25 anos, a ´area
1
Se praticamente toda a antropologia do s´eculo XX teve tendˆencia, at´e recentemente,
a considerar que as sociedades ”tradicionais”s˜ao sociedades imut´aveis, tal tendˆencia
´e provavelmente mais forte na fran¸ca, devido notadamente `a preocupa¸c˜ao de muitos
etn´ologos de nosso pa´ıs em rela¸c˜ao aos sistemas m´ıtico-cosmol´ogicos. Disso decorre
a rea¸c˜ao que leva na Fran¸ca um certo n´umero de pesquisadores (Baslide. Desroclic,
Balandier, Thomas...) a libertarem-se desse ponto de vista considerado passadista e a
preferirem a terminologia de ”sociologia”.
Uma das correntes contemporˆaneas mais marcantes desse pensamento ´e certamente
a que nasceu nos Estados Unidos, durante os anos 50, com o impulso de Leslie White
(1959), e que qualifica a si pr´opria de neo-evolucionismo. Este realiza, em primeiro lugar,
uma releitura e uma reabilita¸c˜ao da obra de Morgan, relegada at´e ent˜ao, pela maioria
dos pesquisadores, ao esquecimento. Descobre assim que essa obra cont´em uma intui¸c˜ao
fecunda que conv´em explorar: n˜ao se trata, ´e claro, dessa ”periodiza¸c˜ao”sistem´atica, sobre
a qual os advers´arios do antrop´ologo americano tanto insistiram para desacredit´a-lo, mas
de sua descoberta de uma indissociabilidade de n´ıveis do social (a tecnologia, a ecologia,
a fam´ılia, as institui¸c˜oes pol´ıticas, a religi˜ao) estreitamente imbricadas, formando o que o
pr´oprio Morgan chama de ”estruturas”, que evoluem dentro de per´ıodos sucessivos.2
116 CAP´ITULO 11. A ANTROPOLOGIA DIN ˆAMICA:
da antropologia econˆomica.3
Dois autores ir˜ao deter mais demo-radamente
nossa aten¸c˜ao: Georges Balandier e Roger Bastide.
Uma das preocupa¸c˜oes de Balandier, desde a publica¸c˜ao de suas primeiras
obras sobre a ´Africa negra (1955), ´e mostrar que conv´em interessar-se para to-
dos os atores sociais presentes (n˜ao mais apenas os ”ind´ıgenas”, mas tamb´em
os mission´arios, os administradores e outros agentes da coloniza¸c˜ao), pois to-
dos fazem parte do campo de investiga¸c˜ao do pesquisador. Por outro lado,
Balandier nos prop˜oe uma cr´ıtica radical da no¸c˜ao de ”integra¸c˜ao”social,
que seria localiz´avel a partir da observa¸c˜ao de grupos sociais ”preservados”.
Considera, pelo contr´ario, que toda sociedade ´e ”problem´atica”. Ou seja, da
mesma forma que Griaule havia, como dissemos, mostrado que o complexo
n˜ao ´e um produto derivado de formas originais – que seriam, por sua vez,
simples – Balandier considera que n˜ao se deve opor uma in´ercia – para ele
absolutamente fict´ıcia – que seria perturbada de fora por um dinamismo,
caracter´ıstico apenas das nossas sociedades. Mas a compara¸c˜ao entre Gri-
aule e Balandier p´ara evidentemente a´ı. O primeiro efetua o levantamento
de uma tradi¸c˜ao ancestral, concebida por ele como quase imut´avel, enquanto
o segundo coloca as bases de uma teoria da mudan¸ca social, que o levar´a a
empreender, no decorrer de suas obras a constitui¸c˜ao de uma antropologia
da modernidade.
Essa perspecitva de um estudo da mudan¸ca social integrado ao pr´oprio ob-
jeto de investiga¸c˜ao do pesquisador n˜ao tinha sido. na realidade, totalmente
ausente da cena antropol´ogica da metade do s´eculo XX. Conv´em lembrar
que, antes mesmo da Primeira Guerra Mundial, Malinowski, renunciando `a
atitude ”romˆantica”que era sua na ´epoca de suas estadias nas ilhas Trobri-
and, envolve-se, no final de sua vida, em uma perspectiva dinˆamica (1970).
E o mesmo se d´a, na mesma ´epoca e em muitos aspectos, para a reflex˜ao
de Margaret Mead, assim como para os trabalhos da antropologia cultural
que se desenvolve durante o p´os-guerra. Mas os conceitos que s˜ao ent˜ao uti-
lizados (especialmente nos Estados Unidos) para dar conta da mudan¸ca, s˜ao
sempre conceitos neutros, dissimulando uma realidade colonial. Fala-se em
”contatos culturais”, ”choques culturais”, e sobretudo em ”acultura¸c˜ao”, ter-
minologia que far´a sucesso. Balandier prop˜oe a substitui¸c˜ao pura e simples
deste ´ultimo termo pelo de ”situa¸c˜ao colonial”, que implica a realidade de
uma rela¸c˜ao social de domina¸c˜ao, quase sempre sistematicamente ocultada
na antropologia cl´assica.
3
Cf. Cl. Meillassoux (1964), E. Terray (1969), P. P Rey (1971), M. Godelier (1973)
117
A partir disso, n˜ao se fala mais em primitivos ou selvagens e sim em ”povos
colonizados”, enquanto o processo da coloniza¸c˜ao, e depois, da descoloniza¸c˜ao
se torna parte integrante do campo que se deve estudar. Esse processo, ou
outros semelhantes, ´e que nos permitem apreender n˜ao apenas as mudan¸cas
estruturais em andamento, mas as respostas `as mudan¸cas tais como se ela-
boram, por exemplo, nas metr´opoles congolesas, sob a forma de movimentos
messiˆanicos (Balandier, 1955),4
ou tais como estou observando neste mo-
mento em Fortaleza, no Nordeste do Brasil, sob a forma de cultos sincr´eticos.
A obra de Roger Bastide aparece ao mesmo tempo muito pr´oxima e muito di-
ferente da anterior. Muito diferente cm primeiro lugar, porque a abordagem
desse autor inscreve-se claramente, como vimos acima, no horizonte da an-
tropologia cultural. Mas Bastide, tanto quanto Balandier, procura incluir os
diferentes protagonistas sociais no campo de seu objeto de estudo. Ademais,
tamb´em insiste, de um lado, sobre as mudan¸cas sociais ligadas `a dinˆamica
pr´opria de uma determinada cultura; de outro, sobre a interpenetra¸c˜ao das
civiliza¸c˜oes, que provoca um movimento de transforma¸c˜oes ininterruptas.
Todas essas pesquisas, mais uma vez freq¨uentemente muito diferentes uma
das outras, inscrevem-se plenamente no projeto mesmo da antropologia, que
´e dar conta das varia¸c˜oes, isto ´e, notadamente das mudan¸cas. Uma de suas
maiores contribui¸c˜oes ´e de ter participado de forma consider´avel do desloca-
mento das preocupa¸c˜oes tradicionais dos etn´ologos, e de ter aberto novos lu-
gares de investiga¸c˜ao: a cidade em especial, lugar privilegiado de observa¸c˜ao
dos conflitos, das tens˜oes sociais e das reeetrutura¸c˜oes em andamento (cf.
quanto a isso, al´em dos trabalhos de Balandier citados acima, Oscar Lewis
(1963), Paul Mercier (1954), Jean-Marie Gibbal (1974) ).
Correlativamente, essa antropologia da modernidade (segundo a express˜ao
de Balandier), que instaura uma ruptura com a tendˆencia intelectualista da
etnologia francesa, leva o pesquisador a interessar-se diretamente pela sua
pr´opria sociedade. Finalmente, enfatizando a realidade conflitual das si-
tua¸c˜oes de dependˆencia (econˆomica, tecnol´ogica, militar, ling¨u´ıstica. . .), ela
n˜ao opera apenas uma transforma¸c˜ao do objeto de estudo, mas inicia uma
verdadeira muta¸c˜ao da pr´atica da pesquisa.
Dito isso, se essa antropologia reorienta, ”complexifica”e ”problematiza”a
antropologia cl´assica, seria no entanto irris´orio pensar que a abole.
4
Cf. tamb´em V. Lantemari (1962). W E. M¨uhlmann (1968), F I.awrence (I974V
118 CAP´ITULO 11. A ANTROPOLOGIA DIN ˆAMICA:
Parte III
A Especificidade Da Pr´atica
Antropol´ogica
119
Laplantine.françoise. aprender antropologia
Cap´ıtulo 12
Uma Ruptura Metodol´ogica:
a prioridade dada `a experiˆencia pessoal
do ”campo”
A abordagem antropol´ogica de base, a que todo pesquisador considera hoje
como incontorn´avel, quaisquer que sejam por outro lado suas op¸c˜oes te´oricas,
prov´em de uma ruptura inicial em rela¸c˜ao a qualquer modo de conhecimento
abstrato e especulativo, isto ´e, que n˜ao estaria baseado na observa¸c˜ao direta
dos comportamentos sociais a partir de uma rela¸c˜ao humana.
N˜ao se pode, de fato, estudar os homens `a maneira do botˆanico exami-
nando a samamb´aia ou do zo´ologo observando o crust´aceo; s´o se pode fazˆe-lo
comunicando-se com eles: o que sup˜oe que se compartilhe sua existˆencia de
maneira dur´avel (Griaule, Leenhardt) ou transit´oria (L´evi-Strauss). Pois a
etnografia, que ´e fundadora da etnologia e da antropologia – a tal ponto que
alguns dos mestres de nossa disciplina (estou pensando particularmente em
Boas) consideram que toda s´ıntese ´e sempre prematura, e que alguns ainda
hoje preferem qualificar-se de ”etn´ografos”(J. Favret, 1977) – n˜ao consiste
apenas em coletar, atrav´es de um m´etodo estritamente indutivo, uma grande
quantidade de informa¸c˜oes, mas em impregnar-se dos temas obsessionais de
uma sociedade, de seus ideais, de suas ang´ustias. O etn´ografo ´e aquele que
deve ser capaz de viver nele mesmo a tendˆencia principal da cultura que es-
tuda. Se, por exemplo, a sociedade tem preocupa¸c˜oes religiosas, ele pr´oprio
deve rezar com seus h´ospedes. Para poder compreender o candombl´e, ”foi-me
preciso mudar completamente minhas categorias l´ogicas”, escreve Roger Bas-
tide (1978), acrescentando: ”Eu procurava uma compreens˜ao mineral´ogica e,
mais ainda, an´aloga a organiza¸c˜oes vegetais, a cip´os vivos”.
121
122 CAP´ITULO 12. UMA RUPTURA METODOL ´OGICA:
Assim, a etnografia ´e antes a experiˆencia de uma imers˜ao total, consistindo
em uma verdadeira acultura¸c˜ao invertida, na qual, longe de compreender
uma sociedade apenas em suas manifesta¸c˜oes ”exteriores”(Durkheim), devo
interioriz´a-la nas significa¸c˜oes que os pr´oprios indiv´ıduos atribuem a seus
comportamentos. Quanto a isso, ´e significativo que, em sua Li¸c˜ao Inaugu-
ral no Coll`ege de France, o autor da Antropologia Estrutural comece sua
exposi¸c˜ao por uma ”homenagem”ao ”pensamento supersticioso”, proclame
que, ”contra o te´orico, o observador deve ficar com a ´ultima palavra; e con-
tra o observador, o ind´ıgena”, e termine seu discurso insistindo sobre tudo o
que deve a esses ´ındios do Brasil, de quem se considera um ”aluno”.
Essa apreens˜ao da sociedade tal como ´e percebida de dentro pelos atores
sociais com os quais mantenho uma rela¸c˜ao direta (apreens˜ao esta, que n˜ao
´e de forma alguma exclusiva da evidencia¸c˜ao daquilo que lhes escapa, mas
que, pelo contr´ario, abre o caminho para essa etapa ulterior da pesquisa), ´e
que distingue essencialmente a pr´atica etnol´ogica – pr´atica do campo – da
do historiador ou do soci´ologo. O historiador, de fato, se procura, como o
etn´ologo, dar conta o mais cientificamente poss´ıvel da alteridade `a qual ´e
confrontado, nunca entra em contato direto com os homens e mulheres das
sociedades que estuda. Recolhe e analisa os testemunhos. Nunca encon-
tra testemunhas vivas. Quanto `a pr´atica da sociologia, pelo menos em suas
principais tendˆencias cl´assicas v´arias caracter´ısticas a distinguem da pr´atica
etnol´ogica considerada sob o ˆangulo que det´em aqui nossa aten¸c˜ao.
1) Comporta um distanciamento em rela¸c˜ao a seu objeto, e algo frio, e ”de-
sencarnado”, como diz L´evi-Strauss a respeito do pensamento durkheimiano.
2) Diante de qualquer problema que lhe seja apresentado, parece ser capaz
de encontrar uma explica¸c˜ao e fornecer solu¸c˜oes. Objetar-se-´a que pode, ´e
claro, ser o caso do etn´ologo. Com a diferen¸ca, por´em, de que este se esfor¸ca,
por raz˜oes metodol´ogicas (e evidentemente afetivas), em co-colar-se o mais
perto poss´ıvel do que ´e vivido por homens de carne e osso, arriscando-se a
perder em algum momento sua identidade e a n˜ao voltar totalmente ileso
dessa experiˆencia.
3) O etn´ologo evita, n˜ao apenas por temperamento mas tamb´em em con-
seq¨uˆencia da especificidade do modo de conhecimento que persegue, uma
programa¸c˜ao estrita de sua pesquisa, bem como a utiliza¸c˜ao de protoco-
los r´ıgidos, de que a sociologia cl´assica pensou poder tirar tantos benef´ıcios
cient´ıficos. A busca etnogr´afica, pelo contr´ario, tem algo de errante. As ten-
tativas abordadas, os erros cometidos no campo, constituem informa¸c˜oes
123
que o pesquisador deve levar em conta. Como tamb´em o encontro que
surge freq¨uentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quando n˜ao
esper´avamos.
N˜ao nos enganemos, por´em, quanto `as virtudes do campo. Da mesma forma
que o fato de ter alcan¸cado uma cura anal´ıtica n˜ao garante que vocˆe possa
um dia se tornar psicanalista, um grande n´umero de temporadas passadas em
contato com uma sociedade que se procura compreender n˜ao o transformar´a
ipso jacto em um etn´ologo. Trata-se por´em de condi¸c˜oes necess´arias. Pois a
pr´atica antropol´ogica s´o pode se dar com uma descoberta etnogr´afica, isto ´e,
com uma experiˆencia que comporta uma parte de aventura pessoal.
124 CAP´ITULO 12. UMA RUPTURA METODOL ´OGICA:
Cap´ıtulo 13
Uma Invers˜ao Tem´atica:
o estudo do infinitamente pequeno e do
cotidiano
A hist´oria, a sociologia cl´assica d˜ao uma prioridade quase sistem´atica `a socie-
dade global, bem como `as formas de atividades institu´ıdas. Assim, por exem-
plo, quando estudam as associa¸c˜oes volunt´arias, privilegiam nitidamente as
grandes, suscet´ıveis de influenciar diretamente a (grande) pol´ıtica: os parti-
dos, os sindicatos. . . em detrimento das associa¸c˜oes de menor importˆancia
num´erica, como as associa¸c˜oes religiosas, e sobretudo as formas menos or-
ganizadas de socialidade. Nessas condi¸c˜oes, a vida cotidiana dos homens
torna-se uma esp´ecie de res´ıduo irris´orio, a n˜ao ser em se tratando (para o
historiador) da vida dos ”grandes homens”. Os fenˆomenos sociais n˜ao escri-
tos, n˜ao formalizados, n˜ao institucionalizados (isto ´e, na realidade, a maior
parte de nossa existˆencia) s˜ao ent˜ao rejeitados para o registro inconsistente
do ”folclore”.
A abordagem etnol´ogica consiste precisamente em dar uma aten¸c˜ao toda
especial a esses materiais residuais que foram durante muito tempo con-
siderados como indignos de uma atividade t˜ao nobre quanto a atividade ci-
ent´ıfica.1 ´E uma abordagem claramente microsso´aol´ogica, que privilegia dessa
vez o que ´e aparentemente secund´ario em nossos comportamentos sociais.
Disso resulta um deslocamento radical dos centros de interesse tradicionais
das ciˆencias sociais, para o que chamarei de infinitamente pequeno e cotidi-
1
Trata-se evidentemente menos, no caso, da ciˆencia, do que de uma de suas vestimentas
ideol´ogicas que escolhe os fatos estudados de acordo com crit´erios e pertinˆencias estranhas
a qualquer preocupa¸c˜ao cient´ıfica, e os batiza de ”hist´oricos”, a partir da representa¸c˜ao
mestra do .acesso progressivo das sociedades humanas a um maior bem-estar, consciˆencia
e raz˜ao.
125
126 CAP´ITULO 13. UMA INVERS ˜AO TEM ´ATICA:
ano. As doutrinas, as constru¸c˜oes intelectuais,as produ¸c˜oes do pensamento
erudito (filos´ofico, teol´ogico, cient´ıfico. . .) s˜ao, nessa perspectiva, con-
sideradas menos como iluminadoras do que como devendo ser iluminadas.
Assim, a aten¸c˜ao do pesquisador passa a interessar-se para as condutas mais
habituais e, em aparˆencia, mais f´uteis: os gestos,as express˜oes corporais, os
h´abitos alimentares, e higiene, a percep¸c˜ao dos ru´ıdos da cidade e dos ru´ıdos
dos campos. . .
Embora o objeto emp´ırico da etnologia n˜ao se confunda com o campo aberto
pela coloniza¸c˜ao, as preocupa¸c˜oes dos etn´ologos me parecem indefectivelni-
ente ligadas a um certo n´umero de crit´erios, que permitem definir as socie-
dades nas quais nossa disciplina nasceu: grupos de pequena dimens˜ao, nos
quais as rela¸c˜oes (exclusiva ou essencialmente orais) s˜ao personalizadas no
extremo. 0 problema que se vˆe aqui colocado ´e evidentemente o seguinte:
como far´a o etn´ologo quando se ver confrontado a sociedades gigantescas,
nas quais a comunica¸c˜ao aparece como cada vez mais anˆonima? Resposta:
ele vai em primeiro lugar procurar, dentro dessas sociedades, se n˜ao encon-
tra objetos emp´ıricos capazes de lembrar-lhe os bons tempos da etnologia
cl´assica. E, ´e um fato, voltar-se-´a em primeiro lugar para a comunidade
camponesa (e n˜ao para a cidade industrial), para a fam´ılia tradicional (e n˜ao
para a fam´ılia desmembrada), para as pequenas confrarias religiosas (e n˜ao
para as grandes organiza¸c˜oes sindicais), e, em seguida, para as popula¸c˜oes
desenraizadas (e n˜ao para a burguesia decadente). Em suma, seus objetos
de predile¸c˜ao ser˜ao os grupos sociais que se situam mais no exterior da soci-
edade global do observador: os que qualificamos de marginais: camponeses
bret˜oes, feiticeiros do Berry, adeptos de seitas religiosas. . 2
Dito isso, conv´em distinguir (mas n˜ao dissociar) as quest˜oes de fato e as
de direito. Se, de fato, o etn´ologo tende a estudar as formas de comporta-
mento e sociabilidade mais excentradas em rela¸c˜ao `a ideologia dominante da
sociedade global `a qual pertence, n˜ao h´a, de direito, propriamente nenhum
territ´orio da etnologia. E as diferen¸cas entre os modos de vida e de pensa-
mento s˜ao t˜ao localiz´aveis nas nossas sociedades (constitu´ıdas de m´ultiplos
subgrupos extremamente diversificados, e nos quais v´arias ideologias est˜ao
em concorrˆencia) quanto nas sociedades qualificadas de ”tradicionais”. ”Se
o etn´ologo”, como escreve L´evi-Strauss (1958), ”interessa-se sobretudo por
aquilo que n˜ao ´e escrito”(e tamb´em, acrescentaremos, por aquilo que n˜ao
2
Essa predile¸c˜ao pelos abandonados (”laiss´es-pour-compte”) (ou advers´arios) do pro-
gresso – o estudo dos indigentes sucedendo ao dos ind´ıgenas – parece claramente na ´area
n˜ao ex´otica da antropologia americana, que d´a uma aten¸c˜ao toda especial aos guetos
negros ou portorriquenhos dos Estados Unidos.
127
´e formalizado e institucionalizado), ”n˜ao ´e tanto porque os povos que es-
tuda s˜ao incapazes de escrever, mas porque aquilo que o interesse ´e diferente
de tudo que os homens pensam habitualmente em fixar na pedra e no papel”.
Conv´em, portanto, deixar de colocar o problema das rela¸c˜oes da sociologia e
da etnologia sobre as bases emp´ıricas das ”sociedades industriais”e das ”so-
ciedades tradicionais”(mesmo incluindo-se os lados ”tradicionais”existentes
dentro das primeiras), pois a etnologia n˜ao tem objeto que lhe seja pr´oprio (e
que poderia ser-lhe ipso jacto designado pelo car´ater ”primitivo”ou ”tradicio-
nal”das sociedades estudadas), e sim uma abordagem, um enfoque particular,
um olhar, ao meu ver, absolutamente ´unico no campo das ciˆencias humanas,
e pass´ıvel de ser aplicado a toda realidade social.
O que me parece importante sublinhar, finalmente, ´e que grande parte da
renova¸c˜ao das ciˆencias humanas contemporˆaneas deve-se incontestavelmente
a sua abertura para nossa disciplina, que as influenciou (direta ou indireta-
mente) designando-lhes novos terrenos de investiga¸c˜ao e convencendo-as de
que n˜ao deve haver, na pr´atica cient´ıfica, objeto tabu. Assim, as ciˆencias das
religi˜oes n˜ao consideram mais o cristianismo ”ao n´ıvel das doutrinas e dos
doutores, e sim das multid˜oes anˆonimas”, como escreve Ean Delumeau. A ar-
quitetura come¸ca a perceber que o estudo dos monumentos ”de estilo”forma
apenas uma parte ´ınfima do h´abitat, e a reabilitar todo esse ”recalcado”da
cultura material que ´e, no caso, o h´abitat popular. Um deslocamento abso-
lutamente an´alogo pode ser encontrado em qualquer ´area: ”a arqueologia,
por exemplo, est´a passando do estudo dos pal´acios, templos e t´umulos impe-
riais para o conjunto do meio ambiente constru´ıdo, inclusive o mais humilde,
sendo este a express˜ao de uma cultura que se procura compreender nos seus
m´ınimos detalhes.
Mas ´e sobretudo na hist´oria, ao meu ver, que assistimos a um deslocamento
radical do campo da curiosidade. Trata-se de ir do p´ublico para o privado,
do Estado para o parentesco, dos ”grandes homens”para os atores anˆonimos,
e dos grandes eventos para a vida cotidiana. Sob a influˆencia da escola dos
Annales, a hist´oria contemporˆanea, pelo menos na Fran¸ca, tornou-se uma
hist´oria antropol´ogica, isto ´e, uma hist´oria das mentalidades e sensibilida-
des, uma hist´oria da cotidianidade material.
128 CAP´ITULO 13. UMA INVERS ˜AO TEM ´ATICA:
Cap´ıtulo 14
Uma Exigˆencia:
o estudo da totalidade
Uma das caracter´ısticas da abordagem antropol´ogica ´e que se esfor¸ca em
levar tudo em conta, isto ´e, de estar atenta para que nada lhe tenha es-
capado. No campo, tudo deve ser observado, anotado, vivido, mesmo que
n˜ao diga respeito diretamente ao assunto que pretendemos estudar. De um
lado, o menor fenˆomeno deve ser apreendido na multiplicidade de suas di-
mens˜oes (todo comportamento humano tem um aspecto econˆomico, pol´ıtico,
psicol´ogico, social, cultural. . .). De outro, s´o adquire significa¸c˜ao antro-
pol´ogica sendo relacionado `a sociedade como um todo na qual se inscreve e
dentro da qual constitui um sistema complexo. Como escreve Mauss (1960),
”o homem ´e indivis´ıvel”e ”o estudo do concreto”´e ”o estudo do completo”.
´E a raz˜ao pela qual toda abordagem que consistir em isolar experimental-
mente objetos n˜ao cabe no modo de conhecimento pr´oprio da antropologia,
pois o que esta pretende estudar ´e o pr´oprio contexto no qual se situam esses
objetos, ´e a rede densa das intera¸c˜oes que estas constituem com a totalidade
social em movimento.
A especializa¸c˜ao cient´ıfica ´e mais problem´atica para o antrop´ologo do que
para qualquer outro pesquisador em ciˆencias humanas. O antrop´ologo n˜ao
pode, de fato, se tornar um especialista, isto ´e, um perito de tal ou tal ´area
particular (econˆomica, demogr´afica, jur´ıdica. . .) sem correr o risco de abolir
o que ´e a base da pr´opria especificidade de sua pr´atica. As ciˆencias pol´ıticas
se d˜ao por objeto de investiga¸c˜ao um certo aspecto do real: as institui¸c˜oes
que regem as rela¸c˜oes do poder; as ciˆencias econˆomicas, um outro: os siste-
mas de produ¸c˜ao e troca de bens; as ciˆencias jur´ıdicas, o direito; as ciˆencias
129
130 CAP´ITULO 14. UMA EXIGˆENCIA:
psicol´ogicas, os processos cognitivos e afetivos; as ciˆencias religiosas, os sis-
temas de cren¸ca. . . Mas todos estes s˜ao para o antrop´ologo fenˆomenos
parciais, isto ´e, abstra¸c˜oes em rela¸c˜ao ao enfoque n˜ao parcelar que orienta
sua abordagem. O parcelamento disciplinar comporta, de fato, no horizonte
cient´ıfico contemporˆaneo, um risco essencial: o de um desmantelamento do
homem em produtor, consumidor, cidad˜ao, parente. . . Assim, por exemplo,
a pesquisa sociol´ogica est´a cada vez mais especializada: estuda fenˆomenos
particulares: a delinq¨uˆencia, a criminalidade, o div´orcio, o alcoolismo. . . e
o pesquisador tende a se tornar o especialista de um campo exclusivo: soci-
ologia dos lazeres, do esporte, das condutas suicidas. . .
A pr´opria antropologia, ´e claro, ´e freq¨uentemente levada a participar desse
processo que pode causar uma verdadeira mutila¸c˜ao do ser humano, de que se
procura, em um segundo tempo (a pluridisciplinaridade), costurar de novo os
retalhos recortados. Mas permanece, a meu ver, dentro do espa¸co da cultura
cient´ıfica (e n˜ao da cultura humanista, como pode ser a cultura filos´ofica ou
liter´aria), um lugar privilegiado a partir do qual ainda se pode perceber que
toda pr´atica hiperespecializada, atrav´es da fragmenta¸c˜ao e do desmembra-
mento que imp˜oe ao real, acaba destruindo o pr´oprio objeto que pretendia
estudar.
Pessoalmente, a antropologia me parece ser o ant´ıdoto n˜ao filos´ofico de uma
concep¸c˜ao tayloriana da pesquisa, que consiste em: 1) cumprir sempre a
mesma tarefa, ser o especialista de uma ´unica ´area; 2) tentar, de uma ma-
neira pragm´atica, modificar, ou at´e transformar os fenˆomenos que se estuda.
O drama das ciˆencias humanas contemporˆaneas ´e a fratura entre uma atitude
extremamente reflexiva (a da filosofia ou da moral) mas que corre o risco de
cair no vazio, dada a fraca positividade de seus objetos de investiga¸c˜ao, e
uma cientificidade extremamente positiva, mas pouco reflexiva, por estar ba-
seada no parcelamento de territ´orios e, voltaremos a isso, sobre uma forma
de objetividade que as pr´oprias ciˆencias exatas descartaram h´a muito tempo.1
Essa preocupa¸c˜ao que tem a antropologia de dar conta, a partir de um
fenˆomeno concreto singular, do multidimensionamento de seus aspectos e da
totalidade complexa na qual se inscreve e adquire sua significa¸c˜ao inconsci-
ente, est´a relacionada `a abordagem menos diretiva e program´atica da pr´opria
pr´atica etnogr´afica, comparada a outros modos de coleta de informa¸c˜oes:
1
N˜ao posso deixar de recomendar particularmente, a respeito desse aspecto, a leitura
da obra de um soci´ologo, Edgar Morin (1974), e em especial do cap´ıtulo intitulado ”Da
pauperiza¸c˜ao das id´eias gerais em um meio especializado”
131
trata-se, de fato, para n´os, al´em de todos os question´arios, por mais aper-
fei¸coados que sejam, de fazer surgir um questionamento m´utuo. Tal preo-
cupa¸c˜ao diz respeito tamb´em, mais uma vez, `a natureza das sociedades nas
quais se desenvolveu nossa disciplina: conjuntos relativamente homogˆeneos,
nos quais as atividades s˜ao pouco especializadas, e que se d˜ao uma ideologia
mestra (de tipo mitol´ogico) dando conta da totalidade social.
A pr´atica da antropologia finalmente, baseada sobre uma extrema proxi-
midade da realidade social estudada, sup˜oe tamb´em, paradoxalmente, um
grande distanciamento (em rela¸c˜ao `a sociedade que procuro compreender,
em rela¸c˜ao `a sociedade `a qual perten¸co). ´E a raz˜ao pela qual somos prova-
velmente, enquanto antrop´ologos, mais tocados do que outros, e, em primeiro
lugar, mais surpreendidos, pela dis-, jun¸c˜ao hist´orica absolutamente singular
´unica at´e na hist´oria da humanidade, que nossa pr´opria cultura realizou entre
a ciˆencia e a moral, a ciˆencia e a religi˜ao, a ciˆencia e a filosofia.
Se olharmos de mais perto, esta ´ultima disciplina n˜ao ´e mais hoje um pen-
samento da totalidade dando-se como objetivo compreender os m´ultiplos as-
pectos do homem. Como escreve L´evi-Strauss, apenas trˆes formas de pensa-
mento s˜ao, no mundo contemporˆaneo, capazes de responder a essa defini¸c˜ao:
o islamismo, o marxismo e a antropologia. O projeto antropol´ogico retoma,
a meu ver, hoje, mas sobre bases completamente diversas (n˜ao mais a espe-
cula¸c˜ao sobre as categorias do esp´ırito humano, mas a observa¸c˜ao direta de
suas produ¸c˜oes concretas), o projeto que foi o da filosofia cl´assica. ´E a raz˜ao
pela qual muitos entre n´os se recusam a entrar nas vias de uma hiperespeci-
aliza¸c˜ao, podendo tornar-se, como mostrou Husserl, antagonista da reflex˜ao,
e podendo at´e, como sugere hoje em dia Laborit, chegar a impedir o pr´oprio
exerc´ıcio do pensamento.
132 CAP´ITULO 14. UMA EXIGˆENCIA:
Cap´ıtulo 15
Uma Abordagem:
a an´alise comparativa
Est´a ligada `a problem´atica maior de nossa disciplina que ´e a da diferen¸ca,
implicando uma descentra¸c˜ao radical em rela¸c˜ao `a sociedade de que faz parte
o observador, isto ´e, uma ruptura com qualquer forma, dissimulada ou delibe-
rada, de etnocentrismo. Pois, apenas o que percebemos (em estado manifesto
ou latente) em uma outra sociedade nos permite visualizar o que est´a em jogo
na nossa, mas que n˜ao suspeit´avamos. Essa experiˆencia de arrancamento de
si pr´oprio age, na realidade, como um verdadeiro revelador de si. Cada um
j´a notou que, quando uma crian¸ca nasce, os parentes e amigos da fam´ılia
endere¸cam seus cumprimentos ao novo pai. Esse costume aparentemente
insignificante ganha todo seu significado se o olharmos `a luz da couvade,
praticada, por exemplo, na ´Africa, e que se encontrava tamb´em na Fran¸ca,
notadamente na Borgonha, at´e o in´ıcio do s´eculo. Tudo se passa como se a
parturiente n˜ao fosse outra sen˜ao o pr´oprio pai. Participando efetivamente
do nascimento da crian¸ca, o marido recupera seus direitos de paternidade
(nas sociedades, notadamente, nas quais o parentesco biol´ogico ´e dissociado
da paternidade social), se vˆe totalmente integrado a sua pr´opria fam´ılia, e
adquire com isso um estatuto de perfeito genitor.
Todos n´os participamos, pelo menos uma vez na vida, da inaugura¸c˜ao de
um edif´ıcio; amigos nos convidaram para festejar a entrada em uma nova
casa ou em um novo apartamento. Ora, esse cerimonial, tamb´em bastante
insignificante, permanece totalmente incompreens´ıvel se n˜ao o relacionarmos
`as cerimˆonias de apropria¸c˜ao do espa¸co que, nas sociedades tradicionais, con-
sistem no sacrif´ıcio de um animal ou numa liba¸c˜ao de ´alcool aos esp´ıritos.
O mesmo se d´a quando nos interessamos para a defesa de uma tese de dou-
133
134 CAP´ITULO 15. UMA ABORDAGEM:
torado, que adquire todo o seu significado a partir do momento em que a
confrontamos com os ritos de inicia¸c˜ao e passagem que pudemos observar em
outras sociedades.1
Poder´ıamos multiplicar os exemplos: o estudo dos jovens
de Samoa que permite a Margaret Mead dar conta dos comportamentos de
crise dos adolescentes americanos; o da feiti¸caria entre os Azand´e do Sud˜ao
que permite a Evans-Pritchard compreender alguns aspectos do comunismo
sovi´etico. Este mestre da antropologia britˆanica recomendava a seus alunos
o estudo de duas sociedades a fim de evitar, dizia ele, o que aconteceu a
Malinowski: ”pensar durante toda a sua vida em fun¸c˜ao de um ´unico tipo
de sociedade”, no caso, os Trobriandeses.
Ora, temos de reconhecer que a maioria dos etn´ologos de hoje n˜ao ´e de
antrop´ologos. Suas pesquisas tratam de uma cultura particular, ou at´e de
um segmento, de um aspecto desta cultura, na melhor das hip´oteses de al-
gumas variedades de culturas, mas quase nunca do estudo dos processos de
variabilidade da cultura.
A abordagem comparativa – que se confunde com a pr´opria antropologia
– ´e uma das mais ambiciosas e exigentes que h´a. Mas antes de examinar os
problemas que coloca e as dificuldades que encontra, conv´em lembrar algu-
mas grandes posi¸c˜oes que balizam a hist´oria de nossa disciplina.
A primeira forma de comparatismo – o evolucionismo – ordena os fatos co-
lhidos dentro de um discurso que se apresenta como hist´orico. Confrontando
essencialmente costumes (cf. especialmente Frazer), procura reconstituir
uma evolu¸c˜ao hipot´etica das sociedades humanas (de todas as sociedades)
na ausˆencia de documentos hist´oricos. As extrapola¸c˜oes e generaliza¸c˜oes que
operam os pesquisadores eruditos desse per´ıodo v˜ao aparecendo aos poucos
como t˜ao abusivas que, praticamente, toda a etnologia posterior (a ruptura
epistemol´ogica introduzida nos anos 1910-1920 por Boas e Malinowski) ir´a
adotar uma posi¸c˜ao radicalmente anticomparativa. Com o funcionalismo,
a sociedade estudada adquire uma autonomia n˜ao apenas emp´ırica, mas
tamb´em te´orica. N˜ao se trata mais de comparar as sociedades entre si, mas
de mostrar, atrav´es de monografias, como se realiza a integra¸c˜ao das dife-
ren¸cas fun¸c˜oes em jogo em uma mesma sociedade.2
1 ˆE nessa perspectiva que Maurice Leenhardt, ap´os ter trabalhado durante mais de 20
anos na Nova Caledˆonia e ter estado na ´Africa, escreve: ”A ´Africa me ensinou muito sobre
a Oceania”.
2
O que leva o antrop´ologo americano Murdock a dizer que a maioria dos antrop´ologos
britˆanicos, deixando de lado o estudo das diferen¸cas entre as civiliza¸c˜oes, n˜ao ´e de an-
trop´ologos, e sim de soci´ologos.
135
Se o projeto da antropologia cultural ´e, de fato, o de confrontar os com-
portamentos humanos os mais diversificados, de uma ´area geogr´afica para
outra – n˜ao mais por uma ”periodiza¸c˜ao”no tempo, como na ´epoca de Mor-
gan, mas, preferencialmente, por uma extens˜ao no espa¸co –, o postulado
da irredutibilidade de cada cultura termina impedindo o pr´oprio empreen-
dimento da compara¸c˜ao. Detenhamo-nos sobre esse ponto que ´e, ao meu
ver, essencial. Claro, s˜ao as varia¸c˜oes que interessam em primeira instˆancia
ao antrop´ologo: mas, para serem estudadas antropologicamente, e n˜ao mais
apenas etnograficamente, essas varia¸c˜oes devem ser relacionadas a um certo
n´umero de invariantes, pois ´e precisamente o estabelecimento dessa rela¸c˜ao
que fundamenta a pr´opria abordagem da compara¸c˜ao, t˜ao caracter´ıstica de
nossa disciplina.
O empreendimento gigantesco dos Human Relations Area Files, elaborado
por Murdock e seus colaboradores a partir de 1937 ´e, a esse respeito, repre-
sentativo. Visa estudar o leque mais completo poss´ıvel dos comportamentos
e institui¸c˜oes humanos, a partir de correla¸c˜oes entre um grande n´umero de
vari´aveis (das t´ecnicas materiais `as representa¸c˜oes religiosas) em 75 culturas
diferentes. Mas esse programa, devido a sua pr´opria preocupa¸c˜ao de exaus-
tividade, coloca, na realidade, mais problemas do que solu¸c˜oes.
Esses exemplos mostram que, entre a tenta¸c˜ao de um comparatismo sis-
tem´atico (como no evolucionismo) e o ceticismo geral dos que consideram
prematuro, quando n˜ao imposs´ıvel, qualquer empreendimento de compara¸c˜ao
(´e a posi¸c˜ao de Boas), o caminho ´e dos mais estreitos. O pr´oprio empreendi-
mento que orienta a antropologia sup˜oe a tomada em considera¸c˜ao de uma
humanidade ”plural”. Mas como dar conta de fenˆomenos que n˜ao perten-
cem `as mesmas sociedades e n˜ao se inscrevem no mesmo contexto. Como
conceber ao mesmo tempo, sem arriscar-se a ultrapassar os limites de uma
abordagem que se quer cient´ıfica, as institui¸c˜oes pol´ıticas dos habitantes da
Patagˆonia e as dos groen-landeses, os ritos religiosos dos bantos e os dos
´ındios da Amazˆonia?
Lembremos em primeiro lugar que a an´alise comparativa n˜ao ´e a primeira
abordagem do antrop´ologo. Este deve passar pelo caminho lento e traba-
lhoso que conduz da coleta e impregna¸c˜ao etnogr´afica `a compreens˜ao da
l´ogica pr´opria da sociedade estudada (etnologia). Em seguida apenas, po-
der´a interrogar-se sobre a l´ogica das varia¸c˜oes da cultura (antropologia). Vale
dizer que o pesquisador deve ter uma prudˆencia consider´avel. Antes de se-
rem confrontados uns aos outros, os materiais recolhidos devem ser meti-
136 CAP´ITULO 15. UMA ABORDAGEM:
culosamente criticados. Pois, se come¸carmos comparando os costumes de
tal popula¸c˜ao africana com os de tal outra europ´eia, chegaremos apenas a
evidenciar algumas analogias. Mas ent˜ao, como diz Kroeber, as ”universali-
dades”encontradas poderiam muito bem ser apenas a proje¸c˜ao de ”categorias
l´ogicas”pr´oprias somente da sociedade do observador. Assim o evolucionismo
comparava o que via (ou, na maior parte das vezes, o que outros se encarre-
gavam de ver por procura¸c˜ao) nas sociedades ”primitivas”, com o que sabia
(ou melhor, supunha saber) de nossa pr´opria sociedade. Disso decorrem as
analogias que n˜ao faltaram entre os abor´ıgines australianos e os habitantes
da Europa na Idade da Pedra.3
Se a antropologia contemporˆanea ´e t˜ao comparativa quanto no passado, n˜ao
deve mais nada `a abordagem do comparatismo dos primeiros etn´ologos. N˜ao
utiliza mais os mesmos m´etodos e n˜ao tem mais o mesmo objeto. O que se
compara hoje s˜ao costumes, comportamentos, institui¸c˜oes, n˜ao mais isola-
dos de seus contextos, e sim fazendo parte destes; s˜ao sistemas de rela¸c˜ao.
A partir de uma descri¸c˜ao (etnografia), e depois, de uma an´alise (etnolo-
gia) de tal institui¸c˜ao, tal costume, tal comportamento, procura-se descobrir
progressivamente o que L´evi-Strauss chama de ”estrutura inconsciente”, que
pode ser encontrado na forma de um arranjo diferente em uma outra insti-
tui¸c˜ao, um outro costume, um outro comportamento. Ou seja, os termos da
compara¸c˜ao n˜ao podem ser a realidade dos fatos emp´ıricos em si,4
mas siste-
mas de rela¸c˜oes que o pesquisador constr´oi, enquanto hip´oteses operat´orias,
a partir destes fatos. Em suma as diferen¸cas nunca s˜ao dadas, s˜ao recolhidas
pelo etn´ologo, confrontadas umas com as outras, e aquilo que ´e finalmente
comparado ´e o sistema das diferen¸cas, isto ´e, dos conjuntos estruturados. 5
3
”Se postulamos apressadamente a homogeneidade do campo social e nos confortamos
na ilus˜ao de que este ´e imediatamente compar´avel era todos os seus aspectos e n´ıveis,
deixaremos escapar o essencial. Desconheceremos que as coordenadas necess´arias para
definir dois fenˆomenos aparentemente muito semelhantes, n˜ao s˜ao sempre as mesmas,
nem est˜ao sempre em mesmo n´umero; e pensaremos estar formulando as leis da natureza
social, quando estaremos nos limitando a descrever propriedades superficiais ou a enunciar
tautologias”, escreve L´evi-Strauss (1973).
4
O etn´ologo contemporˆaneo ´e infinitamente mais modesto que seus predecessores. Ele
n˜ao procura atingir a natureza da arte, da religi˜ao, do parentesco, nem em geral e. nem
mesmo, em particular.
5
”S´o ´e estruturado um arranjo que preencha duas condi¸c˜oes: ´e um sistema regido
por uma coes˜ao interna; e essa coes˜ao – que ´e impercept´ıvel `a observa¸c˜ao de um sistema
isolado – se revela no estudo das transforma¸c˜oes, gra¸cas `as quais descobrimos propriedades
similares em sistemas aparentemente diferentes”, escreve L´evi-Strauss (1973).
Cap´ıtulo 16
As Condi¸c˜oes De Produ¸c˜ao
Social Do Discurso
Antropol´ogico
A antropologia nunca existe em estado puro. Seria ingˆenuo, sobretudo da
parte de um antrop´ologo, isol´a-la de seu pr´oprio contexto. Seria paradoxal,
sobretudo para uma pr´atica da qual um dos objetivos ´e situar os compor-
tamentos dos que ela estuda em uma cultura, classe social, Estado, na¸c˜ao,
ou momento da hist´oria deixar de aplicar a si pr´oprio o mesmo tratamento.
Como escreve L´evi-Strauss, ”se a sociedade est´a na antropologia, a antro-
pologia por sua vez est´a na sociedade”(1973). Seu atestado de nascimento
inscreve-se em uma determinada ´epoca e cultura. Em seguida, transforma-se,
em contato com as grandes mudan¸cas sociais que se produzem, e se torna, um
s´eculo depois, praticamente irreconhec´ıvel. Conv´em, portanto, interrogar-se
agora, n˜ao mais sobre o saber etnol´ogico em si, que nunca ´e um produto
acabado, mas sobre suas condi¸c˜oes de produ¸c˜ao; pois o estudo dos textos
etnol´ogicos nos informa tanto sobre a sociedade do observador quanto sobre
a do observado.
Retomemos rapidamente aqui, dentro dessa nova perspectiva, alguns exem-
plos estudados anteriormente. O que interessa a antropologia filos´ofica do
s´eculo XVIII nas sociedades da ”natureza”, ´e que estas podem dar ao Oci-
dente li¸c˜oes sobre a natureza das sociedades, e permitir fundar um novo ”con-
trato social”, A antropologia evolucionista que lhe sucede est´a estreitamente
ligada `as pr´aticas coloniais conquistadoras da ´epoca vitoriana. Sustentada
pelo ideal de uma miss˜ao civilizadora (a certeza que se tem de si), consiste
na racionaliza¸c˜ao do expansionismo colonial. O funcionalismo, quanto a si,
empresta seu vocabul´ario `as ciˆencias da natureza que lhes parecem a garantia
137
138CAP´ITULO 16. AS CONDIC¸ ˜OES DE PRODUC¸ ˜AO SOCIAL DO DISCURSO ANTROP
da cientificidade. Mas o objeto da antropologia n˜ao leva em conta as pr´aticas
coloniais, ao contr´ario do evolucionismo, que as justificava, e de outras for-
mas de antropologia que as combatem. Um ´ultimo exemplo nos ser´a dado
pela antropologia americana em sua tendˆencia culturalista. O ”relativismo
cultural”, termo forjado por Herskovitz, ´e qualificado por este de ”resultado
das ciˆencias humanas”. Mas est´a, na realidade, ligado `a crise hist´orica do
pensamento te´orico do Ocidente confrontado com a alteridade. Al´em disso, o
car´ater nitidamente mais anticolonialista dessa antropologia, comparando-a
com a antropologia britˆanica ou francesa, explica-se notadamente pelo fato de
que os Estados Unidos nunca tiveram colˆonias (mas apenas minorias ´etnicas).
Seria conveniente, afinal, perguntar-se por que essa preocupa¸c˜ao pelas ”co-
lora¸c˜oes nacionais”de nossos comportamentos, em detrimento do funciona-
mento de nossas institui¸c˜oes, foi (e ainda ´e) t˜ao forte nos Estados Unidos,
essa sociedade formada de uma pluralidade de culturas.
Esses exemplos bastam para nos convencer de que a antropologia ´e o es-
tudo do social em condi¸c˜oes hist´oricas e culturais determinadas. A pr´opria
observa¸c˜ao nunca ´e efetuada em qualquer momento e por qualquer pessoa.
A distˆancia ou participa¸c˜ao etnogr´afica maior ou menor est´a eminentemente
ligada ao contexto social no qual se exerce a pr´atica em quest˜ao, que ´e neces-
sariamente a de um pesquisador pertencendo a uma ´epoca e a uma sociedade.
Quando pensa estar fazendo aparecer a racionalidade imanente ao grupo que
estuda, o etn´ologo pode esquecer (freq¨uentemente de boa-f´e) as condi¸c˜oes–
sempre particulares – de produ¸c˜ao de seu discurso. Mas estas nunca s˜ao
hist´orica, pol´ıtica, cultural, e socialmente neutras; expressam diferentes for-
mas da cultura ocidental quando esta encontra os outros de uma maneira
te´orica.
Isso posto, seria irris´orio reduzir a antropologia apenas `as condi¸c˜oes de seu
surgimento e desenvolvimento. Al´em disso, se se tem raz˜ao em insistir sobre
o fato de que o pesquisador deve considerar o lugar s´ocio-hist´orico a partir do
qual fala, como parte integrante de seu objeto de estudo, seria errˆoneo con-
cluir – como faz, por exemplo, Foucault – que, em conseq¨uˆencia das distor¸c˜oes
perceptivas atribu´ıdas `a nossa rela¸c˜ao com o social, ”as ciˆencias humanas
s˜ao falsas Ciˆencias, n˜ao s˜ao ciˆencias”. Nosso pertencer e nossa implica¸c˜ao
social, longe de serem um obst´aculo ao conhecimento cient´ıfico, podem pelo
contr´ario, a meu ver, ser considerados como um instrumento. Permitem colo-
car as quest˜oes que n˜ao se colocavam em outra ´epoca, variar as perspectivas,
estudar objetos novos.
Cap´ıtulo 17
O Observador, Parte Integrante
Do Objeto De Estudo:
Quando o antrop´ologo pretende uma neutralidade absoluta, pensa ter reco-
lhido fatos ”objetivos”, elimina dos resultados de sua pesquisa tudo o que
contribuiu na sua realiza¸c˜ao e apaga cuidadosamente as marcas de sua im-
plica¸c˜ao pessoal no objeto de seu estudo, ´e que ele corre o maior risco de
afastar-se do tipo de objetividade (necessariamente aproximada) e do modo
de conhecimento espec´ıfico de sua disciplina.
Essa auto-suficiˆencia do pesquisador, convencido de ser ”objetivo”ao libertar-
se definitivamente de qualquer problem´atica do sujeito, ´e sempre, a meu ver,
sintom´atica da insuficiˆencia de sua pr´atica. Esquece (na realidade, de uma
forma estrat´egica e reivindicada) do princ´ıpio de totalidade tal como foi ex-
posto acima; pois o estudo da totalidade de um fenˆomeno social sup˜oe a
integra¸c˜ao do observador no pr´oprio campo de observa¸c˜ao.
Se ´e poss´ıvel, e at´e necess´ario, distinguir aquele que observa daquele que
´e observado, parece-me, em compensa¸c˜ao, impens´avel dissoci´a-los. Nunca
somos testemunhas objetivas observando objetos, e sim sujeitos observando
outros sujeitos. Ou seja, nunca observamos os comportamentos de um grupo
tais como se dariam se n˜ao estiv´essemos ou se os sujeitos da observa¸c˜ao fos-
sem outros. Al´em disso, se o etn´ografo perturba determinada situa¸c˜ao, e at´e
cria uma situa¸c˜ao nova, devido a sua presen¸ca, ´e por sua vez eminentemente
perturbado por essa situa¸c˜ao. Aquilo que o pesquisador vive, em sua rela¸c˜ao
com seus interlocutores (o que reprime ou sublima, o que detesta ou gosta),
´e parte integrante de sua pesquisa. Assim uma verdadeira antropologia ci-
ent´ıfica deve sempre colocar o problema das motiva¸c˜oes extracient´ıficas do
observador e da natureza da intera¸c˜ao em jogo. Pois a antropologia ´e tamb´em
139
140CAP´ITULO 17. O OBSERVADOR, PARTE INTEGRANTE DO OBJETO DE ESTUDO
a ciˆencia dos observadores capazes de observarem a si pr´oprios, e visando a
que uma situa¸c˜ao de intera¸c˜ao (sempre particular) se torne o mais consciente
poss´ıvel, isso ´e realmente o m´ınimo que se possa exigir do antrop´ologo.
Alguns anos atr´as, estava realizando, a pedido do CNRS, uma pesquisa no sul
da Tun´ısia sobre um fenˆomeno chamado hajba (que significa em ´arabe: claus-
tra¸c˜ao, trancamento) que se inscreve no quadro da prepara¸c˜ao das jovens ao
casamento. No decorrer de um per´ıodo variando de algumas semanas a alguns
meses, a noiva permanece rigorosamente separada do mundo exterior, e par-
ticularmente do universo masculino. Passa por um tratamento est´etico cujo
objetivo ´e deixar sua pele o mais branca poss´ıvel, e por um regime alimen-
tar que deve engord´a-la. Essa pr´atica de superalimenta¸c˜ao (`a -base de ovos,
a¸c´ucar, torradas com ´oleo), aplicada a jovens djerbianas que ser˜ao entregues
a maridos que n˜ao conhecem, de in´ıcio repugnava-me. Ora, longe de eliminar
a natureza afetiva (mas, com certeza, ligada `a cultura `a qual perten¸co) de
minha rea¸c˜ao, tive, pelo contr´ario, de lev´a-la em conta, de tentar elucid´a-la,
a fim de controlar, na medida do poss´ıvel, as conseq¨uˆencias, perturbadoras
tanto para mim quanto para meus interlocutores que, como todos os interlo-
cutores, nunca se enganam por muito tempo sobre os sentimentos pelos quais
passa o etn´ologo. Da mesma forma, o que me marcou muito na ocasi˜ao de
minha primeira miss˜ao etnol´ogica em pa´ıs ba´ule foi o respeito pelos velhos,
o espa¸co ocupado pelos esp´ıritos, e a facilidade das rela¸c˜oes sexuais com as
adolescentes. Se isso me surpreendeu, ´e porque essas condutas questionavam
a minha pr´opria cultura; pois era de fato esta que me questionava em alguns
aspectos da cultura dos ba´ules e me questiona quando observo hoje, no Bra-
sil, a aptid˜ao consider´avel que tˆem os homens e as mulheres para entrar em
transe, ou, mais precisamente, serem ”possu´ıdos”pelos esp´ıritos ancestrais –
´ındios, crist˜aos, africanos – do grupo. ´E prov´avel que o gato veja no cachorro
uma esp´ecie particular de gato, enquanto o cachorro, por sua vez, veja em
seu dono uma outra ra¸ca de cachorro. Se ambos fazem, respectivamente, ca-
nicentrismo e cinomorfismo, importa muito que o etn´ologo (isso faz parte da
aprendizagem de sua profiss˜ao, e o car´ater cient´ıfico dos resultados de suas
pesquisas depende disso) controle as armadilhas, freq¨uentemente inconscien-
tes, da proje¸c˜ao e do etnocentrismo.
Conv´em aqui interrogar-se sobre as raz˜oes que levam a reprimir a subje-
tividade do pesquisador, como se esta n˜ao fosse parte da pesquisa. Por que
esses relat´orios anˆonimos, redigidos por ”credores”, e que ignoram a rela¸c˜ao
dos materiais colhidos com a pessoa do coletor j´a que, se ele tiver talento,
pode sempre escrever suas confiss˜oes? Como ´e poss´ıvel que tudo o que faz a
originalidade da situa¸c˜ao etnol´ogica – que nunca consiste na observa¸c˜ao de
141
insetos, e sim numa rela¸c˜ao humana envolvendo necessariamente afetividade
– possa transformar-se a tal ponto em seu contr´ario? Tornar-se esquecimento
ou recalcamento de uma intera¸c˜ao entre seres vivos, funcionando em muitos
aspectos como um ritual de exorcismo? Ou seja, por que, segundo a express˜ao
de Edgar Morin, essa ”esquizofrenia profunda e permanente”das ciˆencias do
homem em sua tendˆencia ortodoxa?
A id´eia de que se possa construir um objeto de observa¸c˜ao independentemente
do pr´oprio observador prov´em na realidade de um modelo ”objetivista”, que
foi o da f´ısica at´e o final do s´eculo XIX, mas que os pr´oprios f´ısicos abandona-
ram h´a muito tempo. ´E a cren¸ca de que ´e poss´ıvel recortar objetos, isol´a-los,
e objetivar um campo de estudo do qual o observador estaria ausente, ou
pelo menos substitu´ıvel. Esse modelo de objetividade por objetiva¸c˜ao ´e,
sem d´uvida, pertinente quando se trata de medir ou pesar (pouco importa,
neste caso, que o observador tenha 25 ou 70 anos, que seja africano ou euro-
peu, socialista ou conservador). N˜ao pode ser conveniente para compreender
comportamentos humanos que veiculam sempre significa¸c˜oes, sentimentos e
valores.
Ora, uma das tendˆencias das ciˆencias humanas contemporˆaneas ´e eliminar
duplamente o sujeito: os atores sociais s˜ao objetivados, e os observadores
est˜ao ausentes ou, pelo menos, dissimulados. Essa elimina¸c˜ao encontra sem-
pre sua justifica¸c˜ao na id´eia de que o sujeito seria um res´ıduo n˜ao assimil´avel
a um modo de racionalidade que obede¸ca aos crit´erios da ”objetividade”,
ou, como diz L´evi-Strauss, de que a consciˆencia seria ”a inimiga secreta das
ciˆencias do homem”. Nessas condi¸c˜oes, n˜ao haver´a ent˜ao outra escolha sen˜ao
entre uma cientificidade desumana e um humanismo n˜ao cient´ıfico?
Paradoxalmente, a volta do observador para o campo da observa¸c˜ao n˜ao
se deu atrav´es das ciˆencias humanas, nem mesmo na filosofia, e sim por in-
term´edio da f´ısica moderna, que reintegra a reflex˜ao sobre a problem´atica do
sujeito como condi¸c˜ao de possibilidade da pr´opria atividade cient´ıfica. Hei-
senberg mostrou que n˜ao se podia observar um el´etron sem criar uma situa¸c˜ao
que o modifica. Disso tirou (em 1927) seu famoso ”princ´ıpio de incerteza”,
que o levou a reintroduzir o f´ısico na pr´opria experiˆencia da observa¸c˜ao f´ısica.
E foi Devereux quem, em primeiro lugar (em 1938), mostrou o proveito que a
etnologia podia tirar desse princ´ıpio, comum a toda abordagem cient´ıfica. A
perturba¸c˜ao que o etn´ologo imp˜oe atrav´es de sua presen¸ca `aquilo que observa
e que perturba a ele pr´oprio, longe de ser considerada como um obst´aculo
que seria conveniente neutralizar, ´e uma fonte infinitamente fecunda de co-
nhecimento. Incluir-se n˜ao apenas socialmente mas subjetivamente faz parte
142CAP´ITULO 17. O OBSERVADOR, PARTE INTEGRANTE DO OBJETO DE ESTUDO
do objeto cient´ıfico que procuramos construir, bem como do modo de conhe-
cimento caracter´ıstico da profiss˜ao de etn´ologo. A an´alise, n˜ao apenas das
rea¸c˜oes dos outros `a presen¸ca deste, mas tamb´em de suas rea¸c˜oes `as rea¸c˜oes
dos outros, ´e o pr´oprio instrumento capaz de fornecer `a nossa disciplina van-
tagens cient´ıficas consider´aveis, desde que se saiba aproveit´a-lo.
Cap´ıtulo 18
Antropologia E Literatura:
O confronto da antropologia com a literatura ´e imprescind´ıvel. O antrop´ologo,
que realiza uma experiˆencia nascida do encontro do outro, atuando como
uma metamorfose de si, ´e freq¨uentemente levado a procurar formas narra-
tivas (romanescas, po´eticas e, mais recentemente, cinematogr´aficas) capazes
de expressar e transmitir o mais exatamente poss´ıvel essa experiˆencia.
* * *
Uma parte importante da literatura mant´em, como a etnologia, uma rela¸c˜ao
– por sinal, extremamente complexa – com a viagem. Inumer´aveis s˜ao os es-
critores para os quais o pr´oprio ato de escrever implica uma situa¸c˜ao de
deslocamento. Basta citar O Itiner´ario de Paris a Jerusalem, Atala, Os
Natehez, de Chateaubriand, Viagem no Oriente, de Ner-val, Os Pequenos
Poemas em Prosa, de Baudelaire, Oviri, de Gauguin, Os Tarahumaras, de
Antonin Artaud, Les Nour-ritures Terrestres, de Gide, Aziyad´e, de Loti, A
Viagem para Tombuctu, de Cailli´e, Impress˜oes da ´Africa, de Roussel, Bour-
linguer, de Cendrars, A`aipi, de Melville, Typhon, de Conrad. . . ou, entre
nossos contemporˆaneos, A Modifica¸c˜ao, de Michel Butor, A Ilha, de Robert
Merle, Equinoxiais, de Gilles Lapouge, Sexta-Feira ou os Limbos do Pac´ıfico,
de Michel Tournier, A Procura do Ouro, de J. M. le Cl´ezio.
Entre as obras que acabamos de citar, algumas se enquadram nessa famosa
literatura de viagem (”oriental”, ”tropical”, oceˆanica. . .) conhecida sob o
nome de ”exotismo”. Descobrindo novos horizontes, o escritor se d´a conta
(e geralmente aprecia) do fato de que sua cultura n˜ao ´e a ´unica no mundo:
o que o leva a mudar radicalmente no relato o cen´ario tradicional do campo
liter´ario cl´assico. Ele ´e tomado pela beleza de um espet´aculo que o encanta
e mobiliza n˜ao apenas seu olhar, mas o conjunto de seus sentidos: uma na-
tureza grandiosa, popula¸c˜oes projetadas, de qualquer intrus˜ao da civiliza¸c˜ao
143
144 CAP´ITULO 18. ANTROPOLOGIA E LITERATURA:
ocidental. Nesse espa¸co fora do espa¸co e nesse tempo fora do tempo, li-
bertado das obriga¸c˜oes da sociedade, faz a experiˆencia de uma felicidade e
sobretudo de uma liberdade de que n˜ao suspeitava, enquanto se interroga
sobre sua pr´opria identidade.
Conv´em finalmente lembrar que no Ocidente nossos grandes livros de apren-
dizagem s˜ao relatos de viagem: Robinson Cruso´e, Moby Dick, A Volta ao
Mundo em Oitenta Dias, Miguel Strogoff, A Viagem de Nils Olgerson, Alice
no Pa´ıs das Maravilhas, O Pequeno Pr´ıncipe. . .
N˜ao nos enganemos sobre a natureza dessas obras –por sinal, elas s˜ao muito
diferentes entre si – nem sobre a nossa inten¸c˜ao: essas n˜ao s˜ao, de forma
alguma, livros de etnologia. Alguns, at´e, nos ensinam apenas muito subsidia
riamente a olhar para os outros, pois o escritor freq¨uente mente sai do seu
papel – tentando ser etn´ologo –, t˜ao grande ´e o seu desejo de resolver seus
pr´oprios problemas escapando do Ocidente um instante.
Isso n˜ao impede que a quest˜ao das rela¸c˜oes entre a experiˆencia propriamente
liter´aria e a experiˆencia etnol´ogica permane¸ca colocada, n˜ao apenas para os
autores que acabamos de citar, mas tamb´em para os etn´ologos, ou pelo menos
para os que consideram que a descoberta do outro vai junto com a descoberta
de si: isto ´e, para quem a etnologia ´e tamb´em (o que n˜ao quer dizer exclusiva-
mente) uma maneira de viver e uma arte de escrever. Estou pensando nesses
numerosos relatos escritos por profissionais de nossa disciplina, geralmente a
margem de suas produ¸c˜oes cient´ıficas, mas que constituem a meu ver uma
contribui¸c˜ao que seria uma pena deixar de lado, menos, ´e verdade, para a
ciˆencia antropol´ogica estritamente falando, do que para o conhecimento an-
tropol´ogico. Trata-se apenas de alguns exemplos – de Afrique Ambigiie, de
Georges Balandier (1957), Chebika, de Jean Duvignaud (1968), Nous Avons
Mang´e la Forˆet (1982) ou L’Exotique Est Quotidien (1977), de Georges Con-
dominas, Ma´ıra, de Darcy Ribeiro (1980), L’Herbe du Diable et la Petite
Fum´ee, de Carlos Castaneda (1982), Forˆet, Femme, Folie, de Jacques Dour-
nes (1978). . . Conv´em citar tamb´em essas hist´orias de vida, desenvolvidas
de in´ıcio nos Estados Unidos, e, mais recentemente na Fran¸ca (cf. a cole¸c˜ao
”Terre Humaine”, da editora Plon) nas quais se procura compreender o funci-
onamento e a significa¸c˜ao das rela¸c˜oes sociais a partir do relato de indiv´ıduos
singulares: o discurso do velho dogon Ogotemˆelie publicado por Mareei Gri-
aule (1966), Soleil Hopi, que ´e a autobiografia de um ´ındio pueblo, Os Filhos
de S´anchez, de Oscar Lewis (1963), La Statue de Sei, ed Albert Memmi
145
(1966)... 1
O limite que separa essa etnologia romanceada, qualificada precisamente de
romance etnol´ogico, do romance propriamente dito, a literatura da ciˆencia
(cf. Gilberto Freyre, 1974), ´e `as vezes extremamente tˆenue. Estou pensando
principalmente em Victor Segalen, que, em Les Imm´emoriaux (reed. 1982),
procura ”escrever”as pessoas taitianas de uma maneira adequada `aquela com
a qual Gauguin as viu para pint´a-las: ”neles pr´oprios, e de dentro para fora”.
Em Jean Monod, para quem a etnologia ”foi o prolongamento da experiˆencia
po´etica”(1972). Em Roger Bastide, que, em Imagens do Nordeste M´ıstico
em Branco e Preto (1978), se diz ”dividido entre um grande fervor e o de-
sejo de fazer uma pesquisa objetiva”, e considera que ”o soci´ologo que quer
compreender o Brasil deve transformar-se em poeta”.
Mas o ”romance etnol´ogico”culmina com Tristes Tr´opicos, de Claude L´evi-
Strauss (que, por outro lado, nos lembra freq¨uentemente em sua obra que
se considera como o disc´ıpulo de Jean-Jacques Rousseau, e mais especifica-
mente do Rousseau das Confiss˜oes e das Rˆeveries, e n˜ao do Rousseau do
Contrato Social) e com L’Afrique Fantˆome, de Michel Leiris, que distingue
perfeitamente sua pr´atica profissional de etn´ologo e sua experiˆencia de escri-
tor e poeta, mas indica-nos quais s˜ao, para ele, as rela¸c˜oes que as unem:
”Passando de uma atividade quase exclusivamente liter´aria para a pr´atica
da etnografia, eu pretendia romper com os h´abitos intelectuais que tinham
sido meus at´e ent˜ao e, no contato de homens de outra cultura e outra ra¸ca,
derrubar as paredes entre as quais me sentia sufocado e ampliar meu ho-
rizonte at´e uma medida verdadeiramente humana. Concebida dessa forma,
a etnografia s´o podia me decepcionar: uma ciˆencia humana n˜ao deixa de
ser uma ciˆencia e a observa¸c˜ao a distˆancia n˜ao poderia, por si s´o, levar
ao contato; talvez implique, por defini¸c˜ao, o contr´ario, a atitude de esp´ırito
pr´opria do observador sendo uma objetividade imparcial inimiga de qualquer
efus˜ao”(1934).
1
Conv´em mencionar aqui a produ¸c˜ao de um certo n´umero de obras cinematogr´aficas
contemporˆaneas – e n˜ao apenas obras pertencendo ao gˆenero do filme etnogr´afico cl´assico
– que constituem, a meu ver, n˜ao apenas uma fonte de informa¸c˜ao, mas um meio de
conhecimento verdadeiramente antropol´ogico. Estou pensando particularmente em Moi et
un Noir, de )ean Rouch (1958) que teve a influˆencia que sabemos sobre o cinema de )ean-
Luc Godard (especialmente Picrrot le Fou), e em filmes mais recentes como A ´Arvore dos
Tamancos, de Ermanno Olmi (1977), Padre Pudrone, dos irm˜aos Taviani (1977), Le Christ
s’est Arrˆet´e `a Eboli, de Francesco Rosi (1979), Fontamara, de Carlos Lizzani (1980), Yol,
de Yilmaz Guney (1981), Kaos, dos irm˜aos Taviani (1984), Le Pays oii Rˆevent les Fourmis
Vertes, de Werner Herzog (1984), La Forˆet d’´Eineraude. de —ohn Boorman (19851.
146 CAP´ITULO 18. ANTROPOLOGIA E LITERATURA:
”No per´ıodo de grande permissividade que sucedeu `as hostilidades, o jazz
foi um sinal de uni˜ao, uma bandeira org´ıaca, nas cores do momento. Agia de
uma forma m´agica e seu modo de influˆencia podia ser comparada a uma pos-
sess˜ao. Era o melhor elemento para dar a essas festas seu verdadeiro sentido,
um sentido religioso, uma comunh˜ao pela dan¸ca, o erotismo latente ou mani-
festo, e a bebida, o meio mais eficiente de acabar com o desn´ıvel que separa
os indiv´ıduos uns dos outros em qualquer esp´ecie de reuni˜ao. Mergulhados
em rajadas de ar quente vindas dos tr´opicos, o jazz trazia restos significativos
de civiliza¸c˜ao acabada, de humanidade submetendo-se cegamente `a m´aquina,
para expressar t˜ao totalmente quanto poss´ıvel o estado de esp´ırito de pelo me-
nos alguns entre n´os: aspira¸c˜ao impl´ıcita e uma vida nova na qual um espa¸co
mais amplo seria dado a todas as ingenuidade selvagens cujo desejo, embora
ainda sem forma, nos assolava. Primeira manifesta¸c˜ao dos negros, mitos dos
´edens de cor que deviam me levar at´e a ´Africa e, para al´em da ´Africa, at´e
a etnografia”(1973). O tipo de etnologia no qual estamos aqui convidados
a entrar ´e uma etnologia eminentemente amorosa, na qual o pesquisador-
escritor renuncia a ser o ´unico sujeito do discurso, mas tamb´em seu objeto,
dentro de uma aventura. Por outro lado, esfor¸ca-se por apreender da forma
mais pr´oxima poss´ıvel a linguagem dos homens da alteridade e em transmiti-
la na nossa l´ıngua (j´a era um dos objetivos de Mali-nowski).
A rela¸c˜ao ao outro– e `a viagem – n˜ao ´e evidentemente a mesma se consi-
derarmos de um lado a rela¸c˜ao de Griaule com os Dogons, de Leenhardt com
os Canaques, de Margaret Mead com as mulheres da Oceania, de Michel
Leiris ou —ean Rouch com os africanos, de —acques Berque com os ´arabes,
e de outro, a rela¸c˜ao de um Antonin Artaud com os tarahumaras ou de um
)ean Paulhan com os malgaxes. Mas quando L´evi-Strauss expressa seu ´odio
pelas viagens, no in´ıcio de Tristes Tr´opicos, ´e para, como Michaux em Um
B´arbaro na ´Asia ou em Equador, exigir uma viagem mais radical.
* * *
O estudo das rela¸c˜oes entre etnologia e literatura (especialmente o romance)
merece ser levado mais adiante ainda. Suas afinidades deve-se, a meu ver, a
raz˜oes mais fundai mentais. Citarei trˆes delas.
1) A etnologia, pelo menos tal como a concebo, n˜ao se contenta com a si-
tua¸c˜ao, segundo a an´alise por Husserl: essa crise do pensamento ocidental
que, por estar cada vez mais especializado, reluta frente `a reflex˜ao sobre o
homem, e pode caracterizar-se para levar a um ”esquecimento do ser”. A
etnologia e o romance (ambos – voltaremos a isso – nascidos na Europa)
147
visam precisamente (por vias muito diferentes) a explorar de uma maneira
n˜ao especulativa esse ser do homem esquecido pela tendˆencia cada vez mais
hiper-tecnol´ogica e n˜ao reflexiva da ciˆencia.
2) A literatura (e, notadamente, a literatura romanesca) desenvolve um in-
teresse todo especial para o detalhe, e para o detalhe do detalhe, para os
”eventos min´usculos”e os ”pequenos fatos”de que fala Proust. Ora, essa pre-
ocupa¸c˜ao pelo microsc´opico – e n˜ao, como diz ainda Proust, pelas ”grandes
dimens˜oes dos fenˆomenos sociais-- vai ao encontro da abordagem que ´e a da
etnologia.
O que caracteriza tamb´em o modo de conhecimento liter´ario ´e que n˜ao se
reduz `a faculdade de observa¸c˜ao. A vida ´e inclus˜ao e confus˜ao, a arte ´e
discrimina¸c˜ao e sele¸c˜ao, bem como mostrou Henry James. O que o escritor
procura ´e a an´alise dos fatos com o objetivo de tirar leis gerais. explicativas
dos comportamentos humanos. Ele ´e, segundo o termo de Proust, um ”esca-
vador de detalhes”. Sua ambi¸c˜ao ´e nunca se ater `as sensa¸c˜oes que ”afetam
sem representar”, e sim, a partir de um ´unico pequeno fato, se for bem es-
colhido, fazer surgir o ”geral”do ”particular”. Isto ´e, chegar a uma lei geral
que levar´a a conhecer a verdade sobre os milhares de fatos an´alogos, e per-
mitir´a, articulada com outras leis, sejam colocadas as bases de uma ”teoria
do conhecimento”.
3) A gˆenese do romance, como a da etnologia, ´e contemporˆanea desse mo-
mento de nossa hist´oria no qual os valores come¸cam a vacilar, no qual ´e
questionada uma ordem do mundo legitimada pela divindade. O que ´e ent˜ao
proposto n˜ao ´e nada menos que um descentramento antropocˆen-trico em
rela¸c˜ao `a teologia, mas tamb´em `a filosofia cl´assica, na qual a inteligibilidade
´e constitu´ıda e n˜ao constiuinte: a relatividade dos pontos de vista, dos va-
lores, das concep¸c˜oes do homem e do social, o abandono da id´eia de uma
verdade absoluta situando o bem de um lado, e o mal de outro, comum a
todas as ideologias.2
A l´ogica do romance sup˜oe a pluralidade dos personagens, como a l´ogica
da etnologia sup˜oe a pluralidade das sociedades, e, em ambos os casos, essa
pluralidade ´e irredut´ıvel `a identidade. Assim, Joseph K. no Processo n˜ao
´e nem totalmente culpado nem totalmente inocente. Assim, na Montanha
2
O romance come¸cou como a etnologia: pela perspectiva, aberta pelas viagens, da
aventura ilimitada (Jacques le fataliste, Dom Quixote...). Depois, e em ambos os casos, o
long´ınquo deixa lugar ao pr´oximo. `A medida que o universo conhecido vai sendo explorado,
volta-se para o pr´oximo e, como em Madame Bovary, explora-se o cotidiano.
148 CAP´ITULO 18. ANTROPOLOGIA E LITERATURA:
M´agica, de Thomas Mann, os pension´arios do Berghof n˜ao detˆem a verdade
dos habitantes da ”plan´ıcie”, e Hans Castorp n˜ao ´e a medida de Settembrini.
O mesmo se d´a para Zeno em rela¸c˜ao a Augusta, na Consciˆencia de Zeno,
de Svevo, para Leopold Blum em rela¸c˜ao `a ”gente de Dublin”, em Ulisses,
de Joyce, para o narrador de Em busca do tempo perdido em rela¸c˜ao aos
Verdurin, etc.3
Ora, essa abordagem ´e an´aloga (o que n˜ao significa de modo algum idˆentica)
`a da etnologia. Pode ser apreendida da forma mais pr´oxima poss´ıvel nos
trabalhos de um etn´ologo como Oscar Lewis. Em Os Filhos de S´anchez, par-
ticularmente, n˜ao somos mais confrontados com os mon´ologos paralelos do
observador do observado, alternadamente considerados como os ´unicos p´olos
da observa¸c˜ao, mas aos olhares cruzados (convergentes, divergentes) de uma
mesma fam´ılia mexicana.
Em suma, esses exemplos bastam, me parece, para fazer-nos compreender
que no romance tanto quanto na etnologia, renuncia-se `a id´eia de que a rea-
lidade possa ser apreendida em si, mas, mais modestamente, sempre a partir
de um certo ponto de vista. Em ambos os casos, para o etn´ologo, como para
o romancista, coloca-se o problema dos limites que se deve impor ao olhar.
Ou seja, o ponto de vista esfor¸ca-se em ser total, sem nunca ser absoluto.
Essa abordagem, deliberadamente perspectivista, ´e portanto claramente an-
titotalit´aria.4
3
E mesmo quando o romance est´a totalmente organizado em torno de uma personagem
´unica, a partir da revolu¸c˜ao romanesca da d´ecada de 1920, revolu¸c˜ao esta que, ´e claro, n˜ao
veio de repente, mas foi gradualmente preparada por escritores como Stendhal, Flaubert,
fames, essa personagem, profundamente dividida em rela¸c˜ao a si pr´opria, reintroduz no
espa¸co romanesco a multiplicidade dos pontos de vista.
4
As rela¸c˜oes (no caso convergentes) que acabamos de esbo¸car entre o romance e a
antropologia exigiriam uma afina¸c˜ao. De que romance se trata? E de que antropologia?
Parece-nos por exemplo que a abordagem que visa `a investiga¸c˜ao mais completa poss´ıvel
de um grupo humano atrav´es da documenta¸c˜ao e da observa¸c˜ao distanciada da ”realidade
social”, ´e comum `as correntes positivistas das ciˆencias humanas e naturalistas do romance.
Da mesma forma, a perspectiva de Balzac, que privilegia o car´ater eminentemente social e
at´e s´ocio-econˆomico das situa¸c˜oes (descritas em sua exterioridade) e das personagens (que,
na obra de Balzac, con fundem-se com sua fun¸c˜ao e seu estatuto social), corresponde `a
tendˆencia sociologizante da antropologia. A rela¸c˜ao entre o afetivo e o social inverte-se
quando passamos para o romance psicol´ogico ou para a antropologia psicanal´ıtica.
Cap´ıtulo 19
As Tens˜oes Constitutivas Da
Pr´atica Antropol´ogica:
Encontramos no conjunto do campo antropol´ogico um certo n´umero de tens˜oes
importantes, opondo a universalidade e as diferen¸cas, a compreens˜ao ”por
dentro”e a compreens˜ao ”por fora”, o ponto de vista do mesmo e o ponto
de vista dos outros. . . Mas essas tens˜oes s˜ao verdadeiramente constitutivas
da pr´opria pr´atica da antropologia. Esta ´ultima s´o come¸ca a existir a partir
do momento em que o pesquisador se entrega a um confronto entre esses
diversos termos, vive dentro de si essas tens˜oes, freq¨uentemente polˆemicas,
esfor¸ca-se em pens´a-las e dar conta delas. Correla-tivamente, parece-me que
a antropologia tem todas as chances de engajar-se em um impasse, em um
desvio em rela¸c˜ao ao modo de conhecimento que persegue, toda vez que um
dos p´olos em quest˜ao domina o outro.
19.1 O Dentro E O Fora
Uma pulsa¸c˜ao bastante espec´ıfica ritma o trabalho de todo etn´ologo. O pri-
meiro tempo ´e o da aprendizagem atrav´es de um conv´ıvio ass´ıduo e de uma
verdadeira impregna¸c˜ao por seu objeto. Trata-se de interpretar a sociedade
estudada utilizando os modos de pensamento dessa sociedade, deixando-se,
por assim dizer, naturalizar por ela. O que n˜ao tem realmente nada de um
exerc´ıcio intelectual, pois, como diz Georges Balandier a respeito da ´Africa,
corre-se o risco de voltar ”perdido para o Ocidente”. A abordagem de um
fean Rouch, de um Michel Leiris (que escrevia em seu di´ario de miss˜ao: ”eu
preferiria ser possu´ıdo a estudar os possu´ıdos”), ou de um Roger Bastide,
parece-me particularmente representativa dessa atitude. Roger Bastide es-
creve, por exemplo:
149
150CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
”Eu abordava o candombl´e com uma mentalidade moldada por trˆes s´eculos
de cartesianismo. Devia deixar-me penetrar por uma cultura que n˜ao era
minha. Devia portanto converter-me a uma outra mentalidade A pesquisa
cient´ıfica exigia de mim a passagem pr´evia pelo ritual de inicia¸c˜ao”.
Roger Bastide ´e ent˜ao entronizado no candombl´e, onde lhe revelam que ´e
filho de Xangˆo, deus do trov˜ao dos Iorubas, e onde, at´e a sua morte, ocupar´a
um lugar na hierarquia sacerdotal.
A nosso ver, o pesquisador s´o ultrapassar´a esse primeiro est´agio que ´e o
do encontro, da experiˆencia, e por que n˜ao? da convers˜ao (pelo menos meto-
dol´ogica), e que podemos ilustrar com os trabalhos dos fundadores de nossa
disciplina, come¸cando por Leenhardt e Griaule – se o tiver pelo menos en-
contrado e atravessado.
Mas passado o tempo da impregna¸c˜ao, chega inelutavelmente para o etn´ologo
o da distˆancia, pois ´e pr´oprio da linguagem, e particularmente da linguagem
cient´ıfica, atuar no sentido de uma separa¸c˜ao. E sobretudo, a inteligibilidade
procurada n˜ao consiste apenas em compreender uma sociedade da forma
como seus atores sociais a vivem, mas tamb´em, mas sobretudo, em entender
o que lhes escapa e s´o pode lhes escapar. De fato, o que vivem os membros
de uma determinada sociedade n˜ao poderia ser compreendido situando-se
apenas dentro dessa sociedade. O olhar distanciado, exterior, diferente, do
estranho, ´e inclusive a condi¸c˜ao que torna poss´ıvel a compreens˜ao das l´ogicas
que escapam aos atores sociais. Ao familiarizar-se com o que de in´ıcio parecia
estranho, o etn´ologo vai tornar estranho para esses atores o que lhes parecia
familiar.
Conv´em portanto insistir aqui sobre a opacidade das estrat´egias sociais.
Parece-nos de fato, que, de um determinado ponto de vista, os camponeses de
Cevennes s˜ao os pior situados para compreender os camponeses de Cevennes,
e os professores de filosofia para compreender os professores de filosofia, ou
ainda, os franceses para compreender os franceses;1
pois as significa¸c˜oes pro-
duzidas n˜ao residem apenas naquilo que uma cultura ou microcultura afirma,
mas naquilo que n˜ao diz. Nenhuma sociedade ´e de fato perfeitamente trans-
parente a si mesma, nenhuma escapa de suas armadilhas conscientes. Cada
grupo humano, como tamb´em cada indiv´ıduo, fornece a si pr´oprio e aos ou-
1
Cf., sobre esse ponto, os trabalhos de L. Wylie (1968), que ´e americano, ou de Zeldin
C983). que ´e inglˆes
19.1. O DENTRO E O FORA 151
tros racionaliza¸c˜oes de suas condutas, que consistem em modelos conscientes
que o etn´ologo n˜ao deve cortejar e adaptar, nem contornar e exorcisar, e sim
analisar.
Assim, o risco do primeiro momento (habitualmente designado pela express˜ao
”compreens˜ao por dentro”) ´e, seja uma participa¸c˜ao cega e uma ”empa-
tia”que n˜ao se consegue mais controlar, seja a retranscri¸c˜ao, em termos eru-
ditos e na forma de uma redundˆancia, do que foi expresso, por exemplo,
pelo camponˆes ou pelo oper´ario em termos populares. Alguns etn´ologos tˆem
tendˆencia a supervalorizar o discurso do outro, isto ´e, a abandonar um mo-
delo de pensamento por outro. Mas em tais condi¸c˜oes, como diz MarcAug´e
(1979), ”o etn´ologo que tentasse compreender o universo dos bororos e ex-
plic´a-lo de dentro, n˜ao seria mais um etn´ologo e sim um bororo”.
O risco inverso pode apresentar-se na ocasi˜ao do segundo momento do pro-
cesso (a ”compreens˜ao de fora”). Quando o discurso sobre o outro tende
a dominar o discurso do outro, degenera habitualmente em um discurso `a
revelia do outro, podendo contribuir na morte do outro (e na morte das ci-
viliza¸c˜oes). O paradoxo merece ser sublinhado. Enquanto nossa profiss˜ao de
etn´ologo exige que comecemos toda pesquisa pela aprendizagem da mod´estia,
por uma ruptura cultural, ou at´e por uma ”convers˜ao”, deixando-nos ensinar
e aculturar como crian¸cas, nossas produ¸c˜oes eruditas terminam quase sem-
pre tomando as outras sociedades conformes `a inteligibilidade que organiza
a nossa. O risco., n˜ao desprez´ıvel, ´e de estarmos carregando conosco um
modelo de leitura, de sociedade em sociedade, com a convic¸c˜ao de sempre
permanecer com a ´ultima palavra. Se a etnologia conseguir superar a ide-
ologia da idealiza¸c˜ao amorosa, da fus˜ao e da confus˜ao, parece-me que n˜ao
deve ser para voltar ao estatuto etnocˆentrico da racionalidade ocidental, que
´e apenas uma forma de l´ogica entre tantas outras.
L´evi-Strauss compara freq¨uentemente a antropologia `a astronomia. Qualifica
a primeira de ”astronomia das ciˆencias sociais”, e diz do olhar antropol´ogico
que ´e um ”olhar de astrˆonomo”. ´E a proximidade desse olhar sobre soci-
edades long´ınquas que permite notadamente que o pesquisador, de volta a
sua pr´opria sociedade, possa olh´a-la a distˆancia E ´e o car´ater microsc´opico
de sua abordagem que fundamenta paradoxalmente a natureza telesc´opica
de sua abordagem. Existe, ´e claro, uma contradi¸c˜ao aparente nesse olhar
pr´oximo do long´ınquo que age como um olhar long´ınquo do pr´oximo; mas
essa contradi¸c˜ao, todo etn´ologo a encontrou pelo menos uma vez na vida.
Em suma, parece-nos que essa tens˜ao entre pesquisadores, mas sobretudo,
152CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
em um mesmo pesquisador,2
entre a situa¸c˜ao de outsider e a de insider – que
´e a pr´opria defini¸c˜ao da ”observa¸c˜ao participante”, essa vontade de ”poder
pensar e sentir alternadamente como um selvagem e como um europeu”(E.
Evans-Pritchard, 1969) – ´e constitutiva de nossa profiss˜ao. Como escrevia,
h´a mais de um s´eculo, Tylor, um dos primeiros antrop´ologos:
”Existe uma esp´ecie de fronteira aqu´em da qual ´e preciso estar para sim-
patizar com o mito, e al´em da qual ´e preciso estar para estud´a-lo. Temos a
sorte de viver perto dessa faixa fronteiri¸ca e de poder passar e repass´a-la `a
vontade”.
19.2 A Unidade E A Pluralidade
Fazer antropologia ´e segurar as duas extremidades da cadeia e afirmar com
a mesma for¸ca:
• existe, como escreve Mauss, uma ”unidade do gˆenero humano”
• tal costume, tal institui¸c˜ao, tal comportamento, estranhos a minha
sociedade, s˜ao realmente diferentes
1) Esse descentramento te´orico de si por abertura ao outro ´e freq¨uentemente,
na pr´atica, apenas uma tradu¸c˜ao de um discurso em outro, de uma mentali-
dade em outra, uma extens˜ao e anexa¸c˜ao do outro, reduzido a mera figura do
mesmo. ´E notadamente o caso do evolucionismo que dissolve a alteridade na
unidade, pois, como vimos, o ”primitivo”n˜ao ´e visto como sendo realmente
diferente de n´os. Encarna a forma social ultrapassada do que fomos outrora,
e ´e utilizado como a ilustra¸c˜ao de um processo ´unico que sempre conduz ao
idˆentico. Mas essa tendˆencia da pr´atica antropol´ogica atua tamb´em em abor-
dagens que, no entanto, apresentam-se como radicalmente opostas. ´E, por
exemplo, f´acil encontrar uma contradi¸c˜ao, na obra de Malinowski, entre, de
um lado a experiˆencia pessoal do observador, que se esfor¸ca em dar conta da
especificidade irredut´ıvel dos insulares trobriandeses, e a convic¸c˜ao do te´orico
que, no final de sua vida, reflete sobre o funcionamento da humanidade em
geral, pois considera que, finalmente, os homens s˜ao em toda parte os mes-
mos. A abordagem t˜ao exigente do etn´ografo, que evidencia as diferen¸cas que
observa, termina dis-solvendo-se no dogmatismo unit´ario da fun¸c˜ao. Com-
preendemos, dentro desse quadro, o questionamento de nossa disciplina, que
2
Lembramos, por exemplo, que Malinowski no in´ıcio de sua carreira, ao estudar os
Trobriandeses (1963), privilegia um modo de conhecimento por ”dentro”, em seguida,
quando elabora sua Teoria Cient´ıfica da Cultura (1968), d´a prioridade a um mo’do de
conhecimento claramente distanciado.
19.2. A UNIDADE E A PLURALIDADE 153
se expressa notadamente pela voz dos intelectuais do ”terceiro mundo”(cf.
por exemplo Fanon, 1952, Baldwin, 1972, Adotevi, 1972) pedindo o fim da
antropologia, este mon´ologo tranq¨uilo do Ocidente consigo mesmo, no qual
a ´unica racionalidade presente estaria conferida por um sujeito ativo a um
objeto passivo.
Essa acusa¸c˜ao segundo a qual o conhecimento dos outros estaria reduzido
ao Saber verdadeiro por um observador possuindo infalivelmente a verdade
do observado, e procurando menos o advento com os outros daquilo que n˜ao
pensava, do que a verifica¸c˜ao sobre os outros daquilo que pensava, coloca um
problema essencial: a ´unica ciˆencia ´e ocidental? e a antropologia teria apenas
uma modalidade do conhecimento por objetiva¸c˜ao? Nossa disciplina – pelo
menos tal como a concebo – aspira a uma forma de racionalidade que n˜ao
´e a das ciˆencias sociais, tais como a economia, a sociologia ou a demografia,
as quais ”aceitam sem reticˆencias”, como diz L´evi-Strauss, ”estabelecer-se
dentro mesmo de suas sociedades”. E, por outro lado, embora n˜ao se trate
de ciˆencias, no sentido ocidental do termo, existem, em outras culturas, for-
mas de conhecimento cuja l´ogica n˜ao tem realmente nada a invejar da nossa:
por exemplo, as gram´aticas indianas, os ”saberes sobre o corpo”asi´aticos, ou
ainda as institui¸c˜oes familiares tais como foram elaboradas pelos abor´ıgines
australianos, t˜ao complexas que precisamos, no Ocidente, para compreendˆe-
las, apelar para os recursos das matem´aticas modernas.
2) Esses ´ultimos coment´arios nos levam a nos voltar para o segundo p´olo
dessa tens˜ao entre a unidade da cultura (o outro ´e um homem como n´os,
como vemos na trag´edia shakespeariana) e a diversidade das culturas. A par-
tir desse segundo p´olo, organiza-se toda uma corrente, que encontra uma de
suas primeiras express˜oes em Montaigne (os costumes diferem tanto quanto
os trajes, h´a uma verdade al´em dos Pireneus. . .), atravessa o pensamento
antropol´ogico contemporˆaneo, e consiste dessa vez em considerar as dife-
ren¸cas como irredut´ıveis.
O que ´e evidenciado nessa perspectiva3
´e o car´ater assim´etrico da rela¸c˜ao
entre o observador e o observado, a domina¸c˜ao que uma civiliza¸c˜ao estaria
impondo deliberada ou dissimuladamente a todas as outras, e a natureza,
considerada repressiva, da ciˆencia, que seria a racionaliza¸c˜ao desse processo.
Preconiza-se ent˜ao uma rela¸c˜ao emp´atica, igualit´aria e convivial, que pro-
3
Perspectiva ao mesmo tempo antievolucionista. antifuncionalista. antiestruturalista,
antimarxista, mas claramente culturalista, encontrada em autores como Castaneda (1982).
Clastres (1974). Delfendhal (1973), (aulin (1970. 1973).
154CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
porcionaria a possibilidade de dessolidarizar-se do mundo europeu. ´E uma
forma de conhecimento mais humana, que poder´ıamos qualificar de ”etnolo-
gia mansa”, como falamos de ”medicina mansa”, visando, contra o cosmopo-
litismo, a reabilitar a identidade das regi˜oes (cf., por exemplo, P. J. H´elias,
1975). Op˜oe-se ent˜ao radicalmente a sabedoria das sociedades tradicionais
`a violˆencia fren´etica da sociedade racionalista, da qual a antropologia seria
c´umplice. Finalmente, considera-se que o que ´e separado pela barreira das
culturas n˜ao deve ser reunido, nem mesmo pelo pensamento te´orico. Disso
decorre a oposi¸c˜ao aos pr´oprios conceitos de homens e de antropologia, aos
quais se prefere o de povo (no plural) e de etnologia.
Procuremos analisar as implica¸c˜oes de tal atitude.
1) Em primeiro lugar, a inquietude que demonstram esses autores com res-
peito a uma homogeneiza¸c˜ao, pelo Ocidente das diferentes culturas do mundo,
me parece pouco fundamentada. De volta de uma miss˜ao cient´ıfica no Nor-
deste do Brasil, posso relatar o seguinte: uma popula¸c˜ao constitu´ıda em sua
maioria de descendentes de europeus, e confrontada hoje a uma conjuntura
econˆomica internacional que lhe ´e eminentemente desfavor´avel, soube criar
formas de sociabilidade plenamente originais, encontr´aveis no menor com-
portamento da vida cotidiana, e que n˜ao se deixam de forma alguma alterar
pelos modelos culturais vigentes em Paris, Londres ou Chicago. Sabemos
de fato que, quanto mais uma sociedade tende a uniformizar-se, mais tende
simultaneamente a diversificar-se. Assim, por exemplo, a hegemonia ariana,
que ia levar `a unifica¸c˜ao da ´India, foi acompanhada correlativamente de uma
divis˜ao da sociedade em castas. Da mesma forma, foi a influˆencia, que pare-
cia exclusivamente niveladora, da revolu¸c˜ao industrial do s´eculo XVIII que
permtiiu a radicaliza¸c˜ao dos diferentes estatutos entre os grupos (as classes
sociais). Mais uma vez, o Brasil contemporˆaneo me parece particularmente
revelador a esse respeito e nos leva ainda mais adiante. A cultura popular n˜ao
s´o resiste notavelmente `a cultura dominante, como tamb´em, freq¨uentemente,
consegue se impor a esta, de uma maneira dificilmente imagin´avel no Oci-
dente. Aquilo que Bastide come¸cava a notar, trinta anos atr´as, ao estudar os
cultos afro-brasileiros, acentuou-se e confirmou-se. Encontrei pessoalmente
membros das classes superiores da sociedade brasileira que, no decorrer das
cerimˆonias de umbanda, s˜ao sucessivamente ”possu´ıdos”pelos esp´ıritos das
divindades dos´ındios e dos ancestrais africanos do tempo da escravid˜ao. Ora,
esse fenˆomeno pode ser melhor apreendido, n˜ao nas regi˜oes mais exteriores
em rela¸c˜ao ao desenvolvimento econˆomico do pa´ıs, como o Nordeste, mas no
Rio de Janeiro ou em S˜ao Paulo, que ´e hoje uma das primeiras metr´opoles
industriais do mundo.
19.2. A UNIDADE E A PLURALIDADE 155
2) A id´eia de que o outro ´e radicalmente outro, de que, por exemplo, o
Novo Mundo ´e de fato um outro mundo, e de que n˜ao se poderia preencher
(e, mesmo se fosse poss´ıvel, n˜ao se deveria fazˆe-lo) a diferen¸ca absoluta que
o separa de n´os, participa de um etnocentrismo invertido que n˜ao deixa de
lembrar de Pauw ou Hegel. Para estes, como lembramos, as sociedades selva-
gens s˜ao totalmente diferentes das sociedades hist´oricas. ´E ”um outro mundo
cultural”, diz Hegel, que tamb´em fala em uma ”essˆencia”dos africanos. O
fato de a alteridade ser aqui valorizada, por um agrad´avel movimento de
pˆendulo ao qual nos acostumou o pensamento para-antropol´ogico, n˜ao afeta
em nada a natureza ideol´ogica do processo em quest˜ao.
3) Essa celebra¸c˜ao da sabedoria e do conv´ıvio dos outros n˜ao resiste `a ob-
serva¸c˜ao dos fatos: decorre da constru¸c˜ao de uma alteridade fantasm´atica
que se faz passar por realidade. O africano, o ´ındio, o bret˜ao. . . s˜ao mobi-
lizados mais uma vez como suportes do imagin´ario do ocidental culto, como
objeto-pretexto utilizado aqui com vistas ao protesto moral, como pode sˆe-lo
com vistas `a emo¸c˜ao est´etica ou a militˆancia pol´ıtica. E correlativamente
dessa vez, atrav´es dessa deontologia do olhar para o outro – o qual acaba
inclusive perdendo-se, pois olha-se para si mesmo dentro do espelho do outro
–, aquele que est´a submetido a um processo de domina¸c˜ao e humilha¸c˜ao n˜ao
´e mais o outro (sadismo), e sim si pr´oprio e sua pr´opria sociedade (maso-
quismo). A excelente imagem que se deve ter dos outros acompanha-se de
fato da m´a imagem que se tem de si (cf., por exemplo, Jean Monod, 1972,
que se acusa de ser um ”rico canibal”). Ou seja, h´a uma recusa de assumir
sua pr´opria identidade, o que tem como corol´ario a culpa ou a difama¸c˜ao da
ocidentalidade.4
Em suma, tudo se passa como se esse protesto indignado – o
fato de querer devolver sua dignidade aos outros – devesse passar inelutavel-
mente por um processo consistindo em acusar-se a si pr´oprio de indignidade.
4) A id´eia de que os que visam compreender racionalmente a alteridade es-
tariam se comportando praticamente como Cortˆes com os Astecas, enquanto
que, indo at´e o fim da ruptura com o Ocidente, se poderia talvez chegar,
atrav´es de um conhecimento por assim dizer amoroso, a coincidir com a ver-
dadeira natureza do outro, enquandra-se mais em uma experiˆencia religiosa,
4
. A descri¸c˜ao, por Turnbull (1972), de selvagens que n˜ao tˆem realmente nada de
”bons selvagens”, e o fato de que o etn´ologo. como qualquer ser humano, possa sentir
´odio em rela¸c˜ao a estes, e escrevˆe-lo, causou escˆandalo entre os etn´ologos. Mas que estes
´ultimos n˜ao sejam ”nem santos, nem her´ois”, como diz Panoff (1977), ”n˜ao impede que
os trobriandeses sejam matrilineares, nem que os Nuers levem uma vida ritmada p las
necessidades pastorais e pelas condi¸c˜oes meteorol´ogicas”.
156CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
que faria do etn´ologo um iniciado ou um eleito, do que na ciˆencia. E al´em
disso, tudo nos impele – na esteira dessa para-antropologia que identifica a
abordagem do pesquisador com o ponto de vista dos pr´oprios atores, que
afirma que ´e preciso ser origin´ario de sua cultura para compreendˆe-la real-
mente – a ficar em casa, a permanecer entre si. Apenas o ´ındio (e, a rigor,
aquele que se tornar seu adepto) ´e capaz de compreender o ´ındio. Apenas
o bret˜ao ´e capaz de falar corretamente o bret˜ao. Apenas o prolet´ario pode
saber o que ´e a classe oper´aria. Apenas a mulher est´a em condi¸c˜oes de com-
preender a mulher. J´a passamos por isso. Como vocˆe, que n˜ao ´e m´edico,
se atreve a falar de medicina? Deixe a medicina aos m´edicos, a religi˜ao aos
cleros, o proletariado aos prolet´arios, a Bretanha aos bret˜oes. . .
Se levarmos at´e suas extremas conseq¨uˆencias esse princ´ıpio de n˜ao-distancia¸c˜ao
e n˜ao-media¸c˜ao, devemos nos tornar membro efetivo da sociedade que pre-
tend´ıamos estudar. Mas ent˜ao, n˜ao se trata mais de estud´a-la, e sim de
adot´a-la, `a maneira desses aventureiros normandos, encontrados por L´ery,
que haviam naufragado na costa meridional do Brasil e tinham-se tornado
selvagens no contato dessas popula¸c˜oes, adotando sua l´ıngua, suas mulheres,
seus costumes. Por todas essas raz˜oes, ao insistir tanto sobre o car´ater irre-
dut´ıvel das diferen¸cas, essa tendˆencia da etnologia exclui-se por si mesma, a
meu ver, de uma abordagem de pequisa cient´ıfica.
Acabamos de ver que a uma forma de universalidade que tende para a
redu¸c˜ao do outro ao ocidentalismo (o dogmatismo de uma natureza ou de uma
essˆencia humana sempre idˆentica a si mesma) responde uma forma de ma-
jora¸c˜ao da alteridade (o dogmatismo da relatividade de culturas heterogˆeneas
justapostas). N˜ao ´e f´acil, evidentemente, segurar as duas extremidades da
cadeia, isto ´e, o acesso `a compreens˜ao do outro por si e `a compreens˜ao de
si pelo outro. Se a identifica¸c˜ao integral com este ´e, a meu ver, um erro, a
antropologia nos engaja por´em nessa aventura que nos ensina que n˜ao se deve
identificar integralmente consigo mesmo. O outro ´e uma figura poss´ıvel de
mim, como eu dele. Esse descentramento m´utuo do observador e do obser-
vado n˜ao pode mais ser, no final dessa experiˆencia, o sujeito transcendental
do humanismo. Mas nem por isso as identidades de uns e outros est˜ao abo-
lidas, passam a ser apreendidas do interior mesmo de sua diferen¸ca, isto ´e, a
partir de uma rela¸c˜ao.
19.3. O CONCRETO E O ABSTRATO 157
19.3 O Concreto E O Abstrato
A terceira tens˜ao que examinaremos agora ´e a da observa¸c˜ao daquilo que ´e
vivido, e da teoria constru´ıda para dar conta dessa observa¸c˜ao, ou, se prefe-
rirmos, do campo e do m´etodo.
A incompreens˜ao entre os que enfatizam a unidade fundamental da cultura
e os que privilegiam a diversidade, supostamente irredut´ıvel, das culturas,
decorre do fato de que n˜ao nos situamos, nos dois casos, no mesmo n´ıvel de
investiga¸c˜ao do social. A tomada e’m considera¸c˜ao da variedade cultural me
leva a perceber que perten¸co a uma cultura entre muitas outras, mas o meu
olhar at´em-se `a observa¸c˜ao da realidade emp´ırica. Pelo contr´ario, a an´alise da
variabilidade cultural evidencia o que n˜ao vejo diretamente quando passo de
uma cultura para outra, mas me permite perceber que perten¸co a uma figura
particular da cultura. De um lado, portanto, a preocupa¸c˜ao do concreto, de
outro, a exigˆencia, para dar conta deste, da constru¸c˜ao cient´ıfica. Vaiv´em a
meu ver ininterrupto que pode ser ilustrado, por exemplo, pelo formalismo
l´ogico de um L´evi-Strauss, o qual n˜ao deve, por´em, nos deixar esquecer a
especificidade por assim dizer carnal dessa Am´erica ´ındia dos Nhambiquaras
de que tanto gosta o autor de Tristes Tr´opicos.
1) O primeiro risco, que eu qualificaria de tenta¸c˜ao emp´ırica, vem da sub-
miss˜ao d´ocil ao campo, do registro ficticiamente passivo dos ”fatos”, que d´a
ao observador a impress˜ao de situar-se do lado das coisas, de estar junto delas.
Essa suspei¸c˜ao frente `a abstra¸c˜ao e `a teoria parece-me perfeitamente leg´ıtima.
A m´usica, a poesia, a literatura, a pintura, a religi˜ao s˜ao abordagens muito
mais indicadas do que a antropologia para nos fazer coincidir com os se-
res. Proporcionam-nos incontestavelmente mais emo¸c˜oes, mais prazeres- Mas
n˜ao s˜ao a antropologia. N˜ao h´a, de fato, ciˆencia, nem atividade cr´ıtica nem
mesmo coleta de fatos sem teoria. A rejei¸c˜ao desta ´ultima leva inclusive ine-
vitavelmente a adotar a teoria do senso comum, a ”opini˜ao”, a ideologia do
momento, a que estiver vigente na sociedade que se estuda ou `a qual perten-
cemos. O trabalho do antrop´ologo n˜ao consiste em fotografar, gravar, anotar,
mas em decidir quais s˜ao os fatos significativos, e, al´em dessa descri¸c˜ao (mas
a partir dela), em buscar uma compreens˜ao das sociedades humanas. Ou
seja, trata-se de uma atividade claramente te´orica de constru¸c˜ao de um ob-
jeto que n˜ao existe na realidade, mas que s´o pode ser empreendida a partir
da observa¸c˜ao de uma realidade concreta, realizada por n´os mesmos.
2) O segundo risco pode ser qualificado de tenta¸c˜ao idealista (ou nomina-
158CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
lista). Situamo-nos dessa vez do lado das palavras (ou do lado dos n´umeros),
mas tomam-se ent˜ao as palavras por coisas. No t´ermino do empreendimento
de modeliza¸c˜ao que transforma fenˆomenos emp´ıricos em objetos cient´ıficos,
acaba-se tomando a constru¸c˜ao do objeto pela pr´opria realidade social. Ora,
a popula¸c˜ao que estudamos n˜ao nos esperou para atribuir significa¸c˜oes a
suas pr´aticas. Por outro lado, uma teoria cient´ıfica nunca ´e o reflexo do
real, e sim uma constru¸c˜ao do real. Os fatos etnogr´aficos s˜ao fatos cientifica-
mente constru´ıdos, a partir de nossas observa¸c˜oes, mas tamb´em contra nossas
observa¸c˜oes, nossas impress˜oes, as interpreta¸c˜oes dos interessados e nossas
pr´oprias interpreta¸c˜oes espontˆaneas. Existe portanto uma inadequa¸c˜ao en-
tre, de um lado, a realidade social estudada, que n˜ao ´e nem esgotada nem
esgot´avel pela etnologia, e de outro, o objeto que constru´ımos a partir de
uma determinada op¸c˜ao disciplinar e te´orica, e da nossa pr´opria rela¸c˜ao com
o psicol´ogico e o social.
* * *
O paradoxo, mas tamb´em a especificidade da antropologia no campo das
ciˆencias sociais, ´e que n˜ao sendo ”a ciˆencia social, do ponto de vista do obser-
vador”(´e assim que L´evi-Strauss define a sociologia), tamb´em n˜ao ´e a ciˆencia
social do ponto de vista do observado, e sim uma pr´atica que surge em seu
limite, ou melhor, em sua intersec¸c˜ao. Podemos reduzir a inadequa¸c˜ao entre
os dois pensamentos de que acabamos de falar, traduzindo-a em uma outra
linguagem. Por exemplo, quando um n´umero consider´avel de indiv´ıduos que
comp˜oem a sociedade brasileira tende a interpretar suas dificuldades (soci-
ais, psicol´ogicas, biol´ogicas) em termos religiosos, podemos dizer que se trata
de ”ilus˜ao”, de ”proje¸c˜ao”, de ”deslocamento”ideal de uma realidade mais
”fundamental”. Da mesma forma, quando o pensamento tradicional clas-
sifica as coisas segundo categorias c´osmicas (a ´agua, o ar, a terra, o fogo),
podemos dizer que realiza ”sublima¸c˜oes”cujas ”verdadeiras”raz˜oes s˜ao s´ocio-
econˆomicas. Podemos tamb´em compreender essa adequa¸c˜ao atrav´es de um
confronto ininterrupto e de uma articula¸c˜ao entre o pensado e o impensado,
o dito e o n˜ao-dito, o manifesto (de minha e da outra sociedade) e o recalcado
(de minha e da outra sociedade).
Alguns exemplos v˜ao permitir mostrar que um certo n´umero de condutas,
observ´aveis em outro lugar, s˜ao capazes de agir como reveladores de aspec-
tos culturais inteiros, cuidadosamente dissimulados em nossa cultura, o que
permite afirmar, com Georges Devereux, que o inconsciente de uma cultura
pode ser encontrada no consciente de uma outra.
Nossos sistemas de representa¸c˜ao, em mat´eria de doen ¸ca, s˜ao hoje em grande
19.3. O CONCRETO E O ABSTRATO 159
parte exorc´ısticos: a doen¸ca ´e considerada como um mal que deve ser esma-
gado, e os sintomas, como uma calamidade a ser eliminada; o que tra¸ca as
figuras, bem conhecidas entre n´os, do doente-v´ıtima e do m´edi-co-exorcista.
Mas as representa¸c˜oes inversas, chamadas ”adorc´ısticas”e que correspondem
`as duas figuras do m´edico-louco e do paciente-or´aculo, nem por isso est˜ao au-
sentes. Est˜ao simplesmente recalcadas, e tornam-se manifestas se passarmos
de uma cultura para outra (dos exorcistas thonga aos xam˜as shongai), ou de
uma cultura para ela mesma no tempo (da nossa psiquiatria cl´assica para
a corrente que qualifica a si pr´opria de ”antipsiquiatria”, que n˜ao produz
realmente algo novo, mas reatualiza antes algo recalcado).
Da mesma forma, os cultos de possess˜ao afro-brasilei-ros, tais como os estou
estudando neste momento em uma grande cidade do Nordeste, podem ser
utilizados como reveladores da abordagem antipsiqui´atrica inglesa – e parti-
cularmente de Laing – que expressa ao n´ıvel do discurso o que os brasileiros
realizam ao n´ıvel do corpo.
Poder´ıamos assim multiplicar os exemplos, e mostrar que o processo, co-
nhecido dos psicossoci´ologos, da exclus˜ao em um grupo que se quer ho-
mogˆeneo, torna-se particularmente claro e ”desocultado”quando nos refe-
rimos `a feiti¸caria que ´e uma regula¸c˜ao social estruturalmente universal, etc.
De tudo isso, resulta que o objetivo da etnologia n˜ao ´e o de traduzir a alteri-
dade nos moldes do que ´e, para minha sociedade, conhecido e correto (o que
equivaleria a suprimir essa alteridade); nem o de estender a racionalidade `as
dimens˜oes do universo, nos modos mission´arios ou messiˆanicos da conquista
(pois essa racionalidade ´e provinciana, isto ´e, limitada no espa¸co e no tempo).
A etnologia, pelo contr´ario, abre essa estreiteza monocultural. E no entanto,
para que o pr´oprio empreendimento que caracteriza ”nossa disciplina, n˜ao
apenas como experiˆencia e como aventura, mas como ciˆencia, seja poss´ıvel,
algo desse pensamento ocidental ter´a sido utilizado como mediador e como
instrumento: n˜ao uma cultura (a nossa) que serviria de referencial absoluto
e daria sentido a fenˆomenos que inicialmente n˜ao tinham, e sim um m´etodo,
ocidental, ´e claro, pela sua origem hist´orica e cultural, mas que subverte a
racionalidade ocidental.5
5
Seria t˜ao absurdo dizer que a antropologia, que nasceu no Ocidente, ´e indefectivel-
mente ocidentalo-cˆentrica, como dizer que a psican´alise, que nasceu em Viena, ´e espec´ıfica
e exclusivamente vienense. Se a antropologia ´e ”filha do colonialismo”, ”nada seria mais
falso”, como escreve L´evi-Strauss (1973), ”do que consider´a-la como a ´ultima reencarna¸c˜ao
do esp´ırito colonial”.
160CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
Dito isso, a l´ogica das condutas e das insttiui¸c˜oes que o etn´ologo procura evi-
denciar tamb´em n˜ao se confunde com os sistemas de interpreta¸c˜oes aut´octones,
com os modelos conscientes, ”feitos em casa”(L´evi-Strauss), com os gˆeneros
que s˜ao classifica¸c˜oes ind´ıgenas expl´ıcitas. Sistemas de interpreta¸c˜oes aut´octones,
modelos conscientes e gˆeneros s˜ao freq¨uentemente deforma¸c˜oes e raciona-
liza¸c˜oes de estruturas inconscientes (que fornecem no entanto possibilidades
de acesso a estas ´ultimas), e este ´e o n´ıvel de inteligibilidade que a antropo-
logia pretende alcan¸car: n˜ao o consciente, mas o inconsciente em sua rela¸c˜ao
com o consciente, o tipo em sua rela¸c˜ao com o gˆenero, etc.
Concluiremos essas reflex˜oes com as observa¸c˜oes seguintes. As pr´aticas simb´olicas
e os discursos vividos (que podem ser sistematizados em qualquer lugar, pois
cada sociedade tem seus pr´oprios te´oricos) n˜ao s˜ao interpretados pela antro-
pologia segundo a maneira como seus atores sociais os vivem, nem segundo
a maneira com a qual os observadores os percebem. Isso n˜ao significa que o
antrop´ologo seja o homem de nenhum lugar, e que a antropologia seja uma
metalinguagem. O conhecimento antropol´ogico surge do encontro, n˜ao ape-
nas de dois discursos expl´ıcitos, mas de dois inconscientes em espelho, que
espelham uma imagem deformada. ´E o discurso sobre a diferen¸ca (e sobre
minha diferen¸ca) baseado em uma pr´atica da diferen¸ca que trabalha sobre os
limites e as fronteiras.
Tomemos o exemplo de uma conduta que n˜ao ´e minha, como a feiti¸caria, e
que pertence seja a uma ”matriz prim´aria”de uma sociedade outra, seja a um
segmento marginal de uma sociedade minha. Seu significado antropol´ogico
s´o pode ser apreendido relacionando-a aquilo que para minha sociedade tem
um sentido, ou aquilo que a pr´atica e a l´ogica da feiti¸caria dizem por si mes-
mas, nos gestos e discursos dos interessados, mas na sua jun¸c˜ao e na sua
intersec¸c˜ao.
Nesse caso espec´ıfico, a realidade, para o antrop´ologo, constitui-se do con-
fronto de dois discursos interpretativos que se juntam, e constituem, o pri-
meiro, a realidade normalizante do discurso ”erudito”(do psiquiatra, do pa-
dre, do professor prim´ario. . .), o segundo, a realidade alucinada e desviante,
mas que ´e tamb´em a express˜ao de uma realidade social. A antropologia,
portanto, s´o come¸ca a adquirir um estatuto cient´ıfico partir do momento em
que integra, para analis´a-lo, esse envolvimento do pesquisador (ao mesmo
tempo psicoafetivo e s´ocio-hist´orico) `as voltas com a diferen¸ca.
Resumiremos da seguinte forma essa ambig¨uidade e essa tens˜ao (que atua
evidentemente muito mais no estudo dos sistemas de representa¸c˜oes e valo-
19.3. O CONCRETO E O ABSTRATO 161
res do que da cultura material). N˜ao posso ser ao mesmo tempo eu mesmo e
um outro, e no entanto, para ser totalmente eu, eu devo tamb´em sair de mim
a fim de apreender uma figura recalcada, mas poss´ıvel- de mim. N˜ao posso
situar-me simultaneamente dentro e fora de minha sociedade, e no entanto,
para compreender minha sociedade no que nunca diz de si pr´opria por que
n˜ao o percebe, devo fazer a experiˆencia de uma descentra¸c˜ao radical.
Finalmente essa atividade continua interrogando-me na pr´opria atividade
pela qual contribuo a fabric´a-la como objeto cient´ıfico.
* * *
A separa¸c˜ao teol´ogica, filos´ofica, e depois cient´ıfica, do homem e da natu-
reza (especialmente os animais, mas tamb´em nossa animalidade), do homem
e de seu semelhante, a separa¸c˜ao do sujeito e do objeto, do sens´ıvel e do
intelig´ıvel, constituem os termos de uma tens˜ao que, a meu ver, n˜ao admite
resolu¸c˜ao em uma unidade superior como em Hegel. Esses termos, a n˜ao ser
em uma solu¸c˜ao fisiol´ogica, formam uma complementaridade conflitual, mas
n˜ao uma ”dial´etica”, conceito para o qual se apela (na verdade, cada vez me-
nos) quando se procura uma receita, uma tr´egua poss´ıvel, e que tem, como
diz Jean Grenier, ”uma virtude m´agica infal´ıvel”. S˜ao as diferentes dosagens
realizadas, as diferentes combina¸c˜oes obtidas entre uma compreens˜ao ”por
dentro”e uma compreens˜ao ”por fora”, entre a alteridade e a identidade, a
diferen¸ca e a unidade, a subjetividade e a objetividade (mas tamb´em a sin-
cronia e a diacronia, a estrutura e o evento) que comandam o pluralismo
antropol´ogico, mas tamb´em as incompreens˜oes, ou mesmo as discordˆancias
entre antrop´ologos. Se, por exemplo, minimizo a alteridade cultural, arrisco-
me a realizar uma atividade de descodifica¸c˜ao, isto ´e, de transcri¸c˜ao de um
discurso em outro. Mas ao superestimar essa alteridade (ponto de vista do
culturalismo), torno totalmente imposs´ıvel e impens´avel aquilo que precisa-
mente fundamenta o projeto antropol´ogico: a comunica¸c˜ao dos seres e das
culturas.
A aposta da antropologia ´e precisamente a de viver esse movimento ininter-
rupto. N˜ao pretendo pessoalmente tˆe-lo conseguido profissionalmente. Digo
apenas que tentei essa experiˆencia. Esse empreendimento, por mais exigente
e cheio de armadilhas que seja, n˜ao tem nada de imposs´ıvel. Roger Bastide
entendeu de dentro o que chamava de ”pensamento obscuro e confuso”dos
s´ımbolos, e, mais que qualquer um, empenhou-se no pensamento ”claro e
distinto”dos conceitos. Totalmente integrado ao candombl´e brasileiro, ele foi
totalmente antrop´ologo.
162CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA:
A fixa¸c˜ao sobre um p´olo em detrimento de outro, a rejei¸c˜ao dessas tens˜oes
que constituem contradi¸c˜oes estimuladoras, as solu¸c˜oes de meio-termo e de
compromisso levam inelutavelmente a acabar com a especificidade de nossa
disciplina – que ocupa um lugar todo particular nas ciˆencias humanas – e
a todas as esp´ecies de desvios ideol´ogicos. Demonstram a recusa ou a im-
possibilidade de enfrentar as dificuldades (que s˜ao tamb´em chances a ser
aproveitadas e exploradas) inerentes `a pr´aticas da antropologia.
Fortaleza (Brasil), setembro de 1984 Lyon, abril de 1985
Cap´ıtulo 20
Sobre o autor:
Fran¸cois Laplantine ´e professor de Etnologia na Universidade de Lyon II. ´E
autor de A Etnopsiquiatria (´Editions Universitaires, 1973), As Trˆes Vozes do
Imagin´ario: o mecanismo, a possess˜ao e a utopia (´Editions Universitaires,
1974), A Cultura do Psiou O Desmoronamento dos Mitos (Privat, 1975),
A Filosofia e a Violˆencia (Presses Universitaires de France, 1976), Doen¸cas
Mentais e Terapˆeuticas Tradicionais na ´Africa Negra (´Editions Universitaires,
1976), A Medicina Popular na Fran¸ca Rural Hoje (´Editions Universitaires,
1978), Um Vidente na Cidade: estudo antropol´ogico do gabinete de consul-
tas de um vidente contemporˆaneo (´Editions Payot, 1985) e Antropologia da
Doen¸ca (´Editions Payot, 1986).
163
164 CAP´ITULO 20. SOBRE O AUTOR:
Bibliografia
Adotevi, Stanislas, N´egritude et N´egrologues, Paris, 10/18, 1972.
Auge, Marc, Symbole, Fonction, Histoire, Paris, Hachette, 1979. – C´enie
du Paganisme, Paris, Gallimard, 1982.
Auzias, Jean-Marie, L’Anthropologie Contemporaine, Paris, PUF, 1976.
Balandier, Georges, Sociologie des Brazzavilles Noires, Paris, A. Colin, 1955;
Sociologie Actuelle de l’Afrique Noire, Paris, PUF, 1955; Ajrique Ambigue,
Paris, Plon, 1957; Anthropologie Politique, Paris, PUF, 1967; Anthropo-
logiques, Paris, PUF, 1974.
Bateson, Gregory, La C´er´emonie du Naven, Paris, Ed. de Minuit, 1971.
Baldwin, (ames, Le Racisme en Ouestion, Paris, Calmann-L´evy, 1972.
Bastide, Roger, Sociologie et Psychanalyse, Paris, PUF, 1950; Le Candombl´e
de Bahia, Paris, Mouton, 1959; Sociologie des Maladies Mentales, Paris,
Flammarion, 1965; Le Prochain et le Lointain, Paris, Cujas, 1970; Anthro-
pologie Appliqu´ee, Paris, Flammarion, 1971; Le Rˆeve, la Transe, la Folie,
Paris, Flammarion, 1972; Images du Nordeste Mystique en Noir et Blanc,
Paris, Pandora, 1978.
Beattie, —ohn, Introduction `a 1’Anthropologie Sociale, Paris, Payot, 1972.
Benedict, Ruth ˆEchantillons de Civilisations, Paris, Gallimard, 1950.
Berque, lacques, D´epossession du Monde, Paris, Le Seuil, 1964.
Bougainville, Louis Antoine de, Voyage Autour du Monde, Paris, Gallimard,
1980.
165
166 BIBLIOGRAFIA
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1972.
Buffon, Histoire Naturelle, Paris, Gallimard, 1984.
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Clastres, Pierre, La Soci´et´e contre 1’ˆEtat, Paris, Ed. de Minuit, 1974.
Condominas, Georges, L’Exotique est Quotidien, Paris, Plon, 1977; Nous
Avons Mang´e la Forˆet, Paris, Flammarion, 1982.
Copans, Tean, Anthropologie et Imp´erialisme, Paris, Maspero, 1975.
Delfendhal, Bernard, Le Clair et 1’Obscur, Paris, Anthropos, 1973.
Desroche, Henri, Sociologie de 1’Esp´erance, Paris, Calmann-L´evy, 1973.
Devereux, Georges, Essais d’Ethnopsychiatrie G´en´erale, Paris, Gallimard,
1970; Ethnopsychanalyse Compl´ementariste, Paris, Flammarion, 1972; De
1’Angoisse `a la M´ethode dans les Sciences du Comportement, Paris, Flam-
marion, 1980.
Dieterlen, Germaine, Les Fondements de la Soci´et´e d’lnitiation Kamo, Paris,
Mouton, 1972; Essai sur la Religion Bambara, Paris, PUF, 1951.
Douglas, Mary, De la Souillure, Paris, Maspero, 1971.
Dournes, Jacques, Forˆet, Femme, Folie, Paris, Aubier, 1978.
Duchet, Mich`ele, Anthropologie et Histoire au Si`ecle des Lumi`eres, Paris,
Flammarion, 1971; Le Partage des Savoirs, Paris, Ed. La D´ecouverte, 1985.
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Durand, Gilbert, Science de 1’Homme et Tradition, Paris, Sirac, 1975.
BIBLIOGRAFIA 167
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Duvignaud, Jean, Chebika, Paris, Gallimard, 1968.
Duviols, Jean-Paul, Voyageurs Fran¸cais en Am´erique, Paris, Bordas, 1978.
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Azand´e, Paris, Gallimard, 1972.
Evreux, Yves d’, Voyage au Nord du Br´esil, Paris, Payot, 1985.
Fanon, Frantz, Peau Noire, Masques Blancs, Paris, Le Se¨uil, 1952; Les
Damn´es de la Terre, Paris, Maspero, 1968.
Favret-Saada, Jeanne, Les Mots, la Mort, les Sorts, Paris, Gallimard, 1977.
Fortune, R´eo F., Sorciers de Dobu, Paris, Maspero, 1972.
Foucault, Michel, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1966.
Frazer, James George, Le Rameau d’Or, Paris, Robert Laffont, 4 tomos,
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Freyre, Gilberto, Ma´ıtres et Esclaves, Paris, Gallimard, 1974.
Gibbal, Jean-Marie, Citadins et Villageois dans la Ville Africaine, Greno-
ble, PUG, 1974.
Gluckman, Max, Order and Rebellion, Londres, 1966.
168 BIBLIOGRAFIA
Godelier, Maurice, Horizons, Trajeis Marxistes en Anthropologie, Paris, Mas-
pero, 1973.
Griaule, Mareei, Masques Dogons, Paris, Inst. d’Ethnologie, 1938; Dieu
d’Eau, Paris, Fayard, 1966.
BIBLIOGRAFIA 169
Escaneado e diagramado por MathCuei R , com o auxilio de
LATEX
170 BIBLIOGRAFIA

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Laplantine.françoise. aprender antropologia

  • 1. 1
  • 2. 2
  • 4. 2
  • 5. Conte´udo I Marcos Para Uma Hist´oria Do Pensamento An- tropol´ogio 23 1 A Pr´e-Hist´oria Da Antropologia: 25 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27 1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32 2 O S´eculo XVIII: 39 3 O Tempo Dos Pioneiros: 47 4 Os Pais Fundadores Da Etnografia: 57 4.1 BOAS (1858-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 4.2 MALINOWSKI (1884-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 5 Os Primeiros Te´oricos Da Antropologia: 67 II As Principais Tendˆencias Do Pensamento An- tropol´ogico Contemporˆaneo 73 6 Introdu¸c˜ao: 75 6.1 Campos De Investiga¸c˜ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 6.2 Determina¸c˜oes Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 6.3 Os Cinco P´olos Te´oricos Do Pensamento Antropol´ogico Con- temporˆaneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 7 A Antropologia Dos Sistemas Simb´olicos 87 8 A Antropologia Social: 91 9 A Antropologia Cultural: 95 3
  • 6. 4 CONTE ´UDO 10 A Antropologia Estrutural E Sistˆemica: 103 11 A Antropologia Dinˆamica: 113 III A Especificidade Da Pr´atica Antropol´ogica 119 12 Uma Ruptura Metodol´ogica: 121 13 Uma Invers˜ao Tem´atica: 125 14 Uma Exigˆencia: 129 15 Uma Abordagem: 133 16 As Condi¸c˜oes De Produ¸c˜ao Social Do Discurso Antropol´ogico137 17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: 139 18 Antropologia E Literatura: 143 19 As Tens˜oes Constitutivas Da Pr´atica Antropol´ogica: 149 19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 20 Sobre o autor: 163
  • 7. CONTE ´UDO 5 Pref´acio A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens˜ao do homem Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma ´area do conhe- cimento ´e tra¸car-lhe a hist´oria, mostrando como foi variando o seu colorido atrav´es dos tempos, como deitou ramifica¸c˜oes novas que alteraram seu tema de base ampliando-o. Para tanto ´e requerida uma erudi¸c˜ao dificilmente en- contrada entre os especialistas, pois erudi¸c˜ao e especializa¸c˜ao constituem-se em opostos: a erudi¸c˜ao abrindo- se na ˆansia de dominar a maior quantidade poss´ıvel de saber, a especializa¸c˜ao se fechando no pequeno espa¸co de um co- nhecimento minucioso. O livro do antrop´ologo francˆes Fran¸cois Laplantine, professor da Univer- sidade de Lyon II, autor de v´arias obras importantes e que hoje efetua pes- quisas no Brasil, re´une as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento antropol´ogico atrav´es da hist´oria e mostrando as diversas perspectivas atuais. Em primeiro lugar, efetua a an´alise de seu desenvolvimento, que permite uma compreens˜ao melhor de suas caracter´ısticas espec´ıficas; em seguida, apresenta as tendˆencias contemporˆaneas e, finalmente, um panorama dos problemas co- locados pela pr´atica e por suas possibilidades de aplica¸c˜ao. Trata-se de uma introdu¸c˜ao `a Antropologia que parece fabricada de enco- menda para estudantes brasileiros. A forma¸c˜ao nacional em Ciˆencias Sociais (e a Antropologia n˜ao foge `a regra. . .) segue a via da especializa¸c˜ao, muito mais do que a da forma¸c˜ao geral. Os estudantes lˆeem e discutem determi- nados autores, ou ent˜ao os componentes de uma escola bem delimitada; o conhecimento lhes ´e inculcado atrav´es do conhecimento de um problema ou de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que susci- tou, nas respostas e solu¸c˜oes que inspirou. A hist´oria da disciplina, assim como da ´area de conhecimentos a que pertence, o exame cr´ıtico de todas as proposi¸c˜oes tem´aticas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem muitas vezes fora das cogita¸c˜oes do curso, como se fosse algo de somenos importˆancia. No Brasil o presente tem muita for¸ca; nele se vive intensamente, ´e ele que se busca compreender profundamente, na convic¸c˜ao de que nele est˜ao as ra´ızes do futuro. Pa´ıs em constru¸c˜ao, seus habitantes em geral, seus estudiosos em particular, tem consciˆencia n´ıtida de que est˜ao criando algo, de que sua a¸c˜ao ´e de importˆancia capital como fator por excelˆencia do provir. E, para chegar
  • 8. 6 CONTE ´UDO a ela escolhe-se uma ´unica via preferencial, a especializa¸c˜ao numa dire¸c˜ao, como se fora dela n˜ao existisse salva¸c˜ao. No entanto, com esta maneira de ser t˜ao mercante, perdem-se de vista com- ponentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por outro lado a multipli-cidade de caminhos que tˆem sido tra¸cados para cons- tru´ı-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ciˆencias Sociais, ´e o refor¸co do conhecimento do passado de sua pr´opria disciplina e da variedade de ramos que foi originando at´e a atualidade. Este livro, em muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da An- tropologia e seu lugar no ˆambito do saber. Constru´ıdo dentro da tradi¸c˜ao francesa do pensamento anal´ıtico e da cla- reza de express˜ao, esta introdu¸c˜ao ao conhecimento da Antropologia atinge, na verdade, um p´ublico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e especialistas de Ciˆencias Sociais. Sua difus˜ao se far´a sem d´uvida entre todos aqueles atra´ıdos para os problemas do homem enquanto tal, que buscam co- nhecer ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo ”outro”. Maria Isaura Pereira de Queiroz 1 1 Maria Isaura Pereira de Queiroz ´e professora do Departamento de Sociologia e pes- quisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
  • 9. CONTE ´UDO 7 Introdu¸c˜ao O Campo e a Abordagem Antropol´ogicos O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as socie- dades existiram homens que observavam homens. Houve at´e alguns que eram te´oricos e forjaram, como diz L´evi-Strauss, modelos elaborados ”em casa”. A reflex˜ao do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elabora¸c˜ao de um saber s˜ao, portanto, t˜ao antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na ´Asia como na ´Africa, na Am´erica, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto de fundar uma ciˆencia do homem - uma antropologia - ´e, ao contr´ario, muito recente. De fato, apenas no final do s´eculo XVIII ´e que come¸ca a se constituir um saber cient´ıfico (ou pretensamente cient´ıfico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e n˜ao mais a natureza; apenas nessa ´epoca ´e que o esp´ırito cient´ıfico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao pr´oprio homem os m´etodos at´e ent˜ao utilizados na ´area f´ısica ou da biologia. Isso constitui um evento consider´avel na hist´oria do pensamento do homem sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n˜ao estejamos medindo todas as conseq¨uˆencias. Esse pensamento tinha sido at´e ent˜ao mitol´ogico, art´ıstico, teol´ogico, filos´ofico, mas nunca cient´ıfico no que dizia respeito ao homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ´ultimo do estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da ciˆencia. Finalmente, a antropolo- gia, ou mais precisamente, o projeto antropol´ogico que se esbo¸ca nessa ´epoca muito tardia na Hist´oria - n˜ao podia existir o conceito de homem enquanto regi˜oes da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi˜ao muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trar´a, evidentemente, como vere- mos mais adiante, conseq¨uˆencias importantes. Para que esse projeto alcance suas primeiras realiza¸c˜oes, para que o novo saber comece a adquirir um in´ıcio de legitimidade entre outras disciplinas cient´ıficas, ser´a preciso esperar a segunda metade do s´eculo XIX, durante o qual a antropologia se atribui objetos emp´ıricos autˆonomos: as sociedades ent˜ao ditas ”primitivas”, ou seja, exteriores `as ´areas de civiliza¸c˜ao europ´eias ou norte-americanas. A ciˆencia, ao menos tal como ´e concebida na ´epoca, sup˜oe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que a separa¸c˜ao (sem a qual n˜ao h´a experimenta¸c˜ao poss´ıvel) entre o sujeito ob- servante e o objeto observado ´e obtida na f´ısica (como na biologia, botˆanica, ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes, na hist´oria, pela distˆancia no tempo que separa o historiador da sociedade
  • 10. 8 CONTE ´UDO estudada, ela consistir´a na antropologia, nessa ´epoca - e por muito tempo - em uma distˆancia definitivamente geogr´afica. As sociedades estudadas pelos primeiros antrop´ologos s˜ao sociedades long´ınquas `as quais s˜ao atribu´ıdas as seguintes caracter´ısticas: sociedades de dimens˜oes restritas; que tiveram pou- cos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia ´e pouco desenvolvida em rela¸c˜ao `a nossa; e nas quais h´a uma menor especializa¸c˜ao das atividades e fun¸c˜oes sociais. S˜ao tamb´em qualificadas de ”simples”; em conseq¨uˆencia, elas ir˜ao permitir a compreens˜ao, como numa situa¸cao de laborat´orio, da organiza¸c˜ao ”complexa”de nossas pr´oprias sociedades. * * * A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe ´e pr´oprio: o estudo das popula¸c˜oes que n˜ao pertencem `a civiliza¸c˜ao ocidental. Ser˜ao ne- cess´arias ainda algumas d´ecadas para elaborar ferramentas de investiga¸c˜ao que permitam a coleta direta no campo das observa¸c˜oes e informa¸c˜oes. Mas logo ap´os ter firmado seus pr´oprios m´etodos de pesquisa - no in´ıcio do s´eculo XX - a antropologia percebe que o objeto emp´ırico que tinha escolhido (as sociedades ”primitivas”) est´a desaparecendo; pois o pr´oprio Universo dos ”selvagens”n˜ao ´e de forma alguma poupado pela evolu¸c˜ao social. Ela se vˆe, portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma quest˜ao se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu nascimento: o fim do ”selvagem”ou, como diz Paul Mercier (1966), ser´a que a ”morte do primitivo”h´a de causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta v´arios tipos de resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em trˆes deles. 1) O antrop´ologo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ˆambito das outras ciˆencias humanas. Ele resolve a quest˜ao da autonomia problem´atica de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente o que ´e chamado de ”sociologia comparada”. 2) Ele sai em busca de uma outra ´area de investiga¸c˜ao: 0 camponˆes, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem ade- quado, j´a que foi deixado de lado pelos outros ramos das ciˆencias do homem. 2 2 A pesquisa etnogr´afica cujo objeto pertence `a mesma sociedade que i) observador foi, de in´ıcio, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van ¨uenncp que elaborou os m´etodos pr´oprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
  • 11. CONTE ´UDO 9 3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n˜ao exclui o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especifici- dade de sua pr´atica, n˜ao mais atrav´es de um objeto emp´ırico constitu´ıdo (o selvagem, o camponˆes), mas atrav´es de uma abordagem epistemol´ogica constituinte. Essa ´e a terceira via que come¸caremos a esbo¸car nas p´aginas que se seguem, e que ser´a desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto te´orico da antropologia n˜ao est´a ligado, na perspectiva na qual come¸camos a nos situar a partir de agora, a um espa¸co geogr´afico, cultural ou hist´orico particular. Pois a antropologia n˜ao ´e sen˜ao um certo olhar, um certo enfoque que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as ´epocas. O estudo do homem inteiro S´o pode ser considerada como antropol´ogica uma abordagem integrativa que objetive levar em considera¸c˜ao as m´ultiplas dimens˜oes do ser humano em so- ciedade. Certa-mente, o ac´umulo dos dados colhidos a partir de observa¸c˜oes diretas, bem como o aperfei¸coamento das t´ecnicas de investiga¸c˜ao, conduzem necessariamente a uma especializa¸c˜ao do saber. Por´em, uma das voca¸c˜oes maiores de nossa abordagem consiste em n˜ao parcelar o homem mas, ao contr´ario, em tentar relacionar campos de investiga¸c˜ao freq¨uentemente se- parados. Ora, existem cinco ´areas principais da antropologia, que nenhum pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas `as quais ele deve estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas delas, dado que essas cinco ´areas mant´em rela¸c˜oes estreitas entre si. A antropologia biol´ogica (designada antigamente sob o nome de antropologia f´ısica) consiste no estudo das varia¸c˜oes dos caracteres biol´ogicos do homem no espa¸co e no tempo. Sua problem´atica ´e a das rela¸c˜oes entre o patrimˆonio gen´etico e o meio (geogr´afico, ecol´ogico, social), ela analisa as particulari- dades morfol´ogicas e fisiol´ogicas ligadas a um meio ambiente, bem como a evolu¸c˜ao destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a este patrimˆonio, mas tamb´em, o que esse patrimˆonio (que se transforma) deve `a cultura? Assim, o antrop´ologo biologista levar´a em considera¸c˜ao os fatores culturais que influenciam o crescimento e a matura¸c˜ao do indiv´ıduo. forma magistral) as tradi¸c˜oes populares camponesas, a distˆancia social e cultural que separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a distˆancia geogr´afica da antropologia ”ex´otica”.
  • 12. 10 CONTE ´UDO Ele se perguntar´a, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da crian¸ca africana ´e mais adiantado do que o da crian¸ca europ´eia? Essa parte da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crˆanios, mensura¸c˜oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada as ra¸cas c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela gen´etica das popula¸c˜oes, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao ad- quirido, sendo que um e outro est˜ao interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n˜ao sejam rompidas as rela¸c˜oes entre as pesquisas das ciˆencias da vida e as das ciˆencias humanas. A antropologia pr´e-hist´orica ´e o estudo do homem atrav´es dos vest´ıgios mate- riais enterrados no solo (ossadas, mas tamb´em quaisquer marcas da atividade humana). Seu projeto, que se liga `a arqueologia, visa reconstituir as socie- dades desaparecidas, tanto em suas t´ecnicas e organiza¸c˜oes sociais, quanto em suas produ¸c˜oes culturais e art´ısticas. Notamos que esse ramo da antro- pologia trabalha com uma abordagem idˆentica `as da antropologia hist´orica e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O histo- riador ´e antes de tudo um histori´ografo, isto ´e, um pesquisador que trabalha a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pr´e-hist´oria reco- lhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos vivos.3 4 antropologia ling¨u´ıstica. A linguagem ´e, com toda evidˆencia, parte do patrimˆonio cultural de uma sociedade. ´E atrav´es dela que os indiv´ıduos que comp˜oem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas preocupa¸c˜oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da l´ıngua permite com- preender: o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto ´e, suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnoling´ıi´ıstica); o como eles expressam o universo e o social (estudo da literatura, n˜ao apenas escrita, mas tamb´em de tradi¸c˜ao oral); o como, finalmente, eles interpretam seus pr´oprios saber e saber-fazer (´area das chamadas etnociˆencias). A antropologia ling¨u´ıstica, que ´e uma disciplina que se situa no encontro 3 Foi notadamente gra¸cas a pesquisadores como Paul Rivet e Andr´e Leroi-Gourhan (1964) que a articula¸c˜ao entre as ´areas da antropologia f´ısica, biol´ogica e s´ocio-cultural nunca foi rompida na Fran¸ca. Mas continua sempre amea¸cada de ruptura devido a um movimento de especializa¸c˜ao facilmente compreens´ıvel. Assim, colocando-se do ponto de vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a ”desagrad´avel obriga¸c˜ao de fazer m´enage `a trois com os representantes da arqueologia pr´e-hist´orica e da antropologia f´ısica”, comparando-a `a coabita¸c˜ao dos psic´ologos e dos especialistas da observa¸c˜ao de ratos em laborat´orio
  • 13. CONTE ´UDO 11 de v´arias outras, 4 n˜ao diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos (dialetologia). Ela se interessa tamb´em pelas imensas ´areas abertas pelas no- vas t´ecnicas modernas de comunica¸c˜ao (mass media e cultura do audiovisual). A antropologia psicol´ogica. Aos trˆes primeiros p´olos de pesquisa que foram mencionados, e que s˜ao habitualmente os ´unicos considerados como constitu- tivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do campo global da antropologia, fazemos quest˜ao pessoalmente de acrescentar um quinto p´olo: o da antropologia psicol´ogica, que consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antrop´ologo ´e em primeira instˆancia confrontado n˜ao a conjuntos sociais, e sim a indiv´ıduos. Ou seja, somente atrav´es dos comportamentos - conscientes e inconscientes - dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual n˜ao ´e antropologia. ´E a raz˜ao pela qual a dimens˜ao psicol´ogica (e tamb´em psicopatol´ogica) ´e absolutamente indissoci´avel do campo do qual procuramos aqui dar conta. Ela ´e parte integrante dele. A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos deter´a por muito mais tempo. Apenas nessa ´area temos alguma competˆencia, e este livro tra- tar´a essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo `a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es- quecer que ela ´e apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos cuja abrangˆencia ´e consider´avel, j´a que diz respeito a tudo que constitui uma sociedade: seus modos de produ¸c˜ao econˆomica, suas t´ecnicas, sua or- ganiza¸c˜ao pol´ıtica e jur´ıdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas cren¸cas religiosas, sua l´ıngua, sua psicologia, suas cria¸c˜oes art´ısticas. Isso posto, esclare¸camos desde j´a que a antropologia consiste menos no levan- tamento sistem´atico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular com a qual est˜ao relacionados entre si e atrav´es da qual aparece a especifi- cidade de uma sociedade. ´E precisamente esse ponto de vista da totalidade, e o fato de que o antrop´ologo procura compreender, como diz L´evi-Strauss, aquilo que os homens ”n˜ao pensam habitualmente em fixar ria pedra ou no papel”(nossos gestos, nossas trocas simb´olicas, os menores detalhes dos nos- 4 Foi o antrop´ologo Edward Sapir (1967) quem, al´em de introduzir o estudo da lin- guagem entre os materiais antropol´ogicos, come¸cou tamb´em a mostrar que um estudo antropol´ogico da l´ıngua (a l´ıngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura) conduzia a um estudo ling¨u´ıstico da cultura (a l´ıngua como modelo de conhecimento da cultura).
  • 14. 12 CONTE ´UDO sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamental- mente diferente dos utilizados setorial- mente pelos ge´ografos, economistas, juristas, soci´ologos, psic´ologos. . . O estudo do homem em sua totalidade A antropologia n˜ao ´e apenas o estudo de tudo que com-p˜oe uma sociedade. Ela ´e o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades hist´oricas e geogr´aficas. Visando constituir os ”arquivos”da humanidade em suas di- feren¸cas significativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as ´areas de civiliza¸c˜ao exteriores `a nossa. Mas a antropologia n˜ao poderia ser definida por um objeto emp´ırico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao qual ela a princ´ıpio se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente). Se seu campo de observa¸c˜ao consistisse no estudo das sociedades preservadas do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como j´a comentamos, sem objeto. Ocorre, por´em, que se a especificidade da contribui¸c˜ao dos antrop´ologos em rela¸c˜ao aos outros pesquisadores em ciˆencias humanas n˜ao pode ser con- fundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades extra-europ´eias), ela ´e a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhe- cimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observa¸c˜ao direta, por impregna¸c˜ao lenta e cont´ınua de grupos humanos min´usculos com os quais mantemos uma rela¸c˜ao pessoal. Al´em disso, apenas a distˆancia em rela¸c˜ao a nossa sociedade (mas uma distˆancia que faz com que nos tornemos extremamente pr´oximos daquilo que ´e long´ınquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tom´avamos por natural em n´os mesmos ´e, de fato, cultural; aquilo que era evidente ´e Infinita- mente problem´atico. Disso decorre a necessidade, na forma¸c˜ao antropol´ogica, daquilo que n˜ao hesitarei em chamar de ”estranhamento”(depaysement), a perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s˜ao para n´os as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modifica¸c˜ao do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma ´Unica cultura, somos n˜ao apenas cegos `a dos outros, mas m´ıopes quando se trata da nossa. A experiˆencia 5 Os antrop´ologos come¸caram a se dedicar ao estudo das sociedades’ industriais avan¸cadas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como vimos, dos aspectos ”tradicionais”das sociedades ”n˜ao tradicionais”(as comunidades cam- ponesas europ´eias), em seguida, dos grupos marginais, e finalmente, h´a alguns anos apenas na Fran¸ca, do setor urbano.
  • 15. CONTE ´UDO 13 da alteridade (e a elabora¸c˜ao dessa experiˆencia) leva-nos a ver aquilo que nem ter´ıamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa aten¸c˜ao no que nos ´e habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ”evi- dente”. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (ges- tos, m´ımicas, posturas, rea¸c˜oes afetivas) n˜ao tem realmente nada de ”natu- ral”. Come¸camos, ent˜ao, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a n´os mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropol´ogico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos es- pecialmente reconhecer que somos uma cultura poss´ıvel entre tantas outras, mas n˜ao a ´unica. Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropo- logia, como j´a o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest˜ao, ´e sua aptid˜ao praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de orga- niza¸c˜ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina permite notar, com a maior proximidade poss´ıvel, que essas formas de com- portamento e de vida em sociedade que tom´avamos todos espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existˆencia. . .) s˜ao, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos tˆem em comum ´e sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, l´ınguas, modos de conhecimento, institui¸c˜oes, jogos profundamente diversos; pois se h´a algo natural nessa esp´ecie particular que ´e a esp´ecie humana, ´e sua aptid˜ao `a varia¸c˜ao cultural O projeto antropol´ogico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, juntamente com a compreens˜ao de uma humanidade plural. Isso sup˜oe ao mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do idˆentico, e com a exclus˜ao num irredut´ıvel ”alhures”. As sociedades mais di- ferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, s˜ao na realidade t˜ao diferentes entre si quanto o s˜ao da nossa. E, mais ainda, elas s˜ao para cada uma delas muito raramente homogˆeneas (como seria de se esperar) mas, pelo contr´ario, extremamente diversificadas, participando ao mesmo tempo de uma comum humanidade. A abordagem antropol´ogica provoca, assim, uma verdadeira revolu¸c˜ao epis- temol´ogica, que come¸ca por uma revolu¸c˜ao do olhar. Ela implica um des- centramento radical, uma ruptura com a id´eia de que existe um ”centro do mundo”, e, correlativamente, uma amplia¸c˜ao do saber 6 e uma muta¸c˜ao de 6 Veremos que a antropologia sup˜oe n˜ao apenas esse desmembramento (´eclatement)
  • 16. 14 CONTE ´UDO si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andr´e Gide: ”Eu sou mil poss´ıveis em mim; mas n˜ao posso me resignar a querer apenas um deles”. A descoberta da alteridade ´e a de uma rela¸c˜ao que nos permite deixar de identificar nossa pequena prov´ıncia de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido ”selvagem”fora de n´os mes- mos. Confrontados `a multiplicidade, a priori enigm´atica, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturaliza¸c˜ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscri- tos em n´os desde o nascimento, e n˜ao fossem adquiridos no contato com a cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo cl´assico que tamb´em consiste na identifica¸c˜ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura com a nossa cultura. De fato, a filosofia cl´assica (antol´ogica com S˜ao Tom´as, reflexiva com Descartes, criticista com Kant, hist´orica com Hegel), mesmo sendo filosofia social, bem como as grandes religi˜oes, nunca se deram como objetivo o de pensar a diferen¸ca (e muito menos, de pens´a-la cientificamente), e sim o de reduzi-la, freq¨uentemente inclusive de uma forma igualit´aria e com do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de L´ery) ou no ceticismo (de um Montaigne), ligados ao questionamento da cultura `a qual se pertence, mas tamb´em uma nova pesquisa e uma reconstitui¸c˜ao deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest˜ao: ser´a que a Antropologia ´e o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade? Evidentemente, o europeu n˜ao foi o ´unico a interessar-se pelos h´abitos e pelas ins- titui¸c˜oes do n˜ao-europeu. A rec´ıproca tamb´em ´e verdadeira, como atestam notadamente os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade M´edia, por viajantes vindos da ´Asia. E os ´ındios Flathead de quem nos fala L´evi-Strauss eram t˜ao curiosos do que ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedi¸c˜oes a fim de encontr´a-los. Poder´ıamos multiplicar os exemplos. Isso n˜ao impede que a constitui¸c˜ao de um saber de voca¸c˜ao cient´ıfica sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido a partir da cultura europ´eia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um ”europe´ısmo”, que teria se constitu´ıdo como campo de saber te´orico a partir da ´Asia, da ´Africa ou da Oceania. Isso posto, as condi¸c˜oes de produ¸c˜ao hist´oricas, geogr´aficas, sociais e culturais da antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropol´ogico perder de vista, mas que n˜ao devem ocultar a voca¸c˜ao (evidentemente problem´atica) de nossa disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve L´evi-Strauss: ”N˜ao se trata apenas de elevar-se acima dos valores pr´oprios da sociedade ou do grupo do observador, e sim de seus m´etodos de pensamento; ´e preciso alcan¸car formula¸c˜ao v´alida, n˜ao apenas para um observador honesto mas para todos os observadores poss´ıveis”. Lembremos que a antropologia s´o come¸cou a ser ensinada nas universidades h´a al- gumas d´ecadas. Na Gr˜a-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Fran¸ca a partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
  • 17. CONTE ´UDO 15 as melhores inten¸c˜oes do mundo. O pensamento antropol´ogico, por sua vez, considera que, assim como uma civiliza¸c˜ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve igualmente aceitar a diversidade das culturas, tamb´em adultas. Estamos, evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pˆode per- manecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si pr´opria e fazendo, de tudo que n˜ao eram suas ideologias dominantes sucessi- vas, um objeto de exclus˜ao. Desconfiemos por´em do pensamento - que seria o c´umulo em se tratando de antropologia - de que estamos finalmente mais ”l´ucidos”, mais ”conscientes”, mais ”livres”, mais ”adultos”, como acaba- mos de escrever, do que em uma ´epoca da qual seria errˆoneo pensar que est´a definitivamente encerrada. Pois essa transgress˜ao de uma das tendˆencias do- minantes de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas formas econˆomicas, pol´ıticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que significa de forma alguma que o antrop´ologo esteja destinado, seja levado por alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a l´ogica das outras socie- dades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contr´ario, mostrar nesse livro que a d´uvida e a cr´ıtica de si mesmo s´o s˜ao cientificamente fundamentadas se forem acompanhadas da interpela¸c˜ao cr´ıtica dos de outrem. Dificuldades Se os antrop´ologos est˜ao hoje convencidos de que uma das caracter´ısticas maiores de sua pr´atica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto ´e, convencidos do fato de que os fenˆomenos sociais que estudamos s˜ao fenˆomenos que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles s˜ao tamb´em unˆanimes em pensar que h´a uni-dade da fam´ılia humana, a fam´ılia dos antrop´ologos ´e, por sua vez, muito dividida, quando se trata de dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e de forma geral a todos aqueles que tˆem o direito de saber o que verdadei- ramente fazem os antrop´ologos) dessa unidade m´ultipla, desses materiais e dessa experiˆencia. 1) A primeira dificuldade se manifesta, como sempre, ao n´ıvel das pala- vras. Mas ela ´e, tamb´em aqui, particularmente reveladora da juventude de nossa disciplina,6 que n˜ao sendo, como a f´ısica, uma ciˆencia constitu´ıda, con- tinua n˜ao tendo ainda optado definitivamente pela sua pr´opria designa¸c˜ao. Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde `a tradi¸c˜ao terminol´ogica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredut´ıvel das etnias, isto ´e, das culturas. No segundo (que ´e mais usado nos pa´ıses anglo-
  • 18. 16 CONTE ´UDO saxˆonicos), sobre a unidade do gˆenero humano. E optando-se por antro- pologia, deve-se falar (com os autores britˆanicos) em antropologia social - cujo objeto privilegiado ´e o estudo das institui¸c˜oes - ou (com os autores americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos com- portamentos.7 2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de cientificidade que conv´em atribuir `a antropologia. O homem est´a em condi¸c˜oes de estudar cientifica- mente o homem, isto ´e, um objeto que ´e de mesma natureza que o sujeito? E nossa pr´atica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com Radcliffe-Brown (1968), que as sociedade s˜ao sistemas naturais que devem ser estudados segundo os m´etodos comprovados pelas ciˆencias da natureza,8 e os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que ´e preciso tratar as socieda- des n˜ao como sistemas orgˆanicos, mas como sistemas simb´olicos. Para estes ´ultimos, longe de ser uma ”ciˆencia natural da sociedade”(Radcliffe-Brown), a antropologia deve antes ser considerada como uma ”arte”(Evans-Pritchard). 3) Uma terceira dificuldade prov´em da rela¸c˜ao amb´ıgua que a antropolo- gia mant´em desde sua gˆenese com a Hist´oria. Estreitamente vinculadas nos s´eculos XVIII e XIX, as duas pr´aticas v˜ao rapidamente se emancipar uma da outra no s´eculo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perio- dicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antrop´ologos. Evans-Pritchard: ”O conhecimento da hist´oria das sociedades n˜ao ´e de ne- 7 Para que o leitor que n˜ao tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa localizar-se, vale a pena especificar bem o significado dessas palavras. Estabele¸camos, como L´evi-Strauss, que a etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os trˆes mo- mentos de uma mesma abordagem. A etnografia ´e a coleta direta, e o mais minuciosa poss´ıvel, dos fenˆomenos que observamos, por uma impregna¸c˜ao duradoura e cont´ınua e um processo que se realiza por aproxima¸c˜oes sucessivas. Esses fenˆomenos podem ser reco- lhidos tomando-se notas, mas tamb´em por grava¸c˜ao sonora, fotogr´afica ou cinematogr´afica. A etnologia consiste em um primeiro n´ıvel de abstra¸c˜ao: analisando os materiais colhidos, fazer aparecer a l´ogica espec´ıfica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste era um segundo n´ıvel de inteligibilidade: construir modelos que permitam com- parar as sociedades entre si. Como escreve L´evi-Strauss, ”seu objetivo ´e alcan¸car, al´em da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um invent´ario das possibilidades inconscientes, que n˜ao existem em n´umero ilimitado”. 8 Ao modelo orgˆanico dos funcionalistas ingleses, L´evi-Strauss substituiu, como vere- mos, um modelo ling¨u´ıstico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza (o inato) e da cultura (tudo o que n˜ao ´e hereditariamente programado e deve ser inven- tado pelos homens onde a natureza n˜ao programou nada), a antropologia deve aspirar a tornar-se uma ciˆencia natural: ”A antropologia pertence `as ciˆencias humanas, seu nome o proclama suficientemente; mas se se resigna em fazer seu purgat´orio entre as ciˆencias soci- ais, ´e porque n˜ao desespera de despertar entre as ciˆencias naturais na hora do julgamento final”(L´evi-Strauss, 1973)
  • 19. CONTE ´UDO 17 nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das insti- tui¸c˜oes”. Mais categ´orico ainda, Leach escreve: ”A gera¸c˜ao de antrop´ologos `a qual perten¸co tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Hist´oria em considera¸c˜ao”. Conv´em tamb´em lembrar aqui a distin¸c˜ao agora famosa de L´evi-Strauss opondo as ”sociedades frias”, isto ´e, ”pr´oximas do grau zero de temperatura hist´orica”, que s˜ao menos ”sociedades sem hist´oria”, do que ”sociedades que n˜ao querem ter est´orias”(´unicos objetos da antropologia cl´assica) a nossas pr´oprias sociedades qualificadas de ”sociedades quentes”. Essa preocupa¸c˜ao de separa¸c˜ao entre as abordagens hist´orica e antropol´ogica est´a longe, como veremos, de ser unˆanime, e a hist´oria recente da antropo- logia testemunha tamb´em um desejo de coabita¸c˜ao entre as duas disciplinas. Aqui, no Nordeste do Brasil, onde come¸co a escrever este livro, desde 1933, um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a forma¸c˜ao da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do conhecimento hist´orico. 4) Uma quarta dificuldade prov´em do fato de que nossa pr´atica oscila sem parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode qualificar de fundamental e aquilo que ´e designado sob o termo de ”antropologia aplicada”. Come¸caremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim conside- rava que a sociologia n˜ao valeria sequer uma hora de dedica¸c˜ao se ela n˜ao pudesse ser ´util, e muitos antrop´ologos compartilham sua opini˜ao. Margaret Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaura¸c˜ao de uma sociedade melhor, e, mais especificamente a aplica¸c˜ao de uma pedagogia menos frustrante `a sociedade americana. Hoje v´arios colegas nossos consi- deram que a antropologia deve colocar-se ”a servi¸co da revolu¸c˜ao”(segundo especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent˜ao, um mili- tante, um ”antrop´ologo revolucion´ario”, contribuindo na constru¸c˜ao de uma ”antropologia da liberta¸c˜ao”. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos pro- gramas de desenvolvimento e das decis˜oes pol´ıticas relacionadas `a elaborac˜ao desses programas. Quer´ıamos simplesmente observai aqui que a ”antropolo- gia aplicada”9 n˜ao ´e uma grande novidade. ´E por ela que, com a coloniza¸c˜ao, a antropologia teve inicio.10 9 Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971 10 A maioria dos antrop´ologos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a pe-
  • 20. 18 CONTE ´UDO Foi com ela, inclusive, que se deu o in´ıcio da Antropologia, durante a co- loniza¸c˜ao. No extremo oposto das atitudes ”engajadas”das quais acabamos de falar, encontramos a posi¸c˜ao determinada de um Claude L´evi-Strauss que, ap´os ter lembrado que o saber cient´ıfico sobre o homem ainda se encontrava num est´agio extremamente primitivo em rela¸c˜ao ao saber sobre a natureza, escreve: ”Supondo que nossas ciˆencias um dia possam ser colocadas a servi¸co da a¸c˜ao pr´atica, elas n˜ao tˆem, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O verdadeiro meio de permitir sua existˆencia, ´e dar muito a elas, mas sobretudo n˜ao lhes pedir nada”. As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia ”pura”ou a antro- pologia ”diluida”como diz ainda L´evi-Strauss encontram na realidade suas primeiras formula¸c˜oes desde os prim´ordios da confronta¸c˜ao do europeu com o ”selvagem”. Desde o s´eculo XVI, de fato, come¸ca a se implantar aquilo o que alguns chamariam de ”arqu´etipos”do discurso etnol´ogico, que podem ser ilustrados pelas posi¸c˜oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. Jean de Lery foi um huguenote* francˆes que permaneceu algum tempo no Brasil entre os Tupinamb´as. Longe de procurar convencer seus h´ospedes da superioridade da cultura europ´eia e da religi˜ao reformada, ele os interroga e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns anos mais tarde realizou uma verdadeira investiga¸c˜ao no M´exico. Perfeitamente `a vontade entre os astecas, ele estava l´a enquanto mission´ario a fim de converter a popula¸c˜ao que estuda.11 O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers˜ao religiosa, a ”revolu¸c˜ao”, a ajuda ao ”Terceiro Mundo”, as estrat´egias daquilo que ´e hoje chamado ”desenvolvimento”ou ainda ”mudan¸ca social”) n˜ao al- tera nada quanto ao ˆamago do problema, que ´e o seguinte: 0 antrop´ologo deve contribuir, enquanto antrop´ologo, para B transforma¸c˜ao das sociedades que ele estuda 11 dido das administra¸c˜oes: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo britˆanico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi conselheiro do governo do Sud˜ao, etc 11 Essa dupla abordagem da rela¸c˜ao ao outro pode muito bem sei realizada por um ´unico pesquisador. Assim Malinowski chegando `as ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas v´arios anos depois (trad. franc., 1968) participa do que chama ”uma experiˆencia controlada”do desenvolvimento
  • 21. CONTE ´UDO 19 Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abor- dagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos ´e mais familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos) e em tornar mais familiar aquilo que nos ´e estranho (os comportamentos, as cren¸cas, os costumes das sociedades que n˜ao s˜ao as nossas, mas nas quais po- der´ıamos ter nascido), est´a diretamente confrontada hoje a um movimento de homogeneiza¸c˜ao, ao meu ver, sem precedente’ na Hist´oria: o desenvolvimento de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento que ´e a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias sucessivas entre os Berberes do M´edio Atlas e entre os Baul´es da Costa do Marfim, perceber realmente o fasc´ınio que exerce este modelo, perturbando completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos que n˜ao decorrem de uma escolha) A quest˜ao que est´a hoje colocada para qualquer antrop´ologo ´e a seguinte: h´a uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindo- lhe o acesso a um est´agio de sociedade industrial (ou p´os-industrial) sem conflito dram´atico, sem risco de despersonaliza¸c˜ao? Minha convic¸c˜ao ´e de que o antrop´ologo, para ajudar os atores sociais a responder a essa quest˜ao, n˜ao deve, pelo menos enquanto antrop´ologo, tra- balhar para a transforma¸c˜ao das sociedades que estuda. Caso contr´ario, seria conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agrˆonomo, m´edico, pol´ıtico, a n˜ao ser que ele seja motivado por alguma concep¸c˜ao messiˆanica da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicita¸c˜ao para ela mesma de sua pr´opria diferen¸ca ´e uma coisa; organizar pol´ıtica, econˆomica e socialmente a evolu¸c˜ao dessa diferen¸ca ´e uma outra coisa. Ou seja, a parti- cipa¸c˜ao do antrop´ologo naquilo que ´e hoje a vanguarda do anticolonialismo e da luta para os direitos humanos e das minorias ´etnicas ´e, a meu ver, uma conseq¨uˆencia de nossa profiss˜ao, mas n˜ao ´e a nossa profiss˜ao propriamente dita. Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urgˆencia `a qual temos o dever de responder. 12 As muta¸c˜oes de comportamentos geradas por essa forma de civiliza¸c˜ao mundialista podem tamb´em evidentemente ser encontradas nas nossa; pr´oprias culturas rurais e ur- banas. Em compensa¸c˜ao, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde come¸cou a redigir este livro
  • 22. 20 CONTE ´UDO a) Urgˆencia de preserva¸c˜ao dos patrimˆonios culturais locais amea¸cados (e a respeito disso a etnologia est´a desde o seu nascimento lutando contra o tempo para que a transcri¸c˜ao dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os ´ultimos deposit´arios das tradi¸c˜oes ainda est˜ao vivos) e, sobretudo, de restitui¸c˜ao aos habitantes das diversas regi˜oes nas quais tra- balhamos, de seu pr´oprio saber e saber-fazer. Isso sup˜oe uma ruptura com a concep¸c˜ao assim´etrica da pesquisa, baseada na capta¸c˜ao de informa¸c˜oes. N˜ao h´a, de fato, antropologia sem troca, isto ´e, sem itiner´ario no decor- rer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da necessidade de n˜ao deixar se perder formas de pensamento e atividade ´unicas. b) Urgˆencia de an´alise das muta¸c˜oes culturais impostas pelo desenvolvimento extremamente r´apido de todas as sociedades contemporˆaneas, que n˜ao s˜ao mais ”sociedades tradicionais”, e sim sociedades que est˜ao passando por um desenvolvimento tecnol´ogico absolutamente in´edito, por muta¸c˜oes de suas rela¸c˜oes sociais, por movimentos de migra¸c˜ao Interna, e por um processo de urbaniza¸c˜ao acelerado. Atrav´es da especificidade de sua abordagem, nossa disciplina deve, n˜ao fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim for- mular quest˜oes com eles, elaborar com eles uma reflex˜ao racional (e n˜ao mais m´agica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tamb´em uma crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto ´e, o encontro de l´ınguas, t´ecnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropol´ogica, que n˜ao ´e de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem nunca se substituir aos projetos e `as decis˜oes dos pr´oprios atores sociais, tem hoje como voca¸c˜ao maior a de propor n˜ao solu¸c˜oes mas instrumentos de investiga¸c˜ao que poder˜ao ser utilizados em especial para reagir ao choque da acultura¸c˜ao, isto ´e, ao risco de um desenvolvimento conflituoso levando `a violˆencia negadora das particularidades econˆomicas, sociais, culturais de um povo. 5) Uma quinta dificuldade diz respeito, finalmente, `a natureza desta obra que deve apresentar, em um n´umero de p´aginas reduzido, um campo de pesquisa imenso, cujo desenvolvimento recente ´e extremamente especializado. No fi- nal do s´eculo XIX, um ´unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural, ling¨u´ıstica, pr´e-hist´orica, e tamb´em mais recentemente o caso de Ktoeber, provavemente o ´ultimo antrop´ologo que explorou: com sucesso uma ´area t˜ao extensa). N˜ao ´e, evidentemente, o caso hoje em dia. O antrop´ologo considera agora – com raz˜ao – que ´e competente apenas dentro de uma ´area restrita 13 13 A antropologia das t´ecnicas, a antropologia econˆomica, pol´ıtica, a antropologia do
  • 23. CONTE ´UDO 21 de sua pr´opria disciplina e para uma ´area geogr´afica delimitada. Era-me portanto imposs´ıvel, dentro de um texto de dimens˜oes t˜ao restri- tas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar um certo n´umero de referˆencias, definir alguns conceitos a partir dos quais o leitor poder´a, espero, interessar-se em ir mais adiante. Ver-se-´a que este livro caminha em espiral. As preocupa¸c˜oes que est˜ao no centro de qualquer abordagem antropol´ogica e que acabam de ser mencio- nadas ser˜ao retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em primeiro lugar quais foram as principais etapas da constitui¸c˜ao de nossa dis- ciplina e como, atrav´es dessa hist´oria da antropologia, foram se colocando progressivamente as quest˜oes que continuam nos interessando at´e hoje. Em seguida, esbo¸carei os p´olos te´oricos - a meu ver cinco - em volta dos quais oscilam o pensamento e a pr´atica antropol´ogica. Teria sido, de fato, surpreen- dente, se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse monol´ıtica. Ela ´e ao contr´ario claramente plural. Veremos no decorrer deste livro que existem perspectivas complementares, mas tamb´em mutuamente exclusivas, entre as quais ´e preciso escolher. E, em vez de fingir ter ado- tado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que nas ciˆencias humanas ´e um engodo, esfor¸cando-me ao mesmo tempo para apresentar com o m´aximo de objetividade o pensamento dos outros, n˜ao dissimularei as minhas pr´oprias op¸c˜oes. Finalmente, em uma ´ultima parte, os principais eixos anteriormente examinados ser˜ao, em um movimento por assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de definir aquilo que cons- titui, a meu ver, a especificidade da antropologia. Eu queria finalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo p´ublico poss´ıvel. N˜ao `aqueles que tˆem por profiss˜ao a antropologia – du- vido que encontrem nele um grande interesse – mas a todos que, em algum momento de sua vida (profissional, mas tamb´em pessoal), possam ser levados a utilizar o modo de conhecimento t˜ao caracter´ıstico da antropologia. Esta ´e a raz˜ao pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem t´ecnica e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente pela segunda. Pois a antropologia, que ´e a ciˆencia do homem por excelˆencia, pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos n´os. parentesco, das organiza¸c˜oes sociais, a antropologia religiosa, art´ıstica, a antropologia dos sistemas de comunica¸c˜oes...
  • 25. Parte I Marcos Para Uma Hist´oria Do Pensamento Antropol´ogio 23
  • 27. Cap´ıtulo 1 A Pr´e-Hist´oria Da Antropologia: a descoberta das diferen¸cas pelos vi- ajantes do s´eculo e a dupla resposta ideol´ogica dada daquela ´epoca at´e nos- sos dias A gˆenese da reflex˜ao antropol´ogica ´e contemporˆanea `a descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espa¸cos at´e ent˜ao desconhecidos e come¸ca a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espa¸cos.1 A grande quest˜ao que ´e ent˜ao colocada, e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade, ´e a seguinte: aqueles que acabaram de serem desco- bertos pertencem `a humanidade? O crit´erio essencial para saber se conv´em atribuir-lhes um estatuto humano ´e, nessa ´epoca, religioso: O selvagem tem uma alma? O pecado original tamb´em lhes diz respeito? –quest˜ao capital para os mission´arios, j´a que da resposta ir´a depender o fato de saber se ´e poss´ıvel trazer-lhes a revela¸c˜ao. Notamos que se, no s´eculo XIV, a quest˜ao 1 As primeiras observa¸c˜oes e os primeiros discursos sobre os povos ”distantes”de que dispomos provˆem de duas fontes: 1) as rea¸c˜oes dos primeiros viajantes, formando o que habitualmente chamamos de ”literatura de viagem”. Dizem respeito em primeiro lugar `a P´ersia e `a Turquia, em seguida `a Am´erica, `a ´Asia e `a ´Africa. Em 1556, Andr´e Thevet escreve As Singularidades da Fran¸ca Ant´artica, em 1558 Jean de Lery, A Hist´oria de Uma Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tamb´em como exemplo, para um per´ıodo anterior (s´eculo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um per´ıodo posterior (s´eculo XVII) Y. d’Evreux (reed. 1985), bom como a coletˆanea de textos de J. P. Duviols (1978); 2) os relat´orios dos mission´arios e particularmente as ”Rela¸c˜oes”dos jesu´ıtas (s´eculo XVII) nc Canad´a, no Jap˜ao, na China, Cf., por exemplo, as Lettres ˆEdifiantes et Curieuses de la Chine par des Missionnaires J´esuites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979. 25
  • 28. 26 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA: ´e colocada, n˜ao ´e de forma alguma solucionada. Ela ser´a definitivamente resolvida apenas dois s´eculos mais tarde. Nessa ´epoca ´e que come¸cam a se esbo¸car as duas ideologias concorrentes, mas das quais uma consiste no sim´etrico invertido da outra: a recusa do es- tranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corol´ario ´e a boa consciˆencia que se tem sobre si e sua sociedade;2 a fascina¸c˜ao pelo estranho cujo corol´ario ´e a m´a consciˆencia que se tem sobre si e sua sociedade. Ora, os pr´oprios termos dessa dupla posi¸c˜ao est˜ao colocados desde a me- tade do s´eculo XIV: no debate, que se torna uma controv´ersia p´ublica, que durar´a v´arios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op˜oe o dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera. Las Casas: ” `Aqueles que pretendem que os ´ındios s˜ao b´arbaros, responderemos que essas pessoas tˆem aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem pol´ıtica que, em alguns reinos, ´e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou at´e superavam muitas na¸c˜oes e uma ordem pol´ıtica que, em alguns reinos, ´e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou at´e superavam muitas na¸c˜oes do mundo conhecidas como policiadas e razo´aveis, e n˜ao eram infe- riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e at´e, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tamb´em a Inglaterra, a Fran¸ca, e algumas de nossas regi˜oes da Espanha. (...) Pois a maioria dessas na¸c˜oes do mundo, sen˜ao todas, foram muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudˆencia e saga- cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. N´os mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens˜ao de nossa Espanha, pela barb´arie de nosso modo de vida e pela deprava¸c˜ao de nossos costumes”. Sepulvera: ”Aqueles que superam os outros em prudˆencia e raz˜ao, mesmo que n˜ao se- jam superiores em for¸ca f´ısica, aqueles s˜ao, por natureza, os senhores; ao contr´ario, por´em, os pregui¸cosos, os esp´ıritos lentos, mesmo que tenham as for¸cas f´ısicas para cumprir todas as tarefas necess´arias, s˜ao por natureza ser- 2 Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendˆencia e a prote¸c˜ao, paternalista do outro: 2) sua exclus˜ao
  • 29. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27 vos. E ´e justo e ´util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela pr´opria lei divina. Tais s˜ao as na¸c˜oes b´arbaras e desumanas, estranhas `a vida civil e aos costumes pac´ıficos. E ser´a sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao imp´erio de pr´ıncipes e de na¸c˜oes mais cultas e humanas, de modo que, gra¸cas `a virtude destas e `a prudˆencia de suas leis, eles abandonem a barb´arie e se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imp´erio, pode-se impˆo-lo pelo meio das armas e essa guerra ser´a justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que n˜ao tˆem essas virtudes”. Ora, as ideologias que est˜ao por tr´as desse duplo discurso, mesmo que n˜ao se expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro s´eculos ap´os a polˆemicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como s˜ao estere´otipos que envenenam essa antropologia espontˆanea de que temos ainda hoje tanta dificuldade para nos livrarmos, conv´em nos determos sobre eles. 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos ho- mens como um fato, e sim como uma aberra¸c˜ao exigindo uma justifica¸c˜ao. A antig¨uidade grega designava sob o nome de b´arbaro tudo o que n˜ao par- ticipava da helenidade (em referˆencia `a inarticula¸c˜ao do canto dos p´assaros oposto `a significa¸c˜ao da linguagem humana), o Renascimento, os s´eculos XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto ´e, seres da floresta), opondo assim a animalidade `a humanidade. O termo primitivos ´e que triun- far´a no s´eculo XIX, enquanto optamos preferencialmente na ´epoca atual pelo de subdesenvolvidos. Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto ´e, para a natureza to- dos aqueles que n˜ao participam da faixa de humanidade `a qual pertencemos e com a qual nos identificamos, ´e, como lembra L´evi-Strauss, a mais comum 3 Essa oscila¸c˜ao entre dois p´olos concorrentes, mas ligados entre si por um movimento de pˆendulo ininterrupto, pode ser encontrada n˜ao apenas em uma mesma ´epoca, mas em um mesmo autor. Cf., por exemplo, L´ery (1972) ou Buffon (1984).
  • 30. 28 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA: a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracter´ıstica dos ”selvagens”.4 Entre os crit´erios utilizados a partir do s´eculo XIV pelos europeus para julgar se conv´em conferir aos ´ındios um estatuto humano, al´em do crit´erio religioso do qual j´a falamos, e que pede, na configura¸c˜ao na qual nos situamos, uma resposta negativa (”sem religi˜ao nenhuma”, s˜ao ”mais diabos”), citaremos: • a aparˆencia f´ısica: eles est˜ao nus ou ”vestidos de peles de animais”; • os comportamentos alimentares: eles ”comem carne crua”, e ´e todo o imagin´ario do canibalismo que ir´a aqui se elaborar;5 • a inteligˆencia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam ”uma l´ıngua inintelig´ıvel”. Assim, n˜ao acreditando em Deus, n˜ao tendo alma, n˜ao tendo acesso `a linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem ´e apreendido nos modos de um besti´ario. E esse discurso so- bre a alteridade, que recorre constantemente `a met´afora zool´ogica, abre o grande leque das ausˆencias: sem moral, sem religi˜ao, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciˆencia, sem raz˜ao, sem objetivo, sem arte, sem pas- sado, sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentar´a at´e, no s´eculo XVIII: ”sem barba”, ”sem sobrancelhas”, ”sem pˆelos”, ”sem esp´ıritosem ardor para com sua fˆemea”. ”´E a grande gl´oria e a honra de nossos reis e dos espanh´ois, escreve Go- mara em sua Hist´oria Geral dos ´ındios, ter feito aceitar aos ´ındios um ´unico Deus, uma ´unica f´e e um ´unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa- crif´ıcios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais; 4 ”Assim”, escreve L´evi-Strauss (1961), ”Ocorrem curiosas situa¸c˜oes onde dois interlo- cutores d˜ao-s´e cruelmente a r´eplica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos ap´os a descoberta da Am´erica, enquanto os espanh´ois enviavam comiss˜oes de inqu´erito para pesquisar se os ind´ıgenas possu´ıam ou n˜ao uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisio- neiros a fim de verificar, por uma observa¸c˜ao demorada, se seus cad´averes eram ou n˜ao sujeitos `a putrefa¸c˜ao” 5 Cf. especialmente Hans Staden, V´eritable Histoire et Descriptiou d’un Pays Habit´e par des Hommes Sauvages, Nus. F´eroces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M. JVl´etaili´e, 1979. 6 Essa falta pode ser apreendida atrav´es de duas variantes: I) n˜ao tˆem, irremediavel- mente, futuro e n˜ao temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) ´e poss´ıvel fazˆe-los evoluir. Pela a¸c˜ao mission´aria (a partir s´eculo XVI). Assim como pela a¸c˜ao administrativa
  • 31. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29 mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s˜ao como animais e o uso do ferro que ´e t˜ao necess´ario ao homem. Tamb´em lhes mostramos v´arios bons h´abitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso – e at´e cada uma dessas coisas – vale mais que as penas, as p´erolas, o ouro que tomamos deles, ainda mais porque n˜ao utilizavam esses metais como moeda”. ”As pessoas desse pa´ıs, por sua natureza, s˜ao t˜ao ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melanc´olicas, covardes, sujas, de m´a condi¸c˜ao, mentirosas, de mole constˆancia e firmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abo- min´aveis pecados dessas pessoas selvagens, r´usticas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superf´ıcie da Terra”. escreve na mesma ´epoca (1555) Oviedo em sua Hist´oria das ´ındias. Opini˜oes desse tipo s˜ao inumer´aveis, e passaram tranq¨uilamente para nossa ´epoca. No s´eculo XIX, Stanley, em seu livro dedicado `a pesquisa de Li- vingstone, compara os africanos aos ”macacos de um jardim zool´ogico”, e convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que foi o discurso colonial dos franceses na Arg´elia. Mais dois textos ir˜ao deter mais demoradamente nossa aten¸c˜ao, por nos pa- recerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso do civilizado. S˜ao as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes para servir `a Hist´oria da Esp´ecie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado em 1774, e a famosa Introdu¸c˜ao `a Filosofia da Hist´oria, de Hegel. 1) De Pauw nos prop˜oe suas reflex˜oes sobre os ´ındios da Am´erica do Norte. Sua convic¸c˜ao ´e a de que sobre estes l´ıllimos a influˆencia da natureza ´e total, ou mais precisamente negativa. Se essa ra¸ca inferior n˜ao tem hist´oria e est´a pura sempre condenada, por seu estado ”degenerado”, a permanecer fora do movimento da Hist´oria, a raz˜ao deve ser atribu´ıda ao clima de uma extrema umidade: ”Deve existir, na organiza¸c˜ao dos americanos, uma causa qualquer que em- brutece sua sensibilidade e seu esp´ırito. A qualidade do clima, a grosseria de seus humores, o v´ıcio radical do sangue, a constitui¸c˜ao de seu tempera- mento excessivamente fleum´atico podem ter diminu´ıdo o tom e o saracoteio dos nervos desses homens embrutecidos”. Eles tˆem, prossegue Pauw, um ”temperamento t˜ao ´umido quanto o ar e a terra onde vegetam”e que explica que eles n˜ao tenham nenhum desejo se- xual. Em suma, s˜ao ”infelizes que suportam todo o peso da vida agreste
  • 32. 30 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA: na escurid˜ao das florestas, parecem mais animais do que vegetais”. Ap´os a degenerescˆencia ligada a um ”v´ıcio de constitui¸c˜ao f´ısica”, Pauw chega `a de- grada¸c˜ao moral. ´E a quinta parte do livro, cuja primeira se¸c˜ao ´e intitulada: ”O gˆenio embrutecido dos Americanos”. ”A insensibilidade, escreve nosso autor, ´e neles um v´ıcio de sua constitui¸c˜ao alterada; eles s˜ao de uma pregui¸ca imperdo´avel, n˜ao inventam nada, n˜ao em- preendem nada, e n˜ao estendem a esfera de sua concep¸c˜ao al´em do que vˆeem pusilˆanimes, covardes, irritados, sem nobreza de esp´ırito, o desˆanimo e a falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam in´uteis para si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma. Essa separa¸c˜ao entre um estado de natureza concebido por Pauw como ir- remediavelmente imut´avel, e o estado de civiliza¸c˜ao, pode ser visualizado num mapa m´undi. No s´eculo XVIII, a enciclop´edia efetua dois tra¸cados: um longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa, a ´Africa e a ´Asia, de outro a Am´erica, e um latitudinal dividindo o que se encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon, a proxi- midade ou o afastamento da linha equatorial s˜ao explicativos n˜ao apenas da constitui¸c˜ao f´ısica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filos´oficas sobre os Americanos escolhe claramente o crit´erio latitudinal, fundamento aos seus olhos da distribui¸c˜ao da popula¸c˜ao mundial, distribui¸c˜ao essa n˜ao cultural e sim natural da civiliza¸c˜ao e da barb´arie: ”A natureza tirou tudo de um hemisf´erio deste globo para d´a-lo ao outro”. ”A diferen¸ca entre um hemisf´erio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) ´e total, t˜ao grande quanto poderia ser e quanto podemos imagin´a-la”: de um lado, a humanidade, e de outro, a ”estupidez na qual vegetam”esses seres indiferenciados: ”Igualmente b´arbaros, vivendo igualmente da ca¸ca e da pesca, em pa´ıses frios, est´ereis, cobertos de florestas, que despropor¸c˜ao se queria imaginar entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de sa- tisfazˆe-los s˜ao os mesmos, onde as influˆencias do ar s˜ao t˜ao semelhantes, ´e poss´ıvel haver contradi¸c˜ao nos costumes ou varia¸c˜oes nas id´eias?” Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os ind´ıgenas america- nos vivem em um ”estado de embrutecimento”geral. T˜ao degenerados uns quanto os outros, seria em v˜ao procurar entre eles variedades distintivas da- quilo que se pareceria com uma cultura e com uma hist´oria.7 7 Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
  • 33. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31 2) Os julgamentos que acabamos de relatar – que est˜ao, notamos, em ruptura com a ideologia dominante do s´eculo XVIII, da qual falaremos mais adiante, e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado vinte anos antes – por excessivos que sejam, apenas radicalizam id´eias com- partilhadas por muitas pessoas nessa ´epoca. Id´eias que ser˜ao retomadas e expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdu¸c˜ao `a Filosofia da Hist´oria, nos exp˜oe o horror que ele ressente frente ao es- tado de natureza, que ´e o desses povos que jamais-ascender˜ao `a ”hist´oria”e `a ”consciˆencia de si”. Na leitura dessa Introdu¸c˜ao, a Am´erica do Sul parece mais est´upida ainda do que a do Norte. A ´Asia aparentemente n˜ao est´a muito melhor. Mas ´e a ´Africa, e, em especial, a ´Africa profunda do interior, onde a civiliza¸c˜ao nessa ´epoca ainda n˜ao penetrou, que representa para o fil´osofo a forma mais nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade: ”´E o pa´ıs do ouro, fechado sobre si mesmo, o pa´ıs da infˆancia, que, al´em do dia e da hist´oria consciente, est´a envolto na cor negra da noite”. Tudo, na ´Africa, ´e nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ”ne- gros”n˜ao respeitam nada, nem mesmo eles pr´oprios, j´a que comem carne humana e fazem com´ercio da ”carne”de seus pr´oximos. Vivendo em uma ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles n˜ao tˆem moral, nem institui¸c˜oes sociais, religi˜ao ou Estado.8 Pe- trificados em uma desordem inexor´avel, nada, nem mesmo as for¸cas da colo- niza¸c˜ao, poder´a nunca preencher o fosso que os separa da Hist´oria universal da humanidade. Na descri¸c˜ao dessa africanidade estagnante da qual n˜ao h´a absolutamente nada a esperar – e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado `a indianidade em Pauw – , o autor da Fenomenologia do Esp´ırito vai, vale a pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filos´oficas sobre os Ameri- canos. O ”negro”nem mesmo se vˆe atribuir o estatuto de vegetal. ”Ele cai”, escreve Hegel, ”para o n´ıvel de uma coisa, de um objeto sem valor”. 8 ”O fato de devorar homens corresponde ao princ´ıpio africano.”Ou ainda: ”S˜ao os seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante ´e para eles apenas uma carne como qualquer outra, suas guerras s˜ao feroze: e sua religi˜ao pura supersti¸c˜ao”.
  • 34. 32 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA: 1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado A figura de uma natureza m´a na qual vegeta um selvagem embrutecido ´e emi- nentemente suscet´ıvel de se transformar em seu oposto: a da boa natureza dispensando suas benfeitorias `a um selvagem feliz. Os termos da atribui¸c˜ao permanecem, como veremos, rigorosamente idˆenticos, da mesma forma que o par constitu´ıdo pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natu- ral). Mas efetua-se dessa vez a invers˜ao daquilo que era apreendido como um vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como um menos que se torna um mais. O car´ater privativo dessas sociedades sem escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi˜ao organizada, sem clero, sem sacerdotes, sem pol´ıcia, sem leis, sem Estado –acrescentar-se-´a no s´eculo XX sem Complexo de ´Edipo – n˜ao constitui uma desvantagem. O selvagem n˜ao ´e quem pensamos. Evidentemente, essa representa¸c˜ao concorrente (mas que consiste apenas em inverter a atribui¸c˜ao de significa¸c˜oes e valores dentro de uma estrutura idˆentica) permanece ainda bastante r´ıgida na ´epoca na qual o Ocidente desco- bre povos ainda desconhecidos. A figura do bom selvagem s´o encontrar´a sua formula¸c˜ao mais sistem´atica e mais radical dois s´eculos ap´os o Renascimento: no rousseau´ısmo do s´eculo XVIII, e, em s´eguida, no Romantismo. N˜ao deixa por´em de estar presente, pelo menos em estado embrion´ario, na percep¸c˜ao que tˆem os primeiros viajantes. Am´erico Vesp´ucio descobre a Am´erica: ”As pessoas est˜ao nuas, s˜ao bonitas, de pele escura, de corpo elegante. . . Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo ´e colocado em comum. E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua m˜ae, sua irm˜a, ou sua amiga, entre as quais eles n˜ao fazem diferen¸ca. . . Eles vivem cinq¨uenta anos. E n˜ao tˆem governo”. Crist´ov˜ao Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tamb´em o para´ıso; ”Eles s˜ao muito mansos e ignorantes do que ´e o mal, eles n˜ao sabem se matar uns aos outros (...) Eu n˜ao penso que haja no mundo homens melho- res, como tamb´em n˜ao h´a terra melhor”. Toda a reflex˜ao de L´ery e de Montaigne no s´eculo XVI sobre os ”naturais”baseia- se sobre o tema da no¸c˜ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela primeira vez, instaura-se uma cr´ıtica da civiliza¸c˜ao e um elogio da ”ingenui-
  • 35. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 33 dade original”do estado de natureza. L´ery, entre os Tupinamb´as, interroga-se sobre o que se passa ”aqu´em”, isto ´e, na Europa. Ele escreve, a respeito de ”nossos grandes usur´arios”: ”Eles s˜ao mais cru´eis do que os selvagens dos quais estou falando”. E Montaigne, sobre esses ´ultimos: ”Podemos portanto de fato cham´a-los de b´arbaros quanto `as regras da raz˜ao, mas n˜ao quanto a n´os mesmos que os superamos em toda sorte de barb´arie”. Para o autor dos Ensaios, esse estado paradis´ıaco que teria sido o nosso outrora, talvez esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei at´e o encontrou. Esse fasc´ınio exercido pelo ind´ıgena americano, e em especial por le Hu- ron,9 protegido da civiliza¸c˜ao e que nos convida a reencontrar o universo ca- loroso da natureza, triunfa nos s´eculos XVII e XVIII. Nas primeiras Rela¸c˜oes dos jesu´ıtas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler: ”Eles s˜ao af´aveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que freq¨uentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente entre eles do que entre n´os”. Seu ideal: ”viver em comum sem processo, contentar-se de pouco sem avareza, ser ass´ıduo no trabalho”. Do lado dos livres-pensadores, ´e o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan: ”Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris˜oes e sem torturas passam a vida na do¸cura, na tranq¨uilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses”. Essa admira¸c˜ao n˜ao ´e compartilhada apenas pelos navegadores estupefa- tos.10 O selvagem ingressa progressivamente na filosofia – os pensadores 9 Um dos primeiros textos sobre os Hurons ´e publicado em 1632: Le Grand Vayage au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux Voyages du Baron de La Hontan o¨u ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1’Auteur et un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Am´ericains, de Lafitau; em 1767, Vlng´enu, de Vol-taire.. Notemos que de cada popula¸c˜ao encontrada nasce um estere´otipo. Se o discurso euro- peu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, referˆencia `a crueldade, o discurso sobre os Esquim´os a sua hospitalidade, estes ´ultimos n˜ao hesitando em oferecer suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente ´e sem d´uvida predominante em grande parte na literatura sobre os ´ındios. 10 No s´eculo XVIII, um marinheiro francˆes escreve em seu di´ario de viagem: ”A inocˆencia e a tranq¨uilidade est´a entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n˜ao trocariam essa vida e seu pa´ıs por qualquer coisa no mundo”(coment´arios relatados por ). P. Duviols, 1978).
  • 36. 34 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA: das Lumi`eresu 11 – , mas tamb´em nos sal˜oes liter´arios e nos teatros parisien- ses. Em 1721, ´e montado um espet´aculo intitulado O Arlequim Selvagem. 0 personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco: ”Vocˆes s˜ao loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de coisas in´uteis; vocˆes s˜ao pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez de simplesmente gozar da cria¸c˜ao, como n´os, que n˜ao queremos nada a fim de desfrutar mais livremente de tudo”. ´E a ´epoca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau aca- bou de escrever, a ´epoca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens. Manifesta¸c˜oes essas que constituem uma verdadeira acusa¸c˜ao contra a civi- liza¸c˜ao. Depois, o fasc´ınio pelos ´ındios ser´a substitu´ıdo progressivamente, a partir do fim do s´eculo XVIII, pelo charme e prazer id´ılico que provoca o encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquip´elagos polin´esios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de P´ascoa, e so- bretudo o Taiti. Aqui est´a, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980): ”Seja dia ou noite, as casas est˜ao abertas. Cada um colhe as frutas na primeira ´arvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ´ocio ´e compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar ´e sua mais preciosa ocupa¸c˜ao. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres pareciam n˜ao querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada instante as do¸curas do amor, tudo incita ao abandono”. Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exal- tam a do¸cura das sociedades ”selvagens”, e, correlativamente fustigam tudo que pertence ao Ocidente ainda s˜ao atuais. Se n˜ao o fossem, n˜ao nos seriam diretamente acess´ıveis, n˜ao nos tocariam mais nada. Ora, ´e precisamente a esse imagin´ario da viagem, a esse desejo de fazer existir em um ”alhures”uma sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas virtudes se estendam `a magnificˆencia da fauna e da flora (Chateau-briand, Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu sucesso com o p´ublico. O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar 11 Condillac escreve: ”N´os que nos consideramos instru´ıdos, precisar´ıamos ir entre os povos mais ignorantes, para aprender destes o come¸co de nossas descobertas: pois ´e so- bretudo desse come¸co que precisar´ıamos: ignoramo-lo porque deixamos h´a tempo de ser os disc´ıpulos da natureza”
  • 37. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35 ao Ocidente mort´ıfero li¸c˜oes de grandeza, como acabamos de ver, n˜ao ´e novi- dade. Mas grande parte do p´ublico est´a infinitamente mais dispon´ıvel agora do que antes para se deixar persuadir que `as sociedades constrangedoras da abstra¸c˜ao, do c´alculo e da impessoalidade das rela¸c˜oes humanas, op˜oem-se sociedades de solidariedade comunit´aria, abrigadas na suntuosidade de uma natureza generosa. A decep¸c˜ao ligada aos ”benef´ıcios”do progresso (nos quais muitos entre n´os acreditam cada vez menos) bem como a solid˜ao e o ano- nimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos s´o aspirem a se projetar nesses para´ıso (perdido) dos tr´opicos ou dos mares do Sul, que o Ocidente teria substitu´ıdo pelo inferno da sociedade tecnol´ogica. Mas conv´em, a meu ver, ir mais longe. O etn´ologo, como o militar, ´e recru- tado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a sua, as mesmas insatisfa¸c˜oes,-ang´ustias, desejos. Se essa busca do ´Ultimo dos Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo ”vento dos coqueiros”(que ´e na realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa disciplina, ela est´a presente nas motiva¸c˜oes dos pr´oprios etn´ologos. Mali- nowski ter´a a franqueza de escrever e ser´a muito criticado por isso: ”Um dos ref´ugios fora dessa pris˜ao mecˆanica da cultura ´e o estudo das for- mas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades long´ınquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga romˆantica para longe de nossa cultura uniformizada”. Ora, essa ”nostalgia do neol´ıtico”, de que fala Alfred M´etraux e que es- teve na origem de sua pr´opria voca¸c˜ao de Ctn´ologo, ´e encontrada em muitos autores, especialmente nas descri¸c˜oes de popula¸c˜oes preservadas do contato corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparˆencia. O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que s˜ao caracterizadas pela riqueza das trocas simb´olicas, foi certamente o de ”autˆentico”(oposto `a aliena¸c˜ao das sociedades industriais adiantadas), termo proposto por Sapir em 1925, e que ´e erroneamente atribu´ıdo a L´evi-Strauss. * * * A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) n˜ao parou, portanto, de oscilar entre os p´olos de um verdadeiro movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem: • era um monstro, um ”animal com figura humana”(L´ery), a meio cami- nho entre a animalidade e a humanidade mas tamb´em que os monstros
  • 38. 36 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA: ´eramos n´os, sendo que ele tinha li¸c˜oes de humanidade a nos dar; • levava uma existˆencia infeliz e miser´avel, ou, pelo contr´ario, vivia num estado de beatitude, adquirindo sem esfor¸cos os produtos maravilhosos da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da ind´ustria; • era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre gui¸coso; • n˜ao tinha alma e n˜ao acreditava em nenhum deus, ou era profunda- mente religioso; • vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia • era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, at´e e inclusive suas pr´oprias mulheres; • era admiravelmente bonito, ou feio; • era movido por uma impulsividade criminalmente congˆenita quando era leg´ıtimo temer, ou devia ser considerado como uma crian¸ca precisando de prote¸c˜ao; • era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid˜ao permanente, ou, pelo contr´ario, um ser preso, obedecendo estritamente aos tabus e `as proibi¸c˜oes de seu grupo; • era atrasado, est´upido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente virtuoso e eminentemente complexo; • era um animal, um ”vegetal”(de Pauw), uma ”coisa”, um ”objeto sem valor”(Hegel), ou participava, pelo contr´ario, de uma humanidade da qual tinha tudo como aprender. Tais s˜ao as diferentes constru¸c˜oes em presen¸ca (nas quais a repuls˜ao se trans- forma rapidamente em fasc´ınio) dessa alteridade fantasm´atica que n˜ao tem muita rela¸c˜ao com a realidade. O outro – o ´ındio, o taitiano, mas recente- mente o basco ou o bret˜ao– ´e simplesmente utilizado como suporte de um imagin´ario cujo lugar de referˆencia nunca ´e a Am´erica, Taiti, o Pa´ıs Basco ou a Bretanha. S˜ao objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com vistas `a explora¸c˜ao econˆomica, quanto ao militarismo pol´ıtico, `a convers˜ao religiosa ou `a emo¸c˜ao est´etica. Mas, em todos os casos, o outro n˜ao ´e consi- derado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
  • 39. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37 Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v˜ao, tal- vez anacrˆonico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento etnol´ogico, t˜ao problem´atico, como acabamos de observar, ainda no final do s´eculo XX. N˜ao basta viajar e surpreender-se com o que se vˆe para tornar-se etn´ologo (n˜ao basta mesmo ter numerosos anos de ”campo”, como se diz hoje). Por´em, numerosos viajantes nessa ´epoca colocam problemas (o que n˜ao significa uma problem´atica) aos quais ser´a necessariamente confrontado qualquer antrop´ologo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ir´a se tornar a etnologia. Jean de L´ery, entre os ind´ıgenas brasileiros, pergunta- se: ´e preciso rejeit´a-los fora da humanidade? Consider´a-los como virtualida- des de crist˜aos? Ou questionar a vis˜ao que temos da pr´opria humanidade, isto ´e, reconhecer que a cultura ´e plural? Atrav´es de muitas contradi¸c˜oes (a oscila¸c˜ao permanente entre a convers˜ao e o olhar, os objetivos teol´ogicos e os que poder´ıamos chamar de etnogr´aficos, o ponto de vista normativo e o ponto de vista narrativo), o autor da Viagem n˜ao tem resposta. Mas as quest˜oes (e para o que nos interessa aqui, mas especificamente a ´ultima) est˜ao no en- tanto implicitamente colocadas. Montaigne (hoje `as vezes criticado), mesmo se o que o preocupa ´e menos a humanidade dos ´ındios do que a inumanidade dos europeus, seguindo nisso L´ery que transporta para o ”Novo Mundo”os conflitos do antigo, come¸ca a introduzir a d´uvida no edif´ıcio do pensamento europeu. Ele testemunha o desmoronamento poss´ıvel deste pensamento, me- nos inclusive ao pronunciar a condena¸c˜ao da civiliza¸c˜ao do que ao considerar que a ”selvageria”n˜ao ´e nem inferior nem superior, e sim diferente. Assim, essa ´epoca, muito timidamente, ´e verdade, e por alguns apenas de seus esp´ıritos os menos ortodoxos, a partir da observa¸c˜ao direta de um ob- jeto distante (L´ery) e da reflex˜ao a distˆancia sobre este objeto (Montaigne), permite a constitui¸c˜ao progressiva, n˜ao de um saber antropol´ogico, muito me- nos de uma ciˆencia antropol´ogica, mas sim de um saber pr´e-antropol´ogico.
  • 40. 38 CAP´ITULO 1. A PR´E-HIST ´ORIA DA ANTROPOLOGIA:
  • 41. Cap´ıtulo 2 O S´eculo XVIII: a inven¸c˜ao do conceito de homem Se durante o Renascimento esbo¸cou-se, com a explora¸c˜ao geogr´afica de conti- nentes desconhecidos, a primeira interroga¸c˜ao sobre a existˆencia m´ultipla do homem, essa interroga¸c˜ao fechou-se muito rapidamente no s´eculo seguinte, no qual a evidˆencia do cogito, fundador da ordem do pensamento cl´assico, exclui da raz˜ao o louco, a crian¸ca, o selvagem, enquanto figuras da anorma- lidade. Ser´a preciso esperar o s´eculo XVIII para que se constitua o projeto de fun- dar uma ciˆencia do homem, isto ´e, de um saber n˜ao mais exclusivamente especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no s´eculo XVI elementos que permitem compreender a pr´e-hist´oria da antropologia, en- quanto o s´eculo XVII (cujos discursos n˜ao nos s˜ao mais diretamente acess´ıveis hoje) interrompe nitidamente essa evolu¸c˜ao, apenas no s´eculo XVIII ´e que entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na mo- dernidade. Apenas nessa ´epoca, e n˜ao antes, ´e que se pode apreender as condi¸c˜oes hist´oricas, culturais e epistemol´ogicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a antropologia. ”Antes do final do s´eculo XVIII”, escreve Fou-cauilt, ”o homem n˜ao existia. Como tamb´em o poder du vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade hist´orica da linguagem. ´E uma criatura muito recente que o demiurgo do sa- ber fabricou com suas pr´oprias m˜aos, h´a menos de duzentos anos (...) Uma coisa em todo caso ´e certa, o homem n˜ao ´e o mais antigo problema, nem o mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem ´e uma inven¸c˜ao e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto ´e recente. E”, acrescenta Foucault no final de As Palavras e as Coisas, ”qu˜ao pr´oximo 39
  • 42. 40 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII: talvez seja o seu fim”. O projeto antropol´ogico (e n˜ao a realiza¸c˜ao da antropologia como a enten- demos hoje) sup˜oe: 1) a constru¸c˜ao de um certo n´umero de conceitos, come¸cando pelo pr´oprio conceito de homem, n˜ao apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do saber; abordagem totalmente in´edita, j´a que consiste em introduzir dualidade caracter´ıstica das ciˆencias exatas (o sujeito observante e o objeto observado) no cora¸c˜ao do pr´oprio homem; 2) a constitui¸c˜ao de um saber que n˜ao seja apenas de reflex˜ao, e sim de observa¸c˜ao, isto ´e, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser considerado em sua existˆencia concreta, envolvida nas determina¸c˜oes de seu organismo, de suas rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, de sua linguagem, de suas insti- tui¸c˜oes, de seus comportamentos. Assim come¸ca a constitui¸c˜ao dessa posi- tividade de um saber emp´ırico (e n˜ao mais transcendental) sobre o homem enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e fala (ling¨u´ıstica). . . Montesquieu, em O Esp´ırito das Leis (1748), ao mos- trar a rela¸c˜ao de interdependˆencia que ´e a dos fenˆomenos sociais, abriu o caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no s´eculo seguinte) a falar em uma ”ciˆencia da sociedade”. Da mesma forma, antes dessa ´epoca, a lin- guagem, quando tomada em considera¸c˜ao, era objeto de filosofia ou exegese. Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objeto espec´ıfico de um saber cient´ıfico (ou, pelo menos, de voca¸c˜ao cient´ıfica); 3) uma problem´atica essencial: a da diferen¸ca. Rompendo com a convic¸c˜ao de uma transparˆencia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no s´eculo XVIII a quest˜ao da rela¸c˜ao ao impensado, bem como a dos poss´ıveis processos de reapropria¸c˜ao dos nossos condicionamentos fisiol´ogicos, das nos- sas rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, dos nossos sistema de organiza¸c˜ao social. Assim, inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constitui¸c˜ao da id´eia de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais reflex˜oes sobre os limites do saber, assim como sobre as rela¸c˜oes de sentido e poder (que anunciam o fim da metaf´ısica) eram inimagin´aveis antes. A sociedade do s´eculo XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da consciˆencia europ´eia. Parte de suas elites busca suas referˆencias em um con- fronto com o distante. Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Compara- dos aos Costumes dos Primeiros Tempos, Lafitau se d´a por objetivo o de
  • 43. 41 fundar uma ”ciˆencia dos costumes e h´abitos”, que, al´em da contingˆencia dos fatos particulares, poder´a servir de compara¸c˜ao entre v´arias formas de hu- manidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educa¸c˜ao do Jovem Selvagem do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade `a qual pertencem o homem da civiliza¸c˜ao em que nos transportamos e o homem da natureza, a crian¸ca-lobo.1 Mas foi Rousseau quem tra¸cou, em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornar´a o da etnologia cl´assica, no seu campo tem´atico2 tanto quanto na sua abordagem: a indu¸c˜ao de que falaremos agora; 4) um m´etodo de observa¸c˜ao e an´alise: o m´etodo indutivo. Os grupos sociais (que come¸cam a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados como sistemas ”naturais”que devem ser estudados empiricamente, a partir du observa¸c˜ao de fatos, a fim de extrair princ´ıpios gerais, que hoje chamar´ıamos de leis. Esse naturalismo, que consiste numa emancipa¸c˜ao definitiva em rela¸c˜ao ao pensamento teol´ogico, imp˜oe-se em especial na Inglaterra,3 com Adam Smith e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza Humana, cujo t´ıtulo completo ´e: ”Tratado sobre a natureza Humana: tenta- tiva de introdu¸c˜ao de um m´etodo experimental de racioc´ınio para o estudo de assuntos de moral”. Os fil´osofos ingleses colocam as premissas de todas as pesquisas que procurar˜ao fundar, no s´eculo XVIII, uma moral natural”, um ”direito natural”, ou ainda uma ”religi˜ao natural”. * * * Esse projeto de um conhecimento positivo do homem – isto ´e, de um estudo de sua existˆencia emp´ırica considerada por sua vez como objeto do saber – constitui um evento consider´avel na hist´oria da humanidade. Um evento que se deu no Ocidente no s´eculo XVIII, que, evidentemente, n˜ao ocorreu da noite para o dia, mas que terminou impondo-se j´a que se tornou definitivamente 1 Cf. o filme de Fran¸cois Truffaut, VEnfant Sauvage (1970), e o livro de Lucien Malson que the serviu de base. 2 Rousseau estabelece a lista das regi˜oes devedoras de viagens ”filos´oficas”: o mundo inteiro menos a Europa ocidental. 3 A precocidade e preeminˆencia, no pensamento inglˆes, do empirismo em rela¸c˜ao ao pensamento francˆes, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), podem a meu ver explicar em parte o crescimento r´apido (no come¸co do s´eculo XX) da antropologia britˆanica e o atraso da antropologia francesa.
  • 44. 42 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII: constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa ´epoca, entramos. A fim de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revolu¸c˜ao do pensamento – que instaura uma ruptura tanto com o ”humanismo”do Renascimento como com o ”racionalismo”do s´eculo cl´assico –, examinemos de mais perto o que mudou radicalmente desde o s´eculo XVI. 1)Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos dos viajantes dos s´eculos XVI e XVII eram mais uma busca cosmogr´afica do que uma pesquisa etnogr´afica. Afora algumas incurs˜oes t´ımidas para ´area das ”inclina¸c˜oes”e dos ”costumes”,4 o objeto de observa¸c˜ao, nessa ´epoca era mais o c´eu, a terra, a fauna e a flora, do que o homem em si, e, quando se tratava deste, era essencialmente o homem f´ısico que era tomado em considera¸c˜ao. Ora, o s´eculo XVIII tra¸ca o primeiro esbo¸co daquilo que se tornar´a uma antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo, tomando como modelo a antropologia f´ısica, e instaurando uma ruptura do monop´olio desta (especialmente na Fran¸ca). 2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo para a atividade epistemol´ogica, que se torna cada vez mais organizada. Os viajantes dos s´eculos XVI e XVII coletavam ”curiosidades”. Esp´ıritos curio- sos reuniam cole¸c˜oes que iam formar os famosos ”gabinetes de curiosidades”, ancestrais dos nossos museus contemporˆaneos. No s´eculo XVIII, a quest˜ao ´e: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a Hist´oria Geral das Viagens, do padre Pr´evost (1746), passa-se da coleta dos materiais para a cole¸c˜ao das coletas. N˜ao basta mais observar, ´e preciso pro- cessar a observa¸c˜ao. N˜ao basta mais interpretar o que ´e observado, ´e preciso interpretar interpreta¸c˜oes.5 E ´e desse desdobramento, isto ´e, desse discurso, que vai justamente brotar uma atividade de organiza¸c˜ao e elabora¸c˜ao. Em 1789, Chavane, o primeiro, dar´a a essa atividade um nome. Ele a chamar´a: a etnologia. * * * Finalmente, ´e no s´eculo XVIII que se forma o par do viajante e do fil´osofo: o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La P´erouse. . realizando o que ´e chamado na ´epoca de ”viagens filos´oficas”, precursoras das 4 Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o question´ario que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informa¸c˜oes sobre o estado das mentalidades populares no reino. 5 Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
  • 45. 43 nossas miss˜oes cient´ıficas contemporˆaneas; o fil´osofo Buffon, Voltaire, Rous- seau, Diderot (cf. em especial o seu Suplemento `a Viagem de Bougainville) ”esclarecendo”com suas reflex˜oes as observa¸c˜oes trazidas pelo viajante. Mas esse par n˜ao tem realmente nada de id´ılico. Que pena, pensa Rous- seau, que os viajantes n˜ao sejam fil´osofos! Bougainville retruca (em 1771 em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os fil´osofos n˜ao sejam viajantes!6 Para o primeiro, bem como para todos os fil´osofos naturalistas do s´eculo das luzes, se ´e essencial observar, ´e preciso ainda que a observa¸c˜ao seja esclarecida. Uma prioridade ´e portanto conferida ao observador, sujeito que, para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo n´umero de qualidades. E ´e assim que se constitui, na passagem do s´eculo XVIII para o s´eculo XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada pelos ent˜ao chamados ”ide´ologos”, que s˜ao moralistas, fil´osofos, naturalistas, m´edicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova ´area de saber (o homem nos seus aspectos f´ısicos, ps´ıquicos, sociais, culturais) e quais devem ser suas exigˆencias epistemol´ogicas. As Considera¸c˜oes sobre os Diversos M´etodos a Seguir na Observa¸c˜ao dos Povos Selvagens, de De Gerando (1800) s˜ao, quanto a isso, exemplares. Pri- meira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma miss˜ao nas ”Terras Austrais”, esse texto ´e uma cr´ıtica da observa¸c˜ao selvagem do selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele pr´oprio testemunha ocular do que observa, pois a nova ciˆencia – qualificada de ”ciˆencia do homem”ou ”ciˆencia natural-- ´e uma ”ciˆencia de observa¸c˜ao”, devendo o observador participar da pr´opria existˆencia dos gru- pos sociais observados.7 6 Rousseau: ”Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um d’Alembert, um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas, observando como sabem fazˆe-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que esses novos H´ercules, de volta de suas andan¸cas memor´aveis, fizessem a seguir a hist´oria natural, moral e pol´ıtica do que teriam visto, ver´ıamos nascer de seus escritos um mundo novo, e aprender´ıamos assim a conhecer o nosso. Bougainville: ”Sou viajante e marinheiro, isto ´e, um mentiroso e um imbecil aos olhos dessa classe de escritores pregui¸cosos e soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam sem fim sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas imagina¸c˜oes. Modos bastante singulares e inconceb´ıveis da parte de pessoas que, n˜ao tendo observado nada por si pr´oprias, s´o escrevem e dogmatizam a partir de observa¸c˜oes tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar”. 7 Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de ”um homem simples e rude”, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ´ındios entre os quais esteve.
  • 46. 44 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII: Por´em, o projeto de De Gerando n˜ao foi aplicado por aqueles a que se des- tinava diretamente, e n˜ao ser´a, por muito tempo ainda, levado em conta.8 Se esse programa que consiste em ligar uma reflex˜ao organizada a uma ob- serva¸c˜ao sistem´atica, n˜ao apenas do homem f´ısico, mas tamb´em do homem social e cultural, n˜ao pˆode ser realizado, ´e porque a ´epoca ainda n˜ao o per- mitia. O final do s´eculo XVIII teve um papel essencial na elabora¸c˜ao dos fundamentos de uma ”ciˆencia humana”. N˜ao podia ir mais longe, e n˜ao po- der´ıamos credit´a-lo aquilo que s´o ser´a poss´ıvel um s´eculo depois. Mais especificamente, o obst´aculo maior ao advento de uma antropologia cient´ıfica, no sentido no qual a entendemos hoje, est´a ligado, ao meu ver, a dois motivos essenciais. 1) A distin¸c˜ao entre o saber cient´ıfico e o saber filos´ofico, mesmo sendo abordada, n˜ao ´e de forma alguma realizada. Evidentemente, o conceito da unidade e universalidade do homem, que ´e pela primeira vez claramente afir- mado, coloca as condi¸c˜oes de produ¸c˜ao de um novo saber sobre o homem. Mas n˜ao leva ipso facto `a constitui¸c˜ao de um saber positivo. No final do s´eculo XVIII, o homem interroga-se: sobre a natureza, mas n˜ao h´a biologia ainda (ser´a preciso esperar Cuvier); sobre a produ¸c˜ao e reparti-ti¸c˜ao das ri- quezas, mas ainda n˜ao se trata de economia (Ricardo); sobre seu discurso mas isso n˜ao basta para elaborar uma filosofia (Bopp), muito menos uma ling¨u´ıstica.9 8 Os cientistas da expedi¸c˜ao conduzida por Bodin n˜ao eram de forma alguma etn´ografos, e sim m´edicos, zo´ologos, miner´alogos, e os objetos etnogr´aficos que recolheram n˜ao foram sequer depositados no Museu de Hist´oria Natural de Paris, e sim dispersados em cole¸c˜oes particulares. O pr´oprio Gerando, ”observador dos povos selvagens”em 1800, torna-se ”visitante dos pobres”em 1824. O que mostra a prontid˜ao de uma passagem poss´ıvel entre o estudo dos ind´ıgenas e a ajuda aos indigentes, mas sobretudo, nessa ´epoca, uma certa ausˆencia de distin¸c˜ao entre a antropologia principiante e a ”filantropia”. Notemos finalmente que, publicado em 1800, o m´emoire de Gerando s´o foi reeditado- na Fran¸ca em 1883. E o primeiro museu etnogr´afico da Kran¸ca foi fundado apenas cinco anos antes (em Paris, no Trocadero). sendo depois substitu´ıdo pelo atual Museu do Homem. 9 A antropologia contemporˆanea me parece, pessoalmente, dividida entre uma homena- gem a esses pais fundadores que s˜ao os fil´osofos do s´eculo XVIII (L´evi-Strauss, por exemplo, considera que o Discours sur l’Origine de l’In´egalit´e de Rousseau ´e ”o primeiro tratado de etnologia geral”) e um assass´ınio ritual consistindo na reatualiza¸c˜ao de uma ruptura com um projeto que permanece filos´ofico, enquanto que a ciˆencia exige a constitui¸c˜ao de um saber positivo e especializado. Mas neste segundo caso, a positividade, n˜ao mais do saber, e sim dc saberes que, muito rapidamente (a partir do s´eculo XIX), se rompem se parce- lam, formando o que Foucault chama de ”ontologias regionais”constituindo-se em torno dos territ´orios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (ling¨u´ıstica), ´e
  • 47. 45 O conceito de homem tal como ´e utilizado no ”s´eculo das luzes”permanece ainda muito abstrato, isto ´e, rigorosamente filos´ofico. Estamos na impossi- bilidade de imaginar o que consideramos hoje como as pr´oprias condi¸c˜oes episte-mol´ogicas da pesquisa antropol´ogica. De fato, para esta, o objeto de observa¸c˜ao n˜ao ´e o ”homem”, e sim indiv´ıduos que pertencem a uma ´epoca e a uma cultura, e o sujeito que observa n˜ao ´e de forma alguma o sujeito da antropologia filos´ofica, e sim um outro indiv´ıduo que pertence ele pr´oprio a uma ´epoca e a uma cultura. 2) O discurso antropol´ogico do s´eculo XVIII ´e insepar´avel do discurso hist´orico desse per´ıodo, isto ´e, de sua concep¸c˜ao de uma hist´oria natural, liberada da teologia e animando a marcha das sociedades no caminho de um progresso universal. Restar´a um passo consider´avel a ser dado para que a antropologia se emancipe deste pensamento e conquiste finalmente sua autonomia. Para- doxalmente, esse passo ser´a dado no s´eculo XIX (em especial com Morgan) a partir de uma abordagem igualmente e at´e, talvez, mais marcadamente historicista: o evolucionismo. ´E o que veremos a seguir. evidentemente problem´atica para o antrop´ologo, que n˜ao pode resignar-se a trabalhar em uma ´area setorizada.
  • 48. 46 CAP´ITULO 2. O S´ECULO XVIII:
  • 49. Cap´ıtulo 3 O Tempo Dos Pioneiros: os pesquisadores-eruditos do s´eculo XIX O s´eculo XVl descobre e explora espa¸cos at´e ent˜ao desconhecidos e tem um discurso selvagem sobre os habitantes que povoam esses espa¸cos. Ap´os um parˆentese no s´eculo XVII, esse discurso se organiza no s´eculo XVIII: ele ´e ”ilu- minado”`a luz dos fil´osofos, e a viagem se torna ”viagem filos´ofica”. Mas a primeira – a grande – tentativa de unifica¸c˜ao, isto ´e, de instaura¸c˜ao de redes entre esses espa¸cos, e de reconstitui¸c˜ao de temporalidades ´e incontestavel- mente obra do s´eculo XIX. Esse s´eculo XIX, hoje t˜ao desacreditado, realiza o que antes eram apenas empreendimentos program´aticos. Dessa vez, ´e a ´epoca durante a qual se constitui verdadeiramente a antropologia enquanto disciplina autˆonoma: a ciˆencia das sociedades primitivas em todas as suas dimens˜oes (biol´ogica, t´ecnica, econˆomica, pol´ıtica, religiosa, ling¨u´ıstica, psi- col´ogica. . .) enquanto que, notamo-lo, em se tratando da nossa sociedade, essas perspectivas est˜ao se tornando individualmente disciplinas particulares cada vez mais especializadas. Com a revolu¸c˜ao industrial inglesa e a revolu¸c˜ao pol´ıtica francesa, percebe- se que a sociedade mudou mais voltar´a a ser o que era. A Europa se vˆe confrontada a uma conjuntura in´edita. Seus modos de vida, suas rela¸c˜oes sociais sofrem uma muta¸c˜ao sem precedente. Um mundo est´a terminando, e..um outro est´a nascendo. Se o final do s´eculo XVIII come¸cava a sentir essas transforma¸c˜oes, ele reagia ao enigma colocado pela existˆencia de sociedades que tinham permanecido ora dos progressos da civiliza¸c˜ao, trazendo uma du- pla resposta abandonada pela do s´eculo que nos interessa agora: – resposta que confia nas vantagens da civiliza¸c˜ao e considera totalmente 47
  • 50. 48 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS: estranhas a ela pr´opria todas essas formas de existˆencia que est˜ao situadas fora da hist´oria e da cultura (de Pauw, Hegel); – mas sobretudo resposta preocupada, que se expres* sa na nostalgia d´o antigo que ainda subsiste noutro lugar: o estado de felicidade do homem num ambiente protetor situa-se do lado do ”estado de natureza”, enquanto que a infelicidade est´a do lado da civiliza¸c˜ao (Rousseau). Ora, no s´eculo XIX, o contexto geopol´ıtico ´e totalmente novo: ´e o per´ıodo da conquista colonial, que desembocar´a em especial na assinatura, em 1885, do Tratado de Berlim, que rege a partilha da ´Africa entre as potˆencias europ´eias e p˜oe um fim `as soberanias africanas. ´E no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna, o antrop´ologo acompanhando de perto, como veremos, os passos do colono. Nessa ´epoca, a ´Africa, a ´ındia, a Austr´alia, a Nova Zelˆandia passam a ser povoadas de um n´umero consider´avel de emigrantes europeus; n˜ao se trata mais de alguns mission´arios apenas, e sim de administradores. Uma rede de informa¸c˜oes se instala. S˜ao os question´arios enviados por pesquisadores das metr´opoles (em especial da Gr˜a-Bretanha) para os quatro cantos do mundo,1 e cujas respostas constituem os materiais de reflex˜ao das primeiras grandes obras de antropologia que se suceder˜ao em ritmo regular durante toda a se- gunda metade do s´eculo. Em 1861, Maine publica Ancient Law, em 1861, Bachofen, Das Mutterrecht; em 1864, Fustel de Coulanges, La Cit´e Antique; em .1865, MacLennan, O Casamento Primitivo; em 1871, Tylor, A Cultura Primitiva-, em 1877, Morgan, A Sociedade Antiga; em 1890, Frazer, os pri- meiros volumes do Ramo de Ouro. Todas essas obras, que tˆem uma ambi¸c˜ao consider´avel – seu objetivo n˜ao ´e nada menos que o estabelecimento dc um verdadeiro corpus etnogr´afico da humanidade – caracterizam-se por uma mudan¸ca radical de perspectiva em rela¸c˜ao `a ´epoca das ”luzes”o ind´ıgena das sociedades extra-europ´eias n˜ao ´e mais o selvagem do s´eculo XVIII, tornou-se o primitivo, isto ´e, o ancestral do civilizado, destinado a reencontr´a-lo. A coloniza¸c˜ao atuar´a nesse sentido. As- sim a antropologia, conhecimento do primitivo, fica indissociavelmente ligada ao conhecimento da nossa origem, isto ´e, das formas simples de organiza¸c˜ao social e de mentalidade que evolu´ıram para as formas mais complexas das 1 Morgan escreveu, assim, Systems of Consanguinity and Affinity of lhe Human Family (1879), em seguida Frazer (a partir de suas Questions sur les Matii`eres. [es Coutumes, la Relizions, les Superstitions des Peuples
  • 51. 49 nossas sociedades. Procuremos ver mais de perto em que consiste o pensamento te´orico dessa antropologia que se qualifica de evolucionista. Existe uma esp´ecie humana idˆentica, mas que se desenvolve (tanto em suas formas tecnoeconˆomicas como nos seus aspectos sociais e culturais) em ritmos desiguais, de acordo com as popula¸c˜oes, passando pelas mesmas etapas, para alcan¸car o n´ıvel final que ´e ´o da ”civiliza¸c˜ao”. A partir disso, conv´em procurar determinar cientificamente a seq¨uˆencia dos est´agios dessas transforma¸c˜oes.0 O evolucionismo encontrar´a sua formula¸c˜ao mais sistem´atica e mais ela- borada na obra de Morgan 2 e particularmente em Ancient Society, que se tornar´a o documento de referˆencia adotado pela imensa maioria dos an- trop´ologos do final do s´eculo XIX, bem como na lei de Haeckel. Enquanto para de Pauw ou Hegel as popula¸c˜oes ”n˜ao civilizadas”s˜ao popula¸c˜oes que, al´em de se situarem enquanto esp´ecies fora da Hist´oria, n˜ao tˆem hist´oria em sua existˆencia individual (n˜ao s˜ao crian¸cas que se tornaram adultos atrasados, e sim crian¸cas que permanecer˜ao inexoravelmente crian¸cas), Haeckel afirma rigorosamente o contr´ario: a ontogˆenese reproduz a filogˆenese; ou seja, o in- div´ıduo atravessa as mesmas fases que a hist´oria das esp´ecies. Disso decorre a identifica¸c˜ao – absolutamente incontestada tanto pela primeira gera¸c˜ao de marxistas quanto pelo fundador da psican´alise –dos povos primitivos aos vest´ıgios da infˆancia da humanidade3 O que ´e tamb´em muito caracter´ıstico dessa antropologia do s´eculo XIX, que pretende ser cient´ıfica, ´e a consider´avel aten¸c˜ao dada: 1) a essas popula¸c˜oes que aparecem como sendo as mais ”arcaicas”do mundo: os abor´ıgines aus- tralianos, 2) ao estudo do ”parentesco”, 3) e ao da religi˜ao. Parentesco e religi˜ao s˜ao, nessa ´epoca, as duas grandes ´areas da antropologia, ou, mais especificamente, as duas vias de acesso privilegiadas ao conhecimento das so- 0 Non-civilis´es ou Semi-civilis´es) Le Rameau d’Or (1981-1984). Uma correspondˆencia intensa circula entre os pesquisadores e os novos residentes europeus que lhes mandam uma grande quantidade de informa¸c˜oes e lˆeem em seguida seus livros. 2 Este ´ultimo distingue trˆes est´agios de evolu¸c˜ao da humanidade – selvageria, barb´arie, civiliza¸c˜ao – cada um dividido em trˆes per´ıodos, em fun¸c˜ao notadamente do crit´erio tec- nol´ogico 3 Se o evolucionismo antropol´ogico tende a aparecer hoje como a transposi¸c˜ao ao n´ıvel das ciˆencias humanas do evolucionismo biol´ogico (A Origem das Esp´ecies, de Darwin, 1859) que teria servido de justifica¸c˜ao ao primeiro, notemos que o primeiro ´e bem anterior ao segundo. Vico elabora sua teoria das trˆes idades (que anuncia Condorcet, Comte, Morgan, Frazer) no s´eculo XVIII, e Spencer. fundador da forma mais radical de evolucionismo sociol´ogico, publica suas pr´oprias teorias antes de ter lido A Origem das Esp´ecies.
  • 52. 50 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS: ciedades n˜ao ocidentais; elas permanecem ainda, notamo-lo, os dois n´ucleos resistentes da pesquisa dos antrop´ologos contemporˆaneos. 1) A Austr´alia ocupa um lugar de primeira importˆancia na pr´opria cons- titui¸c˜ao da nossa disciplina (cf. Elkin, l967), pois ´e l´a que se pode apreender o que foi a origem bsoluta das nossas pr´oprias institui¸c˜oes.4 2) No estudo dos sistemas de parentesco, os pesquisadores dessa ´epoca pro- curam principalmente evidenciar a anterioridade hist´orica dos sistemas de filia¸c˜ao matrilinear sobre os sistemas patrilineares. Por deslize do pensa- mento, imagina-se um matriarcado primitivo, id´eia que exerceu tal Influˆencia que ainda hoje alguns continuam inspirando-se nela (cf. em especial Evelyn Reed, Feminismo e Antropologia, (trad. franc. 1979), um dos textos de re- ferˆencia do movimento feminista nos Estados Unidos). 3) A ´area dos mitos, da magia e da religi˜ao deter´a mais nossa aten¸c˜ao, pois perece-nos reveladora ao mesmo tempo da abordagem e do esp´ırito do evolu- cionismo. Notemos em primeiro lugar que a maioria dos antrop´ologos desse per´ıodo, absolutamente confiantes na racionalidade cient´ıfica triunfante, s˜ao n˜ao apenas agn´osticos mas tamb´em deliberadamente anti-religiosos. Mor- gan, por exemplo, n˜ao hesita em escrever que ”todas as religi˜oes primitivas s˜ao grotescas e de alguma forma inintelig´ıveis”, e Tylor deve parte de sua voca¸c˜ao a uma rea¸c˜ao visceral contra o espiritualismo de seu meio. Mas ´e certamente o Ramo de Ouro, de Frazer (trad. fr. 1981-1984),5 que realiza a melhor s´ıntese de todas as pesquisas do s´eculo XIX sobre as ”cren¸cas”e ”supersti¸c˜oes”. 4 Desde a ´epoca de Morgan, a Austr´alia continuou sendo objeto de muitos escritos, v´arias gera¸c˜oes de pesquisadores expressando literalmente sua estupefa¸c˜ao diante da dis- tor¸c˜ao entre a simplicidade da cultura material desses povos, os mais ”primitivos”e mais ”atrasados”do mundo, vivendo na idade da pedra sem metalurgia, sem cerˆamica, sem tecelagem, sem cria¸c˜ao de animais... e a extrema complexidade de seus sistemas de paren- tesco baseados sobre rela¸c˜oes minuciosas entre aquilo que ´e localizado na natureza (animal, vegetal) e aquilo que atua na cultura: o ”totemismo”. Quando Durkheim escreve Les Formes ˆEl´ementaires de la Vie Religieuse (1912) baseia-se essencialmente sobre os dados colhidos na Austr´alia por Spencer e Gillen. Quando Roheim (trad. franc. 1967) decide refutar a hip´otese colocada por Malinowski da inexistˆencia do complexo de ˆEdipo entre os primitivos, escolhe a Austr´alia como terreno de pesquisa. Poder´ıamos assim multiplicar os exemplos a respeito desse continente que exerceu (junto com os ´ındios) um papel t˜ao decisivo. Um papel decisivo inclusive, a meu ver, menos para compreender a origem da humanidade dn nue a da reflex˜ao antropol´ogica. 5 Frazer era, inclusive, mais reservado sobre o fenˆomeno religioso do que os dois autores anteriores, j´a que vˆe nesse um fenˆomeno recente, fruto de uma evolu¸c˜ao lenta e dizendo respeito a ”esp´ıritos superiores”
  • 53. 51 Nessa obra gigantesca, publicada em doze volumes de 1890 a 1915 e que ´e uma das obras mais c´elebres de toda a literatura antropol´ogica,6 Frazer retra¸ca o processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia `a religi˜ao, e depois, da religi˜ao `a ciˆencia. ”A magia”, escreve Frazer, ”re- presenta uma fase anterior, mais grosseira, da hist´oria do esp´ırito humano, pela qual todas as ra¸cas da humanidade passaram, ou est˜ao passando, para dirigir-se para a religi˜ao e a ciˆencia”. Essas cren¸cas dos povos primitivos permitem compreender a origem das ”sobrevivˆencias”(termo forjado por Ty- lor) que continuam existindo nas sociedades civilizadas. Como Hegel, Frazer considera que a magia consiste num controle ilus´orio da natureza, que se constitui num obst´aculo `a raz˜ao. Mas, enquanto para Hegel, a primeira ´e um impasse total, Frazer a considera como religi˜ao em potencial, a qual dar´a lugar por sua vez `a ciˆencia que realizar´a (e est´a at´e come¸cando a realizar) o que tinha sido imaginado no tempo da magia. * * * O pensamento evolucionista aparece, da forma como podemos vˆe-lo hoje, como sendo ao mesmo tempo dos mais simples e dos mais suspeitos, e as obje¸c˜oes de que foi objeto podem organizar-se em torno de duas s´eries de cr´ıticas: 1) mede-se a importˆancia do ”atraso”das outras sociedades destinadas, ou melhor, compelidas a alcan¸car o pelot˜ao da frente, em rela¸c˜ao aos ´unicos crit´erios do Ocidente do s´eculo XIX, o progresso t´ecnico e econˆomico da nossa sociedade sendo considerado como a prova brilhante da evolu¸c˜ao hist´orica da qual procura-se simultaneamente acelerar o processo e reconstituir os est´agios. Ou seja, o ”arca´ısmo”ou a ”primitividade”s˜ao menos fases da Hist´oria do que a vertente sim´etrica e inversa da modernidade do Ocidente; o qual define o acesso entusiasmante `a civiliza¸c˜ao em fun¸c˜ao dos valores da ´epoca: produ¸c˜ao econˆomica, religi˜ao monote´ısta, propriedade privada, 6 Le Rameau d’Or ´e uma obra de referˆencia como existem poucas em um s´eculo. ´E quanto a isso compar´avel `a Origem das Esp´ecies, de Darwin. Exerceu uma influˆencia consider´avel tanto sobre a filosofia de Bergson e escola francesa de sociologia sobre o pen- samento antropol´ogico de Freud que, em Totem e Tabu. retira grande parte de seus mate- riais etnogr´aficos dessa obra que todo home 11 culto da ´epoca vitoriana tinha obriga¸c˜ao de conhecer. Quanto a seu autor, alcan¸cou durante sua vida uma gl´oria n˜ao apenas britˆanica, mas internacional, que muito poucos etn´ologos – fora Malinowski, Margaret Mead o L´evi- Strauss – conheceram.
  • 54. 52 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS: fam´ılia monogˆamica, moral vitoriana 2) o pesquisador, efetuando de um lado a defini¸c˜ao de seu objeto de pes- quisa atrav´es do campo emp´ırico das sociedades ainda n˜ao ocidentalizadas, e, de outro, identificando-se `as vantagens da civiliza¸c˜ao `a qual pertence, o evolucionismo aparece logo como a justifica¸c˜ao te´orica de uma pr´atica: o co- lonialismo. Livingstone, mission´ario que, enquanto branco, isto ´e, civilizado, n˜ao dissocia os benef´ıcios da t´ecnica e os da religi˜ao, pode exclamar: ”Vie- mos entre eles enquanto membros de uma ra¸ca superior e servidores de um governo que deseja elevar as partes mais degradadas da fam´ılia humana”. , A antropologia evolucionista, cujas ambi¸c˜oes nos parecem hoje desmedidas, n˜ao hesita em esbo¸car em grandes tra¸cos afrescos imponentes, atrav´es dos quais afirma com arrogˆancia julgamentos de valores sem contesta¸c˜ao poss´ıvel. A convic¸c˜ao da marcha triunfante do progresso ´e tal que, juntando e interpre- tando fatos provenientes do mundo inteiro (`a luz justamente dessa hip´otese central), julga-se que ser´a poss´ıvel extrair as leis universais do desenvolvi- mento da humanidade. Assim, encontramo-nos frente a reconstitui¸c˜oes con- junturais que tˆem, pelo volume dos fatos relatados, a aparˆencia de um corpus cient´ıfico, mas assemelham-se muito, na realidade, `a filosofia do s´eculo ante- rior; a qual n˜ao tinha por´em a preocupa¸c˜ao de fundamentar sua reflex˜ao na documenta¸c˜ao enorme que ser´a pela primeira vez reunida pelos homens do s´eculo XIX. Essa preocupa¸c˜ao de um saber cumulativo visa na realidade a demonstrar a veracidade de uma tese mais do que a verificar uma hip´otese, os exemplos etnogr´aficos sendo freq¨uentemente mobilizados apenas para ilustrar o pro- cesso grandioso que conduz as sociedades primitivas a se tornarem socieda- des civilizadas. Assim, esmagados sob o peso dos materiais, os evolucionistas consideram os fenˆomenos recolhidos (o totemismo, a exogamia, a magia, o culto aos antepassados, a filia¸c˜ao matrilinear. . .) como costumes que ser- vem para exemplificar cada est´agio. E quando faltam documentos, alguns (Frazer) fazem por intui¸c˜ao a reconstitui¸c˜ao dos elos ausentes; procedimento absolutamente oposto, como veremos mais adiante, ao da etnografia contem- porˆanea, que procura, atrav´es da introdu¸c˜ao de fatos min´usculos recolhidos em uma ´unica sociedade, analisar a significa¸c˜ao e a fun¸c˜ao de rela¸c˜oes sociais. Isso colocado, como ´e f´acil – e at´e irris´orio – desacreditar hoje todo o trabalho
  • 55. 53 que foi realizado pelos pesquisadores – eruditos da ´epoca evolucionista.7 N˜ao custa muito denunciar o etnocentrismo que eles demonstraram em rela¸c˜ao aos ”povos atrasados”, evidenciando assim tamb´em, um singular esp´ırito a- hist´orico – e etnocentrista – em rela¸c˜ao a eles, sendo que ´e provavelmente que, sem essa teoria, empenhada em mostrar as etapas do movimento da humanidade (teoria que deve ser ela pr´opria considerada como uma etapa do pensamento sociol´ogico), a antropologia no sentido no qual a praticamos hoje nunca teria nascido. Claro, nessa ´epoca o antrop´ologo raramente recolhe ele pr´oprio os materi- ais que estuda e, quando realiza um trabalho de coleta direta,8 ´e antes no decorrer de expedi¸c˜ao visando trazer informa¸c˜oes, do que de estadias tendo por objetivo o de impregnar-se das categorias mentais dos outros. O que importa nessa ´epoca n˜ao ´e de forma alguma a problem´atica de etnografia enquanto pr´atica intensiva de conhecimento de uma determinada cultura, ´e a tentativa de compreens˜ao, a mais extensa poss´ıvel no tempo e no espa¸co, de todas as culturas, em especial das ”mais long´ınquas”e das ”mais desco- nhecidas”, como diz Tylor. N˜ao poder´ıamos finalmente criticar esses pesquisadores da segunda metade do s´eculo XIX por n˜ao terem sido especialistas no sentido atual da palavra (especialistas de uma pequena parte de uma ´area geogr´afica ou de uma mi- crodisciplina de um eixo tem´atico). Eles se recusavam a atuar dessa forma, julgando que observadores conscienciosos, guiados a distˆancia por cientistas preocupados em criticar fontes, eram capazes de recolher todos os materi- ais necess´arios, e sobretudo considerando implicitamente que a antropologia tinha tarefas mais urgentes a realizar do que um estudo particular em tal ou tal sociedade. De fato, eles n˜ao tinham nenhuma forma¸c˜ao antropol´ogica 7 Da mesma forma que ´e f´acil reduzir toda essa ´epoca ao evolucionismo (a respeito do qual conv´em notar que foi muito mais afirmado na Gr˜a-Bretanha e nos Estados Unidos do que nos outros pa´ıses). Bastian por exemplo insiste sobre a especificidade de cada cultura irredut´ıvel ao seu lugar na hist´oria do desenvolvimento da humanidade. Ratzel abre o caminho para o que ser´a chamado de difusionismo. Tylor desconfia dos modelos de interpreta¸c˜ao simples e un´ıvocos do social e anuncia claramente a substitui¸c˜ao da no¸c˜ao de fun¸c˜ao `a causa. No entanto, a teoria da evolu¸c˜ao ´e nessa ´epoca amplamente dominante, pelo menos at´e o final do s´eculo no qual come¸ca a mostrar (com Frazer) os primeiros sinais de esgotamento. 8 s pesquisas de primeira m˜ao est˜ao longe de serem ausentes ne-´ıa ´epoca na qual todos os antrop´ologos n˜ao s˜ao apenas pesquisadores indo de seu gabinete de trabalho `a biblioteca. Em 1851, Morgan publica as observa¸c˜oes colhidas no decorrer de uma viagem realizada por ele pr´oprio entre os Iroqueses. Alguns anos mais tarde, Bastian realiza uma pesquisa no Congo, e Tylor no M´exico.
  • 56. 54 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS: (Maine, MacLen-nan, Bachofen, Morgan s˜ao juristas; Bastian ´e m´edico; Rat- zel, ge´ografo), mas como poder´ıamos critic´a-los por isso, j´a que eles foram precisamente os fundadores de uma disciplina que n˜ao existia antes deles? Em suma, o que me parece eminentemente caracter´ıstico desse per´ıodo ´e a intensidade do trabalho que realizou, bem como sua imensa curiosidade. Durante o s´eculo XIX, assistimos `a cria¸c˜ao das sociedades cient´ıficas de et- nologia, das primeiras cadeiras universit´arias, e, sobretudo, dos museus como o que foi fundado no pal´acio do Trocadero em 1879 e que se tornar´a o atual Museu do Homem. ´E at´e dif´ıcil imaginar hoje em dia a abrangˆencia dos co- nhecimentos dos principais representantes do evolucionismo. Tylor possu´ıa um conhecimento perfeito tanto da pr´e-hist´oria, da ling¨u´ıstica, quanto do que chamar´ıamos hoje de ”antropologia social e cultural”do seu tempo. Ele dedicava os mesmos esfor¸cos ao estudo das ´areas da tecnologia, do parentesco ou da religi˜ao. Frazer, em contato epistolar permanente com centenas de ob- servadores morando nos quatro cantos do mundo, trabalhou doze horas por dia durante sessenta anos, dentro de uma biblioteca de 50 mil volumes. A obra que ele pr´oprio produziu estende-se, como diz Leach (1980), em quase dois metros de estantes. Atrav´es dessa atividade extrema, esses homens do s´eculo passado colocavam o problema maior da antropologia: explicar a universalidade e a diversidade das t´ecnicas, das institui¸c˜oes, dos comportamentos e das cren¸cas, compa- rar as pr´aticas sociais de popula¸c˜oes infinitamente distantes uma das outras tanto no espa¸co como no tempo. Seu m´erito ´e de ter extra´ıdo (mesmo se o fizerem com dogmatismo, mesmo se suas convic¸c˜oes foram mais passionais do que racionais) essa hip´otese mestra sem a qual n˜ao haveria antropologia, mas apenas etnologias regionais: a unidade da esp´ecie humana, ou, como escreve Morgan, da ”fam´ılia humana”. Pode-se sorrir hoje diante dessa vis˜ao grandiosa do mando,baseada na no¸c˜ao de uma humanidade integrada, dentro da qual concorrem em graus diferentes, mas para chegar a um mesmo n´ıvel final, as diversas popula¸c˜oes do globo. Mas s˜ao eles que mostraram pela pri- meira vez que as disparidades culturais entre os grupos humanos n˜ao eram de forma alguma a conseq¨uˆencia de predisposi¸c˜oes congˆenitas, mas apenas o resultado de situa¸c˜oes t´ecnicas e econˆomicas. Assim, uma das caracter´ısticas principais do evolucionismo – ser´a que isso foi suficientemente destacado? – ´e o seu anti-racismo. At´e Morgan (eu teria vontade de dizer sobretudo Morgan) n˜ao tem a ri- gidez doutrinai que lhe ´e retroativamente atribu´ıda. Com ele, o objeto da antropologia passa a ser a an´alise dos processos de evolu¸c˜ao que s˜ao os das
  • 57. 55 liga¸c˜oes entre as rela¸c˜oes sociais, jur´ıdicas, pol´ıticas. . . a liga¸c˜ao entre esses diferentes aspectos do campo social sendo em si caracter´ıstica de um determinado per´ıodo da hist´oria humana. A novidade radical da sociedade arcaica ´e dupla. 1) Essa obra toma como objeto de estudo fenˆomenos que at´e ent˜ao n˜ao diziam respeito `a Hist´oria, a qual, para Hegel, s´o podia ser escrita. Qualifi- cando essas sociedades de ”arcaicas”, Morgan as reintegra pela primeira vez na humanidade inteira; e ao acento sendo colocado sobre o desenvolvimento material, o conhecimento da hist´oria come¸ca a ser posto sobre bases total- mente diferentes das do idealismo filos´ofico. 2) Os elementos da an´alise comparativa n˜ao s˜ao mais, a partir de Morgan, cos- tumes considerados bizarros, e sim redes de intera¸c˜ao formando ”sistemas”, termo que o antrop´ologo americano utiliza para as rela¸c˜oes de parentesco.9 N˜ao h´a, como mostrou Kuhn (1983), conhecimento cient´ıfico poss´ıvel sem que se constitua uma teoria servindo de ”paradigma”, isto ´e, de modelo or- ganizador do saber, e a teoria da evolu¸c˜ao teve incontestavelmente, no caso, um papel decisivo. Foi ela que deu seu impulso a antropologia. O paradoxo (aparente, pois o conhecimento cient´ıfico se d´a sempre mais por descontinui- dades te´oricas do que por acumula¸c˜ao), ´e que a antropologia s´o se tornar´a cient´ıfica( no sentido que entendemos) introduzindo uma ruptura em rela¸c˜ao a esse modo de pensamento que lhe havia no entanto aberto o caminho. ´E o que examinaremos agora. 9 Por essas duas raz˜oes, compreende-se qual ser´a a influˆencia `a Morgan sobre o mar- xismo, e particularmente, sobre Engels (1954)
  • 58. 56 CAP´ITULO 3. O TEMPO DOS PIONEIROS:
  • 59. Cap´ıtulo 4 Os Pais Fundadores Da Etnografia: Boas e Malinowski Se existiam no final do s´eculo XIX homens (geralmente mission´arios e ad- ministradores) que possu´ıam um excelente conhecimento das popula¸c˜oes no meio das quais viviam – ´e o caso de Codrington, que publica em 1891 uma obra sobre os melan´esios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas observa¸c˜oes sobre os abor´ıgines australianos, ou de Junod, que escreve A Vida de uma Tribo Sul-africana (1898) – a etnografia propriamente dita s´o come¸ca a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua pr´opria pesquisa, e que esse trabalho de observa¸c˜ao direta ´e parte integrante da pesquisa. A revolu¸c˜ao que ocorrer´a da nossa disciplina durante o primeiro ter¸co do s´eculo XX ´e consider´avel: ela p˜oe fim `a reparti¸c˜ao das tarefas, at´e ent˜ao habitualmente divididas entre o observador (viajante, mission´ario, adminis- trador) entregue ao papel subalterno de provedor de informa¸c˜oes, e o pes- quisador erudito, que, tendo permanecido na metr´opole, recebe, analisa e interpreta – atividade nobre! – essas informa¸c˜oes. O pesquisador compre- ende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados n˜ao mais como informadores a serem questionados, e sim como h´ospedes que o rece- bem e mestres que o ensinam. Ele aprende ent˜ao, como aluno atento, n˜ao apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua l´ıngua e a pensar nessa l´ıngua, a sentir suas pr´oprias emo¸c˜oes dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condi¸c˜oes de estudo radicalmente diferentes das que 57
  • 60. 58 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA: conheciam o viajante do s´eculo XVIII e at´e o mission´ario ou o administrador do s´eculo XIX, residindo geralmente fora da sociedade ind´ıgena e obtendo informa¸c˜oes por interm´edio de tradutores e informadores: este ´ultimo termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, ”ao vivo”, em uma ”natureza imensa, virgem e aberta”. Esse trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, longe de ser visto como um modo de conhecimento secund´ario servindo para ilustrar uma tese, ´e .onsiderado como a pr´opria fonte de pesquisa. Orientou a partir desse momento a abordagem da nova gera¸c˜ao de etn´ologos que, desde os primei- ros anos do s´eculo XX, realizou estadias prolongadas entre as popula¸c˜oes do mundo inteiro. Em 1906 e 1908, Radcliffe-Brown estuda os habitantes das ilhas Andaman. Em 1909 e 1910, Seligman dirige uma miss˜ao no Sud˜ao. Alguns anos mais tarde, Malinowski volta para a Gr˜a-Bretanha, impregnado do pensamento e dos sistemas de valores que lhe revelou a popula¸c˜ao de um min´usculo arquip´elago melan´esio. A partir da´ı, as miss˜oes de pesquisas etnogr´aficas e a publica¸c˜ao das obras que delas resultam se seguem em um ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundadores da antropologia inglesa, estuda os Todas da ´ındia; ap´os a .Primeira Guerra Mundial, Evans- Pritchard estuda os Azand´es (trad. franc. 1972) e os Nuer (trad. franc. 1968); Nadei, as Nupes da Nig´eria; Fortes, os Tallensi; Margaret Mead, os insulares da Nova Guin´e, etc Como n˜ao ´e poss´ıvel examinar, dentro dos limites deste Inibalho, a con- tribui¸c˜ao desses diferentes pesquisadores na elabora¸c˜ao da etnografia e da etnologia contemporˆanea, dois entre eles, a meu ver os mais importantes, de- ter˜ao nossa Hlen¸c˜ao: um americano de origem alem˜a: Franz Boas; o outro, polonˆes naturalizado inglˆes: Bronislaw Malinowski. 4.1 BOAS (1858-1942) Com ele assistimos a uma verdadeira virada da pr´atica antropol´ogica. Boas era antes de tudo um homem de campo. Suas pesquisas, totalmente pioneiras, iniciadas, notamo-lo, a partir dos ´ultimos anos do s´eculo XIX (em particular entre os Kwakiutl e os Chinook de Col´umbia Britˆanica), eram conduzidas de um ponto de vista que hoje qualificar´ıamos de microssociol´ogico. No campo, ensina Boas, tudo deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das
  • 61. 4.1. BOAS (1858-1942) 59 casas at´e as notas das melodias cantadas pelos Esquim´os, e isso detalhada- mente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descri¸c˜ao mais meticulosa, da retranscri¸c˜ao mais fiel (por exemplo, as diferentes vers˜oes de um mito, ou diversos ingredientes entrando na composi¸c˜ao de um alimento). Por outro lado, enquanto raramente antes dele as sociedades tinham sido realmente consideradas em si e para si mesmas, cada uma dentre elas ad- quire o estatuto de uma totalidade autˆonoma. O primeiro a formular com seus colaboradores (cf. em particular Lowie, 1971) a cr´ıtica mais radical e mais elaborada das no¸c˜oes de origem e de reconstitui¸c˜ao dos est´agios,1 ele mostra que um costume s´o tem significa¸c˜ao se for relacionado ao contexto particular no qual se inscreve. Claro, Morgan e, muito antes dele, Montes- quieu tinham aberto o caminho a essa pesquisa cujo objeto ´e a totalidade das rela¸c˜oes sociais e dos elementos que a constituem. Mas a diferen¸ca ´e que,ia partir de Boas, estima-se que para compreender o lugar particular ocupado por esse costume n˜ao se pode mais confiar nos investigadores e, muito menos nos que, da ”metr´opole”, confiam neles. Apenas o antrop´ologo pode elaborar uma monografia, isto ´e, dar conta cientificamente de uma microssociedade, apreendida em sua totalidade e considerada em sua autonomia te´orica. Pela primeira vez, o te´orico e o observador est˜ao finalmente reunidos. Assistimos ao nascimento de uma verdadeira etnografia profissional que n˜ao se contenta mais em coletar materiais `a maneira dos antiqu´arios, mas procura detectar o que faz a unidade da cultura que se expressa atrav´es desses diferentes ma- teriais. Por outro lado, Boas considera, e isso muito antes de Griaule, do qual fala- remos mais adiante, que n˜ao h´a objeto nobre nem objeto indigno da ciˆencia. As piadas de um contador s˜ao t˜ao importantes quanto a mitologia que ex- pressa o patrimˆonio metaf´ısico do grupo. Em especial, a maneira pela qual as sociedades tradicionais, na voz dos mais humildes entre eles, classificam suas atividades mentais e sociais, deve ser levada em considera¸c˜ao. Boas anuncia assim a constitui¸c˜ao do que hoje chamamos de ”etnociˆencias”. Finalmente, ele foi um dos primeiros a nos mostrar n˜ao apenas a importˆancia, mas tamb´em a necessidade, para o etn´ologo, do acesso `a l´ıngua da cultura na qual trabalha. As tradi¸c˜oes que estuda n˜ao poderiam ser-lhe traduzidas. 1 Da qual Radcliffe-Brown e Malinowski tirar˜ao as conseq¨uˆencias tec ricas: n˜ao ´e mais poss´ıvel opor sociedades ”simples”e sociedades ”complexas”, sociedades ”inferio- res”evoluindo para o ”superior”, sociedades ”primitivas”a caminho da ”civiliza¸c˜ao”. As primeiras n˜ao s˜ao as formas An nraanizac˜oes originais das quais as segundas teriam deri- vado.
  • 62. 60 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA: Ele pr´oprio deve recolhˆe-las na l´ıngua de seus interlocutores.2 Pode parecer surpreendente, levando em conta o que foi dito, que Boas, ex- ceto entre os profissionais da antropologia, seja praticamente desconhecido. Isso se deve principalmente a duas raz˜oes: 1) multiplicando as comunica¸c˜oes e os artigos, ele nunca escreveu nenhum livro destinado ao p´ublico erudito, e os textos que nos deixou s˜ao de uma concis˜ao e de um rigor asc´etico. Nada que anuncie, por exemplo, a emo¸c˜ao que se pode sentir (como veremos logo) na leitura de um Malinowski; ou que lembre o charme ultrapassado da prosa enfeitada de um Frazer; 2) nunca formulou uma verdadeira teoria, t˜ao estranho era-lhe o esp´ırito de sistema; e a generaliza¸c˜ao apressada parecia-lhe o que h´a de mais distante do esp´ırito cient´ıfico. `As ambi¸c˜oes dos primeiros tempos – quero falar dos afrescos gigantescos do s´eculo XIX, que retratam os prim´ordios da humani- dade mas expressam simultaneamente os prim´ordios da antropologia, isto ´e uma antropologia principalmente – sucedem, com ele, a mod´estia e a sobri- edade da maturidade. De qualquer modo, a influˆencia de Boas foi consider´avel. Foi um dos pri- meiros etn´ografos. A sua preocupa¸c˜ao de precis˜ao na descri¸c˜ao dos fatos observados, acrescentava-se a de conserva¸c˜ao met´odica do patrimˆonio reco- lhido (foi conservador do museu de Nova Iorque). Finalmente, foi, enquanto professor, o grande pedagogo que formou a primeira gera¸c˜ao de antrop´ologos americanos (Kroeber, Lowie, Sapir, Herskovitz, Linton. . . e, em seguida, R. Benedict, M. Mead). Ele permanece sendo o mestre incontestado da an- tropologia americana na primeira metade do s´eculo XX. 4.2 MALINOWSKI (1884-1942) Malinowski dominou incontestavelmente a cena antropol´ogica, de 1922, ano de publica¸c˜ao de sua primeira obra, Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, at´e sua morte, em 1942. 1) Se n˜ao foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiˆencia et- nogr´afica, isto ´e, em primeiro lugar, a viver com as popula¸c˜oes que estudava 2 Sobre a rela¸c˜ao da cultura, da l´ıngua e do etn´ologo, cf. particular-mente. ap´os Boas. Sapir (1967) e Leenhardt (1946).
  • 63. 4.2. MALINOWSKI (1884-1942) 61 e a recolher seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreens˜ao por dentro, e para isso, procurou romper ao m´aximo os contatos com o mundo europeu. Ningu´em antes dele tinha se esfor¸cado em penetrar tanto, como ele fez no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentali- dade dos outros, e em compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonaliza-¸c˜ao, o que sentem os homens e as mulheres que perten- cem a uma cultura que n˜ao ´e nossa. Boas procurava estabelecer repert´orios exaustivos, e muitos entre seus seguidores nos Estados Unidos (Kroeber, Mur- dock. . .) procuraram definir correla¸c˜oes entre o maior n´umero poss´ıvel de vari´aveis. Malinowski considera esse trabalho uma aberra¸c˜ao. Conv´em pelo contr´ario, segundo ele, conforme o primeiro exemplo que d´a em seu primeiro livro, mostrar que a partir de um ´unico costume, ou mesmo de um ´unico ob- jeto (por exemplo, a canoa trobriandesa – voltaremos a isso) aparentemente muito simples, aparece o perfil do conjunto de uma sociedade. 2) Instaurando uma ruptura com a hist´oria conjetural (a reconstitui¸c˜ao es- peculativa dos est´agios), e tamb´em com a geografia especulativa (a teoria di- fusionista, que tende, no in´ıcio do s´eculo, a ocupar o lugar do evolucionismo, e postula a existˆencia de centros de difus˜ao da cultura, a qual se transmite por empr´estimos), Malinowski considera que uma sociedade deve ser estu- dada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde a observamos. Medimos o caminho percorrido desde Frazer, que foi no en- tanto o mestre de Malinowski. Quando pergunt´avamos ao primeiro por que ele pr´oprio n˜ao ia observar as sociedades a partir das quais tinha constru´ıdo sua obra, respondia: ”Deus me livre!”. Os Argonautas do Pac´ıfico Ociden- tal, embora tenha sido editado alguns anos apenas ap´os o fim da publica¸c˜ao de O Ramo de Ouro, com um pref´acio, notamo-lo, do pr´oprio Frazer, adota uma abordagem rigorosamente inversa: analisar de uma forma intensiva e cont´ınua uma microssociedade sem referir-se a sua hist´oria. Enquanto Frazer procurava responder `a pergunta: ”Como nossa sociedade chegou a se tornar o que ´e?”; e respondia escrevendo essa ”obra ´epica da humanidade”que ´e O Ramo de Ouro, Malinowski se pergunta o que ´e uma sociedade dada em si mesma e o que a torna vi´avel para os que a ela pertencem, observando-a no presente atrav´es da intera¸c˜ao dos aspectos que a constituem. (Com Malinowski, a antropologia se torna uma ”ciˆencia”da alteridade que vira as costas ao empreendimento evolucionista de reconstitui¸c˜ao das origens da civiliza¸c˜ao, e se dedica ao estudo das l´ogicas particulares caracter´ısticas de cada cultura. O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas ´e que os costumes
  • 64. 62 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA: dos Trobriandeses, t˜ao profundamente diferentes dos nossos, tˆem uma signi- fica¸c˜ao e uma coerˆencia. N˜ao s˜ao puerilidades que testemunham de alguns vest´ıgios da humanidade, e sim sistemas l´ogicos perfeitamente elaborados. Hoje, todos os etn´ologos est˜ao convencidos de que as sociedades diferentes da nossa s˜ao sociedades humanas tanto quanto a nossa, que os homens e mulheres que nelas vivem s˜ao adultos que se comportam diferentemente de n´os, e n˜ao primitivos”, autˆomatos atrasados (em todos os sentidos do termo) que pararam em uma ´epoca distante e vivem presos a tradi¸c˜oes est´upidas. Mas nos anos 20 isso era propriamente revolucion´ario. 3) A fim de pensar essa coerˆencia interna, Malinowski elabora uma teoria (o funcionalismo) que tira seu modelo das ciˆencias da natureza: o indiv´ıduo sente um certo n´umero de necessidades, e cada cultura tem precisamente como fun¸c˜ao a de satisfazer `a sua maneira essas necessidades fundamen- tais. Cada uma realiza isso elaborando institui¸c˜oes (econˆomicas, pol´ıticas, jur´ıdicas, educativas. . .), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo,solu¸c˜oes originais que permitem atender a essas necessidades. 4) Uma outra caracter´ıstica do pensamento do autor de Os Argonautas ´e, ao nosso ver, sua preocupa¸c˜ao em abrir as fronteiras disciplinares, devendo o homem ser estudado atrav´es da tripla articula¸c˜ao do social, do psicol´ogico e do biol´ogico. Conv´em em primeiro lugar, para Malinowski, localizar a rela¸c˜ao estreita do social e do biol´ogico; o que decorre do ponto anterior, j´a que, para ele, uma sociedade funcionando como um organismo, as rela¸c˜oes biol´ogicas devem ser consideradas n˜ao apenas como o modelo epistemol´ogico que per- mite pensar as rela¸c˜oes sociais, e sim como o seu pr´oprio fundamento. Al´em disso, uma verdadeira ciˆencia da sociedade implica, ou melhor, inclui o es- tudo das motiva¸c˜oes psicol´ogicas, dos comportamentos, o estudo dos sonhos e dos desejos do indiv´ıduo.3 E Malinowski, quanto a esse aspecto (que o separa radicalmente, como veremos, de Durkheim), vai muito al´em da an´alise da afetividade de seus interlocutores. Ele procura reviver nele pr´oprio os sen- timentos dos outros, fazendo da observa¸c˜ao participante uma participa¸c˜ao psicol´ogica do pesquisador, que deve ”compreender e compartilhar os senti- mentos”destes ´ultimos ”interiorizando suas rea¸c˜oes emotivas”. 3 ´E essa vontade de alcan¸car o homem em todas as suas dimens˜oes, e, notadamente, de n˜ao dissociar o grupo do indiv´ıduo, que faz com que seja um dos primeiros etn´ologos a interessar-se pelas obras de Freud. Mas devemos reconhecer que ele demonstra uma grande incompreens˜ao da psican´alise
  • 65. 4.2. MALINOWSKI (1884-1942) 63 * * * O fato de a obra (e a pr´opria personalidade) de Malinowski ter sido provavel- mente a mais controvertida de toda a hist´oria da antropologia (isso inclusive quando era vivo) se deve a duas raz˜oes, ligadas ao car´ater sistem´atico de sua rea¸c˜ao ao evolucionismo. 1) Os antrop´ologos da ´epoca vitoriana identificavam-se totalmente com a sua sociedade, isto ´e, com a ”civiliza¸c˜ao industrial”, considerada como ”a civiliza¸c˜ao”tout court, e com seus benef´ıcios. Em rela¸c˜ao a esta. os costumes dos povos ”primitivos”eram vistos como aberrantes. Malinowski inverte essa rela¸c˜ao: a antropologia sup˜oe uma identifica¸c˜ao (ou, pelo menos, uma busca de identifica¸c˜ao) com a alteridade, n˜ao mais considerada como forma social anterior `a civiliza¸c˜ao, e sim como forma contemporˆanea mostrando-nos cm sua pureza aquilo que nos faz tragicamente falta: a autenticidade. Assim sendo, a aberra¸c˜ao n˜ao est´a mais do lado das sociedades ”primitivas”e sim do lado da sociedade ocidental (cf. pp. 50-51 deste livro os coment´arios de Malinowski, que retomam o tema da idealiza¸c˜ao do selvagem). 2) Convencido de ser o fundador da antropologia cient´ıfica moderna (o que, ao meu ver, n˜ao ´e totalmente falso, pois o que fez a partir dos anos 20 ´e essencial), ele elabora – sobretudo durante a ´ultima parte de sua vida – uma teoria de uma extrema rigidez, que contribuiu, em grande parte, para o descr´edito do qual ele ainda ´e objeto: o ”funcionalismo”. Nesta perspectiva, as sociedades tradicionais s˜ao sociedades est´aveis e sem conflitos, visando naturalmente a um equil´ıbrio atrav´es de institui¸c˜oes capazes de satisfazer `as necessidades dos homens. Essa compreens˜ao naturalista e marcadamente oti- mista de uma totalidade cultural integrada, que postula que toda sociedade ´e t˜ao boa quanto pode ser, pois suas institui¸c˜oes est˜ao a´ı para satisfazer a todas as necessidades, defronta-se com duas grandes dificuldades: como ex- plicar a mudan¸ca social? Como dar conta do disfuncionamento e da patologia cultural? A partir de sua pr´opria experiˆencia – limitada a um min´usculo arquip´elago que permanece, no in´ıcio do s´eculo, relativamente afastado dos contatos in- terculturais –, Malinowski, baseando-se no modelo do finalismo biol´ogico, estabelece generaliza¸c˜oes sistem´aticas que n˜ao hesita em chamar de ”leis ci- ent´ıficas da sociedade”. Al´em disso, esse funcionalismo ”cient´ıfico”n˜ao tem rela¸c˜ao com a realidade da situa¸c˜ao colonial dos anos 20, situa¸c˜ao essa, to- talmente ocultada. A antropologia vitoriana era a justifica¸c˜ao do per´ıodo da conquista colonial. O discurso monogr´afico e a-hist´orico do funcionalismo
  • 66. 64 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA: passa a ser a justifica¸c˜ao de uma nova fase do colonialismo. * * * Apesar disso, al´em das cr´ıticas que o pr´oprio Malinowski contribuiu em pro- vocar, tudo o que devemos a ele permanece ainda hoje consider´avel. 1) Compreendendo que o ´unico modo de conhecimento em profundidade dos outros ´e a participa¸c˜ao a sua existˆencia, ele inventa literalmente e ´e o pri- meiro a pˆor em pr´atica a observa¸c˜ao participante, dando-nos o exemplo do que deve ser o estudo intensivo de uma sociedade que nos ´e estranha. O fato de efetuar uma estadia de longa dura¸c˜ao impregnan-do-se da mentalidade de seus h´ospedes e esfor¸cando-se para pensar em sua pr´opria l´ıngua pode parecer banal hoje. N˜ao o era durante os anos 1914-1920 na Inglaterra, e muito menos na Fran¸ca. Malinowski nos ensinou a olhar. Deu-nos o exemplo daquilo que devia ser uma pesquisa de campo, que n˜ao tem mais nada a ver com a atividade do ”investigador”questionando ”informadores”. 2) Em Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, pela primeira vez, o social deixa de ser aned´otico, curiosidade ex´otica, descri¸c˜ao moralizante ou cole¸c˜ao exaustiva erudita. Pois, para alcan¸car o homem em todas as suas dimens˜oes, ´e preciso dedicar-se `a observa¸c˜ao de fatos sociais aparentemente min´usculos e insignificantes, cuja significa¸c˜ao s´o pode ser encontrada nas suas posi¸c˜oes respectivas no interior de uma totalidade mais ampla. Assim, as canoas tro- briandesas (das quais falamos acima) s˜ao descritas em rela¸c˜ao ao grupo que as fabrica e utiliza, ao ritual m´agico que as consagra, `as regulamenta¸c˜oes que definem sua posse, etc. Algumas transportando de ilha em ilha colares de conchas vermelhas, outras, pulseiras de conchas brancas, efetuando em sentidos contr´arios percursos invari´aveis, passando necessariamente de novo por seu local de origem, Malinowski mostra que estamos frente a um pro- cesso de troca generalizado, irredut´ıvel `a dimens˜ao econˆomica apenas, pois nos permite encontrar os significados pol´ıticos, m´agicos, religiosos, est´eticos do grupo inteiro. Os Jardins de Coral, o segundo grande livro de Malinowski, trabalha com a mesma abordagem. Esse ”estudo dos m´etodos agr´ıcolas e dos ritos agr´arios nas ilhas Trobriand”, longe de ser uma pesquisa especializada sobre um fenˆomeno agronˆomico dado, mostra que a agricultura dos Trobriandeses inscreve-se na totalidade social desse povo, e toca em muitos outros aspectos que n˜ao a agricultura.
  • 67. 4.2. MALINOWSKI (1884-1942) 65 3) Finalmente, uma das grandes qualidades de Malinowski ´e sua faculdade de restitui¸c˜ao da existˆencia desses homens e dessas mulheres que puderam ser conhecidos apenas atrav´es de uma rela¸c˜ao e de uma experiˆencia pessoais. Mesmo quando estuda institui¸c˜oes, n˜ao s˜ao nunca vistas como abstra¸c˜oes reguladoras da vida de atores anˆonimos. Seja em Os Argonautas ou’ Os Jardins de Coral, ele faz reviver para n´os esse povo trobriandˆes que n˜ao po- deremos nunca mais confundir com outras popula¸c˜oes ”selvagens”. O homem nunca desaparece em proveito do sistema. Ora, essa exigˆencia de conduzir um projeto cient´ıfico sem renunciar `a sensibilidade art´ıstica chama-se etno- logia. Malinowski ensinou a muitos entre n´os n˜ao apenas a olhar, mas a escrever, restituindo `as cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor. Quanto a isso, Os Argonautas me parece exemplar. ´E um livro escrito num estilo magn´ıfico que aproxima seu autor de um outro polonˆes que, como ele, viveu na Inglaterra, expressando-se em inglˆes: Joseph Conrad, e que anuncia as mais bonitas p´aginas de Tristes Tr´opicos, de L´evi Strauss. A antropologia contemporˆanea ´e freq¨uentemente amea¸cada pela abstra¸c˜ao e sofistica¸c˜ao dos protocolos, podendo, como mostrou Devereux (1980), ir at´e a destrui¸c˜ao do objeto que pretendia estudar, e, conjuntamente, da es- pecificidade da nossa disciplina. ”Um historiador”, escreve Firth, ”pode ser surdo, um jurista pode ser cego, um fil´osofo pode a rigor ser surdo e cego, mas ´e preciso que o antrop´ologo entenda o que as pessoas dizem e veja o que fazem”. Ora, a grande for¸ca de Malinowski foi ter conseguido fazer ver e ouvir aos seus leitores aquilo que ele mesmo tinha visto, ouvido, sentido. Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, publicado com fotografias tiradas a partir de 1914 por seu autor, abre o caminho daquilo que se tornar´a a antropologia audiovisual.4 4 Sobre a obra de Malinowski, consultar o trabalho de Michel Panoff. 1972.
  • 68. 66 CAP´ITULO 4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA:
  • 69. Cap´ıtulo 5 Os Primeiros Te´oricos Da Antropologia: Durkheim e Mauss Boas e Malinowski, nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, fundaram a etnografia. Mas o primeiro, recolhendo com a precis˜ao de um na- turalista os fatos no campo, n˜ao era um te´orico. Quanto ao segundo, a parte te´orica de suas pesquisas ´e provavelmente, como acabamos de ver, o que h´a de mais contest´avel em sua obra. A antropologia precisava ainda elaborar instrumentos operacionais que permitissem construir um verdadeiro objeto cient´ıfico. ´E precisamente nisso que se empenharam os pesquisadores france- ses dessa ´epoca, que pertenciam `a chamada ”escola francesa de sociologia”. Se existe uma autonomia do social, ela exige, para alcan¸car sua elabora¸c˜ao cient´ıfica, a constitui¸c˜ao de um quadro te´orico, de conceitos e modelos que sejam pr´oprios da investiga¸c˜ao do social, isto ´e, independentes tanto da ex- plica¸c˜ao hist´orica (evolucionismo) ou geogr´afica (difusionismo), quanto da explica¸c˜ao biol´ogica (o funcionalismo de Malinowski) ou psicol´ogica (a psi- cologia cl´assica e a psican´alise principiante). Ora, conv´em notar desde j´a – e isso ter´a conseq¨uˆencias essenciais para o desenvolvimento contemporˆaneo de nossa disciplina – que n˜ao s˜ao de forma alguma etn´ologos de campo, e sim fil´osofos e soci´ologos – Durkheim e Mauss, de quem falaremos agora – que forneceram `a antropologia o quadro te´orico e os instrumentos que lhe faltavam ainda. Durkheim, nascido em 1858, o mesmo ano que Boas, mostrou em suas pri- meiras pesquisas preocupa¸c˜oes muito distantes das da etnologia, e mais ainda 67
  • 70. 68 CAP´ITULO 5. OS PRIMEIROS TE ´ORICOS DA ANTROPOLOGIA: da etnografia. Em As Regras do M´etodo Sociol´ogico (1894), ele op˜oe a ”pre- cis˜ao”da hist´oria `a ”confus˜ao”da etnografia, e se d´a como objeto de estudo ”as sociedades cujas cren¸cas, tradi¸c˜oes, h´abitos, direito, incorporaram-se em movimentos escritos e autˆenticos”. Mas, em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), ele revisa seu julgamento, considerando que ´e n˜ao apenas importante, mas tamb´em necess´ario estender o campo de investiga¸c˜ao da so- ciologia aos materiais recolhidos pelos etn´ologos nas sociedades primitivas. Sua preocupa¸c˜ao maior ´e mostrar que existe uma especificidade do social, e que conv´em conseq¨uentemente emancipar a sociologia, ciˆencia dos fenˆomenos sociais, dos outros discursos sobre o homem, e, em especial, do da psicologia. Se n˜ao nega que a ciˆencia possa progredir por seus confins, considera que na sua ´epoca ´e vantajoso para cada disciplina avan¸car separadamente e construir seu pr´oprio objeto. ”A causa determinante de um fato social deve ser bus- cada nos fatos sociais anteriores e n˜ao nos estados da consciˆencia individual”. Durkheim n˜ao procura de forma alguma questionar a existˆencia desta, nem a pertinˆencia da psicologia. Mas op˜oe-se `as explica¸c˜oes psicol´ogicas do social (sempre ”falsas”, segundo sua express˜ao). Assim, por exemplo, a quest˜ao da rela¸c˜ao do homem com o sagrado n˜ao poderia ser abordada psicologicamente estudando os estados afetivos dos indiv´ıduos, nem mesmo atrav´es de alguma psicologia ”coletiva”. Da mesma forma , que a linguagem, tamb´em fenˆomeno coletivo, n˜ao poderia encontrar sua explica¸c˜ao na psicologia dos que a falam, sendo absolutamente independente da crian¸ca que a aprende, ´e-lhe exterior, a precede e c´ontinuar´a existindo muito tempo depois de sua morte. Essa irredutibilidade do social aos indiv´ıduos (que ´e a pedra-de-toque de qual- quer abordagem sociol´ogica) tem para Durkheim a seguinte conseq¨uˆencia: os fatos sociais s˜ao ”coisas”que s´o podem ser explicados sendo relacionados a outros fatos sociais. Assim, a sociologia conquista pela primeira vez sua auto- nomia ao constituir um objeto que lhe ´e pr´oximo, por assim dizer arrancado ao monop´olio das explica¸c˜oes hist´oricas, geogr´aficas, psicol´ogicas, biol´ogicas. . . da ´epoca. Esse pensamento durkheimiano – que, observamos, ´e t˜ao funcionalista quanto o de Malinowski, mas n˜ao deve nada ao modelo biol´ogico – vai atrav´es de suas novas exigˆencias metodol´ogicas, renovar profundamente a epistemologia das ciˆencias humanas da primeira metade do s´eculo XX, ou, mais exatamente, das ciˆencias sociais destinadas a se separar destas. Vai exercer uma influˆencia consider´avel sobre a pesquisa antropol´ogica, particularmente na Inglaterra e evidentemente na Fran¸ca, o pa´ıs de Durkheim, onde, ainda hoje. nossa dis- ciplina n˜ao se emancipou realmente da sociologia.
  • 71. 69 Marcel Mauss (1872-1950) nasceu, como Durkheim, em Epinal, quatorze anos ap´os este, de quem ´e sobrinho. Suas contribui¸c˜oes te´oricas respecti- vas na constitui¸c˜ao da antropologia moderna s˜ao ao mesmo tempo muito pr´oximas e muito diferentes. Se Mauss faz, tanto quanto Durkheim, quest˜ao de fundar a autonomia do social, separa-se muito rapidamente do autor de As Regras do M´etodo Sociol´ogico a respeito de dois pontos essenciais: o es- tatuto que conv´em atribuir `a antropologia, e uma exigˆencia epistemol´ogica que hoje qualificar´ıamos de pluridisciplinar. Durkheim considerava os dados recolhidos pelos etnol´ogos nas sociedades ”primitivas”sob o ˆangulo exclusivo da sociologia, da qual a etnologia (ou antropologia) era destinada a se tornar uma ramo. Mauss vai trabalhar in- cansavelmente, durante toda sua vida (com Paul Rivet), para que esta seja reconhecida como uma ciˆencia verdadeira, e n˜ao como uma disciplina anexa. Em 1924, escreve que ”o lugar da sociologia”est´a ”na antropologia”e n˜ao o inverso,. Um dos conceitos maiores forjados por Mareei Mauss e o do fenˆomeno social total, consistindo na integra¸c˜ao dos diferentes aspectos (biol´ogico, econˆomico, jur´ıdico, hist´orico, religioso, est´etico. . .) constitutivos de uma dada reali- dade social que conv´em apreender em sua integralidade. ”Ap´os ter for¸cosamente dividido um pouco exageradamente”, escreve ele, ”´e preciso que os sociol´ogos se esforcem em recompor o todo”. Ora, prossegue Mauss, os fenˆomenos so- ciais s˜ao ”antes sociais, mas tamb´em conjuntamente e ao mesmo tempo fi- siol´ogicos e psicol´ogicos”. Ou ainda: ”O simples estudo desse fragmento de nossa vida que ´e nossa vida em sociedade n˜ao basta”. N˜ao se pode, ainda, afirmar que todo fenˆomeno social ´e tamb´em um fenˆomeno mental, da mesma forma que todo fenˆomeno mental ´e tamb´em um fenˆomeno social, devendo as condutas humanas ser apreendidas em todas as suas dimens˜oes, e particular- mente em suas dimens˜oes sociol´ogica, hist´orica e psicofisiol´ogica. Assim, essa ”totalidade folhada”, segundo a palavra de L´evi-Strauss, co- mentador de Mauss (1960), isto ´e, ”formada de uma multitude de planos distintos”, s´o pode ser apreendida na experiˆencia dos indiv´ıduos”. Devemos, escreve Mauss, ”observar o comportamento de seres totais, e n˜ao divididos em faculdades”. E a ´unica garantia que podemos ter de que um fenˆomeno social corresponda `a realidade da qual procuramos dar conta ´e que possa ser apreendido na experiˆencia concreta de um ser humano, naquilo que tem de ´unico:
  • 72. 70 CAP´ITULO 5. OS PRIMEIROS TE ´ORICOS DA ANTROPOLOGIA: ”O que ´e verdadeiro, n˜ao ´e a ora¸c˜ao ou o direito,e sim o melan´esio de tal ou tal ilha”. N˜ao podemos portanto alcan¸car o sentido e a fun¸c˜ao de uma institui¸c˜ao se n˜ao formos capazes de reviver sua incidˆencia atrav´es de uma consciˆencia individual, consciˆencia esta que ´e parte da institui¸c˜ao e portanto do social. Finalmente, para compreender um fenˆomeno social total, ´e preciso apreendˆe- lo totalmente, isto ´e, de fora como uma ”coisa”, mas tamb´em de dentro como uma realidade vivida. ´E preciso compreendˆe-lo alternadamente tal como o percebe o observador estrangeiro (o etn´ologo), mas tamb´em tal como os atores sociais o vivem. O fundamento desse movimento de desdobramento ininterrupto diz respeito `a especificidade do objeto antropol´ogico. ´E um ob- jeto de mesma natureza que o sujeito, que ´e ao mesmo tempo – emprestando o vocabul´ario de Mauss e Durkheim – ”coisa”e ”representa¸c˜ao”. Ora, o que caracteriza o modo de conhecimento pr´oprio das ciˆencias do homem, ´e que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esfor¸ca-se para viver nele mesmo a experiˆencia deste, o que s´o ´e poss´ıvel porque esse objeto ´e, tanto quanto ele, sujeito. Trabalhando inicialmente com uma abordagem semelhante `a de Durkheim, a reflex˜ao da Mauss desembocou, como vemos, em posi¸c˜oes muito diferen- tes. Estamos longe do distanciamento sociol´ogico que sup˜oe a metodologia durkheimiana, e pr´oximos da pr´atica etnogr´afica de Malinowski. Este ´ultimo ponto merece alguns coment´arios. Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, de Malinowski, e o Ensaio sobre o Dom, de Mauss, s˜ao publicados com um ano de intervalo (o primeiro em 1922, o segundo em 1923). As duas obras s˜ao muito pr´oximas uma da ou- tra. A segunda sup˜oe o conhecimento dos materiais recolhidos pelo etn´o- grafo. A primeira exige uma teoria que ser´a precisamente constitu´ıda pelo antrop´ologo. Os Argonautas s˜ao uma descri¸c˜ao meticulosa desses grandes circuitos mar´ıtimos transportando, nos arquip´elagos melan´esicos, colares e pulseiras de conchas: a kula. O Ensaio sobre o Dom ´e uma tentativa de esclarecimento e elabora¸c˜ao da kula, atrav´es da qual Mauss n˜ao apenas vi- sualiza um processo de troca simb´olica generalizado, mas tamb´em come¸ca a extrair a existˆencia de leis da reciprocidade (o dom e o contradom) e da comunica¸c˜ao, que s˜ao pr´oprias da cultura em si, e n˜ao apenas da cultura tro- briandesa. Enquanto Os Argonautas, a obra menos te´orica de Malinowski, evidencia o que Leach chama de ”inflex˜ao biol´ogica”, o Ensaio sobre o Dom j´a expressa preocupa¸c˜oes estruturais.
  • 73. 71 O fato de poder ser abordada de diferentes maneiras, de suscitar inter- preta¸c˜oes m´ultiplas, ou mesmo voca¸c˜oes diversas, ´e pr´oprio de toda obra importante, e a obra de Mauss est´a incontestavelmente entre estas. Muitos mestres da antropologia do s´eculo XX (estou pensando particularmente em Marciel Griaule, fundador da etnografia francesa, em Claude I.´evi-Strauss, pai do estruturalismo, em Georges Devereux, fundador da etnopsiquiatria) o consideram como seu pr´oprio mestre. Mauss ocupa na Fran¸ca um lugar bastante compar´avel ao de Boas nos Estados Unidos, especialmente para to- dos os que, influenciados por ele, procuraram promover a especificidade e a unidade das ciˆencias do homem.
  • 74. 72 CAP´ITULO 5. OS PRIMEIROS TE ´ORICOS DA ANTROPOLOGIA:
  • 75. Parte II As Principais Tendˆencias Do Pensamento Antropol´ogico Contemporˆaneo 73
  • 77. Cap´ıtulo 6 Introdu¸c˜ao: Com o trabalho efetuado pelos pais fundadores da etno-grafia – Boas, Ma- linowski, Rivers. . . – e pelos primeiros te´oricos da nova ciˆencia do social – Durkheim e Mauss –, podemos considerar que a antropologia entrou em sua maturidade. O que examinaremos agora s˜ao os desenvolvimentos contem- porˆaneos. N˜ao se trata evidentemente de apresentar aqui um panorama com- pleto desse per´ıodo que cobre mais de meio s´eculo (1930-1986), t˜ao grande ´e a diversidade e a riqueza do campo antropol´ogico explorado, e tamb´em porque nos falta distˆancia para fazer o balan¸co dos trabalhos que nos s˜ao propria- mente contemporˆaneos. Contentar-nos-emos, mais modestamente, em abrir algumas trilhas (mais pr´oximas da trilha do que da auto-estrada) que per- mitam destacar as tendˆencias dominantes do pensamento e da pr´atica dos antrop´ologos de nossa ´epoca. Podemos fazer isso de trˆes diferentes maneiras. 6.1 Campos De Investiga¸c˜ao A primeira via, que me recusarei a adotar por raz˜oes que come¸caram a ser expostas no in´ıcio desse livro, consistia em levantar as ´areas de investiga¸c˜ao e estudar os resul tados obtidos em cada uma ou em algumas delas. O desenvolvimento do pensamento cient´ıfico implica uma diferen cia¸c˜ao cres- cente dos campos do saber. A antropologia n˜ao apenas tende a progredir por disjun¸c˜ao em rela¸c˜ao `a filosofia, sociologia, psicologia, hist´oria. . . (po- dendo manter paralelamente canais e espa¸cos de articula¸c˜ao e confronto), mas avan¸ca, dentro de sua pr´opria pr´atica, especializando-se e instaurando at´e subespecialidades.1 1 Especialidades: antropologia das tecnologias, antropologia econˆomica, antropologia dos sistemas de parentesco, antropologia pol´ıtica, antropologia religiosa, antropologia art´ıstica, antropologia da comunica¸c˜ao, antropologia urbana, antropologia industrial. .. 75
  • 78. 76 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO: Se deixamos de lado essa primeira forma poss´ıvel de exposi¸c˜ao do campo antropol´ogico contemporˆaneo, ´e porque consideramos que uma disciplina cient´ıfica (ou que pretende sˆe-lo) n˜ao deva ser caracterizada por objetos emp´ıricos j´a constitu´ıdos, mas, pelo contr´ario, pela constitui¸c˜ao de objetos formais. Ou seja, a ´unica coisa pass´ıvel, a nosso ver, de definir uma disciplina (qualquer que seja), n˜ao ´e de forma alguma um campo de investiga¸c˜ao dado (a tecnologia, o parentesco, a arte, a religi˜ao. . .), muito menos uma ´area geogr´afica ou um per´ıodo da hist´oria, e sim a especificidade da abordagem utilizada que transforma esse campo, essa ´area, esse per´ıodo em objeto ci- ent´ıfico. 6.2 Determina¸c˜oes Culturais Uma segunda via, que apenas esbo¸caremos aqui, consistiria em mostrar o que a pesquisa do antrop´ologo deve `a cultura `a qual ele pr´oprio pertence. As condi¸c˜oes hist´oricas e sociais de produ¸c˜ao do saber antropol´ogico s˜ao eminentemente diversificadas, e n˜ao seria satisfat´orio relacion´a-las `apenas ao ”Ocidente”, como se este fosse um bloco homogˆeneo e Imut´avel. Mostrare- mos quais foram os caracteres culturais distintivos que marcavam profunda- mente e continuam influenciando v´arias sociedades nas quais o pensamento e a pr´atica (antropol´ogicas est˜ao hoje particularmente desenvolvidos. Limitur- nos-emos a trˆes: a antropologia americana, a britˆanica h francesa. A antropologia americana: Tendo tido um crescimento r´apido com o impulso especialmente do evolu- cionismo e de seu principal te´orico Lewis Morgan, pode ser caracterizada da seguinte maneira: 1) trata-se de um tipo de pesquisa que destaca a diversidade das culturas- , as varia¸c˜oes praticamente ilimitadas que aparecem quando se comparam as sociedades entre si. Esse estudo, conduzido mais a partir da observa¸c˜ao dos comportamentos individuais do que do funcionamento das institui¸c˜oes, visa evidenciar a especificidade das personalidades culturais, bem como das produ¸c˜oes culturais caracter´ısticas de uma etnia ou na¸c˜ao. Disso decorre a Subespecialidades: etnoling¨u´ıstica, etnomedicina, etnopsiquiatria, etnomusicologia, de que s´o se domina a pr´atica para uma ´area geogr´afica limitada.
  • 79. 6.2. DETERMINAC¸ ˜OES CULTURAIS 77 importˆancia, nos Estados Unidos, das rela¸c˜oes da etnologia com a psicologia ou a psican´alise: 2) a antropologia americana n˜ao se interessa apenas pelos processos de in- tera¸c˜ao entre os indiv´ıduos e sua cultura, mas tamb´em entre as pr´oprias1 culturas: forjou, em especial, o conceito de ”acultura¸c˜ao”ao qual voltaremos mais adiante; 3) nunca foi confrontada, ao contr´ario do que ocorreu na Fran¸ca e na Ingla- terra, aos processos da coloniza¸c˜ao e descoloniza¸c˜ao, mas, em contrapartida, aos problemas colocados por suas pr´oprias minorias (negra, ´ındia e portorri- quenha); 4) acrescentemos finalmente que se a antropologia americana contribuiu muito cedo em grande parte (Boas) para pˆor um fim `a arrogˆancia das reconstitui¸c˜oes hist´oricas especulativas, reatualizou e renovou ao mesmo tempo, em seus de- senvolvimentos contemporˆaneos, a abordagem evolucionista sob a forma do que ´e hoje chamado neo-evolucionismo A antropologia britˆanica: Seu crescimento, tamb´em muito r´apido, como nos Estados Unidos, deve ser relacionado `a importˆancia de seu imp´erio colonial. Pode ser caracterizada da seguinte maneira: 1) ´e uma antropologia antievolucionista, que se constituiu desde Malinowski em oposi¸c˜ao a uma compreens˜ao hist´orica do social (as reconstru¸c˜oes hi- pot´eticas dos est´agios, indo das sociedades ”primitivas”`as ”civilizadas”, bem como a abordagem da historiografia). Dedica-se preferencialmente `a inves- tiga¸c˜ao do presente a partir de m´etodos funcionais (Malinowski), e, em se- guida, estruturais (Radcliffe-Brown): uma sociedade deve ser estudada em si, independentemente de seu passado, tal como se apresenta no momento no qual a observamos. O modelo pode portanto ser qualificado de sincrˆonico, enquanto a pesquisa baseia-se no levantamento da totalidade dos aspectos que constituem uma determinada sociedade: a monografia; 2) ´e uma antropologia antidifusionista, o que a op˜oe `a antropologia ame- ricana, a qual se preocupa em compreender o processo de transmiss˜ao dos elementos de uma cultura para outra. Para a maioria dos pesquisadores ingleses, uma sociedade n˜ao deve ser explicada nem pelo que herda de seu passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos;
  • 80. 78 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO: 3) ´e uma antropologia de campo, que se desenvolve muito rapidamente, a partir do in´ıcio do s´eculo, com Malinowski e, antes, com Radcliffe-Brown, o qual ´e, mais ainda que Malinowski, um dos pais fundadores de quem a maio- ria dos antrop´ologos britˆanicos contemporˆaneos se considera sucessora. Esse car´ater emp´ırico (observa¸c˜ao direta de uma determinada sociedade, a partir de um trabalho exigindo longas estadias no campo) e indutivo da pr´atica dos antrop´ologos ingleses ap´oia-se numa longa tradi¸c˜ao britˆanica: o empirismo dos fil´osofos desse pa´ıs, que se pode opor ao racionalismo e ao idealismo do pensamento francˆes. Hoje ainda, um antrop´ologo que pode ser conside- rado como um dos mais importantes da Gr˜a-Bretanha, Leach, n˜ao hesita em qualificar-se de ”empirista”, e at´e de ”materialista”, e vˆe a abordagem de um L´evi-Strauss como tipicamente francesa: racionalista e idealista; 4) finalmente, ´e uma antropologia social que, ao contr´ario da antropologia americana, privilegia o estudo da organiza¸c˜ao dos sistemas sociais em detri- mento do estudo dos comportamentos culturais dos indiv´ıduos. A antropologia francesa: A Fran¸ca est´a praticamente ausente da cena da antropologia social e cul- tural da segunda metade do s´eculo XIX. Nenhum pesquisador francˆes teve, nessa ´epoca, a influˆencia de um Tylor (inglˆes) ou de um Morgan (americano). As preocupa¸c˜oes da antropologia francesa estavam voltadas para outra ´area. Quando se falava de antropologia, tratava-se da antropologia f´ısica, que era ent˜ao ilustrada pelos trabalhos de Broca, Quatrefages ou Topinard, que pu- blicou em 1876 uma obra intitulada simplesmente A Antropologia.2 Esse atraso da etnologia francesa – muito importante se considerarmos a intensa atividade que se desenvolvia do outro lado do canal da Mancha e do Atlˆantico – n˜ao ser´a recuperado no in´ıcio do s´eculo XX. Enquanto que um campo emp´ırico e te´orico consider´avel se constitu´ıa tanto nos Estados Unidos como na Gr´a-Bretanha; enquanto, nesses dois pa´ıses, administradores utili- zavam cada vez mais os servi¸cos de antrop´ologos formados nas universidades, a etnologia francesa dessa ´epoca permanecia ainda uma etnologia selvagem, que n˜ao era praticada por etn´ologos e sim por mission´arios e por alguns ad- 2 Notemos que Gobineau, que considera o estudo do homem apenas sob o ˆangulo da ra¸ca, nunca das culturas (Essai sur iln´egalit´e des Races Humaines, 1853) era francˆes. Lembremos tamb´em a importˆancia que teve a antropologia f´ısica e pr´e-hist´orica na Fran¸ca (em rela¸c˜ao notadamente `a influˆencia consider´avel exercida no final do s´eculo XIX pelas ciˆencias positivas e experimentais no pa´ıs de Pasteur e de Claude Bernard)
  • 81. 6.2. DETERMINAC¸ ˜OES CULTURAIS 79 ministradores de colˆonias francesas.3 Mais uma vez, as preocupa¸c˜oes francesas est˜ao voltadas para outros aspec- tos: trata-se dessa vez de preocupa¸c˜oes te´oricas de fil´osofos e soci´ologos que, sem d´uvida, exercer˜ao uma influˆencia decisiva na constitui¸c˜ao cient´ıfica da etnologia, mas n˜ao s˜ao sustentadas por nenhuma pr´atica etnogr´afica. Nem Durkheim (cujo pensamento vai impregnar profundamente a antropologia in- glesa), nem L´evy-Bruhl efetuaram qualquer observa¸c˜ao. O pr´oprio Mauss, que ´e paradoxalmente autor de uma excelente obra, manual de investiga¸c˜ao etnogr´afica (1967), nunca realizou uma investiga¸c˜ao no campo. Ser´a preciso esperar os anos 30 para que uma verdadeira etnografia pro- fissional comece a se constituir na Fran¸ca. A primeira miss˜ao de car´ater cient´ıfico (a famosa ”Dacar-Djibuti”) ser´a efetuada por Mareei Griaule e seus colaboradores em 1931. A partir da mesma ´epoca, Maurice Leenhardt, que permaneceu por mais de 20 anos na Nova Caledˆonia como mission´ario protestante, empreendeu trabalhos (1946, 1985) que podem ser qualificados de pioneiros, enquanto Paul Rivet passava a ser um dos principais artes˜aos da organiza¸c˜ao da antropologia no nosso pa´ıs. A partir dessa ´epoca, mas s´o a partir dela, pode-se considerar que, com o impulso especialmente dos homens que acabamos de citar, a antropologia francesa entrou em sua maturi- dade. A partir desse momento, as pesquisas foram prosseguindo, estendendo o aprofundando-se em um ritmo ininterrupto. Seria dif´ıcil, principalmente em algumas frases, caracterizar os desenvolvi- mentos propriamente contemporˆaneos dessa pesquisa francesa, cuja riqueza n˜ao tem mais nada a invejar dos Estados Unidos ou da Inglaterra. Lembre- mos apenas aqui alguns aspectos relevantes: • as preocupa¸c˜oes te´oricas dos antrop´ologos franceses que aparecem par- ticularmente quando confrontamos seus trabalhos (e debates) `a pr´atica da antropologia anglo-saxˆonica, freq¨uentemente mais emp´ırica; • um objeto de predile¸c˜ao que ´e o estudo dos sistemas de ”representa¸c˜oes” 3 Clozel e Delafosse estudaram no in´ıcio do s´eculo o sistema jur´ıdico das popula¸c˜oes do Sud˜ao. O segundo se tornou professor na Escola Colonial. diretor da Revue d’Ethnographie e co-fundador do Institu´ı d’Ethno-logie de Paris (1924). Publicou notada- mente Les Noirs de 1’Afrique e L’Ame N`egre (1922). Entre os pioneiros desse africanismo francˆes principiante, conv´em lembrar os noves de Tauxier, Monteil, Labouret, que s˜ao administradores coloniais eruditos, e sobretudo ]unod, mission´ario da Su´ı¸ca romanche
  • 82. 80 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO: (particularmente a religi˜ao, a mitologia, a literatura de tradi¸c˜ao oral), termos que devemos a Dur-kheim, enquanto L´evy-Bruhl j´a se interes- sava pelo que chamava de ”mentalidades”; • uma renova¸c˜ao metodol´ogica, com o impulso especialmente: 1) do estruturalismo (do qual L´evi-Strauss ´e evidentemente o representante mais ilustre), 2) de pesquisas conduzidas dentro da perspectiva do marxismo; • um crescimento muito recente, mas apoiado em uma s´olida tradi¸c˜ao, da etnografia, da museografia e da etnologia da pr´opria sociedade francesa, em suas diversidades e muta¸c˜oes. 6.3 Os Cinco P´olos Te´oricos Do Pensamento Antropol´ogico Contemporˆaneo Uma terceira via deter´a mais nossa aten¸c˜ao. ´E para essa que finalmente optaremos, e ´e a partir dela que se organizar´a a segunda parte desse li- vro. Pareceu-nos que, desde sua conslitui¸c˜ao enquanto disciplina de voca¸c˜ao cient´ıfica,4 a antropologia oscila entre v´arios p´olos te´oricos que aparecem freq¨uentemente como exclusivos uns dos outros, mas s˜ao de fato pontos de vista diferentes sobre a mesma realidade. Tentaremos, portanto, dar conta do desenvolvimento contemporˆaneo da an- tropologia, n˜ao nos colocando mais do lado dos territ´orios particulares (ter- rit´orios tem´aticos como a antropologia econˆomica, a antropologia religiosa, a antropologia urbana), nem do lado das colora¸c˜oes nacionais, explicativas das tendˆencias culturais da pr´atica dos pesquisadores, mas do lado dos m´etodos de investiga¸c˜ao. A pluralidade dos modelos mobilizados e utilizados n˜ao tem, a meu ver, nada de desvantajoso. E seria errˆoneo atribuir exclusivamente a impress˜ao de cacofonia que d˜ao freq¨uentemente os congressos e reuni˜oes de antrop´ologos 4 As funda¸c˜oes antropol´ogicas de Morgan, o aperfei¸coamento de instrumentos de inves- tiga¸c˜ao verdadeiramente etnogr´aficos com Boas, Rivers e Malinowski, a elabora¸c˜ao de um quadro de referˆencia conceitual com Mauss e Durkheim
  • 83. 6.3. OS CINCO P ´OLOS TE ´ORICOS DO PENSAMENTO ANTROPOL ´OGICO CONTEMPOR ˆANE a uma imaturidade cient´ıfica e ao car´ater ainda principiante de nossa disci- plina. Novamente, procurando estudar a pluralidade, seria o c´umulo se a antropologia n˜ao fosse ela mesma ”plural”. A pluralidade ´e pelo contr´ario para mim, uma das garantias (n˜ao a ´unica evidentemente, pois pode haver pluralidade de dogmatismos e ortodoxias) de que nossas pesquisas aceitam sujeitar-se a cr´ıticas rec´ıprocas e passar por processos de invalida¸c˜ao (cf. K. Popper, 1937), cada um dos modelos te´oricos sendo apenas uma perspectiva sobre o social e n˜ao o pr´oprio social. Em As Palavras e as Coisas, Michel Foucault distingue o que ele chama de trˆes ”regi˜oes epistemol´ogicas”, em torno das quais se constitu´ıram, a partir do s´eculo XIX, os diferentes saberes positivos sobre o homem: a biologia, ciˆencia do ser vivo; a economia, ciˆencia da produ¸c˜ao e das rela¸c˜oes de produ¸c˜ao; a filologia, ciˆencia da linguagem e de suas diversas express˜oes (mitologias, li- teraturas, tradi¸c˜oes orais. . .). Mais precisamente, diz Foucault: • a biologia ´e o estudo das fun¸c˜oes do homem nas suas regula¸c˜oes fi- siol´ogicas e nos seus processos de adapta¸c˜ao, bem como o estudo das normas reguladoras dessas fun¸c˜oes; • a economia ´e o estudo dos conflitos entre o homens, a partir das rela¸c˜oes sociais do trabalho, bem como das regras que permitem controlar esses conflitos; • a filologia ´e o estudo do sentido que elaboramos em nossos discursos, bem como do sistema que constitui sua coerˆencia. A ”regi˜ao”biol´ogica, considera Foucault (1966), encontra um de seus pro- longamentos no campo psicol´ogico que estuda nossos processos neuromoto- res, mas tamb´em nossa aptid˜ao em elaborar fantasias e representa¸c˜oes. `A ”regi˜ao”econˆomica pertence o campo sociol´ogico que explora as rela¸c˜oes de poder. Finalmente, a ´ultima regi˜ao vai dar lugar ao espa¸co ling¨u´ıstico, `as disciplinas que chamamos hoje de ciˆencias da comunica¸c˜ao, que se d˜ao como objeto a an´alise de todas as manifesta¸c˜oes escritas, orais e gestuais. O que ´e importante notar, ainda de acordo com o autor de /ls Palavras e as Coisas, ´e: 1) o car´ater inconsciente das normas, das regras e dos sistemas, em rela¸c˜ao `as fun¸c˜oes, aos conflitos e `as significa¸c˜oes; 2) o fato de que esses diferentes pares conceituais (fun¸c˜ao/norma, conflito/regra,
  • 84. 82 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO: sentido/sistema) podem deslocar-se para fora dos territ´orios nos quais apa- receram. Assim, por exemplo, o estudo do social tende a apreender o homem em termos de regras e conflitos. Mas tamb´em pode ser conduzido a partir dos conceitos de fun¸c˜oes e normas (Durkheim, Malinowski) ou a partir do sentido e do sistema (Griaule, L´evi-Strauss). Dispondo dessa orienta¸c˜ao, o que procurarei mostrar agora, falando em meu nome pessoal, ´e que: 1) o objeto da antropologia ´e t˜ao complexo que n˜ao podia dotar-se de um ´unico modo de acesso sem correr o risco do esp´ırito de ortodoxia. E efe- tivamente, no per´ıodo de aproximadamente meio s´eculo que estudaremos, veremos nossa disciplina utilizando sucessiva ou simultaneamente v´arios mo- dos de acesso. 2) a reflex˜ao antropol´ogica n˜ao pode deixar de lado o conceito de incons- ciente, forjado no ˆambito do discurso psicanal´ıtico, mas do qual este n˜ao tem evidentemente o monop´olio. Somente o car´ater inconsciente das normas, regras e sistemas nos permite compreender que a partir dos trˆes campos do saber determinados por Michel Foucault estaremos confrontados com pesqui- sas etnol´ogicas de car´ater emp´ırico e a pesquisas preocupadas da constru¸c˜ao de seu objeto cient´ıfico; o qual nunca ´e dado, e sim conquistado, sendo por assim dizer arrancado da percep¸c˜ao consciente imediata tanto dos atores so- ciais quanto das observadoras do social. Levando em conta o que foi dito, parece a meu ver poss´ıvel localizar cinco p´olos em torno dos quais a antropologia oscila constantemente. 1) A antropologia simb´olica. Seu objeto ´e essa regi˜ao da linguagem que cha- mamos s´ımbolo e que ´e o lugar de m´ultiplas significa¸c˜oes,5 que se expressam em especial atrav´es das religi˜oes, das mitologias e da percep¸c˜ao imagin´aria do cosmos. Esse primeiro eixo da pesquisa caracteriza-se mais, como vere- mos, por um tipo de preocupa¸c˜oes do que por um m´etodo propriamente dito. Trata-se de apreender o objeto que se pretende estudar do ponto de vista do sentido. O que significam as institui¸c˜oes ou os comportamentos que encon- tramos em tal sociedade? O que se pode dizer a respeito daquilo que uma sociedade expressa atrav´es da l´ogica de seus discursos? 5 Sobre a defini¸c˜ao antropol´ogica do s´ımbolo, autorizo-mo a indicar meu livro t.es 50 Mots Cl´es de /’Anthropologie. Toulouse. Privai, 1974.
  • 85. 6.3. OS CINCO P ´OLOS TE ´ORICOS DO PENSAMENTO ANTROPOL ´OGICO CONTEMPOR ˆANE 2) A antropologia social. Seu objeto situa-se claramente no campo epis- temol´ogico oriundo da economia (cf. acima M. Foucault). Nada distingue realmente seu territ´orio do territ´orio do soci´ologo. Um dos conceitos ope- rat´orios a partir do qual essa perspectiva de in´ıcio se instaurou, ´e o de fun¸c˜ao (Malinowski, mas tamb´em Durkheim), freq¨uentemente ligado ao estudo dos processos de normaliza¸c˜ao destas fun¸c˜oes (= as institui¸c˜oes). ´E um eixo de pesquisa que n˜ao se interessa diretamente para as maneiras de pensar, conhecer, sentir, expressar-se, em si, e mais para a organiza¸c˜ao interna dos grupos, a partir da qual podem ser estudados o pensamento, o conhecimento, a emo¸c˜ao, a linguagem. Qual a finalidade de tal institui¸c˜ao? Para que serve tal costume? A que classe social pertence aquele que tem tal discurso, e qual ´e o n´ıvel de integra¸c˜ao dessa classe na sociedade global? 3) A antropologia cultural. Seja o modelo utilizado, biol´ogico, psicol´ogico (Kardiner, 1970), ou ling¨u´ıstico (Sapir, 1967), ´e uma antropologia freq¨uente- mente emp´ırica, que se situa do lado da fun¸c˜ao ou, mais ainda, do sentido, em detrimento da norma e do sistema. Mas o que permite essencialmente caracterizar essa tendˆencia de nossa disciplina ´e o crit´erio da continuidade ou descontinuidade entre a natureza e a cultura de um lado, e entre as pr´oprias culturas, de outro. a) Enquanto autores como Bateson ou L´evi-Strauss, de quem falaremos adi- ante, esfor¸cam-se em pensar a continuidade (ou, mais exatamente, no caso de L´evi-Strauss, a articula¸c˜ao) entre a ordem da natureza e a da cultura, os que chamamos ”aculturalistas”, com autores de quem est˜ao, no que diz respeito ao essencial, muito afastados, como Evans-Pritchard ou Devereux, privilegiam claramente a solu¸c˜ao da descontinuidade. b) Enquanto um grande n´umero de antrop´ologos salienta a universalidade da cultura (para Morgan, as sociedades s´o s˜ao pens´aveis porque pertencem a um tronco comum, para Malinowski, h´a uma permanˆencia das fun¸c˜oes, e para Devereux uma ”universalidade da cultura”), os culturalistas mais uma vez, sobretudo a respeito disso, privilegiam a des-continuidade, isto ´e a coerˆencia interna e a diferen¸ca irredut´ıvel de cada cultura. c) A antropologia estrutural e sistˆemica. Estudaremos aqui n˜ao s´o uma, mas v´arias correntes do pensamento antropol´ogico. Uns utilizam um modelo psicanal´ıtico; outros um modelo proveniente do que Foucault designa como o campo epistemol´ogico da economia (Mauss elabora, como vimos, as regras explicativas da troca); outros finalmente, os mais numerosos, escolhem um modelo ling¨u´ıstico, matem´atico, cibern´etico (L´evi-Strauss, Bateson). Mas
  • 86. 84 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO: qualquer que seja o modelo adotado, ele realiza uma passagem do consciente para o inconsciente: passagem da fun¸c˜ao para a norma (Roheim), do conflito para a regra (Mauss), do sentido para o sistema (L´evi-Strauss). Enquanto nos situ´avamos por exemplo do lado da fun¸c˜ao, o alteridade sempre corria o risco de ser considerada (e rejeitada) no espa¸co da extraterritoriali- dade: ao lado, fora. isto ´e, para sempre diferente. Assim, para a psicologia pr´e-freudiana, o normal e o anormal n˜ao tˆem nada em comum. Para a et- nologia de L´evy-Bruhl (1933), existe uma ”mentalidade primitiva”exclusiva de tudo que ´e pr´oprio do homem da l´ogica. Para Griaule, finalmente (1966), `as institui¸c˜oes e mitologias plenamente significantes da ´Africa tradicional, op˜oe-se a insignificˆancia do Ocidente industrial. Invers˜ao de perspectiva neste caso, em rela¸c˜ao ao anterior, mas que se inscreve no mesmo horizonte epistemol´ogico. Ao contr´ario, quando a atividade epistemol´ogica come¸ca a situar-se do lado da norma (e n˜ao mais da fun¸c˜ao), da regra (e n˜ao mais do conflito), do sistema (e n˜ao mais do sentido), n˜ao ´e mais poss´ıvel pensar que os doentes mentais s˜ao ”loucos”, a ”mentalidade primitiva”, ”absurda”, e os mitos ”insignificantes”. O que desmorona, ent˜ao, ´e a pertinˆencia dos pares antinˆo-micos do normal e do patol´ogico, do l´ogico e do il´ogico, do sentido e do n˜ao-sentido. Se insistimos tanto desde j´a sobre esse quarto p´olo da pesquisa, ´e porque, com ele, o campo epistemol´ogico do sabei sobre o homem muda radicalmente pela segunda vez desde o final do s´eculo XVIII (cf. p. 53 deste livro). E ´e, de fato, em torno das obras de Freud (o inconsciente explicativo do cons- ciente), Saussure, e depois Jakobson (a l´ıngua explicativa da palavra), de L´evi-Strauss e dos estruturalistas (a prio ridade dada ao sistema sobre o sentido), que se reorganizar´a o conhecimento antropol´ogico contemporˆaneo. Na antropo logia psicanal´ıtica, como na antropologia estrutural, estima-se que al´em da surpreendente diversidade das forma¸c˜oes psicol´ogicas ou das produ¸c˜oes culturais localizadas a n´ıvel emp´ırico existe o que Bastian j´a cha- mava de ”unidade ps´ıquica da humanidade”. Mas esta deve doravante ser pensada, n˜ao mais ao n´ıvel das significa¸c˜oes vividas, mas ao n´ıvel do sistema (inconsciente). Uma das principais quest˜oes que se colocar´a ent˜ao ´e a se- guinte: quais s˜ao as estruturas inconscientes do esp´ırito que atuam, tanto nas formas elementares e complexas do parentesco, quanto no mito, na obra de arte?. . . 5) A antropologia dinˆamica. Reunimos nesse termo um eixo da pesquisa antropol´ogica contemporˆanea que se situa no horizonte do que Foucault6 chama de campo sociol´ogico, e que procura estudar as rela¸c˜oes de poder.
  • 87. 6.3. OS CINCO P ´OLOS TE ´ORICOS DO PENSAMENTO ANTROPOL ´OGICO CONTEMPOR ˆANE As interroga¸c˜oes dos autores dos quais trataremos n˜ao est˜ao distantes das da sociologia, e alguns inclusive preferem qualificar-se de sociol´ogos. Uma das caracter´ısticas de suas contribui¸c˜oes para a antropologia do s´eculo XX, e mais especificamente, da segunda metade do s´eculo XX, consiste, a meu ver, em reorientar a antropologia social, operando uma ruptura total com o funcionalismo em seus pressupostos, ao mesmo tempo a hist´oricos (socieda- des im´oveis que podem ser estudadas como se a coloniza¸c˜ao n˜ao existisse) e finalistas (institui¸c˜oes visando satisfazer as necessidades). Para esses au- tores, pelo contr´ario, conv´em n˜ao isolar essa ´area particular do homem que seria a hist´oria. Esta ´e parte integrante do campo antropol´ogico. Por isso, as quest˜oes colocadas s˜ao as seguintes: qual ´e a dinˆamica de tal sistema so- cial? De onde vem? Quais s˜ao as modalidades atuais de suas transforma¸c˜oes? Esses cinco p´olos em torno dos quais se organiza a antropologia contem- porˆanea n˜ao tˆem nada de exclusivo. S˜ao tendˆencias de pesquisa que podem coexistir dentro de uma mesma escola de pensamento, ou mesmo de um ´unico pesquisador.7 A escolha da pieeminˆencia do que Devereux (1972) chamou de motivo ope- rante (ou modelo epistemol´ogico principal, constitutivo da abordagem ado- tada) – o qual pode ser exclusivo (ou n˜ao) do lugar concedido a um motivo instrumental (ou modelo de investiga¸c˜ao complementar) –explica os deba- tes, ou at´e as discuss˜oes, a que assistimos n˜ao apenas entre disciplinas, mas tamb´em dentro de uma mesma disciplina. A incompreens˜ao entre os pesqui- sadores pode se tornar total, se estes n˜ao tiverem plena consciˆencia do falo de que efetuam respectivamente escolhas metodol´ogicas, que constituem diver- sas perspectivas poss´ıveis visando dar conta de um mesmo objeto emp´ırico. 7 Assim, por exemplo, o come¸co da obra de Malinowski aparece como muito pr´oximo da antropologia cultural. Evidenciando a especificidade da sociedade trobriandesa (1963), e afirmando em seguida a n˜ao-existˆencia do complexo de ´Edipo nessa popula¸c˜ao melan´esia (1967-1970), exerceu uma influˆencia evidente (cf.. por exemplo, Kardiner, 1970) sobre os culturalistas americanos. Mas. no final de sua vida (1968h a universalidade da fun¸c˜ao superou finalmente a particularidade das culturas. Considerando agora a obra de L´evi- Strauss, esta situa-se, se a examinarmos do ponto de vista- dos objetos preferencialmente estudados (os mitos), do lado do que chamamos de antropologia simb´olica. Mas seu projeto diz respeito `a antropologia social (´e o nome do laborat´orio que L´evi-Strauss chefiou no Coll`ege de Francel e sua abordagem pertence evidentemente (e ´e at´e constitutiva dele) ao quarto eixo de pesquisa definido acima. Existem portanto afinidades entre, por exemplo, a antropologia cultural e a antropo- logia funcional (Malinowski), entre a antropologia estrutural e a antropologia dinˆamica (Godelier. 1973). Em compensa¸c˜ao, ´e dif´ıcil imaginar como se poderia conciliar uma antropologia baseada na no¸c˜ao de integra¸c˜ao social (Malinowski) e uma antropologia de orienta¸c˜ao dinˆamica (Balandier) ou psicanal´ıtica (Devereux).
  • 88. 86 CAP´ITULO 6. INTRODUC¸ ˜AO: Esse problema diz respeito em especial `a quest˜ao da transferˆencia dos mo- delos em antro pologia. Estes podem ser, por exemplo, biol´ogicos (Spencer. Comte, Malinowski), hist´oricos (Morgan), ling¨u´ısticos ou. como se diz hoje, ”informacionais”(a antropologia estrutural e sistˆemica referindo-se `as no¸c˜oes de mensagens, c´odigos e programas), psicol´ogicos (a introdu¸c˜ao dos conceitos de inibi¸c˜ao, repress˜ao e sublima¸c˜ao para pensar o social). Conv´em, se qui- sermos escapar daquilo que ´e freq¨uentemente apenas um di´alogo de surdos, nunca esquecer que se trata somente de modelos, isto ´e, de instrumentos da pesquisa que visam explicar o real, mas n˜ao podem subsiitu´ı-lo, pois este, em termos cient´ıficos, s´o pode ser, segundo a express˜ao de Bachelard, ”aproxi- mado”.
  • 89. Cap´ıtulo 7 A Antropologia Dos Sistemas Simb´olicos Foi a antropologia que se empenhou essencialmente em mostrar a l´ogica pre- cisa dos sistemas de pensamento mitol´ogicos, teol´ogicos, cosmol´ogicos, que s˜ao os das sociedades qualificadas de ”tradicionais”. Toda uma corrente de pesquisas aparece na Fran¸ca, particularmente representativa dessas preo- cupa¸c˜oes: ´e a que, a partir dos anos 30, leva Mareei Griaule e seus colabo- radores a efetuar estudos sistem´aticos, primeiro da mitologia dos Dogons, e depois, da religi˜ao dos Bambaras. Esses trabalhos1 v˜ao marcar duradoura- mente, n˜ao apenas o africanismo francˆes, mas tamb´em a pr´atica etnol´ogica dos pesquisadores franceses. Deixando de lado, por assim dizer, a com- preens˜ao das rela¸c˜oes de poder entre os diferentes protagonistas de uma sociedade (assunto da antropologia social, de que trataremos no pr´oximo cap´ıtulo), estes orientam sua aten¸c˜ao para os seguintes aspectos: o estudo das produ¸c˜oes simb´olicas (artesanato), a literatura de tradi¸c˜ao oral (mitos, contos, lendas, prov´erbios. . .) e dos instrumentos atrav´es dos quais essas produ¸c˜oes se constituem (particularmente as l´ınguas); o estudo da l´ogica dos saberes (filos´oficos, religiosos, art´ısticos, cient´ıficos) existentes num grupo (o que abre o caminho para uma antropologia do conhecimento e para o que hoje qualificamos de ”etnociˆencias”). em suma, de tudo que Griaule e seus sucessores chamam de ”filosofia”das sociedades dogon, bambara. . . tal como se expressa atrav´es dos mitos e est´orias tradicionais, da m´usica, dos cantos, dan¸cas, m´ascaras e outros objetos culturais. Para o conjunto dos etn´ologos, e para Griaule em especial, esse pensamento 1 Cf., por exemplo, M. Griaule (1938, 1966). G. Dielerlcn (1951, 1972), D. Paulme, 1962), M. Griaule e G. Dieterlen (1965). D Zahan (1960, 1963), G. Calame-Griaule (1965). etc. 87
  • 90. 88 CAP´ITULO 7. A ANTROPOLOGIA DOS SISTEMAS SIMB ´OLICOS simb´olico e as pr´aticas rituais a ele relacionados2 e que constituem com ele o patrimˆonio do grupo, n˜ao se caracterizam apenas por sua profunda coerˆencia – os sistemas de correspondˆencia extremamente precisos entre os vivos e os mortos, o homem e o animal, a natureza e a cultura. . . S˜ao elabora¸c˜oes grandiosas, de uma complexidade e riqueza inestim´aveis. E ´e precisamente esse esplendor e essa grandeza (dos mitos, ritos, m´ascaras. . .) que acabam impondo-se ao observador ocidental, e que far˜ao em es- pecial, das fal´esias de Bandiagara (Mali) e de seus habitantes (os Dogons), ap´os os ´ındios, os abor´ıgines australianos e os trobriandeses, um dos mais importantes lugares da antropologia. Como estamos longe do tempo era que Morgan considerava que ”todas as religi˜oes primitivas s˜ao grotescas e de alguma forma inintelig´ıveis”. Mas como estamos longe tamb´em das aprecia¸c˜oes que s˜ao no entanto as de mui- tos pesquisadores contemporˆaneos de Griaule. De Frazer, por exemplo, que, interrogando-se sobre os mitos e as pr´aticas rituais aos quais havia no en- tanto dedicado sua vida, escreve: ”loucuras, v˜aos esfor¸cos, tempo perdido, esperan¸cas frustradas”. Ou de L´evy-.Bruhl, que anota em seus Carnets: os mitos s˜ao ”est´orias estranhas, para n˜ao dizer absurdas e incompreens´ıveis”, e acrescenta: ”´E preciso um esfor¸co para se interessar por eles”. Toda essa tendˆencia do pensamento antropol´ogico de que procuramos aqui dar conta coloca-se (a partir de observa¸c˜oes minuciosas) contra esses julga- mentos. Da mesma forma, op˜oe-se totalmente `a busca de uma determina¸c˜ao pela economia, que explicaria a fun¸c˜ao dos mitos dentro do sistema social. As pr´aticas simb´olicas em quest˜ao n˜ao tˆem de ser fundamentadas sociologica- mente, pois s˜ao, pelo contr´ario, fundadoras da ordem c´osmica e social. S˜ao elas que devem ser tomadas como fundamentais, se aceitarmos finalmente compreendˆe-las de dentro, impregnando-nos de sua sabedoria, recolhendo o mais fielmente poss´ıvel o discurso dos iniciados, e n˜ao projetando, de fora, categorias caracteristicamente ocidentais. Percebe-se ent˜ao que o conjunto do edif´ıcio das sociedades africanas baseia-se numa filosofia (cf., por exemplo, Tempels, 1949) e at´e numa ”ontologia”que comanda a concep¸c˜ao toda que se tem do mundo e das rela¸c˜oes dos homens na sociedade. 2 O interesse para a ´area dos mitos, dos ritos de inicia¸c˜ao, da religi˜ao e da magia aparece como uma constante da antropologia francesa do conjunto do s´eculo XX. Cf. por exemplo Durkheim (1979), M. Mauss (1960), A. Van Gennep (1981), M. Leiris (1958), A. M´etraux (1958), R. Bastide (1958), J. Rouch (1960), L. de Heusch (1971), C. L´evi-Strauss (1964), L. V. Thomas e R. Luneau (1975), G. Durand (1975), [. Favrct-Saada (1977), M. Aug´e (1982).
  • 91. 89 Uma abordagem muito pr´oxima orienta as pesquisas efetuadas por Mau- rice Leenhardt (um dos primeiros etn´olo-gos franceses de campo, com Gri- aule) na Nova Caledˆonia. Em Do Kamo, a Pessoa e o Mito no Mundo Melan´esio (1985), apresentado como um ”longo caminhar pelas trilhas cana- ques, atrav´es do pensamento dos insulares, de sua no¸c˜ao de espa¸co, de tempo, de sociedade, de palavra, de personagem”, Leenhardt considera que o mito ´e fundador da ”vida e da a¸c˜ao do homem e da sociedade”. Cr´ıticas n˜ao faltaram a essa antropologia que tem de fato tendˆencia a apre- ender as representa¸c˜oes (religiosas, narrativas, art´ısticas. . .) como uma ´area ”`a parte”. Dedicando exclusivamente sua aten¸c˜ao ao ”s´ot˜ao”, deixando de se interessar pelo que acontece ”na adega”, ela efetua a reconstitui¸c˜ao dos sistemas de pensamento e conhecimento em si pr´oprios. As rela¸c˜oes que estes mantˆem com as rela¸c˜oes sociais, pol´ıticas, econˆomicas da sociedade em um determinado momento de sua hist´oria s˜ao consideradas secund´arias, quando n˜ao s˜ao pura e simplesmente ocultadas. N˜ao se pensa um s´o instante, por exemplo, na hip´otese de que as sociedades tradicionais possam, como diz Althusser, ”ser movidas `a ideologia”. Assim sendo, o discurso etnol´ogico tende a confundir-se com a teoria que a sociedade estudada elabora para dar conta de si pr´opria. Trata-se evidentemente mais que de uma renova¸c˜ao: de uma invers˜ao de perspectivas em rela¸c˜ao `a arrogˆancia dos julgamentos ocidentalocˆentricos sobre o primitivo. Mas ser´a que essa abordagem que se limita a recolher as representa¸c˜oes conscientes dos mais s´abios entre os inici- ados locais pode servir de explica¸c˜ao antropol´ogica? O que conv´em destacar ´e que essa tendˆencia da etnologia cl´assica inscreve-se num projeto de reabilita¸c˜ao das formas de pensamento e express˜ao que n˜ao s˜ao as nossas. Mostra que, fora o saber cient´ıfico, o ´unico a beneficiar de uma plena legitima¸c˜ao no Ocidente do s´eculo XX, existem outras formas de conhecimento tamb´em autˆenticas. Esse protesto para o direito `a existˆencia de identidades culturais e espirituais (o que Senghor, por exemplo, chamar´a de ”metaf´ısica negra”), negadas pelas pr´aticas coloniais e que coincide com a descoberta de ”arte negra”, ´e profundamente subversivo na primeira me- tade do s´eculo XX. Finalmente, se n˜ao existe nenhuma teoria griauliana propriamente dita (retomamos mais uma vez o exemplo de Griaule porque ele nos parece o mais representativo dessa abordagem), n˜ao deixa de haver um ac´umulo de pesquisas extremamente aprofundadas que contribu´ıram em dar `a etnologia francesa seu prest´ıgio, um trabalho consider´avel sem o qual a antropologia provavelmente n˜ao seria o que ´e hoje.
  • 92. 90 CAP´ITULO 7. A ANTROPOLOGIA DOS SISTEMAS SIMB ´OLICOS
  • 93. Cap´ıtulo 8 A Antropologia Social: Os princ´ıpios da antropologia social, tal como se elabora especialmente na In- glaterra com o impulso de Malinowski e sobretudo de Radcliffe-Brown (1968), n˜ao deixam de lembrar os princ´ıpios da antropologia simb´olica. Esta insistia, como acabamos de ver, na coerˆencia l´ogica dos sistemas de pensamento. A antropologia social, por sua vez, come¸ca destacando a coes˜ao das institui¸c˜oes, o car´ater integrativo da fam´ılia, da moral, e sobretudo da religi˜ao (Durkheim, 1979). Mas essas duas perspectivas s˜ao muito diferentes. Essa alteridade da qual procurava-se mostrar o significado profundo (cap´ıtulo anterior), e tamb´em o valor inestim´avel, pode ser tamb´em encontrada dentro de cada sociedade, t˜ao grande ´e a diferencia¸c˜ao interna dos grupos sociais que comp˜oem uma mesma cultura. Assim, se o interesse para os sistemas de representa¸c˜oes (mi- tologia, magia, religi˜ao. . .) permanece, ´e para mostrar o lugar e a fun¸c˜ao que s˜ao seus dentro de um conjunto maior: a sociedade global em quest˜ao. O que ´e ent˜ao tomado como explicativo precisa ser explicado. A antropologia simb´olica realiza em muitos aspectos uma redundˆancia sofisticada daquilo que era dito pelos pr´oprios fatores sociais, ou, mais precisamente, pelos de- posit´arios habilitados do saber de uma parte do grupo. Perguntamo-nos agora: o que mostram, mas tamb´em dissimulam, esses discursos suntuosos que expressam menos a sociedade em sua realidade do que a sociedade em seu ideal? Assim, ao estudo da cultura como sistema de rela¸c˜oes vividas, Malinowski, um dos primeiros, pede que se substitua o estudo da sociedade como sistema de rela¸c˜oes reais, que escapam aos atores sociais: ”Os objetivos sociol´ogicos nunca est˜ao presentes no esp´ırito dos ind´ıgenas”. O antrop´ologo ´e que deve descobrir as leis de funcionamento da sociedade. As produ¸c˜oes simb´olicas s˜ao simultaneamente produ¸c˜oes sociais que sempre 91
  • 94. 92 CAP´ITULO 8. A ANTROPOLOGIA SOCIAL: decorrem de pr´aticas sociais. N˜ao devem ser estudadas em si-, mas enquanto representa¸c˜oes do social. Este ´ultimo termo, consagrado por Durkheim, vai exercer um papel consider´avel, particularmente na constitui¸c˜ao de uma an- tropologia social da religi˜ao. Quando se diz nessa perspectiva que a religi˜ao (da mesma forma que a arte ou a magia) ´e uma ”representa¸c˜ao”, sublinha-se que n˜ao se deve atribuir-lhe nenhuma existˆencia autˆonoma pois est´a vincu- lada a uma outra coisa, capaz de explic´a-la: as rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, de parentesco, as rela¸c˜oes entre faixas de idade, entre grupos sexuais, todos es- tes n´ıveis de realidade, mas que s˜ao sempre rela¸c˜oes de poder encontrando ao mesmo tempo sua express˜ao e sua justifica¸c˜ao nesse saber integrativo e totalizante por excelˆencia que ´e a religi˜ao.1 Uma outra caracter´ıstica desse segundo eixo de pesquisa, estreitamente vin- culada ao que acabamos de dizer, merece ser sublinhada: um certo n´umero de autores, e n˜ao dos menores (Radcliffe-Brown (1968), Evans-Pritchard (1969), ou ainda na Fran¸ca, para o per´ıodo contemporˆaneo, Rogei Bastide (1970), Henri Desroche (1973), Georges Balandier (1974), Louis-Vincent Thomas (1975)), recusam-se a conceder uma pertinˆencia `a distin¸c˜ao entre a antro- pologia social e a sociologia. A antropologia social n˜ao ´e profundamente diferente da sociologia, considera Radcliffe-Brown. ´E uma ”sociologia com- parativa”. Evans-Pritchard, por sua vez, (1969) escreve: ”A antropologia social deve ser considerada como fazendo parte dos estudos sociol´ogicos. ´E um ramo da sociologia cujo estudo se liga mais especifica- mente `as sociedades primitivas”. Para ilustrar seu ponto de vista, diametralmente oposto ao de Mauss, esse autor utiliza o exemplo de um processo que confronta juizes, jurados, teste- munhas, advogados e r´eu: ”No decorrer desse processo, os pensamentos e sentimentos do r´eu, do j´uri e do juiz sc alterar˜ao de acordo com o momento, assim como podem variar a idade, a cor dos cabelos e dos olhos dos diferentes protagonistas, mas es- sas varia¸c˜oes n˜ao s˜ao de nenhum interesse, pelo menos imediatamente, para 1 Estamos apenas dando conta, a partir do exemplo da religi˜ao, de uma op¸c˜ao poss´ıvel inscrevendo-se na abordagem da antropologia social. Cf., ainda nessa perspectiva (durkhei- miana), os trabalhos de R. E. Brad-bury e col. (1972) ou de M. Douglas (1971), muito representativos da antropologia social britˆanica da religi˜ao. Cf. tamb´em, em uma pers- pectiva sensivelmente diferente, G. Balandier (1967) para quem a religi˜ao ´e a ”linguagem do pol´ıtico”, e, mais recentemente, as cr´ıticas formuladas por M. Aug´e (1979) quanto `a no¸c˜ao de ”representa¸c˜ao”.
  • 95. 93 o antrop´ologo. Este n˜ao se interessa pelos atores do drama enquanto in- div´ıduos”. As rela¸c˜oes entre a perspectiva antropol´ogica e a perspectiva psicol´ogica, prossegue Evans-Pritchard, podem ser formuladas nos seguintes termos: ”As duas disciplinas s´o podem ser proveitosas uma a outra, e, nesse caso, extremamente proveitosas, se efetuarem independentemente suas respectivas pesquisas, seguindo os m´etodos que lhes s˜ao pr´oprios”. Estamos frente a uma abordagem tipicamente durkheimiana. A tal ponto que, para muitos autores americanos (cf. em especial Lowie, 1971), e nota- damente para os que est˜ao ligados `a antropologia cultural, que examinaremos agora, a antropologia social n˜ao faz parte da antropologia, mas se inscreve no prolongamento da sociologia francesa.
  • 96. 94 CAP´ITULO 8. A ANTROPOLOGIA SOCIAL:
  • 97. Cap´ıtulo 9 A Antropologia Cultural: A passagem da antropologia social (particularmente desenvolvida na Fran¸ca e mais ainda na Inglaterra) para a antropologia cultural (especialmente ame- ricana) corresponde a uma mudan¸ca fundamental de perspectiva. De um lado, a antropologia se torna uma disciplina autˆonoma, totalmente indepen- dente da sociologia. De outro, dedica-se uma aten¸c˜ao muito grande menos ao funcionamento das institui¸c˜oes do que aos comportamentos dos pr´oprios indiv´ıduos, que s˜ao considerados reveladores da cultura `a qual pertencem. Quanto a isso, uma hist´oria da antropologia como a de Kardiner e Preble (1966) – que est´a longe de ser uma das melhores hist´orias de nossa disci- plina, mas essa n˜ao ´e a quest˜ao – ´e muito caracter´ıstica dessa atitude ame- ricana. Trata tanto da personalidade dos principais pesquisadores apresen- tados, quanto de suas id´eias. J´a de in´ıcio, coloca o que ´e uma constante da pr´atica antropol´ogica nos Estados Unidos: sua rela¸c˜ao `a psicologia e `a psican´alise. Para compreender a especificidade dessa abordagem, freq¨uentemente qua- lificada (de forma um pouco pejorativa) de ”culturalista”, parece-me impor- tante especificar bem o significado dos conceitos de social e de cultura. O social ´e a totalidade das rela¸c˜oes (rela¸c˜oes de produ¸c˜ao, de explora¸c˜ao, de domina¸c˜ao. . .) que os grupos mantˆem entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, regi˜ao, na¸c˜ao. . .) e para com outros conjuntos, tamb´em hierarquizados. A cultura por sua vez n˜ao ´e nada mais que o pr´oprio social, mas considerado dessa vez sob o ˆangulo dos caracteres distintivos que apre- sentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produ¸c˜oes originais (artesanais, art´ısticas, religiosas. . .). A antropologia social e a antropologia cultural tˆem portanto um mesmo 95
  • 98. 96 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL: campo de investiga¸c˜ao. Al´em disso, utilizam os mesmos m´etodos (etnogr´aficos) de acesso a este objeto. Finalmente, s˜ao animadas por um objetivo e uma ambi¸c˜ao idˆenticos: a an´alise comparativa.1 Mas, o que se compara no pri- meiro caso ´e o social enquanto sistema de rela¸c˜oes sociais, sendo que, no segundo, trata-se do social tal como pode ser apreendido atrav´es dos com- portamentos particulares dos membros de um determinado grupo: nossas maneiras espec´ıficas, enquanto homens e mulheres de uma determinada cul- tura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir frente aos acon- tecimentos (por exemplo, o nascimento, a doen¸ca, a morte). ´E dif´ıcil dar uma defini¸c˜ao que seja absolutamente satisfat´oria da cultura. Kroeber, um dos mestres da antropologia americana, levantou mais de 50. Propomos esta: a cultura ´e o conjunto dos comportamentos, saberes e saber- fazer caracter´ısticos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas atrav´es de um processo de aprendizagem, e trans- mitidas ao conjunto de seus membros. Detenhamo-nos um pouco para sublinhar que, a nosso ver, apenas a no¸c˜ao e cultura, ao contr´ario da de sociedade, ´e estritamente humana. Da mesma forma que existe (isso n˜ao ´e mais sequer discutido hoje) um pensamento e uma linguagem nos animais, existem sociedades animais c at´e formas de soci- abilidade animal, que podem ser regidas por modos de intera¸c˜ao antagˆonicas ou comunit´arias, bem como de modos de organiza¸c˜ao complexos (em fun¸c˜ao das faixas de idade, dos grupos sexuais, da divis˜ao hierarquizada do traba- lho. . .). Indo at´e mais adiante, existe o que hoje n˜ao se hesita mais em chamar de sociologia celular. Assim, o que distingue a sociedade humana da sociedade animal, e at´e da sociedade celular, n˜ao ´e de forma alguma a trans- miss˜ao das informa¸c˜oes, a divis˜ao do trabalho, a especializa¸c˜ao hier´arquica das tarefas (tudo isso existe n˜ao apenas entre os animais, mas dentro de uma ´unica c´elula!), e sim essa forma de comunica¸c˜ao propriamente cultural que se d´a atrav´es da troca n˜ao mais de signos e sim de s´ımbolos, e por elabora¸c˜ao das atividades rituais aferentes a estes. Pois, pelo que se sabe, se os animais s˜ao capazes de muitas coisas, nunca se viu algum soprar as velas de seu bolo de anivers´ario. ´E a raz˜ao pela qual, se pode haver uma sociologia animal (e at´e, repetimo-lo, celular), a antropologia ´e por sua vez especificamente humana. Fechemos aqui esse parˆentese, que n˜ao nos afasta de forma alguma do nosso prop´osito, mas, pelo contr´ario, define-o melhor, e examinemos mais adiante 1 Muito mais afirmada por´em na antropologia cultural do que na antropologia social.
  • 99. 97 os tra¸cos marcantes dessa antropologia que qualifica a si pr´opria de cultural. Deter-nos-emos em trˆes deles, que est˜ao, como veremos, estreitamente liga- dos entre si. 1) A antropologia cultural estuda os caracteres distintivos das condutas dos seres humanos pertencendo a uma mesma cultura, considerada como uma totalidade irredut´ıvel `a outra. Atenta `as descontinuidades (temporais, mas sobretudo espaciais), salienta a originalidade de tudo que devemos `a socie- dade `a qual pertencemos. 2) Ela conduz essa pesquisa a partir da observa¸c˜ao direta dos comporta- mentos dos indiv´ıduos, tais como se elaboram em intera¸c˜ao com o grupo e o meio no qual nascem e crescem estes indiv´ıduos. Procurando compreender a natureza dos processos de aquisi¸c˜ao e transmiss˜ao, pelo indiv´ıduo, de uma cultura, sempre singular (a forma como esta n˜ao apenas informa, mas modela o comportamento dos indiv´ıduos, sem que estes o percebam), encontra v´arias preocupa¸c˜oes comuns aos psic´ologos, psicanalistas e psiquiatras. Utiliza por- tanto freq¨uentemente os modelos conceituais destes, bem como suas t´ecnicas de investiga¸c˜ao (por exemplo, os testes projetivos, utilizados pela primeira vez em etnologia por Cora du Bois). Assim, esse campo de pesquisa, desig- nado pela express˜ao ”cultura e personalidade”, extremamente desenvolvido nos Estados Unidos e relativamente negligenciado na Fran¸ca e Gr˜a-Bretanha, imp˜oe-se, a partir dos anos 30, como uma das ´areas da antropologia na qual a colabora¸c˜ao pluridisciplinar se torna sistem´atica. 3) Finalmente, a antropologia cultural estuda o social em sua evolu¸c˜ao, e particularmente sob o ˆangulo dos processos de contato, difus˜ao, intera¸c˜ao e acultura¸c˜ao, isto ´e, de ado¸c˜ao (ou imposi¸c˜ao) das normas de uma cultura por outra. * * * Um certo n´umero de obras representativas dessa abordagem – escritas em sua maior parte por americanos 2 – merece ser citado. 1927: Margaret Mead 2 Notemos por´em que a contribui¸c˜ao dos pesquisadores franceses na ´area da antropologia cultural est´a longe de ser negligenci´avel. Citemos notadamente, para o per´ıodo contem- porˆaneo, os trabalhos de Ortigues (1966), Erny (1972), J. Rabain (1979) e lembremos a influˆencia consider´avel que exerceu e continua exercendo Roger Bastide (1950, 1965, 1972) que pode ser considerado como o mestre da antropologia cultural francesa.
  • 100. 98 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL: publica Corning of Age in Samoa, que ser´a retomado em H´abitos e Sexuali- dade na Oceania, em 1935, um livro que foi um marco. 1934: Amostras de Civiliza¸c˜ao, de Ruth Benedict, certamente a obra mais caracter´ıstica do cul- turalismo americano; 1939: Kardiner, O Indiv´ıduo e Sua Sociedade-, 1943: Roheim, Origem e Fun¸c˜ao da Cultura, que desenvolve a id´eia de que a cultura ´e uma sublima¸c˜ao decorrente da imperfei¸c˜ao do feto humano ao nascer; 1944: Cora du Bois, O Povo de Alor; 1945: Linton, Os Fundamentos Culturais da Personalidade: 1949: Herskovitz, As Bases da Antropologia Cultural; 1950: Roheim, Psican´alise e Antropologia. . . O que mostram essas diferentes obras, sempre baseadas em numerosas ob- serva¸c˜oes, ´e que conv´em n˜ao atribuir `a natureza o que diz respeito `a cultura; ou seja, n˜ao considerar como universal o que ´e relativo.3 Essa compreens˜ao da irredut´ıvel diversidade das culturas que ´e o eixo central da antropologia cultural – aparece ao mesmo tempo: 1) ao n´ıvel dos tra¸cos singulares dos comportamentos; 2) ao n´ıvel da totalidade da nossa personalidade cultural, qualificada por Kardiner de ”personalidade de base”. Como essa corrente de pesquisa, que procuraremos apresentar o mais fielmente poss´ıvel, multiplica- remos os exemplos. 1) A varia¸c˜ao cultural pode ser encontrada em cada um dos aspectos de nossas atividades. Assim, a maneira com que descansamos. Nas sociedades nas quais os homens dormem diretamente no. solo, dificilmente suportam a maciez de um colch˜ao. Inversamente, sentimos dificuldade em dormir – como me aconteceu no Brasil – em uma rede, e n˜ao nos passaria pela cabe¸ca descansar, como alguns na ´Asia. apoiando-nos em uma s´o perna. Tomemos um outro exemplo: a divis˜ao do trabalho entre os sexos. Nas sociedades do Oeste africano, as mulheres se dedicam `a cerˆamica, enquanto os homens v˜ao para a ro¸ca, quando, na ilha de Alor, s˜ao as mulheres que cultivam a terra enquanto os homens cuidam da educa¸c˜ao das crian¸cas. As- sim como na sociedade Chaumbuli, na qual os homens se dedicam aos filhos, enquanto as mulheres v˜ao pescar. Consideremos agora os comportamentos adotados para penetrar nos edif´ıcios religiosos. Na Europa, ao penetrar numa igreja, observamos que os fi´eis tiram o chap´eu e permanecem com os sapatos. Inversamente, em uma mesquita, os mu¸culmanos tiram os sapatos e permanecem com o chap´eu. 3 Como mostrei em meu livro sobre A Etnopsiquiatria, este ultimo coment´ario deve porem ser relativizado no que diz respeito a Rohem.
  • 101. 99 As formas de hospitalidade tamb´em testemunham de uma extrema diversi- dade podendo, como no exemplo acima, consistir na invers˜ao pura e simples daquilo que tom´avamos espontaneamente por natural. Assim, fiquei pessoal- mente impressionado, durante minha primeira estadia em pa´ıs Ba´ule (Costa do Marfim), como h´ospede, com o convite que me era sistematicamente feito de uma refei¸c˜ao preparada em minha homenagem, mas que devia ser consu- mida isoladamente, isto ´e, em um cˆomodo e separadamente de meus hospe- deiros, os quais, por outro lado, reservavam-me um presente muito inesperado para um ocidental, que n˜ao era nada menos que a filha mais bonita da casa. Diferen¸cas significativas, decorrentes da cultura `a qual pertencemos, po- dem tamb´em ser encontradas nos menores detalhes dos nossos comporta- mentos mais cotidianos. Assim, nas sociedades ´arabes, sul-americanas e sul- europ´eias, desviar o olhar ´e considerado como um sinal de m´a educa¸c˜ao, enquanto que nas sociedades asi´aticas e norte-europ´eias, olhar fixamente algu´em com insistˆencia causa um incˆomodo que se traduz por uma impress˜ao de amea¸ca e agressividade. A sauda¸c˜ao visual consistindo em levantar rapidamente as sobrancelhas, ace- nar a cabe¸ca e sorrir, assinala um encontro amig´avel na Nova Guin´e ou na Europa, mas ´e censurada por ser considerada indecente no Jap˜ao. As trocas de contatos cutˆaneos entre dois interlocutores s˜ao extremamente reduzidas nos pa´ıses anglo-saxˆonicos assim como no Jap˜ao. Imp˜oe-se pelo contr´ario, como express˜ao normal do prazer de encontrar o outro nas sociedades medi- terrˆaneas e sul-americanas. Esses mesmos interlocutores, sentados no terra¸co de um bar ou passeando na rua, ir˜ao manter um certo espa¸co entre si na Europa do Norte ou na ´Asia, sob pena de sentir um certo mal-estar; ten- der˜ao a diminuir a distˆancia que os separa nas sociedades ´arabes ou latino- americanas. Finalmente, as formas de comportamento sexual detiveram particularmente a aten¸c˜ao dos observadores. De um lado, a educa¸c˜ao sexual ´e eminentemente vari´avel de uma sociedade para outra. Na Melan´esia, por exemplo, meninos e meninas s˜ao, na idade da puberdade, iniciados nas t´ecnicas amorosas por monitores experimentados, enquanto os Muria da ´ındia (cf. Elwin, 1959) ins- titucionalizavam essa pr´atica preservando um espa¸co (por assim dizer, uma casa da juventude) que tem como objetivo encorajar os jogos sexuais. Por outro lado, os rituais amorosos s˜ao profundamente diferentes, n˜ao apenas de uma civiliza¸c˜ao para outra, mas dentro de -uma mesma civiliza¸c˜ao. Aqui est´a um exemplo recolhido por Margaret Mead que merece ser relatado.
  • 102. 100 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL: Durante a ´ultima guerra mundial, soldados americanos estavam mobiliza- dos na Gr˜a-Bretanha. Esses soldados e as jovens inglesas que freq¨uenta- vam acusavam-se mutuamente de m´a educa¸c˜ao nas rela¸c˜oes amorosas. Os GIs consideravam as inglesas mulheres levianas; as inglesas achavam que os americanos comportavam-se como marginais. Cada um dos grupos re- agia normalmente, mas a norma era diferente de uma cultura para outra: para os americanos, o beijo, que interv´em muito cedo nas rela¸c˜oes de na- moro, n˜ao tinha grandes conseq¨uˆencias, enquanto que, para as inglesas, era a ´ultima etapa antes do ato sexual. As inglesas ficavam, portanto, chocadas que os americanos quisessem beij´a-las t˜ao precipitadamente; e estes n˜ao en- tendiam que as inglesas fugissem deles por causa de um ato t˜ao insignificante quanto um beijo na boca, ou que passassem t˜ao rapidamente para a etapa seguinte, quando tinham aceito o beijo. Q¨uiproqu´os desse tipo pontuam nos- sas rela¸c˜oes interculturais. 2) O peso da cultura n˜ao se manifesta apenas nas formas diversificadas de comportamentos e atividades facilmente localiz´aveis de uma sociedade para outra (como a alimenta¸c˜ao, o h´abitat, a maneira de se vestir, os jogos. .O, mas tamb´em nas estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas constitutivas da pr´opria personalidade. A antropologia cultural foi assim levada a reto- mar, nos fundamentos da observa¸c˜ao e da an´alise etnopsicol´ogica, o que os folcloristas, mas tamb´em os escritores (Chateaubriand, Georges Sand. . .) chamavam de ”alma”ou ”gˆenio”de um povo. Assim, tentou evidenciar a pre- ocupa¸c˜ao dos japoneses em nunca perder a face em sociedade, sob pena de um desmoronamento da personalidade que se traduz por um sentimento de vergonha e culpa extremo, ou ainda, o receio dos franceses frente `a natureza que deve ser domesticada pela raz˜ao; receio que se expressa tanto no car´ater ”bem-comportado”dos nossos contos populares (sempre menos extravagan- tes que os contos escandinavos, russos ou alem˜as) quanto em nossos jardins, qualificados precisamente de ”jardins `a francesa”. Mas ´e sobretudo ao estudo das formas contrastadas da personalidade nos povos das sociedades ”tradicionais”, que a antropologia americana deve a sua fama. Margaret Mead (1969), ao confrontar duas popula¸c˜oes vizinhas da Nova Guin´e, considera que uma, a dos doces e ternos Arapesh, s´o deseja paz e serenidade, enquanto a outra, a dos violentos Mundugumor, ´e comandada por uma agressividade propriamente canibal. O que ´e ent˜ao considerado como personalidade desviante entre os primeiros (o indiv´ıduo violento), apa- recer´a, entre os segundos, como perfeitamente normal, isto ´e conforme ao ideal do grupo, e inversamente. Na mesma ´otica, Ruth Benedict (1950) op˜oe
  • 103. 101 a sociedade ”apoloniana”dos ´ındios Pueblos do Novo M´exico `a exalta¸c˜ao e rivalidade ”dionis´ıacas”permanentes que mantˆem entre si os habitantes da ilha de Dobu, este povo de feiticeiros (R. Fortune, 1972). Se houver, entre estes, indiv´ıduos que n˜ao tenham nenhum sentimento de suspei¸c˜ao, nenhum gosto pelo roubo, e detestem brigar, n˜ao deixar˜ao de aparecer como margi- nais, enquanto estariam perfeitamente bem adaptados (e considerados como conformistas) na sociedade pueblo. A partir de exemplos desse tipo, Ruth Benedict elabora sua teoria do ”arco cultural”. Cada cultura realiza uma escolha. Valoriza um determinado seg- mento do grande arcode c´ırculo das possibilidades da humanidade. Encoraja um certo n´umero de comportamentos em detrimento de outros que se vˆeem censurados. Atrav´es de um processo de sele¸c˜ao (n˜ao biol´ogico, mas cultu- ral), todos os membros de uma mesma sociedade compartilham um certo n´umero de preocupa¸c˜oes, sentem as mesmas inclina¸c˜oes e avers˜oes. O que caracteriza uma determinada sociedade ´e uma ”configura¸c˜ao cultural”, uma l´ogica que se encontra ao mesmo tempo na especificidade das institui¸c˜oes e na dos comportamentos. Toda cultura persegue um objetivo, desconhecido dos indiv´ıduos. Cada um de n´os possui em si todas as tendˆencias, mas a cul- tura `a qual pertencemos realiza uma sele¸c˜ao. As institui¸c˜oes (e, em especial, as institui¸c˜oes educativas: fam´ılias, escolas, ritos de inicia¸c˜ao) pretendem – inconscientemente – fazer com que os indiv´ıduos se conformem aos valores pr´oprios de cada cultura. Cr´ıticas, freq¨uentemente severas, n˜ao faltaram aos cul-turalismo americano,4 que est´a longe de fazer a unanimidade entre os antrop´ologos, sobretudo na Fran¸ca onde o m´ınimo que se pode dizer ´e que n˜ao tem boa reputa¸c˜ao. Tra- balhando com uma abordagem muito emp´ırica (a localiza¸c˜ao das fun¸c˜oes, dos conflitos e das significa¸c˜oes, em detrimento da investiga¸c˜ao das normas, das regras e dos sistemas, de acordo com os termos de Michel Foucault aos quais nos referimos acima), tende a efetuar uma redu¸c˜ao dos comportamentos hu- manos a tipos, e a esbo¸car tipologias que devem muito mais `a intui¸c˜ao e `a pr´opria personalidade do pesquisador, do que `a constru¸c˜ao rigorosa de um objeto cient´ıfico. Al´em disso, e em conseq¨uˆencia mesmo dos pressupostos que s˜ao seus (a observa¸c˜ao daquilo que, em uma sociedade, ´e manifesto, em detri- mento daquilo que ´e recalcado e inconsciente), desenvolve uma concep¸c˜ao do 4 Autorizo-me a indicar ao leitor dois de meus livros anteriores (L’Ethnopsychiatrie, Ed. Universitaires, 1973, pp. 33-36; Les 50 Mots Cl´es de 1’Anthropologie, Ed. Privat, 1974, pp. 46-50) e a sublinhar que, a meu ver, foi Georges Devereux (1970). colocando-se no cora¸c˜ao mesmo do campo de estudo privilegiado por essa tendˆencia da antropologia, quem propˆos a cr´ıtica mais radical desta.
  • 104. 102 CAP´ITULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL: relativismo cultural (express˜ao forjada por Herskovitz) que o impede de dar o passo que separa o estudo das varia¸c˜oes culturais da an´alise da variabilidade da cultura; variabilidade esta que ser´a o objeto das pesquisas examinadas no pr´oximo cap´ıtulo. Isso n˜ao impede que, levando-se em ’conta essas cr´ıticas, levando-se em conta, tamb´em, o fato de que o projeto desses autores ´e freq¨uentemente menos am- bicioso do que geralmente se diz (cf. particularmente a obra de Ruth Be- nedict), a antropologia cultural, pela ´area de investiga¸c˜ao que ´e sua e que ´e freq¨uentemente deixada de lado em nosso pa´ıs, pela amplitude do campo dos materiais recolhidos, pela importˆancia dos problemas colocados, represente uma contribui¸c˜ao bastante consider´avel para nossa disciplina.
  • 105. Cap´ıtulo 10 A Antropologia Estrutural E Sistˆemica: Para a antropologia cultural, cada cultura particular, caracterizada por um conjunto de tendˆencias tais como aparecem empiricamente ao observador, ´e um pouco compar´avel `as pe¸cas de um quebra-cabe¸ca. S˜ao entidades parce- ladas, frutos de uma pr´atica parceladora. E nessas condi¸c˜oes, a cultura ´e concebida como uma esp´ecie de mosaico, um traje de Arlequim. Na perspec- tiva na qual nos situaremos agora, as culturas s˜ao apreendidas, ou melhor, tratadas, em um n´ıvel que n˜ao ´e mais dado, e sim constru´ıdo: o do sis- tema. N˜ao se trata mais de estudar tal aspecto de uma sociedade em si, relacionando-o ao conjunto das rela¸c˜oes sociais (antropologia social),’e muito menos tal cultura particular na l´ogica que lhe ´e pr´opria (antropologia cultu- ral, mas tamb´em simb´olica): trata-se de estudar a l´ogica da cultura. Ou seja, al´em da variedade das culturas e organiza¸c˜oes sociais, procuraremos explicar a variabilidade em si da cultura: o que dizem e inventem os homens deve ser compreendido como produ¸c˜oes do esp´ırito humano, que se elaboram sem que estes tenham consciˆencia disso. Isso colocado, reuniremos nesse cap´ıtulo um certo mimero de tendˆencias do pensamento e da pr´atica antropologica, aparentemente bastante distantes entre si: • o que se pode qualificar de antropologia da comunica¸c˜ao, que, com o impulso de Gregory Bateson e da escola de Paio Alto, estuda as dife- rentes modalidades da comunica¸c˜ao entre os homens, n˜ao a partir dos interlocutores que seriam considerados como elementos separados uns dos outros, mas a partir dos processos de intera¸c˜ao formando sistemas de troca, integrando notadamente tudo o que, no encontro, se d´a ao 103
  • 106. 104CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA: n´ıvel (n˜ao verbal) das sensa¸c˜oes, dos gestos, das m´ımicas, e da posturas; • a enopsiquiatria, cujo fundador ´e Georges Devereux, e que ´e uma pr´atica claramente pluridisciplinar, procurando compreender ao mesmo tempo a dimens˜ao ´etnica dos dist´urbios mentais e a dimens˜ao psi- col´ogica e psicopatol´ogica da cultura; • o estruturalismo francˆes, finalmente, do qual muitos gostam hoje de dizer que est´a h´a muito tempo ultrapassado, mas que eu considero pessoalmente como mais atual do que nunca. * * * Existem, ´e claro, diferen¸cas essenciais entre essas diversas correntes da an- tropologia contemporˆanea. Mas re´unem-se no entanto em torno de um certo n´umero de op¸c˜oes. 1) Trata-se em primeiro lugar da importˆancia dada aos modelos episte- mol´ogicos formados no ˆambito das ciˆencias da natureza ou, mais precisa- mente, da necessidade de um confronto entre abordagens aparentemente t˜ao afastadas uma das outras quanto a etnologia, a neurofisiologia, as ma- tem´aticas (e no campo das ciˆencias humanas, a psican´alise, a ling¨u´ıstica). Todos os autores que acabamos de citar colocam o problema da passagem de um modo de conhecimento para outro, assim como a quest˜ao da validade da transferˆencia dos modelos. Partindo do ”princ´ıpio de incerteza”de Heiscnbcrg (´e imposs´ıvel determinar ao mesmo tempo e com igual precis˜ao a velocidade e a posi¸c˜ao do el´etron, pois sua observa¸c˜ao cria uma situa¸c˜ao que o modifica), Devereux, o primeiro, mostra que o que ´e verdadeiro no campo da f´ısica quˆantica ´e mais verdadeiro ainda no das ciˆencias humanas e, particularmente, da etnologia: a presen¸ca de um observador (no caso, o etn´ografo) provoca uma perturba¸c˜ao do que ´e observado, e essa perturba¸c˜ao, longe de ser uma fonte de erros a ser neutra- lizada, ´e pelo contr´ario uma fonte de informa¸c˜oes que conv´em explorar. Partindo da cibern´etica inventada por Norbert Wiener em 1848 a partir da elabora¸c˜ao da pilotagem autom´atica, Bateson, de volta de Bali, percebe que os princ´ıpios de Wiener podem trazer uma renova¸c˜ao total para o estudo da comunica¸c˜ao humana, e, particularmente, das ferramentas, at´e ent˜ao n˜ao utilizadas para abordar os sistemas interativos em jogo nas nossas trocas. Ora, L´evi-Strauss, quase tanto quanto Bateson, recorre a esse modelo nascido
  • 107. 105 da fecunda¸c˜ao m´utua da eletrˆonica e da biologia. Desde a sua Introdu¸c˜ao `a Obra de Mareei Mauss (o qual ´e incontestavelmente o pai do estruturalismo francˆes, e tamb´em o ”mestre”a quem Devereux dedica seus Ensaios de Et- nopsiquiatria Geral), L´evi-Strauss refere-se a Wiener e Neumann. 2) A partir dos anos 50, come¸ca a desenvolver-se, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, um modelo que Winkin qualifica de ”modelo orques- tral da comunica¸c˜ao”, esta ´ultima n˜ao sendo mais concebida `a maneira te- legr´afica de um emissor transmitindo em sentido ´unico uma mensagem a um destinat´ario, mas como um complexo de elementos em situa¸c˜ao de intera¸c˜oes cont´ınua e n˜ao aleat´oria. Disso decorre a met´afora da orquestra participando da execu¸c˜ao de uma partitura ”invis´ıvel”, na execu¸c˜ao da qual cada um dos m´usicos est´a envolvido. Os antrop´ologos americanos que se inscrevem nessa corrente insistem sobre o fato de que ( imposs´ıvel n˜ao comunicar, todo comportamento humano (do vozerio mais intenso ao mutismo absoluto, pontuado por gestos, posturas, m´ımicas, ex- press˜oes do rosto por m´ınimas que sejam) consistindo em trocar mensagens freq¨uentemente involunt´arias. Ora, a tarefa do pesquisador ´e precisamente a de evidenciar essas regras gramaticais constitutivas da linguagem tanto ver- bal quanto n˜ao verbal, isto ´e, na realidade, a cultura, cuja l´ogica ´e irredut´ıvel `a soma de seus elementos. Lembremos mais uma vez que existem, ´e claro, diferen¸cas muito importan- tes entre o estruturalismo europeu, em particular francˆes, e o interacionismo americano. Mas eles visam juntos `a constru¸c˜ao do que L´evi-Strauss chama uma ”ciˆencia da comunica¸c˜ao”. Para este ´ultimo, toda cultura ´e uma mo- dalidade particular da comunica¸c˜ao (das mulheres, das palavras, dos bens), regida por leis inconscientes de inclus˜ao e exclus˜ao. E quando o autor da Antropologia Estrutural realiza, na parte mais recente de sua obra, o estudo dos mitos, refere-se tamb´em `a imagem de uma partitura musical n˜ao escrita e sem autor, expressando o pr´oprio inconsciente da sociedade. Se a etnopsiquiatria de Devereux n˜ao deve nada a essa abordagem ”sistˆemica”, relutando at´e, frente a quaisquer empreendimentos de formaliza¸c˜ao ling¨u´ıstica, ela acentua o car´ater eminentemente relacionai do objeto das ciˆencias huma- nas: os fenˆomenos estudados tanto pelo cl´ınico quanto pelo etn´ologo s˜ao fenˆomenos que nunca s˜ao dados em estado bruto, tratando-se simplesmente de recolhˆe-los, e sim fenˆomenos provocados em uma situa¸c˜ao de intera¸c˜ao particular com atores particulares, e que conv´em analisar, procurando com- preender a natureza da perturba¸c˜ao envolvida na pr´opria rela¸c˜ao que liga o
  • 108. 106CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA: ”observador”e o ”observado”. 3) A experiˆencia etnol´ogica – que ´e antes experiˆencia de uma rela¸c˜ao hu- mana, isto ´e, de um encontro – se d´a no inconsciente: inconsciente freudi- ano, mas tamb´em inconsciente ´etnico para Devereaux, inconsciente estrutural para L´evi-Strauss. Isto ´e, ”estrutura inata do esp´ırito humano”. situada no ponto de encontro entre a natureza e a cultura; mas estrutura que se expressa sempre na ”hist´oria particular dos indiv´ıduos e dos grupos”, produzindo cons- tantemente aspectos in´editos. Ou seja, tanto para o estruturalismo quanto para etnopsiquiatria (mas isso j´a ´e menos verdadeiro para o conjunto da an- tropologia sistˆemica americana, cuja tendˆencia ´e, freq¨uentemente, emp´ırica como nos Estados Unidos), o sentido do que fazem os homens deve ser procu- rado menos no que dizem do que no que encobrem, menos no que as palavras expressam do que no que escondem. 4) Todo o pensamento antropol´ogico que procuramos aqui descrever inscreve- se claramente no quadro das ciˆencias humanas (ou, como se diz nos Estados Unidos, das ”ciˆencias do comportamento”) e n˜ao no das ciˆencias sociais. Enquanto estas ´ultimas ”aceitam sem reticˆencias estabelecer-se no pr´oprio ˆamago de sua sociedade”, como escreve L´evi-Strauss (1973) – ´e o caso da economia, da sociologia, do direito, da demografia –, as primeiras, visando ”apreender uma realidade imanente ao homem, colocam-se aqu´em de todo indiv´ıduo e de toda sociedade”. O exemplo da primeira obra de Bateson, A Cerimˆonia do Naven (1936) parece-me particularmente revelador. Em primeiro lugar, devido `a sila exigˆencia de pluridisciplinaridade (e. especialmente, de pluridisciplinaridade entre a abordagem etnol´ogica e psicol´ogica),1 mas que n˜ao ´e concebida, de forma alguma, `a maneira da antropologia cultural. O autor estuda os diferentes tipos poss´ıveis de rela¸c˜oes dos indiv´ıduos para com a sociedade e, mais espe- cificamente, as rea¸c˜oes dos indiv´ıduos frente `as rea¸c˜oes de outros indiv´ıduos. Em seguida, e sobretudo, por seu car´ater inovador no campo da antropolo- gia anglo-saxˆonica da ´epoca, caracterizada notadamente pela monografia. A partir da cultura dos latmul da Nova Guin´e, mas al´em dessa cultura, o que interessa Bateson, ´e a possibilidade de aceder a uma teoria transcultural, cujos conceitos poder˜ao ser utilizados na com preens˜ao de outras socieda- des. Ora, ningu´em insistiu mais que L´evi-Strauss e Devereux sobre o fato de 1 Essa problem´atica, que ´e o eixo de toda a obra de Devereux ´e tamb´em uma das preocupa¸c˜oes maiores de L´evi-Strauss, que escreve em La Pens´ee Sauvage que ”a etnologia ´e antes uma psicologia
  • 109. 107 que as culturas particulares n˜ao podiam antropologicamente ser apreendidas sem referˆencia `a ”cultura”(Devereux), ”esse capital comum”(L´evi-Strauss) que utilizamos para elaborar nossas experiˆencias tanto individuais como co- letivas. Disso decorre o car´ater claramente ”metacultural”(Devereux) desse pensamento, que est´a rigorosamente no oposto do ”culturalismo”, e emi- nentemente fundador da possibilidade da comunica¸c˜ao tanto intersubjetiva quanto intercultural. 5) Quer´ıamos finalmente insistir sobre o fato de que essas diferentes abor- dagens s˜ao abordagens da totalidade, refrat´arias a qualquer atitude reduci- onista, isto ´e, considerando apenas um aspecto parcelar da realidade social, atrav´es de um instrumento ´unico. Para L´evi-Strauss como para Bateson, n˜ao existem nunca rela¸c˜oes de causalidade unilinear entre dois fenˆomenos, e sim ”correla¸c˜oes funcionais”. E se a abordagem da etnopsiquiatria em rela¸c˜ao `a da antropologia estrutural ou sistˆemica ´e claramente anal´ıtica, e n˜ao sint´etica, enquadra-se dentro de uma epistemologia da complementari- dade, fundada sobre a necessidade da articula¸c˜ao de enfoques habitualmente tomados como separados. Por todas essas raz˜oes, a antropologia assim con- siderada ´e, de acordo com o termo proposto por Jean-Marie Auzias (1976), um ”pensamento dos conjuntos”, preocupado em n˜ao deixar escapar nada na investiga¸c˜ao do social, e, por isso, inventivo de modelos que conv´em qualificar de ”complexos”. A abordagem de L´evi-Strauss ocupar´a portanto agora nossa aten¸c˜ao. Essa abordagem procede de uma s´erie de rupturas radicais. 1) Ruptura em primeiro lugar com o humanismo e a filosofia, isto ´e, as ideologias do sujeito considerado enquanto fonte de significa¸c˜oes. A meto- dologia estrutural inverte a ordem dos termos em que se apoiava a filosofia. O sentido n˜ao est´a mais dessa vez ligado `a consciˆencia, a qual se vˆe descen- trada pelo projeto estrutural, como pelo projeto freudiano. Rompendo com a tagarelice do sujeito, ”essa crian¸ca mimada da filosofia”, como escreve L´evi- Strauss, as significa¸c˜oes devem ser doravante buscadas no ”ele”da ling¨u´ıstica, como no ”id”da psican´alise. Ou seja, eu sou pensado, sou falado, sou agido, sou atravessado por estruturas que me preexistem. Assim, a antropologia como a psican´alise intro-duzem uma crise na epistemologia da racionalidade: o lugar atribu´ıdo ao sujeito transcendental ´e questionado pela irrup¸c˜ao da problem´atica do inconsciente. 2) Ruptura em rela¸c˜ao ao pensamento hist´orico: o evolucionismo, ´e claro, mas tamb´em qualquer forma de historicismo. Para este ´ultimo, que ´e ne-
  • 110. 108CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA: cessariamente gen´etico, explicar ´e procurar uma anterioridade, isto ´e, tentar compreender o presente atrav´es do passado. `A an´alise dos processos em ter- mos de explica¸c˜ao causai, op˜oe-se a inteligibilidade estrutural, inteligibilidade combinat´oria de uma institui¸c˜ao, de um comportamento, de um relato. . . 3) Ruptura com o atomismo, que considera os elementos independentemente da totalidade. O modelo do estruturalismo sendo ling¨u´ıstico, o sentido de um termo s´o pode ser compreendido dentro de sua rela¸c˜ao `as outras palavras da l´ıngua ou do que for an´alogo a esta. 4) Ruptura, finalmente, com o empirismo. ”Para alcan¸car o real, ´e pre- ciso primeiro repudiar o vivido”, diz L´evi-Strauss em Tristes Tr´opicos. Ou seja, o objeto cient´ıfico deve ser arrancado da experiˆencia da impress˜ao, da percep¸c˜ao espontˆanea. Para isso, conv´em colocar-se ao n´ıvel n˜ao mais da palavra e sim da l´ıngua, n˜ao mais, voltaremos a isso, da hist´oria consciente do que fazem os homens, e sim do sistema que ignoram. ´E toda a diferen¸ca entre o estruturalismo inglˆes e o estruturalismo francˆes. Para L´evi-Strauss, Radcliffe-Brown confunde a estrutura social e as rela¸c˜oes sociais. Ora. estas s˜ao apenas os materiais utilizados para alcan¸car a estrutura, a qual n˜ao tem como objetivo substituir-se `a realidade e sim explic´a-la. Mais precisamente, uma estrutura ´e um sistema de rela¸c˜oes suficientemente distante do objeto que se estuda para que possamos reencontr´a-lo em objetos diferentes. * * * Assim, atrav´es da invers˜ao epistemol´ogica que realiza, abrindo uma compre- ens˜ao nova da sociedade, o pensamento estrutural nos mostra que a extra- ordin´aria variedade das rela¸c˜oes emp´ıricas s´o se torna intelig´ıvel a partir do momento em que percebemos que existe apenas um n´umero limitado de es- trutura¸c˜oes poss´ıveis dos materiais culturais que encontramos, um n´umero limitado de invariantes. As rela¸c˜oes de alian¸ca entre homens e mulheres pa- recem, a primeira vista, praticamente infinitas. Mas oscilam sempre entre alguns grupos: comunismo sexual, levirato, sororato, casamento por rapto, poligamia, monogamia, uni˜ao livre. Da mesma forma, as rela¸c˜oes dos ho- mens com a divindade sempre se organizam a partir de um pequeno n´umero de op¸c˜oes poss´ıveis: o monote´ısmo, polite´ısmo, mante´ısmo, ate´ısmo, agnos- ticismo. Foi a partir do campo do parentesco que se constituiu o estruturalismo de L´evi-Strauss. Para este, o parentesco ´e uma linguagem. N˜ao se pode compre- endˆe-lo efetuando a an´alise ao n´ıvel dos termos (o pai, o filho, o tio materno em uma sociedade matrilinear. . .), muito menos ao n´ıvel dos sentimentos
  • 111. 109 que podem animar os diferentes membros da fam´ılia. ´E preciso colocar-se no n´ıvel das rela¸c˜oes entre estes termos, regidas por regras de troca an´alogas `as leis sint´aticas da l´ıngua. Mas a an´alise estrutural das rela¸c˜oes de alian¸ca e parentesco est´a longe de ser a aplica¸c˜ao pura e simples de um modelo (o da ling¨u´ıstica). Quando se estuda o parentesco, a linguagem ou a economia, estamos na realidade frente a diferentes modalidades de uma ´unica e mesma fun¸c˜ao: a comunica¸c˜ao (ou a troca), que ´e a pr´opria cultura emergindo da natureza para introduzir uma ordem onde esta ´ultima n˜ao havia previsto nada. Mais precisamente, a reciprocidade – que ´e a troca atuando e que exige uma teoria da comunica¸c˜ao – pode ser localizada em v´arios n´ıveis: • ao n´ıvel da cultura: ´e a troca de mulheres (parentesco), de palavras (ling¨u´ıstica), de bens (economia), mulheres, palavras e bens sendo ter- mos que se trocam, informa¸c˜oes que se comunicam;2 • no ponto de encontro entre a natureza e a cultura, isto ´e, ao n´ıvel de um inconsciente estrutural, que, al´em da contingˆencia dos materiais programados, reorganiza incessantemente estes mesmos materiais. Dois exemplos a que L´evi-Strauss recorre v´arias vezes em sua obra, permitem compreender essa invers˜ao de perspectiva que realiza a metodologia estrutu- ral. S˜ao os exemplos do baralho e do caleidosc´opio: ”O homem ´e semelhante ao jogador pegando na m˜ao, ao sentar `a mesa, cartas que n˜ao inventou, j´a que o jogo de baralho ´e um dado da hist´oria e da civiliza¸c˜ao. Fm segundo lugar, cada reparti¸c˜ao das cartas resulta de uma distribui¸c˜ao contingente entre os jogadores, e se d´a independentemente da vontade de cada um. Existem as distribui¸c˜oes que s˜ao sofridas, mas que cada sociedade, como cada jogador, interpreta nos termos dc v´arios sistemas, que podem ser comuns ou particulares: regras de um jogo, ou regras de uma t´atica. E sabe-se bem que, com a mesma distribui¸c˜ao, jogadores diferentes n˜ao fornecer˜ao a mesma partida, embora n˜ao possam, compelidos tamb´em pelas regras, fornecer com uma determinada distribui¸c˜ao qualquer partida”. ”Em um caleidosc´opio, a combina¸c˜ao de elementos idˆenticos sempre d´a no- vos resultados. Mas ´e porque a hist´oria dos historiadores est´a presente nele – nem que seja na sucess˜ao de chacoalhadas que provocam as reorganiza¸c˜oes 2 ”As pr´oprias mulheres”, escreve L´evi-Strauss. ”s˜ao tratadas como signos dos quais se abusa quando n˜ao se d´a a elas o uso reservado aos signos, que ´e de serem comunicados”. E a antropologia tem como tarefa a de estabelecer as regras da troca, diferentes dc uma sociedade para outra, mas que permanecem em todos os casos independentes da natureza dos parceiros
  • 112. 110CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA: da estrutura – e as chances para que reapare¸ca duas vezes o mesmo arranjo s˜ao praticamente nulas.” Todo o programa e toda a abordagem do estruturalismo est˜ao nesses dois textos: 1) a existˆencia de um certo n´umero de materiais culturais sempre idˆenticos, que, como as cartas ou os elementos do caleidosc´opio, podem ser qualificados de invariantes; 2) as diferentes estrutura¸c˜oes poss´ıveis destes materiais (isto ´e, as manei- ras com as quais se organizam entre si quando passamos de uma cultura para outra, ou de uma ´epoca outra) que n˜ao est˜ao em n´umero ilimitado, pois s˜ao comandadas pelo que L´evi-Strauss chama de ”leis universais que regem as atividades inconscientes do esp´ırito”; 3) finalmente, compar´aveis `a aplica¸c˜ao de leis gramaticais, o pr´oprio de- senrolar do jogo de baralho ou os movimentos do caleidosc´opio que n˜ao para de girar, com algu´em que observa esse processo – o etn´ologo – dirigindo, no caso do autor de Tristes Tr´opicos, sobre o que percebe, um olhar que conv´em qualificar de est´etico. L´evi-Strauss n˜ao ignora a diversidade das culturas – j´a que procurar´a preci- samente dar conta dela – nem a hist´oria. Mas, de um lado desconfia de um ”ecletismo apressado”que confundiria as tarefas e misturaria os programas”. E, de outro, considera que para compreender o movimento das sociedades ´e preciso n˜ao se situar ao n´ıvel da consciˆencia que o Ocidente tem da hist´oria. Essa consciˆencia hist´orica do ”progresso”n˜ao carrega consigo nenhuma ver- dade, ´e um mito que conv´em estudar como os outros mitos, isto ´e, estendendo no espa¸co aquilo que o historiador percebe como escalonado no tempo. Tal ´e o significado do conceito de estrutura que Pouil-lon (1966) define como ”a sintaxe das transforma¸c˜oes que In/em passar de uma variante para ou- tra”, pois ”´e essa sintaxe que d´a conta de seu n´umero limitado, da explora¸c˜ao restrita das possibilidades te´oricas”. Ou seja, a hist´oria ´e um jogo no qual a identidade dos parceiros tem menos importˆancia que as partidas jogadas, e mais ainda as regras das partidas jog´aveis. Ao comentar o pensamento de L´evi-Strauss, Pouillon recorre notadamente `a dupla met´afora do bridge e do jogo de xadrez. Enquanto no bridge ´e indispens´avel conhecer as cartas que acabaram de ser jogadas, no xadrez, qualquer posi¸c˜ao do jogo pode ser compreendida sem que se tenha conhecimento das jogadas anteriores. Ora,
  • 113. 111 L´evi-Strauss considera que o est´agio da partida jogada pelas sociedades oci- dentais ´e hoje desastroso, enquanto que as que foram jogadas pelas sociedades que se insiste em qualificai de ”primitivas”s˜ao infinitamente mais humanas.
  • 114. 112CAP´ITULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTˆEMICA:
  • 115. Cap´ıtulo 11 A Antropologia Dinˆamica: A antropologia cultural insiste ao mesmo tempo sobre a diferen¸ca das cul- turas umas em rela¸c˜ao `as outras, e sobre a unidade de cada uma delas. A antropologia que qualificamos de simb´olica abre, notadamente atrav´es de sua reivindica¸c˜ao antietnocentrista, uma perspectiva muito pr´oxima da an- terior, mas que se empenha em explorar particularmente um certo n´umero de conte´udos materiais (os mitos, os ritos) e de estruturas formais (a espe- cificidade das l´ogicas do conhecimento expressando-se notadamente atrav´es das l´ınguas). A antropologia estrutural, por sua vez, faz aparecer, como acabamos de ver, uma identidade formal (um inconsciente universal) infor- mando uma multiplicidade de conte´udos materiais diferentes. O ´ultimo p´olo do pensamento e da pr´atica antropol´ogicos que estudaremos agora aparece como ao mesmo tempo pr´oximo e diferente da antropologia social cl´assica. Pr´oximo, porque evidencia a articula¸c˜ao de diferentes n´ıveis do social dentro de uma determinada cultura. Diferente, porque opera uma ruptura total com a concep¸c˜ao de Malinowski ou de Durkheim, mas tamb´em de L´evi-Strauss, de sociedades (”primitivas”, ”selvagens”ou ”tradicionais”)harmoniosas e in- tegradas, em proveito do estudo dos processos de mudan¸ca, ligados tanto ao dinamismo interno que ´e caracter´ıstico de toda sociedade, quanto `as rela¸c˜oes que mantˆem necessariamente as sociedades entre si. O que caracteriza essencialmente as diferentes tendˆencias dessa antropologia que qualificamos aqui de dinˆamica, ´e sua rea¸c˜ao comum frente `a orienta¸c˜ao, do seu ponto de vista conservadora, que pode ser encontrada dentro dos qua- tro p´olos de pesquisa que, para maior clareza, acabamos de distinguir. Prati- camente, de fato, todas as perspectivas etnol´ogicas que se elaboram a partir dos anos 30 (a antropologia social, simb´olica, cultural) e que conhecem, para muitas, uma renova¸c˜ao durante os anos 50, com o impulso particularmente da an´alise estrutural, est˜ao animadas por uma abordagem claramente anti- 113
  • 116. 114 CAP´ITULO 11. A ANTROPOLOGIA DIN ˆAMICA: evolucionista. O car´ater especulativo da antropologia dominante do s´eculo passado explica em grande parte essa rea¸c˜ao a-hist´orica de nossa disciplina. No entanto, tudo se passa freq¨uentemente como se as sociedades preferen- cial, ou at´e exclusivamente estudadas pela maioria dos antrop´ologos do s´eculo XX, fossem isentas de rela¸c˜oes com seus vizinhos, existissem dentro de um quadro econˆomico e geogr´afico mundial, e ignorassem tudo das contradi¸c˜oes, dos antagonismos e das rupturas que seriam pr´oprias apenas das sociedades ocidentais. Insistindo tanto sobre a natureza repetitiva e rotineira das sociedades vistas como im´oveis ou, como diz L´evi-Strauss, ”pr´oximas do grau zero de tempera- tura hist´orica”, chega-se a considerar anormal a transforma¸c˜ao. E dissocia-se, por isso mesmo, um n´ucleo considerado essencial, ´unico objeto da ”ciˆencia”(a integridade, estabilidade e harmonia dos grupos humanos que souberam pre- servar uma arte de viver), e uma sujei¸c˜ao julgada acidental (as perip´ecias da rea¸c˜ao com o colonialismo), Essa separa¸c˜ao artificial de um objeto que poderia ser apreendido em estado puro, pois estaria cm si ainda puro de qual- quer esc´oria da modernidade, e de um contexto (os grandes acontecimentos mundiais do s´eculo XX) considerado como aleat´orio, s´o ´e poss´ıvel porque se consegue enquadrar o fenˆomeno assim recortado nos moldes de um quadro te´orico que funciona, em muitos aspectos, como uma oculta¸c˜ao da realidade. Pois as sociedades emp´ıricas `as quais o etn´ologo do s´eculo XX ´e confrontado n˜ao s˜ao nunca essas sociedades atem porais inencontr´aveis, ficticiamente ar- rancadas da hist´oria, e sim sempre sociedades’ em plena muta¸c˜ao, nas quais, pegando apenas um exemplo, as miss˜oes cat´olicas e protestantes abalaram h´a muito tempo o edif´ıcio das religi˜oes tradicionais Recusando-se a tomar em considera¸c˜ao a amplitude e a profundidade das mudan¸cas sociais, somos levados a apagar tudo o que n˜ao entra no quadro que se pretende estudar –um pouco como nesses filmes magn´ıficos sobre os ´ındios da Amazˆonia ou os abor´ıgines da Austr´alia, em que evacuam-se as garrafas de Coca-Cola e tanques de gasolina da Standard Oil para preservar a beleza das imagens. Mas ent˜ao, devemos temer que essa quase-transmuta¸c˜ao est´etica, essa preo- cupa¸c˜ao que tem o etn´ologo na realidade, menos em realizar ele pr´oprio uma obra de arte do que contemplar modos de vida que seriam em si obras de arte (de Malinowski a L´evi-Strauss, passando por Griaule e Margaret Mead), fa¸ca esquecer a realidade das rela¸c˜oes sociais. Ora, ´e precisamente contra essa tendˆencia do pensamento etnol´ogico que um certo n´umero de antrop´ologos contemporˆaneos se levantam. A partir de uma cr´ıtica vigorosa tanto do funcionalismo quanto do estruturalismo, toda
  • 117. 115 sua abordagem consiste, de acordo com as palavras de Paul Mercier (1966), em aceitar ”a morte do primitivo”e ”reabilitar”a mudan¸ca. Para eles, esta n˜ao ´e mais de forma alguma apreendida como a destrui¸c˜ao de uma identi- dade que se caracteriza por um estado de equil´ıbrio e harmonia. Ou seja, conv´em deixar de ter uma compreens˜ao negativa da mudan¸ca social, pois esta ´e co-extensiva ao pr´oprio social, e deve, portanto, se tornar um dos pontos centrais da an´alise do social. A conseq¨uˆencia desse novo enfoque ´e o desa- parecimento da oposi¸c˜ao, essencial para L´evi-Strauss, e.’.tre as ”sociedades frias”e as ”sociedades quentes”; desaparecimento que pode levar `a recusa de uma outra distin¸c˜ao que tamb´em deixa de ser reconhecida como pertinente: a da antropologia e da sociologia.1 Esse neo-evolucionismo, particularmente forte nos Estados Unidos; e do qual encontramos uma das mais importantes realiza¸c˜oes nos trabalhos de Marshall Sahlins (1980), insiste notadamente sobre o seguinte ponto: prolongar a problem´atica, j´a instaurada por Morgan h´a um s´eculo, mas sobre bases dessa vez indiscutivelmente etnol´ogicas, que n˜ao devem mais nada `as reconstitui¸c˜oes hipot´eticas do s´eculo XIX e que per- mitem pensar numa evolu¸c˜ao resolutamente ”plural”da humanidade. N˜ao ´e evidentemente poss´ıvel, dentro do quadro limita do desse trabalho, dar conta da riqueza e diversidade das pesquisas que de uma forma ou de outra participam hoje do desenvolvimento extremamente ativo dessa antro- pologia que qualificamos de dinˆamica. Seria conveniente, por exemplo, falar dos trabalhos de Max Gluckman (1966), de Jacques Bergue (1964), ou ainda, da contribui¸c˜ao de um certo n´umero de antrop´ologos franceses de orienta¸c˜ao marxista, que notadamente renovaram, durante os ´ultimos 25 anos, a ´area 1 Se praticamente toda a antropologia do s´eculo XX teve tendˆencia, at´e recentemente, a considerar que as sociedades ”tradicionais”s˜ao sociedades imut´aveis, tal tendˆencia ´e provavelmente mais forte na fran¸ca, devido notadamente `a preocupa¸c˜ao de muitos etn´ologos de nosso pa´ıs em rela¸c˜ao aos sistemas m´ıtico-cosmol´ogicos. Disso decorre a rea¸c˜ao que leva na Fran¸ca um certo n´umero de pesquisadores (Baslide. Desroclic, Balandier, Thomas...) a libertarem-se desse ponto de vista considerado passadista e a preferirem a terminologia de ”sociologia”. Uma das correntes contemporˆaneas mais marcantes desse pensamento ´e certamente a que nasceu nos Estados Unidos, durante os anos 50, com o impulso de Leslie White (1959), e que qualifica a si pr´opria de neo-evolucionismo. Este realiza, em primeiro lugar, uma releitura e uma reabilita¸c˜ao da obra de Morgan, relegada at´e ent˜ao, pela maioria dos pesquisadores, ao esquecimento. Descobre assim que essa obra cont´em uma intui¸c˜ao fecunda que conv´em explorar: n˜ao se trata, ´e claro, dessa ”periodiza¸c˜ao”sistem´atica, sobre a qual os advers´arios do antrop´ologo americano tanto insistiram para desacredit´a-lo, mas de sua descoberta de uma indissociabilidade de n´ıveis do social (a tecnologia, a ecologia, a fam´ılia, as institui¸c˜oes pol´ıticas, a religi˜ao) estreitamente imbricadas, formando o que o pr´oprio Morgan chama de ”estruturas”, que evoluem dentro de per´ıodos sucessivos.2
  • 118. 116 CAP´ITULO 11. A ANTROPOLOGIA DIN ˆAMICA: da antropologia econˆomica.3 Dois autores ir˜ao deter mais demo-radamente nossa aten¸c˜ao: Georges Balandier e Roger Bastide. Uma das preocupa¸c˜oes de Balandier, desde a publica¸c˜ao de suas primeiras obras sobre a ´Africa negra (1955), ´e mostrar que conv´em interessar-se para to- dos os atores sociais presentes (n˜ao mais apenas os ”ind´ıgenas”, mas tamb´em os mission´arios, os administradores e outros agentes da coloniza¸c˜ao), pois to- dos fazem parte do campo de investiga¸c˜ao do pesquisador. Por outro lado, Balandier nos prop˜oe uma cr´ıtica radical da no¸c˜ao de ”integra¸c˜ao”social, que seria localiz´avel a partir da observa¸c˜ao de grupos sociais ”preservados”. Considera, pelo contr´ario, que toda sociedade ´e ”problem´atica”. Ou seja, da mesma forma que Griaule havia, como dissemos, mostrado que o complexo n˜ao ´e um produto derivado de formas originais – que seriam, por sua vez, simples – Balandier considera que n˜ao se deve opor uma in´ercia – para ele absolutamente fict´ıcia – que seria perturbada de fora por um dinamismo, caracter´ıstico apenas das nossas sociedades. Mas a compara¸c˜ao entre Gri- aule e Balandier p´ara evidentemente a´ı. O primeiro efetua o levantamento de uma tradi¸c˜ao ancestral, concebida por ele como quase imut´avel, enquanto o segundo coloca as bases de uma teoria da mudan¸ca social, que o levar´a a empreender, no decorrer de suas obras a constitui¸c˜ao de uma antropologia da modernidade. Essa perspecitva de um estudo da mudan¸ca social integrado ao pr´oprio ob- jeto de investiga¸c˜ao do pesquisador n˜ao tinha sido. na realidade, totalmente ausente da cena antropol´ogica da metade do s´eculo XX. Conv´em lembrar que, antes mesmo da Primeira Guerra Mundial, Malinowski, renunciando `a atitude ”romˆantica”que era sua na ´epoca de suas estadias nas ilhas Trobri- and, envolve-se, no final de sua vida, em uma perspectiva dinˆamica (1970). E o mesmo se d´a, na mesma ´epoca e em muitos aspectos, para a reflex˜ao de Margaret Mead, assim como para os trabalhos da antropologia cultural que se desenvolve durante o p´os-guerra. Mas os conceitos que s˜ao ent˜ao uti- lizados (especialmente nos Estados Unidos) para dar conta da mudan¸ca, s˜ao sempre conceitos neutros, dissimulando uma realidade colonial. Fala-se em ”contatos culturais”, ”choques culturais”, e sobretudo em ”acultura¸c˜ao”, ter- minologia que far´a sucesso. Balandier prop˜oe a substitui¸c˜ao pura e simples deste ´ultimo termo pelo de ”situa¸c˜ao colonial”, que implica a realidade de uma rela¸c˜ao social de domina¸c˜ao, quase sempre sistematicamente ocultada na antropologia cl´assica. 3 Cf. Cl. Meillassoux (1964), E. Terray (1969), P. P Rey (1971), M. Godelier (1973)
  • 119. 117 A partir disso, n˜ao se fala mais em primitivos ou selvagens e sim em ”povos colonizados”, enquanto o processo da coloniza¸c˜ao, e depois, da descoloniza¸c˜ao se torna parte integrante do campo que se deve estudar. Esse processo, ou outros semelhantes, ´e que nos permitem apreender n˜ao apenas as mudan¸cas estruturais em andamento, mas as respostas `as mudan¸cas tais como se ela- boram, por exemplo, nas metr´opoles congolesas, sob a forma de movimentos messiˆanicos (Balandier, 1955),4 ou tais como estou observando neste mo- mento em Fortaleza, no Nordeste do Brasil, sob a forma de cultos sincr´eticos. A obra de Roger Bastide aparece ao mesmo tempo muito pr´oxima e muito di- ferente da anterior. Muito diferente cm primeiro lugar, porque a abordagem desse autor inscreve-se claramente, como vimos acima, no horizonte da an- tropologia cultural. Mas Bastide, tanto quanto Balandier, procura incluir os diferentes protagonistas sociais no campo de seu objeto de estudo. Ademais, tamb´em insiste, de um lado, sobre as mudan¸cas sociais ligadas `a dinˆamica pr´opria de uma determinada cultura; de outro, sobre a interpenetra¸c˜ao das civiliza¸c˜oes, que provoca um movimento de transforma¸c˜oes ininterruptas. Todas essas pesquisas, mais uma vez freq¨uentemente muito diferentes uma das outras, inscrevem-se plenamente no projeto mesmo da antropologia, que ´e dar conta das varia¸c˜oes, isto ´e, notadamente das mudan¸cas. Uma de suas maiores contribui¸c˜oes ´e de ter participado de forma consider´avel do desloca- mento das preocupa¸c˜oes tradicionais dos etn´ologos, e de ter aberto novos lu- gares de investiga¸c˜ao: a cidade em especial, lugar privilegiado de observa¸c˜ao dos conflitos, das tens˜oes sociais e das reeetrutura¸c˜oes em andamento (cf. quanto a isso, al´em dos trabalhos de Balandier citados acima, Oscar Lewis (1963), Paul Mercier (1954), Jean-Marie Gibbal (1974) ). Correlativamente, essa antropologia da modernidade (segundo a express˜ao de Balandier), que instaura uma ruptura com a tendˆencia intelectualista da etnologia francesa, leva o pesquisador a interessar-se diretamente pela sua pr´opria sociedade. Finalmente, enfatizando a realidade conflitual das si- tua¸c˜oes de dependˆencia (econˆomica, tecnol´ogica, militar, ling¨u´ıstica. . .), ela n˜ao opera apenas uma transforma¸c˜ao do objeto de estudo, mas inicia uma verdadeira muta¸c˜ao da pr´atica da pesquisa. Dito isso, se essa antropologia reorienta, ”complexifica”e ”problematiza”a antropologia cl´assica, seria no entanto irris´orio pensar que a abole. 4 Cf. tamb´em V. Lantemari (1962). W E. M¨uhlmann (1968), F I.awrence (I974V
  • 120. 118 CAP´ITULO 11. A ANTROPOLOGIA DIN ˆAMICA:
  • 121. Parte III A Especificidade Da Pr´atica Antropol´ogica 119
  • 123. Cap´ıtulo 12 Uma Ruptura Metodol´ogica: a prioridade dada `a experiˆencia pessoal do ”campo” A abordagem antropol´ogica de base, a que todo pesquisador considera hoje como incontorn´avel, quaisquer que sejam por outro lado suas op¸c˜oes te´oricas, prov´em de uma ruptura inicial em rela¸c˜ao a qualquer modo de conhecimento abstrato e especulativo, isto ´e, que n˜ao estaria baseado na observa¸c˜ao direta dos comportamentos sociais a partir de uma rela¸c˜ao humana. N˜ao se pode, de fato, estudar os homens `a maneira do botˆanico exami- nando a samamb´aia ou do zo´ologo observando o crust´aceo; s´o se pode fazˆe-lo comunicando-se com eles: o que sup˜oe que se compartilhe sua existˆencia de maneira dur´avel (Griaule, Leenhardt) ou transit´oria (L´evi-Strauss). Pois a etnografia, que ´e fundadora da etnologia e da antropologia – a tal ponto que alguns dos mestres de nossa disciplina (estou pensando particularmente em Boas) consideram que toda s´ıntese ´e sempre prematura, e que alguns ainda hoje preferem qualificar-se de ”etn´ografos”(J. Favret, 1977) – n˜ao consiste apenas em coletar, atrav´es de um m´etodo estritamente indutivo, uma grande quantidade de informa¸c˜oes, mas em impregnar-se dos temas obsessionais de uma sociedade, de seus ideais, de suas ang´ustias. O etn´ografo ´e aquele que deve ser capaz de viver nele mesmo a tendˆencia principal da cultura que es- tuda. Se, por exemplo, a sociedade tem preocupa¸c˜oes religiosas, ele pr´oprio deve rezar com seus h´ospedes. Para poder compreender o candombl´e, ”foi-me preciso mudar completamente minhas categorias l´ogicas”, escreve Roger Bas- tide (1978), acrescentando: ”Eu procurava uma compreens˜ao mineral´ogica e, mais ainda, an´aloga a organiza¸c˜oes vegetais, a cip´os vivos”. 121
  • 124. 122 CAP´ITULO 12. UMA RUPTURA METODOL ´OGICA: Assim, a etnografia ´e antes a experiˆencia de uma imers˜ao total, consistindo em uma verdadeira acultura¸c˜ao invertida, na qual, longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifesta¸c˜oes ”exteriores”(Durkheim), devo interioriz´a-la nas significa¸c˜oes que os pr´oprios indiv´ıduos atribuem a seus comportamentos. Quanto a isso, ´e significativo que, em sua Li¸c˜ao Inaugu- ral no Coll`ege de France, o autor da Antropologia Estrutural comece sua exposi¸c˜ao por uma ”homenagem”ao ”pensamento supersticioso”, proclame que, ”contra o te´orico, o observador deve ficar com a ´ultima palavra; e con- tra o observador, o ind´ıgena”, e termine seu discurso insistindo sobre tudo o que deve a esses ´ındios do Brasil, de quem se considera um ”aluno”. Essa apreens˜ao da sociedade tal como ´e percebida de dentro pelos atores sociais com os quais mantenho uma rela¸c˜ao direta (apreens˜ao esta, que n˜ao ´e de forma alguma exclusiva da evidencia¸c˜ao daquilo que lhes escapa, mas que, pelo contr´ario, abre o caminho para essa etapa ulterior da pesquisa), ´e que distingue essencialmente a pr´atica etnol´ogica – pr´atica do campo – da do historiador ou do soci´ologo. O historiador, de fato, se procura, como o etn´ologo, dar conta o mais cientificamente poss´ıvel da alteridade `a qual ´e confrontado, nunca entra em contato direto com os homens e mulheres das sociedades que estuda. Recolhe e analisa os testemunhos. Nunca encon- tra testemunhas vivas. Quanto `a pr´atica da sociologia, pelo menos em suas principais tendˆencias cl´assicas v´arias caracter´ısticas a distinguem da pr´atica etnol´ogica considerada sob o ˆangulo que det´em aqui nossa aten¸c˜ao. 1) Comporta um distanciamento em rela¸c˜ao a seu objeto, e algo frio, e ”de- sencarnado”, como diz L´evi-Strauss a respeito do pensamento durkheimiano. 2) Diante de qualquer problema que lhe seja apresentado, parece ser capaz de encontrar uma explica¸c˜ao e fornecer solu¸c˜oes. Objetar-se-´a que pode, ´e claro, ser o caso do etn´ologo. Com a diferen¸ca, por´em, de que este se esfor¸ca, por raz˜oes metodol´ogicas (e evidentemente afetivas), em co-colar-se o mais perto poss´ıvel do que ´e vivido por homens de carne e osso, arriscando-se a perder em algum momento sua identidade e a n˜ao voltar totalmente ileso dessa experiˆencia. 3) O etn´ologo evita, n˜ao apenas por temperamento mas tamb´em em con- seq¨uˆencia da especificidade do modo de conhecimento que persegue, uma programa¸c˜ao estrita de sua pesquisa, bem como a utiliza¸c˜ao de protoco- los r´ıgidos, de que a sociologia cl´assica pensou poder tirar tantos benef´ıcios cient´ıficos. A busca etnogr´afica, pelo contr´ario, tem algo de errante. As ten- tativas abordadas, os erros cometidos no campo, constituem informa¸c˜oes
  • 125. 123 que o pesquisador deve levar em conta. Como tamb´em o encontro que surge freq¨uentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quando n˜ao esper´avamos. N˜ao nos enganemos, por´em, quanto `as virtudes do campo. Da mesma forma que o fato de ter alcan¸cado uma cura anal´ıtica n˜ao garante que vocˆe possa um dia se tornar psicanalista, um grande n´umero de temporadas passadas em contato com uma sociedade que se procura compreender n˜ao o transformar´a ipso jacto em um etn´ologo. Trata-se por´em de condi¸c˜oes necess´arias. Pois a pr´atica antropol´ogica s´o pode se dar com uma descoberta etnogr´afica, isto ´e, com uma experiˆencia que comporta uma parte de aventura pessoal.
  • 126. 124 CAP´ITULO 12. UMA RUPTURA METODOL ´OGICA:
  • 127. Cap´ıtulo 13 Uma Invers˜ao Tem´atica: o estudo do infinitamente pequeno e do cotidiano A hist´oria, a sociologia cl´assica d˜ao uma prioridade quase sistem´atica `a socie- dade global, bem como `as formas de atividades institu´ıdas. Assim, por exem- plo, quando estudam as associa¸c˜oes volunt´arias, privilegiam nitidamente as grandes, suscet´ıveis de influenciar diretamente a (grande) pol´ıtica: os parti- dos, os sindicatos. . . em detrimento das associa¸c˜oes de menor importˆancia num´erica, como as associa¸c˜oes religiosas, e sobretudo as formas menos or- ganizadas de socialidade. Nessas condi¸c˜oes, a vida cotidiana dos homens torna-se uma esp´ecie de res´ıduo irris´orio, a n˜ao ser em se tratando (para o historiador) da vida dos ”grandes homens”. Os fenˆomenos sociais n˜ao escri- tos, n˜ao formalizados, n˜ao institucionalizados (isto ´e, na realidade, a maior parte de nossa existˆencia) s˜ao ent˜ao rejeitados para o registro inconsistente do ”folclore”. A abordagem etnol´ogica consiste precisamente em dar uma aten¸c˜ao toda especial a esses materiais residuais que foram durante muito tempo con- siderados como indignos de uma atividade t˜ao nobre quanto a atividade ci- ent´ıfica.1 ´E uma abordagem claramente microsso´aol´ogica, que privilegia dessa vez o que ´e aparentemente secund´ario em nossos comportamentos sociais. Disso resulta um deslocamento radical dos centros de interesse tradicionais das ciˆencias sociais, para o que chamarei de infinitamente pequeno e cotidi- 1 Trata-se evidentemente menos, no caso, da ciˆencia, do que de uma de suas vestimentas ideol´ogicas que escolhe os fatos estudados de acordo com crit´erios e pertinˆencias estranhas a qualquer preocupa¸c˜ao cient´ıfica, e os batiza de ”hist´oricos”, a partir da representa¸c˜ao mestra do .acesso progressivo das sociedades humanas a um maior bem-estar, consciˆencia e raz˜ao. 125
  • 128. 126 CAP´ITULO 13. UMA INVERS ˜AO TEM ´ATICA: ano. As doutrinas, as constru¸c˜oes intelectuais,as produ¸c˜oes do pensamento erudito (filos´ofico, teol´ogico, cient´ıfico. . .) s˜ao, nessa perspectiva, con- sideradas menos como iluminadoras do que como devendo ser iluminadas. Assim, a aten¸c˜ao do pesquisador passa a interessar-se para as condutas mais habituais e, em aparˆencia, mais f´uteis: os gestos,as express˜oes corporais, os h´abitos alimentares, e higiene, a percep¸c˜ao dos ru´ıdos da cidade e dos ru´ıdos dos campos. . . Embora o objeto emp´ırico da etnologia n˜ao se confunda com o campo aberto pela coloniza¸c˜ao, as preocupa¸c˜oes dos etn´ologos me parecem indefectivelni- ente ligadas a um certo n´umero de crit´erios, que permitem definir as socie- dades nas quais nossa disciplina nasceu: grupos de pequena dimens˜ao, nos quais as rela¸c˜oes (exclusiva ou essencialmente orais) s˜ao personalizadas no extremo. 0 problema que se vˆe aqui colocado ´e evidentemente o seguinte: como far´a o etn´ologo quando se ver confrontado a sociedades gigantescas, nas quais a comunica¸c˜ao aparece como cada vez mais anˆonima? Resposta: ele vai em primeiro lugar procurar, dentro dessas sociedades, se n˜ao encon- tra objetos emp´ıricos capazes de lembrar-lhe os bons tempos da etnologia cl´assica. E, ´e um fato, voltar-se-´a em primeiro lugar para a comunidade camponesa (e n˜ao para a cidade industrial), para a fam´ılia tradicional (e n˜ao para a fam´ılia desmembrada), para as pequenas confrarias religiosas (e n˜ao para as grandes organiza¸c˜oes sindicais), e, em seguida, para as popula¸c˜oes desenraizadas (e n˜ao para a burguesia decadente). Em suma, seus objetos de predile¸c˜ao ser˜ao os grupos sociais que se situam mais no exterior da soci- edade global do observador: os que qualificamos de marginais: camponeses bret˜oes, feiticeiros do Berry, adeptos de seitas religiosas. . 2 Dito isso, conv´em distinguir (mas n˜ao dissociar) as quest˜oes de fato e as de direito. Se, de fato, o etn´ologo tende a estudar as formas de comporta- mento e sociabilidade mais excentradas em rela¸c˜ao `a ideologia dominante da sociedade global `a qual pertence, n˜ao h´a, de direito, propriamente nenhum territ´orio da etnologia. E as diferen¸cas entre os modos de vida e de pensa- mento s˜ao t˜ao localiz´aveis nas nossas sociedades (constitu´ıdas de m´ultiplos subgrupos extremamente diversificados, e nos quais v´arias ideologias est˜ao em concorrˆencia) quanto nas sociedades qualificadas de ”tradicionais”. ”Se o etn´ologo”, como escreve L´evi-Strauss (1958), ”interessa-se sobretudo por aquilo que n˜ao ´e escrito”(e tamb´em, acrescentaremos, por aquilo que n˜ao 2 Essa predile¸c˜ao pelos abandonados (”laiss´es-pour-compte”) (ou advers´arios) do pro- gresso – o estudo dos indigentes sucedendo ao dos ind´ıgenas – parece claramente na ´area n˜ao ex´otica da antropologia americana, que d´a uma aten¸c˜ao toda especial aos guetos negros ou portorriquenhos dos Estados Unidos.
  • 129. 127 ´e formalizado e institucionalizado), ”n˜ao ´e tanto porque os povos que es- tuda s˜ao incapazes de escrever, mas porque aquilo que o interesse ´e diferente de tudo que os homens pensam habitualmente em fixar na pedra e no papel”. Conv´em, portanto, deixar de colocar o problema das rela¸c˜oes da sociologia e da etnologia sobre as bases emp´ıricas das ”sociedades industriais”e das ”so- ciedades tradicionais”(mesmo incluindo-se os lados ”tradicionais”existentes dentro das primeiras), pois a etnologia n˜ao tem objeto que lhe seja pr´oprio (e que poderia ser-lhe ipso jacto designado pelo car´ater ”primitivo”ou ”tradicio- nal”das sociedades estudadas), e sim uma abordagem, um enfoque particular, um olhar, ao meu ver, absolutamente ´unico no campo das ciˆencias humanas, e pass´ıvel de ser aplicado a toda realidade social. O que me parece importante sublinhar, finalmente, ´e que grande parte da renova¸c˜ao das ciˆencias humanas contemporˆaneas deve-se incontestavelmente a sua abertura para nossa disciplina, que as influenciou (direta ou indireta- mente) designando-lhes novos terrenos de investiga¸c˜ao e convencendo-as de que n˜ao deve haver, na pr´atica cient´ıfica, objeto tabu. Assim, as ciˆencias das religi˜oes n˜ao consideram mais o cristianismo ”ao n´ıvel das doutrinas e dos doutores, e sim das multid˜oes anˆonimas”, como escreve Ean Delumeau. A ar- quitetura come¸ca a perceber que o estudo dos monumentos ”de estilo”forma apenas uma parte ´ınfima do h´abitat, e a reabilitar todo esse ”recalcado”da cultura material que ´e, no caso, o h´abitat popular. Um deslocamento abso- lutamente an´alogo pode ser encontrado em qualquer ´area: ”a arqueologia, por exemplo, est´a passando do estudo dos pal´acios, templos e t´umulos impe- riais para o conjunto do meio ambiente constru´ıdo, inclusive o mais humilde, sendo este a express˜ao de uma cultura que se procura compreender nos seus m´ınimos detalhes. Mas ´e sobretudo na hist´oria, ao meu ver, que assistimos a um deslocamento radical do campo da curiosidade. Trata-se de ir do p´ublico para o privado, do Estado para o parentesco, dos ”grandes homens”para os atores anˆonimos, e dos grandes eventos para a vida cotidiana. Sob a influˆencia da escola dos Annales, a hist´oria contemporˆanea, pelo menos na Fran¸ca, tornou-se uma hist´oria antropol´ogica, isto ´e, uma hist´oria das mentalidades e sensibilida- des, uma hist´oria da cotidianidade material.
  • 130. 128 CAP´ITULO 13. UMA INVERS ˜AO TEM ´ATICA:
  • 131. Cap´ıtulo 14 Uma Exigˆencia: o estudo da totalidade Uma das caracter´ısticas da abordagem antropol´ogica ´e que se esfor¸ca em levar tudo em conta, isto ´e, de estar atenta para que nada lhe tenha es- capado. No campo, tudo deve ser observado, anotado, vivido, mesmo que n˜ao diga respeito diretamente ao assunto que pretendemos estudar. De um lado, o menor fenˆomeno deve ser apreendido na multiplicidade de suas di- mens˜oes (todo comportamento humano tem um aspecto econˆomico, pol´ıtico, psicol´ogico, social, cultural. . .). De outro, s´o adquire significa¸c˜ao antro- pol´ogica sendo relacionado `a sociedade como um todo na qual se inscreve e dentro da qual constitui um sistema complexo. Como escreve Mauss (1960), ”o homem ´e indivis´ıvel”e ”o estudo do concreto”´e ”o estudo do completo”. ´E a raz˜ao pela qual toda abordagem que consistir em isolar experimental- mente objetos n˜ao cabe no modo de conhecimento pr´oprio da antropologia, pois o que esta pretende estudar ´e o pr´oprio contexto no qual se situam esses objetos, ´e a rede densa das intera¸c˜oes que estas constituem com a totalidade social em movimento. A especializa¸c˜ao cient´ıfica ´e mais problem´atica para o antrop´ologo do que para qualquer outro pesquisador em ciˆencias humanas. O antrop´ologo n˜ao pode, de fato, se tornar um especialista, isto ´e, um perito de tal ou tal ´area particular (econˆomica, demogr´afica, jur´ıdica. . .) sem correr o risco de abolir o que ´e a base da pr´opria especificidade de sua pr´atica. As ciˆencias pol´ıticas se d˜ao por objeto de investiga¸c˜ao um certo aspecto do real: as institui¸c˜oes que regem as rela¸c˜oes do poder; as ciˆencias econˆomicas, um outro: os siste- mas de produ¸c˜ao e troca de bens; as ciˆencias jur´ıdicas, o direito; as ciˆencias 129
  • 132. 130 CAP´ITULO 14. UMA EXIGˆENCIA: psicol´ogicas, os processos cognitivos e afetivos; as ciˆencias religiosas, os sis- temas de cren¸ca. . . Mas todos estes s˜ao para o antrop´ologo fenˆomenos parciais, isto ´e, abstra¸c˜oes em rela¸c˜ao ao enfoque n˜ao parcelar que orienta sua abordagem. O parcelamento disciplinar comporta, de fato, no horizonte cient´ıfico contemporˆaneo, um risco essencial: o de um desmantelamento do homem em produtor, consumidor, cidad˜ao, parente. . . Assim, por exemplo, a pesquisa sociol´ogica est´a cada vez mais especializada: estuda fenˆomenos particulares: a delinq¨uˆencia, a criminalidade, o div´orcio, o alcoolismo. . . e o pesquisador tende a se tornar o especialista de um campo exclusivo: soci- ologia dos lazeres, do esporte, das condutas suicidas. . . A pr´opria antropologia, ´e claro, ´e freq¨uentemente levada a participar desse processo que pode causar uma verdadeira mutila¸c˜ao do ser humano, de que se procura, em um segundo tempo (a pluridisciplinaridade), costurar de novo os retalhos recortados. Mas permanece, a meu ver, dentro do espa¸co da cultura cient´ıfica (e n˜ao da cultura humanista, como pode ser a cultura filos´ofica ou liter´aria), um lugar privilegiado a partir do qual ainda se pode perceber que toda pr´atica hiperespecializada, atrav´es da fragmenta¸c˜ao e do desmembra- mento que imp˜oe ao real, acaba destruindo o pr´oprio objeto que pretendia estudar. Pessoalmente, a antropologia me parece ser o ant´ıdoto n˜ao filos´ofico de uma concep¸c˜ao tayloriana da pesquisa, que consiste em: 1) cumprir sempre a mesma tarefa, ser o especialista de uma ´unica ´area; 2) tentar, de uma ma- neira pragm´atica, modificar, ou at´e transformar os fenˆomenos que se estuda. O drama das ciˆencias humanas contemporˆaneas ´e a fratura entre uma atitude extremamente reflexiva (a da filosofia ou da moral) mas que corre o risco de cair no vazio, dada a fraca positividade de seus objetos de investiga¸c˜ao, e uma cientificidade extremamente positiva, mas pouco reflexiva, por estar ba- seada no parcelamento de territ´orios e, voltaremos a isso, sobre uma forma de objetividade que as pr´oprias ciˆencias exatas descartaram h´a muito tempo.1 Essa preocupa¸c˜ao que tem a antropologia de dar conta, a partir de um fenˆomeno concreto singular, do multidimensionamento de seus aspectos e da totalidade complexa na qual se inscreve e adquire sua significa¸c˜ao inconsci- ente, est´a relacionada `a abordagem menos diretiva e program´atica da pr´opria pr´atica etnogr´afica, comparada a outros modos de coleta de informa¸c˜oes: 1 N˜ao posso deixar de recomendar particularmente, a respeito desse aspecto, a leitura da obra de um soci´ologo, Edgar Morin (1974), e em especial do cap´ıtulo intitulado ”Da pauperiza¸c˜ao das id´eias gerais em um meio especializado”
  • 133. 131 trata-se, de fato, para n´os, al´em de todos os question´arios, por mais aper- fei¸coados que sejam, de fazer surgir um questionamento m´utuo. Tal preo- cupa¸c˜ao diz respeito tamb´em, mais uma vez, `a natureza das sociedades nas quais se desenvolveu nossa disciplina: conjuntos relativamente homogˆeneos, nos quais as atividades s˜ao pouco especializadas, e que se d˜ao uma ideologia mestra (de tipo mitol´ogico) dando conta da totalidade social. A pr´atica da antropologia finalmente, baseada sobre uma extrema proxi- midade da realidade social estudada, sup˜oe tamb´em, paradoxalmente, um grande distanciamento (em rela¸c˜ao `a sociedade que procuro compreender, em rela¸c˜ao `a sociedade `a qual perten¸co). ´E a raz˜ao pela qual somos prova- velmente, enquanto antrop´ologos, mais tocados do que outros, e, em primeiro lugar, mais surpreendidos, pela dis-, jun¸c˜ao hist´orica absolutamente singular ´unica at´e na hist´oria da humanidade, que nossa pr´opria cultura realizou entre a ciˆencia e a moral, a ciˆencia e a religi˜ao, a ciˆencia e a filosofia. Se olharmos de mais perto, esta ´ultima disciplina n˜ao ´e mais hoje um pen- samento da totalidade dando-se como objetivo compreender os m´ultiplos as- pectos do homem. Como escreve L´evi-Strauss, apenas trˆes formas de pensa- mento s˜ao, no mundo contemporˆaneo, capazes de responder a essa defini¸c˜ao: o islamismo, o marxismo e a antropologia. O projeto antropol´ogico retoma, a meu ver, hoje, mas sobre bases completamente diversas (n˜ao mais a espe- cula¸c˜ao sobre as categorias do esp´ırito humano, mas a observa¸c˜ao direta de suas produ¸c˜oes concretas), o projeto que foi o da filosofia cl´assica. ´E a raz˜ao pela qual muitos entre n´os se recusam a entrar nas vias de uma hiperespeci- aliza¸c˜ao, podendo tornar-se, como mostrou Husserl, antagonista da reflex˜ao, e podendo at´e, como sugere hoje em dia Laborit, chegar a impedir o pr´oprio exerc´ıcio do pensamento.
  • 134. 132 CAP´ITULO 14. UMA EXIGˆENCIA:
  • 135. Cap´ıtulo 15 Uma Abordagem: a an´alise comparativa Est´a ligada `a problem´atica maior de nossa disciplina que ´e a da diferen¸ca, implicando uma descentra¸c˜ao radical em rela¸c˜ao `a sociedade de que faz parte o observador, isto ´e, uma ruptura com qualquer forma, dissimulada ou delibe- rada, de etnocentrismo. Pois, apenas o que percebemos (em estado manifesto ou latente) em uma outra sociedade nos permite visualizar o que est´a em jogo na nossa, mas que n˜ao suspeit´avamos. Essa experiˆencia de arrancamento de si pr´oprio age, na realidade, como um verdadeiro revelador de si. Cada um j´a notou que, quando uma crian¸ca nasce, os parentes e amigos da fam´ılia endere¸cam seus cumprimentos ao novo pai. Esse costume aparentemente insignificante ganha todo seu significado se o olharmos `a luz da couvade, praticada, por exemplo, na ´Africa, e que se encontrava tamb´em na Fran¸ca, notadamente na Borgonha, at´e o in´ıcio do s´eculo. Tudo se passa como se a parturiente n˜ao fosse outra sen˜ao o pr´oprio pai. Participando efetivamente do nascimento da crian¸ca, o marido recupera seus direitos de paternidade (nas sociedades, notadamente, nas quais o parentesco biol´ogico ´e dissociado da paternidade social), se vˆe totalmente integrado a sua pr´opria fam´ılia, e adquire com isso um estatuto de perfeito genitor. Todos n´os participamos, pelo menos uma vez na vida, da inaugura¸c˜ao de um edif´ıcio; amigos nos convidaram para festejar a entrada em uma nova casa ou em um novo apartamento. Ora, esse cerimonial, tamb´em bastante insignificante, permanece totalmente incompreens´ıvel se n˜ao o relacionarmos `as cerimˆonias de apropria¸c˜ao do espa¸co que, nas sociedades tradicionais, con- sistem no sacrif´ıcio de um animal ou numa liba¸c˜ao de ´alcool aos esp´ıritos. O mesmo se d´a quando nos interessamos para a defesa de uma tese de dou- 133
  • 136. 134 CAP´ITULO 15. UMA ABORDAGEM: torado, que adquire todo o seu significado a partir do momento em que a confrontamos com os ritos de inicia¸c˜ao e passagem que pudemos observar em outras sociedades.1 Poder´ıamos multiplicar os exemplos: o estudo dos jovens de Samoa que permite a Margaret Mead dar conta dos comportamentos de crise dos adolescentes americanos; o da feiti¸caria entre os Azand´e do Sud˜ao que permite a Evans-Pritchard compreender alguns aspectos do comunismo sovi´etico. Este mestre da antropologia britˆanica recomendava a seus alunos o estudo de duas sociedades a fim de evitar, dizia ele, o que aconteceu a Malinowski: ”pensar durante toda a sua vida em fun¸c˜ao de um ´unico tipo de sociedade”, no caso, os Trobriandeses. Ora, temos de reconhecer que a maioria dos etn´ologos de hoje n˜ao ´e de antrop´ologos. Suas pesquisas tratam de uma cultura particular, ou at´e de um segmento, de um aspecto desta cultura, na melhor das hip´oteses de al- gumas variedades de culturas, mas quase nunca do estudo dos processos de variabilidade da cultura. A abordagem comparativa – que se confunde com a pr´opria antropologia – ´e uma das mais ambiciosas e exigentes que h´a. Mas antes de examinar os problemas que coloca e as dificuldades que encontra, conv´em lembrar algu- mas grandes posi¸c˜oes que balizam a hist´oria de nossa disciplina. A primeira forma de comparatismo – o evolucionismo – ordena os fatos co- lhidos dentro de um discurso que se apresenta como hist´orico. Confrontando essencialmente costumes (cf. especialmente Frazer), procura reconstituir uma evolu¸c˜ao hipot´etica das sociedades humanas (de todas as sociedades) na ausˆencia de documentos hist´oricos. As extrapola¸c˜oes e generaliza¸c˜oes que operam os pesquisadores eruditos desse per´ıodo v˜ao aparecendo aos poucos como t˜ao abusivas que, praticamente, toda a etnologia posterior (a ruptura epistemol´ogica introduzida nos anos 1910-1920 por Boas e Malinowski) ir´a adotar uma posi¸c˜ao radicalmente anticomparativa. Com o funcionalismo, a sociedade estudada adquire uma autonomia n˜ao apenas emp´ırica, mas tamb´em te´orica. N˜ao se trata mais de comparar as sociedades entre si, mas de mostrar, atrav´es de monografias, como se realiza a integra¸c˜ao das dife- ren¸cas fun¸c˜oes em jogo em uma mesma sociedade.2 1 ˆE nessa perspectiva que Maurice Leenhardt, ap´os ter trabalhado durante mais de 20 anos na Nova Caledˆonia e ter estado na ´Africa, escreve: ”A ´Africa me ensinou muito sobre a Oceania”. 2 O que leva o antrop´ologo americano Murdock a dizer que a maioria dos antrop´ologos britˆanicos, deixando de lado o estudo das diferen¸cas entre as civiliza¸c˜oes, n˜ao ´e de an- trop´ologos, e sim de soci´ologos.
  • 137. 135 Se o projeto da antropologia cultural ´e, de fato, o de confrontar os com- portamentos humanos os mais diversificados, de uma ´area geogr´afica para outra – n˜ao mais por uma ”periodiza¸c˜ao”no tempo, como na ´epoca de Mor- gan, mas, preferencialmente, por uma extens˜ao no espa¸co –, o postulado da irredutibilidade de cada cultura termina impedindo o pr´oprio empreen- dimento da compara¸c˜ao. Detenhamo-nos sobre esse ponto que ´e, ao meu ver, essencial. Claro, s˜ao as varia¸c˜oes que interessam em primeira instˆancia ao antrop´ologo: mas, para serem estudadas antropologicamente, e n˜ao mais apenas etnograficamente, essas varia¸c˜oes devem ser relacionadas a um certo n´umero de invariantes, pois ´e precisamente o estabelecimento dessa rela¸c˜ao que fundamenta a pr´opria abordagem da compara¸c˜ao, t˜ao caracter´ıstica de nossa disciplina. O empreendimento gigantesco dos Human Relations Area Files, elaborado por Murdock e seus colaboradores a partir de 1937 ´e, a esse respeito, repre- sentativo. Visa estudar o leque mais completo poss´ıvel dos comportamentos e institui¸c˜oes humanos, a partir de correla¸c˜oes entre um grande n´umero de vari´aveis (das t´ecnicas materiais `as representa¸c˜oes religiosas) em 75 culturas diferentes. Mas esse programa, devido a sua pr´opria preocupa¸c˜ao de exaus- tividade, coloca, na realidade, mais problemas do que solu¸c˜oes. Esses exemplos mostram que, entre a tenta¸c˜ao de um comparatismo sis- tem´atico (como no evolucionismo) e o ceticismo geral dos que consideram prematuro, quando n˜ao imposs´ıvel, qualquer empreendimento de compara¸c˜ao (´e a posi¸c˜ao de Boas), o caminho ´e dos mais estreitos. O pr´oprio empreendi- mento que orienta a antropologia sup˜oe a tomada em considera¸c˜ao de uma humanidade ”plural”. Mas como dar conta de fenˆomenos que n˜ao perten- cem `as mesmas sociedades e n˜ao se inscrevem no mesmo contexto. Como conceber ao mesmo tempo, sem arriscar-se a ultrapassar os limites de uma abordagem que se quer cient´ıfica, as institui¸c˜oes pol´ıticas dos habitantes da Patagˆonia e as dos groen-landeses, os ritos religiosos dos bantos e os dos ´ındios da Amazˆonia? Lembremos em primeiro lugar que a an´alise comparativa n˜ao ´e a primeira abordagem do antrop´ologo. Este deve passar pelo caminho lento e traba- lhoso que conduz da coleta e impregna¸c˜ao etnogr´afica `a compreens˜ao da l´ogica pr´opria da sociedade estudada (etnologia). Em seguida apenas, po- der´a interrogar-se sobre a l´ogica das varia¸c˜oes da cultura (antropologia). Vale dizer que o pesquisador deve ter uma prudˆencia consider´avel. Antes de se- rem confrontados uns aos outros, os materiais recolhidos devem ser meti-
  • 138. 136 CAP´ITULO 15. UMA ABORDAGEM: culosamente criticados. Pois, se come¸carmos comparando os costumes de tal popula¸c˜ao africana com os de tal outra europ´eia, chegaremos apenas a evidenciar algumas analogias. Mas ent˜ao, como diz Kroeber, as ”universali- dades”encontradas poderiam muito bem ser apenas a proje¸c˜ao de ”categorias l´ogicas”pr´oprias somente da sociedade do observador. Assim o evolucionismo comparava o que via (ou, na maior parte das vezes, o que outros se encarre- gavam de ver por procura¸c˜ao) nas sociedades ”primitivas”, com o que sabia (ou melhor, supunha saber) de nossa pr´opria sociedade. Disso decorrem as analogias que n˜ao faltaram entre os abor´ıgines australianos e os habitantes da Europa na Idade da Pedra.3 Se a antropologia contemporˆanea ´e t˜ao comparativa quanto no passado, n˜ao deve mais nada `a abordagem do comparatismo dos primeiros etn´ologos. N˜ao utiliza mais os mesmos m´etodos e n˜ao tem mais o mesmo objeto. O que se compara hoje s˜ao costumes, comportamentos, institui¸c˜oes, n˜ao mais isola- dos de seus contextos, e sim fazendo parte destes; s˜ao sistemas de rela¸c˜ao. A partir de uma descri¸c˜ao (etnografia), e depois, de uma an´alise (etnolo- gia) de tal institui¸c˜ao, tal costume, tal comportamento, procura-se descobrir progressivamente o que L´evi-Strauss chama de ”estrutura inconsciente”, que pode ser encontrado na forma de um arranjo diferente em uma outra insti- tui¸c˜ao, um outro costume, um outro comportamento. Ou seja, os termos da compara¸c˜ao n˜ao podem ser a realidade dos fatos emp´ıricos em si,4 mas siste- mas de rela¸c˜oes que o pesquisador constr´oi, enquanto hip´oteses operat´orias, a partir destes fatos. Em suma as diferen¸cas nunca s˜ao dadas, s˜ao recolhidas pelo etn´ologo, confrontadas umas com as outras, e aquilo que ´e finalmente comparado ´e o sistema das diferen¸cas, isto ´e, dos conjuntos estruturados. 5 3 ”Se postulamos apressadamente a homogeneidade do campo social e nos confortamos na ilus˜ao de que este ´e imediatamente compar´avel era todos os seus aspectos e n´ıveis, deixaremos escapar o essencial. Desconheceremos que as coordenadas necess´arias para definir dois fenˆomenos aparentemente muito semelhantes, n˜ao s˜ao sempre as mesmas, nem est˜ao sempre em mesmo n´umero; e pensaremos estar formulando as leis da natureza social, quando estaremos nos limitando a descrever propriedades superficiais ou a enunciar tautologias”, escreve L´evi-Strauss (1973). 4 O etn´ologo contemporˆaneo ´e infinitamente mais modesto que seus predecessores. Ele n˜ao procura atingir a natureza da arte, da religi˜ao, do parentesco, nem em geral e. nem mesmo, em particular. 5 ”S´o ´e estruturado um arranjo que preencha duas condi¸c˜oes: ´e um sistema regido por uma coes˜ao interna; e essa coes˜ao – que ´e impercept´ıvel `a observa¸c˜ao de um sistema isolado – se revela no estudo das transforma¸c˜oes, gra¸cas `as quais descobrimos propriedades similares em sistemas aparentemente diferentes”, escreve L´evi-Strauss (1973).
  • 139. Cap´ıtulo 16 As Condi¸c˜oes De Produ¸c˜ao Social Do Discurso Antropol´ogico A antropologia nunca existe em estado puro. Seria ingˆenuo, sobretudo da parte de um antrop´ologo, isol´a-la de seu pr´oprio contexto. Seria paradoxal, sobretudo para uma pr´atica da qual um dos objetivos ´e situar os compor- tamentos dos que ela estuda em uma cultura, classe social, Estado, na¸c˜ao, ou momento da hist´oria deixar de aplicar a si pr´oprio o mesmo tratamento. Como escreve L´evi-Strauss, ”se a sociedade est´a na antropologia, a antro- pologia por sua vez est´a na sociedade”(1973). Seu atestado de nascimento inscreve-se em uma determinada ´epoca e cultura. Em seguida, transforma-se, em contato com as grandes mudan¸cas sociais que se produzem, e se torna, um s´eculo depois, praticamente irreconhec´ıvel. Conv´em, portanto, interrogar-se agora, n˜ao mais sobre o saber etnol´ogico em si, que nunca ´e um produto acabado, mas sobre suas condi¸c˜oes de produ¸c˜ao; pois o estudo dos textos etnol´ogicos nos informa tanto sobre a sociedade do observador quanto sobre a do observado. Retomemos rapidamente aqui, dentro dessa nova perspectiva, alguns exem- plos estudados anteriormente. O que interessa a antropologia filos´ofica do s´eculo XVIII nas sociedades da ”natureza”, ´e que estas podem dar ao Oci- dente li¸c˜oes sobre a natureza das sociedades, e permitir fundar um novo ”con- trato social”, A antropologia evolucionista que lhe sucede est´a estreitamente ligada `as pr´aticas coloniais conquistadoras da ´epoca vitoriana. Sustentada pelo ideal de uma miss˜ao civilizadora (a certeza que se tem de si), consiste na racionaliza¸c˜ao do expansionismo colonial. O funcionalismo, quanto a si, empresta seu vocabul´ario `as ciˆencias da natureza que lhes parecem a garantia 137
  • 140. 138CAP´ITULO 16. AS CONDIC¸ ˜OES DE PRODUC¸ ˜AO SOCIAL DO DISCURSO ANTROP da cientificidade. Mas o objeto da antropologia n˜ao leva em conta as pr´aticas coloniais, ao contr´ario do evolucionismo, que as justificava, e de outras for- mas de antropologia que as combatem. Um ´ultimo exemplo nos ser´a dado pela antropologia americana em sua tendˆencia culturalista. O ”relativismo cultural”, termo forjado por Herskovitz, ´e qualificado por este de ”resultado das ciˆencias humanas”. Mas est´a, na realidade, ligado `a crise hist´orica do pensamento te´orico do Ocidente confrontado com a alteridade. Al´em disso, o car´ater nitidamente mais anticolonialista dessa antropologia, comparando-a com a antropologia britˆanica ou francesa, explica-se notadamente pelo fato de que os Estados Unidos nunca tiveram colˆonias (mas apenas minorias ´etnicas). Seria conveniente, afinal, perguntar-se por que essa preocupa¸c˜ao pelas ”co- lora¸c˜oes nacionais”de nossos comportamentos, em detrimento do funciona- mento de nossas institui¸c˜oes, foi (e ainda ´e) t˜ao forte nos Estados Unidos, essa sociedade formada de uma pluralidade de culturas. Esses exemplos bastam para nos convencer de que a antropologia ´e o es- tudo do social em condi¸c˜oes hist´oricas e culturais determinadas. A pr´opria observa¸c˜ao nunca ´e efetuada em qualquer momento e por qualquer pessoa. A distˆancia ou participa¸c˜ao etnogr´afica maior ou menor est´a eminentemente ligada ao contexto social no qual se exerce a pr´atica em quest˜ao, que ´e neces- sariamente a de um pesquisador pertencendo a uma ´epoca e a uma sociedade. Quando pensa estar fazendo aparecer a racionalidade imanente ao grupo que estuda, o etn´ologo pode esquecer (freq¨uentemente de boa-f´e) as condi¸c˜oes– sempre particulares – de produ¸c˜ao de seu discurso. Mas estas nunca s˜ao hist´orica, pol´ıtica, cultural, e socialmente neutras; expressam diferentes for- mas da cultura ocidental quando esta encontra os outros de uma maneira te´orica. Isso posto, seria irris´orio reduzir a antropologia apenas `as condi¸c˜oes de seu surgimento e desenvolvimento. Al´em disso, se se tem raz˜ao em insistir sobre o fato de que o pesquisador deve considerar o lugar s´ocio-hist´orico a partir do qual fala, como parte integrante de seu objeto de estudo, seria errˆoneo con- cluir – como faz, por exemplo, Foucault – que, em conseq¨uˆencia das distor¸c˜oes perceptivas atribu´ıdas `a nossa rela¸c˜ao com o social, ”as ciˆencias humanas s˜ao falsas Ciˆencias, n˜ao s˜ao ciˆencias”. Nosso pertencer e nossa implica¸c˜ao social, longe de serem um obst´aculo ao conhecimento cient´ıfico, podem pelo contr´ario, a meu ver, ser considerados como um instrumento. Permitem colo- car as quest˜oes que n˜ao se colocavam em outra ´epoca, variar as perspectivas, estudar objetos novos.
  • 141. Cap´ıtulo 17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: Quando o antrop´ologo pretende uma neutralidade absoluta, pensa ter reco- lhido fatos ”objetivos”, elimina dos resultados de sua pesquisa tudo o que contribuiu na sua realiza¸c˜ao e apaga cuidadosamente as marcas de sua im- plica¸c˜ao pessoal no objeto de seu estudo, ´e que ele corre o maior risco de afastar-se do tipo de objetividade (necessariamente aproximada) e do modo de conhecimento espec´ıfico de sua disciplina. Essa auto-suficiˆencia do pesquisador, convencido de ser ”objetivo”ao libertar- se definitivamente de qualquer problem´atica do sujeito, ´e sempre, a meu ver, sintom´atica da insuficiˆencia de sua pr´atica. Esquece (na realidade, de uma forma estrat´egica e reivindicada) do princ´ıpio de totalidade tal como foi ex- posto acima; pois o estudo da totalidade de um fenˆomeno social sup˜oe a integra¸c˜ao do observador no pr´oprio campo de observa¸c˜ao. Se ´e poss´ıvel, e at´e necess´ario, distinguir aquele que observa daquele que ´e observado, parece-me, em compensa¸c˜ao, impens´avel dissoci´a-los. Nunca somos testemunhas objetivas observando objetos, e sim sujeitos observando outros sujeitos. Ou seja, nunca observamos os comportamentos de um grupo tais como se dariam se n˜ao estiv´essemos ou se os sujeitos da observa¸c˜ao fos- sem outros. Al´em disso, se o etn´ografo perturba determinada situa¸c˜ao, e at´e cria uma situa¸c˜ao nova, devido a sua presen¸ca, ´e por sua vez eminentemente perturbado por essa situa¸c˜ao. Aquilo que o pesquisador vive, em sua rela¸c˜ao com seus interlocutores (o que reprime ou sublima, o que detesta ou gosta), ´e parte integrante de sua pesquisa. Assim uma verdadeira antropologia ci- ent´ıfica deve sempre colocar o problema das motiva¸c˜oes extracient´ıficas do observador e da natureza da intera¸c˜ao em jogo. Pois a antropologia ´e tamb´em 139
  • 142. 140CAP´ITULO 17. O OBSERVADOR, PARTE INTEGRANTE DO OBJETO DE ESTUDO a ciˆencia dos observadores capazes de observarem a si pr´oprios, e visando a que uma situa¸c˜ao de intera¸c˜ao (sempre particular) se torne o mais consciente poss´ıvel, isso ´e realmente o m´ınimo que se possa exigir do antrop´ologo. Alguns anos atr´as, estava realizando, a pedido do CNRS, uma pesquisa no sul da Tun´ısia sobre um fenˆomeno chamado hajba (que significa em ´arabe: claus- tra¸c˜ao, trancamento) que se inscreve no quadro da prepara¸c˜ao das jovens ao casamento. No decorrer de um per´ıodo variando de algumas semanas a alguns meses, a noiva permanece rigorosamente separada do mundo exterior, e par- ticularmente do universo masculino. Passa por um tratamento est´etico cujo objetivo ´e deixar sua pele o mais branca poss´ıvel, e por um regime alimen- tar que deve engord´a-la. Essa pr´atica de superalimenta¸c˜ao (`a -base de ovos, a¸c´ucar, torradas com ´oleo), aplicada a jovens djerbianas que ser˜ao entregues a maridos que n˜ao conhecem, de in´ıcio repugnava-me. Ora, longe de eliminar a natureza afetiva (mas, com certeza, ligada `a cultura `a qual perten¸co) de minha rea¸c˜ao, tive, pelo contr´ario, de lev´a-la em conta, de tentar elucid´a-la, a fim de controlar, na medida do poss´ıvel, as conseq¨uˆencias, perturbadoras tanto para mim quanto para meus interlocutores que, como todos os interlo- cutores, nunca se enganam por muito tempo sobre os sentimentos pelos quais passa o etn´ologo. Da mesma forma, o que me marcou muito na ocasi˜ao de minha primeira miss˜ao etnol´ogica em pa´ıs ba´ule foi o respeito pelos velhos, o espa¸co ocupado pelos esp´ıritos, e a facilidade das rela¸c˜oes sexuais com as adolescentes. Se isso me surpreendeu, ´e porque essas condutas questionavam a minha pr´opria cultura; pois era de fato esta que me questionava em alguns aspectos da cultura dos ba´ules e me questiona quando observo hoje, no Bra- sil, a aptid˜ao consider´avel que tˆem os homens e as mulheres para entrar em transe, ou, mais precisamente, serem ”possu´ıdos”pelos esp´ıritos ancestrais – ´ındios, crist˜aos, africanos – do grupo. ´E prov´avel que o gato veja no cachorro uma esp´ecie particular de gato, enquanto o cachorro, por sua vez, veja em seu dono uma outra ra¸ca de cachorro. Se ambos fazem, respectivamente, ca- nicentrismo e cinomorfismo, importa muito que o etn´ologo (isso faz parte da aprendizagem de sua profiss˜ao, e o car´ater cient´ıfico dos resultados de suas pesquisas depende disso) controle as armadilhas, freq¨uentemente inconscien- tes, da proje¸c˜ao e do etnocentrismo. Conv´em aqui interrogar-se sobre as raz˜oes que levam a reprimir a subje- tividade do pesquisador, como se esta n˜ao fosse parte da pesquisa. Por que esses relat´orios anˆonimos, redigidos por ”credores”, e que ignoram a rela¸c˜ao dos materiais colhidos com a pessoa do coletor j´a que, se ele tiver talento, pode sempre escrever suas confiss˜oes? Como ´e poss´ıvel que tudo o que faz a originalidade da situa¸c˜ao etnol´ogica – que nunca consiste na observa¸c˜ao de
  • 143. 141 insetos, e sim numa rela¸c˜ao humana envolvendo necessariamente afetividade – possa transformar-se a tal ponto em seu contr´ario? Tornar-se esquecimento ou recalcamento de uma intera¸c˜ao entre seres vivos, funcionando em muitos aspectos como um ritual de exorcismo? Ou seja, por que, segundo a express˜ao de Edgar Morin, essa ”esquizofrenia profunda e permanente”das ciˆencias do homem em sua tendˆencia ortodoxa? A id´eia de que se possa construir um objeto de observa¸c˜ao independentemente do pr´oprio observador prov´em na realidade de um modelo ”objetivista”, que foi o da f´ısica at´e o final do s´eculo XIX, mas que os pr´oprios f´ısicos abandona- ram h´a muito tempo. ´E a cren¸ca de que ´e poss´ıvel recortar objetos, isol´a-los, e objetivar um campo de estudo do qual o observador estaria ausente, ou pelo menos substitu´ıvel. Esse modelo de objetividade por objetiva¸c˜ao ´e, sem d´uvida, pertinente quando se trata de medir ou pesar (pouco importa, neste caso, que o observador tenha 25 ou 70 anos, que seja africano ou euro- peu, socialista ou conservador). N˜ao pode ser conveniente para compreender comportamentos humanos que veiculam sempre significa¸c˜oes, sentimentos e valores. Ora, uma das tendˆencias das ciˆencias humanas contemporˆaneas ´e eliminar duplamente o sujeito: os atores sociais s˜ao objetivados, e os observadores est˜ao ausentes ou, pelo menos, dissimulados. Essa elimina¸c˜ao encontra sem- pre sua justifica¸c˜ao na id´eia de que o sujeito seria um res´ıduo n˜ao assimil´avel a um modo de racionalidade que obede¸ca aos crit´erios da ”objetividade”, ou, como diz L´evi-Strauss, de que a consciˆencia seria ”a inimiga secreta das ciˆencias do homem”. Nessas condi¸c˜oes, n˜ao haver´a ent˜ao outra escolha sen˜ao entre uma cientificidade desumana e um humanismo n˜ao cient´ıfico? Paradoxalmente, a volta do observador para o campo da observa¸c˜ao n˜ao se deu atrav´es das ciˆencias humanas, nem mesmo na filosofia, e sim por in- term´edio da f´ısica moderna, que reintegra a reflex˜ao sobre a problem´atica do sujeito como condi¸c˜ao de possibilidade da pr´opria atividade cient´ıfica. Hei- senberg mostrou que n˜ao se podia observar um el´etron sem criar uma situa¸c˜ao que o modifica. Disso tirou (em 1927) seu famoso ”princ´ıpio de incerteza”, que o levou a reintroduzir o f´ısico na pr´opria experiˆencia da observa¸c˜ao f´ısica. E foi Devereux quem, em primeiro lugar (em 1938), mostrou o proveito que a etnologia podia tirar desse princ´ıpio, comum a toda abordagem cient´ıfica. A perturba¸c˜ao que o etn´ologo imp˜oe atrav´es de sua presen¸ca `aquilo que observa e que perturba a ele pr´oprio, longe de ser considerada como um obst´aculo que seria conveniente neutralizar, ´e uma fonte infinitamente fecunda de co- nhecimento. Incluir-se n˜ao apenas socialmente mas subjetivamente faz parte
  • 144. 142CAP´ITULO 17. O OBSERVADOR, PARTE INTEGRANTE DO OBJETO DE ESTUDO do objeto cient´ıfico que procuramos construir, bem como do modo de conhe- cimento caracter´ıstico da profiss˜ao de etn´ologo. A an´alise, n˜ao apenas das rea¸c˜oes dos outros `a presen¸ca deste, mas tamb´em de suas rea¸c˜oes `as rea¸c˜oes dos outros, ´e o pr´oprio instrumento capaz de fornecer `a nossa disciplina van- tagens cient´ıficas consider´aveis, desde que se saiba aproveit´a-lo.
  • 145. Cap´ıtulo 18 Antropologia E Literatura: O confronto da antropologia com a literatura ´e imprescind´ıvel. O antrop´ologo, que realiza uma experiˆencia nascida do encontro do outro, atuando como uma metamorfose de si, ´e freq¨uentemente levado a procurar formas narra- tivas (romanescas, po´eticas e, mais recentemente, cinematogr´aficas) capazes de expressar e transmitir o mais exatamente poss´ıvel essa experiˆencia. * * * Uma parte importante da literatura mant´em, como a etnologia, uma rela¸c˜ao – por sinal, extremamente complexa – com a viagem. Inumer´aveis s˜ao os es- critores para os quais o pr´oprio ato de escrever implica uma situa¸c˜ao de deslocamento. Basta citar O Itiner´ario de Paris a Jerusalem, Atala, Os Natehez, de Chateaubriand, Viagem no Oriente, de Ner-val, Os Pequenos Poemas em Prosa, de Baudelaire, Oviri, de Gauguin, Os Tarahumaras, de Antonin Artaud, Les Nour-ritures Terrestres, de Gide, Aziyad´e, de Loti, A Viagem para Tombuctu, de Cailli´e, Impress˜oes da ´Africa, de Roussel, Bour- linguer, de Cendrars, A`aipi, de Melville, Typhon, de Conrad. . . ou, entre nossos contemporˆaneos, A Modifica¸c˜ao, de Michel Butor, A Ilha, de Robert Merle, Equinoxiais, de Gilles Lapouge, Sexta-Feira ou os Limbos do Pac´ıfico, de Michel Tournier, A Procura do Ouro, de J. M. le Cl´ezio. Entre as obras que acabamos de citar, algumas se enquadram nessa famosa literatura de viagem (”oriental”, ”tropical”, oceˆanica. . .) conhecida sob o nome de ”exotismo”. Descobrindo novos horizontes, o escritor se d´a conta (e geralmente aprecia) do fato de que sua cultura n˜ao ´e a ´unica no mundo: o que o leva a mudar radicalmente no relato o cen´ario tradicional do campo liter´ario cl´assico. Ele ´e tomado pela beleza de um espet´aculo que o encanta e mobiliza n˜ao apenas seu olhar, mas o conjunto de seus sentidos: uma na- tureza grandiosa, popula¸c˜oes projetadas, de qualquer intrus˜ao da civiliza¸c˜ao 143
  • 146. 144 CAP´ITULO 18. ANTROPOLOGIA E LITERATURA: ocidental. Nesse espa¸co fora do espa¸co e nesse tempo fora do tempo, li- bertado das obriga¸c˜oes da sociedade, faz a experiˆencia de uma felicidade e sobretudo de uma liberdade de que n˜ao suspeitava, enquanto se interroga sobre sua pr´opria identidade. Conv´em finalmente lembrar que no Ocidente nossos grandes livros de apren- dizagem s˜ao relatos de viagem: Robinson Cruso´e, Moby Dick, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, Miguel Strogoff, A Viagem de Nils Olgerson, Alice no Pa´ıs das Maravilhas, O Pequeno Pr´ıncipe. . . N˜ao nos enganemos sobre a natureza dessas obras –por sinal, elas s˜ao muito diferentes entre si – nem sobre a nossa inten¸c˜ao: essas n˜ao s˜ao, de forma alguma, livros de etnologia. Alguns, at´e, nos ensinam apenas muito subsidia riamente a olhar para os outros, pois o escritor freq¨uente mente sai do seu papel – tentando ser etn´ologo –, t˜ao grande ´e o seu desejo de resolver seus pr´oprios problemas escapando do Ocidente um instante. Isso n˜ao impede que a quest˜ao das rela¸c˜oes entre a experiˆencia propriamente liter´aria e a experiˆencia etnol´ogica permane¸ca colocada, n˜ao apenas para os autores que acabamos de citar, mas tamb´em para os etn´ologos, ou pelo menos para os que consideram que a descoberta do outro vai junto com a descoberta de si: isto ´e, para quem a etnologia ´e tamb´em (o que n˜ao quer dizer exclusiva- mente) uma maneira de viver e uma arte de escrever. Estou pensando nesses numerosos relatos escritos por profissionais de nossa disciplina, geralmente a margem de suas produ¸c˜oes cient´ıficas, mas que constituem a meu ver uma contribui¸c˜ao que seria uma pena deixar de lado, menos, ´e verdade, para a ciˆencia antropol´ogica estritamente falando, do que para o conhecimento an- tropol´ogico. Trata-se apenas de alguns exemplos – de Afrique Ambigiie, de Georges Balandier (1957), Chebika, de Jean Duvignaud (1968), Nous Avons Mang´e la Forˆet (1982) ou L’Exotique Est Quotidien (1977), de Georges Con- dominas, Ma´ıra, de Darcy Ribeiro (1980), L’Herbe du Diable et la Petite Fum´ee, de Carlos Castaneda (1982), Forˆet, Femme, Folie, de Jacques Dour- nes (1978). . . Conv´em citar tamb´em essas hist´orias de vida, desenvolvidas de in´ıcio nos Estados Unidos, e, mais recentemente na Fran¸ca (cf. a cole¸c˜ao ”Terre Humaine”, da editora Plon) nas quais se procura compreender o funci- onamento e a significa¸c˜ao das rela¸c˜oes sociais a partir do relato de indiv´ıduos singulares: o discurso do velho dogon Ogotemˆelie publicado por Mareei Gri- aule (1966), Soleil Hopi, que ´e a autobiografia de um ´ındio pueblo, Os Filhos de S´anchez, de Oscar Lewis (1963), La Statue de Sei, ed Albert Memmi
  • 147. 145 (1966)... 1 O limite que separa essa etnologia romanceada, qualificada precisamente de romance etnol´ogico, do romance propriamente dito, a literatura da ciˆencia (cf. Gilberto Freyre, 1974), ´e `as vezes extremamente tˆenue. Estou pensando principalmente em Victor Segalen, que, em Les Imm´emoriaux (reed. 1982), procura ”escrever”as pessoas taitianas de uma maneira adequada `aquela com a qual Gauguin as viu para pint´a-las: ”neles pr´oprios, e de dentro para fora”. Em Jean Monod, para quem a etnologia ”foi o prolongamento da experiˆencia po´etica”(1972). Em Roger Bastide, que, em Imagens do Nordeste M´ıstico em Branco e Preto (1978), se diz ”dividido entre um grande fervor e o de- sejo de fazer uma pesquisa objetiva”, e considera que ”o soci´ologo que quer compreender o Brasil deve transformar-se em poeta”. Mas o ”romance etnol´ogico”culmina com Tristes Tr´opicos, de Claude L´evi- Strauss (que, por outro lado, nos lembra freq¨uentemente em sua obra que se considera como o disc´ıpulo de Jean-Jacques Rousseau, e mais especifica- mente do Rousseau das Confiss˜oes e das Rˆeveries, e n˜ao do Rousseau do Contrato Social) e com L’Afrique Fantˆome, de Michel Leiris, que distingue perfeitamente sua pr´atica profissional de etn´ologo e sua experiˆencia de escri- tor e poeta, mas indica-nos quais s˜ao, para ele, as rela¸c˜oes que as unem: ”Passando de uma atividade quase exclusivamente liter´aria para a pr´atica da etnografia, eu pretendia romper com os h´abitos intelectuais que tinham sido meus at´e ent˜ao e, no contato de homens de outra cultura e outra ra¸ca, derrubar as paredes entre as quais me sentia sufocado e ampliar meu ho- rizonte at´e uma medida verdadeiramente humana. Concebida dessa forma, a etnografia s´o podia me decepcionar: uma ciˆencia humana n˜ao deixa de ser uma ciˆencia e a observa¸c˜ao a distˆancia n˜ao poderia, por si s´o, levar ao contato; talvez implique, por defini¸c˜ao, o contr´ario, a atitude de esp´ırito pr´opria do observador sendo uma objetividade imparcial inimiga de qualquer efus˜ao”(1934). 1 Conv´em mencionar aqui a produ¸c˜ao de um certo n´umero de obras cinematogr´aficas contemporˆaneas – e n˜ao apenas obras pertencendo ao gˆenero do filme etnogr´afico cl´assico – que constituem, a meu ver, n˜ao apenas uma fonte de informa¸c˜ao, mas um meio de conhecimento verdadeiramente antropol´ogico. Estou pensando particularmente em Moi et un Noir, de )ean Rouch (1958) que teve a influˆencia que sabemos sobre o cinema de )ean- Luc Godard (especialmente Picrrot le Fou), e em filmes mais recentes como A ´Arvore dos Tamancos, de Ermanno Olmi (1977), Padre Pudrone, dos irm˜aos Taviani (1977), Le Christ s’est Arrˆet´e `a Eboli, de Francesco Rosi (1979), Fontamara, de Carlos Lizzani (1980), Yol, de Yilmaz Guney (1981), Kaos, dos irm˜aos Taviani (1984), Le Pays oii Rˆevent les Fourmis Vertes, de Werner Herzog (1984), La Forˆet d’´Eineraude. de —ohn Boorman (19851.
  • 148. 146 CAP´ITULO 18. ANTROPOLOGIA E LITERATURA: ”No per´ıodo de grande permissividade que sucedeu `as hostilidades, o jazz foi um sinal de uni˜ao, uma bandeira org´ıaca, nas cores do momento. Agia de uma forma m´agica e seu modo de influˆencia podia ser comparada a uma pos- sess˜ao. Era o melhor elemento para dar a essas festas seu verdadeiro sentido, um sentido religioso, uma comunh˜ao pela dan¸ca, o erotismo latente ou mani- festo, e a bebida, o meio mais eficiente de acabar com o desn´ıvel que separa os indiv´ıduos uns dos outros em qualquer esp´ecie de reuni˜ao. Mergulhados em rajadas de ar quente vindas dos tr´opicos, o jazz trazia restos significativos de civiliza¸c˜ao acabada, de humanidade submetendo-se cegamente `a m´aquina, para expressar t˜ao totalmente quanto poss´ıvel o estado de esp´ırito de pelo me- nos alguns entre n´os: aspira¸c˜ao impl´ıcita e uma vida nova na qual um espa¸co mais amplo seria dado a todas as ingenuidade selvagens cujo desejo, embora ainda sem forma, nos assolava. Primeira manifesta¸c˜ao dos negros, mitos dos ´edens de cor que deviam me levar at´e a ´Africa e, para al´em da ´Africa, at´e a etnografia”(1973). O tipo de etnologia no qual estamos aqui convidados a entrar ´e uma etnologia eminentemente amorosa, na qual o pesquisador- escritor renuncia a ser o ´unico sujeito do discurso, mas tamb´em seu objeto, dentro de uma aventura. Por outro lado, esfor¸ca-se por apreender da forma mais pr´oxima poss´ıvel a linguagem dos homens da alteridade e em transmiti- la na nossa l´ıngua (j´a era um dos objetivos de Mali-nowski). A rela¸c˜ao ao outro– e `a viagem – n˜ao ´e evidentemente a mesma se consi- derarmos de um lado a rela¸c˜ao de Griaule com os Dogons, de Leenhardt com os Canaques, de Margaret Mead com as mulheres da Oceania, de Michel Leiris ou —ean Rouch com os africanos, de —acques Berque com os ´arabes, e de outro, a rela¸c˜ao de um Antonin Artaud com os tarahumaras ou de um )ean Paulhan com os malgaxes. Mas quando L´evi-Strauss expressa seu ´odio pelas viagens, no in´ıcio de Tristes Tr´opicos, ´e para, como Michaux em Um B´arbaro na ´Asia ou em Equador, exigir uma viagem mais radical. * * * O estudo das rela¸c˜oes entre etnologia e literatura (especialmente o romance) merece ser levado mais adiante ainda. Suas afinidades deve-se, a meu ver, a raz˜oes mais fundai mentais. Citarei trˆes delas. 1) A etnologia, pelo menos tal como a concebo, n˜ao se contenta com a si- tua¸c˜ao, segundo a an´alise por Husserl: essa crise do pensamento ocidental que, por estar cada vez mais especializado, reluta frente `a reflex˜ao sobre o homem, e pode caracterizar-se para levar a um ”esquecimento do ser”. A etnologia e o romance (ambos – voltaremos a isso – nascidos na Europa)
  • 149. 147 visam precisamente (por vias muito diferentes) a explorar de uma maneira n˜ao especulativa esse ser do homem esquecido pela tendˆencia cada vez mais hiper-tecnol´ogica e n˜ao reflexiva da ciˆencia. 2) A literatura (e, notadamente, a literatura romanesca) desenvolve um in- teresse todo especial para o detalhe, e para o detalhe do detalhe, para os ”eventos min´usculos”e os ”pequenos fatos”de que fala Proust. Ora, essa pre- ocupa¸c˜ao pelo microsc´opico – e n˜ao, como diz ainda Proust, pelas ”grandes dimens˜oes dos fenˆomenos sociais-- vai ao encontro da abordagem que ´e a da etnologia. O que caracteriza tamb´em o modo de conhecimento liter´ario ´e que n˜ao se reduz `a faculdade de observa¸c˜ao. A vida ´e inclus˜ao e confus˜ao, a arte ´e discrimina¸c˜ao e sele¸c˜ao, bem como mostrou Henry James. O que o escritor procura ´e a an´alise dos fatos com o objetivo de tirar leis gerais. explicativas dos comportamentos humanos. Ele ´e, segundo o termo de Proust, um ”esca- vador de detalhes”. Sua ambi¸c˜ao ´e nunca se ater `as sensa¸c˜oes que ”afetam sem representar”, e sim, a partir de um ´unico pequeno fato, se for bem es- colhido, fazer surgir o ”geral”do ”particular”. Isto ´e, chegar a uma lei geral que levar´a a conhecer a verdade sobre os milhares de fatos an´alogos, e per- mitir´a, articulada com outras leis, sejam colocadas as bases de uma ”teoria do conhecimento”. 3) A gˆenese do romance, como a da etnologia, ´e contemporˆanea desse mo- mento de nossa hist´oria no qual os valores come¸cam a vacilar, no qual ´e questionada uma ordem do mundo legitimada pela divindade. O que ´e ent˜ao proposto n˜ao ´e nada menos que um descentramento antropocˆen-trico em rela¸c˜ao `a teologia, mas tamb´em `a filosofia cl´assica, na qual a inteligibilidade ´e constitu´ıda e n˜ao constiuinte: a relatividade dos pontos de vista, dos va- lores, das concep¸c˜oes do homem e do social, o abandono da id´eia de uma verdade absoluta situando o bem de um lado, e o mal de outro, comum a todas as ideologias.2 A l´ogica do romance sup˜oe a pluralidade dos personagens, como a l´ogica da etnologia sup˜oe a pluralidade das sociedades, e, em ambos os casos, essa pluralidade ´e irredut´ıvel `a identidade. Assim, Joseph K. no Processo n˜ao ´e nem totalmente culpado nem totalmente inocente. Assim, na Montanha 2 O romance come¸cou como a etnologia: pela perspectiva, aberta pelas viagens, da aventura ilimitada (Jacques le fataliste, Dom Quixote...). Depois, e em ambos os casos, o long´ınquo deixa lugar ao pr´oximo. `A medida que o universo conhecido vai sendo explorado, volta-se para o pr´oximo e, como em Madame Bovary, explora-se o cotidiano.
  • 150. 148 CAP´ITULO 18. ANTROPOLOGIA E LITERATURA: M´agica, de Thomas Mann, os pension´arios do Berghof n˜ao detˆem a verdade dos habitantes da ”plan´ıcie”, e Hans Castorp n˜ao ´e a medida de Settembrini. O mesmo se d´a para Zeno em rela¸c˜ao a Augusta, na Consciˆencia de Zeno, de Svevo, para Leopold Blum em rela¸c˜ao `a ”gente de Dublin”, em Ulisses, de Joyce, para o narrador de Em busca do tempo perdido em rela¸c˜ao aos Verdurin, etc.3 Ora, essa abordagem ´e an´aloga (o que n˜ao significa de modo algum idˆentica) `a da etnologia. Pode ser apreendida da forma mais pr´oxima poss´ıvel nos trabalhos de um etn´ologo como Oscar Lewis. Em Os Filhos de S´anchez, par- ticularmente, n˜ao somos mais confrontados com os mon´ologos paralelos do observador do observado, alternadamente considerados como os ´unicos p´olos da observa¸c˜ao, mas aos olhares cruzados (convergentes, divergentes) de uma mesma fam´ılia mexicana. Em suma, esses exemplos bastam, me parece, para fazer-nos compreender que no romance tanto quanto na etnologia, renuncia-se `a id´eia de que a rea- lidade possa ser apreendida em si, mas, mais modestamente, sempre a partir de um certo ponto de vista. Em ambos os casos, para o etn´ologo, como para o romancista, coloca-se o problema dos limites que se deve impor ao olhar. Ou seja, o ponto de vista esfor¸ca-se em ser total, sem nunca ser absoluto. Essa abordagem, deliberadamente perspectivista, ´e portanto claramente an- titotalit´aria.4 3 E mesmo quando o romance est´a totalmente organizado em torno de uma personagem ´unica, a partir da revolu¸c˜ao romanesca da d´ecada de 1920, revolu¸c˜ao esta que, ´e claro, n˜ao veio de repente, mas foi gradualmente preparada por escritores como Stendhal, Flaubert, fames, essa personagem, profundamente dividida em rela¸c˜ao a si pr´opria, reintroduz no espa¸co romanesco a multiplicidade dos pontos de vista. 4 As rela¸c˜oes (no caso convergentes) que acabamos de esbo¸car entre o romance e a antropologia exigiriam uma afina¸c˜ao. De que romance se trata? E de que antropologia? Parece-nos por exemplo que a abordagem que visa `a investiga¸c˜ao mais completa poss´ıvel de um grupo humano atrav´es da documenta¸c˜ao e da observa¸c˜ao distanciada da ”realidade social”, ´e comum `as correntes positivistas das ciˆencias humanas e naturalistas do romance. Da mesma forma, a perspectiva de Balzac, que privilegia o car´ater eminentemente social e at´e s´ocio-econˆomico das situa¸c˜oes (descritas em sua exterioridade) e das personagens (que, na obra de Balzac, con fundem-se com sua fun¸c˜ao e seu estatuto social), corresponde `a tendˆencia sociologizante da antropologia. A rela¸c˜ao entre o afetivo e o social inverte-se quando passamos para o romance psicol´ogico ou para a antropologia psicanal´ıtica.
  • 151. Cap´ıtulo 19 As Tens˜oes Constitutivas Da Pr´atica Antropol´ogica: Encontramos no conjunto do campo antropol´ogico um certo n´umero de tens˜oes importantes, opondo a universalidade e as diferen¸cas, a compreens˜ao ”por dentro”e a compreens˜ao ”por fora”, o ponto de vista do mesmo e o ponto de vista dos outros. . . Mas essas tens˜oes s˜ao verdadeiramente constitutivas da pr´opria pr´atica da antropologia. Esta ´ultima s´o come¸ca a existir a partir do momento em que o pesquisador se entrega a um confronto entre esses diversos termos, vive dentro de si essas tens˜oes, freq¨uentemente polˆemicas, esfor¸ca-se em pens´a-las e dar conta delas. Correla-tivamente, parece-me que a antropologia tem todas as chances de engajar-se em um impasse, em um desvio em rela¸c˜ao ao modo de conhecimento que persegue, toda vez que um dos p´olos em quest˜ao domina o outro. 19.1 O Dentro E O Fora Uma pulsa¸c˜ao bastante espec´ıfica ritma o trabalho de todo etn´ologo. O pri- meiro tempo ´e o da aprendizagem atrav´es de um conv´ıvio ass´ıduo e de uma verdadeira impregna¸c˜ao por seu objeto. Trata-se de interpretar a sociedade estudada utilizando os modos de pensamento dessa sociedade, deixando-se, por assim dizer, naturalizar por ela. O que n˜ao tem realmente nada de um exerc´ıcio intelectual, pois, como diz Georges Balandier a respeito da ´Africa, corre-se o risco de voltar ”perdido para o Ocidente”. A abordagem de um fean Rouch, de um Michel Leiris (que escrevia em seu di´ario de miss˜ao: ”eu preferiria ser possu´ıdo a estudar os possu´ıdos”), ou de um Roger Bastide, parece-me particularmente representativa dessa atitude. Roger Bastide es- creve, por exemplo: 149
  • 152. 150CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: ”Eu abordava o candombl´e com uma mentalidade moldada por trˆes s´eculos de cartesianismo. Devia deixar-me penetrar por uma cultura que n˜ao era minha. Devia portanto converter-me a uma outra mentalidade A pesquisa cient´ıfica exigia de mim a passagem pr´evia pelo ritual de inicia¸c˜ao”. Roger Bastide ´e ent˜ao entronizado no candombl´e, onde lhe revelam que ´e filho de Xangˆo, deus do trov˜ao dos Iorubas, e onde, at´e a sua morte, ocupar´a um lugar na hierarquia sacerdotal. A nosso ver, o pesquisador s´o ultrapassar´a esse primeiro est´agio que ´e o do encontro, da experiˆencia, e por que n˜ao? da convers˜ao (pelo menos meto- dol´ogica), e que podemos ilustrar com os trabalhos dos fundadores de nossa disciplina, come¸cando por Leenhardt e Griaule – se o tiver pelo menos en- contrado e atravessado. Mas passado o tempo da impregna¸c˜ao, chega inelutavelmente para o etn´ologo o da distˆancia, pois ´e pr´oprio da linguagem, e particularmente da linguagem cient´ıfica, atuar no sentido de uma separa¸c˜ao. E sobretudo, a inteligibilidade procurada n˜ao consiste apenas em compreender uma sociedade da forma como seus atores sociais a vivem, mas tamb´em, mas sobretudo, em entender o que lhes escapa e s´o pode lhes escapar. De fato, o que vivem os membros de uma determinada sociedade n˜ao poderia ser compreendido situando-se apenas dentro dessa sociedade. O olhar distanciado, exterior, diferente, do estranho, ´e inclusive a condi¸c˜ao que torna poss´ıvel a compreens˜ao das l´ogicas que escapam aos atores sociais. Ao familiarizar-se com o que de in´ıcio parecia estranho, o etn´ologo vai tornar estranho para esses atores o que lhes parecia familiar. Conv´em portanto insistir aqui sobre a opacidade das estrat´egias sociais. Parece-nos de fato, que, de um determinado ponto de vista, os camponeses de Cevennes s˜ao os pior situados para compreender os camponeses de Cevennes, e os professores de filosofia para compreender os professores de filosofia, ou ainda, os franceses para compreender os franceses;1 pois as significa¸c˜oes pro- duzidas n˜ao residem apenas naquilo que uma cultura ou microcultura afirma, mas naquilo que n˜ao diz. Nenhuma sociedade ´e de fato perfeitamente trans- parente a si mesma, nenhuma escapa de suas armadilhas conscientes. Cada grupo humano, como tamb´em cada indiv´ıduo, fornece a si pr´oprio e aos ou- 1 Cf., sobre esse ponto, os trabalhos de L. Wylie (1968), que ´e americano, ou de Zeldin C983). que ´e inglˆes
  • 153. 19.1. O DENTRO E O FORA 151 tros racionaliza¸c˜oes de suas condutas, que consistem em modelos conscientes que o etn´ologo n˜ao deve cortejar e adaptar, nem contornar e exorcisar, e sim analisar. Assim, o risco do primeiro momento (habitualmente designado pela express˜ao ”compreens˜ao por dentro”) ´e, seja uma participa¸c˜ao cega e uma ”empa- tia”que n˜ao se consegue mais controlar, seja a retranscri¸c˜ao, em termos eru- ditos e na forma de uma redundˆancia, do que foi expresso, por exemplo, pelo camponˆes ou pelo oper´ario em termos populares. Alguns etn´ologos tˆem tendˆencia a supervalorizar o discurso do outro, isto ´e, a abandonar um mo- delo de pensamento por outro. Mas em tais condi¸c˜oes, como diz MarcAug´e (1979), ”o etn´ologo que tentasse compreender o universo dos bororos e ex- plic´a-lo de dentro, n˜ao seria mais um etn´ologo e sim um bororo”. O risco inverso pode apresentar-se na ocasi˜ao do segundo momento do pro- cesso (a ”compreens˜ao de fora”). Quando o discurso sobre o outro tende a dominar o discurso do outro, degenera habitualmente em um discurso `a revelia do outro, podendo contribuir na morte do outro (e na morte das ci- viliza¸c˜oes). O paradoxo merece ser sublinhado. Enquanto nossa profiss˜ao de etn´ologo exige que comecemos toda pesquisa pela aprendizagem da mod´estia, por uma ruptura cultural, ou at´e por uma ”convers˜ao”, deixando-nos ensinar e aculturar como crian¸cas, nossas produ¸c˜oes eruditas terminam quase sem- pre tomando as outras sociedades conformes `a inteligibilidade que organiza a nossa. O risco., n˜ao desprez´ıvel, ´e de estarmos carregando conosco um modelo de leitura, de sociedade em sociedade, com a convic¸c˜ao de sempre permanecer com a ´ultima palavra. Se a etnologia conseguir superar a ide- ologia da idealiza¸c˜ao amorosa, da fus˜ao e da confus˜ao, parece-me que n˜ao deve ser para voltar ao estatuto etnocˆentrico da racionalidade ocidental, que ´e apenas uma forma de l´ogica entre tantas outras. L´evi-Strauss compara freq¨uentemente a antropologia `a astronomia. Qualifica a primeira de ”astronomia das ciˆencias sociais”, e diz do olhar antropol´ogico que ´e um ”olhar de astrˆonomo”. ´E a proximidade desse olhar sobre soci- edades long´ınquas que permite notadamente que o pesquisador, de volta a sua pr´opria sociedade, possa olh´a-la a distˆancia E ´e o car´ater microsc´opico de sua abordagem que fundamenta paradoxalmente a natureza telesc´opica de sua abordagem. Existe, ´e claro, uma contradi¸c˜ao aparente nesse olhar pr´oximo do long´ınquo que age como um olhar long´ınquo do pr´oximo; mas essa contradi¸c˜ao, todo etn´ologo a encontrou pelo menos uma vez na vida. Em suma, parece-nos que essa tens˜ao entre pesquisadores, mas sobretudo,
  • 154. 152CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: em um mesmo pesquisador,2 entre a situa¸c˜ao de outsider e a de insider – que ´e a pr´opria defini¸c˜ao da ”observa¸c˜ao participante”, essa vontade de ”poder pensar e sentir alternadamente como um selvagem e como um europeu”(E. Evans-Pritchard, 1969) – ´e constitutiva de nossa profiss˜ao. Como escrevia, h´a mais de um s´eculo, Tylor, um dos primeiros antrop´ologos: ”Existe uma esp´ecie de fronteira aqu´em da qual ´e preciso estar para sim- patizar com o mito, e al´em da qual ´e preciso estar para estud´a-lo. Temos a sorte de viver perto dessa faixa fronteiri¸ca e de poder passar e repass´a-la `a vontade”. 19.2 A Unidade E A Pluralidade Fazer antropologia ´e segurar as duas extremidades da cadeia e afirmar com a mesma for¸ca: • existe, como escreve Mauss, uma ”unidade do gˆenero humano” • tal costume, tal institui¸c˜ao, tal comportamento, estranhos a minha sociedade, s˜ao realmente diferentes 1) Esse descentramento te´orico de si por abertura ao outro ´e freq¨uentemente, na pr´atica, apenas uma tradu¸c˜ao de um discurso em outro, de uma mentali- dade em outra, uma extens˜ao e anexa¸c˜ao do outro, reduzido a mera figura do mesmo. ´E notadamente o caso do evolucionismo que dissolve a alteridade na unidade, pois, como vimos, o ”primitivo”n˜ao ´e visto como sendo realmente diferente de n´os. Encarna a forma social ultrapassada do que fomos outrora, e ´e utilizado como a ilustra¸c˜ao de um processo ´unico que sempre conduz ao idˆentico. Mas essa tendˆencia da pr´atica antropol´ogica atua tamb´em em abor- dagens que, no entanto, apresentam-se como radicalmente opostas. ´E, por exemplo, f´acil encontrar uma contradi¸c˜ao, na obra de Malinowski, entre, de um lado a experiˆencia pessoal do observador, que se esfor¸ca em dar conta da especificidade irredut´ıvel dos insulares trobriandeses, e a convic¸c˜ao do te´orico que, no final de sua vida, reflete sobre o funcionamento da humanidade em geral, pois considera que, finalmente, os homens s˜ao em toda parte os mes- mos. A abordagem t˜ao exigente do etn´ografo, que evidencia as diferen¸cas que observa, termina dis-solvendo-se no dogmatismo unit´ario da fun¸c˜ao. Com- preendemos, dentro desse quadro, o questionamento de nossa disciplina, que 2 Lembramos, por exemplo, que Malinowski no in´ıcio de sua carreira, ao estudar os Trobriandeses (1963), privilegia um modo de conhecimento por ”dentro”, em seguida, quando elabora sua Teoria Cient´ıfica da Cultura (1968), d´a prioridade a um mo’do de conhecimento claramente distanciado.
  • 155. 19.2. A UNIDADE E A PLURALIDADE 153 se expressa notadamente pela voz dos intelectuais do ”terceiro mundo”(cf. por exemplo Fanon, 1952, Baldwin, 1972, Adotevi, 1972) pedindo o fim da antropologia, este mon´ologo tranq¨uilo do Ocidente consigo mesmo, no qual a ´unica racionalidade presente estaria conferida por um sujeito ativo a um objeto passivo. Essa acusa¸c˜ao segundo a qual o conhecimento dos outros estaria reduzido ao Saber verdadeiro por um observador possuindo infalivelmente a verdade do observado, e procurando menos o advento com os outros daquilo que n˜ao pensava, do que a verifica¸c˜ao sobre os outros daquilo que pensava, coloca um problema essencial: a ´unica ciˆencia ´e ocidental? e a antropologia teria apenas uma modalidade do conhecimento por objetiva¸c˜ao? Nossa disciplina – pelo menos tal como a concebo – aspira a uma forma de racionalidade que n˜ao ´e a das ciˆencias sociais, tais como a economia, a sociologia ou a demografia, as quais ”aceitam sem reticˆencias”, como diz L´evi-Strauss, ”estabelecer-se dentro mesmo de suas sociedades”. E, por outro lado, embora n˜ao se trate de ciˆencias, no sentido ocidental do termo, existem, em outras culturas, for- mas de conhecimento cuja l´ogica n˜ao tem realmente nada a invejar da nossa: por exemplo, as gram´aticas indianas, os ”saberes sobre o corpo”asi´aticos, ou ainda as institui¸c˜oes familiares tais como foram elaboradas pelos abor´ıgines australianos, t˜ao complexas que precisamos, no Ocidente, para compreendˆe- las, apelar para os recursos das matem´aticas modernas. 2) Esses ´ultimos coment´arios nos levam a nos voltar para o segundo p´olo dessa tens˜ao entre a unidade da cultura (o outro ´e um homem como n´os, como vemos na trag´edia shakespeariana) e a diversidade das culturas. A par- tir desse segundo p´olo, organiza-se toda uma corrente, que encontra uma de suas primeiras express˜oes em Montaigne (os costumes diferem tanto quanto os trajes, h´a uma verdade al´em dos Pireneus. . .), atravessa o pensamento antropol´ogico contemporˆaneo, e consiste dessa vez em considerar as dife- ren¸cas como irredut´ıveis. O que ´e evidenciado nessa perspectiva3 ´e o car´ater assim´etrico da rela¸c˜ao entre o observador e o observado, a domina¸c˜ao que uma civiliza¸c˜ao estaria impondo deliberada ou dissimuladamente a todas as outras, e a natureza, considerada repressiva, da ciˆencia, que seria a racionaliza¸c˜ao desse processo. Preconiza-se ent˜ao uma rela¸c˜ao emp´atica, igualit´aria e convivial, que pro- 3 Perspectiva ao mesmo tempo antievolucionista. antifuncionalista. antiestruturalista, antimarxista, mas claramente culturalista, encontrada em autores como Castaneda (1982). Clastres (1974). Delfendhal (1973), (aulin (1970. 1973).
  • 156. 154CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: porcionaria a possibilidade de dessolidarizar-se do mundo europeu. ´E uma forma de conhecimento mais humana, que poder´ıamos qualificar de ”etnolo- gia mansa”, como falamos de ”medicina mansa”, visando, contra o cosmopo- litismo, a reabilitar a identidade das regi˜oes (cf., por exemplo, P. J. H´elias, 1975). Op˜oe-se ent˜ao radicalmente a sabedoria das sociedades tradicionais `a violˆencia fren´etica da sociedade racionalista, da qual a antropologia seria c´umplice. Finalmente, considera-se que o que ´e separado pela barreira das culturas n˜ao deve ser reunido, nem mesmo pelo pensamento te´orico. Disso decorre a oposi¸c˜ao aos pr´oprios conceitos de homens e de antropologia, aos quais se prefere o de povo (no plural) e de etnologia. Procuremos analisar as implica¸c˜oes de tal atitude. 1) Em primeiro lugar, a inquietude que demonstram esses autores com res- peito a uma homogeneiza¸c˜ao, pelo Ocidente das diferentes culturas do mundo, me parece pouco fundamentada. De volta de uma miss˜ao cient´ıfica no Nor- deste do Brasil, posso relatar o seguinte: uma popula¸c˜ao constitu´ıda em sua maioria de descendentes de europeus, e confrontada hoje a uma conjuntura econˆomica internacional que lhe ´e eminentemente desfavor´avel, soube criar formas de sociabilidade plenamente originais, encontr´aveis no menor com- portamento da vida cotidiana, e que n˜ao se deixam de forma alguma alterar pelos modelos culturais vigentes em Paris, Londres ou Chicago. Sabemos de fato que, quanto mais uma sociedade tende a uniformizar-se, mais tende simultaneamente a diversificar-se. Assim, por exemplo, a hegemonia ariana, que ia levar `a unifica¸c˜ao da ´India, foi acompanhada correlativamente de uma divis˜ao da sociedade em castas. Da mesma forma, foi a influˆencia, que pare- cia exclusivamente niveladora, da revolu¸c˜ao industrial do s´eculo XVIII que permtiiu a radicaliza¸c˜ao dos diferentes estatutos entre os grupos (as classes sociais). Mais uma vez, o Brasil contemporˆaneo me parece particularmente revelador a esse respeito e nos leva ainda mais adiante. A cultura popular n˜ao s´o resiste notavelmente `a cultura dominante, como tamb´em, freq¨uentemente, consegue se impor a esta, de uma maneira dificilmente imagin´avel no Oci- dente. Aquilo que Bastide come¸cava a notar, trinta anos atr´as, ao estudar os cultos afro-brasileiros, acentuou-se e confirmou-se. Encontrei pessoalmente membros das classes superiores da sociedade brasileira que, no decorrer das cerimˆonias de umbanda, s˜ao sucessivamente ”possu´ıdos”pelos esp´ıritos das divindades dos´ındios e dos ancestrais africanos do tempo da escravid˜ao. Ora, esse fenˆomeno pode ser melhor apreendido, n˜ao nas regi˜oes mais exteriores em rela¸c˜ao ao desenvolvimento econˆomico do pa´ıs, como o Nordeste, mas no Rio de Janeiro ou em S˜ao Paulo, que ´e hoje uma das primeiras metr´opoles industriais do mundo.
  • 157. 19.2. A UNIDADE E A PLURALIDADE 155 2) A id´eia de que o outro ´e radicalmente outro, de que, por exemplo, o Novo Mundo ´e de fato um outro mundo, e de que n˜ao se poderia preencher (e, mesmo se fosse poss´ıvel, n˜ao se deveria fazˆe-lo) a diferen¸ca absoluta que o separa de n´os, participa de um etnocentrismo invertido que n˜ao deixa de lembrar de Pauw ou Hegel. Para estes, como lembramos, as sociedades selva- gens s˜ao totalmente diferentes das sociedades hist´oricas. ´E ”um outro mundo cultural”, diz Hegel, que tamb´em fala em uma ”essˆencia”dos africanos. O fato de a alteridade ser aqui valorizada, por um agrad´avel movimento de pˆendulo ao qual nos acostumou o pensamento para-antropol´ogico, n˜ao afeta em nada a natureza ideol´ogica do processo em quest˜ao. 3) Essa celebra¸c˜ao da sabedoria e do conv´ıvio dos outros n˜ao resiste `a ob- serva¸c˜ao dos fatos: decorre da constru¸c˜ao de uma alteridade fantasm´atica que se faz passar por realidade. O africano, o ´ındio, o bret˜ao. . . s˜ao mobi- lizados mais uma vez como suportes do imagin´ario do ocidental culto, como objeto-pretexto utilizado aqui com vistas ao protesto moral, como pode sˆe-lo com vistas `a emo¸c˜ao est´etica ou a militˆancia pol´ıtica. E correlativamente dessa vez, atrav´es dessa deontologia do olhar para o outro – o qual acaba inclusive perdendo-se, pois olha-se para si mesmo dentro do espelho do outro –, aquele que est´a submetido a um processo de domina¸c˜ao e humilha¸c˜ao n˜ao ´e mais o outro (sadismo), e sim si pr´oprio e sua pr´opria sociedade (maso- quismo). A excelente imagem que se deve ter dos outros acompanha-se de fato da m´a imagem que se tem de si (cf., por exemplo, Jean Monod, 1972, que se acusa de ser um ”rico canibal”). Ou seja, h´a uma recusa de assumir sua pr´opria identidade, o que tem como corol´ario a culpa ou a difama¸c˜ao da ocidentalidade.4 Em suma, tudo se passa como se esse protesto indignado – o fato de querer devolver sua dignidade aos outros – devesse passar inelutavel- mente por um processo consistindo em acusar-se a si pr´oprio de indignidade. 4) A id´eia de que os que visam compreender racionalmente a alteridade es- tariam se comportando praticamente como Cortˆes com os Astecas, enquanto que, indo at´e o fim da ruptura com o Ocidente, se poderia talvez chegar, atrav´es de um conhecimento por assim dizer amoroso, a coincidir com a ver- dadeira natureza do outro, enquandra-se mais em uma experiˆencia religiosa, 4 . A descri¸c˜ao, por Turnbull (1972), de selvagens que n˜ao tˆem realmente nada de ”bons selvagens”, e o fato de que o etn´ologo. como qualquer ser humano, possa sentir ´odio em rela¸c˜ao a estes, e escrevˆe-lo, causou escˆandalo entre os etn´ologos. Mas que estes ´ultimos n˜ao sejam ”nem santos, nem her´ois”, como diz Panoff (1977), ”n˜ao impede que os trobriandeses sejam matrilineares, nem que os Nuers levem uma vida ritmada p las necessidades pastorais e pelas condi¸c˜oes meteorol´ogicas”.
  • 158. 156CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: que faria do etn´ologo um iniciado ou um eleito, do que na ciˆencia. E al´em disso, tudo nos impele – na esteira dessa para-antropologia que identifica a abordagem do pesquisador com o ponto de vista dos pr´oprios atores, que afirma que ´e preciso ser origin´ario de sua cultura para compreendˆe-la real- mente – a ficar em casa, a permanecer entre si. Apenas o ´ındio (e, a rigor, aquele que se tornar seu adepto) ´e capaz de compreender o ´ındio. Apenas o bret˜ao ´e capaz de falar corretamente o bret˜ao. Apenas o prolet´ario pode saber o que ´e a classe oper´aria. Apenas a mulher est´a em condi¸c˜oes de com- preender a mulher. J´a passamos por isso. Como vocˆe, que n˜ao ´e m´edico, se atreve a falar de medicina? Deixe a medicina aos m´edicos, a religi˜ao aos cleros, o proletariado aos prolet´arios, a Bretanha aos bret˜oes. . . Se levarmos at´e suas extremas conseq¨uˆencias esse princ´ıpio de n˜ao-distancia¸c˜ao e n˜ao-media¸c˜ao, devemos nos tornar membro efetivo da sociedade que pre- tend´ıamos estudar. Mas ent˜ao, n˜ao se trata mais de estud´a-la, e sim de adot´a-la, `a maneira desses aventureiros normandos, encontrados por L´ery, que haviam naufragado na costa meridional do Brasil e tinham-se tornado selvagens no contato dessas popula¸c˜oes, adotando sua l´ıngua, suas mulheres, seus costumes. Por todas essas raz˜oes, ao insistir tanto sobre o car´ater irre- dut´ıvel das diferen¸cas, essa tendˆencia da etnologia exclui-se por si mesma, a meu ver, de uma abordagem de pequisa cient´ıfica. Acabamos de ver que a uma forma de universalidade que tende para a redu¸c˜ao do outro ao ocidentalismo (o dogmatismo de uma natureza ou de uma essˆencia humana sempre idˆentica a si mesma) responde uma forma de ma- jora¸c˜ao da alteridade (o dogmatismo da relatividade de culturas heterogˆeneas justapostas). N˜ao ´e f´acil, evidentemente, segurar as duas extremidades da cadeia, isto ´e, o acesso `a compreens˜ao do outro por si e `a compreens˜ao de si pelo outro. Se a identifica¸c˜ao integral com este ´e, a meu ver, um erro, a antropologia nos engaja por´em nessa aventura que nos ensina que n˜ao se deve identificar integralmente consigo mesmo. O outro ´e uma figura poss´ıvel de mim, como eu dele. Esse descentramento m´utuo do observador e do obser- vado n˜ao pode mais ser, no final dessa experiˆencia, o sujeito transcendental do humanismo. Mas nem por isso as identidades de uns e outros est˜ao abo- lidas, passam a ser apreendidas do interior mesmo de sua diferen¸ca, isto ´e, a partir de uma rela¸c˜ao.
  • 159. 19.3. O CONCRETO E O ABSTRATO 157 19.3 O Concreto E O Abstrato A terceira tens˜ao que examinaremos agora ´e a da observa¸c˜ao daquilo que ´e vivido, e da teoria constru´ıda para dar conta dessa observa¸c˜ao, ou, se prefe- rirmos, do campo e do m´etodo. A incompreens˜ao entre os que enfatizam a unidade fundamental da cultura e os que privilegiam a diversidade, supostamente irredut´ıvel, das culturas, decorre do fato de que n˜ao nos situamos, nos dois casos, no mesmo n´ıvel de investiga¸c˜ao do social. A tomada e’m considera¸c˜ao da variedade cultural me leva a perceber que perten¸co a uma cultura entre muitas outras, mas o meu olhar at´em-se `a observa¸c˜ao da realidade emp´ırica. Pelo contr´ario, a an´alise da variabilidade cultural evidencia o que n˜ao vejo diretamente quando passo de uma cultura para outra, mas me permite perceber que perten¸co a uma figura particular da cultura. De um lado, portanto, a preocupa¸c˜ao do concreto, de outro, a exigˆencia, para dar conta deste, da constru¸c˜ao cient´ıfica. Vaiv´em a meu ver ininterrupto que pode ser ilustrado, por exemplo, pelo formalismo l´ogico de um L´evi-Strauss, o qual n˜ao deve, por´em, nos deixar esquecer a especificidade por assim dizer carnal dessa Am´erica ´ındia dos Nhambiquaras de que tanto gosta o autor de Tristes Tr´opicos. 1) O primeiro risco, que eu qualificaria de tenta¸c˜ao emp´ırica, vem da sub- miss˜ao d´ocil ao campo, do registro ficticiamente passivo dos ”fatos”, que d´a ao observador a impress˜ao de situar-se do lado das coisas, de estar junto delas. Essa suspei¸c˜ao frente `a abstra¸c˜ao e `a teoria parece-me perfeitamente leg´ıtima. A m´usica, a poesia, a literatura, a pintura, a religi˜ao s˜ao abordagens muito mais indicadas do que a antropologia para nos fazer coincidir com os se- res. Proporcionam-nos incontestavelmente mais emo¸c˜oes, mais prazeres- Mas n˜ao s˜ao a antropologia. N˜ao h´a, de fato, ciˆencia, nem atividade cr´ıtica nem mesmo coleta de fatos sem teoria. A rejei¸c˜ao desta ´ultima leva inclusive ine- vitavelmente a adotar a teoria do senso comum, a ”opini˜ao”, a ideologia do momento, a que estiver vigente na sociedade que se estuda ou `a qual perten- cemos. O trabalho do antrop´ologo n˜ao consiste em fotografar, gravar, anotar, mas em decidir quais s˜ao os fatos significativos, e, al´em dessa descri¸c˜ao (mas a partir dela), em buscar uma compreens˜ao das sociedades humanas. Ou seja, trata-se de uma atividade claramente te´orica de constru¸c˜ao de um ob- jeto que n˜ao existe na realidade, mas que s´o pode ser empreendida a partir da observa¸c˜ao de uma realidade concreta, realizada por n´os mesmos. 2) O segundo risco pode ser qualificado de tenta¸c˜ao idealista (ou nomina-
  • 160. 158CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: lista). Situamo-nos dessa vez do lado das palavras (ou do lado dos n´umeros), mas tomam-se ent˜ao as palavras por coisas. No t´ermino do empreendimento de modeliza¸c˜ao que transforma fenˆomenos emp´ıricos em objetos cient´ıficos, acaba-se tomando a constru¸c˜ao do objeto pela pr´opria realidade social. Ora, a popula¸c˜ao que estudamos n˜ao nos esperou para atribuir significa¸c˜oes a suas pr´aticas. Por outro lado, uma teoria cient´ıfica nunca ´e o reflexo do real, e sim uma constru¸c˜ao do real. Os fatos etnogr´aficos s˜ao fatos cientifica- mente constru´ıdos, a partir de nossas observa¸c˜oes, mas tamb´em contra nossas observa¸c˜oes, nossas impress˜oes, as interpreta¸c˜oes dos interessados e nossas pr´oprias interpreta¸c˜oes espontˆaneas. Existe portanto uma inadequa¸c˜ao en- tre, de um lado, a realidade social estudada, que n˜ao ´e nem esgotada nem esgot´avel pela etnologia, e de outro, o objeto que constru´ımos a partir de uma determinada op¸c˜ao disciplinar e te´orica, e da nossa pr´opria rela¸c˜ao com o psicol´ogico e o social. * * * O paradoxo, mas tamb´em a especificidade da antropologia no campo das ciˆencias sociais, ´e que n˜ao sendo ”a ciˆencia social, do ponto de vista do obser- vador”(´e assim que L´evi-Strauss define a sociologia), tamb´em n˜ao ´e a ciˆencia social do ponto de vista do observado, e sim uma pr´atica que surge em seu limite, ou melhor, em sua intersec¸c˜ao. Podemos reduzir a inadequa¸c˜ao entre os dois pensamentos de que acabamos de falar, traduzindo-a em uma outra linguagem. Por exemplo, quando um n´umero consider´avel de indiv´ıduos que comp˜oem a sociedade brasileira tende a interpretar suas dificuldades (soci- ais, psicol´ogicas, biol´ogicas) em termos religiosos, podemos dizer que se trata de ”ilus˜ao”, de ”proje¸c˜ao”, de ”deslocamento”ideal de uma realidade mais ”fundamental”. Da mesma forma, quando o pensamento tradicional clas- sifica as coisas segundo categorias c´osmicas (a ´agua, o ar, a terra, o fogo), podemos dizer que realiza ”sublima¸c˜oes”cujas ”verdadeiras”raz˜oes s˜ao s´ocio- econˆomicas. Podemos tamb´em compreender essa adequa¸c˜ao atrav´es de um confronto ininterrupto e de uma articula¸c˜ao entre o pensado e o impensado, o dito e o n˜ao-dito, o manifesto (de minha e da outra sociedade) e o recalcado (de minha e da outra sociedade). Alguns exemplos v˜ao permitir mostrar que um certo n´umero de condutas, observ´aveis em outro lugar, s˜ao capazes de agir como reveladores de aspec- tos culturais inteiros, cuidadosamente dissimulados em nossa cultura, o que permite afirmar, com Georges Devereux, que o inconsciente de uma cultura pode ser encontrada no consciente de uma outra. Nossos sistemas de representa¸c˜ao, em mat´eria de doen ¸ca, s˜ao hoje em grande
  • 161. 19.3. O CONCRETO E O ABSTRATO 159 parte exorc´ısticos: a doen¸ca ´e considerada como um mal que deve ser esma- gado, e os sintomas, como uma calamidade a ser eliminada; o que tra¸ca as figuras, bem conhecidas entre n´os, do doente-v´ıtima e do m´edi-co-exorcista. Mas as representa¸c˜oes inversas, chamadas ”adorc´ısticas”e que correspondem `as duas figuras do m´edico-louco e do paciente-or´aculo, nem por isso est˜ao au- sentes. Est˜ao simplesmente recalcadas, e tornam-se manifestas se passarmos de uma cultura para outra (dos exorcistas thonga aos xam˜as shongai), ou de uma cultura para ela mesma no tempo (da nossa psiquiatria cl´assica para a corrente que qualifica a si pr´opria de ”antipsiquiatria”, que n˜ao produz realmente algo novo, mas reatualiza antes algo recalcado). Da mesma forma, os cultos de possess˜ao afro-brasilei-ros, tais como os estou estudando neste momento em uma grande cidade do Nordeste, podem ser utilizados como reveladores da abordagem antipsiqui´atrica inglesa – e parti- cularmente de Laing – que expressa ao n´ıvel do discurso o que os brasileiros realizam ao n´ıvel do corpo. Poder´ıamos assim multiplicar os exemplos, e mostrar que o processo, co- nhecido dos psicossoci´ologos, da exclus˜ao em um grupo que se quer ho- mogˆeneo, torna-se particularmente claro e ”desocultado”quando nos refe- rimos `a feiti¸caria que ´e uma regula¸c˜ao social estruturalmente universal, etc. De tudo isso, resulta que o objetivo da etnologia n˜ao ´e o de traduzir a alteri- dade nos moldes do que ´e, para minha sociedade, conhecido e correto (o que equivaleria a suprimir essa alteridade); nem o de estender a racionalidade `as dimens˜oes do universo, nos modos mission´arios ou messiˆanicos da conquista (pois essa racionalidade ´e provinciana, isto ´e, limitada no espa¸co e no tempo). A etnologia, pelo contr´ario, abre essa estreiteza monocultural. E no entanto, para que o pr´oprio empreendimento que caracteriza ”nossa disciplina, n˜ao apenas como experiˆencia e como aventura, mas como ciˆencia, seja poss´ıvel, algo desse pensamento ocidental ter´a sido utilizado como mediador e como instrumento: n˜ao uma cultura (a nossa) que serviria de referencial absoluto e daria sentido a fenˆomenos que inicialmente n˜ao tinham, e sim um m´etodo, ocidental, ´e claro, pela sua origem hist´orica e cultural, mas que subverte a racionalidade ocidental.5 5 Seria t˜ao absurdo dizer que a antropologia, que nasceu no Ocidente, ´e indefectivel- mente ocidentalo-cˆentrica, como dizer que a psican´alise, que nasceu em Viena, ´e espec´ıfica e exclusivamente vienense. Se a antropologia ´e ”filha do colonialismo”, ”nada seria mais falso”, como escreve L´evi-Strauss (1973), ”do que consider´a-la como a ´ultima reencarna¸c˜ao do esp´ırito colonial”.
  • 162. 160CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: Dito isso, a l´ogica das condutas e das insttiui¸c˜oes que o etn´ologo procura evi- denciar tamb´em n˜ao se confunde com os sistemas de interpreta¸c˜oes aut´octones, com os modelos conscientes, ”feitos em casa”(L´evi-Strauss), com os gˆeneros que s˜ao classifica¸c˜oes ind´ıgenas expl´ıcitas. Sistemas de interpreta¸c˜oes aut´octones, modelos conscientes e gˆeneros s˜ao freq¨uentemente deforma¸c˜oes e raciona- liza¸c˜oes de estruturas inconscientes (que fornecem no entanto possibilidades de acesso a estas ´ultimas), e este ´e o n´ıvel de inteligibilidade que a antropo- logia pretende alcan¸car: n˜ao o consciente, mas o inconsciente em sua rela¸c˜ao com o consciente, o tipo em sua rela¸c˜ao com o gˆenero, etc. Concluiremos essas reflex˜oes com as observa¸c˜oes seguintes. As pr´aticas simb´olicas e os discursos vividos (que podem ser sistematizados em qualquer lugar, pois cada sociedade tem seus pr´oprios te´oricos) n˜ao s˜ao interpretados pela antro- pologia segundo a maneira como seus atores sociais os vivem, nem segundo a maneira com a qual os observadores os percebem. Isso n˜ao significa que o antrop´ologo seja o homem de nenhum lugar, e que a antropologia seja uma metalinguagem. O conhecimento antropol´ogico surge do encontro, n˜ao ape- nas de dois discursos expl´ıcitos, mas de dois inconscientes em espelho, que espelham uma imagem deformada. ´E o discurso sobre a diferen¸ca (e sobre minha diferen¸ca) baseado em uma pr´atica da diferen¸ca que trabalha sobre os limites e as fronteiras. Tomemos o exemplo de uma conduta que n˜ao ´e minha, como a feiti¸caria, e que pertence seja a uma ”matriz prim´aria”de uma sociedade outra, seja a um segmento marginal de uma sociedade minha. Seu significado antropol´ogico s´o pode ser apreendido relacionando-a aquilo que para minha sociedade tem um sentido, ou aquilo que a pr´atica e a l´ogica da feiti¸caria dizem por si mes- mas, nos gestos e discursos dos interessados, mas na sua jun¸c˜ao e na sua intersec¸c˜ao. Nesse caso espec´ıfico, a realidade, para o antrop´ologo, constitui-se do con- fronto de dois discursos interpretativos que se juntam, e constituem, o pri- meiro, a realidade normalizante do discurso ”erudito”(do psiquiatra, do pa- dre, do professor prim´ario. . .), o segundo, a realidade alucinada e desviante, mas que ´e tamb´em a express˜ao de uma realidade social. A antropologia, portanto, s´o come¸ca a adquirir um estatuto cient´ıfico partir do momento em que integra, para analis´a-lo, esse envolvimento do pesquisador (ao mesmo tempo psicoafetivo e s´ocio-hist´orico) `as voltas com a diferen¸ca. Resumiremos da seguinte forma essa ambig¨uidade e essa tens˜ao (que atua evidentemente muito mais no estudo dos sistemas de representa¸c˜oes e valo-
  • 163. 19.3. O CONCRETO E O ABSTRATO 161 res do que da cultura material). N˜ao posso ser ao mesmo tempo eu mesmo e um outro, e no entanto, para ser totalmente eu, eu devo tamb´em sair de mim a fim de apreender uma figura recalcada, mas poss´ıvel- de mim. N˜ao posso situar-me simultaneamente dentro e fora de minha sociedade, e no entanto, para compreender minha sociedade no que nunca diz de si pr´opria por que n˜ao o percebe, devo fazer a experiˆencia de uma descentra¸c˜ao radical. Finalmente essa atividade continua interrogando-me na pr´opria atividade pela qual contribuo a fabric´a-la como objeto cient´ıfico. * * * A separa¸c˜ao teol´ogica, filos´ofica, e depois cient´ıfica, do homem e da natu- reza (especialmente os animais, mas tamb´em nossa animalidade), do homem e de seu semelhante, a separa¸c˜ao do sujeito e do objeto, do sens´ıvel e do intelig´ıvel, constituem os termos de uma tens˜ao que, a meu ver, n˜ao admite resolu¸c˜ao em uma unidade superior como em Hegel. Esses termos, a n˜ao ser em uma solu¸c˜ao fisiol´ogica, formam uma complementaridade conflitual, mas n˜ao uma ”dial´etica”, conceito para o qual se apela (na verdade, cada vez me- nos) quando se procura uma receita, uma tr´egua poss´ıvel, e que tem, como diz Jean Grenier, ”uma virtude m´agica infal´ıvel”. S˜ao as diferentes dosagens realizadas, as diferentes combina¸c˜oes obtidas entre uma compreens˜ao ”por dentro”e uma compreens˜ao ”por fora”, entre a alteridade e a identidade, a diferen¸ca e a unidade, a subjetividade e a objetividade (mas tamb´em a sin- cronia e a diacronia, a estrutura e o evento) que comandam o pluralismo antropol´ogico, mas tamb´em as incompreens˜oes, ou mesmo as discordˆancias entre antrop´ologos. Se, por exemplo, minimizo a alteridade cultural, arrisco- me a realizar uma atividade de descodifica¸c˜ao, isto ´e, de transcri¸c˜ao de um discurso em outro. Mas ao superestimar essa alteridade (ponto de vista do culturalismo), torno totalmente imposs´ıvel e impens´avel aquilo que precisa- mente fundamenta o projeto antropol´ogico: a comunica¸c˜ao dos seres e das culturas. A aposta da antropologia ´e precisamente a de viver esse movimento ininter- rupto. N˜ao pretendo pessoalmente tˆe-lo conseguido profissionalmente. Digo apenas que tentei essa experiˆencia. Esse empreendimento, por mais exigente e cheio de armadilhas que seja, n˜ao tem nada de imposs´ıvel. Roger Bastide entendeu de dentro o que chamava de ”pensamento obscuro e confuso”dos s´ımbolos, e, mais que qualquer um, empenhou-se no pensamento ”claro e distinto”dos conceitos. Totalmente integrado ao candombl´e brasileiro, ele foi totalmente antrop´ologo.
  • 164. 162CAP´ITULO 19. AS TENS ˜OES CONSTITUTIVAS DA PR ´ATICA ANTROPOL ´OGICA: A fixa¸c˜ao sobre um p´olo em detrimento de outro, a rejei¸c˜ao dessas tens˜oes que constituem contradi¸c˜oes estimuladoras, as solu¸c˜oes de meio-termo e de compromisso levam inelutavelmente a acabar com a especificidade de nossa disciplina – que ocupa um lugar todo particular nas ciˆencias humanas – e a todas as esp´ecies de desvios ideol´ogicos. Demonstram a recusa ou a im- possibilidade de enfrentar as dificuldades (que s˜ao tamb´em chances a ser aproveitadas e exploradas) inerentes `a pr´aticas da antropologia. Fortaleza (Brasil), setembro de 1984 Lyon, abril de 1985
  • 165. Cap´ıtulo 20 Sobre o autor: Fran¸cois Laplantine ´e professor de Etnologia na Universidade de Lyon II. ´E autor de A Etnopsiquiatria (´Editions Universitaires, 1973), As Trˆes Vozes do Imagin´ario: o mecanismo, a possess˜ao e a utopia (´Editions Universitaires, 1974), A Cultura do Psiou O Desmoronamento dos Mitos (Privat, 1975), A Filosofia e a Violˆencia (Presses Universitaires de France, 1976), Doen¸cas Mentais e Terapˆeuticas Tradicionais na ´Africa Negra (´Editions Universitaires, 1976), A Medicina Popular na Fran¸ca Rural Hoje (´Editions Universitaires, 1978), Um Vidente na Cidade: estudo antropol´ogico do gabinete de consul- tas de um vidente contemporˆaneo (´Editions Payot, 1985) e Antropologia da Doen¸ca (´Editions Payot, 1986). 163
  • 166. 164 CAP´ITULO 20. SOBRE O AUTOR:
  • 167. Bibliografia Adotevi, Stanislas, N´egritude et N´egrologues, Paris, 10/18, 1972. Auge, Marc, Symbole, Fonction, Histoire, Paris, Hachette, 1979. – C´enie du Paganisme, Paris, Gallimard, 1982. Auzias, Jean-Marie, L’Anthropologie Contemporaine, Paris, PUF, 1976. Balandier, Georges, Sociologie des Brazzavilles Noires, Paris, A. Colin, 1955; Sociologie Actuelle de l’Afrique Noire, Paris, PUF, 1955; Ajrique Ambigue, Paris, Plon, 1957; Anthropologie Politique, Paris, PUF, 1967; Anthropo- logiques, Paris, PUF, 1974. Bateson, Gregory, La C´er´emonie du Naven, Paris, Ed. de Minuit, 1971. Baldwin, (ames, Le Racisme en Ouestion, Paris, Calmann-L´evy, 1972. Bastide, Roger, Sociologie et Psychanalyse, Paris, PUF, 1950; Le Candombl´e de Bahia, Paris, Mouton, 1959; Sociologie des Maladies Mentales, Paris, Flammarion, 1965; Le Prochain et le Lointain, Paris, Cujas, 1970; Anthro- pologie Appliqu´ee, Paris, Flammarion, 1971; Le Rˆeve, la Transe, la Folie, Paris, Flammarion, 1972; Images du Nordeste Mystique en Noir et Blanc, Paris, Pandora, 1978. Beattie, —ohn, Introduction `a 1’Anthropologie Sociale, Paris, Payot, 1972. Benedict, Ruth ˆEchantillons de Civilisations, Paris, Gallimard, 1950. Berque, lacques, D´epossession du Monde, Paris, Le Seuil, 1964. Bougainville, Louis Antoine de, Voyage Autour du Monde, Paris, Gallimard, 1980. 165
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  • 169. BIBLIOGRAFIA 167 Durkheim, ´Emile, Les Formes El´ementaires de la Vie Religieuse, Paris, PUF, 1979. Duvignaud, Jean, Chebika, Paris, Gallimard, 1968. Duviols, Jean-Paul, Voyageurs Fran¸cais en Am´erique, Paris, Bordas, 1978. Elkin, Adolphus Peter, Les Aborig`enes Australiens, Paris, Gallimard, 1967. Elwin, Verner, Maison des Jeunes chez les Muria, Paris, Gallimard, 1959 Engels, Friedrich, L’Origine de la Famille, de la Propri´et´e Priv´ee et de VˆEtat, Paris, Ed. Sociales, 1954. Erny, Pierre, L’Enfant et Son Milieu en Afrique Noire, Paris, Payot, 1972. Evans-Pritchard, Edward-Evan, Les Nuers, Paris, Gallimard, 1968; Anthro pologie Sociale, Paris, Payot, 1969; Sorcellerie, Oracles et Magie chez les Azand´e, Paris, Gallimard, 1972. Evreux, Yves d’, Voyage au Nord du Br´esil, Paris, Payot, 1985. Fanon, Frantz, Peau Noire, Masques Blancs, Paris, Le Se¨uil, 1952; Les Damn´es de la Terre, Paris, Maspero, 1968. Favret-Saada, Jeanne, Les Mots, la Mort, les Sorts, Paris, Gallimard, 1977. Fortune, R´eo F., Sorciers de Dobu, Paris, Maspero, 1972. Foucault, Michel, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1966. Frazer, James George, Le Rameau d’Or, Paris, Robert Laffont, 4 tomos, 1981-1984. Freyre, Gilberto, Ma´ıtres et Esclaves, Paris, Gallimard, 1974. Gibbal, Jean-Marie, Citadins et Villageois dans la Ville Africaine, Greno- ble, PUG, 1974. Gluckman, Max, Order and Rebellion, Londres, 1966.
  • 170. 168 BIBLIOGRAFIA Godelier, Maurice, Horizons, Trajeis Marxistes en Anthropologie, Paris, Mas- pero, 1973. Griaule, Mareei, Masques Dogons, Paris, Inst. d’Ethnologie, 1938; Dieu d’Eau, Paris, Fayard, 1966.
  • 171. BIBLIOGRAFIA 169 Escaneado e diagramado por MathCuei R , com o auxilio de LATEX