Narrativas quilombolas:
dialogar – conhecer – comunicar
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 3
SUMÁRIO
São Paulo
2017
Acácio Sidinei Almeida Santos
Sérgio Augusto Queiroz Norte
Organizadores
Renato Ubirajara dos Santos Botão
Silvane Silva
Narrativas quilombolas:
dialogar – conhecer – comunicar
SUMÁRIO
SUMÁRIO
ORGANIZAÇÃO
Renato Ubirajara dos Santos Botão
Silvane Silva
REALIZAÇÃO
Núcleo de Inclusão Educacional
AUTORES
Acácio Sidinei Almeida Santos
Sérgio Augusto Queiroz Norte
ELABORAÇÃO DAS ATIVIDADES
Carmen Lucia Campos
COORDENAÇÃO, ELABORAÇÃO E REVISÃO DO MATERIAL
TRANSCRIÇÃO DAS NARRATIVAS
Camila Matheus da Silva
EDITORAÇÃO DAS NARRATIVAS
Bóris Fatigatti
GRUPO DE REFERÊNCIA NA REALIZAÇÃO
DAS RODAS DE CONVERSA NAS COMUNIDADES
Amador José Marcondes Garcia - DE Caraguatatuba
Aparecida de Fátima dos Santos Pereira - DE Registro
Cleonice Maria Vieira- DE Votorantim
Ilza Looze - DE Apiaí
Jefferson Roberto de Castro - DE Apiaí
Maria Helena Zanon Salvador - DE Registro
Foto da capa: Quilombo Cangume - Itaoca - SP | ©Acervo NINC/SEE-SP.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
GOVERNADOR
Geraldo Alckmin
VICE-GOVERNADOR
Márcio França
SECRETÁRIO DA EDUCAÇÃO
José Renato Nalini
SECRETÁRIA ADJUNTA
Cleide Bauab Eid Bochixio
CHEFE DE GABINETE
Wilson Levy Braga da Silva Neto
COORDENADORA DE GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Valéria de Souza
DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO CURRICULAR E GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Regina Aparecida Resek Santiago
DIRETOR DO CENTRO DE ATENDIMENTO ESPECIALIZADO
Cristiano de Almeida Costa
NÚCLEO DE INCLUSÃO EDUCACIONAL
Carolina Bessa Ferreira de Oliveira
Julieth Melo Aquino de Souza
Renato Ubirajara dos Santos Botão
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 5
Sumário
Prefácio.................................................................................................................................................... 7
Apresentação........................................................................................................................................ 11
Contadoras e contadores............................................................................................................ 15
O método....................................................................................................................................... 16
Uso didático das narrativas........................................................................................................ 18
Africanos no Brasil....................................................................................................................... 27
A resistência africana e afro-brasileira à escravidão............................................................... 28
As várias formas de resistência e combate à escravidão........................................................ 30
Capítulo 1 – Quilombos, comunidades de valores....................................................................... 37
O que é, oficialmente, um quilombo?....................................................................................... 38
Capítulo 2 – Memória coletiva.......................................................................................................... 49
Conversando sobre a vida de antigamente.............................................................................. 49
Capítulo 3 – Práticas culturais.......................................................................................................... 59
Línguas reminiscentes................................................................................................................. 59
Conheça algumas línguas africanas que vieram para o Brasil.............................................. 61
Festejos e tradições...................................................................................................................... 63
Alimentação.................................................................................................................................. 71
Conversando sobre cura de doenças e parteiras..................................................................... 74
Ritos de morte.............................................................................................................................. 82
Capítulo 4 – Valores civilizatórios................................................................................................... 87
Família e socialização.................................................................................................................. 87
Terra............................................................................................................................................... 97
Associação................................................................................................................................... 103
Produção: roça, produtos artesanais e turismo étnico.......................................................... 107
Então, até breve.......................................................................................................................... 115
Referências bibliográficas............................................................................................................... 121
Quilombo São Pedro - Eldorado - SP.
©Genivaldo
Carvalho/IMESP
Fernandes Dias
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 7
SUMÁRIO
Prefácio
Em março de 2012 ingressei no Núcleo de Inclusão Educacional da Secretaria de Estado
da Educação de São Paulo, com a responsabilidade de implementar as Diretrizes Na-
cionais para Educação Escolar Quilombola, juntamente com o professor Renato Ubirajara.
Para esta difícil tarefa iniciamos os trabalhos com uma reunião com as lideranças das comu-
nidades quilombolas de Eldorado na EE Maria Antônia Chules Princesa. Nesse momento a
preocupação das lideranças era com a falta de material didático que contasse a história das
populações negras no Brasil, em especial as histórias dos quilombos, de uma maneira que
valorizasse o direito à posse e permanência na terra, bem como os modos de vida quilom-
bola. Foi então que decidimos registrar as histórias das comunidades para que fossem utili-
zadas como recurso didático. Ouvimos as/os quilombolas por meio de “rodas de conversa”
em 13 comunidades quilombolas do Estado de São Paulo. Deste primeiro contato resultaram
mais de 60 horas de gravações em áudio. As conversas foram transcritas e selecionados os
temas que mais apareceram: terra e território, valores, identidade, festejos e personagens
importantes. Convidamos dois professores doutores especialistas em História da África e
História Afro-brasileira para escrever textos introdutórios às narrativas, Acácio Almeida e
Sergio Norte e a professora Carmem Lucia Campos, com vasta experiência na publicação de
paradidáticos, para elaborar atividades com base nas narrativas.
Consideramos um passo importante a publicação desse material não apenas por pos-
sibilitar mais subsídios didáticos para as/
os educadoras/es que trabalham com estudantes
quilombolas, mas principalmente para que as/os próprios estudantes possam se apropriar
da história das/dos suas/seus mais velhas/
os não como folclore ou lenda, mas como His-
tória do Brasil com H. Na historiografia brasileira são poucos os trabalhos que falam dos
quilombos contemporâneos, como se estes tivessem ficado congelados no passado. As co-
munidades quilombolas estão aí presentes, mais vivas e potentes do que nunca. São mais
de 5 mil no Brasil e mais 80 no Estado de São Paulo. Essa história precisa ser conhecida e
valorizada por todos as/os estudantes e educadores/as.
8 Prefácio
SUMÁRIO
Muito ainda está por ser feito na implantação das Diretrizes Nacio-
nais para Educação Escolar Quilombola: construção de escolas, formação
de professores quilombolas, legislação específica para o funcionamento
das escolas quilombolas. Para tratar dessas questões foi criado o Conse-
lho de Educação Escolar Quilombola do Estado de São Paulo. Como diz o
poeta “um passo à frente e não estamos mais no mesmo lugar”. Que ve-
nham muitos mais materias didáticos construídos juntamente com as/
os
quilombolas.
Seu Ditão, griô do Quilombo Ivaporunduva, sempre nos ensina
que em se tratando de quilombo não existe o eu, existe o nós. Portan-
to, meus mais sinceros agradecimentos a todas as/os quilombolas que
fizeram e fazem História e que generosamente compartilharam algumas
dessas histórias conosco. A Renato Ubirajara, parceiro de todas as horas,
aos especialistas que gentilmente cederam seus conhecimentos: Acácio
Almeida, Sergio Norte, Carmen Lucia Campos, Bóris Fatigatti que reali-
zou a editoração das narrativas, Camila Matheus que realizou exaustivo
trabalho de transcrição. Às educadoras e aos educadores que colabora-
ram para a realização desse material nas Diretorias de Ensino das regiões
de Apiaí, Caraguatatuba, Registro, Votorantim e no Núcleo de Inclusão
Educional (NINC) da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. À
Imprensa Oficial pela edição final. E também à professora Maria Eliza-
bete da Costa e Sergio Roberto Cardoso que acreditaram no projeto de
publicação quando era ainda apenas uma ideia.
Silvane Silva
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 9
SUMÁRIO
Boneca Abaiomi, Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP.
©Fernandes
Dias/IMESP
Prefácio
10
SUMÁRIO
Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP.
©Silvane
Silva
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 11
SUMÁRIO
Apresentação
“§ 2º A Educação Escolar Quilombola:
I – organiza-se precipuamente o ensino ministrado nas instituições educacionais,
mas fundamenta-se, informa-se e alimenta-se da memória coletiva, línguas
reminiscentes, marcos civilizatórios, práticas culturais, acervos e repertórios orais,
festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural
das comunidades quilombolas de todo o país;”
MINISTÉRIO DAEDUCAÇÃO. Resolução CNE/CEB 8/2012. Diário Oficial da União, Brasília,
21 de novembro de 2012, Seção 1, p. 26.
O livro Narrativas quilombolas: dialogar - conhecer - comunicar representa uma parte da
resposta oferecida pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo - SEE/SP,
por meio do Núcleo de Inclusão Educacional/NINC à demanda colocada pelas comunida-
des quilombolas. O livro tem como objetivo oferecer possibilidades para a utilização de ele-
mentos do patrimônio material e imaterial quilombola em sala de aula. A educação tradicional
quilombola é amparada em valores da oralidade que orientam e dão sentido à vida em comu-
nidade. Por isso, é possível considerar o patrimônio material e imaterial quilombola enquanto
portadores de uma dimensão didática, enquanto instrumentos de transmissão de cultura, his-
tória e tradições, cujo conhecimento, além de ser imprescindível no diálogo intercultural, pode
contribuir para a melhoria da qualidade do sistema educacional, oferecendo novos recursos
pedagógicos, pensados a partir de realidades particulares.
No dia 29 de setembro de 2003, a Unesco adotou uma convenção para a salvaguarda do
patrimônio cultural imaterial.
O patrimônio cultural imaterial compreende as tradições e as expressões orais, as artes,
as práticas sociais e rituais, os conhecimentos e práticas concernentes à natureza e ao universo,
os saberes e fazeres ligados ao artesanato tradicional. E o principal meio de transmissão desse
patrimônio imaterial é a oralidade.
12 Apresentação
SUMÁRIO
Por isso, nas sociedades tradicionais, o conto é um dos
meios mais utilizados para transmitir o patrimônio cultural
de uma geração a outra. A ele cabe o domínio do maravilhoso,
do irreal e do imaginário.
Eu já vi. Ver não, já ouvi perto assim. Eu tava numa casa – isso
também que aconteceu é novo – eu tava numa casa trabalhando,
tirando palmito também, e peguei um companheiro pra trabalhar
comigo, que é parente nosso, filho de [ ]. Aí, quando era de
manhã, a gente deixava as panela lá em cima assim do negócio
lá, da tarima – a gente fala tarima, sabe, não é mesa, é tarima –
aí começava. Dava umas quatro e meia, cinco hora, começava
barulho na panela, igual que ponhava água na panela, igual que
tirava, igual que tirava do lugar... Aí eu falei pro companheiro; ele
falou assim: “Nossa, mas cê viu mesmo?”. Falei: “Eu vi”. “Então,
cê me chama pra mim ver também?” Falei: “só que tem uma coisa,
é... você tem coragem pra ver?”. Aí ele pensou um pouquinho e
falou: “É, eu tenho sim coragem”. Eu falei: “Porque se cê não
tiver coragem, é bom que não mexa”, porque, assim, gente
medroso, que nem a mulher dele tem medo, tem medo dessas
coisas, tem medo de fantasma, tem medo de... tem medo! Então,
quando eu vejo essas coisa, eu nem falo pra gente medroso, eu
não tenho medo memo. Aí ele falou: “mas cê chama?”. Eu falei
“chamo”. Quando foi quatro e meia, começou o negócio mexer
nas panela, mexer nos prato – esses prato que, até agora, não
faz muito tempo, a gente ainda tinha esses prato de ferragato,
faz um barulho danado, até no chão faz barulho aqueles prato
– aí eu chamei ele, né, quatro e meia da manhã, chamei ele. Aí,
como era só nós dois – nós dormia quase junto, assim, ó, uns
quarenta, cinquenta centímetro um longe do outro, né, era só nós
dois, todo dia era só ir trabalhar e voltar, era a nossa rotina –,
tá, chamei ele, falei: “Olha...”, cutuquei a costela dele, né, “o
negócio tá mexendo lá”. Rapaz, mas arrependi na hora que eu
chamei ele, Quando eu vi, a perna dele fazia isso, ó, mas tremia.
“Tá com medo?” Ele: “Rapaz, eu pensei que era mentira de você,
é verdade mesmo”. Eu falei: “Não esquenta a cabeça, se ele não
tocar ni nós, não dá briga” <risos>, “agora, se tocar ni nós o pau
vai quebrar”. Óia, mas o coitado tremeu até crarear o dia, até
crarear o dia ele tremeu. (Sr. Maurício/André Lopes)
O que são todos essas conversas que aparecem neste
livro?
São narrativas, as narrativas apresen-
tadas neste livro são transcrições de
conversas realizadas nas comunidades
quilombolas. Transcrição é quando
alguém escuta outra pessoa falando
(pode ser ao vivo ou em uma grava-
ção) e transforma o que está sendo
dito em um texto verbal escrito, para
que todos possam ler depois. A pes-
soa que escreve esse texto é chamada
de transcritor.
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 13
SUMÁRIO
Porque algumas palavras das narrativas estão em itálico?
Quem são as/
os griôs?
Por meio do conto é possível desenvolver a memória
auditiva, a memória visual, a imaginação, as funções da lin-
guagem, o conhecimento do meio ambiente, a sensibilidade,
a lógica e a afetividade, conhecer o patrimônio cultural, a mo-
ral, a ética, a estética e as funções sociais, morais e educativas.
Por isso, os contos, em sociedades tradicionais, consti-
tuem uma literatura oral apropriada à transmissão dos sabe-
res das sociedades onde eles são contados e estão inseridos.
Eles são, em geral, o reflexo da sociedade, e não de suas/seus
contadoras/
es (e autoras/es).
Os temas encontrados são extremamente variados, são
moralizantes e podem abordar toda sorte de aspectos da vida
cotidiana, tais como: a cosmogonia, as estações, a fecundida-
de, a esterilidade, a morte, a iniciação, a riqueza, a pobreza e
as lutas pela terra.
Portanto, contrariamente ao que normalmente se ima-
gina, os contos não têm como alvo unicamente as crianças.
Adultos, jovens e crianças se encontram para escutar as/os
experientes contadoras/
es, verdadeiras/os depositárias/os da
palavra. Por isso, a/o contadora/or deve ser uma/um “artista”
polivalente – com as qualidades, por vezes, das/dos come-
diantes, poetisas/poetas, cantoras/
es e dançarinas/os.
O conto, nas sociedades tradicionais, é o lugar de en-
contro de todas as artes, característica que o faz extremamente
rico. Ele revela valores caros às sociedades tradicionais, como
a obediência, a discrição, a sabedoria, a hospitalidade, a jus-
tiça, a honestidade, a gratidão, a bondade e a generosidade.
Por isso, podemos afirmar que os contos são uma im-
portante ferramenta pedagógica para a transmissão de valo-
res tradicionais de uma geração a outra, educando de forma
contínua os indivíduos e a coletividade.
Assim, os temas dos contos, em estreita relação com os
valores morais tradicionais, podem auxiliar na melhor com-
preensão de tais valores.
Você provavelmente vai perceber que
muitas das palavras das narrativas estão
em itálico. Itálico é essa letra diferente,
meio “deitada”. Você sabe o porquê
disso?
As palavras que estão em itálico foram
ditas pelos mais velhos de uma forma
diferente daquela que está nos dicio-
nários, ou seja, diferente daquilo que
se considera a norma-padrão da nossa
língua. Ninguém fala exatamente como
se escreve. Dificilmente dizemos “Eu
estou aqui”, mas sim “Eu tô aqui”. Mas,
na hora de por no papel, escrevemos
“Eu estou aqui”. O modo de falar das
pessoas que vivem no meio rural, prin-
cipalmente as mais velhas, também tem
características próprias.
Durante o processo de organização das
narrativas, procuramos levar em conta
que se trata de um texto escrito, que
precisa respeitar a norma-padrão da
língua. Mas também procuramos levar
em conta que se trata de narrativas, e,
assim, procuramos respeitar as caracte-
rísticas do modo como se fala. Por isso,
destacamos essas palavras “diferentes”
no meio do texto. Assim, você poderá
identificá-las e entender melhor as dife-
renças entre o modo como se fala e o
modo como se escreve. Veja um exem-
plo: “’Agora, se tocar ni nós o pau vai
quebrar’. Óia, mas o coitado tremeu
até crarear o dia, até crarear o dia ele
tremeu.”
O griô, nas sociedades africanas, é um
historiador, um contador de histórias,
um cronista. É o guardião da memória
coletiva de um povo, de uma comuni-
dade, de uma família.
Ser griô significa ter nascido em uma fa-
mília de griôs, pertencer a uma casta de
griôs, mas o desenvolvimento de suas
competências e habilidades dependerá
dos ensinamentos transmitidos pelo seu
mestre. Ele é acompanhado, geralmen-
te, da kora, instrumento com 21 cordas.
Cosmogonia: “Doutrina mítica, religio-
sa ou filosófica de explicação da origem
do universo [...]. Explicação da origem
do sistema solar”.
14 Apresentação
SUMÁRIO
Muito embora o livro Narrativas quilombolas não trabalhe propriamente com contos, ele
se aproxima de tal universo ao buscar a história de vida e as narrativas de mulheres e homens
mais velhas/
os quilombolas.
O papel das histórias vivas, recolhidas nas comunidades quilombolas, é estabelecer re-
lações entre as representações e dar sentido ao que crianças, adolescentes, adultos e os mais
velhas/
os vivem.
Ao escolher trabalhar com as memórias das/dos moradoras/es das comunidades qui-
lombolas, o desejo da equipe da SEE/SP foi de revelar a função cognitiva que preenche a
narrativa, evidenciando aquilo que as memórias revelam sobre as especificidades de cada
quilombo visitado: as histórias, a tradição, os conflitos, as transformações, a educação, as
relações geracionais...
Então, pra vocês, que alguns já conhecem aqui o lugar, né, pra nós a his-
tória é longa, eu vou apenas {Abreviar} abreviar, né, porque a história mesmo da
comunidade começou há quatrocentos anos atrás, despois aí vem vindo sofrendo
mudanças, né, drástica, mas tá mudando, porque a gente costuma falar que não
há vitória sem luta, né, então a luta continua e assim a gente vem conseguindo
melhoria, essas coisas, falta muito, mas assim, agora, a história que você quer
saber é a história do passado, atual? (Dona Diva/Pedro Cubas)
Por isso as narrativas registradas nas comunidades quilombolas são histórias particula-
res, reveladas por uma ou mais pessoas, mas não são individuais; elas estão muito além dos
significados e dos sentidos de um simples discurso descritivo, elas revelam o saber/fazer da
comunidade comunitária, construída e reconstruída pelas palavras, os gestos, as danças, as
músicas, o silêncio.
As histórias trazidas pelas/os contadoras/es são conhecidas da comunidade, mas se-
guem ainda sendo ouvidas, justamente porque elas mostram como os fatos passados podem
explicar os fatos e tempos presentes, servindo de instancia de compensação social onde a co-
munidade projeta de forma simbólica sua própria visão de mundo. Por isso, a narrativa não é
uma simples transposição da realidade social quilombola, mas um processo de representação
de uma representação coletiva onde as imagens expostas traduzem as aspirações culturais do
tipo ideal construído coletivamente. Nessas condições, ao organizarmos as narrativas percebe-
mos o quanto elas interpretam a cultura local, sua desestruturação produzida e reproduzida a
partir de relações internas e externas.
As coisas que a gente faz de bom no mundo, tem que ter diversão! Eu
sempre falo isso pra ele, ele não é memo muito bem de recordação, mas eu acho
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 15
SUMÁRIO
que uma pessoa como ele, pelo que ele passou, ele também tem história dele,
história maravilhosa, uma pessoa que, canoeiro como ele foi, ele teve uma vida
dura aqui do Vale da Ribeira, transportar carga de canoa, do porto até (Vale) do
Batatal, Iporanga, uma pessoa desse tem história, só que não gosta de contar,
eu tento falar pra ele, “vamos juntar tudo essas historinha e por num livro...”1
(Dona Jovita/Galvão)
Contadoras e contadores
Temos nas histórias recolhidas um discurso produzido pelas/os quilombolas, sobre os
quilombolas e para os quilombolas. Logo, propriedade coletiva, mas, especialmente, expres-
são coletiva que aparece como discurso plural e complexo, em que a coletividade se exprime e
se revela. Por isso, cada uma/um das/dos contadoras/es, cada uma/um daquelas/es que reve-
lou a sua história, que é também parte da história coletiva, é uma entidade social.
As histórias recolhidas ocupam um lugar importante na elaboração da vida da comu-
nidade. Seu conhecimento aprofundado constitui uma via privilegiada de acesso a certos
mecanismos da construção das relações sociais. A análise dessas diferentes funções permite
perceber como as comunidades tradicionais estruturam os elementos de base que presidem
as relações humanas, por meio da interação entre o permitido e o defendido e suas múltiplas
graduações: recomendado, reprovado, aceito, admitido, tolerado etc. Assim, as histórias reite-
ram refinadamente a relação entre o social e o individuo e cumprem uma função reguladora
na resolução das tensões sociais.
O que percebemos é que as histórias que vocês lerão parecem ter função reguladora na
resolução das tensões sociais, através de atitudes intermediadoras. Isso sem nunca deixar de
condenar as atitudes negativas que podem colocar em risco a vida da comunidade e a vida em
comunidade. Ao preservar a sociedade das tentações destruidoras e das atitudes aventureiras
que podem ameaçar a segurança dos membros da comunidade, as histórias confirmam a ideia
de organização social.
Mas não podemos nos esquecer de outro importante elemento das narrativas coletadas,
a função lúdica, que não está separada da função educativa.
As narrativas oferecem um material pedagógico suficientemente rico para que seja ga-
rantido o seu lugar nos programas escolares quilombolas. Compreender o outro e dialogar
com ele é uma maneira de promover a diversidade cultural.
1 Neste trecho da narrativa, Dona Jovita comenta sobre o seu marido, o Sr. Jabor. Ela diz que ele é muito tímido
e insiste para que conte suas histórias, que são muitas, mas ele não gosta de falar.
16 Apresentação
SUMÁRIO
Aqui (Cafundó) também teve (resistências) de brigas, houve morte também,
porque o interesse por essas terras aqui é grande. E aí não sei por que, mas o negro
sempre tem que não ter nada, o negro sempre serviu pra... O negro serve mais de
ato de pesquisa, só serve pra isso, mas o negro nunca tem nada, nunca pode ter
nada. Porque antes, no tempo dos nossos antepassados, eles já vieram como escra-
vos, então não tinha outro jeito. Então eles colocavam eles no tronco, batiam, eles
tinha que sujeitar porque não tinha outro jeito, e agora o negro é mantido como
escravo de outra maneira. Hoje a turma leva chicotada e não vê o chicote. Antes o
negro já sabia, tomava chicotada, mas via o chicote. Agora continua sendo escravo,
mas sem ver o chicote... Muito se fala da história do negro, mas nas escolas ainda
está cheio de preconceito da história do negro, porque nunca contam a história
real do negro. A turma cria uma história que diz que é do negro, mas é desviado,
não é a história verdadeira. E aí, infelizmente, as pessoas de agora, os adolescen-
tes de agora estão aprendendo desse tipo de história que a turma está criando.
Não conta do sofrimento, como eles sofreram quando chegaram aqui, como foi o
exportamento da turma, quando chegaram aqui. Isso aí a turma desvia um pouco,
porque, se for na realidade mesmo, quem levantou o Brasil foi o próprio negro. E
o negro, hoje, praticamente é descartado, porque o negro, em todos os sentidos,
ele é usado! Esses tempos agora, eles sofreram vários preconceitos com os alunos,
com os adolescentes que iam pra escola. [...] Quando saiu aquele filme do (Paulo
Betti), eles tiravam sarro na escola: “Ah, vocês são aqueles lá do tal quilombo de
Cafundó que o Paulo Betti fez esse filme, o tal de quilombo Cafundó, que fica lá
nos Cafundó do Judas”. (Sr. Marcos/Cafundó)
O método
Para os objetivos propostos, a equipe de Educação Escolar Quilombola da Secretaria de
Estado da Educação de São Paulo (SEE-SP), visitou as seguintes comunidades quilombolas
paulistas: André Lopes, Caçandoca, Cafundó, Cangume, Galvão, Ivaporunduva, Nhunguara
1 e 2, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu. O material recolhido, obtido por meio de en-
trevistas diretas e rodas de conversas, foi organizado e reagrupado de forma a abordar, ora de
forma mais direta, ora de forma indireta, os seguintes tópicos:
• quilombos, comunidades de valores
• memória coletiva;
• acervos e repertórios orais;
• língua reminiscente e falares;
• 
festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das
comunidades quilombolas;
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 17
SUMÁRIO
• práticas culturais;
• tecnologias e formas de produção do trabalho.
Os relatos revelam-se maravilhosos instrumentos didáticos, possíveis de serem explora-
dos nas diferentes disciplinas que formam a educação básica, em diferentes contextos.
Hoje nós tamo no total de quarenta e oito famílias e cento e cinquenta e
sete pessoas, isso são os habitantes, né, e... Então, São Pedro tá a uma distância
de sessenta quilômetro de Eldorado – acho que isso é um registro, um detalhe
mais craro, né – e tá no limite de município de Iporanga e Eldorado [ ] e a escola
primeira que teve aqui foi em mil novecentos e oitenta, né, oitenta. Essa escola
foi uma história muito compricada pra o povo daqui na época, na qual foi traba-
lhado tudo o material trazido na escola no lombo de animal, da balsa até aqui, pra
poder os aluno, né, as criança, estudarem aqui, né. E ainda não tinha uma balsa
como é hoje, mas era canoa, atravessava na canoa. E hoje, aqui, nesse momento,
aqui, são poucas pessoa que trabalhou esses dias, né, ele [ ], mas acho que mais
sofreu aqui foi o [ ], ele trabalhou, ele era mais novo, mas também já ajudou. Mas
o que sofreu mais na questão de broco, de telha, de... Ele trabalhou, eu trabalhei,
mais pessoas, lógico, mas que não tá aqui. Então foi muito complicado, era muito
difícil mesmo porque as pessoas tinha que trazer um broco, três broco nas costa
de lá da balsa aqui na... aqui. Cada pessoa, animal trazia dois saco de cimento,
era cem quilo. Então era uma dificuldade muito grande. O homem que trazia
quatro broco aqui, ele se fazia com ares de melhor que o outro, né, porque tinha
assim uma vontade de ajudar a fazer. Telha, dessa telhinha pequena, era três telha
que trazia, então foi muito difícil. Isso foi em mil novecentos e oitenta, aí depois
foi melhorando um pouco e foi, assim, aumentando também a forma, porque
aumentou os aluno e aí também foi aumentada a escola, então é... Passou a ser
duas escolas, né, mas porque uma tava muito pequena foi mudando pra outra.
Isso já foi no outro... no outro administração do governo. Também já tinha estrada
aqui, então a partir daí já melhorou bastante. Hoje nós tamo com um pouquinho
de dificuldade porque a escola estadual, ela municipalizou, né. Então tivemos
uma, várias discussões, o por que municipalizar, né. Talvez não tava nem numa
época de municipalização, porque tem a dificuldade de carência em questão de
merenda, em questão de transporte, então era muito difícil. Mas é o governo, é
um trabalho do governo que impranta para o município. A gente não conseguiu
segurar que ela municipalizasse, mas conseguimos aí resgatar que não saíssem
todos os alunos daqui pra estudar noutro lugar, igual que era a programação, né.
Então a gente conseguiu resgatar os alunos que, mesmo sendo municipalizado,
continuassem no Nhunguara. Mudou um pouco, saiu um pouco depois que se
tornou [ ] mas aconteceu isso, eu hoje não sei quantos aluno tá estudando aqui,
mas na média de uns dezessete, né. Então são vários aluno que tão estudando
aqui, então. (Sr. Aurico Dias/São Pedro)
Apresentação
18
SUMÁRIO
E, no caso, o que eu queria falar também sobre a escola é que a gente sem-
pre conversou assim entre liderança, né. A educação diferenciada, cês já devem tá
sabendo, né, nós lutamos por essa educação diferenciada. (Dona Diva/Pedro Cubas)
Todas as pessoas envolvidas no livro, direta ou indiretamente, tinham como denomina-
dor comum o interesse pela educação. As narrativas devem ser enriquecidas pelas experiê­
ncias
das/
dos professoras/es, preocupadas/os com a interação entre os valores tradicionais quilom-
bolas e a sua integração no sistema moderno de educação, como proposto pelas Diretrizes Curri-
culares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. No artigo 7º, inciso
XVII desse documento, é expresso como um dos princípios que regem da Educação Escolar
Quilombola o “direito dos estudantes, dos profissionais da educação e da comunidade de se
apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das formas de produção das comunidades qui-
lombolas de modo a contribuir para o seu reconhecimento, valorização e continuidade”2
.
Uso didático das narrativas
O uso didático de um documento é a operação que consiste em transformá-lo ou explo-
rá-lo para que ele sirva como meio ou objeto de ensino-aprendizagem. Esse processo implica
geralmente uma analise pré-didática de essência linguística, para identificar aquilo que pode
ser ensinado. Explorar didaticamente o patrimônio oral quilombola significa integrá-lo aos
programas escolares por meio de atividades autônomas e interdisciplinares. O livro de narra-
tivas será acompanhado de um caderno de sugestões de atividades que poderão ser realizadas
por professoras/es e alunas/os.
A integração de textos como os recolhidos durante o trabalho realizado pela equipe da
SEE-SP é uma necessidade, para não dizer uma obrigação, por uma simples razão: os quilom-
bos podem nos ajudar a resolver problemas dos modos de vida urbanos, bem como a memória
dessas comunidades pode ajudar na resolução de problemas contemporâneos. O saber/fazer
quilombola é essencialmente de origem oral, o que significa dizer que, conhecendo verdadei-
ramente a ideologia veiculada pelos depoimentos, poderemos:
• 
revelar a existência de um quadro lógico de utilidade pedagógica que deve servir de
referência ao uso didático do patrimônio oral quilombola;
• 
mostrar que as histórias narradas pelos quilombolas podem contribuir de forma signi-
ficativa para o desenvolvimento de competências.
2 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução CNE/CEB nº 8, de 20 de novembro de 2012. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_contentview=articleid=17417Itemid=866. Acesso em: 31 mar. 2014.
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 19
SUMÁRIO
Os objetivos que formam os pilares dessa iniciativa aspiram conservar, definir e ela-
borar as modalidades pedagógicas permitindo a plena exploração de um material original,
sem negligenciar a exploração textual, gramatical e sociocultural de base.
Por isso, é importante a preparação das/dos jovens das comunidades quilombolas para
a coleta, transcrição e interpretação dos textos. Com isso, pretende-se que cada comunidade
tenha uma casa da memória, que sirva para conversar e para transmitir às gerações mais
novas os saberes tradicionais. As tradições orais são, antes de tudo, um patrimônio que pre-
cisamos conservar, conhecer e estudar.
Graças a Deus, os nossos alunos hoje já sabem, é, assim, mais ou menos al-
guma coisa, porque a gente passa, né... mas não que a escola... a tradição mesmo,
o que que é comunidade tradicional? Tradicional é passar de um para outro. Então,
nossa tradição é essa, continuar passando, senão nossos aluno, nossas crianças es-
quecem, né. E tivemos da minha época pra cá, até as criança mesmo recente, que
tão com dezesseis, dezessete, quinze ano, eles sofreram muita discriminação na
escola, porque, na comunidade, eles andavam era de pé no chão ou chinelinho de
dedo e ou trancinha ou lenço na cabeça. Aí eles iam pra escola assim; quando che-
gava lá, era reparado, né. Então teve, eles vinham chorando pra casa que xingavam
eles na escola. Enfim, até hoje a gente ainda tem muita reclamação das criança na
escola. Tipo assim, né, é triste falar, mas tem, tá. Então tudo isso a gente quer que
os professores aprendam, entendeu? Aprendam. (Dona Diva/Pedro Cubas)
Este livro é fruto dos esforços de muitas pessoas, nasceu dos sonhos de muitas/os qui-
lombolas, é patrimônio transmitido oralmente pela força da palavra de cada um das/dos de-
poentes ao ouvido de cada uma/um de nós.
Agora, você poderá ler algumas histórias contadas por homens e mulheres quilombolas.
Escola Estadual Profª Anezia Amorim Martins que recebe alunos do quilombo Cangume - Itaoca - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
20 Apresentação
SUMÁRIO

Algumas intenções educativas que podem ser desenvolvidas a
partir das narrativas:
• Despertar para a noção de memória.
• Perceber que a memória é constitutiva da identidade.
• 
Perceber a importância da palavra, do depoimento e da memória.
• 
Compreender a memória como um direito e um dever.
• 
Como todas as memórias individuais das/dos quilombolas podem
ser estruturadas em uma memória coletiva quilombola?
• 
Até que ponto a memória coletiva quilombola influencia a memória
individual?
Represento a Associação do Quilombo do bairro André Lopes, eu tô aqui
pra gente ouvir aí os senhores e as senhoras que têm mais experiência de vida,
e a ideia é contribuir. Eu não sei se o nome verdadeiro é esse, nós estamos
(procurando) o nome ainda, se é a verdadeira educação diferenciada ou talvez
outro nome. Mas a ideia é fazer com que a nossa juventude possam entender
a nossa realidade e que nós possamos ter, talvez daqui um tempo, tenha um
mundo melhor aí, pra nossa geração que tá vindo aí. Obrigado. (Seu João/
André Lopes)
Sou nascido aqui, tô com cinquenta e cinco anos; meu pai faleceu com
oitenta e dois anos, também nascido aqui; meu avô é nascido aqui. Então,
se for pra contar a história da vida pessoal da pessoa, vai um dia inteiro pra
contar. Mas como aqui a gente tá vendo que o foco da coisa é uma educação
diferenciada, então, principalmente, o que eu tenho que passar é o seguinte:
Que meu pai, segundo tudo isso que já falaram aí, [ ], a Marisa, então, isso aí
é a nossa cultura, que eles aprenderam um passando para outro; desde o meu
bisavô passando um para outro. E, principalmente, o que eu tenho que passar
hoje, o que eu aprendi, é que ele me ensinava a respeitar (aquilo que era dos
outros), trabalhar com sinceridade; aquilo que era meu, zelar. Meu pai e minha
mãe sempre falavam pra mim “Ó, é o seguinte, tudo aquilo que é seu você
guarda direitinho, você zela, você respeita aquilo ali dos outros”. Nós tinha a
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 21
SUMÁRIO
nossa roça, passava na beirada da roça de outro, vizinho, nós não tirava uma es-
piga de milho, não tirava um pepino, não tirava um arroz, não tirava uma abó-
bora. Então a minha mãe, ela passava isso, falava: “Meu filho, isso é educação,
é doar aquilo que eu aprendi pra vocês, porque a pessoa que é bem educado,
ele entra e sai em qualquer lugar, ele sabe respeitar”. Então ainda dizia assim,
a gente vê que de acordo das necessidades das coisas é que a gente vai evo-
luindo e a educação também vai evoluindo. Então, o que acontece, ela sempre
falava, hoje em dia, se você saber falar e for bem educado, você vai em Roma
– tem esse ditado, né... Então ela passava isso pra nós. Então a gente aprendeu
também, como se diz, a nossa matemática, a nossa ciência, a nossa geografia,
a nossa história. Não tava num livro escrito, mas era assim uma vida vivida que
eles passavam pra nós. Eles falavam pra nós prestar atenção na natureza, nos
pássaro. Não, é verdade, de manhã, o [ ] acordava a gente, à tarde os (uru).
Então isso aí que eles ensinavam pra nós, esse tipo de coisa – e nós entendia,
tudo nós entendia; quando um falava com o outro, todo mundo entendia o que
um tava falando. (Sr. Assis Pereira do Santos/André Lopes)
Então, meu nome é João Mota, mas sou conhecido por João (Catá). Se
chegar e falar João Mota, ninguém sabe, mas se falar João (Catá) todo mundo
{João o quê?} João (Catá), apelido, o nome é João Mota, mas sou conhecido
por João (Catá). Eu, como pra mim é motivo de muita satisfação, porque foi
uma coisa que eu sempre falei isso dentro da comunidade, desse trabaio que
cês tão falando. Só que eu falei uma coisa que ninguém acha que “Ah, isso aí
[ ]”, a escola do, a Chules, aquela escola ali nasceu através de uma conversa
dessa. Eu... acho que alguém conheceu o professor Antonio... eu e o professor
Antonio ali do, que já morreu {De acidente, né?}, é, e a professora Neuza, Neu-
zinha, aquela pequeninha, então, a gente, nós fizemos uma conversa. [ ] Aí nós
ficamos falando um dia, vamos chamar a Secretaria. Aí chamemos a Secretaria
da Educação de Registro, eu não lembro o ano certo, a data certa, isso eu não
lembro. [...] Aí nós falamos: “Não, o que nós queria é que fizesse uma esco-
la, não pro Nhunguara, não pra suprir o Nhunguara, pra tudo as comunidade
próxima, pra vim estudar aqui, pra vim estudar aqui”. Aí ficou despois pra, aí
passou, aí saiu a escola, só que ali na escola não fala dessa história que eu
tô falando. Eu tô falando que foi nós que {Idealizamos}, é, a ideia, só que ali
na escola tem muitos que não conhece {Essa história, né}, porque ali tá Maria
Chules e, né, porque saiu lá no outro bairro. Isso aí não tem pobrema, mas pra
nós isso aí. E eu também sempre falei: “Não, mas a gente tinha de ter, os fio
da gente conheçam a história da gente”. A minha, começar por mim, eu nasci
em mil novecentos e cinquenta e quatro, doze do um, foi o ano que o [ ] deu
aula aqui, não foi? Que foi a professora era Zirda, dona Zirda do (Castelhano).
Despois, quando veio, eu já tava com doze anos de idade. Aquela vez dava
pra estudar, porque não tinha isso de data de estudo, mas eu era o mais véio
22 Apresentação
SUMÁRIO
da famia, meu pai, naquele tempo, ninguém se pensava em estudo. Há cin-
quenta anos atrás, os quilombolas não se pensava em estudo, se pensava deis
gerar famia pra levar pra roça, isso que era a história deis. Eles não... quando
falava em estudo, “Eu vivi sem estudo, meu fio também vai viver”. Então eles
pensavam dessa maneira, não é o pensamento de hoje, eles pensavam dessa
maneira, e logo ir pra roça. Malemá (eu faço) meu nome, eu sou analfabeto,
porque eu não tive essa oportunidade. Só que isso eu não penso pro meu fio,
eu quero que o meu fio teja oportunidade. Sempre eu brigo, lá onde o fio de
[ ] tá estudando, eu queria que o meu também tivesse a mesma oportunidade,
né, porque não são (direitos) humanos. {Os direitos são iguais, né.} Então, eles
também têm esse direito. {Sim.} Mas, infelizmente, isso não acontece. {Não
aconteceu ainda.} Então, e hoje meus fio tem oportunidade de estudar, só que
o que acontece é que às vezes não dá muito valor. O meu fio mais véio foi até
o primeiro, parou, o segundo tem o básico, tem um de onze que tá na... quinta.
E eu, pra mim, deu uma alegria, só que eu não penso do tipo que meu pai pen-
sou, meu avô pensou, “Não, vamos levar pra roça”, porque hoje eu tô vendo a
farta que ele faz, hoje eu tô vendo a farta que faz. Já tive muita oportunidade
e não pude porque não tinha os estudo. Se eu tivesse, né, o meu (ponto) de
vida seria outro. Não tô dizendo que tô triste, eu entendo os dois lados, porque
eu entendo que meu pai também, eu preciso do estudo, mas meu pai também
precisava me levar pra roça. {Da mão de obra.} É, pra mão de obra, porque a
ideia de cinquenta anos atrás era isso. {Era, o pensamento era esse}. A ideia era
isso, não era... a realidade não era a realidade de hoje. Então a gente tem que
entender isso que {Cada época tem a sua necessidade, né.} É, então tinha essa
necessidade. Então foi meu caso, né, que não deu pra estudar (...) (João Mota
[João Catá]/Nhunguara)
É, eu me chamo Laurentino Morato de Almeida, nasci no bairro do Nhun-
guara, tô com oitenta e, quase oitenta e oito anos. (Aqui, dentro daqui) conheci
o começo da escola do Nhunguara, (quando foi formado), desde o começo, até
agora. Eu não tive escola, eu aprendi assim sem escola, né, um dava alguma
coisa, outro dava outro, assim eu fui crescendo. E, hoje, pela misericórdia de
Deus, não é igual como quem tem estudo, eu não sei perguntar, que às vezes
faz pergunta, quem lê, quem tá na escola, faz as pergunta, sabe. Então eu não
sei responder pergunta nenhuma, porque eu não tive essa oportunidade [...]
Então, quer dizer, pra mim, a maior alegria de saber que o bairro tá crescendo,
né, porque quatro, três, nós era três. E naquele tempo eu fazia o título pra
pessoa só assinar e ir votar. E, hoje, quem não sabe, não tem voto, né. {É tem
que saber assinar.} Então, aquele tempo foi um tempo dificultoso. Não tinha
estrada, só tinha que ir por caminho, nós tinha que ir pela ribeira [ ] Hoje, pela
misericórdia de Deus, o carro tá chegando aqui. Foi em (mil novecentos e cin-
quenta) que o finado Jonas [ ] parente nosso [ ] quando eu falei que a estrada
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 23
SUMÁRIO
vinha até aqui, ele foi a maior briga [ ] “Como que vai ser?” Mas aquele tempo
as coisa era difícil mesmo, tudo era difícil. “Como que vai ser, vai ter carro [ ] na
porta?” Se ele fosse vivo, né... Agora, a maior razão que eu tô alegre, porque
foi numa reunião, né, com a essa nossa comunidade [ ] aquela reunião que o
[ ] fez na sua casa... {Ah, sim, sim.} Então, ele fez uma reunião, o povo pediu
ônibus, pediu casa, ele falou assim, óia: “Ônibus eu dou, não dou o dinheiro
pra viajar, a casa eu não posso fazer porque é muito, não tem possibilidade”.
Aí eu fui pro André Lopes, encontrei com o [ ], que tudo mundo conhece ele
{(Zé Paulo)}, (Zé Paulo), aí ele saiu da igreja lá: “Seu (Lauro), o que sucedeu
na reunião?”. Digo: “A reunião saiu neutro”. “Por quê?”. “Porque pediram as
coisa, ele não vai dar”. Né, ficou nada. Aí ele falou pra mim bem assim: “Olha,
se você não formarem uma comunidade, daqui a pouco tempo vocês não vão
ter lugar pra prantar um pé de abacate. O Ibama, a Florestal, o Meio Ambiente
não vai deixar.” [ ] Aí cheguei aqui, convidei meu sobrinho. Pensei que era fácil
de se começar, né, eu pensei assim: “Vou formar uma associação porque como
que nós vamos ficar num mato desse, sem poder prantar nada?”. Aí formemos.
Formemos e, hoje, como diz, esse povo que tá vindo aqui através dessa his-
tória abriu a porta pra outros [ ] através dessa história da associação, que foi
uma porta aberta memo. {Ficou conhecida, né.} {O senhor lembra que ano foi
isso?} Setenta e... noventa e sete. Então, duas rocinhas que eu tinha ali – nem
era minha, uma era dele e outra era da minha fia –, o policial veio aqui, veio o
sargento e o policial, (aí eu tinha aquela carta), então ele falou assim, eu dei ela
pro sargento ler, né, ele disse: “Muito bem, mas não faça igual a muitos, [ ] con-
tinue que o Estado vai ajudar vocês”. Então o que tá sucedendo é isso aí, né.
Então é motivo pra gente ficar alegre, contente, porque vocês tão aqui, através
da Associação [ ] Eu fui até no palácio do Covas, o tempo que ele era governo,
fui lá. Ele já tava falando bem ruim quando eu fui lá, ele já não (tava falando),
já tava perto de morrer memo. Então isso é a primeira história, do tempo que
nós tamo aqui, a dificuldade que não é, é um imenso dificuldade pra (eu contar,
se eu for contar lá do começo) {Pode contar.}, porque eu tô aqui tudo esses
tempo. {Eles disse que tão sem pressa.} Eu conhecia Registro com uma casa e
uma Pernambucanas, a história dessa casa era um barzinho, nem aqui no nosso
bairro não tem um barzinho (igual lá). Nós ia daqui trabaiar lá em Miracatu, aí
nós pegava o ônibus aqui em Eldorado, ia lá pro [ ] de [ ] vortava pra Registro,
levava uma hora pra atravessar lá a ribeira e lá nós [ ] Então quando nós vinha
de lá pra cá, que nós embarcava primeiro, nós chegava em Registro, chegava
naquele barzinho, comprava, (gente que) dava dinheiro pra gente comprar,
comprava tudo que tinha ali, o que vinha outros, o que vinha pra trás tinha que
vim pra [ ] comprar arguma coisa e hoje será [ ] Da onde nasceu tanta gente,
tanto estudo, tanta coisa, né. Eu vou lá, às vez que eu vou lá (no médico), às vez
eu converso com alguma pessoa, eu conheci com duas casa, quantas casa tem
hoje? Então uma história que eu vi muita coisa e as dificurdade, hoje tô vendo.
24 Apresentação
SUMÁRIO
Eldorado eu conheci com (três carrinho); hoje, quanto tem, né? Então eu tenho
muita história pra contar e o (estudo) foi a primeira coisa que sucedeu e tá
sucedendo. Então nós, pra contar tudo a nossa história, bem confirmada, vai
tempo, né. Não é historinha de pouquinho momento, de dizer sucedeu assim
assim assim, né, porque aqui {Só uma perguntinha, o senhor falou que quando
ia pra Registro, trabalhava lá em Miracatu, o senhor pegava, atravessava [ ] em
Eldorado, e daqui a Eldorado, qual era o meio de...?} Ah, às vez nós ia a pé,
tinha o motor, o barco, né, ou então no barco, né, mas às vez nós ia a pé daqui
lá [ ] Era a dificurdade, em quarenta e oito, eu fiz não sei quantas viagem daqui.
Eu trabaiava com, hoje ele morreu, [ ] o tempo que tinha só três carro lá. Então
eu ia daqui a pé, saía daqui cedinho. Quando era ali pras sete, oito horas, tava
chegando lá, caminho, caminho que às vez o caminho era aqui eu fazia a volta
por lá [ ] Era assim, eu fiz tudo essas coisa. Então hoje eu tô vendo a dificurda-
de que tinha e o que tem hoje, né. Hoje tá aqui, a pessoa, essa pedra tá aqui,
cinquenta e quatro ano que eu tô aqui, agora que essa pedra chegou aqui [ ]
cinquenta e quatro ano {Pra colocarem esse cascalho aí} É, então, mas através
de quê? Do registro [ ] {Quem eram os seus pais?} Meu pai? {Seu pai e sua
mãe?} Minha mãe se chamava Ernestina Morato de Almeida {Ernestina?} é {Que
que o senhor lembra dela?} Ah... eu vou falar a verdade, que ela foi parteira
de setenta criança {Eu sou um desses setenta!} {Ai que legal!} ela foi parteira
de setenta criança e criou nós, meu pai morreu eu tinha seis ano. {Seis? Ah,
então ela que criou?} É, ela que criou. {Como era o nome do pai do senhor?}
Pedro Dias Batista. {Então fale de sua mãe.} (O pai da minha mãe?) {Fale mais
como que era, que que ela fazia.} Ela trabaiava na roça {Trabalhava na roça.};
como diz, quando precisava, chamavam ela, ela ia [ ] trabaiava na roça. {Quan-
tos irmãos o senhor tem?} Nós era em doze. {Nossa!} Eu me criei pro mundo
{Não foi ela que criou?} Não foi minha mãe que me criou, aquele tempo era
muito difícil (todas as coisa), então precisava [ ] eu já tinha vinte e quatro ano.
Mas também ela não morreu no meu colo, porque dali pra lá [ ] eu larguei ela
lá, (viajei). Quando cheguei aqui, contaram que ela tinha morrido, quase que
morre no meu colo. Ela foi uma mulher muito querida de tudo mundo aqui no
bairro, muito memo. Tudo mundo estimava ela, que era uma muié que servia à
comunidade inteira, né, precisava ela tava ali (não morreu) [ ] na mão dela, foi
uma mulher que trabalhou muito. {Ela era parteira?} É, era parteira. {E ela sabia
também fazer remédio de ervas, essas coisas, pra ajudar as crianças que tavam
doente?} Sabia... é, isso ela sabia, tem gente que sabe até hoje. {Sabe até hoje,
o senhor sabe também?} É, conforme o tipo, a gente ainda sabe qual é a erva
que precisa, qual é, qual não é, né. Então a gente não esqueceu de muita coisa,
né. {Até porque vocês ficavam aqui bem longe de médico, de tudo, né?} É, ô!
Antigamente, médico, não falava em médico, falava em cirurgião, né {Curan-
dor,}, curandeiro {curandeiro.}; médico é de pouco tempo pra cá. (Laurentino/
Nhunguara)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 25
SUMÁRIO
Foto do sítio arqueológico do Cais do Valongo - Rio de Janeiro - RJ (Nesta e na próxima página). Reportagem sobre o Cais do Valongo:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2017-07/rio-de-janeiro-cais-do-valongo-e-reconhecido-patrimonio-cultural-da,
Acesso em 26 set 2017.
©
Renato
Ubirajara
|
©Acervo
NINC/SEE-SP
Apresentação
26
SUMÁRIO
Fotos do sítio arqueológico do Cais do Valongo - Rio de Janeiro - RJ.
©Renato
Ubirajara
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 27
SUMÁRIO
Africanos no Brasil
É necessário termos entendimento de que, antes da vinda forçada de africanas/
os es-
cravizadas/
os para o Brasil, estas pessoas já eram usados em Portugal e nas ilhas atlânticas
na produção do açúcar. Quando do inicio do tráfico negreiro para o Brasil, Portugal já dis-
punha de experiência e tecnologia para tal tarefa. Há uma escassez de documentação sobre
as formas de produção de escravos antes do século XVII, principalmente quando tratamos
do interior do território africano. Contudo, temos indicações precisas de que, desde o início,
as guerras eram o instrumento básico pelo qual se produziam escravos para serem vendidos
no litoral. Há estimativas que permitem afirmar que, ao longo de toda a existência de tráfico
negreiro pelo Atlântico, três de cada quatro africanas/os vendidas/os para as Américas re-
sultavam de guerras causadas pelos conflitos no interior das estruturas sociais e econômicas
das várias regiões da África Ocidental.
A produção e a venda de africanas/os escravizadas/os tiveram um papel fundamen-
tal nas sociedades africanas. Muitos das/dos cativas/os destinavam-se à utilização pelas/os
próprias/
os africanas/os, com o que, dependendo da região, se instaurava ou se acentuava a
existência de relações escravistas em solo africano. Esse movimento ligava o tráfico atlântico
ao tráfico interno africano, o que levou e leva várias/os pesquisadoras/es a concluírem que,
sem a existência do primeiro (atlântico), não se entende a existência do segundo (interno). É
importante perceber que o escravismo existente na África antes da chegada dos europeus era
radicalmente distinto do escravismo criado pela colonização do “Novo Mundo”. Na África,
as pessoas quando eram escravizadas paulatinamente incorporadas ao grupo étnico que os
tinha escravizado, perdendo, dessa forma, a condição de cativas, e podiam ocupar cargos de
mando, tais como os de ministra/
o ou de general.
Cabe ressaltar que o padrão de consumo imposto as/os africanas/os pelos europeus era
particularmente importante no fortalecimento da produção de escravos, já que a venda des-
tes permitia as/aos africanas/os o acesso a manufaturados europeus e americanos e, especial-
mente, o acesso a pólvora e armas de fogo, além de cavalos – meios de guerra por excelência
que, por sua vez, fabricavam mais escravos. O tráfico aumentou o número de guerras, os
atos de violência, fortaleceu os chefes guerreiros e os estados bélicos que viviam em função
da produção de escravos. Os grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento
para fortalecer seu poder. Com isso, aumentavam sua capacidade de produzir escravos e,
consequentemente, de controlar os bens envolvidos no comércio escravista.
A crescente demanda americana por escravos fortaleceu vários Estados africanos. Não
foi por acaso que, nos séculos XVII e XVIII, aconteceu o apogeu dos grandes Estados no inte-
rior africano: Daomé, Oyo, Ardra, Ashante, entre outros. Na segunda metade do século XVII,
o atendimento à demanda de escravos esteve intimamente relacionado com os primeiros
Apresentação
28
SUMÁRIO
ensaios da Jihad (guerra santa) islâmica, levada a cabo por estados interioranos islamizados
contra os pagãos. Os derrotados, islâmicos ou não, eram escravizados e empregados nas
plantações, no exército e mesmo na administração, sendo que boa parte deles era vendida a
mercadores que os colocavam no circuito do Atlântico.
A resistência africana e afro-brasileira à escravidão
A escravidão de africanas/os nas Américas roubou cerca de 15 milhões de homens, mu-
lheres e crianças de suas terras, sendo que no mínimo 6 milhões vieram para o Brasil. Processo
que marcou a formação do mundo moderno, a criação de uma economia-mundo e, talvez o mais
importante, proporcionou o surgimento de uma consciência pan-africana originária das experi-
ências negras na diáspora em terras americanas. Trabalharam em engenhos, fazendas, cidades,
minas, fábricas, cozinhas, salões, estavam presentes na totalidade da vida social brasileira e dei-
xaram marca própria e original em todos os aspectos da cultura material e espiritual de nosso
país: culinária, arquitetura, música, artes, dança, religião, sexualidade e na ciência em geral.
Mas onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça
do chicote, da tortura, da morte, escravizadas/os negociavam espaços de autonomia com os
senhores: faziam corpo mole no trabalho, quebravam ferramentas, agrediam ou matavam
senhores e feitores, incendiavam plantações, enfim, rebelavam-se individual e coletivamen-
te. Uma das formas mais estudadas pela historiografia é a fuga e formação de grupos de
escravizadas/
os fugidas/os, os quilombos. Porém, a fuga nem sempre levava à formação desses
grupos, ela (individual ou grupal) poderia diluir-se no anonimato da massa escrava e das/dos
negras/os livres nas cidades.
A formação de grupos de escravizadas/os fugidas/
os foi comum em toda a América:
palenques e cumbes na América hispânica, maroons na América inglesa, grand marronage na Amé-
rica francesa (diferente de petit marronage – fuga individual). No Brasil, esses grupos foram
chamados de quilombos e mocambos, sendo suas/seus moradoras/
es chamadas/
os de quilom-
bolas, calhambolas ou mocambeiros.
Quilombo é uma palavra de origem banto3
(quimbundo) que, no Brasil, assume o signi-
ficado de resistência das/
dos africanas/
os e de suas/
seus descendentes escravizadas. Sua exis-
tência espalhou-se por todo território brasileiro, do extremo sul ao extremo norte. Em carta
enviada em 1740 ao Conselho Ultramarino (responsável pela administração das colônias por-
3 Atualmente, não há um consenso sobre a utilização da grafia africana “bantu” e a grafia aportuguesada “ban-
to”. No entanto, neste livro, usaremos a forma aportuguesada “banto”, pois é aquela registrada nos dicionários
brasileiros. (Nota do editor)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 29
SUMÁRIO
tuguesas), o rei Dom João V caracterizava quilombo como sendo “toda habitação de negros
fugidos que passem de cinco, ainda que não tenham ranchos, nem pilões”. É então que toda
documentação oficial referente a tais comunidades adota o termo quilombo, sendo que antes
estes eram conhecidos como mocambos (do quicongo mukambu, que significa cabana). Hoje,
o termo está consagrado e é usado quando tratamos das comunidades negras descendentes
das/dos escravizadas/os.
Muitas/os pesquisadoras/es acreditam que os quilombos foram uma versão brasileira
das comunidades homônimas que existiram em Angola nos séculos XVII e XVIII. Porém, não
havia qualquer semelhança entre os quilombos daqui e os de Angola; foram fenômenos his-
tóricos totalmente distintos. As comunidades quilombolas no Brasil eram, na verdade, uma
negação do quilombo angolano. Isso porque os quilombos foram criados em Angola pelos im-
bangalas (chamados pelos portugueses de jagas), guerreiros nômades que usavam o quilombo
como acampamento militar e como local onde viviam os grupos que eram derrotados e escra-
vizados temporariamente, pois muitos eram incorporados ao exército imbangala.
Fachada da Casa do Sr. Vandir - Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP.
©Silvane
Silva
Apresentação
30
SUMÁRIO
Na metade do século XVII, a rainha angolana Ginga, por meio de acordos com o reino
de Portugal, decide cessar a resistência ao colonialismo. Como era aliada aos imbamgalas, faz
dos quilombos enormes empórios de escravos. Deste modo, os quilombos angolanos contri-
buíram para o tráfico negreiro, enquanto que os quilombos brasileiros foram essencialmente
uma forma de luta e resistência ao escravismo colonial. Assim, o termo “quilombo” não tra-
zia boas lembranças aos escravizados, pois muitos que foram vendidos pelo tráfico colonial
haviam permanecido nesses empórios. Para o historiador Clóvis Moura, foram os senhores
de escravos e não as/os escravizadas/os que denominaram de quilombos os locais de escravi-
zadas/
os fugidas/os, pois, de sua perspectiva, os mesmos eram depósitos de negros a serem
reescravizados. Lembremos que os palmarinos chamavam o seu território de Angola Janga,
ou seja, pequena Angola.
Desde o final do século XVII, cronistas coloniais destacavam a resistência quilombola,
mas principalmente para enaltecer as autoridades coloniais que a reprimiam. Os quilombos e,
principalmente, o grande quilombo de Palmares, foram vistos como uma forma de resistência
à “aculturação europeia”. Alguns irão afirmar que Palmares seria um verdadeiro Estado afri-
cano no Brasil, uma África do outro lado do Atlântico. Essa visão “restauracionista” entende
o quilombo enquanto uma comunidade isolada e isolacionista, uma verdadeira alternativa à
sociedade escravocrata que lhe circundava.
Na verdade, seria mais frutífero ver como as/os quilombolas continuavam, com rit-
mo e meios diferentes, a formação de uma sociedade afro-brasileira que já havia começado
nas senzalas.
As várias formas de resistência e combate à escravidão
Para além da necessária e conflituosa integração das/
dos africanas/os e de seus descen-
dentes na sociedade escravocrata, tivemos várias formas de resistência à escravidão, seja ne-
gando-a totalmente pela formação de quilombos e pela fuga, seja negociando melhores con-
dições de vida e trabalho. O recurso mais radical de recusa à escravidão era a fuga, milhares
fugiram durante todo o período da escravidão, para os sertões, para as redondezas das cida-
des, embrenhando-se nos matos, nos mangues. Resistindo e construindo novas sociabilidades,
fugiam juntas/
os ou sozinhas/os. Os quilombos podiam contar com dezenas, centenas ou até
milhares de indivíduos, não eram formados apenas por escravizadas/os fugidas/os (negros e
índios), mas também por desertores, foragidos da justiça, mestiços e até mesmo brancos.
O quilombo mais estudado e conhecido foi o quilombo de Palmares, que começou
a ser formado nos primeiros anos do século XVII e só foi completamente destruído em
1694. O que sabemos do seu cotidiano e de sua organização nos remete aos povos bantos
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 31
SUMÁRIO
da região de Angola, o que desfaz o mito da passividade dos povos bantos em relação a
nagôs, hauçás, jejes e outros. É importante lembrar que foi exatamente no século XVII que
tivemos as guerras de Angola (resistência das várias etnias de Angola aos colonizadores
portugueses), cujos prisioneiros eram enviados para o Brasil, principalmente para Pernam-
buco. As técnicas militares dos quilombolas de Palmares muito lembram as dos imbangalas
de Angola. Usavam de técnicas de guerrilha contra as expedições que tentavam acabar com
o quilombo e realizavam ataques às fazendas e aos viajantes. Defendiam suas cidadelas
por meio de paliçadas e fossos cheios de estrepes. Palmares era composto por um conjunto
de aldeias subordinadas a uma delas, onde estava o chefe principal. Sua estrutura política
semelhante às africanas estruturava-se em um chefe para cada aldeia. Esses chefes faziam
parte de um conselho que governava a todos, uma confederação, o que também era comum
na África centro-ocidental.
Ganga Zumba foi um dos líderes de Palmares e, mesmo tendo derrotado várias expe-
dições inimigas, aceitou, em 1678, firmar um acordo de paz com o governador de Pernam-
buco. As/
Os quilombolas teriam terra para viver, poderiam comerciar com a vizinhança os
nascidos no quilombo seriam reconhecidos como pessoas livres e súditos do rei de Portu-
gal. Esse acordo não foi aceito por todos, e os opositores, liderados por Zumbi, reiniciam
a resistência. Logo em seguida, todas/os as/os quilombolas que haviam sido declarados
livres foram reescravizadas/
os. Finalmente o quilombo é destruído por uma expedição
chefiada por Domingos Jorge Velho. Palmares e Zumbi tornaram-se símbolos da resistên-
cia negra à escravidão.
Tínhamos, além de Palmares, milhares de outros quilombos espalhados por todo o Bra-
sil, que podiam ser dos mais variados tipos. O historiador Clóvis Moura, citando outro his-
toriador, Décio Freitas, afirma que, no decorrer da história do Brasil, tivemos sete tipos de
quilombos, classificados de acordo com suas formas de subsistência (MOURA,1978):
1 – Agrícolas (praticavam agricultura de subsistência, e eram majoritários)
2 –	
Extrativistas (coletavam e vendiam as chamadas “drogas do sertão”, como casta-
nha-do-pará, guaraná e cacau, na região amazonense)
3 –	
Mercantis (comerciavam produtos que adquiriam dos povos indígenas na região
amazonense)
4 –	
Mineradores (extração de ouro, diamantes e outras pedras, principalmente nas
regiões de Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso)
5 – Pastoris (criação e manejo de gado nos campos do Rio Grande do Sul)
Apresentação
32
SUMÁRIO
6 –	
De serviços (quilombolas artesãos, marceneiros, toneleiros, barbeiros, alfaiates e
carregadores que se misturavam às populações de negros livres e prestavam seus
serviços nos centros urbanos)
7 –	
Predatórios (viviam de saques e desapropriações realizadas nas estradas e em
fazendas de escravocratas).
Clóvis Moura ainda nos fala de quilombos mistos, onde mais de uma forma de subsis-
tência era praticada, como o quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais, em meados do século
XVIII. Os mais isolados viviam do cultivo da terra, da caça, da pesca e produziam seus tecidos,
sua cerâmica, seus instrumentos de trabalho e suas armas. Outros se estruturavam próximos a
aglomerações urbanas ou mesmo cidades e, frequentemente, comerciavam seus produtos com
a sociedade circundante. Sempre perseguidos por expedições militares, resistiram no decorrer
de séculos; são exatamente os relatórios da repressão que permitem aos historiadores recons-
truir a sua história e seu cotidiano.
Mas nem sempre a fuga era pretexto para se formar um quilombo ou juntar-se a um.
Muitas vezes, fugiam para que, quando voltassem, pudessem negociar melhores condições
de vida e de trabalho com os seus senhores. Essas negociações, pouco a pouco, se tornam
parte do sistema escravista, que muda através dos séculos. Dessa forma, mesmo não tendo
nenhum direito legal, as/os escravizadas/os foram estabelecendo limites ao poder sem freios
dos senhores. Tivemos ainda centenas de rebeliões, quase sempre sufocadas antes de aconte-
cerem de fato, nas quais as/os escravizadas/os planejavam matar senhores e feitores e ocupar
o seu lugar, assumindo o poder. A mais importante delas foi a Revolta dos Malês, em 1835,
em São Salvador da Bahia, quando escravizadas/os muçulmanas/os tentaram controlar a
cidade. Os rebeldes eram centenas; setenta foram mortos na luta, quinhentos foram punidos
com deportações, açoites e prisões e quatro deles, condenados à morte.
Em São Paulo, mesmo lembrando que a população escravizada só aumentaria durante
o ciclo do café, tivemos resistência por meio de fugas e formação de quilombos desde o final
do século XVI. Em 1723, já havia relatos de escravizadas/os negros e índios que, resistin-
do ao trabalho forçado, destruíam reiteradamente as forcas, como escreveu Afonso de Tau-
nay: “negros da terra e de Guiné repetidamente destruíram aquele instrumento de morte”
(MOURA, 1988). Antes ainda, em 1635, andavam a matar gado pelos campos e, armados
com seus arcos e outras armas, assustavam os escravocratas. No decorrer de todo o século
XVIII, o negro fugido passa a ser uma constante na sociedade paulista. Mogi-Guaçu, Atibaia,
Santos, Itu, Taboão, Piracicaba, entre outras cidades, tiveram fugas de cativos e formação
de quilombos. Mesmo na periferia da capital ocorreu a repressão a quilombos, localizados
na Penha, em Cotia, em Conceição dos Guarulhos, em Pinheiros e em São Bernardo. Muitas
vezes, negros da terra (índios) e da Guiné uniam-se contra os senhores, como ocorreu na vila
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 33
SUMÁRIO
de Jundiaí, onde negros, mestiços e carijós provocavam tumultos e encontravam-se “levan-
tados sem obediência às justiças” (MOURA, 1988).
Muitas vezes, fugiam para a região de Cubatão e Santos, outras vezes, eram os de
Santos que fugiam, como em 1785, quando muitos se deslocaram para Paranaguá. Uma ca-
racterística do período era a fuga individual ou em grupos. No século XIX, contudo, iremos
encontrar uma resistência mais organizada, quando os escravizados uniam suas formas de
rebeldia às ações abolicionistas. Essa ameaça constante de rebelião desgastava o aparelho
repressor das classes dominantes.
Muito se insistiu na historiografia tradicional sobre o papel marginal dos escravizados no
processo abolicionista. Porém, sem a participação massiva deles e de negras/os e mestiças/os
livres, principalmente a partir da década de 70 do século XIX, não teríamos um movimento da
magnitude que assumiu o Abolicionismo. Não se pode falar de um movimento abolicionista
na primeira metade daquele século, apesar da constante resistência dos escravizados. Já em
1851, tivemos a proposta da liberdade para os nascituros e a proibição da separação de famí-
lias escravizadas. Tal proposição ficou perdida nos escaninhos da câmara dos deputados, e,
somente vinte anos depois, teríamos a aprovação da Lei do Ventre Livre.
O problema da emancipação dos escravizados adquiriu urgência durante a Guerra do
Paraguai. O governo concedeu liberdade aos escravizados da nação ( escravizados que perten-
ciam ao governo) que prestassem serviço militar, estendendo a liberdade às suas mulheres.
Senhores e filhos de senhores procuravam fugir do serviço militar enviando escravizados em
seu lugar. Houve também escravizados fugidos que se alistavam. Terminada a guerra, os que
sobreviveram foram considerados livres. Criou-se um movimento de simpatia e apoio aos
escravizados que haviam lutado pelo país. Os senhores que tentaram reescravizá-los foram
contestados pelas autoridades e pela opinião pública, que condenavam essas atitudes. A parti-
cipação dos escravizados na guerra fortaleceu aqueles que lutavam pela libertação.
Clubes, jornais, e associações abolicionistas foram organizados nas principais cidades
do país. Em São Paulo, um negro ex-escravo organiza uma campanha jurídica em favor da
libertação. Luiz Gama apoiava-se na lei de 1831 que proibia a escravização de africanas/os que
tinham entrado no país depois daquela data e, brilhantemente, conseguiu sua liberdade do
cativeiro. A campanha organizada por Luiz Gama era uma ameaça real para os escravocratas,
pois um grande número de escravizados nessa época tinha de fato entrado no país após 1831,
e seu cativeiro era ilegal.
A elite escravocrata apegava-se ao que considerava um direito seu, o direito da
propriedade. Acusava qualquer projeto de emancipação de ameaçar com a ruína os pro-
prietários e colocar em risco a economia nacional e a ordem pública. Alguns chegaram a
acusar os projetos emancipatórios de comunistas. Em 28 de setembro de 1871, é aprovado
o projeto que libertava os recém-nascidos. Estes, no entanto, ficariam sob a tutela dos se-
nhores até a idade de oito anos. Nessa idade, o proprietário poderia entregar a criança ao
34 Apresentação
SUMÁRIO
Estado, recebendo uma indenização, ou mantê-la até a idade de vinte e um anos, em troca
da prestação de serviços gratuitos, ou seja, mantinha-se a escravidão. É importante lembrar
que a data de 28 de setembro foi comemorada até meados do século XX pelo movimento
negro e pela imprensa negra, o que mostra a construção de uma memória social autônoma
construída por negras e negros e transmitida para seus descendentes.
A aprovação da liberdade dos recém-nascidos não resolveu a questão da escravidão e
muito menos diminuiu o ímpeto da campanha abolicionista. Estava claro para todos que os
libertos continuariam a viver como escravizados, a ser vendidos com suas mães, a ser casti-
gados como qualquer outro escravizado e obrigados a cumprir as mesmas tarefas que teriam
de cumprir se não tivessem sido libertos pela lei de 1871. Para negras e negros, a liberdade
continuava uma promessa a ser cumprida num futuro não determinado.
O importante é recuperar o protagonismo social e histórico das negras e negros em
seu processo de libertação e de construção de uma identidade própria. Pensar a formação do
Brasil é resgatar a importância das/dos afro-brasileiras/os na sua construção.
SUMÁRIO
1
Quilombos, comunidades de valores
Rio Ribeira de Iguape, visto de pousada localizada no Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP.
©Silvane
Silva
Quilombo Galvão - Eldorado - SP.
©Genivaldo
Carvalho/IMESP
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 37
SUMÁRIO
Capítulo 1
Quilombos, comunidades de valores
Multiforme, real ou imaginário, o quilombo concentra uma multiplicidade de vidas. O
quilombo, enquanto lugar de habitação, é criador de sentidos que afirmam os valores
civilizatórios herdados das sociedades africanas e que favorecem a coesão social, a solidarie-
dade e a reciprocidade.
A consciência dessa multiplicidade é imprescindível para a manutenção das relações
comunitárias idealizadas, fundadas no uso da palavra: aprende-se a aprender aprendendo
primeiro a escutar; aprende-se a aprender aprendendo a ouvir, antes de falar de maneira
consciente.
Por isso, quando dizemos que as/os quilombolas habitam o quilombo, estamos também
dizendo que o quilombo habita as/os quilombolas. É uma característica ambígua, às vezes
difícil de ser compreendida por aqueles que vivem e fazem parte de um mundo de relações
pensadas pelas leis de mercado que privilegiam o ter e não o ser. Assim, cada quilombola leva
o seu quilombo aonde quer que vá. Mas isso não significa dizer que a terra é uma simples
abstração. A terra marca o ser quilombola, são lugares de habitação de homens e de mulheres,
onde gravitam vidas plurais que dão sentido à existência humana.
Os quilombos não são estáticos, são espaços dinâmicos de produção de alimentos para
a vida, de inovação, em particular de técnicas culturais locais, e de preservação da fertilidade.
Mas é também um espaço duramente atingido pelas desigualdades, pelos conflitos de terra,
pela violência, pela proletarização e também por parte dos problemas provocados pela globa-
lização e pelo neoliberalismo.
38 Quilombos, comunidades de valores
SUMÁRIO
O que é, oficialmente, um quilombo?
Os territórios quilombolas são, em sua maioria, forma-
dos por rios, montanhas e planícies, que suportam suas ativi-
dades, essencialmente agrícolas.
Os quilombos de André Lopes, Cafundó, Caçandoca,
Ivaporunduva, Galvão, Sapatu, Nhunguara, Pedro Cubas de
Cima e São Pedro estão ligados e integrados às colinas, aos
rios e às esferas da natureza. Essa dispersão no espaço é uma
característica da ocupação do território. Cada quilombo é um
centro de vida, uma unidade de produção onde se gere a eco-
nomia, o social e a ecologia. O mesmo vale para as práticas
religiosas e as festas.
Por isso, os quilombos são detentores de uma história
que os leva, hoje, por um momento, a se reagruparem, seja por
razões de autodefesa, seja pelas oportunidades econômicas.
O quilombo é uma família extensa. As crianças cres-
cem, tornam-se homens ou mulheres e ali também poderão
se instalar. Todos deverão ter acesso à terra para poder, as-
sim, produzir.
O quilombo vive com uma concepção de mundo que
guia a organização do hábitat, a instalação das áreas de produ-
ção (as roças) e os ritos. O mundo é simbolizado pelas alianças
estabelecidas com a terra, inclusive nos ritos funerários.
Uma coisa que também eu não sei se ocês falaram aqui ou
se eles ouviram é o... que hoje não existe mais, é carregar de-
funto. [...] O penúltimo defunto que eu ajudei carregar aqui, era
caminho ainda, né, não tinha estrada, agora tem estrada até no
André [ ] Aí, o que aconteceu, antes de sair, (teve uma tromenta),
assim, tava o tempo bão, tempo bão que ninguém achava que ia
dar (tromenta) [ ] duas tromenta: uma de noite, na hora que ele
morreu, e outra de dia, na hora que... na hora de sair com ele pra
ponhar na rede; o pessoal carregava na rede, na época. Aí ele, é,
deu a tromenta e era caminho, aí o pessoal falou assim: “Ó, não
pode cair e não pode parar com o defunto, tá no caminho não
pode parar, porque o lugar que parar fica assombrado ali, o lugar
que cair também fica assombrado.” [ ] Outro: “Segura que vai”,
“Art. 3º - Entende-se por quilombos:
I - os grupos étnico-raciais definidos por
autoatribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ances-
tralidade negra relacionada com a resis-
tência à opressão histórica;
II - comunidades rurais e urbanas que:
a) lutam historicamente pelo direito
à terra e ao território o qual diz res-
peito não somente à propriedade da
terra, mas a todos os elementos que
fazem parte de seus usos, costumes e
tradições;
b) possuem os recursos ambientais
necessários à sua manutenção e às re-
miniscências históricas que permitam
perpetuar sua memória.
III - comunidades rurais e urbanas que
compartilham trajetórias comuns, pos-
suem laços de pertencimento, tradição
cultural de valorização dos antepassa-
dos calcada numa história identitária
comum, entre outros.”
Fonte: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Re-
solução CNE/CEB 8/2012. Diário Oficial da
União, Brasília, 21 de novembro de 2012,
Seção 1, p. 26
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 39
SUMÁRIO
“Não pode derrubar o defunto”, “Vamos lá e segura”, “Não, não, cair não, com-
panheiro”, “Vamos, segura e vamos embora”. E o defunto não pode cair, se cair
[ ] Como eu era da turma mais novo e não tinha prática, né, eu fazia de tudo pra
segurar o defunto. Falei: “Não, cair eu não vou”, e segurava, porque cê tem que
colocar no ombro, e diz também que a gente não pode deixar o ombro da gente
cansar com o defunto, né {[ ]} É. Então, quando a [ ] não guenta, outro já pega;
aí vai assim, um pega, outro pega, pega um na frente, outro atrás e vai indo. Só
que, nesse dia, tava liso, a gente esbarrava, mas o defunto não caía no chão,
sabe, e outro gritava: “Segura, não esbarra não, senão cê vai deixar assombrado
aí. Segura, vai, se apoia aí no mato aí”, e outro chegava e já pegava, sabe, outro
já pegava. Aí outro lá atrás: “Pega de cá que o outro lá já tá quase cansando”,
porque não pode cansar, sabe, não pode cansar. {Tem que ter uma coordenação
[ ]} Mas só que é caminho, o caminho é vinte centímetro, trinta centímetro, então
tem que passar correndo no mato e outro já pegar e já colocar na mão do outro,
né. E aí, a gente cair, eu memo não caí [ ], mas bastante gente que carregou de-
funto aí... Na época eu era criança, eu só olhava. {Mulher cansa no caminho, né?}
É, e também não pode ninguém andar na frente do defunto, só aquele que tá se-
gurando o defunto, aquele sim, mas quem tá sem nada não pode andar na frente.
{Tem que ir atrás.} É, só tem que ir atrás mesmo. {E qual a explicação pra isso?}
Então, porque quem vai na frente, é... o defunto, né, ele tem que tá uma pessoa
segurando, tudo bem, mas quem tá na frente sem nada, dizem que essa pessoa
que tá na frente, quando o defunto for enterrado, ele vai adiantar a viagem dessa
pessoa, a pessoa sempre vai andar e nunca vai chegar onde ele quer. {Tem que
deixar ele na frente.} {E quando o defunto vai também, que vai levar o defunto,
não pode [ ]} comentários simultâneos (Sr. Maurício/André Lopes)
Bananicultura - Quilombo Ivaporundiva - Eldorado - SP.
©Silvane
Silva
Quilombos, comunidades de valores
40
SUMÁRIO
Comunidade apontada para o reconhecimento em outra região
Comunidade de Porcinos, no Município de Agudos
Localização no Estado
ITATIBA
SÃO ROQUE
ALUMÍNIO
VOTORANTIM
SALTO DE
PIRAPORA
SARAPUI
PILAR DO SUL
ITAPEVA
MIRACATU
IGUAPE
REGISTRO
JACUPIRANGA
ELDORADO
IPORANGA
ITAÓCA
BARRA DO
CHAPÉU
BARRA DO TURVO
CANANEIA
ILHA COMPRIDA
UBATUBA
CAPIVARI
RIO CLARO
SÃO BENTO
DO SAPUCAÍ
GUARATINGUETÁ
Fonte/Consulta online: Itesp/SJDC (www.itesp.sp.gov.br).
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 41
SUMÁRIO
No quilombo são realizadas também atividades artesanais, tais como a produção de fa-
rinha e de doce de banana, de artefatos com a palha da bananeira e de peças cerâmicas. Tecno-
logias para o cotidiano, tecnologias para a vida. Ele é também um lugar de concepção logística
que permite assegurar a produção.
Casa de taipa, localizada no quilombo Cangume - Itaoca - SP.
O saber/fazer expresso na construção das casas em terra batida (pau a pique) revela uma
capacidade ótima de interação com o ambiente. Mas não para por aí. A reprodução das semen-
tes e a variedade de bananas são outros importantes exemplos que revelam o dinamismo e a
capacidade de inovação dos quilombolas.
O quilombo é também lugar de interpenetrações com o mundo exterior, pelas ingerên-
cias das políticas públicas, da modernidade, do mercado, da cidade.
Esse tipo de comunidade permite aos seus visitantes conhecer um outro mundo, outras
lógicas e outras formas de organização, o que pode exercer um papel importante no quadro de
referências individuais e coletivas.
A modernidade se coloca pela cidade, pelo desenvolvimento das estradas que cortam a
região e favorecem as interconexões, pela valorização da biodiversidade, pela busca dos sa-
beres locais pelas universidades que visitam as comunidades e lá iniciam projetos científicos.
©Acervo
NINC/SEE-SP
42 Quilombos, comunidades de valores
SUMÁRIO
Placa indicando o Quilombo do Jaó - Itapeva - SP.
Centro comunitário, Quilombo da Fazenda Picinguaba
Ubatuba - SP.
©Renato
Ubirajara/SEE-SP
©Renato
Ubirajara/SEE-SP
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 43
SUMÁRIO
Políticas públicas: o conjunto ou a
soma das decisões e ações dos gover-
nos visando solucionar os problemas
que surgem na sociedade buscando
garantir uma vida digna aos cidadãos.
ONG: entidade de caráter civil ou so-
cial, criada independentemente de go-
vernos locais ou organizações interna-
cionais, regionais e nacionais.
Globalização: processo econômico e
social que estabelece uma integração
entre os países e as pessoas do mundo
todo. Por meio desse processo, as pes-
soas, os governos e as empresas trocam
ideias, realizam transações financeiras e
comerciais e espalham aspectos cultu-
rais pelos quatro cantos do planeta.
Urbanização: o processo de transformar
certa área em uma área urbana e retirar
todas as características silvestres e ru-
rais, inserindo instalações e infraestrutu-
ra de uma cidade (ruas, avenidas, rede
de esgoto, rede elétrica, edificações,
serviços urbanos etc.).
A urbanização é um processo que ins-
taura uma cidade, em consequência
da demanda populacional, da deman-
da comercial e do desenvolvimento
tecnológico.
Nação: do século XV ao XIX, este era o
termo usado pelos negros para desig-
nar um grupo com características cultu-
rais que os distinguiam e os tornavam
diferentes dos demais. Atualmente,
esse termo é muito usado para diferen-
ciar um tipo de candomblé do outro.
Exemplos: “nação jeje”, “nação nagô”,
“nação angola”. Na narrativa apresen-
tada, a palavra nação é utilizada para
designar as diferentes famílias.
Essa modernidade é marcada também pela reorganização das
comunidades, seja pelas pautas políticas internas, seja pelos
projetos de políticas públicas sustentados por ONGs (Organi-
zações não Governamentais).
O processo de globalização e as próprias relações das co-
munidades com as cidades podem alterar seus valores. No en-
tanto, os novos modos de vida (no campo da alimentação, das
tecnologias podem ser incorporados sem ameaçar sua identi-
dade. Essa contribuição coloca a questão sobre o risco que a
urbanização representa para as comunidades quilombolas.
Minha mãe é Etelvina Rodrigues da Silva, meu pai é Agos-
tinho (Ersulino) da Mota. {Agostinho o quê?} (Ersulino) da Mota.
{Ah, (Ersulino).} {Esse Mota é com um “tê” ou com dois “tês”} Um
“tê” só! [ ] mas nós é um só. Meu avô era Lourenço (Ersulino) da
Mota, minha vó... Ó, minha história é meio compricada, que eu
só tenho três nação, hein? Uma coisa que cês nunca viram, hein?
{Tem o quê?} Três nação, não tenho quatro nação não. {Como é
isso?} {Casado com parente.} {Seu avô é Lourenço, e sua vó?} Ca-
etana (Ersulino) da Mota {[ ]}, outro avô [ ] Rodrigues de Almeida,
{Pode ir falando.} outra vó que é muié do, essa Caetana é muié
do Joaquim Rodrigues e a muié de Lourenço é Antônia Vieira
Pereira de Morais. Aí eu vou contando minha história por que que
nós somos três nação. “É, como é que é essa história aí?” risos
{Três nação, como é isso?} É, porque quando eu falo isso a turma
fica {Curioso.}, é, porque Lourenço é irmão de Caetana e Joaquim
Ro... {Rodrigues de Almeida.} é, casou com a irmã de {Do Louren-
ço.} de Lourenço. Então meu pai com a minha mãe eram primo e
despois eles casaram, então Joaquim se tornou meu avô e Caeta-
na minha vó. E {Joaquim e Antônia também}, eles também, vira-
ram cunhado. Então quer dizer que meus dois avô eram cunhado
{Ah, entendi.}, então aí deu três nação, não deu quatro. Porque
dois avô, um avô era casado, aí eles eram casados meus dois avô,
um era casado com a irmã do outro, então deu três nação, não dá
quatro. Pode ver que a minha vó é a mesma assinatura do meu
avô Lourenço. Então eu sou três nação. Então, quando ela mor-
reu, eu tinha dezoito anos de idade, eu era o mais véio da famia,
dezoito ano, só que ficou uma irmã com um ano e meio de idade.
Nós somos em cinco irmão, que é, irmandade, que é (Zico), San-
tina, que faz trinta ano que eu não sei aonde que tá, Dorvalina e
Odete. Odete ficou com um ano e meio de idade, aí eu era o mais
44 Quilombos, comunidades de valores
SUMÁRIO
véio da famia, eu fiquei [ ] ajudando meu pai. Só que minha mãe era uma muié que
hoje que minhas criança agem diferente. Ela fazia cuscuz, porque aqueles tempos
não existia pão. Existia pão, mas era longe daqui, não dava pra comprar. Então nos-
so pão da café era cuscuz, biju, batata-doce, cará, então esse que era o nosso pão.
E outra coisa, nós tomava café, não era açúcar, porque era cana, cana moída, gara-
pa que passava lá pra fazer o café. Então meu criame foi bem popular, não foi, quer
dizer, foi um criame lá memo do... lá da roça memo, não foi um... {Do sertãozão.}
É, do sertão, como diz o caboclo, lá do sertão, o caipira, lá do sertão, um criame
bem caipirão. Só que hoje eu falo isso pro meus filho, “Ah, pai isso aí...” [ ] garapa
(sozinho) ele bebe, mas, se passar pra fazer café, não bebe, porque diz que é muito
forte. Eu já acho bom {Não acostuma, né.} {E é gostoso.}, se (põe bolacha). “Ah,
hoje é pão, pai, hoje é pão. (Bolacha), isso aí é coisa do seu tempo. É coisa, isso aí,
do seu passado.” Então hoje ele acha diferente, eu não disconcordo com ele, por-
que aquela época foi uma coisa. Sobre remédio caseiro, fazia remédio caseiro. Eu,
até quarenta e cinco ano de idade, nunca fui num dotô. Quando eu fui num dotô,
eu tinha quarenta e cinco ano de idade. Eu, um dia eu cheguei pra fazer ficha, “Ah,
mas num...”. Eu falei: “Infelizmente, eu não tenho ficha”. “Mas tem, porque tudo
mundo tem.” Eu digo, “Tudo Nhunguara tem, menos eu. De hoje em dia vou ter”,
né, porque aí eu tive pobrema de gastrite que tenho até hoje, então careceu fazer
ficha pra tomar remédio. Só que hoje, tá na... principalmente a juventude, ponhou
na cabeça, porque a gente vai lá no médico, o médico “Não, não toma essa erva
porque é veneno”. E hoje é difícil ponhar isso na cabeça da criançada que, é, mas
por que que diz que é veneno? Porque, se eu ficar tomando o meu remédio casei-
ro aqui {Não vende remédio.}, não vão poder vender, vai vender pouco. E quanto
mais ele ponhar na cabeça da pessoa que aquilo é veneno, pra ele o consumo lá
vai ser mais. Só que a juventude, é difícil a gente por isso na cabeça deles que não
é veneno. “Ah, mas o médico falou que é”. E, hoje, até porque a gente é fio do
sertão, “Ah, mas ele lá estudou, ah, estudou”. A gente não tem estudo, mas tem o
conhecimento, um conhecimento que já vem da cultura da gente. Até que isso aí
é uma coisa que a gente discute muito, que é difícil da gente entender. Como que
os (índio), lá no antepassado dos negro, sabiam que essa erva, sem estudo, sabiam
que (decidindo) no meio da mata tantas erva o que era {Bom pra cada coisa, né.} É,
o que era bom pra cada coisa. Uma ideia que a gente, até hoje, não dá pra enten-
der isso. {Mas os remédio que tem é tudo do mato, sai daqui, as erva daqui.} Então
é outra coisa que a gente põe na cabeça. Anador, nós temos anador em foia, nós
temos penicilina em foia e é o memo de lá, só que o nosso tá em foia e o deles já
tá industriado. Só que é difícil por isso na cabeça de uma (criança), porque o anador
que ocês toma, o anador em foia faz um chá pra beber, é melhor. Se você põe uma
penicilina em formação quarquer, pelos uns quatro dias tá desinframado, não é que
nem o antibiótico lá. {Tem que tomar sete dias, né.} Mas é que isso ninguém conhe-
ce. Hoje, é uma coisa difícil ponhar na cabeça de uma criança. Agora, se tiver num
livro isso, ele, pode ser que ele vá, né, ele vai ler, “Ah, mas meu pai falava isso”, o
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 45
SUMÁRIO
fio pode não ponhar, mas pode ser um neto, um bisneto pode alcançar aquilo. O
trabaio que tá fazendo, o futuro, né? Hoje, até pra meu filho não pode ter muito
valor, até pode não valorizar muito, mas meu bisneto vai, o meu neto e meu bisneto
vai valorizar. “Ah, meu avô falava isso aí”, né. Porque se a gente alcançar, a gente
vai ter de contar. Vai, memo acreditando ou não acreditando, mas a gente vai ter
de contar essas história. {Sim.} Só que a gente vai contar, ele já vai, quer dizer, ele
vai ler, então aí já vai mudar, né. {Que vai tá escrito, né.} {Eles vão acreditar mais,
vão acreditar e continuar passando, né, que só acreditar e também não continuar
praticando também...} Tem que praticar, né. (João Mota [João Catá]/Nhunguara)
©Silvane
Silva
Artesanato feito por mulheres do Quilombo Cafundó na língua Cupópia
(vimba significa mulher) - Salto de Pirapora - SP.
SUMÁRIO
Memória coletiva
2
Placa indicando o Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP.
©Silvane
Silva
SUMÁRIO
Quilombos, comunidades de valores
48
SUMÁRIO
Mural da EE Maria Antonia Chules Princesa - Quilombo André Lopes
Eldorado - SP.
Pousada do Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. Quilombo Cafundó - Salto de Pirapora - SP.
Escola do Bairro São Pedro - Quilombo São Pedro
Eldorado - SP.
©Genivaldo
Carvalho/IMESP
©Cleo
Velleda/IMESP
©Acervo
NINC/SEE-SP
©Acervo
NINC/SEE-SP
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 49
SUMÁRIO
Capítulo 2
Memória coletiva
A memória coletiva é uma memória compartilhada por um grupo, povo, nação, país ou
grupo de países. Ela constitui e modela a identidade e a inscreve na história do grupo.
Segundo o sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945), a “memória coletiva” é uma teoria cien-
tífica que diz que partilhamos a memória e que lembrar não é um ato solitário. Isso significa
que nossas lembranças e memórias são, em parte, estruturadas pela sociedade, compartilhadas
pelo grupo. Logo, há uma memória coletiva e uma multiplicidade de memórias individuais.
A nossa memória está em constante mudança. Ela muda ao longo do tempo: nós nos
esquecemos, nós nos lembramos.... A memória coletiva também se transforma por meio de
eventos e ao longo do tempo. Quando partilharmos a nossa memória com as pessoas que estão
ao nosso redor, estamos construindo uma parte da nossa memória coletiva.
Conversando sobre a vida de antigamente...
Quando a gente começa a contar uma história do passado pros jovens, é
história, mas é coisa antiga. Só que pra eles essa história não é história. Mas é
uma história de verdade, porque nós estamos contando uma coisa que passou e
é a verdade o que nós estamos falando, mas pra ele é uma história... Porque tudo
o que fala hoje do passado foi verdade, que muitos jovens hoje não conhece.
Agora, se o pai e a mãe não contar pra ele, a pessoa de mais idade, ele acaba
não sabendo. E, daqui a pouco, os mais [velhos] vão se acabando também, e vai
acabando tudo, porque, se o pai com a mãe não passa pros filhos, aí não aprende
nada, então aquilo vai acabando. Então tem que passar sempre, conversar, contar
da história como que era primeiro, antigamente, pra ficar pra eles, pra eles apren-
derem também, saber também a história. (Sr. João/Sapatu)
Meu nome é Maria da Glória, nascida e criada no quilombo. A minha mãe
tem oitenta e seis anos, meu pai já faleceu, mas bastante coisa a gente aprendeu
com isso, a educação nossa aqui, quilombola. Então a gente, como diz o Assis aí,
50 Memória coletiva
SUMÁRIO
eles ensinava nós respeitar os outros. Nós, até pra ser mais repeitado, nós pedia
bença pras pessoas. Todo mundo era tio, tia, “bença titio, bença titia” ou primo
mesmo, ou prima, mas pedia bença... Então pra nós hoje é bem diferente, né...
o jovem de hoje é bem diferente... Minha mãe, Deus o livre que nós falasse um
palavrão. Até agora mesmo, os neto dela, ela corrige, ninguém falava palavrão,
ninguém assim... nós mesmo, irmandade, ele é meu irmão caçula. Então a gen-
te tinha que respeitar um o outro... E aí nós se criamos dessa maneira. Eu achei
que... aquilo eu aprendi bastante. Eu também não fui pra escola, porque na épo-
ca não tinha escola, não aprendi nada assim... mas, até agora, eu tenho sessenta
e três anos, mas sei viver nessa educação quilombola nossa. Até agora não... as-
sim... (como esses dias eu falei) eu me orgulho de ser quilombola, na criação que
fui criada. A gente comia coisas pura; eu digo que a minha mãe está viva porque
ela sempre comeu coisas pura. É... batata, cará, banana, banana assada assim
num... que nem diz o povo aqui, nós dizemos aqui... no (borraio) da taipa, e muita
coisa, assim, peixe, caça, carne de porco, é... muita coisa... frango – que a gente
não comprava carne de boi, porque era bem difícil, bem difícil mesmo, sabe, só
em Eldorado, e era difícil pra pessoa ir lá. O meio de transporte, bom, meu pai
fazia aqui, era andar de canoa, levar, assim, quando a pessoa... nessa época, no
tempo da colheita de arroz, aí ia levar o arroz pra vender lá em Eldorado. A gen-
te tomava café de cana e caldo de cana [ ] ou raspadura. Aprendi torrar farinha,
aprendi socar arroz. Eu, desde os sete anos, a minha mãe ia pra roça e aí deixava
eu pra tomar conta dos meu irmão, que era caçula. Eu sou a quase a primeira,
porque tinha o [ ] mas morreu, então, ali eu... Todas essas coisa que, sabe, que a
gente imagina que sabe e sei, aprendi torrar farinha – meu pai ia trabalhar, muito
trabalhador, na lavoura, minha mãe também –, aprendi colher café, como que
se cuida do (café) pra fazer um café, assim, quilombola. Então foi coisas que eu
aprendi e fico muito contente por isso e de pertencer, uma pessoa quilombola
também. A [ ] é irmã da minha vó, aí vem o Bernardo [ ] que era avô da minha
vó e da [ ], que era o primeiro que entrou aqui, segundo a história que contam.
Então eu... eu agradeço por tudo essas coisa e a gente ter essa educação; que,
hoje, as criança aprendem lá na escola, os professores ensinam, mas sai pra rua
falando palavrão, fazendo coisa que é errada, que nós não fazia antes. Eu não fui
na escola, mas sei respeitar os outros, nunca falei palavrão, não gosto. Meus filho
também veio nessa criação, de não falar palavrão em casa, nem pros outros, (pros
meus vizinhos). Então aquilo pra mim foi muito importante! Obrigado. (Sra. Maria
da Glória/André Lopes)
É, eu me lembro que do tempo que eu era menina pequena. Nós sempre
moremos aqui memo, por aqui. E eu me lembro que minha mãe, meus avô, minhas
vó iam trabaiar pra esse centro de (Capuava), pra lá, e nós ficava por aqui, pra beira
da estrada a molecada ficava. Vinha gente [ ] de lá de serra acima, passava na es-
trada com aquele bando de boi, boi, era cabrito, era cavalo, era de tudo passava
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 51
SUMÁRIO
na estrada. Eu era menina, mais ou menos de
uns dez pra doze ano, e o serviço que os mais
véio trabaiva nele é sempre o serviço de roça,
porque não tinha estudo memo aquele tem-
po, estudo não tinha, porque eu memo, que
me criei naquele tempo, não tinha estudo [ ]
Mas na roça eu me lembro que todo mundo
era trabalhador da roça, prantava de tudo.
O que era de prantar pra nascer, pra crescer,
eles prantava e dava. Nós se criemo com la-
voura da roça; era feijão, era arroz, era milho,
mandioca, café, era tudo da roça, tudo, tudo,
tudo, lenha pra fazer comida... Hoje tá tudo
fácil, hoje as criançada, as moçarada não
querem saber de nada, porque vem tudo
facinho, limpo, é tudo limpo. Pra nós buscar
uma vasia d´água precisava nós andar daqui lá na estrada, buscar água no rio pra
trazer pra dentro de casa. Lenha, bardeava lenha desse centro de Capuava pra trazer
pra fazer fogo pra fazer comida. Eu sofri, fui do tempo do escravo eu também [ ] Mas
a gente tinha muitas coisa pra falar, mas minha cabeça não dá mais, esqueci de tudo.
(Dona Maria Urbana/Pedro Cubas)
Isso aqui agora pra nós [ ] isso aqui agora é um paraíso pra nós. Isso aqui
[ ] foi do bisavô pro nosso avô e do nosso avô pro nosso pai, isso agora que nós
estamos vivendo é o paraíso. Antigamente, não tinha essa estrada, não tinha nada
aqui pra nós. O que nós convivia era tudo da roça, era tudo da roça. Então tinha
o barco que vinha aqui buscar nossa banana, que saía muita banana daqui, vinha
de Santos buscar a nossa... não, vinha buscar a do nosso pai, eu era molecote ain-
da... Eu era do tempo que... vocês não se lembram ainda... mas eu fui do tempo
do quinhentos réis, um mil réis, cento réis; aí depois veio o tostão, aí do tostão
já veio dois cruzeiros, do dois cruzeiros já veio pro cinco cruzeiros, que era uma
nota [ ] eu sou desse tempo ainda. Eu tô com sessenta e seis anos. Aí, depois
que foi começando subir mais as coisas, mas nós aqui, nós sofria, tudo eles aqui
dentro sofria. Que nem, agora, dizer que a educação temos aqui pra nós, temos.
As crianças de hoje em dia têm a boemia, tem, mas nós, antigamente, nós não
tinha boemia. Porque nós, quando vinha, saía da escola onze horas, chegava em
casa, nós ia pra roça trabalhar, nós ia pra roça. Quem ia carpir rama ia, quem ia...
com meu pai, se tivesse que carregar madeira, nós ia carregar... Hoje em dia, as
crianças acabam de sair da escola vai jogar bola, vai sair, vai... Não, antigamente
não tinha nada disso não, não tinha nada disso! Nós saía, as mulheres, com as mo-
cinhas, ia lavar vasilha, ia lavar a roupa deles lá mesmo, e cada um que se virava,
e o nosso pai trabalhando pra sustentar nós. Então, aquele tempo, nós trabalhava
Produção de banana - Quilombo Ivaporunduva
Eldorado -SP.
©Silvane
Silva
52 Memória coletiva
SUMÁRIO
só pra viver. Aqui nós plantava de tudo! Bem dizer, o único que não dava aqui,
que era difícil, era o arroz, o único que colhia arroz aqui era lá na [ ] no tio [ ]
que era primo do meu pai. Então, ele plantava o arroz, mas era o arroz da seca,
se dizia que era o arroz da seca que ele plantava, só ele que colhia. Mas o resto
aqui, nós criava de tudo e plantava de tudo: era mandioca, era feijão, era tudo,
nós plantava tudo aqui, criava galinha, criava porco. Então, quando nós tinha um
roçado pra cortar madeira, chegava “Vamos, fulano, vamos lá ajudar nós?”, pedia
quatro pessoas, ia mais de dez ajudar, que chamava puxirão. O jitório [ajutório]
era de meio-dia pra tarde, o puxirão era o dia todo. Então, aquilo ali, um chamava
o outro de lá, já ia todo mundo... {Um puxirão que ia todo mundo. Jitório [aju-
tório] ia de meio-dia pra tarde, também ia todo mundo, mas era só de meio-dia
pra tarde}. Então, aquilo ali, um ajudava o outro, era uma união. Um precisava,
todo mundo ia. Até falava “Fulano, você foi, tu tava trabalhando lá, por que não
me chamou? Ah, mas não sabia que você ia, você tava ocupado... Não, mas ia,
mandava meu filho, mandava...”. Era todo mundo, era mulher, era homem, tudo
ia, tudo ajudava um ao outro lá. (Sr. Horácio/Caçandoca)
Eu acho que antigamente era melhor do que agora, porque antigamente
você trabalhava na roça, você tinha sua comida, você estudava, você ia pra es-
cola de qualquer jeito, ninguém reparava. Você não tinha bolsa de escola, você
não tinha mochila, você não tinha sandália, você não tinha nada de marca. E,
agora, pra ir pra escola, tem que ter tênis, tem que ter chinelo, tem que ter... E
você tem que ir de uniforme, se você não for, é reparado na escola. Antes não
tinha nada disso. E, antigamente, você chamava as pessoas pra fazer alguma
coisa, que nem ele falou, ia todo mundo, e agora não, e agora você continua
sendo escravo ainda, eu acho que continua sendo escravo! Tem a terra e você
não pode fazer nada, você não pode fazer nada aqui, você continua na mesma...
Os filhos vai estudar lá fora, tá aí que nem escravo, andando a pé porque o car-
ro não desce aqui. Então pra mim antigamente era mais melhor do que agora.
A escola era aqui na praia, você atravessava rio, você ia molhado pra escola,
você entrava na escola. E agora não, as crianças chega atrasada, já não entra na
escola. [...] Então, antes você comia tudo que tinha de comer, você comia, você
comia a sua farinha com feijão, você comia peixe com banana, pegava marisco,
você comia, saquaritá, você comia, pindá, você comia, você comia tudo! Café
da manhã era café de cana, banana, você comia, você comia mandioca, você
comia batata cozida de manhã e, agora, não, agora ninguém quer comer nada
dessas coisas... Você era sustentado, o pessoal era mais forte antigamente e,
agora, o médico já, qualquer coisa, já não pode comer. Eu tenho uma filha que
nasceu lá na Raposa, Cláudia, nasceu porque não deu tempo, pra mim ir pro
hospital, pra mim ganhar neném sozinha, então eu ganho em casa, ganhei em
casa. E minha filha, logo que nasceu, comia banana. A gente amassava a banana
e dava pra criança. Todos os meus filhos comeram. E, agora, não, só peito até
seis meses, peito, peito, peito, porque se dá comida vai... E antigamente não
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 53
SUMÁRIO
tinha nada disso... Então... Você agora tem a terra, você tem tudo, mas você não
pode fazer nada. Ta aí congelado isso daqui, porque você não pode fazer, você
não pode fazer roça, você não pode capinar, você não pode cortar uma madeira
que a [Polícia] Ambiental vem aqui e multa você. Você não pode fazer uma casa
porque a [ ] vem multar ou derruba sua casa, então você tem que continuar na
mesma, continua escravo! Não pode fazer nada. Então você continua na mesma,
daí tem gente aí com a casa [ ] os pessoal tão fazendo casa aí de teimosia, tão
fazendo casa pela vontade deles mesmo, mas, pela lei, diz que não pode. Se
você é quilombola, você tem que morar na casa de barro, não pode fazer de
bloco. {Não pode ser feita casa de bloco aqui?} Pela associação aqui não pode
{Não pode porque a área ainda está em briga, ainda tá sendo...} {Ah, pra não
descaracterizar antes de sair o título} É {Mas aí, com isso, as pessoas sofrem tam-
bém, porque aí tem a vontade de fazer uma casa, uma moradia melhor, e não
podem, porque aí tem toda essa questão, a questão ambiental. Derrubou uma
árvore, qualquer coisa que eles façam, a Ambiental já tá aqui multando} {E se vo-
cês não podem mais plantar nem nada, como que é a sobrevivência de vocês?}
A gente trabalha, eu trabalho no condomínio [ ] uma hortinha em redor da casa.
Mas roçar mesmo, fazer a roça igual antigamente não pode. Porque antigamen-
te Caçandoca era tudo cheio de roça, tudo cheio de roça, era a coisa mais linda!
{ E aí Ambiental não permite?} é, não permite... (Sra. Aldacir/Caçandoca)
De manhã, antes de vim pra escola, eu tinha que moer cana no engenho
de cana. O café, a gente colhia o café e depois socava... então, a gente socava
o café da roça [ ] então colhia o café, depois o café botava pra secar, depois a
gente socava no pilão. Isso eu fazia, minha mãe ensinava como que tinha que
fazer. A única coisa que eu não gostava é peneirar o café, você tinha que jogar
pra cima e soprar pra sair aquele pó e ficar só os caroços, depois a gente socava
aquilo. Eu falava “Por que a gente tem que fazer isso, comprar no mercado não
é melhor”?, falava pro meu pai. Ele falou “Não, minha filha...”, ele falava “o seu
avô fazia com nós, falava pila, soca isso, pila e faz isso”. Ele falava “Olha, eu já
cheguei a comer”, ele e minha mãe falava “antigamente, nossa vó (colhia,) ia na
costeira, pegava aquela craca da costeira, lavava bem lavado e cascava banana
verde e botava pra cozinhar. Aí, na hora de comer, pegava banana nanica verde
e colocava no pilão e socava, aí botava assim naquele caldo e fazia um pirão, a
gente comia”. Falei “Nossa, pai, era tudo difícil assim?”. Ele falou “Era difícil, e
você tem que aprender que as coisas hoje não vêm do fácil, não”, ele falava, “tem
que sofrer pra ter”. (Dona Maria da Conceição Machado/Caçandoca)
A gente trabalhava com roça. Eu, desde sete anos, já trabalhava na roça
com meu pai, plantava arroz, feijão, mandioca, tudo essas plantação. Já trabalha-
va com ele, já, desde os sete anos já trabalhava na roça. Não fazia muita coisa,
mas já gostava de ir pra roça. E era a tradição de ir pra roça, e eu trabalhava na
roça. Depois, cheguei na idade de escola (...) meu pai dividia a semana, a gente
ia três dias por semana pra escola e três dias na roça. E ai da gente que não fosse,
54 Memória coletiva
SUMÁRIO
os pais autoriza aquela quantidade, era aqueles dias que a gente tinha que ir pra
escola, não podia ir mais de três dias. Aquele tempo, estudava até dia de sábado
(...) eu estudei no Batatal, Barra do Batatal. Eu me criei no Pedro Cubas, eu moro
aqui depois de casada, do ano de sessenta e quatro que eu me casei, que eu
vim morar aqui, mas eu venho da outra comunidade. E lá era difícil os estudos, a
gente tinha que vim andando, não tinha estrada, tinha que vim a pé, andando a
pé. Não era estrada, era trilho. Só andava a cavalo, andava a cavalo na estrada,
porque não tinha estrada. E eu vinha pra escola, andava doze quilômetros pra vim
pra escola, todo dia, esses três dias, era doze quilômetros que tinha que andar
pra ir pra escola. (Dona Esperança/Sapatu)
[...] por isso que, quiser chamar de ignorante, que me chama. A coisa que
eu mais amo nesse mundo é uma casa de sapé, de barro, porque é onde eu fui
criada, que eu sinto o cheiro, as palha, eu gosto muito. Eu falei, gente, é uma coi-
sa que tá dentro da gente, a gente não pode fazer mudar, não pode mudar uma
coisa que vem lá debaixo, da raiz da gente, que é uma coisa que eu gosto muito.
Por isso que eu falei pro meu marido, eu quero fazer uma casa assim. Tá certo,
essa aqui é de barro, ta aí, tá rebocado, mas é barro que ta aí nela {Nós fizemo
aqui, foi num jitório (ajutório). A comunidade inteira colaborou} Não adianta você
tampar o sol com a peneira. Eu quero ser uma coisa que eu não sou, agora, se eu
sou uma quilombola, porque que eu vou fazer coisa que eu não sou? Vou mostrar
lá fora o que eu sou. É por isso que as pessoas sabem, aonde eu vou, as pessoas
falam “Aí vem a quilombola”. Eu não tenho vergonha, porque eu sou! (Dona Ma-
ria da Conceição Machado/Caçandoca)
Meu trabalho pra comunidade, falando de dança cultural, por exemplo, eu
abracei essa causa, com o objetivo de trazer a juventude, os jovens. Tá sendo um
pouco complicado, queria falar para as crianças que não tenham vergonha das
nossas tradições, dos nossos costumes, e que possam continuar essa cultura que
a gente acha bonito e é um resgate da cultura das comunidades quilombolas.
Bom, era isso, como coordenador do grupo eu tô fazendo com que... a gente
tá procurando fazer, passar para as crianças, no caso, pra juventude, que isso é
importante. E falo mais uma vez pra eles não terem vergonha dessa cultural nos-
sa, vamos continuar com filhos e netos, que continue... Sou da comunidade de
Sapatu, nascido aqui, fiquei acho que uns vinte e sete anos fora da comunidade
de Sapatu, voltei em dois mil e oito e, já de cara, eu já entrei pra cultura, pro tu-
rismo também [ ] como agente cultural e coordenando o grupo [ ] lutando, como
eu falei, pra não deixar morrer a nossa cultura, nossa comunidade, e mostrar a
cultura de nossos antigos, de nossos avós, das pessoas da família, mais velhas...
(Ivo dos Santos/Sapatu)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 55
SUMÁRIO
Minha memória, tua memória, nossa memória
Conversando sobre as/os mais velha/os
As pessoas idosas fazem parte da nossa sociedade, da nossa história coletiva e
merecem o nosso reconhecimento. Como? As pessoas mais velhas geralmente compar-
tilham com grande prazer as histórias que marcaram as suas vidas, mas é necessário
demonstrarmos interesse.
Responda as questões a seguir e, depois, converse sobre elas com os colegas e o
professor:
1. Na sua opinião, o que é uma pessoa idosa?
2. O que os seus avós ou outros parentes mais velhos significam para você?
3. Quantos anos têm essas pessoas?
4. Sobre o que você costuma conversar com eles?
5. Quais atividades você faz com eles?
6. Você percebe diferenças entre você e eles? Quais? Por quê?
7. É possível superar essas diferenças, caso haja?
Minha memória, tua memória, nossa memória
Compartilhando memórias
Reflita sobre a noção de memória coletiva. Converse com suas/
seus colegas
sobre as formas possíveis de compartilhar as memórias coletadas, tanto as individuais
como coletivas. É possível, por exemplo, organizar uma pequena exposição com fotos
das pessoas idosas entrevistadas e trechos de suas narrativas. Vocês poderão também
organizar uma reunião e convidar as/os entrevistadas/os para que participem de uma
roda de conversa na escola. Assim, poderão vivenciar a relação entre gerações e a cons-
trução da memória coletiva.
Memória coletiva
56
SUMÁRIO
SUMÁRIO
Práticas culturais
3
Centro Comunitário do Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
SUMÁRIO
Memória coletiva
58
SUMÁRIO
Espaço usado para festas e cursos, Quilombo Cafundó - Salto de Pirapora - SP.
©Cleo
Velleda/IMESP
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 59
SUMÁRIO
Capítulo 3
Práticas culturais
“Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade
A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade
se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam
os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios,
de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão
necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui
o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em
beneficio das gerações presentes e futuras.”
UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural. 2002. Disponível em: http://
unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Acesso em: 29 jul. 2013.
Línguas reminiscentes
Segundo dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura), publicados no Atlas of the World’s Languages in Danger [Atlas mundial das lín-
guas em perigo], cerca de 2500 idiomas estão sob risco de extinção ao redor do mundo. Entre
as línguas extintas há pouco tempo, temos a Aasax, da Tanzânia, desaparecida em 1976. Ainda
segundo o este documento, na África subsaariana, região em que cerca de 2 mil línguas são
faladas (quase um terço do total de idiomas do mundo), é provável que, nos próximos cem
anos, no mínimo 10% delas sejam extintas.
60 Práticas culturais
SUMÁRIO
Khoisan
Afro-Asiáticas
Nilo-Saariana
Niger-congolesas A
Niger-congolesas B (Banto)
Adaptação de Acácio S. Almeida Santos, Casa das Áfricas, 2010
FAMÍLIAS DE LÍNGUAS AFRICANAS
Fonte: Casa das Áfricas. Disponível em: www.casadasafricas.org.br. Acesso em: 3 jul 2014.
No mapa, vemos a família niger-congolesa (representada pela cor verde) nas regiões
Oeste e central da África. As línguas banto ocupam todo o Sul do continente, com exceção
das línguas khoisan (em marrom) na região Sudoeste da África e as línguas malaio-poliné-
sias em Madagascar. Nas regiões Norte e Leste, encontram-se as línguas nilo-saarianas (em
amarelo) e, por fim, da região do Maghreb ao chifre da África, as línguas afro-asiáticas (em
vermelho).
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 61
SUMÁRIO
Conheça algumas línguas africanas que
vieram para o Brasil
Cupópia? Se você não é do quilombo Cafundó, talvez
nunca tenha escutado essa palavra. Ela é o nome dado a uma
língua falada por alguns quilombolas do Cafundó. Leia o que
nos contou dona Judite:
Pouca gente fala, mais ou menos uns seis, sete, por aí. Es-
tão ensinando as crianças a falar – às vezes encontram as crianças
e falam alguma coisa. Essa língua veio do nosso avô, que veio
direto da África. Essa língua foi aprendida por eles. O avô cha-
mava Joaquim Manoel de Oliveira (Congo). Eles não ensinavam
muito pra gente, a gente tinha que aprender no dia a dia, escu-
tando eles conversarem. Ia aprendendo devagarzinho, lá um dia
aprendia uma palavra... É importante falar essa língua porque é
uma coisa que já vem da nossa raiz, do nosso bisavô. Tem que
preservar, porque, se os mais novos não aprenderem um pouco,
acaba tudo. Não pode perder. No decorrer da vida, com a pre-
ocupação de viver, as pessoas se (distanciaram) e até se esque-
ceram da sua cultura. A gente tem que manter a resistência pra
não esquecer dessa cultura, que é a língua da gente. A gente fala
cupópia. (Dona Judite/Cafundó)
Veja alguns exemplos de frases em cupópia:
“1. O cafômbi cupopiano vavuro a cupópia vimbundo
= O (homem) branco (está) falando bem a fala negra
2. O cúmbi cuendano vavuro = O calor (está) chegan-
do forte
3. O tec nâni do cúmbi = A noite nada de luz = Noite
escura
4. Anguta cuendô nangá no cúmbi = A mulher levou a
roupa no sol
5. O tata vimbundo do injó do mafingue cuendô o
cambererá do vava na macura e variamo = O ho-
“Do século XVI ao século XIX, o tráfi-
co transatlântico trouxe em cativeiro
para o Brasil quatro a cinco milhões de
falantes africanos originários de duas
regiões da África subsaariana: a região
banto, situada ao longo da extensão sul
da linha do equador, e a região oestea-
fricana ou “sudanesa”, que abrange ter-
ritórios que vão do Senegal à Nigéria.
A região banto compreende um grupo
de 300 línguas muito semelhantes, fa-
ladas em 21 países: Camarões, Chade,
República Centro-Africana, Guiné Equa-
torial, Gabão, Angola, Namíbia, Repú-
blica Popular do Congo (Congo-Brazza-
ville), República Democrática do Congo
(RDC ou Congo-Kinshasa), Burundi,
Ruanda, Uganda, Tanzânia, Quênia,
Malavi, Zâmbia, Zimbábue, Botsuana,
Lesoto, Moçambique, África do Sul.
Entre elas, as de maior número de fa-
lantes no Brasil foram o quicongo, o
quimbundo e o umbundo. O quicon-
go é falado na República Popular do
Congo, na República Democrática do
Congo e no norte de Angola. O quim-
bundo é a língua da região central de
Angola. O umbundo é falado no sul de
Angola e em Zâmbia.”
CASTRO, Yeda P. de. A influência das lín-
guas africanas no português brasileiro. In:
Secretaria Municipal de Educação – Pre-
feitura da Cidade do Salv. (Org.). Pasta
de textos da professora e do professor.
Salvador: Secretaria Municipal de Educa-
ção, 2005.
Práticas culturais
62
SUMÁRIO
mem preto da casa da família jogou a carne da água na gordura e comemos = O
homem preto da casa da família jogou o peixe na gordura e comemos = O homem
preto da casa da família fritou o peixe que comemos depois = O irmão fritou o peixe
que comemos depois
6. Vimbundo cupopeia nâni na mucanda = O (homem) preto não fala nada através da
leitura
[...]
13. Tata vavuro no arambôngui = Homem forte no dinheiro = Homem rico
14. Tata nâni no arambôngui = Homem fraco no dinheiro = Homem pobre
15. Nhamanhara curima nâni = A senhora não trabalha
16. O que cuenda o chipoquê na bugigança = O que leva o feijão à barriga = garganta
17. Nhamanhara acuendô o godema no urubamba do arambuá = A senhora pôs a mão
no rabo do cachorro = A senhora bateu no cachorro
18. Tata nâni de cucuero = Homem nada de casamento = Homem solteiro
19. Nangá do viçó = Roupa do olho = óculos
20. Nangá do godema = Roupa da mão, do tórax = luva, camisa, blusa
21. Nangá da tarimba = Roupa da cama = lençol, cobertor
22. Nangá do palulé = Roupa do pé = sapato, meia, etc.
23. Sângi do tec = Ave da noite = coruja, morcego
24. Sângi do tec que vareia mafingue d’ingômbi = Ave da noite que chupa sangue do boi
= morcego
25. Curimadô de cuendá o variá = Trabalhador de levar a comida = carroça”
ANDRADE FILHO, Sílvio V. de. O vocabulário e a criatividade da “cupópia”. Em PAPIA (Revista
de Estudos Crioulos e Similares), n. 13: 168–179, 2003, Universidade de Brasília. Disponível em: http://
abecs.net/ojs/index.php/papia/article/view/93/115. Acesso em 29 jul. 2013. (Texto adaptado.)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 63
SUMÁRIO
Festejos e tradições
No ano de 2013, o Instituto Socioambiental (ISA) publi-
cou o Inventário cultural do quilombos do Vale do Ribeira. Nesse
inventário, foram catalogados 180 bens culturais, classifica-
dos em cinco categorias: Celebrações, Formas de expressão,
Ofícios e modos de fazer, Lugares e Edificações.
Nas rodas de conversa realizadas nas comunidades vi-
sitadas, foi possível perceber que, a partir dos anos 1990, com
o aumento das igrejas neopentecostais nas comunidades qui-
lombolas, diminuiu o número de participantes nas festas da
comunidade. Isso porque quase todas essas festas têm relação
com as festas religiosas católicas e de religiões de matriz afri-
cana, como o candomblé. Por consequência, essas manifesta-
ções culturais também estão se tornando cada vez mais raras.
A professora e pesquisadora Glória Moura é pioneira
nos estudos sobre a importância das manifestações culturais
na educação escolar quilombola. Ela é autora dos livros Festa
nos quilombos e Estórias quilombolas. Veja a seguir um trecho no
qual ela fala sobre as festas quilombolas:
“Nas festas dos quilombos contemporâneos,
pode-se verificar uma série de atitudes rituais
que valorizam as tradições da comunidade com
o sentido de perpetuá-las. Mesmo quando os
mais jovens, em busca de emprego e salário, saem
para trabalhar fora da comunidade, ainda assim
mantêm o vínculo com ela, participando das suas
festas maiores, das comemorações e dos rituais,
e desempenhando nelas o seu papel habitual. A
importância de manter o sentido de pertencimento
leva os que saem a voltar na época da festa. É assim
a necessidade de valorização da sua própia cultura
e portanto da afirmação da sua visão de mundo,
de entrada na busca do sobrenatural e do tempo
mítico da festa, que os impulsiona.”
(MOURA, 1997)
Para saber mais
“O Instituto Socioambiental (ISA) é uma
organização da sociedade civil brasi-
leira, sem fins lucrativos, fundada em
1994, para propor soluções de forma
integrada a questões sociais e ambien-
tais com foco central na defesa de bens
e direitos sociais, coletivos e difusos
relativos ao meio ambiente, ao patri-
mônio cultural, aos direitos humanos e
dos povos.
Desde 2001, o ISA é uma Oscip – Orga-
nização da Sociedade Civil de Interesse
Público – com sede em São Paulo (SP)
e subsedes em Brasília (DF), Manaus
(AM), Boa Vista (RR), São Gabriel da Ca-
choeira (AM), Canarana (MT), Eldorado
(SP) e Altamira (PA).”
O Inventário Cultural do Quilombos
do Vale do Ribeira foi produzido pelo
ISA e pode ser acesso pelo link a se-
guir: http://www.socioambiental.org/
pt-br/o-isa/publicacoes/inventario-cul-
tural-de-quilombos-do-vale-do-ribeira
Fonte: Instituto Socioambiental (ISA).
Disponível em:
http://www.socioambiental.org/pt-
-br/o-isa.
O livro Estórias quilombolas, de Gloria
Moura, pode ser baixado gratuitamente
pelo link a seguir:
http://etnicoracial.mec.gov.br/images/
pdf/publicacoes/estorias_quilombo-
la_miolo.pdf
64 Práticas culturais
SUMÁRIO
Silvane: Deixa eu perguntar uma coisa, e vocês... que festas que vocês se
lembram, assim, de quando vocês eram crianças? Datas que são importantes pra
vocês, que tinha alguma comemoração... alguma coisa? {Festa?} Isso, pode ser
festa religiosa, festa por algum...
Maria da Glória/André Lopes: Ah, sim, tinha muita festa... Nós ia a muita fes-
ta, é, no [ ], tinha festa religiosa, no (Casteriano) tinha festa religiosa, a gente ia tam-
bém, no Nhunguara, é, tinha de (Santa Cruz), no Nhuguara. {Tinha de Santa Cruz,
celebrava no dia (treze de maio), né?} É, ali a gente ficava três dia lá festando, três
dia lá festando. Ali rezava, que nem diz nós, antigamente, rezava lá dentro da Igreja,
depois de outro lugar lá chamado Romãozinho, Romão, né? Aí nós tinha uma cruz
lá, nós ia lá. Adorava também, rezava, fazia procissão, fazia um... Pra nós, tudo era
importante, a gente não conhecia [ ] só o que conhecia era isso mesmo. Ainda nós,
porque minha mãe era muito religiosa, ia aqui no Batatal [ ] Eldorado [ ] depois que
nós comecemos ter acesso em carro, né, aí nós não perdia a festa de Eldorado.
Todas nós ia, parte de festa a gente conhece bastante, né, assim... religiosa.
Antes, eu rezava, eu ia a festa, ia a baile, ia a tudo. Mas, aí, depois que... há
uns doze anos atrás... que eu me converti, que sou evangélica, então eu não faço
mais essa festa... O povo faz, né, aqui. Também eu não digo que não faz, porque
cada (qual) tem a sua vontade, porque ninguém não obriga ocê. Se ocê não qui-
ser ir, ninguém vai chegar, arrastar ocê pelo braço, “Vamos”! Então, se ocê quer ir,
é porque ocê tá gostando ainda. Então, a gente já faz parte de outra parte. {Qual
igreja a senhora frequenta agora?} Eu me batizei na Igreja Universal, mas agora
eu sempre tô indo na Igreja Mundial, porque já fica mais longe a Universal, é lá
na cidade. E aqui em Caraguá, quando nós vamos, só quando ela faz lotação, aí
que a gente vai por ela. E às vezes os irmãos vêm aí na igreja, da igreja, vêm aí
em casa [ ] eles vêm aí, trazem Santa Ceia pra gente... E aí a gente vai levando a
vida, até Deus quiser... (Dona Dolores/Caçandoca)
Hoje eu não sou católica, mas sou evangélica, mas isso não muda nada...
{Qual igreja a senhora frequenta?} Eu sou da Congregação Cristã. Até hoje não
muda nada, não mudou nada, porque o amor é muito grande. Se você não tem
amor, você não tem nada... {E quando a gente faz as festas aqui da comunidade,
da Nossa Senhora Aparecida, ela sempre ajuda, a Maria sempre tá junto. Porque
a gente faz azul-marinho pra vender também, e aí ela é uma das que tá sempre
junto, independente se ela participa ali da missa, tá lá cozinhando enquanto a
gente tá celebrando, mas aí tá junto, né, não tem essa separação.} {Não deixa
que atrapalhe, né, a cultura} Não atrapalha nada, eles gostam. Eles tiveram uma
missa que eles fizeram lá em Caraguá, lá na festa, eu pensei assim, “O que é que
eu vou dar pra tia Rosa e a tia Maria levar lá, pra apresentar lá, o que é que eu
vou dar pra eles?”, porque eles vão encontrar um encontro, não tem ninguém...
Se fosse outra pessoa, nem pensava nisso: “Eu sou da outra igreja, porque que
eu vou pensar na igreja deles?”. Mas o amor que a gente tem um pro outro, aí
eu pensei “Sabe o que eu vou fazer? Umas tranças trançadas”. Essas paia que tá
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 65
SUMÁRIO
aqui na parede, eu peguei, fiz a noite inteira as paia, e elas levaram, e foi falado
muito bem. Eu falei, o amor não separa, porque eu acho que o que separa é o
egoísmo das pessoas mesmo. Mas eu sempre tô junto com eles, sempre. “Vamos
fazer isso?”, vamos fazer, só que eu não danço, eu não bebo com eles, mas o im-
portante, “Vamos rezar?”, não, tem que fazer a comida, eu vou lá, eu faço. “Dona
[ ] vamos fazer qualquer coisa, não sei aonde, cê vai lá?”, falei “Tô, vou fazer”.
Então, eu sou assim, eu acho que o amor é importante, o amor, a caridade é muito
importante, não adianta nós termos tanta coisa e o coração duro, não adianta...
(Dona Maria da Conceição Machado/Caçandoca)
Hoje a dificuldade que tem hoje, nossa, hoje nós tamo aqui. Hoje, aqui,
tem (minha irmã) da Deus é Amor, minha tia da Cristã do Brasil, aqui é Cristã do
Brasil, católico, tal... Mas, antes, nós tinha muita dificuldade, hoje nós tamo tendo
uma facilidade pra reunir hoje aqui. Se fosse aí há dez anos atrás, ela tinha dificul-
dade pra falar isso, eles tinha dificuldade pra falar isso. Hoje não, hoje... o pessoal
começou a entender que não tem nada a ver religião com cultura, cultura é cultu-
ra, religião é religião! Então, por exemplo, o pessoal começaram a entender. Não
tem nada a ver, por exemplo, se ele não falar o que o mais véio dele falou pra
ele, eu não vou saber, o nosso pessoal agora não vai saber. Então, quer dizer, o
pessoal tá começando a entender isso... Então pra que a gente... a preocupação
nossa é que isso não se acabe, por exemplo, ele acabe o tempo dele de vida e
leve com ele só, e eu não aprenda, ela vá e ele não aprenda, eu não aprenda, tá
entendendo... Então a preocupação é nesse sentido, o que que a gente pensa?
Pensa que, amanhã ou depois, o mais rápido possível, que nós já tamo atrasado
já, que a gente conseguisse, por exemplo, aproveitar isso. Nós tamo falando aí,
por exemplo, tem muito remédio que a minha mãe sabia ou sabe até agora, que
(tá em vida) pra fazer, que eu não sei, meus filho não vão saber, muito menos vão
saber meus neto, daí que não vão saber memo! Quer dizer, e aí o que acontece,
nós vamos ter que correr atrás do quê? Do médico. E tem coisa que a medicina
não alcançou ainda, e coisa que nós já tinha, nós perdemos, que é o remédio da
recaída. O médico não tem remédio pra recaída, e nós temos. { } Então a dificul-
dade da gente conseguir armar esse... fazer, talvez um... botar no papel, é essa
dificuldade, que nós tamo hoje tendo aqui mais facilidade pra que a pessoa possa
se abrir. Falar não, eu não faço mais hoje por que eu tenho uma religião. Só que
eu sei, eu fazia, eu posso ir até aqui, daqui pra lá... O que que nós colocamos
aqui, coloquemos várias vezes, por exemplo, faz uma festa aqui, religiosa, não
precisa o evangélico vim participar da festa, mas ele que dê a dica o que ele fazia
antes pra gente tentar fazer. Pra que, não vai servir pra ele, mas vai servir pra que,
pra educação dos que tá vindo agora, porque, se perde a cultura, o que aconte-
ce? Vocês sabem o que eu tô dizendo, o sistema mudou. Por que que isso ficou
atrasado? Porque foi implantado o quê? Foi implantado um sistema novo. Então,
esse sistema novo... eu já fui pro sistema novo! Quer dizer, eu esqueci da sanfona,
eu esqueci da colher! Tem (nego) nosso aí antigo, que, se ele pegar uma colher,
66 Práticas culturais
SUMÁRIO
travar ela aqui do lado e bater aqui o pessoal fica bobo... “Puxa, como que essa
colher faz tanto som...”, né. E hoje não, né, hoje mudou... Então nós temos mais
pessoa, até nós esperava que vinha mais pessoa da comunidade aqui, que conta
história que eu memo fico assim olhando, falo: “Eu não acredito que tem tanta
coisa assim e nós tamo aqui...” {Fazia uma viola de bambu que também servia pra
dançar. reproduz o barulho da viola} (Seu João/André Lopes)
Nas festas, tinha a função de batizar as prendas. O [ ] entregava a prenda
e perguntava “Quanto vale isso aqui?” e ele colocava o preço. As prendas eram
frango, leitoa, cabrito assado. A festa era feita para beneficiar as pessoas do bair-
ro. A festa era promovida por um centro espírita. Tinha também a festa de Santa
Cruz, comemorada no dia treze de maio. Tinha muita comida, entre elas o bolo
(apressada) feito de rapadura, clara e gema de ovo e goma (polvilho). Na festa,
tocava um sanfoneiro bom, craque da sanfona – Dito Malaquias – e dançava-se
forró. Tinha violão também, quase todas as pessoas sabiam tocar violão em Can-
gume. (José Gonçalves/Cangume, Paiolada)
Antigamente, o pessoal era muito religioso, né, (de ir numa) festa, cê... a
festa começava sexta-feira, só vinha segunda-feira... {Hoje já não tem mais?} Não,
agora, se tem uma festa, né, (Rosa), o padre já vai no dia e já volta, não fica no... né,
antigamente o padre ia sexta-feira à tarde, ficava sábado o dia inteiro, domingo o
dia inteiro e vinha segunda-feira de manhã, não era? Eles traziam o padre embora.
Agora o padre pega o carro e vai, a missa é três hora da tarde, vai as três hora, vai
na missa, procissão, embora! Acabou a tradição antiga! (Dona Marisa/André Lopes)
Olha, eu acho que, desses bairro por aqui, o único que não tinha muita festa
assim, festa assim religiosa, acho que foi aqui {Foi aqui?} Aqui não teve muita festa
religiosa, até porque aqui, deixa eu lembrar um pouquinho... acho que a primeira
igreja católica, igreja memo, católica, foi essa aqui, porque não tinha igreja aqui. O
que a gente fazia – eu lembro que eu era moleque, Marisa já era moça –, minha mãe,
o pessoal ia pro Sapatu, Nhunguara, Ivaporunduva. Até porque, eu sempre comento
com o pessoal sempre aqui, o morador do André Lopes era três, quatro, o pessoal
morava tudo pra dentro, pra lá. Na verdade, o André Lopes era pra lá, então quem
morava aqui era poucas família que tinha aqui... era meu pai, o meu tio... antes deles
era o avô, aí tem o pessoal do Maia aqui também... {(Ana) Maia e Maria Maia.} Então
era quatro, cinco, só, então não tinha necessidade até de ter, fazer igreja. Aí foi cres-
cendo, crescendo, o pessoal frequentava Sapatu, que tinha uma igreja – eu lembro
até agora que tinha uma igrejinha dos (Vitalino) ali – e depois Ivaporunduva. Era
Sapatu, Ivaporunduva e Nhunguara, era isso que o pessoal fazia, o pessoal fazia mais
isso. Então ficou aqui fazia mais festa, mas era mais festa de puxirão, puxirão. Eu lem-
bro, quando eu era moleque, meu tio fazia bastante baile ali, que era puxirão, né...
Então já não era, assim, festa religiosa... {Como que era essa festa de puxirão?} Essa
festa de puxirão, que hoje é mutirão, mudou, mutirão, que eu não sei porque, mas
é puxirão, na nossa língua é puxirão, é... reunia, por exemplo, ia fazer uma colheita
de arroz, colher arroz, aí reunia cinquenta pessoa, trinta pessoa. Aí ia lá todo mundo,
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 67
SUMÁRIO
colhia o arroz no sábado, né, o dia todo, e já ficava o pessoal – inclusive é coisa que
a gente tá tentando resgatar isso –, ficava as mulher, (aquele) homem ia pra roça,
ficava fazendo... fazendo, socando arroz, fazer cuscuz, fazendo comida, fazendo, tal,
aquela (cutuca) que eles apresentam por aí, é aquilo que o pessoal fazia. Já começava
a socar o arroz, o feijão, o que tinha que fazer, que era pra preparar o almoço, aí ou
levava o almoço na roça, ou fazia na roça. Aí à tarde o pessoal vinha todo mundo pro
baile, aí vinha Nhunguara, vinha..., né, todo mundo... {Os homem trabalhava de dia,
né. O que ia cozinhar... as mulher que ia cozinhar, ia cozinhar, aí os homem ia pra roça.
Quando era à tarde, aí chegava já as mulher dos cara que tavam trabalhando, né,
chegavam tudo à tarde, aí era aquele forró até amanhecer o dia!} Amanhecia o dia...
{Minha mãe cozinha ni velório, cozinhava ni mutirão, cozinha ni festa...} {Canseira não
existe?} {Não, eles chegava da roça, né, João, tomava um banho e dançava a noite in-
teira.} {Chegava domingo ainda dançava o dia todo.} {Aí eles dançavam a (cobrinha),
o xote...} {E os instrumentos no baile? Era o quê? O violão...} {Viola, né, sanfona...}
{Sanfona também, e percussão, atabaque, essas coisas, não?} {Não.} {Tambor, não?}
{Pandeiro, colher, não tinha colher? É... pregava as colher, juntava [ ] até [ ] fazia o
povo dançar.} (Seu João/André Lopes)
Existia também a festa do São Gonçalo, né. {Ah, é, a de São Gonçalo, né, que
foi feita lá no Zé Vieira, né. Uma no Zé Vieira e outra em Ivaporunduva.} {O São Gon-
çalo eu nunca vi...} {É uma tradição muito bonita, né, Zé?} {Diz que é muito bonita...
eu nunca vi.} Muito bonita... é (no meio dos violeiro) tocando viola e a pessoa dança
tudo de... de, assim, um pegando no ombro do outro, na frente, feito fila, fazendo
aquela... em vorta do violeiro, o violeiro no meio dançando também. E, resultado,
aí quando chega (numas hora) a gente encontra o par e fica do lado. Por exemplo,
se eu quero casar com ela, eu conto os par e fica assim oiando, de repente eu
caso com e vou, continuo andando. Aí a dança vai, continua assim, né, fazendo
aquela vorta assim, batendo a mão e cantando, o violeiro tocando e cantando e
a pessoa dançando e, de repente, é... é só viola! E aí chega uma hora que ele faz
tipo uma parada, assim, pra fazer uma comemoração e continua de novo. É a noite
inteirinha dançada assim! {Que dia que é?} {No dia de São Gonçalo.} {Tá, mas no
dia de São Gonçalo, que mês é?} Agora, aí... o mês eu não... Só sei que é a dança
de São Gonçalo. {Quando eles resolvia fazer, eles fazia, eles não tinha mês certo.}
{Ah, não tinha dia...} Qualquer dia (eles podia fazer)... {Era o nome da dança?} É, é
uma dança religiosa, não tem, tipo assim, é uma dança religiosa, em comemoração
a São Gonçalo... {Inclusive eles cantava, né, acho que essa São Gonçalo é aquela
que falava assim: cantando São Gonçalo [ ]} É. {Minha mãe cantava muito isso e a
gente gravava.} {cantando Arre viva, arre viva São Gonçalo.} {Canta aí?} {A Maria
sabe, ela sabe.} {Canta aí, Maria.} (Seu José da Costa/André Lopes)
[...] e quando tinhas as festas, nosso pai não deixava nunca a gente ir numa
festa sozinha. A gente sabia que tinha na casa, a gente ia na casa de um amigo lá
que tinha roça, a sua roça, você limpava um pedaço grande e falava “Olha, gente,
eu vim convidar todo mundo pra nós plantar a minha roça, plantar minha mandioca”,
68 Práticas culturais
SUMÁRIO
que é o aipim que a turma fala. Aí, ia tudo mundo na casa dele, aí, quando chegava
no dia de sábado, quando chegava no dia de sábado, ele tinha uma casa grandona,
como se fosse aqui, chegava lá, era cinco horas, todo mundo acabava o serviço,
agora os pessoal vão ficar pra um baile de pé que vai ter, uma dança. A gente que
era nova não gostava daquilo, nunca gostava, falava assim “Ah, eu já tô cansada de
levar mandioca na saia pra plantar” [ ] ainda tinha um que olhava se você plantava
certo, ele ficava olhando, que não podia ficar uma cova sem plantar. A gente cansava,
porque ia numa pra lá, depois os homens vinham pra cá, plantava tudo aquilo ali. Aí,
quando chegava à noite, a gente tinha que dançar o bendito bate pé! (...) era dez
par. Aí, quando os homem batiam o pé, tinha que ficar atento, quando ele batia o
pé, a gente ia tudo rodando ali, (tudo barata) tonta rodando, rodando, dançava, aí
dançava. Aí, depois, na segunda volta, aí você tinha que cobrar dele, você que tinha
que tirar ele. Não podia trocar, se você trocasse, acabava o baile, você não ficava
com mais ninguém! Isso que eu achava errado, parecia gozado, a gente trabalha pra
todo mundo, vai não sei aonde, aí não pode escolher o par, botava aquele bendito
lenço no lampião lá, aí era pra você tirar, você tinha que dançar. Porque o baile era
baile de verdade, mas você tinha que dançar... o lenço botava lá, aí a dama que tirava
o cavalheiro. Aí, se você dançou com ele, você não podia tirar ele não, ele ficava lá,
coitado! Ficava lá esperando quando vai sobrar, falava assim “Quando que vai sobrar
uma morena dessa pra dançar comigo?”. Eu falei pro meu pai, eu falei assim pra ele,
foi na casa da tia Rosária, falei “Não me leva mais em baile nenhum, que eu não vou
dançar com mais ninguém. Desaforo, ah, esses homens com a toalha no pescoço pra
gente dançar com os moços!”. Ele falava “Ó, filha, esse é o respeito, todo mundo vai
numa festa, tem que pagar a festa, ele tinha que pagar festa pros amigos, o jitório
(ajutório) dele era numa festa, num baile, um mutirão, que ele fazia um mutirão. Mas a
gente ficava tonta demais com aquilo, mas era gostoso. [...] Tem dia que eu passo pro
meus filhos em casa, eles ri, fala “Coitada da minha mãe, odiava, mas dançava, né,
mãe?”. Falei “Dançava, vai fazer o quê. Porque se não dançasse com aquela pessoa,
não dançava com mais ninguém”. Nós sofria, ela [Dona Rosa, que estava presente
na conversa] falava assim “Poxa, Maria, mas aquele moço tão lindo, porque que tem
que esses diabo dançar com nós?”. (Tinha os moço bonito.) Daqui a pouco os velhos
botavam fogo. Eles, além de tá cansado, de cavocar barranco, cavocar terra, por que
eles não sentava? risos (Dona Maria da Conceição Machado/Caçandoca)
E nessa época nós tinha que usar sapato, ninguém usava sapato não. Aquele
que usava sapato, tinha um baile, às vezes vinha por dentro da mata, passava num cór-
rego, vinha com o pé no chão, assim, pisando, trazia o sapato (nas costas). Aí passava o
córrego e lavava o pé, calçava o sapato e ia pro baile, dançava no baile a noite inteira,
outro dia bem cedo todo mundo tirava o sapato do pé também, a maioria carregava
nas costas {no caminho não usava sapato} [ ] não usava sapato não. Andar pela mata,
andar por espinho, no manguezal [...] era pra não machucar o sapato, porque o sapato
era caro... não tinha negócio de bota, não existia. Bota veio de uns dias pra cá [...] O
cara ia roçar um mato aí que tinha nhupindá [jupindá], tinha tudo. Mas só que o nhu-
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 69
SUMÁRIO
pindá [jupindá] é um espinho grande, o cara ia descalço, ia descalço porque não tinha
sapato pra calçar. Eu mesmo, quantas vezes, eu só calcei bota depois de vinte anos
{E quando entrava o espinho no pé, tem uma história que fala que o pessoal, pra não
atrapalhar de andar, eles batia o espinho pra dentro da sola do pé} [...] E agora, um dia
de hoje, num tempo de agora, tudo mundo tava aí, ó, fazendo mutirão pra colher arroz,
fazendo puiuva. Tinha a tal de puiuva, que era até meio-dia. Outro ia fazer mutirão in-
teiro e fazia mutirão inteiro, aí tinha de dar almoço, janta e forró à noite e café outro dia.
E, agora, quem fazia puiuva só dava o almoço e os caras iam embora, a janta, nem que
tivesse um forró de noite, mas a janta ele não dava, ia gastar mais... Mas o cara já sabia,
puiuva até meio-dia só, agora quando é mutirão, aí vai até de tarde. O puiuva também
tinha o baile, mas só que não dava janta, não tinha café da tarde, {Eles trabalhavam até
meio dia, ia embora, almoça em casa} depois de noite eles vinham, se a dona da casa
dissesse que ia fazer o forró. (Sr. Antônio Furquim/Sapatú)
Então, essa história que a gente tá falando assim de andar com o sapato nas
costas, na corda, no Pedro Cubas também era assim. A gente vinha pro Batatal, até
a criançada e a meninada, dia de domingo. Vinha, mas vinha todo mundo descarço
e trazia o sapato pra carçar. Antes de chegar na Barra, tinha um corguinho que era
o lava-pé, que nem ele falou, onde todo mundo lavava o pé. Ficou com o nome de
lava-pé. Todo mundo que vinha, antes de chegar no Batatal, descia lá no córgo, lá no
fundo, fora da estrada, descia lá, lavava o pé e andava com um pano, igual [ ] falou,
enxugava o pé, lavava e carçava o sapato e vinha, chegava na Barra já de sapato. Na
vorta, tirava de novo pra vortar pra casa. (Dona Esperança/Sapatú)
[...] era pra não machucar o sapato, porque o sapato era caro... não tinha ne-
gócio de bota, não existia. Bota veio de uns dias pra cá [...] O cara ia roçar um mato
aí que tinha nhupindá [jupindá], tinha tudo. Mas só que o nhupindá [jupindá] é um
espinho grande, o cara ia descalço, ia descalço porque não tinha sapato pra calçar. Eu
mesmo, quantas vezes, eu só calcei bota depois de vinte anos {E quando entrava o
espinho no pé, tem uma história que fala que o pessoal, pra não atrapalhar de andar,
eles batia o espinho pra dentro da sola do pé} [...] Tinha gente que fazia isso mesmo!
(Sr. Antônio Furquim/Sapatú)
[...] é, o espinho, ele saía depois que... O espinho, quando ele tá vivo no pé,
ele não sai, não é fácil tirar. Depois que ele inflama lá dentro da carne é que era fácil
tirar... E o meu era cravado de espinho de brejaúva {É?} Verdade. Eu trabalhava e eu ia
pro mato, ia trabalhar na roça com meu pai. E em queimada e na prantação de arroz,
quando roçava o caporão, tinha bastante brejauveira e, na queimada, o espinho fica-
va. A gente ia trabalhar, pisava naquela cinza da queimada, enchia o pé de espinho
de brejaúva. (Dona Esperança/Sapatú)
As moças eram espertas também. Sabe, como, o que fazia a gente dançar mais
depressa? Botando um sapato no pé. “Ele tem sapato”, falava pra outra, aí vinha
dançar com ele, porque ele tinha sapato. A pessoa que tinha mais dinheiro, na época,
que podia comprar sapato. Nessa época, ninguém usava sapato, usava sapato muito
70 Práticas culturais
SUMÁRIO
pouco as pessoas, porque era difícil sapato {Se chegasse no baile com sapato, já fazia
sucesso} Porque é difícil sapato, pra comprar é difícil, tinha que mandar fazer, era difí-
cil. Então, aquele que usava, é porque tinha dinheiro, mandou fazer sapato. Então, as
moças vinham dançar com ele porque tinha sapato [ ] Outra era assim, pegava moeda
de quatrocentos réis, duzentos réis, trezentos réis, moeda antiga que tinha, ensacava
no saquinho, os homens, e amarrava aqui pra sapatear, na canela, pro saquinho de
moeda ficar batendo no sapato, que fazia barulho. “Oh, lá, aquele tem dinheiro”.
risos (Sr. Antônio Furquim/Sapatú)
O carnaval, é assim... O carnaval, quando as moças usavam, faziam farinha,
tiravam aquela goma de farinha, carimã que falava, tar de carimã, passavam na mão
e passavam no rosto do cavalheiro dançando [ ] então as moças vinham e passavam
aquela goma, é um negócio assim cheiroso {Carnaval, né?} Mexia tudo assim, ficava
bem cheirosinho {Ah, o carnaval} Então ia chamar as pessoas, as damas, e a dama
já vinha com o carimã na mão pra passar (no cara), pra dançar. Aí, quando o rapaz
gostava da moça, ele até dormia, assim {Mas quando não gostava...} Quando não
gostava, fazia assim, quando a moça não gostava do rapaz, só fazia assim só faz
gesto de passar o dedo bem rapidamente. Aí, quando gostava, passava bem assim,
degavarinho assim... risos (Sr. João/Sapatú)
Legal também que, naquela época, não tinha luz elétrica, era tudo na base do
lampião de querosene. E o instrumento que tocava era feito daqui mesmo, não tinha
como comprar nada de fora, até as cordas, a madeira, era tudo madeira boa, fazia o
instrumento, a rabeca, o violino, o violão. Era tudo feito aqui mesmo {O pessoal daqui
que fazia?} {Tinha já os tocadores} E tinha já os tocador aqui {E isso já perdeu ou vocês
ainda tocam?} Hoje tem a dança {É difícil encontrar} [ ] {Que madeira que usava pra
esses instrumentos, você lembra que tipo de madeira que era?} {Os violão naquele
tempo era tudo feito de madeira forte, canela} A rabeca era daquela cabaça, o violão
era tudo de madeira mais forte. {Violão era madeira tudo forte} [ ] {E as cordas eram
feitas de tripa de macaco, não?} {Linha de tucum, hoje é tudo comprado, fazia rede,
tirava aquela linha pra fazer rede, pra caçar peixe, linha de tucum} {E o som, como
que ficava?} O som ficava muito bom! {Tem de nylon e tem daquela de aço} Só que
a de nylon não ficava muito bom igual aquela de aço {De crina de cavalo?} {De crina
de cavalo tinha, pai?} {Tem até hoje [ ] a rabeca de hoje em dia, a turma... o cabelo,
o rabo do cavalo...} (Sr. Antônio Furquim/Sapatu)
É, uma comunidade difere de outra nesse sentido. Uma comunidade, às vez,
tinha a rabeca, outra não tinha. Outra tinha sanfona, outra não tinha, e chamava a ou-
tra comunidade que tinha; se não, fazia só o baile de violão, né, três, quatro tocador
ali revezavam a noite e cantando música típica daqui mesmo. Já tinha música, tipo
assim, São Pedro tem uma música típica deles lá, eles mesmo compunham a música
deles, Pedro Cubas {Cada um tinha as suas músicas.} Então a gente tem as música tí-
pica de cada comunidade e ali cantava a noite inteira, né, e dançava, então era assim
{E essas músicas vocês sabem ainda?} Sabemos, a gente ainda sabe bastante delas.
(Dona Diva/Pedro Cubas)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 71
SUMÁRIO
Alimentação
As narrativas das/dos quilombolas mais velhas/
os das comunidades re-
metem, muitas vezes, à alimentação. São lembranças das comidas que faziam
parte da sua infância no quilombo, de pratos típicos presentes nas festas de
santos, de casamentos ou mesmo nos forrós dos puxirões. Podemos perceber
uma alimentação baseada nos alimentos que elas/
eles mesmas/os plantavam e
nos animais que criavam nas comunidades. Pouco ou nada se comprava fora:
“somente o fósforo e o sal”, o restante era produzido na própria comunidade.
Podemos dizer que a culinária quilombola possui uma base afro-in-
dígena, com muita farinha de mandioca e peixes, frutas, hortaliças e legu-
minosas. Além disso, é possível perceber a presença de carne de caça (paca,
capivara, tatu, entre outros animais, dependendo da região) e da criação de
galinhas e porcos.
Eu sou [ ], nascido e criado aqui na região. Passei muitas calamidade, casei
com a minha primeira mulher, fui infeliz, fui [ ] Vivemos quinze ano só de vida; ela
foi, eu fiquei. Hoje Deus preparou outra esposa pra mim, com essa nós vivemos já
faz vinte e seis anos. E a nossa cultura é como ele... era dessa maneira, morava no
sertão aqui, trabalhava... Enquanto meu pai... antes de entrar a luta do palmito,
meu pai não (se negava) a trabalhar, plantava mandioca, plantava milho, plantava
feijão, plantava arroz, plantava de tudo. E cana, ninguém tomava café de açúcar,
era o caldo de cana, o café ficava até pesado, gostoso. Hoje não se fala em caldo
de cana, é em açúcar... aquele que... aquele açúcar refinado... Então, a nossa cul-
tura foi dessa maneira. Comia carne de porco, carne de caça e, quando se matava
um gado aí, (quarquer um tinha matado gado), meu pai tinha por capacidade de
comprar, de descarnar (o gado), e comprava aquelas costela, tudo a (espinhaça-
da) do... da armação... do... do gado, pra nós comer... E, mas isso já foi já quase
no fim, porque no começo nós fomos mesmo... [ ] o palmito, a luta do palmito,
ele achou que o palmito trazia felicidade, ele largou de tudo aquilo, ponhou nós
tudo em cortar palmito. (Sr. Assis/André Lopes)
Quando eu era criança, comia feijão com farinha. Não tinha arroz, feijão, fa-
rinha e peixe. A gente não plantava arroz, e comprava arroz de vez em quando, (o
pai) ia na cidade comprava e trazia. Mas a gente quase não comia, a gente comia
mais é feijão e farinha, peixe, pirão de peixe, marisco, saquaritá, pindá, que fala
que é ouriço do mar, é isso que a gente comia. {Vocês também iam pescar, ou só
os homens?} Não, meus avós que pescavam, meu avô pescava, meu pai pescava
{Só os homens, né?} É, só os homens que pescavam. Isso que a gente comia...
Tinha o arroz, mas a gente não ligava muito, porque fazia muito pirão. E café da
manhã tinha café de cana, banana cozida, mandioca cozida... {O café de cana era
72 Práticas culturais
SUMÁRIO
adoçado com melado?} Não, fazia a garapa, fervia o caldo da cana e depois passa
num coador com pó, aí ficava o caldo de cana, não precisava nem adoçar, que a
garapa já era doce. {Ah, tá. Esse que é o café de cana?} Café de cana {É, passar a
garapa no pó de café mesmo} No pó de café, é muito gostoso {Em vez de fazer
com água, faz com a garapa, mas quente?} Quente, passava quente pra dar [ ]
Ficava forte, gostoso. (Dona Maria da Conceição/Caçandoca)
Quando chegava em casa era aquela coisa que a gente tinha que fazer.
Almoçava o que tinha, comia o que tinha e ia ajudar minha mãe plantar man-
dioca, carregar banana, arrancar feijão. Nós tinha uma roça que era lá pra cima
da casa do tio Luís, do caçula. Nós morava aqui no bairro alto e daqui nós ia lá
pra Raposo, atravessava a Raposo e ia lá pro Saco da Banana, pra um lugar cha-
mado Palmito, onde nós morava também, nós tinha um sitiozinho lá no Palmito.
Então, lá que nós ia buscar, atravessava o morro pra ir plantar lá, porque lá que
dava bem feijão, que dava bem o milho, porque nós já tinha as coisas plantado
lá [...] O que nós tinha pra comer, era norma, arroz ninguém tinha mesmo, era
feijão com farinha, era peixe com banana, que agora é prato chique, que agora
é azul marinho. E, quando não tinha isso, eu lembro até hoje que nós ia cortar
banana, banana verde, e nós tinha um pilão grande, e o Jaja, meu irmão, era
apelidado de Jaja, ele era muito guloso, e aí eu cozinhava a banana e eu botava
dentro do pilão e o Jaja ia socando a banana, a banana verde, botava água,
pra fazer aquela paçoca. E, quando chegou um dia, eu virei tão rápido a água
quente, que ele bateu assim no pilão, espirrou tudo nele, no peito dele, coita-
do. Ele saiu xingando, brigando comigo... Ou casamento ou festa, tudo tinha
que ser muita comida, tinha que ser muita comida {Todo mundo ajudava, cada
um dava uma coisa}. Na casa da minha vó, quando vinha Folia de Reis, não é
de reis não, a Folia do Divino Espírito Santo, era três dias na casa da minha vó,
vovó Rosária. Minha vó criava galinha e pato pro ano inteiro, criava o ano inteiro
pra comer em três dias, e a minha vó tinha um salão enorme na casa dela, tinha
uns quartos pras pessoas que vinham de fora dormir, ficava dois, três dias na
casa dela. Enquanto não acabava tudo, ninguém ia embora. Aquilo ali não era
duas, três pessoas, era cinquenta, sessenta pessoas. Todo mundo que vinha,
almoçava, almoçava e jantava e tomava o café da manhã. Era muita fartura anti-
gamente, era pobreza, mas o pessoal aproveitava muito, porque criava... Tinha
galinha, tinha pato, tinha porco, plantava feijão, milho, cana, banana, isso tudo
tinha muito, com fartura... A única tradição que a gente nunca deixou de fazer é
o doce de mamão, até hoje a gente faz doce de mamão, toda festa que tem...
{É um doce de mamão que você vai... não sei se você já comeu aquele fatiado...
descasca todo o mamão verde e vai fatiando ele assim, tipo um espelho, e aí
é feito aquele caldo de açúcar, calda de açúcar, queima o açúcar. Com mamão
verde, porque tem vários tipos de doce, mas esse é bem tradicional aqui.} Esse
é o mais tradicional que a gente costuma fazer. E o peixe com banana, que esse
aí não pode faltar. {É, o com banana verde.} O azul marinho cozinha a banana
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 73
SUMÁRIO
nanica sem casca. A banana a gente faz assim: a gente descasca ela, tem que
descascar debaixo da água, pra não ficar com a mão tudo roxa, preta, por causa
da cica da banana, então, vai descascando debaixo da água e aí você pega uma
panela com água e põe no fogo pra ferver. Aí põe as bananas pra ir cozinhan-
do, aí, depois, você tira a banana e põe no peixe pra cozinhar, naquele caldo
da banana. Aí você amassa, deixa uns pedaços pra pessoa saber que é bana-
na. Agora, quando é pra nós, a gente já deixa a banana inteira. Quando é pra
vender, assim, fazer pra uma festa, a gente já separa a banana e faz o pirão. Aí
amassa a banana já com aquela sobra do peixe, que a gente cozinha a cabeça,
aquelas coisas todas, passa na peneira e deixa assim pronta pra fazer o pirão. A
gente tempera aquele caldo do pirão com cebola, alho, aquelas coisas todas.
Aí faz um pirãozão lá e serve junto com o peixe e o arroz. O caldo de peixe com
a banana e as postas do peixe {Ele fica azulado por causa da banana?} Não fica
azulado {É que antigamente era feito na panela de ferro, e, aí, aquela fervura,
ela ia soltando o azul} Ela ia soltando o azulado, agora a gente faz em panela
de alumínio... e o nome é azul marinho, mas agora não fica mais azul, porque a
gente não tem mais aquelas panelas. Porque eram umas panelas de ferro que
tinham umas tetinhas que ficavam assim, ela tinha uns pontinhos assim, era uma
panelona grandona, mas ela tinha uns pontinhos que firmavam ela, que segura-
vam ela. Então chamava panela de ferro, ela tinha um apoio da própria panela, e
Modelo de armadilha (seu Vandir) - Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP.
©Silvane
Silva
74 Práticas culturais
SUMÁRIO
o pessoal cozinhava naquela panela. Então, era aquela panela grandona, enor-
me assim, então ali é que ela soltava, acho que por causa da tintura da panela
também, ela soltava aquele caldo, aí ficava azul marinho, aquele caldo roxo.
Tem que comer pra ver como que é. Porque, agora, assim, a gente não tem mais
essa panela, então a gente faz na panela comum, então quer dizer que ela não
fica com o caldo escuro. {Tem gente que cozinha a banana com casca pro peixe
ficar azul.} Sabe o que é o problema? Por que a banana, eu já vi gente fazendo,
eu fui provar, ela fica com cica, ela fica peganhosa o pirão por causa da cica da
banana. (Dona Rosa Gabriel/Caçandoca)
Conversando sobre cura de doenças e parteiras
As comunidades, em sua maioria, estão localizadas em regiões de difícil
acesso. Isso tem a ver com a própria história das origens dos quilombos, que
precisavam se instalar em áreas estratégicas. Deste modo, até hoje o poder pú-
blico ainda é muito ausente nos territórios quilombolas. Postos de saúde são
raros e, quando existem, os médicos só aparecem por lá de quinze em quinze
dias, ou uma vez por mês. Também é grande a dificuldade para que os qui-
lombolas consigam chegar aos postos e hospitais na cidade. Em caso de partos
e doenças, os serviços de parteiras, benzedeiras e das/dos mais velhas/
os que
sabem o poder das ervas e raízes ainda é utilizado.
Porém, é possível perceber em algumas falas que esta atividade vem di-
minuindo muito com o passar do tempo. Seja pelo desinteresse das/dos mais
jovens em aprender os ofícios curativos das/dos mais velhas/
os, seja porque
a presença da televisão e das/
dos médicas/
os da cidade façam acreditar que
a cura por meio das ervas e o parto feito por parteiras são coisas perigosas
e arriscadas. Porém, em suas lembranças, as/os mais velhas/
os falam sobre
o grande e intenso conhecimento nas artes da cura e a grande sabedoria e
competência das parteiras nas comunidades quilombolas ao longo dos anos.
A partir de sessenta houve alguma repressão. As parteiras já não podiam
mais porque se morresse uma mulher na mão da parteira ela podia ser presa,
porque não podia e tinha que ir pro hospital. A partir daí começou esse negócio
da mulher ir no hospital. Os benzedor, os fazedor de remédio foi chamado de
feiticeiro. Diziam que tomassem cuidado com eles que eles eram feiticeiros e por
essa razão os mais novo também não quiseram aprender. Ficaram com vergonha
de saber aquilo que os mais velhos sabiam. E os mais velho foi morrendo, não
foi passando pros mais novo, então essa parte da história também nós perdemo
bastante. (Sr. Ditão/Ivaporunduva)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 75
SUMÁRIO
Laura/Galvão: Nós tinha parteira {Eles respondem, eu respondo depois. Eu
memo, meu fio e minha fia primeira foi na mão de parteira, depois pra dentro de
Iporanga, mas os três que eu tive aqui, foi tudo daqui. A mãe dela e a irmã da mãe
dela, são tudo irmã de comádi Jovita, a (Doraci) e a Horácia. Então meus filho,
graças a Deus, nasceram na mão deles, eu não tenho do que recramar não {[ ] foi
a minha mãe que fez o parto} {Sua mãe?} {Vai fazer vinte e cinco ano.} Meu filho
tem, tá com vinte e sete, fez ano [ ] de fevereiro, foi nascido na mão dela.
Silvane: Vocês ainda [ ] ou ainda usam remédios daqui mesmo, feito de
plantas, chás?
Laura: [ ] verdade eu não sou assim de levar muito criança em médico não,
se eu souber assim o que a criança tem exatamente, assim, eu já costumo fazer
o remédio aqui do mato. Caso não sare, aí eu levo pra cidade [ ] E é muito difícil
meus filho usar remédio, graças a Deus. Também, todos eles mamaram. Até o
mais pequeno que eu tenho, que vai fazer cinco ano, mamou até quatro ano e
onze meses. E o leite materno também, né, ajuda muito a prevenir várias doenças
também, né, e aí aqui as mães têm o costume de dar de mamar até a criança en-
joar. Igual essa menina que tava aqui, que é filha dela, e minha nora, meu netinho
ele mama no peito ainda, três anos. {Mama até a hora que quiser.} Até a hora que
quiser, depois que enjoou, largou; larga por conta própia, sabe, e eu acho que
isso ajuda muito, bastante também, né, a prevenir.
Silvane: Quais são as ervas que vocês ainda usam?
Laura: Eu, assim, dependendo da doença, né, que a criança, quando é
gripe, resfriado, a gente usa assim, e bicha também, quando a gente [ ] de susto,
usa poejo, é erva-doce, hortelã, né? Hortelã... É os remédio que mais usa aqui.
Tem erva-santa-maria também, que a gente mistura e faz um cozido. {Faz cozido?}
É, faz cozido, assim. Chifre, né, de boi, que a gente tira também. {Torra e raspa,
né?} É, tem, pode fazer raspado, como que é... torrado, queimado ali, raspa, e
cru também, tem duas forma de usar ele. Essa aqui (indicando Dona Jovita)é es-
pecialista em remédio pra, como que é... quando a criança tá com bicha virada,
como que é... bucho virado que fala. Essa aqui é especialista em fazer remédio
pra criança, já tem tirado muitas crianças da sepultura. {Ah, é?} É, tem um remédio
que ela faz, pra mim mesmo quando eu era criança, quando eu era criança ela fez
um remédio. Eu tinha uma dor de estômago insuportável, sabe, e ela fez o remé-
dio assim pra bicha, sei lá. Nossa, só tomar, chegar no estômago, pronto, acabou
a dor. E, nossa, era direto, direto. comentários simultâneos {[ ]}
Dona Jovita/Galvão: Agora o mais emocionante foi a menina, que hoje em
dia é mãe. Tuda vez que eu óio nessa menina, glória a Deus [ ] Fazia quatro mês
que os pai levava, ficava internada, vinha embora, levava, ficava internada. A mãe
fazia, fez de tudo. Quando o médico despacharam ela, que trouxesse pra casa,
pra morrer em casa, ai, uma menininha tão lindinha. Daí eu tava trabaiando, não
76 Práticas culturais
SUMÁRIO
sei se ele deram, pararam pra [ ] a balsa ali, pro lado não tem o bananal? Então,
eu tava trabaiando naquele local ali, tava até fazendo uma empreita lá. Daí eles
vinham atrás, tinha mandado chamar o pai deles, que tava trabaiando lá, que a
menina tava muito ruim. Eu vim e passei lá pra oiar a criança, Jabor tinha [ ] e eu
fiquei dando [ ] Quando dava aquele negócio no peito dela, ela dava aquele grito,
aquele grito, e se jogava no chão, não tinha [ ] aquele negócio não parava de doer
e ela não parava de gritar, era só o que ela fazia, não mamava, não comia. Daí a
mãe tava em desespero, aí eu peguei... eu já tinha uma prática, sabe, que a minha
tia já tinha me ensinado, essa que criou ele. Ela era parteira e ela sabia tudo esses
tipo de remédio ela sabia, {Era daqui da comunidade?} história que eu nunca vi,
ela era, que essa muié sabia, que eu nunca consegui aprender, que ela não me
ensinou, que eu nem posso contar esse causo aqui. Uma coisa que eu nunca ouvi
falar, nem na mão do médico, essa muié sabia fazer. {Como era o nome dela?}
Salvou a vida de várias muié, era (Celestrina Rodrigues Campo). Essa muié nasceu
cento e cinquenta e três criança na mão dela, coisa mais maravilhoso do mundo [
] (peguei do caderno do marido dela). Daí era o que eu tava falando, daí eu vim,
vi a situação da criança, aí vim embora. Digo: “Essa criança tá[ ]”. Aí cheguei na
casa de minha tia, que era logo ali na frente, aí falei pra ela, digo: “Aquela criança
tá com [ ]. Será que, se fizesse aquele remédio que a senhora faz pras criança, será
que ela (alivia)?”. Aí ela pegou e falou, diz: “Óia minha fia, eu não faço”, porque
ela já tava com farta de memória, muito esquecida, “Eu não faço porque eu não
recordo mais o remédio, mas ocês que sabe, faça, minha fia, porque, se Deus o
livre a criança morrer, não é o remédio que vai matar”. Aí, com aquela conversa
dela, eu saí, cheguei lá em casa nem procurei fazer nada, só peguei uma borsinha
de pano, que nesses tempo não existia borsa de prástico, saí pro campo, fui jun-
tando, juntando, juntando aqueles mato que eu encontrava. Fui juntando, enchi
ela de mato, sabe, eu peguei meus apareio, em casa eu tenho de tudo, (tenho até
agora), é [ ], era chifre, tudo essas coisa [ ], já vivia com a minha pastinha cheia,
porque, quarquer coisa, já... Aí peguei, trouxe, cheguei cá eu comecei preparar o
remédio assim, peguei uma [ ] comecei preparar aquele remédio tudo, [ ] vai. Aí
a mãe da criança passou assim, oiou “Será que não vai acabar de matar a minha
fia?”. risos Aí eu peguei, oiei nela assim, mas, naquela hora, quase me deu
uma vontade de abandonar aquele trabaio, mas quarquer coisa me falou pra
mim “Vai em frente [ ]”, aí deixei (a poeira baixar). Peguei, coloquei duas chaleira
ferver (com o matagal), assim, aqueles ingrediente tudo, deu certo porque tinha
de tudo da minha pasta. Aí, quando essa chaleira ferveu, ali uns vinte minuto, eu
com aquela curiosidade, aquela menina gritando reproduz o grito da menina,
(quase) que saía aquele negócio pra boca dela, aí eu peguei a colher e já esfriei
um pouco aquele remédio e dei uma estica. Porque ele tem limite, isso tudo ela
ensinava pra gente, quando as bicha tá muito atacada que [ ] aquele remédio. Se
a gente puder até por no dedo assim na boca da criança pra bicha ir se abaixando
normal, porque se jogar lá dentro dela ela se [ ] se amarra tudo e mata a criança,
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 77
SUMÁRIO
aí tudo, eu tinha medo daquilo. Aí peguei, pinguei um tico na boca dela, mais
outra [ ], que ela não tava com muita vontade de engolir nada, e ponhei na cama.
Falei: “Agora eu quero ver, meu Deus do céu, que que Deus vai fazer pra nós”. E
a menina tava com sono e eu tinha essa prática também que ela tinha me falado,
ela me contava que, quando a criança, esse é até pra adulto, toma o remédio
e dorme, não é pra gente acordar ele, pode deixar porque ele vai relaxar, o re-
médio vai relaxar [ ]. Essa menina dormiu de seis hora da tarde até quatro hora
da madrugada, aquele sono. E eu ali em cima dela: “Meu Senhor amado, será
que essa menina vai morrer?”. risos A mãe tava sem dormir não sei quantos
dia, deitou, roncava... Falei pra eles: “Durma ocês que não tem dormido, que eu
guento a noite aqui. Deus o livre e guarde se acontecer quarquer coisa, eu chamo
você”. Só que, de vez em quando, sondava o pulso da menina {Tá viva.}, sondava
a barriguinha dela, o coraçãozinho dela... Quando foi quatro hora, aí ela se mexeu
um bracinho, puxou as perninha, que ela tava bem magrinha, que dava até dó
na gente, e abriu os óio. Ela nem me reconheceu que eu não era a mãe dela, ela
só “Eu quero chá” imitando a voz da menina. Aí eu corri lá quietinho, “Fica aí,
fica aí, não se mexa”, fui lá, peguei o caneco, esquentei depressa um pouquinho
d´água, peguei açúcar, temperei, peguei a bolacha que tava assim, trouxe pra ela.
Essa menina levantou, comeu três bolacha e bebeu esse chá. Aí agora vem a his-
tória do mais véio... Digo: “Ai, meu Senhor Jesus Cristo [ ]”, a gente morre, sabia,
a gente (faz as coisa, mas a gente morre), de certo ela vai morrer, de certo ela deu
esse sinal que tá mió, mas de certo vai (piorar). Aquilo comeu minha mente, digo:
“Mas não é nada, se Deus quiser [ ]”. Aí eu peguei mais um pouquinho, a mesma
cuié, e dei pr´ela [ ]. Quando de bem cedo, falei pra comádi assim: “Ela acordou
de noite, tomou chá, comeu bolacha...”. “Ah, não acredito; ah, não acredito, isso
não aconteceu!” Falei “aconteceu sim”. “Não não, essa menina faz três mês que
não come nada”. Digo: “É faz três mês porque agora não vai mais fazer”. Quan-
do ela começou com aquela questão ali comigo, a menina acordou lá, acordou
e chamou o nome da mãe: “Mãe, quero comida” imitando a voz da menina.
“Ah, é verdade.” [ ] “Mas, menina, a Andréa tá falando [ ]” Aí ficaram tudo cheio
de alegria, sabe; aí, daquele dia em diante, a menina foi só (se desenvolvendo).
Jogou umas bicha, sabe, porque o remédio que a gente faz, e o seguinte, temos
de beber e tem um que é pra fazer emprasto que a gente fala. Aí, se for de erva-
-doce, com [ ], mel, coloca aquele emprasto, aquela bicha roda tudo pra baixo,
sai tudo [ ] da criança. Essa menina derrubou tocha de bicha, que era o que tinha
que sair pra cima, saiu tudo pra baixo. Aí esse causo o compádi [ ] falou: “Nossa,
eu não sabia nem o que ele fazia”. Mas é o remédio, a pessoa, é o que a gente tá
falando aqui, a pessoa, se ele entender, como diz ela ali, a mãe ela conhece tudo
o que o filho tem, sabe, se ele tá assustado, se ele tá com uma febre, de ele tá
com uma dor de... A mãe tem o direito de examinar seus filho e, naquele de exa-
minar, ela descobre o que que é aquela doença e, naquela doença, ela descobre
também quais são os remédio. {Que pode ser usado, né.}
78 Práticas culturais
SUMÁRIO
Laura: Mas tem muitos que Deus o livre. Eu tenho uma sobrinha, não cortan-
do o que ela tava falando, é, eu tenho uma sobrinha que Deus o livre falar (desses
remédio). O filho dela ficava doente, e minha mãe, né, que é parteira, tem muito
conhecimento com remédio, ervas medicinais, assim, [ ] e graças a Deus ela tirou
muitas criança da sepultura, Deus o livre, falava pra ela de fazer remédio assim ca-
seiro, “Não, não. Meus filho, os médico já falaram quando ele nasceu que, ficasse
doente, não era pra dar remédio daqui do mato, poderia intoxicar, matar”. Minha
mãe falou assim: “Nossa, veja aí meus filho. Qual dos meus filho que morreram,
a não ser que Deus quis, quisesse, né?”. Que, graças a Deus, quanto a isso, eu
nunca tive problema nenhum, que eu nunca fui assim de ir, de dar qualquer coisa,
qualquer doença assim nos meus filho, já ir procurar médico, assim, na cidade. Eu
sempre procurei fazer os daqui primeiro, que me ensinaram, passaram, pra depois
procurar, se caso não fizesse efeito, né. Não melhorasse a criança, eu procurava,
assim, um médico, assim, mas é muito difícil eu ir procurar médico assim da cidade.
Mas, hoje, então, a minha sobrinha era coisa de outro mundo se falasse isso pra ela,
falava: “Não, meus filho não podem tomar remédio daqui, que pode matar meu
filho”. Aquela coisa, sabe. Minha mãe falou: “Então se você acha que os médico lá
sabe mais do que a gente daqui, que tem a nossa, as nossa experiência, né, quanto
a isso, quanto às ervas medicinais [ ] então fique com eles pra lá e eu fico com o
meu conhecimento aqui, né. Eu falo porque eu conheço”.
Dona Esperança/Sapatu: Remédio era só erva, na minha comunidade era
só erva {E aqui, também} {Muito} {E quem que era a pessoa que mais sabia remé-
dio?} {Meu pai curava muita gente}
Sr. João/Sapatu: Aqui tinha uns par de curandeiro por aqui. Curandeiro
porque ele ensinava aquele remédio...}
Silvane: Fala os nomes...
Dona Esperança: Valdemar Moreira. Ele fazia remédio pra criança, pra sus-
to, pra desejo. O pai dele fazia...
Silvane: Você faz ainda? Você aprendeu com o seu pai?
Sr. Antônio Furquim/Sapatu: Não, a minha mãe ainda faz, não faz igual ele,
alguma coisa ela faz ainda [...] não igual ele, porque ele fazia tudo a, uma [...] cer-
tinha, por cê fazer errado mata a criança também, né. Então tem que saber fazer,
a dosagem certo.
Silvane: Tinha muita parteira?
Sr. Antônio Furquim: Tinha, em Pedro Cubas tinha. Minha mãe mesmo...
nós somos em nove irmãos, só uma que ela ganhou no hospital, uma só, e o resto,
nasceram tudo lá no sítio mesmo com as parteiras...
Silvane: E quais remédios que, até hoje, vocês ainda têm, assim, quais as
plantas?
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 79
SUMÁRIO
Dona Esperança: Eu ainda uso... {Qual?} Hortelã, vassourinha, tanchai, jar-
bão. Esse tanchai eu conheci de pouco tempo, a gente não sabia que tanchai era
bom pra febre, pra essas coisas, mas jarbão, erva-doce, foia de laranja, quina,
tudo era nossos remédios, (capixu), erva-de-macuco, erva-de-bicho, erva-santa,
tem a erva-santa-maria. Todos esses remédios eu uso ainda. Cana do brejo, goia-
ba... Tem várias ainda que eu uso como remédio. Quina, a gente, pra gripe a
gente cozinhava três pontinhas de foia de laranja e torrava a quina, raspava aqui
na banca, torrava, torrava com um pouquinho de sal e colocava naquele chá pra
amadurecer a gripe, quando a gente tinha gripe {Era muito bom!} {Picão, né?}
Picão também... {Pra hepatite} Tem vários remédios ainda que eu uso, eu não
vou pro médico por quarquer coisinha {Pra criança, é chifre queimado pra susto,
né?} É chifre queimado, pena de galinha, pena de passarinho, tudo a gente usava
{Brasa viva} Brasa viva pra tirar susto da criança... {Brasa viva, o que é que é isso?}
{Brasa viva é aquela que tá lá no fogo} {Pega a brasa viva e põe no copo d’água e
toma a água, por causa do susto da criança}
Eu não tenho os aparelho, mas eu sei fazer! Outra coisa, vou fazer uma
pergunta: “Hepatite tem cura? Pra medicina, hoje, hepatite tem cura?”. {Não.} Eu
curo hepatite! A mulher dele aqui tava amarela, eu curei! E remédio simples... re-
médio aqui do mato, erva... {Vocês podem falar alguma, assim... que vocês, né...}
Eu posso, inté posso escrever uma hora num papel e trazer... Agora, pra assim, no
momento agora, eu posso não alembrar de tudo, mas se for pra dar um tempo
pra mim escrever e trazer, eu posso até... {Mas dá um exemplo só, assim...} Então,
eu uso, pra hepatite eu uso o carrapicho, dos dois, do grande e do miúdo, eu uso
capim, que nós conhece por pé-de-galinha, eu uso a (juçara), que nós fala (juçara,
aquele) palmitinho novo assado. Eu esmago ele, cozinho tudo junto e, depois, eu
pego o (ruibarbo), que é um que vem da farmácia, mistura, é só, não precisa outra
coisa. É duas vezes que a pessoa toma e já desaparece o sintoma da hepatite.
Deu pra gravar? risos {Depois a gente vai escutar e anotar.} É só isso aí, não
precisa mais outra coisa... e vai lá pro médico, vai pro isolamento, porque lá não
tem cura. (José da Costa/André Lopes)
A minha mãe, se tiver uma pessoa assustado, ela passa a mão [ ] “esse é
susto, essa criança tá assustado”. Aí ela ia lá, fazia a [ ] que pro meu filho ela fez,
de madrugada meu filho tava morrendo, aí eu falei: “Ai meu Deus, vou chamar a
minha mãe pra vim fazer um chá pra ele, pra Daniel”. Aí eu chamei ela, já pulou
– de primeiro era mais difícil pra ir na casa dela –, aí ela: “Que que você... pensa
que eu não tô escutando essa criança chorando?”. Aí eu falei: “Não, ele tá ruim
mãe, agora ele ficou pior, ele tá quase morto, não chora mais, não guenta mais
chorar...”. “Enrola ele e traga aqui!” Saiu no mato, catando mato, catando mato...
“Eu não falei...”, que eu tinha levado meu filho no médico, né, “Eu não falei que
cê ia dar remédio que o médico passou e ocê ia matar essa criança, eu não fa-
lei pr´ocê?”. E ela tinha falado isso pra mim. Aí foi lá, cozinhou a matarada dela
lá, aí foi dando... Cê sabe que meu filho jogou bicha o dia inteiro, com aquele
80 Práticas culturais
SUMÁRIO
remédio dela? Bicha, saía aquele pacote de bicha. E o médico tinha mandado
dá [ ] pro menino, o menino... {Mata mais depressa.} alvoroçava, assustava... {[ ]
também tava assim, ela fez pra ela.} É... o dia inteiro, foi um dia de domingo, aí
ele foi melhorando, aí ele fazia imita a respiração do menino, aí ela passava a
mão na... “Ó, tá baixando, tá baixando, pegue ele e leve lá pro médico de novo,
pr´ocê matar a criança!” risos Aí eu fiquei, (amanheci) com ela, aí essa criança
foi jogando bicha, jogando bicha, jogando bicha, eu acho que ele jogou quase
um quilo de bicha, de tanto...lombriga memo, aquela lombrigona! (Sra. Maria da
Glória/André Lopes)
João/André Lopes: [ ] pode falar, que o pessoal sabe aí. Ela, a mãe dela
também fazia (meu) remédio, tem outra mulher aqui do lado que faz até agora...
tem mais gente que sabe. A turma aqui são meio preguiçoso, mas eles sabem
fazer também... É... mas ... ela falava muito de bicha pra cima do forro, até hoje eu
tô querendo entender isso, pra cima do forro. Aí ela pegava na criança assim, aí
ela falava: “Deixa aí”, ela falava: “Deixa a criança aí!”. A criança tava (virado), tava
virado já... a gente olhava e falava “Esse aí?” tava tudo mole já... Ela falava “deixa
aí, se ele não sarar ele morre!” Aí ela ia lá pro mato, pegava os remédio assim,
agora não, porque já tá [ ], mas era cheio de mato assim, cheio de mato em volta
da casa dela, ela mora do lado ali... Aí ela ia lá vinha, daqui a pouco ela vinha,
olhava na criança. Aí ela tinha chifre de boi, não sei que, [ ] não sei do que, tudo lá
guardado, {Pena... semente de abóbora...} cipó. Como é que chama aquele cipó?
Aquele cipó, como é que fala? Cipozinho... {Jarrinha.} É... tudo dependurado lá.
Aí ela pegava e fazia aquilo, trazia, aí pegava um pouco de mel, açúcar, passava
no [ ] da criança, aí ela falava: “Já tá descendo”. Aí começava assim, ó... cê via
aquela bola assim, ó... fazia assim. Aí, daqui a pouco, a criança (seguia) o olho
assim... “Quer comer?” A criança: “Quero”. Dava comida, daí chamava a mãe pra
ir buscar: “Venha buscar seu filho que (já) morreu”. (Chegava), a criança já faz
gesto de que a criança melhora...
Maria da Glória: [ ] levou Tiago lá na casa de mãe, eu pensei que Tiago tava
morto também. Aí ela pegou: “Tia Silvia, acuda meu sobrinho, tia Silvia, que ele
tá morto, ele tá morrendo, tia”. Ela pegava, ficava bem tranquila: “Põe ali, deixa
aí, põe aí”, aí corria lá pra cozinha. Daqui a pouco ela fazia aquilo, esfriava rapi-
dinho e foi dando... “Ai, tia Silvia, eu vou lá em casa buscar roupa pra ele, mas
ele vai morrer, né, tia Silvia, vai morrer...” Ela falou: “Vai morrer, o quê? Deus não
existe, então?”. Aí pegou, deu um chá lá. Daqui a pouco, o menino procurando
comida lá, atrás dela... risos {Banha de lagarto que usa muito, né?} Banha de
lagarto, pele do lagarto... {A pele do lagarto é boa pra dor de barriga.} {Pra pneu-
monia, pra tétano... Eu tenho um pezinho no quilombo, viu?} risos
João: Chegava lá em casa, chegava... ela amanhecia, de manhã cedo, as-
sim, ó... aqui tudo cheio de folha, amarrado assim, [ ] e aquela folha assim amar-
rado. Aí a gente olhava pra ela, com medo de perguntar o que que era. “Que é
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 81
SUMÁRIO
isso mãe?” “Não amanheci muito bom hoje”, ela falava. {Sua mãe?} É, “Não ama-
nheci muito bom...”. A gente queria saber, mas não perguntava de medo, né, de
perguntar, e ela... aí nós ficava quietinho... Aí fomos descobrir o que que era; era
dor, era dor de cabeça, era tontura, era pobrema de coisa... Ela tava com aquele
negócio na cabeça assim... {Ninguém procurava médico nesse tempo... Não tinha
médico, era só o remédio (do mato).}
[...]
Maria da Glória/André Lopes: E o (Zé Furquim), quando tava morando com
a Antonia, irmã de Dita, aí um dia ele chegou cedinho lá em casa... Aí eu digo:
“Oi, José”. “Eu vim buscar nhá Silvia pra ela ir lá ver. A filha de Antonia morreu, a
filha de Antonia tá morto.” “Mas o que que mamãe vai fazer com a filha...” Aí ela
já se endireitou e pra lá [ ] Daí, chegou lá, a criança tava lá... “Deixa eu fazer um
chazinho pra ela, pra ver se ela vorta...” Aí foi fazendo o chá, a criança foi... De
tarde ela vortou de lá... Falei: “Cabou de morrer a criança, mãe?”. “Tava morto
memo, mas graças a Deus tá lá vivo já.” risos [ ] Então ela da [ ] de Deus, né.
Pena que a minha mãezinha tá bem... bem...
[...]Porque o meu mais velho também – como eu vi o antigamente fazendo,
minha mãe como fazia –, eu fui pro hospital, naquele tempo a gente tinha que
ficar o mês inteiro lá no hospital, aí cheguei lá, ela pegou e falou: “Cê... criança,
quando nasce, a gente põe banha de galinha ou banha de lagarto”. Eu levei um
vidrinho assim, escondido, né, porque... Aí, acabou de nascer meu filho, ele com
aquela tosse, com aquela coisa, catei e enfiei no nariz dele. Aí, daqui a pouco, ele
começou a jogar aquela sujeirada, sujeirada, assim. Nunca teve bronquite, e os
outro tiveram bronquite porque eu nunca pude fazer, que nasceram em (Parique-
ra), né. Mas esse que nasceu em Eldorado nunca teve bronquite.
Pedrina/André Lopes: Meu esposo, quando nascia as criancinha, minhas
criança, ele que fazia remédio, tratava pior do que uma mulher. A comida que ele
me fazia, que, naquele tempo, tinha (fineza), né, [ ] a sopa de frango, né, aque-
le, tirava... aquele cardinho de frango, a gordura da comida, tirava e dava pras
criança... Aquele era uma bença, meu esposo era muito... [ ] cuidadoso (com as
criança). {Não, hoje não é pra dar nada pra criança, que faz mal...} E ele também
fazia remédio bem, bom...
Maria da Glória/André Lopes: A minha tia nasceu, a caçula, irmã da minha
mãe. Aí o padrasto dela, era primeira filha dele, daí diz que ele ficou muito [ ]
foi lá, pegou essa filha dele, chegou... Diz que assou duas banana. Na hora que
nasceu, ponhou, diz que amassou bem amassadinho, ele memo ponhou na boca
dela, cansava de contar isso. Minha tia tá viva lá em São Paulo, mora lá. Aí pegou
e deu pra ela. Aí, menina, depois cresceu (esfamiada), tia Rosária, né, (e falou):
“Ah, deu pra comer tudo quanto é coisa” [ ] “Claro, o seu pai pegou, foi dar ba-
nana pr´ocê logo de primeira.” risos E hoje não pode dar nada, né, ele (olham
82 Práticas culturais
SUMÁRIO
torto)... {As criancinha que era pequeninha aquele tempo, nós criava assim, né,
as criança...} Fazia sopa de farinha de mandioca e dava pras criança. Pros meu eu
não cheguei dar, né, mas nós comemos. A mamãe dava, fazia pra nós comer e
dava pras criança, acabava de nascer, eles iam pra roça, enfiava sopa...
Ritos de morte
Nas narrativas dos quilombolas estão presentes algumas memórias
sobre a realização de velórios. De acordo com o historiador João José Reis4
que pesquisou sobre este tema, em muitas sociedades prevalece a noção de
que a realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segu-
rança de mortos e vivos. Para protegerem-se e protegerem seus mortos por-
tugueses e africanos produziam elaborados funerais. No catolicismo popu-
lar brasileiro, repleto de componentes mágicos, os mortos ganharam ainda
mais importância, misturando as culturas africana e portuguesa.
Percebemos nas memórias dos quilombolas sobre os rituais de morte
a presença deste componente mágico. Uma das histórias mais contadas se
refere ao fato de carregarem o corpo do morto em uma rede ou esteira até
o local onde seria enterrado. Os parentes e amigos seguiam com cânticos
religiosos. Ninguém deveria ir à frente de quem estava carregando o morto.
Os carregadores deveriam ser alternados sem repousar o corpo no chão, pois
se acreditava que se o corpo do morto tocasse o chão, aquele local ficaria
“assombrado”.
Ela (Maria Merenciana/Chules)gostava muito de rezar em cima de defun-
to quando morria... O povo aqui morria, a pessoa (aguardava dois, três noite),
ela vinha, ela já vinha, aí chega ali... fazendo aqueles velório, né. Aí ela bebia,
os outros também bebiam, que não era só ela que bebia na época, né? {Todo
mundo bebia} É. Aí, daqui a pouco, eles começavam a (cantar) as reza deles, né,
as inselência e ela que puxava. Aí chamava... {Cantava aqui que ouvia do outro
lado.} É, aí diz que ela ficava... ela que puxava: “Vamos rezar, vamos rezar [ ] lá
em cima do defunto. Ó, daqui a pouco vai ter que tirar esse defunto, ninguém
rezou em cima”. Aí diz que ela chamava minha mãe, minhas tia, mais meu pai, as
filha dela; todo mundo, naquele tempo, gostava de tá ali junto com ela, né... Aí
diz que ela rezava, rezava. Aí, quando era de cedinho, cedinho pra sair, porque
o defunto, na época, (descia) no escuro, assim, não deixava crarear o dia, hoje
4 REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos funerários e revolta popular no Brasil do século XIX.
3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 83
SUMÁRIO
enterra quarquer hora; não, porque era longe, né, pessoas longe [ ]. Aí eles pega-
vam... o caixão era feito assim do... aqui, né, e ficava muito pesado pra carregar,
né, aí eles tinham que ir cedo pra chegar lá com tempo... Daí ela pegava: “Vamos
rezar, vamos rezar”, aí eles começava a rezar pra sair, que... Ali eles ficava rezan-
do. Tinha uma reza que eles falavam assim: “Levantai o corpo morto, tá na hora
de caminhar cantando”, e todo mundo cantando, aquilo não há quem não
chorasse, na época. risos Todo mundo, minha vó, que era irmão dela, minhas
tia toda que era sobrinha dela, minha mãe, os outro, aí tudo eles tinham uma voz
muito bonita pra cantar, não é [ ]? {Tinha...} Ela tinha uma voz que era muito... a
minha vó, então, era uma coisa tremenda, minha vó cantava, aí minhas tia tudo
[ ], Antonia, minha mãe, que é Silvia, é tudo... Meu pai também gostava de can-
tar. risos Cantava [ ] aquela inselência muito bonita, mas sentida, sentida, que
todo mundo chorava. Então ela gostava muito de fazer esse tipo de coisa, reco-
mendação das alma, né, da... como é que chama? {Quaresma.} Na Quaresma, né,
na Quaresma eles faziam recomendação, o povo saía lá do centro do Nhunguara
– esse moço morava lá na época –, do centro do Nhunguara vinha bater aqui na
barra do Nhunguara. Aí eles iam de casa em casa rezando, rezando (aquela reza),
aí eles cantavam, cantavam, cantavam aqueles reza dele bonita. Eu, quando era
pequena, muito xereta que eu era também, aí quando, daqui a pouco... diz que
não era pra gente acordar, né, era pra ficar ali fazendo de conta que tava dor-
mindo, eu já pulava, já começava cantar com eles também. risos Aí... o finado
Salvador, (Joaquim) [ ] que era o chefe lá, diz que mamãe falava, tia Nega, mãe
deles, quando era do tempo deles, que aquilo tava tudo... aquelas moçarada, tia
[ ], tia Ana, todo mundo diz que saía fazendo aquela... Então tudo isso eu acho
muito importante, que hoje não tem mais, não tem mais. Pode morrer quem for,
ninguém tá nem aí. {Hoje chegou o tempo de morrer um defunto de uma pessoa,
dali... de meia-noite pra lá fica até sozinho... Nesse tempo, não, a casa era cheia,
anoitecia e amanhecia...} Sete dia ficavam na casa (dormindo), aí enterrava. Um
exemplo, hoje cedo, aí o povo vinha tudo, aí tinha almoço, janta ali... ficava ali;
“Não, não podemos deixar o defunto sozinho”. {Era sete dia...} Aí, quando era
o último dia de completar sete dia, eles faziam mais uma reza, aí deixava o [ ]
sozinho. {Só ia depois da reza de sete dia, né?} Sete dia. Hoje não tem mais isso.
Quer dizer, é uma coisa que nós temos que voltar lá atrás pra não perder, né. {E,
antigamente, tinha [ ]} {Tinha amor um com outro, hoje não tem amor.} {Falando
esse negócio das pessoa ir dormir na casa das pessoas, hoje não tem mais isso...}
Não tem! As pessoa visitava [ ] {Quando as pessoa ia pousar na casa de um, de
outro, hoje, quando ia saindo, outro já tratava: “Amanhã o senhor vai pousar lá na
minha casa”. Era assim.} {É... sábado.} {“Sábado vai pousar lá na minha casa”, e a
pessoa ia...} E ela (tem uma coisa de bom), ela morou no continente, o continente
é um lugar bem lá no sertão de Nhunguara, ela morou pra lá. Aí, quando ela sabia
que a pessoa tava doente, ela vinha visitar. Daqui a pouco, ela sabia que morreu,
ela subia lá no bico mais alto que tem, mais alto que isso aí, aí, de lá, ela gritava
84 Práticas culturais
SUMÁRIO
entoando “Fulano morreu” risos, aí todo mundo sabia [ ] {Ela tinha uma bu-
zina, ela buzinava.} Aí diz que, depois que ela buzinava, ela gritava entoando
“Fulano morreu”, aí tudo mundo já se juntava: “Vamos pra lá” [ ] {Você lembra a
letra da música que você cantou?} Ahn? {Você lembra a letra toda dessa excelên-
cia que você cantou agora?} A letra... risos só de pouco e pouco {O princípio [ ]
da inselência...} Então... aí... o começo era assim cantando: “Levantai corpo
morto, tá na hora de caminhar, tá na hora de caminhar...”. Diz que isso é pra não
deixar (medo), essa era bem curtinha assim, que era a última que eles rezava pra
sair, a despedida. Mas tem bastante... {Tem as outra, que cantava à noite, durante
a noite.} {Cantava a noite toda.} (Sra. Maria da Glória/André Lopes)
João Mota/Nhunguara: Ah, o ritual era, não é que nem hoje que tem co-
veiro, o ritual é o, a própia família, quando morria, tinha, tinha lá o cara que oiava
o cemitério, falava zelador, que ele fica oiando, então a pessoa ia lá, falava com
ele, ele marcava um lugar que podia fazer a cova e a própia família tinha de fazer
a cova pra enterrar. {Mas carregava de casa pra lá, rezava, cantava, como que
era?} Ah, ponhava nas costa. {Nas costa mesmo.} Foi feita uma rede de taquara,
ponhava uma arça dos dois lado assim, eram quatro, duas pra frente, duas pra
trás, enfiava uma madeira aqui {[ ]} Isso, isso [ ] {Ia cantando, ia rezando?} {Não.} {Ia
em silêncio?} Não, cantava na hora da saída. {É, só a noite.} Isso, a noite inteirinha
e a hora de sair de casa pra, despois {Depois acabou o barulho} Tinha de ir um na
frente, porque... {Sim, mas carregava o corpo na frente, e as pessoas seguindo?}
Laurentino/Nhunguara: Isso. {E se passasse na frente?} Na frente, só esse
que ia levando. {E se passasse na frente?} {Podia?} Não tem importância...
João Mota/Nhunguara: Não tinha nada, porque nós passava memo, por-
que ia correndo pra pegar, porque diz que... {Não podia parar} tinha um negócio
que diz que não podia parar na estrada porque {Pra descansar?} é, porque diz que
ficava assombrado. Então um bardeava um pouquinho, outro tinha de correr pra
pegar pra não cansar. Diz que, se cansasse {Iam revezando a carga.} é, diz que não
podia cansar, sei lá que não podia, mas {Falavam, né.} diz que não podia, era uma
tradição, né, tinha de respeitar, né.
Laurentino/Nhunguara: Eu sofri muito carregando os outro. {Ah, é?} Daqui
a [ ] quanto dá? Dá uns quatro, três légua? [ ] dá mais de vinte quilômetro {Carre-
gava tudo isso?} É, nas costa. {Então tinha que ter muita gente pra revezar, né?}
É, não era um, dois, é bastante gente. {Ia trocando, ia trocando.} É, trocava um,
bardeava uns dez metro, conforme uma pessoa, e é muito inchado, né, é inchado
pra andar dez metro...
Valores civilizatórios
4
Trabalhos de alunos da EE Profª Anézia Amorim Martins, que recebe alunos do Quilombo Cangume - Itaoca - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
SUMÁRIO
Práticas culturais
86
SUMÁRIO
Muro da EE Cangume localizada dentro do Quilombo Cangume - Itaoca - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 87
SUMÁRIO
Capítulo 4
Valores civilizatórios
Nos depoimentos, percebemos a vivência de valores civilizatórios, tais como a valoriza-
ção da ancestralidade. Podemos dizer que ancestralidade é uma experiência social de
produção de conhecimentos que passam de geração a geração. São as relações que as pessoas
têm com a cultura material e espiritual de sua comunidade, práticas sociais de articulação da
memória com o presente que engendram e fortalecem a identidade afrobrasileira. História,
estórias e memórias compartilhadas que dão sentido à vida comunitária e aos valores compar-
tilhados, tecendo identidades individuais e uma identidade coletiva de uma longa tradição de
vida e luta.
O cooperativismo é outro aspecto importante verificado nas narrativas. Falar de quilombo-
las, comunidades afro-brasileiras, é pensar no coletivo. O que teria acontecido com as/os negras/
os no Brasil escravocrata se não tivessem usado da solidariedade, da parceria, das conversas,
da cooperação? Solidariedade, parceria, diálogo e cooperação que ainda hoje são armas numa
sociedade racista e excludente. Nas falas das/dos quilombolas, percebemos ainda uma energia
vital, uma fome de vida, uma vontade de aprender sempre.
Histórias de vida, experiências compartilhadas que nos mostram respeito à vida e ao
próximo, entendimento e preservação da natureza, o cuidar de si e do outro.
Em tempos de ódio, preconceitos e violência gratuita, os valores compartilhados e de-
monstrados nas falas quilombolas têm muito a nos ensinar.
Família e socialização
A família é um conceito muito importante para as comunidades quilombolas. Isso por-
que os modos quilombolas de ser e de viver são coletivos e porque os laços de parentesco são
fortes e são guardados de uma maneira diferente da maioria das pessoas que vivem em gran-
des centros urbanos. Além disso, os vínculos familiares são fortalecidos pela relação da comu-
88 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
nidade quilombola com o território, principalmente no que diz respeito às
lutas pela posse da terra. Nos processos jurídicos para a conquista da posse
da terra, os/as quilombolas são levados a provar que pertencem às famílias
“dos mais antigos” que ali viveram, o que remonta, muitas vezes, a dois, três
séculos atrás. É por tudo isso que as/os jovens e as crianças quilombolas ge-
ralmente sabem quem foram ou são seus parentes até três ou quatro gerações
anteriores, conhecem os nomes e as histórias dos seus avós e bisavós.
Nos quilombos, as relações familiares não se resumem apenas aos fa-
miliares mais próximos, estendem-se aos demais membros da comunidade
pelo fato de todos partilharem dos mesmos ritos de sociabilidade, trabalho,
cultura e da luta pela posse e manutenção do território em que vivem.
Deste modo, podemos perceber nas falas das quilombolas e dos qui-
lombolas a presença e a valorização da história das/dos mais velhas/os e de
sua ancestralidade.
Eu acho que a gente aqui (no quilombo) já tá num patamar, acho que há
anos luz de um aluno que está na escola da cidade. Por exemplo, analisando, os
nossos alunos, eles sabem quem é o avô deles, quem é o bisavô, quem era o
bisavô. Eu tenho minha bisavó viva até hoje, tem noventa e bolinhas, quase cem
já. E, assim, tem aluno na cidade que não sabe quem é o avô. Eu falei: “Gente,
como você não sabe quem que é o seu avô? Seu avô, ele é pai do seu pai, como
que não sabe? Como que pode acontecer isso nesse mundo, que planeta cê vive,
dos video games?”. (Luiz Marcos/Liderança jovem/São Pedro)
Então, eu sou Jovita [ ] França, nascida em mil novecentos e quarenta e
três... primeiro de fevereiro de mil novecentos e quarenta e três [ ] Então, a... pra
comemorar o dia dos namorado, é muito, muito, muito importante que namore
mesmo bem namorado, mesmo que não seja com acará e nem com lambari ri-
sos, mas que namore firme (a entrevista foi realizada no dia dos namorados, 12
de junho). Então, o caso do meu casamento, que chegou... o meu casamento, ele
começou por essa história da pesca. Que nós dois, como... eu não tinha pai, só
tinha mãe, eu precisava ajudar a minha mãe, trabaiava diária nas casas onde tinha
o serviço. E ele, com a história da perca do pai e a mãe [ ] acabou sendo filho
adotivo desse casal de [ ] que era [ ] dele. E eu trabaiava lá por mês, por semana,
diária, e nosso serviço, como eles trabalhavam com (camarada), eles davam pra
nós era socar o pilão, fazer comida pros camarada, eu lavar roupa lá num riozinho
– batido na pedra, porque (nesse tempo) não existia máquina –, então eu procu-
rava combinar com ele pra que ele fizesse a comida, e eu fazia aquele serviço
que... Por fora, eu nunca gostei de cozinhar, sabe, isso foi o meu pobrema. E,
quando era dia de domingo, era feriado, a gente pegava... não tinha pra onde ir,
não tinha... não ia pra igreja nem nada, aí nós dois pegava a canoa e nós ia pescar.
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 89
SUMÁRIO
Aí aconteceu que, um dia que nós fomos pescar, não queria pegar nada no anzol,
e eu peguei e fiz essa brincadeira com ele [ ] fiz essa brincadeira com ele. Se ele
pegasse um peixe, jogasse um anzol e pegasse um peixe, eu... quando ele cres-
cesse e eu crescesse, eu casava com ele. Daí ele pegou e jogou, e já beliscou, e
ele já pegou também um lambari. Aí eu fiquei meio chateada ali, que ele era
criança mesmo, não era de... de eu sortar uma palavra dessa. Mas me veio o (sen-
tido) e eu falei, aí eu reverti de outro modo, aí eu falei: “Então eu jogo o meu
anzol. Se eu pegar, aí eu caso, eu confirmo e caso c´ocê quando eu crescer”. Aí
joguei e peguei acará, aí ficou o namoro de acará com lambari, sabe. E ele guar-
dou aquilo, ele fez de conta que ele não deu valor, mas ele guardou, e eu... Sabe
que a menina sempre se desenvorve muito mais rápido do que o menino, sabe?
Aí, quando eu comecei, uns treze ou catorze anos, eu comecei vacilar com ele, só
que nós não sabia que nós tava namorando, ele era (assim/simples), sabe, nós
trabaiava, conversava, trabaiava [ ] aí eu comecei namorar. Aí namorei um rapaz,
não deu nada, namorei outro, não deu nada, fui indo, até que completou seis,
minha mãe tava já tudo preparado pra fazer um casamento pra mim. (De repente)
veio uma louca na minha cabeça, digo: “Eu não quero mais casar com ninguém,
não, pronto, cabou”. Aí depois veio outro rapaz falando que queria casar comigo,
me pediu em casamento, aí minha mãe já tirou fora, não quis. Aí foi nessa que eu
falei no (pé) dele assim, ele já tava com uns dezesseis anos mais ou menos, daí eu
peguei e falei pra ele, digo: “Eu vou acabar ficando coroa [ ] eu vou ficar coroa e
não quero casar, não vou casar não. Tudo casamento que eu arrumo não dá nada.
Eu não vou ficar (feito palhaça)”. Aí que ele arrespondeu pra mim assim: “Você
lembra daquele contrato que nós fizemos aquele dia pescando na canoa? É,
aquele que tá acontecendo porque se você prometeu casar comigo, por que
você fica procurando outro?”. Daí eu peguei, não me conformei muito com aqui-
lo, sabe. Aí peguei, quando eu tava com dezessete anos, dezoito anos já quase,
daí eu pedi pra mamãe que eu ia pro colégio das freiras estudar [ ] uma senhora [
] tava arrumando menina pra levar pro colégio e ela me levou eu, fiquei lá. Derre-
pentemente, aparece uma carta lá dele, que ele nem escrever ele sabia, ele pediu
pro tio dele escrever, perguntando se eu tinha ido pra lá e tinha esquecido dele.
Aí eu mandei outra falando “Eu não esqueci, que a gente não esquece de nada,
mas esqueça [ ]”, mas ele não esqueceu. Pois acredite, deu certo. Quando eu
vortei, aí ele me pediu em casamento [ ], aí foi essa a história do nosso namoro.
Mas, pra finalizar, eu vou dizer, graças a bom Deus, porque Deus tava escoiendo
pra mim aquilo que era certo, porque eu ganhei na loteria, ganhei. {Quantos anos
de casados?} Tamo com quarenta e sete, {Benza, Deus.} passando pra quarenta e
oito. Em outubro vai completar quarenta e oito anos. {Quase bodas de [ ]} {Quan-
tos filhos?} Tive, entre o que veio normal e de aborto foi quinze, tive sete abortos
e oito normal, uma filha e sete filho. Graças a Deus, uma família... Pra pai e mãe
nunca souberam dizer um “a” pra pai e mãe, obedece muito mais, se criaram
muito bem. Eu não sei educar bem meus filho, mas acho que meus filhos se edu-
90 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
caram um pouquinho por eles mesmo. E o pai nunca deu uma chicotada num dos
filho, nem pra dar um puxão assim, e os filho respeitam ele mais do que eu que
sou mãe, sabe. Eu ainda eles tem alguma coisa pra (fazer), quando eu erro, eles
raivam. O pai, quando erra um pouquinho, eles apoiam. risos Mas ele nunca
raivou com os filhos. Assim, às vezes, por motivo, ele pode dar conselho, mas ele
nunca brabou com os filhos, e eu também nunca, graças a Deus. Tivemos uma
briga sim, nós dois, mas ficou pra história, até já fiz uma história dela, fiz uma mú-
sica, eu cantei pra ela. {Tem uma música? Conta essa história então!} Eu fiz uma
música {Eu não gostei, eu não aprovei a música dela porque ela [ ]} Ah! Não apro-
vou... (A música é legal pra caramba.) Daí dessa vez nós briguemos, já depois que
nós tamo morando aqui, porque nós morava mais longe do sitinho assim. Daí não
sei, por uma coisa, parece que [ ] do nada, nós... ele me empurrou, eu empurrei
ele, daqui a pouquinho ele me empurrou, eu caí, aí eu corri, (porque mulher) sem-
pre corre. Eu corri por causa das criança, porque nunca viram aquilo, a criança,
quando eles nunca vê o casal brigar, quando ele vê ele, fica ruim. E o [ ] que já
tava rapazão quase morreu, se não é a vizinha aqui do meu lado com o filho dela
acudir ele, ele não [ ] nem falar ele falava. Então eu peguei, também saí, pra modo
de ele tronquilizar. Depois ele calmou, ele tava com um [ ] na cabeça, aí calmou.
Daí eu... aí eu peguei e fiz assim, que a muié tem que ser assim, daí o que é que
eu fiz, eu peguei e fiquei de mal com ele, sabe. Nós não se falava, nós comia jun-
to, trabaiava junto, viajava junto, mas nós não se falava. E pra dormir? E pra dor-
mir, a cama era só uma, aí eu deitava com a cara pro canto e ele deitava com a
cara pra beirada. (A gente acostumou até agora.) {Como é que é?} Ele dormia
com a cara pro canto, eu com a cara pro canto e ele pra beirada, nós não se che-
gava as (costas um no outro), tudo por causa dessa briga. Aí ficou, ficou, ficou, aí
nós não se falava mesmo, mas não é que eu não quisesse falar com ele, eu morria
quando eu tava ali, eu morria de vontade de dar risada, sabe. Aí, quando foi um
dia, quando foi um dia, nós tava prantando arroz, assim, ele virava [ ] pra lá, eu
virava pra cá [ ] não olho pr´ocê, só olhando assim, aí me veio aquela louca na
cabeça, sabe, eu peguei fiquei bem de pé assim, sabe: “Perguntaram pra mim, se
ainda gosto dele, respondi tenho ódio e morro de amor por... cantando”. ri-
sos {No meio da roça.} Na roça. Daí ele virou a cara assim, começou a sorrir pra
mim, aí depois vortamos pra casa tudo bem risos, desse dia em diante come-
cemos dormir abraçado outra vez. Óia que deu certo. {Preciso falar pro Leonar-
do [ ]} Foi a única coisa que me deu na minha cabeça – que era uma mar que-
rência boba, já tava com cinco meses de mar querência. {Ficou cinco meses sem
falar?!} Depois, tava perto dos meus filho lá de Iguape chegarem em casa, eu
vou ficar de mar com ele, eles vão pegar no meu pé, daí... {Quando a senhora
cantou, o que que ele fez?} Ele olhou ni mim e começou rir. risos {[ ]} Então
tem coisas que é um fato na vida da gente, marca a vida da gente... Então,
como diz, o demônio apronta. A gente tem que cair pro lado de Deus, pra
modo de Deus virar aquilo. Eu acho que foi a única solução que eu tive foi can-
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 91
SUMÁRIO
tar essa música. {Essa sua história, nos dias de hoje, qualquer casalzinho que
briga larga de vez, não fica assim de mal...} Óia, eu espero em Deus que seja
muito aproveitado pra todos os casal. {As pessoas não têm mais essa tolerância
de um, né, admitir que errou. Espero que o outro... Aceitar a desculpa do ou-
tro... As pessoas são muito imediatistas, assim, brigou, acabou, já arruma outra,
né. Aí já é tarde, né...} Mas é verdade, a coisa agora não tá mais assim, de nós
pra trás... {Muito linda a sua história.} (Dona Jovita/Galvão)
Meu nome é Antonia dos Santos Souza, tenho sessenta e cinco ano, me criei
em [ ], com o vô de Marisa [ ] Me criei com ele, me ensinou muito, me deu muita
educação pra mim. Agradeço a Deus por isso aí, por ele me dar muita educação,
me ensinar a trabalhar na roça; coisa que, desde pequeno, ele ensinava nós, a
trabalhar na roça. Não tive estudo também, porque nós, naquele tempo, não tinha
estudo. Mas ele ensinava nós a trabalhar, ensinava nós a respeitar os outros. Não
gostava de nos ver fazendo malcriação com ninguém, que era muito feio aquilo,
não existia, aquele tempo, esse negócio de malcriação; ele nem gostava mesmo.
Então ele foi um homem que ele criou nós bem criado, então eu agradeço muito
a Deus por ele me dar essa educação, essa criação. E eu peço para os meus filho
que sigue que nem eu, como eu me criei. Eu quero que meus filho seje que nem
eu. E eu também me criei na roça, trabalhando bastante, desde criança. Gostava
muito de dançar, dançar aquela dança que nós dançava, de trocar vassoura, trocar
de chapéu. Dançava (mão esquerda), gostava muito de dançar, mas eu adorava
dançar. Painho falava de um baile, ah, eu não via a hora de chegar pra mim che-
gar lá, pra mim dançar, não via aquela hora de chegar pra mim dançar! Então eu
agradeço muito a Deus por tudo essas coisa da minha vida, da minha educação,
do meu criame... Mas a dança, era uma dança, assim, limpa, bonita, gostosa da
gente dançar. Então o meu criame foi esse aí, então eu agradeço muito. Também
não tenho minha mãe, que a minha mãe morreu, mas soube me criar, me dar muita
educação. Agradeço a Deus por isso, muito obrigado por tudo isso! (Sra. Antonia
dos Santos Souza/André Lopes)
Bom dia, eu sou Maria da Glória dos Santos, sou nascida e criada aqui no
bairro [ ] fui trabalhadora na roça, morava num cinco quilômetros daqui da beira
da estrada e... (lá no sertão), trabalhava muito na roça, ajudando o meu marido.
Plantava arroz, feijão, milho. E tudo o que a gente usava na roça a gente plan-
tava. Criação tinha, é galinha, porco. Então eu trabalhava muito e gostava de
trabalhar na roça. Aí, depois, eu tive meus filhos, vieram meus filhos deficiente
e eles foram crescendo, precisava levar pro médico e eu não podia ficar mais lá
no sertão e vim pra beira da estrada. Então eu moro mais perto da rua por causa
dos meus filhos. Hoje... tive quatro filhos e morreu um, só tenho três filhos. Eram
dois deficientes, hoje eu tenho um. Mas eu agradeço a Deus porque Deus me deu
esses quatro filho. Eu não queria que Deus levasse nenhum, mas não foi do meu
querer, foi do agrado d’Ele, mas Deus me deixou um. Eu gosto muito dos meus
filho, amo muito meus filho, assim mesmo do jeito que ele é, deficiente, eu amo
92 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
muito ele. Com muita luta, eu... graças a Deus, ele estudou; com muita luta, que
ele era deficiente, muito doente, mas, graças a Deus, ele terminou o estudo dele,
ta aí, graças a Deus... Então, eu também não tive estudo, porque ajudava meus
pais na roça. Eu vinha uma semana pra escola e ficava duas ou três semanas sem
vim pra escola, então a vida da gente era assim. Aí, depois que eu casei, que tive
meus filho, fui morar na beira da estrada, aí eu comecei a estudar de novo. Mas
também não terminei o estudo, porque a dificuldade é muita, então não terminei
meu estudo... e fiz até a oitava série e parei, não estudei mais... E, agora, não
tenho vontade de estudar, acho que não dá pra estudar, então tô parada. Mas,
aqui... meu pai educou muito eu, a minha mãe, a educação nossa, antigamente,
era uma educação que... assim... pra gente respeitar os mais velhos, saber, assim,
receber os mais velhos; e, quando chegava visita em casa, a gente se escondia
tudo, ficava escondido lá, parecia um bicho lá na toca. Ficava escondido porque...
a gente não queria que os nossos pais passassem vergonha com a gente. Então
a gente ficava escondido, pra modo de... Se as vezes a gente chegava perto e
falasse alguma coisa, depois a gente apanhava mesmo, (não tinha razão), a gente
já apanhava. Então a gente ficava lá só escutando o que os outros tava falando.
Às vezes, ia brincar e, quando a pessoa chegava e perguntava alguma coisa pra
gente, a gente respondia, mas, assim, sem ofender, na educação que o nosso pai
deu pra gente. E assim a gente... eu eduquei meus filho também, não tão bem
porque hoje em dia as coisa tá difícil pra gente educar os filho da gente, e é difícil
mesmo. Então, mas, respeitar, graças a Deus, sabe respeitar todo mundo... Eu
agradeço a Deus pela educação que meu pai, minha mãe me deu e, assim, eu
procuro passar um pouquinho pro meus filho. É isso aí, o que eu tenho pra dizer
é isso, muito obrigado e uma boa tarde (Maria da Glória dos Santos/André Lopes)
Meu nome é Marisa, sou filha de (Joaquim Andrade Ribeiro) de Souza e Laudica
Ribeiro dos Santos Souza, que é neta da Chules. Então, meu avô morreu com noventa
e sete anos, (morando) na casa da minha mãe, e ele, toda a vida, ele comeu comidas só
naturalmente. O café dele da manhã era café com leite e farinha de milho e, no almo-
ço, era feijão, farinha e carne seca. A única coisa, se colocasse feijão pra ele, já não ia,
porque não gostava! O café dele tinha que ser um café natural. E foi que, bem dizer, ele
morreu pela idade, não foi tanto por causa de doença, porque tudo esse tempo que
ele teve, ele nunca teve a pressão alta, nunca, assim, teve uma dor de barriga, essas
coisa ele nunca teve; a maioria foi de idade. A única coisa que deu foi má circulação
na perna dele, que ele não conseguiu andar, porque ele tava velhinho, então teve que
amputar um perna. Mas ele morreu foi por causa disso, quando ele sentiu que não
tava sentindo a perna, que tinham cortado a perna dele, aí foi o final da vida dele...
Mas toda a vida ele trabalhou, e a educação que ele passou pra minha mãe, minha
mãe passou pra nós. Meu pai... nós tomava muito café de garapa, meu pai fazia muita
rapadura também, aprendi a fazer rapadura com o meu pai, aprendi trabalhar na roça
foi com meu pai. Eu, pra dizer que eu não sei, eu sei carpir, sei plantar... só a única coisa
que eu não sei é roçar. Isso eu não sei mesmo, se falar pra mim, vamos roçar, eu não
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 93
SUMÁRIO
sei; mas outra coisa eu sei fazer. Mas tudo eu dou graças a Deus que foi eles que me
ensinaram. Se um dia eu sair do meu serviço, me aposentar, que eu já tô esse ano, já
tô pendurando as chuteiras, se eu me aposentar, aí eu vou trabalhar na roça de novo,
porque eu sei trabalhar. Então eu espero que Deus me dê muita força pra mim poder
seguir a minha tradição antiga que tinha, a cultura antiga que tinha... Graças a Deus,
meus filho a mesma coisa – que, como a colega falou da educação dos filho – meus
filho, pode ser parente, não ser, eles chega: “Bença tio, bença tia, bença vó, bença
mãe”. Porque eu falo pra eles: “Não são seu tio, não são nada, mas, pelo menos, a
educação tá em primeiro lugar”, porque hoje em dia a educação acho que vai longe.
Agora, eu não gosto que deles serem malcriado, porque olha, é uma tristeza pra gente
ter filho rebelde, filho malcriado é grande vergonha pra vida da gente. Então, o que eu
puder ensinar pros meus filho, eu ensino. São muito religioso, são criança de casa pra
igreja, vão às farras deles, mas, o negócio de ir pra igreja, isso tá em primeiro lugar pra
eles. Então eu agradeço vocês [ ] no que depender de mim com ajuda, alguma coisa,
eu tô disposta, tá? (Dona Marisa/André Lopes)
Conversando sobre Maria Chules Princesa
Uma personagem importante na história das comunidades da região
de Eldorado principalmente, André Lopes, é a quilombola Maria Merencia-
na, ou Maria Antônia Chules Princesa. Este nome foi escolhido, por meio
de votação, para batizar a primeira escola quilombola do Estado de São
Paulo, com atendimento do Ensino Fundamental e Médio. A Escola Esta-
dual Maria Antônia Chules Princesa está localizada em terras do quilombo
André Lopes e recebe alunas/
os dessa comunidade e das comunidades do
entorno: Ivaporunduva, Galvão, Sapatu, Nhunguara e São Pedro.
Existe um certo mistério em torno do nome dessa personagem. Nas
conversas realizadas com as/os moradoras/
es das comunidades, esse nome
aparece de diversas maneiras. Na maioria das vezes, referem-se à persona-
gem como “Maria Merenciana”. Não souberam dizer de onde veio o nome
“Chules” e nem porque foi acrescentado ao nome da escola a denominação
“Princesa”. No entanto, este foi o nome que batizou a escola, inaugurada
em 2005. Seria interessante ouvir outras pessoas mais velhas, para encontrar
alguém que saiba de onde veio o nome. Ouvir outras versões da história.
Bom, a Maria Emerenciana... Maria Emerenciana Furquim... Maria Emeren-
ciana Furquim, eles trocaram o nome dela, {Trocaram o nome?} Maria Chules...
{Mas existiu esse nome? Isso que eu queria saber.} Existiu, o nome de (tia) Eme-
renciana. [ ] {Porque eu lembro na escolha, no dia da escolha do nome da escola,
a senhora tava nesse dia, não lembra?} Não. {A senhora tava sim} Eu tive na funda-
ção da escola { } lá na fundação, nós fizemos várias reunião e, depois, pra escolher
Valores civilizatórios
94
SUMÁRIO
um (autor), Furquim. Aí foi votado em cinco pessoa, daí a Emerenciana ganhou,
que nós queria que ganhasse o Bernardo Furquim ou o José Furquim, que tinha,
que eles falava nele (o povo de Ivaporunduva). Mas daí, como o Nhunguara tava
em peso, daí Emerenciana ganhou [ ] {Mas, na verdade, ela era do Nhunguara?}
Ela não, ela era filha do Bernardo Furquim, Emerenciana era filha de Bernardo
Furquim, irmã do meu avô Graciano Furquim. Só que ela casou, o caso dela pe-
gar esse Chules, ela casou com um homem lá que tinha apelido de... {Chouriço?}
{Nós já ouvimos em algum lugar essa história.} Era Pedro Chouriço o marido dela
{Então, na verdade, era Maria Chules de “chouriço”?} É, Chules de “chouriço”.
Daí, até nisso, eu falei pra eles, o certo é, é que a gente fala a assembleia, mas o
que vale é a maioria, né. Digo: “Eu acho que dá pra colocar a escola nela, já que
ela ganhou, mas colocar, assim, o nome dela local, Maria Emerenciana Furquim”,
porque ali é o (detalhe) mais caro. Daí, depois, quando foram fazer essa, acho
que foi esse dia que você tá falando, eles mudaram. {Colocaram o apelido.} Aí
eles colocaram a história dela... {Esse Princesa também foi...?} Princesa também...
(Dona Jovita, Galvão)
Escola Estadual Maria Antônia Chules Princesa localizada dentro do Quilombo André Lopes,
atende alunas/os de outros quilombos da região - Eldorado - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 95
SUMÁRIO
Conversando sobre Pedro Cubas
Outro personagem histórico importante para as comunidades da re-
gião de Eldorado foi Pedro Cubas.
Então, Pedro Cubas foi um rapaz, né, um quilombo que lutou muito por
esse lugar, o pai dele chamava Joaquim Marinho. Um negócio, assim, e na
época daquela luta, tudo, esse Joaquim Marinho já estava velho e passou pra
esse jovem, né, que demonstrava, assim, bastante agilidade, né, e ele passou:
“Ó, meu filho, não guento mais, já tô velho, vocês tomem conta”. Igual nós
fazemos até hoje; quando nós tamo ficando velho, a gente vai passando a res-
ponsabilidade pros mais jovem. Então, “Vocês têm que assumir, irem assumin-
do”, e assim vem funcionando, até hoje, dessa maneira. E esse Pedro Cubas,
ele ficou, né, fez bastante amizade com os outros quilombo, tipo São Pedro,
Galvão, Ivaporunduva, que era tudo do mesmo fundador, né, Joaquim Marinho.
Tudo o mesmo, que ele andava pelo mato, chegava num lugar e já formava
uma família, né, e ali ficava. E nós somos tudo descendente dele, tanto Galvão,
como São Pedro, como Ivaporunduva e os dois Pedro Cubas. E aí ele fez uma,
juntou todo mundo, vamos fazer um movimento, vamos, porque eles iam pra
cidade e não podia, era por rio que ia, né, eles não podiam trocar a mercadoria
deles em (Xiririca), que hoje é Eldorado, aí ficava aquela situação. Aí, quando
eles tavam bem sossegados, chegava alguém da mesma turma deles e falava
assim “Ó, tal dia vocês vão ter um invasão aqui”. Aí, tipo, ali da vilinha, eles
mudavam pra cá, iam mudando, né, até que foi embora lá pra cima, lá tem os
bairro, [ ] Grande, Casa da Pedra, Pouso Morro, onde eles ficaram na época, e
até que eles juntaram uma boa turma. “Nós tamo cansado disso, nós não va-
mos mais admitir que eles chegue.” Eles escondiam as mulheres e ficavam na
retaguarda, né. As mulheres iam pra outro canto, eles deixavam as mães com as
crianças pra lá, e os homens ficavam aguardando a chegada deles, dos branco,
que chegavam tudo a cavalo, aí tocavam fogo na casa deles, essas coisa tudo.
E esse Pedro que foi, entre, craro que a gente sabe que ficou, teve muitos ou-
tros, né, mas esse que ficou na história, porque ele juntou mais grupo, reuniu
pessoas de São Pedro, pessoas não sei aonde, dali, “Vamos ficar aqui, se ele
vier”. Aí tinha um adivinhão, na época, que ele subia num pau muito alto que
tinha aí no morro, que até hoje existe, o pau não existe mais, mas o lugar, né,
que chamava um pau muito alto, em forma, ele tinha um galho, diz que assim,
assim, assim, parece uma cruz, e ele subia nesse pau muito alto e lá ele adivi-
nhava que tal dia ia ter uma invasão. E pro incrível que apareça, havia, sabe,
essa invasão. {Como que era o nome desse adivinhão?} Então, ele era, agora eu
esqueci o nome dele, é... {Depois aparece o nome.} depois aparece. E aí acre-
ditavam no que ele falava porque dava certo, né. E nessa época houve mesmo,
no dia que ele falou, aconteceu a invasão. Veio muitos cavaleiros de Apiaí, de
96 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
outros lugares aí, pra acabar com eles; aí eles já sabiam, que o homem já tinha
dado a coordenada. “(Vamos fazer um baiá) assim, assim, assim.” E, como eles
não tinham arma, era só a frecha mesmo, o bodoque, que eles falam, né, o bo-
doque e o baiá, aí eles armaram o baiá num lugar grande, aonde tinha tipo a
porteira – lá em cima ainda tem todo o local, nós temos o local lá e até limpo,
até hoje –, e eles armaram um baiá na porteira. Conforme os cavaleiro foram
entrar, a porteira já tava aberta, né, eles já desarmaram lá, o baiá caiu em cima
dos cavaleiro, e eles tinham posto aquelas ponta de madeira, como uma lança,
aí matou muitos cavaleiro, muitos cavalo mesmo, né. E assim eles conseguiram
matar muitas pessoa dos branco de cavalo que chegaram, conseguiram evitar
essa tragédia lá no local deles, né. E aí demorou ainda mais de cem anos pra
ser reconhecido isso daí, né, essa vitória dos negros neste lugar. Teve outros em
outros lugares, mas aqui, devido à história desse menino, ficou Pedro Cubas,
que ele chamava Pedro, né, Cuba porque, segundo os nossos mais velho, meu
avô (Cesarino), ele falava que esse Pedro era o escravo que tinha passado por
Cuba, né. Diz que em Cuba também houve muitas, não sei... E ele, trouxeram
ele de Cuba pra cá, ele ficou, só conheciam ele como Pedro, como ele veio de
Cuba, ele e outros monte, e eles eram líderes também, provável, de lá, eles
continuaram chamando Pedro Cubas pra ele. Aí, quando chegou aqui, deram
o nome do rio aí, depois dessa batalha, o rio Pedro Cubas, em homenagem a
ele. {Esse rio que a gente passa aqui.} É, esse rio Pedro Cubas, por isso o bairro
e o rio chama Pedro Cubas, por causa dele. E assim mais ou menos a história,
né. E aí nesse pau, onde o adivinhão falava, eles montaram um cruzeiro muito
grande, né, que, até hoje, hoje nós não fazemos mais isso porque o fazendeiro
derrubou, né, mas tinha uma cruz que, no Dia da Santa Cruz, parece que é dia
treze de maio, um negócio assim, Dia de Santa Cruz, aí a gente, nossos pais fa-
ziam festa e vinha todas as comunidade aqui. Vinha de longe pra fazer essa festa
grande lá no cruzeiro, no dia da Santa Cruz. E aí a gente perdeu, é um dos res-
gates que a gente quer fazer agora é resgatar esse local, né, que tá na mão do
fazendeiro. A gente quer conversar com ele, que ele não mora nem aí mais, diz
que ele arrenda, né, pra ver se a gente consegue um espacinho pelo menos, pra
levantar essa história nossa. E essa Santa Cruz também, tem a história que eles
vinham de lá de Batatal, atravessava Barra do Braço, Itapiúna. Eles vinham pra
cá, atravessavam os cavalo tudo nadando, boi, quem ia levar boi pra Apiaí, eles
iam tudo por aqui, né, boi, porco, tudo peado, né. Eles passavam por caminho
nosso aqui pra ir serra acima pra lá, pra sair em Apiaí [ ] aqueles lugar pra lá, era
negociado tudo por aqui, pelo nosso caminho. Então, quando eles chegavam
no cruzeiro, era um ponto estratégico pra eles. Quando eles chegavam nesse
morro, eles iam orar, rezar, agradecer a Deus que eles tinham chegado lá com
saúde interrupção (Dona Diva/Pedro Cubas)
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 97
SUMÁRIO
Terra
Historicamente, a democratização da posse da terra
foi dificultada no Brasil com a criação da Lei de Terras no
601, de 1850. Essa lei foi regulamentada, mais tarde, pelo
Decreto-lei n° 1318, de 30 de janeiro de 1854. Desde então,
somente por meio da compra se podia adquirir a terra, va-
lorizando as terras devolutas (não ocupadas) de acordo
com as terras particulares e inviabilizando sua compra pelo
trabalhador rural.
A Lei de Terras impediu que imigrantes, trabalhadoras/es
pobres e negras/
os livres se tornassem proprietárias/os ru-
rais, ocupando a imensidão de terras livres da fronteira agrí-
cola. As/Os negras/
os livres que tivessem comprado, recebido
em doação ou herdado terras foram expulsas/os de seus terri-
tórios, retomando a luta histórica pelo acesso à terra.
Conheça algumas instituições que
trabalham no reconhecimento e na
regularização das terras quilombolas:
• 
Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra)
• Fundação Palmares
• 
Fundação Instituto de Terras do Estado de São
Paulo (Itesp)
“O decreto 4.887, de 20 de novembro de
2003, regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimita-
ção, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comu-
nidades dos quilombos de que trata o
artigo 68, do Ato das Disposições Consti-
tucionais transitórias. A partir do Decreto
4883/03 ficou transferida do Ministério da
Cultura para o Incra a competência para a
delimitação das terras dos remanescentes
das comunidades dos quilombos, bem
como a determinação de suas demarca-
ções e titulações.”
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO
E REFORMA AGRÁRIA (INCRA). Etapas da
regularização quilombola. Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Disponível em: http://www.incra.gov.br/
index.php/estrutura-fundiaria/quilombolas.
Acesso em: 3 mar. 2014
“Quilombolas são descendentes de
africanos escravizados que mantêm tra-
dições culturais, de subsistência e reli-
giosas ao longo dos séculos. E uma das
funções da Fundação Cultural Palmares
é formalizar a existência destas comu-
nidades, assessorá-las juridicamente e
desenvolver projetos, programas e po-
líticas públicas de acesso à cidadania.
Mais de 1.500 comunidades espalhadas
pelo território nacional são certificadas
pela Palmares.”
Disponível em: http://www.palmares.gov.
br/quilombola/. Acesso em: 3 mar. 2014.
“A Fundação Instituto de Terras do Es-
tado de São Paulo (Itesp) é a entidade
responsável por planejar e executar as
políticas agrária e fundiária do Estado
de São Paulo e pelo reconhecimento das
Comunidades de Quilombos. É vinculada
à Secretaria de Estado da Justiça e da De-
fesa da Cidadania.
Seu trabalho ocorre no âmbito estadual,
promovendo a democratização do aces-
so à terra, em benefício de posseiros, qui-
lombolas, trabalhadores rurais sem-terra
ou com pouca terra, além de implemen-
tar políticas de desenvolvimento susten-
tável para as comunidades com as quais
atua, numa perspectiva de resgate da ci-
dadania, com vistas ao desenvolvimento
humano, social e econômico.”
Disponível em: http://www.itesp.sp.gov.
br/br/info/instituicao/quemsomos.aspx.
Aceso em: 14 jun 2014.
98 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
Dona Jovita: Óia, sobre a luta da terra... a gente até que tem bastante coisa
pra falar, sabe, mas a gente cita aí os ponto importante: que a terra é a nossa vida,
sem a terra nada posso conseguir. E drento dessa luta que a gente tá lutando já há
quase quarenta ano quase – porque não é agora que a gente começou – a gente tá
nessa luta há muito tempo através dos conflito... É o conflito, o conflito foi que fez a
gente abrir a mente pra lutar pelo direito da gente. E a gente vem lutando lutando
lutando. Até que tá sendo bom, porque pelo meno ainda tá, o governo tá reconhe-
ceno o nosso direito, a gente já chegou ao ponto de titular as terra, a associação
já tem os seus título. Só o que tá difícil, difícil ainda pra nós aqui é a indivisação,
porque a gente fez um trabalho com o governo, eu digo com o governo porque se
é ele que manda tudo, a gente tem que falar logo nele e as [ ] de trabalho, eu não
tenho (não entendo nada), vai ver que é por isso também que eles são camarada,
sabe. Daí a gente fez, lutou [ ] alertando que a gente não tinha terra pra trabaiar
não tinha terra pra trabaiar. Muitas vezes a pessoa chega aqui, [ ] Agora, né, cês
dão uma olhada numa campa, cês acham que nós tamo sorto. Tem uma largura
assim, mas não temos nada, nós tamo aqui circulado, só um (ovinho) que tem o seu
direitinho aqui, daquele que restou pra nós. Mas você olha dali pra lá, aquele lugar
tão bonito que foi morador de gente, ó... muitos séculos, teve muitas atividade, nós
não podemos mexer com ele, porque tá na mão do fazendeiro, e aí tem que res-
peitar, né. Porque, quando houve o conflito, a gente tava inocente, mas agora, se
a gente memo criar um conflito, se for mexer, sem o governo fazer o que é preciso,
sabe, porque... eu sou uma pessoa que tudo tempo eu falei isso, desde que eu en-
trei na luta eu falei isso, eu não tiro o direito de nós, mas também não tiro o direito
dos fazendeiro. Porque o fazendeiro, ele comprou, ele pagou, ele lutou, ele teve
despesa dentro daquilo ali. Então essa parte, se o governo entrou com essa lei,
isso aí pertence ao governo, não pertence? É o governo que tem que indenizar e
pagar eles e pegar a terra e dar pra nós, como ele prometeu. Apesar de que o que
prometeu morreu, mas ficou outro no lugar dele e... tem essas coisa pra nós, mas
do que tava, do que era do que tava, a gente já tá se sentindo mais feliz, porque
devagarinho ele tá indo... Esperamos, eu não sei – porque eu já tô com sessenta e
oito ano, eu não sei quantos tempo eu vou viver – mas espero (que dê certo) essa
indenização todo mundo, pro povo ter lugar. E aqui na nossa comunidade, pra falar
bem a verdade, a pessoa não tem lugar de trabaiar ainda não, um serviço...
Silvane: Quando a senhora diz “foi quando houve o conflito que a gente
acordou pras coisas”, a senhora tá falando de quando? De que época, que houve
esse conflito?
Dona Jovita: De mil novecentos e sessenta e nove pra cá, mil novecentos
e sessenta e sete que a gente foi, ainda tava dormindo, foi em sessenta e sete,
dez ano...
Sergio: Por que aí começaram ocupar as terra aqui, fazendeiro começou a
ocupar as terra, foi isso? E tentar tirar vocês daqui?
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 99
SUMÁRIO
Dona Jovita: Nós fiquemos só numa beiradica assim que nós tinha [ ] {É o
jagunço, tinha jagunços, né?} (Despeito) feio, porque o fazendeiro, quando ele
chegou, nós tava despercebido. Foi o seguinte... Eu acho que eu posso contar a
história aqui? {Claro, deve.} Em sessenta e nove, teve aquela lei da... do lote,
sabe [ ] Aí, cada proprietário tirava o lote, e nós, aqui, tudo mundo tirou seu loti-
nho de dez arqueire, que era a lei, tudo em paz. Só que os antigo, os mais véio
antigo, eles tinham uma crítica aqui drento da comunidade por [ ] era os [ ] e os [
], né, no cartório tem a briga dos (Furquim) e dos [ ] Aí começaram a brigar por
causa de uma arinha de terra que eles tinham ali. Depois, parece que em quaren-
ta e três, eles foram pra justiça. Aí o advogado deu a (preferência) pro Furquim,
que era a minoria. Acho que foi uma senhora de idade que vendeu catorze hec-
tares de terra pra um senhor aí do (Castelhano) que era um grande... rico, sabe,
é o rico maior que tinha no vale do Ribeira, e (ele) começou grilar tudo. Mas nós,
de nossa idade, nós tava em paz, sabe, porque nós não sabia de nada. Apenas eu
sabia da venda da terra, sabia do que já tinha acontecido, porque esse (tio), ele
era coordenador do São Pedro, ele tinha o livro de tudo que acontecia, e o Antô-
nio [ ] tinha também, então dentro daqueles livros tava tudo escrito aquelas coisa
que tava se passando. Então eu já sabia, porque eu parava muito lá e eu também
era muito exibida de conversar com aquelas gente mais véia, sabe, eu sempre
tirava alguma coisa deles. Aí ficou, mas ninguém esperava que ia acontecer isso,
sabe. Daí, depois, quando entrou, quando veio a lei do lote, por isso que eles
pegaram, vieram onze homem de lá, dessa comunidade, cada qual com uma
foice, pra tirar mil e oitocentos arqueires que era, que é um sítio chamado Tiatã,
pra vender, assim [ ] e tinha bastante proprietário morando lá na área. Aí eles não
concordaram, aí eles falaram: “Óia, a lei que o governo deu é de tirar dos pro-
prietário o que eles vão tirar”. Agora, pra tirar a pessoa de outro lugar, o governo
[ ] houve uma briga [ ] mas daí a lei venceu. Aí tudo mundo tinha seu lote aqui, a
gente viveu muito bem com essa mania de lote, era um respeito. Só que o que
que aconteceu também... daí uma mulher que eu conheço, também a famia tudo
dela eu conheço... conheço tudo eles, aí também não esperava que eles pudes-
sem fazer isso... Como eles não puderam tirar por cheio, ela pegou, fez uma
praca e colocou em (São Paulo): “Vende-se um sítio chamado Tiatã”. Teve uma
pessoa, amiga minha, que foi lá e (comprou/copiou): “Vende-se o sítio Tiatã, mil
e oitocentos arqueire, em tal lugar”. Aí tudo passava e lia aquilo, lia aquela praca.
Aí, quando foi um dia, veio um senhor, até me lembro o nome dele, um homem
esquisito sabe, mais uns dois. Aí eu tava indo trabaiar, seis horas da manhã, en-
contremos com esses homem, aí eles falaram pra mim: “Dona, a senhora me dê
conta pra mim onde é o sítio Tiatã?”. Aí eu falei: “É ali pra frente”, digo, “mas o
senhor tá interessado nele, então o senhor corte ali na casa de um senhor que
tem ali, um véinho que tem ali, e eles dão uma expricação pro senhor”, daí eles
cortaram e tiraram informação. Aí o cara falou: “Esse sítio, eu conheço a história
dele, e tem muito proprietário, ele pertence a nós que somos (Furquim)”. Aí eles
100 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
vortaram, desistiram. Quando deu oito dia, veio outros três com a mesma história,
aí foi falado. Vortaram e vortaram [ ] Aí, quando deu uns oito, quinze dia, outra vez
[ ] quando ele foi embora que ele vortou outra vez, chegou lá, tinha um tio dela,
morava perto dela, assim. Porque a mãe tinha vendido, né, a mãe tinha já assina-
do, já tinha recebido a parte dela, que ela uma das herdeira de duas parte: dos
Furquim e do [ ]. Daí ele pegou, botou fogo na casa do coitado, cheio de lavoura,
pia de arroz, pia de milho, queimou tudo. Aí nós abrimos os olhos [ ] Daí um ma-
luquinho da São Pedro pegou [ ] botou fogo outro dia no barraco dele. Só que
isso não foi pra justiça, se fosse pra justiça nós ia [ ], mas eles fizeram, trabaiaram,
trabaiaram, trabaiaram, colocaram gado [ ] pegou nome errado por causa disso [
] nossos filho não podiam estudar pra lá, nós pedimos pra fazer essa escola aí pros
nossos filho estudarem aqui. Daí o rapaz não sabia, colocou Galvão, aqui é (Barra)
de São Pedro, é um pedaço do São Pedro. {Quem colocou o nome?} Daí o que
que aconteceu... {Quem colocou o nome, ela falou.} {Quem que colocou de bair-
ro Galvão?} Ah, foi o rapaz que tava coordenando o serviço aqui, ele não tirou
dica com ninguém. {Ele pôs o nome que ele quis, assim?} Ponhou, porque tem um
sítio que nós trabaiamos nele que é chamado Carvão, porque foi aonde os nossos
avô queimaram muito carvão, (então colocaram aquele apelido), os mais véio, aí
ele pensou que era tudo sítio, o nome do sítio, o nome do sítio mesmo é Barra de
São Pedro, isso eu fui buscar até em Iporanga no cartório, pra poder fazer o esta-
tuto... Daí, o que aconteceu, daí nós comecemos com aquela luta. Só que, daque-
la vez em diante, de mil novecentos e setenta, setenta e cinco, aquelas coisa foi
crescendo, crescendo, crescendo, a gente foi abandonando tudo, jogando tudo,
a gente foi largando de trabaiar, porque não tava mais aguentando aquela ques-
tão. Não era não aguentar, a gente não queria encarar, porque tinha muita gente
de fora, e a gente não tinha conhecimento com aquelas pessoa. Aí, quando foi
um dia, a história mais linda que eu sempre aviso o meu povo [ ] nós tivemos um
aviso, um comunicado, que vinha (doze do Estado) aqui, conversar com nós, um
federal e outro estadual. E nós tinha uma igreja lá embaixo, no peito do morro ali,
quando tem as casa parecida ali, ali era nossa igreja, e essa daqui, mudou aqui,
donde nós fazia reunião também. Aí foi feita uma runião, mas teve gente pra ca-
ramba, parece que era pra tudo o povo se ferrar. Aí ficou, aí eles chegaram, tira-
ram tudo que já tinha se passado e diziam pra nós que, que esse fazendeiro ia se
ferrar com eles, eles iam botar isso pra justiça. Naquela, o líder, que não era eu,
era lá do São Pedro, se alarmou: “Ó, a gente já fez isso, fez aquilo”, [ ] nós, com
aquela coragem [ ] Agora é a hora que nós se sarvamos: daí [ ] ela tinha ido a El-
dorado fazer compra e, quando ela comprou aquelas barra de sabão que eram
embrulhada num jornal assim, aí ela chegou em casa, ela pegou aquele jornal pra
fazer fogo de manhã, fazer aquele fogo de manhã e, antes de riscar o palito de
fósforo, ela olhou numa letra, tava escrito “São Pedro”. Aí ela jogou, abriu o jornal
e começou a ler [ ]. Aí ela pegou, guardou e trouxe pro líder, que era Joaquim [ ]
de Almeida, trouxe pra ele. E ele guardou e, nesse dia da runião, ele tava com ele
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 101
SUMÁRIO
no borso. Aí os cara começaram conversar – porque eu sou boba, sabe, eu fico ali
no meio do povo, mas eu não sei o que é que eu faço, eu sempre fiquei do ladi-
nho –, tinha a janela assim, os dois ficaram na janela [ ] nós tava alegre, até bate-
mos parminha. “Nossa, nós nunca vimos um deputado federal, um deputado es-
tadual”, risos e nós tá tendo essa honra. Nós abracemos ele pra caramba, mi-
nha fia. Aí, nisso, eles tava na janela, só que eu encostei anssim por fora, eu gosto
muito de ficar assim meio (disfarce), sabe, {Isso foi na igreja, né?} foi na igreja, eles
começaram falar baixinho um pra outro: “Nossa, mas este rio, pro que nós quere-
mos, dá certinho. Este rio é uma maravilha, vai dar uma usina (daquelas) mais fa-
mosa, porque o rio [ ]”, e eu escutei. Quando falaram em usina, eu não sabia o
que que era isso, eu não tinha nada [ ] eu só tava acompanhando o povo, mas eu
não tinha uma noção, falei: “O que será essa usina? Será que é barragem, será
que é alguma coisa?”. Digo, “Eles vão fazer pra nós isso aí, vão fazer pra nós”.
risos Eu comecei sonhar [ ], aí, esse compadre Joaquim chegou, puxou esse
jornalzinho, falou: “Ô, doutor”, nós não chamava assim senhor, a gente falava no
mais alto: “Ô, doutor deputado, o senhor...” risos “eu tô com um jornal aqui,
o senhor não exprica pra mim por caridade, esse é do fazendeiro que tá fazendo
esse mal pra nós, vai fazer...”. Aí o cara pegou, o Benedito, “O senhor sabe, isso
aqui é feito lá no meu escritório,” risos, falou, “este aqui é feito lá no meu es-
critório.”. E, lá, ninguém se tocou nada também, ninguém ligou, só leu, devorveu
pro compadre Joaquim, falou essa conversa e marcou com nós. Quinta-feira nós
tinha que tá em Eldorado urgentemente pra fazer o papel, uma foia assim, com
documento de casamento, de filho, de tudo. Por isso que eu tenho medo de cer-
tas coisa... Aí sai minhas irmã, meus irmão, pelo amor de Deus, eu vou contar pro
senhor, de tão alegre, que a gente pensou que era alguma coisa de valor, eu tava
em casa sozinho, fazia um mês que Jabor tava trabalhando lá no Praia Grande, eu
tava sozinho, só com meus filho, sem dinheiro pra comprar nada, nós comprava a
prazo... Mas eu corri, “Não, eu vou correr atrás de empréstimo de dinheiro”, mas
corri. Emprestei cinco mir réis, que meu papel de casamento ainda tava (sem reti-
rar) das [ ]. (Penso), é quinta-feira, segunda-feira, terça-feira, corri [ ] peguei meu
papel do casamento, vortei, com cinco mir réis eu fiz uma (vila) dos caramba. E
toda essa gente aqui numa agitação; coitado de Anísio, o ônibus de Anísio, assim
mesmo chacoalhando, chacoalhando levou nós tudo, São Pedro lá, tudo, no São
Pedro ficaram (dois homem) ficaram, pra nossa salvação, aí eu estranhei [ ] só
Deus lá no céu. Até uma irmã religiosa, falsa, traiu nós; ela era (em forma) de uma
irmã, mas ela tava por dentro daquilo, {Era informante, levava as informações.} ela
tava apoiando. Nós nunca (perdoamos). {Quem que é ela?} Uma tar de Doraci, [ ]
{A tal Doraci lá, que apareceu e (sumiu)?} que, por curpa dela, quase mataram o
Carlinho. {Dentro da igreja, né?} Eu que impedi, porque quem ia tomar o tiro era
eu, mas eu fiz pra defender tudo lá. Se matasse eu, som que da ideia de des-
dém, pouco me lixava, mas, se matasse o fazendeiro ou matasse o padre [ ] Mas
quase que aconteceu isso. Aí, o que que aconteceu, daí nós fomos, chegemos lá,
102 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
essa freira tava na porta do salão lá, do mesmo modo que ela fez aí, ficou na
porta do salão. E nós ia lá dar os nome, dar os nome, (e fazia aqueles papel), fo-
mos (registrando) tudo, aí eu desconfiei da conversa de um que falou: “Por que
que nós não fazemos ali na praça?”, aí o outro respondeu pra ele: “Não, ali na
praça não. Se nós for fazer ali na praça, vão dizer o quê de nós?”; daí eu sempre
sacava aquelas conversa (diferente). Aí viemos tudo contente, aquilo, nem (dian-
tar), esse dia, ninguém diantou, porque nós tava feliz da vida, que nós ia receber
tudo de mão (cheia). Aí o que aconteceu [ ] que esses dois home que ficaram, que
não puderam ir nesse dia, eles mandaram recado pra eles que, no outro dia, ele
que fosse pra fazer, porque não podia ficar ninguém [ ] e eles aguardaram até a
chegada do ônibus. Aí eles foram, (dois) mais véio, sabe, foram, eles não conhe-
ciam a cidade. Tudo isso, até não conhecer as coisa, é bom pra gente, né; eles
não conheciam a cidade, não conheciam onde era a casa paroquial, onde é que
era pra ir, aí pegaram, se encaminharam pra prefeitura, foram pra prefeitura. Aí
chegaram lá e deram pro seu Ari, que era o prefeito, que eles foram fazer esse
papel só que eles não sabiam onde é que eles tavam, sabe, eles não conheciam
o local, e esse papel era pra isso, era pra aquilo. O seu Ari pegou o papel, abriu
e começou ler. Leu, leu, leu, leu, leu e falou: “Escuta, todo mundo [ ] assinaram
esse papel?”. Ele falou: “Foi, faltaram nós dois”. “Então vocês dois não vão assi-
nar, não vão assinar e vorta pras suas casa [ ] e avise a liderança lá que vocês tão
(perdido). Mais uma vez, São Pedro caiu [ ] aí eles vortaram e já vieram avisando.
Quando foi no outro dia, o que é que nós ia fazer? Como nós não tinha recurso
pra fazer aquela (vira), aí o líder pegou, foi em Eldorado, [ ] a prefeitura pegou fez
uma carta. Já tava lá no Rio Grande do Sul esses papel, e quando viesse o [ ] vinha
pra cá. Daí entrou advogado, entrou as pessoas, sabe, que entende dessas coisa
[ ] e pegaram e fizeram o desfecho, {Cancelaram.} cancelaram. Mas, nós, óia, des-
se tempo pra cá, eu fiquei com medo. Quando chega uma pessoa aí contando
que ele é muito de cima, eu penso nisso. “Não, vamos conversar primeiro...” Mas
nós peguemos cada boca quente... Mas tudo bem, ali ficou, mas, graças a Deus,
agora, depois que o fazendeiro... também, aconteceu esse fato aí de morte, sabe,
daí a justiça entrou mais forte pra defender o nosso lado. Daí também veio acar-
mando, acarmando, acarmando; dá pra gente se dizer que agora, quase de uns
vinte ano pra cá já (Dona Jovita/ Galvão).
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 103
SUMÁRIO
Associação
As associações de moradores são instâncias muito importantes para
as comunidades quilombolas. Isso porque, para que as comunidades ob-
tenham o reconhecimento legal de que são remanescentes de quilombos e
para que consigam a demarcação, a certificação e a titulação de suas terras,
é necessário que possuam uma associação de moradores devidamente re-
gistrada em cartório.
Então, dessa comunidade aqui, a organização começou depois que nós, o
grupo de mulher, começamos, estudando a Bíblia que nós descobrimos os valo-
res, foi na Bíblia que nós descobrimos que as mulheres da Bíblia, também eles,
tiveram muita luta pra conseguir o direito deles. Então nós também estudamos as
mulheres da Bíblia, onde começou a nossa organização de mulher. Começamos a
trabalhar juntos, porque cada uma trabalhava pra si, ninguém trabalhava em gru-
po junto, dessa época pra cá, que a gente descobriu as mulheres da Bíblia, que
eles trabalhavam sempre em grupo pra eles poderem conseguir as coisas, que
uma pessoa sozinha é difícil, aí também nós começamos a trabalhar em grupo,
depois do estudo bíblico. Isso foi de noventa [1990] pra lá, foi antes de noventa.
Placa da Associação Cultural do Quilombola Brotas - Itatiba - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
104 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
Porque, o ano de mil novecentos e noventa e dois, nós já tava formada em grupo,
já tava mais organizada, que nós já começamos fazer um encontro de mulher em
Eldorado pra comemorar o dia oito de março, que é o Dia Internacional da Mu-
lher. A gente já tinha descoberto, já começamos fazer a reunião, todo ano a gente
fazia uma viagem pra Eldorado, dia oito de março, pra comemorar o Dia Interna-
cional {Vocês faziam junto com a dona Jovita?} Era tudo junto, cada comunidade
se reunia e, aqui, eu já entrei nessa época como coordenadora, porque eu que
arrumava as pessoas, arrumava ônibus pra ir nesse dia em Eldorado. Já venho co-
ordenando as coisas aqui dentro da comunidade há bastante tempo, já trabalhei
grupo de horta que nós trabalhava, comunitário, roça comunitária, horta, tudo
eu já fui coordenadora desses trabalhos. E, depois, agora, de mil novecentos e
noventa e quatro pra cá, eu passei a ser coordenadora da Pastoral da Criança,
que até hoje sou coordenadora ainda da Pastoral da Criança aqui na comunida-
de. Então, aí, começou, a gente descobriu através das mulheres da Bíblia que a
gente também tinha que se juntar, se juntar as mulheres também pra conseguir
algum direito. (Esse grupo começou) só aqui em Sapatu, porque cada comunida-
de, a irmã Sueli, a irmã Ângela, elas que vieram dar o estudo bíblico pra nós. Nós
tinha estudo bíblico, eu estudei cinco anos, eu estudei bíblia cinco anos, então
eu já aprendi muitas coisas, conheci as mulheres da Bíblia, conheci a luta deles,
pra depois nós começar a nossa, nós nos inspiramos na Bíblia. Cada vez que elas
vinham, nós estudava um trecho bíblico, e foi aí que abriu a nossa mente. Essa
Associação de Moradores surgiu quando nós trabalhamos com o grupo de horta,
porque aí os homens tinham a associação, mas era de troca. De dia, os homens
iam, trabalhava um, depois, aquele um que fazia a roça, fazia a roça e ia pagar o
dia daquele outro. E assim foi, e, depois, houve um tempo que eles se desligaram
disso aí, largaram mão desse serviço, não sei porquê. Ficavam medindo esforço,
um ia pagar, outro não ia, um trabalhava pra um grupo, depois aquele um não
vinha pra ele, então foram se dispersando. Aí, depois, formou essa associação
que nós temos agora, que ela começou essa época. E, nessa época, nós tinha,
nós era um grupo de dez mulheres que trabalhava, trabalhava com horta comuni-
tária. E, aí, quando formou a associação, nós fomos as primeiras pessoas a entrar
na associação pra poder registrar, pra poder fazer o registro da associação. Que
queriam registrar, mas não tinha, o grupo dos homens não tava trabalhando, o
grupo que tava trabalhando era só as dez mulheres. Então precisava, pra registrar
a associação, de um grupo de mulher trabalhando, de um grupo trabalhando.
Como era um grupo de mulher, entrou o grupo de mulher pra registrar a associa-
ção. Foi mais ou menos isso aí (no ano de mil novecentos e oitenta e nove a mil
novecentos e noventa), mas a horta foi bem antes. A horta foi, não tinha a asso-
ciação aqui ainda, começou na época da horta. Que até nós fomos chamados pra
nós entrar na associação, fazer parte, ser sócio. Pra poder registrar a associação,
precisava de um grupo trabalhando, e era nós que tava com o grupo trabalhando,
era nós dez mulheres. [...] No tempo da horta, a gente trabalhava, o primeiro ano
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 105
SUMÁRIO
nós trabalhamos com verdura e nós vendia pra prefeitura, vendia na Santa Casa e,
depois, como teve a troca de prefeito, pararam de comprar. Aí, nós mudamos pra
outro tipo de plantação, começamos a plantar verdura, mas a gente tava só per-
dendo, porque plantava pra vender, plantava bastante, não tinha mais comércio.
Aí nós mudamos a plantar coisas que nós mesmos consumia, plantava mandioca,
plantamos arroz, plantamos feijão, milho, nós plantamos de tudo depois que nós
paramos com a verdura. O espaço da terra nós ocupamos com outras coisas, e
esse nós mesmos consumia, porque nós, nessa época, tinha entrado mais uma
pessoa, já era onze mulheres, então... o que nós plantava ali, nós dividia entre
nós, então não se perdia nada, como no começo perdeu a verdura. Depois, mu-
damos pra outras coisas, e não perdia. Nós dividia lá mesmo, nós tirava mandioca
e juntava de duas em duas mulher e fazia um pouco de farinha, outras duas ia,
tirava mandioca e fazia outras farinhas e dividia entre eles, e assim vai. Nós traba-
lhamos. Dessa época pra cá, o grupo de mulher não parou mais. Nós não temos
mais horta, mas nós temos outras coisas. Aí, depois disso, nós tivemos o curso
de costura, dois cursos de costura também que nós fizemos, mas só que não deu
certo, porque a pessoa pensava em entrar numa coisa que desse renda, a gente
precisava, precisava de uma coisa pra ter renda. Aí a costura não foi em frente,
aí desistimos da costura. Aí veio, entrou o artesanato, e no artesanato tem várias
mulheres ainda que continuam trabalhando. (Dona Esperança/Sapatu)
Essa, lá embaixo, ela é fundada em mil, foi fundada em mil novecentos e
noventa e oito. E aqui, que foi uma área que ficou à parte por questão política da
época, eles não deixaram que os quilombo reconhecesse pra cá, pra cá tinha que
ficar com os outro. Mas, através de estudo antropológico, acusou realmente que
era tudo parte, fazia tudo parte do quilombo. Aí, quando eu estava em São Paulo,
o próprio estado [ ] da Brigadeiro Luís Antônio e falou, escrareceu a gente, falou:
“Ó, vocês têm direito, então é bom, dona Diva, a senhora...”. Em mil novecentos
e noventa e seis, já havia uma grande reunião aí em Eldorado, aonde teria que
dar um que realmente que os quilombo dessa área aqui, né, que tem entre, faz
divisa com o parque, dissesse um que, que queria mesmo, porque o parque ia
tomar conta, né. Aí ficava o parque e terceiro, daquela ponte que vocês atraves-
saram da [ ] pra cá, né, daqui pra cá ia ficar parque e terceiros, ficava os quilombo
só ali naquela vilinha, né, amontoado ali. Aí eu procurei, pedi uma reunião com
os secretário, a Florestal, enfim, esses representante, aí em Eldorado, na Câmara
Municipal, e eles atenderam. Aí eu vim de São Paulo, junto com outras liderança,
né, e fizemos a reunião lá, e eu assinei um requerimento requerendo essa parte
pra cá, que dá seis mil oitocentos e setenta e cinco hectares de área e vai embora.
É mato pra caramba, né, mas... (Dona Diva/Pedro Cubas)
106 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
Conheça algumas organizações quilombolas que traba-
lham para a garantia dos seus direitos:
Coordenação Nacional de Articulação das Comunida-
des Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
Equipe de Articulação e Assessoria as Comunidades
Negras do Vale do Ribeira (Eaacone)
“Na realização do I Encontro Nacional
de comunidades Negras Rurais Qui-
lombolas, realizado em novembro de
1995, em Brasília/DF. As comunidades
negras rurais quilombolas alteraram a
capacidade de mobilização regionali-
zada exercitada nas últimas décadas,
colocando a problemática do negro
do meio rural como questão nacional.
Como mecanismo de organização,
constituíram a Coordenação Nacio-
nal de Articulação de Quilombos
(CONAQ). A CONAQ foi criada no dia
12 de maio de 1996, em Bom Jesus da
Lapa/BA, após a realização da reunião
de avaliação do I Encontro Nacional de
Quilombos. A CONAQ é uma organiza-
ção de âmbito nacional que representa
os quilombolas do Brasil.”
COSTA, Ivan Rodrigues. CONAQ: Um Mo-
vimento Nacional dos Quilombolas. Dispo-
nível em: http://www.institutobuzios.org.
br/documentos/CONAQ_UM%20MOVI-
MENTO%20NACIONAL%20DOS%20QUI-
LOMBOLAS.pdf. Acesso em: 14 jun 2014.
“A organização político-social destas
comunidades teve inicio em meados
da década de 1980, com o trabalho de
base realizado pela Comissão da Pasto-
ral da Terra (CPT). Nos anos 1990, foi
criada a EAACONE (Equipe de Articu-
lação e Assessoria as Comunidades Ne-
gras do Vale do Ribeira), formada por
lideranças das comunidades quilombo-
las do Vale e por apoiadores. Iniciava-
-se, assim, o processo de discussão e
organização dos quilombolas do Vale
do Ribeira. Também nesta década, foi
criado o Movimento dos Ameaçados
por Barragens (MOAB), composto por
integrantes da Igreja Católica, ambien-
talistas, sindicatos urbanos e rurais, lide-
ranças das comunidades rurais e, prin-
cipalmente, representantes das comu-
nidades quilombolas. O movimento faz
parte até hoje do cenário político-social
das comunidades quilombolas, indíge-
nas e caiçaras locais no enfrentamento
dos projetos de barragens (Hidrelétrica
de Tijuco Alço, Funil, Batatal e Itaoca),
no rio Ribeira de Iguape.
(Continua)
Placa indicando o Quilombo Cangume - Itaoca - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 107
SUMÁRIO
Produção: roça, produtos artesanais e
turismo étnico
Vemos nos relatos das/
dos mais velhas/os das comunida-
des quilombolas que, no passado, as comunidades produziam
tudo o que consumiam. Todos os alimentos eram produzidos
pelos próprios quilombolas: plantavam, criavam galinhas e por-
cos, pescavam e caçavam. Das cidades, necessitavam apenas de
alguns “cortes de pano” para as roupas, do sal, do fósforo e do
querosene para as lamparinas. Tudo o mais era produzido na co-
munidade.
Hoje, a realidade é bem diferente. Com a criação de leis
ambientais, que muitas vezes, desconsideram os modos de
vida das populações tradicionais, e com a diminuição de suas
terras, que foram tomadas por terceiros, grileiros, grandes em-
presários do setor de mineração ou por empresários interessa-
dos na construção de hóteis e condomínios, as/os quilombolas
foram forçados a reduzir suas atividades produtivas, princi-
palmente a produção de alimentos para consumo próprio.
As/Os quilombolas nos dias atuais vivem com poucos
recursos e se veem obrigados a trabalhar fora, na lavoura de
outros produtores, ou nas cidades, em casas de família e nos
demais serviços urbanos. Ironicamente, as/os quilombolas
que, juntamente com as/
os indígenas, foram as/os responsá-
veis pela preservação de uma enorme área de Mata Atlântica
Terceiros: pessoas que compraram
(alguns, poucos, de boa fé) terras que
estão dentro de territórios quilombo-
las. Após a certificação de titulação da
comunidade, os terceiros devem ser in-
denizados pelo governo e sair da terra,
deixando-a aos quilombolas que têm
direito sobre ela.
Grileiros: pessoas que, usando falsos
documentos de propriedade, se apo-
deram de terras que não são suas. Esse
nome surgiu do fato de que essas pes-
soas, para produzirem os documentos
falsos, colocam-nos dentro de uma cai-
xa com grilos, para acelerar o processo
de envelhecimento do papel, dando-
-lhes a aparência de antigos.
(Continuação)
A organização das comunidades qui-
lombolas resultou na consciência de
seus direitos. Mas ainda hoje, os re-
manescentes de quilombos vivem em
constantes batalhas por seus direitos
fundamentais.”
SILVA. Elson Alves. A educação diferen-
ciada para o fortalecimento da identida-
de quilombola: estudo das comunidades
remanescentes de quilombos do Vale do
Ribeira. Dissertação de Mestrado. PUC/SP,
2011. p. 37. Disponível em: http://www.
sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.
php?codArquivo=12577. Acesso em:9
jun 2014.
Artesanato feito por moradores do Quilombo Sapatu - Eldorado - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
108 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
existente no Vale do Ribeira e no litoral paulista, hoje estão
acuados por uma legislação ambiental que criou parques e
áreas de preservação ambiental dentro dos territórios quilom-
bolas e proibiu atividades realizadas há séculos por essas co-
munidades, como a roça e a caça para consumo próprio.
Algumas comunidades, principalmente as que já foram
certificadas e tiveram suas terras tituladas, vivem da planta-
ção de banana e de palmito pupunha. Esse é o caso de algumas
comunidades do Vale do Ribeira. Todas ainda criam galinhas
e porcos (em pequeno número) para consumo próprio e fabri-
cam artesanalmente, de maneira tradicional, alguns produtos
como farinha de mandioca, doces de banana, de mamão e de
laranja e pão. Além do artesanato da fibra da bananeira.
As comunidades também têm se organizado para a rea-
lização do turismo étnico, do qual a comunidade do Ivaporun-
duva é um exemplo. Ela possui uma pousada e recebe grupos
de turistas e visitantes (em sua maioria, professores e alunos da
educação básica e de universidades) e realiza oficinas temáticas
sobre a história das comunidades quilombolas. Visitas monitora-
das ocorrem em quase todas as comunidades, momento em que
membros da comunidade fazem apresentação de danças (Nhá
Maruca e Mão Esquerda, por exemplo), roda de viola e contação
de causos. Alguns jovens das comunidades do entorno do mu-
nicípio de Eldorado trabalham como monitores ambientais nos
variados atrativos naturais da região, como a Caverna do Diabo
e as muitas cachoeiras ali existentes.
Detalhe da cozinha e do restaurante Quintal da Magdalena - Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP.
©Fernandes
Dias/IMESP
(as
duas
fotos)
“O Circuito Quilombola do Vale do
Ribeira é uma oportunidade única de
fazer turismo de base comunitária e ao
mesmo tempo conhecer a cultura afro-
-brasileira, participando de seu cotidia-
no observando seus conhecimentos tra-
dicionais, visitando as belezas naturais
e, principalmente, ouvindo as histórias
de luta e resistência das comunidades,
que contribuem até hoje para preser-
var as riquezas da sociobiodiversidade
da região. São cachoeiras, rios como
o Ribeira de Iguape e Pedro Cubas,
cavernas, como a do Diabo com suas
lagoas internas e milhares de estalacti-
tes estalagmites, formando verdadeiras
esculturas, as casas do Artesão e de
Pedra; as trilhas do ouro, os sambaquis,
de grande interesse arqueológico, os
portos De Fora e Abrão e muitos outros
atrativos que vão encantar os visitantes.
Já a gastronomia quilombola é um item
à parte que ajuda a contar a história dos
quilombos do Ribeira.”
CIRCUITO QUILOMBOLA DO VALE DO
RIBEIRA. O que é Circuito Quilombola?
Disponível em:
http://www.circuitoquilombola.org.br/
node/1/. Acesso em: 3 abr. 2014.
Quilombos, comunidades de valores | dialogar – conhecer – comunicar 109
SUMÁRIO
Detalhe de bananicultura e Rio Ribeira de Iguape. Portal de entrada da cidade de Eldorado - SP.
Criação de galinhas nas comunidades do
Vale do Ribeira - SP.
Pupunha nas comunidades do
Vale do Ribeira - SP.
Roda d‘água de engenho no Quilombo Fazenda Picinguaba
Ubatuba - SP.
Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP.
©Genivaldo
Carvalho/IMESP
(todas
as
fotos
desta
página)
110 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
Ai, era as coisa... porque as coisa era tudo daqui memo. O comprado era
só o sal, o pessoal comprava, e a querosena pra acender lampião, porque essa
lamparina que faziam, então acendiam pra gente crarear de noite, andava com o
lampiãozinho, se não ponhava um lá, outro lá num lugar, pra gente tá fazendo as
coisa naquele crarinho daquela luzinho, igual a vela quando a pessoa acende a
craridade do lampião, igual a velinha, mema coisa, então, a gente, o jeito das coi-
sa que a gente se mantinha com eles era tudo daqui memo. Então era... a gente
prantava banana; dava pro gasto, porque não tinha (venda). Prantava mandioca,
dava, prantava um (cajá), uma batata, tudo que era de aqui do mato, a gente
prantava, dava, então a gente se mantinha com aquilo. Não tinha esse pão que
tem agora, aí. Comprar um pão? Eu até nem ligo pra esse pão, não fui criada com
isso, não acostumo (com o tar do pão), comer pão, não.
Tinha o café de garapa, moía a cana, tinha o (estraçador), moenda, porque
tinha o moenda grande de moer com animal, moendão, moía com animal bas-
tante, (quarava) pra fazer açúcar de fôrma, que diziam, os mais véio diziam, então
faziam aquele... Tinha o forno, uma tacha grande, então eles ponhavam numa
trempe anssim e era um barracão do [ ] dessa casa aqui inteiro, misturado dessa
casa dela tudo, um barracão grande que tinha. Então, dentro era aquela moenda,
moenda grande em cima, então tinha o cavalo já próprio pra virar aquela moen-
da. Então nós ia cortar a cana, era um dia inteiro que nós tava cortando cana, bas-
tante gente, não era só eu, porque eu ainda era criança, mas tô fazendo a parte
de eu porque... Mas os mais véio que iam, cortavam cana o dia inteirinho ali; três,
quatro pessoa cortando cana. E, quando era outro dia, iam bardear tudo aquela
cana, faziam aquele amontoerão de cana num salão assim. Aí, depois que tava
tudo amontoado aquela cana, nós ia macetar, bater a cana pra pôr na moenda pra
moer. Aí nós pegava, que era até o primeiro, o mais véio escravo, que tinha qui-
lombo, os quilombo mais véio que nós trabalhava, os mais véio trabalhava nele,
Mandioca e cará, plantados pelas comunidades quilombolas.
©Acervo
NINC/SEE-SP
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 111
SUMÁRIO
fazia bastante serviço. Era grande, esse homem, ele era negociante, era um dos
maior que tinha aqui no bairro aqui, então tudo mundo trabaiava pra ele. Então,
quando chegava assim véspera de feriado, ele mandava os camarada cortar aque-
la canaiada pra moer, ali moíam aquela cana. E já tinha ali dois pra tá bardeando
aquela guarapa, ponhando naquele tacho pra tá aquela fogueira debaixo daquele
tachão fervendo aquela guarapa e o cavalo moendo a cana. E o [ ] ponhava a cana
lá naquela moenda e o cavalo andava tudo aquele salão, moía cana o dia inteirinho.
Ali era a guarapa que tava ponhando naquele tacho, tava apurando, tiravam aquele
um, já tavam tocando outro, faziam o melado, aquela calda da guarapa. Às vezes,
tiravam de garrafão, esses garrafão grande, lata, sei lá, até nem lembro o que que
era que eles ponhavam nele. Bastante, eles faziam de bastante, e despois apurava
aquele açúcar. Porque o [ ] pra fazer o melado, que diziam, que essa calda grossa
que faz da guarapa, eles tiravam separado. E, depois, quando era pra fazer açúcar,
ainda apurava o açúcar memo, iam mexendo assim com um mexedor grande [ ]
grande assim, mexendo no forno pra ir apurando aquele melado, aquele açúcar
no forno pra fazer açúcar. Aí, quando apurava aquele açúcar, mas era um tachão
grande, apurava aquele açúcar, desciam aquele fornão, aquela tachona e ficavam
mexendo ele assim. Aí ia apurando, ia embolando aquele açúcar, ia embolando, ia
embolando, embolando, embolando, embolando, até que ficava aquele, dava de
esfriar e ficava aquela bola de açúcar anssim, que é açúcar de fôrma, que fala, fala-
vam, agora eu acho que nem existe. Então, eles deixavam lá, depois tiravam numa
fôrma grande, se não numa vasia lá que deixasse esfriar e ponhava lá de novo aque-
le tachão e colocavam outro tantão de guarapa pra ir, pra fazer. Faziam de tonelada
de açúcar e deixavam, porque não tinha pra quem vender, quem comprava era os
memo trabalhador que trabalhava pra ele que comprava aquelas coisa, porque, pra
vender pra fora, não tinha comércio. Então era só pra uso, então ali a pessoa se
mantinha com aquele um, quando queria comprar daquele açúcar apurado, com-
prava dele, trabaiava e comprava. Quando não queria, a pessoa tudo tinha seu
canaviazinho, então moía a cana e fazia o café da mesma guarapa também, era a
mesma coisa. Então era assim que nós vivia e se mantinha de lavoura nosso memo,
prantava de tudo, a gente tinha de tudo. Quem guentava fazer roção grande, fazia.
Quem não podia, fazia pequeno, mas sempre se mantinha daquela lavoura, tudo
daqui do mato memo, e comprava somente o sal que ia comprar e a querosene,
que a pessoa não tinha nada, e o fósforo, fósforo que era comprado, só. O resto
das coisa era tudo daqui, tudo da lavoura e da roça memo. E tinha bastante trabaia-
dor memo, tudo eram trabaiador, tudo, aquelas criancinha desse portinho já eram
tudo incluído na roça. Fazia um puxirão aquelas criançada na roça, era bonito de
ver, tudo molequinho assim, tudo prantando, era arroz, feijão, era milho. As pessoa
mais véio pegava, quando eles não sabiam, que era igual esse molequinho [ ] ele
pegavam [ ] então ele andava, chegava perto da mãe dele, a mãe pegava, fazia o
buraquinho anssim, da cova no chão, mandava ele ponhar a prantinha lá, pra ele
ir aprendendo já. Já ia se criando aprendendo já, naquele ritmo. Depois, quando
112 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
ficava de dez ano em diante, pronto, já era trabaiador, podia trabaiar pra quarquer
um. Então tudo trabaiava aquele tempo e tudo tinha suas coisinha, não precisava
tá se batendo pra trabalhar em fazenda, comprar coisa feita, tudo tinha do seu pra
se manter com ele. Agora tá bom num jeito e ruim ni outro, porque ninguém quer
trabaiar mais, quem tem vontade de trabaiar, iguar eu, que já sou bem véio, e tudo
essa gentarada por aí, já que tem gente mais véio do que eu ainda, mas a gente
não guenta mais, não guenta trabaiar mais. (Dona Maria Urbana/Pedro Cubas)
Eu sou José, José da Costa, nascido e criado no quilombo. O meu papai...
o meu papai faleceu com cento e três anos de idade. Nós comemos sempre as
coisas pura, sempre o que ele passava pra nós, comer as coisas pura, da terra, né,
lavoura nossa que prantava aqui mesmo, né. Então, falando do que eles falaram
no começo acerca da caça, a carne que nós comia era a carne de caça. O véio
praticava mesmo pra tratar de nós com carne de caça. A gordura que nós comia
era a gordura do porco, não tinha esse negócio de óleo que tem hoje, não tinha.
Era tudo criado na roça. No arroz, no feijão, no milho, essas coisa tudo da roça, o
café... O café era cana moída, bebia do café da garapa. Não tinha negócio de açú-
car, era tudo natural mesmo. A mistura de café que nós usava era cará, mandioca,
batata, essas coisa que nós usava. E, falando nas dança, o meu pai tocava em festa
de casamento, violão, viola, gostava muito de tocar... Quando tocava nas festas de
Rua no Quilombo Cangume - Itaoca - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 113
SUMÁRIO
casamento, essas dança que eles estão falando nelas, o véio tocava tudo elas e...
Dança eu aprendi, não vou dizer que não, que eu aprendi. Só que no modo de dan-
çar que eu vejo hoje na criançada, que eu acho diferente, que eu tinha uma dança
que a turma mais véia falava de xote. Pegava a mão da dama com uma mão, levava
ela lá, trazia, pegava com a outra mão, pegava na cintura, mas por fora, de longe,
não chegava nem a encostar na gente, tirava por forinha. E eu era campeão nessa
dança risos, gostava. Tinha vez que eu chegava no forró e muitas vezes era só
eu que praticava, na minha cidade era só eu que praticava, vinha três, quatro moça,
grudava ni mim pra dançar comigo, porque eu sabia dançar e os outros não sabia.
Então ficava aquela fila de gente pra dançar só comigo. Hoje eu não faço mais isso,
sabe, hoje não pertenço a... como é que é... não faço mais isso. Mas eu sei fazer
e sei explicar pras pessoas fazer também. Então é o seguinte, a nossa cultura aqui
antigamente era essa. E outra, era carregada toda nas costas, nem animar não tinha
direito. Meu pai nunca foi um homem de lidar com criação, então a criação dele
era porco, galinha, essas coisa. Mas cavalo, assim, boi, ele não usava, a carga era
carregada nas costa memo. Então nós saía lá dá... morava mais pra frente um pouco
aqui, nós saía lá do sertão com carga nas costa, vinha pra cá e vortava a pé. Não
tinha negócio de cavalo... e caminho de... de... de tropa memo, não tinha estrada,
era tudo... a estrada aqui era um capinzal só. Quando passou o primeiro (corte), de-
pois largaram mão, abandonou, ficou feito um capinzal. O pessoal andava (no meio
do capim) aqui, com carga nas costa, moradores... É... de ponto em ponto tinha
um morador na beira do caminho... Então a cultura era essa. E o café era prantado
nosso mesmo, não tinha negócio de trazer esse café com química, que nós vê aí
hoje. Hoje a gente vê mudança, muitas coisas a gente fica parado pensando, não
sabe pra que caminho tomar pra sair. Porque eu memo, tem coisas que acontecem
hoje que eu não sei sair dela. Mas... é, quando eu vinha estudar, eu vinha estudar
eu tinha que passar vinte vez por dentro do rio, podia tá caindo gelo ou do jeito
que fosse eu vinha descalço. Trazia comida em uma latinha, daquelas lata de óleo
antiga, quadradinha. Quando ia comer, ela tava da cor desse livrinho aí, porque [ ]
e eu morava muito longe, então eu não tinha tempo de estudar. Eu estudava uma
semana do mês, o resto eu tinha que ajudar meu pai trabalhar pra cuidar dos mais
pequeno, que tinha mais criança pequena e o véio já tava... Então a cultura nossa
começou nessa medida. Hoje tá tudo facilitado, eu vejo o ônibus pegar os aluno na
porta e levar de novo de tarde. E infelizmente as criança hoje não querem nada do
que o governo tá oferecendo. Eu precisava que esse estudo de hoje fosse o tempo
que eu comecei a estudar. Hoje, por misericórdia, eu entrei estudar aí com os pro-
fessores vindo aqui mesmo, com um projeto do Banco do Brasil. Aí a diretora (Lígia)
viu a minha letra, ela interessou em passar pro EJA, né, e já colocou direto na quinta
série, eu era segunda série fraca. E nessa... nessa partilha hoje eu tô terminando o
terceiro. Então, isso a gente pode passá, tá passando... mais ou menos isso. (José
da Costa/André Lopes)
114 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
As medidas de roça, que hoje nós vimos, que hoje em dia
nós vimos que as coisa tá mudando bastante. Então o que acon-
tece, (nós) media, nós batia roça, nós media roça; era alqueire,
[ ], era braça, era tudo isso. A medida de semente era litro, meia
quarta, meio alquere e um falava com o outro e todo mundo
entendia [ ] Todo mundo entendia quando falava “Quero (meia
quarta) de semente”; não podia passar, não passava nem um
pouquinho, porque a minha mãe, o nosso [ ] falava: “O negócio
tem que ser justo!”. Então a gente tá vendo, quando fala educa-
ção diferenciada, a gente tá vendo tudo esse sistema. Então esse
tipo de educação, esse tipo de respeito das coisa, o costume
hoje em dia tá fazendo com que aquilo ali seja esquecido... En-
tão a gente, como se diz, eu acho que o que eu tenho que passar
é isso. Tem muita coisa pra falar, mas o que eu tenho que passar
é isso! Obrigado. (Sr. Assis Pereira dos Santos/André Lopes)
Minha memória, tua memória, nossa memória
Etnomatemática
“Mesmo que na escola sejam ensinadas as unidades de
medidas oficiais, em seu dia-a-dia as pessoas continuam
fazendo uso de unidades não convencionais; por exem-
plo, x minutos a pé, referindo-se à distância e um qua-
dro de 15 ou uma tarefa, para tratar de medidas agrárias.
Assim, a matemática acadêmica é utilizada nas situações
comerciais e nas transações bancárias, o que é imprescin-
dível para todas as pessoas.”
VIZOLLI, I.; SANTOS, R. M. G.; MACHADO, R. F. Sabe-
res quilombolas: um estudo no processo de produção da fa-
rinha de mandioca. Bolema [online]. 2012, vol. 26, n. 42b, pp.
589-608. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-
636X2012000200009. Acesso em 30 jul. 2013.
“Todos os povos, com sua cultura
(etno) lidam com sua realidade e a ex-
plicam (matema), cada qual à sua ma-
neira (tica). Essa constatação resultou
na etnomatemática, que leva em conta
as explicações próprias das comunida-
des, cotejando-as com as formas uni-
versais do conhecimento.”
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática:
arte ou técnica de explicar e conhecer. 2.
ed. São Paulo: Ática, 1993, pp. 10-15.
Você conhece as unidades de medida apresentadas
pelo sr. Assis?
Pesquise o que significam alqueire, braça, litro, meio al-
queire e meia quarta. Aproveite para conversar com os
moradores do quilombo e descubra se existem outras
unidades de medida usadas na comunidade.
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 115
SUMÁRIO
Então, até breve
Este livro buscou apresentar alguns trechos das muitas narrativas contadas nas rodas
de conversa realizadas nas comunidades quilombolas visitadas pela equipe do Núcleo de
Inclusão Educacional. Com esta iniciativa, buscou-se mostrar as/aos professoras/es das es-
colas quilombolas e das demais escolas um pouco do universo da vida quilombola no estado
de São Paulo. Além disso, a intenção foi apresentar às crianças e adolescentes quilombolas
que receberão este livro por meio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo a vida
que conhecem na prática, de maneira à auxiliá-los na vida escolar. Às/Aos alunas/os não
quilombolas que também terão acesso a este livro na biblioteca de suas escolas, desejamos
que procurem entender este rico universo e aprender com ele. As comunidades quilombolas
preservaram tradições, fazeres e valores, dos quais muitos já foram perdidos pelas comu-
nidades urbanas de hoje. Conhecer e valorizar essas histórias e esses conhecimentos faz de
todos nós seres humanos melhores e mais sábios.
Eu agradeço tudo os senhores pela vinda... Aqui não é lugar muito fácil,
por isso que, quando a pessoa vem, a gente agradece muito. Nós moramos num
Sertão, assim, viu a lama que tiveram que enfrentar. Mas (se mais vezes) tiver
oportunidade de vim, a gente recebe de braços aberto [ ] contando história, tem
milhares de história que a gente pode, [ ] que um dia que tivesse assim, de bom
tempo, que a pessoa pudesse vim com mais tempo pra gente caminhar um pou-
co, assim, sabe, naqueles lugar histórico. Tem a história e tem lugar histórico
também, e isso é muito bom pro conhecimento nosso. Espero também em Deus
que isso dê futuro pras criançada, porque o desejo que a gente tem é de bem-
-estar do que tá vindo. Porque nós já tamo dessas idade, o que já passemos, já
passemos, não sabemos que ia passar, mas a gente sabe que a gente tem uma
resistência de vida. Agora, os coitadinho que vem vindo agora, que carece de nós
fortalecer com o nosso bom humor, bom exemplo, e isso que, no mais tudo bem!
(Dona Jovita/Galvão)
João Mota: Ah, os daqui trabaia fora, na lavoura. Eu memo tenho dois,
eu tenho um de vinte e um, um de dezenove e um de onze. Mas aí, terminou o
estudo foi trabaiar [ ] numa fazenda, aí despois mandaram embora, agora aca-
ba o seguro desemprego. Lá de vez em quando vão, mas não é que vão assim
seguido, né, dizer que não vai, vai, mas não é... Porque o negócio aqui é o
seguinte, que eles, os jovens aqui, eles querem trabaiar, mas (de tarde) querem
saber quanto dá. {Quer receber!} Agora, na roça [ ] nem sabe que, à moda que
eu tô falando, prantei lá, não vou colher. Então isso um pouco que desanima,
né. {Eles têm pressa.} Isso, então. {Eles querem ter o dinheirinho todo final de
semana pra...} Isso! Porque cada caso é um caso. É que, no meu tempo, nin-
116 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
guém pensava, ah... se tivesse dinheiro, tava bom, se não tivesse... Mas hoje a
coisa mudou, né. Eu memo, eu me criei lá no corguinho, se eu falar meu... eu
não tenho vergonha de contar meu criame. Mas ó, eu vesti uma calça, andava
só com {(short)} por aqui, vesti uma calça comprida tinha dezesseis ano, que eu
guentei comprar. Carcei sapato, que eu guentei comprar, que eu não sabia nem
o número, comprei um sapato de prástico, que tem, ó, fez calo. {Comprou sa-
pato pequeno?} É. risos Eu não sabia o número, ó, e comprovo pra não dizer
que é mentira. Ó o calo que fez, isso faz mais de {Fez um calo de tão pequeno
que era o sapato?} Isso. risos Pelo tempo, tá pequeno, mas isso aqui ficou
grande, não dava {E o senhor usou assim mesmo, apertado?} É, mas {Só tinha
aquele.} não dava pra usar, porque fez um calo e cresceu. {Nem um buraquinho
o senhor fez [ ]} Pra senhora ver, eu tava com dezesseis ano, hoje tô com cin-
quenta e oito, né, então é {Quase quarenta ano} Isso, então pra mim tava bom,
né, porque a situação aquela vez era aquilo, né. Mas não é que eu disconcordo
que, com certas gente que fala, vem aqui e diz “Não tem que seguir”, a cultura
tudo bem. Agora, vortar o tempo que a gente se criou, Deus o livre, não tem
como vortar. Agora, nossa cultura, tem de preservar ela, isso eu concordo com
quarquer um. Agora, cultura tem que preservar; você saber de onde é sua cul-
tura, da onde cê, né, de que tipo cê viveu, agora, mas não que isso vai querer
pro fio da gente, isso não. Pro fio da gente, a gente quer mióra, né. {Sim.} Só ele
sabendo como foi a cultura dele, esse é um direito, todo mundo tem de saber
alguma coisa, não pode ter vergonha, que eu digo, eu, descarço, não tinha, que
aquele tempo quem não tinha recurso pra comprar roupa, hoje não, cada peça
de roupa... Não dava, coberta, eu me ensacava dentro de um saco de [ ], eu
acho que eles nem conhece, ensacava lá drento, deitava numa esterinha perto
do fogo e lá ficava. Um frio que hoje não faz, fazia um frio que Deus o livre [
] que é corguinho, porque o lugar, tudo lugar que o cara vai, pisava na água,
trabaiava cedo pisava naquelas água fria, o pé da gente ficava gelado, né. Mas
eu, né, o importante que a gente se criou, né. {Ficou forte, daí, né.} {Tá aqui
hoje pra contar história, né, seu João?} É, o importante é isso. Então tem gente
que se envergonha de contar do criame. Eu não. Foi, a realidade foi essa, né,
então a realidade tem que ser dito, né. Não adianta o cara ficar envergonhado
porque hoje tô num mundo desenvorvido, né, mas, aquele tempo, não era. Se
aquele tempo a realidade era essa pros quilombola, que tudo mundo conhece
a maior parte da história quilombola, né, então {Tem mais é que contar, né, por-
que passou por tudo isso e conseguiu vencer, né. Valoriza ainda mais a história
do senhor!} É!
Laurentino/Nhunguara: Valoriza mais a história do estudo, uma grande
coisa que todo mundo abriu os óio. Antigamente, falava em presidente, tudo
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 117
SUMÁRIO
mundo baixava a cabeça, falava em prefeito, ah, era um bicho. Quer dizer que
tudo mundo tava com os óio fechado, né; agora tudo mundo abriu os óio.
Coitado do presidente não tão tirano. {É.} Então é uma coisa que eu sempre
falo, a leitura abriu os óio de tudo mundo. Que nem eu me lembro de Franco
Montoro, Getúlio Vargas, era quem comandava, não tinha esse negócio de
esperar por fulano; ele dizia: “É assim”, “É assim”, “É assim”. {É que aquele
tempo era a ditadura, né,} É, hoje não. {não tinha democracia.} Então a leitura
abriu os óio de tudo mundo, o presidente tá lá, mas tão com os óio nele, né.
risos Aquele tempo era, baixava a cabeça, hoje não, tão com os óio neles,
né. {Já sabe dos direitos que tem, né.} É, dos direito, o certo é [ ], então, hoje
em dia, as pessoa tão quase sendo igual um ao outro. {Direitos humano é pra
isso, né, como diz o [ ] dos direitos humano, aí, o ser humano tem que ser, não
pode dizer que (é diferente), até porque...} A leitura foi muito bom, porque
limpou muito...
João Mota/Nhunguara: Outra coisa que a gente fala da cultura quilombo-
la que tinha, porque, do tempo deles, do tempo dele, já sou criança, sou mais
novo até do que o filho dele, mas uma coisa que hoje até fica difícil pra gente
contar, umas história passada, porque os pai, aquele tempo, não tinha contato
muito com o filho, assim. Aí ele chegava aqui, a moda que nós tamo aqui, se
eu chegasse ali na porta, tinha que ficar. “Que que cê tá escutando aqui?”. Era
só conversa dos mais véio, então lá que a gente tinha um tio que a gente tinha
contato, ele que ia contar as história, mas o pai e mãe não contavam, então a
gente não tinha aquele direito, né, de saber. Hoje não, nos direitos humanos,
a maior coisa é a gente sentar com a família e conversar, né. O que tá errado,
não é feio o filho chamar a atenção do pai: “Ah, pai, tá errado”, só que nós
temos que ter justificativa no que que tá errado. Não adianta falar: “Ah, mas tá
errado”. {É a maneira de falar também, né?} É, “tá errado”, mas pra onde que
tá o erro, não tem justificativa, não tem um certo tipo de falar. E quem tá errado
também justificar porque que ele tá falando que tá errado, não adianta falar
que tá errado, mas não tem justificativa no que que tá errado, como é que nós
vamos corrigir? Agora, se justificar, vamos tentar corrigir. {Conversar, né.} Isso,
conversar pra poder {Aceitar.} Isso, mas...
Então eu também agradeço porque foi uma oportunidade que eu vi que
a gente lutando sempre chega. Porque eu sempre tive essa vontade de nossas
criança, nossos, se não for os filhos, mas netos, bisnetos, conhecer um pouco das
nossas história, porque é importante conhecer as história da família. É uma coisa
que ele vai saber da onde ele veio, qual era, que tipo foi o passado, né. Então é
uma coisa que eu sempre pensava e, agora que a gente tá vendo que {Devagar
vai chegando.} vai chegar lá, que eles vão conhecer, os parente, sobrinho, “Ah,
118 Valores civilizatórios
SUMÁRIO
esse aqui foi meu tio”. Porque muitos tem vergonha de falar de que maneira foi o
criame, mas eu falo, pra mim, isso, o importante é que eu tô aqui, o mais impor-
tante é isso, que eu tô aqui. Essas fase ruim, fase boa que passou, isso faz parte
da nossa vida, é nosso dia a dia, é bom até pra experiência. Cada fase ruim que
a gente passa, que a gente [ ], é uma experiência da vida que vai... {Melhorando,
melhorando.} (João Mota [João Catá]/Nhunguara)
Quilombo do Nhunguara - Eldorado - SP.
©Acervo
NINC/SEE-SP
Referências bibliográficas
Igreja Nossa Senhora do Rosário - Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP.
©Silvane
Silva
SUMÁRIO
Valores civilizatórios
120
SUMÁRIO
SUMÁRIO
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 121
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Catalogação na Fonte: Centro de Referência em Educação Mario Covas
São Paulo (Estado) Secretaria da Educação. Núcleo de Inclusão Educacional.
Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar / Secretaria
da Educação, Núcleo de Inclusão Educacional; organização, Silva, Silvane;
Botão, Renato Ubirajara dos Santos; textos, Santos, Acácio Sidinei
Almeida; Norte, Sergio Augusto Queiroz. – São Paulo : SE, 2017.
124 p : il.
Inclui bibliografia.
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V. Título.
CDU: 376.74(815.6)
S239q
IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO S/A – IMESP
Projeto gráfico e diagramação
Teresa Lucinda Ferreira de Andrade
Vanessa Merizzi
Tratamento de imagem
Leonidio Gomes
Tiago Cheregati
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da Imprensa Oficial do Estado S/A – IMESP
SUMÁRIO
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  • 1. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar
  • 2. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 3 SUMÁRIO São Paulo 2017 Acácio Sidinei Almeida Santos Sérgio Augusto Queiroz Norte Organizadores Renato Ubirajara dos Santos Botão Silvane Silva Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar SUMÁRIO
  • 3. SUMÁRIO ORGANIZAÇÃO Renato Ubirajara dos Santos Botão Silvane Silva REALIZAÇÃO Núcleo de Inclusão Educacional AUTORES Acácio Sidinei Almeida Santos Sérgio Augusto Queiroz Norte ELABORAÇÃO DAS ATIVIDADES Carmen Lucia Campos COORDENAÇÃO, ELABORAÇÃO E REVISÃO DO MATERIAL TRANSCRIÇÃO DAS NARRATIVAS Camila Matheus da Silva EDITORAÇÃO DAS NARRATIVAS Bóris Fatigatti GRUPO DE REFERÊNCIA NA REALIZAÇÃO DAS RODAS DE CONVERSA NAS COMUNIDADES Amador José Marcondes Garcia - DE Caraguatatuba Aparecida de Fátima dos Santos Pereira - DE Registro Cleonice Maria Vieira- DE Votorantim Ilza Looze - DE Apiaí Jefferson Roberto de Castro - DE Apiaí Maria Helena Zanon Salvador - DE Registro Foto da capa: Quilombo Cangume - Itaoca - SP | ©Acervo NINC/SEE-SP. GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO GOVERNADOR Geraldo Alckmin VICE-GOVERNADOR Márcio França SECRETÁRIO DA EDUCAÇÃO José Renato Nalini SECRETÁRIA ADJUNTA Cleide Bauab Eid Bochixio CHEFE DE GABINETE Wilson Levy Braga da Silva Neto COORDENADORA DE GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA Valéria de Souza DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO CURRICULAR E GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA Regina Aparecida Resek Santiago DIRETOR DO CENTRO DE ATENDIMENTO ESPECIALIZADO Cristiano de Almeida Costa NÚCLEO DE INCLUSÃO EDUCACIONAL Carolina Bessa Ferreira de Oliveira Julieth Melo Aquino de Souza Renato Ubirajara dos Santos Botão
  • 4. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 5 Sumário Prefácio.................................................................................................................................................... 7 Apresentação........................................................................................................................................ 11 Contadoras e contadores............................................................................................................ 15 O método....................................................................................................................................... 16 Uso didático das narrativas........................................................................................................ 18 Africanos no Brasil....................................................................................................................... 27 A resistência africana e afro-brasileira à escravidão............................................................... 28 As várias formas de resistência e combate à escravidão........................................................ 30 Capítulo 1 – Quilombos, comunidades de valores....................................................................... 37 O que é, oficialmente, um quilombo?....................................................................................... 38 Capítulo 2 – Memória coletiva.......................................................................................................... 49 Conversando sobre a vida de antigamente.............................................................................. 49 Capítulo 3 – Práticas culturais.......................................................................................................... 59 Línguas reminiscentes................................................................................................................. 59 Conheça algumas línguas africanas que vieram para o Brasil.............................................. 61 Festejos e tradições...................................................................................................................... 63 Alimentação.................................................................................................................................. 71 Conversando sobre cura de doenças e parteiras..................................................................... 74 Ritos de morte.............................................................................................................................. 82 Capítulo 4 – Valores civilizatórios................................................................................................... 87 Família e socialização.................................................................................................................. 87 Terra............................................................................................................................................... 97 Associação................................................................................................................................... 103 Produção: roça, produtos artesanais e turismo étnico.......................................................... 107 Então, até breve.......................................................................................................................... 115 Referências bibliográficas............................................................................................................... 121
  • 5. Quilombo São Pedro - Eldorado - SP. ©Genivaldo Carvalho/IMESP Fernandes Dias SUMÁRIO
  • 6. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 7 SUMÁRIO Prefácio Em março de 2012 ingressei no Núcleo de Inclusão Educacional da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, com a responsabilidade de implementar as Diretrizes Na- cionais para Educação Escolar Quilombola, juntamente com o professor Renato Ubirajara. Para esta difícil tarefa iniciamos os trabalhos com uma reunião com as lideranças das comu- nidades quilombolas de Eldorado na EE Maria Antônia Chules Princesa. Nesse momento a preocupação das lideranças era com a falta de material didático que contasse a história das populações negras no Brasil, em especial as histórias dos quilombos, de uma maneira que valorizasse o direito à posse e permanência na terra, bem como os modos de vida quilom- bola. Foi então que decidimos registrar as histórias das comunidades para que fossem utili- zadas como recurso didático. Ouvimos as/os quilombolas por meio de “rodas de conversa” em 13 comunidades quilombolas do Estado de São Paulo. Deste primeiro contato resultaram mais de 60 horas de gravações em áudio. As conversas foram transcritas e selecionados os temas que mais apareceram: terra e território, valores, identidade, festejos e personagens importantes. Convidamos dois professores doutores especialistas em História da África e História Afro-brasileira para escrever textos introdutórios às narrativas, Acácio Almeida e Sergio Norte e a professora Carmem Lucia Campos, com vasta experiência na publicação de paradidáticos, para elaborar atividades com base nas narrativas. Consideramos um passo importante a publicação desse material não apenas por pos- sibilitar mais subsídios didáticos para as/ os educadoras/es que trabalham com estudantes quilombolas, mas principalmente para que as/os próprios estudantes possam se apropriar da história das/dos suas/seus mais velhas/ os não como folclore ou lenda, mas como His- tória do Brasil com H. Na historiografia brasileira são poucos os trabalhos que falam dos quilombos contemporâneos, como se estes tivessem ficado congelados no passado. As co- munidades quilombolas estão aí presentes, mais vivas e potentes do que nunca. São mais de 5 mil no Brasil e mais 80 no Estado de São Paulo. Essa história precisa ser conhecida e valorizada por todos as/os estudantes e educadores/as.
  • 7. 8 Prefácio SUMÁRIO Muito ainda está por ser feito na implantação das Diretrizes Nacio- nais para Educação Escolar Quilombola: construção de escolas, formação de professores quilombolas, legislação específica para o funcionamento das escolas quilombolas. Para tratar dessas questões foi criado o Conse- lho de Educação Escolar Quilombola do Estado de São Paulo. Como diz o poeta “um passo à frente e não estamos mais no mesmo lugar”. Que ve- nham muitos mais materias didáticos construídos juntamente com as/ os quilombolas. Seu Ditão, griô do Quilombo Ivaporunduva, sempre nos ensina que em se tratando de quilombo não existe o eu, existe o nós. Portan- to, meus mais sinceros agradecimentos a todas as/os quilombolas que fizeram e fazem História e que generosamente compartilharam algumas dessas histórias conosco. A Renato Ubirajara, parceiro de todas as horas, aos especialistas que gentilmente cederam seus conhecimentos: Acácio Almeida, Sergio Norte, Carmen Lucia Campos, Bóris Fatigatti que reali- zou a editoração das narrativas, Camila Matheus que realizou exaustivo trabalho de transcrição. Às educadoras e aos educadores que colabora- ram para a realização desse material nas Diretorias de Ensino das regiões de Apiaí, Caraguatatuba, Registro, Votorantim e no Núcleo de Inclusão Educional (NINC) da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. À Imprensa Oficial pela edição final. E também à professora Maria Eliza- bete da Costa e Sergio Roberto Cardoso que acreditaram no projeto de publicação quando era ainda apenas uma ideia. Silvane Silva
  • 8. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 9 SUMÁRIO Boneca Abaiomi, Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP. ©Fernandes Dias/IMESP
  • 9. Prefácio 10 SUMÁRIO Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP. ©Silvane Silva SUMÁRIO
  • 10. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 11 SUMÁRIO Apresentação “§ 2º A Educação Escolar Quilombola: I – organiza-se precipuamente o ensino ministrado nas instituições educacionais, mas fundamenta-se, informa-se e alimenta-se da memória coletiva, línguas reminiscentes, marcos civilizatórios, práticas culturais, acervos e repertórios orais, festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país;” MINISTÉRIO DAEDUCAÇÃO. Resolução CNE/CEB 8/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 21 de novembro de 2012, Seção 1, p. 26. O livro Narrativas quilombolas: dialogar - conhecer - comunicar representa uma parte da resposta oferecida pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo - SEE/SP, por meio do Núcleo de Inclusão Educacional/NINC à demanda colocada pelas comunida- des quilombolas. O livro tem como objetivo oferecer possibilidades para a utilização de ele- mentos do patrimônio material e imaterial quilombola em sala de aula. A educação tradicional quilombola é amparada em valores da oralidade que orientam e dão sentido à vida em comu- nidade. Por isso, é possível considerar o patrimônio material e imaterial quilombola enquanto portadores de uma dimensão didática, enquanto instrumentos de transmissão de cultura, his- tória e tradições, cujo conhecimento, além de ser imprescindível no diálogo intercultural, pode contribuir para a melhoria da qualidade do sistema educacional, oferecendo novos recursos pedagógicos, pensados a partir de realidades particulares. No dia 29 de setembro de 2003, a Unesco adotou uma convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. O patrimônio cultural imaterial compreende as tradições e as expressões orais, as artes, as práticas sociais e rituais, os conhecimentos e práticas concernentes à natureza e ao universo, os saberes e fazeres ligados ao artesanato tradicional. E o principal meio de transmissão desse patrimônio imaterial é a oralidade.
  • 11. 12 Apresentação SUMÁRIO Por isso, nas sociedades tradicionais, o conto é um dos meios mais utilizados para transmitir o patrimônio cultural de uma geração a outra. A ele cabe o domínio do maravilhoso, do irreal e do imaginário. Eu já vi. Ver não, já ouvi perto assim. Eu tava numa casa – isso também que aconteceu é novo – eu tava numa casa trabalhando, tirando palmito também, e peguei um companheiro pra trabalhar comigo, que é parente nosso, filho de [ ]. Aí, quando era de manhã, a gente deixava as panela lá em cima assim do negócio lá, da tarima – a gente fala tarima, sabe, não é mesa, é tarima – aí começava. Dava umas quatro e meia, cinco hora, começava barulho na panela, igual que ponhava água na panela, igual que tirava, igual que tirava do lugar... Aí eu falei pro companheiro; ele falou assim: “Nossa, mas cê viu mesmo?”. Falei: “Eu vi”. “Então, cê me chama pra mim ver também?” Falei: “só que tem uma coisa, é... você tem coragem pra ver?”. Aí ele pensou um pouquinho e falou: “É, eu tenho sim coragem”. Eu falei: “Porque se cê não tiver coragem, é bom que não mexa”, porque, assim, gente medroso, que nem a mulher dele tem medo, tem medo dessas coisas, tem medo de fantasma, tem medo de... tem medo! Então, quando eu vejo essas coisa, eu nem falo pra gente medroso, eu não tenho medo memo. Aí ele falou: “mas cê chama?”. Eu falei “chamo”. Quando foi quatro e meia, começou o negócio mexer nas panela, mexer nos prato – esses prato que, até agora, não faz muito tempo, a gente ainda tinha esses prato de ferragato, faz um barulho danado, até no chão faz barulho aqueles prato – aí eu chamei ele, né, quatro e meia da manhã, chamei ele. Aí, como era só nós dois – nós dormia quase junto, assim, ó, uns quarenta, cinquenta centímetro um longe do outro, né, era só nós dois, todo dia era só ir trabalhar e voltar, era a nossa rotina –, tá, chamei ele, falei: “Olha...”, cutuquei a costela dele, né, “o negócio tá mexendo lá”. Rapaz, mas arrependi na hora que eu chamei ele, Quando eu vi, a perna dele fazia isso, ó, mas tremia. “Tá com medo?” Ele: “Rapaz, eu pensei que era mentira de você, é verdade mesmo”. Eu falei: “Não esquenta a cabeça, se ele não tocar ni nós, não dá briga” <risos>, “agora, se tocar ni nós o pau vai quebrar”. Óia, mas o coitado tremeu até crarear o dia, até crarear o dia ele tremeu. (Sr. Maurício/André Lopes) O que são todos essas conversas que aparecem neste livro? São narrativas, as narrativas apresen- tadas neste livro são transcrições de conversas realizadas nas comunidades quilombolas. Transcrição é quando alguém escuta outra pessoa falando (pode ser ao vivo ou em uma grava- ção) e transforma o que está sendo dito em um texto verbal escrito, para que todos possam ler depois. A pes- soa que escreve esse texto é chamada de transcritor.
  • 12. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 13 SUMÁRIO Porque algumas palavras das narrativas estão em itálico? Quem são as/ os griôs? Por meio do conto é possível desenvolver a memória auditiva, a memória visual, a imaginação, as funções da lin- guagem, o conhecimento do meio ambiente, a sensibilidade, a lógica e a afetividade, conhecer o patrimônio cultural, a mo- ral, a ética, a estética e as funções sociais, morais e educativas. Por isso, os contos, em sociedades tradicionais, consti- tuem uma literatura oral apropriada à transmissão dos sabe- res das sociedades onde eles são contados e estão inseridos. Eles são, em geral, o reflexo da sociedade, e não de suas/seus contadoras/ es (e autoras/es). Os temas encontrados são extremamente variados, são moralizantes e podem abordar toda sorte de aspectos da vida cotidiana, tais como: a cosmogonia, as estações, a fecundida- de, a esterilidade, a morte, a iniciação, a riqueza, a pobreza e as lutas pela terra. Portanto, contrariamente ao que normalmente se ima- gina, os contos não têm como alvo unicamente as crianças. Adultos, jovens e crianças se encontram para escutar as/os experientes contadoras/ es, verdadeiras/os depositárias/os da palavra. Por isso, a/o contadora/or deve ser uma/um “artista” polivalente – com as qualidades, por vezes, das/dos come- diantes, poetisas/poetas, cantoras/ es e dançarinas/os. O conto, nas sociedades tradicionais, é o lugar de en- contro de todas as artes, característica que o faz extremamente rico. Ele revela valores caros às sociedades tradicionais, como a obediência, a discrição, a sabedoria, a hospitalidade, a jus- tiça, a honestidade, a gratidão, a bondade e a generosidade. Por isso, podemos afirmar que os contos são uma im- portante ferramenta pedagógica para a transmissão de valo- res tradicionais de uma geração a outra, educando de forma contínua os indivíduos e a coletividade. Assim, os temas dos contos, em estreita relação com os valores morais tradicionais, podem auxiliar na melhor com- preensão de tais valores. Você provavelmente vai perceber que muitas das palavras das narrativas estão em itálico. Itálico é essa letra diferente, meio “deitada”. Você sabe o porquê disso? As palavras que estão em itálico foram ditas pelos mais velhos de uma forma diferente daquela que está nos dicio- nários, ou seja, diferente daquilo que se considera a norma-padrão da nossa língua. Ninguém fala exatamente como se escreve. Dificilmente dizemos “Eu estou aqui”, mas sim “Eu tô aqui”. Mas, na hora de por no papel, escrevemos “Eu estou aqui”. O modo de falar das pessoas que vivem no meio rural, prin- cipalmente as mais velhas, também tem características próprias. Durante o processo de organização das narrativas, procuramos levar em conta que se trata de um texto escrito, que precisa respeitar a norma-padrão da língua. Mas também procuramos levar em conta que se trata de narrativas, e, assim, procuramos respeitar as caracte- rísticas do modo como se fala. Por isso, destacamos essas palavras “diferentes” no meio do texto. Assim, você poderá identificá-las e entender melhor as dife- renças entre o modo como se fala e o modo como se escreve. Veja um exem- plo: “’Agora, se tocar ni nós o pau vai quebrar’. Óia, mas o coitado tremeu até crarear o dia, até crarear o dia ele tremeu.” O griô, nas sociedades africanas, é um historiador, um contador de histórias, um cronista. É o guardião da memória coletiva de um povo, de uma comuni- dade, de uma família. Ser griô significa ter nascido em uma fa- mília de griôs, pertencer a uma casta de griôs, mas o desenvolvimento de suas competências e habilidades dependerá dos ensinamentos transmitidos pelo seu mestre. Ele é acompanhado, geralmen- te, da kora, instrumento com 21 cordas. Cosmogonia: “Doutrina mítica, religio- sa ou filosófica de explicação da origem do universo [...]. Explicação da origem do sistema solar”.
  • 13. 14 Apresentação SUMÁRIO Muito embora o livro Narrativas quilombolas não trabalhe propriamente com contos, ele se aproxima de tal universo ao buscar a história de vida e as narrativas de mulheres e homens mais velhas/ os quilombolas. O papel das histórias vivas, recolhidas nas comunidades quilombolas, é estabelecer re- lações entre as representações e dar sentido ao que crianças, adolescentes, adultos e os mais velhas/ os vivem. Ao escolher trabalhar com as memórias das/dos moradoras/es das comunidades qui- lombolas, o desejo da equipe da SEE/SP foi de revelar a função cognitiva que preenche a narrativa, evidenciando aquilo que as memórias revelam sobre as especificidades de cada quilombo visitado: as histórias, a tradição, os conflitos, as transformações, a educação, as relações geracionais... Então, pra vocês, que alguns já conhecem aqui o lugar, né, pra nós a his- tória é longa, eu vou apenas {Abreviar} abreviar, né, porque a história mesmo da comunidade começou há quatrocentos anos atrás, despois aí vem vindo sofrendo mudanças, né, drástica, mas tá mudando, porque a gente costuma falar que não há vitória sem luta, né, então a luta continua e assim a gente vem conseguindo melhoria, essas coisas, falta muito, mas assim, agora, a história que você quer saber é a história do passado, atual? (Dona Diva/Pedro Cubas) Por isso as narrativas registradas nas comunidades quilombolas são histórias particula- res, reveladas por uma ou mais pessoas, mas não são individuais; elas estão muito além dos significados e dos sentidos de um simples discurso descritivo, elas revelam o saber/fazer da comunidade comunitária, construída e reconstruída pelas palavras, os gestos, as danças, as músicas, o silêncio. As histórias trazidas pelas/os contadoras/es são conhecidas da comunidade, mas se- guem ainda sendo ouvidas, justamente porque elas mostram como os fatos passados podem explicar os fatos e tempos presentes, servindo de instancia de compensação social onde a co- munidade projeta de forma simbólica sua própria visão de mundo. Por isso, a narrativa não é uma simples transposição da realidade social quilombola, mas um processo de representação de uma representação coletiva onde as imagens expostas traduzem as aspirações culturais do tipo ideal construído coletivamente. Nessas condições, ao organizarmos as narrativas percebe- mos o quanto elas interpretam a cultura local, sua desestruturação produzida e reproduzida a partir de relações internas e externas. As coisas que a gente faz de bom no mundo, tem que ter diversão! Eu sempre falo isso pra ele, ele não é memo muito bem de recordação, mas eu acho
  • 14. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 15 SUMÁRIO que uma pessoa como ele, pelo que ele passou, ele também tem história dele, história maravilhosa, uma pessoa que, canoeiro como ele foi, ele teve uma vida dura aqui do Vale da Ribeira, transportar carga de canoa, do porto até (Vale) do Batatal, Iporanga, uma pessoa desse tem história, só que não gosta de contar, eu tento falar pra ele, “vamos juntar tudo essas historinha e por num livro...”1 (Dona Jovita/Galvão) Contadoras e contadores Temos nas histórias recolhidas um discurso produzido pelas/os quilombolas, sobre os quilombolas e para os quilombolas. Logo, propriedade coletiva, mas, especialmente, expres- são coletiva que aparece como discurso plural e complexo, em que a coletividade se exprime e se revela. Por isso, cada uma/um das/dos contadoras/es, cada uma/um daquelas/es que reve- lou a sua história, que é também parte da história coletiva, é uma entidade social. As histórias recolhidas ocupam um lugar importante na elaboração da vida da comu- nidade. Seu conhecimento aprofundado constitui uma via privilegiada de acesso a certos mecanismos da construção das relações sociais. A análise dessas diferentes funções permite perceber como as comunidades tradicionais estruturam os elementos de base que presidem as relações humanas, por meio da interação entre o permitido e o defendido e suas múltiplas graduações: recomendado, reprovado, aceito, admitido, tolerado etc. Assim, as histórias reite- ram refinadamente a relação entre o social e o individuo e cumprem uma função reguladora na resolução das tensões sociais. O que percebemos é que as histórias que vocês lerão parecem ter função reguladora na resolução das tensões sociais, através de atitudes intermediadoras. Isso sem nunca deixar de condenar as atitudes negativas que podem colocar em risco a vida da comunidade e a vida em comunidade. Ao preservar a sociedade das tentações destruidoras e das atitudes aventureiras que podem ameaçar a segurança dos membros da comunidade, as histórias confirmam a ideia de organização social. Mas não podemos nos esquecer de outro importante elemento das narrativas coletadas, a função lúdica, que não está separada da função educativa. As narrativas oferecem um material pedagógico suficientemente rico para que seja ga- rantido o seu lugar nos programas escolares quilombolas. Compreender o outro e dialogar com ele é uma maneira de promover a diversidade cultural. 1 Neste trecho da narrativa, Dona Jovita comenta sobre o seu marido, o Sr. Jabor. Ela diz que ele é muito tímido e insiste para que conte suas histórias, que são muitas, mas ele não gosta de falar.
  • 15. 16 Apresentação SUMÁRIO Aqui (Cafundó) também teve (resistências) de brigas, houve morte também, porque o interesse por essas terras aqui é grande. E aí não sei por que, mas o negro sempre tem que não ter nada, o negro sempre serviu pra... O negro serve mais de ato de pesquisa, só serve pra isso, mas o negro nunca tem nada, nunca pode ter nada. Porque antes, no tempo dos nossos antepassados, eles já vieram como escra- vos, então não tinha outro jeito. Então eles colocavam eles no tronco, batiam, eles tinha que sujeitar porque não tinha outro jeito, e agora o negro é mantido como escravo de outra maneira. Hoje a turma leva chicotada e não vê o chicote. Antes o negro já sabia, tomava chicotada, mas via o chicote. Agora continua sendo escravo, mas sem ver o chicote... Muito se fala da história do negro, mas nas escolas ainda está cheio de preconceito da história do negro, porque nunca contam a história real do negro. A turma cria uma história que diz que é do negro, mas é desviado, não é a história verdadeira. E aí, infelizmente, as pessoas de agora, os adolescen- tes de agora estão aprendendo desse tipo de história que a turma está criando. Não conta do sofrimento, como eles sofreram quando chegaram aqui, como foi o exportamento da turma, quando chegaram aqui. Isso aí a turma desvia um pouco, porque, se for na realidade mesmo, quem levantou o Brasil foi o próprio negro. E o negro, hoje, praticamente é descartado, porque o negro, em todos os sentidos, ele é usado! Esses tempos agora, eles sofreram vários preconceitos com os alunos, com os adolescentes que iam pra escola. [...] Quando saiu aquele filme do (Paulo Betti), eles tiravam sarro na escola: “Ah, vocês são aqueles lá do tal quilombo de Cafundó que o Paulo Betti fez esse filme, o tal de quilombo Cafundó, que fica lá nos Cafundó do Judas”. (Sr. Marcos/Cafundó) O método Para os objetivos propostos, a equipe de Educação Escolar Quilombola da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEE-SP), visitou as seguintes comunidades quilombolas paulistas: André Lopes, Caçandoca, Cafundó, Cangume, Galvão, Ivaporunduva, Nhunguara 1 e 2, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu. O material recolhido, obtido por meio de en- trevistas diretas e rodas de conversas, foi organizado e reagrupado de forma a abordar, ora de forma mais direta, ora de forma indireta, os seguintes tópicos: • quilombos, comunidades de valores • memória coletiva; • acervos e repertórios orais; • língua reminiscente e falares; • festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas;
  • 16. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 17 SUMÁRIO • práticas culturais; • tecnologias e formas de produção do trabalho. Os relatos revelam-se maravilhosos instrumentos didáticos, possíveis de serem explora- dos nas diferentes disciplinas que formam a educação básica, em diferentes contextos. Hoje nós tamo no total de quarenta e oito famílias e cento e cinquenta e sete pessoas, isso são os habitantes, né, e... Então, São Pedro tá a uma distância de sessenta quilômetro de Eldorado – acho que isso é um registro, um detalhe mais craro, né – e tá no limite de município de Iporanga e Eldorado [ ] e a escola primeira que teve aqui foi em mil novecentos e oitenta, né, oitenta. Essa escola foi uma história muito compricada pra o povo daqui na época, na qual foi traba- lhado tudo o material trazido na escola no lombo de animal, da balsa até aqui, pra poder os aluno, né, as criança, estudarem aqui, né. E ainda não tinha uma balsa como é hoje, mas era canoa, atravessava na canoa. E hoje, aqui, nesse momento, aqui, são poucas pessoa que trabalhou esses dias, né, ele [ ], mas acho que mais sofreu aqui foi o [ ], ele trabalhou, ele era mais novo, mas também já ajudou. Mas o que sofreu mais na questão de broco, de telha, de... Ele trabalhou, eu trabalhei, mais pessoas, lógico, mas que não tá aqui. Então foi muito complicado, era muito difícil mesmo porque as pessoas tinha que trazer um broco, três broco nas costa de lá da balsa aqui na... aqui. Cada pessoa, animal trazia dois saco de cimento, era cem quilo. Então era uma dificuldade muito grande. O homem que trazia quatro broco aqui, ele se fazia com ares de melhor que o outro, né, porque tinha assim uma vontade de ajudar a fazer. Telha, dessa telhinha pequena, era três telha que trazia, então foi muito difícil. Isso foi em mil novecentos e oitenta, aí depois foi melhorando um pouco e foi, assim, aumentando também a forma, porque aumentou os aluno e aí também foi aumentada a escola, então é... Passou a ser duas escolas, né, mas porque uma tava muito pequena foi mudando pra outra. Isso já foi no outro... no outro administração do governo. Também já tinha estrada aqui, então a partir daí já melhorou bastante. Hoje nós tamo com um pouquinho de dificuldade porque a escola estadual, ela municipalizou, né. Então tivemos uma, várias discussões, o por que municipalizar, né. Talvez não tava nem numa época de municipalização, porque tem a dificuldade de carência em questão de merenda, em questão de transporte, então era muito difícil. Mas é o governo, é um trabalho do governo que impranta para o município. A gente não conseguiu segurar que ela municipalizasse, mas conseguimos aí resgatar que não saíssem todos os alunos daqui pra estudar noutro lugar, igual que era a programação, né. Então a gente conseguiu resgatar os alunos que, mesmo sendo municipalizado, continuassem no Nhunguara. Mudou um pouco, saiu um pouco depois que se tornou [ ] mas aconteceu isso, eu hoje não sei quantos aluno tá estudando aqui, mas na média de uns dezessete, né. Então são vários aluno que tão estudando aqui, então. (Sr. Aurico Dias/São Pedro)
  • 17. Apresentação 18 SUMÁRIO E, no caso, o que eu queria falar também sobre a escola é que a gente sem- pre conversou assim entre liderança, né. A educação diferenciada, cês já devem tá sabendo, né, nós lutamos por essa educação diferenciada. (Dona Diva/Pedro Cubas) Todas as pessoas envolvidas no livro, direta ou indiretamente, tinham como denomina- dor comum o interesse pela educação. As narrativas devem ser enriquecidas pelas experiê­ ncias das/ dos professoras/es, preocupadas/os com a interação entre os valores tradicionais quilom- bolas e a sua integração no sistema moderno de educação, como proposto pelas Diretrizes Curri- culares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. No artigo 7º, inciso XVII desse documento, é expresso como um dos princípios que regem da Educação Escolar Quilombola o “direito dos estudantes, dos profissionais da educação e da comunidade de se apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das formas de produção das comunidades qui- lombolas de modo a contribuir para o seu reconhecimento, valorização e continuidade”2 . Uso didático das narrativas O uso didático de um documento é a operação que consiste em transformá-lo ou explo- rá-lo para que ele sirva como meio ou objeto de ensino-aprendizagem. Esse processo implica geralmente uma analise pré-didática de essência linguística, para identificar aquilo que pode ser ensinado. Explorar didaticamente o patrimônio oral quilombola significa integrá-lo aos programas escolares por meio de atividades autônomas e interdisciplinares. O livro de narra- tivas será acompanhado de um caderno de sugestões de atividades que poderão ser realizadas por professoras/es e alunas/os. A integração de textos como os recolhidos durante o trabalho realizado pela equipe da SEE-SP é uma necessidade, para não dizer uma obrigação, por uma simples razão: os quilom- bos podem nos ajudar a resolver problemas dos modos de vida urbanos, bem como a memória dessas comunidades pode ajudar na resolução de problemas contemporâneos. O saber/fazer quilombola é essencialmente de origem oral, o que significa dizer que, conhecendo verdadei- ramente a ideologia veiculada pelos depoimentos, poderemos: • revelar a existência de um quadro lógico de utilidade pedagógica que deve servir de referência ao uso didático do patrimônio oral quilombola; • mostrar que as histórias narradas pelos quilombolas podem contribuir de forma signi- ficativa para o desenvolvimento de competências. 2 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução CNE/CEB nº 8, de 20 de novembro de 2012. Disponível em: http:// portal.mec.gov.br/index.php?option=com_contentview=articleid=17417Itemid=866. Acesso em: 31 mar. 2014.
  • 18. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 19 SUMÁRIO Os objetivos que formam os pilares dessa iniciativa aspiram conservar, definir e ela- borar as modalidades pedagógicas permitindo a plena exploração de um material original, sem negligenciar a exploração textual, gramatical e sociocultural de base. Por isso, é importante a preparação das/dos jovens das comunidades quilombolas para a coleta, transcrição e interpretação dos textos. Com isso, pretende-se que cada comunidade tenha uma casa da memória, que sirva para conversar e para transmitir às gerações mais novas os saberes tradicionais. As tradições orais são, antes de tudo, um patrimônio que pre- cisamos conservar, conhecer e estudar. Graças a Deus, os nossos alunos hoje já sabem, é, assim, mais ou menos al- guma coisa, porque a gente passa, né... mas não que a escola... a tradição mesmo, o que que é comunidade tradicional? Tradicional é passar de um para outro. Então, nossa tradição é essa, continuar passando, senão nossos aluno, nossas crianças es- quecem, né. E tivemos da minha época pra cá, até as criança mesmo recente, que tão com dezesseis, dezessete, quinze ano, eles sofreram muita discriminação na escola, porque, na comunidade, eles andavam era de pé no chão ou chinelinho de dedo e ou trancinha ou lenço na cabeça. Aí eles iam pra escola assim; quando che- gava lá, era reparado, né. Então teve, eles vinham chorando pra casa que xingavam eles na escola. Enfim, até hoje a gente ainda tem muita reclamação das criança na escola. Tipo assim, né, é triste falar, mas tem, tá. Então tudo isso a gente quer que os professores aprendam, entendeu? Aprendam. (Dona Diva/Pedro Cubas) Este livro é fruto dos esforços de muitas pessoas, nasceu dos sonhos de muitas/os qui- lombolas, é patrimônio transmitido oralmente pela força da palavra de cada um das/dos de- poentes ao ouvido de cada uma/um de nós. Agora, você poderá ler algumas histórias contadas por homens e mulheres quilombolas. Escola Estadual Profª Anezia Amorim Martins que recebe alunos do quilombo Cangume - Itaoca - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 19. 20 Apresentação SUMÁRIO Algumas intenções educativas que podem ser desenvolvidas a partir das narrativas: • Despertar para a noção de memória. • Perceber que a memória é constitutiva da identidade. • Perceber a importância da palavra, do depoimento e da memória. • Compreender a memória como um direito e um dever. • Como todas as memórias individuais das/dos quilombolas podem ser estruturadas em uma memória coletiva quilombola? • Até que ponto a memória coletiva quilombola influencia a memória individual? Represento a Associação do Quilombo do bairro André Lopes, eu tô aqui pra gente ouvir aí os senhores e as senhoras que têm mais experiência de vida, e a ideia é contribuir. Eu não sei se o nome verdadeiro é esse, nós estamos (procurando) o nome ainda, se é a verdadeira educação diferenciada ou talvez outro nome. Mas a ideia é fazer com que a nossa juventude possam entender a nossa realidade e que nós possamos ter, talvez daqui um tempo, tenha um mundo melhor aí, pra nossa geração que tá vindo aí. Obrigado. (Seu João/ André Lopes) Sou nascido aqui, tô com cinquenta e cinco anos; meu pai faleceu com oitenta e dois anos, também nascido aqui; meu avô é nascido aqui. Então, se for pra contar a história da vida pessoal da pessoa, vai um dia inteiro pra contar. Mas como aqui a gente tá vendo que o foco da coisa é uma educação diferenciada, então, principalmente, o que eu tenho que passar é o seguinte: Que meu pai, segundo tudo isso que já falaram aí, [ ], a Marisa, então, isso aí é a nossa cultura, que eles aprenderam um passando para outro; desde o meu bisavô passando um para outro. E, principalmente, o que eu tenho que passar hoje, o que eu aprendi, é que ele me ensinava a respeitar (aquilo que era dos outros), trabalhar com sinceridade; aquilo que era meu, zelar. Meu pai e minha mãe sempre falavam pra mim “Ó, é o seguinte, tudo aquilo que é seu você guarda direitinho, você zela, você respeita aquilo ali dos outros”. Nós tinha a
  • 20. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 21 SUMÁRIO nossa roça, passava na beirada da roça de outro, vizinho, nós não tirava uma es- piga de milho, não tirava um pepino, não tirava um arroz, não tirava uma abó- bora. Então a minha mãe, ela passava isso, falava: “Meu filho, isso é educação, é doar aquilo que eu aprendi pra vocês, porque a pessoa que é bem educado, ele entra e sai em qualquer lugar, ele sabe respeitar”. Então ainda dizia assim, a gente vê que de acordo das necessidades das coisas é que a gente vai evo- luindo e a educação também vai evoluindo. Então, o que acontece, ela sempre falava, hoje em dia, se você saber falar e for bem educado, você vai em Roma – tem esse ditado, né... Então ela passava isso pra nós. Então a gente aprendeu também, como se diz, a nossa matemática, a nossa ciência, a nossa geografia, a nossa história. Não tava num livro escrito, mas era assim uma vida vivida que eles passavam pra nós. Eles falavam pra nós prestar atenção na natureza, nos pássaro. Não, é verdade, de manhã, o [ ] acordava a gente, à tarde os (uru). Então isso aí que eles ensinavam pra nós, esse tipo de coisa – e nós entendia, tudo nós entendia; quando um falava com o outro, todo mundo entendia o que um tava falando. (Sr. Assis Pereira do Santos/André Lopes) Então, meu nome é João Mota, mas sou conhecido por João (Catá). Se chegar e falar João Mota, ninguém sabe, mas se falar João (Catá) todo mundo {João o quê?} João (Catá), apelido, o nome é João Mota, mas sou conhecido por João (Catá). Eu, como pra mim é motivo de muita satisfação, porque foi uma coisa que eu sempre falei isso dentro da comunidade, desse trabaio que cês tão falando. Só que eu falei uma coisa que ninguém acha que “Ah, isso aí [ ]”, a escola do, a Chules, aquela escola ali nasceu através de uma conversa dessa. Eu... acho que alguém conheceu o professor Antonio... eu e o professor Antonio ali do, que já morreu {De acidente, né?}, é, e a professora Neuza, Neu- zinha, aquela pequeninha, então, a gente, nós fizemos uma conversa. [ ] Aí nós ficamos falando um dia, vamos chamar a Secretaria. Aí chamemos a Secretaria da Educação de Registro, eu não lembro o ano certo, a data certa, isso eu não lembro. [...] Aí nós falamos: “Não, o que nós queria é que fizesse uma esco- la, não pro Nhunguara, não pra suprir o Nhunguara, pra tudo as comunidade próxima, pra vim estudar aqui, pra vim estudar aqui”. Aí ficou despois pra, aí passou, aí saiu a escola, só que ali na escola não fala dessa história que eu tô falando. Eu tô falando que foi nós que {Idealizamos}, é, a ideia, só que ali na escola tem muitos que não conhece {Essa história, né}, porque ali tá Maria Chules e, né, porque saiu lá no outro bairro. Isso aí não tem pobrema, mas pra nós isso aí. E eu também sempre falei: “Não, mas a gente tinha de ter, os fio da gente conheçam a história da gente”. A minha, começar por mim, eu nasci em mil novecentos e cinquenta e quatro, doze do um, foi o ano que o [ ] deu aula aqui, não foi? Que foi a professora era Zirda, dona Zirda do (Castelhano). Despois, quando veio, eu já tava com doze anos de idade. Aquela vez dava pra estudar, porque não tinha isso de data de estudo, mas eu era o mais véio
  • 21. 22 Apresentação SUMÁRIO da famia, meu pai, naquele tempo, ninguém se pensava em estudo. Há cin- quenta anos atrás, os quilombolas não se pensava em estudo, se pensava deis gerar famia pra levar pra roça, isso que era a história deis. Eles não... quando falava em estudo, “Eu vivi sem estudo, meu fio também vai viver”. Então eles pensavam dessa maneira, não é o pensamento de hoje, eles pensavam dessa maneira, e logo ir pra roça. Malemá (eu faço) meu nome, eu sou analfabeto, porque eu não tive essa oportunidade. Só que isso eu não penso pro meu fio, eu quero que o meu fio teja oportunidade. Sempre eu brigo, lá onde o fio de [ ] tá estudando, eu queria que o meu também tivesse a mesma oportunidade, né, porque não são (direitos) humanos. {Os direitos são iguais, né.} Então, eles também têm esse direito. {Sim.} Mas, infelizmente, isso não acontece. {Não aconteceu ainda.} Então, e hoje meus fio tem oportunidade de estudar, só que o que acontece é que às vezes não dá muito valor. O meu fio mais véio foi até o primeiro, parou, o segundo tem o básico, tem um de onze que tá na... quinta. E eu, pra mim, deu uma alegria, só que eu não penso do tipo que meu pai pen- sou, meu avô pensou, “Não, vamos levar pra roça”, porque hoje eu tô vendo a farta que ele faz, hoje eu tô vendo a farta que faz. Já tive muita oportunidade e não pude porque não tinha os estudo. Se eu tivesse, né, o meu (ponto) de vida seria outro. Não tô dizendo que tô triste, eu entendo os dois lados, porque eu entendo que meu pai também, eu preciso do estudo, mas meu pai também precisava me levar pra roça. {Da mão de obra.} É, pra mão de obra, porque a ideia de cinquenta anos atrás era isso. {Era, o pensamento era esse}. A ideia era isso, não era... a realidade não era a realidade de hoje. Então a gente tem que entender isso que {Cada época tem a sua necessidade, né.} É, então tinha essa necessidade. Então foi meu caso, né, que não deu pra estudar (...) (João Mota [João Catá]/Nhunguara) É, eu me chamo Laurentino Morato de Almeida, nasci no bairro do Nhun- guara, tô com oitenta e, quase oitenta e oito anos. (Aqui, dentro daqui) conheci o começo da escola do Nhunguara, (quando foi formado), desde o começo, até agora. Eu não tive escola, eu aprendi assim sem escola, né, um dava alguma coisa, outro dava outro, assim eu fui crescendo. E, hoje, pela misericórdia de Deus, não é igual como quem tem estudo, eu não sei perguntar, que às vezes faz pergunta, quem lê, quem tá na escola, faz as pergunta, sabe. Então eu não sei responder pergunta nenhuma, porque eu não tive essa oportunidade [...] Então, quer dizer, pra mim, a maior alegria de saber que o bairro tá crescendo, né, porque quatro, três, nós era três. E naquele tempo eu fazia o título pra pessoa só assinar e ir votar. E, hoje, quem não sabe, não tem voto, né. {É tem que saber assinar.} Então, aquele tempo foi um tempo dificultoso. Não tinha estrada, só tinha que ir por caminho, nós tinha que ir pela ribeira [ ] Hoje, pela misericórdia de Deus, o carro tá chegando aqui. Foi em (mil novecentos e cin- quenta) que o finado Jonas [ ] parente nosso [ ] quando eu falei que a estrada
  • 22. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 23 SUMÁRIO vinha até aqui, ele foi a maior briga [ ] “Como que vai ser?” Mas aquele tempo as coisa era difícil mesmo, tudo era difícil. “Como que vai ser, vai ter carro [ ] na porta?” Se ele fosse vivo, né... Agora, a maior razão que eu tô alegre, porque foi numa reunião, né, com a essa nossa comunidade [ ] aquela reunião que o [ ] fez na sua casa... {Ah, sim, sim.} Então, ele fez uma reunião, o povo pediu ônibus, pediu casa, ele falou assim, óia: “Ônibus eu dou, não dou o dinheiro pra viajar, a casa eu não posso fazer porque é muito, não tem possibilidade”. Aí eu fui pro André Lopes, encontrei com o [ ], que tudo mundo conhece ele {(Zé Paulo)}, (Zé Paulo), aí ele saiu da igreja lá: “Seu (Lauro), o que sucedeu na reunião?”. Digo: “A reunião saiu neutro”. “Por quê?”. “Porque pediram as coisa, ele não vai dar”. Né, ficou nada. Aí ele falou pra mim bem assim: “Olha, se você não formarem uma comunidade, daqui a pouco tempo vocês não vão ter lugar pra prantar um pé de abacate. O Ibama, a Florestal, o Meio Ambiente não vai deixar.” [ ] Aí cheguei aqui, convidei meu sobrinho. Pensei que era fácil de se começar, né, eu pensei assim: “Vou formar uma associação porque como que nós vamos ficar num mato desse, sem poder prantar nada?”. Aí formemos. Formemos e, hoje, como diz, esse povo que tá vindo aqui através dessa his- tória abriu a porta pra outros [ ] através dessa história da associação, que foi uma porta aberta memo. {Ficou conhecida, né.} {O senhor lembra que ano foi isso?} Setenta e... noventa e sete. Então, duas rocinhas que eu tinha ali – nem era minha, uma era dele e outra era da minha fia –, o policial veio aqui, veio o sargento e o policial, (aí eu tinha aquela carta), então ele falou assim, eu dei ela pro sargento ler, né, ele disse: “Muito bem, mas não faça igual a muitos, [ ] con- tinue que o Estado vai ajudar vocês”. Então o que tá sucedendo é isso aí, né. Então é motivo pra gente ficar alegre, contente, porque vocês tão aqui, através da Associação [ ] Eu fui até no palácio do Covas, o tempo que ele era governo, fui lá. Ele já tava falando bem ruim quando eu fui lá, ele já não (tava falando), já tava perto de morrer memo. Então isso é a primeira história, do tempo que nós tamo aqui, a dificuldade que não é, é um imenso dificuldade pra (eu contar, se eu for contar lá do começo) {Pode contar.}, porque eu tô aqui tudo esses tempo. {Eles disse que tão sem pressa.} Eu conhecia Registro com uma casa e uma Pernambucanas, a história dessa casa era um barzinho, nem aqui no nosso bairro não tem um barzinho (igual lá). Nós ia daqui trabaiar lá em Miracatu, aí nós pegava o ônibus aqui em Eldorado, ia lá pro [ ] de [ ] vortava pra Registro, levava uma hora pra atravessar lá a ribeira e lá nós [ ] Então quando nós vinha de lá pra cá, que nós embarcava primeiro, nós chegava em Registro, chegava naquele barzinho, comprava, (gente que) dava dinheiro pra gente comprar, comprava tudo que tinha ali, o que vinha outros, o que vinha pra trás tinha que vim pra [ ] comprar arguma coisa e hoje será [ ] Da onde nasceu tanta gente, tanto estudo, tanta coisa, né. Eu vou lá, às vez que eu vou lá (no médico), às vez eu converso com alguma pessoa, eu conheci com duas casa, quantas casa tem hoje? Então uma história que eu vi muita coisa e as dificurdade, hoje tô vendo.
  • 23. 24 Apresentação SUMÁRIO Eldorado eu conheci com (três carrinho); hoje, quanto tem, né? Então eu tenho muita história pra contar e o (estudo) foi a primeira coisa que sucedeu e tá sucedendo. Então nós, pra contar tudo a nossa história, bem confirmada, vai tempo, né. Não é historinha de pouquinho momento, de dizer sucedeu assim assim assim, né, porque aqui {Só uma perguntinha, o senhor falou que quando ia pra Registro, trabalhava lá em Miracatu, o senhor pegava, atravessava [ ] em Eldorado, e daqui a Eldorado, qual era o meio de...?} Ah, às vez nós ia a pé, tinha o motor, o barco, né, ou então no barco, né, mas às vez nós ia a pé daqui lá [ ] Era a dificurdade, em quarenta e oito, eu fiz não sei quantas viagem daqui. Eu trabaiava com, hoje ele morreu, [ ] o tempo que tinha só três carro lá. Então eu ia daqui a pé, saía daqui cedinho. Quando era ali pras sete, oito horas, tava chegando lá, caminho, caminho que às vez o caminho era aqui eu fazia a volta por lá [ ] Era assim, eu fiz tudo essas coisa. Então hoje eu tô vendo a dificurda- de que tinha e o que tem hoje, né. Hoje tá aqui, a pessoa, essa pedra tá aqui, cinquenta e quatro ano que eu tô aqui, agora que essa pedra chegou aqui [ ] cinquenta e quatro ano {Pra colocarem esse cascalho aí} É, então, mas através de quê? Do registro [ ] {Quem eram os seus pais?} Meu pai? {Seu pai e sua mãe?} Minha mãe se chamava Ernestina Morato de Almeida {Ernestina?} é {Que que o senhor lembra dela?} Ah... eu vou falar a verdade, que ela foi parteira de setenta criança {Eu sou um desses setenta!} {Ai que legal!} ela foi parteira de setenta criança e criou nós, meu pai morreu eu tinha seis ano. {Seis? Ah, então ela que criou?} É, ela que criou. {Como era o nome do pai do senhor?} Pedro Dias Batista. {Então fale de sua mãe.} (O pai da minha mãe?) {Fale mais como que era, que que ela fazia.} Ela trabaiava na roça {Trabalhava na roça.}; como diz, quando precisava, chamavam ela, ela ia [ ] trabaiava na roça. {Quan- tos irmãos o senhor tem?} Nós era em doze. {Nossa!} Eu me criei pro mundo {Não foi ela que criou?} Não foi minha mãe que me criou, aquele tempo era muito difícil (todas as coisa), então precisava [ ] eu já tinha vinte e quatro ano. Mas também ela não morreu no meu colo, porque dali pra lá [ ] eu larguei ela lá, (viajei). Quando cheguei aqui, contaram que ela tinha morrido, quase que morre no meu colo. Ela foi uma mulher muito querida de tudo mundo aqui no bairro, muito memo. Tudo mundo estimava ela, que era uma muié que servia à comunidade inteira, né, precisava ela tava ali (não morreu) [ ] na mão dela, foi uma mulher que trabalhou muito. {Ela era parteira?} É, era parteira. {E ela sabia também fazer remédio de ervas, essas coisas, pra ajudar as crianças que tavam doente?} Sabia... é, isso ela sabia, tem gente que sabe até hoje. {Sabe até hoje, o senhor sabe também?} É, conforme o tipo, a gente ainda sabe qual é a erva que precisa, qual é, qual não é, né. Então a gente não esqueceu de muita coisa, né. {Até porque vocês ficavam aqui bem longe de médico, de tudo, né?} É, ô! Antigamente, médico, não falava em médico, falava em cirurgião, né {Curan- dor,}, curandeiro {curandeiro.}; médico é de pouco tempo pra cá. (Laurentino/ Nhunguara)
  • 24. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 25 SUMÁRIO Foto do sítio arqueológico do Cais do Valongo - Rio de Janeiro - RJ (Nesta e na próxima página). Reportagem sobre o Cais do Valongo: http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2017-07/rio-de-janeiro-cais-do-valongo-e-reconhecido-patrimonio-cultural-da, Acesso em 26 set 2017. © Renato Ubirajara | ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 25. Apresentação 26 SUMÁRIO Fotos do sítio arqueológico do Cais do Valongo - Rio de Janeiro - RJ. ©Renato Ubirajara
  • 26. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 27 SUMÁRIO Africanos no Brasil É necessário termos entendimento de que, antes da vinda forçada de africanas/ os es- cravizadas/ os para o Brasil, estas pessoas já eram usados em Portugal e nas ilhas atlânticas na produção do açúcar. Quando do inicio do tráfico negreiro para o Brasil, Portugal já dis- punha de experiência e tecnologia para tal tarefa. Há uma escassez de documentação sobre as formas de produção de escravos antes do século XVII, principalmente quando tratamos do interior do território africano. Contudo, temos indicações precisas de que, desde o início, as guerras eram o instrumento básico pelo qual se produziam escravos para serem vendidos no litoral. Há estimativas que permitem afirmar que, ao longo de toda a existência de tráfico negreiro pelo Atlântico, três de cada quatro africanas/os vendidas/os para as Américas re- sultavam de guerras causadas pelos conflitos no interior das estruturas sociais e econômicas das várias regiões da África Ocidental. A produção e a venda de africanas/os escravizadas/os tiveram um papel fundamen- tal nas sociedades africanas. Muitos das/dos cativas/os destinavam-se à utilização pelas/os próprias/ os africanas/os, com o que, dependendo da região, se instaurava ou se acentuava a existência de relações escravistas em solo africano. Esse movimento ligava o tráfico atlântico ao tráfico interno africano, o que levou e leva várias/os pesquisadoras/es a concluírem que, sem a existência do primeiro (atlântico), não se entende a existência do segundo (interno). É importante perceber que o escravismo existente na África antes da chegada dos europeus era radicalmente distinto do escravismo criado pela colonização do “Novo Mundo”. Na África, as pessoas quando eram escravizadas paulatinamente incorporadas ao grupo étnico que os tinha escravizado, perdendo, dessa forma, a condição de cativas, e podiam ocupar cargos de mando, tais como os de ministra/ o ou de general. Cabe ressaltar que o padrão de consumo imposto as/os africanas/os pelos europeus era particularmente importante no fortalecimento da produção de escravos, já que a venda des- tes permitia as/aos africanas/os o acesso a manufaturados europeus e americanos e, especial- mente, o acesso a pólvora e armas de fogo, além de cavalos – meios de guerra por excelência que, por sua vez, fabricavam mais escravos. O tráfico aumentou o número de guerras, os atos de violência, fortaleceu os chefes guerreiros e os estados bélicos que viviam em função da produção de escravos. Os grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento para fortalecer seu poder. Com isso, aumentavam sua capacidade de produzir escravos e, consequentemente, de controlar os bens envolvidos no comércio escravista. A crescente demanda americana por escravos fortaleceu vários Estados africanos. Não foi por acaso que, nos séculos XVII e XVIII, aconteceu o apogeu dos grandes Estados no inte- rior africano: Daomé, Oyo, Ardra, Ashante, entre outros. Na segunda metade do século XVII, o atendimento à demanda de escravos esteve intimamente relacionado com os primeiros
  • 27. Apresentação 28 SUMÁRIO ensaios da Jihad (guerra santa) islâmica, levada a cabo por estados interioranos islamizados contra os pagãos. Os derrotados, islâmicos ou não, eram escravizados e empregados nas plantações, no exército e mesmo na administração, sendo que boa parte deles era vendida a mercadores que os colocavam no circuito do Atlântico. A resistência africana e afro-brasileira à escravidão A escravidão de africanas/os nas Américas roubou cerca de 15 milhões de homens, mu- lheres e crianças de suas terras, sendo que no mínimo 6 milhões vieram para o Brasil. Processo que marcou a formação do mundo moderno, a criação de uma economia-mundo e, talvez o mais importante, proporcionou o surgimento de uma consciência pan-africana originária das experi- ências negras na diáspora em terras americanas. Trabalharam em engenhos, fazendas, cidades, minas, fábricas, cozinhas, salões, estavam presentes na totalidade da vida social brasileira e dei- xaram marca própria e original em todos os aspectos da cultura material e espiritual de nosso país: culinária, arquitetura, música, artes, dança, religião, sexualidade e na ciência em geral. Mas onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, da tortura, da morte, escravizadas/os negociavam espaços de autonomia com os senhores: faziam corpo mole no trabalho, quebravam ferramentas, agrediam ou matavam senhores e feitores, incendiavam plantações, enfim, rebelavam-se individual e coletivamen- te. Uma das formas mais estudadas pela historiografia é a fuga e formação de grupos de escravizadas/ os fugidas/os, os quilombos. Porém, a fuga nem sempre levava à formação desses grupos, ela (individual ou grupal) poderia diluir-se no anonimato da massa escrava e das/dos negras/os livres nas cidades. A formação de grupos de escravizadas/os fugidas/ os foi comum em toda a América: palenques e cumbes na América hispânica, maroons na América inglesa, grand marronage na Amé- rica francesa (diferente de petit marronage – fuga individual). No Brasil, esses grupos foram chamados de quilombos e mocambos, sendo suas/seus moradoras/ es chamadas/ os de quilom- bolas, calhambolas ou mocambeiros. Quilombo é uma palavra de origem banto3 (quimbundo) que, no Brasil, assume o signi- ficado de resistência das/ dos africanas/ os e de suas/ seus descendentes escravizadas. Sua exis- tência espalhou-se por todo território brasileiro, do extremo sul ao extremo norte. Em carta enviada em 1740 ao Conselho Ultramarino (responsável pela administração das colônias por- 3 Atualmente, não há um consenso sobre a utilização da grafia africana “bantu” e a grafia aportuguesada “ban- to”. No entanto, neste livro, usaremos a forma aportuguesada “banto”, pois é aquela registrada nos dicionários brasileiros. (Nota do editor)
  • 28. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 29 SUMÁRIO tuguesas), o rei Dom João V caracterizava quilombo como sendo “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, ainda que não tenham ranchos, nem pilões”. É então que toda documentação oficial referente a tais comunidades adota o termo quilombo, sendo que antes estes eram conhecidos como mocambos (do quicongo mukambu, que significa cabana). Hoje, o termo está consagrado e é usado quando tratamos das comunidades negras descendentes das/dos escravizadas/os. Muitas/os pesquisadoras/es acreditam que os quilombos foram uma versão brasileira das comunidades homônimas que existiram em Angola nos séculos XVII e XVIII. Porém, não havia qualquer semelhança entre os quilombos daqui e os de Angola; foram fenômenos his- tóricos totalmente distintos. As comunidades quilombolas no Brasil eram, na verdade, uma negação do quilombo angolano. Isso porque os quilombos foram criados em Angola pelos im- bangalas (chamados pelos portugueses de jagas), guerreiros nômades que usavam o quilombo como acampamento militar e como local onde viviam os grupos que eram derrotados e escra- vizados temporariamente, pois muitos eram incorporados ao exército imbangala. Fachada da Casa do Sr. Vandir - Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. ©Silvane Silva
  • 29. Apresentação 30 SUMÁRIO Na metade do século XVII, a rainha angolana Ginga, por meio de acordos com o reino de Portugal, decide cessar a resistência ao colonialismo. Como era aliada aos imbamgalas, faz dos quilombos enormes empórios de escravos. Deste modo, os quilombos angolanos contri- buíram para o tráfico negreiro, enquanto que os quilombos brasileiros foram essencialmente uma forma de luta e resistência ao escravismo colonial. Assim, o termo “quilombo” não tra- zia boas lembranças aos escravizados, pois muitos que foram vendidos pelo tráfico colonial haviam permanecido nesses empórios. Para o historiador Clóvis Moura, foram os senhores de escravos e não as/os escravizadas/os que denominaram de quilombos os locais de escravi- zadas/ os fugidas/os, pois, de sua perspectiva, os mesmos eram depósitos de negros a serem reescravizados. Lembremos que os palmarinos chamavam o seu território de Angola Janga, ou seja, pequena Angola. Desde o final do século XVII, cronistas coloniais destacavam a resistência quilombola, mas principalmente para enaltecer as autoridades coloniais que a reprimiam. Os quilombos e, principalmente, o grande quilombo de Palmares, foram vistos como uma forma de resistência à “aculturação europeia”. Alguns irão afirmar que Palmares seria um verdadeiro Estado afri- cano no Brasil, uma África do outro lado do Atlântico. Essa visão “restauracionista” entende o quilombo enquanto uma comunidade isolada e isolacionista, uma verdadeira alternativa à sociedade escravocrata que lhe circundava. Na verdade, seria mais frutífero ver como as/os quilombolas continuavam, com rit- mo e meios diferentes, a formação de uma sociedade afro-brasileira que já havia começado nas senzalas. As várias formas de resistência e combate à escravidão Para além da necessária e conflituosa integração das/ dos africanas/os e de seus descen- dentes na sociedade escravocrata, tivemos várias formas de resistência à escravidão, seja ne- gando-a totalmente pela formação de quilombos e pela fuga, seja negociando melhores con- dições de vida e trabalho. O recurso mais radical de recusa à escravidão era a fuga, milhares fugiram durante todo o período da escravidão, para os sertões, para as redondezas das cida- des, embrenhando-se nos matos, nos mangues. Resistindo e construindo novas sociabilidades, fugiam juntas/ os ou sozinhas/os. Os quilombos podiam contar com dezenas, centenas ou até milhares de indivíduos, não eram formados apenas por escravizadas/os fugidas/os (negros e índios), mas também por desertores, foragidos da justiça, mestiços e até mesmo brancos. O quilombo mais estudado e conhecido foi o quilombo de Palmares, que começou a ser formado nos primeiros anos do século XVII e só foi completamente destruído em 1694. O que sabemos do seu cotidiano e de sua organização nos remete aos povos bantos
  • 30. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 31 SUMÁRIO da região de Angola, o que desfaz o mito da passividade dos povos bantos em relação a nagôs, hauçás, jejes e outros. É importante lembrar que foi exatamente no século XVII que tivemos as guerras de Angola (resistência das várias etnias de Angola aos colonizadores portugueses), cujos prisioneiros eram enviados para o Brasil, principalmente para Pernam- buco. As técnicas militares dos quilombolas de Palmares muito lembram as dos imbangalas de Angola. Usavam de técnicas de guerrilha contra as expedições que tentavam acabar com o quilombo e realizavam ataques às fazendas e aos viajantes. Defendiam suas cidadelas por meio de paliçadas e fossos cheios de estrepes. Palmares era composto por um conjunto de aldeias subordinadas a uma delas, onde estava o chefe principal. Sua estrutura política semelhante às africanas estruturava-se em um chefe para cada aldeia. Esses chefes faziam parte de um conselho que governava a todos, uma confederação, o que também era comum na África centro-ocidental. Ganga Zumba foi um dos líderes de Palmares e, mesmo tendo derrotado várias expe- dições inimigas, aceitou, em 1678, firmar um acordo de paz com o governador de Pernam- buco. As/ Os quilombolas teriam terra para viver, poderiam comerciar com a vizinhança os nascidos no quilombo seriam reconhecidos como pessoas livres e súditos do rei de Portu- gal. Esse acordo não foi aceito por todos, e os opositores, liderados por Zumbi, reiniciam a resistência. Logo em seguida, todas/os as/os quilombolas que haviam sido declarados livres foram reescravizadas/ os. Finalmente o quilombo é destruído por uma expedição chefiada por Domingos Jorge Velho. Palmares e Zumbi tornaram-se símbolos da resistên- cia negra à escravidão. Tínhamos, além de Palmares, milhares de outros quilombos espalhados por todo o Bra- sil, que podiam ser dos mais variados tipos. O historiador Clóvis Moura, citando outro his- toriador, Décio Freitas, afirma que, no decorrer da história do Brasil, tivemos sete tipos de quilombos, classificados de acordo com suas formas de subsistência (MOURA,1978): 1 – Agrícolas (praticavam agricultura de subsistência, e eram majoritários) 2 – Extrativistas (coletavam e vendiam as chamadas “drogas do sertão”, como casta- nha-do-pará, guaraná e cacau, na região amazonense) 3 – Mercantis (comerciavam produtos que adquiriam dos povos indígenas na região amazonense) 4 – Mineradores (extração de ouro, diamantes e outras pedras, principalmente nas regiões de Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso) 5 – Pastoris (criação e manejo de gado nos campos do Rio Grande do Sul)
  • 31. Apresentação 32 SUMÁRIO 6 – De serviços (quilombolas artesãos, marceneiros, toneleiros, barbeiros, alfaiates e carregadores que se misturavam às populações de negros livres e prestavam seus serviços nos centros urbanos) 7 – Predatórios (viviam de saques e desapropriações realizadas nas estradas e em fazendas de escravocratas). Clóvis Moura ainda nos fala de quilombos mistos, onde mais de uma forma de subsis- tência era praticada, como o quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais, em meados do século XVIII. Os mais isolados viviam do cultivo da terra, da caça, da pesca e produziam seus tecidos, sua cerâmica, seus instrumentos de trabalho e suas armas. Outros se estruturavam próximos a aglomerações urbanas ou mesmo cidades e, frequentemente, comerciavam seus produtos com a sociedade circundante. Sempre perseguidos por expedições militares, resistiram no decorrer de séculos; são exatamente os relatórios da repressão que permitem aos historiadores recons- truir a sua história e seu cotidiano. Mas nem sempre a fuga era pretexto para se formar um quilombo ou juntar-se a um. Muitas vezes, fugiam para que, quando voltassem, pudessem negociar melhores condições de vida e de trabalho com os seus senhores. Essas negociações, pouco a pouco, se tornam parte do sistema escravista, que muda através dos séculos. Dessa forma, mesmo não tendo nenhum direito legal, as/os escravizadas/os foram estabelecendo limites ao poder sem freios dos senhores. Tivemos ainda centenas de rebeliões, quase sempre sufocadas antes de aconte- cerem de fato, nas quais as/os escravizadas/os planejavam matar senhores e feitores e ocupar o seu lugar, assumindo o poder. A mais importante delas foi a Revolta dos Malês, em 1835, em São Salvador da Bahia, quando escravizadas/os muçulmanas/os tentaram controlar a cidade. Os rebeldes eram centenas; setenta foram mortos na luta, quinhentos foram punidos com deportações, açoites e prisões e quatro deles, condenados à morte. Em São Paulo, mesmo lembrando que a população escravizada só aumentaria durante o ciclo do café, tivemos resistência por meio de fugas e formação de quilombos desde o final do século XVI. Em 1723, já havia relatos de escravizadas/os negros e índios que, resistin- do ao trabalho forçado, destruíam reiteradamente as forcas, como escreveu Afonso de Tau- nay: “negros da terra e de Guiné repetidamente destruíram aquele instrumento de morte” (MOURA, 1988). Antes ainda, em 1635, andavam a matar gado pelos campos e, armados com seus arcos e outras armas, assustavam os escravocratas. No decorrer de todo o século XVIII, o negro fugido passa a ser uma constante na sociedade paulista. Mogi-Guaçu, Atibaia, Santos, Itu, Taboão, Piracicaba, entre outras cidades, tiveram fugas de cativos e formação de quilombos. Mesmo na periferia da capital ocorreu a repressão a quilombos, localizados na Penha, em Cotia, em Conceição dos Guarulhos, em Pinheiros e em São Bernardo. Muitas vezes, negros da terra (índios) e da Guiné uniam-se contra os senhores, como ocorreu na vila
  • 32. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 33 SUMÁRIO de Jundiaí, onde negros, mestiços e carijós provocavam tumultos e encontravam-se “levan- tados sem obediência às justiças” (MOURA, 1988). Muitas vezes, fugiam para a região de Cubatão e Santos, outras vezes, eram os de Santos que fugiam, como em 1785, quando muitos se deslocaram para Paranaguá. Uma ca- racterística do período era a fuga individual ou em grupos. No século XIX, contudo, iremos encontrar uma resistência mais organizada, quando os escravizados uniam suas formas de rebeldia às ações abolicionistas. Essa ameaça constante de rebelião desgastava o aparelho repressor das classes dominantes. Muito se insistiu na historiografia tradicional sobre o papel marginal dos escravizados no processo abolicionista. Porém, sem a participação massiva deles e de negras/os e mestiças/os livres, principalmente a partir da década de 70 do século XIX, não teríamos um movimento da magnitude que assumiu o Abolicionismo. Não se pode falar de um movimento abolicionista na primeira metade daquele século, apesar da constante resistência dos escravizados. Já em 1851, tivemos a proposta da liberdade para os nascituros e a proibição da separação de famí- lias escravizadas. Tal proposição ficou perdida nos escaninhos da câmara dos deputados, e, somente vinte anos depois, teríamos a aprovação da Lei do Ventre Livre. O problema da emancipação dos escravizados adquiriu urgência durante a Guerra do Paraguai. O governo concedeu liberdade aos escravizados da nação ( escravizados que perten- ciam ao governo) que prestassem serviço militar, estendendo a liberdade às suas mulheres. Senhores e filhos de senhores procuravam fugir do serviço militar enviando escravizados em seu lugar. Houve também escravizados fugidos que se alistavam. Terminada a guerra, os que sobreviveram foram considerados livres. Criou-se um movimento de simpatia e apoio aos escravizados que haviam lutado pelo país. Os senhores que tentaram reescravizá-los foram contestados pelas autoridades e pela opinião pública, que condenavam essas atitudes. A parti- cipação dos escravizados na guerra fortaleceu aqueles que lutavam pela libertação. Clubes, jornais, e associações abolicionistas foram organizados nas principais cidades do país. Em São Paulo, um negro ex-escravo organiza uma campanha jurídica em favor da libertação. Luiz Gama apoiava-se na lei de 1831 que proibia a escravização de africanas/os que tinham entrado no país depois daquela data e, brilhantemente, conseguiu sua liberdade do cativeiro. A campanha organizada por Luiz Gama era uma ameaça real para os escravocratas, pois um grande número de escravizados nessa época tinha de fato entrado no país após 1831, e seu cativeiro era ilegal. A elite escravocrata apegava-se ao que considerava um direito seu, o direito da propriedade. Acusava qualquer projeto de emancipação de ameaçar com a ruína os pro- prietários e colocar em risco a economia nacional e a ordem pública. Alguns chegaram a acusar os projetos emancipatórios de comunistas. Em 28 de setembro de 1871, é aprovado o projeto que libertava os recém-nascidos. Estes, no entanto, ficariam sob a tutela dos se- nhores até a idade de oito anos. Nessa idade, o proprietário poderia entregar a criança ao
  • 33. 34 Apresentação SUMÁRIO Estado, recebendo uma indenização, ou mantê-la até a idade de vinte e um anos, em troca da prestação de serviços gratuitos, ou seja, mantinha-se a escravidão. É importante lembrar que a data de 28 de setembro foi comemorada até meados do século XX pelo movimento negro e pela imprensa negra, o que mostra a construção de uma memória social autônoma construída por negras e negros e transmitida para seus descendentes. A aprovação da liberdade dos recém-nascidos não resolveu a questão da escravidão e muito menos diminuiu o ímpeto da campanha abolicionista. Estava claro para todos que os libertos continuariam a viver como escravizados, a ser vendidos com suas mães, a ser casti- gados como qualquer outro escravizado e obrigados a cumprir as mesmas tarefas que teriam de cumprir se não tivessem sido libertos pela lei de 1871. Para negras e negros, a liberdade continuava uma promessa a ser cumprida num futuro não determinado. O importante é recuperar o protagonismo social e histórico das negras e negros em seu processo de libertação e de construção de uma identidade própria. Pensar a formação do Brasil é resgatar a importância das/dos afro-brasileiras/os na sua construção.
  • 34. SUMÁRIO 1 Quilombos, comunidades de valores Rio Ribeira de Iguape, visto de pousada localizada no Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. ©Silvane Silva
  • 35. Quilombo Galvão - Eldorado - SP. ©Genivaldo Carvalho/IMESP SUMÁRIO
  • 36. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 37 SUMÁRIO Capítulo 1 Quilombos, comunidades de valores Multiforme, real ou imaginário, o quilombo concentra uma multiplicidade de vidas. O quilombo, enquanto lugar de habitação, é criador de sentidos que afirmam os valores civilizatórios herdados das sociedades africanas e que favorecem a coesão social, a solidarie- dade e a reciprocidade. A consciência dessa multiplicidade é imprescindível para a manutenção das relações comunitárias idealizadas, fundadas no uso da palavra: aprende-se a aprender aprendendo primeiro a escutar; aprende-se a aprender aprendendo a ouvir, antes de falar de maneira consciente. Por isso, quando dizemos que as/os quilombolas habitam o quilombo, estamos também dizendo que o quilombo habita as/os quilombolas. É uma característica ambígua, às vezes difícil de ser compreendida por aqueles que vivem e fazem parte de um mundo de relações pensadas pelas leis de mercado que privilegiam o ter e não o ser. Assim, cada quilombola leva o seu quilombo aonde quer que vá. Mas isso não significa dizer que a terra é uma simples abstração. A terra marca o ser quilombola, são lugares de habitação de homens e de mulheres, onde gravitam vidas plurais que dão sentido à existência humana. Os quilombos não são estáticos, são espaços dinâmicos de produção de alimentos para a vida, de inovação, em particular de técnicas culturais locais, e de preservação da fertilidade. Mas é também um espaço duramente atingido pelas desigualdades, pelos conflitos de terra, pela violência, pela proletarização e também por parte dos problemas provocados pela globa- lização e pelo neoliberalismo.
  • 37. 38 Quilombos, comunidades de valores SUMÁRIO O que é, oficialmente, um quilombo? Os territórios quilombolas são, em sua maioria, forma- dos por rios, montanhas e planícies, que suportam suas ativi- dades, essencialmente agrícolas. Os quilombos de André Lopes, Cafundó, Caçandoca, Ivaporunduva, Galvão, Sapatu, Nhunguara, Pedro Cubas de Cima e São Pedro estão ligados e integrados às colinas, aos rios e às esferas da natureza. Essa dispersão no espaço é uma característica da ocupação do território. Cada quilombo é um centro de vida, uma unidade de produção onde se gere a eco- nomia, o social e a ecologia. O mesmo vale para as práticas religiosas e as festas. Por isso, os quilombos são detentores de uma história que os leva, hoje, por um momento, a se reagruparem, seja por razões de autodefesa, seja pelas oportunidades econômicas. O quilombo é uma família extensa. As crianças cres- cem, tornam-se homens ou mulheres e ali também poderão se instalar. Todos deverão ter acesso à terra para poder, as- sim, produzir. O quilombo vive com uma concepção de mundo que guia a organização do hábitat, a instalação das áreas de produ- ção (as roças) e os ritos. O mundo é simbolizado pelas alianças estabelecidas com a terra, inclusive nos ritos funerários. Uma coisa que também eu não sei se ocês falaram aqui ou se eles ouviram é o... que hoje não existe mais, é carregar de- funto. [...] O penúltimo defunto que eu ajudei carregar aqui, era caminho ainda, né, não tinha estrada, agora tem estrada até no André [ ] Aí, o que aconteceu, antes de sair, (teve uma tromenta), assim, tava o tempo bão, tempo bão que ninguém achava que ia dar (tromenta) [ ] duas tromenta: uma de noite, na hora que ele morreu, e outra de dia, na hora que... na hora de sair com ele pra ponhar na rede; o pessoal carregava na rede, na época. Aí ele, é, deu a tromenta e era caminho, aí o pessoal falou assim: “Ó, não pode cair e não pode parar com o defunto, tá no caminho não pode parar, porque o lugar que parar fica assombrado ali, o lugar que cair também fica assombrado.” [ ] Outro: “Segura que vai”, “Art. 3º - Entende-se por quilombos: I - os grupos étnico-raciais definidos por autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ances- tralidade negra relacionada com a resis- tência à opressão histórica; II - comunidades rurais e urbanas que: a) lutam historicamente pelo direito à terra e ao território o qual diz res- peito não somente à propriedade da terra, mas a todos os elementos que fazem parte de seus usos, costumes e tradições; b) possuem os recursos ambientais necessários à sua manutenção e às re- miniscências históricas que permitam perpetuar sua memória. III - comunidades rurais e urbanas que compartilham trajetórias comuns, pos- suem laços de pertencimento, tradição cultural de valorização dos antepassa- dos calcada numa história identitária comum, entre outros.” Fonte: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Re- solução CNE/CEB 8/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 21 de novembro de 2012, Seção 1, p. 26
  • 38. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 39 SUMÁRIO “Não pode derrubar o defunto”, “Vamos lá e segura”, “Não, não, cair não, com- panheiro”, “Vamos, segura e vamos embora”. E o defunto não pode cair, se cair [ ] Como eu era da turma mais novo e não tinha prática, né, eu fazia de tudo pra segurar o defunto. Falei: “Não, cair eu não vou”, e segurava, porque cê tem que colocar no ombro, e diz também que a gente não pode deixar o ombro da gente cansar com o defunto, né {[ ]} É. Então, quando a [ ] não guenta, outro já pega; aí vai assim, um pega, outro pega, pega um na frente, outro atrás e vai indo. Só que, nesse dia, tava liso, a gente esbarrava, mas o defunto não caía no chão, sabe, e outro gritava: “Segura, não esbarra não, senão cê vai deixar assombrado aí. Segura, vai, se apoia aí no mato aí”, e outro chegava e já pegava, sabe, outro já pegava. Aí outro lá atrás: “Pega de cá que o outro lá já tá quase cansando”, porque não pode cansar, sabe, não pode cansar. {Tem que ter uma coordenação [ ]} Mas só que é caminho, o caminho é vinte centímetro, trinta centímetro, então tem que passar correndo no mato e outro já pegar e já colocar na mão do outro, né. E aí, a gente cair, eu memo não caí [ ], mas bastante gente que carregou de- funto aí... Na época eu era criança, eu só olhava. {Mulher cansa no caminho, né?} É, e também não pode ninguém andar na frente do defunto, só aquele que tá se- gurando o defunto, aquele sim, mas quem tá sem nada não pode andar na frente. {Tem que ir atrás.} É, só tem que ir atrás mesmo. {E qual a explicação pra isso?} Então, porque quem vai na frente, é... o defunto, né, ele tem que tá uma pessoa segurando, tudo bem, mas quem tá na frente sem nada, dizem que essa pessoa que tá na frente, quando o defunto for enterrado, ele vai adiantar a viagem dessa pessoa, a pessoa sempre vai andar e nunca vai chegar onde ele quer. {Tem que deixar ele na frente.} {E quando o defunto vai também, que vai levar o defunto, não pode [ ]} comentários simultâneos (Sr. Maurício/André Lopes) Bananicultura - Quilombo Ivaporundiva - Eldorado - SP. ©Silvane Silva
  • 39. Quilombos, comunidades de valores 40 SUMÁRIO Comunidade apontada para o reconhecimento em outra região Comunidade de Porcinos, no Município de Agudos Localização no Estado ITATIBA SÃO ROQUE ALUMÍNIO VOTORANTIM SALTO DE PIRAPORA SARAPUI PILAR DO SUL ITAPEVA MIRACATU IGUAPE REGISTRO JACUPIRANGA ELDORADO IPORANGA ITAÓCA BARRA DO CHAPÉU BARRA DO TURVO CANANEIA ILHA COMPRIDA UBATUBA CAPIVARI RIO CLARO SÃO BENTO DO SAPUCAÍ GUARATINGUETÁ Fonte/Consulta online: Itesp/SJDC (www.itesp.sp.gov.br).
  • 40. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 41 SUMÁRIO No quilombo são realizadas também atividades artesanais, tais como a produção de fa- rinha e de doce de banana, de artefatos com a palha da bananeira e de peças cerâmicas. Tecno- logias para o cotidiano, tecnologias para a vida. Ele é também um lugar de concepção logística que permite assegurar a produção. Casa de taipa, localizada no quilombo Cangume - Itaoca - SP. O saber/fazer expresso na construção das casas em terra batida (pau a pique) revela uma capacidade ótima de interação com o ambiente. Mas não para por aí. A reprodução das semen- tes e a variedade de bananas são outros importantes exemplos que revelam o dinamismo e a capacidade de inovação dos quilombolas. O quilombo é também lugar de interpenetrações com o mundo exterior, pelas ingerên- cias das políticas públicas, da modernidade, do mercado, da cidade. Esse tipo de comunidade permite aos seus visitantes conhecer um outro mundo, outras lógicas e outras formas de organização, o que pode exercer um papel importante no quadro de referências individuais e coletivas. A modernidade se coloca pela cidade, pelo desenvolvimento das estradas que cortam a região e favorecem as interconexões, pela valorização da biodiversidade, pela busca dos sa- beres locais pelas universidades que visitam as comunidades e lá iniciam projetos científicos. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 41. 42 Quilombos, comunidades de valores SUMÁRIO Placa indicando o Quilombo do Jaó - Itapeva - SP. Centro comunitário, Quilombo da Fazenda Picinguaba Ubatuba - SP. ©Renato Ubirajara/SEE-SP ©Renato Ubirajara/SEE-SP
  • 42. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 43 SUMÁRIO Políticas públicas: o conjunto ou a soma das decisões e ações dos gover- nos visando solucionar os problemas que surgem na sociedade buscando garantir uma vida digna aos cidadãos. ONG: entidade de caráter civil ou so- cial, criada independentemente de go- vernos locais ou organizações interna- cionais, regionais e nacionais. Globalização: processo econômico e social que estabelece uma integração entre os países e as pessoas do mundo todo. Por meio desse processo, as pes- soas, os governos e as empresas trocam ideias, realizam transações financeiras e comerciais e espalham aspectos cultu- rais pelos quatro cantos do planeta. Urbanização: o processo de transformar certa área em uma área urbana e retirar todas as características silvestres e ru- rais, inserindo instalações e infraestrutu- ra de uma cidade (ruas, avenidas, rede de esgoto, rede elétrica, edificações, serviços urbanos etc.). A urbanização é um processo que ins- taura uma cidade, em consequência da demanda populacional, da deman- da comercial e do desenvolvimento tecnológico. Nação: do século XV ao XIX, este era o termo usado pelos negros para desig- nar um grupo com características cultu- rais que os distinguiam e os tornavam diferentes dos demais. Atualmente, esse termo é muito usado para diferen- ciar um tipo de candomblé do outro. Exemplos: “nação jeje”, “nação nagô”, “nação angola”. Na narrativa apresen- tada, a palavra nação é utilizada para designar as diferentes famílias. Essa modernidade é marcada também pela reorganização das comunidades, seja pelas pautas políticas internas, seja pelos projetos de políticas públicas sustentados por ONGs (Organi- zações não Governamentais). O processo de globalização e as próprias relações das co- munidades com as cidades podem alterar seus valores. No en- tanto, os novos modos de vida (no campo da alimentação, das tecnologias podem ser incorporados sem ameaçar sua identi- dade. Essa contribuição coloca a questão sobre o risco que a urbanização representa para as comunidades quilombolas. Minha mãe é Etelvina Rodrigues da Silva, meu pai é Agos- tinho (Ersulino) da Mota. {Agostinho o quê?} (Ersulino) da Mota. {Ah, (Ersulino).} {Esse Mota é com um “tê” ou com dois “tês”} Um “tê” só! [ ] mas nós é um só. Meu avô era Lourenço (Ersulino) da Mota, minha vó... Ó, minha história é meio compricada, que eu só tenho três nação, hein? Uma coisa que cês nunca viram, hein? {Tem o quê?} Três nação, não tenho quatro nação não. {Como é isso?} {Casado com parente.} {Seu avô é Lourenço, e sua vó?} Ca- etana (Ersulino) da Mota {[ ]}, outro avô [ ] Rodrigues de Almeida, {Pode ir falando.} outra vó que é muié do, essa Caetana é muié do Joaquim Rodrigues e a muié de Lourenço é Antônia Vieira Pereira de Morais. Aí eu vou contando minha história por que que nós somos três nação. “É, como é que é essa história aí?” risos {Três nação, como é isso?} É, porque quando eu falo isso a turma fica {Curioso.}, é, porque Lourenço é irmão de Caetana e Joaquim Ro... {Rodrigues de Almeida.} é, casou com a irmã de {Do Louren- ço.} de Lourenço. Então meu pai com a minha mãe eram primo e despois eles casaram, então Joaquim se tornou meu avô e Caeta- na minha vó. E {Joaquim e Antônia também}, eles também, vira- ram cunhado. Então quer dizer que meus dois avô eram cunhado {Ah, entendi.}, então aí deu três nação, não deu quatro. Porque dois avô, um avô era casado, aí eles eram casados meus dois avô, um era casado com a irmã do outro, então deu três nação, não dá quatro. Pode ver que a minha vó é a mesma assinatura do meu avô Lourenço. Então eu sou três nação. Então, quando ela mor- reu, eu tinha dezoito anos de idade, eu era o mais véio da famia, dezoito ano, só que ficou uma irmã com um ano e meio de idade. Nós somos em cinco irmão, que é, irmandade, que é (Zico), San- tina, que faz trinta ano que eu não sei aonde que tá, Dorvalina e Odete. Odete ficou com um ano e meio de idade, aí eu era o mais
  • 43. 44 Quilombos, comunidades de valores SUMÁRIO véio da famia, eu fiquei [ ] ajudando meu pai. Só que minha mãe era uma muié que hoje que minhas criança agem diferente. Ela fazia cuscuz, porque aqueles tempos não existia pão. Existia pão, mas era longe daqui, não dava pra comprar. Então nos- so pão da café era cuscuz, biju, batata-doce, cará, então esse que era o nosso pão. E outra coisa, nós tomava café, não era açúcar, porque era cana, cana moída, gara- pa que passava lá pra fazer o café. Então meu criame foi bem popular, não foi, quer dizer, foi um criame lá memo do... lá da roça memo, não foi um... {Do sertãozão.} É, do sertão, como diz o caboclo, lá do sertão, o caipira, lá do sertão, um criame bem caipirão. Só que hoje eu falo isso pro meus filho, “Ah, pai isso aí...” [ ] garapa (sozinho) ele bebe, mas, se passar pra fazer café, não bebe, porque diz que é muito forte. Eu já acho bom {Não acostuma, né.} {E é gostoso.}, se (põe bolacha). “Ah, hoje é pão, pai, hoje é pão. (Bolacha), isso aí é coisa do seu tempo. É coisa, isso aí, do seu passado.” Então hoje ele acha diferente, eu não disconcordo com ele, por- que aquela época foi uma coisa. Sobre remédio caseiro, fazia remédio caseiro. Eu, até quarenta e cinco ano de idade, nunca fui num dotô. Quando eu fui num dotô, eu tinha quarenta e cinco ano de idade. Eu, um dia eu cheguei pra fazer ficha, “Ah, mas num...”. Eu falei: “Infelizmente, eu não tenho ficha”. “Mas tem, porque tudo mundo tem.” Eu digo, “Tudo Nhunguara tem, menos eu. De hoje em dia vou ter”, né, porque aí eu tive pobrema de gastrite que tenho até hoje, então careceu fazer ficha pra tomar remédio. Só que hoje, tá na... principalmente a juventude, ponhou na cabeça, porque a gente vai lá no médico, o médico “Não, não toma essa erva porque é veneno”. E hoje é difícil ponhar isso na cabeça da criançada que, é, mas por que que diz que é veneno? Porque, se eu ficar tomando o meu remédio casei- ro aqui {Não vende remédio.}, não vão poder vender, vai vender pouco. E quanto mais ele ponhar na cabeça da pessoa que aquilo é veneno, pra ele o consumo lá vai ser mais. Só que a juventude, é difícil a gente por isso na cabeça deles que não é veneno. “Ah, mas o médico falou que é”. E, hoje, até porque a gente é fio do sertão, “Ah, mas ele lá estudou, ah, estudou”. A gente não tem estudo, mas tem o conhecimento, um conhecimento que já vem da cultura da gente. Até que isso aí é uma coisa que a gente discute muito, que é difícil da gente entender. Como que os (índio), lá no antepassado dos negro, sabiam que essa erva, sem estudo, sabiam que (decidindo) no meio da mata tantas erva o que era {Bom pra cada coisa, né.} É, o que era bom pra cada coisa. Uma ideia que a gente, até hoje, não dá pra enten- der isso. {Mas os remédio que tem é tudo do mato, sai daqui, as erva daqui.} Então é outra coisa que a gente põe na cabeça. Anador, nós temos anador em foia, nós temos penicilina em foia e é o memo de lá, só que o nosso tá em foia e o deles já tá industriado. Só que é difícil por isso na cabeça de uma (criança), porque o anador que ocês toma, o anador em foia faz um chá pra beber, é melhor. Se você põe uma penicilina em formação quarquer, pelos uns quatro dias tá desinframado, não é que nem o antibiótico lá. {Tem que tomar sete dias, né.} Mas é que isso ninguém conhe- ce. Hoje, é uma coisa difícil ponhar na cabeça de uma criança. Agora, se tiver num livro isso, ele, pode ser que ele vá, né, ele vai ler, “Ah, mas meu pai falava isso”, o
  • 44. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 45 SUMÁRIO fio pode não ponhar, mas pode ser um neto, um bisneto pode alcançar aquilo. O trabaio que tá fazendo, o futuro, né? Hoje, até pra meu filho não pode ter muito valor, até pode não valorizar muito, mas meu bisneto vai, o meu neto e meu bisneto vai valorizar. “Ah, meu avô falava isso aí”, né. Porque se a gente alcançar, a gente vai ter de contar. Vai, memo acreditando ou não acreditando, mas a gente vai ter de contar essas história. {Sim.} Só que a gente vai contar, ele já vai, quer dizer, ele vai ler, então aí já vai mudar, né. {Que vai tá escrito, né.} {Eles vão acreditar mais, vão acreditar e continuar passando, né, que só acreditar e também não continuar praticando também...} Tem que praticar, né. (João Mota [João Catá]/Nhunguara) ©Silvane Silva Artesanato feito por mulheres do Quilombo Cafundó na língua Cupópia (vimba significa mulher) - Salto de Pirapora - SP.
  • 46. Memória coletiva 2 Placa indicando o Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. ©Silvane Silva SUMÁRIO
  • 47. Quilombos, comunidades de valores 48 SUMÁRIO Mural da EE Maria Antonia Chules Princesa - Quilombo André Lopes Eldorado - SP. Pousada do Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. Quilombo Cafundó - Salto de Pirapora - SP. Escola do Bairro São Pedro - Quilombo São Pedro Eldorado - SP. ©Genivaldo Carvalho/IMESP ©Cleo Velleda/IMESP ©Acervo NINC/SEE-SP ©Acervo NINC/SEE-SP SUMÁRIO
  • 48. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 49 SUMÁRIO Capítulo 2 Memória coletiva A memória coletiva é uma memória compartilhada por um grupo, povo, nação, país ou grupo de países. Ela constitui e modela a identidade e a inscreve na história do grupo. Segundo o sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945), a “memória coletiva” é uma teoria cien- tífica que diz que partilhamos a memória e que lembrar não é um ato solitário. Isso significa que nossas lembranças e memórias são, em parte, estruturadas pela sociedade, compartilhadas pelo grupo. Logo, há uma memória coletiva e uma multiplicidade de memórias individuais. A nossa memória está em constante mudança. Ela muda ao longo do tempo: nós nos esquecemos, nós nos lembramos.... A memória coletiva também se transforma por meio de eventos e ao longo do tempo. Quando partilharmos a nossa memória com as pessoas que estão ao nosso redor, estamos construindo uma parte da nossa memória coletiva. Conversando sobre a vida de antigamente... Quando a gente começa a contar uma história do passado pros jovens, é história, mas é coisa antiga. Só que pra eles essa história não é história. Mas é uma história de verdade, porque nós estamos contando uma coisa que passou e é a verdade o que nós estamos falando, mas pra ele é uma história... Porque tudo o que fala hoje do passado foi verdade, que muitos jovens hoje não conhece. Agora, se o pai e a mãe não contar pra ele, a pessoa de mais idade, ele acaba não sabendo. E, daqui a pouco, os mais [velhos] vão se acabando também, e vai acabando tudo, porque, se o pai com a mãe não passa pros filhos, aí não aprende nada, então aquilo vai acabando. Então tem que passar sempre, conversar, contar da história como que era primeiro, antigamente, pra ficar pra eles, pra eles apren- derem também, saber também a história. (Sr. João/Sapatu) Meu nome é Maria da Glória, nascida e criada no quilombo. A minha mãe tem oitenta e seis anos, meu pai já faleceu, mas bastante coisa a gente aprendeu com isso, a educação nossa aqui, quilombola. Então a gente, como diz o Assis aí,
  • 49. 50 Memória coletiva SUMÁRIO eles ensinava nós respeitar os outros. Nós, até pra ser mais repeitado, nós pedia bença pras pessoas. Todo mundo era tio, tia, “bença titio, bença titia” ou primo mesmo, ou prima, mas pedia bença... Então pra nós hoje é bem diferente, né... o jovem de hoje é bem diferente... Minha mãe, Deus o livre que nós falasse um palavrão. Até agora mesmo, os neto dela, ela corrige, ninguém falava palavrão, ninguém assim... nós mesmo, irmandade, ele é meu irmão caçula. Então a gen- te tinha que respeitar um o outro... E aí nós se criamos dessa maneira. Eu achei que... aquilo eu aprendi bastante. Eu também não fui pra escola, porque na épo- ca não tinha escola, não aprendi nada assim... mas, até agora, eu tenho sessenta e três anos, mas sei viver nessa educação quilombola nossa. Até agora não... as- sim... (como esses dias eu falei) eu me orgulho de ser quilombola, na criação que fui criada. A gente comia coisas pura; eu digo que a minha mãe está viva porque ela sempre comeu coisas pura. É... batata, cará, banana, banana assada assim num... que nem diz o povo aqui, nós dizemos aqui... no (borraio) da taipa, e muita coisa, assim, peixe, caça, carne de porco, é... muita coisa... frango – que a gente não comprava carne de boi, porque era bem difícil, bem difícil mesmo, sabe, só em Eldorado, e era difícil pra pessoa ir lá. O meio de transporte, bom, meu pai fazia aqui, era andar de canoa, levar, assim, quando a pessoa... nessa época, no tempo da colheita de arroz, aí ia levar o arroz pra vender lá em Eldorado. A gen- te tomava café de cana e caldo de cana [ ] ou raspadura. Aprendi torrar farinha, aprendi socar arroz. Eu, desde os sete anos, a minha mãe ia pra roça e aí deixava eu pra tomar conta dos meu irmão, que era caçula. Eu sou a quase a primeira, porque tinha o [ ] mas morreu, então, ali eu... Todas essas coisa que, sabe, que a gente imagina que sabe e sei, aprendi torrar farinha – meu pai ia trabalhar, muito trabalhador, na lavoura, minha mãe também –, aprendi colher café, como que se cuida do (café) pra fazer um café, assim, quilombola. Então foi coisas que eu aprendi e fico muito contente por isso e de pertencer, uma pessoa quilombola também. A [ ] é irmã da minha vó, aí vem o Bernardo [ ] que era avô da minha vó e da [ ], que era o primeiro que entrou aqui, segundo a história que contam. Então eu... eu agradeço por tudo essas coisa e a gente ter essa educação; que, hoje, as criança aprendem lá na escola, os professores ensinam, mas sai pra rua falando palavrão, fazendo coisa que é errada, que nós não fazia antes. Eu não fui na escola, mas sei respeitar os outros, nunca falei palavrão, não gosto. Meus filho também veio nessa criação, de não falar palavrão em casa, nem pros outros, (pros meus vizinhos). Então aquilo pra mim foi muito importante! Obrigado. (Sra. Maria da Glória/André Lopes) É, eu me lembro que do tempo que eu era menina pequena. Nós sempre moremos aqui memo, por aqui. E eu me lembro que minha mãe, meus avô, minhas vó iam trabaiar pra esse centro de (Capuava), pra lá, e nós ficava por aqui, pra beira da estrada a molecada ficava. Vinha gente [ ] de lá de serra acima, passava na es- trada com aquele bando de boi, boi, era cabrito, era cavalo, era de tudo passava
  • 50. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 51 SUMÁRIO na estrada. Eu era menina, mais ou menos de uns dez pra doze ano, e o serviço que os mais véio trabaiva nele é sempre o serviço de roça, porque não tinha estudo memo aquele tem- po, estudo não tinha, porque eu memo, que me criei naquele tempo, não tinha estudo [ ] Mas na roça eu me lembro que todo mundo era trabalhador da roça, prantava de tudo. O que era de prantar pra nascer, pra crescer, eles prantava e dava. Nós se criemo com la- voura da roça; era feijão, era arroz, era milho, mandioca, café, era tudo da roça, tudo, tudo, tudo, lenha pra fazer comida... Hoje tá tudo fácil, hoje as criançada, as moçarada não querem saber de nada, porque vem tudo facinho, limpo, é tudo limpo. Pra nós buscar uma vasia d´água precisava nós andar daqui lá na estrada, buscar água no rio pra trazer pra dentro de casa. Lenha, bardeava lenha desse centro de Capuava pra trazer pra fazer fogo pra fazer comida. Eu sofri, fui do tempo do escravo eu também [ ] Mas a gente tinha muitas coisa pra falar, mas minha cabeça não dá mais, esqueci de tudo. (Dona Maria Urbana/Pedro Cubas) Isso aqui agora pra nós [ ] isso aqui agora é um paraíso pra nós. Isso aqui [ ] foi do bisavô pro nosso avô e do nosso avô pro nosso pai, isso agora que nós estamos vivendo é o paraíso. Antigamente, não tinha essa estrada, não tinha nada aqui pra nós. O que nós convivia era tudo da roça, era tudo da roça. Então tinha o barco que vinha aqui buscar nossa banana, que saía muita banana daqui, vinha de Santos buscar a nossa... não, vinha buscar a do nosso pai, eu era molecote ain- da... Eu era do tempo que... vocês não se lembram ainda... mas eu fui do tempo do quinhentos réis, um mil réis, cento réis; aí depois veio o tostão, aí do tostão já veio dois cruzeiros, do dois cruzeiros já veio pro cinco cruzeiros, que era uma nota [ ] eu sou desse tempo ainda. Eu tô com sessenta e seis anos. Aí, depois que foi começando subir mais as coisas, mas nós aqui, nós sofria, tudo eles aqui dentro sofria. Que nem, agora, dizer que a educação temos aqui pra nós, temos. As crianças de hoje em dia têm a boemia, tem, mas nós, antigamente, nós não tinha boemia. Porque nós, quando vinha, saía da escola onze horas, chegava em casa, nós ia pra roça trabalhar, nós ia pra roça. Quem ia carpir rama ia, quem ia... com meu pai, se tivesse que carregar madeira, nós ia carregar... Hoje em dia, as crianças acabam de sair da escola vai jogar bola, vai sair, vai... Não, antigamente não tinha nada disso não, não tinha nada disso! Nós saía, as mulheres, com as mo- cinhas, ia lavar vasilha, ia lavar a roupa deles lá mesmo, e cada um que se virava, e o nosso pai trabalhando pra sustentar nós. Então, aquele tempo, nós trabalhava Produção de banana - Quilombo Ivaporunduva Eldorado -SP. ©Silvane Silva
  • 51. 52 Memória coletiva SUMÁRIO só pra viver. Aqui nós plantava de tudo! Bem dizer, o único que não dava aqui, que era difícil, era o arroz, o único que colhia arroz aqui era lá na [ ] no tio [ ] que era primo do meu pai. Então, ele plantava o arroz, mas era o arroz da seca, se dizia que era o arroz da seca que ele plantava, só ele que colhia. Mas o resto aqui, nós criava de tudo e plantava de tudo: era mandioca, era feijão, era tudo, nós plantava tudo aqui, criava galinha, criava porco. Então, quando nós tinha um roçado pra cortar madeira, chegava “Vamos, fulano, vamos lá ajudar nós?”, pedia quatro pessoas, ia mais de dez ajudar, que chamava puxirão. O jitório [ajutório] era de meio-dia pra tarde, o puxirão era o dia todo. Então, aquilo ali, um chamava o outro de lá, já ia todo mundo... {Um puxirão que ia todo mundo. Jitório [aju- tório] ia de meio-dia pra tarde, também ia todo mundo, mas era só de meio-dia pra tarde}. Então, aquilo ali, um ajudava o outro, era uma união. Um precisava, todo mundo ia. Até falava “Fulano, você foi, tu tava trabalhando lá, por que não me chamou? Ah, mas não sabia que você ia, você tava ocupado... Não, mas ia, mandava meu filho, mandava...”. Era todo mundo, era mulher, era homem, tudo ia, tudo ajudava um ao outro lá. (Sr. Horácio/Caçandoca) Eu acho que antigamente era melhor do que agora, porque antigamente você trabalhava na roça, você tinha sua comida, você estudava, você ia pra es- cola de qualquer jeito, ninguém reparava. Você não tinha bolsa de escola, você não tinha mochila, você não tinha sandália, você não tinha nada de marca. E, agora, pra ir pra escola, tem que ter tênis, tem que ter chinelo, tem que ter... E você tem que ir de uniforme, se você não for, é reparado na escola. Antes não tinha nada disso. E, antigamente, você chamava as pessoas pra fazer alguma coisa, que nem ele falou, ia todo mundo, e agora não, e agora você continua sendo escravo ainda, eu acho que continua sendo escravo! Tem a terra e você não pode fazer nada, você não pode fazer nada aqui, você continua na mesma... Os filhos vai estudar lá fora, tá aí que nem escravo, andando a pé porque o car- ro não desce aqui. Então pra mim antigamente era mais melhor do que agora. A escola era aqui na praia, você atravessava rio, você ia molhado pra escola, você entrava na escola. E agora não, as crianças chega atrasada, já não entra na escola. [...] Então, antes você comia tudo que tinha de comer, você comia, você comia a sua farinha com feijão, você comia peixe com banana, pegava marisco, você comia, saquaritá, você comia, pindá, você comia, você comia tudo! Café da manhã era café de cana, banana, você comia, você comia mandioca, você comia batata cozida de manhã e, agora, não, agora ninguém quer comer nada dessas coisas... Você era sustentado, o pessoal era mais forte antigamente e, agora, o médico já, qualquer coisa, já não pode comer. Eu tenho uma filha que nasceu lá na Raposa, Cláudia, nasceu porque não deu tempo, pra mim ir pro hospital, pra mim ganhar neném sozinha, então eu ganho em casa, ganhei em casa. E minha filha, logo que nasceu, comia banana. A gente amassava a banana e dava pra criança. Todos os meus filhos comeram. E, agora, não, só peito até seis meses, peito, peito, peito, porque se dá comida vai... E antigamente não
  • 52. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 53 SUMÁRIO tinha nada disso... Então... Você agora tem a terra, você tem tudo, mas você não pode fazer nada. Ta aí congelado isso daqui, porque você não pode fazer, você não pode fazer roça, você não pode capinar, você não pode cortar uma madeira que a [Polícia] Ambiental vem aqui e multa você. Você não pode fazer uma casa porque a [ ] vem multar ou derruba sua casa, então você tem que continuar na mesma, continua escravo! Não pode fazer nada. Então você continua na mesma, daí tem gente aí com a casa [ ] os pessoal tão fazendo casa aí de teimosia, tão fazendo casa pela vontade deles mesmo, mas, pela lei, diz que não pode. Se você é quilombola, você tem que morar na casa de barro, não pode fazer de bloco. {Não pode ser feita casa de bloco aqui?} Pela associação aqui não pode {Não pode porque a área ainda está em briga, ainda tá sendo...} {Ah, pra não descaracterizar antes de sair o título} É {Mas aí, com isso, as pessoas sofrem tam- bém, porque aí tem a vontade de fazer uma casa, uma moradia melhor, e não podem, porque aí tem toda essa questão, a questão ambiental. Derrubou uma árvore, qualquer coisa que eles façam, a Ambiental já tá aqui multando} {E se vo- cês não podem mais plantar nem nada, como que é a sobrevivência de vocês?} A gente trabalha, eu trabalho no condomínio [ ] uma hortinha em redor da casa. Mas roçar mesmo, fazer a roça igual antigamente não pode. Porque antigamen- te Caçandoca era tudo cheio de roça, tudo cheio de roça, era a coisa mais linda! { E aí Ambiental não permite?} é, não permite... (Sra. Aldacir/Caçandoca) De manhã, antes de vim pra escola, eu tinha que moer cana no engenho de cana. O café, a gente colhia o café e depois socava... então, a gente socava o café da roça [ ] então colhia o café, depois o café botava pra secar, depois a gente socava no pilão. Isso eu fazia, minha mãe ensinava como que tinha que fazer. A única coisa que eu não gostava é peneirar o café, você tinha que jogar pra cima e soprar pra sair aquele pó e ficar só os caroços, depois a gente socava aquilo. Eu falava “Por que a gente tem que fazer isso, comprar no mercado não é melhor”?, falava pro meu pai. Ele falou “Não, minha filha...”, ele falava “o seu avô fazia com nós, falava pila, soca isso, pila e faz isso”. Ele falava “Olha, eu já cheguei a comer”, ele e minha mãe falava “antigamente, nossa vó (colhia,) ia na costeira, pegava aquela craca da costeira, lavava bem lavado e cascava banana verde e botava pra cozinhar. Aí, na hora de comer, pegava banana nanica verde e colocava no pilão e socava, aí botava assim naquele caldo e fazia um pirão, a gente comia”. Falei “Nossa, pai, era tudo difícil assim?”. Ele falou “Era difícil, e você tem que aprender que as coisas hoje não vêm do fácil, não”, ele falava, “tem que sofrer pra ter”. (Dona Maria da Conceição Machado/Caçandoca) A gente trabalhava com roça. Eu, desde sete anos, já trabalhava na roça com meu pai, plantava arroz, feijão, mandioca, tudo essas plantação. Já trabalha- va com ele, já, desde os sete anos já trabalhava na roça. Não fazia muita coisa, mas já gostava de ir pra roça. E era a tradição de ir pra roça, e eu trabalhava na roça. Depois, cheguei na idade de escola (...) meu pai dividia a semana, a gente ia três dias por semana pra escola e três dias na roça. E ai da gente que não fosse,
  • 53. 54 Memória coletiva SUMÁRIO os pais autoriza aquela quantidade, era aqueles dias que a gente tinha que ir pra escola, não podia ir mais de três dias. Aquele tempo, estudava até dia de sábado (...) eu estudei no Batatal, Barra do Batatal. Eu me criei no Pedro Cubas, eu moro aqui depois de casada, do ano de sessenta e quatro que eu me casei, que eu vim morar aqui, mas eu venho da outra comunidade. E lá era difícil os estudos, a gente tinha que vim andando, não tinha estrada, tinha que vim a pé, andando a pé. Não era estrada, era trilho. Só andava a cavalo, andava a cavalo na estrada, porque não tinha estrada. E eu vinha pra escola, andava doze quilômetros pra vim pra escola, todo dia, esses três dias, era doze quilômetros que tinha que andar pra ir pra escola. (Dona Esperança/Sapatu) [...] por isso que, quiser chamar de ignorante, que me chama. A coisa que eu mais amo nesse mundo é uma casa de sapé, de barro, porque é onde eu fui criada, que eu sinto o cheiro, as palha, eu gosto muito. Eu falei, gente, é uma coi- sa que tá dentro da gente, a gente não pode fazer mudar, não pode mudar uma coisa que vem lá debaixo, da raiz da gente, que é uma coisa que eu gosto muito. Por isso que eu falei pro meu marido, eu quero fazer uma casa assim. Tá certo, essa aqui é de barro, ta aí, tá rebocado, mas é barro que ta aí nela {Nós fizemo aqui, foi num jitório (ajutório). A comunidade inteira colaborou} Não adianta você tampar o sol com a peneira. Eu quero ser uma coisa que eu não sou, agora, se eu sou uma quilombola, porque que eu vou fazer coisa que eu não sou? Vou mostrar lá fora o que eu sou. É por isso que as pessoas sabem, aonde eu vou, as pessoas falam “Aí vem a quilombola”. Eu não tenho vergonha, porque eu sou! (Dona Ma- ria da Conceição Machado/Caçandoca) Meu trabalho pra comunidade, falando de dança cultural, por exemplo, eu abracei essa causa, com o objetivo de trazer a juventude, os jovens. Tá sendo um pouco complicado, queria falar para as crianças que não tenham vergonha das nossas tradições, dos nossos costumes, e que possam continuar essa cultura que a gente acha bonito e é um resgate da cultura das comunidades quilombolas. Bom, era isso, como coordenador do grupo eu tô fazendo com que... a gente tá procurando fazer, passar para as crianças, no caso, pra juventude, que isso é importante. E falo mais uma vez pra eles não terem vergonha dessa cultural nos- sa, vamos continuar com filhos e netos, que continue... Sou da comunidade de Sapatu, nascido aqui, fiquei acho que uns vinte e sete anos fora da comunidade de Sapatu, voltei em dois mil e oito e, já de cara, eu já entrei pra cultura, pro tu- rismo também [ ] como agente cultural e coordenando o grupo [ ] lutando, como eu falei, pra não deixar morrer a nossa cultura, nossa comunidade, e mostrar a cultura de nossos antigos, de nossos avós, das pessoas da família, mais velhas... (Ivo dos Santos/Sapatu)
  • 54. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 55 SUMÁRIO Minha memória, tua memória, nossa memória Conversando sobre as/os mais velha/os As pessoas idosas fazem parte da nossa sociedade, da nossa história coletiva e merecem o nosso reconhecimento. Como? As pessoas mais velhas geralmente compar- tilham com grande prazer as histórias que marcaram as suas vidas, mas é necessário demonstrarmos interesse. Responda as questões a seguir e, depois, converse sobre elas com os colegas e o professor: 1. Na sua opinião, o que é uma pessoa idosa? 2. O que os seus avós ou outros parentes mais velhos significam para você? 3. Quantos anos têm essas pessoas? 4. Sobre o que você costuma conversar com eles? 5. Quais atividades você faz com eles? 6. Você percebe diferenças entre você e eles? Quais? Por quê? 7. É possível superar essas diferenças, caso haja? Minha memória, tua memória, nossa memória Compartilhando memórias Reflita sobre a noção de memória coletiva. Converse com suas/ seus colegas sobre as formas possíveis de compartilhar as memórias coletadas, tanto as individuais como coletivas. É possível, por exemplo, organizar uma pequena exposição com fotos das pessoas idosas entrevistadas e trechos de suas narrativas. Vocês poderão também organizar uma reunião e convidar as/os entrevistadas/os para que participem de uma roda de conversa na escola. Assim, poderão vivenciar a relação entre gerações e a cons- trução da memória coletiva.
  • 56. Práticas culturais 3 Centro Comunitário do Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP SUMÁRIO
  • 57. Memória coletiva 58 SUMÁRIO Espaço usado para festas e cursos, Quilombo Cafundó - Salto de Pirapora - SP. ©Cleo Velleda/IMESP SUMÁRIO
  • 58. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 59 SUMÁRIO Capítulo 3 Práticas culturais “Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.” UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural. 2002. Disponível em: http:// unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Acesso em: 29 jul. 2013. Línguas reminiscentes Segundo dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), publicados no Atlas of the World’s Languages in Danger [Atlas mundial das lín- guas em perigo], cerca de 2500 idiomas estão sob risco de extinção ao redor do mundo. Entre as línguas extintas há pouco tempo, temos a Aasax, da Tanzânia, desaparecida em 1976. Ainda segundo o este documento, na África subsaariana, região em que cerca de 2 mil línguas são faladas (quase um terço do total de idiomas do mundo), é provável que, nos próximos cem anos, no mínimo 10% delas sejam extintas.
  • 59. 60 Práticas culturais SUMÁRIO Khoisan Afro-Asiáticas Nilo-Saariana Niger-congolesas A Niger-congolesas B (Banto) Adaptação de Acácio S. Almeida Santos, Casa das Áfricas, 2010 FAMÍLIAS DE LÍNGUAS AFRICANAS Fonte: Casa das Áfricas. Disponível em: www.casadasafricas.org.br. Acesso em: 3 jul 2014. No mapa, vemos a família niger-congolesa (representada pela cor verde) nas regiões Oeste e central da África. As línguas banto ocupam todo o Sul do continente, com exceção das línguas khoisan (em marrom) na região Sudoeste da África e as línguas malaio-poliné- sias em Madagascar. Nas regiões Norte e Leste, encontram-se as línguas nilo-saarianas (em amarelo) e, por fim, da região do Maghreb ao chifre da África, as línguas afro-asiáticas (em vermelho).
  • 60. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 61 SUMÁRIO Conheça algumas línguas africanas que vieram para o Brasil Cupópia? Se você não é do quilombo Cafundó, talvez nunca tenha escutado essa palavra. Ela é o nome dado a uma língua falada por alguns quilombolas do Cafundó. Leia o que nos contou dona Judite: Pouca gente fala, mais ou menos uns seis, sete, por aí. Es- tão ensinando as crianças a falar – às vezes encontram as crianças e falam alguma coisa. Essa língua veio do nosso avô, que veio direto da África. Essa língua foi aprendida por eles. O avô cha- mava Joaquim Manoel de Oliveira (Congo). Eles não ensinavam muito pra gente, a gente tinha que aprender no dia a dia, escu- tando eles conversarem. Ia aprendendo devagarzinho, lá um dia aprendia uma palavra... É importante falar essa língua porque é uma coisa que já vem da nossa raiz, do nosso bisavô. Tem que preservar, porque, se os mais novos não aprenderem um pouco, acaba tudo. Não pode perder. No decorrer da vida, com a pre- ocupação de viver, as pessoas se (distanciaram) e até se esque- ceram da sua cultura. A gente tem que manter a resistência pra não esquecer dessa cultura, que é a língua da gente. A gente fala cupópia. (Dona Judite/Cafundó) Veja alguns exemplos de frases em cupópia: “1. O cafômbi cupopiano vavuro a cupópia vimbundo = O (homem) branco (está) falando bem a fala negra 2. O cúmbi cuendano vavuro = O calor (está) chegan- do forte 3. O tec nâni do cúmbi = A noite nada de luz = Noite escura 4. Anguta cuendô nangá no cúmbi = A mulher levou a roupa no sol 5. O tata vimbundo do injó do mafingue cuendô o cambererá do vava na macura e variamo = O ho- “Do século XVI ao século XIX, o tráfi- co transatlântico trouxe em cativeiro para o Brasil quatro a cinco milhões de falantes africanos originários de duas regiões da África subsaariana: a região banto, situada ao longo da extensão sul da linha do equador, e a região oestea- fricana ou “sudanesa”, que abrange ter- ritórios que vão do Senegal à Nigéria. A região banto compreende um grupo de 300 línguas muito semelhantes, fa- ladas em 21 países: Camarões, Chade, República Centro-Africana, Guiné Equa- torial, Gabão, Angola, Namíbia, Repú- blica Popular do Congo (Congo-Brazza- ville), República Democrática do Congo (RDC ou Congo-Kinshasa), Burundi, Ruanda, Uganda, Tanzânia, Quênia, Malavi, Zâmbia, Zimbábue, Botsuana, Lesoto, Moçambique, África do Sul. Entre elas, as de maior número de fa- lantes no Brasil foram o quicongo, o quimbundo e o umbundo. O quicon- go é falado na República Popular do Congo, na República Democrática do Congo e no norte de Angola. O quim- bundo é a língua da região central de Angola. O umbundo é falado no sul de Angola e em Zâmbia.” CASTRO, Yeda P. de. A influência das lín- guas africanas no português brasileiro. In: Secretaria Municipal de Educação – Pre- feitura da Cidade do Salv. (Org.). Pasta de textos da professora e do professor. Salvador: Secretaria Municipal de Educa- ção, 2005.
  • 61. Práticas culturais 62 SUMÁRIO mem preto da casa da família jogou a carne da água na gordura e comemos = O homem preto da casa da família jogou o peixe na gordura e comemos = O homem preto da casa da família fritou o peixe que comemos depois = O irmão fritou o peixe que comemos depois 6. Vimbundo cupopeia nâni na mucanda = O (homem) preto não fala nada através da leitura [...] 13. Tata vavuro no arambôngui = Homem forte no dinheiro = Homem rico 14. Tata nâni no arambôngui = Homem fraco no dinheiro = Homem pobre 15. Nhamanhara curima nâni = A senhora não trabalha 16. O que cuenda o chipoquê na bugigança = O que leva o feijão à barriga = garganta 17. Nhamanhara acuendô o godema no urubamba do arambuá = A senhora pôs a mão no rabo do cachorro = A senhora bateu no cachorro 18. Tata nâni de cucuero = Homem nada de casamento = Homem solteiro 19. Nangá do viçó = Roupa do olho = óculos 20. Nangá do godema = Roupa da mão, do tórax = luva, camisa, blusa 21. Nangá da tarimba = Roupa da cama = lençol, cobertor 22. Nangá do palulé = Roupa do pé = sapato, meia, etc. 23. Sângi do tec = Ave da noite = coruja, morcego 24. Sângi do tec que vareia mafingue d’ingômbi = Ave da noite que chupa sangue do boi = morcego 25. Curimadô de cuendá o variá = Trabalhador de levar a comida = carroça” ANDRADE FILHO, Sílvio V. de. O vocabulário e a criatividade da “cupópia”. Em PAPIA (Revista de Estudos Crioulos e Similares), n. 13: 168–179, 2003, Universidade de Brasília. Disponível em: http:// abecs.net/ojs/index.php/papia/article/view/93/115. Acesso em 29 jul. 2013. (Texto adaptado.)
  • 62. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 63 SUMÁRIO Festejos e tradições No ano de 2013, o Instituto Socioambiental (ISA) publi- cou o Inventário cultural do quilombos do Vale do Ribeira. Nesse inventário, foram catalogados 180 bens culturais, classifica- dos em cinco categorias: Celebrações, Formas de expressão, Ofícios e modos de fazer, Lugares e Edificações. Nas rodas de conversa realizadas nas comunidades vi- sitadas, foi possível perceber que, a partir dos anos 1990, com o aumento das igrejas neopentecostais nas comunidades qui- lombolas, diminuiu o número de participantes nas festas da comunidade. Isso porque quase todas essas festas têm relação com as festas religiosas católicas e de religiões de matriz afri- cana, como o candomblé. Por consequência, essas manifesta- ções culturais também estão se tornando cada vez mais raras. A professora e pesquisadora Glória Moura é pioneira nos estudos sobre a importância das manifestações culturais na educação escolar quilombola. Ela é autora dos livros Festa nos quilombos e Estórias quilombolas. Veja a seguir um trecho no qual ela fala sobre as festas quilombolas: “Nas festas dos quilombos contemporâneos, pode-se verificar uma série de atitudes rituais que valorizam as tradições da comunidade com o sentido de perpetuá-las. Mesmo quando os mais jovens, em busca de emprego e salário, saem para trabalhar fora da comunidade, ainda assim mantêm o vínculo com ela, participando das suas festas maiores, das comemorações e dos rituais, e desempenhando nelas o seu papel habitual. A importância de manter o sentido de pertencimento leva os que saem a voltar na época da festa. É assim a necessidade de valorização da sua própia cultura e portanto da afirmação da sua visão de mundo, de entrada na busca do sobrenatural e do tempo mítico da festa, que os impulsiona.” (MOURA, 1997) Para saber mais “O Instituto Socioambiental (ISA) é uma organização da sociedade civil brasi- leira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções de forma integrada a questões sociais e ambien- tais com foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patri- mônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. Desde 2001, o ISA é uma Oscip – Orga- nização da Sociedade Civil de Interesse Público – com sede em São Paulo (SP) e subsedes em Brasília (DF), Manaus (AM), Boa Vista (RR), São Gabriel da Ca- choeira (AM), Canarana (MT), Eldorado (SP) e Altamira (PA).” O Inventário Cultural do Quilombos do Vale do Ribeira foi produzido pelo ISA e pode ser acesso pelo link a se- guir: http://www.socioambiental.org/ pt-br/o-isa/publicacoes/inventario-cul- tural-de-quilombos-do-vale-do-ribeira Fonte: Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em: http://www.socioambiental.org/pt- -br/o-isa. O livro Estórias quilombolas, de Gloria Moura, pode ser baixado gratuitamente pelo link a seguir: http://etnicoracial.mec.gov.br/images/ pdf/publicacoes/estorias_quilombo- la_miolo.pdf
  • 63. 64 Práticas culturais SUMÁRIO Silvane: Deixa eu perguntar uma coisa, e vocês... que festas que vocês se lembram, assim, de quando vocês eram crianças? Datas que são importantes pra vocês, que tinha alguma comemoração... alguma coisa? {Festa?} Isso, pode ser festa religiosa, festa por algum... Maria da Glória/André Lopes: Ah, sim, tinha muita festa... Nós ia a muita fes- ta, é, no [ ], tinha festa religiosa, no (Casteriano) tinha festa religiosa, a gente ia tam- bém, no Nhunguara, é, tinha de (Santa Cruz), no Nhuguara. {Tinha de Santa Cruz, celebrava no dia (treze de maio), né?} É, ali a gente ficava três dia lá festando, três dia lá festando. Ali rezava, que nem diz nós, antigamente, rezava lá dentro da Igreja, depois de outro lugar lá chamado Romãozinho, Romão, né? Aí nós tinha uma cruz lá, nós ia lá. Adorava também, rezava, fazia procissão, fazia um... Pra nós, tudo era importante, a gente não conhecia [ ] só o que conhecia era isso mesmo. Ainda nós, porque minha mãe era muito religiosa, ia aqui no Batatal [ ] Eldorado [ ] depois que nós comecemos ter acesso em carro, né, aí nós não perdia a festa de Eldorado. Todas nós ia, parte de festa a gente conhece bastante, né, assim... religiosa. Antes, eu rezava, eu ia a festa, ia a baile, ia a tudo. Mas, aí, depois que... há uns doze anos atrás... que eu me converti, que sou evangélica, então eu não faço mais essa festa... O povo faz, né, aqui. Também eu não digo que não faz, porque cada (qual) tem a sua vontade, porque ninguém não obriga ocê. Se ocê não qui- ser ir, ninguém vai chegar, arrastar ocê pelo braço, “Vamos”! Então, se ocê quer ir, é porque ocê tá gostando ainda. Então, a gente já faz parte de outra parte. {Qual igreja a senhora frequenta agora?} Eu me batizei na Igreja Universal, mas agora eu sempre tô indo na Igreja Mundial, porque já fica mais longe a Universal, é lá na cidade. E aqui em Caraguá, quando nós vamos, só quando ela faz lotação, aí que a gente vai por ela. E às vezes os irmãos vêm aí na igreja, da igreja, vêm aí em casa [ ] eles vêm aí, trazem Santa Ceia pra gente... E aí a gente vai levando a vida, até Deus quiser... (Dona Dolores/Caçandoca) Hoje eu não sou católica, mas sou evangélica, mas isso não muda nada... {Qual igreja a senhora frequenta?} Eu sou da Congregação Cristã. Até hoje não muda nada, não mudou nada, porque o amor é muito grande. Se você não tem amor, você não tem nada... {E quando a gente faz as festas aqui da comunidade, da Nossa Senhora Aparecida, ela sempre ajuda, a Maria sempre tá junto. Porque a gente faz azul-marinho pra vender também, e aí ela é uma das que tá sempre junto, independente se ela participa ali da missa, tá lá cozinhando enquanto a gente tá celebrando, mas aí tá junto, né, não tem essa separação.} {Não deixa que atrapalhe, né, a cultura} Não atrapalha nada, eles gostam. Eles tiveram uma missa que eles fizeram lá em Caraguá, lá na festa, eu pensei assim, “O que é que eu vou dar pra tia Rosa e a tia Maria levar lá, pra apresentar lá, o que é que eu vou dar pra eles?”, porque eles vão encontrar um encontro, não tem ninguém... Se fosse outra pessoa, nem pensava nisso: “Eu sou da outra igreja, porque que eu vou pensar na igreja deles?”. Mas o amor que a gente tem um pro outro, aí eu pensei “Sabe o que eu vou fazer? Umas tranças trançadas”. Essas paia que tá
  • 64. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 65 SUMÁRIO aqui na parede, eu peguei, fiz a noite inteira as paia, e elas levaram, e foi falado muito bem. Eu falei, o amor não separa, porque eu acho que o que separa é o egoísmo das pessoas mesmo. Mas eu sempre tô junto com eles, sempre. “Vamos fazer isso?”, vamos fazer, só que eu não danço, eu não bebo com eles, mas o im- portante, “Vamos rezar?”, não, tem que fazer a comida, eu vou lá, eu faço. “Dona [ ] vamos fazer qualquer coisa, não sei aonde, cê vai lá?”, falei “Tô, vou fazer”. Então, eu sou assim, eu acho que o amor é importante, o amor, a caridade é muito importante, não adianta nós termos tanta coisa e o coração duro, não adianta... (Dona Maria da Conceição Machado/Caçandoca) Hoje a dificuldade que tem hoje, nossa, hoje nós tamo aqui. Hoje, aqui, tem (minha irmã) da Deus é Amor, minha tia da Cristã do Brasil, aqui é Cristã do Brasil, católico, tal... Mas, antes, nós tinha muita dificuldade, hoje nós tamo tendo uma facilidade pra reunir hoje aqui. Se fosse aí há dez anos atrás, ela tinha dificul- dade pra falar isso, eles tinha dificuldade pra falar isso. Hoje não, hoje... o pessoal começou a entender que não tem nada a ver religião com cultura, cultura é cultu- ra, religião é religião! Então, por exemplo, o pessoal começaram a entender. Não tem nada a ver, por exemplo, se ele não falar o que o mais véio dele falou pra ele, eu não vou saber, o nosso pessoal agora não vai saber. Então, quer dizer, o pessoal tá começando a entender isso... Então pra que a gente... a preocupação nossa é que isso não se acabe, por exemplo, ele acabe o tempo dele de vida e leve com ele só, e eu não aprenda, ela vá e ele não aprenda, eu não aprenda, tá entendendo... Então a preocupação é nesse sentido, o que que a gente pensa? Pensa que, amanhã ou depois, o mais rápido possível, que nós já tamo atrasado já, que a gente conseguisse, por exemplo, aproveitar isso. Nós tamo falando aí, por exemplo, tem muito remédio que a minha mãe sabia ou sabe até agora, que (tá em vida) pra fazer, que eu não sei, meus filho não vão saber, muito menos vão saber meus neto, daí que não vão saber memo! Quer dizer, e aí o que acontece, nós vamos ter que correr atrás do quê? Do médico. E tem coisa que a medicina não alcançou ainda, e coisa que nós já tinha, nós perdemos, que é o remédio da recaída. O médico não tem remédio pra recaída, e nós temos. { } Então a dificul- dade da gente conseguir armar esse... fazer, talvez um... botar no papel, é essa dificuldade, que nós tamo hoje tendo aqui mais facilidade pra que a pessoa possa se abrir. Falar não, eu não faço mais hoje por que eu tenho uma religião. Só que eu sei, eu fazia, eu posso ir até aqui, daqui pra lá... O que que nós colocamos aqui, coloquemos várias vezes, por exemplo, faz uma festa aqui, religiosa, não precisa o evangélico vim participar da festa, mas ele que dê a dica o que ele fazia antes pra gente tentar fazer. Pra que, não vai servir pra ele, mas vai servir pra que, pra educação dos que tá vindo agora, porque, se perde a cultura, o que aconte- ce? Vocês sabem o que eu tô dizendo, o sistema mudou. Por que que isso ficou atrasado? Porque foi implantado o quê? Foi implantado um sistema novo. Então, esse sistema novo... eu já fui pro sistema novo! Quer dizer, eu esqueci da sanfona, eu esqueci da colher! Tem (nego) nosso aí antigo, que, se ele pegar uma colher,
  • 65. 66 Práticas culturais SUMÁRIO travar ela aqui do lado e bater aqui o pessoal fica bobo... “Puxa, como que essa colher faz tanto som...”, né. E hoje não, né, hoje mudou... Então nós temos mais pessoa, até nós esperava que vinha mais pessoa da comunidade aqui, que conta história que eu memo fico assim olhando, falo: “Eu não acredito que tem tanta coisa assim e nós tamo aqui...” {Fazia uma viola de bambu que também servia pra dançar. reproduz o barulho da viola} (Seu João/André Lopes) Nas festas, tinha a função de batizar as prendas. O [ ] entregava a prenda e perguntava “Quanto vale isso aqui?” e ele colocava o preço. As prendas eram frango, leitoa, cabrito assado. A festa era feita para beneficiar as pessoas do bair- ro. A festa era promovida por um centro espírita. Tinha também a festa de Santa Cruz, comemorada no dia treze de maio. Tinha muita comida, entre elas o bolo (apressada) feito de rapadura, clara e gema de ovo e goma (polvilho). Na festa, tocava um sanfoneiro bom, craque da sanfona – Dito Malaquias – e dançava-se forró. Tinha violão também, quase todas as pessoas sabiam tocar violão em Can- gume. (José Gonçalves/Cangume, Paiolada) Antigamente, o pessoal era muito religioso, né, (de ir numa) festa, cê... a festa começava sexta-feira, só vinha segunda-feira... {Hoje já não tem mais?} Não, agora, se tem uma festa, né, (Rosa), o padre já vai no dia e já volta, não fica no... né, antigamente o padre ia sexta-feira à tarde, ficava sábado o dia inteiro, domingo o dia inteiro e vinha segunda-feira de manhã, não era? Eles traziam o padre embora. Agora o padre pega o carro e vai, a missa é três hora da tarde, vai as três hora, vai na missa, procissão, embora! Acabou a tradição antiga! (Dona Marisa/André Lopes) Olha, eu acho que, desses bairro por aqui, o único que não tinha muita festa assim, festa assim religiosa, acho que foi aqui {Foi aqui?} Aqui não teve muita festa religiosa, até porque aqui, deixa eu lembrar um pouquinho... acho que a primeira igreja católica, igreja memo, católica, foi essa aqui, porque não tinha igreja aqui. O que a gente fazia – eu lembro que eu era moleque, Marisa já era moça –, minha mãe, o pessoal ia pro Sapatu, Nhunguara, Ivaporunduva. Até porque, eu sempre comento com o pessoal sempre aqui, o morador do André Lopes era três, quatro, o pessoal morava tudo pra dentro, pra lá. Na verdade, o André Lopes era pra lá, então quem morava aqui era poucas família que tinha aqui... era meu pai, o meu tio... antes deles era o avô, aí tem o pessoal do Maia aqui também... {(Ana) Maia e Maria Maia.} Então era quatro, cinco, só, então não tinha necessidade até de ter, fazer igreja. Aí foi cres- cendo, crescendo, o pessoal frequentava Sapatu, que tinha uma igreja – eu lembro até agora que tinha uma igrejinha dos (Vitalino) ali – e depois Ivaporunduva. Era Sapatu, Ivaporunduva e Nhunguara, era isso que o pessoal fazia, o pessoal fazia mais isso. Então ficou aqui fazia mais festa, mas era mais festa de puxirão, puxirão. Eu lem- bro, quando eu era moleque, meu tio fazia bastante baile ali, que era puxirão, né... Então já não era, assim, festa religiosa... {Como que era essa festa de puxirão?} Essa festa de puxirão, que hoje é mutirão, mudou, mutirão, que eu não sei porque, mas é puxirão, na nossa língua é puxirão, é... reunia, por exemplo, ia fazer uma colheita de arroz, colher arroz, aí reunia cinquenta pessoa, trinta pessoa. Aí ia lá todo mundo,
  • 66. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 67 SUMÁRIO colhia o arroz no sábado, né, o dia todo, e já ficava o pessoal – inclusive é coisa que a gente tá tentando resgatar isso –, ficava as mulher, (aquele) homem ia pra roça, ficava fazendo... fazendo, socando arroz, fazer cuscuz, fazendo comida, fazendo, tal, aquela (cutuca) que eles apresentam por aí, é aquilo que o pessoal fazia. Já começava a socar o arroz, o feijão, o que tinha que fazer, que era pra preparar o almoço, aí ou levava o almoço na roça, ou fazia na roça. Aí à tarde o pessoal vinha todo mundo pro baile, aí vinha Nhunguara, vinha..., né, todo mundo... {Os homem trabalhava de dia, né. O que ia cozinhar... as mulher que ia cozinhar, ia cozinhar, aí os homem ia pra roça. Quando era à tarde, aí chegava já as mulher dos cara que tavam trabalhando, né, chegavam tudo à tarde, aí era aquele forró até amanhecer o dia!} Amanhecia o dia... {Minha mãe cozinha ni velório, cozinhava ni mutirão, cozinha ni festa...} {Canseira não existe?} {Não, eles chegava da roça, né, João, tomava um banho e dançava a noite in- teira.} {Chegava domingo ainda dançava o dia todo.} {Aí eles dançavam a (cobrinha), o xote...} {E os instrumentos no baile? Era o quê? O violão...} {Viola, né, sanfona...} {Sanfona também, e percussão, atabaque, essas coisas, não?} {Não.} {Tambor, não?} {Pandeiro, colher, não tinha colher? É... pregava as colher, juntava [ ] até [ ] fazia o povo dançar.} (Seu João/André Lopes) Existia também a festa do São Gonçalo, né. {Ah, é, a de São Gonçalo, né, que foi feita lá no Zé Vieira, né. Uma no Zé Vieira e outra em Ivaporunduva.} {O São Gon- çalo eu nunca vi...} {É uma tradição muito bonita, né, Zé?} {Diz que é muito bonita... eu nunca vi.} Muito bonita... é (no meio dos violeiro) tocando viola e a pessoa dança tudo de... de, assim, um pegando no ombro do outro, na frente, feito fila, fazendo aquela... em vorta do violeiro, o violeiro no meio dançando também. E, resultado, aí quando chega (numas hora) a gente encontra o par e fica do lado. Por exemplo, se eu quero casar com ela, eu conto os par e fica assim oiando, de repente eu caso com e vou, continuo andando. Aí a dança vai, continua assim, né, fazendo aquela vorta assim, batendo a mão e cantando, o violeiro tocando e cantando e a pessoa dançando e, de repente, é... é só viola! E aí chega uma hora que ele faz tipo uma parada, assim, pra fazer uma comemoração e continua de novo. É a noite inteirinha dançada assim! {Que dia que é?} {No dia de São Gonçalo.} {Tá, mas no dia de São Gonçalo, que mês é?} Agora, aí... o mês eu não... Só sei que é a dança de São Gonçalo. {Quando eles resolvia fazer, eles fazia, eles não tinha mês certo.} {Ah, não tinha dia...} Qualquer dia (eles podia fazer)... {Era o nome da dança?} É, é uma dança religiosa, não tem, tipo assim, é uma dança religiosa, em comemoração a São Gonçalo... {Inclusive eles cantava, né, acho que essa São Gonçalo é aquela que falava assim: cantando São Gonçalo [ ]} É. {Minha mãe cantava muito isso e a gente gravava.} {cantando Arre viva, arre viva São Gonçalo.} {Canta aí?} {A Maria sabe, ela sabe.} {Canta aí, Maria.} (Seu José da Costa/André Lopes) [...] e quando tinhas as festas, nosso pai não deixava nunca a gente ir numa festa sozinha. A gente sabia que tinha na casa, a gente ia na casa de um amigo lá que tinha roça, a sua roça, você limpava um pedaço grande e falava “Olha, gente, eu vim convidar todo mundo pra nós plantar a minha roça, plantar minha mandioca”,
  • 67. 68 Práticas culturais SUMÁRIO que é o aipim que a turma fala. Aí, ia tudo mundo na casa dele, aí, quando chegava no dia de sábado, quando chegava no dia de sábado, ele tinha uma casa grandona, como se fosse aqui, chegava lá, era cinco horas, todo mundo acabava o serviço, agora os pessoal vão ficar pra um baile de pé que vai ter, uma dança. A gente que era nova não gostava daquilo, nunca gostava, falava assim “Ah, eu já tô cansada de levar mandioca na saia pra plantar” [ ] ainda tinha um que olhava se você plantava certo, ele ficava olhando, que não podia ficar uma cova sem plantar. A gente cansava, porque ia numa pra lá, depois os homens vinham pra cá, plantava tudo aquilo ali. Aí, quando chegava à noite, a gente tinha que dançar o bendito bate pé! (...) era dez par. Aí, quando os homem batiam o pé, tinha que ficar atento, quando ele batia o pé, a gente ia tudo rodando ali, (tudo barata) tonta rodando, rodando, dançava, aí dançava. Aí, depois, na segunda volta, aí você tinha que cobrar dele, você que tinha que tirar ele. Não podia trocar, se você trocasse, acabava o baile, você não ficava com mais ninguém! Isso que eu achava errado, parecia gozado, a gente trabalha pra todo mundo, vai não sei aonde, aí não pode escolher o par, botava aquele bendito lenço no lampião lá, aí era pra você tirar, você tinha que dançar. Porque o baile era baile de verdade, mas você tinha que dançar... o lenço botava lá, aí a dama que tirava o cavalheiro. Aí, se você dançou com ele, você não podia tirar ele não, ele ficava lá, coitado! Ficava lá esperando quando vai sobrar, falava assim “Quando que vai sobrar uma morena dessa pra dançar comigo?”. Eu falei pro meu pai, eu falei assim pra ele, foi na casa da tia Rosária, falei “Não me leva mais em baile nenhum, que eu não vou dançar com mais ninguém. Desaforo, ah, esses homens com a toalha no pescoço pra gente dançar com os moços!”. Ele falava “Ó, filha, esse é o respeito, todo mundo vai numa festa, tem que pagar a festa, ele tinha que pagar festa pros amigos, o jitório (ajutório) dele era numa festa, num baile, um mutirão, que ele fazia um mutirão. Mas a gente ficava tonta demais com aquilo, mas era gostoso. [...] Tem dia que eu passo pro meus filhos em casa, eles ri, fala “Coitada da minha mãe, odiava, mas dançava, né, mãe?”. Falei “Dançava, vai fazer o quê. Porque se não dançasse com aquela pessoa, não dançava com mais ninguém”. Nós sofria, ela [Dona Rosa, que estava presente na conversa] falava assim “Poxa, Maria, mas aquele moço tão lindo, porque que tem que esses diabo dançar com nós?”. (Tinha os moço bonito.) Daqui a pouco os velhos botavam fogo. Eles, além de tá cansado, de cavocar barranco, cavocar terra, por que eles não sentava? risos (Dona Maria da Conceição Machado/Caçandoca) E nessa época nós tinha que usar sapato, ninguém usava sapato não. Aquele que usava sapato, tinha um baile, às vezes vinha por dentro da mata, passava num cór- rego, vinha com o pé no chão, assim, pisando, trazia o sapato (nas costas). Aí passava o córrego e lavava o pé, calçava o sapato e ia pro baile, dançava no baile a noite inteira, outro dia bem cedo todo mundo tirava o sapato do pé também, a maioria carregava nas costas {no caminho não usava sapato} [ ] não usava sapato não. Andar pela mata, andar por espinho, no manguezal [...] era pra não machucar o sapato, porque o sapato era caro... não tinha negócio de bota, não existia. Bota veio de uns dias pra cá [...] O cara ia roçar um mato aí que tinha nhupindá [jupindá], tinha tudo. Mas só que o nhu-
  • 68. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 69 SUMÁRIO pindá [jupindá] é um espinho grande, o cara ia descalço, ia descalço porque não tinha sapato pra calçar. Eu mesmo, quantas vezes, eu só calcei bota depois de vinte anos {E quando entrava o espinho no pé, tem uma história que fala que o pessoal, pra não atrapalhar de andar, eles batia o espinho pra dentro da sola do pé} [...] E agora, um dia de hoje, num tempo de agora, tudo mundo tava aí, ó, fazendo mutirão pra colher arroz, fazendo puiuva. Tinha a tal de puiuva, que era até meio-dia. Outro ia fazer mutirão in- teiro e fazia mutirão inteiro, aí tinha de dar almoço, janta e forró à noite e café outro dia. E, agora, quem fazia puiuva só dava o almoço e os caras iam embora, a janta, nem que tivesse um forró de noite, mas a janta ele não dava, ia gastar mais... Mas o cara já sabia, puiuva até meio-dia só, agora quando é mutirão, aí vai até de tarde. O puiuva também tinha o baile, mas só que não dava janta, não tinha café da tarde, {Eles trabalhavam até meio dia, ia embora, almoça em casa} depois de noite eles vinham, se a dona da casa dissesse que ia fazer o forró. (Sr. Antônio Furquim/Sapatú) Então, essa história que a gente tá falando assim de andar com o sapato nas costas, na corda, no Pedro Cubas também era assim. A gente vinha pro Batatal, até a criançada e a meninada, dia de domingo. Vinha, mas vinha todo mundo descarço e trazia o sapato pra carçar. Antes de chegar na Barra, tinha um corguinho que era o lava-pé, que nem ele falou, onde todo mundo lavava o pé. Ficou com o nome de lava-pé. Todo mundo que vinha, antes de chegar no Batatal, descia lá no córgo, lá no fundo, fora da estrada, descia lá, lavava o pé e andava com um pano, igual [ ] falou, enxugava o pé, lavava e carçava o sapato e vinha, chegava na Barra já de sapato. Na vorta, tirava de novo pra vortar pra casa. (Dona Esperança/Sapatú) [...] era pra não machucar o sapato, porque o sapato era caro... não tinha ne- gócio de bota, não existia. Bota veio de uns dias pra cá [...] O cara ia roçar um mato aí que tinha nhupindá [jupindá], tinha tudo. Mas só que o nhupindá [jupindá] é um espinho grande, o cara ia descalço, ia descalço porque não tinha sapato pra calçar. Eu mesmo, quantas vezes, eu só calcei bota depois de vinte anos {E quando entrava o espinho no pé, tem uma história que fala que o pessoal, pra não atrapalhar de andar, eles batia o espinho pra dentro da sola do pé} [...] Tinha gente que fazia isso mesmo! (Sr. Antônio Furquim/Sapatú) [...] é, o espinho, ele saía depois que... O espinho, quando ele tá vivo no pé, ele não sai, não é fácil tirar. Depois que ele inflama lá dentro da carne é que era fácil tirar... E o meu era cravado de espinho de brejaúva {É?} Verdade. Eu trabalhava e eu ia pro mato, ia trabalhar na roça com meu pai. E em queimada e na prantação de arroz, quando roçava o caporão, tinha bastante brejauveira e, na queimada, o espinho fica- va. A gente ia trabalhar, pisava naquela cinza da queimada, enchia o pé de espinho de brejaúva. (Dona Esperança/Sapatú) As moças eram espertas também. Sabe, como, o que fazia a gente dançar mais depressa? Botando um sapato no pé. “Ele tem sapato”, falava pra outra, aí vinha dançar com ele, porque ele tinha sapato. A pessoa que tinha mais dinheiro, na época, que podia comprar sapato. Nessa época, ninguém usava sapato, usava sapato muito
  • 69. 70 Práticas culturais SUMÁRIO pouco as pessoas, porque era difícil sapato {Se chegasse no baile com sapato, já fazia sucesso} Porque é difícil sapato, pra comprar é difícil, tinha que mandar fazer, era difí- cil. Então, aquele que usava, é porque tinha dinheiro, mandou fazer sapato. Então, as moças vinham dançar com ele porque tinha sapato [ ] Outra era assim, pegava moeda de quatrocentos réis, duzentos réis, trezentos réis, moeda antiga que tinha, ensacava no saquinho, os homens, e amarrava aqui pra sapatear, na canela, pro saquinho de moeda ficar batendo no sapato, que fazia barulho. “Oh, lá, aquele tem dinheiro”. risos (Sr. Antônio Furquim/Sapatú) O carnaval, é assim... O carnaval, quando as moças usavam, faziam farinha, tiravam aquela goma de farinha, carimã que falava, tar de carimã, passavam na mão e passavam no rosto do cavalheiro dançando [ ] então as moças vinham e passavam aquela goma, é um negócio assim cheiroso {Carnaval, né?} Mexia tudo assim, ficava bem cheirosinho {Ah, o carnaval} Então ia chamar as pessoas, as damas, e a dama já vinha com o carimã na mão pra passar (no cara), pra dançar. Aí, quando o rapaz gostava da moça, ele até dormia, assim {Mas quando não gostava...} Quando não gostava, fazia assim, quando a moça não gostava do rapaz, só fazia assim só faz gesto de passar o dedo bem rapidamente. Aí, quando gostava, passava bem assim, degavarinho assim... risos (Sr. João/Sapatú) Legal também que, naquela época, não tinha luz elétrica, era tudo na base do lampião de querosene. E o instrumento que tocava era feito daqui mesmo, não tinha como comprar nada de fora, até as cordas, a madeira, era tudo madeira boa, fazia o instrumento, a rabeca, o violino, o violão. Era tudo feito aqui mesmo {O pessoal daqui que fazia?} {Tinha já os tocadores} E tinha já os tocador aqui {E isso já perdeu ou vocês ainda tocam?} Hoje tem a dança {É difícil encontrar} [ ] {Que madeira que usava pra esses instrumentos, você lembra que tipo de madeira que era?} {Os violão naquele tempo era tudo feito de madeira forte, canela} A rabeca era daquela cabaça, o violão era tudo de madeira mais forte. {Violão era madeira tudo forte} [ ] {E as cordas eram feitas de tripa de macaco, não?} {Linha de tucum, hoje é tudo comprado, fazia rede, tirava aquela linha pra fazer rede, pra caçar peixe, linha de tucum} {E o som, como que ficava?} O som ficava muito bom! {Tem de nylon e tem daquela de aço} Só que a de nylon não ficava muito bom igual aquela de aço {De crina de cavalo?} {De crina de cavalo tinha, pai?} {Tem até hoje [ ] a rabeca de hoje em dia, a turma... o cabelo, o rabo do cavalo...} (Sr. Antônio Furquim/Sapatu) É, uma comunidade difere de outra nesse sentido. Uma comunidade, às vez, tinha a rabeca, outra não tinha. Outra tinha sanfona, outra não tinha, e chamava a ou- tra comunidade que tinha; se não, fazia só o baile de violão, né, três, quatro tocador ali revezavam a noite e cantando música típica daqui mesmo. Já tinha música, tipo assim, São Pedro tem uma música típica deles lá, eles mesmo compunham a música deles, Pedro Cubas {Cada um tinha as suas músicas.} Então a gente tem as música tí- pica de cada comunidade e ali cantava a noite inteira, né, e dançava, então era assim {E essas músicas vocês sabem ainda?} Sabemos, a gente ainda sabe bastante delas. (Dona Diva/Pedro Cubas)
  • 70. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 71 SUMÁRIO Alimentação As narrativas das/dos quilombolas mais velhas/ os das comunidades re- metem, muitas vezes, à alimentação. São lembranças das comidas que faziam parte da sua infância no quilombo, de pratos típicos presentes nas festas de santos, de casamentos ou mesmo nos forrós dos puxirões. Podemos perceber uma alimentação baseada nos alimentos que elas/ eles mesmas/os plantavam e nos animais que criavam nas comunidades. Pouco ou nada se comprava fora: “somente o fósforo e o sal”, o restante era produzido na própria comunidade. Podemos dizer que a culinária quilombola possui uma base afro-in- dígena, com muita farinha de mandioca e peixes, frutas, hortaliças e legu- minosas. Além disso, é possível perceber a presença de carne de caça (paca, capivara, tatu, entre outros animais, dependendo da região) e da criação de galinhas e porcos. Eu sou [ ], nascido e criado aqui na região. Passei muitas calamidade, casei com a minha primeira mulher, fui infeliz, fui [ ] Vivemos quinze ano só de vida; ela foi, eu fiquei. Hoje Deus preparou outra esposa pra mim, com essa nós vivemos já faz vinte e seis anos. E a nossa cultura é como ele... era dessa maneira, morava no sertão aqui, trabalhava... Enquanto meu pai... antes de entrar a luta do palmito, meu pai não (se negava) a trabalhar, plantava mandioca, plantava milho, plantava feijão, plantava arroz, plantava de tudo. E cana, ninguém tomava café de açúcar, era o caldo de cana, o café ficava até pesado, gostoso. Hoje não se fala em caldo de cana, é em açúcar... aquele que... aquele açúcar refinado... Então, a nossa cul- tura foi dessa maneira. Comia carne de porco, carne de caça e, quando se matava um gado aí, (quarquer um tinha matado gado), meu pai tinha por capacidade de comprar, de descarnar (o gado), e comprava aquelas costela, tudo a (espinhaça- da) do... da armação... do... do gado, pra nós comer... E, mas isso já foi já quase no fim, porque no começo nós fomos mesmo... [ ] o palmito, a luta do palmito, ele achou que o palmito trazia felicidade, ele largou de tudo aquilo, ponhou nós tudo em cortar palmito. (Sr. Assis/André Lopes) Quando eu era criança, comia feijão com farinha. Não tinha arroz, feijão, fa- rinha e peixe. A gente não plantava arroz, e comprava arroz de vez em quando, (o pai) ia na cidade comprava e trazia. Mas a gente quase não comia, a gente comia mais é feijão e farinha, peixe, pirão de peixe, marisco, saquaritá, pindá, que fala que é ouriço do mar, é isso que a gente comia. {Vocês também iam pescar, ou só os homens?} Não, meus avós que pescavam, meu avô pescava, meu pai pescava {Só os homens, né?} É, só os homens que pescavam. Isso que a gente comia... Tinha o arroz, mas a gente não ligava muito, porque fazia muito pirão. E café da manhã tinha café de cana, banana cozida, mandioca cozida... {O café de cana era
  • 71. 72 Práticas culturais SUMÁRIO adoçado com melado?} Não, fazia a garapa, fervia o caldo da cana e depois passa num coador com pó, aí ficava o caldo de cana, não precisava nem adoçar, que a garapa já era doce. {Ah, tá. Esse que é o café de cana?} Café de cana {É, passar a garapa no pó de café mesmo} No pó de café, é muito gostoso {Em vez de fazer com água, faz com a garapa, mas quente?} Quente, passava quente pra dar [ ] Ficava forte, gostoso. (Dona Maria da Conceição/Caçandoca) Quando chegava em casa era aquela coisa que a gente tinha que fazer. Almoçava o que tinha, comia o que tinha e ia ajudar minha mãe plantar man- dioca, carregar banana, arrancar feijão. Nós tinha uma roça que era lá pra cima da casa do tio Luís, do caçula. Nós morava aqui no bairro alto e daqui nós ia lá pra Raposo, atravessava a Raposo e ia lá pro Saco da Banana, pra um lugar cha- mado Palmito, onde nós morava também, nós tinha um sitiozinho lá no Palmito. Então, lá que nós ia buscar, atravessava o morro pra ir plantar lá, porque lá que dava bem feijão, que dava bem o milho, porque nós já tinha as coisas plantado lá [...] O que nós tinha pra comer, era norma, arroz ninguém tinha mesmo, era feijão com farinha, era peixe com banana, que agora é prato chique, que agora é azul marinho. E, quando não tinha isso, eu lembro até hoje que nós ia cortar banana, banana verde, e nós tinha um pilão grande, e o Jaja, meu irmão, era apelidado de Jaja, ele era muito guloso, e aí eu cozinhava a banana e eu botava dentro do pilão e o Jaja ia socando a banana, a banana verde, botava água, pra fazer aquela paçoca. E, quando chegou um dia, eu virei tão rápido a água quente, que ele bateu assim no pilão, espirrou tudo nele, no peito dele, coita- do. Ele saiu xingando, brigando comigo... Ou casamento ou festa, tudo tinha que ser muita comida, tinha que ser muita comida {Todo mundo ajudava, cada um dava uma coisa}. Na casa da minha vó, quando vinha Folia de Reis, não é de reis não, a Folia do Divino Espírito Santo, era três dias na casa da minha vó, vovó Rosária. Minha vó criava galinha e pato pro ano inteiro, criava o ano inteiro pra comer em três dias, e a minha vó tinha um salão enorme na casa dela, tinha uns quartos pras pessoas que vinham de fora dormir, ficava dois, três dias na casa dela. Enquanto não acabava tudo, ninguém ia embora. Aquilo ali não era duas, três pessoas, era cinquenta, sessenta pessoas. Todo mundo que vinha, almoçava, almoçava e jantava e tomava o café da manhã. Era muita fartura anti- gamente, era pobreza, mas o pessoal aproveitava muito, porque criava... Tinha galinha, tinha pato, tinha porco, plantava feijão, milho, cana, banana, isso tudo tinha muito, com fartura... A única tradição que a gente nunca deixou de fazer é o doce de mamão, até hoje a gente faz doce de mamão, toda festa que tem... {É um doce de mamão que você vai... não sei se você já comeu aquele fatiado... descasca todo o mamão verde e vai fatiando ele assim, tipo um espelho, e aí é feito aquele caldo de açúcar, calda de açúcar, queima o açúcar. Com mamão verde, porque tem vários tipos de doce, mas esse é bem tradicional aqui.} Esse é o mais tradicional que a gente costuma fazer. E o peixe com banana, que esse aí não pode faltar. {É, o com banana verde.} O azul marinho cozinha a banana
  • 72. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 73 SUMÁRIO nanica sem casca. A banana a gente faz assim: a gente descasca ela, tem que descascar debaixo da água, pra não ficar com a mão tudo roxa, preta, por causa da cica da banana, então, vai descascando debaixo da água e aí você pega uma panela com água e põe no fogo pra ferver. Aí põe as bananas pra ir cozinhan- do, aí, depois, você tira a banana e põe no peixe pra cozinhar, naquele caldo da banana. Aí você amassa, deixa uns pedaços pra pessoa saber que é bana- na. Agora, quando é pra nós, a gente já deixa a banana inteira. Quando é pra vender, assim, fazer pra uma festa, a gente já separa a banana e faz o pirão. Aí amassa a banana já com aquela sobra do peixe, que a gente cozinha a cabeça, aquelas coisas todas, passa na peneira e deixa assim pronta pra fazer o pirão. A gente tempera aquele caldo do pirão com cebola, alho, aquelas coisas todas. Aí faz um pirãozão lá e serve junto com o peixe e o arroz. O caldo de peixe com a banana e as postas do peixe {Ele fica azulado por causa da banana?} Não fica azulado {É que antigamente era feito na panela de ferro, e, aí, aquela fervura, ela ia soltando o azul} Ela ia soltando o azulado, agora a gente faz em panela de alumínio... e o nome é azul marinho, mas agora não fica mais azul, porque a gente não tem mais aquelas panelas. Porque eram umas panelas de ferro que tinham umas tetinhas que ficavam assim, ela tinha uns pontinhos assim, era uma panelona grandona, mas ela tinha uns pontinhos que firmavam ela, que segura- vam ela. Então chamava panela de ferro, ela tinha um apoio da própria panela, e Modelo de armadilha (seu Vandir) - Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. ©Silvane Silva
  • 73. 74 Práticas culturais SUMÁRIO o pessoal cozinhava naquela panela. Então, era aquela panela grandona, enor- me assim, então ali é que ela soltava, acho que por causa da tintura da panela também, ela soltava aquele caldo, aí ficava azul marinho, aquele caldo roxo. Tem que comer pra ver como que é. Porque, agora, assim, a gente não tem mais essa panela, então a gente faz na panela comum, então quer dizer que ela não fica com o caldo escuro. {Tem gente que cozinha a banana com casca pro peixe ficar azul.} Sabe o que é o problema? Por que a banana, eu já vi gente fazendo, eu fui provar, ela fica com cica, ela fica peganhosa o pirão por causa da cica da banana. (Dona Rosa Gabriel/Caçandoca) Conversando sobre cura de doenças e parteiras As comunidades, em sua maioria, estão localizadas em regiões de difícil acesso. Isso tem a ver com a própria história das origens dos quilombos, que precisavam se instalar em áreas estratégicas. Deste modo, até hoje o poder pú- blico ainda é muito ausente nos territórios quilombolas. Postos de saúde são raros e, quando existem, os médicos só aparecem por lá de quinze em quinze dias, ou uma vez por mês. Também é grande a dificuldade para que os qui- lombolas consigam chegar aos postos e hospitais na cidade. Em caso de partos e doenças, os serviços de parteiras, benzedeiras e das/dos mais velhas/ os que sabem o poder das ervas e raízes ainda é utilizado. Porém, é possível perceber em algumas falas que esta atividade vem di- minuindo muito com o passar do tempo. Seja pelo desinteresse das/dos mais jovens em aprender os ofícios curativos das/dos mais velhas/ os, seja porque a presença da televisão e das/ dos médicas/ os da cidade façam acreditar que a cura por meio das ervas e o parto feito por parteiras são coisas perigosas e arriscadas. Porém, em suas lembranças, as/os mais velhas/ os falam sobre o grande e intenso conhecimento nas artes da cura e a grande sabedoria e competência das parteiras nas comunidades quilombolas ao longo dos anos. A partir de sessenta houve alguma repressão. As parteiras já não podiam mais porque se morresse uma mulher na mão da parteira ela podia ser presa, porque não podia e tinha que ir pro hospital. A partir daí começou esse negócio da mulher ir no hospital. Os benzedor, os fazedor de remédio foi chamado de feiticeiro. Diziam que tomassem cuidado com eles que eles eram feiticeiros e por essa razão os mais novo também não quiseram aprender. Ficaram com vergonha de saber aquilo que os mais velhos sabiam. E os mais velho foi morrendo, não foi passando pros mais novo, então essa parte da história também nós perdemo bastante. (Sr. Ditão/Ivaporunduva)
  • 74. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 75 SUMÁRIO Laura/Galvão: Nós tinha parteira {Eles respondem, eu respondo depois. Eu memo, meu fio e minha fia primeira foi na mão de parteira, depois pra dentro de Iporanga, mas os três que eu tive aqui, foi tudo daqui. A mãe dela e a irmã da mãe dela, são tudo irmã de comádi Jovita, a (Doraci) e a Horácia. Então meus filho, graças a Deus, nasceram na mão deles, eu não tenho do que recramar não {[ ] foi a minha mãe que fez o parto} {Sua mãe?} {Vai fazer vinte e cinco ano.} Meu filho tem, tá com vinte e sete, fez ano [ ] de fevereiro, foi nascido na mão dela. Silvane: Vocês ainda [ ] ou ainda usam remédios daqui mesmo, feito de plantas, chás? Laura: [ ] verdade eu não sou assim de levar muito criança em médico não, se eu souber assim o que a criança tem exatamente, assim, eu já costumo fazer o remédio aqui do mato. Caso não sare, aí eu levo pra cidade [ ] E é muito difícil meus filho usar remédio, graças a Deus. Também, todos eles mamaram. Até o mais pequeno que eu tenho, que vai fazer cinco ano, mamou até quatro ano e onze meses. E o leite materno também, né, ajuda muito a prevenir várias doenças também, né, e aí aqui as mães têm o costume de dar de mamar até a criança en- joar. Igual essa menina que tava aqui, que é filha dela, e minha nora, meu netinho ele mama no peito ainda, três anos. {Mama até a hora que quiser.} Até a hora que quiser, depois que enjoou, largou; larga por conta própia, sabe, e eu acho que isso ajuda muito, bastante também, né, a prevenir. Silvane: Quais são as ervas que vocês ainda usam? Laura: Eu, assim, dependendo da doença, né, que a criança, quando é gripe, resfriado, a gente usa assim, e bicha também, quando a gente [ ] de susto, usa poejo, é erva-doce, hortelã, né? Hortelã... É os remédio que mais usa aqui. Tem erva-santa-maria também, que a gente mistura e faz um cozido. {Faz cozido?} É, faz cozido, assim. Chifre, né, de boi, que a gente tira também. {Torra e raspa, né?} É, tem, pode fazer raspado, como que é... torrado, queimado ali, raspa, e cru também, tem duas forma de usar ele. Essa aqui (indicando Dona Jovita)é es- pecialista em remédio pra, como que é... quando a criança tá com bicha virada, como que é... bucho virado que fala. Essa aqui é especialista em fazer remédio pra criança, já tem tirado muitas crianças da sepultura. {Ah, é?} É, tem um remédio que ela faz, pra mim mesmo quando eu era criança, quando eu era criança ela fez um remédio. Eu tinha uma dor de estômago insuportável, sabe, e ela fez o remé- dio assim pra bicha, sei lá. Nossa, só tomar, chegar no estômago, pronto, acabou a dor. E, nossa, era direto, direto. comentários simultâneos {[ ]} Dona Jovita/Galvão: Agora o mais emocionante foi a menina, que hoje em dia é mãe. Tuda vez que eu óio nessa menina, glória a Deus [ ] Fazia quatro mês que os pai levava, ficava internada, vinha embora, levava, ficava internada. A mãe fazia, fez de tudo. Quando o médico despacharam ela, que trouxesse pra casa, pra morrer em casa, ai, uma menininha tão lindinha. Daí eu tava trabaiando, não
  • 75. 76 Práticas culturais SUMÁRIO sei se ele deram, pararam pra [ ] a balsa ali, pro lado não tem o bananal? Então, eu tava trabaiando naquele local ali, tava até fazendo uma empreita lá. Daí eles vinham atrás, tinha mandado chamar o pai deles, que tava trabaiando lá, que a menina tava muito ruim. Eu vim e passei lá pra oiar a criança, Jabor tinha [ ] e eu fiquei dando [ ] Quando dava aquele negócio no peito dela, ela dava aquele grito, aquele grito, e se jogava no chão, não tinha [ ] aquele negócio não parava de doer e ela não parava de gritar, era só o que ela fazia, não mamava, não comia. Daí a mãe tava em desespero, aí eu peguei... eu já tinha uma prática, sabe, que a minha tia já tinha me ensinado, essa que criou ele. Ela era parteira e ela sabia tudo esses tipo de remédio ela sabia, {Era daqui da comunidade?} história que eu nunca vi, ela era, que essa muié sabia, que eu nunca consegui aprender, que ela não me ensinou, que eu nem posso contar esse causo aqui. Uma coisa que eu nunca ouvi falar, nem na mão do médico, essa muié sabia fazer. {Como era o nome dela?} Salvou a vida de várias muié, era (Celestrina Rodrigues Campo). Essa muié nasceu cento e cinquenta e três criança na mão dela, coisa mais maravilhoso do mundo [ ] (peguei do caderno do marido dela). Daí era o que eu tava falando, daí eu vim, vi a situação da criança, aí vim embora. Digo: “Essa criança tá[ ]”. Aí cheguei na casa de minha tia, que era logo ali na frente, aí falei pra ela, digo: “Aquela criança tá com [ ]. Será que, se fizesse aquele remédio que a senhora faz pras criança, será que ela (alivia)?”. Aí ela pegou e falou, diz: “Óia minha fia, eu não faço”, porque ela já tava com farta de memória, muito esquecida, “Eu não faço porque eu não recordo mais o remédio, mas ocês que sabe, faça, minha fia, porque, se Deus o livre a criança morrer, não é o remédio que vai matar”. Aí, com aquela conversa dela, eu saí, cheguei lá em casa nem procurei fazer nada, só peguei uma borsinha de pano, que nesses tempo não existia borsa de prástico, saí pro campo, fui jun- tando, juntando, juntando aqueles mato que eu encontrava. Fui juntando, enchi ela de mato, sabe, eu peguei meus apareio, em casa eu tenho de tudo, (tenho até agora), é [ ], era chifre, tudo essas coisa [ ], já vivia com a minha pastinha cheia, porque, quarquer coisa, já... Aí peguei, trouxe, cheguei cá eu comecei preparar o remédio assim, peguei uma [ ] comecei preparar aquele remédio tudo, [ ] vai. Aí a mãe da criança passou assim, oiou “Será que não vai acabar de matar a minha fia?”. risos Aí eu peguei, oiei nela assim, mas, naquela hora, quase me deu uma vontade de abandonar aquele trabaio, mas quarquer coisa me falou pra mim “Vai em frente [ ]”, aí deixei (a poeira baixar). Peguei, coloquei duas chaleira ferver (com o matagal), assim, aqueles ingrediente tudo, deu certo porque tinha de tudo da minha pasta. Aí, quando essa chaleira ferveu, ali uns vinte minuto, eu com aquela curiosidade, aquela menina gritando reproduz o grito da menina, (quase) que saía aquele negócio pra boca dela, aí eu peguei a colher e já esfriei um pouco aquele remédio e dei uma estica. Porque ele tem limite, isso tudo ela ensinava pra gente, quando as bicha tá muito atacada que [ ] aquele remédio. Se a gente puder até por no dedo assim na boca da criança pra bicha ir se abaixando normal, porque se jogar lá dentro dela ela se [ ] se amarra tudo e mata a criança,
  • 76. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 77 SUMÁRIO aí tudo, eu tinha medo daquilo. Aí peguei, pinguei um tico na boca dela, mais outra [ ], que ela não tava com muita vontade de engolir nada, e ponhei na cama. Falei: “Agora eu quero ver, meu Deus do céu, que que Deus vai fazer pra nós”. E a menina tava com sono e eu tinha essa prática também que ela tinha me falado, ela me contava que, quando a criança, esse é até pra adulto, toma o remédio e dorme, não é pra gente acordar ele, pode deixar porque ele vai relaxar, o re- médio vai relaxar [ ]. Essa menina dormiu de seis hora da tarde até quatro hora da madrugada, aquele sono. E eu ali em cima dela: “Meu Senhor amado, será que essa menina vai morrer?”. risos A mãe tava sem dormir não sei quantos dia, deitou, roncava... Falei pra eles: “Durma ocês que não tem dormido, que eu guento a noite aqui. Deus o livre e guarde se acontecer quarquer coisa, eu chamo você”. Só que, de vez em quando, sondava o pulso da menina {Tá viva.}, sondava a barriguinha dela, o coraçãozinho dela... Quando foi quatro hora, aí ela se mexeu um bracinho, puxou as perninha, que ela tava bem magrinha, que dava até dó na gente, e abriu os óio. Ela nem me reconheceu que eu não era a mãe dela, ela só “Eu quero chá” imitando a voz da menina. Aí eu corri lá quietinho, “Fica aí, fica aí, não se mexa”, fui lá, peguei o caneco, esquentei depressa um pouquinho d´água, peguei açúcar, temperei, peguei a bolacha que tava assim, trouxe pra ela. Essa menina levantou, comeu três bolacha e bebeu esse chá. Aí agora vem a his- tória do mais véio... Digo: “Ai, meu Senhor Jesus Cristo [ ]”, a gente morre, sabia, a gente (faz as coisa, mas a gente morre), de certo ela vai morrer, de certo ela deu esse sinal que tá mió, mas de certo vai (piorar). Aquilo comeu minha mente, digo: “Mas não é nada, se Deus quiser [ ]”. Aí eu peguei mais um pouquinho, a mesma cuié, e dei pr´ela [ ]. Quando de bem cedo, falei pra comádi assim: “Ela acordou de noite, tomou chá, comeu bolacha...”. “Ah, não acredito; ah, não acredito, isso não aconteceu!” Falei “aconteceu sim”. “Não não, essa menina faz três mês que não come nada”. Digo: “É faz três mês porque agora não vai mais fazer”. Quan- do ela começou com aquela questão ali comigo, a menina acordou lá, acordou e chamou o nome da mãe: “Mãe, quero comida” imitando a voz da menina. “Ah, é verdade.” [ ] “Mas, menina, a Andréa tá falando [ ]” Aí ficaram tudo cheio de alegria, sabe; aí, daquele dia em diante, a menina foi só (se desenvolvendo). Jogou umas bicha, sabe, porque o remédio que a gente faz, e o seguinte, temos de beber e tem um que é pra fazer emprasto que a gente fala. Aí, se for de erva- -doce, com [ ], mel, coloca aquele emprasto, aquela bicha roda tudo pra baixo, sai tudo [ ] da criança. Essa menina derrubou tocha de bicha, que era o que tinha que sair pra cima, saiu tudo pra baixo. Aí esse causo o compádi [ ] falou: “Nossa, eu não sabia nem o que ele fazia”. Mas é o remédio, a pessoa, é o que a gente tá falando aqui, a pessoa, se ele entender, como diz ela ali, a mãe ela conhece tudo o que o filho tem, sabe, se ele tá assustado, se ele tá com uma febre, de ele tá com uma dor de... A mãe tem o direito de examinar seus filho e, naquele de exa- minar, ela descobre o que que é aquela doença e, naquela doença, ela descobre também quais são os remédio. {Que pode ser usado, né.}
  • 77. 78 Práticas culturais SUMÁRIO Laura: Mas tem muitos que Deus o livre. Eu tenho uma sobrinha, não cortan- do o que ela tava falando, é, eu tenho uma sobrinha que Deus o livre falar (desses remédio). O filho dela ficava doente, e minha mãe, né, que é parteira, tem muito conhecimento com remédio, ervas medicinais, assim, [ ] e graças a Deus ela tirou muitas criança da sepultura, Deus o livre, falava pra ela de fazer remédio assim ca- seiro, “Não, não. Meus filho, os médico já falaram quando ele nasceu que, ficasse doente, não era pra dar remédio daqui do mato, poderia intoxicar, matar”. Minha mãe falou assim: “Nossa, veja aí meus filho. Qual dos meus filho que morreram, a não ser que Deus quis, quisesse, né?”. Que, graças a Deus, quanto a isso, eu nunca tive problema nenhum, que eu nunca fui assim de ir, de dar qualquer coisa, qualquer doença assim nos meus filho, já ir procurar médico, assim, na cidade. Eu sempre procurei fazer os daqui primeiro, que me ensinaram, passaram, pra depois procurar, se caso não fizesse efeito, né. Não melhorasse a criança, eu procurava, assim, um médico, assim, mas é muito difícil eu ir procurar médico assim da cidade. Mas, hoje, então, a minha sobrinha era coisa de outro mundo se falasse isso pra ela, falava: “Não, meus filho não podem tomar remédio daqui, que pode matar meu filho”. Aquela coisa, sabe. Minha mãe falou: “Então se você acha que os médico lá sabe mais do que a gente daqui, que tem a nossa, as nossa experiência, né, quanto a isso, quanto às ervas medicinais [ ] então fique com eles pra lá e eu fico com o meu conhecimento aqui, né. Eu falo porque eu conheço”. Dona Esperança/Sapatu: Remédio era só erva, na minha comunidade era só erva {E aqui, também} {Muito} {E quem que era a pessoa que mais sabia remé- dio?} {Meu pai curava muita gente} Sr. João/Sapatu: Aqui tinha uns par de curandeiro por aqui. Curandeiro porque ele ensinava aquele remédio...} Silvane: Fala os nomes... Dona Esperança: Valdemar Moreira. Ele fazia remédio pra criança, pra sus- to, pra desejo. O pai dele fazia... Silvane: Você faz ainda? Você aprendeu com o seu pai? Sr. Antônio Furquim/Sapatu: Não, a minha mãe ainda faz, não faz igual ele, alguma coisa ela faz ainda [...] não igual ele, porque ele fazia tudo a, uma [...] cer- tinha, por cê fazer errado mata a criança também, né. Então tem que saber fazer, a dosagem certo. Silvane: Tinha muita parteira? Sr. Antônio Furquim: Tinha, em Pedro Cubas tinha. Minha mãe mesmo... nós somos em nove irmãos, só uma que ela ganhou no hospital, uma só, e o resto, nasceram tudo lá no sítio mesmo com as parteiras... Silvane: E quais remédios que, até hoje, vocês ainda têm, assim, quais as plantas?
  • 78. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 79 SUMÁRIO Dona Esperança: Eu ainda uso... {Qual?} Hortelã, vassourinha, tanchai, jar- bão. Esse tanchai eu conheci de pouco tempo, a gente não sabia que tanchai era bom pra febre, pra essas coisas, mas jarbão, erva-doce, foia de laranja, quina, tudo era nossos remédios, (capixu), erva-de-macuco, erva-de-bicho, erva-santa, tem a erva-santa-maria. Todos esses remédios eu uso ainda. Cana do brejo, goia- ba... Tem várias ainda que eu uso como remédio. Quina, a gente, pra gripe a gente cozinhava três pontinhas de foia de laranja e torrava a quina, raspava aqui na banca, torrava, torrava com um pouquinho de sal e colocava naquele chá pra amadurecer a gripe, quando a gente tinha gripe {Era muito bom!} {Picão, né?} Picão também... {Pra hepatite} Tem vários remédios ainda que eu uso, eu não vou pro médico por quarquer coisinha {Pra criança, é chifre queimado pra susto, né?} É chifre queimado, pena de galinha, pena de passarinho, tudo a gente usava {Brasa viva} Brasa viva pra tirar susto da criança... {Brasa viva, o que é que é isso?} {Brasa viva é aquela que tá lá no fogo} {Pega a brasa viva e põe no copo d’água e toma a água, por causa do susto da criança} Eu não tenho os aparelho, mas eu sei fazer! Outra coisa, vou fazer uma pergunta: “Hepatite tem cura? Pra medicina, hoje, hepatite tem cura?”. {Não.} Eu curo hepatite! A mulher dele aqui tava amarela, eu curei! E remédio simples... re- médio aqui do mato, erva... {Vocês podem falar alguma, assim... que vocês, né...} Eu posso, inté posso escrever uma hora num papel e trazer... Agora, pra assim, no momento agora, eu posso não alembrar de tudo, mas se for pra dar um tempo pra mim escrever e trazer, eu posso até... {Mas dá um exemplo só, assim...} Então, eu uso, pra hepatite eu uso o carrapicho, dos dois, do grande e do miúdo, eu uso capim, que nós conhece por pé-de-galinha, eu uso a (juçara), que nós fala (juçara, aquele) palmitinho novo assado. Eu esmago ele, cozinho tudo junto e, depois, eu pego o (ruibarbo), que é um que vem da farmácia, mistura, é só, não precisa outra coisa. É duas vezes que a pessoa toma e já desaparece o sintoma da hepatite. Deu pra gravar? risos {Depois a gente vai escutar e anotar.} É só isso aí, não precisa mais outra coisa... e vai lá pro médico, vai pro isolamento, porque lá não tem cura. (José da Costa/André Lopes) A minha mãe, se tiver uma pessoa assustado, ela passa a mão [ ] “esse é susto, essa criança tá assustado”. Aí ela ia lá, fazia a [ ] que pro meu filho ela fez, de madrugada meu filho tava morrendo, aí eu falei: “Ai meu Deus, vou chamar a minha mãe pra vim fazer um chá pra ele, pra Daniel”. Aí eu chamei ela, já pulou – de primeiro era mais difícil pra ir na casa dela –, aí ela: “Que que você... pensa que eu não tô escutando essa criança chorando?”. Aí eu falei: “Não, ele tá ruim mãe, agora ele ficou pior, ele tá quase morto, não chora mais, não guenta mais chorar...”. “Enrola ele e traga aqui!” Saiu no mato, catando mato, catando mato... “Eu não falei...”, que eu tinha levado meu filho no médico, né, “Eu não falei que cê ia dar remédio que o médico passou e ocê ia matar essa criança, eu não fa- lei pr´ocê?”. E ela tinha falado isso pra mim. Aí foi lá, cozinhou a matarada dela lá, aí foi dando... Cê sabe que meu filho jogou bicha o dia inteiro, com aquele
  • 79. 80 Práticas culturais SUMÁRIO remédio dela? Bicha, saía aquele pacote de bicha. E o médico tinha mandado dá [ ] pro menino, o menino... {Mata mais depressa.} alvoroçava, assustava... {[ ] também tava assim, ela fez pra ela.} É... o dia inteiro, foi um dia de domingo, aí ele foi melhorando, aí ele fazia imita a respiração do menino, aí ela passava a mão na... “Ó, tá baixando, tá baixando, pegue ele e leve lá pro médico de novo, pr´ocê matar a criança!” risos Aí eu fiquei, (amanheci) com ela, aí essa criança foi jogando bicha, jogando bicha, jogando bicha, eu acho que ele jogou quase um quilo de bicha, de tanto...lombriga memo, aquela lombrigona! (Sra. Maria da Glória/André Lopes) João/André Lopes: [ ] pode falar, que o pessoal sabe aí. Ela, a mãe dela também fazia (meu) remédio, tem outra mulher aqui do lado que faz até agora... tem mais gente que sabe. A turma aqui são meio preguiçoso, mas eles sabem fazer também... É... mas ... ela falava muito de bicha pra cima do forro, até hoje eu tô querendo entender isso, pra cima do forro. Aí ela pegava na criança assim, aí ela falava: “Deixa aí”, ela falava: “Deixa a criança aí!”. A criança tava (virado), tava virado já... a gente olhava e falava “Esse aí?” tava tudo mole já... Ela falava “deixa aí, se ele não sarar ele morre!” Aí ela ia lá pro mato, pegava os remédio assim, agora não, porque já tá [ ], mas era cheio de mato assim, cheio de mato em volta da casa dela, ela mora do lado ali... Aí ela ia lá vinha, daqui a pouco ela vinha, olhava na criança. Aí ela tinha chifre de boi, não sei que, [ ] não sei do que, tudo lá guardado, {Pena... semente de abóbora...} cipó. Como é que chama aquele cipó? Aquele cipó, como é que fala? Cipozinho... {Jarrinha.} É... tudo dependurado lá. Aí ela pegava e fazia aquilo, trazia, aí pegava um pouco de mel, açúcar, passava no [ ] da criança, aí ela falava: “Já tá descendo”. Aí começava assim, ó... cê via aquela bola assim, ó... fazia assim. Aí, daqui a pouco, a criança (seguia) o olho assim... “Quer comer?” A criança: “Quero”. Dava comida, daí chamava a mãe pra ir buscar: “Venha buscar seu filho que (já) morreu”. (Chegava), a criança já faz gesto de que a criança melhora... Maria da Glória: [ ] levou Tiago lá na casa de mãe, eu pensei que Tiago tava morto também. Aí ela pegou: “Tia Silvia, acuda meu sobrinho, tia Silvia, que ele tá morto, ele tá morrendo, tia”. Ela pegava, ficava bem tranquila: “Põe ali, deixa aí, põe aí”, aí corria lá pra cozinha. Daqui a pouco ela fazia aquilo, esfriava rapi- dinho e foi dando... “Ai, tia Silvia, eu vou lá em casa buscar roupa pra ele, mas ele vai morrer, né, tia Silvia, vai morrer...” Ela falou: “Vai morrer, o quê? Deus não existe, então?”. Aí pegou, deu um chá lá. Daqui a pouco, o menino procurando comida lá, atrás dela... risos {Banha de lagarto que usa muito, né?} Banha de lagarto, pele do lagarto... {A pele do lagarto é boa pra dor de barriga.} {Pra pneu- monia, pra tétano... Eu tenho um pezinho no quilombo, viu?} risos João: Chegava lá em casa, chegava... ela amanhecia, de manhã cedo, as- sim, ó... aqui tudo cheio de folha, amarrado assim, [ ] e aquela folha assim amar- rado. Aí a gente olhava pra ela, com medo de perguntar o que que era. “Que é
  • 80. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 81 SUMÁRIO isso mãe?” “Não amanheci muito bom hoje”, ela falava. {Sua mãe?} É, “Não ama- nheci muito bom...”. A gente queria saber, mas não perguntava de medo, né, de perguntar, e ela... aí nós ficava quietinho... Aí fomos descobrir o que que era; era dor, era dor de cabeça, era tontura, era pobrema de coisa... Ela tava com aquele negócio na cabeça assim... {Ninguém procurava médico nesse tempo... Não tinha médico, era só o remédio (do mato).} [...] Maria da Glória/André Lopes: E o (Zé Furquim), quando tava morando com a Antonia, irmã de Dita, aí um dia ele chegou cedinho lá em casa... Aí eu digo: “Oi, José”. “Eu vim buscar nhá Silvia pra ela ir lá ver. A filha de Antonia morreu, a filha de Antonia tá morto.” “Mas o que que mamãe vai fazer com a filha...” Aí ela já se endireitou e pra lá [ ] Daí, chegou lá, a criança tava lá... “Deixa eu fazer um chazinho pra ela, pra ver se ela vorta...” Aí foi fazendo o chá, a criança foi... De tarde ela vortou de lá... Falei: “Cabou de morrer a criança, mãe?”. “Tava morto memo, mas graças a Deus tá lá vivo já.” risos [ ] Então ela da [ ] de Deus, né. Pena que a minha mãezinha tá bem... bem... [...]Porque o meu mais velho também – como eu vi o antigamente fazendo, minha mãe como fazia –, eu fui pro hospital, naquele tempo a gente tinha que ficar o mês inteiro lá no hospital, aí cheguei lá, ela pegou e falou: “Cê... criança, quando nasce, a gente põe banha de galinha ou banha de lagarto”. Eu levei um vidrinho assim, escondido, né, porque... Aí, acabou de nascer meu filho, ele com aquela tosse, com aquela coisa, catei e enfiei no nariz dele. Aí, daqui a pouco, ele começou a jogar aquela sujeirada, sujeirada, assim. Nunca teve bronquite, e os outro tiveram bronquite porque eu nunca pude fazer, que nasceram em (Parique- ra), né. Mas esse que nasceu em Eldorado nunca teve bronquite. Pedrina/André Lopes: Meu esposo, quando nascia as criancinha, minhas criança, ele que fazia remédio, tratava pior do que uma mulher. A comida que ele me fazia, que, naquele tempo, tinha (fineza), né, [ ] a sopa de frango, né, aque- le, tirava... aquele cardinho de frango, a gordura da comida, tirava e dava pras criança... Aquele era uma bença, meu esposo era muito... [ ] cuidadoso (com as criança). {Não, hoje não é pra dar nada pra criança, que faz mal...} E ele também fazia remédio bem, bom... Maria da Glória/André Lopes: A minha tia nasceu, a caçula, irmã da minha mãe. Aí o padrasto dela, era primeira filha dele, daí diz que ele ficou muito [ ] foi lá, pegou essa filha dele, chegou... Diz que assou duas banana. Na hora que nasceu, ponhou, diz que amassou bem amassadinho, ele memo ponhou na boca dela, cansava de contar isso. Minha tia tá viva lá em São Paulo, mora lá. Aí pegou e deu pra ela. Aí, menina, depois cresceu (esfamiada), tia Rosária, né, (e falou): “Ah, deu pra comer tudo quanto é coisa” [ ] “Claro, o seu pai pegou, foi dar ba- nana pr´ocê logo de primeira.” risos E hoje não pode dar nada, né, ele (olham
  • 81. 82 Práticas culturais SUMÁRIO torto)... {As criancinha que era pequeninha aquele tempo, nós criava assim, né, as criança...} Fazia sopa de farinha de mandioca e dava pras criança. Pros meu eu não cheguei dar, né, mas nós comemos. A mamãe dava, fazia pra nós comer e dava pras criança, acabava de nascer, eles iam pra roça, enfiava sopa... Ritos de morte Nas narrativas dos quilombolas estão presentes algumas memórias sobre a realização de velórios. De acordo com o historiador João José Reis4 que pesquisou sobre este tema, em muitas sociedades prevalece a noção de que a realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segu- rança de mortos e vivos. Para protegerem-se e protegerem seus mortos por- tugueses e africanos produziam elaborados funerais. No catolicismo popu- lar brasileiro, repleto de componentes mágicos, os mortos ganharam ainda mais importância, misturando as culturas africana e portuguesa. Percebemos nas memórias dos quilombolas sobre os rituais de morte a presença deste componente mágico. Uma das histórias mais contadas se refere ao fato de carregarem o corpo do morto em uma rede ou esteira até o local onde seria enterrado. Os parentes e amigos seguiam com cânticos religiosos. Ninguém deveria ir à frente de quem estava carregando o morto. Os carregadores deveriam ser alternados sem repousar o corpo no chão, pois se acreditava que se o corpo do morto tocasse o chão, aquele local ficaria “assombrado”. Ela (Maria Merenciana/Chules)gostava muito de rezar em cima de defun- to quando morria... O povo aqui morria, a pessoa (aguardava dois, três noite), ela vinha, ela já vinha, aí chega ali... fazendo aqueles velório, né. Aí ela bebia, os outros também bebiam, que não era só ela que bebia na época, né? {Todo mundo bebia} É. Aí, daqui a pouco, eles começavam a (cantar) as reza deles, né, as inselência e ela que puxava. Aí chamava... {Cantava aqui que ouvia do outro lado.} É, aí diz que ela ficava... ela que puxava: “Vamos rezar, vamos rezar [ ] lá em cima do defunto. Ó, daqui a pouco vai ter que tirar esse defunto, ninguém rezou em cima”. Aí diz que ela chamava minha mãe, minhas tia, mais meu pai, as filha dela; todo mundo, naquele tempo, gostava de tá ali junto com ela, né... Aí diz que ela rezava, rezava. Aí, quando era de cedinho, cedinho pra sair, porque o defunto, na época, (descia) no escuro, assim, não deixava crarear o dia, hoje 4 REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos funerários e revolta popular no Brasil do século XIX. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • 82. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 83 SUMÁRIO enterra quarquer hora; não, porque era longe, né, pessoas longe [ ]. Aí eles pega- vam... o caixão era feito assim do... aqui, né, e ficava muito pesado pra carregar, né, aí eles tinham que ir cedo pra chegar lá com tempo... Daí ela pegava: “Vamos rezar, vamos rezar”, aí eles começava a rezar pra sair, que... Ali eles ficava rezan- do. Tinha uma reza que eles falavam assim: “Levantai o corpo morto, tá na hora de caminhar cantando”, e todo mundo cantando, aquilo não há quem não chorasse, na época. risos Todo mundo, minha vó, que era irmão dela, minhas tia toda que era sobrinha dela, minha mãe, os outro, aí tudo eles tinham uma voz muito bonita pra cantar, não é [ ]? {Tinha...} Ela tinha uma voz que era muito... a minha vó, então, era uma coisa tremenda, minha vó cantava, aí minhas tia tudo [ ], Antonia, minha mãe, que é Silvia, é tudo... Meu pai também gostava de can- tar. risos Cantava [ ] aquela inselência muito bonita, mas sentida, sentida, que todo mundo chorava. Então ela gostava muito de fazer esse tipo de coisa, reco- mendação das alma, né, da... como é que chama? {Quaresma.} Na Quaresma, né, na Quaresma eles faziam recomendação, o povo saía lá do centro do Nhunguara – esse moço morava lá na época –, do centro do Nhunguara vinha bater aqui na barra do Nhunguara. Aí eles iam de casa em casa rezando, rezando (aquela reza), aí eles cantavam, cantavam, cantavam aqueles reza dele bonita. Eu, quando era pequena, muito xereta que eu era também, aí quando, daqui a pouco... diz que não era pra gente acordar, né, era pra ficar ali fazendo de conta que tava dor- mindo, eu já pulava, já começava cantar com eles também. risos Aí... o finado Salvador, (Joaquim) [ ] que era o chefe lá, diz que mamãe falava, tia Nega, mãe deles, quando era do tempo deles, que aquilo tava tudo... aquelas moçarada, tia [ ], tia Ana, todo mundo diz que saía fazendo aquela... Então tudo isso eu acho muito importante, que hoje não tem mais, não tem mais. Pode morrer quem for, ninguém tá nem aí. {Hoje chegou o tempo de morrer um defunto de uma pessoa, dali... de meia-noite pra lá fica até sozinho... Nesse tempo, não, a casa era cheia, anoitecia e amanhecia...} Sete dia ficavam na casa (dormindo), aí enterrava. Um exemplo, hoje cedo, aí o povo vinha tudo, aí tinha almoço, janta ali... ficava ali; “Não, não podemos deixar o defunto sozinho”. {Era sete dia...} Aí, quando era o último dia de completar sete dia, eles faziam mais uma reza, aí deixava o [ ] sozinho. {Só ia depois da reza de sete dia, né?} Sete dia. Hoje não tem mais isso. Quer dizer, é uma coisa que nós temos que voltar lá atrás pra não perder, né. {E, antigamente, tinha [ ]} {Tinha amor um com outro, hoje não tem amor.} {Falando esse negócio das pessoa ir dormir na casa das pessoas, hoje não tem mais isso...} Não tem! As pessoa visitava [ ] {Quando as pessoa ia pousar na casa de um, de outro, hoje, quando ia saindo, outro já tratava: “Amanhã o senhor vai pousar lá na minha casa”. Era assim.} {É... sábado.} {“Sábado vai pousar lá na minha casa”, e a pessoa ia...} E ela (tem uma coisa de bom), ela morou no continente, o continente é um lugar bem lá no sertão de Nhunguara, ela morou pra lá. Aí, quando ela sabia que a pessoa tava doente, ela vinha visitar. Daqui a pouco, ela sabia que morreu, ela subia lá no bico mais alto que tem, mais alto que isso aí, aí, de lá, ela gritava
  • 83. 84 Práticas culturais SUMÁRIO entoando “Fulano morreu” risos, aí todo mundo sabia [ ] {Ela tinha uma bu- zina, ela buzinava.} Aí diz que, depois que ela buzinava, ela gritava entoando “Fulano morreu”, aí tudo mundo já se juntava: “Vamos pra lá” [ ] {Você lembra a letra da música que você cantou?} Ahn? {Você lembra a letra toda dessa excelên- cia que você cantou agora?} A letra... risos só de pouco e pouco {O princípio [ ] da inselência...} Então... aí... o começo era assim cantando: “Levantai corpo morto, tá na hora de caminhar, tá na hora de caminhar...”. Diz que isso é pra não deixar (medo), essa era bem curtinha assim, que era a última que eles rezava pra sair, a despedida. Mas tem bastante... {Tem as outra, que cantava à noite, durante a noite.} {Cantava a noite toda.} (Sra. Maria da Glória/André Lopes) João Mota/Nhunguara: Ah, o ritual era, não é que nem hoje que tem co- veiro, o ritual é o, a própia família, quando morria, tinha, tinha lá o cara que oiava o cemitério, falava zelador, que ele fica oiando, então a pessoa ia lá, falava com ele, ele marcava um lugar que podia fazer a cova e a própia família tinha de fazer a cova pra enterrar. {Mas carregava de casa pra lá, rezava, cantava, como que era?} Ah, ponhava nas costa. {Nas costa mesmo.} Foi feita uma rede de taquara, ponhava uma arça dos dois lado assim, eram quatro, duas pra frente, duas pra trás, enfiava uma madeira aqui {[ ]} Isso, isso [ ] {Ia cantando, ia rezando?} {Não.} {Ia em silêncio?} Não, cantava na hora da saída. {É, só a noite.} Isso, a noite inteirinha e a hora de sair de casa pra, despois {Depois acabou o barulho} Tinha de ir um na frente, porque... {Sim, mas carregava o corpo na frente, e as pessoas seguindo?} Laurentino/Nhunguara: Isso. {E se passasse na frente?} Na frente, só esse que ia levando. {E se passasse na frente?} {Podia?} Não tem importância... João Mota/Nhunguara: Não tinha nada, porque nós passava memo, por- que ia correndo pra pegar, porque diz que... {Não podia parar} tinha um negócio que diz que não podia parar na estrada porque {Pra descansar?} é, porque diz que ficava assombrado. Então um bardeava um pouquinho, outro tinha de correr pra pegar pra não cansar. Diz que, se cansasse {Iam revezando a carga.} é, diz que não podia cansar, sei lá que não podia, mas {Falavam, né.} diz que não podia, era uma tradição, né, tinha de respeitar, né. Laurentino/Nhunguara: Eu sofri muito carregando os outro. {Ah, é?} Daqui a [ ] quanto dá? Dá uns quatro, três légua? [ ] dá mais de vinte quilômetro {Carre- gava tudo isso?} É, nas costa. {Então tinha que ter muita gente pra revezar, né?} É, não era um, dois, é bastante gente. {Ia trocando, ia trocando.} É, trocava um, bardeava uns dez metro, conforme uma pessoa, e é muito inchado, né, é inchado pra andar dez metro...
  • 84. Valores civilizatórios 4 Trabalhos de alunos da EE Profª Anézia Amorim Martins, que recebe alunos do Quilombo Cangume - Itaoca - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP SUMÁRIO
  • 85. Práticas culturais 86 SUMÁRIO Muro da EE Cangume localizada dentro do Quilombo Cangume - Itaoca - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP SUMÁRIO
  • 86. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 87 SUMÁRIO Capítulo 4 Valores civilizatórios Nos depoimentos, percebemos a vivência de valores civilizatórios, tais como a valoriza- ção da ancestralidade. Podemos dizer que ancestralidade é uma experiência social de produção de conhecimentos que passam de geração a geração. São as relações que as pessoas têm com a cultura material e espiritual de sua comunidade, práticas sociais de articulação da memória com o presente que engendram e fortalecem a identidade afrobrasileira. História, estórias e memórias compartilhadas que dão sentido à vida comunitária e aos valores compar- tilhados, tecendo identidades individuais e uma identidade coletiva de uma longa tradição de vida e luta. O cooperativismo é outro aspecto importante verificado nas narrativas. Falar de quilombo- las, comunidades afro-brasileiras, é pensar no coletivo. O que teria acontecido com as/os negras/ os no Brasil escravocrata se não tivessem usado da solidariedade, da parceria, das conversas, da cooperação? Solidariedade, parceria, diálogo e cooperação que ainda hoje são armas numa sociedade racista e excludente. Nas falas das/dos quilombolas, percebemos ainda uma energia vital, uma fome de vida, uma vontade de aprender sempre. Histórias de vida, experiências compartilhadas que nos mostram respeito à vida e ao próximo, entendimento e preservação da natureza, o cuidar de si e do outro. Em tempos de ódio, preconceitos e violência gratuita, os valores compartilhados e de- monstrados nas falas quilombolas têm muito a nos ensinar. Família e socialização A família é um conceito muito importante para as comunidades quilombolas. Isso por- que os modos quilombolas de ser e de viver são coletivos e porque os laços de parentesco são fortes e são guardados de uma maneira diferente da maioria das pessoas que vivem em gran- des centros urbanos. Além disso, os vínculos familiares são fortalecidos pela relação da comu-
  • 87. 88 Valores civilizatórios SUMÁRIO nidade quilombola com o território, principalmente no que diz respeito às lutas pela posse da terra. Nos processos jurídicos para a conquista da posse da terra, os/as quilombolas são levados a provar que pertencem às famílias “dos mais antigos” que ali viveram, o que remonta, muitas vezes, a dois, três séculos atrás. É por tudo isso que as/os jovens e as crianças quilombolas ge- ralmente sabem quem foram ou são seus parentes até três ou quatro gerações anteriores, conhecem os nomes e as histórias dos seus avós e bisavós. Nos quilombos, as relações familiares não se resumem apenas aos fa- miliares mais próximos, estendem-se aos demais membros da comunidade pelo fato de todos partilharem dos mesmos ritos de sociabilidade, trabalho, cultura e da luta pela posse e manutenção do território em que vivem. Deste modo, podemos perceber nas falas das quilombolas e dos qui- lombolas a presença e a valorização da história das/dos mais velhas/os e de sua ancestralidade. Eu acho que a gente aqui (no quilombo) já tá num patamar, acho que há anos luz de um aluno que está na escola da cidade. Por exemplo, analisando, os nossos alunos, eles sabem quem é o avô deles, quem é o bisavô, quem era o bisavô. Eu tenho minha bisavó viva até hoje, tem noventa e bolinhas, quase cem já. E, assim, tem aluno na cidade que não sabe quem é o avô. Eu falei: “Gente, como você não sabe quem que é o seu avô? Seu avô, ele é pai do seu pai, como que não sabe? Como que pode acontecer isso nesse mundo, que planeta cê vive, dos video games?”. (Luiz Marcos/Liderança jovem/São Pedro) Então, eu sou Jovita [ ] França, nascida em mil novecentos e quarenta e três... primeiro de fevereiro de mil novecentos e quarenta e três [ ] Então, a... pra comemorar o dia dos namorado, é muito, muito, muito importante que namore mesmo bem namorado, mesmo que não seja com acará e nem com lambari ri- sos, mas que namore firme (a entrevista foi realizada no dia dos namorados, 12 de junho). Então, o caso do meu casamento, que chegou... o meu casamento, ele começou por essa história da pesca. Que nós dois, como... eu não tinha pai, só tinha mãe, eu precisava ajudar a minha mãe, trabaiava diária nas casas onde tinha o serviço. E ele, com a história da perca do pai e a mãe [ ] acabou sendo filho adotivo desse casal de [ ] que era [ ] dele. E eu trabaiava lá por mês, por semana, diária, e nosso serviço, como eles trabalhavam com (camarada), eles davam pra nós era socar o pilão, fazer comida pros camarada, eu lavar roupa lá num riozinho – batido na pedra, porque (nesse tempo) não existia máquina –, então eu procu- rava combinar com ele pra que ele fizesse a comida, e eu fazia aquele serviço que... Por fora, eu nunca gostei de cozinhar, sabe, isso foi o meu pobrema. E, quando era dia de domingo, era feriado, a gente pegava... não tinha pra onde ir, não tinha... não ia pra igreja nem nada, aí nós dois pegava a canoa e nós ia pescar.
  • 88. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 89 SUMÁRIO Aí aconteceu que, um dia que nós fomos pescar, não queria pegar nada no anzol, e eu peguei e fiz essa brincadeira com ele [ ] fiz essa brincadeira com ele. Se ele pegasse um peixe, jogasse um anzol e pegasse um peixe, eu... quando ele cres- cesse e eu crescesse, eu casava com ele. Daí ele pegou e jogou, e já beliscou, e ele já pegou também um lambari. Aí eu fiquei meio chateada ali, que ele era criança mesmo, não era de... de eu sortar uma palavra dessa. Mas me veio o (sen- tido) e eu falei, aí eu reverti de outro modo, aí eu falei: “Então eu jogo o meu anzol. Se eu pegar, aí eu caso, eu confirmo e caso c´ocê quando eu crescer”. Aí joguei e peguei acará, aí ficou o namoro de acará com lambari, sabe. E ele guar- dou aquilo, ele fez de conta que ele não deu valor, mas ele guardou, e eu... Sabe que a menina sempre se desenvorve muito mais rápido do que o menino, sabe? Aí, quando eu comecei, uns treze ou catorze anos, eu comecei vacilar com ele, só que nós não sabia que nós tava namorando, ele era (assim/simples), sabe, nós trabaiava, conversava, trabaiava [ ] aí eu comecei namorar. Aí namorei um rapaz, não deu nada, namorei outro, não deu nada, fui indo, até que completou seis, minha mãe tava já tudo preparado pra fazer um casamento pra mim. (De repente) veio uma louca na minha cabeça, digo: “Eu não quero mais casar com ninguém, não, pronto, cabou”. Aí depois veio outro rapaz falando que queria casar comigo, me pediu em casamento, aí minha mãe já tirou fora, não quis. Aí foi nessa que eu falei no (pé) dele assim, ele já tava com uns dezesseis anos mais ou menos, daí eu peguei e falei pra ele, digo: “Eu vou acabar ficando coroa [ ] eu vou ficar coroa e não quero casar, não vou casar não. Tudo casamento que eu arrumo não dá nada. Eu não vou ficar (feito palhaça)”. Aí que ele arrespondeu pra mim assim: “Você lembra daquele contrato que nós fizemos aquele dia pescando na canoa? É, aquele que tá acontecendo porque se você prometeu casar comigo, por que você fica procurando outro?”. Daí eu peguei, não me conformei muito com aqui- lo, sabe. Aí peguei, quando eu tava com dezessete anos, dezoito anos já quase, daí eu pedi pra mamãe que eu ia pro colégio das freiras estudar [ ] uma senhora [ ] tava arrumando menina pra levar pro colégio e ela me levou eu, fiquei lá. Derre- pentemente, aparece uma carta lá dele, que ele nem escrever ele sabia, ele pediu pro tio dele escrever, perguntando se eu tinha ido pra lá e tinha esquecido dele. Aí eu mandei outra falando “Eu não esqueci, que a gente não esquece de nada, mas esqueça [ ]”, mas ele não esqueceu. Pois acredite, deu certo. Quando eu vortei, aí ele me pediu em casamento [ ], aí foi essa a história do nosso namoro. Mas, pra finalizar, eu vou dizer, graças a bom Deus, porque Deus tava escoiendo pra mim aquilo que era certo, porque eu ganhei na loteria, ganhei. {Quantos anos de casados?} Tamo com quarenta e sete, {Benza, Deus.} passando pra quarenta e oito. Em outubro vai completar quarenta e oito anos. {Quase bodas de [ ]} {Quan- tos filhos?} Tive, entre o que veio normal e de aborto foi quinze, tive sete abortos e oito normal, uma filha e sete filho. Graças a Deus, uma família... Pra pai e mãe nunca souberam dizer um “a” pra pai e mãe, obedece muito mais, se criaram muito bem. Eu não sei educar bem meus filho, mas acho que meus filhos se edu-
  • 89. 90 Valores civilizatórios SUMÁRIO caram um pouquinho por eles mesmo. E o pai nunca deu uma chicotada num dos filho, nem pra dar um puxão assim, e os filho respeitam ele mais do que eu que sou mãe, sabe. Eu ainda eles tem alguma coisa pra (fazer), quando eu erro, eles raivam. O pai, quando erra um pouquinho, eles apoiam. risos Mas ele nunca raivou com os filhos. Assim, às vezes, por motivo, ele pode dar conselho, mas ele nunca brabou com os filhos, e eu também nunca, graças a Deus. Tivemos uma briga sim, nós dois, mas ficou pra história, até já fiz uma história dela, fiz uma mú- sica, eu cantei pra ela. {Tem uma música? Conta essa história então!} Eu fiz uma música {Eu não gostei, eu não aprovei a música dela porque ela [ ]} Ah! Não apro- vou... (A música é legal pra caramba.) Daí dessa vez nós briguemos, já depois que nós tamo morando aqui, porque nós morava mais longe do sitinho assim. Daí não sei, por uma coisa, parece que [ ] do nada, nós... ele me empurrou, eu empurrei ele, daqui a pouquinho ele me empurrou, eu caí, aí eu corri, (porque mulher) sem- pre corre. Eu corri por causa das criança, porque nunca viram aquilo, a criança, quando eles nunca vê o casal brigar, quando ele vê ele, fica ruim. E o [ ] que já tava rapazão quase morreu, se não é a vizinha aqui do meu lado com o filho dela acudir ele, ele não [ ] nem falar ele falava. Então eu peguei, também saí, pra modo de ele tronquilizar. Depois ele calmou, ele tava com um [ ] na cabeça, aí calmou. Daí eu... aí eu peguei e fiz assim, que a muié tem que ser assim, daí o que é que eu fiz, eu peguei e fiquei de mal com ele, sabe. Nós não se falava, nós comia jun- to, trabaiava junto, viajava junto, mas nós não se falava. E pra dormir? E pra dor- mir, a cama era só uma, aí eu deitava com a cara pro canto e ele deitava com a cara pra beirada. (A gente acostumou até agora.) {Como é que é?} Ele dormia com a cara pro canto, eu com a cara pro canto e ele pra beirada, nós não se che- gava as (costas um no outro), tudo por causa dessa briga. Aí ficou, ficou, ficou, aí nós não se falava mesmo, mas não é que eu não quisesse falar com ele, eu morria quando eu tava ali, eu morria de vontade de dar risada, sabe. Aí, quando foi um dia, quando foi um dia, nós tava prantando arroz, assim, ele virava [ ] pra lá, eu virava pra cá [ ] não olho pr´ocê, só olhando assim, aí me veio aquela louca na cabeça, sabe, eu peguei fiquei bem de pé assim, sabe: “Perguntaram pra mim, se ainda gosto dele, respondi tenho ódio e morro de amor por... cantando”. ri- sos {No meio da roça.} Na roça. Daí ele virou a cara assim, começou a sorrir pra mim, aí depois vortamos pra casa tudo bem risos, desse dia em diante come- cemos dormir abraçado outra vez. Óia que deu certo. {Preciso falar pro Leonar- do [ ]} Foi a única coisa que me deu na minha cabeça – que era uma mar que- rência boba, já tava com cinco meses de mar querência. {Ficou cinco meses sem falar?!} Depois, tava perto dos meus filho lá de Iguape chegarem em casa, eu vou ficar de mar com ele, eles vão pegar no meu pé, daí... {Quando a senhora cantou, o que que ele fez?} Ele olhou ni mim e começou rir. risos {[ ]} Então tem coisas que é um fato na vida da gente, marca a vida da gente... Então, como diz, o demônio apronta. A gente tem que cair pro lado de Deus, pra modo de Deus virar aquilo. Eu acho que foi a única solução que eu tive foi can-
  • 90. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 91 SUMÁRIO tar essa música. {Essa sua história, nos dias de hoje, qualquer casalzinho que briga larga de vez, não fica assim de mal...} Óia, eu espero em Deus que seja muito aproveitado pra todos os casal. {As pessoas não têm mais essa tolerância de um, né, admitir que errou. Espero que o outro... Aceitar a desculpa do ou- tro... As pessoas são muito imediatistas, assim, brigou, acabou, já arruma outra, né. Aí já é tarde, né...} Mas é verdade, a coisa agora não tá mais assim, de nós pra trás... {Muito linda a sua história.} (Dona Jovita/Galvão) Meu nome é Antonia dos Santos Souza, tenho sessenta e cinco ano, me criei em [ ], com o vô de Marisa [ ] Me criei com ele, me ensinou muito, me deu muita educação pra mim. Agradeço a Deus por isso aí, por ele me dar muita educação, me ensinar a trabalhar na roça; coisa que, desde pequeno, ele ensinava nós, a trabalhar na roça. Não tive estudo também, porque nós, naquele tempo, não tinha estudo. Mas ele ensinava nós a trabalhar, ensinava nós a respeitar os outros. Não gostava de nos ver fazendo malcriação com ninguém, que era muito feio aquilo, não existia, aquele tempo, esse negócio de malcriação; ele nem gostava mesmo. Então ele foi um homem que ele criou nós bem criado, então eu agradeço muito a Deus por ele me dar essa educação, essa criação. E eu peço para os meus filho que sigue que nem eu, como eu me criei. Eu quero que meus filho seje que nem eu. E eu também me criei na roça, trabalhando bastante, desde criança. Gostava muito de dançar, dançar aquela dança que nós dançava, de trocar vassoura, trocar de chapéu. Dançava (mão esquerda), gostava muito de dançar, mas eu adorava dançar. Painho falava de um baile, ah, eu não via a hora de chegar pra mim che- gar lá, pra mim dançar, não via aquela hora de chegar pra mim dançar! Então eu agradeço muito a Deus por tudo essas coisa da minha vida, da minha educação, do meu criame... Mas a dança, era uma dança, assim, limpa, bonita, gostosa da gente dançar. Então o meu criame foi esse aí, então eu agradeço muito. Também não tenho minha mãe, que a minha mãe morreu, mas soube me criar, me dar muita educação. Agradeço a Deus por isso, muito obrigado por tudo isso! (Sra. Antonia dos Santos Souza/André Lopes) Bom dia, eu sou Maria da Glória dos Santos, sou nascida e criada aqui no bairro [ ] fui trabalhadora na roça, morava num cinco quilômetros daqui da beira da estrada e... (lá no sertão), trabalhava muito na roça, ajudando o meu marido. Plantava arroz, feijão, milho. E tudo o que a gente usava na roça a gente plan- tava. Criação tinha, é galinha, porco. Então eu trabalhava muito e gostava de trabalhar na roça. Aí, depois, eu tive meus filhos, vieram meus filhos deficiente e eles foram crescendo, precisava levar pro médico e eu não podia ficar mais lá no sertão e vim pra beira da estrada. Então eu moro mais perto da rua por causa dos meus filhos. Hoje... tive quatro filhos e morreu um, só tenho três filhos. Eram dois deficientes, hoje eu tenho um. Mas eu agradeço a Deus porque Deus me deu esses quatro filho. Eu não queria que Deus levasse nenhum, mas não foi do meu querer, foi do agrado d’Ele, mas Deus me deixou um. Eu gosto muito dos meus filho, amo muito meus filho, assim mesmo do jeito que ele é, deficiente, eu amo
  • 91. 92 Valores civilizatórios SUMÁRIO muito ele. Com muita luta, eu... graças a Deus, ele estudou; com muita luta, que ele era deficiente, muito doente, mas, graças a Deus, ele terminou o estudo dele, ta aí, graças a Deus... Então, eu também não tive estudo, porque ajudava meus pais na roça. Eu vinha uma semana pra escola e ficava duas ou três semanas sem vim pra escola, então a vida da gente era assim. Aí, depois que eu casei, que tive meus filho, fui morar na beira da estrada, aí eu comecei a estudar de novo. Mas também não terminei o estudo, porque a dificuldade é muita, então não terminei meu estudo... e fiz até a oitava série e parei, não estudei mais... E, agora, não tenho vontade de estudar, acho que não dá pra estudar, então tô parada. Mas, aqui... meu pai educou muito eu, a minha mãe, a educação nossa, antigamente, era uma educação que... assim... pra gente respeitar os mais velhos, saber, assim, receber os mais velhos; e, quando chegava visita em casa, a gente se escondia tudo, ficava escondido lá, parecia um bicho lá na toca. Ficava escondido porque... a gente não queria que os nossos pais passassem vergonha com a gente. Então a gente ficava escondido, pra modo de... Se as vezes a gente chegava perto e falasse alguma coisa, depois a gente apanhava mesmo, (não tinha razão), a gente já apanhava. Então a gente ficava lá só escutando o que os outros tava falando. Às vezes, ia brincar e, quando a pessoa chegava e perguntava alguma coisa pra gente, a gente respondia, mas, assim, sem ofender, na educação que o nosso pai deu pra gente. E assim a gente... eu eduquei meus filho também, não tão bem porque hoje em dia as coisa tá difícil pra gente educar os filho da gente, e é difícil mesmo. Então, mas, respeitar, graças a Deus, sabe respeitar todo mundo... Eu agradeço a Deus pela educação que meu pai, minha mãe me deu e, assim, eu procuro passar um pouquinho pro meus filho. É isso aí, o que eu tenho pra dizer é isso, muito obrigado e uma boa tarde (Maria da Glória dos Santos/André Lopes) Meu nome é Marisa, sou filha de (Joaquim Andrade Ribeiro) de Souza e Laudica Ribeiro dos Santos Souza, que é neta da Chules. Então, meu avô morreu com noventa e sete anos, (morando) na casa da minha mãe, e ele, toda a vida, ele comeu comidas só naturalmente. O café dele da manhã era café com leite e farinha de milho e, no almo- ço, era feijão, farinha e carne seca. A única coisa, se colocasse feijão pra ele, já não ia, porque não gostava! O café dele tinha que ser um café natural. E foi que, bem dizer, ele morreu pela idade, não foi tanto por causa de doença, porque tudo esse tempo que ele teve, ele nunca teve a pressão alta, nunca, assim, teve uma dor de barriga, essas coisa ele nunca teve; a maioria foi de idade. A única coisa que deu foi má circulação na perna dele, que ele não conseguiu andar, porque ele tava velhinho, então teve que amputar um perna. Mas ele morreu foi por causa disso, quando ele sentiu que não tava sentindo a perna, que tinham cortado a perna dele, aí foi o final da vida dele... Mas toda a vida ele trabalhou, e a educação que ele passou pra minha mãe, minha mãe passou pra nós. Meu pai... nós tomava muito café de garapa, meu pai fazia muita rapadura também, aprendi a fazer rapadura com o meu pai, aprendi trabalhar na roça foi com meu pai. Eu, pra dizer que eu não sei, eu sei carpir, sei plantar... só a única coisa que eu não sei é roçar. Isso eu não sei mesmo, se falar pra mim, vamos roçar, eu não
  • 92. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 93 SUMÁRIO sei; mas outra coisa eu sei fazer. Mas tudo eu dou graças a Deus que foi eles que me ensinaram. Se um dia eu sair do meu serviço, me aposentar, que eu já tô esse ano, já tô pendurando as chuteiras, se eu me aposentar, aí eu vou trabalhar na roça de novo, porque eu sei trabalhar. Então eu espero que Deus me dê muita força pra mim poder seguir a minha tradição antiga que tinha, a cultura antiga que tinha... Graças a Deus, meus filho a mesma coisa – que, como a colega falou da educação dos filho – meus filho, pode ser parente, não ser, eles chega: “Bença tio, bença tia, bença vó, bença mãe”. Porque eu falo pra eles: “Não são seu tio, não são nada, mas, pelo menos, a educação tá em primeiro lugar”, porque hoje em dia a educação acho que vai longe. Agora, eu não gosto que deles serem malcriado, porque olha, é uma tristeza pra gente ter filho rebelde, filho malcriado é grande vergonha pra vida da gente. Então, o que eu puder ensinar pros meus filho, eu ensino. São muito religioso, são criança de casa pra igreja, vão às farras deles, mas, o negócio de ir pra igreja, isso tá em primeiro lugar pra eles. Então eu agradeço vocês [ ] no que depender de mim com ajuda, alguma coisa, eu tô disposta, tá? (Dona Marisa/André Lopes) Conversando sobre Maria Chules Princesa Uma personagem importante na história das comunidades da região de Eldorado principalmente, André Lopes, é a quilombola Maria Merencia- na, ou Maria Antônia Chules Princesa. Este nome foi escolhido, por meio de votação, para batizar a primeira escola quilombola do Estado de São Paulo, com atendimento do Ensino Fundamental e Médio. A Escola Esta- dual Maria Antônia Chules Princesa está localizada em terras do quilombo André Lopes e recebe alunas/ os dessa comunidade e das comunidades do entorno: Ivaporunduva, Galvão, Sapatu, Nhunguara e São Pedro. Existe um certo mistério em torno do nome dessa personagem. Nas conversas realizadas com as/os moradoras/ es das comunidades, esse nome aparece de diversas maneiras. Na maioria das vezes, referem-se à persona- gem como “Maria Merenciana”. Não souberam dizer de onde veio o nome “Chules” e nem porque foi acrescentado ao nome da escola a denominação “Princesa”. No entanto, este foi o nome que batizou a escola, inaugurada em 2005. Seria interessante ouvir outras pessoas mais velhas, para encontrar alguém que saiba de onde veio o nome. Ouvir outras versões da história. Bom, a Maria Emerenciana... Maria Emerenciana Furquim... Maria Emeren- ciana Furquim, eles trocaram o nome dela, {Trocaram o nome?} Maria Chules... {Mas existiu esse nome? Isso que eu queria saber.} Existiu, o nome de (tia) Eme- renciana. [ ] {Porque eu lembro na escolha, no dia da escolha do nome da escola, a senhora tava nesse dia, não lembra?} Não. {A senhora tava sim} Eu tive na funda- ção da escola { } lá na fundação, nós fizemos várias reunião e, depois, pra escolher
  • 93. Valores civilizatórios 94 SUMÁRIO um (autor), Furquim. Aí foi votado em cinco pessoa, daí a Emerenciana ganhou, que nós queria que ganhasse o Bernardo Furquim ou o José Furquim, que tinha, que eles falava nele (o povo de Ivaporunduva). Mas daí, como o Nhunguara tava em peso, daí Emerenciana ganhou [ ] {Mas, na verdade, ela era do Nhunguara?} Ela não, ela era filha do Bernardo Furquim, Emerenciana era filha de Bernardo Furquim, irmã do meu avô Graciano Furquim. Só que ela casou, o caso dela pe- gar esse Chules, ela casou com um homem lá que tinha apelido de... {Chouriço?} {Nós já ouvimos em algum lugar essa história.} Era Pedro Chouriço o marido dela {Então, na verdade, era Maria Chules de “chouriço”?} É, Chules de “chouriço”. Daí, até nisso, eu falei pra eles, o certo é, é que a gente fala a assembleia, mas o que vale é a maioria, né. Digo: “Eu acho que dá pra colocar a escola nela, já que ela ganhou, mas colocar, assim, o nome dela local, Maria Emerenciana Furquim”, porque ali é o (detalhe) mais caro. Daí, depois, quando foram fazer essa, acho que foi esse dia que você tá falando, eles mudaram. {Colocaram o apelido.} Aí eles colocaram a história dela... {Esse Princesa também foi...?} Princesa também... (Dona Jovita, Galvão) Escola Estadual Maria Antônia Chules Princesa localizada dentro do Quilombo André Lopes, atende alunas/os de outros quilombos da região - Eldorado - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 94. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 95 SUMÁRIO Conversando sobre Pedro Cubas Outro personagem histórico importante para as comunidades da re- gião de Eldorado foi Pedro Cubas. Então, Pedro Cubas foi um rapaz, né, um quilombo que lutou muito por esse lugar, o pai dele chamava Joaquim Marinho. Um negócio, assim, e na época daquela luta, tudo, esse Joaquim Marinho já estava velho e passou pra esse jovem, né, que demonstrava, assim, bastante agilidade, né, e ele passou: “Ó, meu filho, não guento mais, já tô velho, vocês tomem conta”. Igual nós fazemos até hoje; quando nós tamo ficando velho, a gente vai passando a res- ponsabilidade pros mais jovem. Então, “Vocês têm que assumir, irem assumin- do”, e assim vem funcionando, até hoje, dessa maneira. E esse Pedro Cubas, ele ficou, né, fez bastante amizade com os outros quilombo, tipo São Pedro, Galvão, Ivaporunduva, que era tudo do mesmo fundador, né, Joaquim Marinho. Tudo o mesmo, que ele andava pelo mato, chegava num lugar e já formava uma família, né, e ali ficava. E nós somos tudo descendente dele, tanto Galvão, como São Pedro, como Ivaporunduva e os dois Pedro Cubas. E aí ele fez uma, juntou todo mundo, vamos fazer um movimento, vamos, porque eles iam pra cidade e não podia, era por rio que ia, né, eles não podiam trocar a mercadoria deles em (Xiririca), que hoje é Eldorado, aí ficava aquela situação. Aí, quando eles tavam bem sossegados, chegava alguém da mesma turma deles e falava assim “Ó, tal dia vocês vão ter um invasão aqui”. Aí, tipo, ali da vilinha, eles mudavam pra cá, iam mudando, né, até que foi embora lá pra cima, lá tem os bairro, [ ] Grande, Casa da Pedra, Pouso Morro, onde eles ficaram na época, e até que eles juntaram uma boa turma. “Nós tamo cansado disso, nós não va- mos mais admitir que eles chegue.” Eles escondiam as mulheres e ficavam na retaguarda, né. As mulheres iam pra outro canto, eles deixavam as mães com as crianças pra lá, e os homens ficavam aguardando a chegada deles, dos branco, que chegavam tudo a cavalo, aí tocavam fogo na casa deles, essas coisa tudo. E esse Pedro que foi, entre, craro que a gente sabe que ficou, teve muitos ou- tros, né, mas esse que ficou na história, porque ele juntou mais grupo, reuniu pessoas de São Pedro, pessoas não sei aonde, dali, “Vamos ficar aqui, se ele vier”. Aí tinha um adivinhão, na época, que ele subia num pau muito alto que tinha aí no morro, que até hoje existe, o pau não existe mais, mas o lugar, né, que chamava um pau muito alto, em forma, ele tinha um galho, diz que assim, assim, assim, parece uma cruz, e ele subia nesse pau muito alto e lá ele adivi- nhava que tal dia ia ter uma invasão. E pro incrível que apareça, havia, sabe, essa invasão. {Como que era o nome desse adivinhão?} Então, ele era, agora eu esqueci o nome dele, é... {Depois aparece o nome.} depois aparece. E aí acre- ditavam no que ele falava porque dava certo, né. E nessa época houve mesmo, no dia que ele falou, aconteceu a invasão. Veio muitos cavaleiros de Apiaí, de
  • 95. 96 Valores civilizatórios SUMÁRIO outros lugares aí, pra acabar com eles; aí eles já sabiam, que o homem já tinha dado a coordenada. “(Vamos fazer um baiá) assim, assim, assim.” E, como eles não tinham arma, era só a frecha mesmo, o bodoque, que eles falam, né, o bo- doque e o baiá, aí eles armaram o baiá num lugar grande, aonde tinha tipo a porteira – lá em cima ainda tem todo o local, nós temos o local lá e até limpo, até hoje –, e eles armaram um baiá na porteira. Conforme os cavaleiro foram entrar, a porteira já tava aberta, né, eles já desarmaram lá, o baiá caiu em cima dos cavaleiro, e eles tinham posto aquelas ponta de madeira, como uma lança, aí matou muitos cavaleiro, muitos cavalo mesmo, né. E assim eles conseguiram matar muitas pessoa dos branco de cavalo que chegaram, conseguiram evitar essa tragédia lá no local deles, né. E aí demorou ainda mais de cem anos pra ser reconhecido isso daí, né, essa vitória dos negros neste lugar. Teve outros em outros lugares, mas aqui, devido à história desse menino, ficou Pedro Cubas, que ele chamava Pedro, né, Cuba porque, segundo os nossos mais velho, meu avô (Cesarino), ele falava que esse Pedro era o escravo que tinha passado por Cuba, né. Diz que em Cuba também houve muitas, não sei... E ele, trouxeram ele de Cuba pra cá, ele ficou, só conheciam ele como Pedro, como ele veio de Cuba, ele e outros monte, e eles eram líderes também, provável, de lá, eles continuaram chamando Pedro Cubas pra ele. Aí, quando chegou aqui, deram o nome do rio aí, depois dessa batalha, o rio Pedro Cubas, em homenagem a ele. {Esse rio que a gente passa aqui.} É, esse rio Pedro Cubas, por isso o bairro e o rio chama Pedro Cubas, por causa dele. E assim mais ou menos a história, né. E aí nesse pau, onde o adivinhão falava, eles montaram um cruzeiro muito grande, né, que, até hoje, hoje nós não fazemos mais isso porque o fazendeiro derrubou, né, mas tinha uma cruz que, no Dia da Santa Cruz, parece que é dia treze de maio, um negócio assim, Dia de Santa Cruz, aí a gente, nossos pais fa- ziam festa e vinha todas as comunidade aqui. Vinha de longe pra fazer essa festa grande lá no cruzeiro, no dia da Santa Cruz. E aí a gente perdeu, é um dos res- gates que a gente quer fazer agora é resgatar esse local, né, que tá na mão do fazendeiro. A gente quer conversar com ele, que ele não mora nem aí mais, diz que ele arrenda, né, pra ver se a gente consegue um espacinho pelo menos, pra levantar essa história nossa. E essa Santa Cruz também, tem a história que eles vinham de lá de Batatal, atravessava Barra do Braço, Itapiúna. Eles vinham pra cá, atravessavam os cavalo tudo nadando, boi, quem ia levar boi pra Apiaí, eles iam tudo por aqui, né, boi, porco, tudo peado, né. Eles passavam por caminho nosso aqui pra ir serra acima pra lá, pra sair em Apiaí [ ] aqueles lugar pra lá, era negociado tudo por aqui, pelo nosso caminho. Então, quando eles chegavam no cruzeiro, era um ponto estratégico pra eles. Quando eles chegavam nesse morro, eles iam orar, rezar, agradecer a Deus que eles tinham chegado lá com saúde interrupção (Dona Diva/Pedro Cubas)
  • 96. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 97 SUMÁRIO Terra Historicamente, a democratização da posse da terra foi dificultada no Brasil com a criação da Lei de Terras no 601, de 1850. Essa lei foi regulamentada, mais tarde, pelo Decreto-lei n° 1318, de 30 de janeiro de 1854. Desde então, somente por meio da compra se podia adquirir a terra, va- lorizando as terras devolutas (não ocupadas) de acordo com as terras particulares e inviabilizando sua compra pelo trabalhador rural. A Lei de Terras impediu que imigrantes, trabalhadoras/es pobres e negras/ os livres se tornassem proprietárias/os ru- rais, ocupando a imensidão de terras livres da fronteira agrí- cola. As/Os negras/ os livres que tivessem comprado, recebido em doação ou herdado terras foram expulsas/os de seus terri- tórios, retomando a luta histórica pelo acesso à terra. Conheça algumas instituições que trabalham no reconhecimento e na regularização das terras quilombolas: • Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) • Fundação Palmares • Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) “O decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimita- ção, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comu- nidades dos quilombos de que trata o artigo 68, do Ato das Disposições Consti- tucionais transitórias. A partir do Decreto 4883/03 ficou transferida do Ministério da Cultura para o Incra a competência para a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como a determinação de suas demarca- ções e titulações.” INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA). Etapas da regularização quilombola. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Disponível em: http://www.incra.gov.br/ index.php/estrutura-fundiaria/quilombolas. Acesso em: 3 mar. 2014 “Quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tra- dições culturais, de subsistência e reli- giosas ao longo dos séculos. E uma das funções da Fundação Cultural Palmares é formalizar a existência destas comu- nidades, assessorá-las juridicamente e desenvolver projetos, programas e po- líticas públicas de acesso à cidadania. Mais de 1.500 comunidades espalhadas pelo território nacional são certificadas pela Palmares.” Disponível em: http://www.palmares.gov. br/quilombola/. Acesso em: 3 mar. 2014. “A Fundação Instituto de Terras do Es- tado de São Paulo (Itesp) é a entidade responsável por planejar e executar as políticas agrária e fundiária do Estado de São Paulo e pelo reconhecimento das Comunidades de Quilombos. É vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da De- fesa da Cidadania. Seu trabalho ocorre no âmbito estadual, promovendo a democratização do aces- so à terra, em benefício de posseiros, qui- lombolas, trabalhadores rurais sem-terra ou com pouca terra, além de implemen- tar políticas de desenvolvimento susten- tável para as comunidades com as quais atua, numa perspectiva de resgate da ci- dadania, com vistas ao desenvolvimento humano, social e econômico.” Disponível em: http://www.itesp.sp.gov. br/br/info/instituicao/quemsomos.aspx. Aceso em: 14 jun 2014.
  • 97. 98 Valores civilizatórios SUMÁRIO Dona Jovita: Óia, sobre a luta da terra... a gente até que tem bastante coisa pra falar, sabe, mas a gente cita aí os ponto importante: que a terra é a nossa vida, sem a terra nada posso conseguir. E drento dessa luta que a gente tá lutando já há quase quarenta ano quase – porque não é agora que a gente começou – a gente tá nessa luta há muito tempo através dos conflito... É o conflito, o conflito foi que fez a gente abrir a mente pra lutar pelo direito da gente. E a gente vem lutando lutando lutando. Até que tá sendo bom, porque pelo meno ainda tá, o governo tá reconhe- ceno o nosso direito, a gente já chegou ao ponto de titular as terra, a associação já tem os seus título. Só o que tá difícil, difícil ainda pra nós aqui é a indivisação, porque a gente fez um trabalho com o governo, eu digo com o governo porque se é ele que manda tudo, a gente tem que falar logo nele e as [ ] de trabalho, eu não tenho (não entendo nada), vai ver que é por isso também que eles são camarada, sabe. Daí a gente fez, lutou [ ] alertando que a gente não tinha terra pra trabaiar não tinha terra pra trabaiar. Muitas vezes a pessoa chega aqui, [ ] Agora, né, cês dão uma olhada numa campa, cês acham que nós tamo sorto. Tem uma largura assim, mas não temos nada, nós tamo aqui circulado, só um (ovinho) que tem o seu direitinho aqui, daquele que restou pra nós. Mas você olha dali pra lá, aquele lugar tão bonito que foi morador de gente, ó... muitos séculos, teve muitas atividade, nós não podemos mexer com ele, porque tá na mão do fazendeiro, e aí tem que res- peitar, né. Porque, quando houve o conflito, a gente tava inocente, mas agora, se a gente memo criar um conflito, se for mexer, sem o governo fazer o que é preciso, sabe, porque... eu sou uma pessoa que tudo tempo eu falei isso, desde que eu en- trei na luta eu falei isso, eu não tiro o direito de nós, mas também não tiro o direito dos fazendeiro. Porque o fazendeiro, ele comprou, ele pagou, ele lutou, ele teve despesa dentro daquilo ali. Então essa parte, se o governo entrou com essa lei, isso aí pertence ao governo, não pertence? É o governo que tem que indenizar e pagar eles e pegar a terra e dar pra nós, como ele prometeu. Apesar de que o que prometeu morreu, mas ficou outro no lugar dele e... tem essas coisa pra nós, mas do que tava, do que era do que tava, a gente já tá se sentindo mais feliz, porque devagarinho ele tá indo... Esperamos, eu não sei – porque eu já tô com sessenta e oito ano, eu não sei quantos tempo eu vou viver – mas espero (que dê certo) essa indenização todo mundo, pro povo ter lugar. E aqui na nossa comunidade, pra falar bem a verdade, a pessoa não tem lugar de trabaiar ainda não, um serviço... Silvane: Quando a senhora diz “foi quando houve o conflito que a gente acordou pras coisas”, a senhora tá falando de quando? De que época, que houve esse conflito? Dona Jovita: De mil novecentos e sessenta e nove pra cá, mil novecentos e sessenta e sete que a gente foi, ainda tava dormindo, foi em sessenta e sete, dez ano... Sergio: Por que aí começaram ocupar as terra aqui, fazendeiro começou a ocupar as terra, foi isso? E tentar tirar vocês daqui?
  • 98. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 99 SUMÁRIO Dona Jovita: Nós fiquemos só numa beiradica assim que nós tinha [ ] {É o jagunço, tinha jagunços, né?} (Despeito) feio, porque o fazendeiro, quando ele chegou, nós tava despercebido. Foi o seguinte... Eu acho que eu posso contar a história aqui? {Claro, deve.} Em sessenta e nove, teve aquela lei da... do lote, sabe [ ] Aí, cada proprietário tirava o lote, e nós, aqui, tudo mundo tirou seu loti- nho de dez arqueire, que era a lei, tudo em paz. Só que os antigo, os mais véio antigo, eles tinham uma crítica aqui drento da comunidade por [ ] era os [ ] e os [ ], né, no cartório tem a briga dos (Furquim) e dos [ ] Aí começaram a brigar por causa de uma arinha de terra que eles tinham ali. Depois, parece que em quaren- ta e três, eles foram pra justiça. Aí o advogado deu a (preferência) pro Furquim, que era a minoria. Acho que foi uma senhora de idade que vendeu catorze hec- tares de terra pra um senhor aí do (Castelhano) que era um grande... rico, sabe, é o rico maior que tinha no vale do Ribeira, e (ele) começou grilar tudo. Mas nós, de nossa idade, nós tava em paz, sabe, porque nós não sabia de nada. Apenas eu sabia da venda da terra, sabia do que já tinha acontecido, porque esse (tio), ele era coordenador do São Pedro, ele tinha o livro de tudo que acontecia, e o Antô- nio [ ] tinha também, então dentro daqueles livros tava tudo escrito aquelas coisa que tava se passando. Então eu já sabia, porque eu parava muito lá e eu também era muito exibida de conversar com aquelas gente mais véia, sabe, eu sempre tirava alguma coisa deles. Aí ficou, mas ninguém esperava que ia acontecer isso, sabe. Daí, depois, quando entrou, quando veio a lei do lote, por isso que eles pegaram, vieram onze homem de lá, dessa comunidade, cada qual com uma foice, pra tirar mil e oitocentos arqueires que era, que é um sítio chamado Tiatã, pra vender, assim [ ] e tinha bastante proprietário morando lá na área. Aí eles não concordaram, aí eles falaram: “Óia, a lei que o governo deu é de tirar dos pro- prietário o que eles vão tirar”. Agora, pra tirar a pessoa de outro lugar, o governo [ ] houve uma briga [ ] mas daí a lei venceu. Aí tudo mundo tinha seu lote aqui, a gente viveu muito bem com essa mania de lote, era um respeito. Só que o que que aconteceu também... daí uma mulher que eu conheço, também a famia tudo dela eu conheço... conheço tudo eles, aí também não esperava que eles pudes- sem fazer isso... Como eles não puderam tirar por cheio, ela pegou, fez uma praca e colocou em (São Paulo): “Vende-se um sítio chamado Tiatã”. Teve uma pessoa, amiga minha, que foi lá e (comprou/copiou): “Vende-se o sítio Tiatã, mil e oitocentos arqueire, em tal lugar”. Aí tudo passava e lia aquilo, lia aquela praca. Aí, quando foi um dia, veio um senhor, até me lembro o nome dele, um homem esquisito sabe, mais uns dois. Aí eu tava indo trabaiar, seis horas da manhã, en- contremos com esses homem, aí eles falaram pra mim: “Dona, a senhora me dê conta pra mim onde é o sítio Tiatã?”. Aí eu falei: “É ali pra frente”, digo, “mas o senhor tá interessado nele, então o senhor corte ali na casa de um senhor que tem ali, um véinho que tem ali, e eles dão uma expricação pro senhor”, daí eles cortaram e tiraram informação. Aí o cara falou: “Esse sítio, eu conheço a história dele, e tem muito proprietário, ele pertence a nós que somos (Furquim)”. Aí eles
  • 99. 100 Valores civilizatórios SUMÁRIO vortaram, desistiram. Quando deu oito dia, veio outros três com a mesma história, aí foi falado. Vortaram e vortaram [ ] Aí, quando deu uns oito, quinze dia, outra vez [ ] quando ele foi embora que ele vortou outra vez, chegou lá, tinha um tio dela, morava perto dela, assim. Porque a mãe tinha vendido, né, a mãe tinha já assina- do, já tinha recebido a parte dela, que ela uma das herdeira de duas parte: dos Furquim e do [ ]. Daí ele pegou, botou fogo na casa do coitado, cheio de lavoura, pia de arroz, pia de milho, queimou tudo. Aí nós abrimos os olhos [ ] Daí um ma- luquinho da São Pedro pegou [ ] botou fogo outro dia no barraco dele. Só que isso não foi pra justiça, se fosse pra justiça nós ia [ ], mas eles fizeram, trabaiaram, trabaiaram, trabaiaram, colocaram gado [ ] pegou nome errado por causa disso [ ] nossos filho não podiam estudar pra lá, nós pedimos pra fazer essa escola aí pros nossos filho estudarem aqui. Daí o rapaz não sabia, colocou Galvão, aqui é (Barra) de São Pedro, é um pedaço do São Pedro. {Quem colocou o nome?} Daí o que que aconteceu... {Quem colocou o nome, ela falou.} {Quem que colocou de bair- ro Galvão?} Ah, foi o rapaz que tava coordenando o serviço aqui, ele não tirou dica com ninguém. {Ele pôs o nome que ele quis, assim?} Ponhou, porque tem um sítio que nós trabaiamos nele que é chamado Carvão, porque foi aonde os nossos avô queimaram muito carvão, (então colocaram aquele apelido), os mais véio, aí ele pensou que era tudo sítio, o nome do sítio, o nome do sítio mesmo é Barra de São Pedro, isso eu fui buscar até em Iporanga no cartório, pra poder fazer o esta- tuto... Daí, o que aconteceu, daí nós comecemos com aquela luta. Só que, daque- la vez em diante, de mil novecentos e setenta, setenta e cinco, aquelas coisa foi crescendo, crescendo, crescendo, a gente foi abandonando tudo, jogando tudo, a gente foi largando de trabaiar, porque não tava mais aguentando aquela ques- tão. Não era não aguentar, a gente não queria encarar, porque tinha muita gente de fora, e a gente não tinha conhecimento com aquelas pessoa. Aí, quando foi um dia, a história mais linda que eu sempre aviso o meu povo [ ] nós tivemos um aviso, um comunicado, que vinha (doze do Estado) aqui, conversar com nós, um federal e outro estadual. E nós tinha uma igreja lá embaixo, no peito do morro ali, quando tem as casa parecida ali, ali era nossa igreja, e essa daqui, mudou aqui, donde nós fazia reunião também. Aí foi feita uma runião, mas teve gente pra ca- ramba, parece que era pra tudo o povo se ferrar. Aí ficou, aí eles chegaram, tira- ram tudo que já tinha se passado e diziam pra nós que, que esse fazendeiro ia se ferrar com eles, eles iam botar isso pra justiça. Naquela, o líder, que não era eu, era lá do São Pedro, se alarmou: “Ó, a gente já fez isso, fez aquilo”, [ ] nós, com aquela coragem [ ] Agora é a hora que nós se sarvamos: daí [ ] ela tinha ido a El- dorado fazer compra e, quando ela comprou aquelas barra de sabão que eram embrulhada num jornal assim, aí ela chegou em casa, ela pegou aquele jornal pra fazer fogo de manhã, fazer aquele fogo de manhã e, antes de riscar o palito de fósforo, ela olhou numa letra, tava escrito “São Pedro”. Aí ela jogou, abriu o jornal e começou a ler [ ]. Aí ela pegou, guardou e trouxe pro líder, que era Joaquim [ ] de Almeida, trouxe pra ele. E ele guardou e, nesse dia da runião, ele tava com ele
  • 100. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 101 SUMÁRIO no borso. Aí os cara começaram conversar – porque eu sou boba, sabe, eu fico ali no meio do povo, mas eu não sei o que é que eu faço, eu sempre fiquei do ladi- nho –, tinha a janela assim, os dois ficaram na janela [ ] nós tava alegre, até bate- mos parminha. “Nossa, nós nunca vimos um deputado federal, um deputado es- tadual”, risos e nós tá tendo essa honra. Nós abracemos ele pra caramba, mi- nha fia. Aí, nisso, eles tava na janela, só que eu encostei anssim por fora, eu gosto muito de ficar assim meio (disfarce), sabe, {Isso foi na igreja, né?} foi na igreja, eles começaram falar baixinho um pra outro: “Nossa, mas este rio, pro que nós quere- mos, dá certinho. Este rio é uma maravilha, vai dar uma usina (daquelas) mais fa- mosa, porque o rio [ ]”, e eu escutei. Quando falaram em usina, eu não sabia o que que era isso, eu não tinha nada [ ] eu só tava acompanhando o povo, mas eu não tinha uma noção, falei: “O que será essa usina? Será que é barragem, será que é alguma coisa?”. Digo, “Eles vão fazer pra nós isso aí, vão fazer pra nós”. risos Eu comecei sonhar [ ], aí, esse compadre Joaquim chegou, puxou esse jornalzinho, falou: “Ô, doutor”, nós não chamava assim senhor, a gente falava no mais alto: “Ô, doutor deputado, o senhor...” risos “eu tô com um jornal aqui, o senhor não exprica pra mim por caridade, esse é do fazendeiro que tá fazendo esse mal pra nós, vai fazer...”. Aí o cara pegou, o Benedito, “O senhor sabe, isso aqui é feito lá no meu escritório,” risos, falou, “este aqui é feito lá no meu es- critório.”. E, lá, ninguém se tocou nada também, ninguém ligou, só leu, devorveu pro compadre Joaquim, falou essa conversa e marcou com nós. Quinta-feira nós tinha que tá em Eldorado urgentemente pra fazer o papel, uma foia assim, com documento de casamento, de filho, de tudo. Por isso que eu tenho medo de cer- tas coisa... Aí sai minhas irmã, meus irmão, pelo amor de Deus, eu vou contar pro senhor, de tão alegre, que a gente pensou que era alguma coisa de valor, eu tava em casa sozinho, fazia um mês que Jabor tava trabalhando lá no Praia Grande, eu tava sozinho, só com meus filho, sem dinheiro pra comprar nada, nós comprava a prazo... Mas eu corri, “Não, eu vou correr atrás de empréstimo de dinheiro”, mas corri. Emprestei cinco mir réis, que meu papel de casamento ainda tava (sem reti- rar) das [ ]. (Penso), é quinta-feira, segunda-feira, terça-feira, corri [ ] peguei meu papel do casamento, vortei, com cinco mir réis eu fiz uma (vila) dos caramba. E toda essa gente aqui numa agitação; coitado de Anísio, o ônibus de Anísio, assim mesmo chacoalhando, chacoalhando levou nós tudo, São Pedro lá, tudo, no São Pedro ficaram (dois homem) ficaram, pra nossa salvação, aí eu estranhei [ ] só Deus lá no céu. Até uma irmã religiosa, falsa, traiu nós; ela era (em forma) de uma irmã, mas ela tava por dentro daquilo, {Era informante, levava as informações.} ela tava apoiando. Nós nunca (perdoamos). {Quem que é ela?} Uma tar de Doraci, [ ] {A tal Doraci lá, que apareceu e (sumiu)?} que, por curpa dela, quase mataram o Carlinho. {Dentro da igreja, né?} Eu que impedi, porque quem ia tomar o tiro era eu, mas eu fiz pra defender tudo lá. Se matasse eu, som que da ideia de des- dém, pouco me lixava, mas, se matasse o fazendeiro ou matasse o padre [ ] Mas quase que aconteceu isso. Aí, o que que aconteceu, daí nós fomos, chegemos lá,
  • 101. 102 Valores civilizatórios SUMÁRIO essa freira tava na porta do salão lá, do mesmo modo que ela fez aí, ficou na porta do salão. E nós ia lá dar os nome, dar os nome, (e fazia aqueles papel), fo- mos (registrando) tudo, aí eu desconfiei da conversa de um que falou: “Por que que nós não fazemos ali na praça?”, aí o outro respondeu pra ele: “Não, ali na praça não. Se nós for fazer ali na praça, vão dizer o quê de nós?”; daí eu sempre sacava aquelas conversa (diferente). Aí viemos tudo contente, aquilo, nem (dian- tar), esse dia, ninguém diantou, porque nós tava feliz da vida, que nós ia receber tudo de mão (cheia). Aí o que aconteceu [ ] que esses dois home que ficaram, que não puderam ir nesse dia, eles mandaram recado pra eles que, no outro dia, ele que fosse pra fazer, porque não podia ficar ninguém [ ] e eles aguardaram até a chegada do ônibus. Aí eles foram, (dois) mais véio, sabe, foram, eles não conhe- ciam a cidade. Tudo isso, até não conhecer as coisa, é bom pra gente, né; eles não conheciam a cidade, não conheciam onde era a casa paroquial, onde é que era pra ir, aí pegaram, se encaminharam pra prefeitura, foram pra prefeitura. Aí chegaram lá e deram pro seu Ari, que era o prefeito, que eles foram fazer esse papel só que eles não sabiam onde é que eles tavam, sabe, eles não conheciam o local, e esse papel era pra isso, era pra aquilo. O seu Ari pegou o papel, abriu e começou ler. Leu, leu, leu, leu, leu e falou: “Escuta, todo mundo [ ] assinaram esse papel?”. Ele falou: “Foi, faltaram nós dois”. “Então vocês dois não vão assi- nar, não vão assinar e vorta pras suas casa [ ] e avise a liderança lá que vocês tão (perdido). Mais uma vez, São Pedro caiu [ ] aí eles vortaram e já vieram avisando. Quando foi no outro dia, o que é que nós ia fazer? Como nós não tinha recurso pra fazer aquela (vira), aí o líder pegou, foi em Eldorado, [ ] a prefeitura pegou fez uma carta. Já tava lá no Rio Grande do Sul esses papel, e quando viesse o [ ] vinha pra cá. Daí entrou advogado, entrou as pessoas, sabe, que entende dessas coisa [ ] e pegaram e fizeram o desfecho, {Cancelaram.} cancelaram. Mas, nós, óia, des- se tempo pra cá, eu fiquei com medo. Quando chega uma pessoa aí contando que ele é muito de cima, eu penso nisso. “Não, vamos conversar primeiro...” Mas nós peguemos cada boca quente... Mas tudo bem, ali ficou, mas, graças a Deus, agora, depois que o fazendeiro... também, aconteceu esse fato aí de morte, sabe, daí a justiça entrou mais forte pra defender o nosso lado. Daí também veio acar- mando, acarmando, acarmando; dá pra gente se dizer que agora, quase de uns vinte ano pra cá já (Dona Jovita/ Galvão).
  • 102. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 103 SUMÁRIO Associação As associações de moradores são instâncias muito importantes para as comunidades quilombolas. Isso porque, para que as comunidades ob- tenham o reconhecimento legal de que são remanescentes de quilombos e para que consigam a demarcação, a certificação e a titulação de suas terras, é necessário que possuam uma associação de moradores devidamente re- gistrada em cartório. Então, dessa comunidade aqui, a organização começou depois que nós, o grupo de mulher, começamos, estudando a Bíblia que nós descobrimos os valo- res, foi na Bíblia que nós descobrimos que as mulheres da Bíblia, também eles, tiveram muita luta pra conseguir o direito deles. Então nós também estudamos as mulheres da Bíblia, onde começou a nossa organização de mulher. Começamos a trabalhar juntos, porque cada uma trabalhava pra si, ninguém trabalhava em gru- po junto, dessa época pra cá, que a gente descobriu as mulheres da Bíblia, que eles trabalhavam sempre em grupo pra eles poderem conseguir as coisas, que uma pessoa sozinha é difícil, aí também nós começamos a trabalhar em grupo, depois do estudo bíblico. Isso foi de noventa [1990] pra lá, foi antes de noventa. Placa da Associação Cultural do Quilombola Brotas - Itatiba - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 103. 104 Valores civilizatórios SUMÁRIO Porque, o ano de mil novecentos e noventa e dois, nós já tava formada em grupo, já tava mais organizada, que nós já começamos fazer um encontro de mulher em Eldorado pra comemorar o dia oito de março, que é o Dia Internacional da Mu- lher. A gente já tinha descoberto, já começamos fazer a reunião, todo ano a gente fazia uma viagem pra Eldorado, dia oito de março, pra comemorar o Dia Interna- cional {Vocês faziam junto com a dona Jovita?} Era tudo junto, cada comunidade se reunia e, aqui, eu já entrei nessa época como coordenadora, porque eu que arrumava as pessoas, arrumava ônibus pra ir nesse dia em Eldorado. Já venho co- ordenando as coisas aqui dentro da comunidade há bastante tempo, já trabalhei grupo de horta que nós trabalhava, comunitário, roça comunitária, horta, tudo eu já fui coordenadora desses trabalhos. E, depois, agora, de mil novecentos e noventa e quatro pra cá, eu passei a ser coordenadora da Pastoral da Criança, que até hoje sou coordenadora ainda da Pastoral da Criança aqui na comunida- de. Então, aí, começou, a gente descobriu através das mulheres da Bíblia que a gente também tinha que se juntar, se juntar as mulheres também pra conseguir algum direito. (Esse grupo começou) só aqui em Sapatu, porque cada comunida- de, a irmã Sueli, a irmã Ângela, elas que vieram dar o estudo bíblico pra nós. Nós tinha estudo bíblico, eu estudei cinco anos, eu estudei bíblia cinco anos, então eu já aprendi muitas coisas, conheci as mulheres da Bíblia, conheci a luta deles, pra depois nós começar a nossa, nós nos inspiramos na Bíblia. Cada vez que elas vinham, nós estudava um trecho bíblico, e foi aí que abriu a nossa mente. Essa Associação de Moradores surgiu quando nós trabalhamos com o grupo de horta, porque aí os homens tinham a associação, mas era de troca. De dia, os homens iam, trabalhava um, depois, aquele um que fazia a roça, fazia a roça e ia pagar o dia daquele outro. E assim foi, e, depois, houve um tempo que eles se desligaram disso aí, largaram mão desse serviço, não sei porquê. Ficavam medindo esforço, um ia pagar, outro não ia, um trabalhava pra um grupo, depois aquele um não vinha pra ele, então foram se dispersando. Aí, depois, formou essa associação que nós temos agora, que ela começou essa época. E, nessa época, nós tinha, nós era um grupo de dez mulheres que trabalhava, trabalhava com horta comuni- tária. E, aí, quando formou a associação, nós fomos as primeiras pessoas a entrar na associação pra poder registrar, pra poder fazer o registro da associação. Que queriam registrar, mas não tinha, o grupo dos homens não tava trabalhando, o grupo que tava trabalhando era só as dez mulheres. Então precisava, pra registrar a associação, de um grupo de mulher trabalhando, de um grupo trabalhando. Como era um grupo de mulher, entrou o grupo de mulher pra registrar a associa- ção. Foi mais ou menos isso aí (no ano de mil novecentos e oitenta e nove a mil novecentos e noventa), mas a horta foi bem antes. A horta foi, não tinha a asso- ciação aqui ainda, começou na época da horta. Que até nós fomos chamados pra nós entrar na associação, fazer parte, ser sócio. Pra poder registrar a associação, precisava de um grupo trabalhando, e era nós que tava com o grupo trabalhando, era nós dez mulheres. [...] No tempo da horta, a gente trabalhava, o primeiro ano
  • 104. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 105 SUMÁRIO nós trabalhamos com verdura e nós vendia pra prefeitura, vendia na Santa Casa e, depois, como teve a troca de prefeito, pararam de comprar. Aí, nós mudamos pra outro tipo de plantação, começamos a plantar verdura, mas a gente tava só per- dendo, porque plantava pra vender, plantava bastante, não tinha mais comércio. Aí nós mudamos a plantar coisas que nós mesmos consumia, plantava mandioca, plantamos arroz, plantamos feijão, milho, nós plantamos de tudo depois que nós paramos com a verdura. O espaço da terra nós ocupamos com outras coisas, e esse nós mesmos consumia, porque nós, nessa época, tinha entrado mais uma pessoa, já era onze mulheres, então... o que nós plantava ali, nós dividia entre nós, então não se perdia nada, como no começo perdeu a verdura. Depois, mu- damos pra outras coisas, e não perdia. Nós dividia lá mesmo, nós tirava mandioca e juntava de duas em duas mulher e fazia um pouco de farinha, outras duas ia, tirava mandioca e fazia outras farinhas e dividia entre eles, e assim vai. Nós traba- lhamos. Dessa época pra cá, o grupo de mulher não parou mais. Nós não temos mais horta, mas nós temos outras coisas. Aí, depois disso, nós tivemos o curso de costura, dois cursos de costura também que nós fizemos, mas só que não deu certo, porque a pessoa pensava em entrar numa coisa que desse renda, a gente precisava, precisava de uma coisa pra ter renda. Aí a costura não foi em frente, aí desistimos da costura. Aí veio, entrou o artesanato, e no artesanato tem várias mulheres ainda que continuam trabalhando. (Dona Esperança/Sapatu) Essa, lá embaixo, ela é fundada em mil, foi fundada em mil novecentos e noventa e oito. E aqui, que foi uma área que ficou à parte por questão política da época, eles não deixaram que os quilombo reconhecesse pra cá, pra cá tinha que ficar com os outro. Mas, através de estudo antropológico, acusou realmente que era tudo parte, fazia tudo parte do quilombo. Aí, quando eu estava em São Paulo, o próprio estado [ ] da Brigadeiro Luís Antônio e falou, escrareceu a gente, falou: “Ó, vocês têm direito, então é bom, dona Diva, a senhora...”. Em mil novecentos e noventa e seis, já havia uma grande reunião aí em Eldorado, aonde teria que dar um que realmente que os quilombo dessa área aqui, né, que tem entre, faz divisa com o parque, dissesse um que, que queria mesmo, porque o parque ia tomar conta, né. Aí ficava o parque e terceiro, daquela ponte que vocês atraves- saram da [ ] pra cá, né, daqui pra cá ia ficar parque e terceiros, ficava os quilombo só ali naquela vilinha, né, amontoado ali. Aí eu procurei, pedi uma reunião com os secretário, a Florestal, enfim, esses representante, aí em Eldorado, na Câmara Municipal, e eles atenderam. Aí eu vim de São Paulo, junto com outras liderança, né, e fizemos a reunião lá, e eu assinei um requerimento requerendo essa parte pra cá, que dá seis mil oitocentos e setenta e cinco hectares de área e vai embora. É mato pra caramba, né, mas... (Dona Diva/Pedro Cubas)
  • 105. 106 Valores civilizatórios SUMÁRIO Conheça algumas organizações quilombolas que traba- lham para a garantia dos seus direitos: Coordenação Nacional de Articulação das Comunida- des Negras Rurais Quilombolas (Conaq) Equipe de Articulação e Assessoria as Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone) “Na realização do I Encontro Nacional de comunidades Negras Rurais Qui- lombolas, realizado em novembro de 1995, em Brasília/DF. As comunidades negras rurais quilombolas alteraram a capacidade de mobilização regionali- zada exercitada nas últimas décadas, colocando a problemática do negro do meio rural como questão nacional. Como mecanismo de organização, constituíram a Coordenação Nacio- nal de Articulação de Quilombos (CONAQ). A CONAQ foi criada no dia 12 de maio de 1996, em Bom Jesus da Lapa/BA, após a realização da reunião de avaliação do I Encontro Nacional de Quilombos. A CONAQ é uma organiza- ção de âmbito nacional que representa os quilombolas do Brasil.” COSTA, Ivan Rodrigues. CONAQ: Um Mo- vimento Nacional dos Quilombolas. Dispo- nível em: http://www.institutobuzios.org. br/documentos/CONAQ_UM%20MOVI- MENTO%20NACIONAL%20DOS%20QUI- LOMBOLAS.pdf. Acesso em: 14 jun 2014. “A organização político-social destas comunidades teve inicio em meados da década de 1980, com o trabalho de base realizado pela Comissão da Pasto- ral da Terra (CPT). Nos anos 1990, foi criada a EAACONE (Equipe de Articu- lação e Assessoria as Comunidades Ne- gras do Vale do Ribeira), formada por lideranças das comunidades quilombo- las do Vale e por apoiadores. Iniciava- -se, assim, o processo de discussão e organização dos quilombolas do Vale do Ribeira. Também nesta década, foi criado o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB), composto por integrantes da Igreja Católica, ambien- talistas, sindicatos urbanos e rurais, lide- ranças das comunidades rurais e, prin- cipalmente, representantes das comu- nidades quilombolas. O movimento faz parte até hoje do cenário político-social das comunidades quilombolas, indíge- nas e caiçaras locais no enfrentamento dos projetos de barragens (Hidrelétrica de Tijuco Alço, Funil, Batatal e Itaoca), no rio Ribeira de Iguape. (Continua) Placa indicando o Quilombo Cangume - Itaoca - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 106. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 107 SUMÁRIO Produção: roça, produtos artesanais e turismo étnico Vemos nos relatos das/ dos mais velhas/os das comunida- des quilombolas que, no passado, as comunidades produziam tudo o que consumiam. Todos os alimentos eram produzidos pelos próprios quilombolas: plantavam, criavam galinhas e por- cos, pescavam e caçavam. Das cidades, necessitavam apenas de alguns “cortes de pano” para as roupas, do sal, do fósforo e do querosene para as lamparinas. Tudo o mais era produzido na co- munidade. Hoje, a realidade é bem diferente. Com a criação de leis ambientais, que muitas vezes, desconsideram os modos de vida das populações tradicionais, e com a diminuição de suas terras, que foram tomadas por terceiros, grileiros, grandes em- presários do setor de mineração ou por empresários interessa- dos na construção de hóteis e condomínios, as/os quilombolas foram forçados a reduzir suas atividades produtivas, princi- palmente a produção de alimentos para consumo próprio. As/Os quilombolas nos dias atuais vivem com poucos recursos e se veem obrigados a trabalhar fora, na lavoura de outros produtores, ou nas cidades, em casas de família e nos demais serviços urbanos. Ironicamente, as/os quilombolas que, juntamente com as/ os indígenas, foram as/os responsá- veis pela preservação de uma enorme área de Mata Atlântica Terceiros: pessoas que compraram (alguns, poucos, de boa fé) terras que estão dentro de territórios quilombo- las. Após a certificação de titulação da comunidade, os terceiros devem ser in- denizados pelo governo e sair da terra, deixando-a aos quilombolas que têm direito sobre ela. Grileiros: pessoas que, usando falsos documentos de propriedade, se apo- deram de terras que não são suas. Esse nome surgiu do fato de que essas pes- soas, para produzirem os documentos falsos, colocam-nos dentro de uma cai- xa com grilos, para acelerar o processo de envelhecimento do papel, dando- -lhes a aparência de antigos. (Continuação) A organização das comunidades qui- lombolas resultou na consciência de seus direitos. Mas ainda hoje, os re- manescentes de quilombos vivem em constantes batalhas por seus direitos fundamentais.” SILVA. Elson Alves. A educação diferen- ciada para o fortalecimento da identida- de quilombola: estudo das comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira. Dissertação de Mestrado. PUC/SP, 2011. p. 37. Disponível em: http://www. sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo. php?codArquivo=12577. Acesso em:9 jun 2014. Artesanato feito por moradores do Quilombo Sapatu - Eldorado - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 107. 108 Valores civilizatórios SUMÁRIO existente no Vale do Ribeira e no litoral paulista, hoje estão acuados por uma legislação ambiental que criou parques e áreas de preservação ambiental dentro dos territórios quilom- bolas e proibiu atividades realizadas há séculos por essas co- munidades, como a roça e a caça para consumo próprio. Algumas comunidades, principalmente as que já foram certificadas e tiveram suas terras tituladas, vivem da planta- ção de banana e de palmito pupunha. Esse é o caso de algumas comunidades do Vale do Ribeira. Todas ainda criam galinhas e porcos (em pequeno número) para consumo próprio e fabri- cam artesanalmente, de maneira tradicional, alguns produtos como farinha de mandioca, doces de banana, de mamão e de laranja e pão. Além do artesanato da fibra da bananeira. As comunidades também têm se organizado para a rea- lização do turismo étnico, do qual a comunidade do Ivaporun- duva é um exemplo. Ela possui uma pousada e recebe grupos de turistas e visitantes (em sua maioria, professores e alunos da educação básica e de universidades) e realiza oficinas temáticas sobre a história das comunidades quilombolas. Visitas monitora- das ocorrem em quase todas as comunidades, momento em que membros da comunidade fazem apresentação de danças (Nhá Maruca e Mão Esquerda, por exemplo), roda de viola e contação de causos. Alguns jovens das comunidades do entorno do mu- nicípio de Eldorado trabalham como monitores ambientais nos variados atrativos naturais da região, como a Caverna do Diabo e as muitas cachoeiras ali existentes. Detalhe da cozinha e do restaurante Quintal da Magdalena - Quilombo Caçandoca - Ubatuba - SP. ©Fernandes Dias/IMESP (as duas fotos) “O Circuito Quilombola do Vale do Ribeira é uma oportunidade única de fazer turismo de base comunitária e ao mesmo tempo conhecer a cultura afro- -brasileira, participando de seu cotidia- no observando seus conhecimentos tra- dicionais, visitando as belezas naturais e, principalmente, ouvindo as histórias de luta e resistência das comunidades, que contribuem até hoje para preser- var as riquezas da sociobiodiversidade da região. São cachoeiras, rios como o Ribeira de Iguape e Pedro Cubas, cavernas, como a do Diabo com suas lagoas internas e milhares de estalacti- tes estalagmites, formando verdadeiras esculturas, as casas do Artesão e de Pedra; as trilhas do ouro, os sambaquis, de grande interesse arqueológico, os portos De Fora e Abrão e muitos outros atrativos que vão encantar os visitantes. Já a gastronomia quilombola é um item à parte que ajuda a contar a história dos quilombos do Ribeira.” CIRCUITO QUILOMBOLA DO VALE DO RIBEIRA. O que é Circuito Quilombola? Disponível em: http://www.circuitoquilombola.org.br/ node/1/. Acesso em: 3 abr. 2014.
  • 108. Quilombos, comunidades de valores | dialogar – conhecer – comunicar 109 SUMÁRIO Detalhe de bananicultura e Rio Ribeira de Iguape. Portal de entrada da cidade de Eldorado - SP. Criação de galinhas nas comunidades do Vale do Ribeira - SP. Pupunha nas comunidades do Vale do Ribeira - SP. Roda d‘água de engenho no Quilombo Fazenda Picinguaba Ubatuba - SP. Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. ©Genivaldo Carvalho/IMESP (todas as fotos desta página)
  • 109. 110 Valores civilizatórios SUMÁRIO Ai, era as coisa... porque as coisa era tudo daqui memo. O comprado era só o sal, o pessoal comprava, e a querosena pra acender lampião, porque essa lamparina que faziam, então acendiam pra gente crarear de noite, andava com o lampiãozinho, se não ponhava um lá, outro lá num lugar, pra gente tá fazendo as coisa naquele crarinho daquela luzinho, igual a vela quando a pessoa acende a craridade do lampião, igual a velinha, mema coisa, então, a gente, o jeito das coi- sa que a gente se mantinha com eles era tudo daqui memo. Então era... a gente prantava banana; dava pro gasto, porque não tinha (venda). Prantava mandioca, dava, prantava um (cajá), uma batata, tudo que era de aqui do mato, a gente prantava, dava, então a gente se mantinha com aquilo. Não tinha esse pão que tem agora, aí. Comprar um pão? Eu até nem ligo pra esse pão, não fui criada com isso, não acostumo (com o tar do pão), comer pão, não. Tinha o café de garapa, moía a cana, tinha o (estraçador), moenda, porque tinha o moenda grande de moer com animal, moendão, moía com animal bas- tante, (quarava) pra fazer açúcar de fôrma, que diziam, os mais véio diziam, então faziam aquele... Tinha o forno, uma tacha grande, então eles ponhavam numa trempe anssim e era um barracão do [ ] dessa casa aqui inteiro, misturado dessa casa dela tudo, um barracão grande que tinha. Então, dentro era aquela moenda, moenda grande em cima, então tinha o cavalo já próprio pra virar aquela moen- da. Então nós ia cortar a cana, era um dia inteiro que nós tava cortando cana, bas- tante gente, não era só eu, porque eu ainda era criança, mas tô fazendo a parte de eu porque... Mas os mais véio que iam, cortavam cana o dia inteirinho ali; três, quatro pessoa cortando cana. E, quando era outro dia, iam bardear tudo aquela cana, faziam aquele amontoerão de cana num salão assim. Aí, depois que tava tudo amontoado aquela cana, nós ia macetar, bater a cana pra pôr na moenda pra moer. Aí nós pegava, que era até o primeiro, o mais véio escravo, que tinha qui- lombo, os quilombo mais véio que nós trabalhava, os mais véio trabalhava nele, Mandioca e cará, plantados pelas comunidades quilombolas. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 110. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 111 SUMÁRIO fazia bastante serviço. Era grande, esse homem, ele era negociante, era um dos maior que tinha aqui no bairro aqui, então tudo mundo trabaiava pra ele. Então, quando chegava assim véspera de feriado, ele mandava os camarada cortar aque- la canaiada pra moer, ali moíam aquela cana. E já tinha ali dois pra tá bardeando aquela guarapa, ponhando naquele tacho pra tá aquela fogueira debaixo daquele tachão fervendo aquela guarapa e o cavalo moendo a cana. E o [ ] ponhava a cana lá naquela moenda e o cavalo andava tudo aquele salão, moía cana o dia inteirinho. Ali era a guarapa que tava ponhando naquele tacho, tava apurando, tiravam aquele um, já tavam tocando outro, faziam o melado, aquela calda da guarapa. Às vezes, tiravam de garrafão, esses garrafão grande, lata, sei lá, até nem lembro o que que era que eles ponhavam nele. Bastante, eles faziam de bastante, e despois apurava aquele açúcar. Porque o [ ] pra fazer o melado, que diziam, que essa calda grossa que faz da guarapa, eles tiravam separado. E, depois, quando era pra fazer açúcar, ainda apurava o açúcar memo, iam mexendo assim com um mexedor grande [ ] grande assim, mexendo no forno pra ir apurando aquele melado, aquele açúcar no forno pra fazer açúcar. Aí, quando apurava aquele açúcar, mas era um tachão grande, apurava aquele açúcar, desciam aquele fornão, aquela tachona e ficavam mexendo ele assim. Aí ia apurando, ia embolando aquele açúcar, ia embolando, ia embolando, embolando, embolando, embolando, até que ficava aquele, dava de esfriar e ficava aquela bola de açúcar anssim, que é açúcar de fôrma, que fala, fala- vam, agora eu acho que nem existe. Então, eles deixavam lá, depois tiravam numa fôrma grande, se não numa vasia lá que deixasse esfriar e ponhava lá de novo aque- le tachão e colocavam outro tantão de guarapa pra ir, pra fazer. Faziam de tonelada de açúcar e deixavam, porque não tinha pra quem vender, quem comprava era os memo trabalhador que trabalhava pra ele que comprava aquelas coisa, porque, pra vender pra fora, não tinha comércio. Então era só pra uso, então ali a pessoa se mantinha com aquele um, quando queria comprar daquele açúcar apurado, com- prava dele, trabaiava e comprava. Quando não queria, a pessoa tudo tinha seu canaviazinho, então moía a cana e fazia o café da mesma guarapa também, era a mesma coisa. Então era assim que nós vivia e se mantinha de lavoura nosso memo, prantava de tudo, a gente tinha de tudo. Quem guentava fazer roção grande, fazia. Quem não podia, fazia pequeno, mas sempre se mantinha daquela lavoura, tudo daqui do mato memo, e comprava somente o sal que ia comprar e a querosene, que a pessoa não tinha nada, e o fósforo, fósforo que era comprado, só. O resto das coisa era tudo daqui, tudo da lavoura e da roça memo. E tinha bastante trabaia- dor memo, tudo eram trabaiador, tudo, aquelas criancinha desse portinho já eram tudo incluído na roça. Fazia um puxirão aquelas criançada na roça, era bonito de ver, tudo molequinho assim, tudo prantando, era arroz, feijão, era milho. As pessoa mais véio pegava, quando eles não sabiam, que era igual esse molequinho [ ] ele pegavam [ ] então ele andava, chegava perto da mãe dele, a mãe pegava, fazia o buraquinho anssim, da cova no chão, mandava ele ponhar a prantinha lá, pra ele ir aprendendo já. Já ia se criando aprendendo já, naquele ritmo. Depois, quando
  • 111. 112 Valores civilizatórios SUMÁRIO ficava de dez ano em diante, pronto, já era trabaiador, podia trabaiar pra quarquer um. Então tudo trabaiava aquele tempo e tudo tinha suas coisinha, não precisava tá se batendo pra trabalhar em fazenda, comprar coisa feita, tudo tinha do seu pra se manter com ele. Agora tá bom num jeito e ruim ni outro, porque ninguém quer trabaiar mais, quem tem vontade de trabaiar, iguar eu, que já sou bem véio, e tudo essa gentarada por aí, já que tem gente mais véio do que eu ainda, mas a gente não guenta mais, não guenta trabaiar mais. (Dona Maria Urbana/Pedro Cubas) Eu sou José, José da Costa, nascido e criado no quilombo. O meu papai... o meu papai faleceu com cento e três anos de idade. Nós comemos sempre as coisas pura, sempre o que ele passava pra nós, comer as coisas pura, da terra, né, lavoura nossa que prantava aqui mesmo, né. Então, falando do que eles falaram no começo acerca da caça, a carne que nós comia era a carne de caça. O véio praticava mesmo pra tratar de nós com carne de caça. A gordura que nós comia era a gordura do porco, não tinha esse negócio de óleo que tem hoje, não tinha. Era tudo criado na roça. No arroz, no feijão, no milho, essas coisa tudo da roça, o café... O café era cana moída, bebia do café da garapa. Não tinha negócio de açú- car, era tudo natural mesmo. A mistura de café que nós usava era cará, mandioca, batata, essas coisa que nós usava. E, falando nas dança, o meu pai tocava em festa de casamento, violão, viola, gostava muito de tocar... Quando tocava nas festas de Rua no Quilombo Cangume - Itaoca - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 112. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 113 SUMÁRIO casamento, essas dança que eles estão falando nelas, o véio tocava tudo elas e... Dança eu aprendi, não vou dizer que não, que eu aprendi. Só que no modo de dan- çar que eu vejo hoje na criançada, que eu acho diferente, que eu tinha uma dança que a turma mais véia falava de xote. Pegava a mão da dama com uma mão, levava ela lá, trazia, pegava com a outra mão, pegava na cintura, mas por fora, de longe, não chegava nem a encostar na gente, tirava por forinha. E eu era campeão nessa dança risos, gostava. Tinha vez que eu chegava no forró e muitas vezes era só eu que praticava, na minha cidade era só eu que praticava, vinha três, quatro moça, grudava ni mim pra dançar comigo, porque eu sabia dançar e os outros não sabia. Então ficava aquela fila de gente pra dançar só comigo. Hoje eu não faço mais isso, sabe, hoje não pertenço a... como é que é... não faço mais isso. Mas eu sei fazer e sei explicar pras pessoas fazer também. Então é o seguinte, a nossa cultura aqui antigamente era essa. E outra, era carregada toda nas costas, nem animar não tinha direito. Meu pai nunca foi um homem de lidar com criação, então a criação dele era porco, galinha, essas coisa. Mas cavalo, assim, boi, ele não usava, a carga era carregada nas costa memo. Então nós saía lá dá... morava mais pra frente um pouco aqui, nós saía lá do sertão com carga nas costa, vinha pra cá e vortava a pé. Não tinha negócio de cavalo... e caminho de... de... de tropa memo, não tinha estrada, era tudo... a estrada aqui era um capinzal só. Quando passou o primeiro (corte), de- pois largaram mão, abandonou, ficou feito um capinzal. O pessoal andava (no meio do capim) aqui, com carga nas costa, moradores... É... de ponto em ponto tinha um morador na beira do caminho... Então a cultura era essa. E o café era prantado nosso mesmo, não tinha negócio de trazer esse café com química, que nós vê aí hoje. Hoje a gente vê mudança, muitas coisas a gente fica parado pensando, não sabe pra que caminho tomar pra sair. Porque eu memo, tem coisas que acontecem hoje que eu não sei sair dela. Mas... é, quando eu vinha estudar, eu vinha estudar eu tinha que passar vinte vez por dentro do rio, podia tá caindo gelo ou do jeito que fosse eu vinha descalço. Trazia comida em uma latinha, daquelas lata de óleo antiga, quadradinha. Quando ia comer, ela tava da cor desse livrinho aí, porque [ ] e eu morava muito longe, então eu não tinha tempo de estudar. Eu estudava uma semana do mês, o resto eu tinha que ajudar meu pai trabalhar pra cuidar dos mais pequeno, que tinha mais criança pequena e o véio já tava... Então a cultura nossa começou nessa medida. Hoje tá tudo facilitado, eu vejo o ônibus pegar os aluno na porta e levar de novo de tarde. E infelizmente as criança hoje não querem nada do que o governo tá oferecendo. Eu precisava que esse estudo de hoje fosse o tempo que eu comecei a estudar. Hoje, por misericórdia, eu entrei estudar aí com os pro- fessores vindo aqui mesmo, com um projeto do Banco do Brasil. Aí a diretora (Lígia) viu a minha letra, ela interessou em passar pro EJA, né, e já colocou direto na quinta série, eu era segunda série fraca. E nessa... nessa partilha hoje eu tô terminando o terceiro. Então, isso a gente pode passá, tá passando... mais ou menos isso. (José da Costa/André Lopes)
  • 113. 114 Valores civilizatórios SUMÁRIO As medidas de roça, que hoje nós vimos, que hoje em dia nós vimos que as coisa tá mudando bastante. Então o que acon- tece, (nós) media, nós batia roça, nós media roça; era alqueire, [ ], era braça, era tudo isso. A medida de semente era litro, meia quarta, meio alquere e um falava com o outro e todo mundo entendia [ ] Todo mundo entendia quando falava “Quero (meia quarta) de semente”; não podia passar, não passava nem um pouquinho, porque a minha mãe, o nosso [ ] falava: “O negócio tem que ser justo!”. Então a gente tá vendo, quando fala educa- ção diferenciada, a gente tá vendo tudo esse sistema. Então esse tipo de educação, esse tipo de respeito das coisa, o costume hoje em dia tá fazendo com que aquilo ali seja esquecido... En- tão a gente, como se diz, eu acho que o que eu tenho que passar é isso. Tem muita coisa pra falar, mas o que eu tenho que passar é isso! Obrigado. (Sr. Assis Pereira dos Santos/André Lopes) Minha memória, tua memória, nossa memória Etnomatemática “Mesmo que na escola sejam ensinadas as unidades de medidas oficiais, em seu dia-a-dia as pessoas continuam fazendo uso de unidades não convencionais; por exem- plo, x minutos a pé, referindo-se à distância e um qua- dro de 15 ou uma tarefa, para tratar de medidas agrárias. Assim, a matemática acadêmica é utilizada nas situações comerciais e nas transações bancárias, o que é imprescin- dível para todas as pessoas.” VIZOLLI, I.; SANTOS, R. M. G.; MACHADO, R. F. Sabe- res quilombolas: um estudo no processo de produção da fa- rinha de mandioca. Bolema [online]. 2012, vol. 26, n. 42b, pp. 589-608. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103- 636X2012000200009. Acesso em 30 jul. 2013. “Todos os povos, com sua cultura (etno) lidam com sua realidade e a ex- plicam (matema), cada qual à sua ma- neira (tica). Essa constatação resultou na etnomatemática, que leva em conta as explicações próprias das comunida- des, cotejando-as com as formas uni- versais do conhecimento.” D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993, pp. 10-15. Você conhece as unidades de medida apresentadas pelo sr. Assis? Pesquise o que significam alqueire, braça, litro, meio al- queire e meia quarta. Aproveite para conversar com os moradores do quilombo e descubra se existem outras unidades de medida usadas na comunidade.
  • 114. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 115 SUMÁRIO Então, até breve Este livro buscou apresentar alguns trechos das muitas narrativas contadas nas rodas de conversa realizadas nas comunidades quilombolas visitadas pela equipe do Núcleo de Inclusão Educacional. Com esta iniciativa, buscou-se mostrar as/aos professoras/es das es- colas quilombolas e das demais escolas um pouco do universo da vida quilombola no estado de São Paulo. Além disso, a intenção foi apresentar às crianças e adolescentes quilombolas que receberão este livro por meio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo a vida que conhecem na prática, de maneira à auxiliá-los na vida escolar. Às/Aos alunas/os não quilombolas que também terão acesso a este livro na biblioteca de suas escolas, desejamos que procurem entender este rico universo e aprender com ele. As comunidades quilombolas preservaram tradições, fazeres e valores, dos quais muitos já foram perdidos pelas comu- nidades urbanas de hoje. Conhecer e valorizar essas histórias e esses conhecimentos faz de todos nós seres humanos melhores e mais sábios. Eu agradeço tudo os senhores pela vinda... Aqui não é lugar muito fácil, por isso que, quando a pessoa vem, a gente agradece muito. Nós moramos num Sertão, assim, viu a lama que tiveram que enfrentar. Mas (se mais vezes) tiver oportunidade de vim, a gente recebe de braços aberto [ ] contando história, tem milhares de história que a gente pode, [ ] que um dia que tivesse assim, de bom tempo, que a pessoa pudesse vim com mais tempo pra gente caminhar um pou- co, assim, sabe, naqueles lugar histórico. Tem a história e tem lugar histórico também, e isso é muito bom pro conhecimento nosso. Espero também em Deus que isso dê futuro pras criançada, porque o desejo que a gente tem é de bem- -estar do que tá vindo. Porque nós já tamo dessas idade, o que já passemos, já passemos, não sabemos que ia passar, mas a gente sabe que a gente tem uma resistência de vida. Agora, os coitadinho que vem vindo agora, que carece de nós fortalecer com o nosso bom humor, bom exemplo, e isso que, no mais tudo bem! (Dona Jovita/Galvão) João Mota: Ah, os daqui trabaia fora, na lavoura. Eu memo tenho dois, eu tenho um de vinte e um, um de dezenove e um de onze. Mas aí, terminou o estudo foi trabaiar [ ] numa fazenda, aí despois mandaram embora, agora aca- ba o seguro desemprego. Lá de vez em quando vão, mas não é que vão assim seguido, né, dizer que não vai, vai, mas não é... Porque o negócio aqui é o seguinte, que eles, os jovens aqui, eles querem trabaiar, mas (de tarde) querem saber quanto dá. {Quer receber!} Agora, na roça [ ] nem sabe que, à moda que eu tô falando, prantei lá, não vou colher. Então isso um pouco que desanima, né. {Eles têm pressa.} Isso, então. {Eles querem ter o dinheirinho todo final de semana pra...} Isso! Porque cada caso é um caso. É que, no meu tempo, nin-
  • 115. 116 Valores civilizatórios SUMÁRIO guém pensava, ah... se tivesse dinheiro, tava bom, se não tivesse... Mas hoje a coisa mudou, né. Eu memo, eu me criei lá no corguinho, se eu falar meu... eu não tenho vergonha de contar meu criame. Mas ó, eu vesti uma calça, andava só com {(short)} por aqui, vesti uma calça comprida tinha dezesseis ano, que eu guentei comprar. Carcei sapato, que eu guentei comprar, que eu não sabia nem o número, comprei um sapato de prástico, que tem, ó, fez calo. {Comprou sa- pato pequeno?} É. risos Eu não sabia o número, ó, e comprovo pra não dizer que é mentira. Ó o calo que fez, isso faz mais de {Fez um calo de tão pequeno que era o sapato?} Isso. risos Pelo tempo, tá pequeno, mas isso aqui ficou grande, não dava {E o senhor usou assim mesmo, apertado?} É, mas {Só tinha aquele.} não dava pra usar, porque fez um calo e cresceu. {Nem um buraquinho o senhor fez [ ]} Pra senhora ver, eu tava com dezesseis ano, hoje tô com cin- quenta e oito, né, então é {Quase quarenta ano} Isso, então pra mim tava bom, né, porque a situação aquela vez era aquilo, né. Mas não é que eu disconcordo que, com certas gente que fala, vem aqui e diz “Não tem que seguir”, a cultura tudo bem. Agora, vortar o tempo que a gente se criou, Deus o livre, não tem como vortar. Agora, nossa cultura, tem de preservar ela, isso eu concordo com quarquer um. Agora, cultura tem que preservar; você saber de onde é sua cul- tura, da onde cê, né, de que tipo cê viveu, agora, mas não que isso vai querer pro fio da gente, isso não. Pro fio da gente, a gente quer mióra, né. {Sim.} Só ele sabendo como foi a cultura dele, esse é um direito, todo mundo tem de saber alguma coisa, não pode ter vergonha, que eu digo, eu, descarço, não tinha, que aquele tempo quem não tinha recurso pra comprar roupa, hoje não, cada peça de roupa... Não dava, coberta, eu me ensacava dentro de um saco de [ ], eu acho que eles nem conhece, ensacava lá drento, deitava numa esterinha perto do fogo e lá ficava. Um frio que hoje não faz, fazia um frio que Deus o livre [ ] que é corguinho, porque o lugar, tudo lugar que o cara vai, pisava na água, trabaiava cedo pisava naquelas água fria, o pé da gente ficava gelado, né. Mas eu, né, o importante que a gente se criou, né. {Ficou forte, daí, né.} {Tá aqui hoje pra contar história, né, seu João?} É, o importante é isso. Então tem gente que se envergonha de contar do criame. Eu não. Foi, a realidade foi essa, né, então a realidade tem que ser dito, né. Não adianta o cara ficar envergonhado porque hoje tô num mundo desenvorvido, né, mas, aquele tempo, não era. Se aquele tempo a realidade era essa pros quilombola, que tudo mundo conhece a maior parte da história quilombola, né, então {Tem mais é que contar, né, por- que passou por tudo isso e conseguiu vencer, né. Valoriza ainda mais a história do senhor!} É! Laurentino/Nhunguara: Valoriza mais a história do estudo, uma grande coisa que todo mundo abriu os óio. Antigamente, falava em presidente, tudo
  • 116. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 117 SUMÁRIO mundo baixava a cabeça, falava em prefeito, ah, era um bicho. Quer dizer que tudo mundo tava com os óio fechado, né; agora tudo mundo abriu os óio. Coitado do presidente não tão tirano. {É.} Então é uma coisa que eu sempre falo, a leitura abriu os óio de tudo mundo. Que nem eu me lembro de Franco Montoro, Getúlio Vargas, era quem comandava, não tinha esse negócio de esperar por fulano; ele dizia: “É assim”, “É assim”, “É assim”. {É que aquele tempo era a ditadura, né,} É, hoje não. {não tinha democracia.} Então a leitura abriu os óio de tudo mundo, o presidente tá lá, mas tão com os óio nele, né. risos Aquele tempo era, baixava a cabeça, hoje não, tão com os óio neles, né. {Já sabe dos direitos que tem, né.} É, dos direito, o certo é [ ], então, hoje em dia, as pessoa tão quase sendo igual um ao outro. {Direitos humano é pra isso, né, como diz o [ ] dos direitos humano, aí, o ser humano tem que ser, não pode dizer que (é diferente), até porque...} A leitura foi muito bom, porque limpou muito... João Mota/Nhunguara: Outra coisa que a gente fala da cultura quilombo- la que tinha, porque, do tempo deles, do tempo dele, já sou criança, sou mais novo até do que o filho dele, mas uma coisa que hoje até fica difícil pra gente contar, umas história passada, porque os pai, aquele tempo, não tinha contato muito com o filho, assim. Aí ele chegava aqui, a moda que nós tamo aqui, se eu chegasse ali na porta, tinha que ficar. “Que que cê tá escutando aqui?”. Era só conversa dos mais véio, então lá que a gente tinha um tio que a gente tinha contato, ele que ia contar as história, mas o pai e mãe não contavam, então a gente não tinha aquele direito, né, de saber. Hoje não, nos direitos humanos, a maior coisa é a gente sentar com a família e conversar, né. O que tá errado, não é feio o filho chamar a atenção do pai: “Ah, pai, tá errado”, só que nós temos que ter justificativa no que que tá errado. Não adianta falar: “Ah, mas tá errado”. {É a maneira de falar também, né?} É, “tá errado”, mas pra onde que tá o erro, não tem justificativa, não tem um certo tipo de falar. E quem tá errado também justificar porque que ele tá falando que tá errado, não adianta falar que tá errado, mas não tem justificativa no que que tá errado, como é que nós vamos corrigir? Agora, se justificar, vamos tentar corrigir. {Conversar, né.} Isso, conversar pra poder {Aceitar.} Isso, mas... Então eu também agradeço porque foi uma oportunidade que eu vi que a gente lutando sempre chega. Porque eu sempre tive essa vontade de nossas criança, nossos, se não for os filhos, mas netos, bisnetos, conhecer um pouco das nossas história, porque é importante conhecer as história da família. É uma coisa que ele vai saber da onde ele veio, qual era, que tipo foi o passado, né. Então é uma coisa que eu sempre pensava e, agora que a gente tá vendo que {Devagar vai chegando.} vai chegar lá, que eles vão conhecer, os parente, sobrinho, “Ah,
  • 117. 118 Valores civilizatórios SUMÁRIO esse aqui foi meu tio”. Porque muitos tem vergonha de falar de que maneira foi o criame, mas eu falo, pra mim, isso, o importante é que eu tô aqui, o mais impor- tante é isso, que eu tô aqui. Essas fase ruim, fase boa que passou, isso faz parte da nossa vida, é nosso dia a dia, é bom até pra experiência. Cada fase ruim que a gente passa, que a gente [ ], é uma experiência da vida que vai... {Melhorando, melhorando.} (João Mota [João Catá]/Nhunguara) Quilombo do Nhunguara - Eldorado - SP. ©Acervo NINC/SEE-SP
  • 118. Referências bibliográficas Igreja Nossa Senhora do Rosário - Quilombo Ivaporunduva - Eldorado - SP. ©Silvane Silva SUMÁRIO
  • 120. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 121 SUMÁRIO Referências bibliográficas ALENCASTRO. Luis Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ANDRADE FILHO, Sílvio V. de. O vocabulário e a criatividade da “cupópia”. Em PAPIA (Re- vista de Estudos Crioulos e Similares), n. 13: 168–179, 2003, Universidade de Brasília. Dispo- nível em: http://abecs.net/ojs/index.php/papia/article/view/93/115. Acesso em 29 jul. 2013. (Texto adaptado.) ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Quilombolas: Tradições e Cultura da Resistência. São Paulo: Aori Comunicação, 2006. ARRUTI, José Maurício. Mocambo: Antropologia e história de formação quilombola. Bauru: Edusc, 2005. AULETE, Francisco J. C.; VALENTE, Antonio L. S. iDicionário Aulete. Rio de Janeiro: Lexikon, [s.d.]. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/. Acesso em 25 jul. 2013. BOTAO, Renato e NORTE, Silvane. A educação escolar quilombola no Estado de São Paulo: novas diretrizes. Revista Comunicações, Piracicaba, ano 21, n.1,p.153-166, 2014. _____. Educação Escolar Quilombola e identidade Cultural em São Paulo. EM: Africanidades e Re- lações Raciais: Insumos para Políticas Públicas na Área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no Brasil.Org. Cidinha da Silva, Fundação Cultural Palmares, 2014. CASTRO, Yeda P. de. A influência das línguas africanas no português brasileiro. In: Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura da Cidade do Salv. (Org.). Pasta de textos da professora e do professor. Salvador: Secretaria Municipal de Educação, 2005. CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. CUNHA, Manuela Carneiro. Negros, estrangeiros: Os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • 121. Referências bibliográfica 122 SUMÁRIO D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. DOMINGUES, Petrônio e GOMES, Flávio. Histórias dos Quilombos e memórias dos Quilombolas no Brasil: Revisitando um diálogo ausente na Lei 10.639/03. Revista ABPN, v.5, 2013. FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. FREITAS, Décio. Escravos e senhores de escravos. Rio Grande do Sul: Mercado Aberto, 1983. _____. Palmares: A guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Graal, 1978. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzala no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _____. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro. São Paulo: Claro Enigma, 2015. KARASCH, Mary C. A vida os escravos no Rio de Janeiro:1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. KLEIN, Herbert S. A escravidão africana – América Latina e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987. LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Textos e Deba- tes. Florianópolis: NUER/UFSC, n. 7, 2000, pp.333-54. LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. _____. Kitábu: O livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Senac, 2005. _____. Novo dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas,2003. _____. Oibomé: a epopeia de uma nação. Rio de Janeiro: Agir, 2010. LUIZ, Viviane. O quilombo de Ivaporunduva e o enunciado das gerações. São Carlos: Pedro João Editores, 2013. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parecer CNE/CEB 16/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 20 de novembro de 2012, Seção 1, p. 8. Disponível em: http://etnicoracial.mec.gov.br/ images/pdf/diretrizes_curric_educ_quilombola.pdf. Acesso em: 3 jul 2014. _____. Resolução CNE/CEB 8/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 21 de novembro de 2012, Seção 1, p. 26. Disponível em: http://www.seppir.gov.br/arquivos-pdf/diretrizes-cur- riculares. Acesso em: 3 jul 2014. MOURA, Clóvis. As injustiças de Clio. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990. _____. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004. _____. Quilombos: Resistência ao escravismo. São Paulo: Ática,1987. _____. Rebeliões da senzala. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
  • 122. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar 123 SUMÁRIO MOURA, Gloria. As festas nos quilombos contemporâneos e afirmação da identidade ét- nica. Anais do XXI Encontro Anual da ANPOCS. 1997. Disponível em: http://portal. anpocs.org/portal/index.php?option=com_docmantask=doc_viewgid=5216Ite- mid=360. Acesso em: 3 jul 2014. MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. Revista da USP. n. 28, São Paulo, 1995. NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. _____. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1982. NASCIMENTO, Lisângela Kati. O lugar do Lugar no Ensino de Geografia. Um estudo em escolas públicas do Vale do Ribeira-SP. São Paulo, Editora Humanitas, 2017. _____. Identidade e Territorialidade: os quilombos e a educação escolar no Vale do Ribeira. Dissertação de Mestrado,Universidade de São Paulo, 2006. REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos funerários e revolta popular no Brasil do século XIX. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. _____. Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SILVA, Elson Aves. A educação diferenciada para o fortalecimento da identidade quilombola: estudo das comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira. Dissertação de Mestrado. PUC/SP, 2011. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora Unicamp, 2001. THOMAS, Hugh. The Slave Trade- the story of the Atlantic Slave trade- 1440-1870. New York: Si- mon Schuster, 1997. UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. 2003. Disponível em http:// unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf. Acesso em 24 set. 2017. _____. Declaração universal sobre a diversidade cultural. 2002. Disponível em: http://unesdoc. unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Acesso em: 29 jul. 2013. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos - Do século XVII ao XIX. São Paulo: Editora Corrupio, 1987. VIZOLLI, I.; SANTOS, R. M. G.; MACHADO, R. F. Saberes quilombolas: um estudo no processo de produção da farinha de mandioca. Bolema [online]. 2012, vol. 26, n. 42b, pp. 589-608. Dispo- nível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-636X2012000200009. Acesso em 30 jul. 2013.
  • 123. Catalogação na Fonte: Centro de Referência em Educação Mario Covas São Paulo (Estado) Secretaria da Educação. Núcleo de Inclusão Educacional. Narrativas quilombolas: dialogar – conhecer – comunicar / Secretaria da Educação, Núcleo de Inclusão Educacional; organização, Silva, Silvane; Botão, Renato Ubirajara dos Santos; textos, Santos, Acácio Sidinei Almeida; Norte, Sergio Augusto Queiroz. – São Paulo : SE, 2017. 124 p : il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7849-741-5 1. Educação quilombola 2. Quilombos 3. Prática pedagógica 4. São Paulo (Estado) I. Silva, Silvane. II. Botão, Renato Ubirajara dos Santos. III. Santos, Acácio Sidinei Almeida. IV. Norte, Sergio Augusto Queiroz. V. Título. CDU: 376.74(815.6) S239q
  • 124. IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO S/A – IMESP Projeto gráfico e diagramação Teresa Lucinda Ferreira de Andrade Vanessa Merizzi Tratamento de imagem Leonidio Gomes Tiago Cheregati Impressão e acabamento sob a responsabilidade da Imprensa Oficial do Estado S/A – IMESP