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O 
Allan Kardec
2 – Allan Kardec 
O EVANGELHO
SEGUNDO O
ESPIRITISMO 
Allan Kardec
3 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Allan Kardec 
Título original em francês: 
L´EVANGILE SELON LE SPIRITISME 
Lançado em abril de 1864 
Paris, França 
Tradução da 3ª edição por: 
GUILLON RIBEIRO 
Publicado pela FEB – Federação Espírita do Brasil 
© 1944 
www.febnet.org.br 
Versão digital por: 
ERY LOPES 
© 2007
4 – Allan Kardec 
NOTA DA EDITORA 
A  tradução  desta  obra,  devemo­la  ao  saudoso  presidente  da 
Federação Espírita Brasileira – Dr. Guillon Ribeiro, engenheiro civil, poliglota 
e vernaculista. 
Ruy  Barbosa,  em  seu  discurso  pronunciado  na  sessão  de  14  de 
outubro  de  1903  (Anais  do  Senado  Federal,  vol.  II,  pág.  717),  em  se 
referindo  ao  seu  trabalho  de  revisão  do  Projeto  do  Código  Civil,  trabalho 
monumental  que  resultou  na Réplica,  e  que lhe  imortalizou  o  nome  como 
filósofo e purista da língua, disse: 
“Devo, entretanto, Sr. Presidente, desempenhar­me de um 
dever de consciência ­ registrar e agradecer da tribuna do Senado a 
colaboração  preciosa  do  Sr.  Doutor  Guillon  Ribeiro,  que  me 
acompanhou nesse trabalho com a maior inteligência, não limitando 
os  seus  serviços  à  parte  material  do  comum  dos  revisores,  mas, 
muitas vezes, suprindo até as desatenções e negligências minhas.” 
Como  vemos,  Guillon  Ribeiro  recebeu,  aos  vinte  e  oito  anos  de 
idade,  o  maior  elogio  a  que  poderia  aspirar  um  escritor,  e  a  Federação 
Espírita  Brasileira,  vinte  anos  depois,  consagrou­lhe  o  nome,  aprovando 
unanimemente as suas impecáveis traduções de Kardec. Jornalista emérito, 
Guillon Ribeiro foi redator do Jornal do Comércio e colaborador dos maiores 
jornais  da  época.  Exerceu,  durante  anos,  o  cargo  de  diretor­geral  da 
Secretaria  do  Senado  e  foi  diretor  da  Federação  Espírita  Brasileira,  no 
decurso  de  26  anos  consecutivos,  tendo  traduzido,  ainda,  O  Livro  dos 
Espíritos,  O  Livro  dos  Médiuns,  A  Gênese  e  Obras  Póstumas,  todos  de 
Kardec.
5 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
O Evangelho 
Segundo o 
Espiritismo 
COM EXPLICAÇÕES DAS MÁXIMAS MORAIS DO CRISTO 
EM CONCORDÂNCIA COM O ESPIRITISMO E SUAS APLICAÇÕES 
ÀS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA 
P O R 
ALLAN KARDEC
6 – Allan Kardec 
SUMÁRIO 
Explicação 10 
Prefácio 11 
Introdução 12 
I – Objetivo desta obra.  II – Autoridade da Doutrina Espírita. Controle universal do 
ensino dos Espíritos. III – Notícias históricas. IV – Sócrates e Platão, precursores da 
idéia cristã e do Espiritismo. 
CAPÍTULO I – NÃO VIM DESTRUIR A LEI 30 
As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo: 1 a 7. – Aliança da Ciência e da 
Religião: 8. – Instruções dos Espíritos: A nova era: 9 a 11. 
CAPÍTULO II – MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO 37 
A vida futura: 1 a 3. – A realeza de Jesus: 4. – O ponto de vista: 5 a 7. – Instruções 
dos Espíritos: Uma realeza terrestre: 8. 
CAPÍTULO III – HÁ MUITAS MORADAS NA CASA DE MEU PAI 42 
Diferentes estados da alma na erraticidade: 1 e 2. – Diferentes categorias de mundos 
habitados:  3  a  5.  – Destinação  da  Terra.  Causas  das  misérias  humanas:  6  e  7.  – 
Instruções dos Espíritos: Mundos inferiores e mundos superiores: 8 a 12. – Mundos 
de expiações e de provas: 13 a 15. – Mundos regeneradores: 16 a 18. – Progressão 
dos mundos: 19. 
CAPÍTULO IV – NINGUÉM PODERÁ VER O REINO DE DEUS 
SE NÃO NASCER DE NOVO 50 
Ressurreição e reencarnação: 1 a 17. – A reencarnação fortalece os laços de família, 
ao  passo  que  a  unicidade  da  existência  os  rompe:  18  a  23.  –  Instruções  dos 
Espíritos: Limites da encarnação: 24. – Necessidade da encarnação: 25 e 26. 
CAPÍTULO V – BEM­AVENTURADOS OS AFLITOS 59 
Justiça das aflições: 1 a 3. – Causas atuais das aflições: 4 e 5. – Causas anteriores 
das aflições: 6 a 10. – Esquecimento do passado: 11. – Motivos de resignação: 12 e 
13. – O suicídio e a loucura: 14 a 17. – Instruções dos Espíritos: Bem e mal sofrer: 
18. – O mal e o remédio: 19.– A  felicidade não é deste mundo: 20. – Perda de 
pessoas  amadas.  Mortes  prematuras:  21.  –  Se  fosse  um  homem  de  bem,  teria 
morrido: 22. – Os tormentos voluntários: 23. – A desgraça real: 24. – A melancolia: 
25. – Provas voluntárias. O verdadeiro cilício: 26. – Dever­se­á pôr termo às provas 
do próximo?: 27. – Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança 
de cura?: 28. – Sacrifício da própria vida: 29 e 30. – Proveito dos sofrimentos para 
outrem: 31. 
CAPÍTULO VI – O CRISTO CONSOLADOR 78 
O  jugo  leve:  1  e  2.  –  Consolador  prometido:  3  e  4.  –  Instruções  dos  Espíritos: 
Advento do Espírito de Verdade: 5 a 8.
7 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO VII – BEM­AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO 82 
O que se deve entender por pobres de espírito: 1 e 2. – Aquele que se eleva será 
rebaixado:  3  a  6.  –  Mistérios  ocultos  aos  doutos  e  aos  prudentes:  7  a  10.  – 
Instruções dos Espíritos: O orgulho e a humildade: 11 e 12. – Missão do homem 
inteligente na Terra: 13. 
CAPÍTULO VIII – BEM­AVENTURADOS OS QUE TÊM PURO O CORAÇÃO 91 
Simplicidade e pureza de coração: 1 a 4. – Pecado por pensamentos. Adultério: 5 a 
7. – Verdadeira pureza. Mãos não lavadas: 8 a 10. – Escândalos. Se a vossa mão é 
motivo  de  escândalo,  cortai­a:  11  a  17.  –  Instruções  dos  Espíritos:  Deixai  que 
venham a mim as criancinhas: 18 e 19. – Bem­aventurados os que têm fechados os 
olhos: 20 e 21. 
CAPÍTULO IX – BEM­AVENTURADOS OS QUE SÃO BRANDOS E PACÍFICOS 100 
Injúrias e violências: 1 a 5. – Instruções dos Espíritos: A afabilidade e a doçura: 6. – 
A paciência: 7. – Obediência e resignação: 8. – A cólera: 9 e 10. 
CAPÍTULO X – BEM­AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSOS 105 
Perdoai, para que Deus vos perdoe: 1 a 4. – Reconciliação com os adversários: 5 e 
6. – O sacrifício mais agradável a Deus: 7 e 8. – O argueiro e a trave no olho: 9 e 
10.  –  Não  julgueis,  para  não  serdes julgados.  Atire  a  primeira  pedra aquele  que 
estiver sem pecado: 11 a 13. – Instruções dos Espíritos: Perdão das ofensas: 14 e 15. 
– A indulgência: 16 a 18. – É permitido repreender os outros, notar as imperfeições 
de outrem, divulgar o mal de outrem?: 19 a 21. 
CAPÍTULO XI – AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO 141 
O  mandamento  maior.  Fazermos  aos  outros  o  que  queiramos  que  os  outros  nos 
façam.  Parábola  dos  credores  e  dos  devedores:  1  a  4. – Dai  a  César  o  que é  de 
César: 5 a 7. – Instruções dos Espíritos: A lei de amor: 8 a 10. – O egoísmo: 11 e 
12. – A fé e a caridade: 13. – Caridade para com os criminosos: 14. – Deve­se expor 
a vida por um malfeitor?: 15. 
CAPÍTULO XII – AMAI OS VOSSOS INIMIGOS 123 
Retribuir o mal com o bem: 1 a 4. – Os inimigos desencarnados: 5 e 6. – Se alguém 
vos  bater na face direita, apresentai­lhe também a outra: 7 e 8. – Instruções dos 
Espíritos: A vingança: 9. – O ódio: 10. – O duelo: 11 a 16. 
CAPÍTULO XIII – NÃO SAIBA A VOSSA MÃO ESQUERDA 
O QUE DÊ A VOSSA MÃO DIREITA 132 
Fazer o bem sem ostentação: 1 a 3. – Os infortúnios ocultos: 4. – O óbolo da viúva: 
5 e 6. – Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem esperar retribuição: 7 e 8. – 
Instruções  dos  Espíritos:  A  caridade  material  e  a  caridade  moral:  9  e  10.  –  A 
beneficência: 11 a 16. – A piedade: 17. Os órfãos: 18. – Benefícios pagos com a 
ingratidão: 19. – Beneficência exclusiva: 20. 
CAPÍTULO XIV – HONRAI A VOSSO PAI E A VOSSA MÃE 147 
Piedade filial: 1 a 4. – Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?: 5 a 7. – A 
parentela  corporal  e  a  parentela  espiritual:  8.  –  Instruções  dos  Espíritos:  A 
ingratidão dos filhos e os laços de família: 9.
8 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XV – FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO 154 
O de que precisa o Espírito para ser salvo. Parábola do bom samaritano: 1 a 3. – O 
mandamento maior: 4 e 5. – Necessidade da caridade, segundo S. Paulo: 6 e 7. – 
Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação: 8 e 9. – Instruções 
dos Espíritos: Fora da caridade não há salvação: 10. 
CAPÍTULO XVI – NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON 160 
Salvação dos ricos: 1 e 2. – Preservar­se da avareza: 3. – Jesus em casa de Zaqueu: 
4. – Parábola do mau rico: 5. – Parábola dos talentos: 6. – Utilidade providencial da 
riqueza.  Provas  da  riqueza  e  da  miséria:  7.  –  Desigualdade  das  riquezas:  8.  – 
Instruções dos Espíritos: A verdadeira propriedade: 9 e 10. – Emprego da riqueza: 
11 a 13. Desprendimento dos bens terrenos: 14. – Transmissão da riqueza: 15. 
CAPÍTULO XVII – SEDE PERFEITOS 173 
Caracteres  da perfeição: 1 e 2. – O homem de bem: 3. – Os  bons  espíritas: 4. – 
Parábola do semeador: 5 e 6. – Instruções dos Espíritos: O dever: 7. – A virtude: 
8. – Os superiores e os inferiores: 9. – O homem no mundo: 10. – Cuidar do corpo e 
do espírito: 11. 
CAPÍTULO XVIII – MUITOS OS CHAMADOS, POUCOS OS ESCOLHIDOS 183 
Parábola do festim de bodas: 1 e 2. – A porta estreita: 3 a 5. – Nem todos os que 
dizem: Senhor! Senhor! Entrarão no reino dos céus: 6 a 9. – Muito se pedirá àquele 
que muito recebeu: 10 a 12. – Instruções dos Espíritos: Dar­se­á àquele que tem: 13 
a 15. – Pelas suas obras é que se reconhece o cristão: 16. 
CAPÍTULO XIX – A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS 191 
Poder da fé: 1 a 5. – A fé religiosa. Condição da fé inabalável: 6 e 7. – Parábola da 
figueira que secou: 8 a 10. – Instruções dos Espíritos: A fé: mãe da esperança e da 
caridade: 11. – A fé humana e a divina: 12. 
CAPÍTULO XX – OS TRABALHADORES DA ÚLTIMA HORA 197 
Instruções  dos  Espíritos:  Os  últimos  serão  os  primeiros:  1  a  3.  –  Missão  dos 
espíritas: 4. – Os obreiros do Senhor: 5. 
CAPÍTULO XXI – HAVERÁ FALSOS CRISTOS E FALSOS PROFETAS 202 
Conhece­se a árvore pelo fruto: 1 a 3. – Missão dos profetas: 4. – Prodígios  dos 
falsos  profetas:  5.  –  Não  crimes  em  todos  os  Espíritos:  6  e  7.  –  Instruções  dos 
Espíritos: Os falsos profetas: 8. – Caracteres do verdadeiro profeta: 9. – Os falsos 
profetas da erraticidade: 10. – Jeremias e os falsos profetas: 11. 
CAPÍTULO XXII – NÃO SEPAREIS O QUE DEUS JUNTOU 210 
Indissolubilidade do casamento: l a 4. – O divórcio: 5. 
CAPÍTULO XXIII – ESTRANHA MORAL 213 
Odiar os pais: 1 a 3. – Abandonar pai, mãe e filhos: 4 a 6. – Deixar aos mortos o 
cuidado de enterrar seus mortos: 7 e 8. – Não vim trazer a paz, mas, a divisão: 9 a 
18.
9 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XXIV – NÃO PONHAIS A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE 220 
Candeia sob o alqueire. Por que fala Jesus por parábolas: 1 a 7. – Não vades ter com 
os gentios: 8 a 10. – Não são os que gozam saúde que precisam de médico: 11 e 12. 
– Coragem da fé: 13 a 16. – Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê­la­ 
á: 17 a 19. 
CAPÍTULO XXV – BUSCAI E ACHAREIS 227 
Ajuda­te a ti mesmo, que o céu te ajudará: 1 a 5. – Observai os pássaros do céu: 6 a 
8. – Não vos afadigueis pela posse do ouro: 9 a 11. 
CAPÍTULO XXVI – DAI GRATUITAMENTE O QUE GRATUITAMENTE RECEBESTES 232 
Dom de curar: 1 e 2. – Preces pagas: 3 e 4. – Mercadores expulsos do templo: 5 e 6. 
– Mediunidade gratuita: 7 a 10. 
CAPÍTULO XXVII – PEDI E OBTEREIS 236 
Qualidades da prece: 1 a 4. – Eficácia da prece: 5 a 8. – Ação da prece. Transmissão 
do pensamento: 9 a 15. – Preces inteligíveis: 16 e 17. – Da prece pelos mortos e 
pelos Espíritos sofredores: 18 a 21. – Instruções dos Espíritos: Maneira de orar: 22. 
– Felicidade que a prece proporciona: 23. 
CAPÍTULO XXVIII – COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS 246 
Preâmbulo: 1. 
I – PRECES GERAIS 247 
Oração dominical: 2 e 3. – Reuniões espíritas: 4 a 7. – Para os médiuns: 8 a 10. 
II – PRECES POR AQUELE MESMO QUE ORA 255 
Aos  anjos  guardiães  e aos  Espíritos  protetores:  11  a  14.  –  Para  afastar  os  maus 
Espíritos: 15 a 17. – Para pedir a corrigenda de um defeito: 18 e 19. – Para pedir a 
força de resistir a uma tentação: 20 e 21. – Ação de graças pela vitória alcançada 
sobre uma tentação: 22 e 23. – Para pedir um conselho: 24 e 25. – Nas aflições da 
vida: 26 e 27. – Ação de graças por um favor obtido: 28 e 29. – Ato de submissão e 
de resignação: 30 a 33. – Num perigo iminente: 34 e 35. – Ação de graças por haver 
escapado a um perigo: 36 e 37. – À hora de dormir: 38 e 39. – Prevendo próxima a 
morte: 40 e 41. 
III – PRECES POR OUTREM 265 
Por  alguém  que  esteja  em  aflição:  42  e  43.  –  Ação  de  graças  por  um  benefício 
concedido a outrem: 44 e 45. – Pelos nossos inimigos e pelos que nos querem mal: 
46 e 47. – Ação de graças pelo bem concedido aos nossos inimigos: 48 e 49. – Pelos 
inimigos do Espiritismo: 50 a 52. – Por uma criança que acaba de nascer: 53 a 56. – 
Por um agonizante: 57 e 58. 
IV – PRECES PELOS QUE JÁ NÃO SÃO DA TERRA 268 
Por alguém que acaba de morrer: 59 a 61. – Pelas pessoas a quem tivemos afeição: 
62 e 63. – Pelas almas sofredoras que pedem preces: 64 a 66. – Por um inimigo que 
morreu: 67 e 68. – Por um criminoso: 69 e 70. – Por um suicida: 71 e 72. – Pelos 
Espíritos penitentes: 73 e 74. – Pelos Espíritos endurecidos: 75 e 76. 
V – PRECES PELOS DOENTES E PELOS OBSIDIADOS 275 
Pelos doentes: 77 a 80. – Pelos obsidiados: 81 a 84.
10 – Allan Kardec 
EXPLICAÇÃO 
Como é do domínio público, Kardec, ao imprimir a terceira edição do seu 
livro – O Evangelho segundo o Espiritismo  –,  por  ordem dos  Espíritos  reformou 
completamente  as  edições  anteriores,  suprimindo  inúmeros  trechos,  acrescentando 
outros, alterando a redação de muitos e a numeração de  vários parágrafos, tendo, 
anteriormente, modificado o próprio título da obra. 
A  3ª  edição  francesa  ficou,  pois,  sendo  a  definitiva  e,  por isso  mesmo,  a 
Federação  Espírita  Brasileira,  obediente  às  instruções  que  os  Espíritos  deram  a 
Kardec, e por este aceitas, fez a presente tradução da referida 3ª edição  francesa, 
sobre a qual Kardec escreveu, em Revue Spirite de novembro de 1865, o seguinte: 
Esta  edição  foi  completamente  refundida.  Além  de  algumas 
adições,  as  principais  modificações  consistem  numa  classificação  mais 
metódica, mais clara e mais cômoda das matérias, tornando a obra de mais 
fácil leitura e facilitando igualmente as consultas. 
A EDITORA (FEB)
11 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
PREFÁCIO 
Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos Céus, qual imenso exército que 
se movimenta ao receber as ordens do seu comando, espalham­se por toda a superfície 
da Terra e, semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar os caminhos e abrir os olhos 
aos cegos. 
Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas 
hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir 
os orgulhosos e glorificar os justos. 
As grandes vozes do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos 
anjos se  lhes  associam. Nós  vos  convidamos,  a  vós  homens,  para  o  divino concerto. 
Tomai da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado, elas se estendam e 
repercutam de um extremo a outro do Universo. 
Homens,  irmãos  a  quem  amamos,  aqui  estamos  junto  de  vós.  Amai­vos, 
também, uns aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que 
está no Céu: Senhor! Senhor!... E podereis entrar no reino dos Céus. 
O ESPÍRITO DE VERDADE 
Nota – A instrução acima, transmitida por via mediúnica, resume a um tempo o verdadeiro caráter 
do Espiritismo e a finalidade desta obra; por isso foi colocada aqui como prefácio.
12 – Allan Kardec 
INTRODUÇÃO 
I – OBJETIVO DESTA OBRA 
Podem dividir­se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os 
atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram 
tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro 
primeiras  têm  sido  objeto  de  controvérsias;  a  última,  porém,  conservou­se 
constantemente inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se 
curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir­se, estandarte sob o qual podem 
todos colocar­se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu 
matéria  das  disputas  religiosas,  que  sempre  e  por  toda  a  parte  se  originaram  das 
questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua 
própria condenação, visto que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do 
que à parte moral, que exige de cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em 
particular,  constitui  aquele  código  uma  regra  de  proceder  que  abrange  todas  as 
circunstâncias  da  vida  privada  e  da  vida  pública,  o  princípio  básico  de  todas  as 
relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. É, finalmente e acima de 
tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do 
véu que nos oculta a vida futura. Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra. 
Toda  a  gente  admira  a  moral  evangélica;  todos  lhe  proclamam  a 
sublimidade e a necessidade; muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados 
no que ouviram dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais. 
Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a compreendem e 
lhe  sabem  deduzir  as  conseqüências.  A razão  está,  por muito, na  dificuldade  que 
apresenta o entendimento do Evangelho que, para o maior número dos seus leitores, 
é ininteligível. A forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem 
que  a  maioria  o  leia  por  desencargo  de  consciência  e  por  dever,  como  lêem  as 
preces,  sem  as  entender,  isto  é,  sem  proveito.  Passam­lhes  despercebidos  os 
preceitos  morais,  disseminados  aqui  e  ali,  intercalados  na  massa  das  narrativas. 
Impossível,  então,  apanhar­se­lhes  o  conjunto  e  tomá­los  para  objeto  de  leitura  e 
meditações especiais. 
É certo que tratados já se hão escrito de moral evangélica; mas, o arranjo 
em moderno estilo literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo, 
lhe  constitui  o  encanto  e  a  autenticidade.  Outro  tanto  cabe  dizer­se  das  máximas 
destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial. Desde logo, já não 
passam de aforismos, privados de uma parte do seu valor e interesse, pela ausência 
dos acessórios e das circunstâncias em que foram enunciadas.
13 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Para  obviar  a  esses  inconvenientes,  reunimos,  nesta  obra,  os  artigos  que 
podem compor, a bem dizer, um código de moral universal, sem distinção de culto. 
Nas citações, conservamos o que é útil ao desenvolvimento da idéia, pondo de lado 
unicamente  o  que  se  não  prende  ao  assunto.  Além  disso,  respeitamos 
escrupulosamente a tradução de Sacy, assim como a divisão em versículos. Em vez, 
porém, de nos atermos a uma ordem cronológica impossível e sem vantagem real 
para  o  caso,  grupamos  e  classificamos  metodicamente  as  máximas,  segundo  as 
respectivas  naturezas,  de  modo  que  decorram  umas  das  outras,  tanto  quanto 
possível. A indicação dos números de ordem dos capítulos e dos versículos permite 
se recorra à classificação vulgar, em sendo oportuno. 
Esse,  entretanto,  seria  um  trabalho  material  que,  por  si  só,  apenas  teria 
secundária  utilidade.  O  essencial  era  pô­lo  ao  alcance  de  todos,  mediante  a 
explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas as conseqüências, 
tendo  em  vista  a  aplicação  dos  ensinos  a  todas  as  condições  da  vida.  Foi  o  que 
tentamos fazer, com a ajuda dos bons Espíritos que nos assistem. 
Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral só 
são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se 
lhes apreenda o verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como 
já  o  puderam  reconhecer  os  que  o  têm  estudado  seriamente  e  como  todos,  mais 
tarde, ainda melhor o reconhecerão. O Espiritismo se nos depara por toda a parte na 
antigüidade  e  nas  diferentes  épocas  da  Humanidade.  Por  toda  a  parte  se  lhe 
descobrem os vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão 
por que, ao mesmo tempo em que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz 
não menos viva sobre os mistérios do passado. 
Como  complemento  de  cada  preceito,  acrescentamos  algumas  instruções 
escolhidas,  dentre  as  que  os  Espíritos  ditaram  em  vários  países  e  por  diferentes 
médiuns. Se elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma 
influência  pessoal  ou  a do  meio,  enquanto  a  diversidade  de  origens  prova  que  os 
Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a esse respeito goza de 
qualquer privilégio. 1 
Esta  obra  é  para  uso  de  todos.  Dela  podem  todos  haurir  os  meios  de 
confortar  com  a  moral  do  Cristo  o  respectivo  proceder.  Aos  espíritas  oferece 
aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às relações estabelecidas, 
doravante  e  permanentemente,  entre  os  homens  e  o  mundo  invisível,  a  lei 
evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a todas as nações, já não será letra 
morta, porque cada um a compreenderá e se verá incessantemente compelido a pô­la 
1 
Houvéramos,  sem  dúvida,  podido  apresentar,  sobre  cada  assunto,  maior  número  de  comunicações 
obtidas numa  porção  de  outras  cidades  e  centros, além  das  que citamos.  Tivemos,  porém,  de  evitar a 
monotonia das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às que, tanto pelo fundo quanto pela forma, se 
enquadravam  melhor  no  plano  desta  obra, reservando  para  publicações ulteriores as  que não  puderam 
caber aqui. Quanto aos médiuns, abstivemo­nos de nomeá­los. Na maioria dos casos, não os designamos a 
pedido deles próprios e, assim sendo, não convinha fazer exceções. Ao demais, os nomes dos médiuns 
nenhum  valor  teriam  acrescentado  à  obra  dos  Espíritos.  Mencioná­los  mais  não  fora,  então,  do  que 
satisfazer ao amor­próprio, coisa a que os médiuns verdadeiramente sérios nenhuma importância ligam. 
Compreendem eles que, por ser meramente passivo o papel que lhes toca, o valor das comunicações em 
nada lhes exalça o mérito pessoal; e que seria pueril envaidecerem­se de um trabalho de inteligência ao 
qual é apenas mecânico o concurso que prestam.
14 – Allan Kardec 
em prática, a conselho de seus guias espirituais. As instruções que promanam dos 
Espíritos  são  verdadeiramente  as  vozes  do  céu  que  vêm  esclarecer  os  homens  e 
convidá­los à prática do Evangelho. 
II – AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA 
CONTROLE UNIVERSAL DO ENSINO DOS ESPÍRITOS 
Se  a  Doutrina  Espírita  fosse  de  concepção  puramente  humana,  não 
ofereceria  por  penhor  senão  as  luzes  daquele  que  a  houvesse  concebido.  Ora, 
ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com 
exclusividade,  a  verdade  absoluta.  Se  os  Espíritos  que  a  revelaram  se houvessem 
manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister 
acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de 
sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as pessoas de 
suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo. 
Quis  Deus  que  a  nova  revelação  chegasse  aos  homens  por  mais  rápido 
caminho  e  mais  autêntico.  Incumbiu,  pois,  os  Espíritos  de  levá­la  de  um  pólo  a 
outro, manifestando­se por toda a parte, sem conferir a ninguém o privilégio de lhes 
ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado, pode enganar­se a si mesmo; já não 
será assim,  quando milhões  de  criaturas  vêem  e  ouvem  a mesma  coisa.  Constitui 
isso  uma  garantia  para  cada  um  e  para  todos.  Ao  demais,  pode  fazer­se  que 
desapareça um homem; mas não se pode  fazer que desapareçam as coletividades; 
podem  queimar­se  os  livros,  mas  não  se  podem  queimar  os  Espíritos.  Ora, 
queimassem­se todos  os livros e a fonte da doutrina não deixaria de conservar­se 
inexaurível, pela razão mesma de não estar na Terra, de surgir em todos os lugares e 
de  poderem  todos  dessedentar­se  nela.  Faltem  os  homens  para  difundi­la:  haverá 
sempre os Espíritos, cuja atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir. 
São, pois, os próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos 
inúmeros médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os lados. 
Se  tivesse  havido  unicamente  um  intérprete,  por  mais  favorecido  que  fosse,  o 
Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que fosse a classe a que pertencesse, tal 
intérprete houvera sido objeto das prevenções de muita gente e nem todas as nações 
o teriam aceitado, ao passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da 
Terra, a todos os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O 
Espiritismo  não  tem  nacionalidade  e  não  faz  parte  de  nenhum  culto  existente; 
nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções 
de seus parentes e amigos de além­túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa 
conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro, 
alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá­las. 
Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo 
e,  também,  a  causa  de  sua  tão  rápida  propagação.  Enquanto  a  palavra  de  um  só 
homem,  mesmo  com  o  concurso  da  imprensa,  levaria  séculos  para  chegar  ao 
conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos
15 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
os  recantos  do  planeta,  proclamando  os  mesmos  princípios  e  transmitindo­os  aos 
mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma 
vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o 
Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme  o malquerer dos homens, nem as 
revoluções  morais,  nem  as  subversões  físicas  do  globo,  porque  nada  disso  pode 
atingir os Espíritos. 
Não é essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional 
posição.  Ela  lhe  faculta inatacável  garantia  contra todos  os  cismas  que  pudessem 
provir,  seja  da ambição  de  alguns,  seja  das  contradições  de  certos  Espíritos. Tais 
contradições, não há negar, são um escolho; mas que traz consigo o remédio, ao lado 
do mal. 
Sabe­se que os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades, 
longe se acham de estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade; 
que nem a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é 
proporcional  à  sua  depuração;  que  os  Espíritos  vulgares  mais  não  sabem  do  que 
muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e sofômanos, que 
julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por verdades as suas idéias; 
enfim, que só os Espíritos da categoria mais elevada, os que já estão completamente 
desmaterializados, se  encontram despidos das idéias e preconceitos terrenos; mas, 
também é sabido que os Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes 
que lhes não pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação 
a tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que 
cada  um  possa  receber  terão  caráter  individual,  sem  cunho  de  autenticidade;  que 
devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente 
fora aceitá­las e propagá­las levianamente como verdades absolutas. 
O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual 
cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em 
manifesta contradição com o bom­senso, com uma lógica rigorosa e com os dados 
positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que 
traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse exame em muitos casos, por 
efeito da falta de luzes de certas pessoas e das tendências de não poucas a tomar as 
próprias  opiniões  como  juízes  únicos  da  verdade.  Assim  sendo,  que hão  de  fazer 
aqueles que não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da 
maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em 
face do que digam os Espíritos, que são  os primeiros a nos fornecer  os meios de 
consegui­lo. 
A  concordância  no  que  ensinem  os  Espíritos  é,  pois,  a  melhor 
comprovação.  Importa,  no  entanto,  que  ela  se  dê  em  determinadas  condições.  A 
mais  fraca  de  todas  ocorre  quando  um médium, a  sós,  interroga  muitos  Espíritos 
acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma 
obsessão,  ou  lidando  com  um  Espírito mistificador,  este  lhe  pode  dizer  a mesma 
coisa  sob  diferentes  nomes.  Tampouco  garantia  alguma  suficiente  haverá  na 
conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo 
centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.
16 – Allan Kardec 
Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância 
que  haja  entre  as  revelações  que  eles  façam  espontaneamente,  servindo­se  de 
grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares. 
Vê­se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses 
secundários,  mas  do  que  respeita  aos  princípios  mesmos  da  doutrina.  Prova  a 
experiência  que,  quando  um  princípio  novo  tem  de  ser  enunciado,  isso  se  dá 
espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão 
quanto à forma, quanto ao fundo. 
Se,  portanto,  aprouver  a  um  Espírito  formular  um  sistema  excêntrico, 
baseado unicamente nas suas idéias e com exclusão da verdade, pode ter­se a certeza 
de que tal sistema conservar­se­á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas de 
todas  as  partes,  conforme  os  múltiplos  exemplos  que  já  se  conhecem.  Foi  essa 
unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que surgiram na origem do 
Espiritismo, quando cada um explicava à sua maneira os fenômenos, e antes que se 
conhecessem  as  leis  que  regem  as  relações  entre  o  mundo  visível  e  o  mundo 
invisível. 
Essa  a  base  em  que  nos  apoiamos,  quando  formulamos  um  princípio  da 
doutrina.  Não  é  porque  esteja  de  acordo  com  as  nossas  idéias  que  o  temos  por 
verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a 
ninguém dizemos: “Crede em tal coisa, porque somos nós que vo­lo dizemos.” A 
nossa  opinião não  passa,  aos nossos  próprios  olhos,  de  uma  opinião  pessoal,  que 
pode  ser  verdadeira  ou  falsa,  visto  não  nos  considerarmos  mais  infalível  do  que 
qualquer outro. Também não é porque um princípio nos foi ensinado que, para nós, 
ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância. 
Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de 
mil  centros  espíritas  sérios,  disseminados  pelos  mais  diversos  pontos  da  Terra, 
achamo­nos  em  condições  de  observar  sobre  que  princípio  se  estabelece  a 
concordância. Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará 
em novos campos que o Espiritismo terá de explorar. Porque, estudando atentamente 
as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro, reconhecemos, pela 
natureza toda especial das revelações, que ele tende a entrar por um novo caminho e 
que  lhe  chegou  o  momento  de  dar um  passo  para  diante. Essas revelações,  feitas 
muitas  vezes  com  palavras  veladas,  hão  freqüentemente  passado  despercebidas  a 
muitos dos que as obtiveram. Outros julgaram­se os únicos a possuí­las. Tomadas 
insuladamente,  elas,  para  nós,  nenhum  valor  teriam;  somente  a  coincidência  lhes 
imprime gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade, 
cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse movimento 
geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos nossos guias espirituais, é 
que nos auxilia a julgar da oportunidade de fazermos ou não alguma coisa. 
Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do 
Espiritismo  e  anulará  todas  as  teorias  contraditórias.  Aí  é  que,  no  porvir,  se 
encontrará o critério da verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O 
Livro  dos  Espíritos  e  em  O  Livro  dos  Médiuns  foi  que  em  toda  a  parte  todos 
receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros contêm. Se 
de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê­la, já de há muito haveriam 
aquelas  obras  experimentado  a  sorte  de  todas  as  concepções  fantásticas.  Nem
17 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
mesmo o apoio da imprensa as salvaria do naufrágio, ao passo que, privadas como 
se viram desse apoio, não deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente. 
É que tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também 
sobrepujou  o  malquerer  dos  homens.  Assim  sucederá  a  todas  as  idéias  que, 
emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a prova desse 
confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar. 
Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro em 
sentido  contrário;  suponhamos  mesmo  que,  com  intenção  hostil,  objetivando 
desacreditar  a  doutrina,  a  malevolência  suscitasse  comunicações  apócrifas;  que 
influência  poderiam  exercer  tais  escritos,  desde  que  de  todos  os  lados  os 
desmentissem os Espíritos? É com a adesão destes que se deve garantir aquele que 
queira lançar, em seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, 
medeia  a  distância  que  vai  da  unidade  ao  infinito.  Que  poderão  conseguir  os 
argumentos  dos  detratores,  sobre  a  opinião  das massas,  quando  milhões  de  vozes 
amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos do Universo e no 
seio das famílias, a infirmá­los? A esse respeito já não foi a teoria confirmada pela 
experiência?  Que  é  feito  das  inúmeras  publicações  que  traziam  a  pretensão  de 
arrasar o Espiritismo? Qual a que, sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se 
considera a questão desse ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada 
um contou consigo, sem contar com os Espíritos. 
O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações 
que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar­se dele 
em proveito próprio e acomodá­lo à vontade. Quem quer que tentasse desviá­lo do 
seu providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de que os 
Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão cair por terra qualquer 
modificação que se divorcie da verdade. 
De  tudo  isso  ressalta  uma  verdade  capital:  a  de  que  aquele  que  quisesse 
opor­se à corrente de idéias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar uma 
pequena  perturbação  local  e  momentânea;  nunca,  porém,  dominar  o  conjunto, 
mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro. 
Também ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos 
ainda  não  elucidados  da  Doutrina  não  constituirão  lei,  enquanto  essas  instruções 
permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte, ser aceitas senão sob 
todas as reservas e a título de esclarecimento. 
Daí a necessidade da maior prudência em dar­lhes publicidade; e, caso se 
julgue  conveniente  publicá­las,  importa  não  as  apresentar  senão  como  opiniões 
individuais, mais  ou  menos  prováveis,  porém,  carecendo  sempre  de  confirmação. 
Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de apresentar um princípio como 
verdade absoluta, a menos se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade 
irrefletida. 
Com  extrema  sabedoria  procedem  os  Espíritos  superiores  em  suas 
revelações.  Não  atacam  as  grandes  questões  da  Doutrina  senão  gradualmente,  à 
medida  que  a  inteligência  se  mostra  apta  a  compreender  verdade  de  ordem  mais 
elevada  e  quando  as  circunstâncias  se  revelam  propícias  à  emissão  de  uma  idéia 
nova.  Por  isso  é  que  logo  de  princípio não  disseram tudo,  e  tudo  ainda hoje  não 
disseram,  jamais  cedendo  à  impaciência  dos  muito  afoitos,  que  querem  os  frutos
18 – Allan Kardec 
antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo pretender adiantar­se ao tempo que 
a Providência assinou para cada coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente 
sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a 
verdade,  a tudo  respondem;  daí  vem  que,  sobre  todas  as  questões  prematuras, há 
sempre respostas contraditórias. 
Os princípios acima não resultam de uma teoria pessoal: são conseqüência 
forçada das condições  em que os Espíritos se manifestam. É evidente que, se um 
Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário 
algures, a presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o 
único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria tão ilógico 
da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente 
ponderados,  se  não  se  sentem  suficientemente  esclarecidos  sobre  uma  questão, 
nunca a resolvem de modo absoluto; declaram que apenas a tratam do seu ponto de 
vista e aconselham que se aguarde a confirmação. 
Por  grande,  bela  e  justa  que  seja  uma  idéia,  impossível  é  que  desde  o 
primeiro momento congregue todas as opiniões. Os conflitos que daí decorrem são 
conseqüência  inevitável  do  movimento  que  se  opera;  eles  são  mesmo  necessários 
para maior realce da verdade e convém se produzam desde logo, para que as idéias 
falsas  prontamente  sejam  postas  de  lado.  Os  espíritas  que  a  esse  respeito 
alimentassem  qualquer  temor  podem  ficar  perfeitamente  tranqüilos:  todas  as 
pretensões  insuladas  cairão,  pela  força  mesma  das  coisas,  diante  do  enorme  e 
poderoso critério da concordância universal. 
Não  será  à  opinião  de  um  homem  que  se  aliarão  os  outros,  mas  à  voz 
unânime  dos  Espíritos;  não  será  um  homem,  nem  nós,  nem  qualquer  outro  que 
fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem 
quer  que  seja:  será  a  universalidade  dos  Espíritos  que  se  comunicam  em  toda  a 
Terra, por ordem de Deus. Esse o caráter essencial da Doutrina Espírita; essa a sua 
força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei assentasse em base inamovível e por 
isso não lhe deu por fundamento a cabeça frágil de um só. 
Diante  de  tão  poderoso  areópago,  onde  não  se  conhecem  corrilhos,  nem 
rivalidades  ciosas,  nem  seitas,  nem  nações,  é  que  virão  quebrar­se  todas  as 
oposições, todas as ambições, todas as pretensões à supremacia individual; é que nos 
quebraríamos  nós  mesmos,  se  quiséssemos  substituir  os  seus  decretos  soberanos 
pelas nossas próprias idéias.  Só  Ele  decidirá  todas  as  questões  litigiosas,  imporá 
silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo 
de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de um homem ou de um Espírito? 
Menos do que a gota d’água que se perde no oceano, menos do que a voz da criança 
que a tempestade abafa. 
A  opinião  universal,  eis  o  juiz  supremo,  o  que  se  pronuncia  em  última 
instância.  Formam­na  todas  as  opiniões  individuais.  Se  uma  destas  é  verdadeira, 
apenas tem na balança o seu peso relativo. Se  é  falsa, não pode prevalecer sobre 
todas  as  demais.  Nesse  imenso  concurso,  as  individualidades  se  apagam,  o  que 
constitui novo insucesso para o orgulho humano. 
Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não passará sem que ele 
resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar todas as incertezas, porquanto 
daqui  até  lá  potentes  vozes  terão  recebido  a  missão  de  se  fazerem  ouvir,  para
19 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
congregar  os  homens  sob  a  mesma  bandeira,  uma  vez  que  o  campo  se  ache 
suficientemente  lavrado.  Enquanto  isso  se  não  dá,  aquele  que  flutue  entre  dois 
sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a 
indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos, nos diversos 
pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas 
prevalecerá. 
III – NOTÍCIAS HISTÓRICAS 
Para  bem  se  compreenderem  algumas  passagens  dos  Evangelhos, 
necessário  se  faz  conhecer  o  valor  de  muitas  palavras  neles  freqüentemente 
empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia naquela 
época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras foram com freqüência 
mal­interpretadas,  causando  isso  uma  espécie  de  incerteza.  A  inteligência  da 
significação delas explica, ao demais, o verdadeiro sentido de certas máximas que, à 
primeira vista, parecem singulares. 
Escribas  –  Nome  dado,  a  princípio,  aos  secretários  dos  reis  de  Judá  e  a  certos 
intendentes  dos  exércitos  judeus.  Mais  tarde,  foi  aplicado  especialmente  aos 
doutores  que  ensinavam  a  lei  de  Moisés  e  a  interpretavam  para  o  povo.  Faziam 
causa  comum  com  os  fariseus,  de  cujos  princípios  partilhavam,  bem  como  da 
antipatia  que  aqueles  votavam  aos  inovadores.  Daí  o  envolvê­los  Jesus  na 
reprovação que lançava aos fariseus. 
Essênios ou esseus – Também seita judia fundada cerca do ano 150 antes de Jesus 
Cristo,  ao  tempo  dos  macabeus,  e  cujos  membros,  habitando  uma  espécie  de 
mosteiros, formavam entre si uma como associação moral e religiosa. Distinguiam­ 
se pelos costumes brandos e por austeras virtudes, ensinavam o amor a Deus e ao 
próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na ressurreição. Viviam em celibato, 
condenavam  a  escravidão  e  a  guerra,  punham  em  comunhão  os  seus  bens  e  se 
entregavam  à  agricultura.  Contrários  aos  saduceus  sensuais,  que  negavam  a 
imortalidade;  aos  fariseus  de  rígidas  práticas  exteriores  e  de  virtudes  apenas 
aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas querelas que tornaram antagonistas 
aquelas  duas  outras  seitas.  Pelo  gênero  de  vida  que  levavam,  assemelhavam­se 
muito aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram 
muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes 
pertencera à comunidade. É certo que ele há de tê­la conhecido, mas nada prova que 
se  lhe  houvesse  filiado,  sendo,  pois,  hipotético  tudo  quanto  a  esse  respeito  se 
escreveu 2 
. 
Fariseus  (do  hebreu  parush,  divisão,  separação)  –  A  tradição  constituía  parte 
importante  da  teologia  dos  judeus.  Consistia  numa  compilação  das  interpretações 
2 
A morte de Jesus, supostamente escrita por um essênio, é obra inteiramente apócrifa, cujo único fim foi 
servir de apoio a uma opinião. Ela traz em si mesma a prova da sua origem moderna.
20 – Allan Kardec 
sucessivamente  dadas  ao  sentido  das  Escrituras  e  tornadas  artigos  de  dogma. 
Constituía, entre os doutores, assunto de discussões intermináveis, as mais das vezes 
sobre simples questões de palavras ou de formas, no gênero das disputas teológicas e 
das  sutilezas  da  escolástica  da  Idade Média.  Daí nasceram  diferentes  seitas,  cada 
uma das quais pretendia ter o monopólio da verdade, detestando­se umas às outras, 
como sói acontecer. Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus, que teve 
por  chefe  Hillel  3 
,  doutor  judeu  nascido  na  Babilônia,  fundador  de  uma  escola 
célebre, onde se ensinava que só se devia depositar fé nas Escrituras. Sua origem 
remonta a 180 ou 200 anos antes de Jesus Cristo. Os fariseus, em diversas épocas, 
foram perseguidos, especialmente sob Hircano – soberano pontífice e rei dos judeus 
–, Aristóbulo e Alexandre, rei da Síria. Este último, porém, lhes deferiu honras e 
restituiu os bens, de sorte que eles readquiriram o antigo poderio e o conservaram 
até à ruína de Jerusalém, no ano 70 da era cristã, época em que se lhes apagou o 
nome, em conseqüência da dispersão dos judeus. 
Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas. Servis cumpridores das 
práticas  exteriores  do  culto  e  das  cerimônias;  cheios  de  um  zelo  ardente  de 
proselitismo,  inimigos  dos  inovadores,  afetavam  grande  severidade  de  princípios; 
mas,  sob  as  aparências  de  meticulosa  devoção,  ocultavam  costumes  dissolutos, 
muito orgulho e, acima de tudo, excessiva ânsia de dominação. Tinham a religião 
mais  como  meio  de  chegarem  a  seus  fins,  do  que  como  objeto  de  fé  sincera.  Da 
virtude  nada  possuíam,  além  das  exterioridades  e  da  ostentação;  entretanto,  por 
umas e outras, exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos passavam por 
santas criaturas. Daí o serem muito poderosos em Jerusalém. 
Acreditavam,  ou,  pelo  menos,  fingiam  acreditar  na  Providência,  na 
imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos mortos. (Cap. 
IV, nº 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que, 
na lei, preferia o espírito, que vivifica, à letra, que mata, se aplicou, durante toda a 
sua  missão,  a  lhes  desmascarar  a  hipocrisia,  pelo  que  tinha  neles  encarniçados 
inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar 
contra ele o povo e eliminá­lo. 
Nazarenos – Nome dado, na antiga lei, aos judeus que faziam voto, ou perpétuo ou 
temporário,  de  guardar  perfeita  pureza.  Eles  se  comprometiam  a  observar  a 
castidade,  a  abster­se  de  bebidas  alcoólicas  e  a  conservar  a  cabeleira.  Sansão, 
Samuel e João Batista eram nazarenos. 
Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros cristãos, por alusão a 
Jesus de Nazaré. 
Também  foi  essa  a  denominação  de  uma  seita  herética  dos  primeiros 
séculos da era cristã, a qual, do mesmo modo que  os  ebionitas, de quem adotava 
certos princípios, misturava as práticas do moisaísmo com os dogmas cristãos, seita 
essa que desapareceu no século quarto. 
Portageiros – Eram os arrecadadores de baixa categoria, incumbidos principalmente 
da cobrança dos direitos de entrada nas cidades. Suas funções correspondiam mais 
3 
Não confundir esse Hillel que fundou a seita dos fariseus com o seu homônimo que viveu duzentos anos 
mais  tarde  e  estabeleceu  os  princípios  religiosos  e  sociais  de  um  sistema  todo  de  tolerância  e  amor, 
sistema hoje conhecido por Hilelismo. – A Editora da FEB, 1947.
21 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
ou  menos  à  dos  empregados  de  alfândega  e  recebedores  dos  direitos  de  barreira. 
Compartilhavam da repulsa que pesava sobre os publicanos em geral. Essa a razão 
por que, no Evangelho, se depara freqüentemente com a palavra publicando ao lado 
da expressão gente de má vida. Tal qualificação não implicava a de debochados ou 
vagabundos. Era um termo de desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente 
indigna de conviver com pessoas distintas. 
Publicanos – Eram assim chamados, na antiga Roma, os cavalheiros arrendatários 
das  taxas  públicas,  incumbidos  da  cobrança  dos  impostos  e  das  rendas  de  toda 
espécie, quer em Roma mesma, quer nas outras partes do Império. Eram como os 
arrendatários gerais e arrematadores de taxas do antigo regime na França e que ainda 
existem nalgumas regiões. Os riscos a que estavam sujeitos faziam que os olhos se 
fechassem para as riquezas que muitas vezes adquiriam e que, da parte de alguns, 
eram frutos de exações e de lucros escandalosos. O nome de publicano se estendeu 
mais  tarde  a  todos  os  que  superintendiam  os  dinheiros  públicos  e  aos  agentes 
subalternos.  Hoje  esse  termo  se  emprega  em  sentido  pejorativo,  para  designar  os 
financistas e os agentes pouco escrupulosos de negócios. Diz­se por vezes: “Ávido 
como um publicano, rico como um publicano”, com referência a riquezas de mau 
quilate. 
De  toda  a  dominação  romana,  o  imposto  foi  o  que  os  judeus  mais 
dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou entre eles. Daí nasceram várias 
revoltas, fazendo­se do caso uma questão religiosa, por ser considerada contrária à 
Lei. Constituiu­se, mesmo, um partido poderoso, a cuja frente se pôs um certo Judá, 
apelidado o Gaulonita, tendo por princípio o não pagamento do imposto. Os judeus, 
pois, abominavam a este e, como conseqüência, a todos os que eram encarregados 
de arrecadá­lo, donde a aversão que votavam aos publicanos de todas as categorias, 
entre os quais podiam encontrar­se pessoas muito estimáveis, mas que, em virtude 
das  suas  funções,  eram  desprezadas,  assim  como  os  que  com  elas  mantinham 
relações, os quais se viam atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque 
consideravam um comprometimento ter com eles intimidade. 
Saduceus – Seita judia, que se formou por volta do ano 248 antes de Jesus Cristo e 
cujo nome lhe veio do de Sadoc, seu fundador. Não criam na imortalidade, nem na 
ressurreição, nem nos anjos bons e maus. Entretanto, criam em Deus; nada, porém, 
esperando  após  a  morte,  só  o  serviam  tendo  em  vista  recompensas  temporais,  ao 
que,  segundo  eles,  se  limitava  a  providência  divina.  Assim  pensando,  tinham  a 
satisfação dos sentidos físicos por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras, 
atinham­se  ao  texto  da  lei  antiga.  Não  admitiam  a  tradição,  nem  interpretações 
quaisquer. Colocavam as boas obras e a observância pura e simples da Lei acima das 
práticas  exteriores  do  culto.  Eram,  como  se  vê,  os  materialistas,  os  deístas  e  os 
sensualistas  da  época.  Seita  pouco  numerosa,  mas  que  contava  em  seu  seio 
importantes personagens e se tornou um partido político oposto constantemente aos 
fariseus. 
Samaritanos – Após o cisma das dez tribos, Samaria se constituiu a capital do reino 
dissidente  de  Israel.  Destruída  e  reconstruída  várias  vezes,  tornou­se,  sob  os 
romanos,  a  cabeça  da  Samaria,  uma  das  quatro  divisões  da  Palestina.  Herodes,
22 – Allan Kardec 
chamado  o  Grande,  a  embelezou  de  suntuosos  monumentos  e,  para  lisonjear 
Augusto, lhe deu o nome de Augusta, em grego Sebaste. 
Os samaritanos estiveram quase constantemente em guerra com os reis de 
Judá. Aversão profunda, datando da época da separação, perpetuou­se entre os dois 
povos, que evitavam todas as relações recíprocas. Aqueles, para tornarem maior a 
cisão  e  não  terem  de  vir  a  Jerusalém  pela  celebração  das  festas  religiosas, 
construíram  para  si  um  templo  particular  e  adotaram  algumas reformas.  Somente 
admitiam o Pentateuco, que continha a lei de Moisés, e rejeitavam todos os outros 
livros que a esse foram posteriormente anexados. Seus livros sagrados eram escritos 
em  caracteres  hebraicos  da  mais  alta  antigüidade.  Para  os  judeus  ortodoxos,  eles 
eram  heréticos  e,  portanto,  desprezados,  anatematizados  e  perseguidos.  O 
antagonismo das duas nações tinha, pois, por fundamento único a divergência das 
opiniões  religiosas;  se  bem  fosse  a  mesma a  origem das  crenças  de  uma  e  outra. 
Eram os protestantes desse tempo. 
Ainda  hoje  se  encontram  samaritanos  em  algumas  regiões  do  Levante, 
particularmente em Nablus e em Jafa. Observam a lei de Moisés com mais rigor que 
os outros judeus e só entre si contraem alianças. 
Sinagoga (do grego synagogê, assembléia, congregação) – Um único templo havia 
na Judéia, o de Salomão, em Jerusalém, onde se celebravam as grandes cerimônias 
do culto. Os judeus, todos os anos, lá iam em peregrinação para as festas principais, 
como as da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Por ocasião dessas festas é 
que Jesus também costumava ir lá. As outras cidades não possuíam templos, mas, 
apenas,  sinagogas:  edifícios  onde  os  judeus  se  reuniam  aos  sábados,  para  fazer 
preces públicas, sob a chefia dos anciães, dos escribas, ou doutores da Lei. Nelas 
também  se  realizavam  leituras  dos  livros  sagrados,  seguidas  de  explicações  e 
comentários, atividades das quais qualquer pessoa podia participar. Por isso é que 
Jesus,  sem  ser  sacerdote,  ensinava  aos  sábados  nas  sinagogas.  Desde  a  ruína  de 
Jerusalém  e  a  dispersão  dos  judeus,  as  sinagogas, nas  cidades  por  eles  habitadas, 
servem­lhes de templos para a celebração do culto. 
Terapeutas (do grego therapeutai, formado de therapeuein, servir, cuidar, isto é: 
servidores  de  Deus,  ou  curadores)  –  Eram  sectários  judeus  contemporâneos  do 
Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação 
com  os  essênios,  cujos  princípios  adotavam,  aplicando­se,  como  esses  últimos,  à 
prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também 
celibatários,  votados  à  contemplação  e  vivendo  vida  solitária,  constituíam  uma 
verdadeira  ordem  religiosa.  Fílon,  filósofo  judeu  platônico,  de  Alexandria,  foi  o 
primeiro a falar dos terapeutas, considerando­os uma seita do judaísmo. Eusébio, S. 
Jerônimo  e  outros  Pais  da  Igreja  pensam  que  eles  eram  cristãos.  Fossem  tais,  ou 
fossem  judeus,  o  que  é  evidente  é  que,  do  mesmo  modo  que  os  essênios,  eles 
representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.
23 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
IV – SÓCRATES E PLATÃO, 
PRECURSORES DA IDÉIA CRISTàE DO ESPIRITISMO 
Do  fato  de  haver  Jesus  conhecido  a  seita  dos  essênios,  fora  errôneo 
concluir­se que a sua doutrina hauriu­a ele na dessa seita e que, se houvera vivido 
noutro meio, teria professado outros princípios. As grandes idéias jamais irrompem 
de  súbito.  As  que  assentam  sobre  a  verdade  sempre  têm  precursores  que  lhes 
preparam parcialmente os caminhos. Depois, em chegando o tempo, envia Deus um 
homem com a missão de resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de 
reuni­los em corpo de doutrina. Desse modo, não surgindo bruscamente, a idéia, ao 
aparecer, encontra espíritos dispostos a aceitá­la. Tal o que se deu com a idéia cristã, 
que foi pressentida muitos séculos antes de Jesus e dos essênios, tendo por principais 
precursores Sócrates e Platão. 
Sócrates,  como  o  Cristo, nada  escreveu,  ou,  pelo  menos, nenhum  escrito 
deixou. Como o Cristo, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo, por haver 
atacado as crenças que encontrara e colocado a virtude real acima da hipocrisia e do 
simulacro  das  formas;  por  haver,  numa  palavra,  combatido  os  preconceitos 
religiosos.  Do  mesmo  modo  que  Jesus,  a  quem  os  fariseus  acusavam  de  estar 
corrompendo  o  povo  com  os  ensinamentos  que  lhe  ministrava,  também  ele  foi 
acusado,  pelos  fariseus  do  seu  tempo,  visto  que  sempre  os  houve  em  todas  as 
épocas, por proclamar o dogma da unidade de Deus, da imortalidade da alma e da 
vida futura. Assim como a doutrina de Jesus só a conhecemos pelo que escreveram 
seus  discípulos,  da  de  Sócrates  só  temos  conhecimento  pelos  escritos  de  seu 
discípulo Platão. Julgamos conveniente resumir aqui os pontos de maior relevo, para 
mostrar a concordância deles com os princípios do Cristianismo. 
Aos que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não 
pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que não era 
pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo; que a de Jesus, mais 
completa e mais depurada do que aquela, nada tem que perder com a comparação; 
que a grandeza da missão divina do Cristo não pode ser diminuída; que, ao demais, 
trata­se de um fato da História, que a ninguém será possível apagar. O homem há 
chegado a um ponto em que a luz emerge por si mesma de sob o alqueire. Ele se 
acha maduro  bastante  para  encará­la de  frente;  tanto  pior para  os  que  não  ousem 
abrir  os  olhos.  Chegou  o  tempo  de  se  considerarem  as  coisas  de  modo  amplo  e 
elevado, não mais do ponto de vista mesquinho e acanhado dos interesses de seitas e 
de castas. 
Além disso, estas citações provarão que, se Sócrates e Platão pressentiram a 
idéia cristã, em seus escritos também se nos deparam os princípios fundamentais do 
Espiritismo. 
RESUMO DA DOUTRINA DE SÓCRATES E DE PLATÃO 
I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida 
aos tipos primordiais das idéias do verdadeiro, do bem e do belo; separa­
24 – Allan Kardec 
se  deles,  encarnando,  e,  recordando  o  seu  passado,  é  mais  ou  menos 
atormentada pelo desejo de voltar a ele. 
Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o 
princípio  inteligente  e  o  princípio  material.  É,  além  disso,  a  doutrina  da 
preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro mundo, a que 
aspira;  da  sua  sobrevivência  ao  corpo;  da  sua  saída  do  mundo  espiritual,  para 
encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após a morte. É, finalmente, o gérmen 
da doutrina dos Anjos decaídos. 
II.  A  alma  se  transvia  e  perturba,  quando  se  serve  do  corpo  para 
considerar qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse ébria, porque 
se prende a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao 
passo que, quando contempla a sua própria essência, dirige­se para o que 
é puro, eterno, imortal, e, sendo ela dessa natureza, permanece aí ligada, 
por tanto tempo quanto possa. Cessam então os seus transviamentos, pois 
que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chama 
sabedoria. 
Assim, ilude a si mesmo o homem que considera as coisas de modo terra­a­ 
terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com justeza, tem de as ver do alto, 
isto é, do ponto de vista espiritual. Aquele, pois, que está de posse da verdadeira 
sabedoria, tem de isolar do corpo a alma, para ver com os olhos do Espírito. É o que 
ensina o Espiritismo. (Cap. II, nº 5.) 
III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhada nessa 
corrupção,  nunca  possuiremos  o  objeto  dos  nossos  desejos:  a  verdade. 
Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que nos 
achamos de cuidar dele. Ao demais, ele nos enche de desejos, de apetites, 
de  temores,  de  mil  quimeras e  de  mil tolices,  de  maneira que,  com ele, 
impossível se nos torna ser ajuizados, sequer por um instante. Mas, se não 
nos é possível conhecer puramente coisa alguma, enquanto a alma nos está 
ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a 
conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos 
então, lícito é esperá­lo, com homens igualmente libertos e conheceremos, 
por  nós  mesmos,  a  essência  das  coisas.  Essa  a  razão  por  que  os 
verdadeiros filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, 
de modo nenhum, temível. 
Está  aí  o  princípio  das  faculdades  da  alma  obscurecidas  por  motivo  dos 
órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades depois da morte. Mas trata­se 
apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá com as almas impuras. (O Céu e o 
Inferno, 1ª Parte, cap. II; 2ª Parte, cap. I.) 
IV. A alma impura, nesse estado, se encontra oprimida e se vê de novo 
arrastada para o mundo visível, pelo horror do que é invisível e imaterial.
25 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Erra,  então,  diz­se,  em  torno  dos  monumentos  e  dos  túmulos,  junto  aos 
quais já se têm visto tenebrosos fantasmas, quais devem ser as imagens das 
almas que deixaram o corpo sem estarem ainda inteiramente puras, que 
ainda conservam alguma coisa da forma material, o que faz que a vista 
humana possa percebê­las. Não são as almas dos bons; são, porém, as dos 
maus,  que  se  vêem  forçadas  a  vagar  por  esses  lugares,  onde  arrastam 
consigo a pena da primeira vida que tiveram e onde continuam a vagar até 
que  os  apetites  inerentes  à  forma  material  de  que  se  revestiram  as 
reconduzam a um corpo. Então, sem dúvida, retomam os mesmos costumes 
que durante a primeira vida constituíam objeto de suas predileções. 
Não somente o princípio da reencarnação se acha aí claramente expresso, 
mas também o estado das almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual 
o  mostra  o Espiritismo  nas  evocações.  Mais  ainda: no  tópico  acima  se diz  que  a 
reencarnação num corpo material é conseqüência da impureza da alma, enquanto as 
almas  purificadas  se  encontram  isentas  de  reencarnar.  Outra  coisa  não  diz  o 
Espiritismo,  acrescentando  apenas  que  a  alma,  que  boas  resoluções  tomou  na 
erraticidade  e  que  possui  conhecimentos  adquiridos,  traz,  ao  renascer,  menos 
defeitos, mais virtudes e idéias intuitivas do que tinha na sua existência precedente. 
Assim,  cada  existência  lhe  marca  um  progresso  intelectual  e  moral.  (O  Céu  e  o 
Inferno, 2ª Parte: Exemplos.) 
V. Após a nossa morte, o gênio (daimon, demônio), que nos fora designado 
durante a vida, leva­nos a um lugar onde se reúnem todos os que têm de 
ser  conduzidos  ao  Hades,  para  serem  julgados.  As  almas,  depois  de 
haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida 
em múltiplos e longos períodos. 
É  a  doutrina  dos  Anjos  guardiães,  ou  Espíritos  protetores,  e  das 
reencarnações  sucessivas,  em  seguida  a  intervalos  mais  ou  menos  longos  de 
erraticidade. 
VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; constituem o 
laço que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a divindade 
em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que 
os  deuses  entram  em  comércio  e  se  entretêm  com  ele,  quer  durante  a 
vigília, quer durante o sono. 
A  palavra  daimon,  da  qual  fizeram  o  termo  demônio,  não  era,  na 
antigüidade,  tomada  à  má  parte,  como  nos  tempos  modernos.  Não  designava 
exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos, em geral, dentre os quais 
se destacavam os Espíritos superiores, chamados deuses, e os menos elevados, ou 
demônios  propriamente  ditos,  que  comunicavam  diretamente  com  os  homens. 
Também  o  Espiritismo  diz  que  os  Espíritos  povoam  o  espaço;  que  Deus  só  se 
comunica  com  os  homens  por  intermédio  dos  Espíritos  puros,  que  são  os 
incumbidos de lhe transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam com eles
26 – Allan Kardec 
durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra demônio, a palavra 
Espírito e tereis a doutrina espírita; ponde a palavra anjo e tereis a doutrina cristã. 
VII.  A  preocupação  constante  do  filósofo  (tal  como  o  compreendiam 
Sócrates e Platão) é a de tomar o maior cuidado com a alma, menos pelo 
que respeita a esta vida, que não dura mais que um instante, do que tendo 
em vista a eternidade. Desde que a alma é imortal, não será prudente viver 
visando à eternidade? 
O Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa. 
VIII. Se a alma é imaterial, tem de passar, após essa vida, a um mundo 
igualmente  invisível  e  imaterial,  do  mesmo  modo  que  o  corpo, 
decompondo­se, volta à matéria. Muito importa, no entanto, distinguir bem 
a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de 
ciência e  pensamentos,  da alma  mais  ou  menos  maculada  de  impurezas 
materiais, que a impedem de elevar­se para o divino e a retêm nos lugares 
da sua estada na Terra. 
Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os diferentes 
graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade de situação que resulta 
para  elas  da  sua  maior  ou  menor  pureza.  O  que  eles  diziam,  por  intuição,  o 
Espiritismo o prova com os inúmeros exemplos que nos põe sob as vistas. (O Céu e 
o Inferno, 2ª Parte.) 
IX. Se a morte fosse a dissolução completa do homem, muito ganhariam 
com a morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do corpo, da 
alma e dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos estranhos, 
mas com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar tranqüilamente 
a hora da sua partida para o outro mundo. 
Equivale isso a dizer que o materialismo, com o proclamar para depois da 
morte o nada, anula toda responsabilidade moral ulterior, sendo, conseguintemente, 
um incentivo para o mal; que o mau tem tudo a ganhar do nada. Somente o homem 
que  se  despojou  dos  vícios  e  se  enriqueceu  de  virtudes,  pode  esperar  com 
tranqüilidade o despertar na outra vida. Por meio de exemplos, que todos os dias nos 
apresenta, o Espiritismo mostra quão penoso é, para o mau, o passar desta à outra 
vida, a entrada na vida futura. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. I.) 
X. O corpo conserva bem impressos os vestígios dos cuidados de que foi 
objeto e dos acidentes que sofreu. Dá­se o mesmo com a alma. Quando 
despida do corpo, ela guarda, evidentes, os traços do seu caráter, de suas 
afeições e as marcas que lhe deixaram todos os atos de sua vida. Assim, a 
maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo 
com a alma carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux, 
nem Górgias podereis provar que devamos levar outra vida que nos seja
27 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
útil quando estejamos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única 
que permanece inabalável é a de que  mais  vale  receber  do  que  cometer 
uma injustiça e que, acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas 
de  ser  homem  de  bem.  (Colóquios  de  Sócrates  com  seus  discípulos,  na 
prisão.) 
Depara­se­nos aqui outro ponto capital, confirmado hoje pela experiência: o 
de que a alma não depurada conserva as idéias, as tendências, o caráter e as paixões 
que teve na Terra. Não é inteiramente cristã esta máxima: mais vale receber do que 
cometer uma injustiça? O mesmo pensamento exprimiu Jesus, usando desta figura: 
“Se alguém vos bater numa face, apresentai­lhe a outra.” (Cap. XII, nos 7 e 8.) 
XI. De duas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou é passagem da 
alma para outro lugar. Se tudo tem de extinguir­se, a morte será como uma 
dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência 
de nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada, a 
passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a de 
encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria 
examinar de perto os habitantes dessa outra morada e distinguir lá, como 
aqui, os que são dignos dos que se julgam tais e não o são. Mas, é tempo de 
nos  separarmos,  eu  para  morrer,  vós  para  viverdes.  (Sócrates  aos  seus 
juízes.) 
Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se encontram após a morte e se 
reconhecem.  Mostra  o  Espiritismo  que  continuam  as  relações  que  entre  eles  se 
estabeleceram,  de  tal  maneira  que  a  morte  não  é  nem  uma  interrupção,  nem  a 
cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade. Houvessem 
Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo difundiu quinhentos anos mais 
tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não teriam falado de outro modo. Não 
há nisso, entretanto, o que  surpreenda, se considerarmos que as grandes verdades 
são eternas e que os Espíritos adiantados hão de tê­las conhecido antes de virem à 
Terra, para onde as trouxeram; que Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles 
tempos  bem  podem,  depois,  ter  sido  dos  que  secundaram o  Cristo na  sua missão 
divina, escolhidos para esse fim precisamente por se acharem, mais do que outros, 
em condições de lhe compreenderem as sublimes lições; que, finalmente, pode dar­ 
se  façam  eles  agora  parte  da  plêiade  dos  Espíritos  encarregados  de  ensinar  aos 
homens as mesmas verdades. 
XII.  Nunca  se  deve  retribuir  com  outra  uma  injustiça,  nem  fazer  mal  a 
ninguém, seja qual for o dano que nos hajam causado. Poucos, no entanto, 
serão  os  que  admitam  esse  princípio,  e  os  que  se  desentenderem  a  tal 
respeito nada mais farão, sem dúvida, do que se votarem uns aos outros 
mútuo desprezo. 
Não  está  aí  o  princípio  de  caridade, que  prescreve  não  se retribua  o  mal 
com o mal e se perdoe aos inimigos?
28 – Allan Kardec 
XIII.  É  pelos  frutos  que  se  conhece  a  árvore.  Toda  ação  deve  ser 
qualificada  pelo  que  produz:  qualificá­la  de  má,  quando  dela  provenha 
mal; de boa, quando dê origem ao bem. 
Esta máxima: “Pelos frutos é que se conhece a árvore”, se encontra muitas 
vezes repetida textualmente no Evangelho. 
XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não 
ama a si mesmo, nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é ainda mais 
estranha do que o que lhe pertence. (Cap. XVI.) 
XV.  As  mais  belas  preces  e  os  mais  belos  sacrifícios  prazem  menos  à 
Divindade  do  que  uma  alma  virtuosa  que  faz  esforços  por  se  lhe 
assemelhar. Grave coisa fora que os deuses dispensassem mais atenção às 
nossas oferendas, do que à nossa alma; se tal se desse, poderiam os mais 
culpados  conseguir  que  eles  se  lhes  tornassem  propícios.  Mas,  não: 
verdadeiramente justos e retos só o são os que, por suas palavras e atos, 
cumprem seus deveres para com os deuses e para com os homens. (Cap. X, 
nos 7 e 8.) 
XVI. Chamo homem vicioso a esse amante vulgar, que mais ama o corpo 
do que a alma. O amor está por toda parte em a Natureza, que nos convida 
ao  exercício  da  nossa  inteligência;  até  no  movimento  dos  astros  o 
encontramos. É o amor que orna a Natureza de seus ricos tapetes; ele se 
enfeita e fixa morada onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o 
amor que dá paz aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono à 
dor. 
O  amor,  que  há  de  unir  os  homens  por  um  laço  fraternal,  é  uma 
conseqüência dessa teoria de Platão sobre o amor universal, como lei da Natureza. 
Tendo  dito  Sócrates  que  “o  amor  não  é  nem  um  deus,  nem  um  mortal,  mas  um 
grande  demônio”,  isto  é,  um  grande  Espírito  que  preside  ao  amor  universal,  essa 
proposição lhe foi imputada como crime. 
XVII. A virtude não pode ser ensinada; vem por dom de Deus aos que a 
possuem. 
É  quase  a  doutrina  cristã  sobre  a  graça;  mas,  se  a  virtude  é  um  dom  de 
Deus, é um favor e, então, pode perguntar­se por que não é concedida a todos. Por 
outro lado, se é um dom, carece de mérito para aquele que a possui. O Espiritismo é 
mais explícito, dizendo que aquele que possui a virtude a adquiriu por seus esforços, 
em  existências  sucessivas,  despojando­se  pouco  a  pouco  de  suas  imperfeições.  A 
graça é a força que Deus faculta ao homem de boa vontade para se expungir do mal 
e praticar o bem.
29 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
XVIII. É  disposição  natural  em  todos  nós  a  de  nos  apercebermos  muito 
menos dos nossos defeitos, do que dos de outrem. 
Diz o Evangelho: “Vedes a palha que está no olho do vosso próximo e não 
vedes a trave que está no vosso.” (Cap. X, nos 9 e 10.) 
XIX.  Se  os  médicos  são  malsucedidos,  tratando  da  maior  parte  das 
moléstias,  é  que  tratam  do  corpo,  sem  tratarem  da  alma.  Ora,  não  se 
achando o todo em bom estado, impossível é que uma parte dele passe bem. 
O  Espiritismo  fornece  a  chave  das  relações  existentes  entre  a  alma  e  o 
corpo e prova que um reage incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda 
para a Ciência. Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta­lhe 
os  meios  de  as  combater.  Quando  a  Ciência  levar  em  conta  a  ação  do  elemento 
espiritual na economia, menos freqüentes serão os seus maus êxitos. 
XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais fazem de mal, do 
que de bem. 
Essa sentença de Sócrates fere a grave questão da predominância do mal na 
Terra,  questão  insolúvel  sem  o  conhecimento  da  pluralidade  dos  mundos  e  da 
destinação  do  planeta  terreno,  habitado  apenas  por  uma  fração  mínima  da 
Humanidade.  Somente  o  Espiritismo  resolve  essa  questão,  que  se  encontra 
explanada aqui adiante, nos capítulos II, III e V. 
XXI. Ajuizado serás, não supondo que sabes o que ignoras. 
Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de que desconhecem até mesmo 
os  primeiros  termos.  Platão  completa  esse  pensamento  de  Sócrates,  dizendo: 
“Tentemos, primeiro, torná­los, se for possível, mais honestos nas palavras; se não o 
forem, não nos preocupemos com eles e não procuremos senão a verdade. Cuidemos 
de instruir­nos, mas não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os espíritas 
com relação aos seus contraditores de boa ou má­fé. Revivesse hoje Platão e acharia 
as coisas quase como no seu tempo e poderia usar da mesma linguagem. Também 
Sócrates  toparia  criaturas  que  zombariam  da  sua  crença  nos  Espíritos  e  que  o 
qualificariam de louco, assim como ao seu discípulo Platão. 
Foi  por  haver  professado  esses  princípios  que  Sócrates  se  viu 
ridicularizado, depois acusado de impiedade e condenado a beber cicuta. Tão certo é 
que, levantando contra si os interesses e os preconceitos que elas ferem, as grandes 
verdades novas não se podem firmar sem luta e sem fazer mártires.
30 – Allan Kardec 
CAPÍTULO I 
NÃO VIM DESTRUIR A LEI
·  AS TRÊS REVELAÇÕES: MOISÉS, CRISTO, ESPIRITISMO.
·  ALIANÇA DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A NOVA ERA 
1. ”Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas: não os vim 
destruir, mas cumpri­los: – porquanto, em verdade vos digo que o céu e a 
Terra  não  passarão,  sem  que  tudo  o  que  se  acha  na  lei  esteja 
perfeitamente cumprido, enquanto reste um único iota e um único ponto”. 
(S. MATEUS, 5:17 e 18.) 
MOISÉS 
2.  Na lei moisaica, há  duas  partes  distintas: a lei  de  Deus, promulgada no  monte 
Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é invariável; a outra, 
apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo. 
A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes: 
I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da servidão. 
Não tereis, diante de mim, outros deuses estrangeiros. – Não fareis imagem 
esculpida, nem figura alguma do que está em cima do céu, nem embaixo na 
Terra, nem do que quer que esteja nas águas sob a terra. Não os adorareis 
e não lhes prestareis culto soberano 4 
. 
4 
Allan Kardec cita a parte mais importante do primeiro mandamento, e deixa de transcrever as seguintes 
frases: “... porque eu, o Senhor vosso Deus, sou Deus zeloso, que puno a iniqüidade dos pais nos filhos, 
na terceira e na quarta gerações daqueles que me aborrecem, e uso de misericórdia até mil gerações 
daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Êxodo, 20:5 e 6.) Nas traduções feitas pelas 
Igrejas Católica e protestantes, essa parte do mandamento foi truncada para harmonizá­la com a doutrina 
da  encarnação  única  da  alma.  Onde  está  “na  terceira  e  na  quarta  gerações”,  conforme  a  tradução
31 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
II. Não pronunciareis em vão o nome do Senhor, vosso Deus. 
III. Lembrai­vos de santificar o dia do sábado. 
IV. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na 
terra que o Senhor vosso Deus vos dará. 
V. Não mateis. 
VI. Não cometais adultério. 
VII. Não roubeis. 
VIII. Não presteis testemunho falso contra o vosso próximo. 
IX. Não desejeis a mulher do vosso próximo. 
X.  Não  cobiceis  a casa  do vosso  próximo,  nem  o  seu  servo,  nem  a  sua 
serva, nem o seu boi, nem o seu asno, nem qualquer das coisas que lhe 
pertençam. 
É de todos os tempos e de todos os países essa lei e tem, por isso mesmo, 
caráter divino. Todas as outras são leis que Moisés decretou, obrigado que se via a 
conter, pelo temor, um povo de seu natural turbulento e indisciplinado, no qual tinha 
ele de combater arraigados abusos e preconceitos, adquiridos durante a escravidão 
do Egito. Para imprimir autoridade às suas leis, houve de lhes atribuir origem divina, 
conforme  o  fizeram  todos  os  legisladores  dos  povos  primitivos.  A  autoridade  do 
homem  precisava  apoiar­se  na  autoridade  de  Deus;  mas,  só  a  idéia  de  um  Deus 
terrível  podia  impressionar  criaturas  ignorantes,  em  as  quais  ainda  pouco 
desenvolvidos se encontravam o senso moral e o sentimento de uma justiça reta. É 
evidente que aquele que incluíra, entre os seus mandamentos, este: “Não matareis; 
não  causareis  dano  ao  vosso  próximo”,  não  poderia  contradizer­se,  fazendo  da 
Brasileira da Bíblia, a Vulgata Latina (in tertiam et quartam generationem), a tradução de Zamenhof (en 
la tria kaj kvara generacioj), mudaram  o texto para “até à terceira e quarta gerações”. Esses textos 
truncados que aparecem na tradução da Igreja Anglicana, na Católica de Figueiredo, na Protestante de 
Almeida  e  outras,  tornam  monstruosa  a  justiça  divina,  pois  que  filhos,  netos,  bisnetos,  tetranetos 
inocentes teriam de ser castigados pelo pecado dos pais, avós, bisavós, tetravós. Foi uma infeliz tentativa 
de acomodação da Lei à vida única. – A Editor a da FEB, 1947. 
O texto certo que, por mercê de Deus, já está reproduzido pelas edições recentíssimas a que 
nos referimos – traduções Brasileira e de Zamenhof –, que conferem com S. Jerônimo, mostra que a Lei 
ensina veladamente a reencarnação e as expiações e provas. Na primeira e na segunda gerações, como 
contemporâneos de seus filhos e netos, o Espírito culpado ainda não reencarnou, mas, um pouco mais 
tarde – na terceira e quarta gerações – já ele voltou e recebe as conseqüências de suas faltas. Assim, o 
culpado mesmo, e não outrem, paga sua dívida. 
Logo,  tem­se  de  excluir  a  1ª  e  2ª  gerações  e  expressar  “na”  3ª  e  4ª,  como  realmente  é  o 
original. 
Achamos  conveniente acrescentar aqui esta nota,  para  facilitar a  compreensão  do  estudioso 
que confronte a sua tradução da Bíblia com a citação do Mestre. – A Editora da FEB, 1947.
32 – Allan Kardec 
exterminação um dever. As leis moisaicas, propriamente ditas, revestiam, pois, um 
caráter essencialmente transitório. 
O CRISTO 
3.  Jesus  não  veio  destruir  a  lei,  isto  é,  a  lei  de  Deus;  veio  cumpri­la,  isto  é, 
desenvolvê­la, dar­lhe o verdadeiro sentido e adaptá­la ao grau de adiantamento dos 
homens. Por isso, é que se nos depara, nessa lei, o princípio dos deveres para com 
Deus  e  para  com  o  próximo,  base  da  sua  doutrina.  Quanto  às  leis  de  Moisés, 
propriamente  ditas,  ele,  ao  contrário,  as  modificou  profundamente,  quer  na 
substância,  quer  na  forma.  Combatendo  constantemente  o  abuso  das  práticas 
exteriores  e  as  falsas  interpretações,  por  mais  radical  reforma  não  podia  fazê­las 
passar, do que as reduzindo a esta única prescrição: “Amar a Deus acima de todas as 
coisas  e  o  próximo  como  a  si  mesmo”,  e acrescentando: aí estão a lei toda e os 
profetas. 
Por  estas  palavras:  “O  céu  e  a  Terra  não  passarão  sem  que  tudo  esteja 
cumprido até o último iota”, quis dizer Jesus ser necessário que a lei de Deus tivesse 
cumprimento integral, isto é, fosse praticada na Terra inteira, em toda a sua pureza, 
com todas as suas ampliações e conseqüências. Efetivamente, de que serviria haver 
sido promulgada aquela lei, se ela devesse constituir privilégio de alguns homens, 
ou, sequer, de um único povo? Sendo filhos de Deus todos os homens, todos, sem 
distinção nenhuma, são objeto da mesma solicitude. 
4. Mas, o papel de Jesus não foi o de um simples legislador moralista, tendo por 
exclusiva autoridade a sua palavra. Cabia­lhe dar cumprimento às profecias que lhe 
anunciaram  o  advento;  a  autoridade  lhe  vinha  da  natureza  excepcional  do  seu 
Espírito e da sua missão divina. Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida 
não é a que transcorre na Terra e sim a que é vivida no reino dos céus; viera ensinar­ 
lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se reconciliarem com Deus 
e de pressentirem esses meios na marcha das coisas por vir, para a realização dos 
destinos  humanos.  Entretanto,  não  disse  tudo,  limitando­se,  respeito  a  muitos 
pontos, a lançar o gérmen de verdades que, segundo ele próprio o declarou, ainda 
não  podiam  ser  compreendidas.  Falou  de  tudo,  mas  em  termos  mais  ou  menos 
implícitos. Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se 
fazia  que  novas  idéias  e  novos  conhecimentos  lhes  trouxessem  a  chave 
indispensável,  idéias  que,  porém, não  podiam  surgir  antes  que  o  espírito  humano 
houvesse  alcançado  um  certo  grau  de  madureza.  A  Ciência  tinha  de  contribuir 
poderosamente para a eclosão e o desenvolvimento de tais idéias. Importava, pois, 
dar à Ciência tempo para progredir. 
O ESPIRITISMO 
5. O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas 
irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o
33 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
mundo corpóreo.  Ele no­lo  mostra, não  mais  como  coisa  sobrenatural,  porém, ao 
contrário, como uma das forças  vivas  e sem cessar atuantes da Natureza, como a 
fonte  de  uma  imensidade  de  fenômenos  até  hoje  incompreendidos  e,  por  isso, 
relegados para o domínio do fantástico e do maravilhoso. É a essas relações que o 
Cristo  alude  em  muitas  circunstâncias  e  daí  vem  que  muito  do  que  ele  disse 
permaneceu ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o 
auxílio da qual tudo se explica de modo fácil. 
6.  A  lei  do  Antigo  Testamento  teve  em  Moisés  a  sua  personificação;  a  do  Novo 
Testamento tem­na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, 
mas não  tem  a  personificá­la nenhuma  individualidade,  porque  é  fruto  do ensino 
dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os 
pontos da Terra, com o concurso de uma multidão inumerável de intermediários. É, 
de  certa  maneira,  um  ser  coletivo,  formado  pelo  conjunto  dos  seres  do  mundo 
espiritual,  cada  um  dos  quais  traz  o  tributo  de  suas  luzes  aos  homens,  para  lhes 
tornar conhecido esse mundo e a sorte que os espera. 
7. Assim como o Cristo disse: “Não vim destruir a lei, porém cumpri­la”, também o 
Espiritismo  diz:  “Não  venho  destruir  a  lei  cristã,  mas  dar­lhe  execução.”  Nada 
ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas, desenvolve, completa e explica, 
em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem 
cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das 
coisas  futuras.  Ele  é,  pois,  obra  do  Cristo,  que  preside,  conforme  igualmente  o 
anunciou, à regeneração que se opera e prepara o reino de Deus na Terra. 
ALIANÇA DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO 
8. A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela 
as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis 
o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer­se. Se fossem a negação uma 
da outra, uma necessariamente estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto 
Deus não pode pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que 
se julgou existir entre essas duas ordens de idéias provém apenas de uma observação 
defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de outro. Daí um conflito que 
deu origem à incredulidade e à intolerância. 
São  chegados  os  tempos  em  que  os  ensinamentos  do  Cristo  têm  de  ser 
completados;  em  que  o  véu  intencionalmente  lançado  sobre  algumas  partes  desse 
ensino  tem  de  ser  levantado;  em  que  a  Ciência,  deixando  de  ser  exclusivamente 
materialista,  tem  de  levar  em  conta  o  elemento  espiritual  e  em  que  a  Religião, 
deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que 
são,  apoiando­se  uma  na  outra  e  marchando  combinadas,  se  prestarão  mútuo 
concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável 
poder,  porque  estará  de  acordo  com  a  razão,  já  se  lhe  não  podendo  mais  opor  a 
irresistível lógica dos fatos.
34 – Allan Kardec 
A  Ciência  e  a  Religião  não  puderam,  até  hoje,  entender­se,  porque, 
encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se 
repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as 
aproximasse.  Esse  traço  de  união  está  no  conhecimento  das  leis  que  regem  o 
Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto 
as  que  regem  o  movimento  dos  astros  e  a  existência  dos  seres.  Uma  vez 
comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu­se à razão; 
esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como 
em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que 
as esmaga, se tentam resistir­lhe, em vez de o acompanharem. É toda uma revolução 
que neste momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou 
mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar uma nova era 
na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as conseqüências: acarretará para as 
relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor, 
porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de 
Deus. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A NOVA ERA 
9.  Deus  é  único  e  Moisés  é  o  Espírito  que  Ele  enviou  em  missão  para  torná­lo 
conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos. O povo hebreu foi o 
instrumento de que se serviu Deus para se revelar por Moisés e pelos profetas, e as 
vicissitudes por que passou esse povo destinavam­se a chamar a atenção geral e a 
fazer cair o véu que ocultava aos homens a divindade. 
Os  mandamentos  de  Deus,  dados  por  intermédio  de  Moisés,  contêm  o 
gérmen da mais ampla moral cristã. Os comentários da Bíblia, porém, restringiam­ 
lhe  o  sentido,  porque,  praticada  em  toda  a  sua  pureza,  não  na  teriam  então 
compreendido. Mas, nem por isso os dez mandamentos de Deus deixavam de ser um 
como  frontispício  brilhante,  qual  farol  destinado  a  clarear  a  estrada  que  a 
Humanidade tinha de percorrer. 
A moral que Moisés ensinou era apropriada ao estado de adiantamento em 
que se encontravam os povos que ela se propunha regenerar, e esses povos, semi­ 
selvagens  quanto  ao  aperfeiçoamento  da  alma,  não  teriam  compreendido  que  se 
pudesse adorar a Deus de outro modo que não por meio de holocaustos, nem que se 
devesse perdoar a um inimigo. Notável do ponto de vista da matéria e mesmo do das 
artes e das ciências, a inteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e 
não  se  houvera  convertido  sob  o  império  de  uma  religião  inteiramente  espiritual. 
Era­lhes necessária uma representação semimaterial, qual a que apresentava então a 
religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam aos sentidos, do mesmo passo que a 
idéia de Deus lhes falava ao espírito. 
O  Cristo  foi  o  iniciador  da  mais  pura,  da  mais  sublime  moral,  da  moral 
evangélico­cristã,  que  há  de  renovar  o  mundo,  aproximar  os  homens  e  torná­los 
irmãos; que há de fazer brotar de todos os corações a caridade e o amor do próximo
35 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
e estabelecer entre os humanos uma solidariedade comum; de uma moral, enfim, que 
há de transformar a Terra, tornando­a morada de Espíritos superiores aos que hoje a 
habitam. É a lei do progresso, a que a Natureza está submetida, que se cumpre, e o 
Espiritismo é a alavanca de que Deus se utiliza para fazer que a Humanidade avance. 
São chegados os tempos em que se hão de desenvolver as idéias, para que 
se realizem os progressos que  estão nos desígnios de Deus. Têm elas de seguir a 
mesma  rota  que  percorreram  as  idéias  de  liberdade,  suas  precursoras.  Não  se 
acredite, porém, que esse desenvolvimento se efetue sem lutas. Não; aquelas idéias 
precisam, para atingirem a maturidade, de abalos e discussões, a fim de que atraiam 
a atenção das massas. Uma vez isso  conseguido, a beleza e a santidade da moral 
tocarão os espíritos, que então abraçarão uma ciência que lhes dá a chave da vida 
futura  e  descerra  as  portas  da  felicidade  eterna.  Moisés  abriu  o  caminho;  Jesus 
continuou  a  obra;  o  Espiritismo  a  concluirá.  –  Um  Espírito  israelita.  (Mulhouse, 
1861) 
10.  Um  dia,  Deus,  em  sua  inesgotável  caridade,  permitiu  que  o  homem  visse  a 
verdade varar as trevas. Esse dia foi  o do advento do Cristo. Depois da luz viva, 
voltaram as trevas. Após alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente 
se perdia. Então, semelhantemente aos profetas do Antigo Testamento, os Espíritos 
se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus fundamentos; 
reboará o trovão. Sede firmes! 
O Espiritismo é de ordem divina, pois que se assenta nas próprias leis da 
Natureza,  e  estai  certos  de  que  tudo  o  que  é  de  ordem  divina  tem  grande  e  útil 
objetivo.  O  vosso  mundo  se  perdia; a  Ciência,  desenvolvida  à  custa  do  que  é  de 
ordem moral, mas conduzindo­vos ao bem­estar material, redundava em proveito do 
espírito  das  trevas.  Como  sabeis,  cristãos,  o  coração  e  o  amor  têm  de  caminhar 
unidos à Ciência. O reino do Cristo, ah! Passados que são dezoito séculos e apesar 
do sangue de tantos mártires, ainda não veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos 
quer salvar. Tudo é fácil àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria. 
Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo­lo dizem sobejamente; 
dobrai­vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes derribados, isto é, 
preparai­vos e não imiteis as virgens loucas, que foram apanhadas desprevenidas à 
chegada do esposo. 
A  revolução  que  se  apresta  é  antes  moral  do  que  material.  Os  grandes 
Espíritos,  mensageiros  divinos,  sopram  a  fé,  para  que  todos  vós,  obreiros 
esclarecidos e ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de 
areia; mas, sem grãos de areia, não existiriam as montanhas. Assim, pois, que estas 
palavras – “Somos pequenos” – careçam para vós de significação. A cada um a sua 
missão, a cada um o seu trabalho. Não constrói a formiga o edifício de sua república 
e  imperceptíveis  animálculos  não  elevam  continentes?  Começou  a  nova  cruzada. 
Apóstolos da paz universal, que não de uma guerra, modernos São Bernardos, olhai 
e marchai para frente; a lei dos mundos é a do progresso. – Fénelon. (Poitiers, 1861) 
11. Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo. Manifesta­se 
quase  por toda  parte.  A razão  disso,  encontramo­la na  vida  desse  grande  filósofo 
cristão.  Pertence  ele  à  vigorosa  falange  dos  Pais  da  Igreja,  aos  quais  deve  a 
cristandade  seus  mais  sólidos  esteios.  Como  vários  outros,  foi  arrancado  ao
36 – Allan Kardec 
paganismo, ou melhor, à impiedade mais profunda, pelo fulgor da verdade. Quando, 
entregue aos maiores excessos, sentiu em sua alma aquela singular vibração que o 
fez voltar a si e compreender que a felicidade estava alhures, que não nos prazeres 
enervantes e fugitivos; quando, afinal, no seu caminho de Damasco, também lhe foi 
dado  ouvir  a  santa  voz  a  clamar­lhe:  “Saulo,  Saulo,  por  que  me  persegues?” 
exclamou: “Meu Deus! Meu Deus! perdoai­me, creio, sou cristão!” E desde então se 
tornou um dos mais fortes sustentáculos do Evangelho. Podem ler­se, nas notáveis 
confissões que esse eminente espírito deixou, as características e, ao mesmo tempo, 
proféticas  palavras  que  proferiu,  depois  da  morte  de  Santa  Mônica:  Estou 
convencido de que minha mãe me virá visitar e dar conselhos, revelando­me o que 
nos  espera  na  vida  futura.  Que  ensinamento  nessas  palavras  e  que  retumbante 
previsão da doutrina porvindoura! Essa a razão por que hoje, vendo chegada a hora 
de  divulgar­se  a  verdade  que  ele  outrora  pressentira,  se  constituiu  seu  ardoroso 
disseminador  e,  por  assim  dizer,  se  multiplica  para  responder  a  todos  os  que  o 
chamam. – Erasto, discípulo de S. Paulo. (Paris, 1863) 
Nota  –  Dar­se­á  venha  Santo  Agostinho  demolir  o  que  edificou? 
Certamente que não. Como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o que não 
via enquanto homem. Liberta, sua alma entrevê claridades novas, compreende o que 
antes  não  compreendia.  Novas  idéias  lhe  revelaram  o  sentido  verdadeiro  de 
algumas sentenças. Na Terra, apreciava as coisas de acordo com os conhecimentos 
que possuía; desde que, porém, uma nova luz lhe brilhou, pôde apreciá­las mais 
judiciosamente.  Assim  é  que  teve  de  abandonar  a  crença,  que  alimentara,  nos 
Espíritos íncubos e súcubos e o anátema que lançara contra a teoria dos antípodas. 
Agora que o Cristianismo se lhe mostra em toda a pureza, pode ele, sobre alguns 
pontos, pensar de modo diverso do que pensava quando vivo, sem deixar de ser um 
apóstolo  cristão.  Pode,  sem  renegar  a  sua  fé,  constituir­se  disseminador  do 
Espiritismo,  porque  vê  cumprir­se  o  que  fora  predito.  Proclamando­o,  na 
atualidade,  outra  coisa  não  faz  senão  conduzir­nos  a  uma  interpretação  mais 
acertada  e  lógica  dos  textos.  O  mesmo  ocorre  com  outros  Espíritos  que  se 
encontram em posição análoga.
37 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO II 
MEU REINO NÃO É
DESTE MUNDO
·  A VIDA FUTURA
·  A REALEZA DE JESUS
·  O PONTO DE VISTA 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  UMA REALEZA TERRESTRE 
1.  Pilatos,  tendo  entrado  de  novo  no  palácio  e  feito  vir  Jesus  à  sua 
presença,  perguntou­lhe:  “És  o  rei  dos judeus?”  –  Respondeu­lhe  Jesus: 
“Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha 
gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus; 
mas, o meu reino ainda não é aqui.” 
Disse­lhe então Pilatos: “És, pois, rei?” – Jesus lhe respondeu: “Tu 
o  dizes;  sou  rei;  não  nasci  e  não  vim  a  este  mundo  senão  para  dar 
testemunho  da  verdade.  Aquele  que  pertence  à  verdade  escuta  a minha 
voz”. 
(S. JOÃO, 18:33, 36 e 37.) 
A VIDA FUTURA 
2. Por essas palavras, Jesus claramente se refere à vida futura, que ele apresenta, em 
todas as circunstâncias, como a meta a que a Humanidade irá ter e como devendo 
constituir  objeto  das  maiores  preocupações  do  homem  na  Terra.  Todas  as  suas 
máximas  se  reportam  a  esse  grande  princípio.  Com  efeito,  sem  a  vida  futura, 
nenhuma razão de ser teria a maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que 
os que não crêem na vida futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente, 
não os compreendem, ou os consideram pueris.
38 – Allan Kardec 
Esse dogma pode, portanto, ser tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo 
que foi colocado num dos primeiros lugares a frente desta obra. É que ele tem de ser 
o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e 
se mostra de acordo com a justiça de Deus. 
3.  Apenas  idéias  muito  imprecisas  tinham  os  judeus  acerca  da  vida  futura. 
Acreditavam nos anjos, considerando­os seres privilegiados da Criação; não sabiam, 
porém, que os homens podem um dia tornar­se anjos e partilhar da felicidade destes. 
Segundo  eles,  a  observância  das  leis  de  Deus  era  recompensada  com  os  bens 
terrenos, com a supremacia da nação a que pertenciam, com vitórias sobre os seus 
inimigos.  As  calamidades  públicas  e  as  derrotas  eram  o  castigo  da  desobediência 
àquelas leis. Moisés não pudera dizer mais do que isso a um povo pastor e ignorante, 
que precisava ser tocado, antes de tudo, pelas coisas deste mundo. Mais tarde, Jesus 
lhe revelou que há outro mundo, onde a justiça de Deus segue o seu curso. É esse o 
mundo que ele promete aos que cumprem os mandamentos de Deus e onde os bons 
acharão sua recompensa. Aí o seu reino; lá é que ele se encontra na sua glória e para 
onde voltaria quando deixasse a Terra. 
Jesus,  porém,  conformando  seu  ensino  com  o  estado  dos  homens  de  sua 
época, não julgou conveniente dar­lhes luz completa, percebendo que eles ficariam 
deslumbrados,  visto  que  não  a  compreenderiam.  Limitou­se  a,  de  certo  modo, 
apresentar a vida futura apenas como um princípio, como uma lei da Natureza a cuja 
ação  ninguém  pode  fugir. Todo  cristão,  pois, necessariamente  crê na  vida  futura; 
mas,  a  idéia  que  muitos  fazem  dela  é  ainda  vaga, incompleta  e,  por isso  mesmo, 
falsa  em  diversos  pontos.  Para  grande número  de  pessoas,  não  há,  a  tal respeito, 
mais do que uma crença, balda de certeza absoluta, donde as dúvidas e mesmo a 
incredulidade. 
O  Espiritismo  veio  completar,  nesse  ponto,  como  em  vários  outros,  o 
ensino do Cristo, fazendo­o quando os homens já se mostram maduros bastante para 
apreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura deixa de ser simples artigo de 
fé,  mera  hipótese;  torna­se  uma  realidade  material,  que  os  fatos  demonstram, 
porquanto são testemunhas oculares os que a descrevem nas suas fases todas e em 
todas  as  suas  peripécias,  e  de  tal  sorte  que,  além  de  impossibilitarem  qualquer 
dúvida  a  esse  propósito,  facultam  à  mais  vulgar  inteligência  a  possibilidade  de 
imaginá­la  sob  seu  verdadeiro  aspecto,  como  toda  gente  imagina  um  país  cuja 
pormenorizada  descrição  leia.  Ora,  a  descrição  da  vida  futura  é  tão 
circunstanciadamente feita, são tão racionais as condições, ditosas ou infortunadas, 
da  existência  dos  que  lá  se  encontram,  quais  eles  próprios  pintam,  que cada  um, 
aqui, a seu mau grado, reconhece e declara a si mesmo que não pode ser de outra 
forma, porquanto, assim sendo, patente fica a verdadeira justiça de Deus. 
A REALEZA DE JESUS 
4. Que não é deste mundo o reino de Jesus todos compreendem, mas, também na 
Terra não terá ele uma realeza? Nem sempre o título de rei implica o exercício do 
poder temporal. Dá­se esse título, por unânime consenso, a todo aquele que, pelo seu
39 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
gênio, ascende à primeira plana numa ordem de idéias quaisquer, a todo aquele que 
domina, o seu século e influi sobre o progresso da Humanidade. É nesse sentido que 
se  costuma  dizer:  o  rei  ou  príncipe  dos  filósofos,  dos  artistas,  dos  poetas,  dos 
escritores, etc. Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade, 
não  revela,  muitas  vezes,  preponderância  bem  maior  do  que  a  que  cinge  a  coroa 
real?  Imperecível  é  a  primeira,  enquanto  esta  outra  é  joguete  das  vicissitudes;  as 
gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem, ao passo que, por vezes, 
amaldiçoam a outra. Esta, a terrestre, acaba com a vida; a realeza moral se prolonga 
e mantém o seu poder, governa, sobretudo, após a morte. Sob esse aspecto não é 
Jesus mais poderoso rei do que os potentados da Terra? Razão, pois, lhe assistia para 
dizer a Pilatos, conforme disse: “Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo.” 
O PONTO DE VISTA 
5. A idéia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no 
porvir,  fé  que  acarreta  enormes  conseqüências  sobre  a  moralização  dos  homens, 
porque  muda  completamente  o  ponto  de  vista  sob  o  qual  encaram  eles  a  vida 
terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, 
a  vida  corpórea  se  torna  simples  passagem,  breve  estada  num  país  ingrato.  As 
vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com 
paciência,  por  sabê­las  de  curta  duração,  devendo  seguir­se­lhes  um  estado  mais 
ditoso. À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se abre para 
o nada e torna­se a que dá para a libertação, pela qual entra o exilado numa mansão 
de bem­aventurança e de paz. Sabendo temporária e não definitiva a sua estada no 
lugar onde se encontra, menos atenção presta às preocupações da vida, resultando­ 
lhe daí uma calma de espírito que tira àquela muito do seu amargor. 
Pelo simples fato de duvidar da vida futura, o homem dirige todos os seus 
pensamentos para a vida terrestre. Sem nenhuma certeza quanto ao porvir, dá tudo 
ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra, torna­se qual 
a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não há o que não faça para 
conseguir  os  únicos  bens  que  se  lhe  afiguram reais.  A  perda  do  menor  deles  lhe 
ocasiona  causticante  pesar;  um  engano,  uma  decepção,  uma  ambição  insatisfeita, 
uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos 
tormentos, que lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo­se ele, 
desse  modo,  a  si  próprio,  verdadeira  tortura  de todos os instantes.  Colocando  o 
ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar mesmo em que ele aí se 
encontra, vastas proporções assume tudo o que o rodeia. O mal que o atinja, como o 
bem que toque aos outros, grande importância adquire aos seus olhos. Àquele que se 
acha  no  interior  de  uma  cidade,  tudo  lhe  parece  grande:  assim  os  homens  que 
ocupem as altas posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha, 
e logo bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. É o que sucede ao que encara a 
vida  terrestre  do  ponto  de  vista  da  vida  futura;  a  Humanidade,  tanto  quanto  as 
estrelas  do  firmamento,  perde­se  na  imensidade.  Percebe  então  que  grandes  e 
pequenos  estão  confundidos,  como  formigas  sobre  um  montículo  de  terra;  que 
proletários  e  potentados  são  da  mesma  estatura,  e  lamenta  que  essas  criaturas
40 – Allan Kardec 
efêmeras a tantas canseiras se entreguem para conquistar um lugar que tão pouco as 
elevará e que por tão pouco tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada 
aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura. 
6.  Se  toda  a  gente  pensasse  dessa  maneira,  dir­se­ia,  tudo  na  Terra  periclitaria, 
porquanto  ninguém  mais  se  iria  ocupar  com  as  coisas  terrenas.  Não;  o  homem, 
instintivamente, procura o seu bem­estar e, embora certo de que só por pouco tempo 
permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o melhor ou o menos mal 
que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com um espinho debaixo de sua mão, 
não a retire, para se não picar. Ora, o desejo do  bem­estar força o homem a tudo 
melhorar, impelido que é pelo instinto do progresso e da conservação, que está nas 
leis  da  Natureza.  Ele,  pois,  trabalha  por  necessidade,  por  gosto  e  por  dever, 
obedecendo, desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na 
Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao presente mais 
do que relativa importância e facilmente se consola dos seus insucessos, pensando 
no destino que o aguarda. 
Deus, conseguintemente, não condena os gozos terrenos; condena, sim, o 
abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma. Contra tais abusos é que se 
premunem os que a si próprios aplicam estas palavras de Jesus: Meu reino não é 
deste mundo. Aquele que se identifica com a vida futura assemelha­se ao rico que 
perde sem emoção uma pequena soma. 
Aquele cujos pensamentos se concentram na vida terrestre assemelha­se ao 
pobre que perde tudo o que possui e se desespera. 
7. O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga horizontes novos. Em vez dessa 
visão, acanhada e mesquinha, que o concentra na vida atual, que faz do instante que 
vivemos na Terra único e frágil eixo do porvir eterno, ele, o Espiritismo, mostra que 
essa  vida  não  passa  de  um  elo  no  harmonioso  e  magnífico  conjunto  da  obra  do 
Criador. Mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um mesmo ser, 
todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os mundos. Faculta assim 
uma base e uma razão de ser à fraternidade universal, enquanto a doutrina da criação 
da alma por ocasião do nascimento de cada corpo torna estranhos uns aos outros 
todos os seres. Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que 
inexplicável se apresenta, desde que se considere apenas um ponto. Esse conjunto, 
ao tempo do Cristo, os homens não o teriam podido compreender, motivo por que 
ele reservou para outros tempos o fazê­lo conhecido. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
UMA REALEZA TERRESTRE 
8. Quem melhor do que eu pode compreender a verdade destas palavras de Nosso 
Senhor: “O meu reino não é deste mundo”? O orgulho me perdeu na Terra. Quem, 
pois, compreenderia o nenhum valor dos reinos da Terra, se eu o não compreendia? 
Que trouxe eu comigo da minha realeza terrena? Nada, absolutamente nada. E, como
41 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
que para tornar mais terrível a lição, ela nem sequer me acompanhou até o túmulo! 
Rainha entre os homens, como rainha julguei que penetrasse no reino dos céus! Que 
desilusão! Que humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi 
acima de mim, mas muito acima, homens que eu julgava insignificantes e aos quais 
desprezava, por não terem sangue nobre! Oh! Como então compreendi a esterilidade 
das honras e grandezas que com tanta avidez se requestam na Terra! 
Para  se  granjear  um  lugar  neste  reino,  são  necessárias  a  abnegação,  a 
humildade, a caridade em toda a sua celeste prática, a benevolência para com todos. 
Não se vos pergunta o que fostes, nem que posição ocupastes, mas que bem fizestes, 
quantas lágrimas enxugastes. 
Oh!  Jesus,  tu  o  disseste,  teu  reino  não  é  deste  mundo,  porque  é  preciso 
sofrer para chegar ao céu, de onde os degraus de um trono a ninguém aproximam. A 
ele só  conduzem as veredas mais penosas da vida. Procurai­lhe, pois, o caminho, 
através das urzes e dos espinhos, não por entre as flores. 
Correm os homens por alcançar os bens terrestres, como se os houvessem 
de  guardar  para  sempre.  Aqui,  porém,  todas  as  ilusões  se  somem.  Cedo  se 
apercebem eles de que apenas apanharam uma sombra e desprezaram os únicos bens 
reais e duradouros, os únicos que lhes aproveitam na morada celeste, os únicos que 
lhes podem facultar acesso a esta. 
Compadecei­vos dos que não ganharam o reino dos céus; ajudai­os com as 
vossas  preces,  porquanto  a  prece  aproxima  do  Altíssimo  o  homem;  é  o  traço  de 
união  entre  o  céu  e  a  Terra: não  o  esqueçais.  – Uma Rainha de França. (Havre, 
1863)
42 – Allan Kardec 
CAPÍTULO III 
HÁ MUITAS MORADAS
NA CASA DO MEU PAI
·  DIFERENTES ESTADOS DA ALMA NA ERRATICIDADE
·  DIFERENTES CATEGORIAS DE MUNDOS HABITADOS
·  DESTINAÇÃO DA TERRA. CAUSAS DAS MISÉRIAS 
TERRENAS 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS
·  MUNDOS INFERIORES E MUNDOS SUPERIORES
·  MUNDOS DE EXPIAÇÕES E DE PROVAS
·  MUNDOS REGENERADORES
·  PROGRESSÃO DOS MUNDOS 
1.  “ Não  se  turbe  o  vosso  coração;  Credes  em  Deus,  crede  também  em 
mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já eu vo­ 
lo teria dito, pois me vou para vos preparar o lugar. Depois que me tenha 
ido e que vos houver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a 
fim de que onde eu estiver, também vós aí estejais”. 
(S. JOÃO, 14:1 a 3.) 
DIFERENTES ESTADOS DA ALMA NA ERRATICIDADE 
2. A casa do Pai é o Universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam 
no  espaço  infinito  e  oferecem,  aos  Espíritos  que  neles  encarnam,  moradas 
correspondentes ao adiantamento dos mesmos Espíritos. 
Independente da diversidade dos mundos, essas palavras de Jesus também 
podem  referir­se  ao  estado  venturoso  ou  desgraçado  do  Espírito  na  erraticidade. 
Conforme se ache este mais ou menos depurado e desprendido dos laços materiais, 
variarão  ao  infinito  o  meio  em  que  ele  se  encontre,  o  aspecto  das  coisas,  as 
sensações que experimente, as percepções que tenha. Enquanto uns não se podem
43 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
afastar da esfera onde viveram, outros se elevam e percorrem o espaço e os mundos; 
enquanto alguns Espíritos culpados erram nas trevas, os bem­aventurados gozam de 
resplendente claridade e do espetáculo sublime do Infinito; finalmente, enquanto o 
mau, atormentado  de remorsos  e  pesares,  muitas  vezes  insulado,  sem  consolação, 
separado  dos  que  constituíam  objeto  de  suas  afeições,  pena  sob  o  guante  dos 
sofrimentos morais, o justo, em convívio com aqueles a quem ama, frui as delícias 
de  uma  felicidade indizível. Também nisso,  portanto, há muitas moradas,  embora 
não circunscritas, nem localizadas. 
DIFERENTES CATEGORIAS DE MUNDOS HABITADOS 
3. Do ensino dado pelos Espíritos, resulta que muito diferentes umas das outras são 
as condições dos mundos, quanto ao grau de adiantamento ou de inferioridade dos 
seus habitantes. Entre eles há os em que estes últimos são ainda inferiores aos da 
Terra, física e moralmente; outros, da mesma categoria que o nosso; e outros que lhe 
são  mais  ou  menos  superiores  a  todos  os  respeitos.  Nos  mundos  inferiores,  a 
existência  é toda  material,  reinam  soberanas  as  paixões,  sendo  quase  nula  a  vida 
moral.  À  medida  que  esta  se  desenvolve,  diminui  a  influência  da  matéria,  de  tal 
maneira que, nos mundos mais adiantados, a vida é, por assim dizer, toda espiritual. 
4.  Nos  mundos  intermédios,  misturam­se  o  bem  e  o  mal,  predominando  um  ou 
outro, segundo o grau de adiantamento da maioria dos que os habitam. Embora se 
não possa fazer, dos diversos mundos, uma classificação absoluta, pode­se contudo, 
em virtude do estado em que se acham e da destinação que trazem, tomando por 
base  os  matizes  mais  salientes,  dividi­los,  de  modo  geral,  como  segue:  mundos 
primitivos,  destinados  às  primeiras  encarnações  da  alma  humana;  mundos  de 
expiação e provas, onde domina o mal; mundos de regeneração, nos quais as almas 
que ainda têm o que expiar haurem novas forças, repousando das fadigas da luta; 
mundos  ditosos,  onde  o  bem  sobrepuja  o  mal;  mundos  celestes  ou  divinos, 
habitações  de  Espíritos  depurados,  onde  exclusivamente  reina  o  bem.  A  Terra 
pertence  à  categoria  dos  mundos  de  expiação  e  provas,  razão  por  que  aí  vive  o 
homem a braços com tantas misérias. 
5.  Os  Espíritos  que  encarnam  em  um  mundo  não  se  acham  a  ele  presos 
indefinidamente, nem nele atravessam todas as fases do progresso que lhes cumpre 
realizar, para atingir a perfeição. Quando, em um mundo, eles alcançam o grau de 
adiantamento que esse mundo comporta, passam para outro mais adiantado, e assim 
por diante, até que cheguem ao estado de puros Espíritos. São outras tantas estações, 
em  cada  uma  das  quais  se  lhes  deparam  elementos  de  progresso  apropriados  ao 
adiantamento que já conquistaram. É­lhes uma recompensa ascenderem a um mundo 
de ordem mais elevada, como é um castigo o prolongarem a sua permanência em um 
mundo desgraçado, ou serem relegados para outro ainda mais infeliz do que aquele a 
que se vêem impedidos de voltar quando se obstinaram no mal.
44 – Allan Kardec 
DESTINAÇÃO DA TERRA. CAUSAS DAS MISÉRIAS HUMANAS 
6.  Muitos  se  admiram  de  que  na  Terra  haja  tanta  maldade  e  tantas  paixões 
grosseiras, tantas misérias e enfermidades de toda natureza, e daí concluem que a 
espécie humana bem triste coisa é. Provém esse juízo do acanhado ponto de vista em 
que se colocam os que o emitem e que lhes dá uma falsa idéia do conjunto. Deve­se 
considerar  que  na  Terra  não  está  a  Humanidade  toda,  mas  apenas  uma  pequena 
fração  da  Humanidade.  Com  efeito,  a  espécie  humana  abrange  todos  os  seres 
dotados  de  razão  que  povoam  os  inúmeros  orbes  do  Universo.  Ora,  que  é  a 
população da Terra, em face da população total desses mundos? Muito menos que a 
de uma aldeia, em confronto com a de um grande império. A situação material e 
moral da Humanidade terrena nada tem que espante, desde que se leve em conta a 
destinação da Terra e a natureza dos que a habitam. 
7. Faria dos habitantes de uma grande cidade falsíssima idéia quem os julgasse pela 
população dos seus quarteirões mais ínfimos e sórdidos. Num hospital, ninguém vê 
senão doentes e estropiados; numa penitenciária, vêem­se reunidas todas as torpezas, 
todos os vícios; nas regiões insalubres, os habitantes, em sua maioria, são pálidos, 
franzinos e enfermiços. Pois bem: figure­se a Terra como um subúrbio, um hospital, 
uma  penitenciária,  um  sítio  malsão,  e  ela  é  simultaneamente  tudo  isso,  e 
compreender­se­á  por  que  as  aflições  sobrelevam  aos  gozos,  porquanto  não  se 
mandam para o hospital os que se acham com saúde, nem para as casas de correção 
os que nenhum mal praticaram; nem os hospitais e as casas de correção se podem ter 
por lugares de deleite. 
Ora,  assim  como,  numa  cidade,  a  população  não  se  encontra  toda  nos 
hospitais  ou  nas  prisões,  também  na  Terra  não  está  a  Humanidade  inteira.  E,  do 
mesmo modo que do hospital saem os que se curaram e da prisão os que cumpriram 
suas  penas,  o  homem  deixa  a  Terra,  quando  está  curado  de  suas  enfermidades 
morais. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
MUNDOS INFERIORES E MUNDOS SUPERIORES 
8. A qualificação de mundos inferiores e mundos superiores nada tem de absoluta; é, 
antes, muito relativa. Tal mundo é inferior ou superior com referência aos que lhe 
estão acima ou abaixo, na escala progressiva. 
Tomada a Terra por termo de comparação, pode­se fazer idéia do estado de 
um mundo inferior, supondo os seus habitantes na condição das raças selvagens ou 
das nações bárbaras que ainda entre nós se encontram, restos do estado primitivo do 
nosso  orbe.  Nos  mais  atrasados,  são  de  certo  modo  rudimentares  os  seres  que  os 
habitam. Revestem a forma humana, mas sem nenhuma beleza. Seus instintos não 
têm a abrandá­los qualquer sentimento de delicadeza ou de  benevolência, nem as 
noções do justo e do injusto. A força bruta é, entre eles, a única lei. Carentes de 
indústrias  e  de  invenções,  passam  a  vida  na  conquista  de  alimentos.  Deus,
45 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
entretanto,  a  nenhuma  de  suas  criaturas  abandona;  no  fundo  das  trevas  da 
inteligência jaz, latente, a vaga intuição, mais ou menos desenvolvida, de um Ente 
supremo.  Esse  instinto  basta  para  torná­los  superiores  uns  aos  outros  e  para  lhes 
preparar  a  ascensão  a  uma  vida  mais  completa,  porquanto  eles  não  são  seres 
degradados, mas crianças que estão a crescer. 
Entre os degraus inferiores e os mais elevados, inúmeros outros há, e difícil 
é reconhecer­se nos Espíritos puros, desmaterializados e resplandecentes de glória, 
os que foram esses seres primitivos, do mesmo modo que no homem adulto se custa 
a reconhecer o embrião. 
9.  Nos  mundos  que  chegaram  a  um  grau  superior,  as  condições  da  vida  moral  e 
material são muitíssimo diversas das da vida na Terra. Como por toda parte, a forma 
corpórea  aí  é  sempre  a  humana,  mas  embelezada,  aperfeiçoada  e,  sobretudo, 
purificada.  O  corpo  nada  tem  da  materialidade  terrestre  e  não  está, 
conseguintemente, sujeito às necessidades, nem às doenças ou deteriorações que a 
predominância  da  matéria  provoca.  Mais  apurados,  os  sentidos  são  aptos  a 
percepções a que neste mundo a grosseria da matéria obsta. A leveza específica do 
corpo  permite  locomoção  rápida  e  fácil:  em  vez  de  se  arrastar  penosamente  pelo 
solo, desliza, a bem dizer, pela superfície, ou plana na atmosfera, sem qualquer outro 
esforço além do da vontade, conforme se representam os anjos, ou como os antigos 
imaginavam os manes nos Campos Elíseos. Os homens conservam, a seu grado, os 
traços de suas passadas migrações e se mostram a seus amigos tais quais estes os 
conheceram,  porém,  irradiando  uma  luz  divina,  transfigurados  pelas  impressões 
interiores,  então  sempre  elevadas.  Em  lugar  de  semblantes  descorados,  abatidos 
pelos sofrimentos e paixões, a inteligência e a vida cintilam com o fulgor que  os 
pintores hão figurado no nimbo ou auréola dos santos. 
A pouca resistência que a matéria oferece a Espíritos já muito adiantados 
torna rápido o desenvolvimento dos corpos e curta ou quase nula a infância. Isenta 
de cuidados  e angústias, a vida é proporcionalmente muito mais longa do que na 
Terra. Em princípio, a longevidade guarda proporção com o grau de adiantamento 
dos mundos. A morte de modo algum acarreta os horrores da decomposição; longe 
de causar pavor, é considerada uma transformação feliz, por isso que lá não existe a 
dúvida sobre o porvir. Durante a vida, a alma, já não tendo a constringi­la a matéria 
compacta,  expande­se  e  goza  de  uma  lucidez  que  a  coloca  em  estado  quase 
permanente de emancipação e lhe consente a livre transmissão do pensamento. 
10. Nesses mundos venturosos, as relações, sempre amistosas entre os povos, jamais 
são  perturbadas  pela  ambição,  da  parte  de  qualquer  deles,  de  escravizar  o  seu 
vizinho,  nem  pela  guerra  que  daí  decorre.  Não  há  senhores,  nem  escravos,  nem 
privilegiados  pelo  nascimento;  só  a  superioridade  moral  e  intelectual  estabelece 
diferença entre as condições e dá a supremacia. A autoridade merece o respeito de 
todos,  porque  somente  ao  mérito  é  conferida  e  se  exerce  sempre  com  justiça.  O 
homem  não  procura  elevar­se  acima  do  homem,  mas  acima  de  si  mesmo, 
aperfeiçoando­se.  Seu  objetivo  é  galgar  a  categoria  dos  Espíritos  puros,  não  lhe 
constituindo um tormento esse desejo, porém, uma ambição nobre, que o induz a 
estudar com ardor para os igualar. Lá, todos os sentimentos delicados e elevados da
46 – Allan Kardec 
natureza humana se acham engrandecidos e purificados; desconhecem­se os ódios, 
os mesquinhos ciúmes, as baixas cobiças da inveja; um laço de amor e fraternidade 
prende uns aos outros todos os homens, ajudando os mais fortes aos mais fracos. 
Possuem bens, em maior ou menor quantidade, conforme os tenham adquirido, mais 
ou  menos  por  meio  da  inteligência;  ninguém,  todavia,  sofre,  por  lhe  faltar  o 
necessário, uma vez que ninguém se acha em expiação. Numa palavra: o mal, nesses 
mundos, não existe. 
11. No vosso, precisais do mal para sentirdes o bem; da noite, para admirardes a luz; 
da  doença,  para  apreciardes  a  saúde.  Naqueles  outros  não  há  necessidade  desses 
contrastes. A eterna luz, a eterna beleza e a eterna serenidade da alma proporcionam 
uma alegria eterna, livre de ser perturbada pelas angústias da vida material, ou pelo 
contacto  dos  maus,  que  lá  não  têm  acesso.  Isso  o  que  o  espírito  humano  maior 
dificuldade encontra para compreender. Ele foi  bastante engenhoso para pintar os 
tormentos do inferno, mas nunca pôde imaginar as alegrias do céu. Por quê? Porque, 
sendo inferior, só há experimentado dores e misérias, jamais entreviu as claridades 
celestes; não pode, pois, falar do que não conhece. À medida, porém, que se eleva e 
depura, o horizonte se lhe dilata e ele compreende o bem que está diante de si, como 
compreendeu o mal que lhe está atrás. 
12. Entretanto, os mundos felizes não são orbes privilegiados, visto que Deus não é 
parcial  para qualquer  de  seus  filhos; a  todos  dá  os  mesmos  direitos  e  as  mesmas 
facilidades para chegarem a tais mundos. Fá­los partir todos do mesmo ponto e a 
nenhum  dota  melhor  do  que  aos  outros;  a  todos  são  acessíveis  as  mais  altas 
categorias:  apenas  lhes  cumpre  a  eles  conquistá­las  pelo  seu  trabalho,  alcançá­las 
mais  depressa,  ou  permanecer  inativos  por  séculos  de  séculos  no  lodaçal  da 
Humanidade. (Resumo do ensino de todos os Espíritos superiores.) 
MUNDOS DE EXPIAÇÕES E DE PROVAS 
13. Que vos direi dos mundos de expiações que já não saibais, pois basta observeis o 
em  que  habitais?  A  superioridade  da  inteligência,  em  grande  número  dos  seus 
habitantes, indica que a Terra não é um mundo primitivo, destinado à encarnação 
dos Espíritos que acabaram de sair das mãos do Criador. As qualidades inatas que 
eles  trazem  consigo  constituem  a  prova  de  que  já  viveram  e  realizaram  certo 
progresso.  Mas,  também,  os  numerosos  vícios  a  que  se  mostram  propensos 
constituem  o  índice  de  grande imperfeição  moral.  Por isso  os  colocou  Deus  num 
mundo ingrato, para expiarem aí suas faltas, mediante penoso trabalho e misérias da 
vida, até que hajam merecido ascender a um planeta mais ditoso. 
14.  Entretanto,  nem  todos  os  Espíritos  que  encarnam  na  Terra  vão  para  aí  em 
expiação. As raças a que chamais selvagens são formadas de Espíritos que apenas 
saíram da infância e que na Terra se acham, por assim dizer, em curso de educação, 
para se desenvolverem pelo contacto com Espíritos mais adiantados. Vêm depois as 
raças semi civilizadas, constituídas desses mesmos Espíritos em via de progresso.
47 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
São elas, de certo modo, raças indígenas da Terra, que aí se elevaram pouco a pouco 
em  longos  períodos  seculares,  algumas  das  quais  hão  podido  chegar  ao 
aperfeiçoamento intelectual dos povos mais esclarecidos. 
Os  Espíritos  em  expiação,  se  nos  podemos  exprimir  dessa  forma,  são 
exóticos,  na  Terra;  já  viveram  noutros  mundos,  donde  foram  excluídos  em 
conseqüência  da  sua  obstinação  no  mal  e  por  se  haverem  constituído,  em  tais 
mundos, causa de perturbação para os bons. Tiveram de ser degredados, por algum 
tempo, para o meio de Espíritos mais atrasados, com a missão de  fazer que estes 
últimos avançassem, pois que levam consigo inteligências desenvolvidas e o gérmen 
dos  conhecimentos  que  adquiriram.  Daí  vem  que  os  Espíritos  em  punição  se 
encontram no seio das raças mais inteligentes. Por isso mesmo, para essas raças é 
que  de  mais  amargor  se  revestem  os  infortúnios  da  vida.  É  que  há  nelas  mais 
sensibilidade,  sendo,  portanto,  mais  provadas  pelas  contrariedades  e  desgostos  do 
que as raças primitivas, cujo senso moral se acha mais embotado. 
15. A Terra, conseguintemente, oferece um dos tipos de mundos expiatórios, cuja 
variedade é infinita, mas revelando todos, como caráter comum, o servirem de lugar 
de exílio para Espíritos rebeldes à lei de Deus. Esses Espíritos têm aí de lutar, ao 
mesmo tempo, com a perversidade dos homens e com a inclemência da Natureza, 
duplo e árduo trabalho que simultaneamente desenvolve as qualidades do coração e 
as  da  inteligência.  É  assim  que  Deus,  em  sua  bondade,  faz  que  o  próprio  castigo 
redunde em proveito do progresso do Espírito. – Santo Agostinho. (Paris, 1862) 
MUNDOS REGENERADORES 
16. Entre as estrelas que cintilam na abóbada azul do firmamento, quantos mundos 
não haverá como  o  vosso, destinados pelo Senhor à expiação e à provação! Mas, 
também os há mais miseráveis e melhores, como os há de transição, que se podem 
denominar de regeneradores. Cada turbilhão planetário, a deslocar­se no espaço em 
torno de um centro comum, arrasta consigo seus mundos primitivos, de exí1io, de 
provas, de regeneração e de felicidade. Já se vos há falado de mundos onde a alma 
recém­nascida  é  colocada,  quando  ainda  ignorante  do  bem  e  do  mal,  mas  com  a 
possibilidade  de  caminhar  para  Deus,  senhora  de  si  mesma,  na  posse  do  livre­ 
arbítrio. Já também se vos revelou de que amplas faculdades é dotada a alma para 
praticar o bem. Mas, ah! Há as que sucumbem, e Deus, que não as quer aniquiladas, 
lhes permite irem para esses mundos onde, de encarnação em encarnação, elas se 
depuram, regeneram e voltam dignas da glória que lhes fora destinada. 
17. Os mundos regeneradores servem de transição entre os mundos de expiação e os 
mundos felizes. A alma penitente encontra neles a calma e o repouso e acaba por 
depurar­se. Sem dúvida, em tais mundos o homem ainda se acha sujeito às leis que 
regem  a  matéria;  a  Humanidade  experimenta  as  vossas  sensações  e  desejos,  mas 
liberta das paixões desordenadas de que sois escravos, isenta do orgulho que impõe 
silêncio  ao  coração,  da  inveja  que  a  tortura,  do  ódio  que  a  sufoca.  Em  todas  as
48 – Allan Kardec 
frontes, vê­se escrita a palavra amor; perfeita eqüidade preside às relações sociais, 
todos reconhecem Deus e tentam caminhar para Ele, cumprindo­lhe as leis. 
Nesses mundos, todavia, ainda não existe a felicidade perfeita, mas a aurora 
da felicidade. O homem lá é ainda de carne e, por isso, sujeito às vicissitudes de que 
libertos  só  se  acham  os  seres  completamente  desmaterializados.  Ainda  tem  de 
suportar  provas,  porém,  sem  as  pungentes  angústias  da  expiação.  Comparados  à 
Terra,  esses  mundos  são  bastante  ditosos  e  muitos  dentre  vós  se  alegrariam  de 
habitá­los, pois que eles representam a calma após a tempestade, a convalescença 
após a moléstia cruel. Contudo, menos absorvido pelas coisas materiais, o homem 
divisa,  melhor  do  que  vós,  o  futuro;  compreende  a  existência  de  outros  gozos 
prometidos  pelo  Senhor  aos  que  deles  se  mostrem  dignos,  quando  a  morte  lhes 
houver de novo ceifado os corpos, a fim de lhes outorgar a verdadeira vida. Então, 
liberta, a alma pairará acima de todos os horizontes. Não mais sentidos materiais e 
grosseiros;  somente  os  sentidos  de  um  perispírito  puro  e  celeste,  a  aspirar  as 
emanações  do  próprio  Deus,  nos  aromas  de  amor  e  de  caridade  que  do  seu  seio 
emanam. 
18. Mas, ah! Nesses mundos, ainda falível é o homem e o Espírito do mal não há 
perdido completamente o seu império. Não avançar é recuar, e, se o homem não se 
houver  firmado  bastante  na  senda  do  bem,  pode  recair  nos  mundos  de  expiação, 
onde, então, novas e mais terríveis provas o aguardam. 
Contemplai, pois, à noite, à hora do repouso e da prece, a abóbada azulada 
e, das inúmeras esferas que brilham sobre as vossas cabeças, indagai de vós mesmos 
quais as que conduzem a Deus e pedi­lhe que um mundo regenerador vos abra seu 
seio, após a expiação na Terra. – Santo Agostinho. (Paris, 1862) 
PROGRESSÃO DOS MUNDOS 
19. O progresso é lei da Natureza. A essa lei todos os seres da Criação, animados e 
inanimados,  foram  submetidos  pela  bondade  de  Deus,  que  quer  que  tudo  se 
engrandeça e prospere. A própria destruição, que aos homens parece o termo final de 
todas as coisas, é apenas um meio de se chegar, pela transformação, a um estado 
mais perfeito, visto que tudo morre para renascer e nada sofre o aniquilamento. 
Ao  mesmo  tempo  em  que  todos  os  seres  vivos  progridem  moralmente, 
progridem  materialmente  os  mundos  em  que  eles  habitam.  Quem  pudesse 
acompanhar  um  mundo  em  suas  diferentes  fases,  desde  o  instante  em  que  se 
aglomeraram os primeiros átomos destinados e constituí­lo, vê­lo­ia a percorrer uma 
escala  incessantemente  progressiva,  mas  de  degraus  imperceptíveis  para  cada 
geração, e a oferecer aos seus habitantes uma morada cada vez mais agradável, à 
medida  que  eles  próprios  avançam  na  senda  do  progresso.  Marcham  assim, 
paralelamente, o progresso do homem, o dos animais, seus auxiliares, o dos vegetais 
e  o  da  habitação,  porquanto  nada  em  a  Natureza  permanece  estacionário.  Quão 
grandiosa  é  essa  idéia  e  digna  da  majestade  do  Criador!  Quanto,  ao  contrário,  é 
mesquinha  e  indigna  do  seu  poder  a  que  concentra  a  sua  solicitude  e  a  sua 
providência no imperceptível grão de areia, que é a Terra, e restringe a Humanidade
49 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
aos poucos homens que a habitam! Segundo aquela lei, este mundo esteve material e 
moralmente num estado inferior ao em que hoje se acha e se alçará sob esse duplo 
aspecto  a  um  grau  mais  elevado.  Ele  há  chegado  a  um  dos  seus  períodos  de 
transformação, em que, de orbe expiatório, mudar­se­á em planeta de regeneração, 
onde  os  homens  serão  ditosos,  porque  nele  imperará  a  lei  de  Deus.  –  Santo 
Agostinho. (Paris, 1862)
50 – Allan Kardec 
CAPÍTULO IV 
NINGUÉM PODERÁ VER
O REINO DE DEUS
SE NÃO NASCER DE NOVO
·  RESSURREIÇÃO E REENCARNAÇÃO
·  A REENCARNAÇÃO FORTALECE OS LAÇOS DE FAMÍLIA, AO 
PASSO QUE A UNICIDADE DA EXISTÊNCIA OS ROMPE 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS
·  LIMITES DA ENCARNAÇÃO
·  NECESSIDADE DA ENCARNAÇÃO 
1. Jesus, tendo vindo às cercanias de Cesaréia de Filipe, interrogou assim 
seus discípulos: “Que dizem os homens, com relação ao Filho do Homem? 
Quem  dizem  que  eu  sou?”  –  Eles  lhe  responderam:  “Dizem  uns  que  és 
João  Batista;  outros,  que    és  Elias;  outros,  Jeremias,  ou  algum  dos 
profetas.”  –  Perguntou­lhes  Jesus:  “E  vós,  quem  dizeis  que  eu  sou?”  – 
Simão Pedro, tomando a palavra, respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do 
Deus  vivo:”  –  Replicou­lhe  Jesus:  “Bem­aventurado  és,  Simão,  filho  de 
Jonas, porque não foram a carne nem o sangue que isso te revelaram, mas 
meu Pai, que está nos céus.” 
(S. MATEUS, 16:13 a 17; S. MARCOS, 8:27 a 30.) 
2.  Nesse  ínterim,  Herodes,  o  Tetrarca,  ouvira  falar  de  tudo  o  que  fazia 
Jesus e seu espírito se achava em suspenso; porque uns diziam que João 
Batista ressuscitara dentre os mortos; outros que aparecera Elias; e outros 
que  um  dos  antigos  profetas  ressuscitara;  Disse  então  Herodes: “Mandei 
cortar a cabeça a João Batista; quem é então esse de quem ouço dizer tão 
grandes coisas?” E ardia por vê­lo. 
(S. MARCOS, 6:14 a 16; S. LUCAS, 9:7 a 9.)
51 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
3.  (Após  a  transfiguração.)  Seus  discípulos  então  o  interrogaram  desta 
forma:  “Por  que  dizem  os  escribas  ser  preciso  que  antes  volte  Elias?”  – 
Jesus lhes respondeu: “É verdade que Elias há de vir e restabelecer todas 
as coisas: mas, eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram e 
o trataram como lhes aprouve. É assim que farão sofrer o Filho do Homem.” 
– Então, seus discípulos compreenderam que fora de João Batista que ele 
falara. 
(S. MATEUS, 17:10 a 13; – S. MARCOS, 9:11 a 13.) 
RESSURREIÇÃO E REENCARNAÇÃO 
4. A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição. 
Só os saduceus, cuja crença era a de que tudo acaba com a morte, não acreditavam 
nisso. As idéias dos judeus sobre esse ponto, como sobre muitos outros, não eram 
claramente definidas, porque apenas tinham vagas e incompletas noções acerca da 
alma e da sua ligação com o  corpo. Criam eles que um homem que vivera podia 
reviver,  sem  saberem  precisamente  de  que  maneira  o  fato  poderia  dar­se. 
Designavam  pelo  termo  ressurreição  o  que  o  Espiritismo,  mais  judiciosamente, 
chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá idéia de voltar à vida o corpo 
que  já  está  morto,  o  que  a  Ciência  demonstra  ser  materialmente  impossível, 
sobretudo  quando  os  elementos  desse  corpo  já  se  acham  desde  muito  tempo 
dispersos  e  absorvidos.  A  reencarnação  é  a  volta  da  alma  ou  Espírito  à  vida 
corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de 
comum com o antigo. A palavra ressurreição podia assim aplicar­se a Lázaro, mas 
não  a  Elias,  nem  aos  outros  profetas.  Se,  portanto,  segundo  a  crença  deles,  João 
Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, pois que João fora visto 
criança e seus pais eram conhecidos. João, pois, podia ser Elias reencarnado, porém, 
não ressuscitado. 
5. Ora,  entre  os fariseus, havia um homem chamado Nicodemos, senador dos 
judeus, que veio à noite ter com Jesus e lhe disse: “Mestre, sabemos que vieste 
da parte de Deus para nos instruir como um doutor, porquanto ninguém poderia 
fazer  os  milagres  que  fazes,  se  Deus  não  estivesse  com  ele.”  Jesus  lhe 
respondeu:  “Em  verdade,  em  verdade  digo­te:  Ninguém  pode  ver  o  reino  de 
Deus se não nascer de novo.” 
Disse­lhe Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho? Pode 
tornar a entrar no ventre de sua mãe, para nascer segunda vez?” Retorquiu­lhe 
Jesus: “Em verdade, em verdade, digo­te: Se um homem não renasce da água 
e do  Espírito,  não  pode  entrar  no reino de  Deus. O que  é  nascido  da carne  é 
carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não te admires de que eu te haja 
dito ser preciso que nasças de novo. O Espírito sopra onde quer e ouves a sua 
voz  mas  não  sabes  donde  vem  ele,  nem para  onde  vai;  o  mesmo  se  dá  com 
todo homem que é nascido do Espírito.” 
Respondeu­lhe  Nicodemos:  “Como  pode  isso  fazer­se?”  –  Jesus  lhe 
observou:  “Pois  quê!  És  mestre  em Israel  e  ignoras  estas  coisas?  Digo­te  em 
verdade, que não dizemos senão o que sabemos e que não damos testemunho, 
senão do que temos visto. Entretanto, não aceitas o nosso testemunho. Mas, se 
não me credes, quando vos falo das coisas da Terra, como me crereis, quando 
vos fale das coisas do céu?” 
(S. JOÃO, 3:1 a 12.)
52 – Allan Kardec 
6. A idéia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na Terra 
se  nos  depara  em  muitas  passagens  dos  Evangelhos,  notadamente  nas  acima 
reproduzidas (nº 1, 2, 3). Se fosse errônea essa crença, Jesus não houvera deixado de 
a combater, como combateu tantas outras. Longe disso, ele a sanciona com toda a 
sua  autoridade  e  a  põe  por  princípio  e  como  condição  necessária,  quando  diz: 
‘”Ninguém  pode  ver  o  reino  de  Deus  se  não  nascer  de  novo.”  E  insiste, 
acrescentando: Não te admires de que eu te haja dito ser preciso nasças de novo. 
7.  Estas  palavras:  Se  um  homem  não  renasce  da  água  e  do  Espírito  foram 
interpretadas no  sentido  da regeneração  pela  água do  batismo.  O  texto  primitivo, 
porém,  rezava  simplesmente:  não  renasce  da  água  e  do  Espírito,  ao  passo  que 
nalgumas traduções as palavras – do Espírito – foram substituídas pelas seguintes: 
do  Santo  Espírito,  o  que  já  não  corresponde  ao  mesmo  pensamento.  Esse  ponto 
capital ressalta dos primeiros comentários a que os Evangelhos deram lugar, como 
se comprovará um dia, sem equívoco possível 5 
. 
8. Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também se atente na 
significação do termo água que ali não fora empregado na acepção que lhe é própria. 
Muito  imperfeitos  eram  os  conhecimentos  dos  antigos  sobre  as  ciências 
físicas.  Eles  acreditavam  que  a  Terra  saíra  das águas  e,  por  isso,  consideravam a 
água como elemento gerador absoluto. Assim é que na Gênese se lê: “O Espírito de 
Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; – Que o firmamento seja 
feito no meio das águas; – Que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em um 
só lugar e que apareça o elemento árido; – Que as águas produzam animais vivos 
que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra e sob o firmamento.” 
Segundo  essa  crença,  a  água  se  tornara  o  símbolo  da  natureza  material, 
como  o  Espírito  era  o  da  natureza  inteligente.  Estas  palavras:  “Se  o  homem  não 
renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito”, significam pois: “Se o 
homem não renasce com seu corpo e sua alma.” É nesse sentido que a princípio as 
compreenderam. 
Tal  interpretação  se  justifica,  aliás,  por  estas  outras  palavras:  O  que  é 
nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Jesus estabelece 
aí uma distinção positiva entre o Espírito e  o  corpo. O que é nascido da carne é 
carne indica claramente que só o corpo procede do corpo e que o Espírito independe 
deste. 
9. O Espírito sopra onde quer; ouves­lhe a voz, mas não sabes nem donde ele vem, 
nem para onde vai: pode­se entender que se trata do Espírito de Deus, que dá vida a 
quem ele quer, ou da alma do homem. Nesta última acepção – “não sabes donde ele 
5 
A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo. Diz: “Não renasce da água e do Espírito”; 
a de Sacy diz: do Santo Espírito; a de Lamennais: do Espírito Santo. À nota de Allan Kardec, podemos 
hoje  acrescentar  que  as  modernas  traduções  já  restituíram  o  texto  primitivo,  pois  que  só  imprimem 
“Espírito”  e  não  Espírito  Santo.  Examinamos  a  tradução  brasileira,  a  inglesa,  a  em  Esperanto,  a  de 
Ferreira  de  Almeida,  e  em  todas  elas  está  somente  “Espírito”.  Além  dessas  modernas,  encontramos  a 
confirmação numa latina de Theodoro de Beza, de 1642, que diz: “...genitus ex aqua et Spiritu...” “...et 
quod genitum est ex Spiritu, spiritus est.” É fora de dúvida que a palavra “Santo” foi interpolada, como 
diz Kardec. – A Editor a da FEB, 1947.
53 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
vem, nem para onde vai” – significa que ninguém sabe o que foi, nem o que será o 
Espírito.  Se  o  Espírito,  ou  alma,  fosse  criado  ao  mesmo  tempo  em  que  o  corpo, 
saber­se­ia donde ele veio, pois que se lhe conheceria o começo. Como quer que 
seja,  essa  passagem  consagra  o  princípio  da  preexistência  da  alma  e,  por 
conseguinte, o da pluralidade das existências. 
10. “Ora, desde o tempo de João Batista até o presente, o reino dos céus é 
tomado pela violência e são os violentos que o arrebatam; – pois que assim 
o profetizaram todos os profetas até João, e também a lei. – Se quiserdes 
compreender o que vos digo, ele mesmo é o Elias que há de vir. – Ouça­o 
aquele que tiver ouvidos de ouvir”. 
(MATEUS, 11:12­15.) 
11. Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em S. João, podia, a 
rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o mesmo já não acontece com 
esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco: ELE MESMO é o Elias que 
há de vir.  Não  há aí  figura, nem  alegoria:  é  uma  afirmação  positiva.  –  “Desde  o 
tempo de João Batista até o presente o reino dos céus é tomado pela violência.” Que 
significam essas palavras, uma vez que João Batista ainda vivia naquele momento? 
Jesus as  explica, dizendo: “Se quiserdes compreender o que digo, ele mesmo é o 
Elias que há de vir.” Ora, sendo João o próprio Elias, Jesus alude à época em que 
João vivia com o nome de Elias. “Até ao presente o reino dos céus é tomado pela 
violência”: outra alusão à violência da lei moisaica, que ordenava o extermínio dos 
infiéis, para que os demais ganhassem a Terra Prometida, Paraíso dos hebreus, ao 
passo que, segundo a nova lei, o céu se ganha pela caridade e pela brandura. 
E acrescentou: Ouça aquele que tiver ouvidos de ouvir. Essas palavras, que 
Jesus  tanto  repetiu,  claramente  dizem  que  nem  todos  estavam  em  condições  de 
compreender certas verdades. 
12.  Aqueles  do  vosso  povo  a  quem  a  morte  foi  dada  viverão  de  novo; 
aqueles que  estavam mortos em meio a mim ressuscitarão. Despertai do 
vosso  sono  e  entoai  louvores  a  Deus,  vós  que  habitais  no  pó;  porque  o 
orvalho que cai sobre vós é um orvalho de luz e porque arruinareis a Terra 
e o reino dos gigantes. 
(ISAÍAS, 26:19.) 
13. É também muito explícita esta passagem de Isaías: “Aqueles do vosso povo a 
quem a morte foi dada viverão de novo.” Se o profeta houvera querido falar da vida 
espiritual, se houvera pretendido dizer que aqueles que tinham sido executados não 
estavam  mortos  em  Espírito,  teria  dito: ainda vivem,  e não: viverão de novo.  No 
sentido espiritual, essas palavras seriam um contra­senso, pois que implicariam uma 
interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração moral, seriam a negação 
das  penas  eternas,  pois  que  estabelecem,  em  princípio,  que  todos  os  que  estão 
mortos reviverão.
54 – Allan Kardec 
14.  Mas,  quando  o  homem  há  morrido  uma  vez,  quando  seu  corpo, 
separado de seu espírito, foi consumido, que é feito dele? – Tendo morrido 
uma vez, poderia o homem reviver de novo? Nesta guerra em que me acho 
todos os dias da minha vida, espero que chegue a minha mutação. 
(Jó,14:10,14.) 
Tradução de Le Maistre de Sacy 
Quando o homem morre, perde toda a sua força, expira. Depois, onde está 
ele? – Se o homem morre, viverá de novo? Esperarei todos os dias de meu 
combate, até que venha alguma mutação. 
Tradução protestante de Osterwald 
Quando  o  homem  está  morto,  vive  sempre;  acabando  os  dias  da  minha 
existência terrestre, esperarei, porquanto a ela voltarei de novo. 
Versão da Igreja grega 
15.  Nessas  três  versões,  o  princípio  da  pluralidade  das  existências  se  acha 
claramente  expresso.  Ninguém  poderá  supor  que  Jó  haja  querido  falar  da 
regeneração pela água do batismo, que ele decerto não conhecia. “Tendo o homem 
morrido uma vez, poderia reviver de novo?” A idéia de morrer uma vez, e de reviver 
implica a de morrer e reviver muitas vezes. A versão da Igreja grega ainda é mais 
explícita, se é que isso é possível: “Acabando os dias da minha existência terrena, 
esperarei,  porquanto a ela voltarei”,  ou,  voltarei  à  existência  terrestre.  Isso  é  tão 
claro, como se alguém dissesse: “Saio de minha casa, mas a ela tornarei.” “Nesta 
guerra em que me encontro todos os dias de minha vida, espero que se dê a minha 
mutação.”  Jó,  evidentemente,  pretendeu  referir­se  à  luta  que  sustentava  contra  as 
misérias  da  vida.  Espera  a  sua  mutação,  isto  é,  resigna­se.  Na  versão  grega, 
esperarei  parece  aplicar­se,  preferentemente,  a  uma  nova  existência:  “Quando  a 
minha existência estiver acabada, esperarei, porquanto a ela voltarei.” Jó como que 
se coloca, após a morte, no intervalo que separa uma existência de outra e diz que lá 
aguardará o momento de voltar. 
16.  Não  há,  pois,  duvidar  de  que,  sob  o  nome  de  ressurreição,  o  princípio  da 
reencarnação  era  ponto  de  uma  das  crenças  fundamentais  dos  judeus,  ponto  que 
Jesus  e  os  profetas  confirmaram  de  modo  formal;  donde  se  segue  que  negar  a 
reencarnação é negar as palavras do Cristo. Um dia, porém, suas palavras, quando 
forem meditadas sem idéias preconcebidas, reconhecer­se­ão autorizadas quanto a 
esse ponto, bem como em relação a muitos outros. 
17.  A  essa  autoridade,  do  ponto  de  vista  religioso,  se  adita,  do  ponto  de  vista 
filosófico, a das provas que resultam da observação dos fatos. Quando se trata de 
remontar dos efeitos às causas, a reencarnação surge como de necessidade absoluta, 
como condição inerente à Humanidade; numa palavra: como lei da Natureza. Pelos 
seus  resultados,  ela  se  evidencia,  de  modo,  por  assim  dizer,  material,  da  mesma 
forma que o motor oculto se revela pelo movimento. Só ela pode dizer ao homem
55 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
donde ele vem, para onde vai, por que está na Terra, e justificar todas as anomalias 
e todas as aparentes injustiças que a vida apresenta 6 
. 
Sem o princípio da preexistência da alma e da pluralidade das existências, 
são  ininteligíveis,  em  sua  maioria,  as  máximas  do  Evangelho,  razão  por  que  hão 
dado lugar a tão contraditórias interpretações. Está nesse princípio a chave que lhes 
restituirá o sentido verdadeiro. 
A REENCARNAÇÃO FORTALECE OS LAÇOS DE FAMÍLIA, AO PASSO 
QUE A UNICIDADE DA EXISTÊNCIA OS ROMPE 
18. Os laços de família não sofrem destruição alguma com a reencarnação, como o 
pensam  certas  pessoas.  Ao  contrário,  tornam­se  mais  fortalecidos  e  apertados.  O 
princípio oposto, sim, os destrói. 
No  espaço,  os  Espíritos  formam  grupos  ou  famílias  entrelaçados  pela 
afeição, pela simpatia e pela semelhança das inclinações. Ditosos por se encontrarem 
juntos,  esses  Espíritos  se  buscam  uns  aos  outros.  A  encarnação  apenas 
momentaneamente os separa, porquanto, ao regressarem à erraticidade, novamente 
se reúnem como amigos que voltam de uma viagem. Muitas vezes, até, uns seguem 
a outros na encarnação, vindo aqui reunir­se numa mesma família, ou num mesmo 
círculo, a fim de trabalharem juntos pelo seu mútuo adiantamento. Se uns encarnam 
e  outros  não,  nem  por  isso  deixam  de  estar  unidos  pelo  pensamento.  Os  que  se 
conservam  livres  velam  pelos  que  se  acham  em  cativeiro.  Os  mais  adiantados  se 
esforçam por fazer que os retardatários progridam. Após cada existência, todos têm 
avançado um passo na senda do aperfeiçoamento. 
Cada  vez  menos  presos  à  matéria,  mais  viva  se  lhes  torna  a  afeição 
recíproca,  pela  razão  mesma  de  que,  mais  depurada,  não  tem  a  perturbá­la  o 
egoísmo, nem as sombras das paixões. Podem, portanto, percorrer, assim, ilimitado 
número de existências corpóreas, sem que nenhum golpe receba a mútua estima que 
os liga. 
Está bem visto que aqui se trata de afeição real, de alma a alma, única que 
sobrevive  à  destruição  do  corpo,  porquanto  os  seres  que  neste  mundo  se  unem 
apenas  pelos  sentidos  nenhum  motivo  têm  para  se  procurarem  no  mundo  dos 
Espíritos. Duráveis somente o são as afeições espirituais; as de natureza carnal se 
extinguem com a causa que lhes deu origem. Ora, semelhante causa não subsiste no 
mundo dos Espíritos, enquanto a alma existe sempre. No que concerne às pessoas 
que se unem exclusivamente por motivo de interesse, essas nada realmente são umas 
para as outras: a morte as separa na Terra e no céu. 
19.  A  união  e  a  afeição  que  existem  entre  pessoas  parentes  são  um  índice  da 
simpatia anterior que as aproximou. Daí vem que, falando­se de alguém cujo caráter, 
gostos e pendores nenhuma semelhança apresentam com os dos seus parentes mais 
próximos, se costuma dizer que ela não é da família. Dizendo­se isso, enuncia­se 
6 
Veja­se, para os desenvolvimentos do dogma da reencarnação, O Livro dos Espíritos, caps. IV e V; O 
que é o Espiritismo, cap. II, por Allan Kardec; Pluralidade das Existências, por Pezzani.
56 – Allan Kardec 
uma  verdade  mais  profunda  do  que  se  supõe.  Deus  permite  que,  nas  famílias, 
ocorram  essas  encarnações  de  Espíritos  antipáticos  ou  estranhos,  com  o  duplo 
objetivo de servir de prova para uns e, para outros, de meio de progresso. Assim, os 
maus se melhoram pouco a pouco, ao contacto dos bons e por efeito dos cuidados 
que  se  lhes  dispensam.  O  caráter  deles  se  abranda,  seus  costumes  se  apuram,  as 
antipatias se esvaem. É desse modo que se opera a fusão das diferentes categorias de 
Espíritos, como se dá na Terra com as raças e os povos. 
20.  O  temor  de  que  a  parentela  aumente  indefinidamente,  em  conseqüência  da 
reencarnação,  é  de  fundo  egoístico:  prova,  naquele  que  o  sente,  falta  de  amor 
bastante amplo para abranger grande número de pessoas. Um pai, que tem muitos 
filhos, ama­os menos do que amaria a um deles, se fosse único? Mas, tranqüilizem­ 
se os egoístas: não há fundamento para semelhante temor. Do fato de um homem ter 
tido dez encarnações, não se segue que vá encontrar, no mundo dos Espíritos, dez 
pais,  dez  mães,  dez  mulheres  e  um  número  proporcional  de  filhos  e  de  parentes 
novos. Lá encontrará sempre os que  foram objeto da sua  afeição,  os quais se lhe 
terão ligado na Terra, a títulos diversos, e, talvez, sob o mesmo título. 
21.  Vejamos  agora  as  conseqüências  da  doutrina  anti­reencarnacionista.  Ela, 
necessariamente,  anula  a  preexistência  da  alma.  Sendo  estas  criadas  ao  mesmo 
tempo em que os corpos, nenhum laço anterior há entre elas, que, nesse caso, serão 
completamente estranhas umas às outras. O pai é estranho a seu filho. A filiação das 
famílias fica assim reduzida à só filiação corporal, sem qualquer laço espiritual. Não 
há  então  motivo  algum  para  quem  quer  que  seja  glorificar­se  de  haver  tido  por 
antepassados tais ou tais personagens ilustres. Com a reencarnação, ascendentes e 
descendentes podem já se terem conhecido, vivido juntos, amado, e podem reunir­se 
mais tarde, a fim de apertarem entre si os laços de simpatia. 
22.  Isso  quanto  ao  passado.  Quanto  ao  futuro,  segundo  um  dos  dogmas 
fundamentais  que  decorrem  da  não­reencarnação,  a  sorte  das  almas  se  acha 
irrevogavelmente determinada, após uma só existência. A fixação definitiva da sorte 
implica a cessação de todo progresso, pois desde que haja qualquer progresso já não 
há sorte definitiva. Conforme tenham vivido bem ou mal, elas vão imediatamente 
para  a  mansão  dos  bem­aventurados,  ou  para  o  inferno  eterno.  Ficam  assim, 
imediatamente e para sempre, separadas e sem esperança de tornarem a juntar­se, 
de forma que pais, mães e filhos, maridos e mulheres, irmãos, irmãs e amigos jamais 
podem  estar  certos  de  se  verem  novamente;  é  a  ruptura  absoluta  dos  laços  de 
família. 
Com a reencarnação e progresso a que dá lugar, todos os que se amaram 
tornam a encontrar­se na Terra e no espaço e juntos gravitam para Deus. Se alguns 
fraquejam no caminho, esses retardam o seu adiantamento e a sua felicidade, mas 
não há para eles perda de toda esperança. Ajudados, encorajados e amparados pelos 
que os amam, um dia sairão do lodaçal em que se enterraram. Com a reencarnação, 
finalmente, há perpétua solidariedade entre os encarnados e os desencarnados, e, daí, 
estreitamento dos laços de afeição.
57 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
23. Em resumo, quatro alternativas se apresentam ao homem, para o seu futuro de 
além­túmulo: 1ª, o nada, de acordo com a doutrina materialista; 2ª, a absorção no 
todo  universal,  de  acordo  com  a  doutrina  panteísta;  3ª,  a  individualidade,  com 
fixação definitiva da sorte, segundo a doutrina da Igreja; 4ª, a individualidade, com 
progressão indefinita, conforme a Doutrina Espírita. Segundo as duas primeiras, os 
laços  de  família  se  rompem  por  ocasião  da  morte  e  nenhuma  esperança  resta  às 
almas de se encontrarem futuramente. Com a terceira, há para elas a possibilidade de 
se  tornarem  a  ver,  desde  que  sigam  para  a  mesma  região,  que  tanto  pode  ser  o 
inferno  como  o  paraíso.  Com  a  pluralidade  das  existências,  inseparável  da 
progressão  gradativa,  há  a  certeza  na  continuidade  das  relações  entre  os  que  se 
amaram, e é isso o que constitui a verdadeira família. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
LIMITES DA ENCARNAÇÃO 
24. Quais os limites da encarnação? A bem dizer, a encarnação carece de limites 
precisamente  traçados,  se  tivermos  em  vista  apenas  o  envoltório  que  constitui  o 
corpo do Espírito, dado que a materialidade desse envoltório diminui à proporção 
que o Espírito se purifica. Em certos mundos mais adiantados do que a Terra, já ele 
é  menos  compacto,  menos  pesado  e  menos  grosseiro  e,  por  conseguinte,  menos 
sujeito  a  vicissitudes.  Em  grau  mais  elevado,  é  diáfano  e  quase  fluídico.  Vai 
desmaterializando­se de grau em grau e acaba por se confundir com o perispírito. 
Conforme  o  mundo  em  que  é  levado  a  viver,  o  Espírito  reveste  o  invólucro 
apropriado à natureza desse mundo. 
O  próprio  perispírito  passa  por  transformações  sucessivas.  Torna­se  cada 
vez mais etéreo, até à depuração completa, que é a condição dos puros Espíritos. Se 
mundos especiais são destinados a Espíritos de grande adiantamento, estes últimos 
não lhes ficam presos, como nos mundos inferiores. O estado de desprendimento em 
que se encontram lhes permite ir a toda parte onde os chamem as missões que lhes 
estejam confiadas. 
Se  se  considerar  do  ponto  de  vista  material  a  encarnação,  tal  como  se 
verifica na Terra, poder­se­á dizer que ela se limita aos mundos inferiores. Depende, 
portanto, de o Espírito libertar­se dela mais ou menos rapidamente, trabalhando pela 
sua purificação. 
Deve  também  considerar­se  que  no  estado  de  desencarnado,  isto  é,  no 
intervalo  das  existências  corporais,  a  situação  do  Espírito  guarda  relação  com  a 
natureza do mundo a que o liga o grau do seu adiantamento. Assim, na erraticidade, 
é  ele  mais  ou  menos  ditoso,  livre  e  esclarecido,  conforme  está  mais  ou  menos 
desmaterializado. S. Luís. (Paris, 1859.) 
NECESSIDADE DA ENCARNAÇÃO 
25. É um castigo a encarnação e somente os Espíritos culpados estão sujeitos a 
sofrê­la?
58 – Allan Kardec 
A  passagem  dos  Espíritos  pela  vida  corporal  é  necessária  para  que  eles 
possam cumprir, por meio de uma ação material, os desígnios cuja execução Deus 
lhes confia. É­lhes necessária, a bem deles, visto que a atividade que são obrigados a 
exercer lhes auxilia o desenvolvimento da inteligência. Sendo soberanamente justo, 
Deus  tem  de  distribuir  tudo  igualmente  por  todos  os  seus  filhos;  assim  é  que 
estabeleceu  para  todos  o  mesmo  ponto  de  partida,  a  mesma  aptidão,  as  mesmas 
obrigações a cumprir e a mesma liberdade de proceder. Qualquer privilégio seria 
uma preferência, uma injustiça. Mas, a encarnação, para todos os Espíritos, é apenas 
um estado transitório. É uma tarefa que Deus lhes impõe, quando iniciam a vida, 
como primeira experiência do uso que farão do livre­arbítrio. Os que desempenham 
com  zelo  essa  tarefa  transpõem  rapidamente  e  menos  penosamente  os  primeiros 
graus da iniciação e mais cedo gozam do fruto de seus labores. Os que, ao contrário, 
usam mal da liberdade que Deus lhes concede retardam a sua marcha e, tal seja a 
obstinação  que  demonstrem,  podem  prolongar  indefinidamente  a  necessidade  da 
reencarnação e é quando se torna um castigo. – S. Luís. (Paris, 1859.) 
26. Nota – Uma comparação vulgar fará se compreenda melhor essa diferença. O 
escolar  não  chega  aos  estudos  superiores  da  Ciência,  senão  depois  de  haver 
percorrido a série das classes que até lá o conduzirão. Essas classes, qualquer que 
seja o trabalho que exijam, são um meio de o estudante alcançar o fim e não um 
castigo  que  se  lhe inflige.  Se  ele  é  esforçado,  abrevia  o  caminho, no  qual,  então, 
menos espinhos encontra. Outro tanto não sucede àquele a quem a negligência e a 
preguiça obrigam a passar duplamente por certas classes. Não é o trabalho da classe 
que constitui a punição; esta se acha na obrigação de recomeçar o mesmo trabalho. 
Assim  acontece  com  o  homem  na  Terra.  Para  o  Espírito  do  selvagem,  que  está 
apenas no início da vida espiritual, a encarnação é um meio de ele desenvolver a sua 
inteligência; contudo, para o homem esclarecido, em quem o senso moral se acha 
largamente desenvolvido e que é obrigado a percorrer de novo as etapas de uma vida 
corpórea cheia de angústias, quando já poderia ter chegado ao fim, é um castigo, 
pela necessidade em que se vê de prolongar sua permanência em mundos inferiores 
e  desgraçados.  Aquele  que,  ao  contrário,  trabalha  ativamente  pelo  seu  progresso 
moral, além de abreviar o tempo da encarnação material, pode também transpor de 
uma só vez os degraus intermédios que o separam dos mundos superiores. 
Não poderiam os Espíritos encarnar uma única vez em determinado globo e 
preencher  em  esferas  diferentes  suas  diferentes  existências?  Semelhante  modo  de 
ver  só  seria  admissível  se,  na  Terra,  todos  os  homens  estivessem  exatamente  no 
mesmo nível intelectual e moral. As diferenças que há entre eles, desde o selvagem 
ao homem civilizado, mostram quais os degraus que têm de subir. A encarnação, 
aliás, precisa ter um fim útil. Ora, qual seria o das encarnações efêmeras das crianças 
que morrem em tenra idade? Teriam sofrido sem proveito para si, nem para outrem. 
Deus,  cujas  leis  todas  são  soberanamente  sábias,  nada  faz  de  inútil.  Pela 
reencarnação  no  mesmo  globo,  quis  ele  que  os  mesmos  Espíritos,  pondo­se 
novamente em contacto, tivessem ensejo de reparar seus danos recíprocos. Por meio 
das suas relações anteriores, quis, além disso, estabelecer  sobre base  espiritual os 
laços  de  família  e  apoiar  numa  lei  natural  os  princípios  da  solidariedade,  da 
fraternidade e da igualdade.
59 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO V 
BEM-AVENTURADOS
OS AFLITOS
·  JUSTIÇA DAS AFLIÇÕES
·  CAUSAS ATUAIS DAS AFLIÇÕES
·  CAUSAS ANTERIORES DAS AFLIÇÕES
·  ESQUECIMENTO DO PASSADO
·  MOTIVOS DE RESIGNAÇÃO
·  O SUICÍDIO E A LOUCURA 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS
·  BEM E MAL SOFRER
·  O MAL E O REMÉDIO
·  A FELICIDADE NÃO É DESTE MUNDO
·  PERDA DE PESSOAS AMADAS. MORTES PREMATURAS
·  SE FOSSE UM HOMEM DE BEM, TERIA MORRIDO
·  OS TORMENTOS VOLUNTÁRIOS
·  A DESGRAÇA REAL
·  A MELANCOLIA
·  PROVAS VOLUNTÁRIAS. O VERDADEIRO CILÍCIO
·  DEVER­SE­Á PÔR TERMO ÀS PROVAS DO PRÓXIMO?
·  SERÁ LÍCITO ABREVIAR A VIDA DE UM DOENTE QUE SOFRA SEM 
ESPERANÇA DE CURA?
·  SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA
·  PROVEITO DOS SOFRIMENTOS PARA OUTREM 
1.  “ Bem­aventurados  os  que  choram,  pois  que  serão  consolados.  Bem­ 
aventurados  os  famintos  e  os  sequiosos  de  justiça,  pois  que  serão 
saciados.  Bem­aventurados  os  que  sofrem  perseguição  pela  justiça,  pois 
que é deles o reino dos céus”. 
(MATEUS, 5:4, 6 e 10) 
2.  “ Bem­aventurados  vós,  que  sois  pobres,  porque  vosso  é  o  reino  dos 
céus.  Bem­aventurados  vós,  que  agora  tendes  fome,  porque  sereis 
saciados. Ditosos sois, vós que agora chorais, porque rireis”. 
(LUCAS, 6:20 e 21)
60 – Allan Kardec 
“Mas, ai de vós, ricos! Que tendes no mundo a vossa consolação. Ai de vós 
que estais saciados, porque tereis fome. Ai de vós que agora rides, porque 
sereis constrangidos a gemer e a chorar”. 
(LUCAS, 6:24 e 25) 
JUSTIÇA DAS AFLIÇÕES 
3. Somente na vida futura podem efetivar­se as compensações que Jesus promete 
aos  aflitos  da  Terra.  Sem  a  certeza  do  futuro,  estas  máximas  seriam  um  contra­ 
senso;  mais  ainda:  seriam  um  engodo.  Mesmo  com  essa  certeza,  dificilmente  se 
compreende  a  conveniência  de  sofrer  para  ser  feliz.  É,  dizem,  para  se  ter  maior 
mérito. Mas, então, pergunta­se: por que sofrem uns mais do que outros? Por que 
nascem uns na miséria e outros na opulência, sem coisa alguma haverem feito que 
justifique essas posições? Por que uns nada conseguem, ao passo que a outros tudo 
parece sorrir? Todavia, o que ainda menos se compreende é que os bens e os males 
sejam  tão  desigualmente  repartidos  entre  o  vício  e  a  virtude;  e  que  os  homens 
virtuosos sofram, ao lado dos maus que prosperam. A fé no futuro pode consolar e 
infundir  paciência,  mas  não  explica  essas  anomalias,  que  parecem  desmentir  a 
justiça de Deus. Entretanto, desde que admita a existência de Deus, ninguém o pode 
conceber sem o infinito das perfeições. Ele necessariamente tem todo o poder, toda a 
justiça, toda a bondade, sem o que não seria Deus. Se é soberanamente bom e justo, 
não pode agir caprichosamente, nem com parcialidade. Logo, as vicissitudes da vida 
derivam de uma causa e, pois que Deus é justo, justa há de ser essa causa. Isso o de 
que cada um deve bem compenetrar­se. Por meio dos ensinos de Jesus, Deus pôs os 
homens na direção dessa causa, e hoje, julgando­os suficientemente maduros para 
compreendê­la, lhes revela completamente a aludida causa, por meio do Espiritismo, 
isto é, pela palavra dos Espíritos. 
CAUSAS ATUAIS DAS AFLIÇÕES 
4. De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de 
duas  fontes  bem  diferentes,  que  importa  distinguir.  Umas  têm  sua  causa  na  vida 
presente; outras, fora desta vida. 
Remontando­se à origem dos males terrestres, reconhecer­se­á que muitos 
são conseqüência natural do caráter e do proceder dos que os suportam. 
Quantos homens caem por sua própria culpa! Quantos são vítimas de sua 
imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição! 
Quantos  se  arruínam  por  falta  de  ordem,  de  perseverança,  pelo  mau 
proceder, ou por não terem sabido limitar seus desejos! 
Quantas uniões desgraçadas, porque resultaram de um cálculo de interesse 
ou de vaidade e nas quais o coração não tomou parte alguma! 
Quantas dissensões e funestas disputas se teriam evitado com um pouco de 
moderação e menos suscetibilidade!
61 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Quantas doenças e enfermidades decorrem da intemperança e dos excessos 
de todo gênero! 
Quantos  pais  são  infelizes  com  seus  filhos,  porque não  lhes  combateram 
desde  o  princípio  as  más  tendências!  Por  fraqueza,  ou  indiferença,  deixaram  que 
neles se desenvolvessem os germens do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade, que 
produzem a secura do coração; depois, mais tarde, quando colhem o que semearam, 
admiram­se e se afligem da falta de deferência com que são tratados e da ingratidão 
deles. 
Interroguem  friamente  suas  consciências  todos  os  que  são  feridos  no 
coração pelas vicissitudes e decepções da vida; remontem passo a passo à origem 
dos males que os torturam e verifiquem se, as mais das vezes, não poderão dizer: Se 
eu  houvesse  feito,  ou  deixado  de  fazer  tal  coisa,  não  estaria  em  semelhante 
condição. 
A  quem,  então, há  de  o  homem  responsabilizar  por  todas  essas  aflições, 
senão a si mesmo? O homem, pois, em grande número de casos, é o causador de 
seus próprios infortúnios; mas, em vez de reconhecê­lo, acha mais simples, menos 
humilhante  para  a  sua  vaidade  acusar  a  sorte,  a  Providência,  a  má  fortuna,  a má 
estrela, ao passo que a má estrela é apenas a sua incúria. 
Os  males  dessa  natureza  fornecem,  indubitavelmente,  um  notável 
contingente  ao  cômputo  das  vicissitudes  da  vida.  O  homem  as  evitará  quando 
trabalhar por se melhorar moralmente, tanto quanto intelectualmente. 
5. A lei humana atinge certas faltas e as pune. Pode, então, o condenado reconhecer 
que sofre a conseqüência do que fez. Mas a lei não atinge, nem pode atingir todas as 
faltas; incide especialmente sobre as que trazem prejuízo à sociedade e não sobre as 
que só prejudicam os que as cometem. Deus, porém, quer que todas as suas criaturas 
progridam e, portanto, não deixa impune qualquer desvio do caminho reto. Não há 
falta alguma, por mais leve que seja, nenhuma infração da sua lei, que não acarrete 
forçosas e inevitáveis conseqüências, mais ou menos deploráveis. Daí se segue que, 
nas pequenas coisas, como nas grandes, o homem é sempre punido por aquilo em 
que pecou. Os sofrimentos que decorrem do pecado são­lhe uma advertência de que 
procedeu  mal.  Dão­lhe  experiência,  fazem­lhe  sentir  a  diferença  existente  entre  o 
bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de futuro, evitar o que lhe originou 
uma  fonte  de  amarguras;  sem  o  que, motivo  não  haveria para que  se  emendasse. 
Confiante  na  impunidade,  retardaria  seu  avanço  e,  conseqüentemente,  a  sua 
felicidade futura. 
Entretanto, a experiência, algumas vezes, chega um pouco tarde: quando a 
vida já foi desperdiçada e turbada; quando as forças já estão gastas e sem remédio o 
mal. Põe­se então o homem a dizer: “Se no começo dos meus dias eu soubera o que 
sei hoje, quantos passos em falso teria evitado! Se houvesse de recomeçar, conduzir­ 
me­ia  de  outra  maneira.  No  entanto,  já  não  há  mais  tempo!”  Como  o  obreiro 
preguiçoso,  que  diz:  “Perdi  o  meu  dia”,  também  ele  diz:  “Perdi  a  minha  vida”. 
Contudo, assim como para o obreiro o Sol se levanta no dia seguinte, permitindo­lhe 
neste  reparar  o  tempo  perdido,  também  para  o  homem,  após  a  noite  do  túmulo, 
brilhará o Sol de uma nova vida, em que lhe será possível aproveitar a experiência 
do passado e suas boas resoluções para o futuro.
62 – Allan Kardec 
CAUSAS ANTERIORES DAS AFLIÇÕES 
6. Mas, se há males nesta vida cuja causa primária é o homem, outros há também 
aos quais, pelo menos na aparência, ele é completamente estranho e que parecem 
atingi­lo como por fatalidade. Tal, por exemplo, a perda de entes queridos e a dos 
que  são  o  amparo  da  família.  Tais,  ainda,  os  acidentes  que  nenhuma  previsão 
poderia  impedir;  os  reveses  da  fortuna,  que  frustram  todas  as  precauções 
aconselhadas  pela  prudência;  os  flagelos  naturais,  as  enfermidades  de  nascença, 
sobretudo as que tiram a tantos infelizes os meios de ganhar a vida pelo trabalho: as 
deformidades, a idiotia, o cretinismo, etc. 
Os que nascem nessas condições, certamente nada hão feito na existência 
atual para merecer, sem compensação, tão triste sorte, que não podiam evitar, que 
são  impotentes  para mudar  por  si  mesmos  e  que  os  põe  à  mercê  da  comiseração 
pública. Por que, pois, seres tão desgraçados, enquanto, ao lado deles, sob o mesmo 
teto, na mesma família, outros são favorecidos de todos os modos? 
Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só 
conheceram  sofrimentos?  Problemas  são  esses  que  ainda  nenhuma  filosofia  pôde 
resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da 
bondade,  da  justiça  e  da  providência  de  Deus,  se  se  verificasse  a  hipótese  de  ser 
criada  a  alma  ao  mesmo  tempo  em  que  o  corpo  e  de  estar  a  sua  sorte 
irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra. Que 
fizeram essas almas, que acabam de sair das mãos do Criador, para se verem, neste 
mundo, a braços com tantas misérias e para merecerem no futuro uma recompensa 
ou uma punição qualquer, visto que não hão podido praticar nem o bem, nem o mal? 
Todavia, por virtude do axioma segundo o qual todo efeito tem uma causa, 
tais misérias são efeitos que hão de ter uma causa e, desde que se admita um Deus 
justo, essa causa também há de ser justa. Ora, ao efeito precedendo sempre a causa, 
se esta não se encontra na vida atual, há de ser anterior a essa vida, isto é, há de estar 
numa existência precedente. Por outro lado, não podendo Deus punir alguém pelo 
bem que fez, nem pelo mal que não fez, se somos punidos, é que fizemos o mal; se 
esse mal não o fizemos na presente vida, tê­lo­emos feito noutra. É uma alternativa a 
que ninguém pode fugir e em que a lógica decide de que parte se acha a justiça de 
Deus. 
O homem, pois, nem sempre é punido, ou punido completamente, na sua 
existência  atual;  mas  não  escapa  nunca  às  conseqüências  de  suas  faltas.  A 
prosperidade do mau é apenas momentânea; se ele não expiar hoje, expiará amanhã, 
ao  passo  que  aquele  que  sofre  está  expiando  o  seu  passado.  O  infortúnio  que,  à 
primeira vista, parece imerecido tem sua razão de ser, e aquele que se encontra em 
sofrimento pode sempre dizer: “Perdoa­me, Senhor, porque pequei.” 
7. Os sofrimentos devidos a causas anteriores à existência presente, como os que se 
originam de culpas atuais, são muitas vezes a conseqüência da falta cometida, isto é, 
o homem, pela ação de uma rigorosa justiça distributiva, sofre o que fez sofrer aos 
outros.  Se  foi  duro  e  desumano,  poderá  ser a  seu  turno  tratado  duramente  e  com 
desumanidade;  se  foi  orgulhoso,  poderá  nascer  em  humilhante  condição;  se  foi
63 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
avaro,  egoísta,  ou  se  fez  mau  uso  de  suas  riquezas,  poderá  ver­se  privado  do 
necessário; se foi mau filho, poderá sofrer pelo procedimento de seus filhos, etc. 
Assim  se  explicam  pela  pluralidade  das  existências  e  pela  destinação  da 
Terra, como mundo expiatório, as anomalias que apresenta a distribuição da ventura 
e  da  desventura  entre  os  bons  e  os  maus  neste  planeta.  Semelhante  anomalia, 
contudo, só existe na aparência, porque considerada tão­só do ponto de vista da vida 
presente. Aquele que se elevar, pelo pensamento, de maneira a apreender toda uma 
série de existências, verá que a cada um é atribuída a parte que lhe compete, sem 
prejuízo  da  que  lhe  tocará no  mundo  dos  Espíritos,  e  verá  que  a  justiça de  Deus 
nunca se interrompe. 
Jamais  deve  o  homem  olvidar  que  se  acha num mundo  inferior,  ao  qual 
somente  as  suas  imperfeições  o  conservam  preso.  A  cada vicissitude,  cumpre­lhe 
lembrar­se de que, se pertencesse a um mundo mais adiantado, isso não se daria e 
que só de si depende não voltar a este, trabalhando por se melhorar. 
8.  As  tribulações  podem  ser  impostas  a  Espíritos  endurecidos,  ou  extremamente 
ignorantes,  para  levá­los  a  fazer  uma  escolha  com  conhecimento  de  causa.  Os 
Espíritos  penitentes,  porém,  desejosos  de  reparar  o  mal  que  hajam  feito  e  de 
proceder  melhor,  esses  as  escolhem  livremente.  Tal  o  caso  de  um  que,  havendo 
desempenhado mal sua tarefa, pede lha deixem recomeçar, para não perder o fruto 
de  seu  trabalho.  As  tribulações,  portanto,  são,  ao  mesmo  tempo,  expiações  do 
passado, que recebe nelas o merecido castigo, e provas com relação ao futuro, que 
elas preparam. Rendamos graças a Deus, que, em sua bondade, faculta ao homem 
reparar seus erros e não o condena irrevogavelmente por uma primeira falta. 
9.  Não há  crer, no  entanto,  que  todo  sofrimento  suportado  neste mundo  denote  a 
existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo 
Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso. Assim, a expiação 
serve  sempre  de  prova,  mas  nem  sempre  a  prova  é  uma  expiação.  Provas  e 
expiações, todavia, são sempre sinais de relativa inferioridade, porquanto o que é 
perfeito não precisa ser provado. Pode, pois, um Espírito haver chegado a certo grau 
de  elevação  e,  nada  obstante,  desejoso  de  adiantar­se  mais,  solicitar  uma missão, 
uma tarefa  a  executar,  pela  qual  tanto  mais recompensado  será,  se  sair  vitorioso, 
quanto mais rude haja sido a luta. Tais são, especialmente, essas pessoas de instintos 
naturalmente bons, de alma elevada, de nobres sentimentos inatos, que parece nada 
de  mau  haverem  trazido  de  suas  precedentes  existências  e  que  sofrem,  com 
resignação  toda  cristã,  as maiores  dores,  somente  pedindo  a  Deus  que  as  possam 
suportar  sem  murmurar.  Pode­se,  ao  contrário,  considerar  como  expiações  as 
aflições que provocam queixas e impelem o homem à revolta contra Deus. 
Sem  dúvida,  o  sofrimento  que  não  provoca  queixumes  pode  ser  uma 
expiação; mas, é indício de que foi buscada voluntariamente, antes que imposta, e 
constitui prova de forte resolução, o que é sinal de progresso. 
10. Os Espíritos não podem aspirar à completa felicidade, enquanto não se tenham 
tornado  puros:  qualquer  mácula  lhes  interdita  a  entrada nos  mundos  ditosos.  São 
como os passageiros de um navio onde há pestosos, aos quais se veda o acesso à
64 – Allan Kardec 
cidade a que aportem, até que se hajam expurgado. Mediante as diversas existências 
corpóreas  é  que  os  Espíritos  se  vão  expungindo,  pouco  a  pouco,  de  suas 
imperfeições. As provações da vida os fazem adiantar­se, quando bem suportadas. 
Como  expiações,  elas  apagam as  faltas  e  purificam.  São  o  remédio  que  limpa as 
chagas e cura o doente. Quanto mais grave é o mal, tanto mais enérgico deve ser o 
remédio. Aquele, pois, que muito sofre deve reconhecer que muito tinha a expiar e 
deve regozijar­se à idéia da sua próxima cura. Dele depende, pela resignação, tornar 
proveitoso  o  seu  sofrimento  e não  lhe  estragar  o  fruto  com as  suas  impaciências, 
visto que, do contrário, terá de recomeçar. 
ESQUECIMENTO DO PASSADO 
11.  Em  vão  se  objeta  que  o  esquecimento  constitui  obstáculo  a  que  se  possa 
aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus entendido de lançar um 
véu  sobre  o  passado,  é  que  há  nisso  vantagem.  Com  efeito,  a  lembrança  traria 
gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar­nos singularmente, 
ou, então, exaltar­nos o orgulho e, assim, entravar o nosso livre­arbítrio. Em todas as 
circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais. 
Freqüentemente,  o  Espírito  renasce  no  mesmo  meio  em  que  já  viveu, 
estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que 
lhes  haja  feito.  Se  reconhecesse  nelas  as  a  quem  odiara,  quiçá  o  ódio  se  lhe 
despertaria  outra  vez  no  íntimo.  De  todo  modo,  ele  se  sentiria  humilhado  em 
presença daquelas a quem houvesse ofendido. 
Para  nos  melhorarmos,  outorgou­nos  Deus,  precisamente,  o  de  que 
necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva­nos 
do que nos seria prejudicial. 
Ao  nascer, traz  o  homem  consigo  o  que  adquiriu, nasce qual  se  fez;  em 
cada existência, tem um novo ponto de partida. Pouco lhe importa saber o que foi 
antes: se se vê punido, é que praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam o 
que lhe resta a corrigir em si próprio e é nisso que deve concentrar­se toda a sua 
atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente, nenhum traço 
mais  conservará.  As  boas  resoluções  que  tomou  são  a  voz  da  consciência, 
advertindo­o  do  que  é  bem  e  do  que  é  mal  e  dando­lhe  forças  para  resistir  às 
tentações. 
Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea. Volvendo à 
vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado; nada mais há, portanto, 
do que uma interrupção temporária, semelhante à que se dá na vida terrestre durante 
o sono, a qual não obsta a que, no dia seguinte, nos recordemos do que tenhamos 
feito na véspera e nos dias precedentes. 
E  não  é  somente  após  a  morte  que  o  Espírito  recobra  a  lembrança  do 
passado.  Pode  dizer­se  que  jamais  a  perde,  pois  que,  como  a  experiência  o 
demonstra, mesmo encarnado, adormecido o corpo, ocasião em que goza de certa 
liberdade, o Espírito tem consciência de seus atos anteriores; sabe por que sofre e 
que sofre com justiça. A lembrança unicamente se apaga no curso da vida exterior, 
da  vida  de  relação.  Mas,  na  falta  de  uma  recordação  exata,  que  lhe  poderia  ser
65 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
penosa  e  prejudicá­lo  nas  suas  relações  sociais,  forças  novas  haure  ele  nesses 
instantes de emancipação da alma, se os sabe aproveitar. 
MOTIVOS DE RESIGNAÇÃO 
12. Por estas palavras: Bem­aventurados os aflitos, pois que serão consolados, Jesus 
aponta  a  compensação  que  hão  de  ter  os  que  sofrem  e  a  resignação  que  leva  o 
padecente a bendizer do sofrimento, como prelúdio da cura. 
Também podem essas palavras ser traduzidas assim: Deveis considerar­vos 
felizes por sofrerdes, visto que as dores deste mundo são o pagamento da dívida que 
as vossas passadas faltas vos fizeram contrair; suportadas pacientemente na Terra, 
essas dores vos poupam séculos de sofrimentos na vida futura. Deveis, pois, sentir­ 
vos felizes por reduzir Deus a vossa dívida, permitindo que a saldeis agora, o que 
vos garantirá a tranqüilidade no porvir. 
O homem que sofre assemelha­se a um devedor de avultada soma, a quem 
o credor diz: “Se me pagares hoje mesmo a centésima parte do teu débito, quitar­te­ 
ei  do  restante  e  ficarás  livre;  se  o  não  fizeres,  atormentar­te­ei,  até  que  pagues  a 
última  parcela.”  Não  se  sentiria  feliz  o  devedor  por  suportar  toda  espécie  de 
privações para se libertar, pagando apenas a centésima parte do que deve? Em vez 
de se queixar do seu credor, não lhe ficará agradecido? 
Tal  o  sentido  das  palavras:  “Bem­aventurados  os  aflitos,  pois  que  serão 
consolados.” São ditosos, porque se quitam e porque, depois de se haverem quitado, 
estarão livres. Se, porém, o homem, ao quitar­se de um lado, endivida­se de outro, 
jamais  poderá  alcançar  a  sua  libertação.  Ora,  cada  nova  falta  aumenta  a  dívida, 
porquanto  nenhuma  há,  qualquer  que  ela  seja,  que  não  acarrete  forçosa  e 
inevitavelmente uma punição. Se não for hoje, será amanhã; se não for na vida atual, 
será noutra. Entre essas faltas, cumpre se coloque na primeira fiada a carência de 
submissão  à  vontade  de  Deus.  Logo,  se  murmurarmos  nas  aflições,  se  não  as 
aceitarmos com resignação e como algo que devemos ter merecido, se acusarmos a 
Deus  de  ser  injusto,  nova  dívida  contraímos,  que  nos  faz  perder  o  fruto  que 
devíamos colher do sofrimento. É por isso que teremos de recomeçar, absolutamente 
como se, a um credor que nos atormente, pagássemos uma cota e a tomássemos de 
novo por empréstimo. 
Ao  entrar no mundo dos Espíritos, o homem ainda está como  o  operário 
que comparece no dia do pagamento. A uns dirá o Senhor: “Aqui tens a paga dos 
teus dias de trabalho”; a outros, aos venturosos da Terra, aos que hajam vivido na 
ociosidade,  que  tiverem  feito  consistir  a  sua  felicidade  nas  satisfações  do  amor­ 
próprio e nos gozos mundanos: “Nada vos toca, pois que recebestes na Terra o vosso 
salário. Ide e recomeçai a tarefa.” 
13.  O homem  pode  suavizar  ou  aumentar  o  amargor  de  suas  provas,  conforme  o 
modo por que encare a vida terrena. Tanto mais sofre ele, quanto mais longa se lhe 
afigura  a  duração  do  sofrimento.  Ora,  aquele  que  a  encara  pelo  prisma  da  vida 
espiritual apanha, num golpe de vista, a vida corpórea. Ele a vê como um ponto no 
infinito, compreende­lhe a curteza e reconhece que esse penoso momento terá presto
66 – Allan Kardec 
passado. A certeza de um próximo futuro mais ditoso o sustenta e anima e, longe de 
se  queixar, agradece  ao  Céu  as  dores  que  o  fazem  avançar.  Contrariamente,  para 
aquele que apenas vê a vida corpórea, interminável lhe parece esta, e a dor o oprime 
com todo o seu peso. Daquela maneira de considerar a vida, resulta ser diminuída a 
importância das coisas deste mundo, e sentir­se compelido o homem a moderar seus 
desejos,  a  contentar­se  com  a  sua  posição,  sem  invejar  a  dos  outros,  a  receber 
atenuada a impressão dos reveses e das decepções que experimente. Daí tira ele uma 
calma e uma resignação tão úteis à saúde do corpo quanto à da alma, ao passo que, 
com a inveja, o ciúme e a ambição, voluntariamente se condena à tortura e aumenta 
as misérias e as angústias da sua curta existência. 
O SUICÍDIO E A LOUCURA 
14. A calma e a resignação hauridas da maneira de considerar a vida terrestre e da 
confiança  no  futuro  dão  ao  espírito  uma  serenidade  que  é  o  melhor  preservativo 
contra a loucura e o suicídio. Com efeito, é certo que a maioria dos casos de loucura 
se deve à comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não tem a coragem de 
suportar. Ora, se encarando as coisas deste mundo da maneira por que o Espiritismo 
faz que ele as considere, o homem recebe com indiferença, mesmo com alegria, os 
reveses e as decepções que o houveram desesperado noutras circunstâncias, evidente 
se  torna  que  essa  força,  que  o  coloca  acima  dos  acontecimentos,  lhe  preserva  de 
abalos a razão, os quais, se não fora isso, a conturbariam. 
15.  O  mesmo  ocorre  com  o  suicídio.  Postos  de  lado  os  que  se  dão  em  estado  de 
embriaguez e de loucura, aos quais se pode chamar de inconscientes, é incontestável 
que  tem  ele  sempre  por  causa  um  descontentamento,  quaisquer  que  sejam  os 
motivos  particulares  que  se  lhe  apontem.  Ora,  aquele  que  está  certo  de  que  só  é 
desventurado  por  um  dia  e  que  melhores  serão  os  dias  que  hão  de  vir,  enche­se 
facilmente de paciência. Só se desespera quando nenhum termo divisa para os seus 
sofrimentos. E que é a vida humana, com relação à eternidade, senão bem menos 
que um dia? Mas, para o que não crê na eternidade e julga que com a vida tudo se 
acaba, se os infortúnios e as aflições o acabrunham, unicamente na morte vê uma 
solução para as suas amarguras. Nada esperando, acha muito natural, muito lógico 
mesmo, abreviar pelo suicídio as suas misérias. 
16. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, numa 
palavra, são os maiores incitantes ao suicídio; ocasionam a covardia moral. Quando 
homens de ciência, apoiados na autoridade do seu saber, se esforçam por provar aos 
que os ouvem ou lêem que estes nada têm a esperar depois da morte, não estão de 
fato levando­os a deduzir que, se são desgraçados, coisa melhor não lhes resta senão 
se  matarem?  Que  lhes  poderiam  dizer  para  desviá­los  dessa  conseqüência?  Que 
compensação lhes podem oferecer? Que esperança lhes podem dar? Nenhuma, a não 
ser o nada. Daí se deve concluir que, se o nada é o único remédio heróico, a única 
perspectiva,  mais  vale  buscá­lo  imediatamente  e  não  mais  tarde,  para  sofrer  por 
menos tempo.
67 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
A propagação das doutrinas materialistas é, pois, o veneno que inocula a 
idéia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos 
de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo, 
tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência 
se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas; 
donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no 
suicídio; donde, em suma, a coragem moral. 
17.  O  Espiritismo  ainda  produz,  sob  esse  aspecto,  outro  resultado  igualmente 
positivo e talvez mais decisivo. Apresenta­nos os próprios suicidas a informar­nos 
da  situação  desgraçada  em  que  se  encontram  e  a  provar  que  ninguém  viola 
impunemente  a  lei  de  Deus,  que  proíbe  ao  homem  encurtar  a  sua  vida.  Entre  os 
suicidas, alguns há cujos sofrimentos, nem por serem temporários e não eternos, não 
são menos terríveis e de natureza a fazer refletir os que porventura pensam em daqui 
sair,  antes  que  Deus  o  haja  ordenado.  O  espírita  tem,  assim,  vários  motivos  a 
contrapor à idéia do suicídio: a certeza de uma vida futura, em que, sabe­o ele, será 
tanto mais ditoso, quanto mais inditoso e resignado haja sido na Terra: a certeza de 
que, abreviando seus dias, chega, precisamente, a resultado oposto ao que esperava; 
que se liberta de um mal, para incorrer num mal pior, mais longo e mais terrível; que 
se engana, imaginando que, com o matar­se, vai mais depressa para o céu; que o 
suicídio é um obstáculo a que no outro mundo ele se reúna aos que foram objeto de 
suas  afeições  e  aos  quais  esperava  encontrar;  donde  a  conseqüência  de  que  o 
suicídio, só lhe trazendo decepções, é contrário aos seus próprios interesses. Por isso 
mesmo, considerável já é o número dos que têm sido, pelo Espiritismo, obstados de 
suicidar­se, podendo daí concluir­se que, quando todos os homens forem espíritas, 
deixará de haver suicídios conscientes. Comparando­se, então, os resultados que as 
doutrinas  materialistas  produzem  com  os  que  decorrem  da  Doutrina  Espírita, 
somente  do  ponto  de  vista  do  suicídio,  forçoso  será  reconhecer  que,  enquanto  a 
lógica  das  primeiras  a  ele  conduz,  a  da  outra  o  evita,  fato  que  a  experiência 
confirma. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
BEM E MAL SOFRER 
18.  Quando  o  Cristo  disse:  “Bem­aventurados  os  aflitos,  o  reino  dos  céus  lhes 
pertence”, não se referia de modo geral aos que sofrem, visto que sofrem todos os 
que se encontram na Terra, quer ocupem tronos, quer jazam sobre a palha. Mas, ah! 
Poucos sofrem bem; poucos compreendem que somente as provas bem suportadas 
podem  conduzi­los  ao  reino  de  Deus.  O  desânimo  é  uma  falta.  Deus  vos  recusa 
consolações, desde que vos falte coragem. A prece é um apoio para a alma; contudo, 
não basta: é preciso tenha por base uma fé viva na bondade de Deus. Ele já muitas 
vezes  vos  disse  que  não  coloca  fardos  pesados  em  ombros  fracos.  O  fardo  é 
proporcionado às forças, como a recompensa o será à resignação e à coragem. Mais
68 – Allan Kardec 
opulenta será a recompensa, do que penosa a aflição. Cumpre, porém, merecê­la, e é 
para isso que a vida se apresenta cheia de tribulações. 
O  militar  que  não  é  mandado  para  as  linhas  de  fogo  fica  descontente, 
porque  o  repouso  no  campo  nenhuma  ascensão  de  posto  lhe  faculta.  Sede,  pois, 
como o militar e não desejeis um repouso em que o vosso corpo se enervaria e se 
entorpeceria  a  vossa  alma.  Alegrai­vos,  quando  Deus  vos  enviar  para a  luta.  Não 
consiste esta no fogo da batalha, mas nos amargores da vida, onde, às vezes, de mais 
coragem  se  há  mister  do  que  num  combate  sangrento,  porquanto  não  é  raro  que 
aquele que se mantém firme em presença do inimigo fraqueje nas tenazes de uma 
pena moral. Nenhuma recompensa obtém o homem por essa espécie de  coragem; 
mas,  Deus  lhe  reserva  palmas  de  vitória  e  uma  situação  gloriosa.  Quando  vos 
advenha  uma  causa  de  sofrimento  ou  de  contrariedade,  sobreponde­vos  a  ela,  e, 
quando houverdes conseguido dominar os ímpetos da impaciência, da cólera, ou do 
desespero, dizei, de vós para convosco, cheio de justa satisfação: “Fui o mais forte.” 
Bem­aventurados os aflitos pode então traduzir­se assim: Bem­aventurados 
os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua perseverança e sua submissão 
à  vontade  de  Deus,  porque  terão  centuplicada  a  alegria  que  lhes  falta  na  Terra, 
porque depois do labor virá o repouso. – Lacordaire. (Havre, 1863) 
O MAL E O REMÉDIO 
19. Será a Terra um lugar de gozo, um paraíso de delícias? Já não ressoa mais aos 
vossos ouvidos a voz do profeta? Não proclamou ele que haveria prantos e ranger de 
dentes para os que nascessem nesse vale de dores? Esperai, pois, todos vós que aí 
viveis, causticantes lágrimas e amargo sofrer e, por mais agudas e profundas sejam 
as  vossas  dores,  volvei  o  olhar  para  o  Céu  e  bendizei  do  Senhor  por ter  querido 
experimentar­vos... Ó homens! Dar­se­á não reconheçais o poder do vosso Senhor, 
senão  quando  ele  vos  haja  curado  as  chagas  do  corpo  e  coroado  de  beatitude  e 
ventura  os  vossos  dias?  Dar­se­á  não  reconheçais  o  seu  amor,  senão  quando  vos 
tenha  adornado  o  corpo  de  todas  as  glórias  e  lhe  haja  restituído  o  brilho  e  a 
brancura? Imitai aquele que vos foi dado para exemplo. Tendo chegado ao último 
grau  da  abjeção  e  da  miséria,  deitado  sobre  uma  estrumeira,  disse  ele  a  Deus: 
“Senhor,  conheci  todos  os  deleites  da  opulência  e  me  reduzistes  à  mais  absoluta 
miséria; obrigado, obrigado, meu Deus, por haverdes querido experimentar o vosso 
servo!” Até quando os vossos olhares se deterão nos horizontes que a morte limita? 
Quando,  afinal,  vossa  alma  se  decidirá  a  lançar­se  para  além  dos  limites  de  um 
túmulo? Houvésseis de chorar e sofrer a vida inteira, que seria isso, a par da eterna 
glória reservada ao que tenha sofrido a prova com fé, amor e resignação? Buscai 
consolações para os vossos males no porvir que Deus vos prepara e procurai­lhe a 
causa no passado. E vós, que mais sofreis, considerai­vos os afortunados da Terra. 
Como  desencarnados,  quando  pairáveis  no  Espaço,  escolhestes  as  vossas 
provas, julgando­vos bastante fortes para as suportar. Por que agora murmurar? Vós, 
que pedistes a riqueza e a glória, queríeis sustentar luta com a tentação e vencê­la. 
Vós, que pedistes para lutar de corpo e espírito contra o mal moral e físico, sabíeis 
que  quanto  mais  forte  fosse  a  prova,  tanto  mais  gloriosa  a  vitória  e  que,  se
69 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
triunfásseis, embora devesse o vosso corpo parar numa estrumeira, dele, ao morrer, 
se desprenderia uma alma de rutilante alvura e purificada pelo batismo da expiação e 
do sofrimento. 
Que  remédio,  então,  prescrever  aos  atacados  de  obsessões  cruéis  e  de 
cruciantes males? Só um é infalível: a fé, o apelo ao Céu. Se, na maior acerbidade 
dos vossos sofrimentos, entoardes hinos ao Senhor, o anjo, à vossa cabeceira, com a 
mão vos apontará o sinal da salvação e o lugar que um dia ocupareis... A fé  é  o 
remédio seguro do sofrimento; mostra sempre os horizontes do infinito diante dos 
quais se esvaem os poucos dias brumosos do presente. Não nos pergunteis, portanto, 
qual  o  remédio  para  curar tal  úlcera  ou  tal  chaga,  para tal  tentação  ou  tal  prova. 
Lembrai­vos  de  que  aquele  que  crê  é  forte  pelo  remédio  da  fé  e  que  aquele  que 
duvida um instante da sua eficácia é imediatamente punido, porque logo sente as 
pungitivas angústias da aflição. 
O Senhor apôs o seu selo em todos os que nele crêem. O Cristo vos disse 
que com a fé se transportam montanhas e eu vos digo que aquele que sofre e tem a 
fé  por  amparo ficará  sob  a  sua  égide  e não  mais  sofrerá. Os  momentos  das  mais 
fortes  dores  lhe  serão  as  primeiras  notas  alegres  da  eternidade.  Sua  alma  se 
desprenderá de tal maneira do corpo que, enquanto se estorcer em convulsões, ela 
planará nas regiões celestes, entoando, com os anjos, hinos de reconhecimento e de 
glória ao Senhor. 
Ditosos os que sofrem e choram! Alegres estejam suas almas, porque Deus 
as cumulará de bem­aventuranças. – Santo Agostinho. (Paris, 1863) 
A FELICIDADE NÃO É DESTE MUNDO 
20.  Não  sou  feliz!  A  felicidade  não  foi  feita  para  mim!  Exclama  geralmente  o 
homem em todas as posições sociais. Isso, meus caros filhos, prova, melhor do que 
todos os raciocínios possíveis, a verdade desta máxima do Eclesiastes: “A felicidade 
não é deste mundo.” Com efeito, nem a riqueza, nem o poder, nem mesmo a florida 
juventude são condições essenciais à felicidade. Digo mais: nem mesmo reunidas 
essas três condições tão desejadas, porquanto incessantemente se ouvem, no seio das 
classes mais privilegiadas, pessoas de todas as idades se queixarem amargamente da 
situação em que se encontram. 
Diante  de  tal  fato,  é  inconcebível  que  as  classes  laboriosas  e  militantes 
invejem com tanta ânsia a posição das que parecem favorecidas da fortuna. Neste 
mundo, por mais que faça, cada um tem a sua parte de labor e de miséria, sua cota de 
sofrimentos e de decepções, donde facilmente se chega à conclusão de que a Terra é 
lugar de provas e de expiações. 
Assim,  pois,  os  que  pregam  que  ela  é  a  única  morada  do  homem  e  que 
somente nela e numa só existência é que lhe cumpre alcançar o mais alto grau das 
felicidades que a sua natureza comporta, iludem­se e enganam os que os escutam, 
visto que demonstrado está, por experiência arqui­secular, que só excepcionalmente 
este globo apresenta as condições necessárias à completa felicidade do indivíduo. 
Em  tese  geral  pode  afirmar­se  que  a  felicidade  é  uma  utopia  a  cuja 
conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem alcançá­la. Se
70 – Allan Kardec 
o  homem  ajuizado  é  uma  raridade  neste  mundo,  o  homem  absolutamente  feliz 
jamais foi encontrado. O em que consiste a felicidade na Terra é coisa tão efêmera 
para aquele que não tem a guiá­lo a ponderação, que, por um ano, um mês, uma 
semana de satisfação completa, todo o resto da existência é uma série de amarguras 
e decepções. E notai, meus caros filhos, que falo dos venturosos da Terra, dos que 
são invejados pela multidão. 
Conseguintemente,  se  à  morada  terrena  são  peculiares  as  provas  e  a 
expiação,  forçoso  é  se  admita  que, algures,  moradas há mais  favorecidas,  onde  o 
Espírito,  conquanto  aprisionado  ainda  numa  carne  material,  possui  em  toda  a 
plenitude os gozos inerentes à vida humana. Tal a razão por que Deus semeou, no 
vosso turbilhão, esses belos planetas superiores para os quais os vossos esforços e as 
vossas tendências vos farão gravitar um dia, quando vos achardes suficientemente 
purificados e aperfeiçoados. 
Todavia,  não  deduzais  das  minhas  palavras  que  a  Terra  esteja  destinada 
para sempre a ser uma penitenciária. Não, certamente! Dos progressos já realizados, 
podeis  facilmente  deduzir  os  progressos  futuros  e,  dos  melhoramentos  sociais 
conseguidos,  novos  e  mais  fecundos  melhoramentos.  Essa  a  tarefa  imensa  cuja 
execução cabe à nova doutrina que os Espíritos vos revelaram. 
Assim, pois, meus queridos  filhos, que uma santa emulação  vos anime e 
que  cada  um  de  vós  se  despoje  do  homem  velho.  Deveis  todos  consagrar­vos  à 
propagação  desse  Espiritismo  que  já  deu  começo  à  vossa  própria  regeneração. 
Corre­vos o dever de fazer que os vossos irmãos participem dos raios da sagrada luz. 
Mãos, portanto, à obra, meus muito queridos filhos! Que nesta reunião solene todos 
os vossos corações aspirem a esse grandioso objetivo de preparar para as gerações 
porvindouras  um  mundo  onde  já  não  seja  vã  a  palavra  felicidade.  –  François­  ­ 
Nicolas­Madeleine, cardeal Morlot. (Paris, 1863) 
PERDA DE PESSOAS AMADAS. 
MORTES PREMATURAS 
21. Quando a morte ceifa nas vossas famílias, arrebatando, sem restrições, os mais 
moços antes dos velhos, costumais dizer: Deus não é justo, pois sacrifica um que 
está forte e tem grande futuro e conserva os que já viveram longos anos cheios de 
decepções; pois leva os que são úteis e deixa os que para nada mais servem; pois 
despedaça o coração de uma mãe, privando­a da inocente criatura que era toda a sua 
alegria. 
Humanos, é nesse ponto que precisais elevar­vos acima do terra­a­terra da 
vida, para compreenderdes que o bem, muitas vezes, está onde julgais ver o mal, a 
sábia previdência onde pensais divisar a cega fatalidade do destino. Por que haveis 
de avaliar a justiça divina pela vossa? Podeis  supor que o Senhor dos mundos se 
aplique, por mero  capricho,  a  vos  infligir  penas  cruéis?  Nada  se  faz  sem  um  fim 
inteligente  e,  seja  o  que  for  que  aconteça,  tudo  tem  a  sua  razão  de  ser.  Se 
perscrutásseis melhor todas as dores que vos advêm, nelas encontraríeis sempre a 
razão divina, razão regeneradora, e os vossos miseráveis interesses se tornariam de 
tão secundária consideração, que os atiraríeis para o último plano.
71 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Crede­me,  a  morte  é  preferível,  numa  encarnação  de  vinte  anos,  a  esses 
vergonhosos desregramentos que pungem famílias respeitáveis, dilaceram corações 
de  mães  e  fazem  que  antes  do  tempo  embranqueçam  os  cabelos  dos  pais. 
Freqüentemente, a morte prematura é um grande benefício que Deus concede àquele 
que se vai e que assim se preserva das misérias da vida, ou das seduções que talvez 
lhe acarretassem a perda. Não é vítima da fatalidade aquele que morre na flor dos 
anos; é que Deus julga não convir que ele permaneça por mais tempo na Terra. 
É uma horrenda desgraça, dizeis, ver cortado o fio de uma vida tão prenhe 
de  esperanças!  De  que  esperanças  falais?  Das  da  Terra,  onde  o  liberto  houvera 
podido brilhar, abrir caminho e enriquecer? Sempre essa visão estreita, incapaz de 
elevar­se  acima  da  matéria.  Sabeis  qual  teria  sido  a  sorte  dessa  vida,  ao  vosso 
parecer  tão  cheia  de  esperanças?  Quem  vos  diz  que  ela  não  seria  saturada  de 
amarguras?  Desdenhais  então  das  esperanças  da  vida  futura,  ao  ponto  de  lhe 
preferirdes as da vida efêmera que arrastais na Terra? Supondes então que mais vale 
uma posição elevada entre os homens, do que entre os Espíritos bem­aventurados? 
Em vez de vos queixardes, regozijai­vos quando praz a Deus retirar deste 
vale  de  misérias  um  de  seus  filhos.  Não  será  egoístico  desejardes  que  ele  aí 
continuasse para sofrer convosco? Ah! Essa dor se concebe naquele que carece de fé 
e que vê na morte uma separação eterna. Vós, espíritas, porém, sabeis que a alma 
vive  melhor  quando  desembaraçada  do  seu  invólucro  corpóreo.  Mães,  sabei  que 
vossos filhos bem­amados estão perto de vós; sim, estão muito perto; seus corpos 
fluídicos  vos  envolvem,  seus  pensamentos  vos  protegem,  a  lembrança  que  deles 
guardais  os  transporta  de  alegria,  mas  também  as  vossas  dores  desarrazoadas  os 
afligem, porque denotam falta de fé e exprimem uma revolta contra a vontade de 
Deus. 
Vós,  que  compreendeis  a  vida  espiritual,  escutai  as  pulsações  do  vosso 
coração a chamar esses entes bem­amados e, se pedirdes a Deus que os abençoe, em 
vós sentireis fortes consolações, dessas que secam as lágrimas; sentireis aspirações 
grandiosas que vos mostrarão o porvir que o soberano Senhor prometeu. – Sanson, 
ex­membro da Sociedade Espírita de Paris. (1863) 
SE FOSSE UM HOMEM DE BEM, TERIA MORRIDO 
22.  Falando  de  um  homem  mau,  que  escapa  de  um  perigo,  costumais  dizer:  “Se 
fosse um homem bom, teria morrido.” Pois bem, assim falando, dizeis uma verdade, 
pois, com efeito, muito amiúde sucede dar Deus a um Espírito de progresso ainda 
incipiente  prova  mais  longa,  do  que  a  um  bom  que,  por  prêmio  do  seu  mérito, 
receberá a graça de ter tão curta quanto possível a sua provação. Por conseguinte, 
quando vos utilizais daquele axioma, não suspeitais de que proferis uma blasfêmia. 
Se morre um homem de bem, cujo vizinho é mau homem, logo observais: 
“Antes fosse este.” Enunciais uma enormidade, porquanto aquele que parte concluiu 
a sua tarefa e o que fica talvez não haja principiado a sua. Por que, então, haveríeis 
de querer que ao mau faltasse tempo para terminá­la e que o outro permanecesse 
preso à gleba terrestre? Que diríeis se um prisioneiro, que cumpriu a sentença contra 
ele pronunciada, fosse conservado no cárcere, ao mesmo tempo em que restituíssem
72 – Allan Kardec 
à  liberdade  um  que  a  esta  não  tivesse  direito?  Ficai  sabendo  que  a  verdadeira 
liberdade,  para  o  Espírito,  consiste  no  rompimento  dos  laços  que  o  prendem  ao 
corpo e que, enquanto vos achardes na Terra, estareis em cativeiro. Habituai­vos a 
não censurar o que não podeis compreender e crede que Deus é justo em todas as 
coisas. Muitas vezes, o que vos parece um mal é um bem. Tão limitadas, no entanto, 
são as vossas faculdades, que o conjunto do grande todo não o apreendem os vossos 
sentidos obtusos. Esforçai­vos por sair, pelo pensamento, da vossa acanhada esfera 
e, à medida que vos elevardes, diminuirá para vós a importância da vida material 
que,  nesse  caso,  se  vos  apresentará  como  simples  incidente,  no  curso  infinito  da 
vossa existência espiritual, única existência verdadeira. – Fénelon. (Sens, 1861) 
OS TORMENTOS VOLUNTÁRIOS 
23.  Vive  o  homem  incessantemente  em  busca  da  felicidade,  que  também 
incessantemente lhe foge, porque felicidade sem mescla não se encontra na Terra. 
Entretanto, malgrado às vicissitudes que formam o cortejo inevitável da vida terrena, 
poderia ele, pelo menos, gozar de relativa felicidade, se não a procurasse nas coisas 
perecíveis e sujeitas às mesmas vicissitudes, isto é, nos gozos materiais em vez de a 
procurar nos gozos da alma, que são um prelibar dos gozos celestes, imperecíveis; 
em  vez  de  procurar  a  paz  do coração,  única  felicidade  real  neste  mundo,  ele  se 
mostra ávido de tudo o que o agitará e turbará, e, coisa singular! O homem, como 
que de intento, cria para si tormentos que está nas suas mãos evitar. 
Haverá  maiores  do  que  os  que  derivam  da  inveja  e  do  ciúme?  Para  o 
invejoso e o ciumento, não há repouso; estão perpetuamente febricitantes. O que não 
têm e os outros possuem lhes causa insônias. Dão­lhes vertigem os êxitos de seus 
rivais; toda a emulação, para eles, se resume em eclipsar os que lhes estão próximos, 
toda a alegria em excitar, nos que se lhes assemelham pela insensatez, a raiva do 
ciúme que os devora. Pobres insensatos, com efeito, que não imaginam sequer que, 
amanhã  talvez,  terão  de  largar  todas  essas  frioleiras  cuja  cobiça  lhes  envenena  a 
vida!  Não  é  a  eles,  decerto,  que  se  aplicam  estas  palavras:  “Bem­aventurados  os 
aflitos, pois que serão consolados”, visto que assuas preocupações não são aquelas 
que têm no céu as compensações merecidas. 
Que de tormentos, ao contrário, se poupa aquele que sabe contentar­se com 
o que tem, que nota sem inveja o que não possui, que não procura parecer mais do 
que é. Esse é sempre rico, porquanto, se olha para baixo de si e não para cima, vê 
sempre  criaturas  que  têm  menos  do  que  ele.  É  calmo,  porque  não  cria  para  si 
necessidades  quiméricas.  E  não  será  uma  felicidade  a  calma,  em  meio  das 
tempestades da vida? – Fénelon. (Lião, 1860) 
A DESGRAÇA REAL 
24. Toda a gente fala da desgraça, toda a gente já a sentiu e julga conhecer­lhe o 
caráter  múltiplo.  Venho  eu  dizer­vos  que  quase  toda  a  gente  se  engana  e  que  a 
desgraça  real  não  é,  absolutamente,  o  que  os  homens,  isto  é,  os  desgraçados,  o
73 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
supõem.  Eles  a  vêem  na  miséria, no  fogão  sem  lume,  no  credor  que  ameaça, no 
berço  de  que  o  anjo  sorridente  desapareceu,  nas  lágrimas,  no  féretro  que  se 
acompanha  de  cabeça  descoberta  e  com  o  coração  despedaçado,  na  angústia  da 
traição, na desnudação do orgulho que desejara envolver­se em púrpura e mal oculta 
a sua nudez sob os andrajos da vaidade. A tudo isso e a muitas coisas mais se dá o 
nome de desgraça, na linguagem humana. Sim, é desgraça para os que só vêem o 
presente; a verdadeira desgraça, porém, está nas conseqüências de um fato, mais do 
que no próprio fato. Dizei­me se um acontecimento, considerado ditoso na ocasião, 
mas que acarreta conseqüências funestas, não é, realmente, mais desgraçado do que 
outro que a princípio causa viva contrariedade e acaba produzindo o bem. Dizei­me 
se  a  tempestade  que  vos  arranca  as  árvores,  mas  que  saneia  o  ar,  dissipando  os 
miasmas insalubres que causariam a morte, não é antes uma felicidade do que uma 
infelicidade. 
Para  julgarmos  de  qualquer  coisa,  precisamos  ver­lhe  as  conseqüências. 
Assim,  para  bem  apreciarmos  o  que,  em  realidade,  é  ditoso  ou  inditoso  para  o 
homem,  precisamos  transportar­nos  para  além  desta  vida,  porque  é  lá  que  as 
conseqüências se fazem sentir. Ora, tudo o que se chama infelicidade, segundo as 
acanhadas vistas humanas, cessa com a vida corporal e encontra a sua compensação 
na vida futura. 
Vou  revelar­vos  a  infelicidade  sob  uma  nova  forma,  sob  a  forma  bela  e 
florida  que  acolheis  e  desejais  com  todas  as  veras  de  vossas  almas  iludidas.  A 
infelicidade é a alegria, é o prazer, é o tumulto, é a vã agitação, é a satisfação louca 
da vaidade, que fazem calar a consciência, que comprimem a ação do pensamento, 
que  atordoam  o  homem  com  relação  ao  seu  futuro.  A  infelicidade  é  o  ópio  do 
esquecimento que ardentemente procurais conseguir. 
Esperai, vós que chorais! Tremei, vós que rides, pois que o vosso corpo está 
satisfeito! A Deus não se engana; não se foge ao destino; e as provações, credoras 
mais  impiedosas  do  que  a  matilha  que  a  miséria  desencadeia,  vos  espreitam  o 
repouso  ilusório  para  vos  imergir  de  súbito  na  agonia  da  verdadeira  infelicidade, 
daquela que surpreende a alma amolentada pela indiferença e pelo egoísmo. 
Que,  pois,  o  Espiritismo  vos  esclareça  e  recoloque,  para  vós,  sob 
verdadeiros prismas, a verdade e o erro, tão singularmente deformados pela vossa 
cegueira!  Agireis  então  como  bravos  soldados  que,  longe  de  fugirem  ao  perigo, 
preferem as lutas dos combates arriscados à paz que lhes não pode dar glória, nem 
promoção! Que importa ao soldado perder na refrega armas, bagagens e uniforme, 
desde que saia vencedor e com glória? Que importa ao que tem fé no futuro deixar 
no campo de batalha da vida a riqueza e o manto de carne, contanto que sua alma 
entre gloriosa no reino celeste? – Delfina de Girardin. (Paris, 1861) 
A MELANCOLIA 
25. Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos 
leva a considerar amarga a vida? É que vosso Espírito, aspirando à felicidade e à 
liberdade, se esgota, jungido ao corpo que lhe serve de prisão, em vãos esforços para 
sair dele. Reconhecendo inúteis esses esforços, cai no desânimo e, como o corpo lhe
74 – Allan Kardec 
sofre a influência, toma­vos a lassidão, o abatimento, uma espécie de apatia, e vos 
julgais infelizes. 
Crede­me, resisti com energia a essas impressões que  vos  enfraquecem a 
vontade.  São  inatas  no  espírito  de  todos  os  homens  as  aspirações  por  uma  vida 
melhor;  mas,  não  as  busqueis  neste  mundo  e,  agora,  quando  Deus  vos  envia  os 
Espíritos que lhe pertencem, para vos instruírem acerca da felicidade que Ele vos 
reserva, aguardai pacientemente o anjo da libertação, para vos ajudar a romper os 
liames  que  vos  mantêm  cativo  o  Espírito.  Lembrai­vos  de  que,  durante  o  vosso 
degredo na Terra, tendes de desempenhar uma missão de que não suspeitais, quer 
dedicando­vos à vossa família, quer cumprindo as diversas obrigações que Deus vos 
confiou. Se, no curso desse degredo­provação, exonerando­os dos vossos encargos, 
sobre  vós  desabarem  os  cuidados,  as  inquietações  e  tribulações,  sede  fortes  e 
corajosos para suportá­los. Afrontai­os resolutos. Duram pouco e vos conduzirão à 
companhia dos amigos por quem chorais e que, jubilosos por ver­vos de novo entre 
eles,  vos  estenderão  os  braços,  a  fim  de  guiar­vos  a  uma  região  inacessível  às 
aflições da Terra. – François de Genève. (Bordéus.) 
PROVAS VOLUNTÁRIAS. O VERDADEIRO CILÍCIO 
26.  Perguntais  se  é  lícito  ao  homem  abrandar  suas  próprias  provas.  Essa  questão 
equivale a esta outra: É lícito, àquele que se afoga, cuidar de salvar­se? Àquele em 
quem  um  espinho  entrou,  retirá­lo?  Ao  que  está  doente,  chamar  o  médico?  As 
provas têm por fim exercitar a inteligência, tanto quanto a paciência e a resignação. 
Pode dar­se que um homem nasça em posição penosa e difícil, precisamente para se 
ver  obrigado  a  procurar  meios  de  vencer  as  dificuldades.  O  mérito  consiste  em 
sofrer, sem murmurar, as conseqüências dos males que lhe não seja possível evitar, 
em perseverar na luta, em se não desesperar, se não é bem­sucedido; nunca, porém, 
numa negligência, que seria mais preguiça do que virtude. 
Essa  questão  dá  lugar  naturalmente  a  outra.  Pois,  se  Jesus  disse:  “Bem­ 
aventurados  os  aflitos”,  haverá  mérito  em  procurar,  alguém,  aflições  que  lhe 
agravem as provas, por meio de sofrimentos voluntários? A isso responderei muito 
positivamente:  sim,  há  grande  mérito  quando  os  sofrimentos  e  as  privações 
objetivam o bem do próximo, porquanto é a caridade pelo sacrifício; não, quando os 
sofrimentos  e  as  privações  somente  objetivam  o  bem  daquele  que  a  si  mesmo  as 
inflige, porque aí só há egoísmo por fanatismo. 
Grande distinção cumpre aqui se faça: pelo que vos respeita pessoalmente, 
contentai­vos com as provas que Deus vos manda e não lhes aumenteis o volume, já 
de si por vezes tão pesado; aceitá­las sem queixumes e com fé, eis tudo o que de vós 
exige ele. Não enfraqueçais o vosso corpo com privações inúteis e macerações sem 
objetivo,  pois  que  necessitais  de  todas  as  vossas  forças  para  cumprirdes  a  vossa 
missão de trabalhar na Terra. Torturar e martirizar voluntariamente o vosso corpo é 
contravir a lei de Deus, que vos dá meios de o sustentar e fortalecer. Enfraquecê­lo 
sem necessidade é um verdadeiro suicídio. Usai, mas não abuseis, tal a lei. O abuso 
das melhores coisas tem a sua punição nas inevitáveis conseqüências que acarreta.
75 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Muito  diverso  é  o  que  ocorre,  quando  o  homem  impõe  a  si  próprio 
sofrimentos  para  o  alívio  do  seu  próximo.  Se  suportardes  o  frio  e  a  fome  para 
aquecer  e  alimentar  alguém  que  precise  ser  aquecido  e  alimentado  e  se  o  vosso 
corpo disso se ressente, fazeis um sacrifício que Deus abençoa. Vós que deixais os 
vossos aposentos perfumados para irdes à mansarda infecta levar a consolação; vós 
que  sujais  as  mãos  delicadas  pensando  chagas;  vós  que  vos  privais  do  sono  para 
velar à cabeceira de um doente que apenas é vosso irmão em Deus; vós, enfim, que 
despendeis  a  vossa  saúde  na prática  das  boas  obras, tendes  em  tudo  isso  o  vosso 
cilício,  verdadeiro  e  abençoado  cilício,  visto  que  os  gozos  do  mundo  não  vos 
secaram  o  coração,  que  não  adormecestes  no  seio  das  volúpias  enervantes  da 
riqueza, antes vos constituístes anjos consoladores dos pobres deserdados. 
Vós, porém, que vos retirais do mundo, para lhe evitar as seduções e viver 
no  insulamento,  que  utilidade  tendes  na  Terra?  Onde  a  vossa  coragem  nas 
provações, uma vez que fugis à luta e desertais do combate? Se quereis um cilício, 
aplicai­o às vossas almas e não aos vossos corpos; mortificai o vosso Espírito e não 
a  vossa  carne;  fustigai  o  vosso  orgulho,  recebei  sem  murmurar  as  humilhações; 
flagiciai o vosso amor­próprio; enrijai­vos contra a dor da injúria e da calúnia, mais 
pungente do que a dor física. Aí tendes o verdadeiro cilício cujas feridas vos serão 
contadas, porque atestarão a vossa coragem e a vossa submissão à vontade de Deus. 
– Um anjo guardião. (Paris, 1863) 
DEVER­SE­Á PÔR TERMO ÀS PROVAS DO PRÓXIMO? 
27. Deve alguém pôr termo às provas do seu próximo quando o possa, ou deve, para 
respeitar os desígnios de Deus, deixar que sigam seu curso? 
Já vos temos dito e repetido muitíssimas vezes que estais nessa Terra de 
expiação  para  concluirdes  as  vossas  provas  e  que  tudo  que  vos  sucede  é 
conseqüência das vossas existências anteriores, são os juros da dívida que tendes de 
pagar. Esse pensamento, porém, provoca em certas pessoas reflexões que devem ser 
combatidas, devido aos funestos efeitos que poderiam determinar. 
Pensam alguns que, estando­se na Terra para expiar, cumpre que as provas 
sigam seu curso. Outros há, mesmo, que vão até ao ponto de julgar que, não só nada 
devem fazer para atenuá­las, mas que, ao contrário, devem contribuir para que elas 
sejam mais proveitosas, tornando­as mais vivas. Grande erro. É certo que as vossas 
provas têm de seguir o curso que lhes traçou Deus; dar­se­á, porém, conheçais esse 
curso? Sabeis até onde têm elas de ir e se o vosso Pai misericordioso não terá dito ao 
sofrimento  de  tal  ou  tal  dos  vossos  irmãos:  “Não  irás  mais  longe?”  Sabeis  se  a 
Providência não  vos  escolheu, não  como  instrumento  de  suplício  para  agravar  os 
sofrimentos do culpado, mas como o bálsamo da consolação para fazer cicatrizar as 
chagas que a sua justiça abrira? Não digais, pois, quando virdes atingido um dos 
vossos  irmãos:  “É  a  justiça  de  Deus,  importa  que  siga  o  seu  curso.”  Dizei antes: 
“Vejamos  que  meios  o  Pai  misericordioso  me  pôs  ao  alcance  para  suavizar  o 
sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, o meu amparo 
material ou meus conselhos poderão ajudá­lo a vencer essa prova com mais energia, 
paciência e resignação. Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os meios de
76 – Allan Kardec 
fazer que cesse esse sofrimento; se não me deu a mim, também como prova, como 
expiação talvez, deter o mal e substituí­lo pela paz.” 
Ajudai­vos, pois, sempre, mutuamente, nas vossas respectivas provações e 
nunca  vos  considereis  instrumentos  de  tortura.  Contra  essa  idéia  deve  revoltar­se 
todo homem de coração, principalmente todo espírita, porquanto este, melhor do que 
qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. Deve o 
espírita estar compenetrado de que a sua vida toda tem de ser um ato de amor e de 
devotamento; que, faça ele o que fizer para se opor às decisões do Senhor, estas se 
cumprirão.  Pode,  portanto,  sem  receio,  empregar  todos  os  esforços  por  atenuar  o 
amargor da expiação, certo, porém, de que só a Deus cabe detê­la ou prolongá­la, 
conforme julgar conveniente. 
Não  haveria  imenso  orgulho,  da  parte  do  homem,  em  se  considerar  no 
direito de, por assim dizer, revirar a arma dentro da ferida? De aumentar a dose do 
veneno  nas  vísceras daquele que  está  sofrendo,  sob  o  pretexto  de  que  tal  é a  sua 
expiação?  Oh!  Considerai­vos  sempre  como  instrumento  para  fazê­la  cessar. 
Resumindo: todos vós estais na Terra para expiar; mas, todos, sem exceção, deveis 
esforçar­vos por abrandar a expiação dos vossos semelhantes, de acordo com a lei de 
amor e caridade. – Bernardino, Espírito protetor. (Bordéus, 1863) 
SERÁ LÍCITO ABREVIAR A VIDA DE UM DOENTE QUE SOFRA SEM 
ESPERANÇA DE CURA? 
28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe­se que seu estado 
é  desesperador.  Será  lícito  pouparem­se­lhe  alguns  instantes  de  angústias, 
apressando­se­lhe o fim? 
Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele 
conduzir o homem até à borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê­lo voltar a si 
e  alimentar  idéias  diversas  das  que  tinha?  Ainda  que  haja  chegado  ao  último 
extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a 
hora derradeira. A Ciência não se terá enganado nunca em suas previsões? 
Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; 
mas,  se não há nenhuma  esperança  fundada de  um regresso  definitivo  à  vida  e  à 
saúde,  existe  a  possibilidade,  atestada  por  inúmeros  exemplos,  de  o  doente,  no 
momento  mesmo  de  exalar  o  último  suspiro,  reanimar­se  e  recobrar  por  alguns 
instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser­ 
lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer 
nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de 
arrependimento. 
O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alma, é 
inapto a compreender essas coisas; o espírita, porém, que já sabe o que se passa no 
além­túmulo,  conhece  o  valor  de  um  último  pensamento.  Minorai  os  derradeiros 
sofrimentos, quanto o puderdes; mas, guardai­vos de abreviar a vida, ainda que de 
um minuto, porque esse minuto pode  evitar muitas lágrimas no futuro. – S. Luís. 
(Paris, 1860)
77 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA 
29. Aquele que se acha desgostoso da vida, mas que não quer extingui­la por suas 
próprias mãos, será culpado se procurar a morte num campo de batalha, com o 
propósito de tornar útil sua morte? 
Que  o  homem  se  mate  ele  próprio,  ou  faça  que  outrem  o  mate,  seu 
propósito  é  sempre  cortar  o  fio  da  existência:  há,  por  conseguinte,  suicídio 
intencional, se não de fato. É ilusória a idéia de que sua morte servirá para alguma 
coisa;  isso  não  passa  de  pretexto  para  colorir  o  ato  e  escusá­lo  aos  seus  próprios 
olhos. Se ele desejasse seriamente servir ao seu país, cuidaria de viver para defendê­ 
lo; não procuraria morrer, pois que, morto, de nada mais lhe serviria. O verdadeiro 
devotamento consiste em não temer a morte, quando se trate de ser útil, em afrontar 
o perigo, em fazer, de antemão e sem pesar, o sacrifício da vida, se for necessário. 
Mas, buscar a morte com premeditada intenção, expondo­se a um perigo, ainda que 
para prestar serviço, anula o mérito da ação. – S. Luís. (Paris, 1860) 
30. Se um homem se expõe a um perigo iminente para salvar a vida a um de seus 
semelhantes, sabendo de antemão que sucumbirá, pode o seu ato ser considerado 
suicídio? 
Desde que no ato não entre a intenção de buscar a morte, não há suicídio e, 
sim,  apenas,  devotamento  e  abnegação,  embora  também  haja  a  certeza  de  que 
morrerá. Mas, quem pode ter essa certeza? Quem poderá dizer que a Providência 
não  reserva  um  inesperado  meio  de  salvação  para  o  momento  mais  crítico?  Não 
poderia ela salvar mesmo aquele que se achasse diante da boca de um canhão? Pode 
muitas vezes dar­se que ela queira levar ao extremo limite a prova da resignação e, 
nesse caso, uma circunstância inopinada desvia o golpe fatal. – S. Luís. (Paris, 1860) 
PROVEITO DOS SOFRIMENTOS PARA OUTREM 
31. Os que aceitam resignados os sofrimentos, por submissão à vontade de Deus e 
tendo  em  vista  a  felicidade  futura,  não  trabalham  somente  em  seu  próprio 
benefício? Poderão tornar seus sofrimentos proveitosos a outrem? 
Podem  esses  sofrimentos  ser  de  proveito  para  outrem,  material  e 
moralmente: materialmente se, pelo trabalho, pelas privações e pelos sacrifícios que 
tais  criaturas  se  imponham,  contribuem  para  o  bem­estar  material  de  seus 
semelhantes;  moralmente,  pelo  exemplo  que  elas  oferecem  de  sua  submissão  à 
vontade de Deus. Esse exemplo do poder da fé espírita pode induzir os desgraçados 
à resignação e salvá­los do desespero e de suas conseqüências funestas para o futuro. 
– S. Luís. (Paris, 1860)
78 – Allan Kardec 
CAPÍTULO VI 
O CRISTO CONSOLADOR
·  O JUGO LEVE
·  CONSOLADOR PROMETIDO 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  ADVENTO DO ESPÍRITO DA VERDADE 
O JUGO LEVE 
1. “ Vinde a mim, todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos 
aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei comigo que sou brando e 
humilde de coração e achareis repouso para vossas almas, pois é suave o 
meu jugo e leve o meu fardo”. 
(MATEUS, 11:28 a 30) 
2. Todos os sofrimentos: misérias, decepções, dores físicas, perda de seres amados, 
encontram consolação em a fé no futuro, em a confiança na justiça de Deus, que o 
Cristo veio  ensinar aos homens. Sobre aquele que, ao contrário, nada espera após 
esta  vida,  ou  que  simplesmente  duvida,  as  aflições  caem  com  todo  o  seu  peso  e 
nenhuma esperança lhe mitiga o amargor. Foi isso que levou Jesus a dizer: “Vinde a 
mim todos vós que estais fatigados, que eu vos aliviarei.” 
Entretanto, faz depender de uma condição a sua assistência e a felicidade 
que promete aos aflitos. Essa condição está na lei por ele ensinada. Seu jugo é a 
observância dessa lei; mas, esse jugo é leve e a lei é suave, pois que apenas impõe, 
como dever, o amor e a caridade. 
CONSOLADOR PROMETIDO 
3. “ Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e 
ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco:
79 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e 
absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós, conhecê­lo­eis, porque 
ficará  convosco  e  estará  em  vós.  Porém,  o  Consolador,  que  é  o  Santo 
Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas 
e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito. 
(JOÃO, 14:15 a 17 e 26) 
4. Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não 
conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará 
para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o 
Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo 
não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse 
foi esquecido ou mal compreendido. 
O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside 
ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei; 
ensina  todas  as  coisas  fazendo  compreender  o  que  Jesus  só  disse  por  parábolas. 
Advertiu o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir 
os  olhos  e  os  ouvidos,  porquanto  fala  sem  figuras,  nem  alegorias;  levanta  o  véu 
intencionalmente  lançado  sobre  certos  mistérios.  Vem,  finalmente,  trazer  a 
consolação  suprema  aos  deserdados  da Terra  e a  todos  os  que  sofrem, atribuindo 
causa justa e fim útil a todas as dores. 
Disse  o Cristo: “Bem­aventurados os aflitos, pois que  serão  consolados.” 
Mas, como há de alguém sentir­se ditoso por sofrer, se não sabe por que sofre? O 
Espiritismo  mostra  a  causa  dos  sofrimentos  nas  existências  anteriores  e  na 
destinação  da  Terra,  onde  o  homem  expia  o  seu  passado.  Mostra  o  objetivo  dos 
sofrimentos, apontando­os como crises salutares que produzem a cura e como meio 
de depuração que garante a felicidade nas existências futuras. O homem compreende 
que  mereceu  sofrer  e  acha  justo  o  sofrimento.  Sabe  que  este  lhe  auxilia  o 
adiantamento e o aceita sem murmurar, como  o  obreiro aceita o trabalho que lhe 
assegurará  o  salário.  O  Espiritismo  lhe  dá  fé  inabalável  no  futuro  e  a  dúvida 
pungente  não  mais  se  lhe  apossa  da  alma.  Dando­lhe  a  ver  do  alto  as  coisas,  a 
importância das vicissitudes terrenas some­se no vasto e esplêndido horizonte que 
ele o faz descortinar, e a perspectiva da felicidade que o espera lhe dá a paciência, a 
resignação e a coragem de ir até ao termo do caminho. 
Assim, o Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: 
conhecimento das coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e 
por que está na Terra; atrai para os verdadeiros princípios da lei de Deus e consola 
pela fé e pela esperança. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
ADVENTO DO ESPÍRITO DE VERDADE 
5.  Venho,  como  outrora  aos  transviados  filhos  de  Israel,  trazer­vos  a  verdade  e 
dissipar  as  trevas.  Escutai­me.  O  Espiritismo,  como  o  fez  antigamente  a  minha 
palavra, tem de lembrar aos incrédulos que acima deles reina a imutável verdade: o
80 – Allan Kardec 
Deus  bom,  o  Deus  grande, que  faz  germinem  as plantas  e  se  levantem as  ondas. 
Revelei a doutrina divinal. Como um ceifeiro, reuni em feixes o bem esparso no seio 
da Humanidade e disse: “Vinde a mim, todos vós que sofreis.” 
Mas, ingratos, os homens afastaram­se do caminho reto e largo que conduz 
ao reino de meu Pai e enveredaram pelas ásperas sendas da impiedade. Meu Pai não 
quer  aniquilar  a  raça  humana;  quer  que,  ajudando­vos  uns  aos  outros,  mortos  e 
vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto não existe a morte, vos socorrais 
mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a 
dos  que  já  não  vivem  na  Terra,  a  clamar:  Orai  e  crede!  Pois  que  a  morte  é  a 
ressurreição,  sendo  a  vida  a  prova  buscada  e  durante  a  qual  as  virtudes  que 
houverdes cultivado crescerão e se desenvolverão como o cedro. 
Homens fracos, que  compreendeis as trevas das vossas inteligências, não 
afasteis  o  facho  que  a  clemência  divina  vos  coloca  nas  mãos  para  vos  clarear  o 
caminho e reconduzir­vos, filhos perdidos, ao regaço de vosso Pai. 
Sinto­me  por  demais  tomado  de  compaixão  pelas  vossas  misérias,  pela 
vossa  fraqueza  imensa,  para  deixar  de  estender  mão  socorredora  aos  infelizes 
transviados que, vendo o céu, caem nos abismos do erro. Crede, amai, meditai sobre 
as coisas que vos são reveladas; não mistureis o joio com a boa semente, as utopias 
com as verdades. 
Espíritas!  Amai­vos,  este  o  primeiro  ensinamento;  instruí­vos,  este  o 
segundo. No Cristianismo encontram­se todas as verdades; são de origem humana os 
erros que nele se enraizaram. Eis que do além­túmulo, que julgáveis o nada, vozes 
vos  clamam:  “Irmãos!  nada  perece.  Jesus  Cristo  é  o  vencedor  do  mal,  sede  os 
vencedores da impiedade.” – O Espírito de Verdade. (Paris, 1860) 
6. Venho instruir e consolar os pobres deserdados. Venho dizer­lhes que elevem a 
sua resignação ao nível de suas provas, que chorem, porquanto a dor foi sagrada no 
Jardim  das  Oliveiras;  mas,  que  esperem,  pois  que  também  a  eles  os  anjos 
consoladores lhes virão enxugar as lágrimas. 
Obreiros, traçai o vosso sulco; recomeçai no dia seguinte o afanoso labor da 
véspera; o trabalho das vossas mãos vos fornece aos corpos o pão terrestre; vossas 
almas, porém, não estão esquecidas; e eu, o jardineiro divino, as cultivo no silêncio 
dos vossos pensamentos. Quando soar a hora do repouso, e a trama da vida se vos 
escapar das mãos e vossos olhos se fecharem para a luz, sentireis que surge em vós e 
germina a minha preciosa semente. Nada fica perdido no reino de nosso Pai e  os 
vossos  suores  e  misérias  formam  o  tesouro  que  vos  tornará  ricos  nas  esferas 
superiores, onde a luz substitui as trevas e onde o mais desnudo dentre todos vós 
será talvez o mais resplandecente. 
Em  verdade  vos  digo:  os  que  carregam  seus  fardos  e  assistem  os  seus 
irmãos são  bem­amados meus. Instruí­vos na preciosa doutrina que dissipa o erro 
das revoltas e vos mostra o sublime objetivo da provação humana. Assim como o 
vento varre a poeira, que também o sopro dos Espíritos dissipe os vossos despeitos 
contra os ricos do mundo, que são, não raro, muito miseráveis, porquanto se acham 
sujeitos a provas mais perigosas do que as vossas. Estou convosco e meu apóstolo 
vos instrui. Bebei na fonte viva do amor e preparai­vos, cativos da vida, a lançar­vos 
um  dia,  livres  e  alegres,  no  seio  d’Aquele  que  vos  criou  fracos  para  vos  tornar
81 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
perfectíveis  e  que  quer  modeleis  vós  mesmos  a  vossa  maleável  argila,  a  fim  de 
serdes os artífices da vossa imortalidade. – O Espírito de Verdade. (Paris, 1861) 
7. Sou o grande médico das almas e venho trazer­vos o remédio que vos há de curar. 
Os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos prediletos. Venho salvá­ 
los. Vinde, pois, a mim, vós que sofreis e vos achais oprimidos, e sereis aliviados e 
consolados.  Não  busqueis  alhures  a  força  e  a  consolação,  pois  que  o  mundo  é 
impotente para dá­las. Deus dirige um supremo apelo aos vossos corações, por meio 
do Espiritismo. Escutai­o. Extirpados sejam de vossas almas doloridas a impiedade, 
a  mentira,  o  erro,  a  incredulidade.  São  monstros  que  sugam  o  vosso  mais  puro 
sangue e que vos abrem chagas quase sempre mortais. Que, no futuro, humildes e 
submissos  ao  Criador,  pratiqueis  a  sua  lei  divina.  Amai  e  orai;  sede  dóceis  aos 
Espíritos do Senhor; invocai­o do fundo de vossos corações. Ele, então, vos enviará 
o seu Filho bem­amado, para vos instruir e dizer estas boas palavras: Eis­me aqui; 
venho até vós, porque me chamastes. – O Espírito de Verdade. (Bordéus, 1861) 
8. Deus consola os humildes e dá força aos aflitos que lha pedem. Seu poder cobre a 
Terra e, por toda a parte, junto de cada lágrima colocou ele um bálsamo que consola. 
A abnegação e o devotamento são uma prece contínua e encerram um ensinamento 
profundo.  A  sabedoria  humana  reside  nessas  duas  palavras.  Possam  todos  os 
Espíritos  sofredores  compreender  essa  verdade,  em  vez  de  clamarem  contra  suas 
dores, contra os sofrimentos morais que neste mundo vos cabem em partilha. Tomai, 
pois,  por  divisa  estas  duas  palavras:  devotamento  e  abnegação,  e  sereis  fortes, 
porque elas resumem todos os deveres que a caridade e a humildade vos impõem. O 
sentimento do dever cumprido vos dará repouso ao espírito e resignação. O coração 
bate então melhor, a alma se asserena e o corpo se forra aos desfalecimentos, por 
isso que o corpo tanto menos forte se sente, quanto mais profundamente golpeado é 
o espírito. – O Espírito de Verdade. (Havre, 1863)
82 – Allan Kardec 
CAPÍTULO VII 
BEM-AVENTURADOS
OS POBRES DE ESPÍRITO
·  O QUE SE DEVE ENTENDER POR POBRES DE ESPÍRITOS
·  AQUELE QUE SE ELEVA SERÁ REBAIXADO
·  MISTÉRIOS OCULTOS AOS DOUTOS E AOS PRUDENTES 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  O ORGULHO E A HUMILDADE
·  MISSÃO DO HOMEM INTELIGENTE NA TERRA 
O QUE SE DEVE ENTENDER POR POBRES DE ESPÍRITO 
1. “ Bem­aventurados os pobres de espírito, pois que deles é o reino dos 
céus”. 
(MATEUS, 5:3) 
2. A incredulidade zombou desta máxima: Bem­aventurados os pobres de espírito, 
como  tem  zombado  de  muitas  outras  coisas  que  não  compreende.  Por  pobres  de 
espírito Jesus não entende os baldos de inteligência, mas os humildes, tanto que diz 
ser para estes o reino dos céus e não para os orgulhosos. 
Os  homens  de  saber  e  de  espírito,  no  entender  do  mundo,  formam 
geralmente tão alto conceito de si próprios e da sua superioridade, que consideram 
as coisas divinas como indignas de lhes merecer a atenção. Concentrando sobre si 
mesmos os seus olhares, eles não os podem elevar até Deus. Essa tendência, de se 
acreditarem superiores a tudo, muito amiúde os leva a negar aquilo que, estando­lhes 
acima,  os  depreciaria,  a negar até mesmo  a  Divindade.  Ou,  se  condescendem  em 
admiti­la, contestam­lhe um dos mais belos atributos: a ação providencial sobre as 
coisas deste mundo, persuadidos de que eles são suficientes para bem governá­lo.
83 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Tomando  a  inteligência  que  possuem  para  medida  da  inteligência  universal,  e 
julgando­se aptos a tudo compreender, não podem crer na possibilidade do que não 
compreendem. Consideram sem apelação as sentenças que proferem. 
Se se recusam a admitir o mundo invisível e uma potência extra­humana, 
não é que isso lhes esteja fora do alcance; é que o orgulho se lhes revolta à idéia de 
uma coisa acima da qual não possam colocar­se e que os faria descer do pedestal 
onde se contemplam. Daí o só terem sorrisos de mofa para tudo o que não pertence 
ao mundo visível e tangível. Eles se atribuem espírito e saber em tão grande cópia, 
que não podem crer em coisas, segundo pensam, boas apenas para gente simples, 
tendo por pobres de espírito os que as tomam a sério. 
Entretanto, digam o que disserem, forçoso lhes será entrar, como os outros, 
nesse mundo invisível de que escarnecem. É lá que os olhos se lhes abrirão e eles 
reconhecerão o erro em que caíram. Deus, porém, que é justo, não pode receber da 
mesma forma aquele que lhe desconheceu a majestade e outro que humildemente se 
lhe submeteu às leis, nem os aquinhoar em partes iguais. Dizendo que o reino dos 
céus é dos simples, quis Jesus significar que a ninguém é concedida entrada nesse 
reino,  sem  a  simplicidade  de  coração  e  humildade  de  espírito;  que  o  ignorante 
possuidor dessas qualidades será preferido ao sábio que mais crê em si do que em 
Deus. Em todas as circunstâncias, Jesus põe a humildade na categoria das virtudes 
que aproximam de Deus e o orgulho entre os vícios que dele afastam a criatura, e 
isso por uma razão muito natural: a de ser a humildade um ato de submissão a Deus, 
ao passo que o orgulho é a revolta contra ele. Mais vale, pois, que o homem, para 
felicidade do seu futuro, seja pobre em espírito, conforme o entende o mundo, e rico 
em qualidades morais. 
AQUELE QUE SE ELEVA SERÁ REBAIXADO 
3.  Por  essa  ocasião,  os  discípulos  se  aproximaram  de  Jesus  e  lhe 
perguntaram: “Quem é o maior no reino dos céus?” Jesus, chamando a si 
um menino, o colocou no meio deles e respondeu: “Digo­vos, em verdade, 
que, se não vos converterdes e tornardes quais crianças, não entrareis no 
reino  dos  céus.  Aquele,  portanto,  que  se  humilhar  e  se  tornar  pequeno 
como esta criança será o maior no reino dos céus; e aquele que recebe em 
meu nome a uma criança, tal como acabo de dizer, é a mim mesmo que 
recebe.” 
(MATEUS, 18:1 a 5) 
4. Então, a mãe dos filhos de Zebedeu se aproximou dele com seus dois 
filhos  e  o  adorou,  dando  a  entender  que  lhe  queria  pedir  alguma  coisa. 
Disse­lhe ele: “Que queres?” Disse ela: “Manda que estes meus dois filhos 
tenham assento no teu reino, um à tua direita e o outro à tua esquerda.” 
Mas,  Jesus  lhe  respondeu:  “Não  sobes  o  que  pedes;  podeis  vós  ambos 
beber  o  cálice  que  eu  vou  beber?”  Eles  responderam:  “Podemos.”  Jesus 
lhes replicou: “É certo que bebereis o cálice que eu beber; mas, pelo que 
respeita a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não me cabe 
a  mim  vo­lo  conceder;  isso  será  para  aqueles  a  quem  meu  Pai  o  tem
84 – Allan Kardec 
preparado.”  Ouvindo  isso,  os  dez  outros  apóstolos  se  encheram  de 
indignação  contra  os  dois  irmãos.  Jesus,  chamando­os  para  perto  de  si, 
lhes  disse:  “Sabeis  que  os  príncipes  das  nações  as  dominam  e  que  os 
grandes as tratam com império. Assim não deve ser entre vós; ao contrário, 
aquele que quiser tornar­se o maior, seja vosso servo; e aquele que quiser 
ser o primeiro entre vós seja vosso escravo; do mesmo modo que o Filho 
do  homem  não veio  para  ser  servido, mas  para servir  e  dar  a  vida  pela 
redenção de muitos.” 
(MATEUS, 20:20 a 28) 
5. Jesus entrou em dia de sábado na casa de um dos principais fariseus 
para  aí  fazer  a  sua  refeição.  Os  que  lá  estavam  o  observaram.  Então, 
notando  que  os  convidados  escolhiam  os  primeiros  lugares,  propôs­lhes 
uma parábola, dizendo: “Quando fordes convidados para bodas, não tomeis 
o primeiro lugar, para que não suceda que, havendo entre os convidados 
uma pessoa mais considerada do que vós, aquele que vos haja convidado 
venha a dizer­vos: dai o vosso lugar a este, e vos vejais constrangidos a 
ocupar, cheios de vergonha, o último lugar. Quando fordes convidados, ide 
colocar­vos no último lugar, a fim de que, quando aquele que vos convidou 
chegar, vos diga: meu amigo, venha mais para cima. Isso então será para 
vós  um  motivo  de  glória,  diante  de  todos  os  que  estiverem  convosco  à 
mesa; porquanto todo aquele que se  eleva será rebaixado e todo aquele 
que se abaixa será elevado.” 
(Lucas, 14:1 e 7 a 11) 
6.  Estas  máximas  decorrem  do  princípio  de  humildade  que  Jesus  não  cessa  de 
apresentar como condição essencial da felicidade prometida aos eleitos do Senhor e 
que ele formulou assim: “Bem­aventurados os pobres de espírito, pois que o reino 
dos céus lhes pertence.” Ele toma uma criança como tipo da simplicidade de coração 
e diz: “Será o maior no reino dos céus aquele que se humilhar e se fizer pequeno 
como uma criança, isto é, que nenhuma pretensão alimentar à superioridade ou à 
infalibilidade. 
A mesma idéia fundamental se nos depara nesta outra máxima: Seja vosso 
servidor aquele que quiser tornar­se o maior, e nesta outra: Aquele que se humilhar 
será exalçado e aquele que se elevar será rebaixado. 
O Espiritismo sanciona pelo exemplo a teoria, mostrando­nos na posição de 
grandes no mundo dos Espíritos os que eram pequenos na Terra; e bem pequenos, 
muitas  vezes,  os  que  na  Terra  eram  os  maiores  e  os  mais  poderosos.  E  que  os 
primeiros, ao morrerem, levaram consigo aquilo que faz a verdadeira grandeza no 
céu e que não se perde nunca: as virtudes, ao passo que os outros tiveram de deixar 
aqui o que lhes constituía a grandeza terrena e que se não leva para a outra vida: a 
riqueza, os títulos, a glória, a nobreza do nascimento. Nada mais possuindo senão 
isso chegam ao outro mundo privados de tudo, como náufragos que tudo perderam, 
até  as  próprias  roupas.  Conservaram  apenas  o  orgulho  que  mais  humilhante  lhes 
torna a nova posição, porquanto vêem colocados acima de si e resplandecentes de 
glória os que eles na Terra espezinharam.
85 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
O  Espiritismo  aponta­nos  outra  aplicação  do  mesmo  princípio  nas 
encarnações  sucessivas,  mediante  as  quais  os  que,  numa  existência,  ocuparam  as 
mais elevadas posições, descem, em existência seguinte, às mais ínfimas condições, 
desde  que  os  tenham  dominado  o  orgulho  e  a  ambição.  Não  procureis,  pois,  na 
Terra, os primeiros lugares, nem vos colocar acima dos outros, se não quiserdes ser 
obrigados  a  descer.  Buscai,  ao  contrário,  o  lugar  mais  humilde  e  mais  modesto, 
porquanto Deus saberá dar­vos um mais elevado no céu, se o merecerdes. 
MISTÉRIOS OCULTOS AOS DOUTOS E AOS PRUDENTES 
7. Disse, então, Jesus estas palavras: “Graças te rendo, meu Pai, Senhor 
do  céu  e  da  Terra,  por  haveres  ocultado  estas  coisas  aos  doutos  e  aos 
prudentes e por as teres revelado aos simples e aos pequenos.” 
(MATEUS, 11:25) 
8. Pode parecer singular que Jesus renda graças a Deus, por haver revelado estas 
coisas aos simples e aos pequenos,  que  são  os  pobres  de  espírito,  e  por  tê­las 
ocultado aos doutos e aos prudentes, mais aptos, na aparência, a compreendê­las. É 
que cumpre se entenda que os primeiros são os humildes, são os que se humilham 
diante de Deus e não se consideram superiores a toda a gente. Os segundos são os 
orgulhosos,  envaidecidos  do  seu  saber  mundano,  os  quais  se  julgam  prudentes 
porque negam e tratam a Deus de igual para igual, quando não se recusam a admiti­ 
lo, porquanto, na antigüidade, douto era sinônimo de sábio. Por isso é que Deus lhes 
deixa  a  pesquisa  dos  segredos  da  Terra  e  revela  os  do  céu  aos  simples  e  aos 
humildes que diante d’Ele se prostram. 
9. O mesmo se dá hoje com as grandes verdades que o Espiritismo revelou. Alguns 
incrédulos  se  admiram  de  que  os  Espíritos  tão  poucos  esforços  façam  para 
convencê­los. A razão está em que estes últimos cuidam preferentemente dos que 
procuram,  de  boa­fé  e  com  humildade,  a luz, do que  daqueles  que  se  supõem  na 
posse de toda a luz e imaginam, talvez, que Deus deveria dar­se por muito feliz em 
atraí­los a si, provando­lhes a sua existência. 
O  poder  de  Deus  se  manifesta  nas  mais  pequeninas  coisas,  como  nas 
maiores. Ele não põe a luz debaixo do alqueire, por isso que a derrama em ondas por 
toda a parte, de tal sorte que só cegos não a vêem. A esses não quer Deus abrir à 
força os olhos, dado que lhes apraz tê­los fechados.  A  vez  deles  chegará, mas  é 
preciso que, antes, sintam as angústias das trevas e reconheçam que é a Divindade e 
não o acaso quem lhes fere o orgulho. Para vencer a incredulidade, Deus emprega 
os  meios  mais  convenientes,  conforme  os  indivíduos.  Não  é  à  incredulidade  que 
compete  prescrever­lhe  o  que  deva  fazer,  nem  lhe  cabe  dizer:  “Se  me  queres 
convencer, tens de proceder dessa ou daquela maneira, em tal ocasião e não em tal 
outra, porque essa ocasião é a que mais me convém.” 
Não se espantem, pois, os incrédulos de que nem Deus, nem os Espíritos, 
que são os executores da sua vontade, se lhes submetam às exigências. Inquiram de 
si  mesmos  o  que  diriam,  se  o  último  de  seus  servidores  se  lembrasse  de  lhes
86 – Allan Kardec 
prescrever fosse o que fosse. Deus impõe condições e não aceita as que lhe queiram 
impor.  Escuta,  bondoso,  os  que  a  Ele  se  dirigem  humildemente  e  não  os  que  se 
julgam mais do que Ele. 
10.  Perguntar­se­á:  não  poderia  Deus  tocá­los  pessoalmente,  por  meio  de 
manifestações  retumbantes,  diante  das  quais  se  inclinassem  os  mais  obstinados 
incrédulos? É fora de toda dúvida que o poderia; mas, então, que mérito teriam eles 
e, ao demais, de que serviria? Não se vêem todos os dias criaturas que não cedem 
nem à evidência, chegando até a dizer: “Ainda que eu visse, não acreditaria, porque 
sei que é impossível?” Esses, se se negam assim a reconhecer a verdade, é que ainda 
não trazem maduro o espírito para compreendê­la, nem o coração para senti­la. O 
orgulho é a catarata que lhes tolda a visão. De que vale apresentar a luz a um cego? 
Necessário é que, antes, se lhe destrua a causa do mal. Daí vem que, médico hábil, 
Deus primeiramente corrige o orgulho. Ele não deixa ao abandono aqueles de seus 
filhos que se acham perdidos, porquanto sabe que  cedo  ou tarde os  olhos se lhes 
abrirão.  Quer,  porém,  que  isso  se  dê  de  moto­próprio,  quando,  vencidos  pelos 
tormentos da incredulidade, eles venham de si mesmos lançar­se­lhe nos braços e 
pedir­lhe perdão, quais filhos pródigos. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
O ORGULHO E A HUMILDADE 
11. Que a paz do Senhor seja convosco, meus queridos amigos! Aqui venho para 
encorajar­vos a seguir o bom caminho. 
Aos pobres Espíritos que habitaram outrora a Terra, conferiu Deus a missão 
de  vos  esclarecer.  Bendito  seja  Ele,  pela  graça  que  nos  concede:  a  de  podermos 
auxiliar o vosso aperfeiçoamento. Que o Espírito Santo me ilumine e ajude a tornar 
compreensível  a  minha  palavra,  outorgando­me  o  favor  de  pô­la  ao  alcance  de 
todos! Oh! Vós, encarnados, que vos achais em prova e buscais a luz, que a vontade 
de Deus venha em meu auxílio para fazê­la brilhar aos vossos olhos! A humildade é 
virtude muito esquecida entre vós. Bem pouco seguidos são os exemplos que dela se 
vos  têm  dado.  Entretanto,  sem  humildade,  podeis  ser  caridosos  com  o  vosso 
próximo?  Oh!  Não,  pois  que  este  sentimento nivela  os homens,  dizendo­lhes  que 
todos  são  irmãos,  que  se  devem  auxiliar mutuamente,  e os  induz  ao  bem.  Sem  a 
humildade, apenas vos adornais de virtudes que não possuís, como se trouxésseis um 
vestuário para ocultar as deformidades do vosso corpo. Lembrai­vos d'Aquele que 
nos salvou; lembrai­vos da sua humildade, que tão grande o fez, colocando­o acima 
de todos os profetas. 
O  orgulho  é  o  terrível  adversário  da  humildade.  Se  o  Cristo  prometia  o 
reino  dos  céus  aos  mais  pobres,  é  porque  os  grandes  da  Terra  imaginam  que  os 
títulos e as riquezas são recompensas deferidas aos seus méritos e se consideram de 
essência mais pura do que a do pobre. Julgam que os títulos e as riquezas lhes são 
devidos,  pelo  que,  quando  Deus  lhos  retira,  o  acusam  de  injustiça.  Oh!  Irrisão  e 
cegueira! Pois, então, Deus vos distingue pelos corpos? O envoltório do pobre não é
87 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
o mesmo que o do rico? Terá o Criador feito duas espécies de homens? Tudo o que 
Deus faz é grande e sábio; não lhe atribuais nunca as idéias que os vossos cérebros 
orgulhosos engendram. 
Ó rico! Enquanto dormes sob dourados tetos, ao abrigo do frio, ignoras que 
jazem sobre a palha milhares de irmãos teus, que valem tanto quanto tu? Não é teu 
igual o infeliz que passa fome? Ao ouvires isso, bem o sei, revolta­­se o teu orgulho. 
Concordarás  em  dar­lhe  uma  esmola,  mas  em  lhe  apertar  fraternalmente  a  mão, 
nunca. “Pois quê! Dirás, eu, de sangue nobre, grande da Terra, igual a este miserável 
coberto de andrajos! Vã utopia de pseudo­filósofos! Se fôssemos iguais, por que o 
teria Deus colocado tão baixo e a mim tão alto?” É exato que as vossas vestes não se 
assemelham; mas, despi­vos ambos: que diferença haverá entre vós? A nobreza do 
sangue, dirás; a química, porém, ainda nenhuma diferença descobriu entre o sangue 
de um grão­senhor e o de um plebeu; entre o do senhor e o do escravo. Quem te 
garante que também tu já não tenhas sido miserável e desgraçado como ele? Que 
também não hajas pedido esmola? Que não a pedirás um dia a esse mesmo a quem 
hoje  desprezas?  São  eternas  as riquezas?  Não  desaparecem  quando  se  extingue  o 
corpo,  envoltório  perecível  do  teu  Espírito?  Ah!  Lança  sobre  ti  um  pouco  de 
humildade! Põe os olhos, afinal, na realidade das coisas deste mundo, sobre o que dá 
lugar ao engrandecimento e ao rebaixamento no outro; lembra­te de que a morte não 
te poupará, como a nenhum homem; que os teus títulos não te preservarão do seu 
golpe; que ela te poderá ferir amanhã, hoje, a qualquer hora. Se te enterras no teu 
orgulho, oh! Quanto então te lamento, pois bem digno de compaixão serás. 
Orgulhosos!  Que  éreis  antes  de  serdes  nobres  e  poderosos?  Talvez 
estivésseis abaixo do último dos vossos criados. Curvai, portanto, as vossas frontes 
altaneiras,  que  Deus  pode  fazer  se  abaixem,  justo  no  momento  em  que  mais  as 
elevardes.  Na  balança  divina,  são  iguais  todos  os  homens;  só  as  virtudes  os 
distinguem aos olhos de Deus. São da mesma essência todos os Espíritos e formados 
de igual massa todos os corpos. Em nada os modificam os vossos títulos e os vossos 
nomes.  Eles  permanecerão  no  túmulo  e  de  modo  nenhum  contribuirão  para  que 
gozeis  da  ventura  dos  eleitos.  Estes,  na  caridade e  na humildade  é  que  têm  seus 
títulos de nobreza. 
Pobre criatura! És mãe, teus filhos sofrem; sentem frio; têm fome, e tu vais, 
curvada ao peso da tua cruz, humilhar­te, para lhes conseguires um pedaço de pão! 
Oh!  Inclino­me  diante  de  ti.  Quão  nobremente  santa  és  e  quão  grande  aos  meus 
olhos! Espera e ora; a felicidade ainda não é deste mundo. Aos pobres  oprimidos 
que nele confiam, concede Deus o reino dos céus. 
E tu, donzela, pobre criança lançada ao trabalho, às privações, por que esses 
tristes pensamentos? Por que choras? Dirige a Deus, piedoso e sereno, o teu olhar: 
ele dá alimento aos passarinhos; tem­lhe confiança: ele não te abandonará. O ruído 
das festas, dos prazeres do mundo, faz bater­te o coração; também desejaras adornar 
de flores os teus cabelos e misturar­te com os venturosos da Terra. Dizes de ti para 
contigo  que,  como  essas  mulheres  que  vês  passar,  despreocupadas  e  risonhas, 
também  poderias  ser  rica.  Oh!  Cala­te,  criança!  Se  soubesses  quantas  lágrimas  e 
dores  inomináveis  se  ocultam  sob  esses  vestidos  recamados,  quantos  soluços  são 
abafados pelos sons dessa orquestra rumorosa, preferirias o teu humilde retiro e a tua 
pobreza. Conserva­te pura aos olhos de Deus, se não queres que o teu anjo guardião
88 – Allan Kardec 
para o seu seio volte, cobrindo o semblante com as suas brancas asas e deixando­te 
com os teus remorsos, sem guia, sem amparo, neste mundo, onde ficarias perdida, a 
aguardar a punição no outro. 
Todos vós que dos homens sofreis injustiças, sede indulgentes para as faltas 
dos vossos irmãos, ponderando que também vós não vos achais isentos de culpas; é 
isso  caridade,  mas  é  igualmente  humildade.  Se  sofreis  pelas  calúnias,  abaixai  a 
cabeça sob essa prova. Que vos importam as calúnias do mundo? Se é puro o vosso 
proceder, não pode Deus vo­las compensar? Suportar com coragem as humilhações 
dos homens é ser humilde e reconhecer que somente Deus é grande e poderoso. 
Oh! Meu Deus, será preciso que o Cristo volte segunda vez à Terra para 
ensinar aos homens as tuas leis, que eles olvidam? Terá que de novo  expulsar  do 
templo os vendedores que conspurcam a tua casa, casa que é unicamente de oração? 
E,  quem  sabe?  Ó  homens!  Se  o  não  renegaríeis  como  outrora,  caso  Deus  vos 
concedesse essa graça! Chamar­lhe­íeis blasfemador, porque abateria o orgulho dos 
modernos fariseus. É bem possível que o fizésseis perlustrar novamente o caminho 
do Gólgota. 
Quando  Moisés  subiu  ao  monte  Sinai  para  receber  os  mandamentos  de 
Deus, o povo de Israel, entregue a si mesmo, abandonou o Deus verdadeiro. Homens 
e mulheres deram o ouro e as jóias que possuíam, para que se construísse um ídolo 
que  entraram  a  adorar.  Vós  outros,  homens  civilizados,  os  imitais.  O  Cristo  vos 
legou a sua doutrina; deu­vos o exemplo de todas as virtudes e tudo abandonastes, 
exemplos  e  preceitos.  Concorrendo  para  isso  com  as  vossas  paixões,  fizestes  um 
Deus a vosso jeito: segundo uns, terrível e sanguinário; segundo outros, alheado dos 
interesses do mundo. O Deus que fabricastes é ainda o bezerro de ouro que cada um 
adapta aos seus gostos e às suas idéias. 
Despertai, meus irmãos, meus amigos. Que a voz dos Espíritos ecoe nos 
vossos  corações.  Sede  generosos  e  caridosos,  sem  ostentação,  isto  é,  fazei  o  bem 
com humildade. Que cada um proceda pouco a pouco à demolição dos altares que 
todos ergueram ao orgulho. Numa palavra: sede verdadeiros cristãos e tereis o reino 
da verdade. Não continueis a duvidar da bondade de Deus, quando dela vos dá ele 
tantas  provas.  Vimos  preparar  os  caminhos  para  que  as  profecias  se  cumpram. 
Quando o Senhor vos der uma manifestação mais retumbante da sua clemência, que 
o  enviado  celeste  já  vos  encontre  formando  uma  grande  família;  que  os  vossos 
corações, mansos e humildes, sejam dignos de ouvir a palavra divina que ele vos 
vem  trazer;  que  ao  eleito  somente  se  deparem  em  seu  caminho  as  palmas  que  aí 
tenhais deposto, volvendo ao bem, à caridade, à fraternidade. Então, o vosso mundo 
se tornará o paraíso terrestre. Mas, se permanecerdes insensíveis à voz dos Espíritos 
enviados para depurar e renovar a vossa sociedade civilizada, rica de ciências, mas, 
no entanto, tão pobre de bons sentimentos, ah! Então não nos restará senão chorar e 
gemer pela vossa sorte. Mas, não, assim não será. Voltai para Deus, vosso pai, e 
todos  nós  que  houvermos  contribuído  para  o  cumprimento  da  sua  vontade 
entoaremos o cântico de ação de graças, agradecendo­lhe a inesgotável bondade e 
glorificando­o  por  todos  os  séculos  dos  séculos.  Assim  seja.  Lacordaire. 
(Constantina, 1863)
89 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
12. Homens, por que  vos queixais das calamidades que  vós mesmos amontoastes 
sobre  as  vossas  cabeças?  Desprezastes  a  santa  e  divina moral  do  Cristo;  não  vos 
espanteis, pois, de que a taça da iniqüidade haja transbordado de todos os lados. 
Generaliza­se  o  mal­estar.  A  quem  inculpar,  senão  a  vós  que 
incessantemente procurais esmagar­vos uns aos outros? Não podeis ser felizes, sem 
mútua benevolência; mas, como pode a  benevolência coexistir com o  orgulho? O 
orgulho, eis a fonte de todos os vossos males. Aplicai­vos, portanto, em destruí­lo, 
se  não  lhe  quiserdes  perpetuar  as  funestas  conseqüências. Um  único  meio  se  vos 
oferece para isso, mas infalível: tomardes para regra invariável do vosso proceder a 
lei do Cristo, lei que tendes repelido ou falseado em sua interpretação. 
Por que haveis de ter em maior estima o que brilha e encanta os olhos, do 
que o que toca o coração? Por que fazeis do vício na opulência objeto das vossas 
adulações,  ao  passo  que  desdenhais  do  verdadeiro  mérito  na  obscuridade? 
Apresente­se  em  qualquer  parte  um  rico  debochado,  perdido  de  corpo  e  alma,  e 
todas as portas se lhe abrem, todas as atenções são para ele, enquanto ao homem de 
bem, que vive do seu trabalho, mal se dignam todos de saudá­lo com ar de proteção. 
Quando a consideração dispensada aos outros se mede pelo ouro que possuem ou 
pelo  nome  de  que  usam,  que  interesse  podem  eles  ter  em  se  corrigirem  de  seus 
defeitos? 
Dar­se­ia  o  inverso,  se  a  opinião  geral  fustigasse  o  vício  dourado,  tanto 
quanto o vício em andrajos; mas, o orgulho se mostra indulgente para com tudo o 
que o lisonjeia. Século de cupidez e de dinheiro, dizeis. Sem dúvida; mas por que 
deixastes que as necessidades materiais sobrepujassem o bom­senso e a razão? Por 
que há de cada um querer elevar­se acima de seu irmão? Desse  fato sofre hoje a 
sociedade as conseqüências. 
Não esqueçais que tal estado de coisas é sempre sinal certo de decadência 
moral. Quando o orgulho chega ao extremo, tem­se um indício de queda próxima, 
porquanto Deus nunca deixa de castigar os soberbos. Se por vezes consente que eles 
subam, é para lhes dar tempo à reflexão e a que se emendem, sob os golpes que de 
quando em quando lhes desfere no orgulho para adverti­los. Mas, em lugar de se 
humilharem, eles se revoltam. Então, cheia a medida, Deus os abate completamente 
e tanto mais horrível lhes é a queda, quanto mais alto hajam subido. 
Pobre  raça  humana,  cujo  egoísmo  corrompeu  todas  as  sendas,  toma 
novamente  coragem,  apesar  de  tudo.  Em  sua  misericórdia  infinita,  Deus  te  envia 
poderoso remédio para os teus males, um inesperado socorro à tua miséria. Abre os 
olhos à luz: aqui estão as almas dos que já não vivem na Terra e que te vêm chamar 
ao cumprimento dos deveres reais. Eles te dirão, com a autoridade da experiência, 
quanto as vaidades e as grandezas da vossa passageira existência são mesquinhas a 
par da eternidade. Dir­te­ão que, lá, o maior é aquele que haja sido o mais humilde 
entre  os  pequenos  deste  mundo;  que  aquele  que  mais  amou  os  seus  irmãos  será 
também  o  mais  amado  no  céu;  que  os  poderosos  da  Terra,  se  abusaram  da  sua 
autoridade,  ver­se­ão  reduzidos  a  obedecer  aos  seus  servos;  que,  finalmente,  a 
humildade e a caridade, irmãs que andam sempre de mãos dadas, são os meios mais 
eficazes de se obter graça diante do Eterno. – Adolfo, bispo de Argel. (Marmande, 
1862)
90 – Allan Kardec 
MISSÃO DO HOMEM INTELIGENTE NA TERRA 
13.  Não  vos  ensoberbais  do  que  sabeis,  porquanto  esse  saber  tem  limites  muito 
estreitos no mundo em que habitais. Suponhamos sejais sumidades em inteligência 
neste planeta: nenhum direito tendes de envaidecer­vos. Se Deus, em seus desígnios, 
vos fez nascer num meio onde pudestes desenvolver a vossa inteligência, é que quer 
a utilizeis para o bem de todos; é uma missão que vos dá, pondo­vos nas mãos o 
instrumento  com  que  podeis  desenvolver,  por  vossa  vez,  as  inteligências 
retardatárias e conduzi­las a ele. A natureza do instrumento não está a indicar a que 
utilização  deve  prestar­se?  A  enxada  que  o  jardineiro  entrega  a  seu  ajudante  não 
mostra a este último que lhe cumpre cavar a terra? Que diríeis, se esse ajudante, em 
vez de trabalhar, erguesse a enxada para ferir o seu patrão? Diríeis que é horrível e 
que ele merece expulso. Pois bem: não se dá o mesmo com aquele que se serve da 
sua inteligência para destruir a idéia de Deus e da Providência entre seus irmãos? 
Não levanta ele contra o seu senhor a enxada que lhe foi confiada para arrotear o 
terreno? Tem ele direito ao salário prometido? Não merece, ao contrário, ser expulso 
do  jardim? Sê­lo­á, não duvideis, e atravessará existências miseráveis e cheias de 
humilhações, até que se curve diante d’Aquele a quem tudo deve. 
A inteligência é rica de méritos para o futuro, mas, sob a condição de ser 
bem  empregada.  Se  todos  os  homens  que  a  possuem  dela  se  servissem  de 
conformidade com a vontade de Deus, fácil seria, para os Espíritos, a tarefa de fazer 
que a Humanidade avance. Infelizmente, muitos a tornam instrumento de orgulho e 
de  perdição  contra  si mesmos.  O homem abusa  da  inteligência  como  de  todas  as 
suas outras faculdades e, no entanto, não lhe faltam ensinamentos que o advirtam de 
que  uma  poderosa  mão  pode  retirar  o  que  lhe  concedeu.  –  Ferdinando,  Espírito 
protetor. (Bordéus, 1862)
91 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO VIII 
BEM-AVENTURADOS OS
QUE TÊM PURO O CORAÇÃO
·  SIMPLICIDADE E PUREZA DE CORAÇÃO
·  PECADO POR PENSAMENTO – ADULTÉRIO
·  VERDADEIRA PUREZA – MÃOS NÃO LAVADAS
·  ESCÂNDALO – SE A VOSSA MÃO É MOTIVO DE 
ESCÂNDALO, CORTAI­A 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  DEIXAI QUE VENHAM A MIM AS CRIANCINHAS
·  BEM­AVENTURADOS OS QUE TÊM FECHADOS OS OLHOS 
SIMPLICIDADE E PUREZA DE CORAÇÃO 
1. “ Bem­aventurados os que têm puro o coração, porquanto verão a Deus”. 
(MATEUS, 5:8) 
2. Apresentaram­lhe então algumas crianças, a fim de que ele as tocasse, 
e,  como  seus  discípulos  afastassem  com  palavras  ásperas  os  que  lhas 
apresentavam,  Jesus,  vendo  isso,  zangou­se  e  lhes  disse:  “Deixai  que 
venham  a mim  as  criancinhas  e  não as impeçais,  porquanto  o  reino  dos 
céus  é  para  os  que  se  lhes  assemelham.  Digo­­vos,  em  verdade,  que 
aquele  que  não  receber  o  reino  de  Deus  como  uma  criança,  nele  não 
entrará.” E, depois de as abraçar, abençoou­as, impondo­lhes as mãos. 
(MARCOS, 10:13 a 16) 
3. A pureza do coração é inseparável da simplicidade e da humildade. Exclui toda 
idéia de egoísmo e de orgulho. Por isso é que Jesus toma a infância como emblema 
dessa pureza, do mesmo modo que a tomou como o da humildade.
92 – Allan Kardec 
Poderia  parecer  menos  justa  essa  comparação,  considerando­se  que  o 
Espírito  da  criança  pode  ser  muito  antigo  e  que  traz,  renascendo  para  a  vida 
corporal,  as  imperfeições  de  que  se  não  tenha  despojado  em  suas  precedentes 
existências. Só um Espírito que houvesse chegado à perfeição nos poderia oferecer o 
tipo da verdadeira pureza. É exata a comparação, porém, do ponto de vista da vida 
presente,  porquanto  a  criancinha,  não  havendo  podido  ainda  manifestar  nenhuma 
tendência perversa, nos apresenta a imagem da inocência e da candura. Daí o não 
dizer Jesus, de modo absoluto, que o reino dos céus é para elas, mas para os que se 
lhes assemelhem. 
4.  Pois  que  o  Espírito  da  criança  já  viveu,  por  que  não  se  mostra,  desde  o 
nascimento,  tal  qual  é?  Tudo  é  sábio  nas  obras  de  Deus.  A  criança  necessita  de 
cuidados especiais, que somente a ternura materna lhe pode dispensar, ternura que se 
acresce da fraqueza e da ingenuidade da criança. Para uma mãe, seu filho é sempre 
um anjo e assim era preciso que fosse, para lhe cativar a solicitude. Ela não houvera 
podido ter­lhe o mesmo devotamento, se, em vez da graça ingênua, deparasse nele, 
sob os traços infantis, um caráter viril e as idéias de um adulto e, ainda menos, se lhe 
viesse a conhecer o passado. 
Aliás,  faz­se  necessário  que  a  atividade  do  princípio  inteligente  seja 
proporcionada à fraqueza do corpo, que não poderia resistir a uma atividade muito 
grande do Espírito, como se verifica nos indivíduos grandemente precoces. Essa a 
razão por que, ao aproximar­se­lhe a encarnação, o Espírito entra em perturbação e 
perde pouco a pouco a  consciência de si mesmo, ficando, por certo tempo, numa 
espécie  de  sono,  durante  o  qual  todas  as  suas  faculdades  permanecem  em  estado 
latente.  É necessário  esse  estado  de  transição  para  que  o  Espírito  tenha  um novo 
ponto de partida e para que esqueça, em sua nova existência, tudo aquilo que a possa 
entravar. Sobre ele, no entanto, reage o passado. Renasce para a vida maior, mais 
forte, moral e intelectualmente, sustentado e secundado pela intuição que conserva 
da experiência adquirida. 
A partir do nascimento, suas idéias tomam gradualmente impulso, à medida 
que os órgãos se desenvolvem, pelo que se pode dizer que, no curso dos primeiros 
anos,  o  Espírito  é  verdadeiramente  criança, por  se  acharem  ainda  adormecidas  as 
idéias que lhe formam o fundo do caráter. Durante o tempo em que seus instintos se 
conservam amodorrados, ele é mais maleável e, por isso mesmo, mais acessível às 
impressões  capazes  de  lhe  modificarem  a  natureza  e  de  fazê­lo  progredir,  o  que 
torna mais fácil a tarefa que incumbe aos pais. 
O Espírito, pois, enverga temporariamente a túnica da inocência e, assim, 
Jesus está com a verdade, quando, sem embargo da anterioridade da alma, toma a 
criança por símbolo da pureza e da simplicidade. 
PECADO POR PENSAMENTOS. – ADULTÉRIO 
5.  “ Aprendestes  que  foi  dito  aos  antigos:  ‘Não  cometereis  adultério’.  Eu, 
porém,  vos  digo  que  aquele  que  houver  olhado  uma  mulher,  com  mau 
desejo para com ela, já em seu coração cometeu adultério com ela.” 
(MATEUS, 5:27 e 28)
93 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
6.  A  palavra  adultério  não  deve  absolutamente  ser  entendida  aqui  no  sentido 
exclusivo  da  acepção  que  lhe  é  própria,  porém,  num  sentido  mais  geral.  Muitas 
vezes  Jesus  a  empregou  por  extensão,  para  designar  o  mal,  o  pecado,  todo  e 
qualquer  pensamento  mau,  como,  por  exemplo,  nesta  passagem:  “Porquanto  se 
alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, dentre esta raça adúltera e 
pecadora,  o  Filho  do  homem  também  se  envergonhará  dele,  quando  vier 
acompanhado dos santos anjos, na glória de seu Pai.” (MARCOS, 8:38) 
A  verdadeira  pureza  não  está  somente  nos  atos;  está  também  no 
pensamento, porquanto aquele que tem puro o coração, nem sequer pensa no mal. 
Foi o que Jesus quis dizer: ele condena o pecado, mesmo em pensamento, porque é 
sinal de impureza. 
7.  Esse  princípio  suscita  naturalmente  a  seguinte  questão:  Sofrem­se  as 
conseqüências de um pensamento mau, embora nenhum efeito produza? 
Cumpre se faça aqui uma importante distinção. À medida que avança na 
vida  espiritual,  a  alma  que  enveredou  pelo  mau  caminho  se  esclarece  e  despoja 
pouco a pouco de suas imperfeições, conforme a maior ou menor boa vontade que 
demonstre, em virtude do seu livre­arbítrio. Todo pensamento mau resulta, pois, da 
imperfeição  da  alma;  mas,  de  acordo  com  o  desejo  que  alimenta  de  depurar­se, 
mesmo esse mau pensamento se lhe torna uma ocasião de adiantar­se, porque ela o 
repele com energia. É indício de esforço por apagar uma mancha. Não cederá, se se 
apresentar oportunidade de satisfazer a um mau desejo. Depois que haja resistido, 
sentir­se­á mais forte e contente com a sua vitória. 
Aquela que, ao contrário, não tomou boas resoluções, procura ocasião de 
praticar o mau ato e, se não o leva a efeito, não é por virtude da sua vontade, mas 
por falta de ensejo. É, pois, tão culpada quanto o seria se o cometesse. 
Em  resumo,  naquele  que  nem  sequer  concebe  a  idéia  do  mal,  já  há 
progresso  realizado;  naquele  a  quem  essa  idéia  acode,  mas  que  a  repele,  há 
progresso  em  vias  de  realizar­se;  naquele,  finalmente,  que  pensa  no  mal  e  nesse 
pensamento  se  compraz,  o  mal  ainda  existe  na  plenitude  da  sua  força.  Num,  o 
trabalho está feito; no outro, está por fazer­se. Deus, que é justo, leva em conta todas 
essas gradações na responsabilidade dos atos e dos pensamentos do homem. 
VERDADEIRA PUREZA – MÃOS NÃO LAVADAS 
8.  Então  os  escribas  e  os  fariseus,  que  tinham  vindo  de  Jerusalém, 
aproximaram­se  de  Jesus  e  lhe  disseram:  “Por  que  violam  os  teus 
discípulos a tradição dos antigos, uma vez que não lavam as mãos quando 
fazem suas refeições?” Jesus lhes respondeu: “Por que violais vós outros o 
mandamento de Deus, para seguir a vossa tradição? Porque Deus pôs este 
mandamento: Honrai a vosso pai e a vossa mãe; e este outro: Seja punido 
de morte aquele que disser a seu pai ou a sua mãe palavras ultrajantes; e 
vós outros, no entanto, dizeis: Aquele que haja dito a seu pai ou a sua mãe: 
‘Toda oferenda que faço a Deus vos é proveitosa, satisfaz à lei’, ainda que 
depois não honre, nem assista a seu pai ou a sua mãe. Tornam assim inútil 
o mandamento de Deus, pela vossa tradição”.
94 – Allan Kardec 
“Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, quando disse: Este povo 
me honra de lábios, mas conserva longe de mim o coração; é em vão que 
me honram ensinando máximas e ordenações humanas.” 
Depois,  tendo  chamado  o  povo,  disse:  “Escutai  e  compreendei 
bem isto: Não é o que entra na boca que macula o homem; o que sai da 
boca do homem é que o macula.O que sai da boca procede do coração e é 
o que torna impuro o homem; porquanto do coração é que partem os maus 
pensamentos, os assassínios, os adultérios, as fornicações, os latrocínios, 
os  falsos  testemunhos,  as  blasfêmias  e  as  maledicências.  Essas  são  as 
coisas que tornam impuro o homem; o comer sem haver lavado as mãos 
não é o que o torna impuro.” 
Então, aproximando­se dele, disseram­lhe seus discípulos: “Sabeis 
que, ouvindo o que acabais de dizer, os fariseus se escandalizaram?” Ele, 
porém, respondeu: “Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não 
plantou.  Deixai­os,  são  cegos  que  conduzem cegos;  se  um  cego  conduz 
outro, caem ambos no fosso.” 
(MATEUS, 15:1 a 20) 
9.  Enquanto  ele  falava,  um  fariseu  lhe  pediu  que  fosse  jantar  em  sua 
companhia. Jesus foi e sentou­se à mesa. O fariseu entrou então a dizer 
consigo mesmo: “Por que não lavou ele as mãos antes de jantar?” Disse­ 
lhe,  porém,  o  Senhor:  “Vós  outros,  fariseus,  pondes  grande  cuidado  em 
limpar  o  exterior  do  copo  e  do  prato;  entretanto,  o  interior  dos  vossos 
corações  está  cheio  de  rapinas  e  de  iniqüidades.  Insensatos  que  sois! 
Aquele que fez o exterior não é o que faz também o interior?” 
(LUCAS, 11:37 a 40) 
10.  Os  judeus  haviam  desprezado  os  verdadeiros  mandamentos  de  Deus  para  se 
aferrarem à prática dos regulamentos que  os homens tinham estatuído e da rígida 
observância desses regulamentos faziam casos de consciência. A substância, muito 
simples,  acabara  por  desaparecer  debaixo  da  complicação  da  forma.  Como  fosse 
muito mais fácil praticar atos exteriores, do que se reformar moralmente, lavar as 
mãos  do  que  expurgar  o  coração  iludiram­se  a  si  próprios  os  homens,  tendo­se 
como  quites  para  com  Deus,  por  se  conformarem  com  aquelas  práticas, 
conservando­se tais quais eram, visto se lhes ter ensinado que Deus não exigia mais 
do que isso. Daí o haver dito o profeta: É em vão que este povo me honra de lábios, 
ensinando máximas e ordenações humanas. 
Verificou­se o mesmo com a doutrina moral do Cristo, que acabou por ser 
atirada para segundo plano, donde resulta que muitos cristãos, a exemplo dos antigos 
judeus, consideram mais garantida a salvação por meio das práticas exteriores, do 
que pelas da moral. É a essas adições, feitas pelos homens à lei de Deus, que Jesus 
alude, quando diz: Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não plantou. 
O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega a 
Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna melhor o 
homem, não  alcança  o seu  objetivo.  Toda  aquela  em  que  o  homem  julgue  poder 
apoiar­se  para  fazer  o  mal,  ou  é  falsa,  ou  está  falseada  em  seu  princípio.  Tal  o 
resultado que dão as em que a forma sobreleva ao fundo. Nula é a crença na eficácia 
dos  sinais  exteriores,  se  não  obsta  a  que  se  cometam  assassínios,  adultérios,
95 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
espoliações, que se levantem calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que 
for.  Semelhantes religiões  fazem  supersticiosos,  hipócritas,  fanáticos; não,  porém, 
homens de bem. 
Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a 
do coração. 
ESCÂNDALOS. 
SE A VOSSA MÃO É MOTIVO DE ESCÂNDALO, CORTAI­A 
11.  “ Se  algum  escandalizar  a  um  destes  pequenos  que  crêem  em mim, 
melhor fora que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós que um asno faz 
girar e que o lançassem no fundo do mar.” 
“Ai do mundo por causa dos escândalos 
7 
; pois é necessário que 
venham  escândalos;  mas,  ai  do  homem  por  quem  o  escândalo  venha. 
Tende muito cuidado em não desprezar um destes pequenos. Declaro­vos 
que seus anjos no céu vêem incessantemente a face de meu Pai que está 
nos céus, porquanto o Filho do homem veio salvar o que estava perdido. 
Se  a  vossa  mão  ou  o  vosso  pé  vos  é  objeto  de  escândalo,  cortai­os  e 
lançai­os longe de vós; melhor será para vós que entreis na vida tendo um 
só pé ou uma só mão, do que terdes dois e serdes lançados no fogo eterno. 
– Se o vosso olho vos é objeto de escândalo, arrancai­o e lançai­o longe de 
vós; melhor para vós será que entreis na vida tendo um só olho, do que 
terdes dois e serdes precipitados no fogo do inferno. 
(MATEUS, 18:6 a 11; 5:29 e 30) 
12. No sentido vulgar, escândalo se diz de toda ação que de modo ostensivo vá de 
encontro à moral ou ao decoro. O escândalo não está na ação em si mesma, mas na 
repercussão que possa ter. A palavra escândalo implica sempre a idéia de um certo 
arruído. Muitas pessoas se contentam com evitar o escândalo, porque este lhes faria 
sofrer o orgulho, lhes acarretaria perda de consideração da parte dos homens. Desde 
que as suas torpezas fiquem ignoradas, é quanto basta para que se lhes conserve em 
repouso a consciência. São, no dizer de Jesus: “sepulcros branqueados por fora, mas 
cheios, por dentro, de podridão; vasos limpos no exterior e sujos no interior”. 
No  sentido  evangélico,  a  acepção  da  palavra  escândalo,  tão  amiúde 
empregada, é muito mais geral, pelo que, em certos casos, não se lhe apreende o 
significado.  Já não  é  somente  o  que  afeta  a  consciência  de  outrem,  é  tudo  o  que 
resulta dos vícios e das imperfeições humanas, toda reação má de um indivíduo para 
outro, com ou sem repercussão. O escândalo, neste caso, é o resultado efetivo do 
mal moral. 
13. É preciso que haja escândalo no mundo, disse Jesus, porque, imperfeitos como 
são na Terra, os homens se mostram propensos a praticar o mal, e porque, árvores 
7 
Nas traduções mais recentes e mais fiéis da Bíblia, a palavra escândalo está expressa por tropeço (na 
tradução em Esperanto falilo), querendo significar que Jesus se referia a tudo que leva o homem à queda: 
o mau exemplo, princípios falsos, abuso do poder, etc. – A Editora.
96 – Allan Kardec 
más, só maus frutos dão. Deve­se, pois, entender por essas palavras que o mal é uma 
conseqüência da imperfeição dos homens e não que haja, para estes, a obrigação de 
praticá­lo. 
14. É necessário que o escândalo venha, porque, estando em expiação na Terra, os 
homens se punem a si mesmos pelo contacto de seus vícios, cujas primeiras vítimas 
são  eles  próprios  e  cujos  inconvenientes  acabam  por  compreender.  Quando 
estiverem cansados de sofrer devido ao mal, procurarão remédio no bem. A reação 
desses  vícios  serve,  pois,  ao mesmo  tempo,  de  castigo  para  uns  e  de  provas  para 
outros. É assim que do mal tira Deus o bem e que os próprios homens utilizam as 
coisas más ou as escórias. 
15.  Sendo  assim,  dirão,  o  mal  é  necessário  e  durará  sempre,  porquanto,  se 
desaparecesse, Deus se veria privado de um poderoso meio de corrigir os culpados. 
Logo, é inútil cuidar de melhorar os homens. Deixando, porém, de haver culpados, 
também  desnecessário  se  tornariam  quaisquer  castigos.  Suponhamos  que  a 
Humanidade  se  transforme  e  passe  a  ser  constituída  de homens  de  bem:  nenhum 
pensará em fazer mal ao seu próximo e todos serão ditosos por serem bons. Tal a 
condição dos mundos elevados, donde já o mal foi banido; tal virá a ser a da Terra, 
quando houver progredido bastante. Mas, ao mesmo tempo em que alguns mundos 
se adiantam, outros se formam, povoados de Espíritos primitivos e que, além disso, 
servem  de  habitação,  de  exílio  e  de  estância  expiatória  a  Espíritos  imperfeitos, 
rebeldes, obstinados no mal, expulsos de mundos que se tornaram felizes. 
16.  Mas,  ai  daquele  por  quem  venha  o  escândalo.  Quer  dizer  que  o  mal  sendo 
sempre o mal, aquele que a seu mau grado servir de instrumento à justiça divina, 
aquele cujos maus instintos foram utilizados, nem por isso deixou de praticar o mal 
e de merecer punição. Assim é, por exemplo, que um filho ingrato é uma punição ou 
uma prova para o pai que sofre com isso, porque esse pai talvez tenha sido também 
um  mau  filho  que  fez  sofresse  seu  pai.  Passa  ele  pela  pena  de  talião.  Mas,  essa 
circunstância  não  pode  servir  de  escusa  ao  filho  que,  a  seu  turno,  terá  de  ser 
castigado em seus próprios filhos, ou de outra maneira. 
17. Se vossa mão é causa de escândalo, cortai­a.  Figura enérgica  esta,  que  seria 
absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir 
em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento 
impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale 
ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação 
má;  ficar  privado  da  vista,  antes  que  lhe  servirem  os  olhos  para  conceber  maus 
pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido 
alegórico  e  profundo  de  suas  palavras.  Muitas  coisas,  entretanto,  não  podem  ser 
compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta.
97 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
DEIXAI QUE VENHAM A MIM AS CRIANCINHAS 
18. Disse o Cristo: “Deixai que venham a mim as criancinhas.” Profundas em sua 
simplicidade,  essas  palavras  não  continham  um  simples  chamamento  dirigido  às 
crianças,  mas,  também,  o  das  almas  que  gravitam  nas  regiões  inferiores,  onde  o 
infortúnio  desconhece  a  esperança.  Jesus  chamava  a  si  a  infância  intelectual  da 
criatura formada: os fracos, os escravizados e os viciosos. Ele nada podia ensinar à 
infância física, presa à matéria, submetida ao jugo do instinto, ainda não incluída na 
categoria superior da razão e da vontade que se exercem em torno dela e por ela. 
Queria que os homens a ele fossem com a confiança daqueles entezinhos de 
passos  vacilantes,  cujo  chamamento  conquistava,  para  o  seu,  o  coração  das 
mulheres,  que  são todas  mães.  Submetia  assim  as  almas  à  sua  terna  e  misteriosa 
autoridade.  Ele  foi  o  facho  que  ilumina  as  trevas,  a  claridade  matinal  que  toca  a 
despertar;  foi  o  iniciador  do  Espiritismo,  que  a  seu  turno  atrairá  para  ele, não  as 
criancinhas, mas os homens de boa vontade. Está empenhada a ação viril; já não se 
trata  de  crer  instintivamente,  nem  de  obedecer  maquinalmente;  é  preciso  que  o 
homem  siga  a  lei  inteligente  que  se  lhe revela na  sua  universalidade.  Meus  bem­ 
amados, são chegados os tempos em que, explicados, os erros se tornarão verdades. 
Ensinar­vos­emos  o  sentido  exato  das  parábolas  e  vos  mostraremos  a  forte 
correlação  que  existe  entre  o  que  foi  e  o  que  é.  Digo­vos,  em  verdade:  a 
manifestação  espírita  avulta  no  horizonte,  e  aqui  está  o  seu  enviado,  que  vai 
resplandecer como o Sol no cume dos montes. – João Evangelista. (Paris, 1863) 
19. Deixai venham a mim as criancinhas, pois tenho o leite que fortalece os fracos. 
Deixai  venham  a  mim  todos  os  que,  tímidos  e  débeis,  necessitam  de  amparo  e 
consolação. Deixai venham a mim os ignorantes, para que eu os esclareça. Deixai 
venham a mim todos os que sofrem, a multidão dos aflitos e dos infortunados: eu 
lhes  ensinarei  o  grande remédio  que  suaviza  os  males  da  vida  e  lhes  revelarei  o 
segredo da cura de suas feridas! Qual é, meus amigos, esse bálsamo soberano, que 
possui tão grande virtude, que se aplica a todas as chagas do coração e as cicatriza? 
É o amor, é a caridade! Se possuís esse fogo divino, que é o que podereis temer? 
Direis a todos os instantes de vossa vida: “Meu Pai, que a tua vontade se faça e não 
a  minha;  se  te  apraz  experimentar­me  pela  dor  e  pelas  tribulações,  bendito  sejas, 
porquanto é para meu bem, eu o sei, que a tua mão sobre mim se abate. Se é do teu 
agrado, Senhor, ter piedade da tua criatura fraca, dar­lhe ao coração as alegrias sãs, 
bendito sejas ainda. Mas, faze que o amor divino não lhe fique amodorrado na alma, 
que incessantemente faça subir aos teus pés o testemunho do seu reconhecimento!” 
Se  tendes  amor,  possuís  tudo  o  que  há  de  desejável  na  Terra,  possuís 
preciosíssima  pérola,  que  nem  os  acontecimentos,  nem  as  maldades  dos  que  vos 
odeiem  e  persigam  poderão  arrebatar.  Se  tendes  amor,  tereis  colocado  o  vosso 
tesouro lá onde os vermes e a ferrugem não o podem atacar e vereis apagar­se da 
vossa alma tudo o que seja capaz de lhe conspurcar a pureza; sentireis diminuir dia a 
dia o peso da matéria e, qual pássaro que adeja nos ares e já não se lembra da Terra, 
subireis continuamente, subireis sempre, até que vossa alma, inebriada, se farte do 
seu elemento de vida no seio do Senhor. – Um Espírito protetor. (Bordéus, 1861)
98 – Allan Kardec 
BEM­AVENTURADOS OS QUE TÊM FECHADOS OS OLHOS 8 
20. Meus bons amigos, para que me chamastes? Terá sido para que eu imponha as 
mãos  sobre  a  pobre  sofredora  que  está  aqui  e  a  cure?  Ah!  Que  sofrimento,  bom 
Deus! Ela perdeu a vista e as trevas a envolveram. Pobre filha! Que ore e espere. 
Não sei fazer milagres, eu, sem que Deus o queira. Todas as curas que tenho podido 
obter e que vos foram assinaladas não as atribuais senão àquele que é o Pai de todos 
nós.  Nas  vossas  aflições,  volvei  sempre  para  o  céu  o  olhar  e  dizei  do  fundo  do 
coração: “Meu Pai, cura­me, mas faze que minha alma enferma se cure antes que o 
meu corpo; que a minha carne seja castigada, se necessário, para que minha alma se 
eleve ao teu seio, com a brancura que possuía quando a criaste.” Após essa prece, 
meus amigos, que o bom Deus ouvirá sempre, dadas vos serão a força e a coragem 
e, quiçá, também a cura que apenas timidamente pedistes, em recompensa da vossa 
abnegação.
Contudo, uma vez que aqui me acho, numa assembléia onde principalmente 
se trata de estudos, dir­vos­ei que os que são privados da vista deveriam considerar­ 
se os bem­aventurados da expiação. Lembrai­vos de que o Cristo disse convir que 
arrancásseis o vosso olho se fosse mau, e que mais valeria lançá­lo ao fogo, do que 
deixar se tornasse causa da vossa condenação. Ah! Quantos há no mundo que um 
dia, nas trevas, maldirão o terem visto a luz! Oh! Sim, como são felizes os que, por 
expiação, vêm a ser atingidos na vista! Os olhos não lhes serão causa de escândalo e 
de queda; podem viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que vós 
que  tendes  límpida  a  visão!...  Quando  Deus  me  permite  descerrar  as  pálpebras  a 
algum  desses  pobres  sofredores  e  lhes  restituir  a  luz,  digo  a  mim  mesmo:  Alma 
querida,  por  que  não  conheces  todas  as  delícias  do  Espírito  que  vive  de 
contemplação  e  de  amor?  Não  pedirias,  então,  que  se  te  concedesse  ver  imagens 
menos puras e menos suaves, do que as que te é dado entrever na tua cegueira! 
Oh! Bem­aventurado o cego que quer viver com Deus. Mais ditoso do que 
vós que aqui estais, ele sente a felicidade, toca­a, vê as almas e pode alçar­se com 
elas às esferas espirituais que nem mesmo os predestinados da Terra logram divisar. 
Abertos, os olhos estão sempre prontos a causar a falência da alma; fechados, estão 
prontos  sempre,  ao  contrário,  a  fazê­la  subir  para  Deus.  Crede­me,  bons  e  caros 
amigos, a cegueira dos olhos é, muitas vezes, a verdadeira luz do coração, ao passo 
que a vista é, com freqüência, o anjo tenebroso que conduz à morte. 
Agora, algumas palavras dirigidas a ti, minha pobre sofredora. Espera e tem 
ânimo!  Se  eu  te  dissesse:  Minha  filha,  teus  olhos  vão  abrir­se,  quão  jubilosa  te 
sentirias! Mas, quem sabe se esse júbilo não ocasionaria a tua perda! Confia no bom 
Deus, que fez a ventura e permite a tristeza. Farei tudo o que me for consentido a teu 
favor; mas, a teu turno, ora e, ainda mais, pensa em tudo quanto acabo de te dizer. 
Antes que me vá, recebei todos vós, que aqui vos achais reunidos, a minha 
bênção. – Vianney, cura d’Ars. (Paris, 1863) 
21. Nota. Quando uma aflição não é conseqüência dos atos da vida presente, deve­ 
se­lhe  buscar  a  causa  numa  vida  anterior.  Tudo  aquilo  a  que  se  dá  o  nome  de 
8 
Esta comunicação foi dada com relação a uma pessoa cega, a cujo favor se evocara o Espírito de J.­B. 
Vianney, cura d’Ars.
99 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
caprichos  da  sorte  mais  não  é  do  que  efeito  da  justiça  de  Deus,  que  não  inflige 
punições arbitrárias, pois quer que a pena esteja sempre em correlação com a falta. 
Se, por sua bondade, lançou um véu sobre os nossos atos passados, por outro lado 
nos  aponta  o  caminho,  dizendo:  “Quem  matou  à  espada,  pela  espada  perecerá”, 
palavras que se podem traduzir assim: “A criatura é sempre punida por aquilo em 
que pecou.” Se, portanto, alguém sofre o tormento da perda da vista, é que esta lhe 
foi causa de queda. Talvez tenha sido também causa de que outro perdesse a vista; 
de  que  alguém haja  perdido  a  vista  em  conseqüência do  excesso  de  trabalho  que 
aquele lhe impôs, ou de maus­tratos, de falta de cuidados, etc. Nesse caso, passa ele 
pela  pena  de  talião.  É  possível  que  ele  próprio,  tomado  de  arrependimento,  haja 
escolhido essa expiação, aplicando a si estas palavras de Jesus: “Se o teu olho for 
motivo de escândalo, arranca­o.”
100 – Allan Kardec 
CAPÍTULO IX 
BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO
BRANDOS E PACÍFICOS
·  INJÚRIAS E VIOLÊNCIAS 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A AFABILIDADE E A DOÇURA
·  A PACIÊNCIA
·  OBEDIÊNCIA E RESIGNAÇÃO
·  A CÓLERA 
INJÚRIAS E VIOLÊNCIAS 
1. Bem­aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra. 
(MATEUS, 5:5) 
2. Bem­aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. 
(MATEUS, 5:9) 
3.  Sabeis  que  foi  dito aos  antigos:  Não matareis  e  quem quer  que  mate 
merecerá condenação pelo juízo. – Eu, porém, vos digo que quem quer que 
se puser em cólera contra seu irmão merecerá condenação no juízo; que 
aquele que disser a seu irmão: Raca, merecerá condenado pelo conselho; e 
que  aquele  que  lhe  disser:  És  louco,  merecerá  condenado  ao  fogo  do 
inferno. 
(MATEUS, 5:21 e 22) 
4.  Por  estas  máximas,  Jesus  faz  da  brandura,  da  moderação,  da  mansuetude,  da 
afabilidade e da paciência, uma lei. Condena, por conseguinte, a violência, a cólera e 
até toda expressão descortês de que alguém possa usar para com seus semelhantes. 
Raca, entre os hebreus, era um termo desdenhoso que significava – homem que não
101 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
vale nada, e se pronunciava cuspindo e virando para o lado a cabeça. Vai mesmo 
mais longe, pois que ameaça com o fogo do inferno aquele que disser a seu irmão: 
És louco. 
Evidente  se  torna  que  aqui,  como  em  todas  as  circunstâncias, a  intenção 
agrava ou atenua a falta; mas, em que pode uma simples palavra revestir­se de tanta 
gravidade que mereça tão severa reprovação? É que toda palavra ofensiva exprime 
um sentimento contrário à lei do amor e da caridade que deve presidir às relações 
entre os homens e manter entre eles a concórdia e a união; é que constitui um golpe 
desferido  na  benevolência recíproca  e  na  fraternidade;  é  que  entretém  o  ódio  e  a 
animosidade; é, enfim, que, depois da humildade para com Deus, a caridade para 
com o próximo é a lei primeira de todo cristão. 
5.  Mas,  que  queria  Jesus  dizer  por  estas  palavras:  “Bem­aventurados  os  que  são 
brandos,  porque  possuirão  a  Terra”,  tendo  recomendado  aos  homens  que 
renunciassem aos bens deste mundo e havendo­lhes prometido os do céu? 
Enquanto aguarda os bens do céu, tem o homem necessidade dos da Terra 
para viver. Apenas, o que ele lhe recomenda é que não ligue a estes últimos mais 
importância do que aos primeiros. 
Por  aquelas  palavras  quis  dizer  que  até  agora  os  bens  da  Terra  são 
açambarcados pelos violentos, em prejuízo dos que são brandos e pacíficos; que a 
estes falta muitas vezes o necessário, ao passo que outros têm o supérfluo. Promete 
que  justiça  lhes  será  feita, assim na  Terra  como  no  céu,  porque  serão  chamados 
filhos  de  Deus.  Quando  a  Humanidade  se  submeter  à  lei  de  amor  e  de  caridade, 
deixará  de  haver  egoísmo;  o  fraco  e  o  pacífico  já  não  serão  explorados,  nem 
esmagados pelo forte e pelo violento. Tal a condição da Terra, quando, de acordo 
com a lei do progresso e a promessa de Jesus, se houver tornado mundo ditoso, por 
efeito do afastamento dos maus. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A AFABILIDADE E A DOÇURA 
6. A benevolência para com os seus semelhantes, fruto do amor ao próximo, produz 
a afabilidade e a doçura, que lhe são as formas de manifestar­se. Entretanto, nem 
sempre há que fiar nas aparências. A educação e a freqüentação do mundo podem 
dar  ao  homem  o  verniz  dessas  qualidades.  Quantos  há  cuja  tingida  bonomia  não 
passa de máscara para o exterior, de uma roupagem cujo talhe primoroso dissimula 
as deformidades interiores! O mundo está cheio dessas criaturas que têm nos lábios 
o sorriso e no coração o veneno; que são brandas, desde que nada as agaste, mas 
que mordem à menor contrariedade; cuja língua, de ouro quando falam pela frente, 
se muda em dardo peçonhento, quando estão por detrás. 
A essa classe também pertencem esses homens, de exterior benigno, que, 
tiranos domésticos, fazem que suas famílias e seus subordinados lhes sofram o peso 
do orgulho e do despotismo, como a quererem desforrar­se do constrangimento que, 
fora de casa, se impõem a si mesmos. Não se atrevendo a usar de autoridade para
102 – Allan Kardec 
com os estranhos, que os chamariam à ordem, acham que pelo menos devem fazer­ 
se temidos daqueles que lhes não podem resistir. Envaidecem­se de poderem dizer: 
“Aqui mando e sou obedecido”, sem lhes ocorrer que poderiam acrescentar: “E sou 
detestado.”
Não basta que dos lábios manem leite e mel. Se o coração de modo algum 
lhes  está  associado,  só  há  hipocrisia.  Aquele  cuja  afabilidade  e  doçura  não  são 
tingidas nunca se desmente: é o mesmo, tanto em sociedade, como na intimidade. 
Esse, ao demais, sabe que se, pelas aparências, se consegue enganar os homens, a 
Deus ninguém engana. – Lázaro. (Paris, 1861) 
A PACIÊNCIA 
7. A dor é uma bênção que Deus envia a seus eleitos; não vos aflijais, pois, quando 
sofrerdes;  antes,  bendizei  de  Deus  onipotente  que,  pela  dor,  neste  mundo,  vos 
marcou para a glória no céu. 
Sede pacientes. A paciência também é uma caridade e deveis praticar a lei 
de  caridade  ensinada  pelo  Cristo,  enviado  de  Deus.  A  caridade  que  consiste  na 
esmola dada aos pobres é a mais fácil de todas. Outra há, porém, muito mais penosa 
e, conseguintemente, muito mais meritória: a de perdoarmos aos que Deus colocou 
em nosso caminho para serem instrumentos do nosso sofrer e para nos porem à 
prova a paciência. 
A vida é difícil, bem o sei. Compõe­se de mil nadas, que são outras tantas 
picadas de alfinetes, mas que acabam por ferir. Se, porém, atentarmos nos deveres 
que  nos  são  impostos,  nas  consolações  e  compensações  que,  por  outro  lado, 
recebemos, havemos de reconhecer que são as bênçãos muito mais numerosas do 
que  as  dores.  O  fardo  parece  menos  pesado,  quando  se  olha  para  o  alto,  do  que 
quando se curva para a terra a fronte. 
Coragem, amigos! Tendes no Cristo o  vosso modelo. Mais sofreu ele do 
que qualquer de vós e nada tinha de que se penitenciar, ao passo que vós tendes de 
expiar o vosso passado e de vos fortalecer para o futuro. Sede, pois, pacientes, sede 
cristãos. Essa palavra resume tudo. – Um Espírito amigo. (Havre, 1862) 
OBEDIÊNCIA E RESIGNAÇÃO 
8. A doutrina de Jesus ensina, em todos os seus pontos, a obediência e a resignação, 
duas  virtudes  companheiras  da  doçura  e  muito  ativas,  se  bem  os  homens 
erradamente as confundam com a negação do sentimento e da vontade. Aobediência 
é  o  consentimento da  razão;  a  resignação  é  o  consentimento  do coração,  forças 
ativas  ambas,  porquanto  carregam  o  fardo  das  provações  que  a  revolta  insensata 
deixa cair. O pusilânime não pode ser resignado, do mesmo modo que o orgulhoso e 
o egoísta não podem ser obedientes. Jesus foi a encarnação dessas virtudes que a 
antigüidade material desprezava. Ele veio no momento em que a sociedade romana 
perecia nos desfalecimentos da corrupção. Veio fazer que, no seio da Humanidade 
deprimida, brilhassem os triunfos do sacrifício e da renúncia carnal.
103 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Cada época é marcada, assim, com o cunho da virtude ou do vício que a 
tem de salvar ou perder. A virtude da vossa geração é a atividade intelectual; seu 
vício  é  a  indiferença  moral.  Digo,  apenas,  atividade,  porque  o  gênio  se  eleva  de 
repente e descobre, por si só, horizontes que a multidão somente mais tarde verá, 
enquanto  que  a  atividade  é  a  reunião  dos  esforços  de  todos  para  atingir  um  fim 
menos brilhante, mas que prova a elevação intelectual de uma época. Submetei­vos 
à impulsão que vimos dar aos vossos espíritos; obedecei à grande lei do progresso, 
que é a palavra da vossa geração. Ai do espírito preguiçoso, ai daquele que cerra o 
seu entendimento! Ai dele! Porquanto nós, que somos os guias da Humanidade em 
marcha, lhe aplicaremos o látego e lhe submeteremos a vontade rebelde, por meio da 
dupla ação do freio e da espora. Toda resistência orgulhosa terá de, cedo ou tarde, 
ser vencida. Bem­aventurados, no entanto, os que são brandos, pois prestarão dócil 
ouvido aos ensinos. – Lázaro. (Paris, 1863) 
A CÓLERA 
9.  O  orgulho  vos  induz  a  julgar­vos  mais  do  que  sois;  a  não  suportardes  uma 
comparação que vos possa rebaixar; a vos considerardes, ao contrário, tão acima dos 
vossos irmãos, quer em espírito, quer em posição social, quer mesmo em vantagens 
pessoais, que o menor paralelo vos irrita e aborrece. Que sucede então? – Entregai­ 
vos à cólera. 
Pesquisai  a  origem  desses  acessos  de  demência  passageira  que  vos 
assemelham ao bruto, fazendo­vos perder o sangue­frio e a razão; pesquisai e, quase 
sempre, deparareis com o orgulho ferido. Que é o que vos faz repelir, coléricos, os 
mais  ponderados  conselhos,  senão  o  orgulho  ferido  por  uma  contradição?  Até 
mesmo  as  impaciências,  que  se  originam  de  contrariedades  muitas  vezes  pueris, 
decorrem  da  importância  que  cada  um  liga  à  sua  personalidade,  diante  da  qual 
entende que todos se devem dobrar. 
Em  seu  frenesi,  o  homem  colérico  a  tudo  se  atira:  à  natureza  bruta,  aos 
objetos  inanimados,  quebrando­os  porque  lhe  não  obedecem.  Ah!  Se  nesses 
momentos  pudesse  ele  observar­se  a  sangue­frio,  ou  teria medo  de  si  próprio,  ou 
bem  ridículo  se  acharia!  Imagine  ele  por  aí  que  impressão  produzirá  nos  outros. 
Quando não fosse pelo respeito que deve a si mesmo, cumpria­lhe esforçar­se por 
vencer um pendor que o torna objeto de piedade. 
Se  ponderasse  que  a  cólera  a  nada  remedeia,  que  lhe  altera  a  saúde  e 
compromete  até  a  vida,  reconheceria  ser  ele  próprio  a  sua  primeira  vítima.  Mas, 
outra consideração, sobretudo, devera contê­lo, a de que torna infelizes todos os que 
o cercam. Se tem coração, não lhe será motivo de remorso fazer que sofram os entes 
a quem mais ama? E que pesar mortal se, num acesso de fúria, praticasse um ato que 
houvesse de deplorar toda a sua vida! 
Em suma, a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede se 
faça muito bem e pode levar à prática de muito mal. Isto deve bastar para induzir o 
homem  a  esforçar­se  pela  dominar.  O  espírita,  ao  demais,  é  concitado a  isso  por 
outro motivo: o de que a cólera é contrária à caridade e à humildade cristãs. – Um 
Espírito protetor. (Bordéus, 1863)
104 – Allan Kardec 
10.  Segundo  a  idéia  falsíssima  de  que  lhe  não  é  possível  reformar  a  sua  própria 
natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos 
defeitos em que de boa vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança 
para  serem  extirpados.  É  assim,  por  exemplo,  que  o  indivíduo,  propenso  a 
encolerizar­se, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se 
confessar culpado, lança a culpa ao seu organismo, acusando a Deus, dessa forma, 
de suas próprias faltas. É ainda uma conseqüência do orgulho que se  encontra de 
permeio a todas as suas imperfeições. 
Indubitavelmente, temperamentos há que se prestam mais que outros a atos 
violentos, como há músculos mais flexíveis que se prestam melhor aos atos de força. 
Não acrediteis, porém, que aí resida a causa primordial da cólera e persuadi­vos de 
que um Espírito pacífico, ainda que num corpo bilioso, será sempre pacífico, e que 
um  Espírito  violento,  mesmo  num  corpo  linfático,  não  será  brando;  somente,  a 
violência  tomará  outro  caráter.  Não  dispondo  de  um  organismo  próprio  a  lhe 
secundar a violência, a cólera tornar­se­á concentrada, enquanto no outro caso será 
expansiva. 
O corpo não dá cólera àquele que não na tem, do mesmo modo que não dá 
os outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito. A não 
ser assim, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem deformado não 
pode tornar­se direito, porque o Espírito nisso não pode atuar; mas, pode modificar o 
que é do Espírito, quando o quer com vontade firme. Não vos mostra a experiência, 
a  vós  espíritas,  até  onde  é  capaz  de  ir  o  poder  da  vontade,  pelas  transformações 
verdadeiramente miraculosas que se operam sob as vossas vistas? Compenetrai­vos, 
pois,  de  que  o  homem  não  se  conserva  vicioso,  senão  porque  quer  permanecer 
vicioso; de que aquele que queira corrigir­se sempre o pode. De outro modo, não 
existiria para o homem a lei do progresso. – Hahnemann. (Paris, 1863)
105 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO X 
BEM-AVENTURADOS OS
QUE SÃO MISERICORDIOSO
·  PERDOAI, PARA QUE DEUS OS PERDOE
·  RECONCILIAÇÃO COM OS ADVERSÁRIOS
·  O SACRIFÍCIO MAIS AGRADÁVEL A DEUS
·  O ARGUEIRO E A TRAVE NO OLHO
·  NÃO JULGUEIS, PARA NÃO SERDES JULGADOS – ATIRE 
A PRIMEIRA PEDRA AQUELE QUE ESTIVER SEM PECADO 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  PERDÃO DAS OFENSAS
·  A INDULGÊNCIA
·  É PERMITIDO REPREENDER OS OUTROS, NOTAR AS 
IMPERFEIÇÕES DE OUTREM, DIVULGAR O MAL DE 
OUTREM? 
PERDOAI, PARA QUE DEUS VOS PERDOE 
1.  “ Bem­aventurados  os  que  são  misericordiosos,  porque  obterão 
misericórdia”. 
(MATEUS, 5:7) 
2.  “ Se  perdoardes  aos  homens  as  faltas  que  cometerem  contra  vós, 
também  vosso  Pai  celestial  vos  perdoará  os  pecados;  mas,  se  não 
perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai celestial 
também não vos perdoará os pecados”. 
(MATEUS, 6:14 e 15)
106 – Allan Kardec 
3.  “ Se  contra  vós  pecou  vosso  irmão,  ide  fazer­lhe  sentir  a  falta  em 
particular,  a  sós  com  ele;  se  vos  atender,  tereis  ganho  o  vosso  irmão”. 
Então,  aproximando­se  dele,  disse­lhe  Pedro:  “Senhor,  quantas  vezes 
perdoarei  a  meu  irmão,  quando  houver  pecado  contra  mim?  Até  sete 
vezes?” Respondeu­lhe Jesus: “Não vos digo que perdoeis até sete vezes, 
mas até setenta vezes sete vezes.” 
(MATEUS, 18:15, 21 e 22) 
4.  A  misericórdia  é  o  complemento  da  brandura,  porquanto  aquele  que  não  for 
misericordioso não poderá ser brando e pacífico. Ela consiste no esquecimento e no 
perdão das ofensas. O ódio e o rancor denotam alma sem elevação, nem grandeza. O 
esquecimento das ofensas é próprio da alma elevada, que paira acima dos golpes que 
lhe possam desferir. Uma é sempre ansiosa, de sombria suscetibilidade e cheia de 
fel; a outra é calma, toda mansidão e caridade. 
Ai  daquele  que  diz:  nunca  perdoarei.  Esse,  se  não  for  condenado  pelos 
homens, sê­lo­á por Deus. Com que direito reclamaria ele o perdão de suas próprias 
faltas, se não perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter 
limites, quando diz que cada um perdoe ao seu irmão, não sete vezes, mas setenta 
vezes sete vezes. 
Há, porém, duas maneiras bem diferentes de perdoar: uma, grande, nobre, 
verdadeiramente generosa, sem pensamento oculto, que evita, com delicadeza, ferir 
o amor­próprio e a suscetibilidade do adversário, ainda quando este último nenhuma 
justificativa possa ter; a segunda é a em que o ofendido, ou aquele que tal se julga, 
impõe  ao  outro  condições  humilhantes  e  lhe  faz  sentir  o  peso  de  um  perdão  que 
irrita, em vez de acalmar; se estende a mão ao ofensor, não o faz com benevolência, 
mas com ostentação, a fim de poder dizer a toda gente: vede como sou generoso! 
Nessas circunstâncias, é impossível uma reconciliação sincera de parte a parte. Não, 
não  há  aí  generosidade;  há  apenas  uma  forma  de  satisfazer  ao  orgulho.  Em  toda 
contenda, aquele que se mostra mais conciliador, que demonstra mais desinteresse, 
caridade  e  verdadeira  grandeza  d’alma  granjeará  sempre  a  simpatia  das  pessoas 
imparciais. 
RECONCILIAÇÃO COM OS ADVERSÁRIOS 
5.  “ Reconciliai­vos  o  mais  depressa  possível  com  o  vosso  adversário, 
enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, 
o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. 
Digo­vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o 
último ceitil”. 
(MATEUS, 5:25 e 26) 
6.  Na  prática  do  perdão,  como,  em  geral, na  do  bem,  não  há  somente  um  efeito 
moral: há também um efeito material. A morte, como sabemos, não nos livra dos 
nossos inimigos; os Espíritos vingativos perseguem, muitas vezes, com seu ódio, no 
além­túmulo, aqueles contra os quais guardam rancor; donde decorre a falsidade do
107 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
provérbio que diz: “Morto o animal, morto o veneno”, quando aplicado ao homem. 
O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao seu corpo e, 
assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar, ferir nos seus interesses, ou 
nas  suas  mais  caras  afeições.  Nesse  fato  reside  a  causa  da  maioria  dos  casos  de 
obsessão, sobretudo dos que apresentam certa gravidade, quais os de subjugação e 
possessão.  O  obsidiado  e  o  possesso  são,  pois,  quase  sempre  vítimas  de  uma 
vingança, cujo motivo se encontra em existência anterior, e à qual o que a sofre deu 
lugar  pelo  seu  proceder.  Deus  o  permite,  para  os  punir  do  mal  que  a  seu  turno 
praticaram,  ou,  se  tal  não  ocorreu,  por  haverem  faltado  com  a  indulgência  e  a 
caridade,  não  perdoando.  Importa,  conseguintemente,  do  ponto  de  vista  da 
tranqüilidade futura, que cada um repare, quanto antes, os agravos que haja causado 
ao seu próximo, que perdoe aos seus inimigos, a fim de que, antes que a morte lhe 
chegue, esteja apagado qualquer motivo de dissensão, toda causa fundada de ulterior 
animosidade. Por essa forma, de um inimigo encarniçado neste mundo se pode fazer 
um amigo no outro; pelo menos, o que assim procede põe de seu lado o bom direito 
e Deus não consente que aquele que perdoou sofra qualquer vingança. Quando Jesus 
recomenda que nos reconciliemos o mais cedo possível com o nosso adversário, não 
é somente objetivando apaziguar as discórdias no curso da nossa atual existência; é, 
principalmente, para que elas se não perpetuem nas existências futuras. Não saireis 
de lá, da prisão, enquanto não houverdes pago até o último centavo, isto é, enquanto 
não houverdes satisfeito completamente a justiça de Deus. 
O SACRIFÍCIO MAIS AGRADÁVEL A DEUS 
7.  “ Se,  portanto,  quando  fordes  depor  vossa  oferenda  no  altar,  vos 
lembrardes de que o vosso irmão tem qualquer coisa contra vós, deixai a 
vossa dádiva junto ao altar e ide, antes, reconciliar­vos com o vosso irmão; 
depois, então, voltai a oferecê­la”. 
(MATEUS, 5:23 e 24) 
8. Quando diz: “Ide reconciliar­vos com o vosso irmão, antes de depordes a vossa 
oferenda no altar”, Jesus ensina que o sacrifício mais agradável ao Senhor é o que o 
homem faça do seu próprio ressentimento; que, antes de se apresentar para ser por 
ele perdoado, precisa o homem haver perdoado e reparado o agravo que tenha feito a 
algum de seus irmãos. Só então a sua oferenda será bem­aceita, porque virá de um 
coração expungido de todo e qualquer pensamento mau. Ele materializou o preceito, 
porque  os  judeus  ofereciam  sacrifícios  materiais;  cumpria­lhe  conformar  suas 
palavras aos  usos  ainda  em  voga.  O  cristão  não  oferece dons  materiais,  pois  que 
espiritualizou o sacrifício. Com isso, porém, o preceito ainda mais força ganha. Ele 
oferece sua alma a Deus e essa alma tem de ser purificada. Entrando no templo do 
Senhor, deve ele deixar fora todo sentimento de ódio e de animosidade, todo mau 
pensamento  contra  seu  irmão.  Só  então  os  anjos  levarão  sua  prece  aos  pés  do 
Eterno. Eis aí o que ensina Jesus por estas palavras: “Deixai a vossa oferenda junto 
do altar e ide primeiro reconciliar­vos com o vosso irmão, se quiserdes ser agradável 
ao Senhor.”
108 – Allan Kardec 
O ARGUEIRO E A TRAVE NO OLHO 
9. “ Como é que vedes um argueiro no olho do vosso irmão, quando não 
vedes uma trave no vosso olho? Ou, como é que dizeis ao vosso irmão: 
Deixa­me  tirar  um  argueiro  do  teu  olho,  vós  que  tendes  no  vosso  uma 
trave? Hipócritas, tirai primeiro a trave do vosso olho e depois, então, vede 
como podereis tirar o argueiro do olho do vosso irmão”. 
(MATEUS, 7:3 a 5) 
10.  Uma  das  insensatezes  da  Humanidade  consiste  em  vermos  o  mal  de  outrem, 
antes de vermos o mal que está em nós. Para julgar­se a si mesmo, fora preciso que 
o homem pudesse ver seu interior num espelho, pudesse, de certo modo, transportar­ 
se  para  fora  de  si  próprio,  considerar­se  como  outra  pessoa  e  perguntar:  Que 
pensaria eu, se visse alguém fazer o que faço? Incontestavelmente, é o orgulho que 
induz o homem a dissimular, para si mesmo, os seus defeitos, tanto morais, quanto 
físicos.  Semelhante  insensatez  é  essencialmente  contrária  à  caridade,  porquanto  a 
verdadeira  caridade  é  modesta,  simples  e  indulgente.  Caridade  orgulhosa  é  um 
contra­senso,  visto  que  esses  dois  sentimentos  se  neutralizam  um  ao  outro.  Com 
efeito, como poderá um homem, bastante presunçoso para acreditar na importância 
da sua personalidade e na supremacia das suas qualidades, possuir ao mesmo tempo 
abnegação bastante para fazer ressaltar em outrem o bem que o eclipsaria, em vez do 
mal que o exalçaria? Por isso mesmo, porque é o pai de muitos vícios, o orgulho é 
também  a negação  de  muitas  virtudes.  Ele  se  encontra na base  e  como  móvel  de 
quase todas as ações humanas. Essa a razão por que Jesus se empenhou tanto em 
combatê­lo, como principal obstáculo ao progresso. 
NÃO JULGUEIS, PARA NÃO SERDES JULGADOS. 
ATIRE A PRIMEIRA PEDRA AQUELE QUE ESTIVER SEM PECADO 
11. “ Não julgueis, a fim de não serdes julgados; porquanto sereis julgados 
conforme houverdes julgado os outros; empregar­se­á convosco a mesma 
medida de que vos tenhais servido para com os outros”. 
(MATEUS, 7:1 e 2) 
12.  Então, os  escribas  e  os  fariseus  lhe  trouxeram  uma mulher  que  fora 
surpreendida em adultério e, pondo­a de pé no meio do povo, disseram a 
Jesus: “Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em adultério; ora, 
Moisés, pela lei, ordena que se lapidem as adúlteras. Qual sobre isso a tua 
opinião?”  Diziam  isto  para  o  tentarem  e  terem  de  que  o  acusar.  Jesus, 
porém,  abaixando­se,  entrou  a  escrever  na  terra  com  o  dedo.  Como 
continuavam a interrogá­lo, ele se levantou e disse: “Aquele dentre vós que 
estiver sem pecado, atire a primeira pedra.” Em seguida, abaixando­se de 
novo,  continuou  a  escrever  no  chão.  Quanto  aos  que  o  interrogavam, 
esses,  ouvindo­o  falar  daquele  modo,  se  retiraram,  um  após  outro, 
afastando­se  primeiro os  velhos.  Ficou,  pois,  Jesus  a  sós com a mulher, 
colocada  no  meio  da  praça.  Então,  levantando­se,  perguntou­lhe  Jesus:
109 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
“Mulher,  onde  estão  os  que  te  acusavam?  Ninguém  te  condenou?”  Ela 
respondeu:  “Não,  Senhor.”  Disse­lhe  Jesus:  “Também  eu  não  te 
condenarei. Vai­te e de futuro não tornes a pecar.” 
(JOÃO, 8:3 a 11) 
13. “Atire­lhe a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado”, disse Jesus. 
Essa sentença faz da indulgência um dever para nós outros, porque ninguém há que 
não  necessite,  para  si  próprio,  de  indulgência.  Ela  nos  ensina  que  não  devemos 
julgar  com  mais  severidade  os  outros,  do  que  nos  julgamos  a  nós  mesmos,  nem 
condenar em outrem aquilo de que nos absolvemos. Antes de profligarmos a alguém 
uma falta, vejamos se a mesma censura não nos pode ser feita. 
O  reproche  lançado  à  conduta  de  outrem  pode  obedecer  a  dois  móveis: 
reprimir  o  mal,  ou  desacreditar  a  pessoa  cujos  atos  se  criticam.  Não  tem  escusa 
nunca  este  último  propósito,  porquanto,  no  caso,  então,  só  há  maledicência  e 
maldade. O primeiro pode ser louvável e constitui mesmo, em certas ocasiões, um 
dever,  porque  um  bem  deverá  daí resultar,  e  porque,  a não  ser  assim,  jamais, na 
sociedade, se reprimiria o mal. Não cumpre, aliás, ao homem auxiliar o progresso do 
seu semelhante? Importa, pois, não se tome em sentido absoluto este princípio: “Não 
julgueis se não quiserdes ser julgado”, porquanto a letra mata e o espírito vivifica. 
Não é possível que Jesus haja proibido se profligue o mal, uma vez que ele 
próprio  nos  deu  o  exemplo,  tendo­o  feito,  até,  em  termos  enérgicos.  O  que  quis 
significar é que a autoridade para censurar está na razão direta da autoridade moral 
daquele  que  censura.  Tornar­se  alguém  culpado  daquilo  que  condena  noutrem  é 
abdicar dessa autoridade, é privar­se do direito de repressão. A consciência íntima, 
ao demais, nega respeito e submissão voluntária àquele que, investido de um poder 
qualquer,  viola  as  leis  e  os  princípios  de  cuja  aplicação  lhe  cabe  o  encargo. Aos 
olhos de Deus, uma única autoridade legítima existe: a que se apóia no exemplo que 
dá do bem. É o que, igualmente, ressalta das palavras de Jesus. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
PERDÃO DAS OFENSAS 
14.  Quantas  vezes  perdoarei  a  meu  irmão?  Perdoar­lhe­­eis,  não  sete  vezes,  mas 
setenta vezes sete vezes. Aí tendes um dos ensinos de Jesus que mais vos devem 
percutir  a  inteligência  e  mais  alto  falar  ao  coração.  Confrontai  essas  palavras  de 
misericórdia  com  a  oração  tão  simples,  tão  resumida  e  tão  grande  em  suas 
aspirações, que ensinou a seus discípulos, e o mesmo pensamento se vos deparará 
sempre.  Ele,  o  justo  por  excelência,  responde  a  Pedro:  perdoarás,  mas 
ilimitadamente; perdoarás cada ofensa tantas vezes quantas ela te for feita; ensinarás 
a teus irmãos esse esquecimento de si mesmo, que torna uma criatura invulnerável 
ao ataque, aos maus procedimentos e às injúrias; serás brando e humilde de coração, 
sem medir a tua mansuetude; farás, enfim, o que desejas que o Pai celestial por ti 
faça. Não está ele a te perdoar freqüentemente? Conta porventura as vezes que o seu 
perdão desce a te apagar as faltas?
110 – Allan Kardec 
Prestai, pois, ouvidos a essa resposta de Jesus e, como Pedro, aplicai­a a 
vós mesmos. Perdoai, usai de indulgência, sede caridosos, generosos, pródigos até 
do vosso amor. Dai, que o Senhor vos restituirá; perdoai, que o Senhor vos perdoará; 
abaixai­vos, que o Senhor vos elevará; humilhai­vos, que o Senhor fará vos assenteis 
à sua direita. 
Ide, meus bem­amados, estudai e comentai estas palavras que vos dirijo da 
parte d’Aquele que, do alto dos esplendores celestes, vos tem sempre sob as suas 
vistas e prossegue com amor na tarefa ingrata a que deu começo faz dezoito séculos. 
Perdoai  aos  vossos  irmãos,  como  precisais  que  se  vos  perdoe.  Se  seus  atos 
pessoalmente vos prejudicaram, mais um motivo aí tendes para serdes indulgentes, 
porquanto  o  mérito  do  perdão  é  proporcionado  à  gravidade  do  mal.  Nenhum 
merecimento  teríeis  em  relevar  os  agravos  dos  vossos  irmãos,  desde  que  não 
passassem de simples arranhões. 
Espíritas, jamais vos esqueçais de que, tanto por palavras, como por atos, o 
perdão das injúrias não deve ser um termo vão. Pois que vos dizeis espíritas, sede­o. 
Olvidai  o  mal  que  vos  hajam  feito  e  não  penseis  senão numa  coisa: no  bem  que 
podeis fazer. Aquele que enveredou por esse caminho não tem que se afastar daí, 
ainda  que  por  pensamento,  uma  vez  que  sois  responsáveis  pelos  vossos 
pensamentos, os quais todos Deus conhece. Cuidai, portanto, de os expungir de todo 
sentimento de rancor. Deus sabe o que demora no fundo do coração de cada um de 
seus filhos. Feliz, pois, daquele que pode todas as noites adormecer, dizendo: Nada 
tenho contra o meu próximo. – Simeão. (Bordéus, 1862) 
15. Perdoar aos inimigos é pedir perdão para si próprio; perdoar aos amigos é dar­ 
lhes  uma  prova  de  amizade;  perdoar  as  ofensas  é  mostrar­se  melhor  do  que  era. 
Perdoai, pois,  meus  amigos,  a  fim  de  que  Deus  vos  perdoe,  porquanto,  se  fordes 
duros,  exigentes,  inflexíveis,  se  usardes  de  rigor  até  por  uma  ofensa  leve,  como 
querereis  que  Deus  esqueça  de  que  cada  dia  maior  necessidade  tendes  de 
indulgência?  Oh!  Ai  daquele  que  diz:  “Nunca  perdoarei”,  pois  pronuncia  a  sua 
própria condenação. Quem sabe, aliás, se, descendo ao fundo de vós mesmos, não 
reconhecereis que fostes o agressor? Quem sabe se, nessa luta que começa por uma 
alfinetada e acaba por uma ruptura, não fostes quem atirou o primeiro golpe, se vos 
não  escapou  alguma  palavra injuriosa,  se  não  procedestes  com  toda  a  moderação 
necessária?  Sem  dúvida,  o  vosso  adversário  andou  mal  em  se  mostrar 
excessivamente  suscetível;  razão  de  mais  para  serdes  indulgentes  e  para  não  vos 
tornardes  merecedores  da  invectiva  que  lhe  lançastes.  Admitamos  que,  em  dada 
circunstância, fostes realmente ofendido: quem dirá que não envenenastes as coisas 
por  meio  de  represálias  e  que  não  fizestes  degenerasse  em  querela  grave  o  que 
houvera  podido  cair  facilmente  no  olvido?  Se  de  vós  dependia  impedir  as 
conseqüências do fato e não as impedistes, sois culpados. Admitamos, finalmente, 
que de nenhuma censura vos reconheceis merecedores: mostrai­vos clementes e com 
isso só fareis que o vosso mérito cresça. 
Mas, há duas maneiras bem diferentes de perdoar: há o perdão dos lábios e 
o perdão do coração. Muitas pessoas dizem, com referência ao seu adversário: “Eu 
lhe perdôo”, mas, interiormente, alegram­se com o mal que lhe advém, comentando 
que ele tem o que merece. Quantos não dizem: “Perdôo” e acrescentam: “mas, não
111 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
me reconciliarei nunca; não quero tornar a vê­lo em toda a minha vida.” Será esse o 
perdão, segundo o Evangelho? Não; o perdão verdadeiro, o perdão cristão é aquele 
que lança um véu sobre o passado; esse o único que vos será levado em conta, visto 
que Deus não se satisfaz com as aparências. Ele sonda o recesso do coração e os 
mais secretos pensamentos. Ninguém se lhe impõe por meio de vãs palavras e de 
simulacros. O esquecimento completo e absoluto das ofensas é peculiar às grandes 
almas;  o  rancor  é  sempre  sinal de  baixeza  e  de  inferioridade.  Não  olvideis  que  o 
verdadeiro  perdão  se  reconhece  muito  mais  pelos  atos  do  que  pelas  palavras.  – 
Paulo, apóstolo. (Lião,1861) 
A INDULGÊNCIA 
16. Espíritas, queremos falar­vos hoje da indulgência, sentimento doce e  fraternal 
que todo homem deve alimentar para com seus irmãos, mas do qual bem poucos 
fazem uso. 
A indulgência não vê os defeitos de outrem, ou, se os vê, evita falar deles, 
divulgá­los. Ao contrário, oculta­os, a fim de que se não tornem conhecidos senão 
dela unicamente, e, se a malevolência os descobre, tem sempre pronta uma escusa 
para eles, escusa plausível, séria, não das que, com aparência de atenuar a falta, mais 
a evidenciam com pérfida intenção. 
A indulgência jamais se ocupa com os maus atos de outrem, a menos que 
seja para prestar um serviço; mas, mesmo neste caso, tem o cuidado de os atenuar 
tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, não tem nos lábios censuras; 
apenas conselhos e, as mais das vezes, velados. Quando criticais, que conseqüência 
se há de tirar das vossas palavras? A de que não tereis feito o que reprovais, visto 
que, estais a censurar; que valeis mais do que o culpado. Ó homens! Quando será 
que  julgareis  os  vossos  próprios  corações,  os  vossos  próprios  pensamentos,  os 
vossos próprios atos, sem vos ocupardes com o que fazem vossos irmãos? Quando 
só tereis olhares severos sobre vós mesmos? 
Sede,  pois,  severos  para  convosco,  indulgentes  para  com  os  outros. 
Lembrai­vos daquele que julga em última instância, que vê os pensamentos íntimos 
de  cada  coração  e  que,  por  conseguinte,  desculpa  muitas  vezes  as  faltas  que 
censurais,  ou  condena  o  que  relevais,  porque  conhece  o  móvel  de  todos  os  atos. 
Lembrai­vos  de  que  vós,  que  clamais  em  altas  vozes:  anátema!  Tereis,  quiçá, 
cometido faltas mais graves. 
Sede  indulgentes,  meus  amigos,  porquanto  a  indulgência  atrai,  acalma, 
ergue,  ao  passo  que  o  rigor  desanima,  afasta  e  irrita.  –  José,  Espírito  protetor. 
(Bordéus, 1863) 
17. Sede indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não julgueis 
com severidade senão as vossas próprias ações e o Senhor usará de indulgência para 
convosco, como de indulgência houverdes usado para com os outros. 
Sustentai  os  fortes:  animai­os  à  perseverança.  Fortalecei  os  fracos, 
mostrando­lhes  a  bondade  de  Deus,  que  leva  em  conta  o  menor  arrependimento; 
mostrai a todos o anjo da penitência estendendo suas brancas asas sobre as faltas dos
112 – Allan Kardec 
humanos  e  velando­as  assim  aos  olhares  daquele  que  não  pode  tolerar  o  que  é 
impuro.  Compreendei  todos  a  misericórdia  infinita  de  vosso  Pai  e  não  esqueçais 
nunca  de  lhe  dizer,  pelos  pensamentos,  mas,  sobretudo,  pelos  atos:  “Perdoai  as 
nossas ofensas, como perdoamos aos que nos hão ofendido.” Compreendei bem o 
valor  destas  sublimes  palavras,  nas  quais  não  somente  a  letra  é  admirável,  mas 
principalmente o ensino que ela veste. 
Que é o que pedis ao Senhor, quando implorais para vós o seu perdão? Será 
unicamente  o  olvido  das  vossas  ofensas?  Olvido  que  vos  deixaria  no  nada, 
porquanto, se Deus se limitasse a esquecer as vossas faltas, Ele não puniria, é exato, 
mas tampouco recompensaria.  A recompensa não  pode  constituir  prêmio  do  bem 
que não foi feito, nem, ainda menos, do mal que se haja praticado, embora esse mal 
fosse esquecido. Pedindo­lhe que perdoe os vossos desvios, o que lhe pedis é o favor 
de  suas  graças,  para  não  reincidirdes  neles,  é  a  força  de  que  necessitais  para 
enveredar por outras sendas, as da submissão e do amor, nas quais podereis juntar ao 
arrependimento a reparação. 
Quando perdoardes aos vossos irmãos, não vos contenteis com o estender o 
véu  do  esquecimento  sobre  suas  faltas,  porquanto,  as  mais  das  vezes,  muito 
transparente é esse véu para os olhares vossos. Levai­lhes simultaneamente, com o 
perdão, o amor; fazei por eles o que pediríeis fizesse o vosso Pai celestial por vós. 
Substituí a  cólera  que  conspurca, pelo  amor  que purifica. Pregai,  exemplificando, 
essa  caridade  ativa,  infatigável,  que  Jesus  vos  ensinou;  pregai­a,  como  ele  o  fez 
durante todo o tempo em que esteve na Terra, visível aos olhos corporais e como 
ainda a prega incessantemente, desde que se tornou visível tão­somente aos olhos do 
Espírito. Segui esse modelo divino; caminhai em suas pegadas; elas vos conduzirão 
ao refúgio onde encontrareis o repouso após a luta. Como ele, carregai todos vós as 
vossas  cruzes  e  subi  penosamente,  mas  com  coragem,  o  vosso  calvário,  em  cujo 
cimo está a glorificação. – João, bispo de Bordéus. (1862) 
18. Caros amigos, sede severos convosco, indulgentes para as fraquezas dos outros. 
É esta uma prática da santa caridade, que bem poucas pessoas observam. Todos vós 
tendes maus pendores a vencer, defeitos a corrigir, hábitos a modificar; todos tendes 
um fardo mais ou menos pesado a alijar, para poderdes galgar o cume da montanha 
do progresso. Por que, então, haveis de mostrar­vos tão clarividentes com relação ao 
próximo e tão cegos com relação a vós mesmos? Quando deixareis de perceber, nos 
olhos de vossos irmãos, o pequenino argueiro que os incomoda, sem atentardes na 
trave que, nos vossos olhos, vos cega, fazendo­vos ir de queda em queda? Crede nos 
vossos  irmãos,  os  Espíritos.  Todo  homem,  bastante  orgulhoso  para  se  julgar 
superior, em virtude e mérito, aos seus irmãos encarnados, é insensato e culpado: 
Deus o castigará no dia da sua justiça. O verdadeiro caráter da caridade é a modéstia 
e a humildade, que consistem em ver cada um apenas superficialmente os defeitos 
de outrem e esforçar­se por fazer que prevaleça o que há nele de bom e virtuoso, 
porquanto,  embora  o  coração  humano  seja  um  abismo  de  corrupção,  sempre  há, 
nalgumas de suas dobras mais ocultas, o gérmen de bons sentimentos, centelha vivaz 
da essência espiritual. 
Espiritismo! Doutrina consoladora e bendita! Felizes dos que te conhecem e 
tiram  proveito  dos  salutares  ensinamentos  dos  Espíritos  do  Senhor!  Para  esses,
113 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
iluminado  está  o  caminho,  ao  longo  do  qual  podem  ler  estas  palavras  que  lhes 
indicam  o  meio  de  chegarem  ao  termo  da  jornada:  caridade  prática,  caridade  do 
coração, caridade para com o próximo, como para si mesmo; numa palavra: caridade 
para  com  todos  e  amor  a  Deus  acima  de  todas  as  coisas,  porque  o  amor  a  Deus 
resume todos os deveres e porque impossível é amar realmente a Deus, sem praticar 
a caridade, da qual fez ele uma lei para todas as criaturas. Dufêtre, bispo de Nevers. 
(Bordéus) 
É PERMITIDO REPREENDER OS OUTROS, NOTAR AS IMPERFEIÇÕES 
DE OUTREM, DIVULGAR O MAL DE OUTREM? 
19. Ninguém sendo perfeito, seguir­se­á que ninguém tem o direito de repreender o 
seu próximo? 
Certamente que não é essa a conclusão a tirar­se, porquanto cada um de vós 
deve  trabalhar  pelo  progresso  de  todos  e,  sobretudo,  daqueles  cuja  tutela  vos  foi 
confiada. Mas, por isso mesmo, deveis fazê­lo com moderação, para um fim útil, e 
não,  como  as  mais  das  vezes,  pelo  prazer  de  denegrir.  Neste  último  caso,  a 
repreensão  é  uma  maldade;  no  primeiro,  é  um  dever  que  a  caridade  manda  seja 
cumprido com  todo  o  cuidado  possível.  Ao  demais, a  censura  que alguém  faça a 
outrem deve ao mesmo tempo dirigi­la a si próprio, procurando saber se não a terá 
merecido. – S. Luís. (Paris, 1860) 
20. Será repreensível notarem­se as imperfeições dos outros, quando daí nenhum 
proveito possa resultar para eles, uma vez que não sejam divulgadas? 
Tudo depende da intenção. Decerto, a ninguém é defeso ver o mal, quando 
ele  existe.  Fora mesmo  inconveniente  ver  em  toda a  parte  só  o  bem.  Semelhante 
ilusão prejudicaria o progresso. O erro está no fazer­se que a observação redunde em 
detrimento  do  próximo,  desacreditando­o,  sem  necessidade,  na  opinião  geral. 
Igualmente  repreensível  seria  fazê­lo  alguém  apenas  para  dar  expansão  a  um 
sentimento  de  malevolência  e  à  satisfação  de  apanhar  os  outros  em  falta.  Dá­se 
inteiramente o contrário quando, estendendo sobre o mal um véu, para que o público 
não o veja, aquele que note os defeitos do próximo o faça em seu proveito pessoal, 
isto é, para se exercitar em evitar o que reprova nos outros. Essa observação, em 
suma, não é proveitosa ao moralista? Como pintaria ele os defeitos humanos, se não 
estudasse os modelos? – S. Luís (Paris, 1860) 
21. Haverá casos em que convenha se desvende o mal de outrem? 
É muito delicada esta questão e, para resolvê­la, necessário se torna apelar 
para  a  caridade  bem  compreendida.  Se  as  imperfeições  de  uma  pessoa  só  a  ela 
prejudicam,  nenhuma  utilidade  haverá  nunca  em  divulgá­la.  Se,  porém,  podem 
acarretar prejuízo a terceiros, deve­se atender de preferência ao interesse do maior 
número.  Segundo  as  circunstâncias,  desmascarar  a  hipocrisia  e  a  mentira  pode 
constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas 
vítimas. Em tal caso, deve­se pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes. – 
São Luís (Paris, 1860)
114 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XI 
AMAR O PRÓXIMO
COMO A SI MESMO
·  O MANDAMENTO MAIOR: FAZERMOS AOS OUTROS O 
QUE QUEIRAMOS QUE OS OUTROS NOS FAÇAM. 
PARÁBOLA DOS CREDORES E DOS DEVEDORES
·  DAÍ A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A LEI DO AMOR
·  O EGOÍSMO
·  A FÉ E A CARIDADE
·  CARIDADE PARA COM OS CRIMINOSOS
·  DEVE­SE EXPOR A VIDA POR UM MALFEITOR? 
O MANDAMENTO MAIOR. 
FAZERMOS AOS OUTROS O QUE QUEIRAMOS QUE OS OUTROS NOS 
FAÇAM. 
PARÁBOLA DOS CREDORES E DOS DEVEDORES 
1.  Os  fariseus,  tendo  sabido  que  Ele  tapara  a  boca  aos  saduceus, 
reuniram­se; e um deles, que era doutor da lei, para O tentar, propôs­lhe 
esta questão: “Mestre, qual o mandamento maior da lei?” Jesus respondeu: 
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de 
todo o teu espírito; este o maior e o primeiro mandamento. e aqui tendes o 
segundo,  semelhante  a  esse:  amarás  o  teu  próximo,  como  a  ti  mesmo. 
Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.” 
(MATEUS, 22: 34 a 40) 
2. “Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam, pois é nisto 
que consistem a lei e os profetas”. 
(Idem, 7:12)
115 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
“Tratai todos os homens como quereríeis que eles vos tratassem”. 
(LUCAS, 6:31) 
3. O reino dos céus é comparável a um rei que quis tomar contas aos seus 
servidores. Tendo começado a fazê­lo, apresentaram­lhe um que lhe devia 
dez  mil  talentos.  Mas,  como  não  tinha  meios  de  os  pagar,  mandou  seu 
senhor que o vendessem a ele, sua mulher, seus filhos e tudo o que lhe 
pertencesse,  para  pagamento  da  dívida.  O  servidor,  lançando­se­lhe  aos 
pés,  o  conjurava,  dizendo:  “Senhor,  tem  um pouco  de  paciência  e  eu  te 
pagarei  tudo”  Então,  o  senhor,  tocado  de  compaixão,  deixou­o  ir  e  lhe 
perdoou a dívida. Esse servidor, porém, ao sair encontrando um de seus 
companheiros, que lhe devia cem dinheiros, o segurou pela goela e, quase 
a estrangulá­lo dizia: “Paga o que me deves.” O companheiro, lançando­se­ 
lhe aos  pés,  o  conjurava,  dizendo:  “Tem  um  pouco  de  paciência  e  eu  te 
pagarei tudo: Mas o outro não quis escutá­lo; foi­se e o mandou prender, 
para  tê­lo  preso  até  pagar  o  que  lhe  devia.  Os  outros  servidores,  seus 
companheiros,  vendo  o  que  se  passava,  foram,  extremamente  aflitos,  e 
informaram  o  senhor  de  tudo  o  que  acontecera.  Então,  o  senhor,  tendo 
mandado vir à sua presença aquele servidor, lhe disse: “Mau servo, eu te 
havia  perdoado  tudo  o  que  me  devias,  porque  mo  pediste.  Não  estavas 
desde então no dever de também ter piedade do teu companheiro, como eu 
tivera de ti?”E o senhor, tomado de cólera, o entregou aos verdugos, para 
que o tivessem, até que ele pagasse tudo o que devia. 
É  assim  que  meu  Pai,  que  está  no  céu,  vos  tratará,  se  não 
perdoardes, do fundo do coração, as faltas que vossos irmãos houverem 
cometido contra cada um de vós. 
(MATEUS, 18:23 a 35) 
4. “Amar o próximo como a si mesmo: fazer pelos outros o que quereríamos que os 
outros fizessem por nós”, é a expressão mais completa da caridade, porque resume 
todos os deveres do homem para com o próximo. Não podemos encontrar guia mais 
seguro,  a  tal  respeito,  que  tomar  para  padrão,  do  que  devemos  fazer  aos  outros, 
aquilo que para nós desejamos. Com que direito exigiríamos dos nossos semelhantes 
melhor proceder, mais indulgência, mais benevolência e devotamento para conosco, 
do que  os temos para com eles? A prática dessas máximas tende à destruição do 
egoísmo. Quando as adotarem para regra de conduta e para base de suas instituições, 
os homens compreenderão a verdadeira fraternidade e farão que entre eles reinem a 
paz e a justiça. Não mais haverá ódios, nem dissensões, mas, tão­somente, união, 
concórdia e benevolência mútua. 
DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR 
5.  Os  fariseus,  tendo­se  retirado,  entenderam­se  entre  si  para  enredá­lo 
com  as  suas  próprias  palavras.  Mandaram  então  seus  discípulos,  em 
companhia dos herodianos, dizer­lhe: “Mestre, sabemos que és veraz e que 
ensinas o caminho de Deus pela verdade, sem levares em conta a quem 
quer que seja, porque, nos homens, não consideras as pessoas. Dize­nos,
116 – Allan Kardec 
pois,  qual  a  tua  opinião  sobre  isto:  É­nós  permitido  pagar  ou  deixar  de 
pagar a César o tributo?” 
Jesus, porém, que lhes conhecia a malícia, respondeu: “Hipócritas, 
por  que  me  tentais?  Apresentai­me  uma  das  moedas  que  se  dão  em 
pagamento  do  tributo”.  E,  tendo­lhe  eles  apresentado  um  denário, 
perguntou  Jesus:  “De  quem  são  esta  imagem  e  esta  inscrição?”  –  De 
César, responderam eles. Então, observou­lhes Jesus: “Dai, pois, a César o 
que é de César e a Deus o que é de Deus”. 
Ouvindo­o falar dessa maneira, admiraram­se eles da sua resposta 
e, deixando­o, se retiraram. 
(MATEUS, 22:15 a 22; MARCOS, 12:13 a 17) 
6.  A  questão  proposta  a  Jesus  era  motivada  pela  circunstância  de  que  os  judeus, 
abominando o tributo que os romanos lhes impunham, haviam feito do pagamento 
desse tributo uma questão religiosa. Numeroso partido se fundara contra o imposto. 
O pagamento deste constituía, pois, entre eles, uma irritante questão de atualidade, 
sem o que nenhum senso teria a pergunta feita a Jesus: “É­nos lícito pagar ou deixar 
de pagar a César o tributo?” Havia nessa pergunta uma armadilha. Contavam os que 
a formularam poder, conforme a resposta, excitar contra ele a autoridade romana, ou 
os  judeus  dissidentes.  Mas  “Jesus,  que  lhes  conhecia  a  malícia”,  contornou  a 
dificuldade, dando­lhes uma lição de justiça, com o dizer que a cada um seja dado o 
que lhe é devido. (Veja­se, na “Introdução”, o artigo: Publicanos) 
7. Esta sentença: “Dai a César o que é de César”, não deve, entretanto, ser entendida 
de  modo  restritivo  e  absoluto.  Como  em  todos  os  ensinos  de  Jesus,  há  nela  um 
princípio geral, resumido sob forma prática e usual e deduzido de uma circunstância 
particular. Esse princípio é conseqüente daquele segundo o qual devemos proceder 
para  com  os  outros  como  queiramos  que  os  outros  procedam  para  conosco.  Ele 
condena  todo  prejuízo  material  e  moral  que  se  possa  causar  a  outrem,  toda 
postergação de seus interesses. Prescreve o respeito aos direitos de cada um, como 
cada um deseja que se respeitem os seus. Estende­se mesmo aos deveres contraídos 
para com a família, a sociedade, a autoridade, tanto quanto para com os indivíduos 
em geral. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A LEI DE AMOR 
8. O amor resume a doutrina de Jesus toda inteira, visto que esse é o sentimento por 
excelência, e os sentimentos são  os instintos elevados à altura do progresso  feito. 
Em sua origem, o homem só tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só 
tem sensações; quando instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado do 
sentimento é o amor, não o amor no sentido vulgar do termo, mas esse sol interior 
que condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e todas as revelações 
sobre­humanas.  A  lei  de  amor  substitui  a  personalidade  pela  fusão  dos  seres; 
extingue  as misérias  sociais.  Ditoso  aquele  que,  ultrapassando  a  sua humanidade,
117 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
ama com amplo amor os seus irmãos em sofrimento! Ditoso aquele que ama, pois 
não conhece a miséria da alma, nem a do corpo. Tem ligeiros os pés e vive como 
que transportado, fora de si mesmo. Quando Jesus pronunciou a divina palavra – 
amor, os povos sobressaltaram­se e os mártires, ébrios de esperança, desceram ao 
circo. 
O Espiritismo a seu turno vem pronunciar uma segunda palavra do alfabeto 
divino. Estai atentos, pois que essa palavra ergue a lápide dos túmulos vazios, e a 
reencarnação,  triunfando  da  morte,  revela  às  criaturas  deslumbradas  o  seu 
patrimônio intelectual. Já não é ao suplício que  ela conduz o homem: condu­lo à 
conquista  do  seu  ser,  elevado  e  transfigurado.  O  sangue  resgatou  o  Espírito  e  o 
Espírito tem hoje que resgatar da matéria o homem Disse eu que em seus começos o 
homem  só  instintos  possuía.  Mais  próximo,  portanto,  ainda  se  acha  do  ponto  de 
partida, do que da meta, aquele em quem predominam os instintos. A fim de avançar 
para a meta, tem a criatura que vencer os instintos, em proveito dos sentimentos, isto 
é,  que  aperfeiçoar  estes  últimos,  sufocando  os  germes  latentes  da  matéria.  Os 
instintos são a germinação e os embriões do sentimento; trazem consigo o progresso, 
como a glande encerra em si o carvalho, e os seres menos adiantados são os que, 
emergindo  pouco  a  pouco  de  suas  crisálidas,  se  conservam  escravizados  aos 
instintos. O Espírito precisa ser cultivado, como um campo. Toda a riqueza futura 
depende  do  labor  atual,  que  vos  granjeará  muito  mais  do  que  bens  terrenos:  a 
elevação  gloriosa.  É  então  que,  compreendendo  a  lei  de  amor  que  liga  todos  os 
seres, buscareis nela os gozos suavíssimos da alma, prelúdios das alegrias celestes. – 
Lázaro. (Paris, 1862) 
9. O amor é de essência divina e todos vós, do primeiro ao último, tendes, no fundo 
do coração, a centelha desse fogo sagrado. É fato, que já haveis podido comprovar 
muitas vezes, este: o homem, por mais abjeto, vil e criminoso que seja, vota a um 
ente ou a um objeto qualquer viva e ardente afeição à prova de tudo quanto tendesse 
a diminuí­la e que alcança, não raro, sublimes proporções. 
A um ente ou um objeto qualquer, disse eu, porque há entre vós indivíduos 
que,  com  o  coração  a transbordar  de amor,  despendem  tesouros  desse  sentimento 
com animais, plantas e, até, com coisas materiais: espécies de misantropos que, a se 
queixarem da Humanidade em geral e a resistirem ao pendor natural de suas almas, 
que buscam em torno de si a afeição e a simpatia, rebaixam a lei de amor à condição 
de instinto. Entretanto, por mais que façam, não logram sufocar o gérmen vivaz que 
Deus lhes depositou nos corações ao criá­los. Esse gérmen se desenvolve e cresce 
com  a  moralidade  e  a  inteligência  e,  embora  comprimido  amiúde  pelo  egoísmo, 
torna­se  a  fonte  das  santas  e  doces  virtudes  que  geram  as  afeições  sinceras  e 
duráveis e ajudam a criatura a transpor o caminho escarpado e árido da existência 
humana. 
Há  pessoas  a  quem  repugna  a  reencarnação,  com  a  idéia  de  que  outros 
venham  a  partilhar  das  afetuosas  simpatias  de  que  são  ciosas.  Pobres  irmãos!  O 
vosso  afeto  vos  torna  egoístas;  o  vosso  amor  se restringe a  um  círculo  íntimo  de 
parentes e de amigos, sendo­vos indiferentes os demais. Pois bem! Para praticardes a 
lei de amor, tal como Deus o entende, preciso se faz chegueis passo a passo a amar a 
todos os vossos irmãos indistintamente. A tarefa é longa e difícil, mas cumprir­se­á:
118 – Allan Kardec 
Deus o quer e a lei de amor constitui o primeiro e o mais importante preceito da 
vossa nova doutrina, porque é ela que um dia matará o egoísmo, qualquer que seja a 
forma  sob  que  se  apresente,  dado  que,  além  do  egoísmo  pessoal,  há  também  o 
egoísmo de família, de casta, de nacionalidade. Disse Jesus: “Amai o vosso próximo 
como a vós mesmos.” Ora, qual o limite com relação ao próximo? Será a família, a 
seita,  a  nação?  Não;  é  a  Humanidade  inteira.  Nos  mundos  superiores,  o  amor 
recíproco é que harmoniza e dirige os Espíritos adiantados que os habitam, e o vosso 
planeta, destinado a realizar em breve sensível progresso, verá seus habitantes, em 
virtude da transformação social por que passará, a praticar essa lei sublime, reflexo 
da Divindade. 
Os efeitos da lei de amor são o melhoramento moral da raça humana e a 
felicidade  durante  a  vida  terrestre.  Os  mais  rebeldes  e  os  mais  viciosos  se 
reformarão, quando observarem os benefícios resultantes da prática deste preceito: 
Não façais aos outros o que não quiserdes que vos façam; fazei­lhes, ao contrário, 
todo o bem que vos esteja ao alcance fazer­lhes. 
Não acrediteis na esterilidade e no endurecimento do coração humano; ao 
amor verdadeiro, ele, a seu mau grado, cede. É um ímã a que não lhe é possível 
resistir. O contacto desse amor vivifica e fecunda os germens que dele existem, em 
estado latente, nos vossos corações. A Terra, orbe de provação e de exílio, será então 
purificada por esse  fogo  sagrado e verá praticados na sua superfície a caridade, a 
humildade,  a  paciência,  o  devotamento,  a  abnegação,  a  resignação  e  o  sacrifício, 
virtudes todas filhas do amor. Não vos canseis, pois, de escutar as palavras de João, 
o  Evangelista.  Como  sabeis,  quando  a  enfermidade  e  a  velhice  o  obrigaram  a 
suspender o curso de suas prédicas, limitava­ se a repetir estas suavíssimas palavras: 
“Meus filhinhos, amai­vos uns aos outros.” 
Amados  irmãos,  aproveitai  dessas  lições;  é  difícil  o  praticá­las,  porém,  a 
alma  colhe  delas  imenso  bem.  Crede­me,  fazei  o  sublime  esforço  que  vos  peço: 
“Amai­vos” e vereis a Terra em breve transformada num Paraíso onde as almas dos 
justos virão repousar. – Fénelon. (Bordéus, 1861) 
10.  Meus  caros  condiscípulos,  os  Espíritos  aqui  presentes  vos  dizem,  por  meu 
intermédio: “Amai muito, a fim de serdes amados.” É tão justo  esse pensamento, 
que nele encontrareis tudo o que consola e abranda as penas de cada dia; ou melhor: 
pondo em prática esse sábio conselho,elevar­vos­eis de tal modo acima da matéria 
que  vos  espiritualizareis  antes  de  deixardes  o  invólucro  terrestre.  Havendo  os 
estudos espíritas desenvolvido em vós a compreensão do futuro, uma certeza tendes: 
a de caminhardes para Deus, vendo realizadas todas as promessas que correspondem 
às aspirações de vossa alma. Por isso, deveis elevar­vos bem alto para julgardes sem 
as constrições da matéria, e não condenardes o vosso próximo sem terdes dirigido a 
Deus o pensamento. 
Amar,  no  sentido  profundo  do  termo,  é  o  homem  ser  leal,  probo, 
consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em 
torno de si  o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para 
suavizá­las;  é  considerar  como  sua  a  grande  família humana, porque  essa  família 
todos  a  encontrareis,  dentro  de  certo  período,  em  mundos  mais  adiantados;  e  os 
Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, destinados a se elevarem ao
119 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
infinito. Assim, não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos 
outorgou,  porquanto,  de  vosso  lado,  muito  vos  alegraria  que  vossos  irmãos  vos 
dessem  aquilo  de  que  necessitais.  Para  todos  os  sofrimentos,  tende,  pois,  sempre 
uma palavra de esperança e de conforto, a fim de que sejais inteiramente amor e 
justiça. 
Crede  que  esta  sábia  exortação:  “Amai  bastante,  para  serdes  amados”, 
abrirá  caminho; revolucionária,  ela  segue  sua rota,  que  é  determinada,  invariável. 
Mas, já ganhastes muito, vós que me ouvis, pois que já sois infinitamente melhores 
do que éreis há cem anos. Mudastes tanto, em proveito vosso, que aceitais de boa 
mente,  sobre  a  liberdade  e  a  fraternidade,  uma  imensidade  de  idéias  novas,  que 
outrora  rejeitaríeis.  Ora,  daqui  a  cem  anos,  sem  dúvida  aceitareis  com  a  mesma 
facilidade as que ainda vos não puderam entrar no cérebro. 
Hoje,  quando  o  movimento  espírita há  dado  tão  grande  passo,  vede  com 
que rapidez as idéias de justiça e de renovação, constantes nos ditados espíritas, são 
aceitas pela parte mediana do mundo inteligente. É que essas idéias correspondem a 
tudo  o  que  há  de  divino  em  vós.  É  que  estais  preparados  por  uma  sementeira 
fecunda: a do século passado, que implantou no seio da sociedade terrena as grandes 
idéias de progresso. E, como tudo se encadeia sob a direção do Altíssimo, todas as 
lições  recebidas  e  aceitas  virão  a  encerrar­se  na  permuta  universal  do  amor  ao 
próximo.  Por  aí,  os  Espíritos  encarnados,  melhor  apreciando  e  sentindo,  se 
estenderão as mãos, de todos os confins do vosso planeta. Uns e outros reunir­se­ão, 
para se entenderem e amarem, para destruírem todas as injustiças, todas as causas de 
desinteligências entre os povos. 
Grande  conceito  de  renovação  pelo  Espiritismo,  tão  bem  exposto  em  O 
Livro dos Espíritos;  tu produzirás  o  portentoso  milagre  do  século  vindouro,  o da 
harmonização  de  todos  os  interesses  materiais  e  espirituais  dos  homens,  pela 
aplicação deste preceito bem compreendido: “Amai bastante, para serdes amados.” 
Sanson, ex­membro da Sociedade Espírita de Paris. (1863) 
O EGOÍSMO 
11.  O  egoísmo,  chaga  da  Humanidade,  tem  que  desaparecer  da  Terra,  a  cujo 
progresso moral obsta. Ao Espiritismo está reservada a tarefa de fazê­la ascender na 
hierarquia dos mundos. O egoísmo é, pois, o alvo para o qual todos os verdadeiros 
crentes devem apontar suas armas, dirigir suas forças, sua coragem. Digo: coragem, 
porque dela muito mais necessita cada um para vencer­se a si mesmo, do que para 
vencer os outros. Que cada um, portanto, empregue todos os esforços a combatê­lo 
em si, certo de que esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do 
orgulho  é  o  causador  de  todas  as  misérias  do  mundo  terreno.  É  a  negação  da 
caridade e, por conseguinte, o maior obstáculo à felicidade dos homens. 
Jesus vos deu o exemplo da caridade e Pôncio Pilatos o do egoísmo, pois, 
quando o primeiro, o Justo, vai percorrer as santas estações do seu martírio, o outro 
lava as mãos, dizendo: Que me importa! Animou­se a dizer aos judeus: Este homem 
é  justo,  por  que  o  quereis  crucificar?  E,  entretanto,  deixa  que  o  conduzam  ao 
suplício.
120 – Allan Kardec 
É a esse antagonismo entre a caridade e o egoísmo, à invasão do coração 
humano por essa lepra que se deve atribuir o fato de não haver ainda o Cristianismo 
desempenhado por completo a sua missão. Cabem­vos a vós, novos apóstolos da fé, 
que os Espíritos superiores esclarecem, o encargo e o dever de extirpar esse mal, a 
fim de dar ao Cristianismo toda a sua força e desobstruir o caminho dos pedrouços 
que lhe embaraçam a marcha. Expulsai da Terra o egoísmo para que ela possa subir 
na escala dos mundos, porquanto já é tempo de a Humanidade envergar sua veste 
viril,  para  o  que  cumpre  que  primeiramente  o  expilais  dos  vossos  corações.  – 
Emmanuel. (Paris, 1861) 
12.  Se  os  homens  se  amassem  com  mútuo  amor,  mais  bem  praticada  seria  a 
caridade; mas, para isso, mister fora vos esforçásseis por largar essa couraça que vos 
cobre os corações, a fim de se tornarem eles mais sensíveis aos sofrimentos alheios. 
A rigidez mata os bons sentimentos; o Cristo jamais se escusava; não repelia aquele 
que  o  buscava,  fosse  quem  fosse:  socorria  assim  a  mulher  adúltera,  como  o 
criminoso; nunca temeu que a sua reputação sofresse por isso. Quando o tomareis 
por modelo de todas as vossas ações? Se na Terra a caridade reinasse, o mau não 
imperaria  nela;  fugiria  envergonhado;  ocultar­se­ia,  visto  que  em  toda  parte  se 
acharia deslocado. O mal então desapareceria, ficai bem certos. 
Começai  vós  por  dar  o  exemplo;  sede  caridosos  para  com  todos 
indistintamente;  esforçai­vos  por  não  atentar  nos  que  vos  olham  com  desdém  e 
deixai a Deus o encargo de fazer toda a justiça, a Deus que todos os dias separa, no 
seu reino, o joio do trigo. 
O  egoísmo  é  a  negação  da  caridade.  Ora,  sem  a  caridade  não  haverá 
descanso  para  a  sociedade  humana.  Digo  mais:  não  haverá  segurança.  Com  o 
egoísmo e o orgulho, que andam de mãos dadas, a vida será sempre uma carreira em 
que vencerá o mais esperto, uma luta de interesses, em que se calcarão aos pés as 
mais  santas afeições,  em  que nem  sequer  os  sagrados  laços  da  família  merecerão 
respeito. – Pascal. (Sens, 1862) 
A FÉ E A CARIDADE 
13. Disse­vos, não há muito, meus caros filhos, que a caridade, sem a fé, não basta 
para manter entre os homens uma ordem social capaz de os tornar felizes. Pudera ter 
dito que a caridade é impossível sem a fé. Na verdade, impulsos generosos se vos 
depararão, mesmo entre os que nenhuma religião têm; porém, essa caridade austera, 
que  só  com  abnegação  se  pratica,  com  um  constante  sacrifício  de  todo  interesse 
egoístico, somente a fé pode inspirá­la, porquanto só ela dá se possa carregar com 
coragem e perseverança a cruz da vida terrena. 
Sim, meus filhos, é inútil que o homem ávido de gozos procure iludir­se 
sobre o seu destino nesse mundo, pretendendo ser­lhe lícito ocupar­se unicamente 
com a sua felicidade. Sem dúvida, Deus nos criou para sermos felizes na eternidade; 
entretanto, a vida terrestre tem que servir exclusivamente ao aperfeiçoamento moral, 
que  mais  facilmente  se  adquire  com  o  auxílio  dos  órgãos  físicos  e  do  mundo 
material. Sem levar em conta as vicissitudes ordinárias da vida, a diversidade dos
121 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
gostos,  dos  pendores  e  das  necessidades,  é  esse  também  um  meio  de  vos 
aperfeiçoardes, exercitando­vos na caridade. Com efeito, só a poder de concessões e 
sacrifícios mútuos podeis conservar a harmonia entre elementos tão diversos. 
Tereis, contudo, razão, se afirmardes que a felicidade se acha destinada ao 
homem nesse mundo, desde que ele a procure, não nos gozos materiais, sim no bem. 
A  história  da  cristandade  fala  de  mártires  que  se  encaminhavam  alegres  para  o 
suplício. Hoje, na vossa sociedade, para serdes cristãos, não se vos faz mister nem o 
holocausto  do  martírio,  nem  o  sacrifício  da  vida,  mas  única  e  exclusivamente  o 
sacrifício do vosso egoísmo, do vosso orgulho e da vossa vaidade. Triunfareis, se a 
caridade vos inspirar e vos sustentar a fé. – Espírito protetor. (Cracóvia, 1861) 
CARIDADE PARA COM OS CRIMINOSOS 
14. A verdadeira caridade constitui um dos mais sublimes ensinamentos que Deus 
deu ao mundo. Completa fraternidade deve existir entre os verdadeiros seguidores 
da  sua  doutrina.  Deveis  amar  os  desgraçados,  os  criminosos,  como  criaturas, que 
são,  de  Deus,  às  quais  o  perdão  e  a  misericórdia  serão  concedidos,  se  se 
arrependerem,  como  também  a  vós,  pelas  faltas  que  cometeis  contra  sua  Lei. 
Considerai  que  sois  mais  repreensíveis,  mais  culpados  do  que  aqueles  a  quem 
negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus 
como o conheceis, e muito menos lhes será pedido do que a vós. 
Não  julgueis,  oh!  Não  julgueis  absolutamente,  meus  caros  amigos, 
porquanto  o  juízo  que  proferirdes  ainda  mais  severamente  vos  será  aplicado  e 
precisais de indulgência para os pecados em que sem cessar incorreis. Ignorais que 
há muitas ações que são crimes aos olhos do Deus de pureza e que o mundo nem 
sequer como faltas leves considera? 
A  verdadeira  caridade  não  consiste  apenas  na  esmola  que  dais,  nem, 
mesmo, nas palavras de consolação que lhe aditeis. Não, não é apenas isso o que 
Deus  exige  de  vós.  A  caridade  sublime,  que  Jesus  ensinou,  também  consiste  na 
benevolência de que useis sempre e em todas as coisas para com o vosso próximo. 
Podeis  ainda  exercitar  essa  virtude  sublime  com  relação  a  seres  para  os  quais 
nenhuma utilidade terão as vossas esmolas, mas que algumas palavras de consolo, 
de encorajamento, de amor, conduzirão ao Senhor supremo. 
Estão próximos os tempos, repito­o, em que nesse planeta reinará a grande 
fraternidade,  em  que  os  homens  obedecerão  à  lei  do  Cristo,  lei  que  será  freio  e 
esperança e conduzirá as almas às moradas ditosas. Amai­vos, pois, como filhos do 
mesmo  Pai;  não  estabeleçais  diferenças  entre  os  outros  infelizes,  porquanto  quer 
Deus que todos sejam iguais; a ninguém desprezeis. Permite Deus que entre vós se 
achem grandes criminosos, para que vos sirvam de ensinamento. Em breve, quando 
os homens se encontrarem submetidos às verdadeiras leis de Deus,  já não haverá 
necessidade desses ensinos: todos os Espíritos impuros e revoltados serão relegados 
para mundos inferiores, de acordo com as suas inclinações. 
Deveis, àqueles de quem falo, o socorro das vossas preces: é a verdadeira 
caridade. Não vos cabe dizer de um criminoso: “É um miserável; deve­se expurgar 
da sua presença a Terra; muito branda é, para um ser de tal espécie, a morte que lhe
122 – Allan Kardec 
infligem.” Não, não é assim que vos compete falar. Observai o vosso modelo: Jesus. 
Que diria ele, se visse junto de si um desses desgraçados? Lamentá­lo­ia; considerá­ 
lo­ia  um  doente  bem  digno  de  piedade;  estender­lhe­ia a mão. Em realidade, não 
podeis fazer o mesmo; mas, pelo menos, podeis orar por ele, assistir­lhe o Espírito 
durante  o  tempo  que  ainda  haja  de  passar  na  Terra.  Pode  ele  ser  tocado  de 
arrependimento,  se  orardes  com  fé.  É  tanto  vosso  próximo,  como  o  melhor  dos 
homens;  sua  alma,  transviada  e  revoltada,  foi  criada,  como  a  vossa,  para  se 
aperfeiçoar; ajudai­o,  pois, a  sair  do  lameiro  e  orai  por  ele.  – Isabel de França. 
(Havre, 1862) 
DEVE­SE EXPOR A VIDA POR UM MALFEITOR? 
15. Acha­se em perigo de morte um homem; para o salvar tem um outro que expor a 
vida. Sabe­se, porém, que aquele é um malfeitor e que, se escapar, poderá cometer 
novos crimes. Deve, não obstante, o segundo arriscar­se para o salvar? 
Questão  muito  grave  é  esta  e  que  naturalmente  se  pode  apresentar  ao 
espírito. Responderei, na conformidade do meu adiantamento moral, pois o de que 
se trata é de saber se se deve expor a vida, mesmo por um malfeitor. O devotamento 
é cego; socorre­se um inimigo; deve­se, portanto, socorrer o inimigo da sociedade, a 
um malfeitor, em suma. Julgais que será somente à morte que, em tal caso, se corre a 
arrancar o desgraçado? É, talvez, a toda a sua vida passada. Imaginai, com efeito, 
que,  nos  rápidos  instantes  que  lhe  arrebatam  os  derradeiros  alentos  de  vida,  o 
homem perdido volve ao seu passado, ou que, antes, este se ergue diante dele. A 
morte, quiçá, lhe chega cedo demais; a reencarnação poderá vir a ser­lhe terrível. 
Lançai­vos,  então,  ó  homens;  lançai­vos  todos  vós  a  quem  a  ciência  espírita 
esclareceu; lançai­vos, arrancai­o à sua condenação e, talvez, esse homem, que teria 
morrido a blasfemar, se atirará nos vossos braços. Todavia, não tendes que indagar 
se  o  fará,  ou  não;  socorrei­o,  porquanto,  salvando­o,  obedeceis  a  essa  voz  do 
coração, que vos diz: “Podes salvá­lo, salva­o!” – Lamennais. (Paris, 1862)
123 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XII 
AMAI OS VOSSOS INIMIGOS
·  RETRIBUIR O MAL COM O BEM
·  OS INIMIGOS DESENCARNADOS
·  SE ALGUÉM VOS BATER NA FACE DIREITA, 
APRESENTAI­LHE TAMBÉM A OUTRA 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A VINGANÇA
·  O ÓDIO
·  O DUELO 
RETRIBUIR O MAL COM O BEM 
1. “ Aprendestes que foi dito: ‘Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos 
inimigos’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos 
que  vos  odeiam  e  orai  pelos  que  vos  perseguem  e  caluniam,  a  fim  de 
serdes filhos do vosso Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol 
para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e os injustos. 
Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? 
Não procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos 
saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem 
outro tanto os pagãos?” 
(MATEUS, 5:43 a 47) 
“Digo­vos  que,  se  a  vossa  justiça  não  for  mais  abundante  que  a  dos 
escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus.” 
(MATEUS, 5:20) 
2. “Se somente amardes os que vos amam, que mérito se vos reconhecerá, 
uma vez que as pessoas de má vida também amam os que as amam? Se o 
bem  somente  o  fizerdes  aos  que  vo­lo  fazem,  que  mérito  se  vos 
reconhecerá,  dado  que  o  mesmo  faz  a  gente  de  má  vida?  Se  só
124 – Allan Kardec 
emprestardes àqueles de quem possais esperar o mesmo favor, que mérito 
se vos reconhecerá, quando as pessoas de má vida se entreajudam dessa 
maneira,  para  auferir  a  mesma  vantagem?  Pelo  que  vos  toca,  amai  os 
vossos inimigos,  fazei  bem  a  todos  e  auxiliai  sem  esperar  coisa  alguma. 
Então, muito grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, 
que  é  bom  para  os  ingratos  e  até  para  os  maus.  Sede,  pois,  cheios  de 
misericórdia, como cheio de misericórdia é o vosso Deus.” 
(LUCAS, 6:32 a 36) 
3. Se o amor do próximo constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais 
sublime aplicação desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa uma 
das maiores vitórias alcançadas contra o egoísmo e o orgulho. 
Entretanto, há geralmente equívoco no tocante ao sentido da palavra amar, 
neste  passo.  Não  pretendeu  Jesus,  assim  falando,  que  cada  um  de nós  tenha  para 
com o seu inimigo a ternura que dispensa a um irmão ou amigo. A ternura pressupõe 
confiança; ora, ninguém pode depositar confiança numa pessoa, sabendo que  esta 
lhe  quer  mal;  ninguém  pode  ter  para  com  ela  expansões  de  amizade,  sabendo­a 
capaz de abusar dessa atitude. Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não 
pode haver essas manifestações de simpatia que existem entre as que comungam nas 
mesmas idéias. Enfim, ninguém pode sentir, em estar com um inimigo, prazer igual 
ao que sente na companhia de um amigo. 
A diversidade na maneira de sentir, nessas duas circunstâncias diferentes, 
resulta  mesmo  de  uma  lei  física:  a  da  assimilação  e  da  repulsão  dos  fluidos.  O 
pensamento  malévolo  determina  uma  corrente  fluídica  que  impressiona 
penosamente.  O  pensamento  benévolo  nos  envolve  num  agradável  eflúvio.  Daí  a 
diferença das sensações que se experimenta à aproximação de um amigo ou de um 
inimigo. 
Amar  os  inimigos  não  pode,  pois,  significar  que não  se  deva  estabelecer 
diferença alguma entre eles e os amigos. Se este preceito parece de difícil prática, 
impossível  mesmo,  é  apenas  por  entender­se  falsamente  que  ele  manda  se  dê  no 
coração, assim ao amigo, como ao inimigo, o mesmo lugar. Uma vez que a pobreza 
da  linguagem humana  obriga a  que nos  sirvamos  do  mesmo  termo  para  exprimir 
matizes diversos de um sentimento, à razão cabe estabelecer as diferenças, conforme 
os casos. Amar os inimigos não é, portanto, ter­lhes uma afeição que não está na 
natureza, visto que o contacto de um inimigo nos faz bater o coração de modo muito 
diverso do seu bater, ao contacto de um amigo. Amar os inimigos é não lhes guardar 
ódio, nem rancor, nem desejos de vingança; é perdoar­lhes, sem pensamento oculto 
e  sem  condições,  o  mal  que  nos  causem;  é  não  opor  nenhum  obstáculo  à 
reconciliação com eles; é desejar­lhes o bem e não o mal; é experimentar júbilo, em 
vez  de  pesar,  com  o  bem  que  lhes  advenha;  é  socorrê­los,  em  se  apresentando 
ocasião;  é  abster­se,  quer  por  palavras,  quer  por  atos,  de  tudo  o  que  os  possa 
prejudicar; é, finalmente, retribuir­lhes sempre o mal com o bem, sem a intenção de 
os humilhar. Quem assim procede preenche as condições do mandamento: Amai os 
vossos inimigos.
125 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
4. Amar os inimigos é, para o incrédulo, um contra­senso, Aquele para quem a vida 
presente é tudo, vê no seu inimigo um ser nocivo, que lhe perturba o repouso e do 
qual  unicamente  a  morte,  pensa  ele,  o  pode  livrar.  Daí,  o  desejo  de  vingar­se. 
Nenhum  interesse  tem  em  perdoar,  senão  para  satisfazer  o  seu  orgulho  perante  o 
mundo. Em certos casos, perdoar­lhe parece mesmo uma fraqueza indigna de si. Se 
não se vingar, nem por isso deixará de conservar rancor e secreto desejo de mal para 
o outro. 
Para o crente e, sobretudo, para o espírita, muito diversa é a maneira de ver, 
porque suas vistas se lançam sobre o passado e sobre o futuro, entre os quais a vida 
atual não passa de um simples ponto. Sabe ele que, pela mesma destinação da Terra, 
deve esperar topar aí com homens maus e perversos; que as maldades com que se 
defronta fazem parte das provas que lhe cumpre suportar e o elevado ponto de vista 
em  que  se  coloca  lhe  torna  menos  amargas  as  vicissitudes,  quer  advenham  dos 
homens, quer das coisas. Se não se queixa das provas, tampouco deve queixar­se 
dos que lhe servem de instrumento. Se, em vez de se queixar, agradece a Deus o 
experimentá­lo, deve também agradecer a mão que lhe dá ensejo de demonstrar a 
sua paciência e a sua resignação. Esta idéia o dispõe naturalmente ao perdão. Sente, 
além  disso,  que  quanto  mais  generoso  for,  tanto  mais  se  engrandece  aos  seus 
próprios olhos e se põe fora do alcance dos dardos do seu inimigo. 
O homem que no mundo ocupa elevada posição não se julga ofendido com 
os insultos daquele a quem considera seu inferior. O mesmo se dá com o que, no 
mundo moral, se eleva acima da humanidade material. Este compreende que o ódio 
e  o  rancor  o  aviltariam  e  rebaixariam.  Ora,  para  ser  superior  ao  seu  adversário, 
preciso é que tenha a alma maior, mais nobre, mais generosa do que a desse último. 
OS INIMIGOS DESENCARNADOS 
5. Ainda outros motivos tem o  espírita para ser indulgente com os seus inimigos. 
Sabe ele, primeiramente, que a maldade não é um estado permanente dos homens; 
que  ela  decorre  de  uma  imperfeição  temporária  e  que,  assim  como  a  criança  se 
corrige  dos  seus  defeitos,  o  homem  mau  reconhecerá  um  dia  os  seus  erros  e  se 
tornará bom. 
Sabe  também  que  a  morte  apenas  o  livra  da  presença  material  do  seu 
inimigo, pois  que  este  o  pode  perseguir  com  o  seu  ódio,  mesmo  depois  de  haver 
deixado a Terra; que, assim, a vingança, que tome, falha ao seu objetivo, visto que, 
ao  contrário,  tem  por  efeito  produzir  maior  irritação,  capaz  de  passar  de  uma 
existência a outra. Cabia ao Espiritismo demonstrar, por meio da experiência e da lei 
que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível, que a expressão: 
extinguir o ódio com o sangue é radicalmente falsa, que a verdade é que o sangue 
alimenta o ódio, mesmo no além­túmulo. Cabia­lhe, portanto, apresentar uma razão 
de ser positiva e uma utilidade prática ao perdão e ao preceito do Cristo: Amai os 
vossos inimigos. Não há coração tão perverso que, mesmo a seu mau grado, não se 
mostre  sensível  ao  bom  proceder.  Mediante  o  bom  procedimento,  tira­se,  pelo 
menos, todo pretexto às represálias, podendo­se até fazer de um inimigo um amigo, 
antes e depois de sua morte. Com um mau proceder, o homem irrita o seu inimigo,
126 – Allan Kardec 
que então se constitui instrumento de que a justiça de Deus se serve para punir 
aquele que não perdoou. 
6.  Pode­se,  portanto,  contar  inimigos  assim  entre  os  encarnados,  como  entre  os 
desencarnados. Os inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas 
obsessões e subjugações com que tanta gente se vê a braços e que representam um 
gênero de provações, as quais, como as outras, concorrem para o adiantamento do 
ser, que, por isso, as deve receber com resignação e como conseqüência da natureza 
inferior  do  globo  terrestre.  Se  não  houvesse  homens  maus  na  Terra,  não  haveria 
Espíritos maus ao seu derredor. Se, conseguintemente, se deve usar de benevolência 
com os inimigos encarnados, do mesmo modo se deve proceder com relação aos que 
se acham desencarnados. 
Outrora,  sacrificavam­se  vítimas  sangrentas  para  aplacar  os  deuses 
infernais, que não eram senão os maus Espíritos. Aos deuses infernais sucederam os 
demônios,  que  são  a  mesma  coisa.  O  Espiritismo  demonstra  que  esses  demônios 
mais não são do que as almas dos homens perversos, que ainda se não despojaram 
dos instintos materiais; que ninguém logra aplacá­los, senão mediante o sacrifício 
do ódio existente, isto é, pela caridade; que esta não tem por efeito, unicamente, 
impedi­los de praticar o mal e, sim, também o de reconduzi­los ao caminho do bem 
e de contribuir para a salvação deles. É assim que o mandamento: Amai os vossos 
inimigos não se circunscreve ao âmbito acanhado da Terra e da vida presente; antes, 
faz parte da grande lei da solidariedade e da fraternidade universais. 
SE ALGUÉM VOS BATER NA FACE DIREITA, 
APRESENTAI­LHE TAMBÉM A OUTRA 
7. Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. – Eu, porém, 
vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém 
vos  bater  na  face  direita,  lhe  apresenteis  também  a  outra;  –  e  que  se 
alguém  quiser  pleitear  contra  vós,  para  vos  tomar  a  túnica,  também  lhe 
entregueis o manto; – e que se alguém vos obrigar a caminhar mil passos 
com ele, caminheis mais dois mil. – Dai àquele que vos pedir e não repilais 
aquele que vos queira tomar emprestado. 
(MATEUS, 5:38 a 42) 
8. Os preconceitos do mundo sobre o que se convencionou chamar “ponto de honra” 
produzem  essa  suscetibilidade  sombria,  nascida  do  orgulho  e  da  exaltação  da 
personalidade,  que  leva  o  homem  a  retribuir  uma  injúria  com  outra  injúria,  uma 
ofensa com outra, o que é tido como justiça por aquele cujo senso moral não se acha 
acima do nível das paixões terrenas. Por isso é que a lei moisaica prescrevia: olho 
por olho, dente por dente, de harmonia com a época em que Moisés vivia. Veio o 
Cristo e disse: Retribuí o mal com o bem. E disse ainda: “Não resistais ao mal que 
vos  queiram  fazer;  se  alguém  vos  bater  numa  face,  apresentai­lhe  a  outra.”  Ao 
orgulhoso  este  ensino  parecerá  uma  covardia,  porquanto  ele  não  compreende  que 
haja mais coragem em suportar um insulto do que em tomar uma vingança, e não 
compreende, porque sua visão não pode ultrapassar o presente.
127 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Dever­se­á,  entretanto,  tomar  ao  pé  da  letra  aquele  preceito?  Tampouco 
quanto  o  outro  que  manda  se  arranque  o  olho,  quando  for  causa  de  escândalo. 
Levado  o  ensino  às  suas  últimas  conseqüências,  importaria  ele  em  condenar toda 
repressão, mesmo legal, e deixar livre o campo aos maus, isentando­os de todo e 
qualquer  motivo  de  temor.  Se  se  lhes  não  pusesse  um  freio  às  agressões,  bem 
depressa todos os bons seriam suas vítimas. O próprio instinto de conservação, que é 
uma  lei  da  Natureza,  obsta  a  que  alguém  estenda  o  pescoço  ao  assassino. 
Enunciando, pois, aquela máxima, não pretendeu Jesus interdizer toda defesa, mas 
condenar a vingança. Dizendo que apresentemos a outra face àquele que nos haja 
batido numa, disse, sob outra forma, que não se deve pagar o mal com o mal; que o 
homem deve aceitar com humildade tudo o que seja de molde a lhe abater o orgulho; 
que  maior  glória  lhe  advém  de  ser  ofendido  do  que  de  ofender,  de  suportar 
pacientemente uma injustiça do que de praticar alguma; que mais vale ser enganado 
do  que  enganador,  arruinado  do  que  arruinar  os  outros.  É,  ao  mesmo  tempo,  a 
condenação do duelo, que não passa de uma manifestação de orgulho. Somente a fé 
na vida futura e na justiça de Deus, que jamais deixa impune o mal, pode dar ao 
homem forças para suportar com paciência os golpes que lhe sejam desferidos nos 
interesses  e no amor­próprio. Daí vem o repetirmos incessantemente: Lançai para 
diante o olhar; quanto mais vos elevardes pelo pensamento, acima da vida material, 
tanto menos vos magoarão as coisas da Terra. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A VINGANÇA 
9. A vingança é um dos últimos remanescentes dos costumes bárbaros que tendem a 
desaparecer dentre os homens. É, como o duelo, um dos derradeiros vestígios dos 
hábitos  selvagens  sob  cujos  guantes  se  debatia  a  Humanidade, no  começo  da  era 
cristã,  razão  por  que  a  vingança  constitui  indício  certo  do  estado  de  atraso  dos 
homens  que  a  ela  se  dão  e  dos  Espíritos  que  ainda  as  inspirem.  Portanto,  meus 
amigos, nunca esse sentimento deve fazer vibrar o coração de quem quer que se diga 
e proclame espírita. Vingar­se é, bem o sabeis, tão contrário àquela prescrição do 
Cristo:  “Perdoai  aos  vossos  inimigos”,  que  aquele  que  se  nega  a  perdoar  não 
somente não é espírita como também não é cristão. A vingança é uma inspiração 
tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza. 
Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega paixão quase nunca se vinga a 
céu aberto. Quando é ele o mais forte, cai qual fera sobre o outro a quem chama seu 
inimigo, desde que a presença deste último lhe inflame a paixão, a cólera, o ódio. 
Porém, as mais das vezes assume aparências hipócritas, ocultando nas profundezas 
do coração os maus sentimentos que o animam. Toma caminhos escusos, segue na 
sombra  o  inimigo,  que  de  nada  desconfia,  e  espera  o  momento  azado  para  sem 
perigo feri­lo. Esconde­ se do outro, espreitando­o de contínuo, prepara­lhe odiosas 
armadilhas e, em sendo propícia a ocasião, derrama­lhe no copo o veneno. Quando 
seu ódio não chega a tais extremos, ataca­o então na honra e nas afeições; não recua 
diante  da  calúnia,  e  suas  pérfidas  insinuações,  habilmente  espalhadas  a  todos  os
128 – Allan Kardec 
ventos, se vão avolumando pelo caminho. Em conseqüência, quando o perseguido se 
apresenta nos  lugares  por  onde  passou  o  sopro  do  perseguidor,  espanta­se  de  dar 
com semblantes frios, em vez de fisionomias amigas e benevolentes que outrora o 
acolhiam. Fica estupefato quando mãos que se lhe estendiam, agora se recusam a 
apertar  as  suas.  Enfim,  sente­se  aniquilado,  ao  verificar  que  os  seus  mais  caros 
amigos e parentes se afastam e o evitam. Ah! O covarde que se vinga assim é cem 
vezes mais culpado do que o que enfrenta o seu inimigo e o insulta em plena face. 
Fora,  pois,  com  esses  costumes  selvagens!  Fora  com  esses  processos  de 
outros tempos! Todo espírita que ainda hoje pretendesse ter o direito de vingar­se 
seria  indigno  de  figurar  por  mais  tempo  na  falange  que  tem  como  divisa:  Sem 
caridade não há salvação! Mas, não, não posso deter­me a pensar que um membro 
da  grande  família  espírita  ouse  jamais,  de  futuro,  ceder  ao  impulso  da  vingança, 
senão para perdoar. – Júlio Olivier. (Paris, 1862) 
O ÓDIO 
10. Amai­vos uns aos outros e sereis felizes. Tomai sobretudo a peito amar os que 
vos  inspiram  indiferença,  ódio,  ou  desprezo.  O  Cristo,  que  deveis  considerar 
modelo, deu­vos o exemplo desse devotamento. Missionário do amor, ele amou até 
dar o sangue e a vida por amor. Penoso vos é o sacrifício de amardes os que vos 
ultrajam e perseguem; mas, precisamente, esse sacrifício é que vos torna superiores 
a eles. Se os odiásseis, como vos odeiam, não valeríeis mais do que eles. Amá­los é 
a  hóstia  imácula  que  ofereceis  a  Deus  na  ara  dos  vossos  corações,  hóstia  de 
agradável aroma e cujo perfume lhe sobe até o seio. Se bem a lei de amor mande que 
cada  um  ame  indistintamente  a  todos  os  seus  irmãos,  ela  não  couraça  o  coração 
contra os maus procederes; esta é, ao contrário, a prova mais angustiosa, e eu o sei 
bem,  porquanto,  durante  a  minha  última  existência  terrena,  experimentei  essa 
tortura. Mas Deus lá está e pune nesta vida e na outra os que violam a lei de amor. 
Não esqueçais, meus queridos filhos, que o amor aproxima de Deus a criatura e o 
ódio a distancia dele. – Fénelon. (Bordéus, 1861) 
O DUELO 
11. Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida uma viagem que o 
há de conduzir a determinado ponto, pouco caso faz das asperezas da jornada e não 
deixa  que  seus  passos  se  desviem  do  caminho  reto.  Com o  olhar  constantemente 
dirigido  para  o  termo  a  alcançar,  nada  lhe  importa  que  as  urzes  e  os  espinhos 
ameacem  produzir­lhe arranhaduras;  umas  e  outros  lhe  roçam  a  epiderme,  sem  o 
ferirem, nem impedirem de prosseguir na caminhada. Expor seus dias para se vingar 
de uma injúria é recuar diante das provações da vida, é sempre um crime aos olhos 
de Deus; e, se não fôsseis, como sois, iludidos pelos vossos prejuízos, tal coisa seria 
ridícula e uma suprema loucura aos olhos dos homens. 
Há crime no homicídio em duelo; a vossa própria legislação o reconhece. 
Ninguém tem o direito, em caso algum, de atentar contra a vida de seu semelhante: é
129 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
um crime aos olhos de Deus, que vos traçou a linha de conduta que tendes de seguir. 
Nisso, mais do que em qualquer outra circunstância, sois juízes em causa própria. 
Lembrai­vos de que somente vos será perdoado, conforme perdoardes; pelo perdão 
vos acercais da Divindade, pois a clemência é irmã do poder. Enquanto na Terra 
correr  uma  gota  de  sangue  humano,  vertida  pela  mão  dos  homens,  o  verdadeiro 
reino de Deus ainda se não terá implantado aí, reino de paz e de amor, que há de 
banir para sempre do vosso planeta a animosidade, a discórdia, a guerra. Então, a 
palavra  duelo  somente  existirá  na  vossa  linguagem  como  longínqua  e  vaga 
recordação de um passado que se foi. Nenhum outro antagonismo existirá entre os 
homens,  afora a nobre  rivalidade  do  bem.  – Adolfo,  bispo  de  Argel.  (Marmande, 
1861) 
12. Em  certos  casos,  sem  dúvida,  pode  o  duelo  constituir uma  prova  de  coragem 
física,  de  desprezo  pela  vida,  mas  também  é,  incontestavelmente,  uma  prova  de 
covardia  moral,  como  o  suicídio.  O  suicida  não  tem  coragem  de  enfrentar  as 
vicissitudes da vida; o duelista não tem a de suportar as ofensas. Não vos disse o 
Cristo que há mais honra e valor em apresentar a face esquerda àquele que bateu na 
direita,  do  que  em  vingar  uma  injúria?  Não  disse  ele  a  Pedro,  no  jardim  das 
Oliveiras: “Mete a tua espada na bainha, porquanto aquele que matar com a espada 
perecerá  pela  espada?”  Assim  falando,  não  condenou,  para  sempre,  o  duelo? 
Efetivamente, meus filhos, que é essa coragem oriunda de um gênio violento, de um 
temperamento sangüíneo e colérico, que ruge à primeira ofensa? Onde a grandeza 
d’alma daquele que, à menor injúria, entende que só com sangue a poderá lavar? 
Ah!  Que  ele  trema!  No  fundo  da  sua  consciência,  uma  voz  lhe  bradará  sempre: 
Caim!  Caim!  Que  fizeste  de  teu  irmão?  Foi­me  necessário  derramar  sangue  para 
salvar a minha honra, responderá ele a essa voz. Ela, porém, retrucará: Procuraste 
salvá­la perante os homens, por alguns instantes que te restavam de vida na Terra, e 
não pensaste em salvá­la perante Deus! Pobre louco! Quanto sangue exigiria de vós 
o Cristo, por todos os ultrajes que recebeu! Não só o feristes com os espinhos e a 
lança, não só o pregastes num madeiro infamante, como também o fizestes ouvir, em 
meio  de  sua  agonia  atroz,  as  zombarias  que  lhe  prodigalizastes.  Que  reparação  a 
tantos insultos vos pediu ele? O último brado do cordeiro foi uma súplica em favor 
dos seus algozes! Oh! Como ele, perdoai e orai pelos que vos ofendem. 
Amigos, lembrai­vos deste preceito: “Amai­vos uns aos outros” e, então, a 
um  golpe  desferido  pelo  ódio  respondereis  com  um  sorriso,  e  ao  ultraje  com  o 
perdão. O mundo, sem dúvida, se levantará furioso e vos tratará de covardes; erguei 
bem alto a fronte e mostrai que também ela se não temeria de cingir­se de espinhos, 
a exemplo do Cristo, mas, que a vossa mão não quer ser cúmplice de um assassínio 
autorizado por falsos ares de honra, que, entretanto, não passa de orgulho e amor­ 
próprio. Dar­se­á que, ao criar­vos, Deus vos outorgou o direito de vida e de morte, 
uns sobre os outros? Não, só à Natureza conferiu ele esse direito, para se reformar e 
reconstruir;  quanto  a  vós,  não  permite,  sequer,  que  disponhais  de  vós  mesmos. 
Como  o  suicida,  o  duelista  se  achará  marcado  com  sangue,  quando  comparecer 
perante Deus, e a um e outro o Soberano Juiz reserva rudes e longos castigos. Se ele 
ameaçou com a sua justiça aquele que disser raca a seu irmão, quão mais severa não
130 – Allan Kardec 
será a pena que comine ao que chegar à sua presença com as mãos tintas do sangue 
de seu irmão! – Santo Agostinho. (Paris, 1862) 
13.  O  duelo,  como  o  que  outrora  se  denominava  o  juízo  de  Deus,  é  uma  das 
instituições bárbaras que ainda regem a sociedade. Que diríeis, no entanto, se vísseis 
dois adversários mergulhados em água fervente ou submetidos ao contacto de um 
ferro  em  brasa,  para  ser  dirimida  a  contenda  entre  eles,  reconhecendo­se  estar  a 
razão com aquele que melhor sofresse a prova? Qualificaríeis de insensatos esses 
costumes, não é exato? Pois o duelo é coisa pior do que tudo isso. Para o duelista 
destro, é um assassínio praticado a sangue frio, com toda a premeditação que possa 
haver,  uma  vez  que  ele  está  certo  da  eficácia  do  golpe  que  desfechará.  Para  o 
adversário, quase certo de sucumbir em virtude de sua fraqueza e inabilidade, é um 
suicídio cometido com a mais fria reflexão. Sei que muitas vezes se procura evitar 
essa alternativa igualmente criminosa, confiando ao acaso a questão: – mas, não é 
isso  voltar,  sob  outra  forma,  ao  juízo  de  Deus,  da  Idade  Média?  E  nessa  época 
infinitamente menor era a culpa. A própria denominação de juízo de Deus indica a 
fé, ingênua, é verdade, porém, afinal, fé na justiça de Deus, que não podia consentir 
sucumbisse um inocente, ao passo que, no duelo, tudo se confia à força bruta, de tal 
sorte que não raro é o ofendido que sucumbe. 
Ó  estúpido  amor­próprio,  tola  vaidade  e  louco  orgulho,  quando  sereis 
substituídos  pela  caridade  cristã,  pelo  amor  do  próximo  e  pela  humildade  que  o 
Cristo  exemplificou  e  preceituou?  Só  quando  isso  se  der  desaparecerão  esses 
preceitos monstruosos que ainda governam os homens, e que as leis são impotentes 
para reprimir, porque não basta interditar o mal e prescrever o bem; é preciso que o 
princípio do bem e o horror ao mal morem no coração do homem. – Um Espírito 
protetor. (Bordéus, 1861) 
14. Que juízo farão de mim, costumais dizer, se eu recusar a reparação que se me 
exige, ou se não a reclamar de quem me ofendeu? Os loucos, como vós, os homens 
atrasados  vos  censurarão;  mas,  os  que  se  acham  esclarecidos  pelo  facho  do 
progresso  intelectual  e  moral  dirão  que  procedeis  de  acordo  com  a  verdadeira 
sabedoria.  Refleti  um  pouco.  Por  motivo  de  uma  palavra  dita  às  vezes 
impensadamente, ou inofensiva, vinda de um dos vossos irmãos, o vosso orgulho se 
sente ferido, respondeis de modo acre e daí uma provocação. Antes que chegue o 
momento decisivo, inquiris de vós mesmos se procedeis como cristãos? Que contas 
ficareis devendo à sociedade, por a privardes de um de seus membros? Pensastes no 
remorso que vos assaltará, por haverdes roubado a uma mulher o marido, a uma mãe 
o filho, ao filho o pai que lhes servia de amparo? Certamente, o autor da ofensa deve 
uma  reparação;  porém,  não  lhe  será  mais  honroso  dá­la  espontaneamente, 
reconhecendo  suas  faltas,  do  que  expor  a  vida  daquele  que  tem  o  direito  de  se 
queixar?  Quanto  ao  ofendido,  convenho  em  que,  algumas vezes,  por  ele  achar­se 
gravemente ferido, ou em sua pessoa, ou nas dos que lhe são mais caros, não está em 
jogo somente o amor­próprio: o coração se acha magoado, sofre. Mas, além de ser 
estúpido arriscar a vida, lançando­se contra um miserável capaz de praticar infâmias, 
dar­se­á que, morto este, a afronta, qualquer que seja, deixa de existir? Não é exato 
que o sangue derramado imprime retumbância maior a um fato que, se falso, cairia
131 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
por  si  mesmo,  e  que,  se  verdadeiro,  deve  ficar  sepultado  no  silêncio?  Nada  mais 
restará, pois, senão a satisfação da sede de vingança. Ah! Triste satisfação que quase 
sempre  dá  lugar,  já  nesta  vida,  a  causticantes  remorsos.  Se  é  o  ofendido  que 
sucumbe, onde a reparação? Quando a caridade regular a conduta dos homens, eles 
conformarão seus atos e palavras a esta máxima: “Não façais aos outros o que não 
quiserdes que vos façam.” Em se verificando isso, desaparecerão todas as causas de 
dissensões e, com elas, as dos duelos e das guerras, que são os duelos de povo a 
povo. – Francisco Xavier. (Bordéus, 1861) 
15. O homem do mundo, o homem venturoso, que por uma palavra chocante, uma 
coisa ligeira, joga a vida que lhe veio de Deus, joga a vida do seu semelhante, que só 
a Deus pertence, esse é cem vezes mais culpado do que o miserável que, impelido 
pela  cupidez,  algumas  vezes  pela  necessidade,  se  introduz  numa  habitação  para 
roubar e matar os que se lhe opõem aos desígnios. Trata­se quase sempre de uma 
criatura sem educação, com imperfeitas noções do  bem e  do mal, ao passo que o 
duelista pertence, em regra, à classe mais culta. Um mata brutalmente, enquanto que 
o outro o faz com método e polidez, pelo que a sociedade o desculpa. Acrescentarei 
mesmo  que  o  duelista  é  infinitamente  mais  culpado  do  que  o  desgraçado  que, 
cedendo  a  um  sentimento  de  vingança,  mata  num  momento  de  exasperação.  O 
duelista não tem por escusa o arrebatamento da paixão, pois que, entre o insulto e a 
reparação, dispõe ele sempre de tempo para refletir. Age, portanto, friamente e com 
premeditado desígnio; estuda e calcula tudo, para com mais segurança matar o seu 
adversário. É certo que também expõe a vida e é isso  o que reabilita o duelo aos 
olhos do mundo, que nele então só vê um ato de coragem e pouco caso da vida. Mas, 
haverá coragem da parte daquele que está seguro de si? O duelo, remanescente dos 
tempos de barbárie, em os quais o direito do mais forte constituía a lei, desaparecerá 
por efeito de uma melhor apreciação do verdadeiro ponto de honra e à medida que o 
homem for depositando fé mais viva na vida futura. – Agostinho. (Bordéus, 1861) 
16. NOTA. Os duelos se vão tornando cada vez mais raros e, se de tempos a tempos 
alguns de tão dolorosos exemplos se dão, o número deles não se pode comparar com 
o dos que ocorriam outrora. Antigamente, um homem não saía de casa sem prever 
um  encontro,  pelo  que  tomava  sempre  as  necessárias  precauções.  Um  sinal 
característico dos costumes do tempo e dos povos se nos depara no porte habitual, 
ostensivo  ou  oculto,  de  armas  ofensivas  ou  defensivas.  A abolição  de  semelhante 
uso  demonstra  o  abrandamento  dos  costumes  e  é  curioso  acompanhar­lhes  a 
gradação, desde a época em que os cavaleiros só cavalgavam bardados de ferro e 
armados  de  lança,  até  a  em  que  uma  simples  espada  à  cinta  constituía  mais  um 
adorno e um acessório do brasão, do que uma arma de agressão. Outro indício da 
modificação  dos  costumes  está  em  que,  outrora,  os  combates  singulares  se 
empenhavam  em  plena  rua,  diante  da  turba,  que  se  afastava  para  deixar  livre  o 
campo aos combatentes, ao passo que estes hoje se ocultam. Presentemente, a morte 
de um homem é acontecimento que causa emoção, enquanto que, noutros tempos, 
ninguém dava atenção a isso. 
O  Espiritismo  apagará  esses  últimos  vestígios  da  barbárie,  incutindo  nos 
homens o espírito de caridade e de fraternidade.
132 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XIII 
NÃO SAIBA A VOSSA MÃO
ESQUERDA O QUE DÊ A VOSSA
MÃO DIREITA
·  FAZER O BEM SEM OSTENTAÇÃO
·  OS INFORTÚNIOS OCULTOS
·  O ÓBOLO DA VIÚVA
·  CONVIDAR OS POBRES E OS ESTROPIADOS. 
DAR SEM ESPERAR RETRIBUIÇÃO 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A CARIDADE MATERIAL E A CARIDADE MORAL
·  A BENEFICÊNCIA
·  A PIEDADE
·  OS ÓRFÃOS
·  BENEFÍCIOS PAGOS COM A INGRATIDÃO
·  BENEFICÊNCIA EXCLUSIVA 
FAZER O BEM SEM OSTENTAÇÃO 
1. “ Tende cuidado em não praticar as boas obras diante dos homens, para 
serem vistas, pois, do contrário, não recebereis recompensa de vosso Pai 
que está nos céus. Assim, quando derdes esmola, não trombeteeis, como 
fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos 
homens.  Digo­vos,  em  verdade,  que  eles  já  receberam  sua  recompensa. 
Quando derdes esmola, não saiba a vossa mão esquerda o que faz a vossa 
mão direita; a fim de que a esmola fique em segredo, e vosso Pai, que vê o 
que se passa em segredo, vos recompensará”. 
(MATEUS, 6:1 a 4.)
133 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
2. Tendo Jesus descido do monte, grande multidão o seguiu. Ao mesmo 
tempo, um leproso veio ao seu encontro e o adorou, dizendo: “Senhor, se 
quiseres,  poderás  curar­me”.  Jesus,  estendendo  a mão,  o  tocou  e  disse: 
“Quero­o, fica curado!”; No mesmo instante desapareceu a lepra. Disse­lhe 
então  Jesus:  “Abstém­te  de  falar  disto  a  quem  quer  que  seja;  mas,  vai 
mostrar­te aos sacerdotes e oferece o dom prescrito por Moisés, a fim de 
que lhes sirva de prova”. 
(MATEUS, 8:1 a 4) 
3. Em fazer o bem sem ostentação há grande mérito; ainda mais meritório é ocultar a 
mão  que  dá;  constitui  marca  incontestável  de  grande  superioridade  moral, 
porquanto, para encarar as coisas de mais alto do que o faz o vulgo, mister se torna 
abstrair da vida presente e identificar­se com a vida futura; numa palavra, colocar­se 
acima da Humanidade, para renunciar à satisfação que advém do testemunho dos 
homens e esperar a aprovação de Deus. Aquele que prefere ao de Deus o sufrágio 
dos homens prova que mais fé deposita nestes do que na Divindade e que mais valor 
dá à vida presente do que à futura. Se diz o contrário, procede como se não cresse no 
que diz. 
Quantos há que só dão na esperança de que o que recebe irá bradar por toda 
a parte o benefício recebido! Quantos os que, de público, dão grandes somas e que, 
entretanto, às ocultas, não dariam uma só moeda! Foi por isso que Jesus declarou: 
“Os que fazem o bem ostentosamente já receberam sua recompensa.” Com efeito, 
aquele que procura a sua própria glorificação na Terra, pelo bem que pratica, já se 
pagou a si mesmo; Deus nada mais lhe deve; só lhe resta receber a punição do seu 
orgulho. 
Não  saber  a  mão  esquerda  o  que  dá a  mão  direita  é  uma  imagem  que 
caracteriza  admiravelmente  a  beneficência  modesta.  Mas,  se  há  a  modéstia  real, 
também há a falsa modéstia, o simulacro da modéstia. Há pessoas que  ocultam a 
mão que dá, tendo, porém, o cuidado de deixar aparecer um pedacinho, olhando em 
volta  para  verificar  se  alguém  não  o  terá  visto  ocultá­la.  Indigna  paródia  das 
máximas do Cristo! Se os benfeitores orgulhosos são depreciados entre os homens, 
que não será perante Deus? Também esses já receberam na Terra sua recompensa. 
Foram vistos; estão satisfeitos por terem sido vistos. É tudo o que terão. 
E qual poderá ser a recompensa do que faz pesar os seus benefícios sobre 
aquele  que  os  recebe,  que  lhe  impõe,  de  certo  modo,  testemunhos  de 
reconhecimento, que lhe faz sentir a sua posição, exaltando o preço dos sacrifícios a 
que se vota para beneficiá­lo? Oh! Para esse, nem mesmo a recompensa terrestre 
existe,  porquanto  ele  se  vê  privado  da  grata  satisfação  de  ouvir  bendizer­lhe  do 
nome e é esse o primeiro castigo do seu orgulho. As lágrimas que seca por vaidade, 
em vez de subirem ao Céu, recaíram sobre o coração do aflito e o ulceraram. Do 
bem  que  praticou  nenhum  proveito  lhe  resulta,  pois  que  ele  o  deplora,  e  todo 
benefício deplorado é moeda falsa e sem valor. 
A  beneficência  praticada  sem  ostentação  tem  duplo  mérito.  Além  de  ser 
caridade  material,  é  caridade  moral,  visto  que  resguarda  a  suscetibilidade  do 
beneficiado,  faz­lhe  aceitar  o  benefício,  sem  que  seu  amor­próprio  se  ressinta  e 
salvaguardando­lhe  a  dignidade  de  homem,  porquanto  aceitar  um  serviço  é  coisa
134 – Allan Kardec 
bem  diversa  de  receber  uma  esmola.  Ora,  converter  em  esmola  o  serviço,  pela 
maneira de prestá­lo, é humilhar o que o recebe, e, em humilhar a outrem, há sempre 
orgulho e maldade. A verdadeira caridade, ao contrário, é delicada e engenhosa no 
dissimular  o  benefício,  no  evitar  até  as  simples  aparências  capazes  de  melindrar, 
dado que todo atrito moral aumenta o sofrimento que se origina da necessidade. Ela 
sabe encontrar palavras brandas e afáveis que colocam o beneficiado à vontade em 
presença do benfeitor, ao passo que a caridade orgulhosa o esmaga. A verdadeira 
generosidade adquire toda a sublimidade, quando o benfeitor, invertendo os papéis, 
acha meios de figurar como beneficiado diante daquele a quem presta serviço. Eis o 
que significam estas palavras: “Não saiba a mão esquerda o que dá a direita.” 
OS INFORTÚNIOS OCULTOS 
4.  Nas  grandes  calamidades,  a  caridade  se  emociona  e  observam­se  impulsos 
generosos, no sentido de reparar os desastres. Mas, a par desses desastres gerais, há 
milhares  de  desastres  particulares,  que  passam  despercebidos:  os  dos  que  jazem 
sobre um grabato sem se queixarem. Esses infortúnios discretos e ocultos são os que 
a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar que peçam assistência. 
Quem  é  esta  mulher  de  ar  distinto,  de  traje  tão  simples,  embora  bem 
cuidado,  e  que  traz  em  sua  companhia  uma  mocinha  tão  modestamente  vestida? 
Entra numa  casa  de  sórdida  aparência,  onde  sem  dúvida  é  conhecida,  pois  que  à 
entrada a saúdam respeitosamente. Aonde vai ela? Sobe até a mansarda, onde jaz 
uma mãe de família cercada de crianças. À sua chegada, refulge a alegria naqueles 
rostos  emagrecidos.  É  que  ela  vai  acalmar  ali  todas  as  dores.  Traz  o  de  que 
necessitam,  condimentado  de  meigas  e  consoladoras  palavras,  que  fazem  que  os 
seus protegidos, que não são profissionais da mendicância, aceitem o benefício, sem 
corar. O pai está no hospital e, enquanto lá permanece, a mãe não consegue com o 
seu trabalho prover as necessidades da família. Graças à boa senhora, aquelas pobres 
crianças  não  mais  sentirão  frio,  nem  fome;  irão  à  escola  agasalhadas  e,  para  as 
menorzinhas,  o  leite  não  secará  no  seio  que  as  amamenta.  Se  entre  elas  alguma 
adoece, não lhe repugnarão a ela, à boa dama, os cuidados materiais de que essa 
necessite. Dali vai ao hospital levar ao pai algum reconforto e tranqüilizá­lo sobre a 
sorte da família. No canto da rua, uma carruagem a espera, verdadeiro armazém de 
tudo  o  que  destina  aos  seus  protegidos,  que  todos  lhe  recebem  sucessivamente  a 
visita. Não lhes pergunta qual a crença que professam, nem quais suas opiniões, pois 
considera  como  seus  irmãos  e  filhos  de  Deus  todos  os  homens. Terminado  o  seu 
giro, diz de si para consigo: Comecei bem o meu dia. Qual o seu nome? Onde mora? 
Ninguém o sabe. Para os infelizes, é um nome que nada indica; mas é o anjo da 
consolação. À noite, um concerto de bênçãos se eleva em seu favor ao Pai celestial: 
católicos, judeus, protestantes, todos a bendizem. 
Por que tão singelo traje? Para não insultar a miséria com o seu luxo. Por 
que  se  faz  acompanhar  da  filha?  Para  que  aprenda  como  se  deve  praticar  a 
beneficência.  A  mocinha  também  quer  fazer  a  caridade.  A  mãe,  porém,  lhe  diz: 
“Que  podes  dar,  minha  filha,  quando  nada  tens  de teu?  Se  eu  te  passar  às  mãos 
alguma  coisa  para  que  dês  a  outrem,  qual  será  o  teu  mérito?  Nesse  caso,  em
135 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
realidade, serei eu quem faz a caridade; que merecimento terias nisso? Não é justo. 
Quando visitamos os doentes, tu me ajudas a tratá­los. Ora, dispensar cuidados é dar 
alguma  coisa.  Não  te  parece  bastante  isso?  Nada  mais  simples.  Aprende  a  fazer 
obras  úteis  e  confeccionarás  roupas  para  essas  criancinhas.  Desse  modo,  darás 
alguma  coisa  que  vem  de  ti.”  É  assim  que  aquela  mãe  verdadeiramente  cristã 
prepara a filha para a prática das virtudes que o Cristo ensinou. É espírita ela? Que 
importa! 
Em  casa,  é  a mulher  do  mundo, porque a  sua  posição  o  exige.  Ignoram, 
porém, o que faz, porque ela não deseja outra aprovação, além da de Deus e da sua 
consciência. Certo dia, no entanto, imprevista circunstância leva­lhe a casa uma de 
suas  protegidas,  que  andava  a  vender  trabalhos  executados  por  suas  mãos.  Esta 
última, ao vê­la, reconheceu nela a sua benfeitora. “Silêncio! ordena­lhe a senhora. 
Não o digas a ninguém.” Falava assim Jesus. 
O ÓBOLO DA VIÚVA 
5. Estando Jesus sentado defronte do gazofilácio, a observar de que modo 
o povo lançava ali o dinheiro, viu que muitas pessoas ricas o deitavam em 
abundância. Nisso, veio também uma pobre viúva que apenas deitou duas 
pequenas moedas do valor de dez centavos cada uma. Chamando então 
seus discípulos, disse­lhes: “Em verdade vos digo que esta pobre viúva deu 
muito mais do que todos os que antes puseram suas dádivas no gazofilácio; 
por isso que todos os outros deram do que lhes abunda, ao passo que ela 
deu do que lhe faz falta, deu mesmo tudo o que tinha para seu sustento”. 
(MARCOS, 12:41 a 44; LUCAS, 21:1 a 4) 
6.  Muita  gente  deplora  não  poder  fazer  todo  o  bem  que  desejara,  por  falta  de 
recursos  suficientes,  e,  se  desejam  possuir  riquezas,  é,  dizem,  para  lhes  dar  boa 
aplicação. É sem dúvida louvável a intenção e pode até nalguns ser sincera. Dar­se­ 
á,  contudo,  seja  completamente  desinteressada  em  todos?  Não  haverá  quem, 
desejando  fazer  bem  aos  outros,  muito  estimaria  poder  começar  por  fazê­lo  a  si 
próprio, por proporcionar a si mesmo alguns gozos mais, por usufruir de um pouco 
do supérfluo que lhe falta, pronto a dar aos pobres o resto? Esta segunda intenção, 
que  esses  tais  porventura  dissimulam  aos  seus  próprios  olhos,  mas  que  se  lhes 
depararia no fundo dos seus corações, se eles os perscrutassem, anula o mérito do 
intento, visto que, com a verdadeira caridade, o homem pensa nos outros antes de 
pensar em si. O ponto sublimado da caridade, nesse caso, estaria em procurar ele no 
seu trabalho, pelo emprego de suas forças, de sua inteligência, de seus talentos, os 
recursos  de  que  carece  para  realizar  seus  generosos  propósitos.  Haveria  nisso  o 
sacrifício que mais agrada ao Senhor. Infelizmente, a maioria vive a sonhar com os 
meios de mais facilmente se enriquecer de súbito e sem esforço, correndo atrás de 
quimeras, quais a descoberta de tesouros, de uma favorável ensancha aleatória, do 
recebimento de inesperadas heranças, etc. Que dizer dos que esperam encontrar nos 
Espíritos auxiliares que os secundem na consecução de tais objetivos? Certamente 
não  conhecem,  nem  compreendem  a  sagrada  finalidade  do  Espiritismo  e,  ainda
136 – Allan Kardec 
menos,  a  missão  dos  Espíritos  a  quem  Deus  permite  se  comuniquem  com  os 
homens. Daí vem o serem punidos pelas decepções, (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, 
nº 294 e 295) 
Aqueles  cuja  intenção  está  isenta  de  qualquer  idéia  pessoal,  devem 
consolar­se da impossibilidade em que se vêem de fazer todo o bem que desejariam, 
lembrando­se de que o óbolo do pobre, do que dá privando­se do necessário, pesa 
mais  na  balança  de  Deus  do  que  o  ouro  do  rico  que  dá  sem  se  privar  de  coisa 
alguma, Grande seria realmente a satisfação do primeiro, se pudesse  socorrer, em 
larga  escala,  a  indigência;  mas,  se  essa  satisfação  lhe  é  negada,  submeta­se  e  se 
limite  a  fazer  o  que  possa.  Aliás,  será  só  com  o  dinheiro  que  se  podem  secar 
lágrimas e dever­se­á ficar inativo, desde que se não tenha dinheiro? Todo aquele 
que sinceramente deseja ser útil a seus irmãos, mil ocasiões encontrará de realizar o 
seu desejo. Procure­as e elas se lhe depararão; se não for de um modo, será de outro, 
porque ninguém há que, no pleno gozo de suas  faculdades, não possa prestar um 
serviço qualquer, prodigalizar um consolo, minorar um sofrimento físico ou moral, 
fazer um esforço útil. Não dispõem todos, à falta de dinheiro, do seu trabalho, do seu 
tempo, do seu repouso, para de tudo isso dar uma parte ao próximo? Também aí está 
a dádiva do pobre, o óbolo da viúva. 
CONVIDAR OS POBRES E OS ESTROPIADOS. 
DAR SEM ESPERAR RETRIBUIÇÃO 
7.  Disse  também  àquele  que  o  convidara:  “Quando  derdes  um  jantar  ou 
uma  ceia,  não  convideis nem  os  vossos amigos,  nem os vossos irmãos, 
nem os vossos parentes, nem os vossos vizinhos que forem ricos, para que 
em seguida não vos convidem a seu turno e assim retribuam o que de vós 
receberam.  Quando  derdes  um  festim,  convidai  para  ele  os  pobres,  os 
estropiados,  os  coxos  e  os  cegos.  E  sereis  ditosos  por  não  terem  eles 
meios  de  vo­lo  retribuir,  pois  isso  será  retribuído  na  ressurreição  dos 
justos”. 
Um dos que se achavam à mesa, ouvindo essas palavras, disse­ 
lhe: “Feliz do que comer do pão no reino de Deus!” 
(LUCAS, 14:12 a 15) 
8. “Quando derdes um festim, disse Jesus, não convideis para ele os vossos amigos, 
mas os pobres e os estropiados.” Estas palavras, absurdas se tomadas ao pé da letra, 
são sublimes, se lhes buscarmos o espírito. Não é possível que Jesus haja pretendido 
que,  em  vez  de  seus  amigos,  alguém reúna  à  sua  mesa  os  mendigos  da  rua.  Sua 
linguagem  era  quase  sempre  figurada  e,  para  os  homens  incapazes  de apanhar  os 
delicados  matizes  do  pensamento,  precisava  servir­se  de  imagens  fortes,  que 
produzissem o efeito de um colorido vivo. O âmago do seu pensamento se revela 
nesta  proposição:  “E  sereis  ditosos  por  não  terem  eles  meios  de  vo­lo  retribuir.” 
Quer dizer que não se deve fazer o bem tendo em vista uma retribuição, mas tão­só 
pelo prazer de o praticar. Usando de uma comparação vibrante, disse: Convidai para 
os  vossos  festins  os  pobres,  pois  sabeis  que  eles  nada  vos  podem  retribuir.  Por
137 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
festins deveis entender, não os repastos propriamente ditos, mas a participação na 
abundância de que desfrutais. 
Todavia,  aquela  advertência  também  pode  ser  aplicada  em  sentido  mais 
literal.  Quantos  não  convidam  para  suas  mesas  apenas  os  que  podem,  como  eles 
dizem,  fazer­lhes  honra,  ou,  a  seu  turno,  convidá­los!  Outros,  ao  contrário, 
encontram satisfação em receber os parentes e amigos menos felizes. Ora, quem não 
os conta entre os seus? Dessa forma, grande serviço, às vezes, se lhes presta, sem 
que  o  pareça.  Aqueles,  sem  irem  recrutar  os  cegos  e  os  estropiados,  praticam  a 
máxima de Jesus, se o fazem por benevolência, sem ostentação, e sabem dissimular 
o benefício, por meio de uma sincera cordialidade. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A CARIDADE MATERIAL E A CARIDADE MORAL 
9. “Amemo­nos uns aos outros e façamos aos outros o que quereríamos nos fizessem 
eles.” Toda a religião, toda a moral se acham encerradas nestes dois preceitos. Se 
fossem  observados  nesse  mundo,  todos  seríeis  felizes:  não  mais  aí  ódios,  nem 
ressentimentos. Direi ainda: não mais pobreza, porquanto, do supérfluo da mesa de 
cada  rico,  muitos  pobres  se  alimentariam  e  não  mais  veríeis,  nos  quarteirões 
sombrios  onde  habitei  durante  a  minha  última  encarnação,  pobres  mulheres 
arrastando consigo miseráveis crianças a quem tudo faltava. 
Ricos! Pensai nisto um pouco. Auxiliai os infelizes o melhor que puderdes. 
Dai,  para  que  Deus,  um  dia,  vos  retribua  o  bem  que  houverdes  feito,  para  que 
tenhais, ao sairdes do vosso invólucro terreno, um cortejo de Espíritos agradecidos, 
a receber­vos no limiar de um mundo mais ditoso. 
Se  pudésseis  saber  da  alegria  que  experimentei  ao  encontrar  no  Além 
aqueles a quem, na minha última existência, me fora dado servir!... 
Amai,  portanto,  o  vosso  próximo;  amai­o  como  a  vós  mesmos,  pois  já 
sabeis, agora, que, repelindo um desgraçado, estareis, quiçá, afastando de vós um 
irmão, um pai, um amigo vosso de outrora. Se assim for, de que desespero não vos 
sentireis presa, ao reconhecê­lo no mundo dos Espíritos! 
Desejo compreendais bem o que seja a caridade moral, que todos podem 
praticar,  que  nada  custa,  materialmente  falando,  porém,  que  é  a  mais  difícil  de 
exercer­se. 
A caridade moral consiste em se suportarem umas às outras as criaturas e é 
o que menos fazeis nesse mundo inferior, onde vos achais, por agora, encarnados. 
Grande mérito há, crede­me, em um homem saber calar­se, deixando fale outro mais 
tolo do que ele. É um gênero de caridade isso. Saber ser surdo quando uma palavra 
zombeteira  se  escapa  de  uma  boca  habituada  a  escarnecer;  não  ver  o  sorriso  de 
desdém com que vos recebem pessoas que, muitas vezes  erradamente, se supõem 
acima de vós, quando na vida espírita, a única real, estão, não raro, muito abaixo, 
constitui  merecimento, não  do  ponto  de  vista  da humildade,  mas  do  da  caridade, 
porquanto não dar atenção ao mau proceder de outrem é caridade moral.
138 – Allan Kardec 
Essa caridade, no entanto, não deve obstar à outra. Tende, porém, cuidado, 
principalmente  em  não  tratar  com  desprezo  o  vosso  semelhante.  Lembrai­vos  de 
tudo o que já vos tenho dito: Tende presente sempre que, repelindo um pobre, talvez 
repilais um Espírito que vos  foi caro e que, no momento, se encontra em posição 
inferior à vossa. Encontrei aqui um dos pobres da Terra, a quem, por felicidade, eu 
pudera  auxiliar  algumas  vezes,  e  ao  qual,  a  meu  turno, tenho agora de implorar 
auxílio. 
Lembrai­vos de que Jesus disse que todos somos irmãos e pensai sempre 
nisso, antes de repelirdes o leproso ou o mendigo. Adeus: pensai nos que sofrem e 
orai. – Irmã Rosália. (Paris, 1860) 
10.  Meus  amigos,  a  muitos  dentre  vós  tenho  ouvido  dizer:  Como  hei  de  fazer 
caridade, se amiúde nem mesmo do necessário disponho? 
Amigos, de mil maneiras se faz a caridade. Podeis fazê­la por pensamentos, 
por palavras e por ações. Por pensamentos, orando pelos pobres abandonados, que 
morreram sem se acharem sequer em condições de  ver a luz. Uma prece feita de 
coração  os  alivia.  Por palavras,  dando  aos  vossos  companheiros  de  todos  os  dias 
alguns bons conselhos, dizendo aos que o desespero, as privações azedaram o ânimo 
e levaram a blasfemar do nome do Altíssimo: “Eu era como sois; sofria, sentia­me 
desgraçado, mas acreditei no Espiritismo e, vede, agora, sou feliz.” Aos velhos que 
vos disserem: “É inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei como vivi”, dizei: 
“Deus usa de justiça igual para com todos nós; lembrai­vos dos obreiros da última 
hora.” Às crianças já viciadas pelas companhias de que se cercaram e que vão pelo 
mundo,  prestes  a  sucumbir  às  más  tentações,  dizei:  “Deus  vos  vê,  meus  caros 
pequenos”, e não vos canseis de lhes repetir essas brandas palavras. Elas acabarão 
por lhes germinar nas inteligências infantis e, em vez de vagabundos, fareis deles 
homens. Também isso é caridade. 
Dizem, outros dentre vós: “Ora! somos tão numerosos na Terra, que Deus 
não nos pode ver a todos.” Escutai bem isto, meus amigos: Quando estais no cume 
da montanha, não abrangeis com o olhar os bilhões de grãos de areia que a cobrem? 
Pois bem: do mesmo modo vos vê Deus. Ele vos deixa usar do vosso livre­arbítrio, 
como  vós  deixais  que  esses  grãos  de  areia  se  movam  ao  sabor  do  vento  que  os 
dispersa. Apenas, Deus, em sua misericórdia infinita, vos pôs no fundo do coração 
uma  sentinela  vigilante,  que  se  chama  consciência.  Escutai­a,  que  somente  bons 
conselhos ela vos dará. Às vezes, conseguis entorpecê­la, opondo­lhe o espírito do 
mal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre escorraçada se fará ouvir, 
logo que lhe deixardes aperceber­se da sombra do remorso. Ouvi­a, interrogai­a e 
com  freqüência  vos  achareis  consolados  com  o  conselho  que  dela  houverdes 
recebido. 
Meus amigos, a cada regimento novo o general entrega um estandarte. Eu 
vos dou por divisa esta máxima do Cristo: “Amai­vos uns aos outros.” Observai esse 
preceito, reuni­vos todos em torno dessa bandeira e tereis ventura e consolação. – 
Um Espírito protetor. (Lião, 1860)
139 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
A BENEFICÊNCIA 
11. A beneficência, meus amigos, dar­vos­á nesse mundo os mais puros e suaves 
deleites, as alegrias do coração, que nem o remorso, nem a indiferença perturbam. 
Oh!  Pudésseis  compreender  tudo  o  que  de  grande  e  de  agradável  encerra  a 
generosidade das almas belas, sentimento que faz olhe a criatura as outras como olha 
a si mesma, e se dispa, jubilosa, para vestir o seu irmão! Pudésseis, meus amigos, ter 
por única ocupação tornar felizes os outros! Quais as festas mundanas que podereis 
comparar  às  que  celebrais  quando,  como  representantes  da  Divindade,  levais  a 
alegria a essas famílias que da vida apenas conhecem as vicissitudes e as amarguras, 
quando vedes nelas os semblantes macerados refulgirem subitamente de esperança, 
porque, faltos de pão, os desgraçados ouviam seus filhinhos, ignorantes de que viver 
é sofrer, gritando repetidamente, a chorar, estas palavras, que, como agudo punhal, 
se lhes enterravam nos corações maternos: “Estou com fome!...” Oh! Compreendei 
quão deliciosas são as impressões que recebe aquele que vê renascer a alegria onde, 
um momento antes, só havia desespero! Compreendei as obrigações que tendes para 
com os vossos irmãos! Ide, ide ao encontro do infortúnio; ide em socorro, sobretudo, 
das misérias ocultas, por serem as mais dolorosas! Ide, meus bem­amados, e tende 
em mente estas palavras do Salvador: “Quando vestirdes a um destes pequeninos, 
lembrai­vos de que é a mim que o fazeis!” Caridade! Sublime palavra que sintetiza 
todas  as  virtudes,  és  tu  que hás  de  conduzir  os  povos  à  felicidade.  Praticando­te, 
criarão  eles  para  si  infinitos  gozos  no  futuro  e,  enquanto  se  acharem  exilados  na 
Terra, tu lhes serás a consolação, o prelibar das alegrias de que fruirão mais tarde, 
quando se encontrarem reunidos no seio do Deus de amor. Foste tu, virtude divina, 
que me proporcionaste os únicos momentos de satisfação de que gozei na Terra. Que 
os meus irmãos encarnados creiam na palavra do amigo que lhes fala, dizendo­lhes: 
É na caridade que deveis procurar a paz do coração, o  contentamento da alma, o 
remédio para as aflições da vida. Oh! Quando estiverdes a ponto de acusar a Deus, 
lançai um olhar para baixo de  vós;  vede que de misérias a aliviar, que de pobres 
crianças sem família, que de velhos sem qualquer mão amiga que os ampare e lhes 
feche  os  olhos  quando  a  morte  os  reclame!  Quanto  bem  a  fazer!  Oh!  Não  vos 
queixeis; ao contrário, agradecei a Deus e prodigalizai a mancheias a vossa simpatia, 
o vosso amor, o vosso dinheiro por todos os que, deserdados dos bens desse mundo, 
enlanguescem na dor e no insulamento! Colhereis nesse mundo bem doces alegrias 
e, mais tarde... Só Deus o sabe!... – Adolfo, bispo de Argel. (Bordéus, 1861) 
12. Sede bons e caridosos: essa a chave dos céus, chave que tendes em vossas mãos. 
Toda a eterna felicidade se contém neste preceito: “Amai­vos uns aos outros.” Não 
pode  a  alma  elevar­se  às  altas  regiões  espirituais,  senão  pelo  devotamento  ao 
próximo; somente nos arroubos da caridade encontra ela ventura e consolação. Sede 
bons,  amparai  os  vossos  irmãos,  deixai  de  lado  a  horrenda  chaga  do  egoísmo. 
Cumprido  esse  dever,  abrir­se­vos­á  o  caminho  da  felicidade  eterna.  Ao  demais, 
qual  dentre  vós  ainda  não  sentiu  o  coração  pulsar  de  júbilo,  de  íntima  alegria,  à 
narrativa de um ato de bela dedicação, de uma obra verdadeiramente caridosa? Se 
unicamente buscásseis a volúpia que uma ação boa proporciona, conservar­vos­íeis 
sempre na senda do progresso espiritual. Não vos faltam os exemplos; rara é apenas
140 – Allan Kardec 
a  boa  vontade.  Notai  que  a  vossa  história  guarda  piedosa  lembrança  de  uma 
multidão de homens de bem. 
Não vos disse Jesus tudo o que concerne às virtudes da caridade e do amor? 
Por que desprezar os seus ensinamentos divinos? Por que fechar o ouvido às suas 
divinas  palavras,  o  coração  a  todos  os  seus  bondosos  preceitos?  Quisera  eu  que 
dispensassem  mais  interesse,  mais  fé  às  leituras  evangélicas.  Desprezam,  porém, 
esse livro, consideram­no repositório de palavras ocas, uma carta fechada; deixam 
no esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm todos do abandono 
voluntário a que votais esse resumo das leis divinas. Lede­lhe as páginas cintilantes 
do devotamento de Jesus, e meditai­as. 
Homens  fortes,  armai­vos;  homens  fracos,  fazei  da  vossa  brandura,  da 
vossa fé, as vossas armas. Sede mais persuasivos, mais constantes na propagação da 
vossa nova doutrina. Apenas encorajamento é o que vos vimos dar; apenas para vos 
estimularmos  o  zelo  e  as  virtudes  é  que  Deus  permite  nos  manifestemos  a  vós 
outros.  Mas,  se  cada  um  o  quisesse,  bastaria  a  sua  própria  vontade  e  a  ajuda  de 
Deus; as manifestações espíritas unicamente se produzem para os de olhos fechados 
e corações indóceis. 
A caridade é a virtude fundamental sobre que há de repousar todo o edifício 
das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem a caridade não há esperar 
melhor sorte, não há interesse moral que nos guie; sem a caridade não há fé, pois a 
fé não é mais do que pura luminosidade que torna brilhante uma alma caridosa. 
A caridade é, em todos os mundos, a eterna âncora de salvação; é a mais 
pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, dada por ele à criatura. 
Como  desprezar  essa  bondade  suprema?  Qual  o  coração,  disso  ciente,  bastante 
perverso para recalcar em si e expulsar esse sentimento todo divino? Qual o filho 
bastante mau para se rebelar contra essa doce carícia: a caridade? 
Não ouso falar do que fiz, porque também os Espíritos têm o pudor de suas 
obras; considero, porém, a que iniciei como uma das que mais hão de contribuir para 
o alívio dos vossos semelhantes. Vejo com freqüência os Espíritos a pedirem lhes 
seja  dado,  por  missão,  continuar  a  minha  tarefa.  Vejo­os,  minhas  bondosas  e 
queridas irmãs, no piedoso e divino ministério; vejo­os praticando a virtude que vos 
recomendo,  com  todo  o  júbilo  que  deriva  de  uma  existência  de  dedicação  e 
sacrifícios.  Imensa  dita  é  a  minha,  por  ver  quanto  lhes  honra  o  caráter,  quão 
estimada e protegida é a missão que desempenham. Homens de bem, de boa e firme 
vontade, uni­vos para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; no 
exercício  mesmo  dessa  virtude,  encontrareis  a  vossa  recompensa;  não  há  alegria 
espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Sede unidos, amai­vos uns 
aos outros, segundo os preceitos do Cristo. Assim seja. – S. Vicente de Paulo. (Paris, 
1858) 
13.  Chamo­me  Caridade;  sigo  o  caminho  principal  que  conduz  a  Deus. 
Acompanhai­me, pois conheço a meta a que deveis todos visar. 
Dei esta manhã o meu giro habitual e, com o coração amargurado, venho 
dizer­vos:  Oh!  Meus  amigos,  que  de  misérias,  que  de  lágrimas,  quanto  tendes  de 
fazer para secá­las todas! Em vão, procurei consolar algumas pobres mães, dizendo­ 
lhes  ao  ouvido:  Coragem!  Há  corações  bons  que  velam  por  vós;  não  sereis
141 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
abandonadas;  paciência!  Deus  lá  está;  sois  dele  amadas,  sois  suas  eleitas.  Elas 
pareciam ouvir­me e volviam para o meu lado os olhos arregalados de espanto; eu 
lhes lia no semblante que seus corpos, tiranos do Espírito, tinham fome e que, se é 
certo  que  minhas  palavras  lhes  serenavam  um  pouco  os  corações,  não  lhes 
reconfortavam os estômagos. Repetia­lhes: Coragem! Coragem! Então, uma pobre 
mãe, ainda muito moça, que amamentava uma criancinha, tomou­a nos braços e a 
estendeu no espaço vazio, como a pedir­me que protegesse aquele entezinho que só 
encontrava, num seio estéril, insuficiente alimentação. 
Alhures vi, meus amigos, pobres velhos sem trabalho e, em conseqüência, 
sem  abrigo,  presas  de  todos  os  sofrimentos  da  penúria  e,  envergonhados  de  sua 
miséria,  sem  ousarem,  eles  que  nunca  mendigaram,  implorar  a  piedade  dos 
transeuntes.  Com  o  coração  túmido  de  compaixão,  eu,  que  nada  tenho,  me  fiz 
mendiga para eles e vou, por toda a parte, estimular a beneficência, inspirar bons 
pensamentos  aos  corações  generosos  e  compassivos.  Por  isso  é  que  aqui  venho, 
meus amigos, e vos digo: Há por aí desgraçados, em cujas choupanas falta o pão, os 
fogões  se  acham  sem  lume  e  os  leitos  sem  cobertas.  Não  vos  digo  o  que  deveis 
fazer;  deixo  aos  vossos  bons  corações  a  iniciativa.  Se  eu  vos  ditasse  o  proceder, 
nenhum mérito vos traria a vossa boa ação. Digo­vos apenas: Sou a caridade e vos 
estendo as mãos pelos vossos irmãos que sofrem. 
Mas,  se  peço,  também  dou  e  dou  muito.  Convido­vos  para  um  grande 
banquete e forneço a árvore onde todos vos saciareis! Vede quanto é bela, como está 
carregada  de  flores  e  de  frutos!  Ide,  ide,  colhei,  apanhai  todos  os  frutos  dessa 
magnificente  árvore  que  se  chama  a  beneficência.  No  lugar  dos  ramos  que  lhe 
tirardes, atarei todas as boas ações que praticardes e levarei a árvore a Deus, que a 
carregará de novo, porquanto a beneficência é inexaurível. Acompanhai­me, pois, 
meus  amigos,  a  fim  de  que  eu  vos  conte  entre  os  que  se  arrolam  sob  a  minha 
bandeira. Nada temais; eu vos conduzirei pelo caminho da salvação, porque sou – a 
Caridade. – Cárita, martirizada em Roma. (Lião, 1861) 
14.  Várias  maneiras há  de  fazer­se  a  caridade, que  muitos  dentre  vós  confundem 
com a esmola. Diferença grande vai, no entanto, de uma para outra. A esmola, meus 
amigos,  é  algumas  vezes  útil,  porque  dá  alívio  aos  pobres;  mas  é  quase  sempre 
humilhante,  tanto  para  o  que  a  dá,  como  para  o  que  a  recebe.  A  caridade,  ao 
contrário, liga o benfeitor ao beneficiado e se disfarça de tantos modos! Pode­se ser 
caridoso, mesmo com os parentes e com os amigos, sendo uns indulgentes para com 
os  outros,  perdoando­se  mutuamente  as  fraquezas,  cuidando  não  ferir  o  amor­ 
próprio de ninguém. Vós, espíritas, podeis sê­lo na vossa maneira de proceder para 
com os que não pensam como vós, induzindo os menos esclarecidos a crer, mas sem 
os chocar, sem investir contra as suas convicções e, sim, atraindo­os amavelmente às 
nossas  reuniões,  onde  poderão  ouvir­nos  e  onde  saberemos  descobrir  nos  seus 
corações a brecha para neles penetrarmos. Eis aí um dos aspectos da caridade. 
Escutai agora o que é a caridade para com os pobres, os deserdados deste 
mundo, mas recompensados de Deus, se aceitam sem queixumes as suas misérias, o 
que de vós depende. Far­me­ei compreender por um exemplo. 
Vejo, várias vezes, cada semana, uma reunião de senhoras, havendo­as de 
todas  as  idades.  Para  nós,  como  sabeis,  são  todas  irmãs.  Que  fazem?  Trabalham
142 – Allan Kardec 
depressa,  muito  depressa;  têm  ágeis  os  dedos.  Vede  como  trazem  alegres  os 
semblantes  e  como  lhes  batem  em  uníssono  os  corações.  Mas,  com  que  fim 
trabalham? É que vêem aproximar­se o inverno que será rude para os lares pobres. 
As formigas não puderam juntar durante o estio as provisões necessárias e a maior 
parte de suas utilidades está empenhada. As pobres mães  se inquietam e choram, 
pensando nos filhinhos que, durante a estação invernosa, sentirão frio e fome! Tende 
paciência, infortunadas mulheres. Deus inspirou a outras mais aquinhoadas do que 
vós;  elas  se  reuniram  e  estão  confeccionando  roupinhas;  depois,  um  destes  dias, 
quando a terra se achar coberta de neve e vós vos lamentardes, dizendo: “Deus não é 
justo”, que é o que vos sai dos lábios sempre que sofreis, vereis surgir a filha de uma 
dessas boas trabalhadoras que se constituíram obreiras dos pobres, pois que é para 
vós que elas trabalham assim, e os vossos lamentos se mudarão em bênçãos, dado 
que no coração dos infelizes o amor acompanha de bem perto o ódio. 
Como essas trabalhadoras precisam de encorajamento, vejo chegarem­lhes 
de todos os lados as comunicações dos bons Espíritos. Os homens que fazem parte 
dessa sociedade lhes trazem também seu concurso, fazendo­lhes uma dessas leituras 
que agradam tanto. E nós, para recompensarmos o zelo de todos e de cada um em 
particular, prometemos às laboriosas obreiras boa clientela, que lhes pagará à vista, 
em bênçãos, única moeda que tem curso no Céu, garantindo­lhes, além disso, sem 
receio de errar, que essa moeda não lhes faltará. – Cárita. (Lião, 1861) 
15. Meus caros amigos, todos os dias ouço entre vós dizerem: “Sou pobre, não posso 
fazer  a  caridade”,  e  todos  os  dias  vejo  que  faltais  com  a  indulgência  aos  vossos 
semelhantes. Nada lhes perdoais e vos arvorais em juízes muitas vezes severos, sem 
quererdes saber se ficaríeis satisfeitos que do mesmo modo procedessem convosco. 
Não  é  também  caridade  a  indulgência?  Vós,  que  apenas  podeis  fazer  a  caridade 
praticando  a  indulgência,  fazei­a  assim,  mas  fazei­a  largamente.  Pelo  que  toca  à 
caridade material, vou contar­vos uma história do outro mundo. 
Dois  homens  acabavam  de  morrer.  Dissera  Deus:  Enquanto  esses  dois 
homens viverem, deitar­se­ão em sacos diferentes as boas ações de cada um deles, 
para  que  por  ocasião  de  sua  morte  sejam  pesadas.  Quando  ambos  chegaram  aos 
últimos  momentos,  mandou  Deus  que  lhe  trouxessem  os  dois  sacos.  Um  estava 
cheio,  volumoso,  atochado,  e  nele  ressoava  o  metal  que  o  enchia;  o  outro  era 
pequenino e tão vazio que se podiam contar as moedas que continha. Este o meu, 
disse um, reconheço­o; fui rico e dei muito. Este o meu, disse o outro, sempre fui 
pobre, oh! Quase nada tinha para repartir. Mas, oh! Surpresa! Postos na balança os 
dois sacos, o mais volumoso se revelou leve, mostrando­se pesado o outro, tanto que 
fez  se  elevasse  muito  o  primeiro no  prato  da  balança.  Deus,  então,  disse ao  rico: 
deste muito, é certo, mas deste por ostentação e para que o teu nome figurasse em 
todos  os templos do  orgulho e, ao demais, dando, de nada te privaste. Vai para a 
esquerda  e  fica  satisfeito  com  o  te  serem  as  tuas  esmolas  contadas  por  qualquer 
coisa.  Depois,  disse  ao  pobre:  Tu  deste  pouco,  meu  amigo;  mas,  cada  uma  das 
moedas que estão nesta balança representa uma privação que te impuseste; não deste 
esmolas,  entretanto,  praticaste  a  caridade,  e,  o  que  vale  muito  mais,  fizeste  a 
caridade  naturalmente,  sem  cogitar  de  que  te  fosse  levada  em  conta;  foste 
indulgente; não  te  constituíste  juiz  do  teu  semelhante; ao  contrário, todas  as  suas
143 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
ações lhe relevaste: passa à direita e vai receber a tua recompensa. – Um Espírito 
protetor. (Lião, 1861) 
16. A mulher rica, venturosa, que não precisa empregar o tempo nos trabalhos de 
sua  casa,  não  poderá  consagrar  algumas  horas  a  trabalhos  úteis  aos  seus 
semelhantes?  Compre,  com  o  que  lhe  sobre  dos  prazeres,  agasalhos  para  o 
desgraçado  que  tirita  de  frio;  confeccione,  com  suas  mãos  delicadas,  roupas 
grosseiras, mas quentes; auxilie uma mãe a cobrir o filho que vai nascer. Se por isso 
seu  filho  ficar  com  algumas  rendas  de  menos,  o  do  pobre  terá  mais  com  que  se 
aqueça. Trabalhar para os pobres é trabalhar na vinha do Senhor. 
E tu, pobre operária, que não tens supérfluo, mas que, cheia de amor aos 
teus irmãos, também queres dar do pouco com que contas, dá algumas horas do teu 
dia, do teu tempo, único tesouro que possuis; faze alguns desses trabalhos elegantes 
que tentam os felizes; vende o produto dos teus serões e poderás igualmente oferecer 
aos teus irmãos a tua parte de auxílios. Terás, talvez, algumas fitas de menos; darás, 
porém, calçado a um que anda descalço. 
E vós, mulheres que  vos  votastes a Deus, trabalhai também na sua obra; 
mas, que os vossos trabalhos não sejam unicamente para adornar as vossas capelas, 
para  chamar  a  atenção  sobre  a  vossa  habilidade  e  paciência.  Trabalhai,  minhas 
filhas, e que o produto de vossas obras se destine a socorrer os vossos irmãos em 
Deus.  Os  pobres  são  seus  filhos  bem­amados;  trabalhar  para  eles  é  glorificá­lo. 
Sede­lhes  a  providência  que  diz:  “Aos  pássaros  do  céu  dá  Deus  o  alimento.” 
Mudem­se o ouro e a prata que se tecem nas vossas mãos em roupas e alimentos 
para os que não os têm. Fazei isto e abençoado será o vosso trabalho. 
Todos  vós,  que  podeis  produzir,  dai;  dai  o  vosso  gênio,  dai  as  vossas 
inspirações, dai o vosso coração, que Deus vos abençoará. Poetas, literatos, que só 
pela gente mundana sois lidos!... Satisfazei­lhe aos lazeres, mas consagrai o produto 
de algumas de vossas obras a socorros aos desgraçados. Pintores, escultores, artistas 
de todos os gêneros!... Venha também a vossa inteligência em auxílio dos vossos 
irmãos;  não  será  por  isso  menor  a  vossa  glória  e  alguns  sofrimentos  haverá  de 
menos. 
Todos  vós  podeis  dar.  Qualquer  que  seja  a  classe  a  que  pertençais,  de 
alguma  coisa  dispondes  que  podeis  dividir.  Seja  o  que  for  que  Deus  vos  haja 
outorgado, uma parte do que ele vos deu deveis àquele que carece do necessário, 
porquanto, em seu lugar, muito gostaríeis que outro dividisse convosco. Os vossos 
tesouros  da  Terra  serão  um  pouco  menores;  contudo,  os  vossos  tesouros  do  céu 
ficarão  acrescidos.  Lá  colhereis  pelo  cêntuplo  o  que  houverdes  semeado  em 
benefícios neste mundo. – João. (Bordéus, 1861) 
A PIEDADE 
17. A piedade é a virtude que mais vos aproxima dos anjos; é a irmã da caridade, 
que  vos  conduz  a  Deus.  Ah!  Deixai  que  o  vosso  coração  se  enterneça  ante  o 
espetáculo das misérias e dos sofrimentos dos vossos semelhantes. Vossas lágrimas 
são  um  bálsamo  que  lhes  derramais nas  feridas  e,  quando,  por  bondosa  simpatia,
144 – Allan Kardec 
chegais  a  lhes  proporcionar  a  esperança  e  a  resignação,  que  encanto  não 
experimentais! Tem um certo amargor, é certo, esse encanto, porque nasce ao lado 
da desgraça; mas, não tendo o sabor acre dos gozos mundanos, também não traz as 
pungentes  decepções  do  vazio  que  estes  últimos  deixam  após  si.  Envolve­o 
penetrante suavidade que enche de júbilo a alma. A piedade, a piedade bem sentida é 
amor; amor é devotamento; devotamento é o olvido de si mesmo e esse olvido, essa 
abnegação em favor dos desgraçados, é a virtude por excelência, a que em toda a sua 
vida praticou o divino Messias e ensinou na sua doutrina tão santa e tão sublime. 
Quando  esta  doutrina  for  restabelecida  na  sua  pureza  primitiva,  quando 
todos os povos se lhe submeterem, ela tornará feliz a Terra, fazendo que reinem aí a 
concórdia, a paz e o amor. 
O sentimento mais apropriado a fazer que progridais, domando em vós  o 
egoísmo e o orgulho, aquele que dispõe vossa alma à humildade, à beneficência e ao 
amor do próximo, é a piedade! Piedade que vos comove até às entranhas à vista dos 
sofrimentos de vossos irmãos, que vos impele a lhes estender a mão para socorrê­los 
e  vos  arranca lágrimas  de  simpatia.  Nunca,  portanto, abafeis  nos  vossos  corações 
essas  emoções  celestes;  não  procedais  como  esses  egoístas  endurecidos  que  se 
afastam  dos  aflitos,  porque  o  espetáculo  de  suas  misérias  lhes  perturbaria  por 
instantes a existência álacre. Temei conservar­vos indiferentes, quando puderdes ser 
úteis. A tranqüilidade comprada à custa de uma indiferença culposa é a tranqüilidade 
do mar Morto, no fundo de cujas águas se escondem a vasa fétida e a corrupção. 
Quão longe, no entanto, se acha a piedade de causar o distúrbio e o aborrecimento de 
que se arreceia o egoísta! Sem dúvida, ao contacto da desgraça de outrem, a alma, 
voltando­se para si mesma, experimenta um confrangimento natural e profundo, que 
põe  em  vibração  todo  o  ser  e  o  abala  penosamente.  Grande,  porém,  é  a 
compensação, quando chegais a dar coragem e esperança a um irmão infeliz que se 
enternece ao aperto de uma mão amiga e cujo olhar, úmido, por vezes, de emoção e 
de  reconhecimento,  para  vós  se  dirige  docemente,  antes  de  se  fixar  no  Céu  em 
agradecimento  por  lhe  ter  enviado  um  consolador,  um  amparo.  A  piedade  é  o 
melancólico, mas celeste precursor da caridade, primeira das virtudes que a tem por 
irmã e cujos benefícios ela prepara e enobrece. – Miguel. (Bordéus, 1862) 
OS ÓRFÃOS 
18. Meus irmãos, amai os órfãos. Se soubésseis quanto é triste ser só e abandonado, 
sobretudo na infância! Deus permite que haja órfãos, para exortar­nos a servir­lhes 
de pais. Que divina caridade amparar uma pobre criaturinha abandonada, evitar que 
sofra fome e frio, dirigir­lhe a alma, a fim de que não desgarre para o vício! Agrada 
a  Deus  quem  estende  a  mão  a  uma  criança  abandonada,  porque  compreende  e 
pratica a sua lei. Ponderai também que muitas vezes a criança que socorreis vos foi 
cara  noutra  encarnação,  caso  em  que,  se  pudésseis  lembrar­vos,  já  não  estaríeis 
praticando a caridade, mas cumprindo um dever. Assim, pois, meus amigos, todo 
sofredor é vosso irmão e tem direito à vossa caridade; não, porém, a essa caridade 
que  magoa  o  coração,  não  a  essa  esmola  que  queima  a  mão  em  que  cai,  pois 
freqüentemente  bem  amargos  são  os  vossos  óbolos!  Quantas  vezes  seriam  eles
145 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
recusados, se na choupana a enfermidade e a miséria não os estivessem esperando! 
Daí  delicadamente,  juntai  ao  benefício  que  fizerdes  o  mais  precioso  de  todos  os 
benefícios:  o de uma boa palavra, de uma carícia, de um sorriso amistoso. Evitai 
esse  ar  de  proteção,  que  equivale  a  revolver  a  lâmina  no  coração  que  sangra  e 
considerai  que,  fazendo  o  bem,  trabalhais  por  vós  mesmos  e  pelos  vossos.  – Um 
Espírito familiar. (Paris, 1860) 
BENEFÍCIOS PAGOS COM A INGRATIDÃO 
19. Que se deve pensar dos que, recebendo a ingratidão em paga de benefícios que 
fizeram, deixam de praticar o bem para não topar com os ingratos? 
Nesses, há mais egoísmo do que caridade, visto que fazer o  bem, apenas 
para receber demonstrações de reconhecimento, é não o fazer com desinteresse, e o 
bem, feito desinteressadamente, é o único agradável a Deus. Há também orgulho, 
porquanto  os  que  assim  procedem  se  comprazem  na  humildade  com  que  o 
beneficiado lhes vem depor aos pés o testemunho do seu reconhecimento. Aquele 
que procura, na Terra, recompensa ao bem que pratica não a receberá no céu. Deus, 
entretanto, terá em apreço aquele que não a busca no mundo. 
Deveis sempre ajudar os fracos, embora sabendo de antemão que os a quem 
fizerdes o bem não vo­lo agradecerão. Ficai certos de que, se aquele a quem prestais 
um serviço o esquece, Deus o levará mais em conta do que se com a sua gratidão o 
beneficiado  vo­lo  houvesse  pago. Se Deus permite por vezes sejais pagos com a 
ingratidão, é para experimentar a vossa perseverança em praticar o bem. 
E  sabeis,  porventura,  se  o  benefício  momentaneamente  esquecido  não 
produzirá  mais  tarde  bons  frutos?  Tende  a  certeza  de  que,  ao  contrário,  é  uma 
semente que com o tempo germinará. Infelizmente, nunca vedes senão o presente; 
trabalhais para vós e não pelos outros. Os benefícios acabam por abrandar os mais 
empedernidos  corações;  podem  ser  olvidados  neste  mundo,  mas,  quando  se 
desembaraçar do seu envoltório carnal, o Espírito que os recebeu se lembrará deles e 
essa  lembrança  será  o  seu  castigo.  Deplorará  a  sua  ingratidão;  desejará reparar  a 
falta, pagar a dívida noutra existência, não raro buscando uma vida de dedicação ao 
seu benfeitor. Assim, sem o suspeitardes, tereis contribuído para o seu adiantamento 
moral e vireis a reconhecer a exatidão desta máxima: um benefício jamais se perde. 
Além  disso,  também  por  vós  mesmos  tereis  trabalhado,  porquanto  granjeareis  o 
mérito  de  haver  feito  o  bem  desinteressadamente  e  sem  que  as  decepções  vos 
desanimassem. 
Ah! Meus amigos, se conhecêsseis todos os laços que prendem a vossa vida 
atual  às  vossas  existências  anteriores;  se  pudésseis  apanhar num  golpe  de  vista  a 
imensidade  das  relações  que  ligam  uns  aos  outros  os  seres,  para  o  efeito  de  um 
progresso mútuo, admiraríeis muito mais a sabedoria e a bondade do Criador, que 
vos concede reviver para chegardes a ele. – Guia protetor. (Sens, 1862) 
BENEFICÊNCIA EXCLUSIVA 
20. É acertada a beneficência, quando praticada exclusivamente entre pessoas da 
mesma opinião, da mesma crença, ou do mesmo partido?
146 – Allan Kardec 
Não, porquanto precisamente o espírito de seita e de partido é que precisa 
ser abolido, visto que são irmãos todos os homens. O verdadeiro cristão vê somente 
irmãos em seus semelhantes e não procura saber, antes de socorrer o necessitado, 
qual  a  sua  crença,  ou  a  sua  opinião,  seja  sobre  o  que  for.  Obedeceria  o  cristão, 
porventura, ao  preceito  de  Jesus  Cristo,  segundo  o  qual  devemos  amar  os  nossos 
inimigos,  se  repelisse  o  desgraçado,  por  professar  uma  crença  diferente  da  sua? 
Socorra­o, portanto, sem lhe pedir contas à consciência, pois, se for um inimigo da 
religião,  esse  será  o  meio  de  conseguir  que  ele  a  ame;  repelindo­o,  faria  que  a 
odiasse. – S. Luís. (Paris, 1860)
147 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XIV 
HONRAI O VOSSO PAI
E A VOSSA MÃE
·  PIEDADE FILIAL
·  QUEM É MINHA MÃE E QUEM SÃO MEUS IRMÃOS?
·  PARENTELA CORPÓREA E PARENTELA ESPIRITUAL 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A INGRATIDÃO DOS FILHOS E OS LAÇOS DE FAMÍLIA 
1. “ Sabeis os mandamentos: não cometereis adultério; não matareis; não 
roubareis;  não  prestareis falso­testemunho;  não fareis  agravo  a  ninguém; 
honrai a vosso pai e a vossa mãe”. 
(MARCOS,10:19; LUCAS, 18:20; MATEUS, 19:18­19) 
2. “ Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na 
terra que o Senhor vosso Deus vos dará”. 
(Êxodo, 20:12) 
PIEDADE FILIAL 
3. O mandamento: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe” é um corolário da lei geral de 
caridade e de amor ao próximo, visto que não pode amar o seu próximo aquele que 
não ama a seu pai e a sua mãe; mas, o termo honrai encerra um dever a mais para 
com  eles:  o  da  piedade  filial.  Quis  Deus  mostrar  por  essa  forma  que  ao  amor  se 
devem  juntar  o  respeito,  as  atenções,  a  submissão  e  a  condescendência,  o  que 
envolve a obrigação de cumprir­se para com eles, de modo ainda mais rigoroso, tudo 
o que a caridade ordena relativamente ao próximo em geral. Esse dever se estende
148 – Allan Kardec 
naturalmente às pessoas que fazem as vezes de pai e de mãe, as quais tanto maior 
mérito têm, quanto menos obrigatório é para elas o devotamento. Deus pune sempre 
com rigor toda violação desse mandamento. 
Honrar  a  seu  pai  e  a  sua  mãe,  não  consiste  apenas  em  respeitá­los;  é 
também assisti­los na necessidade; é proporcionar­lhes repouso na velhice; é cercá­ 
los de cuidados como eles fizeram conosco, na infância. 
Sobretudo para com os pais sem recursos é que se demonstra a verdadeira 
piedade  filial.  Obedecem  a  esse  mandamento  os  que  julgam  fazer  grande  coisa 
porque  dão  a  seus  pais  o  estritamente  necessário  para  não  morrerem  de  fome, 
enquanto eles de nada se privam, atirando­os para os cômodos mais ínfimos da casa, 
apenas por não os deixarem na rua, reservando para si o que há de melhor, de mais 
confortável?  Ainda  bem  quando não  o  fazem  de  má  vontade  e  não  os  obrigam a 
comprar caro o que lhes resta a viver, descarregando sobre eles o peso do governo 
da casa! Será então aos pais velhos e fracos que cabe servir a filhos jovens e fortes? 
Ter­lhes­á a mãe vendido o leite, quando os amamentava? Contou porventura suas 
vigílias, quando eles estavam doentes, os passos que deram para lhes obter o de que 
necessitavam?  Não,  os  filhos  não  devem  a  seus  pais  pobres  só  o  estritamente 
necessário,  devem­lhes  também,  na  medida  do  que  puderem,  os  pequenos  nadas 
supérfluos,  as  solicitudes,  os  cuidados  amáveis,  que  são  apenas  o  juro  do  que 
receberam, o pagamento de uma dívida sagrada. Unicamente essa é a piedade filial 
grata a Deus. 
Ai,  pois,  daquele  que  olvida  o  que  deve  aos  que  o  ampararam  em  sua 
fraqueza,  que  com  a  vida  material  lhe  deram  a  vida  moral,  que  muitas  vezes  se 
impuseram duras privações para lhe garantir o bem­estar. Ai do ingrato: será punido 
com a ingratidão e o abandono; será ferido nas suas mais caras afeições, algumas 
vezes já na existência atual, mas com certeza noutra, em que sofrerá o que houver 
feito aos outros. 
Alguns pais, é certo, descuram de seus deveres e não são para os filhos o 
que  deviam  ser;  mas,  a  Deus  é  que  compete  puni­los  e  não  a  seus  filhos.  Não 
compete  a  estes  censurá­los,  porque  talvez  hajam  merecido  que  aqueles  fossem 
quais se mostram. Se a lei da caridade manda se pague o mal com o bem, se seja 
indulgente  para  as  imperfeições  de  outrem,  se  não  diga  mal  do  próximo,  se  lhe 
esqueçam e perdoem os agravos, se ame até os inimigos, quão maiores não hão de 
ser essas obrigações, em se tratando de  filhos para com os pais! Devem, pois, os 
filhos tomar como regra de conduta para com seus pais todos os preceitos de Jesus 
concernentes  ao  próximo  e  ter  presente  que  todo  procedimento  censurável,  com 
relação aos estranhos, ainda mais censurável se torna relativamente aos pais; e que o 
que talvez não passe de simples falta, no primeiro caso, pode ser considerado um 
crime, no segundo, porque, aqui, à falta de caridade se junta a ingratidão. 
4. Deus disse: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na 
terra que o Senhor vosso Deus vos dará.” Por que promete ele como recompensa a 
vida na Terra e não a vida celeste? A explicação se encontra nestas palavras: “que 
Deus vos dará”, as quais, suprimidas na moderna fórmula do Decálogo, lhe alteram 
o sentido. Para compreendermos aqueles dizeres, temos de nos reportar à situação e 
às idéias dos hebreus naquela época. Eles ainda nada sabiam da vida futura, não lhes
149 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
indo a visão além da vida corpórea. Tinham, pois, de ser impressionados mais pelo 
que viam, do que pelo que não viam. Fala­lhes Deus então numa linguagem que lhes 
estava mais ao alcance e, como se se dirigisse a crianças, põe­lhes em perspectiva o 
que os pode satisfazer. Achavam­se eles ainda no deserto; a terra que Deus lhes dará 
é a Terra da Promissão, objetivo das suas aspirações. Nada mais desejavam do que 
isso; Deus lhes diz que viverão nela longo tempo, isto é, que a possuirão por longo 
tempo, se observarem seus mandamentos. 
Mas, ao verificar­se o advento de Jesus, já eles tinham mais desenvolvidas 
suas idéias. Chegada a ocasião de receberem alimentação menos grosseira, o mesmo 
Jesus os inicia na vida espiritual, dizendo: “Meu reino não é deste mundo; lá, e não 
na Terra, é que recebereis a recompensa das vossas boas obras.” A estas palavras, a 
Terra  Prometida  deixa  de  ser material,  transformando­se  numa  pátria  celeste.  Por 
isso, quando os chama à observância daquele mandamento: “Honrai a vosso pai e a 
vossa mãe”, já não é a Terra que lhes promete e sim o céu. (Caps. II e III) 
QUEM É MINHA MÃE E QUEM SÃO MEUS IRMÃOS? 
5. E, tendo vindo para casa, reuniu­se aí tão grande multidão de gente, que 
eles nem sequer podiam fazer sua refeição. Sabendo disso, vieram seus 
parentes  para  se  apoderarem  dele,  pois  diziam  que  perdera  o  espírito. 
Entretanto, tendo vindo sua mãe e seus irmãos e conservando­se do lado 
de fora, mandaram chamá­lo. Ora, o povo se assentara em torno dele e lhe 
disseram: “Tua mãe  e  teus  irmãos  estão lá  fora  e  te  chamam”.  Ele  lhes 
respondeu:  “Quem  é  minha  mãe  e  quem  são  meus  irmãos?”  E, 
perpassando o olhar pelos que estavam assentados ao seu derredor, disse: 
“Eis aqui minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que faz a vontade de 
Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”. 
(MARCOS, 3:20­21 e 31 a 35; MATEUS, 12:46 a 50) 
6.  Singulares  parecem  algumas  palavras  de  Jesus,  por  contrastarem  com  a  sua 
bondade  e  a  sua  inalterável  benevolência  para  com  todos.  Os  incrédulos  não 
deixaram de tirar daí uma arma, pretendendo que ele se contradizia. Fato, porém, 
irrecusável  é que sua doutrina tem por base principal, por pedra angular, a lei de 
amor e de caridade. Ora, não é possível que ele destruísse de um lado o que do outro 
estabelecia, donde esta conseqüência rigorosa: se certas proposições suas se acham 
em contradição com aquele princípio básico, é que as palavras que se lhe atribuem 
foram ou mal reproduzidas, ou mal compreendidas, ou não são suas. 
7.  Causa  admiração,  e  com  fundamento,  que,  neste  passo,  mostrasse  Jesus  tanta 
indiferença para com seus parentes e, de certo modo, renegasse sua mãe. 
Pelo que concerne a seus irmãos, sabe­se que não o estimavam. Espíritos 
pouco  adiantados,  não  lhe  compreendiam  a  missão:  tinham  por  excêntrico  o  seu 
proceder  e  seus  ensinamentos  não  os  tocavam,  tanto  que  nenhum  deles  o  seguiu 
como discípulo. Dir­se­ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções 
de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho
150 – Allan Kardec 
do que como um irmão, quando aparecia à família. S. João diz, positivamente (cap. 
7:5), “que eles não lhe davam crédito”. 
Quanto à sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava. 
Deve­se,  entretanto,  convir igualmente  em  que  também  ela não  fazia  idéia  muito 
exata da missão do filho, pois não se vê que lhe tenha nunca seguido os ensinos, 
nem dado testemunho dele, como fez João Batista. O que nela predominava era a 
solicitude  maternal.  Supor  que  ele haja renegado  sua mãe  fora  desconhecer­lhe  o 
caráter. Semelhante idéia não poderia encontrar guarida naquele que disse: Honrai a 
vosso pai e a vossa mãe. Necessário, pois, se faz procurar outro sentido para suas 
palavras, quase sempre envoltas no véu da forma alegórica. 
Ele nenhuma ocasião desprezava de dar um ensino; aproveitou, portanto, a 
que  se  lhe  deparou,  com  a  chegada  de  sua  família,  para  precisar  a  diferença  que 
existe entre a parentela corporal e a parentela espiritual. 
A PARENTELA CORPORAL E A PARENTELA ESPIRITUAL 
8. Os laços do sangue não criam forçosamente os liames entre os Espíritos. O corpo 
procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito, porquanto o Espírito já 
existia antes da formação do corpo. Não é o pai quem cria o Espírito de seu filho; ele 
mais não faz do que lhe fornecer o invólucro corpóreo, cumprindo­lhe, no entanto, 
auxiliar o desenvolvimento intelectual e moral do filho, para fazê­lo progredir. 
Os que encarnam numa família, sobretudo como parentes próximos, são, as 
mais  das  vezes,  Espíritos  simpáticos,  ligados  por  anteriores  relações,  que  se 
expressam por uma afeição recíproca na vida terrena. Mas, também pode acontecer 
sejam completamente estranhos uns aos outros esses Espíritos, afastados entre si por 
antipatias  igualmente  anteriores,  que  se  traduzem  na  Terra  por  um  mútuo 
antagonismo,  que  aí  lhes  serve  de  provação.  Não  são  os  da  consangüinidade  os 
verdadeiros laços de família e sim os da simpatia e da comunhão de idéias, os quais 
prendem os Espíritos antes, durante e depois de suas encarnações. Segue­se que dois 
seres nascidos de pais diferentes podem ser mais irmãos pelo Espírito, do que se o 
fossem pelo sangue. Podem então atrair­se, buscar­se, sentir prazer quando juntos, 
ao  passo  que  dois  irmãos  consangüíneos  podem  repelir­se,  conforme  se  observa 
todos os dias: problema moral que só o Espiritismo podia resolver pela pluralidade 
das existências. (Cap. IV, nº 13) 
Há, pois, duas espécies de famílias: as famílias pelos laços espirituais e as 
famílias pelos laços corporais. Duráveis, as primeiras se fortalecem pela purificação 
e se perpetuam no mundo dos Espíritos, através das várias migrações da alma; as 
segundas,  frágeis  como  a  matéria,  se  extinguem  com  o  tempo  e  muitas  vezes  se 
dissolvem  moralmente,  já  na  existência  atual.  Foi  o  que  Jesus  quis  tornar 
compreensível, dizendo de seus discípulos: Aqui estão minha mãe e meus irmãos, 
isto é, minha família pelos laços do Espírito, pois todo aquele que faz a vontade de 
meu Pai que está nos céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe. 
A hostilidade que lhe moviam seus irmãos se acha claramente expressa em 
a  narração  de  São  Marcos,  que  diz  terem  eles  o  propósito  de  se  apoderarem  do 
Mestre, sob o pretexto de que este perdera o espírito. Informado da chegada deles,
151 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
conhecendo  os  sentimentos  que  nutriam  a  seu  respeito,  era  natural  que  Jesus 
dissesse, referindo­se a seus discípulos, do ponto de vista espiritual: “Eis aqui meus 
verdadeiros  irmãos”.  Embora  na  companhia  daqueles  estivesse  sua  mãe,  ele 
generaliza o ensino que de maneira alguma implica haja pretendido declarar que sua 
mãe segundo o corpo nada lhe era como Espírito, que só indiferença lhe merecia. 
Provou suficientemente o contrário em várias outras circunstâncias. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A INGRATIDÃO DOS FILHOS E OS LAÇOS DE FAMÍLIA 
9.  A  ingratidão  é  um  dos  frutos  mais  diretos  do  egoísmo.  Revolta  sempre  os 
corações honestos. Mas, a dos filhos para com os pais apresenta caráter ainda mais 
odioso.  É,  em  particular,  desse  ponto  de  vista  que  a  vamos  considerar,  para  lhe 
analisar as  causas  e  os  efeitos.  Também  nesse caso,  como  em  todos  os  outros,  o 
Espiritismo projeta luz sobre um dos grandes problemas do coração humano. 
Quando  deixa  a Terra,  o  Espírito  leva  consigo  as  paixões  ou  as  virtudes 
inerentes à sua natureza e se aperfeiçoa no espaço, ou permanece estacionário, até 
que  deseje  receber  a  luz.  Muitos,  portanto,  se  vão  cheios  de  ódios  violentos  e  de 
insaciados desejos de vingança; a alguns dentre eles, porém, mais adiantados do que 
os outros, é dado entrevejam uma partícula da verdade; apreciam então as funestas 
conseqüências  de  suas  paixões  e  são  induzidos  a  tomar  resoluções  boas. 
Compreendem que, para chegarem a Deus, uma só é a senha: caridade. Ora, não há 
caridade sem esquecimento dos ultrajes e das injúrias; não há caridade sem perdão, 
nem com o coração tomado de ódio. 
Então, mediante inaudito esforço, conseguem tais Espíritos observar os a 
quem eles odiaram na Terra. Ao vê­los, porém, a animosidade se lhes desperta no 
íntimo; revoltam­se à idéia de perdoar, e, ainda mais, à de abdicarem de si mesmos, 
sobretudo à de amarem os que lhes destruíram, quiçá, os haveres, a honra, a família. 
Entretanto, abalado fica o coração desses infelizes. Eles hesitam, vacilam, agitados 
por sentimentos contrários. Se predomina a boa resolução, oram a Deus, imploram 
aos bons Espíritos que lhes dêem forças, no momento mais decisivo da prova. Por 
fim  após  anos  de  meditações  e  preces,  o  Espírito  se  aproveita  de  um  corpo  em 
preparo na  família  daquele  a  quem  detestou,  e  pede  aos  Espíritos  incumbidos  de 
transmitir  as  ordens  superiores  permissão  para  ir  preencher  na  Terra  os  destinos 
daquele corpo que acaba de formar­se. 
Qual  será  o  seu  procedimento  na  família  escolhida?  Dependerá  da  sua 
maior ou menor persistência nas boas resoluções que tomou. O incessante contacto 
com seres a quem odiou constitui prova terrível, sob a qual não raro sucumbe, se não 
tem ainda bastante forte a vontade. Assim, conforme prevaleça ou não a resolução 
boa, ele será o amigo ou inimigo daqueles entre os quais foi chamado a viver. É 
como se explicam esses ódios, essas repulsões instintivas que se notam da parte de 
certas crianças e que parecem injustificáveis. Nada, com efeito, naquela existência 
há podido provocar semelhante antipatia; para se lhe apreender a causa, necessário 
se torna volver o olhar ao passado.
152 – Allan Kardec 
Ó  espíritas!  Compreendei  agora  o  grande  papel  da  Humanidade; 
compreendei  que,  quando  produzis  um  corpo,  a  alma  que  nele  encarna  vem  do 
espaço para progredir; inteirai­vos dos vossos deveres e ponde todo o vosso amor 
em  aproximar  de  Deus  essa  alma;  tal  a  missão  que  vos  está  confiada  e  cuja 
recompensa recebereis, se fielmente a cumprirdes. Os vossos cuidados e a educação 
que lhe dareis auxiliarão o seu aperfeiçoamento e o seu bem­estar futuro. Lembrai­ 
vos de que a cada pai e a cada mãe perguntará Deus: Que fizestes do filho confiado à 
vossa guarda? Se por culpa vossa ele se conservou atrasado, tereis como castigo vê­ 
lo entre os Espíritos sofredores, quando de vós dependia que fosse ditoso. Então, vós 
mesmos, assediados de remorsos, pedireis vos seja concedido reparar a vossa falta; 
solicitareis, para vós  e para ele, outra encarnação em que  o  cerqueis de melhores 
cuidados e em que ele, cheio de reconhecimento, vos retribuirá com o seu amor. 
Não escorraceis, pois, a criancinha que repele sua mãe, nem a que vos paga 
com  a  ingratidão;  não  foi  o  acaso  que  a  fez  assim  e  que  vo­la  deu.  Imperfeita 
intuição  do  passado  se  revela,  do  qual  podeis  deduzir  que  um  ou  outro  já  odiou 
muito, ou foi muito ofendido; que um ou outro veio para perdoar ou para expiar. 
Mães! Abraçai o filho que vos dá desgostos e dizei convosco mesmas: Um de nós 
dois  é  culpado.  Fazei­vos  merecedoras  dos  gozos  divinos  que  Deus  conjugou  à 
maternidade, ensinando aos vossos filhos que eles estão na Terra para se aperfeiçoar, 
amar  e  bendizer.  Mas,  oh!  Muitas  dentre  vós,  em  vez  de  eliminar  por  meio  da 
educação  os  maus  princípios  inatos  de  existências  anteriores,  entretêm  e 
desenvolvem esses princípios, por uma culposa fraqueza, ou por descuido, e, mais 
tarde, o vosso coração, ulcerado pela ingratidão dos vossos filhos, será para vós, já 
nesta vida, um começo de expiação. 
A tarefa não é tão difícil quanto vos possa parecer. Não exige o saber do 
mundo. Podem desempenhá­la assim o ignorante como o sábio, e o Espiritismo lhe 
facilita o desempenho, dando a conhecer a causa das imperfeições da alma humana. 
Desde  pequenina,  a  criança  manifesta  os  instintos  bons  ou  maus  que  traz  da  sua 
existência  anterior.  A  estudá­los  devem  os  pais  aplicar­se.  Todos  os  males  se 
originam  do  egoísmo  e  do  orgulho.  Espreitem,  pois,  os  pais  os  menores  indícios 
reveladores  do  gérmen  de  tais  vícios  e  cuidem  de  combatê­los,  sem  esperar  que 
lancem  raízes  profundas.  Façam  como  o  bom  jardineiro,  que  corta  os  rebentos 
defeituosos à medida que os vê apontar na árvore. Se deixarem se desenvolvam o 
egoísmo e o orgulho, não se espantem de serem mais tarde pagos com a ingratidão. 
Quando os pais hão feito tudo o que devem pelo adiantamento moral de seus filhos, 
se não alcançam êxito, não têm de que se inculpar a si mesmos e podem conservar 
tranqüila  a  consciência.  À  amargura  muito  natural  que  então  lhes  advém  da 
improdutividade  de  seus  esforços,  Deus  reserva  grande  e  imensa  consolação,  na 
certeza de que se trata apenas de um retardamento, que concedido lhes será concluir 
noutra  existência  a  obra  agora  começada  e  que  um  dia  o  filho  ingrato  os 
recompensará com seu amor. (Cap. XIII, nº 19) 
Deus não dá prova superior às forças daquele que a pede; só permite as que 
podem  ser  cumpridas.  Se  tal  não  sucede,  não  é  que  falte  possibilidade:  falta  a 
vontade. Com efeito, quantos há que, em vez de resistirem aos maus pendores, se 
comprazem neles. A esses ficam reservados o pranto e os gemidos em existências 
posteriores. Admirai, no entanto, a bondade de Deus, que  nunca fecha a porta ao
153 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
arrependimento. Vem um dia em que ao culpado, cansado de sofrer, com o orgulho 
afinal abatido, Deus abre os braços para receber o filho pródigo que se lhe lança aos 
pés.  As  provas  rudes,  ouvi­me  bem,  são  quase  sempre  indício  de  um  fim  de 
sofrimento e de um aperfeiçoamento do Espírito, quando aceitas com o pensamento 
em Deus. É um momento supremo, no qual, sobretudo, cumpre ao Espírito não falir 
murmurando, se não quiser perder o fruto de tais provas e ter de recomeçar. Em vez 
de vos queixardes, agradecei a Deus o ensejo que vos proporciona de vencerdes, a 
fim  de  vos  deferir  o  prêmio  da  vitória.  Então,  saindo  do  turbilhão  do  mundo 
terrestre,  quando  entrardes  no  mundo  dos  Espíritos,  sereis  aí  aclamados  como  o 
soldado que sai triunfante da refrega. 
De todas as provas, as mais duras são as que afetam o coração. Um, que 
suporta  com  coragem  a  miséria  e  as  privações  materiais,  sucumbe  ao  peso  das 
amarguras domésticas, pungido da ingratidão dos seus. Oh! Que pungente angústia 
essa!  Mas,  em  tais  circunstâncias,  que  mais  pode,  eficazmente,  restabelecer  a 
coragem moral, do que o conhecimento das causas do mal e a certeza de que, se bem 
haja prolongados despedaçamentos d’alma, não há desesperos eternos, porque não é 
possível seja da vontade de Deus que a sua criatura sofra indefinidamente? Que de 
mais  reconfortante,  de  mais  animador  do  que  a  idéia  que  de  cada  um  dos  seus 
esforços  é  que  depende  abreviar  o  sofrimento,  mediante  a  destruição,  em  si,  das 
causas do mal? Para isso, porém, preciso se faz que o homem não retenha na Terra o 
olhar e só veja uma existência; que se eleve, a pairar no infinito do passado e do 
futuro. Então, a justiça infinita de Deus se vos patenteia, e esperais com paciência, 
porque  explicável  se  vos  torna  o  que  na  Terra  vos  parecia  verdadeiras 
monstruosidades.  As  feridas  que  aí  se  vos  abrem,  passais a  considerá­las  simples 
arranhaduras. Nesse golpe de vista lançado sobre o conjunto, os laços de família se 
vos apresentam sob seu aspecto real. Já não vedes, a ligar­lhes os membros, apenas 
os  frágeis  laços  da  matéria;  vedes,  sim,  os  laços  duradouros  do  Espírito,  que  se 
perpetuam e consolidam com o depurarem­se, em vez de se quebrarem por efeito da 
reencarnação. 
Formam famílias os Espíritos que a analogia dos gostos, a identidade do 
progresso moral e a afeição induzem a reunir­se. Esses mesmos Espíritos, em suas 
migrações  terrenas,  se  buscam,  para  se  gruparem,  como  o  fazem  no  espaço, 
originando­se  daí  as  famílias  unidas  e  homogêneas.  Se,  nas  suas  peregrinações, 
acontece  ficarem  temporariamente  separados,  mais  tarde  tornam  a  encontrar­se, 
venturosos  pelos  novos  progressos  que  realizaram.  Mas,  como  não  lhes  cumpre 
trabalhar  apenas  para  si,  permite  Deus  que  Espíritos  menos  adiantados  encarnem 
entre eles, a fim de receberem conselhos e bons exemplos, a bem de seu progresso. 
Esses Espíritos se tornam, por vezes, causa de perturbação no meio daqueles outros, 
o que constitui para estes a prova e a tarefa a desempenhar. 
Acolhei­os,  portanto,  como  irmãos;  auxiliai­os,  e  depois,  no  mundo  dos 
Espíritos, a família se felicitará por haver salvo alguns náufragos que, a seu turno, 
poderão salvar outros. – Santo Agostinho. (Paris, 1862)
154 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XV 
FORA DA CARIDADE
NÃO HÁ SALVAÇÃO
·  O DE QUE PRECISA O ESPÍRITO PARA SER SALVO. 
PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO
·  O MANDAMENTO MAIOR
·  NECESSIDADE DA CARIDADE, SEGUNDO S. PAULO
·  FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO. 
FORA DA VERDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO 
O DE QUE PRECISA O ESPÍRITO PARA SE SALVAR. 
PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO 
1. “Ora, quando o filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de 
todos  os  anjos,  sentar­se­á  no  trono  de  sua  glória;  reunidas  diante  dele 
todas as nações, separará uns dos outros, como o pastor separa dos bodes 
as ovelhas e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda”. 
“Então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: vinde, benditos 
de meu Pai, tomai posse do reino que vos foi preparado desde o princípio 
do  mundo;  porquanto,  tive  fome  e  me  destes  de  comer;  tive  sede  e  me 
destes de beber; careci de teto e me hospedastes; estive nu e me vestistes; 
achei­me doente e me visitastes; estive preso e me fostes ver”. 
“Então,  responder­lhe­ão  os  justos:  ‘Senhor,  quando  foi  que  te 
vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? 
Quando  foi  que  te  vimos  sem  teto  e  te  hospedamos;  ou  despido  e  te 
vestimos? E quando foi que te soubemos doente ou preso e fomos visitar­ 
te?’ O Rei lhes responderá: ‘Em verdade vos digo, todas as vezes que isso 
fizestes a um destes mais pequeninos dos meus irmãos, foi a mim mesmo 
que o fizestes’ ”.
155 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
“Dirá em seguida aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastai­vos 
de mim, malditos; ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e 
seus anjos; porquanto, tive fome e não me destes de comer, tive sede  e 
não me  destes  de  beber;  precisei  de  teto  e  não me agasalhastes;  estive 
sem  roupa  e  não  me  vestistes;  estive  doente  e  no  cárcere  e  não  me 
visitastes’”.
“Também  eles  replicarão:  ‘Senhor,  quando foi  que  te  vimos  com 
fome e não te demos de comer, com sede e não te demos de beber, sem 
teto ou sem roupa, doente ou preso e não te assistimos?’ Ele então lhes 
responderá:  ‘Em  verdade  vos  digo:  todas  as  vezes  que  faltastes  com  a 
assistência  a  um  destes  mais  pequenos,  deixastes  de  tê­la  para  comigo 
mesmo. E esses irão para o suplício eterno, e os justos para a vida eterna’”. 
(MATEUS, 25:31 a 46) 
2. Então, levantando­se, disse­lhe um doutor da lei, para o tentar: “Mestre, 
que preciso fazer para possuir a vida eterna?” Respondeu­lhe Jesus: “Que 
é o que está escrito na lei? Que é o que lês nela?” Ele respondeu: “Amarás 
o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, com todas as 
tuas forças  e  de  todo  o teu  espírito,  e  a  teu  próximo  como  a  ti mesmo”. 
Disse­lhe Jesus: “Respondeste muito bem; faze isso e viverás”. 
Mas, o homem, querendo parecer que era um justo, diz a Jesus: 
“Quem é o meu próximo?” Jesus, tomando a palavra, lhe diz: “Um homem, 
que  descia  de  Jerusalém  para  Jericó,  caiu  em  poder  de  ladrões,  que  o 
despojaram,  cobriram  de  ferimentos  e  se  foram,  deixando­o  semimorto. 
Aconteceu em seguida que um sacerdote, descendo pelo mesmo caminho, 
o viu e passou adiante. Um levita, que também veio àquele lugar, tendo­o 
observado,  passou igualmente adiante.  Mas,  um  samaritano  que  viajava, 
chegando ao lugar onde jazia aquele homem e tendo­o visto, foi tocado de 
compaixão.  Aproximou­se  dele,  deitou­lhe  óleo  e  vinho  nas  feridas  e  as 
pensou; depois, pondo­o no seu cavalo, levou­o a uma hospedaria e cuidou 
dele. No dia seguinte tirou dois denários e os deu ao hospedeiro, dizendo: 
‘Trata muito bem  deste  homem  e  tudo  o  que  despenderes  a mais,  eu  te 
pagarei quando regressar’. Qual desses três te parece ter sido o próximo 
daquele  que  caíra  em  poder  dos  ladrões?” O  doutor  respondeu:  “Aquele 
que usou de misericórdia para com ele”. “Então, vai!” – diz Jesus – “E faze 
o mesmo”. 
(LUCAS, 10:25 a 37) 
3. Toda a moral de Jesus se resume na caridade e na humildade, isto é, nas duas 
virtudes contrárias ao egoísmo e ao orgulho. Em todos os seus ensinos, ele aponta 
essas  duas  virtudes  como  sendo  as  que  conduzem  à  eterna  felicidade:  Bem­ 
aventurados, disse, os pobres de espírito, isto é, os humildes, porque deles é o reino 
dos céus; bem­aventurados os que têm puro o coração; bem­aventurados os que são 
brandos  e  pacíficos;  bem­aventurados  os  que  são  misericordiosos;  amai  o  vosso 
próximo como a vós mesmos; fazei aos outros o que quereríeis vos fizessem; amai 
os vossos inimigos; perdoai as ofensas, se quiserdes ser perdoados; praticai o bem 
sem ostentação; julgai­vos a vós mesmos, antes de julgardes os outros. Humildade e 
caridade, eis o que não cessa de recomendar e o de que dá, ele próprio, o exemplo.
156 – Allan Kardec 
Orgulho  e  egoísmo,  eis  o  que  não  se  cansa  de  combater.  E  não  se  limita  a 
recomendar  a  caridade;  põe­na claramente  e  em  termos  explícitos  como  condição 
absoluta da felicidade futura. 
No  quadro  que  traçou  do  juízo  final,  deve­se,  como  em  muitas  outras 
coisas, separar o que é apenas figura, alegoria. A homens como os a quem falava, 
ainda  incapazes  de  compreender  as  questões  puramente  espirituais,  tinha  ele  de 
apresentar  imagens  materiais  chocantes  e  próprias  a  impressionar.  Para  melhor 
apreenderem o que dizia, tinha mesmo de não se afastar muito das idéias correntes, 
quanto  à  forma,  reservando  sempre  ao  porvir  a  verdadeira  interpretação  de  suas 
palavras e dos pontos sobre os quais não podia explicar­se claramente. Mas, ao lado 
da parte acessória ou figurada do quadro, há uma idéia dominante: a da felicidade 
reservada ao justo e da infelicidade que espera o mau. 
Naquele julgamento supremo, quais os considerandos da sentença? Sobre 
que se baseia o libelo? Pergunta, porventura, o juiz se o inquirido preencheu tal ou 
qual  formalidade,  se  observou  mais  ou  menos  tal  ou  qual  prática  exterior?  Não; 
inquire tão­somente de uma coisa: se a caridade foi praticada, e se pronuncia assim: 
Passai  à  direita,  vós  que  assististes  os  vossos  irmãos;  passai  à  esquerda,  vós  que 
fostes duros para com eles. Informa­se, por acaso, da ortodoxia da fé? Faz qualquer 
distinção entre o que crê de um modo e o que crê de outro? Não, pois Jesus coloca o 
samaritano,  considerado  herético,  mas  que  pratica  o  amor  do  próximo,  acima  do 
ortodoxo que falta com a caridade. Não considera, portanto, a caridade apenas como 
uma das condições para a salvação, mas como a condição única. Se outras houvesse 
a  serem  preenchidas,  ele  as  teria  declinado.  Desde  que  coloca  a  caridade  em 
primeiro  lugar,  é  que  ela  implicitamente  abrange  todas  as  outras:  a humildade,  a 
brandura,  a  benevolência,  a  indulgência,  a  justiça,  etc.,  e  porque  é  a  negação 
absoluta do orgulho e do egoísmo. 
O MANDAMENTO MAIOR 
4. Mas, os fariseus, tendo sabido que ele tapara a boca aos saduceus, se 
reuniram;  e  um  deles,  que  era  doutor  da lei,  foi propor­lhe  esta  questão, 
para  o  tentar:  “Mestre,  qual  o  grande  mandamento  da  lei?”  Jesus  lhe 
respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a 
tua alma, de todo o teu espírito. Esse o maior e o primeiro mandamento. E 
aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Amarás o teu próximo, 
como a ti mesmo. Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois 
mandamentos”. 
(MATEUS, 22: 34 a 40) 
5. Caridade e humildade, tal a senda única da salvação. Egoísmo e orgulho, tal a da 
perdição. Este princípio se acha formulado nos seguintes precisos termos: “Amarás a 
Deus de toda a tua alma e a teu próximo como a ti mesmo; toda a lei e os profetas se 
acham contidos nesses dois mandamentos.” E, para que não haja equívoco sobre a 
interpretação do amor de Deus e do próximo, acrescenta: “E aqui está o segundo 
mandamento  que  é  semelhante  ao  primeiro”,  isto  é,  que  não  se  pode
157 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o próximo sem amar 
a Deus. Logo, tudo o que se faça contra o próximo o mesmo é que fazê­lo contra 
Deus. Não podendo amar a Deus sem praticar a caridade para com o próximo, todos 
os  deveres  do  homem  se  resumem  nesta  máxima:  FORA  DA  CARIDADE  NÃO  HÁ 
SALVAÇÃO. 
NECESSIDADE DA CARIDADE, SEGUNDO S. PAULO 
6. “ Ainda quando eu falasse todas as línguas dos homens e a língua dos 
próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa e um 
címbalo  que  retine;  ainda  quando  tivesse  o  dom  de  profecia,  que 
penetrasse todos os mistérios, e tivesse perfeita ciência de todas as coisas; 
ainda  quando  tivesse  toda  a  fé  possível,  até  ao  ponto  de  transportar 
montanhas,  se  não  tiver  caridade,  nada  sou.  E,  quando  houvesse 
distribuído os meus bens para alimentar os pobres e houvesse entregado 
meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, tudo isso de nada 
me serviria”. 
“ A  caridade  é  paciente;  é  branda  e  benfazeja;  a  caridade não  é 
invejosa; não é temerária, nem precipitada; não se enche de orgulho; não é 
desdenhosa; não cuida de seus interesses; não se agasta, nem se azeda 
com coisa alguma; não suspeita mal; não se rejubila com a injustiça, mas 
se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre”. 
“Agora,  estas  três  virtudes:  a  fé,  a  esperança  e  a  caridade 
permanecem; mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade”. 
(S. PAULO, 1ª Epístola aos Coríntios, 13:1 a 7 e 13) 
7.  De  tal  modo  compreendeu  S.  Paulo  essa  grande  verdade,  que  disse:  Quando 
mesmo eu tivesse a linguagem dos anjos; quando tivesse o dom de profecia, que 
penetrasse todos os mistérios; quando tivesse toda a fé possível, até ao ponto de 
transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou. Dentre estas três virtudes: 
a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade. Coloca assim, sem 
equívoco, a caridade acima até da fé. É que a caridade está ao alcance de toda gente: 
do  ignorante,  como  do  sábio,  do  rico,  como  do  pobre,  e  independe  de  qualquer 
crença particular. 
Faz mais: define  a  verdadeira  caridade, mostra­a não  só  na  beneficência, 
como  também  no  conjunto  de  todas  as  qualidades  do  coração,  na  bondade  e  na 
benevolência para com o próximo. 
FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO. 
FORA DA VERDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO 
8. Enquanto a máxima – Fora da caridade não há salvação – assenta num princípio 
universal e abre a todos os filhos de Deus acesso à suprema felicidade, o dogma – 
Fora da Igreja não há salvação – se estriba, não na fé fundamental em Deus e na 
imortalidade da alma, fé comum a todas as religiões, porém numa fé especial, em
158 – Allan Kardec 
dogmas  particulares;  é  exclusivo  e  absoluto.  Longe  de  unir  os  filhos  de  Deus, 
separa­os;  em  vez  de  incitá­los  ao  amor  de  seus  irmãos,  alimenta  e  sanciona  a 
irritação  entre  sectários  dos  diferentes  cultos  que  reciprocamente  se  consideram 
malditos  na  eternidade,  embora  sejam  parentes  e  amigos  esses  sectários. 
Desprezando  a  grande  lei  de  igualdade  perante  o  túmulo,  ele  os  afasta  uns  dos 
outros, até no campo do repouso. A máxima – Fora da caridade não há salvação 
consagra  o  princípio  da  igualdade  perante  Deus  e  da  liberdade  de  consciência. 
Tendo­a por norma, todos os homens são irmãos e, qualquer que seja a maneira por 
que adorem o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns pelos outros. Com o 
dogma  –  Fora  da  Igreja  não  há  salvação,  anatematizam­se  e  se  perseguem 
reciprocamente, vivem como inimigos; o pai não pede pelo filho, nem o filho pelo 
pai, nem  o  amigo  pelo  amigo,  desde  que  mutuamente  se  consideram  condenados 
sem  remissão.  É,  pois,  um  dogma  essencialmente  contrário  aos  ensinamentos  do 
Cristo e à lei evangélica. 
9. Fora da verdade não há salvação equivaleria ao Fora da Igreja não há salvação 
e seria igualmente exclusivo, porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o 
privilégio da verdade. Que homem se pode vangloriar de a possuir integral, quando 
o âmbito dos conhecimentos incessantemente se alarga e todos os dias se retificam 
as  idéias?  A  verdade  absoluta  é  patrimônio  unicamente  de  Espíritos  da  categoria 
mais elevada e a Humanidade terrena não poderia pretender possuí­la, porque não 
lhe  é  dado  saber  tudo.  Ela  somente  pode  aspirar  a  uma  verdade  relativa  e 
proporcionada  ao  seu  adiantamento.  Se  Deus  houvera  feito  da  posse  da  verdade 
absoluta  condição  expressa  da  felicidade  futura,  teria  proferido  uma  sentença  de 
proscrição  geral,  ao  passo  que  a  caridade,  mesmo  na  sua  mais  ampla  acepção, 
podem  todos  praticá­la.  O  Espiritismo,  de  acordo  com  o  Evangelho,  admitindo  a 
salvação para todos, independente de qualquer crença, contanto que a lei de Deus 
seja observada, não diz: Fora do Espiritismo não há salvação; e, como não pretende 
ensinar ainda toda a verdade, também não diz: Fora da verdade não há salvação, 
pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria os antagonismos. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO 
10. Meus filhos, na máxima: Fora da caridade não há salvação, estão encerrados os 
destinos dos homens, na Terra e no céu; na Terra, porque à sombra desse estandarte 
eles  viverão em paz; no céu, porque os que a houverem praticado acharão graças 
diante  do  Senhor.  Essa  divisa  é  o  facho  celeste,  a  luminosa  coluna  que  guia  o 
homem no deserto da vida, encaminhando­o para a Terra da Promissão. Ela brilha 
no céu, como auréola santa, na fronte dos eleitos, e, na Terra, se acha gravada no 
coração  daqueles  a  quem  Jesus  dirá:  Passai  à  direita,  benditos  de  meu  Pai. 
Reconhecê­los­eis  pelo  perfume  de  caridade  que  espalham  em  torno  de  si.  Nada 
exprime com mais exatidão o pensamento de Jesus, nada resume tão bem os deveres 
do homem, como essa máxima de ordem divina. Não poderia o Espiritismo provar
159 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
melhor a sua origem, do que apresentando­a como regra, por isso que é um reflexo 
do  mais  puro  Cristianismo.  Levando­a  por  guia,  nunca  o  homem  se  transviará. 
Dedicai­vos,  assim,  meus  amigos,  a  perscrutar­lhe  o  sentido  profundo  e  as 
conseqüências, a descobrir­lhe, por vós mesmos, todas as aplicações. Submetei todas 
as vossas ações ao governo da caridade e a consciência vos responderá. Não só ela 
evitará que pratiqueis o mal, como também fará que pratiqueis o  bem, porquanto 
uma virtude negativa não basta: é necessária uma virtude ativa. Para fazer­se o bem, 
mister sempre se torna a ação da vontade; para se não praticar o mal, basta as mais 
das vezes a inércia e a despreocupação. 
Meus amigos, agradecei a Deus o haver permitido que pudésseis gozar a luz 
do Espiritismo. Não é que somente os que a possuem hajam de ser salvos; é que, 
ajudando­vos  a  compreender  os  ensinos  do  Cristo,  ela  vos  faz  melhores  cristãos. 
Esforçai­vos, pois, para que os  vossos irmãos, observando­vos, sejam induzidos a 
reconhecer que verdadeiro espírita e verdadeiro cristão são uma só e a mesma coisa, 
dado que todos quantos praticam a caridade são discípulos de Jesus, sem embargo da 
seita a que pertençam. – Paulo, o apóstolo. (Paris, 1860)
160 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XVI 
NÃO SE PODE SERVIR A DEUS
E A MAMON
·  SALVAÇÃO DOS RICOS
·  PRESERVAR­SE DA AVAREZA
·  JESUS EM CASA DE ZAQUEU
·  PARÁBOLA DO MAU RICO
·  PARÁBOLA DOS TALENTOS
·  UTILIDADE PROVIDENCIAL DA RIQUEZA. 
PROVAS DA RIQUEZA E DA MISÉRIA
·  DESIGUALDADE DAS RIQUEZAS 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  A VERDADEIRA PROPRIEDADE
·  EMPREGO DA RIQUEZA
·  DESPRENDIMENTO DOS BENS TERRENOS
·  TRANSMISSÃO DA RIQUEZA 
SALVAÇÃO DOS RICOS 
1. “ Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará a 
outro,  ou  se  prenderá  a  um  e  desprezará  o  outro.  Não  podeis  servir 
simultaneamente a Deus e a Mamon”. 
(LUCAS, 16:13) 
2. Então, aproximou­se dele um mancebo e disse: “Bom mestre, que bem 
devo  fazer  para  adquirir  a  vida  eterna?”  Respondeu  Jesus:  “Por  que  me 
chamas  bom?  Bom,  só  Deus  o  é.  Se  queres  entrar  na  vida,  guarda  os 
mandamentos”.  –  “Que  mandamentos?”  –  retrucou  o  mancebo.  Disse 
Jesus:  “Não  matarás;  não  cometerás  adultério;  não  furtarás;  não  darás
161 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
testemunho falso. Honra a teu pai e a tua mãe e ama a teu próximo como a 
ti mesmo”. 
O moço lhe replicou: “Tenho guardado todos esses mandamentos 
desde que cheguei à mocidade. Que é o que ainda me falta?” Disse Jesus: 
“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá­o aos pobres e terás 
um tesouro no céu. Depois, vem e segue­me”. Ouvindo essas palavras, o 
moço se foi todo tristonho, porque possuía grandes haveres. Jesus disse 
então a seus discípulos: “Digo­vos em verdade que bem difícil é que um 
rico entre no reino dos céus. Ainda uma vez vos digo: É mais fácil que um 
camelo passe pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino 
dos céus” 
9 
. 
(MATEUS, 19:16 a 24; LUCAS, 18:18 a 25; MARCOS, 10:17 a 25) 
PRESERVAR­SE DA AVAREZA 
3. Então, no meio da turba, um homem lhe disse: “Mestre, dize a meu irmão 
que divida comigo a herança que nos tocou”. Jesus lhe disse: “Ó homem! 
Quem me designou para vos julgar, ou para fazer as vossas partilhas?” E 
acrescentou:  “Tende  o  cuidado  de  presevar­vos  de  toda  a  avareza, 
porquanto, seja qual for a abundância em que o homem se encontre, sua 
vida  não  depende  dos  bens  que  ele  possua”.  Disse­lhes  a  seguir  esta 
parábola: 
“Havia  um  rico  homem  cujas  terras  tinham  produzido 
extraordinariamente e que se entretinha a pensar consigo mesmo, assim: 
‘Que hei de fazer, pois já não tenho lugar onde possa encerrar tudo o que 
vou colher?’ Disse então: ‘Aqui está o que farei: Demolirei os meus celeiros 
e construirei outros maiores, onde porei toda a minha colheita e todos os 
meus bens. E direi a minha alma: Minha alma, tens de reserva muitos bens 
para longos anos; repousa, come, bebe, goza’”. 
“Mas, Deus, ao mesmo tempo, disse ao homem: ‘Que insensato 
és!  Esta  noite  mesmo  tomar­te­ão  a  alma;  para  que  servirá  o  que 
acumulaste?’  É  o  que  acontece  àquele  que  acumula  tesouros  para  si 
próprio e que não é rico diante de Deus”. 
(LUCAS, 12:13 a 21) 
JESUS EM CASA DE ZAQUEU 
4.  Tendo  Jesus  entrado  em  Jericó,  passava  pela  cidade  e  havia  ali  um 
homem  chamado  Zaqueu,  chefe  dos  publicanos  e  muito  rico,  o  qual, 
desejoso  de  ver  a  Jesus,  para  conhecê­lo,  não  o  conseguia  devido  à 
multidão, por ser ele de estatura muito baixa. Por isso, correu à frente da 
turba e subiu a um sicômoro, para o ver, porquanto ele tinha de passar por 
9 
Esta arrojada figura pode parecer um pouco forçada, pois que não se percebe que relação possa existir 
entre  um  camelo  e  uma  agulha.  Acontece,  no  entanto,  que,  em  hebreu,  a  mesma  palavra  serve  para 
designar um camelo e um cabo. Na tradução, deram­lhe o primeiro desses significados; mas é provável 
que Jesus a tenha empregado com a outra significação. É, pelo menos, mais natural.
162 – Allan Kardec 
ali.  Chegando  a  esse  lugar,  Jesus  dirigiu  paro o  alto o  olhar  e,  vendo­o, 
disse­lhe:  “Zaqueu,  dá­te  pressa  em  descer,  porquanto  preciso  que  me 
hospedes hoje em tua casa”. Zaqueu desceu imediatamente e o recebeu 
jubiloso. Vendo isso, todos murmuravam, a dizer: “Ele foi hospedar­se em 
casa de um homem de má vida”. (Veja­se: “Introdução”, artigo – Publicanos) 
Entretanto, Zaqueu, pondo­se diante do Senhor, lhe disse: Senhor, 
dou a metade dos meus bens aos pobres e, se causei dano a alguém, seja 
no  que  for, indenizo­o  com  quatro tantos.  Ao  que  Jesus  lhe  disse:  “Esta 
casa recebeu hoje a salvação, porque também este é filho de Abraão; visto 
que o Filho do homem veio para procurar e salvar o que estava perdido”. 
(LUCAS, 19:1 a 10) 
PARÁBOLA DO MAU RICO 
5.  Havia  um  homem  rico,  que  vestia  púrpura  e  linho  e  se  tratava 
magnificamente todos os dias. Havia também um pobre, chamado Lázaro, 
deitado  à  sua  porta,  todo  coberto  de  úlceras,  que  muito  estimaria  poder 
mitigar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico; mas ninguém 
lhas dava e os cães lhe vinham lamber as chagas. Ora, aconteceu que esse 
pobre  morreu  e  foi  levado  pelos  anjos  para  o  seio  de  Abraão.  O  rico 
também  morreu  e  teve  por  sepulcro  o  inferno.  Quando  se  achava  nos 
tormentos, levantou os olhos e viu de longe Abraão e Lázaro em seu seio e, 
exclamando,  disse  estas  palavras:  “Pai  Abraão,  tem  piedade  de  mim  e 
manda­me Lázaro, a fim de que molhe a ponta do dedo na água para me 
refrescar a língua, pois sofro horrível tormento nestas chamas”. 
Mas Abraão lhe respondeu: “Meu filho, lembra­te de que recebeste 
em vida teus bens e de que Lázaro só teve males; por isso, ele agora está 
na  consolação  e  tu  nos  tormentos.  Ao  demais,  existe  para  sempre  um 
grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que queiram passar daqui 
para aí não o podem, como também ninguém pode passar do lugar onde 
estás para aqui”. 
Disse  o  rico:  “Eu  então te  suplico,  pai  Abraão,  que  o  mandes  à 
casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a dar­lhes testemunho destas 
coisas, a fim de que não venham também eles para este lugar de tormento”. 
Abraão  lhe  retrucou:  “Eles  têm  Moisés  e  os  profetas;  que  os 
escutem”. – “Não, meu pai Abraão” – disse o rico: “Se algum dos mortos for 
ter com eles, farão penitência”. Respondeu­lhe Abraão: “Se eles não ouvem 
a  Moisés,  nem  aos  profetas, também  não  acreditarão,  ainda mesmo  que 
algum dos mortos ressuscite”. 
(LUCAS, 16:19 a 31) 
PARÁBOLA DOS TALENTOS 
6. “O Senhor age como um homem que, tendo de fazer longa viagem fora 
do seu país, chamou seus servidores e lhes entregou seus bens. Depois de 
dar cinco talentos a um, dois a outro e um a outro, a cada um segundo a 
sua capacidade, partiu imediatamente. Então, o que recebeu cinco talentos 
foi­se,  negociou  com  aquele  dinheiro  e  ganhou  cinco  outros.  O  que
163 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
recebera dois ganhou, do mesmo modo, outros tantos. Mas o que apenas 
recebera um cavou um buraco na terra e aí escondeu o dinheiro de seu 
amo”. 
“Passado  longo  tempo,  o  amo  daqueles  servidores  voltou  e  os 
chamou  a  contas.  Veio  o  que  recebera  cinco  talentos  e  lhe  apresentou 
outros  cinco,  dizendo:  ‘Senhor,  entregaste­me  cinco  talentos;  aqui  estão, 
além desses, mais cinco que ganhei’. Respondeu­lhe o amo: ‘Servidor bom 
e  fiel;  pois  que  foste  fiel  em  pouca  coisa,  confiar­te­ei  muitas  outras; 
compartilha  da  alegria  do  teu  senhor’.  O  que  recebera  dois  talentos 
apresentou­se  a  seu  turno  e  lhe  disse:  ‘Senhor,  entregaste­me  dois 
talentos;  aqui  estão,  além  desses,  dois  outros  que  ganhei’.  O  amo  lhe 
respondeu: ‘Bom e fiel servidor; pois que foste fiel em pouca coisa, confiar­ 
te­ei muitas outras; compartilha da alegria do teu senhor’. Veio em seguida 
o  que  recebeu  apenas  um  talento  e  disse:  ‘Senhor,  sei  que  és  homem 
severo, que ceifas onde não semeaste e colhes de onde nada puseste; por 
isso, como te temia, escondi o teu talento na terra; aqui o tens: restituo o 
que  te  pertence’.  O  homem,  porém,  lhe  respondeu:  ‘Servidor  mau  e 
preguiçoso; se sabias que ceifo onde não semeei e que colho onde nada 
pus, devias  pôr  o meu  dinheiro  nas mãos  dos  banqueiros,  a fim de  que, 
regressando, eu retirasse com juros o que me pertence. Tirem­lhe, pois, o 
talento que está com ele e dêem­no ao que tem dez talentos.’ Porquanto, 
dar­se­á a todos os que já têm e esses ficarão cumulados de bens; quanto 
àquele que nada tem, tirar­se­lhe­á mesmo o que pareça ter; e seja esse 
servidor inútil lançado nas trevas exteriores, onde haverá prantos e ranger 
de dentes”. 
(MATEUS, 25:14 a 30) 
UTILIDADE PROVIDENCIAL DA RIQUEZA. 
PROVAS DA RIQUEZA E DA MISÉRIA 
7.  Se  a  riqueza  houvesse  de  constituir  obstáculo  absoluto  à  salvação  dos  que  a 
possuem,  conforme  se  poderia  inferir  de  certas  palavras  de  Jesus,  interpretadas 
segundo a letra e não segundo o espírito, Deus, que a concede, teria posto nas mãos 
de alguns um instrumento de perdição, sem apelação nenhuma, idéia que repugna à 
razão. Sem dúvida, pelos arrastamentos a que dá causa, pelas tentações que gera e 
pela  fascinação  que  exerce,  a  riqueza  constitui  uma  prova  muito  arriscada,  mais 
perigosa do que a miséria. É o supremo excitante do orgulho, do egoísmo e da vida 
sensual. É o laço mais forte que prende o homem à Terra e lhe desvia do céu  os 
pensamentos. Produz tal vertigem que, muitas vezes, aquele que passa da miséria à 
riqueza esquece de pronto a sua primeira condição, os que com ele a partilharam, os 
que o ajudaram, e faz­se insensível, egoísta e vão. Mas, do fato de a riqueza tornar 
difícil a jornada, não se segue que a torne impossível e não possa vir a ser um meio 
de salvação para o que dela sabe servir­se, como certos venenos podem restituir a 
saúde, se empregados a propósito e com discernimento. 
Quando Jesus disse ao moço que o inquiria sobre os meios de ganhar a vida 
eterna:  “Desfaze­te  de  todos  os  teus  bens  e  segue­me”,  não  pretendeu,  decerto, 
estabelecer como princípio absoluto que cada um deva despojar­se do que possui e 
que a salvação só a esse preço se obtém; mas, apenas mostrar que o apego aos bens
164 – Allan Kardec 
terrenos  é  um  obstáculo  à  salvação.  Aquele  moço,  com  efeito,  se  julgava  quite 
porque  observara  certos  mandamentos  e,  no  entanto,  recusava­se  à  idéia  de 
abandonar os bens de que era dono. Seu desejo de obter a vida eterna não ia até ao 
extremo de adquiri­la com sacrifício. 
O que Jesus lhe propunha era uma prova decisiva, destinada a pôr a nu o 
fundo  do  seu  pensamento.  Ele  podia,  sem  dúvida,  ser  um  homem  perfeitamente 
honesto  na  opinião  do  mundo,  não  causar  dano  a  ninguém,  não  maldizer  do 
próximo, não ser vão, nem orgulhoso, honrar a seu pai e a sua mãe. Mas, não tinha a 
verdadeira caridade; sua virtude não chegava até a abnegação. Isso o que Jesus quis 
demonstrar. Fazia uma aplicação do princípio: “Fora da caridade não há salvação”. 
A conseqüência dessas palavras, em sua acepção rigorosa, seria a abolição 
da riqueza por prejudicial à felicidade futura e como causa de uma imensidade de 
males  na Terra;  seria,  ao  demais,  a  condenação  do  trabalho  que  a  pode  granjear; 
conseqüência absurda, que reconduziria o homem à vida selvagem e que, por isso 
mesmo, estaria em contradição com a lei do progresso, que é lei de Deus. 
Se a riqueza é causa de muitos males, se exacerba tanto as más paixões, se 
provoca mesmo tantos crimes, não é a ela que devemos inculpar, mas ao homem, 
que dela abusa, como de todos os dons de Deus. Pelo abuso, ele torna pernicioso o 
que lhe poderia ser de maior utilidade. É a conseqüência do estado de inferioridade 
do mundo terrestre. Se a riqueza somente males houvesse de produzir, Deus não a 
teria  posto  na  Terra.  Compete  ao  homem  fazê­la  produzir  o  bem.  Se  não  é  um 
elemento  direto  de  progresso  moral,  é,  sem  contestação,  poderoso  elemento  de 
progresso intelectual. 
Com efeito, o homem tem por missão trabalhar pela melhoria material do 
planeta.  Cabe­lhe  desobstruí­lo,  saneá­lo,  dispô­lo  para  receber  um  dia  toda  a 
população que a sua extensão comporta. Para alimentar essa população que cresce 
incessantemente, preciso se faz aumentar a produção. Se a produção de um país é 
insuficiente,  será  necessário  buscá­la  fora.  Por  isso  mesmo,  as  relações  entre  os 
povos  constituem  uma  necessidade.  A  fim  de  mais  as  facilitar,  cumpre  sejam 
destruídos  os  obstáculos  materiais  que  os  separam  e  tornadas  mais  rápidas  as 
comunicações. Para trabalhos que são obra dos séculos, teve o homem de extrair os 
materiais até das entranhas da terra; procurou na Ciência os meios de os executar 
com maior segurança e rapidez. Mas, para os levar a efeito, precisa de recursos: a 
necessidade fê­lo criar a riqueza, como o fez descobrir a Ciência. A atividade que 
esses  mesmos  trabalhos  impõem  lhe  amplia  e  desenvolve  a  inteligência,  e  essa 
inteligência que ele concentra, primeiro, na satisfação das necessidades materiais, o 
ajudará mais tarde a compreender as grandes verdades morais. Sendo a riqueza o 
meio primordial de execução, sem ela não mais grandes trabalhos, nem atividade, 
nem estimulante, nem pesquisas. Com razão, pois, é a riqueza considerada elemento 
de progresso. 
DESIGUALDADE DAS RIQUEZAS 
8. A desigualdade das riquezas é um dos problemas que inutilmente se procurará 
resolver,  desde  que  se  considere  apenas  a  vida  atual.  A  primeira  questão  que  se
165 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
apresenta é esta: Por que não são igualmente ricos todos os homens? Não o são por 
uma razão muito simples: por não serem igualmente inteligentes, ativos e laboriosos 
para  adquirir,  nem  sóbrios  e  previdentes  para  conservar.  É,  aliás,  ponto 
matematicamente demonstrado que a riqueza, repartida com igualdade, a cada um 
daria uma parcela mínima e insuficiente; que, supondo efetuada essa repartição, o 
equilíbrio  em  pouco  tempo  estaria  desfeito,  pela  diversidade  dos  caracteres  e  das 
aptidões; que, supondo­a possível e durável, tendo cada um somente com que viver, 
o resultado seria o aniquilamento de todos os grandes trabalhos que concorrem para 
o progresso e para o bem­estar da Humanidade; que, admitido desse ela a cada um o 
necessário, já não haveria o aguilhão que impele os homens às grandes descobertas e 
aos empreendimentos úteis. Se Deus a concentra em certos pontos, é para que daí se 
expanda em quantidade suficiente, de acordo com as necessidades. 
Admitido isso, pergunta­se por que Deus a concede a pessoas incapazes de 
fazê­la frutificar para o bem de todos. Ainda aí está uma prova da sabedoria e da 
bondade de Deus. Dando­lhe o livre­arbítrio, quis ele que o homem chegasse, por 
experiência própria, a distinguir o bem do mal e que a prática do primeiro resultasse 
de seus esforços e da sua vontade. Não deve o homem ser conduzido fatalmente ao 
bem,  nem  ao  mal,  sem  o  que  não  mais  fora  senão  instrumento  passivo  e 
irresponsável como os animais. A riqueza é um meio de o experimentar moralmente. 
Mas, como, ao mesmo tempo, é poderoso meio de ação para o progresso, não quer 
Deus  que  ela  permaneça  longo  tempo  improdutiva,  pelo  que  incessantemente  a 
desloca. Cada um tem de possuí­la, para se exercitar em utilizá­la e demonstrar que 
uso  sabe  fazer  dela.  Sendo,  no  entanto,  materialmente  impossível  que  todos  a 
possuam ao mesmo tempo, e acontecendo, além disso, que, se todos a possuíssem, 
ninguém trabalharia, com o que o melhoramento do planeta ficaria comprometido, 
cada um a possui por sua vez. Assim, um que não na tem hoje, já a teve ou terá 
noutra existência; outro, que agora a tem, talvez não na tenha amanhã. Há ricos e 
pobres, porque sendo Deus justo, como é, a cada um prescreve trabalhar a seu turno. 
A pobreza é, para os que a sofrem, a prova da paciência e da resignação; a riqueza é, 
para os outros, a prova da caridade e da abnegação. 
Deploram­se,  com  razão,  o  péssimo  uso  que  alguns  fazem  das  suas 
riquezas, as ignóbeis paixões que a cobiça provoca, e pergunta­se: Deus será justo, 
dando­as a tais criaturas? É exato que, se o homem só tivesse uma única existência, 
nada  justificaria  semelhante  repartição  dos  bens  da  Terra;  se,  entretanto,  não 
tivermos em vista apenas a vida atual e, ao contrário, considerarmos o conjunto das 
existências,  veremos  que  tudo  se  equilibra  com  justiça.  Carece,  pois,  o  pobre  de 
motivo assim para acusar a Providência, como para invejar os ricos e estes para se 
glorificarem do que possuem. Se abusam, não será com decretos ou leis suntuárias 
que  se  remediará  o  mal.  As  leis  podem,  de momento,  mudar  o  exterior, mas não 
logram mudar o coração; daí vem serem elas de duração efêmera e quase sempre 
seguidas de uma reação mais desenfreada. A origem do mal reside no egoísmo e no 
orgulho: os abusos de toda espécie cessarão quando os homens se regerem pela lei 
da caridade.
166 – Allan Kardec 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A VERDADEIRA PROPRIEDADE 
9.  O  homem  só  possui  em  plena  propriedade  aquilo  que  lhe  é  dado  levar  deste 
mundo.  Do  que  encontra  ao  chegar  e  deixa  ao  partir  goza  ele  enquanto  aqui 
permanece. Forçado, porém, que é a abandonar tudo isso, não tem das suas riquezas 
a posse real, mas, simplesmente, o usufruto. Que é então o que ele possui? Nada do 
que  é  de  uso  do  corpo;  tudo  o  que  é  de  uso  da  alma:  a  inteligência,  os 
conhecimentos,  as  qualidades  morais.  Isso  o  que  ele  traz  e  leva  consigo,  o  que 
ninguém lhe pode arrebatar, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo 
do que neste. Depende de ele ser mais rico ao partir do que ao chegar, visto como, 
do que tiver adquirido em bem, resultará a sua posição futura. Quando alguém vai a 
um país distante, constitui a sua bagagem de objetos utilizáveis nesse país; não se 
preocupa com os que ali lhe seriam inúteis. Procedei do mesmo modo com relação à 
vida futura; aprovisionai­vos de tudo o de que lá vos possais servir. 
Ao viajante que chega a um albergue, bom alojamento é dado, se o pode 
pagar. A outro, de parcos recursos, toca um menos agradável. Quanto ao que nada 
tenha de seu, vai dormir numa enxerga. O mesmo sucede ao homem, à sua chegada 
no mundo dos Espíritos: depende dos seus haveres o lugar para onde vá. Não será, 
todavia, com o seu ouro que ele o pagará. Ninguém lhe perguntará: Quanto tinhas na 
Terra?  Que  posição  ocupavas?  Eras  príncipe  ou  operário?  Perguntar­lhe­ão:  Que 
trazes contigo? Não se lhe avaliarão os bens, nem os títulos, mas a soma das virtudes 
que possua. Ora, sob esse aspecto, pode o operário ser mais rico do que o príncipe. 
Em vão alegará que antes de partir da Terra pagou a peso de ouro a sua entrada no 
outro  mundo.  Responder­lhe­ão:  Os  lugares  aqui não  se  compram:  conquistam­se 
por meio da prática do bem. Com a moeda terrestre, hás podido comprar campos, 
casas,  palácios;  aqui,  tudo  se  paga  com  as  qualidades  da  alma.  És  rico  dessas 
qualidades? Sê bem­vindo e vai para um dos lugares da primeira categoria, onde te 
esperam todas as venturas. És pobre delas? Vai para um dos da última, onde serás 
tratado de acordo com os teus haveres. – Pascal. (Genebra, 1860) 
10. Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui a seu grado, não sendo o 
homem senão o usufrutuário, o administrador mais ou menos íntegro e inteligente 
desses bens. Tanto eles não constituem propriedade individual do homem, que Deus 
freqüentemente anula todas as previsões e a riqueza foge àquele que se julga com os 
melhores títulos para possuí­la. 
Direis,  porventura,  que  isso  se  compreende  no  tocante  aos  bens 
hereditários,  porém, não relativamente  aos  que  são  adquiridos  pelo  trabalho.  Sem 
dúvida  alguma,  se  há  riquezas  legítimas,  são  estas  últimas,  quando  honestamente 
conseguidas, porquanto uma propriedade só é legitimamente adquirida quando, da 
sua aquisição, não resulta dano para ninguém. Contas serão pedidas até mesmo de 
um  único  ceitil  mal  ganho,  isto  é,  com  prejuízo  de  outrem.  Mas,  do  fato  de  um 
homem dever a si próprio a riqueza que possua, seguir­se­á que, ao morrer, alguma 
vantagem  lhe advenha  desse  fato?  Não  são  amiúde  inúteis  as  precauções  que  ele 
toma para transmiti­la a seus descendentes? Decerto, porquanto, se Deus não quiser
167 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
que ela lhes vá ter às mãos, nada prevalecerá contra a sua vontade. Poderá o homem 
usar  e  abusar  de  seus  haveres  durante  a  vida,  sem  ter  de  prestar  contas?  Não. 
Permitindo­lhe que a adquirisse, é possível haja Deus tido em vista recompensar­lhe, 
no curso da existência atual, os esforços, a coragem, a perseverança. Se, porém, ele 
somente  os  utilizou  na  satisfação  dos  seus  sentidos  ou  do  seu  orgulho;  se  tais 
haveres se lhe tornaram causa de falência, melhor fora não os ter possuído, visto que 
perde de um lado o que ganhou do outro, anulando o mérito de seu trabalho. Quando 
deixar  a  Terra,  Deus  lhe  dirá  que  já  recebeu  a  sua  recompensa.  –  M.,  Espírito 
protetor. (Bruxelas, 1861) 
EMPREGO DA RIQUEZA 
11. Não podeis servir a Deus e a Mamon. Guardai bem isso em lembrança, vós, a 
quem  o  amor  do  ouro  domina;  vós,  que  venderíeis  a  alma  para  possuir  tesouros, 
porque eles permitem vos eleveis acima dos outros homens e vos proporcionam os 
gozos das paixões que vos escravizam. Não; não podeis servir a Deus e a Mamon! 
Se, pois, sentis vossa alma dominada pelas cobiças da carne, dai­vos pressa em alijar 
o  jugo  que  vos  oprime,  porquanto  Deus,  justo  e  severo,  vos  dirá:  Que  fizeste, 
ecônomo  infiel,  dos  bens  que  te  confiei?  Esse  poderoso  móvel  de  boas  obras 
exclusivamente o empregaste na tua satisfação pessoal. 
Qual, então, o melhor emprego que se pode dar à riqueza? Procurai – nestas 
palavras:  “Amai­vos  uns  aos  outros”,  a  solução  do  problema.  Elas  guardam  o 
segredo  do  bom  emprego  das riquezas.  Aquele  que  se  acha  animado  do  amor  do 
próximo  tem  aí  toda  traçada  a  sua  linha  de  proceder.  Na  caridade  está,  para  as 
riquezas,  o  emprego  que  mais  apraz  a  Deus.  Não  nos  referimos,  é  claro,  a  essa 
caridade  fria  e  egoísta,  que  consiste  em  a  criatura  espalhar  ao  seu  derredor  o 
supérfluo de uma existência dourada. Referimo­nos à caridade plena de amor, que 
procura a desgraça e a ergue, sem a humilhar. Rico!... dá do que te sobra; faze mais: 
dá  um  pouco  do  que  te  é  necessário,  porquanto  o  de  que  necessitas  ainda  é 
supérfluo. Mas, dá com sabedoria. Não repilas o que se queixa, com receio de que te 
engane; vai às origens do mal. Alivia, primeiro; em seguida, informa­te, e vê se o 
trabalho,  os  conselhos,  mesmo  a  afeição  não  serão  mais  eficazes  do  que  a  tua 
esmola. Difunde em torno de ti, como os socorros materiais, o amor de Deus, o amor 
do trabalho, o amor do próximo. Coloca tuas riquezas sobre uma base que nunca 
lhes faltará e que te trará grandes lucros: a das boas obras. A riqueza da inteligência 
deves utilizá­la como a do ouro. Derrama em torno de ti os tesouros da instrução; 
derrama sobre teus irmãos os tesouros do teu amor e eles frutificarão. – Cheverus. 
(Bordéus, 1861) 
12.  Quando  considero  a  brevidade  da  vida,  dolorosamente  me  impressiona  a 
incessante preocupação de que é para vós objeto o bem­estar material, ao passo que 
tão  pouca  importância  dais  ao  vosso  aperfeiçoamento  moral,  a  que  pouco  ou 
nenhum tempo consagrais e que, no entanto, é o que importa para a eternidade. Dir­ 
se­ia, diante da atividade que desenvolveis, tratar­se de uma questão do mais alto 
interesse para a Humanidade, quando não se trata, na maioria dos casos, senão de
168 – Allan Kardec 
vos pordes em condições de satisfazer a necessidades exageradas, à vaidade, ou de 
vos entregardes a excessos. Que de penas, de amofinações, de tormentos cada um se 
impõe;  que  de  noites  de  insônia,  para  aumentar  haveres  muitas  vezes  mais  que 
suficientes!  Por  cúmulo  de  cegueira,  freqüentemente  se  encontram  pessoas, 
escravizadas a penosos trabalhos pelo amor imoderado da riqueza e dos gozos que 
ela proporciona, a se vangloriarem de viver uma existência dita de sacrifício e de 
mérito –  como  se  trabalhassem  para  os  outros  e não  para si  mesmas!  Insensatos! 
Credes, então, realmente, que vos serão levados em conta os cuidados e os esforços 
que  despendeis  movidos  pelo  egoísmo,  pela  cupidez  ou  pelo  orgulho,  enquanto 
negligenciais do vosso futuro, bem como dos deveres que a solidariedade fraterna 
impõe a todos  os que gozam das vantagens da vida social?  Unicamente no vosso 
corpo  haveis  pensado;  seu  bem­estar,  seus  prazeres  foram  o  objeto  exclusivo  da 
vossa  solicitude  egoística.  Por  ele,  que  morre,  desprezastes  o  vosso  Espírito,  que 
viverá sempre. Por isso mesmo, esse senhor tão amimado e acariciado se tornou o 
vosso tirano; ele manda sobre o vosso Espírito, que se lhe constituiu escravo. Seria 
essa  a  finalidade  da  existência  que  Deus  vos  outorgou?  –  Um  Espírito  protetor. 
(Cracóvia, 1861) 
13. Sendo o homem o depositário, o administrador dos bens que Deus lhe pôs nas 
mãos,  contas  severas  lhe  serão  pedidas  do  emprego  que  lhes  haja  ele  dado,  em 
virtude do seu livre­arbítrio. O mau uso consiste em os aplicar exclusivamente na 
sua satisfação pessoal; bom é o uso, ao contrário, todas as vezes que deles resulta 
um  bem  qualquer  para  outrem.  O  merecimento  de  cada  um  está na  proporção  do 
sacrifício que se impõe a si mesmo. A beneficência é apenas um modo de empregar­ 
se  a  riqueza;  ela  dá  alívio  à  miséria  presente;  aplaca  a  fome,  preserva  do  frio  e 
proporciona  abrigo  ao  que  não  o  tem.  Dever,  porém,  igualmente  imperioso  e 
meritório é o de prevenir a miséria. Tal, sobretudo, a missão das grandes fortunas, 
missão a ser cumprida mediante os trabalhos de todo gênero que com elas se podem 
executar. Nem, pelo fato de tirarem desses trabalhos legítimo proveito os que assim 
as  empregam,  deixaria  de  existir  o  bem  resultante  delas,  porquanto  o  trabalho 
desenvolve  a  inteligência  e  exalça  a  dignidade  do  homem,  facultando­lhe  dizer, 
altivo, que ganha o pão que come, enquanto a esmola humilha e degrada. A riqueza 
concentrada  em  uma  mão  deve  ser  qual  fonte  de  água  viva  que  espalha  a 
fecundidade e o bem­estar ao seu derredor. Ó vós, ricos, que a empregardes segundo 
as vistas do Senhor! O vosso coração será o primeiro a dessedentar­se nessa fonte 
benfazeja; já nesta existência fruireis os inefáveis gozos da alma, em vez dos gozos 
materiais  do  egoísta,  que  produzem  no  coração  o  vazio.  Vossos  nomes  serão 
benditos  na  Terra  e,  quando  a  deixardes,  o  soberano  Senhor  vos  dirá,  como  na 
parábola  dos  talentos:  “Bom  e  fiel  servo,  entra  na  alegria  do  teu  Senhor.”  Nessa 
parábola, o servidor que enterrou o dinheiro que lhe fora confiado é a representação 
dos  avarentos,  em  cujas  mãos  se  conserva  improdutiva  a  riqueza.  Se,  entretanto, 
Jesus fala principalmente das esmolas, é que naquele tempo e no país em que ele 
vivia não se conheciam os trabalhos que as artes e a indústria criaram depois e nas 
quais as riquezas podem ser aplicadas utilmente para o bem geral. A todos os que 
podem dar, pouco ou muito, direi, pois: dai esmola quando for preciso; mas, tanto
169 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
quanto possível, convertei­a em salário, a fim de que aquele que a receba não se 
envergonhe dela. – Fénelon. (Argel, 1860) 
DESPRENDIMENTO DOS BENS TERRENOS 
14. Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer­vos o meu óbolo, a fim de vos ajudar 
a avançar, desassombradamente, pela senda do aperfeiçoamento em que entrastes. 
Nós  nos  devemos  uns  aos  outros;  somente  pela união  sincera  e  fraternal  entre  os 
Espíritos e os encarnados será possível a regeneração. 
O  amor  aos  bens  terrenos  constitui  um  dos  mais  fortes  óbices  ao  vosso 
adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais bens, destruís as vossas 
faculdades  de  amar,  com  as  aplicardes  todas  às  coisas  materiais.  Sede  sinceros: 
proporciona a riqueza uma felicidade sem mescla? Quando tendes cheios os cofres, 
não há sempre um vazio no vosso coração? No fundo dessa cesta de flores não há 
sempre  oculto  um  réptil?  Compreendo  a  satisfação,  bem  justa,  aliás,  que 
experimenta o homem que, por meio de trabalho honrado e assíduo, ganhou uma 
fortuna; mas, dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego que 
absorve todos  os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração vai grande 
distância,  tão  grande  quanto  a  que  separa  da  prodigalidade  exagerada  a  sórdida 
avareza, dois vícios entre os quais colocou Deus a caridade, santa e salutar virtude 
que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem baixeza. 
Quer a fortuna vos tenha vindo da vossa família, quer a tenhais ganho com 
o vosso trabalho, há uma coisa que não deveis esquecer nunca: é que tudo promana 
de Deus, tudo retorna a Deus. Nada vos pertence na Terra, nem sequer o vosso pobre 
corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens materiais. Sois depositários 
e não proprietários, não vos iludais. Deus vo­los emprestou, tendes de lhos restituir; 
e  ele  empresta  sob  a  condição  de  que  o  supérfluo,  pelo  menos,  caiba  aos  que 
carecem do necessário. 
Um dos vossos amigos vos empresta certa quantia. Por pouco honesto que 
sejais, fazeis questão de lha restituirdes escrupulosamente e lhe ficais agradecido. 
Pois  bem: essa a posição de todo homem rico. Deus é  o  amigo celestial, que lhe 
emprestou a riqueza, não querendo para si mais do que o amor e o reconhecimento 
do rico. Exige deste, porém, que a seu turno dê aos pobres, que são, tanto quanto ele, 
seus filhos.
Ardente  e  desvairada  cobiça  despertam nos  vossos  corações  os  bens  que 
Deus vos confiou. Já pensastes, quando vos deixais apegar imoderadamente a uma 
riqueza perecível e passageira como vós mesmos, que um dia tereis de prestar contas 
ao Senhor daquilo que vos veio d’Ele? Olvidais que, pela riqueza, vos revestistes do 
caráter  sagrado  de ministros  da  caridade na  Terra,  para  serdes  da aludida riqueza 
dispensadores  inteligentes?  Portanto,  quando  somente  em vosso  proveito  usais  do 
que  se  vos  confiou,  que  sois,  senão  depositários  infiéis?  Que  resulta  desse 
esquecimento voluntário dos vossos deveres? A morte, inflexível, inexorável, rasga 
o  véu  sob  que  vos  ocultáveis  e  vos  força  a  prestar  contas  ao  Amigo  que  vos 
favorecera e que nesse momento enverga diante de vós a toga de juiz.
170 – Allan Kardec 
Em vão procurais na Terra iludir­vos, colorindo com o nome de virtude o 
que  as  mais  das  vezes  não  passa  de  egoísmo.  Em  vão  chamais  economia  e 
previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao que não é senão 
prodigalidade  em  proveito  vosso.  Um  pai  de  família,  por  exemplo,  se  abstém  de 
praticar a caridade, economizará, amontoará ouro, para, diz ele, deixar aos filhos a 
maior soma possível de bens e evitar que caiam na miséria. É muito justo e paternal, 
convenho, e ninguém pode censurar. Mas será sempre esse o único móvel a que ele 
obedece?  Não  será  muitas  vezes  um  compromisso  com  a  sua  consciência,  para 
justificar, aos seus próprios olhos e aos olhos do mundo, seu apego pessoal aos bens 
terrenais? Admitamos, no entanto, seja o amor paternal o único móvel que o guie. 
Será isso motivo para que esqueça seus irmãos perante Deus? Quando já ele tem o 
supérfluo,  deixará  na  miséria  os  filhos,  por  lhes  ficar  um  pouco  menos  desse 
supérfluo?  Não  será,  antes,  dar­lhes  uma  lição  de  egoísmo  e  endurecer­lhes  os 
corações?  Não  será  estiolar  neles  o  amor  ao  próximo?  Pais  e  mães,  laborais  em 
grande erro, se credes que desse modo granjeais maior afeição dos  vossos  filhos. 
Ensinando­lhes a ser egoístas para com os outros, ensinais­lhes a sê­lo para com vós 
mesmos. 
A um homem que muito haja trabalhado, e que com  o suor de seu rosto 
acumulou bens, é comum ouvirdes dizer que, quando o dinheiro é ganho, melhor se 
lhe  conhece  o  valor.  Nada mais  exato.  Pois  bem!  Pratique  a  caridade,  dentro  das 
suas possibilidades, esse homem que declara conhecer todo o valor do dinheiro, e 
maior será o seu merecimento, do que o daquele que, nascido na abundância, ignora 
as rudes fadigas do trabalho. Mas, também, se esse homem, que se recorda dos seus 
penares, dos seus esforços,  for egoísta, impiedoso para com os pobres, bem mais 
culpado  se  tornará  do  que  o  outro,  pois,  quanto  melhor  cada  um  conhece  por  si 
mesmo as dores ocultas da miséria, tanto mais propenso deve sentir­se em aliviá­las 
nos outros. 
Infelizmente,  sempre  há  no  homem  que  possui  bens  de  fortuna  um 
sentimento tão forte quanto o apego aos mesmos bens: é o orgulho. Não raro, vê­se 
o  arrivista  atordoar,  com  a  narrativa  de  seus  trabalhos  e  de  suas  habilidades,  o 
desgraçado que lhe pede assistência, em vez de acudi­lo, e acabar dizendo: “Faça o 
que eu fiz.” Segundo o seu modo de ver, a bondade de Deus não entra por coisa 
alguma  na  obtenção  da  riqueza  que  conseguiu  acumular;  pertence­lhe  a  ele, 
exclusivamente, o mérito de a possuir. O orgulho lhe põe sobre os olhos uma venda 
e lhe tapa os ouvidos. Apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua aptidão, não 
compreende que, com uma só palavra, Deus o pode lançar por terra. 
Esbanjar a riqueza não é demonstrar desprendimento dos bens terrenos: é 
descaso e indiferença. Depositário desses  bens, não tem o  homem o direito de os 
dilapidar,  como  não  tem  o  de  os  confiscar  em  seu  proveito.  Prodigalidade  não  é 
generosidade: é, freqüentemente, uma modalidade do egoísmo. Um, que despenda a 
mancheias o ouro de que disponha, para satisfazer a uma fantasia, talvez não dê um 
centavo para prestar um serviço. O desapego aos bens terrenos consiste em apreciá­ 
los no seu justo valor, em saber servir­se deles em benefício dos outros e não apenas 
em  benefício  próprio,  em não  sacrificar  por  eles  os  interesses  da  vida  futura,  em 
perdê­los sem murmurar, caso apraza a Deus retirá­los. Se, por efeito de imprevistos 
reveses, vos tornardes qual Jó, dizei, como ele: “Senhor, tu mos havias dado e mos
171 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
tiraste. Faça­se a tua vontade.” Eis aí o verdadeiro desprendimento. Sede, antes de 
tudo,  submissos;  confiai  n’Aquele  que,  tendo­vos  dado  e  tirado,  pode  novamente 
restituir­vos o que vos tirou. Resisti animosos ao abatimento, ao desespero, que vos 
paralisam as forças. Quando Deus vos desferir um golpe, não esqueçais nunca que, 
ao lado da mais rude prova, coloca sempre uma consolação. Ponderai, sobretudo, 
que há bens infinitamente mais preciosos do que os da Terra e essa idéia vos ajudará 
a desprender­vos destes últimos. O pouco apreço que se ligue a uma coisa faz que 
menos sensível seja a sua perda. O homem que se aferra aos bens terrenos é como a 
criança que somente vê o momento que passa. O que deles se desprende é como o 
adulto que vê as coisas mais importantes, por compreender estas proféticas palavras 
do Salvador: “O meu reino não é deste mundo.” 
A ninguém ordena o Senhor que se despoje do que possua, condenando­se a 
uma voluntária mendicidade, porquanto o que tal fizesse tornar­se­ia em carga para a 
sociedade.  Proceder  assim  fora  compreender  mal  o  desprendimento  dos  bens 
terrenos.  Fora  egoísmo  de  outro  gênero,  porque  seria  o  indivíduo  eximir­se  da 
responsabilidade que a riqueza faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a concede 
a quem bem lhe parece, a fim de que a administre em proveito de todos. O rico tem, 
pois, uma missão, que ele pode embelezar e tornar proveitosa a si mesmo. Rejeitar a 
riqueza,  quando  Deus  a  outorga,  é  renunciar  aos  benefícios  do  bem  que  se  pode 
fazer, gerindo­a com critério. Sabendo prescindir dela quando não a tem, sabendo 
empregá­la  utilmente  quando  a  possui,  sabendo  sacrificá­la  quando  necessário, 
procede a criatura de acordo com os desígnios do Senhor. Diga, pois, aquele a cujas 
mãos venha o que no mundo se chama uma boa fortuna: Meu Deus, tu me destinaste 
um novo encargo; dá­me a força de desempenhá­lo segundo a tua santa vontade. 
Aí  tendes,  meus  amigos,  o  que  eu  vos  queria  ensinar  acerca  do 
desprendimento dos bens terrenos. Resumirei o que expus, dizendo: Sabei contentar­ 
vos  com  pouco.  Se  sois  pobres,  não invejeis  os  ricos,  porquanto  a riqueza não  é 
necessária à felicidade. Se sois ricos, não esqueçais que os bens de que dispondes 
apenas vos estão confiados  e que tendes de  justificar o emprego que lhes derdes, 
como se prestásseis contas de uma tutela. Não sejais depositário infiel, utilizando­os 
unicamente  em  satisfação  do  vosso  orgulho  e  da  vossa  sensualidade.  Não  vos 
julgueis com o direito de dispor em vosso exclusivo proveito daquilo que recebestes, 
não por doação, mas simplesmente como empréstimo. Se não sabeis restituir, não 
tendes o direito de pedir, e lembrai­vos de que aquele que dá aos pobres, salda a 
dívida que contraiu com Deus. – Lacordaire. (Constantina, 1863) 
TRANSMISSÃO DA RIQUEZA 
15. O princípio, segundo o qual ele é apenas depositário da fortuna de que Deus lhe 
permite  gozar  durante  a  vida,  tira  ao  homem  o  direito  de  transmiti­la  aos  seus 
descendentes? 
O  homem  pode  perfeitamente  transmitir,  por  sua  morte,  aquilo  de  que 
gozou  durante  a  vida,  porque  o  efeito  desse  direito  está  subordinado  sempre  à 
vontade de Deus, que pode, quando quiser, impedir que aqueles descendentes gozem 
do que lhes foi transmitido. Não é outra a razão por que desmoronam fortunas que
172 – Allan Kardec 
parecem  solidamente  constituídas.  É,  pois,  impotente  a  vontade  do  homem  para 
conservar nas mãos da sua descendência a fortuna que possua. Isso, entretanto, não o 
priva do direito de transmitir o empréstimo que recebeu de Deus, uma vez que Deus 
pode retirá­lo, quando o julgue oportuno. – São Luís. (Paris, 1860)
173 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XVII 
SEDE PERFEITOS
·  CARACTERES DA PERFEIÇÃO
·  O HOMEM DE BEM
·  OS BONS ESPÍRITAS
·  PARÁBOLA DO SEMEADOR 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  O DEVER
·  A VIRTUDE
·  OS SUPERIORES E OS INFERIORES
·  O HOMEM NO MUNDO
·  CUIDAI DO CORPO E DO ESPÍRITO 
CARACTERES DA PERFEIÇÃO 
1. “ Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos 
que vos perseguem e caluniam. Porque, se somente amardes os que vos 
amam,  que  recompensa  tereis  disso?  Não  fazem  assim  também  os 
publicanos? Se unicamente saudardes os vossos irmãos, que fazeis com 
isso mais do que outros? Não fazem o mesmo os pagãos? Sede, pois, vós 
outros, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial”. 
(MATEUS, 5:44, 46 a 48) 
2.  Pois  que  Deus  possui  a  perfeição  infinita  em  todas  as coisas,  esta  proposição: 
“Sede  perfeitos,  como  perfeito  é  o  vosso  Pai  celestial”,  tomada  ao  pé  da  letra, 
pressuporia  a  possibilidade  de  atingir­se  a  perfeição  absoluta.  Se  à  criatura  fosse 
dado  ser  tão  perfeita  quanto  o  Criador,  tornar­se­ia  ela  igual  a  este,  o  que  é
174 – Allan Kardec 
inadmissível.  Mas,  os  homens  a  quem  Jesus  falava  não  compreenderiam  essa 
nuança, pelo que ele se limitou a lhes apresentar um modelo e a dizer­lhes que se 
esforçassem pelo alcançar. 
Aquelas  palavras,  portanto,  devem  entender­se  no  sentido  da  perfeição 
relativa, a de que a Humanidade é suscetível e que mais a aproxima da Divindade. 
Em que consiste essa perfeição? Jesus o diz: “Em amarmos os nossos inimigos, em 
fazermos o bem aos que nos odeiam, em orarmos pelos que nos perseguem.” Mostra 
ele desse modo que a essência da perfeição é a caridade na sua mais ampla acepção, 
porque implica a prática de todas as outras virtudes. 
Com efeito, se se observam os resultados de todos os vícios e, mesmo, dos 
simples  defeitos,  reconhecer­se­á  nenhum  haver  que  não  altere mais  ou  menos  o 
sentimento da caridade, porque todos têm seu princípio no egoísmo e no orgulho, 
que  lhes  são  a  negação;  e  isso  porque  tudo  o  que  sobreexcita  o  sentimento  da 
personalidade  destrói,  ou,  pelo  menos,  enfraquece  os  elementos  da  verdadeira 
caridade, que são: a benevolência, a indulgência, a abnegação e o devotamento. Não 
podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar­se a nenhum 
defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou 
menor  superioridade moral,  donde  decorre  que  o  grau  da perfeição  está  na razão 
direta  da  sua  extensão.  Foi  por  isso  que  Jesus,  depois  de  haver  dado  a  seus 
discípulos  as  regras  da  caridade,  no  que  tem  de  mais  sublime,  lhes  disse:  “Sede 
perfeitos, como perfeito é vosso Pai celestial.” 
O HOMEM DE BEM 
3.  O  verdadeiro  homem  de  bem  é  o  que  cumpre  a  lei  de  justiça,  de  amor  e  de 
caridade, na sua maior pureza. Se ele interroga a consciência sobre seus próprios 
atos, a si mesmo perguntará se violou essa lei, se não praticou o mal, se fez todo o 
bem  que  podia,  se  desprezou  voluntariamente  alguma  ocasião  de  ser  útil,  se 
ninguém tem qualquer queixa dele; enfim, se fez a outrem tudo o que desejara lhe 
fizessem. 
Deposita fé em Deus, na Sua bondade, na Sua justiça e na Sua sabedoria. 
Sabe que sem a Sua permissão nada acontece e se Lhe submete à vontade em todas 
as coisas. 
Tem fé no futuro, razão por que coloca os bens espirituais acima dos bens 
temporais. 
Sabe que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas as decepções 
são provas ou expiações e as aceita sem murmurar. 
Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo 
bem, sem esperar paga alguma; retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco 
contra o forte, e sacrifica sempre seus interesses à justiça. 
Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no 
fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza 
aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é 
para cuidar dos interesses dos outros antes do seu próprio interesse. O egoísta, ao 
contrário, calcula os proventos e as perdas decorrentes de toda ação generosa.
175 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
O  homem  de  bem  é  bom,  humano  e  benevolente  para  com  todos,  sem 
distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus. 
Respeita nos outros todas as convicções sinceras e não lança anátema aos 
que como ele não pensam. 
Em todas as circunstâncias, toma por guia a caridade, tendo como certo que 
aquele que prejudica a outrem com palavras malévolas, que fere com o seu orgulho e 
o  seu  desprezo  a  suscetibilidade  de  alguém,  que  não  recua  à  idéia  de  causar  um 
sofrimento,  uma  contrariedade,  ainda  que  ligeira,  quando  a  pode  evitar,  falta  ao 
dever de amar o próximo e não merece a clemência do Senhor. 
Não  alimenta  ódio,  nem  rancor,  nem  desejo  de  vingança;  a  exemplo  de 
Jesus,  perdoa  e  esquece  as  ofensas  e  só  dos  benefícios  se  lembra,  por  saber  que 
perdoado lhe será conforme houver perdoado. 
É indulgente para as fraquezas alheias, porque sabe que também necessita 
de indulgência e tem presente esta sentença do Cristo: “Atire­lhe a primeira pedra 
aquele que se achar sem pecado.” 
Nunca  se  compraz  em  rebuscar  os  defeitos  alheios,  nem,  ainda,  em 
evidenciá­los. Se a isso se vê obrigado, procura sempre o bem que possa atenuar o 
mal. 
Estuda suas próprias imperfeições e trabalha incessantemente em combatê­ 
las. Todos os esforços emprega para dizer, no dia seguinte, que alguma coisa traz em 
si de melhor do que na véspera. 
Não procura dar valor ao seu espírito, nem aos seus talentos, a expensas de 
outrem;  aproveita,  ao  revés,  todas  as  ocasiões  para  fazer  ressaltar  o  que  seja 
proveitoso aos outros. 
Não se envaidece da sua riqueza, nem de suas vantagens pessoais, por saber 
que tudo o que lhe foi dado pode ser­lhe tirado. 
Usa,  mas  não  abusa  dos  bens  que  lhe  são  concedidos,  sabe  que  é  um 
depósito de que terá de prestar contas e que o mais prejudicial emprego que lhe pode 
dar é o de aplicá­lo à satisfação de suas paixões. 
Se a ordem social colocou sob o seu mando outros homens, trata­os com 
bondade e benevolência, porque são seus iguais perante Deus; usa da sua autoridade 
para  lhes  levantar  o  moral  e não  para  os  esmagar  com  o  seu  orgulho. Evita  tudo 
quanto lhes possa tornar mais penosa a posição subalterna em que se encontram. 
O subordinado, de sua parte, compreende os deveres da posição que ocupa 
e se empenha em cumpri­los conscienciosamente. (Cap. XVII, nº 9) 
Finalmente,  o  homem  de  bem  respeita  todos  os  direitos  que  aos  seus 
semelhantes dão as leis da Natureza, como quer que sejam respeitados os seus. 
Não ficam assim enumeradas todas as qualidades que distinguem o homem 
de bem; mas, aquele que se esforce por possuir as que acabamos de mencionar, no 
caminho se acha que a todas as demais conduz. 
OS BONS ESPÍRITAS 
4. Bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, o Espiritismo leva aos resultados 
acima expostos, que caracterizam o verdadeiro espírita, como o cristão verdadeiro, 
pois que um o mesmo é que outro. O Espiritismo não institui nenhuma nova moral;
176 – Allan Kardec 
apenas  facilita  aos  homens  a  inteligência  e  a  prática  da  do  Cristo,  facultando  fé 
inabalável e esclarecida aos que duvidam ou vacilam. 
Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das manifestações não lhes 
apreendem  as  conseqüências,  nem  o  alcance  moral,  ou,  se  os  apreendem, não os 
aplicam a si mesmos. A que atribuir isso? A alguma falta de clareza da Doutrina? 
Não, pois que ela não contém alegorias nem figuras que possam dar lugar a falsas 
interpretações. A clareza é da sua essência mesma e é donde lhe vem toda a força, 
porque a faz ir direito à inteligência. Nada tem de misteriosa e seus iniciados não se 
acham de posse de qualquer segredo, oculto ao vulgo. 
Será  então  necessária,  para  compreendê­la,  uma  inteligência  fora  do 
comum? Não, tanto que há homens de notória capacidade que não a compreendem, 
ao passo que inteligências vulgares, moços mesmo, apenas saídos da adolescência, 
lhes apreendem, com admirável precisão, os mais delicados matizes. Provém isso de 
que a parte por assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem, 
enquanto  a  parte  essencial  exige  um  certo  grau  de  sensibilidade,  a  que  se  pode 
chamar maturidade do senso moral, maturidade que independe da idade e do grau de 
instrução, porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial, do Espírito 
encarnado. 
Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o 
Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira­lhes a visão 
do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores, nem com 
seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são 
dotados. Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem 
pouco lhes modifica as tendências instintivas. Numa palavra: não divisam mais do 
que um raio de luz, insuficiente a guiá­los e a lhes facultar uma vigorosa aspiração, 
capaz  de  lhes  sobrepujar  as  inclinações.  Atêm­se  mais  aos  fenômenos  do  que  à 
moral,  que  se  lhes  afigura  cediça  e  monótona.  Pedem  aos  Espíritos  que 
incessantemente  os  iniciem  em  novos  mistérios,  sem  procurar  saber  se  já  se 
tornaram  dignos  de  penetrar  os  arcanos  do  Criador.  Esses  são  os  espíritas 
imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos 
em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as 
suas  simpatias  para  os  que  lhes  compartilham  das  fraquezas  ou  das  prevenções. 
Contudo, a aceitação do princípio da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará 
mais fácil o segundo, noutra existência. 
Aquele  que  pode  ser,  com  razão,  qualificado  de  espírita  verdadeiro  e 
sincero,  se  acha  em  grau  superior  de  adiantamento  moral.  O  Espírito,  que  nele 
domina  de  modo  mais  completo  a  matéria,  dá­lhe  uma  percepção  mais  clara  do 
futuro;  os  princípios  da  Doutrina  lhe  fazem  vibrar  fibras  que  nos  outros  se 
conservam inertes. Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna 
a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro 
apenas  ouve  sons.  Reconhece­se  o  verdadeiro  espírita  pela  sua  transformação 
moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más. Enquanto 
um se contenta com o seu horizonte limitado, outro, que apreende alguma coisa de 
melhor, se esforça por desligar­se dele e sempre o consegue, se tem firme a vontade.
177 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
PARÁBOLA DO SEMEADOR 
5. Naquele mesmo dia, tendo saído de casa, Jesus sentou­se à borda do 
mar;  em  torno  dele  logo  reuniu­se  grande  multidão  de  gente;  pelo  que 
entrou  numa  barca,  onde  sentou­se,  permanecendo  na  margem  todo  o 
povo. Disse então muitas coisas por parábolas, falando­lhes assim: 
“Aquele  que  semeia  saiu  a  semear;  e,  semeando, uma  parte  da 
semente  caiu  ao  longo  do  caminho  e  os  pássaros  do  céu  vieram  e  a 
comeram. Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia muita 
terra; as sementes logo brotaram, porque carecia de profundidade a terra 
onde  haviam  caído.  Mas,  levantando­se,  o  Sol  as  queimou  e,  como  não 
tinham  raízes,  secaram.  Outra  parte  caiu  entre  espinheiros  e  estes, 
crescendo, as abafaram. Outra, finalmente, caiu em terra boa e produziu 
frutos,  dando  algumas  sementes  cem  por  um,  outras  sessenta  e  outras 
trinta. Ouça quem tem ouvidos de ouvir”. 
(MATEUS, 13:1 a 9) 
“Escutai, pois, vós outros a parábola do semeador”: 
“Quem quer que escuta a palavra do reino e não lhe dá atenção, 
vem o espírito maligno e tira o que lhe fora semeado no coração. Esse é o 
que  recebeu  a  semente  ao  longo  do  caminho.  Aquele  que  recebe  a 
semente em meio das pedras é o que escuta a palavra e que a recebe com 
alegria  no  primeiro  momento.  Mas,  não  tendo  nele  raízes,  dura  apenas 
algum tempo. Em sobrevindo reveses e perseguições por causa da palavra, 
tira ele daí motivo de escândalo e de queda. Aquele que recebe a semente 
entre espinheiros é o que ouve a palavra; mas, em quem, logo, os cuidados 
deste  século  e  a  ilusão  das  riquezas  abafam  aquela  palavra  e a  tornam 
infrutífera.  Aquele,  porém,  que  recebe  a  semente  em  boa  terra  é  o  que 
escuta  a  palavra,  que  lhe  presta  atenção  e  em  quem  ela  produz  frutos, 
dando cem ou sessenta, ou trinta por um”. 
(MATEUS, 13:18 a 23) 
6. A parábola do semeador exprime perfeitamente os matizes existentes na maneira 
de serem utilizados os ensinos do Evangelho. Quantas pessoas há, com efeito, para 
as quais não passa ele de letra morta e que, como a semente caída sobre pedregulhos, 
nenhum fruto dá! Não menos justa aplicação encontra ela nas diferentes categorias 
espíritas.  Não  se  acham  simbolizados  nela  os  que  apenas atentam nos  fenômenos 
materiais e nenhuma conseqüência tiram deles, porque neles mais não vêem do que 
fatos curiosos? Os que apenas se preocupam com o lado brilhante das comunicações 
dos Espíritos, pelas quais só se interessam quando lhes satisfazem à imaginação, e 
que, depois de as terem ouvido, se conservam tão frios e indiferentes quanto eram? 
Os  que  reconhecem  muito  bons  os  conselhos  e  os  admiram,  mas  para  serem 
aplicados aos outros e não a si próprios? Aqueles, finalmente, para os quais essas 
instruções são como a semente que cai em terra boa e dá frutos?
178 – Allan Kardec 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
O DEVER 
7.  O  dever  é  a  obrigação  moral  da  criatura  para  consigo  mesma,  primeiro,  e,  em 
seguida, para com os outros. O dever é a lei da vida. Com ele deparamos nas mais 
ínfimas particularidades, como nos atos mais elevados. Quero aqui falar apenas do 
dever moral e não do dever que as profissões impõem. 
Na  ordem  dos  sentimentos,  o  dever  é  muito  difícil de  cumprir­se,  por  se 
achar  em  antagonismo  com  as  atrações  do  interesse  e  do  coração.  Não  têm 
testemunhas as suas vitórias e não estão sujeitas à repressão suas derrotas. O dever 
íntimo  do  homem  fica  entregue  ao  seu  livre­arbítrio.  O  aguilhão  da  consciência, 
guardião da probidade interior, o adverte e sustenta; mas, muitas vezes, mostra­se 
impotente diante dos sofismas da paixão. Fielmente observado, o dever do coração 
eleva o homem; como determiná­lo, porém, com exatidão? Onde começa ele? onde 
termina? O  dever  principia,  para  cada  um  de vós, exatamente  no  ponto  em  que 
ameaçais a felicidade ou a tranqüilidade do vosso próximo; acaba no limite que não 
desejais ninguém transponha com relação a vós. 
Deus  criou  todos  os  homens  iguais  para  a  dor.  Pequenos  ou  grandes, 
ignorantes ou instruídos, sofrem todos pelas mesmas causas, a fim de que cada um 
julgue em sã consciência o mal que pode fazer. Com relação ao bem, infinitamente 
vário nas suas expressões, não é o mesmo o critério. A igualdade em face da dor é 
uma sublime providência de Deus, que quer que todos os seus filhos, instruídos pela 
experiência comum, não pratiquem o mal, alegando ignorância de seus efeitos. 
O dever é o resumo prático de todas as especulações morais; é uma bravura 
da alma que enfrenta as angústias da luta; é austero e brando; pronto a dobrar­se às 
mais  diversas  complicações,  conserva­se  inflexível  diante  das  suas  tentações.  O 
homem que cumpre o seu dever ama a Deus mais do que as criaturas e ama as 
criaturas mais do que a si mesmo. É a um tempo juiz e escravo em causa própria. 
O dever é o mais belo laurel da razão; descende desta como de sua mãe o 
filho. O homem tem de amar o dever, não porque preserve de males a vida, males 
aos quais a Humanidade não pode subtrair­se, mas porque confere à alma o vigor 
necessário ao seu desenvolvimento. 
O dever cresce e irradia sob mais elevada forma, em cada um dos estágios 
superiores  da  Humanidade.  Jamais  cessa  a  obrigação  moral  da  criatura  para  com 
Deus. Tem esta de refletir as virtudes do Eterno, que não aceita esboços imperfeitos, 
porque quer que a beleza da sua obra resplandeça a seus próprios olhos. – Lázaro. 
(Paris, 1863) 
A VIRTUDE 
8. A virtude, no mais alto grau, é o conjunto de todas as qualidades essenciais que 
constituem o homem de bem. Ser bom, caritativo, laborioso, sóbrio, modesto, são 
qualidades  do  homem  virtuoso.  Infelizmente,  quase  sempre  as  acompanham 
pequenas enfermidades morais que as desornam e atenuam. Não é virtuoso aquele
179 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
que  faz  ostentação  da  sua  virtude,  pois  que  lhe  falta  a  qualidade  principal:  a 
modéstia, e tem o vício que mais se lhe opõe: o orgulho. A virtude, verdadeiramente 
digna desse nome, não gosta de estadear­se. Adivinham­na; ela, porém, se oculta na 
obscuridade e foge à admiração das massas. S. Vicente de Paulo era virtuoso; eram 
virtuosos o digno cura d’Ars e muitos outros quase desconhecidos do mundo, mas 
conhecidos de Deus. Todos esses homens de bem ignoravam que fossem virtuosos; 
deixavam­se  ir  ao  sabor  de  suas  santas  inspirações  e  praticavam  o  bem  com 
desinteresse, completo e inteiro esquecimento de si mesmos. 
À virtude assim compreendida e praticada é que vos convido, meus filhos; a 
essa virtude verdadeiramente cristã e verdadeiramente espírita é que vos concito a 
consagrar­vos. Afastai, porém, de vossos corações tudo o que seja orgulho, vaidade, 
amor­próprio,  que  sempre  desadornam  as  mais  belas  qualidades.  Não  imiteis  o 
homem que se apresenta como modelo e trombeteia, ele próprio, suas qualidades a 
todos os ouvidos complacentes. A virtude que assim se ostenta esconde muitas vezes 
uma imensidade de pequenas torpezas e de odiosas covardias. 
Em princípio, o homem que se exalça, que ergue uma estátua à sua própria 
virtude, anula, por esse simples fato, todo mérito real que possa ter. Entretanto, que 
direi  daquele  cujo  único  valor  consiste  em  parecer  o  que  não  é?  Admito  de  boa 
mente que o homem que pratica o bem experimenta uma satisfação íntima em seu 
coração; mas, desde que tal satisfação se exteriorize, para colher elogios, degenera 
em amor­próprio. 
Ó vós todos a quem a fé espírita aqueceu com seus raios, e que sabeis quão 
longe da perfeição está o homem, jamais esbarreis em semelhante escolho. A virtude 
é uma graça que desejo a todos os espíritas sinceros. Contudo, dir­lhes­ei: Mais vale 
pouca  virtude  com  modéstia,  do  que  muita  com  orgulho.  Pelo  orgulho  é  que  as 
Humanidades sucessivamente se hão perdido; pela humildade é que um dia elas se 
hão de redimir. – François­Nicolas­Madeleine. (Paris, 1863) 
OS SUPERIORES E OS INFERIORES 
9.  A  autoridade,  tanto  quanto  a  riqueza,  é  uma  delegação  de  que  terá  de  prestar 
contas aquele  que  se  ache  dela  investido.  Não  julgueis  que  lhe  seja  ela  conferida 
para lhe proporcionar o vão prazer de mandar; nem, conforme o supõe a maioria dos 
potentados  da  Terra,  como  um  direito,  uma  propriedade.  Deus,  aliás,  lhes  prova 
constantemente que não é nem uma nem outra coisa, pois que deles a retira quando 
lhe apraz. Se fosse um privilégio inerente às suas personalidades, seria inalienável. 
A ninguém cabe dizer que uma coisa lhe pertence, quando lhe pode ser tirada sem 
seu  consentimento.  Deus  confere  a  autoridade  a  título  de  missão,  ou  de  prova, 
quando o entende, e a retira quando julga conveniente. 
Quem quer que seja depositário de autoridade, seja qual for a sua extensão, 
desde a do senhor sobre o seu servo, até a do soberano sobre o seu povo, não deve 
olvidar que tem almas a seu cargo; que responderá pela boa ou má diretriz que dê 
aos seus subordinados e que sobre ele recairão as faltas que estes cometam, os vícios 
a que sejam arrastados em conseqüência dessa diretriz ou dos maus exemplos, do 
mesmo modo que colherá os frutos da solicitude que empregar para os conduzir ao
180 – Allan Kardec 
bem. Todo homem tem na Terra uma missão, grande ou pequena; qualquer que ela 
seja, sempre lhe é dada para o bem; falseá­la em seu princípio é, pois, falir ao seu 
desempenho. 
Assim como pergunta ao rico: “Que fizeste da riqueza que nas tuas mãos 
devera ser um manancial a espalhar a fecundidade ao teu derredor”, também Deus 
inquirirá  daquele  que  disponha  de  alguma  autoridade:  “Que  uso  fizeste  dessa 
autoridade? Que males evitaste? Que progresso facultaste? Se te dei subordinados, 
não foi para que os fizesses escravos da tua vontade, nem instrumentos dóceis aos 
teus caprichos ou à tua cupidez; fiz­te forte e confiei­te os que eram fracos, para que 
os amparasses e ajudasses a subir ao meu seio.” 
O  superior, que  se  ache  compenetrado  das  palavras do  Cristo,  a nenhum 
despreza dos que lhe estejam submetidos, porque sabe que as distinções sociais não 
prevalecem  às  vistas  de  Deus.  Ensina­lhe  o  Espiritismo  que,  se  eles  hoje  lhe 
obedecem, talvez já lhe tenham dado ordens, ou poderão dar­lhas mais tarde, e que 
ele  então  será  tratado  conforme  os  haja  tratado,  quando  sobre  eles  exercia 
autoridade.
Mas, se o superior tem deveres a cumprir, o inferior, de seu lado, também 
os  tem  e  não  menos  sagrados.  Se  for  espírita,  sua  consciência  ainda  mais 
imperiosamente lhe dirá que não pode considerar­se dispensado de cumpri­los, nem 
mesmo quando o seu chefe deixe de dar cumprimento aos que lhe correm, porquanto 
sabe muito bem não ser lícito retribuir o mal com o mal e que as faltas de uns não 
justificam as de outrem. Se a sua posição lhe acarreta sofrimentos, reconhecerá que 
sem dúvida os mereceu, porque, provavelmente, abusou outrora da autoridade que 
tinha,  cabendo­lhe,  portanto,  experimentar  a  seu  turno  o  que  fizera  sofressem  os 
outros. Se se vê forçado a suportar essa posição, por não encontrar outra melhor, o 
Espiritismo lhe ensina a resignar­se, como constituindo isso uma prova para a sua 
humildade, necessária  ao  seu  adiantamento.  Sua  crença  lhe  orienta a  conduta  e  o 
induz a proceder como quereria que seus subordinados procedessem para com ele, 
caso fosse o chefe. Por isso mesmo, mais escrupuloso se mostra no cumprimento de 
suas  obrigações,  pois  compreende  que  toda  negligência  no  trabalho  que  lhe  está 
determinado redunda em prejuízo para aquele que o remunera e a quem deve ele o 
seu  tempo  e  os  seus  esforços.  Numa  palavra:  solicita­o  o  sentimento  do  dever, 
oriundo da sua fé, e a certeza de que todo afastamento do caminho reto implica uma 
dívida  que,  cedo  ou  tarde,  terá  de  pagar.  –  François­Nicolas­Madeleine,  Cardeal 
Morlot. (Paris, 1863) 
O HOMEM NO MUNDO 
10. Um sentimento de piedade deve sempre animar o coração dos que se reúnem sob 
as vistas do Senhor e imploram a assistência dos bons Espíritos. Purificai, pois, os 
vossos corações; não consintais que neles demore qualquer pensamento mundano ou 
fútil. Elevai o vosso espírito àqueles por quem chamais, a fim de que, encontrando 
em  vós  as  necessárias  disposições,  possam  lançar  em  profusão  a  semente  que  é 
preciso germine em vossas almas e dê frutos de caridade e justiça.
181 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Não  julgueis,  todavia,  que,  exortando­vos  incessantemente  à  prece  e  à 
evocação mental, pretendamos vivais uma vida mística, que vos conserve fora das 
leis  da  sociedade  onde  estais  condenados  a  viver.  Não;  vivei  com  os  homens  da 
vossa época, como devem viver os homens. Sacrificai às necessidades, mesmo às 
frivolidades  do  dia,  mas  sacrificai  com  um  sentimento  de  pureza  que  as  possa 
santificar. 
Sois chamados a estar em contacto com espíritos de naturezas diferentes, de 
caracteres  opostos:  não  choqueis  a  nenhum  daqueles  com  quem  estiverdes.  Sede 
joviais, sede ditosos, mas seja a vossa jovialidade a que provém de uma consciência 
limpa, seja a vossa ventura a do herdeiro do Céu que conta os dias que faltam para 
entrar na posse da sua herança. 
Não  consiste  a  virtude  em  assumirdes  severo  e  lúgubre  aspecto,  em 
repelirdes  os  prazeres  que  as  vossas  condições  humanas  vos  permitem.  Basta 
reporteis todos os atos da vossa vida ao Criador que vo­la deu; basta que, quando 
começardes  ou  acabardes  uma  obra,  eleveis  o  pensamento  a  esse  Criador  e  lhe 
peçais, num arroubo d’alma, ou a sua proteção para que obtenhais êxito, ou a sua 
bênção para ela, se a concluístes. Em tudo o que fizerdes, remontai à Fonte de todas 
as coisas, para que nenhuma de vossas ações deixe de ser purificada e santificada 
pela lembrança de Deus. 
A perfeição está toda, como disse o Cristo, na prática da caridade absoluta; 
mas, os deveres da caridade alcançam todas as posições sociais, desde o menor até o 
maior.  Nenhuma  caridade  teria  a  praticar  o  homem  que  vivesse  insulado. 
Unicamente no contacto com os seus semelhantes, nas lutas mais árduas é que ele 
encontra ensejo de praticá­la. Aquele, pois, que se isola priva­se voluntariamente do 
mais poderoso meio de aperfeiçoar­se; não tendo de pensar senão em si, sua vida é a 
de um egoísta. (Cap. V, no 26) 
Não  imagineis,  portanto,  que,  para  viverdes  em  comunicação  constante 
conosco, para viverdes sob as vistas do Senhor, seja preciso vos cilicieis e cubrais de 
cinzas.  Não,  não,  ainda  uma  vez  vos  dizemos.  Ditosos  sede,  segundo  as 
necessidades  da  Humanidade;  mas,  que  jamais  na  vossa  felicidade  entre  um 
pensamento ou um ato que o possa ofender, ou fazer se vele o semblante dos que 
vos amam e dirigem. Deus é amor, e aqueles que amam santamente ele os abençoa. 
– Um Espírito Protetor. (Bordéus, 1863) 
CUIDAR DO CORPO E DO ESPÍRITO 
11. Consistirá na maceração do corpo a perfeição moral? Para resolver essa questão, 
apoiar­me­ei em princípios elementares e começarei por demonstrar a necessidade 
de cuidar­se do corpo que, segundo as alternativas de saúde e de enfermidade, influi 
de maneira muito importante sobre a alma, que cumpre se considere cativa da carne. 
Para que essa prisioneira viva, se expanda e chegue mesmo a conceber as ilusões da 
liberdade, tem o corpo de estar são, disposto, forte. Façamos uma comparação: Eis 
se acham ambos em perfeito estado; que devem fazer para manter o equilíbrio entre
182 – Allan Kardec 
as suas aptidões e as suas necessidades tão diferentes? Inevitável parece a luta entre 
os dois e difícil achar­se o segredo de como chegarem a equilíbrio 10 
. 
Dois  sistemas  se  defrontam:  o  dos  ascetas,  que  tem  por  base  o 
aniquilamento  do  corpo,  e  o  dos  materialistas,  que se  baseia  no  rebaixamento  da 
alma. Duas violências quase tão insensatas uma quanto a outra. Ao lado desses dois 
grandes partidos, formiga a numerosa tribo dos indiferentes que, sem convicção e 
sem paixão, são mornos no amar e econômicos no gozar. Onde, então, a sabedoria? 
Onde, então, a ciência de viver? Em parte alguma; e o grande problema ficaria sem 
solução, se o Espiritismo não viesse em auxílio dos pesquisadores, demonstrando­ 
lhes  as  relações  que  existem  entre  o  corpo  e  a  alma  e  dizendo­lhes  que,  por  se 
acharem  em  dependência  mútua,  importa  cuidar  de  ambos.  Amai,  pois,  a  vossa 
alma, porém, cuidai igualmente do vosso corpo, instrumento daquela. Desatender as 
necessidades  que  a  própria  Natureza  indica,  é  desatender  a  lei  de  Deus.  Não 
castigueis o corpo pelas faltas que o vosso livre­arbítrio o induziu a cometer e pelas 
quais é ele tão responsável quanto o cavalo mal dirigido, pelos acidentes que causa. 
Sereis, porventura, mais perfeitos se, martirizando o corpo, não vos tornardes menos 
egoístas, nem menos orgulhosos e mais caritativos para com o vosso próximo? Não, 
a perfeição não está nisso: está toda nas reformas por que fizerdes passar o vosso 
Espírito. Dobrai­o, submetei­o, humilhai­o, mortificai­o: esse o meio de o tornardes 
dócil  à  vontade  de  Deus  e  o  único  de  alcançardes  a  perfeição.  –  Jorge,  Espírito 
Protetor. (Paris, 1863) 
10 
O último período desse parágrafo – “inevitável parece a luta entre os dois e difícil achar­se o segredo 
de como chegarem a equilíbrio” – não aparece nas novas edições francesas desde a 3ª, mas se acha na 1ª 
edição e, por isso, a repomos no texto, corrigindo um evidente erro de impressão. – A Editora.
183 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XVIII 
MUITOS OS CHAMADOS,
POUCOS OS ESCOLHIDOS
·  PARÁBOLA DO FESTIM DE BODAS
·  A PORTA ESTREITA
·  NEM TODOS OS QUE DIZEM: SENHOR! SENHOR! 
ENTRARÃO NO REINO DOS CÉUS
·  MUITO SE PEDIRÁ ÀQUELE QUE MUITO 
RECEBEU 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS 
§  DAR­SE­Á ÀQUELE QUE TEM 
§  PELAS SUAS OBRAS É QUE SE 
RECONHECE O CRISTÃO 
PARÁBOLA DO FESTIM DE BODAS 
1.  Falando  ainda  por  parábolas,  disse­lhes  Jesus:  “O  reino  dos  céus  se 
assemelha  a  um  rei  que,  querendo  festejar  as  bodas  de  seu  filho, 
despachou  seus  servos  a  chamar  para  as  bodas  os  que  tinham  sido 
convidados; estes, porém, recusaram ir. O rei despachou outros servos com 
ordem  de  dizer  da  sua  parte  aos  convidados:  ‘Preparei  o  meu  jantar; 
mandei matar os meus bois e todos os meus cevados; tudo está pronto; 
vinde às bodas’. Eles, porém, sem se incomodarem com isso, lá se foram, 
um  para  a  sua  casa  de  campo,  outro  para  o  seu  negócio.  Os  outros 
pegaram  dos  servos  e  os mataram, depois  de  lhes  haverem feito muitos 
ultrajes. Sabendo disso, o rei se tomou de cólera e, mandando contra eles 
seus exércitos, exterminou os assassinos e lhes queimou a cidade. Então, 
disse a seus servos: ‘O festim das bodas está inteiramente preparado; mas, 
os  que  para  ele  foram  chamados  não  eram  dignos  dele.  Ide,  pois,  às 
encruzilhadas  e  chamai  para  as  bodas  todos  quantos  encontrardes’.  Os
184 – Allan Kardec 
servos então saíram pelas ruas e trouxeram todos os que iam encontrando, 
bons e maus; a sala das bodas se encheu de pessoas que se puseram à 
mesa. Entrou, em seguida, o rei para ver os que estavam à mesa, e, dando 
com  um  homem  que  não  vestia  a  túnica  nupcial  disse­lhe:  ‘Meu  amigo, 
como  entraste  aqui  sem  a  túnica  nupcial?’  O  homem  guardou  silêncio. 
Então, disse o rei à sua gente: ‘Atai­lhe as mãos e os pés e lançai­o nas 
trevas exteriores: aí é que haverá prantos e ranger de dentes’. Porquanto, 
muitos há chamados, mas poucos escolhidos”. 
(MATEUS, 22:1 a 14) 
2. O incrédulo sorri a esta parábola, que lhe parece de pueril ingenuidade, por não 
compreender que se possa opor tanta dificuldade para assistir a um festim e, ainda 
menos, que convidados levem a resistência a ponto de massacrarem os enviados do 
dono da casa. “As parábolas”, diz ele, o incrédulo, “são, sem dúvida, imagens; mas, 
ainda assim, mister se torna que não ultrapassem os limites do verossímil”. 
Outro  tanto  pode  ser  dito  de  todas  as  alegorias,  das  mais  engenhosas 
fábulas,  se  não  lhes  forem  tirados  os  respectivos  envoltórios,  para  ser  achado  o 
sentido oculto. Jesus compunha as suas com os hábitos mais vulgares da vida e as 
adaptava aos costumes e ao caráter do povo a quem falava. A maioria delas tinha por 
objeto  fazer  penetrar  nas  massas  populares  a  idéia  da  vida  espiritual,  parecendo 
muitas ininteligíveis, quanto ao sentido, apenas por não se colocarem neste ponto de 
vista os que as interpretam. 
Na de que tratamos, Jesus compara o reino dos Céus, onde tudo é alegria e 
ventura,  a  um  festim.  Falando  dos  primeiros  convidados,  alude  aos  hebreus,  que 
foram os primeiros chamados por Deus ao conhecimento da sua Lei. Os enviados do 
rei são os profetas que os vinham exortar a seguir a trilha da verdadeira felicidade; 
suas  palavras,  porém,  quase  não  eram  escutadas;  suas  advertências  eram 
desprezadas;  muitos  foram mesmo  massacrados,  como  os  servos  da  parábola.  Os 
convidados que se escusam, pretextando terem de ir cuidar de seus campos e de seus 
negócios, simbolizam as pessoas mundanas que, absorvidas pelas coisas terrenas, se 
conservam indiferentes às coisas celestes. 
Era crença comum aos judeus de então que a nação deles tinha de alcançar 
supremacia sobre todas as outras. Deus, com efeito, não prometera a Abraão que a 
sua posteridade cobriria toda a Terra? Mas, como sempre, atendo­se à forma, sem 
atentarem ao fundo, eles acreditavam tratar­se de uma dominação efetiva e material. 
Antes da vinda do Cristo, com exceção dos hebreus, todos os povos eram 
idólatras e politeístas. Se alguns homens superiores ao vulgo conceberam a idéia da 
unidade  de  Deus,  essa  idéia  permaneceu  no  estado  de  sistema  pessoal,  em  parte 
nenhuma foi aceita como verdade fundamental, a não ser por alguns iniciados que 
ocultavam seus conhecimentos sob um véu de mistério, impenetrável para as massas 
populares. Os hebreus foram os primeiros a praticar publicamente o monoteísmo; é a 
eles  que  Deus  transmite  a  sua  lei,  primeiramente  por  via  de  Moisés,  depois  por 
intermédio  de  Jesus.  Foi  daquele  pequenino  foco  que  partiu  a  luz  destinada  a 
espargir­se  pelo  mundo  inteiro,  a  triunfar  do  paganismo  e  a  dar  a  Abraão  uma 
posteridade espiritual “tão numerosa quanto as estrelas do firmamento”. Entretanto, 
abandonando  de  todo  a  idolatria,  os  judeus  desprezaram  a  lei  moral,  para  se 
aferrarem ao  mais  fácil: a  prática  do  culto  exterior.  O  mal  chegara  ao  cúmulo; a
185 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
nação, além de escravizada, era esfacelada pelas facções e dividida pelas seitas; a 
incredulidade  atingira  mesmo  o  santuário.  Foi  então  que  apareceu  Jesus,  enviado 
para os chamar à observância da Lei e para lhes rasgar os horizontes novos da vida 
futura. Dos primeiros a ser convidados para o grande banquete da fé universal, eles 
repeliram a palavra do Messias celeste e o imolaram. Perderam assim o fruto que 
teriam colhido da iniciativa que lhes coubera. 
Fora, contudo, injusto acusar­se o povo inteiro de tal estado de coisas. A 
responsabilidade tocava principalmente aos fariseus e saduceus, que sacrificaram a 
nação por efeito do orgulho e do fanatismo de uns e pela incredulidade dos outros. 
São,  pois,  eles,  sobretudo,  que  Jesus  identifica  nos  convidados  que  recusam 
comparecer ao festim das bodas. Depois, acrescenta: “Vendo isso, o Senhor mandou 
convidar  a  todos  os  que  fossem  encontrados  nas  encruzilhadas,  bons  e  maus.” 
Queria  dizer  desse  modo  que  a  palavra  ia  ser  pregada  a  todos  os  outros  povos, 
pagãos e idólatras, e estes, acolhendo­a, seriam admitidos ao festim, em lugar dos 
primeiros convidados. 
Mas não  basta a ninguém  ser  convidado; não  basta  dizer­se  cristão, nem 
sentar­se à mesa para tomar parte no banquete celestial. É preciso, antes de tudo e 
sob condição expressa, estar revestido da túnica nupcial, isto é, ter puro o coração e 
cumprir a lei segundo o espírito. Ora, a lei toda se contém nestas palavras: Fora da 
caridade não há salvação. Entre todos, porém, que ouvem a palavra divina, quão 
poucos são os que a guardam e a aplicam proveitosamente! Quão poucos se tornam 
dignos  de  entrar  no  reino  dos  céus!  Eis  por  que  disse  Jesus:  Chamados  haverá 
muitos; poucos, no entanto, serão os escolhidos. 
A PORTA ESTREITA 
3. “ Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta da perdição e espaçoso 
o caminho que a ela conduz, e muitos são os que por ela entram. Quão 
pequena é a porta da vida! Quão apertado o caminho que a ela conduz! E 
quão poucos a encontram!” 
(MATEUS, 7:13 e 14) 
4. Tendo­lhe alguém feito esta pergunta: Senhor, serão poucos os que se 
salvam? Respondeu­lhes ele: – Esforçai­vos por entrar pela porta estreita, 
pois vos asseguro que muitos procurarão transpô­la e não o poderão. – E 
quando o pai de família houver entrado e fechado a porta, e vós, de fora, 
começardes a bater, dizendo: Senhor, abre­nos; ele vos responderá: não 
sei  donde  sois.  –  Pôr­vos­eis  a  dizer:  Comemos  e  bebemos  na  tua 
presença  e  nos  instruíste  nas  nossas  praças  públicas.  –  Ele  vos 
responderá: Não sei donde sois; afastai­vos de mim, todos vós que praticais 
a iniqüidade. Então, haverá prantos e ranger de dentes, quando virdes que 
Abraão, lsaac, Jacob e todos os profetas estão no reino de Deus e que vós 
outros  sois  dele  expelidos.  –  Virão  muitos  do  Oriente  e  do  Ocidente,  do 
Setentrião e do Meio­Dia, que participarão do festim no reino de Deus. – 
Então, os que forem últimos serão os primeiros e os que forem primeiros 
serão os últimos. 
(LUCAS, 13:23 a 30)
186 – Allan Kardec 
5. Larga é a porta da perdição, porque são numerosas as paixões más e porque o 
maior número  envereda  pelo  caminho do  mal. É  estreita  a  da  salvação,  porque  a 
grandes esforços sobre si mesmo é obrigado o homem que a queira transpor, para 
vencer suas más tendências, coisa a que poucos se resignam. É o complemento da 
máxima: “Muitos são os chamados e poucos os escolhidos.” 
Tal  o  estado  da  Humanidade  terrena,  porque,  sendo  a  Terra  mundo  de 
expiação, nela predomina o mal. Quando se achar transformada, a estrada do bem 
será  a  mais  freqüentada.  Aquelas  palavras  devem,  pois,  entender­se  em  sentido 
relativo  e  não  em  sentido  absoluto.  Se  houvesse  de  ser  esse  o  estado  normal  da 
Humanidade, teria Deus condenado à perdição a imensa maioria das suas criaturas, 
suposição inadmissível, desde que se reconheça que Deus é todo justiça e bondade. 
Mas,  de  que  delitos  esta  Humanidade  se houvera  feito  culpada  para  merecer  tão 
triste sorte, no presente e no futuro, se toda ela se achasse degredada na Terra e se a 
alma não tivesse tido  outras existências? Por que tantos entraves postos diante de 
seus passos? Por que essa porta tão estreita que só a muito poucos é dado transpor, 
se a sorte da alma é determinada para sempre, logo após a morte? Assim é que, com 
a unicidade da existência, o homem está sempre em contradição consigo mesmo e 
com a justiça de Deus. Com a anterioridade da alma e a pluralidade dos mundos, o 
horizonte se alarga; faz­se luz sobre os pontos mais obscuros da fé; o presente e o 
futuro tornam­se solidários com o passado, e só então se pode compreender toda a 
profundeza, toda a verdade e toda a sabedoria das máximas do Cristo. 
NEM TODOS OS QUE DIZEM: SENHOR! SENHOR! 
ENTRARÃO NO REINO DOS CÉUS 
6. “ Nem todos os que me dizem: ‘Senhor! Senhor!’ entrarão no reino dos 
céus; apenas entrará aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos 
céus. Muitos, nesse dia, me dirão: ‘Senhor! Senhor! Não profetizamos em 
teu nome? Não expulsamos em teu nome o demônio? Não fizemos muitos 
milagres em teu nome?’ Eu então lhes direi em altas vozes: ‘Afastai­vos de 
mim, vós que fazeis obras de iniqüidade’”. 
(MATEUS, 7:21 a 23) 
7.  “ Aquele,  pois,  que  ouve  estas  minhas  palavras  e  as  pratica,  será 
comparado a um homem prudente que construiu sobre a rocha a sua casa. 
Quando caiu a chuva, os rios transbordaram, sopraram os ventos sobre a 
casa;  ela  não  ruiu,  por  estar  edificada  na  rocha.  Mas,  aquele  que  ouve 
estas  minhas  palavras  e  não  as  pratica,  se  assemelha  a  um  homem 
insensato que construiu sua casa na areia. Quando a chuva caiu, os rios 
transbordaram,  os  ventos sopraram  e  a  vieram  açoitar,  ela  foi  derribada; 
grande foi a sua ruína”. 
(MATEUS, 7:24 a 27;  LUCAS, 6:46 a 49) 
8. Aquele que violar um destes menores mandamentos e que ensinar os 
homens a violá­los, será considerado como último no reino dos céus; mas, 
será grande no reino dos céus aquele que os cumprir e ensinar. 
(MATEUS, 5:19)
187 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
9. Todos os que reconhecem a missão de Jesus dizem: Senhor! Senhor! – Mas, de 
que serve lhe chamarem Mestre ou Senhor, se não lhe seguem os preceitos? Serão 
cristãos  os  que  o  honram  com  exteriores  atos  de  devoção  e,  ao  mesmo  tempo, 
sacrificam ao orgulho, ao egoísmo, à cupidez e a todas as suas paixões? Serão seus 
discípulos os que passam os dias em oração e não se mostram nem melhores, nem 
mais caridosos, nem mais indulgentes para com seus semelhantes? Não, porquanto, 
do mesmo modo que os fariseus, eles têm a prece nos lábios e não no coração. Pela 
forma poderão impor­se aos homens; não, porém, a Deus. Em vão dirão eles a Jesus: 
“Senhor! não profetizamos, isto é, não ensinamos em teu nome; não expulsamos em 
teu  nome  os  demônios;  não  comemos  e  bebemos  contigo?”  Ele  lhes  responderá: 
“Não  sei  quem  sois;  afastai­vos  de  mim,  vós  que  cometeis  iniqüidades,  vós  que 
desmentis com os atos o que dizeis com os lábios, que caluniais o vosso próximo, 
que espoliais as viúvas e cometeis adultério. Afastai­vos de mim, vós cujo coração 
destila  ódio  e  fel,  que  derramais  o  sangue  dos  vossos  irmãos  em  meu nome, que 
fazeis  corram lágrimas,  em  vez  de  secá­las.  Para  vós,  haverá prantos  e  ranger  de 
dentes, porquanto o reino de Deus é para os que são brandos, humildes e caridosos. 
Não espereis dobrar a justiça do Senhor pela multiplicidade das vossas palavras e 
das vossas genuflexões. O caminho único que vos está aberto, para achardes graça 
perante ele, é o da prática sincera da lei de amor e de caridade.” 
São eternas as palavras de Jesus, porque são a verdade. Constituem não só a 
salvaguarda  da  vida  celeste,  mas também  o  penhor da  paz,  da tranqüilidade  e  da 
estabilidade nas coisas da vida terrestre. Eis por que todas as instituições humanas, 
políticas, sociais e religiosas, que se apoiarem nessas palavras, serão estáveis como a 
casa construída sobre a rocha. Os homens as conservarão, porque se sentirão felizes 
nelas.  As  que,  porém,  forem  uma  violação  daquelas  palavras,  serão  como  a  casa 
edificada na areia: o vento das renovações e o rio do progresso as arrastarão. 
MUITO SE PEDIRÁ ÀQUELE QUE MUITO RECEBEU 
10. “ O  servo  que  souber da  vontade  do  seu  amo  e  que, entretanto,  não 
estiver  pronto  e  não  fizer  o  que  dele  queira  o  amo,  será  rudemente 
castigado. Mas, aquele que não tenha sabido da sua vontade e fizer coisas 
dignas de castigo menos punido será. Muito se pedirá àquele a quem muito 
se  houver  dado  e  maiores  contas  serão  tomadas  àquele  a  quem  mais 
coisas se haja confiado”. 
(LUCAS, 12:47­48) 
11. “ Vim a este mundo para exercer um juízo, a fim de que os que não 
vêem vejam e os que vêem se tornem cegos”. 
Alguns fariseus que estavam com ele, ouvindo essas palavras, lhe 
perguntaram: “Também nós, então, somos cegos?” Respondeu­lhes Jesus: 
“Se fôsseis cegos, não teríeis pecados; mas, agora, dizeis que vedes e é 
por isso que em vós permanece o vosso pecado”. 
(JOÃO, 9:39 a 41)
188 – Allan Kardec 
12. Principalmente ao ensino dos Espíritos é que estas máximas se aplicam. Quem 
quer que conheça os preceitos do Cristo e não os pratique, é certamente culpado; 
contudo, além de o Evangelho, que os contém, achar­se espalhado somente no seio 
das seitas cristãs, mesmo dentro destas quantos há que não o lêem, e, entre os que o 
lêem, quantos os que o não compreendem! Resulta daí que as próprias palavras de 
Jesus são perdidas para a maioria dos homens. 
O ensino dos Espíritos, reproduzindo essas máximas sob diferentes formas, 
desenvolvendo­as  e  comentando­as,  para  pô­las  ao  alcance  de  todos,  tem  isto  de 
particular:  não  é  circunscrito;  todos,  letrados  ou  iletrados,  crentes  ou  incrédulos, 
cristãos  ou  não,  o  podem  receber,  pois  que  os  Espíritos  se  comunicam  por  toda 
parte. Nenhum dos que o recebam, diretamente ou por intermédio de outrem, pode 
pretextar ignorância; não se pode desculpar nem com a falta de instrução, nem com a 
obscuridade  do  sentido  alegórico.  Aquele,  portanto,  que  não  aproveita  essas 
máximas para melhorar­se, que as admira como coisas interessantes e curiosas, sem 
que lhe toquem o coração, que não se torna nem menos vão, nem menos orgulhoso, 
nem menos egoísta, nem menos apegado aos bens materiais, nem melhor para seu 
próximo, mais culpado é, porque mais meios tem de conhecer a verdade. 
Os médiuns que obtêm boas comunicações ainda mais censuráveis são, se 
persistem no mal, porque muitas vezes escrevem sua própria condenação e porque, 
se não os cegasse o orgulho, reconheceriam que a eles é que se dirigem os Espíritos. 
Mas, em vez de tomarem para si as lições que escrevem, ou que lêem escritas por 
outros, têm por única preocupação aplicá­las aos demais, confirmando assim estas 
palavras  de Jesus:  “Vedes  um  argueiro  no  olho  do  vosso  próximo  e  não  vedes  a 
trave que está no vosso.” (Cap. X, nº 9) 
Por  esta  sentença:  “Se  fôsseis  cegos,  não  teríeis  pecados”,  quis  Jesus 
significar que a culpabilidade está na razão das luzes que a criatura possua. Ora, os 
fariseus, que tinham a pretensão de ser, e eram, com efeito, os mais esclarecidos da 
sua nação, mais culposos se mostravam aos olhos de Deus, do que o povo ignorante. 
O mesmo se dá hoje. 
Aos  espíritas,  pois,  muito  será  pedido,  porque  muito  hão  recebido;  mas, 
também, aos que houverem aproveitado, muito será dado. 
O primeiro cuidado de todo espírita sincero deve ser o de procurar saber se, 
nos conselhos que os Espíritos dão, alguma coisa não há que lhe diga respeito. 
O Espiritismo vem multiplicar o número dos chamados. Pela fé que faculta, 
multiplicará também o número dos escolhidos. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
DAR­SE­Á ÀQUELE QUE TEM 
13. Aproximando­se dele, seus discípulos lhe disseram: “Por que lhes falas 
por parábolas?” Respondendo, disse­lhes ele: “É porque, a vós outros, vos 
foi dado conhecer os mistérios do reino dos céus, ao passo que a eles isso 
não foi dado. Porque, àquele que já tem, mais se lhe dará e ele ficará na 
abundância;  àquele,  entretanto,  que  não  tem,  mesmo  o  que  tem  se  lhe 
tirará. Por isso é que lhes falo por parábolas: porque, vendo, nada vêem e, 
ouvindo, nada entendem, nem compreendem. Neles se cumpre a profecia
189 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
de Isaías, quando diz: ‘Ouvireis com os vossos ouvidos e nada entendereis; 
olhareis com os vossos olhos e nada vereis’”. 
(MATEUS, 13:10 a 14) 
14.  “Tende  muito  cuidado  com  o  que  ouvis,  porquanto  usarão  para 
convosco da mesma medida de que vos houverdes servido para medir os 
outros, e ainda se vos acrescentará; pois, ao que já tem, dar­se­á, e, ao que 
não tem, até o que tem se lhe tirará”. 
(MARCOS, 4:24­25) 
15.  “Dá­se  ao  que  já  tem  e  tira­se  ao  que  não  tem”.  Meditai  esses  grandes 
ensinamentos que se vos hão por vezes afigurado paradoxais. Aquele que recebeu é 
o que possui o sentido da palavra divina; recebeu unicamente porque tentou tornar­ 
se digno dela e porque o Senhor, em seu amor misericordioso, anima os esforços que 
tendem  para  o  bem.  Aturados,  perseverantes,  esses  esforços  atraem  as  graças  do 
Senhor;  são  um  ímã  que  chama a  si  o  que  é  progressivamente melhor,  as  graças 
copiosas que vos fazem fortes para galgar a montanha santa, em cujo cume está o 
repouso após o labor. 
“Tira­se  ao  que não  tem,  ou  tem  pouco”.  Tomai  isso como  uma antítese 
figurada. Deus não retira das suas criaturas o bem que se haja dignado de fazer­lhes. 
Homens cegos e surdos, abri as vossas inteligências e os vossos corações; vede pelo 
vosso espírito; ouvi pela vossa alma e não interpreteis de modo tão grosseiramente 
injusto  as  palavras  daquele  que  fez  resplandecesse  aos  vossos  olhos  a  justiça  do 
Senhor. Não é Deus quem retira daquele que pouco recebera: é o próprio Espírito 
que,  por  pródigo  e  descuidado,  não  sabe  conservar  o  que  tem  e  aumentar, 
fecundando­o, o óbolo que lhe caiu no coração. 
Aquele que não cultiva o campo que o trabalho de seu pai lhe granjeou, e 
que lhe coube em herança, o vê cobrir­se de ervas parasitas. É seu pai quem lhe tira 
as colheitas que ele não quis preparar? Se, à falta de cuidado, deixou fenecessem as 
sementes destinadas a produzir nesse campo, é a seu pai que lhe cabe acusar  por 
nada produzirem elas? Não e não. Em vez de acusar aquele que tudo lhe preparara, 
de criticar as doações que recebera, queixe­se do verdadeiro autor de suas misérias e, 
arrependido e operoso, meta, corajoso, mãos à obra; arroteie o solo ingrato com o 
esforço  de  sua  vontade;  lavre­o  fundo  com  auxílio  do  arrependimento  e  da 
esperança;  lance nele,  confiante, a  semente  que haja  separado,  por  boa,  dentre  as 
más;  regue­o  com  o  seu  amor  e  a  sua  caridade,  e  Deus,  o  Deus  de  amor  e  de 
caridade,  dará  àquele  que  já  recebera.  Verá  ele,  então,  coroados  de  êxito  os  seus 
esforços  e  um  grão  produzir  cem  e  outro  mil.  Ânimo,  trabalhadores!  Tomai  dos 
vossos  arados  e  das  vossas  charruas;  lavrai  os  vossos  corações;  arrancai  deles  a 
cizânia; semeai a boa semente que o Senhor vos confia e o orvalho do amor lhe fará 
produzir frutos de caridade. – Um Espírito amigo. (Bordéus, 1862) 
PELAS SUAS OBRAS É QUE SE RECONHECE O CRISTÃO 
16. “Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor! Entrarão no reino dos céus, mas 
somente aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está nos céus.”
190 – Allan Kardec 
Escutai essa palavra do Mestre, todos vós que repelis a Doutrina Espírita 
como obra do demônio. Abri os ouvidos, que é chegado o momento de ouvir. 
Será bastante trazer a libré do Senhor, para ser­se fiel servidor seu? Bastará 
dizer:  “Sou  cristão”,  para  que  alguém  seja  um  seguidor  do  Cristo?  Procurai  os 
verdadeiros cristãos e os reconhecereis pelas suas obras. “Uma árvore boa não pode 
dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar frutos bons.” – “Toda árvore que não 
dá  bons  frutos  é  cortada  e  lançada  ao  fogo.”  São  do  Mestre  essas  palavras. 
Discípulos  do  Cristo,  compreendei­as  bem!  Que  frutos  deve  dar  a  árvore  do 
Cristianismo, árvore possante, cujos ramos frondosos cobrem com sua sombra uma 
parte do mundo, mas que ainda não abrigam todos os que se hão de grupar em torno 
dela? Os da árvore da vida são frutos de vida, de esperança e de fé. O Cristianismo, 
qual o fizeram há muitos séculos, continua a pregar essas virtudes divinas; esforça­ 
se por espalhar seus frutos, mas quão poucos  os  colhem! A árvore é  boa sempre, 
porém maus são os jardineiros. Entenderam de moldá­la pelas suas idéias; de talhá­ 
la de acordo com as suas necessidades; cortaram­na, diminuíram­na, mutilaram­na; 
tornados estéreis, seus ramos não dão maus frutos, porque nenhuns mais produzem. 
O  viajor  sedento,  que  se  detém  sob  seus  galhos  à  procura  do  fruto  da  esperança, 
capaz  de  lhe  restabelecer  a  força  e  a  coragem,  somente  vê  uma  ramaria  árida, 
prenunciando tempestade. Em vão pede ele o fruto de vida à árvore da vida; caem­ 
lhe secas as folhas; tanto as remexeu a mão do homem, que as crestou. 
Abri,  pois,  os  ouvidos  e  os  corações,  meus  bem­amados!  Cultivai  essa 
árvore da vida, cujos frutos dão a vida eterna. Aquele que a plantou vos concita a 
tratá­la  com  amor,  que  ainda  a  vereis  dar  com  abundância  seus  frutos  divinos. 
Conservai­a tal como o Cristo vo­la entregou: não a mutileis; ela quer estender a sua 
sombra imensa sobre o Universo: não lhe corteis os galhos. Seus frutos benfazejos 
caem  abundantes  para  alimentar  o  viajor  faminto  que  deseja  chegar  ao  termo  da 
jornada; não amontoeis esses frutos, para os armazenar e deixar apodrecer, a fim de 
que a ninguém sirvam. “Muitos são os chamados e poucos os escolhidos.” É que há 
açambarcadores do pão da vida, como os há do pão material. Não sejais do número 
deles; a árvore que dá bons frutos tem que os dar para todos. Ide, pois, procurar os 
que estão famintos; levai­os para debaixo da fronde da árvore e partilhai com eles do 
abrigo  que  ela  oferece.  –  “Não  se  colhem  uvas  nos  espinheiros.”  Meus  irmãos, 
afastai­vos dos que vos chamam para vos apresentar as sarças do caminho, segui os 
que vos conduzem à sombra da árvore da vida. 
O  divino  Salvador,  o  justo  por  excelência,  disse,  e  suas  palavras  não 
passarão: “Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus; 
entrarão  somente  os  que  fazem  a  vontade  de  meu  Pai  que  está nos  céus.”  Que  o 
Senhor de bênçãos vos abençoe; que o Deus de luz vos ilumine; que a árvore da vida 
vos ofereça abundantemente seus frutos! Crede e orai. – Simeão. (Bordéus, 1863)
191 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XIX 
A FÉ TRANSPORTA
MONTANHAS
·  PODER DA FÉ
·  A FÉ RELIGIOSA. CONDIÇÃO DA FÉ INABALÁVEL
·  PARÁBOLA DA FIGUEIRA QUE SECOU 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS 
§  A FÉ: MÃE DA ESPERANÇA E DA CARIDADE 
§  A FÉ HUMANA E A DIVINA 
PODER DA FÉ 
1. Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e, 
lançando­se  de  joelhos  a seus  pés,  disse:  “Senhor,  tem piedade  do meu 
filho, que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas 
vezes na água. Apresentei­o aos teus discípulos, mas eles não o puderam 
curar”.  Jesus  respondeu,  dizendo:  “Ó  raça  incrédula  e  depravada,  até 
quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? Trazei­me aqui esse 
menino”. E tendo Jesus ameaçado o demônio, este saiu do menino, que no 
mesmo instante ficou são. Os discípulos vieram então ter com Jesus em 
particular e lhe perguntaram: “Por que não pudemos nós outros expulsar 
esse demônio?” Respondeu­lhes Jesus: “Por causa da vossa incredulidade. 
Pois  em verdade  vos  digo,  se  tivésseis  a  fé  do tamanho de  um  grão  de 
mostarda,  diríeis  a  esta  montanha:  Transporta­te  daí  para  ali  e  ela  se 
transportaria, e nada vos seria impossível”. 
(MATEUS, 17:14 a 20) 
2.  No  sentido  próprio,  é  certo  que  a  confiança  nas  suas  próprias  forças  torna  o 
homem capaz de executar coisas materiais, que não consegue fazer quem duvida de 
si. Aqui, porém, unicamente no sentido moral se devem entender essas palavras. As 
montanhas que a fé desloca são as dificuldades, as resistências, a má vontade, em
192 – Allan Kardec 
suma, com que se depara da parte dos homens, ainda quando se trate das melhores 
coisas.  Os  preconceitos  da  rotina,  o  interesse  material,  o  egoísmo,  a  cegueira  do 
fanatismo  e  as  paixões  orgulhosas  são  outras  tantas  montanhas  que  barram  o 
caminho  a  quem  trabalha  pelo  progresso  da  Humanidade.  A  fé  robusta  dá  a 
perseverança, a energia e os recursos que fazem se vençam os obstáculos, assim nas 
pequenas coisas, que nas grandes. Da fé vacilante resultam a incerteza e a hesitação 
de que se aproveitam os adversários que se têm de combater; essa fé não procura os 
meios de vencer, porque não acredita que possa vencer. 
3. Noutra acepção, entende­se como fé a confiança que se tem na realização de uma 
coisa,  a  certeza  de  atingir  determinado  fim.  Ela  dá  uma  espécie  de  lucidez  que 
permite se veja, em pensamento, a meta que se quer alcançar e os meios de chegar 
lá,  de  sorte  que  aquele  que  a  possui  caminha,  por  assim  dizer,  com  absoluta 
segurança. Num como noutro caso, pode ela dar lugar a que se executem grandes 
coisas. 
A  fé  sincera  e  verdadeira  é  sempre  calma;  faculta  a  paciência  que  sabe 
esperar,  porque,  tendo  seu  ponto  de  apoio  na  inteligência  e  na  compreensão  das 
coisas, tem a certeza de chegar ao objetivo visado. A fé vacilante sente a sua própria 
fraqueza;  quando  a  estimula  o  interesse,  torna­se  furibunda  e  julga  suprir,  com  a 
violência, a força que lhe falece. A calma na luta é sempre um sinal de força e de 
confiança; a violência, ao contrário, denota fraqueza e dúvida de si mesmo. 
4.  Cumpre  não  confundir  a  fé  com  a  presunção.  A  verdadeira  fé  se  conjuga  à 
humildade;  aquele  que  a  possui  deposita  mais  confiança  em  Deus  do  que  em  si 
próprio, por saber que, simples instrumento da vontade divina, nada pode sem Deus. 
Por essa razão é que os bons Espíritos lhe vêm em auxílio. A presunção é menos fé 
do  que  orgulho,  e  o  orgulho  é  sempre  castigado,  cedo  ou  tarde,  pela  decepção  e 
pelos malogros que lhe são infligidos. 
5. O poder da fé se demonstra, de modo direto e especial, na ação magnética; por seu 
intermédio,  o  homem  atua  sobre  o  fluido,  agente  universal,  modifica­lhe  as 
qualidades  e  lhe  dá  uma  impulsão  por  assim  dizer  irresistível.  Daí  decorre  que 
aquele que a um grande poder fluídico normal junta ardente fé, pode, só pela força 
da sua vontade dirigida para o  bem, operar esses  singulares fenômenos de  cura e 
outros, tidos antigamente por prodígios, mas que não passam de efeito de uma lei 
natural. Tal o motivo por que Jesus disse a seus apóstolos: se não o  curastes, foi 
porque não tínheis fé. 
A FÉ RELIGIOSA. 
CONDIÇÃO DA FÉ INABALÁVEL 
6.  Do  ponto  de vista religioso,  a  fé  consiste na  crença  em  dogmas  especiais,  que 
constituem  as  diferentes  religiões.  Todas  elas  têm  seus  artigos  de  fé.  Sob  esse 
aspecto, pode a fé ser raciocinada ou cega. Nada examinando, a fé cega aceita, sem 
verificação,  assim  o  verdadeiro  como  o  falso,  e  a  cada  passo  se  choca  com  a
193 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. Em assentando no erro, 
cedo ou tarde desmorona; somente a fé que se baseia na verdade garante o futuro, 
porque nada tem a temer do progresso das luzes, dado que o que é verdadeiro na 
obscuridade,  também  o  é  à  luz  meridiana.  Cada  religião  pretende  ter  a  posse 
exclusiva  da  verdade;  preconizar  alguém  a  fé  cega  sobre  um  ponto  de  crença é 
confessar­se impotente para demonstrar que está com a razão. 
7. Diz­se vulgarmente que a fé não se prescreve, donde resulta alegar muita gente 
que não lhe cabe a culpa de não ter fé. Sem dúvida, a fé não se prescreve, nem, o que 
ainda é mais certo, se impõe. Não; ela se adquire e ninguém há que esteja impedido 
de  possuí­la,  mesmo  entre  os  mais  refratários.  Falamos  das  verdades  espirituais 
básicas e não de tal ou qual crença particular. Não é à fé que compete procurá­los; a 
eles é que cumpre ir­lhe ao encontro e, se a buscarem sinceramente, não deixarão de 
achá­la. Tende, pois, como certo que os que dizem: “Nada de melhor desejamos do 
que crer, mas não o podemos”, apenas de lábios o dizem e não do íntimo, porquanto, 
ao dizerem isso, tapam os ouvidos. As provas, no entanto, chovem­lhes ao derredor; 
por que fogem de observá­las? Da parte de uns, há descaso; da de outros, o temor de 
serem forçados a mudar de hábitos; da parte da maioria, há o orgulho, negando­se a 
reconhecer a existência de uma força superior, porque teria de curvar­se diante dela. 
Em certas pessoas, a fé parece de algum modo inata; uma centelha basta 
para  desenvolvê­la.  Essa  facilidade  de  assimilar  as  verdades  espirituais  é  sinal 
evidente  de  anterior  progresso.  Em  outras  pessoas,  ao  contrário,  elas  dificilmente 
penetram,  sinal  não  menos  evidente  de  naturezas  retardatárias.  As  primeiras  já 
creram e compreenderam; trazem, ao renascerem, a intuição do que souberam: estão 
com a educação feita; as segundas tudo têm de aprender: estão com a educação por 
fazer. Ela, entretanto, se fará e, se não ficar concluída nesta existência, ficará em 
outra. 
A  resistência  do  incrédulo,  devemos  convir, muitas  vezes  provém  menos 
dele do que da maneira por que lhe apresentam as coisas. A  fé necessita de uma 
base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não 
basta ver;  é  preciso,  sobretudo, compreender. A  fé  cega  já não  é  deste  século  11 
, 
tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz hoje o maior número 
dos incrédulos, porque ela pretende impor­se, exigindo a abdicação de uma das mais 
preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre­arbítrio. É principalmente 
contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer 
que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa no espírito alguma coisa de 
vago, que dá nascimento à dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na 
lógica,  nenhuma  obscuridade  deixa.  A  criatura  então  crê,  porque  tem  certeza,  e 
11 
Kardec escreveu essas palavras no século XIX. Hoje, o espírito humano tornou­se ainda mais exigente: 
a fé cega está abandonada; reina descrença nas Igrejas que a impunham. As massas humanas vivem sem 
ideal, sem esperança em outra vida e tentam transformar o mundo pela violência. As lutas econômicas 
engendraram as mais exóticas doutrinas de ação e reação. Duas guerras mundiais assolaram o planeta, 
numa  ânsia  furiosa  de  predomínio  econômico.  Toda  a  esperança  da  Humanidade  hoje  se  apóia  no 
Espiritismo, na restauração do Cristianismo, baseada em fatos que demonstram os princípios básicos da 
Doutrina cristã: eternidade da  vida, responsabilidade ilimitada de pensamentos, palavras  e atos. Sem a 
Terceira  Revelação  o  mundo  estaria  irremediavelmente  perdido  pelo  choque  das  mais  desencontradas 
ideologias materialistas e violentistas. – A Editora da FEB, em 1948.
194 – Allan Kardec 
ninguém  tem  certeza  senão  porque  compreendeu.  Eis  por  que  não  se  dobra.  Fé 
inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da 
Humanidade. 
A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade, 
sempre que não encontra oposição sistemática e interessada. 
PARÁBOLA DA FIGUEIRA QUE SECOU 
8. Quando saíam de Betânia, ele teve fome; e, vendo ao longe uma figueira, 
para ela encaminhou­se, a ver se acharia alguma coisa; tendo­se, porém, 
aproximado,  só  achou  folhas,  visto  não ser  tempo  de  figos.  Então,  disse 
Jesus  à figueira: “Que  ninguém  coma  de  ti fruto  algum”. Isto o  que seus 
discípulos ouviram. 
No dia seguinte, ao passarem pela figueira, viram que secara até a 
raiz. Pedro, lembrando­se do que dissera Jesus, disse: “Mestre, olha como 
secou  a  figueira  que  tu  amaldiçoaste”.  Jesus,  tomando  a  palavra,  lhes 
disse: “Tende fé em Deus. Digo­vos, em verdade, que aquele que disser a 
esta  montanha:  ‘Tira­te  daí  e  lança­te  ao  mar’,  mas  sem  hesitar  no  seu 
coração, crente, ao contrário, firmemente, de que tudo o que houver dito 
acontecerá, verá que, com efeito, acontece”. 
(MARCOS, 11:12 a 14 e 20 a 23) 
9. A figueira que secou é o símbolo dos que apenas aparentam propensão para o 
bem, mas que, em realidade, nada de bom produzem; dos oradores que mais brilho 
têm do que solidez, cujas palavras trazem superficial verniz, de sorte que agradam 
aos ouvidos, sem que, entretanto, revelem, quando perscrutadas, algo de substancial 
para os corações. É de perguntar­se que proveito tiraram delas os que as escutaram. 
Simboliza também todos aqueles que, tendo meios de ser úteis, não o são; 
todas as utopias, todos os sistemas ocos, todas as doutrinas carentes de base sólida. 
O que as mais das vezes falta é a verdadeira fé, a fé produtiva, a fé que abala as 
fibras  do  coração,  a  fé,  numa  palavra,  que  transporta  montanhas.  São  árvores 
cobertas  de  folhas,  porém,  baldas  de  frutos.  Por  isso  é  que  Jesus  as  condena  à 
esterilidade, porquanto dia virá em que se acharão secas até à raiz. Quer dizer que 
todos  os  sistemas,  todas  as  doutrinas  que  nenhum  bem  para  a  Humanidade 
houverem produzido, cairão reduzidas a nada; que todos os homens deliberadamente 
inúteis, por não terem posto em ação os recursos que traziam consigo, serão tratados 
como a figueira que secou. 
10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; suprem, nestes últimos, a falta de 
órgãos materiais pelos quais transmitam suas instruções. Daí vem o serem dotados 
de  faculdades  para  esse  efeito.  Nos  tempos  atuais,  de renovação  social,  cabe­lhes 
uma missão especialíssima; são árvores destinadas a fornecer alimento espiritual a 
seus irmãos; multiplicam­se em número, para que abunde o alimento; há­os por toda 
a parte, em todos  os países, em todas as classes da sociedade, entre os ricos e os 
pobres, entre os grandes e os pequenos, a fim de que em nenhum ponto faltem e a 
fim  de  ficar  demonstrado  aos  homens  que todos  são  chamados.  Se,  porém,  eles
195 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
desviam do objetivo providencial a preciosa faculdade que lhes foi concedida, se a 
empregam  em  coisas  fúteis  ou  prejudiciais,  se  a  põem  a  serviço  dos  interesses 
mundanos, se em vez de frutos sazonados dão maus frutos, se se recusam a utilizá­la 
em  benefício  dos  outros,  se  nenhum  proveito  tiram  dela  para  si  mesmos, 
melhorando­se, são quais a figueira estéril. Deus lhes retirará um dom que se tornou 
inútil  neles:  a  semente  que  não  sabem  fazer  que  frutifique,  e  consentirá  que  se 
tornem presas dos Espíritos maus. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
A FÉ: MÃE DA ESPERANÇA E DA CARIDADE 
11. Para ser proveitosa, a fé tem de ser ativa; não deve entorpecer­se. Mãe de todas 
as  virtudes  que  conduzem  a  Deus,  cumpre­lhe  velar  atentamente  pelo 
desenvolvimento dos filhos que gerou. 
A  esperança  e  a  caridade  são  corolários  da  fé  e  formam  com  esta  uma 
trindade inseparável. Não é a fé que faculta a esperança na realização das promessas 
do Senhor? Se não tiverdes fé, que esperareis? Não é a fé que dá o amor? Se não 
tendes fé, qual será o vosso reconhecimento e, portanto, o vosso amor? 
Inspiração divina, a fé desperta todos os instintos nobres que encaminham o 
homem para o bem. É a base da regeneração. Preciso é, pois, que essa base seja forte 
e  durável,  porquanto,  se  a  mais  ligeira  dúvida  a  abalar,  que  será  do  edifício  que 
sobre  ela  construirdes?  Levantai,  conseguintemente,  esse  edifício  sobre  alicerces 
inamovíveis.  Seja  mais  forte  a  vossa  fé  do  que  os  sofismas  e  as  zombarias  dos 
incrédulos, visto que a fé que não afronta o ridículo dos homens não é fé verdadeira. 
A  fé  sincera  é  empolgante  e  contagiosa;  comunica­se  aos  que  não  na 
tinham, ou, mesmo, não desejariam tê­la. Encontra palavras persuasivas que vão à 
alma,  ao  passo  que  a  fé  aparente  usa  de  palavras  sonoras  que  deixam  frio  e 
indiferente quem as escuta. Pregai pelo exemplo da vossa fé, para a incutirdes nos 
homens.  Pregai  pelo  exemplo  das  vossas  obras  para  lhes  demonstrardes  o 
merecimento  da  fé.  Pregai  pela  vossa  esperança  firme,  para  lhes  dardes  a  ver  a 
confiança  que  fortifica  e  põe  a  criatura  em  condições  de  enfrentar  todas  as 
vicissitudes da vida. Tende, pois, a fé, com o que ela contém de belo e de bom, com 
a sua pureza, com a sua racionalidade. Não admitais a fé sem comprovação, cega 
filha  da  cegueira.  Amai  a  Deus,  mas  sabendo  por  que  o  amais;  crede  nas  suas 
promessas, mas sabendo por que acreditais nelas; segui os nossos conselhos, mas 
compenetrados  do  fim  que  vos  apontamos  e  dos  meios  que  vos  trazemos  para  o 
atingirdes. Crede e esperai sem desfalecimento: os milagres são obras da fé. – José, 
Espírito protetor. (Bordéus, 1862) 
A FÉ HUMANA E A DIVINA 
12. No homem, a fé é o sentimento inato de seus destinos futuros; é a consciência 
que  ele  tem  das  faculdades  imensas  depositadas  em  gérmen  no  seu  íntimo,  a
196 – Allan Kardec 
princípio em estado latente, e que lhe cumpre fazer que desabrochem e cresçam pela 
ação da sua vontade. 
Até  ao  presente,  a  fé  não  foi  compreendida  senão  pelo  lado  religioso, 
porque  o  Cristo  a  exalçou  como  poderosa  alavanca  e  porque  o  têm  considerado 
apenas  como  chefe  de  uma  religião.  Entretanto,  o  Cristo,  que  operou  milagres 
materiais, mostrou, por esses milagres mesmos, o que pode o homem, quando tem 
fé, isto é, a vontade de querer e a certeza de que essa vontade pode obter satisfação. 
Também  os  apóstolos  não  operaram milagres,  seguindo­lhe  o  exemplo?  Ora,  que 
eram  esses  milagres,  senão  efeitos  naturais,  cujas  causas  os  homens  de  então 
desconheciam, mas que, hoje,  em  grande  parte  se  explicam  e  que  pelo  estudo  do 
Espiritismo e do Magnetismo se tornarão completamente compreensíveis? 
A  fé  é  humana  ou  divina,  conforme  o  homem  aplica  suas  faculdades  à 
satisfação das necessidades terrenas, ou das suas aspirações celestiais e futuras. O 
homem  de  gênio,  que  se  lança  à  realização  de  algum  grande  empreendimento, 
triunfa, se tem  fé, porque sente em si que pode  e há de chegar ao  fim colimado, 
certeza que lhe faculta imensa força. O homem de bem que, crente em seu futuro 
celeste, deseja encher de belas e nobres ações a sua existência, haure na sua fé, na 
certeza da felicidade que o espera, a força necessária, e ainda aí se operam milagres 
de  caridade,  de  devotamento  e  de  abnegação.  Enfim,  com  a  fé,  não  há  maus 
pendores que se não chegue a vencer. 
O Magnetismo é uma das maiores provas do poder da fé posta em ação. É 
pela fé que ele cura e produz esses fenômenos singulares, qualificados outrora de 
milagres. 
Repito: a fé é humana e divina. Se todos os encarnados se achassem bem 
persuadidos da força que em si trazem, e se quisessem pôr a vontade a serviço dessa 
força, seriam capazes de realizar o a que, até hoje, eles chamaram prodígios e que, 
no  entanto,  não  passa  de  um  desenvolvimento  das  faculdades  humanas.  –  Um 
Espírito Protetor. (Paris, 1863)
197 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XX 
OS TRABALHADORES
DA ÚLTIMA HORA 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS 
§  OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS 
§  MISSÃO DOS ESPÍRITAS 
§  OS OBREIROS DO SENHOR 
1.  “O  reino  dos  céus  é  semelhante  a  um  pai  de  família  que  saiu  de 
madrugada,  a  fim  de  assalariar  trabalhadores  para  a  sua  vinha.  Tendo 
convencionado com os trabalhadores que pagaria um denário a cada um 
por dia, mandou­os para a vinha. Saiu de novo à terceira hora do dia e, 
vendo outros que se conservavam na praça sem fazer coisa alguma. disse­ 
lhes: ‘Ide também vós outros para a minha vinha e vos pagarei o que for 
razoável’. Eles foram. Saiu novamente à hora sexta e à hora nona do dia e 
fez  o  mesmo.  Saindo  mais  uma  vez  à  hora  undécima,  encontrou  ainda 
outros que estavam desocupados, aos quais disse: ‘Por que permaneceis aí 
o dia inteiro sem trabalhar?’ Disseram eles: ‘É que ninguém nos assalariou’. 
Ele então lhes disse: ‘Ide vós também para a minha vinha’.” 
“Ao cair da tarde disse o dono da vinha àquele que cuidava dos 
seus  negócios:  ‘Chama  os  trabalhadores  e  paga­lhes,  começando  pelos 
últimos  e  indo  até  aos  primeiros’.  Aproximando­se  então  os  que  só  à 
undécima hora haviam chegado, receberam um denário cada um. Vindo a 
seu turno os que tinham sido encontrados em primeiro lugar, julgaram que 
iam  receber  mais;  porém,  receberam  apenas  um  denário  cada  um. 
Recebendo­o,  queixaram­se  ao  pai  de  família,  dizendo:  ‘Estes  últimos 
trabalharam  apenas  uma  hora  e  lhes  dás  tanto  quanto  a  nós  que 
suportamos o peso do dia e do calor’. Mas, respondendo, disse o dono da 
vinha  a  um  deles:  ‘Meu  amigo,  não  te  causo  dano  algum;  não 
convencionaste comigo receber um denário pelo teu dia? Toma o que te
198 – Allan Kardec 
pertence e vai­te; apraz­me a mim dar a este último tanto quanto a ti. – Não 
me é então lícito fazer o que quero? Tens mau olho, porque sou bom?’” 
“Assim,  os  últimos  serão  os  primeiros  e  os  primeiros  serão  os 
últimos, porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos”. 
(MATEUS, 20:1 a 16) 
(Ver também: “Parábola do festim das bodas”, cap. XVIII, nº 1) 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS 
2.  O  obreiro  da  última  hora  tem  direito  ao  salário,  mas  é  preciso  que  a  sua  boa 
vontade o haja conservado à disposição daquele que o tinha de empregar e que o seu 
retardamento  não  seja  fruto  da  preguiça  ou  da  má  vontade.  Tem  ele  direito  ao 
salário,  porque  desde  a  alvorada  esperava  com  impaciência  aquele  que  por  fim  o 
chamaria para o trabalho. Laborioso, apenas lhe faltava o labor. 
Se,  porém,  se  houvesse  negado  ao  trabalho  a  qualquer  hora  do  dia;  se 
houvesse dito: “tenhamos paciência, o repouso me é agradável; quando soar a última 
hora é que será tempo de pensar no salário do dia; que necessidade tenho de me 
incomodar  por  um  patrão  a  quem  não  conheço  e  não  estimo!  quanto  mais  tarde, 
melhor”;  esse  tal,  meus  amigos,  não  teria  tido  o  salário  do  obreiro,  mas  o  da 
preguiça. 
Que dizer, então, daquele que, em vez de apenas se conservar inativo, haja 
empregado as horas destinadas ao labor do dia em praticar atos culposos; que haja 
blasfemado de Deus, derramado o sangue de seus irmãos, lançado a perturbação nas 
famílias, arruinado os que nele confiaram, abusado da inocência, que, enfim, se haja 
cevado em todas as ignomínias da Humanidade? Que será desse? Bastar­lhe­á dizer 
à última hora: Senhor, empreguei mal o meu tempo; toma­me até ao fim do dia, para 
que eu execute um pouco, embora bem pouco, da minha tarefa, e dá­me o salário do 
trabalhador de boa vontade? Não, não; o Senhor lhe dirá: “Não tenho presentemente 
trabalho para te dar; malbarataste o teu tempo; esqueceste o que havias aprendido; já 
não sabes trabalhar na minha vinha. Recomeça, portanto, a aprender e, quando te 
achares mais bem­disposto, vem ter comigo e eu te franquearei o meu vasto campo, 
onde poderás trabalhar a qualquer hora do dia. 
Bons espíritas, meus bem­amados, sois todos obreiros da última hora. Bem 
orgulhoso seria aquele que dissesse: Comecei o trabalho ao alvorecer do dia e só o 
terminarei  ao  anoitecer.  Todos  viestes  quando  fostes  chamados,  um  pouco  mais 
cedo,  um  pouco  mais  tarde,  para  a  encarnação  cujos  grilhões  arrastais;  mas  há 
quantos  séculos  e  séculos  o  Senhor  vos  chamava  para  a  sua  vinha,  sem  que 
quisésseis penetrar nela! Eis­vos no momento de embolsar o salário; empregai bem a 
hora que vos resta e não esqueçais nunca que a vossa existência, por longa que vos 
pareça,  mais  não  é  do  que  um  instante  fugitivo  na  imensidade  dos  tempos  que 
formam para vós a eternidade. – Constantino, Espírito Protetor. (Bordéus, 1863) 
3.  Jesus  gostava  da  simplicidade  dos  símbolos  e,  na  sua  linguagem  máscula,  os 
obreiros  que  chegaram  na  primeira  hora  são  os  profetas,  Moisés  e  todos  os
199 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
iniciadores  que  marcaram  as  etapas  do  progresso,  as  quais  continuaram  a  ser 
assinaladas através dos séculos pelos apóstolos, pelos mártires, pelos Pais da Igreja, 
pelos  sábios,  pelos  filósofos  e,  finalmente,  pelos  espíritas.  Estes,  que  por  último 
vieram,  foram  anunciados  e  preditos  desde  a  aurora  do  advento  do  Messias  e 
receberão a mesma recompensa. Que digo? recompensa maior. Últimos chegados, 
eles aproveitam dos labores intelectuais dos seus predecessores, porque o homem 
tem  de  herdar  do  homem  e  porque  coletivos  são  os  trabalhos  humanos:  Deus 
abençoa  a  solidariedade.  Aliás,  muitos  dentre  aqueles  revivem  hoje,  ou  reviverão 
amanhã, para terminarem a obra que começaram outrora. Mais de um patriarca, mais 
de um profeta, mais de um discípulo do Cristo, mais de um propagador da fé cristã 
se  encontram  no  meio  deles,  porém,  mais  esclarecidos,  mais  adiantados, 
trabalhando, não já na base e sim na cumeeira do edifício. Receberão, pois, salário 
proporcionado ao valor da obra. 
O  belo  dogma  da  reencarnação  eterniza  e  precisa  a  filiação  espiritual. 
Chamado  a  prestar  contas  do  seu  mandato  terreno,  o  Espírito  se  apercebe  da 
continuidade  da  tarefa  interrompida,  mas  sempre  retomada.  Ele  vê,  sente  que 
apanhou, de passagem, o pensamento dos que o precederam. Entra de novo na liça, 
amadurecido pela experiência, para avançar mais. E todos, trabalhadores da primeira 
e da última hora, com os olhos bem abertos sobre a profunda justiça de Deus, não 
mais murmuram: adoram. 
Tal um dos verdadeiros sentidos desta parábola, que encerra, como todas as 
de que Jesus se utilizou falando ao povo, o gérmen do futuro e também, sob todas as 
formas,  sob  todas  as  imagens,  a  revelação  da  magnífica  unidade  que  harmoniza 
todas as coisas no Universo, da solidariedade que liga todos os seres presentes ao 
passado e ao futuro. – Henri Heine. (Paris, 1863) 
MISSÃO DOS ESPÍRITAS 
4.  Não  escutais  já  o  ruído  da  tempestade  que  há  de  arrebatar  o  velho  mundo  e 
abismar no nada o conjunto das iniqüidades terrenas? Ah! Bendizei o Senhor, vós 
que haveis posto a vossa fé na sua soberana justiça e que, novos apóstolos da crença 
revelada  pelas  proféticas  vozes  superiores,  ides  pregar  o  novo  dogma  da 
reencarnação e da elevação dos Espíritos, conforme tenham cumprido, bem ou mal, 
suas missões e suportado suas provas terrestres  Não mais vos assusteis! As línguas 
de fogo estão sobre as vossas cabeças. Ó verdadeiros adeptos do Espiritismo!... Sois 
os  escolhidos  de  Deus!  Ide  e  pregai  a  palavra  divina.  É  chegada  a  hora  em  que 
deveis sacrificar à sua propagação os vossos hábitos, os vossos trabalhos, as vossas 
ocupações  fúteis.  Ide  e  pregai.  Convosco  estão  os  Espíritos  elevados.  Certamente 
falareis  a  criaturas  que  não  quererão  escutar  a  voz  de  Deus,  porque  essa  voz  as 
exorta  incessantemente  à  abnegação.  Pregareis  o  desinteresse  aos  avaros,  a 
abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranos domésticos, como aos déspotas! 
Palavras perdidas, eu o sei; mas não importa. Faz­se mister regueis com os vossos 
suores  o  terreno  onde  tendes  de  semear,  porquanto  ele  não  frutificará  e  não 
produzirá senão sob os reiterados golpes da enxada e da charrua evangélicas. Ide e 
pregai!
200 – Allan Kardec 
Ó todos vós, homens de boa­fé, conscientes da vossa inferioridade em face 
dos mundos disseminados pelo Infinito!... Lançai­vos em cruzada contra a injustiça 
e a iniqüidade. Ide e proscrevei esse culto do bezerro de ouro, que cada dia mais se 
alastra. 
Ide,  Deus  vos  guia!  Homens  simples  e  ignorantes,  vossas  línguas  se 
soltarão e falareis como nenhum orador fala. Ide e pregai, que as populações atentas 
recolherão ditosas as vossas palavras de consolação, de fraternidade, de esperança e 
de paz. Que importam as emboscadas que vos armem pelo caminho! Somente lobos 
caem em armadilhas para lobos, porquanto o pastor saberá defender suas ovelhas 
das fogueiras imoladoras. Ide, homens, que, grandes diante de Deus, mais ditosos do 
que Tomé, credes sem fazerdes questão de ver e aceitais os fatos da mediunidade, 
mesmo quando não tenhais conseguido obtê­los por vós mesmos; ide, o Espírito de 
Deus vos conduz. 
Marcha, pois, avante, falange imponente pela tua fé! Diante de ti os grandes 
batalhões dos incrédulos se dissiparão, como a bruma da manhã aos primeiros raios 
do Sol nascente. 
A fé é a virtude que desloca montanhas, disse Jesus. Todavia, mais pesados 
do  que  as  maiores  montanhas,  jazem  depositados  nos  corações  dos  homens  a 
impureza  e  todos  os  vícios  que  derivam  da  impureza.  Parti,  então,  cheios  de 
coragem, para removerdes essa montanha de iniqüidades que as futuras gerações só 
deverão  conhecer  como  lenda,  do  mesmo  modo  que  vós,  que  só  muito 
imperfeitamente conheceis os tempos que antecederam a civilização pagã. 
Sim, em todos os pontos do Globo vão produzir­se as subversões morais e 
filosóficas;  aproxima­se  a  hora  em  que  a  luz  divina  se  espargirá  sobre  os  dois 
mundos. 
Ide,  pois,  e  levai  a  palavra  divina:  aos  grandes  que  a  desprezarão,  aos 
eruditos  que  exigirão  provas,  aos  pequenos  e  simples  que  a  aceitarão;  porque, 
principalmente  entre  os  mártires  do  trabalho,  desta  provação  terrena,  encontrareis 
fervor e fé. Ide; estes receberão, com hinos de gratidão e louvores a Deus, a santa 
consolação que lhes levareis, e baixarão a fronte, rendendo­lhe graças pelas aflições 
que a Terra lhes destina. 
Arme­se a vossa falange de decisão e coragem! Mãos à obra! o arado está 
pronto; a terra espera; arai! 
Ide e agradecei a Deus a gloriosa tarefa que Ele vos confiou; mas, atenção! 
Entre os  chamados para o Espiritismo muitos se transviaram; reparai, pois, vosso 
caminho e segui a verdade. 
Pergunta.  –  Se,  entre  os  chamados  para  o  Espiritismo,  muitos  se 
transviaram, quais os sinais pelos quais reconheceremos os que se acham no bom 
caminho? 
Resposta. – Reconhecê­los­eis pelos princípios da verdadeira caridade que 
eles ensinarão e praticarão. Reconhecê­los­eis pelo número de aflitos a que levem 
consolo; reconhecê­los­eis pelo seu amor ao próximo, pela sua abnegação, pelo seu 
desinteresse pessoal; reconhecê­los­eis, finalmente, pelo triunfo de seus princípios, 
porque  Deus  quer  o  triunfo  de  Sua  lei;  os  que  seguem  Sua  lei,  esses  são  os 
escolhidos e Ele lhes dará a vitória; mas Ele destruirá aqueles que falseiam o espírito
201 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
dessa lei e fazem dela degrau para contentar sua vaidade e sua ambição. – Erasto, 
anjo­da­guarda do médium. (Paris, 1863) 12 
OS OBREIROS DO SENHOR 
5.  Aproxima­se  o  tempo  em  que  se  cumprirão  as  coisas  anunciadas  para  a 
transformação da Humanidade. Ditosos serão os que houverem trabalhado no campo 
do  Senhor,  com  desinteresse  e  sem  outro  móvel,  senão  a  caridade!  Seus  dias  de 
trabalho serão pagos pelo cêntuplo do que tiverem esperado. Ditosos os que hajam 
dito a seus irmãos: “Trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o 
Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra”, porquanto o Senhor lhes dirá: “Vinde a 
mim,  vós  que  sois  bons  servidores,  vós  que  soubestes  impor  silêncio  aos  vossos 
ciúmes e às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra!” Mas, ai 
daqueles que, por efeito das suas dissensões, houverem retardado a hora da colheita, 
pois a tempestade virá e eles serão levados no turbilhão! Clamarão: “Graça! graça!” 
O Senhor, porém, lhes dirá: “Como implorais graças, vós que não tivestes piedade 
dos  vossos  irmãos  e  que  vos  negastes  a  estender­lhes as mãos,  que  esmagastes  o 
fraco, em vez de o amparardes? Como suplicais graças, vós que buscastes a vossa 
recompensa nos gozos da Terra e na satisfação do vosso  orgulho? Já recebestes a 
vossa recompensa, tal qual a quisestes. Nada mais vos cabe pedir; as recompensas 
celestes são para os que não tenham buscado as recompensas da Terra.” 
Deus  procede,  neste  momento,  ao  censo  dos  seus  servidores  fiéis  e  já 
marcou com o dedo aqueles cujo devotamento é apenas aparente, a fim de que não 
usurpem  o  salário  dos  servidores  animosos,  pois  aos  que  não  recuarem  diante  de 
suas  tarefas  é  que  ele  vai  confiar  os  postos  mais  difíceis  na  grande  obra  da 
regeneração pelo Espiritismo. Cumprir­se­ão estas palavras: “Os primeiros serão os 
últimos e os últimos serão os primeiros no reino dos céus.” – O Espírito de Verdade. 
(Paris, 1862) 
12 
Na  terceira  edição  francesa  esta  mensagem  saiu  incompleta  e  sem  assinatura.  Completamo­la  em 
confronto com a primeira edição do original. – A Editora da FEB, em 1948.
202 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XXI 
HAVERÁ FALSOS CRISTOS
E FALSOS PROFETAS
§  CONHECE­SE A ÁRVORE PELO FRUTO 
§  MISSÃO DOS PROFETAS 
§  PRODÍGIO DOS FALSOS PROFETAS 
§  NÃO CREAIS EM TODOS OS ESPÍRITAS 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS 
§  OS FALSOS PROFETAS 
§  CARACTERES DO VERDADEIRO PROFETA 
§  OS FALSOS PROFETAS DA ERRATICIDADE 
§  JEREMIAS E OS FALSOS PROFETAS 
CONHECE­SE A ÁRVORE PELO FRUTO 
1. “ A árvore que produz maus frutos não é boa e a árvore que produz bons 
frutos não é má; porquanto, cada árvore se conhece pelo seu próprio fruto. 
Não se colhem figos nos espinheiros, nem cachos de uvas nas sarças. O 
homem de bem tira boas coisas do bom tesouro do seu coração e o mau 
tira as más do mau tesouro do seu coração; porquanto, a boca fala do de 
que está cheio o coração”. 
(LUCAS, 6:43 a 45) 
2. “ Guardai­vos dos falsos profetas que vêm ter convosco cobertos de peles 
de ovelha e que por dentro são lobos rapaces. Conhecê­los­eis pelos seus 
frutos. Podem colher­se uvas nos espinheiros ou figos nas sarças? Assim, 
toda árvore boa produz bons frutos e toda árvore má produz maus frutos. 
Uma árvore boa não pode produzir frutos maus e uma árvore má não pode 
produzir frutos bons. Toda árvore que não produz bons frutos será cortada 
e lançada ao fogo. Conhecê­la­eis, pois, pelos seus frutos”. 
(MATEUS, 7:15 a 20)
203 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
3. “ Tende cuidado para que alguém não vos seduza; porque muitos virão 
em meu nome, dizendo: ‘Eu sou o Cristo’, e seduzirão a muitos. Levantar­ 
se­ão  muitos  falsos  profetas  que  seduzirão  a  muitas  pessoas;  e  porque 
abundará  a  iniqüidade,  a  caridade  de  muitos  esfriará.  Mas  aquele  que 
perseverar  até  ao  fim  se  salvará.  Então,  se  alguém  vos disser:  ‘O  Cristo 
está  aqui,  ou  está  ali’,  não  acrediteis  absolutamente;  porquanto  falsos 
Cristos e falsos profetas se levantarão e farão grandes prodígios e coisas 
de  espantar,  ao  ponto  de  seduzirem,  se  fosse  possível,  os  próprios 
escolhidos”. 
(MATEUS, 24:4, 5, 11 a 13, 23 e 24; MARCOS, 13:5, 6, 21 e 22) 
MISSÃO DOS PROFETAS 
4. Atribui­se comumente aos profetas o dom de adivinhar o futuro, de sorte que as 
palavras  profecia  e  predição  se  tornaram  sinônimas.  No  sentido  evangélico,  o 
vocábulo profeta  tem mais  extensa  significação.  Diz­se  de  todo  enviado  de Deus 
com a missão de instruir os homens e de lhes revelar as coisas ocultas e os mistérios 
da vida espiritual. Pode, pois, um homem ser profeta, sem fazer predições. Aquela 
era  a  idéia  dos  judeus,  ao  tempo  de  Jesus.  Daí  vem  que,  quando  o  levaram  à 
presença do sumo­sacerdote Caifás, os escribas e os anciães, reunidos, lhe cuspiram 
no rosto, lhe deram socos  e bofetadas, dizendo: “Cristo, profetiza para nós e dize 
quem foi que te bateu.” Entretanto, deu­se o caso de haver profetas que tiveram a 
presciência do futuro, quer por intuição, quer por providencial revelação, a fim de 
transmitirem avisos aos homens. Tendo­se realizado os acontecimentos preditos, o 
dom de predizer o futuro foi considerado como um dos atributos da qualidade de 
profeta. 
PRODÍGIOS DOS FALSOS PROFETAS 
5.  “Levantar­se­ão  falsos  Cristos  e  falsos  profetas,  que  farão  grandes  prodígios  e 
coisas de espantar, a ponto de seduzirem os próprios escolhidos.” Estas palavras dão 
o  verdadeiro  sentido  do  termo  prodígio.  Na  acepção  teológica,  os  prodígios  e  os 
milagres  são  fenômenos  excepcionais,  fora  das  leis  da  Natureza.  Sendo  estas, 
exclusivamente,  obra  de  Deus,  pode  ele,  sem  dúvida,  derrogá­las,  se  lhe  apraz;  o 
simples bom­senso, porém, diz que não é possível haja ele dado a seres inferiores e 
perversos um poder igual ao seu, nem, ainda menos, o direito de desfazer o que ele 
tenha feito. Semelhante princípio não no pode Jesus ter consagrado. Se, portanto, de 
acordo com o sentido que se atribui a essas palavras, o Espírito do mal tem o poder 
de fazer prodígios tais que os próprios escolhidos se deixem enganar, o resultado 
seria  que,  podendo  fazer  o  que  Deus  faz,  os  prodígios  e  os  milagres  não  são 
privilégio exclusivo dos enviados de Deus e nada provam, pois que nada distingue 
os  milagres  dos  santos  dos  milagres  do  demônio.  Necessário,  então,  se  torna 
procurar um sentido mais racional para aquelas palavras. 
Para o vulgo ignorante, todo fenômeno cuja causa é desconhecida passa por 
sobrenatural, maravilhoso e miraculoso; uma vez encontrada a causa, reconhece­se
204 – Allan Kardec 
que o fenômeno, por muito extraordinário que pareça, mais não é do que aplicação 
de  uma  lei  da  Natureza.  Assim,  o  círculo  dos  fatos  sobrenaturais  se  restringe  à 
medida  que  o  da  Ciência  se  alarga.  Em  todos  os  tempos,  homens  houve  que 
exploraram, em proveito de suas ambições, de seus interesses  e do  seu anseio de 
dominação, certos conhecimentos que possuíam, a fim de alcançarem o prestígio de 
um pseudo­poder sobre­humano, ou de uma pretendida missão divina. São esses os 
falsos Cristos e falsos profetas. A difusão das luzes lhes aniquila o crédito, donde 
resulta que o número deles diminui à proporção que os homens se esclarecem. O 
fato de operar o que certas pessoas consideram prodígios não constitui, pois, sinal de 
uma missão divina, visto que pode resultar de conhecimento cuja aquisição está ao 
alcance de qualquer um, ou de faculdades orgânicas especiais, que o mais indigno 
não se acha inibido de possuir, tanto quanto o mais digno. O verdadeiro profeta se 
reconhece por mais sérios caracteres e exclusivamente morais. 
NÃO CREAIS EM TODOS OS ESPÍRITOS 
6. “ Meus bem­amados, não creais em qualquer Espírito; experimentai se os 
Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se têm levantado 
no mundo”. 
(JOÃO, Epístola 1ª, 4:1) 
7. Os fenômenos espíritas, longe de abonarem os falsos Cristos e os falsos profetas, 
como a algumas pessoas apraz dizer, golpe mortal desferem neles. Não peçais ao 
Espiritismo prodígios, nem milagres, porquanto ele formalmente declara que os não 
opera.  Do  mesmo  modo  que  a  Física,  a  Química,  a  Astronomia,  a  Geologia, 
revelaram as leis do mundo material, ele revela outras leis desconhecidas, as que 
regem as relações do mundo corpóreo com o mundo espiritual, leis que, tanto quanto 
aquelas outras da Ciência, são leis da Natureza. Facultando a  explicação de certa 
ordem de fenômenos incompreendidos até o presente, ele destrói o que ainda restava 
do domínio do maravilhoso. Quem, portanto, se sentisse tentado a lhe explorar em 
proveito  próprio  os  fenômenos,  fazendo­se  passar  por  messias  de  Deus,  não 
conseguiria  abusar  por  muito  tempo  da  credulidade  alheia  e  seria  logo 
desmascarado. Aliás, como já se tem dito, tais fenômenos, por si sós, nada provam: 
a missão se prova por efeitos morais, o que não é dado a qualquer um produzir. Esse 
um dos resultados do desenvolvimento da ciência espírita; pesquisando a causa de 
certos fenômenos, de sobre muitos mistérios levanta ela o véu. Só os que preferem a 
obscuridade  à  luz,  têm  interesse  em  combatê­la;  mas,  a  verdade  é  como  o  Sol: 
dissipa os mais densos nevoeiros. 
O Espiritismo revela outra categoria bem mais perigosa de falsos Cristos e 
de  falsos  profetas,  que  se  encontram,  não  entre  os  homens,  mas  entre  os 
desencarnados: a dos Espíritos enganadores, hipócritas, orgulhosos e pseudo­sábios, 
que  passaram  da  Terra  para  a  erraticidade  e  tomam nomes  venerados  para,  sob  a 
máscara de que se cobrem, facilitarem a aceitação das mais singulares e absurdas 
idéias. Antes que se conhecessem as relações mediúnicas, eles atuavam de maneira 
menos  ostensiva,  pela  inspiração,  pela  mediunidade  inconsciente,  audiente  ou
205 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
falante.  É  considerável  o  número  dos  que,  em  diversas  épocas,  mas,  sobretudo, 
nestes últimos tempos, se hão apresentado como alguns dos antigos profetas, como o 
Cristo,  como  Maria,  sua  mãe,  e  até  como  Deus.  S.  João  adverte  contra  eles  os 
homens,  dizendo:  “Meus  bem­amados,  não  acrediteis  em  todo  Espírito;  mas, 
experimentai se os Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se têm 
levantado  no  mundo.”  O  Espiritismo  nos  faculta  os  meios  de  experimentá­los, 
apontando  os  caracteres  pelos  quais  se  reconhecem  os  bons  Espíritos,  caracteres 
sempre morais, nunca materiais 13 
. É à maneira de se distinguirem dos maus os bons 
Espíritos que, principalmente, podem aplicar­se estas palavras de Jesus: “Pelo fruto 
é que se reconhece a qualidade da árvore; uma árvore boa não pode produzir maus 
frutos, e uma árvore má não os pode produzir bons.” Julgam­se os Espíritos pela 
qualidade de suas obras, como uma árvore pela qualidade dos seus frutos. 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
OS FALSOS PROFETAS 
8.  Se  vos  disserem:  “O  Cristo  está  aqui”,  não  vades;  ao  contrário,  tende­vos  em 
guarda, porquanto numerosos serão os falsos profetas. Não vedes que as folhas da 
figueira começam a branquear; não vedes os seus múltiplos rebentos aguardando a 
época  da  floração;  e não  vos  disse  o  Cristo:  Conhece­se  a  árvore  pelo  fruto?  Se, 
pois,  são  amargos  os  frutos,  já  sabeis  que  má  é  a árvore; se,  porém,  são  doces  e 
saudáveis, direis: “Nada que seja puro pode provir de fonte má.” 
É assim, meus irmãos, que deveis julgar; são as obras que deveis examinar. 
Se  os  que  se  dizem  investidos  de  poder  divino revelam  sinais  de  uma missão  de 
natureza elevada, isto é, se possuem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas: a 
caridade, o amor, a indulgência, a bondade que concilia os corações; se, em apoio 
das palavras, apresentam os atos, podereis então dizer: Estes são realmente enviados 
de Deus. Desconfiai, porém, das palavras melífluas, desconfiai dos escribas e dos 
fariseus que oram nas praças públicas, vestidos de longas túnicas. Desconfiai dos 
que pretendem ter o monopólio da verdade! Não, não, o Cristo não está entre esses, 
porquanto os que ele envia para propagar a sua santa doutrina e regenerar o seu povo 
serão, acima de tudo, seguindo­lhe o exemplo, brandos e humildes de coração; os 
que  hajam,  com  os  exemplos  e  conselhos  que  prodigalizem,  de  salvar  a 
Humanidade,  que  corre  para  a  perdição  e  pervaga  por  caminhos  tortuosos,  serão 
essencialmente modestos e humildes. De tudo o que revele um átomo de orgulho, 
fugi, como de uma lepra contagiosa, que corrompe tudo em que toca. Lembrai­vos 
de que cada criatura traz na fronte, mas principalmente nos atos, o cunho da sua 
grandeza ou da sua inferioridade. 
Ide, portanto, meus filhos bem­amados, caminhai sem tergiversações, sem 
pensamentos  ocultos,  na  rota  bendita  que  tomastes.  Ide,  ide  sempre,  sem  temor; 
afastai,  cuidadosamente,  tudo  o  que  vos  possa  entravar a  marcha  para  o objetivo 
13 
Ver,  sobre a  maneira  de  se distinguirem  os Espíritos: O  Livro dos Médiuns, 2ª Parte,  cap.  XXIV e 
seguintes.
206 – Allan Kardec 
eterno.  Viajores,  só  por  pouco  tempo  mais  estareis  nas  trevas  e  nas  dores  da 
provação, se abrirdes o vosso coração a essa suave doutrina que vos vem revelar as 
leis eternas e satisfazer a todas as aspirações de vossa alma acerca do desconhecido. 
Já podeis dar corpo a esses silfos ligeiros que vedes passar nos vossos sonhos e que, 
efêmeros,  apenas  vos  encantavam  o  espírito,  sem  coisa alguma  dizerem  ao  vosso 
coração. Agora, meus amados, a morte desapareceu, dando lugar ao anjo radioso que 
conheceis,  o  anjo  do  novo  encontro  e  da  reunião!  Agora,  vós  que  bem 
desempenhado  haveis  a  tarefa  que  o  Criador  confia  às  suas  criaturas,  nada  mais 
tendes de temer da sua justiça, pois ele é pai e perdoa sempre aos filhos transviados 
que  clamam  por  misericórdia.  Continuai,  portanto,  avançai  incessantemente.  Seja 
vossa  divisa  a  do  progresso,  do  progresso  contínuo  em  todas  as  coisas,  até  que, 
finalmente, chegueis ao termo feliz da jornada, onde vos esperam todos os que vos 
precederam. – Luís. (Bordéus, 1861) 
CARACTERES DO VERDADEIRO PROFETA 
9. Desconfiai dos falsos profetas. É  útil  em  todos  os  tempos  essa  recomendação, 
mas, sobretudo, nos momentos de transição em que, como no atual, se elabora uma 
transformação  da  Humanidade,  porque,  então,  uma  multidão  de  ambiciosos  e 
intrigantes se arvoram em reformadores e messias. É contra esses impostores que se 
deve estar em guarda, correndo a todo homem honesto o dever de os desmascarar. 
Perguntareis, sem dúvida, como reconhecê­los. Aqui tendes o que os assinala: 
Somente a um hábil general, capaz de dirigi­lo, se confia o comando de um 
exército. Julgais que Deus seja menos prudente do que os homens? Ficai certos de 
que  só  confia  missões  importantes  aos  que  ele  sabe  capazes  de  as  cumprir, 
porquanto as grandes missões são fardos pesados que esmagariam o homem carente 
de forças para carregá­los. Em todas as coisas, o mestre há de sempre saber mais do 
que  o  discípulo;  para  fazer  que  a  Humanidade  avance  moralmente  e 
intelectualmente, são precisos homens superiores em inteligência e em moralidade. 
Por  isso,  para  essas  missões  são  sempre  escolhidos  Espíritos  já  adiantados,  que 
fizeram suas provas noutras existências, visto que, se não fossem superiores ao meio 
em que têm de atuar, nula lhes resultaria a ação. 
Isto posto, haveis de concluir que o verdadeiro missionário de Deus tem de 
justificar, pela sua superioridade, pelas suas virtudes, pela grandeza, pelo resultado e 
pela influência moralizadora de suas obras, a missão de que se diz portador. Tirai 
também esta outra conseqüência: se, pelo seu caráter, pelas suas virtudes, pela sua 
inteligência, ele se mostra abaixo do papel com que se apresente, ou da personagem 
sob cujo nome se coloca, mais não é do que um histrião de baixo estofo, que nem 
sequer sabe imitar o modelo que escolheu. 
Outra consideração: os verdadeiros missionários de Deus ignoram­se a si 
mesmos, em sua maior parte; desempenham a missão a que foram chamados pela 
força do gênio que possuem, secundado pelo poder oculto que os inspira e dirige a 
seu  mau  grado,  mas  sem  desígnio  premeditado.  Numa  palavra:  os  verdadeiros 
profetas se revelam por seus atos, são adivinhados, ao passo que os falsos profetas 
se dão, eles próprios, como enviados de Deus. O primeiro é humilde e modesto; o
207 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
segundo,  orgulhoso  e  cheio  de  si,  fala  com  altivez  e,  como  todos  os  mendazes, 
parece sempre temeroso de que não lhe dêem crédito. 
Alguns desses impostores têm havido, pretendendo passar por apóstolos do 
Cristo, outros pelo próprio Cristo, e, para vergonha da Humanidade, hão encontrado 
pessoas  assaz  crédulas  que  lhes  crêem  nas  torpezas.  Entretanto,  uma  ponderação 
bem  simples  seria  bastante  a  abrir  os  olhos  do  mais  cego,  a  de  que  se  o  Cristo 
reencarnasse na Terra, viria com todo o seu poder e todas as suas virtudes, a menos 
se admitisse, o que fora absurdo, que houvesse degenerado. Ora, do mesmo modo 
que, se tirardes a Deus um só de seus atributos, já não tereis Deus, se tirardes uma só 
de suas virtudes ao Cristo, já não mais o tereis. Possuem todas as suas virtudes os 
que  se  dão  como  sendo  o  Cristo?  Essa  a  questão.  Observai­os,  perscrutai­lhes  as 
idéias  e  os  atos  e  reconhecereis  que,  acima  de  tudo,  lhes  faltam  as  qualidades 
distintivas do Cristo: a humildade e a caridade, sobejando­lhes as que o Cristo não 
tinha: a cupidez e o orgulho. Notai, ao demais, que neste momento há, em vários 
países, muitos pretensos Cristos, como há muitos pretensos Elias, muitos S. João ou 
S. Pedro e que não é absolutamente possível sejam verdadeiros todos. Tende como 
certo  que  são  apenas  criaturas  que  exploram  a  credulidade  dos  outros  e  acham 
cômodo  viver  à  custa  dos  que  lhes  prestam  ouvidos.  Desconfiai,  pois,  dos  falsos 
profetas,  máxime  numa  época  de  renovação,  qual  a  presente,  porque  muitos 
impostores  se  dirão  enviados  de  Deus.  Eles  procuram  satisfazer  na  Terra  à  sua 
vaidade;  mas  uma  terrível  justiça  os  espera,  podeis  estar certos.  – Erasto.  (Paris, 
1862) 
OS FALSOS PROFETAS DA ERRATICIDADE 
10.  Os  falsos  profetas  não  se  encontram  unicamente  entre  os  encarnados.  Há­os 
também, e em muito maior número, entre os Espíritos orgulhosos que, aparentando 
amor  e  caridade,  semeiam  a  desunião  e  retardam  a  obra  de  emancipação  da 
Humanidade, lançando­lhe de través seus sistemas absurdos, depois de terem feito 
que seus médiuns os aceitem. E, para melhor fascinarem aqueles a quem desejam 
iludir, para darem mais peso às suas teorias, se apropriam sem escrúpulo de nomes 
que só com muito respeito os homens pronunciam. 
São eles que espalham o fermento dos antagonismos entre os grupos, que os 
impelem a isolarem­se uns dos outros e a olharem­se com prevenção. Isso por si só 
bastaria para os desmascarar, pois, procedendo assim, são os primeiros a dar o mais 
formal  desmentido  às  suas  pretensões.  Cegos,  portanto,  são  os  homens  que  se 
deixam cair em tão grosseiro embuste. 
Mas, há muitos outros meios de serem reconhecidos. Espíritos da categoria 
em  que  eles  dizem  achar­se  têm  de  ser  não  só  muito  bons,  como  também 
eminentemente racionais. Pois bem: passai­lhes os sistemas pelo crivo da razão e do 
bom­senso e vede o que restará. Convinde, pois, comigo, em que, todas as vezes que 
um  Espírito  indica,  como  remédio  aos  males  da  Humanidade  ou  como  meio  de 
conseguir­se a sua transformação, coisas utópicas e impraticáveis, medidas pueris e 
ridículas; quando formula um sistema que as mais rudimentares noções da Ciência 
contradizem, não pode ser senão um Espírito ignorante e mentiroso.
208 – Allan Kardec 
Por outro lado, crede que, se nem sempre os indivíduos apreciam a verdade, 
esta  é  apreciada  sempre  pelo  bom­senso  das  massas,  constituindo  isso  mais  um 
critério. Se dois princípios se contradizem, achareis a medida do valor intrínseco de 
ambos, verificando qual dos dois encontra mais ecos e simpatias. Fora, com efeito, 
ilógico  admitir­se  que  uma  doutrina  cujo  número  de  adeptos  diminua 
progressivamente  seja  mais  verdadeira  do  que  outra  que  veja  o  dos  seus  em 
contínuo aumento. Querendo que a verdade chegue a todos, Deus não a confina num 
círculo acanhado: fá­la surgir em diferentes pontos, a fim de que por toda a parte a 
luz esteja ao lado das trevas. 
Repeli sem condescendência todos esses Espíritos que se apresentam como 
conselheiros exclusivos, pregando a separação e o insulamento. São quase sempre 
Espíritos vaidosos e medíocres, que procuram impor­se a homens fracos e crédulos, 
prodigalizando­lhes exagerados louvores, a fim de os fascinar e de tê­los dominados. 
São, geralmente, Espíritos sequiosos de poder e que, déspotas públicos ou nos lares, 
quando  vivos,  ainda  querem  vítimas  para  tiranizar  depois  de  terem  morrido.  Em 
geral,  desconfiai  das  comunicações  que  trazem  um  caráter  de  misticismo  e  de 
singularidade,  ou  que  prescrevem  cerimônias  e  atos  extravagantes.  Há  sempre, 
nesses casos, motivo legítimo de suspeição. 
Estai certos, igualmente, de que quando uma verdade tem de ser revelada 
aos  homens,  é,  por  assim  dizer,  comunicada  instantaneamente  a  todos  os  grupos 
sérios, que dispõem de médiuns também sérios, e não a tais ou quais, com exclusão 
dos outros. Nenhum médium é perfeito, se está obsidiado; e há manifesta obsessão 
quando um médium só é apto a receber comunicações de determinado Espírito, por 
mais alto que este procure colocar­se. Conseguintemente, todo médium e todo grupo 
que considerem privilégio seu receber as comunicações que obtêm e que, por outro 
lado,  se  submetem  a  práticas  que  tendem  para  a  superstição,  indubitavelmente  se 
acham  presas  de  uma  obsessão  bem  caracterizada,  sobretudo  quando  o  Espírito 
dominador  se  pavoneia  com  um  nome  que  todos,  encarnados  e  desencarnados, 
devem honrar e respeitar e não permitir, seja declinado a todo propósito. 
É  incontestável  que,  submetendo  ao  crivo  da  razão  e  da  lógica  todos  os 
dados e todas as comunicações dos Espíritos, fácil se torna rejeitar a absurdidade e o 
erro. Pode um médium ser fascinado, e iludido um grupo; mas, a verificação severa 
a que procedam os outros grupos, a ciência adquirida, a alta autoridade moral dos 
diretores de grupos, as comunicações que os principais médiuns recebam, com um 
cunho de lógica e de autenticidade dos melhores Espíritos, justiçarão rapidamente 
esses  ditados  mentirosos  e  astuciosos,  emanados  de  uma  turba  de  Espíritos 
mistificadores ou maus. – Erasto, discípulo de São Paulo. (Paris, 1862) 
(Veja­se, na “Introdução”, o parágrafo II: Verificação universal do ensino 
dos Espíritos. – O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII, Da obsessão.) 
JEREMIAS E OS FALSOS PROFETAS 
11. “ Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: ‘Não escuteis as palavras dos 
profetas que vos profetizam e que vos enganam. Eles publicam as visões 
de seus corações e não o que aprenderam da boca do Senhor. Dizem aos 
que  de  mim  blasfemam: O  Senhor  o disse,  tereis  paz;  e  a  todos  os  que
209 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
andam na corrupção de seus corações: Nenhum mal vos acontecerá. Mas, 
qual dentre eles assistiu ao conselho de Deus? Qual o que o viu e escutou 
o  que  ele  disse?  Eu  não  enviava  esses  profetas;  eles  corriam  por  si 
mesmos;  eu  absolutamente  não  lhes  falava;  eles  profetizavam  de  suas 
cabeças.  Eu  ouvi  o  que  disseram  esses  profetas  que  profetizavam  a 
mentira  em  meu  nome,  dizendo:  Sonhei,  sonhei.  Até  quando  essa 
imaginação  estará  no  coração  dos  que  profetizam  a  mentira  e  cujas 
profecias  não  são  senão  as  seduções  do  coração  deles?  Se,  pois,  este 
povo, ou um profeta, ou um sacerdote vos interrogar e disser: Qual o fardo 
do  Senhor?  Dir­lhe­eis:  vós mesmos  sois  o fardo  e  eu  vos  lançarei  bem 
longe de mim’, ­­ diz o Senhor”. 
(JEREMIAS, 23:16 a 18, 21, 25, 26 e 33) 
É  dessa  passagem  do  profeta  Jeremias  que  quero  tratar  convosco,  meus 
amigos. Falando pela sua boca, diz Deus: “É a visão do coração deles que os faz 
falar.” Essas palavras claramente indicam que, já naquela época, os charlatães e os 
exaltados  abusavam  do  dom  de  profecia  e  o  exploravam.  Abusavam,  por 
conseguinte, da fé simples e quase cega do povo, predizendo, por dinheiro, coisas 
boas e agradáveis. Muito generalizada se achava essa espécie de  fraude na nação 
judia, e fácil é de compreender­se que o pobre povo, em sua ignorância, nenhuma 
possibilidade tinha de distinguir os  bons dos maus, sendo  sempre mais ou menos 
ludibriado  pelos  pseudo­profetas,  que  não  passavam  de  impostores  ou  fanáticos. 
Nada há de mais significativo do que estas palavras: “Eu não enviei esses profetas e 
eles correram por si mesmos; não lhes falei e eles profetizaram.” Mais adiante, diz: 
“Eu ouvi esses profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei, 
sonhei.”  Indicava  assim  um  dos  meios  que  eles  empregavam  para  explorar  a 
confiança  de  que  eram  objeto.  A  multidão,  sempre  crédula, não  pensava  em  lhes 
contestar  a  veracidade  dos  sonhos,  ou  das  visões;  achava  isso  muito  natural  e 
constantemente os convidava a falar. 
Após  as  palavras  do  profeta,  escutai  os  sábios  conselhos  do  apóstolo  S. 
João, quando diz: “Não acrediteis em todo Espírito; experimentai se os Espíritos são 
de Deus”, porque, entre os invisíveis, também há os que se comprazem em iludir, se 
se  lhes  depara  ocasião.  Os  iludidos  são,  está­se  a  ver,  os  médiuns  que  se  não 
precatam bastante. Aí se encontra, é fora de toda dúvida, um dos maiores escolhos 
em que muitos funestamente esbarram, mormente se são novatos no Espiritismo. É­ 
lhes isso uma prova de que só com muita prudência podem triunfar. Aprendei, pois, 
antes de tudo, a distinguir os bons e os maus Espíritos, para, por vossa vez, não vos 
tornardes falsos profetas. – Luoz, Espírito Protetor. (Carlsruhe, 1861)
210 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XXII 
NÃO SEPAREIS O QUE
DEUS JUNTOU
§  INDISSOLUBILIDADE DO CASAMENTO 
§  O DIVÓRCIO 
INDISSOLUBILIDADE DO CASAMENTO 
1. Também os fariseus vieram ter com ele para o tentarem e lhe disseram: 
“Será permitido a um homem despedir sua mulher, por qualquer motivo?” 
Ele  respondeu:  “Não  lestes  que  aquele  que  criou  o  homem  desde  o 
princípio os criou macho e fêmea e disse: Por esta razão, o homem deixará 
seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher e não farão os dois senão uma 
só carne? Assim, já não serão duas, mas uma só carne. Não separe, pois, 
o homem o que Deus juntou”. 
Eles  retrucaram:  “ Mas,  por  que  então  ordenava  Moisés  que  o 
marido  desse  à  sua  mulher  um  escrito  de  separação  e  a  despedisse?” 
Jesus respondeu: “Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés 
permitiu  despedísseis  vossas  mulheres;  mas,  no  começo,  não  foi  assim. 
Por isso eu vos declaro que aquele que despede sua mulher, a não ser em 
caso  de  adultério,  e  desposa  outra,  comete  adultério;  e  que  aquele  que 
desposa a mulher que outro despediu também comete adultério”. 
(MATEUS, 19:3 a 9) 
2. Imutável só há o que vem de Deus. Tudo o que é obra dos homens está sujeito a 
mudança. As leis da Natureza são as mesmas em todos  os tempos e  em todos  os 
países.  As  leis  humanas mudam  segundo  os  tempos,  os  lugares  e  o progresso  da 
inteligência. No casamento, o que é de ordem divina é a união dos sexos, para que se 
opere  a  substituição  dos  seres  que  morrem;  mas,  as  condições  que  regulam  essa 
união  são  de  tal  modo  humanas,  que  não  há,  no  mundo  inteiro,  nem  mesmo  na 
cristandade,  dois  países  onde elas  sejam  absolutamente  idênticas,  e nenhum  onde 
não hajam, com o tempo, sofrido mudanças. Daí resulta que, em face da lei civil, o
211 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
que é legítimo num país e em dada época, é adultério noutro país e noutra época, 
isso  pela  razão  de  que  a  lei  civil  tem  por  fim  regular  os  interesses  das  famílias, 
interesses que variam segundo os costumes e as necessidades locais. Assim é, por 
exemplo, que, em certos países, o casamento religioso é o único legítimo; noutros é 
necessário,  além  desse,  o  casamento  civil;  noutros,  finalmente,  este  último 
casamento basta. 
3. Mas, na união dos sexos, a par da lei divina material, comum a todos os 
seres vivos, há outra lei divina, imutável como todas as leis de Deus, exclusivamente 
moral: a lei de amor. Quis Deus que os seres se unissem não só pelos laços da carne, 
mas  também  pelos  da  alma,  a  fim  de  que  a  afeição  mútua  dos  esposos  se  lhes 
transmitisse aos  filhos e que  fossem dois, e não um somente, a amá­los, a cuidar 
deles e a fazê­los progredir. Nas condições ordinárias do casamento, a lei de amor é 
tida em consideração? De modo nenhum. Não se leva em conta a afeição de dois 
seres que, por sentimentos recíprocos, se atraem um para o outro, visto que, as mais 
das vezes, essa afeição é rompida. O de que se cogita, não é da satisfação do coração 
e sim da do orgulho, da vaidade, da cupidez, numa palavra: de todos os interesses 
materiais.  Quando  tudo  vai  pelo  melhor  consoante  esses  interesses,  diz­se  que  o 
casamento é de conveniência e, quando as bolsas estão bem aquinhoadas, diz­se que 
os esposos igualmente o são e muito felizes hão de ser. 
Nem  a  lei  civil,  porém,  nem  os  compromissos  que  ela  faz  se  contraiam 
podem suprir a lei do amor, se esta não preside à união, resultando, freqüentemente, 
separarem­se  por  si  mesmos  os  que  à  força  se  uniram;  torna­se  um  perjúrio,  se 
pronunciado como  fórmula banal, o juramento feito ao pé  do altar. Daí as uniões 
infelizes,  que  acabam  tornando­se  criminosas,  dupla  desgraça  que  se  evitaria  ao 
estabelecerem­se  as  condições  do  matrimônio,  se  não  abstraísse  da  única  que  o 
sanciona aos olhos de Deus: a lei de amor. Ao dizer Deus: “Não sereis senão uma só 
carne”,  e  quando  Jesus  disse:  “Não  separeis  o  que  Deus  uniu”,  essas  palavras  se 
devem  entender  com  referência  à  união  segundo  a  lei  imutável  de  Deus  e  não 
segundo a lei mutável dos homens. 
4.  Será  então  supérflua  a  lei  civil  e  dever­se­á  volver  aos  casamentos  segundo  a 
Natureza?  Não,  decerto.  A  lei  civil  tem  por  fim  regular  as  relações  sociais  e  os 
interesses das famílias, de acordo com as exigências da civilização; por isso, é útil, 
necessária, mas variável. Deve ser previdente, porque o homem civilizado não pode 
viver como selvagem; nada, entretanto, nada absolutamente se opõe a que ela seja 
um corolário da lei de Deus. Os obstáculos ao cumprimento da lei divina promanam 
dos prejuízos e não da lei civil. Esses prejuízos, se bem ainda vivazes, já perderam 
muito  do  seu  predomínio  no  seio  dos  povos  esclarecidos;  desaparecerão  com  o 
progresso moral que, por fim, abrirá os olhos aos homens para os males sem conto, 
as  faltas,  mesmo  os  crimes  que  decorrem  das  uniões  contraídas  com  vistas 
unicamente nos interesses materiais. Um dia perguntar­se­á o que é mais humano, 
mais caridoso, mais moral: se encadear um ao outro dois seres que não podem viver 
juntos, se restituir­lhes a liberdade; se a perspectiva de uma cadeia indissolúvel não 
aumenta o número de uniões irregulares.
212 – Allan Kardec 
O DIVÓRCIO 
5. O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato, 
está  separado.  Não  é  contrário  à  lei  de  Deus,  pois  que  apenas  reforma  o  que  os 
homens hão feito  e só é aplicável nos casos  em que não se levou em  conta a lei 
divina.  Se  fosse  contrário  a  essa  lei,  a  própria  Igreja  seria  obrigada  a  considerar 
prevaricadores  aqueles  de  seus  chefes  que,  por  autoridade  própria  e  em  nome  da 
religião,  hão  imposto  o  divórcio  em  mais  de  uma  ocasião.  E  dupla  seria  aí  a 
prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses 
materiais e não a satisfação da lei de amor. 
Mas,  nem  mesmo  Jesus  consagrou  a  indissolubilidade  absoluta  do 
casamento. Não disse ele: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés 
permitiu despedísseis vossas mulheres”? Isso significa que, já ao tempo de Moisés, 
não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação podia 
tornar­se  necessária.  Acrescenta,  porém:  “no  princípio,  não  foi  assim”,  isto  é,  na 
origem  da  Humanidade,  quando  os  homens  ainda  não  estavam  pervertidos  pelo 
egoísmo  e pelo  orgulho e  viviam segundo a lei de Deus, as uniões, derivando da 
simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio. 
Vai  mais  longe:  especifica  o  caso  em  que  pode  dar­se  o  repúdio,  o  de 
adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade 
que ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas, cumpre se tenham em 
vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso, 
prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade 
que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo 
casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que, 
como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.
213 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XXIII 
ESTRANHA MORAL
§  ODIAR OS PAIS 
§  ABANDONAR PAI, MÃE E FILHOS 
§  DEIXAR AOS MORTOS O CUIDADO DE 
ENTERRAR SEUS MORTOS 
§  NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A DIVISÃO 
ODIAR OS PAIS 
1.  Como  nas  suas  pegadas  caminhasse  grande  massa  de  povo,  Jesus, 
voltando­se, disse­lhes: “Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai e a 
sua mãe, a sua mulher e a seus filhos, a seus irmãos e irmãs, mesmo a sua 
própria vida, não pode ser meu discípulo. E quem quer que não carregue a 
sua cruz e me siga, não pode ser meu discípulo. Assim, aquele dentre vós 
que não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo”. 
(LUCAS, 14:25 a 27 e 33) 
2. “ Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe, mais do que a mim, de mim 
não é digno; aquele que ama a seu filho ou a sua filha, mais do que a mim, 
de mim não é digno”. 
(MATEUS, 10:37) 
3.  Certas  palavras,  aliás  muito  raras,  atribuídas  ao  Cristo,  fazem  tão  singular 
contraste com o seu modo habitual de falar que, instintivamente, se lhes repele o 
sentido literal, sem que a sublimidade da sua doutrina sofra qualquer dano. Escritas
214 – Allan Kardec 
depois  de  sua  morte,  pois  que nenhum  dos  Evangelhos  foi redigido  enquanto  ele 
vivia, lícito é acreditar­se que, em casos como este, o fundo do seu pensamento não 
foi bem expresso, ou, o que não é menos provável, o sentido primitivo, passando de 
uma língua para outra, há de ter experimentado alguma alteração. Basta que um erro 
se haja cometido uma vez, para que os copiadores o tenham repetido, como se dá 
freqüentemente com relação aos fatos históricos. 
O termo odiar, nesta frase de S. Lucas: Se alguém vem a mim e não odeia a 
seu pai e a sua mãe, está compreendido nessa hipótese. A ninguém acudirá atribuí­la 
a Jesus. Será então supérfluo discuti­la e, ainda menos, tentar justificá­la. Importaria, 
primeiro, saber se ele a pronunciou e, em caso afirmativo, se, na língua em que se 
exprimia, a palavra em questão tinha o mesmo valor que na nossa. Nesta passagem 
de  S.  João:  “Aquele  que  odeia  sua  vida,  neste  mundo,  a  conserva  para  a  vida 
eterna”, é indubitável que ela não exprime a idéia que lhe atribuímos. 
A  língua  hebraica  não  era  rica  e  continha  muitas  palavras  com  várias 
significações.  Tal,  por  exemplo,  a  que,  no  Gênese,  designa  as  fases  da  criação: 
servia, simultaneamente, para exprimir um período qualquer de tempo e a revolução 
diurna. Daí, mais tarde, a sua tradução pelo termo dia e a crença de que o mundo foi 
obra  de  seis  vezes  vinte  e  quatro  horas.  Tal,  também,  a  palavra  com  que  se 
designava  um camelo  e  um cabo, uma  vez  que  os  cabos  eram  feitos  de  pêlos  de 
camelo. Daí o haverem­na traduzido pelo termo camelo, na alegoria do buraco de 
uma agulha. (Ver capítulo XVI no 2) 14 
Cumpre, ao demais, se atenda aos costumes e ao caráter dos povos, pelo 
muito que influem sobre o gênio particular de seus idiomas. Sem esse conhecimento, 
escapa amiúde o sentido verdadeiro de certas palavras. De uma língua para outra, o 
mesmo termo se reveste de maior ou menor energia. Pode, numa, envolver injúria ou 
blasfêmia, e carecer de importância noutra, conforme a idéia que suscite. Na mesma 
língua, algumas palavras perdem seu valor com o correr dos séculos. Por isso é que 
uma  tradução  rigorosamente  literal  nem  sempre  exprime  perfeitamente  o 
pensamento e que, para manter a exatidão, se tem às vezes de empregar, não termos 
correspondentes,  mas  outros  equivalentes,  ou  perífrases.  Estas  notas  encontram 
aplicação  especial  na  interpretação  das  Santas  Escrituras  e,  em  particular,  dos 
Evangelhos. Se se não tiver em conta o meio em que Jesus vivia, fica­se exposto a 
equívocos sobre o valor de certas expressões e de certos fatos, em conseqüência do 
hábito  em  que  se  está  de  assimilar  os  outros  a  si  próprio.  Em  todo  caso,  cumpre 
despojar  o  termo  odiar  da  sua  acepção  moderna,  como  contrária  ao  espírito  do 
ensino de Jesus. (Veja­se também o cap. XIV, nº 5 e seguintes) 
14 
Non odit, em latim: Kaï ou miseï em grego, não quer dizer odiar, porém, amar menos. O que o verbo 
grego miseïn exprime, ainda melhor o expressa o verbo hebreu, de que Jesus se há de ter servido. Esse 
verbo não significa apenas odiar, mas, também amar menos, não amar igualmente, tanto quanto a um 
outro. No dialeto siríaco, do qual, dizem, Jesus usava com mais freqüência, ainda melhor acentuada é 
essa significação. Nesse sentido é que o Gênese (capítulo 29:30­31) diz: “E Jacob amou também mais a 
Raquel do que a Lia, e Jeová, vendo que Lia era odiada...” É evidente que o verdadeiro sentido aqui é: 
menos amada.  Assim  se deve traduzir. Em  muitas  outra passagens  hebraicas e,  sobretudo,  siríacas,  o 
mesmo verbo é empregado no sentido de não amar tanto quanto a outro, de sorte que fora contra­senso 
traduzi­lo por odiar, que tem outra acepção bem determinada. O texto de S. Mateus, aliás, afasta toda a 
dificuldade. (Nota do Sr. Pezzani.)
215 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
ABANDONAR PAI, MÃE E FILHOS 
4. “ Aquele que houver deixado, pelo meu nome, sua casa, os seus irmãos, 
ou suas irmãs, ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou 
suas  terras,  receberá  o  cêntuplo  de  tudo  isso  e  terá  por  herança  a  vida 
eterna”. 
(MATEUS, 19:29) 
5.  Então,  disse­lhe  Pedro:  “Quanto  a  nós,  vês  que  tudo  deixamos  e  te 
seguimos”.  Jesus  lhe  observou:  “Digo­vos,  em  verdade,  que  ninguém 
deixará, pelo reino de Deus, sua casa, ou seu pai, ou sua mãe, ou seus 
irmãos,  ou  sua  mulher,  ou  seus  filhos  que  não  receba,  já  neste  mundo, 
muito mais, e no século vindouro a vida eterna”. 
(LUCAS, 18:28 a 30) 
6.  Disse­lhe  outro:  “Senhor,  eu  te  seguirei;  mas,  permite  que,  antes, 
disponha do que tenho em minha casa”. Jesus lhe respondeu: “Quem quer 
que, tendo posto a mão na charrua, olhar para trás, não está apto para o 
reino de Deus”. 
(LUCAS, 9:61­62) 
Sem  discutir  as  palavras,  deve­se  aqui  procurar  o  pensamento,  que  era, 
evidentemente,  este:  “Os  interesses  da  vida  futura  prevalecem  sobre  todos  os 
interesses  e  todas  as  considerações  humanas”,  porque  esse  pensamento  está  de 
acordo  com  a  substância  da  doutrina  de  Jesus,  ao  passo  que  a  idéia  de  uma 
renunciação à família seria a negação dessa doutrina. 
Não temos, aliás, sob as vistas a aplicação dessas máximas no sacrifício dos 
interesses  e  das  afeições  de  família aos  da  Pátria?  Censura­se,  porventura,  aquele 
que deixa seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua mulher, seus filhos, para marchar em 
defesa do seu país? Não se lhe reconhece, ao contrário, grande mérito em arrancar­se 
às doçuras do lar doméstico, aos liames da amizade, para cumprir um dever? É que, 
então,  há  deveres  que  sobrelevam  a  outros  deveres.  Não  impõe  a  lei  à  filha  a 
obrigação  de  deixar  os  pais,  para  acompanhar  o  esposo?  Formigam no  mundo  os 
casos em que são necessárias as mais penosas separações. Nem por isso, entretanto, 
as afeições se rompem. O afastamento não diminui o respeito, nem a solicitude do 
filho para com os pais, nem a ternura destes para com aquele. Vê­se, portanto, que, 
mesmo  tomadas  ao  pé  da  letra,  excetuado  o  termo  odiar,  aquelas  palavras  não 
seriam uma negação do mandamento que prescreve ao homem honrar a seu pai e a 
sua  mãe, nem  do  afeto  paternal;  com  mais  forte razão, não  o  seriam,  se  tomadas 
segundo  o  espírito.  Tinham  elas  por  fim  mostrar,  mediante  uma  hipérbole,  quão 
imperioso é para a criatura o dever de ocupar­se com a vida futura. Aliás, pouco 
chocantes haviam de ser para um povo e numa época em que, como conseqüência 
dos  costumes,  os  laços  de  família  eram  menos  fortes,  do  que  no  seio  de  uma 
civilização  moral  mais  avançada.  Esses  laços,  mais  fracos  nos  povos  primitivos, 
fortalecem­se com o desenvolvimento da sensibilidade e do senso moral. A própria 
separação é necessária ao progresso. Assim as famílias como as raças se abastardam, 
desde que se não entrecruzem, se não enxertem umas nas outras. É essa uma lei da 
Natureza, tanto no interesse do progresso moral, quanto no do progresso físico.
216 – Allan Kardec 
Aqui,  as  coisas  são  consideradas  apenas  do  ponto  de  vista  terreno.  O 
Espiritismo no­las faz ver de mais alto, mostrando serem os do Espírito e não os do 
corpo  os  verdadeiros  laços  de  afeição;  que  aqueles  laços  não  se  quebram  pela 
separação, nem mesmo pela morte do corpo; que se robustecem na vida espiritual, 
pela  depuração  do  Espírito,  verdade  consoladora  da  qual grande  força  haurem  as 
criaturas, para suportarem as vicissitudes da vida. (Cap. IV, nº18; cap. XIV, nº 8) 
DEIXAR AOS MORTOS O CUIDADO DE ENTERRAR SEUS MORTOS 
7. Disse a outro: “Segue­me”; e o outro respondeu: “Senhor, consente que, 
primeiro, eu vá enterrar meu pai”. Jesus lhe retrucou: “Deixa aos mortos o 
cuidado de enterrar seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o reino de Deus”. 
(LUCAS, 9:59­60) 
8.  Que  podem  significar  estas  palavras:  “Deixa  aos  mortos  o  cuidado  de  enterrar 
seus mortos”? As considerações precedentes mostram, em primeiro lugar, que, nas 
circunstâncias  em  que  foram  proferidas,  não  podiam  conter  censura  àquele  que 
considerava  um  dever  de  piedade  filial  ir  sepultar  seu  pai.  Têm,  no  entanto,  um 
sentido  profundo,  que  só  o  conhecimento  mais  completo  da  vida  espiritual  podia 
tornar perceptível. 
A  vida  espiritual  é,  com  efeito,  a  verdadeira  vida,  é  a  vida  normal  do 
Espírito, sendo­lhe transitória e passageira a existência terrestre, espécie de morte, se 
comparada  ao  esplendor  e  à  atividade  da  outra.  O  corpo  não  passa  de  simples 
vestimenta grosseira que temporariamente cobre o Espírito, verdadeiro grilhão que o 
prende à gleba terrena, do qual se sente ele feliz em libertar­se. O respeito que aos 
mortos  se  consagra  não  é  a  matéria  que  o  inspira;  é,  pela  lembrança,  o  Espírito 
ausente  quem  o  infunde.  Ele  é  análogo  àquele  que  se  vota  aos  objetos  que  lhe 
pertenceram, que ele tocou e que as pessoas que lhe são afeiçoadas guardam como 
relíquias. Era isso o que aquele homem não podia por si mesmo compreender. Jesus 
lho  ensina,  dizendo:  Não  te  preocupes  com  o  corpo,  pensa  antes  no  Espírito;  vai 
ensinar o reino de Deus; vai dizer aos homens que a pátria deles não é a Terra, mas o 
céu, porquanto somente lá transcorre a verdadeira vida. 
NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS, A DIVISÃO 
9. “ Não penseis que eu tenha vindo trazer paz à Terra; não vim trazer a 
paz, mas a espada; porquanto vim separar de seu pai o filho, de sua mãe a 
filha, de sua sogra a nora; e o homem terá por inimigos os de sua própria 
casa”. 
(MATEUS, 10:34 a 36) 
10. “ Vim para lançar fogo à Terra; e que é o que desejo senão que ele se 
acenda?  Tenho  de  ser  batizado  com  um  batismo  e  quanto  me  sinto 
desejoso de que  ele se cumpra! Julgais que eu tenha vindo trazer paz à 
Terra?  Não,  eu  vos  afirmo;  ao  contrário,  vim  trazer  a  divisão;  pois,
217 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
doravante, se se acharem numa casa cinco pessoas, estarão elas divididas 
umas contra as outras: três contra duas e duas contra três. O pai estará em 
divisão com o filho e o filho com o pai, a mãe com a filha e a filha com a 
mãe, a sogra com a nora e a nora com a sogra”. 
(LUCAS, 12:49 a 53) 
11. Será mesmo possível que Jesus, a personificação da doçura e da bondade, Jesus, 
que não cessou de pregar o amor do próximo, haja dito: “Não vim trazer a paz, mas 
a espada; vim separar do pai o filho, do esposo a esposa; vim lançar fogo à Terra e 
tenho  pressa  de  que  ele  se  acenda”?  Não  estarão  essas  palavras  em  contradição 
flagrante com os seus ensinos? Não haverá blasfêmia em lhe atribuírem a linguagem 
de  um  conquistador  sanguinário  e  devastador?  Não,  não  há  blasfêmia,  nem 
contradição  nessas  palavras,  pois  foi  mesmo  ele  quem  as  pronunciou,  e  elas  dão 
testemunho  da  sua  alta  sabedoria.  Apenas,  um  pouco  equívoca,  a  forma  não  lhe 
exprime  com  exatidão  o  pensamento,  o  que  deu  lugar  a  que  se  enganassem 
relativamente ao verdadeiro sentido delas. Tomadas à letra, tenderiam a transformar 
a sua missão, toda de paz, noutra de perturbação e discórdia, conseqüência absurda, 
que o bom­senso repele, porquanto Jesus não podia desmentir­se. (Cap. XIV, nº 6) 
12. Toda idéia nova forçosamente encontra oposição e nenhuma há que se implante 
sem lutas. Ora, nesses casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos 
resultados  previstos,  porque,  quanto  maior  ela  é,  tanto  mais  numerosos  são  os 
interesses que fere. Se for notoriamente falsa, se a julgam isenta de conseqüências, 
ninguém se alarma; deixam­na todos passar, certos de que lhe falta vitalidade. Se, 
porém, é verdadeira, se assenta em sólida base, se lhe prevêem futuro, um secreto 
pressentimento adverte os seus antagonistas de que constitui um perigo para eles e 
para a ordem de coisas em cuja manutenção se empenham. Atiram­se, então, contra 
ela e contra os seus adeptos. 
Assim, pois, a medida da importância e dos resultados de uma idéia nova se 
encontra na  emoção  que  o  seu  aparecimento  causa, na  violência  da  oposição  que 
provoca, bem como no grau e na persistência da ira de seus adversários. 
13. Jesus vinha proclamar uma doutrina que solaparia pela base os abusos de que 
viviam os fariseus, os escribas e os sacerdotes do seu tempo. Imolaram­no, portanto, 
certos de que, matando o homem, matariam a idéia. Esta, porém, sobreviveu, porque 
era  verdadeira;  engrandeceu­se,  porque  correspondia  aos  desígnios  de  Deus  e, 
nascida num  pequeno e  obscuro  burgo  da  Judéia,  foi  plantar  o  seu  estandarte na 
capital  mesma  do  mundo  pagão,  à  face  dos  seus  mais  encarniçados  inimigos, 
daqueles que mais porfiavam em combatê­la, porque subvertia crenças seculares a 
que eles se apegavam muito mais por interesse do que por convicção. Lutas das mais 
terríveis esperavam aí pelos seus apóstolos; foram inumeráveis as vítimas; a idéia, 
no entanto, avolumou­se sempre e triunfou, porque, como verdade, sobrelevava as 
que a precederam. 
14.  É  de  notar­se  que  o  Cristianismo  surgiu  quando  o  Paganismo  já  entrara  em 
declínio  e  se  debatia  contra  as  luzes  da  razão.  Ainda  era  praticado pro  forma;  a
218 – Allan Kardec 
crença, porém, desaparecera; apenas o interesse pessoal o sustentava. Ora, é tenaz o 
interesse; jamais cede à evidência; irrita­se tanto mais quanto mais peremptórios e 
demonstrativos  de  seu  erro  são  os  argumentos  que  se  lhe opõem.  Sabe  ele  muito 
bem que está errado, mas isso não o abala, porquanto a verdadeira fé não lhe está na 
alma. O que mais teme é a luz, que dá vista aos cegos. É­lhe proveitoso o erro; ele se 
lhe agarra e o defende. 
Sócrates, também, não ensinara uma doutrina até certo ponto análoga à do 
Cristo? Por que não prevaleceu naquela época a sua doutrina, no seio de um dos 
povos  mais  inteligentes  da Terra? É  que ainda não  chegara  o  tempo. Ele  semeou 
numa terra não lavrada; o Paganismo ainda se não achava gasto. O Cristo recebeu 
em propício tempo a sua missão. Muito faltava, é certo, para que todos os homens da 
sua época estivessem à altura das idéias cristãs, mas havia entre eles uma aptidão 
mais geral para as assimilar, pois que já se começava a sentir o vazio que as crenças 
vulgares  deixavam  na  alma.  Sócrates  e  Platão  haviam  aberto  o  caminho  e 
predisposto  os  espíritos.  (Veja­se,  na  “Introdução”,  o  §  IV:  Sócrates  e  Platão, 
precursores da idéia cristã e do Espiritismo.) 
15.  Infelizmente,  os  adeptos  da  nova  doutrina  não  se  entenderam  quanto  à 
interpretação  das  palavras  do  Mestre,  veladas,  as mais  das  vezes,  pela  alegoria  e 
pelas  figuras  da  linguagem.  Daí  o  nascerem,  sem  demora,  numerosas  seitas, 
pretendendo  todas  possuir,  exclusivamente,  a  verdade  e  o  não  bastarem  dezoito 
séculos para pô­las de acordo. Olvidando o mais importante dos preceitos divinos, o 
que Jesus colocou por pedra angular do seu edifício e como condição expressa da 
salvação: a caridade, a fraternidade e o amor do próximo, aquelas seitas lançaram 
anátema umas sobre as outras, e umas contra as outras se atiraram, as mais fortes 
esmagando as mais fracas, afogando­as em sangue, aniquilando­as nas torturas e nas 
chamas das  fogueiras.  Vencedores  do  Paganismo,  os  cristãos,  de  perseguidos  que 
eram, fizeram­se perseguidores. A ferro e fogo foi que se puseram a plantar a cruz 
do  Cordeiro  sem  mácula  nos  dois  mundos.  É  fato  constante  que  as  guerras  de 
religião foram as mais cruéis, mais vítimas causaram do que as guerras políticas; em 
nenhumas outras se praticaram tantos atos de atrocidade e de barbárie. 
Cabe  a  culpa  à  doutrina  do  Cristo?  Não,  decerto  que  ela  formalmente 
condena  toda  violência.  Disse  ele  alguma  vez  a  seus  discípulos:  Ide,  matai, 
massacrai,  queimai  os  que  não  crerem  como  vós?  Não;  o  que,  ao  contrário,  lhes 
disse,  foi:  Todos  os  homens  são  irmãos  e  Deus  é  soberanamente  misericordioso; 
amai o vosso próximo; amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos persigam. 
Disse­lhes,  outrossim:  Quem  matar  com  a  espada  pela  espada  perecerá.  A 
responsabilidade,  portanto,  não  pertence  à  doutrina  de  Jesus,  mas  aos  que  a 
interpretaram falsamente e a transformaram em instrumento próprio a lhes satisfazer 
as  paixões;  pertence  aos  que  desprezaram  estas palavras: “Meu  reino  não  é  deste 
mundo.” 
Em  sua  profunda  sabedoria,  ele  tinha  a  previdência  do  que  aconteceria. 
Mas,  essas  coisas  eram  inevitáveis,  porque  inerentes  à  inferioridade  da  natureza 
humana, que não podia transformar­se repentinamente. Cumpria que o Cristianismo 
passasse por essa longa e cruel prova de dezoito séculos, para mostrar toda a sua 
força, visto que, malgrado a todo o mal cometido em seu nome, ele saiu dela puro.
219 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Jamais esteve em causa. As invectivas sempre recaíram sobre os que dele abusaram. 
A  cada  ato  de  intolerância,  sempre  se  disse:  Se  o  Cristianismo  fosse  mais  bem 
compreendido e mais bem praticado, isso não se daria. 
16. Quando Jesus declara: “Não creais que eu tenha vindo trazer a paz, mas, sim, a 
divisão”, seu pensamento era este: 
“Não  creais  que  a  minha  doutrina  se  estabeleça  pacificamente;  ela  trará 
lutas sangrentas, tendo por pretexto o meu nome, porque os homens não me terão 
compreendido, ou não me terão querido compreender. Os irmãos, separados pelas 
suas respectivas  crenças,  desembainharão  a  espada  um  contra  o  outro  e  a  divisão 
reinará  no  seio  de  uma  mesma  família,  cujos  membros  não  partilhem  da  mesma 
crença. Vim lançar fogo à Terra para expungi­la dos erros e dos preconceitos, do 
mesmo modo que se põe fogo a um campo para destruir nele as ervas más, e tenho 
pressa de que o fogo se acenda para que a depuração seja mais rápida, visto que do 
conflito sairá triunfante a verdade. À guerra sucederá a paz; ao ódio dos partidos, a 
fraternidade universal; às trevas do fanatismo, a luz da fé esclarecida. Então, quando 
o campo estiver preparado, eu vos  enviarei o Consolador, o Espírito de Verdade, 
que  virá  restabelecer  todas  as  coisas,  isto  é,  que,  dando  a  conhecer  o  sentido 
verdadeiro  das  minhas  palavras,  que  os  homens  mais  esclarecidos  poderão  enfim 
compreender,  porá  termo  à  luta  fratricida  que  desune  os  filhos  do  mesmo  Deus. 
Cansados,  afinal,  de  um  combate  sem  resultado,  que  consigo  traz  unicamente  a 
desolação  e a perturbação até ao seio das  famílias, reconhecerão  os homens onde 
estão seus  verdadeiros interesses, com relação a este mundo e ao  outro. Verão de 
que lado estão os amigos e os inimigos da tranqüilidade deles. Todos então se porão 
sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas serão restabelecidas na Terra, de 
acordo com a verdade e os princípios que vos tenho ensinado.” 
17.  O  Espiritismo  vem  realizar,  na  época  prevista,  as  promessas  do  Cristo. 
Entretanto, não o pode  fazer sem destruir os abusos. Como Jesus, ele topa com o 
orgulho, o egoísmo, a ambição, a cupidez, o fanatismo cego, os quais, levados às 
suas  últimas  trincheiras,  tentam  barrar­lhe  o  caminho  e  lhe  suscitam  entraves  e 
perseguições. Também ele, portanto, tem de combater; mas, o tempo das lutas e das 
perseguições sanguinolentas passou; são todas de ordem moral as que terá de sofrer 
e  próximo  lhes  está  o  termo.  As  primeiras  duraram  séculos;  estas  durarão  apenas 
alguns anos, porque a luz, em vez de partir de um único foco, irrompe de todos os 
pontos do Globo e abrirá mais de pronto os olhos aos cegos. 
8. Essas palavras de Jesus devem, pois, entender­se com referência às cóleras que a 
sua doutrina provocaria, aos conflitos momentâneos a que ia dar causa, às lutas que 
teria de sustentar antes de se firmar, como aconteceu aos hebreus antes de entrarem 
na  Terra  Prometida,  e  não  como  decorrentes  de  um  desígnio  premeditado  de  sua 
parte de semear a desordem e a confusão. O mal viria dos homens e não dele, que 
era como o médico que se apresenta para curar, mas cujos remédios provocam uma 
crise salutar, atacando os maus humores do doente.
220 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XXIV 
NÃO PONHAIS A CANDEIA
EMBAIXO DO ALQUEIRE
·  CANDEIA SOBRE O ALQUEIRE. 
POR QUE JESUS FALAVA POR PARÁBOLAS
·  NÃO VADES TER COM OS GENTIOS
·  NÃO SÃO OS QUE GOZAM DE SAÚDE 
QUE PRECISAM DE MÉDICO
·  CORAGEM DA FÉ
·  CARREGAR A CRUZ. 
QUEM QUISER SALVAR A VIDA, PERDÊ­LA­Á 
CANDEIA SOB O ALQUEIRE. 
POR QUE FALA JESUS POR PARÁBOLAS 
1. “ Ninguém acende uma candeia para pô­la debaixo do alqueire; põe­na, 
ao contrário, sobre o candeeiro, a fim de que ilumine a todos os que estão 
na casa”. 
(MATEUS, 5:15) 
2. “ Ninguém há que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um 
vaso, ou a ponha debaixo da cama; põe­na sobre o candeeiro, a fim de que 
os  que  entrem  vejam  a  luz;  pois  nada  há  secreto  que  não  haja  de  ser 
descoberto, nem nada oculto que não haja de ser conhecido e de aparecer 
publicamente”. 
(LUCAS, 8:16 e 17) 
3.  Aproximando­se,  disseram­lhe  os  discípulos:  “Por  que  lhes  falas  por 
parábolas?” Respondendo­ lhes, disse ele: “É porque, a vós outros, foi dado 
conhecer  os  mistérios  do  reino  dos  céus;  mas,  a  eles,  isso  não  lhes  foi
221 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
dado 15 
.  Porque,  àquele  que  já  tem,  mais  se  lhe  dará  e  ele  ficará  na 
abundância;  àquele,  entretanto,  que  não  tem,  mesmo  o  que  tem  se  lhe 
tirará. Falo­lhes por parábolas, porque, vendo, não vêem e, ouvindo, não 
escutam e não compreendem. E neles se cumprirá a profecia de Isaías, que 
diz:  ‘Ouvireis  com  os  vossos  ouvidos  e  não  escutareis;  olhareis  com  os 
vossos  olhos  e  não  vereis’.  Porque,  o  coração  deste  povo  se  tornou 
pesado, e seus ouvidos se tornaram surdos e fecharam os olhos para que 
seus olhos não vejam e seus ouvidos não ouçam, para que seu coração 
não compreenda e para que, tendo­se convertido, eu não os cure”. 
(MATEUS, 13:10 a 15) 
4. É de causar admiração diga Jesus que a luz não deve  ser  colocada debaixo do 
alqueire, quando ele próprio constantemente oculta o sentido de suas palavras sob o 
véu da alegoria, que nem todos podem compreender. Ele se explica, dizendo a seus 
apóstolos: “Falo­lhes por parábolas, porque não estão em condições de compreender 
certas coisas. Eles vêem, olham, ouvem, mas não entendem. Fora, pois, inútil tudo 
dizer­lhes, por enquanto. Digo­o, porém, a vós, porque dado vos  foi compreender 
estes mistérios.” Procedia, portanto, com o povo, como se faz com crianças cujas 
idéias  ainda  se  não  desenvolveram.  Desse  modo,  indica  o  verdadeiro  sentido  da 
sentença: “Não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, mas sobre o candeeiro, a 
fim de que todos os que entrem a possam ver.” Tal sentença não significa que se 
deva  revelar  inconsideradamente  todas  as  coisas.  Todo  ensinamento  deve  ser 
proporcionado à inteligência daquele a quem se queira instruir, porquanto há pessoas 
a quem uma luz por demais viva deslumbraria, sem as esclarecer. 
Dá­se  com  os  homens,  em  geral,  o  que  se  dá  em  particular  com  os 
indivíduos.  As  gerações  têm  sua  infância,  sua  juventude  e  sua  maturidade.  Cada 
coisa tem de vir na época própria; a semente lançada à terra, fora da estação, não 
germina. Mas, o que a prudência manda calar, momentaneamente, cedo ou tarde será 
descoberto, porque, chegados a certo grau de desenvolvimento, os homens procuram 
por  si  mesmos  a luz  viva;  pesa­lhes  a  obscuridade. Tendo­lhes  Deus  outorgado  a 
inteligência para compreenderem e se guiarem por entre as coisas da Terra e do céu, 
eles tratam de raciocinar sobre sua fé. É então que não se deve pôr a candeia debaixo 
do alqueire, visto que, sem a luz da razão, desfalece a fé. (Cap. XIX, nº 7) 
5. Se, pois, em sua previdente sabedoria, a Providência só gradualmente revela as 
verdades, é claro que as desvenda à proporção que a Humanidade se vai mostrando 
amadurecida  para as receber. Ela as mantém  de reserva  e não  sob  o  alqueire.  Os 
homens, porém, que entram a possuí­las, quase sempre as ocultam do vulgo com o 
intento de o dominarem. São esses os que, verdadeiramente, colocam a luz debaixo 
do alqueire. É por isso que todas as religiões têm tido seus mistérios, cujo exame 
proíbem.  Mas,  ao  passo  que  essas  religiões  iam  ficando  para  trás,  a  Ciência  e  a 
inteligência avançaram e romperam o véu misterioso. Havendo­se tornado adulto, o 
vulgo  entendeu  de  penetrar  o  fundo  das  coisas  e  eliminou  de  sua  fé  o  que  era 
contrário à observação. 
15 
1 No original francês falta o versículo 12 que aqui repomos. – A Editora da FEB, em 1948.
222 – Allan Kardec 
Não podem existir mistérios absolutos e Jesus está com a razão quando diz 
que nada há secreto que não venha a ser conhecido. Tudo o que se acha oculto será 
descoberto  um  dia  e  o  que  o  homem  ainda  não  pode  compreender  lhe  será 
sucessivamente  desvendado,  em  mundos  mais  adiantados,  quando  se  houver 
purificado. Aqui na Terra, ele ainda se encontra em pleno nevoeiro. 
6. Pergunta­se: que proveito podia o povo tirar dessa multidão de parábolas, cujo 
sentido  se  lhe  conservava  impenetrável?  É  de  notar­se  que  Jesus  somente  se 
exprimiu por parábolas sobre as partes de certo modo abstratas da sua doutrina. Mas, 
tendo feito da caridade para com o próximo e da humildade condições  básicas da 
salvação,  tudo  o  que  disse  a  esse  respeito  é  inteiramente  claro,  explícito  e  sem 
ambigüidade  alguma.  Assim  devia  ser,  porque  era  a  regra  de  conduta,  regra  que 
todos  tinham  de  compreender  para  poderem  observá­la.  Era  o  essencial  para  a 
multidão ignorante, à qual ele se limitava a dizer: “Eis o que é preciso se faça para 
ganhar o reino dos céus.” Sobre as outras partes, apenas aos discípulos desenvolvia 
o seu pensamento. Por serem eles mais adiantados, moral e intelectualmente, Jesus 
pôde iniciá­los no conhecimento de verdades mais abstratas. Daí o haver dito: Aos 
que já têm, ainda mais se dará. (Cap. XVIII, nº 15) 
Entretanto,  mesmo  com  os  apóstolos,  conservou­se  impreciso  acerca  de 
muitos  pontos,  cuja  completa  inteligência  ficava  reservada  a  ulteriores  tempos. 
Foram  esses  pontos  que  deram  ensejo  a  tão  diversas  interpretações,  até  que  a 
Ciência, de um lado, e o Espiritismo, de outro, revelassem as novas leis da Natureza, 
que lhes tornaram perceptível o verdadeiro sentido. 
7. O Espiritismo, hoje, projeta luz sobre uma imensidade de pontos obscuros; não a 
lança,  porém,  inconsideradamente.  Com  admirável  prudência  se  conduzem  os 
Espíritos, ao darem suas instruções. Só gradual e sucessivamente consideraram as 
diversas  partes  já  conhecidas  da  Doutrina,  deixando  as  outras  partes  para  serem 
reveladas à medida que se for tornando oportuno fazê­las sair da obscuridade. Se a 
houvessem  apresentado  completa  desde  o  primeiro  momento,  somente  a reduzido 
número de pessoas se teria ela mostrado acessível; houvera mesmo assustado as que 
não se achassem preparadas para recebê­la, do que resultaria ficar prejudicada a sua 
propagação.  Se,  pois,  os  Espíritos  ainda  não  dizem  tudo  ostensivamente,  não  é 
porque haja na Doutrina mistérios em que só alguns privilegiados possam penetrar, 
nem porque eles coloquem a lâmpada debaixo do alqueire; é porque cada coisa tem 
de  vir  no  momento  oportuno.  Eles  dão  a  cada  idéia  tempo  para  amadurecer  e 
propagar­se,  antes  que  apresentem  outra,  e  aos  acontecimentos  o  de  preparar  a 
aceitação dessa outra. 
NÃO VADES TER COM OS GENTIOS 
8.  Jesus  enviou  seus  doze  apóstolos,  depois  de  lhes  haver  dado  as 
instruções seguintes: “Não procureis os gentios e não entreis nas cidades 
dos  samaritanos.  Ide,  antes,  em  busca  das  ovelhas perdidas  da  casa  de 
Israel;  e,  nos  lugares  onde  fordes,  pregai, dizendo  que  o  reino  dos céus 
está próximo”. 
(MATEUS, 10:5 a 7)
223 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
9. Em muitas circunstâncias, prova Jesus que suas vistas não se circunscrevem ao 
povo  judeu,  mas  que  abrangem  a  Humanidade  toda.  Se,  portanto,  diz  a  seus 
apóstolos que não vão ter com os pagãos, não é que desdenhe da conversão deles, o 
que  nada  teria  de  caridoso;  é  que  os  judeus,  que  já  acreditavam  no  Deus  uno  e 
esperavam o Messias, estavam preparados, pela lei de Moisés e pelos profetas, a lhes 
acolherem a palavra. Com os pagãos, onde até mesmo a base faltava, estava tudo por 
fazer  e  os  apóstolos  não  se  achavam  ainda  bastante  esclarecidos  para  tão  pesada 
tarefa. Foi por isso que lhes disse: “Ide em busca das ovelhas transviadas de Israel”, 
isto é, ide semear em terreno já arroteado. Sabia que a conversão dos gentios se daria 
a seu tempo. Mais tarde, com efeito,  os apóstolos  foram plantar a cruz no centro 
mesmo do Paganismo. 
10. Essas palavras podem também aplicar­se aos adeptos e aos disseminadores do 
Espiritismo. Os incrédulos sistemáticos, os zombadores obstinados, os adversários 
interessados  são  para  eles  o  que  eram  os  gentios  para  os  apóstolos.  Que,  pois,  a 
exemplo destes, procurem, primeiramente, fazer prosélitos entre os de boa vontade, 
entre os que desejam luz, nos quais um gérmen fecundo se encontra e cujo número é 
grande, sem perderem tempo com os que não querem ver, nem ouvir e tanto mais 
resistem,  por  orgulho,  quanto  maior  for  a  importância  que  se  pareça  ligar  à  sua 
conversão. Mais vale abrir os olhos a cem cegos que desejam ver claro, do que a um 
só  que  se  compraza  na  treva,  porque,  assim  procedendo,  em  maior  proporção  se 
aumentará o número dos sustentadores da causa. Deixar tranqüilos os outros não é 
dar  mostra  de  indiferença,  mas  de  boa  política.  Chegar­lhes­á  a  vez,  quando 
estiverem dominados pela opinião geral e ouvirem a mesma coisa incessantemente 
repetida  ao  seu  derredor.  Aí,  julgarão  que  aceitam  voluntariamente,  por  impulso 
próprio, a idéia, e não por pressão de outrem. Depois, há idéias que são como as 
sementes: não podem germinar fora da estação apropriada, nem em terreno que não 
tenha sido de antemão preparado, pelo que melhor é se espere o tempo propício e se 
cultivem primeiro as que germinem, para não acontecer que abortem as outras, em 
virtude de um cultivo demasiado intenso. 
Na  época  de  Jesus  e  em  conseqüência  das  idéias  acanhadas  e  materiais 
então em curso, tudo se circunscrevia e localizava. A casa de Israel era um pequeno 
povo;  os  gentios  eram  outros  pequenos  povos  circunvizinhos.  Hoje,  as  idéias  se 
universalizam  e  espiritualizam.  A  luz  nova  não  constitui  privilégio  de  nenhuma 
nação; para ela não existem barreiras, tem o seu  foco em  toda a parte e todos  os 
homens são irmãos. Mas, também, os gentios já não são um povo, são apenas uma 
opinião com que se topa em toda parte e da qual a verdade triunfa pouco a pouco, 
como do Paganismo triunfou o Cristianismo. Já não são combatidos com armas de 
guerra, mas com a força da idéia.
224 – Allan Kardec 
NÃO SÃO OS QUE GOZAM SAÚDE QUE PRECISAM DE MÉDICO 
11. Estando Jesus à mesa em casa desse homem (Mateus), vieram aí ter 
muitos publicanos e gente de má vida, que se puseram à mesa com Jesus 
e  seus  discípulos;  o  que  fez  que  os  fariseus,  notando­o,  dissessem  aos 
discípulos: “Como é que o vosso Mestre come com publicanos e pessoas 
de má vida?” Tendo­os ouvido, disse­lhes Jesus: “Não são os que gozam 
saúde que precisam de médico”. 
(MATEUS, 9:10 a 12) 
12. Jesus se acercava, principalmente, dos pobres e dos deserdados, porque são os 
que mais necessitam de consolações; dos cegos dóceis e de boa­fé, porque pedem se 
lhes  dê  a  vista,  e  não  dos  orgulhosos  que  julgam  possuir  toda  a  luz  e  de  nada 
precisar. (Veja­se: “Introdução”, artigo: Publicanos, Portageiros.) 
Essas palavras, como tantas outras, encontram no Espiritismo a aplicação 
que lhes cabe. Há quem se admire de que, por vezes, a mediunidade seja concedida a 
pessoas  indignas,  capazes  de  a  usarem  mal.  Parece,  dizem,  que  tão  preciosa 
faculdade devera ser atributo exclusivo dos de maior merecimento. 
Digamos,  antes  de  tudo,  que  a mediunidade  é  inerente  a uma  disposição 
orgânica, de que qualquer homem pode ser  dotado, como  da de ver, de ouvir, de 
falar. Ora, nenhuma há de que o homem, por efeito do seu livre­arbítrio, não possa 
abusar,  e  se  Deus  não  houvesse  concedido,  por  exemplo,  a  palavra  senão  aos 
incapazes de proferirem coisas más, maior seria o número dos mudos do que o dos 
que falam. Deus outorgou faculdades ao homem e lhe dá a liberdade de usá­las, mas 
não deixa de punir o que delas abusa. 
Se só aos mais dignos fosse  concedida a faculdade de comunicar com os 
Espíritos, quem ousaria pretendê­la? Onde, ao demais, o limite entre a dignidade e a 
indignidade? A mediunidade é conferida sem distinção, a fim de que os Espíritos 
possam trazer a luz a todas as camadas, a todas as classes da sociedade, ao pobre 
como ao rico; aos retos, para os fortificar no bem, aos viciosos para os corrigir. Não 
são estes últimos os doentes que necessitam de médico? Por que Deus, que não quer 
a morte do pecador, o privaria do socorro que o pode arrancar ao lameiro? Os bons 
Espíritos lhe vêm em auxílio e seus conselhos, dados diretamente, são de natureza a 
impressioná­lo de modo mais vivo, do que se os recebesse indiretamente. Deus, em 
sua bondade, para lhe poupar o trabalho de ir buscá­la longe, nas mãos lhe coloca a 
luz. Não será ele bem mais culpado, se não a quiser ver? Poderá desculpar­se com a 
sua  ignorância,  quando  ele  mesmo  haja  escrito  com  suas  mãos,  visto  com  seus 
próprios  olhos,  ouvido  com  seus  próprios  ouvidos,  e  pronunciado  com  a  própria 
boca  a  sua  condenação?  Se  não  aproveitar,  será  então  punido  pela  perda  ou  pela 
perversão da faculdade que lhe fora outorgada e da qual, nesse caso, se aproveitam 
os maus Espíritos para o obsidiarem e enganarem, sem prejuízo das aflições reais 
com  que  Deus  castiga  os  servidores  indignos  e  os  corações  que  o  orgulho  e  o 
egoísmo endureceram. 
A  mediunidade  não  implica  necessariamente  relações  habituais  com  os 
Espíritos  superiores.  É  apenas  uma  aptidão  para  servir  de  instrumento  mais  ou 
menos  dúctil  aos  Espíritos,  em  geral.  O  bom  médium,  pois,  não  é  aquele  que
225 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
comunica facilmente, mas aquele que é simpático aos bons Espíritos e somente deles 
tem assistência. Unicamente neste sentido é que a excelência das qualidades morais 
se torna onipotente sobre a mediunidade. 
CORAGEM DA FÉ 
13.  “ Aquele  que  me  confessar  e  me  reconhecer  diante  dos  homens,  eu 
também o reconhecerei e confessarei diante de meu Pai que está nos céus; 
e aquele que me renegar diante dos homens, também eu o renegarei diante 
de meu Pai que está nos céus”. 
(MATEUS, 10:32 e 33) 
14. “ Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, o Filho do 
homem também dele se envergonhará, quando vier na sua glória e na de 
seu Pai e dos santos anjos”. 
(LUCAS, 9:26) 
15.  A  coragem  das  opiniões  próprias  sempre  foi  tida  em  grande  estima  entre  os 
homens, porque há mérito em afrontar os perigos, as perseguições, as contradições e 
até os simples sarcasmos, aos quais se expõe, quase sempre, aquele que não teme 
proclamar abertamente idéias que não são as de toda gente. Aqui, como em tudo, o 
merecimento  é  proporcionado  às  circunstâncias  e  à  importância  do resultado.  Há 
sempre fraqueza em recuar alguém diante das conseqüências que lhe acarreta a sua 
opinião e  em renegá­la; mas, há casos em que isso constitui covardia tão grande, 
quanto fugir no momento do combate. 
Jesus  profliga  essa  covardia,  do  ponto  de  vista  especial  da  sua  doutrina, 
dizendo  que,  se  alguém  se  envergonhar  de  suas  palavras,  desse  também  ele  se 
envergonhará; que renegará aquele que o haja renegado; que reconhecerá, perante o 
Pai  que  está  nos  céus,  aquele  que  o  confessar  diante  dos  homens.  Por  outras 
palavras:  aqueles  que  se  houverem  arreceado  de  se  confessarem  discípulos  da 
verdade não são dignos de se verem admitidos no reino da verdade. Perderão as 
vantagens da fé que alimentem, porque se trata de uma fé egoísta que eles guardam 
para  si,  ocultando­a  para  que  não  lhes  traga  prejuízo  neste  mundo,  ao  passo  que 
aqueles  que,  pondo  a  verdade  acima  de  seus  interesses  materiais,  a  proclamam 
abertamente, trabalham pelo seu próprio futuro e pelo dos outros. 
16. Assim será com os adeptos do Espiritismo. Pois que a doutrina que professam 
mais não é do que o desenvolvimento e a aplicação da do Evangelho, também a eles 
se  dirigem  as  palavras  do  Cristo.  Eles  semeiam na  Terra o  que  colherão  na  vida 
espiritual. Colherão lá os frutos da sua coragem ou da sua fraqueza. 
CARREGAR SUA CRUZ. 
QUEM QUISER SALVAR A VIDA, PERDÊ­LA­Á 
17.  “ Bem­ditosos  sereis,  quando  os  homens  vos  odiarem  e  separarem, 
quando vos tratarem injuriosamente, quando repelirem como mau o vosso
226 – Allan Kardec 
nome,  por  causa  do  Filho  do  homem.  Rejubilai  nesse  dia  e  ficai  em 
transportes de alegria, porque grande recompensa vos está reservada no 
céu, visto que era assim que os pais deles tratavam os profetas”. 
(LUCAS, 6:22 e 23) 
18.  Chamando  para  perto  de  si  o  povo  e  os  discípulos,  disse­lhes:  “Se 
alguém quiser vir nas minhas pegadas, renuncie a si mesmo, tome a sua 
cruz e siga­me; porquanto, aquele que se quiser salvar a si mesmo, perder­ 
se­á; e aquele que se perder por amor de mim e do Evangelho se salvará. 
Com efeito, de que serviria a um homem ganhar o mundo todo e perder­se 
a si mesmo?” 
(MARCOS, 8:34 a 36; LUCAS, 9:23 a 25; MATEUS, 10:38 e 39; JOÃO, 12:25 e 26) 
19. “Rejubilai­vos, diz Jesus, quando os homens vos odiarem e perseguirem 
por minha causa, visto que sereis recompensados no céu.” Podem traduzir­ 
se assim essas verdades: “Considerai­vos ditosos, quando haja homens que, 
pela  sua  má  vontade  para  convosco,  vos  dêem  ocasião  de  provar  a 
sinceridade  da  vossa  fé,  porquanto  o  mal  que  vos  façam  redundará  em 
proveito vosso. Lamentai­lhes a cegueira, porém, não os maldigais.” 
Depois, acrescenta: “Tome a sua cruz aquele que me quiser seguir”, 
isto é, suporte corajosamente as tribulações que sua fé lhe acarretar, dado 
que  aquele  que  quiser  salvar a  vida  e  seus  bens,  renunciando­me  a  mim, 
perderá as vantagens do reino dos céus, enquanto os que tudo houverem 
perdido neste mundo, mesmo a vida, para que a verdade triunfe, receberão, 
na vida futura, o prêmio da coragem, da perseverança e da abnegação de 
que  deram  prova.  Mas,  aos  que  sacrificam  os  bens  celestes  aos  gozos 
terrestres, Deus dirá: “Já recebestes a vossa recompensa.”
227 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
CAPÍTULO XXV 
BUSCAI E ACHAREIS
·  AJUDA­TE A TI MESMO, QUE O CÉU TE AJUDARÁ
·  OBSERVAI OS PÁSSAROS NO CÉU
·  NÃO VOS AFADIGUEIS PELA POSSE DO OURO 
AJUDA­TE A TI MESMO, QUE O CÉU TE AJUDARÁ 
1. “ Pedi e se vos dará; buscai e achareis; batei à porta e se vos abrirá; 
porquanto, quem pede recebe e quem procura acha e, àquele que bata à 
porta, abrir­se­á. Qual o homem, dentre vós, que dá uma pedra ao filho que 
lhe  pede  pão?  Ou,  se pedir  um peixe,  dar­lhe­á  uma  serpente?  Ora,  se, 
sendo maus  como  sois, sabeis dar  boas  coisas  aos  vossos  filhos,  não  é 
lógico que, com mais forte razão, vosso Pai que está nos céus dê os bens 
verdadeiros  aos  que  lhos  pedirem?  Bens  verdadeiros  aos  que  lhos 
pedirem?” 
(MATEUS, 7:7 a 11) 
2. Do ponto de vista terreno, a máxima: Buscai e achareis é análoga a esta outra: 
Ajuda­te a ti mesmo, que o céu te ajudará. É o princípio da lei do trabalho e, por 
conseguinte, da lei do progresso, porquanto o progresso é filho do trabalho, visto 
que este põe em ação as forças da inteligência. 
Na  infância  da  Humanidade,  o homem  só  aplica  a inteligência  à  cata  do 
alimento,  dos  meios  de  se  preservar  das  intempéries  e  de  se  defender  dos  seus 
inimigos.  Deus,  porém,  lhe  deu,  a  mais  do  que  outorgou  ao  animal,  o  desejo 
incessante do melhor, e é esse desejo que o impele à pesquisa dos meios de melhorar 
a  sua  posição,  que  o  leva  às  descobertas,  às  invenções,  ao  aperfeiçoamento  da 
Ciência,  porquanto  é  a  Ciência  que  lhe  proporciona  o  que  lhe  falta.  Pelas  suas 
pesquisas, inteligência se lhe engrandece, o moral se lhe depura. Às necessidades do
228 – Allan Kardec 
corpo sucedem as do espírito: depois do alimento material, precisa ele do alimento 
espiritual. É assim que o homem passa da selvageria à civilização. 
Mas, bem pouca coisa é, imperceptível mesmo, em grande número deles, o 
progresso  que  cada  um  realiza  individualmente  no  curso  da  vida.  Como  poderia 
então progredir a Humanidade, sem a preexistência e a reexistência da alma? Se as 
almas se fossem todos os dias, para não mais voltarem, a Humanidade se renovaria 
incessantemente com os elementos primitivos, tendo de fazer tudo, de aprender tudo. 
Não haveria, nesse caso, razão para que o homem se achasse hoje mais adiantado do 
que nas primeiras idades do mundo, uma vez que a cada nascimento todo o trabalho 
intelectual  teria  de  recomeçar.  Ao  contrário,  voltando  com  o  progresso  que  já 
realizou e adquirindo de cada vez alguma coisa a mais, a alma passa gradualmente 
da barbárie à civilização material e desta à civilização moral. (Vede: cap. IV, nº 17) 
3.  Se  Deus  houvesse  isentado  do  trabalho  do  corpo  o  homem,  seus  membros  se 
teriam  atrofiado;  se  o  houvesse  isentado  do  trabalho  da  inteligência,  seu  espírito 
teria permanecido na infância, no estado de instinto animal. Por isso é que lhe fez do 
trabalho  uma necessidade  e  lhe  disse: Procura e acharás; trabalha e produzirás. 
Dessa maneira serás filho das tuas obras, terás delas o mérito e serás recompensado 
de acordo com o que hajas feito. 
4. Em virtude desse princípio é que os Espíritos não acorrem a poupar o homem ao 
trabalho das pesquisas, trazendo­lhe, já feitas e prontas a ser utilizadas, descobertas e 
invenções, de modo a não ter ele mais do que tomar o que lhe ponham nas mãos, 
sem o incômodo, sequer, de abaixar­se para apanhar, nem mesmo o de pensar. Se 
assim fosse, o mais preguiçoso poderia enriquecer­se e o mais ignorante tornar­se 
sábio à custa de nada e ambos se atribuírem o mérito do que não fizeram. Não, os 
Espíritos não vêm isentar o homem da lei do trabalho: vêm unicamente mostrar­lhe 
a meta que lhe cumpre atingir e o caminho que a ela conduz, dizendo­lhe: Anda e 
chegarás. Toparás com pedras; olha e afasta­as tu mesmo. Nós te daremos a força 
necessária, se a quiseres empregar. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVI, nos 291 e 
seguintes) 
5. Do ponto de vista moral, essas palavras de Jesus significam: Pedi a luz que vos 
clareie o caminho e ela vos será dada; pedi forças para resistirdes ao mal e as tereis; 
pedi a assistência dos bons Espíritos e eles virão acompanhar­vos e, como o anjo de 
Tobias,  vos  guiarão;  pedi  bons  conselhos  e  eles  não  vos  serão  jamais  recusados; 
batei à nossa porta e ela se vos abrirá; mas, pedi sinceramente, com fé, confiança e 
fervor;  apresentai­vos  com  humildade  e  não  com  arrogância,  sem  o  que  sereis 
abandonados às  vossas próprias forças e as quedas que derdes serão o castigo do 
vosso orgulho. Tal o sentido das palavras: buscai e achareis; batei e abrir­se­vos­á. 
OBSERVAI OS PÁSSAROS DO CÉU 
6.  “ Não  acumuleis  tesouros  na  Terra,  onde  a  ferrugem  e  os  vermes  os 
comem e onde os ladrões os desenterram e roubam; acumulai tesouros no
229 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
céu,  onde  nem  a  ferrugem,  nem  os  vermes  os  comem; porquanto,  onde 
está o vosso tesouro aí está também o vosso coração.” 
“ Eis por que vos digo: Não vos inquieteis por saber onde achareis 
o que comer para sustento da vossa vida, nem de onde tirareis vestes para 
cobrir o vosso corpo. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais 
do que as vestes? Observai os pássaros do céu: não semeiam, não ceifam, 
nada guardam em celeiros; mas, vosso Pai celestial os alimenta. Não sois 
muito mais do que eles? E qual, dentre vós, o que pode, com todos os seus 
esforços, aumentar de um côvado a sua estatura? Por que, também, vos 
inquietais  pelo  vestuário?  Observai  como  crescem  os  lírios  dos  campos: 
não trabalham, nem fiam; entretanto, eu vos declaro que nem Salomão, em 
toda  a  sua  glória, jamais  se  vestiu  como  um  deles.  Ora, se  Deus  tem  o 
cuidado  de  vestir  dessa  maneira  a  erva  dos  campos,  que  existe  hoje  e 
amanhã será lançada na fornalha, quanto maior cuidado não terá em vos 
vestir,  ó  homens  de  pouca  fé!  Não  vos  inquieteis,  pois,  dizendo:  Que 
comeremos?  Ou:  que  beberemos?  Ou:  de  que  nos  vestiremos?  Como 
fazem  os  pagãos,  que  andam  à  procura  de  todas  essas  coisas;  porque 
vosso Pai sabe que tendes necessidade delas”. 
“ Buscai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, que todas 
essas coisas vos serão dadas de acréscimo. Assim, pois, não vos ponhais 
inquietos pelo dia de amanhã, porquanto o amanhã cuidará de si. A cada 
dia basta o seu mal”. 
(MATEUS, 6:19 a 21 e 25 a 34) 
7. Interpretadas à letra, essas palavras seriam a negação de toda previdência, de todo 
trabalho  e,  conseguintemente,  de  todo  progresso.  Com  semelhante  princípio,  o 
homem  limitar­se­ia  a  esperar  passivamente.  Suas  forças  físicas  e  intelectuais 
conservar­se­iam  inativas.  Se  tal  fora  a  sua  condição  normal  na  Terra,  jamais 
houvera ele saído do estado primitivo e, se dessa condição fizesse ele a sua lei para a 
atualidade, só lhe caberia viver sem fazer coisa alguma. Não pode ter sido esse o 
pensamento de Jesus, pois estaria em contradição com o que disse de outras vezes, 
com as próprias leis da Natureza. Deus criou o homem sem vestes e sem abrigo, mas 
deu­lhe a inteligência para fabricá­los. (Cap. XIV, nº 6; cap. XXV, nº 2) 
Não  se  deve,  portanto,  ver,  nessas  palavras,  mais  do  que  uma  poética 
alegoria  da  Providência,  que  nunca  deixa  ao  abandono  os  que  nela  confiam, 
querendo, todavia, que esses, por seu lado, trabalhem. Se ela nem sempre acode com 
um  auxílio  material, inspira  as  idéias  com  que  se  encontram  os  meios  de  sair  da 
dificuldade. (Cap. XXVII, nº 8) 
Deus conhece as nossas necessidades e a elas provê, como for necessário. O 
homem, porém, insaciável nos seus desejos, nem sempre sabe contentar­se com o 
que tem: o necessário não lhe basta; reclama o supérfluo. A Providência, então, o 
deixa entregue a si mesmo. Freqüentemente, ele se torna infeliz por culpa sua e por 
haver desatendido à voz que por intermédio da consciência o advertia. Nesses casos, 
Deus fá­lo sofrer as conseqüências, a fim de que lhe sirvam de lição para o futuro. 
(Cap. V, nº 4) 
8. A Terra produzirá o suficiente para alimentar a todos os seus habitantes, 
quando os homens souberem administrar, segundo as leis de justiça, de caridade e de 
amor ao próximo, os bens que ela dá. Quando a fraternidade reinar entre os povos,
230 – Allan Kardec 
como entre as províncias de um mesmo império, o momentâneo supérfluo de um 
suprirá a momentânea insuficiência do outro; e cada um terá o necessário. O rico, 
então, considerar­se­á como um que possui grande quantidade de sementes; se as 
espalhar, elas produzirão pelo cêntuplo para si e para os outros; se, entretanto, comer 
sozinho as sementes, se as desperdiçar e deixar se perca o excedente do que haja 
comido, nada produzirão, e não haverá o bastante para todos. Se as amontoar no seu 
celeiro, os vermes as devorarão. Daí o haver Jesus dito: “Não acumuleis tesouros na 
Terra, pois que são perecíveis; acumulai­os no céu, onde são eternos.” Em outros 
termos:  não  ligueis  aos  bens  materiais  mais  importância  do  que  aos  espirituais  e 
sabei sacrificar os primeiros aos segundos. (Cap. XVI, nº 7 e seguintes) 
A caridade e a fraternidade não se decretam em leis. Se uma e outra não 
estiverem no coração, o egoísmo aí sempre imperará. Cabe ao Espiritismo fazê­las 
penetrar nele. 
NÃO VOS AFADIGUEIS PELA POSSE DO OURO 
9. “ Não vos afadigueis por possuir ouro, ou prata, ou qualquer outra moeda 
em vossos bolsos. Não prepareis saco para a viagem, nem dois fatos, nem 
calçados, nem cajados, porquanto aquele que trabalha merece sustentado”. 
10.  “ Ao  entrardes  em  qualquer  cidade  ou  aldeia,  procurai  saber  quem  é 
digno  de  vos  hospedar  e  ficai  na  sua  casa  até  que  partais  de  novo. 
Entrando na casa, saudai­a assim: ‘Que a paz seja nesta casa’. Se a casa 
for digna disso, a vossa paz virá sobre ela; se não o for, a vossa paz voltará 
para vós. Quando alguém não vos queira receber, nem escutar, sacudi, ao 
sairdes  dessa  casa  ou  cidade,  a  poeira  dos  vossos  pés.  Digo­vos,  em 
verdade:  no  dia  do  juízo,  Sodoma  e  Gomorra  serão  tratadas  menos 
rigorosamente do que essa cidade”. 
(MATEUS, 10:9 a 15) 
11. Naquela época, nada tinham de estranhável essas palavras que Jesus dirigiu a 
seus apóstolos, quando os mandou, pela primeira vez, anunciar a boa nova. Estavam 
de acordo com os costumes patriarcais do Oriente, onde o viajor encontrava sempre 
acolhida na tenda. Mas, então, os viajantes eram raros. Entre os povos modernos, o 
desenvolvimento  da  circulação  houve  de  criar  costumes  novos.  Os  dos  tempos 
antigos  somente  se  conservam  em  países  longínquos,  onde  ainda  não  penetrou  o 
grande movimento.  Se  Jesus  voltasse  hoje,  já  não  poderia  dizer a  seus  apóstolos: 
“Ponde­vos a caminho sem provisões.” 
A par do sentido próprio, essas palavras guardam um sentido moral muito 
profundo.  Proferindo­as,  ensinava  Jesus  a  seus  discípulos  que  confiassem  na 
Providência.  Ao  demais,  eles,  nada  tendo,  não  despertariam  a  cobiça  nos  que  os 
recebessem. Era um meio de distinguirem dos egoístas os caridosos. Por isso foi que 
lhes  disse:  “Procurai  saber  quem  é  digno  de  vos  hospedar”  ou:  quem  é  bastante 
humano para agasalhar o viajante que não tem com que pagar, porquanto esses são 
dignos de escutar as vossas palavras; pela caridade deles é que os reconhecereis.
231 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Quanto  aos  que  não  os  quisessem  receber,  nem  ouvir,  recomendou  ele 
porventura  aos  apóstolos  que  os  amaldiçoassem,  que  se  lhes  impusessem,  que 
usassem de violência e de constrangimento para os converterem? Não; mandou, pura 
e simplesmente, que se fossem embora, à procura de pessoas de boa vontade. 
O mesmo diz hoje  o Espiritismo a seus adeptos: não violenteis nenhuma 
consciência; a ninguém forceis para que deixe a sua crença, a fim de adotar a vossa; 
não  anatematizeis  os  que  não  pensem  como  vós;  acolhei  os  que  venham  ter 
convosco  e  deixai  tranqüilos  os  que  vos  repelem.  Lembrai­vos  das  palavras  do 
Cristo. Outrora, o céu era tomado com violência; hoje o é pela brandura. (Cap. IV, nos 
10 e 11)
232 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XXVI 
DAI GRATUITAMENTE O QUE
GRATUITAMENTE RECEBESTE
·  O DOM DE CURAR
·  PRECES PAGAS
·  MERCADORES EXPULSOS DO TEMPLO
·  MEDIUNIDADE GRATUITA 
DOM DE CURAR 
1. “ Restituí a saúde aos doentes, ressuscitai os mortos, curai os leprosos, 
expulsai  os  demônios.  Dai  gratuitamente  o  que  gratuitamente  haveis 
recebido”. 
(MATEUS, 10:8) 
2.  “Dai  gratuitamente  o  que  gratuitamente  haveis  recebido”,  diz  Jesus  a  seus 
discípulos. Com essa recomendação, prescreve que ninguém se faça pagar daquilo 
por que nada pagou. Ora, o que eles haviam recebido gratuitamente era a faculdade 
de curar os doentes e de expulsar os demônios, isto é, os maus Espíritos. Esse dom 
Deus  lhes  dera  gratuitamente,  para  alívio  dos  que  sofrem  e  como  meio  de 
propagação  da  fé;  Jesus,  pois, recomendava­lhes que não  fizessem  dele  objeto  de 
comércio, nem de especulação, nem meio de vida.
233 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
PRECES PAGAS 
3.  Disse  em  seguida  a  seus  discípulos,  diante  de  todo  o  povo  que  o 
escutava: “Precatai­vos dos escribas que se exibem a passear com longas 
túnicas, que gostam de ser saudados nas praças públicas e de ocupar os 
primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos festins que, a 
pretexto de extensas preces, devoram as casas das viúvas. Essas pessoas 
receberão condenação mais rigorosa”. 
(LUCAS, 20:45 a 47; MARCOS, 12:38 a 40; MATEUS, 23:14) 
4.  Disse  também  Jesus:  não  façais  que  vos  paguem  as  vossas  preces;  não  façais 
como os escribas que, “a pretexto de longas preces, devoram as casas das viúvas”, 
isto é, abocanham as fortunas. A prece é ato de caridade, é um arroubo do coração. 
Cobrar alguém que se dirija a Deus por outrem é transformar­se em intermediário 
assalariado.  A  prece,  então,  fica  sendo  uma  fórmula,  cujo  comprimento  se 
proporciona à soma que custe. Ora, uma de duas: Deus ou mede ou não mede as 
suas  graças  pelo  número  das  palavras.  Se  estas  forem  necessárias  em  grande 
número,  por  que  dizê­las  poucas,  ou  quase  nenhumas,  por  aquele  que  não  pode 
pagar? É falta de caridade. Se uma só basta, é inútil dizê­las em excesso. Por que 
então cobrá­las? É prevaricação. 
Deus  não  vende  os  benefícios  que  concede.  Como,  pois,  um  que  não  é, 
sequer,  o  distribuidor  deles,  que  não  pode  garantir  a  sua  obtenção,  cobraria  um 
pedido que talvez nenhum resultado produza? Não é possível que Deus subordine 
um ato de clemência, de bondade ou de justiça, que da sua misericórdia se solicite, a 
uma  soma  em  dinheiro.  Do  contrário,  se  a  soma  não  fosse  paga,  ou  fosse 
insuficiente, a justiça, a bondade e a clemência de Deus ficariam em suspenso. A 
razão, o bom­senso e a lógica dizem ser impossível que Deus, a perfeição absoluta, 
delegue a criaturas imperfeitas o direito de estabelecer preço para a sua justiça. A 
justiça de Deus é como o Sol: existe para todos, para o pobre como para o rico. Pois 
que se considera imoral traficar com as graças de um soberano da Terra, poder­se­á 
ter por lícito o comércio com as do soberano do Universo? 
Ainda outro inconveniente apresentam as preces pagas: é que aquele que as 
compra  se  julga, as  mais  das  vezes,  dispensado  de  orar  ele  próprio, porquanto  se 
considera quite, desde que deu o seu dinheiro. Sabe­se que os Espíritos se sentem 
tocados pelo fervor de quem por eles se interessa. Qual pode ser o fervor daquele 
que comete a terceiro o encargo de por ele orar, mediante paga? Qual o fervor desse 
terceiro, quando delega o seu mandato a outro, este a outro e assim por diante? Não 
será isso reduzir a eficácia da prece ao valor de uma moeda em curso? 
MERCADORES EXPULSOS DO TEMPLO 
5.  Eles  vieram  em  seguida  a  Jerusalém,  e  Jesus,  entrando  no  templo, 
começou  por  expulsar  dali  os  que  vendiam  e  compravam;  derribou  as 
mesas  dos  cambistas  e  os  bancos  dos  que  vendiam  pombos;  e  não 
permitiu  que  alguém  transportasse  qualquer  utensílio  pelo  templo.  Ao 
mesmo  tempo  os  instruía,  dizendo:  “Não  está  escrito:  Minha  casa  será
234 – Allan Kardec 
chamada casa de oração por todas as nações? Entretanto, fizestes dela um 
covil de ladrões!” Os príncipes dos sacerdotes, ouvindo isso, procuravam 
meio de o perderem, pois o temiam, visto que todo o povo era tomado de 
admiração pela sua doutrina. 
(MARCOS, 11:15 a 18; MATEUS, 21:12 e 13) 
6. Jesus  expulsou do templo  os mercadores. Condenou assim o tráfico das coisas 
santas sob qualquer forma. Deus não vende a sua bênção, nem o seu perdão, nem a 
entrada no reino dos céus. Não tem, pois, o homem, o direito de lhes estipular preço. 
MEDIUNIDADE GRATUITA 
7.  Os  médiuns  atuais  –  pois  que  também  os  apóstolos  tinham  mediunidade  – 
igualmente  receberam  de  Deus  um  dom  gratuito:  o  de  serem  intérpretes  dos 
Espíritos,  para  instrução  dos  homens,  para  lhes  mostrar  o  caminho  do  bem  e 
conduzi­los  à  fé,  não  para  lhes  vender  palavras  que  não  lhes  pertencem,  a  eles 
médiuns, visto que não são fruto de suas concepções, nem de suas pesquisas, nem de 
seus trabalhos pessoais. Deus quer que a luz chegue a todos; não quer que o mais 
pobre fique dela privado e possa dizer: não tenho fé, porque não a pude pagar; não 
tive o consolo de receber os encorajamentos e os testemunhos de afeição dos que 
pranteio,  porque  sou  pobre.  Tal  a  razão  por  que  a  mediunidade  não  constitui 
privilégio  e  se  encontra  por toda  parte.  Fazê­la  paga  seria,  pois,  desviá­la  do  seu 
providencial objetivo. 
8. Quem conhece as condições em que os bons Espíritos se comunicam, a repulsão 
que sentem por tudo o que é de interesse egoístico, e sabe quão pouca coisa se faz 
mister para que eles se afastem, jamais poderá admitir que os Espíritos superiores 
estejam à disposição do primeiro que apareça e os convoque a tanto por sessão. O 
simples  bom­senso  repele  semelhante  idéia.  Não  seria  também  uma  profanação 
evocarmos, por dinheiro, os seres que respeitamos, ou que nos são caros? É fora de 
dúvida que se podem assim obter manifestações; mas, quem lhes poderia garantir a 
sinceridade?  Os  Espíritos  levianos,  mentirosos,  brincalhões  e  toda  a  caterva  dos 
Espíritos inferiores, nada escrupulosos, sempre acorrem, prontos a responder ao que 
se  lhes  pergunte,  sem  se  preocuparem  com  a  verdade.  Quem,  pois,  deseje 
comunicações sérias deve, antes de tudo, pedi­las seriamente e, em seguida, inteirar­ 
se da natureza das simpatias do médium com os seres do mundo espiritual. Ora, a 
primeira condição para se granjear a benevolência dos bons Espíritos é a humildade, 
o devotamento, a abnegação, o mais absoluto desinteresse moral e material. 
9.  A  par  da  questão  moral,  apresenta­se  uma  consideração  efetiva  não  menos 
importante, que entende com a natureza mesma da faculdade. A mediunidade séria 
não  pode  ser  e  não  o  será  nunca  uma  profissão,  não  só  porque  se  desacreditaria 
moralmente, identificada para logo com a dos ledores da boa sorte, como também 
porque um obstáculo a isso se opõe. É que se trata de uma faculdade essencialmente 
móvel,  fugidia  e  mutável,  com  cuja  perenidade,  pois,  ninguém  pode  contar.
235 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Constituiria,  portanto,  para  o  explorador,  uma  fonte  absolutamente  incerta  de 
receitas, de natureza a poder faltar­lhe no momento exato em que mais necessária 
lhe fosse. Coisa diversa é o talento adquirido pelo estudo, pelo trabalho e que, por 
essa razão mesma, representa uma propriedade da qual naturalmente lícito é, ao seu 
possuidor,  tirar partido.  A mediunidade,  porém, não  é  uma  arte, nem um talento, 
pelo  que  não  pode  tornar­se  uma  profissão.  Ela  não  existe  sem  o  concurso  dos 
Espíritos; faltando estes, já não há mediunidade. Pode subsistir a aptidão, mas o seu 
exercício  se  anula.  Daí  vem  não  haver  no  mundo  um  único  médium  capaz  de 
garantir  a  obtenção  de  qualquer  fenômeno  espírita  em  dado  instante.  Explorar 
alguém  a  mediunidade  é,  conseguintemente,  dispor  de  uma  coisa  da  qual  não  é 
realmente dono. Afirmar o contrário é enganar a quem paga. Há mais: não é de si 
próprio que o explorador dispõe; é do concurso dos Espíritos, das almas dos mortos, 
que  ele  põe  a  preço  de  moeda.  Essa  idéia  causa  instintiva  repugnância.  Foi  esse 
tráfico, degenerado em abuso, explorado pelo charlatanismo, pela ignorância, pela 
credulidade  e  pela  superstição  que  motivou  a  proibição  de  Moisés.  O  moderno 
Espiritismo, compreendendo o lado sério da questão, pelo descrédito a que lançou 
essa exploração, elevou a mediunidade à categoria de missão. (Veja­se: O Livro dos 
Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVIII. – O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. XI) 
10. A mediunidade é coisa santa, que deve ser praticada santamente, religiosamente. 
Se há um gênero de mediunidade que requeira essa condição de modo ainda mais 
absoluto  é  a  mediunidade  curadora.  O  médico  dá  o  fruto  de seus  estudos,  feitos, 
muita vez, à custa de sacrifícios penosos. O magnetizador dá o seu próprio fluido, 
por  vezes  até  a  sua  saúde.  Podem  pôr­lhes  preço.  O  médium  curador transmite  o 
fluido salutar dos bons Espíritos; não tem o direito de vendê­lo. Jesus e os apóstolos, 
ainda que pobres, nada cobravam pelas curas que operavam. 
Procure, pois, aquele que carece do que viver, recursos em qualquer parte, 
menos na mediunidade; não lhe consagre, se assim for preciso, senão o tempo de 
que materialmente possa dispor. Os Espíritos lhe levarão em conta o devotamento e 
os sacrifícios, ao passo que se afastam dos que esperam fazer deles uma escada por 
onde subam.
236 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XXVII 
PEDI E OBTEREIS
·  QUALIDADES DA PRECE
·  EFICÁCIA DA PRECE
·  AÇÃO DA PRECE. TRANSMISSÃO DO PENSAMENTO
·  PRECES INTELIGÍVEIS
·  DA PRECE PELOS MORTOS E 
PELOS ESPÍRITOS SOFREDORES 
INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS
·  MANEIRA DE ORAR
·  FELICIDADE QUE A PRECE PROPORCIONA 
QUALIDADES DA PRECE 
1.  “ Quando  orardes,  não  vos  assemelheis  aos  hipócritas,  que, 
afetadamente, oram de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem 
vistos  pelos  homens.  Digo­vos,  em  verdade,  que  eles  já  receberam  sua 
recompensa. Quando quiserdes orar, entrai para o vosso quarto e, fechada 
a porta, orai a vosso Pai em secreto; e vosso Pai, que vê o que se passa 
em secreto, vos dará a recompensa”. 
“Não  cuideis  de  pedir muito  nas  vossas  preces,  como fazem  os 
pagãos,  os  quais  imaginam  que  pela  multiplicidade  das  palavras  é  que 
serão  atendidos.  Não  vós  torneis  semelhantes  a  eles,  porque  vosso  Pai 
sabe do que é que tendes necessidade, antes que lho peçais”. 
(MATEUS, 6:5 a 8) 
2.  “Quando  vos aprestardes  para  orar,  se  tiverdes  qualquer  coisa contra 
alguém, perdoai­lhe, a fim de que vosso Pai, que está nos céus, também 
vos  perdoe  os  vossos  pecados. Se  não perdoardes, vosso  Pai, que  está 
nos céus, também não vos perdoará os pecados”. 
(MARCOS, 11:25 e 26)
237 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
3. Também disse esta parábola a alguns que punham a sua confiança em si 
mesmos, como sendo justos, e desprezavam os outros: 
“ Dois  homens  subiram  ao  templo  para  orar;  um  era  fariseu, 
publicano o outro. O fariseu, conservando­se de pé, orava assim, consigo 
mesmo:  –  ‘Meu  Deus,  rendo­vos  graças  por  não  ser  como  os  outros 
homens,  que  são  ladrões,  injustos  e  adúlteros,  nem  mesmo  como  esse 
publicano.  Jejuo  duas  vezes  na  semana;  dou  o  dízimo  de  tudo  o  que 
possuo’. – O publicano, ao contrário, conservando­se afastado, não ousava, 
sequer, erguer os olhos ao céu; mas, batia no peito, dizendo: – ‘Meu Deus, 
tem piedade de mim, que sou um pecador’. – Declaro­vos que este voltou 
para a sua casa, justificado, e o outro não; porquanto, aquele que se eleva 
será rebaixado e aquele que se humilha será elevado”. 
(LUCAS, 18:9 a 14) 
4. Jesus definiu claramente as qualidades da prece. Quando orardes, diz ele, não vos 
ponhais em evidência; antes, orai em secreto. Não afeteis orar muito, pois não é pela 
multiplicidade das palavras que sereis escutados, mas pela sinceridade delas. Antes 
de orardes, se tiverdes qualquer coisa contra alguém, perdoai­lhe, visto que a prece 
não  pode  ser  agradável  a  Deus,  se  não  parte  de  um  coração  purificado  de  todo 
sentimento contrário à caridade. Orai, enfim, com humildade, como o publicano, e 
não  com  orgulho,  como  o  fariseu.  Examinai  os  vossos  defeitos,  não  as  vossas 
qualidades e, se vos comparardes aos outros, procurai o que há em vós de mau. (Cap. 
X, nos 7 e 8) 
EFICÁCIA DA PRECE 
5. “ Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis e concedido 
vos será o que pedirdes”. 
(MARCOS, 11:24) 
6.  Há  quem  conteste  a  eficácia  da  prece,  com  fundamento  no  princípio  de  que, 
conhecendo Deus as nossas necessidades, inútil se torna expor­lhas. E acrescentam 
os que assim pensam que, achando­se tudo no Universo encadeado por leis eternas, 
não podem as nossas súplicas mudar os decretos de Deus. 
Sem  dúvida  alguma  há  leis  naturais  e  imutáveis  que não  podem  ser  ab­ 
rogadas ao capricho de cada um; mas, daí a crer­se que todas as circunstâncias da 
vida estão submetidas à fatalidade, vai grande distância. Se assim fosse, nada mais 
seria o homem do que instrumento passivo, sem livre­arbítrio e sem iniciativa. Nessa 
hipótese, só lhe caberia curvar a cabeça ao jugo dos acontecimentos, sem cogitar de 
evitá­los; não devera ter procurado desviar o raio. Deus não lhe outorgou a razão e a 
inteligência, para que ele as deixasse sem serventia; a vontade, para não querer; a 
atividade, para ficar inativo. Sendo livre o homem de agir num sentido ou noutro, 
seus atos lhe acarretam, e aos demais, conseqüências subordinadas ao que ele faz ou 
não.  Há,  pois,  devidos  à  sua  iniciativa,  sucessos  que  forçosamente  escapam  à 
fatalidade e que não quebram a harmonia das leis universais, do mesmo modo que o 
avanço ou o atraso do ponteiro de um relógio não anula a lei do movimento sobre a
238 – Allan Kardec 
qual se funda o mecanismo. Possível é, portanto, que Deus aceda a certos pedidos, 
sem perturbar a imutabilidade das leis que regem o conjunto, subordinada sempre 
essa anuência à sua vontade. 
7. Desta máxima: “Concedido vos será o que quer que pedirdes pela prece”, fora 
ilógico deduzir que basta pedir para obter e fora injusto acusar a Providência se não 
acede a toda súplica que se lhe faça, uma vez que ela sabe, melhor do que nós, o que 
é para nosso bem. É como procede um pai criterioso que recusa ao filho o que seja 
contrário aos seus interesses. Em geral, o homem apenas vê o presente; ora, se o 
sofrimento é de utilidade para a sua felicidade futura, Deus o deixará sofrer, como o 
cirurgião deixa que o doente sofra as dores de uma operação que lhe trará a cura. 
O  que  Deus  lhe  concederá  sempre,  se  ele  o  pedir  com  confiança,  é  a 
coragem, a paciência, a resignação. Também lhe concederá os meios de se tirar por 
si mesmo das dificuldades, mediante idéias que fará lhe sugiram os bons Espíritos, 
deixando­lhe  dessa  forma  o  mérito  da  ação.  Ele  assiste  os  que  se  ajudam  a  si 
mesmos, de conformidade com esta máxima: “Ajuda­te, que o Céu te ajudará”; não 
assiste,  porém,  os  que  tudo  esperam  de  um  socorro  estranho,  sem  fazer  uso  das 
faculdades  que  possui.  Entretanto,  as mais  das  vezes,  o  que  o  homem  quer  é  ser 
socorrido por milagre, sem despender o mínimo esforço. (Cap. XXV, nº 1 e seguintes) 
8.  Tomemos  um  exemplo.  Um  homem  se  acha  perdido  no  deserto.  A  sede  o 
martiriza  horrivelmente.  Desfalecido,  cai  por  terra.  Pede  a  Deus  que  o  assista,  e 
espera. Nenhum anjo lhe virá dar de beber. Contudo, um bom Espírito lhe sugere a 
idéia  de  levantar­se  e  tomar  um  dos  caminhos  que  tem  diante  de  si.  Por  um 
movimento maquinal, reunindo todas as forças que lhe restam, ele se ergue, caminha 
e descobre ao longe um regato. Ao divisá­lo, ganha coragem. Se tem fé, exclamará: 
“Obrigado, meu Deus, pela idéia que me inspiraste e pela força que me deste.” Se 
lhe falta a fé, exclamará: “Que boa idéia tive! Que sorte a minha de tomar o caminho 
da  direita,  em  vez  do  da  esquerda;  o  acaso,  às  vezes,  nos  serve  admiravelmente! 
Quanto me felicito pela minha coragem e por não me ter deixado abater!” 
Mas, dirão, por que o bom Espírito não lhe disse claramente: “Segue este 
caminho, que encontrarás o de que necessitas”? Por que não se lhe mostrou para o 
guiar  e  sustentar  no  seu  desfalecimento?  Dessa  maneira  tê­lo­ia  convencido  da 
intervenção  da  Providência.  Primeiramente,  para  lhe  ensinar  que  cada  um  deve 
ajudar­se a si mesmo e fazer uso das suas forças. Depois, pela incerteza, Deus põe à 
prova a confiança que nele deposita a criatura e a submissa o desta à sua vontade. 
Aquele homem estava na situação de uma criança que cai e que, dando com alguém, 
se põe a gritar e fica à espera de que a venham levantar; se não vê pessoa alguma, 
faz esforços e se ergue sozinha. 
Se  o  anjo  que  acompanhou a Tobias  lhe houvera  dito:  “Sou  enviado  por 
Deus para te guiar na tua viagem e te preservar de todo perigo”, nenhum mérito teria 
tido Tobias. Fiando­se no seu companheiro, nem sequer de pensar teria precisado. 
Essa a razão por que o anjo só se deu a conhecer ao regressarem.
239 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
AÇÃO DA PRECE. 
TRANSMISSÃO DO PENSAMENTO 
9. A prece é uma invocação, mediante a qual o homem entra, pelo pensamento, em 
comunicação  com  o  ser  a  quem  se  dirige.  Pode  ter  por  objeto  um  pedido,  um 
agradecimento, ou uma glorificação. Podemos orar por nós mesmos ou por outrem, 
pelos  vivos  ou  pelos  mortos.  As  preces  feitas  a  Deus  escutam­nas  os  Espíritos 
incumbidos da execução de suas vontades; as que se dirigem aos bons Espíritos são 
reportadas  a  Deus.  Quando  alguém  ora  a  outros  seres  que  não  a  Deus,  fá­lo 
recorrendo a intermediários, a intercessores, porquanto nada sucede sem a vontade 
de Deus. 
10.  O  Espiritismo  torna  compreensível  a  ação  da  prece,  explicando  o  modo  de 
transmissão do pensamento, quer no caso em que  o ser a quem oramos acuda ao 
nosso  apelo,  quer  no  em  que  apenas  lhe  chegue  o  nosso  pensamento.  Para 
apreendermos o que ocorre em tal circunstância, precisamos conceber mergulhados 
no fluido universal, que ocupa o espaço, todos os seres, encarnados e desencarnados, 
tal  qual  nos  achamos,  neste  mundo,  dentro  da  atmosfera.  Esse  fluido  recebe  da 
vontade uma impulsão; ele é o veículo do pensamento, como o ar o é do som, com a 
diferença  de  que  as  vibrações  do  ar  são  circunscritas,  ao  passo  que  as  do  fluido 
universal  se  estendem  ao  infinito.  Dirigido,  pois,  o  pensamento  para  um  ser 
qualquer, na Terra  ou no  espaço,  de  encarnado  para  desencarnado,  ou  vice­versa, 
uma corrente fluídica se estabelece entre um e outro, transmitindo de um ao outro o 
pensamento, como o ar transmite o som. 
A energia da corrente guarda proporção com a do pensamento e da vontade. 
É  assim  que  os  Espíritos  ouvem  a  prece  que  lhes  é  dirigida, qualquer  que  seja  o 
lugar onde se encontrem; é assim que os Espíritos se comunicam entre si, que nos 
transmitem  suas  inspirações,  que  relações  se  estabelecem  a  distância  entre 
encarnados. 
Essa  explicação  vai,  sobretudo,  com  vistas  aos  que  não  compreendem  a 
utilidade  da  prece  puramente  mística.  Não  tem  por  fim materializar a  prece,  mas 
tornar­lhe inteligíveis os efeitos, mostrando que pode exercer ação direta e efetiva. 
Nem por isso deixa essa ação de estar subordinada à vontade de Deus, juiz supremo 
em todas as coisas, único apto a torná­la eficaz. 
11.  Pela  prece,  obtém  o  homem  o  concurso  dos  bons  Espíritos  que  acorrem  a 
sustentá­lo em suas boas resoluções e a inspirar­lhe idéias sãs. Ele adquire, desse 
modo, a força moral necessária a vencer as dificuldades e a volver ao caminho reto, 
se deste se afastou. Por esse meio, pode também desviar de si os males que atrairia 
pelas suas próprias faltas. Um homem, por exemplo, vê arruinada a sua saúde, em 
conseqüência de excessos a que se entregou, e arrasta, até o termo de seus dias, uma 
vida de sofrimento: terá ele o direito de queixar­se, se não obtiver a cura que deseja? 
Não, pois que houvera podido encontrar na prece a força de resistir às tentações. 
12.  Se  em  duas  partes  se  dividirem  os  males  da  vida,  uma  constituída  dos  que  o 
homem não pode evitar e a outra das tribulações de que  ele se constituiu a causa
240 – Allan Kardec 
primária,  pela  sua  incúria  ou  por  seus  excessos  (cap.  V,  nº  4),  ver­se­á  que  a 
segunda, em quantidade, excede de muito à primeira. Faz­se, portanto, evidente que 
o homem é o autor da maior parte das suas aflições, às quais se pouparia, se sempre 
obrasse com sabedoria e prudência. 
Não menos certo é que todas essas misérias resultam das nossas infrações 
às  leis  de  Deus  e  que,  se  as  observássemos  pontualmente,  seríamos  inteiramente 
ditosos.  Se  não  ultrapassássemos  o  limite  do  necessário,  na  satisfação  das  nossas 
necessidades, não  apanharíamos  as  enfermidades  que resultam  dos  excessos,  nem 
experimentaríamos as vicissitudes que as doenças acarretam. Se puséssemos freio à 
nossa ambição, não teríamos de temer a ruína; se não quiséssemos subir mais alto do 
que  podemos,  não  teríamos  de  recear  a  queda;  se  fôssemos  humildes,  não 
sofreríamos as decepções do orgulho abatido; se praticássemos a lei de caridade, não 
seríamos  maldizentes,  nem  invejosos,  nem  ciosos,  e  evitaríamos  as  disputas  e 
dissensões; se mal a ninguém fizéssemos, não houvéramos de temer as vinganças, 
etc. 
Admitamos que  o homem nada possa com relação aos outros males; que 
toda prece lhe seja inútil para livrar­se deles; já não seria muito o ter a possibilidade 
de  ficar isento de todos  os que decorrem da sua maneira de proceder? Ora, aqui, 
facilmente se concebe a ação da prece, visto ter por efeito atrair a salutar inspiração 
dos  Espíritos  bons,  granjear  deles  força  para  resistir  aos  maus  pensamentos,  cuja 
realização nos pode ser funesta. Nesse caso, o que eles fazem não é afastar de nós o 
mal, porém, sim, desviar­nos a nós do mau pensamento que nos pode causar dano; 
eles em nada obstam ao cumprimento dos decretos de Deus, nem suspendem o curso 
das leis da Natureza; apenas evitam que as infrinjamos, dirigindo o nosso livre­ 
arbítrio.  Agem,  contudo, à nossa revelia,  de  maneira  imperceptível,  para nos não 
subjugar  a  vontade.  O homem  se  acha  então na  posição  de  um  que  solicita  bons 
conselhos e os põe em prática, mas conservando a liberdade de segui­los, ou não. 
Quer Deus que seja assim, para que aquele tenha a responsabilidade dos seus atos e 
o mérito da escolha entre o bem e o mal. É isso o que o homem pode estar sempre 
certo de receber, se o pedir com fervor, sendo, pois, a isso que se podem, sobretudo 
aplicar estas palavras: “Pedi e obtereis”. 
Mesmo com sua eficácia reduzida a essas proporções, já não traria a prece 
resultados imensos? Ao Espiritismo fora reservado provar­nos a sua ação, com o nos 
revelar  as  relações  existentes  entre  o  mundo  corpóreo  e  o  mundo  espiritual.  Os 
efeitos da prece, porém, não se limitam aos que vimos de apontar. 
Recomendam­na  todos  os  Espíritos.  Renunciar  alguém à  prece  é  negar  a 
bondade de Deus; é recusar, para si, a sua assistência e, para com os outros, abrir 
mão do bem que lhes pode fazer. 
13. Acedendo ao pedido que se lhe faz, Deus muitas vezes objetiva recompensar a 
intenção, o devotamento e a fé daquele que ora. Daí decorre que a prece do homem 
de bem tem mais merecimento aos olhos de Deus e sempre mais eficácia, porquanto 
o  homem  vicioso  e  mau  não  pode  orar  com  o  fervor  e  a  confiança  que  somente 
nascem do sentimento da verdadeira piedade. Do coração do egoísta, do daquele que 
apenas de lábios ora, unicamente saem palavras, nunca os ímpetos de caridade que 
dão  à  prece  todo  o  seu  poder.  Tão  claramente  isso  se  compreende  que,  por  um
241 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
movimento  instintivo,  quem  se  quer  recomendar  às  preces  de  outrem  fá­lo  de 
preferência às daqueles cujo proceder, sente­se, há de ser mais agradável a Deus, 
pois que são mais prontamente ouvidos. 
14.  Por  exercer  a  prece  uma  como  ação  magnética,  poder­se­ia  supor  que  o  seu 
efeito  depende  da  força  fluídica.  Assim,  entretanto,  não  é.  Exercendo  sobre  os 
homens essa ação, os Espíritos, em sendo preciso, suprem a insuficiência daquele 
que ora, ou agindo diretamente em seu nome, ou dando­lhe momentaneamente uma 
força  excepcional,  quando  o  julgam  digno  dessa  graça,  ou  que  ela  lhe  pode  ser 
proveitosa. 
O homem que não se considere suficientemente bom para exercer salutar 
influência, não deve por isso abster­se de orar a bem de outrem, com a idéia de que 
não é digno de ser escutado. A consciência da sua inferioridade constitui uma prova 
de humildade, grata sempre a Deus, que leva em conta a intenção caridosa que o 
anima. Seu fervor e sua confiança são um primeiro passo para a sua conversão ao 
bem, conversão que os Espíritos bons se sentem ditosos em incentivar. Repelida só o 
é  a  prece do orgulhoso que deposita fé no seu poder e nos seus merecimentos e 
acredita ser­lhe possível sobrepor­se à vontade do Eterno. 
15. Está no pensamento o poder da prece, que por nada depende nem das palavras, 
nem do lugar, nem do momento em que seja feita. Pode­se, portanto, orar em toda 
parte e a qualquer hora, a sós ou em comum. A influência do lugar ou do tempo só 
se faz sentir nas circunstâncias que favoreçam o recolhimento. A prece em comum 
tem ação mais poderosa, quando todos os que oram se associam de coração a um 
mesmo  pensamento  e  colimam  o  mesmo  objetivo,  porquanto  é  como  se  muitos 
clamassem juntos e em uníssono. Mas, que importa seja grande o número de pessoas 
reunidas  para  orar,  se  cada  uma  atua  isoladamente  e  por  conta  própria?!  Cem 
pessoas juntas podem orar como egoístas, enquanto duas ou três, ligadas por uma 
mesma  aspiração,  orarão  quais  verdadeiros  irmãos  em  Deus,  e  mais  força  terá  a 
prece que lhe dirijam do que a das cem outras. (Cap. XXVIII nº 4 e 5) 
PRECES INTELIGÍVEIS 
16. “ Se eu não  entender o que significam as palavras, serei um bárbaro 
para aquele a quem falo e aquele que me fala será para mim um bárbaro. 
Se  oro  numa  língua  que  não  entendo,  meu  coração  ora,  mas  a  minha 
inteligência não colhe fruto. Se louvais a Deus apenas de coração, como é 
que um homem do número daqueles que só entendem a sua própria língua 
responderá amém no fim da vossa ação de graças, uma vez que ele não 
entende o que dizeis? Não é que a vossa ação não seja boa, mas os outros 
não se edificam com ela”. 
(S. PAULO, 1ª aos Coríntios, 14:11, 14, 16 e17) 
17. A prece só tem valor pelo pensamento que lhe está conjugado. Ora, é impossível 
conjugar um pensamento qualquer ao que se não compreende, porquanto o que não 
se compreende não pode tocar o  coração. Para a imensa maioria das criaturas, as
242 – Allan Kardec 
preces  feitas  numa  língua  que  elas  não  entendem  não  passam  de  amálgamas  de 
palavras que nada dizem ao espírito. Para que a prece toque, preciso se torna que 
cada  palavra  desperte  uma  idéia  e,  desde  que não  seja  entendida,  nenhuma  idéia 
poderá despertar. Será dita como simples fórmula, cuja virtude dependerá do maior 
ou menor número de vezes que a repitam. Muitos oram por dever; alguns, mesmos, 
por  obediência  aos  usos,  pelo  que  se  julgam  quites,  desde  que  tenham  dito  uma 
oração determinado número de vezes e em tal ou tal ordem. Deus vê o que se passa 
no fundo dos corações; lê o pensamento e percebe a sinceridade. Julgá­lo, pois, mais 
sensível à forma do que ao fundo é rebaixá­lo. (Cap. XXVIII, nº 2) 
DA PRECE PELOS MORTOS E PELOS ESPÍRITOS SOFREDORES 
18. Os Espíritos sofredores reclamam preces e  estas lhes são proveitosas, porque, 
verificando  que  há  quem  neles  pense,  menos  abandonados  se  sentem,  menos 
infelizes. Entretanto, a prece tem sobre eles ação mais direta: reanima­os, incute­lhes 
o  desejo  de  se  elevarem  pelo  arrependimento  e  pela  reparação  e,  possivelmente, 
desvia­lhes  do  mal  o  pensamento.  É  nesse  sentido  que  lhes  pode  não  só  aliviar, 
como abreviar os sofrimentos. (Veja­se: O Céu e o Inferno, 2ª Parte – “Exemplos”) 
19. Pessoas há que não admitem a prece pelos mortos, porque, segundo acreditam, a 
alma  só  tem  duas  alternativas:  ser  salva  ou  ser  condenada  às  penas  eternas, 
resultando,  pois,  em  ambos  os  casos,  inútil  a  prece.  Sem  discutir  o  valor  dessa 
crença, admitamos, por instantes, a realidade das penas eternas e irremissíveis e que 
as  nossas  preces  sejam  impotentes  para  lhes  pôr  termo.  Perguntamos  se,  nessa 
hipótese, será lógico, será caridoso, será cristão recusar a prece pelos réprobos? Tais 
preces,  por  mais  impotentes  que  fossem  para  os  liberar,  não  lhes  seriam  uma 
demonstração de piedade capaz de abrandar­lhes os sofrimentos? Na Terra, quando 
um  homem  é  condenado  a  galés  perpétuas,  quando  mesmo  não  haja  a  mínima 
esperança de obter­se para ele perdão, será defeso a uma pessoa caridosa ir carregar­ 
lhe  os  grilhões,  para  aliviá­lo  do  peso  destes?  Em  sendo  alguém  atacado  de  mal 
incurável,  dever­se­á,  por  não  haver  para  o  doente  esperança  nenhuma  de  cura, 
abandoná­lo,  sem lhe  proporcionar qualquer alívio?  Lembrai­vos  de  que,  entre  os 
réprobos, pode achar­se uma pessoa que vos foi cara, um amigo, talvez um pai, uma 
mãe,  ou  um  filho,  e  dizei  se,  não  havendo,  segundo  credes,  possibilidade  de  ser 
perdoado  esse  ente,  lhe  recusaríeis  um  copo  d’água  para mitigar­lhe  a  sede?  Um 
bálsamo que lhe seque as chagas? Não faríeis por ele o que faríeis por um galé? Não 
lhe daríeis uma prova de amor, uma consolação? Não, isso cristão não seria. Uma 
crença que petrifica o coração é incompatível com a crença em um Deus que põe na 
primeira categoria dos deveres o amor ao próximo. A não eternidade das penas não 
implica a negação de uma penalidade temporária, dado não ser possível que Deus, 
em sua justiça, confunda o bem e o mal. Ora, negar, neste caso, a eficácia da prece, 
fora negar a eficácia da consolação, dos encorajamentos, dos bons conselhos; fora 
negar a força que haurimos da assistência moral dos que nos querem bem.
243 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
20.  Outros  se  fundam  numa  razão  mais  especiosa:  a  imutabilidade  dos  decretos 
divinos. Deus, dizem esses, não pode mudar as suas decisões a pedido das criaturas; 
a não ser assim, careceria de estabilidade o mundo. O homem, pois, nada tem de 
pedir a Deus, só lhe cabendo submeter­se e adorá­lo. 
Há,  nesse  modo  de  raciocinar,  uma  aplicação  falsa  do  princípio  da 
imutabilidade  da  lei  divina,  ou  melhor,  ignorância  da  lei,  no  que  concerne  à 
penalidade futura. Essa lei revelam­na hoje os Espíritos do Senhor, quando o homem 
se  tornou  suficientemente  maduro  para  compreender  o  que, na  fé,  é  conforme  ou 
contrário aos atributos divinos. 
Segundo o dogma da eternidade absoluta das penas, não se levam em conta 
ao  culpado  os  remorsos,  nem  o  arrependimento.  É­lhe  inútil  todo  desejo  de 
melhorar­se:  está  condenado  a  conservar­se  perpetuamente  no  mal.  Se  a  sua 
condenação  foi  por  determinado  tempo,  a  pena  cessará,  uma  vez  expirado  esse 
tempo.  Mas,  quem  poderá  afirmar  que  ele  então  possua  melhores  sentimentos? 
Quem  poderá  dizer  que,  a  exemplo  de  muitos  condenados  da  Terra,  ao  sair  da 
prisão, ele não seja tão mau quanto antes? No primeiro caso, seria manter na dor do 
castigo  um  homem  que  volveu  ao  bem;  no  segundo,  seria  agraciar  a  um  que 
continua  culpado.  A  lei  de  Deus  é  mais  previdente.  Sempre  justa,  eqüitativa  e 
misericordiosa, não estabelece para a pena, qualquer que esta seja, duração alguma. 
Ela se resume assim: 
21. “O homem sofre sempre a conseqüência de suas faltas; não há uma só infração à 
lei de Deus que fique sem a correspondente punição”. 
“A severidade do castigo é proporcionada à gravidade da falta”. 
“Indeterminada  é  a  duração  do  castigo,  para  qualquer  falta;  fica 
subordinada ao arrependimento do culpado e ao seu retorno à senda do bem;  a 
pena  dura  tanto  quanto  a  obstinação  no  mal;  seria  perpétua,  se  perpétua  fosse  a 
obstinação; dura pouco, se pronto é o arrependimento”. 
“Desde que o culpado clame por misericórdia, Deus o ouve e lhe concede a 
esperança. Mas, não basta o simples pesar do mal causado; é necessária a reparação, 
pelo que o culpado se vê submetido a novas provas em que pode, sempre por sua 
livre vontade, praticar o bem, reparando o mal que haja feito”. 
“O  homem  é,  assim,  constantemente,  o  árbitro  de  sua  própria  sorte; 
pertence­lhe abreviar ou prolongar indefinidamente o seu suplício; a sua felicidade 
ou a sua desgraça dependem da vontade que tenha de praticar o bem.” 
Tal a  lei, lei imutável  e  em  conformidade  com  a  bondade  e  a  justiça  de 
Deus. 
Assim, o Espírito culpado e infeliz pode sempre salvar­se a si mesmo: a lei 
de Deus estabelece a condição em que se lhe torna possível fazê­lo. O que as mais 
das  vezes  lhe  falta  é  a  vontade,  a  força,  a  coragem.  Se,  por  nossas  preces,  lhe 
inspiramos essa vontade, se o amparamos e animamos; se, pelos nossos conselhos, 
lhe damos as luzes de que carece, em lugar de pedirmos a Deus que derrogue a sua 
lei, tornamo­nos instrumentos da execução de outra lei, também sua, a de amor e de 
caridade,  execução  em  que,  desse  modo,  ele  nos  permite  participar,  dando  nós 
mesmos, com isso, uma prova de caridade. (Veja­se O Céu e o Inferno, 1ª Parte, caps. 
IV, VII, VIII.)
244 – Allan Kardec 
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 
MANEIRA DE ORAR 
22. O dever primordial de toda criatura humana, o primeiro ato que deve assinalar a 
sua volta à vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos vós orais, mas quão poucos 
são  os  que  sabem  orar!  Que  importam  ao  Senhor  as  frases  que  maquinalmente 
articulais umas às outras, fazendo disso um hábito, um dever que cumpris e que vos 
pesa como qualquer dever? 
A prece do cristão, do espírita, seja qual for o seu culto, deve ele dizê­la 
logo  que  o  Espírito  haja  retomado  o  jugo  da  carne;  deve  elevar­se  aos  pés  da 
Majestade Divina com humildade, com profundeza, num ímpeto de reconhecimento 
por todos os benefícios recebidos até aquele dia; pela noite transcorrida e durante a 
qual lhe foi permitido, ainda que sem consciência disso, ir ter com os seus amigos, 
com  os  seus  guias,  para haurir, no  contacto  com  eles,  mais  força  e  perseverança. 
Deve ela subir humilde aos pés do Senhor, para lhe recomendar a vossa fraqueza, 
para lhe suplicar amparo, indulgência e misericórdia. Deve ser profunda, porquanto 
é a vossa alma que tem de elevar­se para o Criador, de transfigurar­se, como Jesus 
no Tabor, a fim de lá chegar nívea e radiosa de esperança e de amor. 
A vossa prece deve conter o pedido das graças de que necessitais, mas de 
que necessitais em realidade. Inútil, portanto, pedir ao Senhor que vos abrevie as 
provas,  que  vos  dê  alegrias  e  riquezas.  Rogai­lhe  que  vos  conceda  os  bens  mais 
preciosos  da  paciência,  da resignação  e  da  fé.  Não  digais,  como  o  fazem  muitos: 
“Não vale a pena orar, porquanto Deus não me atende.” Que é o que, na maioria dos 
casos, pedis a Deus? Já vos tendes lembrado de pedir­lhe a vossa melhoria moral? 
Oh! Não; bem poucas vezes o tendes feito. O que preferentemente vos lembrais de 
pedir  é  o  bom  êxito  para  os  vossos  empreendimentos  terrenos  e  haveis  com 
freqüência  exclamado:  “Deus  não  se  ocupa  conosco;  se  se  ocupasse,  não  se 
verificariam tantas injustiças.” Insensatos! Ingratos! Se descêsseis ao fundo da vossa 
consciência, quase sempre depararíeis, em vós mesmos, com o ponto de partida dos 
males  de  que vos  queixais.  Pedi,  pois,  antes  de  tudo,  que vos  possais  melhorar  e 
vereis que torrente de graças e de consolações se derramará sobre vós. (Cap. V, nº 4.) 
Deveis  orar  incessantemente,  sem  que,  para  isso,  se  faça  mister  vos 
recolhais ao vosso oratório, ou vos lanceis de joelhos nas praças públicas. A prece 
do dia é o cumprimento dos vossos deveres, sem exceção de nenhum, qualquer que 
seja a natureza deles. Não é ato de amor a Deus assistirdes os vossos irmãos numa 
necessidade, moral ou física? Não é ato de reconhecimento o elevardes a ele o vosso 
pensamento, quando uma felicidade vos advém, quando evitais um acidente, quando 
mesmo  uma  simples  contrariedade  apenas  vos  roça  a  alma,  desde  que  vos  não 
esqueçais  de  exclamar:  Sede  bendito,  meu  Pai?!  Não  é  ato  de  contrição  o  vos 
humilhardes diante do supremo Juiz, quando sentis que falistes, ainda que somente 
por um pensamento fugaz, para lhe dizerdes: Perdoai­me, meu Deus, pois pequei 
(por orgulho, por egoísmo, ou por falta de caridade); dai­me forças para não falir de 
novo e coragem para a reparação da minha falta?! 
Isso  independe  das  preces  regulares  da  manhã  e  da  noite  e  dos  dias 
consagrados. Como o vedes, a prece pode ser de todos os instantes, sem nenhuma
245 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
interrupção acarretar aos vossos trabalhos. Dita assim, ela, ao contrário, os santifica. 
Tende  como  certo  que  um  só  desses  pensamentos,  se  partir  do  coração,  é  mais 
ouvido pelo  vosso  Pai celestial do que as longas orações  ditas por hábito, muitas 
vezes sem causa determinante e às quais apenas maquinalmente vos chama a hora 
convencional. – V. Monod. (Bordéus, 1862) 
FELICIDADE QUE A PRECE PROPORCIONA 
23.  Vinde,  vós  que  desejais  crer.  Os  Espíritos  celestes  acorrem  a  vos  anunciar 
grandes coisas. Deus, meus filhos, abre os seus tesouros, para vos outorgar todos os 
benefícios. Homens incrédulos! Se soubésseis quão grande bem faz a fé ao coração e 
como induz a alma ao arrependimento e à prece! A prece! Ah! Como são tocantes as 
palavras que saem da boca daquele que ora! A prece é o orvalho divino que aplaca o 
calor excessivo das paixões. Filha primogênita da fé, ela nos encaminha para a senda 
que conduz a Deus. No recolhimento e na solidão, estais com Deus. Para vós, já não 
há mistérios; eles se vos desvendam. Apóstolos do pensamento, é para vós a vida. 
Vossa alma se desprende da matéria e rola por esses mundos infinitos e etéreos, que 
os pobres humanos desconhecem. 
Avançai, avançai pelas veredas da prece e ouvireis as vozes dos anjos. Que 
harmonia! Já não são o ruído confuso e os sons estrídulos da Terra; são as liras dos 
arcanjos; são as vozes brandas e suaves dos serafins, mais delicadas do que as brisas 
matinais, quando brincam na folhagem dos vossos bosques. Por entre que delícias 
não caminhareis! A vossa linguagem não poderá exprimir essa ventura, tão rápida 
entra ela por todos os vossos poros, tão vivo e refrigerante é o manancial em que, 
orando, se bebe. Dulçurosas vozes, inebriantes perfumes, que a alma ouve e aspira, 
quando se lança a essas esferas desconhecidas e habitadas pela prece! Sem mescla 
de desejos carnais, são divinas todas as aspirações. Também vós, orai como o Cristo, 
levando  a  sua  cruz  ao  Gólgota,  ao  Calvário.  Carregai  a  vossa  cruz  e  sentireis  as 
doces  emoções  que  lhe  perpassavam n’alma,  se  bem  que vergado  ao  peso  de  um 
madeiro infamante. Ele ia morrer, mas para viver a vida celestial na morada de seu 
Pai. – Santo Agostinho. (Paris, 1861)
246 – Allan Kardec 
CAPÍTULO XXVIII 
COLETÂNEA DE
PRECES ESPÍRITAS 
PREÂMBULO 
1.  Os Espíritos hão  dito  sempre:  “A  forma nada  vale,  o  pensamento  é  tudo.  Ore, 
pois, cada um segundo suas convicções e da maneira que mais o toque. Um bom 
pensamento vale mais do que grande número de palavras com as quais nada tenha o 
coração.” 
Os  Espíritos  jamais  prescreveram  qualquer  fórmula  absoluta  de  preces. 
Quando  dão  alguma,  é  apenas  para  fixar  as  idéias  e,  sobretudo,  para  chamar  a 
atenção sobre certos princípios da Doutrina Espírita. Fazem­no também com o fim 
de auxiliar os que sentem embaraço para externar suas idéias, pois alguns há que não 
acreditariam ter orado realmente, desde que não formulassem seus pensamentos. 
A  coletânea de  preces,  que  este  capítulo  encerra, representa  uma  escolha 
feita  entre  muitas  que  os  Espíritos  ditaram  em  várias  circunstâncias.  Eles,  sem 
dúvida, podem ter ditado outras e em termos diversos, apropriadas a certas idéias ou 
a casos especiais; mas, pouco importa a forma, se o pensamento é essencialmente o 
mesmo. O objetivo da prece consiste em elevar nossa alma a Deus; a diversidade das 
fórmulas nenhuma diferença deve criar entre os que nele crêem, nem, ainda menos, 
entre os adeptos do Espiritismo, porquanto Deus as aceita todas quando sinceras. 
Não  há,  pois,  considerar  esta  coletânea  como  um  formulário  absoluto  e 
único,  mas,  apenas,  uma  variedade  no  conjunto  das  instruções  que  os  Espíritos 
ministram. É uma aplicação dos princípios da moral evangélica desenvolvidos neste 
livro, um complemento aos ditados deles, relativos aos deveres para com Deus e o 
próximo, complemento em que são lembrados todos os princípios da Doutrina. 
O Espiritismo reconhece como boas as preces de todos os cultos, quando 
ditas de coração e não de lábios somente. Nenhuma impõe, nem reprova nenhuma. 
Deus, segundo ele, é sumamente grande para repelir a voz que lhe suplica ou lhe
247 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
entoa  louvores,  porque  o  faz  de  um  modo  e  não  de  outro. Quem quer que lance 
anátema às preces que não estejam no seu formulário provará que desconhece a 
grandeza  de  Deus.  Crer  que  Deus  se  atenha  a  uma  fórmula  é  emprestar­lhe  a 
pequenez e as paixões da Humanidade. 
Condição essencial à prece, segundo S. Paulo (cap. XXVII, nº 16), é que 
seja inteligível, a fim de que nos possa falar ao espírito. Para isso, não basta seja dita 
numa língua que aquele que ora compreenda. Há preces em língua vulgar que não 
dizem ao pensamento muito mais do que se fossem proferidas em língua estrangeira, 
e  que,  por  isso  mesmo, não  chegam ao  coração.  As  raras idéias  que  elas  contêm 
ficam,  as  mais  das  vezes,  abafadas  pela  superabundância  das  palavras  e  pelo 
misticismo da linguagem. 
A  qualidade  principal  da  prece  é  ser  clara,  simples  e  concisa,  sem 
fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que são meros adornos de lentejoulas. Cada 
palavra deve ter alcance próprio, despertar uma idéia, pôr em vibração uma fibra da 
alma. Numa palavra: deve fazer refletir. Somente sob  essa condição pode a prece 
alcançar o seu objetivo; de outro modo, não passa de ruído. Entretanto, notai com 
que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas na maioria dos casos. Vêem­se 
lábios  a  mover­se;  mas,  pela  expressão  da  fisionomia,  pelo  som  mesmo  da  voz, 
verifica­se  que  ali  apenas  há  um  ato  maquinal,  puramente  exterior,  ao  qual  se 
conserva indiferente a alma. 
Estão divididas em cinco categorias as preces constantes nesta coletânea; 
1ª) Preces gerais; 2ª) Preces por aquele mesmo que ora; 3ª) Preces pelos vivos; 4ª) 
Preces pelos mortos; 5ª) Preces especiais pelos enfermos e pelos obsidiados. 
Com o propósito de chamar, de maneira especial, a atenção sobre o objeto 
de cada prece e de lhe tornar mais compreensível o alcance, vão todas precedidas de 
uma instrução preliminar, de uma espécie de exposição de motivos, sob o título de 
prefácio. 
I – PRECES GERAIS 
ORAÇÃO DOMINICAL 
2.  PREFÁCIO.  Os  Espíritos  recomendaram  que,  encabeçando  esta  coletânea,  puséssemos  a 
Oração dominical, não somente como prece, mas também como símbolo. De todas as preces, 
é a que eles colocam em primeiro lugar, seja porque procede do próprio Jesus (Mateus, 6:9 a 
13), seja porque pode suprir a todas, conforme os pensamentos que se lhe conjuguem; é o 
mais  perfeito modelo  de  concisão,  verdadeira  obra­prima  de  sublimidade  na simplicidade. 
Com efeito, sob a mais singela forma, ela resume todos os deveres do homem para com Deus, 
para consigo mesmo e para com o próximo. Encerra uma profissão de fé, um ato de adoração 
e de submissão; o pedido das coisas necessárias à vida e o princípio da caridade. Quem a diga, 
em intenção de alguém, pede para este o que pediria para si. 
Contudo, em virtude mesmo da sua brevidade, o sentido profundo que encerram as 
poucas palavras de que ela se compõe escapa à maioria das pessoas. Daí vem o dizerem­na, 
geralmente, sem que os pensamentos se detenham sobre as aplicações de cada uma de suas 
partes. Dizem­na como uma fórmula cuja eficácia se ache condicionada ao número de vezes 
que seja repetida. Ora, quase sempre esse é um dos números cabalísticos: três, sete ou nove,
248 – Allan Kardec 
tomados  à  antiga  crença  supersticiosa  na  virtude  dos  números  e  de  uso  nas  operações  da 
magia. 
Para preencher o que de vago a concisão desta prece deixa na mente, a cada uma de 
suas  proposições  aditamos,  aconselhado  pelos  Espíritos  e  com  a  assistência  deles,  um 
comentário  que  lhes  desenvolve  o  sentido  e  mostra  as  aplicações.  Conforme,  pois,  as 
circunstâncias e o tempo de que disponha, poderá, aquele que ore, dizer a Oração dominical, 
ou na sua forma simples, ou na desenvolvida. 
3. Prece. – I. Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome! 
Cremos em ti, Senhor, porque tudo revela o teu poder e a tua bondade. A 
harmonia do Universo dá testemunho de uma sabedoria, de uma prudência e de uma 
previdência  que  ultrapassam  todas  as  faculdades  humanas.  Em  todas  as  obras  da 
Criação, desde o raminho de erva minúscula e o pequenino inseto, até os astros que 
se movem no espaço, o nome se acha inscrito de um ser soberanamente grande e 
sábio. Por toda a parte se nos depara a prova de paternal solicitude. Cego, portanto, é 
aquele que te não reconhece nas tuas obras, orgulhoso aquele que te não glorifica e 
ingrato aquele que te não rende graças. 
II. Venha o teu reino! 
Senhor,  deste  aos  homens  leis  plenas  de  sabedoria  e  que  lhes  dariam  a 
felicidade, se eles as cumprissem. Com essas leis, fariam reinar entre si a paz e a 
justiça e mutuamente se auxiliariam, em vez de se maltratarem, como o fazem. O 
forte sustentaria o  fraco, em vez de  o  esmagar. Evitados seriam os males, que se 
geram  dos  excessos  e  dos  abusos.  Todas  as  misérias  deste  mundo  provêm  da 
violação de tuas leis, porquanto nenhuma infração delas deixa de ocasionar fatais 
conseqüências. 
Deste  ao  bruto  o  instinto,  que  lhe  traça  o  limite  do  necessário,  e  ele 
maquinalmente  se  conforma;  ao  homem,  no  entanto,  além  desse  instinto,  deste  a 
inteligência e a razão; também lhe deste a liberdade de cumprir ou infringir aquelas 
das tuas leis que pessoalmente lhe concernem, isto é, a liberdade de escolher entre o 
bem e o mal, a fim de que tenha o mérito e a responsabilidade das suas ações. 
Ninguém  pode  pretextar  ignorância  das  tuas  leis,  pois,  com  paternal 
previdência,  quiseste  que  elas  se  gravassem  na  consciência  de  cada  um,  sem 
distinção de cultos, nem de nações. Se as violam, é porque as desprezam. 
Dia virá em que, segundo a tua promessa, todos as praticarão. Desaparecido 
terá, então, a incredulidade. Todos te reconhecerão por soberano Senhor de todas as 
coisas, e o reinado das tuas leis será o teu reino na Terra. 
Digna­te, Senhor, de apressar­lhe o advento, outorgando aos homens a luz 
necessária, que os conduza ao caminho da verdade. 
III. Faça­se a tua vontade, assim na Terra como no Céu. 
Se a submissão é um dever do filho para com o pai, do inferior para com o 
seu superior, quão maior não deve ser a da criatura para com o seu Criador! Fazer a 
tua vontade, Senhor, é observar as tuas leis e submeter­se, sem queixumes, aos teus 
decretos. O homem a ela se submeterá, quando compreender que és a fonte de toda a
249 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
sabedoria e que sem ti ele nada pode. Fará, então, a tua vontade na Terra, como os 
eleitos a fazem no Céu. 
IV. Dá­nos o pão de cada dia. 
Dá­nos o alimento indispensável à sustentação das forças do corpo; mas, 
dá­nos também o alimento espiritual para o desenvolvimento do nosso Espírito. 
O bruto encontra a sua pastagem; o homem, porém, deve o sustento à sua 
própria atividade e aos recursos da sua inteligência, porque o criaste livre. 
Tu  lhe hás  dito:  “Tirarás  da  terra  o  alimento  com  o suor  da  tua  fronte.” 
Desse modo, fizeste do trabalho, para ele, uma obrigação, a fim de que exercitasse a 
inteligência na procura dos meios de prover às suas necessidades e ao seu bem­estar, 
uns mediante o labor manual, outros pelo labor intelectual. Sem o trabalho, ele se 
conservaria estacionário e não poderia aspirar à felicidade dos Espíritos superiores. 
Ajudas o homem de boa vontade que em ti confia, pelo que concerne ao 
necessário; não, porém, àquele que se compraz na ociosidade e desejara tudo obter 
sem esforço, nem àquele que busca o supérfluo. (Cap. XXV.) 
Quantos e quantos sucumbem por culpa própria, pela sua incúria, pela sua 
imprevidência, ou pela sua ambição e por não terem querido contentar­se com o que 
lhes havias concedido! Esses são os artífices do seu infortúnio e carecem do direito 
de  queixar­se,  pois  que  são  punidos  naquilo  em  que  pecaram.  Mas,  nem  a  esses 
mesmos abandonas, porque és infinitamente misericordioso. As mãos lhes estendes 
para socorrê­los, desde que, como o filho pródigo, se voltem sinceramente para ti. 
(Cap. V, nº 4.) 
Antes de nos queixarmos da sorte, inquiramos de nós mesmos se ela não é 
obra nossa. A cada desgraça que nos chegue, cuidemos de saber se não teria estado 
em  nossas  mãos  evitá­la.  Consideremos  também  que  Deus  nos  outorgou  a 
inteligência  para  tirar­nos  do  lameiro,  e  que  de  nós  depende  o  modo  de  a 
utilizarmos. 
Pois  que  à  lei  do  trabalho  se  acha  submetido  o  homem na  Terra, dá­nos 
coragem  e  forças  para  obedecer  a  essa  lei.  Dá­nos  também  a  prudência,  a 
previdência e a moderação, a fim de não perdermos o respectivo fruto. 
Dá­nos, pois, Senhor, o pão de cada dia, isto é, os meios de adquirirmos, 
pelo  trabalho,  as  coisas  necessárias  à  vida,  porquanto  ninguém  tem  o  direito  de 
reclamar o supérfluo. 
Se trabalhar nos é impossível, à tua divina providência nos confiamos. 
Se  está  nos  teus  desígnios  experimentar­nos  pelas  mais  duras  provações, 
malgrado  aos  nossos  esforços,  aceitamo­las  como  justa  expiação  das  faltas  que 
tenhamos cometido nesta existência, ou noutra anterior, porquanto és justo. Sabemos 
que não há penas imerecidas e que jamais castigas sem causa. 
Preserva­nos,  ó  meu  Deus,  de  invejar  os  que  possuem  o  que  não  temos, 
nem mesmo os que dispõem do supérfluo, ao passo que a nós nos falta o necessário. 
Perdoa­lhes,  se  esquecem  a  lei  de  caridade  e  de  amor  do  próximo,  que  lhes 
ensinaste. (Cap. XVI, nº 8) 
Afasta,  igualmente,  do  nosso  espírito  a  idéia  de  negar  a  tua  justiça,  ao 
notarmos a prosperidade do mau e a desgraça que cai por vezes sobre o homem de 
bem.  Já  sabemos,  graças  às  novas  luzes  que  te  aprouve  conceder­nos,  que  a  tua
250 – Allan Kardec 
justiça se cumpre sempre e a ninguém excetua; que a prosperidade material do mau 
é efêmera, quanto a sua existência corpórea, e que experimentará terríveis reveses, 
ao passo que eterno será o júbilo daquele que sofre resignado. (Cap. V, nº 7, 9, 12 e 18) 
V.  Perdoa  as  nossas  dívidas,  como  perdoamos  aos  que  nos  devem.  Perdoa  as 
nossas ofensas, como perdoamos aos que nos ofenderam. 
Cada uma das nossas infrações às tuas leis, Senhor, é uma ofensa que te 
fazemos  e  uma  dívida  que  contraímos  e  que  cedo  ou  tarde  teremos  de  saldar. 
Rogamos­te que no­las perdoes pela tua infinita misericórdia, sob a promessa, que te 
fazemos, de empregarmos os maiores esforços para não contrair outras. 
Tu nos impuseste por lei expressa a caridade; mas, a caridade não consiste 
apenas  em  assistirmos  os  nossos  semelhantes  em  suas  necessidades;  também 
consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. Com que direito reclamaríamos a 
tua indulgência, se dela não usássemos para com aqueles que nos hão dado motivo 
de  queixa?  Concede­nos,  ó  meu  Deus,  forças  para  apagar  de  nossa  alma  todo 
ressentimento,  todo  ódio  e  todo  rancor.  Faze  que  a  morte  não  nos  surpreenda 
guardando  nós  no  coração  desejos  de  vingança.  Se  te  aprouver  tirar­nos  hoje 
mesmo deste mundo, faze que nos possamos apresentar, diante de ti, puros de toda 
animosidade, a exemplo do Cristo, cujos últimos pensamentos foram em prol dos 
seus algozes. (Cap. X) 
Constituem parte das nossas provas terrenas as perseguições que os maus 
nos infligem. Devemos, então, recebê­las sem nos queixarmos, como todas as outras 
provas,  e  não  maldizer  dos  que,  por  suas  maldades,  nos  rasgam  o  caminho  da 
felicidade eterna, visto que nos disseste, por intermédio de Jesus: “Bem­aventurados 
os que sofrem pela justiça!” Bendigamos, portanto, a mão que nos fere e humilha, 
uma  vez  que  as  mortificações  do  corpo  nos  fortificam  a  alma  e  que  seremos 
exalçados  por  efeito  da  nossa humildade. (Cap.  XII,  nº  4.) Bendito  seja  teu  nome, 
Senhor,  por  nos  teres  ensinado  que  nossa  sorte  não  está  irrevogavelmente  fixada 
depois da morte; que encontraremos, em outras existências, os meios de resgatar e 
de  reparar nossas  culpas  passadas,  de  cumprir  em nova  vida  o  que  não  podemos 
fazer nesta, para nosso progresso. (Cap. IV, e cap. V, nº 5) 
Assim se explicam, afinal, todas as anomalias aparentes da vida. É a luz 
que se projeta sobre o nosso passado e o nosso futuro, sinal evidente da tua justiça 
soberana e da tua infinita bondade. 
VI. Não nos deixes entregues à tentação, mas livra­nos do mal 16 
. 
Dá­nos,  Senhor,  a  força  de  resistir  às  sugestões  dos  Espíritos  maus,  que 
tentem desviar­nos da senda do bem, inspirando­nos maus pensamentos. 
Mas, somos Espíritos imperfeitos, encarnados na Terra para expiar nossas 
faltas  e  melhorar­nos.  Em  nós  mesmos  está  a  causa  primária  do  mal  e  os  maus 
16 
Algumas  traduções  dizem:  Não  nos  induzas  à  tentação  (et  ne  nos  inducas  in  tentationem).  Essa 
expressão daria a entender que a tentação promana de Deus, que ele, voluntariamente, impele os homens 
ao mal, idéia blasfematória que igualaria Deus a Satanás e que, portanto, não poderia estar na mente de 
Jesus. É, aliás, conforme à doutrina vulgar sobre o papel dos demônios. (Veja­se: O Céu e o Inferno, 1ª 
Parte, cap. IX, “Os demônios”.)
251 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Espíritos mais não fazem do que aproveitar os nossos pendores viciosos, em que nos 
entretêm para nos tentarem. 
Cada imperfeição é uma porta aberta à influência deles, ao passo que são 
impotentes e renunciam a toda tentativa contra os seres perfeitos. É inútil tudo o que 
possamos fazer para afastá­los, se não lhes opusermos decidida e inabalável vontade 
de permanecer no bem e absoluta renunciação ao mal. Contra nós mesmos, pois, é 
que  precisamos  dirigir  os  nossos  esforços  e,  se  o  fizermos,  os  maus  Espíritos 
naturalmente se afastarão, porquanto o mal é que os atrai, ao passo que o bem os 
repele. (Veja­se aqui adiante: “Preces pelos obsidiados”.) 
Senhor,  ampara­nos  em  nossa  fraqueza;  inspira­nos,  pelos  nossos  anjos 
guardiães  e  pelos  bons  Espíritos,  a  vontade  de  nos  corrigirmos  de  todas  as 
imperfeições a fim de obstarmos aos Espíritos maus o acesso à nossa alma. (Veja­se 
aqui adiante o nº 11.) 
O mal não é obra tua, Senhor, porquanto o manancial de todo o bem nada 
de mau pode gerar. Somos nós mesmos que criamos o mal, infringindo as tuas leis e 
fazendo  mau  uso  da  liberdade  que  nos  outorgaste.  Quando  os  homens  as 
cumprirmos,  o  mal  desaparecerá  da  Terra,  como  já  desapareceu  de  mundos  mais 
adiantados que o nosso. 
O  mal  não  constitui  para  ninguém  uma  necessidade  fatal  e  só  parece 
irresistível  aos  que  nele  se  comprazem.  Desde  que  temos  vontade  para  o  fazer, 
também  podemos  ter  a  de  praticar  o  bem,  pelo  que,  ó  meu  Deus,  pedimos  a  tua 
assistência e a dos Espíritos bons, a fim de resistirmos à tentação. 
VII. Assim seja. 
Praza­te,  Senhor,  que  os  nossos  desejos  se  efetivem.  Mas,  curvamo­nos 
perante  a  tua  sabedoria  infinita.  Que  em  todas  as  coisas  que  nos  escapam  à 
compreensão se faça a tua santa vontade e não a nossa, pois somente queres o nosso 
bem e melhor do que nós sabes o que nos convém. 
Dirigimos­te esta prece, ó Deus, por nós mesmos  e também por todas as 
almas sofredoras, encarnadas e desencarnadas, pelos nossos amigos e inimigos, por 
todos os que solicitem a nossa assistência e, em particular, por N... 
Para todos suplicamos a tua misericórdia e a tua bênção. 
Nota – Aqui, podem formular­se os agradecimentos que se queiram dirigir a Deus e o que se 
deseje pedir para si mesmo ou para outrem. (Vejam­se, adiante, as preces nos 26 e 27.) 
REUNIÕES ESPÍRITAS 
4. “Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu 
nome, eu com elas estarei”. 
(MATEUS, 18:20) 
5. PREFÁCIO. Estarem reunidas, em nome de Jesus, duas, três ou mais pessoas, não quer dizer 
que  basta  se  achem  materialmente  juntas.  É  preciso  que  o  estejam  espiritualmente,  em 
comunhão de intentos  e  de idéias, para  o  bem.  Jesus,  então,  ou os  Espíritos  puros, que  o 
representam, se encontrarão na assembléia. O Espiritismo nos faz compreender como podem
252 – Allan Kardec 
os  Espíritos  achar­se entre nós. Comparecem com seu corpo fluídico ou espiritual e sob a 
aparência que nos levaria a reconhecê­los, se se tornassem visíveis. Quanto mais elevados são 
na hierarquia espiritual, tanto maior é neles o poder de irradiação. É assim que possuem o 
dom da ubiqüidade e que podem estar simultaneamente em muitos lugares, bastando para isso 
que enviem a cada um desses lugares um raio de suas mentes. 
Dizendo as palavras acima transcritas, quis  Jesus  revelar o efeito da união e da 
fraternidade. O que o atrai não é o maior ou menor número de pessoas que se reúnam, pois, 
em vez de duas ou três, houvera ele podido dizer dez ou vinte, mas o sentimento de caridade 
que reciprocamente as anime. Ora, para isso, basta que elas sejam duas. Contudo, se essas 
duas pessoas oram cada uma por seu lado, embora dirigindo­se ambas a Jesus, não há entre 
elas comunhão de pensamentos, sobretudo se ali não estão sob o influxo de um sentimento de 
mútua benevolência. Se se olham com prevenção, com ódio, inveja ou ciúme, as correntes 
fluídicas de seus pensamentos, longe de se conjugarem por um comum impulso de simpatia, 
repelem­se. Nesse caso, não estarão reunidas em nome de Jesus, que, então, não passa de 
pretexto para a reunião, não o tendo esta por verdadeiro motivo. (Cap. XXVII, nº 9) 
Isso não significa que ele se mostre surdo ao que lhe diga uma única pessoa; e se ele 
não disse: “Atenderei a todo aquele que me chamar”, é que, antes de tudo, exige o amor do 
próximo; e desse amor mais  provas podem dar­se quando são muitos os  que exoram, com 
exclusão de todo sentimento pessoal, e não um apenas. Segue­se que, se, numa assembléia 
numerosa, somente duas ou três pessoas se unem de coração, pelo sentimento de verdadeira 
caridade,  enquanto  as  outras  se  isolam  e  se  concentram  em  pensamentos  egoísticos  ou 
mundanos, ele estará com as primeiras e não com as outras. Não é, pois, a simultaneidade das 
palavras, dos cânticos ou dos atos exteriores que constitui a reunião em nome de Jesus, mas a 
comunhão de pensamentos, em concordância com o espírito de caridade que ele personifica. 
(Cap. X, nº 7 e 8; cap. XXVII, nº 2 a 4) 
Tal o caráter de que devem revestir­se as reuniões espíritas sérias, aquelas 
em que sinceramente se deseja o concurso dos bons Espíritos. 
6. Prece. (Para o começo da reunião.) – Ao Senhor Deus onipotente suplicamos que 
envie, para nos assistirem, Espíritos bons; que afaste os que nos possam induzir em 
erro e nos conceda a luz necessária para distinguirmos da impostura a verdade. 
Afasta,  igualmente,  Senhor,  os  Espíritos  malfazejos,  encarnados  e 
desencarnados, que tentem lançar entre nós a discórdia e desviar­nos da caridade e 
do amor ao próximo. Se procurarem alguns deles introduzir­se aqui, faze não achem 
acesso no coração de nenhum de nós. 
Bons  Espíritos  que  vos  dignais  de  vir  instruir­nos,  tornai­nos  dóceis  aos 
vossos conselhos; preservai­nos de toda idéia de egoísmo, orgulho, inveja e ciúme; 
inspirai­nos indulgência e benevolência para com os nossos semelhantes, presentes e 
ausentes, amigos ou inimigos; fazei, em suma, que, pelos sentimentos de que nos 
achemos animados, reconheçamos a vossa influência salutar. 
Dai  aos  médiuns  que  escolherdes  para  transmissores  dos  vossos 
ensinamentos, consciência do mandato que lhes é conferido e da gravidade do ato 
que vão praticar, a fim de que o façam com o fervor e o recolhimento precisos. 
Se, em nossa reunião, estiverem pessoas que tenham vindo impelidas por 
sentimentos outros que não os do bem, abri­lhes os olhos à luz e perdoai­lhes, como 
nós lhes perdoamos, se trouxerem malévolas intenções. 
Pedimos,  especialmente,  ao  Espírito  N...,  nosso  guia  espiritual,  que  nos 
assista e por nós vele.
253 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
7. (Para o fim da reunião.) – Agradecemos aos bons Espíritos que se dignaram de 
comunicar­se conosco e lhes rogamos que nos ajudem a pôr em prática as instruções 
que nos deram e façam que, ao sair daqui, cada um de nós se sinta fortalecido para a 
prática do bem e do amor ao próximo. 
Também  desejamos  que  as  suas  instruções  aproveitem  aos  Espíritos 
sofredores, ignorantes ou viciosos, que tenham participado da nossa reunião e para 
os quais imploramos a misericórdia de Deus. 
PARA OS MÉDIUNS 
8. “ Nos últimos tempos, – diz o Senhor – difundirei do meu Espírito 
sobre toda carne; vossos filhos e filhas profetizarão; vossos jovens 
terão  visões  e  vossos  velhos,  sonhos.  Nesses  dias,  difundirei  do 
meu  Espírito  sobre  os  meus  servidores  e  servidoras,  e  eles 
profetizarão”. 
(Atos, 2:17 e 18.) 17 
9. PREFÁCIO. Quis o Senhor que a luz se fizesse para todos os homens e que em toda a parte 
penetrasse a voz dos Espíritos, a fim de que cada um pudesse obter a prova da imortalidade. 
Com esse objetivo é que os Espíritos se manifestam hoje em todos os pontos da Terra e a 
mediunidade se revela em pessoas de todas as idades e de todas as condições, nos homens 
como  nas  mulheres,  nas  crianças  como  nos  velhos.  É  um  dos  sinais  de  que  chegaram os 
tempos preditos. 
Para  conhecer  as  coisas  do  mundo  visível  e  descobrir  os  segredos  da  Natureza 
material, outorgou  Deus ao homem a  vista corpórea, os  sentidos  e instrumentos  especiais. 
Com o telescópio, ele mergulha o olhar nas profundezas do espaço, e, com o microscópio, 
descobriu o mundo dos infinitamente pequenos. Para peneirar no mundo invisível, deu­lhe a 
mediunidade. 
Os médiuns são os intérpretes incumbidos de transmitir aos homens os ensinos dos 
Espíritos;  ou,  melhor,  são  os  órgãos  materiais  de  que  se  servem  os  Espíritos  para  se 
expressarem aos homens por maneira inteligível. Santa é a missão que desempenham, visto 
ter por fim rasgar os horizontes da vida eterna. 
Os Espíritos vêm instruir o homem sobre seus destinos, a fim de o reconduzirem à 
senda do bem, e não para o pouparem ao trabalho material que lhe cumpre executar neste 
17 
Confrontando  o  v.  18  de  Atos,  cap.  2,  com  o  correspondente  de  Joel,  2,  29,  notamos  que,  na 
transcrição  da profecia para o Novo Testamento,  há uma diferença: Pela  profecia,  trata­se  de servos e 
servas (escravos e  escravas) dos homens e  não de Deus, como  se acha  na transcrição. Eis o texto dos 
versículos,  nas duas traduções  mais  modernas e  fiéis: a Brasileira  e a do Esperanto, as  quais  estão de 
acordo também com a Inglesa: 
Joel,  2,  29:  “Também  sobre  os  servos  e  sobre  as  servas  naqueles  dias  derramarei  o  meu 
Espírito” – Atos, 2, 18: “E, sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito 
naqueles  dias,  e  profetizarão.”  Na  tradução  em  Esperanto  ainda  está  mais  claro  que  se  trata  até  dos 
escravos e escravas dos homens, e não de servos de Deus. Ei­la: “Joel, 2, 29: E^c sur la sklavojn kaj sur 
la sklavinojn Mi em tiu tempo elver^ sos Mian spiriton!” – Atos, 2, 18: “Kaj e^c sur Miajn sklavojn 
kaj Miajn sklavinojn en tiu tempo Mi elver^SOS Mian spiriton, kaj ili profetos.” Até os escravos e 
escravas  (dos  homens)  receberão  o  Espírito,  não  somente  os  servos  e  servas  de  Deus  (Sacerdotes  e 
sacerdotisas). A profecia em sua forma original está­se cumprindo em nossos dias; porque a mediunidade 
brota em todas as classes, até nas pessoas mais humildes e obscuras, e não somente, como faz supor o 
texto de Atos, entre os sacerdotes (servos de Deus). – Nota da Editora da FEB, em 1947.
254 – Allan Kardec 
mundo, tendo por meta o seu adiantamento, nem para lhe favorecerem a ambição e a cupidez. 
Aí têm os médiuns o de que devem compenetrar­se bem, para não fazerem mau uso de suas 
faculdades.  Aquele  que,  médium,  compreende  a  gravidade  do  mandato  de  que  se  acha 
investido, religiosamente o desempenha. Sua consciência lhe profligaria, como ato sacrílego, 
utilizar  por  divertimento  e  distração,  para  si  ou  para  os  outros,  faculdades  que  lhe  são 
concedidas para fins  sobremaneira sérios  e que o põem em comunicação com os  seres de 
além­túmulo. 
Como  intérpretes  do  ensino  dos  Espíritos,  têm  os  médiuns  de  desempenhar 
importante  papel  na  transformação  moral  que  se  opera.  Os  serviços  que  podem  prestar 
guardam proporção com a boa diretriz que imprimam às suas faculdades, porquanto os que 
enveredam por mau caminho são mais nocivos do que úteis à causa do Espiritismo. Pela má 
impressão que produzem, mais de uma conversão retardam. Terão, por isso mesmo, de dar 
contas  do  uso  que  hajam  feito  de  um  dom  que  lhes  foi  concedido  para  o  bem  de  seus 
semelhantes. 
O  médium  que  queira  gozar  sempre  da  assistência  dos  bons  Espíritos  tem  de 
trabalhar por melhorar­se. O que deseja que a sua faculdade se desenvolva e engrandeça tem 
de se engrandecer moralmente e de se abster de tudo o que possa concorrer para desviá­la do 
seu fim providencial. 
Se, às vezes, os Espíritos bons se servem de médiuns imperfeitos, é para dar bons 
conselhos, com os quais procuram fazê­los retomar a estrada do bem. Se, porém, topam com 
corações  endurecidos  e se suas  advertências  não são escutadas, afastam­se, ficando livre o 
campo aos maus. (Cap. XXIV, nº 11 e 12.) 
Prova a experiência que, da parte dos que não aproveitam os conselhos que recebem 
dos  bons  Espíritos, as comunicações, depois de terem revelado certo brilho durante algum 
tempo, degeneram pouco a pouco e acabam caindo no erro, na vertigem, ou no ridículo, sinal 
incontestável do afastamento dos bons Espíritos. 
Conseguir a assistência destes, afastar os Espíritos levianos e mentirosos, tal deve 
ser a meta para onde convirjam os esforços constantes de todos os médiuns sérios. Sem isso, a 
mediunidade se torna uma faculdade estéril, capaz mesmo de redundar em prejuízo daquele 
que a possua, pois pode degenerar em perigosa obsessão. 
O médium que compreende o seu dever, longe de se orgulhar de uma faculdade que 
não lhe pertence, visto que lhe pode ser retirada, atribui a Deus as boas coisas que obtém. Se 
as  suas  comunicações  receberem  elogios,  não  se  envaidecerá  com  isso,  porque  as  sabe 
independentes  do  seu  mérito  pessoal;  agradece  a  Deus  o  haver  consentido  que  por  seu 
intermédio bons Espíritos se manifestassem. Se dão lugar à crítica, não se ofende, porque não 
são  obra  do  seu  próprio  Espírito.  Ao  contrário,  reconhece  no  seu  íntimo  que  não  foi  um 
instrumento bom e que não dispõe de todas as qualidades necessárias a obstar a imiscuência 
dos Espíritos maus. Cuida, então, de adquirir essas qualidades e suplica, por meio da prece, as 
forças que lhe faltam. 
10.  Prece.  –  Deus  onipotente,  permite  que  os  bons  Espíritos  me  assistam  na 
comunicação que solicito. Preserva­me da presunção de me julgar resguardado dos 
Espíritos maus; do orgulho que me induza em erro sobre o valor do que obtenha; de 
todo sentimento oposto à caridade para com outros médiuns. Se cair em erro, inspira 
a  alguém  a idéia de  me  advertir  disso  e  a  mim  a humildade  que  me  faça  aceitar 
reconhecido a crítica e tomar como endereçados a mim mesmo, e não aos outros, os 
conselhos que os bons Espíritos me queiram ditar. 
Se for tentado a cometer abuso, no que quer que seja, ou a me envaidecer 
da  faculdade  que  te  aprouve  conceder­me,  peço  que  ma  retires,  de  preferência  a
255 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
consentires seja ela desviada do seu objetivo providencial, que é o bem de todos e o 
meu próprio avanço moral. 
II – PRECES POR AQUELE MESMO QUE ORA 
AOS ANJOS GUARDIÃES E AOS ESPÍRITOS PROTETORES 
11. PREFÁCIO. Todos temos, ligado a nós, desde o nosso nascimento, um Espírito bom, que 
nos tomou sob a sua proteção. Desempenha, junto de nós, a missão de um pai para com seu 
filho: a de nos conduzir pelo caminho do bem e do progresso, através das provações da vida. 
Sente­se feliz, quando correspondemos à sua solicitude; sofre, quando nos vê sucumbir. 
Seu nome pouco importa, pois bem pode dar­se que não tenha nome conhecido na 
Terra.  Invocamo­lo,  então,  como  nosso  anjo  guardião,  nosso  bom  gênio.  Podemos  mesmo 
invocá­lo sob o nome de qualquer Espírito superior, que mais viva e particular simpatia nos 
inspire. 
Além  do  Anjo  guardião,  que  é  sempre  um  Espírito  superior,  temos  Espíritos 
protetores que, embora menos  elevados, não são menos  bons  e  magnânimos. Contamo­los 
entre amigos, ou parentes, ou, até, entre pessoas que não conhecemos na existência atual. Eles 
nos assistem com seus conselhos e, não raro, intervindo nos atos da nossa vida. 
Espíritos  simpáticos  são os  que se nos  ligam por uma certa analogia de gostos  e 
pendores.  Podem  ser  bons  ou  maus,  conforme  a  natureza  das  inclinações  nossas  que  os 
atraiam. 
Os Espíritos sedutores se esforçam por nos afastar das veredas do bem, sugerindo­ 
nos maus pensamentos. Aproveitam­se de todas as nossas fraquezas, como de outras tantas 
portas abertas, que lhes facultam acesso à nossa alma. Alguns há que se nos aferram, como a 
uma presa, mas que se afastam, em se reconhecendo impotentes para lutar contra a nossa 
vontade. 
Deus,  em  o  nosso  anjo  guardião,  nos  deu  um  guia  principal  e  superior  e,  nos 
Espíritos  protetores  e  familiares,  guias  secundários.  Fora  erro,  porém,  acreditarmos  que 
forçosamente, temos um mau gênio ao nosso lado, para contrabalançar as boas influências que 
sobre nós se exerçam. Os maus Espíritos acorrem voluntariamente, desde que achem meio de 
assumir predomínio sobre nós, ou pela nossa fraqueza, ou pela negligência que ponhamos em 
seguir as inspirações dos bons Espíritos. Somos nós, portanto, que os atraímos. Resulta desse 
fato  que  jamais  nos  encontramos  privados  da  assistência dos  bons  Espíritos  e  que  de nós 
depende o afastamento dos maus. Sendo, por suas imperfeições, a causa primária das misérias 
que o afligem, o homem é, as mais das vezes, o seu próprio mau gênio. (Cap. V, nº 4) 
A prece aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores deve ter por objeto solicitar­ 
lhes  a intercessão junto de Deus, pedir­lhes a força de resistir às más sugestões e que nos 
assistam nas contingências da vida. 
12. Prece. – Espíritos esclarecidos e benevolentes, mensageiros de Deus, que tendes 
por  missão  assistir  os  homens  e  conduzi­los  pelo  bom  caminho,  sustentai­me nas 
provas desta vida; dai­me a força de suportá­las sem queixumes; livrai­me dos maus 
pensamentos  e  fazei  que  eu  não  dê  entrada  a  nenhum  mau  Espírito  que  queira 
induzir­me ao mal. Esclarecei a minha consciência com relação aos meus defeitos e 
tirai­me de sobre os olhos o véu do orgulho, capaz de impedir que eu os perceba e os 
confesse a mim mesmo.
256 – Allan Kardec 
A ti, sobretudo, N..., meu anjo guardião, que mais particularmente velas por 
mim, e a todos vós, Espíritos protetores, que por mim vos interessais, peço fazerdes 
que  me  torne  digno  da  vossa  proteção.  Conheceis  as  minhas necessidades;  sejam 
elas atendidas, segundo a vontade de Deus. 
13. (Outra) – Meu Deus, permite que os bons Espíritos que me cercam venham em 
meu  auxílio,  quando  me  achar  em  sofrimento,  e  que  me  sustentem  se  desfalecer. 
Faze, Senhor, que eles me incutam fé, esperança e caridade; que sejam para mim um 
amparo,  uma  inspiração  e  um  testemunho  da  tua  misericórdia.  Faze,  enfim,  que 
neles  encontre  eu  a  força  que  me  falta  nas  provas  da  vida  e,  para  resistir  às 
inspirações do mal, a fé que salva e o amor que consola. 
14. (Outra) – Espíritos bem­amados, anjos guardiães que, com a permissão de Deus, 
pela sua infinita misericórdia, velais sobre  os homens, sede nossos protetores nas 
provas da vida terrena. Dai­nos força, coragem e resignação; inspirai­nos tudo o que 
é bom, detende­nos no declive do mal; que a vossa bondosa influência nos penetre a 
alma; fazei sintamos que um amigo devotado está ao nosso lado, que vê os nossos 
sofrimentos e partilha das nossas alegrias. 
E tu, meu bom anjo, não me abandones. Necessito de toda a tua proteção, 
para suportar com fé e amor as provas que praza a Deus enviar­me. 
PARA AFASTAR OS MAUS ESPÍRITOS 
15. “ Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que limpais por fora o copo e o prato e 
estais,  por  dentro,  cheios  de  rapinas  e  impurezas.  Fariseus  cegos,  limpai 
primeiramente  o  interior  do copo  e do  prato,  a fim  de  que também  o  exterior fique 
limpo.  Ai  de  vós,  escribas  e  fariseus  hipócritas,  que  vós  assemelhais  a  sepulcros 
branqueados,  que  por  fora  parecem  belos  aos  olhos  dos  homens,  mas  que,  por 
dentro,  estão  cheios  de  toda  espécie  de  podridões.  Assim,  pelo  exterior,  pareceis 
justos  aos  olhos  dos  homens,  mas,  por  dentro,  estais  cheios  de  hipocrisia  e  de 
iniqüidades”. 
(MATEUS, 23:25 a 28) 
16.  PREFÁCIO.  Os  maus  Espíritos  somente  procuram  os  lugares  onde  encontrem 
possibilidades de dar expansão à sua perversidade. Para os afastar, não basta pedir­lhes, nem 
mesmo  ordenar­lhes  que  se  vão;  é  preciso  que  o  homem  elimine  de  si  o  que  os  atrai.  Os 
Espíritos  maus  farejam  as  chagas  da  alma,  como  as  moscas  farejam  as  chagas  do  corpo. 
Assim  como  se  limpa  o  corpo,  para  evitar  a  bicheira,  também  se  deve  limpar  de  suas 
impurezas a alma, para evitar os maus Espíritos. Vivendo num mundo onde estes pululam, 
nem  sempre  as  boas  qualidades  do  coração  nos  põem  a  salvo  de  suas  tentativas;  dão, 
entretanto, forças para que lhes resistamos. 
17.  Prece.  –  Em  nome  de  Deus  Todo­Poderoso,  afastem­se  de  mim  os  maus 
Espíritos, servindo­me os bons de antemural contra eles. 
Espíritos  malfazejos,  que  inspirais  maus  pensamentos  aos  homens; 
Espíritos  velhacos  e  mentirosos,  que  os  enganais;  Espíritos  zombeteiros,  que  vos
257 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
divertis com a credulidade deles, eu vos repilo com todas as forças de minha alma e 
fecho os ouvidos às vossas sugestões; mas, imploro para vós a misericórdia de Deus. 
Bons Espíritos que vos dignais de assistir­me, dai­me a força de resistir à 
influência dos Espíritos maus e as luzes de que necessito para não ser vítima de suas 
tramas. Preservai­me do orgulho e da presunção; isentai o meu coração do ciúme, do 
ódio, da malevolência, de todo sentimento contrário à caridade, que são outras tantas 
portas abertas ao Espírito do mal. 
PARA PEDIR A CORRIGENDA DE UM DEFEITO 
18. PREFÁCIO. Os nossos maus instintos resultam da imperfeição do nosso próprio Espírito e 
não da nossa organização física; a não ser assim, o homem se acharia isento de toda espécie 
de responsabilidade. De nós depende a nossa melhoria, pois todo aquele que se acha no gozo 
de suas faculdades tem, com relação a todas as coisas, a liberdade de fazer ou de não fazer. 
Para praticar o bem, de nada mais precisa senão do querer. (Cap. XV, nº 10; cap. XIX, nº 12.) 
19. Prece. – Deste­me, ó meu Deus, a inteligência necessária a distinguir o que é 
bem do que é mal. Ora, do momento em que reconheço que uma coisa é do mal, 
torno­me culpado, se não me esforçar por lhe resistir. 
Preserva­me  do  orgulho  que  me  poderia  impedir  de  perceber  os  meus 
defeitos e dos maus Espíritos que me possam incitar a perseverar neles. 
Entre as minhas imperfeições, reconheço que sou particularmente propenso 
a...; e, se não resisto a esse pendor, é porque contraí o hábito de a ele ceder. 
Não me criaste culpado, pois que és justo, mas com igual aptidão para o 
bem  e  para  o  mal;  se  tomei  o  mau  caminho,  foi  por  efeito  do  meu  livre­arbítrio. 
Todavia, pela mesma razão que tive a liberdade de fazer o mal, tenho a de fazer o 
bem e, conseguintemente, a de mudar de caminho. 
Meus atuais defeitos são restos das imperfeições que conservei das minhas 
precedentes existências; são o meu pecado original, de que me posso libertar pela 
ação da minha vontade e com a ajuda dos Espíritos bons. 
Bons Espíritos que me protegeis, e sobretudo tu, meu anjo­da­guarda, dai­ 
me forças para resistir às más sugestões e para sair vitorioso da luta. Os defeitos são 
barreiras que nos separam de Deus e cada um que eu suprima será um passo dado na 
senda do progresso que dele me há de aproximar. 
O  Senhor,  em  sua  infinita  misericórdia,  houve  por  bem  conceder­me  a 
existência atual, para que servisse ao meu adiantamento. Bons Espíritos, ajudai­me a 
aproveitá­la, para que me não fique perdida e para que, quando ao Senhor aprouver 
ma retirar, eu dela saia melhor do que entrei. (Cap. V, nº 5; cap. XVII, nº 3. 
PARA PEDIR A FORÇA DE RESISTIR A UMA TENTAÇÃO 
20.  PREFÁCIO.  Duas  origens  pode  ter  qualquer  pensamento  mau:  a  própria  imperfeição  de 
nossa alma, ou uma funesta influência que sobre ela se exerça. Neste último caso, há sempre 
indício de uma fraqueza que nos sujeita a receber essa influência; há, por conseguinte, indício 
de uma alma imperfeita. De sorte que aquele que venha a falir não poderá invocar por escusa
258 – Allan Kardec 
a influência de um Espírito estranho, visto que esse Espírito não o teria arrastado ao mal, se 
o considerasse inacessível à sedução. 
Quando surge em nós um mau pensamento, podemos, pois, imaginar um Espírito 
maléfico a nos atrair para o mal, mas a cuja atração podemos ceder ou resistir, como se se 
tratara das solicitações de uma pessoa viva. Devemos, ao mesmo tempo, imaginar que, por 
seu lado, o nosso anjo guardião, ou Espírito protetor, combate em nós a má influência e espera 
com  ansiedade  a  decisão  que  tomemos.  A  nossa  hesitação  em  praticar  o  mal  é  a  voz  do 
Espírito bom, a se fazer ouvir pela nossa consciência. 
Reconhece­se  que  um  pensamento  é  mau,  quando  se  afasta  da  caridade,  que 
constitui a base da verdadeira moral, quando tem por princípio o orgulho, a vaidade, ou o 
egoísmo; quando a sua realização pode causar qualquer prejuízo a outrem; quando, enfim, nos 
induz a fazer aos outros o que não quereríamos que nos fizessem. (Cap. XXVIII, nº 15; cap. 
XV, nº10) 
21.  Prece.  –  Deus  Todo­Poderoso,  não  me  deixes  sucumbir  à  tentação  que  me 
impele  a  falir.  Espíritos  benfazejos,  que  me  protegeis,  afastai  de  mim  este  mau 
pensamento  e  dai­me  a  força  de  resistir  à  sugestão  do  mal.  Se  eu  sucumbir, 
merecerei expiar a minha falta nesta vida e na outra, porque tenho a liberdade de 
escolher. 
AÇÃO DE GRAÇAS PELA VITÓRIA ALCANÇADA 
SOBRE UMA TENTAÇÃO 
22. PREFÁCIO. Aquele que resistiu a uma tentação deve­o à assistência dos bons Espíritos, a 
cuja voz atendeu. Cumpre­lhe agradecê­lo a Deus e ao seu anjo­de­guarda. 
23. Prece. – Meu Deus, agradeço­te o haveres permitido eu saísse vitorioso da luta 
que acabo de sustentar contra o mal. Faze que essa vitória me dê a força de resistir a 
novas tentações. 
E a ti, meu anjo guardião, agradeço a assistência com que me valeste. Possa 
a minha submissão aos teus conselhos granjear­me de novo a tua proteção! 
PARA PEDIR UM CONSELHO 
24. PREFÁCIO. Quando estamos indecisos sobre o fazer ou não fazer uma coisa, devemos antes 
de tudo propor­nos a nós mesmos as questões seguintes: 
1ª – Aquilo que eu hesito em fazer pode acarretar qualquer prejuízo a outrem? 
2ª – Pode ser proveitoso a alguém? 
3ª – Se agissem assim comigo, ficaria eu satisfeito? 
Se  o  que  pensamos  fazer,  somente  a  nós  nos  interessa,  lícito  nos  é  pesar  as 
vantagens e os inconvenientes pessoais que nos possam advir. 
Se interessa a outrem e se, resultando em bem para um, redundará em mal para 
outro, cumpre, igualmente, pesemos  a soma de bem ou de mal que se produzirá, para nos 
decidirmos a agir, ou a abster­nos.
259 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Enfim, mesmo em se tratando das melhores coisas, importa ainda consideremos a 
oportunidade e as circunstâncias concomitantes, porquanto uma coisa boa, em si mesma, pode 
dar maus resultados em mãos inábeis, se não for conduzida com prudência e circunspecção. 
Antes de empreendê­la, convém consultemos as nossas forças e meios de execução. 
Em  todos  os  casos,  sempre  podemos  solicitar  a  assistência  dos  nossos  Espíritos 
protetores, lembrados desta sábia advertência: Na dúvida, abstém­te. (Cap. XXVIII, nº 38) 
25. Prece. – Em nome de Deus Todo­Poderoso, inspirai­me, bons Espíritos que me 
protegeis,  a  melhor  resolução  a  ser  tomada  na  incerteza  em  que  me  encontro. 
Encaminhai meu pensamento para o bem e livrai­me da influência dos que tentarem 
transviar­me. 
NAS AFLIÇÕES DA VIDA 
26. PREFÁCIO. Podemos pedir a Deus favores terrenos e Ele no­los pode conceder, quando 
tenham um fim útil e sério. Mas, como a utilidade das coisas sempre a julgamos do nosso 
ponto de vista e como as nossas vistas se circunscrevem ao presente, nem sempre vemos o 
lado mau do que desejamos. Deus, que vê muito melhor do que nós e que só o nosso bem 
quer, pode recusar o que peçamos, como um pai nega ao filho o que lhe seja prejudicial. Se 
não  nos  é  concedido  o  que  pedimos,  não  devemos  por  isso  entregar­nos  ao  desânimo; 
devemos pensar, ao contrário, que a privação do que desejamos nos é imposta como prova, ou 
como  expiação,  e  que  a  nossa  recompensa  será  proporcionada  à  resignação  com  que  a 
houvermos suportado. (Cap. XXVII, nº 6; cap. II, nos 5 a 7) 
27.  Prece.  –  Deus  Onipotente,  que  vês  as  nossas  misérias,  digna­te  de  escutar, 
benevolente, a súplica que neste momento te dirijo. Se é desarrazoado o meu pedido, 
perdoa­me; se é justo e conveniente segundo as tuas vistas, que os bons Espíritos, 
executores das tuas vontades, venham em meu auxílio para que ele seja satisfeito. 
Como quer que seja, meu Deus, faça­se a tua vontade. Se os meus desejos 
não  forem  atendidos,  é  que  está  nos  teus  desígnios  experimentar­me  e  eu  me 
submeto sem me queixar. Faze que por isso nenhum desânimo me assalte e que nem 
a minha fé nem a minha resignação sofram qualquer abalo. 
(Formular o pedido.) 
AÇÃO DE GRAÇAS POR UM FAVOR OBTIDO 
28. PREFÁCIO. Não se devem considerar como sucessos ditosos apenas o que seja de grande 
importância. Muitas vezes, coisas aparentemente insignificantes são as que mais influem em 
nosso destino. O homem facilmente esquece o bem, para, de preferência, lembrar­se do que o 
aflige. Se registrássemos,  dia a  dia,  os  benefícios  de  que  somos  objeto, sem  os  havermos 
pedido, ficaríamos, com freqüência, espantados de termos recebido tantos e tantos que se nos 
varreram da memória, e nos sentiríamos humilhados com a nossa ingratidão. 
Todas as noites, ao elevarmos  a Deus  a nossa alma, devemos  recordar em nosso 
íntimo os  favores que Ele nos  fez durante o dia e agradecer­lhos. Sobretudo no momento 
mesmo em que experimentamos o efeito da sua bondade e da sua proteção, é que nos cumpre, 
por um movimento espontâneo, testemunhar­­lhe a nossa gratidão. Basta, para isso, que lhe
260 – Allan Kardec 
dirijamos um pensamento, atribuindo­lhe o benefício, sem que se faça mister interrompamos 
o nosso trabalho. 
Não  consistem  os  benefícios  de  Deus  unicamente  em  coisas  materiais.  Devemos 
também agradecer­lhe as boas idéias, as felizes inspirações que recebemos. Ao passo que o 
egoísta atribui tudo isso aos seus méritos pessoais e o incrédulo ao acaso, aquele que tem fé 
rende graças a Deus e aos bons Espíritos. São desnecessárias, para esse efeito, longas frases. 
“Obrigado, meu Deus, pelo bom pensamento que me foi inspirado”, diz mais do que muitas 
palavras. O impulso espontâneo, que nos faz atribuir a Deus o que de bom nos sucede, dá 
testemunho de um ato de reconhecimento e de humildade, que nos granjeia a simpatia dos 
bons Espíritos. (Cap. XXVII, nº 7 e 8) 
29. Prece. – Deus infinitamente bom, que o teu nome seja bendito pelos benefícios 
que  me  hás  concedido.  Indigno  eu  seria,  se  os  atribuísse  ao  acaso  dos 
acontecimentos, ou ao meu próprio mérito. 
Bons Espíritos, que fostes os executores das vontades de Deus, agradeço­ 
vos e especialmente a ti, meu anjo guardião. Afastai de mim a idéia de orgulhar­me 
do  que  recebi  e  de  não  o  aproveitar  somente  para  o  bem.  Agradeço­vos,  em 
particular,... 
ATO DE SUBMISSÃO E DE RESIGNAÇÃO 
30. PREFÁCIO. Quando um motivo de aflição nos advém, se lhe procurarmos a causa, amiúde 
reconheceremos estar numa imprudência ou imprevidência nossa, ou, quando não, em um ato 
anterior. Em qualquer desses casos, só de nós mesmos nos devemos queixar. Se a causa de 
um  infortúnio  independe  completamente  de  qualquer  ação  nossa,  é  ou  uma  prova  para  a 
existência atual, ou expiação de falta de uma existência anterior, caso, este último, em que, 
pela natureza da expiação, poderemos conhecer a natureza da falta, visto que somos sempre 
punidos por aquilo em que pecamos. (Cap. V, nº 4, 6 e seguintes) 
No que nos aflige, só vemos, em geral, o presente e não as ulteriores conseqüências 
favoráveis que possa ter a nossa aflição. Muitas vezes, o bem é a conseqüência de um mal 
passageiro,  como  a  cura  de  uma  enfermidade  é  o  resultado  dos  meios  dolorosos  que  se 
empregaram para combatê­la. Em todos os casos devemos submeter­nos à vontade de Deus, 
suportar com coragem as tribulações da vida, se queremos  que elas nos  sejam levadas  em 
conta e que se nos possam aplicar estas palavras do Cristo: “Bem­aventurados os que sofrem.” 
(Cap. V, nº 18) 
31. Prece. – Meu Deus, és soberanamente justo; todo sofrimento, neste mundo, há, 
pois, de ter a sua causa e a sua utilidade. Aceito a aflição que acabo de experimentar, 
como expiação de minhas faltas passadas e como prova para o futuro. 
Bons  Espíritos  que  me  protegeis,  dai­me  forças  para  suportá­la  sem 
lamentos. Fazei que ela me seja um aviso salutar; que me acresça a experiência; que 
abata em mim o orgulho, a ambição, a tola vaidade e o egoísmo, e que contribua 
assim para o meu adiantamento. 
32. (Outra) – Sinto, ó meu Deus, necessidade de te pedir me dês forças para suportar 
as provações que te aprouve destinar­me. Permite que a luz se faça bastante viva em 
meu espírito, para que eu aprecie toda a extensão de um amor que me aflige porque 
me quer salvar. Submeto­me resignado, ó meu Deus; mas, a criatura é tão fraca, que
261 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
temo sucumbir, se me não amparares. Não me abandones, Senhor, que sem ti nada 
posso. 
33. (Outra) – A ti dirigi o meu olhar, ó Eterno, e me senti fortalecido. És a minha 
força, não me abandones. Ó meu Deus, sinto­me esmagado sob o peso das minhas 
iniqüidades. Ajuda­me. Conheces a fraqueza da minha carne, não desvies de mim o 
teu olhar! 
Ardente  sede  me  devora;  faze  brotar  a  fonte  da  água  viva  onde  eu  me 
dessedente. Que a minha boca só se abra para te entoar louvores e não para soltar 
queixas  nas  aflições  da  minha  vida.  Sou  fraco,  Senhor,  mas  o  teu  amor  me 
sustentará. 
Ó  Eterno,  só  tu  és  grande,  só  tu  és  o  fim  e  o  objetivo  da  minha  vida! 
Bendito seja o teu nome, se me fazes sofrer, porquanto és o Senhor e eu o servo 
infiel. Curvarei a fronte sem me queixar, porquanto só tu és grande, só tu és a meta. 
NUM PERIGO IMINENTE 
34.  PREFÁCIO.  Pelos  perigos  que  corremos,  Deus  nos  adverte  da  nossa  fraqueza  e  da 
fragilidade da nossa existência. Mostra­nos que entre suas mãos está a nossa vida e que ela se 
acha presa por um fio que se pode romper no momento em que menos o esperamos. Sob esse 
aspecto,  não  há  privilégio  para  ninguém,  pois  que  às  mesmas  alternativas  se  encontram 
sujeitos assim o grande, como o pequeno. 
Se examinarmos  a natureza e as conseqüências do perigo,  veremos  que estas, as 
mais das vezes, se se verificassem, teriam sido a punição de uma falta cometida, ou da falta 
do cumprimento de um dever. 
35. Prece. – Deus Todo­Poderoso, e tu, meu anjo guardião, socorrei­me! Se tenho de 
sucumbir, que a vontade de Deus se cumpra. Se devo ser salvo, que o restante da 
minha vida repare o mal que eu haja feito e do qual me arrependo. 
AÇÃO DE GRAÇAS POR HAVER ESCAPADO A UM PERIGO 
36. PREFÁCIO. Pelo perigo que tenhamos corrido, mostra­nos Deus que, de um momento para 
outro, podemos ser chamados a prestar contas do modo por que utilizamos a vida. Avisa­nos, 
assim, que devemos tomar tento e emendar­nos. 
37.  Prece.  –  Meu  Deus,  meu  anjo­da­guarda,  agradeço­vos  o  socorro  que  me 
proporcionastes no  perigo  de  que  estive  ameaçado.  Seja  para mim  um aviso  esse 
perigo  e  me  esclareça  sobre  as  faltas  que  me  hajam  colocado  sob  a  sua  ameaça. 
Compreendo, Senhor, que nas tuas mãos está a minha vida e que ma podes tirar, 
quando te apraza. Inspira­me, por intermédio dos bons Espíritos que me assistem, o 
propósito de empregar utilmente o tempo que ainda me concederes de  vida neste 
mundo. 
Meu  anjo  guardião,  firma­me na resolução  que  tomo  de  reparar  os  meus 
erros  e  de  fazer  todo  o  bem  que  esteja  ao  meu  alcance,  a  fim  de  chegar  menos
262 – Allan Kardec 
onerado  de  imperfeições  ao  mundo  dos  Espíritos,  quando  Deus  determine  o  meu 
regresso para lá. 
À HORA DE DORMIR 
38. PREFÁCIO. O sono tem por fim dar repouso ao corpo; o Espírito, porém, não precisa de 
repousar. Enquanto os sentidos físicos se acham entorpecidos, a alma se desprende, em parte, 
da  matéria  e  entra  no  gozo  das  faculdades  do  Espírito.  O  sono  foi  dado  ao  homem  para 
reparação das forças orgânicas e também para a das forças morais. Enquanto o corpo recupera 
os elementos que perdeu por efeito da atividade da vigília, o Espírito vai retemperar­se entre 
os outros Espíritos. Haure, no que vê, no que ouve e nos conselhos que lhe dão, idéias que, ao 
despertar, lhe surgem em estado de intuição. É a volta temporária do exilado à sua verdadeira 
pátria. É o prisioneiro restituído por momentos à liberdade. 
Mas, como se dá com o presidiário perverso, acontece que nem sempre o Espírito 
aproveita dessa hora de liberdade para seu adiantamento. Se conserva instintos maus, em vez 
de procurar a companhia de Espíritos bons, busca a de seus iguais e vai visitar os lugares onde 
possa dar livre curso aos seus pendores. 
Eleve, pois, aquele que se ache compenetrado desta verdade, o seu pensamento a 
Deus, quando sinta aproximar­se o sono, e peça o conselho dos bons Espíritos e de todos cuja 
memória lhe seja cara, a fim de que venham juntar­se­lhe, nos curtos instantes de liberdade 
que lhe são concedidos, e, ao despertar, sentir­se­á mais forte contra o mal, mais  corajoso 
diante da adversidade. 
39.  Prece.  –  Minha  alma  vai  estar  por  alguns  instantes  com  os  outros  Espíritos. 
Venham os bons ajudar­me com seus conselhos. Faze, meu anjo guardião, que, ao 
despertar, eu conserve durável e salutar impressão desse convívio. 
PREVENDO PRÓXIMA A MORTE 
40. PREFÁCIO. A fé no futuro, a orientação do pensamento, durante a vida, para os destinos 
vindouros, favorecem e aceleram o desligamento do Espírito, por enfraquecerem os laços que 
o prendem ao corpo, tanto que, freqüentemente, a vida corpórea ainda se não extinguiu de 
todo, e a alma, impaciente, já alçou o vôo para a imensidade. Ao contrário, no homem que 
concentra nas coisas materiais todos os seus cuidados, aqueles laços são mais tenazes, penosa 
e dolorosa é a separação e cheio de perturbação e ansiedade o despertar no além­túmulo. 
41. Prece. – Meu Deus, creio em ti e na tua bondade infinita e, por isso mesmo, não 
posso  crer  hajas  dado  ao  homem  a  inteligência,  que  lhe  faculta  conhecer­te,  e  a 
aspiração pelo futuro, para o mergulhares no nada. 
Creio que o meu corpo é apenas o envoltório perecível de minha alma e 
que, quando eu tenha deixado de viver, acordarei no mundo dos Espíritos. 
Deus Todo­Poderoso, sinto se rompem os laços que me prendem a alma ao 
corpo e que dentro em pouco irei prestar contas do uso que fiz da vida que me foge. 
Vou experimentar as conseqüências do bem e do mal que pratiquei. Lá não 
haverá ilusões, nem subterfúgios possíveis. Diante de mim vai desenrolar­se todo o 
meu passado e serei julgado segundo as minhas obras.
263 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
Nada levarei dos bens da Terra. Honras, riquezas, satisfações da vaidade e 
do orgulho, tudo, enfim, que é peculiar ao corpo permanecerá neste mundo. Nem a 
mais  mínima  parcela  de  todas  essas  coisas  me  acompanhará,  nem  me  será  de 
utilidade alguma no mundo dos Espíritos. Apenas levarei comigo o que pertence à 
alma, isto é, as boas e as más qualidades, para serem pesadas na balança da mais 
rigorosa justiça. E tanto maior severidade haverá no meu julgamento, quanto maior 
número de ocasiões para fazer o bem, que não fiz, me tenha proporcionado a posição 
que ocupei na Terra. (Cap. XVI, nº 9) 
Deus de misericórdia, que o meu arrependimento te chegue aos pés! Digna­ 
te de lançar sobre mim o manto da tua indulgência. 
Se  te  aprouver  prolongar  a  minha  existência,  seja  esse  prolongamento 
empregado em reparar, tanto quanto em mim esteja, o mal que eu tenha praticado. 
Se soou, sem dilação possível, a minha hora, levo comigo o consolador pensamento 
de que me será permitido redimir­me, por meio de novas provas, a fim de merecer 
um dia a felicidade dos eleitos. 
Se  não  me  for  dado  gozar  imediatamente  dessa  felicidade  sem  mescla, 
partilha  tão­só  do  justo  por  excelência,  sei  que  me  não  é  defesa  para  sempre  a 
esperança e que, pelo trabalho, alcançarei o fim, mais tarde ou mais cedo, conforme 
os meus esforços. 
Sei que próximos de mim, para me receberem, estão Espíritos bons e o meu 
anjo­de­guarda, aos quais dentro em pouco verei, como eles me vêem. Sei que, se o 
tiver merecido, encontrarei de novo aqueles a quem amei na Terra e que aqueles que 
aqui deixo irão juntar­se a mim, que um dia estaremos todos reunidos para sempre e 
que,  enquanto  esse  dia  não  chegar,  poderei  vir  visitá­los.  Sei  também  que  vou 
encontrar aqueles a quem ofendi. Possam eles perdoar­me o que tenham a reprochar­ 
me: o meu orgulho, a minha dureza, minhas injustiças, a fim de que a presença deles 
não me acabrunhe de vergonha! 
Perdôo  aos  que  me  tenham  feito  ou  querido  fazer  mal;  nenhum  rancor 
contra eles alimento e peço­te, meu Deus, que lhes perdoes. 
Senhor,  dá­me  forças  para  deixar  sem  pena  os  prazeres  grosseiros  deste 
mundo, que nada são em confronto com as alegrias sãs e puras do mundo em que 
vou  penetrar  e  onde,  para  o  justo, não há mais  tormentos,  nem  sofrimentos, nem 
misérias, onde somente o culpado sofre, mas tendo a confortá­lo a esperança. 
A vós, bons Espíritos, e a ti, meu anjo guardião, suplico que me não deixeis 
falir neste momento supremo. Fazei que a luz divina brilhe aos meus olhos, a fim de 
que a minha fé se reanime, se vier a abalar­se. 
Nota – Veja­se, adiante, o parágrafo V: “Preces pelos doentes e obsidiados”. 
III – PRECES POR OUTREM 
POR ALGUÉM QUE ESTEJA EM AFLIÇÃO 
42. PREFÁCIO. Se é do interesse do aflito que a sua prova prossiga, ela não será abreviada a 
nosso pedido. Mas fora ato de impiedade desanimarmos por não ter sido satisfeita a nossa
264 – Allan Kardec 
súplica. Aliás, em falta de cessação da prova, podemos esperar alguma outra consolação que 
lhe mitigue o amargor. O que de mais  necessário há para aquele que se acha aflito, são a 
resignação e a coragem, sem as quais  não lhe será possível sofrê­la com proveito para si, 
porque terá de recomeçá­la. É, pois, para esse objetivo que nos cumpre, sobretudo, orientar os 
nossos esforços, quer pedindo lhe venham em auxílio os bons Espíritos, quer levantando­lhe o 
moral por meio de conselhos e encorajamentos, quer, enfim, assistindo­o materialmente, se 
for possível. A prece, neste caso, pode também ter efeito direto, dirigindo, sobre a pessoa por 
quem é feita, uma corrente fluídica com o intento de lhe fortalecer o moral. (Cap. V, nos 5 e 27; 
cap. XXVII, nº 6 e l0) 
43. Prece. – Deus de infinita bondade, digna­te de suavizar o amargor da posição em 
que se encontra N..., se assim for a tua vontade. 
Bons  Espíritos,  em  nome  de  Deus  Todo­Poderoso,  eu  vos  suplico  que  o 
assistais nas suas aflições. Se, no seu interesse, elas lhe não puderem ser poupadas, 
fazei compreenda que são necessárias ao seu progresso. Dai­lhe confiança em Deus 
e  no  futuro  que  lhas  tornará  menos  acerbas.  Dai­lhe  também  forças  para  não 
sucumbir  ao  desespero,  que  lhe  faria  perder  o  fruto  de  seus  sofrimentos  e  lhe 
tornaria  ainda  mais  penosa  no  futuro  a  situação.  Encaminhai  para  ele  o  meu 
pensamento, a fim de que o ajude a manter­se corajoso. 
AÇÃO DE GRAÇAS POR UM BENEFÍCIO CONCEDIDO A OUTREM 
44. PREFÁCIO. Quem não se acha dominado pelo egoísmo rejubila­se com o bem que acontece 
ao seu próximo, ainda mesmo que o não haja solicitado por meio da prece. 
45. Prece. – Meu Deus, sê bendito pela felicidade que adveio a N... 
Bons Espíritos, fazei que nisso ele veja um efeito da bondade de Deus. Se o 
bem que lhe aconteceu é uma prova, inspirai­lhe a lembrança de fazer bom uso dele 
e de se não envaidecer, a fim de que esse bem não redunde, de futuro, em prejuízo 
seu. A ti, bom gênio que me proteges e desejas a minha felicidade, peço afastes do 
meu coração todo sentimento de inveja ou de ciúme. 
PELOS NOSSOS INIMIGOS E PELOS QUE NOS QUEREM MAL 
46. PREFÁCIO. Disse Jesus: Amai os vossos inimigos. Esta máxima é o sublime da caridade 
cristã; mas, enunciando­a, não pretendeu Jesus preceituar que devamos ter para com os nossos 
inimigos o carinho que dispensamos aos amigos. Por aquelas palavras, ele nos recomenda que 
lhes esqueçamos as ofensas, que lhes perdoemos o mal que nos façam, que lhes paguemos 
com o bem esse mal. Além do merecimento que, aos olhos de Deus, resulta de semelhante 
proceder, ele equivale a mostrar aos homens o em que consiste a verdadeira superioridade. 
(Cap. XII, nº 3 e 4) 
47. Prece. – Meu Deus, perdôo a N... o mal que me fez e o que me quis fazer, como 
desejo me perdoes  e também ele me perdoe as  faltas que eu haja cometido. Se o 
colocaste no meu caminho, como prova para mim, faça­se a tua vontade. 
Livra­me, ó meu Deus, da idéia de o maldizer e de todo desejo malévolo 
contra ele. Faze que jamais me alegre com as desgraças que lhe cheguem, nem me
265 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
desgoste com os bens que lhe poderão ser concedidos, a fim de não macular minha 
alma por pensamentos indignos de um cristão. 
Possa a tua bondade, Senhor, estendendo­se sobre ele, induzi­lo a alimentar 
melhores sentimentos para comigo! 
Bons Espíritos, inspirai­me o esquecimento do mal e a lembrança do bem. 
Que nem o ódio, nem o rancor, nem o desejo de lhe retribuir o mal com outro mal 
me entrem no coração, porquanto o ódio e a vingança só são próprios dos Espíritos 
maus,  encarnados  e  desencarnados!  Pronto  esteja  eu,  ao  contrário,  a  lhe  estender 
mão fraterna, a lhe pagar com o bem o mal e a auxiliá­lo, se estiver ao meu alcance. 
Desejo,  para  experimentar a  sinceridade  do  que  digo,  que  ocasião  se  me 
apresente de lhe ser útil; mas, sobretudo, ó meu Deus, preserva­me de fazê­lo por 
orgulho  ou  ostentação,  abatendo­o  com  uma  generosidade  humilhante,  o  que  me 
acarretaria a perda do fruto da minha ação, pois, nesse caso, eu mereceria me fossem 
aplicadas estas palavras do Cristo: Já recebeste a tua recompensa. (Cap. XIII, nº  1 e 
seguintes) 
AÇÃO DE GRAÇAS PELO BEM CONCEDIDO AOS NOSSOS INIMIGOS 
48. PREFÁCIO. Não desejar mal aos seus inimigos é ser apenas meio caridoso. A verdadeira 
caridade quer que lhes  almejemos  o bem e que nos  sintamos  felizes com o bem que lhes 
advenha. (Cap. XII, nº 7 e 8) 
49. Prece. – Meu Deus, entendeste em tua justiça encher de júbilo o coração de N... 
Agradeço­te por ele, sem embargo do mal que me fez ou que tem procurado fazer­ 
me. Se desse bem ele se aproveitasse para me humilhar, eu receberia isso como uma 
prova para a minha caridade. 
Bons Espíritos que me protegeis, não permitais que me sinta pesaroso por 
isso.  Isentai­me  da  inveja  e  do  ciúme  que  rebaixam.  Inspirai­me,  ao  contrário,  a 
generosidade que eleva. A humilhação está no mal e não no bem; e sabemos que, 
cedo ou tarde, justiça será feita a cada um, segundo suas obras. 
PELOS INIMIGOS DO ESPIRITISMO 
50. “ Bem­aventurados os famintos de justiça, porque serão saciados. Bem­ 
aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é 
o  reino  dos  céus.  Ditosos  sereis,  quando  os  homens  vos carregarem  de 
maldições, vos perseguirem e falsamente disserem contra vós toda espécie 
de mal, por minha causa. Rejubilai­vos, então, porque grande recompensa 
vos  está  reservada  nos  céus,  pois  assim  perseguiram  eles  os  profetas 
enviados antes de vós”. 
(MATEUS, 5:6 e 10 a 12) 
“Não temais  os  que matam  o corpo, mas  que  não  podem matar  a  alma; 
temei, antes, aquele que pode perder alma e corpo no inferno”. 
(MATEUS, 10:28)
266 – Allan Kardec 
51. PREFÁCIO.  De todas  as  liberdades,  a  mais  inviolável é  a  de pensar,  que  abrange  a  de 
consciência. Lançar alguém anátema sobre os que não pensam como ele é reclamar para si 
essa liberdade e negá­la aos outros, é violar o primeiro mandamento de Jesus: a caridade e o 
amor do próximo. Perseguir os outros, por motivos de suas crenças, é atentar contra o mais 
sagrado direito que tem todo homem, o de crer no que lhe convém e de adorar a Deus como o 
entenda. Constrangê­los  a atos  exteriores semelhantes aos  nossos é mostrarmos  que damos 
mais  valor  à  forma  do  que  ao  fundo,  mais  às  aparências,  do  que  à  convicção.  Nunca  a 
abjuração forçada deu a quem quer que fosse a fé; apenas pode fazer hipócritas. É um abuso 
da  força  material,  que  não  prova  a  verdade.  A  verdade  é  senhora  de  si:  convence  e  não 
persegue, porque não precisa perseguir. 
O Espiritismo é uma opinião, uma crença 18 
; fosse até uma religião, por que se não 
teria a liberdade de se dizer espírita, como se tem a de se dizer católico, protestante, ou judeu, 
adepto de tal ou qual doutrina filosófica, de tal ou qual sistema econômico? Essa crença é 
falsa, ou é verdadeira. Se é falsa, cairá por si mesma, visto que o erro não pode prevalecer 
contra a verdade, quando se faz luz nas inteligências. Se é verdadeira, não haverá perseguição 
que a torne falsa. 
A  perseguição  é  o  batismo  de  toda  idéia  nova,  grande  e  justa  e  cresce  com  a 
magnitude  e  a  importância  da  idéia.  O  furor  e  o  desabrimento  dos  seus  inimigos  são 
proporcionais ao temor que ela lhes inspira. Tal a razão por que o Cristianismo foi perseguido 
outrora e por que o Espiritismo o é hoje, com a diferença, todavia, de que aquele o foi pelos 
pagãos, enquanto o segundo o é por cristãos. Passou o tempo das perseguições sangrentas, é 
exato;  contudo,  se  já  não  matam  o  corpo,  torturam  a  alma,  atacam­na  até  nos  seus  mais 
íntimos sentimentos, nas suas mais caras afeições. Lança­se a desunião nas famílias, excita­se 
a mãe contra a filha, a mulher contra o marido; investe­se mesmo contra o corpo, agravando­ 
se­lhe as necessidades materiais, tirando­se­lhe o ganha­pão, para reduzir pela fome o crente. 
(Cap. XXIII, nº 9 e seguintes) 
Espíritas, não vos  aflijais  com os  golpes que vos  desfiram, pois eles  provam que 
estais com a verdade. Se assim não fosse, deixar­vos­iam tranqüilos e não vos procurariam 
ferir.  Constitui  uma  prova  para  a  vossa  fé,  porquanto  é  pela  vossa  coragem,  pela  vossa 
resignação e pela vossa paciência que Deus vos reconhecerá entre os seus servidores fiéis, a 
cuja contagem ele hoje procede, para dar a cada um a parte que lhe toca, segundo suas obras. 
A  exemplo  dos  primeiros  cristãos,  carregai  com  altivez  a  vossa  cruz.  Crede  na 
palavra  do  Cristo,  que  disse:  “Bem­aventurados  os  que  sofrem  perseguição  por  amor  da 
justiça, que deles é o reino dos céus. Não temais os que matam o corpo, mas que não podem 
matar a alma.” Ele também disse: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos fazem 
mal e orai pelos que vos perseguem.” Mostrai que sois seus verdadeiros discípulos e que a 
vossa doutrina é boa, fazendo o que ele disse e fez. A perseguição pouco durará. Aguardai 
com  paciência  o  romper  da  aurora,  pois  que  já  rutila  no horizonte  a  estrela  d’alva.  (Cap. 
XXIV, nº 13 e seguintes) 
52.  Prece.  –  Senhor,  tu  nos  disseste  pela  boca  de  Jesus,  o  teu  Messias:  “Bem­ 
aventurados  os  que  sofrem  perseguição  por  amor  da  justiça;  perdoai  aos  vossos 
inimigos; orai pelos que vos persigam.” E ele próprio nos deu o exemplo, orando 
pelos seus algozes. 
Seguindo esse exemplo, meu Deus, imploramos a tua misericórdia para os 
que desprezam os teus sacratíssimos preceitos, únicos capazes de facultar a paz neste 
18 
Ver  Reformador  de  1946,  pág.  253;  Revue  Spirite,  de  dezembro  de  1868;  Allan  Kardec,  de  Zêus 
Wantuil e Francisco Thiesen, vol. III, pág. 100. Nota da Editora da FEB.
267 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
mundo e no outro. Como o Cristo, também nós te dizemos: “Perdoa­lhes, Pai, que 
eles não sabem o que fazem.” 
Dá­nos forças para suportar com paciência e resignação, como provas para 
a nossa  fé  e  a  nossa  humildade,  seus  escárnios,  injúrias,  calúnias  e  perseguições; 
isenta­nos  de  toda  idéia  de  represálias,  visto  que  para  todos  soará  a  hora  da  tua 
justiça, hora que esperamos submissos à tua vontade santa. 
POR UMA CRIANÇA QUE ACABA DE NASCER 
53. PREFÁCIO. Somente depois  de terem passado pelas provas da vida corpórea, chegam à 
perfeição os Espíritos. Os que se encontram na erraticidade aguardam que Deus lhes permita 
volver a uma existência que lhes proporcione meios de progredir, quer pela expiação de suas 
faltas  passadas,  mediante as  vicissitudes  a  que  fiquem  sujeitos, quer  desempenhando  uma 
missão proveitosa para a Humanidade. O seu adiantamento e a sua felicidade futura serão 
proporcionados  à  maneira  por  que  empreguem  o  tempo  que  hajam  de  estar  na  Terra.  O 
encargo de lhes guiar os primeiros passos e de os encaminhar para o bem cabe a seus pais, que 
responderão perante Deus pelo desempenho que derem a esse mandato. Para lhos facilitar, foi 
que  Deus  fez  do  amor  paterno  e  do  amor  filial  uma  lei  da  Natureza,  lei  que  jamais  se 
transgride impunemente. 
54. Prece. (Para ser dita pelos pais.) – Espírito que encarnaste no corpo do nosso 
filho, sê bem­vindo. Sê bendito, ó Deus Onipotente, que no­lo mandaste. 
É um depósito que nos foi confiado e do qual teremos um dia de prestar 
contas. Se ele pertence à nova geração de Espíritos bons que hão de povoar a Terra, 
obrigado, ó meu Deus, por essa graça! Se é uma alma imperfeita, corre­nos o dever 
de ajudá­lo a progredir na senda do bem, pelos nossos conselhos e bons exemplos. 
Se cair no mal, por culpa nossa, responderemos por isso, visto que, então, teremos 
falido em nossa missão junto dele. 
Senhor,  ampara­nos  em  nossa  tarefa  e  dá­nos  a  força  e  a  vontade  de 
cumpri­la. Se este filho nos vem como provação para os nossos Espíritos, faça­se a 
tua vontade! 
Bons  Espíritos  que  presidistes  ao  seu  nascimento  e  que  tendes  de 
acompanhá­lo no curso de sua existência, não o abandoneis. Afastai dele os maus 
Espíritos  que  tentem  orientá­lo  para  o  mal.  Dai­lhe  forças  para  lhes  resistir  às 
sugestões e coragem para sofrer com paciência e resignação as provas que o esperam 
na Terra. (Cap. XIV, nº 9) 
55.  (Outra)  –  Meu  Deus,  confiaste­me  a  sorte  de  um  dos  teus  Espíritos;  faze, 
Senhor,  que  eu  seja  digno  do  encargo  que  me  impuseste.  Concede­me  a  tua 
proteção. Ilumina a minha inteligência, a fim de que eu possa perceber desde cedo as 
tendências daquele que me compete preparar para ascender à tua paz. 
56. (Outra) – Deus de bondade, pois que te aprouve permitir que o Espírito desta 
criança viesse de novo sofrer as provas terrenas, destinadas a fazê­lo progredir, dá­ 
lhe  luz,  a  fim  de  que  aprenda  a  conhecer­te,  amar­te  e  adorar­te.  Faze,  pela  tua 
onipotência, que esta alma se regenere na fonte das tuas sábias instruções; que, sob a
268 – Allan Kardec 
égide do seu anjo guardião, a sua inteligência se desenvolva e amplie e o leve a ter 
por aspiração aproximar­se cada vez mais de ti; que a ciência do Espiritismo seja a 
luz  brilhante  que  o  ilumine  através  dos  escolhos  da  vida;  que  ele,  enfim,  saiba 
apreciar toda a extensão do teu amor, que nos põe em prova, para purificar­nos. 
Senhor, lança paterno olhar sobre a família a que confiaste esta alma, para 
que ela compreenda a importância da sua missão e faça que germinem nesta criança 
as boas sementes, até ao dia em que ela possa, por suas próprias aspirações, elevar­ 
se sozinha para ti. 
Digna­te, ó meu Deus, de atender a esta humilde prece, em nome e pelos 
merecimentos d’Aquele que disse: “Deixai venham a mim as criancinhas, porquanto 
o reino dos céus é para os que se lhes assemelham.” 
POR UM AGONIZANTE 
57. PREFÁCIO. A agonia é o prelúdio da separação da alma e do corpo. Pode dizer­se que, 
nesse momento, o homem tem um pé neste mundo e um no outro. É penosa às vezes essa 
passagem, para os que muito apegados se acham à matéria e viveram mais para os bens deste 
mundo  do  que  para  os  do  outro,  ou  cuja  consciência  se  encontra  agitada  pelos  pesares  e 
remorsos.  Para  aqueles  cujos  pensamentos,  ao  contrário,  buscaram  o  Infinito  e  se 
desprenderam da matéria, menos difíceis de romper­se são os laços que o prendem à Terra e 
nada têm de dolorosos os seus últimos momentos. Apenas um fio liga, então, a alma ao corpo, 
enquanto que no outro caso profundas raízes a conservam presa a este. Em todos os casos, a 
prece  exerce  ação  poderosa  sobre  o  trabalho  de  separação.  (Ver,  adiante,  “Preces  pelos 
doentes”; também O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. I – “O Passamento”.) 
58. Prece. – Deus onipotente e misericordioso, aqui está uma alma prestes a deixar o 
seu  envoltório  terreno  para  volver  ao  mundo  dos  Espíritos,  sua  verdadeira pátria. 
Dado lhe seja fazê­lo em paz e que sobre ela se estenda a tua misericórdia. 
Bons  Espíritos,  que  a  acompanhastes  na  Terra,  não  a  abandoneis  neste 
momento supremo. Dai­lhe forças para suportar os últimos sofrimentos por que lhe 
cumpre  passar  neste  mundo,  a  bem  do  seu  progresso  futuro.  Inspirai­a,  para  que 
consagre ao arrependimento de suas faltas os últimos clarões de inteligência que lhe 
restem, ou que momentaneamente lhe advenham. 
Dirigi  o  meu  pensamento,  a  fim  de  que  atue  de  modo  a  tornar  menos 
penoso para ela o trabalho da separação e a fim de que leve consigo, ao abandonar a 
Terra, as consolações da esperança. 
IV – PRECES PELOS QUE JÁ NÃO SÃO DA TERRA 
POR ALGUÉM QUE ACABA DE MORRER 
59.  PREFÁCIO.  As  preces  pelos  Espíritos  que  acabam  de  deixar  a  Terra  não  objetivam, 
unicamente,  dar­lhes  um  testemunho  de  simpatia:  também  têm  por  efeito  auxiliar­lhes  o 
desprendimento e, desse modo, abreviar­lhes a perturbação que sempre se segue à separação, 
tornando­lhes  mais  calmo  o  despertar.  Ainda  aí,  porém,  como  em  qualquer  outra 
circunstância, a eficácia está na sinceridade do pensamento e não na quantidade das palavras
269 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
que se profiram mais  ou menos  pomposamente e em que, amiúde, nenhuma parte toma o 
coração. 
As  preces que  deste se elevam  ressoam  em  torno  do  Espírito,  cujas  idéias  ainda 
estão confusas, como as vozes amigas que nos fazem despertar do sono. (Cap. XXVII, nº 10) 
60. Prece. – Onipotente Deus, que a tua misericórdia se derrame sobre a alma de 
N..., a quem acabaste de chamar da Terra. Possam ser­lhe contadas as provas que 
aqui  sofreu,  bem  como  ter  suavizadas  e  encurtadas  as  penas  que  ainda  haja  de 
suportar na Espiritualidade! 
Bons  Espíritos  que  o  viestes  receber  e  tu,  particularmente,  seu  anjo 
guardião, ajudai­o a despojar­se da matéria; dai­lhe luz e a consciência de si mesmo, 
a fim de que saia presto da perturbação inerente à passagem da vida corpórea para a 
vida espiritual. Inspirai­lhe o arrependimento das faltas que haja cometido e o desejo 
de obter permissão para as reparar, a fim de acelerar o seu avanço rumo à vida eterna 
bem­aventurada. 
N..., acabas de entrar no mundo dos Espíritos e, no entanto, presente aqui te 
achas entre nós; tu nos vês e ouves, por isso que de menos do que havia, entre ti e 
nós, só há o corpo perecível que vens de abandonar e que em breve estará reduzido a 
pó. 
Despiste  o  envoltório  grosseiro,  sujeito  a  vicissitudes  e  à  morte,  e 
conservaste apenas o envoltório etéreo, imperecível e inacessível aos sofrimentos. Já 
não vives pelo corpo; vives da vida dos Espíritos, vida essa isenta das misérias que 
afligem a Humanidade. 
Já não tens diante de ti o véu que às nossas vistas oculta os esplendores da 
vida  no  Além.  Podes,  doravante,  contemplar novas  maravilhas, ao  passo  que  nós 
ainda continuamos mergulhados em trevas. 
Vais, em plena liberdade, percorrer o espaço e visitar os mundos, enquanto 
nós  rastejaremos  penosamente  na  Terra,  à  qual  se  conserva  preso  o  nosso  corpo 
material, semelhante, para nós, a pesado fardo. 
Diante de ti, vai desenrolar­se o panorama do Infinito e, em face de tanta 
grandeza,  compreenderás  a  vacuidade  dos  nossos  desejos  terrestres,  das  nossas 
ambições mundanas e dos gozos fúteis com que os homens tanto se deleitam. 
A morte, para os homens, mais não é do que uma separação material de 
alguns instantes. Do exílio onde ainda nos retém a vontade de Deus, bem assim os 
deveres  que  nos  correm  neste  mundo,  acompanhar­te­emos  pelo  pensamento,  até 
que nos seja permitido juntar­nos a ti, como tu te reuniste aos que te precederam. 
Não podemos ir onde te achas, mas tu podes vir ter conosco. Vem, pois, aos 
que te amam e que tu amaste; ampara­os nas provas da vida; vela pelos que te são 
caros;  protege­os,  como  puderes;  suaviza­lhes  os  pesares,  fazendo­lhes  perceber, 
pelo pensamento, que és mais ditoso agora e dando­lhes a consoladora certeza de 
que um dia estareis todos reunidos num mundo melhor. 
Nesse, onde te encontras, devem extinguir­se todos os ressentimentos. Que 
a eles, daqui em diante, sejas inacessível, a bem da tua felicidade futura! Perdoa, 
portanto, aos que hajam incorrido em falta para contigo, como eles te perdoam as 
que tenhas cometido para com eles.
270 – Allan Kardec 
Nota – Podem acrescentar­se a esta prece, que se aplica a todos, algumas palavras especiais, 
conforme  as  circunstâncias  particulares  de  família  ou  de  relações,  bem  como  a  posição 
social que ocupava o defunto. 
Se se trata de uma criança, ensina­nos o Espiritismo que não está ali um Espírito 
de criação recente, mas um que já viveu e que pode, mesmo, já ser muito adiantado. Se foi 
curta  a  sua  última  existência,  é que  não  devia  passar  de  uma completação de  prova,  ou 
constituir uma prova para os pais. (Cap. V, nº 21.) 
61. (Outra) 19 
– Senhor onipotente, que a tua misericórdia se estenda sobre os nossos 
irmãos que acabam de deixar a Terra! Que a tua luz brilhe para eles! Tira­os das 
trevas; abre­lhes os  olhos e  os  ouvidos! Que os  bons Espíritos os  cerquem e lhes 
façam ouvir palavras de paz e de esperança! 
Senhor, ainda que muito indignos, ousamos implorar a tua misericordiosa 
indulgência para este irmão nosso que acaba de ser chamado do exílio. Faze que o 
seu  regresso  seja  o  do  filho  pródigo.  Esquece,  ó  meu  Deus,  as  faltas  que  haja 
cometido, para te lembrares somente do bem que haja praticado. Imutável é a tua 
justiça,  nós  o  sabemos;  mas,  imenso  é  o  teu  amor.  Suplicamos­te  que  abrandes 
aquela, na fonte de bondade que emana do teu seio. 
Brilhe a luz para os teus olhos, irmão que vens de deixar a Terra! Que os 
bons  Espíritos  de  ti  se  aproximem,  te  cerquem  e  ajudem  a  romper  as  cadeias 
terrenas!  Compreende  e  vê  a  grandeza  do  nosso  Senhor:  submete­te,  sem 
queixumes, à sua justiça, porém, não desesperes nunca da sua misericórdia. Irmão! 
Que  um  sério  retrospecto  do  teu  passado  te  abra  as  portas  do  futuro,  fazendo­te 
perceber as faltas que deixas para trás e o trabalho cuja execução te incumbe para as 
reparares! Que Deus te perdoe e que os bons Espíritos te amparem e animem. Por ti 
orarão os teus irmãos da Terra e pedem que por eles ores. 
PELAS PESSOAS A QUEM TIVEMOS AFEIÇÃO 
62. PREFÁCIO. Que horrenda é a idéia do Nada! Quão de lastimar são os que acreditam que no 
vácuo se perde, sem encontrar eco que lhe responda, a voz do amigo que chora o seu amigo! 
Jamais conheceram as puras e santas afeições os que pensam que tudo morre com o corpo; 
que  o  gênio,  que  com  a  sua  vasta  inteligência  iluminou  o  mundo,  é  uma  combinação  de 
matéria, que, qual sopro, se extingue para sempre; que do mais querido ente, de um pai, de 
uma  mãe,  ou  de  um  filho  adorado  não  restará  senão  um  pouco  de  pó  que  o  vento 
irremediavelmente dispersará 
Como pode um homem de coração conservar­se frio a essa idéia? Como não o gela 
de terror a idéia de um aniquilamento absoluto e não lhe faz, ao menos, desejar que não seja 
assim? Se até hoje não lhe foi suficiente a razão para afastar de seu espírito quaisquer dúvidas, 
aí está o Espiritismo a dissipar toda incerteza com relação ao futuro, por meio das provas 
materiais que dá da sobrevivência da alma e da existência dos seres de além­túmulo. Tanto 
assim é que por toda a parte essas provas são acolhidas com júbilo; a confiança renasce, pois 
que o homem doravante sabe que a vida terrestre é apenas uma breve passagem conducente a 
melhor vida; que seus trabalhos neste mundo não lhe ficam perdidos  e que as  mais santas 
afeições não se despedaçam sem mais esperanças. (Cap. IV, nº 18; cap. V, nº 21) 
19 
Esta prece foi ditada a um médium de Bordéus, na ocasião em que passava pela sua casa o féretro de 
um desconhecido.
271 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
63. Prece. – Digna­te, ó meu Deus, de acolher, benévolo, a prece que te dirijo pelo 
Espírito N... Faze­lhe entrever as claridades divinas e torna­lhe fácil o caminho da 
felicidade eterna. Permite que os bons Espíritos lhe levem as minhas palavras e o 
meu pensamento. 
Tu, que tão caro me eras neste mundo, escuta a minha voz, que te chama 
para  te  oferecer  novo  penhor  da  minha  afeição.  Permitiu  Deus  que  te  libertasses 
antes  de  mim  e  eu  disso  me  não  poderia  queixar  sem  egoísmo,  porquanto  fora 
querer­te  sujeito  ainda às  penas  e  sofrimentos  da  vida. Espero,  pois, resignado,  o 
momento  de  nos  reunirmos  de  novo  no  mundo  mais  venturoso  no  qual  me 
precedeste.
Sei que é apenas temporária a nossa separação e que, por mais longa que 
me  possa  parecer,  a  sua  duração  nada  é  em  face  da  ditosa  eternidade  que  Deus 
promete aos seus escolhidos. Que a sua bondade me preserve de fazer o que quer 
que retarde esse desejado instante e me poupe assim à dor de te não encontrar, ao 
sair do meu cativeiro terreno. 
Oh! Quão doce e consoladora é a certeza de que não há entre nós mais do 
que um véu material que te oculta às minhas vistas! De que podes estar aqui, ao meu 
lado, a me ver e ouvir como outrora, senão ainda melhor do que outrora; de que não 
me esqueces, do mesmo modo que eu te não esqueço; de que os nossos pensamentos 
constantemente se entrecruzam e que o teu sempre me acompanha e ampara. 
Que a paz do Senhor seja contigo. 
PELAS ALMAS SOFREDORAS QUE PEDEM PRECES 
64. PREFÁCIO.  Para  se  compreender  o  alívio  que  a  prece  pode  proporcionar  aos  Espíritos 
sofredores,  faz­se  preciso  saber  de  que  maneira  ela  atua,  conforme  atrás  ficou  explicado. 
(Cap. XXVII, nº 9, 18 e seguintes.) Aquele que se ache compenetrado dessa verdade ora com 
mais fervor, pela certeza que tem de não orar em vão. 
65. Prece. – Deus clemente e misericordioso, que a tua bondade se estenda por sobre 
todos  os Espíritos que se recomendam às nossas preces  e  particularmente sobre a 
alma de N... 
Bons  Espíritos,  que  tendes  por  única  ocupação  fazer  o  bem,  intercedei 
comigo  pelo  alívio  deles.  Fazei  que  lhes  brilhe  diante  dos  olhos  um  raio  de 
esperança e que a luz divina os esclareça acerca das imperfeições que os conservam 
distantes da morada dos bem­aventurados. Abri­lhes o coração ao arrependimento e 
ao  desejo  de  se  depurarem,  para  que  se  lhes  acelere  o  adiantamento.  Fazei­lhes 
compreender que, por seus esforços, podem eles encurtar a duração de suas provas. 
Que  Deus,  em  sua  bondade,  lhes  dê  a  força  de  perseverarem  nas  boas 
resoluções!
Possam essas palavras repassadas de benevolência suavizar­lhes as penas, 
mostrando­lhes que há na Terra seres que deles se compadecem e lhes desejam toda 
a felicidade. 
66. (Outra) – Nós te pedimos, Senhor, que espalhes as graças do teu amor e da tua 
misericórdia por todos os que sofrem, quer no espaço como Espíritos errantes, quer
272 – Allan Kardec 
entre nós como encarnados. Tem piedade das nossas fraquezas. Falíveis nos fizeste, 
mas dando­nos capacidade para resistir ao mal e vencê­lo. Que a tua misericórdia se 
estenda sobre todos  os que não hão podido resistir aos seus maus pendores e que 
ainda se deixam arrastar por maus caminhos. Que os bons Espíritos os cerquem; que 
a tua luz lhes brilhe aos olhos e que, atraídos pelo calor vivificante dessa luz, eles 
venham prosternar­se a teus pés, humildes, arrependidos e submissos. 
Pedimos­te, igualmente, Pai de misericórdia, por aqueles dos nossos irmãos 
que não tiveram forças para suportar suas provas terrenas. Tu, Senhor, nos deste um 
fardo  a  carregar  e  só  aos  teus  pés  temos  de  o  depor.  Grande,  porém,  é  a  nossa 
fraqueza e a coragem nos falta algumas vezes no curso da jornada. Compadece­te 
desses  servos  indolentes  que  abandonaram  antes  da  hora  o  trabalho.  Que  a  tua 
justiça os poupe, e consente que os bons Espíritos lhes levem alívio, consolações e 
esperanças no futuro. A perspectiva do perdão fortalece a alma; mostra­a, Senhor, 
aos culpados que desesperam e, sustentados por essa esperança, eles haurirão forças 
na  grandeza  mesma  de  suas  faltas  e  de  seus  sofrimentos,  a  fim  de  resgatarem  o 
passado e se prepararem a conquistar o futuro. 
POR UM INIMIGO QUE MORREU 
67. PREFÁCIO. A caridade para com os nossos inimigos deve acompanhá­los ao além­túmulo. 
Precisamos ponderar que o mal que eles nos fizeram foi para nós uma prova, que há de ter 
sido propícia ao nosso adiantamento, se a soubemos aproveitar. Pode ter­nos sido, mesmo, de 
maior  proveito  do  que  as  aflições  puramente  materiais,  pelo  fato  de  nos  haver  facultado 
juntar, à coragem e à resignação, a caridade e o esquecimento das ofensas. (Cap. X, nº 6; cap. 
XII, nº 5 e 6) 
68.  Prece.  –  Senhor,  foi  do  teu  agrado  chamar,  antes  da  minha,  a  alma  de  N... 
Perdôo­lhe o mal que me fez e as más intenções que nutriu com referência a mim. 
Possa ele ter pesar disso, agora que já não alimenta as ilusões deste mundo. 
Que a tua misericórdia, meu Deus, desça sobre ele e afaste de mim a idéia 
de me alegrar com a sua morte. Se incorri em faltas para com ele, que mas perdoe, 
como eu esqueço as que cometeu para comigo. 
POR UM CRIMINOSO 
69. PREFÁCIO. Se a eficácia das preces fosse proporcional à extensão delas, as mais longas 
deveriam ficar reservadas para os mais culpados, porque mais lhes são elas necessárias do que 
àqueles  que  santamente  viveram.  Recusá­las  aos  criminosos  é  faltar  com  a  caridade  e 
desconhecer a misericórdia de Deus; julgá­las inúteis, quando um homem haja praticado tal 
ou tal erro, fora prejulgar a justiça do Altíssimo. (Cap. XI, nº 14) 
70. Prece. – Senhor, Deus de misericórdia, não repilas esse criminoso que acaba de 
deixar  a Terra.  A  justiça  dos  homens  o  castigou, mas não  o  isentou  da  tua,  se  o 
remorso não lhe penetrou o coração. 
Tira­lhe dos olhos a venda que lhe oculta a gravidade de suas faltas. Possa o 
seu arrependimento merecer de ti acolhimento benévolo e abrandar os sofrimentos
273 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
de sua alma! Possam também as nossas preces e a intercessão dos  bons Espíritos 
levar­lhe  esperança  e  consolação;  inspirar­lhe  o  desejo  de  reparar  suas ações  más 
numa nova existência e dar­lhe forças para não sucumbir nas novas lutas em que se 
empenhar! 
Senhor, tem piedade dele! 
POR UM SUICIDA 
71. PREFÁCIO. Jamais tem o homem o direito de dispor da sua vida, porquanto só a Deus cabe 
retirá­lo  do  cativeiro  da  Terra,  quando  o  julgue  oportuno.  Todavia,  a  justiça  divina  pode 
abrandar­lhe  os  rigores,  de  acordo  com  as  circunstâncias,  reservando,  porém,  toda  a 
severidade para com aquele que se quis subtrair às provas da vida. O suicida é qual prisioneiro 
que se evade da prisão, antes de cumprida a pena; quando preso de novo, é mais severamente 
tratado. O mesmo se dá com o suicida que julga escapar às misérias do presente e mergulha 
em desgraças maiores. (Cap. V, nº 14 e seguintes) 
72. Prece. – Sabemos, ó meu Deus, qual a sorte que espera os que violam a tua lei, 
abreviando  voluntariamente  seus  dias;  mas, também  sabemos  que  infinita  é  a  tua 
misericórdia. Digna­te, pois, de estendê­la sobre a alma de N... Possam as nossas 
preces  e  a  tua  comiseração  abrandar  a  acerbidade  dos  sofrimentos  que  ele  está 
experimentando, por não haver tido a coragem de aguardar o fim de suas provas. 
Bons Espíritos, que tendes por missão assistir os desgraçados, tomai­o sob a 
vossa proteção; inspirai­lhe o pesar da falta que cometeu. Que a vossa assistência lhe 
dê forças para suportar com mais resignação as novas provas por que haja de passar, 
a  fim  de  repará­la.  Afastai  dele  os  maus  Espíritos,  capazes  de  o  impelirem 
novamente para o mal e prolongar­lhe os sofrimentos, fazendo­o perder o fruto de 
suas futuras provas. 
A ti, cuja desgraça motiva as nossas preces, nos dirigimos também, para te 
exprimir o desejo de que a nossa comiseração te diminua o amargor e te faça nascer 
no íntimo a esperança de melhor porvir! Nas tuas mãos está ele; confia na bondade 
de Deus, cujo seio se abre a todos os arrependimentos e só se conserva fechado aos 
corações endurecidos. 
PELOS ESPÍRITOS PENITENTES 
73. PREFÁCIO. Fora injusto incluir na categoria dos Espíritos maus os sofredores e penitentes, 
que pedem preces. Podem eles ter sido maus, porém, já não o são, desde que reconhecem suas 
faltas  e  as  deploram;  são  apenas  infelizes. Já alguns  começam  mesmo  a  gozar  de  relativa 
felicidade. 
74. Prece. – Deus de misericórdia, que aceitas o arrependimento sincero do pecador, 
encarnado  ou  desencarnado, aqui  está  um Espírito  que  se  há  comprazido no  mal, 
porém, que reconhece seus erros e entra no bom caminho. Digna­te, ó meu Deus, de 
recebê­lo como filho pródigo e de lhe perdoar. 
Bons  Espíritos,  doravante  ele  deseja  ouvir  a  vossa  voz,  que  até  hoje 
desatendeu; permiti­lhe que entreveja a felicidade dos eleitos do Senhor, a fim de
274 – Allan Kardec 
que  persista  no  desejo  de  purificar­se  para  alcançá­la.  Amparai­o  em  suas  boas 
resoluções e dai­lhe forças para resistir aos seus maus instintos. 
Espírito  de  N...,  nós  te  felicitamos  pela  mudança  que  em  ti  se  operou  e 
agradecemos aos bons Espíritos que te ajudaram. 
Se  te  comprazias  outrora  em  fazer  o  mal,  é  que  não  compreendias  quão 
doce  é  o  gozo  de  fazer  o  bem;  também  te  sentias  por  demais  baixo  para  esperar 
consegui­lo. Mas, do momento em que puseste o pé no bom caminho, uma luz nova 
brilhou aos teus olhos; começaste a gozar de uma felicidade que desconhecias e a 
esperança te entrou no coração. É que Deus ouve sempre a prece do pecador que se 
arrepende; não repele a nenhum dos que o buscam. 
Para entrares de novo e completamente na sua graça, esforça­te daqui por 
diante  não  só  para  não  mais  praticares  o  mal,  senão  que  para  fazeres  o  bem  e, 
sobretudo, reparares o mal que fizeste. Terás então satisfeito à justiça de Deus; cada 
uma das boas ações que praticares apagará uma das tuas faltas passadas. 
Já está dado o primeiro passo; agora, quanto mais avançares no caminho, 
tanto mais fácil e agradável ele te parecerá. Persevera, pois, e um dia terás a glória 
de ser contado entre os Espíritos bons e os bem­aventurados. 
PELOS ESPÍRITOS ENDURECIDOS 
75. PREFÁCIO. Os maus Espíritos são aqueles que ainda não foram tocados de arrependimento; 
que se deleitam no mal e nenhum pesar por isso sentem; que são insensíveis às reprimendas, 
repelem a prece e muitas vezes blasfemam do nome de Deus. São essas almas endurecidas 
que, após a morte, se vingam nos homens dos sofrimentos que suportam, e perseguem com o 
seu ódio aqueles a quem odiaram durante a vida, quer obsidiando­os, quer exercendo sobre 
eles qualquer influência funesta. (Cap. X, nº 6; cap. XII, nº 5 e 6) 
Duas categorias há bem distintas de Espíritos perversos: a dos que são francamente 
maus e a dos hipócritas. Infinitamente mais fácil é reconduzir ao bem os primeiros do que os 
segundos. Aqueles, as mais das vezes, são naturezas brutas e grosseiras, como se nota entre os 
homens;  praticam  o  mal  mais  por instinto  do  que  por  cálculo  e  não  procuram  passar  por 
melhores do que são. Há neles, entretanto, um gérmen latente que é preciso fazer desabrochar, 
o que se consegue quase sempre por meio da perseverança, da firmeza aliada à benevolência, 
dos  conselhos,  do  raciocínio  e  da  prece.  Através  da  mediunidade,  a  dificuldade  que  eles 
encontram para escrever o nome de Deus é sinal de um temor instintivo, de uma voz íntima da 
consciência que lhes diz serem indignos de fazê­lo. Nesse ponto estão a pique de converter­se 
e tudo se pode esperar deles: basta se lhes encontre o ponto vulnerável do coração. 
Os  Espíritos  hipócritas  quase  sempre  são  muito  inteligentes,  mas  nenhuma  fibra 
sensível possuem no coração; nada os toca; simulam todos os bons sentimentos para captar a 
confiança, e felizes se sentem quando encontram tolos que os aceitam como santos Espíritos, 
pois que possível se lhes torna governá­los à vontade. O nome de Deus, longe de lhes inspirar 
o menor temor, serve­lhes de máscara para encobrirem suas torpezas. No mundo invisível, 
como no mundo visível, os hipócritas são os seres mais perigosos, porque atuam na sombra, 
sem que ninguém disso desconfie; têm apenas as aparências da fé, mas fé sincera, jamais. 
76.  Prece.  –  Senhor,  digna­te  de  lançar  um  olhar  de  bondade  sobre  os  Espíritos 
imperfeitos,  que  ainda  se  encontram  na  treva  da  ignorância  e  te  desconhecem, 
particularmente sobre N... 
Bons  Espíritos,  ajudai­nos  a  fazer­lhe  compreender  que,  induzindo  os 
homens  ao  mal,  obsidiando­os  e  atormentando­os,  ele  prolonga  os  seus  próprios
275 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
sofrimentos;  fazei  que  o  exemplo  da  felicidade  de  que  gozais  lhe  seja  um 
encorajamento. 
Espírito  que  ainda  te  comprazes  no  mal,  vem  ouvir  a  prece  que  por  ti 
fazemos; ela te há de provar que desejamos o teu bem, conquanto faças o mal. 
És desgraçado, pois não se pode ser feliz fazendo o mal. Por que então te 
conservarás no sofrimento  quando  de  ti  depende  evitá­lo?  Olha  os  bons  Espíritos 
que te cercam; vê quão ditosos são e se te não seria mais agradável fruir da mesma 
felicidade. 
Dirás  que  te  é  impossível;  porém,  nada  é  impossível  àquele  que  quer, 
porquanto Deus te deu, como a todas as suas criaturas, a liberdade de escolher entre 
o bem e o mal, isto é, entre a felicidade e a desgraça, e ninguém se acha condenado a 
praticar o mal. Assim como tens vontade de fazê­lo, também podes ter a de fazer o 
bem e de ser feliz. 
Volve para Deus o teu olhar; dirige­lhe por um instante o teu pensamento e 
um raio da divina luz virá iluminar­te. Dize conosco  estas simples palavras: Meu 
Deus, eu me arrependo, perdoa­me. Tenta arrepender­te e fazer o bem, em vez de 
fazer o mal, e verás que logo a sua misericórdia descerá sobre ti, que um bem­estar 
indizível substituirá as angústias que experimentas. 
Desde que hajas dado um passo no bom caminho, o resto deste te parecerá 
fácil  de  percorrer.  Compreenderás  então  quanto  tempo  perdeste  de  felicidade  por 
culpa tua; mas, um futuro radioso e pleno de esperança se abrirá diante de ti e te fará 
esquecer o teu miserável passado, prenhe de perturbação e de torturas morais, que 
seriam para ti o inferno, se houvessem de durar eternamente. Dia virá em que essas 
torturas serão tais que a qualquer preço quererás fazê­las cessar; porém, quanto mais 
te demorares, tanto mais difícil será isso. 
Não creias que permanecerás sempre no estado em que te achas; não, que 
isso é impossível. Duas perspectivas tens diante de ti: a de sofreres muitíssimo mais 
do  que  tens  sofrido  até  agora  e  a  de  seres  ditoso  como  os  bons  Espíritos  que  te 
rodeiam.  A  primeira  será  inevitável,  se  persistires  na  tua  obstinação,  quando  um 
simples  esforço  da  tua  vontade  bastará  para  te  tirar  da  má  situação  em  que  te 
encontras. Apressa­te, pois, visto que cada dia de demora é um dia perdido para a 
tua felicidade. 
Bons Espíritos, fazei que estas palavras ecoem nessa alma ainda atrasada, a 
fim de que a ajudem a aproximar­se de Deus. Nós vo­lo pedimos em nome de Jesus 
Cristo, que tão grande poder tinha sobre os maus Espíritos. 
V – PRECES PELOS DOENTES E PELOS OBSIDIADOS 
PELOS DOENTES 
77. PREFÁCIO.  As  doenças  fazem  parte  das  provas  e  das  vicissitudes  da  vida  terrena;  são 
inerentes à grosseria da nossa natureza material e à inferioridade do mundo que habitamos. As 
paixões e os excessos de toda ordem semeiam em nós germens malsãos, às vezes hereditários. 
Nos mundos mais adiantados, física ou moralmente, o organismo humano, mais depurado e 
menos material, não está sujeito às mesmas enfermidades e o corpo não é minado surdamente 
pelo corrosivo das paixões. (Cap. III, nº 9.) Temos, assim, de nos resignar às conseqüências
276 – Allan Kardec 
do meio onde nos coloca a nossa inferioridade, até que mereçamos passar a outro. Isso, no 
entanto, não é de molde a impedir que, esperando tal se dê, façamos o que de nós depende 
para melhorar as  nossas condições atuais. Se, porém, malgrado aos  nossos  esforços, não o 
conseguirmos,  o  Espiritismo  nos  ensina  a  suportar  com  resignação  os  nossos  passageiros 
males. 
Se  Deus  não  houvesse  querido  que  os  sofrimentos  corporais  se  dissipassem  ou 
abrandassem  em  certos  casos,  não  houvera posto  ao  nosso  alcance  meios  de  cura.  A  esse 
respeito, a sua solicitude, em conformidade com o instinto de conservação, indica que é dever 
nosso procurar esses meios e aplicá­los. 
A  par  da  medicação  ordinária,  elaborada  pela  Ciência,  o  magnetismo  nos  dá  a 
conhecer  o  poder  da  ação  fluídica  e  o  Espiritismo  nos  revela  outra  força  poderosa  na 
mediunidade  curadora  e  a  influência  da  prece.  (Ver,  no  Cap.  XXVI,  a  notícia  sobre  a 
mediunidade curadora.) 
78.  Prece.  (Para  ser  dita  pelo  doente.)  –  Senhor,  pois  que  és  todo  justiça,  a 
enfermidade  que  te  aprouve  mandar­me  necessariamente  eu  a  merecia,  visto  que 
nunca  impões  sofrimento  algum  sem  causa.  Confio­me,  para  minha  cura,  à  tua 
infinita misericórdia. Se for do teu agrado restituir­me a saúde, bendito seja o teu 
santo nome. Se, ao contrário, me cumpre sofrer mais, bendito seja  ele do mesmo 
modo. Submeto­me, sem queixas, aos teus sábios desígnios, porquanto o que fazes 
só pode ter por fim o bem das tuas criaturas. 
Dá, ó meu Deus, que esta enfermidade seja para mim um aviso salutar e me 
leve a refletir sobre a minha conduta. Aceito­a como uma expiação do passado  e 
como uma prova para a minha fé e a minha submissão à tua santa vontade. (Veja­se a 
prece nº 40.) 
79. Prece. (Pelo doente.) – Meu Deus, são impenetráveis os teus desígnios e na tua 
sabedoria entendeste de afligir a N..., pela enfermidade. Lança, eu te suplico, um 
olhar de compaixão sobre os seus sofrimentos e digna­te de pôr­lhes termo. 
Bons  Espíritos,  ministros  do  Onipotente,  secundai,  eu  vos  peço,  o  meu 
desejo de aliviá­lo; encaminhai o meu pensamento, a fim de que vá derramar um 
bálsamo salutar em seu corpo e a consolação em sua alma. 
Inspirai­lhe a paciência e a submissão à vontade de Deus; dai­lhe a força de 
suportar  suas  dores  com  resignação  cristã,  a  fim  de  que  não  perca  o  fruto  desta 
prova. (Veja­se a prece nº 57.) 
80. Prece. (Para ser dita pelo médium curador.) – Meu Deus, se te dignas servir­te 
de  mim,  indigno  como  sou,  poderei  curar  esta  enfermidade,  se  assim  o  quiseres, 
porque em ti deposito fé. Mas, sem ti, nada posso. Permite que os bons Espíritos me 
cumulem de seus fluidos benéficos, a fim de que eu os transmita a esse doente, e 
livra­me de toda idéia de orgulho e de egoísmo que lhes pudesse alterar a pureza. 
PELOS OBSIDIADOS 
81.  PREFÁCIO.  A  obsessão  é  a  ação  persistente  que  um  Espírito  mau  exerce  sobre  um 
indivíduo.  Apresenta  caracteres  muito  diversos,desde  a  simples  influência  moral,  sem 
perceptíveis  sinais  exteriores,  até  a  perturbação  completa  do  organismo  e  das  faculdades
277 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
mentais. Oblitera todas as faculdades mediúnicas; traduz­se, na mediunidade escrevente, pela 
obstinação de um Espírito em se manifestar, com exclusão de todos os outros. 
Os Espíritos maus pululam em torno da Terra, em virtude da inferioridade moral de 
seus  habitantes. A ação malfazeja que eles desenvolvem  faz parte dos  flagelos  com que a 
Humanidade  se  vê  a  braços  neste  mundo.  A  obsessão,  como  as  enfermidades  e  todas  as 
tribulações da vida, deve ser considerada prova ou expiação e como tal aceita. 
Do mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições físicas, que tornam o 
corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado de uma 
imperfeição moral, que dá acesso a um Espírito mau. A causas físicas se opõem forças físicas; 
a  uma  causa  moral,  tem­se  de  opor  uma  força  moral.  Para  preservá­lo  das  enfermidades, 
fortifica­se o corpo; para isentá­lo da obsessão, é preciso fortificar a alma, pelo que necessário 
se torna que o obsidiado trabalhe pela sua própria melhoria, o que as mais das vezes basta 
para  o  livrar  do  obsessor,  sem  recorrer  a  terceiros.  O  auxílio  destes  se  faz  indispensável, 
quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque aí não raro o paciente 
perde  a  vontade  e  o  livre­arbítrio.  Quase sempre,  a  obsessão  exprime  a  vingança  que um 
Espírito tira e que com freqüência se radica nas relações que o obsidiado manteve com ele em 
precedente existência. (Veja­se: cap. X, nº 6; cap. XII, nº 5 e 6) 
Nos  casos  de  obsessão  grave,  o  obsidiado  se  acha  como  que  envolvido  e 
impregnado de um fluido pernicioso, que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele. É 
desse fluido que importa desembaraçá­lo. Ora, um fluido mau não pode ser eliminado por 
outro fluido mau. Mediante ação idêntica à do médium curador nos  casos  de enfermidade, 
cumpre se elimine o fluido mau com o auxílio de um fluido melhor, que produz, de certo 
modo, o efeito de um reativo. Esta a ação mecânica, mas que não basta; necessário, sobretudo, 
é que se atue sobre o ser inteligente, ao qual importa se possa falar com autoridade, que só 
existe  onde  há  superioridade  moral.  Quanto  maior  for  esta, tanto  maior  será  igualmente a 
autoridade. 
E não é tudo: para garantir­se a libertação, cumpre induzir o Espírito perverso a 
renunciar aos seus maus desígnios; fazer que nele despontem o arrependimento e o desejo do 
bem, por meio de instruções habilmente ministradas, em evocações particulares, objetivando a 
sua educação moral. Pode­se então lograr a dupla satisfação de libertar um encarnado e de 
converter um Espírito imperfeito. 
A tarefa se apresenta mais fácil quando o obsidiado, compreendendo a sua situação, 
presta o concurso da sua vontade e da sua prece. O mesmo não se dá, quando, seduzido pelo 
Espírito embusteiro, ele se ilude no tocante às qualidades daquele que o domina e se compraz 
no  erro  em  que  este  último  o  lança,  visto  que,  então,  longe  de  secundar,  repele  toda 
assistência.  É  o  caso  da  fascinação,  infinitamente  mais  rebelde  do  que  a  mais  violenta 
subjugação. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII.) 
Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso auxiliar de quem haja de 
atuar sobre o Espírito obsessor. 
82. Prece. (Para ser dita pelo obsidiado.) – Meu Deus, permite que os bons Espíritos 
me livrem do Espírito malfazejo que se ligou a mim. Se é uma vingança que toma 
dos  agravos  que  eu  lhe haja  feito  outrora,  tu  a  consentes, meu  Deus,  para minha 
punição e eu sofro a conseqüência da minha falta. Que o meu arrependimento me 
granjeie o teu perdão e a minha liberdade! Mas, seja qual for o motivo, imploro para 
o  meu  perseguidor  a  tua  misericórdia.  Digna­te  de  lhe  mostrar  o  caminho  do 
progresso, que o desviará do pensamento de praticar o mal. Possa eu, de meu lado, 
retribuindo­lhe com o bem o mal, induzi­lo a melhores sentimentos. 
Mas,  também  sei,  ó  meu  Deus,  que  são  as  minhas  imperfeições  que  me 
tornam  passível  das  influências  dos  Espíritos  imperfeitos.  Dá­me  a  luz  de  que
278 – Allan Kardec 
necessito para as reconhecer; combate, sobretudo, em mim o orgulho que me cega 
com relação aos meus defeitos. 
Qual não  será  a minha indignidade,  pois  que  um  ser  malfazejo  me  pode 
subjugar! 
Faze, ó meu Deus, que me sirva de lição para o futuro este golpe desferido 
na  minha  vaidade;  que  ele  fortifique  a  resolução  que  tomo  de  me  depurar  pela 
prática do bem, da caridade e da humildade, a fim de opor, daqui por diante, uma 
barreira às más influências. 
Senhor, dá­me forças para suportar com paciência e resignação esta prova. 
Compreendo  que,  como  todas  as  outras,  há  de  ela  concorrer  para  o  meu 
adiantamento,  se  eu  não  lhe  estragar  o  fruto  com  os  meus  queixumes,  pois  me 
proporciona ensejo de mostrar a minha submissão e de exercitar minha caridade para 
com  um  irmão  infeliz,  perdoando­lhe  o  mal  que  me  fez.  (Cap.  XII,  nos  5  e  6;  cap. 
XXVIII, nº 15 e seguintes, 46 e 47) 
83.  Prece.  (Pelo  obsidiado.)  –  Deus  Onipotente,  digna­te  de  me  dar  o  poder  de 
libertar N.... da influência do Espírito que o obsidia. Se está nos teus desígnios pôr 
termo a essa prova, concede­me a graça de falar com autoridade a esse Espírito. 
Bons  Espíritos  que  me  assistis  e  tu,  seu  anjo  guardião,  dai­me  o  vosso 
concurso; ajudai­me a livrá­lo do fluido impuro em que se acha envolvido. 
Em nome de Deus Onipotente, adjuro o Espírito malfazejo que o atormenta 
a que se retire. 
84. Prece. (Pelo Espírito obsessor.) – Deus infinitamente bom, à tua misericórdia 
imploro para o Espírito que obsidia N... Faze­lhe entrever as divinas claridades, a 
fim de que reconheça falso o caminho por onde enveredou. Bons Espíritos, ajudai­ 
me a fazer­lhe compreender que ele tudo tem a perder, praticando o mal, e tudo a 
ganhar, fazendo o bem. 
Espírito que te comprazes em atormentar N..., escuta­me, pois que te falo 
em nome de Deus. 
Se quiseres refletir, compreenderás que o mal nunca sobrepujará o bem e 
que não podes ser mais forte do que Deus  e os bons Espíritos. Possível lhes fora 
preservar N..., dos teus ataques; se não o fizeram, foi porque ele (ou ela) tinha de 
passar por uma prova. Mas, quando essa prova chegar a seu termo, toda ação sobre 
tua vítima te será vedada. O mal que lhe houveres feito, em vez de prejudicá­la, terá 
contribuído para o seu adiantamento e para torná­la por isso mais feliz. Assim, a tua 
maldade tê­la­ás empregado em pura perda e se voltará contra ti. 
Deus, que é todo­poderoso, e os Espíritos superiores, seus delegados, mais 
poderosos do que tu, serão capazes de pôr fim a essa obsessão e a tua tenacidade se 
quebrará de encontro a essa autoridade suprema. Mas, por isso mesmo que é bom, 
quer Deus deixar­te o mérito de fazeres que ela cesse pela tua própria vontade. É 
uma  mora  que  te  concede;  se  não  a  aproveitares,  sofrer­lhe­ás  as  deploráveis 
conseqüências. Grandes castigos e cruéis sofrimentos te esperarão. Serás forçado a 
suplicar a piedade e as preces da tua vítima, que já te perdoa e  ora por ti, o que 
constitui grande merecimento aos olhos de Deus e apressará a libertação dela. 
Reflete,  pois,  enquanto  ainda  é  tempo,  visto  que  a  justiça  de  Deus  cairá 
sobre  ti,  como  sobre  todos  os  Espíritos  rebeldes.  Pondera  que  o  mal  que  neste
279 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO 
momento praticas terá forçosamente um limite, ao passo que, se persistires na tua 
obstinação, aumentarão de contínuo os teus sofrimentos. 
Quando  estavas  na  Terra,  não  terias  considerado  estúpido  sacrificar  um 
grande  bem  por  uma  pequena  satisfação  de  momento?  O  mesmo  acontece  agora, 
quando  és  Espírito.  Que  ganhas  com  o  que  fazes?  O  triste  prazer  de  atormentar 
alguém, o que não obsta a que sejas desgraçado, digas o que disseres, e que te tornes 
ainda mais desgraçado. 
A par disso, vê o que perdes; observa os bons Espíritos que te cercam e dize 
se  não  é  preferível  à  tua  a  sorte  deles.  Da  felicidade  de  que  gozam,  também  tu 
partilharás, quando o quiseres. Que é preciso para isso? Implorar a Deus e fazer, em 
vez do mal, o bem. Sei que não te podes transformar repentinamente; mas, Deus não 
exige o impossível; quer apenas a boa vontade. Experimenta e nós te ajudaremos. 
Faze que em breve possamos dizer em teu favor a prece pelos Espíritos penitentes 
(nº  73)  e  não  mais  considerar­te  entre  os  maus  Espíritos, enquanto  te  não  contes 
entre os bons. 
(Veja­se também, atrás, o nº 75: “Preces pelos Espíritos endurecidos”.) 
Observação. – A cura das obsessões graves requer muita paciência, perseverança e devotamento. 
Exige também tato e habilidade, a fim de encaminhar para o bem Espíritos muitas vezes perversos, 
endurecidos e astuciosos, porquanto há os rebeldes ao extremo. Na maioria dos casos, temos de nos 
guiar pelas circunstâncias. Qualquer que seja, porém, o caráter do Espírito, nada se obtém, é isto 
um fato incontestável, pelo constrangimento ou pela ameaça. Toda influência reside no ascendente 
moral.  Outra  verdade  igualmente  comprovada  pela  experiência  tanto  quanto  pela  lógica,  é  a 
completa  ineficácia  dos  exorcismos,  fór mulas,  palavras  sacramentais,  amuletos,  talismãs, 
práticas exteriores, ou quaisquer sinais materiais. 
A obsessão muito prolongada pode ocasionar desordens patológicas e reclama, por vezes, 
tratamento simultâneo ou consecutivo, quer magnético, quer médico, para restabelecer a saúde do 
organismo. Destruída a causa, resta combater os efeitos. (Veja­se: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, 
cap. XXIII – “Da obsessão”. – Revue Spirite, fevereiro e março de 1864; abril de 1865: exemplos 
de curas de obsessões)

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O evangelho segundo o espiritismo - allan kardec

  • 2. 2 – Allan Kardec  O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Allan Kardec
  • 4. 4 – Allan Kardec  NOTA DA EDITORA  A  tradução  desta  obra,  devemo­la  ao  saudoso  presidente  da  Federação Espírita Brasileira – Dr. Guillon Ribeiro, engenheiro civil, poliglota  e vernaculista.  Ruy  Barbosa,  em  seu  discurso  pronunciado  na  sessão  de  14  de  outubro  de  1903  (Anais  do  Senado  Federal,  vol.  II,  pág.  717),  em  se  referindo  ao  seu  trabalho  de  revisão  do  Projeto  do  Código  Civil,  trabalho  monumental  que  resultou  na Réplica,  e  que lhe  imortalizou  o  nome  como  filósofo e purista da língua, disse:  “Devo, entretanto, Sr. Presidente, desempenhar­me de um  dever de consciência ­ registrar e agradecer da tribuna do Senado a  colaboração  preciosa  do  Sr.  Doutor  Guillon  Ribeiro,  que  me  acompanhou nesse trabalho com a maior inteligência, não limitando  os  seus  serviços  à  parte  material  do  comum  dos  revisores,  mas,  muitas vezes, suprindo até as desatenções e negligências minhas.”  Como  vemos,  Guillon  Ribeiro  recebeu,  aos  vinte  e  oito  anos  de  idade,  o  maior  elogio  a  que  poderia  aspirar  um  escritor,  e  a  Federação  Espírita  Brasileira,  vinte  anos  depois,  consagrou­lhe  o  nome,  aprovando  unanimemente as suas impecáveis traduções de Kardec. Jornalista emérito,  Guillon Ribeiro foi redator do Jornal do Comércio e colaborador dos maiores  jornais  da  época.  Exerceu,  durante  anos,  o  cargo  de  diretor­geral  da  Secretaria  do  Senado  e  foi  diretor  da  Federação  Espírita  Brasileira,  no  decurso  de  26  anos  consecutivos,  tendo  traduzido,  ainda,  O  Livro  dos  Espíritos,  O  Livro  dos  Médiuns,  A  Gênese  e  Obras  Póstumas,  todos  de  Kardec.
  • 5. 5 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  O Evangelho  Segundo o  Espiritismo  COM EXPLICAÇÕES DAS MÁXIMAS MORAIS DO CRISTO  EM CONCORDÂNCIA COM O ESPIRITISMO E SUAS APLICAÇÕES  ÀS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA  P O R  ALLAN KARDEC
  • 6. 6 – Allan Kardec  SUMÁRIO  Explicação 10  Prefácio 11  Introdução 12  I – Objetivo desta obra.  II – Autoridade da Doutrina Espírita. Controle universal do  ensino dos Espíritos. III – Notícias históricas. IV – Sócrates e Platão, precursores da  idéia cristã e do Espiritismo.  CAPÍTULO I – NÃO VIM DESTRUIR A LEI 30  As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo: 1 a 7. – Aliança da Ciência e da  Religião: 8. – Instruções dos Espíritos: A nova era: 9 a 11.  CAPÍTULO II – MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO 37  A vida futura: 1 a 3. – A realeza de Jesus: 4. – O ponto de vista: 5 a 7. – Instruções  dos Espíritos: Uma realeza terrestre: 8.  CAPÍTULO III – HÁ MUITAS MORADAS NA CASA DE MEU PAI 42  Diferentes estados da alma na erraticidade: 1 e 2. – Diferentes categorias de mundos  habitados:  3  a  5.  – Destinação  da  Terra.  Causas  das  misérias  humanas:  6  e  7.  –  Instruções dos Espíritos: Mundos inferiores e mundos superiores: 8 a 12. – Mundos  de expiações e de provas: 13 a 15. – Mundos regeneradores: 16 a 18. – Progressão  dos mundos: 19.  CAPÍTULO IV – NINGUÉM PODERÁ VER O REINO DE DEUS  SE NÃO NASCER DE NOVO 50  Ressurreição e reencarnação: 1 a 17. – A reencarnação fortalece os laços de família,  ao  passo  que  a  unicidade  da  existência  os  rompe:  18  a  23.  –  Instruções  dos  Espíritos: Limites da encarnação: 24. – Necessidade da encarnação: 25 e 26.  CAPÍTULO V – BEM­AVENTURADOS OS AFLITOS 59  Justiça das aflições: 1 a 3. – Causas atuais das aflições: 4 e 5. – Causas anteriores  das aflições: 6 a 10. – Esquecimento do passado: 11. – Motivos de resignação: 12 e  13. – O suicídio e a loucura: 14 a 17. – Instruções dos Espíritos: Bem e mal sofrer:  18. – O mal e o remédio: 19.– A  felicidade não é deste mundo: 20. – Perda de  pessoas  amadas.  Mortes  prematuras:  21.  –  Se  fosse  um  homem  de  bem,  teria  morrido: 22. – Os tormentos voluntários: 23. – A desgraça real: 24. – A melancolia:  25. – Provas voluntárias. O verdadeiro cilício: 26. – Dever­se­á pôr termo às provas  do próximo?: 27. – Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança  de cura?: 28. – Sacrifício da própria vida: 29 e 30. – Proveito dos sofrimentos para  outrem: 31.  CAPÍTULO VI – O CRISTO CONSOLADOR 78  O  jugo  leve:  1  e  2.  –  Consolador  prometido:  3  e  4.  –  Instruções  dos  Espíritos:  Advento do Espírito de Verdade: 5 a 8.
  • 7. 7 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO VII – BEM­AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO 82  O que se deve entender por pobres de espírito: 1 e 2. – Aquele que se eleva será  rebaixado:  3  a  6.  –  Mistérios  ocultos  aos  doutos  e  aos  prudentes:  7  a  10.  –  Instruções dos Espíritos: O orgulho e a humildade: 11 e 12. – Missão do homem  inteligente na Terra: 13.  CAPÍTULO VIII – BEM­AVENTURADOS OS QUE TÊM PURO O CORAÇÃO 91  Simplicidade e pureza de coração: 1 a 4. – Pecado por pensamentos. Adultério: 5 a  7. – Verdadeira pureza. Mãos não lavadas: 8 a 10. – Escândalos. Se a vossa mão é  motivo  de  escândalo,  cortai­a:  11  a  17.  –  Instruções  dos  Espíritos:  Deixai  que  venham a mim as criancinhas: 18 e 19. – Bem­aventurados os que têm fechados os  olhos: 20 e 21.  CAPÍTULO IX – BEM­AVENTURADOS OS QUE SÃO BRANDOS E PACÍFICOS 100  Injúrias e violências: 1 a 5. – Instruções dos Espíritos: A afabilidade e a doçura: 6. –  A paciência: 7. – Obediência e resignação: 8. – A cólera: 9 e 10.  CAPÍTULO X – BEM­AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSOS 105  Perdoai, para que Deus vos perdoe: 1 a 4. – Reconciliação com os adversários: 5 e  6. – O sacrifício mais agradável a Deus: 7 e 8. – O argueiro e a trave no olho: 9 e  10.  –  Não  julgueis,  para  não  serdes julgados.  Atire  a  primeira  pedra aquele  que  estiver sem pecado: 11 a 13. – Instruções dos Espíritos: Perdão das ofensas: 14 e 15.  – A indulgência: 16 a 18. – É permitido repreender os outros, notar as imperfeições  de outrem, divulgar o mal de outrem?: 19 a 21.  CAPÍTULO XI – AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO 141  O  mandamento  maior.  Fazermos  aos  outros  o  que  queiramos  que  os  outros  nos  façam.  Parábola  dos  credores  e  dos  devedores:  1  a  4. – Dai  a  César  o  que é  de  César: 5 a 7. – Instruções dos Espíritos: A lei de amor: 8 a 10. – O egoísmo: 11 e  12. – A fé e a caridade: 13. – Caridade para com os criminosos: 14. – Deve­se expor  a vida por um malfeitor?: 15.  CAPÍTULO XII – AMAI OS VOSSOS INIMIGOS 123  Retribuir o mal com o bem: 1 a 4. – Os inimigos desencarnados: 5 e 6. – Se alguém  vos  bater na face direita, apresentai­lhe também a outra: 7 e 8. – Instruções dos  Espíritos: A vingança: 9. – O ódio: 10. – O duelo: 11 a 16.  CAPÍTULO XIII – NÃO SAIBA A VOSSA MÃO ESQUERDA  O QUE DÊ A VOSSA MÃO DIREITA 132  Fazer o bem sem ostentação: 1 a 3. – Os infortúnios ocultos: 4. – O óbolo da viúva:  5 e 6. – Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem esperar retribuição: 7 e 8. –  Instruções  dos  Espíritos:  A  caridade  material  e  a  caridade  moral:  9  e  10.  –  A  beneficência: 11 a 16. – A piedade: 17. Os órfãos: 18. – Benefícios pagos com a  ingratidão: 19. – Beneficência exclusiva: 20.  CAPÍTULO XIV – HONRAI A VOSSO PAI E A VOSSA MÃE 147  Piedade filial: 1 a 4. – Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?: 5 a 7. – A  parentela  corporal  e  a  parentela  espiritual:  8.  –  Instruções  dos  Espíritos:  A  ingratidão dos filhos e os laços de família: 9.
  • 8. 8 – Allan Kardec  CAPÍTULO XV – FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO 154  O de que precisa o Espírito para ser salvo. Parábola do bom samaritano: 1 a 3. – O  mandamento maior: 4 e 5. – Necessidade da caridade, segundo S. Paulo: 6 e 7. –  Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação: 8 e 9. – Instruções  dos Espíritos: Fora da caridade não há salvação: 10.  CAPÍTULO XVI – NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON 160  Salvação dos ricos: 1 e 2. – Preservar­se da avareza: 3. – Jesus em casa de Zaqueu:  4. – Parábola do mau rico: 5. – Parábola dos talentos: 6. – Utilidade providencial da  riqueza.  Provas  da  riqueza  e  da  miséria:  7.  –  Desigualdade  das  riquezas:  8.  –  Instruções dos Espíritos: A verdadeira propriedade: 9 e 10. – Emprego da riqueza:  11 a 13. Desprendimento dos bens terrenos: 14. – Transmissão da riqueza: 15.  CAPÍTULO XVII – SEDE PERFEITOS 173  Caracteres  da perfeição: 1 e 2. – O homem de bem: 3. – Os  bons  espíritas: 4. –  Parábola do semeador: 5 e 6. – Instruções dos Espíritos: O dever: 7. – A virtude:  8. – Os superiores e os inferiores: 9. – O homem no mundo: 10. – Cuidar do corpo e  do espírito: 11.  CAPÍTULO XVIII – MUITOS OS CHAMADOS, POUCOS OS ESCOLHIDOS 183  Parábola do festim de bodas: 1 e 2. – A porta estreita: 3 a 5. – Nem todos os que  dizem: Senhor! Senhor! Entrarão no reino dos céus: 6 a 9. – Muito se pedirá àquele  que muito recebeu: 10 a 12. – Instruções dos Espíritos: Dar­se­á àquele que tem: 13  a 15. – Pelas suas obras é que se reconhece o cristão: 16.  CAPÍTULO XIX – A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS 191  Poder da fé: 1 a 5. – A fé religiosa. Condição da fé inabalável: 6 e 7. – Parábola da  figueira que secou: 8 a 10. – Instruções dos Espíritos: A fé: mãe da esperança e da  caridade: 11. – A fé humana e a divina: 12.  CAPÍTULO XX – OS TRABALHADORES DA ÚLTIMA HORA 197  Instruções  dos  Espíritos:  Os  últimos  serão  os  primeiros:  1  a  3.  –  Missão  dos  espíritas: 4. – Os obreiros do Senhor: 5.  CAPÍTULO XXI – HAVERÁ FALSOS CRISTOS E FALSOS PROFETAS 202  Conhece­se a árvore pelo fruto: 1 a 3. – Missão dos profetas: 4. – Prodígios  dos  falsos  profetas:  5.  –  Não  crimes  em  todos  os  Espíritos:  6  e  7.  –  Instruções  dos  Espíritos: Os falsos profetas: 8. – Caracteres do verdadeiro profeta: 9. – Os falsos  profetas da erraticidade: 10. – Jeremias e os falsos profetas: 11.  CAPÍTULO XXII – NÃO SEPAREIS O QUE DEUS JUNTOU 210  Indissolubilidade do casamento: l a 4. – O divórcio: 5.  CAPÍTULO XXIII – ESTRANHA MORAL 213  Odiar os pais: 1 a 3. – Abandonar pai, mãe e filhos: 4 a 6. – Deixar aos mortos o  cuidado de enterrar seus mortos: 7 e 8. – Não vim trazer a paz, mas, a divisão: 9 a  18.
  • 9. 9 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XXIV – NÃO PONHAIS A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE 220  Candeia sob o alqueire. Por que fala Jesus por parábolas: 1 a 7. – Não vades ter com  os gentios: 8 a 10. – Não são os que gozam saúde que precisam de médico: 11 e 12.  – Coragem da fé: 13 a 16. – Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê­la­  á: 17 a 19.  CAPÍTULO XXV – BUSCAI E ACHAREIS 227  Ajuda­te a ti mesmo, que o céu te ajudará: 1 a 5. – Observai os pássaros do céu: 6 a  8. – Não vos afadigueis pela posse do ouro: 9 a 11.  CAPÍTULO XXVI – DAI GRATUITAMENTE O QUE GRATUITAMENTE RECEBESTES 232  Dom de curar: 1 e 2. – Preces pagas: 3 e 4. – Mercadores expulsos do templo: 5 e 6.  – Mediunidade gratuita: 7 a 10.  CAPÍTULO XXVII – PEDI E OBTEREIS 236  Qualidades da prece: 1 a 4. – Eficácia da prece: 5 a 8. – Ação da prece. Transmissão  do pensamento: 9 a 15. – Preces inteligíveis: 16 e 17. – Da prece pelos mortos e  pelos Espíritos sofredores: 18 a 21. – Instruções dos Espíritos: Maneira de orar: 22.  – Felicidade que a prece proporciona: 23.  CAPÍTULO XXVIII – COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS 246  Preâmbulo: 1.  I – PRECES GERAIS 247  Oração dominical: 2 e 3. – Reuniões espíritas: 4 a 7. – Para os médiuns: 8 a 10.  II – PRECES POR AQUELE MESMO QUE ORA 255  Aos  anjos  guardiães  e aos  Espíritos  protetores:  11  a  14.  –  Para  afastar  os  maus  Espíritos: 15 a 17. – Para pedir a corrigenda de um defeito: 18 e 19. – Para pedir a  força de resistir a uma tentação: 20 e 21. – Ação de graças pela vitória alcançada  sobre uma tentação: 22 e 23. – Para pedir um conselho: 24 e 25. – Nas aflições da  vida: 26 e 27. – Ação de graças por um favor obtido: 28 e 29. – Ato de submissão e  de resignação: 30 a 33. – Num perigo iminente: 34 e 35. – Ação de graças por haver  escapado a um perigo: 36 e 37. – À hora de dormir: 38 e 39. – Prevendo próxima a  morte: 40 e 41.  III – PRECES POR OUTREM 265  Por  alguém  que  esteja  em  aflição:  42  e  43.  –  Ação  de  graças  por  um  benefício  concedido a outrem: 44 e 45. – Pelos nossos inimigos e pelos que nos querem mal:  46 e 47. – Ação de graças pelo bem concedido aos nossos inimigos: 48 e 49. – Pelos  inimigos do Espiritismo: 50 a 52. – Por uma criança que acaba de nascer: 53 a 56. –  Por um agonizante: 57 e 58.  IV – PRECES PELOS QUE JÁ NÃO SÃO DA TERRA 268  Por alguém que acaba de morrer: 59 a 61. – Pelas pessoas a quem tivemos afeição:  62 e 63. – Pelas almas sofredoras que pedem preces: 64 a 66. – Por um inimigo que  morreu: 67 e 68. – Por um criminoso: 69 e 70. – Por um suicida: 71 e 72. – Pelos  Espíritos penitentes: 73 e 74. – Pelos Espíritos endurecidos: 75 e 76.  V – PRECES PELOS DOENTES E PELOS OBSIDIADOS 275  Pelos doentes: 77 a 80. – Pelos obsidiados: 81 a 84.
  • 10. 10 – Allan Kardec  EXPLICAÇÃO  Como é do domínio público, Kardec, ao imprimir a terceira edição do seu  livro – O Evangelho segundo o Espiritismo  –,  por  ordem dos  Espíritos  reformou  completamente  as  edições  anteriores,  suprimindo  inúmeros  trechos,  acrescentando  outros, alterando a redação de muitos e a numeração de  vários parágrafos, tendo,  anteriormente, modificado o próprio título da obra.  A  3ª  edição  francesa  ficou,  pois,  sendo  a  definitiva  e,  por isso  mesmo,  a  Federação  Espírita  Brasileira,  obediente  às  instruções  que  os  Espíritos  deram  a  Kardec, e por este aceitas, fez a presente tradução da referida 3ª edição  francesa,  sobre a qual Kardec escreveu, em Revue Spirite de novembro de 1865, o seguinte:  Esta  edição  foi  completamente  refundida.  Além  de  algumas  adições,  as  principais  modificações  consistem  numa  classificação  mais  metódica, mais clara e mais cômoda das matérias, tornando a obra de mais  fácil leitura e facilitando igualmente as consultas.  A EDITORA (FEB)
  • 11. 11 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  PREFÁCIO  Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos Céus, qual imenso exército que  se movimenta ao receber as ordens do seu comando, espalham­se por toda a superfície  da Terra e, semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar os caminhos e abrir os olhos  aos cegos.  Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas  hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir  os orgulhosos e glorificar os justos.  As grandes vozes do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos  anjos se  lhes  associam. Nós  vos  convidamos,  a  vós  homens,  para  o  divino concerto.  Tomai da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado, elas se estendam e  repercutam de um extremo a outro do Universo.  Homens,  irmãos  a  quem  amamos,  aqui  estamos  junto  de  vós.  Amai­vos,  também, uns aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que  está no Céu: Senhor! Senhor!... E podereis entrar no reino dos Céus.  O ESPÍRITO DE VERDADE  Nota – A instrução acima, transmitida por via mediúnica, resume a um tempo o verdadeiro caráter  do Espiritismo e a finalidade desta obra; por isso foi colocada aqui como prefácio.
  • 12. 12 – Allan Kardec  INTRODUÇÃO  I – OBJETIVO DESTA OBRA  Podem dividir­se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os  atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram  tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro  primeiras  têm  sido  objeto  de  controvérsias;  a  última,  porém,  conservou­se  constantemente inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se  curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir­se, estandarte sob o qual podem  todos colocar­se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu  matéria  das  disputas  religiosas,  que  sempre  e  por  toda  a  parte  se  originaram  das  questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua  própria condenação, visto que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do  que à parte moral, que exige de cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em  particular,  constitui  aquele  código  uma  regra  de  proceder  que  abrange  todas  as  circunstâncias  da  vida  privada  e  da  vida  pública,  o  princípio  básico  de  todas  as  relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. É, finalmente e acima de  tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do  véu que nos oculta a vida futura. Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra.  Toda  a  gente  admira  a  moral  evangélica;  todos  lhe  proclamam  a  sublimidade e a necessidade; muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados  no que ouviram dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais.  Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a compreendem e  lhe  sabem  deduzir  as  conseqüências.  A razão  está,  por muito, na  dificuldade  que  apresenta o entendimento do Evangelho que, para o maior número dos seus leitores,  é ininteligível. A forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem  que  a  maioria  o  leia  por  desencargo  de  consciência  e  por  dever,  como  lêem  as  preces,  sem  as  entender,  isto  é,  sem  proveito.  Passam­lhes  despercebidos  os  preceitos  morais,  disseminados  aqui  e  ali,  intercalados  na  massa  das  narrativas.  Impossível,  então,  apanhar­se­lhes  o  conjunto  e  tomá­los  para  objeto  de  leitura  e  meditações especiais.  É certo que tratados já se hão escrito de moral evangélica; mas, o arranjo  em moderno estilo literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo,  lhe  constitui  o  encanto  e  a  autenticidade.  Outro  tanto  cabe  dizer­se  das  máximas  destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial. Desde logo, já não  passam de aforismos, privados de uma parte do seu valor e interesse, pela ausência  dos acessórios e das circunstâncias em que foram enunciadas.
  • 13. 13 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Para  obviar  a  esses  inconvenientes,  reunimos,  nesta  obra,  os  artigos  que  podem compor, a bem dizer, um código de moral universal, sem distinção de culto.  Nas citações, conservamos o que é útil ao desenvolvimento da idéia, pondo de lado  unicamente  o  que  se  não  prende  ao  assunto.  Além  disso,  respeitamos  escrupulosamente a tradução de Sacy, assim como a divisão em versículos. Em vez,  porém, de nos atermos a uma ordem cronológica impossível e sem vantagem real  para  o  caso,  grupamos  e  classificamos  metodicamente  as  máximas,  segundo  as  respectivas  naturezas,  de  modo  que  decorram  umas  das  outras,  tanto  quanto  possível. A indicação dos números de ordem dos capítulos e dos versículos permite  se recorra à classificação vulgar, em sendo oportuno.  Esse,  entretanto,  seria  um  trabalho  material  que,  por  si  só,  apenas  teria  secundária  utilidade.  O  essencial  era  pô­lo  ao  alcance  de  todos,  mediante  a  explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas as conseqüências,  tendo  em  vista  a  aplicação  dos  ensinos  a  todas  as  condições  da  vida.  Foi  o  que  tentamos fazer, com a ajuda dos bons Espíritos que nos assistem.  Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral só  são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se  lhes apreenda o verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como  já  o  puderam  reconhecer  os  que  o  têm  estudado  seriamente  e  como  todos,  mais  tarde, ainda melhor o reconhecerão. O Espiritismo se nos depara por toda a parte na  antigüidade  e  nas  diferentes  épocas  da  Humanidade.  Por  toda  a  parte  se  lhe  descobrem os vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão  por que, ao mesmo tempo em que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz  não menos viva sobre os mistérios do passado.  Como  complemento  de  cada  preceito,  acrescentamos  algumas  instruções  escolhidas,  dentre  as  que  os  Espíritos  ditaram  em  vários  países  e  por  diferentes  médiuns. Se elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma  influência  pessoal  ou  a do  meio,  enquanto  a  diversidade  de  origens  prova  que  os  Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a esse respeito goza de  qualquer privilégio. 1  Esta  obra  é  para  uso  de  todos.  Dela  podem  todos  haurir  os  meios  de  confortar  com  a  moral  do  Cristo  o  respectivo  proceder.  Aos  espíritas  oferece  aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às relações estabelecidas,  doravante  e  permanentemente,  entre  os  homens  e  o  mundo  invisível,  a  lei  evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a todas as nações, já não será letra  morta, porque cada um a compreenderá e se verá incessantemente compelido a pô­la  1  Houvéramos,  sem  dúvida,  podido  apresentar,  sobre  cada  assunto,  maior  número  de  comunicações  obtidas numa  porção  de  outras  cidades  e  centros, além  das  que citamos.  Tivemos,  porém,  de  evitar a  monotonia das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às que, tanto pelo fundo quanto pela forma, se  enquadravam  melhor  no  plano  desta  obra, reservando  para  publicações ulteriores as  que não  puderam  caber aqui. Quanto aos médiuns, abstivemo­nos de nomeá­los. Na maioria dos casos, não os designamos a  pedido deles próprios e, assim sendo, não convinha fazer exceções. Ao demais, os nomes dos médiuns  nenhum  valor  teriam  acrescentado  à  obra  dos  Espíritos.  Mencioná­los  mais  não  fora,  então,  do  que  satisfazer ao amor­próprio, coisa a que os médiuns verdadeiramente sérios nenhuma importância ligam.  Compreendem eles que, por ser meramente passivo o papel que lhes toca, o valor das comunicações em  nada lhes exalça o mérito pessoal; e que seria pueril envaidecerem­se de um trabalho de inteligência ao  qual é apenas mecânico o concurso que prestam.
  • 14. 14 – Allan Kardec  em prática, a conselho de seus guias espirituais. As instruções que promanam dos  Espíritos  são  verdadeiramente  as  vozes  do  céu  que  vêm  esclarecer  os  homens  e  convidá­los à prática do Evangelho.  II – AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA  CONTROLE UNIVERSAL DO ENSINO DOS ESPÍRITOS  Se  a  Doutrina  Espírita  fosse  de  concepção  puramente  humana,  não  ofereceria  por  penhor  senão  as  luzes  daquele  que  a  houvesse  concebido.  Ora,  ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com  exclusividade,  a  verdade  absoluta.  Se  os  Espíritos  que  a  revelaram  se houvessem  manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister  acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de  sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as pessoas de  suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo.  Quis  Deus  que  a  nova  revelação  chegasse  aos  homens  por  mais  rápido  caminho  e  mais  autêntico.  Incumbiu,  pois,  os  Espíritos  de  levá­la  de  um  pólo  a  outro, manifestando­se por toda a parte, sem conferir a ninguém o privilégio de lhes  ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado, pode enganar­se a si mesmo; já não  será assim,  quando milhões  de  criaturas  vêem  e  ouvem  a mesma  coisa.  Constitui  isso  uma  garantia  para  cada  um  e  para  todos.  Ao  demais,  pode  fazer­se  que  desapareça um homem; mas não se pode  fazer que desapareçam as coletividades;  podem  queimar­se  os  livros,  mas  não  se  podem  queimar  os  Espíritos.  Ora,  queimassem­se todos  os livros e a fonte da doutrina não deixaria de conservar­se  inexaurível, pela razão mesma de não estar na Terra, de surgir em todos os lugares e  de  poderem  todos  dessedentar­se  nela.  Faltem  os  homens  para  difundi­la:  haverá  sempre os Espíritos, cuja atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir.  São, pois, os próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos  inúmeros médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os lados.  Se  tivesse  havido  unicamente  um  intérprete,  por  mais  favorecido  que  fosse,  o  Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que fosse a classe a que pertencesse, tal  intérprete houvera sido objeto das prevenções de muita gente e nem todas as nações  o teriam aceitado, ao passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da  Terra, a todos os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O  Espiritismo  não  tem  nacionalidade  e  não  faz  parte  de  nenhum  culto  existente;  nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções  de seus parentes e amigos de além­túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa  conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro,  alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá­las.  Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo  e,  também,  a  causa  de  sua  tão  rápida  propagação.  Enquanto  a  palavra  de  um  só  homem,  mesmo  com  o  concurso  da  imprensa,  levaria  séculos  para  chegar  ao  conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos
  • 15. 15 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  os  recantos  do  planeta,  proclamando  os  mesmos  princípios  e  transmitindo­os  aos  mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma  vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o  Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme  o malquerer dos homens, nem as  revoluções  morais,  nem  as  subversões  físicas  do  globo,  porque  nada  disso  pode  atingir os Espíritos.  Não é essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional  posição.  Ela  lhe  faculta inatacável  garantia  contra todos  os  cismas  que  pudessem  provir,  seja  da ambição  de  alguns,  seja  das  contradições  de  certos  Espíritos. Tais  contradições, não há negar, são um escolho; mas que traz consigo o remédio, ao lado  do mal.  Sabe­se que os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades,  longe se acham de estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade;  que nem a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é  proporcional  à  sua  depuração;  que  os  Espíritos  vulgares  mais  não  sabem  do  que  muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e sofômanos, que  julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por verdades as suas idéias;  enfim, que só os Espíritos da categoria mais elevada, os que já estão completamente  desmaterializados, se  encontram despidos das idéias e preconceitos terrenos; mas,  também é sabido que os Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes  que lhes não pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação  a tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que  cada  um  possa  receber  terão  caráter  individual,  sem  cunho  de  autenticidade;  que  devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente  fora aceitá­las e propagá­las levianamente como verdades absolutas.  O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual  cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em  manifesta contradição com o bom­senso, com uma lógica rigorosa e com os dados  positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que  traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse exame em muitos casos, por  efeito da falta de luzes de certas pessoas e das tendências de não poucas a tomar as  próprias  opiniões  como  juízes  únicos  da  verdade.  Assim  sendo,  que hão  de  fazer  aqueles que não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da  maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em  face do que digam os Espíritos, que são  os primeiros a nos fornecer  os meios de  consegui­lo.  A  concordância  no  que  ensinem  os  Espíritos  é,  pois,  a  melhor  comprovação.  Importa,  no  entanto,  que  ela  se  dê  em  determinadas  condições.  A  mais  fraca  de  todas  ocorre  quando  um médium, a  sós,  interroga  muitos  Espíritos  acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma  obsessão,  ou  lidando  com  um  Espírito mistificador,  este  lhe  pode  dizer  a mesma  coisa  sob  diferentes  nomes.  Tampouco  garantia  alguma  suficiente  haverá  na  conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo  centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.
  • 16. 16 – Allan Kardec  Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância  que  haja  entre  as  revelações  que  eles  façam  espontaneamente,  servindo­se  de  grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.  Vê­se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses  secundários,  mas  do  que  respeita  aos  princípios  mesmos  da  doutrina.  Prova  a  experiência  que,  quando  um  princípio  novo  tem  de  ser  enunciado,  isso  se  dá  espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão  quanto à forma, quanto ao fundo.  Se,  portanto,  aprouver  a  um  Espírito  formular  um  sistema  excêntrico,  baseado unicamente nas suas idéias e com exclusão da verdade, pode ter­se a certeza  de que tal sistema conservar­se­á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas de  todas  as  partes,  conforme  os  múltiplos  exemplos  que  já  se  conhecem.  Foi  essa  unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que surgiram na origem do  Espiritismo, quando cada um explicava à sua maneira os fenômenos, e antes que se  conhecessem  as  leis  que  regem  as  relações  entre  o  mundo  visível  e  o  mundo  invisível.  Essa  a  base  em  que  nos  apoiamos,  quando  formulamos  um  princípio  da  doutrina.  Não  é  porque  esteja  de  acordo  com  as  nossas  idéias  que  o  temos  por  verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a  ninguém dizemos: “Crede em tal coisa, porque somos nós que vo­lo dizemos.” A  nossa  opinião não  passa,  aos nossos  próprios  olhos,  de  uma  opinião  pessoal,  que  pode  ser  verdadeira  ou  falsa,  visto  não  nos  considerarmos  mais  infalível  do  que  qualquer outro. Também não é porque um princípio nos foi ensinado que, para nós,  ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância.  Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de  mil  centros  espíritas  sérios,  disseminados  pelos  mais  diversos  pontos  da  Terra,  achamo­nos  em  condições  de  observar  sobre  que  princípio  se  estabelece  a  concordância. Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará  em novos campos que o Espiritismo terá de explorar. Porque, estudando atentamente  as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro, reconhecemos, pela  natureza toda especial das revelações, que ele tende a entrar por um novo caminho e  que  lhe  chegou  o  momento  de  dar um  passo  para  diante. Essas revelações,  feitas  muitas  vezes  com  palavras  veladas,  hão  freqüentemente  passado  despercebidas  a  muitos dos que as obtiveram. Outros julgaram­se os únicos a possuí­las. Tomadas  insuladamente,  elas,  para  nós,  nenhum  valor  teriam;  somente  a  coincidência  lhes  imprime gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade,  cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse movimento  geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos nossos guias espirituais, é  que nos auxilia a julgar da oportunidade de fazermos ou não alguma coisa.  Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do  Espiritismo  e  anulará  todas  as  teorias  contraditórias.  Aí  é  que,  no  porvir,  se  encontrará o critério da verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O  Livro  dos  Espíritos  e  em  O  Livro  dos  Médiuns  foi  que  em  toda  a  parte  todos  receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros contêm. Se  de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê­la, já de há muito haveriam  aquelas  obras  experimentado  a  sorte  de  todas  as  concepções  fantásticas.  Nem
  • 17. 17 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  mesmo o apoio da imprensa as salvaria do naufrágio, ao passo que, privadas como  se viram desse apoio, não deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente.  É que tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também  sobrepujou  o  malquerer  dos  homens.  Assim  sucederá  a  todas  as  idéias  que,  emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a prova desse  confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar.  Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro em  sentido  contrário;  suponhamos  mesmo  que,  com  intenção  hostil,  objetivando  desacreditar  a  doutrina,  a  malevolência  suscitasse  comunicações  apócrifas;  que  influência  poderiam  exercer  tais  escritos,  desde  que  de  todos  os  lados  os  desmentissem os Espíritos? É com a adesão destes que se deve garantir aquele que  queira lançar, em seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos,  medeia  a  distância  que  vai  da  unidade  ao  infinito.  Que  poderão  conseguir  os  argumentos  dos  detratores,  sobre  a  opinião  das massas,  quando  milhões  de  vozes  amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos do Universo e no  seio das famílias, a infirmá­los? A esse respeito já não foi a teoria confirmada pela  experiência?  Que  é  feito  das  inúmeras  publicações  que  traziam  a  pretensão  de  arrasar o Espiritismo? Qual a que, sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se  considera a questão desse ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada  um contou consigo, sem contar com os Espíritos.  O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações  que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar­se dele  em proveito próprio e acomodá­lo à vontade. Quem quer que tentasse desviá­lo do  seu providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de que os  Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão cair por terra qualquer  modificação que se divorcie da verdade.  De  tudo  isso  ressalta  uma  verdade  capital:  a  de  que  aquele  que  quisesse  opor­se à corrente de idéias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar uma  pequena  perturbação  local  e  momentânea;  nunca,  porém,  dominar  o  conjunto,  mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro.  Também ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos  ainda  não  elucidados  da  Doutrina  não  constituirão  lei,  enquanto  essas  instruções  permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte, ser aceitas senão sob  todas as reservas e a título de esclarecimento.  Daí a necessidade da maior prudência em dar­lhes publicidade; e, caso se  julgue  conveniente  publicá­las,  importa  não  as  apresentar  senão  como  opiniões  individuais, mais  ou  menos  prováveis,  porém,  carecendo  sempre  de  confirmação.  Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de apresentar um princípio como  verdade absoluta, a menos se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade  irrefletida.  Com  extrema  sabedoria  procedem  os  Espíritos  superiores  em  suas  revelações.  Não  atacam  as  grandes  questões  da  Doutrina  senão  gradualmente,  à  medida  que  a  inteligência  se  mostra  apta  a  compreender  verdade  de  ordem  mais  elevada  e  quando  as  circunstâncias  se  revelam  propícias  à  emissão  de  uma  idéia  nova.  Por  isso  é  que  logo  de  princípio não  disseram tudo,  e  tudo  ainda hoje  não  disseram,  jamais  cedendo  à  impaciência  dos  muito  afoitos,  que  querem  os  frutos
  • 18. 18 – Allan Kardec  antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo pretender adiantar­se ao tempo que  a Providência assinou para cada coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente  sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a  verdade,  a tudo  respondem;  daí  vem  que,  sobre  todas  as  questões  prematuras, há  sempre respostas contraditórias.  Os princípios acima não resultam de uma teoria pessoal: são conseqüência  forçada das condições  em que os Espíritos se manifestam. É evidente que, se um  Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário  algures, a presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o  único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria tão ilógico  da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente  ponderados,  se  não  se  sentem  suficientemente  esclarecidos  sobre  uma  questão,  nunca a resolvem de modo absoluto; declaram que apenas a tratam do seu ponto de  vista e aconselham que se aguarde a confirmação.  Por  grande,  bela  e  justa  que  seja  uma  idéia,  impossível  é  que  desde  o  primeiro momento congregue todas as opiniões. Os conflitos que daí decorrem são  conseqüência  inevitável  do  movimento  que  se  opera;  eles  são  mesmo  necessários  para maior realce da verdade e convém se produzam desde logo, para que as idéias  falsas  prontamente  sejam  postas  de  lado.  Os  espíritas  que  a  esse  respeito  alimentassem  qualquer  temor  podem  ficar  perfeitamente  tranqüilos:  todas  as  pretensões  insuladas  cairão,  pela  força  mesma  das  coisas,  diante  do  enorme  e  poderoso critério da concordância universal.  Não  será  à  opinião  de  um  homem  que  se  aliarão  os  outros,  mas  à  voz  unânime  dos  Espíritos;  não  será  um  homem,  nem  nós,  nem  qualquer  outro  que  fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem  quer  que  seja:  será  a  universalidade  dos  Espíritos  que  se  comunicam  em  toda  a  Terra, por ordem de Deus. Esse o caráter essencial da Doutrina Espírita; essa a sua  força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei assentasse em base inamovível e por  isso não lhe deu por fundamento a cabeça frágil de um só.  Diante  de  tão  poderoso  areópago,  onde  não  se  conhecem  corrilhos,  nem  rivalidades  ciosas,  nem  seitas,  nem  nações,  é  que  virão  quebrar­se  todas  as  oposições, todas as ambições, todas as pretensões à supremacia individual; é que nos  quebraríamos  nós  mesmos,  se  quiséssemos  substituir  os  seus  decretos  soberanos  pelas nossas próprias idéias.  Só  Ele  decidirá  todas  as  questões  litigiosas,  imporá  silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo  de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de um homem ou de um Espírito?  Menos do que a gota d’água que se perde no oceano, menos do que a voz da criança  que a tempestade abafa.  A  opinião  universal,  eis  o  juiz  supremo,  o  que  se  pronuncia  em  última  instância.  Formam­na  todas  as  opiniões  individuais.  Se  uma  destas  é  verdadeira,  apenas tem na balança o seu peso relativo. Se  é  falsa, não pode prevalecer sobre  todas  as  demais.  Nesse  imenso  concurso,  as  individualidades  se  apagam,  o  que  constitui novo insucesso para o orgulho humano.  Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não passará sem que ele  resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar todas as incertezas, porquanto  daqui  até  lá  potentes  vozes  terão  recebido  a  missão  de  se  fazerem  ouvir,  para
  • 19. 19 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  congregar  os  homens  sob  a  mesma  bandeira,  uma  vez  que  o  campo  se  ache  suficientemente  lavrado.  Enquanto  isso  se  não  dá,  aquele  que  flutue  entre  dois  sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a  indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos, nos diversos  pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas  prevalecerá.  III – NOTÍCIAS HISTÓRICAS  Para  bem  se  compreenderem  algumas  passagens  dos  Evangelhos,  necessário  se  faz  conhecer  o  valor  de  muitas  palavras  neles  freqüentemente  empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia naquela  época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras foram com freqüência  mal­interpretadas,  causando  isso  uma  espécie  de  incerteza.  A  inteligência  da  significação delas explica, ao demais, o verdadeiro sentido de certas máximas que, à  primeira vista, parecem singulares.  Escribas  –  Nome  dado,  a  princípio,  aos  secretários  dos  reis  de  Judá  e  a  certos  intendentes  dos  exércitos  judeus.  Mais  tarde,  foi  aplicado  especialmente  aos  doutores  que  ensinavam  a  lei  de  Moisés  e  a  interpretavam  para  o  povo.  Faziam  causa  comum  com  os  fariseus,  de  cujos  princípios  partilhavam,  bem  como  da  antipatia  que  aqueles  votavam  aos  inovadores.  Daí  o  envolvê­los  Jesus  na  reprovação que lançava aos fariseus.  Essênios ou esseus – Também seita judia fundada cerca do ano 150 antes de Jesus  Cristo,  ao  tempo  dos  macabeus,  e  cujos  membros,  habitando  uma  espécie  de  mosteiros, formavam entre si uma como associação moral e religiosa. Distinguiam­  se pelos costumes brandos e por austeras virtudes, ensinavam o amor a Deus e ao  próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na ressurreição. Viviam em celibato,  condenavam  a  escravidão  e  a  guerra,  punham  em  comunhão  os  seus  bens  e  se  entregavam  à  agricultura.  Contrários  aos  saduceus  sensuais,  que  negavam  a  imortalidade;  aos  fariseus  de  rígidas  práticas  exteriores  e  de  virtudes  apenas  aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas querelas que tornaram antagonistas  aquelas  duas  outras  seitas.  Pelo  gênero  de  vida  que  levavam,  assemelhavam­se  muito aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram  muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes  pertencera à comunidade. É certo que ele há de tê­la conhecido, mas nada prova que  se  lhe  houvesse  filiado,  sendo,  pois,  hipotético  tudo  quanto  a  esse  respeito  se  escreveu 2  .  Fariseus  (do  hebreu  parush,  divisão,  separação)  –  A  tradição  constituía  parte  importante  da  teologia  dos  judeus.  Consistia  numa  compilação  das  interpretações  2  A morte de Jesus, supostamente escrita por um essênio, é obra inteiramente apócrifa, cujo único fim foi  servir de apoio a uma opinião. Ela traz em si mesma a prova da sua origem moderna.
  • 20. 20 – Allan Kardec  sucessivamente  dadas  ao  sentido  das  Escrituras  e  tornadas  artigos  de  dogma.  Constituía, entre os doutores, assunto de discussões intermináveis, as mais das vezes  sobre simples questões de palavras ou de formas, no gênero das disputas teológicas e  das  sutilezas  da  escolástica  da  Idade Média.  Daí nasceram  diferentes  seitas,  cada  uma das quais pretendia ter o monopólio da verdade, detestando­se umas às outras,  como sói acontecer. Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus, que teve  por  chefe  Hillel  3  ,  doutor  judeu  nascido  na  Babilônia,  fundador  de  uma  escola  célebre, onde se ensinava que só se devia depositar fé nas Escrituras. Sua origem  remonta a 180 ou 200 anos antes de Jesus Cristo. Os fariseus, em diversas épocas,  foram perseguidos, especialmente sob Hircano – soberano pontífice e rei dos judeus  –, Aristóbulo e Alexandre, rei da Síria. Este último, porém, lhes deferiu honras e  restituiu os bens, de sorte que eles readquiriram o antigo poderio e o conservaram  até à ruína de Jerusalém, no ano 70 da era cristã, época em que se lhes apagou o  nome, em conseqüência da dispersão dos judeus.  Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas. Servis cumpridores das  práticas  exteriores  do  culto  e  das  cerimônias;  cheios  de  um  zelo  ardente  de  proselitismo,  inimigos  dos  inovadores,  afetavam  grande  severidade  de  princípios;  mas,  sob  as  aparências  de  meticulosa  devoção,  ocultavam  costumes  dissolutos,  muito orgulho e, acima de tudo, excessiva ânsia de dominação. Tinham a religião  mais  como  meio  de  chegarem  a  seus  fins,  do  que  como  objeto  de  fé  sincera.  Da  virtude  nada  possuíam,  além  das  exterioridades  e  da  ostentação;  entretanto,  por  umas e outras, exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos passavam por  santas criaturas. Daí o serem muito poderosos em Jerusalém.  Acreditavam,  ou,  pelo  menos,  fingiam  acreditar  na  Providência,  na  imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos mortos. (Cap.  IV, nº 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que,  na lei, preferia o espírito, que vivifica, à letra, que mata, se aplicou, durante toda a  sua  missão,  a  lhes  desmascarar  a  hipocrisia,  pelo  que  tinha  neles  encarniçados  inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar  contra ele o povo e eliminá­lo.  Nazarenos – Nome dado, na antiga lei, aos judeus que faziam voto, ou perpétuo ou  temporário,  de  guardar  perfeita  pureza.  Eles  se  comprometiam  a  observar  a  castidade,  a  abster­se  de  bebidas  alcoólicas  e  a  conservar  a  cabeleira.  Sansão,  Samuel e João Batista eram nazarenos.  Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros cristãos, por alusão a  Jesus de Nazaré.  Também  foi  essa  a  denominação  de  uma  seita  herética  dos  primeiros  séculos da era cristã, a qual, do mesmo modo que  os  ebionitas, de quem adotava  certos princípios, misturava as práticas do moisaísmo com os dogmas cristãos, seita  essa que desapareceu no século quarto.  Portageiros – Eram os arrecadadores de baixa categoria, incumbidos principalmente  da cobrança dos direitos de entrada nas cidades. Suas funções correspondiam mais  3  Não confundir esse Hillel que fundou a seita dos fariseus com o seu homônimo que viveu duzentos anos  mais  tarde  e  estabeleceu  os  princípios  religiosos  e  sociais  de  um  sistema  todo  de  tolerância  e  amor,  sistema hoje conhecido por Hilelismo. – A Editora da FEB, 1947.
  • 21. 21 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  ou  menos  à  dos  empregados  de  alfândega  e  recebedores  dos  direitos  de  barreira.  Compartilhavam da repulsa que pesava sobre os publicanos em geral. Essa a razão  por que, no Evangelho, se depara freqüentemente com a palavra publicando ao lado  da expressão gente de má vida. Tal qualificação não implicava a de debochados ou  vagabundos. Era um termo de desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente  indigna de conviver com pessoas distintas.  Publicanos – Eram assim chamados, na antiga Roma, os cavalheiros arrendatários  das  taxas  públicas,  incumbidos  da  cobrança  dos  impostos  e  das  rendas  de  toda  espécie, quer em Roma mesma, quer nas outras partes do Império. Eram como os  arrendatários gerais e arrematadores de taxas do antigo regime na França e que ainda  existem nalgumas regiões. Os riscos a que estavam sujeitos faziam que os olhos se  fechassem para as riquezas que muitas vezes adquiriam e que, da parte de alguns,  eram frutos de exações e de lucros escandalosos. O nome de publicano se estendeu  mais  tarde  a  todos  os  que  superintendiam  os  dinheiros  públicos  e  aos  agentes  subalternos.  Hoje  esse  termo  se  emprega  em  sentido  pejorativo,  para  designar  os  financistas e os agentes pouco escrupulosos de negócios. Diz­se por vezes: “Ávido  como um publicano, rico como um publicano”, com referência a riquezas de mau  quilate.  De  toda  a  dominação  romana,  o  imposto  foi  o  que  os  judeus  mais  dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou entre eles. Daí nasceram várias  revoltas, fazendo­se do caso uma questão religiosa, por ser considerada contrária à  Lei. Constituiu­se, mesmo, um partido poderoso, a cuja frente se pôs um certo Judá,  apelidado o Gaulonita, tendo por princípio o não pagamento do imposto. Os judeus,  pois, abominavam a este e, como conseqüência, a todos os que eram encarregados  de arrecadá­lo, donde a aversão que votavam aos publicanos de todas as categorias,  entre os quais podiam encontrar­se pessoas muito estimáveis, mas que, em virtude  das  suas  funções,  eram  desprezadas,  assim  como  os  que  com  elas  mantinham  relações, os quais se viam atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque  consideravam um comprometimento ter com eles intimidade.  Saduceus – Seita judia, que se formou por volta do ano 248 antes de Jesus Cristo e  cujo nome lhe veio do de Sadoc, seu fundador. Não criam na imortalidade, nem na  ressurreição, nem nos anjos bons e maus. Entretanto, criam em Deus; nada, porém,  esperando  após  a  morte,  só  o  serviam  tendo  em  vista  recompensas  temporais,  ao  que,  segundo  eles,  se  limitava  a  providência  divina.  Assim  pensando,  tinham  a  satisfação dos sentidos físicos por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras,  atinham­se  ao  texto  da  lei  antiga.  Não  admitiam  a  tradição,  nem  interpretações  quaisquer. Colocavam as boas obras e a observância pura e simples da Lei acima das  práticas  exteriores  do  culto.  Eram,  como  se  vê,  os  materialistas,  os  deístas  e  os  sensualistas  da  época.  Seita  pouco  numerosa,  mas  que  contava  em  seu  seio  importantes personagens e se tornou um partido político oposto constantemente aos  fariseus.  Samaritanos – Após o cisma das dez tribos, Samaria se constituiu a capital do reino  dissidente  de  Israel.  Destruída  e  reconstruída  várias  vezes,  tornou­se,  sob  os  romanos,  a  cabeça  da  Samaria,  uma  das  quatro  divisões  da  Palestina.  Herodes,
  • 22. 22 – Allan Kardec  chamado  o  Grande,  a  embelezou  de  suntuosos  monumentos  e,  para  lisonjear  Augusto, lhe deu o nome de Augusta, em grego Sebaste.  Os samaritanos estiveram quase constantemente em guerra com os reis de  Judá. Aversão profunda, datando da época da separação, perpetuou­se entre os dois  povos, que evitavam todas as relações recíprocas. Aqueles, para tornarem maior a  cisão  e  não  terem  de  vir  a  Jerusalém  pela  celebração  das  festas  religiosas,  construíram  para  si  um  templo  particular  e  adotaram  algumas reformas.  Somente  admitiam o Pentateuco, que continha a lei de Moisés, e rejeitavam todos os outros  livros que a esse foram posteriormente anexados. Seus livros sagrados eram escritos  em  caracteres  hebraicos  da  mais  alta  antigüidade.  Para  os  judeus  ortodoxos,  eles  eram  heréticos  e,  portanto,  desprezados,  anatematizados  e  perseguidos.  O  antagonismo das duas nações tinha, pois, por fundamento único a divergência das  opiniões  religiosas;  se  bem  fosse  a  mesma a  origem das  crenças  de  uma  e  outra.  Eram os protestantes desse tempo.  Ainda  hoje  se  encontram  samaritanos  em  algumas  regiões  do  Levante,  particularmente em Nablus e em Jafa. Observam a lei de Moisés com mais rigor que  os outros judeus e só entre si contraem alianças.  Sinagoga (do grego synagogê, assembléia, congregação) – Um único templo havia  na Judéia, o de Salomão, em Jerusalém, onde se celebravam as grandes cerimônias  do culto. Os judeus, todos os anos, lá iam em peregrinação para as festas principais,  como as da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Por ocasião dessas festas é  que Jesus também costumava ir lá. As outras cidades não possuíam templos, mas,  apenas,  sinagogas:  edifícios  onde  os  judeus  se  reuniam  aos  sábados,  para  fazer  preces públicas, sob a chefia dos anciães, dos escribas, ou doutores da Lei. Nelas  também  se  realizavam  leituras  dos  livros  sagrados,  seguidas  de  explicações  e  comentários, atividades das quais qualquer pessoa podia participar. Por isso é que  Jesus,  sem  ser  sacerdote,  ensinava  aos  sábados  nas  sinagogas.  Desde  a  ruína  de  Jerusalém  e  a  dispersão  dos  judeus,  as  sinagogas, nas  cidades  por  eles  habitadas,  servem­lhes de templos para a celebração do culto.  Terapeutas (do grego therapeutai, formado de therapeuein, servir, cuidar, isto é:  servidores  de  Deus,  ou  curadores)  –  Eram  sectários  judeus  contemporâneos  do  Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação  com  os  essênios,  cujos  princípios  adotavam,  aplicando­se,  como  esses  últimos,  à  prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também  celibatários,  votados  à  contemplação  e  vivendo  vida  solitária,  constituíam  uma  verdadeira  ordem  religiosa.  Fílon,  filósofo  judeu  platônico,  de  Alexandria,  foi  o  primeiro a falar dos terapeutas, considerando­os uma seita do judaísmo. Eusébio, S.  Jerônimo  e  outros  Pais  da  Igreja  pensam  que  eles  eram  cristãos.  Fossem  tais,  ou  fossem  judeus,  o  que  é  evidente  é  que,  do  mesmo  modo  que  os  essênios,  eles  representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.
  • 23. 23 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  IV – SÓCRATES E PLATÃO,  PRECURSORES DA IDÉIA CRISTàE DO ESPIRITISMO  Do  fato  de  haver  Jesus  conhecido  a  seita  dos  essênios,  fora  errôneo  concluir­se que a sua doutrina hauriu­a ele na dessa seita e que, se houvera vivido  noutro meio, teria professado outros princípios. As grandes idéias jamais irrompem  de  súbito.  As  que  assentam  sobre  a  verdade  sempre  têm  precursores  que  lhes  preparam parcialmente os caminhos. Depois, em chegando o tempo, envia Deus um  homem com a missão de resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de  reuni­los em corpo de doutrina. Desse modo, não surgindo bruscamente, a idéia, ao  aparecer, encontra espíritos dispostos a aceitá­la. Tal o que se deu com a idéia cristã,  que foi pressentida muitos séculos antes de Jesus e dos essênios, tendo por principais  precursores Sócrates e Platão.  Sócrates,  como  o  Cristo, nada  escreveu,  ou,  pelo  menos, nenhum  escrito  deixou. Como o Cristo, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo, por haver  atacado as crenças que encontrara e colocado a virtude real acima da hipocrisia e do  simulacro  das  formas;  por  haver,  numa  palavra,  combatido  os  preconceitos  religiosos.  Do  mesmo  modo  que  Jesus,  a  quem  os  fariseus  acusavam  de  estar  corrompendo  o  povo  com  os  ensinamentos  que  lhe  ministrava,  também  ele  foi  acusado,  pelos  fariseus  do  seu  tempo,  visto  que  sempre  os  houve  em  todas  as  épocas, por proclamar o dogma da unidade de Deus, da imortalidade da alma e da  vida futura. Assim como a doutrina de Jesus só a conhecemos pelo que escreveram  seus  discípulos,  da  de  Sócrates  só  temos  conhecimento  pelos  escritos  de  seu  discípulo Platão. Julgamos conveniente resumir aqui os pontos de maior relevo, para  mostrar a concordância deles com os princípios do Cristianismo.  Aos que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não  pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que não era  pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo; que a de Jesus, mais  completa e mais depurada do que aquela, nada tem que perder com a comparação;  que a grandeza da missão divina do Cristo não pode ser diminuída; que, ao demais,  trata­se de um fato da História, que a ninguém será possível apagar. O homem há  chegado a um ponto em que a luz emerge por si mesma de sob o alqueire. Ele se  acha maduro  bastante  para  encará­la de  frente;  tanto  pior para  os  que  não  ousem  abrir  os  olhos.  Chegou  o  tempo  de  se  considerarem  as  coisas  de  modo  amplo  e  elevado, não mais do ponto de vista mesquinho e acanhado dos interesses de seitas e  de castas.  Além disso, estas citações provarão que, se Sócrates e Platão pressentiram a  idéia cristã, em seus escritos também se nos deparam os princípios fundamentais do  Espiritismo.  RESUMO DA DOUTRINA DE SÓCRATES E DE PLATÃO  I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida  aos tipos primordiais das idéias do verdadeiro, do bem e do belo; separa­
  • 24. 24 – Allan Kardec  se  deles,  encarnando,  e,  recordando  o  seu  passado,  é  mais  ou  menos  atormentada pelo desejo de voltar a ele.  Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o  princípio  inteligente  e  o  princípio  material.  É,  além  disso,  a  doutrina  da  preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro mundo, a que  aspira;  da  sua  sobrevivência  ao  corpo;  da  sua  saída  do  mundo  espiritual,  para  encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após a morte. É, finalmente, o gérmen  da doutrina dos Anjos decaídos.  II.  A  alma  se  transvia  e  perturba,  quando  se  serve  do  corpo  para  considerar qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse ébria, porque  se prende a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao  passo que, quando contempla a sua própria essência, dirige­se para o que  é puro, eterno, imortal, e, sendo ela dessa natureza, permanece aí ligada,  por tanto tempo quanto possa. Cessam então os seus transviamentos, pois  que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chama  sabedoria.  Assim, ilude a si mesmo o homem que considera as coisas de modo terra­a­  terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com justeza, tem de as ver do alto,  isto é, do ponto de vista espiritual. Aquele, pois, que está de posse da verdadeira  sabedoria, tem de isolar do corpo a alma, para ver com os olhos do Espírito. É o que  ensina o Espiritismo. (Cap. II, nº 5.)  III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhada nessa  corrupção,  nunca  possuiremos  o  objeto  dos  nossos  desejos:  a  verdade.  Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que nos  achamos de cuidar dele. Ao demais, ele nos enche de desejos, de apetites,  de  temores,  de  mil  quimeras e  de  mil tolices,  de  maneira que,  com ele,  impossível se nos torna ser ajuizados, sequer por um instante. Mas, se não  nos é possível conhecer puramente coisa alguma, enquanto a alma nos está  ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a  conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos  então, lícito é esperá­lo, com homens igualmente libertos e conheceremos,  por  nós  mesmos,  a  essência  das  coisas.  Essa  a  razão  por  que  os  verdadeiros filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura,  de modo nenhum, temível.  Está  aí  o  princípio  das  faculdades  da  alma  obscurecidas  por  motivo  dos  órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades depois da morte. Mas trata­se  apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá com as almas impuras. (O Céu e o  Inferno, 1ª Parte, cap. II; 2ª Parte, cap. I.)  IV. A alma impura, nesse estado, se encontra oprimida e se vê de novo  arrastada para o mundo visível, pelo horror do que é invisível e imaterial.
  • 25. 25 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Erra,  então,  diz­se,  em  torno  dos  monumentos  e  dos  túmulos,  junto  aos  quais já se têm visto tenebrosos fantasmas, quais devem ser as imagens das  almas que deixaram o corpo sem estarem ainda inteiramente puras, que  ainda conservam alguma coisa da forma material, o que faz que a vista  humana possa percebê­las. Não são as almas dos bons; são, porém, as dos  maus,  que  se  vêem  forçadas  a  vagar  por  esses  lugares,  onde  arrastam  consigo a pena da primeira vida que tiveram e onde continuam a vagar até  que  os  apetites  inerentes  à  forma  material  de  que  se  revestiram  as  reconduzam a um corpo. Então, sem dúvida, retomam os mesmos costumes  que durante a primeira vida constituíam objeto de suas predileções.  Não somente o princípio da reencarnação se acha aí claramente expresso,  mas também o estado das almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual  o  mostra  o Espiritismo  nas  evocações.  Mais  ainda: no  tópico  acima  se diz  que  a  reencarnação num corpo material é conseqüência da impureza da alma, enquanto as  almas  purificadas  se  encontram  isentas  de  reencarnar.  Outra  coisa  não  diz  o  Espiritismo,  acrescentando  apenas  que  a  alma,  que  boas  resoluções  tomou  na  erraticidade  e  que  possui  conhecimentos  adquiridos,  traz,  ao  renascer,  menos  defeitos, mais virtudes e idéias intuitivas do que tinha na sua existência precedente.  Assim,  cada  existência  lhe  marca  um  progresso  intelectual  e  moral.  (O  Céu  e  o  Inferno, 2ª Parte: Exemplos.)  V. Após a nossa morte, o gênio (daimon, demônio), que nos fora designado  durante a vida, leva­nos a um lugar onde se reúnem todos os que têm de  ser  conduzidos  ao  Hades,  para  serem  julgados.  As  almas,  depois  de  haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida  em múltiplos e longos períodos.  É  a  doutrina  dos  Anjos  guardiães,  ou  Espíritos  protetores,  e  das  reencarnações  sucessivas,  em  seguida  a  intervalos  mais  ou  menos  longos  de  erraticidade.  VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; constituem o  laço que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a divindade  em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que  os  deuses  entram  em  comércio  e  se  entretêm  com  ele,  quer  durante  a  vigília, quer durante o sono.  A  palavra  daimon,  da  qual  fizeram  o  termo  demônio,  não  era,  na  antigüidade,  tomada  à  má  parte,  como  nos  tempos  modernos.  Não  designava  exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos, em geral, dentre os quais  se destacavam os Espíritos superiores, chamados deuses, e os menos elevados, ou  demônios  propriamente  ditos,  que  comunicavam  diretamente  com  os  homens.  Também  o  Espiritismo  diz  que  os  Espíritos  povoam  o  espaço;  que  Deus  só  se  comunica  com  os  homens  por  intermédio  dos  Espíritos  puros,  que  são  os  incumbidos de lhe transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam com eles
  • 26. 26 – Allan Kardec  durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra demônio, a palavra  Espírito e tereis a doutrina espírita; ponde a palavra anjo e tereis a doutrina cristã.  VII.  A  preocupação  constante  do  filósofo  (tal  como  o  compreendiam  Sócrates e Platão) é a de tomar o maior cuidado com a alma, menos pelo  que respeita a esta vida, que não dura mais que um instante, do que tendo  em vista a eternidade. Desde que a alma é imortal, não será prudente viver  visando à eternidade?  O Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa.  VIII. Se a alma é imaterial, tem de passar, após essa vida, a um mundo  igualmente  invisível  e  imaterial,  do  mesmo  modo  que  o  corpo,  decompondo­se, volta à matéria. Muito importa, no entanto, distinguir bem  a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de  ciência e  pensamentos,  da alma  mais  ou  menos  maculada  de  impurezas  materiais, que a impedem de elevar­se para o divino e a retêm nos lugares  da sua estada na Terra.  Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os diferentes  graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade de situação que resulta  para  elas  da  sua  maior  ou  menor  pureza.  O  que  eles  diziam,  por  intuição,  o  Espiritismo o prova com os inúmeros exemplos que nos põe sob as vistas. (O Céu e  o Inferno, 2ª Parte.)  IX. Se a morte fosse a dissolução completa do homem, muito ganhariam  com a morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do corpo, da  alma e dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos estranhos,  mas com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar tranqüilamente  a hora da sua partida para o outro mundo.  Equivale isso a dizer que o materialismo, com o proclamar para depois da  morte o nada, anula toda responsabilidade moral ulterior, sendo, conseguintemente,  um incentivo para o mal; que o mau tem tudo a ganhar do nada. Somente o homem  que  se  despojou  dos  vícios  e  se  enriqueceu  de  virtudes,  pode  esperar  com  tranqüilidade o despertar na outra vida. Por meio de exemplos, que todos os dias nos  apresenta, o Espiritismo mostra quão penoso é, para o mau, o passar desta à outra  vida, a entrada na vida futura. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. I.)  X. O corpo conserva bem impressos os vestígios dos cuidados de que foi  objeto e dos acidentes que sofreu. Dá­se o mesmo com a alma. Quando  despida do corpo, ela guarda, evidentes, os traços do seu caráter, de suas  afeições e as marcas que lhe deixaram todos os atos de sua vida. Assim, a  maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo  com a alma carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux,  nem Górgias podereis provar que devamos levar outra vida que nos seja
  • 27. 27 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  útil quando estejamos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única  que permanece inabalável é a de que  mais  vale  receber  do  que  cometer  uma injustiça e que, acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas  de  ser  homem  de  bem.  (Colóquios  de  Sócrates  com  seus  discípulos,  na  prisão.)  Depara­se­nos aqui outro ponto capital, confirmado hoje pela experiência: o  de que a alma não depurada conserva as idéias, as tendências, o caráter e as paixões  que teve na Terra. Não é inteiramente cristã esta máxima: mais vale receber do que  cometer uma injustiça? O mesmo pensamento exprimiu Jesus, usando desta figura:  “Se alguém vos bater numa face, apresentai­lhe a outra.” (Cap. XII, nos 7 e 8.)  XI. De duas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou é passagem da  alma para outro lugar. Se tudo tem de extinguir­se, a morte será como uma  dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência  de nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada, a  passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a de  encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria  examinar de perto os habitantes dessa outra morada e distinguir lá, como  aqui, os que são dignos dos que se julgam tais e não o são. Mas, é tempo de  nos  separarmos,  eu  para  morrer,  vós  para  viverdes.  (Sócrates  aos  seus  juízes.)  Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se encontram após a morte e se  reconhecem.  Mostra  o  Espiritismo  que  continuam  as  relações  que  entre  eles  se  estabeleceram,  de  tal  maneira  que  a  morte  não  é  nem  uma  interrupção,  nem  a  cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade. Houvessem  Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo difundiu quinhentos anos mais  tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não teriam falado de outro modo. Não  há nisso, entretanto, o que  surpreenda, se considerarmos que as grandes verdades  são eternas e que os Espíritos adiantados hão de tê­las conhecido antes de virem à  Terra, para onde as trouxeram; que Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles  tempos  bem  podem,  depois,  ter  sido  dos  que  secundaram o  Cristo na  sua missão  divina, escolhidos para esse fim precisamente por se acharem, mais do que outros,  em condições de lhe compreenderem as sublimes lições; que, finalmente, pode dar­  se  façam  eles  agora  parte  da  plêiade  dos  Espíritos  encarregados  de  ensinar  aos  homens as mesmas verdades.  XII.  Nunca  se  deve  retribuir  com  outra  uma  injustiça,  nem  fazer  mal  a  ninguém, seja qual for o dano que nos hajam causado. Poucos, no entanto,  serão  os  que  admitam  esse  princípio,  e  os  que  se  desentenderem  a  tal  respeito nada mais farão, sem dúvida, do que se votarem uns aos outros  mútuo desprezo.  Não  está  aí  o  princípio  de  caridade, que  prescreve  não  se retribua  o  mal  com o mal e se perdoe aos inimigos?
  • 28. 28 – Allan Kardec  XIII.  É  pelos  frutos  que  se  conhece  a  árvore.  Toda  ação  deve  ser  qualificada  pelo  que  produz:  qualificá­la  de  má,  quando  dela  provenha  mal; de boa, quando dê origem ao bem.  Esta máxima: “Pelos frutos é que se conhece a árvore”, se encontra muitas  vezes repetida textualmente no Evangelho.  XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não  ama a si mesmo, nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é ainda mais  estranha do que o que lhe pertence. (Cap. XVI.)  XV.  As  mais  belas  preces  e  os  mais  belos  sacrifícios  prazem  menos  à  Divindade  do  que  uma  alma  virtuosa  que  faz  esforços  por  se  lhe  assemelhar. Grave coisa fora que os deuses dispensassem mais atenção às  nossas oferendas, do que à nossa alma; se tal se desse, poderiam os mais  culpados  conseguir  que  eles  se  lhes  tornassem  propícios.  Mas,  não:  verdadeiramente justos e retos só o são os que, por suas palavras e atos,  cumprem seus deveres para com os deuses e para com os homens. (Cap. X,  nos 7 e 8.)  XVI. Chamo homem vicioso a esse amante vulgar, que mais ama o corpo  do que a alma. O amor está por toda parte em a Natureza, que nos convida  ao  exercício  da  nossa  inteligência;  até  no  movimento  dos  astros  o  encontramos. É o amor que orna a Natureza de seus ricos tapetes; ele se  enfeita e fixa morada onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o  amor que dá paz aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono à  dor.  O  amor,  que  há  de  unir  os  homens  por  um  laço  fraternal,  é  uma  conseqüência dessa teoria de Platão sobre o amor universal, como lei da Natureza.  Tendo  dito  Sócrates  que  “o  amor  não  é  nem  um  deus,  nem  um  mortal,  mas  um  grande  demônio”,  isto  é,  um  grande  Espírito  que  preside  ao  amor  universal,  essa  proposição lhe foi imputada como crime.  XVII. A virtude não pode ser ensinada; vem por dom de Deus aos que a  possuem.  É  quase  a  doutrina  cristã  sobre  a  graça;  mas,  se  a  virtude  é  um  dom  de  Deus, é um favor e, então, pode perguntar­se por que não é concedida a todos. Por  outro lado, se é um dom, carece de mérito para aquele que a possui. O Espiritismo é  mais explícito, dizendo que aquele que possui a virtude a adquiriu por seus esforços,  em  existências  sucessivas,  despojando­se  pouco  a  pouco  de  suas  imperfeições.  A  graça é a força que Deus faculta ao homem de boa vontade para se expungir do mal  e praticar o bem.
  • 29. 29 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  XVIII. É  disposição  natural  em  todos  nós  a  de  nos  apercebermos  muito  menos dos nossos defeitos, do que dos de outrem.  Diz o Evangelho: “Vedes a palha que está no olho do vosso próximo e não  vedes a trave que está no vosso.” (Cap. X, nos 9 e 10.)  XIX.  Se  os  médicos  são  malsucedidos,  tratando  da  maior  parte  das  moléstias,  é  que  tratam  do  corpo,  sem  tratarem  da  alma.  Ora,  não  se  achando o todo em bom estado, impossível é que uma parte dele passe bem.  O  Espiritismo  fornece  a  chave  das  relações  existentes  entre  a  alma  e  o  corpo e prova que um reage incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda  para a Ciência. Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta­lhe  os  meios  de  as  combater.  Quando  a  Ciência  levar  em  conta  a  ação  do  elemento  espiritual na economia, menos freqüentes serão os seus maus êxitos.  XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais fazem de mal, do  que de bem.  Essa sentença de Sócrates fere a grave questão da predominância do mal na  Terra,  questão  insolúvel  sem  o  conhecimento  da  pluralidade  dos  mundos  e  da  destinação  do  planeta  terreno,  habitado  apenas  por  uma  fração  mínima  da  Humanidade.  Somente  o  Espiritismo  resolve  essa  questão,  que  se  encontra  explanada aqui adiante, nos capítulos II, III e V.  XXI. Ajuizado serás, não supondo que sabes o que ignoras.  Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de que desconhecem até mesmo  os  primeiros  termos.  Platão  completa  esse  pensamento  de  Sócrates,  dizendo:  “Tentemos, primeiro, torná­los, se for possível, mais honestos nas palavras; se não o  forem, não nos preocupemos com eles e não procuremos senão a verdade. Cuidemos  de instruir­nos, mas não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os espíritas  com relação aos seus contraditores de boa ou má­fé. Revivesse hoje Platão e acharia  as coisas quase como no seu tempo e poderia usar da mesma linguagem. Também  Sócrates  toparia  criaturas  que  zombariam  da  sua  crença  nos  Espíritos  e  que  o  qualificariam de louco, assim como ao seu discípulo Platão.  Foi  por  haver  professado  esses  princípios  que  Sócrates  se  viu  ridicularizado, depois acusado de impiedade e condenado a beber cicuta. Tão certo é  que, levantando contra si os interesses e os preconceitos que elas ferem, as grandes  verdades novas não se podem firmar sem luta e sem fazer mártires.
  • 30. 30 – Allan Kardec  CAPÍTULO I  NÃO VIM DESTRUIR A LEI ·  AS TRÊS REVELAÇÕES: MOISÉS, CRISTO, ESPIRITISMO. ·  ALIANÇA DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A NOVA ERA  1. ”Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas: não os vim  destruir, mas cumpri­los: – porquanto, em verdade vos digo que o céu e a  Terra  não  passarão,  sem  que  tudo  o  que  se  acha  na  lei  esteja  perfeitamente cumprido, enquanto reste um único iota e um único ponto”.  (S. MATEUS, 5:17 e 18.)  MOISÉS  2.  Na lei moisaica, há  duas  partes  distintas: a lei  de  Deus, promulgada no  monte  Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é invariável; a outra,  apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo.  A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes:  I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da servidão.  Não tereis, diante de mim, outros deuses estrangeiros. – Não fareis imagem  esculpida, nem figura alguma do que está em cima do céu, nem embaixo na  Terra, nem do que quer que esteja nas águas sob a terra. Não os adorareis  e não lhes prestareis culto soberano 4  .  4  Allan Kardec cita a parte mais importante do primeiro mandamento, e deixa de transcrever as seguintes  frases: “... porque eu, o Senhor vosso Deus, sou Deus zeloso, que puno a iniqüidade dos pais nos filhos,  na terceira e na quarta gerações daqueles que me aborrecem, e uso de misericórdia até mil gerações  daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Êxodo, 20:5 e 6.) Nas traduções feitas pelas  Igrejas Católica e protestantes, essa parte do mandamento foi truncada para harmonizá­la com a doutrina  da  encarnação  única  da  alma.  Onde  está  “na  terceira  e  na  quarta  gerações”,  conforme  a  tradução
  • 31. 31 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  II. Não pronunciareis em vão o nome do Senhor, vosso Deus.  III. Lembrai­vos de santificar o dia do sábado.  IV. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na  terra que o Senhor vosso Deus vos dará.  V. Não mateis.  VI. Não cometais adultério.  VII. Não roubeis.  VIII. Não presteis testemunho falso contra o vosso próximo.  IX. Não desejeis a mulher do vosso próximo.  X.  Não  cobiceis  a casa  do vosso  próximo,  nem  o  seu  servo,  nem  a  sua  serva, nem o seu boi, nem o seu asno, nem qualquer das coisas que lhe  pertençam.  É de todos os tempos e de todos os países essa lei e tem, por isso mesmo,  caráter divino. Todas as outras são leis que Moisés decretou, obrigado que se via a  conter, pelo temor, um povo de seu natural turbulento e indisciplinado, no qual tinha  ele de combater arraigados abusos e preconceitos, adquiridos durante a escravidão  do Egito. Para imprimir autoridade às suas leis, houve de lhes atribuir origem divina,  conforme  o  fizeram  todos  os  legisladores  dos  povos  primitivos.  A  autoridade  do  homem  precisava  apoiar­se  na  autoridade  de  Deus;  mas,  só  a  idéia  de  um  Deus  terrível  podia  impressionar  criaturas  ignorantes,  em  as  quais  ainda  pouco  desenvolvidos se encontravam o senso moral e o sentimento de uma justiça reta. É  evidente que aquele que incluíra, entre os seus mandamentos, este: “Não matareis;  não  causareis  dano  ao  vosso  próximo”,  não  poderia  contradizer­se,  fazendo  da  Brasileira da Bíblia, a Vulgata Latina (in tertiam et quartam generationem), a tradução de Zamenhof (en  la tria kaj kvara generacioj), mudaram  o texto para “até à terceira e quarta gerações”. Esses textos  truncados que aparecem na tradução da Igreja Anglicana, na Católica de Figueiredo, na Protestante de  Almeida  e  outras,  tornam  monstruosa  a  justiça  divina,  pois  que  filhos,  netos,  bisnetos,  tetranetos  inocentes teriam de ser castigados pelo pecado dos pais, avós, bisavós, tetravós. Foi uma infeliz tentativa  de acomodação da Lei à vida única. – A Editor a da FEB, 1947.  O texto certo que, por mercê de Deus, já está reproduzido pelas edições recentíssimas a que  nos referimos – traduções Brasileira e de Zamenhof –, que conferem com S. Jerônimo, mostra que a Lei  ensina veladamente a reencarnação e as expiações e provas. Na primeira e na segunda gerações, como  contemporâneos de seus filhos e netos, o Espírito culpado ainda não reencarnou, mas, um pouco mais  tarde – na terceira e quarta gerações – já ele voltou e recebe as conseqüências de suas faltas. Assim, o  culpado mesmo, e não outrem, paga sua dívida.  Logo,  tem­se  de  excluir  a  1ª  e  2ª  gerações  e  expressar  “na”  3ª  e  4ª,  como  realmente  é  o  original.  Achamos  conveniente acrescentar aqui esta nota,  para  facilitar a  compreensão  do  estudioso  que confronte a sua tradução da Bíblia com a citação do Mestre. – A Editora da FEB, 1947.
  • 32. 32 – Allan Kardec  exterminação um dever. As leis moisaicas, propriamente ditas, revestiam, pois, um  caráter essencialmente transitório.  O CRISTO  3.  Jesus  não  veio  destruir  a  lei,  isto  é,  a  lei  de  Deus;  veio  cumpri­la,  isto  é,  desenvolvê­la, dar­lhe o verdadeiro sentido e adaptá­la ao grau de adiantamento dos  homens. Por isso, é que se nos depara, nessa lei, o princípio dos deveres para com  Deus  e  para  com  o  próximo,  base  da  sua  doutrina.  Quanto  às  leis  de  Moisés,  propriamente  ditas,  ele,  ao  contrário,  as  modificou  profundamente,  quer  na  substância,  quer  na  forma.  Combatendo  constantemente  o  abuso  das  práticas  exteriores  e  as  falsas  interpretações,  por  mais  radical  reforma  não  podia  fazê­las  passar, do que as reduzindo a esta única prescrição: “Amar a Deus acima de todas as  coisas  e  o  próximo  como  a  si  mesmo”,  e acrescentando: aí estão a lei toda e os  profetas.  Por  estas  palavras:  “O  céu  e  a  Terra  não  passarão  sem  que  tudo  esteja  cumprido até o último iota”, quis dizer Jesus ser necessário que a lei de Deus tivesse  cumprimento integral, isto é, fosse praticada na Terra inteira, em toda a sua pureza,  com todas as suas ampliações e conseqüências. Efetivamente, de que serviria haver  sido promulgada aquela lei, se ela devesse constituir privilégio de alguns homens,  ou, sequer, de um único povo? Sendo filhos de Deus todos os homens, todos, sem  distinção nenhuma, são objeto da mesma solicitude.  4. Mas, o papel de Jesus não foi o de um simples legislador moralista, tendo por  exclusiva autoridade a sua palavra. Cabia­lhe dar cumprimento às profecias que lhe  anunciaram  o  advento;  a  autoridade  lhe  vinha  da  natureza  excepcional  do  seu  Espírito e da sua missão divina. Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida  não é a que transcorre na Terra e sim a que é vivida no reino dos céus; viera ensinar­  lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se reconciliarem com Deus  e de pressentirem esses meios na marcha das coisas por vir, para a realização dos  destinos  humanos.  Entretanto,  não  disse  tudo,  limitando­se,  respeito  a  muitos  pontos, a lançar o gérmen de verdades que, segundo ele próprio o declarou, ainda  não  podiam  ser  compreendidas.  Falou  de  tudo,  mas  em  termos  mais  ou  menos  implícitos. Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se  fazia  que  novas  idéias  e  novos  conhecimentos  lhes  trouxessem  a  chave  indispensável,  idéias  que,  porém, não  podiam  surgir  antes  que  o  espírito  humano  houvesse  alcançado  um  certo  grau  de  madureza.  A  Ciência  tinha  de  contribuir  poderosamente para a eclosão e o desenvolvimento de tais idéias. Importava, pois,  dar à Ciência tempo para progredir.  O ESPIRITISMO  5. O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas  irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o
  • 33. 33 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  mundo corpóreo.  Ele no­lo  mostra, não  mais  como  coisa  sobrenatural,  porém, ao  contrário, como uma das forças  vivas  e sem cessar atuantes da Natureza, como a  fonte  de  uma  imensidade  de  fenômenos  até  hoje  incompreendidos  e,  por  isso,  relegados para o domínio do fantástico e do maravilhoso. É a essas relações que o  Cristo  alude  em  muitas  circunstâncias  e  daí  vem  que  muito  do  que  ele  disse  permaneceu ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o  auxílio da qual tudo se explica de modo fácil.  6.  A  lei  do  Antigo  Testamento  teve  em  Moisés  a  sua  personificação;  a  do  Novo  Testamento tem­na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus,  mas não  tem  a  personificá­la nenhuma  individualidade,  porque  é  fruto  do ensino  dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os  pontos da Terra, com o concurso de uma multidão inumerável de intermediários. É,  de  certa  maneira,  um  ser  coletivo,  formado  pelo  conjunto  dos  seres  do  mundo  espiritual,  cada  um  dos  quais  traz  o  tributo  de  suas  luzes  aos  homens,  para  lhes  tornar conhecido esse mundo e a sorte que os espera.  7. Assim como o Cristo disse: “Não vim destruir a lei, porém cumpri­la”, também o  Espiritismo  diz:  “Não  venho  destruir  a  lei  cristã,  mas  dar­lhe  execução.”  Nada  ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas, desenvolve, completa e explica,  em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem  cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das  coisas  futuras.  Ele  é,  pois,  obra  do  Cristo,  que  preside,  conforme  igualmente  o  anunciou, à regeneração que se opera e prepara o reino de Deus na Terra.  ALIANÇA DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO  8. A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela  as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis  o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer­se. Se fossem a negação uma  da outra, uma necessariamente estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto  Deus não pode pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que  se julgou existir entre essas duas ordens de idéias provém apenas de uma observação  defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de outro. Daí um conflito que  deu origem à incredulidade e à intolerância.  São  chegados  os  tempos  em  que  os  ensinamentos  do  Cristo  têm  de  ser  completados;  em  que  o  véu  intencionalmente  lançado  sobre  algumas  partes  desse  ensino  tem  de  ser  levantado;  em  que  a  Ciência,  deixando  de  ser  exclusivamente  materialista,  tem  de  levar  em  conta  o  elemento  espiritual  e  em  que  a  Religião,  deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que  são,  apoiando­se  uma  na  outra  e  marchando  combinadas,  se  prestarão  mútuo  concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável  poder,  porque  estará  de  acordo  com  a  razão,  já  se  lhe  não  podendo  mais  opor  a  irresistível lógica dos fatos.
  • 34. 34 – Allan Kardec  A  Ciência  e  a  Religião  não  puderam,  até  hoje,  entender­se,  porque,  encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se  repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as  aproximasse.  Esse  traço  de  união  está  no  conhecimento  das  leis  que  regem  o  Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto  as  que  regem  o  movimento  dos  astros  e  a  existência  dos  seres.  Uma  vez  comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu­se à razão;  esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como  em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que  as esmaga, se tentam resistir­lhe, em vez de o acompanharem. É toda uma revolução  que neste momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou  mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar uma nova era  na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as conseqüências: acarretará para as  relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor,  porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de  Deus.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A NOVA ERA  9.  Deus  é  único  e  Moisés  é  o  Espírito  que  Ele  enviou  em  missão  para  torná­lo  conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos. O povo hebreu foi o  instrumento de que se serviu Deus para se revelar por Moisés e pelos profetas, e as  vicissitudes por que passou esse povo destinavam­se a chamar a atenção geral e a  fazer cair o véu que ocultava aos homens a divindade.  Os  mandamentos  de  Deus,  dados  por  intermédio  de  Moisés,  contêm  o  gérmen da mais ampla moral cristã. Os comentários da Bíblia, porém, restringiam­  lhe  o  sentido,  porque,  praticada  em  toda  a  sua  pureza,  não  na  teriam  então  compreendido. Mas, nem por isso os dez mandamentos de Deus deixavam de ser um  como  frontispício  brilhante,  qual  farol  destinado  a  clarear  a  estrada  que  a  Humanidade tinha de percorrer.  A moral que Moisés ensinou era apropriada ao estado de adiantamento em  que se encontravam os povos que ela se propunha regenerar, e esses povos, semi­  selvagens  quanto  ao  aperfeiçoamento  da  alma,  não  teriam  compreendido  que  se  pudesse adorar a Deus de outro modo que não por meio de holocaustos, nem que se  devesse perdoar a um inimigo. Notável do ponto de vista da matéria e mesmo do das  artes e das ciências, a inteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e  não  se  houvera  convertido  sob  o  império  de  uma  religião  inteiramente  espiritual.  Era­lhes necessária uma representação semimaterial, qual a que apresentava então a  religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam aos sentidos, do mesmo passo que a  idéia de Deus lhes falava ao espírito.  O  Cristo  foi  o  iniciador  da  mais  pura,  da  mais  sublime  moral,  da  moral  evangélico­cristã,  que  há  de  renovar  o  mundo,  aproximar  os  homens  e  torná­los  irmãos; que há de fazer brotar de todos os corações a caridade e o amor do próximo
  • 35. 35 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  e estabelecer entre os humanos uma solidariedade comum; de uma moral, enfim, que  há de transformar a Terra, tornando­a morada de Espíritos superiores aos que hoje a  habitam. É a lei do progresso, a que a Natureza está submetida, que se cumpre, e o  Espiritismo é a alavanca de que Deus se utiliza para fazer que a Humanidade avance.  São chegados os tempos em que se hão de desenvolver as idéias, para que  se realizem os progressos que  estão nos desígnios de Deus. Têm elas de seguir a  mesma  rota  que  percorreram  as  idéias  de  liberdade,  suas  precursoras.  Não  se  acredite, porém, que esse desenvolvimento se efetue sem lutas. Não; aquelas idéias  precisam, para atingirem a maturidade, de abalos e discussões, a fim de que atraiam  a atenção das massas. Uma vez isso  conseguido, a beleza e a santidade da moral  tocarão os espíritos, que então abraçarão uma ciência que lhes dá a chave da vida  futura  e  descerra  as  portas  da  felicidade  eterna.  Moisés  abriu  o  caminho;  Jesus  continuou  a  obra;  o  Espiritismo  a  concluirá.  –  Um  Espírito  israelita.  (Mulhouse,  1861)  10.  Um  dia,  Deus,  em  sua  inesgotável  caridade,  permitiu  que  o  homem  visse  a  verdade varar as trevas. Esse dia foi  o do advento do Cristo. Depois da luz viva,  voltaram as trevas. Após alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente  se perdia. Então, semelhantemente aos profetas do Antigo Testamento, os Espíritos  se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus fundamentos;  reboará o trovão. Sede firmes!  O Espiritismo é de ordem divina, pois que se assenta nas próprias leis da  Natureza,  e  estai  certos  de  que  tudo  o  que  é  de  ordem  divina  tem  grande  e  útil  objetivo.  O  vosso  mundo  se  perdia; a  Ciência,  desenvolvida  à  custa  do  que  é  de  ordem moral, mas conduzindo­vos ao bem­estar material, redundava em proveito do  espírito  das  trevas.  Como  sabeis,  cristãos,  o  coração  e  o  amor  têm  de  caminhar  unidos à Ciência. O reino do Cristo, ah! Passados que são dezoito séculos e apesar  do sangue de tantos mártires, ainda não veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos  quer salvar. Tudo é fácil àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria.  Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo­lo dizem sobejamente;  dobrai­vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes derribados, isto é,  preparai­vos e não imiteis as virgens loucas, que foram apanhadas desprevenidas à  chegada do esposo.  A  revolução  que  se  apresta  é  antes  moral  do  que  material.  Os  grandes  Espíritos,  mensageiros  divinos,  sopram  a  fé,  para  que  todos  vós,  obreiros  esclarecidos e ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de  areia; mas, sem grãos de areia, não existiriam as montanhas. Assim, pois, que estas  palavras – “Somos pequenos” – careçam para vós de significação. A cada um a sua  missão, a cada um o seu trabalho. Não constrói a formiga o edifício de sua república  e  imperceptíveis  animálculos  não  elevam  continentes?  Começou  a  nova  cruzada.  Apóstolos da paz universal, que não de uma guerra, modernos São Bernardos, olhai  e marchai para frente; a lei dos mundos é a do progresso. – Fénelon. (Poitiers, 1861)  11. Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo. Manifesta­se  quase  por toda  parte.  A razão  disso,  encontramo­la na  vida  desse  grande  filósofo  cristão.  Pertence  ele  à  vigorosa  falange  dos  Pais  da  Igreja,  aos  quais  deve  a  cristandade  seus  mais  sólidos  esteios.  Como  vários  outros,  foi  arrancado  ao
  • 36. 36 – Allan Kardec  paganismo, ou melhor, à impiedade mais profunda, pelo fulgor da verdade. Quando,  entregue aos maiores excessos, sentiu em sua alma aquela singular vibração que o  fez voltar a si e compreender que a felicidade estava alhures, que não nos prazeres  enervantes e fugitivos; quando, afinal, no seu caminho de Damasco, também lhe foi  dado  ouvir  a  santa  voz  a  clamar­lhe:  “Saulo,  Saulo,  por  que  me  persegues?”  exclamou: “Meu Deus! Meu Deus! perdoai­me, creio, sou cristão!” E desde então se  tornou um dos mais fortes sustentáculos do Evangelho. Podem ler­se, nas notáveis  confissões que esse eminente espírito deixou, as características e, ao mesmo tempo,  proféticas  palavras  que  proferiu,  depois  da  morte  de  Santa  Mônica:  Estou  convencido de que minha mãe me virá visitar e dar conselhos, revelando­me o que  nos  espera  na  vida  futura.  Que  ensinamento  nessas  palavras  e  que  retumbante  previsão da doutrina porvindoura! Essa a razão por que hoje, vendo chegada a hora  de  divulgar­se  a  verdade  que  ele  outrora  pressentira,  se  constituiu  seu  ardoroso  disseminador  e,  por  assim  dizer,  se  multiplica  para  responder  a  todos  os  que  o  chamam. – Erasto, discípulo de S. Paulo. (Paris, 1863)  Nota  –  Dar­se­á  venha  Santo  Agostinho  demolir  o  que  edificou?  Certamente que não. Como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o que não  via enquanto homem. Liberta, sua alma entrevê claridades novas, compreende o que  antes  não  compreendia.  Novas  idéias  lhe  revelaram  o  sentido  verdadeiro  de  algumas sentenças. Na Terra, apreciava as coisas de acordo com os conhecimentos  que possuía; desde que, porém, uma nova luz lhe brilhou, pôde apreciá­las mais  judiciosamente.  Assim  é  que  teve  de  abandonar  a  crença,  que  alimentara,  nos  Espíritos íncubos e súcubos e o anátema que lançara contra a teoria dos antípodas.  Agora que o Cristianismo se lhe mostra em toda a pureza, pode ele, sobre alguns  pontos, pensar de modo diverso do que pensava quando vivo, sem deixar de ser um  apóstolo  cristão.  Pode,  sem  renegar  a  sua  fé,  constituir­se  disseminador  do  Espiritismo,  porque  vê  cumprir­se  o  que  fora  predito.  Proclamando­o,  na  atualidade,  outra  coisa  não  faz  senão  conduzir­nos  a  uma  interpretação  mais  acertada  e  lógica  dos  textos.  O  mesmo  ocorre  com  outros  Espíritos  que  se  encontram em posição análoga.
  • 37. 37 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO II  MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO ·  A VIDA FUTURA ·  A REALEZA DE JESUS ·  O PONTO DE VISTA  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  UMA REALEZA TERRESTRE  1.  Pilatos,  tendo  entrado  de  novo  no  palácio  e  feito  vir  Jesus  à  sua  presença,  perguntou­lhe:  “És  o  rei  dos judeus?”  –  Respondeu­lhe  Jesus:  “Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha  gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus;  mas, o meu reino ainda não é aqui.”  Disse­lhe então Pilatos: “És, pois, rei?” – Jesus lhe respondeu: “Tu  o  dizes;  sou  rei;  não  nasci  e  não  vim  a  este  mundo  senão  para  dar  testemunho  da  verdade.  Aquele  que  pertence  à  verdade  escuta  a minha  voz”.  (S. JOÃO, 18:33, 36 e 37.)  A VIDA FUTURA  2. Por essas palavras, Jesus claramente se refere à vida futura, que ele apresenta, em  todas as circunstâncias, como a meta a que a Humanidade irá ter e como devendo  constituir  objeto  das  maiores  preocupações  do  homem  na  Terra.  Todas  as  suas  máximas  se  reportam  a  esse  grande  princípio.  Com  efeito,  sem  a  vida  futura,  nenhuma razão de ser teria a maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que  os que não crêem na vida futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente,  não os compreendem, ou os consideram pueris.
  • 38. 38 – Allan Kardec  Esse dogma pode, portanto, ser tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo  que foi colocado num dos primeiros lugares a frente desta obra. É que ele tem de ser  o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e  se mostra de acordo com a justiça de Deus.  3.  Apenas  idéias  muito  imprecisas  tinham  os  judeus  acerca  da  vida  futura.  Acreditavam nos anjos, considerando­os seres privilegiados da Criação; não sabiam,  porém, que os homens podem um dia tornar­se anjos e partilhar da felicidade destes.  Segundo  eles,  a  observância  das  leis  de  Deus  era  recompensada  com  os  bens  terrenos, com a supremacia da nação a que pertenciam, com vitórias sobre os seus  inimigos.  As  calamidades  públicas  e  as  derrotas  eram  o  castigo  da  desobediência  àquelas leis. Moisés não pudera dizer mais do que isso a um povo pastor e ignorante,  que precisava ser tocado, antes de tudo, pelas coisas deste mundo. Mais tarde, Jesus  lhe revelou que há outro mundo, onde a justiça de Deus segue o seu curso. É esse o  mundo que ele promete aos que cumprem os mandamentos de Deus e onde os bons  acharão sua recompensa. Aí o seu reino; lá é que ele se encontra na sua glória e para  onde voltaria quando deixasse a Terra.  Jesus,  porém,  conformando  seu  ensino  com  o  estado  dos  homens  de  sua  época, não julgou conveniente dar­lhes luz completa, percebendo que eles ficariam  deslumbrados,  visto  que  não  a  compreenderiam.  Limitou­se  a,  de  certo  modo,  apresentar a vida futura apenas como um princípio, como uma lei da Natureza a cuja  ação  ninguém  pode  fugir. Todo  cristão,  pois, necessariamente  crê na  vida  futura;  mas,  a  idéia  que  muitos  fazem  dela  é  ainda  vaga, incompleta  e,  por isso  mesmo,  falsa  em  diversos  pontos.  Para  grande número  de  pessoas,  não  há,  a  tal respeito,  mais do que uma crença, balda de certeza absoluta, donde as dúvidas e mesmo a  incredulidade.  O  Espiritismo  veio  completar,  nesse  ponto,  como  em  vários  outros,  o  ensino do Cristo, fazendo­o quando os homens já se mostram maduros bastante para  apreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura deixa de ser simples artigo de  fé,  mera  hipótese;  torna­se  uma  realidade  material,  que  os  fatos  demonstram,  porquanto são testemunhas oculares os que a descrevem nas suas fases todas e em  todas  as  suas  peripécias,  e  de  tal  sorte  que,  além  de  impossibilitarem  qualquer  dúvida  a  esse  propósito,  facultam  à  mais  vulgar  inteligência  a  possibilidade  de  imaginá­la  sob  seu  verdadeiro  aspecto,  como  toda  gente  imagina  um  país  cuja  pormenorizada  descrição  leia.  Ora,  a  descrição  da  vida  futura  é  tão  circunstanciadamente feita, são tão racionais as condições, ditosas ou infortunadas,  da  existência  dos  que  lá  se  encontram,  quais  eles  próprios  pintam,  que cada  um,  aqui, a seu mau grado, reconhece e declara a si mesmo que não pode ser de outra  forma, porquanto, assim sendo, patente fica a verdadeira justiça de Deus.  A REALEZA DE JESUS  4. Que não é deste mundo o reino de Jesus todos compreendem, mas, também na  Terra não terá ele uma realeza? Nem sempre o título de rei implica o exercício do  poder temporal. Dá­se esse título, por unânime consenso, a todo aquele que, pelo seu
  • 39. 39 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  gênio, ascende à primeira plana numa ordem de idéias quaisquer, a todo aquele que  domina, o seu século e influi sobre o progresso da Humanidade. É nesse sentido que  se  costuma  dizer:  o  rei  ou  príncipe  dos  filósofos,  dos  artistas,  dos  poetas,  dos  escritores, etc. Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade,  não  revela,  muitas  vezes,  preponderância  bem  maior  do  que  a  que  cinge  a  coroa  real?  Imperecível  é  a  primeira,  enquanto  esta  outra  é  joguete  das  vicissitudes;  as  gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem, ao passo que, por vezes,  amaldiçoam a outra. Esta, a terrestre, acaba com a vida; a realeza moral se prolonga  e mantém o seu poder, governa, sobretudo, após a morte. Sob esse aspecto não é  Jesus mais poderoso rei do que os potentados da Terra? Razão, pois, lhe assistia para  dizer a Pilatos, conforme disse: “Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo.”  O PONTO DE VISTA  5. A idéia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no  porvir,  fé  que  acarreta  enormes  conseqüências  sobre  a  moralização  dos  homens,  porque  muda  completamente  o  ponto  de  vista  sob  o  qual  encaram  eles  a  vida  terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida,  a  vida  corpórea  se  torna  simples  passagem,  breve  estada  num  país  ingrato.  As  vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com  paciência,  por  sabê­las  de  curta  duração,  devendo  seguir­se­lhes  um  estado  mais  ditoso. À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se abre para  o nada e torna­se a que dá para a libertação, pela qual entra o exilado numa mansão  de bem­aventurança e de paz. Sabendo temporária e não definitiva a sua estada no  lugar onde se encontra, menos atenção presta às preocupações da vida, resultando­  lhe daí uma calma de espírito que tira àquela muito do seu amargor.  Pelo simples fato de duvidar da vida futura, o homem dirige todos os seus  pensamentos para a vida terrestre. Sem nenhuma certeza quanto ao porvir, dá tudo  ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra, torna­se qual  a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não há o que não faça para  conseguir  os  únicos  bens  que  se  lhe  afiguram reais.  A  perda  do  menor  deles  lhe  ocasiona  causticante  pesar;  um  engano,  uma  decepção,  uma  ambição  insatisfeita,  uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos  tormentos, que lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo­se ele,  desse  modo,  a  si  próprio,  verdadeira  tortura  de todos os instantes.  Colocando  o  ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar mesmo em que ele aí se  encontra, vastas proporções assume tudo o que o rodeia. O mal que o atinja, como o  bem que toque aos outros, grande importância adquire aos seus olhos. Àquele que se  acha  no  interior  de  uma  cidade,  tudo  lhe  parece  grande:  assim  os  homens  que  ocupem as altas posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha,  e logo bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. É o que sucede ao que encara a  vida  terrestre  do  ponto  de  vista  da  vida  futura;  a  Humanidade,  tanto  quanto  as  estrelas  do  firmamento,  perde­se  na  imensidade.  Percebe  então  que  grandes  e  pequenos  estão  confundidos,  como  formigas  sobre  um  montículo  de  terra;  que  proletários  e  potentados  são  da  mesma  estatura,  e  lamenta  que  essas  criaturas
  • 40. 40 – Allan Kardec  efêmeras a tantas canseiras se entreguem para conquistar um lugar que tão pouco as  elevará e que por tão pouco tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada  aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura.  6.  Se  toda  a  gente  pensasse  dessa  maneira,  dir­se­ia,  tudo  na  Terra  periclitaria,  porquanto  ninguém  mais  se  iria  ocupar  com  as  coisas  terrenas.  Não;  o  homem,  instintivamente, procura o seu bem­estar e, embora certo de que só por pouco tempo  permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o melhor ou o menos mal  que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com um espinho debaixo de sua mão,  não a retire, para se não picar. Ora, o desejo do  bem­estar força o homem a tudo  melhorar, impelido que é pelo instinto do progresso e da conservação, que está nas  leis  da  Natureza.  Ele,  pois,  trabalha  por  necessidade,  por  gosto  e  por  dever,  obedecendo, desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na  Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao presente mais  do que relativa importância e facilmente se consola dos seus insucessos, pensando  no destino que o aguarda.  Deus, conseguintemente, não condena os gozos terrenos; condena, sim, o  abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma. Contra tais abusos é que se  premunem os que a si próprios aplicam estas palavras de Jesus: Meu reino não é  deste mundo. Aquele que se identifica com a vida futura assemelha­se ao rico que  perde sem emoção uma pequena soma.  Aquele cujos pensamentos se concentram na vida terrestre assemelha­se ao  pobre que perde tudo o que possui e se desespera.  7. O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga horizontes novos. Em vez dessa  visão, acanhada e mesquinha, que o concentra na vida atual, que faz do instante que  vivemos na Terra único e frágil eixo do porvir eterno, ele, o Espiritismo, mostra que  essa  vida  não  passa  de  um  elo  no  harmonioso  e  magnífico  conjunto  da  obra  do  Criador. Mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um mesmo ser,  todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os mundos. Faculta assim  uma base e uma razão de ser à fraternidade universal, enquanto a doutrina da criação  da alma por ocasião do nascimento de cada corpo torna estranhos uns aos outros  todos os seres. Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que  inexplicável se apresenta, desde que se considere apenas um ponto. Esse conjunto,  ao tempo do Cristo, os homens não o teriam podido compreender, motivo por que  ele reservou para outros tempos o fazê­lo conhecido.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  UMA REALEZA TERRESTRE  8. Quem melhor do que eu pode compreender a verdade destas palavras de Nosso  Senhor: “O meu reino não é deste mundo”? O orgulho me perdeu na Terra. Quem,  pois, compreenderia o nenhum valor dos reinos da Terra, se eu o não compreendia?  Que trouxe eu comigo da minha realeza terrena? Nada, absolutamente nada. E, como
  • 41. 41 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  que para tornar mais terrível a lição, ela nem sequer me acompanhou até o túmulo!  Rainha entre os homens, como rainha julguei que penetrasse no reino dos céus! Que  desilusão! Que humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi  acima de mim, mas muito acima, homens que eu julgava insignificantes e aos quais  desprezava, por não terem sangue nobre! Oh! Como então compreendi a esterilidade  das honras e grandezas que com tanta avidez se requestam na Terra!  Para  se  granjear  um  lugar  neste  reino,  são  necessárias  a  abnegação,  a  humildade, a caridade em toda a sua celeste prática, a benevolência para com todos.  Não se vos pergunta o que fostes, nem que posição ocupastes, mas que bem fizestes,  quantas lágrimas enxugastes.  Oh!  Jesus,  tu  o  disseste,  teu  reino  não  é  deste  mundo,  porque  é  preciso  sofrer para chegar ao céu, de onde os degraus de um trono a ninguém aproximam. A  ele só  conduzem as veredas mais penosas da vida. Procurai­lhe, pois, o caminho,  através das urzes e dos espinhos, não por entre as flores.  Correm os homens por alcançar os bens terrestres, como se os houvessem  de  guardar  para  sempre.  Aqui,  porém,  todas  as  ilusões  se  somem.  Cedo  se  apercebem eles de que apenas apanharam uma sombra e desprezaram os únicos bens  reais e duradouros, os únicos que lhes aproveitam na morada celeste, os únicos que  lhes podem facultar acesso a esta.  Compadecei­vos dos que não ganharam o reino dos céus; ajudai­os com as  vossas  preces,  porquanto  a  prece  aproxima  do  Altíssimo  o  homem;  é  o  traço  de  união  entre  o  céu  e  a  Terra: não  o  esqueçais.  – Uma Rainha de França. (Havre,  1863)
  • 42. 42 – Allan Kardec  CAPÍTULO III  HÁ MUITAS MORADAS NA CASA DO MEU PAI ·  DIFERENTES ESTADOS DA ALMA NA ERRATICIDADE ·  DIFERENTES CATEGORIAS DE MUNDOS HABITADOS ·  DESTINAÇÃO DA TERRA. CAUSAS DAS MISÉRIAS  TERRENAS  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS ·  MUNDOS INFERIORES E MUNDOS SUPERIORES ·  MUNDOS DE EXPIAÇÕES E DE PROVAS ·  MUNDOS REGENERADORES ·  PROGRESSÃO DOS MUNDOS  1.  “ Não  se  turbe  o  vosso  coração;  Credes  em  Deus,  crede  também  em  mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já eu vo­  lo teria dito, pois me vou para vos preparar o lugar. Depois que me tenha  ido e que vos houver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a  fim de que onde eu estiver, também vós aí estejais”.  (S. JOÃO, 14:1 a 3.)  DIFERENTES ESTADOS DA ALMA NA ERRATICIDADE  2. A casa do Pai é o Universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam  no  espaço  infinito  e  oferecem,  aos  Espíritos  que  neles  encarnam,  moradas  correspondentes ao adiantamento dos mesmos Espíritos.  Independente da diversidade dos mundos, essas palavras de Jesus também  podem  referir­se  ao  estado  venturoso  ou  desgraçado  do  Espírito  na  erraticidade.  Conforme se ache este mais ou menos depurado e desprendido dos laços materiais,  variarão  ao  infinito  o  meio  em  que  ele  se  encontre,  o  aspecto  das  coisas,  as  sensações que experimente, as percepções que tenha. Enquanto uns não se podem
  • 43. 43 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  afastar da esfera onde viveram, outros se elevam e percorrem o espaço e os mundos;  enquanto alguns Espíritos culpados erram nas trevas, os bem­aventurados gozam de  resplendente claridade e do espetáculo sublime do Infinito; finalmente, enquanto o  mau, atormentado  de remorsos  e  pesares,  muitas  vezes  insulado,  sem  consolação,  separado  dos  que  constituíam  objeto  de  suas  afeições,  pena  sob  o  guante  dos  sofrimentos morais, o justo, em convívio com aqueles a quem ama, frui as delícias  de  uma  felicidade indizível. Também nisso,  portanto, há muitas moradas,  embora  não circunscritas, nem localizadas.  DIFERENTES CATEGORIAS DE MUNDOS HABITADOS  3. Do ensino dado pelos Espíritos, resulta que muito diferentes umas das outras são  as condições dos mundos, quanto ao grau de adiantamento ou de inferioridade dos  seus habitantes. Entre eles há os em que estes últimos são ainda inferiores aos da  Terra, física e moralmente; outros, da mesma categoria que o nosso; e outros que lhe  são  mais  ou  menos  superiores  a  todos  os  respeitos.  Nos  mundos  inferiores,  a  existência  é toda  material,  reinam  soberanas  as  paixões,  sendo  quase  nula  a  vida  moral.  À  medida  que  esta  se  desenvolve,  diminui  a  influência  da  matéria,  de  tal  maneira que, nos mundos mais adiantados, a vida é, por assim dizer, toda espiritual.  4.  Nos  mundos  intermédios,  misturam­se  o  bem  e  o  mal,  predominando  um  ou  outro, segundo o grau de adiantamento da maioria dos que os habitam. Embora se  não possa fazer, dos diversos mundos, uma classificação absoluta, pode­se contudo,  em virtude do estado em que se acham e da destinação que trazem, tomando por  base  os  matizes  mais  salientes,  dividi­los,  de  modo  geral,  como  segue:  mundos  primitivos,  destinados  às  primeiras  encarnações  da  alma  humana;  mundos  de  expiação e provas, onde domina o mal; mundos de regeneração, nos quais as almas  que ainda têm o que expiar haurem novas forças, repousando das fadigas da luta;  mundos  ditosos,  onde  o  bem  sobrepuja  o  mal;  mundos  celestes  ou  divinos,  habitações  de  Espíritos  depurados,  onde  exclusivamente  reina  o  bem.  A  Terra  pertence  à  categoria  dos  mundos  de  expiação  e  provas,  razão  por  que  aí  vive  o  homem a braços com tantas misérias.  5.  Os  Espíritos  que  encarnam  em  um  mundo  não  se  acham  a  ele  presos  indefinidamente, nem nele atravessam todas as fases do progresso que lhes cumpre  realizar, para atingir a perfeição. Quando, em um mundo, eles alcançam o grau de  adiantamento que esse mundo comporta, passam para outro mais adiantado, e assim  por diante, até que cheguem ao estado de puros Espíritos. São outras tantas estações,  em  cada  uma  das  quais  se  lhes  deparam  elementos  de  progresso  apropriados  ao  adiantamento que já conquistaram. É­lhes uma recompensa ascenderem a um mundo  de ordem mais elevada, como é um castigo o prolongarem a sua permanência em um  mundo desgraçado, ou serem relegados para outro ainda mais infeliz do que aquele a  que se vêem impedidos de voltar quando se obstinaram no mal.
  • 44. 44 – Allan Kardec  DESTINAÇÃO DA TERRA. CAUSAS DAS MISÉRIAS HUMANAS  6.  Muitos  se  admiram  de  que  na  Terra  haja  tanta  maldade  e  tantas  paixões  grosseiras, tantas misérias e enfermidades de toda natureza, e daí concluem que a  espécie humana bem triste coisa é. Provém esse juízo do acanhado ponto de vista em  que se colocam os que o emitem e que lhes dá uma falsa idéia do conjunto. Deve­se  considerar  que  na  Terra  não  está  a  Humanidade  toda,  mas  apenas  uma  pequena  fração  da  Humanidade.  Com  efeito,  a  espécie  humana  abrange  todos  os  seres  dotados  de  razão  que  povoam  os  inúmeros  orbes  do  Universo.  Ora,  que  é  a  população da Terra, em face da população total desses mundos? Muito menos que a  de uma aldeia, em confronto com a de um grande império. A situação material e  moral da Humanidade terrena nada tem que espante, desde que se leve em conta a  destinação da Terra e a natureza dos que a habitam.  7. Faria dos habitantes de uma grande cidade falsíssima idéia quem os julgasse pela  população dos seus quarteirões mais ínfimos e sórdidos. Num hospital, ninguém vê  senão doentes e estropiados; numa penitenciária, vêem­se reunidas todas as torpezas,  todos os vícios; nas regiões insalubres, os habitantes, em sua maioria, são pálidos,  franzinos e enfermiços. Pois bem: figure­se a Terra como um subúrbio, um hospital,  uma  penitenciária,  um  sítio  malsão,  e  ela  é  simultaneamente  tudo  isso,  e  compreender­se­á  por  que  as  aflições  sobrelevam  aos  gozos,  porquanto  não  se  mandam para o hospital os que se acham com saúde, nem para as casas de correção  os que nenhum mal praticaram; nem os hospitais e as casas de correção se podem ter  por lugares de deleite.  Ora,  assim  como,  numa  cidade,  a  população  não  se  encontra  toda  nos  hospitais  ou  nas  prisões,  também  na  Terra  não  está  a  Humanidade  inteira.  E,  do  mesmo modo que do hospital saem os que se curaram e da prisão os que cumpriram  suas  penas,  o  homem  deixa  a  Terra,  quando  está  curado  de  suas  enfermidades  morais.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  MUNDOS INFERIORES E MUNDOS SUPERIORES  8. A qualificação de mundos inferiores e mundos superiores nada tem de absoluta; é,  antes, muito relativa. Tal mundo é inferior ou superior com referência aos que lhe  estão acima ou abaixo, na escala progressiva.  Tomada a Terra por termo de comparação, pode­se fazer idéia do estado de  um mundo inferior, supondo os seus habitantes na condição das raças selvagens ou  das nações bárbaras que ainda entre nós se encontram, restos do estado primitivo do  nosso  orbe.  Nos  mais  atrasados,  são  de  certo  modo  rudimentares  os  seres  que  os  habitam. Revestem a forma humana, mas sem nenhuma beleza. Seus instintos não  têm a abrandá­los qualquer sentimento de delicadeza ou de  benevolência, nem as  noções do justo e do injusto. A força bruta é, entre eles, a única lei. Carentes de  indústrias  e  de  invenções,  passam  a  vida  na  conquista  de  alimentos.  Deus,
  • 45. 45 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  entretanto,  a  nenhuma  de  suas  criaturas  abandona;  no  fundo  das  trevas  da  inteligência jaz, latente, a vaga intuição, mais ou menos desenvolvida, de um Ente  supremo.  Esse  instinto  basta  para  torná­los  superiores  uns  aos  outros  e  para  lhes  preparar  a  ascensão  a  uma  vida  mais  completa,  porquanto  eles  não  são  seres  degradados, mas crianças que estão a crescer.  Entre os degraus inferiores e os mais elevados, inúmeros outros há, e difícil  é reconhecer­se nos Espíritos puros, desmaterializados e resplandecentes de glória,  os que foram esses seres primitivos, do mesmo modo que no homem adulto se custa  a reconhecer o embrião.  9.  Nos  mundos  que  chegaram  a  um  grau  superior,  as  condições  da  vida  moral  e  material são muitíssimo diversas das da vida na Terra. Como por toda parte, a forma  corpórea  aí  é  sempre  a  humana,  mas  embelezada,  aperfeiçoada  e,  sobretudo,  purificada.  O  corpo  nada  tem  da  materialidade  terrestre  e  não  está,  conseguintemente, sujeito às necessidades, nem às doenças ou deteriorações que a  predominância  da  matéria  provoca.  Mais  apurados,  os  sentidos  são  aptos  a  percepções a que neste mundo a grosseria da matéria obsta. A leveza específica do  corpo  permite  locomoção  rápida  e  fácil:  em  vez  de  se  arrastar  penosamente  pelo  solo, desliza, a bem dizer, pela superfície, ou plana na atmosfera, sem qualquer outro  esforço além do da vontade, conforme se representam os anjos, ou como os antigos  imaginavam os manes nos Campos Elíseos. Os homens conservam, a seu grado, os  traços de suas passadas migrações e se mostram a seus amigos tais quais estes os  conheceram,  porém,  irradiando  uma  luz  divina,  transfigurados  pelas  impressões  interiores,  então  sempre  elevadas.  Em  lugar  de  semblantes  descorados,  abatidos  pelos sofrimentos e paixões, a inteligência e a vida cintilam com o fulgor que  os  pintores hão figurado no nimbo ou auréola dos santos.  A pouca resistência que a matéria oferece a Espíritos já muito adiantados  torna rápido o desenvolvimento dos corpos e curta ou quase nula a infância. Isenta  de cuidados  e angústias, a vida é proporcionalmente muito mais longa do que na  Terra. Em princípio, a longevidade guarda proporção com o grau de adiantamento  dos mundos. A morte de modo algum acarreta os horrores da decomposição; longe  de causar pavor, é considerada uma transformação feliz, por isso que lá não existe a  dúvida sobre o porvir. Durante a vida, a alma, já não tendo a constringi­la a matéria  compacta,  expande­se  e  goza  de  uma  lucidez  que  a  coloca  em  estado  quase  permanente de emancipação e lhe consente a livre transmissão do pensamento.  10. Nesses mundos venturosos, as relações, sempre amistosas entre os povos, jamais  são  perturbadas  pela  ambição,  da  parte  de  qualquer  deles,  de  escravizar  o  seu  vizinho,  nem  pela  guerra  que  daí  decorre.  Não  há  senhores,  nem  escravos,  nem  privilegiados  pelo  nascimento;  só  a  superioridade  moral  e  intelectual  estabelece  diferença entre as condições e dá a supremacia. A autoridade merece o respeito de  todos,  porque  somente  ao  mérito  é  conferida  e  se  exerce  sempre  com  justiça.  O  homem  não  procura  elevar­se  acima  do  homem,  mas  acima  de  si  mesmo,  aperfeiçoando­se.  Seu  objetivo  é  galgar  a  categoria  dos  Espíritos  puros,  não  lhe  constituindo um tormento esse desejo, porém, uma ambição nobre, que o induz a  estudar com ardor para os igualar. Lá, todos os sentimentos delicados e elevados da
  • 46. 46 – Allan Kardec  natureza humana se acham engrandecidos e purificados; desconhecem­se os ódios,  os mesquinhos ciúmes, as baixas cobiças da inveja; um laço de amor e fraternidade  prende uns aos outros todos os homens, ajudando os mais fortes aos mais fracos.  Possuem bens, em maior ou menor quantidade, conforme os tenham adquirido, mais  ou  menos  por  meio  da  inteligência;  ninguém,  todavia,  sofre,  por  lhe  faltar  o  necessário, uma vez que ninguém se acha em expiação. Numa palavra: o mal, nesses  mundos, não existe.  11. No vosso, precisais do mal para sentirdes o bem; da noite, para admirardes a luz;  da  doença,  para  apreciardes  a  saúde.  Naqueles  outros  não  há  necessidade  desses  contrastes. A eterna luz, a eterna beleza e a eterna serenidade da alma proporcionam  uma alegria eterna, livre de ser perturbada pelas angústias da vida material, ou pelo  contacto  dos  maus,  que  lá  não  têm  acesso.  Isso  o  que  o  espírito  humano  maior  dificuldade encontra para compreender. Ele foi  bastante engenhoso para pintar os  tormentos do inferno, mas nunca pôde imaginar as alegrias do céu. Por quê? Porque,  sendo inferior, só há experimentado dores e misérias, jamais entreviu as claridades  celestes; não pode, pois, falar do que não conhece. À medida, porém, que se eleva e  depura, o horizonte se lhe dilata e ele compreende o bem que está diante de si, como  compreendeu o mal que lhe está atrás.  12. Entretanto, os mundos felizes não são orbes privilegiados, visto que Deus não é  parcial  para qualquer  de  seus  filhos; a  todos  dá  os  mesmos  direitos  e  as  mesmas  facilidades para chegarem a tais mundos. Fá­los partir todos do mesmo ponto e a  nenhum  dota  melhor  do  que  aos  outros;  a  todos  são  acessíveis  as  mais  altas  categorias:  apenas  lhes  cumpre  a  eles  conquistá­las  pelo  seu  trabalho,  alcançá­las  mais  depressa,  ou  permanecer  inativos  por  séculos  de  séculos  no  lodaçal  da  Humanidade. (Resumo do ensino de todos os Espíritos superiores.)  MUNDOS DE EXPIAÇÕES E DE PROVAS  13. Que vos direi dos mundos de expiações que já não saibais, pois basta observeis o  em  que  habitais?  A  superioridade  da  inteligência,  em  grande  número  dos  seus  habitantes, indica que a Terra não é um mundo primitivo, destinado à encarnação  dos Espíritos que acabaram de sair das mãos do Criador. As qualidades inatas que  eles  trazem  consigo  constituem  a  prova  de  que  já  viveram  e  realizaram  certo  progresso.  Mas,  também,  os  numerosos  vícios  a  que  se  mostram  propensos  constituem  o  índice  de  grande imperfeição  moral.  Por isso  os  colocou  Deus  num  mundo ingrato, para expiarem aí suas faltas, mediante penoso trabalho e misérias da  vida, até que hajam merecido ascender a um planeta mais ditoso.  14.  Entretanto,  nem  todos  os  Espíritos  que  encarnam  na  Terra  vão  para  aí  em  expiação. As raças a que chamais selvagens são formadas de Espíritos que apenas  saíram da infância e que na Terra se acham, por assim dizer, em curso de educação,  para se desenvolverem pelo contacto com Espíritos mais adiantados. Vêm depois as  raças semi civilizadas, constituídas desses mesmos Espíritos em via de progresso.
  • 47. 47 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  São elas, de certo modo, raças indígenas da Terra, que aí se elevaram pouco a pouco  em  longos  períodos  seculares,  algumas  das  quais  hão  podido  chegar  ao  aperfeiçoamento intelectual dos povos mais esclarecidos.  Os  Espíritos  em  expiação,  se  nos  podemos  exprimir  dessa  forma,  são  exóticos,  na  Terra;  já  viveram  noutros  mundos,  donde  foram  excluídos  em  conseqüência  da  sua  obstinação  no  mal  e  por  se  haverem  constituído,  em  tais  mundos, causa de perturbação para os bons. Tiveram de ser degredados, por algum  tempo, para o meio de Espíritos mais atrasados, com a missão de  fazer que estes  últimos avançassem, pois que levam consigo inteligências desenvolvidas e o gérmen  dos  conhecimentos  que  adquiriram.  Daí  vem  que  os  Espíritos  em  punição  se  encontram no seio das raças mais inteligentes. Por isso mesmo, para essas raças é  que  de  mais  amargor  se  revestem  os  infortúnios  da  vida.  É  que  há  nelas  mais  sensibilidade,  sendo,  portanto,  mais  provadas  pelas  contrariedades  e  desgostos  do  que as raças primitivas, cujo senso moral se acha mais embotado.  15. A Terra, conseguintemente, oferece um dos tipos de mundos expiatórios, cuja  variedade é infinita, mas revelando todos, como caráter comum, o servirem de lugar  de exílio para Espíritos rebeldes à lei de Deus. Esses Espíritos têm aí de lutar, ao  mesmo tempo, com a perversidade dos homens e com a inclemência da Natureza,  duplo e árduo trabalho que simultaneamente desenvolve as qualidades do coração e  as  da  inteligência.  É  assim  que  Deus,  em  sua  bondade,  faz  que  o  próprio  castigo  redunde em proveito do progresso do Espírito. – Santo Agostinho. (Paris, 1862)  MUNDOS REGENERADORES  16. Entre as estrelas que cintilam na abóbada azul do firmamento, quantos mundos  não haverá como  o  vosso, destinados pelo Senhor à expiação e à provação! Mas,  também os há mais miseráveis e melhores, como os há de transição, que se podem  denominar de regeneradores. Cada turbilhão planetário, a deslocar­se no espaço em  torno de um centro comum, arrasta consigo seus mundos primitivos, de exí1io, de  provas, de regeneração e de felicidade. Já se vos há falado de mundos onde a alma  recém­nascida  é  colocada,  quando  ainda  ignorante  do  bem  e  do  mal,  mas  com  a  possibilidade  de  caminhar  para  Deus,  senhora  de  si  mesma,  na  posse  do  livre­  arbítrio. Já também se vos revelou de que amplas faculdades é dotada a alma para  praticar o bem. Mas, ah! Há as que sucumbem, e Deus, que não as quer aniquiladas,  lhes permite irem para esses mundos onde, de encarnação em encarnação, elas se  depuram, regeneram e voltam dignas da glória que lhes fora destinada.  17. Os mundos regeneradores servem de transição entre os mundos de expiação e os  mundos felizes. A alma penitente encontra neles a calma e o repouso e acaba por  depurar­se. Sem dúvida, em tais mundos o homem ainda se acha sujeito às leis que  regem  a  matéria;  a  Humanidade  experimenta  as  vossas  sensações  e  desejos,  mas  liberta das paixões desordenadas de que sois escravos, isenta do orgulho que impõe  silêncio  ao  coração,  da  inveja  que  a  tortura,  do  ódio  que  a  sufoca.  Em  todas  as
  • 48. 48 – Allan Kardec  frontes, vê­se escrita a palavra amor; perfeita eqüidade preside às relações sociais,  todos reconhecem Deus e tentam caminhar para Ele, cumprindo­lhe as leis.  Nesses mundos, todavia, ainda não existe a felicidade perfeita, mas a aurora  da felicidade. O homem lá é ainda de carne e, por isso, sujeito às vicissitudes de que  libertos  só  se  acham  os  seres  completamente  desmaterializados.  Ainda  tem  de  suportar  provas,  porém,  sem  as  pungentes  angústias  da  expiação.  Comparados  à  Terra,  esses  mundos  são  bastante  ditosos  e  muitos  dentre  vós  se  alegrariam  de  habitá­los, pois que eles representam a calma após a tempestade, a convalescença  após a moléstia cruel. Contudo, menos absorvido pelas coisas materiais, o homem  divisa,  melhor  do  que  vós,  o  futuro;  compreende  a  existência  de  outros  gozos  prometidos  pelo  Senhor  aos  que  deles  se  mostrem  dignos,  quando  a  morte  lhes  houver de novo ceifado os corpos, a fim de lhes outorgar a verdadeira vida. Então,  liberta, a alma pairará acima de todos os horizontes. Não mais sentidos materiais e  grosseiros;  somente  os  sentidos  de  um  perispírito  puro  e  celeste,  a  aspirar  as  emanações  do  próprio  Deus,  nos  aromas  de  amor  e  de  caridade  que  do  seu  seio  emanam.  18. Mas, ah! Nesses mundos, ainda falível é o homem e o Espírito do mal não há  perdido completamente o seu império. Não avançar é recuar, e, se o homem não se  houver  firmado  bastante  na  senda  do  bem,  pode  recair  nos  mundos  de  expiação,  onde, então, novas e mais terríveis provas o aguardam.  Contemplai, pois, à noite, à hora do repouso e da prece, a abóbada azulada  e, das inúmeras esferas que brilham sobre as vossas cabeças, indagai de vós mesmos  quais as que conduzem a Deus e pedi­lhe que um mundo regenerador vos abra seu  seio, após a expiação na Terra. – Santo Agostinho. (Paris, 1862)  PROGRESSÃO DOS MUNDOS  19. O progresso é lei da Natureza. A essa lei todos os seres da Criação, animados e  inanimados,  foram  submetidos  pela  bondade  de  Deus,  que  quer  que  tudo  se  engrandeça e prospere. A própria destruição, que aos homens parece o termo final de  todas as coisas, é apenas um meio de se chegar, pela transformação, a um estado  mais perfeito, visto que tudo morre para renascer e nada sofre o aniquilamento.  Ao  mesmo  tempo  em  que  todos  os  seres  vivos  progridem  moralmente,  progridem  materialmente  os  mundos  em  que  eles  habitam.  Quem  pudesse  acompanhar  um  mundo  em  suas  diferentes  fases,  desde  o  instante  em  que  se  aglomeraram os primeiros átomos destinados e constituí­lo, vê­lo­ia a percorrer uma  escala  incessantemente  progressiva,  mas  de  degraus  imperceptíveis  para  cada  geração, e a oferecer aos seus habitantes uma morada cada vez mais agradável, à  medida  que  eles  próprios  avançam  na  senda  do  progresso.  Marcham  assim,  paralelamente, o progresso do homem, o dos animais, seus auxiliares, o dos vegetais  e  o  da  habitação,  porquanto  nada  em  a  Natureza  permanece  estacionário.  Quão  grandiosa  é  essa  idéia  e  digna  da  majestade  do  Criador!  Quanto,  ao  contrário,  é  mesquinha  e  indigna  do  seu  poder  a  que  concentra  a  sua  solicitude  e  a  sua  providência no imperceptível grão de areia, que é a Terra, e restringe a Humanidade
  • 49. 49 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  aos poucos homens que a habitam! Segundo aquela lei, este mundo esteve material e  moralmente num estado inferior ao em que hoje se acha e se alçará sob esse duplo  aspecto  a  um  grau  mais  elevado.  Ele  há  chegado  a  um  dos  seus  períodos  de  transformação, em que, de orbe expiatório, mudar­se­á em planeta de regeneração,  onde  os  homens  serão  ditosos,  porque  nele  imperará  a  lei  de  Deus.  –  Santo  Agostinho. (Paris, 1862)
  • 50. 50 – Allan Kardec  CAPÍTULO IV  NINGUÉM PODERÁ VER O REINO DE DEUS SE NÃO NASCER DE NOVO ·  RESSURREIÇÃO E REENCARNAÇÃO ·  A REENCARNAÇÃO FORTALECE OS LAÇOS DE FAMÍLIA, AO  PASSO QUE A UNICIDADE DA EXISTÊNCIA OS ROMPE  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS ·  LIMITES DA ENCARNAÇÃO ·  NECESSIDADE DA ENCARNAÇÃO  1. Jesus, tendo vindo às cercanias de Cesaréia de Filipe, interrogou assim  seus discípulos: “Que dizem os homens, com relação ao Filho do Homem?  Quem  dizem  que  eu  sou?”  –  Eles  lhe  responderam:  “Dizem  uns  que  és  João  Batista;  outros,  que    és  Elias;  outros,  Jeremias,  ou  algum  dos  profetas.”  –  Perguntou­lhes  Jesus:  “E  vós,  quem  dizeis  que  eu  sou?”  –  Simão Pedro, tomando a palavra, respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do  Deus  vivo:”  –  Replicou­lhe  Jesus:  “Bem­aventurado  és,  Simão,  filho  de  Jonas, porque não foram a carne nem o sangue que isso te revelaram, mas  meu Pai, que está nos céus.”  (S. MATEUS, 16:13 a 17; S. MARCOS, 8:27 a 30.)  2.  Nesse  ínterim,  Herodes,  o  Tetrarca,  ouvira  falar  de  tudo  o  que  fazia  Jesus e seu espírito se achava em suspenso; porque uns diziam que João  Batista ressuscitara dentre os mortos; outros que aparecera Elias; e outros  que  um  dos  antigos  profetas  ressuscitara;  Disse  então  Herodes: “Mandei  cortar a cabeça a João Batista; quem é então esse de quem ouço dizer tão  grandes coisas?” E ardia por vê­lo.  (S. MARCOS, 6:14 a 16; S. LUCAS, 9:7 a 9.)
  • 51. 51 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  3.  (Após  a  transfiguração.)  Seus  discípulos  então  o  interrogaram  desta  forma:  “Por  que  dizem  os  escribas  ser  preciso  que  antes  volte  Elias?”  –  Jesus lhes respondeu: “É verdade que Elias há de vir e restabelecer todas  as coisas: mas, eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram e  o trataram como lhes aprouve. É assim que farão sofrer o Filho do Homem.”  – Então, seus discípulos compreenderam que fora de João Batista que ele  falara.  (S. MATEUS, 17:10 a 13; – S. MARCOS, 9:11 a 13.)  RESSURREIÇÃO E REENCARNAÇÃO  4. A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição.  Só os saduceus, cuja crença era a de que tudo acaba com a morte, não acreditavam  nisso. As idéias dos judeus sobre esse ponto, como sobre muitos outros, não eram  claramente definidas, porque apenas tinham vagas e incompletas noções acerca da  alma e da sua ligação com o  corpo. Criam eles que um homem que vivera podia  reviver,  sem  saberem  precisamente  de  que  maneira  o  fato  poderia  dar­se.  Designavam  pelo  termo  ressurreição  o  que  o  Espiritismo,  mais  judiciosamente,  chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá idéia de voltar à vida o corpo  que  já  está  morto,  o  que  a  Ciência  demonstra  ser  materialmente  impossível,  sobretudo  quando  os  elementos  desse  corpo  já  se  acham  desde  muito  tempo  dispersos  e  absorvidos.  A  reencarnação  é  a  volta  da  alma  ou  Espírito  à  vida  corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de  comum com o antigo. A palavra ressurreição podia assim aplicar­se a Lázaro, mas  não  a  Elias,  nem  aos  outros  profetas.  Se,  portanto,  segundo  a  crença  deles,  João  Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, pois que João fora visto  criança e seus pais eram conhecidos. João, pois, podia ser Elias reencarnado, porém,  não ressuscitado.  5. Ora,  entre  os fariseus, havia um homem chamado Nicodemos, senador dos  judeus, que veio à noite ter com Jesus e lhe disse: “Mestre, sabemos que vieste  da parte de Deus para nos instruir como um doutor, porquanto ninguém poderia  fazer  os  milagres  que  fazes,  se  Deus  não  estivesse  com  ele.”  Jesus  lhe  respondeu:  “Em  verdade,  em  verdade  digo­te:  Ninguém  pode  ver  o  reino  de  Deus se não nascer de novo.”  Disse­lhe Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho? Pode  tornar a entrar no ventre de sua mãe, para nascer segunda vez?” Retorquiu­lhe  Jesus: “Em verdade, em verdade, digo­te: Se um homem não renasce da água  e do  Espírito,  não  pode  entrar  no reino de  Deus. O que  é  nascido  da carne  é  carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não te admires de que eu te haja  dito ser preciso que nasças de novo. O Espírito sopra onde quer e ouves a sua  voz  mas  não  sabes  donde  vem  ele,  nem para  onde  vai;  o  mesmo  se  dá  com  todo homem que é nascido do Espírito.”  Respondeu­lhe  Nicodemos:  “Como  pode  isso  fazer­se?”  –  Jesus  lhe  observou:  “Pois  quê!  És  mestre  em Israel  e  ignoras  estas  coisas?  Digo­te  em  verdade, que não dizemos senão o que sabemos e que não damos testemunho,  senão do que temos visto. Entretanto, não aceitas o nosso testemunho. Mas, se  não me credes, quando vos falo das coisas da Terra, como me crereis, quando  vos fale das coisas do céu?”  (S. JOÃO, 3:1 a 12.)
  • 52. 52 – Allan Kardec  6. A idéia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na Terra  se  nos  depara  em  muitas  passagens  dos  Evangelhos,  notadamente  nas  acima  reproduzidas (nº 1, 2, 3). Se fosse errônea essa crença, Jesus não houvera deixado de  a combater, como combateu tantas outras. Longe disso, ele a sanciona com toda a  sua  autoridade  e  a  põe  por  princípio  e  como  condição  necessária,  quando  diz:  ‘”Ninguém  pode  ver  o  reino  de  Deus  se  não  nascer  de  novo.”  E  insiste,  acrescentando: Não te admires de que eu te haja dito ser preciso nasças de novo.  7.  Estas  palavras:  Se  um  homem  não  renasce  da  água  e  do  Espírito  foram  interpretadas no  sentido  da regeneração  pela  água do  batismo.  O  texto  primitivo,  porém,  rezava  simplesmente:  não  renasce  da  água  e  do  Espírito,  ao  passo  que  nalgumas traduções as palavras – do Espírito – foram substituídas pelas seguintes:  do  Santo  Espírito,  o  que  já  não  corresponde  ao  mesmo  pensamento.  Esse  ponto  capital ressalta dos primeiros comentários a que os Evangelhos deram lugar, como  se comprovará um dia, sem equívoco possível 5  .  8. Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também se atente na  significação do termo água que ali não fora empregado na acepção que lhe é própria.  Muito  imperfeitos  eram  os  conhecimentos  dos  antigos  sobre  as  ciências  físicas.  Eles  acreditavam  que  a  Terra  saíra  das águas  e,  por  isso,  consideravam a  água como elemento gerador absoluto. Assim é que na Gênese se lê: “O Espírito de  Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; – Que o firmamento seja  feito no meio das águas; – Que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em um  só lugar e que apareça o elemento árido; – Que as águas produzam animais vivos  que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra e sob o firmamento.”  Segundo  essa  crença,  a  água  se  tornara  o  símbolo  da  natureza  material,  como  o  Espírito  era  o  da  natureza  inteligente.  Estas  palavras:  “Se  o  homem  não  renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito”, significam pois: “Se o  homem não renasce com seu corpo e sua alma.” É nesse sentido que a princípio as  compreenderam.  Tal  interpretação  se  justifica,  aliás,  por  estas  outras  palavras:  O  que  é  nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Jesus estabelece  aí uma distinção positiva entre o Espírito e  o  corpo. O que é nascido da carne é  carne indica claramente que só o corpo procede do corpo e que o Espírito independe  deste.  9. O Espírito sopra onde quer; ouves­lhe a voz, mas não sabes nem donde ele vem,  nem para onde vai: pode­se entender que se trata do Espírito de Deus, que dá vida a  quem ele quer, ou da alma do homem. Nesta última acepção – “não sabes donde ele  5  A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo. Diz: “Não renasce da água e do Espírito”;  a de Sacy diz: do Santo Espírito; a de Lamennais: do Espírito Santo. À nota de Allan Kardec, podemos  hoje  acrescentar  que  as  modernas  traduções  já  restituíram  o  texto  primitivo,  pois  que  só  imprimem  “Espírito”  e  não  Espírito  Santo.  Examinamos  a  tradução  brasileira,  a  inglesa,  a  em  Esperanto,  a  de  Ferreira  de  Almeida,  e  em  todas  elas  está  somente  “Espírito”.  Além  dessas  modernas,  encontramos  a  confirmação numa latina de Theodoro de Beza, de 1642, que diz: “...genitus ex aqua et Spiritu...” “...et  quod genitum est ex Spiritu, spiritus est.” É fora de dúvida que a palavra “Santo” foi interpolada, como  diz Kardec. – A Editor a da FEB, 1947.
  • 53. 53 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  vem, nem para onde vai” – significa que ninguém sabe o que foi, nem o que será o  Espírito.  Se  o  Espírito,  ou  alma,  fosse  criado  ao  mesmo  tempo  em  que  o  corpo,  saber­se­ia donde ele veio, pois que se lhe conheceria o começo. Como quer que  seja,  essa  passagem  consagra  o  princípio  da  preexistência  da  alma  e,  por  conseguinte, o da pluralidade das existências.  10. “Ora, desde o tempo de João Batista até o presente, o reino dos céus é  tomado pela violência e são os violentos que o arrebatam; – pois que assim  o profetizaram todos os profetas até João, e também a lei. – Se quiserdes  compreender o que vos digo, ele mesmo é o Elias que há de vir. – Ouça­o  aquele que tiver ouvidos de ouvir”.  (MATEUS, 11:12­15.)  11. Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em S. João, podia, a  rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o mesmo já não acontece com  esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco: ELE MESMO é o Elias que  há de vir.  Não  há aí  figura, nem  alegoria:  é  uma  afirmação  positiva.  –  “Desde  o  tempo de João Batista até o presente o reino dos céus é tomado pela violência.” Que  significam essas palavras, uma vez que João Batista ainda vivia naquele momento?  Jesus as  explica, dizendo: “Se quiserdes compreender o que digo, ele mesmo é o  Elias que há de vir.” Ora, sendo João o próprio Elias, Jesus alude à época em que  João vivia com o nome de Elias. “Até ao presente o reino dos céus é tomado pela  violência”: outra alusão à violência da lei moisaica, que ordenava o extermínio dos  infiéis, para que os demais ganhassem a Terra Prometida, Paraíso dos hebreus, ao  passo que, segundo a nova lei, o céu se ganha pela caridade e pela brandura.  E acrescentou: Ouça aquele que tiver ouvidos de ouvir. Essas palavras, que  Jesus  tanto  repetiu,  claramente  dizem  que  nem  todos  estavam  em  condições  de  compreender certas verdades.  12.  Aqueles  do  vosso  povo  a  quem  a  morte  foi  dada  viverão  de  novo;  aqueles que  estavam mortos em meio a mim ressuscitarão. Despertai do  vosso  sono  e  entoai  louvores  a  Deus,  vós  que  habitais  no  pó;  porque  o  orvalho que cai sobre vós é um orvalho de luz e porque arruinareis a Terra  e o reino dos gigantes.  (ISAÍAS, 26:19.)  13. É também muito explícita esta passagem de Isaías: “Aqueles do vosso povo a  quem a morte foi dada viverão de novo.” Se o profeta houvera querido falar da vida  espiritual, se houvera pretendido dizer que aqueles que tinham sido executados não  estavam  mortos  em  Espírito,  teria  dito: ainda vivem,  e não: viverão de novo.  No  sentido espiritual, essas palavras seriam um contra­senso, pois que implicariam uma  interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração moral, seriam a negação  das  penas  eternas,  pois  que  estabelecem,  em  princípio,  que  todos  os  que  estão  mortos reviverão.
  • 54. 54 – Allan Kardec  14.  Mas,  quando  o  homem  há  morrido  uma  vez,  quando  seu  corpo,  separado de seu espírito, foi consumido, que é feito dele? – Tendo morrido  uma vez, poderia o homem reviver de novo? Nesta guerra em que me acho  todos os dias da minha vida, espero que chegue a minha mutação.  (Jó,14:10,14.)  Tradução de Le Maistre de Sacy  Quando o homem morre, perde toda a sua força, expira. Depois, onde está  ele? – Se o homem morre, viverá de novo? Esperarei todos os dias de meu  combate, até que venha alguma mutação.  Tradução protestante de Osterwald  Quando  o  homem  está  morto,  vive  sempre;  acabando  os  dias  da  minha  existência terrestre, esperarei, porquanto a ela voltarei de novo.  Versão da Igreja grega  15.  Nessas  três  versões,  o  princípio  da  pluralidade  das  existências  se  acha  claramente  expresso.  Ninguém  poderá  supor  que  Jó  haja  querido  falar  da  regeneração pela água do batismo, que ele decerto não conhecia. “Tendo o homem  morrido uma vez, poderia reviver de novo?” A idéia de morrer uma vez, e de reviver  implica a de morrer e reviver muitas vezes. A versão da Igreja grega ainda é mais  explícita, se é que isso é possível: “Acabando os dias da minha existência terrena,  esperarei,  porquanto a ela voltarei”,  ou,  voltarei  à  existência  terrestre.  Isso  é  tão  claro, como se alguém dissesse: “Saio de minha casa, mas a ela tornarei.” “Nesta  guerra em que me encontro todos os dias de minha vida, espero que se dê a minha  mutação.”  Jó,  evidentemente,  pretendeu  referir­se  à  luta  que  sustentava  contra  as  misérias  da  vida.  Espera  a  sua  mutação,  isto  é,  resigna­se.  Na  versão  grega,  esperarei  parece  aplicar­se,  preferentemente,  a  uma  nova  existência:  “Quando  a  minha existência estiver acabada, esperarei, porquanto a ela voltarei.” Jó como que  se coloca, após a morte, no intervalo que separa uma existência de outra e diz que lá  aguardará o momento de voltar.  16.  Não  há,  pois,  duvidar  de  que,  sob  o  nome  de  ressurreição,  o  princípio  da  reencarnação  era  ponto  de  uma  das  crenças  fundamentais  dos  judeus,  ponto  que  Jesus  e  os  profetas  confirmaram  de  modo  formal;  donde  se  segue  que  negar  a  reencarnação é negar as palavras do Cristo. Um dia, porém, suas palavras, quando  forem meditadas sem idéias preconcebidas, reconhecer­se­ão autorizadas quanto a  esse ponto, bem como em relação a muitos outros.  17.  A  essa  autoridade,  do  ponto  de  vista  religioso,  se  adita,  do  ponto  de  vista  filosófico, a das provas que resultam da observação dos fatos. Quando se trata de  remontar dos efeitos às causas, a reencarnação surge como de necessidade absoluta,  como condição inerente à Humanidade; numa palavra: como lei da Natureza. Pelos  seus  resultados,  ela  se  evidencia,  de  modo,  por  assim  dizer,  material,  da  mesma  forma que o motor oculto se revela pelo movimento. Só ela pode dizer ao homem
  • 55. 55 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  donde ele vem, para onde vai, por que está na Terra, e justificar todas as anomalias  e todas as aparentes injustiças que a vida apresenta 6  .  Sem o princípio da preexistência da alma e da pluralidade das existências,  são  ininteligíveis,  em  sua  maioria,  as  máximas  do  Evangelho,  razão  por  que  hão  dado lugar a tão contraditórias interpretações. Está nesse princípio a chave que lhes  restituirá o sentido verdadeiro.  A REENCARNAÇÃO FORTALECE OS LAÇOS DE FAMÍLIA, AO PASSO  QUE A UNICIDADE DA EXISTÊNCIA OS ROMPE  18. Os laços de família não sofrem destruição alguma com a reencarnação, como o  pensam  certas  pessoas.  Ao  contrário,  tornam­se  mais  fortalecidos  e  apertados.  O  princípio oposto, sim, os destrói.  No  espaço,  os  Espíritos  formam  grupos  ou  famílias  entrelaçados  pela  afeição, pela simpatia e pela semelhança das inclinações. Ditosos por se encontrarem  juntos,  esses  Espíritos  se  buscam  uns  aos  outros.  A  encarnação  apenas  momentaneamente os separa, porquanto, ao regressarem à erraticidade, novamente  se reúnem como amigos que voltam de uma viagem. Muitas vezes, até, uns seguem  a outros na encarnação, vindo aqui reunir­se numa mesma família, ou num mesmo  círculo, a fim de trabalharem juntos pelo seu mútuo adiantamento. Se uns encarnam  e  outros  não,  nem  por  isso  deixam  de  estar  unidos  pelo  pensamento.  Os  que  se  conservam  livres  velam  pelos  que  se  acham  em  cativeiro.  Os  mais  adiantados  se  esforçam por fazer que os retardatários progridam. Após cada existência, todos têm  avançado um passo na senda do aperfeiçoamento.  Cada  vez  menos  presos  à  matéria,  mais  viva  se  lhes  torna  a  afeição  recíproca,  pela  razão  mesma  de  que,  mais  depurada,  não  tem  a  perturbá­la  o  egoísmo, nem as sombras das paixões. Podem, portanto, percorrer, assim, ilimitado  número de existências corpóreas, sem que nenhum golpe receba a mútua estima que  os liga.  Está bem visto que aqui se trata de afeição real, de alma a alma, única que  sobrevive  à  destruição  do  corpo,  porquanto  os  seres  que  neste  mundo  se  unem  apenas  pelos  sentidos  nenhum  motivo  têm  para  se  procurarem  no  mundo  dos  Espíritos. Duráveis somente o são as afeições espirituais; as de natureza carnal se  extinguem com a causa que lhes deu origem. Ora, semelhante causa não subsiste no  mundo dos Espíritos, enquanto a alma existe sempre. No que concerne às pessoas  que se unem exclusivamente por motivo de interesse, essas nada realmente são umas  para as outras: a morte as separa na Terra e no céu.  19.  A  união  e  a  afeição  que  existem  entre  pessoas  parentes  são  um  índice  da  simpatia anterior que as aproximou. Daí vem que, falando­se de alguém cujo caráter,  gostos e pendores nenhuma semelhança apresentam com os dos seus parentes mais  próximos, se costuma dizer que ela não é da família. Dizendo­se isso, enuncia­se  6  Veja­se, para os desenvolvimentos do dogma da reencarnação, O Livro dos Espíritos, caps. IV e V; O  que é o Espiritismo, cap. II, por Allan Kardec; Pluralidade das Existências, por Pezzani.
  • 56. 56 – Allan Kardec  uma  verdade  mais  profunda  do  que  se  supõe.  Deus  permite  que,  nas  famílias,  ocorram  essas  encarnações  de  Espíritos  antipáticos  ou  estranhos,  com  o  duplo  objetivo de servir de prova para uns e, para outros, de meio de progresso. Assim, os  maus se melhoram pouco a pouco, ao contacto dos bons e por efeito dos cuidados  que  se  lhes  dispensam.  O  caráter  deles  se  abranda,  seus  costumes  se  apuram,  as  antipatias se esvaem. É desse modo que se opera a fusão das diferentes categorias de  Espíritos, como se dá na Terra com as raças e os povos.  20.  O  temor  de  que  a  parentela  aumente  indefinidamente,  em  conseqüência  da  reencarnação,  é  de  fundo  egoístico:  prova,  naquele  que  o  sente,  falta  de  amor  bastante amplo para abranger grande número de pessoas. Um pai, que tem muitos  filhos, ama­os menos do que amaria a um deles, se fosse único? Mas, tranqüilizem­  se os egoístas: não há fundamento para semelhante temor. Do fato de um homem ter  tido dez encarnações, não se segue que vá encontrar, no mundo dos Espíritos, dez  pais,  dez  mães,  dez  mulheres  e  um  número  proporcional  de  filhos  e  de  parentes  novos. Lá encontrará sempre os que  foram objeto da sua  afeição,  os quais se lhe  terão ligado na Terra, a títulos diversos, e, talvez, sob o mesmo título.  21.  Vejamos  agora  as  conseqüências  da  doutrina  anti­reencarnacionista.  Ela,  necessariamente,  anula  a  preexistência  da  alma.  Sendo  estas  criadas  ao  mesmo  tempo em que os corpos, nenhum laço anterior há entre elas, que, nesse caso, serão  completamente estranhas umas às outras. O pai é estranho a seu filho. A filiação das  famílias fica assim reduzida à só filiação corporal, sem qualquer laço espiritual. Não  há  então  motivo  algum  para  quem  quer  que  seja  glorificar­se  de  haver  tido  por  antepassados tais ou tais personagens ilustres. Com a reencarnação, ascendentes e  descendentes podem já se terem conhecido, vivido juntos, amado, e podem reunir­se  mais tarde, a fim de apertarem entre si os laços de simpatia.  22.  Isso  quanto  ao  passado.  Quanto  ao  futuro,  segundo  um  dos  dogmas  fundamentais  que  decorrem  da  não­reencarnação,  a  sorte  das  almas  se  acha  irrevogavelmente determinada, após uma só existência. A fixação definitiva da sorte  implica a cessação de todo progresso, pois desde que haja qualquer progresso já não  há sorte definitiva. Conforme tenham vivido bem ou mal, elas vão imediatamente  para  a  mansão  dos  bem­aventurados,  ou  para  o  inferno  eterno.  Ficam  assim,  imediatamente e para sempre, separadas e sem esperança de tornarem a juntar­se,  de forma que pais, mães e filhos, maridos e mulheres, irmãos, irmãs e amigos jamais  podem  estar  certos  de  se  verem  novamente;  é  a  ruptura  absoluta  dos  laços  de  família.  Com a reencarnação e progresso a que dá lugar, todos os que se amaram  tornam a encontrar­se na Terra e no espaço e juntos gravitam para Deus. Se alguns  fraquejam no caminho, esses retardam o seu adiantamento e a sua felicidade, mas  não há para eles perda de toda esperança. Ajudados, encorajados e amparados pelos  que os amam, um dia sairão do lodaçal em que se enterraram. Com a reencarnação,  finalmente, há perpétua solidariedade entre os encarnados e os desencarnados, e, daí,  estreitamento dos laços de afeição.
  • 57. 57 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  23. Em resumo, quatro alternativas se apresentam ao homem, para o seu futuro de  além­túmulo: 1ª, o nada, de acordo com a doutrina materialista; 2ª, a absorção no  todo  universal,  de  acordo  com  a  doutrina  panteísta;  3ª,  a  individualidade,  com  fixação definitiva da sorte, segundo a doutrina da Igreja; 4ª, a individualidade, com  progressão indefinita, conforme a Doutrina Espírita. Segundo as duas primeiras, os  laços  de  família  se  rompem  por  ocasião  da  morte  e  nenhuma  esperança  resta  às  almas de se encontrarem futuramente. Com a terceira, há para elas a possibilidade de  se  tornarem  a  ver,  desde  que  sigam  para  a  mesma  região,  que  tanto  pode  ser  o  inferno  como  o  paraíso.  Com  a  pluralidade  das  existências,  inseparável  da  progressão  gradativa,  há  a  certeza  na  continuidade  das  relações  entre  os  que  se  amaram, e é isso o que constitui a verdadeira família.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  LIMITES DA ENCARNAÇÃO  24. Quais os limites da encarnação? A bem dizer, a encarnação carece de limites  precisamente  traçados,  se  tivermos  em  vista  apenas  o  envoltório  que  constitui  o  corpo do Espírito, dado que a materialidade desse envoltório diminui à proporção  que o Espírito se purifica. Em certos mundos mais adiantados do que a Terra, já ele  é  menos  compacto,  menos  pesado  e  menos  grosseiro  e,  por  conseguinte,  menos  sujeito  a  vicissitudes.  Em  grau  mais  elevado,  é  diáfano  e  quase  fluídico.  Vai  desmaterializando­se de grau em grau e acaba por se confundir com o perispírito.  Conforme  o  mundo  em  que  é  levado  a  viver,  o  Espírito  reveste  o  invólucro  apropriado à natureza desse mundo.  O  próprio  perispírito  passa  por  transformações  sucessivas.  Torna­se  cada  vez mais etéreo, até à depuração completa, que é a condição dos puros Espíritos. Se  mundos especiais são destinados a Espíritos de grande adiantamento, estes últimos  não lhes ficam presos, como nos mundos inferiores. O estado de desprendimento em  que se encontram lhes permite ir a toda parte onde os chamem as missões que lhes  estejam confiadas.  Se  se  considerar  do  ponto  de  vista  material  a  encarnação,  tal  como  se  verifica na Terra, poder­se­á dizer que ela se limita aos mundos inferiores. Depende,  portanto, de o Espírito libertar­se dela mais ou menos rapidamente, trabalhando pela  sua purificação.  Deve  também  considerar­se  que  no  estado  de  desencarnado,  isto  é,  no  intervalo  das  existências  corporais,  a  situação  do  Espírito  guarda  relação  com  a  natureza do mundo a que o liga o grau do seu adiantamento. Assim, na erraticidade,  é  ele  mais  ou  menos  ditoso,  livre  e  esclarecido,  conforme  está  mais  ou  menos  desmaterializado. S. Luís. (Paris, 1859.)  NECESSIDADE DA ENCARNAÇÃO  25. É um castigo a encarnação e somente os Espíritos culpados estão sujeitos a  sofrê­la?
  • 58. 58 – Allan Kardec  A  passagem  dos  Espíritos  pela  vida  corporal  é  necessária  para  que  eles  possam cumprir, por meio de uma ação material, os desígnios cuja execução Deus  lhes confia. É­lhes necessária, a bem deles, visto que a atividade que são obrigados a  exercer lhes auxilia o desenvolvimento da inteligência. Sendo soberanamente justo,  Deus  tem  de  distribuir  tudo  igualmente  por  todos  os  seus  filhos;  assim  é  que  estabeleceu  para  todos  o  mesmo  ponto  de  partida,  a  mesma  aptidão,  as  mesmas  obrigações a cumprir e a mesma liberdade de proceder. Qualquer privilégio seria  uma preferência, uma injustiça. Mas, a encarnação, para todos os Espíritos, é apenas  um estado transitório. É uma tarefa que Deus lhes impõe, quando iniciam a vida,  como primeira experiência do uso que farão do livre­arbítrio. Os que desempenham  com  zelo  essa  tarefa  transpõem  rapidamente  e  menos  penosamente  os  primeiros  graus da iniciação e mais cedo gozam do fruto de seus labores. Os que, ao contrário,  usam mal da liberdade que Deus lhes concede retardam a sua marcha e, tal seja a  obstinação  que  demonstrem,  podem  prolongar  indefinidamente  a  necessidade  da  reencarnação e é quando se torna um castigo. – S. Luís. (Paris, 1859.)  26. Nota – Uma comparação vulgar fará se compreenda melhor essa diferença. O  escolar  não  chega  aos  estudos  superiores  da  Ciência,  senão  depois  de  haver  percorrido a série das classes que até lá o conduzirão. Essas classes, qualquer que  seja o trabalho que exijam, são um meio de o estudante alcançar o fim e não um  castigo  que  se  lhe inflige.  Se  ele  é  esforçado,  abrevia  o  caminho, no  qual,  então,  menos espinhos encontra. Outro tanto não sucede àquele a quem a negligência e a  preguiça obrigam a passar duplamente por certas classes. Não é o trabalho da classe  que constitui a punição; esta se acha na obrigação de recomeçar o mesmo trabalho.  Assim  acontece  com  o  homem  na  Terra.  Para  o  Espírito  do  selvagem,  que  está  apenas no início da vida espiritual, a encarnação é um meio de ele desenvolver a sua  inteligência; contudo, para o homem esclarecido, em quem o senso moral se acha  largamente desenvolvido e que é obrigado a percorrer de novo as etapas de uma vida  corpórea cheia de angústias, quando já poderia ter chegado ao fim, é um castigo,  pela necessidade em que se vê de prolongar sua permanência em mundos inferiores  e  desgraçados.  Aquele  que,  ao  contrário,  trabalha  ativamente  pelo  seu  progresso  moral, além de abreviar o tempo da encarnação material, pode também transpor de  uma só vez os degraus intermédios que o separam dos mundos superiores.  Não poderiam os Espíritos encarnar uma única vez em determinado globo e  preencher  em  esferas  diferentes  suas  diferentes  existências?  Semelhante  modo  de  ver  só  seria  admissível  se,  na  Terra,  todos  os  homens  estivessem  exatamente  no  mesmo nível intelectual e moral. As diferenças que há entre eles, desde o selvagem  ao homem civilizado, mostram quais os degraus que têm de subir. A encarnação,  aliás, precisa ter um fim útil. Ora, qual seria o das encarnações efêmeras das crianças  que morrem em tenra idade? Teriam sofrido sem proveito para si, nem para outrem.  Deus,  cujas  leis  todas  são  soberanamente  sábias,  nada  faz  de  inútil.  Pela  reencarnação  no  mesmo  globo,  quis  ele  que  os  mesmos  Espíritos,  pondo­se  novamente em contacto, tivessem ensejo de reparar seus danos recíprocos. Por meio  das suas relações anteriores, quis, além disso, estabelecer  sobre base  espiritual os  laços  de  família  e  apoiar  numa  lei  natural  os  princípios  da  solidariedade,  da  fraternidade e da igualdade.
  • 59. 59 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO V  BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS ·  JUSTIÇA DAS AFLIÇÕES ·  CAUSAS ATUAIS DAS AFLIÇÕES ·  CAUSAS ANTERIORES DAS AFLIÇÕES ·  ESQUECIMENTO DO PASSADO ·  MOTIVOS DE RESIGNAÇÃO ·  O SUICÍDIO E A LOUCURA  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS ·  BEM E MAL SOFRER ·  O MAL E O REMÉDIO ·  A FELICIDADE NÃO É DESTE MUNDO ·  PERDA DE PESSOAS AMADAS. MORTES PREMATURAS ·  SE FOSSE UM HOMEM DE BEM, TERIA MORRIDO ·  OS TORMENTOS VOLUNTÁRIOS ·  A DESGRAÇA REAL ·  A MELANCOLIA ·  PROVAS VOLUNTÁRIAS. O VERDADEIRO CILÍCIO ·  DEVER­SE­Á PÔR TERMO ÀS PROVAS DO PRÓXIMO? ·  SERÁ LÍCITO ABREVIAR A VIDA DE UM DOENTE QUE SOFRA SEM  ESPERANÇA DE CURA? ·  SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA ·  PROVEITO DOS SOFRIMENTOS PARA OUTREM  1.  “ Bem­aventurados  os  que  choram,  pois  que  serão  consolados.  Bem­  aventurados  os  famintos  e  os  sequiosos  de  justiça,  pois  que  serão  saciados.  Bem­aventurados  os  que  sofrem  perseguição  pela  justiça,  pois  que é deles o reino dos céus”.  (MATEUS, 5:4, 6 e 10)  2.  “ Bem­aventurados  vós,  que  sois  pobres,  porque  vosso  é  o  reino  dos  céus.  Bem­aventurados  vós,  que  agora  tendes  fome,  porque  sereis  saciados. Ditosos sois, vós que agora chorais, porque rireis”.  (LUCAS, 6:20 e 21)
  • 60. 60 – Allan Kardec  “Mas, ai de vós, ricos! Que tendes no mundo a vossa consolação. Ai de vós  que estais saciados, porque tereis fome. Ai de vós que agora rides, porque  sereis constrangidos a gemer e a chorar”.  (LUCAS, 6:24 e 25)  JUSTIÇA DAS AFLIÇÕES  3. Somente na vida futura podem efetivar­se as compensações que Jesus promete  aos  aflitos  da  Terra.  Sem  a  certeza  do  futuro,  estas  máximas  seriam  um  contra­  senso;  mais  ainda:  seriam  um  engodo.  Mesmo  com  essa  certeza,  dificilmente  se  compreende  a  conveniência  de  sofrer  para  ser  feliz.  É,  dizem,  para  se  ter  maior  mérito. Mas, então, pergunta­se: por que sofrem uns mais do que outros? Por que  nascem uns na miséria e outros na opulência, sem coisa alguma haverem feito que  justifique essas posições? Por que uns nada conseguem, ao passo que a outros tudo  parece sorrir? Todavia, o que ainda menos se compreende é que os bens e os males  sejam  tão  desigualmente  repartidos  entre  o  vício  e  a  virtude;  e  que  os  homens  virtuosos sofram, ao lado dos maus que prosperam. A fé no futuro pode consolar e  infundir  paciência,  mas  não  explica  essas  anomalias,  que  parecem  desmentir  a  justiça de Deus. Entretanto, desde que admita a existência de Deus, ninguém o pode  conceber sem o infinito das perfeições. Ele necessariamente tem todo o poder, toda a  justiça, toda a bondade, sem o que não seria Deus. Se é soberanamente bom e justo,  não pode agir caprichosamente, nem com parcialidade. Logo, as vicissitudes da vida  derivam de uma causa e, pois que Deus é justo, justa há de ser essa causa. Isso o de  que cada um deve bem compenetrar­se. Por meio dos ensinos de Jesus, Deus pôs os  homens na direção dessa causa, e hoje, julgando­os suficientemente maduros para  compreendê­la, lhes revela completamente a aludida causa, por meio do Espiritismo,  isto é, pela palavra dos Espíritos.  CAUSAS ATUAIS DAS AFLIÇÕES  4. De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de  duas  fontes  bem  diferentes,  que  importa  distinguir.  Umas  têm  sua  causa  na  vida  presente; outras, fora desta vida.  Remontando­se à origem dos males terrestres, reconhecer­se­á que muitos  são conseqüência natural do caráter e do proceder dos que os suportam.  Quantos homens caem por sua própria culpa! Quantos são vítimas de sua  imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição!  Quantos  se  arruínam  por  falta  de  ordem,  de  perseverança,  pelo  mau  proceder, ou por não terem sabido limitar seus desejos!  Quantas uniões desgraçadas, porque resultaram de um cálculo de interesse  ou de vaidade e nas quais o coração não tomou parte alguma!  Quantas dissensões e funestas disputas se teriam evitado com um pouco de  moderação e menos suscetibilidade!
  • 61. 61 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Quantas doenças e enfermidades decorrem da intemperança e dos excessos  de todo gênero!  Quantos  pais  são  infelizes  com  seus  filhos,  porque não  lhes  combateram  desde  o  princípio  as  más  tendências!  Por  fraqueza,  ou  indiferença,  deixaram  que  neles se desenvolvessem os germens do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade, que  produzem a secura do coração; depois, mais tarde, quando colhem o que semearam,  admiram­se e se afligem da falta de deferência com que são tratados e da ingratidão  deles.  Interroguem  friamente  suas  consciências  todos  os  que  são  feridos  no  coração pelas vicissitudes e decepções da vida; remontem passo a passo à origem  dos males que os torturam e verifiquem se, as mais das vezes, não poderão dizer: Se  eu  houvesse  feito,  ou  deixado  de  fazer  tal  coisa,  não  estaria  em  semelhante  condição.  A  quem,  então, há  de  o  homem  responsabilizar  por  todas  essas  aflições,  senão a si mesmo? O homem, pois, em grande número de casos, é o causador de  seus próprios infortúnios; mas, em vez de reconhecê­lo, acha mais simples, menos  humilhante  para  a  sua  vaidade  acusar  a  sorte,  a  Providência,  a  má  fortuna,  a má  estrela, ao passo que a má estrela é apenas a sua incúria.  Os  males  dessa  natureza  fornecem,  indubitavelmente,  um  notável  contingente  ao  cômputo  das  vicissitudes  da  vida.  O  homem  as  evitará  quando  trabalhar por se melhorar moralmente, tanto quanto intelectualmente.  5. A lei humana atinge certas faltas e as pune. Pode, então, o condenado reconhecer  que sofre a conseqüência do que fez. Mas a lei não atinge, nem pode atingir todas as  faltas; incide especialmente sobre as que trazem prejuízo à sociedade e não sobre as  que só prejudicam os que as cometem. Deus, porém, quer que todas as suas criaturas  progridam e, portanto, não deixa impune qualquer desvio do caminho reto. Não há  falta alguma, por mais leve que seja, nenhuma infração da sua lei, que não acarrete  forçosas e inevitáveis conseqüências, mais ou menos deploráveis. Daí se segue que,  nas pequenas coisas, como nas grandes, o homem é sempre punido por aquilo em  que pecou. Os sofrimentos que decorrem do pecado são­lhe uma advertência de que  procedeu  mal.  Dão­lhe  experiência,  fazem­lhe  sentir  a  diferença  existente  entre  o  bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de futuro, evitar o que lhe originou  uma  fonte  de  amarguras;  sem  o  que, motivo  não  haveria para que  se  emendasse.  Confiante  na  impunidade,  retardaria  seu  avanço  e,  conseqüentemente,  a  sua  felicidade futura.  Entretanto, a experiência, algumas vezes, chega um pouco tarde: quando a  vida já foi desperdiçada e turbada; quando as forças já estão gastas e sem remédio o  mal. Põe­se então o homem a dizer: “Se no começo dos meus dias eu soubera o que  sei hoje, quantos passos em falso teria evitado! Se houvesse de recomeçar, conduzir­  me­ia  de  outra  maneira.  No  entanto,  já  não  há  mais  tempo!”  Como  o  obreiro  preguiçoso,  que  diz:  “Perdi  o  meu  dia”,  também  ele  diz:  “Perdi  a  minha  vida”.  Contudo, assim como para o obreiro o Sol se levanta no dia seguinte, permitindo­lhe  neste  reparar  o  tempo  perdido,  também  para  o  homem,  após  a  noite  do  túmulo,  brilhará o Sol de uma nova vida, em que lhe será possível aproveitar a experiência  do passado e suas boas resoluções para o futuro.
  • 62. 62 – Allan Kardec  CAUSAS ANTERIORES DAS AFLIÇÕES  6. Mas, se há males nesta vida cuja causa primária é o homem, outros há também  aos quais, pelo menos na aparência, ele é completamente estranho e que parecem  atingi­lo como por fatalidade. Tal, por exemplo, a perda de entes queridos e a dos  que  são  o  amparo  da  família.  Tais,  ainda,  os  acidentes  que  nenhuma  previsão  poderia  impedir;  os  reveses  da  fortuna,  que  frustram  todas  as  precauções  aconselhadas  pela  prudência;  os  flagelos  naturais,  as  enfermidades  de  nascença,  sobretudo as que tiram a tantos infelizes os meios de ganhar a vida pelo trabalho: as  deformidades, a idiotia, o cretinismo, etc.  Os que nascem nessas condições, certamente nada hão feito na existência  atual para merecer, sem compensação, tão triste sorte, que não podiam evitar, que  são  impotentes  para mudar  por  si  mesmos  e  que  os  põe  à  mercê  da  comiseração  pública. Por que, pois, seres tão desgraçados, enquanto, ao lado deles, sob o mesmo  teto, na mesma família, outros são favorecidos de todos os modos?  Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só  conheceram  sofrimentos?  Problemas  são  esses  que  ainda  nenhuma  filosofia  pôde  resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da  bondade,  da  justiça  e  da  providência  de  Deus,  se  se  verificasse  a  hipótese  de  ser  criada  a  alma  ao  mesmo  tempo  em  que  o  corpo  e  de  estar  a  sua  sorte  irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra. Que  fizeram essas almas, que acabam de sair das mãos do Criador, para se verem, neste  mundo, a braços com tantas misérias e para merecerem no futuro uma recompensa  ou uma punição qualquer, visto que não hão podido praticar nem o bem, nem o mal?  Todavia, por virtude do axioma segundo o qual todo efeito tem uma causa,  tais misérias são efeitos que hão de ter uma causa e, desde que se admita um Deus  justo, essa causa também há de ser justa. Ora, ao efeito precedendo sempre a causa,  se esta não se encontra na vida atual, há de ser anterior a essa vida, isto é, há de estar  numa existência precedente. Por outro lado, não podendo Deus punir alguém pelo  bem que fez, nem pelo mal que não fez, se somos punidos, é que fizemos o mal; se  esse mal não o fizemos na presente vida, tê­lo­emos feito noutra. É uma alternativa a  que ninguém pode fugir e em que a lógica decide de que parte se acha a justiça de  Deus.  O homem, pois, nem sempre é punido, ou punido completamente, na sua  existência  atual;  mas  não  escapa  nunca  às  conseqüências  de  suas  faltas.  A  prosperidade do mau é apenas momentânea; se ele não expiar hoje, expiará amanhã,  ao  passo  que  aquele  que  sofre  está  expiando  o  seu  passado.  O  infortúnio  que,  à  primeira vista, parece imerecido tem sua razão de ser, e aquele que se encontra em  sofrimento pode sempre dizer: “Perdoa­me, Senhor, porque pequei.”  7. Os sofrimentos devidos a causas anteriores à existência presente, como os que se  originam de culpas atuais, são muitas vezes a conseqüência da falta cometida, isto é,  o homem, pela ação de uma rigorosa justiça distributiva, sofre o que fez sofrer aos  outros.  Se  foi  duro  e  desumano,  poderá  ser a  seu  turno  tratado  duramente  e  com  desumanidade;  se  foi  orgulhoso,  poderá  nascer  em  humilhante  condição;  se  foi
  • 63. 63 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  avaro,  egoísta,  ou  se  fez  mau  uso  de  suas  riquezas,  poderá  ver­se  privado  do  necessário; se foi mau filho, poderá sofrer pelo procedimento de seus filhos, etc.  Assim  se  explicam  pela  pluralidade  das  existências  e  pela  destinação  da  Terra, como mundo expiatório, as anomalias que apresenta a distribuição da ventura  e  da  desventura  entre  os  bons  e  os  maus  neste  planeta.  Semelhante  anomalia,  contudo, só existe na aparência, porque considerada tão­só do ponto de vista da vida  presente. Aquele que se elevar, pelo pensamento, de maneira a apreender toda uma  série de existências, verá que a cada um é atribuída a parte que lhe compete, sem  prejuízo  da  que  lhe  tocará no  mundo  dos  Espíritos,  e  verá  que  a  justiça de  Deus  nunca se interrompe.  Jamais  deve  o  homem  olvidar  que  se  acha num mundo  inferior,  ao  qual  somente  as  suas  imperfeições  o  conservam  preso.  A  cada vicissitude,  cumpre­lhe  lembrar­se de que, se pertencesse a um mundo mais adiantado, isso não se daria e  que só de si depende não voltar a este, trabalhando por se melhorar.  8.  As  tribulações  podem  ser  impostas  a  Espíritos  endurecidos,  ou  extremamente  ignorantes,  para  levá­los  a  fazer  uma  escolha  com  conhecimento  de  causa.  Os  Espíritos  penitentes,  porém,  desejosos  de  reparar  o  mal  que  hajam  feito  e  de  proceder  melhor,  esses  as  escolhem  livremente.  Tal  o  caso  de  um  que,  havendo  desempenhado mal sua tarefa, pede lha deixem recomeçar, para não perder o fruto  de  seu  trabalho.  As  tribulações,  portanto,  são,  ao  mesmo  tempo,  expiações  do  passado, que recebe nelas o merecido castigo, e provas com relação ao futuro, que  elas preparam. Rendamos graças a Deus, que, em sua bondade, faculta ao homem  reparar seus erros e não o condena irrevogavelmente por uma primeira falta.  9.  Não há  crer, no  entanto,  que  todo  sofrimento  suportado  neste mundo  denote  a  existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo  Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso. Assim, a expiação  serve  sempre  de  prova,  mas  nem  sempre  a  prova  é  uma  expiação.  Provas  e  expiações, todavia, são sempre sinais de relativa inferioridade, porquanto o que é  perfeito não precisa ser provado. Pode, pois, um Espírito haver chegado a certo grau  de  elevação  e,  nada  obstante,  desejoso  de  adiantar­se  mais,  solicitar  uma missão,  uma tarefa  a  executar,  pela  qual  tanto  mais recompensado  será,  se  sair  vitorioso,  quanto mais rude haja sido a luta. Tais são, especialmente, essas pessoas de instintos  naturalmente bons, de alma elevada, de nobres sentimentos inatos, que parece nada  de  mau  haverem  trazido  de  suas  precedentes  existências  e  que  sofrem,  com  resignação  toda  cristã,  as maiores  dores,  somente  pedindo  a  Deus  que  as  possam  suportar  sem  murmurar.  Pode­se,  ao  contrário,  considerar  como  expiações  as  aflições que provocam queixas e impelem o homem à revolta contra Deus.  Sem  dúvida,  o  sofrimento  que  não  provoca  queixumes  pode  ser  uma  expiação; mas, é indício de que foi buscada voluntariamente, antes que imposta, e  constitui prova de forte resolução, o que é sinal de progresso.  10. Os Espíritos não podem aspirar à completa felicidade, enquanto não se tenham  tornado  puros:  qualquer  mácula  lhes  interdita  a  entrada nos  mundos  ditosos.  São  como os passageiros de um navio onde há pestosos, aos quais se veda o acesso à
  • 64. 64 – Allan Kardec  cidade a que aportem, até que se hajam expurgado. Mediante as diversas existências  corpóreas  é  que  os  Espíritos  se  vão  expungindo,  pouco  a  pouco,  de  suas  imperfeições. As provações da vida os fazem adiantar­se, quando bem suportadas.  Como  expiações,  elas  apagam as  faltas  e  purificam.  São  o  remédio  que  limpa as  chagas e cura o doente. Quanto mais grave é o mal, tanto mais enérgico deve ser o  remédio. Aquele, pois, que muito sofre deve reconhecer que muito tinha a expiar e  deve regozijar­se à idéia da sua próxima cura. Dele depende, pela resignação, tornar  proveitoso  o  seu  sofrimento  e não  lhe  estragar  o  fruto  com as  suas  impaciências,  visto que, do contrário, terá de recomeçar.  ESQUECIMENTO DO PASSADO  11.  Em  vão  se  objeta  que  o  esquecimento  constitui  obstáculo  a  que  se  possa  aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus entendido de lançar um  véu  sobre  o  passado,  é  que  há  nisso  vantagem.  Com  efeito,  a  lembrança  traria  gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar­nos singularmente,  ou, então, exaltar­nos o orgulho e, assim, entravar o nosso livre­arbítrio. Em todas as  circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais.  Freqüentemente,  o  Espírito  renasce  no  mesmo  meio  em  que  já  viveu,  estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que  lhes  haja  feito.  Se  reconhecesse  nelas  as  a  quem  odiara,  quiçá  o  ódio  se  lhe  despertaria  outra  vez  no  íntimo.  De  todo  modo,  ele  se  sentiria  humilhado  em  presença daquelas a quem houvesse ofendido.  Para  nos  melhorarmos,  outorgou­nos  Deus,  precisamente,  o  de  que  necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva­nos  do que nos seria prejudicial.  Ao  nascer, traz  o  homem  consigo  o  que  adquiriu, nasce qual  se  fez;  em  cada existência, tem um novo ponto de partida. Pouco lhe importa saber o que foi  antes: se se vê punido, é que praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam o  que lhe resta a corrigir em si próprio e é nisso que deve concentrar­se toda a sua  atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente, nenhum traço  mais  conservará.  As  boas  resoluções  que  tomou  são  a  voz  da  consciência,  advertindo­o  do  que  é  bem  e  do  que  é  mal  e  dando­lhe  forças  para  resistir  às  tentações.  Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea. Volvendo à  vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado; nada mais há, portanto,  do que uma interrupção temporária, semelhante à que se dá na vida terrestre durante  o sono, a qual não obsta a que, no dia seguinte, nos recordemos do que tenhamos  feito na véspera e nos dias precedentes.  E  não  é  somente  após  a  morte  que  o  Espírito  recobra  a  lembrança  do  passado.  Pode  dizer­se  que  jamais  a  perde,  pois  que,  como  a  experiência  o  demonstra, mesmo encarnado, adormecido o corpo, ocasião em que goza de certa  liberdade, o Espírito tem consciência de seus atos anteriores; sabe por que sofre e  que sofre com justiça. A lembrança unicamente se apaga no curso da vida exterior,  da  vida  de  relação.  Mas,  na  falta  de  uma  recordação  exata,  que  lhe  poderia  ser
  • 65. 65 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  penosa  e  prejudicá­lo  nas  suas  relações  sociais,  forças  novas  haure  ele  nesses  instantes de emancipação da alma, se os sabe aproveitar.  MOTIVOS DE RESIGNAÇÃO  12. Por estas palavras: Bem­aventurados os aflitos, pois que serão consolados, Jesus  aponta  a  compensação  que  hão  de  ter  os  que  sofrem  e  a  resignação  que  leva  o  padecente a bendizer do sofrimento, como prelúdio da cura.  Também podem essas palavras ser traduzidas assim: Deveis considerar­vos  felizes por sofrerdes, visto que as dores deste mundo são o pagamento da dívida que  as vossas passadas faltas vos fizeram contrair; suportadas pacientemente na Terra,  essas dores vos poupam séculos de sofrimentos na vida futura. Deveis, pois, sentir­  vos felizes por reduzir Deus a vossa dívida, permitindo que a saldeis agora, o que  vos garantirá a tranqüilidade no porvir.  O homem que sofre assemelha­se a um devedor de avultada soma, a quem  o credor diz: “Se me pagares hoje mesmo a centésima parte do teu débito, quitar­te­  ei  do  restante  e  ficarás  livre;  se  o  não  fizeres,  atormentar­te­ei,  até  que  pagues  a  última  parcela.”  Não  se  sentiria  feliz  o  devedor  por  suportar  toda  espécie  de  privações para se libertar, pagando apenas a centésima parte do que deve? Em vez  de se queixar do seu credor, não lhe ficará agradecido?  Tal  o  sentido  das  palavras:  “Bem­aventurados  os  aflitos,  pois  que  serão  consolados.” São ditosos, porque se quitam e porque, depois de se haverem quitado,  estarão livres. Se, porém, o homem, ao quitar­se de um lado, endivida­se de outro,  jamais  poderá  alcançar  a  sua  libertação.  Ora,  cada  nova  falta  aumenta  a  dívida,  porquanto  nenhuma  há,  qualquer  que  ela  seja,  que  não  acarrete  forçosa  e  inevitavelmente uma punição. Se não for hoje, será amanhã; se não for na vida atual,  será noutra. Entre essas faltas, cumpre se coloque na primeira fiada a carência de  submissão  à  vontade  de  Deus.  Logo,  se  murmurarmos  nas  aflições,  se  não  as  aceitarmos com resignação e como algo que devemos ter merecido, se acusarmos a  Deus  de  ser  injusto,  nova  dívida  contraímos,  que  nos  faz  perder  o  fruto  que  devíamos colher do sofrimento. É por isso que teremos de recomeçar, absolutamente  como se, a um credor que nos atormente, pagássemos uma cota e a tomássemos de  novo por empréstimo.  Ao  entrar no mundo dos Espíritos, o homem ainda está como  o  operário  que comparece no dia do pagamento. A uns dirá o Senhor: “Aqui tens a paga dos  teus dias de trabalho”; a outros, aos venturosos da Terra, aos que hajam vivido na  ociosidade,  que  tiverem  feito  consistir  a  sua  felicidade  nas  satisfações  do  amor­  próprio e nos gozos mundanos: “Nada vos toca, pois que recebestes na Terra o vosso  salário. Ide e recomeçai a tarefa.”  13.  O homem  pode  suavizar  ou  aumentar  o  amargor  de  suas  provas,  conforme  o  modo por que encare a vida terrena. Tanto mais sofre ele, quanto mais longa se lhe  afigura  a  duração  do  sofrimento.  Ora,  aquele  que  a  encara  pelo  prisma  da  vida  espiritual apanha, num golpe de vista, a vida corpórea. Ele a vê como um ponto no  infinito, compreende­lhe a curteza e reconhece que esse penoso momento terá presto
  • 66. 66 – Allan Kardec  passado. A certeza de um próximo futuro mais ditoso o sustenta e anima e, longe de  se  queixar, agradece  ao  Céu  as  dores  que  o  fazem  avançar.  Contrariamente,  para  aquele que apenas vê a vida corpórea, interminável lhe parece esta, e a dor o oprime  com todo o seu peso. Daquela maneira de considerar a vida, resulta ser diminuída a  importância das coisas deste mundo, e sentir­se compelido o homem a moderar seus  desejos,  a  contentar­se  com  a  sua  posição,  sem  invejar  a  dos  outros,  a  receber  atenuada a impressão dos reveses e das decepções que experimente. Daí tira ele uma  calma e uma resignação tão úteis à saúde do corpo quanto à da alma, ao passo que,  com a inveja, o ciúme e a ambição, voluntariamente se condena à tortura e aumenta  as misérias e as angústias da sua curta existência.  O SUICÍDIO E A LOUCURA  14. A calma e a resignação hauridas da maneira de considerar a vida terrestre e da  confiança  no  futuro  dão  ao  espírito  uma  serenidade  que  é  o  melhor  preservativo  contra a loucura e o suicídio. Com efeito, é certo que a maioria dos casos de loucura  se deve à comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não tem a coragem de  suportar. Ora, se encarando as coisas deste mundo da maneira por que o Espiritismo  faz que ele as considere, o homem recebe com indiferença, mesmo com alegria, os  reveses e as decepções que o houveram desesperado noutras circunstâncias, evidente  se  torna  que  essa  força,  que  o  coloca  acima  dos  acontecimentos,  lhe  preserva  de  abalos a razão, os quais, se não fora isso, a conturbariam.  15.  O  mesmo  ocorre  com  o  suicídio.  Postos  de  lado  os  que  se  dão  em  estado  de  embriaguez e de loucura, aos quais se pode chamar de inconscientes, é incontestável  que  tem  ele  sempre  por  causa  um  descontentamento,  quaisquer  que  sejam  os  motivos  particulares  que  se  lhe  apontem.  Ora,  aquele  que  está  certo  de  que  só  é  desventurado  por  um  dia  e  que  melhores  serão  os  dias  que  hão  de  vir,  enche­se  facilmente de paciência. Só se desespera quando nenhum termo divisa para os seus  sofrimentos. E que é a vida humana, com relação à eternidade, senão bem menos  que um dia? Mas, para o que não crê na eternidade e julga que com a vida tudo se  acaba, se os infortúnios e as aflições o acabrunham, unicamente na morte vê uma  solução para as suas amarguras. Nada esperando, acha muito natural, muito lógico  mesmo, abreviar pelo suicídio as suas misérias.  16. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, numa  palavra, são os maiores incitantes ao suicídio; ocasionam a covardia moral. Quando  homens de ciência, apoiados na autoridade do seu saber, se esforçam por provar aos  que os ouvem ou lêem que estes nada têm a esperar depois da morte, não estão de  fato levando­os a deduzir que, se são desgraçados, coisa melhor não lhes resta senão  se  matarem?  Que  lhes  poderiam  dizer  para  desviá­los  dessa  conseqüência?  Que  compensação lhes podem oferecer? Que esperança lhes podem dar? Nenhuma, a não  ser o nada. Daí se deve concluir que, se o nada é o único remédio heróico, a única  perspectiva,  mais  vale  buscá­lo  imediatamente  e  não  mais  tarde,  para  sofrer  por  menos tempo.
  • 67. 67 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  A propagação das doutrinas materialistas é, pois, o veneno que inocula a  idéia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos  de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo,  tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência  se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas;  donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no  suicídio; donde, em suma, a coragem moral.  17.  O  Espiritismo  ainda  produz,  sob  esse  aspecto,  outro  resultado  igualmente  positivo e talvez mais decisivo. Apresenta­nos os próprios suicidas a informar­nos  da  situação  desgraçada  em  que  se  encontram  e  a  provar  que  ninguém  viola  impunemente  a  lei  de  Deus,  que  proíbe  ao  homem  encurtar  a  sua  vida.  Entre  os  suicidas, alguns há cujos sofrimentos, nem por serem temporários e não eternos, não  são menos terríveis e de natureza a fazer refletir os que porventura pensam em daqui  sair,  antes  que  Deus  o  haja  ordenado.  O  espírita  tem,  assim,  vários  motivos  a  contrapor à idéia do suicídio: a certeza de uma vida futura, em que, sabe­o ele, será  tanto mais ditoso, quanto mais inditoso e resignado haja sido na Terra: a certeza de  que, abreviando seus dias, chega, precisamente, a resultado oposto ao que esperava;  que se liberta de um mal, para incorrer num mal pior, mais longo e mais terrível; que  se engana, imaginando que, com o matar­se, vai mais depressa para o céu; que o  suicídio é um obstáculo a que no outro mundo ele se reúna aos que foram objeto de  suas  afeições  e  aos  quais  esperava  encontrar;  donde  a  conseqüência  de  que  o  suicídio, só lhe trazendo decepções, é contrário aos seus próprios interesses. Por isso  mesmo, considerável já é o número dos que têm sido, pelo Espiritismo, obstados de  suicidar­se, podendo daí concluir­se que, quando todos os homens forem espíritas,  deixará de haver suicídios conscientes. Comparando­se, então, os resultados que as  doutrinas  materialistas  produzem  com  os  que  decorrem  da  Doutrina  Espírita,  somente  do  ponto  de  vista  do  suicídio,  forçoso  será  reconhecer  que,  enquanto  a  lógica  das  primeiras  a  ele  conduz,  a  da  outra  o  evita,  fato  que  a  experiência  confirma.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  BEM E MAL SOFRER  18.  Quando  o  Cristo  disse:  “Bem­aventurados  os  aflitos,  o  reino  dos  céus  lhes  pertence”, não se referia de modo geral aos que sofrem, visto que sofrem todos os  que se encontram na Terra, quer ocupem tronos, quer jazam sobre a palha. Mas, ah!  Poucos sofrem bem; poucos compreendem que somente as provas bem suportadas  podem  conduzi­los  ao  reino  de  Deus.  O  desânimo  é  uma  falta.  Deus  vos  recusa  consolações, desde que vos falte coragem. A prece é um apoio para a alma; contudo,  não basta: é preciso tenha por base uma fé viva na bondade de Deus. Ele já muitas  vezes  vos  disse  que  não  coloca  fardos  pesados  em  ombros  fracos.  O  fardo  é  proporcionado às forças, como a recompensa o será à resignação e à coragem. Mais
  • 68. 68 – Allan Kardec  opulenta será a recompensa, do que penosa a aflição. Cumpre, porém, merecê­la, e é  para isso que a vida se apresenta cheia de tribulações.  O  militar  que  não  é  mandado  para  as  linhas  de  fogo  fica  descontente,  porque  o  repouso  no  campo  nenhuma  ascensão  de  posto  lhe  faculta.  Sede,  pois,  como o militar e não desejeis um repouso em que o vosso corpo se enervaria e se  entorpeceria  a  vossa  alma.  Alegrai­vos,  quando  Deus  vos  enviar  para a  luta.  Não  consiste esta no fogo da batalha, mas nos amargores da vida, onde, às vezes, de mais  coragem  se  há  mister  do  que  num  combate  sangrento,  porquanto  não  é  raro  que  aquele que se mantém firme em presença do inimigo fraqueje nas tenazes de uma  pena moral. Nenhuma recompensa obtém o homem por essa espécie de  coragem;  mas,  Deus  lhe  reserva  palmas  de  vitória  e  uma  situação  gloriosa.  Quando  vos  advenha  uma  causa  de  sofrimento  ou  de  contrariedade,  sobreponde­vos  a  ela,  e,  quando houverdes conseguido dominar os ímpetos da impaciência, da cólera, ou do  desespero, dizei, de vós para convosco, cheio de justa satisfação: “Fui o mais forte.”  Bem­aventurados os aflitos pode então traduzir­se assim: Bem­aventurados  os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua perseverança e sua submissão  à  vontade  de  Deus,  porque  terão  centuplicada  a  alegria  que  lhes  falta  na  Terra,  porque depois do labor virá o repouso. – Lacordaire. (Havre, 1863)  O MAL E O REMÉDIO  19. Será a Terra um lugar de gozo, um paraíso de delícias? Já não ressoa mais aos  vossos ouvidos a voz do profeta? Não proclamou ele que haveria prantos e ranger de  dentes para os que nascessem nesse vale de dores? Esperai, pois, todos vós que aí  viveis, causticantes lágrimas e amargo sofrer e, por mais agudas e profundas sejam  as  vossas  dores,  volvei  o  olhar  para  o  Céu  e  bendizei  do  Senhor  por ter  querido  experimentar­vos... Ó homens! Dar­se­á não reconheçais o poder do vosso Senhor,  senão  quando  ele  vos  haja  curado  as  chagas  do  corpo  e  coroado  de  beatitude  e  ventura  os  vossos  dias?  Dar­se­á  não  reconheçais  o  seu  amor,  senão  quando  vos  tenha  adornado  o  corpo  de  todas  as  glórias  e  lhe  haja  restituído  o  brilho  e  a  brancura? Imitai aquele que vos foi dado para exemplo. Tendo chegado ao último  grau  da  abjeção  e  da  miséria,  deitado  sobre  uma  estrumeira,  disse  ele  a  Deus:  “Senhor,  conheci  todos  os  deleites  da  opulência  e  me  reduzistes  à  mais  absoluta  miséria; obrigado, obrigado, meu Deus, por haverdes querido experimentar o vosso  servo!” Até quando os vossos olhares se deterão nos horizontes que a morte limita?  Quando,  afinal,  vossa  alma  se  decidirá  a  lançar­se  para  além  dos  limites  de  um  túmulo? Houvésseis de chorar e sofrer a vida inteira, que seria isso, a par da eterna  glória reservada ao que tenha sofrido a prova com fé, amor e resignação? Buscai  consolações para os vossos males no porvir que Deus vos prepara e procurai­lhe a  causa no passado. E vós, que mais sofreis, considerai­vos os afortunados da Terra.  Como  desencarnados,  quando  pairáveis  no  Espaço,  escolhestes  as  vossas  provas, julgando­vos bastante fortes para as suportar. Por que agora murmurar? Vós,  que pedistes a riqueza e a glória, queríeis sustentar luta com a tentação e vencê­la.  Vós, que pedistes para lutar de corpo e espírito contra o mal moral e físico, sabíeis  que  quanto  mais  forte  fosse  a  prova,  tanto  mais  gloriosa  a  vitória  e  que,  se
  • 69. 69 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  triunfásseis, embora devesse o vosso corpo parar numa estrumeira, dele, ao morrer,  se desprenderia uma alma de rutilante alvura e purificada pelo batismo da expiação e  do sofrimento.  Que  remédio,  então,  prescrever  aos  atacados  de  obsessões  cruéis  e  de  cruciantes males? Só um é infalível: a fé, o apelo ao Céu. Se, na maior acerbidade  dos vossos sofrimentos, entoardes hinos ao Senhor, o anjo, à vossa cabeceira, com a  mão vos apontará o sinal da salvação e o lugar que um dia ocupareis... A fé  é  o  remédio seguro do sofrimento; mostra sempre os horizontes do infinito diante dos  quais se esvaem os poucos dias brumosos do presente. Não nos pergunteis, portanto,  qual  o  remédio  para  curar tal  úlcera  ou  tal  chaga,  para tal  tentação  ou  tal  prova.  Lembrai­vos  de  que  aquele  que  crê  é  forte  pelo  remédio  da  fé  e  que  aquele  que  duvida um instante da sua eficácia é imediatamente punido, porque logo sente as  pungitivas angústias da aflição.  O Senhor apôs o seu selo em todos os que nele crêem. O Cristo vos disse  que com a fé se transportam montanhas e eu vos digo que aquele que sofre e tem a  fé  por  amparo ficará  sob  a  sua  égide  e não  mais  sofrerá. Os  momentos  das  mais  fortes  dores  lhe  serão  as  primeiras  notas  alegres  da  eternidade.  Sua  alma  se  desprenderá de tal maneira do corpo que, enquanto se estorcer em convulsões, ela  planará nas regiões celestes, entoando, com os anjos, hinos de reconhecimento e de  glória ao Senhor.  Ditosos os que sofrem e choram! Alegres estejam suas almas, porque Deus  as cumulará de bem­aventuranças. – Santo Agostinho. (Paris, 1863)  A FELICIDADE NÃO É DESTE MUNDO  20.  Não  sou  feliz!  A  felicidade  não  foi  feita  para  mim!  Exclama  geralmente  o  homem em todas as posições sociais. Isso, meus caros filhos, prova, melhor do que  todos os raciocínios possíveis, a verdade desta máxima do Eclesiastes: “A felicidade  não é deste mundo.” Com efeito, nem a riqueza, nem o poder, nem mesmo a florida  juventude são condições essenciais à felicidade. Digo mais: nem mesmo reunidas  essas três condições tão desejadas, porquanto incessantemente se ouvem, no seio das  classes mais privilegiadas, pessoas de todas as idades se queixarem amargamente da  situação em que se encontram.  Diante  de  tal  fato,  é  inconcebível  que  as  classes  laboriosas  e  militantes  invejem com tanta ânsia a posição das que parecem favorecidas da fortuna. Neste  mundo, por mais que faça, cada um tem a sua parte de labor e de miséria, sua cota de  sofrimentos e de decepções, donde facilmente se chega à conclusão de que a Terra é  lugar de provas e de expiações.  Assim,  pois,  os  que  pregam  que  ela  é  a  única  morada  do  homem  e  que  somente nela e numa só existência é que lhe cumpre alcançar o mais alto grau das  felicidades que a sua natureza comporta, iludem­se e enganam os que os escutam,  visto que demonstrado está, por experiência arqui­secular, que só excepcionalmente  este globo apresenta as condições necessárias à completa felicidade do indivíduo.  Em  tese  geral  pode  afirmar­se  que  a  felicidade  é  uma  utopia  a  cuja  conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem alcançá­la. Se
  • 70. 70 – Allan Kardec  o  homem  ajuizado  é  uma  raridade  neste  mundo,  o  homem  absolutamente  feliz  jamais foi encontrado. O em que consiste a felicidade na Terra é coisa tão efêmera  para aquele que não tem a guiá­lo a ponderação, que, por um ano, um mês, uma  semana de satisfação completa, todo o resto da existência é uma série de amarguras  e decepções. E notai, meus caros filhos, que falo dos venturosos da Terra, dos que  são invejados pela multidão.  Conseguintemente,  se  à  morada  terrena  são  peculiares  as  provas  e  a  expiação,  forçoso  é  se  admita  que, algures,  moradas há mais  favorecidas,  onde  o  Espírito,  conquanto  aprisionado  ainda  numa  carne  material,  possui  em  toda  a  plenitude os gozos inerentes à vida humana. Tal a razão por que Deus semeou, no  vosso turbilhão, esses belos planetas superiores para os quais os vossos esforços e as  vossas tendências vos farão gravitar um dia, quando vos achardes suficientemente  purificados e aperfeiçoados.  Todavia,  não  deduzais  das  minhas  palavras  que  a  Terra  esteja  destinada  para sempre a ser uma penitenciária. Não, certamente! Dos progressos já realizados,  podeis  facilmente  deduzir  os  progressos  futuros  e,  dos  melhoramentos  sociais  conseguidos,  novos  e  mais  fecundos  melhoramentos.  Essa  a  tarefa  imensa  cuja  execução cabe à nova doutrina que os Espíritos vos revelaram.  Assim, pois, meus queridos  filhos, que uma santa emulação  vos anime e  que  cada  um  de  vós  se  despoje  do  homem  velho.  Deveis  todos  consagrar­vos  à  propagação  desse  Espiritismo  que  já  deu  começo  à  vossa  própria  regeneração.  Corre­vos o dever de fazer que os vossos irmãos participem dos raios da sagrada luz.  Mãos, portanto, à obra, meus muito queridos filhos! Que nesta reunião solene todos  os vossos corações aspirem a esse grandioso objetivo de preparar para as gerações  porvindouras  um  mundo  onde  já  não  seja  vã  a  palavra  felicidade.  –  François­  ­  Nicolas­Madeleine, cardeal Morlot. (Paris, 1863)  PERDA DE PESSOAS AMADAS.  MORTES PREMATURAS  21. Quando a morte ceifa nas vossas famílias, arrebatando, sem restrições, os mais  moços antes dos velhos, costumais dizer: Deus não é justo, pois sacrifica um que  está forte e tem grande futuro e conserva os que já viveram longos anos cheios de  decepções; pois leva os que são úteis e deixa os que para nada mais servem; pois  despedaça o coração de uma mãe, privando­a da inocente criatura que era toda a sua  alegria.  Humanos, é nesse ponto que precisais elevar­vos acima do terra­a­terra da  vida, para compreenderdes que o bem, muitas vezes, está onde julgais ver o mal, a  sábia previdência onde pensais divisar a cega fatalidade do destino. Por que haveis  de avaliar a justiça divina pela vossa? Podeis  supor que o Senhor dos mundos se  aplique, por mero  capricho,  a  vos  infligir  penas  cruéis?  Nada  se  faz  sem  um  fim  inteligente  e,  seja  o  que  for  que  aconteça,  tudo  tem  a  sua  razão  de  ser.  Se  perscrutásseis melhor todas as dores que vos advêm, nelas encontraríeis sempre a  razão divina, razão regeneradora, e os vossos miseráveis interesses se tornariam de  tão secundária consideração, que os atiraríeis para o último plano.
  • 71. 71 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Crede­me,  a  morte  é  preferível,  numa  encarnação  de  vinte  anos,  a  esses  vergonhosos desregramentos que pungem famílias respeitáveis, dilaceram corações  de  mães  e  fazem  que  antes  do  tempo  embranqueçam  os  cabelos  dos  pais.  Freqüentemente, a morte prematura é um grande benefício que Deus concede àquele  que se vai e que assim se preserva das misérias da vida, ou das seduções que talvez  lhe acarretassem a perda. Não é vítima da fatalidade aquele que morre na flor dos  anos; é que Deus julga não convir que ele permaneça por mais tempo na Terra.  É uma horrenda desgraça, dizeis, ver cortado o fio de uma vida tão prenhe  de  esperanças!  De  que  esperanças  falais?  Das  da  Terra,  onde  o  liberto  houvera  podido brilhar, abrir caminho e enriquecer? Sempre essa visão estreita, incapaz de  elevar­se  acima  da  matéria.  Sabeis  qual  teria  sido  a  sorte  dessa  vida,  ao  vosso  parecer  tão  cheia  de  esperanças?  Quem  vos  diz  que  ela  não  seria  saturada  de  amarguras?  Desdenhais  então  das  esperanças  da  vida  futura,  ao  ponto  de  lhe  preferirdes as da vida efêmera que arrastais na Terra? Supondes então que mais vale  uma posição elevada entre os homens, do que entre os Espíritos bem­aventurados?  Em vez de vos queixardes, regozijai­vos quando praz a Deus retirar deste  vale  de  misérias  um  de  seus  filhos.  Não  será  egoístico  desejardes  que  ele  aí  continuasse para sofrer convosco? Ah! Essa dor se concebe naquele que carece de fé  e que vê na morte uma separação eterna. Vós, espíritas, porém, sabeis que a alma  vive  melhor  quando  desembaraçada  do  seu  invólucro  corpóreo.  Mães,  sabei  que  vossos filhos bem­amados estão perto de vós; sim, estão muito perto; seus corpos  fluídicos  vos  envolvem,  seus  pensamentos  vos  protegem,  a  lembrança  que  deles  guardais  os  transporta  de  alegria,  mas  também  as  vossas  dores  desarrazoadas  os  afligem, porque denotam falta de fé e exprimem uma revolta contra a vontade de  Deus.  Vós,  que  compreendeis  a  vida  espiritual,  escutai  as  pulsações  do  vosso  coração a chamar esses entes bem­amados e, se pedirdes a Deus que os abençoe, em  vós sentireis fortes consolações, dessas que secam as lágrimas; sentireis aspirações  grandiosas que vos mostrarão o porvir que o soberano Senhor prometeu. – Sanson,  ex­membro da Sociedade Espírita de Paris. (1863)  SE FOSSE UM HOMEM DE BEM, TERIA MORRIDO  22.  Falando  de  um  homem  mau,  que  escapa  de  um  perigo,  costumais  dizer:  “Se  fosse um homem bom, teria morrido.” Pois bem, assim falando, dizeis uma verdade,  pois, com efeito, muito amiúde sucede dar Deus a um Espírito de progresso ainda  incipiente  prova  mais  longa,  do  que  a  um  bom  que,  por  prêmio  do  seu  mérito,  receberá a graça de ter tão curta quanto possível a sua provação. Por conseguinte,  quando vos utilizais daquele axioma, não suspeitais de que proferis uma blasfêmia.  Se morre um homem de bem, cujo vizinho é mau homem, logo observais:  “Antes fosse este.” Enunciais uma enormidade, porquanto aquele que parte concluiu  a sua tarefa e o que fica talvez não haja principiado a sua. Por que, então, haveríeis  de querer que ao mau faltasse tempo para terminá­la e que o outro permanecesse  preso à gleba terrestre? Que diríeis se um prisioneiro, que cumpriu a sentença contra  ele pronunciada, fosse conservado no cárcere, ao mesmo tempo em que restituíssem
  • 72. 72 – Allan Kardec  à  liberdade  um  que  a  esta  não  tivesse  direito?  Ficai  sabendo  que  a  verdadeira  liberdade,  para  o  Espírito,  consiste  no  rompimento  dos  laços  que  o  prendem  ao  corpo e que, enquanto vos achardes na Terra, estareis em cativeiro. Habituai­vos a  não censurar o que não podeis compreender e crede que Deus é justo em todas as  coisas. Muitas vezes, o que vos parece um mal é um bem. Tão limitadas, no entanto,  são as vossas faculdades, que o conjunto do grande todo não o apreendem os vossos  sentidos obtusos. Esforçai­vos por sair, pelo pensamento, da vossa acanhada esfera  e, à medida que vos elevardes, diminuirá para vós a importância da vida material  que,  nesse  caso,  se  vos  apresentará  como  simples  incidente,  no  curso  infinito  da  vossa existência espiritual, única existência verdadeira. – Fénelon. (Sens, 1861)  OS TORMENTOS VOLUNTÁRIOS  23.  Vive  o  homem  incessantemente  em  busca  da  felicidade,  que  também  incessantemente lhe foge, porque felicidade sem mescla não se encontra na Terra.  Entretanto, malgrado às vicissitudes que formam o cortejo inevitável da vida terrena,  poderia ele, pelo menos, gozar de relativa felicidade, se não a procurasse nas coisas  perecíveis e sujeitas às mesmas vicissitudes, isto é, nos gozos materiais em vez de a  procurar nos gozos da alma, que são um prelibar dos gozos celestes, imperecíveis;  em  vez  de  procurar  a  paz  do coração,  única  felicidade  real  neste  mundo,  ele  se  mostra ávido de tudo o que o agitará e turbará, e, coisa singular! O homem, como  que de intento, cria para si tormentos que está nas suas mãos evitar.  Haverá  maiores  do  que  os  que  derivam  da  inveja  e  do  ciúme?  Para  o  invejoso e o ciumento, não há repouso; estão perpetuamente febricitantes. O que não  têm e os outros possuem lhes causa insônias. Dão­lhes vertigem os êxitos de seus  rivais; toda a emulação, para eles, se resume em eclipsar os que lhes estão próximos,  toda a alegria em excitar, nos que se lhes assemelham pela insensatez, a raiva do  ciúme que os devora. Pobres insensatos, com efeito, que não imaginam sequer que,  amanhã  talvez,  terão  de  largar  todas  essas  frioleiras  cuja  cobiça  lhes  envenena  a  vida!  Não  é  a  eles,  decerto,  que  se  aplicam  estas  palavras:  “Bem­aventurados  os  aflitos, pois que serão consolados”, visto que assuas preocupações não são aquelas  que têm no céu as compensações merecidas.  Que de tormentos, ao contrário, se poupa aquele que sabe contentar­se com  o que tem, que nota sem inveja o que não possui, que não procura parecer mais do  que é. Esse é sempre rico, porquanto, se olha para baixo de si e não para cima, vê  sempre  criaturas  que  têm  menos  do  que  ele.  É  calmo,  porque  não  cria  para  si  necessidades  quiméricas.  E  não  será  uma  felicidade  a  calma,  em  meio  das  tempestades da vida? – Fénelon. (Lião, 1860)  A DESGRAÇA REAL  24. Toda a gente fala da desgraça, toda a gente já a sentiu e julga conhecer­lhe o  caráter  múltiplo.  Venho  eu  dizer­vos  que  quase  toda  a  gente  se  engana  e  que  a  desgraça  real  não  é,  absolutamente,  o  que  os  homens,  isto  é,  os  desgraçados,  o
  • 73. 73 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  supõem.  Eles  a  vêem  na  miséria, no  fogão  sem  lume,  no  credor  que  ameaça, no  berço  de  que  o  anjo  sorridente  desapareceu,  nas  lágrimas,  no  féretro  que  se  acompanha  de  cabeça  descoberta  e  com  o  coração  despedaçado,  na  angústia  da  traição, na desnudação do orgulho que desejara envolver­se em púrpura e mal oculta  a sua nudez sob os andrajos da vaidade. A tudo isso e a muitas coisas mais se dá o  nome de desgraça, na linguagem humana. Sim, é desgraça para os que só vêem o  presente; a verdadeira desgraça, porém, está nas conseqüências de um fato, mais do  que no próprio fato. Dizei­me se um acontecimento, considerado ditoso na ocasião,  mas que acarreta conseqüências funestas, não é, realmente, mais desgraçado do que  outro que a princípio causa viva contrariedade e acaba produzindo o bem. Dizei­me  se  a  tempestade  que  vos  arranca  as  árvores,  mas  que  saneia  o  ar,  dissipando  os  miasmas insalubres que causariam a morte, não é antes uma felicidade do que uma  infelicidade.  Para  julgarmos  de  qualquer  coisa,  precisamos  ver­lhe  as  conseqüências.  Assim,  para  bem  apreciarmos  o  que,  em  realidade,  é  ditoso  ou  inditoso  para  o  homem,  precisamos  transportar­nos  para  além  desta  vida,  porque  é  lá  que  as  conseqüências se fazem sentir. Ora, tudo o que se chama infelicidade, segundo as  acanhadas vistas humanas, cessa com a vida corporal e encontra a sua compensação  na vida futura.  Vou  revelar­vos  a  infelicidade  sob  uma  nova  forma,  sob  a  forma  bela  e  florida  que  acolheis  e  desejais  com  todas  as  veras  de  vossas  almas  iludidas.  A  infelicidade é a alegria, é o prazer, é o tumulto, é a vã agitação, é a satisfação louca  da vaidade, que fazem calar a consciência, que comprimem a ação do pensamento,  que  atordoam  o  homem  com  relação  ao  seu  futuro.  A  infelicidade  é  o  ópio  do  esquecimento que ardentemente procurais conseguir.  Esperai, vós que chorais! Tremei, vós que rides, pois que o vosso corpo está  satisfeito! A Deus não se engana; não se foge ao destino; e as provações, credoras  mais  impiedosas  do  que  a  matilha  que  a  miséria  desencadeia,  vos  espreitam  o  repouso  ilusório  para  vos  imergir  de  súbito  na  agonia  da  verdadeira  infelicidade,  daquela que surpreende a alma amolentada pela indiferença e pelo egoísmo.  Que,  pois,  o  Espiritismo  vos  esclareça  e  recoloque,  para  vós,  sob  verdadeiros prismas, a verdade e o erro, tão singularmente deformados pela vossa  cegueira!  Agireis  então  como  bravos  soldados  que,  longe  de  fugirem  ao  perigo,  preferem as lutas dos combates arriscados à paz que lhes não pode dar glória, nem  promoção! Que importa ao soldado perder na refrega armas, bagagens e uniforme,  desde que saia vencedor e com glória? Que importa ao que tem fé no futuro deixar  no campo de batalha da vida a riqueza e o manto de carne, contanto que sua alma  entre gloriosa no reino celeste? – Delfina de Girardin. (Paris, 1861)  A MELANCOLIA  25. Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos  leva a considerar amarga a vida? É que vosso Espírito, aspirando à felicidade e à  liberdade, se esgota, jungido ao corpo que lhe serve de prisão, em vãos esforços para  sair dele. Reconhecendo inúteis esses esforços, cai no desânimo e, como o corpo lhe
  • 74. 74 – Allan Kardec  sofre a influência, toma­vos a lassidão, o abatimento, uma espécie de apatia, e vos  julgais infelizes.  Crede­me, resisti com energia a essas impressões que  vos  enfraquecem a  vontade.  São  inatas  no  espírito  de  todos  os  homens  as  aspirações  por  uma  vida  melhor;  mas,  não  as  busqueis  neste  mundo  e,  agora,  quando  Deus  vos  envia  os  Espíritos que lhe pertencem, para vos instruírem acerca da felicidade que Ele vos  reserva, aguardai pacientemente o anjo da libertação, para vos ajudar a romper os  liames  que  vos  mantêm  cativo  o  Espírito.  Lembrai­vos  de  que,  durante  o  vosso  degredo na Terra, tendes de desempenhar uma missão de que não suspeitais, quer  dedicando­vos à vossa família, quer cumprindo as diversas obrigações que Deus vos  confiou. Se, no curso desse degredo­provação, exonerando­os dos vossos encargos,  sobre  vós  desabarem  os  cuidados,  as  inquietações  e  tribulações,  sede  fortes  e  corajosos para suportá­los. Afrontai­os resolutos. Duram pouco e vos conduzirão à  companhia dos amigos por quem chorais e que, jubilosos por ver­vos de novo entre  eles,  vos  estenderão  os  braços,  a  fim  de  guiar­vos  a  uma  região  inacessível  às  aflições da Terra. – François de Genève. (Bordéus.)  PROVAS VOLUNTÁRIAS. O VERDADEIRO CILÍCIO  26.  Perguntais  se  é  lícito  ao  homem  abrandar  suas  próprias  provas.  Essa  questão  equivale a esta outra: É lícito, àquele que se afoga, cuidar de salvar­se? Àquele em  quem  um  espinho  entrou,  retirá­lo?  Ao  que  está  doente,  chamar  o  médico?  As  provas têm por fim exercitar a inteligência, tanto quanto a paciência e a resignação.  Pode dar­se que um homem nasça em posição penosa e difícil, precisamente para se  ver  obrigado  a  procurar  meios  de  vencer  as  dificuldades.  O  mérito  consiste  em  sofrer, sem murmurar, as conseqüências dos males que lhe não seja possível evitar,  em perseverar na luta, em se não desesperar, se não é bem­sucedido; nunca, porém,  numa negligência, que seria mais preguiça do que virtude.  Essa  questão  dá  lugar  naturalmente  a  outra.  Pois,  se  Jesus  disse:  “Bem­  aventurados  os  aflitos”,  haverá  mérito  em  procurar,  alguém,  aflições  que  lhe  agravem as provas, por meio de sofrimentos voluntários? A isso responderei muito  positivamente:  sim,  há  grande  mérito  quando  os  sofrimentos  e  as  privações  objetivam o bem do próximo, porquanto é a caridade pelo sacrifício; não, quando os  sofrimentos  e  as  privações  somente  objetivam  o  bem  daquele  que  a  si  mesmo  as  inflige, porque aí só há egoísmo por fanatismo.  Grande distinção cumpre aqui se faça: pelo que vos respeita pessoalmente,  contentai­vos com as provas que Deus vos manda e não lhes aumenteis o volume, já  de si por vezes tão pesado; aceitá­las sem queixumes e com fé, eis tudo o que de vós  exige ele. Não enfraqueçais o vosso corpo com privações inúteis e macerações sem  objetivo,  pois  que  necessitais  de  todas  as  vossas  forças  para  cumprirdes  a  vossa  missão de trabalhar na Terra. Torturar e martirizar voluntariamente o vosso corpo é  contravir a lei de Deus, que vos dá meios de o sustentar e fortalecer. Enfraquecê­lo  sem necessidade é um verdadeiro suicídio. Usai, mas não abuseis, tal a lei. O abuso  das melhores coisas tem a sua punição nas inevitáveis conseqüências que acarreta.
  • 75. 75 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Muito  diverso  é  o  que  ocorre,  quando  o  homem  impõe  a  si  próprio  sofrimentos  para  o  alívio  do  seu  próximo.  Se  suportardes  o  frio  e  a  fome  para  aquecer  e  alimentar  alguém  que  precise  ser  aquecido  e  alimentado  e  se  o  vosso  corpo disso se ressente, fazeis um sacrifício que Deus abençoa. Vós que deixais os  vossos aposentos perfumados para irdes à mansarda infecta levar a consolação; vós  que  sujais  as  mãos  delicadas  pensando  chagas;  vós  que  vos  privais  do  sono  para  velar à cabeceira de um doente que apenas é vosso irmão em Deus; vós, enfim, que  despendeis  a  vossa  saúde  na prática  das  boas  obras, tendes  em  tudo  isso  o  vosso  cilício,  verdadeiro  e  abençoado  cilício,  visto  que  os  gozos  do  mundo  não  vos  secaram  o  coração,  que  não  adormecestes  no  seio  das  volúpias  enervantes  da  riqueza, antes vos constituístes anjos consoladores dos pobres deserdados.  Vós, porém, que vos retirais do mundo, para lhe evitar as seduções e viver  no  insulamento,  que  utilidade  tendes  na  Terra?  Onde  a  vossa  coragem  nas  provações, uma vez que fugis à luta e desertais do combate? Se quereis um cilício,  aplicai­o às vossas almas e não aos vossos corpos; mortificai o vosso Espírito e não  a  vossa  carne;  fustigai  o  vosso  orgulho,  recebei  sem  murmurar  as  humilhações;  flagiciai o vosso amor­próprio; enrijai­vos contra a dor da injúria e da calúnia, mais  pungente do que a dor física. Aí tendes o verdadeiro cilício cujas feridas vos serão  contadas, porque atestarão a vossa coragem e a vossa submissão à vontade de Deus.  – Um anjo guardião. (Paris, 1863)  DEVER­SE­Á PÔR TERMO ÀS PROVAS DO PRÓXIMO?  27. Deve alguém pôr termo às provas do seu próximo quando o possa, ou deve, para  respeitar os desígnios de Deus, deixar que sigam seu curso?  Já vos temos dito e repetido muitíssimas vezes que estais nessa Terra de  expiação  para  concluirdes  as  vossas  provas  e  que  tudo  que  vos  sucede  é  conseqüência das vossas existências anteriores, são os juros da dívida que tendes de  pagar. Esse pensamento, porém, provoca em certas pessoas reflexões que devem ser  combatidas, devido aos funestos efeitos que poderiam determinar.  Pensam alguns que, estando­se na Terra para expiar, cumpre que as provas  sigam seu curso. Outros há, mesmo, que vão até ao ponto de julgar que, não só nada  devem fazer para atenuá­las, mas que, ao contrário, devem contribuir para que elas  sejam mais proveitosas, tornando­as mais vivas. Grande erro. É certo que as vossas  provas têm de seguir o curso que lhes traçou Deus; dar­se­á, porém, conheçais esse  curso? Sabeis até onde têm elas de ir e se o vosso Pai misericordioso não terá dito ao  sofrimento  de  tal  ou  tal  dos  vossos  irmãos:  “Não  irás  mais  longe?”  Sabeis  se  a  Providência não  vos  escolheu, não  como  instrumento  de  suplício  para  agravar  os  sofrimentos do culpado, mas como o bálsamo da consolação para fazer cicatrizar as  chagas que a sua justiça abrira? Não digais, pois, quando virdes atingido um dos  vossos  irmãos:  “É  a  justiça  de  Deus,  importa  que  siga  o  seu  curso.”  Dizei antes:  “Vejamos  que  meios  o  Pai  misericordioso  me  pôs  ao  alcance  para  suavizar  o  sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, o meu amparo  material ou meus conselhos poderão ajudá­lo a vencer essa prova com mais energia,  paciência e resignação. Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os meios de
  • 76. 76 – Allan Kardec  fazer que cesse esse sofrimento; se não me deu a mim, também como prova, como  expiação talvez, deter o mal e substituí­lo pela paz.”  Ajudai­vos, pois, sempre, mutuamente, nas vossas respectivas provações e  nunca  vos  considereis  instrumentos  de  tortura.  Contra  essa  idéia  deve  revoltar­se  todo homem de coração, principalmente todo espírita, porquanto este, melhor do que  qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. Deve o  espírita estar compenetrado de que a sua vida toda tem de ser um ato de amor e de  devotamento; que, faça ele o que fizer para se opor às decisões do Senhor, estas se  cumprirão.  Pode,  portanto,  sem  receio,  empregar  todos  os  esforços  por  atenuar  o  amargor da expiação, certo, porém, de que só a Deus cabe detê­la ou prolongá­la,  conforme julgar conveniente.  Não  haveria  imenso  orgulho,  da  parte  do  homem,  em  se  considerar  no  direito de, por assim dizer, revirar a arma dentro da ferida? De aumentar a dose do  veneno  nas  vísceras daquele que  está  sofrendo,  sob  o  pretexto  de  que  tal  é a  sua  expiação?  Oh!  Considerai­vos  sempre  como  instrumento  para  fazê­la  cessar.  Resumindo: todos vós estais na Terra para expiar; mas, todos, sem exceção, deveis  esforçar­vos por abrandar a expiação dos vossos semelhantes, de acordo com a lei de  amor e caridade. – Bernardino, Espírito protetor. (Bordéus, 1863)  SERÁ LÍCITO ABREVIAR A VIDA DE UM DOENTE QUE SOFRA SEM  ESPERANÇA DE CURA?  28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe­se que seu estado  é  desesperador.  Será  lícito  pouparem­se­lhe  alguns  instantes  de  angústias,  apressando­se­lhe o fim?  Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele  conduzir o homem até à borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê­lo voltar a si  e  alimentar  idéias  diversas  das  que  tinha?  Ainda  que  haja  chegado  ao  último  extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a  hora derradeira. A Ciência não se terá enganado nunca em suas previsões?  Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores;  mas,  se não há nenhuma  esperança  fundada de  um regresso  definitivo  à  vida  e  à  saúde,  existe  a  possibilidade,  atestada  por  inúmeros  exemplos,  de  o  doente,  no  momento  mesmo  de  exalar  o  último  suspiro,  reanimar­se  e  recobrar  por  alguns  instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser­  lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer  nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de  arrependimento.  O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alma, é  inapto a compreender essas coisas; o espírita, porém, que já sabe o que se passa no  além­túmulo,  conhece  o  valor  de  um  último  pensamento.  Minorai  os  derradeiros  sofrimentos, quanto o puderdes; mas, guardai­vos de abreviar a vida, ainda que de  um minuto, porque esse minuto pode  evitar muitas lágrimas no futuro. – S. Luís.  (Paris, 1860)
  • 77. 77 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA  29. Aquele que se acha desgostoso da vida, mas que não quer extingui­la por suas  próprias mãos, será culpado se procurar a morte num campo de batalha, com o  propósito de tornar útil sua morte?  Que  o  homem  se  mate  ele  próprio,  ou  faça  que  outrem  o  mate,  seu  propósito  é  sempre  cortar  o  fio  da  existência:  há,  por  conseguinte,  suicídio  intencional, se não de fato. É ilusória a idéia de que sua morte servirá para alguma  coisa;  isso  não  passa  de  pretexto  para  colorir  o  ato  e  escusá­lo  aos  seus  próprios  olhos. Se ele desejasse seriamente servir ao seu país, cuidaria de viver para defendê­  lo; não procuraria morrer, pois que, morto, de nada mais lhe serviria. O verdadeiro  devotamento consiste em não temer a morte, quando se trate de ser útil, em afrontar  o perigo, em fazer, de antemão e sem pesar, o sacrifício da vida, se for necessário.  Mas, buscar a morte com premeditada intenção, expondo­se a um perigo, ainda que  para prestar serviço, anula o mérito da ação. – S. Luís. (Paris, 1860)  30. Se um homem se expõe a um perigo iminente para salvar a vida a um de seus  semelhantes, sabendo de antemão que sucumbirá, pode o seu ato ser considerado  suicídio?  Desde que no ato não entre a intenção de buscar a morte, não há suicídio e,  sim,  apenas,  devotamento  e  abnegação,  embora  também  haja  a  certeza  de  que  morrerá. Mas, quem pode ter essa certeza? Quem poderá dizer que a Providência  não  reserva  um  inesperado  meio  de  salvação  para  o  momento  mais  crítico?  Não  poderia ela salvar mesmo aquele que se achasse diante da boca de um canhão? Pode  muitas vezes dar­se que ela queira levar ao extremo limite a prova da resignação e,  nesse caso, uma circunstância inopinada desvia o golpe fatal. – S. Luís. (Paris, 1860)  PROVEITO DOS SOFRIMENTOS PARA OUTREM  31. Os que aceitam resignados os sofrimentos, por submissão à vontade de Deus e  tendo  em  vista  a  felicidade  futura,  não  trabalham  somente  em  seu  próprio  benefício? Poderão tornar seus sofrimentos proveitosos a outrem?  Podem  esses  sofrimentos  ser  de  proveito  para  outrem,  material  e  moralmente: materialmente se, pelo trabalho, pelas privações e pelos sacrifícios que  tais  criaturas  se  imponham,  contribuem  para  o  bem­estar  material  de  seus  semelhantes;  moralmente,  pelo  exemplo  que  elas  oferecem  de  sua  submissão  à  vontade de Deus. Esse exemplo do poder da fé espírita pode induzir os desgraçados  à resignação e salvá­los do desespero e de suas conseqüências funestas para o futuro.  – S. Luís. (Paris, 1860)
  • 78. 78 – Allan Kardec  CAPÍTULO VI  O CRISTO CONSOLADOR ·  O JUGO LEVE ·  CONSOLADOR PROMETIDO  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  ADVENTO DO ESPÍRITO DA VERDADE  O JUGO LEVE  1. “ Vinde a mim, todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos  aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei comigo que sou brando e  humilde de coração e achareis repouso para vossas almas, pois é suave o  meu jugo e leve o meu fardo”.  (MATEUS, 11:28 a 30)  2. Todos os sofrimentos: misérias, decepções, dores físicas, perda de seres amados,  encontram consolação em a fé no futuro, em a confiança na justiça de Deus, que o  Cristo veio  ensinar aos homens. Sobre aquele que, ao contrário, nada espera após  esta  vida,  ou  que  simplesmente  duvida,  as  aflições  caem  com  todo  o  seu  peso  e  nenhuma esperança lhe mitiga o amargor. Foi isso que levou Jesus a dizer: “Vinde a  mim todos vós que estais fatigados, que eu vos aliviarei.”  Entretanto, faz depender de uma condição a sua assistência e a felicidade  que promete aos aflitos. Essa condição está na lei por ele ensinada. Seu jugo é a  observância dessa lei; mas, esse jugo é leve e a lei é suave, pois que apenas impõe,  como dever, o amor e a caridade.  CONSOLADOR PROMETIDO  3. “ Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e  ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco:
  • 79. 79 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e  absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós, conhecê­lo­eis, porque  ficará  convosco  e  estará  em  vós.  Porém,  o  Consolador,  que  é  o  Santo  Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas  e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito.  (JOÃO, 14:15 a 17 e 26)  4. Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não  conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará  para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o  Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo  não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse  foi esquecido ou mal compreendido.  O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside  ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei;  ensina  todas  as  coisas  fazendo  compreender  o  que  Jesus  só  disse  por  parábolas.  Advertiu o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir  os  olhos  e  os  ouvidos,  porquanto  fala  sem  figuras,  nem  alegorias;  levanta  o  véu  intencionalmente  lançado  sobre  certos  mistérios.  Vem,  finalmente,  trazer  a  consolação  suprema  aos  deserdados  da Terra  e a  todos  os  que  sofrem, atribuindo  causa justa e fim útil a todas as dores.  Disse  o Cristo: “Bem­aventurados os aflitos, pois que  serão  consolados.”  Mas, como há de alguém sentir­se ditoso por sofrer, se não sabe por que sofre? O  Espiritismo  mostra  a  causa  dos  sofrimentos  nas  existências  anteriores  e  na  destinação  da  Terra,  onde  o  homem  expia  o  seu  passado.  Mostra  o  objetivo  dos  sofrimentos, apontando­os como crises salutares que produzem a cura e como meio  de depuração que garante a felicidade nas existências futuras. O homem compreende  que  mereceu  sofrer  e  acha  justo  o  sofrimento.  Sabe  que  este  lhe  auxilia  o  adiantamento e o aceita sem murmurar, como  o  obreiro aceita o trabalho que lhe  assegurará  o  salário.  O  Espiritismo  lhe  dá  fé  inabalável  no  futuro  e  a  dúvida  pungente  não  mais  se  lhe  apossa  da  alma.  Dando­lhe  a  ver  do  alto  as  coisas,  a  importância das vicissitudes terrenas some­se no vasto e esplêndido horizonte que  ele o faz descortinar, e a perspectiva da felicidade que o espera lhe dá a paciência, a  resignação e a coragem de ir até ao termo do caminho.  Assim, o Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido:  conhecimento das coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e  por que está na Terra; atrai para os verdadeiros princípios da lei de Deus e consola  pela fé e pela esperança.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  ADVENTO DO ESPÍRITO DE VERDADE  5.  Venho,  como  outrora  aos  transviados  filhos  de  Israel,  trazer­vos  a  verdade  e  dissipar  as  trevas.  Escutai­me.  O  Espiritismo,  como  o  fez  antigamente  a  minha  palavra, tem de lembrar aos incrédulos que acima deles reina a imutável verdade: o
  • 80. 80 – Allan Kardec  Deus  bom,  o  Deus  grande, que  faz  germinem  as plantas  e  se  levantem as  ondas.  Revelei a doutrina divinal. Como um ceifeiro, reuni em feixes o bem esparso no seio  da Humanidade e disse: “Vinde a mim, todos vós que sofreis.”  Mas, ingratos, os homens afastaram­se do caminho reto e largo que conduz  ao reino de meu Pai e enveredaram pelas ásperas sendas da impiedade. Meu Pai não  quer  aniquilar  a  raça  humana;  quer  que,  ajudando­vos  uns  aos  outros,  mortos  e  vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto não existe a morte, vos socorrais  mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a  dos  que  já  não  vivem  na  Terra,  a  clamar:  Orai  e  crede!  Pois  que  a  morte  é  a  ressurreição,  sendo  a  vida  a  prova  buscada  e  durante  a  qual  as  virtudes  que  houverdes cultivado crescerão e se desenvolverão como o cedro.  Homens fracos, que  compreendeis as trevas das vossas inteligências, não  afasteis  o  facho  que  a  clemência  divina  vos  coloca  nas  mãos  para  vos  clarear  o  caminho e reconduzir­vos, filhos perdidos, ao regaço de vosso Pai.  Sinto­me  por  demais  tomado  de  compaixão  pelas  vossas  misérias,  pela  vossa  fraqueza  imensa,  para  deixar  de  estender  mão  socorredora  aos  infelizes  transviados que, vendo o céu, caem nos abismos do erro. Crede, amai, meditai sobre  as coisas que vos são reveladas; não mistureis o joio com a boa semente, as utopias  com as verdades.  Espíritas!  Amai­vos,  este  o  primeiro  ensinamento;  instruí­vos,  este  o  segundo. No Cristianismo encontram­se todas as verdades; são de origem humana os  erros que nele se enraizaram. Eis que do além­túmulo, que julgáveis o nada, vozes  vos  clamam:  “Irmãos!  nada  perece.  Jesus  Cristo  é  o  vencedor  do  mal,  sede  os  vencedores da impiedade.” – O Espírito de Verdade. (Paris, 1860)  6. Venho instruir e consolar os pobres deserdados. Venho dizer­lhes que elevem a  sua resignação ao nível de suas provas, que chorem, porquanto a dor foi sagrada no  Jardim  das  Oliveiras;  mas,  que  esperem,  pois  que  também  a  eles  os  anjos  consoladores lhes virão enxugar as lágrimas.  Obreiros, traçai o vosso sulco; recomeçai no dia seguinte o afanoso labor da  véspera; o trabalho das vossas mãos vos fornece aos corpos o pão terrestre; vossas  almas, porém, não estão esquecidas; e eu, o jardineiro divino, as cultivo no silêncio  dos vossos pensamentos. Quando soar a hora do repouso, e a trama da vida se vos  escapar das mãos e vossos olhos se fecharem para a luz, sentireis que surge em vós e  germina a minha preciosa semente. Nada fica perdido no reino de nosso Pai e  os  vossos  suores  e  misérias  formam  o  tesouro  que  vos  tornará  ricos  nas  esferas  superiores, onde a luz substitui as trevas e onde o mais desnudo dentre todos vós  será talvez o mais resplandecente.  Em  verdade  vos  digo:  os  que  carregam  seus  fardos  e  assistem  os  seus  irmãos são  bem­amados meus. Instruí­vos na preciosa doutrina que dissipa o erro  das revoltas e vos mostra o sublime objetivo da provação humana. Assim como o  vento varre a poeira, que também o sopro dos Espíritos dissipe os vossos despeitos  contra os ricos do mundo, que são, não raro, muito miseráveis, porquanto se acham  sujeitos a provas mais perigosas do que as vossas. Estou convosco e meu apóstolo  vos instrui. Bebei na fonte viva do amor e preparai­vos, cativos da vida, a lançar­vos  um  dia,  livres  e  alegres,  no  seio  d’Aquele  que  vos  criou  fracos  para  vos  tornar
  • 81. 81 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  perfectíveis  e  que  quer  modeleis  vós  mesmos  a  vossa  maleável  argila,  a  fim  de  serdes os artífices da vossa imortalidade. – O Espírito de Verdade. (Paris, 1861)  7. Sou o grande médico das almas e venho trazer­vos o remédio que vos há de curar.  Os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos prediletos. Venho salvá­  los. Vinde, pois, a mim, vós que sofreis e vos achais oprimidos, e sereis aliviados e  consolados.  Não  busqueis  alhures  a  força  e  a  consolação,  pois  que  o  mundo  é  impotente para dá­las. Deus dirige um supremo apelo aos vossos corações, por meio  do Espiritismo. Escutai­o. Extirpados sejam de vossas almas doloridas a impiedade,  a  mentira,  o  erro,  a  incredulidade.  São  monstros  que  sugam  o  vosso  mais  puro  sangue e que vos abrem chagas quase sempre mortais. Que, no futuro, humildes e  submissos  ao  Criador,  pratiqueis  a  sua  lei  divina.  Amai  e  orai;  sede  dóceis  aos  Espíritos do Senhor; invocai­o do fundo de vossos corações. Ele, então, vos enviará  o seu Filho bem­amado, para vos instruir e dizer estas boas palavras: Eis­me aqui;  venho até vós, porque me chamastes. – O Espírito de Verdade. (Bordéus, 1861)  8. Deus consola os humildes e dá força aos aflitos que lha pedem. Seu poder cobre a  Terra e, por toda a parte, junto de cada lágrima colocou ele um bálsamo que consola.  A abnegação e o devotamento são uma prece contínua e encerram um ensinamento  profundo.  A  sabedoria  humana  reside  nessas  duas  palavras.  Possam  todos  os  Espíritos  sofredores  compreender  essa  verdade,  em  vez  de  clamarem  contra  suas  dores, contra os sofrimentos morais que neste mundo vos cabem em partilha. Tomai,  pois,  por  divisa  estas  duas  palavras:  devotamento  e  abnegação,  e  sereis  fortes,  porque elas resumem todos os deveres que a caridade e a humildade vos impõem. O  sentimento do dever cumprido vos dará repouso ao espírito e resignação. O coração  bate então melhor, a alma se asserena e o corpo se forra aos desfalecimentos, por  isso que o corpo tanto menos forte se sente, quanto mais profundamente golpeado é  o espírito. – O Espírito de Verdade. (Havre, 1863)
  • 82. 82 – Allan Kardec  CAPÍTULO VII  BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO ·  O QUE SE DEVE ENTENDER POR POBRES DE ESPÍRITOS ·  AQUELE QUE SE ELEVA SERÁ REBAIXADO ·  MISTÉRIOS OCULTOS AOS DOUTOS E AOS PRUDENTES  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  O ORGULHO E A HUMILDADE ·  MISSÃO DO HOMEM INTELIGENTE NA TERRA  O QUE SE DEVE ENTENDER POR POBRES DE ESPÍRITO  1. “ Bem­aventurados os pobres de espírito, pois que deles é o reino dos  céus”.  (MATEUS, 5:3)  2. A incredulidade zombou desta máxima: Bem­aventurados os pobres de espírito,  como  tem  zombado  de  muitas  outras  coisas  que  não  compreende.  Por  pobres  de  espírito Jesus não entende os baldos de inteligência, mas os humildes, tanto que diz  ser para estes o reino dos céus e não para os orgulhosos.  Os  homens  de  saber  e  de  espírito,  no  entender  do  mundo,  formam  geralmente tão alto conceito de si próprios e da sua superioridade, que consideram  as coisas divinas como indignas de lhes merecer a atenção. Concentrando sobre si  mesmos os seus olhares, eles não os podem elevar até Deus. Essa tendência, de se  acreditarem superiores a tudo, muito amiúde os leva a negar aquilo que, estando­lhes  acima,  os  depreciaria,  a negar até mesmo  a  Divindade.  Ou,  se  condescendem  em  admiti­la, contestam­lhe um dos mais belos atributos: a ação providencial sobre as  coisas deste mundo, persuadidos de que eles são suficientes para bem governá­lo.
  • 83. 83 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Tomando  a  inteligência  que  possuem  para  medida  da  inteligência  universal,  e  julgando­se aptos a tudo compreender, não podem crer na possibilidade do que não  compreendem. Consideram sem apelação as sentenças que proferem.  Se se recusam a admitir o mundo invisível e uma potência extra­humana,  não é que isso lhes esteja fora do alcance; é que o orgulho se lhes revolta à idéia de  uma coisa acima da qual não possam colocar­se e que os faria descer do pedestal  onde se contemplam. Daí o só terem sorrisos de mofa para tudo o que não pertence  ao mundo visível e tangível. Eles se atribuem espírito e saber em tão grande cópia,  que não podem crer em coisas, segundo pensam, boas apenas para gente simples,  tendo por pobres de espírito os que as tomam a sério.  Entretanto, digam o que disserem, forçoso lhes será entrar, como os outros,  nesse mundo invisível de que escarnecem. É lá que os olhos se lhes abrirão e eles  reconhecerão o erro em que caíram. Deus, porém, que é justo, não pode receber da  mesma forma aquele que lhe desconheceu a majestade e outro que humildemente se  lhe submeteu às leis, nem os aquinhoar em partes iguais. Dizendo que o reino dos  céus é dos simples, quis Jesus significar que a ninguém é concedida entrada nesse  reino,  sem  a  simplicidade  de  coração  e  humildade  de  espírito;  que  o  ignorante  possuidor dessas qualidades será preferido ao sábio que mais crê em si do que em  Deus. Em todas as circunstâncias, Jesus põe a humildade na categoria das virtudes  que aproximam de Deus e o orgulho entre os vícios que dele afastam a criatura, e  isso por uma razão muito natural: a de ser a humildade um ato de submissão a Deus,  ao passo que o orgulho é a revolta contra ele. Mais vale, pois, que o homem, para  felicidade do seu futuro, seja pobre em espírito, conforme o entende o mundo, e rico  em qualidades morais.  AQUELE QUE SE ELEVA SERÁ REBAIXADO  3.  Por  essa  ocasião,  os  discípulos  se  aproximaram  de  Jesus  e  lhe  perguntaram: “Quem é o maior no reino dos céus?” Jesus, chamando a si  um menino, o colocou no meio deles e respondeu: “Digo­vos, em verdade,  que, se não vos converterdes e tornardes quais crianças, não entrareis no  reino  dos  céus.  Aquele,  portanto,  que  se  humilhar  e  se  tornar  pequeno  como esta criança será o maior no reino dos céus; e aquele que recebe em  meu nome a uma criança, tal como acabo de dizer, é a mim mesmo que  recebe.”  (MATEUS, 18:1 a 5)  4. Então, a mãe dos filhos de Zebedeu se aproximou dele com seus dois  filhos  e  o  adorou,  dando  a  entender  que  lhe  queria  pedir  alguma  coisa.  Disse­lhe ele: “Que queres?” Disse ela: “Manda que estes meus dois filhos  tenham assento no teu reino, um à tua direita e o outro à tua esquerda.”  Mas,  Jesus  lhe  respondeu:  “Não  sobes  o  que  pedes;  podeis  vós  ambos  beber  o  cálice  que  eu  vou  beber?”  Eles  responderam:  “Podemos.”  Jesus  lhes replicou: “É certo que bebereis o cálice que eu beber; mas, pelo que  respeita a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não me cabe  a  mim  vo­lo  conceder;  isso  será  para  aqueles  a  quem  meu  Pai  o  tem
  • 84. 84 – Allan Kardec  preparado.”  Ouvindo  isso,  os  dez  outros  apóstolos  se  encheram  de  indignação  contra  os  dois  irmãos.  Jesus,  chamando­os  para  perto  de  si,  lhes  disse:  “Sabeis  que  os  príncipes  das  nações  as  dominam  e  que  os  grandes as tratam com império. Assim não deve ser entre vós; ao contrário,  aquele que quiser tornar­se o maior, seja vosso servo; e aquele que quiser  ser o primeiro entre vós seja vosso escravo; do mesmo modo que o Filho  do  homem  não veio  para  ser  servido, mas  para servir  e  dar  a  vida  pela  redenção de muitos.”  (MATEUS, 20:20 a 28)  5. Jesus entrou em dia de sábado na casa de um dos principais fariseus  para  aí  fazer  a  sua  refeição.  Os  que  lá  estavam  o  observaram.  Então,  notando  que  os  convidados  escolhiam  os  primeiros  lugares,  propôs­lhes  uma parábola, dizendo: “Quando fordes convidados para bodas, não tomeis  o primeiro lugar, para que não suceda que, havendo entre os convidados  uma pessoa mais considerada do que vós, aquele que vos haja convidado  venha a dizer­vos: dai o vosso lugar a este, e vos vejais constrangidos a  ocupar, cheios de vergonha, o último lugar. Quando fordes convidados, ide  colocar­vos no último lugar, a fim de que, quando aquele que vos convidou  chegar, vos diga: meu amigo, venha mais para cima. Isso então será para  vós  um  motivo  de  glória,  diante  de  todos  os  que  estiverem  convosco  à  mesa; porquanto todo aquele que se  eleva será rebaixado e todo aquele  que se abaixa será elevado.”  (Lucas, 14:1 e 7 a 11)  6.  Estas  máximas  decorrem  do  princípio  de  humildade  que  Jesus  não  cessa  de  apresentar como condição essencial da felicidade prometida aos eleitos do Senhor e  que ele formulou assim: “Bem­aventurados os pobres de espírito, pois que o reino  dos céus lhes pertence.” Ele toma uma criança como tipo da simplicidade de coração  e diz: “Será o maior no reino dos céus aquele que se humilhar e se fizer pequeno  como uma criança, isto é, que nenhuma pretensão alimentar à superioridade ou à  infalibilidade.  A mesma idéia fundamental se nos depara nesta outra máxima: Seja vosso  servidor aquele que quiser tornar­se o maior, e nesta outra: Aquele que se humilhar  será exalçado e aquele que se elevar será rebaixado.  O Espiritismo sanciona pelo exemplo a teoria, mostrando­nos na posição de  grandes no mundo dos Espíritos os que eram pequenos na Terra; e bem pequenos,  muitas  vezes,  os  que  na  Terra  eram  os  maiores  e  os  mais  poderosos.  E  que  os  primeiros, ao morrerem, levaram consigo aquilo que faz a verdadeira grandeza no  céu e que não se perde nunca: as virtudes, ao passo que os outros tiveram de deixar  aqui o que lhes constituía a grandeza terrena e que se não leva para a outra vida: a  riqueza, os títulos, a glória, a nobreza do nascimento. Nada mais possuindo senão  isso chegam ao outro mundo privados de tudo, como náufragos que tudo perderam,  até  as  próprias  roupas.  Conservaram  apenas  o  orgulho  que  mais  humilhante  lhes  torna a nova posição, porquanto vêem colocados acima de si e resplandecentes de  glória os que eles na Terra espezinharam.
  • 85. 85 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  O  Espiritismo  aponta­nos  outra  aplicação  do  mesmo  princípio  nas  encarnações  sucessivas,  mediante  as  quais  os  que,  numa  existência,  ocuparam  as  mais elevadas posições, descem, em existência seguinte, às mais ínfimas condições,  desde  que  os  tenham  dominado  o  orgulho  e  a  ambição.  Não  procureis,  pois,  na  Terra, os primeiros lugares, nem vos colocar acima dos outros, se não quiserdes ser  obrigados  a  descer.  Buscai,  ao  contrário,  o  lugar  mais  humilde  e  mais  modesto,  porquanto Deus saberá dar­vos um mais elevado no céu, se o merecerdes.  MISTÉRIOS OCULTOS AOS DOUTOS E AOS PRUDENTES  7. Disse, então, Jesus estas palavras: “Graças te rendo, meu Pai, Senhor  do  céu  e  da  Terra,  por  haveres  ocultado  estas  coisas  aos  doutos  e  aos  prudentes e por as teres revelado aos simples e aos pequenos.”  (MATEUS, 11:25)  8. Pode parecer singular que Jesus renda graças a Deus, por haver revelado estas  coisas aos simples e aos pequenos,  que  são  os  pobres  de  espírito,  e  por  tê­las  ocultado aos doutos e aos prudentes, mais aptos, na aparência, a compreendê­las. É  que cumpre se entenda que os primeiros são os humildes, são os que se humilham  diante de Deus e não se consideram superiores a toda a gente. Os segundos são os  orgulhosos,  envaidecidos  do  seu  saber  mundano,  os  quais  se  julgam  prudentes  porque negam e tratam a Deus de igual para igual, quando não se recusam a admiti­  lo, porquanto, na antigüidade, douto era sinônimo de sábio. Por isso é que Deus lhes  deixa  a  pesquisa  dos  segredos  da  Terra  e  revela  os  do  céu  aos  simples  e  aos  humildes que diante d’Ele se prostram.  9. O mesmo se dá hoje com as grandes verdades que o Espiritismo revelou. Alguns  incrédulos  se  admiram  de  que  os  Espíritos  tão  poucos  esforços  façam  para  convencê­los. A razão está em que estes últimos cuidam preferentemente dos que  procuram,  de  boa­fé  e  com  humildade,  a luz, do que  daqueles  que  se  supõem  na  posse de toda a luz e imaginam, talvez, que Deus deveria dar­se por muito feliz em  atraí­los a si, provando­lhes a sua existência.  O  poder  de  Deus  se  manifesta  nas  mais  pequeninas  coisas,  como  nas  maiores. Ele não põe a luz debaixo do alqueire, por isso que a derrama em ondas por  toda a parte, de tal sorte que só cegos não a vêem. A esses não quer Deus abrir à  força os olhos, dado que lhes apraz tê­los fechados.  A  vez  deles  chegará, mas  é  preciso que, antes, sintam as angústias das trevas e reconheçam que é a Divindade e  não o acaso quem lhes fere o orgulho. Para vencer a incredulidade, Deus emprega  os  meios  mais  convenientes,  conforme  os  indivíduos.  Não  é  à  incredulidade  que  compete  prescrever­lhe  o  que  deva  fazer,  nem  lhe  cabe  dizer:  “Se  me  queres  convencer, tens de proceder dessa ou daquela maneira, em tal ocasião e não em tal  outra, porque essa ocasião é a que mais me convém.”  Não se espantem, pois, os incrédulos de que nem Deus, nem os Espíritos,  que são os executores da sua vontade, se lhes submetam às exigências. Inquiram de  si  mesmos  o  que  diriam,  se  o  último  de  seus  servidores  se  lembrasse  de  lhes
  • 86. 86 – Allan Kardec  prescrever fosse o que fosse. Deus impõe condições e não aceita as que lhe queiram  impor.  Escuta,  bondoso,  os  que  a  Ele  se  dirigem  humildemente  e  não  os  que  se  julgam mais do que Ele.  10.  Perguntar­se­á:  não  poderia  Deus  tocá­los  pessoalmente,  por  meio  de  manifestações  retumbantes,  diante  das  quais  se  inclinassem  os  mais  obstinados  incrédulos? É fora de toda dúvida que o poderia; mas, então, que mérito teriam eles  e, ao demais, de que serviria? Não se vêem todos os dias criaturas que não cedem  nem à evidência, chegando até a dizer: “Ainda que eu visse, não acreditaria, porque  sei que é impossível?” Esses, se se negam assim a reconhecer a verdade, é que ainda  não trazem maduro o espírito para compreendê­la, nem o coração para senti­la. O  orgulho é a catarata que lhes tolda a visão. De que vale apresentar a luz a um cego?  Necessário é que, antes, se lhe destrua a causa do mal. Daí vem que, médico hábil,  Deus primeiramente corrige o orgulho. Ele não deixa ao abandono aqueles de seus  filhos que se acham perdidos, porquanto sabe que  cedo  ou tarde os  olhos se lhes  abrirão.  Quer,  porém,  que  isso  se  dê  de  moto­próprio,  quando,  vencidos  pelos  tormentos da incredulidade, eles venham de si mesmos lançar­se­lhe nos braços e  pedir­lhe perdão, quais filhos pródigos.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  O ORGULHO E A HUMILDADE  11. Que a paz do Senhor seja convosco, meus queridos amigos! Aqui venho para  encorajar­vos a seguir o bom caminho.  Aos pobres Espíritos que habitaram outrora a Terra, conferiu Deus a missão  de  vos  esclarecer.  Bendito  seja  Ele,  pela  graça  que  nos  concede:  a  de  podermos  auxiliar o vosso aperfeiçoamento. Que o Espírito Santo me ilumine e ajude a tornar  compreensível  a  minha  palavra,  outorgando­me  o  favor  de  pô­la  ao  alcance  de  todos! Oh! Vós, encarnados, que vos achais em prova e buscais a luz, que a vontade  de Deus venha em meu auxílio para fazê­la brilhar aos vossos olhos! A humildade é  virtude muito esquecida entre vós. Bem pouco seguidos são os exemplos que dela se  vos  têm  dado.  Entretanto,  sem  humildade,  podeis  ser  caridosos  com  o  vosso  próximo?  Oh!  Não,  pois  que  este  sentimento nivela  os homens,  dizendo­lhes  que  todos  são  irmãos,  que  se  devem  auxiliar mutuamente,  e os  induz  ao  bem.  Sem  a  humildade, apenas vos adornais de virtudes que não possuís, como se trouxésseis um  vestuário para ocultar as deformidades do vosso corpo. Lembrai­vos d'Aquele que  nos salvou; lembrai­vos da sua humildade, que tão grande o fez, colocando­o acima  de todos os profetas.  O  orgulho  é  o  terrível  adversário  da  humildade.  Se  o  Cristo  prometia  o  reino  dos  céus  aos  mais  pobres,  é  porque  os  grandes  da  Terra  imaginam  que  os  títulos e as riquezas são recompensas deferidas aos seus méritos e se consideram de  essência mais pura do que a do pobre. Julgam que os títulos e as riquezas lhes são  devidos,  pelo  que,  quando  Deus  lhos  retira,  o  acusam  de  injustiça.  Oh!  Irrisão  e  cegueira! Pois, então, Deus vos distingue pelos corpos? O envoltório do pobre não é
  • 87. 87 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  o mesmo que o do rico? Terá o Criador feito duas espécies de homens? Tudo o que  Deus faz é grande e sábio; não lhe atribuais nunca as idéias que os vossos cérebros  orgulhosos engendram.  Ó rico! Enquanto dormes sob dourados tetos, ao abrigo do frio, ignoras que  jazem sobre a palha milhares de irmãos teus, que valem tanto quanto tu? Não é teu  igual o infeliz que passa fome? Ao ouvires isso, bem o sei, revolta­­se o teu orgulho.  Concordarás  em  dar­lhe  uma  esmola,  mas  em  lhe  apertar  fraternalmente  a  mão,  nunca. “Pois quê! Dirás, eu, de sangue nobre, grande da Terra, igual a este miserável  coberto de andrajos! Vã utopia de pseudo­filósofos! Se fôssemos iguais, por que o  teria Deus colocado tão baixo e a mim tão alto?” É exato que as vossas vestes não se  assemelham; mas, despi­vos ambos: que diferença haverá entre vós? A nobreza do  sangue, dirás; a química, porém, ainda nenhuma diferença descobriu entre o sangue  de um grão­senhor e o de um plebeu; entre o do senhor e o do escravo. Quem te  garante que também tu já não tenhas sido miserável e desgraçado como ele? Que  também não hajas pedido esmola? Que não a pedirás um dia a esse mesmo a quem  hoje  desprezas?  São  eternas  as riquezas?  Não  desaparecem  quando  se  extingue  o  corpo,  envoltório  perecível  do  teu  Espírito?  Ah!  Lança  sobre  ti  um  pouco  de  humildade! Põe os olhos, afinal, na realidade das coisas deste mundo, sobre o que dá  lugar ao engrandecimento e ao rebaixamento no outro; lembra­te de que a morte não  te poupará, como a nenhum homem; que os teus títulos não te preservarão do seu  golpe; que ela te poderá ferir amanhã, hoje, a qualquer hora. Se te enterras no teu  orgulho, oh! Quanto então te lamento, pois bem digno de compaixão serás.  Orgulhosos!  Que  éreis  antes  de  serdes  nobres  e  poderosos?  Talvez  estivésseis abaixo do último dos vossos criados. Curvai, portanto, as vossas frontes  altaneiras,  que  Deus  pode  fazer  se  abaixem,  justo  no  momento  em  que  mais  as  elevardes.  Na  balança  divina,  são  iguais  todos  os  homens;  só  as  virtudes  os  distinguem aos olhos de Deus. São da mesma essência todos os Espíritos e formados  de igual massa todos os corpos. Em nada os modificam os vossos títulos e os vossos  nomes.  Eles  permanecerão  no  túmulo  e  de  modo  nenhum  contribuirão  para  que  gozeis  da  ventura  dos  eleitos.  Estes,  na  caridade e  na humildade  é  que  têm  seus  títulos de nobreza.  Pobre criatura! És mãe, teus filhos sofrem; sentem frio; têm fome, e tu vais,  curvada ao peso da tua cruz, humilhar­te, para lhes conseguires um pedaço de pão!  Oh!  Inclino­me  diante  de  ti.  Quão  nobremente  santa  és  e  quão  grande  aos  meus  olhos! Espera e ora; a felicidade ainda não é deste mundo. Aos pobres  oprimidos  que nele confiam, concede Deus o reino dos céus.  E tu, donzela, pobre criança lançada ao trabalho, às privações, por que esses  tristes pensamentos? Por que choras? Dirige a Deus, piedoso e sereno, o teu olhar:  ele dá alimento aos passarinhos; tem­lhe confiança: ele não te abandonará. O ruído  das festas, dos prazeres do mundo, faz bater­te o coração; também desejaras adornar  de flores os teus cabelos e misturar­te com os venturosos da Terra. Dizes de ti para  contigo  que,  como  essas  mulheres  que  vês  passar,  despreocupadas  e  risonhas,  também  poderias  ser  rica.  Oh!  Cala­te,  criança!  Se  soubesses  quantas  lágrimas  e  dores  inomináveis  se  ocultam  sob  esses  vestidos  recamados,  quantos  soluços  são  abafados pelos sons dessa orquestra rumorosa, preferirias o teu humilde retiro e a tua  pobreza. Conserva­te pura aos olhos de Deus, se não queres que o teu anjo guardião
  • 88. 88 – Allan Kardec  para o seu seio volte, cobrindo o semblante com as suas brancas asas e deixando­te  com os teus remorsos, sem guia, sem amparo, neste mundo, onde ficarias perdida, a  aguardar a punição no outro.  Todos vós que dos homens sofreis injustiças, sede indulgentes para as faltas  dos vossos irmãos, ponderando que também vós não vos achais isentos de culpas; é  isso  caridade,  mas  é  igualmente  humildade.  Se  sofreis  pelas  calúnias,  abaixai  a  cabeça sob essa prova. Que vos importam as calúnias do mundo? Se é puro o vosso  proceder, não pode Deus vo­las compensar? Suportar com coragem as humilhações  dos homens é ser humilde e reconhecer que somente Deus é grande e poderoso.  Oh! Meu Deus, será preciso que o Cristo volte segunda vez à Terra para  ensinar aos homens as tuas leis, que eles olvidam? Terá que de novo  expulsar  do  templo os vendedores que conspurcam a tua casa, casa que é unicamente de oração?  E,  quem  sabe?  Ó  homens!  Se  o  não  renegaríeis  como  outrora,  caso  Deus  vos  concedesse essa graça! Chamar­lhe­íeis blasfemador, porque abateria o orgulho dos  modernos fariseus. É bem possível que o fizésseis perlustrar novamente o caminho  do Gólgota.  Quando  Moisés  subiu  ao  monte  Sinai  para  receber  os  mandamentos  de  Deus, o povo de Israel, entregue a si mesmo, abandonou o Deus verdadeiro. Homens  e mulheres deram o ouro e as jóias que possuíam, para que se construísse um ídolo  que  entraram  a  adorar.  Vós  outros,  homens  civilizados,  os  imitais.  O  Cristo  vos  legou a sua doutrina; deu­vos o exemplo de todas as virtudes e tudo abandonastes,  exemplos  e  preceitos.  Concorrendo  para  isso  com  as  vossas  paixões,  fizestes  um  Deus a vosso jeito: segundo uns, terrível e sanguinário; segundo outros, alheado dos  interesses do mundo. O Deus que fabricastes é ainda o bezerro de ouro que cada um  adapta aos seus gostos e às suas idéias.  Despertai, meus irmãos, meus amigos. Que a voz dos Espíritos ecoe nos  vossos  corações.  Sede  generosos  e  caridosos,  sem  ostentação,  isto  é,  fazei  o  bem  com humildade. Que cada um proceda pouco a pouco à demolição dos altares que  todos ergueram ao orgulho. Numa palavra: sede verdadeiros cristãos e tereis o reino  da verdade. Não continueis a duvidar da bondade de Deus, quando dela vos dá ele  tantas  provas.  Vimos  preparar  os  caminhos  para  que  as  profecias  se  cumpram.  Quando o Senhor vos der uma manifestação mais retumbante da sua clemência, que  o  enviado  celeste  já  vos  encontre  formando  uma  grande  família;  que  os  vossos  corações, mansos e humildes, sejam dignos de ouvir a palavra divina que ele vos  vem  trazer;  que  ao  eleito  somente  se  deparem  em  seu  caminho  as  palmas  que  aí  tenhais deposto, volvendo ao bem, à caridade, à fraternidade. Então, o vosso mundo  se tornará o paraíso terrestre. Mas, se permanecerdes insensíveis à voz dos Espíritos  enviados para depurar e renovar a vossa sociedade civilizada, rica de ciências, mas,  no entanto, tão pobre de bons sentimentos, ah! Então não nos restará senão chorar e  gemer pela vossa sorte. Mas, não, assim não será. Voltai para Deus, vosso pai, e  todos  nós  que  houvermos  contribuído  para  o  cumprimento  da  sua  vontade  entoaremos o cântico de ação de graças, agradecendo­lhe a inesgotável bondade e  glorificando­o  por  todos  os  séculos  dos  séculos.  Assim  seja.  Lacordaire.  (Constantina, 1863)
  • 89. 89 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  12. Homens, por que  vos queixais das calamidades que  vós mesmos amontoastes  sobre  as  vossas  cabeças?  Desprezastes  a  santa  e  divina moral  do  Cristo;  não  vos  espanteis, pois, de que a taça da iniqüidade haja transbordado de todos os lados.  Generaliza­se  o  mal­estar.  A  quem  inculpar,  senão  a  vós  que  incessantemente procurais esmagar­vos uns aos outros? Não podeis ser felizes, sem  mútua benevolência; mas, como pode a  benevolência coexistir com o  orgulho? O  orgulho, eis a fonte de todos os vossos males. Aplicai­vos, portanto, em destruí­lo,  se  não  lhe  quiserdes  perpetuar  as  funestas  conseqüências. Um  único  meio  se  vos  oferece para isso, mas infalível: tomardes para regra invariável do vosso proceder a  lei do Cristo, lei que tendes repelido ou falseado em sua interpretação.  Por que haveis de ter em maior estima o que brilha e encanta os olhos, do  que o que toca o coração? Por que fazeis do vício na opulência objeto das vossas  adulações,  ao  passo  que  desdenhais  do  verdadeiro  mérito  na  obscuridade?  Apresente­se  em  qualquer  parte  um  rico  debochado,  perdido  de  corpo  e  alma,  e  todas as portas se lhe abrem, todas as atenções são para ele, enquanto ao homem de  bem, que vive do seu trabalho, mal se dignam todos de saudá­lo com ar de proteção.  Quando a consideração dispensada aos outros se mede pelo ouro que possuem ou  pelo  nome  de  que  usam,  que  interesse  podem  eles  ter  em  se  corrigirem  de  seus  defeitos?  Dar­se­ia  o  inverso,  se  a  opinião  geral  fustigasse  o  vício  dourado,  tanto  quanto o vício em andrajos; mas, o orgulho se mostra indulgente para com tudo o  que o lisonjeia. Século de cupidez e de dinheiro, dizeis. Sem dúvida; mas por que  deixastes que as necessidades materiais sobrepujassem o bom­senso e a razão? Por  que há de cada um querer elevar­se acima de seu irmão? Desse  fato sofre hoje a  sociedade as conseqüências.  Não esqueçais que tal estado de coisas é sempre sinal certo de decadência  moral. Quando o orgulho chega ao extremo, tem­se um indício de queda próxima,  porquanto Deus nunca deixa de castigar os soberbos. Se por vezes consente que eles  subam, é para lhes dar tempo à reflexão e a que se emendem, sob os golpes que de  quando em quando lhes desfere no orgulho para adverti­los. Mas, em lugar de se  humilharem, eles se revoltam. Então, cheia a medida, Deus os abate completamente  e tanto mais horrível lhes é a queda, quanto mais alto hajam subido.  Pobre  raça  humana,  cujo  egoísmo  corrompeu  todas  as  sendas,  toma  novamente  coragem,  apesar  de  tudo.  Em  sua  misericórdia  infinita,  Deus  te  envia  poderoso remédio para os teus males, um inesperado socorro à tua miséria. Abre os  olhos à luz: aqui estão as almas dos que já não vivem na Terra e que te vêm chamar  ao cumprimento dos deveres reais. Eles te dirão, com a autoridade da experiência,  quanto as vaidades e as grandezas da vossa passageira existência são mesquinhas a  par da eternidade. Dir­te­ão que, lá, o maior é aquele que haja sido o mais humilde  entre  os  pequenos  deste  mundo;  que  aquele  que  mais  amou  os  seus  irmãos  será  também  o  mais  amado  no  céu;  que  os  poderosos  da  Terra,  se  abusaram  da  sua  autoridade,  ver­se­ão  reduzidos  a  obedecer  aos  seus  servos;  que,  finalmente,  a  humildade e a caridade, irmãs que andam sempre de mãos dadas, são os meios mais  eficazes de se obter graça diante do Eterno. – Adolfo, bispo de Argel. (Marmande,  1862)
  • 90. 90 – Allan Kardec  MISSÃO DO HOMEM INTELIGENTE NA TERRA  13.  Não  vos  ensoberbais  do  que  sabeis,  porquanto  esse  saber  tem  limites  muito  estreitos no mundo em que habitais. Suponhamos sejais sumidades em inteligência  neste planeta: nenhum direito tendes de envaidecer­vos. Se Deus, em seus desígnios,  vos fez nascer num meio onde pudestes desenvolver a vossa inteligência, é que quer  a utilizeis para o bem de todos; é uma missão que vos dá, pondo­vos nas mãos o  instrumento  com  que  podeis  desenvolver,  por  vossa  vez,  as  inteligências  retardatárias e conduzi­las a ele. A natureza do instrumento não está a indicar a que  utilização  deve  prestar­se?  A  enxada  que  o  jardineiro  entrega  a  seu  ajudante  não  mostra a este último que lhe cumpre cavar a terra? Que diríeis, se esse ajudante, em  vez de trabalhar, erguesse a enxada para ferir o seu patrão? Diríeis que é horrível e  que ele merece expulso. Pois bem: não se dá o mesmo com aquele que se serve da  sua inteligência para destruir a idéia de Deus e da Providência entre seus irmãos?  Não levanta ele contra o seu senhor a enxada que lhe foi confiada para arrotear o  terreno? Tem ele direito ao salário prometido? Não merece, ao contrário, ser expulso  do  jardim? Sê­lo­á, não duvideis, e atravessará existências miseráveis e cheias de  humilhações, até que se curve diante d’Aquele a quem tudo deve.  A inteligência é rica de méritos para o futuro, mas, sob a condição de ser  bem  empregada.  Se  todos  os  homens  que  a  possuem  dela  se  servissem  de  conformidade com a vontade de Deus, fácil seria, para os Espíritos, a tarefa de fazer  que a Humanidade avance. Infelizmente, muitos a tornam instrumento de orgulho e  de  perdição  contra  si mesmos.  O homem abusa  da  inteligência  como  de  todas  as  suas outras faculdades e, no entanto, não lhe faltam ensinamentos que o advirtam de  que  uma  poderosa  mão  pode  retirar  o  que  lhe  concedeu.  –  Ferdinando,  Espírito  protetor. (Bordéus, 1862)
  • 91. 91 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO VIII  BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM PURO O CORAÇÃO ·  SIMPLICIDADE E PUREZA DE CORAÇÃO ·  PECADO POR PENSAMENTO – ADULTÉRIO ·  VERDADEIRA PUREZA – MÃOS NÃO LAVADAS ·  ESCÂNDALO – SE A VOSSA MÃO É MOTIVO DE  ESCÂNDALO, CORTAI­A  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  DEIXAI QUE VENHAM A MIM AS CRIANCINHAS ·  BEM­AVENTURADOS OS QUE TÊM FECHADOS OS OLHOS  SIMPLICIDADE E PUREZA DE CORAÇÃO  1. “ Bem­aventurados os que têm puro o coração, porquanto verão a Deus”.  (MATEUS, 5:8)  2. Apresentaram­lhe então algumas crianças, a fim de que ele as tocasse,  e,  como  seus  discípulos  afastassem  com  palavras  ásperas  os  que  lhas  apresentavam,  Jesus,  vendo  isso,  zangou­se  e  lhes  disse:  “Deixai  que  venham  a mim  as  criancinhas  e  não as impeçais,  porquanto  o  reino  dos  céus  é  para  os  que  se  lhes  assemelham.  Digo­­vos,  em  verdade,  que  aquele  que  não  receber  o  reino  de  Deus  como  uma  criança,  nele  não  entrará.” E, depois de as abraçar, abençoou­as, impondo­lhes as mãos.  (MARCOS, 10:13 a 16)  3. A pureza do coração é inseparável da simplicidade e da humildade. Exclui toda  idéia de egoísmo e de orgulho. Por isso é que Jesus toma a infância como emblema  dessa pureza, do mesmo modo que a tomou como o da humildade.
  • 92. 92 – Allan Kardec  Poderia  parecer  menos  justa  essa  comparação,  considerando­se  que  o  Espírito  da  criança  pode  ser  muito  antigo  e  que  traz,  renascendo  para  a  vida  corporal,  as  imperfeições  de  que  se  não  tenha  despojado  em  suas  precedentes  existências. Só um Espírito que houvesse chegado à perfeição nos poderia oferecer o  tipo da verdadeira pureza. É exata a comparação, porém, do ponto de vista da vida  presente,  porquanto  a  criancinha,  não  havendo  podido  ainda  manifestar  nenhuma  tendência perversa, nos apresenta a imagem da inocência e da candura. Daí o não  dizer Jesus, de modo absoluto, que o reino dos céus é para elas, mas para os que se  lhes assemelhem.  4.  Pois  que  o  Espírito  da  criança  já  viveu,  por  que  não  se  mostra,  desde  o  nascimento,  tal  qual  é?  Tudo  é  sábio  nas  obras  de  Deus.  A  criança  necessita  de  cuidados especiais, que somente a ternura materna lhe pode dispensar, ternura que se  acresce da fraqueza e da ingenuidade da criança. Para uma mãe, seu filho é sempre  um anjo e assim era preciso que fosse, para lhe cativar a solicitude. Ela não houvera  podido ter­lhe o mesmo devotamento, se, em vez da graça ingênua, deparasse nele,  sob os traços infantis, um caráter viril e as idéias de um adulto e, ainda menos, se lhe  viesse a conhecer o passado.  Aliás,  faz­se  necessário  que  a  atividade  do  princípio  inteligente  seja  proporcionada à fraqueza do corpo, que não poderia resistir a uma atividade muito  grande do Espírito, como se verifica nos indivíduos grandemente precoces. Essa a  razão por que, ao aproximar­se­lhe a encarnação, o Espírito entra em perturbação e  perde pouco a pouco a  consciência de si mesmo, ficando, por certo tempo, numa  espécie  de  sono,  durante  o  qual  todas  as  suas  faculdades  permanecem  em  estado  latente.  É necessário  esse  estado  de  transição  para  que  o  Espírito  tenha  um novo  ponto de partida e para que esqueça, em sua nova existência, tudo aquilo que a possa  entravar. Sobre ele, no entanto, reage o passado. Renasce para a vida maior, mais  forte, moral e intelectualmente, sustentado e secundado pela intuição que conserva  da experiência adquirida.  A partir do nascimento, suas idéias tomam gradualmente impulso, à medida  que os órgãos se desenvolvem, pelo que se pode dizer que, no curso dos primeiros  anos,  o  Espírito  é  verdadeiramente  criança, por  se  acharem  ainda  adormecidas  as  idéias que lhe formam o fundo do caráter. Durante o tempo em que seus instintos se  conservam amodorrados, ele é mais maleável e, por isso mesmo, mais acessível às  impressões  capazes  de  lhe  modificarem  a  natureza  e  de  fazê­lo  progredir,  o  que  torna mais fácil a tarefa que incumbe aos pais.  O Espírito, pois, enverga temporariamente a túnica da inocência e, assim,  Jesus está com a verdade, quando, sem embargo da anterioridade da alma, toma a  criança por símbolo da pureza e da simplicidade.  PECADO POR PENSAMENTOS. – ADULTÉRIO  5.  “ Aprendestes  que  foi  dito  aos  antigos:  ‘Não  cometereis  adultério’.  Eu,  porém,  vos  digo  que  aquele  que  houver  olhado  uma  mulher,  com  mau  desejo para com ela, já em seu coração cometeu adultério com ela.”  (MATEUS, 5:27 e 28)
  • 93. 93 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  6.  A  palavra  adultério  não  deve  absolutamente  ser  entendida  aqui  no  sentido  exclusivo  da  acepção  que  lhe  é  própria,  porém,  num  sentido  mais  geral.  Muitas  vezes  Jesus  a  empregou  por  extensão,  para  designar  o  mal,  o  pecado,  todo  e  qualquer  pensamento  mau,  como,  por  exemplo,  nesta  passagem:  “Porquanto  se  alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, dentre esta raça adúltera e  pecadora,  o  Filho  do  homem  também  se  envergonhará  dele,  quando  vier  acompanhado dos santos anjos, na glória de seu Pai.” (MARCOS, 8:38)  A  verdadeira  pureza  não  está  somente  nos  atos;  está  também  no  pensamento, porquanto aquele que tem puro o coração, nem sequer pensa no mal.  Foi o que Jesus quis dizer: ele condena o pecado, mesmo em pensamento, porque é  sinal de impureza.  7.  Esse  princípio  suscita  naturalmente  a  seguinte  questão:  Sofrem­se  as  conseqüências de um pensamento mau, embora nenhum efeito produza?  Cumpre se faça aqui uma importante distinção. À medida que avança na  vida  espiritual,  a  alma  que  enveredou  pelo  mau  caminho  se  esclarece  e  despoja  pouco a pouco de suas imperfeições, conforme a maior ou menor boa vontade que  demonstre, em virtude do seu livre­arbítrio. Todo pensamento mau resulta, pois, da  imperfeição  da  alma;  mas,  de  acordo  com  o  desejo  que  alimenta  de  depurar­se,  mesmo esse mau pensamento se lhe torna uma ocasião de adiantar­se, porque ela o  repele com energia. É indício de esforço por apagar uma mancha. Não cederá, se se  apresentar oportunidade de satisfazer a um mau desejo. Depois que haja resistido,  sentir­se­á mais forte e contente com a sua vitória.  Aquela que, ao contrário, não tomou boas resoluções, procura ocasião de  praticar o mau ato e, se não o leva a efeito, não é por virtude da sua vontade, mas  por falta de ensejo. É, pois, tão culpada quanto o seria se o cometesse.  Em  resumo,  naquele  que  nem  sequer  concebe  a  idéia  do  mal,  já  há  progresso  realizado;  naquele  a  quem  essa  idéia  acode,  mas  que  a  repele,  há  progresso  em  vias  de  realizar­se;  naquele,  finalmente,  que  pensa  no  mal  e  nesse  pensamento  se  compraz,  o  mal  ainda  existe  na  plenitude  da  sua  força.  Num,  o  trabalho está feito; no outro, está por fazer­se. Deus, que é justo, leva em conta todas  essas gradações na responsabilidade dos atos e dos pensamentos do homem.  VERDADEIRA PUREZA – MÃOS NÃO LAVADAS  8.  Então  os  escribas  e  os  fariseus,  que  tinham  vindo  de  Jerusalém,  aproximaram­se  de  Jesus  e  lhe  disseram:  “Por  que  violam  os  teus  discípulos a tradição dos antigos, uma vez que não lavam as mãos quando  fazem suas refeições?” Jesus lhes respondeu: “Por que violais vós outros o  mandamento de Deus, para seguir a vossa tradição? Porque Deus pôs este  mandamento: Honrai a vosso pai e a vossa mãe; e este outro: Seja punido  de morte aquele que disser a seu pai ou a sua mãe palavras ultrajantes; e  vós outros, no entanto, dizeis: Aquele que haja dito a seu pai ou a sua mãe:  ‘Toda oferenda que faço a Deus vos é proveitosa, satisfaz à lei’, ainda que  depois não honre, nem assista a seu pai ou a sua mãe. Tornam assim inútil  o mandamento de Deus, pela vossa tradição”.
  • 94. 94 – Allan Kardec  “Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, quando disse: Este povo  me honra de lábios, mas conserva longe de mim o coração; é em vão que  me honram ensinando máximas e ordenações humanas.”  Depois,  tendo  chamado  o  povo,  disse:  “Escutai  e  compreendei  bem isto: Não é o que entra na boca que macula o homem; o que sai da  boca do homem é que o macula.O que sai da boca procede do coração e é  o que torna impuro o homem; porquanto do coração é que partem os maus  pensamentos, os assassínios, os adultérios, as fornicações, os latrocínios,  os  falsos  testemunhos,  as  blasfêmias  e  as  maledicências.  Essas  são  as  coisas que tornam impuro o homem; o comer sem haver lavado as mãos  não é o que o torna impuro.”  Então, aproximando­se dele, disseram­lhe seus discípulos: “Sabeis  que, ouvindo o que acabais de dizer, os fariseus se escandalizaram?” Ele,  porém, respondeu: “Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não  plantou.  Deixai­os,  são  cegos  que  conduzem cegos;  se  um  cego  conduz  outro, caem ambos no fosso.”  (MATEUS, 15:1 a 20)  9.  Enquanto  ele  falava,  um  fariseu  lhe  pediu  que  fosse  jantar  em  sua  companhia. Jesus foi e sentou­se à mesa. O fariseu entrou então a dizer  consigo mesmo: “Por que não lavou ele as mãos antes de jantar?” Disse­  lhe,  porém,  o  Senhor:  “Vós  outros,  fariseus,  pondes  grande  cuidado  em  limpar  o  exterior  do  copo  e  do  prato;  entretanto,  o  interior  dos  vossos  corações  está  cheio  de  rapinas  e  de  iniqüidades.  Insensatos  que  sois!  Aquele que fez o exterior não é o que faz também o interior?”  (LUCAS, 11:37 a 40)  10.  Os  judeus  haviam  desprezado  os  verdadeiros  mandamentos  de  Deus  para  se  aferrarem à prática dos regulamentos que  os homens tinham estatuído e da rígida  observância desses regulamentos faziam casos de consciência. A substância, muito  simples,  acabara  por  desaparecer  debaixo  da  complicação  da  forma.  Como  fosse  muito mais fácil praticar atos exteriores, do que se reformar moralmente, lavar as  mãos  do  que  expurgar  o  coração  iludiram­se  a  si  próprios  os  homens,  tendo­se  como  quites  para  com  Deus,  por  se  conformarem  com  aquelas  práticas,  conservando­se tais quais eram, visto se lhes ter ensinado que Deus não exigia mais  do que isso. Daí o haver dito o profeta: É em vão que este povo me honra de lábios,  ensinando máximas e ordenações humanas.  Verificou­se o mesmo com a doutrina moral do Cristo, que acabou por ser  atirada para segundo plano, donde resulta que muitos cristãos, a exemplo dos antigos  judeus, consideram mais garantida a salvação por meio das práticas exteriores, do  que pelas da moral. É a essas adições, feitas pelos homens à lei de Deus, que Jesus  alude, quando diz: Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não plantou.  O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega a  Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna melhor o  homem, não  alcança  o seu  objetivo.  Toda  aquela  em  que  o  homem  julgue  poder  apoiar­se  para  fazer  o  mal,  ou  é  falsa,  ou  está  falseada  em  seu  princípio.  Tal  o  resultado que dão as em que a forma sobreleva ao fundo. Nula é a crença na eficácia  dos  sinais  exteriores,  se  não  obsta  a  que  se  cometam  assassínios,  adultérios,
  • 95. 95 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  espoliações, que se levantem calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que  for.  Semelhantes religiões  fazem  supersticiosos,  hipócritas,  fanáticos; não,  porém,  homens de bem.  Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a  do coração.  ESCÂNDALOS.  SE A VOSSA MÃO É MOTIVO DE ESCÂNDALO, CORTAI­A  11.  “ Se  algum  escandalizar  a  um  destes  pequenos  que  crêem  em mim,  melhor fora que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós que um asno faz  girar e que o lançassem no fundo do mar.”  “Ai do mundo por causa dos escândalos  7  ; pois é necessário que  venham  escândalos;  mas,  ai  do  homem  por  quem  o  escândalo  venha.  Tende muito cuidado em não desprezar um destes pequenos. Declaro­vos  que seus anjos no céu vêem incessantemente a face de meu Pai que está  nos céus, porquanto o Filho do homem veio salvar o que estava perdido.  Se  a  vossa  mão  ou  o  vosso  pé  vos  é  objeto  de  escândalo,  cortai­os  e  lançai­os longe de vós; melhor será para vós que entreis na vida tendo um  só pé ou uma só mão, do que terdes dois e serdes lançados no fogo eterno.  – Se o vosso olho vos é objeto de escândalo, arrancai­o e lançai­o longe de  vós; melhor para vós será que entreis na vida tendo um só olho, do que  terdes dois e serdes precipitados no fogo do inferno.  (MATEUS, 18:6 a 11; 5:29 e 30)  12. No sentido vulgar, escândalo se diz de toda ação que de modo ostensivo vá de  encontro à moral ou ao decoro. O escândalo não está na ação em si mesma, mas na  repercussão que possa ter. A palavra escândalo implica sempre a idéia de um certo  arruído. Muitas pessoas se contentam com evitar o escândalo, porque este lhes faria  sofrer o orgulho, lhes acarretaria perda de consideração da parte dos homens. Desde  que as suas torpezas fiquem ignoradas, é quanto basta para que se lhes conserve em  repouso a consciência. São, no dizer de Jesus: “sepulcros branqueados por fora, mas  cheios, por dentro, de podridão; vasos limpos no exterior e sujos no interior”.  No  sentido  evangélico,  a  acepção  da  palavra  escândalo,  tão  amiúde  empregada, é muito mais geral, pelo que, em certos casos, não se lhe apreende o  significado.  Já não  é  somente  o  que  afeta  a  consciência  de  outrem,  é  tudo  o  que  resulta dos vícios e das imperfeições humanas, toda reação má de um indivíduo para  outro, com ou sem repercussão. O escândalo, neste caso, é o resultado efetivo do  mal moral.  13. É preciso que haja escândalo no mundo, disse Jesus, porque, imperfeitos como  são na Terra, os homens se mostram propensos a praticar o mal, e porque, árvores  7  Nas traduções mais recentes e mais fiéis da Bíblia, a palavra escândalo está expressa por tropeço (na  tradução em Esperanto falilo), querendo significar que Jesus se referia a tudo que leva o homem à queda:  o mau exemplo, princípios falsos, abuso do poder, etc. – A Editora.
  • 96. 96 – Allan Kardec  más, só maus frutos dão. Deve­se, pois, entender por essas palavras que o mal é uma  conseqüência da imperfeição dos homens e não que haja, para estes, a obrigação de  praticá­lo.  14. É necessário que o escândalo venha, porque, estando em expiação na Terra, os  homens se punem a si mesmos pelo contacto de seus vícios, cujas primeiras vítimas  são  eles  próprios  e  cujos  inconvenientes  acabam  por  compreender.  Quando  estiverem cansados de sofrer devido ao mal, procurarão remédio no bem. A reação  desses  vícios  serve,  pois,  ao mesmo  tempo,  de  castigo  para  uns  e  de  provas  para  outros. É assim que do mal tira Deus o bem e que os próprios homens utilizam as  coisas más ou as escórias.  15.  Sendo  assim,  dirão,  o  mal  é  necessário  e  durará  sempre,  porquanto,  se  desaparecesse, Deus se veria privado de um poderoso meio de corrigir os culpados.  Logo, é inútil cuidar de melhorar os homens. Deixando, porém, de haver culpados,  também  desnecessário  se  tornariam  quaisquer  castigos.  Suponhamos  que  a  Humanidade  se  transforme  e  passe  a  ser  constituída  de homens  de  bem:  nenhum  pensará em fazer mal ao seu próximo e todos serão ditosos por serem bons. Tal a  condição dos mundos elevados, donde já o mal foi banido; tal virá a ser a da Terra,  quando houver progredido bastante. Mas, ao mesmo tempo em que alguns mundos  se adiantam, outros se formam, povoados de Espíritos primitivos e que, além disso,  servem  de  habitação,  de  exílio  e  de  estância  expiatória  a  Espíritos  imperfeitos,  rebeldes, obstinados no mal, expulsos de mundos que se tornaram felizes.  16.  Mas,  ai  daquele  por  quem  venha  o  escândalo.  Quer  dizer  que  o  mal  sendo  sempre o mal, aquele que a seu mau grado servir de instrumento à justiça divina,  aquele cujos maus instintos foram utilizados, nem por isso deixou de praticar o mal  e de merecer punição. Assim é, por exemplo, que um filho ingrato é uma punição ou  uma prova para o pai que sofre com isso, porque esse pai talvez tenha sido também  um  mau  filho  que  fez  sofresse  seu  pai.  Passa  ele  pela  pena  de  talião.  Mas,  essa  circunstância  não  pode  servir  de  escusa  ao  filho  que,  a  seu  turno,  terá  de  ser  castigado em seus próprios filhos, ou de outra maneira.  17. Se vossa mão é causa de escândalo, cortai­a.  Figura enérgica  esta,  que  seria  absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir  em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento  impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale  ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação  má;  ficar  privado  da  vista,  antes  que  lhe  servirem  os  olhos  para  conceber  maus  pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido  alegórico  e  profundo  de  suas  palavras.  Muitas  coisas,  entretanto,  não  podem  ser  compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta.
  • 97. 97 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  DEIXAI QUE VENHAM A MIM AS CRIANCINHAS  18. Disse o Cristo: “Deixai que venham a mim as criancinhas.” Profundas em sua  simplicidade,  essas  palavras  não  continham  um  simples  chamamento  dirigido  às  crianças,  mas,  também,  o  das  almas  que  gravitam  nas  regiões  inferiores,  onde  o  infortúnio  desconhece  a  esperança.  Jesus  chamava  a  si  a  infância  intelectual  da  criatura formada: os fracos, os escravizados e os viciosos. Ele nada podia ensinar à  infância física, presa à matéria, submetida ao jugo do instinto, ainda não incluída na  categoria superior da razão e da vontade que se exercem em torno dela e por ela.  Queria que os homens a ele fossem com a confiança daqueles entezinhos de  passos  vacilantes,  cujo  chamamento  conquistava,  para  o  seu,  o  coração  das  mulheres,  que  são todas  mães.  Submetia  assim  as  almas  à  sua  terna  e  misteriosa  autoridade.  Ele  foi  o  facho  que  ilumina  as  trevas,  a  claridade  matinal  que  toca  a  despertar;  foi  o  iniciador  do  Espiritismo,  que  a  seu  turno  atrairá  para  ele, não  as  criancinhas, mas os homens de boa vontade. Está empenhada a ação viril; já não se  trata  de  crer  instintivamente,  nem  de  obedecer  maquinalmente;  é  preciso  que  o  homem  siga  a  lei  inteligente  que  se  lhe revela na  sua  universalidade.  Meus  bem­  amados, são chegados os tempos em que, explicados, os erros se tornarão verdades.  Ensinar­vos­emos  o  sentido  exato  das  parábolas  e  vos  mostraremos  a  forte  correlação  que  existe  entre  o  que  foi  e  o  que  é.  Digo­vos,  em  verdade:  a  manifestação  espírita  avulta  no  horizonte,  e  aqui  está  o  seu  enviado,  que  vai  resplandecer como o Sol no cume dos montes. – João Evangelista. (Paris, 1863)  19. Deixai venham a mim as criancinhas, pois tenho o leite que fortalece os fracos.  Deixai  venham  a  mim  todos  os  que,  tímidos  e  débeis,  necessitam  de  amparo  e  consolação. Deixai venham a mim os ignorantes, para que eu os esclareça. Deixai  venham a mim todos os que sofrem, a multidão dos aflitos e dos infortunados: eu  lhes  ensinarei  o  grande remédio  que  suaviza  os  males  da  vida  e  lhes  revelarei  o  segredo da cura de suas feridas! Qual é, meus amigos, esse bálsamo soberano, que  possui tão grande virtude, que se aplica a todas as chagas do coração e as cicatriza?  É o amor, é a caridade! Se possuís esse fogo divino, que é o que podereis temer?  Direis a todos os instantes de vossa vida: “Meu Pai, que a tua vontade se faça e não  a  minha;  se  te  apraz  experimentar­me  pela  dor  e  pelas  tribulações,  bendito  sejas,  porquanto é para meu bem, eu o sei, que a tua mão sobre mim se abate. Se é do teu  agrado, Senhor, ter piedade da tua criatura fraca, dar­lhe ao coração as alegrias sãs,  bendito sejas ainda. Mas, faze que o amor divino não lhe fique amodorrado na alma,  que incessantemente faça subir aos teus pés o testemunho do seu reconhecimento!”  Se  tendes  amor,  possuís  tudo  o  que  há  de  desejável  na  Terra,  possuís  preciosíssima  pérola,  que  nem  os  acontecimentos,  nem  as  maldades  dos  que  vos  odeiem  e  persigam  poderão  arrebatar.  Se  tendes  amor,  tereis  colocado  o  vosso  tesouro lá onde os vermes e a ferrugem não o podem atacar e vereis apagar­se da  vossa alma tudo o que seja capaz de lhe conspurcar a pureza; sentireis diminuir dia a  dia o peso da matéria e, qual pássaro que adeja nos ares e já não se lembra da Terra,  subireis continuamente, subireis sempre, até que vossa alma, inebriada, se farte do  seu elemento de vida no seio do Senhor. – Um Espírito protetor. (Bordéus, 1861)
  • 98. 98 – Allan Kardec  BEM­AVENTURADOS OS QUE TÊM FECHADOS OS OLHOS 8  20. Meus bons amigos, para que me chamastes? Terá sido para que eu imponha as  mãos  sobre  a  pobre  sofredora  que  está  aqui  e  a  cure?  Ah!  Que  sofrimento,  bom  Deus! Ela perdeu a vista e as trevas a envolveram. Pobre filha! Que ore e espere.  Não sei fazer milagres, eu, sem que Deus o queira. Todas as curas que tenho podido  obter e que vos foram assinaladas não as atribuais senão àquele que é o Pai de todos  nós.  Nas  vossas  aflições,  volvei  sempre  para  o  céu  o  olhar  e  dizei  do  fundo  do  coração: “Meu Pai, cura­me, mas faze que minha alma enferma se cure antes que o  meu corpo; que a minha carne seja castigada, se necessário, para que minha alma se  eleve ao teu seio, com a brancura que possuía quando a criaste.” Após essa prece,  meus amigos, que o bom Deus ouvirá sempre, dadas vos serão a força e a coragem  e, quiçá, também a cura que apenas timidamente pedistes, em recompensa da vossa  abnegação. Contudo, uma vez que aqui me acho, numa assembléia onde principalmente  se trata de estudos, dir­vos­ei que os que são privados da vista deveriam considerar­  se os bem­aventurados da expiação. Lembrai­vos de que o Cristo disse convir que  arrancásseis o vosso olho se fosse mau, e que mais valeria lançá­lo ao fogo, do que  deixar se tornasse causa da vossa condenação. Ah! Quantos há no mundo que um  dia, nas trevas, maldirão o terem visto a luz! Oh! Sim, como são felizes os que, por  expiação, vêm a ser atingidos na vista! Os olhos não lhes serão causa de escândalo e  de queda; podem viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que vós  que  tendes  límpida  a  visão!...  Quando  Deus  me  permite  descerrar  as  pálpebras  a  algum  desses  pobres  sofredores  e  lhes  restituir  a  luz,  digo  a  mim  mesmo:  Alma  querida,  por  que  não  conheces  todas  as  delícias  do  Espírito  que  vive  de  contemplação  e  de  amor?  Não  pedirias,  então,  que  se  te  concedesse  ver  imagens  menos puras e menos suaves, do que as que te é dado entrever na tua cegueira!  Oh! Bem­aventurado o cego que quer viver com Deus. Mais ditoso do que  vós que aqui estais, ele sente a felicidade, toca­a, vê as almas e pode alçar­se com  elas às esferas espirituais que nem mesmo os predestinados da Terra logram divisar.  Abertos, os olhos estão sempre prontos a causar a falência da alma; fechados, estão  prontos  sempre,  ao  contrário,  a  fazê­la  subir  para  Deus.  Crede­me,  bons  e  caros  amigos, a cegueira dos olhos é, muitas vezes, a verdadeira luz do coração, ao passo  que a vista é, com freqüência, o anjo tenebroso que conduz à morte.  Agora, algumas palavras dirigidas a ti, minha pobre sofredora. Espera e tem  ânimo!  Se  eu  te  dissesse:  Minha  filha,  teus  olhos  vão  abrir­se,  quão  jubilosa  te  sentirias! Mas, quem sabe se esse júbilo não ocasionaria a tua perda! Confia no bom  Deus, que fez a ventura e permite a tristeza. Farei tudo o que me for consentido a teu  favor; mas, a teu turno, ora e, ainda mais, pensa em tudo quanto acabo de te dizer.  Antes que me vá, recebei todos vós, que aqui vos achais reunidos, a minha  bênção. – Vianney, cura d’Ars. (Paris, 1863)  21. Nota. Quando uma aflição não é conseqüência dos atos da vida presente, deve­  se­lhe  buscar  a  causa  numa  vida  anterior.  Tudo  aquilo  a  que  se  dá  o  nome  de  8  Esta comunicação foi dada com relação a uma pessoa cega, a cujo favor se evocara o Espírito de J.­B.  Vianney, cura d’Ars.
  • 99. 99 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  caprichos  da  sorte  mais  não  é  do  que  efeito  da  justiça  de  Deus,  que  não  inflige  punições arbitrárias, pois quer que a pena esteja sempre em correlação com a falta.  Se, por sua bondade, lançou um véu sobre os nossos atos passados, por outro lado  nos  aponta  o  caminho,  dizendo:  “Quem  matou  à  espada,  pela  espada  perecerá”,  palavras que se podem traduzir assim: “A criatura é sempre punida por aquilo em  que pecou.” Se, portanto, alguém sofre o tormento da perda da vista, é que esta lhe  foi causa de queda. Talvez tenha sido também causa de que outro perdesse a vista;  de  que  alguém haja  perdido  a  vista  em  conseqüência do  excesso  de  trabalho  que  aquele lhe impôs, ou de maus­tratos, de falta de cuidados, etc. Nesse caso, passa ele  pela  pena  de  talião.  É  possível  que  ele  próprio,  tomado  de  arrependimento,  haja  escolhido essa expiação, aplicando a si estas palavras de Jesus: “Se o teu olho for  motivo de escândalo, arranca­o.”
  • 100. 100 – Allan Kardec  CAPÍTULO IX  BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO BRANDOS E PACÍFICOS ·  INJÚRIAS E VIOLÊNCIAS  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A AFABILIDADE E A DOÇURA ·  A PACIÊNCIA ·  OBEDIÊNCIA E RESIGNAÇÃO ·  A CÓLERA  INJÚRIAS E VIOLÊNCIAS  1. Bem­aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra.  (MATEUS, 5:5)  2. Bem­aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus.  (MATEUS, 5:9)  3.  Sabeis  que  foi  dito aos  antigos:  Não matareis  e  quem quer  que  mate  merecerá condenação pelo juízo. – Eu, porém, vos digo que quem quer que  se puser em cólera contra seu irmão merecerá condenação no juízo; que  aquele que disser a seu irmão: Raca, merecerá condenado pelo conselho; e  que  aquele  que  lhe  disser:  És  louco,  merecerá  condenado  ao  fogo  do  inferno.  (MATEUS, 5:21 e 22)  4.  Por  estas  máximas,  Jesus  faz  da  brandura,  da  moderação,  da  mansuetude,  da  afabilidade e da paciência, uma lei. Condena, por conseguinte, a violência, a cólera e  até toda expressão descortês de que alguém possa usar para com seus semelhantes.  Raca, entre os hebreus, era um termo desdenhoso que significava – homem que não
  • 101. 101 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  vale nada, e se pronunciava cuspindo e virando para o lado a cabeça. Vai mesmo  mais longe, pois que ameaça com o fogo do inferno aquele que disser a seu irmão:  És louco.  Evidente  se  torna  que  aqui,  como  em  todas  as  circunstâncias, a  intenção  agrava ou atenua a falta; mas, em que pode uma simples palavra revestir­se de tanta  gravidade que mereça tão severa reprovação? É que toda palavra ofensiva exprime  um sentimento contrário à lei do amor e da caridade que deve presidir às relações  entre os homens e manter entre eles a concórdia e a união; é que constitui um golpe  desferido  na  benevolência recíproca  e  na  fraternidade;  é  que  entretém  o  ódio  e  a  animosidade; é, enfim, que, depois da humildade para com Deus, a caridade para  com o próximo é a lei primeira de todo cristão.  5.  Mas,  que  queria  Jesus  dizer  por  estas  palavras:  “Bem­aventurados  os  que  são  brandos,  porque  possuirão  a  Terra”,  tendo  recomendado  aos  homens  que  renunciassem aos bens deste mundo e havendo­lhes prometido os do céu?  Enquanto aguarda os bens do céu, tem o homem necessidade dos da Terra  para viver. Apenas, o que ele lhe recomenda é que não ligue a estes últimos mais  importância do que aos primeiros.  Por  aquelas  palavras  quis  dizer  que  até  agora  os  bens  da  Terra  são  açambarcados pelos violentos, em prejuízo dos que são brandos e pacíficos; que a  estes falta muitas vezes o necessário, ao passo que outros têm o supérfluo. Promete  que  justiça  lhes  será  feita, assim na  Terra  como  no  céu,  porque  serão  chamados  filhos  de  Deus.  Quando  a  Humanidade  se  submeter  à  lei  de  amor  e  de  caridade,  deixará  de  haver  egoísmo;  o  fraco  e  o  pacífico  já  não  serão  explorados,  nem  esmagados pelo forte e pelo violento. Tal a condição da Terra, quando, de acordo  com a lei do progresso e a promessa de Jesus, se houver tornado mundo ditoso, por  efeito do afastamento dos maus.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A AFABILIDADE E A DOÇURA  6. A benevolência para com os seus semelhantes, fruto do amor ao próximo, produz  a afabilidade e a doçura, que lhe são as formas de manifestar­se. Entretanto, nem  sempre há que fiar nas aparências. A educação e a freqüentação do mundo podem  dar  ao  homem  o  verniz  dessas  qualidades.  Quantos  há  cuja  tingida  bonomia  não  passa de máscara para o exterior, de uma roupagem cujo talhe primoroso dissimula  as deformidades interiores! O mundo está cheio dessas criaturas que têm nos lábios  o sorriso e no coração o veneno; que são brandas, desde que nada as agaste, mas  que mordem à menor contrariedade; cuja língua, de ouro quando falam pela frente,  se muda em dardo peçonhento, quando estão por detrás.  A essa classe também pertencem esses homens, de exterior benigno, que,  tiranos domésticos, fazem que suas famílias e seus subordinados lhes sofram o peso  do orgulho e do despotismo, como a quererem desforrar­se do constrangimento que,  fora de casa, se impõem a si mesmos. Não se atrevendo a usar de autoridade para
  • 102. 102 – Allan Kardec  com os estranhos, que os chamariam à ordem, acham que pelo menos devem fazer­  se temidos daqueles que lhes não podem resistir. Envaidecem­se de poderem dizer:  “Aqui mando e sou obedecido”, sem lhes ocorrer que poderiam acrescentar: “E sou  detestado.” Não basta que dos lábios manem leite e mel. Se o coração de modo algum  lhes  está  associado,  só  há  hipocrisia.  Aquele  cuja  afabilidade  e  doçura  não  são  tingidas nunca se desmente: é o mesmo, tanto em sociedade, como na intimidade.  Esse, ao demais, sabe que se, pelas aparências, se consegue enganar os homens, a  Deus ninguém engana. – Lázaro. (Paris, 1861)  A PACIÊNCIA  7. A dor é uma bênção que Deus envia a seus eleitos; não vos aflijais, pois, quando  sofrerdes;  antes,  bendizei  de  Deus  onipotente  que,  pela  dor,  neste  mundo,  vos  marcou para a glória no céu.  Sede pacientes. A paciência também é uma caridade e deveis praticar a lei  de  caridade  ensinada  pelo  Cristo,  enviado  de  Deus.  A  caridade  que  consiste  na  esmola dada aos pobres é a mais fácil de todas. Outra há, porém, muito mais penosa  e, conseguintemente, muito mais meritória: a de perdoarmos aos que Deus colocou  em nosso caminho para serem instrumentos do nosso sofrer e para nos porem à  prova a paciência.  A vida é difícil, bem o sei. Compõe­se de mil nadas, que são outras tantas  picadas de alfinetes, mas que acabam por ferir. Se, porém, atentarmos nos deveres  que  nos  são  impostos,  nas  consolações  e  compensações  que,  por  outro  lado,  recebemos, havemos de reconhecer que são as bênçãos muito mais numerosas do  que  as  dores.  O  fardo  parece  menos  pesado,  quando  se  olha  para  o  alto,  do  que  quando se curva para a terra a fronte.  Coragem, amigos! Tendes no Cristo o  vosso modelo. Mais sofreu ele do  que qualquer de vós e nada tinha de que se penitenciar, ao passo que vós tendes de  expiar o vosso passado e de vos fortalecer para o futuro. Sede, pois, pacientes, sede  cristãos. Essa palavra resume tudo. – Um Espírito amigo. (Havre, 1862)  OBEDIÊNCIA E RESIGNAÇÃO  8. A doutrina de Jesus ensina, em todos os seus pontos, a obediência e a resignação,  duas  virtudes  companheiras  da  doçura  e  muito  ativas,  se  bem  os  homens  erradamente as confundam com a negação do sentimento e da vontade. Aobediência  é  o  consentimento da  razão;  a  resignação  é  o  consentimento  do coração,  forças  ativas  ambas,  porquanto  carregam  o  fardo  das  provações  que  a  revolta  insensata  deixa cair. O pusilânime não pode ser resignado, do mesmo modo que o orgulhoso e  o egoísta não podem ser obedientes. Jesus foi a encarnação dessas virtudes que a  antigüidade material desprezava. Ele veio no momento em que a sociedade romana  perecia nos desfalecimentos da corrupção. Veio fazer que, no seio da Humanidade  deprimida, brilhassem os triunfos do sacrifício e da renúncia carnal.
  • 103. 103 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Cada época é marcada, assim, com o cunho da virtude ou do vício que a  tem de salvar ou perder. A virtude da vossa geração é a atividade intelectual; seu  vício  é  a  indiferença  moral.  Digo,  apenas,  atividade,  porque  o  gênio  se  eleva  de  repente e descobre, por si só, horizontes que a multidão somente mais tarde verá,  enquanto  que  a  atividade  é  a  reunião  dos  esforços  de  todos  para  atingir  um  fim  menos brilhante, mas que prova a elevação intelectual de uma época. Submetei­vos  à impulsão que vimos dar aos vossos espíritos; obedecei à grande lei do progresso,  que é a palavra da vossa geração. Ai do espírito preguiçoso, ai daquele que cerra o  seu entendimento! Ai dele! Porquanto nós, que somos os guias da Humanidade em  marcha, lhe aplicaremos o látego e lhe submeteremos a vontade rebelde, por meio da  dupla ação do freio e da espora. Toda resistência orgulhosa terá de, cedo ou tarde,  ser vencida. Bem­aventurados, no entanto, os que são brandos, pois prestarão dócil  ouvido aos ensinos. – Lázaro. (Paris, 1863)  A CÓLERA  9.  O  orgulho  vos  induz  a  julgar­vos  mais  do  que  sois;  a  não  suportardes  uma  comparação que vos possa rebaixar; a vos considerardes, ao contrário, tão acima dos  vossos irmãos, quer em espírito, quer em posição social, quer mesmo em vantagens  pessoais, que o menor paralelo vos irrita e aborrece. Que sucede então? – Entregai­  vos à cólera.  Pesquisai  a  origem  desses  acessos  de  demência  passageira  que  vos  assemelham ao bruto, fazendo­vos perder o sangue­frio e a razão; pesquisai e, quase  sempre, deparareis com o orgulho ferido. Que é o que vos faz repelir, coléricos, os  mais  ponderados  conselhos,  senão  o  orgulho  ferido  por  uma  contradição?  Até  mesmo  as  impaciências,  que  se  originam  de  contrariedades  muitas  vezes  pueris,  decorrem  da  importância  que  cada  um  liga  à  sua  personalidade,  diante  da  qual  entende que todos se devem dobrar.  Em  seu  frenesi,  o  homem  colérico  a  tudo  se  atira:  à  natureza  bruta,  aos  objetos  inanimados,  quebrando­os  porque  lhe  não  obedecem.  Ah!  Se  nesses  momentos  pudesse  ele  observar­se  a  sangue­frio,  ou  teria medo  de  si  próprio,  ou  bem  ridículo  se  acharia!  Imagine  ele  por  aí  que  impressão  produzirá  nos  outros.  Quando não fosse pelo respeito que deve a si mesmo, cumpria­lhe esforçar­se por  vencer um pendor que o torna objeto de piedade.  Se  ponderasse  que  a  cólera  a  nada  remedeia,  que  lhe  altera  a  saúde  e  compromete  até  a  vida,  reconheceria  ser  ele  próprio  a  sua  primeira  vítima.  Mas,  outra consideração, sobretudo, devera contê­lo, a de que torna infelizes todos os que  o cercam. Se tem coração, não lhe será motivo de remorso fazer que sofram os entes  a quem mais ama? E que pesar mortal se, num acesso de fúria, praticasse um ato que  houvesse de deplorar toda a sua vida!  Em suma, a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede se  faça muito bem e pode levar à prática de muito mal. Isto deve bastar para induzir o  homem  a  esforçar­se  pela  dominar.  O  espírita,  ao  demais,  é  concitado a  isso  por  outro motivo: o de que a cólera é contrária à caridade e à humildade cristãs. – Um  Espírito protetor. (Bordéus, 1863)
  • 104. 104 – Allan Kardec  10.  Segundo  a  idéia  falsíssima  de  que  lhe  não  é  possível  reformar  a  sua  própria  natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos  defeitos em que de boa vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança  para  serem  extirpados.  É  assim,  por  exemplo,  que  o  indivíduo,  propenso  a  encolerizar­se, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se  confessar culpado, lança a culpa ao seu organismo, acusando a Deus, dessa forma,  de suas próprias faltas. É ainda uma conseqüência do orgulho que se  encontra de  permeio a todas as suas imperfeições.  Indubitavelmente, temperamentos há que se prestam mais que outros a atos  violentos, como há músculos mais flexíveis que se prestam melhor aos atos de força.  Não acrediteis, porém, que aí resida a causa primordial da cólera e persuadi­vos de  que um Espírito pacífico, ainda que num corpo bilioso, será sempre pacífico, e que  um  Espírito  violento,  mesmo  num  corpo  linfático,  não  será  brando;  somente,  a  violência  tomará  outro  caráter.  Não  dispondo  de  um  organismo  próprio  a  lhe  secundar a violência, a cólera tornar­se­á concentrada, enquanto no outro caso será  expansiva.  O corpo não dá cólera àquele que não na tem, do mesmo modo que não dá  os outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito. A não  ser assim, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem deformado não  pode tornar­se direito, porque o Espírito nisso não pode atuar; mas, pode modificar o  que é do Espírito, quando o quer com vontade firme. Não vos mostra a experiência,  a  vós  espíritas,  até  onde  é  capaz  de  ir  o  poder  da  vontade,  pelas  transformações  verdadeiramente miraculosas que se operam sob as vossas vistas? Compenetrai­vos,  pois,  de  que  o  homem  não  se  conserva  vicioso,  senão  porque  quer  permanecer  vicioso; de que aquele que queira corrigir­se sempre o pode. De outro modo, não  existiria para o homem a lei do progresso. – Hahnemann. (Paris, 1863)
  • 105. 105 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO X  BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSO ·  PERDOAI, PARA QUE DEUS OS PERDOE ·  RECONCILIAÇÃO COM OS ADVERSÁRIOS ·  O SACRIFÍCIO MAIS AGRADÁVEL A DEUS ·  O ARGUEIRO E A TRAVE NO OLHO ·  NÃO JULGUEIS, PARA NÃO SERDES JULGADOS – ATIRE  A PRIMEIRA PEDRA AQUELE QUE ESTIVER SEM PECADO  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  PERDÃO DAS OFENSAS ·  A INDULGÊNCIA ·  É PERMITIDO REPREENDER OS OUTROS, NOTAR AS  IMPERFEIÇÕES DE OUTREM, DIVULGAR O MAL DE  OUTREM?  PERDOAI, PARA QUE DEUS VOS PERDOE  1.  “ Bem­aventurados  os  que  são  misericordiosos,  porque  obterão  misericórdia”.  (MATEUS, 5:7)  2.  “ Se  perdoardes  aos  homens  as  faltas  que  cometerem  contra  vós,  também  vosso  Pai  celestial  vos  perdoará  os  pecados;  mas,  se  não  perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai celestial  também não vos perdoará os pecados”.  (MATEUS, 6:14 e 15)
  • 106. 106 – Allan Kardec  3.  “ Se  contra  vós  pecou  vosso  irmão,  ide  fazer­lhe  sentir  a  falta  em  particular,  a  sós  com  ele;  se  vos  atender,  tereis  ganho  o  vosso  irmão”.  Então,  aproximando­se  dele,  disse­lhe  Pedro:  “Senhor,  quantas  vezes  perdoarei  a  meu  irmão,  quando  houver  pecado  contra  mim?  Até  sete  vezes?” Respondeu­lhe Jesus: “Não vos digo que perdoeis até sete vezes,  mas até setenta vezes sete vezes.”  (MATEUS, 18:15, 21 e 22)  4.  A  misericórdia  é  o  complemento  da  brandura,  porquanto  aquele  que  não  for  misericordioso não poderá ser brando e pacífico. Ela consiste no esquecimento e no  perdão das ofensas. O ódio e o rancor denotam alma sem elevação, nem grandeza. O  esquecimento das ofensas é próprio da alma elevada, que paira acima dos golpes que  lhe possam desferir. Uma é sempre ansiosa, de sombria suscetibilidade e cheia de  fel; a outra é calma, toda mansidão e caridade.  Ai  daquele  que  diz:  nunca  perdoarei.  Esse,  se  não  for  condenado  pelos  homens, sê­lo­á por Deus. Com que direito reclamaria ele o perdão de suas próprias  faltas, se não perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter  limites, quando diz que cada um perdoe ao seu irmão, não sete vezes, mas setenta  vezes sete vezes.  Há, porém, duas maneiras bem diferentes de perdoar: uma, grande, nobre,  verdadeiramente generosa, sem pensamento oculto, que evita, com delicadeza, ferir  o amor­próprio e a suscetibilidade do adversário, ainda quando este último nenhuma  justificativa possa ter; a segunda é a em que o ofendido, ou aquele que tal se julga,  impõe  ao  outro  condições  humilhantes  e  lhe  faz  sentir  o  peso  de  um  perdão  que  irrita, em vez de acalmar; se estende a mão ao ofensor, não o faz com benevolência,  mas com ostentação, a fim de poder dizer a toda gente: vede como sou generoso!  Nessas circunstâncias, é impossível uma reconciliação sincera de parte a parte. Não,  não  há  aí  generosidade;  há  apenas  uma  forma  de  satisfazer  ao  orgulho.  Em  toda  contenda, aquele que se mostra mais conciliador, que demonstra mais desinteresse,  caridade  e  verdadeira  grandeza  d’alma  granjeará  sempre  a  simpatia  das  pessoas  imparciais.  RECONCILIAÇÃO COM OS ADVERSÁRIOS  5.  “ Reconciliai­vos  o  mais  depressa  possível  com  o  vosso  adversário,  enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz,  o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão.  Digo­vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o  último ceitil”.  (MATEUS, 5:25 e 26)  6.  Na  prática  do  perdão,  como,  em  geral, na  do  bem,  não  há  somente  um  efeito  moral: há também um efeito material. A morte, como sabemos, não nos livra dos  nossos inimigos; os Espíritos vingativos perseguem, muitas vezes, com seu ódio, no  além­túmulo, aqueles contra os quais guardam rancor; donde decorre a falsidade do
  • 107. 107 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  provérbio que diz: “Morto o animal, morto o veneno”, quando aplicado ao homem.  O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao seu corpo e,  assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar, ferir nos seus interesses, ou  nas  suas  mais  caras  afeições.  Nesse  fato  reside  a  causa  da  maioria  dos  casos  de  obsessão, sobretudo dos que apresentam certa gravidade, quais os de subjugação e  possessão.  O  obsidiado  e  o  possesso  são,  pois,  quase  sempre  vítimas  de  uma  vingança, cujo motivo se encontra em existência anterior, e à qual o que a sofre deu  lugar  pelo  seu  proceder.  Deus  o  permite,  para  os  punir  do  mal  que  a  seu  turno  praticaram,  ou,  se  tal  não  ocorreu,  por  haverem  faltado  com  a  indulgência  e  a  caridade,  não  perdoando.  Importa,  conseguintemente,  do  ponto  de  vista  da  tranqüilidade futura, que cada um repare, quanto antes, os agravos que haja causado  ao seu próximo, que perdoe aos seus inimigos, a fim de que, antes que a morte lhe  chegue, esteja apagado qualquer motivo de dissensão, toda causa fundada de ulterior  animosidade. Por essa forma, de um inimigo encarniçado neste mundo se pode fazer  um amigo no outro; pelo menos, o que assim procede põe de seu lado o bom direito  e Deus não consente que aquele que perdoou sofra qualquer vingança. Quando Jesus  recomenda que nos reconciliemos o mais cedo possível com o nosso adversário, não  é somente objetivando apaziguar as discórdias no curso da nossa atual existência; é,  principalmente, para que elas se não perpetuem nas existências futuras. Não saireis  de lá, da prisão, enquanto não houverdes pago até o último centavo, isto é, enquanto  não houverdes satisfeito completamente a justiça de Deus.  O SACRIFÍCIO MAIS AGRADÁVEL A DEUS  7.  “ Se,  portanto,  quando  fordes  depor  vossa  oferenda  no  altar,  vos  lembrardes de que o vosso irmão tem qualquer coisa contra vós, deixai a  vossa dádiva junto ao altar e ide, antes, reconciliar­vos com o vosso irmão;  depois, então, voltai a oferecê­la”.  (MATEUS, 5:23 e 24)  8. Quando diz: “Ide reconciliar­vos com o vosso irmão, antes de depordes a vossa  oferenda no altar”, Jesus ensina que o sacrifício mais agradável ao Senhor é o que o  homem faça do seu próprio ressentimento; que, antes de se apresentar para ser por  ele perdoado, precisa o homem haver perdoado e reparado o agravo que tenha feito a  algum de seus irmãos. Só então a sua oferenda será bem­aceita, porque virá de um  coração expungido de todo e qualquer pensamento mau. Ele materializou o preceito,  porque  os  judeus  ofereciam  sacrifícios  materiais;  cumpria­lhe  conformar  suas  palavras aos  usos  ainda  em  voga.  O  cristão  não  oferece dons  materiais,  pois  que  espiritualizou o sacrifício. Com isso, porém, o preceito ainda mais força ganha. Ele  oferece sua alma a Deus e essa alma tem de ser purificada. Entrando no templo do  Senhor, deve ele deixar fora todo sentimento de ódio e de animosidade, todo mau  pensamento  contra  seu  irmão.  Só  então  os  anjos  levarão  sua  prece  aos  pés  do  Eterno. Eis aí o que ensina Jesus por estas palavras: “Deixai a vossa oferenda junto  do altar e ide primeiro reconciliar­vos com o vosso irmão, se quiserdes ser agradável  ao Senhor.”
  • 108. 108 – Allan Kardec  O ARGUEIRO E A TRAVE NO OLHO  9. “ Como é que vedes um argueiro no olho do vosso irmão, quando não  vedes uma trave no vosso olho? Ou, como é que dizeis ao vosso irmão:  Deixa­me  tirar  um  argueiro  do  teu  olho,  vós  que  tendes  no  vosso  uma  trave? Hipócritas, tirai primeiro a trave do vosso olho e depois, então, vede  como podereis tirar o argueiro do olho do vosso irmão”.  (MATEUS, 7:3 a 5)  10.  Uma  das  insensatezes  da  Humanidade  consiste  em  vermos  o  mal  de  outrem,  antes de vermos o mal que está em nós. Para julgar­se a si mesmo, fora preciso que  o homem pudesse ver seu interior num espelho, pudesse, de certo modo, transportar­  se  para  fora  de  si  próprio,  considerar­se  como  outra  pessoa  e  perguntar:  Que  pensaria eu, se visse alguém fazer o que faço? Incontestavelmente, é o orgulho que  induz o homem a dissimular, para si mesmo, os seus defeitos, tanto morais, quanto  físicos.  Semelhante  insensatez  é  essencialmente  contrária  à  caridade,  porquanto  a  verdadeira  caridade  é  modesta,  simples  e  indulgente.  Caridade  orgulhosa  é  um  contra­senso,  visto  que  esses  dois  sentimentos  se  neutralizam  um  ao  outro.  Com  efeito, como poderá um homem, bastante presunçoso para acreditar na importância  da sua personalidade e na supremacia das suas qualidades, possuir ao mesmo tempo  abnegação bastante para fazer ressaltar em outrem o bem que o eclipsaria, em vez do  mal que o exalçaria? Por isso mesmo, porque é o pai de muitos vícios, o orgulho é  também  a negação  de  muitas  virtudes.  Ele  se  encontra na base  e  como  móvel  de  quase todas as ações humanas. Essa a razão por que Jesus se empenhou tanto em  combatê­lo, como principal obstáculo ao progresso.  NÃO JULGUEIS, PARA NÃO SERDES JULGADOS.  ATIRE A PRIMEIRA PEDRA AQUELE QUE ESTIVER SEM PECADO  11. “ Não julgueis, a fim de não serdes julgados; porquanto sereis julgados  conforme houverdes julgado os outros; empregar­se­á convosco a mesma  medida de que vos tenhais servido para com os outros”.  (MATEUS, 7:1 e 2)  12.  Então, os  escribas  e  os  fariseus  lhe  trouxeram  uma mulher  que  fora  surpreendida em adultério e, pondo­a de pé no meio do povo, disseram a  Jesus: “Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em adultério; ora,  Moisés, pela lei, ordena que se lapidem as adúlteras. Qual sobre isso a tua  opinião?”  Diziam  isto  para  o  tentarem  e  terem  de  que  o  acusar.  Jesus,  porém,  abaixando­se,  entrou  a  escrever  na  terra  com  o  dedo.  Como  continuavam a interrogá­lo, ele se levantou e disse: “Aquele dentre vós que  estiver sem pecado, atire a primeira pedra.” Em seguida, abaixando­se de  novo,  continuou  a  escrever  no  chão.  Quanto  aos  que  o  interrogavam,  esses,  ouvindo­o  falar  daquele  modo,  se  retiraram,  um  após  outro,  afastando­se  primeiro os  velhos.  Ficou,  pois,  Jesus  a  sós com a mulher,  colocada  no  meio  da  praça.  Então,  levantando­se,  perguntou­lhe  Jesus:
  • 109. 109 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  “Mulher,  onde  estão  os  que  te  acusavam?  Ninguém  te  condenou?”  Ela  respondeu:  “Não,  Senhor.”  Disse­lhe  Jesus:  “Também  eu  não  te  condenarei. Vai­te e de futuro não tornes a pecar.”  (JOÃO, 8:3 a 11)  13. “Atire­lhe a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado”, disse Jesus.  Essa sentença faz da indulgência um dever para nós outros, porque ninguém há que  não  necessite,  para  si  próprio,  de  indulgência.  Ela  nos  ensina  que  não  devemos  julgar  com  mais  severidade  os  outros,  do  que  nos  julgamos  a  nós  mesmos,  nem  condenar em outrem aquilo de que nos absolvemos. Antes de profligarmos a alguém  uma falta, vejamos se a mesma censura não nos pode ser feita.  O  reproche  lançado  à  conduta  de  outrem  pode  obedecer  a  dois  móveis:  reprimir  o  mal,  ou  desacreditar  a  pessoa  cujos  atos  se  criticam.  Não  tem  escusa  nunca  este  último  propósito,  porquanto,  no  caso,  então,  só  há  maledicência  e  maldade. O primeiro pode ser louvável e constitui mesmo, em certas ocasiões, um  dever,  porque  um  bem  deverá  daí resultar,  e  porque,  a não  ser  assim,  jamais, na  sociedade, se reprimiria o mal. Não cumpre, aliás, ao homem auxiliar o progresso do  seu semelhante? Importa, pois, não se tome em sentido absoluto este princípio: “Não  julgueis se não quiserdes ser julgado”, porquanto a letra mata e o espírito vivifica.  Não é possível que Jesus haja proibido se profligue o mal, uma vez que ele  próprio  nos  deu  o  exemplo,  tendo­o  feito,  até,  em  termos  enérgicos.  O  que  quis  significar é que a autoridade para censurar está na razão direta da autoridade moral  daquele  que  censura.  Tornar­se  alguém  culpado  daquilo  que  condena  noutrem  é  abdicar dessa autoridade, é privar­se do direito de repressão. A consciência íntima,  ao demais, nega respeito e submissão voluntária àquele que, investido de um poder  qualquer,  viola  as  leis  e  os  princípios  de  cuja  aplicação  lhe  cabe  o  encargo. Aos  olhos de Deus, uma única autoridade legítima existe: a que se apóia no exemplo que  dá do bem. É o que, igualmente, ressalta das palavras de Jesus.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  PERDÃO DAS OFENSAS  14.  Quantas  vezes  perdoarei  a  meu  irmão?  Perdoar­lhe­­eis,  não  sete  vezes,  mas  setenta vezes sete vezes. Aí tendes um dos ensinos de Jesus que mais vos devem  percutir  a  inteligência  e  mais  alto  falar  ao  coração.  Confrontai  essas  palavras  de  misericórdia  com  a  oração  tão  simples,  tão  resumida  e  tão  grande  em  suas  aspirações, que ensinou a seus discípulos, e o mesmo pensamento se vos deparará  sempre.  Ele,  o  justo  por  excelência,  responde  a  Pedro:  perdoarás,  mas  ilimitadamente; perdoarás cada ofensa tantas vezes quantas ela te for feita; ensinarás  a teus irmãos esse esquecimento de si mesmo, que torna uma criatura invulnerável  ao ataque, aos maus procedimentos e às injúrias; serás brando e humilde de coração,  sem medir a tua mansuetude; farás, enfim, o que desejas que o Pai celestial por ti  faça. Não está ele a te perdoar freqüentemente? Conta porventura as vezes que o seu  perdão desce a te apagar as faltas?
  • 110. 110 – Allan Kardec  Prestai, pois, ouvidos a essa resposta de Jesus e, como Pedro, aplicai­a a  vós mesmos. Perdoai, usai de indulgência, sede caridosos, generosos, pródigos até  do vosso amor. Dai, que o Senhor vos restituirá; perdoai, que o Senhor vos perdoará;  abaixai­vos, que o Senhor vos elevará; humilhai­vos, que o Senhor fará vos assenteis  à sua direita.  Ide, meus bem­amados, estudai e comentai estas palavras que vos dirijo da  parte d’Aquele que, do alto dos esplendores celestes, vos tem sempre sob as suas  vistas e prossegue com amor na tarefa ingrata a que deu começo faz dezoito séculos.  Perdoai  aos  vossos  irmãos,  como  precisais  que  se  vos  perdoe.  Se  seus  atos  pessoalmente vos prejudicaram, mais um motivo aí tendes para serdes indulgentes,  porquanto  o  mérito  do  perdão  é  proporcionado  à  gravidade  do  mal.  Nenhum  merecimento  teríeis  em  relevar  os  agravos  dos  vossos  irmãos,  desde  que  não  passassem de simples arranhões.  Espíritas, jamais vos esqueçais de que, tanto por palavras, como por atos, o  perdão das injúrias não deve ser um termo vão. Pois que vos dizeis espíritas, sede­o.  Olvidai  o  mal  que  vos  hajam  feito  e  não  penseis  senão numa  coisa: no  bem  que  podeis fazer. Aquele que enveredou por esse caminho não tem que se afastar daí,  ainda  que  por  pensamento,  uma  vez  que  sois  responsáveis  pelos  vossos  pensamentos, os quais todos Deus conhece. Cuidai, portanto, de os expungir de todo  sentimento de rancor. Deus sabe o que demora no fundo do coração de cada um de  seus filhos. Feliz, pois, daquele que pode todas as noites adormecer, dizendo: Nada  tenho contra o meu próximo. – Simeão. (Bordéus, 1862)  15. Perdoar aos inimigos é pedir perdão para si próprio; perdoar aos amigos é dar­  lhes  uma  prova  de  amizade;  perdoar  as  ofensas  é  mostrar­se  melhor  do  que  era.  Perdoai, pois,  meus  amigos,  a  fim  de  que  Deus  vos  perdoe,  porquanto,  se  fordes  duros,  exigentes,  inflexíveis,  se  usardes  de  rigor  até  por  uma  ofensa  leve,  como  querereis  que  Deus  esqueça  de  que  cada  dia  maior  necessidade  tendes  de  indulgência?  Oh!  Ai  daquele  que  diz:  “Nunca  perdoarei”,  pois  pronuncia  a  sua  própria condenação. Quem sabe, aliás, se, descendo ao fundo de vós mesmos, não  reconhecereis que fostes o agressor? Quem sabe se, nessa luta que começa por uma  alfinetada e acaba por uma ruptura, não fostes quem atirou o primeiro golpe, se vos  não  escapou  alguma  palavra injuriosa,  se  não  procedestes  com  toda  a  moderação  necessária?  Sem  dúvida,  o  vosso  adversário  andou  mal  em  se  mostrar  excessivamente  suscetível;  razão  de  mais  para  serdes  indulgentes  e  para  não  vos  tornardes  merecedores  da  invectiva  que  lhe  lançastes.  Admitamos  que,  em  dada  circunstância, fostes realmente ofendido: quem dirá que não envenenastes as coisas  por  meio  de  represálias  e  que  não  fizestes  degenerasse  em  querela  grave  o  que  houvera  podido  cair  facilmente  no  olvido?  Se  de  vós  dependia  impedir  as  conseqüências do fato e não as impedistes, sois culpados. Admitamos, finalmente,  que de nenhuma censura vos reconheceis merecedores: mostrai­vos clementes e com  isso só fareis que o vosso mérito cresça.  Mas, há duas maneiras bem diferentes de perdoar: há o perdão dos lábios e  o perdão do coração. Muitas pessoas dizem, com referência ao seu adversário: “Eu  lhe perdôo”, mas, interiormente, alegram­se com o mal que lhe advém, comentando  que ele tem o que merece. Quantos não dizem: “Perdôo” e acrescentam: “mas, não
  • 111. 111 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  me reconciliarei nunca; não quero tornar a vê­lo em toda a minha vida.” Será esse o  perdão, segundo o Evangelho? Não; o perdão verdadeiro, o perdão cristão é aquele  que lança um véu sobre o passado; esse o único que vos será levado em conta, visto  que Deus não se satisfaz com as aparências. Ele sonda o recesso do coração e os  mais secretos pensamentos. Ninguém se lhe impõe por meio de vãs palavras e de  simulacros. O esquecimento completo e absoluto das ofensas é peculiar às grandes  almas;  o  rancor  é  sempre  sinal de  baixeza  e  de  inferioridade.  Não  olvideis  que  o  verdadeiro  perdão  se  reconhece  muito  mais  pelos  atos  do  que  pelas  palavras.  –  Paulo, apóstolo. (Lião,1861)  A INDULGÊNCIA  16. Espíritas, queremos falar­vos hoje da indulgência, sentimento doce e  fraternal  que todo homem deve alimentar para com seus irmãos, mas do qual bem poucos  fazem uso.  A indulgência não vê os defeitos de outrem, ou, se os vê, evita falar deles,  divulgá­los. Ao contrário, oculta­os, a fim de que se não tornem conhecidos senão  dela unicamente, e, se a malevolência os descobre, tem sempre pronta uma escusa  para eles, escusa plausível, séria, não das que, com aparência de atenuar a falta, mais  a evidenciam com pérfida intenção.  A indulgência jamais se ocupa com os maus atos de outrem, a menos que  seja para prestar um serviço; mas, mesmo neste caso, tem o cuidado de os atenuar  tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, não tem nos lábios censuras;  apenas conselhos e, as mais das vezes, velados. Quando criticais, que conseqüência  se há de tirar das vossas palavras? A de que não tereis feito o que reprovais, visto  que, estais a censurar; que valeis mais do que o culpado. Ó homens! Quando será  que  julgareis  os  vossos  próprios  corações,  os  vossos  próprios  pensamentos,  os  vossos próprios atos, sem vos ocupardes com o que fazem vossos irmãos? Quando  só tereis olhares severos sobre vós mesmos?  Sede,  pois,  severos  para  convosco,  indulgentes  para  com  os  outros.  Lembrai­vos daquele que julga em última instância, que vê os pensamentos íntimos  de  cada  coração  e  que,  por  conseguinte,  desculpa  muitas  vezes  as  faltas  que  censurais,  ou  condena  o  que  relevais,  porque  conhece  o  móvel  de  todos  os  atos.  Lembrai­vos  de  que  vós,  que  clamais  em  altas  vozes:  anátema!  Tereis,  quiçá,  cometido faltas mais graves.  Sede  indulgentes,  meus  amigos,  porquanto  a  indulgência  atrai,  acalma,  ergue,  ao  passo  que  o  rigor  desanima,  afasta  e  irrita.  –  José,  Espírito  protetor.  (Bordéus, 1863)  17. Sede indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não julgueis  com severidade senão as vossas próprias ações e o Senhor usará de indulgência para  convosco, como de indulgência houverdes usado para com os outros.  Sustentai  os  fortes:  animai­os  à  perseverança.  Fortalecei  os  fracos,  mostrando­lhes  a  bondade  de  Deus,  que  leva  em  conta  o  menor  arrependimento;  mostrai a todos o anjo da penitência estendendo suas brancas asas sobre as faltas dos
  • 112. 112 – Allan Kardec  humanos  e  velando­as  assim  aos  olhares  daquele  que  não  pode  tolerar  o  que  é  impuro.  Compreendei  todos  a  misericórdia  infinita  de  vosso  Pai  e  não  esqueçais  nunca  de  lhe  dizer,  pelos  pensamentos,  mas,  sobretudo,  pelos  atos:  “Perdoai  as  nossas ofensas, como perdoamos aos que nos hão ofendido.” Compreendei bem o  valor  destas  sublimes  palavras,  nas  quais  não  somente  a  letra  é  admirável,  mas  principalmente o ensino que ela veste.  Que é o que pedis ao Senhor, quando implorais para vós o seu perdão? Será  unicamente  o  olvido  das  vossas  ofensas?  Olvido  que  vos  deixaria  no  nada,  porquanto, se Deus se limitasse a esquecer as vossas faltas, Ele não puniria, é exato,  mas tampouco recompensaria.  A recompensa não  pode  constituir  prêmio  do  bem  que não foi feito, nem, ainda menos, do mal que se haja praticado, embora esse mal  fosse esquecido. Pedindo­lhe que perdoe os vossos desvios, o que lhe pedis é o favor  de  suas  graças,  para  não  reincidirdes  neles,  é  a  força  de  que  necessitais  para  enveredar por outras sendas, as da submissão e do amor, nas quais podereis juntar ao  arrependimento a reparação.  Quando perdoardes aos vossos irmãos, não vos contenteis com o estender o  véu  do  esquecimento  sobre  suas  faltas,  porquanto,  as  mais  das  vezes,  muito  transparente é esse véu para os olhares vossos. Levai­lhes simultaneamente, com o  perdão, o amor; fazei por eles o que pediríeis fizesse o vosso Pai celestial por vós.  Substituí a  cólera  que  conspurca, pelo  amor  que purifica. Pregai,  exemplificando,  essa  caridade  ativa,  infatigável,  que  Jesus  vos  ensinou;  pregai­a,  como  ele  o  fez  durante todo o tempo em que esteve na Terra, visível aos olhos corporais e como  ainda a prega incessantemente, desde que se tornou visível tão­somente aos olhos do  Espírito. Segui esse modelo divino; caminhai em suas pegadas; elas vos conduzirão  ao refúgio onde encontrareis o repouso após a luta. Como ele, carregai todos vós as  vossas  cruzes  e  subi  penosamente,  mas  com  coragem,  o  vosso  calvário,  em  cujo  cimo está a glorificação. – João, bispo de Bordéus. (1862)  18. Caros amigos, sede severos convosco, indulgentes para as fraquezas dos outros.  É esta uma prática da santa caridade, que bem poucas pessoas observam. Todos vós  tendes maus pendores a vencer, defeitos a corrigir, hábitos a modificar; todos tendes  um fardo mais ou menos pesado a alijar, para poderdes galgar o cume da montanha  do progresso. Por que, então, haveis de mostrar­vos tão clarividentes com relação ao  próximo e tão cegos com relação a vós mesmos? Quando deixareis de perceber, nos  olhos de vossos irmãos, o pequenino argueiro que os incomoda, sem atentardes na  trave que, nos vossos olhos, vos cega, fazendo­vos ir de queda em queda? Crede nos  vossos  irmãos,  os  Espíritos.  Todo  homem,  bastante  orgulhoso  para  se  julgar  superior, em virtude e mérito, aos seus irmãos encarnados, é insensato e culpado:  Deus o castigará no dia da sua justiça. O verdadeiro caráter da caridade é a modéstia  e a humildade, que consistem em ver cada um apenas superficialmente os defeitos  de outrem e esforçar­se por fazer que prevaleça o que há nele de bom e virtuoso,  porquanto,  embora  o  coração  humano  seja  um  abismo  de  corrupção,  sempre  há,  nalgumas de suas dobras mais ocultas, o gérmen de bons sentimentos, centelha vivaz  da essência espiritual.  Espiritismo! Doutrina consoladora e bendita! Felizes dos que te conhecem e  tiram  proveito  dos  salutares  ensinamentos  dos  Espíritos  do  Senhor!  Para  esses,
  • 113. 113 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  iluminado  está  o  caminho,  ao  longo  do  qual  podem  ler  estas  palavras  que  lhes  indicam  o  meio  de  chegarem  ao  termo  da  jornada:  caridade  prática,  caridade  do  coração, caridade para com o próximo, como para si mesmo; numa palavra: caridade  para  com  todos  e  amor  a  Deus  acima  de  todas  as  coisas,  porque  o  amor  a  Deus  resume todos os deveres e porque impossível é amar realmente a Deus, sem praticar  a caridade, da qual fez ele uma lei para todas as criaturas. Dufêtre, bispo de Nevers.  (Bordéus)  É PERMITIDO REPREENDER OS OUTROS, NOTAR AS IMPERFEIÇÕES  DE OUTREM, DIVULGAR O MAL DE OUTREM?  19. Ninguém sendo perfeito, seguir­se­á que ninguém tem o direito de repreender o  seu próximo?  Certamente que não é essa a conclusão a tirar­se, porquanto cada um de vós  deve  trabalhar  pelo  progresso  de  todos  e,  sobretudo,  daqueles  cuja  tutela  vos  foi  confiada. Mas, por isso mesmo, deveis fazê­lo com moderação, para um fim útil, e  não,  como  as  mais  das  vezes,  pelo  prazer  de  denegrir.  Neste  último  caso,  a  repreensão  é  uma  maldade;  no  primeiro,  é  um  dever  que  a  caridade  manda  seja  cumprido com  todo  o  cuidado  possível.  Ao  demais, a  censura  que alguém  faça a  outrem deve ao mesmo tempo dirigi­la a si próprio, procurando saber se não a terá  merecido. – S. Luís. (Paris, 1860)  20. Será repreensível notarem­se as imperfeições dos outros, quando daí nenhum  proveito possa resultar para eles, uma vez que não sejam divulgadas?  Tudo depende da intenção. Decerto, a ninguém é defeso ver o mal, quando  ele  existe.  Fora mesmo  inconveniente  ver  em  toda a  parte  só  o  bem.  Semelhante  ilusão prejudicaria o progresso. O erro está no fazer­se que a observação redunde em  detrimento  do  próximo,  desacreditando­o,  sem  necessidade,  na  opinião  geral.  Igualmente  repreensível  seria  fazê­lo  alguém  apenas  para  dar  expansão  a  um  sentimento  de  malevolência  e  à  satisfação  de  apanhar  os  outros  em  falta.  Dá­se  inteiramente o contrário quando, estendendo sobre o mal um véu, para que o público  não o veja, aquele que note os defeitos do próximo o faça em seu proveito pessoal,  isto é, para se exercitar em evitar o que reprova nos outros. Essa observação, em  suma, não é proveitosa ao moralista? Como pintaria ele os defeitos humanos, se não  estudasse os modelos? – S. Luís (Paris, 1860)  21. Haverá casos em que convenha se desvende o mal de outrem?  É muito delicada esta questão e, para resolvê­la, necessário se torna apelar  para  a  caridade  bem  compreendida.  Se  as  imperfeições  de  uma  pessoa  só  a  ela  prejudicam,  nenhuma  utilidade  haverá  nunca  em  divulgá­la.  Se,  porém,  podem  acarretar prejuízo a terceiros, deve­se atender de preferência ao interesse do maior  número.  Segundo  as  circunstâncias,  desmascarar  a  hipocrisia  e  a  mentira  pode  constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas  vítimas. Em tal caso, deve­se pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes. –  São Luís (Paris, 1860)
  • 114. 114 – Allan Kardec  CAPÍTULO XI  AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO ·  O MANDAMENTO MAIOR: FAZERMOS AOS OUTROS O  QUE QUEIRAMOS QUE OS OUTROS NOS FAÇAM.  PARÁBOLA DOS CREDORES E DOS DEVEDORES ·  DAÍ A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A LEI DO AMOR ·  O EGOÍSMO ·  A FÉ E A CARIDADE ·  CARIDADE PARA COM OS CRIMINOSOS ·  DEVE­SE EXPOR A VIDA POR UM MALFEITOR?  O MANDAMENTO MAIOR.  FAZERMOS AOS OUTROS O QUE QUEIRAMOS QUE OS OUTROS NOS  FAÇAM.  PARÁBOLA DOS CREDORES E DOS DEVEDORES  1.  Os  fariseus,  tendo  sabido  que  Ele  tapara  a  boca  aos  saduceus,  reuniram­se; e um deles, que era doutor da lei, para O tentar, propôs­lhe  esta questão: “Mestre, qual o mandamento maior da lei?” Jesus respondeu:  “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de  todo o teu espírito; este o maior e o primeiro mandamento. e aqui tendes o  segundo,  semelhante  a  esse:  amarás  o  teu  próximo,  como  a  ti  mesmo.  Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.”  (MATEUS, 22: 34 a 40)  2. “Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam, pois é nisto  que consistem a lei e os profetas”.  (Idem, 7:12)
  • 115. 115 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  “Tratai todos os homens como quereríeis que eles vos tratassem”.  (LUCAS, 6:31)  3. O reino dos céus é comparável a um rei que quis tomar contas aos seus  servidores. Tendo começado a fazê­lo, apresentaram­lhe um que lhe devia  dez  mil  talentos.  Mas,  como  não  tinha  meios  de  os  pagar,  mandou  seu  senhor que o vendessem a ele, sua mulher, seus filhos e tudo o que lhe  pertencesse,  para  pagamento  da  dívida.  O  servidor,  lançando­se­lhe  aos  pés,  o  conjurava,  dizendo:  “Senhor,  tem  um pouco  de  paciência  e  eu  te  pagarei  tudo”  Então,  o  senhor,  tocado  de  compaixão,  deixou­o  ir  e  lhe  perdoou a dívida. Esse servidor, porém, ao sair encontrando um de seus  companheiros, que lhe devia cem dinheiros, o segurou pela goela e, quase  a estrangulá­lo dizia: “Paga o que me deves.” O companheiro, lançando­se­  lhe aos  pés,  o  conjurava,  dizendo:  “Tem  um  pouco  de  paciência  e  eu  te  pagarei tudo: Mas o outro não quis escutá­lo; foi­se e o mandou prender,  para  tê­lo  preso  até  pagar  o  que  lhe  devia.  Os  outros  servidores,  seus  companheiros,  vendo  o  que  se  passava,  foram,  extremamente  aflitos,  e  informaram  o  senhor  de  tudo  o  que  acontecera.  Então,  o  senhor,  tendo  mandado vir à sua presença aquele servidor, lhe disse: “Mau servo, eu te  havia  perdoado  tudo  o  que  me  devias,  porque  mo  pediste.  Não  estavas  desde então no dever de também ter piedade do teu companheiro, como eu  tivera de ti?”E o senhor, tomado de cólera, o entregou aos verdugos, para  que o tivessem, até que ele pagasse tudo o que devia.  É  assim  que  meu  Pai,  que  está  no  céu,  vos  tratará,  se  não  perdoardes, do fundo do coração, as faltas que vossos irmãos houverem  cometido contra cada um de vós.  (MATEUS, 18:23 a 35)  4. “Amar o próximo como a si mesmo: fazer pelos outros o que quereríamos que os  outros fizessem por nós”, é a expressão mais completa da caridade, porque resume  todos os deveres do homem para com o próximo. Não podemos encontrar guia mais  seguro,  a  tal  respeito,  que  tomar  para  padrão,  do  que  devemos  fazer  aos  outros,  aquilo que para nós desejamos. Com que direito exigiríamos dos nossos semelhantes  melhor proceder, mais indulgência, mais benevolência e devotamento para conosco,  do que  os temos para com eles? A prática dessas máximas tende à destruição do  egoísmo. Quando as adotarem para regra de conduta e para base de suas instituições,  os homens compreenderão a verdadeira fraternidade e farão que entre eles reinem a  paz e a justiça. Não mais haverá ódios, nem dissensões, mas, tão­somente, união,  concórdia e benevolência mútua.  DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR  5.  Os  fariseus,  tendo­se  retirado,  entenderam­se  entre  si  para  enredá­lo  com  as  suas  próprias  palavras.  Mandaram  então  seus  discípulos,  em  companhia dos herodianos, dizer­lhe: “Mestre, sabemos que és veraz e que  ensinas o caminho de Deus pela verdade, sem levares em conta a quem  quer que seja, porque, nos homens, não consideras as pessoas. Dize­nos,
  • 116. 116 – Allan Kardec  pois,  qual  a  tua  opinião  sobre  isto:  É­nós  permitido  pagar  ou  deixar  de  pagar a César o tributo?”  Jesus, porém, que lhes conhecia a malícia, respondeu: “Hipócritas,  por  que  me  tentais?  Apresentai­me  uma  das  moedas  que  se  dão  em  pagamento  do  tributo”.  E,  tendo­lhe  eles  apresentado  um  denário,  perguntou  Jesus:  “De  quem  são  esta  imagem  e  esta  inscrição?”  –  De  César, responderam eles. Então, observou­lhes Jesus: “Dai, pois, a César o  que é de César e a Deus o que é de Deus”.  Ouvindo­o falar dessa maneira, admiraram­se eles da sua resposta  e, deixando­o, se retiraram.  (MATEUS, 22:15 a 22; MARCOS, 12:13 a 17)  6.  A  questão  proposta  a  Jesus  era  motivada  pela  circunstância  de  que  os  judeus,  abominando o tributo que os romanos lhes impunham, haviam feito do pagamento  desse tributo uma questão religiosa. Numeroso partido se fundara contra o imposto.  O pagamento deste constituía, pois, entre eles, uma irritante questão de atualidade,  sem o que nenhum senso teria a pergunta feita a Jesus: “É­nos lícito pagar ou deixar  de pagar a César o tributo?” Havia nessa pergunta uma armadilha. Contavam os que  a formularam poder, conforme a resposta, excitar contra ele a autoridade romana, ou  os  judeus  dissidentes.  Mas  “Jesus,  que  lhes  conhecia  a  malícia”,  contornou  a  dificuldade, dando­lhes uma lição de justiça, com o dizer que a cada um seja dado o  que lhe é devido. (Veja­se, na “Introdução”, o artigo: Publicanos)  7. Esta sentença: “Dai a César o que é de César”, não deve, entretanto, ser entendida  de  modo  restritivo  e  absoluto.  Como  em  todos  os  ensinos  de  Jesus,  há  nela  um  princípio geral, resumido sob forma prática e usual e deduzido de uma circunstância  particular. Esse princípio é conseqüente daquele segundo o qual devemos proceder  para  com  os  outros  como  queiramos  que  os  outros  procedam  para  conosco.  Ele  condena  todo  prejuízo  material  e  moral  que  se  possa  causar  a  outrem,  toda  postergação de seus interesses. Prescreve o respeito aos direitos de cada um, como  cada um deseja que se respeitem os seus. Estende­se mesmo aos deveres contraídos  para com a família, a sociedade, a autoridade, tanto quanto para com os indivíduos  em geral.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A LEI DE AMOR  8. O amor resume a doutrina de Jesus toda inteira, visto que esse é o sentimento por  excelência, e os sentimentos são  os instintos elevados à altura do progresso  feito.  Em sua origem, o homem só tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só  tem sensações; quando instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado do  sentimento é o amor, não o amor no sentido vulgar do termo, mas esse sol interior  que condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e todas as revelações  sobre­humanas.  A  lei  de  amor  substitui  a  personalidade  pela  fusão  dos  seres;  extingue  as misérias  sociais.  Ditoso  aquele  que,  ultrapassando  a  sua humanidade,
  • 117. 117 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  ama com amplo amor os seus irmãos em sofrimento! Ditoso aquele que ama, pois  não conhece a miséria da alma, nem a do corpo. Tem ligeiros os pés e vive como  que transportado, fora de si mesmo. Quando Jesus pronunciou a divina palavra –  amor, os povos sobressaltaram­se e os mártires, ébrios de esperança, desceram ao  circo.  O Espiritismo a seu turno vem pronunciar uma segunda palavra do alfabeto  divino. Estai atentos, pois que essa palavra ergue a lápide dos túmulos vazios, e a  reencarnação,  triunfando  da  morte,  revela  às  criaturas  deslumbradas  o  seu  patrimônio intelectual. Já não é ao suplício que  ela conduz o homem: condu­lo à  conquista  do  seu  ser,  elevado  e  transfigurado.  O  sangue  resgatou  o  Espírito  e  o  Espírito tem hoje que resgatar da matéria o homem Disse eu que em seus começos o  homem  só  instintos  possuía.  Mais  próximo,  portanto,  ainda  se  acha  do  ponto  de  partida, do que da meta, aquele em quem predominam os instintos. A fim de avançar  para a meta, tem a criatura que vencer os instintos, em proveito dos sentimentos, isto  é,  que  aperfeiçoar  estes  últimos,  sufocando  os  germes  latentes  da  matéria.  Os  instintos são a germinação e os embriões do sentimento; trazem consigo o progresso,  como a glande encerra em si o carvalho, e os seres menos adiantados são os que,  emergindo  pouco  a  pouco  de  suas  crisálidas,  se  conservam  escravizados  aos  instintos. O Espírito precisa ser cultivado, como um campo. Toda a riqueza futura  depende  do  labor  atual,  que  vos  granjeará  muito  mais  do  que  bens  terrenos:  a  elevação  gloriosa.  É  então  que,  compreendendo  a  lei  de  amor  que  liga  todos  os  seres, buscareis nela os gozos suavíssimos da alma, prelúdios das alegrias celestes. –  Lázaro. (Paris, 1862)  9. O amor é de essência divina e todos vós, do primeiro ao último, tendes, no fundo  do coração, a centelha desse fogo sagrado. É fato, que já haveis podido comprovar  muitas vezes, este: o homem, por mais abjeto, vil e criminoso que seja, vota a um  ente ou a um objeto qualquer viva e ardente afeição à prova de tudo quanto tendesse  a diminuí­la e que alcança, não raro, sublimes proporções.  A um ente ou um objeto qualquer, disse eu, porque há entre vós indivíduos  que,  com  o  coração  a transbordar  de amor,  despendem  tesouros  desse  sentimento  com animais, plantas e, até, com coisas materiais: espécies de misantropos que, a se  queixarem da Humanidade em geral e a resistirem ao pendor natural de suas almas,  que buscam em torno de si a afeição e a simpatia, rebaixam a lei de amor à condição  de instinto. Entretanto, por mais que façam, não logram sufocar o gérmen vivaz que  Deus lhes depositou nos corações ao criá­los. Esse gérmen se desenvolve e cresce  com  a  moralidade  e  a  inteligência  e,  embora  comprimido  amiúde  pelo  egoísmo,  torna­se  a  fonte  das  santas  e  doces  virtudes  que  geram  as  afeições  sinceras  e  duráveis e ajudam a criatura a transpor o caminho escarpado e árido da existência  humana.  Há  pessoas  a  quem  repugna  a  reencarnação,  com  a  idéia  de  que  outros  venham  a  partilhar  das  afetuosas  simpatias  de  que  são  ciosas.  Pobres  irmãos!  O  vosso  afeto  vos  torna  egoístas;  o  vosso  amor  se restringe a  um  círculo  íntimo  de  parentes e de amigos, sendo­vos indiferentes os demais. Pois bem! Para praticardes a  lei de amor, tal como Deus o entende, preciso se faz chegueis passo a passo a amar a  todos os vossos irmãos indistintamente. A tarefa é longa e difícil, mas cumprir­se­á:
  • 118. 118 – Allan Kardec  Deus o quer e a lei de amor constitui o primeiro e o mais importante preceito da  vossa nova doutrina, porque é ela que um dia matará o egoísmo, qualquer que seja a  forma  sob  que  se  apresente,  dado  que,  além  do  egoísmo  pessoal,  há  também  o  egoísmo de família, de casta, de nacionalidade. Disse Jesus: “Amai o vosso próximo  como a vós mesmos.” Ora, qual o limite com relação ao próximo? Será a família, a  seita,  a  nação?  Não;  é  a  Humanidade  inteira.  Nos  mundos  superiores,  o  amor  recíproco é que harmoniza e dirige os Espíritos adiantados que os habitam, e o vosso  planeta, destinado a realizar em breve sensível progresso, verá seus habitantes, em  virtude da transformação social por que passará, a praticar essa lei sublime, reflexo  da Divindade.  Os efeitos da lei de amor são o melhoramento moral da raça humana e a  felicidade  durante  a  vida  terrestre.  Os  mais  rebeldes  e  os  mais  viciosos  se  reformarão, quando observarem os benefícios resultantes da prática deste preceito:  Não façais aos outros o que não quiserdes que vos façam; fazei­lhes, ao contrário,  todo o bem que vos esteja ao alcance fazer­lhes.  Não acrediteis na esterilidade e no endurecimento do coração humano; ao  amor verdadeiro, ele, a seu mau grado, cede. É um ímã a que não lhe é possível  resistir. O contacto desse amor vivifica e fecunda os germens que dele existem, em  estado latente, nos vossos corações. A Terra, orbe de provação e de exílio, será então  purificada por esse  fogo  sagrado e verá praticados na sua superfície a caridade, a  humildade,  a  paciência,  o  devotamento,  a  abnegação,  a  resignação  e  o  sacrifício,  virtudes todas filhas do amor. Não vos canseis, pois, de escutar as palavras de João,  o  Evangelista.  Como  sabeis,  quando  a  enfermidade  e  a  velhice  o  obrigaram  a  suspender o curso de suas prédicas, limitava­ se a repetir estas suavíssimas palavras:  “Meus filhinhos, amai­vos uns aos outros.”  Amados  irmãos,  aproveitai  dessas  lições;  é  difícil  o  praticá­las,  porém,  a  alma  colhe  delas  imenso  bem.  Crede­me,  fazei  o  sublime  esforço  que  vos  peço:  “Amai­vos” e vereis a Terra em breve transformada num Paraíso onde as almas dos  justos virão repousar. – Fénelon. (Bordéus, 1861)  10.  Meus  caros  condiscípulos,  os  Espíritos  aqui  presentes  vos  dizem,  por  meu  intermédio: “Amai muito, a fim de serdes amados.” É tão justo  esse pensamento,  que nele encontrareis tudo o que consola e abranda as penas de cada dia; ou melhor:  pondo em prática esse sábio conselho,elevar­vos­eis de tal modo acima da matéria  que  vos  espiritualizareis  antes  de  deixardes  o  invólucro  terrestre.  Havendo  os  estudos espíritas desenvolvido em vós a compreensão do futuro, uma certeza tendes:  a de caminhardes para Deus, vendo realizadas todas as promessas que correspondem  às aspirações de vossa alma. Por isso, deveis elevar­vos bem alto para julgardes sem  as constrições da matéria, e não condenardes o vosso próximo sem terdes dirigido a  Deus o pensamento.  Amar,  no  sentido  profundo  do  termo,  é  o  homem  ser  leal,  probo,  consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em  torno de si  o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para  suavizá­las;  é  considerar  como  sua  a  grande  família humana, porque  essa  família  todos  a  encontrareis,  dentro  de  certo  período,  em  mundos  mais  adiantados;  e  os  Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, destinados a se elevarem ao
  • 119. 119 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  infinito. Assim, não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos  outorgou,  porquanto,  de  vosso  lado,  muito  vos  alegraria  que  vossos  irmãos  vos  dessem  aquilo  de  que  necessitais.  Para  todos  os  sofrimentos,  tende,  pois,  sempre  uma palavra de esperança e de conforto, a fim de que sejais inteiramente amor e  justiça.  Crede  que  esta  sábia  exortação:  “Amai  bastante,  para  serdes  amados”,  abrirá  caminho; revolucionária,  ela  segue  sua rota,  que  é  determinada,  invariável.  Mas, já ganhastes muito, vós que me ouvis, pois que já sois infinitamente melhores  do que éreis há cem anos. Mudastes tanto, em proveito vosso, que aceitais de boa  mente,  sobre  a  liberdade  e  a  fraternidade,  uma  imensidade  de  idéias  novas,  que  outrora  rejeitaríeis.  Ora,  daqui  a  cem  anos,  sem  dúvida  aceitareis  com  a  mesma  facilidade as que ainda vos não puderam entrar no cérebro.  Hoje,  quando  o  movimento  espírita há  dado  tão  grande  passo,  vede  com  que rapidez as idéias de justiça e de renovação, constantes nos ditados espíritas, são  aceitas pela parte mediana do mundo inteligente. É que essas idéias correspondem a  tudo  o  que  há  de  divino  em  vós.  É  que  estais  preparados  por  uma  sementeira  fecunda: a do século passado, que implantou no seio da sociedade terrena as grandes  idéias de progresso. E, como tudo se encadeia sob a direção do Altíssimo, todas as  lições  recebidas  e  aceitas  virão  a  encerrar­se  na  permuta  universal  do  amor  ao  próximo.  Por  aí,  os  Espíritos  encarnados,  melhor  apreciando  e  sentindo,  se  estenderão as mãos, de todos os confins do vosso planeta. Uns e outros reunir­se­ão,  para se entenderem e amarem, para destruírem todas as injustiças, todas as causas de  desinteligências entre os povos.  Grande  conceito  de  renovação  pelo  Espiritismo,  tão  bem  exposto  em  O  Livro dos Espíritos;  tu produzirás  o  portentoso  milagre  do  século  vindouro,  o da  harmonização  de  todos  os  interesses  materiais  e  espirituais  dos  homens,  pela  aplicação deste preceito bem compreendido: “Amai bastante, para serdes amados.”  Sanson, ex­membro da Sociedade Espírita de Paris. (1863)  O EGOÍSMO  11.  O  egoísmo,  chaga  da  Humanidade,  tem  que  desaparecer  da  Terra,  a  cujo  progresso moral obsta. Ao Espiritismo está reservada a tarefa de fazê­la ascender na  hierarquia dos mundos. O egoísmo é, pois, o alvo para o qual todos os verdadeiros  crentes devem apontar suas armas, dirigir suas forças, sua coragem. Digo: coragem,  porque dela muito mais necessita cada um para vencer­se a si mesmo, do que para  vencer os outros. Que cada um, portanto, empregue todos os esforços a combatê­lo  em si, certo de que esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do  orgulho  é  o  causador  de  todas  as  misérias  do  mundo  terreno.  É  a  negação  da  caridade e, por conseguinte, o maior obstáculo à felicidade dos homens.  Jesus vos deu o exemplo da caridade e Pôncio Pilatos o do egoísmo, pois,  quando o primeiro, o Justo, vai percorrer as santas estações do seu martírio, o outro  lava as mãos, dizendo: Que me importa! Animou­se a dizer aos judeus: Este homem  é  justo,  por  que  o  quereis  crucificar?  E,  entretanto,  deixa  que  o  conduzam  ao  suplício.
  • 120. 120 – Allan Kardec  É a esse antagonismo entre a caridade e o egoísmo, à invasão do coração  humano por essa lepra que se deve atribuir o fato de não haver ainda o Cristianismo  desempenhado por completo a sua missão. Cabem­vos a vós, novos apóstolos da fé,  que os Espíritos superiores esclarecem, o encargo e o dever de extirpar esse mal, a  fim de dar ao Cristianismo toda a sua força e desobstruir o caminho dos pedrouços  que lhe embaraçam a marcha. Expulsai da Terra o egoísmo para que ela possa subir  na escala dos mundos, porquanto já é tempo de a Humanidade envergar sua veste  viril,  para  o  que  cumpre  que  primeiramente  o  expilais  dos  vossos  corações.  –  Emmanuel. (Paris, 1861)  12.  Se  os  homens  se  amassem  com  mútuo  amor,  mais  bem  praticada  seria  a  caridade; mas, para isso, mister fora vos esforçásseis por largar essa couraça que vos  cobre os corações, a fim de se tornarem eles mais sensíveis aos sofrimentos alheios.  A rigidez mata os bons sentimentos; o Cristo jamais se escusava; não repelia aquele  que  o  buscava,  fosse  quem  fosse:  socorria  assim  a  mulher  adúltera,  como  o  criminoso; nunca temeu que a sua reputação sofresse por isso. Quando o tomareis  por modelo de todas as vossas ações? Se na Terra a caridade reinasse, o mau não  imperaria  nela;  fugiria  envergonhado;  ocultar­se­ia,  visto  que  em  toda  parte  se  acharia deslocado. O mal então desapareceria, ficai bem certos.  Começai  vós  por  dar  o  exemplo;  sede  caridosos  para  com  todos  indistintamente;  esforçai­vos  por  não  atentar  nos  que  vos  olham  com  desdém  e  deixai a Deus o encargo de fazer toda a justiça, a Deus que todos os dias separa, no  seu reino, o joio do trigo.  O  egoísmo  é  a  negação  da  caridade.  Ora,  sem  a  caridade  não  haverá  descanso  para  a  sociedade  humana.  Digo  mais:  não  haverá  segurança.  Com  o  egoísmo e o orgulho, que andam de mãos dadas, a vida será sempre uma carreira em  que vencerá o mais esperto, uma luta de interesses, em que se calcarão aos pés as  mais  santas afeições,  em  que nem  sequer  os  sagrados  laços  da  família  merecerão  respeito. – Pascal. (Sens, 1862)  A FÉ E A CARIDADE  13. Disse­vos, não há muito, meus caros filhos, que a caridade, sem a fé, não basta  para manter entre os homens uma ordem social capaz de os tornar felizes. Pudera ter  dito que a caridade é impossível sem a fé. Na verdade, impulsos generosos se vos  depararão, mesmo entre os que nenhuma religião têm; porém, essa caridade austera,  que  só  com  abnegação  se  pratica,  com  um  constante  sacrifício  de  todo  interesse  egoístico, somente a fé pode inspirá­la, porquanto só ela dá se possa carregar com  coragem e perseverança a cruz da vida terrena.  Sim, meus filhos, é inútil que o homem ávido de gozos procure iludir­se  sobre o seu destino nesse mundo, pretendendo ser­lhe lícito ocupar­se unicamente  com a sua felicidade. Sem dúvida, Deus nos criou para sermos felizes na eternidade;  entretanto, a vida terrestre tem que servir exclusivamente ao aperfeiçoamento moral,  que  mais  facilmente  se  adquire  com  o  auxílio  dos  órgãos  físicos  e  do  mundo  material. Sem levar em conta as vicissitudes ordinárias da vida, a diversidade dos
  • 121. 121 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  gostos,  dos  pendores  e  das  necessidades,  é  esse  também  um  meio  de  vos  aperfeiçoardes, exercitando­vos na caridade. Com efeito, só a poder de concessões e  sacrifícios mútuos podeis conservar a harmonia entre elementos tão diversos.  Tereis, contudo, razão, se afirmardes que a felicidade se acha destinada ao  homem nesse mundo, desde que ele a procure, não nos gozos materiais, sim no bem.  A  história  da  cristandade  fala  de  mártires  que  se  encaminhavam  alegres  para  o  suplício. Hoje, na vossa sociedade, para serdes cristãos, não se vos faz mister nem o  holocausto  do  martírio,  nem  o  sacrifício  da  vida,  mas  única  e  exclusivamente  o  sacrifício do vosso egoísmo, do vosso orgulho e da vossa vaidade. Triunfareis, se a  caridade vos inspirar e vos sustentar a fé. – Espírito protetor. (Cracóvia, 1861)  CARIDADE PARA COM OS CRIMINOSOS  14. A verdadeira caridade constitui um dos mais sublimes ensinamentos que Deus  deu ao mundo. Completa fraternidade deve existir entre os verdadeiros seguidores  da  sua  doutrina.  Deveis  amar  os  desgraçados,  os  criminosos,  como  criaturas, que  são,  de  Deus,  às  quais  o  perdão  e  a  misericórdia  serão  concedidos,  se  se  arrependerem,  como  também  a  vós,  pelas  faltas  que  cometeis  contra  sua  Lei.  Considerai  que  sois  mais  repreensíveis,  mais  culpados  do  que  aqueles  a  quem  negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus  como o conheceis, e muito menos lhes será pedido do que a vós.  Não  julgueis,  oh!  Não  julgueis  absolutamente,  meus  caros  amigos,  porquanto  o  juízo  que  proferirdes  ainda  mais  severamente  vos  será  aplicado  e  precisais de indulgência para os pecados em que sem cessar incorreis. Ignorais que  há muitas ações que são crimes aos olhos do Deus de pureza e que o mundo nem  sequer como faltas leves considera?  A  verdadeira  caridade  não  consiste  apenas  na  esmola  que  dais,  nem,  mesmo, nas palavras de consolação que lhe aditeis. Não, não é apenas isso o que  Deus  exige  de  vós.  A  caridade  sublime,  que  Jesus  ensinou,  também  consiste  na  benevolência de que useis sempre e em todas as coisas para com o vosso próximo.  Podeis  ainda  exercitar  essa  virtude  sublime  com  relação  a  seres  para  os  quais  nenhuma utilidade terão as vossas esmolas, mas que algumas palavras de consolo,  de encorajamento, de amor, conduzirão ao Senhor supremo.  Estão próximos os tempos, repito­o, em que nesse planeta reinará a grande  fraternidade,  em  que  os  homens  obedecerão  à  lei  do  Cristo,  lei  que  será  freio  e  esperança e conduzirá as almas às moradas ditosas. Amai­vos, pois, como filhos do  mesmo  Pai;  não  estabeleçais  diferenças  entre  os  outros  infelizes,  porquanto  quer  Deus que todos sejam iguais; a ninguém desprezeis. Permite Deus que entre vós se  achem grandes criminosos, para que vos sirvam de ensinamento. Em breve, quando  os homens se encontrarem submetidos às verdadeiras leis de Deus,  já não haverá  necessidade desses ensinos: todos os Espíritos impuros e revoltados serão relegados  para mundos inferiores, de acordo com as suas inclinações.  Deveis, àqueles de quem falo, o socorro das vossas preces: é a verdadeira  caridade. Não vos cabe dizer de um criminoso: “É um miserável; deve­se expurgar  da sua presença a Terra; muito branda é, para um ser de tal espécie, a morte que lhe
  • 122. 122 – Allan Kardec  infligem.” Não, não é assim que vos compete falar. Observai o vosso modelo: Jesus.  Que diria ele, se visse junto de si um desses desgraçados? Lamentá­lo­ia; considerá­  lo­ia  um  doente  bem  digno  de  piedade;  estender­lhe­ia a mão. Em realidade, não  podeis fazer o mesmo; mas, pelo menos, podeis orar por ele, assistir­lhe o Espírito  durante  o  tempo  que  ainda  haja  de  passar  na  Terra.  Pode  ele  ser  tocado  de  arrependimento,  se  orardes  com  fé.  É  tanto  vosso  próximo,  como  o  melhor  dos  homens;  sua  alma,  transviada  e  revoltada,  foi  criada,  como  a  vossa,  para  se  aperfeiçoar; ajudai­o,  pois, a  sair  do  lameiro  e  orai  por  ele.  – Isabel de França.  (Havre, 1862)  DEVE­SE EXPOR A VIDA POR UM MALFEITOR?  15. Acha­se em perigo de morte um homem; para o salvar tem um outro que expor a  vida. Sabe­se, porém, que aquele é um malfeitor e que, se escapar, poderá cometer  novos crimes. Deve, não obstante, o segundo arriscar­se para o salvar?  Questão  muito  grave  é  esta  e  que  naturalmente  se  pode  apresentar  ao  espírito. Responderei, na conformidade do meu adiantamento moral, pois o de que  se trata é de saber se se deve expor a vida, mesmo por um malfeitor. O devotamento  é cego; socorre­se um inimigo; deve­se, portanto, socorrer o inimigo da sociedade, a  um malfeitor, em suma. Julgais que será somente à morte que, em tal caso, se corre a  arrancar o desgraçado? É, talvez, a toda a sua vida passada. Imaginai, com efeito,  que,  nos  rápidos  instantes  que  lhe  arrebatam  os  derradeiros  alentos  de  vida,  o  homem perdido volve ao seu passado, ou que, antes, este se ergue diante dele. A  morte, quiçá, lhe chega cedo demais; a reencarnação poderá vir a ser­lhe terrível.  Lançai­vos,  então,  ó  homens;  lançai­vos  todos  vós  a  quem  a  ciência  espírita  esclareceu; lançai­vos, arrancai­o à sua condenação e, talvez, esse homem, que teria  morrido a blasfemar, se atirará nos vossos braços. Todavia, não tendes que indagar  se  o  fará,  ou  não;  socorrei­o,  porquanto,  salvando­o,  obedeceis  a  essa  voz  do  coração, que vos diz: “Podes salvá­lo, salva­o!” – Lamennais. (Paris, 1862)
  • 123. 123 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XII  AMAI OS VOSSOS INIMIGOS ·  RETRIBUIR O MAL COM O BEM ·  OS INIMIGOS DESENCARNADOS ·  SE ALGUÉM VOS BATER NA FACE DIREITA,  APRESENTAI­LHE TAMBÉM A OUTRA  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A VINGANÇA ·  O ÓDIO ·  O DUELO  RETRIBUIR O MAL COM O BEM  1. “ Aprendestes que foi dito: ‘Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos  inimigos’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos  que  vos  odeiam  e  orai  pelos  que  vos  perseguem  e  caluniam,  a  fim  de  serdes filhos do vosso Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol  para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e os injustos.  Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa?  Não procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos  saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem  outro tanto os pagãos?”  (MATEUS, 5:43 a 47)  “Digo­vos  que,  se  a  vossa  justiça  não  for  mais  abundante  que  a  dos  escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus.”  (MATEUS, 5:20)  2. “Se somente amardes os que vos amam, que mérito se vos reconhecerá,  uma vez que as pessoas de má vida também amam os que as amam? Se o  bem  somente  o  fizerdes  aos  que  vo­lo  fazem,  que  mérito  se  vos  reconhecerá,  dado  que  o  mesmo  faz  a  gente  de  má  vida?  Se  só
  • 124. 124 – Allan Kardec  emprestardes àqueles de quem possais esperar o mesmo favor, que mérito  se vos reconhecerá, quando as pessoas de má vida se entreajudam dessa  maneira,  para  auferir  a  mesma  vantagem?  Pelo  que  vos  toca,  amai  os  vossos inimigos,  fazei  bem  a  todos  e  auxiliai  sem  esperar  coisa  alguma.  Então, muito grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo,  que  é  bom  para  os  ingratos  e  até  para  os  maus.  Sede,  pois,  cheios  de  misericórdia, como cheio de misericórdia é o vosso Deus.”  (LUCAS, 6:32 a 36)  3. Se o amor do próximo constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais  sublime aplicação desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa uma  das maiores vitórias alcançadas contra o egoísmo e o orgulho.  Entretanto, há geralmente equívoco no tocante ao sentido da palavra amar,  neste  passo.  Não  pretendeu  Jesus,  assim  falando,  que  cada  um  de nós  tenha  para  com o seu inimigo a ternura que dispensa a um irmão ou amigo. A ternura pressupõe  confiança; ora, ninguém pode depositar confiança numa pessoa, sabendo que  esta  lhe  quer  mal;  ninguém  pode  ter  para  com  ela  expansões  de  amizade,  sabendo­a  capaz de abusar dessa atitude. Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não  pode haver essas manifestações de simpatia que existem entre as que comungam nas  mesmas idéias. Enfim, ninguém pode sentir, em estar com um inimigo, prazer igual  ao que sente na companhia de um amigo.  A diversidade na maneira de sentir, nessas duas circunstâncias diferentes,  resulta  mesmo  de  uma  lei  física:  a  da  assimilação  e  da  repulsão  dos  fluidos.  O  pensamento  malévolo  determina  uma  corrente  fluídica  que  impressiona  penosamente.  O  pensamento  benévolo  nos  envolve  num  agradável  eflúvio.  Daí  a  diferença das sensações que se experimenta à aproximação de um amigo ou de um  inimigo.  Amar  os  inimigos  não  pode,  pois,  significar  que não  se  deva  estabelecer  diferença alguma entre eles e os amigos. Se este preceito parece de difícil prática,  impossível  mesmo,  é  apenas  por  entender­se  falsamente  que  ele  manda  se  dê  no  coração, assim ao amigo, como ao inimigo, o mesmo lugar. Uma vez que a pobreza  da  linguagem humana  obriga a  que nos  sirvamos  do  mesmo  termo  para  exprimir  matizes diversos de um sentimento, à razão cabe estabelecer as diferenças, conforme  os casos. Amar os inimigos não é, portanto, ter­lhes uma afeição que não está na  natureza, visto que o contacto de um inimigo nos faz bater o coração de modo muito  diverso do seu bater, ao contacto de um amigo. Amar os inimigos é não lhes guardar  ódio, nem rancor, nem desejos de vingança; é perdoar­lhes, sem pensamento oculto  e  sem  condições,  o  mal  que  nos  causem;  é  não  opor  nenhum  obstáculo  à  reconciliação com eles; é desejar­lhes o bem e não o mal; é experimentar júbilo, em  vez  de  pesar,  com  o  bem  que  lhes  advenha;  é  socorrê­los,  em  se  apresentando  ocasião;  é  abster­se,  quer  por  palavras,  quer  por  atos,  de  tudo  o  que  os  possa  prejudicar; é, finalmente, retribuir­lhes sempre o mal com o bem, sem a intenção de  os humilhar. Quem assim procede preenche as condições do mandamento: Amai os  vossos inimigos.
  • 125. 125 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  4. Amar os inimigos é, para o incrédulo, um contra­senso, Aquele para quem a vida  presente é tudo, vê no seu inimigo um ser nocivo, que lhe perturba o repouso e do  qual  unicamente  a  morte,  pensa  ele,  o  pode  livrar.  Daí,  o  desejo  de  vingar­se.  Nenhum  interesse  tem  em  perdoar,  senão  para  satisfazer  o  seu  orgulho  perante  o  mundo. Em certos casos, perdoar­lhe parece mesmo uma fraqueza indigna de si. Se  não se vingar, nem por isso deixará de conservar rancor e secreto desejo de mal para  o outro.  Para o crente e, sobretudo, para o espírita, muito diversa é a maneira de ver,  porque suas vistas se lançam sobre o passado e sobre o futuro, entre os quais a vida  atual não passa de um simples ponto. Sabe ele que, pela mesma destinação da Terra,  deve esperar topar aí com homens maus e perversos; que as maldades com que se  defronta fazem parte das provas que lhe cumpre suportar e o elevado ponto de vista  em  que  se  coloca  lhe  torna  menos  amargas  as  vicissitudes,  quer  advenham  dos  homens, quer das coisas. Se não se queixa das provas, tampouco deve queixar­se  dos que lhe servem de instrumento. Se, em vez de se queixar, agradece a Deus o  experimentá­lo, deve também agradecer a mão que lhe dá ensejo de demonstrar a  sua paciência e a sua resignação. Esta idéia o dispõe naturalmente ao perdão. Sente,  além  disso,  que  quanto  mais  generoso  for,  tanto  mais  se  engrandece  aos  seus  próprios olhos e se põe fora do alcance dos dardos do seu inimigo.  O homem que no mundo ocupa elevada posição não se julga ofendido com  os insultos daquele a quem considera seu inferior. O mesmo se dá com o que, no  mundo moral, se eleva acima da humanidade material. Este compreende que o ódio  e  o  rancor  o  aviltariam  e  rebaixariam.  Ora,  para  ser  superior  ao  seu  adversário,  preciso é que tenha a alma maior, mais nobre, mais generosa do que a desse último.  OS INIMIGOS DESENCARNADOS  5. Ainda outros motivos tem o  espírita para ser indulgente com os seus inimigos.  Sabe ele, primeiramente, que a maldade não é um estado permanente dos homens;  que  ela  decorre  de  uma  imperfeição  temporária  e  que,  assim  como  a  criança  se  corrige  dos  seus  defeitos,  o  homem  mau  reconhecerá  um  dia  os  seus  erros  e  se  tornará bom.  Sabe  também  que  a  morte  apenas  o  livra  da  presença  material  do  seu  inimigo, pois  que  este  o  pode  perseguir  com  o  seu  ódio,  mesmo  depois  de  haver  deixado a Terra; que, assim, a vingança, que tome, falha ao seu objetivo, visto que,  ao  contrário,  tem  por  efeito  produzir  maior  irritação,  capaz  de  passar  de  uma  existência a outra. Cabia ao Espiritismo demonstrar, por meio da experiência e da lei  que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível, que a expressão:  extinguir o ódio com o sangue é radicalmente falsa, que a verdade é que o sangue  alimenta o ódio, mesmo no além­túmulo. Cabia­lhe, portanto, apresentar uma razão  de ser positiva e uma utilidade prática ao perdão e ao preceito do Cristo: Amai os  vossos inimigos. Não há coração tão perverso que, mesmo a seu mau grado, não se  mostre  sensível  ao  bom  proceder.  Mediante  o  bom  procedimento,  tira­se,  pelo  menos, todo pretexto às represálias, podendo­se até fazer de um inimigo um amigo,  antes e depois de sua morte. Com um mau proceder, o homem irrita o seu inimigo,
  • 126. 126 – Allan Kardec  que então se constitui instrumento de que a justiça de Deus se serve para punir  aquele que não perdoou.  6.  Pode­se,  portanto,  contar  inimigos  assim  entre  os  encarnados,  como  entre  os  desencarnados. Os inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas  obsessões e subjugações com que tanta gente se vê a braços e que representam um  gênero de provações, as quais, como as outras, concorrem para o adiantamento do  ser, que, por isso, as deve receber com resignação e como conseqüência da natureza  inferior  do  globo  terrestre.  Se  não  houvesse  homens  maus  na  Terra,  não  haveria  Espíritos maus ao seu derredor. Se, conseguintemente, se deve usar de benevolência  com os inimigos encarnados, do mesmo modo se deve proceder com relação aos que  se acham desencarnados.  Outrora,  sacrificavam­se  vítimas  sangrentas  para  aplacar  os  deuses  infernais, que não eram senão os maus Espíritos. Aos deuses infernais sucederam os  demônios,  que  são  a  mesma  coisa.  O  Espiritismo  demonstra  que  esses  demônios  mais não são do que as almas dos homens perversos, que ainda se não despojaram  dos instintos materiais; que ninguém logra aplacá­los, senão mediante o sacrifício  do ódio existente, isto é, pela caridade; que esta não tem por efeito, unicamente,  impedi­los de praticar o mal e, sim, também o de reconduzi­los ao caminho do bem  e de contribuir para a salvação deles. É assim que o mandamento: Amai os vossos  inimigos não se circunscreve ao âmbito acanhado da Terra e da vida presente; antes,  faz parte da grande lei da solidariedade e da fraternidade universais.  SE ALGUÉM VOS BATER NA FACE DIREITA,  APRESENTAI­LHE TAMBÉM A OUTRA  7. Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. – Eu, porém,  vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém  vos  bater  na  face  direita,  lhe  apresenteis  também  a  outra;  –  e  que  se  alguém  quiser  pleitear  contra  vós,  para  vos  tomar  a  túnica,  também  lhe  entregueis o manto; – e que se alguém vos obrigar a caminhar mil passos  com ele, caminheis mais dois mil. – Dai àquele que vos pedir e não repilais  aquele que vos queira tomar emprestado.  (MATEUS, 5:38 a 42)  8. Os preconceitos do mundo sobre o que se convencionou chamar “ponto de honra”  produzem  essa  suscetibilidade  sombria,  nascida  do  orgulho  e  da  exaltação  da  personalidade,  que  leva  o  homem  a  retribuir  uma  injúria  com  outra  injúria,  uma  ofensa com outra, o que é tido como justiça por aquele cujo senso moral não se acha  acima do nível das paixões terrenas. Por isso é que a lei moisaica prescrevia: olho  por olho, dente por dente, de harmonia com a época em que Moisés vivia. Veio o  Cristo e disse: Retribuí o mal com o bem. E disse ainda: “Não resistais ao mal que  vos  queiram  fazer;  se  alguém  vos  bater  numa  face,  apresentai­lhe  a  outra.”  Ao  orgulhoso  este  ensino  parecerá  uma  covardia,  porquanto  ele  não  compreende  que  haja mais coragem em suportar um insulto do que em tomar uma vingança, e não  compreende, porque sua visão não pode ultrapassar o presente.
  • 127. 127 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Dever­se­á,  entretanto,  tomar  ao  pé  da  letra  aquele  preceito?  Tampouco  quanto  o  outro  que  manda  se  arranque  o  olho,  quando  for  causa  de  escândalo.  Levado  o  ensino  às  suas  últimas  conseqüências,  importaria  ele  em  condenar toda  repressão, mesmo legal, e deixar livre o campo aos maus, isentando­os de todo e  qualquer  motivo  de  temor.  Se  se  lhes  não  pusesse  um  freio  às  agressões,  bem  depressa todos os bons seriam suas vítimas. O próprio instinto de conservação, que é  uma  lei  da  Natureza,  obsta  a  que  alguém  estenda  o  pescoço  ao  assassino.  Enunciando, pois, aquela máxima, não pretendeu Jesus interdizer toda defesa, mas  condenar a vingança. Dizendo que apresentemos a outra face àquele que nos haja  batido numa, disse, sob outra forma, que não se deve pagar o mal com o mal; que o  homem deve aceitar com humildade tudo o que seja de molde a lhe abater o orgulho;  que  maior  glória  lhe  advém  de  ser  ofendido  do  que  de  ofender,  de  suportar  pacientemente uma injustiça do que de praticar alguma; que mais vale ser enganado  do  que  enganador,  arruinado  do  que  arruinar  os  outros.  É,  ao  mesmo  tempo,  a  condenação do duelo, que não passa de uma manifestação de orgulho. Somente a fé  na vida futura e na justiça de Deus, que jamais deixa impune o mal, pode dar ao  homem forças para suportar com paciência os golpes que lhe sejam desferidos nos  interesses  e no amor­próprio. Daí vem o repetirmos incessantemente: Lançai para  diante o olhar; quanto mais vos elevardes pelo pensamento, acima da vida material,  tanto menos vos magoarão as coisas da Terra.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A VINGANÇA  9. A vingança é um dos últimos remanescentes dos costumes bárbaros que tendem a  desaparecer dentre os homens. É, como o duelo, um dos derradeiros vestígios dos  hábitos  selvagens  sob  cujos  guantes  se  debatia  a  Humanidade, no  começo  da  era  cristã,  razão  por  que  a  vingança  constitui  indício  certo  do  estado  de  atraso  dos  homens  que  a  ela  se  dão  e  dos  Espíritos  que  ainda  as  inspirem.  Portanto,  meus  amigos, nunca esse sentimento deve fazer vibrar o coração de quem quer que se diga  e proclame espírita. Vingar­se é, bem o sabeis, tão contrário àquela prescrição do  Cristo:  “Perdoai  aos  vossos  inimigos”,  que  aquele  que  se  nega  a  perdoar  não  somente não é espírita como também não é cristão. A vingança é uma inspiração  tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza.  Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega paixão quase nunca se vinga a  céu aberto. Quando é ele o mais forte, cai qual fera sobre o outro a quem chama seu  inimigo, desde que a presença deste último lhe inflame a paixão, a cólera, o ódio.  Porém, as mais das vezes assume aparências hipócritas, ocultando nas profundezas  do coração os maus sentimentos que o animam. Toma caminhos escusos, segue na  sombra  o  inimigo,  que  de  nada  desconfia,  e  espera  o  momento  azado  para  sem  perigo feri­lo. Esconde­ se do outro, espreitando­o de contínuo, prepara­lhe odiosas  armadilhas e, em sendo propícia a ocasião, derrama­lhe no copo o veneno. Quando  seu ódio não chega a tais extremos, ataca­o então na honra e nas afeições; não recua  diante  da  calúnia,  e  suas  pérfidas  insinuações,  habilmente  espalhadas  a  todos  os
  • 128. 128 – Allan Kardec  ventos, se vão avolumando pelo caminho. Em conseqüência, quando o perseguido se  apresenta nos  lugares  por  onde  passou  o  sopro  do  perseguidor,  espanta­se  de  dar  com semblantes frios, em vez de fisionomias amigas e benevolentes que outrora o  acolhiam. Fica estupefato quando mãos que se lhe estendiam, agora se recusam a  apertar  as  suas.  Enfim,  sente­se  aniquilado,  ao  verificar  que  os  seus  mais  caros  amigos e parentes se afastam e o evitam. Ah! O covarde que se vinga assim é cem  vezes mais culpado do que o que enfrenta o seu inimigo e o insulta em plena face.  Fora,  pois,  com  esses  costumes  selvagens!  Fora  com  esses  processos  de  outros tempos! Todo espírita que ainda hoje pretendesse ter o direito de vingar­se  seria  indigno  de  figurar  por  mais  tempo  na  falange  que  tem  como  divisa:  Sem  caridade não há salvação! Mas, não, não posso deter­me a pensar que um membro  da  grande  família  espírita  ouse  jamais,  de  futuro,  ceder  ao  impulso  da  vingança,  senão para perdoar. – Júlio Olivier. (Paris, 1862)  O ÓDIO  10. Amai­vos uns aos outros e sereis felizes. Tomai sobretudo a peito amar os que  vos  inspiram  indiferença,  ódio,  ou  desprezo.  O  Cristo,  que  deveis  considerar  modelo, deu­vos o exemplo desse devotamento. Missionário do amor, ele amou até  dar o sangue e a vida por amor. Penoso vos é o sacrifício de amardes os que vos  ultrajam e perseguem; mas, precisamente, esse sacrifício é que vos torna superiores  a eles. Se os odiásseis, como vos odeiam, não valeríeis mais do que eles. Amá­los é  a  hóstia  imácula  que  ofereceis  a  Deus  na  ara  dos  vossos  corações,  hóstia  de  agradável aroma e cujo perfume lhe sobe até o seio. Se bem a lei de amor mande que  cada  um  ame  indistintamente  a  todos  os  seus  irmãos,  ela  não  couraça  o  coração  contra os maus procederes; esta é, ao contrário, a prova mais angustiosa, e eu o sei  bem,  porquanto,  durante  a  minha  última  existência  terrena,  experimentei  essa  tortura. Mas Deus lá está e pune nesta vida e na outra os que violam a lei de amor.  Não esqueçais, meus queridos filhos, que o amor aproxima de Deus a criatura e o  ódio a distancia dele. – Fénelon. (Bordéus, 1861)  O DUELO  11. Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida uma viagem que o  há de conduzir a determinado ponto, pouco caso faz das asperezas da jornada e não  deixa  que  seus  passos  se  desviem  do  caminho  reto.  Com o  olhar  constantemente  dirigido  para  o  termo  a  alcançar,  nada  lhe  importa  que  as  urzes  e  os  espinhos  ameacem  produzir­lhe arranhaduras;  umas  e  outros  lhe  roçam  a  epiderme,  sem  o  ferirem, nem impedirem de prosseguir na caminhada. Expor seus dias para se vingar  de uma injúria é recuar diante das provações da vida, é sempre um crime aos olhos  de Deus; e, se não fôsseis, como sois, iludidos pelos vossos prejuízos, tal coisa seria  ridícula e uma suprema loucura aos olhos dos homens.  Há crime no homicídio em duelo; a vossa própria legislação o reconhece.  Ninguém tem o direito, em caso algum, de atentar contra a vida de seu semelhante: é
  • 129. 129 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  um crime aos olhos de Deus, que vos traçou a linha de conduta que tendes de seguir.  Nisso, mais do que em qualquer outra circunstância, sois juízes em causa própria.  Lembrai­vos de que somente vos será perdoado, conforme perdoardes; pelo perdão  vos acercais da Divindade, pois a clemência é irmã do poder. Enquanto na Terra  correr  uma  gota  de  sangue  humano,  vertida  pela  mão  dos  homens,  o  verdadeiro  reino de Deus ainda se não terá implantado aí, reino de paz e de amor, que há de  banir para sempre do vosso planeta a animosidade, a discórdia, a guerra. Então, a  palavra  duelo  somente  existirá  na  vossa  linguagem  como  longínqua  e  vaga  recordação de um passado que se foi. Nenhum outro antagonismo existirá entre os  homens,  afora a nobre  rivalidade  do  bem.  – Adolfo,  bispo  de  Argel.  (Marmande,  1861)  12. Em  certos  casos,  sem  dúvida,  pode  o  duelo  constituir uma  prova  de  coragem  física,  de  desprezo  pela  vida,  mas  também  é,  incontestavelmente,  uma  prova  de  covardia  moral,  como  o  suicídio.  O  suicida  não  tem  coragem  de  enfrentar  as  vicissitudes da vida; o duelista não tem a de suportar as ofensas. Não vos disse o  Cristo que há mais honra e valor em apresentar a face esquerda àquele que bateu na  direita,  do  que  em  vingar  uma  injúria?  Não  disse  ele  a  Pedro,  no  jardim  das  Oliveiras: “Mete a tua espada na bainha, porquanto aquele que matar com a espada  perecerá  pela  espada?”  Assim  falando,  não  condenou,  para  sempre,  o  duelo?  Efetivamente, meus filhos, que é essa coragem oriunda de um gênio violento, de um  temperamento sangüíneo e colérico, que ruge à primeira ofensa? Onde a grandeza  d’alma daquele que, à menor injúria, entende que só com sangue a poderá lavar?  Ah!  Que  ele  trema!  No  fundo  da  sua  consciência,  uma  voz  lhe  bradará  sempre:  Caim!  Caim!  Que  fizeste  de  teu  irmão?  Foi­me  necessário  derramar  sangue  para  salvar a minha honra, responderá ele a essa voz. Ela, porém, retrucará: Procuraste  salvá­la perante os homens, por alguns instantes que te restavam de vida na Terra, e  não pensaste em salvá­la perante Deus! Pobre louco! Quanto sangue exigiria de vós  o Cristo, por todos os ultrajes que recebeu! Não só o feristes com os espinhos e a  lança, não só o pregastes num madeiro infamante, como também o fizestes ouvir, em  meio  de  sua  agonia  atroz,  as  zombarias  que  lhe  prodigalizastes.  Que  reparação  a  tantos insultos vos pediu ele? O último brado do cordeiro foi uma súplica em favor  dos seus algozes! Oh! Como ele, perdoai e orai pelos que vos ofendem.  Amigos, lembrai­vos deste preceito: “Amai­vos uns aos outros” e, então, a  um  golpe  desferido  pelo  ódio  respondereis  com  um  sorriso,  e  ao  ultraje  com  o  perdão. O mundo, sem dúvida, se levantará furioso e vos tratará de covardes; erguei  bem alto a fronte e mostrai que também ela se não temeria de cingir­se de espinhos,  a exemplo do Cristo, mas, que a vossa mão não quer ser cúmplice de um assassínio  autorizado por falsos ares de honra, que, entretanto, não passa de orgulho e amor­  próprio. Dar­se­á que, ao criar­vos, Deus vos outorgou o direito de vida e de morte,  uns sobre os outros? Não, só à Natureza conferiu ele esse direito, para se reformar e  reconstruir;  quanto  a  vós,  não  permite,  sequer,  que  disponhais  de  vós  mesmos.  Como  o  suicida,  o  duelista  se  achará  marcado  com  sangue,  quando  comparecer  perante Deus, e a um e outro o Soberano Juiz reserva rudes e longos castigos. Se ele  ameaçou com a sua justiça aquele que disser raca a seu irmão, quão mais severa não
  • 130. 130 – Allan Kardec  será a pena que comine ao que chegar à sua presença com as mãos tintas do sangue  de seu irmão! – Santo Agostinho. (Paris, 1862)  13.  O  duelo,  como  o  que  outrora  se  denominava  o  juízo  de  Deus,  é  uma  das  instituições bárbaras que ainda regem a sociedade. Que diríeis, no entanto, se vísseis  dois adversários mergulhados em água fervente ou submetidos ao contacto de um  ferro  em  brasa,  para  ser  dirimida  a  contenda  entre  eles,  reconhecendo­se  estar  a  razão com aquele que melhor sofresse a prova? Qualificaríeis de insensatos esses  costumes, não é exato? Pois o duelo é coisa pior do que tudo isso. Para o duelista  destro, é um assassínio praticado a sangue frio, com toda a premeditação que possa  haver,  uma  vez  que  ele  está  certo  da  eficácia  do  golpe  que  desfechará.  Para  o  adversário, quase certo de sucumbir em virtude de sua fraqueza e inabilidade, é um  suicídio cometido com a mais fria reflexão. Sei que muitas vezes se procura evitar  essa alternativa igualmente criminosa, confiando ao acaso a questão: – mas, não é  isso  voltar,  sob  outra  forma,  ao  juízo  de  Deus,  da  Idade  Média?  E  nessa  época  infinitamente menor era a culpa. A própria denominação de juízo de Deus indica a  fé, ingênua, é verdade, porém, afinal, fé na justiça de Deus, que não podia consentir  sucumbisse um inocente, ao passo que, no duelo, tudo se confia à força bruta, de tal  sorte que não raro é o ofendido que sucumbe.  Ó  estúpido  amor­próprio,  tola  vaidade  e  louco  orgulho,  quando  sereis  substituídos  pela  caridade  cristã,  pelo  amor  do  próximo  e  pela  humildade  que  o  Cristo  exemplificou  e  preceituou?  Só  quando  isso  se  der  desaparecerão  esses  preceitos monstruosos que ainda governam os homens, e que as leis são impotentes  para reprimir, porque não basta interditar o mal e prescrever o bem; é preciso que o  princípio do bem e o horror ao mal morem no coração do homem. – Um Espírito  protetor. (Bordéus, 1861)  14. Que juízo farão de mim, costumais dizer, se eu recusar a reparação que se me  exige, ou se não a reclamar de quem me ofendeu? Os loucos, como vós, os homens  atrasados  vos  censurarão;  mas,  os  que  se  acham  esclarecidos  pelo  facho  do  progresso  intelectual  e  moral  dirão  que  procedeis  de  acordo  com  a  verdadeira  sabedoria.  Refleti  um  pouco.  Por  motivo  de  uma  palavra  dita  às  vezes  impensadamente, ou inofensiva, vinda de um dos vossos irmãos, o vosso orgulho se  sente ferido, respondeis de modo acre e daí uma provocação. Antes que chegue o  momento decisivo, inquiris de vós mesmos se procedeis como cristãos? Que contas  ficareis devendo à sociedade, por a privardes de um de seus membros? Pensastes no  remorso que vos assaltará, por haverdes roubado a uma mulher o marido, a uma mãe  o filho, ao filho o pai que lhes servia de amparo? Certamente, o autor da ofensa deve  uma  reparação;  porém,  não  lhe  será  mais  honroso  dá­la  espontaneamente,  reconhecendo  suas  faltas,  do  que  expor  a  vida  daquele  que  tem  o  direito  de  se  queixar?  Quanto  ao  ofendido,  convenho  em  que,  algumas vezes,  por  ele  achar­se  gravemente ferido, ou em sua pessoa, ou nas dos que lhe são mais caros, não está em  jogo somente o amor­próprio: o coração se acha magoado, sofre. Mas, além de ser  estúpido arriscar a vida, lançando­se contra um miserável capaz de praticar infâmias,  dar­se­á que, morto este, a afronta, qualquer que seja, deixa de existir? Não é exato  que o sangue derramado imprime retumbância maior a um fato que, se falso, cairia
  • 131. 131 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  por  si  mesmo,  e  que,  se  verdadeiro,  deve  ficar  sepultado  no  silêncio?  Nada  mais  restará, pois, senão a satisfação da sede de vingança. Ah! Triste satisfação que quase  sempre  dá  lugar,  já  nesta  vida,  a  causticantes  remorsos.  Se  é  o  ofendido  que  sucumbe, onde a reparação? Quando a caridade regular a conduta dos homens, eles  conformarão seus atos e palavras a esta máxima: “Não façais aos outros o que não  quiserdes que vos façam.” Em se verificando isso, desaparecerão todas as causas de  dissensões e, com elas, as dos duelos e das guerras, que são os duelos de povo a  povo. – Francisco Xavier. (Bordéus, 1861)  15. O homem do mundo, o homem venturoso, que por uma palavra chocante, uma  coisa ligeira, joga a vida que lhe veio de Deus, joga a vida do seu semelhante, que só  a Deus pertence, esse é cem vezes mais culpado do que o miserável que, impelido  pela  cupidez,  algumas  vezes  pela  necessidade,  se  introduz  numa  habitação  para  roubar e matar os que se lhe opõem aos desígnios. Trata­se quase sempre de uma  criatura sem educação, com imperfeitas noções do  bem e  do mal, ao passo que o  duelista pertence, em regra, à classe mais culta. Um mata brutalmente, enquanto que  o outro o faz com método e polidez, pelo que a sociedade o desculpa. Acrescentarei  mesmo  que  o  duelista  é  infinitamente  mais  culpado  do  que  o  desgraçado  que,  cedendo  a  um  sentimento  de  vingança,  mata  num  momento  de  exasperação.  O  duelista não tem por escusa o arrebatamento da paixão, pois que, entre o insulto e a  reparação, dispõe ele sempre de tempo para refletir. Age, portanto, friamente e com  premeditado desígnio; estuda e calcula tudo, para com mais segurança matar o seu  adversário. É certo que também expõe a vida e é isso  o que reabilita o duelo aos  olhos do mundo, que nele então só vê um ato de coragem e pouco caso da vida. Mas,  haverá coragem da parte daquele que está seguro de si? O duelo, remanescente dos  tempos de barbárie, em os quais o direito do mais forte constituía a lei, desaparecerá  por efeito de uma melhor apreciação do verdadeiro ponto de honra e à medida que o  homem for depositando fé mais viva na vida futura. – Agostinho. (Bordéus, 1861)  16. NOTA. Os duelos se vão tornando cada vez mais raros e, se de tempos a tempos  alguns de tão dolorosos exemplos se dão, o número deles não se pode comparar com  o dos que ocorriam outrora. Antigamente, um homem não saía de casa sem prever  um  encontro,  pelo  que  tomava  sempre  as  necessárias  precauções.  Um  sinal  característico dos costumes do tempo e dos povos se nos depara no porte habitual,  ostensivo  ou  oculto,  de  armas  ofensivas  ou  defensivas.  A abolição  de  semelhante  uso  demonstra  o  abrandamento  dos  costumes  e  é  curioso  acompanhar­lhes  a  gradação, desde a época em que os cavaleiros só cavalgavam bardados de ferro e  armados  de  lança,  até  a  em  que  uma  simples  espada  à  cinta  constituía  mais  um  adorno e um acessório do brasão, do que uma arma de agressão. Outro indício da  modificação  dos  costumes  está  em  que,  outrora,  os  combates  singulares  se  empenhavam  em  plena  rua,  diante  da  turba,  que  se  afastava  para  deixar  livre  o  campo aos combatentes, ao passo que estes hoje se ocultam. Presentemente, a morte  de um homem é acontecimento que causa emoção, enquanto que, noutros tempos,  ninguém dava atenção a isso.  O  Espiritismo  apagará  esses  últimos  vestígios  da  barbárie,  incutindo  nos  homens o espírito de caridade e de fraternidade.
  • 132. 132 – Allan Kardec  CAPÍTULO XIII  NÃO SAIBA A VOSSA MÃO ESQUERDA O QUE DÊ A VOSSA MÃO DIREITA ·  FAZER O BEM SEM OSTENTAÇÃO ·  OS INFORTÚNIOS OCULTOS ·  O ÓBOLO DA VIÚVA ·  CONVIDAR OS POBRES E OS ESTROPIADOS.  DAR SEM ESPERAR RETRIBUIÇÃO  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A CARIDADE MATERIAL E A CARIDADE MORAL ·  A BENEFICÊNCIA ·  A PIEDADE ·  OS ÓRFÃOS ·  BENEFÍCIOS PAGOS COM A INGRATIDÃO ·  BENEFICÊNCIA EXCLUSIVA  FAZER O BEM SEM OSTENTAÇÃO  1. “ Tende cuidado em não praticar as boas obras diante dos homens, para  serem vistas, pois, do contrário, não recebereis recompensa de vosso Pai  que está nos céus. Assim, quando derdes esmola, não trombeteeis, como  fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos  homens.  Digo­vos,  em  verdade,  que  eles  já  receberam  sua  recompensa.  Quando derdes esmola, não saiba a vossa mão esquerda o que faz a vossa  mão direita; a fim de que a esmola fique em segredo, e vosso Pai, que vê o  que se passa em segredo, vos recompensará”.  (MATEUS, 6:1 a 4.)
  • 133. 133 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  2. Tendo Jesus descido do monte, grande multidão o seguiu. Ao mesmo  tempo, um leproso veio ao seu encontro e o adorou, dizendo: “Senhor, se  quiseres,  poderás  curar­me”.  Jesus,  estendendo  a mão,  o  tocou  e  disse:  “Quero­o, fica curado!”; No mesmo instante desapareceu a lepra. Disse­lhe  então  Jesus:  “Abstém­te  de  falar  disto  a  quem  quer  que  seja;  mas,  vai  mostrar­te aos sacerdotes e oferece o dom prescrito por Moisés, a fim de  que lhes sirva de prova”.  (MATEUS, 8:1 a 4)  3. Em fazer o bem sem ostentação há grande mérito; ainda mais meritório é ocultar a  mão  que  dá;  constitui  marca  incontestável  de  grande  superioridade  moral,  porquanto, para encarar as coisas de mais alto do que o faz o vulgo, mister se torna  abstrair da vida presente e identificar­se com a vida futura; numa palavra, colocar­se  acima da Humanidade, para renunciar à satisfação que advém do testemunho dos  homens e esperar a aprovação de Deus. Aquele que prefere ao de Deus o sufrágio  dos homens prova que mais fé deposita nestes do que na Divindade e que mais valor  dá à vida presente do que à futura. Se diz o contrário, procede como se não cresse no  que diz.  Quantos há que só dão na esperança de que o que recebe irá bradar por toda  a parte o benefício recebido! Quantos os que, de público, dão grandes somas e que,  entretanto, às ocultas, não dariam uma só moeda! Foi por isso que Jesus declarou:  “Os que fazem o bem ostentosamente já receberam sua recompensa.” Com efeito,  aquele que procura a sua própria glorificação na Terra, pelo bem que pratica, já se  pagou a si mesmo; Deus nada mais lhe deve; só lhe resta receber a punição do seu  orgulho.  Não  saber  a  mão  esquerda  o  que  dá a  mão  direita  é  uma  imagem  que  caracteriza  admiravelmente  a  beneficência  modesta.  Mas,  se  há  a  modéstia  real,  também há a falsa modéstia, o simulacro da modéstia. Há pessoas que  ocultam a  mão que dá, tendo, porém, o cuidado de deixar aparecer um pedacinho, olhando em  volta  para  verificar  se  alguém  não  o  terá  visto  ocultá­la.  Indigna  paródia  das  máximas do Cristo! Se os benfeitores orgulhosos são depreciados entre os homens,  que não será perante Deus? Também esses já receberam na Terra sua recompensa.  Foram vistos; estão satisfeitos por terem sido vistos. É tudo o que terão.  E qual poderá ser a recompensa do que faz pesar os seus benefícios sobre  aquele  que  os  recebe,  que  lhe  impõe,  de  certo  modo,  testemunhos  de  reconhecimento, que lhe faz sentir a sua posição, exaltando o preço dos sacrifícios a  que se vota para beneficiá­lo? Oh! Para esse, nem mesmo a recompensa terrestre  existe,  porquanto  ele  se  vê  privado  da  grata  satisfação  de  ouvir  bendizer­lhe  do  nome e é esse o primeiro castigo do seu orgulho. As lágrimas que seca por vaidade,  em vez de subirem ao Céu, recaíram sobre o coração do aflito e o ulceraram. Do  bem  que  praticou  nenhum  proveito  lhe  resulta,  pois  que  ele  o  deplora,  e  todo  benefício deplorado é moeda falsa e sem valor.  A  beneficência  praticada  sem  ostentação  tem  duplo  mérito.  Além  de  ser  caridade  material,  é  caridade  moral,  visto  que  resguarda  a  suscetibilidade  do  beneficiado,  faz­lhe  aceitar  o  benefício,  sem  que  seu  amor­próprio  se  ressinta  e  salvaguardando­lhe  a  dignidade  de  homem,  porquanto  aceitar  um  serviço  é  coisa
  • 134. 134 – Allan Kardec  bem  diversa  de  receber  uma  esmola.  Ora,  converter  em  esmola  o  serviço,  pela  maneira de prestá­lo, é humilhar o que o recebe, e, em humilhar a outrem, há sempre  orgulho e maldade. A verdadeira caridade, ao contrário, é delicada e engenhosa no  dissimular  o  benefício,  no  evitar  até  as  simples  aparências  capazes  de  melindrar,  dado que todo atrito moral aumenta o sofrimento que se origina da necessidade. Ela  sabe encontrar palavras brandas e afáveis que colocam o beneficiado à vontade em  presença do benfeitor, ao passo que a caridade orgulhosa o esmaga. A verdadeira  generosidade adquire toda a sublimidade, quando o benfeitor, invertendo os papéis,  acha meios de figurar como beneficiado diante daquele a quem presta serviço. Eis o  que significam estas palavras: “Não saiba a mão esquerda o que dá a direita.”  OS INFORTÚNIOS OCULTOS  4.  Nas  grandes  calamidades,  a  caridade  se  emociona  e  observam­se  impulsos  generosos, no sentido de reparar os desastres. Mas, a par desses desastres gerais, há  milhares  de  desastres  particulares,  que  passam  despercebidos:  os  dos  que  jazem  sobre um grabato sem se queixarem. Esses infortúnios discretos e ocultos são os que  a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar que peçam assistência.  Quem  é  esta  mulher  de  ar  distinto,  de  traje  tão  simples,  embora  bem  cuidado,  e  que  traz  em  sua  companhia  uma  mocinha  tão  modestamente  vestida?  Entra numa  casa  de  sórdida  aparência,  onde  sem  dúvida  é  conhecida,  pois  que  à  entrada a saúdam respeitosamente. Aonde vai ela? Sobe até a mansarda, onde jaz  uma mãe de família cercada de crianças. À sua chegada, refulge a alegria naqueles  rostos  emagrecidos.  É  que  ela  vai  acalmar  ali  todas  as  dores.  Traz  o  de  que  necessitam,  condimentado  de  meigas  e  consoladoras  palavras,  que  fazem  que  os  seus protegidos, que não são profissionais da mendicância, aceitem o benefício, sem  corar. O pai está no hospital e, enquanto lá permanece, a mãe não consegue com o  seu trabalho prover as necessidades da família. Graças à boa senhora, aquelas pobres  crianças  não  mais  sentirão  frio,  nem  fome;  irão  à  escola  agasalhadas  e,  para  as  menorzinhas,  o  leite  não  secará  no  seio  que  as  amamenta.  Se  entre  elas  alguma  adoece, não lhe repugnarão a ela, à boa dama, os cuidados materiais de que essa  necessite. Dali vai ao hospital levar ao pai algum reconforto e tranqüilizá­lo sobre a  sorte da família. No canto da rua, uma carruagem a espera, verdadeiro armazém de  tudo  o  que  destina  aos  seus  protegidos,  que  todos  lhe  recebem  sucessivamente  a  visita. Não lhes pergunta qual a crença que professam, nem quais suas opiniões, pois  considera  como  seus  irmãos  e  filhos  de  Deus  todos  os  homens. Terminado  o  seu  giro, diz de si para consigo: Comecei bem o meu dia. Qual o seu nome? Onde mora?  Ninguém o sabe. Para os infelizes, é um nome que nada indica; mas é o anjo da  consolação. À noite, um concerto de bênçãos se eleva em seu favor ao Pai celestial:  católicos, judeus, protestantes, todos a bendizem.  Por que tão singelo traje? Para não insultar a miséria com o seu luxo. Por  que  se  faz  acompanhar  da  filha?  Para  que  aprenda  como  se  deve  praticar  a  beneficência.  A  mocinha  também  quer  fazer  a  caridade.  A  mãe,  porém,  lhe  diz:  “Que  podes  dar,  minha  filha,  quando  nada  tens  de teu?  Se  eu  te  passar  às  mãos  alguma  coisa  para  que  dês  a  outrem,  qual  será  o  teu  mérito?  Nesse  caso,  em
  • 135. 135 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  realidade, serei eu quem faz a caridade; que merecimento terias nisso? Não é justo.  Quando visitamos os doentes, tu me ajudas a tratá­los. Ora, dispensar cuidados é dar  alguma  coisa.  Não  te  parece  bastante  isso?  Nada  mais  simples.  Aprende  a  fazer  obras  úteis  e  confeccionarás  roupas  para  essas  criancinhas.  Desse  modo,  darás  alguma  coisa  que  vem  de  ti.”  É  assim  que  aquela  mãe  verdadeiramente  cristã  prepara a filha para a prática das virtudes que o Cristo ensinou. É espírita ela? Que  importa!  Em  casa,  é  a mulher  do  mundo, porque a  sua  posição  o  exige.  Ignoram,  porém, o que faz, porque ela não deseja outra aprovação, além da de Deus e da sua  consciência. Certo dia, no entanto, imprevista circunstância leva­lhe a casa uma de  suas  protegidas,  que  andava  a  vender  trabalhos  executados  por  suas  mãos.  Esta  última, ao vê­la, reconheceu nela a sua benfeitora. “Silêncio! ordena­lhe a senhora.  Não o digas a ninguém.” Falava assim Jesus.  O ÓBOLO DA VIÚVA  5. Estando Jesus sentado defronte do gazofilácio, a observar de que modo  o povo lançava ali o dinheiro, viu que muitas pessoas ricas o deitavam em  abundância. Nisso, veio também uma pobre viúva que apenas deitou duas  pequenas moedas do valor de dez centavos cada uma. Chamando então  seus discípulos, disse­lhes: “Em verdade vos digo que esta pobre viúva deu  muito mais do que todos os que antes puseram suas dádivas no gazofilácio;  por isso que todos os outros deram do que lhes abunda, ao passo que ela  deu do que lhe faz falta, deu mesmo tudo o que tinha para seu sustento”.  (MARCOS, 12:41 a 44; LUCAS, 21:1 a 4)  6.  Muita  gente  deplora  não  poder  fazer  todo  o  bem  que  desejara,  por  falta  de  recursos  suficientes,  e,  se  desejam  possuir  riquezas,  é,  dizem,  para  lhes  dar  boa  aplicação. É sem dúvida louvável a intenção e pode até nalguns ser sincera. Dar­se­  á,  contudo,  seja  completamente  desinteressada  em  todos?  Não  haverá  quem,  desejando  fazer  bem  aos  outros,  muito  estimaria  poder  começar  por  fazê­lo  a  si  próprio, por proporcionar a si mesmo alguns gozos mais, por usufruir de um pouco  do supérfluo que lhe falta, pronto a dar aos pobres o resto? Esta segunda intenção,  que  esses  tais  porventura  dissimulam  aos  seus  próprios  olhos,  mas  que  se  lhes  depararia no fundo dos seus corações, se eles os perscrutassem, anula o mérito do  intento, visto que, com a verdadeira caridade, o homem pensa nos outros antes de  pensar em si. O ponto sublimado da caridade, nesse caso, estaria em procurar ele no  seu trabalho, pelo emprego de suas forças, de sua inteligência, de seus talentos, os  recursos  de  que  carece  para  realizar  seus  generosos  propósitos.  Haveria  nisso  o  sacrifício que mais agrada ao Senhor. Infelizmente, a maioria vive a sonhar com os  meios de mais facilmente se enriquecer de súbito e sem esforço, correndo atrás de  quimeras, quais a descoberta de tesouros, de uma favorável ensancha aleatória, do  recebimento de inesperadas heranças, etc. Que dizer dos que esperam encontrar nos  Espíritos auxiliares que os secundem na consecução de tais objetivos? Certamente  não  conhecem,  nem  compreendem  a  sagrada  finalidade  do  Espiritismo  e,  ainda
  • 136. 136 – Allan Kardec  menos,  a  missão  dos  Espíritos  a  quem  Deus  permite  se  comuniquem  com  os  homens. Daí vem o serem punidos pelas decepções, (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte,  nº 294 e 295)  Aqueles  cuja  intenção  está  isenta  de  qualquer  idéia  pessoal,  devem  consolar­se da impossibilidade em que se vêem de fazer todo o bem que desejariam,  lembrando­se de que o óbolo do pobre, do que dá privando­se do necessário, pesa  mais  na  balança  de  Deus  do  que  o  ouro  do  rico  que  dá  sem  se  privar  de  coisa  alguma, Grande seria realmente a satisfação do primeiro, se pudesse  socorrer, em  larga  escala,  a  indigência;  mas,  se  essa  satisfação  lhe  é  negada,  submeta­se  e  se  limite  a  fazer  o  que  possa.  Aliás,  será  só  com  o  dinheiro  que  se  podem  secar  lágrimas e dever­se­á ficar inativo, desde que se não tenha dinheiro? Todo aquele  que sinceramente deseja ser útil a seus irmãos, mil ocasiões encontrará de realizar o  seu desejo. Procure­as e elas se lhe depararão; se não for de um modo, será de outro,  porque ninguém há que, no pleno gozo de suas  faculdades, não possa prestar um  serviço qualquer, prodigalizar um consolo, minorar um sofrimento físico ou moral,  fazer um esforço útil. Não dispõem todos, à falta de dinheiro, do seu trabalho, do seu  tempo, do seu repouso, para de tudo isso dar uma parte ao próximo? Também aí está  a dádiva do pobre, o óbolo da viúva.  CONVIDAR OS POBRES E OS ESTROPIADOS.  DAR SEM ESPERAR RETRIBUIÇÃO  7.  Disse  também  àquele  que  o  convidara:  “Quando  derdes  um  jantar  ou  uma  ceia,  não  convideis nem  os  vossos amigos,  nem os vossos irmãos,  nem os vossos parentes, nem os vossos vizinhos que forem ricos, para que  em seguida não vos convidem a seu turno e assim retribuam o que de vós  receberam.  Quando  derdes  um  festim,  convidai  para  ele  os  pobres,  os  estropiados,  os  coxos  e  os  cegos.  E  sereis  ditosos  por  não  terem  eles  meios  de  vo­lo  retribuir,  pois  isso  será  retribuído  na  ressurreição  dos  justos”.  Um dos que se achavam à mesa, ouvindo essas palavras, disse­  lhe: “Feliz do que comer do pão no reino de Deus!”  (LUCAS, 14:12 a 15)  8. “Quando derdes um festim, disse Jesus, não convideis para ele os vossos amigos,  mas os pobres e os estropiados.” Estas palavras, absurdas se tomadas ao pé da letra,  são sublimes, se lhes buscarmos o espírito. Não é possível que Jesus haja pretendido  que,  em  vez  de  seus  amigos,  alguém reúna  à  sua  mesa  os  mendigos  da  rua.  Sua  linguagem  era  quase  sempre  figurada  e,  para  os  homens  incapazes  de apanhar  os  delicados  matizes  do  pensamento,  precisava  servir­se  de  imagens  fortes,  que  produzissem o efeito de um colorido vivo. O âmago do seu pensamento se revela  nesta  proposição:  “E  sereis  ditosos  por  não  terem  eles  meios  de  vo­lo  retribuir.”  Quer dizer que não se deve fazer o bem tendo em vista uma retribuição, mas tão­só  pelo prazer de o praticar. Usando de uma comparação vibrante, disse: Convidai para  os  vossos  festins  os  pobres,  pois  sabeis  que  eles  nada  vos  podem  retribuir.  Por
  • 137. 137 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  festins deveis entender, não os repastos propriamente ditos, mas a participação na  abundância de que desfrutais.  Todavia,  aquela  advertência  também  pode  ser  aplicada  em  sentido  mais  literal.  Quantos  não  convidam  para  suas  mesas  apenas  os  que  podem,  como  eles  dizem,  fazer­lhes  honra,  ou,  a  seu  turno,  convidá­los!  Outros,  ao  contrário,  encontram satisfação em receber os parentes e amigos menos felizes. Ora, quem não  os conta entre os seus? Dessa forma, grande serviço, às vezes, se lhes presta, sem  que  o  pareça.  Aqueles,  sem  irem  recrutar  os  cegos  e  os  estropiados,  praticam  a  máxima de Jesus, se o fazem por benevolência, sem ostentação, e sabem dissimular  o benefício, por meio de uma sincera cordialidade.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A CARIDADE MATERIAL E A CARIDADE MORAL  9. “Amemo­nos uns aos outros e façamos aos outros o que quereríamos nos fizessem  eles.” Toda a religião, toda a moral se acham encerradas nestes dois preceitos. Se  fossem  observados  nesse  mundo,  todos  seríeis  felizes:  não  mais  aí  ódios,  nem  ressentimentos. Direi ainda: não mais pobreza, porquanto, do supérfluo da mesa de  cada  rico,  muitos  pobres  se  alimentariam  e  não  mais  veríeis,  nos  quarteirões  sombrios  onde  habitei  durante  a  minha  última  encarnação,  pobres  mulheres  arrastando consigo miseráveis crianças a quem tudo faltava.  Ricos! Pensai nisto um pouco. Auxiliai os infelizes o melhor que puderdes.  Dai,  para  que  Deus,  um  dia,  vos  retribua  o  bem  que  houverdes  feito,  para  que  tenhais, ao sairdes do vosso invólucro terreno, um cortejo de Espíritos agradecidos,  a receber­vos no limiar de um mundo mais ditoso.  Se  pudésseis  saber  da  alegria  que  experimentei  ao  encontrar  no  Além  aqueles a quem, na minha última existência, me fora dado servir!...  Amai,  portanto,  o  vosso  próximo;  amai­o  como  a  vós  mesmos,  pois  já  sabeis, agora, que, repelindo um desgraçado, estareis, quiçá, afastando de vós um  irmão, um pai, um amigo vosso de outrora. Se assim for, de que desespero não vos  sentireis presa, ao reconhecê­lo no mundo dos Espíritos!  Desejo compreendais bem o que seja a caridade moral, que todos podem  praticar,  que  nada  custa,  materialmente  falando,  porém,  que  é  a  mais  difícil  de  exercer­se.  A caridade moral consiste em se suportarem umas às outras as criaturas e é  o que menos fazeis nesse mundo inferior, onde vos achais, por agora, encarnados.  Grande mérito há, crede­me, em um homem saber calar­se, deixando fale outro mais  tolo do que ele. É um gênero de caridade isso. Saber ser surdo quando uma palavra  zombeteira  se  escapa  de  uma  boca  habituada  a  escarnecer;  não  ver  o  sorriso  de  desdém com que vos recebem pessoas que, muitas vezes  erradamente, se supõem  acima de vós, quando na vida espírita, a única real, estão, não raro, muito abaixo,  constitui  merecimento, não  do  ponto  de  vista  da humildade,  mas  do  da  caridade,  porquanto não dar atenção ao mau proceder de outrem é caridade moral.
  • 138. 138 – Allan Kardec  Essa caridade, no entanto, não deve obstar à outra. Tende, porém, cuidado,  principalmente  em  não  tratar  com  desprezo  o  vosso  semelhante.  Lembrai­vos  de  tudo o que já vos tenho dito: Tende presente sempre que, repelindo um pobre, talvez  repilais um Espírito que vos  foi caro e que, no momento, se encontra em posição  inferior à vossa. Encontrei aqui um dos pobres da Terra, a quem, por felicidade, eu  pudera  auxiliar  algumas  vezes,  e  ao  qual,  a  meu  turno, tenho agora de implorar  auxílio.  Lembrai­vos de que Jesus disse que todos somos irmãos e pensai sempre  nisso, antes de repelirdes o leproso ou o mendigo. Adeus: pensai nos que sofrem e  orai. – Irmã Rosália. (Paris, 1860)  10.  Meus  amigos,  a  muitos  dentre  vós  tenho  ouvido  dizer:  Como  hei  de  fazer  caridade, se amiúde nem mesmo do necessário disponho?  Amigos, de mil maneiras se faz a caridade. Podeis fazê­la por pensamentos,  por palavras e por ações. Por pensamentos, orando pelos pobres abandonados, que  morreram sem se acharem sequer em condições de  ver a luz. Uma prece feita de  coração  os  alivia.  Por palavras,  dando  aos  vossos  companheiros  de  todos  os  dias  alguns bons conselhos, dizendo aos que o desespero, as privações azedaram o ânimo  e levaram a blasfemar do nome do Altíssimo: “Eu era como sois; sofria, sentia­me  desgraçado, mas acreditei no Espiritismo e, vede, agora, sou feliz.” Aos velhos que  vos disserem: “É inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei como vivi”, dizei:  “Deus usa de justiça igual para com todos nós; lembrai­vos dos obreiros da última  hora.” Às crianças já viciadas pelas companhias de que se cercaram e que vão pelo  mundo,  prestes  a  sucumbir  às  más  tentações,  dizei:  “Deus  vos  vê,  meus  caros  pequenos”, e não vos canseis de lhes repetir essas brandas palavras. Elas acabarão  por lhes germinar nas inteligências infantis e, em vez de vagabundos, fareis deles  homens. Também isso é caridade.  Dizem, outros dentre vós: “Ora! somos tão numerosos na Terra, que Deus  não nos pode ver a todos.” Escutai bem isto, meus amigos: Quando estais no cume  da montanha, não abrangeis com o olhar os bilhões de grãos de areia que a cobrem?  Pois bem: do mesmo modo vos vê Deus. Ele vos deixa usar do vosso livre­arbítrio,  como  vós  deixais  que  esses  grãos  de  areia  se  movam  ao  sabor  do  vento  que  os  dispersa. Apenas, Deus, em sua misericórdia infinita, vos pôs no fundo do coração  uma  sentinela  vigilante,  que  se  chama  consciência.  Escutai­a,  que  somente  bons  conselhos ela vos dará. Às vezes, conseguis entorpecê­la, opondo­lhe o espírito do  mal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre escorraçada se fará ouvir,  logo que lhe deixardes aperceber­se da sombra do remorso. Ouvi­a, interrogai­a e  com  freqüência  vos  achareis  consolados  com  o  conselho  que  dela  houverdes  recebido.  Meus amigos, a cada regimento novo o general entrega um estandarte. Eu  vos dou por divisa esta máxima do Cristo: “Amai­vos uns aos outros.” Observai esse  preceito, reuni­vos todos em torno dessa bandeira e tereis ventura e consolação. –  Um Espírito protetor. (Lião, 1860)
  • 139. 139 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  A BENEFICÊNCIA  11. A beneficência, meus amigos, dar­vos­á nesse mundo os mais puros e suaves  deleites, as alegrias do coração, que nem o remorso, nem a indiferença perturbam.  Oh!  Pudésseis  compreender  tudo  o  que  de  grande  e  de  agradável  encerra  a  generosidade das almas belas, sentimento que faz olhe a criatura as outras como olha  a si mesma, e se dispa, jubilosa, para vestir o seu irmão! Pudésseis, meus amigos, ter  por única ocupação tornar felizes os outros! Quais as festas mundanas que podereis  comparar  às  que  celebrais  quando,  como  representantes  da  Divindade,  levais  a  alegria a essas famílias que da vida apenas conhecem as vicissitudes e as amarguras,  quando vedes nelas os semblantes macerados refulgirem subitamente de esperança,  porque, faltos de pão, os desgraçados ouviam seus filhinhos, ignorantes de que viver  é sofrer, gritando repetidamente, a chorar, estas palavras, que, como agudo punhal,  se lhes enterravam nos corações maternos: “Estou com fome!...” Oh! Compreendei  quão deliciosas são as impressões que recebe aquele que vê renascer a alegria onde,  um momento antes, só havia desespero! Compreendei as obrigações que tendes para  com os vossos irmãos! Ide, ide ao encontro do infortúnio; ide em socorro, sobretudo,  das misérias ocultas, por serem as mais dolorosas! Ide, meus bem­amados, e tende  em mente estas palavras do Salvador: “Quando vestirdes a um destes pequeninos,  lembrai­vos de que é a mim que o fazeis!” Caridade! Sublime palavra que sintetiza  todas  as  virtudes,  és  tu  que hás  de  conduzir  os  povos  à  felicidade.  Praticando­te,  criarão  eles  para  si  infinitos  gozos  no  futuro  e,  enquanto  se  acharem  exilados  na  Terra, tu lhes serás a consolação, o prelibar das alegrias de que fruirão mais tarde,  quando se encontrarem reunidos no seio do Deus de amor. Foste tu, virtude divina,  que me proporcionaste os únicos momentos de satisfação de que gozei na Terra. Que  os meus irmãos encarnados creiam na palavra do amigo que lhes fala, dizendo­lhes:  É na caridade que deveis procurar a paz do coração, o  contentamento da alma, o  remédio para as aflições da vida. Oh! Quando estiverdes a ponto de acusar a Deus,  lançai um olhar para baixo de  vós;  vede que de misérias a aliviar, que de pobres  crianças sem família, que de velhos sem qualquer mão amiga que os ampare e lhes  feche  os  olhos  quando  a  morte  os  reclame!  Quanto  bem  a  fazer!  Oh!  Não  vos  queixeis; ao contrário, agradecei a Deus e prodigalizai a mancheias a vossa simpatia,  o vosso amor, o vosso dinheiro por todos os que, deserdados dos bens desse mundo,  enlanguescem na dor e no insulamento! Colhereis nesse mundo bem doces alegrias  e, mais tarde... Só Deus o sabe!... – Adolfo, bispo de Argel. (Bordéus, 1861)  12. Sede bons e caridosos: essa a chave dos céus, chave que tendes em vossas mãos.  Toda a eterna felicidade se contém neste preceito: “Amai­vos uns aos outros.” Não  pode  a  alma  elevar­se  às  altas  regiões  espirituais,  senão  pelo  devotamento  ao  próximo; somente nos arroubos da caridade encontra ela ventura e consolação. Sede  bons,  amparai  os  vossos  irmãos,  deixai  de  lado  a  horrenda  chaga  do  egoísmo.  Cumprido  esse  dever,  abrir­se­vos­á  o  caminho  da  felicidade  eterna.  Ao  demais,  qual  dentre  vós  ainda  não  sentiu  o  coração  pulsar  de  júbilo,  de  íntima  alegria,  à  narrativa de um ato de bela dedicação, de uma obra verdadeiramente caridosa? Se  unicamente buscásseis a volúpia que uma ação boa proporciona, conservar­vos­íeis  sempre na senda do progresso espiritual. Não vos faltam os exemplos; rara é apenas
  • 140. 140 – Allan Kardec  a  boa  vontade.  Notai  que  a  vossa  história  guarda  piedosa  lembrança  de  uma  multidão de homens de bem.  Não vos disse Jesus tudo o que concerne às virtudes da caridade e do amor?  Por que desprezar os seus ensinamentos divinos? Por que fechar o ouvido às suas  divinas  palavras,  o  coração  a  todos  os  seus  bondosos  preceitos?  Quisera  eu  que  dispensassem  mais  interesse,  mais  fé  às  leituras  evangélicas.  Desprezam,  porém,  esse livro, consideram­no repositório de palavras ocas, uma carta fechada; deixam  no esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm todos do abandono  voluntário a que votais esse resumo das leis divinas. Lede­lhe as páginas cintilantes  do devotamento de Jesus, e meditai­as.  Homens  fortes,  armai­vos;  homens  fracos,  fazei  da  vossa  brandura,  da  vossa fé, as vossas armas. Sede mais persuasivos, mais constantes na propagação da  vossa nova doutrina. Apenas encorajamento é o que vos vimos dar; apenas para vos  estimularmos  o  zelo  e  as  virtudes  é  que  Deus  permite  nos  manifestemos  a  vós  outros.  Mas,  se  cada  um  o  quisesse,  bastaria  a  sua  própria  vontade  e  a  ajuda  de  Deus; as manifestações espíritas unicamente se produzem para os de olhos fechados  e corações indóceis.  A caridade é a virtude fundamental sobre que há de repousar todo o edifício  das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem a caridade não há esperar  melhor sorte, não há interesse moral que nos guie; sem a caridade não há fé, pois a  fé não é mais do que pura luminosidade que torna brilhante uma alma caridosa.  A caridade é, em todos os mundos, a eterna âncora de salvação; é a mais  pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, dada por ele à criatura.  Como  desprezar  essa  bondade  suprema?  Qual  o  coração,  disso  ciente,  bastante  perverso para recalcar em si e expulsar esse sentimento todo divino? Qual o filho  bastante mau para se rebelar contra essa doce carícia: a caridade?  Não ouso falar do que fiz, porque também os Espíritos têm o pudor de suas  obras; considero, porém, a que iniciei como uma das que mais hão de contribuir para  o alívio dos vossos semelhantes. Vejo com freqüência os Espíritos a pedirem lhes  seja  dado,  por  missão,  continuar  a  minha  tarefa.  Vejo­os,  minhas  bondosas  e  queridas irmãs, no piedoso e divino ministério; vejo­os praticando a virtude que vos  recomendo,  com  todo  o  júbilo  que  deriva  de  uma  existência  de  dedicação  e  sacrifícios.  Imensa  dita  é  a  minha,  por  ver  quanto  lhes  honra  o  caráter,  quão  estimada e protegida é a missão que desempenham. Homens de bem, de boa e firme  vontade, uni­vos para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; no  exercício  mesmo  dessa  virtude,  encontrareis  a  vossa  recompensa;  não  há  alegria  espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Sede unidos, amai­vos uns  aos outros, segundo os preceitos do Cristo. Assim seja. – S. Vicente de Paulo. (Paris,  1858)  13.  Chamo­me  Caridade;  sigo  o  caminho  principal  que  conduz  a  Deus.  Acompanhai­me, pois conheço a meta a que deveis todos visar.  Dei esta manhã o meu giro habitual e, com o coração amargurado, venho  dizer­vos:  Oh!  Meus  amigos,  que  de  misérias,  que  de  lágrimas,  quanto  tendes  de  fazer para secá­las todas! Em vão, procurei consolar algumas pobres mães, dizendo­  lhes  ao  ouvido:  Coragem!  Há  corações  bons  que  velam  por  vós;  não  sereis
  • 141. 141 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  abandonadas;  paciência!  Deus  lá  está;  sois  dele  amadas,  sois  suas  eleitas.  Elas  pareciam ouvir­me e volviam para o meu lado os olhos arregalados de espanto; eu  lhes lia no semblante que seus corpos, tiranos do Espírito, tinham fome e que, se é  certo  que  minhas  palavras  lhes  serenavam  um  pouco  os  corações,  não  lhes  reconfortavam os estômagos. Repetia­lhes: Coragem! Coragem! Então, uma pobre  mãe, ainda muito moça, que amamentava uma criancinha, tomou­a nos braços e a  estendeu no espaço vazio, como a pedir­me que protegesse aquele entezinho que só  encontrava, num seio estéril, insuficiente alimentação.  Alhures vi, meus amigos, pobres velhos sem trabalho e, em conseqüência,  sem  abrigo,  presas  de  todos  os  sofrimentos  da  penúria  e,  envergonhados  de  sua  miséria,  sem  ousarem,  eles  que  nunca  mendigaram,  implorar  a  piedade  dos  transeuntes.  Com  o  coração  túmido  de  compaixão,  eu,  que  nada  tenho,  me  fiz  mendiga para eles e vou, por toda a parte, estimular a beneficência, inspirar bons  pensamentos  aos  corações  generosos  e  compassivos.  Por  isso  é  que  aqui  venho,  meus amigos, e vos digo: Há por aí desgraçados, em cujas choupanas falta o pão, os  fogões  se  acham  sem  lume  e  os  leitos  sem  cobertas.  Não  vos  digo  o  que  deveis  fazer;  deixo  aos  vossos  bons  corações  a  iniciativa.  Se  eu  vos  ditasse  o  proceder,  nenhum mérito vos traria a vossa boa ação. Digo­vos apenas: Sou a caridade e vos  estendo as mãos pelos vossos irmãos que sofrem.  Mas,  se  peço,  também  dou  e  dou  muito.  Convido­vos  para  um  grande  banquete e forneço a árvore onde todos vos saciareis! Vede quanto é bela, como está  carregada  de  flores  e  de  frutos!  Ide,  ide,  colhei,  apanhai  todos  os  frutos  dessa  magnificente  árvore  que  se  chama  a  beneficência.  No  lugar  dos  ramos  que  lhe  tirardes, atarei todas as boas ações que praticardes e levarei a árvore a Deus, que a  carregará de novo, porquanto a beneficência é inexaurível. Acompanhai­me, pois,  meus  amigos,  a  fim  de  que  eu  vos  conte  entre  os  que  se  arrolam  sob  a  minha  bandeira. Nada temais; eu vos conduzirei pelo caminho da salvação, porque sou – a  Caridade. – Cárita, martirizada em Roma. (Lião, 1861)  14.  Várias  maneiras há  de  fazer­se  a  caridade, que  muitos  dentre  vós  confundem  com a esmola. Diferença grande vai, no entanto, de uma para outra. A esmola, meus  amigos,  é  algumas  vezes  útil,  porque  dá  alívio  aos  pobres;  mas  é  quase  sempre  humilhante,  tanto  para  o  que  a  dá,  como  para  o  que  a  recebe.  A  caridade,  ao  contrário, liga o benfeitor ao beneficiado e se disfarça de tantos modos! Pode­se ser  caridoso, mesmo com os parentes e com os amigos, sendo uns indulgentes para com  os  outros,  perdoando­se  mutuamente  as  fraquezas,  cuidando  não  ferir  o  amor­  próprio de ninguém. Vós, espíritas, podeis sê­lo na vossa maneira de proceder para  com os que não pensam como vós, induzindo os menos esclarecidos a crer, mas sem  os chocar, sem investir contra as suas convicções e, sim, atraindo­os amavelmente às  nossas  reuniões,  onde  poderão  ouvir­nos  e  onde  saberemos  descobrir  nos  seus  corações a brecha para neles penetrarmos. Eis aí um dos aspectos da caridade.  Escutai agora o que é a caridade para com os pobres, os deserdados deste  mundo, mas recompensados de Deus, se aceitam sem queixumes as suas misérias, o  que de vós depende. Far­me­ei compreender por um exemplo.  Vejo, várias vezes, cada semana, uma reunião de senhoras, havendo­as de  todas  as  idades.  Para  nós,  como  sabeis,  são  todas  irmãs.  Que  fazem?  Trabalham
  • 142. 142 – Allan Kardec  depressa,  muito  depressa;  têm  ágeis  os  dedos.  Vede  como  trazem  alegres  os  semblantes  e  como  lhes  batem  em  uníssono  os  corações.  Mas,  com  que  fim  trabalham? É que vêem aproximar­se o inverno que será rude para os lares pobres.  As formigas não puderam juntar durante o estio as provisões necessárias e a maior  parte de suas utilidades está empenhada. As pobres mães  se inquietam e choram,  pensando nos filhinhos que, durante a estação invernosa, sentirão frio e fome! Tende  paciência, infortunadas mulheres. Deus inspirou a outras mais aquinhoadas do que  vós;  elas  se  reuniram  e  estão  confeccionando  roupinhas;  depois,  um  destes  dias,  quando a terra se achar coberta de neve e vós vos lamentardes, dizendo: “Deus não é  justo”, que é o que vos sai dos lábios sempre que sofreis, vereis surgir a filha de uma  dessas boas trabalhadoras que se constituíram obreiras dos pobres, pois que é para  vós que elas trabalham assim, e os vossos lamentos se mudarão em bênçãos, dado  que no coração dos infelizes o amor acompanha de bem perto o ódio.  Como essas trabalhadoras precisam de encorajamento, vejo chegarem­lhes  de todos os lados as comunicações dos bons Espíritos. Os homens que fazem parte  dessa sociedade lhes trazem também seu concurso, fazendo­lhes uma dessas leituras  que agradam tanto. E nós, para recompensarmos o zelo de todos e de cada um em  particular, prometemos às laboriosas obreiras boa clientela, que lhes pagará à vista,  em bênçãos, única moeda que tem curso no Céu, garantindo­lhes, além disso, sem  receio de errar, que essa moeda não lhes faltará. – Cárita. (Lião, 1861)  15. Meus caros amigos, todos os dias ouço entre vós dizerem: “Sou pobre, não posso  fazer  a  caridade”,  e  todos  os  dias  vejo  que  faltais  com  a  indulgência  aos  vossos  semelhantes. Nada lhes perdoais e vos arvorais em juízes muitas vezes severos, sem  quererdes saber se ficaríeis satisfeitos que do mesmo modo procedessem convosco.  Não  é  também  caridade  a  indulgência?  Vós,  que  apenas  podeis  fazer  a  caridade  praticando  a  indulgência,  fazei­a  assim,  mas  fazei­a  largamente.  Pelo  que  toca  à  caridade material, vou contar­vos uma história do outro mundo.  Dois  homens  acabavam  de  morrer.  Dissera  Deus:  Enquanto  esses  dois  homens viverem, deitar­se­ão em sacos diferentes as boas ações de cada um deles,  para  que  por  ocasião  de  sua  morte  sejam  pesadas.  Quando  ambos  chegaram  aos  últimos  momentos,  mandou  Deus  que  lhe  trouxessem  os  dois  sacos.  Um  estava  cheio,  volumoso,  atochado,  e  nele  ressoava  o  metal  que  o  enchia;  o  outro  era  pequenino e tão vazio que se podiam contar as moedas que continha. Este o meu,  disse um, reconheço­o; fui rico e dei muito. Este o meu, disse o outro, sempre fui  pobre, oh! Quase nada tinha para repartir. Mas, oh! Surpresa! Postos na balança os  dois sacos, o mais volumoso se revelou leve, mostrando­se pesado o outro, tanto que  fez  se  elevasse  muito  o  primeiro no  prato  da  balança.  Deus,  então,  disse ao  rico:  deste muito, é certo, mas deste por ostentação e para que o teu nome figurasse em  todos  os templos do  orgulho e, ao demais, dando, de nada te privaste. Vai para a  esquerda  e  fica  satisfeito  com  o  te  serem  as  tuas  esmolas  contadas  por  qualquer  coisa.  Depois,  disse  ao  pobre:  Tu  deste  pouco,  meu  amigo;  mas,  cada  uma  das  moedas que estão nesta balança representa uma privação que te impuseste; não deste  esmolas,  entretanto,  praticaste  a  caridade,  e,  o  que  vale  muito  mais,  fizeste  a  caridade  naturalmente,  sem  cogitar  de  que  te  fosse  levada  em  conta;  foste  indulgente; não  te  constituíste  juiz  do  teu  semelhante; ao  contrário, todas  as  suas
  • 143. 143 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  ações lhe relevaste: passa à direita e vai receber a tua recompensa. – Um Espírito  protetor. (Lião, 1861)  16. A mulher rica, venturosa, que não precisa empregar o tempo nos trabalhos de  sua  casa,  não  poderá  consagrar  algumas  horas  a  trabalhos  úteis  aos  seus  semelhantes?  Compre,  com  o  que  lhe  sobre  dos  prazeres,  agasalhos  para  o  desgraçado  que  tirita  de  frio;  confeccione,  com  suas  mãos  delicadas,  roupas  grosseiras, mas quentes; auxilie uma mãe a cobrir o filho que vai nascer. Se por isso  seu  filho  ficar  com  algumas  rendas  de  menos,  o  do  pobre  terá  mais  com  que  se  aqueça. Trabalhar para os pobres é trabalhar na vinha do Senhor.  E tu, pobre operária, que não tens supérfluo, mas que, cheia de amor aos  teus irmãos, também queres dar do pouco com que contas, dá algumas horas do teu  dia, do teu tempo, único tesouro que possuis; faze alguns desses trabalhos elegantes  que tentam os felizes; vende o produto dos teus serões e poderás igualmente oferecer  aos teus irmãos a tua parte de auxílios. Terás, talvez, algumas fitas de menos; darás,  porém, calçado a um que anda descalço.  E vós, mulheres que  vos  votastes a Deus, trabalhai também na sua obra;  mas, que os vossos trabalhos não sejam unicamente para adornar as vossas capelas,  para  chamar  a  atenção  sobre  a  vossa  habilidade  e  paciência.  Trabalhai,  minhas  filhas, e que o produto de vossas obras se destine a socorrer os vossos irmãos em  Deus.  Os  pobres  são  seus  filhos  bem­amados;  trabalhar  para  eles  é  glorificá­lo.  Sede­lhes  a  providência  que  diz:  “Aos  pássaros  do  céu  dá  Deus  o  alimento.”  Mudem­se o ouro e a prata que se tecem nas vossas mãos em roupas e alimentos  para os que não os têm. Fazei isto e abençoado será o vosso trabalho.  Todos  vós,  que  podeis  produzir,  dai;  dai  o  vosso  gênio,  dai  as  vossas  inspirações, dai o vosso coração, que Deus vos abençoará. Poetas, literatos, que só  pela gente mundana sois lidos!... Satisfazei­lhe aos lazeres, mas consagrai o produto  de algumas de vossas obras a socorros aos desgraçados. Pintores, escultores, artistas  de todos os gêneros!... Venha também a vossa inteligência em auxílio dos vossos  irmãos;  não  será  por  isso  menor  a  vossa  glória  e  alguns  sofrimentos  haverá  de  menos.  Todos  vós  podeis  dar.  Qualquer  que  seja  a  classe  a  que  pertençais,  de  alguma  coisa  dispondes  que  podeis  dividir.  Seja  o  que  for  que  Deus  vos  haja  outorgado, uma parte do que ele vos deu deveis àquele que carece do necessário,  porquanto, em seu lugar, muito gostaríeis que outro dividisse convosco. Os vossos  tesouros  da  Terra  serão  um  pouco  menores;  contudo,  os  vossos  tesouros  do  céu  ficarão  acrescidos.  Lá  colhereis  pelo  cêntuplo  o  que  houverdes  semeado  em  benefícios neste mundo. – João. (Bordéus, 1861)  A PIEDADE  17. A piedade é a virtude que mais vos aproxima dos anjos; é a irmã da caridade,  que  vos  conduz  a  Deus.  Ah!  Deixai  que  o  vosso  coração  se  enterneça  ante  o  espetáculo das misérias e dos sofrimentos dos vossos semelhantes. Vossas lágrimas  são  um  bálsamo  que  lhes  derramais nas  feridas  e,  quando,  por  bondosa  simpatia,
  • 144. 144 – Allan Kardec  chegais  a  lhes  proporcionar  a  esperança  e  a  resignação,  que  encanto  não  experimentais! Tem um certo amargor, é certo, esse encanto, porque nasce ao lado  da desgraça; mas, não tendo o sabor acre dos gozos mundanos, também não traz as  pungentes  decepções  do  vazio  que  estes  últimos  deixam  após  si.  Envolve­o  penetrante suavidade que enche de júbilo a alma. A piedade, a piedade bem sentida é  amor; amor é devotamento; devotamento é o olvido de si mesmo e esse olvido, essa  abnegação em favor dos desgraçados, é a virtude por excelência, a que em toda a sua  vida praticou o divino Messias e ensinou na sua doutrina tão santa e tão sublime.  Quando  esta  doutrina  for  restabelecida  na  sua  pureza  primitiva,  quando  todos os povos se lhe submeterem, ela tornará feliz a Terra, fazendo que reinem aí a  concórdia, a paz e o amor.  O sentimento mais apropriado a fazer que progridais, domando em vós  o  egoísmo e o orgulho, aquele que dispõe vossa alma à humildade, à beneficência e ao  amor do próximo, é a piedade! Piedade que vos comove até às entranhas à vista dos  sofrimentos de vossos irmãos, que vos impele a lhes estender a mão para socorrê­los  e  vos  arranca lágrimas  de  simpatia.  Nunca,  portanto, abafeis  nos  vossos  corações  essas  emoções  celestes;  não  procedais  como  esses  egoístas  endurecidos  que  se  afastam  dos  aflitos,  porque  o  espetáculo  de  suas  misérias  lhes  perturbaria  por  instantes a existência álacre. Temei conservar­vos indiferentes, quando puderdes ser  úteis. A tranqüilidade comprada à custa de uma indiferença culposa é a tranqüilidade  do mar Morto, no fundo de cujas águas se escondem a vasa fétida e a corrupção.  Quão longe, no entanto, se acha a piedade de causar o distúrbio e o aborrecimento de  que se arreceia o egoísta! Sem dúvida, ao contacto da desgraça de outrem, a alma,  voltando­se para si mesma, experimenta um confrangimento natural e profundo, que  põe  em  vibração  todo  o  ser  e  o  abala  penosamente.  Grande,  porém,  é  a  compensação, quando chegais a dar coragem e esperança a um irmão infeliz que se  enternece ao aperto de uma mão amiga e cujo olhar, úmido, por vezes, de emoção e  de  reconhecimento,  para  vós  se  dirige  docemente,  antes  de  se  fixar  no  Céu  em  agradecimento  por  lhe  ter  enviado  um  consolador,  um  amparo.  A  piedade  é  o  melancólico, mas celeste precursor da caridade, primeira das virtudes que a tem por  irmã e cujos benefícios ela prepara e enobrece. – Miguel. (Bordéus, 1862)  OS ÓRFÃOS  18. Meus irmãos, amai os órfãos. Se soubésseis quanto é triste ser só e abandonado,  sobretudo na infância! Deus permite que haja órfãos, para exortar­nos a servir­lhes  de pais. Que divina caridade amparar uma pobre criaturinha abandonada, evitar que  sofra fome e frio, dirigir­lhe a alma, a fim de que não desgarre para o vício! Agrada  a  Deus  quem  estende  a  mão  a  uma  criança  abandonada,  porque  compreende  e  pratica a sua lei. Ponderai também que muitas vezes a criança que socorreis vos foi  cara  noutra  encarnação,  caso  em  que,  se  pudésseis  lembrar­vos,  já  não  estaríeis  praticando a caridade, mas cumprindo um dever. Assim, pois, meus amigos, todo  sofredor é vosso irmão e tem direito à vossa caridade; não, porém, a essa caridade  que  magoa  o  coração,  não  a  essa  esmola  que  queima  a  mão  em  que  cai,  pois  freqüentemente  bem  amargos  são  os  vossos  óbolos!  Quantas  vezes  seriam  eles
  • 145. 145 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  recusados, se na choupana a enfermidade e a miséria não os estivessem esperando!  Daí  delicadamente,  juntai  ao  benefício  que  fizerdes  o  mais  precioso  de  todos  os  benefícios:  o de uma boa palavra, de uma carícia, de um sorriso amistoso. Evitai  esse  ar  de  proteção,  que  equivale  a  revolver  a  lâmina  no  coração  que  sangra  e  considerai  que,  fazendo  o  bem,  trabalhais  por  vós  mesmos  e  pelos  vossos.  – Um  Espírito familiar. (Paris, 1860)  BENEFÍCIOS PAGOS COM A INGRATIDÃO  19. Que se deve pensar dos que, recebendo a ingratidão em paga de benefícios que  fizeram, deixam de praticar o bem para não topar com os ingratos?  Nesses, há mais egoísmo do que caridade, visto que fazer o  bem, apenas  para receber demonstrações de reconhecimento, é não o fazer com desinteresse, e o  bem, feito desinteressadamente, é o único agradável a Deus. Há também orgulho,  porquanto  os  que  assim  procedem  se  comprazem  na  humildade  com  que  o  beneficiado lhes vem depor aos pés o testemunho do seu reconhecimento. Aquele  que procura, na Terra, recompensa ao bem que pratica não a receberá no céu. Deus,  entretanto, terá em apreço aquele que não a busca no mundo.  Deveis sempre ajudar os fracos, embora sabendo de antemão que os a quem  fizerdes o bem não vo­lo agradecerão. Ficai certos de que, se aquele a quem prestais  um serviço o esquece, Deus o levará mais em conta do que se com a sua gratidão o  beneficiado  vo­lo  houvesse  pago. Se Deus permite por vezes sejais pagos com a  ingratidão, é para experimentar a vossa perseverança em praticar o bem.  E  sabeis,  porventura,  se  o  benefício  momentaneamente  esquecido  não  produzirá  mais  tarde  bons  frutos?  Tende  a  certeza  de  que,  ao  contrário,  é  uma  semente que com o tempo germinará. Infelizmente, nunca vedes senão o presente;  trabalhais para vós e não pelos outros. Os benefícios acabam por abrandar os mais  empedernidos  corações;  podem  ser  olvidados  neste  mundo,  mas,  quando  se  desembaraçar do seu envoltório carnal, o Espírito que os recebeu se lembrará deles e  essa  lembrança  será  o  seu  castigo.  Deplorará  a  sua  ingratidão;  desejará reparar  a  falta, pagar a dívida noutra existência, não raro buscando uma vida de dedicação ao  seu benfeitor. Assim, sem o suspeitardes, tereis contribuído para o seu adiantamento  moral e vireis a reconhecer a exatidão desta máxima: um benefício jamais se perde.  Além  disso,  também  por  vós  mesmos  tereis  trabalhado,  porquanto  granjeareis  o  mérito  de  haver  feito  o  bem  desinteressadamente  e  sem  que  as  decepções  vos  desanimassem.  Ah! Meus amigos, se conhecêsseis todos os laços que prendem a vossa vida  atual  às  vossas  existências  anteriores;  se  pudésseis  apanhar num  golpe  de  vista  a  imensidade  das  relações  que  ligam  uns  aos  outros  os  seres,  para  o  efeito  de  um  progresso mútuo, admiraríeis muito mais a sabedoria e a bondade do Criador, que  vos concede reviver para chegardes a ele. – Guia protetor. (Sens, 1862)  BENEFICÊNCIA EXCLUSIVA  20. É acertada a beneficência, quando praticada exclusivamente entre pessoas da  mesma opinião, da mesma crença, ou do mesmo partido?
  • 146. 146 – Allan Kardec  Não, porquanto precisamente o espírito de seita e de partido é que precisa  ser abolido, visto que são irmãos todos os homens. O verdadeiro cristão vê somente  irmãos em seus semelhantes e não procura saber, antes de socorrer o necessitado,  qual  a  sua  crença,  ou  a  sua  opinião,  seja  sobre  o  que  for.  Obedeceria  o  cristão,  porventura, ao  preceito  de  Jesus  Cristo,  segundo  o  qual  devemos  amar  os  nossos  inimigos,  se  repelisse  o  desgraçado,  por  professar  uma  crença  diferente  da  sua?  Socorra­o, portanto, sem lhe pedir contas à consciência, pois, se for um inimigo da  religião,  esse  será  o  meio  de  conseguir  que  ele  a  ame;  repelindo­o,  faria  que  a  odiasse. – S. Luís. (Paris, 1860)
  • 147. 147 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XIV  HONRAI O VOSSO PAI E A VOSSA MÃE ·  PIEDADE FILIAL ·  QUEM É MINHA MÃE E QUEM SÃO MEUS IRMÃOS? ·  PARENTELA CORPÓREA E PARENTELA ESPIRITUAL  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A INGRATIDÃO DOS FILHOS E OS LAÇOS DE FAMÍLIA  1. “ Sabeis os mandamentos: não cometereis adultério; não matareis; não  roubareis;  não  prestareis falso­testemunho;  não fareis  agravo  a  ninguém;  honrai a vosso pai e a vossa mãe”.  (MARCOS,10:19; LUCAS, 18:20; MATEUS, 19:18­19)  2. “ Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na  terra que o Senhor vosso Deus vos dará”.  (Êxodo, 20:12)  PIEDADE FILIAL  3. O mandamento: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe” é um corolário da lei geral de  caridade e de amor ao próximo, visto que não pode amar o seu próximo aquele que  não ama a seu pai e a sua mãe; mas, o termo honrai encerra um dever a mais para  com  eles:  o  da  piedade  filial.  Quis  Deus  mostrar  por  essa  forma  que  ao  amor  se  devem  juntar  o  respeito,  as  atenções,  a  submissão  e  a  condescendência,  o  que  envolve a obrigação de cumprir­se para com eles, de modo ainda mais rigoroso, tudo  o que a caridade ordena relativamente ao próximo em geral. Esse dever se estende
  • 148. 148 – Allan Kardec  naturalmente às pessoas que fazem as vezes de pai e de mãe, as quais tanto maior  mérito têm, quanto menos obrigatório é para elas o devotamento. Deus pune sempre  com rigor toda violação desse mandamento.  Honrar  a  seu  pai  e  a  sua  mãe,  não  consiste  apenas  em  respeitá­los;  é  também assisti­los na necessidade; é proporcionar­lhes repouso na velhice; é cercá­  los de cuidados como eles fizeram conosco, na infância.  Sobretudo para com os pais sem recursos é que se demonstra a verdadeira  piedade  filial.  Obedecem  a  esse  mandamento  os  que  julgam  fazer  grande  coisa  porque  dão  a  seus  pais  o  estritamente  necessário  para  não  morrerem  de  fome,  enquanto eles de nada se privam, atirando­os para os cômodos mais ínfimos da casa,  apenas por não os deixarem na rua, reservando para si o que há de melhor, de mais  confortável?  Ainda  bem  quando não  o  fazem  de  má  vontade  e  não  os  obrigam a  comprar caro o que lhes resta a viver, descarregando sobre eles o peso do governo  da casa! Será então aos pais velhos e fracos que cabe servir a filhos jovens e fortes?  Ter­lhes­á a mãe vendido o leite, quando os amamentava? Contou porventura suas  vigílias, quando eles estavam doentes, os passos que deram para lhes obter o de que  necessitavam?  Não,  os  filhos  não  devem  a  seus  pais  pobres  só  o  estritamente  necessário,  devem­lhes  também,  na  medida  do  que  puderem,  os  pequenos  nadas  supérfluos,  as  solicitudes,  os  cuidados  amáveis,  que  são  apenas  o  juro  do  que  receberam, o pagamento de uma dívida sagrada. Unicamente essa é a piedade filial  grata a Deus.  Ai,  pois,  daquele  que  olvida  o  que  deve  aos  que  o  ampararam  em  sua  fraqueza,  que  com  a  vida  material  lhe  deram  a  vida  moral,  que  muitas  vezes  se  impuseram duras privações para lhe garantir o bem­estar. Ai do ingrato: será punido  com a ingratidão e o abandono; será ferido nas suas mais caras afeições, algumas  vezes já na existência atual, mas com certeza noutra, em que sofrerá o que houver  feito aos outros.  Alguns pais, é certo, descuram de seus deveres e não são para os filhos o  que  deviam  ser;  mas,  a  Deus  é  que  compete  puni­los  e  não  a  seus  filhos.  Não  compete  a  estes  censurá­los,  porque  talvez  hajam  merecido  que  aqueles  fossem  quais se mostram. Se a lei da caridade manda se pague o mal com o bem, se seja  indulgente  para  as  imperfeições  de  outrem,  se  não  diga  mal  do  próximo,  se  lhe  esqueçam e perdoem os agravos, se ame até os inimigos, quão maiores não hão de  ser essas obrigações, em se tratando de  filhos para com os pais! Devem, pois, os  filhos tomar como regra de conduta para com seus pais todos os preceitos de Jesus  concernentes  ao  próximo  e  ter  presente  que  todo  procedimento  censurável,  com  relação aos estranhos, ainda mais censurável se torna relativamente aos pais; e que o  que talvez não passe de simples falta, no primeiro caso, pode ser considerado um  crime, no segundo, porque, aqui, à falta de caridade se junta a ingratidão.  4. Deus disse: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na  terra que o Senhor vosso Deus vos dará.” Por que promete ele como recompensa a  vida na Terra e não a vida celeste? A explicação se encontra nestas palavras: “que  Deus vos dará”, as quais, suprimidas na moderna fórmula do Decálogo, lhe alteram  o sentido. Para compreendermos aqueles dizeres, temos de nos reportar à situação e  às idéias dos hebreus naquela época. Eles ainda nada sabiam da vida futura, não lhes
  • 149. 149 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  indo a visão além da vida corpórea. Tinham, pois, de ser impressionados mais pelo  que viam, do que pelo que não viam. Fala­lhes Deus então numa linguagem que lhes  estava mais ao alcance e, como se se dirigisse a crianças, põe­lhes em perspectiva o  que os pode satisfazer. Achavam­se eles ainda no deserto; a terra que Deus lhes dará  é a Terra da Promissão, objetivo das suas aspirações. Nada mais desejavam do que  isso; Deus lhes diz que viverão nela longo tempo, isto é, que a possuirão por longo  tempo, se observarem seus mandamentos.  Mas, ao verificar­se o advento de Jesus, já eles tinham mais desenvolvidas  suas idéias. Chegada a ocasião de receberem alimentação menos grosseira, o mesmo  Jesus os inicia na vida espiritual, dizendo: “Meu reino não é deste mundo; lá, e não  na Terra, é que recebereis a recompensa das vossas boas obras.” A estas palavras, a  Terra  Prometida  deixa  de  ser material,  transformando­se  numa  pátria  celeste.  Por  isso, quando os chama à observância daquele mandamento: “Honrai a vosso pai e a  vossa mãe”, já não é a Terra que lhes promete e sim o céu. (Caps. II e III)  QUEM É MINHA MÃE E QUEM SÃO MEUS IRMÃOS?  5. E, tendo vindo para casa, reuniu­se aí tão grande multidão de gente, que  eles nem sequer podiam fazer sua refeição. Sabendo disso, vieram seus  parentes  para  se  apoderarem  dele,  pois  diziam  que  perdera  o  espírito.  Entretanto, tendo vindo sua mãe e seus irmãos e conservando­se do lado  de fora, mandaram chamá­lo. Ora, o povo se assentara em torno dele e lhe  disseram: “Tua mãe  e  teus  irmãos  estão lá  fora  e  te  chamam”.  Ele  lhes  respondeu:  “Quem  é  minha  mãe  e  quem  são  meus  irmãos?”  E,  perpassando o olhar pelos que estavam assentados ao seu derredor, disse:  “Eis aqui minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que faz a vontade de  Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.  (MARCOS, 3:20­21 e 31 a 35; MATEUS, 12:46 a 50)  6.  Singulares  parecem  algumas  palavras  de  Jesus,  por  contrastarem  com  a  sua  bondade  e  a  sua  inalterável  benevolência  para  com  todos.  Os  incrédulos  não  deixaram de tirar daí uma arma, pretendendo que ele se contradizia. Fato, porém,  irrecusável  é que sua doutrina tem por base principal, por pedra angular, a lei de  amor e de caridade. Ora, não é possível que ele destruísse de um lado o que do outro  estabelecia, donde esta conseqüência rigorosa: se certas proposições suas se acham  em contradição com aquele princípio básico, é que as palavras que se lhe atribuem  foram ou mal reproduzidas, ou mal compreendidas, ou não são suas.  7.  Causa  admiração,  e  com  fundamento,  que,  neste  passo,  mostrasse  Jesus  tanta  indiferença para com seus parentes e, de certo modo, renegasse sua mãe.  Pelo que concerne a seus irmãos, sabe­se que não o estimavam. Espíritos  pouco  adiantados,  não  lhe  compreendiam  a  missão:  tinham  por  excêntrico  o  seu  proceder  e  seus  ensinamentos  não  os  tocavam,  tanto  que  nenhum  deles  o  seguiu  como discípulo. Dir­se­ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções  de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho
  • 150. 150 – Allan Kardec  do que como um irmão, quando aparecia à família. S. João diz, positivamente (cap.  7:5), “que eles não lhe davam crédito”.  Quanto à sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava.  Deve­se,  entretanto,  convir igualmente  em  que  também  ela não  fazia  idéia  muito  exata da missão do filho, pois não se vê que lhe tenha nunca seguido os ensinos,  nem dado testemunho dele, como fez João Batista. O que nela predominava era a  solicitude  maternal.  Supor  que  ele haja renegado  sua mãe  fora  desconhecer­lhe  o  caráter. Semelhante idéia não poderia encontrar guarida naquele que disse: Honrai a  vosso pai e a vossa mãe. Necessário, pois, se faz procurar outro sentido para suas  palavras, quase sempre envoltas no véu da forma alegórica.  Ele nenhuma ocasião desprezava de dar um ensino; aproveitou, portanto, a  que  se  lhe  deparou,  com  a  chegada  de  sua  família,  para  precisar  a  diferença  que  existe entre a parentela corporal e a parentela espiritual.  A PARENTELA CORPORAL E A PARENTELA ESPIRITUAL  8. Os laços do sangue não criam forçosamente os liames entre os Espíritos. O corpo  procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito, porquanto o Espírito já  existia antes da formação do corpo. Não é o pai quem cria o Espírito de seu filho; ele  mais não faz do que lhe fornecer o invólucro corpóreo, cumprindo­lhe, no entanto,  auxiliar o desenvolvimento intelectual e moral do filho, para fazê­lo progredir.  Os que encarnam numa família, sobretudo como parentes próximos, são, as  mais  das  vezes,  Espíritos  simpáticos,  ligados  por  anteriores  relações,  que  se  expressam por uma afeição recíproca na vida terrena. Mas, também pode acontecer  sejam completamente estranhos uns aos outros esses Espíritos, afastados entre si por  antipatias  igualmente  anteriores,  que  se  traduzem  na  Terra  por  um  mútuo  antagonismo,  que  aí  lhes  serve  de  provação.  Não  são  os  da  consangüinidade  os  verdadeiros laços de família e sim os da simpatia e da comunhão de idéias, os quais  prendem os Espíritos antes, durante e depois de suas encarnações. Segue­se que dois  seres nascidos de pais diferentes podem ser mais irmãos pelo Espírito, do que se o  fossem pelo sangue. Podem então atrair­se, buscar­se, sentir prazer quando juntos,  ao  passo  que  dois  irmãos  consangüíneos  podem  repelir­se,  conforme  se  observa  todos os dias: problema moral que só o Espiritismo podia resolver pela pluralidade  das existências. (Cap. IV, nº 13)  Há, pois, duas espécies de famílias: as famílias pelos laços espirituais e as  famílias pelos laços corporais. Duráveis, as primeiras se fortalecem pela purificação  e se perpetuam no mundo dos Espíritos, através das várias migrações da alma; as  segundas,  frágeis  como  a  matéria,  se  extinguem  com  o  tempo  e  muitas  vezes  se  dissolvem  moralmente,  já  na  existência  atual.  Foi  o  que  Jesus  quis  tornar  compreensível, dizendo de seus discípulos: Aqui estão minha mãe e meus irmãos,  isto é, minha família pelos laços do Espírito, pois todo aquele que faz a vontade de  meu Pai que está nos céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe.  A hostilidade que lhe moviam seus irmãos se acha claramente expressa em  a  narração  de  São  Marcos,  que  diz  terem  eles  o  propósito  de  se  apoderarem  do  Mestre, sob o pretexto de que este perdera o espírito. Informado da chegada deles,
  • 151. 151 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  conhecendo  os  sentimentos  que  nutriam  a  seu  respeito,  era  natural  que  Jesus  dissesse, referindo­se a seus discípulos, do ponto de vista espiritual: “Eis aqui meus  verdadeiros  irmãos”.  Embora  na  companhia  daqueles  estivesse  sua  mãe,  ele  generaliza o ensino que de maneira alguma implica haja pretendido declarar que sua  mãe segundo o corpo nada lhe era como Espírito, que só indiferença lhe merecia.  Provou suficientemente o contrário em várias outras circunstâncias.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A INGRATIDÃO DOS FILHOS E OS LAÇOS DE FAMÍLIA  9.  A  ingratidão  é  um  dos  frutos  mais  diretos  do  egoísmo.  Revolta  sempre  os  corações honestos. Mas, a dos filhos para com os pais apresenta caráter ainda mais  odioso.  É,  em  particular,  desse  ponto  de  vista  que  a  vamos  considerar,  para  lhe  analisar as  causas  e  os  efeitos.  Também  nesse caso,  como  em  todos  os  outros,  o  Espiritismo projeta luz sobre um dos grandes problemas do coração humano.  Quando  deixa  a Terra,  o  Espírito  leva  consigo  as  paixões  ou  as  virtudes  inerentes à sua natureza e se aperfeiçoa no espaço, ou permanece estacionário, até  que  deseje  receber  a  luz.  Muitos,  portanto,  se  vão  cheios  de  ódios  violentos  e  de  insaciados desejos de vingança; a alguns dentre eles, porém, mais adiantados do que  os outros, é dado entrevejam uma partícula da verdade; apreciam então as funestas  conseqüências  de  suas  paixões  e  são  induzidos  a  tomar  resoluções  boas.  Compreendem que, para chegarem a Deus, uma só é a senha: caridade. Ora, não há  caridade sem esquecimento dos ultrajes e das injúrias; não há caridade sem perdão,  nem com o coração tomado de ódio.  Então, mediante inaudito esforço, conseguem tais Espíritos observar os a  quem eles odiaram na Terra. Ao vê­los, porém, a animosidade se lhes desperta no  íntimo; revoltam­se à idéia de perdoar, e, ainda mais, à de abdicarem de si mesmos,  sobretudo à de amarem os que lhes destruíram, quiçá, os haveres, a honra, a família.  Entretanto, abalado fica o coração desses infelizes. Eles hesitam, vacilam, agitados  por sentimentos contrários. Se predomina a boa resolução, oram a Deus, imploram  aos bons Espíritos que lhes dêem forças, no momento mais decisivo da prova. Por  fim  após  anos  de  meditações  e  preces,  o  Espírito  se  aproveita  de  um  corpo  em  preparo na  família  daquele  a  quem  detestou,  e  pede  aos  Espíritos  incumbidos  de  transmitir  as  ordens  superiores  permissão  para  ir  preencher  na  Terra  os  destinos  daquele corpo que acaba de formar­se.  Qual  será  o  seu  procedimento  na  família  escolhida?  Dependerá  da  sua  maior ou menor persistência nas boas resoluções que tomou. O incessante contacto  com seres a quem odiou constitui prova terrível, sob a qual não raro sucumbe, se não  tem ainda bastante forte a vontade. Assim, conforme prevaleça ou não a resolução  boa, ele será o amigo ou inimigo daqueles entre os quais foi chamado a viver. É  como se explicam esses ódios, essas repulsões instintivas que se notam da parte de  certas crianças e que parecem injustificáveis. Nada, com efeito, naquela existência  há podido provocar semelhante antipatia; para se lhe apreender a causa, necessário  se torna volver o olhar ao passado.
  • 152. 152 – Allan Kardec  Ó  espíritas!  Compreendei  agora  o  grande  papel  da  Humanidade;  compreendei  que,  quando  produzis  um  corpo,  a  alma  que  nele  encarna  vem  do  espaço para progredir; inteirai­vos dos vossos deveres e ponde todo o vosso amor  em  aproximar  de  Deus  essa  alma;  tal  a  missão  que  vos  está  confiada  e  cuja  recompensa recebereis, se fielmente a cumprirdes. Os vossos cuidados e a educação  que lhe dareis auxiliarão o seu aperfeiçoamento e o seu bem­estar futuro. Lembrai­  vos de que a cada pai e a cada mãe perguntará Deus: Que fizestes do filho confiado à  vossa guarda? Se por culpa vossa ele se conservou atrasado, tereis como castigo vê­  lo entre os Espíritos sofredores, quando de vós dependia que fosse ditoso. Então, vós  mesmos, assediados de remorsos, pedireis vos seja concedido reparar a vossa falta;  solicitareis, para vós  e para ele, outra encarnação em que  o  cerqueis de melhores  cuidados e em que ele, cheio de reconhecimento, vos retribuirá com o seu amor.  Não escorraceis, pois, a criancinha que repele sua mãe, nem a que vos paga  com  a  ingratidão;  não  foi  o  acaso  que  a  fez  assim  e  que  vo­la  deu.  Imperfeita  intuição  do  passado  se  revela,  do  qual  podeis  deduzir  que  um  ou  outro  já  odiou  muito, ou foi muito ofendido; que um ou outro veio para perdoar ou para expiar.  Mães! Abraçai o filho que vos dá desgostos e dizei convosco mesmas: Um de nós  dois  é  culpado.  Fazei­vos  merecedoras  dos  gozos  divinos  que  Deus  conjugou  à  maternidade, ensinando aos vossos filhos que eles estão na Terra para se aperfeiçoar,  amar  e  bendizer.  Mas,  oh!  Muitas  dentre  vós,  em  vez  de  eliminar  por  meio  da  educação  os  maus  princípios  inatos  de  existências  anteriores,  entretêm  e  desenvolvem esses princípios, por uma culposa fraqueza, ou por descuido, e, mais  tarde, o vosso coração, ulcerado pela ingratidão dos vossos filhos, será para vós, já  nesta vida, um começo de expiação.  A tarefa não é tão difícil quanto vos possa parecer. Não exige o saber do  mundo. Podem desempenhá­la assim o ignorante como o sábio, e o Espiritismo lhe  facilita o desempenho, dando a conhecer a causa das imperfeições da alma humana.  Desde  pequenina,  a  criança  manifesta  os  instintos  bons  ou  maus  que  traz  da  sua  existência  anterior.  A  estudá­los  devem  os  pais  aplicar­se.  Todos  os  males  se  originam  do  egoísmo  e  do  orgulho.  Espreitem,  pois,  os  pais  os  menores  indícios  reveladores  do  gérmen  de  tais  vícios  e  cuidem  de  combatê­los,  sem  esperar  que  lancem  raízes  profundas.  Façam  como  o  bom  jardineiro,  que  corta  os  rebentos  defeituosos à medida que os vê apontar na árvore. Se deixarem se desenvolvam o  egoísmo e o orgulho, não se espantem de serem mais tarde pagos com a ingratidão.  Quando os pais hão feito tudo o que devem pelo adiantamento moral de seus filhos,  se não alcançam êxito, não têm de que se inculpar a si mesmos e podem conservar  tranqüila  a  consciência.  À  amargura  muito  natural  que  então  lhes  advém  da  improdutividade  de  seus  esforços,  Deus  reserva  grande  e  imensa  consolação,  na  certeza de que se trata apenas de um retardamento, que concedido lhes será concluir  noutra  existência  a  obra  agora  começada  e  que  um  dia  o  filho  ingrato  os  recompensará com seu amor. (Cap. XIII, nº 19)  Deus não dá prova superior às forças daquele que a pede; só permite as que  podem  ser  cumpridas.  Se  tal  não  sucede,  não  é  que  falte  possibilidade:  falta  a  vontade. Com efeito, quantos há que, em vez de resistirem aos maus pendores, se  comprazem neles. A esses ficam reservados o pranto e os gemidos em existências  posteriores. Admirai, no entanto, a bondade de Deus, que  nunca fecha a porta ao
  • 153. 153 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  arrependimento. Vem um dia em que ao culpado, cansado de sofrer, com o orgulho  afinal abatido, Deus abre os braços para receber o filho pródigo que se lhe lança aos  pés.  As  provas  rudes,  ouvi­me  bem,  são  quase  sempre  indício  de  um  fim  de  sofrimento e de um aperfeiçoamento do Espírito, quando aceitas com o pensamento  em Deus. É um momento supremo, no qual, sobretudo, cumpre ao Espírito não falir  murmurando, se não quiser perder o fruto de tais provas e ter de recomeçar. Em vez  de vos queixardes, agradecei a Deus o ensejo que vos proporciona de vencerdes, a  fim  de  vos  deferir  o  prêmio  da  vitória.  Então,  saindo  do  turbilhão  do  mundo  terrestre,  quando  entrardes  no  mundo  dos  Espíritos,  sereis  aí  aclamados  como  o  soldado que sai triunfante da refrega.  De todas as provas, as mais duras são as que afetam o coração. Um, que  suporta  com  coragem  a  miséria  e  as  privações  materiais,  sucumbe  ao  peso  das  amarguras domésticas, pungido da ingratidão dos seus. Oh! Que pungente angústia  essa!  Mas,  em  tais  circunstâncias,  que  mais  pode,  eficazmente,  restabelecer  a  coragem moral, do que o conhecimento das causas do mal e a certeza de que, se bem  haja prolongados despedaçamentos d’alma, não há desesperos eternos, porque não é  possível seja da vontade de Deus que a sua criatura sofra indefinidamente? Que de  mais  reconfortante,  de  mais  animador  do  que  a  idéia  que  de  cada  um  dos  seus  esforços  é  que  depende  abreviar  o  sofrimento,  mediante  a  destruição,  em  si,  das  causas do mal? Para isso, porém, preciso se faz que o homem não retenha na Terra o  olhar e só veja uma existência; que se eleve, a pairar no infinito do passado e do  futuro. Então, a justiça infinita de Deus se vos patenteia, e esperais com paciência,  porque  explicável  se  vos  torna  o  que  na  Terra  vos  parecia  verdadeiras  monstruosidades.  As  feridas  que  aí  se  vos  abrem,  passais a  considerá­las  simples  arranhaduras. Nesse golpe de vista lançado sobre o conjunto, os laços de família se  vos apresentam sob seu aspecto real. Já não vedes, a ligar­lhes os membros, apenas  os  frágeis  laços  da  matéria;  vedes,  sim,  os  laços  duradouros  do  Espírito,  que  se  perpetuam e consolidam com o depurarem­se, em vez de se quebrarem por efeito da  reencarnação.  Formam famílias os Espíritos que a analogia dos gostos, a identidade do  progresso moral e a afeição induzem a reunir­se. Esses mesmos Espíritos, em suas  migrações  terrenas,  se  buscam,  para  se  gruparem,  como  o  fazem  no  espaço,  originando­se  daí  as  famílias  unidas  e  homogêneas.  Se,  nas  suas  peregrinações,  acontece  ficarem  temporariamente  separados,  mais  tarde  tornam  a  encontrar­se,  venturosos  pelos  novos  progressos  que  realizaram.  Mas,  como  não  lhes  cumpre  trabalhar  apenas  para  si,  permite  Deus  que  Espíritos  menos  adiantados  encarnem  entre eles, a fim de receberem conselhos e bons exemplos, a bem de seu progresso.  Esses Espíritos se tornam, por vezes, causa de perturbação no meio daqueles outros,  o que constitui para estes a prova e a tarefa a desempenhar.  Acolhei­os,  portanto,  como  irmãos;  auxiliai­os,  e  depois,  no  mundo  dos  Espíritos, a família se felicitará por haver salvo alguns náufragos que, a seu turno,  poderão salvar outros. – Santo Agostinho. (Paris, 1862)
  • 154. 154 – Allan Kardec  CAPÍTULO XV  FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO ·  O DE QUE PRECISA O ESPÍRITO PARA SER SALVO.  PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO ·  O MANDAMENTO MAIOR ·  NECESSIDADE DA CARIDADE, SEGUNDO S. PAULO ·  FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO.  FORA DA VERDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO  O DE QUE PRECISA O ESPÍRITO PARA SE SALVAR.  PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO  1. “Ora, quando o filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de  todos  os  anjos,  sentar­se­á  no  trono  de  sua  glória;  reunidas  diante  dele  todas as nações, separará uns dos outros, como o pastor separa dos bodes  as ovelhas e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda”.  “Então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: vinde, benditos  de meu Pai, tomai posse do reino que vos foi preparado desde o princípio  do  mundo;  porquanto,  tive  fome  e  me  destes  de  comer;  tive  sede  e  me  destes de beber; careci de teto e me hospedastes; estive nu e me vestistes;  achei­me doente e me visitastes; estive preso e me fostes ver”.  “Então,  responder­lhe­ão  os  justos:  ‘Senhor,  quando  foi  que  te  vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber?  Quando  foi  que  te  vimos  sem  teto  e  te  hospedamos;  ou  despido  e  te  vestimos? E quando foi que te soubemos doente ou preso e fomos visitar­  te?’ O Rei lhes responderá: ‘Em verdade vos digo, todas as vezes que isso  fizestes a um destes mais pequeninos dos meus irmãos, foi a mim mesmo  que o fizestes’ ”.
  • 155. 155 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  “Dirá em seguida aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastai­vos  de mim, malditos; ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e  seus anjos; porquanto, tive fome e não me destes de comer, tive sede  e  não me  destes  de  beber;  precisei  de  teto  e  não me agasalhastes;  estive  sem  roupa  e  não  me  vestistes;  estive  doente  e  no  cárcere  e  não  me  visitastes’”. “Também  eles  replicarão:  ‘Senhor,  quando foi  que  te  vimos  com  fome e não te demos de comer, com sede e não te demos de beber, sem  teto ou sem roupa, doente ou preso e não te assistimos?’ Ele então lhes  responderá:  ‘Em  verdade  vos  digo:  todas  as  vezes  que  faltastes  com  a  assistência  a  um  destes  mais  pequenos,  deixastes  de  tê­la  para  comigo  mesmo. E esses irão para o suplício eterno, e os justos para a vida eterna’”.  (MATEUS, 25:31 a 46)  2. Então, levantando­se, disse­lhe um doutor da lei, para o tentar: “Mestre,  que preciso fazer para possuir a vida eterna?” Respondeu­lhe Jesus: “Que  é o que está escrito na lei? Que é o que lês nela?” Ele respondeu: “Amarás  o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, com todas as  tuas forças  e  de  todo  o teu  espírito,  e  a  teu  próximo  como  a  ti mesmo”.  Disse­lhe Jesus: “Respondeste muito bem; faze isso e viverás”.  Mas, o homem, querendo parecer que era um justo, diz a Jesus:  “Quem é o meu próximo?” Jesus, tomando a palavra, lhe diz: “Um homem,  que  descia  de  Jerusalém  para  Jericó,  caiu  em  poder  de  ladrões,  que  o  despojaram,  cobriram  de  ferimentos  e  se  foram,  deixando­o  semimorto.  Aconteceu em seguida que um sacerdote, descendo pelo mesmo caminho,  o viu e passou adiante. Um levita, que também veio àquele lugar, tendo­o  observado,  passou igualmente adiante.  Mas,  um  samaritano  que  viajava,  chegando ao lugar onde jazia aquele homem e tendo­o visto, foi tocado de  compaixão.  Aproximou­se  dele,  deitou­lhe  óleo  e  vinho  nas  feridas  e  as  pensou; depois, pondo­o no seu cavalo, levou­o a uma hospedaria e cuidou  dele. No dia seguinte tirou dois denários e os deu ao hospedeiro, dizendo:  ‘Trata muito bem  deste  homem  e  tudo  o  que  despenderes  a mais,  eu  te  pagarei quando regressar’. Qual desses três te parece ter sido o próximo  daquele  que  caíra  em  poder  dos  ladrões?” O  doutor  respondeu:  “Aquele  que usou de misericórdia para com ele”. “Então, vai!” – diz Jesus – “E faze  o mesmo”.  (LUCAS, 10:25 a 37)  3. Toda a moral de Jesus se resume na caridade e na humildade, isto é, nas duas  virtudes contrárias ao egoísmo e ao orgulho. Em todos os seus ensinos, ele aponta  essas  duas  virtudes  como  sendo  as  que  conduzem  à  eterna  felicidade:  Bem­  aventurados, disse, os pobres de espírito, isto é, os humildes, porque deles é o reino  dos céus; bem­aventurados os que têm puro o coração; bem­aventurados os que são  brandos  e  pacíficos;  bem­aventurados  os  que  são  misericordiosos;  amai  o  vosso  próximo como a vós mesmos; fazei aos outros o que quereríeis vos fizessem; amai  os vossos inimigos; perdoai as ofensas, se quiserdes ser perdoados; praticai o bem  sem ostentação; julgai­vos a vós mesmos, antes de julgardes os outros. Humildade e  caridade, eis o que não cessa de recomendar e o de que dá, ele próprio, o exemplo.
  • 156. 156 – Allan Kardec  Orgulho  e  egoísmo,  eis  o  que  não  se  cansa  de  combater.  E  não  se  limita  a  recomendar  a  caridade;  põe­na claramente  e  em  termos  explícitos  como  condição  absoluta da felicidade futura.  No  quadro  que  traçou  do  juízo  final,  deve­se,  como  em  muitas  outras  coisas, separar o que é apenas figura, alegoria. A homens como os a quem falava,  ainda  incapazes  de  compreender  as  questões  puramente  espirituais,  tinha  ele  de  apresentar  imagens  materiais  chocantes  e  próprias  a  impressionar.  Para  melhor  apreenderem o que dizia, tinha mesmo de não se afastar muito das idéias correntes,  quanto  à  forma,  reservando  sempre  ao  porvir  a  verdadeira  interpretação  de  suas  palavras e dos pontos sobre os quais não podia explicar­se claramente. Mas, ao lado  da parte acessória ou figurada do quadro, há uma idéia dominante: a da felicidade  reservada ao justo e da infelicidade que espera o mau.  Naquele julgamento supremo, quais os considerandos da sentença? Sobre  que se baseia o libelo? Pergunta, porventura, o juiz se o inquirido preencheu tal ou  qual  formalidade,  se  observou  mais  ou  menos  tal  ou  qual  prática  exterior?  Não;  inquire tão­somente de uma coisa: se a caridade foi praticada, e se pronuncia assim:  Passai  à  direita,  vós  que  assististes  os  vossos  irmãos;  passai  à  esquerda,  vós  que  fostes duros para com eles. Informa­se, por acaso, da ortodoxia da fé? Faz qualquer  distinção entre o que crê de um modo e o que crê de outro? Não, pois Jesus coloca o  samaritano,  considerado  herético,  mas  que  pratica  o  amor  do  próximo,  acima  do  ortodoxo que falta com a caridade. Não considera, portanto, a caridade apenas como  uma das condições para a salvação, mas como a condição única. Se outras houvesse  a  serem  preenchidas,  ele  as  teria  declinado.  Desde  que  coloca  a  caridade  em  primeiro  lugar,  é  que  ela  implicitamente  abrange  todas  as  outras:  a humildade,  a  brandura,  a  benevolência,  a  indulgência,  a  justiça,  etc.,  e  porque  é  a  negação  absoluta do orgulho e do egoísmo.  O MANDAMENTO MAIOR  4. Mas, os fariseus, tendo sabido que ele tapara a boca aos saduceus, se  reuniram;  e  um  deles,  que  era  doutor  da lei,  foi propor­lhe  esta  questão,  para  o  tentar:  “Mestre,  qual  o  grande  mandamento  da  lei?”  Jesus  lhe  respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a  tua alma, de todo o teu espírito. Esse o maior e o primeiro mandamento. E  aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Amarás o teu próximo,  como a ti mesmo. Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois  mandamentos”.  (MATEUS, 22: 34 a 40)  5. Caridade e humildade, tal a senda única da salvação. Egoísmo e orgulho, tal a da  perdição. Este princípio se acha formulado nos seguintes precisos termos: “Amarás a  Deus de toda a tua alma e a teu próximo como a ti mesmo; toda a lei e os profetas se  acham contidos nesses dois mandamentos.” E, para que não haja equívoco sobre a  interpretação do amor de Deus e do próximo, acrescenta: “E aqui está o segundo  mandamento  que  é  semelhante  ao  primeiro”,  isto  é,  que  não  se  pode
  • 157. 157 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o próximo sem amar  a Deus. Logo, tudo o que se faça contra o próximo o mesmo é que fazê­lo contra  Deus. Não podendo amar a Deus sem praticar a caridade para com o próximo, todos  os  deveres  do  homem  se  resumem  nesta  máxima:  FORA  DA  CARIDADE  NÃO  HÁ  SALVAÇÃO.  NECESSIDADE DA CARIDADE, SEGUNDO S. PAULO  6. “ Ainda quando eu falasse todas as línguas dos homens e a língua dos  próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa e um  címbalo  que  retine;  ainda  quando  tivesse  o  dom  de  profecia,  que  penetrasse todos os mistérios, e tivesse perfeita ciência de todas as coisas;  ainda  quando  tivesse  toda  a  fé  possível,  até  ao  ponto  de  transportar  montanhas,  se  não  tiver  caridade,  nada  sou.  E,  quando  houvesse  distribuído os meus bens para alimentar os pobres e houvesse entregado  meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, tudo isso de nada  me serviria”.  “ A  caridade  é  paciente;  é  branda  e  benfazeja;  a  caridade não  é  invejosa; não é temerária, nem precipitada; não se enche de orgulho; não é  desdenhosa; não cuida de seus interesses; não se agasta, nem se azeda  com coisa alguma; não suspeita mal; não se rejubila com a injustiça, mas  se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre”.  “Agora,  estas  três  virtudes:  a  fé,  a  esperança  e  a  caridade  permanecem; mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade”.  (S. PAULO, 1ª Epístola aos Coríntios, 13:1 a 7 e 13)  7.  De  tal  modo  compreendeu  S.  Paulo  essa  grande  verdade,  que  disse:  Quando  mesmo eu tivesse a linguagem dos anjos; quando tivesse o dom de profecia, que  penetrasse todos os mistérios; quando tivesse toda a fé possível, até ao ponto de  transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou. Dentre estas três virtudes:  a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade. Coloca assim, sem  equívoco, a caridade acima até da fé. É que a caridade está ao alcance de toda gente:  do  ignorante,  como  do  sábio,  do  rico,  como  do  pobre,  e  independe  de  qualquer  crença particular.  Faz mais: define  a  verdadeira  caridade, mostra­a não  só  na  beneficência,  como  também  no  conjunto  de  todas  as  qualidades  do  coração,  na  bondade  e  na  benevolência para com o próximo.  FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO.  FORA DA VERDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO  8. Enquanto a máxima – Fora da caridade não há salvação – assenta num princípio  universal e abre a todos os filhos de Deus acesso à suprema felicidade, o dogma –  Fora da Igreja não há salvação – se estriba, não na fé fundamental em Deus e na  imortalidade da alma, fé comum a todas as religiões, porém numa fé especial, em
  • 158. 158 – Allan Kardec  dogmas  particulares;  é  exclusivo  e  absoluto.  Longe  de  unir  os  filhos  de  Deus,  separa­os;  em  vez  de  incitá­los  ao  amor  de  seus  irmãos,  alimenta  e  sanciona  a  irritação  entre  sectários  dos  diferentes  cultos  que  reciprocamente  se  consideram  malditos  na  eternidade,  embora  sejam  parentes  e  amigos  esses  sectários.  Desprezando  a  grande  lei  de  igualdade  perante  o  túmulo,  ele  os  afasta  uns  dos  outros, até no campo do repouso. A máxima – Fora da caridade não há salvação  consagra  o  princípio  da  igualdade  perante  Deus  e  da  liberdade  de  consciência.  Tendo­a por norma, todos os homens são irmãos e, qualquer que seja a maneira por  que adorem o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns pelos outros. Com o  dogma  –  Fora  da  Igreja  não  há  salvação,  anatematizam­se  e  se  perseguem  reciprocamente, vivem como inimigos; o pai não pede pelo filho, nem o filho pelo  pai, nem  o  amigo  pelo  amigo,  desde  que  mutuamente  se  consideram  condenados  sem  remissão.  É,  pois,  um  dogma  essencialmente  contrário  aos  ensinamentos  do  Cristo e à lei evangélica.  9. Fora da verdade não há salvação equivaleria ao Fora da Igreja não há salvação  e seria igualmente exclusivo, porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o  privilégio da verdade. Que homem se pode vangloriar de a possuir integral, quando  o âmbito dos conhecimentos incessantemente se alarga e todos os dias se retificam  as  idéias?  A  verdade  absoluta  é  patrimônio  unicamente  de  Espíritos  da  categoria  mais elevada e a Humanidade terrena não poderia pretender possuí­la, porque não  lhe  é  dado  saber  tudo.  Ela  somente  pode  aspirar  a  uma  verdade  relativa  e  proporcionada  ao  seu  adiantamento.  Se  Deus  houvera  feito  da  posse  da  verdade  absoluta  condição  expressa  da  felicidade  futura,  teria  proferido  uma  sentença  de  proscrição  geral,  ao  passo  que  a  caridade,  mesmo  na  sua  mais  ampla  acepção,  podem  todos  praticá­la.  O  Espiritismo,  de  acordo  com  o  Evangelho,  admitindo  a  salvação para todos, independente de qualquer crença, contanto que a lei de Deus  seja observada, não diz: Fora do Espiritismo não há salvação; e, como não pretende  ensinar ainda toda a verdade, também não diz: Fora da verdade não há salvação,  pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria os antagonismos.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO  10. Meus filhos, na máxima: Fora da caridade não há salvação, estão encerrados os  destinos dos homens, na Terra e no céu; na Terra, porque à sombra desse estandarte  eles  viverão em paz; no céu, porque os que a houverem praticado acharão graças  diante  do  Senhor.  Essa  divisa  é  o  facho  celeste,  a  luminosa  coluna  que  guia  o  homem no deserto da vida, encaminhando­o para a Terra da Promissão. Ela brilha  no céu, como auréola santa, na fronte dos eleitos, e, na Terra, se acha gravada no  coração  daqueles  a  quem  Jesus  dirá:  Passai  à  direita,  benditos  de  meu  Pai.  Reconhecê­los­eis  pelo  perfume  de  caridade  que  espalham  em  torno  de  si.  Nada  exprime com mais exatidão o pensamento de Jesus, nada resume tão bem os deveres  do homem, como essa máxima de ordem divina. Não poderia o Espiritismo provar
  • 159. 159 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  melhor a sua origem, do que apresentando­a como regra, por isso que é um reflexo  do  mais  puro  Cristianismo.  Levando­a  por  guia,  nunca  o  homem  se  transviará.  Dedicai­vos,  assim,  meus  amigos,  a  perscrutar­lhe  o  sentido  profundo  e  as  conseqüências, a descobrir­lhe, por vós mesmos, todas as aplicações. Submetei todas  as vossas ações ao governo da caridade e a consciência vos responderá. Não só ela  evitará que pratiqueis o mal, como também fará que pratiqueis o  bem, porquanto  uma virtude negativa não basta: é necessária uma virtude ativa. Para fazer­se o bem,  mister sempre se torna a ação da vontade; para se não praticar o mal, basta as mais  das vezes a inércia e a despreocupação.  Meus amigos, agradecei a Deus o haver permitido que pudésseis gozar a luz  do Espiritismo. Não é que somente os que a possuem hajam de ser salvos; é que,  ajudando­vos  a  compreender  os  ensinos  do  Cristo,  ela  vos  faz  melhores  cristãos.  Esforçai­vos, pois, para que os  vossos irmãos, observando­vos, sejam induzidos a  reconhecer que verdadeiro espírita e verdadeiro cristão são uma só e a mesma coisa,  dado que todos quantos praticam a caridade são discípulos de Jesus, sem embargo da  seita a que pertençam. – Paulo, o apóstolo. (Paris, 1860)
  • 160. 160 – Allan Kardec  CAPÍTULO XVI  NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON ·  SALVAÇÃO DOS RICOS ·  PRESERVAR­SE DA AVAREZA ·  JESUS EM CASA DE ZAQUEU ·  PARÁBOLA DO MAU RICO ·  PARÁBOLA DOS TALENTOS ·  UTILIDADE PROVIDENCIAL DA RIQUEZA.  PROVAS DA RIQUEZA E DA MISÉRIA ·  DESIGUALDADE DAS RIQUEZAS  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  A VERDADEIRA PROPRIEDADE ·  EMPREGO DA RIQUEZA ·  DESPRENDIMENTO DOS BENS TERRENOS ·  TRANSMISSÃO DA RIQUEZA  SALVAÇÃO DOS RICOS  1. “ Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará a  outro,  ou  se  prenderá  a  um  e  desprezará  o  outro.  Não  podeis  servir  simultaneamente a Deus e a Mamon”.  (LUCAS, 16:13)  2. Então, aproximou­se dele um mancebo e disse: “Bom mestre, que bem  devo  fazer  para  adquirir  a  vida  eterna?”  Respondeu  Jesus:  “Por  que  me  chamas  bom?  Bom,  só  Deus  o  é.  Se  queres  entrar  na  vida,  guarda  os  mandamentos”.  –  “Que  mandamentos?”  –  retrucou  o  mancebo.  Disse  Jesus:  “Não  matarás;  não  cometerás  adultério;  não  furtarás;  não  darás
  • 161. 161 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  testemunho falso. Honra a teu pai e a tua mãe e ama a teu próximo como a  ti mesmo”.  O moço lhe replicou: “Tenho guardado todos esses mandamentos  desde que cheguei à mocidade. Que é o que ainda me falta?” Disse Jesus:  “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá­o aos pobres e terás  um tesouro no céu. Depois, vem e segue­me”. Ouvindo essas palavras, o  moço se foi todo tristonho, porque possuía grandes haveres. Jesus disse  então a seus discípulos: “Digo­vos em verdade que bem difícil é que um  rico entre no reino dos céus. Ainda uma vez vos digo: É mais fácil que um  camelo passe pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino  dos céus”  9  .  (MATEUS, 19:16 a 24; LUCAS, 18:18 a 25; MARCOS, 10:17 a 25)  PRESERVAR­SE DA AVAREZA  3. Então, no meio da turba, um homem lhe disse: “Mestre, dize a meu irmão  que divida comigo a herança que nos tocou”. Jesus lhe disse: “Ó homem!  Quem me designou para vos julgar, ou para fazer as vossas partilhas?” E  acrescentou:  “Tende  o  cuidado  de  presevar­vos  de  toda  a  avareza,  porquanto, seja qual for a abundância em que o homem se encontre, sua  vida  não  depende  dos  bens  que  ele  possua”.  Disse­lhes  a  seguir  esta  parábola:  “Havia  um  rico  homem  cujas  terras  tinham  produzido  extraordinariamente e que se entretinha a pensar consigo mesmo, assim:  ‘Que hei de fazer, pois já não tenho lugar onde possa encerrar tudo o que  vou colher?’ Disse então: ‘Aqui está o que farei: Demolirei os meus celeiros  e construirei outros maiores, onde porei toda a minha colheita e todos os  meus bens. E direi a minha alma: Minha alma, tens de reserva muitos bens  para longos anos; repousa, come, bebe, goza’”.  “Mas, Deus, ao mesmo tempo, disse ao homem: ‘Que insensato  és!  Esta  noite  mesmo  tomar­te­ão  a  alma;  para  que  servirá  o  que  acumulaste?’  É  o  que  acontece  àquele  que  acumula  tesouros  para  si  próprio e que não é rico diante de Deus”.  (LUCAS, 12:13 a 21)  JESUS EM CASA DE ZAQUEU  4.  Tendo  Jesus  entrado  em  Jericó,  passava  pela  cidade  e  havia  ali  um  homem  chamado  Zaqueu,  chefe  dos  publicanos  e  muito  rico,  o  qual,  desejoso  de  ver  a  Jesus,  para  conhecê­lo,  não  o  conseguia  devido  à  multidão, por ser ele de estatura muito baixa. Por isso, correu à frente da  turba e subiu a um sicômoro, para o ver, porquanto ele tinha de passar por  9  Esta arrojada figura pode parecer um pouco forçada, pois que não se percebe que relação possa existir  entre  um  camelo  e  uma  agulha.  Acontece,  no  entanto,  que,  em  hebreu,  a  mesma  palavra  serve  para  designar um camelo e um cabo. Na tradução, deram­lhe o primeiro desses significados; mas é provável  que Jesus a tenha empregado com a outra significação. É, pelo menos, mais natural.
  • 162. 162 – Allan Kardec  ali.  Chegando  a  esse  lugar,  Jesus  dirigiu  paro o  alto o  olhar  e,  vendo­o,  disse­lhe:  “Zaqueu,  dá­te  pressa  em  descer,  porquanto  preciso  que  me  hospedes hoje em tua casa”. Zaqueu desceu imediatamente e o recebeu  jubiloso. Vendo isso, todos murmuravam, a dizer: “Ele foi hospedar­se em  casa de um homem de má vida”. (Veja­se: “Introdução”, artigo – Publicanos)  Entretanto, Zaqueu, pondo­se diante do Senhor, lhe disse: Senhor,  dou a metade dos meus bens aos pobres e, se causei dano a alguém, seja  no  que  for, indenizo­o  com  quatro tantos.  Ao  que  Jesus  lhe  disse:  “Esta  casa recebeu hoje a salvação, porque também este é filho de Abraão; visto  que o Filho do homem veio para procurar e salvar o que estava perdido”.  (LUCAS, 19:1 a 10)  PARÁBOLA DO MAU RICO  5.  Havia  um  homem  rico,  que  vestia  púrpura  e  linho  e  se  tratava  magnificamente todos os dias. Havia também um pobre, chamado Lázaro,  deitado  à  sua  porta,  todo  coberto  de  úlceras,  que  muito  estimaria  poder  mitigar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico; mas ninguém  lhas dava e os cães lhe vinham lamber as chagas. Ora, aconteceu que esse  pobre  morreu  e  foi  levado  pelos  anjos  para  o  seio  de  Abraão.  O  rico  também  morreu  e  teve  por  sepulcro  o  inferno.  Quando  se  achava  nos  tormentos, levantou os olhos e viu de longe Abraão e Lázaro em seu seio e,  exclamando,  disse  estas  palavras:  “Pai  Abraão,  tem  piedade  de  mim  e  manda­me Lázaro, a fim de que molhe a ponta do dedo na água para me  refrescar a língua, pois sofro horrível tormento nestas chamas”.  Mas Abraão lhe respondeu: “Meu filho, lembra­te de que recebeste  em vida teus bens e de que Lázaro só teve males; por isso, ele agora está  na  consolação  e  tu  nos  tormentos.  Ao  demais,  existe  para  sempre  um  grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que queiram passar daqui  para aí não o podem, como também ninguém pode passar do lugar onde  estás para aqui”.  Disse  o  rico:  “Eu  então te  suplico,  pai  Abraão,  que  o  mandes  à  casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a dar­lhes testemunho destas  coisas, a fim de que não venham também eles para este lugar de tormento”.  Abraão  lhe  retrucou:  “Eles  têm  Moisés  e  os  profetas;  que  os  escutem”. – “Não, meu pai Abraão” – disse o rico: “Se algum dos mortos for  ter com eles, farão penitência”. Respondeu­lhe Abraão: “Se eles não ouvem  a  Moisés,  nem  aos  profetas, também  não  acreditarão,  ainda mesmo  que  algum dos mortos ressuscite”.  (LUCAS, 16:19 a 31)  PARÁBOLA DOS TALENTOS  6. “O Senhor age como um homem que, tendo de fazer longa viagem fora  do seu país, chamou seus servidores e lhes entregou seus bens. Depois de  dar cinco talentos a um, dois a outro e um a outro, a cada um segundo a  sua capacidade, partiu imediatamente. Então, o que recebeu cinco talentos  foi­se,  negociou  com  aquele  dinheiro  e  ganhou  cinco  outros.  O  que
  • 163. 163 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  recebera dois ganhou, do mesmo modo, outros tantos. Mas o que apenas  recebera um cavou um buraco na terra e aí escondeu o dinheiro de seu  amo”.  “Passado  longo  tempo,  o  amo  daqueles  servidores  voltou  e  os  chamou  a  contas.  Veio  o  que  recebera  cinco  talentos  e  lhe  apresentou  outros  cinco,  dizendo:  ‘Senhor,  entregaste­me  cinco  talentos;  aqui  estão,  além desses, mais cinco que ganhei’. Respondeu­lhe o amo: ‘Servidor bom  e  fiel;  pois  que  foste  fiel  em  pouca  coisa,  confiar­te­ei  muitas  outras;  compartilha  da  alegria  do  teu  senhor’.  O  que  recebera  dois  talentos  apresentou­se  a  seu  turno  e  lhe  disse:  ‘Senhor,  entregaste­me  dois  talentos;  aqui  estão,  além  desses,  dois  outros  que  ganhei’.  O  amo  lhe  respondeu: ‘Bom e fiel servidor; pois que foste fiel em pouca coisa, confiar­  te­ei muitas outras; compartilha da alegria do teu senhor’. Veio em seguida  o  que  recebeu  apenas  um  talento  e  disse:  ‘Senhor,  sei  que  és  homem  severo, que ceifas onde não semeaste e colhes de onde nada puseste; por  isso, como te temia, escondi o teu talento na terra; aqui o tens: restituo o  que  te  pertence’.  O  homem,  porém,  lhe  respondeu:  ‘Servidor  mau  e  preguiçoso; se sabias que ceifo onde não semeei e que colho onde nada  pus, devias  pôr  o meu  dinheiro  nas mãos  dos  banqueiros,  a fim de  que,  regressando, eu retirasse com juros o que me pertence. Tirem­lhe, pois, o  talento que está com ele e dêem­no ao que tem dez talentos.’ Porquanto,  dar­se­á a todos os que já têm e esses ficarão cumulados de bens; quanto  àquele que nada tem, tirar­se­lhe­á mesmo o que pareça ter; e seja esse  servidor inútil lançado nas trevas exteriores, onde haverá prantos e ranger  de dentes”.  (MATEUS, 25:14 a 30)  UTILIDADE PROVIDENCIAL DA RIQUEZA.  PROVAS DA RIQUEZA E DA MISÉRIA  7.  Se  a  riqueza  houvesse  de  constituir  obstáculo  absoluto  à  salvação  dos  que  a  possuem,  conforme  se  poderia  inferir  de  certas  palavras  de  Jesus,  interpretadas  segundo a letra e não segundo o espírito, Deus, que a concede, teria posto nas mãos  de alguns um instrumento de perdição, sem apelação nenhuma, idéia que repugna à  razão. Sem dúvida, pelos arrastamentos a que dá causa, pelas tentações que gera e  pela  fascinação  que  exerce,  a  riqueza  constitui  uma  prova  muito  arriscada,  mais  perigosa do que a miséria. É o supremo excitante do orgulho, do egoísmo e da vida  sensual. É o laço mais forte que prende o homem à Terra e lhe desvia do céu  os  pensamentos. Produz tal vertigem que, muitas vezes, aquele que passa da miséria à  riqueza esquece de pronto a sua primeira condição, os que com ele a partilharam, os  que o ajudaram, e faz­se insensível, egoísta e vão. Mas, do fato de a riqueza tornar  difícil a jornada, não se segue que a torne impossível e não possa vir a ser um meio  de salvação para o que dela sabe servir­se, como certos venenos podem restituir a  saúde, se empregados a propósito e com discernimento.  Quando Jesus disse ao moço que o inquiria sobre os meios de ganhar a vida  eterna:  “Desfaze­te  de  todos  os  teus  bens  e  segue­me”,  não  pretendeu,  decerto,  estabelecer como princípio absoluto que cada um deva despojar­se do que possui e  que a salvação só a esse preço se obtém; mas, apenas mostrar que o apego aos bens
  • 164. 164 – Allan Kardec  terrenos  é  um  obstáculo  à  salvação.  Aquele  moço,  com  efeito,  se  julgava  quite  porque  observara  certos  mandamentos  e,  no  entanto,  recusava­se  à  idéia  de  abandonar os bens de que era dono. Seu desejo de obter a vida eterna não ia até ao  extremo de adquiri­la com sacrifício.  O que Jesus lhe propunha era uma prova decisiva, destinada a pôr a nu o  fundo  do  seu  pensamento.  Ele  podia,  sem  dúvida,  ser  um  homem  perfeitamente  honesto  na  opinião  do  mundo,  não  causar  dano  a  ninguém,  não  maldizer  do  próximo, não ser vão, nem orgulhoso, honrar a seu pai e a sua mãe. Mas, não tinha a  verdadeira caridade; sua virtude não chegava até a abnegação. Isso o que Jesus quis  demonstrar. Fazia uma aplicação do princípio: “Fora da caridade não há salvação”.  A conseqüência dessas palavras, em sua acepção rigorosa, seria a abolição  da riqueza por prejudicial à felicidade futura e como causa de uma imensidade de  males  na Terra;  seria,  ao  demais,  a  condenação  do  trabalho  que  a  pode  granjear;  conseqüência absurda, que reconduziria o homem à vida selvagem e que, por isso  mesmo, estaria em contradição com a lei do progresso, que é lei de Deus.  Se a riqueza é causa de muitos males, se exacerba tanto as más paixões, se  provoca mesmo tantos crimes, não é a ela que devemos inculpar, mas ao homem,  que dela abusa, como de todos os dons de Deus. Pelo abuso, ele torna pernicioso o  que lhe poderia ser de maior utilidade. É a conseqüência do estado de inferioridade  do mundo terrestre. Se a riqueza somente males houvesse de produzir, Deus não a  teria  posto  na  Terra.  Compete  ao  homem  fazê­la  produzir  o  bem.  Se  não  é  um  elemento  direto  de  progresso  moral,  é,  sem  contestação,  poderoso  elemento  de  progresso intelectual.  Com efeito, o homem tem por missão trabalhar pela melhoria material do  planeta.  Cabe­lhe  desobstruí­lo,  saneá­lo,  dispô­lo  para  receber  um  dia  toda  a  população que a sua extensão comporta. Para alimentar essa população que cresce  incessantemente, preciso se faz aumentar a produção. Se a produção de um país é  insuficiente,  será  necessário  buscá­la  fora.  Por  isso  mesmo,  as  relações  entre  os  povos  constituem  uma  necessidade.  A  fim  de  mais  as  facilitar,  cumpre  sejam  destruídos  os  obstáculos  materiais  que  os  separam  e  tornadas  mais  rápidas  as  comunicações. Para trabalhos que são obra dos séculos, teve o homem de extrair os  materiais até das entranhas da terra; procurou na Ciência os meios de os executar  com maior segurança e rapidez. Mas, para os levar a efeito, precisa de recursos: a  necessidade fê­lo criar a riqueza, como o fez descobrir a Ciência. A atividade que  esses  mesmos  trabalhos  impõem  lhe  amplia  e  desenvolve  a  inteligência,  e  essa  inteligência que ele concentra, primeiro, na satisfação das necessidades materiais, o  ajudará mais tarde a compreender as grandes verdades morais. Sendo a riqueza o  meio primordial de execução, sem ela não mais grandes trabalhos, nem atividade,  nem estimulante, nem pesquisas. Com razão, pois, é a riqueza considerada elemento  de progresso.  DESIGUALDADE DAS RIQUEZAS  8. A desigualdade das riquezas é um dos problemas que inutilmente se procurará  resolver,  desde  que  se  considere  apenas  a  vida  atual.  A  primeira  questão  que  se
  • 165. 165 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  apresenta é esta: Por que não são igualmente ricos todos os homens? Não o são por  uma razão muito simples: por não serem igualmente inteligentes, ativos e laboriosos  para  adquirir,  nem  sóbrios  e  previdentes  para  conservar.  É,  aliás,  ponto  matematicamente demonstrado que a riqueza, repartida com igualdade, a cada um  daria uma parcela mínima e insuficiente; que, supondo efetuada essa repartição, o  equilíbrio  em  pouco  tempo  estaria  desfeito,  pela  diversidade  dos  caracteres  e  das  aptidões; que, supondo­a possível e durável, tendo cada um somente com que viver,  o resultado seria o aniquilamento de todos os grandes trabalhos que concorrem para  o progresso e para o bem­estar da Humanidade; que, admitido desse ela a cada um o  necessário, já não haveria o aguilhão que impele os homens às grandes descobertas e  aos empreendimentos úteis. Se Deus a concentra em certos pontos, é para que daí se  expanda em quantidade suficiente, de acordo com as necessidades.  Admitido isso, pergunta­se por que Deus a concede a pessoas incapazes de  fazê­la frutificar para o bem de todos. Ainda aí está uma prova da sabedoria e da  bondade de Deus. Dando­lhe o livre­arbítrio, quis ele que o homem chegasse, por  experiência própria, a distinguir o bem do mal e que a prática do primeiro resultasse  de seus esforços e da sua vontade. Não deve o homem ser conduzido fatalmente ao  bem,  nem  ao  mal,  sem  o  que  não  mais  fora  senão  instrumento  passivo  e  irresponsável como os animais. A riqueza é um meio de o experimentar moralmente.  Mas, como, ao mesmo tempo, é poderoso meio de ação para o progresso, não quer  Deus  que  ela  permaneça  longo  tempo  improdutiva,  pelo  que  incessantemente  a  desloca. Cada um tem de possuí­la, para se exercitar em utilizá­la e demonstrar que  uso  sabe  fazer  dela.  Sendo,  no  entanto,  materialmente  impossível  que  todos  a  possuam ao mesmo tempo, e acontecendo, além disso, que, se todos a possuíssem,  ninguém trabalharia, com o que o melhoramento do planeta ficaria comprometido,  cada um a possui por sua vez. Assim, um que não na tem hoje, já a teve ou terá  noutra existência; outro, que agora a tem, talvez não na tenha amanhã. Há ricos e  pobres, porque sendo Deus justo, como é, a cada um prescreve trabalhar a seu turno.  A pobreza é, para os que a sofrem, a prova da paciência e da resignação; a riqueza é,  para os outros, a prova da caridade e da abnegação.  Deploram­se,  com  razão,  o  péssimo  uso  que  alguns  fazem  das  suas  riquezas, as ignóbeis paixões que a cobiça provoca, e pergunta­se: Deus será justo,  dando­as a tais criaturas? É exato que, se o homem só tivesse uma única existência,  nada  justificaria  semelhante  repartição  dos  bens  da  Terra;  se,  entretanto,  não  tivermos em vista apenas a vida atual e, ao contrário, considerarmos o conjunto das  existências,  veremos  que  tudo  se  equilibra  com  justiça.  Carece,  pois,  o  pobre  de  motivo assim para acusar a Providência, como para invejar os ricos e estes para se  glorificarem do que possuem. Se abusam, não será com decretos ou leis suntuárias  que  se  remediará  o  mal.  As  leis  podem,  de momento,  mudar  o  exterior, mas não  logram mudar o coração; daí vem serem elas de duração efêmera e quase sempre  seguidas de uma reação mais desenfreada. A origem do mal reside no egoísmo e no  orgulho: os abusos de toda espécie cessarão quando os homens se regerem pela lei  da caridade.
  • 166. 166 – Allan Kardec  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A VERDADEIRA PROPRIEDADE  9.  O  homem  só  possui  em  plena  propriedade  aquilo  que  lhe  é  dado  levar  deste  mundo.  Do  que  encontra  ao  chegar  e  deixa  ao  partir  goza  ele  enquanto  aqui  permanece. Forçado, porém, que é a abandonar tudo isso, não tem das suas riquezas  a posse real, mas, simplesmente, o usufruto. Que é então o que ele possui? Nada do  que  é  de  uso  do  corpo;  tudo  o  que  é  de  uso  da  alma:  a  inteligência,  os  conhecimentos,  as  qualidades  morais.  Isso  o  que  ele  traz  e  leva  consigo,  o  que  ninguém lhe pode arrebatar, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo  do que neste. Depende de ele ser mais rico ao partir do que ao chegar, visto como,  do que tiver adquirido em bem, resultará a sua posição futura. Quando alguém vai a  um país distante, constitui a sua bagagem de objetos utilizáveis nesse país; não se  preocupa com os que ali lhe seriam inúteis. Procedei do mesmo modo com relação à  vida futura; aprovisionai­vos de tudo o de que lá vos possais servir.  Ao viajante que chega a um albergue, bom alojamento é dado, se o pode  pagar. A outro, de parcos recursos, toca um menos agradável. Quanto ao que nada  tenha de seu, vai dormir numa enxerga. O mesmo sucede ao homem, à sua chegada  no mundo dos Espíritos: depende dos seus haveres o lugar para onde vá. Não será,  todavia, com o seu ouro que ele o pagará. Ninguém lhe perguntará: Quanto tinhas na  Terra?  Que  posição  ocupavas?  Eras  príncipe  ou  operário?  Perguntar­lhe­ão:  Que  trazes contigo? Não se lhe avaliarão os bens, nem os títulos, mas a soma das virtudes  que possua. Ora, sob esse aspecto, pode o operário ser mais rico do que o príncipe.  Em vão alegará que antes de partir da Terra pagou a peso de ouro a sua entrada no  outro  mundo.  Responder­lhe­ão:  Os  lugares  aqui não  se  compram:  conquistam­se  por meio da prática do bem. Com a moeda terrestre, hás podido comprar campos,  casas,  palácios;  aqui,  tudo  se  paga  com  as  qualidades  da  alma.  És  rico  dessas  qualidades? Sê bem­vindo e vai para um dos lugares da primeira categoria, onde te  esperam todas as venturas. És pobre delas? Vai para um dos da última, onde serás  tratado de acordo com os teus haveres. – Pascal. (Genebra, 1860)  10. Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui a seu grado, não sendo o  homem senão o usufrutuário, o administrador mais ou menos íntegro e inteligente  desses bens. Tanto eles não constituem propriedade individual do homem, que Deus  freqüentemente anula todas as previsões e a riqueza foge àquele que se julga com os  melhores títulos para possuí­la.  Direis,  porventura,  que  isso  se  compreende  no  tocante  aos  bens  hereditários,  porém, não relativamente  aos  que  são  adquiridos  pelo  trabalho.  Sem  dúvida  alguma,  se  há  riquezas  legítimas,  são  estas  últimas,  quando  honestamente  conseguidas, porquanto uma propriedade só é legitimamente adquirida quando, da  sua aquisição, não resulta dano para ninguém. Contas serão pedidas até mesmo de  um  único  ceitil  mal  ganho,  isto  é,  com  prejuízo  de  outrem.  Mas,  do  fato  de  um  homem dever a si próprio a riqueza que possua, seguir­se­á que, ao morrer, alguma  vantagem  lhe advenha  desse  fato?  Não  são  amiúde  inúteis  as  precauções  que  ele  toma para transmiti­la a seus descendentes? Decerto, porquanto, se Deus não quiser
  • 167. 167 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  que ela lhes vá ter às mãos, nada prevalecerá contra a sua vontade. Poderá o homem  usar  e  abusar  de  seus  haveres  durante  a  vida,  sem  ter  de  prestar  contas?  Não.  Permitindo­lhe que a adquirisse, é possível haja Deus tido em vista recompensar­lhe,  no curso da existência atual, os esforços, a coragem, a perseverança. Se, porém, ele  somente  os  utilizou  na  satisfação  dos  seus  sentidos  ou  do  seu  orgulho;  se  tais  haveres se lhe tornaram causa de falência, melhor fora não os ter possuído, visto que  perde de um lado o que ganhou do outro, anulando o mérito de seu trabalho. Quando  deixar  a  Terra,  Deus  lhe  dirá  que  já  recebeu  a  sua  recompensa.  –  M.,  Espírito  protetor. (Bruxelas, 1861)  EMPREGO DA RIQUEZA  11. Não podeis servir a Deus e a Mamon. Guardai bem isso em lembrança, vós, a  quem  o  amor  do  ouro  domina;  vós,  que  venderíeis  a  alma  para  possuir  tesouros,  porque eles permitem vos eleveis acima dos outros homens e vos proporcionam os  gozos das paixões que vos escravizam. Não; não podeis servir a Deus e a Mamon!  Se, pois, sentis vossa alma dominada pelas cobiças da carne, dai­vos pressa em alijar  o  jugo  que  vos  oprime,  porquanto  Deus,  justo  e  severo,  vos  dirá:  Que  fizeste,  ecônomo  infiel,  dos  bens  que  te  confiei?  Esse  poderoso  móvel  de  boas  obras  exclusivamente o empregaste na tua satisfação pessoal.  Qual, então, o melhor emprego que se pode dar à riqueza? Procurai – nestas  palavras:  “Amai­vos  uns  aos  outros”,  a  solução  do  problema.  Elas  guardam  o  segredo  do  bom  emprego  das riquezas.  Aquele  que  se  acha  animado  do  amor  do  próximo  tem  aí  toda  traçada  a  sua  linha  de  proceder.  Na  caridade  está,  para  as  riquezas,  o  emprego  que  mais  apraz  a  Deus.  Não  nos  referimos,  é  claro,  a  essa  caridade  fria  e  egoísta,  que  consiste  em  a  criatura  espalhar  ao  seu  derredor  o  supérfluo de uma existência dourada. Referimo­nos à caridade plena de amor, que  procura a desgraça e a ergue, sem a humilhar. Rico!... dá do que te sobra; faze mais:  dá  um  pouco  do  que  te  é  necessário,  porquanto  o  de  que  necessitas  ainda  é  supérfluo. Mas, dá com sabedoria. Não repilas o que se queixa, com receio de que te  engane; vai às origens do mal. Alivia, primeiro; em seguida, informa­te, e vê se o  trabalho,  os  conselhos,  mesmo  a  afeição  não  serão  mais  eficazes  do  que  a  tua  esmola. Difunde em torno de ti, como os socorros materiais, o amor de Deus, o amor  do trabalho, o amor do próximo. Coloca tuas riquezas sobre uma base que nunca  lhes faltará e que te trará grandes lucros: a das boas obras. A riqueza da inteligência  deves utilizá­la como a do ouro. Derrama em torno de ti os tesouros da instrução;  derrama sobre teus irmãos os tesouros do teu amor e eles frutificarão. – Cheverus.  (Bordéus, 1861)  12.  Quando  considero  a  brevidade  da  vida,  dolorosamente  me  impressiona  a  incessante preocupação de que é para vós objeto o bem­estar material, ao passo que  tão  pouca  importância  dais  ao  vosso  aperfeiçoamento  moral,  a  que  pouco  ou  nenhum tempo consagrais e que, no entanto, é o que importa para a eternidade. Dir­  se­ia, diante da atividade que desenvolveis, tratar­se de uma questão do mais alto  interesse para a Humanidade, quando não se trata, na maioria dos casos, senão de
  • 168. 168 – Allan Kardec  vos pordes em condições de satisfazer a necessidades exageradas, à vaidade, ou de  vos entregardes a excessos. Que de penas, de amofinações, de tormentos cada um se  impõe;  que  de  noites  de  insônia,  para  aumentar  haveres  muitas  vezes  mais  que  suficientes!  Por  cúmulo  de  cegueira,  freqüentemente  se  encontram  pessoas,  escravizadas a penosos trabalhos pelo amor imoderado da riqueza e dos gozos que  ela proporciona, a se vangloriarem de viver uma existência dita de sacrifício e de  mérito –  como  se  trabalhassem  para  os  outros  e não  para si  mesmas!  Insensatos!  Credes, então, realmente, que vos serão levados em conta os cuidados e os esforços  que  despendeis  movidos  pelo  egoísmo,  pela  cupidez  ou  pelo  orgulho,  enquanto  negligenciais do vosso futuro, bem como dos deveres que a solidariedade fraterna  impõe a todos  os que gozam das vantagens da vida social?  Unicamente no vosso  corpo  haveis  pensado;  seu  bem­estar,  seus  prazeres  foram  o  objeto  exclusivo  da  vossa  solicitude  egoística.  Por  ele,  que  morre,  desprezastes  o  vosso  Espírito,  que  viverá sempre. Por isso mesmo, esse senhor tão amimado e acariciado se tornou o  vosso tirano; ele manda sobre o vosso Espírito, que se lhe constituiu escravo. Seria  essa  a  finalidade  da  existência  que  Deus  vos  outorgou?  –  Um  Espírito  protetor.  (Cracóvia, 1861)  13. Sendo o homem o depositário, o administrador dos bens que Deus lhe pôs nas  mãos,  contas  severas  lhe  serão  pedidas  do  emprego  que  lhes  haja  ele  dado,  em  virtude do seu livre­arbítrio. O mau uso consiste em os aplicar exclusivamente na  sua satisfação pessoal; bom é o uso, ao contrário, todas as vezes que deles resulta  um  bem  qualquer  para  outrem.  O  merecimento  de  cada  um  está na  proporção  do  sacrifício que se impõe a si mesmo. A beneficência é apenas um modo de empregar­  se  a  riqueza;  ela  dá  alívio  à  miséria  presente;  aplaca  a  fome,  preserva  do  frio  e  proporciona  abrigo  ao  que  não  o  tem.  Dever,  porém,  igualmente  imperioso  e  meritório é o de prevenir a miséria. Tal, sobretudo, a missão das grandes fortunas,  missão a ser cumprida mediante os trabalhos de todo gênero que com elas se podem  executar. Nem, pelo fato de tirarem desses trabalhos legítimo proveito os que assim  as  empregam,  deixaria  de  existir  o  bem  resultante  delas,  porquanto  o  trabalho  desenvolve  a  inteligência  e  exalça  a  dignidade  do  homem,  facultando­lhe  dizer,  altivo, que ganha o pão que come, enquanto a esmola humilha e degrada. A riqueza  concentrada  em  uma  mão  deve  ser  qual  fonte  de  água  viva  que  espalha  a  fecundidade e o bem­estar ao seu derredor. Ó vós, ricos, que a empregardes segundo  as vistas do Senhor! O vosso coração será o primeiro a dessedentar­se nessa fonte  benfazeja; já nesta existência fruireis os inefáveis gozos da alma, em vez dos gozos  materiais  do  egoísta,  que  produzem  no  coração  o  vazio.  Vossos  nomes  serão  benditos  na  Terra  e,  quando  a  deixardes,  o  soberano  Senhor  vos  dirá,  como  na  parábola  dos  talentos:  “Bom  e  fiel  servo,  entra  na  alegria  do  teu  Senhor.”  Nessa  parábola, o servidor que enterrou o dinheiro que lhe fora confiado é a representação  dos  avarentos,  em  cujas  mãos  se  conserva  improdutiva  a  riqueza.  Se,  entretanto,  Jesus fala principalmente das esmolas, é que naquele tempo e no país em que ele  vivia não se conheciam os trabalhos que as artes e a indústria criaram depois e nas  quais as riquezas podem ser aplicadas utilmente para o bem geral. A todos os que  podem dar, pouco ou muito, direi, pois: dai esmola quando for preciso; mas, tanto
  • 169. 169 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  quanto possível, convertei­a em salário, a fim de que aquele que a receba não se  envergonhe dela. – Fénelon. (Argel, 1860)  DESPRENDIMENTO DOS BENS TERRENOS  14. Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer­vos o meu óbolo, a fim de vos ajudar  a avançar, desassombradamente, pela senda do aperfeiçoamento em que entrastes.  Nós  nos  devemos  uns  aos  outros;  somente  pela união  sincera  e  fraternal  entre  os  Espíritos e os encarnados será possível a regeneração.  O  amor  aos  bens  terrenos  constitui  um  dos  mais  fortes  óbices  ao  vosso  adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais bens, destruís as vossas  faculdades  de  amar,  com  as  aplicardes  todas  às  coisas  materiais.  Sede  sinceros:  proporciona a riqueza uma felicidade sem mescla? Quando tendes cheios os cofres,  não há sempre um vazio no vosso coração? No fundo dessa cesta de flores não há  sempre  oculto  um  réptil?  Compreendo  a  satisfação,  bem  justa,  aliás,  que  experimenta o homem que, por meio de trabalho honrado e assíduo, ganhou uma  fortuna; mas, dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego que  absorve todos  os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração vai grande  distância,  tão  grande  quanto  a  que  separa  da  prodigalidade  exagerada  a  sórdida  avareza, dois vícios entre os quais colocou Deus a caridade, santa e salutar virtude  que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem baixeza.  Quer a fortuna vos tenha vindo da vossa família, quer a tenhais ganho com  o vosso trabalho, há uma coisa que não deveis esquecer nunca: é que tudo promana  de Deus, tudo retorna a Deus. Nada vos pertence na Terra, nem sequer o vosso pobre  corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens materiais. Sois depositários  e não proprietários, não vos iludais. Deus vo­los emprestou, tendes de lhos restituir;  e  ele  empresta  sob  a  condição  de  que  o  supérfluo,  pelo  menos,  caiba  aos  que  carecem do necessário.  Um dos vossos amigos vos empresta certa quantia. Por pouco honesto que  sejais, fazeis questão de lha restituirdes escrupulosamente e lhe ficais agradecido.  Pois  bem: essa a posição de todo homem rico. Deus é  o  amigo celestial, que lhe  emprestou a riqueza, não querendo para si mais do que o amor e o reconhecimento  do rico. Exige deste, porém, que a seu turno dê aos pobres, que são, tanto quanto ele,  seus filhos. Ardente  e  desvairada  cobiça  despertam nos  vossos  corações  os  bens  que  Deus vos confiou. Já pensastes, quando vos deixais apegar imoderadamente a uma  riqueza perecível e passageira como vós mesmos, que um dia tereis de prestar contas  ao Senhor daquilo que vos veio d’Ele? Olvidais que, pela riqueza, vos revestistes do  caráter  sagrado  de ministros  da  caridade na  Terra,  para  serdes  da aludida riqueza  dispensadores  inteligentes?  Portanto,  quando  somente  em vosso  proveito  usais  do  que  se  vos  confiou,  que  sois,  senão  depositários  infiéis?  Que  resulta  desse  esquecimento voluntário dos vossos deveres? A morte, inflexível, inexorável, rasga  o  véu  sob  que  vos  ocultáveis  e  vos  força  a  prestar  contas  ao  Amigo  que  vos  favorecera e que nesse momento enverga diante de vós a toga de juiz.
  • 170. 170 – Allan Kardec  Em vão procurais na Terra iludir­vos, colorindo com o nome de virtude o  que  as  mais  das  vezes  não  passa  de  egoísmo.  Em  vão  chamais  economia  e  previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao que não é senão  prodigalidade  em  proveito  vosso.  Um  pai  de  família,  por  exemplo,  se  abstém  de  praticar a caridade, economizará, amontoará ouro, para, diz ele, deixar aos filhos a  maior soma possível de bens e evitar que caiam na miséria. É muito justo e paternal,  convenho, e ninguém pode censurar. Mas será sempre esse o único móvel a que ele  obedece?  Não  será  muitas  vezes  um  compromisso  com  a  sua  consciência,  para  justificar, aos seus próprios olhos e aos olhos do mundo, seu apego pessoal aos bens  terrenais? Admitamos, no entanto, seja o amor paternal o único móvel que o guie.  Será isso motivo para que esqueça seus irmãos perante Deus? Quando já ele tem o  supérfluo,  deixará  na  miséria  os  filhos,  por  lhes  ficar  um  pouco  menos  desse  supérfluo?  Não  será,  antes,  dar­lhes  uma  lição  de  egoísmo  e  endurecer­lhes  os  corações?  Não  será  estiolar  neles  o  amor  ao  próximo?  Pais  e  mães,  laborais  em  grande erro, se credes que desse modo granjeais maior afeição dos  vossos  filhos.  Ensinando­lhes a ser egoístas para com os outros, ensinais­lhes a sê­lo para com vós  mesmos.  A um homem que muito haja trabalhado, e que com  o suor de seu rosto  acumulou bens, é comum ouvirdes dizer que, quando o dinheiro é ganho, melhor se  lhe  conhece  o  valor.  Nada mais  exato.  Pois  bem!  Pratique  a  caridade,  dentro  das  suas possibilidades, esse homem que declara conhecer todo o valor do dinheiro, e  maior será o seu merecimento, do que o daquele que, nascido na abundância, ignora  as rudes fadigas do trabalho. Mas, também, se esse homem, que se recorda dos seus  penares, dos seus esforços,  for egoísta, impiedoso para com os pobres, bem mais  culpado  se  tornará  do  que  o  outro,  pois,  quanto  melhor  cada  um  conhece  por  si  mesmo as dores ocultas da miséria, tanto mais propenso deve sentir­se em aliviá­las  nos outros.  Infelizmente,  sempre  há  no  homem  que  possui  bens  de  fortuna  um  sentimento tão forte quanto o apego aos mesmos bens: é o orgulho. Não raro, vê­se  o  arrivista  atordoar,  com  a  narrativa  de  seus  trabalhos  e  de  suas  habilidades,  o  desgraçado que lhe pede assistência, em vez de acudi­lo, e acabar dizendo: “Faça o  que eu fiz.” Segundo o seu modo de ver, a bondade de Deus não entra por coisa  alguma  na  obtenção  da  riqueza  que  conseguiu  acumular;  pertence­lhe  a  ele,  exclusivamente, o mérito de a possuir. O orgulho lhe põe sobre os olhos uma venda  e lhe tapa os ouvidos. Apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua aptidão, não  compreende que, com uma só palavra, Deus o pode lançar por terra.  Esbanjar a riqueza não é demonstrar desprendimento dos bens terrenos: é  descaso e indiferença. Depositário desses  bens, não tem o  homem o direito de os  dilapidar,  como  não  tem  o  de  os  confiscar  em  seu  proveito.  Prodigalidade  não  é  generosidade: é, freqüentemente, uma modalidade do egoísmo. Um, que despenda a  mancheias o ouro de que disponha, para satisfazer a uma fantasia, talvez não dê um  centavo para prestar um serviço. O desapego aos bens terrenos consiste em apreciá­  los no seu justo valor, em saber servir­se deles em benefício dos outros e não apenas  em  benefício  próprio,  em não  sacrificar  por  eles  os  interesses  da  vida  futura,  em  perdê­los sem murmurar, caso apraza a Deus retirá­los. Se, por efeito de imprevistos  reveses, vos tornardes qual Jó, dizei, como ele: “Senhor, tu mos havias dado e mos
  • 171. 171 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  tiraste. Faça­se a tua vontade.” Eis aí o verdadeiro desprendimento. Sede, antes de  tudo,  submissos;  confiai  n’Aquele  que,  tendo­vos  dado  e  tirado,  pode  novamente  restituir­vos o que vos tirou. Resisti animosos ao abatimento, ao desespero, que vos  paralisam as forças. Quando Deus vos desferir um golpe, não esqueçais nunca que,  ao lado da mais rude prova, coloca sempre uma consolação. Ponderai, sobretudo,  que há bens infinitamente mais preciosos do que os da Terra e essa idéia vos ajudará  a desprender­vos destes últimos. O pouco apreço que se ligue a uma coisa faz que  menos sensível seja a sua perda. O homem que se aferra aos bens terrenos é como a  criança que somente vê o momento que passa. O que deles se desprende é como o  adulto que vê as coisas mais importantes, por compreender estas proféticas palavras  do Salvador: “O meu reino não é deste mundo.”  A ninguém ordena o Senhor que se despoje do que possua, condenando­se a  uma voluntária mendicidade, porquanto o que tal fizesse tornar­se­ia em carga para a  sociedade.  Proceder  assim  fora  compreender  mal  o  desprendimento  dos  bens  terrenos.  Fora  egoísmo  de  outro  gênero,  porque  seria  o  indivíduo  eximir­se  da  responsabilidade que a riqueza faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a concede  a quem bem lhe parece, a fim de que a administre em proveito de todos. O rico tem,  pois, uma missão, que ele pode embelezar e tornar proveitosa a si mesmo. Rejeitar a  riqueza,  quando  Deus  a  outorga,  é  renunciar  aos  benefícios  do  bem  que  se  pode  fazer, gerindo­a com critério. Sabendo prescindir dela quando não a tem, sabendo  empregá­la  utilmente  quando  a  possui,  sabendo  sacrificá­la  quando  necessário,  procede a criatura de acordo com os desígnios do Senhor. Diga, pois, aquele a cujas  mãos venha o que no mundo se chama uma boa fortuna: Meu Deus, tu me destinaste  um novo encargo; dá­me a força de desempenhá­lo segundo a tua santa vontade.  Aí  tendes,  meus  amigos,  o  que  eu  vos  queria  ensinar  acerca  do  desprendimento dos bens terrenos. Resumirei o que expus, dizendo: Sabei contentar­  vos  com  pouco.  Se  sois  pobres,  não invejeis  os  ricos,  porquanto  a riqueza não  é  necessária à felicidade. Se sois ricos, não esqueçais que os bens de que dispondes  apenas vos estão confiados  e que tendes de  justificar o emprego que lhes derdes,  como se prestásseis contas de uma tutela. Não sejais depositário infiel, utilizando­os  unicamente  em  satisfação  do  vosso  orgulho  e  da  vossa  sensualidade.  Não  vos  julgueis com o direito de dispor em vosso exclusivo proveito daquilo que recebestes,  não por doação, mas simplesmente como empréstimo. Se não sabeis restituir, não  tendes o direito de pedir, e lembrai­vos de que aquele que dá aos pobres, salda a  dívida que contraiu com Deus. – Lacordaire. (Constantina, 1863)  TRANSMISSÃO DA RIQUEZA  15. O princípio, segundo o qual ele é apenas depositário da fortuna de que Deus lhe  permite  gozar  durante  a  vida,  tira  ao  homem  o  direito  de  transmiti­la  aos  seus  descendentes?  O  homem  pode  perfeitamente  transmitir,  por  sua  morte,  aquilo  de  que  gozou  durante  a  vida,  porque  o  efeito  desse  direito  está  subordinado  sempre  à  vontade de Deus, que pode, quando quiser, impedir que aqueles descendentes gozem  do que lhes foi transmitido. Não é outra a razão por que desmoronam fortunas que
  • 172. 172 – Allan Kardec  parecem  solidamente  constituídas.  É,  pois,  impotente  a  vontade  do  homem  para  conservar nas mãos da sua descendência a fortuna que possua. Isso, entretanto, não o  priva do direito de transmitir o empréstimo que recebeu de Deus, uma vez que Deus  pode retirá­lo, quando o julgue oportuno. – São Luís. (Paris, 1860)
  • 173. 173 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XVII  SEDE PERFEITOS ·  CARACTERES DA PERFEIÇÃO ·  O HOMEM DE BEM ·  OS BONS ESPÍRITAS ·  PARÁBOLA DO SEMEADOR  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  O DEVER ·  A VIRTUDE ·  OS SUPERIORES E OS INFERIORES ·  O HOMEM NO MUNDO ·  CUIDAI DO CORPO E DO ESPÍRITO  CARACTERES DA PERFEIÇÃO  1. “ Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos  que vos perseguem e caluniam. Porque, se somente amardes os que vos  amam,  que  recompensa  tereis  disso?  Não  fazem  assim  também  os  publicanos? Se unicamente saudardes os vossos irmãos, que fazeis com  isso mais do que outros? Não fazem o mesmo os pagãos? Sede, pois, vós  outros, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial”.  (MATEUS, 5:44, 46 a 48)  2.  Pois  que  Deus  possui  a  perfeição  infinita  em  todas  as coisas,  esta  proposição:  “Sede  perfeitos,  como  perfeito  é  o  vosso  Pai  celestial”,  tomada  ao  pé  da  letra,  pressuporia  a  possibilidade  de  atingir­se  a  perfeição  absoluta.  Se  à  criatura  fosse  dado  ser  tão  perfeita  quanto  o  Criador,  tornar­se­ia  ela  igual  a  este,  o  que  é
  • 174. 174 – Allan Kardec  inadmissível.  Mas,  os  homens  a  quem  Jesus  falava  não  compreenderiam  essa  nuança, pelo que ele se limitou a lhes apresentar um modelo e a dizer­lhes que se  esforçassem pelo alcançar.  Aquelas  palavras,  portanto,  devem  entender­se  no  sentido  da  perfeição  relativa, a de que a Humanidade é suscetível e que mais a aproxima da Divindade.  Em que consiste essa perfeição? Jesus o diz: “Em amarmos os nossos inimigos, em  fazermos o bem aos que nos odeiam, em orarmos pelos que nos perseguem.” Mostra  ele desse modo que a essência da perfeição é a caridade na sua mais ampla acepção,  porque implica a prática de todas as outras virtudes.  Com efeito, se se observam os resultados de todos os vícios e, mesmo, dos  simples  defeitos,  reconhecer­se­á  nenhum  haver  que  não  altere mais  ou  menos  o  sentimento da caridade, porque todos têm seu princípio no egoísmo e no orgulho,  que  lhes  são  a  negação;  e  isso  porque  tudo  o  que  sobreexcita  o  sentimento  da  personalidade  destrói,  ou,  pelo  menos,  enfraquece  os  elementos  da  verdadeira  caridade, que são: a benevolência, a indulgência, a abnegação e o devotamento. Não  podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar­se a nenhum  defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou  menor  superioridade moral,  donde  decorre  que  o  grau  da perfeição  está  na razão  direta  da  sua  extensão.  Foi  por  isso  que  Jesus,  depois  de  haver  dado  a  seus  discípulos  as  regras  da  caridade,  no  que  tem  de  mais  sublime,  lhes  disse:  “Sede  perfeitos, como perfeito é vosso Pai celestial.”  O HOMEM DE BEM  3.  O  verdadeiro  homem  de  bem  é  o  que  cumpre  a  lei  de  justiça,  de  amor  e  de  caridade, na sua maior pureza. Se ele interroga a consciência sobre seus próprios  atos, a si mesmo perguntará se violou essa lei, se não praticou o mal, se fez todo o  bem  que  podia,  se  desprezou  voluntariamente  alguma  ocasião  de  ser  útil,  se  ninguém tem qualquer queixa dele; enfim, se fez a outrem tudo o que desejara lhe  fizessem.  Deposita fé em Deus, na Sua bondade, na Sua justiça e na Sua sabedoria.  Sabe que sem a Sua permissão nada acontece e se Lhe submete à vontade em todas  as coisas.  Tem fé no futuro, razão por que coloca os bens espirituais acima dos bens  temporais.  Sabe que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas as decepções  são provas ou expiações e as aceita sem murmurar.  Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo  bem, sem esperar paga alguma; retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco  contra o forte, e sacrifica sempre seus interesses à justiça.  Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no  fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza  aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é  para cuidar dos interesses dos outros antes do seu próprio interesse. O egoísta, ao  contrário, calcula os proventos e as perdas decorrentes de toda ação generosa.
  • 175. 175 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  O  homem  de  bem  é  bom,  humano  e  benevolente  para  com  todos,  sem  distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus.  Respeita nos outros todas as convicções sinceras e não lança anátema aos  que como ele não pensam.  Em todas as circunstâncias, toma por guia a caridade, tendo como certo que  aquele que prejudica a outrem com palavras malévolas, que fere com o seu orgulho e  o  seu  desprezo  a  suscetibilidade  de  alguém,  que  não  recua  à  idéia  de  causar  um  sofrimento,  uma  contrariedade,  ainda  que  ligeira,  quando  a  pode  evitar,  falta  ao  dever de amar o próximo e não merece a clemência do Senhor.  Não  alimenta  ódio,  nem  rancor,  nem  desejo  de  vingança;  a  exemplo  de  Jesus,  perdoa  e  esquece  as  ofensas  e  só  dos  benefícios  se  lembra,  por  saber  que  perdoado lhe será conforme houver perdoado.  É indulgente para as fraquezas alheias, porque sabe que também necessita  de indulgência e tem presente esta sentença do Cristo: “Atire­lhe a primeira pedra  aquele que se achar sem pecado.”  Nunca  se  compraz  em  rebuscar  os  defeitos  alheios,  nem,  ainda,  em  evidenciá­los. Se a isso se vê obrigado, procura sempre o bem que possa atenuar o  mal.  Estuda suas próprias imperfeições e trabalha incessantemente em combatê­  las. Todos os esforços emprega para dizer, no dia seguinte, que alguma coisa traz em  si de melhor do que na véspera.  Não procura dar valor ao seu espírito, nem aos seus talentos, a expensas de  outrem;  aproveita,  ao  revés,  todas  as  ocasiões  para  fazer  ressaltar  o  que  seja  proveitoso aos outros.  Não se envaidece da sua riqueza, nem de suas vantagens pessoais, por saber  que tudo o que lhe foi dado pode ser­lhe tirado.  Usa,  mas  não  abusa  dos  bens  que  lhe  são  concedidos,  sabe  que  é  um  depósito de que terá de prestar contas e que o mais prejudicial emprego que lhe pode  dar é o de aplicá­lo à satisfação de suas paixões.  Se a ordem social colocou sob o seu mando outros homens, trata­os com  bondade e benevolência, porque são seus iguais perante Deus; usa da sua autoridade  para  lhes  levantar  o  moral  e não  para  os  esmagar  com  o  seu  orgulho. Evita  tudo  quanto lhes possa tornar mais penosa a posição subalterna em que se encontram.  O subordinado, de sua parte, compreende os deveres da posição que ocupa  e se empenha em cumpri­los conscienciosamente. (Cap. XVII, nº 9)  Finalmente,  o  homem  de  bem  respeita  todos  os  direitos  que  aos  seus  semelhantes dão as leis da Natureza, como quer que sejam respeitados os seus.  Não ficam assim enumeradas todas as qualidades que distinguem o homem  de bem; mas, aquele que se esforce por possuir as que acabamos de mencionar, no  caminho se acha que a todas as demais conduz.  OS BONS ESPÍRITAS  4. Bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, o Espiritismo leva aos resultados  acima expostos, que caracterizam o verdadeiro espírita, como o cristão verdadeiro,  pois que um o mesmo é que outro. O Espiritismo não institui nenhuma nova moral;
  • 176. 176 – Allan Kardec  apenas  facilita  aos  homens  a  inteligência  e  a  prática  da  do  Cristo,  facultando  fé  inabalável e esclarecida aos que duvidam ou vacilam.  Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das manifestações não lhes  apreendem  as  conseqüências,  nem  o  alcance  moral,  ou,  se  os  apreendem, não os  aplicam a si mesmos. A que atribuir isso? A alguma falta de clareza da Doutrina?  Não, pois que ela não contém alegorias nem figuras que possam dar lugar a falsas  interpretações. A clareza é da sua essência mesma e é donde lhe vem toda a força,  porque a faz ir direito à inteligência. Nada tem de misteriosa e seus iniciados não se  acham de posse de qualquer segredo, oculto ao vulgo.  Será  então  necessária,  para  compreendê­la,  uma  inteligência  fora  do  comum? Não, tanto que há homens de notória capacidade que não a compreendem,  ao passo que inteligências vulgares, moços mesmo, apenas saídos da adolescência,  lhes apreendem, com admirável precisão, os mais delicados matizes. Provém isso de  que a parte por assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem,  enquanto  a  parte  essencial  exige  um  certo  grau  de  sensibilidade,  a  que  se  pode  chamar maturidade do senso moral, maturidade que independe da idade e do grau de  instrução, porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial, do Espírito  encarnado.  Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o  Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira­lhes a visão  do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores, nem com  seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são  dotados. Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem  pouco lhes modifica as tendências instintivas. Numa palavra: não divisam mais do  que um raio de luz, insuficiente a guiá­los e a lhes facultar uma vigorosa aspiração,  capaz  de  lhes  sobrepujar  as  inclinações.  Atêm­se  mais  aos  fenômenos  do  que  à  moral,  que  se  lhes  afigura  cediça  e  monótona.  Pedem  aos  Espíritos  que  incessantemente  os  iniciem  em  novos  mistérios,  sem  procurar  saber  se  já  se  tornaram  dignos  de  penetrar  os  arcanos  do  Criador.  Esses  são  os  espíritas  imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos  em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as  suas  simpatias  para  os  que  lhes  compartilham  das  fraquezas  ou  das  prevenções.  Contudo, a aceitação do princípio da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará  mais fácil o segundo, noutra existência.  Aquele  que  pode  ser,  com  razão,  qualificado  de  espírita  verdadeiro  e  sincero,  se  acha  em  grau  superior  de  adiantamento  moral.  O  Espírito,  que  nele  domina  de  modo  mais  completo  a  matéria,  dá­lhe  uma  percepção  mais  clara  do  futuro;  os  princípios  da  Doutrina  lhe  fazem  vibrar  fibras  que  nos  outros  se  conservam inertes. Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna  a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro  apenas  ouve  sons.  Reconhece­se  o  verdadeiro  espírita  pela  sua  transformação  moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más. Enquanto  um se contenta com o seu horizonte limitado, outro, que apreende alguma coisa de  melhor, se esforça por desligar­se dele e sempre o consegue, se tem firme a vontade.
  • 177. 177 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  PARÁBOLA DO SEMEADOR  5. Naquele mesmo dia, tendo saído de casa, Jesus sentou­se à borda do  mar;  em  torno  dele  logo  reuniu­se  grande  multidão  de  gente;  pelo  que  entrou  numa  barca,  onde  sentou­se,  permanecendo  na  margem  todo  o  povo. Disse então muitas coisas por parábolas, falando­lhes assim:  “Aquele  que  semeia  saiu  a  semear;  e,  semeando, uma  parte  da  semente  caiu  ao  longo  do  caminho  e  os  pássaros  do  céu  vieram  e  a  comeram. Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia muita  terra; as sementes logo brotaram, porque carecia de profundidade a terra  onde  haviam  caído.  Mas,  levantando­se,  o  Sol  as  queimou  e,  como  não  tinham  raízes,  secaram.  Outra  parte  caiu  entre  espinheiros  e  estes,  crescendo, as abafaram. Outra, finalmente, caiu em terra boa e produziu  frutos,  dando  algumas  sementes  cem  por  um,  outras  sessenta  e  outras  trinta. Ouça quem tem ouvidos de ouvir”.  (MATEUS, 13:1 a 9)  “Escutai, pois, vós outros a parábola do semeador”:  “Quem quer que escuta a palavra do reino e não lhe dá atenção,  vem o espírito maligno e tira o que lhe fora semeado no coração. Esse é o  que  recebeu  a  semente  ao  longo  do  caminho.  Aquele  que  recebe  a  semente em meio das pedras é o que escuta a palavra e que a recebe com  alegria  no  primeiro  momento.  Mas,  não  tendo  nele  raízes,  dura  apenas  algum tempo. Em sobrevindo reveses e perseguições por causa da palavra,  tira ele daí motivo de escândalo e de queda. Aquele que recebe a semente  entre espinheiros é o que ouve a palavra; mas, em quem, logo, os cuidados  deste  século  e  a  ilusão  das  riquezas  abafam  aquela  palavra  e a  tornam  infrutífera.  Aquele,  porém,  que  recebe  a  semente  em  boa  terra  é  o  que  escuta  a  palavra,  que  lhe  presta  atenção  e  em  quem  ela  produz  frutos,  dando cem ou sessenta, ou trinta por um”.  (MATEUS, 13:18 a 23)  6. A parábola do semeador exprime perfeitamente os matizes existentes na maneira  de serem utilizados os ensinos do Evangelho. Quantas pessoas há, com efeito, para  as quais não passa ele de letra morta e que, como a semente caída sobre pedregulhos,  nenhum fruto dá! Não menos justa aplicação encontra ela nas diferentes categorias  espíritas.  Não  se  acham  simbolizados  nela  os  que  apenas atentam nos  fenômenos  materiais e nenhuma conseqüência tiram deles, porque neles mais não vêem do que  fatos curiosos? Os que apenas se preocupam com o lado brilhante das comunicações  dos Espíritos, pelas quais só se interessam quando lhes satisfazem à imaginação, e  que, depois de as terem ouvido, se conservam tão frios e indiferentes quanto eram?  Os  que  reconhecem  muito  bons  os  conselhos  e  os  admiram,  mas  para  serem  aplicados aos outros e não a si próprios? Aqueles, finalmente, para os quais essas  instruções são como a semente que cai em terra boa e dá frutos?
  • 178. 178 – Allan Kardec  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  O DEVER  7.  O  dever  é  a  obrigação  moral  da  criatura  para  consigo  mesma,  primeiro,  e,  em  seguida, para com os outros. O dever é a lei da vida. Com ele deparamos nas mais  ínfimas particularidades, como nos atos mais elevados. Quero aqui falar apenas do  dever moral e não do dever que as profissões impõem.  Na  ordem  dos  sentimentos,  o  dever  é  muito  difícil de  cumprir­se,  por  se  achar  em  antagonismo  com  as  atrações  do  interesse  e  do  coração.  Não  têm  testemunhas as suas vitórias e não estão sujeitas à repressão suas derrotas. O dever  íntimo  do  homem  fica  entregue  ao  seu  livre­arbítrio.  O  aguilhão  da  consciência,  guardião da probidade interior, o adverte e sustenta; mas, muitas vezes, mostra­se  impotente diante dos sofismas da paixão. Fielmente observado, o dever do coração  eleva o homem; como determiná­lo, porém, com exatidão? Onde começa ele? onde  termina? O  dever  principia,  para  cada  um  de vós, exatamente  no  ponto  em  que  ameaçais a felicidade ou a tranqüilidade do vosso próximo; acaba no limite que não  desejais ninguém transponha com relação a vós.  Deus  criou  todos  os  homens  iguais  para  a  dor.  Pequenos  ou  grandes,  ignorantes ou instruídos, sofrem todos pelas mesmas causas, a fim de que cada um  julgue em sã consciência o mal que pode fazer. Com relação ao bem, infinitamente  vário nas suas expressões, não é o mesmo o critério. A igualdade em face da dor é  uma sublime providência de Deus, que quer que todos os seus filhos, instruídos pela  experiência comum, não pratiquem o mal, alegando ignorância de seus efeitos.  O dever é o resumo prático de todas as especulações morais; é uma bravura  da alma que enfrenta as angústias da luta; é austero e brando; pronto a dobrar­se às  mais  diversas  complicações,  conserva­se  inflexível  diante  das  suas  tentações.  O  homem que cumpre o seu dever ama a Deus mais do que as criaturas e ama as  criaturas mais do que a si mesmo. É a um tempo juiz e escravo em causa própria.  O dever é o mais belo laurel da razão; descende desta como de sua mãe o  filho. O homem tem de amar o dever, não porque preserve de males a vida, males  aos quais a Humanidade não pode subtrair­se, mas porque confere à alma o vigor  necessário ao seu desenvolvimento.  O dever cresce e irradia sob mais elevada forma, em cada um dos estágios  superiores  da  Humanidade.  Jamais  cessa  a  obrigação  moral  da  criatura  para  com  Deus. Tem esta de refletir as virtudes do Eterno, que não aceita esboços imperfeitos,  porque quer que a beleza da sua obra resplandeça a seus próprios olhos. – Lázaro.  (Paris, 1863)  A VIRTUDE  8. A virtude, no mais alto grau, é o conjunto de todas as qualidades essenciais que  constituem o homem de bem. Ser bom, caritativo, laborioso, sóbrio, modesto, são  qualidades  do  homem  virtuoso.  Infelizmente,  quase  sempre  as  acompanham  pequenas enfermidades morais que as desornam e atenuam. Não é virtuoso aquele
  • 179. 179 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  que  faz  ostentação  da  sua  virtude,  pois  que  lhe  falta  a  qualidade  principal:  a  modéstia, e tem o vício que mais se lhe opõe: o orgulho. A virtude, verdadeiramente  digna desse nome, não gosta de estadear­se. Adivinham­na; ela, porém, se oculta na  obscuridade e foge à admiração das massas. S. Vicente de Paulo era virtuoso; eram  virtuosos o digno cura d’Ars e muitos outros quase desconhecidos do mundo, mas  conhecidos de Deus. Todos esses homens de bem ignoravam que fossem virtuosos;  deixavam­se  ir  ao  sabor  de  suas  santas  inspirações  e  praticavam  o  bem  com  desinteresse, completo e inteiro esquecimento de si mesmos.  À virtude assim compreendida e praticada é que vos convido, meus filhos; a  essa virtude verdadeiramente cristã e verdadeiramente espírita é que vos concito a  consagrar­vos. Afastai, porém, de vossos corações tudo o que seja orgulho, vaidade,  amor­próprio,  que  sempre  desadornam  as  mais  belas  qualidades.  Não  imiteis  o  homem que se apresenta como modelo e trombeteia, ele próprio, suas qualidades a  todos os ouvidos complacentes. A virtude que assim se ostenta esconde muitas vezes  uma imensidade de pequenas torpezas e de odiosas covardias.  Em princípio, o homem que se exalça, que ergue uma estátua à sua própria  virtude, anula, por esse simples fato, todo mérito real que possa ter. Entretanto, que  direi  daquele  cujo  único  valor  consiste  em  parecer  o  que  não  é?  Admito  de  boa  mente que o homem que pratica o bem experimenta uma satisfação íntima em seu  coração; mas, desde que tal satisfação se exteriorize, para colher elogios, degenera  em amor­próprio.  Ó vós todos a quem a fé espírita aqueceu com seus raios, e que sabeis quão  longe da perfeição está o homem, jamais esbarreis em semelhante escolho. A virtude  é uma graça que desejo a todos os espíritas sinceros. Contudo, dir­lhes­ei: Mais vale  pouca  virtude  com  modéstia,  do  que  muita  com  orgulho.  Pelo  orgulho  é  que  as  Humanidades sucessivamente se hão perdido; pela humildade é que um dia elas se  hão de redimir. – François­Nicolas­Madeleine. (Paris, 1863)  OS SUPERIORES E OS INFERIORES  9.  A  autoridade,  tanto  quanto  a  riqueza,  é  uma  delegação  de  que  terá  de  prestar  contas aquele  que  se  ache  dela  investido.  Não  julgueis  que  lhe  seja  ela  conferida  para lhe proporcionar o vão prazer de mandar; nem, conforme o supõe a maioria dos  potentados  da  Terra,  como  um  direito,  uma  propriedade.  Deus,  aliás,  lhes  prova  constantemente que não é nem uma nem outra coisa, pois que deles a retira quando  lhe apraz. Se fosse um privilégio inerente às suas personalidades, seria inalienável.  A ninguém cabe dizer que uma coisa lhe pertence, quando lhe pode ser tirada sem  seu  consentimento.  Deus  confere  a  autoridade  a  título  de  missão,  ou  de  prova,  quando o entende, e a retira quando julga conveniente.  Quem quer que seja depositário de autoridade, seja qual for a sua extensão,  desde a do senhor sobre o seu servo, até a do soberano sobre o seu povo, não deve  olvidar que tem almas a seu cargo; que responderá pela boa ou má diretriz que dê  aos seus subordinados e que sobre ele recairão as faltas que estes cometam, os vícios  a que sejam arrastados em conseqüência dessa diretriz ou dos maus exemplos, do  mesmo modo que colherá os frutos da solicitude que empregar para os conduzir ao
  • 180. 180 – Allan Kardec  bem. Todo homem tem na Terra uma missão, grande ou pequena; qualquer que ela  seja, sempre lhe é dada para o bem; falseá­la em seu princípio é, pois, falir ao seu  desempenho.  Assim como pergunta ao rico: “Que fizeste da riqueza que nas tuas mãos  devera ser um manancial a espalhar a fecundidade ao teu derredor”, também Deus  inquirirá  daquele  que  disponha  de  alguma  autoridade:  “Que  uso  fizeste  dessa  autoridade? Que males evitaste? Que progresso facultaste? Se te dei subordinados,  não foi para que os fizesses escravos da tua vontade, nem instrumentos dóceis aos  teus caprichos ou à tua cupidez; fiz­te forte e confiei­te os que eram fracos, para que  os amparasses e ajudasses a subir ao meu seio.”  O  superior, que  se  ache  compenetrado  das  palavras do  Cristo,  a nenhum  despreza dos que lhe estejam submetidos, porque sabe que as distinções sociais não  prevalecem  às  vistas  de  Deus.  Ensina­lhe  o  Espiritismo  que,  se  eles  hoje  lhe  obedecem, talvez já lhe tenham dado ordens, ou poderão dar­lhas mais tarde, e que  ele  então  será  tratado  conforme  os  haja  tratado,  quando  sobre  eles  exercia  autoridade. Mas, se o superior tem deveres a cumprir, o inferior, de seu lado, também  os  tem  e  não  menos  sagrados.  Se  for  espírita,  sua  consciência  ainda  mais  imperiosamente lhe dirá que não pode considerar­se dispensado de cumpri­los, nem  mesmo quando o seu chefe deixe de dar cumprimento aos que lhe correm, porquanto  sabe muito bem não ser lícito retribuir o mal com o mal e que as faltas de uns não  justificam as de outrem. Se a sua posição lhe acarreta sofrimentos, reconhecerá que  sem dúvida os mereceu, porque, provavelmente, abusou outrora da autoridade que  tinha,  cabendo­lhe,  portanto,  experimentar  a  seu  turno  o  que  fizera  sofressem  os  outros. Se se vê forçado a suportar essa posição, por não encontrar outra melhor, o  Espiritismo lhe ensina a resignar­se, como constituindo isso uma prova para a sua  humildade, necessária  ao  seu  adiantamento.  Sua  crença  lhe  orienta a  conduta  e  o  induz a proceder como quereria que seus subordinados procedessem para com ele,  caso fosse o chefe. Por isso mesmo, mais escrupuloso se mostra no cumprimento de  suas  obrigações,  pois  compreende  que  toda  negligência  no  trabalho  que  lhe  está  determinado redunda em prejuízo para aquele que o remunera e a quem deve ele o  seu  tempo  e  os  seus  esforços.  Numa  palavra:  solicita­o  o  sentimento  do  dever,  oriundo da sua fé, e a certeza de que todo afastamento do caminho reto implica uma  dívida  que,  cedo  ou  tarde,  terá  de  pagar.  –  François­Nicolas­Madeleine,  Cardeal  Morlot. (Paris, 1863)  O HOMEM NO MUNDO  10. Um sentimento de piedade deve sempre animar o coração dos que se reúnem sob  as vistas do Senhor e imploram a assistência dos bons Espíritos. Purificai, pois, os  vossos corações; não consintais que neles demore qualquer pensamento mundano ou  fútil. Elevai o vosso espírito àqueles por quem chamais, a fim de que, encontrando  em  vós  as  necessárias  disposições,  possam  lançar  em  profusão  a  semente  que  é  preciso germine em vossas almas e dê frutos de caridade e justiça.
  • 181. 181 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Não  julgueis,  todavia,  que,  exortando­vos  incessantemente  à  prece  e  à  evocação mental, pretendamos vivais uma vida mística, que vos conserve fora das  leis  da  sociedade  onde  estais  condenados  a  viver.  Não;  vivei  com  os  homens  da  vossa época, como devem viver os homens. Sacrificai às necessidades, mesmo às  frivolidades  do  dia,  mas  sacrificai  com  um  sentimento  de  pureza  que  as  possa  santificar.  Sois chamados a estar em contacto com espíritos de naturezas diferentes, de  caracteres  opostos:  não  choqueis  a  nenhum  daqueles  com  quem  estiverdes.  Sede  joviais, sede ditosos, mas seja a vossa jovialidade a que provém de uma consciência  limpa, seja a vossa ventura a do herdeiro do Céu que conta os dias que faltam para  entrar na posse da sua herança.  Não  consiste  a  virtude  em  assumirdes  severo  e  lúgubre  aspecto,  em  repelirdes  os  prazeres  que  as  vossas  condições  humanas  vos  permitem.  Basta  reporteis todos os atos da vossa vida ao Criador que vo­la deu; basta que, quando  começardes  ou  acabardes  uma  obra,  eleveis  o  pensamento  a  esse  Criador  e  lhe  peçais, num arroubo d’alma, ou a sua proteção para que obtenhais êxito, ou a sua  bênção para ela, se a concluístes. Em tudo o que fizerdes, remontai à Fonte de todas  as coisas, para que nenhuma de vossas ações deixe de ser purificada e santificada  pela lembrança de Deus.  A perfeição está toda, como disse o Cristo, na prática da caridade absoluta;  mas, os deveres da caridade alcançam todas as posições sociais, desde o menor até o  maior.  Nenhuma  caridade  teria  a  praticar  o  homem  que  vivesse  insulado.  Unicamente no contacto com os seus semelhantes, nas lutas mais árduas é que ele  encontra ensejo de praticá­la. Aquele, pois, que se isola priva­se voluntariamente do  mais poderoso meio de aperfeiçoar­se; não tendo de pensar senão em si, sua vida é a  de um egoísta. (Cap. V, no 26)  Não  imagineis,  portanto,  que,  para  viverdes  em  comunicação  constante  conosco, para viverdes sob as vistas do Senhor, seja preciso vos cilicieis e cubrais de  cinzas.  Não,  não,  ainda  uma  vez  vos  dizemos.  Ditosos  sede,  segundo  as  necessidades  da  Humanidade;  mas,  que  jamais  na  vossa  felicidade  entre  um  pensamento ou um ato que o possa ofender, ou fazer se vele o semblante dos que  vos amam e dirigem. Deus é amor, e aqueles que amam santamente ele os abençoa.  – Um Espírito Protetor. (Bordéus, 1863)  CUIDAR DO CORPO E DO ESPÍRITO  11. Consistirá na maceração do corpo a perfeição moral? Para resolver essa questão,  apoiar­me­ei em princípios elementares e começarei por demonstrar a necessidade  de cuidar­se do corpo que, segundo as alternativas de saúde e de enfermidade, influi  de maneira muito importante sobre a alma, que cumpre se considere cativa da carne.  Para que essa prisioneira viva, se expanda e chegue mesmo a conceber as ilusões da  liberdade, tem o corpo de estar são, disposto, forte. Façamos uma comparação: Eis  se acham ambos em perfeito estado; que devem fazer para manter o equilíbrio entre
  • 182. 182 – Allan Kardec  as suas aptidões e as suas necessidades tão diferentes? Inevitável parece a luta entre  os dois e difícil achar­se o segredo de como chegarem a equilíbrio 10  .  Dois  sistemas  se  defrontam:  o  dos  ascetas,  que  tem  por  base  o  aniquilamento  do  corpo,  e  o  dos  materialistas,  que se  baseia  no  rebaixamento  da  alma. Duas violências quase tão insensatas uma quanto a outra. Ao lado desses dois  grandes partidos, formiga a numerosa tribo dos indiferentes que, sem convicção e  sem paixão, são mornos no amar e econômicos no gozar. Onde, então, a sabedoria?  Onde, então, a ciência de viver? Em parte alguma; e o grande problema ficaria sem  solução, se o Espiritismo não viesse em auxílio dos pesquisadores, demonstrando­  lhes  as  relações  que  existem  entre  o  corpo  e  a  alma  e  dizendo­lhes  que,  por  se  acharem  em  dependência  mútua,  importa  cuidar  de  ambos.  Amai,  pois,  a  vossa  alma, porém, cuidai igualmente do vosso corpo, instrumento daquela. Desatender as  necessidades  que  a  própria  Natureza  indica,  é  desatender  a  lei  de  Deus.  Não  castigueis o corpo pelas faltas que o vosso livre­arbítrio o induziu a cometer e pelas  quais é ele tão responsável quanto o cavalo mal dirigido, pelos acidentes que causa.  Sereis, porventura, mais perfeitos se, martirizando o corpo, não vos tornardes menos  egoístas, nem menos orgulhosos e mais caritativos para com o vosso próximo? Não,  a perfeição não está nisso: está toda nas reformas por que fizerdes passar o vosso  Espírito. Dobrai­o, submetei­o, humilhai­o, mortificai­o: esse o meio de o tornardes  dócil  à  vontade  de  Deus  e  o  único  de  alcançardes  a  perfeição.  –  Jorge,  Espírito  Protetor. (Paris, 1863)  10  O último período desse parágrafo – “inevitável parece a luta entre os dois e difícil achar­se o segredo  de como chegarem a equilíbrio” – não aparece nas novas edições francesas desde a 3ª, mas se acha na 1ª  edição e, por isso, a repomos no texto, corrigindo um evidente erro de impressão. – A Editora.
  • 183. 183 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XVIII  MUITOS OS CHAMADOS, POUCOS OS ESCOLHIDOS ·  PARÁBOLA DO FESTIM DE BODAS ·  A PORTA ESTREITA ·  NEM TODOS OS QUE DIZEM: SENHOR! SENHOR!  ENTRARÃO NO REINO DOS CÉUS ·  MUITO SE PEDIRÁ ÀQUELE QUE MUITO  RECEBEU  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS  §  DAR­SE­Á ÀQUELE QUE TEM  §  PELAS SUAS OBRAS É QUE SE  RECONHECE O CRISTÃO  PARÁBOLA DO FESTIM DE BODAS  1.  Falando  ainda  por  parábolas,  disse­lhes  Jesus:  “O  reino  dos  céus  se  assemelha  a  um  rei  que,  querendo  festejar  as  bodas  de  seu  filho,  despachou  seus  servos  a  chamar  para  as  bodas  os  que  tinham  sido  convidados; estes, porém, recusaram ir. O rei despachou outros servos com  ordem  de  dizer  da  sua  parte  aos  convidados:  ‘Preparei  o  meu  jantar;  mandei matar os meus bois e todos os meus cevados; tudo está pronto;  vinde às bodas’. Eles, porém, sem se incomodarem com isso, lá se foram,  um  para  a  sua  casa  de  campo,  outro  para  o  seu  negócio.  Os  outros  pegaram  dos  servos  e  os mataram, depois  de  lhes  haverem feito muitos  ultrajes. Sabendo disso, o rei se tomou de cólera e, mandando contra eles  seus exércitos, exterminou os assassinos e lhes queimou a cidade. Então,  disse a seus servos: ‘O festim das bodas está inteiramente preparado; mas,  os  que  para  ele  foram  chamados  não  eram  dignos  dele.  Ide,  pois,  às  encruzilhadas  e  chamai  para  as  bodas  todos  quantos  encontrardes’.  Os
  • 184. 184 – Allan Kardec  servos então saíram pelas ruas e trouxeram todos os que iam encontrando,  bons e maus; a sala das bodas se encheu de pessoas que se puseram à  mesa. Entrou, em seguida, o rei para ver os que estavam à mesa, e, dando  com  um  homem  que  não  vestia  a  túnica  nupcial  disse­lhe:  ‘Meu  amigo,  como  entraste  aqui  sem  a  túnica  nupcial?’  O  homem  guardou  silêncio.  Então, disse o rei à sua gente: ‘Atai­lhe as mãos e os pés e lançai­o nas  trevas exteriores: aí é que haverá prantos e ranger de dentes’. Porquanto,  muitos há chamados, mas poucos escolhidos”.  (MATEUS, 22:1 a 14)  2. O incrédulo sorri a esta parábola, que lhe parece de pueril ingenuidade, por não  compreender que se possa opor tanta dificuldade para assistir a um festim e, ainda  menos, que convidados levem a resistência a ponto de massacrarem os enviados do  dono da casa. “As parábolas”, diz ele, o incrédulo, “são, sem dúvida, imagens; mas,  ainda assim, mister se torna que não ultrapassem os limites do verossímil”.  Outro  tanto  pode  ser  dito  de  todas  as  alegorias,  das  mais  engenhosas  fábulas,  se  não  lhes  forem  tirados  os  respectivos  envoltórios,  para  ser  achado  o  sentido oculto. Jesus compunha as suas com os hábitos mais vulgares da vida e as  adaptava aos costumes e ao caráter do povo a quem falava. A maioria delas tinha por  objeto  fazer  penetrar  nas  massas  populares  a  idéia  da  vida  espiritual,  parecendo  muitas ininteligíveis, quanto ao sentido, apenas por não se colocarem neste ponto de  vista os que as interpretam.  Na de que tratamos, Jesus compara o reino dos Céus, onde tudo é alegria e  ventura,  a  um  festim.  Falando  dos  primeiros  convidados,  alude  aos  hebreus,  que  foram os primeiros chamados por Deus ao conhecimento da sua Lei. Os enviados do  rei são os profetas que os vinham exortar a seguir a trilha da verdadeira felicidade;  suas  palavras,  porém,  quase  não  eram  escutadas;  suas  advertências  eram  desprezadas;  muitos  foram mesmo  massacrados,  como  os  servos  da  parábola.  Os  convidados que se escusam, pretextando terem de ir cuidar de seus campos e de seus  negócios, simbolizam as pessoas mundanas que, absorvidas pelas coisas terrenas, se  conservam indiferentes às coisas celestes.  Era crença comum aos judeus de então que a nação deles tinha de alcançar  supremacia sobre todas as outras. Deus, com efeito, não prometera a Abraão que a  sua posteridade cobriria toda a Terra? Mas, como sempre, atendo­se à forma, sem  atentarem ao fundo, eles acreditavam tratar­se de uma dominação efetiva e material.  Antes da vinda do Cristo, com exceção dos hebreus, todos os povos eram  idólatras e politeístas. Se alguns homens superiores ao vulgo conceberam a idéia da  unidade  de  Deus,  essa  idéia  permaneceu  no  estado  de  sistema  pessoal,  em  parte  nenhuma foi aceita como verdade fundamental, a não ser por alguns iniciados que  ocultavam seus conhecimentos sob um véu de mistério, impenetrável para as massas  populares. Os hebreus foram os primeiros a praticar publicamente o monoteísmo; é a  eles  que  Deus  transmite  a  sua  lei,  primeiramente  por  via  de  Moisés,  depois  por  intermédio  de  Jesus.  Foi  daquele  pequenino  foco  que  partiu  a  luz  destinada  a  espargir­se  pelo  mundo  inteiro,  a  triunfar  do  paganismo  e  a  dar  a  Abraão  uma  posteridade espiritual “tão numerosa quanto as estrelas do firmamento”. Entretanto,  abandonando  de  todo  a  idolatria,  os  judeus  desprezaram  a  lei  moral,  para  se  aferrarem ao  mais  fácil: a  prática  do  culto  exterior.  O  mal  chegara  ao  cúmulo; a
  • 185. 185 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  nação, além de escravizada, era esfacelada pelas facções e dividida pelas seitas; a  incredulidade  atingira  mesmo  o  santuário.  Foi  então  que  apareceu  Jesus,  enviado  para os chamar à observância da Lei e para lhes rasgar os horizontes novos da vida  futura. Dos primeiros a ser convidados para o grande banquete da fé universal, eles  repeliram a palavra do Messias celeste e o imolaram. Perderam assim o fruto que  teriam colhido da iniciativa que lhes coubera.  Fora, contudo, injusto acusar­se o povo inteiro de tal estado de coisas. A  responsabilidade tocava principalmente aos fariseus e saduceus, que sacrificaram a  nação por efeito do orgulho e do fanatismo de uns e pela incredulidade dos outros.  São,  pois,  eles,  sobretudo,  que  Jesus  identifica  nos  convidados  que  recusam  comparecer ao festim das bodas. Depois, acrescenta: “Vendo isso, o Senhor mandou  convidar  a  todos  os  que  fossem  encontrados  nas  encruzilhadas,  bons  e  maus.”  Queria  dizer  desse  modo  que  a  palavra  ia  ser  pregada  a  todos  os  outros  povos,  pagãos e idólatras, e estes, acolhendo­a, seriam admitidos ao festim, em lugar dos  primeiros convidados.  Mas não  basta a ninguém  ser  convidado; não  basta  dizer­se  cristão, nem  sentar­se à mesa para tomar parte no banquete celestial. É preciso, antes de tudo e  sob condição expressa, estar revestido da túnica nupcial, isto é, ter puro o coração e  cumprir a lei segundo o espírito. Ora, a lei toda se contém nestas palavras: Fora da  caridade não há salvação. Entre todos, porém, que ouvem a palavra divina, quão  poucos são os que a guardam e a aplicam proveitosamente! Quão poucos se tornam  dignos  de  entrar  no  reino  dos  céus!  Eis  por  que  disse  Jesus:  Chamados  haverá  muitos; poucos, no entanto, serão os escolhidos.  A PORTA ESTREITA  3. “ Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta da perdição e espaçoso  o caminho que a ela conduz, e muitos são os que por ela entram. Quão  pequena é a porta da vida! Quão apertado o caminho que a ela conduz! E  quão poucos a encontram!”  (MATEUS, 7:13 e 14)  4. Tendo­lhe alguém feito esta pergunta: Senhor, serão poucos os que se  salvam? Respondeu­lhes ele: – Esforçai­vos por entrar pela porta estreita,  pois vos asseguro que muitos procurarão transpô­la e não o poderão. – E  quando o pai de família houver entrado e fechado a porta, e vós, de fora,  começardes a bater, dizendo: Senhor, abre­nos; ele vos responderá: não  sei  donde  sois.  –  Pôr­vos­eis  a  dizer:  Comemos  e  bebemos  na  tua  presença  e  nos  instruíste  nas  nossas  praças  públicas.  –  Ele  vos  responderá: Não sei donde sois; afastai­vos de mim, todos vós que praticais  a iniqüidade. Então, haverá prantos e ranger de dentes, quando virdes que  Abraão, lsaac, Jacob e todos os profetas estão no reino de Deus e que vós  outros  sois  dele  expelidos.  –  Virão  muitos  do  Oriente  e  do  Ocidente,  do  Setentrião e do Meio­Dia, que participarão do festim no reino de Deus. –  Então, os que forem últimos serão os primeiros e os que forem primeiros  serão os últimos.  (LUCAS, 13:23 a 30)
  • 186. 186 – Allan Kardec  5. Larga é a porta da perdição, porque são numerosas as paixões más e porque o  maior número  envereda  pelo  caminho do  mal. É  estreita  a  da  salvação,  porque  a  grandes esforços sobre si mesmo é obrigado o homem que a queira transpor, para  vencer suas más tendências, coisa a que poucos se resignam. É o complemento da  máxima: “Muitos são os chamados e poucos os escolhidos.”  Tal  o  estado  da  Humanidade  terrena,  porque,  sendo  a  Terra  mundo  de  expiação, nela predomina o mal. Quando se achar transformada, a estrada do bem  será  a  mais  freqüentada.  Aquelas  palavras  devem,  pois,  entender­se  em  sentido  relativo  e  não  em  sentido  absoluto.  Se  houvesse  de  ser  esse  o  estado  normal  da  Humanidade, teria Deus condenado à perdição a imensa maioria das suas criaturas,  suposição inadmissível, desde que se reconheça que Deus é todo justiça e bondade.  Mas,  de  que  delitos  esta  Humanidade  se houvera  feito  culpada  para  merecer  tão  triste sorte, no presente e no futuro, se toda ela se achasse degredada na Terra e se a  alma não tivesse tido  outras existências? Por que tantos entraves postos diante de  seus passos? Por que essa porta tão estreita que só a muito poucos é dado transpor,  se a sorte da alma é determinada para sempre, logo após a morte? Assim é que, com  a unicidade da existência, o homem está sempre em contradição consigo mesmo e  com a justiça de Deus. Com a anterioridade da alma e a pluralidade dos mundos, o  horizonte se alarga; faz­se luz sobre os pontos mais obscuros da fé; o presente e o  futuro tornam­se solidários com o passado, e só então se pode compreender toda a  profundeza, toda a verdade e toda a sabedoria das máximas do Cristo.  NEM TODOS OS QUE DIZEM: SENHOR! SENHOR!  ENTRARÃO NO REINO DOS CÉUS  6. “ Nem todos os que me dizem: ‘Senhor! Senhor!’ entrarão no reino dos  céus; apenas entrará aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos  céus. Muitos, nesse dia, me dirão: ‘Senhor! Senhor! Não profetizamos em  teu nome? Não expulsamos em teu nome o demônio? Não fizemos muitos  milagres em teu nome?’ Eu então lhes direi em altas vozes: ‘Afastai­vos de  mim, vós que fazeis obras de iniqüidade’”.  (MATEUS, 7:21 a 23)  7.  “ Aquele,  pois,  que  ouve  estas  minhas  palavras  e  as  pratica,  será  comparado a um homem prudente que construiu sobre a rocha a sua casa.  Quando caiu a chuva, os rios transbordaram, sopraram os ventos sobre a  casa;  ela  não  ruiu,  por  estar  edificada  na  rocha.  Mas,  aquele  que  ouve  estas  minhas  palavras  e  não  as  pratica,  se  assemelha  a  um  homem  insensato que construiu sua casa na areia. Quando a chuva caiu, os rios  transbordaram,  os  ventos sopraram  e  a  vieram  açoitar,  ela  foi  derribada;  grande foi a sua ruína”.  (MATEUS, 7:24 a 27;  LUCAS, 6:46 a 49)  8. Aquele que violar um destes menores mandamentos e que ensinar os  homens a violá­los, será considerado como último no reino dos céus; mas,  será grande no reino dos céus aquele que os cumprir e ensinar.  (MATEUS, 5:19)
  • 187. 187 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  9. Todos os que reconhecem a missão de Jesus dizem: Senhor! Senhor! – Mas, de  que serve lhe chamarem Mestre ou Senhor, se não lhe seguem os preceitos? Serão  cristãos  os  que  o  honram  com  exteriores  atos  de  devoção  e,  ao  mesmo  tempo,  sacrificam ao orgulho, ao egoísmo, à cupidez e a todas as suas paixões? Serão seus  discípulos os que passam os dias em oração e não se mostram nem melhores, nem  mais caridosos, nem mais indulgentes para com seus semelhantes? Não, porquanto,  do mesmo modo que os fariseus, eles têm a prece nos lábios e não no coração. Pela  forma poderão impor­se aos homens; não, porém, a Deus. Em vão dirão eles a Jesus:  “Senhor! não profetizamos, isto é, não ensinamos em teu nome; não expulsamos em  teu  nome  os  demônios;  não  comemos  e  bebemos  contigo?”  Ele  lhes  responderá:  “Não  sei  quem  sois;  afastai­vos  de  mim,  vós  que  cometeis  iniqüidades,  vós  que  desmentis com os atos o que dizeis com os lábios, que caluniais o vosso próximo,  que espoliais as viúvas e cometeis adultério. Afastai­vos de mim, vós cujo coração  destila  ódio  e  fel,  que  derramais  o  sangue  dos  vossos  irmãos  em  meu nome, que  fazeis  corram lágrimas,  em  vez  de  secá­las.  Para  vós,  haverá prantos  e  ranger  de  dentes, porquanto o reino de Deus é para os que são brandos, humildes e caridosos.  Não espereis dobrar a justiça do Senhor pela multiplicidade das vossas palavras e  das vossas genuflexões. O caminho único que vos está aberto, para achardes graça  perante ele, é o da prática sincera da lei de amor e de caridade.”  São eternas as palavras de Jesus, porque são a verdade. Constituem não só a  salvaguarda  da  vida  celeste,  mas também  o  penhor da  paz,  da tranqüilidade  e  da  estabilidade nas coisas da vida terrestre. Eis por que todas as instituições humanas,  políticas, sociais e religiosas, que se apoiarem nessas palavras, serão estáveis como a  casa construída sobre a rocha. Os homens as conservarão, porque se sentirão felizes  nelas.  As  que,  porém,  forem  uma  violação  daquelas  palavras,  serão  como  a  casa  edificada na areia: o vento das renovações e o rio do progresso as arrastarão.  MUITO SE PEDIRÁ ÀQUELE QUE MUITO RECEBEU  10. “ O  servo  que  souber da  vontade  do  seu  amo  e  que, entretanto,  não  estiver  pronto  e  não  fizer  o  que  dele  queira  o  amo,  será  rudemente  castigado. Mas, aquele que não tenha sabido da sua vontade e fizer coisas  dignas de castigo menos punido será. Muito se pedirá àquele a quem muito  se  houver  dado  e  maiores  contas  serão  tomadas  àquele  a  quem  mais  coisas se haja confiado”.  (LUCAS, 12:47­48)  11. “ Vim a este mundo para exercer um juízo, a fim de que os que não  vêem vejam e os que vêem se tornem cegos”.  Alguns fariseus que estavam com ele, ouvindo essas palavras, lhe  perguntaram: “Também nós, então, somos cegos?” Respondeu­lhes Jesus:  “Se fôsseis cegos, não teríeis pecados; mas, agora, dizeis que vedes e é  por isso que em vós permanece o vosso pecado”.  (JOÃO, 9:39 a 41)
  • 188. 188 – Allan Kardec  12. Principalmente ao ensino dos Espíritos é que estas máximas se aplicam. Quem  quer que conheça os preceitos do Cristo e não os pratique, é certamente culpado;  contudo, além de o Evangelho, que os contém, achar­se espalhado somente no seio  das seitas cristãs, mesmo dentro destas quantos há que não o lêem, e, entre os que o  lêem, quantos os que o não compreendem! Resulta daí que as próprias palavras de  Jesus são perdidas para a maioria dos homens.  O ensino dos Espíritos, reproduzindo essas máximas sob diferentes formas,  desenvolvendo­as  e  comentando­as,  para  pô­las  ao  alcance  de  todos,  tem  isto  de  particular:  não  é  circunscrito;  todos,  letrados  ou  iletrados,  crentes  ou  incrédulos,  cristãos  ou  não,  o  podem  receber,  pois  que  os  Espíritos  se  comunicam  por  toda  parte. Nenhum dos que o recebam, diretamente ou por intermédio de outrem, pode  pretextar ignorância; não se pode desculpar nem com a falta de instrução, nem com a  obscuridade  do  sentido  alegórico.  Aquele,  portanto,  que  não  aproveita  essas  máximas para melhorar­se, que as admira como coisas interessantes e curiosas, sem  que lhe toquem o coração, que não se torna nem menos vão, nem menos orgulhoso,  nem menos egoísta, nem menos apegado aos bens materiais, nem melhor para seu  próximo, mais culpado é, porque mais meios tem de conhecer a verdade.  Os médiuns que obtêm boas comunicações ainda mais censuráveis são, se  persistem no mal, porque muitas vezes escrevem sua própria condenação e porque,  se não os cegasse o orgulho, reconheceriam que a eles é que se dirigem os Espíritos.  Mas, em vez de tomarem para si as lições que escrevem, ou que lêem escritas por  outros, têm por única preocupação aplicá­las aos demais, confirmando assim estas  palavras  de Jesus:  “Vedes  um  argueiro  no  olho  do  vosso  próximo  e  não  vedes  a  trave que está no vosso.” (Cap. X, nº 9)  Por  esta  sentença:  “Se  fôsseis  cegos,  não  teríeis  pecados”,  quis  Jesus  significar que a culpabilidade está na razão das luzes que a criatura possua. Ora, os  fariseus, que tinham a pretensão de ser, e eram, com efeito, os mais esclarecidos da  sua nação, mais culposos se mostravam aos olhos de Deus, do que o povo ignorante.  O mesmo se dá hoje.  Aos  espíritas,  pois,  muito  será  pedido,  porque  muito  hão  recebido;  mas,  também, aos que houverem aproveitado, muito será dado.  O primeiro cuidado de todo espírita sincero deve ser o de procurar saber se,  nos conselhos que os Espíritos dão, alguma coisa não há que lhe diga respeito.  O Espiritismo vem multiplicar o número dos chamados. Pela fé que faculta,  multiplicará também o número dos escolhidos.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  DAR­SE­Á ÀQUELE QUE TEM  13. Aproximando­se dele, seus discípulos lhe disseram: “Por que lhes falas  por parábolas?” Respondendo, disse­lhes ele: “É porque, a vós outros, vos  foi dado conhecer os mistérios do reino dos céus, ao passo que a eles isso  não foi dado. Porque, àquele que já tem, mais se lhe dará e ele ficará na  abundância;  àquele,  entretanto,  que  não  tem,  mesmo  o  que  tem  se  lhe  tirará. Por isso é que lhes falo por parábolas: porque, vendo, nada vêem e,  ouvindo, nada entendem, nem compreendem. Neles se cumpre a profecia
  • 189. 189 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  de Isaías, quando diz: ‘Ouvireis com os vossos ouvidos e nada entendereis;  olhareis com os vossos olhos e nada vereis’”.  (MATEUS, 13:10 a 14)  14.  “Tende  muito  cuidado  com  o  que  ouvis,  porquanto  usarão  para  convosco da mesma medida de que vos houverdes servido para medir os  outros, e ainda se vos acrescentará; pois, ao que já tem, dar­se­á, e, ao que  não tem, até o que tem se lhe tirará”.  (MARCOS, 4:24­25)  15.  “Dá­se  ao  que  já  tem  e  tira­se  ao  que  não  tem”.  Meditai  esses  grandes  ensinamentos que se vos hão por vezes afigurado paradoxais. Aquele que recebeu é  o que possui o sentido da palavra divina; recebeu unicamente porque tentou tornar­  se digno dela e porque o Senhor, em seu amor misericordioso, anima os esforços que  tendem  para  o  bem.  Aturados,  perseverantes,  esses  esforços  atraem  as  graças  do  Senhor;  são  um  ímã  que  chama a  si  o  que  é  progressivamente melhor,  as  graças  copiosas que vos fazem fortes para galgar a montanha santa, em cujo cume está o  repouso após o labor.  “Tira­se  ao  que não  tem,  ou  tem  pouco”.  Tomai  isso como  uma antítese  figurada. Deus não retira das suas criaturas o bem que se haja dignado de fazer­lhes.  Homens cegos e surdos, abri as vossas inteligências e os vossos corações; vede pelo  vosso espírito; ouvi pela vossa alma e não interpreteis de modo tão grosseiramente  injusto  as  palavras  daquele  que  fez  resplandecesse  aos  vossos  olhos  a  justiça  do  Senhor. Não é Deus quem retira daquele que pouco recebera: é o próprio Espírito  que,  por  pródigo  e  descuidado,  não  sabe  conservar  o  que  tem  e  aumentar,  fecundando­o, o óbolo que lhe caiu no coração.  Aquele que não cultiva o campo que o trabalho de seu pai lhe granjeou, e  que lhe coube em herança, o vê cobrir­se de ervas parasitas. É seu pai quem lhe tira  as colheitas que ele não quis preparar? Se, à falta de cuidado, deixou fenecessem as  sementes destinadas a produzir nesse campo, é a seu pai que lhe cabe acusar  por  nada produzirem elas? Não e não. Em vez de acusar aquele que tudo lhe preparara,  de criticar as doações que recebera, queixe­se do verdadeiro autor de suas misérias e,  arrependido e operoso, meta, corajoso, mãos à obra; arroteie o solo ingrato com o  esforço  de  sua  vontade;  lavre­o  fundo  com  auxílio  do  arrependimento  e  da  esperança;  lance nele,  confiante, a  semente  que haja  separado,  por  boa,  dentre  as  más;  regue­o  com  o  seu  amor  e  a  sua  caridade,  e  Deus,  o  Deus  de  amor  e  de  caridade,  dará  àquele  que  já  recebera.  Verá  ele,  então,  coroados  de  êxito  os  seus  esforços  e  um  grão  produzir  cem  e  outro  mil.  Ânimo,  trabalhadores!  Tomai  dos  vossos  arados  e  das  vossas  charruas;  lavrai  os  vossos  corações;  arrancai  deles  a  cizânia; semeai a boa semente que o Senhor vos confia e o orvalho do amor lhe fará  produzir frutos de caridade. – Um Espírito amigo. (Bordéus, 1862)  PELAS SUAS OBRAS É QUE SE RECONHECE O CRISTÃO  16. “Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor! Entrarão no reino dos céus, mas  somente aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está nos céus.”
  • 190. 190 – Allan Kardec  Escutai essa palavra do Mestre, todos vós que repelis a Doutrina Espírita  como obra do demônio. Abri os ouvidos, que é chegado o momento de ouvir.  Será bastante trazer a libré do Senhor, para ser­se fiel servidor seu? Bastará  dizer:  “Sou  cristão”,  para  que  alguém  seja  um  seguidor  do  Cristo?  Procurai  os  verdadeiros cristãos e os reconhecereis pelas suas obras. “Uma árvore boa não pode  dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar frutos bons.” – “Toda árvore que não  dá  bons  frutos  é  cortada  e  lançada  ao  fogo.”  São  do  Mestre  essas  palavras.  Discípulos  do  Cristo,  compreendei­as  bem!  Que  frutos  deve  dar  a  árvore  do  Cristianismo, árvore possante, cujos ramos frondosos cobrem com sua sombra uma  parte do mundo, mas que ainda não abrigam todos os que se hão de grupar em torno  dela? Os da árvore da vida são frutos de vida, de esperança e de fé. O Cristianismo,  qual o fizeram há muitos séculos, continua a pregar essas virtudes divinas; esforça­  se por espalhar seus frutos, mas quão poucos  os  colhem! A árvore é  boa sempre,  porém maus são os jardineiros. Entenderam de moldá­la pelas suas idéias; de talhá­  la de acordo com as suas necessidades; cortaram­na, diminuíram­na, mutilaram­na;  tornados estéreis, seus ramos não dão maus frutos, porque nenhuns mais produzem.  O  viajor  sedento,  que  se  detém  sob  seus  galhos  à  procura  do  fruto  da  esperança,  capaz  de  lhe  restabelecer  a  força  e  a  coragem,  somente  vê  uma  ramaria  árida,  prenunciando tempestade. Em vão pede ele o fruto de vida à árvore da vida; caem­  lhe secas as folhas; tanto as remexeu a mão do homem, que as crestou.  Abri,  pois,  os  ouvidos  e  os  corações,  meus  bem­amados!  Cultivai  essa  árvore da vida, cujos frutos dão a vida eterna. Aquele que a plantou vos concita a  tratá­la  com  amor,  que  ainda  a  vereis  dar  com  abundância  seus  frutos  divinos.  Conservai­a tal como o Cristo vo­la entregou: não a mutileis; ela quer estender a sua  sombra imensa sobre o Universo: não lhe corteis os galhos. Seus frutos benfazejos  caem  abundantes  para  alimentar  o  viajor  faminto  que  deseja  chegar  ao  termo  da  jornada; não amontoeis esses frutos, para os armazenar e deixar apodrecer, a fim de  que a ninguém sirvam. “Muitos são os chamados e poucos os escolhidos.” É que há  açambarcadores do pão da vida, como os há do pão material. Não sejais do número  deles; a árvore que dá bons frutos tem que os dar para todos. Ide, pois, procurar os  que estão famintos; levai­os para debaixo da fronde da árvore e partilhai com eles do  abrigo  que  ela  oferece.  –  “Não  se  colhem  uvas  nos  espinheiros.”  Meus  irmãos,  afastai­vos dos que vos chamam para vos apresentar as sarças do caminho, segui os  que vos conduzem à sombra da árvore da vida.  O  divino  Salvador,  o  justo  por  excelência,  disse,  e  suas  palavras  não  passarão: “Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus;  entrarão  somente  os  que  fazem  a  vontade  de  meu  Pai  que  está nos  céus.”  Que  o  Senhor de bênçãos vos abençoe; que o Deus de luz vos ilumine; que a árvore da vida  vos ofereça abundantemente seus frutos! Crede e orai. – Simeão. (Bordéus, 1863)
  • 191. 191 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XIX  A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS ·  PODER DA FÉ ·  A FÉ RELIGIOSA. CONDIÇÃO DA FÉ INABALÁVEL ·  PARÁBOLA DA FIGUEIRA QUE SECOU  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS  §  A FÉ: MÃE DA ESPERANÇA E DA CARIDADE  §  A FÉ HUMANA E A DIVINA  PODER DA FÉ  1. Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e,  lançando­se  de  joelhos  a seus  pés,  disse:  “Senhor,  tem piedade  do meu  filho, que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas  vezes na água. Apresentei­o aos teus discípulos, mas eles não o puderam  curar”.  Jesus  respondeu,  dizendo:  “Ó  raça  incrédula  e  depravada,  até  quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? Trazei­me aqui esse  menino”. E tendo Jesus ameaçado o demônio, este saiu do menino, que no  mesmo instante ficou são. Os discípulos vieram então ter com Jesus em  particular e lhe perguntaram: “Por que não pudemos nós outros expulsar  esse demônio?” Respondeu­lhes Jesus: “Por causa da vossa incredulidade.  Pois  em verdade  vos  digo,  se  tivésseis  a  fé  do tamanho de  um  grão  de  mostarda,  diríeis  a  esta  montanha:  Transporta­te  daí  para  ali  e  ela  se  transportaria, e nada vos seria impossível”.  (MATEUS, 17:14 a 20)  2.  No  sentido  próprio,  é  certo  que  a  confiança  nas  suas  próprias  forças  torna  o  homem capaz de executar coisas materiais, que não consegue fazer quem duvida de  si. Aqui, porém, unicamente no sentido moral se devem entender essas palavras. As  montanhas que a fé desloca são as dificuldades, as resistências, a má vontade, em
  • 192. 192 – Allan Kardec  suma, com que se depara da parte dos homens, ainda quando se trate das melhores  coisas.  Os  preconceitos  da  rotina,  o  interesse  material,  o  egoísmo,  a  cegueira  do  fanatismo  e  as  paixões  orgulhosas  são  outras  tantas  montanhas  que  barram  o  caminho  a  quem  trabalha  pelo  progresso  da  Humanidade.  A  fé  robusta  dá  a  perseverança, a energia e os recursos que fazem se vençam os obstáculos, assim nas  pequenas coisas, que nas grandes. Da fé vacilante resultam a incerteza e a hesitação  de que se aproveitam os adversários que se têm de combater; essa fé não procura os  meios de vencer, porque não acredita que possa vencer.  3. Noutra acepção, entende­se como fé a confiança que se tem na realização de uma  coisa,  a  certeza  de  atingir  determinado  fim.  Ela  dá  uma  espécie  de  lucidez  que  permite se veja, em pensamento, a meta que se quer alcançar e os meios de chegar  lá,  de  sorte  que  aquele  que  a  possui  caminha,  por  assim  dizer,  com  absoluta  segurança. Num como noutro caso, pode ela dar lugar a que se executem grandes  coisas.  A  fé  sincera  e  verdadeira  é  sempre  calma;  faculta  a  paciência  que  sabe  esperar,  porque,  tendo  seu  ponto  de  apoio  na  inteligência  e  na  compreensão  das  coisas, tem a certeza de chegar ao objetivo visado. A fé vacilante sente a sua própria  fraqueza;  quando  a  estimula  o  interesse,  torna­se  furibunda  e  julga  suprir,  com  a  violência, a força que lhe falece. A calma na luta é sempre um sinal de força e de  confiança; a violência, ao contrário, denota fraqueza e dúvida de si mesmo.  4.  Cumpre  não  confundir  a  fé  com  a  presunção.  A  verdadeira  fé  se  conjuga  à  humildade;  aquele  que  a  possui  deposita  mais  confiança  em  Deus  do  que  em  si  próprio, por saber que, simples instrumento da vontade divina, nada pode sem Deus.  Por essa razão é que os bons Espíritos lhe vêm em auxílio. A presunção é menos fé  do  que  orgulho,  e  o  orgulho  é  sempre  castigado,  cedo  ou  tarde,  pela  decepção  e  pelos malogros que lhe são infligidos.  5. O poder da fé se demonstra, de modo direto e especial, na ação magnética; por seu  intermédio,  o  homem  atua  sobre  o  fluido,  agente  universal,  modifica­lhe  as  qualidades  e  lhe  dá  uma  impulsão  por  assim  dizer  irresistível.  Daí  decorre  que  aquele que a um grande poder fluídico normal junta ardente fé, pode, só pela força  da sua vontade dirigida para o  bem, operar esses  singulares fenômenos de  cura e  outros, tidos antigamente por prodígios, mas que não passam de efeito de uma lei  natural. Tal o motivo por que Jesus disse a seus apóstolos: se não o  curastes, foi  porque não tínheis fé.  A FÉ RELIGIOSA.  CONDIÇÃO DA FÉ INABALÁVEL  6.  Do  ponto  de vista religioso,  a  fé  consiste na  crença  em  dogmas  especiais,  que  constituem  as  diferentes  religiões.  Todas  elas  têm  seus  artigos  de  fé.  Sob  esse  aspecto, pode a fé ser raciocinada ou cega. Nada examinando, a fé cega aceita, sem  verificação,  assim  o  verdadeiro  como  o  falso,  e  a  cada  passo  se  choca  com  a
  • 193. 193 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. Em assentando no erro,  cedo ou tarde desmorona; somente a fé que se baseia na verdade garante o futuro,  porque nada tem a temer do progresso das luzes, dado que o que é verdadeiro na  obscuridade,  também  o  é  à  luz  meridiana.  Cada  religião  pretende  ter  a  posse  exclusiva  da  verdade;  preconizar  alguém  a  fé  cega  sobre  um  ponto  de  crença é  confessar­se impotente para demonstrar que está com a razão.  7. Diz­se vulgarmente que a fé não se prescreve, donde resulta alegar muita gente  que não lhe cabe a culpa de não ter fé. Sem dúvida, a fé não se prescreve, nem, o que  ainda é mais certo, se impõe. Não; ela se adquire e ninguém há que esteja impedido  de  possuí­la,  mesmo  entre  os  mais  refratários.  Falamos  das  verdades  espirituais  básicas e não de tal ou qual crença particular. Não é à fé que compete procurá­los; a  eles é que cumpre ir­lhe ao encontro e, se a buscarem sinceramente, não deixarão de  achá­la. Tende, pois, como certo que os que dizem: “Nada de melhor desejamos do  que crer, mas não o podemos”, apenas de lábios o dizem e não do íntimo, porquanto,  ao dizerem isso, tapam os ouvidos. As provas, no entanto, chovem­lhes ao derredor;  por que fogem de observá­las? Da parte de uns, há descaso; da de outros, o temor de  serem forçados a mudar de hábitos; da parte da maioria, há o orgulho, negando­se a  reconhecer a existência de uma força superior, porque teria de curvar­se diante dela.  Em certas pessoas, a fé parece de algum modo inata; uma centelha basta  para  desenvolvê­la.  Essa  facilidade  de  assimilar  as  verdades  espirituais  é  sinal  evidente  de  anterior  progresso.  Em  outras  pessoas,  ao  contrário,  elas  dificilmente  penetram,  sinal  não  menos  evidente  de  naturezas  retardatárias.  As  primeiras  já  creram e compreenderam; trazem, ao renascerem, a intuição do que souberam: estão  com a educação feita; as segundas tudo têm de aprender: estão com a educação por  fazer. Ela, entretanto, se fará e, se não ficar concluída nesta existência, ficará em  outra.  A  resistência  do  incrédulo,  devemos  convir, muitas  vezes  provém  menos  dele do que da maneira por que lhe apresentam as coisas. A  fé necessita de uma  base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não  basta ver;  é  preciso,  sobretudo, compreender. A  fé  cega  já não  é  deste  século  11  ,  tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz hoje o maior número  dos incrédulos, porque ela pretende impor­se, exigindo a abdicação de uma das mais  preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre­arbítrio. É principalmente  contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer  que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa no espírito alguma coisa de  vago, que dá nascimento à dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na  lógica,  nenhuma  obscuridade  deixa.  A  criatura  então  crê,  porque  tem  certeza,  e  11  Kardec escreveu essas palavras no século XIX. Hoje, o espírito humano tornou­se ainda mais exigente:  a fé cega está abandonada; reina descrença nas Igrejas que a impunham. As massas humanas vivem sem  ideal, sem esperança em outra vida e tentam transformar o mundo pela violência. As lutas econômicas  engendraram as mais exóticas doutrinas de ação e reação. Duas guerras mundiais assolaram o planeta,  numa  ânsia  furiosa  de  predomínio  econômico.  Toda  a  esperança  da  Humanidade  hoje  se  apóia  no  Espiritismo, na restauração do Cristianismo, baseada em fatos que demonstram os princípios básicos da  Doutrina cristã: eternidade da  vida, responsabilidade ilimitada de pensamentos, palavras  e atos. Sem a  Terceira  Revelação  o  mundo  estaria  irremediavelmente  perdido  pelo  choque  das  mais  desencontradas  ideologias materialistas e violentistas. – A Editora da FEB, em 1948.
  • 194. 194 – Allan Kardec  ninguém  tem  certeza  senão  porque  compreendeu.  Eis  por  que  não  se  dobra.  Fé  inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da  Humanidade.  A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade,  sempre que não encontra oposição sistemática e interessada.  PARÁBOLA DA FIGUEIRA QUE SECOU  8. Quando saíam de Betânia, ele teve fome; e, vendo ao longe uma figueira,  para ela encaminhou­se, a ver se acharia alguma coisa; tendo­se, porém,  aproximado,  só  achou  folhas,  visto  não ser  tempo  de  figos.  Então,  disse  Jesus  à figueira: “Que  ninguém  coma  de  ti fruto  algum”. Isto o  que seus  discípulos ouviram.  No dia seguinte, ao passarem pela figueira, viram que secara até a  raiz. Pedro, lembrando­se do que dissera Jesus, disse: “Mestre, olha como  secou  a  figueira  que  tu  amaldiçoaste”.  Jesus,  tomando  a  palavra,  lhes  disse: “Tende fé em Deus. Digo­vos, em verdade, que aquele que disser a  esta  montanha:  ‘Tira­te  daí  e  lança­te  ao  mar’,  mas  sem  hesitar  no  seu  coração, crente, ao contrário, firmemente, de que tudo o que houver dito  acontecerá, verá que, com efeito, acontece”.  (MARCOS, 11:12 a 14 e 20 a 23)  9. A figueira que secou é o símbolo dos que apenas aparentam propensão para o  bem, mas que, em realidade, nada de bom produzem; dos oradores que mais brilho  têm do que solidez, cujas palavras trazem superficial verniz, de sorte que agradam  aos ouvidos, sem que, entretanto, revelem, quando perscrutadas, algo de substancial  para os corações. É de perguntar­se que proveito tiraram delas os que as escutaram.  Simboliza também todos aqueles que, tendo meios de ser úteis, não o são;  todas as utopias, todos os sistemas ocos, todas as doutrinas carentes de base sólida.  O que as mais das vezes falta é a verdadeira fé, a fé produtiva, a fé que abala as  fibras  do  coração,  a  fé,  numa  palavra,  que  transporta  montanhas.  São  árvores  cobertas  de  folhas,  porém,  baldas  de  frutos.  Por  isso  é  que  Jesus  as  condena  à  esterilidade, porquanto dia virá em que se acharão secas até à raiz. Quer dizer que  todos  os  sistemas,  todas  as  doutrinas  que  nenhum  bem  para  a  Humanidade  houverem produzido, cairão reduzidas a nada; que todos os homens deliberadamente  inúteis, por não terem posto em ação os recursos que traziam consigo, serão tratados  como a figueira que secou.  10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; suprem, nestes últimos, a falta de  órgãos materiais pelos quais transmitam suas instruções. Daí vem o serem dotados  de  faculdades  para  esse  efeito.  Nos  tempos  atuais,  de renovação  social,  cabe­lhes  uma missão especialíssima; são árvores destinadas a fornecer alimento espiritual a  seus irmãos; multiplicam­se em número, para que abunde o alimento; há­os por toda  a parte, em todos  os países, em todas as classes da sociedade, entre os ricos e os  pobres, entre os grandes e os pequenos, a fim de que em nenhum ponto faltem e a  fim  de  ficar  demonstrado  aos  homens  que todos  são  chamados.  Se,  porém,  eles
  • 195. 195 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  desviam do objetivo providencial a preciosa faculdade que lhes foi concedida, se a  empregam  em  coisas  fúteis  ou  prejudiciais,  se  a  põem  a  serviço  dos  interesses  mundanos, se em vez de frutos sazonados dão maus frutos, se se recusam a utilizá­la  em  benefício  dos  outros,  se  nenhum  proveito  tiram  dela  para  si  mesmos,  melhorando­se, são quais a figueira estéril. Deus lhes retirará um dom que se tornou  inútil  neles:  a  semente  que  não  sabem  fazer  que  frutifique,  e  consentirá  que  se  tornem presas dos Espíritos maus.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  A FÉ: MÃE DA ESPERANÇA E DA CARIDADE  11. Para ser proveitosa, a fé tem de ser ativa; não deve entorpecer­se. Mãe de todas  as  virtudes  que  conduzem  a  Deus,  cumpre­lhe  velar  atentamente  pelo  desenvolvimento dos filhos que gerou.  A  esperança  e  a  caridade  são  corolários  da  fé  e  formam  com  esta  uma  trindade inseparável. Não é a fé que faculta a esperança na realização das promessas  do Senhor? Se não tiverdes fé, que esperareis? Não é a fé que dá o amor? Se não  tendes fé, qual será o vosso reconhecimento e, portanto, o vosso amor?  Inspiração divina, a fé desperta todos os instintos nobres que encaminham o  homem para o bem. É a base da regeneração. Preciso é, pois, que essa base seja forte  e  durável,  porquanto,  se  a  mais  ligeira  dúvida  a  abalar,  que  será  do  edifício  que  sobre  ela  construirdes?  Levantai,  conseguintemente,  esse  edifício  sobre  alicerces  inamovíveis.  Seja  mais  forte  a  vossa  fé  do  que  os  sofismas  e  as  zombarias  dos  incrédulos, visto que a fé que não afronta o ridículo dos homens não é fé verdadeira.  A  fé  sincera  é  empolgante  e  contagiosa;  comunica­se  aos  que  não  na  tinham, ou, mesmo, não desejariam tê­la. Encontra palavras persuasivas que vão à  alma,  ao  passo  que  a  fé  aparente  usa  de  palavras  sonoras  que  deixam  frio  e  indiferente quem as escuta. Pregai pelo exemplo da vossa fé, para a incutirdes nos  homens.  Pregai  pelo  exemplo  das  vossas  obras  para  lhes  demonstrardes  o  merecimento  da  fé.  Pregai  pela  vossa  esperança  firme,  para  lhes  dardes  a  ver  a  confiança  que  fortifica  e  põe  a  criatura  em  condições  de  enfrentar  todas  as  vicissitudes da vida. Tende, pois, a fé, com o que ela contém de belo e de bom, com  a sua pureza, com a sua racionalidade. Não admitais a fé sem comprovação, cega  filha  da  cegueira.  Amai  a  Deus,  mas  sabendo  por  que  o  amais;  crede  nas  suas  promessas, mas sabendo por que acreditais nelas; segui os nossos conselhos, mas  compenetrados  do  fim  que  vos  apontamos  e  dos  meios  que  vos  trazemos  para  o  atingirdes. Crede e esperai sem desfalecimento: os milagres são obras da fé. – José,  Espírito protetor. (Bordéus, 1862)  A FÉ HUMANA E A DIVINA  12. No homem, a fé é o sentimento inato de seus destinos futuros; é a consciência  que  ele  tem  das  faculdades  imensas  depositadas  em  gérmen  no  seu  íntimo,  a
  • 196. 196 – Allan Kardec  princípio em estado latente, e que lhe cumpre fazer que desabrochem e cresçam pela  ação da sua vontade.  Até  ao  presente,  a  fé  não  foi  compreendida  senão  pelo  lado  religioso,  porque  o  Cristo  a  exalçou  como  poderosa  alavanca  e  porque  o  têm  considerado  apenas  como  chefe  de  uma  religião.  Entretanto,  o  Cristo,  que  operou  milagres  materiais, mostrou, por esses milagres mesmos, o que pode o homem, quando tem  fé, isto é, a vontade de querer e a certeza de que essa vontade pode obter satisfação.  Também  os  apóstolos  não  operaram milagres,  seguindo­lhe  o  exemplo?  Ora,  que  eram  esses  milagres,  senão  efeitos  naturais,  cujas  causas  os  homens  de  então  desconheciam, mas que, hoje,  em  grande  parte  se  explicam  e  que  pelo  estudo  do  Espiritismo e do Magnetismo se tornarão completamente compreensíveis?  A  fé  é  humana  ou  divina,  conforme  o  homem  aplica  suas  faculdades  à  satisfação das necessidades terrenas, ou das suas aspirações celestiais e futuras. O  homem  de  gênio,  que  se  lança  à  realização  de  algum  grande  empreendimento,  triunfa, se tem  fé, porque sente em si que pode  e há de chegar ao  fim colimado,  certeza que lhe faculta imensa força. O homem de bem que, crente em seu futuro  celeste, deseja encher de belas e nobres ações a sua existência, haure na sua fé, na  certeza da felicidade que o espera, a força necessária, e ainda aí se operam milagres  de  caridade,  de  devotamento  e  de  abnegação.  Enfim,  com  a  fé,  não  há  maus  pendores que se não chegue a vencer.  O Magnetismo é uma das maiores provas do poder da fé posta em ação. É  pela fé que ele cura e produz esses fenômenos singulares, qualificados outrora de  milagres.  Repito: a fé é humana e divina. Se todos os encarnados se achassem bem  persuadidos da força que em si trazem, e se quisessem pôr a vontade a serviço dessa  força, seriam capazes de realizar o a que, até hoje, eles chamaram prodígios e que,  no  entanto,  não  passa  de  um  desenvolvimento  das  faculdades  humanas.  –  Um  Espírito Protetor. (Paris, 1863)
  • 197. 197 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XX  OS TRABALHADORES DA ÚLTIMA HORA  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS  §  OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS  §  MISSÃO DOS ESPÍRITAS  §  OS OBREIROS DO SENHOR  1.  “O  reino  dos  céus  é  semelhante  a  um  pai  de  família  que  saiu  de  madrugada,  a  fim  de  assalariar  trabalhadores  para  a  sua  vinha.  Tendo  convencionado com os trabalhadores que pagaria um denário a cada um  por dia, mandou­os para a vinha. Saiu de novo à terceira hora do dia e,  vendo outros que se conservavam na praça sem fazer coisa alguma. disse­  lhes: ‘Ide também vós outros para a minha vinha e vos pagarei o que for  razoável’. Eles foram. Saiu novamente à hora sexta e à hora nona do dia e  fez  o  mesmo.  Saindo  mais  uma  vez  à  hora  undécima,  encontrou  ainda  outros que estavam desocupados, aos quais disse: ‘Por que permaneceis aí  o dia inteiro sem trabalhar?’ Disseram eles: ‘É que ninguém nos assalariou’.  Ele então lhes disse: ‘Ide vós também para a minha vinha’.”  “Ao cair da tarde disse o dono da vinha àquele que cuidava dos  seus  negócios:  ‘Chama  os  trabalhadores  e  paga­lhes,  começando  pelos  últimos  e  indo  até  aos  primeiros’.  Aproximando­se  então  os  que  só  à  undécima hora haviam chegado, receberam um denário cada um. Vindo a  seu turno os que tinham sido encontrados em primeiro lugar, julgaram que  iam  receber  mais;  porém,  receberam  apenas  um  denário  cada  um.  Recebendo­o,  queixaram­se  ao  pai  de  família,  dizendo:  ‘Estes  últimos  trabalharam  apenas  uma  hora  e  lhes  dás  tanto  quanto  a  nós  que  suportamos o peso do dia e do calor’. Mas, respondendo, disse o dono da  vinha  a  um  deles:  ‘Meu  amigo,  não  te  causo  dano  algum;  não  convencionaste comigo receber um denário pelo teu dia? Toma o que te
  • 198. 198 – Allan Kardec  pertence e vai­te; apraz­me a mim dar a este último tanto quanto a ti. – Não  me é então lícito fazer o que quero? Tens mau olho, porque sou bom?’”  “Assim,  os  últimos  serão  os  primeiros  e  os  primeiros  serão  os  últimos, porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos”.  (MATEUS, 20:1 a 16)  (Ver também: “Parábola do festim das bodas”, cap. XVIII, nº 1)  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS  2.  O  obreiro  da  última  hora  tem  direito  ao  salário,  mas  é  preciso  que  a  sua  boa  vontade o haja conservado à disposição daquele que o tinha de empregar e que o seu  retardamento  não  seja  fruto  da  preguiça  ou  da  má  vontade.  Tem  ele  direito  ao  salário,  porque  desde  a  alvorada  esperava  com  impaciência  aquele  que  por  fim  o  chamaria para o trabalho. Laborioso, apenas lhe faltava o labor.  Se,  porém,  se  houvesse  negado  ao  trabalho  a  qualquer  hora  do  dia;  se  houvesse dito: “tenhamos paciência, o repouso me é agradável; quando soar a última  hora é que será tempo de pensar no salário do dia; que necessidade tenho de me  incomodar  por  um  patrão  a  quem  não  conheço  e  não  estimo!  quanto  mais  tarde,  melhor”;  esse  tal,  meus  amigos,  não  teria  tido  o  salário  do  obreiro,  mas  o  da  preguiça.  Que dizer, então, daquele que, em vez de apenas se conservar inativo, haja  empregado as horas destinadas ao labor do dia em praticar atos culposos; que haja  blasfemado de Deus, derramado o sangue de seus irmãos, lançado a perturbação nas  famílias, arruinado os que nele confiaram, abusado da inocência, que, enfim, se haja  cevado em todas as ignomínias da Humanidade? Que será desse? Bastar­lhe­á dizer  à última hora: Senhor, empreguei mal o meu tempo; toma­me até ao fim do dia, para  que eu execute um pouco, embora bem pouco, da minha tarefa, e dá­me o salário do  trabalhador de boa vontade? Não, não; o Senhor lhe dirá: “Não tenho presentemente  trabalho para te dar; malbarataste o teu tempo; esqueceste o que havias aprendido; já  não sabes trabalhar na minha vinha. Recomeça, portanto, a aprender e, quando te  achares mais bem­disposto, vem ter comigo e eu te franquearei o meu vasto campo,  onde poderás trabalhar a qualquer hora do dia.  Bons espíritas, meus bem­amados, sois todos obreiros da última hora. Bem  orgulhoso seria aquele que dissesse: Comecei o trabalho ao alvorecer do dia e só o  terminarei  ao  anoitecer.  Todos  viestes  quando  fostes  chamados,  um  pouco  mais  cedo,  um  pouco  mais  tarde,  para  a  encarnação  cujos  grilhões  arrastais;  mas  há  quantos  séculos  e  séculos  o  Senhor  vos  chamava  para  a  sua  vinha,  sem  que  quisésseis penetrar nela! Eis­vos no momento de embolsar o salário; empregai bem a  hora que vos resta e não esqueçais nunca que a vossa existência, por longa que vos  pareça,  mais  não  é  do  que  um  instante  fugitivo  na  imensidade  dos  tempos  que  formam para vós a eternidade. – Constantino, Espírito Protetor. (Bordéus, 1863)  3.  Jesus  gostava  da  simplicidade  dos  símbolos  e,  na  sua  linguagem  máscula,  os  obreiros  que  chegaram  na  primeira  hora  são  os  profetas,  Moisés  e  todos  os
  • 199. 199 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  iniciadores  que  marcaram  as  etapas  do  progresso,  as  quais  continuaram  a  ser  assinaladas através dos séculos pelos apóstolos, pelos mártires, pelos Pais da Igreja,  pelos  sábios,  pelos  filósofos  e,  finalmente,  pelos  espíritas.  Estes,  que  por  último  vieram,  foram  anunciados  e  preditos  desde  a  aurora  do  advento  do  Messias  e  receberão a mesma recompensa. Que digo? recompensa maior. Últimos chegados,  eles aproveitam dos labores intelectuais dos seus predecessores, porque o homem  tem  de  herdar  do  homem  e  porque  coletivos  são  os  trabalhos  humanos:  Deus  abençoa  a  solidariedade.  Aliás,  muitos  dentre  aqueles  revivem  hoje,  ou  reviverão  amanhã, para terminarem a obra que começaram outrora. Mais de um patriarca, mais  de um profeta, mais de um discípulo do Cristo, mais de um propagador da fé cristã  se  encontram  no  meio  deles,  porém,  mais  esclarecidos,  mais  adiantados,  trabalhando, não já na base e sim na cumeeira do edifício. Receberão, pois, salário  proporcionado ao valor da obra.  O  belo  dogma  da  reencarnação  eterniza  e  precisa  a  filiação  espiritual.  Chamado  a  prestar  contas  do  seu  mandato  terreno,  o  Espírito  se  apercebe  da  continuidade  da  tarefa  interrompida,  mas  sempre  retomada.  Ele  vê,  sente  que  apanhou, de passagem, o pensamento dos que o precederam. Entra de novo na liça,  amadurecido pela experiência, para avançar mais. E todos, trabalhadores da primeira  e da última hora, com os olhos bem abertos sobre a profunda justiça de Deus, não  mais murmuram: adoram.  Tal um dos verdadeiros sentidos desta parábola, que encerra, como todas as  de que Jesus se utilizou falando ao povo, o gérmen do futuro e também, sob todas as  formas,  sob  todas  as  imagens,  a  revelação  da  magnífica  unidade  que  harmoniza  todas as coisas no Universo, da solidariedade que liga todos os seres presentes ao  passado e ao futuro. – Henri Heine. (Paris, 1863)  MISSÃO DOS ESPÍRITAS  4.  Não  escutais  já  o  ruído  da  tempestade  que  há  de  arrebatar  o  velho  mundo  e  abismar no nada o conjunto das iniqüidades terrenas? Ah! Bendizei o Senhor, vós  que haveis posto a vossa fé na sua soberana justiça e que, novos apóstolos da crença  revelada  pelas  proféticas  vozes  superiores,  ides  pregar  o  novo  dogma  da  reencarnação e da elevação dos Espíritos, conforme tenham cumprido, bem ou mal,  suas missões e suportado suas provas terrestres  Não mais vos assusteis! As línguas  de fogo estão sobre as vossas cabeças. Ó verdadeiros adeptos do Espiritismo!... Sois  os  escolhidos  de  Deus!  Ide  e  pregai  a  palavra  divina.  É  chegada  a  hora  em  que  deveis sacrificar à sua propagação os vossos hábitos, os vossos trabalhos, as vossas  ocupações  fúteis.  Ide  e  pregai.  Convosco  estão  os  Espíritos  elevados.  Certamente  falareis  a  criaturas  que  não  quererão  escutar  a  voz  de  Deus,  porque  essa  voz  as  exorta  incessantemente  à  abnegação.  Pregareis  o  desinteresse  aos  avaros,  a  abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranos domésticos, como aos déspotas!  Palavras perdidas, eu o sei; mas não importa. Faz­se mister regueis com os vossos  suores  o  terreno  onde  tendes  de  semear,  porquanto  ele  não  frutificará  e  não  produzirá senão sob os reiterados golpes da enxada e da charrua evangélicas. Ide e  pregai!
  • 200. 200 – Allan Kardec  Ó todos vós, homens de boa­fé, conscientes da vossa inferioridade em face  dos mundos disseminados pelo Infinito!... Lançai­vos em cruzada contra a injustiça  e a iniqüidade. Ide e proscrevei esse culto do bezerro de ouro, que cada dia mais se  alastra.  Ide,  Deus  vos  guia!  Homens  simples  e  ignorantes,  vossas  línguas  se  soltarão e falareis como nenhum orador fala. Ide e pregai, que as populações atentas  recolherão ditosas as vossas palavras de consolação, de fraternidade, de esperança e  de paz. Que importam as emboscadas que vos armem pelo caminho! Somente lobos  caem em armadilhas para lobos, porquanto o pastor saberá defender suas ovelhas  das fogueiras imoladoras. Ide, homens, que, grandes diante de Deus, mais ditosos do  que Tomé, credes sem fazerdes questão de ver e aceitais os fatos da mediunidade,  mesmo quando não tenhais conseguido obtê­los por vós mesmos; ide, o Espírito de  Deus vos conduz.  Marcha, pois, avante, falange imponente pela tua fé! Diante de ti os grandes  batalhões dos incrédulos se dissiparão, como a bruma da manhã aos primeiros raios  do Sol nascente.  A fé é a virtude que desloca montanhas, disse Jesus. Todavia, mais pesados  do  que  as  maiores  montanhas,  jazem  depositados  nos  corações  dos  homens  a  impureza  e  todos  os  vícios  que  derivam  da  impureza.  Parti,  então,  cheios  de  coragem, para removerdes essa montanha de iniqüidades que as futuras gerações só  deverão  conhecer  como  lenda,  do  mesmo  modo  que  vós,  que  só  muito  imperfeitamente conheceis os tempos que antecederam a civilização pagã.  Sim, em todos os pontos do Globo vão produzir­se as subversões morais e  filosóficas;  aproxima­se  a  hora  em  que  a  luz  divina  se  espargirá  sobre  os  dois  mundos.  Ide,  pois,  e  levai  a  palavra  divina:  aos  grandes  que  a  desprezarão,  aos  eruditos  que  exigirão  provas,  aos  pequenos  e  simples  que  a  aceitarão;  porque,  principalmente  entre  os  mártires  do  trabalho,  desta  provação  terrena,  encontrareis  fervor e fé. Ide; estes receberão, com hinos de gratidão e louvores a Deus, a santa  consolação que lhes levareis, e baixarão a fronte, rendendo­lhe graças pelas aflições  que a Terra lhes destina.  Arme­se a vossa falange de decisão e coragem! Mãos à obra! o arado está  pronto; a terra espera; arai!  Ide e agradecei a Deus a gloriosa tarefa que Ele vos confiou; mas, atenção!  Entre os  chamados para o Espiritismo muitos se transviaram; reparai, pois, vosso  caminho e segui a verdade.  Pergunta.  –  Se,  entre  os  chamados  para  o  Espiritismo,  muitos  se  transviaram, quais os sinais pelos quais reconheceremos os que se acham no bom  caminho?  Resposta. – Reconhecê­los­eis pelos princípios da verdadeira caridade que  eles ensinarão e praticarão. Reconhecê­los­eis pelo número de aflitos a que levem  consolo; reconhecê­los­eis pelo seu amor ao próximo, pela sua abnegação, pelo seu  desinteresse pessoal; reconhecê­los­eis, finalmente, pelo triunfo de seus princípios,  porque  Deus  quer  o  triunfo  de  Sua  lei;  os  que  seguem  Sua  lei,  esses  são  os  escolhidos e Ele lhes dará a vitória; mas Ele destruirá aqueles que falseiam o espírito
  • 201. 201 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  dessa lei e fazem dela degrau para contentar sua vaidade e sua ambição. – Erasto,  anjo­da­guarda do médium. (Paris, 1863) 12  OS OBREIROS DO SENHOR  5.  Aproxima­se  o  tempo  em  que  se  cumprirão  as  coisas  anunciadas  para  a  transformação da Humanidade. Ditosos serão os que houverem trabalhado no campo  do  Senhor,  com  desinteresse  e  sem  outro  móvel,  senão  a  caridade!  Seus  dias  de  trabalho serão pagos pelo cêntuplo do que tiverem esperado. Ditosos os que hajam  dito a seus irmãos: “Trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o  Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra”, porquanto o Senhor lhes dirá: “Vinde a  mim,  vós  que  sois  bons  servidores,  vós  que  soubestes  impor  silêncio  aos  vossos  ciúmes e às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra!” Mas, ai  daqueles que, por efeito das suas dissensões, houverem retardado a hora da colheita,  pois a tempestade virá e eles serão levados no turbilhão! Clamarão: “Graça! graça!”  O Senhor, porém, lhes dirá: “Como implorais graças, vós que não tivestes piedade  dos  vossos  irmãos  e  que  vos  negastes  a  estender­lhes as mãos,  que  esmagastes  o  fraco, em vez de o amparardes? Como suplicais graças, vós que buscastes a vossa  recompensa nos gozos da Terra e na satisfação do vosso  orgulho? Já recebestes a  vossa recompensa, tal qual a quisestes. Nada mais vos cabe pedir; as recompensas  celestes são para os que não tenham buscado as recompensas da Terra.”  Deus  procede,  neste  momento,  ao  censo  dos  seus  servidores  fiéis  e  já  marcou com o dedo aqueles cujo devotamento é apenas aparente, a fim de que não  usurpem  o  salário  dos  servidores  animosos,  pois  aos  que  não  recuarem  diante  de  suas  tarefas  é  que  ele  vai  confiar  os  postos  mais  difíceis  na  grande  obra  da  regeneração pelo Espiritismo. Cumprir­se­ão estas palavras: “Os primeiros serão os  últimos e os últimos serão os primeiros no reino dos céus.” – O Espírito de Verdade.  (Paris, 1862)  12  Na  terceira  edição  francesa  esta  mensagem  saiu  incompleta  e  sem  assinatura.  Completamo­la  em  confronto com a primeira edição do original. – A Editora da FEB, em 1948.
  • 202. 202 – Allan Kardec  CAPÍTULO XXI  HAVERÁ FALSOS CRISTOS E FALSOS PROFETAS §  CONHECE­SE A ÁRVORE PELO FRUTO  §  MISSÃO DOS PROFETAS  §  PRODÍGIO DOS FALSOS PROFETAS  §  NÃO CREAIS EM TODOS OS ESPÍRITAS  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS  §  OS FALSOS PROFETAS  §  CARACTERES DO VERDADEIRO PROFETA  §  OS FALSOS PROFETAS DA ERRATICIDADE  §  JEREMIAS E OS FALSOS PROFETAS  CONHECE­SE A ÁRVORE PELO FRUTO  1. “ A árvore que produz maus frutos não é boa e a árvore que produz bons  frutos não é má; porquanto, cada árvore se conhece pelo seu próprio fruto.  Não se colhem figos nos espinheiros, nem cachos de uvas nas sarças. O  homem de bem tira boas coisas do bom tesouro do seu coração e o mau  tira as más do mau tesouro do seu coração; porquanto, a boca fala do de  que está cheio o coração”.  (LUCAS, 6:43 a 45)  2. “ Guardai­vos dos falsos profetas que vêm ter convosco cobertos de peles  de ovelha e que por dentro são lobos rapaces. Conhecê­los­eis pelos seus  frutos. Podem colher­se uvas nos espinheiros ou figos nas sarças? Assim,  toda árvore boa produz bons frutos e toda árvore má produz maus frutos.  Uma árvore boa não pode produzir frutos maus e uma árvore má não pode  produzir frutos bons. Toda árvore que não produz bons frutos será cortada  e lançada ao fogo. Conhecê­la­eis, pois, pelos seus frutos”.  (MATEUS, 7:15 a 20)
  • 203. 203 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  3. “ Tende cuidado para que alguém não vos seduza; porque muitos virão  em meu nome, dizendo: ‘Eu sou o Cristo’, e seduzirão a muitos. Levantar­  se­ão  muitos  falsos  profetas  que  seduzirão  a  muitas  pessoas;  e  porque  abundará  a  iniqüidade,  a  caridade  de  muitos  esfriará.  Mas  aquele  que  perseverar  até  ao  fim  se  salvará.  Então,  se  alguém  vos disser:  ‘O  Cristo  está  aqui,  ou  está  ali’,  não  acrediteis  absolutamente;  porquanto  falsos  Cristos e falsos profetas se levantarão e farão grandes prodígios e coisas  de  espantar,  ao  ponto  de  seduzirem,  se  fosse  possível,  os  próprios  escolhidos”.  (MATEUS, 24:4, 5, 11 a 13, 23 e 24; MARCOS, 13:5, 6, 21 e 22)  MISSÃO DOS PROFETAS  4. Atribui­se comumente aos profetas o dom de adivinhar o futuro, de sorte que as  palavras  profecia  e  predição  se  tornaram  sinônimas.  No  sentido  evangélico,  o  vocábulo profeta  tem mais  extensa  significação.  Diz­se  de  todo  enviado  de Deus  com a missão de instruir os homens e de lhes revelar as coisas ocultas e os mistérios  da vida espiritual. Pode, pois, um homem ser profeta, sem fazer predições. Aquela  era  a  idéia  dos  judeus,  ao  tempo  de  Jesus.  Daí  vem  que,  quando  o  levaram  à  presença do sumo­sacerdote Caifás, os escribas e os anciães, reunidos, lhe cuspiram  no rosto, lhe deram socos  e bofetadas, dizendo: “Cristo, profetiza para nós e dize  quem foi que te bateu.” Entretanto, deu­se o caso de haver profetas que tiveram a  presciência do futuro, quer por intuição, quer por providencial revelação, a fim de  transmitirem avisos aos homens. Tendo­se realizado os acontecimentos preditos, o  dom de predizer o futuro foi considerado como um dos atributos da qualidade de  profeta.  PRODÍGIOS DOS FALSOS PROFETAS  5.  “Levantar­se­ão  falsos  Cristos  e  falsos  profetas,  que  farão  grandes  prodígios  e  coisas de espantar, a ponto de seduzirem os próprios escolhidos.” Estas palavras dão  o  verdadeiro  sentido  do  termo  prodígio.  Na  acepção  teológica,  os  prodígios  e  os  milagres  são  fenômenos  excepcionais,  fora  das  leis  da  Natureza.  Sendo  estas,  exclusivamente,  obra  de  Deus,  pode  ele,  sem  dúvida,  derrogá­las,  se  lhe  apraz;  o  simples bom­senso, porém, diz que não é possível haja ele dado a seres inferiores e  perversos um poder igual ao seu, nem, ainda menos, o direito de desfazer o que ele  tenha feito. Semelhante princípio não no pode Jesus ter consagrado. Se, portanto, de  acordo com o sentido que se atribui a essas palavras, o Espírito do mal tem o poder  de fazer prodígios tais que os próprios escolhidos se deixem enganar, o resultado  seria  que,  podendo  fazer  o  que  Deus  faz,  os  prodígios  e  os  milagres  não  são  privilégio exclusivo dos enviados de Deus e nada provam, pois que nada distingue  os  milagres  dos  santos  dos  milagres  do  demônio.  Necessário,  então,  se  torna  procurar um sentido mais racional para aquelas palavras.  Para o vulgo ignorante, todo fenômeno cuja causa é desconhecida passa por  sobrenatural, maravilhoso e miraculoso; uma vez encontrada a causa, reconhece­se
  • 204. 204 – Allan Kardec  que o fenômeno, por muito extraordinário que pareça, mais não é do que aplicação  de  uma  lei  da  Natureza.  Assim,  o  círculo  dos  fatos  sobrenaturais  se  restringe  à  medida  que  o  da  Ciência  se  alarga.  Em  todos  os  tempos,  homens  houve  que  exploraram, em proveito de suas ambições, de seus interesses  e do  seu anseio de  dominação, certos conhecimentos que possuíam, a fim de alcançarem o prestígio de  um pseudo­poder sobre­humano, ou de uma pretendida missão divina. São esses os  falsos Cristos e falsos profetas. A difusão das luzes lhes aniquila o crédito, donde  resulta que o número deles diminui à proporção que os homens se esclarecem. O  fato de operar o que certas pessoas consideram prodígios não constitui, pois, sinal de  uma missão divina, visto que pode resultar de conhecimento cuja aquisição está ao  alcance de qualquer um, ou de faculdades orgânicas especiais, que o mais indigno  não se acha inibido de possuir, tanto quanto o mais digno. O verdadeiro profeta se  reconhece por mais sérios caracteres e exclusivamente morais.  NÃO CREAIS EM TODOS OS ESPÍRITOS  6. “ Meus bem­amados, não creais em qualquer Espírito; experimentai se os  Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se têm levantado  no mundo”.  (JOÃO, Epístola 1ª, 4:1)  7. Os fenômenos espíritas, longe de abonarem os falsos Cristos e os falsos profetas,  como a algumas pessoas apraz dizer, golpe mortal desferem neles. Não peçais ao  Espiritismo prodígios, nem milagres, porquanto ele formalmente declara que os não  opera.  Do  mesmo  modo  que  a  Física,  a  Química,  a  Astronomia,  a  Geologia,  revelaram as leis do mundo material, ele revela outras leis desconhecidas, as que  regem as relações do mundo corpóreo com o mundo espiritual, leis que, tanto quanto  aquelas outras da Ciência, são leis da Natureza. Facultando a  explicação de certa  ordem de fenômenos incompreendidos até o presente, ele destrói o que ainda restava  do domínio do maravilhoso. Quem, portanto, se sentisse tentado a lhe explorar em  proveito  próprio  os  fenômenos,  fazendo­se  passar  por  messias  de  Deus,  não  conseguiria  abusar  por  muito  tempo  da  credulidade  alheia  e  seria  logo  desmascarado. Aliás, como já se tem dito, tais fenômenos, por si sós, nada provam:  a missão se prova por efeitos morais, o que não é dado a qualquer um produzir. Esse  um dos resultados do desenvolvimento da ciência espírita; pesquisando a causa de  certos fenômenos, de sobre muitos mistérios levanta ela o véu. Só os que preferem a  obscuridade  à  luz,  têm  interesse  em  combatê­la;  mas,  a  verdade  é  como  o  Sol:  dissipa os mais densos nevoeiros.  O Espiritismo revela outra categoria bem mais perigosa de falsos Cristos e  de  falsos  profetas,  que  se  encontram,  não  entre  os  homens,  mas  entre  os  desencarnados: a dos Espíritos enganadores, hipócritas, orgulhosos e pseudo­sábios,  que  passaram  da  Terra  para  a  erraticidade  e  tomam nomes  venerados  para,  sob  a  máscara de que se cobrem, facilitarem a aceitação das mais singulares e absurdas  idéias. Antes que se conhecessem as relações mediúnicas, eles atuavam de maneira  menos  ostensiva,  pela  inspiração,  pela  mediunidade  inconsciente,  audiente  ou
  • 205. 205 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  falante.  É  considerável  o  número  dos  que,  em  diversas  épocas,  mas,  sobretudo,  nestes últimos tempos, se hão apresentado como alguns dos antigos profetas, como o  Cristo,  como  Maria,  sua  mãe,  e  até  como  Deus.  S.  João  adverte  contra  eles  os  homens,  dizendo:  “Meus  bem­amados,  não  acrediteis  em  todo  Espírito;  mas,  experimentai se os Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se têm  levantado  no  mundo.”  O  Espiritismo  nos  faculta  os  meios  de  experimentá­los,  apontando  os  caracteres  pelos  quais  se  reconhecem  os  bons  Espíritos,  caracteres  sempre morais, nunca materiais 13  . É à maneira de se distinguirem dos maus os bons  Espíritos que, principalmente, podem aplicar­se estas palavras de Jesus: “Pelo fruto  é que se reconhece a qualidade da árvore; uma árvore boa não pode produzir maus  frutos, e uma árvore má não os pode produzir bons.” Julgam­se os Espíritos pela  qualidade de suas obras, como uma árvore pela qualidade dos seus frutos.  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  OS FALSOS PROFETAS  8.  Se  vos  disserem:  “O  Cristo  está  aqui”,  não  vades;  ao  contrário,  tende­vos  em  guarda, porquanto numerosos serão os falsos profetas. Não vedes que as folhas da  figueira começam a branquear; não vedes os seus múltiplos rebentos aguardando a  época  da  floração;  e não  vos  disse  o  Cristo:  Conhece­se  a  árvore  pelo  fruto?  Se,  pois,  são  amargos  os  frutos,  já  sabeis  que  má  é  a árvore; se,  porém,  são  doces  e  saudáveis, direis: “Nada que seja puro pode provir de fonte má.”  É assim, meus irmãos, que deveis julgar; são as obras que deveis examinar.  Se  os  que  se  dizem  investidos  de  poder  divino revelam  sinais  de  uma missão  de  natureza elevada, isto é, se possuem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas: a  caridade, o amor, a indulgência, a bondade que concilia os corações; se, em apoio  das palavras, apresentam os atos, podereis então dizer: Estes são realmente enviados  de Deus. Desconfiai, porém, das palavras melífluas, desconfiai dos escribas e dos  fariseus que oram nas praças públicas, vestidos de longas túnicas. Desconfiai dos  que pretendem ter o monopólio da verdade! Não, não, o Cristo não está entre esses,  porquanto os que ele envia para propagar a sua santa doutrina e regenerar o seu povo  serão, acima de tudo, seguindo­lhe o exemplo, brandos e humildes de coração; os  que  hajam,  com  os  exemplos  e  conselhos  que  prodigalizem,  de  salvar  a  Humanidade,  que  corre  para  a  perdição  e  pervaga  por  caminhos  tortuosos,  serão  essencialmente modestos e humildes. De tudo o que revele um átomo de orgulho,  fugi, como de uma lepra contagiosa, que corrompe tudo em que toca. Lembrai­vos  de que cada criatura traz na fronte, mas principalmente nos atos, o cunho da sua  grandeza ou da sua inferioridade.  Ide, portanto, meus filhos bem­amados, caminhai sem tergiversações, sem  pensamentos  ocultos,  na  rota  bendita  que  tomastes.  Ide,  ide  sempre,  sem  temor;  afastai,  cuidadosamente,  tudo  o  que  vos  possa  entravar a  marcha  para  o objetivo  13  Ver,  sobre a  maneira  de  se distinguirem  os Espíritos: O  Livro dos Médiuns, 2ª Parte,  cap.  XXIV e  seguintes.
  • 206. 206 – Allan Kardec  eterno.  Viajores,  só  por  pouco  tempo  mais  estareis  nas  trevas  e  nas  dores  da  provação, se abrirdes o vosso coração a essa suave doutrina que vos vem revelar as  leis eternas e satisfazer a todas as aspirações de vossa alma acerca do desconhecido.  Já podeis dar corpo a esses silfos ligeiros que vedes passar nos vossos sonhos e que,  efêmeros,  apenas  vos  encantavam  o  espírito,  sem  coisa alguma  dizerem  ao  vosso  coração. Agora, meus amados, a morte desapareceu, dando lugar ao anjo radioso que  conheceis,  o  anjo  do  novo  encontro  e  da  reunião!  Agora,  vós  que  bem  desempenhado  haveis  a  tarefa  que  o  Criador  confia  às  suas  criaturas,  nada  mais  tendes de temer da sua justiça, pois ele é pai e perdoa sempre aos filhos transviados  que  clamam  por  misericórdia.  Continuai,  portanto,  avançai  incessantemente.  Seja  vossa  divisa  a  do  progresso,  do  progresso  contínuo  em  todas  as  coisas,  até  que,  finalmente, chegueis ao termo feliz da jornada, onde vos esperam todos os que vos  precederam. – Luís. (Bordéus, 1861)  CARACTERES DO VERDADEIRO PROFETA  9. Desconfiai dos falsos profetas. É  útil  em  todos  os  tempos  essa  recomendação,  mas, sobretudo, nos momentos de transição em que, como no atual, se elabora uma  transformação  da  Humanidade,  porque,  então,  uma  multidão  de  ambiciosos  e  intrigantes se arvoram em reformadores e messias. É contra esses impostores que se  deve estar em guarda, correndo a todo homem honesto o dever de os desmascarar.  Perguntareis, sem dúvida, como reconhecê­los. Aqui tendes o que os assinala:  Somente a um hábil general, capaz de dirigi­lo, se confia o comando de um  exército. Julgais que Deus seja menos prudente do que os homens? Ficai certos de  que  só  confia  missões  importantes  aos  que  ele  sabe  capazes  de  as  cumprir,  porquanto as grandes missões são fardos pesados que esmagariam o homem carente  de forças para carregá­los. Em todas as coisas, o mestre há de sempre saber mais do  que  o  discípulo;  para  fazer  que  a  Humanidade  avance  moralmente  e  intelectualmente, são precisos homens superiores em inteligência e em moralidade.  Por  isso,  para  essas  missões  são  sempre  escolhidos  Espíritos  já  adiantados,  que  fizeram suas provas noutras existências, visto que, se não fossem superiores ao meio  em que têm de atuar, nula lhes resultaria a ação.  Isto posto, haveis de concluir que o verdadeiro missionário de Deus tem de  justificar, pela sua superioridade, pelas suas virtudes, pela grandeza, pelo resultado e  pela influência moralizadora de suas obras, a missão de que se diz portador. Tirai  também esta outra conseqüência: se, pelo seu caráter, pelas suas virtudes, pela sua  inteligência, ele se mostra abaixo do papel com que se apresente, ou da personagem  sob cujo nome se coloca, mais não é do que um histrião de baixo estofo, que nem  sequer sabe imitar o modelo que escolheu.  Outra consideração: os verdadeiros missionários de Deus ignoram­se a si  mesmos, em sua maior parte; desempenham a missão a que foram chamados pela  força do gênio que possuem, secundado pelo poder oculto que os inspira e dirige a  seu  mau  grado,  mas  sem  desígnio  premeditado.  Numa  palavra:  os  verdadeiros  profetas se revelam por seus atos, são adivinhados, ao passo que os falsos profetas  se dão, eles próprios, como enviados de Deus. O primeiro é humilde e modesto; o
  • 207. 207 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  segundo,  orgulhoso  e  cheio  de  si,  fala  com  altivez  e,  como  todos  os  mendazes,  parece sempre temeroso de que não lhe dêem crédito.  Alguns desses impostores têm havido, pretendendo passar por apóstolos do  Cristo, outros pelo próprio Cristo, e, para vergonha da Humanidade, hão encontrado  pessoas  assaz  crédulas  que  lhes  crêem  nas  torpezas.  Entretanto,  uma  ponderação  bem  simples  seria  bastante  a  abrir  os  olhos  do  mais  cego,  a  de  que  se  o  Cristo  reencarnasse na Terra, viria com todo o seu poder e todas as suas virtudes, a menos  se admitisse, o que fora absurdo, que houvesse degenerado. Ora, do mesmo modo  que, se tirardes a Deus um só de seus atributos, já não tereis Deus, se tirardes uma só  de suas virtudes ao Cristo, já não mais o tereis. Possuem todas as suas virtudes os  que  se  dão  como  sendo  o  Cristo?  Essa  a  questão.  Observai­os,  perscrutai­lhes  as  idéias  e  os  atos  e  reconhecereis  que,  acima  de  tudo,  lhes  faltam  as  qualidades  distintivas do Cristo: a humildade e a caridade, sobejando­lhes as que o Cristo não  tinha: a cupidez e o orgulho. Notai, ao demais, que neste momento há, em vários  países, muitos pretensos Cristos, como há muitos pretensos Elias, muitos S. João ou  S. Pedro e que não é absolutamente possível sejam verdadeiros todos. Tende como  certo  que  são  apenas  criaturas  que  exploram  a  credulidade  dos  outros  e  acham  cômodo  viver  à  custa  dos  que  lhes  prestam  ouvidos.  Desconfiai,  pois,  dos  falsos  profetas,  máxime  numa  época  de  renovação,  qual  a  presente,  porque  muitos  impostores  se  dirão  enviados  de  Deus.  Eles  procuram  satisfazer  na  Terra  à  sua  vaidade;  mas  uma  terrível  justiça  os  espera,  podeis  estar certos.  – Erasto.  (Paris,  1862)  OS FALSOS PROFETAS DA ERRATICIDADE  10.  Os  falsos  profetas  não  se  encontram  unicamente  entre  os  encarnados.  Há­os  também, e em muito maior número, entre os Espíritos orgulhosos que, aparentando  amor  e  caridade,  semeiam  a  desunião  e  retardam  a  obra  de  emancipação  da  Humanidade, lançando­lhe de través seus sistemas absurdos, depois de terem feito  que seus médiuns os aceitem. E, para melhor fascinarem aqueles a quem desejam  iludir, para darem mais peso às suas teorias, se apropriam sem escrúpulo de nomes  que só com muito respeito os homens pronunciam.  São eles que espalham o fermento dos antagonismos entre os grupos, que os  impelem a isolarem­se uns dos outros e a olharem­se com prevenção. Isso por si só  bastaria para os desmascarar, pois, procedendo assim, são os primeiros a dar o mais  formal  desmentido  às  suas  pretensões.  Cegos,  portanto,  são  os  homens  que  se  deixam cair em tão grosseiro embuste.  Mas, há muitos outros meios de serem reconhecidos. Espíritos da categoria  em  que  eles  dizem  achar­se  têm  de  ser  não  só  muito  bons,  como  também  eminentemente racionais. Pois bem: passai­lhes os sistemas pelo crivo da razão e do  bom­senso e vede o que restará. Convinde, pois, comigo, em que, todas as vezes que  um  Espírito  indica,  como  remédio  aos  males  da  Humanidade  ou  como  meio  de  conseguir­se a sua transformação, coisas utópicas e impraticáveis, medidas pueris e  ridículas; quando formula um sistema que as mais rudimentares noções da Ciência  contradizem, não pode ser senão um Espírito ignorante e mentiroso.
  • 208. 208 – Allan Kardec  Por outro lado, crede que, se nem sempre os indivíduos apreciam a verdade,  esta  é  apreciada  sempre  pelo  bom­senso  das  massas,  constituindo  isso  mais  um  critério. Se dois princípios se contradizem, achareis a medida do valor intrínseco de  ambos, verificando qual dos dois encontra mais ecos e simpatias. Fora, com efeito,  ilógico  admitir­se  que  uma  doutrina  cujo  número  de  adeptos  diminua  progressivamente  seja  mais  verdadeira  do  que  outra  que  veja  o  dos  seus  em  contínuo aumento. Querendo que a verdade chegue a todos, Deus não a confina num  círculo acanhado: fá­la surgir em diferentes pontos, a fim de que por toda a parte a  luz esteja ao lado das trevas.  Repeli sem condescendência todos esses Espíritos que se apresentam como  conselheiros exclusivos, pregando a separação e o insulamento. São quase sempre  Espíritos vaidosos e medíocres, que procuram impor­se a homens fracos e crédulos,  prodigalizando­lhes exagerados louvores, a fim de os fascinar e de tê­los dominados.  São, geralmente, Espíritos sequiosos de poder e que, déspotas públicos ou nos lares,  quando  vivos,  ainda  querem  vítimas  para  tiranizar  depois  de  terem  morrido.  Em  geral,  desconfiai  das  comunicações  que  trazem  um  caráter  de  misticismo  e  de  singularidade,  ou  que  prescrevem  cerimônias  e  atos  extravagantes.  Há  sempre,  nesses casos, motivo legítimo de suspeição.  Estai certos, igualmente, de que quando uma verdade tem de ser revelada  aos  homens,  é,  por  assim  dizer,  comunicada  instantaneamente  a  todos  os  grupos  sérios, que dispõem de médiuns também sérios, e não a tais ou quais, com exclusão  dos outros. Nenhum médium é perfeito, se está obsidiado; e há manifesta obsessão  quando um médium só é apto a receber comunicações de determinado Espírito, por  mais alto que este procure colocar­se. Conseguintemente, todo médium e todo grupo  que considerem privilégio seu receber as comunicações que obtêm e que, por outro  lado,  se  submetem  a  práticas  que  tendem  para  a  superstição,  indubitavelmente  se  acham  presas  de  uma  obsessão  bem  caracterizada,  sobretudo  quando  o  Espírito  dominador  se  pavoneia  com  um  nome  que  todos,  encarnados  e  desencarnados,  devem honrar e respeitar e não permitir, seja declinado a todo propósito.  É  incontestável  que,  submetendo  ao  crivo  da  razão  e  da  lógica  todos  os  dados e todas as comunicações dos Espíritos, fácil se torna rejeitar a absurdidade e o  erro. Pode um médium ser fascinado, e iludido um grupo; mas, a verificação severa  a que procedam os outros grupos, a ciência adquirida, a alta autoridade moral dos  diretores de grupos, as comunicações que os principais médiuns recebam, com um  cunho de lógica e de autenticidade dos melhores Espíritos, justiçarão rapidamente  esses  ditados  mentirosos  e  astuciosos,  emanados  de  uma  turba  de  Espíritos  mistificadores ou maus. – Erasto, discípulo de São Paulo. (Paris, 1862)  (Veja­se, na “Introdução”, o parágrafo II: Verificação universal do ensino  dos Espíritos. – O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII, Da obsessão.)  JEREMIAS E OS FALSOS PROFETAS  11. “ Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: ‘Não escuteis as palavras dos  profetas que vos profetizam e que vos enganam. Eles publicam as visões  de seus corações e não o que aprenderam da boca do Senhor. Dizem aos  que  de  mim  blasfemam: O  Senhor  o disse,  tereis  paz;  e  a  todos  os  que
  • 209. 209 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  andam na corrupção de seus corações: Nenhum mal vos acontecerá. Mas,  qual dentre eles assistiu ao conselho de Deus? Qual o que o viu e escutou  o  que  ele  disse?  Eu  não  enviava  esses  profetas;  eles  corriam  por  si  mesmos;  eu  absolutamente  não  lhes  falava;  eles  profetizavam  de  suas  cabeças.  Eu  ouvi  o  que  disseram  esses  profetas  que  profetizavam  a  mentira  em  meu  nome,  dizendo:  Sonhei,  sonhei.  Até  quando  essa  imaginação  estará  no  coração  dos  que  profetizam  a  mentira  e  cujas  profecias  não  são  senão  as  seduções  do  coração  deles?  Se,  pois,  este  povo, ou um profeta, ou um sacerdote vos interrogar e disser: Qual o fardo  do  Senhor?  Dir­lhe­eis:  vós mesmos  sois  o fardo  e  eu  vos  lançarei  bem  longe de mim’, ­­ diz o Senhor”.  (JEREMIAS, 23:16 a 18, 21, 25, 26 e 33)  É  dessa  passagem  do  profeta  Jeremias  que  quero  tratar  convosco,  meus  amigos. Falando pela sua boca, diz Deus: “É a visão do coração deles que os faz  falar.” Essas palavras claramente indicam que, já naquela época, os charlatães e os  exaltados  abusavam  do  dom  de  profecia  e  o  exploravam.  Abusavam,  por  conseguinte, da fé simples e quase cega do povo, predizendo, por dinheiro, coisas  boas e agradáveis. Muito generalizada se achava essa espécie de  fraude na nação  judia, e fácil é de compreender­se que o pobre povo, em sua ignorância, nenhuma  possibilidade tinha de distinguir os  bons dos maus, sendo  sempre mais ou menos  ludibriado  pelos  pseudo­profetas,  que  não  passavam  de  impostores  ou  fanáticos.  Nada há de mais significativo do que estas palavras: “Eu não enviei esses profetas e  eles correram por si mesmos; não lhes falei e eles profetizaram.” Mais adiante, diz:  “Eu ouvi esses profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei,  sonhei.”  Indicava  assim  um  dos  meios  que  eles  empregavam  para  explorar  a  confiança  de  que  eram  objeto.  A  multidão,  sempre  crédula, não  pensava  em  lhes  contestar  a  veracidade  dos  sonhos,  ou  das  visões;  achava  isso  muito  natural  e  constantemente os convidava a falar.  Após  as  palavras  do  profeta,  escutai  os  sábios  conselhos  do  apóstolo  S.  João, quando diz: “Não acrediteis em todo Espírito; experimentai se os Espíritos são  de Deus”, porque, entre os invisíveis, também há os que se comprazem em iludir, se  se  lhes  depara  ocasião.  Os  iludidos  são,  está­se  a  ver,  os  médiuns  que  se  não  precatam bastante. Aí se encontra, é fora de toda dúvida, um dos maiores escolhos  em que muitos funestamente esbarram, mormente se são novatos no Espiritismo. É­  lhes isso uma prova de que só com muita prudência podem triunfar. Aprendei, pois,  antes de tudo, a distinguir os bons e os maus Espíritos, para, por vossa vez, não vos  tornardes falsos profetas. – Luoz, Espírito Protetor. (Carlsruhe, 1861)
  • 210. 210 – Allan Kardec  CAPÍTULO XXII  NÃO SEPAREIS O QUE DEUS JUNTOU §  INDISSOLUBILIDADE DO CASAMENTO  §  O DIVÓRCIO  INDISSOLUBILIDADE DO CASAMENTO  1. Também os fariseus vieram ter com ele para o tentarem e lhe disseram:  “Será permitido a um homem despedir sua mulher, por qualquer motivo?”  Ele  respondeu:  “Não  lestes  que  aquele  que  criou  o  homem  desde  o  princípio os criou macho e fêmea e disse: Por esta razão, o homem deixará  seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher e não farão os dois senão uma  só carne? Assim, já não serão duas, mas uma só carne. Não separe, pois,  o homem o que Deus juntou”.  Eles  retrucaram:  “ Mas,  por  que  então  ordenava  Moisés  que  o  marido  desse  à  sua  mulher  um  escrito  de  separação  e  a  despedisse?”  Jesus respondeu: “Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés  permitiu  despedísseis  vossas  mulheres;  mas,  no  começo,  não  foi  assim.  Por isso eu vos declaro que aquele que despede sua mulher, a não ser em  caso  de  adultério,  e  desposa  outra,  comete  adultério;  e  que  aquele  que  desposa a mulher que outro despediu também comete adultério”.  (MATEUS, 19:3 a 9)  2. Imutável só há o que vem de Deus. Tudo o que é obra dos homens está sujeito a  mudança. As leis da Natureza são as mesmas em todos  os tempos e  em todos  os  países.  As  leis  humanas mudam  segundo  os  tempos,  os  lugares  e  o progresso  da  inteligência. No casamento, o que é de ordem divina é a união dos sexos, para que se  opere  a  substituição  dos  seres  que  morrem;  mas,  as  condições  que  regulam  essa  união  são  de  tal  modo  humanas,  que  não  há,  no  mundo  inteiro,  nem  mesmo  na  cristandade,  dois  países  onde elas  sejam  absolutamente  idênticas,  e nenhum  onde  não hajam, com o tempo, sofrido mudanças. Daí resulta que, em face da lei civil, o
  • 211. 211 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  que é legítimo num país e em dada época, é adultério noutro país e noutra época,  isso  pela  razão  de  que  a  lei  civil  tem  por  fim  regular  os  interesses  das  famílias,  interesses que variam segundo os costumes e as necessidades locais. Assim é, por  exemplo, que, em certos países, o casamento religioso é o único legítimo; noutros é  necessário,  além  desse,  o  casamento  civil;  noutros,  finalmente,  este  último  casamento basta.  3. Mas, na união dos sexos, a par da lei divina material, comum a todos os  seres vivos, há outra lei divina, imutável como todas as leis de Deus, exclusivamente  moral: a lei de amor. Quis Deus que os seres se unissem não só pelos laços da carne,  mas  também  pelos  da  alma,  a  fim  de  que  a  afeição  mútua  dos  esposos  se  lhes  transmitisse aos  filhos e que  fossem dois, e não um somente, a amá­los, a cuidar  deles e a fazê­los progredir. Nas condições ordinárias do casamento, a lei de amor é  tida em consideração? De modo nenhum. Não se leva em conta a afeição de dois  seres que, por sentimentos recíprocos, se atraem um para o outro, visto que, as mais  das vezes, essa afeição é rompida. O de que se cogita, não é da satisfação do coração  e sim da do orgulho, da vaidade, da cupidez, numa palavra: de todos os interesses  materiais.  Quando  tudo  vai  pelo  melhor  consoante  esses  interesses,  diz­se  que  o  casamento é de conveniência e, quando as bolsas estão bem aquinhoadas, diz­se que  os esposos igualmente o são e muito felizes hão de ser.  Nem  a  lei  civil,  porém,  nem  os  compromissos  que  ela  faz  se  contraiam  podem suprir a lei do amor, se esta não preside à união, resultando, freqüentemente,  separarem­se  por  si  mesmos  os  que  à  força  se  uniram;  torna­se  um  perjúrio,  se  pronunciado como  fórmula banal, o juramento feito ao pé  do altar. Daí as uniões  infelizes,  que  acabam  tornando­se  criminosas,  dupla  desgraça  que  se  evitaria  ao  estabelecerem­se  as  condições  do  matrimônio,  se  não  abstraísse  da  única  que  o  sanciona aos olhos de Deus: a lei de amor. Ao dizer Deus: “Não sereis senão uma só  carne”,  e  quando  Jesus  disse:  “Não  separeis  o  que  Deus  uniu”,  essas  palavras  se  devem  entender  com  referência  à  união  segundo  a  lei  imutável  de  Deus  e  não  segundo a lei mutável dos homens.  4.  Será  então  supérflua  a  lei  civil  e  dever­se­á  volver  aos  casamentos  segundo  a  Natureza?  Não,  decerto.  A  lei  civil  tem  por  fim  regular  as  relações  sociais  e  os  interesses das famílias, de acordo com as exigências da civilização; por isso, é útil,  necessária, mas variável. Deve ser previdente, porque o homem civilizado não pode  viver como selvagem; nada, entretanto, nada absolutamente se opõe a que ela seja  um corolário da lei de Deus. Os obstáculos ao cumprimento da lei divina promanam  dos prejuízos e não da lei civil. Esses prejuízos, se bem ainda vivazes, já perderam  muito  do  seu  predomínio  no  seio  dos  povos  esclarecidos;  desaparecerão  com  o  progresso moral que, por fim, abrirá os olhos aos homens para os males sem conto,  as  faltas,  mesmo  os  crimes  que  decorrem  das  uniões  contraídas  com  vistas  unicamente nos interesses materiais. Um dia perguntar­se­á o que é mais humano,  mais caridoso, mais moral: se encadear um ao outro dois seres que não podem viver  juntos, se restituir­lhes a liberdade; se a perspectiva de uma cadeia indissolúvel não  aumenta o número de uniões irregulares.
  • 212. 212 – Allan Kardec  O DIVÓRCIO  5. O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato,  está  separado.  Não  é  contrário  à  lei  de  Deus,  pois  que  apenas  reforma  o  que  os  homens hão feito  e só é aplicável nos casos  em que não se levou em  conta a lei  divina.  Se  fosse  contrário  a  essa  lei,  a  própria  Igreja  seria  obrigada  a  considerar  prevaricadores  aqueles  de  seus  chefes  que,  por  autoridade  própria  e  em  nome  da  religião,  hão  imposto  o  divórcio  em  mais  de  uma  ocasião.  E  dupla  seria  aí  a  prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses  materiais e não a satisfação da lei de amor.  Mas,  nem  mesmo  Jesus  consagrou  a  indissolubilidade  absoluta  do  casamento. Não disse ele: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés  permitiu despedísseis vossas mulheres”? Isso significa que, já ao tempo de Moisés,  não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação podia  tornar­se  necessária.  Acrescenta,  porém:  “no  princípio,  não  foi  assim”,  isto  é,  na  origem  da  Humanidade,  quando  os  homens  ainda  não  estavam  pervertidos  pelo  egoísmo  e pelo  orgulho e  viviam segundo a lei de Deus, as uniões, derivando da  simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio.  Vai  mais  longe:  especifica  o  caso  em  que  pode  dar­se  o  repúdio,  o  de  adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade  que ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas, cumpre se tenham em  vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso,  prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade  que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo  casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que,  como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.
  • 213. 213 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XXIII  ESTRANHA MORAL §  ODIAR OS PAIS  §  ABANDONAR PAI, MÃE E FILHOS  §  DEIXAR AOS MORTOS O CUIDADO DE  ENTERRAR SEUS MORTOS  §  NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A DIVISÃO  ODIAR OS PAIS  1.  Como  nas  suas  pegadas  caminhasse  grande  massa  de  povo,  Jesus,  voltando­se, disse­lhes: “Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai e a  sua mãe, a sua mulher e a seus filhos, a seus irmãos e irmãs, mesmo a sua  própria vida, não pode ser meu discípulo. E quem quer que não carregue a  sua cruz e me siga, não pode ser meu discípulo. Assim, aquele dentre vós  que não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo”.  (LUCAS, 14:25 a 27 e 33)  2. “ Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe, mais do que a mim, de mim  não é digno; aquele que ama a seu filho ou a sua filha, mais do que a mim,  de mim não é digno”.  (MATEUS, 10:37)  3.  Certas  palavras,  aliás  muito  raras,  atribuídas  ao  Cristo,  fazem  tão  singular  contraste com o seu modo habitual de falar que, instintivamente, se lhes repele o  sentido literal, sem que a sublimidade da sua doutrina sofra qualquer dano. Escritas
  • 214. 214 – Allan Kardec  depois  de  sua  morte,  pois  que nenhum  dos  Evangelhos  foi redigido  enquanto  ele  vivia, lícito é acreditar­se que, em casos como este, o fundo do seu pensamento não  foi bem expresso, ou, o que não é menos provável, o sentido primitivo, passando de  uma língua para outra, há de ter experimentado alguma alteração. Basta que um erro  se haja cometido uma vez, para que os copiadores o tenham repetido, como se dá  freqüentemente com relação aos fatos históricos.  O termo odiar, nesta frase de S. Lucas: Se alguém vem a mim e não odeia a  seu pai e a sua mãe, está compreendido nessa hipótese. A ninguém acudirá atribuí­la  a Jesus. Será então supérfluo discuti­la e, ainda menos, tentar justificá­la. Importaria,  primeiro, saber se ele a pronunciou e, em caso afirmativo, se, na língua em que se  exprimia, a palavra em questão tinha o mesmo valor que na nossa. Nesta passagem  de  S.  João:  “Aquele  que  odeia  sua  vida,  neste  mundo,  a  conserva  para  a  vida  eterna”, é indubitável que ela não exprime a idéia que lhe atribuímos.  A  língua  hebraica  não  era  rica  e  continha  muitas  palavras  com  várias  significações.  Tal,  por  exemplo,  a  que,  no  Gênese,  designa  as  fases  da  criação:  servia, simultaneamente, para exprimir um período qualquer de tempo e a revolução  diurna. Daí, mais tarde, a sua tradução pelo termo dia e a crença de que o mundo foi  obra  de  seis  vezes  vinte  e  quatro  horas.  Tal,  também,  a  palavra  com  que  se  designava  um camelo  e  um cabo, uma  vez  que  os  cabos  eram  feitos  de  pêlos  de  camelo. Daí o haverem­na traduzido pelo termo camelo, na alegoria do buraco de  uma agulha. (Ver capítulo XVI no 2) 14  Cumpre, ao demais, se atenda aos costumes e ao caráter dos povos, pelo  muito que influem sobre o gênio particular de seus idiomas. Sem esse conhecimento,  escapa amiúde o sentido verdadeiro de certas palavras. De uma língua para outra, o  mesmo termo se reveste de maior ou menor energia. Pode, numa, envolver injúria ou  blasfêmia, e carecer de importância noutra, conforme a idéia que suscite. Na mesma  língua, algumas palavras perdem seu valor com o correr dos séculos. Por isso é que  uma  tradução  rigorosamente  literal  nem  sempre  exprime  perfeitamente  o  pensamento e que, para manter a exatidão, se tem às vezes de empregar, não termos  correspondentes,  mas  outros  equivalentes,  ou  perífrases.  Estas  notas  encontram  aplicação  especial  na  interpretação  das  Santas  Escrituras  e,  em  particular,  dos  Evangelhos. Se se não tiver em conta o meio em que Jesus vivia, fica­se exposto a  equívocos sobre o valor de certas expressões e de certos fatos, em conseqüência do  hábito  em  que  se  está  de  assimilar  os  outros  a  si  próprio.  Em  todo  caso,  cumpre  despojar  o  termo  odiar  da  sua  acepção  moderna,  como  contrária  ao  espírito  do  ensino de Jesus. (Veja­se também o cap. XIV, nº 5 e seguintes)  14  Non odit, em latim: Kaï ou miseï em grego, não quer dizer odiar, porém, amar menos. O que o verbo  grego miseïn exprime, ainda melhor o expressa o verbo hebreu, de que Jesus se há de ter servido. Esse  verbo não significa apenas odiar, mas, também amar menos, não amar igualmente, tanto quanto a um  outro. No dialeto siríaco, do qual, dizem, Jesus usava com mais freqüência, ainda melhor acentuada é  essa significação. Nesse sentido é que o Gênese (capítulo 29:30­31) diz: “E Jacob amou também mais a  Raquel do que a Lia, e Jeová, vendo que Lia era odiada...” É evidente que o verdadeiro sentido aqui é:  menos amada.  Assim  se deve traduzir. Em  muitas  outra passagens  hebraicas e,  sobretudo,  siríacas,  o  mesmo verbo é empregado no sentido de não amar tanto quanto a outro, de sorte que fora contra­senso  traduzi­lo por odiar, que tem outra acepção bem determinada. O texto de S. Mateus, aliás, afasta toda a  dificuldade. (Nota do Sr. Pezzani.)
  • 215. 215 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  ABANDONAR PAI, MÃE E FILHOS  4. “ Aquele que houver deixado, pelo meu nome, sua casa, os seus irmãos,  ou suas irmãs, ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou  suas  terras,  receberá  o  cêntuplo  de  tudo  isso  e  terá  por  herança  a  vida  eterna”.  (MATEUS, 19:29)  5.  Então,  disse­lhe  Pedro:  “Quanto  a  nós,  vês  que  tudo  deixamos  e  te  seguimos”.  Jesus  lhe  observou:  “Digo­vos,  em  verdade,  que  ninguém  deixará, pelo reino de Deus, sua casa, ou seu pai, ou sua mãe, ou seus  irmãos,  ou  sua  mulher,  ou  seus  filhos  que  não  receba,  já  neste  mundo,  muito mais, e no século vindouro a vida eterna”.  (LUCAS, 18:28 a 30)  6.  Disse­lhe  outro:  “Senhor,  eu  te  seguirei;  mas,  permite  que,  antes,  disponha do que tenho em minha casa”. Jesus lhe respondeu: “Quem quer  que, tendo posto a mão na charrua, olhar para trás, não está apto para o  reino de Deus”.  (LUCAS, 9:61­62)  Sem  discutir  as  palavras,  deve­se  aqui  procurar  o  pensamento,  que  era,  evidentemente,  este:  “Os  interesses  da  vida  futura  prevalecem  sobre  todos  os  interesses  e  todas  as  considerações  humanas”,  porque  esse  pensamento  está  de  acordo  com  a  substância  da  doutrina  de  Jesus,  ao  passo  que  a  idéia  de  uma  renunciação à família seria a negação dessa doutrina.  Não temos, aliás, sob as vistas a aplicação dessas máximas no sacrifício dos  interesses  e  das  afeições  de  família aos  da  Pátria?  Censura­se,  porventura,  aquele  que deixa seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua mulher, seus filhos, para marchar em  defesa do seu país? Não se lhe reconhece, ao contrário, grande mérito em arrancar­se  às doçuras do lar doméstico, aos liames da amizade, para cumprir um dever? É que,  então,  há  deveres  que  sobrelevam  a  outros  deveres.  Não  impõe  a  lei  à  filha  a  obrigação  de  deixar  os  pais,  para  acompanhar  o  esposo?  Formigam no  mundo  os  casos em que são necessárias as mais penosas separações. Nem por isso, entretanto,  as afeições se rompem. O afastamento não diminui o respeito, nem a solicitude do  filho para com os pais, nem a ternura destes para com aquele. Vê­se, portanto, que,  mesmo  tomadas  ao  pé  da  letra,  excetuado  o  termo  odiar,  aquelas  palavras  não  seriam uma negação do mandamento que prescreve ao homem honrar a seu pai e a  sua  mãe, nem  do  afeto  paternal;  com  mais  forte razão, não  o  seriam,  se  tomadas  segundo  o  espírito.  Tinham  elas  por  fim  mostrar,  mediante  uma  hipérbole,  quão  imperioso é para a criatura o dever de ocupar­se com a vida futura. Aliás, pouco  chocantes haviam de ser para um povo e numa época em que, como conseqüência  dos  costumes,  os  laços  de  família  eram  menos  fortes,  do  que  no  seio  de  uma  civilização  moral  mais  avançada.  Esses  laços,  mais  fracos  nos  povos  primitivos,  fortalecem­se com o desenvolvimento da sensibilidade e do senso moral. A própria  separação é necessária ao progresso. Assim as famílias como as raças se abastardam,  desde que se não entrecruzem, se não enxertem umas nas outras. É essa uma lei da  Natureza, tanto no interesse do progresso moral, quanto no do progresso físico.
  • 216. 216 – Allan Kardec  Aqui,  as  coisas  são  consideradas  apenas  do  ponto  de  vista  terreno.  O  Espiritismo no­las faz ver de mais alto, mostrando serem os do Espírito e não os do  corpo  os  verdadeiros  laços  de  afeição;  que  aqueles  laços  não  se  quebram  pela  separação, nem mesmo pela morte do corpo; que se robustecem na vida espiritual,  pela  depuração  do  Espírito,  verdade  consoladora  da  qual grande  força  haurem  as  criaturas, para suportarem as vicissitudes da vida. (Cap. IV, nº18; cap. XIV, nº 8)  DEIXAR AOS MORTOS O CUIDADO DE ENTERRAR SEUS MORTOS  7. Disse a outro: “Segue­me”; e o outro respondeu: “Senhor, consente que,  primeiro, eu vá enterrar meu pai”. Jesus lhe retrucou: “Deixa aos mortos o  cuidado de enterrar seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o reino de Deus”.  (LUCAS, 9:59­60)  8.  Que  podem  significar  estas  palavras:  “Deixa  aos  mortos  o  cuidado  de  enterrar  seus mortos”? As considerações precedentes mostram, em primeiro lugar, que, nas  circunstâncias  em  que  foram  proferidas,  não  podiam  conter  censura  àquele  que  considerava  um  dever  de  piedade  filial  ir  sepultar  seu  pai.  Têm,  no  entanto,  um  sentido  profundo,  que  só  o  conhecimento  mais  completo  da  vida  espiritual  podia  tornar perceptível.  A  vida  espiritual  é,  com  efeito,  a  verdadeira  vida,  é  a  vida  normal  do  Espírito, sendo­lhe transitória e passageira a existência terrestre, espécie de morte, se  comparada  ao  esplendor  e  à  atividade  da  outra.  O  corpo  não  passa  de  simples  vestimenta grosseira que temporariamente cobre o Espírito, verdadeiro grilhão que o  prende à gleba terrena, do qual se sente ele feliz em libertar­se. O respeito que aos  mortos  se  consagra  não  é  a  matéria  que  o  inspira;  é,  pela  lembrança,  o  Espírito  ausente  quem  o  infunde.  Ele  é  análogo  àquele  que  se  vota  aos  objetos  que  lhe  pertenceram, que ele tocou e que as pessoas que lhe são afeiçoadas guardam como  relíquias. Era isso o que aquele homem não podia por si mesmo compreender. Jesus  lho  ensina,  dizendo:  Não  te  preocupes  com  o  corpo,  pensa  antes  no  Espírito;  vai  ensinar o reino de Deus; vai dizer aos homens que a pátria deles não é a Terra, mas o  céu, porquanto somente lá transcorre a verdadeira vida.  NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS, A DIVISÃO  9. “ Não penseis que eu tenha vindo trazer paz à Terra; não vim trazer a  paz, mas a espada; porquanto vim separar de seu pai o filho, de sua mãe a  filha, de sua sogra a nora; e o homem terá por inimigos os de sua própria  casa”.  (MATEUS, 10:34 a 36)  10. “ Vim para lançar fogo à Terra; e que é o que desejo senão que ele se  acenda?  Tenho  de  ser  batizado  com  um  batismo  e  quanto  me  sinto  desejoso de que  ele se cumpra! Julgais que eu tenha vindo trazer paz à  Terra?  Não,  eu  vos  afirmo;  ao  contrário,  vim  trazer  a  divisão;  pois,
  • 217. 217 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  doravante, se se acharem numa casa cinco pessoas, estarão elas divididas  umas contra as outras: três contra duas e duas contra três. O pai estará em  divisão com o filho e o filho com o pai, a mãe com a filha e a filha com a  mãe, a sogra com a nora e a nora com a sogra”.  (LUCAS, 12:49 a 53)  11. Será mesmo possível que Jesus, a personificação da doçura e da bondade, Jesus,  que não cessou de pregar o amor do próximo, haja dito: “Não vim trazer a paz, mas  a espada; vim separar do pai o filho, do esposo a esposa; vim lançar fogo à Terra e  tenho  pressa  de  que  ele  se  acenda”?  Não  estarão  essas  palavras  em  contradição  flagrante com os seus ensinos? Não haverá blasfêmia em lhe atribuírem a linguagem  de  um  conquistador  sanguinário  e  devastador?  Não,  não  há  blasfêmia,  nem  contradição  nessas  palavras,  pois  foi  mesmo  ele  quem  as  pronunciou,  e  elas  dão  testemunho  da  sua  alta  sabedoria.  Apenas,  um  pouco  equívoca,  a  forma  não  lhe  exprime  com  exatidão  o  pensamento,  o  que  deu  lugar  a  que  se  enganassem  relativamente ao verdadeiro sentido delas. Tomadas à letra, tenderiam a transformar  a sua missão, toda de paz, noutra de perturbação e discórdia, conseqüência absurda,  que o bom­senso repele, porquanto Jesus não podia desmentir­se. (Cap. XIV, nº 6)  12. Toda idéia nova forçosamente encontra oposição e nenhuma há que se implante  sem lutas. Ora, nesses casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos  resultados  previstos,  porque,  quanto  maior  ela  é,  tanto  mais  numerosos  são  os  interesses que fere. Se for notoriamente falsa, se a julgam isenta de conseqüências,  ninguém se alarma; deixam­na todos passar, certos de que lhe falta vitalidade. Se,  porém, é verdadeira, se assenta em sólida base, se lhe prevêem futuro, um secreto  pressentimento adverte os seus antagonistas de que constitui um perigo para eles e  para a ordem de coisas em cuja manutenção se empenham. Atiram­se, então, contra  ela e contra os seus adeptos.  Assim, pois, a medida da importância e dos resultados de uma idéia nova se  encontra na  emoção  que  o  seu  aparecimento  causa, na  violência  da  oposição  que  provoca, bem como no grau e na persistência da ira de seus adversários.  13. Jesus vinha proclamar uma doutrina que solaparia pela base os abusos de que  viviam os fariseus, os escribas e os sacerdotes do seu tempo. Imolaram­no, portanto,  certos de que, matando o homem, matariam a idéia. Esta, porém, sobreviveu, porque  era  verdadeira;  engrandeceu­se,  porque  correspondia  aos  desígnios  de  Deus  e,  nascida num  pequeno e  obscuro  burgo  da  Judéia,  foi  plantar  o  seu  estandarte na  capital  mesma  do  mundo  pagão,  à  face  dos  seus  mais  encarniçados  inimigos,  daqueles que mais porfiavam em combatê­la, porque subvertia crenças seculares a  que eles se apegavam muito mais por interesse do que por convicção. Lutas das mais  terríveis esperavam aí pelos seus apóstolos; foram inumeráveis as vítimas; a idéia,  no entanto, avolumou­se sempre e triunfou, porque, como verdade, sobrelevava as  que a precederam.  14.  É  de  notar­se  que  o  Cristianismo  surgiu  quando  o  Paganismo  já  entrara  em  declínio  e  se  debatia  contra  as  luzes  da  razão.  Ainda  era  praticado pro  forma;  a
  • 218. 218 – Allan Kardec  crença, porém, desaparecera; apenas o interesse pessoal o sustentava. Ora, é tenaz o  interesse; jamais cede à evidência; irrita­se tanto mais quanto mais peremptórios e  demonstrativos  de  seu  erro  são  os  argumentos  que  se  lhe opõem.  Sabe  ele  muito  bem que está errado, mas isso não o abala, porquanto a verdadeira fé não lhe está na  alma. O que mais teme é a luz, que dá vista aos cegos. É­lhe proveitoso o erro; ele se  lhe agarra e o defende.  Sócrates, também, não ensinara uma doutrina até certo ponto análoga à do  Cristo? Por que não prevaleceu naquela época a sua doutrina, no seio de um dos  povos  mais  inteligentes  da Terra? É  que ainda não  chegara  o  tempo. Ele  semeou  numa terra não lavrada; o Paganismo ainda se não achava gasto. O Cristo recebeu  em propício tempo a sua missão. Muito faltava, é certo, para que todos os homens da  sua época estivessem à altura das idéias cristãs, mas havia entre eles uma aptidão  mais geral para as assimilar, pois que já se começava a sentir o vazio que as crenças  vulgares  deixavam  na  alma.  Sócrates  e  Platão  haviam  aberto  o  caminho  e  predisposto  os  espíritos.  (Veja­se,  na  “Introdução”,  o  §  IV:  Sócrates  e  Platão,  precursores da idéia cristã e do Espiritismo.)  15.  Infelizmente,  os  adeptos  da  nova  doutrina  não  se  entenderam  quanto  à  interpretação  das  palavras  do  Mestre,  veladas,  as mais  das  vezes,  pela  alegoria  e  pelas  figuras  da  linguagem.  Daí  o  nascerem,  sem  demora,  numerosas  seitas,  pretendendo  todas  possuir,  exclusivamente,  a  verdade  e  o  não  bastarem  dezoito  séculos para pô­las de acordo. Olvidando o mais importante dos preceitos divinos, o  que Jesus colocou por pedra angular do seu edifício e como condição expressa da  salvação: a caridade, a fraternidade e o amor do próximo, aquelas seitas lançaram  anátema umas sobre as outras, e umas contra as outras se atiraram, as mais fortes  esmagando as mais fracas, afogando­as em sangue, aniquilando­as nas torturas e nas  chamas das  fogueiras.  Vencedores  do  Paganismo,  os  cristãos,  de  perseguidos  que  eram, fizeram­se perseguidores. A ferro e fogo foi que se puseram a plantar a cruz  do  Cordeiro  sem  mácula  nos  dois  mundos.  É  fato  constante  que  as  guerras  de  religião foram as mais cruéis, mais vítimas causaram do que as guerras políticas; em  nenhumas outras se praticaram tantos atos de atrocidade e de barbárie.  Cabe  a  culpa  à  doutrina  do  Cristo?  Não,  decerto  que  ela  formalmente  condena  toda  violência.  Disse  ele  alguma  vez  a  seus  discípulos:  Ide,  matai,  massacrai,  queimai  os  que  não  crerem  como  vós?  Não;  o  que,  ao  contrário,  lhes  disse,  foi:  Todos  os  homens  são  irmãos  e  Deus  é  soberanamente  misericordioso;  amai o vosso próximo; amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos persigam.  Disse­lhes,  outrossim:  Quem  matar  com  a  espada  pela  espada  perecerá.  A  responsabilidade,  portanto,  não  pertence  à  doutrina  de  Jesus,  mas  aos  que  a  interpretaram falsamente e a transformaram em instrumento próprio a lhes satisfazer  as  paixões;  pertence  aos  que  desprezaram  estas palavras: “Meu  reino  não  é  deste  mundo.”  Em  sua  profunda  sabedoria,  ele  tinha  a  previdência  do  que  aconteceria.  Mas,  essas  coisas  eram  inevitáveis,  porque  inerentes  à  inferioridade  da  natureza  humana, que não podia transformar­se repentinamente. Cumpria que o Cristianismo  passasse por essa longa e cruel prova de dezoito séculos, para mostrar toda a sua  força, visto que, malgrado a todo o mal cometido em seu nome, ele saiu dela puro.
  • 219. 219 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Jamais esteve em causa. As invectivas sempre recaíram sobre os que dele abusaram.  A  cada  ato  de  intolerância,  sempre  se  disse:  Se  o  Cristianismo  fosse  mais  bem  compreendido e mais bem praticado, isso não se daria.  16. Quando Jesus declara: “Não creais que eu tenha vindo trazer a paz, mas, sim, a  divisão”, seu pensamento era este:  “Não  creais  que  a  minha  doutrina  se  estabeleça  pacificamente;  ela  trará  lutas sangrentas, tendo por pretexto o meu nome, porque os homens não me terão  compreendido, ou não me terão querido compreender. Os irmãos, separados pelas  suas respectivas  crenças,  desembainharão  a  espada  um  contra  o  outro  e  a  divisão  reinará  no  seio  de  uma  mesma  família,  cujos  membros  não  partilhem  da  mesma  crença. Vim lançar fogo à Terra para expungi­la dos erros e dos preconceitos, do  mesmo modo que se põe fogo a um campo para destruir nele as ervas más, e tenho  pressa de que o fogo se acenda para que a depuração seja mais rápida, visto que do  conflito sairá triunfante a verdade. À guerra sucederá a paz; ao ódio dos partidos, a  fraternidade universal; às trevas do fanatismo, a luz da fé esclarecida. Então, quando  o campo estiver preparado, eu vos  enviarei o Consolador, o Espírito de Verdade,  que  virá  restabelecer  todas  as  coisas,  isto  é,  que,  dando  a  conhecer  o  sentido  verdadeiro  das  minhas  palavras,  que  os  homens  mais  esclarecidos  poderão  enfim  compreender,  porá  termo  à  luta  fratricida  que  desune  os  filhos  do  mesmo  Deus.  Cansados,  afinal,  de  um  combate  sem  resultado,  que  consigo  traz  unicamente  a  desolação  e a perturbação até ao seio das  famílias, reconhecerão  os homens onde  estão seus  verdadeiros interesses, com relação a este mundo e ao  outro. Verão de  que lado estão os amigos e os inimigos da tranqüilidade deles. Todos então se porão  sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas serão restabelecidas na Terra, de  acordo com a verdade e os princípios que vos tenho ensinado.”  17.  O  Espiritismo  vem  realizar,  na  época  prevista,  as  promessas  do  Cristo.  Entretanto, não o pode  fazer sem destruir os abusos. Como Jesus, ele topa com o  orgulho, o egoísmo, a ambição, a cupidez, o fanatismo cego, os quais, levados às  suas  últimas  trincheiras,  tentam  barrar­lhe  o  caminho  e  lhe  suscitam  entraves  e  perseguições. Também ele, portanto, tem de combater; mas, o tempo das lutas e das  perseguições sanguinolentas passou; são todas de ordem moral as que terá de sofrer  e  próximo  lhes  está  o  termo.  As  primeiras  duraram  séculos;  estas  durarão  apenas  alguns anos, porque a luz, em vez de partir de um único foco, irrompe de todos os  pontos do Globo e abrirá mais de pronto os olhos aos cegos.  8. Essas palavras de Jesus devem, pois, entender­se com referência às cóleras que a  sua doutrina provocaria, aos conflitos momentâneos a que ia dar causa, às lutas que  teria de sustentar antes de se firmar, como aconteceu aos hebreus antes de entrarem  na  Terra  Prometida,  e  não  como  decorrentes  de  um  desígnio  premeditado  de  sua  parte de semear a desordem e a confusão. O mal viria dos homens e não dele, que  era como o médico que se apresenta para curar, mas cujos remédios provocam uma  crise salutar, atacando os maus humores do doente.
  • 220. 220 – Allan Kardec  CAPÍTULO XXIV  NÃO PONHAIS A CANDEIA EMBAIXO DO ALQUEIRE ·  CANDEIA SOBRE O ALQUEIRE.  POR QUE JESUS FALAVA POR PARÁBOLAS ·  NÃO VADES TER COM OS GENTIOS ·  NÃO SÃO OS QUE GOZAM DE SAÚDE  QUE PRECISAM DE MÉDICO ·  CORAGEM DA FÉ ·  CARREGAR A CRUZ.  QUEM QUISER SALVAR A VIDA, PERDÊ­LA­Á  CANDEIA SOB O ALQUEIRE.  POR QUE FALA JESUS POR PARÁBOLAS  1. “ Ninguém acende uma candeia para pô­la debaixo do alqueire; põe­na,  ao contrário, sobre o candeeiro, a fim de que ilumine a todos os que estão  na casa”.  (MATEUS, 5:15)  2. “ Ninguém há que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um  vaso, ou a ponha debaixo da cama; põe­na sobre o candeeiro, a fim de que  os  que  entrem  vejam  a  luz;  pois  nada  há  secreto  que  não  haja  de  ser  descoberto, nem nada oculto que não haja de ser conhecido e de aparecer  publicamente”.  (LUCAS, 8:16 e 17)  3.  Aproximando­se,  disseram­lhe  os  discípulos:  “Por  que  lhes  falas  por  parábolas?” Respondendo­ lhes, disse ele: “É porque, a vós outros, foi dado  conhecer  os  mistérios  do  reino  dos  céus;  mas,  a  eles,  isso  não  lhes  foi
  • 221. 221 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  dado 15  .  Porque,  àquele  que  já  tem,  mais  se  lhe  dará  e  ele  ficará  na  abundância;  àquele,  entretanto,  que  não  tem,  mesmo  o  que  tem  se  lhe  tirará. Falo­lhes por parábolas, porque, vendo, não vêem e, ouvindo, não  escutam e não compreendem. E neles se cumprirá a profecia de Isaías, que  diz:  ‘Ouvireis  com  os  vossos  ouvidos  e  não  escutareis;  olhareis  com  os  vossos  olhos  e  não  vereis’.  Porque,  o  coração  deste  povo  se  tornou  pesado, e seus ouvidos se tornaram surdos e fecharam os olhos para que  seus olhos não vejam e seus ouvidos não ouçam, para que seu coração  não compreenda e para que, tendo­se convertido, eu não os cure”.  (MATEUS, 13:10 a 15)  4. É de causar admiração diga Jesus que a luz não deve  ser  colocada debaixo do  alqueire, quando ele próprio constantemente oculta o sentido de suas palavras sob o  véu da alegoria, que nem todos podem compreender. Ele se explica, dizendo a seus  apóstolos: “Falo­lhes por parábolas, porque não estão em condições de compreender  certas coisas. Eles vêem, olham, ouvem, mas não entendem. Fora, pois, inútil tudo  dizer­lhes, por enquanto. Digo­o, porém, a vós, porque dado vos  foi compreender  estes mistérios.” Procedia, portanto, com o povo, como se faz com crianças cujas  idéias  ainda  se  não  desenvolveram.  Desse  modo,  indica  o  verdadeiro  sentido  da  sentença: “Não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, mas sobre o candeeiro, a  fim de que todos os que entrem a possam ver.” Tal sentença não significa que se  deva  revelar  inconsideradamente  todas  as  coisas.  Todo  ensinamento  deve  ser  proporcionado à inteligência daquele a quem se queira instruir, porquanto há pessoas  a quem uma luz por demais viva deslumbraria, sem as esclarecer.  Dá­se  com  os  homens,  em  geral,  o  que  se  dá  em  particular  com  os  indivíduos.  As  gerações  têm  sua  infância,  sua  juventude  e  sua  maturidade.  Cada  coisa tem de vir na época própria; a semente lançada à terra, fora da estação, não  germina. Mas, o que a prudência manda calar, momentaneamente, cedo ou tarde será  descoberto, porque, chegados a certo grau de desenvolvimento, os homens procuram  por  si  mesmos  a luz  viva;  pesa­lhes  a  obscuridade. Tendo­lhes  Deus  outorgado  a  inteligência para compreenderem e se guiarem por entre as coisas da Terra e do céu,  eles tratam de raciocinar sobre sua fé. É então que não se deve pôr a candeia debaixo  do alqueire, visto que, sem a luz da razão, desfalece a fé. (Cap. XIX, nº 7)  5. Se, pois, em sua previdente sabedoria, a Providência só gradualmente revela as  verdades, é claro que as desvenda à proporção que a Humanidade se vai mostrando  amadurecida  para as receber. Ela as mantém  de reserva  e não  sob  o  alqueire.  Os  homens, porém, que entram a possuí­las, quase sempre as ocultam do vulgo com o  intento de o dominarem. São esses os que, verdadeiramente, colocam a luz debaixo  do alqueire. É por isso que todas as religiões têm tido seus mistérios, cujo exame  proíbem.  Mas,  ao  passo  que  essas  religiões  iam  ficando  para  trás,  a  Ciência  e  a  inteligência avançaram e romperam o véu misterioso. Havendo­se tornado adulto, o  vulgo  entendeu  de  penetrar  o  fundo  das  coisas  e  eliminou  de  sua  fé  o  que  era  contrário à observação.  15  1 No original francês falta o versículo 12 que aqui repomos. – A Editora da FEB, em 1948.
  • 222. 222 – Allan Kardec  Não podem existir mistérios absolutos e Jesus está com a razão quando diz  que nada há secreto que não venha a ser conhecido. Tudo o que se acha oculto será  descoberto  um  dia  e  o  que  o  homem  ainda  não  pode  compreender  lhe  será  sucessivamente  desvendado,  em  mundos  mais  adiantados,  quando  se  houver  purificado. Aqui na Terra, ele ainda se encontra em pleno nevoeiro.  6. Pergunta­se: que proveito podia o povo tirar dessa multidão de parábolas, cujo  sentido  se  lhe  conservava  impenetrável?  É  de  notar­se  que  Jesus  somente  se  exprimiu por parábolas sobre as partes de certo modo abstratas da sua doutrina. Mas,  tendo feito da caridade para com o próximo e da humildade condições  básicas da  salvação,  tudo  o  que  disse  a  esse  respeito  é  inteiramente  claro,  explícito  e  sem  ambigüidade  alguma.  Assim  devia  ser,  porque  era  a  regra  de  conduta,  regra  que  todos  tinham  de  compreender  para  poderem  observá­la.  Era  o  essencial  para  a  multidão ignorante, à qual ele se limitava a dizer: “Eis o que é preciso se faça para  ganhar o reino dos céus.” Sobre as outras partes, apenas aos discípulos desenvolvia  o seu pensamento. Por serem eles mais adiantados, moral e intelectualmente, Jesus  pôde iniciá­los no conhecimento de verdades mais abstratas. Daí o haver dito: Aos  que já têm, ainda mais se dará. (Cap. XVIII, nº 15)  Entretanto,  mesmo  com  os  apóstolos,  conservou­se  impreciso  acerca  de  muitos  pontos,  cuja  completa  inteligência  ficava  reservada  a  ulteriores  tempos.  Foram  esses  pontos  que  deram  ensejo  a  tão  diversas  interpretações,  até  que  a  Ciência, de um lado, e o Espiritismo, de outro, revelassem as novas leis da Natureza,  que lhes tornaram perceptível o verdadeiro sentido.  7. O Espiritismo, hoje, projeta luz sobre uma imensidade de pontos obscuros; não a  lança,  porém,  inconsideradamente.  Com  admirável  prudência  se  conduzem  os  Espíritos, ao darem suas instruções. Só gradual e sucessivamente consideraram as  diversas  partes  já  conhecidas  da  Doutrina,  deixando  as  outras  partes  para  serem  reveladas à medida que se for tornando oportuno fazê­las sair da obscuridade. Se a  houvessem  apresentado  completa  desde  o  primeiro  momento,  somente  a reduzido  número de pessoas se teria ela mostrado acessível; houvera mesmo assustado as que  não se achassem preparadas para recebê­la, do que resultaria ficar prejudicada a sua  propagação.  Se,  pois,  os  Espíritos  ainda  não  dizem  tudo  ostensivamente,  não  é  porque haja na Doutrina mistérios em que só alguns privilegiados possam penetrar,  nem porque eles coloquem a lâmpada debaixo do alqueire; é porque cada coisa tem  de  vir  no  momento  oportuno.  Eles  dão  a  cada  idéia  tempo  para  amadurecer  e  propagar­se,  antes  que  apresentem  outra,  e  aos  acontecimentos  o  de  preparar  a  aceitação dessa outra.  NÃO VADES TER COM OS GENTIOS  8.  Jesus  enviou  seus  doze  apóstolos,  depois  de  lhes  haver  dado  as  instruções seguintes: “Não procureis os gentios e não entreis nas cidades  dos  samaritanos.  Ide,  antes,  em  busca  das  ovelhas perdidas  da  casa  de  Israel;  e,  nos  lugares  onde  fordes,  pregai, dizendo  que  o  reino  dos céus  está próximo”.  (MATEUS, 10:5 a 7)
  • 223. 223 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  9. Em muitas circunstâncias, prova Jesus que suas vistas não se circunscrevem ao  povo  judeu,  mas  que  abrangem  a  Humanidade  toda.  Se,  portanto,  diz  a  seus  apóstolos que não vão ter com os pagãos, não é que desdenhe da conversão deles, o  que  nada  teria  de  caridoso;  é  que  os  judeus,  que  já  acreditavam  no  Deus  uno  e  esperavam o Messias, estavam preparados, pela lei de Moisés e pelos profetas, a lhes  acolherem a palavra. Com os pagãos, onde até mesmo a base faltava, estava tudo por  fazer  e  os  apóstolos  não  se  achavam  ainda  bastante  esclarecidos  para  tão  pesada  tarefa. Foi por isso que lhes disse: “Ide em busca das ovelhas transviadas de Israel”,  isto é, ide semear em terreno já arroteado. Sabia que a conversão dos gentios se daria  a seu tempo. Mais tarde, com efeito,  os apóstolos  foram plantar a cruz no centro  mesmo do Paganismo.  10. Essas palavras podem também aplicar­se aos adeptos e aos disseminadores do  Espiritismo. Os incrédulos sistemáticos, os zombadores obstinados, os adversários  interessados  são  para  eles  o  que  eram  os  gentios  para  os  apóstolos.  Que,  pois,  a  exemplo destes, procurem, primeiramente, fazer prosélitos entre os de boa vontade,  entre os que desejam luz, nos quais um gérmen fecundo se encontra e cujo número é  grande, sem perderem tempo com os que não querem ver, nem ouvir e tanto mais  resistem,  por  orgulho,  quanto  maior  for  a  importância  que  se  pareça  ligar  à  sua  conversão. Mais vale abrir os olhos a cem cegos que desejam ver claro, do que a um  só  que  se  compraza  na  treva,  porque,  assim  procedendo,  em  maior  proporção  se  aumentará o número dos sustentadores da causa. Deixar tranqüilos os outros não é  dar  mostra  de  indiferença,  mas  de  boa  política.  Chegar­lhes­á  a  vez,  quando  estiverem dominados pela opinião geral e ouvirem a mesma coisa incessantemente  repetida  ao  seu  derredor.  Aí,  julgarão  que  aceitam  voluntariamente,  por  impulso  próprio, a idéia, e não por pressão de outrem. Depois, há idéias que são como as  sementes: não podem germinar fora da estação apropriada, nem em terreno que não  tenha sido de antemão preparado, pelo que melhor é se espere o tempo propício e se  cultivem primeiro as que germinem, para não acontecer que abortem as outras, em  virtude de um cultivo demasiado intenso.  Na  época  de  Jesus  e  em  conseqüência  das  idéias  acanhadas  e  materiais  então em curso, tudo se circunscrevia e localizava. A casa de Israel era um pequeno  povo;  os  gentios  eram  outros  pequenos  povos  circunvizinhos.  Hoje,  as  idéias  se  universalizam  e  espiritualizam.  A  luz  nova  não  constitui  privilégio  de  nenhuma  nação; para ela não existem barreiras, tem o seu  foco em  toda a parte e todos  os  homens são irmãos. Mas, também, os gentios já não são um povo, são apenas uma  opinião com que se topa em toda parte e da qual a verdade triunfa pouco a pouco,  como do Paganismo triunfou o Cristianismo. Já não são combatidos com armas de  guerra, mas com a força da idéia.
  • 224. 224 – Allan Kardec  NÃO SÃO OS QUE GOZAM SAÚDE QUE PRECISAM DE MÉDICO  11. Estando Jesus à mesa em casa desse homem (Mateus), vieram aí ter  muitos publicanos e gente de má vida, que se puseram à mesa com Jesus  e  seus  discípulos;  o  que  fez  que  os  fariseus,  notando­o,  dissessem  aos  discípulos: “Como é que o vosso Mestre come com publicanos e pessoas  de má vida?” Tendo­os ouvido, disse­lhes Jesus: “Não são os que gozam  saúde que precisam de médico”.  (MATEUS, 9:10 a 12)  12. Jesus se acercava, principalmente, dos pobres e dos deserdados, porque são os  que mais necessitam de consolações; dos cegos dóceis e de boa­fé, porque pedem se  lhes  dê  a  vista,  e  não  dos  orgulhosos  que  julgam  possuir  toda  a  luz  e  de  nada  precisar. (Veja­se: “Introdução”, artigo: Publicanos, Portageiros.)  Essas palavras, como tantas outras, encontram no Espiritismo a aplicação  que lhes cabe. Há quem se admire de que, por vezes, a mediunidade seja concedida a  pessoas  indignas,  capazes  de  a  usarem  mal.  Parece,  dizem,  que  tão  preciosa  faculdade devera ser atributo exclusivo dos de maior merecimento.  Digamos,  antes  de  tudo,  que  a mediunidade  é  inerente  a uma  disposição  orgânica, de que qualquer homem pode ser  dotado, como  da de ver, de ouvir, de  falar. Ora, nenhuma há de que o homem, por efeito do seu livre­arbítrio, não possa  abusar,  e  se  Deus  não  houvesse  concedido,  por  exemplo,  a  palavra  senão  aos  incapazes de proferirem coisas más, maior seria o número dos mudos do que o dos  que falam. Deus outorgou faculdades ao homem e lhe dá a liberdade de usá­las, mas  não deixa de punir o que delas abusa.  Se só aos mais dignos fosse  concedida a faculdade de comunicar com os  Espíritos, quem ousaria pretendê­la? Onde, ao demais, o limite entre a dignidade e a  indignidade? A mediunidade é conferida sem distinção, a fim de que os Espíritos  possam trazer a luz a todas as camadas, a todas as classes da sociedade, ao pobre  como ao rico; aos retos, para os fortificar no bem, aos viciosos para os corrigir. Não  são estes últimos os doentes que necessitam de médico? Por que Deus, que não quer  a morte do pecador, o privaria do socorro que o pode arrancar ao lameiro? Os bons  Espíritos lhe vêm em auxílio e seus conselhos, dados diretamente, são de natureza a  impressioná­lo de modo mais vivo, do que se os recebesse indiretamente. Deus, em  sua bondade, para lhe poupar o trabalho de ir buscá­la longe, nas mãos lhe coloca a  luz. Não será ele bem mais culpado, se não a quiser ver? Poderá desculpar­se com a  sua  ignorância,  quando  ele  mesmo  haja  escrito  com  suas  mãos,  visto  com  seus  próprios  olhos,  ouvido  com  seus  próprios  ouvidos,  e  pronunciado  com  a  própria  boca  a  sua  condenação?  Se  não  aproveitar,  será  então  punido  pela  perda  ou  pela  perversão da faculdade que lhe fora outorgada e da qual, nesse caso, se aproveitam  os maus Espíritos para o obsidiarem e enganarem, sem prejuízo das aflições reais  com  que  Deus  castiga  os  servidores  indignos  e  os  corações  que  o  orgulho  e  o  egoísmo endureceram.  A  mediunidade  não  implica  necessariamente  relações  habituais  com  os  Espíritos  superiores.  É  apenas  uma  aptidão  para  servir  de  instrumento  mais  ou  menos  dúctil  aos  Espíritos,  em  geral.  O  bom  médium,  pois,  não  é  aquele  que
  • 225. 225 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  comunica facilmente, mas aquele que é simpático aos bons Espíritos e somente deles  tem assistência. Unicamente neste sentido é que a excelência das qualidades morais  se torna onipotente sobre a mediunidade.  CORAGEM DA FÉ  13.  “ Aquele  que  me  confessar  e  me  reconhecer  diante  dos  homens,  eu  também o reconhecerei e confessarei diante de meu Pai que está nos céus;  e aquele que me renegar diante dos homens, também eu o renegarei diante  de meu Pai que está nos céus”.  (MATEUS, 10:32 e 33)  14. “ Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, o Filho do  homem também dele se envergonhará, quando vier na sua glória e na de  seu Pai e dos santos anjos”.  (LUCAS, 9:26)  15.  A  coragem  das  opiniões  próprias  sempre  foi  tida  em  grande  estima  entre  os  homens, porque há mérito em afrontar os perigos, as perseguições, as contradições e  até os simples sarcasmos, aos quais se expõe, quase sempre, aquele que não teme  proclamar abertamente idéias que não são as de toda gente. Aqui, como em tudo, o  merecimento  é  proporcionado  às  circunstâncias  e  à  importância  do resultado.  Há  sempre fraqueza em recuar alguém diante das conseqüências que lhe acarreta a sua  opinião e  em renegá­la; mas, há casos em que isso constitui covardia tão grande,  quanto fugir no momento do combate.  Jesus  profliga  essa  covardia,  do  ponto  de  vista  especial  da  sua  doutrina,  dizendo  que,  se  alguém  se  envergonhar  de  suas  palavras,  desse  também  ele  se  envergonhará; que renegará aquele que o haja renegado; que reconhecerá, perante o  Pai  que  está  nos  céus,  aquele  que  o  confessar  diante  dos  homens.  Por  outras  palavras:  aqueles  que  se  houverem  arreceado  de  se  confessarem  discípulos  da  verdade não são dignos de se verem admitidos no reino da verdade. Perderão as  vantagens da fé que alimentem, porque se trata de uma fé egoísta que eles guardam  para  si,  ocultando­a  para  que  não  lhes  traga  prejuízo  neste  mundo,  ao  passo  que  aqueles  que,  pondo  a  verdade  acima  de  seus  interesses  materiais,  a  proclamam  abertamente, trabalham pelo seu próprio futuro e pelo dos outros.  16. Assim será com os adeptos do Espiritismo. Pois que a doutrina que professam  mais não é do que o desenvolvimento e a aplicação da do Evangelho, também a eles  se  dirigem  as  palavras  do  Cristo.  Eles  semeiam na  Terra o  que  colherão  na  vida  espiritual. Colherão lá os frutos da sua coragem ou da sua fraqueza.  CARREGAR SUA CRUZ.  QUEM QUISER SALVAR A VIDA, PERDÊ­LA­Á  17.  “ Bem­ditosos  sereis,  quando  os  homens  vos  odiarem  e  separarem,  quando vos tratarem injuriosamente, quando repelirem como mau o vosso
  • 226. 226 – Allan Kardec  nome,  por  causa  do  Filho  do  homem.  Rejubilai  nesse  dia  e  ficai  em  transportes de alegria, porque grande recompensa vos está reservada no  céu, visto que era assim que os pais deles tratavam os profetas”.  (LUCAS, 6:22 e 23)  18.  Chamando  para  perto  de  si  o  povo  e  os  discípulos,  disse­lhes:  “Se  alguém quiser vir nas minhas pegadas, renuncie a si mesmo, tome a sua  cruz e siga­me; porquanto, aquele que se quiser salvar a si mesmo, perder­  se­á; e aquele que se perder por amor de mim e do Evangelho se salvará.  Com efeito, de que serviria a um homem ganhar o mundo todo e perder­se  a si mesmo?”  (MARCOS, 8:34 a 36; LUCAS, 9:23 a 25; MATEUS, 10:38 e 39; JOÃO, 12:25 e 26)  19. “Rejubilai­vos, diz Jesus, quando os homens vos odiarem e perseguirem  por minha causa, visto que sereis recompensados no céu.” Podem traduzir­  se assim essas verdades: “Considerai­vos ditosos, quando haja homens que,  pela  sua  má  vontade  para  convosco,  vos  dêem  ocasião  de  provar  a  sinceridade  da  vossa  fé,  porquanto  o  mal  que  vos  façam  redundará  em  proveito vosso. Lamentai­lhes a cegueira, porém, não os maldigais.”  Depois, acrescenta: “Tome a sua cruz aquele que me quiser seguir”,  isto é, suporte corajosamente as tribulações que sua fé lhe acarretar, dado  que  aquele  que  quiser  salvar a  vida  e  seus  bens,  renunciando­me  a  mim,  perderá as vantagens do reino dos céus, enquanto os que tudo houverem  perdido neste mundo, mesmo a vida, para que a verdade triunfe, receberão,  na vida futura, o prêmio da coragem, da perseverança e da abnegação de  que  deram  prova.  Mas,  aos  que  sacrificam  os  bens  celestes  aos  gozos  terrestres, Deus dirá: “Já recebestes a vossa recompensa.”
  • 227. 227 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  CAPÍTULO XXV  BUSCAI E ACHAREIS ·  AJUDA­TE A TI MESMO, QUE O CÉU TE AJUDARÁ ·  OBSERVAI OS PÁSSAROS NO CÉU ·  NÃO VOS AFADIGUEIS PELA POSSE DO OURO  AJUDA­TE A TI MESMO, QUE O CÉU TE AJUDARÁ  1. “ Pedi e se vos dará; buscai e achareis; batei à porta e se vos abrirá;  porquanto, quem pede recebe e quem procura acha e, àquele que bata à  porta, abrir­se­á. Qual o homem, dentre vós, que dá uma pedra ao filho que  lhe  pede  pão?  Ou,  se pedir  um peixe,  dar­lhe­á  uma  serpente?  Ora,  se,  sendo maus  como  sois, sabeis dar  boas  coisas  aos  vossos  filhos,  não  é  lógico que, com mais forte razão, vosso Pai que está nos céus dê os bens  verdadeiros  aos  que  lhos  pedirem?  Bens  verdadeiros  aos  que  lhos  pedirem?”  (MATEUS, 7:7 a 11)  2. Do ponto de vista terreno, a máxima: Buscai e achareis é análoga a esta outra:  Ajuda­te a ti mesmo, que o céu te ajudará. É o princípio da lei do trabalho e, por  conseguinte, da lei do progresso, porquanto o progresso é filho do trabalho, visto  que este põe em ação as forças da inteligência.  Na  infância  da  Humanidade,  o homem  só  aplica  a inteligência  à  cata  do  alimento,  dos  meios  de  se  preservar  das  intempéries  e  de  se  defender  dos  seus  inimigos.  Deus,  porém,  lhe  deu,  a  mais  do  que  outorgou  ao  animal,  o  desejo  incessante do melhor, e é esse desejo que o impele à pesquisa dos meios de melhorar  a  sua  posição,  que  o  leva  às  descobertas,  às  invenções,  ao  aperfeiçoamento  da  Ciência,  porquanto  é  a  Ciência  que  lhe  proporciona  o  que  lhe  falta.  Pelas  suas  pesquisas, inteligência se lhe engrandece, o moral se lhe depura. Às necessidades do
  • 228. 228 – Allan Kardec  corpo sucedem as do espírito: depois do alimento material, precisa ele do alimento  espiritual. É assim que o homem passa da selvageria à civilização.  Mas, bem pouca coisa é, imperceptível mesmo, em grande número deles, o  progresso  que  cada  um  realiza  individualmente  no  curso  da  vida.  Como  poderia  então progredir a Humanidade, sem a preexistência e a reexistência da alma? Se as  almas se fossem todos os dias, para não mais voltarem, a Humanidade se renovaria  incessantemente com os elementos primitivos, tendo de fazer tudo, de aprender tudo.  Não haveria, nesse caso, razão para que o homem se achasse hoje mais adiantado do  que nas primeiras idades do mundo, uma vez que a cada nascimento todo o trabalho  intelectual  teria  de  recomeçar.  Ao  contrário,  voltando  com  o  progresso  que  já  realizou e adquirindo de cada vez alguma coisa a mais, a alma passa gradualmente  da barbárie à civilização material e desta à civilização moral. (Vede: cap. IV, nº 17)  3.  Se  Deus  houvesse  isentado  do  trabalho  do  corpo  o  homem,  seus  membros  se  teriam  atrofiado;  se  o  houvesse  isentado  do  trabalho  da  inteligência,  seu  espírito  teria permanecido na infância, no estado de instinto animal. Por isso é que lhe fez do  trabalho  uma necessidade  e  lhe  disse: Procura e acharás; trabalha e produzirás.  Dessa maneira serás filho das tuas obras, terás delas o mérito e serás recompensado  de acordo com o que hajas feito.  4. Em virtude desse princípio é que os Espíritos não acorrem a poupar o homem ao  trabalho das pesquisas, trazendo­lhe, já feitas e prontas a ser utilizadas, descobertas e  invenções, de modo a não ter ele mais do que tomar o que lhe ponham nas mãos,  sem o incômodo, sequer, de abaixar­se para apanhar, nem mesmo o de pensar. Se  assim fosse, o mais preguiçoso poderia enriquecer­se e o mais ignorante tornar­se  sábio à custa de nada e ambos se atribuírem o mérito do que não fizeram. Não, os  Espíritos não vêm isentar o homem da lei do trabalho: vêm unicamente mostrar­lhe  a meta que lhe cumpre atingir e o caminho que a ela conduz, dizendo­lhe: Anda e  chegarás. Toparás com pedras; olha e afasta­as tu mesmo. Nós te daremos a força  necessária, se a quiseres empregar. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVI, nos 291 e  seguintes)  5. Do ponto de vista moral, essas palavras de Jesus significam: Pedi a luz que vos  clareie o caminho e ela vos será dada; pedi forças para resistirdes ao mal e as tereis;  pedi a assistência dos bons Espíritos e eles virão acompanhar­vos e, como o anjo de  Tobias,  vos  guiarão;  pedi  bons  conselhos  e  eles  não  vos  serão  jamais  recusados;  batei à nossa porta e ela se vos abrirá; mas, pedi sinceramente, com fé, confiança e  fervor;  apresentai­vos  com  humildade  e  não  com  arrogância,  sem  o  que  sereis  abandonados às  vossas próprias forças e as quedas que derdes serão o castigo do  vosso orgulho. Tal o sentido das palavras: buscai e achareis; batei e abrir­se­vos­á.  OBSERVAI OS PÁSSAROS DO CÉU  6.  “ Não  acumuleis  tesouros  na  Terra,  onde  a  ferrugem  e  os  vermes  os  comem e onde os ladrões os desenterram e roubam; acumulai tesouros no
  • 229. 229 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  céu,  onde  nem  a  ferrugem,  nem  os  vermes  os  comem; porquanto,  onde  está o vosso tesouro aí está também o vosso coração.”  “ Eis por que vos digo: Não vos inquieteis por saber onde achareis  o que comer para sustento da vossa vida, nem de onde tirareis vestes para  cobrir o vosso corpo. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais  do que as vestes? Observai os pássaros do céu: não semeiam, não ceifam,  nada guardam em celeiros; mas, vosso Pai celestial os alimenta. Não sois  muito mais do que eles? E qual, dentre vós, o que pode, com todos os seus  esforços, aumentar de um côvado a sua estatura? Por que, também, vos  inquietais  pelo  vestuário?  Observai  como  crescem  os  lírios  dos  campos:  não trabalham, nem fiam; entretanto, eu vos declaro que nem Salomão, em  toda  a  sua  glória, jamais  se  vestiu  como  um  deles.  Ora, se  Deus  tem  o  cuidado  de  vestir  dessa  maneira  a  erva  dos  campos,  que  existe  hoje  e  amanhã será lançada na fornalha, quanto maior cuidado não terá em vos  vestir,  ó  homens  de  pouca  fé!  Não  vos  inquieteis,  pois,  dizendo:  Que  comeremos?  Ou:  que  beberemos?  Ou:  de  que  nos  vestiremos?  Como  fazem  os  pagãos,  que  andam  à  procura  de  todas  essas  coisas;  porque  vosso Pai sabe que tendes necessidade delas”.  “ Buscai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, que todas  essas coisas vos serão dadas de acréscimo. Assim, pois, não vos ponhais  inquietos pelo dia de amanhã, porquanto o amanhã cuidará de si. A cada  dia basta o seu mal”.  (MATEUS, 6:19 a 21 e 25 a 34)  7. Interpretadas à letra, essas palavras seriam a negação de toda previdência, de todo  trabalho  e,  conseguintemente,  de  todo  progresso.  Com  semelhante  princípio,  o  homem  limitar­se­ia  a  esperar  passivamente.  Suas  forças  físicas  e  intelectuais  conservar­se­iam  inativas.  Se  tal  fora  a  sua  condição  normal  na  Terra,  jamais  houvera ele saído do estado primitivo e, se dessa condição fizesse ele a sua lei para a  atualidade, só lhe caberia viver sem fazer coisa alguma. Não pode ter sido esse o  pensamento de Jesus, pois estaria em contradição com o que disse de outras vezes,  com as próprias leis da Natureza. Deus criou o homem sem vestes e sem abrigo, mas  deu­lhe a inteligência para fabricá­los. (Cap. XIV, nº 6; cap. XXV, nº 2)  Não  se  deve,  portanto,  ver,  nessas  palavras,  mais  do  que  uma  poética  alegoria  da  Providência,  que  nunca  deixa  ao  abandono  os  que  nela  confiam,  querendo, todavia, que esses, por seu lado, trabalhem. Se ela nem sempre acode com  um  auxílio  material, inspira  as  idéias  com  que  se  encontram  os  meios  de  sair  da  dificuldade. (Cap. XXVII, nº 8)  Deus conhece as nossas necessidades e a elas provê, como for necessário. O  homem, porém, insaciável nos seus desejos, nem sempre sabe contentar­se com o  que tem: o necessário não lhe basta; reclama o supérfluo. A Providência, então, o  deixa entregue a si mesmo. Freqüentemente, ele se torna infeliz por culpa sua e por  haver desatendido à voz que por intermédio da consciência o advertia. Nesses casos,  Deus fá­lo sofrer as conseqüências, a fim de que lhe sirvam de lição para o futuro.  (Cap. V, nº 4)  8. A Terra produzirá o suficiente para alimentar a todos os seus habitantes,  quando os homens souberem administrar, segundo as leis de justiça, de caridade e de  amor ao próximo, os bens que ela dá. Quando a fraternidade reinar entre os povos,
  • 230. 230 – Allan Kardec  como entre as províncias de um mesmo império, o momentâneo supérfluo de um  suprirá a momentânea insuficiência do outro; e cada um terá o necessário. O rico,  então, considerar­se­á como um que possui grande quantidade de sementes; se as  espalhar, elas produzirão pelo cêntuplo para si e para os outros; se, entretanto, comer  sozinho as sementes, se as desperdiçar e deixar se perca o excedente do que haja  comido, nada produzirão, e não haverá o bastante para todos. Se as amontoar no seu  celeiro, os vermes as devorarão. Daí o haver Jesus dito: “Não acumuleis tesouros na  Terra, pois que são perecíveis; acumulai­os no céu, onde são eternos.” Em outros  termos:  não  ligueis  aos  bens  materiais  mais  importância  do  que  aos  espirituais  e  sabei sacrificar os primeiros aos segundos. (Cap. XVI, nº 7 e seguintes)  A caridade e a fraternidade não se decretam em leis. Se uma e outra não  estiverem no coração, o egoísmo aí sempre imperará. Cabe ao Espiritismo fazê­las  penetrar nele.  NÃO VOS AFADIGUEIS PELA POSSE DO OURO  9. “ Não vos afadigueis por possuir ouro, ou prata, ou qualquer outra moeda  em vossos bolsos. Não prepareis saco para a viagem, nem dois fatos, nem  calçados, nem cajados, porquanto aquele que trabalha merece sustentado”.  10.  “ Ao  entrardes  em  qualquer  cidade  ou  aldeia,  procurai  saber  quem  é  digno  de  vos  hospedar  e  ficai  na  sua  casa  até  que  partais  de  novo.  Entrando na casa, saudai­a assim: ‘Que a paz seja nesta casa’. Se a casa  for digna disso, a vossa paz virá sobre ela; se não o for, a vossa paz voltará  para vós. Quando alguém não vos queira receber, nem escutar, sacudi, ao  sairdes  dessa  casa  ou  cidade,  a  poeira  dos  vossos  pés.  Digo­vos,  em  verdade:  no  dia  do  juízo,  Sodoma  e  Gomorra  serão  tratadas  menos  rigorosamente do que essa cidade”.  (MATEUS, 10:9 a 15)  11. Naquela época, nada tinham de estranhável essas palavras que Jesus dirigiu a  seus apóstolos, quando os mandou, pela primeira vez, anunciar a boa nova. Estavam  de acordo com os costumes patriarcais do Oriente, onde o viajor encontrava sempre  acolhida na tenda. Mas, então, os viajantes eram raros. Entre os povos modernos, o  desenvolvimento  da  circulação  houve  de  criar  costumes  novos.  Os  dos  tempos  antigos  somente  se  conservam  em  países  longínquos,  onde  ainda  não  penetrou  o  grande movimento.  Se  Jesus  voltasse  hoje,  já  não  poderia  dizer a  seus  apóstolos:  “Ponde­vos a caminho sem provisões.”  A par do sentido próprio, essas palavras guardam um sentido moral muito  profundo.  Proferindo­as,  ensinava  Jesus  a  seus  discípulos  que  confiassem  na  Providência.  Ao  demais,  eles,  nada  tendo,  não  despertariam  a  cobiça  nos  que  os  recebessem. Era um meio de distinguirem dos egoístas os caridosos. Por isso foi que  lhes  disse:  “Procurai  saber  quem  é  digno  de  vos  hospedar”  ou:  quem  é  bastante  humano para agasalhar o viajante que não tem com que pagar, porquanto esses são  dignos de escutar as vossas palavras; pela caridade deles é que os reconhecereis.
  • 231. 231 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Quanto  aos  que  não  os  quisessem  receber,  nem  ouvir,  recomendou  ele  porventura  aos  apóstolos  que  os  amaldiçoassem,  que  se  lhes  impusessem,  que  usassem de violência e de constrangimento para os converterem? Não; mandou, pura  e simplesmente, que se fossem embora, à procura de pessoas de boa vontade.  O mesmo diz hoje  o Espiritismo a seus adeptos: não violenteis nenhuma  consciência; a ninguém forceis para que deixe a sua crença, a fim de adotar a vossa;  não  anatematizeis  os  que  não  pensem  como  vós;  acolhei  os  que  venham  ter  convosco  e  deixai  tranqüilos  os  que  vos  repelem.  Lembrai­vos  das  palavras  do  Cristo. Outrora, o céu era tomado com violência; hoje o é pela brandura. (Cap. IV, nos  10 e 11)
  • 232. 232 – Allan Kardec  CAPÍTULO XXVI  DAI GRATUITAMENTE O QUE GRATUITAMENTE RECEBESTE ·  O DOM DE CURAR ·  PRECES PAGAS ·  MERCADORES EXPULSOS DO TEMPLO ·  MEDIUNIDADE GRATUITA  DOM DE CURAR  1. “ Restituí a saúde aos doentes, ressuscitai os mortos, curai os leprosos,  expulsai  os  demônios.  Dai  gratuitamente  o  que  gratuitamente  haveis  recebido”.  (MATEUS, 10:8)  2.  “Dai  gratuitamente  o  que  gratuitamente  haveis  recebido”,  diz  Jesus  a  seus  discípulos. Com essa recomendação, prescreve que ninguém se faça pagar daquilo  por que nada pagou. Ora, o que eles haviam recebido gratuitamente era a faculdade  de curar os doentes e de expulsar os demônios, isto é, os maus Espíritos. Esse dom  Deus  lhes  dera  gratuitamente,  para  alívio  dos  que  sofrem  e  como  meio  de  propagação  da  fé;  Jesus,  pois, recomendava­lhes que não  fizessem  dele  objeto  de  comércio, nem de especulação, nem meio de vida.
  • 233. 233 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  PRECES PAGAS  3.  Disse  em  seguida  a  seus  discípulos,  diante  de  todo  o  povo  que  o  escutava: “Precatai­vos dos escribas que se exibem a passear com longas  túnicas, que gostam de ser saudados nas praças públicas e de ocupar os  primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos festins que, a  pretexto de extensas preces, devoram as casas das viúvas. Essas pessoas  receberão condenação mais rigorosa”.  (LUCAS, 20:45 a 47; MARCOS, 12:38 a 40; MATEUS, 23:14)  4.  Disse  também  Jesus:  não  façais  que  vos  paguem  as  vossas  preces;  não  façais  como os escribas que, “a pretexto de longas preces, devoram as casas das viúvas”,  isto é, abocanham as fortunas. A prece é ato de caridade, é um arroubo do coração.  Cobrar alguém que se dirija a Deus por outrem é transformar­se em intermediário  assalariado.  A  prece,  então,  fica  sendo  uma  fórmula,  cujo  comprimento  se  proporciona à soma que custe. Ora, uma de duas: Deus ou mede ou não mede as  suas  graças  pelo  número  das  palavras.  Se  estas  forem  necessárias  em  grande  número,  por  que  dizê­las  poucas,  ou  quase  nenhumas,  por  aquele  que  não  pode  pagar? É falta de caridade. Se uma só basta, é inútil dizê­las em excesso. Por que  então cobrá­las? É prevaricação.  Deus  não  vende  os  benefícios  que  concede.  Como,  pois,  um  que  não  é,  sequer,  o  distribuidor  deles,  que  não  pode  garantir  a  sua  obtenção,  cobraria  um  pedido que talvez nenhum resultado produza? Não é possível que Deus subordine  um ato de clemência, de bondade ou de justiça, que da sua misericórdia se solicite, a  uma  soma  em  dinheiro.  Do  contrário,  se  a  soma  não  fosse  paga,  ou  fosse  insuficiente, a justiça, a bondade e a clemência de Deus ficariam em suspenso. A  razão, o bom­senso e a lógica dizem ser impossível que Deus, a perfeição absoluta,  delegue a criaturas imperfeitas o direito de estabelecer preço para a sua justiça. A  justiça de Deus é como o Sol: existe para todos, para o pobre como para o rico. Pois  que se considera imoral traficar com as graças de um soberano da Terra, poder­se­á  ter por lícito o comércio com as do soberano do Universo?  Ainda outro inconveniente apresentam as preces pagas: é que aquele que as  compra  se  julga, as  mais  das  vezes,  dispensado  de  orar  ele  próprio, porquanto  se  considera quite, desde que deu o seu dinheiro. Sabe­se que os Espíritos se sentem  tocados pelo fervor de quem por eles se interessa. Qual pode ser o fervor daquele  que comete a terceiro o encargo de por ele orar, mediante paga? Qual o fervor desse  terceiro, quando delega o seu mandato a outro, este a outro e assim por diante? Não  será isso reduzir a eficácia da prece ao valor de uma moeda em curso?  MERCADORES EXPULSOS DO TEMPLO  5.  Eles  vieram  em  seguida  a  Jerusalém,  e  Jesus,  entrando  no  templo,  começou  por  expulsar  dali  os  que  vendiam  e  compravam;  derribou  as  mesas  dos  cambistas  e  os  bancos  dos  que  vendiam  pombos;  e  não  permitiu  que  alguém  transportasse  qualquer  utensílio  pelo  templo.  Ao  mesmo  tempo  os  instruía,  dizendo:  “Não  está  escrito:  Minha  casa  será
  • 234. 234 – Allan Kardec  chamada casa de oração por todas as nações? Entretanto, fizestes dela um  covil de ladrões!” Os príncipes dos sacerdotes, ouvindo isso, procuravam  meio de o perderem, pois o temiam, visto que todo o povo era tomado de  admiração pela sua doutrina.  (MARCOS, 11:15 a 18; MATEUS, 21:12 e 13)  6. Jesus  expulsou do templo  os mercadores. Condenou assim o tráfico das coisas  santas sob qualquer forma. Deus não vende a sua bênção, nem o seu perdão, nem a  entrada no reino dos céus. Não tem, pois, o homem, o direito de lhes estipular preço.  MEDIUNIDADE GRATUITA  7.  Os  médiuns  atuais  –  pois  que  também  os  apóstolos  tinham  mediunidade  –  igualmente  receberam  de  Deus  um  dom  gratuito:  o  de  serem  intérpretes  dos  Espíritos,  para  instrução  dos  homens,  para  lhes  mostrar  o  caminho  do  bem  e  conduzi­los  à  fé,  não  para  lhes  vender  palavras  que  não  lhes  pertencem,  a  eles  médiuns, visto que não são fruto de suas concepções, nem de suas pesquisas, nem de  seus trabalhos pessoais. Deus quer que a luz chegue a todos; não quer que o mais  pobre fique dela privado e possa dizer: não tenho fé, porque não a pude pagar; não  tive o consolo de receber os encorajamentos e os testemunhos de afeição dos que  pranteio,  porque  sou  pobre.  Tal  a  razão  por  que  a  mediunidade  não  constitui  privilégio  e  se  encontra  por toda  parte.  Fazê­la  paga  seria,  pois,  desviá­la  do  seu  providencial objetivo.  8. Quem conhece as condições em que os bons Espíritos se comunicam, a repulsão  que sentem por tudo o que é de interesse egoístico, e sabe quão pouca coisa se faz  mister para que eles se afastem, jamais poderá admitir que os Espíritos superiores  estejam à disposição do primeiro que apareça e os convoque a tanto por sessão. O  simples  bom­senso  repele  semelhante  idéia.  Não  seria  também  uma  profanação  evocarmos, por dinheiro, os seres que respeitamos, ou que nos são caros? É fora de  dúvida que se podem assim obter manifestações; mas, quem lhes poderia garantir a  sinceridade?  Os  Espíritos  levianos,  mentirosos,  brincalhões  e  toda  a  caterva  dos  Espíritos inferiores, nada escrupulosos, sempre acorrem, prontos a responder ao que  se  lhes  pergunte,  sem  se  preocuparem  com  a  verdade.  Quem,  pois,  deseje  comunicações sérias deve, antes de tudo, pedi­las seriamente e, em seguida, inteirar­  se da natureza das simpatias do médium com os seres do mundo espiritual. Ora, a  primeira condição para se granjear a benevolência dos bons Espíritos é a humildade,  o devotamento, a abnegação, o mais absoluto desinteresse moral e material.  9.  A  par  da  questão  moral,  apresenta­se  uma  consideração  efetiva  não  menos  importante, que entende com a natureza mesma da faculdade. A mediunidade séria  não  pode  ser  e  não  o  será  nunca  uma  profissão,  não  só  porque  se  desacreditaria  moralmente, identificada para logo com a dos ledores da boa sorte, como também  porque um obstáculo a isso se opõe. É que se trata de uma faculdade essencialmente  móvel,  fugidia  e  mutável,  com  cuja  perenidade,  pois,  ninguém  pode  contar.
  • 235. 235 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Constituiria,  portanto,  para  o  explorador,  uma  fonte  absolutamente  incerta  de  receitas, de natureza a poder faltar­lhe no momento exato em que mais necessária  lhe fosse. Coisa diversa é o talento adquirido pelo estudo, pelo trabalho e que, por  essa razão mesma, representa uma propriedade da qual naturalmente lícito é, ao seu  possuidor,  tirar partido.  A mediunidade,  porém, não  é  uma  arte, nem um talento,  pelo  que  não  pode  tornar­se  uma  profissão.  Ela  não  existe  sem  o  concurso  dos  Espíritos; faltando estes, já não há mediunidade. Pode subsistir a aptidão, mas o seu  exercício  se  anula.  Daí  vem  não  haver  no  mundo  um  único  médium  capaz  de  garantir  a  obtenção  de  qualquer  fenômeno  espírita  em  dado  instante.  Explorar  alguém  a  mediunidade  é,  conseguintemente,  dispor  de  uma  coisa  da  qual  não  é  realmente dono. Afirmar o contrário é enganar a quem paga. Há mais: não é de si  próprio que o explorador dispõe; é do concurso dos Espíritos, das almas dos mortos,  que  ele  põe  a  preço  de  moeda.  Essa  idéia  causa  instintiva  repugnância.  Foi  esse  tráfico, degenerado em abuso, explorado pelo charlatanismo, pela ignorância, pela  credulidade  e  pela  superstição  que  motivou  a  proibição  de  Moisés.  O  moderno  Espiritismo, compreendendo o lado sério da questão, pelo descrédito a que lançou  essa exploração, elevou a mediunidade à categoria de missão. (Veja­se: O Livro dos  Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVIII. – O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. XI)  10. A mediunidade é coisa santa, que deve ser praticada santamente, religiosamente.  Se há um gênero de mediunidade que requeira essa condição de modo ainda mais  absoluto  é  a  mediunidade  curadora.  O  médico  dá  o  fruto  de seus  estudos,  feitos,  muita vez, à custa de sacrifícios penosos. O magnetizador dá o seu próprio fluido,  por  vezes  até  a  sua  saúde.  Podem  pôr­lhes  preço.  O  médium  curador transmite  o  fluido salutar dos bons Espíritos; não tem o direito de vendê­lo. Jesus e os apóstolos,  ainda que pobres, nada cobravam pelas curas que operavam.  Procure, pois, aquele que carece do que viver, recursos em qualquer parte,  menos na mediunidade; não lhe consagre, se assim for preciso, senão o tempo de  que materialmente possa dispor. Os Espíritos lhe levarão em conta o devotamento e  os sacrifícios, ao passo que se afastam dos que esperam fazer deles uma escada por  onde subam.
  • 236. 236 – Allan Kardec  CAPÍTULO XXVII  PEDI E OBTEREIS ·  QUALIDADES DA PRECE ·  EFICÁCIA DA PRECE ·  AÇÃO DA PRECE. TRANSMISSÃO DO PENSAMENTO ·  PRECES INTELIGÍVEIS ·  DA PRECE PELOS MORTOS E  PELOS ESPÍRITOS SOFREDORES  INSTRUÇÃO DOS ESPÍRITOS ·  MANEIRA DE ORAR ·  FELICIDADE QUE A PRECE PROPORCIONA  QUALIDADES DA PRECE  1.  “ Quando  orardes,  não  vos  assemelheis  aos  hipócritas,  que,  afetadamente, oram de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem  vistos  pelos  homens.  Digo­vos,  em  verdade,  que  eles  já  receberam  sua  recompensa. Quando quiserdes orar, entrai para o vosso quarto e, fechada  a porta, orai a vosso Pai em secreto; e vosso Pai, que vê o que se passa  em secreto, vos dará a recompensa”.  “Não  cuideis  de  pedir muito  nas  vossas  preces,  como fazem  os  pagãos,  os  quais  imaginam  que  pela  multiplicidade  das  palavras  é  que  serão  atendidos.  Não  vós  torneis  semelhantes  a  eles,  porque  vosso  Pai  sabe do que é que tendes necessidade, antes que lho peçais”.  (MATEUS, 6:5 a 8)  2.  “Quando  vos aprestardes  para  orar,  se  tiverdes  qualquer  coisa contra  alguém, perdoai­lhe, a fim de que vosso Pai, que está nos céus, também  vos  perdoe  os  vossos  pecados. Se  não perdoardes, vosso  Pai, que  está  nos céus, também não vos perdoará os pecados”.  (MARCOS, 11:25 e 26)
  • 237. 237 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  3. Também disse esta parábola a alguns que punham a sua confiança em si  mesmos, como sendo justos, e desprezavam os outros:  “ Dois  homens  subiram  ao  templo  para  orar;  um  era  fariseu,  publicano o outro. O fariseu, conservando­se de pé, orava assim, consigo  mesmo:  –  ‘Meu  Deus,  rendo­vos  graças  por  não  ser  como  os  outros  homens,  que  são  ladrões,  injustos  e  adúlteros,  nem  mesmo  como  esse  publicano.  Jejuo  duas  vezes  na  semana;  dou  o  dízimo  de  tudo  o  que  possuo’. – O publicano, ao contrário, conservando­se afastado, não ousava,  sequer, erguer os olhos ao céu; mas, batia no peito, dizendo: – ‘Meu Deus,  tem piedade de mim, que sou um pecador’. – Declaro­vos que este voltou  para a sua casa, justificado, e o outro não; porquanto, aquele que se eleva  será rebaixado e aquele que se humilha será elevado”.  (LUCAS, 18:9 a 14)  4. Jesus definiu claramente as qualidades da prece. Quando orardes, diz ele, não vos  ponhais em evidência; antes, orai em secreto. Não afeteis orar muito, pois não é pela  multiplicidade das palavras que sereis escutados, mas pela sinceridade delas. Antes  de orardes, se tiverdes qualquer coisa contra alguém, perdoai­lhe, visto que a prece  não  pode  ser  agradável  a  Deus,  se  não  parte  de  um  coração  purificado  de  todo  sentimento contrário à caridade. Orai, enfim, com humildade, como o publicano, e  não  com  orgulho,  como  o  fariseu.  Examinai  os  vossos  defeitos,  não  as  vossas  qualidades e, se vos comparardes aos outros, procurai o que há em vós de mau. (Cap.  X, nos 7 e 8)  EFICÁCIA DA PRECE  5. “ Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis e concedido  vos será o que pedirdes”.  (MARCOS, 11:24)  6.  Há  quem  conteste  a  eficácia  da  prece,  com  fundamento  no  princípio  de  que,  conhecendo Deus as nossas necessidades, inútil se torna expor­lhas. E acrescentam  os que assim pensam que, achando­se tudo no Universo encadeado por leis eternas,  não podem as nossas súplicas mudar os decretos de Deus.  Sem  dúvida  alguma  há  leis  naturais  e  imutáveis  que não  podem  ser  ab­  rogadas ao capricho de cada um; mas, daí a crer­se que todas as circunstâncias da  vida estão submetidas à fatalidade, vai grande distância. Se assim fosse, nada mais  seria o homem do que instrumento passivo, sem livre­arbítrio e sem iniciativa. Nessa  hipótese, só lhe caberia curvar a cabeça ao jugo dos acontecimentos, sem cogitar de  evitá­los; não devera ter procurado desviar o raio. Deus não lhe outorgou a razão e a  inteligência, para que ele as deixasse sem serventia; a vontade, para não querer; a  atividade, para ficar inativo. Sendo livre o homem de agir num sentido ou noutro,  seus atos lhe acarretam, e aos demais, conseqüências subordinadas ao que ele faz ou  não.  Há,  pois,  devidos  à  sua  iniciativa,  sucessos  que  forçosamente  escapam  à  fatalidade e que não quebram a harmonia das leis universais, do mesmo modo que o  avanço ou o atraso do ponteiro de um relógio não anula a lei do movimento sobre a
  • 238. 238 – Allan Kardec  qual se funda o mecanismo. Possível é, portanto, que Deus aceda a certos pedidos,  sem perturbar a imutabilidade das leis que regem o conjunto, subordinada sempre  essa anuência à sua vontade.  7. Desta máxima: “Concedido vos será o que quer que pedirdes pela prece”, fora  ilógico deduzir que basta pedir para obter e fora injusto acusar a Providência se não  acede a toda súplica que se lhe faça, uma vez que ela sabe, melhor do que nós, o que  é para nosso bem. É como procede um pai criterioso que recusa ao filho o que seja  contrário aos seus interesses. Em geral, o homem apenas vê o presente; ora, se o  sofrimento é de utilidade para a sua felicidade futura, Deus o deixará sofrer, como o  cirurgião deixa que o doente sofra as dores de uma operação que lhe trará a cura.  O  que  Deus  lhe  concederá  sempre,  se  ele  o  pedir  com  confiança,  é  a  coragem, a paciência, a resignação. Também lhe concederá os meios de se tirar por  si mesmo das dificuldades, mediante idéias que fará lhe sugiram os bons Espíritos,  deixando­lhe  dessa  forma  o  mérito  da  ação.  Ele  assiste  os  que  se  ajudam  a  si  mesmos, de conformidade com esta máxima: “Ajuda­te, que o Céu te ajudará”; não  assiste,  porém,  os  que  tudo  esperam  de  um  socorro  estranho,  sem  fazer  uso  das  faculdades  que  possui.  Entretanto,  as mais  das  vezes,  o  que  o  homem  quer  é  ser  socorrido por milagre, sem despender o mínimo esforço. (Cap. XXV, nº 1 e seguintes)  8.  Tomemos  um  exemplo.  Um  homem  se  acha  perdido  no  deserto.  A  sede  o  martiriza  horrivelmente.  Desfalecido,  cai  por  terra.  Pede  a  Deus  que  o  assista,  e  espera. Nenhum anjo lhe virá dar de beber. Contudo, um bom Espírito lhe sugere a  idéia  de  levantar­se  e  tomar  um  dos  caminhos  que  tem  diante  de  si.  Por  um  movimento maquinal, reunindo todas as forças que lhe restam, ele se ergue, caminha  e descobre ao longe um regato. Ao divisá­lo, ganha coragem. Se tem fé, exclamará:  “Obrigado, meu Deus, pela idéia que me inspiraste e pela força que me deste.” Se  lhe falta a fé, exclamará: “Que boa idéia tive! Que sorte a minha de tomar o caminho  da  direita,  em  vez  do  da  esquerda;  o  acaso,  às  vezes,  nos  serve  admiravelmente!  Quanto me felicito pela minha coragem e por não me ter deixado abater!”  Mas, dirão, por que o bom Espírito não lhe disse claramente: “Segue este  caminho, que encontrarás o de que necessitas”? Por que não se lhe mostrou para o  guiar  e  sustentar  no  seu  desfalecimento?  Dessa  maneira  tê­lo­ia  convencido  da  intervenção  da  Providência.  Primeiramente,  para  lhe  ensinar  que  cada  um  deve  ajudar­se a si mesmo e fazer uso das suas forças. Depois, pela incerteza, Deus põe à  prova a confiança que nele deposita a criatura e a submissa o desta à sua vontade.  Aquele homem estava na situação de uma criança que cai e que, dando com alguém,  se põe a gritar e fica à espera de que a venham levantar; se não vê pessoa alguma,  faz esforços e se ergue sozinha.  Se  o  anjo  que  acompanhou a Tobias  lhe houvera  dito:  “Sou  enviado  por  Deus para te guiar na tua viagem e te preservar de todo perigo”, nenhum mérito teria  tido Tobias. Fiando­se no seu companheiro, nem sequer de pensar teria precisado.  Essa a razão por que o anjo só se deu a conhecer ao regressarem.
  • 239. 239 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  AÇÃO DA PRECE.  TRANSMISSÃO DO PENSAMENTO  9. A prece é uma invocação, mediante a qual o homem entra, pelo pensamento, em  comunicação  com  o  ser  a  quem  se  dirige.  Pode  ter  por  objeto  um  pedido,  um  agradecimento, ou uma glorificação. Podemos orar por nós mesmos ou por outrem,  pelos  vivos  ou  pelos  mortos.  As  preces  feitas  a  Deus  escutam­nas  os  Espíritos  incumbidos da execução de suas vontades; as que se dirigem aos bons Espíritos são  reportadas  a  Deus.  Quando  alguém  ora  a  outros  seres  que  não  a  Deus,  fá­lo  recorrendo a intermediários, a intercessores, porquanto nada sucede sem a vontade  de Deus.  10.  O  Espiritismo  torna  compreensível  a  ação  da  prece,  explicando  o  modo  de  transmissão do pensamento, quer no caso em que  o ser a quem oramos acuda ao  nosso  apelo,  quer  no  em  que  apenas  lhe  chegue  o  nosso  pensamento.  Para  apreendermos o que ocorre em tal circunstância, precisamos conceber mergulhados  no fluido universal, que ocupa o espaço, todos os seres, encarnados e desencarnados,  tal  qual  nos  achamos,  neste  mundo,  dentro  da  atmosfera.  Esse  fluido  recebe  da  vontade uma impulsão; ele é o veículo do pensamento, como o ar o é do som, com a  diferença  de  que  as  vibrações  do  ar  são  circunscritas,  ao  passo  que  as  do  fluido  universal  se  estendem  ao  infinito.  Dirigido,  pois,  o  pensamento  para  um  ser  qualquer, na Terra  ou no  espaço,  de  encarnado  para  desencarnado,  ou  vice­versa,  uma corrente fluídica se estabelece entre um e outro, transmitindo de um ao outro o  pensamento, como o ar transmite o som.  A energia da corrente guarda proporção com a do pensamento e da vontade.  É  assim  que  os  Espíritos  ouvem  a  prece  que  lhes  é  dirigida, qualquer  que  seja  o  lugar onde se encontrem; é assim que os Espíritos se comunicam entre si, que nos  transmitem  suas  inspirações,  que  relações  se  estabelecem  a  distância  entre  encarnados.  Essa  explicação  vai,  sobretudo,  com  vistas  aos  que  não  compreendem  a  utilidade  da  prece  puramente  mística.  Não  tem  por  fim materializar a  prece,  mas  tornar­lhe inteligíveis os efeitos, mostrando que pode exercer ação direta e efetiva.  Nem por isso deixa essa ação de estar subordinada à vontade de Deus, juiz supremo  em todas as coisas, único apto a torná­la eficaz.  11.  Pela  prece,  obtém  o  homem  o  concurso  dos  bons  Espíritos  que  acorrem  a  sustentá­lo em suas boas resoluções e a inspirar­lhe idéias sãs. Ele adquire, desse  modo, a força moral necessária a vencer as dificuldades e a volver ao caminho reto,  se deste se afastou. Por esse meio, pode também desviar de si os males que atrairia  pelas suas próprias faltas. Um homem, por exemplo, vê arruinada a sua saúde, em  conseqüência de excessos a que se entregou, e arrasta, até o termo de seus dias, uma  vida de sofrimento: terá ele o direito de queixar­se, se não obtiver a cura que deseja?  Não, pois que houvera podido encontrar na prece a força de resistir às tentações.  12.  Se  em  duas  partes  se  dividirem  os  males  da  vida,  uma  constituída  dos  que  o  homem não pode evitar e a outra das tribulações de que  ele se constituiu a causa
  • 240. 240 – Allan Kardec  primária,  pela  sua  incúria  ou  por  seus  excessos  (cap.  V,  nº  4),  ver­se­á  que  a  segunda, em quantidade, excede de muito à primeira. Faz­se, portanto, evidente que  o homem é o autor da maior parte das suas aflições, às quais se pouparia, se sempre  obrasse com sabedoria e prudência.  Não menos certo é que todas essas misérias resultam das nossas infrações  às  leis  de  Deus  e  que,  se  as  observássemos  pontualmente,  seríamos  inteiramente  ditosos.  Se  não  ultrapassássemos  o  limite  do  necessário,  na  satisfação  das  nossas  necessidades, não  apanharíamos  as  enfermidades  que resultam  dos  excessos,  nem  experimentaríamos as vicissitudes que as doenças acarretam. Se puséssemos freio à  nossa ambição, não teríamos de temer a ruína; se não quiséssemos subir mais alto do  que  podemos,  não  teríamos  de  recear  a  queda;  se  fôssemos  humildes,  não  sofreríamos as decepções do orgulho abatido; se praticássemos a lei de caridade, não  seríamos  maldizentes,  nem  invejosos,  nem  ciosos,  e  evitaríamos  as  disputas  e  dissensões; se mal a ninguém fizéssemos, não houvéramos de temer as vinganças,  etc.  Admitamos que  o homem nada possa com relação aos outros males; que  toda prece lhe seja inútil para livrar­se deles; já não seria muito o ter a possibilidade  de  ficar isento de todos  os que decorrem da sua maneira de proceder? Ora, aqui,  facilmente se concebe a ação da prece, visto ter por efeito atrair a salutar inspiração  dos  Espíritos  bons,  granjear  deles  força  para  resistir  aos  maus  pensamentos,  cuja  realização nos pode ser funesta. Nesse caso, o que eles fazem não é afastar de nós o  mal, porém, sim, desviar­nos a nós do mau pensamento que nos pode causar dano;  eles em nada obstam ao cumprimento dos decretos de Deus, nem suspendem o curso  das leis da Natureza; apenas evitam que as infrinjamos, dirigindo o nosso livre­  arbítrio.  Agem,  contudo, à nossa revelia,  de  maneira  imperceptível,  para nos não  subjugar  a  vontade.  O homem  se  acha  então na  posição  de  um  que  solicita  bons  conselhos e os põe em prática, mas conservando a liberdade de segui­los, ou não.  Quer Deus que seja assim, para que aquele tenha a responsabilidade dos seus atos e  o mérito da escolha entre o bem e o mal. É isso o que o homem pode estar sempre  certo de receber, se o pedir com fervor, sendo, pois, a isso que se podem, sobretudo  aplicar estas palavras: “Pedi e obtereis”.  Mesmo com sua eficácia reduzida a essas proporções, já não traria a prece  resultados imensos? Ao Espiritismo fora reservado provar­nos a sua ação, com o nos  revelar  as  relações  existentes  entre  o  mundo  corpóreo  e  o  mundo  espiritual.  Os  efeitos da prece, porém, não se limitam aos que vimos de apontar.  Recomendam­na  todos  os  Espíritos.  Renunciar  alguém à  prece  é  negar  a  bondade de Deus; é recusar, para si, a sua assistência e, para com os outros, abrir  mão do bem que lhes pode fazer.  13. Acedendo ao pedido que se lhe faz, Deus muitas vezes objetiva recompensar a  intenção, o devotamento e a fé daquele que ora. Daí decorre que a prece do homem  de bem tem mais merecimento aos olhos de Deus e sempre mais eficácia, porquanto  o  homem  vicioso  e  mau  não  pode  orar  com  o  fervor  e  a  confiança  que  somente  nascem do sentimento da verdadeira piedade. Do coração do egoísta, do daquele que  apenas de lábios ora, unicamente saem palavras, nunca os ímpetos de caridade que  dão  à  prece  todo  o  seu  poder.  Tão  claramente  isso  se  compreende  que,  por  um
  • 241. 241 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  movimento  instintivo,  quem  se  quer  recomendar  às  preces  de  outrem  fá­lo  de  preferência às daqueles cujo proceder, sente­se, há de ser mais agradável a Deus,  pois que são mais prontamente ouvidos.  14.  Por  exercer  a  prece  uma  como  ação  magnética,  poder­se­ia  supor  que  o  seu  efeito  depende  da  força  fluídica.  Assim,  entretanto,  não  é.  Exercendo  sobre  os  homens essa ação, os Espíritos, em sendo preciso, suprem a insuficiência daquele  que ora, ou agindo diretamente em seu nome, ou dando­lhe momentaneamente uma  força  excepcional,  quando  o  julgam  digno  dessa  graça,  ou  que  ela  lhe  pode  ser  proveitosa.  O homem que não se considere suficientemente bom para exercer salutar  influência, não deve por isso abster­se de orar a bem de outrem, com a idéia de que  não é digno de ser escutado. A consciência da sua inferioridade constitui uma prova  de humildade, grata sempre a Deus, que leva em conta a intenção caridosa que o  anima. Seu fervor e sua confiança são um primeiro passo para a sua conversão ao  bem, conversão que os Espíritos bons se sentem ditosos em incentivar. Repelida só o  é  a  prece do orgulhoso que deposita fé no seu poder e nos seus merecimentos e  acredita ser­lhe possível sobrepor­se à vontade do Eterno.  15. Está no pensamento o poder da prece, que por nada depende nem das palavras,  nem do lugar, nem do momento em que seja feita. Pode­se, portanto, orar em toda  parte e a qualquer hora, a sós ou em comum. A influência do lugar ou do tempo só  se faz sentir nas circunstâncias que favoreçam o recolhimento. A prece em comum  tem ação mais poderosa, quando todos os que oram se associam de coração a um  mesmo  pensamento  e  colimam  o  mesmo  objetivo,  porquanto  é  como  se  muitos  clamassem juntos e em uníssono. Mas, que importa seja grande o número de pessoas  reunidas  para  orar,  se  cada  uma  atua  isoladamente  e  por  conta  própria?!  Cem  pessoas juntas podem orar como egoístas, enquanto duas ou três, ligadas por uma  mesma  aspiração,  orarão  quais  verdadeiros  irmãos  em  Deus,  e  mais  força  terá  a  prece que lhe dirijam do que a das cem outras. (Cap. XXVIII nº 4 e 5)  PRECES INTELIGÍVEIS  16. “ Se eu não  entender o que significam as palavras, serei um bárbaro  para aquele a quem falo e aquele que me fala será para mim um bárbaro.  Se  oro  numa  língua  que  não  entendo,  meu  coração  ora,  mas  a  minha  inteligência não colhe fruto. Se louvais a Deus apenas de coração, como é  que um homem do número daqueles que só entendem a sua própria língua  responderá amém no fim da vossa ação de graças, uma vez que ele não  entende o que dizeis? Não é que a vossa ação não seja boa, mas os outros  não se edificam com ela”.  (S. PAULO, 1ª aos Coríntios, 14:11, 14, 16 e17)  17. A prece só tem valor pelo pensamento que lhe está conjugado. Ora, é impossível  conjugar um pensamento qualquer ao que se não compreende, porquanto o que não  se compreende não pode tocar o  coração. Para a imensa maioria das criaturas, as
  • 242. 242 – Allan Kardec  preces  feitas  numa  língua  que  elas  não  entendem  não  passam  de  amálgamas  de  palavras que nada dizem ao espírito. Para que a prece toque, preciso se torna que  cada  palavra  desperte  uma  idéia  e,  desde  que não  seja  entendida,  nenhuma  idéia  poderá despertar. Será dita como simples fórmula, cuja virtude dependerá do maior  ou menor número de vezes que a repitam. Muitos oram por dever; alguns, mesmos,  por  obediência  aos  usos,  pelo  que  se  julgam  quites,  desde  que  tenham  dito  uma  oração determinado número de vezes e em tal ou tal ordem. Deus vê o que se passa  no fundo dos corações; lê o pensamento e percebe a sinceridade. Julgá­lo, pois, mais  sensível à forma do que ao fundo é rebaixá­lo. (Cap. XXVIII, nº 2)  DA PRECE PELOS MORTOS E PELOS ESPÍRITOS SOFREDORES  18. Os Espíritos sofredores reclamam preces e  estas lhes são proveitosas, porque,  verificando  que  há  quem  neles  pense,  menos  abandonados  se  sentem,  menos  infelizes. Entretanto, a prece tem sobre eles ação mais direta: reanima­os, incute­lhes  o  desejo  de  se  elevarem  pelo  arrependimento  e  pela  reparação  e,  possivelmente,  desvia­lhes  do  mal  o  pensamento.  É  nesse  sentido  que  lhes  pode  não  só  aliviar,  como abreviar os sofrimentos. (Veja­se: O Céu e o Inferno, 2ª Parte – “Exemplos”)  19. Pessoas há que não admitem a prece pelos mortos, porque, segundo acreditam, a  alma  só  tem  duas  alternativas:  ser  salva  ou  ser  condenada  às  penas  eternas,  resultando,  pois,  em  ambos  os  casos,  inútil  a  prece.  Sem  discutir  o  valor  dessa  crença, admitamos, por instantes, a realidade das penas eternas e irremissíveis e que  as  nossas  preces  sejam  impotentes  para  lhes  pôr  termo.  Perguntamos  se,  nessa  hipótese, será lógico, será caridoso, será cristão recusar a prece pelos réprobos? Tais  preces,  por  mais  impotentes  que  fossem  para  os  liberar,  não  lhes  seriam  uma  demonstração de piedade capaz de abrandar­lhes os sofrimentos? Na Terra, quando  um  homem  é  condenado  a  galés  perpétuas,  quando  mesmo  não  haja  a  mínima  esperança de obter­se para ele perdão, será defeso a uma pessoa caridosa ir carregar­  lhe  os  grilhões,  para  aliviá­lo  do  peso  destes?  Em  sendo  alguém  atacado  de  mal  incurável,  dever­se­á,  por  não  haver  para  o  doente  esperança  nenhuma  de  cura,  abandoná­lo,  sem lhe  proporcionar qualquer alívio?  Lembrai­vos  de  que,  entre  os  réprobos, pode achar­se uma pessoa que vos foi cara, um amigo, talvez um pai, uma  mãe,  ou  um  filho,  e  dizei  se,  não  havendo,  segundo  credes,  possibilidade  de  ser  perdoado  esse  ente,  lhe  recusaríeis  um  copo  d’água  para mitigar­lhe  a  sede?  Um  bálsamo que lhe seque as chagas? Não faríeis por ele o que faríeis por um galé? Não  lhe daríeis uma prova de amor, uma consolação? Não, isso cristão não seria. Uma  crença que petrifica o coração é incompatível com a crença em um Deus que põe na  primeira categoria dos deveres o amor ao próximo. A não eternidade das penas não  implica a negação de uma penalidade temporária, dado não ser possível que Deus,  em sua justiça, confunda o bem e o mal. Ora, negar, neste caso, a eficácia da prece,  fora negar a eficácia da consolação, dos encorajamentos, dos bons conselhos; fora  negar a força que haurimos da assistência moral dos que nos querem bem.
  • 243. 243 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  20.  Outros  se  fundam  numa  razão  mais  especiosa:  a  imutabilidade  dos  decretos  divinos. Deus, dizem esses, não pode mudar as suas decisões a pedido das criaturas;  a não ser assim, careceria de estabilidade o mundo. O homem, pois, nada tem de  pedir a Deus, só lhe cabendo submeter­se e adorá­lo.  Há,  nesse  modo  de  raciocinar,  uma  aplicação  falsa  do  princípio  da  imutabilidade  da  lei  divina,  ou  melhor,  ignorância  da  lei,  no  que  concerne  à  penalidade futura. Essa lei revelam­na hoje os Espíritos do Senhor, quando o homem  se  tornou  suficientemente  maduro  para  compreender  o  que, na  fé,  é  conforme  ou  contrário aos atributos divinos.  Segundo o dogma da eternidade absoluta das penas, não se levam em conta  ao  culpado  os  remorsos,  nem  o  arrependimento.  É­lhe  inútil  todo  desejo  de  melhorar­se:  está  condenado  a  conservar­se  perpetuamente  no  mal.  Se  a  sua  condenação  foi  por  determinado  tempo,  a  pena  cessará,  uma  vez  expirado  esse  tempo.  Mas,  quem  poderá  afirmar  que  ele  então  possua  melhores  sentimentos?  Quem  poderá  dizer  que,  a  exemplo  de  muitos  condenados  da  Terra,  ao  sair  da  prisão, ele não seja tão mau quanto antes? No primeiro caso, seria manter na dor do  castigo  um  homem  que  volveu  ao  bem;  no  segundo,  seria  agraciar  a  um  que  continua  culpado.  A  lei  de  Deus  é  mais  previdente.  Sempre  justa,  eqüitativa  e  misericordiosa, não estabelece para a pena, qualquer que esta seja, duração alguma.  Ela se resume assim:  21. “O homem sofre sempre a conseqüência de suas faltas; não há uma só infração à  lei de Deus que fique sem a correspondente punição”.  “A severidade do castigo é proporcionada à gravidade da falta”.  “Indeterminada  é  a  duração  do  castigo,  para  qualquer  falta;  fica  subordinada ao arrependimento do culpado e ao seu retorno à senda do bem;  a  pena  dura  tanto  quanto  a  obstinação  no  mal;  seria  perpétua,  se  perpétua  fosse  a  obstinação; dura pouco, se pronto é o arrependimento”.  “Desde que o culpado clame por misericórdia, Deus o ouve e lhe concede a  esperança. Mas, não basta o simples pesar do mal causado; é necessária a reparação,  pelo que o culpado se vê submetido a novas provas em que pode, sempre por sua  livre vontade, praticar o bem, reparando o mal que haja feito”.  “O  homem  é,  assim,  constantemente,  o  árbitro  de  sua  própria  sorte;  pertence­lhe abreviar ou prolongar indefinidamente o seu suplício; a sua felicidade  ou a sua desgraça dependem da vontade que tenha de praticar o bem.”  Tal a  lei, lei imutável  e  em  conformidade  com  a  bondade  e  a  justiça  de  Deus.  Assim, o Espírito culpado e infeliz pode sempre salvar­se a si mesmo: a lei  de Deus estabelece a condição em que se lhe torna possível fazê­lo. O que as mais  das  vezes  lhe  falta  é  a  vontade,  a  força,  a  coragem.  Se,  por  nossas  preces,  lhe  inspiramos essa vontade, se o amparamos e animamos; se, pelos nossos conselhos,  lhe damos as luzes de que carece, em lugar de pedirmos a Deus que derrogue a sua  lei, tornamo­nos instrumentos da execução de outra lei, também sua, a de amor e de  caridade,  execução  em  que,  desse  modo,  ele  nos  permite  participar,  dando  nós  mesmos, com isso, uma prova de caridade. (Veja­se O Céu e o Inferno, 1ª Parte, caps.  IV, VII, VIII.)
  • 244. 244 – Allan Kardec  INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS  MANEIRA DE ORAR  22. O dever primordial de toda criatura humana, o primeiro ato que deve assinalar a  sua volta à vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos vós orais, mas quão poucos  são  os  que  sabem  orar!  Que  importam  ao  Senhor  as  frases  que  maquinalmente  articulais umas às outras, fazendo disso um hábito, um dever que cumpris e que vos  pesa como qualquer dever?  A prece do cristão, do espírita, seja qual for o seu culto, deve ele dizê­la  logo  que  o  Espírito  haja  retomado  o  jugo  da  carne;  deve  elevar­se  aos  pés  da  Majestade Divina com humildade, com profundeza, num ímpeto de reconhecimento  por todos os benefícios recebidos até aquele dia; pela noite transcorrida e durante a  qual lhe foi permitido, ainda que sem consciência disso, ir ter com os seus amigos,  com  os  seus  guias,  para haurir, no  contacto  com  eles,  mais  força  e  perseverança.  Deve ela subir humilde aos pés do Senhor, para lhe recomendar a vossa fraqueza,  para lhe suplicar amparo, indulgência e misericórdia. Deve ser profunda, porquanto  é a vossa alma que tem de elevar­se para o Criador, de transfigurar­se, como Jesus  no Tabor, a fim de lá chegar nívea e radiosa de esperança e de amor.  A vossa prece deve conter o pedido das graças de que necessitais, mas de  que necessitais em realidade. Inútil, portanto, pedir ao Senhor que vos abrevie as  provas,  que  vos  dê  alegrias  e  riquezas.  Rogai­lhe  que  vos  conceda  os  bens  mais  preciosos  da  paciência,  da resignação  e  da  fé.  Não  digais,  como  o  fazem  muitos:  “Não vale a pena orar, porquanto Deus não me atende.” Que é o que, na maioria dos  casos, pedis a Deus? Já vos tendes lembrado de pedir­lhe a vossa melhoria moral?  Oh! Não; bem poucas vezes o tendes feito. O que preferentemente vos lembrais de  pedir  é  o  bom  êxito  para  os  vossos  empreendimentos  terrenos  e  haveis  com  freqüência  exclamado:  “Deus  não  se  ocupa  conosco;  se  se  ocupasse,  não  se  verificariam tantas injustiças.” Insensatos! Ingratos! Se descêsseis ao fundo da vossa  consciência, quase sempre depararíeis, em vós mesmos, com o ponto de partida dos  males  de  que vos  queixais.  Pedi,  pois,  antes  de  tudo,  que vos  possais  melhorar  e  vereis que torrente de graças e de consolações se derramará sobre vós. (Cap. V, nº 4.)  Deveis  orar  incessantemente,  sem  que,  para  isso,  se  faça  mister  vos  recolhais ao vosso oratório, ou vos lanceis de joelhos nas praças públicas. A prece  do dia é o cumprimento dos vossos deveres, sem exceção de nenhum, qualquer que  seja a natureza deles. Não é ato de amor a Deus assistirdes os vossos irmãos numa  necessidade, moral ou física? Não é ato de reconhecimento o elevardes a ele o vosso  pensamento, quando uma felicidade vos advém, quando evitais um acidente, quando  mesmo  uma  simples  contrariedade  apenas  vos  roça  a  alma,  desde  que  vos  não  esqueçais  de  exclamar:  Sede  bendito,  meu  Pai?!  Não  é  ato  de  contrição  o  vos  humilhardes diante do supremo Juiz, quando sentis que falistes, ainda que somente  por um pensamento fugaz, para lhe dizerdes: Perdoai­me, meu Deus, pois pequei  (por orgulho, por egoísmo, ou por falta de caridade); dai­me forças para não falir de  novo e coragem para a reparação da minha falta?!  Isso  independe  das  preces  regulares  da  manhã  e  da  noite  e  dos  dias  consagrados. Como o vedes, a prece pode ser de todos os instantes, sem nenhuma
  • 245. 245 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  interrupção acarretar aos vossos trabalhos. Dita assim, ela, ao contrário, os santifica.  Tende  como  certo  que  um  só  desses  pensamentos,  se  partir  do  coração,  é  mais  ouvido pelo  vosso  Pai celestial do que as longas orações  ditas por hábito, muitas  vezes sem causa determinante e às quais apenas maquinalmente vos chama a hora  convencional. – V. Monod. (Bordéus, 1862)  FELICIDADE QUE A PRECE PROPORCIONA  23.  Vinde,  vós  que  desejais  crer.  Os  Espíritos  celestes  acorrem  a  vos  anunciar  grandes coisas. Deus, meus filhos, abre os seus tesouros, para vos outorgar todos os  benefícios. Homens incrédulos! Se soubésseis quão grande bem faz a fé ao coração e  como induz a alma ao arrependimento e à prece! A prece! Ah! Como são tocantes as  palavras que saem da boca daquele que ora! A prece é o orvalho divino que aplaca o  calor excessivo das paixões. Filha primogênita da fé, ela nos encaminha para a senda  que conduz a Deus. No recolhimento e na solidão, estais com Deus. Para vós, já não  há mistérios; eles se vos desvendam. Apóstolos do pensamento, é para vós a vida.  Vossa alma se desprende da matéria e rola por esses mundos infinitos e etéreos, que  os pobres humanos desconhecem.  Avançai, avançai pelas veredas da prece e ouvireis as vozes dos anjos. Que  harmonia! Já não são o ruído confuso e os sons estrídulos da Terra; são as liras dos  arcanjos; são as vozes brandas e suaves dos serafins, mais delicadas do que as brisas  matinais, quando brincam na folhagem dos vossos bosques. Por entre que delícias  não caminhareis! A vossa linguagem não poderá exprimir essa ventura, tão rápida  entra ela por todos os vossos poros, tão vivo e refrigerante é o manancial em que,  orando, se bebe. Dulçurosas vozes, inebriantes perfumes, que a alma ouve e aspira,  quando se lança a essas esferas desconhecidas e habitadas pela prece! Sem mescla  de desejos carnais, são divinas todas as aspirações. Também vós, orai como o Cristo,  levando  a  sua  cruz  ao  Gólgota,  ao  Calvário.  Carregai  a  vossa  cruz  e  sentireis  as  doces  emoções  que  lhe  perpassavam n’alma,  se  bem  que vergado  ao  peso  de  um  madeiro infamante. Ele ia morrer, mas para viver a vida celestial na morada de seu  Pai. – Santo Agostinho. (Paris, 1861)
  • 246. 246 – Allan Kardec  CAPÍTULO XXVIII  COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS  PREÂMBULO  1.  Os Espíritos hão  dito  sempre:  “A  forma nada  vale,  o  pensamento  é  tudo.  Ore,  pois, cada um segundo suas convicções e da maneira que mais o toque. Um bom  pensamento vale mais do que grande número de palavras com as quais nada tenha o  coração.”  Os  Espíritos  jamais  prescreveram  qualquer  fórmula  absoluta  de  preces.  Quando  dão  alguma,  é  apenas  para  fixar  as  idéias  e,  sobretudo,  para  chamar  a  atenção sobre certos princípios da Doutrina Espírita. Fazem­no também com o fim  de auxiliar os que sentem embaraço para externar suas idéias, pois alguns há que não  acreditariam ter orado realmente, desde que não formulassem seus pensamentos.  A  coletânea de  preces,  que  este  capítulo  encerra, representa  uma  escolha  feita  entre  muitas  que  os  Espíritos  ditaram  em  várias  circunstâncias.  Eles,  sem  dúvida, podem ter ditado outras e em termos diversos, apropriadas a certas idéias ou  a casos especiais; mas, pouco importa a forma, se o pensamento é essencialmente o  mesmo. O objetivo da prece consiste em elevar nossa alma a Deus; a diversidade das  fórmulas nenhuma diferença deve criar entre os que nele crêem, nem, ainda menos,  entre os adeptos do Espiritismo, porquanto Deus as aceita todas quando sinceras.  Não  há,  pois,  considerar  esta  coletânea  como  um  formulário  absoluto  e  único,  mas,  apenas,  uma  variedade  no  conjunto  das  instruções  que  os  Espíritos  ministram. É uma aplicação dos princípios da moral evangélica desenvolvidos neste  livro, um complemento aos ditados deles, relativos aos deveres para com Deus e o  próximo, complemento em que são lembrados todos os princípios da Doutrina.  O Espiritismo reconhece como boas as preces de todos os cultos, quando  ditas de coração e não de lábios somente. Nenhuma impõe, nem reprova nenhuma.  Deus, segundo ele, é sumamente grande para repelir a voz que lhe suplica ou lhe
  • 247. 247 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  entoa  louvores,  porque  o  faz  de  um  modo  e  não  de  outro. Quem quer que lance  anátema às preces que não estejam no seu formulário provará que desconhece a  grandeza  de  Deus.  Crer  que  Deus  se  atenha  a  uma  fórmula  é  emprestar­lhe  a  pequenez e as paixões da Humanidade.  Condição essencial à prece, segundo S. Paulo (cap. XXVII, nº 16), é que  seja inteligível, a fim de que nos possa falar ao espírito. Para isso, não basta seja dita  numa língua que aquele que ora compreenda. Há preces em língua vulgar que não  dizem ao pensamento muito mais do que se fossem proferidas em língua estrangeira,  e  que,  por  isso  mesmo, não  chegam ao  coração.  As  raras idéias  que  elas  contêm  ficam,  as  mais  das  vezes,  abafadas  pela  superabundância  das  palavras  e  pelo  misticismo da linguagem.  A  qualidade  principal  da  prece  é  ser  clara,  simples  e  concisa,  sem  fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que são meros adornos de lentejoulas. Cada  palavra deve ter alcance próprio, despertar uma idéia, pôr em vibração uma fibra da  alma. Numa palavra: deve fazer refletir. Somente sob  essa condição pode a prece  alcançar o seu objetivo; de outro modo, não passa de ruído. Entretanto, notai com  que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas na maioria dos casos. Vêem­se  lábios  a  mover­se;  mas,  pela  expressão  da  fisionomia,  pelo  som  mesmo  da  voz,  verifica­se  que  ali  apenas  há  um  ato  maquinal,  puramente  exterior,  ao  qual  se  conserva indiferente a alma.  Estão divididas em cinco categorias as preces constantes nesta coletânea;  1ª) Preces gerais; 2ª) Preces por aquele mesmo que ora; 3ª) Preces pelos vivos; 4ª)  Preces pelos mortos; 5ª) Preces especiais pelos enfermos e pelos obsidiados.  Com o propósito de chamar, de maneira especial, a atenção sobre o objeto  de cada prece e de lhe tornar mais compreensível o alcance, vão todas precedidas de  uma instrução preliminar, de uma espécie de exposição de motivos, sob o título de  prefácio.  I – PRECES GERAIS  ORAÇÃO DOMINICAL  2.  PREFÁCIO.  Os  Espíritos  recomendaram  que,  encabeçando  esta  coletânea,  puséssemos  a  Oração dominical, não somente como prece, mas também como símbolo. De todas as preces,  é a que eles colocam em primeiro lugar, seja porque procede do próprio Jesus (Mateus, 6:9 a  13), seja porque pode suprir a todas, conforme os pensamentos que se lhe conjuguem; é o  mais  perfeito modelo  de  concisão,  verdadeira  obra­prima  de  sublimidade  na simplicidade.  Com efeito, sob a mais singela forma, ela resume todos os deveres do homem para com Deus,  para consigo mesmo e para com o próximo. Encerra uma profissão de fé, um ato de adoração  e de submissão; o pedido das coisas necessárias à vida e o princípio da caridade. Quem a diga,  em intenção de alguém, pede para este o que pediria para si.  Contudo, em virtude mesmo da sua brevidade, o sentido profundo que encerram as  poucas palavras de que ela se compõe escapa à maioria das pessoas. Daí vem o dizerem­na,  geralmente, sem que os pensamentos se detenham sobre as aplicações de cada uma de suas  partes. Dizem­na como uma fórmula cuja eficácia se ache condicionada ao número de vezes  que seja repetida. Ora, quase sempre esse é um dos números cabalísticos: três, sete ou nove,
  • 248. 248 – Allan Kardec  tomados  à  antiga  crença  supersticiosa  na  virtude  dos  números  e  de  uso  nas  operações  da  magia.  Para preencher o que de vago a concisão desta prece deixa na mente, a cada uma de  suas  proposições  aditamos,  aconselhado  pelos  Espíritos  e  com  a  assistência  deles,  um  comentário  que  lhes  desenvolve  o  sentido  e  mostra  as  aplicações.  Conforme,  pois,  as  circunstâncias e o tempo de que disponha, poderá, aquele que ore, dizer a Oração dominical,  ou na sua forma simples, ou na desenvolvida.  3. Prece. – I. Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome!  Cremos em ti, Senhor, porque tudo revela o teu poder e a tua bondade. A  harmonia do Universo dá testemunho de uma sabedoria, de uma prudência e de uma  previdência  que  ultrapassam  todas  as  faculdades  humanas.  Em  todas  as  obras  da  Criação, desde o raminho de erva minúscula e o pequenino inseto, até os astros que  se movem no espaço, o nome se acha inscrito de um ser soberanamente grande e  sábio. Por toda a parte se nos depara a prova de paternal solicitude. Cego, portanto, é  aquele que te não reconhece nas tuas obras, orgulhoso aquele que te não glorifica e  ingrato aquele que te não rende graças.  II. Venha o teu reino!  Senhor,  deste  aos  homens  leis  plenas  de  sabedoria  e  que  lhes  dariam  a  felicidade, se eles as cumprissem. Com essas leis, fariam reinar entre si a paz e a  justiça e mutuamente se auxiliariam, em vez de se maltratarem, como o fazem. O  forte sustentaria o  fraco, em vez de  o  esmagar. Evitados seriam os males, que se  geram  dos  excessos  e  dos  abusos.  Todas  as  misérias  deste  mundo  provêm  da  violação de tuas leis, porquanto nenhuma infração delas deixa de ocasionar fatais  conseqüências.  Deste  ao  bruto  o  instinto,  que  lhe  traça  o  limite  do  necessário,  e  ele  maquinalmente  se  conforma;  ao  homem,  no  entanto,  além  desse  instinto,  deste  a  inteligência e a razão; também lhe deste a liberdade de cumprir ou infringir aquelas  das tuas leis que pessoalmente lhe concernem, isto é, a liberdade de escolher entre o  bem e o mal, a fim de que tenha o mérito e a responsabilidade das suas ações.  Ninguém  pode  pretextar  ignorância  das  tuas  leis,  pois,  com  paternal  previdência,  quiseste  que  elas  se  gravassem  na  consciência  de  cada  um,  sem  distinção de cultos, nem de nações. Se as violam, é porque as desprezam.  Dia virá em que, segundo a tua promessa, todos as praticarão. Desaparecido  terá, então, a incredulidade. Todos te reconhecerão por soberano Senhor de todas as  coisas, e o reinado das tuas leis será o teu reino na Terra.  Digna­te, Senhor, de apressar­lhe o advento, outorgando aos homens a luz  necessária, que os conduza ao caminho da verdade.  III. Faça­se a tua vontade, assim na Terra como no Céu.  Se a submissão é um dever do filho para com o pai, do inferior para com o  seu superior, quão maior não deve ser a da criatura para com o seu Criador! Fazer a  tua vontade, Senhor, é observar as tuas leis e submeter­se, sem queixumes, aos teus  decretos. O homem a ela se submeterá, quando compreender que és a fonte de toda a
  • 249. 249 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  sabedoria e que sem ti ele nada pode. Fará, então, a tua vontade na Terra, como os  eleitos a fazem no Céu.  IV. Dá­nos o pão de cada dia.  Dá­nos o alimento indispensável à sustentação das forças do corpo; mas,  dá­nos também o alimento espiritual para o desenvolvimento do nosso Espírito.  O bruto encontra a sua pastagem; o homem, porém, deve o sustento à sua  própria atividade e aos recursos da sua inteligência, porque o criaste livre.  Tu  lhe hás  dito:  “Tirarás  da  terra  o  alimento  com  o suor  da  tua  fronte.”  Desse modo, fizeste do trabalho, para ele, uma obrigação, a fim de que exercitasse a  inteligência na procura dos meios de prover às suas necessidades e ao seu bem­estar,  uns mediante o labor manual, outros pelo labor intelectual. Sem o trabalho, ele se  conservaria estacionário e não poderia aspirar à felicidade dos Espíritos superiores.  Ajudas o homem de boa vontade que em ti confia, pelo que concerne ao  necessário; não, porém, àquele que se compraz na ociosidade e desejara tudo obter  sem esforço, nem àquele que busca o supérfluo. (Cap. XXV.)  Quantos e quantos sucumbem por culpa própria, pela sua incúria, pela sua  imprevidência, ou pela sua ambição e por não terem querido contentar­se com o que  lhes havias concedido! Esses são os artífices do seu infortúnio e carecem do direito  de  queixar­se,  pois  que  são  punidos  naquilo  em  que  pecaram.  Mas,  nem  a  esses  mesmos abandonas, porque és infinitamente misericordioso. As mãos lhes estendes  para socorrê­los, desde que, como o filho pródigo, se voltem sinceramente para ti.  (Cap. V, nº 4.)  Antes de nos queixarmos da sorte, inquiramos de nós mesmos se ela não é  obra nossa. A cada desgraça que nos chegue, cuidemos de saber se não teria estado  em  nossas  mãos  evitá­la.  Consideremos  também  que  Deus  nos  outorgou  a  inteligência  para  tirar­nos  do  lameiro,  e  que  de  nós  depende  o  modo  de  a  utilizarmos.  Pois  que  à  lei  do  trabalho  se  acha  submetido  o  homem na  Terra, dá­nos  coragem  e  forças  para  obedecer  a  essa  lei.  Dá­nos  também  a  prudência,  a  previdência e a moderação, a fim de não perdermos o respectivo fruto.  Dá­nos, pois, Senhor, o pão de cada dia, isto é, os meios de adquirirmos,  pelo  trabalho,  as  coisas  necessárias  à  vida,  porquanto  ninguém  tem  o  direito  de  reclamar o supérfluo.  Se trabalhar nos é impossível, à tua divina providência nos confiamos.  Se  está  nos  teus  desígnios  experimentar­nos  pelas  mais  duras  provações,  malgrado  aos  nossos  esforços,  aceitamo­las  como  justa  expiação  das  faltas  que  tenhamos cometido nesta existência, ou noutra anterior, porquanto és justo. Sabemos  que não há penas imerecidas e que jamais castigas sem causa.  Preserva­nos,  ó  meu  Deus,  de  invejar  os  que  possuem  o  que  não  temos,  nem mesmo os que dispõem do supérfluo, ao passo que a nós nos falta o necessário.  Perdoa­lhes,  se  esquecem  a  lei  de  caridade  e  de  amor  do  próximo,  que  lhes  ensinaste. (Cap. XVI, nº 8)  Afasta,  igualmente,  do  nosso  espírito  a  idéia  de  negar  a  tua  justiça,  ao  notarmos a prosperidade do mau e a desgraça que cai por vezes sobre o homem de  bem.  Já  sabemos,  graças  às  novas  luzes  que  te  aprouve  conceder­nos,  que  a  tua
  • 250. 250 – Allan Kardec  justiça se cumpre sempre e a ninguém excetua; que a prosperidade material do mau  é efêmera, quanto a sua existência corpórea, e que experimentará terríveis reveses,  ao passo que eterno será o júbilo daquele que sofre resignado. (Cap. V, nº 7, 9, 12 e 18)  V.  Perdoa  as  nossas  dívidas,  como  perdoamos  aos  que  nos  devem.  Perdoa  as  nossas ofensas, como perdoamos aos que nos ofenderam.  Cada uma das nossas infrações às tuas leis, Senhor, é uma ofensa que te  fazemos  e  uma  dívida  que  contraímos  e  que  cedo  ou  tarde  teremos  de  saldar.  Rogamos­te que no­las perdoes pela tua infinita misericórdia, sob a promessa, que te  fazemos, de empregarmos os maiores esforços para não contrair outras.  Tu nos impuseste por lei expressa a caridade; mas, a caridade não consiste  apenas  em  assistirmos  os  nossos  semelhantes  em  suas  necessidades;  também  consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. Com que direito reclamaríamos a  tua indulgência, se dela não usássemos para com aqueles que nos hão dado motivo  de  queixa?  Concede­nos,  ó  meu  Deus,  forças  para  apagar  de  nossa  alma  todo  ressentimento,  todo  ódio  e  todo  rancor.  Faze  que  a  morte  não  nos  surpreenda  guardando  nós  no  coração  desejos  de  vingança.  Se  te  aprouver  tirar­nos  hoje  mesmo deste mundo, faze que nos possamos apresentar, diante de ti, puros de toda  animosidade, a exemplo do Cristo, cujos últimos pensamentos foram em prol dos  seus algozes. (Cap. X)  Constituem parte das nossas provas terrenas as perseguições que os maus  nos infligem. Devemos, então, recebê­las sem nos queixarmos, como todas as outras  provas,  e  não  maldizer  dos  que,  por  suas  maldades,  nos  rasgam  o  caminho  da  felicidade eterna, visto que nos disseste, por intermédio de Jesus: “Bem­aventurados  os que sofrem pela justiça!” Bendigamos, portanto, a mão que nos fere e humilha,  uma  vez  que  as  mortificações  do  corpo  nos  fortificam  a  alma  e  que  seremos  exalçados  por  efeito  da  nossa humildade. (Cap.  XII,  nº  4.) Bendito  seja  teu  nome,  Senhor,  por  nos  teres  ensinado  que  nossa  sorte  não  está  irrevogavelmente  fixada  depois da morte; que encontraremos, em outras existências, os meios de resgatar e  de  reparar nossas  culpas  passadas,  de  cumprir  em nova  vida  o  que  não  podemos  fazer nesta, para nosso progresso. (Cap. IV, e cap. V, nº 5)  Assim se explicam, afinal, todas as anomalias aparentes da vida. É a luz  que se projeta sobre o nosso passado e o nosso futuro, sinal evidente da tua justiça  soberana e da tua infinita bondade.  VI. Não nos deixes entregues à tentação, mas livra­nos do mal 16  .  Dá­nos,  Senhor,  a  força  de  resistir  às  sugestões  dos  Espíritos  maus,  que  tentem desviar­nos da senda do bem, inspirando­nos maus pensamentos.  Mas, somos Espíritos imperfeitos, encarnados na Terra para expiar nossas  faltas  e  melhorar­nos.  Em  nós  mesmos  está  a  causa  primária  do  mal  e  os  maus  16  Algumas  traduções  dizem:  Não  nos  induzas  à  tentação  (et  ne  nos  inducas  in  tentationem).  Essa  expressão daria a entender que a tentação promana de Deus, que ele, voluntariamente, impele os homens  ao mal, idéia blasfematória que igualaria Deus a Satanás e que, portanto, não poderia estar na mente de  Jesus. É, aliás, conforme à doutrina vulgar sobre o papel dos demônios. (Veja­se: O Céu e o Inferno, 1ª  Parte, cap. IX, “Os demônios”.)
  • 251. 251 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Espíritos mais não fazem do que aproveitar os nossos pendores viciosos, em que nos  entretêm para nos tentarem.  Cada imperfeição é uma porta aberta à influência deles, ao passo que são  impotentes e renunciam a toda tentativa contra os seres perfeitos. É inútil tudo o que  possamos fazer para afastá­los, se não lhes opusermos decidida e inabalável vontade  de permanecer no bem e absoluta renunciação ao mal. Contra nós mesmos, pois, é  que  precisamos  dirigir  os  nossos  esforços  e,  se  o  fizermos,  os  maus  Espíritos  naturalmente se afastarão, porquanto o mal é que os atrai, ao passo que o bem os  repele. (Veja­se aqui adiante: “Preces pelos obsidiados”.)  Senhor,  ampara­nos  em  nossa  fraqueza;  inspira­nos,  pelos  nossos  anjos  guardiães  e  pelos  bons  Espíritos,  a  vontade  de  nos  corrigirmos  de  todas  as  imperfeições a fim de obstarmos aos Espíritos maus o acesso à nossa alma. (Veja­se  aqui adiante o nº 11.)  O mal não é obra tua, Senhor, porquanto o manancial de todo o bem nada  de mau pode gerar. Somos nós mesmos que criamos o mal, infringindo as tuas leis e  fazendo  mau  uso  da  liberdade  que  nos  outorgaste.  Quando  os  homens  as  cumprirmos,  o  mal  desaparecerá  da  Terra,  como  já  desapareceu  de  mundos  mais  adiantados que o nosso.  O  mal  não  constitui  para  ninguém  uma  necessidade  fatal  e  só  parece  irresistível  aos  que  nele  se  comprazem.  Desde  que  temos  vontade  para  o  fazer,  também  podemos  ter  a  de  praticar  o  bem,  pelo  que,  ó  meu  Deus,  pedimos  a  tua  assistência e a dos Espíritos bons, a fim de resistirmos à tentação.  VII. Assim seja.  Praza­te,  Senhor,  que  os  nossos  desejos  se  efetivem.  Mas,  curvamo­nos  perante  a  tua  sabedoria  infinita.  Que  em  todas  as  coisas  que  nos  escapam  à  compreensão se faça a tua santa vontade e não a nossa, pois somente queres o nosso  bem e melhor do que nós sabes o que nos convém.  Dirigimos­te esta prece, ó Deus, por nós mesmos  e também por todas as  almas sofredoras, encarnadas e desencarnadas, pelos nossos amigos e inimigos, por  todos os que solicitem a nossa assistência e, em particular, por N...  Para todos suplicamos a tua misericórdia e a tua bênção.  Nota – Aqui, podem formular­se os agradecimentos que se queiram dirigir a Deus e o que se  deseje pedir para si mesmo ou para outrem. (Vejam­se, adiante, as preces nos 26 e 27.)  REUNIÕES ESPÍRITAS  4. “Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu  nome, eu com elas estarei”.  (MATEUS, 18:20)  5. PREFÁCIO. Estarem reunidas, em nome de Jesus, duas, três ou mais pessoas, não quer dizer  que  basta  se  achem  materialmente  juntas.  É  preciso  que  o  estejam  espiritualmente,  em  comunhão de intentos  e  de idéias, para  o  bem.  Jesus,  então,  ou os  Espíritos  puros, que  o  representam, se encontrarão na assembléia. O Espiritismo nos faz compreender como podem
  • 252. 252 – Allan Kardec  os  Espíritos  achar­se entre nós. Comparecem com seu corpo fluídico ou espiritual e sob a  aparência que nos levaria a reconhecê­los, se se tornassem visíveis. Quanto mais elevados são  na hierarquia espiritual, tanto maior é neles o poder de irradiação. É assim que possuem o  dom da ubiqüidade e que podem estar simultaneamente em muitos lugares, bastando para isso  que enviem a cada um desses lugares um raio de suas mentes.  Dizendo as palavras acima transcritas, quis  Jesus  revelar o efeito da união e da  fraternidade. O que o atrai não é o maior ou menor número de pessoas que se reúnam, pois,  em vez de duas ou três, houvera ele podido dizer dez ou vinte, mas o sentimento de caridade  que reciprocamente as anime. Ora, para isso, basta que elas sejam duas. Contudo, se essas  duas pessoas oram cada uma por seu lado, embora dirigindo­se ambas a Jesus, não há entre  elas comunhão de pensamentos, sobretudo se ali não estão sob o influxo de um sentimento de  mútua benevolência. Se se olham com prevenção, com ódio, inveja ou ciúme, as correntes  fluídicas de seus pensamentos, longe de se conjugarem por um comum impulso de simpatia,  repelem­se. Nesse caso, não estarão reunidas em nome de Jesus, que, então, não passa de  pretexto para a reunião, não o tendo esta por verdadeiro motivo. (Cap. XXVII, nº 9)  Isso não significa que ele se mostre surdo ao que lhe diga uma única pessoa; e se ele  não disse: “Atenderei a todo aquele que me chamar”, é que, antes de tudo, exige o amor do  próximo; e desse amor mais  provas podem dar­se quando são muitos os  que exoram, com  exclusão de todo sentimento pessoal, e não um apenas. Segue­se que, se, numa assembléia  numerosa, somente duas ou três pessoas se unem de coração, pelo sentimento de verdadeira  caridade,  enquanto  as  outras  se  isolam  e  se  concentram  em  pensamentos  egoísticos  ou  mundanos, ele estará com as primeiras e não com as outras. Não é, pois, a simultaneidade das  palavras, dos cânticos ou dos atos exteriores que constitui a reunião em nome de Jesus, mas a  comunhão de pensamentos, em concordância com o espírito de caridade que ele personifica.  (Cap. X, nº 7 e 8; cap. XXVII, nº 2 a 4)  Tal o caráter de que devem revestir­se as reuniões espíritas sérias, aquelas  em que sinceramente se deseja o concurso dos bons Espíritos.  6. Prece. (Para o começo da reunião.) – Ao Senhor Deus onipotente suplicamos que  envie, para nos assistirem, Espíritos bons; que afaste os que nos possam induzir em  erro e nos conceda a luz necessária para distinguirmos da impostura a verdade.  Afasta,  igualmente,  Senhor,  os  Espíritos  malfazejos,  encarnados  e  desencarnados, que tentem lançar entre nós a discórdia e desviar­nos da caridade e  do amor ao próximo. Se procurarem alguns deles introduzir­se aqui, faze não achem  acesso no coração de nenhum de nós.  Bons  Espíritos  que  vos  dignais  de  vir  instruir­nos,  tornai­nos  dóceis  aos  vossos conselhos; preservai­nos de toda idéia de egoísmo, orgulho, inveja e ciúme;  inspirai­nos indulgência e benevolência para com os nossos semelhantes, presentes e  ausentes, amigos ou inimigos; fazei, em suma, que, pelos sentimentos de que nos  achemos animados, reconheçamos a vossa influência salutar.  Dai  aos  médiuns  que  escolherdes  para  transmissores  dos  vossos  ensinamentos, consciência do mandato que lhes é conferido e da gravidade do ato  que vão praticar, a fim de que o façam com o fervor e o recolhimento precisos.  Se, em nossa reunião, estiverem pessoas que tenham vindo impelidas por  sentimentos outros que não os do bem, abri­lhes os olhos à luz e perdoai­lhes, como  nós lhes perdoamos, se trouxerem malévolas intenções.  Pedimos,  especialmente,  ao  Espírito  N...,  nosso  guia  espiritual,  que  nos  assista e por nós vele.
  • 253. 253 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  7. (Para o fim da reunião.) – Agradecemos aos bons Espíritos que se dignaram de  comunicar­se conosco e lhes rogamos que nos ajudem a pôr em prática as instruções  que nos deram e façam que, ao sair daqui, cada um de nós se sinta fortalecido para a  prática do bem e do amor ao próximo.  Também  desejamos  que  as  suas  instruções  aproveitem  aos  Espíritos  sofredores, ignorantes ou viciosos, que tenham participado da nossa reunião e para  os quais imploramos a misericórdia de Deus.  PARA OS MÉDIUNS  8. “ Nos últimos tempos, – diz o Senhor – difundirei do meu Espírito  sobre toda carne; vossos filhos e filhas profetizarão; vossos jovens  terão  visões  e  vossos  velhos,  sonhos.  Nesses  dias,  difundirei  do  meu  Espírito  sobre  os  meus  servidores  e  servidoras,  e  eles  profetizarão”.  (Atos, 2:17 e 18.) 17  9. PREFÁCIO. Quis o Senhor que a luz se fizesse para todos os homens e que em toda a parte  penetrasse a voz dos Espíritos, a fim de que cada um pudesse obter a prova da imortalidade.  Com esse objetivo é que os Espíritos se manifestam hoje em todos os pontos da Terra e a  mediunidade se revela em pessoas de todas as idades e de todas as condições, nos homens  como  nas  mulheres,  nas  crianças  como  nos  velhos.  É  um  dos  sinais  de  que  chegaram os  tempos preditos.  Para  conhecer  as  coisas  do  mundo  visível  e  descobrir  os  segredos  da  Natureza  material, outorgou  Deus ao homem a  vista corpórea, os  sentidos  e instrumentos  especiais.  Com o telescópio, ele mergulha o olhar nas profundezas do espaço, e, com o microscópio,  descobriu o mundo dos infinitamente pequenos. Para peneirar no mundo invisível, deu­lhe a  mediunidade.  Os médiuns são os intérpretes incumbidos de transmitir aos homens os ensinos dos  Espíritos;  ou,  melhor,  são  os  órgãos  materiais  de  que  se  servem  os  Espíritos  para  se  expressarem aos homens por maneira inteligível. Santa é a missão que desempenham, visto  ter por fim rasgar os horizontes da vida eterna.  Os Espíritos vêm instruir o homem sobre seus destinos, a fim de o reconduzirem à  senda do bem, e não para o pouparem ao trabalho material que lhe cumpre executar neste  17  Confrontando  o  v.  18  de  Atos,  cap.  2,  com  o  correspondente  de  Joel,  2,  29,  notamos  que,  na  transcrição  da profecia para o Novo Testamento,  há uma diferença: Pela  profecia,  trata­se  de servos e  servas (escravos e  escravas) dos homens e  não de Deus, como  se acha  na transcrição. Eis o texto dos  versículos,  nas duas traduções  mais  modernas e  fiéis: a Brasileira  e a do Esperanto, as  quais  estão de  acordo também com a Inglesa:  Joel,  2,  29:  “Também  sobre  os  servos  e  sobre  as  servas  naqueles  dias  derramarei  o  meu  Espírito” – Atos, 2, 18: “E, sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito  naqueles  dias,  e  profetizarão.”  Na  tradução  em  Esperanto  ainda  está  mais  claro  que  se  trata  até  dos  escravos e escravas dos homens, e não de servos de Deus. Ei­la: “Joel, 2, 29: E^c sur la sklavojn kaj sur  la sklavinojn Mi em tiu tempo elver^ sos Mian spiriton!” – Atos, 2, 18: “Kaj e^c sur Miajn sklavojn  kaj Miajn sklavinojn en tiu tempo Mi elver^SOS Mian spiriton, kaj ili profetos.” Até os escravos e  escravas  (dos  homens)  receberão  o  Espírito,  não  somente  os  servos  e  servas  de  Deus  (Sacerdotes  e  sacerdotisas). A profecia em sua forma original está­se cumprindo em nossos dias; porque a mediunidade  brota em todas as classes, até nas pessoas mais humildes e obscuras, e não somente, como faz supor o  texto de Atos, entre os sacerdotes (servos de Deus). – Nota da Editora da FEB, em 1947.
  • 254. 254 – Allan Kardec  mundo, tendo por meta o seu adiantamento, nem para lhe favorecerem a ambição e a cupidez.  Aí têm os médiuns o de que devem compenetrar­se bem, para não fazerem mau uso de suas  faculdades.  Aquele  que,  médium,  compreende  a  gravidade  do  mandato  de  que  se  acha  investido, religiosamente o desempenha. Sua consciência lhe profligaria, como ato sacrílego,  utilizar  por  divertimento  e  distração,  para  si  ou  para  os  outros,  faculdades  que  lhe  são  concedidas para fins  sobremaneira sérios  e que o põem em comunicação com os  seres de  além­túmulo.  Como  intérpretes  do  ensino  dos  Espíritos,  têm  os  médiuns  de  desempenhar  importante  papel  na  transformação  moral  que  se  opera.  Os  serviços  que  podem  prestar  guardam proporção com a boa diretriz que imprimam às suas faculdades, porquanto os que  enveredam por mau caminho são mais nocivos do que úteis à causa do Espiritismo. Pela má  impressão que produzem, mais de uma conversão retardam. Terão, por isso mesmo, de dar  contas  do  uso  que  hajam  feito  de  um  dom  que  lhes  foi  concedido  para  o  bem  de  seus  semelhantes.  O  médium  que  queira  gozar  sempre  da  assistência  dos  bons  Espíritos  tem  de  trabalhar por melhorar­se. O que deseja que a sua faculdade se desenvolva e engrandeça tem  de se engrandecer moralmente e de se abster de tudo o que possa concorrer para desviá­la do  seu fim providencial.  Se, às vezes, os Espíritos bons se servem de médiuns imperfeitos, é para dar bons  conselhos, com os quais procuram fazê­los retomar a estrada do bem. Se, porém, topam com  corações  endurecidos  e se suas  advertências  não são escutadas, afastam­se, ficando livre o  campo aos maus. (Cap. XXIV, nº 11 e 12.)  Prova a experiência que, da parte dos que não aproveitam os conselhos que recebem  dos  bons  Espíritos, as comunicações, depois de terem revelado certo brilho durante algum  tempo, degeneram pouco a pouco e acabam caindo no erro, na vertigem, ou no ridículo, sinal  incontestável do afastamento dos bons Espíritos.  Conseguir a assistência destes, afastar os Espíritos levianos e mentirosos, tal deve  ser a meta para onde convirjam os esforços constantes de todos os médiuns sérios. Sem isso, a  mediunidade se torna uma faculdade estéril, capaz mesmo de redundar em prejuízo daquele  que a possua, pois pode degenerar em perigosa obsessão.  O médium que compreende o seu dever, longe de se orgulhar de uma faculdade que  não lhe pertence, visto que lhe pode ser retirada, atribui a Deus as boas coisas que obtém. Se  as  suas  comunicações  receberem  elogios,  não  se  envaidecerá  com  isso,  porque  as  sabe  independentes  do  seu  mérito  pessoal;  agradece  a  Deus  o  haver  consentido  que  por  seu  intermédio bons Espíritos se manifestassem. Se dão lugar à crítica, não se ofende, porque não  são  obra  do  seu  próprio  Espírito.  Ao  contrário,  reconhece  no  seu  íntimo  que  não  foi  um  instrumento bom e que não dispõe de todas as qualidades necessárias a obstar a imiscuência  dos Espíritos maus. Cuida, então, de adquirir essas qualidades e suplica, por meio da prece, as  forças que lhe faltam.  10.  Prece.  –  Deus  onipotente,  permite  que  os  bons  Espíritos  me  assistam  na  comunicação que solicito. Preserva­me da presunção de me julgar resguardado dos  Espíritos maus; do orgulho que me induza em erro sobre o valor do que obtenha; de  todo sentimento oposto à caridade para com outros médiuns. Se cair em erro, inspira  a  alguém  a idéia de  me  advertir  disso  e  a  mim  a humildade  que  me  faça  aceitar  reconhecido a crítica e tomar como endereçados a mim mesmo, e não aos outros, os  conselhos que os bons Espíritos me queiram ditar.  Se for tentado a cometer abuso, no que quer que seja, ou a me envaidecer  da  faculdade  que  te  aprouve  conceder­me,  peço  que  ma  retires,  de  preferência  a
  • 255. 255 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  consentires seja ela desviada do seu objetivo providencial, que é o bem de todos e o  meu próprio avanço moral.  II – PRECES POR AQUELE MESMO QUE ORA  AOS ANJOS GUARDIÃES E AOS ESPÍRITOS PROTETORES  11. PREFÁCIO. Todos temos, ligado a nós, desde o nosso nascimento, um Espírito bom, que  nos tomou sob a sua proteção. Desempenha, junto de nós, a missão de um pai para com seu  filho: a de nos conduzir pelo caminho do bem e do progresso, através das provações da vida.  Sente­se feliz, quando correspondemos à sua solicitude; sofre, quando nos vê sucumbir.  Seu nome pouco importa, pois bem pode dar­se que não tenha nome conhecido na  Terra.  Invocamo­lo,  então,  como  nosso  anjo  guardião,  nosso  bom  gênio.  Podemos  mesmo  invocá­lo sob o nome de qualquer Espírito superior, que mais viva e particular simpatia nos  inspire.  Além  do  Anjo  guardião,  que  é  sempre  um  Espírito  superior,  temos  Espíritos  protetores que, embora menos  elevados, não são menos  bons  e  magnânimos. Contamo­los  entre amigos, ou parentes, ou, até, entre pessoas que não conhecemos na existência atual. Eles  nos assistem com seus conselhos e, não raro, intervindo nos atos da nossa vida.  Espíritos  simpáticos  são os  que se nos  ligam por uma certa analogia de gostos  e  pendores.  Podem  ser  bons  ou  maus,  conforme  a  natureza  das  inclinações  nossas  que  os  atraiam.  Os Espíritos sedutores se esforçam por nos afastar das veredas do bem, sugerindo­  nos maus pensamentos. Aproveitam­se de todas as nossas fraquezas, como de outras tantas  portas abertas, que lhes facultam acesso à nossa alma. Alguns há que se nos aferram, como a  uma presa, mas que se afastam, em se reconhecendo impotentes para lutar contra a nossa  vontade.  Deus,  em  o  nosso  anjo  guardião,  nos  deu  um  guia  principal  e  superior  e,  nos  Espíritos  protetores  e  familiares,  guias  secundários.  Fora  erro,  porém,  acreditarmos  que  forçosamente, temos um mau gênio ao nosso lado, para contrabalançar as boas influências que  sobre nós se exerçam. Os maus Espíritos acorrem voluntariamente, desde que achem meio de  assumir predomínio sobre nós, ou pela nossa fraqueza, ou pela negligência que ponhamos em  seguir as inspirações dos bons Espíritos. Somos nós, portanto, que os atraímos. Resulta desse  fato  que  jamais  nos  encontramos  privados  da  assistência dos  bons  Espíritos  e  que  de nós  depende o afastamento dos maus. Sendo, por suas imperfeições, a causa primária das misérias  que o afligem, o homem é, as mais das vezes, o seu próprio mau gênio. (Cap. V, nº 4)  A prece aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores deve ter por objeto solicitar­  lhes  a intercessão junto de Deus, pedir­lhes a força de resistir às más sugestões e que nos  assistam nas contingências da vida.  12. Prece. – Espíritos esclarecidos e benevolentes, mensageiros de Deus, que tendes  por  missão  assistir  os  homens  e  conduzi­los  pelo  bom  caminho,  sustentai­me nas  provas desta vida; dai­me a força de suportá­las sem queixumes; livrai­me dos maus  pensamentos  e  fazei  que  eu  não  dê  entrada  a  nenhum  mau  Espírito  que  queira  induzir­me ao mal. Esclarecei a minha consciência com relação aos meus defeitos e  tirai­me de sobre os olhos o véu do orgulho, capaz de impedir que eu os perceba e os  confesse a mim mesmo.
  • 256. 256 – Allan Kardec  A ti, sobretudo, N..., meu anjo guardião, que mais particularmente velas por  mim, e a todos vós, Espíritos protetores, que por mim vos interessais, peço fazerdes  que  me  torne  digno  da  vossa  proteção.  Conheceis  as  minhas necessidades;  sejam  elas atendidas, segundo a vontade de Deus.  13. (Outra) – Meu Deus, permite que os bons Espíritos que me cercam venham em  meu  auxílio,  quando  me  achar  em  sofrimento,  e  que  me  sustentem  se  desfalecer.  Faze, Senhor, que eles me incutam fé, esperança e caridade; que sejam para mim um  amparo,  uma  inspiração  e  um  testemunho  da  tua  misericórdia.  Faze,  enfim,  que  neles  encontre  eu  a  força  que  me  falta  nas  provas  da  vida  e,  para  resistir  às  inspirações do mal, a fé que salva e o amor que consola.  14. (Outra) – Espíritos bem­amados, anjos guardiães que, com a permissão de Deus,  pela sua infinita misericórdia, velais sobre  os homens, sede nossos protetores nas  provas da vida terrena. Dai­nos força, coragem e resignação; inspirai­nos tudo o que  é bom, detende­nos no declive do mal; que a vossa bondosa influência nos penetre a  alma; fazei sintamos que um amigo devotado está ao nosso lado, que vê os nossos  sofrimentos e partilha das nossas alegrias.  E tu, meu bom anjo, não me abandones. Necessito de toda a tua proteção,  para suportar com fé e amor as provas que praza a Deus enviar­me.  PARA AFASTAR OS MAUS ESPÍRITOS  15. “ Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que limpais por fora o copo e o prato e  estais,  por  dentro,  cheios  de  rapinas  e  impurezas.  Fariseus  cegos,  limpai  primeiramente  o  interior  do copo  e do  prato,  a fim  de  que também  o  exterior fique  limpo.  Ai  de  vós,  escribas  e  fariseus  hipócritas,  que  vós  assemelhais  a  sepulcros  branqueados,  que  por  fora  parecem  belos  aos  olhos  dos  homens,  mas  que,  por  dentro,  estão  cheios  de  toda  espécie  de  podridões.  Assim,  pelo  exterior,  pareceis  justos  aos  olhos  dos  homens,  mas,  por  dentro,  estais  cheios  de  hipocrisia  e  de  iniqüidades”.  (MATEUS, 23:25 a 28)  16.  PREFÁCIO.  Os  maus  Espíritos  somente  procuram  os  lugares  onde  encontrem  possibilidades de dar expansão à sua perversidade. Para os afastar, não basta pedir­lhes, nem  mesmo  ordenar­lhes  que  se  vão;  é  preciso  que  o  homem  elimine  de  si  o  que  os  atrai.  Os  Espíritos  maus  farejam  as  chagas  da  alma,  como  as  moscas  farejam  as  chagas  do  corpo.  Assim  como  se  limpa  o  corpo,  para  evitar  a  bicheira,  também  se  deve  limpar  de  suas  impurezas a alma, para evitar os maus Espíritos. Vivendo num mundo onde estes pululam,  nem  sempre  as  boas  qualidades  do  coração  nos  põem  a  salvo  de  suas  tentativas;  dão,  entretanto, forças para que lhes resistamos.  17.  Prece.  –  Em  nome  de  Deus  Todo­Poderoso,  afastem­se  de  mim  os  maus  Espíritos, servindo­me os bons de antemural contra eles.  Espíritos  malfazejos,  que  inspirais  maus  pensamentos  aos  homens;  Espíritos  velhacos  e  mentirosos,  que  os  enganais;  Espíritos  zombeteiros,  que  vos
  • 257. 257 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  divertis com a credulidade deles, eu vos repilo com todas as forças de minha alma e  fecho os ouvidos às vossas sugestões; mas, imploro para vós a misericórdia de Deus.  Bons Espíritos que vos dignais de assistir­me, dai­me a força de resistir à  influência dos Espíritos maus e as luzes de que necessito para não ser vítima de suas  tramas. Preservai­me do orgulho e da presunção; isentai o meu coração do ciúme, do  ódio, da malevolência, de todo sentimento contrário à caridade, que são outras tantas  portas abertas ao Espírito do mal.  PARA PEDIR A CORRIGENDA DE UM DEFEITO  18. PREFÁCIO. Os nossos maus instintos resultam da imperfeição do nosso próprio Espírito e  não da nossa organização física; a não ser assim, o homem se acharia isento de toda espécie  de responsabilidade. De nós depende a nossa melhoria, pois todo aquele que se acha no gozo  de suas faculdades tem, com relação a todas as coisas, a liberdade de fazer ou de não fazer.  Para praticar o bem, de nada mais precisa senão do querer. (Cap. XV, nº 10; cap. XIX, nº 12.)  19. Prece. – Deste­me, ó meu Deus, a inteligência necessária a distinguir o que é  bem do que é mal. Ora, do momento em que reconheço que uma coisa é do mal,  torno­me culpado, se não me esforçar por lhe resistir.  Preserva­me  do  orgulho  que  me  poderia  impedir  de  perceber  os  meus  defeitos e dos maus Espíritos que me possam incitar a perseverar neles.  Entre as minhas imperfeições, reconheço que sou particularmente propenso  a...; e, se não resisto a esse pendor, é porque contraí o hábito de a ele ceder.  Não me criaste culpado, pois que és justo, mas com igual aptidão para o  bem  e  para  o  mal;  se  tomei  o  mau  caminho,  foi  por  efeito  do  meu  livre­arbítrio.  Todavia, pela mesma razão que tive a liberdade de fazer o mal, tenho a de fazer o  bem e, conseguintemente, a de mudar de caminho.  Meus atuais defeitos são restos das imperfeições que conservei das minhas  precedentes existências; são o meu pecado original, de que me posso libertar pela  ação da minha vontade e com a ajuda dos Espíritos bons.  Bons Espíritos que me protegeis, e sobretudo tu, meu anjo­da­guarda, dai­  me forças para resistir às más sugestões e para sair vitorioso da luta. Os defeitos são  barreiras que nos separam de Deus e cada um que eu suprima será um passo dado na  senda do progresso que dele me há de aproximar.  O  Senhor,  em  sua  infinita  misericórdia,  houve  por  bem  conceder­me  a  existência atual, para que servisse ao meu adiantamento. Bons Espíritos, ajudai­me a  aproveitá­la, para que me não fique perdida e para que, quando ao Senhor aprouver  ma retirar, eu dela saia melhor do que entrei. (Cap. V, nº 5; cap. XVII, nº 3.  PARA PEDIR A FORÇA DE RESISTIR A UMA TENTAÇÃO  20.  PREFÁCIO.  Duas  origens  pode  ter  qualquer  pensamento  mau:  a  própria  imperfeição  de  nossa alma, ou uma funesta influência que sobre ela se exerça. Neste último caso, há sempre  indício de uma fraqueza que nos sujeita a receber essa influência; há, por conseguinte, indício  de uma alma imperfeita. De sorte que aquele que venha a falir não poderá invocar por escusa
  • 258. 258 – Allan Kardec  a influência de um Espírito estranho, visto que esse Espírito não o teria arrastado ao mal, se  o considerasse inacessível à sedução.  Quando surge em nós um mau pensamento, podemos, pois, imaginar um Espírito  maléfico a nos atrair para o mal, mas a cuja atração podemos ceder ou resistir, como se se  tratara das solicitações de uma pessoa viva. Devemos, ao mesmo tempo, imaginar que, por  seu lado, o nosso anjo guardião, ou Espírito protetor, combate em nós a má influência e espera  com  ansiedade  a  decisão  que  tomemos.  A  nossa  hesitação  em  praticar  o  mal  é  a  voz  do  Espírito bom, a se fazer ouvir pela nossa consciência.  Reconhece­se  que  um  pensamento  é  mau,  quando  se  afasta  da  caridade,  que  constitui a base da verdadeira moral, quando tem por princípio o orgulho, a vaidade, ou o  egoísmo; quando a sua realização pode causar qualquer prejuízo a outrem; quando, enfim, nos  induz a fazer aos outros o que não quereríamos que nos fizessem. (Cap. XXVIII, nº 15; cap.  XV, nº10)  21.  Prece.  –  Deus  Todo­Poderoso,  não  me  deixes  sucumbir  à  tentação  que  me  impele  a  falir.  Espíritos  benfazejos,  que  me  protegeis,  afastai  de  mim  este  mau  pensamento  e  dai­me  a  força  de  resistir  à  sugestão  do  mal.  Se  eu  sucumbir,  merecerei expiar a minha falta nesta vida e na outra, porque tenho a liberdade de  escolher.  AÇÃO DE GRAÇAS PELA VITÓRIA ALCANÇADA  SOBRE UMA TENTAÇÃO  22. PREFÁCIO. Aquele que resistiu a uma tentação deve­o à assistência dos bons Espíritos, a  cuja voz atendeu. Cumpre­lhe agradecê­lo a Deus e ao seu anjo­de­guarda.  23. Prece. – Meu Deus, agradeço­te o haveres permitido eu saísse vitorioso da luta  que acabo de sustentar contra o mal. Faze que essa vitória me dê a força de resistir a  novas tentações.  E a ti, meu anjo guardião, agradeço a assistência com que me valeste. Possa  a minha submissão aos teus conselhos granjear­me de novo a tua proteção!  PARA PEDIR UM CONSELHO  24. PREFÁCIO. Quando estamos indecisos sobre o fazer ou não fazer uma coisa, devemos antes  de tudo propor­nos a nós mesmos as questões seguintes:  1ª – Aquilo que eu hesito em fazer pode acarretar qualquer prejuízo a outrem?  2ª – Pode ser proveitoso a alguém?  3ª – Se agissem assim comigo, ficaria eu satisfeito?  Se  o  que  pensamos  fazer,  somente  a  nós  nos  interessa,  lícito  nos  é  pesar  as  vantagens e os inconvenientes pessoais que nos possam advir.  Se interessa a outrem e se, resultando em bem para um, redundará em mal para  outro, cumpre, igualmente, pesemos  a soma de bem ou de mal que se produzirá, para nos  decidirmos a agir, ou a abster­nos.
  • 259. 259 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Enfim, mesmo em se tratando das melhores coisas, importa ainda consideremos a  oportunidade e as circunstâncias concomitantes, porquanto uma coisa boa, em si mesma, pode  dar maus resultados em mãos inábeis, se não for conduzida com prudência e circunspecção.  Antes de empreendê­la, convém consultemos as nossas forças e meios de execução.  Em  todos  os  casos,  sempre  podemos  solicitar  a  assistência  dos  nossos  Espíritos  protetores, lembrados desta sábia advertência: Na dúvida, abstém­te. (Cap. XXVIII, nº 38)  25. Prece. – Em nome de Deus Todo­Poderoso, inspirai­me, bons Espíritos que me  protegeis,  a  melhor  resolução  a  ser  tomada  na  incerteza  em  que  me  encontro.  Encaminhai meu pensamento para o bem e livrai­me da influência dos que tentarem  transviar­me.  NAS AFLIÇÕES DA VIDA  26. PREFÁCIO. Podemos pedir a Deus favores terrenos e Ele no­los pode conceder, quando  tenham um fim útil e sério. Mas, como a utilidade das coisas sempre a julgamos do nosso  ponto de vista e como as nossas vistas se circunscrevem ao presente, nem sempre vemos o  lado mau do que desejamos. Deus, que vê muito melhor do que nós e que só o nosso bem  quer, pode recusar o que peçamos, como um pai nega ao filho o que lhe seja prejudicial. Se  não  nos  é  concedido  o  que  pedimos,  não  devemos  por  isso  entregar­nos  ao  desânimo;  devemos pensar, ao contrário, que a privação do que desejamos nos é imposta como prova, ou  como  expiação,  e  que  a  nossa  recompensa  será  proporcionada  à  resignação  com  que  a  houvermos suportado. (Cap. XXVII, nº 6; cap. II, nos 5 a 7)  27.  Prece.  –  Deus  Onipotente,  que  vês  as  nossas  misérias,  digna­te  de  escutar,  benevolente, a súplica que neste momento te dirijo. Se é desarrazoado o meu pedido,  perdoa­me; se é justo e conveniente segundo as tuas vistas, que os bons Espíritos,  executores das tuas vontades, venham em meu auxílio para que ele seja satisfeito.  Como quer que seja, meu Deus, faça­se a tua vontade. Se os meus desejos  não  forem  atendidos,  é  que  está  nos  teus  desígnios  experimentar­me  e  eu  me  submeto sem me queixar. Faze que por isso nenhum desânimo me assalte e que nem  a minha fé nem a minha resignação sofram qualquer abalo.  (Formular o pedido.)  AÇÃO DE GRAÇAS POR UM FAVOR OBTIDO  28. PREFÁCIO. Não se devem considerar como sucessos ditosos apenas o que seja de grande  importância. Muitas vezes, coisas aparentemente insignificantes são as que mais influem em  nosso destino. O homem facilmente esquece o bem, para, de preferência, lembrar­se do que o  aflige. Se registrássemos,  dia a  dia,  os  benefícios  de  que  somos  objeto, sem  os  havermos  pedido, ficaríamos, com freqüência, espantados de termos recebido tantos e tantos que se nos  varreram da memória, e nos sentiríamos humilhados com a nossa ingratidão.  Todas as noites, ao elevarmos  a Deus  a nossa alma, devemos  recordar em nosso  íntimo os  favores que Ele nos  fez durante o dia e agradecer­lhos. Sobretudo no momento  mesmo em que experimentamos o efeito da sua bondade e da sua proteção, é que nos cumpre,  por um movimento espontâneo, testemunhar­­lhe a nossa gratidão. Basta, para isso, que lhe
  • 260. 260 – Allan Kardec  dirijamos um pensamento, atribuindo­lhe o benefício, sem que se faça mister interrompamos  o nosso trabalho.  Não  consistem  os  benefícios  de  Deus  unicamente  em  coisas  materiais.  Devemos  também agradecer­lhe as boas idéias, as felizes inspirações que recebemos. Ao passo que o  egoísta atribui tudo isso aos seus méritos pessoais e o incrédulo ao acaso, aquele que tem fé  rende graças a Deus e aos bons Espíritos. São desnecessárias, para esse efeito, longas frases.  “Obrigado, meu Deus, pelo bom pensamento que me foi inspirado”, diz mais do que muitas  palavras. O impulso espontâneo, que nos faz atribuir a Deus o que de bom nos sucede, dá  testemunho de um ato de reconhecimento e de humildade, que nos granjeia a simpatia dos  bons Espíritos. (Cap. XXVII, nº 7 e 8)  29. Prece. – Deus infinitamente bom, que o teu nome seja bendito pelos benefícios  que  me  hás  concedido.  Indigno  eu  seria,  se  os  atribuísse  ao  acaso  dos  acontecimentos, ou ao meu próprio mérito.  Bons Espíritos, que fostes os executores das vontades de Deus, agradeço­  vos e especialmente a ti, meu anjo guardião. Afastai de mim a idéia de orgulhar­me  do  que  recebi  e  de  não  o  aproveitar  somente  para  o  bem.  Agradeço­vos,  em  particular,...  ATO DE SUBMISSÃO E DE RESIGNAÇÃO  30. PREFÁCIO. Quando um motivo de aflição nos advém, se lhe procurarmos a causa, amiúde  reconheceremos estar numa imprudência ou imprevidência nossa, ou, quando não, em um ato  anterior. Em qualquer desses casos, só de nós mesmos nos devemos queixar. Se a causa de  um  infortúnio  independe  completamente  de  qualquer  ação  nossa,  é  ou  uma  prova  para  a  existência atual, ou expiação de falta de uma existência anterior, caso, este último, em que,  pela natureza da expiação, poderemos conhecer a natureza da falta, visto que somos sempre  punidos por aquilo em que pecamos. (Cap. V, nº 4, 6 e seguintes)  No que nos aflige, só vemos, em geral, o presente e não as ulteriores conseqüências  favoráveis que possa ter a nossa aflição. Muitas vezes, o bem é a conseqüência de um mal  passageiro,  como  a  cura  de  uma  enfermidade  é  o  resultado  dos  meios  dolorosos  que  se  empregaram para combatê­la. Em todos os casos devemos submeter­nos à vontade de Deus,  suportar com coragem as tribulações da vida, se queremos  que elas nos  sejam levadas  em  conta e que se nos possam aplicar estas palavras do Cristo: “Bem­aventurados os que sofrem.”  (Cap. V, nº 18)  31. Prece. – Meu Deus, és soberanamente justo; todo sofrimento, neste mundo, há,  pois, de ter a sua causa e a sua utilidade. Aceito a aflição que acabo de experimentar,  como expiação de minhas faltas passadas e como prova para o futuro.  Bons  Espíritos  que  me  protegeis,  dai­me  forças  para  suportá­la  sem  lamentos. Fazei que ela me seja um aviso salutar; que me acresça a experiência; que  abata em mim o orgulho, a ambição, a tola vaidade e o egoísmo, e que contribua  assim para o meu adiantamento.  32. (Outra) – Sinto, ó meu Deus, necessidade de te pedir me dês forças para suportar  as provações que te aprouve destinar­me. Permite que a luz se faça bastante viva em  meu espírito, para que eu aprecie toda a extensão de um amor que me aflige porque  me quer salvar. Submeto­me resignado, ó meu Deus; mas, a criatura é tão fraca, que
  • 261. 261 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  temo sucumbir, se me não amparares. Não me abandones, Senhor, que sem ti nada  posso.  33. (Outra) – A ti dirigi o meu olhar, ó Eterno, e me senti fortalecido. És a minha  força, não me abandones. Ó meu Deus, sinto­me esmagado sob o peso das minhas  iniqüidades. Ajuda­me. Conheces a fraqueza da minha carne, não desvies de mim o  teu olhar!  Ardente  sede  me  devora;  faze  brotar  a  fonte  da  água  viva  onde  eu  me  dessedente. Que a minha boca só se abra para te entoar louvores e não para soltar  queixas  nas  aflições  da  minha  vida.  Sou  fraco,  Senhor,  mas  o  teu  amor  me  sustentará.  Ó  Eterno,  só  tu  és  grande,  só  tu  és  o  fim  e  o  objetivo  da  minha  vida!  Bendito seja o teu nome, se me fazes sofrer, porquanto és o Senhor e eu o servo  infiel. Curvarei a fronte sem me queixar, porquanto só tu és grande, só tu és a meta.  NUM PERIGO IMINENTE  34.  PREFÁCIO.  Pelos  perigos  que  corremos,  Deus  nos  adverte  da  nossa  fraqueza  e  da  fragilidade da nossa existência. Mostra­nos que entre suas mãos está a nossa vida e que ela se  acha presa por um fio que se pode romper no momento em que menos o esperamos. Sob esse  aspecto,  não  há  privilégio  para  ninguém,  pois  que  às  mesmas  alternativas  se  encontram  sujeitos assim o grande, como o pequeno.  Se examinarmos  a natureza e as conseqüências do perigo,  veremos  que estas, as  mais das vezes, se se verificassem, teriam sido a punição de uma falta cometida, ou da falta  do cumprimento de um dever.  35. Prece. – Deus Todo­Poderoso, e tu, meu anjo guardião, socorrei­me! Se tenho de  sucumbir, que a vontade de Deus se cumpra. Se devo ser salvo, que o restante da  minha vida repare o mal que eu haja feito e do qual me arrependo.  AÇÃO DE GRAÇAS POR HAVER ESCAPADO A UM PERIGO  36. PREFÁCIO. Pelo perigo que tenhamos corrido, mostra­nos Deus que, de um momento para  outro, podemos ser chamados a prestar contas do modo por que utilizamos a vida. Avisa­nos,  assim, que devemos tomar tento e emendar­nos.  37.  Prece.  –  Meu  Deus,  meu  anjo­da­guarda,  agradeço­vos  o  socorro  que  me  proporcionastes no  perigo  de  que  estive  ameaçado.  Seja  para mim  um aviso  esse  perigo  e  me  esclareça  sobre  as  faltas  que  me  hajam  colocado  sob  a  sua  ameaça.  Compreendo, Senhor, que nas tuas mãos está a minha vida e que ma podes tirar,  quando te apraza. Inspira­me, por intermédio dos bons Espíritos que me assistem, o  propósito de empregar utilmente o tempo que ainda me concederes de  vida neste  mundo.  Meu  anjo  guardião,  firma­me na resolução  que  tomo  de  reparar  os  meus  erros  e  de  fazer  todo  o  bem  que  esteja  ao  meu  alcance,  a  fim  de  chegar  menos
  • 262. 262 – Allan Kardec  onerado  de  imperfeições  ao  mundo  dos  Espíritos,  quando  Deus  determine  o  meu  regresso para lá.  À HORA DE DORMIR  38. PREFÁCIO. O sono tem por fim dar repouso ao corpo; o Espírito, porém, não precisa de  repousar. Enquanto os sentidos físicos se acham entorpecidos, a alma se desprende, em parte,  da  matéria  e  entra  no  gozo  das  faculdades  do  Espírito.  O  sono  foi  dado  ao  homem  para  reparação das forças orgânicas e também para a das forças morais. Enquanto o corpo recupera  os elementos que perdeu por efeito da atividade da vigília, o Espírito vai retemperar­se entre  os outros Espíritos. Haure, no que vê, no que ouve e nos conselhos que lhe dão, idéias que, ao  despertar, lhe surgem em estado de intuição. É a volta temporária do exilado à sua verdadeira  pátria. É o prisioneiro restituído por momentos à liberdade.  Mas, como se dá com o presidiário perverso, acontece que nem sempre o Espírito  aproveita dessa hora de liberdade para seu adiantamento. Se conserva instintos maus, em vez  de procurar a companhia de Espíritos bons, busca a de seus iguais e vai visitar os lugares onde  possa dar livre curso aos seus pendores.  Eleve, pois, aquele que se ache compenetrado desta verdade, o seu pensamento a  Deus, quando sinta aproximar­se o sono, e peça o conselho dos bons Espíritos e de todos cuja  memória lhe seja cara, a fim de que venham juntar­se­lhe, nos curtos instantes de liberdade  que lhe são concedidos, e, ao despertar, sentir­se­á mais forte contra o mal, mais  corajoso  diante da adversidade.  39.  Prece.  –  Minha  alma  vai  estar  por  alguns  instantes  com  os  outros  Espíritos.  Venham os bons ajudar­me com seus conselhos. Faze, meu anjo guardião, que, ao  despertar, eu conserve durável e salutar impressão desse convívio.  PREVENDO PRÓXIMA A MORTE  40. PREFÁCIO. A fé no futuro, a orientação do pensamento, durante a vida, para os destinos  vindouros, favorecem e aceleram o desligamento do Espírito, por enfraquecerem os laços que  o prendem ao corpo, tanto que, freqüentemente, a vida corpórea ainda se não extinguiu de  todo, e a alma, impaciente, já alçou o vôo para a imensidade. Ao contrário, no homem que  concentra nas coisas materiais todos os seus cuidados, aqueles laços são mais tenazes, penosa  e dolorosa é a separação e cheio de perturbação e ansiedade o despertar no além­túmulo.  41. Prece. – Meu Deus, creio em ti e na tua bondade infinita e, por isso mesmo, não  posso  crer  hajas  dado  ao  homem  a  inteligência,  que  lhe  faculta  conhecer­te,  e  a  aspiração pelo futuro, para o mergulhares no nada.  Creio que o meu corpo é apenas o envoltório perecível de minha alma e  que, quando eu tenha deixado de viver, acordarei no mundo dos Espíritos.  Deus Todo­Poderoso, sinto se rompem os laços que me prendem a alma ao  corpo e que dentro em pouco irei prestar contas do uso que fiz da vida que me foge.  Vou experimentar as conseqüências do bem e do mal que pratiquei. Lá não  haverá ilusões, nem subterfúgios possíveis. Diante de mim vai desenrolar­se todo o  meu passado e serei julgado segundo as minhas obras.
  • 263. 263 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  Nada levarei dos bens da Terra. Honras, riquezas, satisfações da vaidade e  do orgulho, tudo, enfim, que é peculiar ao corpo permanecerá neste mundo. Nem a  mais  mínima  parcela  de  todas  essas  coisas  me  acompanhará,  nem  me  será  de  utilidade alguma no mundo dos Espíritos. Apenas levarei comigo o que pertence à  alma, isto é, as boas e as más qualidades, para serem pesadas na balança da mais  rigorosa justiça. E tanto maior severidade haverá no meu julgamento, quanto maior  número de ocasiões para fazer o bem, que não fiz, me tenha proporcionado a posição  que ocupei na Terra. (Cap. XVI, nº 9)  Deus de misericórdia, que o meu arrependimento te chegue aos pés! Digna­  te de lançar sobre mim o manto da tua indulgência.  Se  te  aprouver  prolongar  a  minha  existência,  seja  esse  prolongamento  empregado em reparar, tanto quanto em mim esteja, o mal que eu tenha praticado.  Se soou, sem dilação possível, a minha hora, levo comigo o consolador pensamento  de que me será permitido redimir­me, por meio de novas provas, a fim de merecer  um dia a felicidade dos eleitos.  Se  não  me  for  dado  gozar  imediatamente  dessa  felicidade  sem  mescla,  partilha  tão­só  do  justo  por  excelência,  sei  que  me  não  é  defesa  para  sempre  a  esperança e que, pelo trabalho, alcançarei o fim, mais tarde ou mais cedo, conforme  os meus esforços.  Sei que próximos de mim, para me receberem, estão Espíritos bons e o meu  anjo­de­guarda, aos quais dentro em pouco verei, como eles me vêem. Sei que, se o  tiver merecido, encontrarei de novo aqueles a quem amei na Terra e que aqueles que  aqui deixo irão juntar­se a mim, que um dia estaremos todos reunidos para sempre e  que,  enquanto  esse  dia  não  chegar,  poderei  vir  visitá­los.  Sei  também  que  vou  encontrar aqueles a quem ofendi. Possam eles perdoar­me o que tenham a reprochar­  me: o meu orgulho, a minha dureza, minhas injustiças, a fim de que a presença deles  não me acabrunhe de vergonha!  Perdôo  aos  que  me  tenham  feito  ou  querido  fazer  mal;  nenhum  rancor  contra eles alimento e peço­te, meu Deus, que lhes perdoes.  Senhor,  dá­me  forças  para  deixar  sem  pena  os  prazeres  grosseiros  deste  mundo, que nada são em confronto com as alegrias sãs e puras do mundo em que  vou  penetrar  e  onde,  para  o  justo, não há mais  tormentos,  nem  sofrimentos, nem  misérias, onde somente o culpado sofre, mas tendo a confortá­lo a esperança.  A vós, bons Espíritos, e a ti, meu anjo guardião, suplico que me não deixeis  falir neste momento supremo. Fazei que a luz divina brilhe aos meus olhos, a fim de  que a minha fé se reanime, se vier a abalar­se.  Nota – Veja­se, adiante, o parágrafo V: “Preces pelos doentes e obsidiados”.  III – PRECES POR OUTREM  POR ALGUÉM QUE ESTEJA EM AFLIÇÃO  42. PREFÁCIO. Se é do interesse do aflito que a sua prova prossiga, ela não será abreviada a  nosso pedido. Mas fora ato de impiedade desanimarmos por não ter sido satisfeita a nossa
  • 264. 264 – Allan Kardec  súplica. Aliás, em falta de cessação da prova, podemos esperar alguma outra consolação que  lhe mitigue o amargor. O que de mais  necessário há para aquele que se acha aflito, são a  resignação e a coragem, sem as quais  não lhe será possível sofrê­la com proveito para si,  porque terá de recomeçá­la. É, pois, para esse objetivo que nos cumpre, sobretudo, orientar os  nossos esforços, quer pedindo lhe venham em auxílio os bons Espíritos, quer levantando­lhe o  moral por meio de conselhos e encorajamentos, quer, enfim, assistindo­o materialmente, se  for possível. A prece, neste caso, pode também ter efeito direto, dirigindo, sobre a pessoa por  quem é feita, uma corrente fluídica com o intento de lhe fortalecer o moral. (Cap. V, nos 5 e 27;  cap. XXVII, nº 6 e l0)  43. Prece. – Deus de infinita bondade, digna­te de suavizar o amargor da posição em  que se encontra N..., se assim for a tua vontade.  Bons  Espíritos,  em  nome  de  Deus  Todo­Poderoso,  eu  vos  suplico  que  o  assistais nas suas aflições. Se, no seu interesse, elas lhe não puderem ser poupadas,  fazei compreenda que são necessárias ao seu progresso. Dai­lhe confiança em Deus  e  no  futuro  que  lhas  tornará  menos  acerbas.  Dai­lhe  também  forças  para  não  sucumbir  ao  desespero,  que  lhe  faria  perder  o  fruto  de  seus  sofrimentos  e  lhe  tornaria  ainda  mais  penosa  no  futuro  a  situação.  Encaminhai  para  ele  o  meu  pensamento, a fim de que o ajude a manter­se corajoso.  AÇÃO DE GRAÇAS POR UM BENEFÍCIO CONCEDIDO A OUTREM  44. PREFÁCIO. Quem não se acha dominado pelo egoísmo rejubila­se com o bem que acontece  ao seu próximo, ainda mesmo que o não haja solicitado por meio da prece.  45. Prece. – Meu Deus, sê bendito pela felicidade que adveio a N...  Bons Espíritos, fazei que nisso ele veja um efeito da bondade de Deus. Se o  bem que lhe aconteceu é uma prova, inspirai­lhe a lembrança de fazer bom uso dele  e de se não envaidecer, a fim de que esse bem não redunde, de futuro, em prejuízo  seu. A ti, bom gênio que me proteges e desejas a minha felicidade, peço afastes do  meu coração todo sentimento de inveja ou de ciúme.  PELOS NOSSOS INIMIGOS E PELOS QUE NOS QUEREM MAL  46. PREFÁCIO. Disse Jesus: Amai os vossos inimigos. Esta máxima é o sublime da caridade  cristã; mas, enunciando­a, não pretendeu Jesus preceituar que devamos ter para com os nossos  inimigos o carinho que dispensamos aos amigos. Por aquelas palavras, ele nos recomenda que  lhes esqueçamos as ofensas, que lhes perdoemos o mal que nos façam, que lhes paguemos  com o bem esse mal. Além do merecimento que, aos olhos de Deus, resulta de semelhante  proceder, ele equivale a mostrar aos homens o em que consiste a verdadeira superioridade.  (Cap. XII, nº 3 e 4)  47. Prece. – Meu Deus, perdôo a N... o mal que me fez e o que me quis fazer, como  desejo me perdoes  e também ele me perdoe as  faltas que eu haja cometido. Se o  colocaste no meu caminho, como prova para mim, faça­se a tua vontade.  Livra­me, ó meu Deus, da idéia de o maldizer e de todo desejo malévolo  contra ele. Faze que jamais me alegre com as desgraças que lhe cheguem, nem me
  • 265. 265 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  desgoste com os bens que lhe poderão ser concedidos, a fim de não macular minha  alma por pensamentos indignos de um cristão.  Possa a tua bondade, Senhor, estendendo­se sobre ele, induzi­lo a alimentar  melhores sentimentos para comigo!  Bons Espíritos, inspirai­me o esquecimento do mal e a lembrança do bem.  Que nem o ódio, nem o rancor, nem o desejo de lhe retribuir o mal com outro mal  me entrem no coração, porquanto o ódio e a vingança só são próprios dos Espíritos  maus,  encarnados  e  desencarnados!  Pronto  esteja  eu,  ao  contrário,  a  lhe  estender  mão fraterna, a lhe pagar com o bem o mal e a auxiliá­lo, se estiver ao meu alcance.  Desejo,  para  experimentar a  sinceridade  do  que  digo,  que  ocasião  se  me  apresente de lhe ser útil; mas, sobretudo, ó meu Deus, preserva­me de fazê­lo por  orgulho  ou  ostentação,  abatendo­o  com  uma  generosidade  humilhante,  o  que  me  acarretaria a perda do fruto da minha ação, pois, nesse caso, eu mereceria me fossem  aplicadas estas palavras do Cristo: Já recebeste a tua recompensa. (Cap. XIII, nº  1 e  seguintes)  AÇÃO DE GRAÇAS PELO BEM CONCEDIDO AOS NOSSOS INIMIGOS  48. PREFÁCIO. Não desejar mal aos seus inimigos é ser apenas meio caridoso. A verdadeira  caridade quer que lhes  almejemos  o bem e que nos  sintamos  felizes com o bem que lhes  advenha. (Cap. XII, nº 7 e 8)  49. Prece. – Meu Deus, entendeste em tua justiça encher de júbilo o coração de N...  Agradeço­te por ele, sem embargo do mal que me fez ou que tem procurado fazer­  me. Se desse bem ele se aproveitasse para me humilhar, eu receberia isso como uma  prova para a minha caridade.  Bons Espíritos que me protegeis, não permitais que me sinta pesaroso por  isso.  Isentai­me  da  inveja  e  do  ciúme  que  rebaixam.  Inspirai­me,  ao  contrário,  a  generosidade que eleva. A humilhação está no mal e não no bem; e sabemos que,  cedo ou tarde, justiça será feita a cada um, segundo suas obras.  PELOS INIMIGOS DO ESPIRITISMO  50. “ Bem­aventurados os famintos de justiça, porque serão saciados. Bem­  aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é  o  reino  dos  céus.  Ditosos  sereis,  quando  os  homens  vos carregarem  de  maldições, vos perseguirem e falsamente disserem contra vós toda espécie  de mal, por minha causa. Rejubilai­vos, então, porque grande recompensa  vos  está  reservada  nos  céus,  pois  assim  perseguiram  eles  os  profetas  enviados antes de vós”.  (MATEUS, 5:6 e 10 a 12)  “Não temais  os  que matam  o corpo, mas  que  não  podem matar  a  alma;  temei, antes, aquele que pode perder alma e corpo no inferno”.  (MATEUS, 10:28)
  • 266. 266 – Allan Kardec  51. PREFÁCIO.  De todas  as  liberdades,  a  mais  inviolável é  a  de pensar,  que  abrange  a  de  consciência. Lançar alguém anátema sobre os que não pensam como ele é reclamar para si  essa liberdade e negá­la aos outros, é violar o primeiro mandamento de Jesus: a caridade e o  amor do próximo. Perseguir os outros, por motivos de suas crenças, é atentar contra o mais  sagrado direito que tem todo homem, o de crer no que lhe convém e de adorar a Deus como o  entenda. Constrangê­los  a atos  exteriores semelhantes aos  nossos é mostrarmos  que damos  mais  valor  à  forma  do  que  ao  fundo,  mais  às  aparências,  do  que  à  convicção.  Nunca  a  abjuração forçada deu a quem quer que fosse a fé; apenas pode fazer hipócritas. É um abuso  da  força  material,  que  não  prova  a  verdade.  A  verdade  é  senhora  de  si:  convence  e  não  persegue, porque não precisa perseguir.  O Espiritismo é uma opinião, uma crença 18  ; fosse até uma religião, por que se não  teria a liberdade de se dizer espírita, como se tem a de se dizer católico, protestante, ou judeu,  adepto de tal ou qual doutrina filosófica, de tal ou qual sistema econômico? Essa crença é  falsa, ou é verdadeira. Se é falsa, cairá por si mesma, visto que o erro não pode prevalecer  contra a verdade, quando se faz luz nas inteligências. Se é verdadeira, não haverá perseguição  que a torne falsa.  A  perseguição  é  o  batismo  de  toda  idéia  nova,  grande  e  justa  e  cresce  com  a  magnitude  e  a  importância  da  idéia.  O  furor  e  o  desabrimento  dos  seus  inimigos  são  proporcionais ao temor que ela lhes inspira. Tal a razão por que o Cristianismo foi perseguido  outrora e por que o Espiritismo o é hoje, com a diferença, todavia, de que aquele o foi pelos  pagãos, enquanto o segundo o é por cristãos. Passou o tempo das perseguições sangrentas, é  exato;  contudo,  se  já  não  matam  o  corpo,  torturam  a  alma,  atacam­na  até  nos  seus  mais  íntimos sentimentos, nas suas mais caras afeições. Lança­se a desunião nas famílias, excita­se  a mãe contra a filha, a mulher contra o marido; investe­se mesmo contra o corpo, agravando­  se­lhe as necessidades materiais, tirando­se­lhe o ganha­pão, para reduzir pela fome o crente.  (Cap. XXIII, nº 9 e seguintes)  Espíritas, não vos  aflijais  com os  golpes que vos  desfiram, pois eles  provam que  estais com a verdade. Se assim não fosse, deixar­vos­iam tranqüilos e não vos procurariam  ferir.  Constitui  uma  prova  para  a  vossa  fé,  porquanto  é  pela  vossa  coragem,  pela  vossa  resignação e pela vossa paciência que Deus vos reconhecerá entre os seus servidores fiéis, a  cuja contagem ele hoje procede, para dar a cada um a parte que lhe toca, segundo suas obras.  A  exemplo  dos  primeiros  cristãos,  carregai  com  altivez  a  vossa  cruz.  Crede  na  palavra  do  Cristo,  que  disse:  “Bem­aventurados  os  que  sofrem  perseguição  por  amor  da  justiça, que deles é o reino dos céus. Não temais os que matam o corpo, mas que não podem  matar a alma.” Ele também disse: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos fazem  mal e orai pelos que vos perseguem.” Mostrai que sois seus verdadeiros discípulos e que a  vossa doutrina é boa, fazendo o que ele disse e fez. A perseguição pouco durará. Aguardai  com  paciência  o  romper  da  aurora,  pois  que  já  rutila  no horizonte  a  estrela  d’alva.  (Cap.  XXIV, nº 13 e seguintes)  52.  Prece.  –  Senhor,  tu  nos  disseste  pela  boca  de  Jesus,  o  teu  Messias:  “Bem­  aventurados  os  que  sofrem  perseguição  por  amor  da  justiça;  perdoai  aos  vossos  inimigos; orai pelos que vos persigam.” E ele próprio nos deu o exemplo, orando  pelos seus algozes.  Seguindo esse exemplo, meu Deus, imploramos a tua misericórdia para os  que desprezam os teus sacratíssimos preceitos, únicos capazes de facultar a paz neste  18  Ver  Reformador  de  1946,  pág.  253;  Revue  Spirite,  de  dezembro  de  1868;  Allan  Kardec,  de  Zêus  Wantuil e Francisco Thiesen, vol. III, pág. 100. Nota da Editora da FEB.
  • 267. 267 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  mundo e no outro. Como o Cristo, também nós te dizemos: “Perdoa­lhes, Pai, que  eles não sabem o que fazem.”  Dá­nos forças para suportar com paciência e resignação, como provas para  a nossa  fé  e  a  nossa  humildade,  seus  escárnios,  injúrias,  calúnias  e  perseguições;  isenta­nos  de  toda  idéia  de  represálias,  visto  que  para  todos  soará  a  hora  da  tua  justiça, hora que esperamos submissos à tua vontade santa.  POR UMA CRIANÇA QUE ACABA DE NASCER  53. PREFÁCIO. Somente depois  de terem passado pelas provas da vida corpórea, chegam à  perfeição os Espíritos. Os que se encontram na erraticidade aguardam que Deus lhes permita  volver a uma existência que lhes proporcione meios de progredir, quer pela expiação de suas  faltas  passadas,  mediante as  vicissitudes  a  que  fiquem  sujeitos, quer  desempenhando  uma  missão proveitosa para a Humanidade. O seu adiantamento e a sua felicidade futura serão  proporcionados  à  maneira  por  que  empreguem  o  tempo  que  hajam  de  estar  na  Terra.  O  encargo de lhes guiar os primeiros passos e de os encaminhar para o bem cabe a seus pais, que  responderão perante Deus pelo desempenho que derem a esse mandato. Para lhos facilitar, foi  que  Deus  fez  do  amor  paterno  e  do  amor  filial  uma  lei  da  Natureza,  lei  que  jamais  se  transgride impunemente.  54. Prece. (Para ser dita pelos pais.) – Espírito que encarnaste no corpo do nosso  filho, sê bem­vindo. Sê bendito, ó Deus Onipotente, que no­lo mandaste.  É um depósito que nos foi confiado e do qual teremos um dia de prestar  contas. Se ele pertence à nova geração de Espíritos bons que hão de povoar a Terra,  obrigado, ó meu Deus, por essa graça! Se é uma alma imperfeita, corre­nos o dever  de ajudá­lo a progredir na senda do bem, pelos nossos conselhos e bons exemplos.  Se cair no mal, por culpa nossa, responderemos por isso, visto que, então, teremos  falido em nossa missão junto dele.  Senhor,  ampara­nos  em  nossa  tarefa  e  dá­nos  a  força  e  a  vontade  de  cumpri­la. Se este filho nos vem como provação para os nossos Espíritos, faça­se a  tua vontade!  Bons  Espíritos  que  presidistes  ao  seu  nascimento  e  que  tendes  de  acompanhá­lo no curso de sua existência, não o abandoneis. Afastai dele os maus  Espíritos  que  tentem  orientá­lo  para  o  mal.  Dai­lhe  forças  para  lhes  resistir  às  sugestões e coragem para sofrer com paciência e resignação as provas que o esperam  na Terra. (Cap. XIV, nº 9)  55.  (Outra)  –  Meu  Deus,  confiaste­me  a  sorte  de  um  dos  teus  Espíritos;  faze,  Senhor,  que  eu  seja  digno  do  encargo  que  me  impuseste.  Concede­me  a  tua  proteção. Ilumina a minha inteligência, a fim de que eu possa perceber desde cedo as  tendências daquele que me compete preparar para ascender à tua paz.  56. (Outra) – Deus de bondade, pois que te aprouve permitir que o Espírito desta  criança viesse de novo sofrer as provas terrenas, destinadas a fazê­lo progredir, dá­  lhe  luz,  a  fim  de  que  aprenda  a  conhecer­te,  amar­te  e  adorar­te.  Faze,  pela  tua  onipotência, que esta alma se regenere na fonte das tuas sábias instruções; que, sob a
  • 268. 268 – Allan Kardec  égide do seu anjo guardião, a sua inteligência se desenvolva e amplie e o leve a ter  por aspiração aproximar­se cada vez mais de ti; que a ciência do Espiritismo seja a  luz  brilhante  que  o  ilumine  através  dos  escolhos  da  vida;  que  ele,  enfim,  saiba  apreciar toda a extensão do teu amor, que nos põe em prova, para purificar­nos.  Senhor, lança paterno olhar sobre a família a que confiaste esta alma, para  que ela compreenda a importância da sua missão e faça que germinem nesta criança  as boas sementes, até ao dia em que ela possa, por suas próprias aspirações, elevar­  se sozinha para ti.  Digna­te, ó meu Deus, de atender a esta humilde prece, em nome e pelos  merecimentos d’Aquele que disse: “Deixai venham a mim as criancinhas, porquanto  o reino dos céus é para os que se lhes assemelham.”  POR UM AGONIZANTE  57. PREFÁCIO. A agonia é o prelúdio da separação da alma e do corpo. Pode dizer­se que,  nesse momento, o homem tem um pé neste mundo e um no outro. É penosa às vezes essa  passagem, para os que muito apegados se acham à matéria e viveram mais para os bens deste  mundo  do  que  para  os  do  outro,  ou  cuja  consciência  se  encontra  agitada  pelos  pesares  e  remorsos.  Para  aqueles  cujos  pensamentos,  ao  contrário,  buscaram  o  Infinito  e  se  desprenderam da matéria, menos difíceis de romper­se são os laços que o prendem à Terra e  nada têm de dolorosos os seus últimos momentos. Apenas um fio liga, então, a alma ao corpo,  enquanto que no outro caso profundas raízes a conservam presa a este. Em todos os casos, a  prece  exerce  ação  poderosa  sobre  o  trabalho  de  separação.  (Ver,  adiante,  “Preces  pelos  doentes”; também O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. I – “O Passamento”.)  58. Prece. – Deus onipotente e misericordioso, aqui está uma alma prestes a deixar o  seu  envoltório  terreno  para  volver  ao  mundo  dos  Espíritos,  sua  verdadeira pátria.  Dado lhe seja fazê­lo em paz e que sobre ela se estenda a tua misericórdia.  Bons  Espíritos,  que  a  acompanhastes  na  Terra,  não  a  abandoneis  neste  momento supremo. Dai­lhe forças para suportar os últimos sofrimentos por que lhe  cumpre  passar  neste  mundo,  a  bem  do  seu  progresso  futuro.  Inspirai­a,  para  que  consagre ao arrependimento de suas faltas os últimos clarões de inteligência que lhe  restem, ou que momentaneamente lhe advenham.  Dirigi  o  meu  pensamento,  a  fim  de  que  atue  de  modo  a  tornar  menos  penoso para ela o trabalho da separação e a fim de que leve consigo, ao abandonar a  Terra, as consolações da esperança.  IV – PRECES PELOS QUE JÁ NÃO SÃO DA TERRA  POR ALGUÉM QUE ACABA DE MORRER  59.  PREFÁCIO.  As  preces  pelos  Espíritos  que  acabam  de  deixar  a  Terra  não  objetivam,  unicamente,  dar­lhes  um  testemunho  de  simpatia:  também  têm  por  efeito  auxiliar­lhes  o  desprendimento e, desse modo, abreviar­lhes a perturbação que sempre se segue à separação,  tornando­lhes  mais  calmo  o  despertar.  Ainda  aí,  porém,  como  em  qualquer  outra  circunstância, a eficácia está na sinceridade do pensamento e não na quantidade das palavras
  • 269. 269 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  que se profiram mais  ou menos  pomposamente e em que, amiúde, nenhuma parte toma o  coração.  As  preces que  deste se elevam  ressoam  em  torno  do  Espírito,  cujas  idéias  ainda  estão confusas, como as vozes amigas que nos fazem despertar do sono. (Cap. XXVII, nº 10)  60. Prece. – Onipotente Deus, que a tua misericórdia se derrame sobre a alma de  N..., a quem acabaste de chamar da Terra. Possam ser­lhe contadas as provas que  aqui  sofreu,  bem  como  ter  suavizadas  e  encurtadas  as  penas  que  ainda  haja  de  suportar na Espiritualidade!  Bons  Espíritos  que  o  viestes  receber  e  tu,  particularmente,  seu  anjo  guardião, ajudai­o a despojar­se da matéria; dai­lhe luz e a consciência de si mesmo,  a fim de que saia presto da perturbação inerente à passagem da vida corpórea para a  vida espiritual. Inspirai­lhe o arrependimento das faltas que haja cometido e o desejo  de obter permissão para as reparar, a fim de acelerar o seu avanço rumo à vida eterna  bem­aventurada.  N..., acabas de entrar no mundo dos Espíritos e, no entanto, presente aqui te  achas entre nós; tu nos vês e ouves, por isso que de menos do que havia, entre ti e  nós, só há o corpo perecível que vens de abandonar e que em breve estará reduzido a  pó.  Despiste  o  envoltório  grosseiro,  sujeito  a  vicissitudes  e  à  morte,  e  conservaste apenas o envoltório etéreo, imperecível e inacessível aos sofrimentos. Já  não vives pelo corpo; vives da vida dos Espíritos, vida essa isenta das misérias que  afligem a Humanidade.  Já não tens diante de ti o véu que às nossas vistas oculta os esplendores da  vida  no  Além.  Podes,  doravante,  contemplar novas  maravilhas, ao  passo  que  nós  ainda continuamos mergulhados em trevas.  Vais, em plena liberdade, percorrer o espaço e visitar os mundos, enquanto  nós  rastejaremos  penosamente  na  Terra,  à  qual  se  conserva  preso  o  nosso  corpo  material, semelhante, para nós, a pesado fardo.  Diante de ti, vai desenrolar­se o panorama do Infinito e, em face de tanta  grandeza,  compreenderás  a  vacuidade  dos  nossos  desejos  terrestres,  das  nossas  ambições mundanas e dos gozos fúteis com que os homens tanto se deleitam.  A morte, para os homens, mais não é do que uma separação material de  alguns instantes. Do exílio onde ainda nos retém a vontade de Deus, bem assim os  deveres  que  nos  correm  neste  mundo,  acompanhar­te­emos  pelo  pensamento,  até  que nos seja permitido juntar­nos a ti, como tu te reuniste aos que te precederam.  Não podemos ir onde te achas, mas tu podes vir ter conosco. Vem, pois, aos  que te amam e que tu amaste; ampara­os nas provas da vida; vela pelos que te são  caros;  protege­os,  como  puderes;  suaviza­lhes  os  pesares,  fazendo­lhes  perceber,  pelo pensamento, que és mais ditoso agora e dando­lhes a consoladora certeza de  que um dia estareis todos reunidos num mundo melhor.  Nesse, onde te encontras, devem extinguir­se todos os ressentimentos. Que  a eles, daqui em diante, sejas inacessível, a bem da tua felicidade futura! Perdoa,  portanto, aos que hajam incorrido em falta para contigo, como eles te perdoam as  que tenhas cometido para com eles.
  • 270. 270 – Allan Kardec  Nota – Podem acrescentar­se a esta prece, que se aplica a todos, algumas palavras especiais,  conforme  as  circunstâncias  particulares  de  família  ou  de  relações,  bem  como  a  posição  social que ocupava o defunto.  Se se trata de uma criança, ensina­nos o Espiritismo que não está ali um Espírito  de criação recente, mas um que já viveu e que pode, mesmo, já ser muito adiantado. Se foi  curta  a  sua  última  existência,  é que  não  devia  passar  de  uma completação de  prova,  ou  constituir uma prova para os pais. (Cap. V, nº 21.)  61. (Outra) 19  – Senhor onipotente, que a tua misericórdia se estenda sobre os nossos  irmãos que acabam de deixar a Terra! Que a tua luz brilhe para eles! Tira­os das  trevas; abre­lhes os  olhos e  os  ouvidos! Que os  bons Espíritos os  cerquem e lhes  façam ouvir palavras de paz e de esperança!  Senhor, ainda que muito indignos, ousamos implorar a tua misericordiosa  indulgência para este irmão nosso que acaba de ser chamado do exílio. Faze que o  seu  regresso  seja  o  do  filho  pródigo.  Esquece,  ó  meu  Deus,  as  faltas  que  haja  cometido, para te lembrares somente do bem que haja praticado. Imutável é a tua  justiça,  nós  o  sabemos;  mas,  imenso  é  o  teu  amor.  Suplicamos­te  que  abrandes  aquela, na fonte de bondade que emana do teu seio.  Brilhe a luz para os teus olhos, irmão que vens de deixar a Terra! Que os  bons  Espíritos  de  ti  se  aproximem,  te  cerquem  e  ajudem  a  romper  as  cadeias  terrenas!  Compreende  e  vê  a  grandeza  do  nosso  Senhor:  submete­te,  sem  queixumes, à sua justiça, porém, não desesperes nunca da sua misericórdia. Irmão!  Que  um  sério  retrospecto  do  teu  passado  te  abra  as  portas  do  futuro,  fazendo­te  perceber as faltas que deixas para trás e o trabalho cuja execução te incumbe para as  reparares! Que Deus te perdoe e que os bons Espíritos te amparem e animem. Por ti  orarão os teus irmãos da Terra e pedem que por eles ores.  PELAS PESSOAS A QUEM TIVEMOS AFEIÇÃO  62. PREFÁCIO. Que horrenda é a idéia do Nada! Quão de lastimar são os que acreditam que no  vácuo se perde, sem encontrar eco que lhe responda, a voz do amigo que chora o seu amigo!  Jamais conheceram as puras e santas afeições os que pensam que tudo morre com o corpo;  que  o  gênio,  que  com  a  sua  vasta  inteligência  iluminou  o  mundo,  é  uma  combinação  de  matéria, que, qual sopro, se extingue para sempre; que do mais querido ente, de um pai, de  uma  mãe,  ou  de  um  filho  adorado  não  restará  senão  um  pouco  de  pó  que  o  vento  irremediavelmente dispersará  Como pode um homem de coração conservar­se frio a essa idéia? Como não o gela  de terror a idéia de um aniquilamento absoluto e não lhe faz, ao menos, desejar que não seja  assim? Se até hoje não lhe foi suficiente a razão para afastar de seu espírito quaisquer dúvidas,  aí está o Espiritismo a dissipar toda incerteza com relação ao futuro, por meio das provas  materiais que dá da sobrevivência da alma e da existência dos seres de além­túmulo. Tanto  assim é que por toda a parte essas provas são acolhidas com júbilo; a confiança renasce, pois  que o homem doravante sabe que a vida terrestre é apenas uma breve passagem conducente a  melhor vida; que seus trabalhos neste mundo não lhe ficam perdidos  e que as  mais santas  afeições não se despedaçam sem mais esperanças. (Cap. IV, nº 18; cap. V, nº 21)  19  Esta prece foi ditada a um médium de Bordéus, na ocasião em que passava pela sua casa o féretro de  um desconhecido.
  • 271. 271 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  63. Prece. – Digna­te, ó meu Deus, de acolher, benévolo, a prece que te dirijo pelo  Espírito N... Faze­lhe entrever as claridades divinas e torna­lhe fácil o caminho da  felicidade eterna. Permite que os bons Espíritos lhe levem as minhas palavras e o  meu pensamento.  Tu, que tão caro me eras neste mundo, escuta a minha voz, que te chama  para  te  oferecer  novo  penhor  da  minha  afeição.  Permitiu  Deus  que  te  libertasses  antes  de  mim  e  eu  disso  me  não  poderia  queixar  sem  egoísmo,  porquanto  fora  querer­te  sujeito  ainda às  penas  e  sofrimentos  da  vida. Espero,  pois, resignado,  o  momento  de  nos  reunirmos  de  novo  no  mundo  mais  venturoso  no  qual  me  precedeste. Sei que é apenas temporária a nossa separação e que, por mais longa que  me  possa  parecer,  a  sua  duração  nada  é  em  face  da  ditosa  eternidade  que  Deus  promete aos seus escolhidos. Que a sua bondade me preserve de fazer o que quer  que retarde esse desejado instante e me poupe assim à dor de te não encontrar, ao  sair do meu cativeiro terreno.  Oh! Quão doce e consoladora é a certeza de que não há entre nós mais do  que um véu material que te oculta às minhas vistas! De que podes estar aqui, ao meu  lado, a me ver e ouvir como outrora, senão ainda melhor do que outrora; de que não  me esqueces, do mesmo modo que eu te não esqueço; de que os nossos pensamentos  constantemente se entrecruzam e que o teu sempre me acompanha e ampara.  Que a paz do Senhor seja contigo.  PELAS ALMAS SOFREDORAS QUE PEDEM PRECES  64. PREFÁCIO.  Para  se  compreender  o  alívio  que  a  prece  pode  proporcionar  aos  Espíritos  sofredores,  faz­se  preciso  saber  de  que  maneira  ela  atua,  conforme  atrás  ficou  explicado.  (Cap. XXVII, nº 9, 18 e seguintes.) Aquele que se ache compenetrado dessa verdade ora com  mais fervor, pela certeza que tem de não orar em vão.  65. Prece. – Deus clemente e misericordioso, que a tua bondade se estenda por sobre  todos  os Espíritos que se recomendam às nossas preces  e  particularmente sobre a  alma de N...  Bons  Espíritos,  que  tendes  por  única  ocupação  fazer  o  bem,  intercedei  comigo  pelo  alívio  deles.  Fazei  que  lhes  brilhe  diante  dos  olhos  um  raio  de  esperança e que a luz divina os esclareça acerca das imperfeições que os conservam  distantes da morada dos bem­aventurados. Abri­lhes o coração ao arrependimento e  ao  desejo  de  se  depurarem,  para  que  se  lhes  acelere  o  adiantamento.  Fazei­lhes  compreender que, por seus esforços, podem eles encurtar a duração de suas provas.  Que  Deus,  em  sua  bondade,  lhes  dê  a  força  de  perseverarem  nas  boas  resoluções! Possam essas palavras repassadas de benevolência suavizar­lhes as penas,  mostrando­lhes que há na Terra seres que deles se compadecem e lhes desejam toda  a felicidade.  66. (Outra) – Nós te pedimos, Senhor, que espalhes as graças do teu amor e da tua  misericórdia por todos os que sofrem, quer no espaço como Espíritos errantes, quer
  • 272. 272 – Allan Kardec  entre nós como encarnados. Tem piedade das nossas fraquezas. Falíveis nos fizeste,  mas dando­nos capacidade para resistir ao mal e vencê­lo. Que a tua misericórdia se  estenda sobre todos  os que não hão podido resistir aos seus maus pendores e que  ainda se deixam arrastar por maus caminhos. Que os bons Espíritos os cerquem; que  a tua luz lhes brilhe aos olhos e que, atraídos pelo calor vivificante dessa luz, eles  venham prosternar­se a teus pés, humildes, arrependidos e submissos.  Pedimos­te, igualmente, Pai de misericórdia, por aqueles dos nossos irmãos  que não tiveram forças para suportar suas provas terrenas. Tu, Senhor, nos deste um  fardo  a  carregar  e  só  aos  teus  pés  temos  de  o  depor.  Grande,  porém,  é  a  nossa  fraqueza e a coragem nos falta algumas vezes no curso da jornada. Compadece­te  desses  servos  indolentes  que  abandonaram  antes  da  hora  o  trabalho.  Que  a  tua  justiça os poupe, e consente que os bons Espíritos lhes levem alívio, consolações e  esperanças no futuro. A perspectiva do perdão fortalece a alma; mostra­a, Senhor,  aos culpados que desesperam e, sustentados por essa esperança, eles haurirão forças  na  grandeza  mesma  de  suas  faltas  e  de  seus  sofrimentos,  a  fim  de  resgatarem  o  passado e se prepararem a conquistar o futuro.  POR UM INIMIGO QUE MORREU  67. PREFÁCIO. A caridade para com os nossos inimigos deve acompanhá­los ao além­túmulo.  Precisamos ponderar que o mal que eles nos fizeram foi para nós uma prova, que há de ter  sido propícia ao nosso adiantamento, se a soubemos aproveitar. Pode ter­nos sido, mesmo, de  maior  proveito  do  que  as  aflições  puramente  materiais,  pelo  fato  de  nos  haver  facultado  juntar, à coragem e à resignação, a caridade e o esquecimento das ofensas. (Cap. X, nº 6; cap.  XII, nº 5 e 6)  68.  Prece.  –  Senhor,  foi  do  teu  agrado  chamar,  antes  da  minha,  a  alma  de  N...  Perdôo­lhe o mal que me fez e as más intenções que nutriu com referência a mim.  Possa ele ter pesar disso, agora que já não alimenta as ilusões deste mundo.  Que a tua misericórdia, meu Deus, desça sobre ele e afaste de mim a idéia  de me alegrar com a sua morte. Se incorri em faltas para com ele, que mas perdoe,  como eu esqueço as que cometeu para comigo.  POR UM CRIMINOSO  69. PREFÁCIO. Se a eficácia das preces fosse proporcional à extensão delas, as mais longas  deveriam ficar reservadas para os mais culpados, porque mais lhes são elas necessárias do que  àqueles  que  santamente  viveram.  Recusá­las  aos  criminosos  é  faltar  com  a  caridade  e  desconhecer a misericórdia de Deus; julgá­las inúteis, quando um homem haja praticado tal  ou tal erro, fora prejulgar a justiça do Altíssimo. (Cap. XI, nº 14)  70. Prece. – Senhor, Deus de misericórdia, não repilas esse criminoso que acaba de  deixar  a Terra.  A  justiça  dos  homens  o  castigou, mas não  o  isentou  da  tua,  se  o  remorso não lhe penetrou o coração.  Tira­lhe dos olhos a venda que lhe oculta a gravidade de suas faltas. Possa o  seu arrependimento merecer de ti acolhimento benévolo e abrandar os sofrimentos
  • 273. 273 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  de sua alma! Possam também as nossas preces e a intercessão dos  bons Espíritos  levar­lhe  esperança  e  consolação;  inspirar­lhe  o  desejo  de  reparar  suas ações  más  numa nova existência e dar­lhe forças para não sucumbir nas novas lutas em que se  empenhar!  Senhor, tem piedade dele!  POR UM SUICIDA  71. PREFÁCIO. Jamais tem o homem o direito de dispor da sua vida, porquanto só a Deus cabe  retirá­lo  do  cativeiro  da  Terra,  quando  o  julgue  oportuno.  Todavia,  a  justiça  divina  pode  abrandar­lhe  os  rigores,  de  acordo  com  as  circunstâncias,  reservando,  porém,  toda  a  severidade para com aquele que se quis subtrair às provas da vida. O suicida é qual prisioneiro  que se evade da prisão, antes de cumprida a pena; quando preso de novo, é mais severamente  tratado. O mesmo se dá com o suicida que julga escapar às misérias do presente e mergulha  em desgraças maiores. (Cap. V, nº 14 e seguintes)  72. Prece. – Sabemos, ó meu Deus, qual a sorte que espera os que violam a tua lei,  abreviando  voluntariamente  seus  dias;  mas, também  sabemos  que  infinita  é  a  tua  misericórdia. Digna­te, pois, de estendê­la sobre a alma de N... Possam as nossas  preces  e  a  tua  comiseração  abrandar  a  acerbidade  dos  sofrimentos  que  ele  está  experimentando, por não haver tido a coragem de aguardar o fim de suas provas.  Bons Espíritos, que tendes por missão assistir os desgraçados, tomai­o sob a  vossa proteção; inspirai­lhe o pesar da falta que cometeu. Que a vossa assistência lhe  dê forças para suportar com mais resignação as novas provas por que haja de passar,  a  fim  de  repará­la.  Afastai  dele  os  maus  Espíritos,  capazes  de  o  impelirem  novamente para o mal e prolongar­lhe os sofrimentos, fazendo­o perder o fruto de  suas futuras provas.  A ti, cuja desgraça motiva as nossas preces, nos dirigimos também, para te  exprimir o desejo de que a nossa comiseração te diminua o amargor e te faça nascer  no íntimo a esperança de melhor porvir! Nas tuas mãos está ele; confia na bondade  de Deus, cujo seio se abre a todos os arrependimentos e só se conserva fechado aos  corações endurecidos.  PELOS ESPÍRITOS PENITENTES  73. PREFÁCIO. Fora injusto incluir na categoria dos Espíritos maus os sofredores e penitentes,  que pedem preces. Podem eles ter sido maus, porém, já não o são, desde que reconhecem suas  faltas  e  as  deploram;  são  apenas  infelizes. Já alguns  começam  mesmo  a  gozar  de  relativa  felicidade.  74. Prece. – Deus de misericórdia, que aceitas o arrependimento sincero do pecador,  encarnado  ou  desencarnado, aqui  está  um Espírito  que  se  há  comprazido no  mal,  porém, que reconhece seus erros e entra no bom caminho. Digna­te, ó meu Deus, de  recebê­lo como filho pródigo e de lhe perdoar.  Bons  Espíritos,  doravante  ele  deseja  ouvir  a  vossa  voz,  que  até  hoje  desatendeu; permiti­lhe que entreveja a felicidade dos eleitos do Senhor, a fim de
  • 274. 274 – Allan Kardec  que  persista  no  desejo  de  purificar­se  para  alcançá­la.  Amparai­o  em  suas  boas  resoluções e dai­lhe forças para resistir aos seus maus instintos.  Espírito  de  N...,  nós  te  felicitamos  pela  mudança  que  em  ti  se  operou  e  agradecemos aos bons Espíritos que te ajudaram.  Se  te  comprazias  outrora  em  fazer  o  mal,  é  que  não  compreendias  quão  doce  é  o  gozo  de  fazer  o  bem;  também  te  sentias  por  demais  baixo  para  esperar  consegui­lo. Mas, do momento em que puseste o pé no bom caminho, uma luz nova  brilhou aos teus olhos; começaste a gozar de uma felicidade que desconhecias e a  esperança te entrou no coração. É que Deus ouve sempre a prece do pecador que se  arrepende; não repele a nenhum dos que o buscam.  Para entrares de novo e completamente na sua graça, esforça­te daqui por  diante  não  só  para  não  mais  praticares  o  mal,  senão  que  para  fazeres  o  bem  e,  sobretudo, reparares o mal que fizeste. Terás então satisfeito à justiça de Deus; cada  uma das boas ações que praticares apagará uma das tuas faltas passadas.  Já está dado o primeiro passo; agora, quanto mais avançares no caminho,  tanto mais fácil e agradável ele te parecerá. Persevera, pois, e um dia terás a glória  de ser contado entre os Espíritos bons e os bem­aventurados.  PELOS ESPÍRITOS ENDURECIDOS  75. PREFÁCIO. Os maus Espíritos são aqueles que ainda não foram tocados de arrependimento;  que se deleitam no mal e nenhum pesar por isso sentem; que são insensíveis às reprimendas,  repelem a prece e muitas vezes blasfemam do nome de Deus. São essas almas endurecidas  que, após a morte, se vingam nos homens dos sofrimentos que suportam, e perseguem com o  seu ódio aqueles a quem odiaram durante a vida, quer obsidiando­os, quer exercendo sobre  eles qualquer influência funesta. (Cap. X, nº 6; cap. XII, nº 5 e 6)  Duas categorias há bem distintas de Espíritos perversos: a dos que são francamente  maus e a dos hipócritas. Infinitamente mais fácil é reconduzir ao bem os primeiros do que os  segundos. Aqueles, as mais das vezes, são naturezas brutas e grosseiras, como se nota entre os  homens;  praticam  o  mal  mais  por instinto  do  que  por  cálculo  e  não  procuram  passar  por  melhores do que são. Há neles, entretanto, um gérmen latente que é preciso fazer desabrochar,  o que se consegue quase sempre por meio da perseverança, da firmeza aliada à benevolência,  dos  conselhos,  do  raciocínio  e  da  prece.  Através  da  mediunidade,  a  dificuldade  que  eles  encontram para escrever o nome de Deus é sinal de um temor instintivo, de uma voz íntima da  consciência que lhes diz serem indignos de fazê­lo. Nesse ponto estão a pique de converter­se  e tudo se pode esperar deles: basta se lhes encontre o ponto vulnerável do coração.  Os  Espíritos  hipócritas  quase  sempre  são  muito  inteligentes,  mas  nenhuma  fibra  sensível possuem no coração; nada os toca; simulam todos os bons sentimentos para captar a  confiança, e felizes se sentem quando encontram tolos que os aceitam como santos Espíritos,  pois que possível se lhes torna governá­los à vontade. O nome de Deus, longe de lhes inspirar  o menor temor, serve­lhes de máscara para encobrirem suas torpezas. No mundo invisível,  como no mundo visível, os hipócritas são os seres mais perigosos, porque atuam na sombra,  sem que ninguém disso desconfie; têm apenas as aparências da fé, mas fé sincera, jamais.  76.  Prece.  –  Senhor,  digna­te  de  lançar  um  olhar  de  bondade  sobre  os  Espíritos  imperfeitos,  que  ainda  se  encontram  na  treva  da  ignorância  e  te  desconhecem,  particularmente sobre N...  Bons  Espíritos,  ajudai­nos  a  fazer­lhe  compreender  que,  induzindo  os  homens  ao  mal,  obsidiando­os  e  atormentando­os,  ele  prolonga  os  seus  próprios
  • 275. 275 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  sofrimentos;  fazei  que  o  exemplo  da  felicidade  de  que  gozais  lhe  seja  um  encorajamento.  Espírito  que  ainda  te  comprazes  no  mal,  vem  ouvir  a  prece  que  por  ti  fazemos; ela te há de provar que desejamos o teu bem, conquanto faças o mal.  És desgraçado, pois não se pode ser feliz fazendo o mal. Por que então te  conservarás no sofrimento  quando  de  ti  depende  evitá­lo?  Olha  os  bons  Espíritos  que te cercam; vê quão ditosos são e se te não seria mais agradável fruir da mesma  felicidade.  Dirás  que  te  é  impossível;  porém,  nada  é  impossível  àquele  que  quer,  porquanto Deus te deu, como a todas as suas criaturas, a liberdade de escolher entre  o bem e o mal, isto é, entre a felicidade e a desgraça, e ninguém se acha condenado a  praticar o mal. Assim como tens vontade de fazê­lo, também podes ter a de fazer o  bem e de ser feliz.  Volve para Deus o teu olhar; dirige­lhe por um instante o teu pensamento e  um raio da divina luz virá iluminar­te. Dize conosco  estas simples palavras: Meu  Deus, eu me arrependo, perdoa­me. Tenta arrepender­te e fazer o bem, em vez de  fazer o mal, e verás que logo a sua misericórdia descerá sobre ti, que um bem­estar  indizível substituirá as angústias que experimentas.  Desde que hajas dado um passo no bom caminho, o resto deste te parecerá  fácil  de  percorrer.  Compreenderás  então  quanto  tempo  perdeste  de  felicidade  por  culpa tua; mas, um futuro radioso e pleno de esperança se abrirá diante de ti e te fará  esquecer o teu miserável passado, prenhe de perturbação e de torturas morais, que  seriam para ti o inferno, se houvessem de durar eternamente. Dia virá em que essas  torturas serão tais que a qualquer preço quererás fazê­las cessar; porém, quanto mais  te demorares, tanto mais difícil será isso.  Não creias que permanecerás sempre no estado em que te achas; não, que  isso é impossível. Duas perspectivas tens diante de ti: a de sofreres muitíssimo mais  do  que  tens  sofrido  até  agora  e  a  de  seres  ditoso  como  os  bons  Espíritos  que  te  rodeiam.  A  primeira  será  inevitável,  se  persistires  na  tua  obstinação,  quando  um  simples  esforço  da  tua  vontade  bastará  para  te  tirar  da  má  situação  em  que  te  encontras. Apressa­te, pois, visto que cada dia de demora é um dia perdido para a  tua felicidade.  Bons Espíritos, fazei que estas palavras ecoem nessa alma ainda atrasada, a  fim de que a ajudem a aproximar­se de Deus. Nós vo­lo pedimos em nome de Jesus  Cristo, que tão grande poder tinha sobre os maus Espíritos.  V – PRECES PELOS DOENTES E PELOS OBSIDIADOS  PELOS DOENTES  77. PREFÁCIO.  As  doenças  fazem  parte  das  provas  e  das  vicissitudes  da  vida  terrena;  são  inerentes à grosseria da nossa natureza material e à inferioridade do mundo que habitamos. As  paixões e os excessos de toda ordem semeiam em nós germens malsãos, às vezes hereditários.  Nos mundos mais adiantados, física ou moralmente, o organismo humano, mais depurado e  menos material, não está sujeito às mesmas enfermidades e o corpo não é minado surdamente  pelo corrosivo das paixões. (Cap. III, nº 9.) Temos, assim, de nos resignar às conseqüências
  • 276. 276 – Allan Kardec  do meio onde nos coloca a nossa inferioridade, até que mereçamos passar a outro. Isso, no  entanto, não é de molde a impedir que, esperando tal se dê, façamos o que de nós depende  para melhorar as  nossas condições atuais. Se, porém, malgrado aos  nossos  esforços, não o  conseguirmos,  o  Espiritismo  nos  ensina  a  suportar  com  resignação  os  nossos  passageiros  males.  Se  Deus  não  houvesse  querido  que  os  sofrimentos  corporais  se  dissipassem  ou  abrandassem  em  certos  casos,  não  houvera posto  ao  nosso  alcance  meios  de  cura.  A  esse  respeito, a sua solicitude, em conformidade com o instinto de conservação, indica que é dever  nosso procurar esses meios e aplicá­los.  A  par  da  medicação  ordinária,  elaborada  pela  Ciência,  o  magnetismo  nos  dá  a  conhecer  o  poder  da  ação  fluídica  e  o  Espiritismo  nos  revela  outra  força  poderosa  na  mediunidade  curadora  e  a  influência  da  prece.  (Ver,  no  Cap.  XXVI,  a  notícia  sobre  a  mediunidade curadora.)  78.  Prece.  (Para  ser  dita  pelo  doente.)  –  Senhor,  pois  que  és  todo  justiça,  a  enfermidade  que  te  aprouve  mandar­me  necessariamente  eu  a  merecia,  visto  que  nunca  impões  sofrimento  algum  sem  causa.  Confio­me,  para  minha  cura,  à  tua  infinita misericórdia. Se for do teu agrado restituir­me a saúde, bendito seja o teu  santo nome. Se, ao contrário, me cumpre sofrer mais, bendito seja  ele do mesmo  modo. Submeto­me, sem queixas, aos teus sábios desígnios, porquanto o que fazes  só pode ter por fim o bem das tuas criaturas.  Dá, ó meu Deus, que esta enfermidade seja para mim um aviso salutar e me  leve a refletir sobre a minha conduta. Aceito­a como uma expiação do passado  e  como uma prova para a minha fé e a minha submissão à tua santa vontade. (Veja­se a  prece nº 40.)  79. Prece. (Pelo doente.) – Meu Deus, são impenetráveis os teus desígnios e na tua  sabedoria entendeste de afligir a N..., pela enfermidade. Lança, eu te suplico, um  olhar de compaixão sobre os seus sofrimentos e digna­te de pôr­lhes termo.  Bons  Espíritos,  ministros  do  Onipotente,  secundai,  eu  vos  peço,  o  meu  desejo de aliviá­lo; encaminhai o meu pensamento, a fim de que vá derramar um  bálsamo salutar em seu corpo e a consolação em sua alma.  Inspirai­lhe a paciência e a submissão à vontade de Deus; dai­lhe a força de  suportar  suas  dores  com  resignação  cristã,  a  fim  de  que  não  perca  o  fruto  desta  prova. (Veja­se a prece nº 57.)  80. Prece. (Para ser dita pelo médium curador.) – Meu Deus, se te dignas servir­te  de  mim,  indigno  como  sou,  poderei  curar  esta  enfermidade,  se  assim  o  quiseres,  porque em ti deposito fé. Mas, sem ti, nada posso. Permite que os bons Espíritos me  cumulem de seus fluidos benéficos, a fim de que eu os transmita a esse doente, e  livra­me de toda idéia de orgulho e de egoísmo que lhes pudesse alterar a pureza.  PELOS OBSIDIADOS  81.  PREFÁCIO.  A  obsessão  é  a  ação  persistente  que  um  Espírito  mau  exerce  sobre  um  indivíduo.  Apresenta  caracteres  muito  diversos,desde  a  simples  influência  moral,  sem  perceptíveis  sinais  exteriores,  até  a  perturbação  completa  do  organismo  e  das  faculdades
  • 277. 277 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  mentais. Oblitera todas as faculdades mediúnicas; traduz­se, na mediunidade escrevente, pela  obstinação de um Espírito em se manifestar, com exclusão de todos os outros.  Os Espíritos maus pululam em torno da Terra, em virtude da inferioridade moral de  seus  habitantes. A ação malfazeja que eles desenvolvem  faz parte dos  flagelos  com que a  Humanidade  se  vê  a  braços  neste  mundo.  A  obsessão,  como  as  enfermidades  e  todas  as  tribulações da vida, deve ser considerada prova ou expiação e como tal aceita.  Do mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições físicas, que tornam o  corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado de uma  imperfeição moral, que dá acesso a um Espírito mau. A causas físicas se opõem forças físicas;  a  uma  causa  moral,  tem­se  de  opor  uma  força  moral.  Para  preservá­lo  das  enfermidades,  fortifica­se o corpo; para isentá­lo da obsessão, é preciso fortificar a alma, pelo que necessário  se torna que o obsidiado trabalhe pela sua própria melhoria, o que as mais das vezes basta  para  o  livrar  do  obsessor,  sem  recorrer  a  terceiros.  O  auxílio  destes  se  faz  indispensável,  quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque aí não raro o paciente  perde  a  vontade  e  o  livre­arbítrio.  Quase sempre,  a  obsessão  exprime  a  vingança  que um  Espírito tira e que com freqüência se radica nas relações que o obsidiado manteve com ele em  precedente existência. (Veja­se: cap. X, nº 6; cap. XII, nº 5 e 6)  Nos  casos  de  obsessão  grave,  o  obsidiado  se  acha  como  que  envolvido  e  impregnado de um fluido pernicioso, que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele. É  desse fluido que importa desembaraçá­lo. Ora, um fluido mau não pode ser eliminado por  outro fluido mau. Mediante ação idêntica à do médium curador nos  casos  de enfermidade,  cumpre se elimine o fluido mau com o auxílio de um fluido melhor, que produz, de certo  modo, o efeito de um reativo. Esta a ação mecânica, mas que não basta; necessário, sobretudo,  é que se atue sobre o ser inteligente, ao qual importa se possa falar com autoridade, que só  existe  onde  há  superioridade  moral.  Quanto  maior  for  esta, tanto  maior  será  igualmente a  autoridade.  E não é tudo: para garantir­se a libertação, cumpre induzir o Espírito perverso a  renunciar aos seus maus desígnios; fazer que nele despontem o arrependimento e o desejo do  bem, por meio de instruções habilmente ministradas, em evocações particulares, objetivando a  sua educação moral. Pode­se então lograr a dupla satisfação de libertar um encarnado e de  converter um Espírito imperfeito.  A tarefa se apresenta mais fácil quando o obsidiado, compreendendo a sua situação,  presta o concurso da sua vontade e da sua prece. O mesmo não se dá, quando, seduzido pelo  Espírito embusteiro, ele se ilude no tocante às qualidades daquele que o domina e se compraz  no  erro  em  que  este  último  o  lança,  visto  que,  então,  longe  de  secundar,  repele  toda  assistência.  É  o  caso  da  fascinação,  infinitamente  mais  rebelde  do  que  a  mais  violenta  subjugação. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII.)  Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso auxiliar de quem haja de  atuar sobre o Espírito obsessor.  82. Prece. (Para ser dita pelo obsidiado.) – Meu Deus, permite que os bons Espíritos  me livrem do Espírito malfazejo que se ligou a mim. Se é uma vingança que toma  dos  agravos  que  eu  lhe haja  feito  outrora,  tu  a  consentes, meu  Deus,  para minha  punição e eu sofro a conseqüência da minha falta. Que o meu arrependimento me  granjeie o teu perdão e a minha liberdade! Mas, seja qual for o motivo, imploro para  o  meu  perseguidor  a  tua  misericórdia.  Digna­te  de  lhe  mostrar  o  caminho  do  progresso, que o desviará do pensamento de praticar o mal. Possa eu, de meu lado,  retribuindo­lhe com o bem o mal, induzi­lo a melhores sentimentos.  Mas,  também  sei,  ó  meu  Deus,  que  são  as  minhas  imperfeições  que  me  tornam  passível  das  influências  dos  Espíritos  imperfeitos.  Dá­me  a  luz  de  que
  • 278. 278 – Allan Kardec  necessito para as reconhecer; combate, sobretudo, em mim o orgulho que me cega  com relação aos meus defeitos.  Qual não  será  a minha indignidade,  pois  que  um  ser  malfazejo  me  pode  subjugar!  Faze, ó meu Deus, que me sirva de lição para o futuro este golpe desferido  na  minha  vaidade;  que  ele  fortifique  a  resolução  que  tomo  de  me  depurar  pela  prática do bem, da caridade e da humildade, a fim de opor, daqui por diante, uma  barreira às más influências.  Senhor, dá­me forças para suportar com paciência e resignação esta prova.  Compreendo  que,  como  todas  as  outras,  há  de  ela  concorrer  para  o  meu  adiantamento,  se  eu  não  lhe  estragar  o  fruto  com  os  meus  queixumes,  pois  me  proporciona ensejo de mostrar a minha submissão e de exercitar minha caridade para  com  um  irmão  infeliz,  perdoando­lhe  o  mal  que  me  fez.  (Cap.  XII,  nos  5  e  6;  cap.  XXVIII, nº 15 e seguintes, 46 e 47)  83.  Prece.  (Pelo  obsidiado.)  –  Deus  Onipotente,  digna­te  de  me  dar  o  poder  de  libertar N.... da influência do Espírito que o obsidia. Se está nos teus desígnios pôr  termo a essa prova, concede­me a graça de falar com autoridade a esse Espírito.  Bons  Espíritos  que  me  assistis  e  tu,  seu  anjo  guardião,  dai­me  o  vosso  concurso; ajudai­me a livrá­lo do fluido impuro em que se acha envolvido.  Em nome de Deus Onipotente, adjuro o Espírito malfazejo que o atormenta  a que se retire.  84. Prece. (Pelo Espírito obsessor.) – Deus infinitamente bom, à tua misericórdia  imploro para o Espírito que obsidia N... Faze­lhe entrever as divinas claridades, a  fim de que reconheça falso o caminho por onde enveredou. Bons Espíritos, ajudai­  me a fazer­lhe compreender que ele tudo tem a perder, praticando o mal, e tudo a  ganhar, fazendo o bem.  Espírito que te comprazes em atormentar N..., escuta­me, pois que te falo  em nome de Deus.  Se quiseres refletir, compreenderás que o mal nunca sobrepujará o bem e  que não podes ser mais forte do que Deus  e os bons Espíritos. Possível lhes fora  preservar N..., dos teus ataques; se não o fizeram, foi porque ele (ou ela) tinha de  passar por uma prova. Mas, quando essa prova chegar a seu termo, toda ação sobre  tua vítima te será vedada. O mal que lhe houveres feito, em vez de prejudicá­la, terá  contribuído para o seu adiantamento e para torná­la por isso mais feliz. Assim, a tua  maldade tê­la­ás empregado em pura perda e se voltará contra ti.  Deus, que é todo­poderoso, e os Espíritos superiores, seus delegados, mais  poderosos do que tu, serão capazes de pôr fim a essa obsessão e a tua tenacidade se  quebrará de encontro a essa autoridade suprema. Mas, por isso mesmo que é bom,  quer Deus deixar­te o mérito de fazeres que ela cesse pela tua própria vontade. É  uma  mora  que  te  concede;  se  não  a  aproveitares,  sofrer­lhe­ás  as  deploráveis  conseqüências. Grandes castigos e cruéis sofrimentos te esperarão. Serás forçado a  suplicar a piedade e as preces da tua vítima, que já te perdoa e  ora por ti, o que  constitui grande merecimento aos olhos de Deus e apressará a libertação dela.  Reflete,  pois,  enquanto  ainda  é  tempo,  visto  que  a  justiça  de  Deus  cairá  sobre  ti,  como  sobre  todos  os  Espíritos  rebeldes.  Pondera  que  o  mal  que  neste
  • 279. 279 – O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO  momento praticas terá forçosamente um limite, ao passo que, se persistires na tua  obstinação, aumentarão de contínuo os teus sofrimentos.  Quando  estavas  na  Terra,  não  terias  considerado  estúpido  sacrificar  um  grande  bem  por  uma  pequena  satisfação  de  momento?  O  mesmo  acontece  agora,  quando  és  Espírito.  Que  ganhas  com  o  que  fazes?  O  triste  prazer  de  atormentar  alguém, o que não obsta a que sejas desgraçado, digas o que disseres, e que te tornes  ainda mais desgraçado.  A par disso, vê o que perdes; observa os bons Espíritos que te cercam e dize  se  não  é  preferível  à  tua  a  sorte  deles.  Da  felicidade  de  que  gozam,  também  tu  partilharás, quando o quiseres. Que é preciso para isso? Implorar a Deus e fazer, em  vez do mal, o bem. Sei que não te podes transformar repentinamente; mas, Deus não  exige o impossível; quer apenas a boa vontade. Experimenta e nós te ajudaremos.  Faze que em breve possamos dizer em teu favor a prece pelos Espíritos penitentes  (nº  73)  e  não  mais  considerar­te  entre  os  maus  Espíritos, enquanto  te  não  contes  entre os bons.  (Veja­se também, atrás, o nº 75: “Preces pelos Espíritos endurecidos”.)  Observação. – A cura das obsessões graves requer muita paciência, perseverança e devotamento.  Exige também tato e habilidade, a fim de encaminhar para o bem Espíritos muitas vezes perversos,  endurecidos e astuciosos, porquanto há os rebeldes ao extremo. Na maioria dos casos, temos de nos  guiar pelas circunstâncias. Qualquer que seja, porém, o caráter do Espírito, nada se obtém, é isto  um fato incontestável, pelo constrangimento ou pela ameaça. Toda influência reside no ascendente  moral.  Outra  verdade  igualmente  comprovada  pela  experiência  tanto  quanto  pela  lógica,  é  a  completa  ineficácia  dos  exorcismos,  fór mulas,  palavras  sacramentais,  amuletos,  talismãs,  práticas exteriores, ou quaisquer sinais materiais.  A obsessão muito prolongada pode ocasionar desordens patológicas e reclama, por vezes,  tratamento simultâneo ou consecutivo, quer magnético, quer médico, para restabelecer a saúde do  organismo. Destruída a causa, resta combater os efeitos. (Veja­se: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte,  cap. XXIII – “Da obsessão”. – Revue Spirite, fevereiro e março de 1864; abril de 1865: exemplos  de curas de obsessões)