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Linguagem em (re)vista vol. 17 18-2014_completo
ISSN: 1807-6378
LINGUAGEM
EM (RE)VISTA
(Ano 09, No
17-18)
Niterói
2014
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
2
EXPEDIENTE
A LINGUAGEM EM (RE)VISTA é um periódico semestral desti-
nado à expansão e socialização de pesquisas inscritas no âmbito de
estudos da linguagem. Eventualmente, poderá receber contribui-
ções de áreas afins.
Conselho Editorial
Ana Léa Rosa da Cruz
Antônio Carlos da Silva
Beatriz dos Santos Feres
Iran Nascimento Pitthan
Maria Isaura Rodrigues Pinto
Maria Luiza de Castro da Silva
Olga Maria Guanabara de Lima
Regina Souza Gomes
Organização e edição: Maria Isaura Rodrigues Pinto
Capa: Maria Isaura Rodrigues Pinto
Editoração e diagramação: José Pereira da Silva
Montagem e encadernação: Silvia Avelar Silva
Impressão: Universidade das Cópias
As ideias apresentadas nos artigos assinados são de exclusi-
va responsabilidade de seus autores.
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
3
SUMÁRIO
0. Apresentação
Maria Isaura Rodrigues Pinto ...........................................05
1. A encenação descritiva nos quadrinhos Turma da Mônica Jo-
vem
Glayci Kelli Reis da Silva Xavier ......................................08
2. O material didático impresso em EaD no século XXI: usos e
funções da linguagem e dos gêneros textuais
Maria Betânia Almeida Pereira ........................................31
3. Perspectivas para o trabalho com projetos didáticos: produção
de poemas na escola
Maria Isaura Rodrigues Pinto ...........................................44
4. Eugenio Coseriu: uma mudança radical na perspectiva lin-
guística
Helio de Sant’Anna dos Santos ..........................................62
5. A literatura na era digital
Adriane Camara de Oliveira .............................................75
6. Literatura contemporânea: a escrita da solidão em João Gil-
berto Noll
Tania Teixeira da Silva Nunes ...........................................88
7. A correspondência e o discurso de si: confissão ou ficção?
Luciana Paiva de Vilhena Leite .......................................103
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
4
8. No meio do caminho tinha uma pedra: a versatilidade da fór-
mula discursiva na literatura infantil
Patricia Ferreira Neves Ribeiro ........................................122
9. Oralidade, narrativa e mito: uma proposta de leitura dialógica
Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos .......................142
10. A revolução aprendiz nas narrativas portuguesas contempo-
râneas
Jane Rodrigues dos Santos ..............................................162
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
5
APRESENTAÇÃO
O presente periódico tem uma longa trajetória que se esten-
de por um período de nove anos. Nesse percurso, vem promoven-
do a publicação de artigos de professores pesquisadores vincula-
dos a várias instituições universitárias. Os participantes oferecem
significativas contribuições às pesquisas que falam de diversas
áreas, predominantemente, as de Língua Portuguesa, Linguística e
Literatura.
Neste número, como nos anteriores, os artigos provêm de
várias fontes, mas têm como eixo comum a apresentação de estu-
dos recentes, que, com seus enfoques específicos, refletem sobre
questões relativas à linguagem e seu ensino.
No texto de abertura, intitulado “A encenação descritiva nos
quadrinhos Turma da Mônica Jovem”, Glayci Kelli Reis da Silva
Xavier, tendo sua atenção voltada para o gênero história em qua-
drinhos, analisa, na revista Turma da Mônica Jovem, de Maurício
de Sousa, como se efetivam os mecanismos de encenação descriti-
va e os efeitos resultantes da relação verbo-visual.
O artigo “O material didático impresso em EAD no século
XXI: usos e funções da linguagem e dos gêneros textuais”, de Ma-
ria Betânia Almeida Pereira, situado no âmbito do ensino a distân-
cia, ressalta a importância de se proceder, no processo de elabora-
ção de materiais didáticos com gêneros textuais, a uma escolha
criteriosa de textos, de recursos multimídia e de linguagens diver-
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
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sificadas, a fim de tornar eficaz o processo de ensino-aprendiza-
gem.
O texto seguinte, “Perspectivas para o trabalho com projetos
didáticos: produção de poemas na escola", de Maria Isaura Rodri-
gues Pinto, leva a discussão para a sala de aula, focalizando resul-
tados de uma intervenção didática, realizada por meio de oficinas
no âmbito do Subprojeto PIBID Letras da Faculdade de Formação
de Professores da UERJ, a qual visou à produção de poemas por
alunos da educação básica.
Em “Eugenio Coseriu: uma mudança radical na perspectiva
linguística”, Helio de Sant’Anna dos Santos focaliza aspectos da
concepção coseriana, que permitem considerá-lo um linguista in-
tegral. O texto chama a atenção para o fato de o linguista ser, ina-
dequadamente, tido “como mais um estruturalista”.
No artigo subsequente, “A literatura na era digital”, Adriane
Camara de Oliveira, atuando no terreno da literatura contemporâ-
nea, dedica-se à análise, em contos e romances, de recursos de
apropriação temática e de assimilação formal de expedientes de
leitura e de escrita que são característicos da cultura digital.
Também Tania Teixeira da Silva Nunes, em “Literatura
contemporânea: a escrita da solidão em João Gilberto Noll” realiza
uma reflexão sobre a literatura na atualidade, neste caso, a partir
da escritura de João Gilberto Noll, no romance Solidão continen-
tal. Segundo a autora, a obra configura “o mundo sem saída e o
mesmo narrador anônimo e degradado com que o romancista ino-
va e renova a sua escrita”.
Luciana Paiva de Vilhena Leite, em “A correspondência e o
discurso de si: confissão e ficção?”, apresenta uma análise de cor-
respondências trocadas entre autores da literatura e locutores de
sua esfera pessoal. Enfatiza, em sua pesquisa, o fato de o discurso
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
7
das cartas pessoais, nos casos explorados, parecer adotar um tom
oscilante que ora se coaduna com a confissão ora com a ficção.
Com o texto de Patricia Ferreira Neves Ribeiro, “No meio
do caminho tinha uma pedra: A versatilidade da fórmula discursi-
va na literatura infantil”, o enfoque se desloca para o domínio da
literatura infantil. O estudo dedica-se ao exame do uso de fórmulas
(re)enunciadas, com o propósito de verificar como se dá o seu
funcionamento no corpus selecionado. A atenção recai, como
anuncia a autora, “sobre questões sociais que essas fórmulas aju-
dam a (des)construir diante do leitor aprendiz”.
Já Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos, em “Oralidade,
narrativa e mito: uma proposta de leitura dialógica”, apresenta
uma proposta de reflexão que tem como foco o vínculo entre nar-
ração, experiência e modernidade. O interesse da pesquisa reside
no estudo das “configurações dialetais” promovidas pelo Moder-
nismo, em “O besouro e a rosa”, conto de Mário de Andrade.
Jane Rodrigues dos Santos encerra a obra com o artigo “A
revolução aprendiz nas narrativas portuguesas contemporâneas”.
A pesquisadora, especialmente a partir dos romances portugueses
Paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão e Bala-
da da praia dos Cães, de José Cardoso Pires, discute o liame entre
literatura e história, destacando o “teor revolucionário”, que am-
bos os conceitos abarcam.
Para finalizar, fica ao leitor o convite para fruir o periódico
e imaginar novas configurações para os assuntos abordados pelo
conjunto de textos aqui reunidos.
Niterói, dezembro de 2014.
Maria Isaura Rodrigues Pinto
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
8
A ENCENAÇÃO DESCRITIVA
NOS QUADRINHOS TURMA DA MÔNICA JOVEM
Glayci Kelli Reis da Silva Xavier1
RESUMO
Para se comunicar, ao fazer uso da linguagem, o homem utiliza vários
sistemas simbólicos, sejam palavras, imagens, gráficos, gestos, expressões fi-
sionômicas, sons etc. Consequentemente, o ser humano está imerso em uma
rede intrincada e plural de linguagem (SANTAELLA, 2012, p. 14). A histó-
ria em quadrinhos, objeto do presente estudo, é um gênero que lida com dois
dispositivos importantes de comunicação: palavras e imagens (EISNER,
1989, p. 7); palavras são feitas de letras e letras são imagens. Desse modo,
nos quadrinhos, o leitor tem uma dupla atividade, pois cada elemento visual
tem um significado e, nesse sentido, as imagens exerceriam, assim como as
palavras, a função descritiva. Segundo Charaudeau (2009, p. 113), descrever
consiste em ver o mundo com um “olhar parado”, trazendo à existência os
seres ao nomeá-los, localizá-los, e atribuir-lhes qualidades que os singulari-
zam. O autor ainda afirma que, na descrição, o enunciador (sujeito descri-
tor) pode intervir de maneira explícita ou não, produzindo um certo número
de efeitos, resultado de uma intenção consciente da parte do sujeito descri-
tor, visando a manipular a leitura do sujeito destinatário. Nessa perspectiva,
o presente trabalho pretende analisar a revista Turma da Mônica Jovem,
obra de Maurício de Sousa, verificando como se dá a encenação descritiva
presente nela e os efeitos produzidos por meio da relação verbo-visual. Para
isso, será tomada por base teórica principal a Teoria Semiolinguística de
Análise do Discurso de Patrick Charaudeau (1992; 2009), com relação aos
sujeitos de do ato de linguagem e os modos de organização do discurso.
Palavras-chave:
Verbo-visualidade. Modo descritivo. Semiolinguística. Quadrinhos.
1 Doutoranda em estudos da linguagem na Universidade Federal Fluminense e professo-
ra do Colégio Pedro II. E-mail: glaycikelli@yahoo.com.br
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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1. Considerações iniciais
O ser humano é um ser simbólico por natureza. Para se co-
municar, ao fazer uso da linguagem, o homem utiliza vários siste-
mas simbólicos, sejam palavras, imagens, gráficos, gestos, expres-
sões fisionômicas, sons etc. Consequentemente, o nosso estar no
mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma
rede intrincada e plural de linguagem (SANTAELLA, 2012, p.
14).
Com o avanço da tecnologia, a sociedade torna-se cada vez
mais visual e, com isso, a compreensão da relação palavra-imagem
adquire cada vez mais importância. A história em quadrinhos é um
gênero que lida com dois dispositivos importantes de comunica-
ção: palavras e imagens (EISNER, 1989, p. 7); palavras são feitas
de letras e letras são imagens. Desse modo, nos quadrinhos, o lei-
tor tem uma dupla atividade, pois cada elemento visual tem um
significado. Conforme explica Eisner (2005, p. 9) o processo de
leitura dos quadrinhos é uma “extensão do texto”; num texto ver-
bal, o leitor precisa converter a palavra em imagens, enquanto, nos
quadrinhos, esse processo é acelerado, pois as imagens são forne-
cidas. Dessa forma, em um texto verbo-visual como as histórias
em quadrinhos, as imagens exercem, assim como as palavras, as
funções descritiva e narrativa. Sabe-se que nas histórias em qua-
drinhos a narração e a descrição encontram-se intimamente liga-
das, e uma depende da outra. No entanto, pela extensão do presen-
te trabalho, será focalizado apenas o modo descritivo.
Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende analisar a
revista Turma da Mônica Jovem, obra de Maurício de Sousa, res-
peitado desenhista brasileiro, verificando como se dá a encenação
descritiva presente nela e os efeitos produzidos por meio da rela-
ção verbo-visual. Como fundamentação teórica desta pesquisa,
tomar-se-á por base principal a teoria semiolinguística de análise
do discurso de Patrick Charaudeau (2009), com relação aos sujei-
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
10
tos de do ato de linguagem e os modos de organização do discur-
so.
2. A construção do modo descritivo
Charaudeau (2009, p. 113) afirma que descrever consiste
em ver o mundo com um “olhar parado”, trazendo à existência os
seres ao nomeá-los, localizá-los, e atribuir-lhes qualidades que os
singularizam. Descrever está estreitamente ligado a contar, porém
se difere deste; contar consiste em “expor o que é da ordem da ex-
periência e do desenvolvimento das ações no tempo” (op. cit., p.
113). O autor ainda diferencia os termos descritivo e descrição: o
primeiro é um procedimento discursivo (modo de organização do
discurso), enquanto o segundo é o resultado, ou seja, um texto (ou
fragmento de texto) que se apresenta explicitamente como tal.
De acordo com Goodman (apud SANTAELLA, 2005, p.
293), “as figuras são símbolos convencionais que se relacionam a
seus objetos referenciais do mesmo modo que um predicado se re-
laciona àquilo a que ele se aplica”; assim, tanto o retrato visual
quanto a descrição verbal participariam “na formação e caracteri-
zação do mundo, relacionando-se mutuamente junto com a per-
cepção e o conhecimento”. Portanto, ao explorar como se configu-
ra o modo descritivo no mangá Turma da Mônica Jovem, elemen-
tos verbais e imagéticos devem ser considerados, como poderá ser
visto na análise a seguir.
3. Componentes da construção descritiva
A construção do modo descritivo conta com três tipos de
componentes: nomear, localizar/situar e qualificar os seres do
mundo, com uma maior ou menor subjetividade. Cada um desses
componentes, por sua vez, é implementado por um determinado
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
11
procedimento discursivo. No entanto, vale ressaltar que o descriti-
vo, diferentemente dos outros modos, não se fecha em si em uma
lógica interna e não existe um percurso obrigatório para sua cons-
trução; o descritivo está geralmente ligado a outros modos de or-
ganização e, sem ser totalmente dependente, ele adquire sentido
(ou parte de seu sentido) em função dos outros modos (CHA-
RAUDEAU, 2009, p. 117). Além dos procedimentos discursivos,
a descrição é construída por procedimentos linguísticos que utili-
zam categorias da língua, as quais podem aparecer isoladas ou
combinadas entre si.
3.1.Nomeação
Nomear é dar existência a um ser, por meio de uma dupla
operação: percepção e classificação. Como a percepção e a classi-
ficação dependem do sujeito que percebe, é “o sujeito que constrói
e estrutura a visão de mundo”; por isso, nomear não é um simples
processo de “etiquetagem” de uma referência pré-existente, mas
sim o resultado de uma operação que consiste em “fazer existir se-
res significantes no mundo, ao classificá-los” (CHARAUDEAU,
2009, p. 112). A nomeação está ligada ao procedimento discursivo
de identificação.
Como procedimentos linguísticos, o componente nomear se
utiliza das seguintes categorias de língua: a denominação, a inde-
terminação, a atualização, a dependência, a designação, a quanti-
ficação e a enumeração. Alguns desses procedimentos serão des-
critos a seguir.
A denominação aparece sob a forma de nomes comuns ou
nomes próprios, cujo papel é identificar os seres, do ponto de vista
geral ou particular. No caso da Turma da Mônica, cada persona-
gem tem seu nome próprio, e cada nome não lhes servem sim-
plesmente de rótulo; por serem personagens consagradas pelo pú-
blico, tais nomes também servem para caracterizá-las juntamente
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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12
com sua personalidade, suas qualidades, seus defeitos, suas manias
etc.; tanto que é comum chamarem alguém de “Cascão” se não
tem muitos hábitos de higiene, de “Magali” se come muito... Na
Turma da Mônica Jovem, a denominação como procedimento lin-
guístico aparece principalmente nos vocativos, mas também ocor-
re em outras situações, como quando alguém está falando sobre o
outro e cita seu nome.
A atualização (ou concretização) é obtida por meio do uso
de artigos, criando efeitos discursivos de singularidade, familiari-
dade, evidência, idealização ou até mesmo insólito. A designação
é realizada com o uso de demonstrativos, que permitem produzir
efeitos discursivos de tipificação. Na Fig. 1, pode-se encontrar a
atualização ou concretização na fala do Titi, quando ele diz “a
Mônica”, criando efeito de familiaridade, e no título do capítulo
“Uma nova Mônica”, que coloca em evidência a mudança ocorri-
da na personagem. Na expressão “esse cabelo” é usada a categoria
de designação, quando se mostra a presença de um referente; o
efeito de tipificação é criado pela precisão, pois “esse” representa
um exemplar da classe, de forma não generalizada: não é qualquer
cabelo, é o modelo que ela está usando no momento.
Além disso, as imagens também podem exercer a função
descritiva de nomear. Com relação à denominação, por exemplo,
as imagens identificam as personagens e os objetos; se o texto fos-
se puramente verbal, nos diálogos, a identificação de quem toma a
palavra seria feita pode meio de nomeação e verbos dicendi (de
elocução): Cascuda disse; Marina completou, Titi comentou...;
nos quadrinhos, como prevalece o discurso direto, as imagens
substituem essa nomeação.
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13
Fig. 1: Atualização e Designação. Turma da Mônica Jovem, nº 61, p. 45.
Na Fig. 2, aparece uma imagem em forma de sombra, cri-
ando efeito de suspense pela indeterminação (Cascão não vê com
quem está falando).
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14
Fig. 2: Indeterminação, designação e dependência nas imagens.
Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 25.
Quando Cascão aponta para a pessoa (achando que é o Ce-
bola, mas posteriormente é revelado que se trata da Magali), a
imagem contribui para a nomeação por meio das categorias: de-
signação (quando mostra de quem é a opinião que ele não quer) e
dependência (numa apreciação negativa).
Outras categorias também podem ser expressas pelas ima-
gens, como a enumeração, quando, por exemplo, é mostrado um
quarto cheio de objetos espalhados, para dizer que ele está desor-
ganizado ou todo bagunçado. Além disso, uma mesma imagem
pode apresentar diferentes significados.
O componente nomear também está relacionado ao proce-
dimento discursivo de identificação. Os seres representam uma re-
ferência material (concreta) ou não material (abstrata, como sen-
timentos, ações), e são nomeados por nomes comuns, que os indi-
vidualizam e classificam (são agrupados a uma classe) ou por no-
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15
mes próprios, criando uma identificação específica, nomeando-os
em sua unicidade.
3.2.Localização/situação
Localizar/situar é determinar o lugar que um ser ocupa no
espaço (localização) e no tempo (situação) e, por um efeito de re-
torno, atribuir características a esse ser, já que, para sua existência,
ele depende de sua posição espaço-temporal (CHARAUDEAU,
2009, p. 113). Essa localização-situação geralmente aponta para
um recorte objetivo do mundo; por isso, tem como procedimento
discursivo a construção objetiva do mundo.
Como procedimentos linguísticos, utilizam-se categorias de
língua que têm por efeito estabelecer um enquadre espaço-
temporal, que pode produzir dois resultados: a identificação de lu-
gares e épocas de um relato com precisão; ou a não identificação,
deixando os lugares e o tempo incertos, vagos, porque o relato não
se ancora em nenhuma realidade específica, mas coloca em cena
destinos e arquétipos que são atemporais (op. cit., p. 137).
Com relação à localização espacial, nos quadrinhos, ela po-
de ser feita tanto verbalmente, quanto visualmente. No exemplo da
Fig. 3, na imagem 1, a localização é feita visualmente apenas,
mostrando que a turma está na escola. Na imagem 2, a localização
é feita verbalmente, pois mostra-se a figura de uma casa, que po-
deria ser de qualquer personagem; somente ao ler o texto verbal
que é possível identificar que a casa é do Xaveco (“deve ser a pri-
meira vez que minha casa aparece no mangá”). Na imagem 3, a
localização é verbo-visual, pois tem-se a imagem da padaria e seu
letreiro.
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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16
Fig. 3: Localização no espaço.
Turma da Mônica Jovem nº 41, p. 5; nº 59, p. 105; nº 61, p. 15.
Como as ações ocorrem, em sua maioria, no bairro do “Li-
moeiro”, normalmente o espaço é identificado. A única não identi-
ficação frequente é com relação ao tempo; apesar de obedecerem a
uma sequência cronológica de revista em revista e a passagem de
tempo poder ser observada no desenrolar das ações, a situação no
tempo é imprecisa e não há tempo marcado, somente expressões
como “no primeiro dia de aula”, “no dia seguinte”, “sexta-feira”,
“dez anos no futuro”, inscritas em legendas ou na fala das perso-
nagens; tal recurso é utilizado para tornar as revistas atemporais,
podendo ser lidas em qualquer época.
3
2
1
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3.3.Qualificação
Qualificar é atribuir a um ser, de maneira explícita, uma
qualidade que o caracteriza e o especifica, classificando-o, desta
vez, em um subgrupo (CHARAUDEAU, 2009, p. 115). O ato de
qualificar permite ao sujeito falante manifestar seu imaginário (in-
dividual ou coletivo) da construção e da apropriação do mundo,
num jogo de conflito entre visões normativas, impostas pela soci-
edade, e suas próprias visões. Assim, a qualificação, um dos pro-
cedimentos discursivos do modo descritivo, faz com que um ser
“seja alguma coisa”, por meio de suas qualidades e comportamen-
tos, suscitando procedimentos discursivos de construção ora obje-
tiva, ora subjetiva do mundo (op. cit., p. 116-117).
Os procedimentos de construção objetiva do mundo consis-
tem em construir uma “visão de verdade sobre o mundo”, qualifi-
cando os seres por meio de traços que possam ser verificados por
seu interlocutor; tais procedimentos estão ligados, portanto, ao
imaginário social compartilhado. Assim, a descrição objetiva de-
pende: de uma organização sistematizada do mundo; de uma ob-
servação do mundo que possa ser compartilhada pelos membros
da comunidade (op. cit., p. 120-121). Esses procedimentos estão
presentes em textos que têm por finalidade definir ou explicar, in-
citar ou contar. Em textos fictícios, tais procedimentos são utiliza-
dos para “criar um efeito de realidade”.
Os procedimentos de construção subjetiva do mundo con-
sistem em permitir ao sujeito falante descrever os seres do mundo
e seus comportamentos por meio de sua própria visão, a qual não é
necessariamente verificável; portanto, o universo assim construído
está ligado ao imaginário pessoal do sujeito (CHARAUDEAU,
2009, p. 125). Tal imaginário pode tomar forma por meio: de uma
intervenção pontual do narrador, quando este deixa transparecer
seus sentimentos, afetos e opiniões; da construção de um mundo
mitificado pelo narrador, num imaginário simbólico que pode estar
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ancorado em uma certa realidade ou fora desta, abrindo-se para o
irracional. Esses procedimentos podem ser encontrados normal-
mente em textos cuja finalidade é incitar ou contar.
Charaudeau (2009, p. 115) afirma que “qualificar é tomar
partido”. Dessa forma, a qualificação mesmo que pretenda ser ob-
jetiva, revela a ótica do enunciador. Segundo Feres (2012, p. 132),
essa operação é sempre circunstanciada em função de uma tomada de
posição (não é possível apontar e descrever seres em sua totalidade,
mas tão-somente na perspectiva assumida pelo descritor). Em outras
palavras, não se deve ignorar que o processo descritivo atende às
formulações e coerções advindas do conhecimento sociocognitivo
acionado pelo produtor em função da troca comunicativa de que par-
ticipa. Disso se conclui que não há descrições ou referências a priori,
mas construtos localizados, que instauram objetos de discurso inter-
pretáveis em relação ao contexto e aos saberes partilhados por um
grupo social. Assim, na “qualificação”, elegem-se características,
qualidades, que retratam o mundo perspectivamente, de acordo com
um modo de olhar, através de um filtro ao mesmo tempo biológi-
co/perceptivo e cultural/interpretativo.
A qualificação pode ser observada na revista Turma da
Mônica Jovem desde a caracterização das personagens. Até a edi-
ção número 8, antes da recapitulação da edição anterior e introdu-
ção da nova história, havia uma breve apresentação das persona-
gens principais, para mostrar sua mudança após ter “crescido”.
Dessa forma, por meio da qualificação, o ethos das personagens é
construído da seguinte maneira:
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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Fig. 4: Descrição da Mônica. Turma da Mônica Jovem, nº 8, p. 4.
Na Fig. 4, a descrição se dá tanto pela linguagem não verbal
(por meio da imagem da personagem), quanto por meio da lingua-
gem verbal: “meiga”, “alegre”, “dentucinha”, “líder da Turma”,
“com caráter forte”, “personalidade cativante e verdadeira”, “me-
nina supersegura e madura”, “romântica incorrigível”. O mesmo
ocorre na descrição das outras personagens. Com o Cebolinha, por
exemplo, o primeiro processo de identificação se dá no comentário
sobre seu nome: “agora prefere ser chamado simplesmente de
‘Cebola’”, mostrando que a personagem “cresceu” e não quer ser
tratado como criança. Dessa forma, pode-se perceber que, nos as-
pectos físicos e psicológicos, o autor procurou manter as princi-
pais características das personagens infantis, consagradas pelo pú-
blico.
No conteúdo da revista, é possível observar a qualificação
verbal, na definição de Cascão de como será seu projeto da Feira
de Ciências, e a qualificação icônica, na imagem da Magali (Fig.
5), que mostra que a personagem está triste.
Fig. 5: Qualificação verbal e icônica.
Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 11 e 26.
Enfim, como foi mencionado anteriormente, o modo descri-
tivo não se fecha em uma lógica interna, nem existe um percurso
obrigatório para sua construção. Portanto, a importância dos três
componentes da construção descritiva (nomear, localizar/situar,
qualificar), com seus procedimentos linguísticos e discursivos, es-
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
20
tá em sua contribuição para a composição da encenação descriti-
va, criando determinados efeitos de sentido no texto.
4. A encenação descritiva
Na descrição, o enunciador (sujeito descritor) pode intervir
de maneira explícita ou não, produzindo um certo número de efei-
tos, resultado de uma intenção consciente da parte do sujeito des-
critor (EUe), visando a manipular a leitura do sujeito destinatário
(TUd); tais efeitos são apenas possíveis, já que o leitor real (TUi)
pode não percebê-los.
Dentre os efeitos produzidos por meio da encenação descri-
tiva, pode-se citar: o efeito de saber, os efeitos de realidade e de
ficção, o efeito de confidência e o efeito de gênero.
4.1.Efeito de saber
O efeito de saber pode ser produzido quando o descritor
procede a uma série de identificações e de qualificações que, pre-
sumivelmente, o leitor não conhecia, fabricando para si uma ima-
gem de “descritor sábio”, conhecedor do mundo, que utiliza seus
conhecimentos para trazer a prova da veracidade de seu relato ou
argumentação (CHARAUDEAU, 2009, p. 139).
Um exemplo na revista Turma da Mônica Jovem em que o
descritor procura criar o efeito de saber ocorre em uma passagem
em que o Cascão explica seu trabalho para os professores na Feira
de Ciências, trabalho esse esperado por todos, já que ele estava
com notas baixas na matéria (Fig. 6). Pode-se perceber que tal
descrição conjuga signos verbais e imagéticos.
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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21
Fig. 6: Efeito de saber. Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 116-117.
4.2.Efeito de realidade e de ficção
Os efeitos de realidade e de ficção devem ser tratados jun-
tamente, pois a alternância entre esses dois modos é que constrói o
“plano de fundo” (visão de mundo) em textos narrativos, como os
quadrinhos. Por meio desses efeitos, tem-se uma dupla imagem do
narrador-descritor (EUc), a qual ora é exterior ao mundo descrito,
ora é parte interessada em sua organização (CHARAUDEAU,
2009, p. 140).
O efeito de realidade é obtido por meio da construção obje-
tiva de mundo (mundo denotado), que tenta apresentar um mundo
realista (não necessariamente real), segundo o que se crê ser ver-
dade, ligado a um imaginário social compartilhado.
Nos quadrinhos, o efeito de realidade é criado quando são
utilizadas imagens icônicas, próximas ao real ou estereotipadas,
para que o leitor reconheça nelas um mundo realista, por meio de
seus saberes de crença e de conhecimento (estratégias de ordem
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semântica), de modo a possibilitar a criação de imagens mentais
que completem os espaços entre os quadros.
Observe-se a Fig. 7, por exemplo. As imagens trazem o ce-
nário de uma praia (frame), semelhante ao real, que é capaz de
evocar todo um imaginário social do leitor, e trazer a sua mente si-
tuações que podem estar ligadas a esse quadro, situações essas que
se desenrolarão adiante, como montar cadeiras e barracas de praia
e tomar água de coco. Todas essas ações fazem parte desse quadro
(literalmente, pois os quadrinhos são expressos por quadros – fra-
me, em inglês) e criam um efeito de realidade para o leitor.
Fig. 7: Efeito de realidade. Turma da Mônica Jovem, nº 62, p. 11, 29.
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Outro recurso para se criar o efeito de realidade é o uso de
intertextualidade com sinsignos (que representam coisas ou even-
tos existentes) do mundo real. Na revista Turma da Mônica Jo-
vem, por exemplo, pode-se encontrar referência a termos da inter-
net, presentes na vida dos jovens leitores: Cascão faz pesquisa no
“Gúgól” (referência à Google) e dá uma olhadinha no “Feice-
búqui” (referência ao Facebook).
O efeito de ficção, por sua vez, é produzido por meio da
construção subjetiva de mundo, que: deixa transparecer o ponto de
vista do descritor (emoções, opiniões, afetos), por meio de metá-
foras, metonímias, comparações, qualificações; ou culmina na
construção de um mundo mitificado, ligado ao imaginário simbó-
lico (em contraste com o mundo realista). Segundo Charaudeau
(2009, p. 129), nos quadrinhos, quando se apresenta os “heróis da
história” em forma de retrato mítico, há a construção subjetiva do
mundo.
A construção de um mundo mitificado também está presente
na revista Turma da Mônica Jovem, quando a turma se envolve
em aventuras extraordinárias, como viagens em outras dimensões,
viagens no mundo virtual, histórias de terror e suspense, etc. Nas
edições 1 a 4, por exemplo, a turma viaja por “4 dimensões mági-
cas” para salvar seus pais, que foram aprisionados por uma “pode-
rosa feiticeira oriental”. Nas edições 6 a 8, a turma vive uma aven-
tura no espaço; nas edições 13 e 14, no mundo virtual por meio de
um jogo online; nas edições 21 e 22, no “país das maravilhas”; e
assim por diante. Além disso, há a presença de personagens como
Poeira Negra (antigo “Capitão Feio”), Ângelo (antigo “Anjinho”)
e professor Licurgo (antigo “Louco”), que misturam o insólito à
vida “normal” das personagens. Apesar de prevalecerem, na Tur-
ma da Mônica Jovem, as aventuras que ocorrem no próprio bairro
do Limoeiro, nos mangás em geral, a criação de um mundo mitifi-
cado é bastante frequente.
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No entanto, é preciso lembrar que não se pode opor de ma-
neira radical os efeitos de realidade e de ficção. As construções
objetiva e subjetiva se entrecruzam e a alternância entre elas faz
com que uma narrativa, por mais fantasiosa que seja, tenha alguma
ancoragem no real, seja por semelhança ou oposição, o que possi-
bilita o estabelecimento de relações, fazendo com que que o texto
tenha sentido para o leitor.
4.3.Efeito de confidência
O efeito de confidência procede de uma intervenção explíci-
ta ou implícita do descritor, que exprime sua apreciação pessoal,
trazendo uma aproximação de seu interlocutor.
De acordo com McCloud (2008, p. 217), o mangá é um gê-
nero que apresenta técnicas peculiares, com o objetivo de “ampli-
ficar o senso de participação do leitor nos mangás, uma sensação
de ser parte da história, em vez de meramente observá-la de lon-
ge”. Ao criar esse “senso de participação”, há uma manipulação
sensorial do destinatário, orientando seu percurso do olhar e pro-
duzindo o que Charaudeau chama de efeito de confidência; tal
efeito torna o mangá um texto mais dinâmico do que os quadri-
nhos tipicamente ocidentais.
São descritas, a seguir, as técnicas utilizadas para atrair a
atenção e aumentar seu senso de participação de acordo com
McCloud (2008, p. 216), tentando identificá-las no mangá de
Maurício.
1) Uso de personagens icônicas, nas quais as faces e a figura
simples levam à identificação do leitor, ao levá-lo a concentrar-
se em detalhes específicos e ampliar o significado, por meio da
eliminação dos detalhes (MCCLOUD, 1995, p. 30). Há, na
Turma da Mônica Jovem, o destaque para os olhos expressivos;
mas as referências ao mangá no desenho das personagens limi-
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tam-se às referências feitas nas aventuras (uso de intertextuali-
dade), à expressão de emoções e ao uso de chibis. Chibi é um
termo japonês para definir algo “pequeno”. É um desenho bas-
tante estilizado, com cabeça no mesmo tamanho dos corpos,
geralmente sem nariz e a boca nem sempre finalizada. Os chi-
bis normalmente são usados para dar um efeito cômico ou mais
sentimental, como pode ser observado no exemplo a seguir
(Fig. 8):
Fig. 8: Chibi. Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 30.
2) A maturidade genérica apresentada, com a diversidade de gê-
neros (no sentido de “categorias”) apresentados e temas explo-
rados (esportes, romance, ficção científica, fantasia, terror,
etc.). A revista Turma da Mônica Jovem trata de temas varia-
dos, mas todos ligados ao universo adolescente. É, no geral,
uma mistura de romance, fantasia e esportes.
3) Um forte senso de localidade, com detalhes ambientais que
ativam memórias sensoriais, criando um contraste com as per-
sonagens icônicas – “como ninguém espera que as pessoas se
identifiquem com paredes ou paisagens, os cenários tendem a
ser mais realistas” (MCCLOUD, 1995, p. 42); essa técnica uti-
liza um conjunto de linhas para o “ser” e outro conjunto para o
“ver”, um estilo híbrido que também pode ser denominada de
efeito máscara. As revistas da turma tradicional têm pouquís-
simos cenários, prevalecendo o fundo normalmente azul, ama-
relo ou rosa, contendo somente elementos essenciais à cena.
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Nas revistas da turma jovem, por sua vez, o cenário é mais ex-
plorado. Várias histórias, inclusive, são iniciadas com a locali-
zação dos actantes no espaço, mostrando onde a narrativa se
desenrolará.
4) Uma ampla variedade de designs de personagens, incluindo
tipos diferentes de rostos e corpos. Na revista Turma da Môni-
ca Jovem, as personagens seguem um certo padrão, mantendo
os traços semelhantes entre si, assim como ocorre na revista
tradicional.
5) Uso frequente de quadrinhos sem palavras, combinados com
transições aspecto a aspecto entre quadrinhos – “transições de
um a outro aspecto de lugar, ideia ou estado de espírito”
(MCCLOUD, 2008, p. 15) –, levando os leitores a montar ce-
nas a partir de informações visuais fragmentárias. Os quadri-
nhos sem palavras podem ser encontrados na revista, usados
para produzir diferentes efeitos; sem a presença de textos, o
conteúdo das imagens é posto em relevo. No entanto, a transi-
ção aspecto a aspecto é raramente explorada na Turma da Mô-
nica Jovem. Nessa revista, predominam as transições: momento
a momento, quando uma única ação é retratada em uma série
de momentos; ação a ação, quando um único sujeito (pessoa,
objeto etc.) aparece em uma série de ações; sujeito a sujeito,
quando há uma série de sujeitos alternantes dentro de uma úni-
ca cena (op. cit., p. 15).
6) Valorização de pequenos detalhes do mundo real, de modo a
conectar o leitor com as experiências cotidianas, mesmo em
histórias fantásticas ou melodramáticas.
7) Expressão de movimento de forma subjetiva, por meio de
fundos rajados que fazem os leitores sentirem que estão se mo-
vendo com a personagem, em vez de simplesmente observando
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de fora seu movimento. Como se trata de história de adolescen-
tes, por si só “acelerados”, dinâmicos, a expressão da ideia de
movimento é bastante utilizada na revista.
8) Vários efeitos emocionais expressivos, como fundos expressi-
onistas, montagens e caricaturas subjetivas – todos destinados a
oferecer aos leitores uma “janela” para o que as personagens
estão sentindo. Além dos olhos expressivos, que “revelam a
alma da personagem”, os fundos expressionistas e as monta-
gens também são explorados com o intuito de aumentar a sen-
sação de participação do leitor. Algumas vezes, as montagens
são utilizadas para externar o pensamento da personagem, que
se mistura à ação.
Enfim, ao observar todas essas características, pode-se dizer
que o efeito de confidência na Turma da Mônica Jovem está es-
treitamente ligado à estratégia de patemização, ou seja, procura
captar o leitor pela visada de “fazer sentir”.
4.4.Efeito de gênero
Por fim, o efeito de gênero resulta do emprego de alguns
procedimentos de discurso que se repetem e são característicos de
um determinado gênero para tornar-se signo deste (CHARAU-
DEAU, 2009, p. 142). Por exemplo, ao começar um relato por
“era uma vez”, cria-se o efeito de conto maravilhoso ou conto de
fadas.
Como foi discutido anteriormente, Maurício revela que a
nova produção (Turma da Mônica Jovem) nasceu para atender à
faixa de público que estava deixando de ler a Turma da Mônica e
interessando-se pelos mangás japoneses. Dessa forma, ao criar a
Turma da Mônica Jovem, procurou-se manter o perfil da turma da
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Mônica tradicional, adicionando elementos que tornassem a revis-
ta interessante ao público adolescente.
Os temas são voltados para o público adolescente e têm, de
forma quase sempre explícita, por objetivo levar os jovens a refle-
tirem sobre determinado assunto. Na maioria das vezes, o tema é
retomado na sessão “Fala Maurício”, texto no fim da revista, que
torna mais evidente o fazer persuasivo. A figurativização desses
temas, em contraposição com a revista infantil, são ações que pro-
curam retratar cenas do mundo adolescente – namoro, conflitos,
brigas, fofoca, relacionamento entre amigos e rivais, vida na esco-
la, contato com o mundo virtual, interação em redes sociais etc.,
ou também aventuras extraordinárias, como é típico nas revistas
da Turma da Mônica.
O mangá, por sua dinamicidade, é bastante atrativo ao pú-
blico jovem. Por isso, houve uma adequação da nova revista ao es-
tilo, criando-se o efeito de mangá.
De acordo com Cools (2011, p. 67), uma das principais ca-
racterísticas do mangá é seu “ritmo” acelerado e vários fatores
contribuem para isso: a quantidade de informação que contém em
cada quadro; a ausência de cor; a fragmentação dos corpos e ros-
tos das personagens; o layout irregular e a não linearidade dos
quadros.
No entanto, é importante destacar que, apesar de seguir o
estilo mangá, na Turma da Mônica Jovem optou-se pela ordem
oriental de leitura, da esquerda para a direita [], diferentemente
dos quadrinhos orientais, que são lidos da direita para a esquerda
[].
Todas as características apresentadas mostram como o
mangá pode ser atrativo ao público jovem. O senso de participa-
ção, a fluidez da leitura, e a dinamicidade dos quadros são fatores
essenciais para tal sucesso.
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5. Considerações finais
Por meio da análise do material, conclui-se que, para ade-
quar a revista Turma da Mônica Jovem ao novo perfil de leitor
(TUd), houve uma mudança de temas que tenta aproximar o texto
ao universo adolescente. No entanto, ao manter a “filosofia” da
revista tradicional, não foi possível criar a dinamicidade necessária
para atrair o novo público. Dessa forma, a solução encontrada para
realizar tal adequação foi criar um gênero híbrido, em intertextua-
lidade com o mangá, ou seja, produziu-se o efeito de gênero.
Por fim, pode-se dizer que, na criação da Turma da Mônica
Jovem, tais escolhas não foram aleatórias, mas conscientes. O pró-
prio Maurício de Sousa, em entrevista a uma revista especializada
em mangá e animê, revela: “aviso o povo, nossa história é estilo
mangá, mas não é mangá. Não pode ser. Manteve nossa arte final,
nosso traço, e o pessoal percebe que é uma história da Mônica
com uma característica diferente” (LOBÃO, 2008, p. 32).
REFERÊNCIAS
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de orga-
nização. 1. ed., 1ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2009.
COOLS, V. The phenomenology of contemporary mainstream
manga. Image & Narrative, vol. 12, n. 1, 2011.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. 3.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
______. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
FERES, Beatriz dos Santos. A qualificação implícita no livro ilus-
trado “A princesa desejosa”. Signum: Estudos Linguísticos, Lon-
drina, vol. 15, n. 3 (esp.), p. 129-147, dez. 2012.
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LOBÃO, D. D. Turma da Mônica cresce e virá mangá – entrevista
com Maurício de Sousa. Revista Neo Tokyo, n. 38. São Paulo: Es-
cala, 2008.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Ma-
kron Books, 1995.
______. Desenhando quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil,
2008.
SOUSA, Maurício. Turma da Mônica jovem, n. 8. O brilho de um
pulsar – parte final. São Paulo: Panini Brasil, março de 2009.
______. Turma da Mônica jovem, nº 41. Cascão, o mestre do vul-
cão. São Paulo: Panini Brasil, dezembro de 2011.
______. Turma da Mônica jovem, nº 61. A nova Mônica. São Pau-
lo: Panini Brasil, agosto de 2013.
______. Turma da Mônica jovem, nº 62. Campeões da justiça. São
Paulo: Panini Brasil, setembro de 2013.
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O MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO EM EAD
NO SÉCULO XXI:
USOS E FUNÇÕES DA LINGUAGEM
E DOS GÊNEROS TEXTUAIS
Maria Betânia Almeida Pereira2
RESUMO
O estudo discorre sobre o uso e funções da linguagem e dos gêneros tex-
tuais na elaboração do material didático impresso, voltado para o ensino a
distância. O cenário educacional da EAD no Brasil demonstra um cresci-
mento acentuado, porém uma educação de qualidade perpassa pela qualida-
de dos materiais empregados no processo de ensino-aprendizagem. Tais ma-
teriais devem ser cada vez mais dinâmicos e significativos para a construção
do(s) sentido(s), do conhecimento e da autoaprendizagem dos discentes. Pen-
sar e elaborar materiais didáticos impressos, que corroborem com um ensi-
no eficaz, requer critérios na escolha cuidadosa de textos, dos recursos mul-
timídia, das linguagens diversificadas – tudo isso implica em desafios e tam-
bém mudanças na educação do século XXI.
Palavras-chave: linguagem, gêneros textuais, material didático impresso.
1. Apresentação
No panorama do contexto educacional no Brasil, a modali-
dade de ensino a distância vem crescendo anualmente, de forma
acelerada. Conforme dados do Censo de 2013 da ABED (Associa-
ção Brasileira da Educação a Distância), o cenário é otimista, pois
a grande maioria (64%) das instituições consultadas afirmou que o
2 Doutora em letras pela Universidade Federal Fluminense e docente na Universidade Es-
tácio de Sá. E-mail: mbapereira@gmail.com
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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número de matrículas aumentou em 2013, enquanto apenas uma
parte delas (14%) atesta uma diminuição nesse quadro. Pesquisa-
dores projetam o crescimento de matrícula para 82% no ano de
2015. Esse mesmo censo confirma que a maior parte das institui-
ções (91,6%) usa como mídia de acesso à aprendizagem: obras es-
critas, impressão de apostilas, livros e guias. Embora outros recur-
sos tecnológicos sejam utilizados nesse cenário, há, portanto, a
prevalência do material impresso. Nesse sentido, faz-se necessário
empreender um estudo que focalize o material didático impresso,
avaliando suas particularidades, uso e relevância no processo ensi-
no-aprendizagem.
O debate acerca do material didático impresso na educação
a distância aliado a outros recursos multimídia poderá viabilizar
uma práxis que contribuirá nos avanços e desafios de um ensino
mais dinâmico e eficaz. Nesse sentido, vale discutir que tipo de
material didático, qual público a que ele se destina e qual o con-
texto de utilização desse recurso, não perdendo de vista a sua prin-
cipal função que é a de promover um aprendizado mais significa-
tivo, considerando também os objetivos a serem alcançados. Na
composição do material didático impresso, elementos que o inte-
gram como a linguagem e os gêneros textuais merecem um estudo
à parte.
No cenário de avanços quantitativos da EAD, é salutar pen-
sar também nos avanços qualitativos. Entende-se que a feitura de
um bom material didático impresso perpassa pela atenção cuida-
dosa no uso da linguagem e na escolha igualmente criteriosa dos
gêneros textuais. Se o foco central do ensino incide na figura do
educando e sua construção de sentido(s) e conhecimento(s) a partir
da interação e diálogo com o material didático impresso, é impres-
cindível que se estude e se promovam materiais cada vez mais in-
seridos no contexto contemporâneo, cada vez mais dinâmicos e
promotores de um ensino de qualidade.
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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2. Reflexão sobre os usos e funções da linguagem e dos gêne-
ros textuais no material didático impresso
Neste tópico, refletiremos acerca dos usos e funcionalidade
da linguagem e dos gêneros textuais no material didático impres-
so, empregado na modalidade de ensino a distância. Desta manei-
ra, é necessário situar o contexto da produção desse importante re-
curso de aprendizagem. Embora inserido no ambiente atualmente
categorizado como o da cibercultura, em pleno século XXI, o ma-
terial impresso ainda continua sendo um importante recurso nos
ambientes virtuais de aprendizagem da EAD.
O material didático é um recurso imprescindível na modali-
dade de ensino a distância, pois ele se situa conforme Neder
(2009, p.82) como um “balizador curricular”, isto é, o material di-
dático não deixa de ser um referencial teórico-metodológico da
proposta pedagógica dos cursos em EAD. Assim sendo, ao elabo-
rar textos que venham a integrar o material didático impresso, de-
ve-se ter em mente a proposta curricular e os objetivos inerentes
ao projeto político do curso.
Em relação aos elementos que compõem os materiais im-
pressos, Silva (2011) destaca o hipertexto, a linguagem dialógica,
a intertextualidade, citando exemplos do uso de cada um deles;
aborda também sobre alguns itens que devem ser levados em con-
ta pelo produtor/escritor do material didático para EAD, antes do
processo de elaboração. Tais itens são: o curso a que se destina; os
conteúdos a serem trabalhados; o público-alvo.
A autora ressalta que tanto os elementos constituintes dos
materiais didáticos impressos quanto os fatores - que previamente
devem ser considerados para a sua produção - precisam ser repen-
sados com critérios e devem ser estudados de maneira que visem a
um ensino de melhor qualidade na modalidade a distância.
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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A linguagem como elemento intrínseco no processo de cria-
ção do material didático impresso é um desses fatores que merece
um estudo mais aprofundado, pois sem ela seria inviável todo pro-
cesso comunicativo. Nesse sentido, cabe salientar que a concepção
sociointeracionista da linguagem deverá nortear todo o trabalho de
elaboração do material didático impresso, uma vez que tal concep-
ção parte do princípio da linguagem como forma de interação hu-
mana, pois ela “é o lugar de constituição de relações sociais, onde
os falantes se tornam sujeitos” (GERALDI, 2006, p. 41). Nesta
mesma linha de pensamento, Travaglia (2006, p. 23) afirma:
A linguagem é pois um lugar de interação humana, de interação
comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores,
em uma dada situação de comunicação e em contexto sócio-histórico
e ideológico. Os usuários da língua ou interlocutores interagem en-
quanto sujeitos que ocupam lugares sociais e “falam” e “ouvem” des-
ses lugares de acordo com formações imaginárias (imagens) que a
sociedade estabeleceu para tais lugares sociais.
Enquanto processo interativo, a linguagem humana se co-
necta com as dimensões sociais, históricas e ideológicas dos sujei-
tos envolvidos no ato comunicativo, de forma que não se pode dis-
sociar a interação dessas ações. Mikhail Bakhtin, um dos grandes
estudiosos da linguagem, sabiamente detectou esta condição ine-
rente à língua, pois esta não se forma e nem se faz presente como
ato de puro isolamento. Para Bakhtin,
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica iso-
lada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenô-
meno social da interação verbal realizada através da enunciação ou
das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fun-
damental da língua. (BAKHTIN, 1990, p. 123 apud MUSSALIN;
BENTES, 2005, p. 25)
Na concepção bakhtiniana importa o processo interativo que
é estabelecido nas relações entre os sujeitos; trata-se de uma acep-
ção dialógica ligada à ação discursiva. Para Benveniste (1963
apud MUSSALIN; BENTES, 2005, p. 26), “é dentro da, e pela
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língua, que indivíduo e sociedade, se determinam mutuamente”,
uma vez que ambos só ganham existência pela língua. Para este
autor, a linguagem sempre se realiza dentro de uma língua, de uma
estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma soci-
edade definida e particular. A língua é a manifestação concreta da
faculdade humana da linguagem, isto é, da faculdade humana de
simbolizar. Sendo assim, é pelo exercício da linguagem, pela utili-
zação da língua, que o homem constrói sua relação com a natureza
e com os outros homens (MUSSALIN; BENTES, 2005).
Ao considerar a natureza dialógica da linguagem numa
perspectiva de interação entre os sujeitos, o produtor do material
didático impresso deve selecionar textos que atentem para esse
princípio. Silva (2011, p. 317) aborda sobre a importância de se
produzir uma linguagem dialógica que seja capaz de estabelecer
uma interação efetiva com os educandos no processo de ensino-
aprendizagem. Dessa forma, a adoção de um estilo dialógico de
linguagem não só promove a interatividade com os alunos, como
também facilita as mediações pedagógicas entre docentes e dis-
centes. É por meio desta linguagem dialógica que os professores
podem se tornar presentes nos ambientes virtuais de aprendiza-
gem, sendo possível a construção de um discurso mais afetivo e
que conduza o aluno à reflexão e à autoaprendizagem.
Na mesma linha de pensamento que considera a linguagem
enquanto mecanismo de interação entre os sujeitos, Neder (2005)
ao discorrer sobre o material didático em EAD, propõe que este
deverá ser feito de textos diversos cujas dimensões sociocomuni-
cativa e semântico-conceitual-formal devem ser consideradas. Na
dimensão sociocomunicativa interessa as intenções do produtor (se
é informar, convencer, alarmar, indagar etc.), ou seja, quando se
elabora um material didático esta questão deve ser indispensável: a
preocupação em responder qual a intenção e objetivo do autor com
aquele texto. A dimensão semântico-conceitual-formal diz respeito
ao significado e envolve questões relativas ao sentido do texto,
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que possam contribuir para os fatores de textualidade de um texto
– ou seja, aquilo que permite afirmar que um texto é um texto e
não um amontoado de frases desconexas.
Assim que para ser um texto, independente da linguagem
verbal ou não verbal, é necessário que este apresente as seguintes
características: unidade de sentido, marcas da interação entre au-
tor/leitor e marcas do contexto de situações onde se inserem os su-
jeitos da interação (op. cit., 2009, p. 89)
No entanto, o processo de significação de um texto se dá
quando há diálogo ente autor, leitor e texto; ou seja, quando se es-
tabelece a interação entre esses elementos. Daí ser de grande im-
portância o processo de intertextualidade e interdiscursividade,
uma vez que os textos se constroem por meio de diálogos entre
outros textos e outros discursos. Considerando esses aspectos, Ne-
der (2009, p. 89) afirma que:
é imprescindível que os textos produzidos especificamente para um
curso de EaD sejam concebidos no contexto de uma rede de relações
com outros textos, na perspectiva de abrangência e aprofundamento
dos conceitos teórico-metodológicos trabalhados nas áreas de conhe-
cimento, disciplinas e/ou módulos.
Nesse sentido, ao elaborar o material didático, os textos
que o integram devem considerar os elementos acima discutidos e
promover a interação e construção do sentido pelos alunos, visan-
do a uma educação que priorize o diálogo construtivo e crítico dos
sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. A intera-
tividade, a interconectividade e o dialogismo devem permear tanto
a forma como o conteúdo presentes no material didático impresso,
pois se a preocupação basilar é criar um material que dialogue
com o leitor, que seja aprazível e que possibilite uma aprendiza-
gem significativa, capaz de instigá-lo à reflexão crítica, não se po-
de desconsiderar que esse material incite esse leitor a “caminhar”
pelos multiletramentos, permitindo assim o alargamento da sua vi-
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são de mundo, ampliando os sentidos em todos os sentidos. Cabe
salientar que os multiletramentos
são práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos
contemporâneos – majoritariamente digitais, mas também impressos -
, que incluem procedimentos (como gestos para ler, por exemplo) e
capacidades de leitura e produção que vão muito além da compreen-
são e produção de textos escritos, pois incorporam a leitura e
(re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e infográficos,
vídeos, áudio etc. (ROJO, 2013, p. 21).
Assim, tendo como base a pedagogia dos multiletramentos,
é possível, a partir do conteúdo e da proposta curricular do curso
ou de disciplinas específicas, a presença constante no material di-
dático impresso de variados gêneros textuais escritos, orais, ima-
géticos entremeados aos recursos multimídia. No universo da ci-
bercultura, cada vez mais é necessário a formação de leitores críti-
cos diante dessa “multiplicidade semiótica de constituição dos tex-
tos” (ROJO, 2013, p. 21). O termo cibercultura, para Pierre Lévy
(1999, p. 17) “especifica o conjunto de técnicas (materiais e inte-
lectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de
valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ci-
berespaço”. Um material didático impresso do século XXI deve
ser elaborado nessas bases contextuais, pensando nessas práticas,
atitudes e modos de pensamento inseridos nesse cenário de “rede”,
entendido como novo meio de comunicação que surge da interco-
nexão mundial de computadores.
Por exemplo, se o tema de um módulo for o estudo da lin-
guagem, o aluno poderá ter acesso às explicações sobre esse tema
em múltiplas linguagens (o texto verbal, imagens, fotos, desenhos,
imagens animadas etc.) e em múltiplas modalidades perceptivas
(visão, audição, tato, paladar etc.). Tudo isso integrado e interco-
nectado a links e hiperlinks que o leve a pesquisar e a aprofundar o
tema, de preferência plugado na internet. Assim, recursos audiovi-
suais como vídeos, músicas, games, dentre outros, auxiliam tanto
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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na construção do conhecimento quanto na ampliação dos sentidos
envolvidos na aprendizagem.
3. Gêneros textuais: especificidades e aplicação no material di-
dático impresso do século XXI
Neste tópico, iremos discutir um pouco sobre o conceito de
gêneros textuais, suas especificidades e relevância numa prática de
ensino mais dinâmica e contextualizada, pensando, sobretudo, na
modalidade da educação a distância.
A discussão do texto como elemento da base de ensino está
em voga nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Por-
tuguesa, publicados no final da década de noventa, que elencam
sugestões fundamentadas numa concepção da língua materna cuja
perspectiva sociointeracionista valida os usos e funções sociais da
linguagem. Um ensino que privilegie somente o uso normativo da
língua, com suas regras e prescrições estaria fadado a certo insu-
cesso, ao se considerar estudos inovadores surgidos em fins do sé-
culo vinte. A contribuição da linguística textual, por exemplo, as-
sumiu grande força no debate acerca de uma nova metodologia pa-
ra o ensino, baseado no texto e pensado nas práticas de linguagem
que integrem: leitura, escrita e análise linguística.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portu-
guesa abordam sobre a importância da formação de leitores e es-
critores competentes – usuários da língua são só capazes de ler,
compreender os interstícios do texto, bem como eficientes redato-
res, hábeis para redigir os mais diversificados gêneros textuais.
Além dessas e outras habilidades referentes à competência linguís-
tica, textual e comunicativa, esses usuários devem ter a capacidade
de selecionar, direcionar, adequar os textos para as mais variadas
situações de comunicação.
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Luiz Antônio Marcuschi (2005) afirma que os gêneros tex-
tuais são fenômenos históricos e estão vinculados à vida cultural e
social e tem como características a maleabilidade, o dinamismo e a
plasticidade. Como práticas sociocomunicativas, os gêneros vão se
modificando e se adaptando às inovações das sociedades. Marcus-
chi (2005) observa historicamente o surgimento dos gêneros e
elenca algumas fases, a saber:
Numa primeira fase, povos da cultura essencialmente oral desen-
volveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenção da escri-
ta alfabética por volta do século VII A. C., multiplicam-se os gêneros,
surgindo os típicos da escrita. Numa terceira fase, a partir do século
XV, os gêneros expandem-se como florescimento da cultura impressa
para, na fase intermediária de industrialização iniciada no século
XVIII, dar início a uma grande ampliação. Hoje, em plena fase da
denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a
TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais no-
tável, a internet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e no-
vas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita.
(MARCUSCHI, 2005, p. 19).
No contexto do século XXI com a expansão cada vez mais
acelerada das novas mídias de comunicação; o uso maciço dos ce-
lulares de última geração (smartphones, iphone), com seus aplica-
tivos e softwares; os tablets, notebooks, netbooks, ipads, os gêne-
ros textuais ganham novos contornos, novos suportes e se multi-
plicam, se hibridizam; de maneira que podem ser integrados a
multimodalidades perceptivas e conectados também a múltiplas
linguagens nessa sociedade altamente plugada no admirável mun-
do novo da tela.
A mensagem de caráter sintético do twitter e das sms, os
comentários deixados nas páginas das redes sociais, ou o áudio de
um diálogo registrado via suporte midiático não deixam de ser gê-
neros discursivos, pois são enunciados linguísticos orais ou escri-
tos, possuem uma forma de composição, estilo e conteúdo temáti-
co, sendo empregados em situações diversificadas das práticas so-
ciais de leitura e de escrita, no contexto da cibercultura.
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Inerentes às esferas da atividade humana, os gêneros do dis-
curso, conforme ressalta Bakhtin (2000) são tipos relativamente
estáveis de enunciados e vão se alterando e alargando conforme as
demandas sociais, de maneira que “a riqueza e a variedade dos gê-
neros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da ativida-
de humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta
um repertório de gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2000, p. 279).
Assim, uma sociedade cada vez mais imersa numa cultura tecno-
lógica impulsiona novas formas de redimensionamento da escrita
e da leitura e novas formas de interação entre os atores envolvidos
nesse processo, pois como bem observa Magda Soares, (2002, p.
151)
a tela, como novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas
formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre
leitor e texto e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o
conhecimento.
Essas mudanças significativas nas formas de interação entre
escritores e leitores, escritores e texto, leitores e texto implicam
em novas metodologias de ensino e, consequentemente, em inova-
ções na elaboração do material didático impresso. Assim, conside-
rando essas bases contextuais, cabe ao escriba do material didático
impresso selecionar criteriosamente os gêneros textuais, levando
em conta por que, como e para quê usar tais gêneros. A escolha
tem que ter critérios e estudo cuidadoso, não basta “enfeitar” o re-
curso didático com um amontado de textos desconectados do pro-
pósito educacional. No contexto dos ambientes virtuais de apren-
dizagem, a conexão com os recursos multimídia é indispensável,
daí a exigência ainda ser mais redobrada no tocante à seleção e or-
ganização dos textos integrantes do material didático.
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4. Considerações finais
A pesquisa a respeito da elaboração do material didático em
EaD se faz necessária, uma vez que quando bem elaborado ele
surte efeitos positivos no processo ensino-aprendizagem e uma
educação de qualidade perpassa pelas partes que a compõe. Como
componente de extremo valor, a feitura criteriosa e cuidadosa do
material impresso precisa ser estudada, discutida no intuito tam-
bém de aprofundar o debate nos meios acadêmicos do vasto cam-
po que se tornou a modalidade de ensino a distância. Procurou-se
assim com o este trabalho contribuir para esse debate, tendo como
foco a reflexão sobre a linguagem e os gêneros textuais presentes
no material didático impresso.
Sabemos que a discussão foi apenas um recorte de um tra-
balho maior que deve ser investigado, com vistas à criação de no-
vas formas e de novos meios de produção de um material didático
mais significativo e mais inserido nas demandas sociais da EAD.
Nesse sentido, o material didático impresso elaborado para os am-
bientes virtuais de aprendizagem não pode negar a inesgotável
efervescência do universo atual – o das interconexões com dife-
rentes recursos tecnológicos – das diversidades culturais e da exis-
tência cada vez mais plural dos textos que fazem parte desse cená-
rio.
Para além dos dados quantitativos que evidenciam o cres-
cimento do alunado em EAD, questões de ordem qualitativa de-
vem permear o debate para a reformulação de um novo panorama
que materialize a melhora significativa de um ensino mais dinâmi-
co e eficaz. O aprofundamento de questões basilares que devem
perpassar inevitavelmente esse cenário de transformações deve
considerar a elaboração do material didático impresso integrado
aos recursos multimídia. Pensar e efetivar uma prática que consi-
dere essas inovações, sem perder de vista o objetivo maior que é o
da aprendizagem significativa e construtora de seres humanos pro-
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tagonistas, será um dos grandes desafios para os sujeitos envolvi-
dos nessa prática.
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PERSPECTIVAS
PARA O TRABALHO COM PROJETOS DIDÁTICOS:
PRODUÇÃO DE POEMAS NA ESCOLA
Maria Isaura Rodrigues Pinto3
RESUMO
Assumir, na escola, a concepção de linguagem/língua como atividade so-
cial de interação (BAKHTIN, 1979) requer a renovação das metodologias de
ensino da língua materna, visando à busca de alternativas didáticas capazes
de favorecer o desenvolvimento das competências discursivas que respon-
dem às exigências das sociedades letradas. A chamada “pedagogia de proje-
tos” tem sido apontada como caminho eficaz na implementação de uma prá-
tica docente orientada por pressupostos de base enunciativa/discursiva, visto
que se trata de um processo pedagógico que apresenta, como um de seus tra-
ços principais, a mobilização da pluralidade de conhecimentos patente na
dinâmica social, configurando a escola como um amplo território de vivên-
cias culturais significativas. A experiência de ensinar língua materna por
meio de projetos didáticos é o procedimento pedagógico adotado na configu-
ração do Subprojeto PIBID da Faculdade de Formação de Professores da
UERJ “Letras/Língua-Literatura”, implementado no Colégio Estadual Ca-
pitão Oswaldo Ornellas. Em face do contexto delineado, o presente trabalho,
conjugando conhecimentos teóricos e práticos, propõe-se a divulgar experi-
ências vivenciadas no âmbito do referido Subprojeto, bem como a comentar
o alcance pedagógico e social das práticas realizadas, tendo por objetivo con-
tribuir para as reflexões acerca da execução de projetos escolares na educa-
ção básica.
Palavras-chave: Práticas de linguagem. Projetos. Experiências docentes.
3 Doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense e professora
adjunta da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. E-mail:
m.isaura27@gmail.com
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1. PCN, concepções de linguagem/língua e novas metodologias
de ensino
Nos PCN referentes à língua portuguesa, a perspectiva de
linguagem norteadora do trabalho pedagógico é a de fazer conver-
gir o ensino para os usos sociais da língua em um movimento de
afastamento de uma prática docente centrada no enfoque de conte-
údos da tradição gramatical ou literária, que, por vezes, ganha es-
paço nas salas de aula. No modelo tradicional de ensino de língua
portuguesa, devido à adoção da concepção de linguagem/língua
como código/sistema de normas, os conhecimentos mobilizados
são os da gramática normativa, apresentados de maneira fragmen-
tada e descontextualizada, através de métodos que primam pelo
incentivo à simples memorização em detrimento da reflexão sobre
as condições de existência das diversas formas de linguagem que
transitam socialmente.
Esse modo de efetivação da prática pedagógica se faz
acompanhar, normalmente, de uma visão de literatura bastante
homogênea e mitificada que leva a conceber o fenômeno literário
como um sistema de obras e autores, história da literatura ou con-
junto de textos eleitos pela crítica, que devem ser valorizados en-
quanto “belas letras” (ZILBERMAN, 2001, p. 82).
Essa noção acerca da estética literária resulta em procedi-
mentos de leitura das obras que, mesmo diante das teorias literá-
rias e linguísticas contemporâneas, mantêm-se atrelados a aborda-
gens redutoras de cunho estruturalista ou biográfico, entre outras
de natureza similar. O que se observa é que a aplicação de fichas
de leitura, roteiros de interpretação, exercícios mecânicos do livro
didático, entre outros procedimentos requisitados, acabam por ini-
bir a atuação do aluno/leitor, silenciando-o, como já o notara Ivana
Martins:
É preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando à lei-
tura da literatura como atividade lúdica de construção e reconstrução
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de sentidos. Contudo, parece-nos que o contexto escolar privilegia o
ensino da literatura, no qual a leitura realizada pelos professores,
inevitavelmente, é diferente daquela efetivada pelos alunos, pois a di-
versidade de repertórios, conhecimento de mundo, experiências de
leitura influenciam diretamente o contato do leitor com o texto
(MARTINS, 2006, p. 85).
É nesses termos que, muitas vezes na escola, a ideia de uma
falsa compartimentação do conhecimento toma corpo e promove a
separação de língua e de literatura, configurando um modelo de
currículo constituído por disciplinas que não mantêm, entre si, ar-
ticulação e sentido. Distanciando-se de experiências pedagógicas
orientadas por uma visão contrária à perspectiva da lingua-
gem/língua como mediadora das relações sociais, os PCN, calca-
dos em enfoques teóricos de base enunciativa, representam uma
grande virada, uma considerável alteração no modo de estruturar a
prática com a língua materna na escola, como claramente mostra a
seguinte passagem extraída dos documentos:
(...) língua é um sistema de signos específicos, histórico e social, que
possibilita ao homem significar o mundo e a sociedade. Assim,
aprendê-la é aprender não somente as palavras e saber combiná-las
em expressões complexas, mas aprender pragmaticamente os seus
significados e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e
interpretam a realidade e a si mesmas. (BRASIL, 1998, p. 20)
Assumir a linguagem como processo de interação, como
preconizam os PCN, requer o reconhecimento de que, como afir-
ma Luiz Carlos Travaglia:
(...) o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir
e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outrem,
mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvin-
te/leitor). A linguagem é pois um lugar de interação humana, de inte-
ração comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlo-
cutores, em uma dada situação de comunicação e um contexto sócio-
histórico e ideológico. (TRAVAGLIA, 2002, p. 23)
Por essa perspectiva, a língua não é vista apenas como um
sistema abstrato, um conjunto de normas ou frases gramaticais.
Considerada em seu funcionamento, em diferentes situações de
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uso, reguladas por comunidades de falantes, atentos aos efeitos de
sentido decorrentes do ato de linguagem, define-se como atividade
social de interação, dotada de dimensão ideológica, política, histó-
rica, social e cultural. Irandé Antunes, assim, sintetiza a questão:
A língua, por um lado, é provida de uma dimensão imanente,
aquela própria do sistema em si mesmo, do sistema autônomo, em po-
tencialidade, conjunto de recursos disponíveis; algo pronto para ser
ativado pelos sujeitos, quando necessário. Por outro lado, a língua
comporta a dimensão de sistema em uso, de sistema preso à realidade
social histórico-social do povo, brecha por onde entra a heterogenei-
dade das pessoas e dos grupos sociais, com suas individualidades,
concepções, histórias, interesses e pretensões. Uma língua que mes-
mo na condição de sistema, continua fazendo-se, construindo-se.
(ANTUNES, 2009, p. 21)
Tal concepção de linguagem coaduna-se com as teorias so-
ciodiscursivas, com destaque das provenientes dos pressupostos de
Mikhail Bakhtin acerca dos gêneros, nos quais o cunho social dos
eventos linguísticos é posto em relevo. Ao tratar do caráter ideoló-
gico da língua e de seu modo social de existência, Bakhtin ressalta
que:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sis-
tema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fe-
nômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação ou pe-
las enunciações. (BAKHTIN, 2006, p. 117)
Bakhtin reflete, mais particularmente, sobre a questão dos
gêneros. O autor retoma o conceito de gênero e o rediscute, ampli-
ando a sua noção para todas as práticas de linguagem. Na ótica
bakhtiniana, os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enun-
ciados”. A esse respeito diz:
A riqueza e a variedade dos gêneros de discurso são infinitas,
pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada es-
fera dessa atividade elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.
(BAKHTIN, 1979, p. 279)
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Os gêneros são tema recorrente nos PCN, estes, efetuando
em perspectiva de ensino, uma releitura da teoria dos gêneros do
discurso bakhtiniana, recomendam uma metodologia de aborda-
gem enunciativa que oriente o trabalho com a língua materna para
seu funcionamento mediado por gêneros diversos. As sugestões
metodológicas que permeiam os documentos oficiais salientam
uma questão medular: a importância de se estabelecer o texto co-
mo unidade primeira de ensino e os gêneros como objetos de estu-
do, conforme assinala a seguinte passagem:
Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função
das intenções comunicativas, como parte das condições de produção
dos discursos, as quais geram usos sociais que os determinam. Os gê-
neros são, portanto, determinados historicamente, constituindo for-
mas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura.
(BRASIL, 1998, p. 21)
Adotar, na escola, a concepção de linguagem como ativida-
de social de interação implica a renovação das metodologias de
ensino da língua materna, visando à busca de alternativas didáticas
de ensino-aprendizagem capazes de favorecer o desenvolvimento
das competências discursivas que respondam às exigências das so-
ciedades letradas.
As práticas didáticas no formato de projetos de ensino-
aprendizagem de gêneros, para além da vantagem de tratar os con-
teúdos de maneira articulada, como se costuma destacar, têm sido
apontadas como importante forma de trabalho para se alcançar os
objetivos mencionados, por se tratar de um processo educativo que
apresenta, como uma de suas propostas principais, a mobilização
da pluralidade de conhecimentos patente na dinâmica social, con-
figurando a escola como um rico território de vivências culturais.
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2. Ensinar com projetos
A ideia de trabalho com projetos se inclui em um movimen-
to atual de debates sobre a organização de procedimentos de sala
de aula. Vários estudiosos e pesquisadores vêm reconhecendo a
validade dessa proposta e procedem à identificação dos fatores po-
sitivos decorrentes de sua adoção.
Nos próprios PCN, na seção intitulada “Organizações didá-
ticas especiais” (1998, p. 87-88), essa maneira de organizar o tra-
balho escolar é apontada como uma das formas alternativas e váli-
das para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa. Consta nos
documentos a seguinte definição de projeto:
tem um objetivo compartilhado por todos os envolvidos, que se ex-
pressa num produto final em função do qual todos trabalham e que te-
rá, necessariamente, destinação, divulgação e circulação social inter-
namente na escola ou fora dela (1998, p. 87)
Também são assinaladas diversas vantagens derivadas da
adoção de práticas escolares formatadas em projetos, tais como:
flexibilidade no uso do tempo, compromisso e engajamento dos
alunos com as atividades e com a aprendizagem, inter-relação con-
textualizada de diferentes práticas de linguagem que se integram a
um só processo educativo (BRASIL, 1998, p. 87).
Fernando Hernández e Montserrat Ventura, em um apanha-
do geral, destacam as bases teóricas fundamentais na organização
curricular a partir de projetos de trabalho. Nos passos dessa pro-
posta, ponderam que a pedagogia de projetos:
1- Almeja uma aprendizagem significativa, ou seja, parte dos es-
quemas de conhecimentos já adquiridos pelos estudantes e de su-
as hipóteses (verdadeiras, falsas ou incompletas) em face da te-
mática apresentada;
2- Adota como princípio básico para sua articulação uma atitude fa-
vorável ao conhecimento, cabendo ao professor estabelecer a co-
nexão desses conhecimentos com os interesses dos alunos;
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3- Ganha forma a partir da previsão de uma estrutura lógica e se-
quencial de conteúdos, numa ordem que facilite sua compreen-
são, mas sempre levando em conta que essa previsão constitui um
ponto de partida, não uma finalidade, já que pode ser modificada
nos processos de interação em classe;
4- Possui um evidente sentido de funcionalidade do que se deve
aprender. Para isso, torna-se fundamental a relação com os proce-
dimentos e com as diferentes alternativas de organização dos
problemas apresentados;
5- Atribui valor à memorização compreensiva de aspectos da infor-
mação, já que estes podem constituir uma base para o estabeleci-
mento de novas aprendizagens e relações;
6- Possibilita realizar a avaliação do processo seguido ao longo de
toda sequência e das inter-relações criadas na aprendizagem, par-
tindo de situações nas quais é necessário antecipar decisões, esta-
belecer relações ou inferir novos problemas (HERNÁNDEZ &
VENTURA, 1998, p. 62-63).
Cabe observar, ainda em favor da adoção de uma pedagogia
com base em projetos, as seguintes colocações feitas no caderno
do MEC, referente aos projetos de trabalho:
(...) nos anos 90, o trabalho com projetos, voltado para uma visão
mais global do processo educativo, ganhou força no Brasil e no mun-
do.
Não se trata de uma técnica atraente para transmitir aos alunos os
conteúdos das matérias. Significa de fato uma mudança de postura,
uma forma de repensar a prática pedagógica e as teorias que lhe dão
sustentação.
Significa repensar a escola, seus tempos, seus espaços, sua forma
de lidar com os conteúdos das áreas e com o mundo da informação.
Significa pensar na aprendizagem como um processo global e
complexo, no qual conhecer a realidade e intervir nela não são atitu-
des dissociadas. (BRASIL, 1998, p. 58)
O ensino da língua portuguesa sob a perspectiva de projeto
também é contemplado na Revista Nova Escola. Anderson Moço,
de modo aproximado ao de outros pesquisadores, torna evidente a
necessidade de se considerar a relevância dessa forma de organizar
o conhecimento. Nos seus próprios termos,
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Projeto didático é um tipo de organização e planejamento do
tempo e dos conteúdos que envolve uma situação-problema. Seu ob-
jetivo é articular propósitos didáticos (o que os alunos devem apren-
der) e propósitos sociais (o trabalho tem um produto final, como um
livro ou uma exposição, que vai ser apreciado por alguém). Além de
dar um sentido mais amplo às práticas escolares, o projeto evita a fra-
gmentação dos conteúdos e torna a garotada corresponsável pela pró-
pria aprendizagem. (MOÇO, 2011, p. 50)
A experiência de ensinar língua materna por meio de proje-
tos didáticos foi o procedimento pedagógico adotado para dar
forma, desde agosto de 2011, ao Subprojeto da Faculdade de For-
mação de Professores da UERJ “Letras: Português-Literatura”, in-
serido no âmbito do Projeto Institucional PIBID-CAPES “Saber
escolar e formação docente na Educação Básica” (Edital nº
001/2011/CAPES). O Programa Institucional de Bolsas de Inicia-
ção à Docência (PIBID) proporciona aos licenciandos a oportuni-
dade de participar ativamente na escola, sob a orientação de pro-
fessores, do desenvolvimento de ações metodológicas inovadoras,
o que resulta na melhoria da sua formação. Os benefícios trazidos
pelo programa são abrangentes, já que não só os licenciandos, mas
também os supervisores, o coordenador de área e demais professo-
res envolvidos nas atividades têm a sua formação enriquecida.
Integrada ao cotidiano do Colégio Estadual Capitão Oswal-
do Ornellas (CECOO), localizado na cidade de São Gonçalo (RJ),
a equipe do Subprojeto PIBID da Faculdade de Formação de Pro-
fessores da UERJ “Letras: Português-Literatura”, composta por
doze graduandos, duas professoras da unidade escolar e pela pro-
fessora adjunta coordenadora de área, planejou e executou, dentro
de um enfoque de base enunciativo-discursiva, atividades diversi-
ficadas, envolvendo gêneros textuais diversos, a fim de enriquecer
e dinamizar o ensino da leitura e da produção oral e escrita de tex-
tos literários e não literários, nos níveis fundamental e médio.
A concretização dessas atividades vem acontecendo, como
já foi dito, através de práticas no formato de projeto escolar, for-
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mado por sequências didáticas. Estas, por sua vez, constituem “um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemá-
tica, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. (DOLS, NO-
VERRAZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 95)
O processo de planejamento e implementação de projetos
didáticos na escola necessitou de algum tempo para ser compreen-
dido e assimilado, por constituir uma nova modalidade de organi-
zação do trabalho pedagógico. Diante das dificuldades evidencia-
das, tornou-se necessária a realização prévia, sob a orientação da
coordenadora de área, de estudos sobre concepções de linguagem,
gêneros textuais, projetos e sequências didáticas, entre outros. Fo-
ram (re)lidos e discutidos, principalmente, capítulos das obras de
Mikhail Bakhtin, além dos PCN do ensino fundamental e médio.
Realizaram-se seminários internos e encontros pedagógicos, nos
quais a equipe pode-se dedicar à seleção e caracterização de gêne-
ros, bem como ao planejamento das atividades.
Já foram postos em prática vários projetos didáticos com as
turmas do ensino fundamental e médio, mas devido a questões de
limite de espaço, far-se-á aqui apenas a explanação dos principais
aspectos implicados na realização do projeto “Lendo e escrevendo
poemas na escola”. O gênero privilegiado pelo projeto integra um
dos domínios da linguagem destacado enfaticamente nos PCN
como alvo de equívocos metodológicos, levados a efeito na sala de
aula. Cabe, neste ponto, atentar para a seguinte passagem dos do-
cumentos:
O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício
de reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um
tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de
equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos
textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de
questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas
que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as
sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade
das construções literárias. (BRASIL, 1998, p. 27)
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Alinhando-se a essa posição, o projeto escolar “Lendo e es-
crevendo poemas na escola”, realizado na parceria com o Colégio
Estadual Capitão Oswaldo Ornellas, constituiu um desafio na bus-
ca de uma prática pedagógica com o texto literário que se manti-
vesse atenta a tais recomendações. O esforço foi direcionado para
uma ação pedagógica que, coerente com os pressupostos adotados,
viabilizasse o aprofundamento dos conhecimentos sobre as propri-
edades temáticas, composicionais e estilísticas do poema. Para is-
so, foram utilizados na abordagem de um corpus representativo do
gênero, procedimentos de busca das marcas enunciativas regulares
para além das marcas linguísticas.
Este trabalho se propõe a apresentar um relato reflexivo de
parte das experiências envolvidas no processo de concretização do
projeto mencionado e, com isso, chamar a atenção para a efetiva-
ção de práticas pedagógicas com projetos, como uma possibilidade
de trabalho significativo com a língua portuguesa.
3. Compartilhando situações didáticas
O propósito da equipe do Subprojeto PIBID da Faculdade
de Formação de Professores “Letras: Português-Literatura” era
promover um trabalho de leitura com as turmas de ensino funda-
mental do Colégio Estadual Capitão Oswaldo Ornellas que, para
além da apropriação dos elementos constitutivos do gênero poema,
viabilizasse o desenvolvimento da oralidade e da escrita do aluno.
Nesse sentido, o projeto didático assumiu o desafio de buscar uma
prática com o texto literário, no espaço escolar, que proporcionas-
se experiências estéticas, garantindo suas especificidades de lin-
guagem artística e sua função de palavra humanizadora. Nessa di-
reção, assinala Rildo Cosson:
Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de
nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz
o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós
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mesmos. (...) É por possuir essa função maior de tornar o mundo
compreensível transformando sua materialidade em palavras de co-
res, odres, sabores e formas intensamente humanas que a literatura
tem e precisa manter um lugar um lugar especial nas escolas. Toda-
via, para que a literatura cumpra o seu papel humanizador, precisa-
mos mudar os rumos de sua escolarização. (COSSON, 2006, p. 17)
O tema escolhido para servir de eixo aglutinador do projeto
foi “vida”. A ideia era mostrar que há diferentes modos de conce-
ber a vida, de olhá-la, de expressá-la artisticamente e de estar nela.
Para introduzir significativamente a proposta de trabalho com o
tema, foram apreciadas as músicas “O que é, o que é?”, de Gonza-
guinha, e “Construção”, de Chico Buarque. Ouvir as músicas ser-
viu como técnica de motivação para favorecer o processo de leitu-
ra/produção de poemas nas etapas seguintes, isso porque, como
explica Cosson, “a motivação prepara o leitor para receber o tex-
to”. (2006, p. 34)
Tomando como base o núcleo temático das músicas vida/
cotidiano, a motivação, vista como uma atividade inicial de estí-
mulo, abriu a discussão sobre desigualdade social, injustiça e li-
berdade. No momento seguinte, dando continuidade ao exercício
de reflexão sobre o tema vida/realidade, partiu-se para a leitura de
um conjunto de poemas, previamente selecionados para estudo.
Durante todo o percurso trilhado, a equipe teve sempre em
mente que, como alerta Antunes,
A ênfase da questão (dos gêneros) deve estar na explicitação dos
modelos pelos quais, em seus textos, as pessoas realizam seus fins
comunicativos e, não, na possibilidade de se estabelecer um sistema
uniforme para classificação da imensa variedade de gêneros. (AN-
TUNES, 2009, p. 56)
A partir dessa etapa, tiveram início as atividades voltadas
para uma abordagem mais aprofundada dos textos escolhidos,
programadas para abrir espaço para a produção com autoria do
gênero poema na sala de aula. Assim, paralelamente à exploração
do conteúdo temático dos poemas, procedeu-se o trabalho de des-
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crição do gênero priorizado, tendo em vista suas condições de
produção, sua sócio-história de desenvolvimento, seus usos e fun-
ções, sua construção composicional e suas marcas linguísticas.
As atividades geraram novas situações de reflexão, nas
quais, trazendo a discussão para o cordel, buscou-se, com a parti-
cipação das turmas, alcançar uma compreensão mais ampla e críti-
ca do caráter plural do fazer literário. Sobre a questão, é esclarece-
dora a seguinte observação feita por Cosson:
A literatura deveria ser vista como um sistema composto de ou-
tros tantos sistemas. Um desses sistemas corresponde ao cânone, mas
há vários outros, e a relação entre eles é dinâmica, ou seja, há uma in-
terferência permanente entre os diversos sistemas. (COSSON, 2006,
p. 34)
A leitura do poema “Navio negreiro”, de Castro Alves, rei-
niciou a discussão sobre desigualdade social, injustiça e liberdade,
dando prosseguimento à questão dos diferentes modos de conce-
ber/ver a vida; nele há marcas de um contexto histórico opressor.
O processo de análise dos poemas levou a uma reflexão sobre os
elementos formais desse tipo de produção poética, o que concor-
reu para que os alunos se familiarizassem com os aspectos especí-
ficos do gênero, sendo, posteriormente, capazes de produzir seus
próprios poemas.
À guisa de esclarecimento, convém mencionar que se jul-
gou importante não transformar a apresentação dos autores dos
textos em uma longa exposição de dados biográficos. Buscou-se,
em geral, enfatizar que o trabalho de escrita poética constitui tam-
bém um modo de atuar no mundo, de sentir a vida.
Os alunos foram incentivados a apreciar, dentro da arte lite-
rária, mais especificamente nos poemas trabalhados, modos alhei-
os de ver a vida. Essa apreciação não prescindiu de um enfoque
que trouxesse para a realidade dos estudantes aquilo que é dito no
poema. Tal procedimento os preparou para a atividade seguinte,
que compreendeu a escrita coletiva de poemas portadores do modo
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de olhar o mundo desses estudantes. Essa primeira atividade de
produção com o gênero possibilitou a identificação das capacida-
des já adquiridas e um planejamento com as turmas de novas ati-
vidades, ajustadas às possibilidades e dificuldades apresentadas
pelos alunos.
O poema a seguir, escrito por alunas da turma 803, ilustra o
bom nível de desempenho alcançado, por boa parte dos alunos,
nessa etapa. Nele estão concretizadas características estilísticas e
composicionais próprias do gênero abordado. As estratégias dis-
cursivas de “composição verbal e seleção dos recursos linguísti-
cos” obedeceram, “à sensibilidade e a preocupações estéticas”. As
expressões são dos PCN (BRASIL, 1998, p. 27).
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Pode-se ver, no poema, que a desautomatização lúdica do
sentido simbólico atribuído normalmente às cores serve de recurso
desestabilizador do senso comum (“Amizade preta, sucesso”/
“Amizade roxa, amor”/ Amizade vermelha, sincera), apontando
sugestivamente para a arbitrariedade do preconceito racial. Entre
outros aspectos gramaticais e estilísticos relevantes, tem-se a repe-
tição da estrutura dos versos, na primeira estrofe, em que se perce-
be a total ausência de verbos, o que sugere a sedimentação de uma
visão preconceituosa, excludente e silenciadora, que o poema com
seus mecanismos de linguagem busca sutilmente desconstruir para
dar lugar ao sentimento de amizade.
Após o trabalho de produção coletiva, realizaram-se experi-
ências de declamação pública dos poemas produzidos, na calçada
da escola. O conjunto das atividades propostas despertou nos alu-
nos o desejo de serem ouvidos. No cenário assim delineado, deu-
se o evento “Poesia na calçada”.
Na semana seguinte, os alunos relataram, em sala, suas im-
pressões e avaliaram seu desempenho, em geral, de forma positi-
va. Eles estavam entusiasmados e, assim, foi possível iniciar outra
etapa de produção de poemas, agora, individual. Durante esse pe-
ríodo, a equipe viabilizou, novamente com o auxílio de mídias au-
diovisuais, encontros prazerosos com o texto literário e diferentes
produções artísticas, salientando, a partir de uma perspectiva inter-
semiótica, o diálogo entre literatura e outras linguagens.
Para fechar esse conjunto de atividades com textos poéticos
e socializar o produto resultante da experiência estética de produ-
ção individual de poemas pelos alunos, programou-se o “Festival
de poesia: Ornellas revelando talentos”.
Durante dois meses, aproximadamente, os alunos produzi-
ram poesias individualmente e, sob a orientação da equipe, realiza-
ram as refacções necessárias; essa prática gerou momentos de re-
flexão sobre o uso da língua. Isso na linha do pensamento dos
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PCN, segundo a qual “a refacção que se opera não é mera higieni-
zação, mas profunda reestruturação do texto, já que entre a primei-
ra versão e a definitiva uma série de atividades foi realizada”.
(BRASIL, 1998, p. 77)
Após esse procedimento, foram selecionados pelos alunos,
com a participação da equipe, três poemas de cada turma (8) en-
volvida na atividade. Houve também a escolha dos intérpretes das
poesias e a organização das torcidas das turmas.
O procedimento adotado na estruturação da sequência didá-
tica do projeto descrito pode ser assim resumido:
1- Apresentação do projeto didático;
2- Atividades de leitura 1: técnica de motivação realizada pe-
la tomada do núcleo temático de músicas;
3- Atividades de leitura 2: apresentação do gênero poema, vi-
sando à apropriação de suas marcas específicas;
4- Atividade escrita 1: produção coletiva de poemas e refac-
ção;
5- Atividade oral 1: declamação dos poemas produzidos cole-
tivamente, em via pública, durante o evento “Poesia na
calçada”;
6- Atividade de escrita 2: produção individual de poemas e
refacção;
7- Atividade oral 2: declamação dos poemas produzidos in-
dividualmente, no “Festival de poesia: Ornellas revelando
talentos”;
8- Avaliação.
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4. À guisa de conclusão
Na avaliação final das atividades, as diversas falas dos alu-
nos evidenciaram, sobretudo, que os eventos “Poesia na calçada” e
“Festival de poesia” criaram um clima favorável à cooperação e à
participação, dando visibilidade ao que foi estudado e ao processo
de ensino-aprendizagem aí implicado. Mobilizados, no desenrolar
das atividades, os estudantes organizaram torcidas, vibraram, con-
feccionaram cartazes, além de se mostrarem solícitos na produção
dos poemas. Deslocados da postura passiva de meramente “rece-
ber” conteúdos, de maneira geral, ficaram animados com a ideia
de escrever poemas e socializá-los.
Contudo, cumpre fazer referência ao fato de que alguns alu-
nos demonstraram, no começo, dificuldade no entendimento da
linguagem metafórica dos poemas selecionados para estudo, o que
gerou certo desinteresse, contornado com atividades instigantes,
pensadas e preparadas em conjunto, tendo em vista o desenvolvi-
mento da competência para a leitura do simbólico.
Para dinamizar, enriquecer e diversificar a apresentação das
sequências didáticas de leitura e escrita do gênero e aproximar os
conteúdos da realidade dos estudantes, a equipe recorreu ao uso de
diferentes mídias, entre elas, o computador, a TV, o data show, o
DVD e, sempre que possível, utilizou o auditório da escola, já que
este oferece uma infraestrutura mais adequada à aplicação das ati-
vidades que envolvem a presença de recursos tecnológicos.
Acredita-se que as ações didáticas empreendidas na imple-
mentação do projeto “Lendo e escrevendo poemas na escola” fo-
ram favoráveis, propiciando a experiência da vivência crítica, em
vários níveis, aos envolvidos no processo. Os procedimentos ado-
tados, além de terem contribuído para o aprofundamento do co-
nhecimento sobre gêneros pelos alunos e para a formação de leito-
res críticos de diferentes textos, também levaram a equipe do sub-
projeto a tecer reflexões significativas sobre fatores textuais e pro-
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cessos de leitura, bem como sobre a importância do trabalho do-
cente com projetos didáticos dentro de uma perspectiva discursiva.
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Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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EUGENIO COSERIU:
UMA MUDANÇA RADICAL
NA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA
Helio de Sant’Anna dos Santos4
RESUMO
Este artigo versa sobre a perspectiva linguística de Eugenio Coseriu, es-
tudioso romeno frequentemente confundido como mais um estruturalista. A
proposta consiste em demonstrar alguns aspectos da concepção coseriana
que a credenciam como linguística integral. Ainda que tenha relação com o
estruturalismo de Saussure, Coseriu fundamenta-se numa tricotomia bas-
tante específica, com base nos planos universal, histórico e individual da lín-
gua, partindo do falar (parole) para a língua (langue).
Palavras-chave: Eugenio Coseriu. Estruturalismo. Mudança.
Eugenio Coseriu muitas vezes é confundido como apenas
mais um estruturalista, continuador das ideias de Saussure. Ignora-
se o fato de que suas concepções não coincidem com o ideário do
mestre de Genebra, conforme afirma Johannes Kabatek, Diretor
do Arquivo Eugenio Coseriu da Universidade de Tübingen
(www.coseriu.com).
Segundo Kabatek, em Prólogo do livro Linguagem e Dis-
curso (COSERIU & LAMAS, 2010), a imagem de Coseriu como
estruturalista é falsa, já que o linguista “apenas tomou as ideias
4 Doutor em língua portuguesa pela Universidade Federal Fluminense e professor do Co-
légio Pedro II. E-mail: heliodesantanna@gmail.com
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saussurianas como ponto de partida metodológico, e não a doutri-
na de Saussure como um todo” (p. 7).
Uma das maiores contribuições coserianas para a linguísti-
ca, de acordo com o próprio Coseriu, é a apresentação da mais bá-
sica de suas tricotomias, que ele mesmo toma como bastante sim-
ples e correspondente à intuição dos falantes. Refere-se à distinção
entre três níveis linguísticos: o nível universal do falar em geral, o
nível histórico das línguas e o nível individual dos textos.
O estruturalismo hermético limita-se ao nível histórico, en-
quanto Coseriu propõe, nas palavras de Kabatek (COSERIU &
LAMAS, 2010, p. 8) uma “linguística integral”: uma linguística
do falar em nível universal, uma linguística no nível histórico e
uma linguística no nível individual. Kabatek (p. 7) ressalta que,
ainda que Coseriu não seja estruturalista, “adota a perspectiva es-
trutural em certos trabalhos”, ampliando a perspectiva de uma lin-
guística de caráter estrutural a outros campos.
Está-se diante de uma proposta teórica em que é insuficiente
a abordagem em termos de uma linguística no nível da língua em
seu aspecto abstrato, posto que não se considera cientificamente
viável conceber o fenômeno linguístico que não parta do concreto,
do falar.
Coseriu (1979, p. 213) argumenta que “não há que explicar
o falar do ponto de vista da língua, e sim vice-versa”. Invertendo o
conhecido postulado de Saussure, Coseriu afirma ser necessário
partir do terreno do falar para tratar de outras formas de manifes-
tação da linguagem. Assim, a língua corresponde a “momento his-
toricamente objetivo do falar”, é um aspecto do falar. Toma-se o
falar como referência para a linguagem.
Com o propósito de apresentar a linguística do falar em ní-
vel universal como necessária, Coseriu (p. 214) relaciona-a com a
própria aceitação da tríplice dimensão: se há a linguística das lín-
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guas, ou seja, a linguística do falar no nível histórico, e uma lin-
guística do texto – uma linguística do falar no nível particular, de-
veria existir também uma linguística que desse conta do falar em
geral, uma linguística do falar no nível universal. Coseriu esclare-
ce:
[...] em nossa opinião, a linguística do falar em sentido estrito seria
uma linguística descritiva, uma verdadeira gramática do falar. E,
precisamente, uma gramática indispensável tanto para a interpretação
sincrônica e diacrônica da “língua” quanto para a análise dos textos.
De fato, do ponto de vista sincrônico, a língua não oferece apenas os
instrumentos da enunciação e de seus esquemas, mas também instru-
mentos para a transformação do saber em atividade; e, do ponto de
vista diacrônico, tudo o que ocorre na língua só ocorre pelo falar. Por
outro lado, a análise dos textos não pode ser feita com exatidão sem o
conhecimento da técnica da atividade linguística, pois a superação da
língua que ocorre em todo o discurso só pode ser explicada pelas pos-
sibilidades universais do falar. (COSERIU, 1979, p. 214)
A chamada “gramática do falar” teria como objeto a técnica
geral da atividade linguística, envolvendo aspectos verbais e não
verbais, dos quais fazem parte o conjunto de operações denomina-
do determinação e instrumentos circunstanciais reconhecidos co-
mo entornos.
Tal abordagem foi proposta em artigo publicado por Cose-
riu em espanhol em 1957, no periódico alemão Romanistisches
Jahrbuch, “Determinação e entorno: dois problemas duma linguís-
tica do falar”. O próprio Coseriu, conforme se aponta em nota no
livro Linguagem e Discurso (COSERIU & LAMAS, 2010, p. 17),
menciona no início de Textlinguistik ter introduzido nesse artigo o
conceito de linguística do texto, afirmação refutada na mesma
obra (p. 18).
O autor ressalta o papel do artigo “Determinação e entor-
no”, não como um antecedente da linguística do texto, e sim um
avanço da linguística integral.
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O texto em questão é considerado um marco da mudança
radical de perspectiva da linguística, já que contribui fortemente
para que se estude a linguagem não a partir da língua, mas a partir
do falar. É preciso, portanto, partir do falar para explicar a língua.
O primeiro momento corresponde ao falar, tomado como norma
para todas as manifestações da linguagem.
Coseriu (1992, p. 80) postula que toda a linguística corres-
ponde a uma linguística do falar, já que se podem considerar tam-
bém as línguas particulares como aspecto ou modalidade do falar.
Com base em tal concepção, o autor estabelece uma relação entre
os planos e níveis que se distinguem no falar e a correspondente
competência linguística – definida como “um saber intuitivo ou
técnico dependente da cultura nos três planos independentes entre
si do falar em geral, da língua particular e do discurso ou texto.”
(p. 8)
Apresenta-se, então, um gráfico com a divisão da compe-
tência linguística, de que se deverá destacar o nível cultural do fa-
lar, quer dizer, o falar como atividade cultural e o saber transmiti-
do que subjaz a essa atividade. Veja-se o gráfico mais abaixo.
Coseriu defende que a linguagem envolve uma série enorme
e complexa de elementos, inclusive extralinguísticos, constituin-
do-se o falar em atividade mais ampla que a língua: “utiliza suas
próprias circunstâncias (enquanto a língua é circunstancial) e tam-
bém atividades complementares não verbais” (1979, p. 215). As-
sim, não se pode ignorar que a mímica, os gestos e mesmo o silên-
cio, dentre outros elementos, interferem na atividade linguística.
Entretanto, a linguística não deverá dar conta de todos os
aspectos envolvidos no falar, ainda que tenhamos convicção da re-
levância de tais fatores. Faz-se necessária, inclusive, a distinção
entre língua falada e escrita, esta entendida como mutilação da-
quela, em função de não dispor dos mesmos recursos. É o que se
verifica em Mattoso (CÂMARA JR., 1985, p. 16) e pode-se en-
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tender em Carvalho (1967, p. 222), quando se refere ao ato lin-
guístico como uma “simplificação extrema do fenômeno real da
fala humana”.
(COSERIU, 1992, p. 81)
Bittencourt (2007/2008, p. 191) adverte que não se pode ig-
norar o quanto a escrita é uma tecnologia sofisticada, exigindo por
parte do falante esforço não percebido por quem a domina. Dentre
outros fatores, está a necessidade de recriação das circunstâncias
que são próprias da situação de fala, como as propriedades da voz.
Exige-se, portanto, muito trabalho para ensinar a técnica a quem
normalmente está acostumado ao mundo dos sons.
A professora lamenta o fato de a escola relegar a língua lite-
rária ao segundo plano, o que muitas vezes se justifica por se con-
siderar o texto literário mais difícil, complexo. A dificuldade pode
estar concentrada exatamente na impossibilidade do falante em
conseguir lidar com os instrumentos de construção discursiva e
nas estratégias utilizadas para apresentar a língua literária ao alu-
no.
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O ensino de português não deveria desconsiderar as diferen-
ças entre língua escrita e falada, formal e informal, língua literária
e exemplar – termo criado por Coseriu (1992, p. 164) e que se re-
fere à modalidade que deve servir de modelo aos falantes em de-
terminadas situações, caracterizadas pela preocupação com a cor-
reção. Não se deveriam ignorar outros traços do falar que certa-
mente são intrínsecos ao desenvolvimento da competência linguís-
tica, incluída a capacidade de reconhecer elementos extralinguísti-
cos pertinentes a um ato de fala.
Coseriu (1992, p. 82) cita Hjemslev e Saussure como auto-
res não contemporâneos que viram que o falar não se esgota na re-
alização de uma língua concreta. Destaca um trabalho publicado
em holandês como o único a representar certa importância quanto
ao estudo do problema dos recursos extralinguísticos na fala, a pu-
blicação de Duijker, “Elementos extralinguísticos na fala”, em
1946.
Coseriu alerta para o fato de que atividades extralinguísticas
não só podem acompanhar como também completar e, inclusive,
substituir o falar, o que é válido para a língua oral ou escrita. Para
entender a proposição, basta levar em consideração textos escritos
nos quais se inserem imagens ou desenhos ou mesmo os textos
configurados graficamente das mais diversas formas, como os
chamados poemas concretos.
Ainda se faz importante ao menos aludir ao nível biológico
do falar, uma vez que se parte do princípio de que o falar é uma
atividade primeiramente psicofísica, “condicionada fisiológica e
psiquicamente” (COSERIU, 1992, p. 85). Trata-se deste nível
quando, por exemplo, se diz que as crianças sabem ou não falar,
pois não se quer dizer se sabem ou não português ou espanhol, se-
não que não há domínio dos mecanismos psicofísicos do falar. A
linguística também não deve ocupar-se de tais aspectos, objetos
próprios da fisiologia, da psicologia e da medicina.
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O objeto de interesse da linguística, segundo as concepções
coserianas, é o falar sob a forma cultural, que se pode diferenciar
em três planos:
1. O falar é comum a todos os homens, é um falar em geral;
todos os homens adultos e normais falam. Mesmo o não
falar constitui sentido. Coseriu (1992, p. 87) adverte que
algumas línguas chegam a distinguir o “estar em silêncio”
e o “deixar de falar”, como o latim, com os termos silere e
tacere, respectivamente.
2. O falar se realiza numa língua determinada, numa tradição
histórica determinada, ainda que se esteja tratando de lín-
gua construída ou inventada.
3. Todo falar se apresenta como individual a partir de dois
aspectos: por um lado, é executado sempre por um indiví-
duo, não é atividade em coro. Por outro lado, sempre se
executa em uma situação única determinada, a que Cose-
riu chama de discurso.
Com base nesta linha de raciocínio, Coseriu (1992, p. 88)
afirma ser possível, como ocorre com qualquer atividade cultural,
conceber a atividade verbal também sob três pontos de vista, con-
forme se esclarece:
1. Como atividade mesma, como falar e entender. É a lin-
guagem enquanto enérgeia, como atividade em si, em que
se cria saber linguístico novo ou se diz algo novo a partir
de um já existente.
2. Como competência, saber fazer, dínamis.
3. Como érgon, produto criado pela atividade. É o texto ou
obra a ser mantida na memória.
Coseriu (1992, p. 22-25) faz referência a Humboldt (1963,
p. 416-418), que, apropriando-se do conceito aristotélico, define
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enérgeia como atividade que precede a própria potência, chamada
de dínamis e entendida como atividade produtiva. A língua é antes
enérgeia que produto, érgon; portanto, atividade criadora, que não
repete simplesmente o aprendido.
Partindo da relação entre os diferentes planos e pontos de
vista, Coseriu enfatiza a distinção entre langue e parole, assina-
lando que muitas vezes há uma certa confusão quanto aos critérios
que as distinguem. A langue corresponde ao plano histórico da
língua; a parole, por sua vez, ao ponto de vista da atividade. Desta
forma, a parole, o falar, envolve todos os planos, seja como falar
em geral, seja como língua concreta, falar historicamente determi-
nado, seja como texto, falar individual. Em todos os casos, vê-se o
falar do ponto de vista da atividade.
O autor, tomando o falante como medida de todas as coisas,
procura comprovar a percepção do usuário da língua enquanto fa-
lar, mesmo que por intuição, em todos os planos. O falante reco-
nhece a língua no plano universal quando, por exemplo, afirma
que os animais não têm linguagem ou que a criança não sabe falar,
referindo-se não a um idioma e sim à capacidade de falar, no sen-
tido geral.
Percebe no plano histórico o falar como uma manifestação
em uma língua determinada, ao proferir afirmações, como: “ele fa-
la português" ou “não sei falar inglês”. Quanto ao plano individu-
al, o falante demonstra capacidade de identificação do falar quan-
do distingue um falante do outro pela fala ou compreende diferen-
tes intenções em situações diversas.
Levando-se em conta a relação entre os planos em questão e
os pontos de vista, Coseriu (1992, p. 91) define tanto saberes,
competências, como produtos correspondentes a cada um dos pla-
nos. Assim, aos três planos ou níveis da atividade do falar se con-
trapõem três planos do saber linguístico:
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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1. Ao saber correspondente ao falar em geral – “saber elocu-
tivo” ou “competência linguística geral”.
2. Ao saber correspondente ao falar em uma língua particu-
lar, determinada historicamente, saber histórico, portanto –
“saber idiomático” ou “competência linguística particu-
lar”.
3. Ao saber correspondente ao falar individual, habilidade de
produzir textos em situações determinadas – “saber ex-
pressivo” ou “competência textual”.
Quanto aos produtos ou obras, Coseriu aponta como produ-
to do falar em geral a totalidade de todas as manifestações; como
produto do falar em uma língua particular, a língua particular abs-
trata, objeto da descrição da linguística, e como produto do falar
individual o texto. Resume-se tal perspectiva no esquema a seguir:
É preciso ainda, de acordo com a perspectiva coseriana, de-
terminar conteúdos e juízos correspondentes a cada um dos pla-
nos. Em cada ato do falar há três planos do conteúdo: a designa-
ção, o significado e o sentido. Ou seja, cada ato de fala faz refe-
rência a uma realidade, ao mundo, de uma maneira geral; estabe-
lece tal referência por meio de determinadas categorias gramati-
cais de uma língua particular; e em cada situação há uma função
discursiva específica.
A designação consiste no conteúdo específico do plano lin-
guístico geral, remetendo a elementos da realidade, ao mundo ex-
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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tralinguístico; o significado situa-se no plano da língua particular,
representando a apreensão da realidade em uma língua determina-
da. Por sua vez, situado no plano do discurso, o sentido se expres-
sa mediante a designação e o conteúdo, entretanto ultrapassa os
seus limites, envolvendo atitudes, intenções e suposições do falan-
te.
A cada plano corresponde também um juízo: congruente ou
incongruente, correto ou incorreto e adequado ou inadequado. No
plano do falar em geral, importa se o texto é inteligível, se está de
acordo com uma determinada realidade extralinguística, num de-
terminado contexto global. No plano da língua particular, importa
se o texto atende ou não a preceitos de um idioma, se há correção
ou não, tendo-se por referência um conjunto de regras.
No plano do discurso, a noção de juízo diz respeito à ade-
quação ou não a uma situação, considerando principalmente as
circunstâncias envolvidas no falar, como, por exemplo, as expecta-
tivas do ouvinte/leitor e condições em que se dá o ato de fala.
Conteúdos e juízos apresentam autonomia: designações
completamente diferentes podem ter o mesmo significado numa
língua particular; pode haver distintos significados entre expres-
sões da mesma língua com igual designação; certamente, um de-
terminado significado, mesmo que pautado numa mesma designa-
ção, pode não ter o mesmo sentido em duas situações diferentes.
Quanto aos juízos, vale a ressalva de que textos congruentes
e corretos não são obrigatoriamente adequados, assim como textos
adequados não são obrigatoriamente corretos ou congruentes. É
possível supor um texto correto e, ainda assim, incongruente ou
inadequado, ou seja, os juízos são autônomos.
O esquema organiza a terminologia:
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A proposta da autonomia dos planos, juízos, conteúdos e
saberes pressupõe a hipótese de uma linguística própria em cada
nível, constituída de objetos específicos, correspondentes aos pla-
nos em questão. Portanto, reforça-se a pertinência de uma linguís-
tica do plano do falar em geral, uma linguística do falar historica-
mente determinado e uma linguística do texto/discurso.
Coseriu (1980, p. 98) associa a distinção entre os planos de
linguagem – o do falar em geral, o da língua e o do texto – a disci-
plinas linguísticas, já que as tarefas de cada disciplina variam con-
forme o nível a que se referem. Deste modo, haveria uma gramáti-
ca geral – não uma gramática universal, mas uma teoria gramati-
cal –, uma gramática descritiva – dessa ou daquela língua – e uma
análise gramatical – de determinado texto. Comumente, prioriza-
se a gramática de caráter idiomático, no campo da linguística da
língua, não só no ambiente escolar, como também entre os linguis-
tas, “cuja atenção tem se concentrado até agora especialmente no
nível histórico da técnica linguística” (p. 94).
Coseriu parte das concepções adotadas por Gabelentz (apud
COSERIU, 1992, p. 27-35), para quem a diferença entre as formas
da língua corresponde a uma diferença de pontos de vista na lin-
guística e, portanto, disciplinas linguísticas diversas. Gabelentz
distingue língua como fala, como língua particular e como capa-
cidade linguística, compreendendo manifestação individual; lín-
gua de um povo, de um grupo profissional; e bem comum da hu-
manidade (grifos nossos).
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Em suas publicações, mais especificamente em Lingüística
del Texto, Coseriu (2007, p. 87-88) discute a paternidade científica
da linguística do texto, afirmando ser indiferente a uma disputa
por direitos sobre a teoria, uma vez que em ciência o que importa
é a verdade, não a reputação pessoal. Acrescenta que a teoria de-
nominada “linguística do texto” havia tomado um rumo diferente
da sua proposta no artigo “Determinação e entorno”, o que tornava
irracional apresentar-se como seu precursor.
Declara que o seu projeto era traçar as linhas básicas de
uma linguística de caráter integral, que se ocupasse do falar em
geral, não apenas do texto, enfatizando a sua concepção de que,
inevitavelmente, a divisão da linguagem em três níveis deveria
contemplar o âmbito da linguística. Em cada nível, deve-se enten-
der o texto como autônomo, não sendo explicado completamente a
partir do nível do falar em geral nem a partir do nível das línguas
ou mesmo do discurso. É necessário analisá-lo a partir das três
perspectivas, respeitando-se a autonomia entre elas.
REFERÊNCIAS
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rária e o ensino de português. Confluência – Revista do Instituto
de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Rio de Janei-
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CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Manual de expressão oral e es-
crita. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
CARVALHO, J. G. Herculano de. Teoria da linguagem: natureza
do fenômeno linguístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida,
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COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e linguística geral: cin-
co estudos. Rio de Janeiro: Presença, 1979.
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história da linguística. Rio de Janeiro: Presença, 1980.
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_____. Sobre o idioma nacional: problemas, propostas e perspec-
tivas. Confluência – Revista do Instituto de Língua Portuguesa do
Liceu Literário Português. Rio de Janeiro: 1.º semestre de 2002, n.
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_____; LAMAS, Óscar Loureda. Linguagem e discurso. Trad.:
Cecília Inês Erthal. Curitiba: UFPR, 2010.
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A LITERATURA NA ERA DIGITAL
Adriane Camara de Oliveira5
RESUMO
O texto pretende fazer uma breve reflexão da literatura na atualidade,
mais precisamente de algumas que sofreram diretamente a influência da
tecnologia digital como ferramenta que se apropria da escrita, remodelando
as tradicionais características dos gêneros literários analisados aqui: contos
e romances. A pesquisa também busca retratar a reação dos escritores ao
suporte digital, identificando nas obras um aproveitamento temático, a in-
corporação formal de técnicas de escrita e de leitura típicas da cultura digi-
tal. Procuramos indagar como ocorre esse aproveitamento temático, uma
vez que a literatura digital explora novas possibilidades formais com o de-
senvolvimento de tecnologias visuais e sonoras. Portanto, levando em consi-
deração as inúmeras possibilidades criadas pelo computador, se faz urgente
discutir essas questões, principalmente para quem pretende se dedicar à lite-
ratura contemporânea.
Palavras-chave: Literatura. Informática. Tecnologia digital. Informática.
Pretendemos refletir sobre o possível papel do universo di-
gital na literatura brasileira contemporânea. Tal reflexão encontra
estímulo numa comparação: a importância que o cinema teve para
os autores modernistas. Como se sabe, eles foram muito influenci-
ados pelas técnicas cinematográficas de montagem e suas relações
5 Doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, supervisora do
Pibid/Capes/UERJ de pedagogia, professora de língua portuguesa e literatura do CECMS
e do município de Maricá. E-mail: prof.adriane@yahoo.com.br
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com o tempo da narrativa. Podemos supor que no futuro o mesmo
será dito em relação ao universo digital?
No tocante à literatura que se produz hoje no Brasil deseja-
mos pesquisar a reação dos escritores às características do suporte
digital. Podemos identificar um aproveitamento temático da in-
formática em contos, novelas e romances? Podemos surpreender
uma incorporação formal de técnicas de escrita e de leitura típicas
da cultura digital? Qual a relevância do conceito de hipertexto na
literatura contemporânea?
Como a literatura pretende utilizar-se desse meio serão os
temas deste trabalho. Os conceitos de hipertextualidade6
e autoria,
já foram anunciados no livro coletivo Literatura e Informática,
organizado por José Luís Jobim. Vejamos as citações referentes ao
problema da autoria no espaço reservado ao domínio público na
internet:
(...) Você poderia fazer o que quisesse com a obra, sendo esta de do-
mínio público, mas não com o programa que é o suporte no qual ela
se apresenta. Do jeito que o Digital millenium copyright act está re-
digido, ele pode impedir inclusive usos considerados legais pela le-
gislação vigente nos EUA sobre direitos autorais. Essa legislação
permitiria, por exemplo, que eu fizesse uma cópia digital para meu
próprio uso de uma obra que eu tivesse adquirido. Contudo, se a obra
viesse em “.pdf”, vedado à cópia, então seria crime eu usar qualquer
artifício para evitar o sistema de proteção e gestão de direitos autorais
desse programa. (JOBIM, 2002, p. 123)
Desejamos, assim, pesquisar a reação dos escritores às ca-
racterísticas do suporte digital, indagando como ocorre esse apro-
veitamento temático da informática nos gêneros literários. Investi-
gando também a incorporação formal de técnicas de escrita e leitu-
ra típicas da cultura digital. A poesia concreta associa imagem ao
6 Em relação ao hipertexto, remetemos aos já clássicos livros de Landow (1997). No to-
cante à literatura brasileira, recomendamos Pavani e Schüler (2000). Este livro represen-
ta uma das primeiras tentativas de refletir sobre os efeitos da informática na análise literá-
ria.
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poema, o que de certa forma, antecipou possibilidades que hoje a
internet potencializou. Assim concordamos com a definição da li-
teratura digital como “a exploração das possibilidades formais
surgidas com o desenvolvimento de tecnologias visuais e sonoras,
como o vídeo, o computador e a edição eletrônica de textos”.7
Não é verdade que a incorporação de críticas à literatura di-
gital se trata de tarefa urgente para quem se dedica à literatura
contemporânea? Em outros tempos, a máquina de escrever exigiu
do usuário muito mais do que uma acomodação automática a téc-
nica diferente de registro, levando-se em consideração as inúmeras
possibilidades criadas pelo computador, para muito além somos
levados. A antologia de contos Geração 90: Manuscritos de Com-
putador, de Nelson de Oliveira, tem um sugestivo subtítulo preci-
samente porque reconhece essa modificação, ao mencionar a “po-
pularização do personal computer, da Internet e do e-mail”.
(OLIVEIRA, 2001, p. 8)
A fim de buscar respostas para as indagações que norteiam
este trabalho, destacaremos as obras nas quais a presença do uni-
verso digital apareça, seja como tema, seja como recurso formal.
Pretendemos analisar o seguinte corpus: Samba-enredo (1994), de
João Almino; Eles Eram Muitos Cavalos (2001), de Luiz Ruffato;
a antologia de contos Geração 90: Manuscritos de Computador
(2001), organizada por Nelson de Oliveira; Cybersenzala (2006),
de Jair Ferreira dos Santos; e Purgatório: (A Verdadeira História
de Dante e Beatriz) (2007), de Mario Prata.
Em relação à literatura brasileira contemporânea, o estímulo
inicial de nossa reflexão surgiu da leitura da primeira obra citada,
foi provavelmente um dos primeiros textos a incorporar temas e
técnicas narrativas do universo digital. O romance tem quarenta e
7 Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=definic
oes_texto&cd_verbete=6165&cd_item=46>.
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nove capítulos, na primeira página de cada capítulo vemos um si-
mulacro da tela do computador; aliás, é o próprio computador que
narra a história. João Almino amplia ainda mais essa questão, pois
tanto a dedicatória como o posfácio – tipicamente assinados pelo
escritor – serão também de autoria da narradora G. G.
Desse modo, retomamos uma questão central para os estu-
diosos de cibernética: pode-se viver uma vida virtual “ativamen-
te”? É o que um fenômeno dos nossos dias parece prometer (e
cumprir): a chamada febre da second life. Ora, atualmente cursos
universitários estimulam seus alunos a ingressar no mundo da
second life como uma forma adicional de preparação para o futuro
exercício de suas profissões! O romance de João Almino, portanto,
antecipou uma preocupação cada vez mais presente, esclarecendo
tanto a relevância do tema, quanto os demais textos que estudare-
mos.
E não é tudo: em boa parte do texto, a linguagem do narra-
dor é de poucos recursos linguísticos – numa instigante apresenta-
ção do traço binário da linguagem codificada do mundo digital,
que se transforma, assim, em forma literária. Em outro momento
da narrativa, a personagem Sílvia será mostrada como fantasma, às
vezes menor ou maior dependendo da seleção do tamanho da sua
foto8
, trata-se de um recurso usual da própria máquina: “a vejo
ampliada, bem maior do que ela é na realidade. Em nova forma,
sou toda olhos” (ALMINO, 1994, p, 16).9
A narradora, o computador, envolve-se emocionalmente
com a personagem Sílvia, que utilizará a máquina para abrir os
dados arquivados sobre a morte do presidente, também seu pai.
Em outros momentos, o computador demonstrará distanciamento:
8 Nesse ponto os recursos do computador serão instrumentos utilizados metaforicamente
na expressão de sentimentos entre Gigi e Sílvia.
9 Nas próximas referências ao romance, indicaremos somente a páginas após a citação.
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“a maior virtude é a indiferença” (p. 75). Serão apresentados fatos
e reflexões, mas o escritor estabelece um jogo, onde nem sempre é
possível perceber o momento em que a máquina fornece dados,
projeta imagens ou apenas estaria sendo acessada por Sílvia. Des-
se modo, a história parece ser o início de um “contrato assinado”
por Gigi e Sílvia, onde ambas buscam recuperar o assassinato do
presidente Paulo Antônio Fernandes, no centenário de sua morte.
Faz-se, então, uma retrospectiva da história do Brasil, misturando
o sistema político ao carnaval, com os seguintes temas:
o descobrimento do Brasil, o reinado de Pedro II, a Guerra do Para-
guai, o fim do mundo, o presidente Vargas, a pós-guerra fria, a cons-
trução de uma estrada no interior do Acre, até uma festa de Santa Lu-
zia (p. 22).
Esse autêntico samba-enredo termina com “a libertação dos
escravos” (p. 23). O autor através do romance retoma fatos histó-
ricos, através de um presidente fictício que homenageia JK e seu
programa de governo “dez anos em um”:
Propõe uma revolução capitalista com a crescente incorporação
dos marginalizados e a multiplicação do número de proprietários, no
campo e nas cidades. Declara guerras aos bandidos. Recomenda, para
acabar com a miséria, dezenas de medidas e, se necessário, até mes-
mo dobrar a dívida. Pretende valorizar o serviço público, aumentar a
eficiência e a produtividade, investir em tecnologias, liberar a imagi-
nação... (p. 39)
Outro livro para o tema do nosso trabalho foi publicado re-
centemente, Purgatório: (a verdadeira história de Dante e Bea-
triz), de Mario Prata. Ele introduz de forma inusitada a internet na
ficção, pois ela será utilizada como meio de comunicação entre vi-
vos e mortos, através do que denomina TCI (Transcomunicação
Instrumental), conforme declara a personagem, Beatriz, depois de
falecida, num e-mail encaminhado para Dante:
Isso se chama TCI. Transcomunicação Instrumental.
- Vá à merda!!!
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Dante desligou o Messenger, desligou o computador. Mas, antes,
salvou a conversa e imprimiu.
TCI, era só o que me faltava. (PRATA, 2007, p. 28)10
O livro começa contando a história de um gerente de banco
e seu amigo, que estão entediados com a vida de funcionários do
Banco do Brasil. Até que o personagem Dante recebe um e-mail
da antiga namorada, Beatriz. Ele fica empolgado e modifica a sua
rotina para revê-la, só que um acidente acabará adiando definiti-
vamente o encontro. Beatriz morre e vai para o Purgatório, mas
continuará mandando e-mails para Dante.
Após a desconfiança inicial, ele modificará sua conduta pa-
ra reencontrá-la nesse lugar. Aqui, a crítica do autor parece dirigir-
se aos preceitos da Igreja Católica, pois a trama revela ironicamen-
te o jogo de castigos e perdões, que daria aos cristãos “ingressos”
para determinados lugares no Céu. Aliás, o Purgatório será consi-
derado por ambos como o verdadeiro Paraíso, pois, em sonho, o
personagem foi informado que no Paraíso encontraria suas tias be-
atas, dando-lhes xarope, ao passo que o Inferno seria praticamente
o próprio local onde trabalha. No livro, quem explica essa reflexão
é Leonardo da Vinci – direto do Purgatório:
– É que, daquele jeito, a humanidade acabaria por mudar de reli-
gião, voltar aos Bezerros de Ouro. Mas, não sei qual foi a Agência
que eles contrataram, descobriram que a alma do negócio era o Pur-
gatório. Pecou um pouco, arrependeu, pecou mais um pouco, deu
umas esmolas, comprou uma indulgência, construiu um templo, com-
prou uma rifa de um frango, pronto, já podia esperar pela possibilida-
de de um lugar diferente, (...).
– E o Vaticano começou a ganhar muito dinheiro. (p. 118 e 119)
Toda a trama é arquitetada por Beatriz, que mesmo falecida
tenta matar Dante, como fez com todos os Dantes que encontrou
em seu caminho. O escritor esclarece que esse enredo fantástico
trata de uma possível biografia do próprio Dante Alighieri, escritor
10 Nas próximas referências ao romance, indicaremos somente a páginas após a citação.
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da Divina Comédia, pois contam que ele escreveu essa história
depois da morte de sua amada.
(...) Mas Beatriz, a do Alighieri, nunca o perdoou. Beatriz morreu logo
depois e Dante começou a escrever a Divina Comédia que, na opinião
de alguns e da minha irmã, é a saga de Dante procurando por Beatrice
desde o Inferno, passando pelo Purgatório e a encontrando no Céu, ao
lado de Deus. Pelo menos foi o resumo que a minha irmã fez aqui. Não
sei até que ponto... (p. 257 e 258)
Entre biografias, alusões, críticas ao sistema capitalista e as
religiões – como candomblé, Santo Daime, espiritismo e a igreja
católica – há reflexões sobre o afastamento da realidade através da
religiosidade e do computador. O final, de corte inegavelmente
moralista, supõe uma alternativa: a criação de uma comunidade
com regras próprias. Daí os casais, no desfecho, se retirarem para
um lugar chamado “Casa Grande”, lá todos os seus membros vive-
riam em harmonia e colhendo frutos da própria terra. Tanto a refe-
rência a casa quanto o nome do chefe de Dante, Simão Bacamarte,
parecem aludir à novela O Alienista, de Machado de Assis.
Adotaremos uma metodologia de leitura que não imponha
aos textos literários um modelo teórico rígido, reduzindo a diver-
sidade e complexidade dos autores estudados a esquemas precon-
cebidos. Muito pelo contrário, estabeleceremos nosso modelo teó-
rico a partir da leitura cerrada do corpus literário, preservando nas
eventuais conclusões a pluralidade constitutiva da literatura brasi-
leira contemporânea.
Tal proposta metodológica definiu o corpus constituído por
obras que lidam com o universo digital, temática ou formalmente.
Em Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato, a estrutura frag-
mentária da narrativa já foi comparada por muitos críticos a uma
espécie de mosaico que pode ser montado e remontado como se
estivéssemos diante de um elaborado hipertexto. Um dos contos
de Cybersenzala tem como título o site de uma agência funeral
www.joy&peacefuneraldesign.com. Ademais, a própria estrutura
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formal do conto é uma notável reflexão sobre a natureza do hiper-
texto, compreendido como labirinto, pois os subtítulos têm a fun-
ção de links, compondo “um sistema fundamentalmente intertex-
tual” de remissões e referências (LANDOW, 1992, p. 35).
Em Purgatório, Mário Prata atualiza a célebre história de
Dante e Beatriz, utilizando como recurso narrativo mensagens de
correio eletrônico enviadas pela protagonista morta. Estamos as-
sistindo o surgimento de uma “literatura digital”? Isso é, de uma
forma literária que reflete criticamente sobre os novos meios de
comunicação?
O tema do hipertexto, na era digital, supõe uma importante
alteração para os estudos literários. Não se trata apenas de um tex-
to que promissoriamente ampliaria a capacidade do leitor em in-
terpretar, mas uma ferramenta utilizada para abertura de novas ja-
nelas – num sentido até mesmo literal, ressalve-se. Portanto, o tex-
to atrairia novas possibilidades de informação sobre o conteúdo
inicial, o que não equivale necessariamente a novas interpretações,
pois ele tanto poderá se manter fiel ao tema como explorar muitos
outros em um “mundo” de opções.
Em Eles Eram Muitos Cavalos, o título traz um verso da
poetisa Cecília Meireles, para quem, aliás, o escritor parece tam-
bém dedicar a sua obra. Faremos a seguir um breve comentário
dos exemplos de hipertextualidade na obra. Nos capítulos que se
seguem, o 3 – “Hagiologia”, narra à história de Santa Catarina de
Bolonha; 10 – “O que quer uma mulher”, lembra a teoria de
Freud, na obra O Que Deseja Uma Mulher; 60 – “Ciúmes”, lem-
bra qualquer livro de autoajuda, recheado de soluções mágicas; 31
– “Fé”, é a colagem da Oração de Santo Expedito e a penúltima
página em preto revela a morte, aludindo, assim, à obra de Lau-
rence Sterne. Tal característica já foi destacada pela crítica mais
recente:
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(...) Os textos de Oswald de Andrade (Memórias Sentimentais de Jo-
ão Miramar) e Cecília Meireles (Romanceiro da Inconfidência) estão
virtualmente presentes no hipertexto de Ruffato, podendo ser atuali-
zados pelo leitor. (VIEGAS, 2005, p. 39)
O livro revela ainda uma importante característica na mar-
cação do tempo. Na primeira linha: “1 – Cabeçalho São Paulo, 9
de maio de 2000”, parece informar que a cidade de São Paulo re-
velar-se-ia na sucessão de acontecimentos cotidianos. A fim de
confirmamos esta ideia no capítulo 50 – “Carta”, a data apenas se-
te dias antes da informada na primeira página, poderia estar sendo
lida no dia nove, ou seja, estaria sendo aberta pelo seu destinatá-
rio, no momento em que o leitor lesse o romance. Vemos também
a intensidade vivida pelos habitantes, que em apenas um dia, vi-
venciam grandes tragédias e muitas disparidades culturais. É como
se fôssemos penetrando em cada casa, quarto de hotel, táxi, ôni-
bus, carros importados, bares, tudo ao mesmo tempo – a visão rá-
pida de um internauta. Ao penetrarmos nos sentimentos dos per-
sonagens vemos indícios de vários transtornos, habitantes impo-
tentes para realizar qualquer mudança.
Em relação à estrutura, verificamos as descrições exaustivas
provocadas pelo fluxo de consciência, confirmado num ritmo ver-
tiginoso de leitura às vezes sem pontuação. O texto se apresenta
bem dinâmico com constantes mudanças de narrador. Textos com
letras de música ou poesia concretista, com a introdução de obje-
tos para contar a história de personagens. Além dos consumistas
de objetos, pessoas e personalidades, na citação o próprio objeto
do nosso estudo, a internet:
Trocaríamos e-mails e encheríamos o computador se spams, pia-
das de português, correntes da felicidade, abaixo-assinados, alertas
sobre a descoberta de novos vírus, as mais recentes modalidades de
crimes, fotos indecentes, vídeos de sacanagem, charges e até mesmo
endereços interessantes, lojas virtuais de cedes e de livros, e descobri-
ríamos afinidades que insuspeitávamos e toda sexta-feira nos encon-
traríamos para o happy hour num barzinho da Lapa. (RUFFATO,
2001, p. 45)
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As várias situações descritas quase nunca terão desfecho,
como já anunciamos o último capítulo mostra um cardápio requin-
tado, na sequência as páginas em preto poderão ser uma referência
a Sterne, mas cabe ao leitor associar o efeito produzido pela pági-
na em negro da obra Tristram Shandy. Aqui também prenunciam a
morte, confirmada na indiferença dos vizinhos.
(...)
– Deve ter sido facada... pelo jeito...
– E a gente não vai fazer nada?
– Fazer? Fazer o quê, mulher? Fica quieta... E se tem alguém lá
fora? de tocaia?
(Pausa)
– Parou...
– O quê?
(...)
– É... Parou mesmo... Vamos lá agora?
– Não!
– Por quê?
– Porque... porque ainda pode ter alguém lá... E aí? Melhor dor-
mir... Vai... vira pro canto e dorme... Amanhã... amanhã a gente vê...
Amanhã a gente fica sabendo... Dorme... vai... (p. 149 e 150)
Jair Ferreira dos Santos é o autor de Cybersenzala. O livro
tem um título expressivo, dois substantivos de ideias opostas pare-
cem referir-se ao perfil dos personagens, inseridos na classe média
brasileira. Tecnologia de ponta e atraso social convivem como se
não fossem paradoxais. No conto que dá nome ao livro, amigos se
encontram em uma boate, todos parecem pertencer a um grupo de
pessoas sem grandes problemas financeiros, pois consomem dro-
gas, comentam sobre cirurgias plásticas, ao mesmo tempo recla-
mam do stress do cotidiano. A referência ao Cybersenzala ocorre
quando uma das personagens, Mônica, desiste de continuar na
empresa. Vejamos:
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“Então a senhora vai deixar o cybersenzala”, é o que consegue ar-
ticular.
“Cybersenzala nunca mais. Adeus conexões que caem, máquinas
que dão pau, adeus almoço na baia e o estresse nosso de cada dia.”
“É triste mais nada contra”, apoia Pepe. (...) (SANTOS, 2006, p.
105)11
No entanto, para o nosso tema será ainda mais proveitoso o
último conto, cujo título é um site da agência funeral
www.joy&peacefuneraldesign.com. E não é tudo: os subtítulos
desse site seriam links com informações referentes à própria agên-
cia. Poderia simbolizar a criatividade maliciosa do autor ao tratar
do sistema capitalista, sempre voltado para o consumo, fornecendo
informações precisas e sempre disponíveis para o consumo imedi-
ato dessa nova forma de morrer. Toda essa contabilidade mortuá-
ria é apresentada na ideia de satisfação para todos os gostos, o que
inclui até a maquiagem do falecido: trata-se da necromaquiagem.
Mas, caso o morto tenha sofrido um acidente e seu rosto esteja
transfigurado, a opção é a cirurgia plástica, assim o falecido conti-
nuará fazendo uma figura sociável até o final.
Reconstituição cirúrgica – É exigência estética e psicológica. O
jacente deve vir a público apresentável, sem as marcas da causa mor-
tis. A J&P tem uma abordagem própria para os corpos não recuperá-
veis. (p. 161)
Já nos últimos três parágrafos, a agência funeral agradece ao
acesso e pede que seja divulgado o site, podemos, nesse ponto, in-
terpretar como uma visão mais poética do narrador/autor do livro
que agora se despede:
A Joy & Peace Funeral Design agradece o acesso a este site e fica
na expectativa de que seu conteúdo tenha sido convincente o bastante
para ser divulgado.
11 Nas próximas referências ao romance, indicaremos somente a páginas após a citação.
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Para breve, informamos, acrescentamos à sua oferta o item Polí-
ticas de Perdão, serviço voltado para a renegociação vantajosa post
mortem de débitos e créditos a serem regularizados.
Se o visitante pensa, como nós, que toda a vida é menos um des-
tino que um poema construído gesto a gesto, terá assimilado sem
problemas nosso desejo: dedicar o máximo empenho no apoio à cria-
ção do seu último verso. (p. 174)
Ao iniciarmos este trabalho nos surpreendemos com as mo-
dificações da literatura na era digital. Nas obras citadas vemos
modificações na estrutura, nos personagens: um computador como
narrador da história; a temporalidade auxiliada por uma mescla de
textos carregados de possibilidades hipertextuais, com sites sendo
acessados dentro do próprio objeto livro.
Contudo, esclareça-se que nosso interesse reside na compre-
ensão das formas pelas quais os escritores brasileiros contemporâ-
neos relacionam-se crítica e criativamente a tecnologia digital, res-
saltando a produtividade deles. Realizando assim um breve levan-
tamento de textos da literatura brasileira contemporânea nos quais
a presença do universo digital apareça, seja como tema, seja como
recurso formal.
REFERÊNCIAS
ALMINO, João. Samba-enredo: romance. São Paulo: Marco Zero,
1994.
JOBIM, José Luis. A produção textual e a leitura: entre o livro e o
computador? In: ___. Formas da teoria. Rio de Janeiro: Caetés,
2002.
______. (Org.). Literatura & informática. Rio de Janeiro: Eduerj,
2005.
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87
LANDOW, P. George. Hypertext 2.0. The Convergence of Con-
temporary Critical Theory and Technology. 2. ed. Baltimore &
London: The Johns Hopkins University Press, 1997.
______. (Org.). Hypertext Theory. Baltimore & London: The
Johns Hopkins University Press, 1994.
OLIVEIRA, Nelson de (Org.). Geração 90: manuscritos de com-
putador. São Paulo: Boitempo, 2001.
PAVANI, Cínara Ferreira; SCHÜLER, Donaldo. (Orgs.). Gregó-
rio de Matos: texto e hipertexto. Porto Alegre: Sagra Luzzato,
2000.
PRATA, Mario. Purgatório: a verdadeira história de Dante e Bea-
triz. São Paulo: Planeta, 2007.
RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos de cavalos. São Paulo: Hori-
zonte, 2007.
______. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001.
SANTOS, Jair Ferreira dos. Cybersenzala. São Paulo: Brasiliense,
2006.
VIEGAS, Ana Cláudia. Quando a técnica se faz texto ou a literatu-
ra na superfície das redes. In: JOBIM, José Luís. (Org.). Literatura
e informática. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005.
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LITERATURA CONTEMPORÂNEA:
A ESCRITA DA SOLIDÃO EM JOÃO GILBERTO NOLL
Tania Teixeira da Silva Nunes12
RESUMO
O contemporâneo vive momentos em que o indizível cada vez mais en-
contra espaço no inconsciente humano. Como descrever tantas tragédias e
acontecimentos inimagináveis, barbáries que matam mais no coletivo do que
no individual? Como entender que a mesma mão que salva, mata seu igual
sem compaixão? E, o mundo quanto mais tecnologicamente avançado mais
contempla o indivíduo em sua solidão. “A resposta pós-moderna ao moder-
no consiste em reconhecer que o passado já não pode ser destruído, porque
sua destruição leva ao silêncio, que deve ser revisitado: com ironia, de ma-
neira não inocente.” Independentemente da discussão sobre a designação
pós-modernismo, pós-moderno ou contemporâneo, o pensamento de Umber-
to Eco retrata a arte literária do presente, que teima em repetir a estrutura
de busca e quebra de um tempo de entreguerras, para desaguar no novo.
Objetiva esta comunicação descrever uma percepção do momento atual da
literatura, a partir da arte de João Gilberto Noll, quando o corpo em ferida
aberta e a solidão, em cena, carregam para o último romance do autor – So-
lidão Continental (2012) – o mundo sem saída e o mesmo narrador anônimo
e degradado com que o romancista inova e renova a escrita, ao aproximar
da linguagem perfumes grosseiros e divinos. Ao final, sujeito e palavra ace-
nam, renascidos, mas encontram-se afogados no mesmo e sempre-igual fosso
do som.
Palavras-chave: Literatura. João Gilberto Noll. Inconsciente.
12 Doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense. Autora de
Corpo e alegoria – João Gilberto Noll – Walter Benjamin, publicado pela Eduff em 2011.
Trabalha onde. Qual é o e-mail de contato?
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Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.
Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.
[...]
Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.
Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?
O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.
No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?
Carlos Drummond de Andrade
1. Introdução
Que correlação se pode fazer entre Carlos Drummond de
Andrade e a narrativa visceral de João Gilberto Noll? A sexta es-
trofe desse poema é a epígrafe do último romance do autor. Noll
não publica poesias. Mas carrega a chave do reino, ou seja, de-
monstra na escrita a mesma insatisfação contra o tempo.
O contemporâneo vive momentos em que o indizível cada
vez mais encontra espaço no inconsciente humano. Como descre-
ver tantas tragédias e acontecimentos inimagináveis, barbáries que
matam mais no coletivo do que no individual? Como entender que
a mesma mão que salva, mata seu igual sem compaixão? E, o
mundo quanto mais tecnologicamente avançado mais contempla o
indivíduo em sua solidão.
“A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhe-
cer que o passado já não pode ser destruído, porque sua destruição
leva ao silêncio, que deve ser revisitado: com ironia, de maneira
não inocente.” Esse pensamento de Umberto Eco, citado por Do-
mício Proença, em Pós-Modernismo e Literatura (1988), retrata
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fielmente a arte contemporânea, que sem qualquer modelo a se-
guir, repete a estrutura de busca e quebra de um tempo de entre-
-guerras, para desaguar o novo.
Nosso objetivo aqui é partir das palavras-chave “corpo”,
“imagem”, “linguagem”, “escrita” e “percepção”, para falar do
contemporâneo na literatura brasileira: tempo de “solidão crônica”
em que ler é matar um pouco o vazio, uma interessante possibili-
dade de ouvir vozes saídas de “bocas famintas de fraternidade” e
“vivenciar as emoções, mesmo as mais rasteiras, para o coração
não correr o risco de atrofiar” (NOLL, 2012, p. 61).
Se o poeta de A Falta que Ama traz nas águas do rio-tempo
uma utopia iluminada, mesmo que seja o renascimento do sonho
de amar, o romancista de Solidão Continental (2012) pouco difere
do seu antecessor. Ele amplia a dor vivida pelo narrador a propor-
ções continentais. Percebe-se, na presença desse eu, o outro, em
busca de cura e encontro de si mesmo ante sua natureza degrada-
da. Ambos tratam de um tempo de dissolução, tempo marcado por
desencanto e impossibilidades.
Nesse poema, Drummond planta no esquecimento e na sur-
dez do tempo. Planta na união. Aposta no entretempo, como espa-
ço em que o presente se faz entre o passado e o futuro. E, de uma
superfície de cimento faz nascer o sonho de amar: a semente poé-
tica.
João Gilberto Noll aposta em seus romances, na fusão dos
corpos e nas imagens oníricas ou em uma utopia possível, como
fuga do interregno do contemporâneo sem propostas: “...havia
sempre uma pequena ferida a fechar, às vezes mínima, que podia
ser sarada com um contato de pele (...), um beijo que não era dado
havia anos, um sonho comentado na manhã seguinte” (NOLL,
2012, p. 35).
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Nessa narrativa, a solidão é uma doença avassaladora que
atinge o coletivo em tempos de frustrações cotidianas. O protago-
nista de Solidão Continental é um indivíduo anônimo, maduro,
professor de língua portuguesa, andarilho, que carrega um “des-
mazelo mental”. Vive petrificado em um momento que define co-
mo “ponto intervalar”, cuja obsessão é buscar no encontro dos
corpos uma forma de quebrar a solidão e sarar suas próprias feri-
das. O narrador quer um novo cotidiano, quer deixar fluir sua pró-
pria natureza, a partir do toque, algo que o sacuda do isolamento e
o faça “verificar que o mundo continua doendo”. Seu maior desejo
é “engrenar um acontecimento” capaz de fabricar a escrita de um
novo romance a partir da errância e de seus fantasmas.
Assim, Solidão Continental narra a viagem de um homem,
sem nome, de Chicago ao Sul do Brasil, passando pela Cidade do
México e retorno ao Rio Grande, estado origem do autor. Não há
dúvida de que em Porto Alegre o personagem continua vagando,
agora na companhia de um jovem que parece ser italiano. Um ga-
roto que misteriosamente desfalece no meio da jornada. E que o
homem passa a carregar no ombro pelo interior do Rio Grande
como uma louca via crucis, até que, finalmente, num hospital ir-
rompe uma libertação mais que surpreendente (Sinopse da obra,
editora Record)13
.
Ele se apodera do corpo do rapaz para curá-lo. Depois des-
cobre que o suposto estrangeiro é um farsante, pois usara o idioma
para atrair para sua companhia, ele, um professor de português pa-
ra estrangeiros. Descoberta a cilada, o narrador ferido e com pon-
tos na cabeça retorna à cidade, pois reconhece que é com ela que
agora precisa se entender para reingressar no cotidiano solitário.
Totalmente confuso, em estado de “meditação enfermiça”, o
narrador teme não encontrar mais suas próprias referências no
13 http://www.skoob.com.br/livro/254867ED285421-solidao-continental
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mundo. Andar era a saída. Correr em direção nenhuma para apla-
car o sofrimento, observar o mundo e meditar sobre sua mínima
condição. A saída não é a morte porque tirar a vida ele não tem co-
ragem. Mas o encontro com a morte faria com que não tivesse de
aferir a realidade ou a irrealidade da própria circunstância ilhada
em que permanece.
A aurora o acorda numa praia à beira do Guaíba, rio próxi-
mo de onde mora; volta para casa, encontra a porta entreaberta,
entra, a empregada o socorre na limpeza do ferimento. Ante a imi-
nência do encontro dos corpos é narrada a cena final: “e vi que ia
beijar seus lábios entreabertos. E tirar sua roupa. E depois a mi-
nha. E ia, sim, lentamente entrar... (NOLL, 2012, p. 125).
Ler João Gilberto Noll não permite ao leitor uma atenção
desavisada. É preciso enveredar pelas brechas que a linguagem
acena. O leitor deve recompor através das imagens em palavras o
cenário, perscrutar a cena, acompanhar o narrador, decifrar ambi-
guidades, observar o avesso do mundo e a rua como um teatro em
que os narradores – poucos protagonistas – transitam em desor-
dem, pois levam sempre o leitor a uma confusão desmesurada.
Cabe a cada leitor colher os cacos desse mundo que con-
templa narradores desbussolados para compor o sentido na supre-
macia da linguagem, única chave do reino, no momento em que a
crise da narrativa cerca a literatura contemporânea.
Perguntamos ao autor, em entrevista publicada no Diário de
Pernambuco, Suplemento Cultura (2012):
A solidão hoje é uma doença que se apresenta em decorrência do
mundo desequilibrado em “cotidianas frustrações”. Assim se lê em
Solidão Continental. O narrador nesse romance relata que tem pudor
e se sente humilhado de relatar esse sentimento a conhecidos e des-
conhecidos. Você crê que esse homem vê a solidão como uma degra-
dação moral, uma incapacidade de engendrar novos relacionamentos?
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A resposta de João Gilberto Noll é esclarecedora e, ao
mesmo tempo, deixa uma abertura para o leitor procurar uma ex-
plicação para a narrativa e o tempo:
Solidão Continental é um dos meus livros que mais especulam
sobre a vergonha. Às vezes de uma maneira curiosa: quando ele está
a seguir o garoto por um caminho de terra esburacada, ele avalia que
é melhor aquele seu sentimento de humilhação do que a sua atmosfe-
ra rotineira. Ele tem vergonha de seu vazio e logo que se encanta por
Frederico começa a imaginar muitas viagens e um mundo social mais
povoado, para não matar um jovem de tédio e não fazê-lo escolher a
deserção. Ele conseguirá esse prodígio? (NOLL, 2012, p. 34)
1.1.Corpo: ferida aberta em rictus dramático
Nesse entreato havia a criação de uma ter-
ceira pessoa que ele estava sabendo inventar
para me conceder ainda mais cobiça carnal
(NOLL, 2012, 17).
João Gilberto Noll não empresta sua voz a sujeitos centra-
dos. Pelo contrário, é o homem comum que o interessa. Como re-
presentante da escrita do tempo presente, ele faz questão de trazer
em cada obra: corpos solitários.
Nas narrativas contemporâneas, o corpo atua como signo
semiótico, é linguagem e está sujeito a inúmeras significações e
transita entre várias temáticas, dentre as quais a dissolução. Disso-
lução das identidades, das instituições, das utopias, das certezas.
Observa-se nessa narrativa uma performance em que o corpo e a
palavra integram uma multiplicidade de imagens e desafiam o lei-
tor na busca da unidade do sentido.
Convém pensar na ideia do eu versus o outro. Na proposta de dissolução dos laços afeti-
vos construídos pelas relações sociais. Discussão tão presente em nossa cultura, embora
a solidão frente à telinha do celular; ou à telona da televisão não preenche interiormente
o indivíduo, pois até a amizade passou a ser algo compartilhado sob o signo do virtual e
do efêmero.
O encontro, a fusão de dois corpos além dos limites do realismo, é quase uma obsessão
na prosa desse autor. Nesses momentos, além do figurativo, o erotismo avulta. Um homo
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eroticus, como acentua o sociólogo francês Michel Maffesoli, erotismo no sentido “erótico
social” essencialmente por sua relação com o outro (EICHENBERG, 2014, p. 4).
Fundir é a saída encontrada pelos protagonistas para dar mais energia ao corpo. Dois
corpos em luta, em fuga na quase morte. Mas há também o sofrimento pela inquietação
do cotidiano. Isso dá força e movimento à narrativa porque é pela fusão e pequenas mor-
tes no gozo erótico, que esses corpos aproximam-se do sagrado, da perfeição, ganham
intensidade e força positiva para encenar a dor do mundo. Diz o narrador: “Entre mim e
aquele cenário havia como uma mucosa transparente doendo se eu tocasse” (NOLL,
2012, p. 77).
Assim, a solidão nesse último romance de João Gilberto Noll é uma ferida aberta. Ela es-
tá no centro da cena. Por ela, o corpo encena a palavra; o corpo é estrada que o outro
percorre (sendo esse outro também o leitor); o corpo é entranha a ser penetrada, dela
vaza a vida no limite, o apagamento de um si mesmo refletido no encontro de seus
iguais, “náufragos desconhecidos”. Noll aposta no figurativo, mas não no realismo fantás-
tico, nem somente no realismo de choque. Mas, no performático.
O corpo é dor e salvação. Ele é atingido pelo inesperado, pelo insólito e pela banalidade
da vida: “Às vezes o corpo não reclamava mais”, acentua o narrador; outras vezes, o cor-
po vaga em uma ânsia cega de ultrapassar o vazio interior. O corpo quer dar alento a um
si mesmo ante o insuportável e o inenarrável.
Depois dos anos 1980, o corpo tornou-se, na arte literária, prática e território fundamental
a novas experimentações da escrita enquanto inserção no universo da cultura. Não que
não houvesse referência ao corpo na literatura brasileira desde a Carta de Caminha.
Mas, nesse novo momento da arte, o corpo passa a ser visto como potência e poder de
resistência.
Em obras crepusculares de Drummond em duas antologias – O Corpo: Novos Poemas
(Record, 1982) ou O Amor Natural (1992) – o poeta acentua a sexualidade e a presença
do corpo em seus poemas como nos versos de “Amor – pois que é palavra essencial”:
O corpo noutro corpo entrelaçado,
Fundido, dissolvido, volta à origem
Dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
O fato é que narrar as dores do corpo é, às vezes, se apro-
ximar do que o poeta pode ter de mais profundo em seu inconsci-
ente, zona de sombra e produção do imaginário. Isso quase sempre
cava imagens do sagrado, do sublime; às vezes do grotesco, do ab-
jeto – polos contraditórios que ora se tenta destituir da escrita, para
firmar a arte do contemporâneo como uma construção difusa e
confusa de um centro totalizador. Aposta-se no entrelugar, no “en-
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treato”. No entanto, isso não exclui a margem, pelo contrário, o
sagrado reafirma o profano; o abjeto reafirma o objeto; a morte re-
afirma a vida e a presença do corpo reafirma a condição transgres-
sora do sujeito no mundo.
Na construção estética de João Gilberto Noll, o corpo é pa-
lavra-matéria em um mundo sensível em que a fricção é necessária
para não sucumbir. Tudo isso corrobora para a construção de no-
vas formas estéticas, teatralidades da imprecisão, que dissolve a
ideia de interpretação, a ideia da representação do vivido; para os
efeitos da percepção e da apresentação de visualidades no mundo
narrado.
O fato é que o real não mais satisfaz. E, conforme Georges
Bataille anuncia em A Literatura e o Mal, a literatura tem de sur-
preender, daí o insólito, o acaso e o inesperado serem aspectos que
retornam sempre na palavra do autor gaúcho. Tal como o homem
isolado é nada, a literatura foca no corpo como pulsão de vida e
morte (algo capaz de ser afetado e afetar) para produzir intensida-
de às narrativas. Mas é um encontro selvagem.
Desse modo, o homem aqui vive uma vida brutal. Vive a
penúria do corpo, a angústia da alma, um desgaste físico que exige
uma necessidade de ruptura para se refazer seja na dissolução, no
êxtase ao olhar o mar, na chuva, na expulsão dos excrementos ou
no choro convulso.
As obras de Noll exemplificam plenamente o momento des-
corporificado em que o homem vive, quando tudo é fluido, sem
sentido, indefinido e afeta a todos em qualquer condição social.
Suas narrativas desfolham imagens que se esfacelam em segundos
no estilo direto do escritor de dizer muito com poucas palavras.
Uma narrativa que, ao mesmo tempo, que é leve, asfixia e como-
ve.
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Tudo tem seu preço em meio a tantos avanços tecnocientífi-
cos e biotecnológicos, o homem vê-se saturado de modernidade e
paga com a corporeidade e o sacrifício do ser as consequências de
sua utopia desenvolvimentista. Hoje o homem está cada vez mais
destituído de pensar o futuro. No mundo consumista, os seres hu-
manos despem-se de si mesmos e veem-se em contínuo abismo
identitário, temporal e espacial, onde muitos não sabem aonde ir.
O espaço e o tempo no romance aproximam o homem do presente.
A solução para sobrevivência futura ainda é um enigma e
esbarra em algumas indagações a serem respondidas: como dividir
o pouco que se tem com tantos que nada têm? Como encontrar a
unidade na multiplicidade? Como ser solidário com as vozes peri-
féricas que vivem o mesmo sofrimento? Como fixar e afirmar a
subjetividade no mundo de mudanças permanentes? Qual o limite
da tênue linha que separa o ser, o ente, a pessoa, o indivíduo ou o
cidadão? A luta pela liberdade importa em constante fragilidade e
fuga do abismo e uma guerra invisível entre o eu e o mundo. “Ta-
manha era a solidão de cada um que já queria vê-los enturmados
até a medula. [...] Tamanha a solidão que nós três poderíamos pas-
sar a viver juntos na mansão”. (NOLL, 2012, p. 54)
1.2.Entreato: escrita renovada e sempre-igual
O que parecia um toque realista virou
de súbito aos meus ouvidos demencial
(NOLL, 2012, p. 91).
João Gilberto Noll soma aspectos da tradição literária para
renovar sua escrita no jogo ou trapaça em que insere a literatura e
o artista mambembe na dificuldade de equilibrar a palavra com ar-
te.
Se o crítico e escritor Silviano Santiago (2002), em A Fúria
do Corpo, diz que Noll escreve um “romance cristão” com uma
“grafia porosa”, Luciano Trigo aborda a relação do autor “quase
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carnal com a literatura”. Sobre esses aspectos, o narrador errante
de Solidão Continental justifica:
Antes de me levantar e partir, comentei que ele então era mórmon. Desses comentários
que fazemos para reverberar algum assunto não satisfatoriamente desenvolvido [...]. Há
tantas coisas ruins no mundo, ele falou. E acrescentou: Não é possível que Deus não ve-
ja isso tudo. Depois de ter vivido uma guerra, a gente fica sem saber, ele disse num rictus
dramático (2012, p. 27).
O narrador desse último romance é o mesmo alter ego do
autor e escritor. O narrador empresta seu corpo-performer para
apresentar a dissolução das imagens e a conversão da própria es-
crita. Uma arte performática.
A palavra reforça as características do contemporâneo. Uma
palavra preciosa e imbuída de um ideal maior. Uma ação na reli-
gião, que não explora o misticismo, o sagrado, mas se apropria de-
les tão somente como estratégia ficcional, para expressar a ideia de
homem depauperado, esquecido do supremo e destituído da graça
divina. É importante relatar que a narração não é uma retórica bí-
blica, mas – ressalte-se – que a palavra do narrador permite o en-
contro do literário com o símbolo cristão, o encontro de chaves de
leitura, que passam por esses conhecimentos seculares.
Outras marcas contemporâneas podem ser observadas na
obra desse romancista gaúcho além da própria desconstrução do
processo. Sobre a dissolução na obra de João Gilberto Noll, cabe
observar que esta característica aponta para um novo modelo de
representação do real no ficcional, que quer abrir a realidade a
qualquer custo e mais detalhadamente possível ao leitor. Entenda-
se “dissolução” como “destruição criativa”.
O caráter híbrido, inacabado, aberto e fluido da forma literá-
ria tem correlação com o presente. Para Walter Benjamin é a visão
da linguagem como história e a visão da história como linguagem
que nos ajudam a compreender melhor estas relações. O historia-
dor deve estabelecer uma correlação entre os diversos momentos
da história e “a história literária é concebida por ele como ‘produto
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de uma construção’ ou ‘apropriação reconfigurativa’” (PLAZA,
1987, p. 3).
Trata-se de uma tentativa de ordenação do mundo a partir
da desarticulação das palavras, das imagens e até da estrutura. Os
personagens são seres sem esperança, eles carregam múltiplas vo-
zes, a ruína de um tempo destituído de força de mudança já que
não há rumos a apontar. Invenção, audácia, risco e figuração estão
nas narrativas que não mais seguem movimentos ou tendências.
Mas se inscrevem em uma relação multifacetada sem um eixo co-
mum.
Em Édipo e o Anjo, Paulo Sérgio Rouanet comenta a teoria
das imagens dialéticas de Walter Benjamin. Demonstra que a con-
cepção da dialética do novo e do sempre-igual, justifica a presença
de um tempo infernal, tempo de eterno retorno, em que o autor
tem de dar conta da demanda, produzir sempre o novo em cada
obra. Este teórico “acredita que a imagem dialética traduz a pre-
sença do sempre-igual nas estruturas do capitalismo. Mas ao con-
trário do capitalismo, julga que essas estruturas revelam, também,
nesse sempre igual a latência do novo” (1990, p. 94).
Na verdade, o próprio capitalismo corresponde ao duplo
movimento de sua própria dialética: o novo se opõe ao velho e vi-
ce-versa, pois, no sistema capitalista, o novo já é em si o velho, diz
Benjamin em sua crítica cultural: “o novo é a transfiguração fan-
tasmagórica do eterno retorno, movimento atribuído ao imanente,
às estruturas da reprodução ampliada”. Esse pensamento tenta
desprender o conteúdo utópico do arcaico – o sempre-igual como
novo – pois “o Mesmo torna-se mais qualitativo se reproduzindo a
níveis quantitativos cada vez mais elevados” (ROUANET, 1990,
p. 95-97).
Noll traz os mesmos elementos transmutados pela lingua-
gem do tempo. Assim, através da repetição do sempre-igual, ex-
pressa seu desconforto pelo mal-estar contemporâneo. Sua arte le-
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va uma mensagem de acolhida ao que se pode chamar de utopia
através dos gritos de seres desordenados ante as cicatrizes do tem-
po: “Naquela vertigem pós-ferimento, nome, endereço eram coisas
sólidas, pesadas demais para que eu pudesse puxá-las do pensa-
mento. Elas doeriam para sair” (NOLL, 2012, p. 88).
Convém afirmar que esse processo de construção da ima-
gem, na vasta obra de João Gilberto Noll, coloca em xeque todos
os elementos da narrativa clássica: narrador, personagem, espaço,
tempo, enredo e também inclui a linguagem.
A prosa veloz do autor, sem pontuação ou parágrafo de suas
primeiras histórias, evolui para a fragmentação, parágrafos longos,
períodos coordenados, substantivação em excesso, ausência de flo-
reios ou adjetivação, reticências em demasia, e, não importa que
seja uma voz desordenada no romance ou um corpo insano porque
“a vida tem fome de si própria e que nenhuma porção nem mesmo
a esfinge da morte pode paralisar a fome da vida” (NOLL, 1981,
p. 135).
Faz parte do jogo da escrita desse autor a confusão. O nar-
rador-performer resume: “Tudo me confundia, mas sei que essa
confusão fazia parte do jogo...” (NOLL, 2008, p. 109). Drum-
mond, em Claro Enigma (1951) traz o poema Dissolução. Nessa
estrofe o eu-poético encerra o corpo e a palavra para expor a dor
de pensar, quando retrata a imaginação:
Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito, calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
Na literatura contemporânea, isso tudo são ingredientes que,
somados, servem multiplicidade na linguagem ao leitor. Alguns
chegam a abandonar o livro. Outros chocam-se; outros se encan-
tam pela escrita: “a poética do instante, a poética do não, a poética
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do excesso, a literatura da acumulação, a poética da dissolução” e
começam a desafiar a leitura de imagens e nelas se encontram.
Em Solidão Continental, o desconserto atinge o pensamento
do protagonista que narra sempre cenários inusitados. Um sujeito
em estado demencial, estado de sanidade, estado subterrâneo, situ-
ação de “overdose medicamentosa”, estado trêmulo, amnésico,
fraco, de uma existência ensimesmada ou um viver entre compa-
nhias etéreas.
A premência do dizer e do fazer de João Gilberto Noll, a
partir do corpo envolto em ritual-performático, aponta para uma
arte que é igualmente resistência e busca; formação e deformação.
É, também, uma aptidão estética através do eterno retorno do
mesmo, possível de ser lida pela polaridade e complementaridade
entre coesão e dissolução; realidade e ficção ou corpo e palavra.
Trata-se de literatura capaz de romper limites, em um
“mundo sem viva vibração”, porque as palavras desgastadas en-
contram-se esvaziadas de potência, para tirar o homem da intole-
rância e da indiferença em que se encontra mergulhado. Em entre-
vista, João Gilberto Noll reafirma nossa leitura, ao dizer que ele
promove seu fazer literário, a partir da insuficiência ou do desvio:
É sempre muito difícil escrever, cada vez mais difícil. Você vai
ficando mais exigente com sua produção. Quando a coisa chega ao
nível de ser vomitada – porque trabalho com o inconsciente – sai uma
maçaroca, é difícil conviver com ela. [...]. A literatura vem do erro
muitas vezes, da insuficiência. Não é um quadro de normatividades,
se origina do desvio, da dissonância [grifo nosso] (NOLL, Jornal do
Brasil, 2008, p. 2).
Drummond não pensava diferente. A guerra fazia parte do
fazer poético:
Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não
considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-
de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com
as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e
secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação.
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Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à
mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos (2012)
[grifos nossos].
Isso serve de alerta aos leitores da literatura da contempora-
neidade. É preciso conceber a literatura como arte produtora de
pensamento interior para apresentar reflexões sobre o tempo e o
contexto atual, é preciso estar atento aos mínimos abalos, continu-
ar participando e produzindo, até que algo se revele – ou não –
como essência de um coletivo.
Se no meio do caminho do poeta mineiro tinha uma pedra,
os escritores do presente têm muitas guerras a vencer. Entre elas, a
procura de substituir a falta por “algo que não há” e que ainda não
sabemos para onde caminha (ANDRADE, 2012, p. 27).
REFERÊNCIAS
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Record, 2012.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. [Coleção Passagens].
Trad.: António Borges Coelho. Lisboa: Vega. 1998.
EICHENBERG, Fernando. Michel Maffesoli: era de novos pa-
drões [entrevista]. O Globo. Prosa & Verso, 2014, p. 4.
NOLL, João Gilberto. A fúria do corpo. Rio de Janeiro: Círculo do
Livro, 1981.
______. Acenos e afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008.
______. Solidão Continental. Rio de Janeiro: Record, 2012.
PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva,
1987.
PROENÇA FILHO, Domício. Pós-modernismo e literatura. São
Paulo: Ática, 1988.
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ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o Anjo: itinerários freudianos
em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Roc-
co, 2002.
TRIGO, Luciano. Noll fala de sua relação quase carnal com a lite-
ratura. Blog do Galeno, 30/09/2008. Disponível em:
<http://www.blogdogaleno.com.br>. Acesso em: 16/09/2014.
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A CORRESPONDÊNCIA E O DISCURSO DE SI:
CONFISSÃO OU FICÇÃO?
Luciana Paiva de Vilhena Leite14
RESUMO
Este artigo pretende analisar algumas correspondências pessoais troca-
das por autores da literatura e entre esses autores e locutores de sua esfera
pessoal. Partimos do pressuposto de que a carta é um gênero que congrega
uma série de estratégias discursivas entremeadas, tais como pedidos, decla-
rações, narrações, ordenações, sem que isso interfira na sua macroestrutura
discursiva constitutiva. Defendemos, ainda, que a carta pessoal apresenta
um locutor que constitui um discurso de si ficcionalizado, ainda que se apre-
sente em tom confessional. Esse pensamento costuma se afastar do que tra-
dicionalmente se concebe para o discurso das cartas pessoais, já que essa
materialidade discursiva costuma revelar-se em tom eminentemente confes-
sional. Nesse sentido, o artigo busca justamente apontar o movimento pen-
dular que o discurso das cartas pessoais parece ter, ora aproximando-se da
confissão ora da ficção, em que, invariavelmente, o sujeito coloca-se discur-
sivamente como objeto.
Palavras-chave: Correspondência. Discurso. Confissão. Ficção.
Os limites de minha linguagem
significam os limites de meu mundo.
(Wittgenstein)
14 Doutora em língua portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é profes-
sora adjunta de língua portuguesa da Escola de Letras da Universidade Federal do Esta-
do do Rio de Janeiro. E-mail: vilhena_lu@yahoo.com.br.
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Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!
(Mario Quintana)
1. Palavras iniciais
Tradicionalmente, a correspondência costuma ser definida
como um gênero em que o locutor apresenta-se, supostamente, em
situação monolocutiva, uma vez que ele é o responsável pelo
‘agenciamento’ dos turnos, propondo o tema, construindo o enca-
minhamento discursivo e revelando o posicionamento perante o
discurso que produz. Contemporaneamente, entretanto, especial-
mente no esteio do pensamento bakhtiniano em que bebem tam-
bém autores como Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau
(estes últimos filiados à corrente semiolinguística do discurso), as
cartas são concebidas como gêneros discursivos em que o sujeito-
locutor ‘projeta’ um sujeito-interlocutor de modo a construir seu
discurso baseando-se nessa relação de cunho majoritariamente
idealizado, especialmente quando se trata de cartas pessoais.
A ideia que gira em torno da ‘projeção dos sujeitos enunci-
adores’ aparece em todo gênero de discurso, entretanto assumimos
aqui que, na correspondência, como se conhece antecipadamente o
interlocutor, a situação de projeção parece intensificar-se, o que, a
princípio, poderia parecer contraditório. Se o interlocutor é conhe-
cido, se eu sei quem ele é, por que projetá-lo, por que idealizá-lo?
Uma das possíveis respostas a tais indagações pode ser dada
quando pensamos que a carta, especialmente a pessoal, é uma ma-
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terialidade discursiva em que o locutor procura, mesmo que in-
conscientemente, o tom confessional, o desabafo, a cumplicidade,
uma vez que espera que somente o interlocutor saiba do que ele
está falando, não havendo outros interlocutores com acesso ao seu
conteúdo. Baseando-se nisso, o locutor das correspondências pare-
ce mostrar um vacilo, uma oscilação que parece enquadrar seu
discurso entre a ficção e a confissão, já que, muitas vezes, ele mis-
tura situações e comportamentos que flutuam entre o que de fato
ocorreu e o que ele gostaria que ocorresse. O que rege essa flutua-
ção é justamente o grau de intimidade, de aproximação entre o lo-
cutor e o interlocutor das cartas, pois, como se sabe, quanto maior
a aproximação afetiva, maior o nível de expectativa no que se re-
fere ao universo das relações interpessoais.
Esse pensamento, na realidade, não é novo e é constitutivo
da condição humana, pois, a partir do momento em que somos do-
tados de linguagem – e não cabe aqui perscrutar os infindáveis
caminhos teóricos que levam em conta o seu domínio e a sua aqui-
sição – e produzimos discursos, estamos narrando, descrevendo,
informando, pedindo, ordenando a partir de um ponto de vista, isto
é, a partir do que somos ou do que pensamos ser, levando em con-
ta a nossa experiência de “seres no mundo”.
O objetivo deste artigo é, portanto, ajustar o olhar para a
correspondência pessoal de autores da literatura, que se corres-
pondem entre si, passando também a cartas de autores que se diri-
gem a amigo(s), irmão(s), cônjuge(s), para apontar que esses sujei-
tos-autores se reinventam e constroem um discurso de si que se
mostra ora confessional, ora ficcionalizado. Nesse sentido, interes-
sa-nos, ainda, trazer à tona a ideia de que esses autores se afastam,
muitas vezes, do ethos15
que constroem a partir de suas obras.
15 Optamos por usar, aqui, a noção de ethos, como mostra Charaudeau & Maingueneau
(2004, p. 220) no sentido de imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para
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2. A correspondência e a ficção de si
A todo momento que operamos trocas verbais, estamos
construindo “ficções” de nós mesmos. É importante ressaltar que
não estamos tratando aqui da ficção de dimensão literária ou artís-
tica; falamos de uma “maneira” de narrar o que nos ocorre que
perpassa necessariamente pelas nossas experiências e nos inaugura
como autores de nós mesmos e a respeito de nós mesmos. Tudo se
passa como se nos tornássemos um alter ego do nosso próprio eu.
A respeito disso, o campo da psicanálise muito vem contribuindo
desde os estudos de Freud sobre o inconsciente e a linguagem e a
associação livre até o mais recente pensamento de Lacan, que rein-
terpreta o esquema do signo saussuriano.
A respeito das missivas, Ribas (2008, p. 31) nos diz que
“não é por serem cartas que nos dizem ‘a verdade’, mas sim ‘ver-
dades’”. Nesse sentido, ainda que autores consagrados da literatu-
ra saiam do campo da ficção literária, eles não escapam de cons-
truir uma espécie de “ficção de si”, especialmente quando se trata
de cartas pessoais, objetos deste estudo. Ainda de acordo com Ri-
bas (op. cit., p. 31), “o afeto é a porosidade, a abertura que permi-
tiria a alteridade, a presença do outro no discurso do mesmo”.
Sendo assim, as cartas pessoais representam um terreno especial-
mente fecundo, quando pretendemos compreender que as relações
discursivas partem de um campo que extrapola o autobiográfico e
recaem no espaço da representação, da recriação e, como estamos
adotando aqui, da ficção de si.
De maneira mais geral, quando se escreve uma carta, cos-
tuma-se entremear infindáveis estratégias discursivas, conforme os
diferentes propósitos enunciativos. Desse modo, o locutor do dis-
curso das missivas mescla estratégias segundo os objetivos de sua
exercer influência sobre seu alocutário. Trata-se, pois, de imagem de si que o orador pro-
duz em seu discurso e não de sua pessoa real.
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enunciação, conforme pretenda argumentar, pedir, ordenar, narrar,
descrever. A correspondência é, pois, um gênero que congrega di-
versos modos de organização do discurso16
, pois sua estrutura ma-
crotextual de certa forma rígida – em que aparecem o emissor e o
receptor17
, o assunto, o corpo textual e a assinatura do remetente –
aceita diversos “modos de se dizer o que se diz”, inclusive com a
possibilidade de misturá-los.
Nesse sentido, a correspondência íntima, pessoal, familiar
parece apresentar um território mais propício a essa mescla de es-
tratégias e de modos de organização discursiva, já que o locutor
está, muitas vezes, diante de um “fluxo de consciência” regido,
obviamente, pelo afeto que envolve a sua relação interpessoal com
o destinatário “real” da carta. De acordo com Gomes (2004, p. 21),
A correspondência privada é, com frequência, um espaço que
acumula temas e informações, sem ordenação, sem finalização, sem
hierarquização. Um espaço que estabelece uma narrativa plena de
imagens e movimentos – exteriores e interiores – dinâmica e incon-
clusa como cenas de filme ou de uma peça de teatro.
É justamente ao recuperar esse pensamento que percebe-
mos, no discurso das cartas pessoais, um campo que pode coadu-
nar ficção, narrativa de si, memória afetiva e episódica, confissões,
entre outros modos de organização discursiva cuja perscrutação é,
no mínimo, curiosa. É como se essa materialidade discursiva fosse
– e talvez seja – o único “lugar” em que o pensar e o sentir se ajus-
tem e se misturem sem problema algum, levando o locutor a um
processo de desvelamento do eu, que opera do consciente ao in-
consciente.
16 Usamos, neste artigo, a definição e Charaudeau (2008) para modos de organização do
discurso, cuja noção liga-se ao conjunto de procedimentos de colocação em cena do ato
de comunicação, que correspondem a algumas finalidades (descrever, narrar, argumen-
tar etc.).
17 Utilizamos os termos “emissor” e “receptor” não nos moldes de Jakobson, mas para
tentar dar conta da estrutura formal e espacial de diagramação da carta.
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3. Aporte teórico-metodológico
Longo (2011) pensa a linguagem como um universo des-
contínuo em relação à realidade, não podendo ser uma entidade
geradora de significados definitivos. Segundo esse pensamento, o
sujeito que “produz” a linguagem é um efeito dela própria, uma
reverberação, um precipitado na ordem do discurso, do qual não é
mestre. Nesse sentido, segundo Lacan (apud LONGO, 2011, p.
09),
Enquanto é linguagem humana, nunca há univocidade do símbolo
(...) a linguagem não é feita para designar coisas; há um logro estrutu-
ral da linguagem humana, neste logro está fundada a verificação de
toda a verdade.
O logro estrutural da linguagem humana consistiria em sua
“estrutura de rombo”, análoga à do sujeito que a criou. Desse mo-
do, quando pensamos em línguas naturais, pensamos sempre em
três elementos: o “eu” (o sujeito que fala), o “tu” (o sujeito a quem
se dirige a fala, portanto o sujeito que ouve) e o “ele” (o sujeito ou
o assunto de que se fala). Sobre esse aspecto, Benveniste (1995)
muito tem a nos dizer no capítulo intitulado “O homem na língua:
estrutura das relações de pessoa no verbo”, em que afirma que o
verbo é, com o pronome, a única espécie de palavra submetida à
categoria da pessoa. Mais adiante, no capítulo intitulado “Da sub-
jetividade na linguagem”, Benveniste (op. cit.) ressalta que a lin-
guagem está na natureza do homem, que não a fabricou. Segundo
o autor, não se deve crer na imaginação ingênua de um período
original, em que um homem completo descobriria um semelhante
igualmente completo e, entre eles, pouco a pouco, se elaboraria a
linguagem. De acordo com Benveniste (1995, p. 285), essa ideia é,
pois, pura ficção, já que
Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o
vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido
a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um ho-
mem falando que encontramos no mundo, um homem falando com
outro homem, e a linguagem ensina a própria definição de homem.
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Sendo assim, o homem vai se constituindo como sujeito e
vai constituindo o seu mundo na linguagem e a partir da lingua-
gem. De acordo com essa noção trazida por Benveniste, o homem
busca explicar, criar ou “reinventar” o mundo a partir das catego-
rias da língua. Dessa forma, podemos rediscutir e até relativizar a
concepção segundo a qual a linguagem serviria (apenas) para pro-
pósitos comunicativos. Segundo o que estamos defendendo aqui,
ela serve a muitos outros propósitos anteriores a esse, que giram
muitas vezes em torno da própria identidade do sujeito no mundo.
Corroborando esses pressupostos, Noam Chomsky (2014, p.
27), em entrevista a James McGilvray, cujos textos estão reunidos
no livro recém-lançado “A ciência da linguagem”, nos diz que a
linguagem não tem “a função externa” da comunicação, mas, an-
tes, oferece-nos a “função interna” do pensamento. Essa concep-
ção, conhecida como “mentalista” revolucionou os estudos da lin-
guagem pós década de 70, quando o estruturalismo ainda era vi-
gente como corrente de pensamento. Dessa forma, de acordo com
Chomsky (op. cit., p. 27),
A maior parte da linguagem em uso é de natureza interna; o que é
externo é uma pequena fração dela “e o que se usa para a comunica-
ção é, em um sentido muito importante, uma fração ainda menor de-
la”. Como as funções da linguagem são usualmente definidas de mo-
do informal, não faz muito sentido dizer que a função da linguagem é
a comunicação.
Assim sendo, de alguma maneira, o linguista defende a
ideia de que o homem usa a linguagem muito mais para o conhe-
cimento de si do que para a “real troca efetiva” com outro homem,
uma vez que o próprio aspecto interacional se dá de modo a forne-
cer meios para conhecimento como sujeito.
Charaudeau (2008), usando ponto de partida diferente, mas
não antagônico, já que está concentrado em “fundar” uma propos-
ta semiolinguística do discurso e, de alguma maneira, retomando
as proposições de Benveniste (op. cit.), propõe a linguagem como
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ideia de dispositivo enunciativo de que fazem parte ao menos 4 su-
jeitos: o Eu-comunicante; o Eu-enunciador; o Tu-comunicante e o
Tu-destinatário. Essa concepção, longe de considerar a linguagem
e o discurso como meros instrumentos para a comunicação entre
os interlocutores, lança mão do que o autor entende por “circuito
interno” e que a nós cabe, aqui, chamar de “circuito das proje-
ções”. Assim, temos um sujeito social, real, empírico – o Eu-co-
municante (circuito externo), que projeta seu próprio “eu discursi-
vo” – o Eu-enunciador, de acordo com a antecipação de um Tu-
comunicante (circuito externo), que, por sua vez, representa, no
campo interno do discurso, o Tu-destinatário. Em outras palavras,
tudo o que se passa na linguagem, na enunciação e no discurso na-
da mais é do que uma “projeção” daquele sujeito-locutor. Ainda
de acordo com Charaudeau (op. cit.), o ato de linguagem deve ser
visto como um encontro dialético, encontro esse que fundamenta a
atividade metalinguística de elucidação dos sujeitos da linguagem
entre os processos de criação e de interpretação. Ressalte-se, por-
tanto, que por “interpretação” entendemos a decodificação de um
discurso e, por isso, instaura-se como um processo que o autor
chama de “circuito interno”, ainda que influenciada pelo chamado
circuito externo.
Não poderíamos deixar de mencionar a importância dos es-
tudos de Bakhtin (2006), que inauguraram uma nova concepção ao
campo dos estudos da linguagem. Ainda que seu pensamento te-
nha inicialmente se desenvolvido no final da década de 20 e, por-
tanto, anterior a Benveniste, Chomsky e Charaudeau – já citados
neste capítulo, Bakhtin instaura a concepção que relaciona lingua-
gem à dimensão ideológica e, por mais que essa noção pareça
afastar-se do que estamos tratando aqui, entendemos que se trata
de uma reinterpretação da concepção saussuriana de signo. Em ou-
tros termos, para Bakhtin (2006, p. 32), “ao lado dos fenômenos
naturais, do material tecnológico e dos signos de consumo, existe
um universo particular, o universo dos signos”. E acrescenta:
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Um signo não existe apenas como parte de uma realidade, ele
também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade,
ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico etc. Todo
signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica. (BAKHTIN,
2006, p. 32)
Dessa forma, podemos conceber que, embora a apreensão
do signo seja constituída no “real”, no social e, segundo o estudio-
so, no ideológico, o sujeito se apropria dele, recriando-o conforme
sua concepção de sentido. Em outros termos, o signo passa a ser
“objeto” de valor simbólico e constitutivo de crenças por parte do
sujeito-locutor, de modo que a própria “cadeia ideológica” se es-
tenda de consciência individual a consciência individual, ligando
uma à outra.
Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2003) leva em
conta aspectos da experiência, quando fala da criação de persona-
gens. Como aqui nos cabe entender a correspondência como um
espaço para a ficcionalização do sujeito discursivo, torna-se perti-
nente trazer à tona os dizeres do autor, que passamos a citar:
(...) a forma não é só espacial e temporal, mas também do sentido.
Até agora estudamos as condições em que o espaço e o tempo do
homem e da sua vida se tornam esteticamente significativos; mas
também ganha significação estética a diretriz semântica da persona-
gem na existência, a posição interior que ela ocupa no acontecimento
único e singular da existência. (BAKHTIN, 2003, p. 127)
Para fechar este breve escorço teórico, retomemos, pois, a
relação entre linguagem e psicanálise, brevemente apontada no
início deste capítulo, e que assume importância singular para este
estudo. De fato, a linguagem e a psicanálise são domínios tão con-
tíguos que não é tarefa fácil estabelecer um limite entre os dois
campos. Importa-nos ressaltar que entre o sujeito que fala e o seu
ouvinte existe um anteparo, uma proteção, uma espécie de mura-
lha que se ergue, mesmo quando há silêncio. Essa é a muralha da
linguagem, se quisermos insistir na alegoria.
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A contribuição da psicanálise aos estudos da linguagem leva
em conta os fenômenos simbólicos que, ao serem instaurados, a
partir da linguagem, são fundamentais à vida do espírito e estão
relacionados ao inconsciente – importantíssima revelação de
Freud. De acordo com o psicanalista,
No inconsciente, tudo é possível, não existe contradição, é tauto-
lógico, não há diferença entre verdadeiro e falso; o inconsciente con-
serva [então] o termo que exclui, é autorreferencial e irrompe nas
formações (...) que aparecem no consciente (atos falhos, chistes, so-
nhos e sintomas). (FREUD, 1986, p. 25)
Como podemos notar, quando se trata do universo simbóli-
co, da criação, o inconsciente pode se fazer presente como aparato
justamente para o fluxo criativo. Nesse sentido, entendemos a ação
de narrar, de narrar-se ou de construir uma ficção em torno de si
um processo eminentemente criativo e constitutivo da atividade
humana de produção de discursos.
Cabe, então, para encerrarmos o capítulo, entender a contri-
buição de Lacan aos estudos da linguagem. Ainda que Freud tenha
trazido o importantíssimo conceito de “inconsciente”, foi Lacan
quem ressignificou a concepção freudiana desse domínio, aliando-
a a uma reinterpretação também do signo saussuriano. Afirmando
que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Lacan
(1986, p. 30) dá um passo a mais em direção à perscrutação em
torno do signo linguístico, especialmente no que se refere à noção
de “significante”.
Reinterpretando a noção saussuriana de signo linguístico,
Lacan desconstrói a elipse em que figuram o significante na parte
inferior e o significado na parte superior. Assim, para Lacan, há
uma quebra na barreira da elipse – obviamente figurativa – em que
o significante passa a ocupar a posição superior. Segundo o autor,
o significante é preponderante na fala do locutor que, sem conse-
guir entender o que fala, aliena-se do sentido daquilo que diz. Por
isso, ele torna mais grossa a barra que separa o significante e o
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significado, de modo a torná-la mais resistente. Em suma, para
Lacan, o significado só pode ser atingido por meio da ação impre-
visível das formações do inconsciente. Em última instância, para o
teórico, nós desperdiçamos palavras simplesmente porque essa é a
nossa condição de falantes.
Podemos entender, a partir do exposto, que é, necessaria-
mente, quando se trata do universo dos sentidos, do sentir e dos
afetos, que as palavras se tornam insuficientes para dar conta da
complexidade do humano. Nesses termos, quando ajustamos o
olhar para a correspondência pessoal, notamos, invariavelmente,
uma vocação volitiva por parte do autor por dizer o “indizível”, o
“inconfessável” ou, ainda, uma vocação para o “narrar-se”. E, ao
fazê-lo, ele se enxerga ao mesmo tempo como sujeito e como ob-
jeto do discurso em um continuum, ancorado pelas relações afeti-
vas privadas. É o que tentaremos mostrar na seção a seguir.
4. A autoria de si: as cartas e seus sujeitos-autores
Para iniciar a análise dos excertos das correspondências se-
lecionadas, é necessário ressaltar que optamos por trazer à tona as
cartas trocadas entre autores da literatura brasileira, como Fernan-
do Sabino e Clarice Lispector, mas também as trocadas entre esta
e suas irmãs, na esfera domiciliar, porque entendemos que os su-
jeitos se colocam “afetivos” ao serem próximos, amigos e, muitas
vezes, confidentes. Há, ainda, no pequeno corpus selecionado,
fragmentos de correspondências trocadas entre Machado de Assis
e seus colegas acadêmicos. Optamos, também, por trazer excertos
de missivas trocadas entre Fernando Pessoa e sua namorada Ofélia
Queiroz. Como se pode notar, a amostra é um tanto heterogênea,
mas se homogeneíza porque privilegiamos três aspectos funda-
mentais ao compô-la: 1) o fato de tratar-se de autores conhecidos e
consagrados, portanto, reconhecidos por um público-leitor conso-
lidado; 2) o fato de os sujeitos locutor e interlocutor serem íntimos
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em alguma medida, já que se trata de cartas pessoais e 3) o fato de
os fragmentos terem sido extraídos de correspondências reunidas e
publicadas em livro ou publicação, o que já leva em conta o seu
valor de documento memorialístico, justamente por sua disponibi-
lização para domínio público.
Levando em consideração tais fatores – e considerando que
um recorte é sempre a possibilidade de se enxergar fendas e frestas
de natureza diversa –, passemos à análise dos trechos seleciona-
dos:
(01) (...) vou-me embora e não volto mais, estou triste e com pena de vocês
aí tão longe, viajar é muito ruim. Ainda é tempo de não ir, não tomar o
avião, dizer que esqueci o principal, e o principal é ficar, ir para casa, ler
um livro, conversar, dormir e esquecer.
[...]
E o meu, qualquer notícia que você receber de mim por intermédio
dos jornais já tem um título inevitável e é justamente, em letras grandes:
‘O INEVITÁVEL ACONTECEU’. Assim somos nós no Rio de Janeiro,
gripados todos, complicados e sentimentais, aguardando o sinal dos tem-
pos.
Correspondência de Fernando Sabino a Clarice Lispector.
06 de maio de 1946. (SABINO, 2003, p. 13)
Podemos observar, no fragmento, um sujeito-locutor vaci-
lante, tristonho, em tom melancólico, o que resvala no tom confes-
sional de seu estado de alma. Resvala, porém também se recria, se
reinventa quando ele narra a respeito de si em uma temporalidade
futura, dando conta do acontecimento “inevitável”. Observamos,
pois, que o locutor se coloca fatidicamente na condição de objeto a
partir do qual “se enxerga” e “narra a respeito de si”, não havendo,
necessariamente, fidedignidade com a “vida vivida” pelo sujeito
“real” e empírico Fernando, especialmente na 2ª parte do excerto:
“assim somos nós no Rio de Janeiro, gripados todos, complicados
e sentimentais, aguardando o sinal dos tempos (...)”.
(02) Por que é que todo mundo quer sair do Brasil? E você é espírita é,
Fernando? Então como é que você me pergunta o que eu faço às três
horas da tarde? (...) Ou já falamos sobre isso? Às três horas da tarde
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sou a mulher mais exigente do mundo (...) Se o telefone tocar dou um
pulo e se me “convidam” eu pareço criança ou cachorrinho, saio cor-
rendo e enquanto corro, digo: estou perdendo minha tarde.
Correspondência de Clarice Lispector a Fernando Sabino.
19 de junho de 1946. (SABINO, 2003, p. 20)
Esse trecho revela um locutor que se instaura em tom bem
humorado – “E você é espírita, Fernando?” –, mas também irôni-
co, quando diz “às três da tarde sou a mulher mais exigente do
mundo”. Longe de querer revelar-se como “realmente é" (e have-
ria essa possibilidade?), o discurso epistolar de Clarice parece nos
convidar a desnudar sua(s) persona(s) entediada(s) com o cotidia-
no, mas, ao mesmo tempo, enredada(s) por ele.
(03) Sem carta para responder, escrevo para dizer que estou bem, sem
novidades. Fui de novo ao médico; ele disse que estou bem e que a
criança deve nascer lá para meados de setembro. De modo que vocês
não se impacientem com a demora [...] E Márcia? Como está essa
querida? Estou com a impressão de que vou ter menina também (...)
Correspondência de Clarice Lispector a sua irmã, Berna.18
19 de junho de 1946. (LISPECTOR, 2007, p. 17)
O tom que aparece no excerto (03) é o de um sujeito de su-
posta “neutralidade” em relação aos acontecimentos em torno de
si, como se a sua própria vida fosse desinteressante ou desimpor-
tante. No trecho, Clarice deixa claro que está grávida, mas parece
não se envolver emocionalmente com esse fato. Ao contrário, pa-
rece distanciar-se, criando um espaço de deslocamento do próprio
“eu”, a respeito de quem passa a narrar. Observamos, entretanto,
que o locutor muda o tom quando lança mão de curiosidade acerca
de um interlocutor que não é ele próprio: “E Márcia? Como está
essa querida?”, sugerindo maior envolvimento quando não se trata
da sua própria vida.
18 Nesta carta, Clarice usa o vocativo “Berna”, mas, como se sabe, suas duas irmãs – cm
quem trocava correspondências – chamavam-se Tania Kaufmann e Elisa Lispector.
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Em outra carta, dirigida à mesma “Berna” (excerto 04), Cla-
rice já se constitui como um sujeito mais instável e supostamente
fragilizado, como se pode verificar em “(...) mas eu sou feita de
tão pouca coisa e meu equilíbrio é tão frágil que eu preciso de um
excesso de segurança para me sentir mais ou menos segura”. Na
verdade, o tom do discurso pode parecer confessional, mas pode
também sugerir uma ficcionalização que o locutor constrói de si
mesmo, como uma espécie de tentativa de crença no que estava,
de fato, afirmando. Veja-se o trecho:
(04) (...) mas eu sou feita de tão pouca coisa e meu equilíbrio é tão
frágil que eu preciso de um excesso de segurança para me sentir mais
ou menos segura.
Mas eu te digo; eu nasci para não me submeter (...) Talvez minha
forma de amor seja nunca amar senão as pessoas de quem eu nada
queira esperar e ser amada (...)
Correspondência de Clarice Lispector a sua irmã, Berna.
8 de julho de 1944. (LISPECTOR, 2007, p. 15)
Como podemos notar, o sujeito discursivo parece querer dar
voz a um (possível) inconsciente que vem à tona no momento de
enunciação da escritura da carta, já que o seu tom parece confessi-
onal, como se estivesse, de fato, em uma sessão de análise, por
exemplo.
(05) Mal tenho tempo de agradecer-te muito do coração o belo artigo
que escreveste (...), a propósito das Americanas. Está como tudo o
que é teu: muita reflexão e forma esplêndida (...)
Correspondência de Machado de Assis a Salvador de Mendonça.
13 de novembro de 1876. (RIBAS, 2008, p. 57)
(06) (...) com as minhas saudações, [despeço-me] e mande-me em tro-
ca alguns versos e se houve e, se não, a sua boa pessoa epistolar, que
é a própria pessoa do autor. Adeus ...
Correspondência de Machado de Assis a Magalhães de Azeredo.
11 de janeiro de 1880. (RIBAS, 2008, p. 57)
Os excertos (05) e (06) trazem o sujeito escrevente Macha-
do de Assis em correspondência a seus colegas acadêmicos. Como
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se pode observar, em (05), o locutor deliberadamente deixa claro
que ele e seu alocutário participam do mesmo universo sociocultu-
ral: o da Academia, fazendo questão de enaltecer as qualidades li-
terárias do seu destinatário (o que revela certa vaidade envolvendo
as suas relações afetivas). Esse procedimento também aparece no
fragmento (06), em que, ardilosamente, constrói-se a ideia em tor-
no da qual a pessoa do escrevente e a pessoa do autor coincidem:
“a sua boa pessoa epistolar, que é a própria pessoa do autor”. Fica
patente, então, uma ideia de construção de si como pertencente
não só à Academia, mas também a tudo o que se circunscreve em
torno dela.
(07) por minha parte, passei todo este tempo sem lhe escrever mais,
porque estive bastante doente (...)
[...]
[o médico] acabou por impor-me absoluto repouso intelectual e gran-
de exercício físico. Eu sujeitei-me sem resistência, porque compreen-
di afinal quanto a saúde é necessária para realizar o meu plano de vi-
da. (Grifos nossos)
Correspondência de Magalhães de Azeredo a Machado de Assis.
02 de março de 1895. (RIBAS, 2008, p. 58)
Nesse excerto de Magalhães de Azeredo a Machado de As-
sis, percebemos o quão o padecer físico é digno de descrição, por
vezes até pormenorizada, instaurando uma espécie de “pacto” en-
tre os locutores enfermos e, em alguma medida, sanando-lhes a ca-
rência afetiva. Além disso, no trecho final selecionado, o locutor
declara propositadamente que tem um “plano de vida”, que é o de
escrever, o de ser escritor, ainda que isso seja depreendido apenas
implicitamente. Nesse sentido, esse é um fragmento que atesta cla-
ramente a ideia de ficção de si, na medida em que o locutor coloca
em palavras uma narrativa (um plano ou a intenção de construí-
lo), que o posiciona como “personagem” de sua própria vida, vida
esta que pode (e deve) ser construída por ele mesmo.
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Os excertos (08) e (09) trazem fragmentos de correspondên-
cia trocada entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, compilados
recentemente no livro organizado por Richard Zenith e intitulado
“Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz: correspondência amorosa
completa (1919-1935)”.
(08) Meu bebezinho lindo: não imaginas a graça que te achei hoje à
janela da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mos-
traste prazer em me ver. Tenho estado muito triste e, além disso, mui-
to cansado – triste não só por te não poder ver, como também pelas
complicações que outras pessoas têm interposto no nosso caminho
(...).
(Correspondência de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz.
27 de abril de 1920. (ZENITH, 2013, p. 99)
(09) Meu Nininho adorado: venho escrever ao meu amor para ralhar
muito com ele, pois que não recebi hoje a cartinha dele. Porque não
escreveste amorzinho? Não esqueças o teu bebezinho não meu filhi-
nho?
[...]
Eu gostei tanto de te ver! Foste hoje mais lindo do que nunca,
porque disseste adeus ao teu bebezinho quando te foste embora.
Amanhã espero-te ao meio-dia à janela para ver o meu lindo amorzi-
nho, e dá sempre a volta ao Largo como costumas sim meu Nininho?
Correspondência de Ofélia Queiroz a Fernando Pessoa.
30 de abril de 1920. (ZENITH, 2013, p. 103)
Nesses fragmentos, fica patente a ideia de construção de um
discurso de si que gira em torno dos afetos mais pueris, embora se
trate de correspondência amorosa, pois é fato que a condição de
ser amado muitas vezes pode se ligar a uma simbologia do mundo
infantil, o que notadamente acontece no discurso e no trato cotidi-
ano de muitos casais. A infantilização no tratamento usado entre
Ofélia e Fernando instaura, então, um discurso em que o amor re-
cupera sua condição romântica, “pura”, transcendental e idealiza-
da, embora os dois possam (e devam) ter tido experiência de amor
físico. Esse procedimento revela, de certa forma, a fragilidade
emocional dos sujeitos envolvidos, distanciando-se, por exemplo,
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do ethos construído na obra poética de Fernando Pessoa. Trata-se,
pois, de um universo discursivo-referencial que só vem à tona
porque os locutores se constituem – também ficcionalmente – co-
mo sujeitos-amantes no sentido de sujeitos que amam.
5. Considerações finais
O presente artigo pretendeu analisar algumas correspondên-
cias pessoais trocadas por autores da literatura entre si ou entre es-
ses autores e locutores de sua esfera afetiva particular. Partimos do
pressuposto de que a correspondência é um gênero capaz de coa-
dunar uma série de estratégias discursivas entremeadas quando o
locutor busca pedir, declarar, narrar, ordenar, entre outras inten-
ções, uma vez que esse gênero pode incorporar – por vezes simul-
taneamente – vários modos de organização do discurso, sem que
isso interfira na sua macroestrutura discursiva constitutiva. Além
disso, defendemos a ideia de que o locutor do discurso epistolar na
espera pessoal – e isso independe do fato de ser ele um escritor ou
artista renomado – constrói um discurso de si, muitas vezes, ficci-
onalizado, ainda que, outras vezes, oscile para o tom intimista. Es-
se pensamento, em alguma medida, se afastaria do que se concebe
como discurso de missivas, que, tradicionalmente, costumam ser
vistas como uma textualidade eminentemente confessional. Foi
justamente tentando observar esse movimento pendular que o pre-
sente trabalho se constituiu.
Os fragmentos selecionados para análise foram todos retira-
dos de compilações reunidas em livros já publicados no Brasil,
constituindo, assim, uma espécie de “memória epistolar” e possi-
bilitando uma infinidade de análises em um corpus tão rico e vas-
to, cuja materialidade discursiva se prestaria, então, para diversos
fins.
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O que observamos, na análise empreendida, corroborou, na
maioria dos casos, a hipótese inicial de que a carta pessoal é a ma-
terialidade discursiva em que o locutor constrói uma imagem de si,
muitas vezes, baseado, no “fluxo de consciência”, motivado jus-
tamente pela aproximação afetiva e pela identificação que parece
apresentar com seu alocutário. Nesse sentido, o estudo buscou re-
cuperar, de alguma maneira, as concepções lacanianas de que o
sentido, nas trocas verbais, frequentemente é obtuso e pautado,
também, em um significado (nos termos saussurianos) difuso.
Sendo assim, focando nossa análise nas contribuições que a psica-
nálise vem trazendo aos estudos da linguagem, buscamos aproxi-
mar o jogo discursivo das cartas pessoais, entendendo-as como o
“lugar” em que o sujeito, ao falar de si, o faz ficticiamente, crian-
do uma narrativa em que ele, como sujeito, invariavelmente se en-
xerga ou se coloca deliberadamente como objeto. É justamente es-
sa alternância que defendemos aqui ser constitutiva do discurso da
correspondência privada.
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122
NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA
A VERSATILIDADE DA FÓRMULA DISCURSIVA
NA LITERATURA INFANTIL19
Patricia Ferreira Neves Ribeiro20
RESUMO
Este artigo visa investigar a presença de fórmulas discursivas alteradas
no domínio da literatura infantil. Neste estudo, problematiza-se o emprego
de fórmulas (re)enunciadas para refletir sobre questões sociais que essas
fórmulas ajudam a (des)construir diante do leitor aprendiz. Interessa obser-
var se as fórmulas alteradas funcionam ou como um regime próprio de cita-
ção de enunciados (des)cristalizados ou como, efetivamente, mecanismos es-
tratégicos para a construção de efeitos de sentido que “falam” discursiva-
mente sobre a maneira como crenças de uma comunidade são postas em
narrativa e sustentam certos imaginários sociodiscursivos – conforme noção
tomada da Semiolinguística. O corpus selecionado é examinado em nível
qualitativo, procedendo-se à descrição e à avaliação das escolhas lexicais de
(re)construção das fórmulas discursivas. Nessa avaliação, considera-se a
proposição segundo a qual o ato linguageiro, em sua dupla face explícita e
implícita, resulta de uma articulação estrutural – da Simbolização referenci-
al – e serial – da Significação atribuída pelas circunstâncias do discurso.
Palavras-chave: Fórmulas versáteis. Imaginários sociodiscursivos.
Efeitos de sentido. Literatura infantojuvenil.
19 Este artigo é uma versão modificada de outro (publicado na revista Desenredo, vol. 9,
2013), escrito a propósito do livro No Caminho de Alvinho Tinha uma Pedra, de Ruth Ro-
cha e Ivan Zigg.
20 Doutora em letras vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professo-
ra de língua portuguesa na Universidade Federal Fluminense. E-mail: patleitu-
ra@gmail.com.
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1. O início do caminho
A circulação de expressões (des)cristalizadas na literatura
infantil tem se revelado campo fértil para a evocação de um olhar
sobre jogos de poder e modos de leitura que se inscrevem nesse
domínio literário endereçado não apenas, mas também, à criança.
O exame de fórmulas discursivas recriadas possibilita não só a re-
flexão sobre imaginários sociodiscursivos (CHARAUDEAU,
2006) que lhes são correspondentes, como também sobre diferen-
tes construções de leitura que perpassam o universo da literatura
infantil.
Os imaginários sociodiscursivos, sendo um testemunho dos
julgamentos que a coletividade faz de suas atividades sociais
(CHARAUDEAU, 2006), podem variar ou não à medida que uma
fórmula é recriada. E a qualidade dessa variação tem relação direta
com os modos de leitura que disseminam “polos ideológicos” so-
bre a formação do leitor.
Reconhece-se que expressões (des)cristalizadas, ou ainda,
fórmulas discursivas e suas alterações são meios frequentes de di-
fusão de julgamentos coletivos estereotipados e, por vezes, simul-
taneamente deslocados. Assim, é possível problematizar o uso de
fórmulas discursivas em livros ilustrados, cujo público é (também)
a criança.
A escolha de livros ilustrados para a apreensão de fórmulas
discursivas e de suas derivações justifica-se, primordialmente, pe-
lo fato de ser possível mostrar como o leitor aprendiz pode ser in-
serido nessa problematização, isto é, na “densidade história que se
presentifica” (MOTTA & SALGADO, 2011, p. 5) na circulação
das fórmulas discursivas.
O emprego constitutivo, e não ornamental, de sequências
(des)cristalizadas, no âmbito da literatura infantil, faz delas lugar
privilegiado de produção de sentido, uma vez que possibilita a ins-
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crição de crenças, valores e princípios no texto. Com efeito, pode-
se pensar como o leitor é afetado por esse dizer alheio sintético
que assevera – mediante jogos de poder calcados naquelas cren-
ças, valores e princípios – ora vozes mais consensuais, ora mais
questionadoras diante de uma comunidade.
2. Para um caminho seguro
No sentido dado pela análise do discurso, Charaudeau e Ma-
ingueneau mostram que o estereótipo é, “com os topoi ou lugares-
-comuns, uma das formas adotadas pela doxa, ou conjunto de
crenças e opiniões partilhadas que fundamentam a comunicação e
autorizam a interação verbal” (2004, p. 215). O estereótipo é o ali-
cerce sobre o qual os interlocutores se apoiam para estabelecer
comunicação, ação entre si. Isso se explica porque a palavra
alheia, inscrita nos enunciados, é sempre retomada e respondida na
interação verbal. Todo enunciado se constrói, portanto, sobre este-
reótipos, isto é, “sobre o já-dito e o já-pensado que ele modula e,
eventualmente, transforma.”
Pensando em algumas enunciações-síntese como um fenô-
meno de estereotipia, é possível defini-las como uma representa-
ção coletiva cristalizada. Sendo essa representação estereotipada,
tais enunciações circulam pelas trocas verbais não só indicando a
intrínseca necessidade de se estabelecer normas de conduta aos
homens de certa comunidade, mas também revelando os ajustes
por que passam os valores instrutivos que divulgam. Portanto, a
cristalização, sob a qual enunciações-síntese se estruturam, está
longe de esgotar seu valor discursivo, porque, como se pode ver,
na prática, estão abertas a muitas ressignificações.
Os estereótipos linguísticos são fixados na memória de uma
comunidade linguística, depois de serem adquiridos pelos falantes
com o conhecimento e o uso da língua. Além disso, são enuncia-
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dos genéricos que, mesmo transportados para situações específicas
de enunciação, definem-se por promover uma relação convencio-
nal, consensualmente partilhada entre a estrutura sintática e o con-
ceito nomeado acerca de valores de um grupo social. Quando in-
troduzidos, os estereótipos linguísticos facilitam a compreensão
por parte do interlocutor, sendo mecanismos para a difusão de sen-
tidos consensualmente instituídos.
Considerando o caminho até aqui proposto, examina-se,
nesta pesquisa, a estereotipia linguística, com vistas à apreensão
dos discursos que a modelam e que a fazem circular. Acredita-se
que esses discursos alimentem a prática linguageira da estereotipia
com o que foi pré-fixado pelo consenso, mas também com o que é
modulado pela singularidade, numa espécie de continuum. Na
constituição de um modo de leitura eficaz é essencial a investiga-
ção desse continuum, no que pese a natureza do próprio fenômeno
linguageiro.
Com vistas à execução do que se postula neste artigo, é ne-
cessário recorrer também à noção de fórmula proposta por Alice
Krieg-Planque (2010). Essa recorrência é necessária, sobretudo,
para que se refine o conceito de estereotipia sobre o qual se debru-
ça este trabalho.
Consoante Krieg-Planque (2010, p. 67) “a fórmula tem um
caráter cristalizado pelo qual ela se identifica com uma materiali-
dade linguística particular”, podendo, contudo, existir através de
variadas paráfrases de que ela é a cristalização, o que inibe a im-
posição de um formalismo absoluto sobre o referido conceito.
Vale ressaltar, entretanto, que ela não existe fora de uma sequên-
cia cristalizada bem identificável que condensa as múltiplas pará-
frases.
Nesse sentido, não são fórmulas, grosso modo, os estereóti-
pos de pensamento, uma vez que não são coconstruídos por uma
“sequência verbal estável e repetida” (2010, p.69). Desse modo,
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no trabalho proposto, a análise recai, essencialmente, sobre os es-
tereótipos linguísticos – entendidos como fórmulas – e sobre suas
derivações.
O conceito de fórmula se sustenta sobre quatro pilares. Na
concepção de Krieg-Planque (2010), uma fórmula: a) tem um ca-
ráter cristalizado; b) assume uma perspectiva discursiva; c) exerce
papel de referente social; d) abriga um aspecto polêmico. Dentro
dessa perspectiva teórica, ressalta-se que essas quatro proprieda-
des podem apresentar-se de maneira desigual, sendo cada uma de-
las mais ou menos verificável na enunciação da fórmula. São, nos
termos de Krieg-Planque (2010, p. 111), “verificáveis em conti-
nua, e não mensuráveis em termos de presença ou ausência”.
Para a autora (op. cit., p. 112),
O fato de a fórmula ser um objeto inscrito em um continuum não
faz dela, de modo algum, um objeto totalmente acientífico que resiste
a uma análise fundamentada. Ao contrário, o caráter contínuo do ob-
jeto – e consequentemente, a grande diversidade de silhuetas e figuras
sob as quais será possível encontrá-lo – faz da noção de fórmula uma
noção heurística, suscetível de ser sempre recolocada, revisitada, re-
definida.
Para examinar a tênue linha divisória que vai da cristaliza-
ção formulaica à sua alteração, é necessário, ainda, somar à fun-
damentação teórica já delineada outro conceito fundamental extra-
ído de Gréssilon e Maingueneau (1984): o détournement. O
détournement ou o desvio consiste em “produzir um enunciado
que possui marcas linguísticas de uma enunciação proverbial, mas
que não pertence ao estoque de provérbios reconhecidos” (op. cit.,
p. 114) e que compreende tanto casos de captação quanto de sub-
versão.
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3. Abrindo caminhos
Entre tantos enunciados e especificidades enunciativas a se-
rem capturados para análise no bojo dos livros ilustrados (tam-
bém) para crianças, elegeu-se, como já exposto, o espaço do apa-
rente apaziguamento das fórmulas discursivas; apenas aparente,
uma vez que as fórmulas estão sempre em movimento, submetidas
a constantes alterações.
Mais especificamente, são destacadas para análise duas dis-
tintas enunciações-síntese. A primeira delas figura na obra de Odi-
lon Moraes, Pedro e Lua: “Uma noite, Pedro levava um punhado
de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho.”.
A segunda é fragmento extraído do livro de Liana Leão e Márcia
Széliga, Julieta de Bicicleta: “Até que um dia uma pedra no cami-
nho atrapalhou Julieta”.
Ao circularem, essas enunciações remetem à famosa máxi-
ma: “No meio do caminho tinha uma pedra”, extraída do célebre
poema de Carlos Drummond de Andrade – “No meio do caminho”
– publicado, pela primeira vez, em 1928.
Embora a referida fórmula tenha conquistado autonomia e
sido, portanto, integrada ao repertório de expressões populares do
país, a construção “No meio do caminho tinha uma pedra” pode,
entretanto, sugerir uma remissão paródica ao início da obra de
Dante, A Divina Comédia. (Cf. ARRIGUCCI JR., 2002)
Nesse sentido, o poema de Drummond ecoa certa errância
sofrida – descrita no percurso do poeta moderno – que, diante do
próprio ato inaugural da criação, apresenta-se, ironicamente, já fa-
tigado – “Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de
minhas retinas tão fatigadas” (DRUMMOND, 1928). E essa fadi-
ga é a do “caminho infindável, que mais parece impedimento que
via certa do encontro.” (ARRIGUCCI JR., 2002, p.73).
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No meio do caminho, o que se encontra é a pedra irremoví-
vel, que corrói a alma ensimesmada e abatida. Reduzido a uma si-
tuação narrativa básica, o poema conta um acontecimento, qual se-
ja o “do caminhante que se defronta com o obstáculo – situação
essa que se converte no drama íntimo de quem se abate diante da
barreira”. (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 72)
Inegavelmente, os ditos recriados – “Uma noite, Pedro le-
vava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cru-
zou seu caminho” e “Até que um dia uma pedra no caminho atra-
palhou Julieta” – apontam para a recorrência desse significante
drummondiano, cujas pistas (“pedra” e “caminho”) é possível se-
guir. Diante das recriações, o interlocutor captura a circulação de
um significante estável e em constante repetição. Tal estabilidade
faz-se necessária para seu funcionamento como significante parti-
lhado. Assim, as novas fórmulas fazem ressoar uma que lhes é an-
terior e sobre a qual estão calcadas. A partir dela, entretanto, pro-
põem novos efeitos de sentido.
Considerando as recriações a seguir: “Uma noite, Pedro le-
vava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cru-
zou seu caminho” e “Até que um dia uma pedra no caminho atra-
palhou Julieta”, em paralelo à versão original: “No meio do cami-
nho tinha uma pedra”, verifica-se que são derivações que resultam
de diferentes processos de retextualização (MARCUSCHI, 2004).
Esses processos figuram em uma associação sintagmática – “no
caminho tinha uma pedra” – de certo modo, bloqueada.
O termo “retextualização” é entendido como uma espécie de
“tradução”, como uma forma de “reescrita”, que produz mudanças
de um texto para o outro; ambos pertencentes, entretanto, à mesma
língua. Essa atividade de transformação textual pode ocorrer por
apelo a processos de substituição, de acréscimo, de supressão e de
fusão, e pode envolver mudanças na forma das expressões cristali-
zadas em metáforas, ritmo e construção.
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Diante do primeiro fragmento, observa-se que o enunciado
derivado efetua alterações importantes diante da fórmula canônica.
Essas modificações ocorrem por apelo tanto ao recurso da supres-
são quanto ao do acréscimo de itens lexicais. Tal versão resulta,
sobretudo, da inserção dos termos “muito bonita” e “cruzou”, que
se relacionam diretamente ao signo “pedra”. Nessa recriação, a ar-
quitetura sintática do dito convencional (SAdv + verbo ter + SN) é
bastante alterada. Na nova formulação, que integra o fio da narra-
tiva poética – “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras,
quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho” –, o sintag-
ma “uma pedra” passa a exercer o papel sintático de sujeito da
oração temporal. Ao assumir essa função, a “pedra” personificada
atua sobre o caminho do menino Pedro.
Analisando a segunda construção derivada, verifica-se tam-
bém o uso da estratégia da supressão aliada à do acréscimo. São
suprimidos, na versão inédita, os termos “meio” e “do” do adjunto
adverbial, assim como se alarga o dito convencional pela inclusão
da expressão “Até que um dia” e do verbo e de seu complemento:
“atrapalhou Julieta”. A configuração sintática da oração é alterada,
uma vez que o sintagma “uma pedra” é alçado, na nova constru-
ção, à condição de sujeito, cuja ação recai, na explicitação da es-
trutura sintática, sobre o objeto “Julieta”.
As alterações propostas relativamente à construção original
não invalidam, contudo, a propriedade de cristalização – de ordem
memorial – que as caracteriza e que as pode conduzir à versão
primeira. Esse paralelismo que recobre a parte significante da
fórmula não deixa o leitor perder de vista a voz matriz.
Por outro lado, se é verdade que essas formulações concor-
rentes da fórmula original se inserem num quadro de “pertenci-
mento morfossintático e lexical” relativamente à fórmula original,
é verdade também que tais formulações apontam para uma “insta-
bilidade fundamental dos significados”. Em outros termos, as
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construções derivadas funcionam como concorrentes das formas
primitivas, do ponto de vista sociopragmático, ao encerrarem uma
espécie de bifurcação entre o senso comum e seu deslocamento
para o universo da obra em que se inserem.
Por sua vez, esse deslocamento é sintomático do uso discur-
sivo que se faz da fórmula “No meio do caminho tinha uma pe-
dra”, uma vez que exibe a produção de diferentes julgamentos
acerca da temática em questão. A propósito, no que concerne a es-
sa dimensão discursiva, atente-se para o fato de que é seu uso lin-
guageiro – circunscrito social e historicamente – que desencadeia
o percurso da sequência para o alcance do caráter formulaico.
Além disso, enquadrar a fórmula numa configuração discursiva
equivale a vê-la no papel de um referente social.
Cada vez que é retomada, a fórmula põe em evidência seu
papel de referente social, ou seja, a função de ser uma sequência
material por que passam, obrigatoriamente, os discursos produzi-
dos no espaço público num determinado período. Isso leva à di-
mensão do caráter notório da fórmula. Diante de tal notoriedade,
como bem elucida Salgado (2011, p. 155), “todos são chamados a
assumir alguma posição em relação ao que está condensado no
material linguístico cristalizado, sintetizador de usos, de retoma-
das”.
Para que se flagre a heterogeneidade de posições frente à
fórmula focalizada, observe-se, inicialmente, o fragmento extraído
de Pedro e Lua, obra de Odilon Moraes: “Uma noite, Pedro levava
um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu
caminho”, em contraste com a máxima: “No meio do caminho ti-
nha uma pedra”.
A fim de acomodar o dito “No meio do caminho tinha uma
pedra” à construção da narrativa proposta, o sujeito enunciador
particulariza o caminho anunciado pela inserção do pronome adje-
tivo anafórico “seu”, cujo referente é “Pedro”. Estabelece-se, neste
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131
caso, uma relação semântica de pertencimento entre “Pedro” e
“caminho”.
Por meio da introdução do anafórico “seu”, a generalização
e a atemporalidade, intrínsecas aos ditos populares, são direciona-
das para um fato particular, localizado no tempo e no espaço, de
acordo com a história narrada. Isso mostra que, no discurso, o que
é normalmente tomado como uma categoria referencial estável
pode tornar-se instável, por consequência de uma mudança de
contexto ou de ponto de vista. No “aqui” e no “agora” do texto
elaborado, a ausência de um agente (o caminho é de qualquer um),
estabilizada na versão canônica, torna-se instável pela inserção do
pronome “seu”, que remete a “Pedro”.
Para contextualizar, é válido resgatar a história narrada. No
referido texto, um menino chamado Pedro vê semelhanças entre a
pedra e a lua. Um dia, ao se deparar com uma tartaruga que pare-
cia, inicialmente, uma pedra, Pedro a associa, no entanto, à lua, em
razão da beleza do casco esverdeado do bichinho. Assim, o meni-
no acaba por conjugar as imagens da lua e da tartaruga à da pedra.
Desse encontro de olhares, nasce uma forte amizade que une Pe-
dro às L/luas.
É nesse enredo que a fórmula derivada se insere e é, nesse
contexto, que deve ser analisada, a fim de que se investigue a flu-
tuação semântica da construção fonte e seus correspondentes ima-
ginários sociodiscursivos e os modos de leitura oferecidos.
O conceito “de entrave” interposto na vida de qualquer ser
humano, metaforicamente sustentado pela fórmula original é, de
certo modo, subvertido na versão derivada, uma vez que o dito é
orientado para um sentido diferente do original. Nesse caso, a ree-
nunciação é concebida como um détournement ou desvio que
comporta a estratégia da subversão. No interior da história comen-
tada, estabelece-se uma divergência entre o que apregoa a versão
convencional e o que a nova instaura. E é justamente por essa bre-
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cha da divergência, marcada discursivamente, que capturamos os
diferentes imaginários sociodiscursivos constituídos a partir da
fórmula selecionada.
Na obra de Odilon Moraes, a leitura da máxima (que “vive”
na instância linguageira drummondiana), baseada na metáfora “di-
ficuldades (pedras) são impedimentos para o deslocamento (cami-
nho)”, é, inicialmente, cancelada. Favorece-se, neste primeiro
momento do novo contexto, uma construção de leitura calcada na
simbolização referencial 21
dos termos “pedra” e “caminho”, con-
forme se vê nos trechos retirados da obra: “... Pedro, que nunca
olhava para o chão, tropeçou numa pedra...”, “... E descobriu que
as pedras tinham caído da lua...” e “Então, a cada noite, Pedro jun-
tava pedrinhas para perto da lua.”. O menino Pedro julga que as
pedras sejam pedacinhos da lua e trata de catá-las aos punhados
para colocá-las próximas à sua origem, imaginando a lua como al-
go semelhante a uma pedra – “Desde que lera num livro que a lua
era uma pedra grande que flutuava no céu, Pedro ficara encanta-
do”.
Autoriza-se esse jogo da recriação uma vez que objetos
concretos podem ser, efetivamente, encontrados, “juntados” (“Pe-
dro juntava pedrinhas para perto da Lua”) numa via, num cami-
nho: “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando
uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”.
Além disso, mais especificamente, a leitura do termo “pe-
dra”, segundo sua referencialidade, é favorecida – no interior des-
se novo universo do discurso – em virtude de o citado mineral in-
tegrar, sintagmaticamente, enunciações em que ele pode ser apre-
21 Para Charaudeau (2008, p. 37), o ato de linguagem resulta de uma dupla atividade: a
simbolização referencial e a significação. A primeira “tende a unir uma forma material a
um determinado conteúdo de sentido produzindo uma condensação semântico-formal”. A
segunda “tende a fazer essa união irromper em uma multiplicidade de relações sentido-
forma, produzindo uma disjunção semântico-formal”.
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ciado conforme sua natureza concreta, como: “... Pedro, que nunca
olhava para o chão, tropeçou numa pedra...” e “... Pedro levava um
punhado de pedras...”.
Com efeito, cancela-se, inicialmente, a metáfora consensual
mais transparente: “dificuldades são impedimentos para o deslo-
camento”, para se recobrar o sentido de “pedra” como mineral.
Em consequência, com base na leitura referencial dos ter-
mos “pedra” e “caminho”, o efeito de sentido produzido é outro. O
mineral “pedra” – que se encontra no espaço público – é algo
agradável a Pedro. Trata-se de um objeto fruto de grande desco-
berta (“... e descobriu que as pedras tinham caído da lua”), a que
Pedro passa a se dedicar: “Então, a cada noite, Pedro juntava pe-
drinhas para perto da lua.” e “Uma noite, Pedro levava um punha-
do de pedras...”.
Ao mesmo tempo, constata-se que uma nova metáfora, a in-
cidir sobre o item “pedra”, parece ser delineada no seio da obra.
Identificada a pedra a algo muito bonito – “... quando uma pedra
muito bonita cruzou seu caminho” – encerra-se a ideia de que a
“pedra” é algo agradável aos olhos do menino e, como tal, algo
que é valioso para ele. Nesse sentido, assume-se outra associação
metafórica na totalidade discursiva do texto em questão, qual seja
a de que “o agradável é valioso”.
O texto se abre a essa nova significação, sobretudo quando
o menino descobre ser a pedra uma tartaruga: “Pedro logo desco-
briu que era uma tartaruga...”. Sob o olhar de Pedro, “a tartaruga”
agora é a representação de uma conquista positiva, acentuada pela
semelhança entre o bichinho e a lua: “... mas como seu casco pare-
cia uma grande lua esverdeada, ele a chamou – Lua” e “Pedro ado-
rava aquela pedra linda que era Lua...”.
Ainda, assumindo a pedra como uma tartaruga, rompe-se,
no interior do texto, com ideia de que a inevitável e permanente
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circularidade da pedra inserida no dito é um obstáculo à criação,
seja ela poética – como sugere Arrigucci (2002, p. 73): “Nela (na
pedra) reside a dificuldade básica que para ele (Drummond) funda
a criação: é fator desencadeante e, simultaneamente, entrave do
ato poético” – ou não. No universo discursivo de Pedro e Lua, a
circularidade da pedra é, pelo menos inicialmente, rompida – “Pe-
dro logo descobriu que era uma tartaruga”, encerrando o claro
efeito de sentido (significação) positivo da vida.
A pedra identificada à tartaruga é quem cruza o caminho do
menino Pedro; ela não está lá imóvel como um entrave perturba-
dor da travessia, mas como algo vivo, desencadeador de descober-
tas: “... quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”. Sua
vivacidade é atestada ainda pelos movimentos que faz em direção
ao menino e aos caminhos que Pedro percorre: “... achava graça
em vê-la seguindo seus caminhos”.
Na passagem do dito original às derivas que figuram no tex-
to, observa-se, nesta narrativa poética, não só que Pedro se vê se-
guido pela pedra/tartaruga – “... vê-la seguindo...”, como também
que os caminhos que ele percorre são vários – “... seus cami-
nhos.”. Nessa recriação do dito original, ressalta-se que agora há
uma multiplicidade de caminhos percorridos pelo menino, como
são múltiplas as relações estabelecidas no texto entre Pedro, pedra
e L/lua. Além disso, é a “pedra-L/lua-tartaruga” que o segue ao
longo dos caminhos, invertendo-se a lógica da versão canônica da
máxima. Essa inversão reforça mais uma vez a vivacidade da “pe-
dra” – “E assim foram crescendo, juntos, Pedro... e Lua” – ao
mesmo tempo em que corrobora ser ela apreciada como algo que
diverte o menino: “... e achava graça em vê-la seguindo meus ca-
minhos”.
Ao mesmo tempo, contudo, o sentido metafórico consensual
do termo “pedra” é ainda mantido reconhecível ao final da narrati-
va poética. Nesse sentido, flagra-se o desvio ou détournement co-
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mo um caso de captação, ao se verificar a utilização da autoridade
convencional do estereótipo linguístico.
Ao chegar de férias da cidade, Pedro deseja rever a tartaru-
ga: “Como Pedro não viu Lua, quis saber da tartaruga.”. Para sua
surpresa, disseram-lhe que “havia dois meses não aparecia fora do
casco”. E, mesmo após chamá-la, “... Lua não veio.”. Diante dessa
nova situação, o continuum de sentidos flagrado na esfera do dito
derivado é retomado. A “tartaruga”, ao não aparecer fora do casco,
é fisicamente comparável, em termos de simbolização referencial,
a uma pedra, ao mesmo tempo em que passa a representar, no es-
copo da significação, um impedimento ao encontro. Como um en-
trave, a pedra/tartaruga deixa os sentimentos do menino corroídos:
“Deu dor no coração ver Pedro com saudade da amiga”.
Pedro transita por um continuum de sentidos: do referencial
ao metafórico, do qual decorre uma produção de efeitos de sentido
para o referente, que ora o inserem na perspectiva do objeto físico,
na direção tartaruga-pedra: “De noite, foi levar o casco de Lua pa-
ra junto das pedras”, ora o inserem na perspectiva do que ganha
vida, na direção pedra-tartaruga: “Lá, descobriu que tartaruga
também tem saudades”.
Mais uma vez, nos campos das associações metafóricas “di-
ficuldades (pedras) são impedimentos para o deslocamento (cami-
nho)”: “Deu dor no coração ver Pedro com saudade da amiga” e
“o agradável é valioso”: “Lua tinha mudado de casa. Voltou para a
sua”, a pedra/tartaruga lhe rende novas descobertas. Poeticamente,
os temas da amizade e da morte são desvelados na narrativa por
meio de sutis metáforas que ora aproximam o referente do que é
libertador: “Pedro amava Lua” e do que aprisiona: “Lua parecia
uma pedra. Escapa-se assim à visão estereotipada de morte e a um
didatismo que poderia explicá-la. Pela ótica da criança, o conflito
se resolve de maneira poética.
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A fórmula derivada, “Uma noite, Pedro levava um punhado
de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”,
expõe a heterogeneidade constitutiva da fórmula básica, que con-
duz à construção de outra significação, outros valores, outros ima-
ginários sociodiscursivos. Recria-se, no interior da obra de Odilon
Moraes, novo real discursivo justamente pela matéria formulaica
que o constitui. O imaginário consensual acionado pelo dito “No
meio do caminho tinha uma pedra”, qual seja o que refere os im-
passes da passagem do homem pela vida, é, em parte, ultrapassado
pela leitura multifacetada proposta pela fórmula alterada no texto
em tela.
Em Pedro e Lua, abre-se para o conglomerado de noções
que postula o termo “pedra” como signo: não se impõe à criança a
leitura consensual do dito. Isso, aliás, parece já estar configurado
no início da própria narrativa, quando se ultrapassa a visão dico-
tômica de pedra como algo que é irredutível em si mesmo, e de lua
como o que liberta: “Pedro queria dizer pedra, mas tinha a cabeça
na lua. Lua queria dizer lua mesmo, mas parecia uma pedra”.
A construção em foco transita pelas diversas noções que o
signo “pedra” pode comportar, sendo elas, ora mais, ora menos
consensuais. A “pedra” é tanto algo que dificulta o deslocamento,
quanto o que o torna agradável, sendo, por vezes, até difícil saber
onde um sentido começa e o outro termina. Isso revela que a signi-
ficação se constrói, de fato, no texto, não ocorrendo, previamente,
à sua elaboração. Segundo Charaudeau (2008, p. 26), “não se pode
determinar de forma apriorística o paradigma de um signo, já que
é o ato de linguagem, em sua totalidade discursiva, que o constitui
a cada momento de forma específica”.
O imaginário sociodiscursivo do “impasse”, do “fim” e da
“morte”, produzido de modo metaforicamente consensual pelo di-
to “No meio do caminho tinha uma pedra” e ecoado por tantos ou-
tros estereótipos linguísticos que se centram sobre tal referente,
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como: “Pedra no sapato”; “Tirar leite de pedra”; “Coração de pe-
dra”, é ultrapassado, em parte, no livro Pedro e Lua. Recorre-se
também, nesta obra, ao imaginário do virtuoso: para Pedro, em seu
caminho, tinha (tem) “passagem”, “começo” e “vida”. Por isso
mesmo, atesta-se a imbricação da morte e da vida: “Lua parecia
uma pedra”. No jogo entre essência (vida) e aparência (morte), a
dicotomia morte/vida se apaga em narrativa também endereçada à
criança.
A fim de se constatar, mais uma vez, a variável posição de
retomada diante da fórmula em tela, examine-se, agora, a passa-
gem inserida no livro de Liana Leão e Márcia Széiga: “Até que
um dia uma pedra atrapalhou Julieta”, em contraste com a versão
original: “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Como já mencionado, essa reformulação, embora aluda à
construção fonte, efetua mudanças por apelo tanto à supressão,
quanto ao acréscimo. Essas alterações objetivam incorporar à
construção original elementos pertinentes à narrativa em questão.
A propósito, a história em tela, intitulada Julieta de Bicicle-
ta, inicia-se por descrever as sistemáticas ações da menina Julieta
em seu dia a dia – “Julieta acordava exatamente à mesma hora, to-
do dia” e “Meio-dia, hora da escola, e Julieta, empertigada, de uni-
forme esticadinho, limpinho, passadinho, ia andando, em uma li-
nha absolutamente reta” – para, em seguida, no tempo da narração,
contar as aflições de Julieta, frente às curvas do caminho: “Até
que um dia uma pedra atrapalhou Julieta, que parou, estancou, in-
decisa: Que fazer?”, e, especialmente, relatar a curva que a menina
encontra de posse de sua nova bicicleta: “Pedalava num ritmo per-
feito até que surgiu uma curva muito encurvada. Julieta estancou.
Pensou: ‘O que haverá depois da curva? Essa curva estraga meu
caminho em linha reta’...”.
Pela ampliação da fórmula tradicional, verifica-se que ela é
capturada para dentro da narrativa. A expressão adverbial “Até
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que um dia” abre o texto para o modo de organização narrativo e
insere a fórmula derivada no fio da história que se começa a nar-
rar.
Nesta obra, assim como na anteriormente analisada, o leitor,
diante da feição contemporânea do enunciado cristalizado, se vê
enredado pela possibilidade de lê-lo segundo a simbolização refe-
rencial de “pedra” como mineral. Essa afirmação se confirma pela
leitura paradigmática estabelecida entre o signo “pedra”, que figu-
ra no dito reenunciado, e o termo “pedregulho”, que aparece logo
em seguida: “Antes que Julieta tomasse a difícil decisão, um garo-
to do colégio cruzou sua frente e, displicente, sem perceber, chu-
tou o enorme pedregulho de papel machê”.
Interessante constatar que a esse modo de leitura, calcado
no sentido supracitado, soma-se a significação de “dificuldade”
proposta pela metáfora consensual: “dificuldades (pedras) são im-
pedimentos para o deslocamento (caminho)”. Em Julieta de Bici-
cleta, não se rompe com a interpretação automatizada proposta pa-
ra a fórmula canônica; antes, reafirma-se a metáfora consensual
mais transparente, sobretudo, pelas evidentes escolhas sintáticas e
lexicais. Decorre, daí, um desvio ou détournement que faz uso da
autoridade sentenciosa da máxima em prol de uma reenunciação
submetida ao processo de captação.
O verbo selecionado, “atrapalhou”, direciona o texto, cla-
ramente, para o sentido de “entrave” proposto pela versão original
da fórmula. Ao mesmo tempo, acentua-se a ideia de que a “pedra”,
no papel sintático de sujeito, é “obstáculo” provocador da dificul-
dade que atinge Julieta – alvo da ação – em seu deslocamento.
A fórmula derivada, presente no texto em questão, evoca a
original, reafirmando sua metáfora mais transparente e facilitando
seu reconhecimento. E, além disso, a “pedra” localiza-se em rua
denominada “Carlos Drummond de Andrade”, ressaltando-se a in-
tertextualidade por semelhança entre o dito reenunciado e o verso
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que figura no poema de Drummond, verso que se fez máxima do
repertório popular.
No universo do discurso de Julieta de Bicicleta, a fórmula
modificada transita pelas noções que instituem a “pedra”, tanto
como mineral, quanto como “entrave”. Especialmente, a “pedra”,
lida conforme a metáfora consensual, é, de fato, algo que dificulta
o deslocamento. Nessa direção, percebe-se que o desvio da versão
inédita da fórmula, relativamente à canônica, passa a ser mínimo.
Neste caso, portanto, reforça-se o imaginário sociodiscursivo do
“impasse”, do “fim” e da “morte”, que circula a propósito da ree-
nunciação “Até que um dia uma pedra atrapalhou Julieta”.
4. (Im)passes do caminho
Foi de grande interesse apreender as posições de retomada –
assumidas pelas diferentes obras e por seus correspondentes ima-
ginários sociodiscursivos – diante do que se sintetizou pela fórmu-
la discursiva “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Aliás, sendo essas retomadas às fórmulas o que as instauram
como centro de polêmica, evidenciou-se, nessa travessia em que a
fórmula em questão se fez ponto de passagem obrigatório, que, a
cada nova enunciação, houve a construção de um referente pró-
prio. Em outros termos, cada enunciação, atravessada inevitavel-
mente pela fórmula, assumiu, relativamente a ela, posição, ora
mais “problematizadora” – “Uma noite, Pedro levava um punhado
de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho” –
ora mais consensual – “Até que um dia uma pedra atrapalhou Juli-
eta.”, na rede interdiscursiva em que se situa.
Assim, neste trabalho, constatou-se a heterogeneidade cons-
titutiva das fórmulas básicas, especialmente da construção “No
meio do caminho tinha uma pedra”, explicitada nas derivas anali-
sadas. Pôde-se perceber como tal variabilidade produziu modos de
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leitura voltados a um conglomerado de sentidos, ora mais, ora me-
nos constantes.
E esse continuum de sentidos – da simbolização referencial
à significação – impulsionou as distintas construções de leitura re-
lativas às obras Pedro e Lua e Julieta de Bicicleta.
Em Julieta de Bicicleta, apontou-se, unicamente, para a
confirmação do imaginário sociodiscursivo do impasse, do fim e,
quiçá, da morte que se interpõe na travessia – dentro daquilo que
foi pré-fixado pelo consenso. Nesse sentido, enredou-se/implici-
tou-se o/um leitor aprendiz dentro de um modo de leitura que o in-
tegra ao mundo por conformidade a uma crença já instaurada cole-
tivamente.
Por sua vez, em Pedro e Lua, a leitura se construiu em dire-
ção também a novo valor, crença e princípio – no âmbito do que
foi modulado pela singularidade – uma pedra no meio do caminho
pode ser símbolo da passagem, do começo, da vida, agradável ao
sujeito que a encontra, em razão do valor inestimável que agrega
ao percurso vivido. Nesse sentido, libertou-se/implicitou-se o/um
leitor aprendiz, engajado em um modo de leitura provocativo e
formativo.
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2002.
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ORALIDADE, NARRATIVA E MITO:
UMA PROPOSTA DE LEITURA DIALÓGICA
Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos22
RESUMO
O artigo versa sobre algumas possibilidades de diálogo entre imagens
míticas e sua reelaboração pelas vozes do narrador oral tradicional e do
narrador moderno. Para tanto, iniciamos com uma discussão acerca da figu-
ra do narrador primordial, na qual intentamos problematizar certos luga-
res-comuns relativos a sua conceituação. Sob o amparo teórico dos estudos
de Walter Benjamin, propomos uma reflexão focada nos elos entre narra-
ção, experiência e modernidade, com a intenção de pensar as configurações
dialéticas instauradas pelo Modernismo brasileiro, voltando-nos, especifi-
camente, para o conto “o Besouro e a Rosa”, de Mário de Andrade. Por fim,
a partir de uma leitura comparativa entre narrativas míticas que partilham
a imagem da virgem fertilizada, pensaremos a construção da protagonista,
Rosa, a tessitura das vozes narrativas embaralhadas e a desconstrução das
estruturas narrativas tradicionais, em um processo sofisticado de hibridismo
entre o popular e o erudito, capaz de dessacralizar e reinventar tanto os mi-
tos pagãos, quanto os religiosos e os burgueses, em um enfrentamento simbó-
lico de um mundo em desencanto.
Palavras-chave: Oralidade. Narrativa. Mito. Leitura.
1. Narração e oralidade
A imagem do narrador oral arcaico não pode ser compreen-
dida fora da sua condição sagrada, sob os olhos da sociedade gre-
ga antiga. Narrar era uma condição aliada à magia: o detentor da
22 Doutora em literatura comparada na Universidade Federal Fluminense e professora ad-
junta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: dcmendes28@gmail.com
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palavra partilha de seu poder sacro de criação e é considerado co-
mo alguém capaz de reconhecer o passado, o presente e o futuro.
Ele é um bardo, uma figura confiável, pois narra o mito e imprime
sentido à vida coletiva, às expectativas, aos sonhos e aos temores
presentes em sua sociedade.
A força do narrador oral não é sua, mas constrói-se como
derivada de uma causa externa. Ela vem de uma inspiração divina,
da qual ele se alimenta. Uma musa o escolhe e o sustenta nessa
condição especial dele. Por sua vez, as musas são apoiadas por sua
mãe, Mnemosyne, a deusa da memória: a relação entre a narrativa
e a memória é essencial e já aparece no mito da experiência de
maternidade desta titânide.
Diz esse mito que Zeus, após alcançar a glória, ainda não
estava satisfeito. Faltava-lhe a conquista de Mnemosyne, com
quem gostaria de dormir. Ele se disfarçou de camponês e obteve o
seu intento. Após nove noites juntos, Mnemosyne concebeu e,
após nove meses, passou nove dias dando à luz suas nove filhas,
as musas da Arte.
Não é difícil ler o mito como uma metáfora das relações en-
tre a arte e a memória. Até mesmo o mais poderoso dos mortais,
Zeus, precisa da memória para preservar a sua lembrança e, assim,
manter o seu poder. De nada adiantariam os seus feitos grandiosos
se caíssem no esquecimento. A memória é um modo de sobreviver
e narrar uma forma de driblar a morte; em laços de simbiose, lem-
brar e contar são estratégias para refutar o silêncio e afirmar o de-
sejo de vida e de continuidade. Nesse sentido, Tzvetan Todorov
lembra-nos: “A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à
morte” (2006).
Segundo Nelly Novaes Coelho (1993), o narrador primordi-
al caracteriza-se por ser uma figura
que se transformou em contador de estórias, (alguém que não se apre-
senta como autor, não inventou os fatos narrados, mas presenciou-os
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ou soube deles por alguém, guardou-os na memória e os conta para
outros).
Embora entendamos a perspectiva da confiabilidade em re-
lação ao narrador primordial, gostaríamos de pontuar que nos pa-
rece essencial distingui-lo de um portador neutro da verdade. Em
primeiro lugar, pela ausência de distinção entre ficção e verdade
no período arcaico. De fato, a própria categoria de ficção é muito
recente, do fim do século XVIII (Cf. EAGLETON, 2003). Portan-
to, soa-nos como anacrônica e um pouco ingênua a percepção do
narrador primordial como um elemento detentor de uma verdade
absoluta, no lugar de percebê-lo como um articulador complexo de
narrativas reelaboradas a partir de seu potencial criativo, em um
mosaico de citações, invenções e diálogos. Não acreditamos ser
esse o sentido postulado por Coelho para o conceito de narrador
primordial, entretanto cabe aqui a observação por termos nos de-
parado algumas vezes com essa compreensão em alguns trabalhos
alusivos a este conceito.
Assim, gostaríamos de aqui derivar a partir da conceituação
de Coelho a condição do narrador primordial como um elemento
de autopoiese, isto é, como uma máscara ficcional assumida pelo
sujeito portador da voz, que toma para si a função de mediador de
um desejo de verdade; no espaço do desejo cabem o sonho, a ima-
ginação, a esperança e até mesmo os medos e os receios. Como
marcadores capazes de delinear esse perfil, aparecem referências
ao testemunhal, seja ao testemunho vivido por ele ou por outra
pessoa que o confia uma história vivida. Entretanto, não caberia a
assunção dessa perspectiva como verdadeira, pois a organização
da narrativa primordial não se constrói como verdade ou falsidade,
mas como confiável, em torno de uma convenção partilhada e re-
conhecida tanto pelo narrador quanto pelos seus ouvintes. Pensar
essa confiança como convenção e entender a labilidade entre fato
e ficção no período arcaico permite-nos sair de uma compreensão
literal e equivocada da função assumida por este tipo de narrador.
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A narrativa do século XIX retoma a convenção do narrador
mediador e confiável, em um momento de consolidação dos Esta-
dos nacionais, em alinhamento ao movimento romântico e a sua
valorização da cultura popular. Em meio a tal quadro, surgem au-
tores que tomam para si a tarefa de coletar e difundir as narrativas
orais, especialmente os contos de fadas transmitidos geralmente
pelos camponeses ágrafos, de geração a geração23
. O seu processo
de escrita não é o de mera transferência e registro, obviamente: ela
é manipulada, adequada, recortada, acrescentada, distorcida e a
manutenção da figura do narrador confiável permeia esta media-
ção, dotando-a de uma aura de verossimilhança – mas não de ver-
dade ou falsidade, como dissemos24
.
Entretanto, aqui não temos um sujeito que toma para si a
função de ser narrador oral, um contador de histórias que se assu-
me na convenção como mediador de algo não inventado, mas vi-
vido, por ele ou por outro, recusando em meio a esse jogo simbó-
lico a autoria. Ao contrário: há um autor que inventa uma voz nar-
rativa, por isto já distante dele como eu-biográfico. O movimento
do eu-autor que cria o outro-narrador, como instância do jogo fic-
cional a assumir o seu papel de mediador confiável, de ponte entre
a tradição oral e a escrita, ao contrário do eu que se quer um nar-
rador distante da autoria como prova de sua confiabilidade. Logo,
são construções ficcionais com peças diferentes em estratégias di-
versas, pois na obra escrita o narrador como contador de histórias
23 Não estamos com isso crendo na condição pura e essencial das narrativas campone-
sas; antes concordamos com a perspectiva teórica desenvolvida por Mikhail Bakhtin
(1993), a qual aponta para a circularidade cultural presente nas relações entre a alta e a
baixa cultura.
24 Não é apenas nos contos de fadas que encontramos um narrador mediador; este foi
um artifício narrativo empregado recorrentemente nos romances românticos; aqui no Bra-
sil, por exemplo, em A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo; e em Lucíola e O
Guarani, de José de Alencar, para citarmos alguns.
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desdobrar-se-ia como reminiscência de uma operação intelectual
que não pode sobreviver, senão como nostalgia.
É neste sentido que Walter Benjamin (1994) refere-se à fi-
gura do narrador romanesco, em um tom ambiguamente melancó-
lico e esperançoso. Leitor de Georg Lukács, o qual identificava o
romance como “a epopeia de um mundo que saiu dos trilhos”
(2000), Benjamin arquiteta a sua compreensão sobre a figura do
narrador do romance a partir de sua tensão com o contador de his-
tórias (o narrador oral)25
e analisa como parâmetros para essa fric-
ção as formas de produção e de experiência das sociedades artesa-
nais e capitalistas, ligando a contação de histórias à primeira e o
romance à segunda.
Em um mundo pré-capitalista, a produção artesanal modula-
ria condições para a partilha do tempo e da experiência coletiva
(erfahrung). Benjamin afirma: “O tédio26
é o pássaro de sonho que
choca os ovos da experiência”. Sem o tédio, isto é, o tempo ocio-
so, não podemos sonhar e usufruir da erfahrung, da teia de laços
na qual o ser constrói-se e é construído em solidariedade comuni-
tária, com seus esteios fundados na tradição, na forma de trabalho
e no modo de comunicação. O filósofo escreve a partir de um con-
texto no qual assistia à decadência dessa solidariedade e percebe
no romance um traço destacado da contraposição entre a vivência
individual (erlebnis) e a experiência que se esgotava.
25 A edição brasileira emprega o título “O narrador”. O artigo original chama-se "Der
Erzähler", isto é, o contador de histórias. Há edições em inglês que traduzem o termo do
título como “storyteller”, o que denota uma maior proximidade com o termo em alemão.
26 Tédio aqui deve ser compreendido como um momento duplo de distensão e apreensão
do ser, como um estágio em que estaríamos, ao mesmo tempo, atentos e imersos em
nosso eu; é a fusão da pulsão de ser com a liberdade do tempo ocioso. Ou, se remete-
mo-nos à excelente leitura de Susana Kampff Lages, “é a atenção simultaneamente con-
centrada e distensa de quem ouve uma história” (2002).
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Era preciso recuperar dentro do romance um modo de narrar
fundado na oralidade, mas como fazê-lo fora de uma interdição
que anuncia a tarefa como fadada à ruminância da reminiscência
de um modus vivendi em profunda crise? Benjamin, sabiamente,
não oferece uma resposta, mas indica como um traço para reflexão
a narrativa do escritor russo Nicolai Leskov, considerada pelo
pensador alemão como fortemente influenciada pelas formas de
narrar artesanais/orais.
O trabalho artesanal das sociedades anteriores ao capitalis-
mo27
disponibilizaria o tempo ocioso fundamental para ouvir e ser
ouvido, dentro da coletividade. O sujeito está mergulhado em uma
dimensão temporal cíclica, marcada pela natureza; nela emerge a
imagem do velho, com a sua experiência de vida que urge ser re-
partida assim como a experimentada pelo marinheiro e pelo via-
jante, que saíram da aldeia para conhecerem o mundo. A reunião
da comunidade tece um universo no qual o ato de narrar instaura-
se como a concretização de uma experiência solidária de troca de
saberes. A narrativa não pertence ao narrador: ela o extrapola e só
faz sentido se assim o for; joga-se na roda e permite-se ser mani-
pulada, de modo a diluir a vivência individual e a se ressignificar
no grupo.
“E se o fim fosse diferente?” é pergunta bem-vinda e abre-
se para um movimento de mise-en-abyme presente e importante
neste processo de trocas simbólicas orquestradas pela narrativa
oral e conduzidos (embora não dominados) por contadores que
narram não apenas com palavras, mas com gestos, olhares, timbres
27 Embora a perspectiva benjaminiana perceba uma cisão binária entre o tempo de um
mundo artesanal e o tempo de um mundo industrial, ela não pode ser compreendida de
uma forma rígida. Podemos perceber grupos que se mantêm de algum jeito, no século
XXI, orientados por uma perspectiva de experiência relativamente próxima a das socie-
dades pré-capitalistas, como indígenas e pessoas interioranas, dentro de países capitalis-
tas e, agora, globalizados. É possível perceber a heterogeneidade temporal e tecnológica
em recortes espaciais distintos em nosso país, por exemplo.
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de vozes. Ele doa a si, íntegro, para fazer-se, e aos outros, parte de
um todo. Por isto, Benjamin estabelece uma feliz analogia entre o
narrador oral e o oleiro: assim como o artesão imprime no objeto
de barro as suas digitais, aquele imprimiria no que narra a sua
marca. “Forma artesanal de comunicação”, a narrativa oral “não
está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada co-
mo uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1994).
Em seu caráter aberto e sensível, a narrativa oral postula-se
como uma latência; eis a sua força e a sua oportunidade de sobre-
vivência. Benjamin ilustra o poder da contação de histórias quan-
do compara uma parábola egípcia a uma semente trancada em uma
pirâmide:
essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de
suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de tri-
go que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente
nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças ger-
minativas. (BENJAMIN, 1994).
Para Benjamin, será a forma romanesca a portadora de outro
tipo de experiência narrativa, consolidada em meio ao caos e à de-
gradação deixados como rastros pela consolidação do capitalismo
como forma de produção. Fora da erfahrung, depara-se com o
desconexo, a informação abundante e fragmentada, em um quadro
de tal modo radicalizado que o leva a uma vivência de choque, na
qual a memória encontra-se frágil, invertebrada e o sujeito não
consegue mais a reflexão profunda e tampouco a fruição estética.
O controle do tempo levaria ao esfacelamento dos laços de
coletividade e ao empobrecimento da experiência coletiva, imer-
gindo o sujeito no que ele conceitua como a erlebnis, a vivência
individual do ser. Aniquilado no que toca à partilha de suas expe-
riências e às trocas simbólicas coletivas, o ser instaurado em um
mundo capitalista encontra uma nova forma de narrar, fora da ora-
lidade, presente no romance.
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A leitura do romance é vista como a experiência mais solitá-
ria dentre todas, pois:
quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo
quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é
solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem
lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte
ocasional) (BENJAMIN, 1994).
Quem lê o romance não partilha da tessitura de elos e diálo-
gos presentes na narração oral. A performance da leitura romanes-
ca é singular em seu isolamento. Forma-se um paradoxo: o telos
do romance situa-se no desafio de simbolizar o sentido da vida,
mas ao aceitar o convite para a leitura, o indivíduo experimenta a
perplexidade e o limite, pois as perguntas suscitadas pela narrativa
ficariam sem resposta aparente.
O romance poderia falar, portanto, não sobre a experiência
ampla e plena que imprimiria significação à vivência, o que seria
possível na narração oral, prenhe de rituais, tradições e significa-
dos coletivos. Na forma romanesca, a própria instauração de um
FIM, escrito em letras garrafais para emoldurar-se como limite
virtual, atenta para o fato do romance falar não sobre os sentidos
da vida, mas “sobre o sentido de uma vida” (BENJAMIN, 1994).
Fora da troca, o leitor fecha-se em sua reflexão e encontra no ro-
mance um destino alheio capaz de lhe dar “o calor que não pode-
mos encontrar em nosso próprio destino” (BENJAMIN, 1994).
A pluralidade da experiência desejada pelo pensamento
benjaminiano nas narrativas escritas encontraria uma possibilidade
de esteio ao buscar tecer-se em torno de elementos presentes nas
narrativas orais, como ele compreende acontecer na obra de Les-
kov, em um mundo onde o narrador oral não estaria mais presente
senão como nostalgia. Aqui, o alento está em um modo de narrar
que primaria por cultivar a latência de sentidos, como uma semen-
te milenar preservada em uma pirâmide egípcia e que, após atra-
vessar o deserto dos anos, seria ainda fértil; assim, uma história
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cujo final não estivesse cristalizado poderia ser análoga “a essas
sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas
hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até
hoje suas forças germinativas”28
(BENJAMIN, 1994). Provocar
“espanto e reflexão” (BENJAMIN, 1994) é a sua força, o seu en-
canto e a sua potência de sobrevida.
Levar o leitor ao espanto e à reflexão, retirando-o de sua
experiência pobre, é um traço desse novo modo de narrar desejado
por Benjamin. Gostaríamos, neste ponto, de pensar alguns modos,
em seus limites e possibilidades, pelos quais podemos compreen-
der as articulações entre a narrativa oral e a narrativa moderna es-
crita. Como objeto para essa reflexão, escolhemos o conto “O Be-
souro e a Rosa”, de Mário de Andrade. Nele, desejamos explorar
possíveis elos dialógicos com algumas narrativas míticas, tendo
como ponto de convergência a tematização da virgem fecundada e
o modo como o olhar modernista de Mário reinventa o topos em
tela.
2. A voz narrativa em Mário de Andrade
Para tanto, cabe discorrer, ainda que brevemente, sobre a
chamada primeira fase do Modernismo brasileiro, na década de
20, que se caracterizou de modo geral pelo alinhamento às van-
guardas artísticas europeias e, consequentemente, à experimenta-
ção estética bem como à reflexão aguda sobre a identidade brasi-
leira, sobretudo em seus aspectos culturais, linguísticos e sociais,
em uma percepção ampla.
Em consonância ao desejo de pensar respostas para a inda-
gação “O que é o Brasil?”, muitos modernistas aliaram a experi-
28 Aqui, Benjamin tomou como exemplo a narrativa de Heródoto sobre o rei egípcio
Psammenit. O historiador seria um narrador exemplar para Benjamin justamente por sua
narrativa ter a força de provocar leituras múltiplas sobre os seus significados.
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mentação ao pensamento sobre as feições do nacional na opção
por escreverem de um modo próximo à oralidade, mimetizando
uma linguagem popular e afastada da gramática normativa, como
o fizera alguns anos antes Lima Barreto, referência para muitos
autores do movimento. A recuperação de um modo de narrar po-
tente, com traços profundos da contação popular de história, apa-
rece em várias narrativas pertencentes a todas as fases modernistas
– primeira, segunda e terceira – nas obras de autores como Mário
de Andrade, José Lins do Rêgo e Guimarães Rosa (este em suas
alquimias mitopoéticas).
Mário de Andrade, pois, segue assim uma senda anunciada
como uma possível passagem para a descoberta dupla de aspectos
da brasilidade e dos processos experimentais literários. A adoção
em seus contos, sobretudos nos compilados posteriormente em Os
Contos de Belazarte29
, de um narrador que se assume como depo-
sitário de uma história apresentada literariamente como uma con-
fissão, como o relato de alguém ou fruto de sua própria experiên-
cia, aproxima-o da figura do narrador primordial – embora tam-
bém esta apresente as suas especificidades, como veremos.
A escrita literária de Mário e as suas opções estéticas nela
reverberadas apoiam-se em um projeto complexo de reflexão so-
bre o nacional e as suas possíveis vertentes, no qual se empenhou
por toda a vida, baseado em questionamentos e discussões inces-
santes. Descobrir nuances da cultura brasileira significava trazer à
tona possibilidades de marcar a identidade estética do país e vice-
versa, em um processo de retroalimentação. Afasta-se de uma no-
ção essencialista e exótica do nacional, duvida de quaisquer meios
tranquilos para fixá-lo e organiza o seu trabalho de investigação
como um modo de operação mental e estética no qual são abertos
vasos comunicantes para o diálogo entre o popular e o erudito, a
fim de valorizar a primeira e imprimir novas possibilidades à últi-
29 Escritos entre 1923 e 1925. O conto “O Besouro e a Rosa”, foi escrito em 1923.
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ma, fora do engessamento deixado pelo verniz europeu, tomado à
época como referência artística e de comportamento, tantas vezes
criticado por ele.
Podemos, portanto, apontar um processo de práxis na obra
de Andrade, em um movimento incessante de reorganização, vital
para a provocação e a transformação por ele desejadas em meio ao
quadro cultural periférico em que se encontrava inscrito. Assim,
Os Contos de Belazarte é um dos muitos legados artísticos deixa-
dos pelo autor em sua visão literária que abraçava os contextos
históricos e culturais como essenciais para se pensar e produzir li-
teratura, jamais como um modo de simples referenciação, mas,
principalmente, de transformação. Podemos traçar um paralelo en-
tre esse olhar e a proposta cubofuturista de Vladimir Maiakovski:
“A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo
para forjá-lo”.
3. Virgens em mosaico de vozes
Enfileiram-se, nOs Contos de Belazarte, marcas anunciado-
ras da problematização de formas narrativas tradicionais. A partir
do espaço simbólico do subúrbio da cidade de São Paulo são orga-
nizados elementos de linguagem que potencializam imagens de
decadência, incerteza, ilogismo, fragilidade e desconexão nas
quais deslizam os sujeitos ficcionais em contos unidos pela voz
narrativa dupla – do narrador e de Belazarte, o qual confiou ao
primeiro as histórias narradas30
.
A voz narrativa de Belazarte e o narrador primordial possu-
em como traço de convergência, como dito, a condição de media-
dor, o fato de não assumir a autoria dos contos. Ao contrário, Be-
lazarte afirma a sua transmissão pela apreensão da circularidade
30 Não podemos deixar de nos lembrar da presença do narrador mediador também em
Macunaíma.
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oral de histórias testemunhadas por ele ou por outros. A figura do
narrador a quem Belazarte as confia instaura-se como um duplo
que se revela e oculta ao mesmo tempo, apoiado na sentença inici-
al dos contos: “Belazarte me contou”. A fala/escrita de Belazarte é
a de uma voz suburbana e amoral, em confronto com as normas de
polidez e de belas-letras, obsoletas para o pensamento sobre um
contexto tão anfracto.
Embora este seja um tópico presente em boa parte da crítica
literária, compreender Belazarte como um alter ego de Mário de
Andrade é reduzir a profundidade do jogo de máscaras dos narra-
dores tecido pelo escritor. Várias vezes, o autor foi confrontado
por essa perspectiva e sublinhou Belazarte como ser autônomo.
Essa autonomia há que ser pensada em sua condição ficcional:
Eu estou achando que o defeito de certas histórias de Belazarte é
que estão um pouco pesadonas de tão compridas porém contra isso
não posso nada. É estilo de Belazarte e não meu. Por mais que consi-
dere artisticamente esses casos não posso diminuí-los! Não são meus
e palavra que não estou fazendo blague. São de Belazarte figura imo-
dificável.31
Ao dar voz a Belazarte, o narrador mergulha em seu univer-
so desestruturado e em sua linguagem áspera e híbrida tanto no
que tange à mescla da oralidade e dos padrões da escrita quanto ao
enfrentamento de signos da tradição e da modernidade, na cidade
representada em um processo transformador profundo, no qual
emergem novos modos de comportamento, sotaques, códigos e
tecnologias. Nessa orquestra urbana e precária, o processo de mo-
dernização gera novos significados para as formas de viver e os
espaços. Aponta o subúrbio como uma potência simbólica no qual
as contradições da modernidade expõem-se, em um microcosmo
31 ANDRADE, Mário de. Carta a Carlos Drummond de Andrade, de 23 de novembro de
1926, apud MARQUES, Aline. Uma história que Belazarte não contou. In: Os Contos de
Belazarte. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
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onde se situam laivos de miséria e conservadorismo, no limite da
experiência humana.
A fala pessimista e cética de Belazarte tem como matéria-
prima as circunstâncias desse mundo. Dentro dele, “O Besouro e a
Rosa” foi o seu primeiro conto, segundo depoimento de Mário de
Andrade. Além disso, o livro reúne contos diversos, escritos em
momentos distintos, com o alinhavo da voz narrativa e da marca-
ção de sua situação de mediador (“Belazarte me contou”).
O jogo narrativo inserido na mediação e a presença de mar-
cas profundas da oralidade (parágrafos grandes, períodos curtos,
ausência de pontuação em certos momentos, ritmo oscilante entre
a fluência e a dispersão, em alguns poucos momentos) permeiam o
texto como traços distintivos a aproximar-lhe do narrador primor-
dial (até mesmo do narrador sonhado por Benjamin, a partir da
obra de Leskov). Todavia, há elementos que impõe a sua diferen-
ça, sobretudo o fato de Belazarte não ser um narrador confiável.
Marcas como o emprego do “ou”, “mas não sei não”, “não sei
quantas vezes”, “Hmm, me esquecia” (ANDRADE, 2008) estão
presentes em todos os contos e revelam um foco narrativo do qual
também participam a limitação e a dúvida. Muitas vezes, o narra-
dor apresenta uma possível verdade imersa em tranquilidade, para
expô-la em seu avesso sinuoso, como na passagem abaixo, reve-
lando os desvãos do comportamento humano: “Rosa viera para a
companhia delas aos sete anos quando lhe morreu a mãe. Morreu
ou deu a filha que é a mesma coisa que morrer” (ANDRADE,
2008).
Destarte, o pessimismo é um traço forte da narrativa e in-
verte a tradição das histórias primordiais, com os seus finais nos
quais as personagens tornam-se “felizes para sempre”. N’Os Con-
tos de Belazarte, Rosa foi “muito infeliz” (ANDRADE, 2008) e
como ela Carmela, Teresinha... A felicidade só é possível aos lou-
cos e aos inconscientes no universo de Belazarte, assim como na
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tragédia a hybris (o excesso, a falta do herói) apresentar-se-ia so-
mente na brecha da loucura e do erro inconsciente (Cf. LUKÁCS,
2000). Na contramão da tragédia, a inconsciência é o único supor-
te para uma vida feliz; qualquer consciência alerta para a condição
trágica inerente à vida. Assim, a alegria, na voz de Belazarte, é
cerzida pelo avesso: em suas histórias, a felicidade é trágica32
; ele
“não sabe conceber o que seja a felicidade. Quando a busca não
acha ou a supõe nos bêbados. É uma limitação amarga e insupor-
tável”, como disse o autor no prefácio não publicado de Os Contos
de Belazarte (ANDRADE, 2008).
Não se trata aqui de uma “felicidade elegíaca” como a afir-
mada por Benjamin em “A imagem de Proust” (1994), ou seja, da
tristeza contida pela consciência do limite presente na condição de
ser feliz. A referência nas narrativas de Belazarte é a de que fora
da inconsciência, não há magia possível, pois o mundo revela-se
como um espaço de incompreensão de si, do outro, da vida. Se há
um momento inicial de crença da personagem em algum rastro do
maravilhoso ele se dá como alienação prontamente desconstruída
pela mordacidade da voz narrativa (FLORES, 2011). Do mesmo
modo, mitos modernos da ideologia burguesa – o elogio da pobre-
za e da simplicidade, o recato feminino, a gratidão afetuosa – são
dissolvidos, sem piedade, pelo narrador. Faltam a felicidade e as
recompensas em um movimento no qual a moral da história inver-
te-se em desespero latente.
Há a presença nos contos, apesar do caráter circunstancial
da narrativa, de um começo semelhante ao pontuado por Vladimir
Propp em relação à morfologia dos contos populares, através de si-
tuações de dano, proibição e carência. Porém, a estrutura binária
32 Importa aqui retomar a figura de Malazarte, que surge par e passo com a de Belazarte.
Como forças que se opõem, Malazarte, oriundo do imaginário popular brasileiro (especi-
almente, em torno da personagem folclórica Pedro Malasartes) e Belazarte assumem,
respectivamente, o otimismo e o pessimismo frente à vida.
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percebida pelo estudioso em tais contos - isto é: dano/reparação;
proibição/desobediência que gerará um conflito a ser resolvido; e
carência/restituição – é dissoluta em uma teia narrativa que desfaz
quaisquer vias para a redenção da moralidade; a reparação é im-
possível, a não ser como promessa tênue e logo desfeita, ainda que
a revelação sobre o despedaçar do sonho da personagem ocorra
em outro conto, como no caso da personagem João, de “O besouro
e a Rosa”.
Em “O Besouro e a Rosa”, encontramos elementos residuais
de um arquétipo presente em mitos arcaicos de várias culturas,
como a bíblica, a egípcia e a grega: o da virgem fecundada.
Campbell (2008) aponta para a recorrência em múltiplas culturas
de narrativas míticas e populares alusivas à figura da virgem como
mediadora de um poder transformador, o de ser mãe do mundo ou
de seus ícones sagrados, com a capacidade de restaurar a esperan-
ça em momentos de angústia, violência e medo.
Nos mitos de Europa, Leda e Dânae, Zeus toma a forma de
animais – respectivamente, um touro, um cisne – e de chuva de
ouro para fecundar as virgens. A força da natureza atua como di-
namizadora do cosmo e a mulher é a catalisadora dessa continui-
dade; a mudança não a atinge, senão como eventual modo de co-
locá-la em uma situação de dificuldades e conflitos, geralmente
junto ao seio familiar, que será, todavia, resolvida.
O mito mais conhecido da virgem fecundada no ocidente
talvez seja o de Maria de Nazaré, na narrativa do Novo Testamen-
to. Em um mundo desastroso e repleto de erros, “as pessoas cla-
mam por alguma personalidade que em um mundo de corpos e
almas confusas representará de novo as faces da encarnação”
(CAMPBELL, 2008). Herodes seria um símbolo extremo de vio-
lência, egoísmo e desgoverno em face do qual a virgem fertilizaria
o poder capaz de domá-lo e restabelecer o equilíbrio.
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No conto de Mário de Andrade, Rosa é uma virgem incons-
ciente sobre a sua vida e o seu corpo; vive de modo reificado em
uma família da qual não participa senão como objeto utilitário
concreto e emocional para as duas mulheres que a compõem. A
comparação de Rosa com uma virgem santa aparece no começo da
narrativa por várias vezes. O narrador a representa como pura e
inocente, tal qual “uma freirinha”, uma “santinha”.
Entretanto, o olhar narrativo a vê como “santinha represen-
tativa que está no altar, feita de massa pintada. A outra, a represen-
tada, você bem sabe: está lá no céu não intercedendo pela gente...
Rosa si carecesse intercedia. Porém sem saber porquê”. A “santi-
dade” de Rosa, portanto, é fruto de sua alienação; seu caráter não é
bondoso, mas flácido. Como a santa de massa pintada, a protago-
nista do conto é moldada em sua ignorância. E em confronto à tra-
dição religiosa, o narrador apresenta a santa do céu como incapaz
de interceder. Rosa intercede justamente por ignorar sua subjetivi-
dade e seu papel no mundo. São “a pureza, a infantilidade, a po-
breza de espírito” que a confinam em uma “redoma que a separava
da vida”. Sua santidade não é virtuosa. Não há transcendência,
mas alienação em seu papel de santa, derivada da pobreza de sua
experiência.
O confinamento material e existencial de Rosa será abalado
por um evento que catalisa uma transformação radical na persona-
gem. À noite, em seu cotidiano e automático ato de deitar-se, a
moça esquece a janela aberta, por onde entra um besouro. Sem
querer, ela descobre a sexualidade e o seu corpo como potência de
prazer com o inseto. A reação de Rosa ao ato sexual grotesco é um
misto de nojo e gozo, de desespero e de ruptura com a inconsciên-
cia que a dominava. Em uma onda de espasmos e reações físicas
assustadoras, ela liberta-se da redoma metafórica em que se en-
contrava, sendo encontrada por Dona Ana e Dona Carlotinha “es-
pasmódica com a espuma escorrendo pelo canto da boca. Olhos
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esgazeados relampejando que nem brasa. (...) Rosa não falava se
contorcendo”. (ANDRADE, 2008)
Como nos mitos de Leda e Europa, o elemento masculino
que desvirgina a moça é um animal. Porém, Rosa não é fecundada,
apenas desvirginada. O animal que a possui não é belo e delicado
como o cisne e muito menos forte, como um touro. Um besouro é
pequeno, nojento, reles, mas é com ele que Rosa descobre-se co-
mo ser e goza o seu corpo, rompendo com a redoma da santidade.
Por essa via, a simbiose entre humano/animalesco e o grotesco re-
velam um movimento próximo à perspectiva do Naturalismo. Ro-
sa instaura-se em uma espécie de entre lugar intertextual de repre-
sentação, do qual pode dialogar tanto com as virgens fecundadas,
em especial com Maria, como com Pombinha, de O Cortiço, des-
virginada simbolicamente por um elemento natural como Rosa, no
caso pela força do sol, em uma transformação que a leva à degra-
dação.
No caso de Rosa, a perda da virgindade também a leva à ru-
ína psíquica e moral, tal e qual Pombinha, porém por uma via mais
sofisticada do que a descrição de um processo de ruína progressi-
vo, como ocorre com a personagem de Azevedo. Para Rosa, a vio-
lação da virgindade gera o fim da inconsciência e o consequente
mergulho na lucidez trágica. Em um movimento de tensão entre
força e fragilidade internas, Rosa não suporta a consciência e entra
em uma espiral de pulsão que a conduz a um novo momento de
desequilíbrio e desespero.
Por outro lado, a relação de Rosa com o mito bíblico de Ma-
ria não está somente nas alusões à ingenuidade de Rosa no começo
da história. Ela se liga, também, à empoderação da personagem,
após perder simbolicamente a sua condição de intocada. No mito
mariano, a virgem fecundada não é tocada, mas transforma-se fisi-
camente com a gravidez e obtém um poder que não é para si, mas
para ser dado ao mundo. No conto, a jovem é tocada pelo besouro
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em um ato sexual grotesco, que a transforma existencialmente. Ela
toma o poder legado pelo ato para si. Rosa torna-se outra, na visão
de suas tias/patroas, que assumem o papel metafórico de Herodes,
ou seja, da representação do domínio, do egoísmo e da violência
simbólica, tão mais fortes, porque veladas, na relação entre ela e
as “tias/donas”. A protagonista deixa de ser uma metonímia, al-
guém que só usa os “pedaços de corpo” úteis para o serviço do-
méstico. Aqui, a violação da virgem catalisa a mudança do seu eu
e o desespero da lucidez diante de um mundo miserável como ela.
Na trilha de um desejo simbiótico, Rosa anseia casar-se com
o besouro que a possuíra. Na impossibilidade, reage com descon-
trole e casa-se, literalmente, com o primeiro homem com quem se
depara após o episódio do inseto: Pedro Mulatão, bêbado e de-
sempregado. O destino de Rosa se casa com a ideia de fatalidade:
ela é tomada por uma pulsão pelo casamento, não importava com
quem. Ela precisava cumprir aquele destino. Não há recompensa
alguma pelos danos sofridos pela personagem e relatados desde o
início da narrativa, como nos contos populares, o que contraria a
expectativa do leitor que espere encontrar nas histórias de Belazar-
te o equilíbrio binário presente nos contos tradicionais. A protago-
nista sofre desde a infância, quando é abandonada pela mãe e co-
meça a trabalhar em um regime servil travestido de relação famili-
ar; em dado momento, aparece João, moço bom, belo e trabalha-
dor que se apaixona por Rosa, alimentando as expectativas de um
final feliz, em consonância aos contos tradicionais. A teia narrati-
va de Belazarte enreda o leitor ingênuo e retira sem piedade a sua
esperança: não apenas Rosa continua a sofrer, como o seu príncipe
encantado será desprezado, em um desenho narrativo que se repe-
tirá nos finais infelizes para sempre da maioria de seus contos.
O sofrimento de Rosa continua e, embora a personagem os-
cile por três fases de percepção – a alienação inicial; a consciência
do corpo e da miséria; e a pulsão enlouquecida, que a empurra pa-
ra a semiconsciência –, ele nunca a abandona, e se instaura como
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condição de sua vivência, como se a pobreza espiritual e material
não tivesse condições de enfrentar os meandros da complexidade
amorosa, reduzindo o amor à experiência física. Sem príncipes en-
cantados e filhos salvadores, a virgem modernista de Mário tem na
ingenuidade um defeito e no desespero um fado.
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A REVOLUÇÃO APRENDIZ NAS NARRATIVAS
PORTUGUESAS CONTEMPORÂNEAS
Jane Rodrigues dos Santos33
RESUMO
O presente texto busca refletir sobre o enlace literatura e história, no to-
cante ao teor revolucionário presente em ambos os conceitos. Para tanto, são
invocadas especialmente as leituras dos romances portugueses Paisagem com
mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão, e Balada da praia dos Cães, de
José Cardoso Pires, ambos posteriores à Revolução dos Cravos de 1974. Ob-
jetiva-se, sobretudo, refletir sobre as implicações subjetivas, artísticas e fic-
cionais do dizer literário em meio ao processo de transição poder-resistência
na contemporaneidade.
Palavras-chave: Literatura portuguesa. Poder. Resistência.
Neste momento em que desejamos refletir sobre a vertente
revolucionária da arte nas narrativas portuguesas contemporâneas,
vale dedicarmos especial atenção aos dizeres de Félix Guattari,
que revelam que entre a intenção de promover revoluções políticas
e o desejo revolucionário existem diferenças marcantes:
A ideia de micropolítica do desejo implica, portanto, um questio-
namento radical dos movimentos de massa decididos centralizada-
mente e que fazem funcionar indivíduos serializados.
A coincidência entre a luta política e a análise do desejo implica,
desde então, que o “movimento” permaneça na escuta constante de
qualquer pessoa que se exprima a partir de uma posição de desejo,
33 Doutora e mestra em estudos literários e professora-tutora de literatura portuguesa do
curso de letras da UFF, consórcio CEDERJ/UAB. E-mail: jane.dos.santos@hotmail.com
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mesmo e sobretudo que ela se situe ‘fora do assunto’, ‘fora do sujei-
to’. (GUATTARI, 1981, p. 177-178)
Portanto, muito mais do que falar do âmbito político do
acontecimento revolucionário, o que se almeja é focalizar essas
expressões de resistência que se dão principalmente na dimensão
da própria escrita (nascida de um dizer fora do assunto), em sua
enunciação que supera as impossibilidades do chamado real e, por
ventura, no próprio enunciado que prolonga a expectativa de uma
ruptura constante com a ordem vigente, resultante ora de posicio-
namentos caóticos, ora da reflexão e da mudança de conduta no
seio mesmo dos automatismos cotidianos.
Para os estudiosos de literatura portuguesa contemporânea,
a palavra revolução ganha significado especial, visto que as estó-
rias portuguesas recentes giram em torno da Revolução dos Cra-
vos. Afinal, no período pós-74, diversos autores recorrem à me-
mória e à história recente de seu país para compor seus romances.
Os motivos que levam estes autores a optarem por esta releitura, a
princípio tomada como histórica, podem ser considerados a partir
de dois aspectos: a possibilidade de livre expressão proporcionada
pelo fim de um longo período ditatorial, o que significaria poder
dizer tudo aquilo que a ditadura obrigou a calar, e a coincidência
de serem estes acontecimentos históricos parte expressiva da expe-
riência pessoal destes autores que passaram boa parte de suas vi-
das sob a égide do salazarismo, sendo eles mesmos integrantes de
uma geração marcada pelos absurdos cometidos por um governo,
por um poder repressivo e cerceador.
Assim nos deparamos com vertentes sobre as quais se torna
relevante refletir antes de prosseguirmos em uma análise propria-
mente vinculada às produções literárias. São elas: o próprio con-
ceito de revolução, suas implicações e a relação entre o fenômeno
revolucionário e os sujeitos enquanto agentes de ruptura ou de
permanência das estruturas sociais.
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Em relação ao conceito de revolução, acreditamos ser ne-
cessário pensá-lo para além de uma simples mudança repentina
nas estruturas governamentais, econômicas e políticas de um país,
para pensá-lo como um processo de longa duração. Aqui nossas
reflexões encontraram no pensamento do professor e pesquisador
brasileiro de revoluções Lincoln Secco, autor de A Revolução dos
Cravos, um ponto de interseção. Pois, segundo Secco:
Por que partir de uma crise, de uma revolução? Ela pode conden-
sar toda uma história de longa duração caracterizada por tentativas de
superação de uma crise histórica. O momento crítico pode ser tanto
um ponto de chegada, quanto um ponto de partida (...) Assim, deverí-
amos pesquisar o que ajuda e o que atrasa o tempo das flores e da
primavera (SECCO, 2004, p. 18).
As palavras de Secco servem de mote para pensarmos em
outros aspectos ligados ao contexto revolucionário, ou seja, suas
implicações e o envolvimento dos sujeitos de uma dada sociedade
nos processos de ruptura e de permanência, que são, em última
instância, responsáveis pela chegada ou pelo atraso do “tempo das
flores e da primavera” ou, no caso português, do tempo dos cra-
vos.
Objetivando exemplificar algumas destas implicações e des-
tes sujeitos, destacamos Paisagem com mulher e mar ao fundo, de
Teolinda Gersão, e Balada da praia dos cães, de José Cardoso Pi-
res, escrito como Paisagem em 1982 e que toca mais diretamente
na questão do fazer revolucionário.
Baseado em fatos verídicos, o romance trata da história de
uma investigação policial em torno do assassinato do Major Dan-
tas C. Crime rapidamente esclarecido, pois, através da prisão da
amante do major, Mena, descobre-se em que circunstâncias o
mesmo ocorreu. Dantas C., líder de uma conspiração fracassada
que desejava depor o governo de Salazar, fora morto pelos seus
companheiros de revolução. A motivação do crime: o major, obje-
tivando alucinadamente testar a fidelidade do grupo que comanda-
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va, tornara insuportável a vida na Casa da Vereda (esconderijo dos
rebelados), impondo ao grupo toda sorte de torturas e demais me-
canismos repressivos, criando, assim, uma espécie de segunda di-
tadura.
Ao fazer um recorte analítico nesta obra, no sentido de pen-
sarmos as revoluções, suas possibilidades e impossibilidades, en-
focaremos as relações no interior deste grupo de conspiradores,
não nos dedicando aqui aos outros núcleos da narrativa também
relevantes na construção do romance.
Quando utiliza a história de um grupo antissalazarista como
matéria ficcional, Cardoso Pires obtém um duplo efeito: reproduz
no microcosmo deste grupo revolucionário elementos presentes no
macrocosmo da sociedade portuguesa, compondo, assim, um pai-
nel metonímico do seu país, ao mesmo tempo em que produz uma
escrita de margem, pois subverte a posição tradicionalmente biná-
ria, na qual a releitura da história portuguesa se dá por meio das
estórias de algozes e vítimas. Cardoso Pires subverte esta posição
binária, uma vez que mostra um grupo antissalazarista, que, além
de não interferir efetivamente na construção de uma sociedade me-
lhor, termina por se autodestruir, justamente porque encarna al-
guns dos preceitos que sustentaram a ditadura que a princípio se
desejava derrubar.
Lancemos, então, um olhar mais cuidadoso sobre cada um
dos componentes desse grupo formado por: Luís Dantas C., o ar-
quiteto Fontenova, o cabo Barroca e a jovem Mena, olhar que po-
de esclarecer a razão do fracasso de seu intento revolucionário.
Fontenova é descrito no romance como alguém que, acima
de tudo, tinha uma necessidade de proteger, de ajudar os oprimi-
dos. Logo, mais do que um intelectual revolucionário, o arquiteto
era alguém que se colocava a favor da justiça e do direito à liber-
dade. A escolha de um arquiteto como aquele que planeja um
mundo mais justo tece uma interessante interseção entre esse per-
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sonagem e o Horácio de Paisagem, também um arquiteto que pla-
nejava a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
O cabo Bernardino Barroca é apresentado pelo narrador
como “desertor em parte incerta” (PIRES, 1982, p. 66), o que se
justifica inteiramente, tendo em vista que, desde o início, este per-
sonagem não se mostrou engajado com a causa revolucionária,
sendo apenas levado pelas circunstâncias a fazer parte do grupo de
conspiradores. Na realidade, seu maior desejo era ir para “a doce
França” onde “estava a guerra sua e não ali, nos ocos da revolu-
ção”. (PIRES, 1982, p. 68)
Já o comportamento do major Dantas C. revela uma associ-
ação curiosa com os mecanismos do governo de Salazar. A come-
çar pelo modo como manipulava as informações que podiam ou
não chegar aos seus companheiros, fazendo da Casa da Vereda
uma espécie de mundo fechado, no qual imperava a censura.
Mesmo o disfarce de padre utilizado pelo major em suas saídas se-
cretas ironicamente simboliza um dos sustentáculos do governo
salazarista: a igreja.
Somando-se a todos estes fatores, temos a forma perfeita-
mente ditatorial com a qual o major desejava liderar os demais
membros do grupo, transformando-os pouco a pouco em conspira-
dores, não do governo salazarista, mas da ditadura imposta por ele
mesmo, Dantas C.
Último elemento do grupo a ser analisado, a jovem Mena, à
margem do dilaceramento presente em diversos aspectos do ro-
mance, ganha relevo por sua expressão sólida, vital, potente. Por-
que, embora tenha sido uma vítima constante das agressões do ma-
jor, Mena mantém uma potência que em tudo contrastava com a
impotência física e moral de seu amante. Pois, se por um lado o
major exercia um poder condigno perante o grupo, por outro lado
era um homem que sofria de uma forma "dramática de solidão",
afinal todos os setores e indivíduos que lhe prometeram apoio o
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abandonaram, ninguém mais acreditava na possibilidade de reali-
zar, naquele momento, uma revolução. Deste modo, Dantas C.
passa a viver imerso naquilo que Freud chama de delírio:
(...) pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro
mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados
e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos.
Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance
por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a na-
da. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; al-
guém que, na maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo
a tornar real o seu delírio. (FREUD, 1974, p. 100)
A relação de Dantas C. e Mena assemelha-se a outras duas
relações entre casais descritas por Teolinda Gersão em O silêncio
e em O Cavalo de Sol, onde respectivamente se confrontam Lídia
e Afonso, Vitória e Jerônimo. No primeiro casal, Afonso, experi-
mentando a impotência de suas palavras, esbofeteia Lídia, antes
que ela o abandone:
(...) tentarás calar-me, mas não podes, não poderás nunca mais, (...)
todas as palavras são minhas (...) então ele a esbofeteou, porque não
encontrava nenhum modo de parar de ouvi-la, porque era de repente
o fim daquela casa breve, ela ia se embora e ele não podia mais pren-
dê-la (...) Havia dentro dele um ódio que se estendia a todas as coisas
do mundo. (GERSÃO, 1984, p. 124)
No segundo casal, Vitória (cujo nome é em si mesmo o
anúncio de um destino), apresenta como Mena uma expressão po-
tente, afinal experimenta fisicamente o prazer de posicionar-se di-
ante da vida (nada, cavalga...) e, em muitas cenas, agiganta-se em
cima de um cavalo, rompendo com a tradicional imagem do ho-
mem como ser predestinado à aventura; ao passo que o noivo mos-
tra-se covarde no trato com a vida, sendo apenas capaz de cometer
crueldades de toda espécie.
Estes homens terminam como Dantas C., mortos, física ou
emocionalmente. Mas no romance cardosiano os assassinos do
major também não conseguem, através de um ato de desespero,
realizar seus desejos. Apenas tornam-se sujeitos aniquilados pela
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ação violenta que cometeram, não em nome de seus ideais, e sim,
por seguirem uma estranha lógica de autodefesa. Quem nos dá a
dimensão dramática desta lógica é o arquiteto Fontenova, ao dizer:
Eu creio que o medo é (...) uma forma-limite também, porque
corresponde à ruptura do equilíbrio do indivíduo com aquilo que lhe é
exterior. Mas o pior é que essa ruptura acaba por criar uma lógica de
defesa, eu pelo menos apercebi-me disso, a lógica do medo vai esta-
belecendo certas relações alienadas de valores até um ponto em que
se sente que o medo se torna assassino. Arq. Fontenova, em conversa
com o Autor, verão de 1980. (PIRES, 1982, p. 254)
A trajetória de Mena, muito diversa das protagonistas de
Gersão, mostra-se reveladora desta dramaticidade, pois o rompi-
mento da aliança amorosa simbolicamente representado pela ven-
da da corrente de ouro, dada por Dantas C.: “Curvou-se e levou as
pontas dos dedos ao tornozelo marcado: Adeus anilha de ouro,
adeus voto de alcova, que regresso ao meu natural”. (PIRES,
1982, p.105), não significou um passo rumo à liberdade. Com a
morte do major, Mena liberta-se de todos os elos com o amante,
porém, passa a ter as marcas de uma algema, sempre a lembrá-la
da triste realidade da prisão, a prendê-la, a fazê-la perambular en-
tre os tempos de horror que viveu ao lado do amante e o presente
melancólico da cela da judiciária. Não só ela, como o arquiteto e o
Barroca transformam-se em semimortos, visto que estão condena-
dos a passar suas vidas “pelos jazigos gradeados que são as peni-
tenciárias do país”. (PIRES, 1982, p. 14)
O destino destes personagens de Cardoso Pires revela que
entre as ações e os desejos, frequentemente, os indivíduos desli-
zam em um extenso campo de impossibilidades e contradições.
Talvez porque, como pensou Marx, os “homens fazem a sua pró-
pria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade, em cir-
cunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias
imediatamente encontradas, dadas, transmitidas” (MARX, 1982,
p. 21). Assim, submetidos ao período salazarista e a suas condi-
ções históricas, cada um destes personagens age de acordo com o
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que lhes parece possível, ainda que suas ações caiam em uma es-
pécie de vazio revolucionário.
Mas qual ou quais seria(m) a(s) razão(ões) para esta ausên-
cia de perspectiva revolucionária? Pensemos, antes de responder a
esta indagação, que promover uma revolução significa reunir pes-
soas ou setores da sociedade em torno de um projeto que seja,
acima de tudo, solidário.
Ocorre que por motivos diversos estes personagens rompem
ou se alienam deste pacto de solidariedade, fundamental para a re-
alização de um projeto revolucionário. Vejamos: o grupo do major
Dantas C. rompe com os seus ideais revolucionários porque seus
membros passam a agir de acordo com uma lógica de ação e rea-
ção, alienando-se daquilo que a princípio os unia. O major por de-
sejar fazer uma revolução impositiva e não solidária, demonstran-
do que sua constituição enquanto sujeito estava ainda muita arrai-
gada aos valores do sistema em que almejava por fim. Os seus ex-
-companheiros porque, ao reagirem às agressões do líder com um
ato de extrema violência, no sentido mesmo de defenderem o prin-
cípio primordial da sobrevivência, esquecem-se de que para além
da ditadura de Dantas C. existia aquela de Salazar e esta sobrevi-
veria à morte do major.
Entretanto, se a narrativa principal (investigação e reconsti-
tuição do assassinato), apresenta-se distópica, uma outra sutilmen-
te se manifesta e nela se pressente a expectativa por uma espécie
de revolução apolítica34
. Isto se dá, por exemplo, quando o inves-
34 Toda a narrativa de Balada da Praia dos Cães propõe uma espécie de leitura dual, por
assim dizer, dos personagens e de tudo que os cerca. Em um capítulo deste romance in-
titulado Bazar Ortopédico, ao mesmo tempo em que o narrador semeia elementos repre-
sentativos da ortopedia social de que fala Foucault, quando descreve as sociedades dis-
ciplinares, concede às próteses e demais ortopédicos características de um movimento
latente, ameaçador da imobilidade vigente.
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tigador Elias Santana se põe a observar uma loja de ortopédicos e
a voz narrativa diz:
Cada calçada a pino, cada loja com o seu carrinho de inválido ex-
posto à porta como se estivesse à espera da ordem de partida para um
rally-supresa. Vistas de cimo da rua, aquelas cadeiras resplandecentes
parecem prontas a rolar a qualquer momento pelo plano inclinado
abaixo, ganhando velocidade, altura e desaparecem como máquinas
loucas sobrevoando os telhados da cidade. (PIRES, 1982, p. 79)
Tal situação difere da do romance de Lobo Antunes, Os Cus
de Judas, em que no plano do enunciado se apresenta um protago-
nista e narrador que, a partir de sua experiência traumática como
ex-combatente na guerra de Angola, torna-se um sujeito que desa-
credita de certos ideais humanos, especialmente, aqueles ligados à
utopia revolucionária. Isto porque ao vivenciar empiricamente os
males da guerra, duvida daqueles que estando muito longe dos
conflitos pregam discursivamente o fim da ditadura:
(...) queria achar-me em Paris a fazer revoluções no café, ou a
doutorar-me em Londres e a falar do meu país (...) falar da choldra do
meu país para amigos ingleses, franceses, suíços, portugueses, que
não tinham experimentado no sangue o vivo e pungente medo de
morrer, que nunca viram cadáveres destroçados por minas ou balas
(...) aguardar tranquilamente, desdenhando minha terra, que os
assassinos a libertassem, que os chacinados de Angola expulsassem a
escória covarde que escravizava a minha terra, e regressar então,
competente, grave, sábio, social-democrata (...) (ANTUNES, 1984, p.
143)
A guerra e sua realidade vazia de ilusões fizeram com que
este sujeito não estabelecesse os tão importantes laços de solidari-
edade (nem mesmo com os outros combatentes), tornando-se um
indivíduo solitário, portador de um discurso marcado por um ceti-
cismo, que inviabiliza qualquer projeto revolucionário. É assim
“um homem para quem não se telefona e cujo telefona ninguém
espera, tossindo de tempos em tempos para se imaginar acompa-
nhado (...)”. (ANTUNES, 1984, p. 50)
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No plano da enunciação, embora a escrita do romance im-
ponha, em si mesma, uma resistência à leitura plácida - travando
neste sentido um combate com a linguagem meramente fascista do
cotidiano - esta resistência acompanha, de certa forma, o sentido
solitário da obra, pois advém de ser este um discurso pautado em
fragmentos de memória de um sujeito que se põe a falar, sob efeito
do álcool, a uma ouvinte, que não interage em momento algum
com o narrador.
Já Paisagem com mulher e mar ao fundo amplia o sentido
revolucionário em todos os níveis. Na enunciação, aposta em um
jogo de experiências estéticas que se estende de algum modo por
todas as obras de Gersão, produzidas nos anos 80, como menciona
Isabel Pires de Lima:
Durante a década de 80, a obra de Teolinda Gersão foi marcada
por (...) uma clara propensão experimentalista, que subordina a linea-
ridade narrativa a diversos processos de decomposição, a movimentos
de descontinuidade, a rupturas súbitas e a um procedimento simultâ-
neo de autodescrição reflexiva. (LIMA, 2002)
No enunciado, muitos são os modos de resistência apresen-
tados, porém convém destacar a nota introdutória deste livro, dan-
do continuidade à nossa reflexão de que qualquer movimento que
se espera que seja revolucionário deva prioritariamente basear-se
em laços de solidariedade:
(...) o texto também não é meu. De diversos modos foi dito, gritado,
sonhado, vivido por muitas pessoas, e por isso o devolvo, apenas um
pouco mais organizado debaixo desta capa de papel, a quem o reco-
nheça como coisa sua.35
A partir deste dizer inicial já se evidencia o sentido do pró-
prio texto, ou seja, a sua vontade solidária de compartilhar a ale-
gria de transformar a realidade. Mas é importante notar que o que
se assiste não é uma revolução pronta e sim uma revolução apren-
35 Nota introdutória de Paisagem com mulher e mar ao fundo, 1985.
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diz, visto que a personagem central Hortense ensaia modos de vi-
ver. Justamente, é nesta sucessão de ensaios que as “paisagens”
particulares da protagonista irão se defrontar com as “paisagens”
públicas, auxiliando na composição do ciclo resistência, desistên-
cia e resistência no qual gira Hortense.
Os fluxos memorialísticos da personagem tecem o cruza-
mento das duas paisagens (privada e pública), sendo interessante
notar que a juventude da Hortense é marcada pela indefinição de
uma paisagem pessoal, sabendo somente o que negar e não o que
acolher:
(...) rompendo barreiras mas fugindo sem norte, sabendo o que recu-
sava mas demasiado espavorida para saber o que aceitaria (...). As
falsas casas anteriores derrubadas, desfeitas; a verdade dentro de si
como uma pedra (...) (GERSÃO, 1985, p. 71)
E como destaca Magalhães:
Nesta fase do seu percurso há um paralelo possível entre ela e a
Lídia de O Silêncio: ambas vivem uma atitude de recusa e de procura
ainda informe, mas deixando-nos O Silêncio nessa fase de ‘ruptura de
barreiras’ sem que Lídia veja ainda uma pista para o terreno onde po-
derá lançar raízes. Entretanto Hortense (...) parece estar a viver a con-
tinuação da vida de Lídia numa das possíveis e múltiplas ‘saídas’ que
O Silêncio deixara antever: a ‘fixação num solo’ onde se sente bem. É
certo que ambas procuravam através do homem uma saída, mas Lídia
recusou Afonso porque a sua ‘ordem’ inalterável não era a sua; pelo
contrário Hortense aceitou Horácio, talvez porque ele era outro tipo
de homem provavelmente até mais próximo do modelo que Lídia
procurava. (MAGALHÃES, 1987, p. 437)
Depois, com o casamento, predomina uma oposição das
“paisagens” exteriores e da paisagem interior da casa de Hortense.
Uma incongruência velada, só posta em questão, quando a prota-
gonista depara-se com a experiência de luto pela morte do marido
e do filho, ambas as mortes ocorridas e ocasionadas na/pela “pai-
sagem” exterior (ambiente emblematicamente ditador).
Entretanto, como se viu, o luto é mais uma mola propulsora
para a personagem lançar-se a novas maneiras de viver, agora não
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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173
mais artificialmente desvinculada do social, mas, ao contrário, ob-
servando-o criticamente, como ocorre durante a festa do Senhor
do Mar, em que a consciência de Hortense se prolonga na ação da
coletividade ali apresentada:
(...) a imagem cai, rasgando o pano de cetim que reveste o andor (..)
os homens surgem à luz do dia, exaustos, despindo as opas e os casa-
cos (...) os anjos tiram as asas e são apenas crianças fatigadas (...) é
um milagre, diz o povo e acorre, porque a festa se alterou e nada do
que aconteceu era previsível, nos termos do programa (GERSÃO,
1985, p. 114)
A descrição às avessas da festa do Senhor do Mar revela,
além da união de Hortense com a coletividade (coincidindo, não
por acaso, a superação de seu luto pessoal com a superação do
longo luto do povo português), o modo como a autora pensa a re-
volução, não tanto presa aos ditames da História, de que fala
Marx, e sim como possibilidade ilimitada de uma estória inventiva
e transformadora. Uma prova da opção da autora pela releitura do
pós-74, menos comprometida com a História e mais comprometi-
da com a estória, está no papel privilegiado que concede às crian-
ças e aos artistas em suas obras. Afinal estes indivíduos, por exce-
lência, não almejam propor verdades, simplesmente vão experi-
mentando a vida, concedendo um pouco de “possível” que permita
uma saída aos sufocantes agenciamentos do poder, ainda que este
possível seja volátil como a imaginação:
Vivia então a experiência intensa de criar: pintar era para ela um
abrir de brechas no opaco quotidiano: a loucura de pendurar um qua-
dro na parede e de encontrar para ele um álibi ingênuo e manso: ras-
gar uma brecha por onde um outro universo entrasse, abrir um pássa-
ro, uma luz, uma janela na parede dos dias. (GERSÃO, 1985, p. 74)
O artista e a criança (que ganham destaque nas obras pós-90
da autora) são aqueles que obtêm um duplo efeito na escrita dos
romances, por um lado utilizam-se sem pudor da imaginação para
construir outras leituras do real e, por outro lado, são capazes de
denunciar as hipocrisias e temores sociais, mascarados de bem-
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
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estar. Bauman em O mal-estar da pós-modernidade (1998, p.52)
fala destes temores que chama de “demônios interiores”:
Todo tipo de ordem social produz determinadas fantasias dos perigos
que lhe ameaçam a identidade. A sociedade insegura da sobrevivência de
sua ordem desenvolve a mentalidade de uma fortaleza sitiada. Mas os
inimigos que lhe sitiaram os muros são os seus próprios “demônios inte-
riores” – os medos reprimidos e circundantes que lhe permeiam a vida di-
ária e a normalidade. (BAUMAN, 1998, p. 52)
Lídia, de O silêncio, denuncia a natureza destes medos ou
demônios interiores ao falar do perigo de se desejar viver em uma
sociedade sem perigos e sem desordem, com árvores de plástico
que não sujem as ruas com suas folhas de outono, com um mar
também de plástico em que há uma densidade calculada para que
ninguém se ofegue. Uma sociedade em que as pessoas necessitam
de substâncias químicas (tranquilizantes e drogas) ou sessões de
terapia em grupo para reaprenderem a amar e para aplacarem suas
angústias diárias.
Hortense e Lídia apostam em uma outra forma de viver e
parecem proferir em eco: “Não há outro valor por que lutar senão
pela liberdade de inventar a esperança, aceitando a possibilidade
do desastre”. (GERSÃO, 1984, p. 119) Assim, pela sua arte e pela
superação corajosa do luto, a protagonista de Paisagem demonstra
compreender aquilo que diz Guattari sobre a revolução:
A enunciação individuada é prisioneira das significações domi-
nantes. Só um grupo sujeito pode trabalhar os fluxos semióticos, que-
brar as significações, abrir a linguagem para outros desejos e forjar
outras realidades! (GUATTARI, 1981, p. 179)
Em outras palavras, Hortense percebe a inexistência de uma
linha divisória do espaço público e do espaço privado. Percebe,
enfim, que, em realidade, ao optar por tecer caminhos individuais
de resistência, o indivíduo termina por cair na sedução da desis-
tência ou a agregar-se aos interesses do sistema. Essa tomada de
consciência da personagem fica bem marcada quando evita que
Clara se suicide e pensa: “(...) não é só fora de nós que é preciso
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
175
mudar o universo, é também dentro de nós que está a tentação do
caminho mais fácil, a voz da resignação, do desespero e da mor-
te.” (GERSÃO, 1985, p. 146).
A leitura dessas obras reafirma nossa ideia de que uma re-
volução se faz de movimentos oscilantes, de fluxos e refluxos ou
como dissemos inicialmente: a revolução é um fenômeno de longa
duração e, sendo assim, determinar onde começa e termina não é
fácil e, talvez, nem mesmo válido estabelecer.
Voltando ao ano da publicação tanto de Paisagem com mu-
lher e mar ao fundo quanto de Balada da praia dos cães, 1982,
importa destacar uma interessante reflexão acerca da Revolução
dos Cravos (1974). Notemos que ambos os romances optam por
empreender um retorno aos anos ditatoriais para compor o cenário
e o enredo de suas histórias. Ocorre que a ditadura de Salazar du-
rou quatro décadas e os autores escolhem diferentes momentos
desta ditadura para serem retratados. Cardoso Pires regressa ao
ano de 1960, época considerada emblemática da ditadura salaza-
rista, que parece servir de paradigma para se pensar, tal como fez
Foucault, nas consequências mais invisíveis do poder. Isto é: pen-
sar como o poder, fazendo uso de mecanismos repressivos ou ide-
ológicos, pode interferir na constituição dos sujeitos, nas suas
ações e relações pessoais/ afetivas.
Analisemos: 1982 é o ano em que o Conselho da Revolução
foi abolido e talvez este fato tenha influenciado na opção do autor
por contar a história de uma tentativa de revolução fracassada, re-
velando aí uma visão distópica em relação aos acontecimentos,
sobretudo, políticos do pós-74, que, realmente, mostraram-se per-
meados por contradições.
Gersão, no entanto, escolhe narrar os anos finais da ditadura
apostando na manutenção do sonho revolucionário e no que pode-
ria ter sido a revolução, emergindo daí uma bela descrição do
momento em que esta eclode:
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
176
(...) tomar a cidade de assalto. De madrugada saltando em terra, en-
quanto as pessoas dormiam. Ocupando todas as saídas da cidade, a
rádio, a televisão, os quartéis, o aeroporto.
(...) abraçam os soldados levando flores na mão (...) (GERSÃO,
1985, p. 124-125)
Como menciona Magalhães: “Paisagem com mulher e mar
ao fundo encerra afinal uma promessa dessa possibilidade de mu-
dança, a possibilidade escondida na semente (...)” (MAGA-
LHÃES, 1987, p. 455)
Quanto ao fim do romance, cabe ainda observarmos a simi-
laridade entre o nascimento do neto de Hortense e a saída de Lídia
da casa do amante. Em O silêncio diz-se “caminhando, abrindo
passagem com o corpo, uma pequena figura entre outras” (GER-
SÃO, 1984, p. 124) e em Paisagem “um pequeno corpo húmido,
perfeito, sufocado, abrindo uma passagem, experimentando brus-
camente o ar e o espaço, o choque da sombra contra a luz (GER-
SÃO, 1985, p. 147)”
Para nós leitores e indivíduos pertencentes a um tempo
marcado pela derrocada de líderes carismáticos e que vivemos a
era do sujeito descentrado, uma espécie de ensinamento pode ser
retirado destes romances e quem o sintetiza é Eagleton, quando
diz:
Com efeito, o famoso sujeito descentrado soou como um
escândalo para aqueles muito cheios de si. Ele também ajudou a
esvaziar uma esquerda política que achava que o negócio era
simplesmente agir em vez de problematizar a natureza do agente, ou
seja, eles mesmos. (EAGLETON, 1998, p. 91)
Logo, o caminho para as revoluções possíveis passa antes
pela reflexão em torno de nossas próprias ações e pela aceitação
da diferença do outro, atitude que soa muitas vezes como caótica
(sendo o caos necessário à mudança como se viu nos romances de
Gersão), porém, é, acima de tudo, democrática.
Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos
17-18. Niterói, 2014
177
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Lobo. Os cus de judas. Rio de Janeiro: Marco Zero,
1984.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 20. ed. Rio de Janei-
ro: Graal, 2004.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão; o mal-estar na civili-
zação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações do desejo.
São Paulo: Brasiliense, 1981.
GERSÃO, Teolinda. O cavalo de sol. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
GERSÃO, Teolinda. O silêncio. 3. ed. Lisboa: O Jornal, 1984.
GERSÃO, Teolinda. Paisagem com mulher e mar ao fundo. 3. ed.
Lisboa: O Jornal, 1985.
LIMA, Isabel Pires de. Ainda há contos de fadas? O caso de “Os
Anjos” de Teolinda Gersão. Semear – Revista da Cátedra Padre
Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro, 2002.
Disponível em: <http://www.letras.puc-rio/catedra/resvista/semiar>.
Acesso em: 30-08-2006.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das mulheres. Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. Lisboa:
Avante! 1982.
PIRES, José Cardoso. Balada da Praia dos Cães. Lisboa: O jor-
nal, 1982.
SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda,
2004.

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  • 2. ISSN: 1807-6378 LINGUAGEM EM (RE)VISTA (Ano 09, No 17-18) Niterói 2014
  • 3. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 2 EXPEDIENTE A LINGUAGEM EM (RE)VISTA é um periódico semestral desti- nado à expansão e socialização de pesquisas inscritas no âmbito de estudos da linguagem. Eventualmente, poderá receber contribui- ções de áreas afins. Conselho Editorial Ana Léa Rosa da Cruz Antônio Carlos da Silva Beatriz dos Santos Feres Iran Nascimento Pitthan Maria Isaura Rodrigues Pinto Maria Luiza de Castro da Silva Olga Maria Guanabara de Lima Regina Souza Gomes Organização e edição: Maria Isaura Rodrigues Pinto Capa: Maria Isaura Rodrigues Pinto Editoração e diagramação: José Pereira da Silva Montagem e encadernação: Silvia Avelar Silva Impressão: Universidade das Cópias As ideias apresentadas nos artigos assinados são de exclusi- va responsabilidade de seus autores.
  • 4. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 3 SUMÁRIO 0. Apresentação Maria Isaura Rodrigues Pinto ...........................................05 1. A encenação descritiva nos quadrinhos Turma da Mônica Jo- vem Glayci Kelli Reis da Silva Xavier ......................................08 2. O material didático impresso em EaD no século XXI: usos e funções da linguagem e dos gêneros textuais Maria Betânia Almeida Pereira ........................................31 3. Perspectivas para o trabalho com projetos didáticos: produção de poemas na escola Maria Isaura Rodrigues Pinto ...........................................44 4. Eugenio Coseriu: uma mudança radical na perspectiva lin- guística Helio de Sant’Anna dos Santos ..........................................62 5. A literatura na era digital Adriane Camara de Oliveira .............................................75 6. Literatura contemporânea: a escrita da solidão em João Gil- berto Noll Tania Teixeira da Silva Nunes ...........................................88 7. A correspondência e o discurso de si: confissão ou ficção? Luciana Paiva de Vilhena Leite .......................................103
  • 5. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 4 8. No meio do caminho tinha uma pedra: a versatilidade da fór- mula discursiva na literatura infantil Patricia Ferreira Neves Ribeiro ........................................122 9. Oralidade, narrativa e mito: uma proposta de leitura dialógica Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos .......................142 10. A revolução aprendiz nas narrativas portuguesas contempo- râneas Jane Rodrigues dos Santos ..............................................162
  • 6. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 5 APRESENTAÇÃO O presente periódico tem uma longa trajetória que se esten- de por um período de nove anos. Nesse percurso, vem promoven- do a publicação de artigos de professores pesquisadores vincula- dos a várias instituições universitárias. Os participantes oferecem significativas contribuições às pesquisas que falam de diversas áreas, predominantemente, as de Língua Portuguesa, Linguística e Literatura. Neste número, como nos anteriores, os artigos provêm de várias fontes, mas têm como eixo comum a apresentação de estu- dos recentes, que, com seus enfoques específicos, refletem sobre questões relativas à linguagem e seu ensino. No texto de abertura, intitulado “A encenação descritiva nos quadrinhos Turma da Mônica Jovem”, Glayci Kelli Reis da Silva Xavier, tendo sua atenção voltada para o gênero história em qua- drinhos, analisa, na revista Turma da Mônica Jovem, de Maurício de Sousa, como se efetivam os mecanismos de encenação descriti- va e os efeitos resultantes da relação verbo-visual. O artigo “O material didático impresso em EAD no século XXI: usos e funções da linguagem e dos gêneros textuais”, de Ma- ria Betânia Almeida Pereira, situado no âmbito do ensino a distân- cia, ressalta a importância de se proceder, no processo de elabora- ção de materiais didáticos com gêneros textuais, a uma escolha criteriosa de textos, de recursos multimídia e de linguagens diver-
  • 7. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 6 sificadas, a fim de tornar eficaz o processo de ensino-aprendiza- gem. O texto seguinte, “Perspectivas para o trabalho com projetos didáticos: produção de poemas na escola", de Maria Isaura Rodri- gues Pinto, leva a discussão para a sala de aula, focalizando resul- tados de uma intervenção didática, realizada por meio de oficinas no âmbito do Subprojeto PIBID Letras da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, a qual visou à produção de poemas por alunos da educação básica. Em “Eugenio Coseriu: uma mudança radical na perspectiva linguística”, Helio de Sant’Anna dos Santos focaliza aspectos da concepção coseriana, que permitem considerá-lo um linguista in- tegral. O texto chama a atenção para o fato de o linguista ser, ina- dequadamente, tido “como mais um estruturalista”. No artigo subsequente, “A literatura na era digital”, Adriane Camara de Oliveira, atuando no terreno da literatura contemporâ- nea, dedica-se à análise, em contos e romances, de recursos de apropriação temática e de assimilação formal de expedientes de leitura e de escrita que são característicos da cultura digital. Também Tania Teixeira da Silva Nunes, em “Literatura contemporânea: a escrita da solidão em João Gilberto Noll” realiza uma reflexão sobre a literatura na atualidade, neste caso, a partir da escritura de João Gilberto Noll, no romance Solidão continen- tal. Segundo a autora, a obra configura “o mundo sem saída e o mesmo narrador anônimo e degradado com que o romancista ino- va e renova a sua escrita”. Luciana Paiva de Vilhena Leite, em “A correspondência e o discurso de si: confissão e ficção?”, apresenta uma análise de cor- respondências trocadas entre autores da literatura e locutores de sua esfera pessoal. Enfatiza, em sua pesquisa, o fato de o discurso
  • 8. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 7 das cartas pessoais, nos casos explorados, parecer adotar um tom oscilante que ora se coaduna com a confissão ora com a ficção. Com o texto de Patricia Ferreira Neves Ribeiro, “No meio do caminho tinha uma pedra: A versatilidade da fórmula discursi- va na literatura infantil”, o enfoque se desloca para o domínio da literatura infantil. O estudo dedica-se ao exame do uso de fórmulas (re)enunciadas, com o propósito de verificar como se dá o seu funcionamento no corpus selecionado. A atenção recai, como anuncia a autora, “sobre questões sociais que essas fórmulas aju- dam a (des)construir diante do leitor aprendiz”. Já Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos, em “Oralidade, narrativa e mito: uma proposta de leitura dialógica”, apresenta uma proposta de reflexão que tem como foco o vínculo entre nar- ração, experiência e modernidade. O interesse da pesquisa reside no estudo das “configurações dialetais” promovidas pelo Moder- nismo, em “O besouro e a rosa”, conto de Mário de Andrade. Jane Rodrigues dos Santos encerra a obra com o artigo “A revolução aprendiz nas narrativas portuguesas contemporâneas”. A pesquisadora, especialmente a partir dos romances portugueses Paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão e Bala- da da praia dos Cães, de José Cardoso Pires, discute o liame entre literatura e história, destacando o “teor revolucionário”, que am- bos os conceitos abarcam. Para finalizar, fica ao leitor o convite para fruir o periódico e imaginar novas configurações para os assuntos abordados pelo conjunto de textos aqui reunidos. Niterói, dezembro de 2014. Maria Isaura Rodrigues Pinto
  • 9. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 8 A ENCENAÇÃO DESCRITIVA NOS QUADRINHOS TURMA DA MÔNICA JOVEM Glayci Kelli Reis da Silva Xavier1 RESUMO Para se comunicar, ao fazer uso da linguagem, o homem utiliza vários sistemas simbólicos, sejam palavras, imagens, gráficos, gestos, expressões fi- sionômicas, sons etc. Consequentemente, o ser humano está imerso em uma rede intrincada e plural de linguagem (SANTAELLA, 2012, p. 14). A histó- ria em quadrinhos, objeto do presente estudo, é um gênero que lida com dois dispositivos importantes de comunicação: palavras e imagens (EISNER, 1989, p. 7); palavras são feitas de letras e letras são imagens. Desse modo, nos quadrinhos, o leitor tem uma dupla atividade, pois cada elemento visual tem um significado e, nesse sentido, as imagens exerceriam, assim como as palavras, a função descritiva. Segundo Charaudeau (2009, p. 113), descrever consiste em ver o mundo com um “olhar parado”, trazendo à existência os seres ao nomeá-los, localizá-los, e atribuir-lhes qualidades que os singulari- zam. O autor ainda afirma que, na descrição, o enunciador (sujeito descri- tor) pode intervir de maneira explícita ou não, produzindo um certo número de efeitos, resultado de uma intenção consciente da parte do sujeito descri- tor, visando a manipular a leitura do sujeito destinatário. Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende analisar a revista Turma da Mônica Jovem, obra de Maurício de Sousa, verificando como se dá a encenação descritiva presente nela e os efeitos produzidos por meio da relação verbo-visual. Para isso, será tomada por base teórica principal a Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso de Patrick Charaudeau (1992; 2009), com relação aos sujeitos de do ato de linguagem e os modos de organização do discurso. Palavras-chave: Verbo-visualidade. Modo descritivo. Semiolinguística. Quadrinhos. 1 Doutoranda em estudos da linguagem na Universidade Federal Fluminense e professo- ra do Colégio Pedro II. E-mail: [email protected]
  • 10. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 9 1. Considerações iniciais O ser humano é um ser simbólico por natureza. Para se co- municar, ao fazer uso da linguagem, o homem utiliza vários siste- mas simbólicos, sejam palavras, imagens, gráficos, gestos, expres- sões fisionômicas, sons etc. Consequentemente, o nosso estar no mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem (SANTAELLA, 2012, p. 14). Com o avanço da tecnologia, a sociedade torna-se cada vez mais visual e, com isso, a compreensão da relação palavra-imagem adquire cada vez mais importância. A história em quadrinhos é um gênero que lida com dois dispositivos importantes de comunica- ção: palavras e imagens (EISNER, 1989, p. 7); palavras são feitas de letras e letras são imagens. Desse modo, nos quadrinhos, o lei- tor tem uma dupla atividade, pois cada elemento visual tem um significado. Conforme explica Eisner (2005, p. 9) o processo de leitura dos quadrinhos é uma “extensão do texto”; num texto ver- bal, o leitor precisa converter a palavra em imagens, enquanto, nos quadrinhos, esse processo é acelerado, pois as imagens são forne- cidas. Dessa forma, em um texto verbo-visual como as histórias em quadrinhos, as imagens exercem, assim como as palavras, as funções descritiva e narrativa. Sabe-se que nas histórias em qua- drinhos a narração e a descrição encontram-se intimamente liga- das, e uma depende da outra. No entanto, pela extensão do presen- te trabalho, será focalizado apenas o modo descritivo. Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende analisar a revista Turma da Mônica Jovem, obra de Maurício de Sousa, res- peitado desenhista brasileiro, verificando como se dá a encenação descritiva presente nela e os efeitos produzidos por meio da rela- ção verbo-visual. Como fundamentação teórica desta pesquisa, tomar-se-á por base principal a teoria semiolinguística de análise do discurso de Patrick Charaudeau (2009), com relação aos sujei-
  • 11. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 10 tos de do ato de linguagem e os modos de organização do discur- so. 2. A construção do modo descritivo Charaudeau (2009, p. 113) afirma que descrever consiste em ver o mundo com um “olhar parado”, trazendo à existência os seres ao nomeá-los, localizá-los, e atribuir-lhes qualidades que os singularizam. Descrever está estreitamente ligado a contar, porém se difere deste; contar consiste em “expor o que é da ordem da ex- periência e do desenvolvimento das ações no tempo” (op. cit., p. 113). O autor ainda diferencia os termos descritivo e descrição: o primeiro é um procedimento discursivo (modo de organização do discurso), enquanto o segundo é o resultado, ou seja, um texto (ou fragmento de texto) que se apresenta explicitamente como tal. De acordo com Goodman (apud SANTAELLA, 2005, p. 293), “as figuras são símbolos convencionais que se relacionam a seus objetos referenciais do mesmo modo que um predicado se re- laciona àquilo a que ele se aplica”; assim, tanto o retrato visual quanto a descrição verbal participariam “na formação e caracteri- zação do mundo, relacionando-se mutuamente junto com a per- cepção e o conhecimento”. Portanto, ao explorar como se configu- ra o modo descritivo no mangá Turma da Mônica Jovem, elemen- tos verbais e imagéticos devem ser considerados, como poderá ser visto na análise a seguir. 3. Componentes da construção descritiva A construção do modo descritivo conta com três tipos de componentes: nomear, localizar/situar e qualificar os seres do mundo, com uma maior ou menor subjetividade. Cada um desses componentes, por sua vez, é implementado por um determinado
  • 12. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 11 procedimento discursivo. No entanto, vale ressaltar que o descriti- vo, diferentemente dos outros modos, não se fecha em si em uma lógica interna e não existe um percurso obrigatório para sua cons- trução; o descritivo está geralmente ligado a outros modos de or- ganização e, sem ser totalmente dependente, ele adquire sentido (ou parte de seu sentido) em função dos outros modos (CHA- RAUDEAU, 2009, p. 117). Além dos procedimentos discursivos, a descrição é construída por procedimentos linguísticos que utili- zam categorias da língua, as quais podem aparecer isoladas ou combinadas entre si. 3.1.Nomeação Nomear é dar existência a um ser, por meio de uma dupla operação: percepção e classificação. Como a percepção e a classi- ficação dependem do sujeito que percebe, é “o sujeito que constrói e estrutura a visão de mundo”; por isso, nomear não é um simples processo de “etiquetagem” de uma referência pré-existente, mas sim o resultado de uma operação que consiste em “fazer existir se- res significantes no mundo, ao classificá-los” (CHARAUDEAU, 2009, p. 112). A nomeação está ligada ao procedimento discursivo de identificação. Como procedimentos linguísticos, o componente nomear se utiliza das seguintes categorias de língua: a denominação, a inde- terminação, a atualização, a dependência, a designação, a quanti- ficação e a enumeração. Alguns desses procedimentos serão des- critos a seguir. A denominação aparece sob a forma de nomes comuns ou nomes próprios, cujo papel é identificar os seres, do ponto de vista geral ou particular. No caso da Turma da Mônica, cada persona- gem tem seu nome próprio, e cada nome não lhes servem sim- plesmente de rótulo; por serem personagens consagradas pelo pú- blico, tais nomes também servem para caracterizá-las juntamente
  • 13. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 12 com sua personalidade, suas qualidades, seus defeitos, suas manias etc.; tanto que é comum chamarem alguém de “Cascão” se não tem muitos hábitos de higiene, de “Magali” se come muito... Na Turma da Mônica Jovem, a denominação como procedimento lin- guístico aparece principalmente nos vocativos, mas também ocor- re em outras situações, como quando alguém está falando sobre o outro e cita seu nome. A atualização (ou concretização) é obtida por meio do uso de artigos, criando efeitos discursivos de singularidade, familiari- dade, evidência, idealização ou até mesmo insólito. A designação é realizada com o uso de demonstrativos, que permitem produzir efeitos discursivos de tipificação. Na Fig. 1, pode-se encontrar a atualização ou concretização na fala do Titi, quando ele diz “a Mônica”, criando efeito de familiaridade, e no título do capítulo “Uma nova Mônica”, que coloca em evidência a mudança ocorri- da na personagem. Na expressão “esse cabelo” é usada a categoria de designação, quando se mostra a presença de um referente; o efeito de tipificação é criado pela precisão, pois “esse” representa um exemplar da classe, de forma não generalizada: não é qualquer cabelo, é o modelo que ela está usando no momento. Além disso, as imagens também podem exercer a função descritiva de nomear. Com relação à denominação, por exemplo, as imagens identificam as personagens e os objetos; se o texto fos- se puramente verbal, nos diálogos, a identificação de quem toma a palavra seria feita pode meio de nomeação e verbos dicendi (de elocução): Cascuda disse; Marina completou, Titi comentou...; nos quadrinhos, como prevalece o discurso direto, as imagens substituem essa nomeação.
  • 14. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 13 Fig. 1: Atualização e Designação. Turma da Mônica Jovem, nº 61, p. 45. Na Fig. 2, aparece uma imagem em forma de sombra, cri- ando efeito de suspense pela indeterminação (Cascão não vê com quem está falando).
  • 15. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 14 Fig. 2: Indeterminação, designação e dependência nas imagens. Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 25. Quando Cascão aponta para a pessoa (achando que é o Ce- bola, mas posteriormente é revelado que se trata da Magali), a imagem contribui para a nomeação por meio das categorias: de- signação (quando mostra de quem é a opinião que ele não quer) e dependência (numa apreciação negativa). Outras categorias também podem ser expressas pelas ima- gens, como a enumeração, quando, por exemplo, é mostrado um quarto cheio de objetos espalhados, para dizer que ele está desor- ganizado ou todo bagunçado. Além disso, uma mesma imagem pode apresentar diferentes significados. O componente nomear também está relacionado ao proce- dimento discursivo de identificação. Os seres representam uma re- ferência material (concreta) ou não material (abstrata, como sen- timentos, ações), e são nomeados por nomes comuns, que os indi- vidualizam e classificam (são agrupados a uma classe) ou por no-
  • 16. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 15 mes próprios, criando uma identificação específica, nomeando-os em sua unicidade. 3.2.Localização/situação Localizar/situar é determinar o lugar que um ser ocupa no espaço (localização) e no tempo (situação) e, por um efeito de re- torno, atribuir características a esse ser, já que, para sua existência, ele depende de sua posição espaço-temporal (CHARAUDEAU, 2009, p. 113). Essa localização-situação geralmente aponta para um recorte objetivo do mundo; por isso, tem como procedimento discursivo a construção objetiva do mundo. Como procedimentos linguísticos, utilizam-se categorias de língua que têm por efeito estabelecer um enquadre espaço- temporal, que pode produzir dois resultados: a identificação de lu- gares e épocas de um relato com precisão; ou a não identificação, deixando os lugares e o tempo incertos, vagos, porque o relato não se ancora em nenhuma realidade específica, mas coloca em cena destinos e arquétipos que são atemporais (op. cit., p. 137). Com relação à localização espacial, nos quadrinhos, ela po- de ser feita tanto verbalmente, quanto visualmente. No exemplo da Fig. 3, na imagem 1, a localização é feita visualmente apenas, mostrando que a turma está na escola. Na imagem 2, a localização é feita verbalmente, pois mostra-se a figura de uma casa, que po- deria ser de qualquer personagem; somente ao ler o texto verbal que é possível identificar que a casa é do Xaveco (“deve ser a pri- meira vez que minha casa aparece no mangá”). Na imagem 3, a localização é verbo-visual, pois tem-se a imagem da padaria e seu letreiro.
  • 17. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 16 Fig. 3: Localização no espaço. Turma da Mônica Jovem nº 41, p. 5; nº 59, p. 105; nº 61, p. 15. Como as ações ocorrem, em sua maioria, no bairro do “Li- moeiro”, normalmente o espaço é identificado. A única não identi- ficação frequente é com relação ao tempo; apesar de obedecerem a uma sequência cronológica de revista em revista e a passagem de tempo poder ser observada no desenrolar das ações, a situação no tempo é imprecisa e não há tempo marcado, somente expressões como “no primeiro dia de aula”, “no dia seguinte”, “sexta-feira”, “dez anos no futuro”, inscritas em legendas ou na fala das perso- nagens; tal recurso é utilizado para tornar as revistas atemporais, podendo ser lidas em qualquer época. 3 2 1
  • 18. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 17 3.3.Qualificação Qualificar é atribuir a um ser, de maneira explícita, uma qualidade que o caracteriza e o especifica, classificando-o, desta vez, em um subgrupo (CHARAUDEAU, 2009, p. 115). O ato de qualificar permite ao sujeito falante manifestar seu imaginário (in- dividual ou coletivo) da construção e da apropriação do mundo, num jogo de conflito entre visões normativas, impostas pela soci- edade, e suas próprias visões. Assim, a qualificação, um dos pro- cedimentos discursivos do modo descritivo, faz com que um ser “seja alguma coisa”, por meio de suas qualidades e comportamen- tos, suscitando procedimentos discursivos de construção ora obje- tiva, ora subjetiva do mundo (op. cit., p. 116-117). Os procedimentos de construção objetiva do mundo consis- tem em construir uma “visão de verdade sobre o mundo”, qualifi- cando os seres por meio de traços que possam ser verificados por seu interlocutor; tais procedimentos estão ligados, portanto, ao imaginário social compartilhado. Assim, a descrição objetiva de- pende: de uma organização sistematizada do mundo; de uma ob- servação do mundo que possa ser compartilhada pelos membros da comunidade (op. cit., p. 120-121). Esses procedimentos estão presentes em textos que têm por finalidade definir ou explicar, in- citar ou contar. Em textos fictícios, tais procedimentos são utiliza- dos para “criar um efeito de realidade”. Os procedimentos de construção subjetiva do mundo con- sistem em permitir ao sujeito falante descrever os seres do mundo e seus comportamentos por meio de sua própria visão, a qual não é necessariamente verificável; portanto, o universo assim construído está ligado ao imaginário pessoal do sujeito (CHARAUDEAU, 2009, p. 125). Tal imaginário pode tomar forma por meio: de uma intervenção pontual do narrador, quando este deixa transparecer seus sentimentos, afetos e opiniões; da construção de um mundo mitificado pelo narrador, num imaginário simbólico que pode estar
  • 19. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 18 ancorado em uma certa realidade ou fora desta, abrindo-se para o irracional. Esses procedimentos podem ser encontrados normal- mente em textos cuja finalidade é incitar ou contar. Charaudeau (2009, p. 115) afirma que “qualificar é tomar partido”. Dessa forma, a qualificação mesmo que pretenda ser ob- jetiva, revela a ótica do enunciador. Segundo Feres (2012, p. 132), essa operação é sempre circunstanciada em função de uma tomada de posição (não é possível apontar e descrever seres em sua totalidade, mas tão-somente na perspectiva assumida pelo descritor). Em outras palavras, não se deve ignorar que o processo descritivo atende às formulações e coerções advindas do conhecimento sociocognitivo acionado pelo produtor em função da troca comunicativa de que par- ticipa. Disso se conclui que não há descrições ou referências a priori, mas construtos localizados, que instauram objetos de discurso inter- pretáveis em relação ao contexto e aos saberes partilhados por um grupo social. Assim, na “qualificação”, elegem-se características, qualidades, que retratam o mundo perspectivamente, de acordo com um modo de olhar, através de um filtro ao mesmo tempo biológi- co/perceptivo e cultural/interpretativo. A qualificação pode ser observada na revista Turma da Mônica Jovem desde a caracterização das personagens. Até a edi- ção número 8, antes da recapitulação da edição anterior e introdu- ção da nova história, havia uma breve apresentação das persona- gens principais, para mostrar sua mudança após ter “crescido”. Dessa forma, por meio da qualificação, o ethos das personagens é construído da seguinte maneira:
  • 20. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 19 Fig. 4: Descrição da Mônica. Turma da Mônica Jovem, nº 8, p. 4. Na Fig. 4, a descrição se dá tanto pela linguagem não verbal (por meio da imagem da personagem), quanto por meio da lingua- gem verbal: “meiga”, “alegre”, “dentucinha”, “líder da Turma”, “com caráter forte”, “personalidade cativante e verdadeira”, “me- nina supersegura e madura”, “romântica incorrigível”. O mesmo ocorre na descrição das outras personagens. Com o Cebolinha, por exemplo, o primeiro processo de identificação se dá no comentário sobre seu nome: “agora prefere ser chamado simplesmente de ‘Cebola’”, mostrando que a personagem “cresceu” e não quer ser tratado como criança. Dessa forma, pode-se perceber que, nos as- pectos físicos e psicológicos, o autor procurou manter as princi- pais características das personagens infantis, consagradas pelo pú- blico. No conteúdo da revista, é possível observar a qualificação verbal, na definição de Cascão de como será seu projeto da Feira de Ciências, e a qualificação icônica, na imagem da Magali (Fig. 5), que mostra que a personagem está triste. Fig. 5: Qualificação verbal e icônica. Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 11 e 26. Enfim, como foi mencionado anteriormente, o modo descri- tivo não se fecha em uma lógica interna, nem existe um percurso obrigatório para sua construção. Portanto, a importância dos três componentes da construção descritiva (nomear, localizar/situar, qualificar), com seus procedimentos linguísticos e discursivos, es-
  • 21. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 20 tá em sua contribuição para a composição da encenação descriti- va, criando determinados efeitos de sentido no texto. 4. A encenação descritiva Na descrição, o enunciador (sujeito descritor) pode intervir de maneira explícita ou não, produzindo um certo número de efei- tos, resultado de uma intenção consciente da parte do sujeito des- critor (EUe), visando a manipular a leitura do sujeito destinatário (TUd); tais efeitos são apenas possíveis, já que o leitor real (TUi) pode não percebê-los. Dentre os efeitos produzidos por meio da encenação descri- tiva, pode-se citar: o efeito de saber, os efeitos de realidade e de ficção, o efeito de confidência e o efeito de gênero. 4.1.Efeito de saber O efeito de saber pode ser produzido quando o descritor procede a uma série de identificações e de qualificações que, pre- sumivelmente, o leitor não conhecia, fabricando para si uma ima- gem de “descritor sábio”, conhecedor do mundo, que utiliza seus conhecimentos para trazer a prova da veracidade de seu relato ou argumentação (CHARAUDEAU, 2009, p. 139). Um exemplo na revista Turma da Mônica Jovem em que o descritor procura criar o efeito de saber ocorre em uma passagem em que o Cascão explica seu trabalho para os professores na Feira de Ciências, trabalho esse esperado por todos, já que ele estava com notas baixas na matéria (Fig. 6). Pode-se perceber que tal descrição conjuga signos verbais e imagéticos.
  • 22. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 21 Fig. 6: Efeito de saber. Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 116-117. 4.2.Efeito de realidade e de ficção Os efeitos de realidade e de ficção devem ser tratados jun- tamente, pois a alternância entre esses dois modos é que constrói o “plano de fundo” (visão de mundo) em textos narrativos, como os quadrinhos. Por meio desses efeitos, tem-se uma dupla imagem do narrador-descritor (EUc), a qual ora é exterior ao mundo descrito, ora é parte interessada em sua organização (CHARAUDEAU, 2009, p. 140). O efeito de realidade é obtido por meio da construção obje- tiva de mundo (mundo denotado), que tenta apresentar um mundo realista (não necessariamente real), segundo o que se crê ser ver- dade, ligado a um imaginário social compartilhado. Nos quadrinhos, o efeito de realidade é criado quando são utilizadas imagens icônicas, próximas ao real ou estereotipadas, para que o leitor reconheça nelas um mundo realista, por meio de seus saberes de crença e de conhecimento (estratégias de ordem
  • 23. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 22 semântica), de modo a possibilitar a criação de imagens mentais que completem os espaços entre os quadros. Observe-se a Fig. 7, por exemplo. As imagens trazem o ce- nário de uma praia (frame), semelhante ao real, que é capaz de evocar todo um imaginário social do leitor, e trazer a sua mente si- tuações que podem estar ligadas a esse quadro, situações essas que se desenrolarão adiante, como montar cadeiras e barracas de praia e tomar água de coco. Todas essas ações fazem parte desse quadro (literalmente, pois os quadrinhos são expressos por quadros – fra- me, em inglês) e criam um efeito de realidade para o leitor. Fig. 7: Efeito de realidade. Turma da Mônica Jovem, nº 62, p. 11, 29.
  • 24. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 23 Outro recurso para se criar o efeito de realidade é o uso de intertextualidade com sinsignos (que representam coisas ou even- tos existentes) do mundo real. Na revista Turma da Mônica Jo- vem, por exemplo, pode-se encontrar referência a termos da inter- net, presentes na vida dos jovens leitores: Cascão faz pesquisa no “Gúgól” (referência à Google) e dá uma olhadinha no “Feice- búqui” (referência ao Facebook). O efeito de ficção, por sua vez, é produzido por meio da construção subjetiva de mundo, que: deixa transparecer o ponto de vista do descritor (emoções, opiniões, afetos), por meio de metá- foras, metonímias, comparações, qualificações; ou culmina na construção de um mundo mitificado, ligado ao imaginário simbó- lico (em contraste com o mundo realista). Segundo Charaudeau (2009, p. 129), nos quadrinhos, quando se apresenta os “heróis da história” em forma de retrato mítico, há a construção subjetiva do mundo. A construção de um mundo mitificado também está presente na revista Turma da Mônica Jovem, quando a turma se envolve em aventuras extraordinárias, como viagens em outras dimensões, viagens no mundo virtual, histórias de terror e suspense, etc. Nas edições 1 a 4, por exemplo, a turma viaja por “4 dimensões mági- cas” para salvar seus pais, que foram aprisionados por uma “pode- rosa feiticeira oriental”. Nas edições 6 a 8, a turma vive uma aven- tura no espaço; nas edições 13 e 14, no mundo virtual por meio de um jogo online; nas edições 21 e 22, no “país das maravilhas”; e assim por diante. Além disso, há a presença de personagens como Poeira Negra (antigo “Capitão Feio”), Ângelo (antigo “Anjinho”) e professor Licurgo (antigo “Louco”), que misturam o insólito à vida “normal” das personagens. Apesar de prevalecerem, na Tur- ma da Mônica Jovem, as aventuras que ocorrem no próprio bairro do Limoeiro, nos mangás em geral, a criação de um mundo mitifi- cado é bastante frequente.
  • 25. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 24 No entanto, é preciso lembrar que não se pode opor de ma- neira radical os efeitos de realidade e de ficção. As construções objetiva e subjetiva se entrecruzam e a alternância entre elas faz com que uma narrativa, por mais fantasiosa que seja, tenha alguma ancoragem no real, seja por semelhança ou oposição, o que possi- bilita o estabelecimento de relações, fazendo com que que o texto tenha sentido para o leitor. 4.3.Efeito de confidência O efeito de confidência procede de uma intervenção explíci- ta ou implícita do descritor, que exprime sua apreciação pessoal, trazendo uma aproximação de seu interlocutor. De acordo com McCloud (2008, p. 217), o mangá é um gê- nero que apresenta técnicas peculiares, com o objetivo de “ampli- ficar o senso de participação do leitor nos mangás, uma sensação de ser parte da história, em vez de meramente observá-la de lon- ge”. Ao criar esse “senso de participação”, há uma manipulação sensorial do destinatário, orientando seu percurso do olhar e pro- duzindo o que Charaudeau chama de efeito de confidência; tal efeito torna o mangá um texto mais dinâmico do que os quadri- nhos tipicamente ocidentais. São descritas, a seguir, as técnicas utilizadas para atrair a atenção e aumentar seu senso de participação de acordo com McCloud (2008, p. 216), tentando identificá-las no mangá de Maurício. 1) Uso de personagens icônicas, nas quais as faces e a figura simples levam à identificação do leitor, ao levá-lo a concentrar- se em detalhes específicos e ampliar o significado, por meio da eliminação dos detalhes (MCCLOUD, 1995, p. 30). Há, na Turma da Mônica Jovem, o destaque para os olhos expressivos; mas as referências ao mangá no desenho das personagens limi-
  • 26. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 25 tam-se às referências feitas nas aventuras (uso de intertextuali- dade), à expressão de emoções e ao uso de chibis. Chibi é um termo japonês para definir algo “pequeno”. É um desenho bas- tante estilizado, com cabeça no mesmo tamanho dos corpos, geralmente sem nariz e a boca nem sempre finalizada. Os chi- bis normalmente são usados para dar um efeito cômico ou mais sentimental, como pode ser observado no exemplo a seguir (Fig. 8): Fig. 8: Chibi. Turma da Mônica Jovem, nº 41, p. 30. 2) A maturidade genérica apresentada, com a diversidade de gê- neros (no sentido de “categorias”) apresentados e temas explo- rados (esportes, romance, ficção científica, fantasia, terror, etc.). A revista Turma da Mônica Jovem trata de temas varia- dos, mas todos ligados ao universo adolescente. É, no geral, uma mistura de romance, fantasia e esportes. 3) Um forte senso de localidade, com detalhes ambientais que ativam memórias sensoriais, criando um contraste com as per- sonagens icônicas – “como ninguém espera que as pessoas se identifiquem com paredes ou paisagens, os cenários tendem a ser mais realistas” (MCCLOUD, 1995, p. 42); essa técnica uti- liza um conjunto de linhas para o “ser” e outro conjunto para o “ver”, um estilo híbrido que também pode ser denominada de efeito máscara. As revistas da turma tradicional têm pouquís- simos cenários, prevalecendo o fundo normalmente azul, ama- relo ou rosa, contendo somente elementos essenciais à cena.
  • 27. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 26 Nas revistas da turma jovem, por sua vez, o cenário é mais ex- plorado. Várias histórias, inclusive, são iniciadas com a locali- zação dos actantes no espaço, mostrando onde a narrativa se desenrolará. 4) Uma ampla variedade de designs de personagens, incluindo tipos diferentes de rostos e corpos. Na revista Turma da Môni- ca Jovem, as personagens seguem um certo padrão, mantendo os traços semelhantes entre si, assim como ocorre na revista tradicional. 5) Uso frequente de quadrinhos sem palavras, combinados com transições aspecto a aspecto entre quadrinhos – “transições de um a outro aspecto de lugar, ideia ou estado de espírito” (MCCLOUD, 2008, p. 15) –, levando os leitores a montar ce- nas a partir de informações visuais fragmentárias. Os quadri- nhos sem palavras podem ser encontrados na revista, usados para produzir diferentes efeitos; sem a presença de textos, o conteúdo das imagens é posto em relevo. No entanto, a transi- ção aspecto a aspecto é raramente explorada na Turma da Mô- nica Jovem. Nessa revista, predominam as transições: momento a momento, quando uma única ação é retratada em uma série de momentos; ação a ação, quando um único sujeito (pessoa, objeto etc.) aparece em uma série de ações; sujeito a sujeito, quando há uma série de sujeitos alternantes dentro de uma úni- ca cena (op. cit., p. 15). 6) Valorização de pequenos detalhes do mundo real, de modo a conectar o leitor com as experiências cotidianas, mesmo em histórias fantásticas ou melodramáticas. 7) Expressão de movimento de forma subjetiva, por meio de fundos rajados que fazem os leitores sentirem que estão se mo- vendo com a personagem, em vez de simplesmente observando
  • 28. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 27 de fora seu movimento. Como se trata de história de adolescen- tes, por si só “acelerados”, dinâmicos, a expressão da ideia de movimento é bastante utilizada na revista. 8) Vários efeitos emocionais expressivos, como fundos expressi- onistas, montagens e caricaturas subjetivas – todos destinados a oferecer aos leitores uma “janela” para o que as personagens estão sentindo. Além dos olhos expressivos, que “revelam a alma da personagem”, os fundos expressionistas e as monta- gens também são explorados com o intuito de aumentar a sen- sação de participação do leitor. Algumas vezes, as montagens são utilizadas para externar o pensamento da personagem, que se mistura à ação. Enfim, ao observar todas essas características, pode-se dizer que o efeito de confidência na Turma da Mônica Jovem está es- treitamente ligado à estratégia de patemização, ou seja, procura captar o leitor pela visada de “fazer sentir”. 4.4.Efeito de gênero Por fim, o efeito de gênero resulta do emprego de alguns procedimentos de discurso que se repetem e são característicos de um determinado gênero para tornar-se signo deste (CHARAU- DEAU, 2009, p. 142). Por exemplo, ao começar um relato por “era uma vez”, cria-se o efeito de conto maravilhoso ou conto de fadas. Como foi discutido anteriormente, Maurício revela que a nova produção (Turma da Mônica Jovem) nasceu para atender à faixa de público que estava deixando de ler a Turma da Mônica e interessando-se pelos mangás japoneses. Dessa forma, ao criar a Turma da Mônica Jovem, procurou-se manter o perfil da turma da
  • 29. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 28 Mônica tradicional, adicionando elementos que tornassem a revis- ta interessante ao público adolescente. Os temas são voltados para o público adolescente e têm, de forma quase sempre explícita, por objetivo levar os jovens a refle- tirem sobre determinado assunto. Na maioria das vezes, o tema é retomado na sessão “Fala Maurício”, texto no fim da revista, que torna mais evidente o fazer persuasivo. A figurativização desses temas, em contraposição com a revista infantil, são ações que pro- curam retratar cenas do mundo adolescente – namoro, conflitos, brigas, fofoca, relacionamento entre amigos e rivais, vida na esco- la, contato com o mundo virtual, interação em redes sociais etc., ou também aventuras extraordinárias, como é típico nas revistas da Turma da Mônica. O mangá, por sua dinamicidade, é bastante atrativo ao pú- blico jovem. Por isso, houve uma adequação da nova revista ao es- tilo, criando-se o efeito de mangá. De acordo com Cools (2011, p. 67), uma das principais ca- racterísticas do mangá é seu “ritmo” acelerado e vários fatores contribuem para isso: a quantidade de informação que contém em cada quadro; a ausência de cor; a fragmentação dos corpos e ros- tos das personagens; o layout irregular e a não linearidade dos quadros. No entanto, é importante destacar que, apesar de seguir o estilo mangá, na Turma da Mônica Jovem optou-se pela ordem oriental de leitura, da esquerda para a direita [], diferentemente dos quadrinhos orientais, que são lidos da direita para a esquerda []. Todas as características apresentadas mostram como o mangá pode ser atrativo ao público jovem. O senso de participa- ção, a fluidez da leitura, e a dinamicidade dos quadros são fatores essenciais para tal sucesso.
  • 30. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 29 5. Considerações finais Por meio da análise do material, conclui-se que, para ade- quar a revista Turma da Mônica Jovem ao novo perfil de leitor (TUd), houve uma mudança de temas que tenta aproximar o texto ao universo adolescente. No entanto, ao manter a “filosofia” da revista tradicional, não foi possível criar a dinamicidade necessária para atrair o novo público. Dessa forma, a solução encontrada para realizar tal adequação foi criar um gênero híbrido, em intertextua- lidade com o mangá, ou seja, produziu-se o efeito de gênero. Por fim, pode-se dizer que, na criação da Turma da Mônica Jovem, tais escolhas não foram aleatórias, mas conscientes. O pró- prio Maurício de Sousa, em entrevista a uma revista especializada em mangá e animê, revela: “aviso o povo, nossa história é estilo mangá, mas não é mangá. Não pode ser. Manteve nossa arte final, nosso traço, e o pessoal percebe que é uma história da Mônica com uma característica diferente” (LOBÃO, 2008, p. 32). REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de orga- nização. 1. ed., 1ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2009. COOLS, V. The phenomenology of contemporary mainstream manga. Image & Narrative, vol. 12, n. 1, 2011. EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ______. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005. FERES, Beatriz dos Santos. A qualificação implícita no livro ilus- trado “A princesa desejosa”. Signum: Estudos Linguísticos, Lon- drina, vol. 15, n. 3 (esp.), p. 129-147, dez. 2012.
  • 31. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 30 LOBÃO, D. D. Turma da Mônica cresce e virá mangá – entrevista com Maurício de Sousa. Revista Neo Tokyo, n. 38. São Paulo: Es- cala, 2008. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Ma- kron Books, 1995. ______. Desenhando quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2008. SOUSA, Maurício. Turma da Mônica jovem, n. 8. O brilho de um pulsar – parte final. São Paulo: Panini Brasil, março de 2009. ______. Turma da Mônica jovem, nº 41. Cascão, o mestre do vul- cão. São Paulo: Panini Brasil, dezembro de 2011. ______. Turma da Mônica jovem, nº 61. A nova Mônica. São Pau- lo: Panini Brasil, agosto de 2013. ______. Turma da Mônica jovem, nº 62. Campeões da justiça. São Paulo: Panini Brasil, setembro de 2013.
  • 32. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 31 O MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO EM EAD NO SÉCULO XXI: USOS E FUNÇÕES DA LINGUAGEM E DOS GÊNEROS TEXTUAIS Maria Betânia Almeida Pereira2 RESUMO O estudo discorre sobre o uso e funções da linguagem e dos gêneros tex- tuais na elaboração do material didático impresso, voltado para o ensino a distância. O cenário educacional da EAD no Brasil demonstra um cresci- mento acentuado, porém uma educação de qualidade perpassa pela qualida- de dos materiais empregados no processo de ensino-aprendizagem. Tais ma- teriais devem ser cada vez mais dinâmicos e significativos para a construção do(s) sentido(s), do conhecimento e da autoaprendizagem dos discentes. Pen- sar e elaborar materiais didáticos impressos, que corroborem com um ensi- no eficaz, requer critérios na escolha cuidadosa de textos, dos recursos mul- timídia, das linguagens diversificadas – tudo isso implica em desafios e tam- bém mudanças na educação do século XXI. Palavras-chave: linguagem, gêneros textuais, material didático impresso. 1. Apresentação No panorama do contexto educacional no Brasil, a modali- dade de ensino a distância vem crescendo anualmente, de forma acelerada. Conforme dados do Censo de 2013 da ABED (Associa- ção Brasileira da Educação a Distância), o cenário é otimista, pois a grande maioria (64%) das instituições consultadas afirmou que o 2 Doutora em letras pela Universidade Federal Fluminense e docente na Universidade Es- tácio de Sá. E-mail: [email protected]
  • 33. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 32 número de matrículas aumentou em 2013, enquanto apenas uma parte delas (14%) atesta uma diminuição nesse quadro. Pesquisa- dores projetam o crescimento de matrícula para 82% no ano de 2015. Esse mesmo censo confirma que a maior parte das institui- ções (91,6%) usa como mídia de acesso à aprendizagem: obras es- critas, impressão de apostilas, livros e guias. Embora outros recur- sos tecnológicos sejam utilizados nesse cenário, há, portanto, a prevalência do material impresso. Nesse sentido, faz-se necessário empreender um estudo que focalize o material didático impresso, avaliando suas particularidades, uso e relevância no processo ensi- no-aprendizagem. O debate acerca do material didático impresso na educação a distância aliado a outros recursos multimídia poderá viabilizar uma práxis que contribuirá nos avanços e desafios de um ensino mais dinâmico e eficaz. Nesse sentido, vale discutir que tipo de material didático, qual público a que ele se destina e qual o con- texto de utilização desse recurso, não perdendo de vista a sua prin- cipal função que é a de promover um aprendizado mais significa- tivo, considerando também os objetivos a serem alcançados. Na composição do material didático impresso, elementos que o inte- gram como a linguagem e os gêneros textuais merecem um estudo à parte. No cenário de avanços quantitativos da EAD, é salutar pen- sar também nos avanços qualitativos. Entende-se que a feitura de um bom material didático impresso perpassa pela atenção cuida- dosa no uso da linguagem e na escolha igualmente criteriosa dos gêneros textuais. Se o foco central do ensino incide na figura do educando e sua construção de sentido(s) e conhecimento(s) a partir da interação e diálogo com o material didático impresso, é impres- cindível que se estude e se promovam materiais cada vez mais in- seridos no contexto contemporâneo, cada vez mais dinâmicos e promotores de um ensino de qualidade.
  • 34. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 33 2. Reflexão sobre os usos e funções da linguagem e dos gêne- ros textuais no material didático impresso Neste tópico, refletiremos acerca dos usos e funcionalidade da linguagem e dos gêneros textuais no material didático impres- so, empregado na modalidade de ensino a distância. Desta manei- ra, é necessário situar o contexto da produção desse importante re- curso de aprendizagem. Embora inserido no ambiente atualmente categorizado como o da cibercultura, em pleno século XXI, o ma- terial impresso ainda continua sendo um importante recurso nos ambientes virtuais de aprendizagem da EAD. O material didático é um recurso imprescindível na modali- dade de ensino a distância, pois ele se situa conforme Neder (2009, p.82) como um “balizador curricular”, isto é, o material di- dático não deixa de ser um referencial teórico-metodológico da proposta pedagógica dos cursos em EAD. Assim sendo, ao elabo- rar textos que venham a integrar o material didático impresso, de- ve-se ter em mente a proposta curricular e os objetivos inerentes ao projeto político do curso. Em relação aos elementos que compõem os materiais im- pressos, Silva (2011) destaca o hipertexto, a linguagem dialógica, a intertextualidade, citando exemplos do uso de cada um deles; aborda também sobre alguns itens que devem ser levados em con- ta pelo produtor/escritor do material didático para EAD, antes do processo de elaboração. Tais itens são: o curso a que se destina; os conteúdos a serem trabalhados; o público-alvo. A autora ressalta que tanto os elementos constituintes dos materiais didáticos impressos quanto os fatores - que previamente devem ser considerados para a sua produção - precisam ser repen- sados com critérios e devem ser estudados de maneira que visem a um ensino de melhor qualidade na modalidade a distância.
  • 35. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 34 A linguagem como elemento intrínseco no processo de cria- ção do material didático impresso é um desses fatores que merece um estudo mais aprofundado, pois sem ela seria inviável todo pro- cesso comunicativo. Nesse sentido, cabe salientar que a concepção sociointeracionista da linguagem deverá nortear todo o trabalho de elaboração do material didático impresso, uma vez que tal concep- ção parte do princípio da linguagem como forma de interação hu- mana, pois ela “é o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos” (GERALDI, 2006, p. 41). Nesta mesma linha de pensamento, Travaglia (2006, p. 23) afirma: A linguagem é pois um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em contexto sócio-histórico e ideológico. Os usuários da língua ou interlocutores interagem en- quanto sujeitos que ocupam lugares sociais e “falam” e “ouvem” des- ses lugares de acordo com formações imaginárias (imagens) que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais. Enquanto processo interativo, a linguagem humana se co- necta com as dimensões sociais, históricas e ideológicas dos sujei- tos envolvidos no ato comunicativo, de forma que não se pode dis- sociar a interação dessas ações. Mikhail Bakhtin, um dos grandes estudiosos da linguagem, sabiamente detectou esta condição ine- rente à língua, pois esta não se forma e nem se faz presente como ato de puro isolamento. Para Bakhtin, a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica iso- lada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenô- meno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fun- damental da língua. (BAKHTIN, 1990, p. 123 apud MUSSALIN; BENTES, 2005, p. 25) Na concepção bakhtiniana importa o processo interativo que é estabelecido nas relações entre os sujeitos; trata-se de uma acep- ção dialógica ligada à ação discursiva. Para Benveniste (1963 apud MUSSALIN; BENTES, 2005, p. 26), “é dentro da, e pela
  • 36. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 35 língua, que indivíduo e sociedade, se determinam mutuamente”, uma vez que ambos só ganham existência pela língua. Para este autor, a linguagem sempre se realiza dentro de uma língua, de uma estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma soci- edade definida e particular. A língua é a manifestação concreta da faculdade humana da linguagem, isto é, da faculdade humana de simbolizar. Sendo assim, é pelo exercício da linguagem, pela utili- zação da língua, que o homem constrói sua relação com a natureza e com os outros homens (MUSSALIN; BENTES, 2005). Ao considerar a natureza dialógica da linguagem numa perspectiva de interação entre os sujeitos, o produtor do material didático impresso deve selecionar textos que atentem para esse princípio. Silva (2011, p. 317) aborda sobre a importância de se produzir uma linguagem dialógica que seja capaz de estabelecer uma interação efetiva com os educandos no processo de ensino- aprendizagem. Dessa forma, a adoção de um estilo dialógico de linguagem não só promove a interatividade com os alunos, como também facilita as mediações pedagógicas entre docentes e dis- centes. É por meio desta linguagem dialógica que os professores podem se tornar presentes nos ambientes virtuais de aprendiza- gem, sendo possível a construção de um discurso mais afetivo e que conduza o aluno à reflexão e à autoaprendizagem. Na mesma linha de pensamento que considera a linguagem enquanto mecanismo de interação entre os sujeitos, Neder (2005) ao discorrer sobre o material didático em EAD, propõe que este deverá ser feito de textos diversos cujas dimensões sociocomuni- cativa e semântico-conceitual-formal devem ser consideradas. Na dimensão sociocomunicativa interessa as intenções do produtor (se é informar, convencer, alarmar, indagar etc.), ou seja, quando se elabora um material didático esta questão deve ser indispensável: a preocupação em responder qual a intenção e objetivo do autor com aquele texto. A dimensão semântico-conceitual-formal diz respeito ao significado e envolve questões relativas ao sentido do texto,
  • 37. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 36 que possam contribuir para os fatores de textualidade de um texto – ou seja, aquilo que permite afirmar que um texto é um texto e não um amontoado de frases desconexas. Assim que para ser um texto, independente da linguagem verbal ou não verbal, é necessário que este apresente as seguintes características: unidade de sentido, marcas da interação entre au- tor/leitor e marcas do contexto de situações onde se inserem os su- jeitos da interação (op. cit., 2009, p. 89) No entanto, o processo de significação de um texto se dá quando há diálogo ente autor, leitor e texto; ou seja, quando se es- tabelece a interação entre esses elementos. Daí ser de grande im- portância o processo de intertextualidade e interdiscursividade, uma vez que os textos se constroem por meio de diálogos entre outros textos e outros discursos. Considerando esses aspectos, Ne- der (2009, p. 89) afirma que: é imprescindível que os textos produzidos especificamente para um curso de EaD sejam concebidos no contexto de uma rede de relações com outros textos, na perspectiva de abrangência e aprofundamento dos conceitos teórico-metodológicos trabalhados nas áreas de conhe- cimento, disciplinas e/ou módulos. Nesse sentido, ao elaborar o material didático, os textos que o integram devem considerar os elementos acima discutidos e promover a interação e construção do sentido pelos alunos, visan- do a uma educação que priorize o diálogo construtivo e crítico dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. A intera- tividade, a interconectividade e o dialogismo devem permear tanto a forma como o conteúdo presentes no material didático impresso, pois se a preocupação basilar é criar um material que dialogue com o leitor, que seja aprazível e que possibilite uma aprendiza- gem significativa, capaz de instigá-lo à reflexão crítica, não se po- de desconsiderar que esse material incite esse leitor a “caminhar” pelos multiletramentos, permitindo assim o alargamento da sua vi-
  • 38. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 37 são de mundo, ampliando os sentidos em todos os sentidos. Cabe salientar que os multiletramentos são práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos contemporâneos – majoritariamente digitais, mas também impressos - , que incluem procedimentos (como gestos para ler, por exemplo) e capacidades de leitura e produção que vão muito além da compreen- são e produção de textos escritos, pois incorporam a leitura e (re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e infográficos, vídeos, áudio etc. (ROJO, 2013, p. 21). Assim, tendo como base a pedagogia dos multiletramentos, é possível, a partir do conteúdo e da proposta curricular do curso ou de disciplinas específicas, a presença constante no material di- dático impresso de variados gêneros textuais escritos, orais, ima- géticos entremeados aos recursos multimídia. No universo da ci- bercultura, cada vez mais é necessário a formação de leitores críti- cos diante dessa “multiplicidade semiótica de constituição dos tex- tos” (ROJO, 2013, p. 21). O termo cibercultura, para Pierre Lévy (1999, p. 17) “especifica o conjunto de técnicas (materiais e inte- lectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ci- berespaço”. Um material didático impresso do século XXI deve ser elaborado nessas bases contextuais, pensando nessas práticas, atitudes e modos de pensamento inseridos nesse cenário de “rede”, entendido como novo meio de comunicação que surge da interco- nexão mundial de computadores. Por exemplo, se o tema de um módulo for o estudo da lin- guagem, o aluno poderá ter acesso às explicações sobre esse tema em múltiplas linguagens (o texto verbal, imagens, fotos, desenhos, imagens animadas etc.) e em múltiplas modalidades perceptivas (visão, audição, tato, paladar etc.). Tudo isso integrado e interco- nectado a links e hiperlinks que o leve a pesquisar e a aprofundar o tema, de preferência plugado na internet. Assim, recursos audiovi- suais como vídeos, músicas, games, dentre outros, auxiliam tanto
  • 39. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 38 na construção do conhecimento quanto na ampliação dos sentidos envolvidos na aprendizagem. 3. Gêneros textuais: especificidades e aplicação no material di- dático impresso do século XXI Neste tópico, iremos discutir um pouco sobre o conceito de gêneros textuais, suas especificidades e relevância numa prática de ensino mais dinâmica e contextualizada, pensando, sobretudo, na modalidade da educação a distância. A discussão do texto como elemento da base de ensino está em voga nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Por- tuguesa, publicados no final da década de noventa, que elencam sugestões fundamentadas numa concepção da língua materna cuja perspectiva sociointeracionista valida os usos e funções sociais da linguagem. Um ensino que privilegie somente o uso normativo da língua, com suas regras e prescrições estaria fadado a certo insu- cesso, ao se considerar estudos inovadores surgidos em fins do sé- culo vinte. A contribuição da linguística textual, por exemplo, as- sumiu grande força no debate acerca de uma nova metodologia pa- ra o ensino, baseado no texto e pensado nas práticas de linguagem que integrem: leitura, escrita e análise linguística. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portu- guesa abordam sobre a importância da formação de leitores e es- critores competentes – usuários da língua são só capazes de ler, compreender os interstícios do texto, bem como eficientes redato- res, hábeis para redigir os mais diversificados gêneros textuais. Além dessas e outras habilidades referentes à competência linguís- tica, textual e comunicativa, esses usuários devem ter a capacidade de selecionar, direcionar, adequar os textos para as mais variadas situações de comunicação.
  • 40. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 39 Luiz Antônio Marcuschi (2005) afirma que os gêneros tex- tuais são fenômenos históricos e estão vinculados à vida cultural e social e tem como características a maleabilidade, o dinamismo e a plasticidade. Como práticas sociocomunicativas, os gêneros vão se modificando e se adaptando às inovações das sociedades. Marcus- chi (2005) observa historicamente o surgimento dos gêneros e elenca algumas fases, a saber: Numa primeira fase, povos da cultura essencialmente oral desen- volveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenção da escri- ta alfabética por volta do século VII A. C., multiplicam-se os gêneros, surgindo os típicos da escrita. Numa terceira fase, a partir do século XV, os gêneros expandem-se como florescimento da cultura impressa para, na fase intermediária de industrialização iniciada no século XVIII, dar início a uma grande ampliação. Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais no- tável, a internet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e no- vas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita. (MARCUSCHI, 2005, p. 19). No contexto do século XXI com a expansão cada vez mais acelerada das novas mídias de comunicação; o uso maciço dos ce- lulares de última geração (smartphones, iphone), com seus aplica- tivos e softwares; os tablets, notebooks, netbooks, ipads, os gêne- ros textuais ganham novos contornos, novos suportes e se multi- plicam, se hibridizam; de maneira que podem ser integrados a multimodalidades perceptivas e conectados também a múltiplas linguagens nessa sociedade altamente plugada no admirável mun- do novo da tela. A mensagem de caráter sintético do twitter e das sms, os comentários deixados nas páginas das redes sociais, ou o áudio de um diálogo registrado via suporte midiático não deixam de ser gê- neros discursivos, pois são enunciados linguísticos orais ou escri- tos, possuem uma forma de composição, estilo e conteúdo temáti- co, sendo empregados em situações diversificadas das práticas so- ciais de leitura e de escrita, no contexto da cibercultura.
  • 41. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 40 Inerentes às esferas da atividade humana, os gêneros do dis- curso, conforme ressalta Bakhtin (2000) são tipos relativamente estáveis de enunciados e vão se alterando e alargando conforme as demandas sociais, de maneira que “a riqueza e a variedade dos gê- neros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da ativida- de humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Assim, uma sociedade cada vez mais imersa numa cultura tecno- lógica impulsiona novas formas de redimensionamento da escrita e da leitura e novas formas de interação entre os atores envolvidos nesse processo, pois como bem observa Magda Soares, (2002, p. 151) a tela, como novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento. Essas mudanças significativas nas formas de interação entre escritores e leitores, escritores e texto, leitores e texto implicam em novas metodologias de ensino e, consequentemente, em inova- ções na elaboração do material didático impresso. Assim, conside- rando essas bases contextuais, cabe ao escriba do material didático impresso selecionar criteriosamente os gêneros textuais, levando em conta por que, como e para quê usar tais gêneros. A escolha tem que ter critérios e estudo cuidadoso, não basta “enfeitar” o re- curso didático com um amontado de textos desconectados do pro- pósito educacional. No contexto dos ambientes virtuais de apren- dizagem, a conexão com os recursos multimídia é indispensável, daí a exigência ainda ser mais redobrada no tocante à seleção e or- ganização dos textos integrantes do material didático.
  • 42. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 41 4. Considerações finais A pesquisa a respeito da elaboração do material didático em EaD se faz necessária, uma vez que quando bem elaborado ele surte efeitos positivos no processo ensino-aprendizagem e uma educação de qualidade perpassa pelas partes que a compõe. Como componente de extremo valor, a feitura criteriosa e cuidadosa do material impresso precisa ser estudada, discutida no intuito tam- bém de aprofundar o debate nos meios acadêmicos do vasto cam- po que se tornou a modalidade de ensino a distância. Procurou-se assim com o este trabalho contribuir para esse debate, tendo como foco a reflexão sobre a linguagem e os gêneros textuais presentes no material didático impresso. Sabemos que a discussão foi apenas um recorte de um tra- balho maior que deve ser investigado, com vistas à criação de no- vas formas e de novos meios de produção de um material didático mais significativo e mais inserido nas demandas sociais da EAD. Nesse sentido, o material didático impresso elaborado para os am- bientes virtuais de aprendizagem não pode negar a inesgotável efervescência do universo atual – o das interconexões com dife- rentes recursos tecnológicos – das diversidades culturais e da exis- tência cada vez mais plural dos textos que fazem parte desse cená- rio. Para além dos dados quantitativos que evidenciam o cres- cimento do alunado em EAD, questões de ordem qualitativa de- vem permear o debate para a reformulação de um novo panorama que materialize a melhora significativa de um ensino mais dinâmi- co e eficaz. O aprofundamento de questões basilares que devem perpassar inevitavelmente esse cenário de transformações deve considerar a elaboração do material didático impresso integrado aos recursos multimídia. Pensar e efetivar uma prática que consi- dere essas inovações, sem perder de vista o objetivo maior que é o da aprendizagem significativa e construtora de seres humanos pro-
  • 43. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 42 tagonistas, será um dos grandes desafios para os sujeitos envolvi- dos nessa prática. REFERÊNCIAS ABED. Censo EaD.Br: relatório analítico da aprendizagem a dis- tância no Brasil, 2013. Curitiba: Ibpex, 2014. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria E. Galvão. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: Secretaria da Educação Fundamental, 1997. GERALDI, João Wanderlei (Org.). O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad.: Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funci- onalidade. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel (Orgs.). Gêneros textuais & en- sino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Intro- dução à linguística: domínios e fronteiras, vol. 1. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. NEDER, M. L. C.; POSSARI, L. H. V. Material didático para EaD: processo de produção. Cuiabá. Edufmt, 2009. ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (Orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. ______. Cenários futuros para as escolas. In: Multiletramentos, vol. 3. Educação no século XXI. São Paulo: Fundação Telefônica, 2013.
  • 44. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 43 SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935>. Acesso em: 05-11- 2014. SILVA, Ivanda Maria Martins Silva. Elaboração de materiais di- dáticos impressos para EaD. Eutomia, Revista Online de Literatu- ra e Linguística, ano IV, vol. 1, julho, 2011, UFPE. Disponível em: <http://www.revistaeutomia.com.br/volumes/Ano4- Volume1/linguistica/LINGIMARTINS.pdf>. Acesso em: 17-04- 2014.
  • 45. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 44 PERSPECTIVAS PARA O TRABALHO COM PROJETOS DIDÁTICOS: PRODUÇÃO DE POEMAS NA ESCOLA Maria Isaura Rodrigues Pinto3 RESUMO Assumir, na escola, a concepção de linguagem/língua como atividade so- cial de interação (BAKHTIN, 1979) requer a renovação das metodologias de ensino da língua materna, visando à busca de alternativas didáticas capazes de favorecer o desenvolvimento das competências discursivas que respon- dem às exigências das sociedades letradas. A chamada “pedagogia de proje- tos” tem sido apontada como caminho eficaz na implementação de uma prá- tica docente orientada por pressupostos de base enunciativa/discursiva, visto que se trata de um processo pedagógico que apresenta, como um de seus tra- ços principais, a mobilização da pluralidade de conhecimentos patente na dinâmica social, configurando a escola como um amplo território de vivên- cias culturais significativas. A experiência de ensinar língua materna por meio de projetos didáticos é o procedimento pedagógico adotado na configu- ração do Subprojeto PIBID da Faculdade de Formação de Professores da UERJ “Letras/Língua-Literatura”, implementado no Colégio Estadual Ca- pitão Oswaldo Ornellas. Em face do contexto delineado, o presente trabalho, conjugando conhecimentos teóricos e práticos, propõe-se a divulgar experi- ências vivenciadas no âmbito do referido Subprojeto, bem como a comentar o alcance pedagógico e social das práticas realizadas, tendo por objetivo con- tribuir para as reflexões acerca da execução de projetos escolares na educa- ção básica. Palavras-chave: Práticas de linguagem. Projetos. Experiências docentes. 3 Doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense e professora adjunta da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. E-mail: [email protected]
  • 46. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 45 1. PCN, concepções de linguagem/língua e novas metodologias de ensino Nos PCN referentes à língua portuguesa, a perspectiva de linguagem norteadora do trabalho pedagógico é a de fazer conver- gir o ensino para os usos sociais da língua em um movimento de afastamento de uma prática docente centrada no enfoque de conte- údos da tradição gramatical ou literária, que, por vezes, ganha es- paço nas salas de aula. No modelo tradicional de ensino de língua portuguesa, devido à adoção da concepção de linguagem/língua como código/sistema de normas, os conhecimentos mobilizados são os da gramática normativa, apresentados de maneira fragmen- tada e descontextualizada, através de métodos que primam pelo incentivo à simples memorização em detrimento da reflexão sobre as condições de existência das diversas formas de linguagem que transitam socialmente. Esse modo de efetivação da prática pedagógica se faz acompanhar, normalmente, de uma visão de literatura bastante homogênea e mitificada que leva a conceber o fenômeno literário como um sistema de obras e autores, história da literatura ou con- junto de textos eleitos pela crítica, que devem ser valorizados en- quanto “belas letras” (ZILBERMAN, 2001, p. 82). Essa noção acerca da estética literária resulta em procedi- mentos de leitura das obras que, mesmo diante das teorias literá- rias e linguísticas contemporâneas, mantêm-se atrelados a aborda- gens redutoras de cunho estruturalista ou biográfico, entre outras de natureza similar. O que se observa é que a aplicação de fichas de leitura, roteiros de interpretação, exercícios mecânicos do livro didático, entre outros procedimentos requisitados, acabam por ini- bir a atuação do aluno/leitor, silenciando-o, como já o notara Ivana Martins: É preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando à lei- tura da literatura como atividade lúdica de construção e reconstrução
  • 47. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 46 de sentidos. Contudo, parece-nos que o contexto escolar privilegia o ensino da literatura, no qual a leitura realizada pelos professores, inevitavelmente, é diferente daquela efetivada pelos alunos, pois a di- versidade de repertórios, conhecimento de mundo, experiências de leitura influenciam diretamente o contato do leitor com o texto (MARTINS, 2006, p. 85). É nesses termos que, muitas vezes na escola, a ideia de uma falsa compartimentação do conhecimento toma corpo e promove a separação de língua e de literatura, configurando um modelo de currículo constituído por disciplinas que não mantêm, entre si, ar- ticulação e sentido. Distanciando-se de experiências pedagógicas orientadas por uma visão contrária à perspectiva da lingua- gem/língua como mediadora das relações sociais, os PCN, calca- dos em enfoques teóricos de base enunciativa, representam uma grande virada, uma considerável alteração no modo de estruturar a prática com a língua materna na escola, como claramente mostra a seguinte passagem extraída dos documentos: (...) língua é um sistema de signos específicos, histórico e social, que possibilita ao homem significar o mundo e a sociedade. Assim, aprendê-la é aprender não somente as palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas aprender pragmaticamente os seus significados e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. (BRASIL, 1998, p. 20) Assumir a linguagem como processo de interação, como preconizam os PCN, requer o reconhecimento de que, como afir- ma Luiz Carlos Travaglia: (...) o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outrem, mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvin- te/leitor). A linguagem é pois um lugar de interação humana, de inte- ração comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlo- cutores, em uma dada situação de comunicação e um contexto sócio- histórico e ideológico. (TRAVAGLIA, 2002, p. 23) Por essa perspectiva, a língua não é vista apenas como um sistema abstrato, um conjunto de normas ou frases gramaticais. Considerada em seu funcionamento, em diferentes situações de
  • 48. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 47 uso, reguladas por comunidades de falantes, atentos aos efeitos de sentido decorrentes do ato de linguagem, define-se como atividade social de interação, dotada de dimensão ideológica, política, histó- rica, social e cultural. Irandé Antunes, assim, sintetiza a questão: A língua, por um lado, é provida de uma dimensão imanente, aquela própria do sistema em si mesmo, do sistema autônomo, em po- tencialidade, conjunto de recursos disponíveis; algo pronto para ser ativado pelos sujeitos, quando necessário. Por outro lado, a língua comporta a dimensão de sistema em uso, de sistema preso à realidade social histórico-social do povo, brecha por onde entra a heterogenei- dade das pessoas e dos grupos sociais, com suas individualidades, concepções, histórias, interesses e pretensões. Uma língua que mes- mo na condição de sistema, continua fazendo-se, construindo-se. (ANTUNES, 2009, p. 21) Tal concepção de linguagem coaduna-se com as teorias so- ciodiscursivas, com destaque das provenientes dos pressupostos de Mikhail Bakhtin acerca dos gêneros, nos quais o cunho social dos eventos linguísticos é posto em relevo. Ao tratar do caráter ideoló- gico da língua e de seu modo social de existência, Bakhtin ressalta que: A verdadeira substância da língua não é constituída por um sis- tema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fe- nômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação ou pe- las enunciações. (BAKHTIN, 2006, p. 117) Bakhtin reflete, mais particularmente, sobre a questão dos gêneros. O autor retoma o conceito de gênero e o rediscute, ampli- ando a sua noção para todas as práticas de linguagem. Na ótica bakhtiniana, os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enun- ciados”. A esse respeito diz: A riqueza e a variedade dos gêneros de discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada es- fera dessa atividade elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1979, p. 279)
  • 49. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 48 Os gêneros são tema recorrente nos PCN, estes, efetuando em perspectiva de ensino, uma releitura da teoria dos gêneros do discurso bakhtiniana, recomendam uma metodologia de aborda- gem enunciativa que oriente o trabalho com a língua materna para seu funcionamento mediado por gêneros diversos. As sugestões metodológicas que permeiam os documentos oficiais salientam uma questão medular: a importância de se estabelecer o texto co- mo unidade primeira de ensino e os gêneros como objetos de estu- do, conforme assinala a seguinte passagem: Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, as quais geram usos sociais que os determinam. Os gê- neros são, portanto, determinados historicamente, constituindo for- mas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura. (BRASIL, 1998, p. 21) Adotar, na escola, a concepção de linguagem como ativida- de social de interação implica a renovação das metodologias de ensino da língua materna, visando à busca de alternativas didáticas de ensino-aprendizagem capazes de favorecer o desenvolvimento das competências discursivas que respondam às exigências das so- ciedades letradas. As práticas didáticas no formato de projetos de ensino- aprendizagem de gêneros, para além da vantagem de tratar os con- teúdos de maneira articulada, como se costuma destacar, têm sido apontadas como importante forma de trabalho para se alcançar os objetivos mencionados, por se tratar de um processo educativo que apresenta, como uma de suas propostas principais, a mobilização da pluralidade de conhecimentos patente na dinâmica social, con- figurando a escola como um rico território de vivências culturais.
  • 50. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 49 2. Ensinar com projetos A ideia de trabalho com projetos se inclui em um movimen- to atual de debates sobre a organização de procedimentos de sala de aula. Vários estudiosos e pesquisadores vêm reconhecendo a validade dessa proposta e procedem à identificação dos fatores po- sitivos decorrentes de sua adoção. Nos próprios PCN, na seção intitulada “Organizações didá- ticas especiais” (1998, p. 87-88), essa maneira de organizar o tra- balho escolar é apontada como uma das formas alternativas e váli- das para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa. Consta nos documentos a seguinte definição de projeto: tem um objetivo compartilhado por todos os envolvidos, que se ex- pressa num produto final em função do qual todos trabalham e que te- rá, necessariamente, destinação, divulgação e circulação social inter- namente na escola ou fora dela (1998, p. 87) Também são assinaladas diversas vantagens derivadas da adoção de práticas escolares formatadas em projetos, tais como: flexibilidade no uso do tempo, compromisso e engajamento dos alunos com as atividades e com a aprendizagem, inter-relação con- textualizada de diferentes práticas de linguagem que se integram a um só processo educativo (BRASIL, 1998, p. 87). Fernando Hernández e Montserrat Ventura, em um apanha- do geral, destacam as bases teóricas fundamentais na organização curricular a partir de projetos de trabalho. Nos passos dessa pro- posta, ponderam que a pedagogia de projetos: 1- Almeja uma aprendizagem significativa, ou seja, parte dos es- quemas de conhecimentos já adquiridos pelos estudantes e de su- as hipóteses (verdadeiras, falsas ou incompletas) em face da te- mática apresentada; 2- Adota como princípio básico para sua articulação uma atitude fa- vorável ao conhecimento, cabendo ao professor estabelecer a co- nexão desses conhecimentos com os interesses dos alunos;
  • 51. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 50 3- Ganha forma a partir da previsão de uma estrutura lógica e se- quencial de conteúdos, numa ordem que facilite sua compreen- são, mas sempre levando em conta que essa previsão constitui um ponto de partida, não uma finalidade, já que pode ser modificada nos processos de interação em classe; 4- Possui um evidente sentido de funcionalidade do que se deve aprender. Para isso, torna-se fundamental a relação com os proce- dimentos e com as diferentes alternativas de organização dos problemas apresentados; 5- Atribui valor à memorização compreensiva de aspectos da infor- mação, já que estes podem constituir uma base para o estabeleci- mento de novas aprendizagens e relações; 6- Possibilita realizar a avaliação do processo seguido ao longo de toda sequência e das inter-relações criadas na aprendizagem, par- tindo de situações nas quais é necessário antecipar decisões, esta- belecer relações ou inferir novos problemas (HERNÁNDEZ & VENTURA, 1998, p. 62-63). Cabe observar, ainda em favor da adoção de uma pedagogia com base em projetos, as seguintes colocações feitas no caderno do MEC, referente aos projetos de trabalho: (...) nos anos 90, o trabalho com projetos, voltado para uma visão mais global do processo educativo, ganhou força no Brasil e no mun- do. Não se trata de uma técnica atraente para transmitir aos alunos os conteúdos das matérias. Significa de fato uma mudança de postura, uma forma de repensar a prática pedagógica e as teorias que lhe dão sustentação. Significa repensar a escola, seus tempos, seus espaços, sua forma de lidar com os conteúdos das áreas e com o mundo da informação. Significa pensar na aprendizagem como um processo global e complexo, no qual conhecer a realidade e intervir nela não são atitu- des dissociadas. (BRASIL, 1998, p. 58) O ensino da língua portuguesa sob a perspectiva de projeto também é contemplado na Revista Nova Escola. Anderson Moço, de modo aproximado ao de outros pesquisadores, torna evidente a necessidade de se considerar a relevância dessa forma de organizar o conhecimento. Nos seus próprios termos,
  • 52. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 51 Projeto didático é um tipo de organização e planejamento do tempo e dos conteúdos que envolve uma situação-problema. Seu ob- jetivo é articular propósitos didáticos (o que os alunos devem apren- der) e propósitos sociais (o trabalho tem um produto final, como um livro ou uma exposição, que vai ser apreciado por alguém). Além de dar um sentido mais amplo às práticas escolares, o projeto evita a fra- gmentação dos conteúdos e torna a garotada corresponsável pela pró- pria aprendizagem. (MOÇO, 2011, p. 50) A experiência de ensinar língua materna por meio de proje- tos didáticos foi o procedimento pedagógico adotado para dar forma, desde agosto de 2011, ao Subprojeto da Faculdade de For- mação de Professores da UERJ “Letras: Português-Literatura”, in- serido no âmbito do Projeto Institucional PIBID-CAPES “Saber escolar e formação docente na Educação Básica” (Edital nº 001/2011/CAPES). O Programa Institucional de Bolsas de Inicia- ção à Docência (PIBID) proporciona aos licenciandos a oportuni- dade de participar ativamente na escola, sob a orientação de pro- fessores, do desenvolvimento de ações metodológicas inovadoras, o que resulta na melhoria da sua formação. Os benefícios trazidos pelo programa são abrangentes, já que não só os licenciandos, mas também os supervisores, o coordenador de área e demais professo- res envolvidos nas atividades têm a sua formação enriquecida. Integrada ao cotidiano do Colégio Estadual Capitão Oswal- do Ornellas (CECOO), localizado na cidade de São Gonçalo (RJ), a equipe do Subprojeto PIBID da Faculdade de Formação de Pro- fessores da UERJ “Letras: Português-Literatura”, composta por doze graduandos, duas professoras da unidade escolar e pela pro- fessora adjunta coordenadora de área, planejou e executou, dentro de um enfoque de base enunciativo-discursiva, atividades diversi- ficadas, envolvendo gêneros textuais diversos, a fim de enriquecer e dinamizar o ensino da leitura e da produção oral e escrita de tex- tos literários e não literários, nos níveis fundamental e médio. A concretização dessas atividades vem acontecendo, como já foi dito, através de práticas no formato de projeto escolar, for-
  • 53. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 52 mado por sequências didáticas. Estas, por sua vez, constituem “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemá- tica, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. (DOLS, NO- VERRAZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 95) O processo de planejamento e implementação de projetos didáticos na escola necessitou de algum tempo para ser compreen- dido e assimilado, por constituir uma nova modalidade de organi- zação do trabalho pedagógico. Diante das dificuldades evidencia- das, tornou-se necessária a realização prévia, sob a orientação da coordenadora de área, de estudos sobre concepções de linguagem, gêneros textuais, projetos e sequências didáticas, entre outros. Fo- ram (re)lidos e discutidos, principalmente, capítulos das obras de Mikhail Bakhtin, além dos PCN do ensino fundamental e médio. Realizaram-se seminários internos e encontros pedagógicos, nos quais a equipe pode-se dedicar à seleção e caracterização de gêne- ros, bem como ao planejamento das atividades. Já foram postos em prática vários projetos didáticos com as turmas do ensino fundamental e médio, mas devido a questões de limite de espaço, far-se-á aqui apenas a explanação dos principais aspectos implicados na realização do projeto “Lendo e escrevendo poemas na escola”. O gênero privilegiado pelo projeto integra um dos domínios da linguagem destacado enfaticamente nos PCN como alvo de equívocos metodológicos, levados a efeito na sala de aula. Cabe, neste ponto, atentar para a seguinte passagem dos do- cumentos: O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (BRASIL, 1998, p. 27)
  • 54. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 53 Alinhando-se a essa posição, o projeto escolar “Lendo e es- crevendo poemas na escola”, realizado na parceria com o Colégio Estadual Capitão Oswaldo Ornellas, constituiu um desafio na bus- ca de uma prática pedagógica com o texto literário que se manti- vesse atenta a tais recomendações. O esforço foi direcionado para uma ação pedagógica que, coerente com os pressupostos adotados, viabilizasse o aprofundamento dos conhecimentos sobre as propri- edades temáticas, composicionais e estilísticas do poema. Para is- so, foram utilizados na abordagem de um corpus representativo do gênero, procedimentos de busca das marcas enunciativas regulares para além das marcas linguísticas. Este trabalho se propõe a apresentar um relato reflexivo de parte das experiências envolvidas no processo de concretização do projeto mencionado e, com isso, chamar a atenção para a efetiva- ção de práticas pedagógicas com projetos, como uma possibilidade de trabalho significativo com a língua portuguesa. 3. Compartilhando situações didáticas O propósito da equipe do Subprojeto PIBID da Faculdade de Formação de Professores “Letras: Português-Literatura” era promover um trabalho de leitura com as turmas de ensino funda- mental do Colégio Estadual Capitão Oswaldo Ornellas que, para além da apropriação dos elementos constitutivos do gênero poema, viabilizasse o desenvolvimento da oralidade e da escrita do aluno. Nesse sentido, o projeto didático assumiu o desafio de buscar uma prática com o texto literário, no espaço escolar, que proporcionas- se experiências estéticas, garantindo suas especificidades de lin- guagem artística e sua função de palavra humanizadora. Nessa di- reção, assinala Rildo Cosson: Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós
  • 55. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 54 mesmos. (...) É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de co- res, odres, sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar um lugar especial nas escolas. Toda- via, para que a literatura cumpra o seu papel humanizador, precisa- mos mudar os rumos de sua escolarização. (COSSON, 2006, p. 17) O tema escolhido para servir de eixo aglutinador do projeto foi “vida”. A ideia era mostrar que há diferentes modos de conce- ber a vida, de olhá-la, de expressá-la artisticamente e de estar nela. Para introduzir significativamente a proposta de trabalho com o tema, foram apreciadas as músicas “O que é, o que é?”, de Gonza- guinha, e “Construção”, de Chico Buarque. Ouvir as músicas ser- viu como técnica de motivação para favorecer o processo de leitu- ra/produção de poemas nas etapas seguintes, isso porque, como explica Cosson, “a motivação prepara o leitor para receber o tex- to”. (2006, p. 34) Tomando como base o núcleo temático das músicas vida/ cotidiano, a motivação, vista como uma atividade inicial de estí- mulo, abriu a discussão sobre desigualdade social, injustiça e li- berdade. No momento seguinte, dando continuidade ao exercício de reflexão sobre o tema vida/realidade, partiu-se para a leitura de um conjunto de poemas, previamente selecionados para estudo. Durante todo o percurso trilhado, a equipe teve sempre em mente que, como alerta Antunes, A ênfase da questão (dos gêneros) deve estar na explicitação dos modelos pelos quais, em seus textos, as pessoas realizam seus fins comunicativos e, não, na possibilidade de se estabelecer um sistema uniforme para classificação da imensa variedade de gêneros. (AN- TUNES, 2009, p. 56) A partir dessa etapa, tiveram início as atividades voltadas para uma abordagem mais aprofundada dos textos escolhidos, programadas para abrir espaço para a produção com autoria do gênero poema na sala de aula. Assim, paralelamente à exploração do conteúdo temático dos poemas, procedeu-se o trabalho de des-
  • 56. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 55 crição do gênero priorizado, tendo em vista suas condições de produção, sua sócio-história de desenvolvimento, seus usos e fun- ções, sua construção composicional e suas marcas linguísticas. As atividades geraram novas situações de reflexão, nas quais, trazendo a discussão para o cordel, buscou-se, com a parti- cipação das turmas, alcançar uma compreensão mais ampla e críti- ca do caráter plural do fazer literário. Sobre a questão, é esclarece- dora a seguinte observação feita por Cosson: A literatura deveria ser vista como um sistema composto de ou- tros tantos sistemas. Um desses sistemas corresponde ao cânone, mas há vários outros, e a relação entre eles é dinâmica, ou seja, há uma in- terferência permanente entre os diversos sistemas. (COSSON, 2006, p. 34) A leitura do poema “Navio negreiro”, de Castro Alves, rei- niciou a discussão sobre desigualdade social, injustiça e liberdade, dando prosseguimento à questão dos diferentes modos de conce- ber/ver a vida; nele há marcas de um contexto histórico opressor. O processo de análise dos poemas levou a uma reflexão sobre os elementos formais desse tipo de produção poética, o que concor- reu para que os alunos se familiarizassem com os aspectos especí- ficos do gênero, sendo, posteriormente, capazes de produzir seus próprios poemas. À guisa de esclarecimento, convém mencionar que se jul- gou importante não transformar a apresentação dos autores dos textos em uma longa exposição de dados biográficos. Buscou-se, em geral, enfatizar que o trabalho de escrita poética constitui tam- bém um modo de atuar no mundo, de sentir a vida. Os alunos foram incentivados a apreciar, dentro da arte lite- rária, mais especificamente nos poemas trabalhados, modos alhei- os de ver a vida. Essa apreciação não prescindiu de um enfoque que trouxesse para a realidade dos estudantes aquilo que é dito no poema. Tal procedimento os preparou para a atividade seguinte, que compreendeu a escrita coletiva de poemas portadores do modo
  • 57. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 56 de olhar o mundo desses estudantes. Essa primeira atividade de produção com o gênero possibilitou a identificação das capacida- des já adquiridas e um planejamento com as turmas de novas ati- vidades, ajustadas às possibilidades e dificuldades apresentadas pelos alunos. O poema a seguir, escrito por alunas da turma 803, ilustra o bom nível de desempenho alcançado, por boa parte dos alunos, nessa etapa. Nele estão concretizadas características estilísticas e composicionais próprias do gênero abordado. As estratégias dis- cursivas de “composição verbal e seleção dos recursos linguísti- cos” obedeceram, “à sensibilidade e a preocupações estéticas”. As expressões são dos PCN (BRASIL, 1998, p. 27).
  • 58. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 57 Pode-se ver, no poema, que a desautomatização lúdica do sentido simbólico atribuído normalmente às cores serve de recurso desestabilizador do senso comum (“Amizade preta, sucesso”/ “Amizade roxa, amor”/ Amizade vermelha, sincera), apontando sugestivamente para a arbitrariedade do preconceito racial. Entre outros aspectos gramaticais e estilísticos relevantes, tem-se a repe- tição da estrutura dos versos, na primeira estrofe, em que se perce- be a total ausência de verbos, o que sugere a sedimentação de uma visão preconceituosa, excludente e silenciadora, que o poema com seus mecanismos de linguagem busca sutilmente desconstruir para dar lugar ao sentimento de amizade. Após o trabalho de produção coletiva, realizaram-se experi- ências de declamação pública dos poemas produzidos, na calçada da escola. O conjunto das atividades propostas despertou nos alu- nos o desejo de serem ouvidos. No cenário assim delineado, deu- se o evento “Poesia na calçada”. Na semana seguinte, os alunos relataram, em sala, suas im- pressões e avaliaram seu desempenho, em geral, de forma positi- va. Eles estavam entusiasmados e, assim, foi possível iniciar outra etapa de produção de poemas, agora, individual. Durante esse pe- ríodo, a equipe viabilizou, novamente com o auxílio de mídias au- diovisuais, encontros prazerosos com o texto literário e diferentes produções artísticas, salientando, a partir de uma perspectiva inter- semiótica, o diálogo entre literatura e outras linguagens. Para fechar esse conjunto de atividades com textos poéticos e socializar o produto resultante da experiência estética de produ- ção individual de poemas pelos alunos, programou-se o “Festival de poesia: Ornellas revelando talentos”. Durante dois meses, aproximadamente, os alunos produzi- ram poesias individualmente e, sob a orientação da equipe, realiza- ram as refacções necessárias; essa prática gerou momentos de re- flexão sobre o uso da língua. Isso na linha do pensamento dos
  • 59. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 58 PCN, segundo a qual “a refacção que se opera não é mera higieni- zação, mas profunda reestruturação do texto, já que entre a primei- ra versão e a definitiva uma série de atividades foi realizada”. (BRASIL, 1998, p. 77) Após esse procedimento, foram selecionados pelos alunos, com a participação da equipe, três poemas de cada turma (8) en- volvida na atividade. Houve também a escolha dos intérpretes das poesias e a organização das torcidas das turmas. O procedimento adotado na estruturação da sequência didá- tica do projeto descrito pode ser assim resumido: 1- Apresentação do projeto didático; 2- Atividades de leitura 1: técnica de motivação realizada pe- la tomada do núcleo temático de músicas; 3- Atividades de leitura 2: apresentação do gênero poema, vi- sando à apropriação de suas marcas específicas; 4- Atividade escrita 1: produção coletiva de poemas e refac- ção; 5- Atividade oral 1: declamação dos poemas produzidos cole- tivamente, em via pública, durante o evento “Poesia na calçada”; 6- Atividade de escrita 2: produção individual de poemas e refacção; 7- Atividade oral 2: declamação dos poemas produzidos in- dividualmente, no “Festival de poesia: Ornellas revelando talentos”; 8- Avaliação.
  • 60. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 59 4. À guisa de conclusão Na avaliação final das atividades, as diversas falas dos alu- nos evidenciaram, sobretudo, que os eventos “Poesia na calçada” e “Festival de poesia” criaram um clima favorável à cooperação e à participação, dando visibilidade ao que foi estudado e ao processo de ensino-aprendizagem aí implicado. Mobilizados, no desenrolar das atividades, os estudantes organizaram torcidas, vibraram, con- feccionaram cartazes, além de se mostrarem solícitos na produção dos poemas. Deslocados da postura passiva de meramente “rece- ber” conteúdos, de maneira geral, ficaram animados com a ideia de escrever poemas e socializá-los. Contudo, cumpre fazer referência ao fato de que alguns alu- nos demonstraram, no começo, dificuldade no entendimento da linguagem metafórica dos poemas selecionados para estudo, o que gerou certo desinteresse, contornado com atividades instigantes, pensadas e preparadas em conjunto, tendo em vista o desenvolvi- mento da competência para a leitura do simbólico. Para dinamizar, enriquecer e diversificar a apresentação das sequências didáticas de leitura e escrita do gênero e aproximar os conteúdos da realidade dos estudantes, a equipe recorreu ao uso de diferentes mídias, entre elas, o computador, a TV, o data show, o DVD e, sempre que possível, utilizou o auditório da escola, já que este oferece uma infraestrutura mais adequada à aplicação das ati- vidades que envolvem a presença de recursos tecnológicos. Acredita-se que as ações didáticas empreendidas na imple- mentação do projeto “Lendo e escrevendo poemas na escola” fo- ram favoráveis, propiciando a experiência da vivência crítica, em vários níveis, aos envolvidos no processo. Os procedimentos ado- tados, além de terem contribuído para o aprofundamento do co- nhecimento sobre gêneros pelos alunos e para a formação de leito- res críticos de diferentes textos, também levaram a equipe do sub- projeto a tecer reflexões significativas sobre fatores textuais e pro-
  • 61. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 60 cessos de leitura, bem como sobre a importância do trabalho do- cente com projetos didáticos dentro de uma perspectiva discursiva. REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Pau- lo: Hucitec, 2006. ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979. BRASIL. MEC/SEF. Parâmetros curriculares nacionais de língua portuguesa: 3º e 4º ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC/ SEF, 1998. BRASIL. MEC/SEED. Cadernos da TV escola: PCN na escola – diários, projetos de trabalho. Brasília: MEC/SEED, 1998. Disponí- vel em: <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/diarios.pdf>. 22-12-2013 COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. DOLS, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Ber- nard. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales (Orgs.). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA, Montserrat. A organiza- ção do currículo por projetos de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. Porto Alegre: Artmed, 1998. MARTINS, Ivana. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia
  • 62. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 61 (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006. MOÇO, Anderson. Tudo o que você sempre quis saber sobre pro- jetos. Revista Nova Escola, São Paulo, n. 241, abril, 2011. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 2002. ZILBERMAN, Regina. (Org.). Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: Senac, 2001.
  • 63. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 62 EUGENIO COSERIU: UMA MUDANÇA RADICAL NA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA Helio de Sant’Anna dos Santos4 RESUMO Este artigo versa sobre a perspectiva linguística de Eugenio Coseriu, es- tudioso romeno frequentemente confundido como mais um estruturalista. A proposta consiste em demonstrar alguns aspectos da concepção coseriana que a credenciam como linguística integral. Ainda que tenha relação com o estruturalismo de Saussure, Coseriu fundamenta-se numa tricotomia bas- tante específica, com base nos planos universal, histórico e individual da lín- gua, partindo do falar (parole) para a língua (langue). Palavras-chave: Eugenio Coseriu. Estruturalismo. Mudança. Eugenio Coseriu muitas vezes é confundido como apenas mais um estruturalista, continuador das ideias de Saussure. Ignora- se o fato de que suas concepções não coincidem com o ideário do mestre de Genebra, conforme afirma Johannes Kabatek, Diretor do Arquivo Eugenio Coseriu da Universidade de Tübingen (www.coseriu.com). Segundo Kabatek, em Prólogo do livro Linguagem e Dis- curso (COSERIU & LAMAS, 2010), a imagem de Coseriu como estruturalista é falsa, já que o linguista “apenas tomou as ideias 4 Doutor em língua portuguesa pela Universidade Federal Fluminense e professor do Co- légio Pedro II. E-mail: [email protected]
  • 64. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 63 saussurianas como ponto de partida metodológico, e não a doutri- na de Saussure como um todo” (p. 7). Uma das maiores contribuições coserianas para a linguísti- ca, de acordo com o próprio Coseriu, é a apresentação da mais bá- sica de suas tricotomias, que ele mesmo toma como bastante sim- ples e correspondente à intuição dos falantes. Refere-se à distinção entre três níveis linguísticos: o nível universal do falar em geral, o nível histórico das línguas e o nível individual dos textos. O estruturalismo hermético limita-se ao nível histórico, en- quanto Coseriu propõe, nas palavras de Kabatek (COSERIU & LAMAS, 2010, p. 8) uma “linguística integral”: uma linguística do falar em nível universal, uma linguística no nível histórico e uma linguística no nível individual. Kabatek (p. 7) ressalta que, ainda que Coseriu não seja estruturalista, “adota a perspectiva es- trutural em certos trabalhos”, ampliando a perspectiva de uma lin- guística de caráter estrutural a outros campos. Está-se diante de uma proposta teórica em que é insuficiente a abordagem em termos de uma linguística no nível da língua em seu aspecto abstrato, posto que não se considera cientificamente viável conceber o fenômeno linguístico que não parta do concreto, do falar. Coseriu (1979, p. 213) argumenta que “não há que explicar o falar do ponto de vista da língua, e sim vice-versa”. Invertendo o conhecido postulado de Saussure, Coseriu afirma ser necessário partir do terreno do falar para tratar de outras formas de manifes- tação da linguagem. Assim, a língua corresponde a “momento his- toricamente objetivo do falar”, é um aspecto do falar. Toma-se o falar como referência para a linguagem. Com o propósito de apresentar a linguística do falar em ní- vel universal como necessária, Coseriu (p. 214) relaciona-a com a própria aceitação da tríplice dimensão: se há a linguística das lín-
  • 65. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 64 guas, ou seja, a linguística do falar no nível histórico, e uma lin- guística do texto – uma linguística do falar no nível particular, de- veria existir também uma linguística que desse conta do falar em geral, uma linguística do falar no nível universal. Coseriu esclare- ce: [...] em nossa opinião, a linguística do falar em sentido estrito seria uma linguística descritiva, uma verdadeira gramática do falar. E, precisamente, uma gramática indispensável tanto para a interpretação sincrônica e diacrônica da “língua” quanto para a análise dos textos. De fato, do ponto de vista sincrônico, a língua não oferece apenas os instrumentos da enunciação e de seus esquemas, mas também instru- mentos para a transformação do saber em atividade; e, do ponto de vista diacrônico, tudo o que ocorre na língua só ocorre pelo falar. Por outro lado, a análise dos textos não pode ser feita com exatidão sem o conhecimento da técnica da atividade linguística, pois a superação da língua que ocorre em todo o discurso só pode ser explicada pelas pos- sibilidades universais do falar. (COSERIU, 1979, p. 214) A chamada “gramática do falar” teria como objeto a técnica geral da atividade linguística, envolvendo aspectos verbais e não verbais, dos quais fazem parte o conjunto de operações denomina- do determinação e instrumentos circunstanciais reconhecidos co- mo entornos. Tal abordagem foi proposta em artigo publicado por Cose- riu em espanhol em 1957, no periódico alemão Romanistisches Jahrbuch, “Determinação e entorno: dois problemas duma linguís- tica do falar”. O próprio Coseriu, conforme se aponta em nota no livro Linguagem e Discurso (COSERIU & LAMAS, 2010, p. 17), menciona no início de Textlinguistik ter introduzido nesse artigo o conceito de linguística do texto, afirmação refutada na mesma obra (p. 18). O autor ressalta o papel do artigo “Determinação e entor- no”, não como um antecedente da linguística do texto, e sim um avanço da linguística integral.
  • 66. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 65 O texto em questão é considerado um marco da mudança radical de perspectiva da linguística, já que contribui fortemente para que se estude a linguagem não a partir da língua, mas a partir do falar. É preciso, portanto, partir do falar para explicar a língua. O primeiro momento corresponde ao falar, tomado como norma para todas as manifestações da linguagem. Coseriu (1992, p. 80) postula que toda a linguística corres- ponde a uma linguística do falar, já que se podem considerar tam- bém as línguas particulares como aspecto ou modalidade do falar. Com base em tal concepção, o autor estabelece uma relação entre os planos e níveis que se distinguem no falar e a correspondente competência linguística – definida como “um saber intuitivo ou técnico dependente da cultura nos três planos independentes entre si do falar em geral, da língua particular e do discurso ou texto.” (p. 8) Apresenta-se, então, um gráfico com a divisão da compe- tência linguística, de que se deverá destacar o nível cultural do fa- lar, quer dizer, o falar como atividade cultural e o saber transmiti- do que subjaz a essa atividade. Veja-se o gráfico mais abaixo. Coseriu defende que a linguagem envolve uma série enorme e complexa de elementos, inclusive extralinguísticos, constituin- do-se o falar em atividade mais ampla que a língua: “utiliza suas próprias circunstâncias (enquanto a língua é circunstancial) e tam- bém atividades complementares não verbais” (1979, p. 215). As- sim, não se pode ignorar que a mímica, os gestos e mesmo o silên- cio, dentre outros elementos, interferem na atividade linguística. Entretanto, a linguística não deverá dar conta de todos os aspectos envolvidos no falar, ainda que tenhamos convicção da re- levância de tais fatores. Faz-se necessária, inclusive, a distinção entre língua falada e escrita, esta entendida como mutilação da- quela, em função de não dispor dos mesmos recursos. É o que se verifica em Mattoso (CÂMARA JR., 1985, p. 16) e pode-se en-
  • 67. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 66 tender em Carvalho (1967, p. 222), quando se refere ao ato lin- guístico como uma “simplificação extrema do fenômeno real da fala humana”. (COSERIU, 1992, p. 81) Bittencourt (2007/2008, p. 191) adverte que não se pode ig- norar o quanto a escrita é uma tecnologia sofisticada, exigindo por parte do falante esforço não percebido por quem a domina. Dentre outros fatores, está a necessidade de recriação das circunstâncias que são próprias da situação de fala, como as propriedades da voz. Exige-se, portanto, muito trabalho para ensinar a técnica a quem normalmente está acostumado ao mundo dos sons. A professora lamenta o fato de a escola relegar a língua lite- rária ao segundo plano, o que muitas vezes se justifica por se con- siderar o texto literário mais difícil, complexo. A dificuldade pode estar concentrada exatamente na impossibilidade do falante em conseguir lidar com os instrumentos de construção discursiva e nas estratégias utilizadas para apresentar a língua literária ao alu- no.
  • 68. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 67 O ensino de português não deveria desconsiderar as diferen- ças entre língua escrita e falada, formal e informal, língua literária e exemplar – termo criado por Coseriu (1992, p. 164) e que se re- fere à modalidade que deve servir de modelo aos falantes em de- terminadas situações, caracterizadas pela preocupação com a cor- reção. Não se deveriam ignorar outros traços do falar que certa- mente são intrínsecos ao desenvolvimento da competência linguís- tica, incluída a capacidade de reconhecer elementos extralinguísti- cos pertinentes a um ato de fala. Coseriu (1992, p. 82) cita Hjemslev e Saussure como auto- res não contemporâneos que viram que o falar não se esgota na re- alização de uma língua concreta. Destaca um trabalho publicado em holandês como o único a representar certa importância quanto ao estudo do problema dos recursos extralinguísticos na fala, a pu- blicação de Duijker, “Elementos extralinguísticos na fala”, em 1946. Coseriu alerta para o fato de que atividades extralinguísticas não só podem acompanhar como também completar e, inclusive, substituir o falar, o que é válido para a língua oral ou escrita. Para entender a proposição, basta levar em consideração textos escritos nos quais se inserem imagens ou desenhos ou mesmo os textos configurados graficamente das mais diversas formas, como os chamados poemas concretos. Ainda se faz importante ao menos aludir ao nível biológico do falar, uma vez que se parte do princípio de que o falar é uma atividade primeiramente psicofísica, “condicionada fisiológica e psiquicamente” (COSERIU, 1992, p. 85). Trata-se deste nível quando, por exemplo, se diz que as crianças sabem ou não falar, pois não se quer dizer se sabem ou não português ou espanhol, se- não que não há domínio dos mecanismos psicofísicos do falar. A linguística também não deve ocupar-se de tais aspectos, objetos próprios da fisiologia, da psicologia e da medicina.
  • 69. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 68 O objeto de interesse da linguística, segundo as concepções coserianas, é o falar sob a forma cultural, que se pode diferenciar em três planos: 1. O falar é comum a todos os homens, é um falar em geral; todos os homens adultos e normais falam. Mesmo o não falar constitui sentido. Coseriu (1992, p. 87) adverte que algumas línguas chegam a distinguir o “estar em silêncio” e o “deixar de falar”, como o latim, com os termos silere e tacere, respectivamente. 2. O falar se realiza numa língua determinada, numa tradição histórica determinada, ainda que se esteja tratando de lín- gua construída ou inventada. 3. Todo falar se apresenta como individual a partir de dois aspectos: por um lado, é executado sempre por um indiví- duo, não é atividade em coro. Por outro lado, sempre se executa em uma situação única determinada, a que Cose- riu chama de discurso. Com base nesta linha de raciocínio, Coseriu (1992, p. 88) afirma ser possível, como ocorre com qualquer atividade cultural, conceber a atividade verbal também sob três pontos de vista, con- forme se esclarece: 1. Como atividade mesma, como falar e entender. É a lin- guagem enquanto enérgeia, como atividade em si, em que se cria saber linguístico novo ou se diz algo novo a partir de um já existente. 2. Como competência, saber fazer, dínamis. 3. Como érgon, produto criado pela atividade. É o texto ou obra a ser mantida na memória. Coseriu (1992, p. 22-25) faz referência a Humboldt (1963, p. 416-418), que, apropriando-se do conceito aristotélico, define
  • 70. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 69 enérgeia como atividade que precede a própria potência, chamada de dínamis e entendida como atividade produtiva. A língua é antes enérgeia que produto, érgon; portanto, atividade criadora, que não repete simplesmente o aprendido. Partindo da relação entre os diferentes planos e pontos de vista, Coseriu enfatiza a distinção entre langue e parole, assina- lando que muitas vezes há uma certa confusão quanto aos critérios que as distinguem. A langue corresponde ao plano histórico da língua; a parole, por sua vez, ao ponto de vista da atividade. Desta forma, a parole, o falar, envolve todos os planos, seja como falar em geral, seja como língua concreta, falar historicamente determi- nado, seja como texto, falar individual. Em todos os casos, vê-se o falar do ponto de vista da atividade. O autor, tomando o falante como medida de todas as coisas, procura comprovar a percepção do usuário da língua enquanto fa- lar, mesmo que por intuição, em todos os planos. O falante reco- nhece a língua no plano universal quando, por exemplo, afirma que os animais não têm linguagem ou que a criança não sabe falar, referindo-se não a um idioma e sim à capacidade de falar, no sen- tido geral. Percebe no plano histórico o falar como uma manifestação em uma língua determinada, ao proferir afirmações, como: “ele fa- la português" ou “não sei falar inglês”. Quanto ao plano individu- al, o falante demonstra capacidade de identificação do falar quan- do distingue um falante do outro pela fala ou compreende diferen- tes intenções em situações diversas. Levando-se em conta a relação entre os planos em questão e os pontos de vista, Coseriu (1992, p. 91) define tanto saberes, competências, como produtos correspondentes a cada um dos pla- nos. Assim, aos três planos ou níveis da atividade do falar se con- trapõem três planos do saber linguístico:
  • 71. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 70 1. Ao saber correspondente ao falar em geral – “saber elocu- tivo” ou “competência linguística geral”. 2. Ao saber correspondente ao falar em uma língua particu- lar, determinada historicamente, saber histórico, portanto – “saber idiomático” ou “competência linguística particu- lar”. 3. Ao saber correspondente ao falar individual, habilidade de produzir textos em situações determinadas – “saber ex- pressivo” ou “competência textual”. Quanto aos produtos ou obras, Coseriu aponta como produ- to do falar em geral a totalidade de todas as manifestações; como produto do falar em uma língua particular, a língua particular abs- trata, objeto da descrição da linguística, e como produto do falar individual o texto. Resume-se tal perspectiva no esquema a seguir: É preciso ainda, de acordo com a perspectiva coseriana, de- terminar conteúdos e juízos correspondentes a cada um dos pla- nos. Em cada ato do falar há três planos do conteúdo: a designa- ção, o significado e o sentido. Ou seja, cada ato de fala faz refe- rência a uma realidade, ao mundo, de uma maneira geral; estabe- lece tal referência por meio de determinadas categorias gramati- cais de uma língua particular; e em cada situação há uma função discursiva específica. A designação consiste no conteúdo específico do plano lin- guístico geral, remetendo a elementos da realidade, ao mundo ex-
  • 72. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 71 tralinguístico; o significado situa-se no plano da língua particular, representando a apreensão da realidade em uma língua determina- da. Por sua vez, situado no plano do discurso, o sentido se expres- sa mediante a designação e o conteúdo, entretanto ultrapassa os seus limites, envolvendo atitudes, intenções e suposições do falan- te. A cada plano corresponde também um juízo: congruente ou incongruente, correto ou incorreto e adequado ou inadequado. No plano do falar em geral, importa se o texto é inteligível, se está de acordo com uma determinada realidade extralinguística, num de- terminado contexto global. No plano da língua particular, importa se o texto atende ou não a preceitos de um idioma, se há correção ou não, tendo-se por referência um conjunto de regras. No plano do discurso, a noção de juízo diz respeito à ade- quação ou não a uma situação, considerando principalmente as circunstâncias envolvidas no falar, como, por exemplo, as expecta- tivas do ouvinte/leitor e condições em que se dá o ato de fala. Conteúdos e juízos apresentam autonomia: designações completamente diferentes podem ter o mesmo significado numa língua particular; pode haver distintos significados entre expres- sões da mesma língua com igual designação; certamente, um de- terminado significado, mesmo que pautado numa mesma designa- ção, pode não ter o mesmo sentido em duas situações diferentes. Quanto aos juízos, vale a ressalva de que textos congruentes e corretos não são obrigatoriamente adequados, assim como textos adequados não são obrigatoriamente corretos ou congruentes. É possível supor um texto correto e, ainda assim, incongruente ou inadequado, ou seja, os juízos são autônomos. O esquema organiza a terminologia:
  • 73. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 72 A proposta da autonomia dos planos, juízos, conteúdos e saberes pressupõe a hipótese de uma linguística própria em cada nível, constituída de objetos específicos, correspondentes aos pla- nos em questão. Portanto, reforça-se a pertinência de uma linguís- tica do plano do falar em geral, uma linguística do falar historica- mente determinado e uma linguística do texto/discurso. Coseriu (1980, p. 98) associa a distinção entre os planos de linguagem – o do falar em geral, o da língua e o do texto – a disci- plinas linguísticas, já que as tarefas de cada disciplina variam con- forme o nível a que se referem. Deste modo, haveria uma gramáti- ca geral – não uma gramática universal, mas uma teoria gramati- cal –, uma gramática descritiva – dessa ou daquela língua – e uma análise gramatical – de determinado texto. Comumente, prioriza- se a gramática de caráter idiomático, no campo da linguística da língua, não só no ambiente escolar, como também entre os linguis- tas, “cuja atenção tem se concentrado até agora especialmente no nível histórico da técnica linguística” (p. 94). Coseriu parte das concepções adotadas por Gabelentz (apud COSERIU, 1992, p. 27-35), para quem a diferença entre as formas da língua corresponde a uma diferença de pontos de vista na lin- guística e, portanto, disciplinas linguísticas diversas. Gabelentz distingue língua como fala, como língua particular e como capa- cidade linguística, compreendendo manifestação individual; lín- gua de um povo, de um grupo profissional; e bem comum da hu- manidade (grifos nossos).
  • 74. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 73 Em suas publicações, mais especificamente em Lingüística del Texto, Coseriu (2007, p. 87-88) discute a paternidade científica da linguística do texto, afirmando ser indiferente a uma disputa por direitos sobre a teoria, uma vez que em ciência o que importa é a verdade, não a reputação pessoal. Acrescenta que a teoria de- nominada “linguística do texto” havia tomado um rumo diferente da sua proposta no artigo “Determinação e entorno”, o que tornava irracional apresentar-se como seu precursor. Declara que o seu projeto era traçar as linhas básicas de uma linguística de caráter integral, que se ocupasse do falar em geral, não apenas do texto, enfatizando a sua concepção de que, inevitavelmente, a divisão da linguagem em três níveis deveria contemplar o âmbito da linguística. Em cada nível, deve-se enten- der o texto como autônomo, não sendo explicado completamente a partir do nível do falar em geral nem a partir do nível das línguas ou mesmo do discurso. É necessário analisá-lo a partir das três perspectivas, respeitando-se a autonomia entre elas. REFERÊNCIAS BITTENCOURT, Terezinha M. da Fonseca Passos. A língua lite- rária e o ensino de português. Confluência – Revista do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Rio de Janei- ro: 2º semestre de 2007/1.º semestre de 2008, n. 33/34, p. 187-201. CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Manual de expressão oral e es- crita. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. CARVALHO, J. G. Herculano de. Teoria da linguagem: natureza do fenômeno linguístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida, t. I, 1967. COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e linguística geral: cin- co estudos. Rio de Janeiro: Presença, 1979.
  • 75. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 74 _____. Lições de linguística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Téc- nico, 1980. _____. Tradição e novidade na ciência da linguagem: estudos de história da linguística. Rio de Janeiro: Presença, 1980. _____. Introdución a la lingüística. Madrid: Gredos, 1986. _____. Competencia lingüística: elementos de la teoria del hablar. Madrid: Gredos, 1992. _____. Do sentido do ensino da língua literária. Confluência – Re- vista do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Portu- guês. Rio de Janeiro, n. 5, 1.º semestre de 1993, p. 29-47, 1993. _____. Sobre o idioma nacional: problemas, propostas e perspec- tivas. Confluência – Revista do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Rio de Janeiro: 1.º semestre de 2002, n. 23, 2002. _____. Lingüística del texto: introduccion hermenéutica del senti- do. Madrid: Arco Libros, 2007. _____. A língua literária. Alemanha: Universidade de Tübingen, mimeo. _____; LAMAS, Óscar Loureda. Linguagem e discurso. Trad.: Cecília Inês Erthal. Curitiba: UFPR, 2010.
  • 76. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 75 A LITERATURA NA ERA DIGITAL Adriane Camara de Oliveira5 RESUMO O texto pretende fazer uma breve reflexão da literatura na atualidade, mais precisamente de algumas que sofreram diretamente a influência da tecnologia digital como ferramenta que se apropria da escrita, remodelando as tradicionais características dos gêneros literários analisados aqui: contos e romances. A pesquisa também busca retratar a reação dos escritores ao suporte digital, identificando nas obras um aproveitamento temático, a in- corporação formal de técnicas de escrita e de leitura típicas da cultura digi- tal. Procuramos indagar como ocorre esse aproveitamento temático, uma vez que a literatura digital explora novas possibilidades formais com o de- senvolvimento de tecnologias visuais e sonoras. Portanto, levando em consi- deração as inúmeras possibilidades criadas pelo computador, se faz urgente discutir essas questões, principalmente para quem pretende se dedicar à lite- ratura contemporânea. Palavras-chave: Literatura. Informática. Tecnologia digital. Informática. Pretendemos refletir sobre o possível papel do universo di- gital na literatura brasileira contemporânea. Tal reflexão encontra estímulo numa comparação: a importância que o cinema teve para os autores modernistas. Como se sabe, eles foram muito influenci- ados pelas técnicas cinematográficas de montagem e suas relações 5 Doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, supervisora do Pibid/Capes/UERJ de pedagogia, professora de língua portuguesa e literatura do CECMS e do município de Maricá. E-mail: [email protected]
  • 77. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 76 com o tempo da narrativa. Podemos supor que no futuro o mesmo será dito em relação ao universo digital? No tocante à literatura que se produz hoje no Brasil deseja- mos pesquisar a reação dos escritores às características do suporte digital. Podemos identificar um aproveitamento temático da in- formática em contos, novelas e romances? Podemos surpreender uma incorporação formal de técnicas de escrita e de leitura típicas da cultura digital? Qual a relevância do conceito de hipertexto na literatura contemporânea? Como a literatura pretende utilizar-se desse meio serão os temas deste trabalho. Os conceitos de hipertextualidade6 e autoria, já foram anunciados no livro coletivo Literatura e Informática, organizado por José Luís Jobim. Vejamos as citações referentes ao problema da autoria no espaço reservado ao domínio público na internet: (...) Você poderia fazer o que quisesse com a obra, sendo esta de do- mínio público, mas não com o programa que é o suporte no qual ela se apresenta. Do jeito que o Digital millenium copyright act está re- digido, ele pode impedir inclusive usos considerados legais pela le- gislação vigente nos EUA sobre direitos autorais. Essa legislação permitiria, por exemplo, que eu fizesse uma cópia digital para meu próprio uso de uma obra que eu tivesse adquirido. Contudo, se a obra viesse em “.pdf”, vedado à cópia, então seria crime eu usar qualquer artifício para evitar o sistema de proteção e gestão de direitos autorais desse programa. (JOBIM, 2002, p. 123) Desejamos, assim, pesquisar a reação dos escritores às ca- racterísticas do suporte digital, indagando como ocorre esse apro- veitamento temático da informática nos gêneros literários. Investi- gando também a incorporação formal de técnicas de escrita e leitu- ra típicas da cultura digital. A poesia concreta associa imagem ao 6 Em relação ao hipertexto, remetemos aos já clássicos livros de Landow (1997). No to- cante à literatura brasileira, recomendamos Pavani e Schüler (2000). Este livro represen- ta uma das primeiras tentativas de refletir sobre os efeitos da informática na análise literá- ria.
  • 78. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 77 poema, o que de certa forma, antecipou possibilidades que hoje a internet potencializou. Assim concordamos com a definição da li- teratura digital como “a exploração das possibilidades formais surgidas com o desenvolvimento de tecnologias visuais e sonoras, como o vídeo, o computador e a edição eletrônica de textos”.7 Não é verdade que a incorporação de críticas à literatura di- gital se trata de tarefa urgente para quem se dedica à literatura contemporânea? Em outros tempos, a máquina de escrever exigiu do usuário muito mais do que uma acomodação automática a téc- nica diferente de registro, levando-se em consideração as inúmeras possibilidades criadas pelo computador, para muito além somos levados. A antologia de contos Geração 90: Manuscritos de Com- putador, de Nelson de Oliveira, tem um sugestivo subtítulo preci- samente porque reconhece essa modificação, ao mencionar a “po- pularização do personal computer, da Internet e do e-mail”. (OLIVEIRA, 2001, p. 8) A fim de buscar respostas para as indagações que norteiam este trabalho, destacaremos as obras nas quais a presença do uni- verso digital apareça, seja como tema, seja como recurso formal. Pretendemos analisar o seguinte corpus: Samba-enredo (1994), de João Almino; Eles Eram Muitos Cavalos (2001), de Luiz Ruffato; a antologia de contos Geração 90: Manuscritos de Computador (2001), organizada por Nelson de Oliveira; Cybersenzala (2006), de Jair Ferreira dos Santos; e Purgatório: (A Verdadeira História de Dante e Beatriz) (2007), de Mario Prata. Em relação à literatura brasileira contemporânea, o estímulo inicial de nossa reflexão surgiu da leitura da primeira obra citada, foi provavelmente um dos primeiros textos a incorporar temas e técnicas narrativas do universo digital. O romance tem quarenta e 7 Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=definic oes_texto&cd_verbete=6165&cd_item=46>.
  • 79. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 78 nove capítulos, na primeira página de cada capítulo vemos um si- mulacro da tela do computador; aliás, é o próprio computador que narra a história. João Almino amplia ainda mais essa questão, pois tanto a dedicatória como o posfácio – tipicamente assinados pelo escritor – serão também de autoria da narradora G. G. Desse modo, retomamos uma questão central para os estu- diosos de cibernética: pode-se viver uma vida virtual “ativamen- te”? É o que um fenômeno dos nossos dias parece prometer (e cumprir): a chamada febre da second life. Ora, atualmente cursos universitários estimulam seus alunos a ingressar no mundo da second life como uma forma adicional de preparação para o futuro exercício de suas profissões! O romance de João Almino, portanto, antecipou uma preocupação cada vez mais presente, esclarecendo tanto a relevância do tema, quanto os demais textos que estudare- mos. E não é tudo: em boa parte do texto, a linguagem do narra- dor é de poucos recursos linguísticos – numa instigante apresenta- ção do traço binário da linguagem codificada do mundo digital, que se transforma, assim, em forma literária. Em outro momento da narrativa, a personagem Sílvia será mostrada como fantasma, às vezes menor ou maior dependendo da seleção do tamanho da sua foto8 , trata-se de um recurso usual da própria máquina: “a vejo ampliada, bem maior do que ela é na realidade. Em nova forma, sou toda olhos” (ALMINO, 1994, p, 16).9 A narradora, o computador, envolve-se emocionalmente com a personagem Sílvia, que utilizará a máquina para abrir os dados arquivados sobre a morte do presidente, também seu pai. Em outros momentos, o computador demonstrará distanciamento: 8 Nesse ponto os recursos do computador serão instrumentos utilizados metaforicamente na expressão de sentimentos entre Gigi e Sílvia. 9 Nas próximas referências ao romance, indicaremos somente a páginas após a citação.
  • 80. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 79 “a maior virtude é a indiferença” (p. 75). Serão apresentados fatos e reflexões, mas o escritor estabelece um jogo, onde nem sempre é possível perceber o momento em que a máquina fornece dados, projeta imagens ou apenas estaria sendo acessada por Sílvia. Des- se modo, a história parece ser o início de um “contrato assinado” por Gigi e Sílvia, onde ambas buscam recuperar o assassinato do presidente Paulo Antônio Fernandes, no centenário de sua morte. Faz-se, então, uma retrospectiva da história do Brasil, misturando o sistema político ao carnaval, com os seguintes temas: o descobrimento do Brasil, o reinado de Pedro II, a Guerra do Para- guai, o fim do mundo, o presidente Vargas, a pós-guerra fria, a cons- trução de uma estrada no interior do Acre, até uma festa de Santa Lu- zia (p. 22). Esse autêntico samba-enredo termina com “a libertação dos escravos” (p. 23). O autor através do romance retoma fatos histó- ricos, através de um presidente fictício que homenageia JK e seu programa de governo “dez anos em um”: Propõe uma revolução capitalista com a crescente incorporação dos marginalizados e a multiplicação do número de proprietários, no campo e nas cidades. Declara guerras aos bandidos. Recomenda, para acabar com a miséria, dezenas de medidas e, se necessário, até mes- mo dobrar a dívida. Pretende valorizar o serviço público, aumentar a eficiência e a produtividade, investir em tecnologias, liberar a imagi- nação... (p. 39) Outro livro para o tema do nosso trabalho foi publicado re- centemente, Purgatório: (a verdadeira história de Dante e Bea- triz), de Mario Prata. Ele introduz de forma inusitada a internet na ficção, pois ela será utilizada como meio de comunicação entre vi- vos e mortos, através do que denomina TCI (Transcomunicação Instrumental), conforme declara a personagem, Beatriz, depois de falecida, num e-mail encaminhado para Dante: Isso se chama TCI. Transcomunicação Instrumental. - Vá à merda!!!
  • 81. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 80 Dante desligou o Messenger, desligou o computador. Mas, antes, salvou a conversa e imprimiu. TCI, era só o que me faltava. (PRATA, 2007, p. 28)10 O livro começa contando a história de um gerente de banco e seu amigo, que estão entediados com a vida de funcionários do Banco do Brasil. Até que o personagem Dante recebe um e-mail da antiga namorada, Beatriz. Ele fica empolgado e modifica a sua rotina para revê-la, só que um acidente acabará adiando definiti- vamente o encontro. Beatriz morre e vai para o Purgatório, mas continuará mandando e-mails para Dante. Após a desconfiança inicial, ele modificará sua conduta pa- ra reencontrá-la nesse lugar. Aqui, a crítica do autor parece dirigir- se aos preceitos da Igreja Católica, pois a trama revela ironicamen- te o jogo de castigos e perdões, que daria aos cristãos “ingressos” para determinados lugares no Céu. Aliás, o Purgatório será consi- derado por ambos como o verdadeiro Paraíso, pois, em sonho, o personagem foi informado que no Paraíso encontraria suas tias be- atas, dando-lhes xarope, ao passo que o Inferno seria praticamente o próprio local onde trabalha. No livro, quem explica essa reflexão é Leonardo da Vinci – direto do Purgatório: – É que, daquele jeito, a humanidade acabaria por mudar de reli- gião, voltar aos Bezerros de Ouro. Mas, não sei qual foi a Agência que eles contrataram, descobriram que a alma do negócio era o Pur- gatório. Pecou um pouco, arrependeu, pecou mais um pouco, deu umas esmolas, comprou uma indulgência, construiu um templo, com- prou uma rifa de um frango, pronto, já podia esperar pela possibilida- de de um lugar diferente, (...). – E o Vaticano começou a ganhar muito dinheiro. (p. 118 e 119) Toda a trama é arquitetada por Beatriz, que mesmo falecida tenta matar Dante, como fez com todos os Dantes que encontrou em seu caminho. O escritor esclarece que esse enredo fantástico trata de uma possível biografia do próprio Dante Alighieri, escritor 10 Nas próximas referências ao romance, indicaremos somente a páginas após a citação.
  • 82. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 81 da Divina Comédia, pois contam que ele escreveu essa história depois da morte de sua amada. (...) Mas Beatriz, a do Alighieri, nunca o perdoou. Beatriz morreu logo depois e Dante começou a escrever a Divina Comédia que, na opinião de alguns e da minha irmã, é a saga de Dante procurando por Beatrice desde o Inferno, passando pelo Purgatório e a encontrando no Céu, ao lado de Deus. Pelo menos foi o resumo que a minha irmã fez aqui. Não sei até que ponto... (p. 257 e 258) Entre biografias, alusões, críticas ao sistema capitalista e as religiões – como candomblé, Santo Daime, espiritismo e a igreja católica – há reflexões sobre o afastamento da realidade através da religiosidade e do computador. O final, de corte inegavelmente moralista, supõe uma alternativa: a criação de uma comunidade com regras próprias. Daí os casais, no desfecho, se retirarem para um lugar chamado “Casa Grande”, lá todos os seus membros vive- riam em harmonia e colhendo frutos da própria terra. Tanto a refe- rência a casa quanto o nome do chefe de Dante, Simão Bacamarte, parecem aludir à novela O Alienista, de Machado de Assis. Adotaremos uma metodologia de leitura que não imponha aos textos literários um modelo teórico rígido, reduzindo a diver- sidade e complexidade dos autores estudados a esquemas precon- cebidos. Muito pelo contrário, estabeleceremos nosso modelo teó- rico a partir da leitura cerrada do corpus literário, preservando nas eventuais conclusões a pluralidade constitutiva da literatura brasi- leira contemporânea. Tal proposta metodológica definiu o corpus constituído por obras que lidam com o universo digital, temática ou formalmente. Em Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato, a estrutura frag- mentária da narrativa já foi comparada por muitos críticos a uma espécie de mosaico que pode ser montado e remontado como se estivéssemos diante de um elaborado hipertexto. Um dos contos de Cybersenzala tem como título o site de uma agência funeral www.joy&peacefuneraldesign.com. Ademais, a própria estrutura
  • 83. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 82 formal do conto é uma notável reflexão sobre a natureza do hiper- texto, compreendido como labirinto, pois os subtítulos têm a fun- ção de links, compondo “um sistema fundamentalmente intertex- tual” de remissões e referências (LANDOW, 1992, p. 35). Em Purgatório, Mário Prata atualiza a célebre história de Dante e Beatriz, utilizando como recurso narrativo mensagens de correio eletrônico enviadas pela protagonista morta. Estamos as- sistindo o surgimento de uma “literatura digital”? Isso é, de uma forma literária que reflete criticamente sobre os novos meios de comunicação? O tema do hipertexto, na era digital, supõe uma importante alteração para os estudos literários. Não se trata apenas de um tex- to que promissoriamente ampliaria a capacidade do leitor em in- terpretar, mas uma ferramenta utilizada para abertura de novas ja- nelas – num sentido até mesmo literal, ressalve-se. Portanto, o tex- to atrairia novas possibilidades de informação sobre o conteúdo inicial, o que não equivale necessariamente a novas interpretações, pois ele tanto poderá se manter fiel ao tema como explorar muitos outros em um “mundo” de opções. Em Eles Eram Muitos Cavalos, o título traz um verso da poetisa Cecília Meireles, para quem, aliás, o escritor parece tam- bém dedicar a sua obra. Faremos a seguir um breve comentário dos exemplos de hipertextualidade na obra. Nos capítulos que se seguem, o 3 – “Hagiologia”, narra à história de Santa Catarina de Bolonha; 10 – “O que quer uma mulher”, lembra a teoria de Freud, na obra O Que Deseja Uma Mulher; 60 – “Ciúmes”, lem- bra qualquer livro de autoajuda, recheado de soluções mágicas; 31 – “Fé”, é a colagem da Oração de Santo Expedito e a penúltima página em preto revela a morte, aludindo, assim, à obra de Lau- rence Sterne. Tal característica já foi destacada pela crítica mais recente:
  • 84. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 83 (...) Os textos de Oswald de Andrade (Memórias Sentimentais de Jo- ão Miramar) e Cecília Meireles (Romanceiro da Inconfidência) estão virtualmente presentes no hipertexto de Ruffato, podendo ser atuali- zados pelo leitor. (VIEGAS, 2005, p. 39) O livro revela ainda uma importante característica na mar- cação do tempo. Na primeira linha: “1 – Cabeçalho São Paulo, 9 de maio de 2000”, parece informar que a cidade de São Paulo re- velar-se-ia na sucessão de acontecimentos cotidianos. A fim de confirmamos esta ideia no capítulo 50 – “Carta”, a data apenas se- te dias antes da informada na primeira página, poderia estar sendo lida no dia nove, ou seja, estaria sendo aberta pelo seu destinatá- rio, no momento em que o leitor lesse o romance. Vemos também a intensidade vivida pelos habitantes, que em apenas um dia, vi- venciam grandes tragédias e muitas disparidades culturais. É como se fôssemos penetrando em cada casa, quarto de hotel, táxi, ôni- bus, carros importados, bares, tudo ao mesmo tempo – a visão rá- pida de um internauta. Ao penetrarmos nos sentimentos dos per- sonagens vemos indícios de vários transtornos, habitantes impo- tentes para realizar qualquer mudança. Em relação à estrutura, verificamos as descrições exaustivas provocadas pelo fluxo de consciência, confirmado num ritmo ver- tiginoso de leitura às vezes sem pontuação. O texto se apresenta bem dinâmico com constantes mudanças de narrador. Textos com letras de música ou poesia concretista, com a introdução de obje- tos para contar a história de personagens. Além dos consumistas de objetos, pessoas e personalidades, na citação o próprio objeto do nosso estudo, a internet: Trocaríamos e-mails e encheríamos o computador se spams, pia- das de português, correntes da felicidade, abaixo-assinados, alertas sobre a descoberta de novos vírus, as mais recentes modalidades de crimes, fotos indecentes, vídeos de sacanagem, charges e até mesmo endereços interessantes, lojas virtuais de cedes e de livros, e descobri- ríamos afinidades que insuspeitávamos e toda sexta-feira nos encon- traríamos para o happy hour num barzinho da Lapa. (RUFFATO, 2001, p. 45)
  • 85. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 84 As várias situações descritas quase nunca terão desfecho, como já anunciamos o último capítulo mostra um cardápio requin- tado, na sequência as páginas em preto poderão ser uma referência a Sterne, mas cabe ao leitor associar o efeito produzido pela pági- na em negro da obra Tristram Shandy. Aqui também prenunciam a morte, confirmada na indiferença dos vizinhos. (...) – Deve ter sido facada... pelo jeito... – E a gente não vai fazer nada? – Fazer? Fazer o quê, mulher? Fica quieta... E se tem alguém lá fora? de tocaia? (Pausa) – Parou... – O quê? (...) – É... Parou mesmo... Vamos lá agora? – Não! – Por quê? – Porque... porque ainda pode ter alguém lá... E aí? Melhor dor- mir... Vai... vira pro canto e dorme... Amanhã... amanhã a gente vê... Amanhã a gente fica sabendo... Dorme... vai... (p. 149 e 150) Jair Ferreira dos Santos é o autor de Cybersenzala. O livro tem um título expressivo, dois substantivos de ideias opostas pare- cem referir-se ao perfil dos personagens, inseridos na classe média brasileira. Tecnologia de ponta e atraso social convivem como se não fossem paradoxais. No conto que dá nome ao livro, amigos se encontram em uma boate, todos parecem pertencer a um grupo de pessoas sem grandes problemas financeiros, pois consomem dro- gas, comentam sobre cirurgias plásticas, ao mesmo tempo recla- mam do stress do cotidiano. A referência ao Cybersenzala ocorre quando uma das personagens, Mônica, desiste de continuar na empresa. Vejamos:
  • 86. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 85 “Então a senhora vai deixar o cybersenzala”, é o que consegue ar- ticular. “Cybersenzala nunca mais. Adeus conexões que caem, máquinas que dão pau, adeus almoço na baia e o estresse nosso de cada dia.” “É triste mais nada contra”, apoia Pepe. (...) (SANTOS, 2006, p. 105)11 No entanto, para o nosso tema será ainda mais proveitoso o último conto, cujo título é um site da agência funeral www.joy&peacefuneraldesign.com. E não é tudo: os subtítulos desse site seriam links com informações referentes à própria agên- cia. Poderia simbolizar a criatividade maliciosa do autor ao tratar do sistema capitalista, sempre voltado para o consumo, fornecendo informações precisas e sempre disponíveis para o consumo imedi- ato dessa nova forma de morrer. Toda essa contabilidade mortuá- ria é apresentada na ideia de satisfação para todos os gostos, o que inclui até a maquiagem do falecido: trata-se da necromaquiagem. Mas, caso o morto tenha sofrido um acidente e seu rosto esteja transfigurado, a opção é a cirurgia plástica, assim o falecido conti- nuará fazendo uma figura sociável até o final. Reconstituição cirúrgica – É exigência estética e psicológica. O jacente deve vir a público apresentável, sem as marcas da causa mor- tis. A J&P tem uma abordagem própria para os corpos não recuperá- veis. (p. 161) Já nos últimos três parágrafos, a agência funeral agradece ao acesso e pede que seja divulgado o site, podemos, nesse ponto, in- terpretar como uma visão mais poética do narrador/autor do livro que agora se despede: A Joy & Peace Funeral Design agradece o acesso a este site e fica na expectativa de que seu conteúdo tenha sido convincente o bastante para ser divulgado. 11 Nas próximas referências ao romance, indicaremos somente a páginas após a citação.
  • 87. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 86 Para breve, informamos, acrescentamos à sua oferta o item Polí- ticas de Perdão, serviço voltado para a renegociação vantajosa post mortem de débitos e créditos a serem regularizados. Se o visitante pensa, como nós, que toda a vida é menos um des- tino que um poema construído gesto a gesto, terá assimilado sem problemas nosso desejo: dedicar o máximo empenho no apoio à cria- ção do seu último verso. (p. 174) Ao iniciarmos este trabalho nos surpreendemos com as mo- dificações da literatura na era digital. Nas obras citadas vemos modificações na estrutura, nos personagens: um computador como narrador da história; a temporalidade auxiliada por uma mescla de textos carregados de possibilidades hipertextuais, com sites sendo acessados dentro do próprio objeto livro. Contudo, esclareça-se que nosso interesse reside na compre- ensão das formas pelas quais os escritores brasileiros contemporâ- neos relacionam-se crítica e criativamente a tecnologia digital, res- saltando a produtividade deles. Realizando assim um breve levan- tamento de textos da literatura brasileira contemporânea nos quais a presença do universo digital apareça, seja como tema, seja como recurso formal. REFERÊNCIAS ALMINO, João. Samba-enredo: romance. São Paulo: Marco Zero, 1994. JOBIM, José Luis. A produção textual e a leitura: entre o livro e o computador? In: ___. Formas da teoria. Rio de Janeiro: Caetés, 2002. ______. (Org.). Literatura & informática. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005.
  • 88. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 87 LANDOW, P. George. Hypertext 2.0. The Convergence of Con- temporary Critical Theory and Technology. 2. ed. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press, 1997. ______. (Org.). Hypertext Theory. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press, 1994. OLIVEIRA, Nelson de (Org.). Geração 90: manuscritos de com- putador. São Paulo: Boitempo, 2001. PAVANI, Cínara Ferreira; SCHÜLER, Donaldo. (Orgs.). Gregó- rio de Matos: texto e hipertexto. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2000. PRATA, Mario. Purgatório: a verdadeira história de Dante e Bea- triz. São Paulo: Planeta, 2007. RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos de cavalos. São Paulo: Hori- zonte, 2007. ______. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001. SANTOS, Jair Ferreira dos. Cybersenzala. São Paulo: Brasiliense, 2006. VIEGAS, Ana Cláudia. Quando a técnica se faz texto ou a literatu- ra na superfície das redes. In: JOBIM, José Luís. (Org.). Literatura e informática. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005.
  • 89. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 88 LITERATURA CONTEMPORÂNEA: A ESCRITA DA SOLIDÃO EM JOÃO GILBERTO NOLL Tania Teixeira da Silva Nunes12 RESUMO O contemporâneo vive momentos em que o indizível cada vez mais en- contra espaço no inconsciente humano. Como descrever tantas tragédias e acontecimentos inimagináveis, barbáries que matam mais no coletivo do que no individual? Como entender que a mesma mão que salva, mata seu igual sem compaixão? E, o mundo quanto mais tecnologicamente avançado mais contempla o indivíduo em sua solidão. “A resposta pós-moderna ao moder- no consiste em reconhecer que o passado já não pode ser destruído, porque sua destruição leva ao silêncio, que deve ser revisitado: com ironia, de ma- neira não inocente.” Independentemente da discussão sobre a designação pós-modernismo, pós-moderno ou contemporâneo, o pensamento de Umber- to Eco retrata a arte literária do presente, que teima em repetir a estrutura de busca e quebra de um tempo de entreguerras, para desaguar no novo. Objetiva esta comunicação descrever uma percepção do momento atual da literatura, a partir da arte de João Gilberto Noll, quando o corpo em ferida aberta e a solidão, em cena, carregam para o último romance do autor – So- lidão Continental (2012) – o mundo sem saída e o mesmo narrador anônimo e degradado com que o romancista inova e renova a escrita, ao aproximar da linguagem perfumes grosseiros e divinos. Ao final, sujeito e palavra ace- nam, renascidos, mas encontram-se afogados no mesmo e sempre-igual fosso do som. Palavras-chave: Literatura. João Gilberto Noll. Inconsciente. 12 Doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense. Autora de Corpo e alegoria – João Gilberto Noll – Walter Benjamin, publicado pela Eduff em 2011. Trabalha onde. Qual é o e-mail de contato?
  • 90. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 89 Entre areia, sol e grama o que se esquiva se dá, enquanto a falta que ama procura alguém que não há. Está coberto de terra, forrado de esquecimento. Onde a vista mais se aferra, a dália é toda cimento. [...] Já nem se escuta a poeira que o gesto espalha no chão. A vida conta-se, inteira, em letras de conclusão. Por que é que revoa à toa o pensamento, na luz? E por que nunca se escoa o tempo, chaga sem pus? O inseto petrificado na concha ardente do dia une o tédio do passado a uma futura energia. No solo vira semente? Vai tudo recomeçar? É a falta ou ele que sente o sonho do verbo amar? Carlos Drummond de Andrade 1. Introdução Que correlação se pode fazer entre Carlos Drummond de Andrade e a narrativa visceral de João Gilberto Noll? A sexta es- trofe desse poema é a epígrafe do último romance do autor. Noll não publica poesias. Mas carrega a chave do reino, ou seja, de- monstra na escrita a mesma insatisfação contra o tempo. O contemporâneo vive momentos em que o indizível cada vez mais encontra espaço no inconsciente humano. Como descre- ver tantas tragédias e acontecimentos inimagináveis, barbáries que matam mais no coletivo do que no individual? Como entender que a mesma mão que salva, mata seu igual sem compaixão? E, o mundo quanto mais tecnologicamente avançado mais contempla o indivíduo em sua solidão. “A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhe- cer que o passado já não pode ser destruído, porque sua destruição leva ao silêncio, que deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente.” Esse pensamento de Umberto Eco, citado por Do- mício Proença, em Pós-Modernismo e Literatura (1988), retrata
  • 91. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 90 fielmente a arte contemporânea, que sem qualquer modelo a se- guir, repete a estrutura de busca e quebra de um tempo de entre- -guerras, para desaguar o novo. Nosso objetivo aqui é partir das palavras-chave “corpo”, “imagem”, “linguagem”, “escrita” e “percepção”, para falar do contemporâneo na literatura brasileira: tempo de “solidão crônica” em que ler é matar um pouco o vazio, uma interessante possibili- dade de ouvir vozes saídas de “bocas famintas de fraternidade” e “vivenciar as emoções, mesmo as mais rasteiras, para o coração não correr o risco de atrofiar” (NOLL, 2012, p. 61). Se o poeta de A Falta que Ama traz nas águas do rio-tempo uma utopia iluminada, mesmo que seja o renascimento do sonho de amar, o romancista de Solidão Continental (2012) pouco difere do seu antecessor. Ele amplia a dor vivida pelo narrador a propor- ções continentais. Percebe-se, na presença desse eu, o outro, em busca de cura e encontro de si mesmo ante sua natureza degrada- da. Ambos tratam de um tempo de dissolução, tempo marcado por desencanto e impossibilidades. Nesse poema, Drummond planta no esquecimento e na sur- dez do tempo. Planta na união. Aposta no entretempo, como espa- ço em que o presente se faz entre o passado e o futuro. E, de uma superfície de cimento faz nascer o sonho de amar: a semente poé- tica. João Gilberto Noll aposta em seus romances, na fusão dos corpos e nas imagens oníricas ou em uma utopia possível, como fuga do interregno do contemporâneo sem propostas: “...havia sempre uma pequena ferida a fechar, às vezes mínima, que podia ser sarada com um contato de pele (...), um beijo que não era dado havia anos, um sonho comentado na manhã seguinte” (NOLL, 2012, p. 35).
  • 92. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 91 Nessa narrativa, a solidão é uma doença avassaladora que atinge o coletivo em tempos de frustrações cotidianas. O protago- nista de Solidão Continental é um indivíduo anônimo, maduro, professor de língua portuguesa, andarilho, que carrega um “des- mazelo mental”. Vive petrificado em um momento que define co- mo “ponto intervalar”, cuja obsessão é buscar no encontro dos corpos uma forma de quebrar a solidão e sarar suas próprias feri- das. O narrador quer um novo cotidiano, quer deixar fluir sua pró- pria natureza, a partir do toque, algo que o sacuda do isolamento e o faça “verificar que o mundo continua doendo”. Seu maior desejo é “engrenar um acontecimento” capaz de fabricar a escrita de um novo romance a partir da errância e de seus fantasmas. Assim, Solidão Continental narra a viagem de um homem, sem nome, de Chicago ao Sul do Brasil, passando pela Cidade do México e retorno ao Rio Grande, estado origem do autor. Não há dúvida de que em Porto Alegre o personagem continua vagando, agora na companhia de um jovem que parece ser italiano. Um ga- roto que misteriosamente desfalece no meio da jornada. E que o homem passa a carregar no ombro pelo interior do Rio Grande como uma louca via crucis, até que, finalmente, num hospital ir- rompe uma libertação mais que surpreendente (Sinopse da obra, editora Record)13 . Ele se apodera do corpo do rapaz para curá-lo. Depois des- cobre que o suposto estrangeiro é um farsante, pois usara o idioma para atrair para sua companhia, ele, um professor de português pa- ra estrangeiros. Descoberta a cilada, o narrador ferido e com pon- tos na cabeça retorna à cidade, pois reconhece que é com ela que agora precisa se entender para reingressar no cotidiano solitário. Totalmente confuso, em estado de “meditação enfermiça”, o narrador teme não encontrar mais suas próprias referências no 13 http://www.skoob.com.br/livro/254867ED285421-solidao-continental
  • 93. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 92 mundo. Andar era a saída. Correr em direção nenhuma para apla- car o sofrimento, observar o mundo e meditar sobre sua mínima condição. A saída não é a morte porque tirar a vida ele não tem co- ragem. Mas o encontro com a morte faria com que não tivesse de aferir a realidade ou a irrealidade da própria circunstância ilhada em que permanece. A aurora o acorda numa praia à beira do Guaíba, rio próxi- mo de onde mora; volta para casa, encontra a porta entreaberta, entra, a empregada o socorre na limpeza do ferimento. Ante a imi- nência do encontro dos corpos é narrada a cena final: “e vi que ia beijar seus lábios entreabertos. E tirar sua roupa. E depois a mi- nha. E ia, sim, lentamente entrar... (NOLL, 2012, p. 125). Ler João Gilberto Noll não permite ao leitor uma atenção desavisada. É preciso enveredar pelas brechas que a linguagem acena. O leitor deve recompor através das imagens em palavras o cenário, perscrutar a cena, acompanhar o narrador, decifrar ambi- guidades, observar o avesso do mundo e a rua como um teatro em que os narradores – poucos protagonistas – transitam em desor- dem, pois levam sempre o leitor a uma confusão desmesurada. Cabe a cada leitor colher os cacos desse mundo que con- templa narradores desbussolados para compor o sentido na supre- macia da linguagem, única chave do reino, no momento em que a crise da narrativa cerca a literatura contemporânea. Perguntamos ao autor, em entrevista publicada no Diário de Pernambuco, Suplemento Cultura (2012): A solidão hoje é uma doença que se apresenta em decorrência do mundo desequilibrado em “cotidianas frustrações”. Assim se lê em Solidão Continental. O narrador nesse romance relata que tem pudor e se sente humilhado de relatar esse sentimento a conhecidos e des- conhecidos. Você crê que esse homem vê a solidão como uma degra- dação moral, uma incapacidade de engendrar novos relacionamentos?
  • 94. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 93 A resposta de João Gilberto Noll é esclarecedora e, ao mesmo tempo, deixa uma abertura para o leitor procurar uma ex- plicação para a narrativa e o tempo: Solidão Continental é um dos meus livros que mais especulam sobre a vergonha. Às vezes de uma maneira curiosa: quando ele está a seguir o garoto por um caminho de terra esburacada, ele avalia que é melhor aquele seu sentimento de humilhação do que a sua atmosfe- ra rotineira. Ele tem vergonha de seu vazio e logo que se encanta por Frederico começa a imaginar muitas viagens e um mundo social mais povoado, para não matar um jovem de tédio e não fazê-lo escolher a deserção. Ele conseguirá esse prodígio? (NOLL, 2012, p. 34) 1.1.Corpo: ferida aberta em rictus dramático Nesse entreato havia a criação de uma ter- ceira pessoa que ele estava sabendo inventar para me conceder ainda mais cobiça carnal (NOLL, 2012, 17). João Gilberto Noll não empresta sua voz a sujeitos centra- dos. Pelo contrário, é o homem comum que o interessa. Como re- presentante da escrita do tempo presente, ele faz questão de trazer em cada obra: corpos solitários. Nas narrativas contemporâneas, o corpo atua como signo semiótico, é linguagem e está sujeito a inúmeras significações e transita entre várias temáticas, dentre as quais a dissolução. Disso- lução das identidades, das instituições, das utopias, das certezas. Observa-se nessa narrativa uma performance em que o corpo e a palavra integram uma multiplicidade de imagens e desafiam o lei- tor na busca da unidade do sentido. Convém pensar na ideia do eu versus o outro. Na proposta de dissolução dos laços afeti- vos construídos pelas relações sociais. Discussão tão presente em nossa cultura, embora a solidão frente à telinha do celular; ou à telona da televisão não preenche interiormente o indivíduo, pois até a amizade passou a ser algo compartilhado sob o signo do virtual e do efêmero. O encontro, a fusão de dois corpos além dos limites do realismo, é quase uma obsessão na prosa desse autor. Nesses momentos, além do figurativo, o erotismo avulta. Um homo
  • 95. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 94 eroticus, como acentua o sociólogo francês Michel Maffesoli, erotismo no sentido “erótico social” essencialmente por sua relação com o outro (EICHENBERG, 2014, p. 4). Fundir é a saída encontrada pelos protagonistas para dar mais energia ao corpo. Dois corpos em luta, em fuga na quase morte. Mas há também o sofrimento pela inquietação do cotidiano. Isso dá força e movimento à narrativa porque é pela fusão e pequenas mor- tes no gozo erótico, que esses corpos aproximam-se do sagrado, da perfeição, ganham intensidade e força positiva para encenar a dor do mundo. Diz o narrador: “Entre mim e aquele cenário havia como uma mucosa transparente doendo se eu tocasse” (NOLL, 2012, p. 77). Assim, a solidão nesse último romance de João Gilberto Noll é uma ferida aberta. Ela es- tá no centro da cena. Por ela, o corpo encena a palavra; o corpo é estrada que o outro percorre (sendo esse outro também o leitor); o corpo é entranha a ser penetrada, dela vaza a vida no limite, o apagamento de um si mesmo refletido no encontro de seus iguais, “náufragos desconhecidos”. Noll aposta no figurativo, mas não no realismo fantás- tico, nem somente no realismo de choque. Mas, no performático. O corpo é dor e salvação. Ele é atingido pelo inesperado, pelo insólito e pela banalidade da vida: “Às vezes o corpo não reclamava mais”, acentua o narrador; outras vezes, o cor- po vaga em uma ânsia cega de ultrapassar o vazio interior. O corpo quer dar alento a um si mesmo ante o insuportável e o inenarrável. Depois dos anos 1980, o corpo tornou-se, na arte literária, prática e território fundamental a novas experimentações da escrita enquanto inserção no universo da cultura. Não que não houvesse referência ao corpo na literatura brasileira desde a Carta de Caminha. Mas, nesse novo momento da arte, o corpo passa a ser visto como potência e poder de resistência. Em obras crepusculares de Drummond em duas antologias – O Corpo: Novos Poemas (Record, 1982) ou O Amor Natural (1992) – o poeta acentua a sexualidade e a presença do corpo em seus poemas como nos versos de “Amor – pois que é palavra essencial”: O corpo noutro corpo entrelaçado, Fundido, dissolvido, volta à origem Dos seres, que Platão viu contemplados: é um, perfeito em dois; são dois em um. O fato é que narrar as dores do corpo é, às vezes, se apro- ximar do que o poeta pode ter de mais profundo em seu inconsci- ente, zona de sombra e produção do imaginário. Isso quase sempre cava imagens do sagrado, do sublime; às vezes do grotesco, do ab- jeto – polos contraditórios que ora se tenta destituir da escrita, para firmar a arte do contemporâneo como uma construção difusa e confusa de um centro totalizador. Aposta-se no entrelugar, no “en-
  • 96. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 95 treato”. No entanto, isso não exclui a margem, pelo contrário, o sagrado reafirma o profano; o abjeto reafirma o objeto; a morte re- afirma a vida e a presença do corpo reafirma a condição transgres- sora do sujeito no mundo. Na construção estética de João Gilberto Noll, o corpo é pa- lavra-matéria em um mundo sensível em que a fricção é necessária para não sucumbir. Tudo isso corrobora para a construção de no- vas formas estéticas, teatralidades da imprecisão, que dissolve a ideia de interpretação, a ideia da representação do vivido; para os efeitos da percepção e da apresentação de visualidades no mundo narrado. O fato é que o real não mais satisfaz. E, conforme Georges Bataille anuncia em A Literatura e o Mal, a literatura tem de sur- preender, daí o insólito, o acaso e o inesperado serem aspectos que retornam sempre na palavra do autor gaúcho. Tal como o homem isolado é nada, a literatura foca no corpo como pulsão de vida e morte (algo capaz de ser afetado e afetar) para produzir intensida- de às narrativas. Mas é um encontro selvagem. Desse modo, o homem aqui vive uma vida brutal. Vive a penúria do corpo, a angústia da alma, um desgaste físico que exige uma necessidade de ruptura para se refazer seja na dissolução, no êxtase ao olhar o mar, na chuva, na expulsão dos excrementos ou no choro convulso. As obras de Noll exemplificam plenamente o momento des- corporificado em que o homem vive, quando tudo é fluido, sem sentido, indefinido e afeta a todos em qualquer condição social. Suas narrativas desfolham imagens que se esfacelam em segundos no estilo direto do escritor de dizer muito com poucas palavras. Uma narrativa que, ao mesmo tempo, que é leve, asfixia e como- ve.
  • 97. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 96 Tudo tem seu preço em meio a tantos avanços tecnocientífi- cos e biotecnológicos, o homem vê-se saturado de modernidade e paga com a corporeidade e o sacrifício do ser as consequências de sua utopia desenvolvimentista. Hoje o homem está cada vez mais destituído de pensar o futuro. No mundo consumista, os seres hu- manos despem-se de si mesmos e veem-se em contínuo abismo identitário, temporal e espacial, onde muitos não sabem aonde ir. O espaço e o tempo no romance aproximam o homem do presente. A solução para sobrevivência futura ainda é um enigma e esbarra em algumas indagações a serem respondidas: como dividir o pouco que se tem com tantos que nada têm? Como encontrar a unidade na multiplicidade? Como ser solidário com as vozes peri- féricas que vivem o mesmo sofrimento? Como fixar e afirmar a subjetividade no mundo de mudanças permanentes? Qual o limite da tênue linha que separa o ser, o ente, a pessoa, o indivíduo ou o cidadão? A luta pela liberdade importa em constante fragilidade e fuga do abismo e uma guerra invisível entre o eu e o mundo. “Ta- manha era a solidão de cada um que já queria vê-los enturmados até a medula. [...] Tamanha a solidão que nós três poderíamos pas- sar a viver juntos na mansão”. (NOLL, 2012, p. 54) 1.2.Entreato: escrita renovada e sempre-igual O que parecia um toque realista virou de súbito aos meus ouvidos demencial (NOLL, 2012, p. 91). João Gilberto Noll soma aspectos da tradição literária para renovar sua escrita no jogo ou trapaça em que insere a literatura e o artista mambembe na dificuldade de equilibrar a palavra com ar- te. Se o crítico e escritor Silviano Santiago (2002), em A Fúria do Corpo, diz que Noll escreve um “romance cristão” com uma “grafia porosa”, Luciano Trigo aborda a relação do autor “quase
  • 98. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 97 carnal com a literatura”. Sobre esses aspectos, o narrador errante de Solidão Continental justifica: Antes de me levantar e partir, comentei que ele então era mórmon. Desses comentários que fazemos para reverberar algum assunto não satisfatoriamente desenvolvido [...]. Há tantas coisas ruins no mundo, ele falou. E acrescentou: Não é possível que Deus não ve- ja isso tudo. Depois de ter vivido uma guerra, a gente fica sem saber, ele disse num rictus dramático (2012, p. 27). O narrador desse último romance é o mesmo alter ego do autor e escritor. O narrador empresta seu corpo-performer para apresentar a dissolução das imagens e a conversão da própria es- crita. Uma arte performática. A palavra reforça as características do contemporâneo. Uma palavra preciosa e imbuída de um ideal maior. Uma ação na reli- gião, que não explora o misticismo, o sagrado, mas se apropria de- les tão somente como estratégia ficcional, para expressar a ideia de homem depauperado, esquecido do supremo e destituído da graça divina. É importante relatar que a narração não é uma retórica bí- blica, mas – ressalte-se – que a palavra do narrador permite o en- contro do literário com o símbolo cristão, o encontro de chaves de leitura, que passam por esses conhecimentos seculares. Outras marcas contemporâneas podem ser observadas na obra desse romancista gaúcho além da própria desconstrução do processo. Sobre a dissolução na obra de João Gilberto Noll, cabe observar que esta característica aponta para um novo modelo de representação do real no ficcional, que quer abrir a realidade a qualquer custo e mais detalhadamente possível ao leitor. Entenda- se “dissolução” como “destruição criativa”. O caráter híbrido, inacabado, aberto e fluido da forma literá- ria tem correlação com o presente. Para Walter Benjamin é a visão da linguagem como história e a visão da história como linguagem que nos ajudam a compreender melhor estas relações. O historia- dor deve estabelecer uma correlação entre os diversos momentos da história e “a história literária é concebida por ele como ‘produto
  • 99. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 98 de uma construção’ ou ‘apropriação reconfigurativa’” (PLAZA, 1987, p. 3). Trata-se de uma tentativa de ordenação do mundo a partir da desarticulação das palavras, das imagens e até da estrutura. Os personagens são seres sem esperança, eles carregam múltiplas vo- zes, a ruína de um tempo destituído de força de mudança já que não há rumos a apontar. Invenção, audácia, risco e figuração estão nas narrativas que não mais seguem movimentos ou tendências. Mas se inscrevem em uma relação multifacetada sem um eixo co- mum. Em Édipo e o Anjo, Paulo Sérgio Rouanet comenta a teoria das imagens dialéticas de Walter Benjamin. Demonstra que a con- cepção da dialética do novo e do sempre-igual, justifica a presença de um tempo infernal, tempo de eterno retorno, em que o autor tem de dar conta da demanda, produzir sempre o novo em cada obra. Este teórico “acredita que a imagem dialética traduz a pre- sença do sempre-igual nas estruturas do capitalismo. Mas ao con- trário do capitalismo, julga que essas estruturas revelam, também, nesse sempre igual a latência do novo” (1990, p. 94). Na verdade, o próprio capitalismo corresponde ao duplo movimento de sua própria dialética: o novo se opõe ao velho e vi- ce-versa, pois, no sistema capitalista, o novo já é em si o velho, diz Benjamin em sua crítica cultural: “o novo é a transfiguração fan- tasmagórica do eterno retorno, movimento atribuído ao imanente, às estruturas da reprodução ampliada”. Esse pensamento tenta desprender o conteúdo utópico do arcaico – o sempre-igual como novo – pois “o Mesmo torna-se mais qualitativo se reproduzindo a níveis quantitativos cada vez mais elevados” (ROUANET, 1990, p. 95-97). Noll traz os mesmos elementos transmutados pela lingua- gem do tempo. Assim, através da repetição do sempre-igual, ex- pressa seu desconforto pelo mal-estar contemporâneo. Sua arte le-
  • 100. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 99 va uma mensagem de acolhida ao que se pode chamar de utopia através dos gritos de seres desordenados ante as cicatrizes do tem- po: “Naquela vertigem pós-ferimento, nome, endereço eram coisas sólidas, pesadas demais para que eu pudesse puxá-las do pensa- mento. Elas doeriam para sair” (NOLL, 2012, p. 88). Convém afirmar que esse processo de construção da ima- gem, na vasta obra de João Gilberto Noll, coloca em xeque todos os elementos da narrativa clássica: narrador, personagem, espaço, tempo, enredo e também inclui a linguagem. A prosa veloz do autor, sem pontuação ou parágrafo de suas primeiras histórias, evolui para a fragmentação, parágrafos longos, períodos coordenados, substantivação em excesso, ausência de flo- reios ou adjetivação, reticências em demasia, e, não importa que seja uma voz desordenada no romance ou um corpo insano porque “a vida tem fome de si própria e que nenhuma porção nem mesmo a esfinge da morte pode paralisar a fome da vida” (NOLL, 1981, p. 135). Faz parte do jogo da escrita desse autor a confusão. O nar- rador-performer resume: “Tudo me confundia, mas sei que essa confusão fazia parte do jogo...” (NOLL, 2008, p. 109). Drum- mond, em Claro Enigma (1951) traz o poema Dissolução. Nessa estrofe o eu-poético encerra o corpo e a palavra para expor a dor de pensar, quando retrata a imaginação: Imaginação, falsa demente, já te desprezo. E tu, palavra. No mundo, perene trânsito, calamo-nos. E sem alma, corpo, és suave. Na literatura contemporânea, isso tudo são ingredientes que, somados, servem multiplicidade na linguagem ao leitor. Alguns chegam a abandonar o livro. Outros chocam-se; outros se encan- tam pela escrita: “a poética do instante, a poética do não, a poética
  • 101. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 100 do excesso, a literatura da acumulação, a poética da dissolução” e começam a desafiar a leitura de imagens e nelas se encontram. Em Solidão Continental, o desconserto atinge o pensamento do protagonista que narra sempre cenários inusitados. Um sujeito em estado demencial, estado de sanidade, estado subterrâneo, situ- ação de “overdose medicamentosa”, estado trêmulo, amnésico, fraco, de uma existência ensimesmada ou um viver entre compa- nhias etéreas. A premência do dizer e do fazer de João Gilberto Noll, a partir do corpo envolto em ritual-performático, aponta para uma arte que é igualmente resistência e busca; formação e deformação. É, também, uma aptidão estética através do eterno retorno do mesmo, possível de ser lida pela polaridade e complementaridade entre coesão e dissolução; realidade e ficção ou corpo e palavra. Trata-se de literatura capaz de romper limites, em um “mundo sem viva vibração”, porque as palavras desgastadas en- contram-se esvaziadas de potência, para tirar o homem da intole- rância e da indiferença em que se encontra mergulhado. Em entre- vista, João Gilberto Noll reafirma nossa leitura, ao dizer que ele promove seu fazer literário, a partir da insuficiência ou do desvio: É sempre muito difícil escrever, cada vez mais difícil. Você vai ficando mais exigente com sua produção. Quando a coisa chega ao nível de ser vomitada – porque trabalho com o inconsciente – sai uma maçaroca, é difícil conviver com ela. [...]. A literatura vem do erro muitas vezes, da insuficiência. Não é um quadro de normatividades, se origina do desvio, da dissonância [grifo nosso] (NOLL, Jornal do Brasil, 2008, p. 2). Drummond não pensava diferente. A guerra fazia parte do fazer poético: Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor- de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação.
  • 102. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 101 Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos (2012) [grifos nossos]. Isso serve de alerta aos leitores da literatura da contempora- neidade. É preciso conceber a literatura como arte produtora de pensamento interior para apresentar reflexões sobre o tempo e o contexto atual, é preciso estar atento aos mínimos abalos, continu- ar participando e produzindo, até que algo se revele – ou não – como essência de um coletivo. Se no meio do caminho do poeta mineiro tinha uma pedra, os escritores do presente têm muitas guerras a vencer. Entre elas, a procura de substituir a falta por “algo que não há” e que ainda não sabemos para onde caminha (ANDRADE, 2012, p. 27). REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond. A falta que ama. Rio de Janeiro: Record, 2012. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. [Coleção Passagens]. Trad.: António Borges Coelho. Lisboa: Vega. 1998. EICHENBERG, Fernando. Michel Maffesoli: era de novos pa- drões [entrevista]. O Globo. Prosa & Verso, 2014, p. 4. NOLL, João Gilberto. A fúria do corpo. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1981. ______. Acenos e afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008. ______. Solidão Continental. Rio de Janeiro: Record, 2012. PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. PROENÇA FILHO, Domício. Pós-modernismo e literatura. São Paulo: Ática, 1988.
  • 103. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 102 ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o Anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Roc- co, 2002. TRIGO, Luciano. Noll fala de sua relação quase carnal com a lite- ratura. Blog do Galeno, 30/09/2008. Disponível em: <http://www.blogdogaleno.com.br>. Acesso em: 16/09/2014.
  • 104. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 103 A CORRESPONDÊNCIA E O DISCURSO DE SI: CONFISSÃO OU FICÇÃO? Luciana Paiva de Vilhena Leite14 RESUMO Este artigo pretende analisar algumas correspondências pessoais troca- das por autores da literatura e entre esses autores e locutores de sua esfera pessoal. Partimos do pressuposto de que a carta é um gênero que congrega uma série de estratégias discursivas entremeadas, tais como pedidos, decla- rações, narrações, ordenações, sem que isso interfira na sua macroestrutura discursiva constitutiva. Defendemos, ainda, que a carta pessoal apresenta um locutor que constitui um discurso de si ficcionalizado, ainda que se apre- sente em tom confessional. Esse pensamento costuma se afastar do que tra- dicionalmente se concebe para o discurso das cartas pessoais, já que essa materialidade discursiva costuma revelar-se em tom eminentemente confes- sional. Nesse sentido, o artigo busca justamente apontar o movimento pen- dular que o discurso das cartas pessoais parece ter, ora aproximando-se da confissão ora da ficção, em que, invariavelmente, o sujeito coloca-se discur- sivamente como objeto. Palavras-chave: Correspondência. Discurso. Confissão. Ficção. Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo. (Wittgenstein) 14 Doutora em língua portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é profes- sora adjunta de língua portuguesa da Escola de Letras da Universidade Federal do Esta- do do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].
  • 105. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 104 Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida, Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria... Eu tenho um medo Horrível A essas marés montantes do passado, Com suas quilhas afundadas, com Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas... Ai de mim, Ai de ti, ó velho mar profundo, Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios! (Mario Quintana) 1. Palavras iniciais Tradicionalmente, a correspondência costuma ser definida como um gênero em que o locutor apresenta-se, supostamente, em situação monolocutiva, uma vez que ele é o responsável pelo ‘agenciamento’ dos turnos, propondo o tema, construindo o enca- minhamento discursivo e revelando o posicionamento perante o discurso que produz. Contemporaneamente, entretanto, especial- mente no esteio do pensamento bakhtiniano em que bebem tam- bém autores como Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (estes últimos filiados à corrente semiolinguística do discurso), as cartas são concebidas como gêneros discursivos em que o sujeito- locutor ‘projeta’ um sujeito-interlocutor de modo a construir seu discurso baseando-se nessa relação de cunho majoritariamente idealizado, especialmente quando se trata de cartas pessoais. A ideia que gira em torno da ‘projeção dos sujeitos enunci- adores’ aparece em todo gênero de discurso, entretanto assumimos aqui que, na correspondência, como se conhece antecipadamente o interlocutor, a situação de projeção parece intensificar-se, o que, a princípio, poderia parecer contraditório. Se o interlocutor é conhe- cido, se eu sei quem ele é, por que projetá-lo, por que idealizá-lo? Uma das possíveis respostas a tais indagações pode ser dada quando pensamos que a carta, especialmente a pessoal, é uma ma-
  • 106. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 105 terialidade discursiva em que o locutor procura, mesmo que in- conscientemente, o tom confessional, o desabafo, a cumplicidade, uma vez que espera que somente o interlocutor saiba do que ele está falando, não havendo outros interlocutores com acesso ao seu conteúdo. Baseando-se nisso, o locutor das correspondências pare- ce mostrar um vacilo, uma oscilação que parece enquadrar seu discurso entre a ficção e a confissão, já que, muitas vezes, ele mis- tura situações e comportamentos que flutuam entre o que de fato ocorreu e o que ele gostaria que ocorresse. O que rege essa flutua- ção é justamente o grau de intimidade, de aproximação entre o lo- cutor e o interlocutor das cartas, pois, como se sabe, quanto maior a aproximação afetiva, maior o nível de expectativa no que se re- fere ao universo das relações interpessoais. Esse pensamento, na realidade, não é novo e é constitutivo da condição humana, pois, a partir do momento em que somos do- tados de linguagem – e não cabe aqui perscrutar os infindáveis caminhos teóricos que levam em conta o seu domínio e a sua aqui- sição – e produzimos discursos, estamos narrando, descrevendo, informando, pedindo, ordenando a partir de um ponto de vista, isto é, a partir do que somos ou do que pensamos ser, levando em con- ta a nossa experiência de “seres no mundo”. O objetivo deste artigo é, portanto, ajustar o olhar para a correspondência pessoal de autores da literatura, que se corres- pondem entre si, passando também a cartas de autores que se diri- gem a amigo(s), irmão(s), cônjuge(s), para apontar que esses sujei- tos-autores se reinventam e constroem um discurso de si que se mostra ora confessional, ora ficcionalizado. Nesse sentido, interes- sa-nos, ainda, trazer à tona a ideia de que esses autores se afastam, muitas vezes, do ethos15 que constroem a partir de suas obras. 15 Optamos por usar, aqui, a noção de ethos, como mostra Charaudeau & Maingueneau (2004, p. 220) no sentido de imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para
  • 107. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 106 2. A correspondência e a ficção de si A todo momento que operamos trocas verbais, estamos construindo “ficções” de nós mesmos. É importante ressaltar que não estamos tratando aqui da ficção de dimensão literária ou artís- tica; falamos de uma “maneira” de narrar o que nos ocorre que perpassa necessariamente pelas nossas experiências e nos inaugura como autores de nós mesmos e a respeito de nós mesmos. Tudo se passa como se nos tornássemos um alter ego do nosso próprio eu. A respeito disso, o campo da psicanálise muito vem contribuindo desde os estudos de Freud sobre o inconsciente e a linguagem e a associação livre até o mais recente pensamento de Lacan, que rein- terpreta o esquema do signo saussuriano. A respeito das missivas, Ribas (2008, p. 31) nos diz que “não é por serem cartas que nos dizem ‘a verdade’, mas sim ‘ver- dades’”. Nesse sentido, ainda que autores consagrados da literatu- ra saiam do campo da ficção literária, eles não escapam de cons- truir uma espécie de “ficção de si”, especialmente quando se trata de cartas pessoais, objetos deste estudo. Ainda de acordo com Ri- bas (op. cit., p. 31), “o afeto é a porosidade, a abertura que permi- tiria a alteridade, a presença do outro no discurso do mesmo”. Sendo assim, as cartas pessoais representam um terreno especial- mente fecundo, quando pretendemos compreender que as relações discursivas partem de um campo que extrapola o autobiográfico e recaem no espaço da representação, da recriação e, como estamos adotando aqui, da ficção de si. De maneira mais geral, quando se escreve uma carta, cos- tuma-se entremear infindáveis estratégias discursivas, conforme os diferentes propósitos enunciativos. Desse modo, o locutor do dis- curso das missivas mescla estratégias segundo os objetivos de sua exercer influência sobre seu alocutário. Trata-se, pois, de imagem de si que o orador pro- duz em seu discurso e não de sua pessoa real.
  • 108. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 107 enunciação, conforme pretenda argumentar, pedir, ordenar, narrar, descrever. A correspondência é, pois, um gênero que congrega di- versos modos de organização do discurso16 , pois sua estrutura ma- crotextual de certa forma rígida – em que aparecem o emissor e o receptor17 , o assunto, o corpo textual e a assinatura do remetente – aceita diversos “modos de se dizer o que se diz”, inclusive com a possibilidade de misturá-los. Nesse sentido, a correspondência íntima, pessoal, familiar parece apresentar um território mais propício a essa mescla de es- tratégias e de modos de organização discursiva, já que o locutor está, muitas vezes, diante de um “fluxo de consciência” regido, obviamente, pelo afeto que envolve a sua relação interpessoal com o destinatário “real” da carta. De acordo com Gomes (2004, p. 21), A correspondência privada é, com frequência, um espaço que acumula temas e informações, sem ordenação, sem finalização, sem hierarquização. Um espaço que estabelece uma narrativa plena de imagens e movimentos – exteriores e interiores – dinâmica e incon- clusa como cenas de filme ou de uma peça de teatro. É justamente ao recuperar esse pensamento que percebe- mos, no discurso das cartas pessoais, um campo que pode coadu- nar ficção, narrativa de si, memória afetiva e episódica, confissões, entre outros modos de organização discursiva cuja perscrutação é, no mínimo, curiosa. É como se essa materialidade discursiva fosse – e talvez seja – o único “lugar” em que o pensar e o sentir se ajus- tem e se misturem sem problema algum, levando o locutor a um processo de desvelamento do eu, que opera do consciente ao in- consciente. 16 Usamos, neste artigo, a definição e Charaudeau (2008) para modos de organização do discurso, cuja noção liga-se ao conjunto de procedimentos de colocação em cena do ato de comunicação, que correspondem a algumas finalidades (descrever, narrar, argumen- tar etc.). 17 Utilizamos os termos “emissor” e “receptor” não nos moldes de Jakobson, mas para tentar dar conta da estrutura formal e espacial de diagramação da carta.
  • 109. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 108 3. Aporte teórico-metodológico Longo (2011) pensa a linguagem como um universo des- contínuo em relação à realidade, não podendo ser uma entidade geradora de significados definitivos. Segundo esse pensamento, o sujeito que “produz” a linguagem é um efeito dela própria, uma reverberação, um precipitado na ordem do discurso, do qual não é mestre. Nesse sentido, segundo Lacan (apud LONGO, 2011, p. 09), Enquanto é linguagem humana, nunca há univocidade do símbolo (...) a linguagem não é feita para designar coisas; há um logro estrutu- ral da linguagem humana, neste logro está fundada a verificação de toda a verdade. O logro estrutural da linguagem humana consistiria em sua “estrutura de rombo”, análoga à do sujeito que a criou. Desse mo- do, quando pensamos em línguas naturais, pensamos sempre em três elementos: o “eu” (o sujeito que fala), o “tu” (o sujeito a quem se dirige a fala, portanto o sujeito que ouve) e o “ele” (o sujeito ou o assunto de que se fala). Sobre esse aspecto, Benveniste (1995) muito tem a nos dizer no capítulo intitulado “O homem na língua: estrutura das relações de pessoa no verbo”, em que afirma que o verbo é, com o pronome, a única espécie de palavra submetida à categoria da pessoa. Mais adiante, no capítulo intitulado “Da sub- jetividade na linguagem”, Benveniste (op. cit.) ressalta que a lin- guagem está na natureza do homem, que não a fabricou. Segundo o autor, não se deve crer na imaginação ingênua de um período original, em que um homem completo descobriria um semelhante igualmente completo e, entre eles, pouco a pouco, se elaboraria a linguagem. De acordo com Benveniste (1995, p. 285), essa ideia é, pois, pura ficção, já que Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um ho- mem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição de homem.
  • 110. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 109 Sendo assim, o homem vai se constituindo como sujeito e vai constituindo o seu mundo na linguagem e a partir da lingua- gem. De acordo com essa noção trazida por Benveniste, o homem busca explicar, criar ou “reinventar” o mundo a partir das catego- rias da língua. Dessa forma, podemos rediscutir e até relativizar a concepção segundo a qual a linguagem serviria (apenas) para pro- pósitos comunicativos. Segundo o que estamos defendendo aqui, ela serve a muitos outros propósitos anteriores a esse, que giram muitas vezes em torno da própria identidade do sujeito no mundo. Corroborando esses pressupostos, Noam Chomsky (2014, p. 27), em entrevista a James McGilvray, cujos textos estão reunidos no livro recém-lançado “A ciência da linguagem”, nos diz que a linguagem não tem “a função externa” da comunicação, mas, an- tes, oferece-nos a “função interna” do pensamento. Essa concep- ção, conhecida como “mentalista” revolucionou os estudos da lin- guagem pós década de 70, quando o estruturalismo ainda era vi- gente como corrente de pensamento. Dessa forma, de acordo com Chomsky (op. cit., p. 27), A maior parte da linguagem em uso é de natureza interna; o que é externo é uma pequena fração dela “e o que se usa para a comunica- ção é, em um sentido muito importante, uma fração ainda menor de- la”. Como as funções da linguagem são usualmente definidas de mo- do informal, não faz muito sentido dizer que a função da linguagem é a comunicação. Assim sendo, de alguma maneira, o linguista defende a ideia de que o homem usa a linguagem muito mais para o conhe- cimento de si do que para a “real troca efetiva” com outro homem, uma vez que o próprio aspecto interacional se dá de modo a forne- cer meios para conhecimento como sujeito. Charaudeau (2008), usando ponto de partida diferente, mas não antagônico, já que está concentrado em “fundar” uma propos- ta semiolinguística do discurso e, de alguma maneira, retomando as proposições de Benveniste (op. cit.), propõe a linguagem como
  • 111. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 110 ideia de dispositivo enunciativo de que fazem parte ao menos 4 su- jeitos: o Eu-comunicante; o Eu-enunciador; o Tu-comunicante e o Tu-destinatário. Essa concepção, longe de considerar a linguagem e o discurso como meros instrumentos para a comunicação entre os interlocutores, lança mão do que o autor entende por “circuito interno” e que a nós cabe, aqui, chamar de “circuito das proje- ções”. Assim, temos um sujeito social, real, empírico – o Eu-co- municante (circuito externo), que projeta seu próprio “eu discursi- vo” – o Eu-enunciador, de acordo com a antecipação de um Tu- comunicante (circuito externo), que, por sua vez, representa, no campo interno do discurso, o Tu-destinatário. Em outras palavras, tudo o que se passa na linguagem, na enunciação e no discurso na- da mais é do que uma “projeção” daquele sujeito-locutor. Ainda de acordo com Charaudeau (op. cit.), o ato de linguagem deve ser visto como um encontro dialético, encontro esse que fundamenta a atividade metalinguística de elucidação dos sujeitos da linguagem entre os processos de criação e de interpretação. Ressalte-se, por- tanto, que por “interpretação” entendemos a decodificação de um discurso e, por isso, instaura-se como um processo que o autor chama de “circuito interno”, ainda que influenciada pelo chamado circuito externo. Não poderíamos deixar de mencionar a importância dos es- tudos de Bakhtin (2006), que inauguraram uma nova concepção ao campo dos estudos da linguagem. Ainda que seu pensamento te- nha inicialmente se desenvolvido no final da década de 20 e, por- tanto, anterior a Benveniste, Chomsky e Charaudeau – já citados neste capítulo, Bakhtin instaura a concepção que relaciona lingua- gem à dimensão ideológica e, por mais que essa noção pareça afastar-se do que estamos tratando aqui, entendemos que se trata de uma reinterpretação da concepção saussuriana de signo. Em ou- tros termos, para Bakhtin (2006, p. 32), “ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico e dos signos de consumo, existe um universo particular, o universo dos signos”. E acrescenta:
  • 112. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 111 Um signo não existe apenas como parte de uma realidade, ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica. (BAKHTIN, 2006, p. 32) Dessa forma, podemos conceber que, embora a apreensão do signo seja constituída no “real”, no social e, segundo o estudio- so, no ideológico, o sujeito se apropria dele, recriando-o conforme sua concepção de sentido. Em outros termos, o signo passa a ser “objeto” de valor simbólico e constitutivo de crenças por parte do sujeito-locutor, de modo que a própria “cadeia ideológica” se es- tenda de consciência individual a consciência individual, ligando uma à outra. Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2003) leva em conta aspectos da experiência, quando fala da criação de persona- gens. Como aqui nos cabe entender a correspondência como um espaço para a ficcionalização do sujeito discursivo, torna-se perti- nente trazer à tona os dizeres do autor, que passamos a citar: (...) a forma não é só espacial e temporal, mas também do sentido. Até agora estudamos as condições em que o espaço e o tempo do homem e da sua vida se tornam esteticamente significativos; mas também ganha significação estética a diretriz semântica da persona- gem na existência, a posição interior que ela ocupa no acontecimento único e singular da existência. (BAKHTIN, 2003, p. 127) Para fechar este breve escorço teórico, retomemos, pois, a relação entre linguagem e psicanálise, brevemente apontada no início deste capítulo, e que assume importância singular para este estudo. De fato, a linguagem e a psicanálise são domínios tão con- tíguos que não é tarefa fácil estabelecer um limite entre os dois campos. Importa-nos ressaltar que entre o sujeito que fala e o seu ouvinte existe um anteparo, uma proteção, uma espécie de mura- lha que se ergue, mesmo quando há silêncio. Essa é a muralha da linguagem, se quisermos insistir na alegoria.
  • 113. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 112 A contribuição da psicanálise aos estudos da linguagem leva em conta os fenômenos simbólicos que, ao serem instaurados, a partir da linguagem, são fundamentais à vida do espírito e estão relacionados ao inconsciente – importantíssima revelação de Freud. De acordo com o psicanalista, No inconsciente, tudo é possível, não existe contradição, é tauto- lógico, não há diferença entre verdadeiro e falso; o inconsciente con- serva [então] o termo que exclui, é autorreferencial e irrompe nas formações (...) que aparecem no consciente (atos falhos, chistes, so- nhos e sintomas). (FREUD, 1986, p. 25) Como podemos notar, quando se trata do universo simbóli- co, da criação, o inconsciente pode se fazer presente como aparato justamente para o fluxo criativo. Nesse sentido, entendemos a ação de narrar, de narrar-se ou de construir uma ficção em torno de si um processo eminentemente criativo e constitutivo da atividade humana de produção de discursos. Cabe, então, para encerrarmos o capítulo, entender a contri- buição de Lacan aos estudos da linguagem. Ainda que Freud tenha trazido o importantíssimo conceito de “inconsciente”, foi Lacan quem ressignificou a concepção freudiana desse domínio, aliando- a a uma reinterpretação também do signo saussuriano. Afirmando que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Lacan (1986, p. 30) dá um passo a mais em direção à perscrutação em torno do signo linguístico, especialmente no que se refere à noção de “significante”. Reinterpretando a noção saussuriana de signo linguístico, Lacan desconstrói a elipse em que figuram o significante na parte inferior e o significado na parte superior. Assim, para Lacan, há uma quebra na barreira da elipse – obviamente figurativa – em que o significante passa a ocupar a posição superior. Segundo o autor, o significante é preponderante na fala do locutor que, sem conse- guir entender o que fala, aliena-se do sentido daquilo que diz. Por isso, ele torna mais grossa a barra que separa o significante e o
  • 114. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 113 significado, de modo a torná-la mais resistente. Em suma, para Lacan, o significado só pode ser atingido por meio da ação impre- visível das formações do inconsciente. Em última instância, para o teórico, nós desperdiçamos palavras simplesmente porque essa é a nossa condição de falantes. Podemos entender, a partir do exposto, que é, necessaria- mente, quando se trata do universo dos sentidos, do sentir e dos afetos, que as palavras se tornam insuficientes para dar conta da complexidade do humano. Nesses termos, quando ajustamos o olhar para a correspondência pessoal, notamos, invariavelmente, uma vocação volitiva por parte do autor por dizer o “indizível”, o “inconfessável” ou, ainda, uma vocação para o “narrar-se”. E, ao fazê-lo, ele se enxerga ao mesmo tempo como sujeito e como ob- jeto do discurso em um continuum, ancorado pelas relações afeti- vas privadas. É o que tentaremos mostrar na seção a seguir. 4. A autoria de si: as cartas e seus sujeitos-autores Para iniciar a análise dos excertos das correspondências se- lecionadas, é necessário ressaltar que optamos por trazer à tona as cartas trocadas entre autores da literatura brasileira, como Fernan- do Sabino e Clarice Lispector, mas também as trocadas entre esta e suas irmãs, na esfera domiciliar, porque entendemos que os su- jeitos se colocam “afetivos” ao serem próximos, amigos e, muitas vezes, confidentes. Há, ainda, no pequeno corpus selecionado, fragmentos de correspondências trocadas entre Machado de Assis e seus colegas acadêmicos. Optamos, também, por trazer excertos de missivas trocadas entre Fernando Pessoa e sua namorada Ofélia Queiroz. Como se pode notar, a amostra é um tanto heterogênea, mas se homogeneíza porque privilegiamos três aspectos funda- mentais ao compô-la: 1) o fato de tratar-se de autores conhecidos e consagrados, portanto, reconhecidos por um público-leitor conso- lidado; 2) o fato de os sujeitos locutor e interlocutor serem íntimos
  • 115. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 114 em alguma medida, já que se trata de cartas pessoais e 3) o fato de os fragmentos terem sido extraídos de correspondências reunidas e publicadas em livro ou publicação, o que já leva em conta o seu valor de documento memorialístico, justamente por sua disponibi- lização para domínio público. Levando em consideração tais fatores – e considerando que um recorte é sempre a possibilidade de se enxergar fendas e frestas de natureza diversa –, passemos à análise dos trechos seleciona- dos: (01) (...) vou-me embora e não volto mais, estou triste e com pena de vocês aí tão longe, viajar é muito ruim. Ainda é tempo de não ir, não tomar o avião, dizer que esqueci o principal, e o principal é ficar, ir para casa, ler um livro, conversar, dormir e esquecer. [...] E o meu, qualquer notícia que você receber de mim por intermédio dos jornais já tem um título inevitável e é justamente, em letras grandes: ‘O INEVITÁVEL ACONTECEU’. Assim somos nós no Rio de Janeiro, gripados todos, complicados e sentimentais, aguardando o sinal dos tem- pos. Correspondência de Fernando Sabino a Clarice Lispector. 06 de maio de 1946. (SABINO, 2003, p. 13) Podemos observar, no fragmento, um sujeito-locutor vaci- lante, tristonho, em tom melancólico, o que resvala no tom confes- sional de seu estado de alma. Resvala, porém também se recria, se reinventa quando ele narra a respeito de si em uma temporalidade futura, dando conta do acontecimento “inevitável”. Observamos, pois, que o locutor se coloca fatidicamente na condição de objeto a partir do qual “se enxerga” e “narra a respeito de si”, não havendo, necessariamente, fidedignidade com a “vida vivida” pelo sujeito “real” e empírico Fernando, especialmente na 2ª parte do excerto: “assim somos nós no Rio de Janeiro, gripados todos, complicados e sentimentais, aguardando o sinal dos tempos (...)”. (02) Por que é que todo mundo quer sair do Brasil? E você é espírita é, Fernando? Então como é que você me pergunta o que eu faço às três horas da tarde? (...) Ou já falamos sobre isso? Às três horas da tarde
  • 116. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 115 sou a mulher mais exigente do mundo (...) Se o telefone tocar dou um pulo e se me “convidam” eu pareço criança ou cachorrinho, saio cor- rendo e enquanto corro, digo: estou perdendo minha tarde. Correspondência de Clarice Lispector a Fernando Sabino. 19 de junho de 1946. (SABINO, 2003, p. 20) Esse trecho revela um locutor que se instaura em tom bem humorado – “E você é espírita, Fernando?” –, mas também irôni- co, quando diz “às três da tarde sou a mulher mais exigente do mundo”. Longe de querer revelar-se como “realmente é" (e have- ria essa possibilidade?), o discurso epistolar de Clarice parece nos convidar a desnudar sua(s) persona(s) entediada(s) com o cotidia- no, mas, ao mesmo tempo, enredada(s) por ele. (03) Sem carta para responder, escrevo para dizer que estou bem, sem novidades. Fui de novo ao médico; ele disse que estou bem e que a criança deve nascer lá para meados de setembro. De modo que vocês não se impacientem com a demora [...] E Márcia? Como está essa querida? Estou com a impressão de que vou ter menina também (...) Correspondência de Clarice Lispector a sua irmã, Berna.18 19 de junho de 1946. (LISPECTOR, 2007, p. 17) O tom que aparece no excerto (03) é o de um sujeito de su- posta “neutralidade” em relação aos acontecimentos em torno de si, como se a sua própria vida fosse desinteressante ou desimpor- tante. No trecho, Clarice deixa claro que está grávida, mas parece não se envolver emocionalmente com esse fato. Ao contrário, pa- rece distanciar-se, criando um espaço de deslocamento do próprio “eu”, a respeito de quem passa a narrar. Observamos, entretanto, que o locutor muda o tom quando lança mão de curiosidade acerca de um interlocutor que não é ele próprio: “E Márcia? Como está essa querida?”, sugerindo maior envolvimento quando não se trata da sua própria vida. 18 Nesta carta, Clarice usa o vocativo “Berna”, mas, como se sabe, suas duas irmãs – cm quem trocava correspondências – chamavam-se Tania Kaufmann e Elisa Lispector.
  • 117. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 116 Em outra carta, dirigida à mesma “Berna” (excerto 04), Cla- rice já se constitui como um sujeito mais instável e supostamente fragilizado, como se pode verificar em “(...) mas eu sou feita de tão pouca coisa e meu equilíbrio é tão frágil que eu preciso de um excesso de segurança para me sentir mais ou menos segura”. Na verdade, o tom do discurso pode parecer confessional, mas pode também sugerir uma ficcionalização que o locutor constrói de si mesmo, como uma espécie de tentativa de crença no que estava, de fato, afirmando. Veja-se o trecho: (04) (...) mas eu sou feita de tão pouca coisa e meu equilíbrio é tão frágil que eu preciso de um excesso de segurança para me sentir mais ou menos segura. Mas eu te digo; eu nasci para não me submeter (...) Talvez minha forma de amor seja nunca amar senão as pessoas de quem eu nada queira esperar e ser amada (...) Correspondência de Clarice Lispector a sua irmã, Berna. 8 de julho de 1944. (LISPECTOR, 2007, p. 15) Como podemos notar, o sujeito discursivo parece querer dar voz a um (possível) inconsciente que vem à tona no momento de enunciação da escritura da carta, já que o seu tom parece confessi- onal, como se estivesse, de fato, em uma sessão de análise, por exemplo. (05) Mal tenho tempo de agradecer-te muito do coração o belo artigo que escreveste (...), a propósito das Americanas. Está como tudo o que é teu: muita reflexão e forma esplêndida (...) Correspondência de Machado de Assis a Salvador de Mendonça. 13 de novembro de 1876. (RIBAS, 2008, p. 57) (06) (...) com as minhas saudações, [despeço-me] e mande-me em tro- ca alguns versos e se houve e, se não, a sua boa pessoa epistolar, que é a própria pessoa do autor. Adeus ... Correspondência de Machado de Assis a Magalhães de Azeredo. 11 de janeiro de 1880. (RIBAS, 2008, p. 57) Os excertos (05) e (06) trazem o sujeito escrevente Macha- do de Assis em correspondência a seus colegas acadêmicos. Como
  • 118. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 117 se pode observar, em (05), o locutor deliberadamente deixa claro que ele e seu alocutário participam do mesmo universo sociocultu- ral: o da Academia, fazendo questão de enaltecer as qualidades li- terárias do seu destinatário (o que revela certa vaidade envolvendo as suas relações afetivas). Esse procedimento também aparece no fragmento (06), em que, ardilosamente, constrói-se a ideia em tor- no da qual a pessoa do escrevente e a pessoa do autor coincidem: “a sua boa pessoa epistolar, que é a própria pessoa do autor”. Fica patente, então, uma ideia de construção de si como pertencente não só à Academia, mas também a tudo o que se circunscreve em torno dela. (07) por minha parte, passei todo este tempo sem lhe escrever mais, porque estive bastante doente (...) [...] [o médico] acabou por impor-me absoluto repouso intelectual e gran- de exercício físico. Eu sujeitei-me sem resistência, porque compreen- di afinal quanto a saúde é necessária para realizar o meu plano de vi- da. (Grifos nossos) Correspondência de Magalhães de Azeredo a Machado de Assis. 02 de março de 1895. (RIBAS, 2008, p. 58) Nesse excerto de Magalhães de Azeredo a Machado de As- sis, percebemos o quão o padecer físico é digno de descrição, por vezes até pormenorizada, instaurando uma espécie de “pacto” en- tre os locutores enfermos e, em alguma medida, sanando-lhes a ca- rência afetiva. Além disso, no trecho final selecionado, o locutor declara propositadamente que tem um “plano de vida”, que é o de escrever, o de ser escritor, ainda que isso seja depreendido apenas implicitamente. Nesse sentido, esse é um fragmento que atesta cla- ramente a ideia de ficção de si, na medida em que o locutor coloca em palavras uma narrativa (um plano ou a intenção de construí- lo), que o posiciona como “personagem” de sua própria vida, vida esta que pode (e deve) ser construída por ele mesmo.
  • 119. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 118 Os excertos (08) e (09) trazem fragmentos de correspondên- cia trocada entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, compilados recentemente no livro organizado por Richard Zenith e intitulado “Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz: correspondência amorosa completa (1919-1935)”. (08) Meu bebezinho lindo: não imaginas a graça que te achei hoje à janela da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mos- traste prazer em me ver. Tenho estado muito triste e, além disso, mui- to cansado – triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas têm interposto no nosso caminho (...). (Correspondência de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz. 27 de abril de 1920. (ZENITH, 2013, p. 99) (09) Meu Nininho adorado: venho escrever ao meu amor para ralhar muito com ele, pois que não recebi hoje a cartinha dele. Porque não escreveste amorzinho? Não esqueças o teu bebezinho não meu filhi- nho? [...] Eu gostei tanto de te ver! Foste hoje mais lindo do que nunca, porque disseste adeus ao teu bebezinho quando te foste embora. Amanhã espero-te ao meio-dia à janela para ver o meu lindo amorzi- nho, e dá sempre a volta ao Largo como costumas sim meu Nininho? Correspondência de Ofélia Queiroz a Fernando Pessoa. 30 de abril de 1920. (ZENITH, 2013, p. 103) Nesses fragmentos, fica patente a ideia de construção de um discurso de si que gira em torno dos afetos mais pueris, embora se trate de correspondência amorosa, pois é fato que a condição de ser amado muitas vezes pode se ligar a uma simbologia do mundo infantil, o que notadamente acontece no discurso e no trato cotidi- ano de muitos casais. A infantilização no tratamento usado entre Ofélia e Fernando instaura, então, um discurso em que o amor re- cupera sua condição romântica, “pura”, transcendental e idealiza- da, embora os dois possam (e devam) ter tido experiência de amor físico. Esse procedimento revela, de certa forma, a fragilidade emocional dos sujeitos envolvidos, distanciando-se, por exemplo,
  • 120. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 119 do ethos construído na obra poética de Fernando Pessoa. Trata-se, pois, de um universo discursivo-referencial que só vem à tona porque os locutores se constituem – também ficcionalmente – co- mo sujeitos-amantes no sentido de sujeitos que amam. 5. Considerações finais O presente artigo pretendeu analisar algumas correspondên- cias pessoais trocadas por autores da literatura entre si ou entre es- ses autores e locutores de sua esfera afetiva particular. Partimos do pressuposto de que a correspondência é um gênero capaz de coa- dunar uma série de estratégias discursivas entremeadas quando o locutor busca pedir, declarar, narrar, ordenar, entre outras inten- ções, uma vez que esse gênero pode incorporar – por vezes simul- taneamente – vários modos de organização do discurso, sem que isso interfira na sua macroestrutura discursiva constitutiva. Além disso, defendemos a ideia de que o locutor do discurso epistolar na espera pessoal – e isso independe do fato de ser ele um escritor ou artista renomado – constrói um discurso de si, muitas vezes, ficci- onalizado, ainda que, outras vezes, oscile para o tom intimista. Es- se pensamento, em alguma medida, se afastaria do que se concebe como discurso de missivas, que, tradicionalmente, costumam ser vistas como uma textualidade eminentemente confessional. Foi justamente tentando observar esse movimento pendular que o pre- sente trabalho se constituiu. Os fragmentos selecionados para análise foram todos retira- dos de compilações reunidas em livros já publicados no Brasil, constituindo, assim, uma espécie de “memória epistolar” e possi- bilitando uma infinidade de análises em um corpus tão rico e vas- to, cuja materialidade discursiva se prestaria, então, para diversos fins.
  • 121. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 120 O que observamos, na análise empreendida, corroborou, na maioria dos casos, a hipótese inicial de que a carta pessoal é a ma- terialidade discursiva em que o locutor constrói uma imagem de si, muitas vezes, baseado, no “fluxo de consciência”, motivado jus- tamente pela aproximação afetiva e pela identificação que parece apresentar com seu alocutário. Nesse sentido, o estudo buscou re- cuperar, de alguma maneira, as concepções lacanianas de que o sentido, nas trocas verbais, frequentemente é obtuso e pautado, também, em um significado (nos termos saussurianos) difuso. Sendo assim, focando nossa análise nas contribuições que a psica- nálise vem trazendo aos estudos da linguagem, buscamos aproxi- mar o jogo discursivo das cartas pessoais, entendendo-as como o “lugar” em que o sujeito, ao falar de si, o faz ficticiamente, crian- do uma narrativa em que ele, como sujeito, invariavelmente se en- xerga ou se coloca deliberadamente como objeto. É justamente es- sa alternância que defendemos aqui ser constitutiva do discurso da correspondência privada. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Huscitec, 2006. ______. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. ______. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989. CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours – Eléments de sé- mio-linguistique (théorie et pratique). Paris: Hachette-Université, 1983. ______. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
  • 122. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 121 ______; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. CHOMSKY, Noam. A ciência da linguagem: conversas com Ja- mes McGilvray. Trad.: Gabriel de Ávila Othero, Luisandro Men- des Souza e Sérgio de Moura Menuzzi. São Paulo: Unesp, 2014. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ___. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1986. GOMES, Ângela de Castro. (Org.). Escrita de si, escrita da histó- ria. Rio de Janeiro: FGV, 2004. LACAN, Jacques. Seminários. Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. LISPECTOR, Clarice. Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. LONGO, Leila. Linguagem e psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso lite- rário. São Paulo: Martins Fontes, 1996. RIBAS, Maria Cristina Cardoso. Onze anos de correspondência: os machados de Assis. Rio de Janeiro: PUC-Rio; 7letras, 2008. SABINO, Fernando. Cartas perto do coração: dois jovens escrito- res unidos ante o mistério da criação. 5. ed. Rio de Janeiro: Re- cord, 2003 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1991. ZENITH, Richard. (Org.). Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz: correspondência amorosa completa – 1919-1935. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
  • 123. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 122 NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA A VERSATILIDADE DA FÓRMULA DISCURSIVA NA LITERATURA INFANTIL19 Patricia Ferreira Neves Ribeiro20 RESUMO Este artigo visa investigar a presença de fórmulas discursivas alteradas no domínio da literatura infantil. Neste estudo, problematiza-se o emprego de fórmulas (re)enunciadas para refletir sobre questões sociais que essas fórmulas ajudam a (des)construir diante do leitor aprendiz. Interessa obser- var se as fórmulas alteradas funcionam ou como um regime próprio de cita- ção de enunciados (des)cristalizados ou como, efetivamente, mecanismos es- tratégicos para a construção de efeitos de sentido que “falam” discursiva- mente sobre a maneira como crenças de uma comunidade são postas em narrativa e sustentam certos imaginários sociodiscursivos – conforme noção tomada da Semiolinguística. O corpus selecionado é examinado em nível qualitativo, procedendo-se à descrição e à avaliação das escolhas lexicais de (re)construção das fórmulas discursivas. Nessa avaliação, considera-se a proposição segundo a qual o ato linguageiro, em sua dupla face explícita e implícita, resulta de uma articulação estrutural – da Simbolização referenci- al – e serial – da Significação atribuída pelas circunstâncias do discurso. Palavras-chave: Fórmulas versáteis. Imaginários sociodiscursivos. Efeitos de sentido. Literatura infantojuvenil. 19 Este artigo é uma versão modificada de outro (publicado na revista Desenredo, vol. 9, 2013), escrito a propósito do livro No Caminho de Alvinho Tinha uma Pedra, de Ruth Ro- cha e Ivan Zigg. 20 Doutora em letras vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professo- ra de língua portuguesa na Universidade Federal Fluminense. E-mail: patleitu- [email protected].
  • 124. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 123 1. O início do caminho A circulação de expressões (des)cristalizadas na literatura infantil tem se revelado campo fértil para a evocação de um olhar sobre jogos de poder e modos de leitura que se inscrevem nesse domínio literário endereçado não apenas, mas também, à criança. O exame de fórmulas discursivas recriadas possibilita não só a re- flexão sobre imaginários sociodiscursivos (CHARAUDEAU, 2006) que lhes são correspondentes, como também sobre diferen- tes construções de leitura que perpassam o universo da literatura infantil. Os imaginários sociodiscursivos, sendo um testemunho dos julgamentos que a coletividade faz de suas atividades sociais (CHARAUDEAU, 2006), podem variar ou não à medida que uma fórmula é recriada. E a qualidade dessa variação tem relação direta com os modos de leitura que disseminam “polos ideológicos” so- bre a formação do leitor. Reconhece-se que expressões (des)cristalizadas, ou ainda, fórmulas discursivas e suas alterações são meios frequentes de di- fusão de julgamentos coletivos estereotipados e, por vezes, simul- taneamente deslocados. Assim, é possível problematizar o uso de fórmulas discursivas em livros ilustrados, cujo público é (também) a criança. A escolha de livros ilustrados para a apreensão de fórmulas discursivas e de suas derivações justifica-se, primordialmente, pe- lo fato de ser possível mostrar como o leitor aprendiz pode ser in- serido nessa problematização, isto é, na “densidade história que se presentifica” (MOTTA & SALGADO, 2011, p. 5) na circulação das fórmulas discursivas. O emprego constitutivo, e não ornamental, de sequências (des)cristalizadas, no âmbito da literatura infantil, faz delas lugar privilegiado de produção de sentido, uma vez que possibilita a ins-
  • 125. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 124 crição de crenças, valores e princípios no texto. Com efeito, pode- se pensar como o leitor é afetado por esse dizer alheio sintético que assevera – mediante jogos de poder calcados naquelas cren- ças, valores e princípios – ora vozes mais consensuais, ora mais questionadoras diante de uma comunidade. 2. Para um caminho seguro No sentido dado pela análise do discurso, Charaudeau e Ma- ingueneau mostram que o estereótipo é, “com os topoi ou lugares- -comuns, uma das formas adotadas pela doxa, ou conjunto de crenças e opiniões partilhadas que fundamentam a comunicação e autorizam a interação verbal” (2004, p. 215). O estereótipo é o ali- cerce sobre o qual os interlocutores se apoiam para estabelecer comunicação, ação entre si. Isso se explica porque a palavra alheia, inscrita nos enunciados, é sempre retomada e respondida na interação verbal. Todo enunciado se constrói, portanto, sobre este- reótipos, isto é, “sobre o já-dito e o já-pensado que ele modula e, eventualmente, transforma.” Pensando em algumas enunciações-síntese como um fenô- meno de estereotipia, é possível defini-las como uma representa- ção coletiva cristalizada. Sendo essa representação estereotipada, tais enunciações circulam pelas trocas verbais não só indicando a intrínseca necessidade de se estabelecer normas de conduta aos homens de certa comunidade, mas também revelando os ajustes por que passam os valores instrutivos que divulgam. Portanto, a cristalização, sob a qual enunciações-síntese se estruturam, está longe de esgotar seu valor discursivo, porque, como se pode ver, na prática, estão abertas a muitas ressignificações. Os estereótipos linguísticos são fixados na memória de uma comunidade linguística, depois de serem adquiridos pelos falantes com o conhecimento e o uso da língua. Além disso, são enuncia-
  • 126. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 125 dos genéricos que, mesmo transportados para situações específicas de enunciação, definem-se por promover uma relação convencio- nal, consensualmente partilhada entre a estrutura sintática e o con- ceito nomeado acerca de valores de um grupo social. Quando in- troduzidos, os estereótipos linguísticos facilitam a compreensão por parte do interlocutor, sendo mecanismos para a difusão de sen- tidos consensualmente instituídos. Considerando o caminho até aqui proposto, examina-se, nesta pesquisa, a estereotipia linguística, com vistas à apreensão dos discursos que a modelam e que a fazem circular. Acredita-se que esses discursos alimentem a prática linguageira da estereotipia com o que foi pré-fixado pelo consenso, mas também com o que é modulado pela singularidade, numa espécie de continuum. Na constituição de um modo de leitura eficaz é essencial a investiga- ção desse continuum, no que pese a natureza do próprio fenômeno linguageiro. Com vistas à execução do que se postula neste artigo, é ne- cessário recorrer também à noção de fórmula proposta por Alice Krieg-Planque (2010). Essa recorrência é necessária, sobretudo, para que se refine o conceito de estereotipia sobre o qual se debru- ça este trabalho. Consoante Krieg-Planque (2010, p. 67) “a fórmula tem um caráter cristalizado pelo qual ela se identifica com uma materiali- dade linguística particular”, podendo, contudo, existir através de variadas paráfrases de que ela é a cristalização, o que inibe a im- posição de um formalismo absoluto sobre o referido conceito. Vale ressaltar, entretanto, que ela não existe fora de uma sequên- cia cristalizada bem identificável que condensa as múltiplas pará- frases. Nesse sentido, não são fórmulas, grosso modo, os estereóti- pos de pensamento, uma vez que não são coconstruídos por uma “sequência verbal estável e repetida” (2010, p.69). Desse modo,
  • 127. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 126 no trabalho proposto, a análise recai, essencialmente, sobre os es- tereótipos linguísticos – entendidos como fórmulas – e sobre suas derivações. O conceito de fórmula se sustenta sobre quatro pilares. Na concepção de Krieg-Planque (2010), uma fórmula: a) tem um ca- ráter cristalizado; b) assume uma perspectiva discursiva; c) exerce papel de referente social; d) abriga um aspecto polêmico. Dentro dessa perspectiva teórica, ressalta-se que essas quatro proprieda- des podem apresentar-se de maneira desigual, sendo cada uma de- las mais ou menos verificável na enunciação da fórmula. São, nos termos de Krieg-Planque (2010, p. 111), “verificáveis em conti- nua, e não mensuráveis em termos de presença ou ausência”. Para a autora (op. cit., p. 112), O fato de a fórmula ser um objeto inscrito em um continuum não faz dela, de modo algum, um objeto totalmente acientífico que resiste a uma análise fundamentada. Ao contrário, o caráter contínuo do ob- jeto – e consequentemente, a grande diversidade de silhuetas e figuras sob as quais será possível encontrá-lo – faz da noção de fórmula uma noção heurística, suscetível de ser sempre recolocada, revisitada, re- definida. Para examinar a tênue linha divisória que vai da cristaliza- ção formulaica à sua alteração, é necessário, ainda, somar à fun- damentação teórica já delineada outro conceito fundamental extra- ído de Gréssilon e Maingueneau (1984): o détournement. O détournement ou o desvio consiste em “produzir um enunciado que possui marcas linguísticas de uma enunciação proverbial, mas que não pertence ao estoque de provérbios reconhecidos” (op. cit., p. 114) e que compreende tanto casos de captação quanto de sub- versão.
  • 128. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 127 3. Abrindo caminhos Entre tantos enunciados e especificidades enunciativas a se- rem capturados para análise no bojo dos livros ilustrados (tam- bém) para crianças, elegeu-se, como já exposto, o espaço do apa- rente apaziguamento das fórmulas discursivas; apenas aparente, uma vez que as fórmulas estão sempre em movimento, submetidas a constantes alterações. Mais especificamente, são destacadas para análise duas dis- tintas enunciações-síntese. A primeira delas figura na obra de Odi- lon Moraes, Pedro e Lua: “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho.”. A segunda é fragmento extraído do livro de Liana Leão e Márcia Széliga, Julieta de Bicicleta: “Até que um dia uma pedra no cami- nho atrapalhou Julieta”. Ao circularem, essas enunciações remetem à famosa máxi- ma: “No meio do caminho tinha uma pedra”, extraída do célebre poema de Carlos Drummond de Andrade – “No meio do caminho” – publicado, pela primeira vez, em 1928. Embora a referida fórmula tenha conquistado autonomia e sido, portanto, integrada ao repertório de expressões populares do país, a construção “No meio do caminho tinha uma pedra” pode, entretanto, sugerir uma remissão paródica ao início da obra de Dante, A Divina Comédia. (Cf. ARRIGUCCI JR., 2002) Nesse sentido, o poema de Drummond ecoa certa errância sofrida – descrita no percurso do poeta moderno – que, diante do próprio ato inaugural da criação, apresenta-se, ironicamente, já fa- tigado – “Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas” (DRUMMOND, 1928). E essa fadi- ga é a do “caminho infindável, que mais parece impedimento que via certa do encontro.” (ARRIGUCCI JR., 2002, p.73).
  • 129. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 128 No meio do caminho, o que se encontra é a pedra irremoví- vel, que corrói a alma ensimesmada e abatida. Reduzido a uma si- tuação narrativa básica, o poema conta um acontecimento, qual se- ja o “do caminhante que se defronta com o obstáculo – situação essa que se converte no drama íntimo de quem se abate diante da barreira”. (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 72) Inegavelmente, os ditos recriados – “Uma noite, Pedro le- vava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cru- zou seu caminho” e “Até que um dia uma pedra no caminho atra- palhou Julieta” – apontam para a recorrência desse significante drummondiano, cujas pistas (“pedra” e “caminho”) é possível se- guir. Diante das recriações, o interlocutor captura a circulação de um significante estável e em constante repetição. Tal estabilidade faz-se necessária para seu funcionamento como significante parti- lhado. Assim, as novas fórmulas fazem ressoar uma que lhes é an- terior e sobre a qual estão calcadas. A partir dela, entretanto, pro- põem novos efeitos de sentido. Considerando as recriações a seguir: “Uma noite, Pedro le- vava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cru- zou seu caminho” e “Até que um dia uma pedra no caminho atra- palhou Julieta”, em paralelo à versão original: “No meio do cami- nho tinha uma pedra”, verifica-se que são derivações que resultam de diferentes processos de retextualização (MARCUSCHI, 2004). Esses processos figuram em uma associação sintagmática – “no caminho tinha uma pedra” – de certo modo, bloqueada. O termo “retextualização” é entendido como uma espécie de “tradução”, como uma forma de “reescrita”, que produz mudanças de um texto para o outro; ambos pertencentes, entretanto, à mesma língua. Essa atividade de transformação textual pode ocorrer por apelo a processos de substituição, de acréscimo, de supressão e de fusão, e pode envolver mudanças na forma das expressões cristali- zadas em metáforas, ritmo e construção.
  • 130. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 129 Diante do primeiro fragmento, observa-se que o enunciado derivado efetua alterações importantes diante da fórmula canônica. Essas modificações ocorrem por apelo tanto ao recurso da supres- são quanto ao do acréscimo de itens lexicais. Tal versão resulta, sobretudo, da inserção dos termos “muito bonita” e “cruzou”, que se relacionam diretamente ao signo “pedra”. Nessa recriação, a ar- quitetura sintática do dito convencional (SAdv + verbo ter + SN) é bastante alterada. Na nova formulação, que integra o fio da narra- tiva poética – “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho” –, o sintag- ma “uma pedra” passa a exercer o papel sintático de sujeito da oração temporal. Ao assumir essa função, a “pedra” personificada atua sobre o caminho do menino Pedro. Analisando a segunda construção derivada, verifica-se tam- bém o uso da estratégia da supressão aliada à do acréscimo. São suprimidos, na versão inédita, os termos “meio” e “do” do adjunto adverbial, assim como se alarga o dito convencional pela inclusão da expressão “Até que um dia” e do verbo e de seu complemento: “atrapalhou Julieta”. A configuração sintática da oração é alterada, uma vez que o sintagma “uma pedra” é alçado, na nova constru- ção, à condição de sujeito, cuja ação recai, na explicitação da es- trutura sintática, sobre o objeto “Julieta”. As alterações propostas relativamente à construção original não invalidam, contudo, a propriedade de cristalização – de ordem memorial – que as caracteriza e que as pode conduzir à versão primeira. Esse paralelismo que recobre a parte significante da fórmula não deixa o leitor perder de vista a voz matriz. Por outro lado, se é verdade que essas formulações concor- rentes da fórmula original se inserem num quadro de “pertenci- mento morfossintático e lexical” relativamente à fórmula original, é verdade também que tais formulações apontam para uma “insta- bilidade fundamental dos significados”. Em outros termos, as
  • 131. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 130 construções derivadas funcionam como concorrentes das formas primitivas, do ponto de vista sociopragmático, ao encerrarem uma espécie de bifurcação entre o senso comum e seu deslocamento para o universo da obra em que se inserem. Por sua vez, esse deslocamento é sintomático do uso discur- sivo que se faz da fórmula “No meio do caminho tinha uma pe- dra”, uma vez que exibe a produção de diferentes julgamentos acerca da temática em questão. A propósito, no que concerne a es- sa dimensão discursiva, atente-se para o fato de que é seu uso lin- guageiro – circunscrito social e historicamente – que desencadeia o percurso da sequência para o alcance do caráter formulaico. Além disso, enquadrar a fórmula numa configuração discursiva equivale a vê-la no papel de um referente social. Cada vez que é retomada, a fórmula põe em evidência seu papel de referente social, ou seja, a função de ser uma sequência material por que passam, obrigatoriamente, os discursos produzi- dos no espaço público num determinado período. Isso leva à di- mensão do caráter notório da fórmula. Diante de tal notoriedade, como bem elucida Salgado (2011, p. 155), “todos são chamados a assumir alguma posição em relação ao que está condensado no material linguístico cristalizado, sintetizador de usos, de retoma- das”. Para que se flagre a heterogeneidade de posições frente à fórmula focalizada, observe-se, inicialmente, o fragmento extraído de Pedro e Lua, obra de Odilon Moraes: “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”, em contraste com a máxima: “No meio do caminho ti- nha uma pedra”. A fim de acomodar o dito “No meio do caminho tinha uma pedra” à construção da narrativa proposta, o sujeito enunciador particulariza o caminho anunciado pela inserção do pronome adje- tivo anafórico “seu”, cujo referente é “Pedro”. Estabelece-se, neste
  • 132. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 131 caso, uma relação semântica de pertencimento entre “Pedro” e “caminho”. Por meio da introdução do anafórico “seu”, a generalização e a atemporalidade, intrínsecas aos ditos populares, são direciona- das para um fato particular, localizado no tempo e no espaço, de acordo com a história narrada. Isso mostra que, no discurso, o que é normalmente tomado como uma categoria referencial estável pode tornar-se instável, por consequência de uma mudança de contexto ou de ponto de vista. No “aqui” e no “agora” do texto elaborado, a ausência de um agente (o caminho é de qualquer um), estabilizada na versão canônica, torna-se instável pela inserção do pronome “seu”, que remete a “Pedro”. Para contextualizar, é válido resgatar a história narrada. No referido texto, um menino chamado Pedro vê semelhanças entre a pedra e a lua. Um dia, ao se deparar com uma tartaruga que pare- cia, inicialmente, uma pedra, Pedro a associa, no entanto, à lua, em razão da beleza do casco esverdeado do bichinho. Assim, o meni- no acaba por conjugar as imagens da lua e da tartaruga à da pedra. Desse encontro de olhares, nasce uma forte amizade que une Pe- dro às L/luas. É nesse enredo que a fórmula derivada se insere e é, nesse contexto, que deve ser analisada, a fim de que se investigue a flu- tuação semântica da construção fonte e seus correspondentes ima- ginários sociodiscursivos e os modos de leitura oferecidos. O conceito “de entrave” interposto na vida de qualquer ser humano, metaforicamente sustentado pela fórmula original é, de certo modo, subvertido na versão derivada, uma vez que o dito é orientado para um sentido diferente do original. Nesse caso, a ree- nunciação é concebida como um détournement ou desvio que comporta a estratégia da subversão. No interior da história comen- tada, estabelece-se uma divergência entre o que apregoa a versão convencional e o que a nova instaura. E é justamente por essa bre-
  • 133. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 132 cha da divergência, marcada discursivamente, que capturamos os diferentes imaginários sociodiscursivos constituídos a partir da fórmula selecionada. Na obra de Odilon Moraes, a leitura da máxima (que “vive” na instância linguageira drummondiana), baseada na metáfora “di- ficuldades (pedras) são impedimentos para o deslocamento (cami- nho)”, é, inicialmente, cancelada. Favorece-se, neste primeiro momento do novo contexto, uma construção de leitura calcada na simbolização referencial 21 dos termos “pedra” e “caminho”, con- forme se vê nos trechos retirados da obra: “... Pedro, que nunca olhava para o chão, tropeçou numa pedra...”, “... E descobriu que as pedras tinham caído da lua...” e “Então, a cada noite, Pedro jun- tava pedrinhas para perto da lua.”. O menino Pedro julga que as pedras sejam pedacinhos da lua e trata de catá-las aos punhados para colocá-las próximas à sua origem, imaginando a lua como al- go semelhante a uma pedra – “Desde que lera num livro que a lua era uma pedra grande que flutuava no céu, Pedro ficara encanta- do”. Autoriza-se esse jogo da recriação uma vez que objetos concretos podem ser, efetivamente, encontrados, “juntados” (“Pe- dro juntava pedrinhas para perto da Lua”) numa via, num cami- nho: “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”. Além disso, mais especificamente, a leitura do termo “pe- dra”, segundo sua referencialidade, é favorecida – no interior des- se novo universo do discurso – em virtude de o citado mineral in- tegrar, sintagmaticamente, enunciações em que ele pode ser apre- 21 Para Charaudeau (2008, p. 37), o ato de linguagem resulta de uma dupla atividade: a simbolização referencial e a significação. A primeira “tende a unir uma forma material a um determinado conteúdo de sentido produzindo uma condensação semântico-formal”. A segunda “tende a fazer essa união irromper em uma multiplicidade de relações sentido- forma, produzindo uma disjunção semântico-formal”.
  • 134. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 133 ciado conforme sua natureza concreta, como: “... Pedro, que nunca olhava para o chão, tropeçou numa pedra...” e “... Pedro levava um punhado de pedras...”. Com efeito, cancela-se, inicialmente, a metáfora consensual mais transparente: “dificuldades são impedimentos para o deslo- camento”, para se recobrar o sentido de “pedra” como mineral. Em consequência, com base na leitura referencial dos ter- mos “pedra” e “caminho”, o efeito de sentido produzido é outro. O mineral “pedra” – que se encontra no espaço público – é algo agradável a Pedro. Trata-se de um objeto fruto de grande desco- berta (“... e descobriu que as pedras tinham caído da lua”), a que Pedro passa a se dedicar: “Então, a cada noite, Pedro juntava pe- drinhas para perto da lua.” e “Uma noite, Pedro levava um punha- do de pedras...”. Ao mesmo tempo, constata-se que uma nova metáfora, a in- cidir sobre o item “pedra”, parece ser delineada no seio da obra. Identificada a pedra a algo muito bonito – “... quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho” – encerra-se a ideia de que a “pedra” é algo agradável aos olhos do menino e, como tal, algo que é valioso para ele. Nesse sentido, assume-se outra associação metafórica na totalidade discursiva do texto em questão, qual seja a de que “o agradável é valioso”. O texto se abre a essa nova significação, sobretudo quando o menino descobre ser a pedra uma tartaruga: “Pedro logo desco- briu que era uma tartaruga...”. Sob o olhar de Pedro, “a tartaruga” agora é a representação de uma conquista positiva, acentuada pela semelhança entre o bichinho e a lua: “... mas como seu casco pare- cia uma grande lua esverdeada, ele a chamou – Lua” e “Pedro ado- rava aquela pedra linda que era Lua...”. Ainda, assumindo a pedra como uma tartaruga, rompe-se, no interior do texto, com ideia de que a inevitável e permanente
  • 135. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 134 circularidade da pedra inserida no dito é um obstáculo à criação, seja ela poética – como sugere Arrigucci (2002, p. 73): “Nela (na pedra) reside a dificuldade básica que para ele (Drummond) funda a criação: é fator desencadeante e, simultaneamente, entrave do ato poético” – ou não. No universo discursivo de Pedro e Lua, a circularidade da pedra é, pelo menos inicialmente, rompida – “Pe- dro logo descobriu que era uma tartaruga”, encerrando o claro efeito de sentido (significação) positivo da vida. A pedra identificada à tartaruga é quem cruza o caminho do menino Pedro; ela não está lá imóvel como um entrave perturba- dor da travessia, mas como algo vivo, desencadeador de descober- tas: “... quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”. Sua vivacidade é atestada ainda pelos movimentos que faz em direção ao menino e aos caminhos que Pedro percorre: “... achava graça em vê-la seguindo seus caminhos”. Na passagem do dito original às derivas que figuram no tex- to, observa-se, nesta narrativa poética, não só que Pedro se vê se- guido pela pedra/tartaruga – “... vê-la seguindo...”, como também que os caminhos que ele percorre são vários – “... seus cami- nhos.”. Nessa recriação do dito original, ressalta-se que agora há uma multiplicidade de caminhos percorridos pelo menino, como são múltiplas as relações estabelecidas no texto entre Pedro, pedra e L/lua. Além disso, é a “pedra-L/lua-tartaruga” que o segue ao longo dos caminhos, invertendo-se a lógica da versão canônica da máxima. Essa inversão reforça mais uma vez a vivacidade da “pe- dra” – “E assim foram crescendo, juntos, Pedro... e Lua” – ao mesmo tempo em que corrobora ser ela apreciada como algo que diverte o menino: “... e achava graça em vê-la seguindo meus ca- minhos”. Ao mesmo tempo, contudo, o sentido metafórico consensual do termo “pedra” é ainda mantido reconhecível ao final da narrati- va poética. Nesse sentido, flagra-se o desvio ou détournement co-
  • 136. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 135 mo um caso de captação, ao se verificar a utilização da autoridade convencional do estereótipo linguístico. Ao chegar de férias da cidade, Pedro deseja rever a tartaru- ga: “Como Pedro não viu Lua, quis saber da tartaruga.”. Para sua surpresa, disseram-lhe que “havia dois meses não aparecia fora do casco”. E, mesmo após chamá-la, “... Lua não veio.”. Diante dessa nova situação, o continuum de sentidos flagrado na esfera do dito derivado é retomado. A “tartaruga”, ao não aparecer fora do casco, é fisicamente comparável, em termos de simbolização referencial, a uma pedra, ao mesmo tempo em que passa a representar, no es- copo da significação, um impedimento ao encontro. Como um en- trave, a pedra/tartaruga deixa os sentimentos do menino corroídos: “Deu dor no coração ver Pedro com saudade da amiga”. Pedro transita por um continuum de sentidos: do referencial ao metafórico, do qual decorre uma produção de efeitos de sentido para o referente, que ora o inserem na perspectiva do objeto físico, na direção tartaruga-pedra: “De noite, foi levar o casco de Lua pa- ra junto das pedras”, ora o inserem na perspectiva do que ganha vida, na direção pedra-tartaruga: “Lá, descobriu que tartaruga também tem saudades”. Mais uma vez, nos campos das associações metafóricas “di- ficuldades (pedras) são impedimentos para o deslocamento (cami- nho)”: “Deu dor no coração ver Pedro com saudade da amiga” e “o agradável é valioso”: “Lua tinha mudado de casa. Voltou para a sua”, a pedra/tartaruga lhe rende novas descobertas. Poeticamente, os temas da amizade e da morte são desvelados na narrativa por meio de sutis metáforas que ora aproximam o referente do que é libertador: “Pedro amava Lua” e do que aprisiona: “Lua parecia uma pedra. Escapa-se assim à visão estereotipada de morte e a um didatismo que poderia explicá-la. Pela ótica da criança, o conflito se resolve de maneira poética.
  • 137. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 136 A fórmula derivada, “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho”, expõe a heterogeneidade constitutiva da fórmula básica, que con- duz à construção de outra significação, outros valores, outros ima- ginários sociodiscursivos. Recria-se, no interior da obra de Odilon Moraes, novo real discursivo justamente pela matéria formulaica que o constitui. O imaginário consensual acionado pelo dito “No meio do caminho tinha uma pedra”, qual seja o que refere os im- passes da passagem do homem pela vida, é, em parte, ultrapassado pela leitura multifacetada proposta pela fórmula alterada no texto em tela. Em Pedro e Lua, abre-se para o conglomerado de noções que postula o termo “pedra” como signo: não se impõe à criança a leitura consensual do dito. Isso, aliás, parece já estar configurado no início da própria narrativa, quando se ultrapassa a visão dico- tômica de pedra como algo que é irredutível em si mesmo, e de lua como o que liberta: “Pedro queria dizer pedra, mas tinha a cabeça na lua. Lua queria dizer lua mesmo, mas parecia uma pedra”. A construção em foco transita pelas diversas noções que o signo “pedra” pode comportar, sendo elas, ora mais, ora menos consensuais. A “pedra” é tanto algo que dificulta o deslocamento, quanto o que o torna agradável, sendo, por vezes, até difícil saber onde um sentido começa e o outro termina. Isso revela que a signi- ficação se constrói, de fato, no texto, não ocorrendo, previamente, à sua elaboração. Segundo Charaudeau (2008, p. 26), “não se pode determinar de forma apriorística o paradigma de um signo, já que é o ato de linguagem, em sua totalidade discursiva, que o constitui a cada momento de forma específica”. O imaginário sociodiscursivo do “impasse”, do “fim” e da “morte”, produzido de modo metaforicamente consensual pelo di- to “No meio do caminho tinha uma pedra” e ecoado por tantos ou- tros estereótipos linguísticos que se centram sobre tal referente,
  • 138. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 137 como: “Pedra no sapato”; “Tirar leite de pedra”; “Coração de pe- dra”, é ultrapassado, em parte, no livro Pedro e Lua. Recorre-se também, nesta obra, ao imaginário do virtuoso: para Pedro, em seu caminho, tinha (tem) “passagem”, “começo” e “vida”. Por isso mesmo, atesta-se a imbricação da morte e da vida: “Lua parecia uma pedra”. No jogo entre essência (vida) e aparência (morte), a dicotomia morte/vida se apaga em narrativa também endereçada à criança. A fim de se constatar, mais uma vez, a variável posição de retomada diante da fórmula em tela, examine-se, agora, a passa- gem inserida no livro de Liana Leão e Márcia Széiga: “Até que um dia uma pedra atrapalhou Julieta”, em contraste com a versão original: “No meio do caminho tinha uma pedra”. Como já mencionado, essa reformulação, embora aluda à construção fonte, efetua mudanças por apelo tanto à supressão, quanto ao acréscimo. Essas alterações objetivam incorporar à construção original elementos pertinentes à narrativa em questão. A propósito, a história em tela, intitulada Julieta de Bicicle- ta, inicia-se por descrever as sistemáticas ações da menina Julieta em seu dia a dia – “Julieta acordava exatamente à mesma hora, to- do dia” e “Meio-dia, hora da escola, e Julieta, empertigada, de uni- forme esticadinho, limpinho, passadinho, ia andando, em uma li- nha absolutamente reta” – para, em seguida, no tempo da narração, contar as aflições de Julieta, frente às curvas do caminho: “Até que um dia uma pedra atrapalhou Julieta, que parou, estancou, in- decisa: Que fazer?”, e, especialmente, relatar a curva que a menina encontra de posse de sua nova bicicleta: “Pedalava num ritmo per- feito até que surgiu uma curva muito encurvada. Julieta estancou. Pensou: ‘O que haverá depois da curva? Essa curva estraga meu caminho em linha reta’...”. Pela ampliação da fórmula tradicional, verifica-se que ela é capturada para dentro da narrativa. A expressão adverbial “Até
  • 139. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 138 que um dia” abre o texto para o modo de organização narrativo e insere a fórmula derivada no fio da história que se começa a nar- rar. Nesta obra, assim como na anteriormente analisada, o leitor, diante da feição contemporânea do enunciado cristalizado, se vê enredado pela possibilidade de lê-lo segundo a simbolização refe- rencial de “pedra” como mineral. Essa afirmação se confirma pela leitura paradigmática estabelecida entre o signo “pedra”, que figu- ra no dito reenunciado, e o termo “pedregulho”, que aparece logo em seguida: “Antes que Julieta tomasse a difícil decisão, um garo- to do colégio cruzou sua frente e, displicente, sem perceber, chu- tou o enorme pedregulho de papel machê”. Interessante constatar que a esse modo de leitura, calcado no sentido supracitado, soma-se a significação de “dificuldade” proposta pela metáfora consensual: “dificuldades (pedras) são im- pedimentos para o deslocamento (caminho)”. Em Julieta de Bici- cleta, não se rompe com a interpretação automatizada proposta pa- ra a fórmula canônica; antes, reafirma-se a metáfora consensual mais transparente, sobretudo, pelas evidentes escolhas sintáticas e lexicais. Decorre, daí, um desvio ou détournement que faz uso da autoridade sentenciosa da máxima em prol de uma reenunciação submetida ao processo de captação. O verbo selecionado, “atrapalhou”, direciona o texto, cla- ramente, para o sentido de “entrave” proposto pela versão original da fórmula. Ao mesmo tempo, acentua-se a ideia de que a “pedra”, no papel sintático de sujeito, é “obstáculo” provocador da dificul- dade que atinge Julieta – alvo da ação – em seu deslocamento. A fórmula derivada, presente no texto em questão, evoca a original, reafirmando sua metáfora mais transparente e facilitando seu reconhecimento. E, além disso, a “pedra” localiza-se em rua denominada “Carlos Drummond de Andrade”, ressaltando-se a in- tertextualidade por semelhança entre o dito reenunciado e o verso
  • 140. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 139 que figura no poema de Drummond, verso que se fez máxima do repertório popular. No universo do discurso de Julieta de Bicicleta, a fórmula modificada transita pelas noções que instituem a “pedra”, tanto como mineral, quanto como “entrave”. Especialmente, a “pedra”, lida conforme a metáfora consensual, é, de fato, algo que dificulta o deslocamento. Nessa direção, percebe-se que o desvio da versão inédita da fórmula, relativamente à canônica, passa a ser mínimo. Neste caso, portanto, reforça-se o imaginário sociodiscursivo do “impasse”, do “fim” e da “morte”, que circula a propósito da ree- nunciação “Até que um dia uma pedra atrapalhou Julieta”. 4. (Im)passes do caminho Foi de grande interesse apreender as posições de retomada – assumidas pelas diferentes obras e por seus correspondentes ima- ginários sociodiscursivos – diante do que se sintetizou pela fórmu- la discursiva “No meio do caminho tinha uma pedra”. Aliás, sendo essas retomadas às fórmulas o que as instauram como centro de polêmica, evidenciou-se, nessa travessia em que a fórmula em questão se fez ponto de passagem obrigatório, que, a cada nova enunciação, houve a construção de um referente pró- prio. Em outros termos, cada enunciação, atravessada inevitavel- mente pela fórmula, assumiu, relativamente a ela, posição, ora mais “problematizadora” – “Uma noite, Pedro levava um punhado de pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou seu caminho” – ora mais consensual – “Até que um dia uma pedra atrapalhou Juli- eta.”, na rede interdiscursiva em que se situa. Assim, neste trabalho, constatou-se a heterogeneidade cons- titutiva das fórmulas básicas, especialmente da construção “No meio do caminho tinha uma pedra”, explicitada nas derivas anali- sadas. Pôde-se perceber como tal variabilidade produziu modos de
  • 141. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 140 leitura voltados a um conglomerado de sentidos, ora mais, ora me- nos constantes. E esse continuum de sentidos – da simbolização referencial à significação – impulsionou as distintas construções de leitura re- lativas às obras Pedro e Lua e Julieta de Bicicleta. Em Julieta de Bicicleta, apontou-se, unicamente, para a confirmação do imaginário sociodiscursivo do impasse, do fim e, quiçá, da morte que se interpõe na travessia – dentro daquilo que foi pré-fixado pelo consenso. Nesse sentido, enredou-se/implici- tou-se o/um leitor aprendiz dentro de um modo de leitura que o in- tegra ao mundo por conformidade a uma crença já instaurada cole- tivamente. Por sua vez, em Pedro e Lua, a leitura se construiu em dire- ção também a novo valor, crença e princípio – no âmbito do que foi modulado pela singularidade – uma pedra no meio do caminho pode ser símbolo da passagem, do começo, da vida, agradável ao sujeito que a encontra, em razão do valor inestimável que agrega ao percurso vivido. Nesse sentido, libertou-se/implicitou-se o/um leitor aprendiz, engajado em um modo de leitura provocativo e formativo. REFERÊNCIAS ARRIGUCCI JR., D. Coração partido. São Paulo: Cosac Naify, 2002. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. CHARAUDEAU, P. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006. ______. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
  • 142. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 141 GRÉSILLON, A.; MAINGUENEAU, D. Polyphonie, proverbe et détournement. Langages, Paris, n. 73, p. 112-125, março, 1984. HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. KRIEG-PLANQUE, A. A noção de “fórmula” em análise do dis- curso. São Paulo: Parábola, 2010. LEÃO, L.; SZÉLIGA, M. Julieta de bicicleta. São Paulo: Cortez, 2005. MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retex- tualização. São Paulo: Cortez, 2004. MORAES, O. Pedro e Lua. São Paulo: Cosac Naify, 2004. MOTTA, R. M.; SALGADO, L. Fórmulas discursivas. São Paulo: Contexto, 2011.
  • 143. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 142 ORALIDADE, NARRATIVA E MITO: UMA PROPOSTA DE LEITURA DIALÓGICA Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos22 RESUMO O artigo versa sobre algumas possibilidades de diálogo entre imagens míticas e sua reelaboração pelas vozes do narrador oral tradicional e do narrador moderno. Para tanto, iniciamos com uma discussão acerca da figu- ra do narrador primordial, na qual intentamos problematizar certos luga- res-comuns relativos a sua conceituação. Sob o amparo teórico dos estudos de Walter Benjamin, propomos uma reflexão focada nos elos entre narra- ção, experiência e modernidade, com a intenção de pensar as configurações dialéticas instauradas pelo Modernismo brasileiro, voltando-nos, especifi- camente, para o conto “o Besouro e a Rosa”, de Mário de Andrade. Por fim, a partir de uma leitura comparativa entre narrativas míticas que partilham a imagem da virgem fertilizada, pensaremos a construção da protagonista, Rosa, a tessitura das vozes narrativas embaralhadas e a desconstrução das estruturas narrativas tradicionais, em um processo sofisticado de hibridismo entre o popular e o erudito, capaz de dessacralizar e reinventar tanto os mi- tos pagãos, quanto os religiosos e os burgueses, em um enfrentamento simbó- lico de um mundo em desencanto. Palavras-chave: Oralidade. Narrativa. Mito. Leitura. 1. Narração e oralidade A imagem do narrador oral arcaico não pode ser compreen- dida fora da sua condição sagrada, sob os olhos da sociedade gre- ga antiga. Narrar era uma condição aliada à magia: o detentor da 22 Doutora em literatura comparada na Universidade Federal Fluminense e professora ad- junta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
  • 144. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 143 palavra partilha de seu poder sacro de criação e é considerado co- mo alguém capaz de reconhecer o passado, o presente e o futuro. Ele é um bardo, uma figura confiável, pois narra o mito e imprime sentido à vida coletiva, às expectativas, aos sonhos e aos temores presentes em sua sociedade. A força do narrador oral não é sua, mas constrói-se como derivada de uma causa externa. Ela vem de uma inspiração divina, da qual ele se alimenta. Uma musa o escolhe e o sustenta nessa condição especial dele. Por sua vez, as musas são apoiadas por sua mãe, Mnemosyne, a deusa da memória: a relação entre a narrativa e a memória é essencial e já aparece no mito da experiência de maternidade desta titânide. Diz esse mito que Zeus, após alcançar a glória, ainda não estava satisfeito. Faltava-lhe a conquista de Mnemosyne, com quem gostaria de dormir. Ele se disfarçou de camponês e obteve o seu intento. Após nove noites juntos, Mnemosyne concebeu e, após nove meses, passou nove dias dando à luz suas nove filhas, as musas da Arte. Não é difícil ler o mito como uma metáfora das relações en- tre a arte e a memória. Até mesmo o mais poderoso dos mortais, Zeus, precisa da memória para preservar a sua lembrança e, assim, manter o seu poder. De nada adiantariam os seus feitos grandiosos se caíssem no esquecimento. A memória é um modo de sobreviver e narrar uma forma de driblar a morte; em laços de simbiose, lem- brar e contar são estratégias para refutar o silêncio e afirmar o de- sejo de vida e de continuidade. Nesse sentido, Tzvetan Todorov lembra-nos: “A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à morte” (2006). Segundo Nelly Novaes Coelho (1993), o narrador primordi- al caracteriza-se por ser uma figura que se transformou em contador de estórias, (alguém que não se apre- senta como autor, não inventou os fatos narrados, mas presenciou-os
  • 145. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 144 ou soube deles por alguém, guardou-os na memória e os conta para outros). Embora entendamos a perspectiva da confiabilidade em re- lação ao narrador primordial, gostaríamos de pontuar que nos pa- rece essencial distingui-lo de um portador neutro da verdade. Em primeiro lugar, pela ausência de distinção entre ficção e verdade no período arcaico. De fato, a própria categoria de ficção é muito recente, do fim do século XVIII (Cf. EAGLETON, 2003). Portan- to, soa-nos como anacrônica e um pouco ingênua a percepção do narrador primordial como um elemento detentor de uma verdade absoluta, no lugar de percebê-lo como um articulador complexo de narrativas reelaboradas a partir de seu potencial criativo, em um mosaico de citações, invenções e diálogos. Não acreditamos ser esse o sentido postulado por Coelho para o conceito de narrador primordial, entretanto cabe aqui a observação por termos nos de- parado algumas vezes com essa compreensão em alguns trabalhos alusivos a este conceito. Assim, gostaríamos de aqui derivar a partir da conceituação de Coelho a condição do narrador primordial como um elemento de autopoiese, isto é, como uma máscara ficcional assumida pelo sujeito portador da voz, que toma para si a função de mediador de um desejo de verdade; no espaço do desejo cabem o sonho, a ima- ginação, a esperança e até mesmo os medos e os receios. Como marcadores capazes de delinear esse perfil, aparecem referências ao testemunhal, seja ao testemunho vivido por ele ou por outra pessoa que o confia uma história vivida. Entretanto, não caberia a assunção dessa perspectiva como verdadeira, pois a organização da narrativa primordial não se constrói como verdade ou falsidade, mas como confiável, em torno de uma convenção partilhada e re- conhecida tanto pelo narrador quanto pelos seus ouvintes. Pensar essa confiança como convenção e entender a labilidade entre fato e ficção no período arcaico permite-nos sair de uma compreensão literal e equivocada da função assumida por este tipo de narrador.
  • 146. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 145 A narrativa do século XIX retoma a convenção do narrador mediador e confiável, em um momento de consolidação dos Esta- dos nacionais, em alinhamento ao movimento romântico e a sua valorização da cultura popular. Em meio a tal quadro, surgem au- tores que tomam para si a tarefa de coletar e difundir as narrativas orais, especialmente os contos de fadas transmitidos geralmente pelos camponeses ágrafos, de geração a geração23 . O seu processo de escrita não é o de mera transferência e registro, obviamente: ela é manipulada, adequada, recortada, acrescentada, distorcida e a manutenção da figura do narrador confiável permeia esta media- ção, dotando-a de uma aura de verossimilhança – mas não de ver- dade ou falsidade, como dissemos24 . Entretanto, aqui não temos um sujeito que toma para si a função de ser narrador oral, um contador de histórias que se assu- me na convenção como mediador de algo não inventado, mas vi- vido, por ele ou por outro, recusando em meio a esse jogo simbó- lico a autoria. Ao contrário: há um autor que inventa uma voz nar- rativa, por isto já distante dele como eu-biográfico. O movimento do eu-autor que cria o outro-narrador, como instância do jogo fic- cional a assumir o seu papel de mediador confiável, de ponte entre a tradição oral e a escrita, ao contrário do eu que se quer um nar- rador distante da autoria como prova de sua confiabilidade. Logo, são construções ficcionais com peças diferentes em estratégias di- versas, pois na obra escrita o narrador como contador de histórias 23 Não estamos com isso crendo na condição pura e essencial das narrativas campone- sas; antes concordamos com a perspectiva teórica desenvolvida por Mikhail Bakhtin (1993), a qual aponta para a circularidade cultural presente nas relações entre a alta e a baixa cultura. 24 Não é apenas nos contos de fadas que encontramos um narrador mediador; este foi um artifício narrativo empregado recorrentemente nos romances românticos; aqui no Bra- sil, por exemplo, em A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo; e em Lucíola e O Guarani, de José de Alencar, para citarmos alguns.
  • 147. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 146 desdobrar-se-ia como reminiscência de uma operação intelectual que não pode sobreviver, senão como nostalgia. É neste sentido que Walter Benjamin (1994) refere-se à fi- gura do narrador romanesco, em um tom ambiguamente melancó- lico e esperançoso. Leitor de Georg Lukács, o qual identificava o romance como “a epopeia de um mundo que saiu dos trilhos” (2000), Benjamin arquiteta a sua compreensão sobre a figura do narrador do romance a partir de sua tensão com o contador de his- tórias (o narrador oral)25 e analisa como parâmetros para essa fric- ção as formas de produção e de experiência das sociedades artesa- nais e capitalistas, ligando a contação de histórias à primeira e o romance à segunda. Em um mundo pré-capitalista, a produção artesanal modula- ria condições para a partilha do tempo e da experiência coletiva (erfahrung). Benjamin afirma: “O tédio26 é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”. Sem o tédio, isto é, o tempo ocio- so, não podemos sonhar e usufruir da erfahrung, da teia de laços na qual o ser constrói-se e é construído em solidariedade comuni- tária, com seus esteios fundados na tradição, na forma de trabalho e no modo de comunicação. O filósofo escreve a partir de um con- texto no qual assistia à decadência dessa solidariedade e percebe no romance um traço destacado da contraposição entre a vivência individual (erlebnis) e a experiência que se esgotava. 25 A edição brasileira emprega o título “O narrador”. O artigo original chama-se "Der Erzähler", isto é, o contador de histórias. Há edições em inglês que traduzem o termo do título como “storyteller”, o que denota uma maior proximidade com o termo em alemão. 26 Tédio aqui deve ser compreendido como um momento duplo de distensão e apreensão do ser, como um estágio em que estaríamos, ao mesmo tempo, atentos e imersos em nosso eu; é a fusão da pulsão de ser com a liberdade do tempo ocioso. Ou, se remete- mo-nos à excelente leitura de Susana Kampff Lages, “é a atenção simultaneamente con- centrada e distensa de quem ouve uma história” (2002).
  • 148. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 147 Era preciso recuperar dentro do romance um modo de narrar fundado na oralidade, mas como fazê-lo fora de uma interdição que anuncia a tarefa como fadada à ruminância da reminiscência de um modus vivendi em profunda crise? Benjamin, sabiamente, não oferece uma resposta, mas indica como um traço para reflexão a narrativa do escritor russo Nicolai Leskov, considerada pelo pensador alemão como fortemente influenciada pelas formas de narrar artesanais/orais. O trabalho artesanal das sociedades anteriores ao capitalis- mo27 disponibilizaria o tempo ocioso fundamental para ouvir e ser ouvido, dentro da coletividade. O sujeito está mergulhado em uma dimensão temporal cíclica, marcada pela natureza; nela emerge a imagem do velho, com a sua experiência de vida que urge ser re- partida assim como a experimentada pelo marinheiro e pelo via- jante, que saíram da aldeia para conhecerem o mundo. A reunião da comunidade tece um universo no qual o ato de narrar instaura- se como a concretização de uma experiência solidária de troca de saberes. A narrativa não pertence ao narrador: ela o extrapola e só faz sentido se assim o for; joga-se na roda e permite-se ser mani- pulada, de modo a diluir a vivência individual e a se ressignificar no grupo. “E se o fim fosse diferente?” é pergunta bem-vinda e abre- se para um movimento de mise-en-abyme presente e importante neste processo de trocas simbólicas orquestradas pela narrativa oral e conduzidos (embora não dominados) por contadores que narram não apenas com palavras, mas com gestos, olhares, timbres 27 Embora a perspectiva benjaminiana perceba uma cisão binária entre o tempo de um mundo artesanal e o tempo de um mundo industrial, ela não pode ser compreendida de uma forma rígida. Podemos perceber grupos que se mantêm de algum jeito, no século XXI, orientados por uma perspectiva de experiência relativamente próxima a das socie- dades pré-capitalistas, como indígenas e pessoas interioranas, dentro de países capitalis- tas e, agora, globalizados. É possível perceber a heterogeneidade temporal e tecnológica em recortes espaciais distintos em nosso país, por exemplo.
  • 149. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 148 de vozes. Ele doa a si, íntegro, para fazer-se, e aos outros, parte de um todo. Por isto, Benjamin estabelece uma feliz analogia entre o narrador oral e o oleiro: assim como o artesão imprime no objeto de barro as suas digitais, aquele imprimiria no que narra a sua marca. “Forma artesanal de comunicação”, a narrativa oral “não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada co- mo uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1994). Em seu caráter aberto e sensível, a narrativa oral postula-se como uma latência; eis a sua força e a sua oportunidade de sobre- vivência. Benjamin ilustra o poder da contação de histórias quan- do compara uma parábola egípcia a uma semente trancada em uma pirâmide: essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de tri- go que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças ger- minativas. (BENJAMIN, 1994). Para Benjamin, será a forma romanesca a portadora de outro tipo de experiência narrativa, consolidada em meio ao caos e à de- gradação deixados como rastros pela consolidação do capitalismo como forma de produção. Fora da erfahrung, depara-se com o desconexo, a informação abundante e fragmentada, em um quadro de tal modo radicalizado que o leva a uma vivência de choque, na qual a memória encontra-se frágil, invertebrada e o sujeito não consegue mais a reflexão profunda e tampouco a fruição estética. O controle do tempo levaria ao esfacelamento dos laços de coletividade e ao empobrecimento da experiência coletiva, imer- gindo o sujeito no que ele conceitua como a erlebnis, a vivência individual do ser. Aniquilado no que toca à partilha de suas expe- riências e às trocas simbólicas coletivas, o ser instaurado em um mundo capitalista encontra uma nova forma de narrar, fora da ora- lidade, presente no romance.
  • 150. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 149 A leitura do romance é vista como a experiência mais solitá- ria dentre todas, pois: quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional) (BENJAMIN, 1994). Quem lê o romance não partilha da tessitura de elos e diálo- gos presentes na narração oral. A performance da leitura romanes- ca é singular em seu isolamento. Forma-se um paradoxo: o telos do romance situa-se no desafio de simbolizar o sentido da vida, mas ao aceitar o convite para a leitura, o indivíduo experimenta a perplexidade e o limite, pois as perguntas suscitadas pela narrativa ficariam sem resposta aparente. O romance poderia falar, portanto, não sobre a experiência ampla e plena que imprimiria significação à vivência, o que seria possível na narração oral, prenhe de rituais, tradições e significa- dos coletivos. Na forma romanesca, a própria instauração de um FIM, escrito em letras garrafais para emoldurar-se como limite virtual, atenta para o fato do romance falar não sobre os sentidos da vida, mas “sobre o sentido de uma vida” (BENJAMIN, 1994). Fora da troca, o leitor fecha-se em sua reflexão e encontra no ro- mance um destino alheio capaz de lhe dar “o calor que não pode- mos encontrar em nosso próprio destino” (BENJAMIN, 1994). A pluralidade da experiência desejada pelo pensamento benjaminiano nas narrativas escritas encontraria uma possibilidade de esteio ao buscar tecer-se em torno de elementos presentes nas narrativas orais, como ele compreende acontecer na obra de Les- kov, em um mundo onde o narrador oral não estaria mais presente senão como nostalgia. Aqui, o alento está em um modo de narrar que primaria por cultivar a latência de sentidos, como uma semen- te milenar preservada em uma pirâmide egípcia e que, após atra- vessar o deserto dos anos, seria ainda fértil; assim, uma história
  • 151. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 150 cujo final não estivesse cristalizado poderia ser análoga “a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas”28 (BENJAMIN, 1994). Provocar “espanto e reflexão” (BENJAMIN, 1994) é a sua força, o seu en- canto e a sua potência de sobrevida. Levar o leitor ao espanto e à reflexão, retirando-o de sua experiência pobre, é um traço desse novo modo de narrar desejado por Benjamin. Gostaríamos, neste ponto, de pensar alguns modos, em seus limites e possibilidades, pelos quais podemos compreen- der as articulações entre a narrativa oral e a narrativa moderna es- crita. Como objeto para essa reflexão, escolhemos o conto “O Be- souro e a Rosa”, de Mário de Andrade. Nele, desejamos explorar possíveis elos dialógicos com algumas narrativas míticas, tendo como ponto de convergência a tematização da virgem fecundada e o modo como o olhar modernista de Mário reinventa o topos em tela. 2. A voz narrativa em Mário de Andrade Para tanto, cabe discorrer, ainda que brevemente, sobre a chamada primeira fase do Modernismo brasileiro, na década de 20, que se caracterizou de modo geral pelo alinhamento às van- guardas artísticas europeias e, consequentemente, à experimenta- ção estética bem como à reflexão aguda sobre a identidade brasi- leira, sobretudo em seus aspectos culturais, linguísticos e sociais, em uma percepção ampla. Em consonância ao desejo de pensar respostas para a inda- gação “O que é o Brasil?”, muitos modernistas aliaram a experi- 28 Aqui, Benjamin tomou como exemplo a narrativa de Heródoto sobre o rei egípcio Psammenit. O historiador seria um narrador exemplar para Benjamin justamente por sua narrativa ter a força de provocar leituras múltiplas sobre os seus significados.
  • 152. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 151 mentação ao pensamento sobre as feições do nacional na opção por escreverem de um modo próximo à oralidade, mimetizando uma linguagem popular e afastada da gramática normativa, como o fizera alguns anos antes Lima Barreto, referência para muitos autores do movimento. A recuperação de um modo de narrar po- tente, com traços profundos da contação popular de história, apa- rece em várias narrativas pertencentes a todas as fases modernistas – primeira, segunda e terceira – nas obras de autores como Mário de Andrade, José Lins do Rêgo e Guimarães Rosa (este em suas alquimias mitopoéticas). Mário de Andrade, pois, segue assim uma senda anunciada como uma possível passagem para a descoberta dupla de aspectos da brasilidade e dos processos experimentais literários. A adoção em seus contos, sobretudos nos compilados posteriormente em Os Contos de Belazarte29 , de um narrador que se assume como depo- sitário de uma história apresentada literariamente como uma con- fissão, como o relato de alguém ou fruto de sua própria experiên- cia, aproxima-o da figura do narrador primordial – embora tam- bém esta apresente as suas especificidades, como veremos. A escrita literária de Mário e as suas opções estéticas nela reverberadas apoiam-se em um projeto complexo de reflexão so- bre o nacional e as suas possíveis vertentes, no qual se empenhou por toda a vida, baseado em questionamentos e discussões inces- santes. Descobrir nuances da cultura brasileira significava trazer à tona possibilidades de marcar a identidade estética do país e vice- versa, em um processo de retroalimentação. Afasta-se de uma no- ção essencialista e exótica do nacional, duvida de quaisquer meios tranquilos para fixá-lo e organiza o seu trabalho de investigação como um modo de operação mental e estética no qual são abertos vasos comunicantes para o diálogo entre o popular e o erudito, a fim de valorizar a primeira e imprimir novas possibilidades à últi- 29 Escritos entre 1923 e 1925. O conto “O Besouro e a Rosa”, foi escrito em 1923.
  • 153. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 152 ma, fora do engessamento deixado pelo verniz europeu, tomado à época como referência artística e de comportamento, tantas vezes criticado por ele. Podemos, portanto, apontar um processo de práxis na obra de Andrade, em um movimento incessante de reorganização, vital para a provocação e a transformação por ele desejadas em meio ao quadro cultural periférico em que se encontrava inscrito. Assim, Os Contos de Belazarte é um dos muitos legados artísticos deixa- dos pelo autor em sua visão literária que abraçava os contextos históricos e culturais como essenciais para se pensar e produzir li- teratura, jamais como um modo de simples referenciação, mas, principalmente, de transformação. Podemos traçar um paralelo en- tre esse olhar e a proposta cubofuturista de Vladimir Maiakovski: “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”. 3. Virgens em mosaico de vozes Enfileiram-se, nOs Contos de Belazarte, marcas anunciado- ras da problematização de formas narrativas tradicionais. A partir do espaço simbólico do subúrbio da cidade de São Paulo são orga- nizados elementos de linguagem que potencializam imagens de decadência, incerteza, ilogismo, fragilidade e desconexão nas quais deslizam os sujeitos ficcionais em contos unidos pela voz narrativa dupla – do narrador e de Belazarte, o qual confiou ao primeiro as histórias narradas30 . A voz narrativa de Belazarte e o narrador primordial possu- em como traço de convergência, como dito, a condição de media- dor, o fato de não assumir a autoria dos contos. Ao contrário, Be- lazarte afirma a sua transmissão pela apreensão da circularidade 30 Não podemos deixar de nos lembrar da presença do narrador mediador também em Macunaíma.
  • 154. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 153 oral de histórias testemunhadas por ele ou por outros. A figura do narrador a quem Belazarte as confia instaura-se como um duplo que se revela e oculta ao mesmo tempo, apoiado na sentença inici- al dos contos: “Belazarte me contou”. A fala/escrita de Belazarte é a de uma voz suburbana e amoral, em confronto com as normas de polidez e de belas-letras, obsoletas para o pensamento sobre um contexto tão anfracto. Embora este seja um tópico presente em boa parte da crítica literária, compreender Belazarte como um alter ego de Mário de Andrade é reduzir a profundidade do jogo de máscaras dos narra- dores tecido pelo escritor. Várias vezes, o autor foi confrontado por essa perspectiva e sublinhou Belazarte como ser autônomo. Essa autonomia há que ser pensada em sua condição ficcional: Eu estou achando que o defeito de certas histórias de Belazarte é que estão um pouco pesadonas de tão compridas porém contra isso não posso nada. É estilo de Belazarte e não meu. Por mais que consi- dere artisticamente esses casos não posso diminuí-los! Não são meus e palavra que não estou fazendo blague. São de Belazarte figura imo- dificável.31 Ao dar voz a Belazarte, o narrador mergulha em seu univer- so desestruturado e em sua linguagem áspera e híbrida tanto no que tange à mescla da oralidade e dos padrões da escrita quanto ao enfrentamento de signos da tradição e da modernidade, na cidade representada em um processo transformador profundo, no qual emergem novos modos de comportamento, sotaques, códigos e tecnologias. Nessa orquestra urbana e precária, o processo de mo- dernização gera novos significados para as formas de viver e os espaços. Aponta o subúrbio como uma potência simbólica no qual as contradições da modernidade expõem-se, em um microcosmo 31 ANDRADE, Mário de. Carta a Carlos Drummond de Andrade, de 23 de novembro de 1926, apud MARQUES, Aline. Uma história que Belazarte não contou. In: Os Contos de Belazarte. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
  • 155. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 154 onde se situam laivos de miséria e conservadorismo, no limite da experiência humana. A fala pessimista e cética de Belazarte tem como matéria- prima as circunstâncias desse mundo. Dentro dele, “O Besouro e a Rosa” foi o seu primeiro conto, segundo depoimento de Mário de Andrade. Além disso, o livro reúne contos diversos, escritos em momentos distintos, com o alinhavo da voz narrativa e da marca- ção de sua situação de mediador (“Belazarte me contou”). O jogo narrativo inserido na mediação e a presença de mar- cas profundas da oralidade (parágrafos grandes, períodos curtos, ausência de pontuação em certos momentos, ritmo oscilante entre a fluência e a dispersão, em alguns poucos momentos) permeiam o texto como traços distintivos a aproximar-lhe do narrador primor- dial (até mesmo do narrador sonhado por Benjamin, a partir da obra de Leskov). Todavia, há elementos que impõe a sua diferen- ça, sobretudo o fato de Belazarte não ser um narrador confiável. Marcas como o emprego do “ou”, “mas não sei não”, “não sei quantas vezes”, “Hmm, me esquecia” (ANDRADE, 2008) estão presentes em todos os contos e revelam um foco narrativo do qual também participam a limitação e a dúvida. Muitas vezes, o narra- dor apresenta uma possível verdade imersa em tranquilidade, para expô-la em seu avesso sinuoso, como na passagem abaixo, reve- lando os desvãos do comportamento humano: “Rosa viera para a companhia delas aos sete anos quando lhe morreu a mãe. Morreu ou deu a filha que é a mesma coisa que morrer” (ANDRADE, 2008). Destarte, o pessimismo é um traço forte da narrativa e in- verte a tradição das histórias primordiais, com os seus finais nos quais as personagens tornam-se “felizes para sempre”. N’Os Con- tos de Belazarte, Rosa foi “muito infeliz” (ANDRADE, 2008) e como ela Carmela, Teresinha... A felicidade só é possível aos lou- cos e aos inconscientes no universo de Belazarte, assim como na
  • 156. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 155 tragédia a hybris (o excesso, a falta do herói) apresentar-se-ia so- mente na brecha da loucura e do erro inconsciente (Cf. LUKÁCS, 2000). Na contramão da tragédia, a inconsciência é o único supor- te para uma vida feliz; qualquer consciência alerta para a condição trágica inerente à vida. Assim, a alegria, na voz de Belazarte, é cerzida pelo avesso: em suas histórias, a felicidade é trágica32 ; ele “não sabe conceber o que seja a felicidade. Quando a busca não acha ou a supõe nos bêbados. É uma limitação amarga e insupor- tável”, como disse o autor no prefácio não publicado de Os Contos de Belazarte (ANDRADE, 2008). Não se trata aqui de uma “felicidade elegíaca” como a afir- mada por Benjamin em “A imagem de Proust” (1994), ou seja, da tristeza contida pela consciência do limite presente na condição de ser feliz. A referência nas narrativas de Belazarte é a de que fora da inconsciência, não há magia possível, pois o mundo revela-se como um espaço de incompreensão de si, do outro, da vida. Se há um momento inicial de crença da personagem em algum rastro do maravilhoso ele se dá como alienação prontamente desconstruída pela mordacidade da voz narrativa (FLORES, 2011). Do mesmo modo, mitos modernos da ideologia burguesa – o elogio da pobre- za e da simplicidade, o recato feminino, a gratidão afetuosa – são dissolvidos, sem piedade, pelo narrador. Faltam a felicidade e as recompensas em um movimento no qual a moral da história inver- te-se em desespero latente. Há a presença nos contos, apesar do caráter circunstancial da narrativa, de um começo semelhante ao pontuado por Vladimir Propp em relação à morfologia dos contos populares, através de si- tuações de dano, proibição e carência. Porém, a estrutura binária 32 Importa aqui retomar a figura de Malazarte, que surge par e passo com a de Belazarte. Como forças que se opõem, Malazarte, oriundo do imaginário popular brasileiro (especi- almente, em torno da personagem folclórica Pedro Malasartes) e Belazarte assumem, respectivamente, o otimismo e o pessimismo frente à vida.
  • 157. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 156 percebida pelo estudioso em tais contos - isto é: dano/reparação; proibição/desobediência que gerará um conflito a ser resolvido; e carência/restituição – é dissoluta em uma teia narrativa que desfaz quaisquer vias para a redenção da moralidade; a reparação é im- possível, a não ser como promessa tênue e logo desfeita, ainda que a revelação sobre o despedaçar do sonho da personagem ocorra em outro conto, como no caso da personagem João, de “O besouro e a Rosa”. Em “O Besouro e a Rosa”, encontramos elementos residuais de um arquétipo presente em mitos arcaicos de várias culturas, como a bíblica, a egípcia e a grega: o da virgem fecundada. Campbell (2008) aponta para a recorrência em múltiplas culturas de narrativas míticas e populares alusivas à figura da virgem como mediadora de um poder transformador, o de ser mãe do mundo ou de seus ícones sagrados, com a capacidade de restaurar a esperan- ça em momentos de angústia, violência e medo. Nos mitos de Europa, Leda e Dânae, Zeus toma a forma de animais – respectivamente, um touro, um cisne – e de chuva de ouro para fecundar as virgens. A força da natureza atua como di- namizadora do cosmo e a mulher é a catalisadora dessa continui- dade; a mudança não a atinge, senão como eventual modo de co- locá-la em uma situação de dificuldades e conflitos, geralmente junto ao seio familiar, que será, todavia, resolvida. O mito mais conhecido da virgem fecundada no ocidente talvez seja o de Maria de Nazaré, na narrativa do Novo Testamen- to. Em um mundo desastroso e repleto de erros, “as pessoas cla- mam por alguma personalidade que em um mundo de corpos e almas confusas representará de novo as faces da encarnação” (CAMPBELL, 2008). Herodes seria um símbolo extremo de vio- lência, egoísmo e desgoverno em face do qual a virgem fertilizaria o poder capaz de domá-lo e restabelecer o equilíbrio.
  • 158. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 157 No conto de Mário de Andrade, Rosa é uma virgem incons- ciente sobre a sua vida e o seu corpo; vive de modo reificado em uma família da qual não participa senão como objeto utilitário concreto e emocional para as duas mulheres que a compõem. A comparação de Rosa com uma virgem santa aparece no começo da narrativa por várias vezes. O narrador a representa como pura e inocente, tal qual “uma freirinha”, uma “santinha”. Entretanto, o olhar narrativo a vê como “santinha represen- tativa que está no altar, feita de massa pintada. A outra, a represen- tada, você bem sabe: está lá no céu não intercedendo pela gente... Rosa si carecesse intercedia. Porém sem saber porquê”. A “santi- dade” de Rosa, portanto, é fruto de sua alienação; seu caráter não é bondoso, mas flácido. Como a santa de massa pintada, a protago- nista do conto é moldada em sua ignorância. E em confronto à tra- dição religiosa, o narrador apresenta a santa do céu como incapaz de interceder. Rosa intercede justamente por ignorar sua subjetivi- dade e seu papel no mundo. São “a pureza, a infantilidade, a po- breza de espírito” que a confinam em uma “redoma que a separava da vida”. Sua santidade não é virtuosa. Não há transcendência, mas alienação em seu papel de santa, derivada da pobreza de sua experiência. O confinamento material e existencial de Rosa será abalado por um evento que catalisa uma transformação radical na persona- gem. À noite, em seu cotidiano e automático ato de deitar-se, a moça esquece a janela aberta, por onde entra um besouro. Sem querer, ela descobre a sexualidade e o seu corpo como potência de prazer com o inseto. A reação de Rosa ao ato sexual grotesco é um misto de nojo e gozo, de desespero e de ruptura com a inconsciên- cia que a dominava. Em uma onda de espasmos e reações físicas assustadoras, ela liberta-se da redoma metafórica em que se en- contrava, sendo encontrada por Dona Ana e Dona Carlotinha “es- pasmódica com a espuma escorrendo pelo canto da boca. Olhos
  • 159. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 158 esgazeados relampejando que nem brasa. (...) Rosa não falava se contorcendo”. (ANDRADE, 2008) Como nos mitos de Leda e Europa, o elemento masculino que desvirgina a moça é um animal. Porém, Rosa não é fecundada, apenas desvirginada. O animal que a possui não é belo e delicado como o cisne e muito menos forte, como um touro. Um besouro é pequeno, nojento, reles, mas é com ele que Rosa descobre-se co- mo ser e goza o seu corpo, rompendo com a redoma da santidade. Por essa via, a simbiose entre humano/animalesco e o grotesco re- velam um movimento próximo à perspectiva do Naturalismo. Ro- sa instaura-se em uma espécie de entre lugar intertextual de repre- sentação, do qual pode dialogar tanto com as virgens fecundadas, em especial com Maria, como com Pombinha, de O Cortiço, des- virginada simbolicamente por um elemento natural como Rosa, no caso pela força do sol, em uma transformação que a leva à degra- dação. No caso de Rosa, a perda da virgindade também a leva à ru- ína psíquica e moral, tal e qual Pombinha, porém por uma via mais sofisticada do que a descrição de um processo de ruína progressi- vo, como ocorre com a personagem de Azevedo. Para Rosa, a vio- lação da virgindade gera o fim da inconsciência e o consequente mergulho na lucidez trágica. Em um movimento de tensão entre força e fragilidade internas, Rosa não suporta a consciência e entra em uma espiral de pulsão que a conduz a um novo momento de desequilíbrio e desespero. Por outro lado, a relação de Rosa com o mito bíblico de Ma- ria não está somente nas alusões à ingenuidade de Rosa no começo da história. Ela se liga, também, à empoderação da personagem, após perder simbolicamente a sua condição de intocada. No mito mariano, a virgem fecundada não é tocada, mas transforma-se fisi- camente com a gravidez e obtém um poder que não é para si, mas para ser dado ao mundo. No conto, a jovem é tocada pelo besouro
  • 160. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 159 em um ato sexual grotesco, que a transforma existencialmente. Ela toma o poder legado pelo ato para si. Rosa torna-se outra, na visão de suas tias/patroas, que assumem o papel metafórico de Herodes, ou seja, da representação do domínio, do egoísmo e da violência simbólica, tão mais fortes, porque veladas, na relação entre ela e as “tias/donas”. A protagonista deixa de ser uma metonímia, al- guém que só usa os “pedaços de corpo” úteis para o serviço do- méstico. Aqui, a violação da virgem catalisa a mudança do seu eu e o desespero da lucidez diante de um mundo miserável como ela. Na trilha de um desejo simbiótico, Rosa anseia casar-se com o besouro que a possuíra. Na impossibilidade, reage com descon- trole e casa-se, literalmente, com o primeiro homem com quem se depara após o episódio do inseto: Pedro Mulatão, bêbado e de- sempregado. O destino de Rosa se casa com a ideia de fatalidade: ela é tomada por uma pulsão pelo casamento, não importava com quem. Ela precisava cumprir aquele destino. Não há recompensa alguma pelos danos sofridos pela personagem e relatados desde o início da narrativa, como nos contos populares, o que contraria a expectativa do leitor que espere encontrar nas histórias de Belazar- te o equilíbrio binário presente nos contos tradicionais. A protago- nista sofre desde a infância, quando é abandonada pela mãe e co- meça a trabalhar em um regime servil travestido de relação famili- ar; em dado momento, aparece João, moço bom, belo e trabalha- dor que se apaixona por Rosa, alimentando as expectativas de um final feliz, em consonância aos contos tradicionais. A teia narrati- va de Belazarte enreda o leitor ingênuo e retira sem piedade a sua esperança: não apenas Rosa continua a sofrer, como o seu príncipe encantado será desprezado, em um desenho narrativo que se repe- tirá nos finais infelizes para sempre da maioria de seus contos. O sofrimento de Rosa continua e, embora a personagem os- cile por três fases de percepção – a alienação inicial; a consciência do corpo e da miséria; e a pulsão enlouquecida, que a empurra pa- ra a semiconsciência –, ele nunca a abandona, e se instaura como
  • 161. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 160 condição de sua vivência, como se a pobreza espiritual e material não tivesse condições de enfrentar os meandros da complexidade amorosa, reduzindo o amor à experiência física. Sem príncipes en- cantados e filhos salvadores, a virgem modernista de Mário tem na ingenuidade um defeito e no desespero um fado. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Os contos de Belazarte. Rio de Janeiro: Agir, 2008. ______. Macunaíma. São Paulo: Klick, 1999. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Re- nascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Edunb, 1993. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BÍBLIA sagrada. Petrópolis: Vozes, [s.d.]. BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CAMPBELL, Joseph. The hero with a thousand faces. Califórnia: New World Library, 2008. COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise e di- dática. São Paulo: Ática, 1993. DAMIÃO, Carla Milani. Sobre o declínio da sinceridade: filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin. São Paulo: Loyola, 2006. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • 162. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 161 FLORES JR., Wilson J. Belazarte e os engodos da modernização brasileira. Revista Garrafa, n. 23, jan.-abr. 2011. LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. MARQUES, Aline. Uma história que Belazarte não contou. In: ANDRADE, Mário de. Os contos de Belazarte. Rio de Janeiro: Agir, 2008. OLIVEIRA, Irenísia Torres. Subúrbio e modernização: os Contos de Belazarte, de Mário de Andrade. XI Congresso Internacional da ABRALIC – Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo: USP, 2008. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. São Paulo: Forense Universitária, 2006. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1987. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Pers- pectiva, 2006.
  • 163. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 162 A REVOLUÇÃO APRENDIZ NAS NARRATIVAS PORTUGUESAS CONTEMPORÂNEAS Jane Rodrigues dos Santos33 RESUMO O presente texto busca refletir sobre o enlace literatura e história, no to- cante ao teor revolucionário presente em ambos os conceitos. Para tanto, são invocadas especialmente as leituras dos romances portugueses Paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão, e Balada da praia dos Cães, de José Cardoso Pires, ambos posteriores à Revolução dos Cravos de 1974. Ob- jetiva-se, sobretudo, refletir sobre as implicações subjetivas, artísticas e fic- cionais do dizer literário em meio ao processo de transição poder-resistência na contemporaneidade. Palavras-chave: Literatura portuguesa. Poder. Resistência. Neste momento em que desejamos refletir sobre a vertente revolucionária da arte nas narrativas portuguesas contemporâneas, vale dedicarmos especial atenção aos dizeres de Félix Guattari, que revelam que entre a intenção de promover revoluções políticas e o desejo revolucionário existem diferenças marcantes: A ideia de micropolítica do desejo implica, portanto, um questio- namento radical dos movimentos de massa decididos centralizada- mente e que fazem funcionar indivíduos serializados. A coincidência entre a luta política e a análise do desejo implica, desde então, que o “movimento” permaneça na escuta constante de qualquer pessoa que se exprima a partir de uma posição de desejo, 33 Doutora e mestra em estudos literários e professora-tutora de literatura portuguesa do curso de letras da UFF, consórcio CEDERJ/UAB. E-mail: [email protected]
  • 164. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 163 mesmo e sobretudo que ela se situe ‘fora do assunto’, ‘fora do sujei- to’. (GUATTARI, 1981, p. 177-178) Portanto, muito mais do que falar do âmbito político do acontecimento revolucionário, o que se almeja é focalizar essas expressões de resistência que se dão principalmente na dimensão da própria escrita (nascida de um dizer fora do assunto), em sua enunciação que supera as impossibilidades do chamado real e, por ventura, no próprio enunciado que prolonga a expectativa de uma ruptura constante com a ordem vigente, resultante ora de posicio- namentos caóticos, ora da reflexão e da mudança de conduta no seio mesmo dos automatismos cotidianos. Para os estudiosos de literatura portuguesa contemporânea, a palavra revolução ganha significado especial, visto que as estó- rias portuguesas recentes giram em torno da Revolução dos Cra- vos. Afinal, no período pós-74, diversos autores recorrem à me- mória e à história recente de seu país para compor seus romances. Os motivos que levam estes autores a optarem por esta releitura, a princípio tomada como histórica, podem ser considerados a partir de dois aspectos: a possibilidade de livre expressão proporcionada pelo fim de um longo período ditatorial, o que significaria poder dizer tudo aquilo que a ditadura obrigou a calar, e a coincidência de serem estes acontecimentos históricos parte expressiva da expe- riência pessoal destes autores que passaram boa parte de suas vi- das sob a égide do salazarismo, sendo eles mesmos integrantes de uma geração marcada pelos absurdos cometidos por um governo, por um poder repressivo e cerceador. Assim nos deparamos com vertentes sobre as quais se torna relevante refletir antes de prosseguirmos em uma análise propria- mente vinculada às produções literárias. São elas: o próprio con- ceito de revolução, suas implicações e a relação entre o fenômeno revolucionário e os sujeitos enquanto agentes de ruptura ou de permanência das estruturas sociais.
  • 165. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 164 Em relação ao conceito de revolução, acreditamos ser ne- cessário pensá-lo para além de uma simples mudança repentina nas estruturas governamentais, econômicas e políticas de um país, para pensá-lo como um processo de longa duração. Aqui nossas reflexões encontraram no pensamento do professor e pesquisador brasileiro de revoluções Lincoln Secco, autor de A Revolução dos Cravos, um ponto de interseção. Pois, segundo Secco: Por que partir de uma crise, de uma revolução? Ela pode conden- sar toda uma história de longa duração caracterizada por tentativas de superação de uma crise histórica. O momento crítico pode ser tanto um ponto de chegada, quanto um ponto de partida (...) Assim, deverí- amos pesquisar o que ajuda e o que atrasa o tempo das flores e da primavera (SECCO, 2004, p. 18). As palavras de Secco servem de mote para pensarmos em outros aspectos ligados ao contexto revolucionário, ou seja, suas implicações e o envolvimento dos sujeitos de uma dada sociedade nos processos de ruptura e de permanência, que são, em última instância, responsáveis pela chegada ou pelo atraso do “tempo das flores e da primavera” ou, no caso português, do tempo dos cra- vos. Objetivando exemplificar algumas destas implicações e des- tes sujeitos, destacamos Paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão, e Balada da praia dos cães, de José Cardoso Pi- res, escrito como Paisagem em 1982 e que toca mais diretamente na questão do fazer revolucionário. Baseado em fatos verídicos, o romance trata da história de uma investigação policial em torno do assassinato do Major Dan- tas C. Crime rapidamente esclarecido, pois, através da prisão da amante do major, Mena, descobre-se em que circunstâncias o mesmo ocorreu. Dantas C., líder de uma conspiração fracassada que desejava depor o governo de Salazar, fora morto pelos seus companheiros de revolução. A motivação do crime: o major, obje- tivando alucinadamente testar a fidelidade do grupo que comanda-
  • 166. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 165 va, tornara insuportável a vida na Casa da Vereda (esconderijo dos rebelados), impondo ao grupo toda sorte de torturas e demais me- canismos repressivos, criando, assim, uma espécie de segunda di- tadura. Ao fazer um recorte analítico nesta obra, no sentido de pen- sarmos as revoluções, suas possibilidades e impossibilidades, en- focaremos as relações no interior deste grupo de conspiradores, não nos dedicando aqui aos outros núcleos da narrativa também relevantes na construção do romance. Quando utiliza a história de um grupo antissalazarista como matéria ficcional, Cardoso Pires obtém um duplo efeito: reproduz no microcosmo deste grupo revolucionário elementos presentes no macrocosmo da sociedade portuguesa, compondo, assim, um pai- nel metonímico do seu país, ao mesmo tempo em que produz uma escrita de margem, pois subverte a posição tradicionalmente biná- ria, na qual a releitura da história portuguesa se dá por meio das estórias de algozes e vítimas. Cardoso Pires subverte esta posição binária, uma vez que mostra um grupo antissalazarista, que, além de não interferir efetivamente na construção de uma sociedade me- lhor, termina por se autodestruir, justamente porque encarna al- guns dos preceitos que sustentaram a ditadura que a princípio se desejava derrubar. Lancemos, então, um olhar mais cuidadoso sobre cada um dos componentes desse grupo formado por: Luís Dantas C., o ar- quiteto Fontenova, o cabo Barroca e a jovem Mena, olhar que po- de esclarecer a razão do fracasso de seu intento revolucionário. Fontenova é descrito no romance como alguém que, acima de tudo, tinha uma necessidade de proteger, de ajudar os oprimi- dos. Logo, mais do que um intelectual revolucionário, o arquiteto era alguém que se colocava a favor da justiça e do direito à liber- dade. A escolha de um arquiteto como aquele que planeja um mundo mais justo tece uma interessante interseção entre esse per-
  • 167. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 166 sonagem e o Horácio de Paisagem, também um arquiteto que pla- nejava a construção de uma sociedade mais justa e solidária. O cabo Bernardino Barroca é apresentado pelo narrador como “desertor em parte incerta” (PIRES, 1982, p. 66), o que se justifica inteiramente, tendo em vista que, desde o início, este per- sonagem não se mostrou engajado com a causa revolucionária, sendo apenas levado pelas circunstâncias a fazer parte do grupo de conspiradores. Na realidade, seu maior desejo era ir para “a doce França” onde “estava a guerra sua e não ali, nos ocos da revolu- ção”. (PIRES, 1982, p. 68) Já o comportamento do major Dantas C. revela uma associ- ação curiosa com os mecanismos do governo de Salazar. A come- çar pelo modo como manipulava as informações que podiam ou não chegar aos seus companheiros, fazendo da Casa da Vereda uma espécie de mundo fechado, no qual imperava a censura. Mesmo o disfarce de padre utilizado pelo major em suas saídas se- cretas ironicamente simboliza um dos sustentáculos do governo salazarista: a igreja. Somando-se a todos estes fatores, temos a forma perfeita- mente ditatorial com a qual o major desejava liderar os demais membros do grupo, transformando-os pouco a pouco em conspira- dores, não do governo salazarista, mas da ditadura imposta por ele mesmo, Dantas C. Último elemento do grupo a ser analisado, a jovem Mena, à margem do dilaceramento presente em diversos aspectos do ro- mance, ganha relevo por sua expressão sólida, vital, potente. Por- que, embora tenha sido uma vítima constante das agressões do ma- jor, Mena mantém uma potência que em tudo contrastava com a impotência física e moral de seu amante. Pois, se por um lado o major exercia um poder condigno perante o grupo, por outro lado era um homem que sofria de uma forma "dramática de solidão", afinal todos os setores e indivíduos que lhe prometeram apoio o
  • 168. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 167 abandonaram, ninguém mais acreditava na possibilidade de reali- zar, naquele momento, uma revolução. Deste modo, Dantas C. passa a viver imerso naquilo que Freud chama de delírio: (...) pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a na- da. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; al- guém que, na maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. (FREUD, 1974, p. 100) A relação de Dantas C. e Mena assemelha-se a outras duas relações entre casais descritas por Teolinda Gersão em O silêncio e em O Cavalo de Sol, onde respectivamente se confrontam Lídia e Afonso, Vitória e Jerônimo. No primeiro casal, Afonso, experi- mentando a impotência de suas palavras, esbofeteia Lídia, antes que ela o abandone: (...) tentarás calar-me, mas não podes, não poderás nunca mais, (...) todas as palavras são minhas (...) então ele a esbofeteou, porque não encontrava nenhum modo de parar de ouvi-la, porque era de repente o fim daquela casa breve, ela ia se embora e ele não podia mais pren- dê-la (...) Havia dentro dele um ódio que se estendia a todas as coisas do mundo. (GERSÃO, 1984, p. 124) No segundo casal, Vitória (cujo nome é em si mesmo o anúncio de um destino), apresenta como Mena uma expressão po- tente, afinal experimenta fisicamente o prazer de posicionar-se di- ante da vida (nada, cavalga...) e, em muitas cenas, agiganta-se em cima de um cavalo, rompendo com a tradicional imagem do ho- mem como ser predestinado à aventura; ao passo que o noivo mos- tra-se covarde no trato com a vida, sendo apenas capaz de cometer crueldades de toda espécie. Estes homens terminam como Dantas C., mortos, física ou emocionalmente. Mas no romance cardosiano os assassinos do major também não conseguem, através de um ato de desespero, realizar seus desejos. Apenas tornam-se sujeitos aniquilados pela
  • 169. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 168 ação violenta que cometeram, não em nome de seus ideais, e sim, por seguirem uma estranha lógica de autodefesa. Quem nos dá a dimensão dramática desta lógica é o arquiteto Fontenova, ao dizer: Eu creio que o medo é (...) uma forma-limite também, porque corresponde à ruptura do equilíbrio do indivíduo com aquilo que lhe é exterior. Mas o pior é que essa ruptura acaba por criar uma lógica de defesa, eu pelo menos apercebi-me disso, a lógica do medo vai esta- belecendo certas relações alienadas de valores até um ponto em que se sente que o medo se torna assassino. Arq. Fontenova, em conversa com o Autor, verão de 1980. (PIRES, 1982, p. 254) A trajetória de Mena, muito diversa das protagonistas de Gersão, mostra-se reveladora desta dramaticidade, pois o rompi- mento da aliança amorosa simbolicamente representado pela ven- da da corrente de ouro, dada por Dantas C.: “Curvou-se e levou as pontas dos dedos ao tornozelo marcado: Adeus anilha de ouro, adeus voto de alcova, que regresso ao meu natural”. (PIRES, 1982, p.105), não significou um passo rumo à liberdade. Com a morte do major, Mena liberta-se de todos os elos com o amante, porém, passa a ter as marcas de uma algema, sempre a lembrá-la da triste realidade da prisão, a prendê-la, a fazê-la perambular en- tre os tempos de horror que viveu ao lado do amante e o presente melancólico da cela da judiciária. Não só ela, como o arquiteto e o Barroca transformam-se em semimortos, visto que estão condena- dos a passar suas vidas “pelos jazigos gradeados que são as peni- tenciárias do país”. (PIRES, 1982, p. 14) O destino destes personagens de Cardoso Pires revela que entre as ações e os desejos, frequentemente, os indivíduos desli- zam em um extenso campo de impossibilidades e contradições. Talvez porque, como pensou Marx, os “homens fazem a sua pró- pria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade, em cir- cunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas, transmitidas” (MARX, 1982, p. 21). Assim, submetidos ao período salazarista e a suas condi- ções históricas, cada um destes personagens age de acordo com o
  • 170. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 169 que lhes parece possível, ainda que suas ações caiam em uma es- pécie de vazio revolucionário. Mas qual ou quais seria(m) a(s) razão(ões) para esta ausên- cia de perspectiva revolucionária? Pensemos, antes de responder a esta indagação, que promover uma revolução significa reunir pes- soas ou setores da sociedade em torno de um projeto que seja, acima de tudo, solidário. Ocorre que por motivos diversos estes personagens rompem ou se alienam deste pacto de solidariedade, fundamental para a re- alização de um projeto revolucionário. Vejamos: o grupo do major Dantas C. rompe com os seus ideais revolucionários porque seus membros passam a agir de acordo com uma lógica de ação e rea- ção, alienando-se daquilo que a princípio os unia. O major por de- sejar fazer uma revolução impositiva e não solidária, demonstran- do que sua constituição enquanto sujeito estava ainda muita arrai- gada aos valores do sistema em que almejava por fim. Os seus ex- -companheiros porque, ao reagirem às agressões do líder com um ato de extrema violência, no sentido mesmo de defenderem o prin- cípio primordial da sobrevivência, esquecem-se de que para além da ditadura de Dantas C. existia aquela de Salazar e esta sobrevi- veria à morte do major. Entretanto, se a narrativa principal (investigação e reconsti- tuição do assassinato), apresenta-se distópica, uma outra sutilmen- te se manifesta e nela se pressente a expectativa por uma espécie de revolução apolítica34 . Isto se dá, por exemplo, quando o inves- 34 Toda a narrativa de Balada da Praia dos Cães propõe uma espécie de leitura dual, por assim dizer, dos personagens e de tudo que os cerca. Em um capítulo deste romance in- titulado Bazar Ortopédico, ao mesmo tempo em que o narrador semeia elementos repre- sentativos da ortopedia social de que fala Foucault, quando descreve as sociedades dis- ciplinares, concede às próteses e demais ortopédicos características de um movimento latente, ameaçador da imobilidade vigente.
  • 171. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 170 tigador Elias Santana se põe a observar uma loja de ortopédicos e a voz narrativa diz: Cada calçada a pino, cada loja com o seu carrinho de inválido ex- posto à porta como se estivesse à espera da ordem de partida para um rally-supresa. Vistas de cimo da rua, aquelas cadeiras resplandecentes parecem prontas a rolar a qualquer momento pelo plano inclinado abaixo, ganhando velocidade, altura e desaparecem como máquinas loucas sobrevoando os telhados da cidade. (PIRES, 1982, p. 79) Tal situação difere da do romance de Lobo Antunes, Os Cus de Judas, em que no plano do enunciado se apresenta um protago- nista e narrador que, a partir de sua experiência traumática como ex-combatente na guerra de Angola, torna-se um sujeito que desa- credita de certos ideais humanos, especialmente, aqueles ligados à utopia revolucionária. Isto porque ao vivenciar empiricamente os males da guerra, duvida daqueles que estando muito longe dos conflitos pregam discursivamente o fim da ditadura: (...) queria achar-me em Paris a fazer revoluções no café, ou a doutorar-me em Londres e a falar do meu país (...) falar da choldra do meu país para amigos ingleses, franceses, suíços, portugueses, que não tinham experimentado no sangue o vivo e pungente medo de morrer, que nunca viram cadáveres destroçados por minas ou balas (...) aguardar tranquilamente, desdenhando minha terra, que os assassinos a libertassem, que os chacinados de Angola expulsassem a escória covarde que escravizava a minha terra, e regressar então, competente, grave, sábio, social-democrata (...) (ANTUNES, 1984, p. 143) A guerra e sua realidade vazia de ilusões fizeram com que este sujeito não estabelecesse os tão importantes laços de solidari- edade (nem mesmo com os outros combatentes), tornando-se um indivíduo solitário, portador de um discurso marcado por um ceti- cismo, que inviabiliza qualquer projeto revolucionário. É assim “um homem para quem não se telefona e cujo telefona ninguém espera, tossindo de tempos em tempos para se imaginar acompa- nhado (...)”. (ANTUNES, 1984, p. 50)
  • 172. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 171 No plano da enunciação, embora a escrita do romance im- ponha, em si mesma, uma resistência à leitura plácida - travando neste sentido um combate com a linguagem meramente fascista do cotidiano - esta resistência acompanha, de certa forma, o sentido solitário da obra, pois advém de ser este um discurso pautado em fragmentos de memória de um sujeito que se põe a falar, sob efeito do álcool, a uma ouvinte, que não interage em momento algum com o narrador. Já Paisagem com mulher e mar ao fundo amplia o sentido revolucionário em todos os níveis. Na enunciação, aposta em um jogo de experiências estéticas que se estende de algum modo por todas as obras de Gersão, produzidas nos anos 80, como menciona Isabel Pires de Lima: Durante a década de 80, a obra de Teolinda Gersão foi marcada por (...) uma clara propensão experimentalista, que subordina a linea- ridade narrativa a diversos processos de decomposição, a movimentos de descontinuidade, a rupturas súbitas e a um procedimento simultâ- neo de autodescrição reflexiva. (LIMA, 2002) No enunciado, muitos são os modos de resistência apresen- tados, porém convém destacar a nota introdutória deste livro, dan- do continuidade à nossa reflexão de que qualquer movimento que se espera que seja revolucionário deva prioritariamente basear-se em laços de solidariedade: (...) o texto também não é meu. De diversos modos foi dito, gritado, sonhado, vivido por muitas pessoas, e por isso o devolvo, apenas um pouco mais organizado debaixo desta capa de papel, a quem o reco- nheça como coisa sua.35 A partir deste dizer inicial já se evidencia o sentido do pró- prio texto, ou seja, a sua vontade solidária de compartilhar a ale- gria de transformar a realidade. Mas é importante notar que o que se assiste não é uma revolução pronta e sim uma revolução apren- 35 Nota introdutória de Paisagem com mulher e mar ao fundo, 1985.
  • 173. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 172 diz, visto que a personagem central Hortense ensaia modos de vi- ver. Justamente, é nesta sucessão de ensaios que as “paisagens” particulares da protagonista irão se defrontar com as “paisagens” públicas, auxiliando na composição do ciclo resistência, desistên- cia e resistência no qual gira Hortense. Os fluxos memorialísticos da personagem tecem o cruza- mento das duas paisagens (privada e pública), sendo interessante notar que a juventude da Hortense é marcada pela indefinição de uma paisagem pessoal, sabendo somente o que negar e não o que acolher: (...) rompendo barreiras mas fugindo sem norte, sabendo o que recu- sava mas demasiado espavorida para saber o que aceitaria (...). As falsas casas anteriores derrubadas, desfeitas; a verdade dentro de si como uma pedra (...) (GERSÃO, 1985, p. 71) E como destaca Magalhães: Nesta fase do seu percurso há um paralelo possível entre ela e a Lídia de O Silêncio: ambas vivem uma atitude de recusa e de procura ainda informe, mas deixando-nos O Silêncio nessa fase de ‘ruptura de barreiras’ sem que Lídia veja ainda uma pista para o terreno onde po- derá lançar raízes. Entretanto Hortense (...) parece estar a viver a con- tinuação da vida de Lídia numa das possíveis e múltiplas ‘saídas’ que O Silêncio deixara antever: a ‘fixação num solo’ onde se sente bem. É certo que ambas procuravam através do homem uma saída, mas Lídia recusou Afonso porque a sua ‘ordem’ inalterável não era a sua; pelo contrário Hortense aceitou Horácio, talvez porque ele era outro tipo de homem provavelmente até mais próximo do modelo que Lídia procurava. (MAGALHÃES, 1987, p. 437) Depois, com o casamento, predomina uma oposição das “paisagens” exteriores e da paisagem interior da casa de Hortense. Uma incongruência velada, só posta em questão, quando a prota- gonista depara-se com a experiência de luto pela morte do marido e do filho, ambas as mortes ocorridas e ocasionadas na/pela “pai- sagem” exterior (ambiente emblematicamente ditador). Entretanto, como se viu, o luto é mais uma mola propulsora para a personagem lançar-se a novas maneiras de viver, agora não
  • 174. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 173 mais artificialmente desvinculada do social, mas, ao contrário, ob- servando-o criticamente, como ocorre durante a festa do Senhor do Mar, em que a consciência de Hortense se prolonga na ação da coletividade ali apresentada: (...) a imagem cai, rasgando o pano de cetim que reveste o andor (..) os homens surgem à luz do dia, exaustos, despindo as opas e os casa- cos (...) os anjos tiram as asas e são apenas crianças fatigadas (...) é um milagre, diz o povo e acorre, porque a festa se alterou e nada do que aconteceu era previsível, nos termos do programa (GERSÃO, 1985, p. 114) A descrição às avessas da festa do Senhor do Mar revela, além da união de Hortense com a coletividade (coincidindo, não por acaso, a superação de seu luto pessoal com a superação do longo luto do povo português), o modo como a autora pensa a re- volução, não tanto presa aos ditames da História, de que fala Marx, e sim como possibilidade ilimitada de uma estória inventiva e transformadora. Uma prova da opção da autora pela releitura do pós-74, menos comprometida com a História e mais comprometi- da com a estória, está no papel privilegiado que concede às crian- ças e aos artistas em suas obras. Afinal estes indivíduos, por exce- lência, não almejam propor verdades, simplesmente vão experi- mentando a vida, concedendo um pouco de “possível” que permita uma saída aos sufocantes agenciamentos do poder, ainda que este possível seja volátil como a imaginação: Vivia então a experiência intensa de criar: pintar era para ela um abrir de brechas no opaco quotidiano: a loucura de pendurar um qua- dro na parede e de encontrar para ele um álibi ingênuo e manso: ras- gar uma brecha por onde um outro universo entrasse, abrir um pássa- ro, uma luz, uma janela na parede dos dias. (GERSÃO, 1985, p. 74) O artista e a criança (que ganham destaque nas obras pós-90 da autora) são aqueles que obtêm um duplo efeito na escrita dos romances, por um lado utilizam-se sem pudor da imaginação para construir outras leituras do real e, por outro lado, são capazes de denunciar as hipocrisias e temores sociais, mascarados de bem-
  • 175. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 174 estar. Bauman em O mal-estar da pós-modernidade (1998, p.52) fala destes temores que chama de “demônios interiores”: Todo tipo de ordem social produz determinadas fantasias dos perigos que lhe ameaçam a identidade. A sociedade insegura da sobrevivência de sua ordem desenvolve a mentalidade de uma fortaleza sitiada. Mas os inimigos que lhe sitiaram os muros são os seus próprios “demônios inte- riores” – os medos reprimidos e circundantes que lhe permeiam a vida di- ária e a normalidade. (BAUMAN, 1998, p. 52) Lídia, de O silêncio, denuncia a natureza destes medos ou demônios interiores ao falar do perigo de se desejar viver em uma sociedade sem perigos e sem desordem, com árvores de plástico que não sujem as ruas com suas folhas de outono, com um mar também de plástico em que há uma densidade calculada para que ninguém se ofegue. Uma sociedade em que as pessoas necessitam de substâncias químicas (tranquilizantes e drogas) ou sessões de terapia em grupo para reaprenderem a amar e para aplacarem suas angústias diárias. Hortense e Lídia apostam em uma outra forma de viver e parecem proferir em eco: “Não há outro valor por que lutar senão pela liberdade de inventar a esperança, aceitando a possibilidade do desastre”. (GERSÃO, 1984, p. 119) Assim, pela sua arte e pela superação corajosa do luto, a protagonista de Paisagem demonstra compreender aquilo que diz Guattari sobre a revolução: A enunciação individuada é prisioneira das significações domi- nantes. Só um grupo sujeito pode trabalhar os fluxos semióticos, que- brar as significações, abrir a linguagem para outros desejos e forjar outras realidades! (GUATTARI, 1981, p. 179) Em outras palavras, Hortense percebe a inexistência de uma linha divisória do espaço público e do espaço privado. Percebe, enfim, que, em realidade, ao optar por tecer caminhos individuais de resistência, o indivíduo termina por cair na sedução da desis- tência ou a agregar-se aos interesses do sistema. Essa tomada de consciência da personagem fica bem marcada quando evita que Clara se suicide e pensa: “(...) não é só fora de nós que é preciso
  • 176. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 175 mudar o universo, é também dentro de nós que está a tentação do caminho mais fácil, a voz da resignação, do desespero e da mor- te.” (GERSÃO, 1985, p. 146). A leitura dessas obras reafirma nossa ideia de que uma re- volução se faz de movimentos oscilantes, de fluxos e refluxos ou como dissemos inicialmente: a revolução é um fenômeno de longa duração e, sendo assim, determinar onde começa e termina não é fácil e, talvez, nem mesmo válido estabelecer. Voltando ao ano da publicação tanto de Paisagem com mu- lher e mar ao fundo quanto de Balada da praia dos cães, 1982, importa destacar uma interessante reflexão acerca da Revolução dos Cravos (1974). Notemos que ambos os romances optam por empreender um retorno aos anos ditatoriais para compor o cenário e o enredo de suas histórias. Ocorre que a ditadura de Salazar du- rou quatro décadas e os autores escolhem diferentes momentos desta ditadura para serem retratados. Cardoso Pires regressa ao ano de 1960, época considerada emblemática da ditadura salaza- rista, que parece servir de paradigma para se pensar, tal como fez Foucault, nas consequências mais invisíveis do poder. Isto é: pen- sar como o poder, fazendo uso de mecanismos repressivos ou ide- ológicos, pode interferir na constituição dos sujeitos, nas suas ações e relações pessoais/ afetivas. Analisemos: 1982 é o ano em que o Conselho da Revolução foi abolido e talvez este fato tenha influenciado na opção do autor por contar a história de uma tentativa de revolução fracassada, re- velando aí uma visão distópica em relação aos acontecimentos, sobretudo, políticos do pós-74, que, realmente, mostraram-se per- meados por contradições. Gersão, no entanto, escolhe narrar os anos finais da ditadura apostando na manutenção do sonho revolucionário e no que pode- ria ter sido a revolução, emergindo daí uma bela descrição do momento em que esta eclode:
  • 177. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 176 (...) tomar a cidade de assalto. De madrugada saltando em terra, en- quanto as pessoas dormiam. Ocupando todas as saídas da cidade, a rádio, a televisão, os quartéis, o aeroporto. (...) abraçam os soldados levando flores na mão (...) (GERSÃO, 1985, p. 124-125) Como menciona Magalhães: “Paisagem com mulher e mar ao fundo encerra afinal uma promessa dessa possibilidade de mu- dança, a possibilidade escondida na semente (...)” (MAGA- LHÃES, 1987, p. 455) Quanto ao fim do romance, cabe ainda observarmos a simi- laridade entre o nascimento do neto de Hortense e a saída de Lídia da casa do amante. Em O silêncio diz-se “caminhando, abrindo passagem com o corpo, uma pequena figura entre outras” (GER- SÃO, 1984, p. 124) e em Paisagem “um pequeno corpo húmido, perfeito, sufocado, abrindo uma passagem, experimentando brus- camente o ar e o espaço, o choque da sombra contra a luz (GER- SÃO, 1985, p. 147)” Para nós leitores e indivíduos pertencentes a um tempo marcado pela derrocada de líderes carismáticos e que vivemos a era do sujeito descentrado, uma espécie de ensinamento pode ser retirado destes romances e quem o sintetiza é Eagleton, quando diz: Com efeito, o famoso sujeito descentrado soou como um escândalo para aqueles muito cheios de si. Ele também ajudou a esvaziar uma esquerda política que achava que o negócio era simplesmente agir em vez de problematizar a natureza do agente, ou seja, eles mesmos. (EAGLETON, 1998, p. 91) Logo, o caminho para as revoluções possíveis passa antes pela reflexão em torno de nossas próprias ações e pela aceitação da diferença do outro, atitude que soa muitas vezes como caótica (sendo o caos necessário à mudança como se viu nos romances de Gersão), porém, é, acima de tudo, democrática.
  • 178. Linguagem em (Re)vista, Ano 09, Nos 17-18. Niterói, 2014 177 REFERÊNCIAS ANTUNES, Lobo. Os cus de judas. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 20. ed. Rio de Janei- ro: Graal, 2004. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão; o mal-estar na civili- zação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. GERSÃO, Teolinda. O cavalo de sol. Lisboa: Dom Quixote, 1989. GERSÃO, Teolinda. O silêncio. 3. ed. Lisboa: O Jornal, 1984. GERSÃO, Teolinda. Paisagem com mulher e mar ao fundo. 3. ed. Lisboa: O Jornal, 1985. LIMA, Isabel Pires de. Ainda há contos de fadas? O caso de “Os Anjos” de Teolinda Gersão. Semear – Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio/catedra/resvista/semiar>. Acesso em: 30-08-2006. MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. MARX, Karl. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. Lisboa: Avante! 1982. PIRES, José Cardoso. Balada da Praia dos Cães. Lisboa: O jor- nal, 1982. SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004.