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Negacionismo e Populismo: o Par Perfeito
O Negacionismo como técnica de manipulação política sistematizada
remonta a tempos ancestrais. Trata-se de uma arma letal quando
empregada de forma competente, dada a sua efetividade por economizar
recursos intelectuais sofisticados na cooptação de massas e grupos
imensos, ao empregar somente a desqualificação do opositor, apelando
para ações, ideias e estratégias baratas, rasteiras e fáceis.
O Populismo, por outro lado, vem fazendo par com o Negacionismo e
convenientemente usado para justificar uma posição política que em geral
estará amparada em dogmas. E aqui podemos entender o dogma como o
alicerce fundamental de uma doutrina com apelo do tipo religioso,
apresentado como certo e indiscutível, notadamente quando se estende
a objetivos políticos.
No artigo “Tratado do Negacionismo” disponível em
[https://www.slideshare.net/ip10lab/tratado-do-negacionismo]
dissecamos e enumeramos uma série de estratagemas empregados como
técnicas de desqualificação do oponente. O Negacionismo é guiado por
princípios que perpassam pela desqualificação do adversário, a
imputação do erro a outrem, ataques à ciência, inversão de valores,
ocultação da verdade e populismo messiânico.
O emprego destas técnicas, já antigas, apenas vêm sendo amplificadas
atualmente pelo emprego de ferramentas de disseminação e disparo em
massa (mídias sociais) inéditas na história da humanidade, sempre
ressaltando que o Negacionismo não é uma invenção atual.
Já o Populismo requer essencialmente a projeção de uma figura
carismática ascendente sobre fiéis seguidores, daí a sua associação
perfeita com a congregação de seitas religiosas. O Populismo clássico é
aquele que se baseia na manutenção consistente de um grande
agrupamento de seguidores, de preferência pela eliminação do senso
crítico de parcelas significativas das sociedades, o que explica o
extremismo.
Este domínio pode ser exercido por intermédio de dogmas,
mandamentos, ideários e pseudo-mitologias. O advento das mídias
sociais disponibilizou os mecanismos perfeitos para a disseminação das
neo-mitologias na sua forma digital, o que tem potencializado o recente
soerguimento e reforço do Populismo.
Por seu turno, um dogma não precisa ser a representação de alguma
verdade, bastando que seja convincente. O valor de um dogma é dado
pela quantidade de crentes e seguidores que amealha, e não por qualquer
valor intrínseco, bastando que seja tornado incontestável por meio de
ameaças ou pressões estimuladas da opinião pública. No limite, a
violência pode legitimar um dogma, simplesmente aniquilando o
descrente infiel.
O Negacionismo na Antiguidade
Os gregos, por ironia da história, foram os precursores do Negacionismo,
ao negar qualquer virtude, qualidade ou capacidade àqueles por eles
denominados bárbaros. A etimologia da palavra atribui sons guturais à
língua do estrangeiro – por eles assemelhada como um som semelhante
ao “bar-bar”, e por extensão à cultura dos povos não gregos.
Os romanos herdaram esta visão e estratégia e potencializaram a
manipulação da autoestima dos subjugados, projetando uma
superioridade por meio da pressão psicológica que possibilitou manter a
extensão de vasto Império muito além de sua real capacidade militar –
um provável precursor do “softpower”. Um dia o softpower do
Negacionismo caiu por terra e a fraqueza evidente do poder militar de
Roma encorajou os invasores a derrubarem a farsa e tomar-lhes os
territórios.
Por incrível que pareça, alguns dogmas ancestrais resistem até os dias de
hoje, como o emblemático “terraplanismo”. Galileu, se não é o primeiro,
certamente é o caso da historicamente mais emblemático de ofensa ao
Negacionismo então vigente na Renascença, ao desafiar um dos dogmas
mais rígidos do Catolicismo à sua época, que até então colocava a Terra
como centro do Universo. Para não ter o mesmo fim de Giordano Bruno,
levado às chamas por teimosamente sustentar até o fim heresias
semelhantes, Galileu rendeu-se ao renunciar, ou seja, negar suas
convicções, evitando o mesmo e trágico fim de Giordano.
A princípio as descobertas científicas a respeito da perda da centralidade
da Terra não foram recebidas com tanta rejeição, nem mesmo no seio da
Igreja Católica. Contanto é claro que este tipo de informação
permanecesse discretamente confinada intramuros e circunscrita aos
círculos mais elevados e bem longe dos ouvidos do povo, poderia ser
tolerada e a discussão até ser aceita e circular de forma reservada.
A Igreja precisava somente, enquanto instituição, do tempo extra
necessário para poder digerir, incorporar e adaptar esta nova descoberta
ao discurso religioso. Foi somente quando Galileu começou a trombetear
de forma veemente e ruidosa acerca do “erro da Igreja” que a questão se
tornou uma ameaça à credibilidade da Igreja Católica, sendo então
necessário adotar as habituais ferramentas inquisitórias do
Negacionismo.
Outro caso dogmático envolveu, e ainda envolve a teoria da evolução
proposta por Darwin. Basicamente o darwinismo, baseado no método
científico, atribui a evolução das espécies à seleção natural e à
transmissão entre gerações das características mais adaptadas ao seu
ambiente. Em outras palavras, a evolução seria decorrente, entre outros
fatores, da seleção natural. No entanto, até os dias de hoje esta teoria
encontra seus opositores, sobretudo naqueles que atribuem a um ser
Supremo e somente a ele os fenômenos naturais e a diversidade de
espécies, inclusive o Homem, leia-se, o criacionismo.
Posteriormente Mendel, atualmente reconhecido como o pai fundador da
genética, deu seguimento a estas pesquisas no campo da genética. Todos
estes trabalhos foram contestados e alvo do Negacionismo em seu tempo,
mas o exemplo mais extremo ligado à ciência e motivado pela mais
absoluta desonestidade intelectual é o emblemático caso do Grande
Banco de Sementes Russo, à época do Stalinismo, em plena era soviética,
que ilustra a letalidade a que pode chegar o Negacionismo.
Vavilov, o bode expiatório russo
Provavelmente um dos maiores heróis da ciência do século XX e que
protaganizou uma verdadeira tragédia humana e científica tenha sido um
cientista soviético chamado Vavilov, proscrito e completamente
esquecido até tempos mais recentes, quando somente então sua história
começou a ser revivida.
Nascido no final do século XIX, Vavilov foi um pesquisador geneticista,
um cientista movido pelo ideal que o levou a uma incansável busca pelo
aumento da produtividade agrícola através da aplicação do extenso
conhecimento adquirido acerca das propriedades das sementes,
seguindo as teorias genéticas até então desenvolvidas por Mendel.
Nikolay Vavilov dedicou a maior parte de sua vida como cientista na
diligente tarefa de coletar, documentar e classificar o ecossistema
alimentar global, conduzindo pesquisas e coletas em cinco diferentes
continentes, objetivando abrir o conhecimento para um futuro onde
“super-plantas” seriam possíveis. Graças ao seu trabalho um dos maiores,
senão o maior, banco de sementes do mundo até então fora concebido.
No decorrer desta empreitada Vavilov veio a criar o primeiro banco de
sementes do mundo, gestando a própria ideia do banco de sementes,
estabelecido em 1924 na cidade de São Petesbrugo, então renomeada
como Leningrado, com o objetivo de guarnecer o acervo genético
coletado e toda a sua biodiversidade global.
Veremos então como este caso exemplifica passo-a-passo como utilizar
a Negação como arma de destruição do oponente político ou ainda, como
encontrar um culpado para debitar a sua própria incompetência. Este
talvez seja o caso mais bem documentado e estruturado da utilização da
anti-ciência negacionista como arma para atingir objetivos políticos.
A ideia central de Vavilov baseava-se na coleta sistemática e incansável
de informações que tornariam então possível inferir as combinações
perfeitas entre variedades e tipos de solo a fim de alcançar a máxima
produtividade possível. Seus estudos envolviam um trabalho de campo
que exigia a interação direta com os fazendeiros em diferentes regiões
do globo. O resultado final seria então o aumento da produtividade
agrícola do solo russo e a superação da carência alimentar.
Infelizmente, enquanto este trabalho era diligentemente desenvolvido,
paulatinamente uma armadilha foi sendo engendrada por cientistas
medíocres e inexpressivos que visavam tomar-lhe o lugar e os privilégios,
e que trabalharam na surdina para que Vavilov caísse em desgraça
perante Stalin. Foi assim que Vavilov tornou-se involuntariamente o
principal adversário daquele que acabaria por se tornar o favorito de
Stalin, o infame “cientista” ucraniano Trofim Lysenko.
Devido à gestão incompetente da economia e da agricultura russas, do
desastre advindo da coletivização das fazendas privadas sem qualquer
organização, tornou-se necessário criar um “bode-expiatório” para
justificar a grande tragédia da fome que se abateu sobre o povo russo.
Cabe sempre lembrar que no Negacionismo o mais importante não é
encontrar as razões para os erros e desastres, muito menos ainda
solucioná-los, mas tão somente nomear culpados.
A estória de Vavilov é o típico caso em que o governante, a fim de
justificar um desastre econômico, precisa tão somente se concentrar em
encontrar um culpado. E este culpado era a ciência “burguesa e
degenerada” de Vavilov. Para destruir Vavilov o pseudo-cientista
contrapôs as teorias de Mendel com algo denominado Lysenkoismo, uma
doutrina que basicamente se resumia a Negar o que Vavilov até então
apresentara.
A transformação de Vavilov em vilão, sabotador da pátria e responsável
causador da fome culminou em nada menos do que 1700 horas de
interrogatórios brutais, por meio de 400 sessões, algumas das quais
estendendo-se por até 13 horas. Até o seu encarceramento Vavilov
recusou-se a repudiar suas crenças obtidas por meio da ciência. Esta sua
fé na ciência o levou a morrer de fome em condições infectas em um
Gulag remoto, como de hábito para os proscritos.
Apesar dos esforços heroicos empreendidos por seus discípulos e
seguidores ainda sobreviventes e da fome que praticamente os aniquilou
durante o cerco nazista a Leningrado, muito do acervo se degradou
embora seus métodos científicos e forma de fazer ciência tenham
sobrevivido como um verdadeiro e consistente legado, bem como
inspiração que somente recentemente tem recebido os devidos créditos.
O exemplo de Vavilov é um caso extremo do uso da contra-ciência com
o propósito de negar fatos e evidências científicas, demonstrando que
sempre haverá pseudocientistas bajuladores e inescrupulosos que em
busca de palco, holofote e poder estarão dispostos a negar a ciência em
benefício próprio e imediato. Por outro lado é uma demonstração de
como o governante inepto focará sempre na busca do culpado, em
detrimento da busca por soluções.
Recentemente a história de Vavilov vem sendo relembrada e diversos
tributos lhe vêm sendo prestados, de forma a restaurar a relevância
histórica de sua contribuição efetiva para a evolução da ciência aplicada
à botânica, biologia e agricultura. Por outro lado, é um importante alerta
e lição para o perigo representado pelo Negacionismo e como o exercício
do extremismo negacionista pode levar a resultados trágicos para uma
sociedade.
Hoje podemos celebrar a vitória da concepção da ideia do banco genético,
que sobreviveu e está vivamente presente atualmente no Svalbard Global
Seed Vault. Para saber mais sobre a história de Vavilov:
https://www.rbth.com/blogs/2014/05/12/the_men_who_starved_to_de
ath_to_save_the_worlds_seeds_35135
O poder do mito
Um outro exemplo extremo da história do Negacionismo pode ser
identificado na Revolução Cultural Chinesa. Novamente aqui o fracasso
das políticas estúpidas do ditador Mao requeria o recrutamento de
culpados, que seriam sempre eles, os intelectuais rotulados como
“burgueses”.
E fez-se as trevas, por meio de um movimento “migratório” forçado que
se encarregou de enviar um imenso número de intelectuais, professores
ou todos aqueles que parecessem intelectuais “burgueses degenerados”
para campos forçados de trabalho travestidos de centros de reeducação.
Os critérios para a condenação eram bastante amplos e até mesmo usar
óculos já era um forte evidência de degeneração burguesa, identificados
como sabotadores da revolução.
Reeducar aqui ganhou uma nova significância, a do extermínio,
escravidão, renúncia, submissão e aceitação sem contestação. Nestes
centros de reeducação os internos eram devidamente programados para
aceitar a onipotência do Partido, o qual então se confundia com o próprio
Estado. Não por acaso, o líder chinês Xi Jinping é um egresso deste
sistema de reeducação, já que ele próprio era filho de um pai proscrito, o
que deve acender um alerta acerca dos enigmáticos valores humanos lhe
foram incutidos e reprogramados em sua mente nesta estada forçada.
Voltando um pouco mais no tempo, há quase cem anos atrás o imaginário
nazista procurou reforçar um passado glorioso que nunca existiu na
Alemanha, baseado em deuses e mitos nórdicos, esquecendo seu
passado eminentemente visigodo e bárbaro, que era demais até mesmo
para os padrões do Império Romano, envolvendo intermináveis e cruentas
guerras por poder e território entre pequenos reinos por toda a sua
história medieval.
Um dos frutos mais excêntricos deste imaginário nazista foi o mito da
Terra ôca, uma variante da Terra plana. Ora, a Terra poderia até não ser
plana, mas porque não poderia ser ôca, com entradas misteriosas através
dos pólos ? Uma variante desta viagem pelo mundo da imaginação
delirante pregava a nossa existência plenamente aderida na casca interna
de tal esfera. Isto tudo seria “comprovado” pela propagação das ondas de
rádio, que seriam rebatidas continuamente na circunferência interna,
ricocheteando os sinais e desta forma “comprovando cientificamente” a
esfericidade interna da Terra.
Variantes diversas da Terra ôca foram divulgadas nos primórdios do
nazismo. Tais teorias ajudaram a congregar mentes fracas que podem ser
reunidas como um rebanho. Uma forma de limpar o passado
inconveniente e muitas vezes sujo – ainda que este possa ser muito mais
interessante, é a idealização da história, criando um passado glorioso e
mítico, negar os cientistas e historiadores e trazer uma neo-revelação. A
idealização de mitos e a negação da verdadeira história ajudam desta
forma a elevar a autoestima de um grupo e sua congregação.
Até mesmo no Brasil tal mitificação encontra um interessante exemplo na
figura dos bandeirantes idealizados em estátuas – tem uma na Avenida
Paulista, personagens irreais trajando indumentárias impossíveis e
aspectos idealizados, completamente descolados da realidade história
que foram redescobertos e glorificados na virada do século XX. Para um
Século novo, de industrialização recente, uma nova história precisava ser
encomendada, renegando o passado vil ancestrais que não passavam de
meros caçadores de índios, descalços e mal vestidos.
Novos grupos que almejam melhorar a projeção social requerem
personagens que encarnem supostas qualidades melhor apreciadas
buscando preencher uma carência de credibilidade moral e lustro,
apelando amplamente para o aspecto emocional. A emoção oblitera a
ciência e substitui todas aquelas inconvenientes etapas de validação e
comprovação, bem como o tal método científico.
A estratégia destas reconstruções requer apelos emocionais fortes,
assertividade e o emprego de argumentos básicos e simples. Uma pitada
de ação teatral e exibicionismo também reforça a criação do mito. Sabe-
se que Hitler contava com um professor de teatro que o orientou quanto
ao gestual enérgico e magnético, medindo o impacto a causar, inclusive
o bigodinho capado. Nada é por acaso, tudo é sistematicamente
planejado.
Conclusão
Neste receituário genérico, apelar sempre para o extremo é um
mandamento básico. O Negacionismo é uma estratégia extremamente
eficaz na negação do outro, de suas idéias e de sua história, dispensando
qualquer tipo de pesquisa, evidência, prova e análise. O próprio método
científico é negado e desta forma é possível apagar os valores, ideário e
acervo do oponente sem maiores contestações.
Uma vez suprimida a verdade inconveniente, abre-se então o caminho
para implantar uma nova verdade, que novamente dispensa a pesquisa, a
análise, as evidências e o método científico. Em geral, este tipo de
estratégia encontra terreno fértil onde o radicalismo das posições
ferreamente estabelecidas estiver implantado.
O populismo viceja vigorosamente onde houver extremos, devendo
prevalecer a lógica binária, 0 ou 1, certo ou errado, esquerda ou direita,
onde não há lugar para o meio termo, posições intermediárias, gradações
e sutilezas, nada que suscite longas digressões e análises, ou que
possibilite a apresentação do contraditório. Neste contexto, o
Negacionismo é a arma perfeita para conquistar seguidores e implantar
uma seita que venere um líder. O ato final deste ideário é conquistar a
veneração de segmentos significativos da população e assim criar a
massa crítica necessária para impor a vontade de uma minoria organizada
sobre uma maioria amorfa.

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Negacionismo e populismo

  • 1. Negacionismo e Populismo: o Par Perfeito O Negacionismo como técnica de manipulação política sistematizada remonta a tempos ancestrais. Trata-se de uma arma letal quando empregada de forma competente, dada a sua efetividade por economizar recursos intelectuais sofisticados na cooptação de massas e grupos imensos, ao empregar somente a desqualificação do opositor, apelando para ações, ideias e estratégias baratas, rasteiras e fáceis. O Populismo, por outro lado, vem fazendo par com o Negacionismo e convenientemente usado para justificar uma posição política que em geral estará amparada em dogmas. E aqui podemos entender o dogma como o alicerce fundamental de uma doutrina com apelo do tipo religioso, apresentado como certo e indiscutível, notadamente quando se estende a objetivos políticos. No artigo “Tratado do Negacionismo” disponível em [https://www.slideshare.net/ip10lab/tratado-do-negacionismo] dissecamos e enumeramos uma série de estratagemas empregados como técnicas de desqualificação do oponente. O Negacionismo é guiado por princípios que perpassam pela desqualificação do adversário, a imputação do erro a outrem, ataques à ciência, inversão de valores, ocultação da verdade e populismo messiânico. O emprego destas técnicas, já antigas, apenas vêm sendo amplificadas atualmente pelo emprego de ferramentas de disseminação e disparo em massa (mídias sociais) inéditas na história da humanidade, sempre ressaltando que o Negacionismo não é uma invenção atual. Já o Populismo requer essencialmente a projeção de uma figura carismática ascendente sobre fiéis seguidores, daí a sua associação perfeita com a congregação de seitas religiosas. O Populismo clássico é aquele que se baseia na manutenção consistente de um grande agrupamento de seguidores, de preferência pela eliminação do senso crítico de parcelas significativas das sociedades, o que explica o extremismo.
  • 2. Este domínio pode ser exercido por intermédio de dogmas, mandamentos, ideários e pseudo-mitologias. O advento das mídias sociais disponibilizou os mecanismos perfeitos para a disseminação das neo-mitologias na sua forma digital, o que tem potencializado o recente soerguimento e reforço do Populismo. Por seu turno, um dogma não precisa ser a representação de alguma verdade, bastando que seja convincente. O valor de um dogma é dado pela quantidade de crentes e seguidores que amealha, e não por qualquer valor intrínseco, bastando que seja tornado incontestável por meio de ameaças ou pressões estimuladas da opinião pública. No limite, a violência pode legitimar um dogma, simplesmente aniquilando o descrente infiel. O Negacionismo na Antiguidade Os gregos, por ironia da história, foram os precursores do Negacionismo, ao negar qualquer virtude, qualidade ou capacidade àqueles por eles denominados bárbaros. A etimologia da palavra atribui sons guturais à língua do estrangeiro – por eles assemelhada como um som semelhante ao “bar-bar”, e por extensão à cultura dos povos não gregos. Os romanos herdaram esta visão e estratégia e potencializaram a manipulação da autoestima dos subjugados, projetando uma superioridade por meio da pressão psicológica que possibilitou manter a extensão de vasto Império muito além de sua real capacidade militar – um provável precursor do “softpower”. Um dia o softpower do Negacionismo caiu por terra e a fraqueza evidente do poder militar de Roma encorajou os invasores a derrubarem a farsa e tomar-lhes os territórios. Por incrível que pareça, alguns dogmas ancestrais resistem até os dias de hoje, como o emblemático “terraplanismo”. Galileu, se não é o primeiro, certamente é o caso da historicamente mais emblemático de ofensa ao Negacionismo então vigente na Renascença, ao desafiar um dos dogmas mais rígidos do Catolicismo à sua época, que até então colocava a Terra
  • 3. como centro do Universo. Para não ter o mesmo fim de Giordano Bruno, levado às chamas por teimosamente sustentar até o fim heresias semelhantes, Galileu rendeu-se ao renunciar, ou seja, negar suas convicções, evitando o mesmo e trágico fim de Giordano. A princípio as descobertas científicas a respeito da perda da centralidade da Terra não foram recebidas com tanta rejeição, nem mesmo no seio da Igreja Católica. Contanto é claro que este tipo de informação permanecesse discretamente confinada intramuros e circunscrita aos círculos mais elevados e bem longe dos ouvidos do povo, poderia ser tolerada e a discussão até ser aceita e circular de forma reservada. A Igreja precisava somente, enquanto instituição, do tempo extra necessário para poder digerir, incorporar e adaptar esta nova descoberta ao discurso religioso. Foi somente quando Galileu começou a trombetear de forma veemente e ruidosa acerca do “erro da Igreja” que a questão se tornou uma ameaça à credibilidade da Igreja Católica, sendo então necessário adotar as habituais ferramentas inquisitórias do Negacionismo. Outro caso dogmático envolveu, e ainda envolve a teoria da evolução proposta por Darwin. Basicamente o darwinismo, baseado no método científico, atribui a evolução das espécies à seleção natural e à transmissão entre gerações das características mais adaptadas ao seu ambiente. Em outras palavras, a evolução seria decorrente, entre outros fatores, da seleção natural. No entanto, até os dias de hoje esta teoria encontra seus opositores, sobretudo naqueles que atribuem a um ser Supremo e somente a ele os fenômenos naturais e a diversidade de espécies, inclusive o Homem, leia-se, o criacionismo. Posteriormente Mendel, atualmente reconhecido como o pai fundador da genética, deu seguimento a estas pesquisas no campo da genética. Todos estes trabalhos foram contestados e alvo do Negacionismo em seu tempo, mas o exemplo mais extremo ligado à ciência e motivado pela mais absoluta desonestidade intelectual é o emblemático caso do Grande Banco de Sementes Russo, à época do Stalinismo, em plena era soviética, que ilustra a letalidade a que pode chegar o Negacionismo.
  • 4. Vavilov, o bode expiatório russo Provavelmente um dos maiores heróis da ciência do século XX e que protaganizou uma verdadeira tragédia humana e científica tenha sido um cientista soviético chamado Vavilov, proscrito e completamente esquecido até tempos mais recentes, quando somente então sua história começou a ser revivida. Nascido no final do século XIX, Vavilov foi um pesquisador geneticista, um cientista movido pelo ideal que o levou a uma incansável busca pelo aumento da produtividade agrícola através da aplicação do extenso conhecimento adquirido acerca das propriedades das sementes, seguindo as teorias genéticas até então desenvolvidas por Mendel. Nikolay Vavilov dedicou a maior parte de sua vida como cientista na diligente tarefa de coletar, documentar e classificar o ecossistema alimentar global, conduzindo pesquisas e coletas em cinco diferentes continentes, objetivando abrir o conhecimento para um futuro onde “super-plantas” seriam possíveis. Graças ao seu trabalho um dos maiores, senão o maior, banco de sementes do mundo até então fora concebido. No decorrer desta empreitada Vavilov veio a criar o primeiro banco de sementes do mundo, gestando a própria ideia do banco de sementes, estabelecido em 1924 na cidade de São Petesbrugo, então renomeada como Leningrado, com o objetivo de guarnecer o acervo genético coletado e toda a sua biodiversidade global. Veremos então como este caso exemplifica passo-a-passo como utilizar a Negação como arma de destruição do oponente político ou ainda, como encontrar um culpado para debitar a sua própria incompetência. Este talvez seja o caso mais bem documentado e estruturado da utilização da anti-ciência negacionista como arma para atingir objetivos políticos. A ideia central de Vavilov baseava-se na coleta sistemática e incansável de informações que tornariam então possível inferir as combinações perfeitas entre variedades e tipos de solo a fim de alcançar a máxima produtividade possível. Seus estudos envolviam um trabalho de campo que exigia a interação direta com os fazendeiros em diferentes regiões
  • 5. do globo. O resultado final seria então o aumento da produtividade agrícola do solo russo e a superação da carência alimentar. Infelizmente, enquanto este trabalho era diligentemente desenvolvido, paulatinamente uma armadilha foi sendo engendrada por cientistas medíocres e inexpressivos que visavam tomar-lhe o lugar e os privilégios, e que trabalharam na surdina para que Vavilov caísse em desgraça perante Stalin. Foi assim que Vavilov tornou-se involuntariamente o principal adversário daquele que acabaria por se tornar o favorito de Stalin, o infame “cientista” ucraniano Trofim Lysenko. Devido à gestão incompetente da economia e da agricultura russas, do desastre advindo da coletivização das fazendas privadas sem qualquer organização, tornou-se necessário criar um “bode-expiatório” para justificar a grande tragédia da fome que se abateu sobre o povo russo. Cabe sempre lembrar que no Negacionismo o mais importante não é encontrar as razões para os erros e desastres, muito menos ainda solucioná-los, mas tão somente nomear culpados. A estória de Vavilov é o típico caso em que o governante, a fim de justificar um desastre econômico, precisa tão somente se concentrar em encontrar um culpado. E este culpado era a ciência “burguesa e degenerada” de Vavilov. Para destruir Vavilov o pseudo-cientista contrapôs as teorias de Mendel com algo denominado Lysenkoismo, uma doutrina que basicamente se resumia a Negar o que Vavilov até então apresentara. A transformação de Vavilov em vilão, sabotador da pátria e responsável causador da fome culminou em nada menos do que 1700 horas de interrogatórios brutais, por meio de 400 sessões, algumas das quais estendendo-se por até 13 horas. Até o seu encarceramento Vavilov recusou-se a repudiar suas crenças obtidas por meio da ciência. Esta sua fé na ciência o levou a morrer de fome em condições infectas em um Gulag remoto, como de hábito para os proscritos. Apesar dos esforços heroicos empreendidos por seus discípulos e seguidores ainda sobreviventes e da fome que praticamente os aniquilou durante o cerco nazista a Leningrado, muito do acervo se degradou
  • 6. embora seus métodos científicos e forma de fazer ciência tenham sobrevivido como um verdadeiro e consistente legado, bem como inspiração que somente recentemente tem recebido os devidos créditos. O exemplo de Vavilov é um caso extremo do uso da contra-ciência com o propósito de negar fatos e evidências científicas, demonstrando que sempre haverá pseudocientistas bajuladores e inescrupulosos que em busca de palco, holofote e poder estarão dispostos a negar a ciência em benefício próprio e imediato. Por outro lado é uma demonstração de como o governante inepto focará sempre na busca do culpado, em detrimento da busca por soluções. Recentemente a história de Vavilov vem sendo relembrada e diversos tributos lhe vêm sendo prestados, de forma a restaurar a relevância histórica de sua contribuição efetiva para a evolução da ciência aplicada à botânica, biologia e agricultura. Por outro lado, é um importante alerta e lição para o perigo representado pelo Negacionismo e como o exercício do extremismo negacionista pode levar a resultados trágicos para uma sociedade. Hoje podemos celebrar a vitória da concepção da ideia do banco genético, que sobreviveu e está vivamente presente atualmente no Svalbard Global Seed Vault. Para saber mais sobre a história de Vavilov: https://www.rbth.com/blogs/2014/05/12/the_men_who_starved_to_de ath_to_save_the_worlds_seeds_35135 O poder do mito Um outro exemplo extremo da história do Negacionismo pode ser identificado na Revolução Cultural Chinesa. Novamente aqui o fracasso das políticas estúpidas do ditador Mao requeria o recrutamento de culpados, que seriam sempre eles, os intelectuais rotulados como “burgueses”. E fez-se as trevas, por meio de um movimento “migratório” forçado que se encarregou de enviar um imenso número de intelectuais, professores ou todos aqueles que parecessem intelectuais “burgueses degenerados”
  • 7. para campos forçados de trabalho travestidos de centros de reeducação. Os critérios para a condenação eram bastante amplos e até mesmo usar óculos já era um forte evidência de degeneração burguesa, identificados como sabotadores da revolução. Reeducar aqui ganhou uma nova significância, a do extermínio, escravidão, renúncia, submissão e aceitação sem contestação. Nestes centros de reeducação os internos eram devidamente programados para aceitar a onipotência do Partido, o qual então se confundia com o próprio Estado. Não por acaso, o líder chinês Xi Jinping é um egresso deste sistema de reeducação, já que ele próprio era filho de um pai proscrito, o que deve acender um alerta acerca dos enigmáticos valores humanos lhe foram incutidos e reprogramados em sua mente nesta estada forçada. Voltando um pouco mais no tempo, há quase cem anos atrás o imaginário nazista procurou reforçar um passado glorioso que nunca existiu na Alemanha, baseado em deuses e mitos nórdicos, esquecendo seu passado eminentemente visigodo e bárbaro, que era demais até mesmo para os padrões do Império Romano, envolvendo intermináveis e cruentas guerras por poder e território entre pequenos reinos por toda a sua história medieval. Um dos frutos mais excêntricos deste imaginário nazista foi o mito da Terra ôca, uma variante da Terra plana. Ora, a Terra poderia até não ser plana, mas porque não poderia ser ôca, com entradas misteriosas através dos pólos ? Uma variante desta viagem pelo mundo da imaginação delirante pregava a nossa existência plenamente aderida na casca interna de tal esfera. Isto tudo seria “comprovado” pela propagação das ondas de rádio, que seriam rebatidas continuamente na circunferência interna, ricocheteando os sinais e desta forma “comprovando cientificamente” a esfericidade interna da Terra. Variantes diversas da Terra ôca foram divulgadas nos primórdios do nazismo. Tais teorias ajudaram a congregar mentes fracas que podem ser reunidas como um rebanho. Uma forma de limpar o passado inconveniente e muitas vezes sujo – ainda que este possa ser muito mais interessante, é a idealização da história, criando um passado glorioso e
  • 8. mítico, negar os cientistas e historiadores e trazer uma neo-revelação. A idealização de mitos e a negação da verdadeira história ajudam desta forma a elevar a autoestima de um grupo e sua congregação. Até mesmo no Brasil tal mitificação encontra um interessante exemplo na figura dos bandeirantes idealizados em estátuas – tem uma na Avenida Paulista, personagens irreais trajando indumentárias impossíveis e aspectos idealizados, completamente descolados da realidade história que foram redescobertos e glorificados na virada do século XX. Para um Século novo, de industrialização recente, uma nova história precisava ser encomendada, renegando o passado vil ancestrais que não passavam de meros caçadores de índios, descalços e mal vestidos. Novos grupos que almejam melhorar a projeção social requerem personagens que encarnem supostas qualidades melhor apreciadas buscando preencher uma carência de credibilidade moral e lustro, apelando amplamente para o aspecto emocional. A emoção oblitera a ciência e substitui todas aquelas inconvenientes etapas de validação e comprovação, bem como o tal método científico. A estratégia destas reconstruções requer apelos emocionais fortes, assertividade e o emprego de argumentos básicos e simples. Uma pitada de ação teatral e exibicionismo também reforça a criação do mito. Sabe- se que Hitler contava com um professor de teatro que o orientou quanto ao gestual enérgico e magnético, medindo o impacto a causar, inclusive o bigodinho capado. Nada é por acaso, tudo é sistematicamente planejado. Conclusão Neste receituário genérico, apelar sempre para o extremo é um mandamento básico. O Negacionismo é uma estratégia extremamente eficaz na negação do outro, de suas idéias e de sua história, dispensando qualquer tipo de pesquisa, evidência, prova e análise. O próprio método científico é negado e desta forma é possível apagar os valores, ideário e acervo do oponente sem maiores contestações.
  • 9. Uma vez suprimida a verdade inconveniente, abre-se então o caminho para implantar uma nova verdade, que novamente dispensa a pesquisa, a análise, as evidências e o método científico. Em geral, este tipo de estratégia encontra terreno fértil onde o radicalismo das posições ferreamente estabelecidas estiver implantado. O populismo viceja vigorosamente onde houver extremos, devendo prevalecer a lógica binária, 0 ou 1, certo ou errado, esquerda ou direita, onde não há lugar para o meio termo, posições intermediárias, gradações e sutilezas, nada que suscite longas digressões e análises, ou que possibilite a apresentação do contraditório. Neste contexto, o Negacionismo é a arma perfeita para conquistar seguidores e implantar uma seita que venere um líder. O ato final deste ideário é conquistar a veneração de segmentos significativos da população e assim criar a massa crítica necessária para impor a vontade de uma minoria organizada sobre uma maioria amorfa.